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O Passo Alpino, nas alturas da Hausruck austríaca, era varrido pela neve de inverno e assolado pelos ventos gelados do norte, enquanto num vale lá embaixo cresciam o açafrão e os junquilhos do início da primavera. Este determinado passo não era um posto de fronteira, nem uma barreira entre uma parte e outra da cordilheira. Na realidade, não figurava em nenhum mapa publicado para consulta pública.
Havia uma ponte pesada e resistente, que mal dava para a passagem de um único veículo, vencendo uma garganta de vinte e cinco metros, algumas centenas de metros acima de uma ramificação encachoeirada do rio Salzach. Uma vez atravessada, e passando-se por um labirinto formado de árvores, chegava-se a uma estrada oculta cortada no meio da floresta, na encosta da montanha, uma estrada íngreme e sinuosa que descia bem mais do que dois mil e quinhentos metros até chegar ao vale isolado onde cresciam o açafrão e os junquilhos. O terreno plano muito mais quente estava juncado de campos verdejantes e de árvores mais verdes ainda... e de um complexo de pequenas construções, cujos tetos eram camuflados por faixas de cores terrosas pintadas em diagonal, impossíveis de serem detectadas do ar, como se fossem apenas parte do terreno montanhoso. Era o quartel-general da Die Brüderschaft der Wacht, A Irmandade da Vigília, os progenitores do Quarto Reich da Alemanha.
As duas figuras atravessando a ponte vestiam pesados parkas, gorros de pele e grossas botas de alpinista; cada um deles virava o rosto para se proteger das rajadas de vento e de neve que os açoitavam. Cambaleando, alcançaram a outra cabeceira e o viajante que ia na frente falou.
- Esta não é uma ponte que eu gostaria de atravessar com muita frequência - disse o americano, batendo com as mãos na roupa para remover a neve e tirando as luvas para massagear o rosto.
- Mas você terá de fazê-lo ao voltar, Herr Lassiter - retrucou o alemão de meia-idade avançada, a sorrir largamente, protegido por uma árvore, enquanto ele também removia a neve. - Não fique aborrecido, mein Herr. Antes de se dar conta, estará num lugar de clima quente e onde existem flores de verdade. Nesta altitude ainda é inverno, lá embaixo é primavera... Venha, nosso transporte chegou. Siga-me!
Ouviram-se as explosões de um motor à distância; os dois homens, Lassiter atrás, caminharam depressa, serpenteando entre as árvores até uma pequena clareira, onde jazia um veículo tipo jipe, só que muito maior e muito mais pesado, com pneus-balão, de borracha muita grossa e profundamente frisados.
- Um carro e tanto - disse o americano.
- Você devia ter orgulho, é amerikanisch! Fabricado segundo nossas especificações no seu estado de Michigan.
- Que fim levou a Mercedes?
- Perto demais, perigoso demais - respondeu o alemão. - Se você quiser construir uma fortaleza no meio dos seus, não utilize os recursos deles. O que você verá em breve é o produto dos esforços combinados de várias nações, dos seus homens de negócios mais cobiçosos, concordo, comerciantes dispostos a ocultar seus clientes e suas remessas em troca de lucros exorbitantes. É claro que depois das remessas feitas, os lucros viram uma séria ameaça; precisam continuar com as remessas, talvez de mercadorias mais secretas. Mas assim é a vida.
- Aposto que sim - disse Lassiter, sorrindo enquanto tirava o gorro de pele para aliviar o suor do couro cabeludo. Ele tinha cerca de um metro e oitenta, um homem de meia-idade, comprovada pelas manchas de cabelos grisalhos nas têmporas e pés de galinha nos cantos de seus olhos bem-delineados; o próprio rosto era estreito, de feições bem-talhadas. Dirigiu-se ao veículo, alguns passos atrás de seu companheiro. Entretanto, nem este nem o motorista do veículo descomunal notaram que ele metia repetidamente a mão no bolso, tirando-a e jogando sub-repticiamente projéteis de chumbo de caça na grama varrida pela neve. Andara fazendo isto há aproximadamente uma hora, desde que desembarcaram de um caminhão numa estrada alpina entre dois vilarejos na montanha. Cada chumbinho fora tratado com radiação facilmente detectada por scanners de mão. No local onde o caminhão parara, ele tirara um sinalizador eletrônico do cinto e, fingindo cair, enfiara-o entre duas pedras. O caminho agora estava claro; o indicador do aparelho de rastreamento do pessoal que vinha seguindo atingiria o ponto máximo naquele lugar, seguido de fortes e agudos bips.
Porque aquele homem chamado Lassiter fazia parte de uma profissão de alto risco. Era um agente ultrassecreto e poliglota do serviço secreto americano, e seu nome era Harry Latham. Nos sacrossantos recintos da CIA, seu codinome era Sting.
A viagem de descida até o vale deixou Latham boquiaberto. Escalara algumas montanhas junto com seu pai e seu irmão mais novo, mas eram picos menores e nada dramáticos da Nova Inglaterra, nada que se comparasse a isto. Ali, à medida que a descida íngreme prosseguia, viam-se mudanças, óbvias mudanças - cores diferentes, diferentes aromas, brisas mais quentes. Sentado sozinho no banco traseiro do grande caminhão aberto, esvaziou o bolso de chumbinhos comprometedores, preparando-se para a minuciosa revista que antecipara; estava limpo. E também muito alerta, mantendo sua excitação sob controle devido a anos de experiência, mas mesmo assim sua cabeça estava pegando fogo. Era ali! Ele o encontrara! E no entanto, ao atingirem o fundo do vale, até Harry Latham espantou-se com o que realmente descobrira.
A várzea de aproximadamente cinco quilômetros quadrados era na realidade uma base militar, camuflada à perfeição. Os tetos dos vários prédios de um andar eram pintados para se confundirem com os arredores, e partes inteiras dos campos ficavam sob um trançado de cordas a cinco metros de altura, sendo que os espaços vazios entres os postes e as cordas eram tapados por plásticos verdes transparentes - corredores de circulação entre uma área e outra. Motocicletas cinzas com carrinhos laterais passavam correndo por essas "vielas" ocultas, com os motociclistas e passageiros de uniforme, enquanto podiam-se ver grupos de homens e mulheres em meio a exercícios de treinamento, tanto físicos quanto aparentemente acadêmicos - havia professores ao lado de quadros negros, diante de fileiras desiguais de estudantes. Aqueles entregues à ginástica e ao combate corpo a corpo vestiam-se sumariamente - calções e camisetas sem manga; os que atendiam às aulas, em uniformes de faxina verde-garrafa. O que impressionou Harry Latham era a aparência de movimento constante. Havia uma intensidade amedrontadora ligada àquele vale, mas pensando bem, também em relação à Brüderschaft, e ali era seu útero.
- É espetacular, nicht wahr, Herr Lassiter? - gritou o alemão de meia-idade sentado ao lado do motorista, quando alcançaram a estrada do fundo e entraram num corredor coberto de cordas e de plástico verde.
- Unglaublich - concordou o americano. - Phantastisch!
- Eu me esqueço de que você fala fluentemente a nossa língua.
- Meu coração pertence a esta terra. Sempre pertenceu.
- Natürlich, denn wïr sind im Recht.
- Mehr als das, wir sind die Wahrheit. Hitler falou a verdade de todas as verdades.
- Sim, sim, é claro - respondeu o alemão, sorrindo com um olhar neutro para Alexander Lassiter, nascido Harry Latham, de Stockbridge, Massachusetts. - Iremos direto ao Oberbefehlshaber. O Kommandant está ansioso para conhecê-lo.
Trinta e dois meses de um estafante e intricado trabalho estavam prestes a dar frutos, pensou Latham. Quase três anos a construir uma vida, a viver uma vida que não era a dele, estavam prestes a terminar. As intermináveis, irritantes, extenuantes viagens através da Europa e do Oriente Médio, calculadas até a hora, até o minuto, para que se encontrasse em determinado lugar em tal hora, de modo que outras pessoas pudessem jurar pela própria vida terem-no visto. E a escória do mundo com a qual tivera de lidar - contrabandistas de armas, sem consciência nenhuma, cujos lucros exorbitantes eram medidos por superpetroleiros de sangue; chefões da droga, matando e aleijando gerações de crianças em todo o mundo; políticos comprometidos, até mesmo estadistas, que tornavam maleáveis e subvertiam as leis para o benefício dos manipuladores - tudo isso acabara. Não haveria mais a frenética canalização de quantias nababescas através de contas suíças para lavar dinheiro, números secretos e assinaturas de espectrógrafos, tudo fazendo parte do jogo mortífero do terrorismo internacional. O pesadelo pessoal de Harry Latham, não importa quão vital, terminara.
- Chegamos, Herr Lassiter - anunciou o acompanhante alemão de Latham, quando o veículo estacionou diante de uma porta de quartel, sob a proteção verde e acordoada em cima. - Agora está mais quente, muito mais agradável, nicht wahr?
- Certamente - respondeu o agente ultrassecreto, descendo do assento traseiro. - Chego a estar suando sob essas roupas.
- Tiraremos os agasalhos lá dentro e secaremos os seus para sua volta.
- Agradeço. Preciso estar de volta a Munique esta noite.
- Sim, compreendemos. Venha, o Kommandant.
Quando os dois homens se aproximaram da pesada porta de madeira preta com uma suástica escarlate gravada no centro, ouviu-se um ruído farfalhante no ar. Em cima, além da cobertura verde translúcida, as grandes asas brancas de um planador mergulhavam em círculos descendentes sobre o vale.
- Outra maravilha, Herr Lassiter! É lançado de sua nave-mãe numa altitude de mais ou menos quatro mil metros. Natürlich, o piloto precisa ser muito bem-treinado, porque os ventos são muito perigosos, tão imprevisíveis. É usado apenas em emergências.
- Estou vendo como ele desce. Mas como sobe?
- Os mesmos ventos, mein Herr, com a ajuda de foguetes propulsores descartáveis. Nos anos trinta, nós alemães desenvolvemos os planadores mais adiantados.
- Por que não usar um pequeno avião convencional?
- Pode ser monitorado com demasiada facilidade. Um planador pode ser puxado num campo, num pasto vazio. Um avião precisa de combustível, de serviços de apoio, de manutenção, e até de um plano de voo.
- Phantastisch - repetia o americano. - E, é claro, o planador tem poucas ou nenhuma peça metálica. Plástico e tecidos colados são difíceis de serem detectados pelo radar.
- Difíceis - concordou o nazista da nova era. - Não é completamente impossível, mas extremamente difícil.
- Maravilhoso - disse Herr Lassiter, enquanto seu acompanhante abria a porta do quartel-general do vale. - Merecem todos parabéns. O isolamento de vocês vai de par com a segurança. Excelente! - Fingindo um à vontade que não sentia, Latham deu uma olhada em torno da grande sala. Havia grande quantidade de equipamento computadorizado sofisticado, consoles encostados em cada parede, com um operador de uniforme engomado diante de cada um, aparentemente um número igual de homens e mulheres... Homens e mulheres - havia alguma coisa esquisita, pelo menos anormal. O que era? E então ele percebeu: até o último indivíduo, os operadores eram jovens, geralmente na casa dos vinte, todos louros e de cabelos claros, de pele clara e bronzeada. Como grupo, era extraordinariamente atraente, como se fossem modelos arrebanhados por uma agência de publicidade para se sentarem diante dos computadores de algum cliente, e transmitirem a mensagem de que os fregueses em potencial também ficariam com aquela aparência se comprassem o produto.
- Cada um deles é um perito, Sr. Lassiter - disse uma voz estranha e monocórdica atrás de Latham. O recém-chegado estava vestido com um uniforme de camuflagem e com um quepe de oficial da Wehrmacht; surgira silenciosamente de uma porta aberta à esquerda. - General Ulrich von Schnabe, seu entusiástico anfitrião, mein Herr - e continuou ele de mão estendida. - Estou conhecendo uma lenda viva. Que privilégio!
- O senhor está sendo por demais generoso, general. Sou apenas um homem de negócios internacional, só que com crenças ideológicas bem-definidas, se assim quiser.
- Conclusões, sem dúvida, depois de anos de observação internacional?
- O senhor poderia dizer que sim, e não está errado. Eles alegam que a África foi o primeiro continente e, no entanto, enquanto os outros se desenvolveram no decorrer de milhares de anos, a Afrika continua a ser o Continente Negro. Os litorais nórdicos constituem agora portos para gente igualmente inferior.
- Boa observação, Sr. Lassiter. E no entanto o senhor ganhou milhões, alguns dizem bilhões, prestando serviço às peles escuras e mais escuras ainda.
- Por que não? Que melhor satisfação poderia um homem como eu ter do que ajudá-los a se massacrarem entre si?
- Wunderbar! Bela e inteligentemente colocado... O senhor estava observando o nosso grupo aqui, reparei. Pode constatar por si mesmo que estes, cada um deles, têm sangue ariano. Puro sangue ariano. Do mesmo modo que todo mundo em todos os recantos do nosso vale. Cada um deles foi cuidadosamente selecionado, sua ascendência sanguínea rastreada, a adesão é absoluta.
- O sonho do Lebensborn - disse o americano em voz baixa, reverente. - As fazendas de reprodução, aliás grandes propriedades, se não me engano, onde os mais perfeitos oficiais da SS procriavam com robustas mulheres teutônicas...
- Eichmann encomendou pesquisas. Ficou provado que a fêmea alemã do norte não só possuía a mais perfeita estrutura óssea da Europa e uma força extraordinária, como também uma notável subserviência ao macho - interrompeu o general.
- A verdadeira raça superior - concluiu Lassiter com admiração. - Quem dera que o sonho tivesse se tornado realidade.
- Em grande parte, se tornou - afirmou em voz baixa von Schnabe. - Acreditamos que muitos dos aqui presentes, se não a maioria, são os filhos daqueles filhos. Roubamos listas da Cruz Vermelha em Genebra, e levamos anos para descobrir as famílias para as quais os filhos do Lebensborn haviam sido mandados. Estes, e outros que haveremos de recrutar em toda a Europa, são as Sonnenkinder, os Filhos do Sol. Os herdeiros do Reich!
- É incrível.
- Estamos atingindo todos os recantos, e em todos os lugares aqueles que foram selecionados reagem positivamente, porque as circunstâncias são iguais. Do mesmo modo que na década de vinte, quando o garrote do Tratado de Versalhes e de Locarno levaram ao colapso econômico a República de Weimar e ao influxo de gente indesejável por toda a Alemanha, a queda do Muro de Berlim trouxe o caos. Somos uma nação conflagrada, com a gentalha não ariana atravessando nossas fronteiras em quantidades ilimitadas, roubando nossos empregos, poluindo nossa moral, prostituindo nossas mulheres, porque isso é perfeitamente aceitável nos seus lugares de origem. Mas é totalmente inaceitável e precisa parar! O senhor concorda, é claro.
- Por que outro motivo estaria aqui, general? Canalizei milhões para satisfazer suas necessidades através dos bancos em Algiers, via Marselha. O meu código tem sido Frère-Brüder. Acredito ser bem conhecido do senhor.
- E é por causa disso que eu lhe abraço de todo coração, como toda a Brüderschaft.
- Bem, então vamos concluir o meu último presente, general; último, porque o senhor nunca mais precisará de mim... Quarenta e seis mísseis cruise conseguidos do arsenal de Saddam Hussein, enterrados pelo seu esquadrão de oficiais, que achou que ele não sobreviveria. Suas ogivas são capazes de transportar grande quantidade de explosivos, e também cápsulas de gases com a capacidade de imobilizar áreas inteiras de uma cidade. Isto tudo está incluído, é claro, junto com os lançadores. Paguei vinte e cinco milhões de dólares, americanos, por eles. Pague-me o que puder, e se for menos, acatarei honrosamente meu prejuízo.
- O senhor é, de fato, um homem muito honrado, mein Herr.
De repente a porta da frente se abriu e um homem de macacão inteiramente branco entrou na sala. Olhou em volta, avistou von Schnabe, e caminhou diretamente em direção a ele, entregando ao general um envelope fechado de papel manilha.
- É isto - disse o homem em alemão.
- Danke - respondeu von Schnabe, abrindo o envelope e tirando de dentro dele uma pequena sacola de plástico. - O senhor é um bom Schauspieler, um bom ator, Herr Lassiter, mas acho que perdeu alguma coisa. Nosso piloto acaba de trazê-lo para mim. - O general sacudiu a sacola até que seu conteúdo caísse na palma de sua mão. Era o sinalizador que Harry Latham enfiara no meio das pedras numa montanhosa estrada a milhares de metros acima do vale. A caçada terminara. Harry ergueu subitamente a mão em direção à sua orelha direita.
- Impeça-o! - gritou von Schnabe, enquanto o piloto agarrava o braço de Latham, dando-lhe uma chave de braço. - Nada de cianureto, Harry Latham, de Stockbridge, Massachusetts, EUA. Temos outros planos para você, brilhantes planos.
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O sol do início da manhã era ofuscante, fazendo com que o velho que se arrastava através do matagal piscasse repetidamente, enquanto esfregava os olhos com a parte de trás de sua trêmula mão direita. Ele alcançara a beira de um pequeno promontório no cume do morro, o "terreno alto", como costumavam chamá-lo há muitos anos - anos gravados a fogo na sua memória. A elevação gramada dominava uma elegante propriedade rural no vale do Loire. Um terraço de lajes de pedra situava-se a não mais de cem metros abaixo dela, alcançado por um caminho de tijolos margeado de flores. Seguro pela mão esquerda do velho, com a correia bem esticada, estava um potente rifle, com a mira calibrada para aquela exata distância. A arma estava pronta para disparar. Dentro em breve seu alvo - um homem mais velho do que ele - apareceria na cruz da mira telescópica. O monstro estaria no meio de seu passeio matinal ao terraço trajando seu roupão elegante, e esperando pela sua recompensa: o café da manhã acompanhado do mais fino dos conhaques, recompensa que jamais haveria de receber naquela manhã. Pelo contrário, morreria, caindo no meio das flores, uma consumada ironia: a morte do extremo mal entre a beleza circundante.
Jean-Pierre Jodelle, com setenta e oito anos de idade e tendo sido um feroz líder interino da Résistance, esperara cinquenta anos para cumprir uma promessa, um juramento que fizera a si mesmo e a seu Deus. Fracassara junto aos advogados e nos sacrossantos tribunais de justiça; ou melhor, fracassara não, acabara insultado por eles, desdenhado por todos eles, e mandado se recolher com suas desprezíveis fantasias a uma cela de hospício, lugar a que pertencia! O grande general Monluc era um verdadeiro herói da França, colaborador íntimo de le grand Charles André de Gaulle, aquele ilustríssimo soldado-estadista, que se mantivera em constante contato com Monluc durante a guerra através das frequências de rádio clandestino, apesar da perspectiva da tortura e do pelotão de fuzilamento no final, caso Monluc fosse descoberto.
Era tudo merde! Monluc era um vira-casaca, um covarde e um traitor! Prestava uma obediência aparente ao arrogante de Gaulle, alimentava-o com informações secretas insignificantes, e forrava seus bolsos com ouro nazista e objetos de arte que valiam milhões. E após a guerra, le grand Charles, numa adulação eufórica, declarara ser Monluc un bel ami de guerre, um homem que deveria ser reverenciado. Era nada menos que uma ordem para a França inteira.
Merde! O pouco que de Gaulle sabia! Monluc ordenara a execução da mulher e do filho mais velho de Jodelle, um garoto de cinco anos. Seu segundo filho, um bebê de seis meses, foi poupado, talvez pela lógica deformada do oficial da Wehrmacht que disse, "Ele não é judeu, talvez alguém o encontre."
Alguém encontrou. Um companheiro combatente da Résistance, um ator da Comédie Française. Ele achou o bebê aos berros entre o entulho da casa destroçada nos arredores de Barbizon, onde viera participar de uma reunião secreta na manhã seguinte. O ator levara a criança para sua mulher em casa, uma famosa atriz, adorada pelos alemães - cujo carinho ela não retribuía, já que suas representações eram impostas e não voluntárias. E quando a guerra acabara, Jodelle era um esqueleto do que fora antes, fisicamente irreconhecível e mentalmente aquém de qualquer conserto, e sabendo disso. Três anos num campo de concentração empilhando os cadáveres de judeus, ciganos e "indesejáveis" assassinados a gás, tinham-no reduzido a uma quase-idiotia, com tiques no pescoço, esgares involuntários, gritos espasmódicos vindo do fundo da garganta, e tudo aquilo que acompanhava o severo trauma psiquiátrico. Nunca revelara sua identidade ao filho sobrevivente ou aos "pais" que o haviam criado. Ao contrário, errando pelas entranhas de Paris e mudando frequentemente de nome, ele observava à distância a criança atingir a idade adulta e tornar-se um dos atores mais populares da França.
Aquela distância, aquele insuportável sofrimento, fora provocado por Monluc, o monstro, que entrava agora no visor redondo da mira telescópica de Jodelle. Faltavam agora apenas segundos, e seu juramento a Deus estaria cumprido.
De repente ouviu-se um tremendo estalo no ar e as costas de Jodelle pareciam arder em chamas, fazendo com que deixasse cair o rifle. Ele virou-se para trás, aturdido, percebendo dois homens em mangas de camisa, um deles com um comprido chicote, olhando de cima para ele.
- Seria um prazer matá-lo, seu velho doente, porém seu desaparecimento só traria complicações - disse o homem com o chicote. - Você tem uma boca encharcada de vinho que nunca para de vomitar loucuras. É melhor voltar para Paris e juntar-se a seu exército de vagabundos bêbados. Fora daqui, se não morre!
- Como...? Como souberam...?
- Você é um doente mental, Jodelle, ou seja lá qual for o nome que está usando este mês - disse o guarda ao lado do que carregava o chicote. - Acha que a gente não reparou em você durante os últimos dois dias, amassando a folhagem ao se dirigir para este local ultra-acessível com seu rifle? Você era muito melhor nos velhos tempos, dizem.
- Então me matem, seus filhos da puta! Prefiro morrer aqui, sabendo que cheguei tão perto, do que continuar vivendo!
- Ah, não, o general não gostaria - acrescentou o chicoteador. - Você poderia ter dito a outras pessoas o que pretendia fazer, e não queremos ninguém procurando por você ou por seu cadáver nesta propriedade. Você é louco, Jodelle, todo mundo sabe. Os tribunais deixaram isso claro.
- São corruptos.
- Você é paranoico.
- Eu sei aquilo que sei!
- Você também é um bêbado, fato bem documentado pelas dezenas de vezes em que já foi posto para fora dos cafés da Rive Gaúche. Vá beber no inferno, Jodelle, mas dê o fora daqui antes que eu te mande para lá agora. Levante-se! Corra o mais depressa que essas tuas pernas magras consigam te levar!
A cortina se fechou sobre a última cena da peça, uma tradução francesa do Coriolano de Shakespeare, revivido por Jean-Pierre Villier, o ator de cinquenta anos que era o rei do palco parisiense e do cinema francês, além de indicado para o Oscar pelo seu primeiro filme rodado nos Estados Unidos. A cortina se ergueu e desceu, e se ergueu de novo, enquanto o grandalhão Villier, com seus ombros largos, respondia à plateia com sorrisos e aplausos dirigidos a ela. Tudo isto estava prestes a explodir numa loucura.
Dos fundos do teatro, um velho em farrapos desceu cambaleando a passagem central, gritando a plenos pulmões na sua voz rouca. De repente puxou um rifle de dentro de suas calças largas, seguras por suspensórios, provocando naqueles da plateia que o perceberam um pânico que se alastrou instantaneamente pelas filas seguintes, enquanto os homens empurravam as mulheres para baixo a fim de tirá-las da linha de fogo, e o caos verbal reverberava nas paredes do teatro. Villier agiu rápido, empurrando para trás os poucos atores e membros da equipe técnica que haviam ido até o palco.
- Um crítico irado eu posso aceitar, monsieur! - berrou ele, confrontando-se com o velho demente que se aproximava do palco, num tom de voz conhecido que conseguia controlar qualquer multidão. - Mas isto é uma loucura! Deponha sua arma e podemos conversar!
- Não tenho mais o que conversar, meu filho! Meu único filho! Eu fracassei com você e sua mãe. Sou um inútil, um zero à esquerda! Só quero que saiba que tentei... Eu te amo, meu único filho, e tentei, mas fracassei!
Com essas palavras o velho virou o rifle, colocando o cano na boca, a mão direita buscando o gatilho. Alcançou-o e explodiu a parte traseira da sua cabeça, espalhando sangue e miolos em todos aqueles que estavam perto dele.
- Quem diabo era ele? - gritou um abalado Jean-Pierre Villier à mesa de seu camarim, tendo seus pais ao lado. - Ele falou tão delirantemente, em seguida se matou. Por quê?
Os velhos Villier, agora no final da casa dos setenta, olharam um para o outro; ambos balançaram a cabeça.
- Precisamos conversar - disse Catherine Villier, enquanto massageava o pescoço dolorido do homem que ela criara como filho. - Talvez com sua mulher também.
- Isso não é preciso - interrompeu o pai. - Ele tem capacidade de enfrentar isto se achar que deve.
- Tem razão, meu marido. É uma decisão que compete a ele.
- De que vocês dois estão falando?
- Nós escondemos muita coisa de você, Jean-Pierre. Estávamos num país ocupado, com o inimigo no nosso meio procurando constantemente aqueles que se opunham a ele em segredo, violentamente, que se opunham aos vencedores, em muitos casos torturando e prendendo famílias inteiras suspeitas.
- A Résistance, naturalmente - interrompeu Villier.
- Naturalmente - concordou o pai.
- Vocês dois fizeram parte dela, já me contaram isso, embora nunca se estendessem sobre a sua participação.
- Ficam melhor esquecidas - disse a mãe. - Foi uma época horrível. Tanta gente estigmatizada e torturada como colaboradores estava apenas protegendo seus bem-amados, inclusive seus filhos.
- Mas este sujeito hoje à noite, este mendigo maluco! Ele se identificou tanto comigo que me chamou de seu filho!... Eu compreendo um certo grau de devoção exagerada, são os ossos do ofício, não importa quão tolo isto possa ser, mas chegar ao ponto de se matar diante de meus olhos? Que loucura!
- Ele era maluco, levado à loucura pelo seu sofrimento - disse Catherine.
- Você o conhecia?
- Muito bem - respondeu o velho ator, Julian Villier. - Seu nome era Jean-Pierre Jodelle, e já foi um jovem e promissor barítono na ópera, e nós, sua mãe e eu, tentamos desesperadamente procurá-lo depois da guerra. Não encontramos vestígio, e como sabíamos que fora descoberto pelos alemães e mandado para um campo de concentração, presumimos que estivesse morto, riscado do mapa, como milhares de outros.
- Por que tentou achá-lo? Qual a relação que ele tinha com vocês?
A única mãe que Jean-Pierre já conhecera ajoelhou-se ao lado da cadeira de seu camarim, suas notáveis feições a indicarem a extraordinária estrela que ela fora; seus olhos verde-azulados, sob os cabelos brancos, cheios e sedosos, estavam cravados nos dele. Ela falou suavemente.
- Não só conosco, meu filho, mas com você. Ele era seu verdadeiro pai.
- Ah, meu Deus!... Então vocês dois...
- Sua verdadeira mãe - acrescentou Villier père, interrompendo delicadamente - era membro da Comédie...
- Um talento esplêndido - comentou Catherine - a meio caminho, naqueles anos difíceis, entre ser a inocência e a maturidade, tudo isso tornado horroroso pela ocupação. Era uma menina querida, como se fosse uma irmã mais nova para mim.
- Por favor! - gritou Jean-Pierre, levantando-se de um pulo, enquanto a mãe que ele conhecia ergueu-se e foi ficar ao lado do marido. - Tudo isto está se revelando tão depressa, é tão espantoso, eu... não consigo refletir.
- Às vezes é melhor não pensar durante certo tempo, meu filho - disse Villier, o mais velho. - Permaneça anestesiado até que sua cabeça lhe diga que está pronta para aceitar.
- Você costumava me dizer isto anos atrás - disse o ator, sorrindo triste e carinhosamente para Julian - quando eu estava com um problema com uma cena ou com um monólogo, cujo sentido me escapava. Você dizia: "Continue a ler e a reler as palavras sem fazer tanta força para acertar. Algo vai acontecer."
- Era um bom conselho, meu marido.
- Sempre fui melhor professor que ator.
- De acordo - disse Jean-Pierre baixinho.
- Perdão? Está de acordo?
- Só quero dizer, pai, que quando você estava no palco, você... você...
- Uma parte sua estava sempre concentrada nos outros - correu Catherine a explicar, trocando um olhar de conivência com seu filho, que não era seu filho.
- Ah, vocês dois estão conspirando de novo, não tem sido assim há anos? As duas grandes estrelas sendo simpáticas com o ator menor... Está bem! Agora isso acabou... durante alguns momentos paramos todos de pensar sobre a noite de hoje. Talvez agora possamos conversar.
Silêncio.
- Pelo amor de Deus, conte-me o que aconteceu! - exclamou por fim Jean-Pierre.
Ao fazer essa pergunta, ouviram-se batidas apressadas na porta do camarim; abriu-a o velho vigia do teatro.
- Desculpe por interromper, mas achei que deviam saber. Ainda há repórteres na porta de trás. Não querem acreditar na polícia nem em mim. Dissemos que você já tinha saído mais cedo pela porta principal, mas não ficaram convencidos. Contudo, não podem entrar.
- Então ficaremos aqui por algum tempo, a noite toda, se for preciso. Pelo menos, eu ficarei. Tem um divã no quarto ao lado e já falei com minha mulher. Ela ouviu tudo no noticiário.
- Está bem... Madame Villier, e o senhor também, monsieur, mesmo nessas terríveis circunstâncias, é maravilhoso poder revê-los. São sempre lembrados com grande carinho.
- Obrigado, Charles - disse Catherine. - Você está ótimo, meu amigo.
- Ficaria ainda melhor se pudesse vê-la de volta ao palco, madame. - O vigia balançou a cabeça e fechou a porta.
- Vamos lá, pai, o que foi que aconteceu?
- Fazíamos todos parte da Résistance - começou Julian Villier, sentando-se num pequeno sofá para duas pessoas do outro lado do camarim -, artistas reunidos contra um inimigo que ia destruir toda a arte. E possuíamos algumas habilidades que eram úteis à nossa causa. Os músicos transmitiam códigos inserindo frases melódicas que não se encontravam na partitura original; os ilustradores produziam diária e semanalmente os cartazes exigidos pelos alemães, mas também inserindo sutilmente cores e imagens que transmitiam outras mensagens. E nós do teatro alterávamos constantemente o texto, especialmente de remontagens e peças bem conhecidas, muitas vezes dando instruções diretas aos sabotadores.
- Às vezes era bastante divertido - interrompeu a majestosa Catherine, indo juntar-se a seu marido e pegando na sua mão. - Digamos que houvesse uma passagem no texto em que teríamos de dizer "Eu irei encontrá-la no metrô de Montparnasse". Nós a mudaríamos para "Eu irei encontrá-la na estação ferroviária do leste, ela deve estar lá às onze horas". A peça terminaria, a cortina cairia, e todos aqueles alemães nos seus magníficos uniformes estariam aplaudindo, enquanto uma equipe da Résistance sairia rapidamente para se unir às unidades de sabotagem na Gare de l’Est, uma hora antes da meia-noite.
- Sim, sim - disse Jean-Pierre impacientemente. - Já ouvi esses casos, mas não é isso que estou perguntando. Compreendo que seja tão difícil para vocês quanto para mim, mas por favor, contem-me aquilo que preciso saber.
O casal de cabelo branco trocou um olhar intenso entre si; a mulher balançou a cabeça enquanto se davam as mãos, as veias nodosas à mostra. Seu marido falou.
- Jodelle foi descoberto, denunciado por um jovem mensageiro que não conseguiu aguentar a tortura. A Gestapo cercou sua casa, à espera de que ele voltasse uma noite, mas ele não podia voltar, já que estava em Le Havre fazendo contato com agentes britânicos e americanos durante o planejamento preliminar da invasão. Ao amanhecer, disseram que o comandante do pelotão da Gestapo ficou furioso com a frustração. Invadiu a casa e executou sua mãe e seu irmão mais velho, um garoto de cinco anos. Prenderam Jodelle várias horas depois; conseguimos mandar-lhe uma mensagem que você tinha sobrevivido.
- Ah... meu Deus! - O famoso ator ficou pálido, fechando os olhos ao se deixar cair na sua cadeira. - Monstros!... Mas espere, o que acabaram de dizer? "Disseram que o comandante da Gestapo..." Disseram? Mas não foi confirmado?
- Você é muito rápido, Jean-Pierre - comentou Catherine - Sabe escutar, e por isso é um grande ator.
- Que se dane isto, mãe. O que você quis dizer, pai?
- A política dos alemães não era matar as famílias dos combatentes da Résistance, reais ou suspeitos. Podiam empregá-los de maneira mais útil... torturá-los para obter informações, ou usá-los como isca para outros, e havia sempre os trabalhos forçados, as mulheres para servirem ao Corpo de Oficiais, categoria a que sua verdadeira mãe certamente iria pertencer.
- Então por que foram mortos?... Não, mas primeiro me contem. Como sobrevivi?
- Eu saí para ir a uma reunião logo ao amanhecer nos bosques de Barbizon. Passei pela sua casa, vi janelas quebradas, a porta da frente arrebentada, e ouvi um bebê chorando. Você. Tudo ficou óbvio e, é claro, a reunião não se realizaria. Trouxe você para casa, de bicicleta, pelas ruas mais escondidas de Paris.
- É meio tarde para agradecer, mas insisto, por que minha... minha verdadeira mãe e meu irmão foram mortos a tiro?
- Agora você usou a palavra errada, meu filho - disse Villier, o mais velho.
- O quê?
- No seu espanto, você não escutou tão atentamente quando narrei os acontecimentos daquela noite.
- Pare com isso, papai! Diga logo o que tem a dizer!
- Eu falei "executados", e você disse "mortos a tiro".
- Não compreendo...
- Antes de Jodelle ser descoberto pelos alemães, um de seus disfarces era de mensageiro urbano do Ministério da Informação... os nazistas nunca conseguiam aprender direito nossos arrondissements, muito menos nossas ruas curvas e curtas. Nós nunca soubemos dos detalhes, pois apesar de ser dono de uma voz tão impressionante, Jodelle era extremamente reservado quando se tratava de boatos. E eles circulavam em toda parte. Mentiras, meias-verdades e verdades percorriam Paris como uma bala, diante do mínimo pretexto. Éramos uma cidade nas garras do medo e da suspeita...
- Compreendo isso tudo, meu pai - interrompeu um Jean-Pierre mais impaciente ainda. - Por favor explique-me aquilo que não compreendo. Esses detalhes que você nunca soube, o que têm eles a ver com a matança, com as execuções?
- Jodelle contou a alguns de nós que havia um homem num cargo tão elevado da Résistance que era uma verdadeira lenda, seu nome sendo apenas citado em voz baixa, e sua identidade o segredo mais bem-guardado do movimento. Jodelle, contudo, alegou ter sabido quem era o homem, e se tudo que levantara estivesse certo, aquele sujeito, aquela "lenda viva" não era nenhum herói, mas pelo contrário, um traidor.
- Quem era ele? - insistiu Jean-Pierre.
- Ele nunca nos contou. No entanto, chegou a dizer que o homem era um general do nosso exército francês, dos quais haviam dúzias. Ele disse que se ele tivesse razão e algum de nós revelasse o nome do homem, seríamos fuzilados pelos alemães. Se estivesse errado, e alguém caluniasse o homem, haveriam de nos chamar de irresponsáveis, e não mereceríamos mais confiança.
- O que ia ele então fazer?
- Se fosse capaz de provar sua suposição, iria ele mesmo liquidar o homem. Jurou que estava em condições de fazê-lo. Nós presumimos, corretamente, e é o que achamos até hoje, que o traidor, fosse lá quem fosse, conseguiu saber das desconfianças de Jodelle e deu a ordem para executarem Jodelle e a sua família.
- Foi isso então? Não tem mais?
- Procure compreender como era naquela época, meu filho - disse Catherine Villier. - Uma palavra errada, até mesmo um gesto ou olhar hostil podiam resultar na detenção imediata, encarceramento, e até, não era inédito, na deportação. As forças de ocupação, especialmente os oficiais ambiciosos de nível médio na hierarquia, suspeitavam fanaticamente de tudo e de todos. Cada novo sucesso da Résistance botava lenha na fogueira do seu ódio. Para resumir, ninguém estava à salvo, Kafka não teria inventado um inferno igual àquele.
- E vocês nunca mais o viram até esta noite?
- Mesmo se tivéssemos, não o teríamos reconhecido - respondeu Villier père. - Mal consegui fazê-lo na hora de identificar seu corpo. Apesar da idade, ele era a sombra do homem que conhecera, menos da metade do peso e da altura do que fora, cara de múmia, uma versão enrugada e esticada do que fora antes.
- Talvez não fosse ele, não é possível, pai?
- Não, era Jodelle. Seus olhos estavam bem abertos na morte, e ainda muito azuis, como um céu sem nuvens, um céu do Mediterrâneo... Como os seus, Jean-Pierre.
- Jean-Pierre...? - disse o ator com delicadeza. - Foram vocês que me deram este nome?
- Para dizer a verdade, também era o nome de seu irmão - corrigiu suavemente a atriz. - Aquela pobre criança já não precisava dele, e achamos que você deveria herdá-lo em consideração à Jodelle.
- Isso foi atencioso de sua parte...
- Sabíamos que jamais poderíamos substituir seus verdadeiros pais - continuou rapidamente a atriz, num tom de voz meio suplicante. - Mas tentamos fazer o melhor possível, meu querido. Em nossos testamentos esclarecemos tudo que aconteceu, mas até esta noite não tínhamos conseguido reunir a coragem para te contar. Nós te amamos tanto.
- Pelo amor de Deus, mãe, pare se não desando a chorar. Quem no mundo todo poderia desejar ter melhores pais que vocês? Eu nunca saberei aquilo que não posso saber, mas vocês serão para sempre meu pai e minha mãe, e sabem disto.
O telefone tocou, assustando a todos.
- A imprensa não conhece este telefone, conhece? - perguntou Julian.
- Pelo que sei, não - respondeu Jean-Pierre, virando-se para o telefone em cima da mesa de maquilagem. - Só vocês, Giselle e meu agente o conhecem; nem mesmo meu advogado, ou, Deus que me perdoe, os donos do teatro... Sim? - respondeu guturalmente ele.
- Jean-Pierre? - perguntou sua mulher, Giselle, ao telefone.
- Claro, querida.
- Eu não tinha certeza...
- Nem eu, por isso é que atendi com uma voz falsa. Papai e mamãe estão aqui, e irei para casa assim que os jornalistas desistirem da vigília noturna.
- Acho que você deveria arranjar um jeito de vir para casa agora.
- O quê?
- Veio um homem te ver...
- A essa hora? Quem é?
- Um americano, e diz que precisa falar com você. É sobre esta noite.
- Esta noite... aqui no teatro?
- Sim, querido.
- Você não devia tê-lo deixado entrar, Giselle.
- Fiquei com medo, mas não tive escolha. Henri Bressard veio com ele.
- Henri? Qual a ligação do que houve esta noite com o Quai d’Orsay?
- Enquanto conversamos, nosso amigo Henri está esbanjando sorrisos e charme diplomático e não me dirá nada até você chegar... Não estou certa, Henri?
- Certa demais, minha cara Giselle - foi a resposta longínqua que Villier ouviu. - Eu mesmo sei muito pouco, praticamente nada.
- Ouviu-o, querido?
- Bastante bem. E o americano? Não é chato? Responda apenas sim ou não.
- Pelo contrário. Embora, como vocês atores dizem, seus olhos tenham uma chama acesa.
- E quanto à papai e mamãe? Devo levá-los?
Giselle Villier se dirigiu aos dois homens na sala, repetindo a pergunta.
- Mais tarde - disse o homem do Quai d’Orsay, numa voz bastante alta para que pudesse ser ouvida pelo telefone. - Nós conversaremos com eles mais tarde, Jean-Pierre - acrescentou ele mais alto ainda. - Não hoje à noite.
O ator e seus pais deixaram o teatro pela porta da frente, tendo o vigia dito à imprensa que Villier apareceria brevemente na porta dos fundos.
- Mantenha-nos informados do que está acontecendo - disse Julian, enquanto ele e sua mulher abraçavam seu filho e se dirigiram para o primeiro dos dois táxis chamados pelo telefone do camarim. Jean-Pierre embarcou no segundo e deu-lhe seu endereço no Parc Monceau.
As apresentações foram breves e alarmantes. Henri Bressard, primeiro-secretário de Relações Exteriores da República da França e há uma década amigo chegado de Villier, mais novo do que ele, falava calmamente, fazendo gestos em direção a seu acompanhante americano, um homem alto de trinta e tantos anos, com cabelo castanho-escuro e feições bem-talhadas, embora com olhos cinza-claros impressionantemente vivos, fazendo talvez contraste com seu delicado sorriso.
- Este é Drew Latham, Jean-Pierre. Ele é um agente especial de uma divisão do serviço secreto americano conhecida apenas como Operações Consulares, uma unidade que nossas próprias fontes descobriram estar duplamente subordinada ao Departamento de Estado americano e à CIA... Meu Deus, como essas duas coisas podem funcionar juntas está além da compreensão deste diplomata!
- Nem sempre é fácil, Sr. Secretário - comentou Latham com simpatia, embora hesitantemente, num francês meio arrevesado - mas a gente consegue.
- Talvez devêssemos falar em inglês - sugeriu Giselle Villier. - Falamos todos fluentemente.
- Muito obrigado - respondeu o americano em inglês. - Eu não gostaria de ser mal interpretado.
- Não será - disse Villier - mas por favor compreenda que nós... eu... preciso saber o motivo de sua presença aqui esta noite, esta terrível noite. Ouvi coisas esta noite que jamais ouvira antes. Será que veio acrescentar ainda mais coisas, monsieur?
- Jean-Pierre - interrompeu Giselle - de que você está falando?
- Deixe que ele responda - disse Villier, seus grandes olhos azuis cravados no americano.
- Talvez sim, talvez não - respondeu o agente de espionagem. - Sei que conversou com seus pais, mas não posso saber a respeito de que conversaram.
- Claro. Mas talvez seja possível que tenha presumido uma certa tendência na nossa conversa, não é?
- Para dizer a verdade, sim, embora eu não saiba quanto já lhe contaram antes. Os acontecimentos desta noite deixam entrever que não sabia nada a respeito de Jean-Pierre Jodelle.
- Totalmente verdade - disse o ator.
- A Sûreté, que também nada sabe, interrogou-o longamente e ficou convencida de que o senhor dizia a verdade.
- E por que não, Monsieur Latham? Eu estava dizendo a verdade.
- E agora a verdade é outra, Sr. Villier?
- Sim, é outra.
- Será que vocês dois não podem parar com os circunlóquios? - exclamou a mulher do ator. - Que verdade é essa?
- Fique calma, Giselle. Estamos na mesma frequência de onda, como dizem os americanos.
- Vamos parar por aqui? - perguntou o agente das Operações Consulares. - Prefere conversar em particular?
- Não, claro que não. Minha mulher tem o direito de saber tudo, e Henri aqui é um dos nossos melhores amigos, e também educado para ser discreto.
- Vamos sentar? - perguntou Giselle com firmeza. - Isto tudo é muito confuso para ser compreendido de pé. - Depois de terem se acomodado nas suas cadeiras, ela sentada ao lado do marido, acrescentou: - Por favor continue, Monsieur Latham, e peço-lhe que seja mais claro.
- Eu gostaria de saber - interrompeu Bressard, numa atitude típica de oficial do governo - quem era esse Jodelle, e por que deveria Jean-Pierre conhecer qualquer coisa a seu respeito?
- Perdoe-me, Henri - interrompeu o ator. - Não veja nisto nenhuma objeção da minha parte, mas gostaria de saber por que Monsieur Latham achou apropriado usar você como meio de chegar a mim.
- Eu sabia que eram amigos - respondeu o próprio americano. - Para ser franco, algumas semanas atrás, quando mencionei a Henri minha incapacidade de conseguir ingressos para sua peça, o senhor fez a gentileza de deixar dois deles na bilheteria para mim.
- Ah, sim, me lembro... Seu nome parecia de algum modo conhecido, mas com tudo isso que aconteceu, não consegui ligar uma coisa à outra. "Dois em nome de Latham..." Agora lembro.
- O senhor foi maravilhoso...
- Isto é amabilidade sua - interrompeu Jean-Pierre, dispensando os elogios e examinando o agente americano, e em seguida olhando para Bressard. - Portanto - continuou ele - devo presumir que o senhor e Henri se conhecem.
- Mais em caráter oficial do que social - disse Bressard. - Acredito que só jantamos juntos apenas uma vez; na realidade foi uma esticada de uma conferência que não chegou a resolver quase nada.
- Entre os governos de vocês dois - comentou Giselle em voz alta.
- Sim - concordou Bressard.
- E o que você e Monsieur Latham discutem, Henri? - insistiu ela. - Se me for permitido perguntar.
- É claro que pode, minha cara - respondeu Bressard. - De modo geral, situações delicadas, ocorrências no presente ou no passado que possam trazer danos ou constranger nossos respectivos governos.
- Hoje à noite se enquadrou nessa categoria?
- É Drew quem precisa responder a isso, Giselle, eu não posso, e estou tão ansioso quanto vocês para saber. Ele me tirou da cama uma hora atrás, insistindo que no interesse de ambos eu o trouxesse até vocês imediatamente. Quando perguntei-lhe por que, deixou claro que só Jean-Pierre poderia autorizar essa informação, informação que dizia respeito aos acontecimentos desta noite.
- Que é o motivo por que sugere que conversemos em particular, não estou certo, Monsieur Latham? - perguntou Villier.
- Está certo.
- Então sua chegada aqui esta noite, nesta terrível noite, se recobre de um caráter oficial, n’est-ce pas?
- Lamento dizer que sim - respondeu o americano.
- Mesmo levando em conta o adiantado da hora e a tragédia a qual aludimos?
- Volto a repetir que sim - respondeu Latham. - Cada hora é vital para nós. Especialmente para mim, se quiser ser específico.
- Sim, quero ser específico, monsieur.
- Está bem, falarei claramente. Meu irmão é um agente da CIA. Ele foi enviado clandestinamente para as montanhas de Hausruck, na Áustria. Era uma operação de investigação envolvendo uma florescente organização neonazista, e há seis semanas não temos notícias dele.
- Compreendo sua preocupação, Drew - interrompeu Henri Bressard. - Mas o que tem isso a ver com esta noite, esta terrível noite, como a chamou Jean-Pierre?
O americano olhou para Villier em silêncio; o ator falou.
- O velho maluco que se matou no teatro era meu pai - disse com tranquilidade. - Meu verdadeiro pai. Anos atrás, durante a guerra, ele foi um combatente da Résistance. Os nazistas o descobriram e o destruíram, levando-o à loucura.
Giselle deu um suspiro de espanto; sua mão estendeu-se depressa para a esquerda, agarrando o braço do marido.
- Eles estão de volta - disse Latham. - Crescendo em quantidade e influência, muito além do que as pessoas desejam acreditar ou debater.
- Mesmo que exista um pingo de verdade naquilo que diz - insistiu Bressard - o quem tem isso a ver com o Quai d’Orsay? Você disse "no interesse de nós dois". Como, meu amigo?
- Você receberá um relatório completo amanhã na nossa embaixada. Insisti neste ponto duas horas atrás, e Washington concordou. Até lá só posso lhe dizer, e é tudo o que realmente sei, que a rota do dinheiro que passa da Suíça à Áustria até o crescente movimento nazista tem sua origem secreta em pessoas aqui na França. Quem, não sabemos, mas é imenso, milhões e milhões de dólares. Tudo para os fanáticos que estão reconstruindo o partido, o partido de Hitler no exílio, ainda na Alemanha, escondidos na Alemanha.
- O que, se você tiver razão, significa que existe uma outra organização aqui, é isto que está querendo dizer? - perguntou Bressard.
- O traitor de Jodelle - sussurrou atônito Jean-Pierre Villier, inclinando-se para a frente na cadeira. - O general francês!
- Ou aquilo que ele criou - disse Latham.
- Pelo amor de Deus, de que vocês dois estão falando? - exclamou a mulher do ator. - Um pai descoberto agora, a Résistance, nazistas, milhões de dólares para fanáticos nas montanhas! Tudo isso parece uma loucura. Fou!
- Por que não começa do início, Drew Latham - disse o ator com delicadeza. - Talvez se encaixe com coisas sobre as quais eu nada sabia antes desta noite.
2
- De acordo com os registros em nossas mãos - começou Latham - em junho de 1946, um membro repatriado da Résistance francesa, usando alternadamente os nomes de Jean Froisant e Pierre Jodelle, começou a aparecer repetidamente na nossa embaixada, sob vários disfarces, e invariavelmente à noite. Ele alegava que estava sendo silenciado pelos tribunais de Paris em relação ao que sabia sobre as atividades traiçoeiras de um líder da Résistance. O traidor era presumivelmente um general francês, que permaneceu sob prisão domiciliar, um privilégio que o Comando Geral Alemão concedia aos generais de vocês que permaneceram na França. O veredicto dos investigadores da SIE foi negativo, sendo a conclusão que Froisant/Jodelle se encontrava mentalmente desequilibrado, tal como centenas, se não milhares, que haviam sido psicologicamente torturados nos campos de concentração.
- A SIE é a Secretaria de Investigações Especiais - explicou Bressard, ao constatar a expressão de espanto no rosto de ambos os Villier. - É o departamento americano criado para perseguir os criminosos de guerra.
- Perdão, pensei que soubessem - disse Latham. - Funcionou largamente aqui na França em conjunto com suas autoridades.
- É claro - constatou Giselle. - Este era o nome oficial; disseram-me que havia outros. Caçadores de colaboracionistas, caçadores de traidores, enfim, tantos nomes.
- Por favor, prossiga - disse Jean-Pierre, franzindo a testa, perturbado. - Dispensaram Jodelle como se fosse louco, assim mesmo?
- Não foi uma arbitrariedade, se é isto que quer dizer. Ele foi interrogado à exaustão, inclusive tomaram três depoimentos separados para averiguar contradições. É o procedimento de rotina...
- Então vocês possuem esta informação - interrompeu o ator. - Quem era esse general?
- Não sabemos.
- Vocês não sabem? - gritou Bressard. - Mon Dieu, não perderam o material, perderam?
- Não, não perdemos, Henri. Ele foi roubado.
- Mas o senhor disse "de acordo com os registros!" - interrompeu Giselle.
- Eu disse "de acordo com os registros em nossas mãos" - corrigiu Latham. - Você pode consultar no arquivo um nome ligado a determinada época, e o arquivo irá resumir os casos comprovados, sem muitos detalhes, em que foram seguidas as normas e chegou-se a alguma conclusão. Materiais como interrogatórios e depoimentos ficam arquivados à parte para proteger a integridade das pessoas contra investigações hostis... Foram esses os arquivos subtraídos. O motivo, não sabemos. Ou talvez saibamos agora.
- Mas vocês sabiam a meu respeito - interrompeu Jean-Pierre. - Como?
- À medida que entram informações novas, os resumos dos casos são atualizados pela SIE. Cerca de três anos atrás, Jodelle, bêbado, abordou o embaixador americano do lado de fora do Teatro do Liceu, onde você representava uma peça.
- Je m’appelle Aquilon! - interrompeu entusiasmado Bressard. - Você estava magnifique!
- Ah, silêncio, Henri... Continue, Drew Latham.
- Jodelle não parava de gritar que grande ator você era, e que você era filho dele, e por que será que os americanos não queriam lhe dar ouvidos. É claro que os funcionários do teatro afastaram-no, enquanto o porteiro escoltava o embaixador até sua limusine. Ele explicou que o velho mendigo bêbado era desequilibrado, um fã obcecado que vivia aparecendo do lado de fora dos teatros onde você representava.
- Eu nunca o vi. Por que será?
- Isso também foi explicado pelo porteiro. Toda vez que você aparecia na porta de trás, ele fugia.
- Isto não faz sentido! - disse Giselle categoricamente.
- Lamento dizer que faz, querida - retrucou Jean-Pierre, olhando com tristeza para sua mulher. - Pelo menos segundo o que soube esta noite... Então, monsieur - prosseguiu o ator - por causa desse estranho mas não raro acontecimento, meu nome foi incluído nas, como se diz, fichas do arquivo secreto?
- Apenas como parte de um padrão de comportamento, sem que fosse levada a sério.
- Mas o senhor a levou a sério, n’est-ce pas?
- Por favor, procure me entender - disse Latham, inclinando-se para frente na sua cadeira. - Cinco semanas e quatro dias atrás, meu irmão deveria fazer contato com seu agente em Munique. Era uma combinação específica, não uma estimativa, cada passo logístico foi calculado para caber num período de doze horas. Três anos de uma operação ultrassecreta, de alto risco, tinham terminado, o objetivo estava à vista, seu transporte à salvo para os Estados Unidos já estava arranjado. Quando se passou uma semana sem nenhuma palavra dele, eu peguei um avião de volta a Washington e passei em revista tudo que tínhamos sobre a operação de Harry. Harry é o meu irmão, Harry Latham... Por um motivo qualquer, talvez porque se tratasse de uma estranha referência, o episódio do Teatro do Liceu me deixou impressionado, ficou na minha lembrança. Como insinuou você, qual o motivo mesmo de sua presença ali? Os atores e atrizes célebres costumam ser importunados com frequência por fãs obcecados por eles. O tempo todo a gente lê coisas a este respeito.
- Acredito ter dito exatamente isto - interrompeu Villier. - É uma doença que vira quase uma ocupação, e na maior parte das vezes, totalmente inofensiva.
- Foi o que pensei. Por que se encontrava ele lá?
- Achou uma resposta?
- Não, na verdade não, mas o suficiente para tentar encontrar Jodelle. Desde que voltei a Paris há duas semanas, procurei em todo canto, em todas as ruelas escondidas, em todos os bairros decadentes da cidade.
- Por quê? - perguntou Giselle. - Que resposta parcial encontrou? Por que motivo o nome de meu marido foi enviado a Washington, para início de conversa?
- Eu também me fiz esta mesma pergunta, Sra. Villier. Por isso, enquanto estava em Washington, procurei o ex-embaixador, do governo anterior, e perguntei a ele. Sabe, esta informação não poderia ter sido repassada à comunidade de informações sem o seu consentimento.
- O que disse meu velho amigo o embaixador? - interrompeu Bressard, num tom inequivocamente crítico.
- Foi sua mulher...
- Ah - disse o diplomata do Quai d’Orsay - então era preciso ouvir com atenção. Porque ela deveria ser o ambassadeur. Tão mais inteligente, tão mais informada. Ela é médica, sabe.
- Sim, eu falei com ela. Também é uma grande fã do teatro. Sempre faz questão de sentar nas três primeiras filas.
- Não são exatamente as melhores - disse delicadamente o ator. - A gente perde a perspectiva global, em favor do detalhe. Mas me perdoe, continue. O que disse ela?
- Falou de seus olhos, Sr. Villier. E os de Jodelle, quando ele interrompeu o caminho deles na calçada, gritando histericamente. "Os olhos de ambos eram intensamente azuis", disse ela, "e no entanto a cor era extremamente delicada, algo muito raro em gente de olho azul." Por isso ela pensou que, delírios à parte, poderia haver algum fundamento na loucura do velho, porque a semelhança de olhos tão raros só poderia ter sido transmitida geneticamente. Ela admitia ser isto um voo especulativo, mas que não podia ser desprezado. E, como disse Henri, ela é médica.
- Então suas suspeitas revelaram-se corretas - disse Jean-Pierre, balançando a cabeça pensativamente.
- Quando deram a notícia na televisão que um velho não identificado se suicidara num teatro, depois de ter gritado que o senhor era seu filho, bem, eu sabia ter encontrado Jodelle.
- Mas não encontrou, Drew Latham. Encontrou o filho, não o pai que ele jamais conheceu. Então em que pé está agora? Há muito pouca coisa que eu possa acrescentar que o senhor já não saiba, e assim mesmo acabei de ter acesso a ela só hoje à noite, através dos únicos pais que conheci. Contaram-me que Jodelle era um combatente da Résistance, um barítono da Opera de Paris, descoberto pelos alemães e enviado para um campo de concentração, do qual supunha-se que jamais voltara. É óbvio que voltou, e pelo que parece o pobre sujeito tinha consciência de sua doença e nunca se mostrou. - O ator fez uma pausa, acrescentando triste e pensativamente. - Ele me proporcionou uma vida privilegiada, rejeitando para si mesmo qualquer vida que valesse a pena.
- Deve ter te amado muito, querido - disse Giselle. - Mas com quanta dor, com quanta tristeza, teve ele de conviver.
- Eles procuraram-no. Tentaram tanto achá-lo. Ele poderia ter recebido tratamento médico. Meu Deus, que trágico desperdício! - Jean-Pierre olhou para o americano. - Mais uma vez, monsieur, o que posso dizer? Não posso lhe ajudar mais do que posso ajudar a mim mesmo.
- Conte-me exatamente o que aconteceu. Soube muito pouca coisa no teatro. A polícia não estava presente quando aconteceu, e as testemunhas que restaram, principalmente lanterninhas, na hora que cheguei, não foram de grande ajuda. A maioria declarou ter ouvido os gritos, pensando de início fazer parte dos "bravos", distinguindo a seguir um velho meio esfarrapado a correr pela passagem, gritando ser seu pai e carregando um rifle, que apontou para si mesmo e disparou. Foi mais ou menos só isso.
- Não, tinha mais - disse Villier, sacudindo a cabeça. - Houve um breve silêncio da plateia, uma pausa momentânea, aquele espanto antes da reação das vozes ter início. Foi então que ouvi claramente várias de suas afirmações. "Eu fracassei com você e sua mãe... sou um inútil, um zero à esquerda. Só queria que você soubesse que tentei... Tentei mas fracassei." É só disso que me lembro, e depois foi um caos. Não tenho a menor ideia do que ele queria dizer.
- O sentido tem que estar nas palavras, Sr. Villier - disse rápida e enfaticamente Latham. - E precisava ser algo tão vital para ele, tão catastrófico, a ponto de ele quebrar o silêncio de uma vida inteira e se confrontar com o senhor. Um último gesto antes de se matar; alguma coisa precisou ter deflagrado isso.
- Ou a deterioração final de uma mente desequilibrada, empurrada para a loucura total - sugeriu a mulher do ator.
- Não acho que tenha sido o caso - discordou cortesmente o americano. - Ele estava por demais concentrado. Sabia exatamente o que estava fazendo. O que iria fazer. Conseguiu um jeito de entrar no teatro com um rifle escondido, feito nada desprezível, e a seguir esperou até terminar o espetáculo e seu marido estar recebendo os aplausos da plateia. Ele não iria negar-lhe isto. Um homem em plena crise de loucura interromperia a peça, atraindo toda atenção para si mesmo. Jodelle não fez isso. Uma parte dele era demasiadamente racional, demasiadamente generosa para permiti-lo.
- Você também é psicólogo? - perguntou Bressard.
- Não mais do que você, Henri. O fundamental para nós dois é estudar o comportamento, prevendo-o, se possível, não é?
- Então você quer dizer - interrompeu Villier - que meu pai, meu pai de verdade que nunca conheci, calculou racionalmente os passos de sua própria morte, porque foi motivado por algo que lhe aconteceu. - O ator se recostou na sua cadeira, franzindo a testa. - Então precisamos descobrir o que foi, não é verdade?
- Não sei como. Ele está morto.
- Quando um ator analisa um papel que ele precisa representar no palco ou no cinema, e se aquele papel está além dos clichês de sua imaginação, precisa estudar a realidade detalhadamente, não precisa?
- Não estou certo do que quer dizer.
- Muitos anos atrás fui obrigado a interpretar um xeque beduíno assassino, um homem muito antipático que matava sem piedade seus inimigos porque acreditava que fossem inimigos de Alá. Veio-me à cabeça todos os clichês esperados: as sobrancelhas satânicas; o cavanhaque pontiagudo; os lábios maus, descarnados; o olhar messiânico. Tudo tão banal, achei. Por isso peguei um avião até Jidda, fui até o deserto, em condições de alto luxo, eu lhes asseguro, e conheci vários chefes beduínos. Não eram nada daquilo. Eram, de fato, fanáticos religiosos, mas calmos, corteses, acreditando piamente que aquilo que o Ocidente chamava de crimes árabes de seus avós era plenamente justificável, já que aqueles antigos inimigos eram os inimigos de seu Deus. Chegaram até a explicar que depois de cada morte seus antepassados rezavam para a salvação dos seus inimigos. Havia uma genuína tristeza pela matança, que eles consideravam necessária. Compreende o que quero dizer?
- Isso foi em Le Carnage du Voile - disse o diplomata Bressard. - Você estava perfeito, e roubou a cena de duas estrelas do filme. O principal crítico de Paris disse que seu retrato do mal era tão puro porque vinha revestido de uma benevolência tão tranquila...
- Por favor, Henri. Basta.
- Eu ainda não entendi onde quer chegar, Sr. Villier.
- Se aquilo que acredita em relação a Jodelle... se o que acredita for verdade, então uma parte dele era menos louca do que seus atos deixavam indicar. Não era isso exatamente o que queria dizer?
- Sim, é isto. É o que eu acredito. Foi por isso que andei tentando encontrá-lo.
- E que um homem assim, a despeito de sua doença, seria capaz de se comunicar com os outros, com seus semelhantes de infortúnio, não é?
- Provavelmente. Certo.
- Então precisamos começar com sua realidade, com o ambiente no qual vivia. Faremos isso. Eu farei.
- Jean-Pierre! - gritou Giselle. - O que está dizendo?
- Nossa peça não tem matinê. Só um idiota representaria Coriolano oito vezes por semana. Meus dias são livres.
- E? - perguntou um assustado Bressard, com as sobrancelhas arqueadas.
- Como você generosamente deu a entender, Henri, sou um ator passável, e tenho acesso a todos os estabelecimentos de figurinos de Paris. Os trajes não serão problema, e uma maquiagem exagerada sempre foi uma das minhas armas. Antes de sua morte, Monsieur Olivier e eu concordamos que se tratava de um artifício desonesto - o camaleão, como ele o chamava - mas mesmo assim, ganha mais de metade da batalha. Ingressarei no mundo em que Jodelle vivia e talvez eu tenha sorte. Ele deve ter falado com alguém, estou convencido disto.
- Esse ambiente - disse Latham - esse "mundo" dele é bastante sórdido e pode se tornar violento, Sr. Villier. Se qualquer um desses tipos achar que o senhor tem vinte francos, poderá quebrar suas pernas para ficar com eles. Eu porto uma arma, e sem exagero, fui obrigado a brandi-la em cinco ocasiões distintas durante as últimas semanas. E também, a maioria daquele pessoal mantém a boca fechada e não gosta de estranhos que fazem perguntas; para dizer a verdade, reagem muito intensamente a isso. Não consegui avançar um palmo.
- Ah, mas o senhor não é um ator, monsieur, e para falar francamente, seu francês podia ser aperfeiçoado. Sem dúvida, o senhor correu aquelas ruas nos seus trajes normais, com um aspecto não muito diferente do que vemos agora, n’est-ce pas?
- Bem... sim.
- Perdoe-me mais uma vez, mas um sujeito de barba feita, trajando roupas decentes e fazendo perguntas num francês meio arrevesado, dificilmente deixaria de levantar suspeitas entre os companheiros de Jodelle, naquele seu mundo.
- Jean-Pierre, pare com isso! - exclamou a mulher do ator. - O que você sugere está fora de cogitação! Deixando de fora meus sentimentos e a sua segurança, seu contrato teatral o proíbe de correr riscos físicos. Meu Deus, você está proibido de esquiar, jogar polo, ou até mesmo pilotar seu avião!
- Mas eu não estarei esquiando, nem à cavalo, nem voando no meu avião. Eu simplesmente irei atravessar a cidade, percorrendo vários arrondissements para pesquisar a atmosfera. É muito menos do que viajar à Arábia Saudita por causa de um papel secundário num filme.
- Merde! - gritou Bressard. - É grotesco!
- Eu não vim aqui lhe pedir para fazer esse tipo de coisa - disse Latham. - Vim na esperança de que soubesse alguma coisa que pudesse me ajudar. Não sabe, e aceito o fato. Meu governo pode recrutar gente que faça isto que o senhor sugere.
- Então, sem falsa modéstia, afirmo que vocês não estariam recrutando os melhores. O senhor quer o melhor, não quer, Drew Latham, ou já esqueceu seu irmão tão depressa? Sua ansiedade me diz que não. Deve ser um ótimo sujeito, um irmão mais velho maravilhoso que sem dúvida o ajudou, o orientou. Naturalmente, sente que deve a ele o máximo que puder fazer.
- Estou preocupado, sim, mas se trata de uma questão pessoal - interrompeu de modo áspero o americano. - E sou um profissional.
- Eu também, monsieur. E tenho minhas dívidas para com esse homem que nós chamamos Jodelle, do mesmíssimo modo que o senhor tem para com seu irmão. Talvez mais. Ele perdeu sua mulher e seu filho mais velho combatendo por todos nós, e depois dedicou tragicamente toda sua existência a um inferno que nos é inconcebível para que eu pudesse sobreviver e me desenvolver. Ah, sim, eu lhe devo - profissional e pessoalmente. E também à mulher, à jovem atriz que era minha mãe de verdade, e ao garoto cujo nome de batismo herdei, o irmão mais velho que poderia ter me orientado. Minha dívida é imensa, Drew Latham, e o senhor não me impedirá de pagá-la. Nenhum de vocês... Por favor, voltem aqui amanhã ao meio-dia. Estarei pronto e todas as providências tomadas.
Latham e Henri Bressard deixaram a imponente casa de Villier no Parc Monceau e caminharam até o carro do diplomata.
- Será preciso dizer que não estou gostando nada disto? - disse o francês.
- Nem eu - concordou Drew. - Ele pode ser um ótimo ator, mas está fora de seu ambiente.
- Ambiente? Que ambiente? Simplesmente não gosto que ele mergulhe nas entranhas de Paris onde, se for reconhecido, pode ser assaltado ou sequestrado. Você quer dizer algo diferente, creio. O que é?
- Não tenho certeza, pode chamar de intuição. Algo realmente aconteceu a Jodelle, e tem muito mais coisa do que o simples fato de um velho maluco que se suicidou na frente do filho não reconhecido por ele. O próprio ato foi um gesto de desespero final; ele sabia que tinha sido derrotado, definitivamente derrotado.
- Sim, eu ouvi as palavras de Jean-Pierre - disse Bressard, dando a volta no carro até o lado do motorista, enquanto Latham abria a porta do lado da calçada. - O velho gritou que tinha fracassado; tentara mas fracassara.
- Mas tentara o quê? Em que fracassara? O que fora?
- O fim da picada, talvez - respondeu Henri, dando partida no carro e entrando na rua. - Saber que finalmente o inimigo estava fora de seu alcance.
- Para saber isso, para sabê-lo mesmo, ele precisava ter encontrado esse inimigo, para compreender em seguida que estava indefeso. Sabia que era tido como louco; não tinha credibilidade em Paris, nem em Washington, e fora rejeitado, que diabo, expulso dos tribunais. Então foi sozinho atrás do inimigo, e quando encontrou-o... ele... eles, aconteceu algo. Eles obrigaram-no a parar no meio.
- Se fosse este o caso, por que, ao invés de simplesmente terem-no impedido, não o mataram?
- Não podiam. Porque se fizessem, isso levantaria uma série de indagações. Mantê-lo vivo até que morresse, na sua idade e nas suas condições, não estava muito longe disso. Seria apenas mais um bêbado delirante. Porém se fosse assassinado, isto poderia emprestar mais credibilidade às suas loucas acusações. Gente como eu poderia começar a investigar, e seu inimigo não podia se dar ao luxo de que isto acontecesse. Vivo ele não era nada, morto já virava outra coisa.
- Não consigo compreender o que tem isto a ver com Jean-Pierre, meu amigo.
- Os inimigos de Jodelle, o grupo aqui na França que, estou convencido, está ligado ao movimento nazista na Alemanha, fazem parte de um movimento profundamente subterrâneo, mas que possui olhos e orelhas acima da terra. Se o velho fez contato com eles, o mínimo que fariam seria acompanhar os desdobramentos posteriores a seu suicídio. Eles devem estar à procura de qualquer um que esteja fazendo perguntas a seu respeito. Se há alguma verdade nas alegações de Jodelle, eles não podem se dar ao luxo... E isso me faz lembrar dos arquivos que estão faltando no SIE em Washington. Foram roubados por algum motivo.
- Compreendo o quer dizer - disse Bressard. - E agora eu me coloco totalmente contra o envolvimento de Villier. Farei o máximo possível para impedi-lo; Giselle ajudará. Ela é tão forte quanto ele, e ele a adora.
- Talvez você não tenha escutado bem alguns instantes atrás. Ele disse que nenhum de nós poderia impedi-lo. Não estava representando, Henri, falava sério.
- Concordo, mas você levantou outro problema. Vamos dormir com ele na cabeça, se algum de nós conseguir dormir... Você ainda tem seu apartamento na rue du Bac?
- Sim, mas quero parar primeiro na embaixada. Tenho que falar com alguém em Washington numa linha segura. Nosso transporte me levará para casa.
- Como quiser.
Latham pegou o elevador até as instalações no subsolo da embaixada e desceu um corredor branco, iluminado a néon, até o centro de comunicações. Enfiou seu cartão plástico de acesso na ranhura de segurança; houve um breve e agudo zumbido, a porta pesada se abriu e ele entrou. A grande sala com ar condicionado, à prova de poeira, era, como o corredor, de uma imaculada brancura, e tinha três paredes cobertas por uma panóplia de equipamentos eletrônicos, cujo metal reluzia, sendo que a cada dois metros havia uma cadeira giratória diante de seu próprio console. Devido à hora, no entanto, somente uma delas estava ocupada; entre duas e seis da madrugada, hora de Paris, era o período de tráfego mais leve.
- Estou vendo que você ficou com o turno do cemitério, Bobby - disse Drew para a única pessoa presente do outro lado da sala. - Está aguentando?
- Para falar a verdade, eu gosto - respondeu Robert Durbane, especialista em comunicações, cinquenta e três anos, e o funcionário mais antigo do centro de comunicações da embaixada. - Meu pessoal me acha tão bonzinho quando eu me escalo para este turno; estão enganados, mas não digo a eles. Está vendo o meu trabalho? - Durbane ergueu um exemplar dobrado do Times de Londres, onde se via as abomináveis palavras cruzadas do Times e o mortífero acróstico duplo.
- Eu diria que isto é acrescentar masoquismo a um plantão dobrado - disse Latham, atravessando a sala até a cadeira à direita do operador. - Não consigo fazer nenhum dos dois, tampouco tento.
- Você e o resto da turma mais jovem. Sem comentários, Sr. Agente.
- Desconfio que existe veneno neste comentário.
- Desconfiar não faz mal a ninguém... Em que posso lhe ser útil?
- Quero ligar para Sorenson na linha do codificador.
- Ele não falou com você há mais ou menos uma hora?
- Eu não estava em casa.
- Encontrará o recado dele... gozado, ele falou como se você e ele tivessem conversado.
- Conversamos, mas isso foi há quase três horas.
- Use o telefone vermelho na cabine. - Durbane se virou e apontou para um cubículo de vidro construído numa reentrância, dando para a quarta parede, cujo vidro ia até o teto. A "jaula", como era chamada, era uma área de segurança, à prova de som, onde se efetuavam as conversas confidenciais, sem que pudessem ser ouvidas. Os funcionários da embaixada gostavam; aquilo que não conseguiam ouvir jamais poderia lhes ser arrancado. - Você saberá quando estiver no codificador - acrescentou o técnico.
- Espero que sim - disse Drew, referindo-se aos bips desafinados que antecedem um áspero zumbido na linha, o sinal de que o sistema de codificação estava funcionando. Levantou-se da cadeira, caminhou até a porta espessa de vidro da jaula, e entrou. Havia uma grande mesa de fórmica no centro com o telefone vermelho, blocos de papel, lápis e um cinzeiro. No canto deste singular recinto havia um desintegrador de papéis, cujo conteúdo era queimado a cada oito horas, e até com maior frequência, quando necessário fosse. Latham sentou-se na cadeira da mesa, posicionada de modo que desse às costas para os funcionários nos terminais dos consoles; a segurança máxima incluía o temor da leitura de lábios, que era motivo de ridículo até ser descoberto um agente soviético durante o auge da Guerra Fria. Drew pegou o fone e esperou; oitenta e dois segundos depois a litania dos bips e do zumbido foi tocada, e em seguida veio a voz de Wesley T. Sorenson, diretor das Operações Consulares.
- Que diabo, onde você andou? - perguntou Sorenson.
- Depois que você autorizou meu contato com Henri Bressard, com nossa promessa de esclarecimento, fui ao teatro, depois liguei para Bressard. Ele me levou à casa de Villier no Parc Monceau. Acabei de chegar.
- Então suas pressuposições estavam certas?
- Certas como dois e dois são quatro.
- Meu Deus...! O velho era realmente o pai de Villier?
- Confirmado pelo próprio Villier, que soube, conforme ele mesmo disse, pela boca dos únicos pais que conheceu.
- Considerando as circunstâncias, que tremendo abalo!
- É sobre isso que precisamos falar, Wes. O abalo detonou um montão de culpa no nosso famoso ator. Ele está resolvido a usar suas habilidades para entrar no submundo e ver se consegue fazer contato com os amigos de Jodelle, tentar descobrir se o velho contou a alguém onde ele se metera durante os últimos dias, quem ele estava procurando, ou o que pretendia fazer.
- O seu cenário - interrompeu Sorenson. - O seu cenário se suas previsões fossem corretas.
- Tinha que ser, se eu tivesse razão. Mas este cenário pedia que usássemos recursos próprios, não Villier em pessoa.
- E você tinha razão. Parabéns.
- Tive ajuda, Wes, principalmente da mulher do ex-embaixador.
- Mas foi você quem a achou, ninguém mais.
- Acho que ninguém mais está com um irmão numa situação delicada, com o contato desfeito.
- Compreendo. Mas, diga, qual o problema?
- A decisão de Villier. Tentei convencê-lo a desistir, mas não consegui, não consigo e acho que ninguém conseguirá.
- E por que haveria você? Talvez ele consiga alguma informação. Por que interferir?
- Porque seja lá quem for que deflagrou o suicídio de Jodelle, deve ter tido um confronto com ele. E de algum modo convenceu-o de que tudo estava perdido, que ele estava acabado. Não sobrava mais nada para o velho.
- Psicologicamente isto faz sentido. Sua obsessão não poderia levá-lo a lugar nenhum, senão destruí-lo. E então?
- Seja lá quem for certamente acompanhará as coisas depois de seu suicídio. Como disse a Bressard, eles não podem se dar ao luxo de não fazê-lo. Se alguém, não importa quem, aparecer por aí fazendo perguntas sobre Jodelle... bem, se seus inimigos forem quem penso que são, este alguém não terá muito futuro.
- Você disse isso a Villier?
- Não exatamente nestes termos, mas deixei bem claro que o que ele queria fazer era extremamente perigoso. Para resumir, ele me mandou para o inferno. Disse que deve a Jodelle tanto quanto, se não mais, do que eu devo a Harry. Devo ir à sua casa amanhã. Diz ele que estará pronto.
- Então explique tudo direitinho para ele - ordenou Sorenson. - Se ele ainda teimar, deixe-o ir.
- Será que queremos ter na nossa ficha a possibilidade de o futuro dele ser encurtado?
- As decisões duras são chamadas duras porque não são fáceis. Você quer encontrar Harry, e eu quero encontrar um câncer podre que está crescendo na Alemanha.
- Eu gostaria de encontrar os dois - disse Latham.
- É claro. Eu também. Por isso, se seu ator quer representar, não o impeça.
- Quero que seja protegido.
- E devia querer. Um ator morto não vai poder nos contar o que descobriu. Combine isto com o Deuxième, são ótimos neste tipo de coisa. Dentro de uma hora mais ou menos, ligarei para Claude Moreau. Ele é o chefe do Bureau e estará no seu escritório a essa altura. Trabalhamos juntos em Istambul; era o melhor agente de campo que o serviço secreto francês já teve, classe mundial, para ser preciso. Ele lhe dará o que você precisa.
- Devo dizer isto a Villier?
- Sou um dos caras da antiga, Latham, talvez isto seja bom, talvez seja ruim, porém acredito que se você vai montar uma operação, é melhor se comprometer até o pescoço. Villier deve ser informado também; é mais um risco, é claro, e você deve deixar tudo claro para ele. Deixe que tome uma decisão consciente.
- Estou satisfeito de ver que estamos sincronizados. Obrigado.
- Hoje estou abrigado dessas tormentas, Drew, mas já estive onde você está agora. É um jogo de xadrez terrível, especialmente quando, os peões podem ser mortos. Suas mortes nunca te deixam em paz, creia-me. São alimento para pesadelos.
- Tudo que todo mundo diz a seu respeito é verdade, não é? Inclusive a sua predileção para que o pessoal te chame pelo nome de batismo.
- A maior parte do que dizem que eu fiz é totalmente exagerada - disse o diretor das Operações Consulares. - Mas quando eu estava aí fora, se pudesse ter chamado meu chefe de Bill, George, Stanford, ou simplesmente Casey, acho que poderia ter sido muito mais explícito. É isso que quero de vocês. "Sr. Diretor" é um empecilho.
- Você tem cem por cento de razão.
- Eu sei. Por isso faça o que deve fazer.
Latham deixou a embaixada e caminhou pela avenue Gabriel até o carro diplomático blindado que o levaria ao seu apartamento na rue du Bac. Era um Citröen sedã, cujo assento traseiro era demasiadamente estreito, por isso ele resolveu sentar na frente, ao lado do fuzileiro motorista.
- Conhece o endereço - perguntou ele.
- Ah, sim senhor. Certamente.
O exausto Drew olhou rapidamente para o sujeito; o sotaque era inegavelmente americano, mas a maneira de juntar as palavras era estranha. Ou será que ele estava simplesmente tão cansado que sua audição lhe pregava peças? Fechou os olhos, por um período que não poderia determinar, grato pelo nada, pelo vazio que tomou conta de sua tela interna. Por pelo menos alguns minutos, sua ansiedade foi esquecida. Ele precisava dessa trégua, acolheu-a de bom grado. Em seguida teve consciência do movimento, do balanço de seu corpo no assento. Abriu os olhos; o motorista estava cruzando uma ponte numa velocidade digna de Le Mans. Latham falou.
- Ei, cara, não estou atrasado para nenhum encontro. Calma com o acelerador, amigo.
- Tut mir... Sinto muito.
- O quê? - Eles deixaram a ponte embalados e o fuzileiro virou o carro numa rua escura, desconhecida. Então a coisa ficou clara: não estavam em nenhum lugar perto da rue du Bac. Drew gritou: - Que porra é essa que você está fazendo?
- É um atalho.
- Atalho merda nenhuma! Pare a porra do carro!
- Nein! - gritou o homem no uniforme de fuzileiro naval. - Você irá onde eu quiser, amigão! - O motorista sacou uma automática da sua túnica e apontou-a para o peito de Latham. - Não me dê ordens. Eu dou ordens a você!
- Meu Deus, você é um deles. Seu filho da puta, você é um deles!
- Encontrará outros, e depois você irá embora!
- É tudo verdade, não é? Vocês estão aí por toda Paris...
- Und England, und die Vereinigten Staaten, und Europa!... Sieg Heil!
- Enfie o sieg no rabo - disse Drew baixinho, nivelando sua mão com as sombras que voavam sob a arma, seu pé esquerdo avançando devagarinho no chão do Citröen. - Que tal uma grande surpresa, no estilo blitzkrieg? - Com essas palavras Latham apertou o pé contra o pedal do freio, golpeando simultaneamente com sua mão o cotovelo do braço direito do seu pretenso sequestrador. A arma virou na mão do neonazista; Drew agarrou-a e atirou no joelho direito do motorista, enquanto eles batiam na quina de um prédio.
- Você perdeu! - disse Latham sem fôlego, abrindo a porta e agarrando o sujeito pela túnica. Saindo do carro, ele puxou-o por cima do banco, jogando-o na calçada. Estavam num dos bairros industriais de Paris, com fábricas de dois ou três andares, deserto naquela hora da noite. Além das luzes fracas da rua, a única iluminação provinha dos faróis do Citröen amassado. Bastava.
- Você vai falar para mim, amigão - disse ele para o falso fuzileiro enrodilhado na calçada, gemendo e agarrado à sua perna ferida. - Senão a próxima bala vai acertar essas duas mãos em volta de seu joelho. Mãos destroçadas dificilmente se recuperam. É um inferno viver assim.
- Nein! Nein! Não atire!
- Por que não? Você ia me matar, me disse isso. Eu "ia embora", me lembro perfeitamente. Eu sou muito melhor. Não vou te matar. Só irei fazer você se arrepender de continuar vivo. Depois de suas mãos, serão seus pés... Quem é você e como conseguiu esse uniforme, esse carro? Diga-me!
- Temos uniformes... amerikanische, französische, englische.
- O carro, o carro da embaixada. Onde está o sujeito cujo lugar você tomou?
- Disseram-lhe para não vir.
- Quem disse?
- Não sei! O carro foi trazido para a frente. A Schlüssel, quero dizer, a chave, estava na fechadura. Mandaram-me conduzi-lo.
- Quem mandou?
- Meus superiores.
- O pessoal para quem você estava me levando?
- Ja.
- Quem são eles? Dê-me alguns nomes. Já.
- Eu não sei nenhum nome! Somos conhecidos por códigos, por números e letras.
- Qual é seu nome? - Drew se agachou ao lado do impostor, o cano da arma encostado na mão mais próxima que segurava o joelho ensanguentado.
- Erich Hauer, eu juro!
- Seu codinome, Erich. Ou então é melhor dar adeus às suas mãos e pés.
- C-Zwölf. Doze.
- Você fala inglês muito melhor quando não está se borrando de medo, amigão Erich... Onde estava me levando?
- Cinco, seis avenidas daqui. Eu saberia por causa dos Scheinwerfer.
- Do quê?
- Dos faróis. Vindos de uma rua estreita à esquerda.
- Fique aí direitinho, pequeno Adolf - disse Latham, levantando-se e se dirigindo à porta do carro, sua arma apontada para o alemão. Meio desajeitadamente, ele recuou até voltar ao assento dianteiro, metendo a mão por baixo do painel até achar o fone do carro, diretamente ligado à embaixada. Como o transmissor se achava na mala, havia bastantes chances de ele estar funcionando. Estava. Olhando rapidamente, Drew apertou quatro vezes a tecla zero numa rápida sequência. O sinal de emergência.
- Embaixada americana - disse a voz de Durbane no fone. - Seu status é Zero Quatro. Gravando, vá em frente!
- Bobby, é Latham...
- Eu sei, peguei você na retícula aqui. Por que os grandes Quatro 0?
- Caí numa armadilha. Estava a caminho de uma execução rapidinha, cortesia de nosso pesadelo nazista. O fuzileiro motorista era falso; alguém do serviço de transporte da embaixada me armou uma peça. Verifique toda a unidade!
- Meu Deus, você está bem?
- Só um pouquinho abalado; sofremos um acidente e o skinhead não se saiu muito bem dessa.
- Bem, estou com você na retícula. Mandarei uma patrulha...
- Sabe exatamente onde estamos?
- É claro.
- Mande duas patrulhas, Bobby, uma delas armada para ataque.
- Você está maluco? Isto aqui é Paris; é França!
- Darei cobertura. É uma ordem das Operações Consulares... A cinco ou seis quarteirões ao sul, há um carro estacionado numa rua lateral, com os faróis ligados. Precisamos deter aquele carro, e as pessoas que estão dentro!
- Quem são elas?
- Entre outras, meus carrascos... Não há tempo, Bobby. Faça-o! - Latham bateu com o telefone e pulou para fora do carro em direção a Erich Hauer, que poderia levá-lo a centenas de outros em Paris e além, soubesse ou não soubesse ele. As drogas abririam as portas de sua mente; era vital. Drew agarrou as pernas deles, enquanto o sujeito berrava de dor.
- Por favor...!
- Cale a boca, seu merda. Você é meu, compreendeu? Comece a falar, facilitará as coisas para você depois.
- Eu não sei nada. Sou apenas C-Zwölf, o que mais posso dizer?
- Isto não basta! Tenho um irmão que foi atrás de vocês filhos da puta; ele me disse que era a última etapa de uma viagem de merda, e acreditei nele. Por isso vai me dar mais, muito mais informação, antes que eu acabe com você. Palavra de honra, amigão Erich, não queira me ver pela frente.
De repente, de uma rua lateral deserta, surgiu um sedã preto cantando os pneus na esquina. Diminuiu rápida e brevemente a marcha, enquanto os estampidos começaram, uma mortífera fuzilaria para aniquilar tudo no seu caminho. Latham tentou arrastar o nazista para trás do escudo da carroceria do carro diplomático blindado; mas não poderia fazê-lo e pôr-se ele mesmo à salvo. Enquanto o sedã fugia velozmente, lançou um olhar para seu prisioneiro. Erich Hauer, com o corpo varado de balas e o rosto ensanguentado, jazia morto. O único homem que poderia fornecer pelo menos algumas respostas se fora. Onde estaria algum outro, e quanto tempo levaria ele até descobri-lo?
3
A noite passara, a primeira luz da manhã riscando o céu à leste, enquanto um exausto Latham pegava o pequeno elevador de bronze até o seu apartamento no quinto andar da rue du Bac. Normalmente teria usado as escadas, achando que o exercício seria bom para uma coisa ou outra, mas não agora; ele mal podia manter seus olhos abertos. As horas entre logo depois das duas e cinco e meia da madrugada haviam sido preenchidas com requisitos diplomáticos, proporcionando também a Drew a oportunidade de conhecer o chefe do poderoso e secreto Deuxième Bureau, um certo Claude Moreau. Ele voltara a ligar para Sorenson em Washington, pedindo a ele que fizesse contato com o agente francês àquela hora e o persuadisse a ir imediatamente à embaixada americana. Moreau era um homem de meia-idade, altura mediana e uma calvície incipiente, que parecia, pelo modo como preenchia seu terno, fazer musculação na maior parte do dia. Tinha um despreocupado senso de humor gaulês que conseguia de certo modo manter as coisas nos seus devidos lugares, quando havia uma ameaça de elas se descontrolarem. A primeira perspectiva de um descontrole em potencial aconteceu com o inesperado surgimento de um furioso e amedrontado Henri Bressard, primeiro secretário de Relações Exteriores da República da França.
- Que diabo está acontecendo? - perguntou Bressard, entrando na sala do embaixador, espantando-se logo, porém aceitando a presença de Claude Moreau. - Allô, Claude - disse ele, voltando ao francês. - Não me espanta inteiramente vê-lo aqui.
- En anglais, Henri... Monsieur Latham nos compreende porém o embaixador ainda está no Berlitz.
- Ah, o tato diplomático americano!
- Eu compreendi isto, Bressard - disse o embaixador Daniel Courtland, atrás de sua mesa, de chinelos e roupão. - Estou estudando a sua língua. Para ser franco, eu queria o cargo em Estocolmo, falo fluentemente o sueco, mas havia outras pessoas que não pensavam assim. Por isso vai ter que me aguentar, do mesmo modo que eu vou ter que aguentá-lo.
- Peço desculpas, Sr. Embaixador. Foi uma noite muito difícil... Tentei ligar para você, Drew, e quando só conseguia ser atendido pela secretária eletrônica, supus que você ainda estivesse aqui.
- Eu deveria ter chegado em casa há uma hora. Por que você está aqui? Por que precisou me ver?
- Está tudo no depoimento à Sûreté. Insisti para que a polícia os chamasse...
- O que aconteceu? - interrompeu Moreau. Ele arqueou uma sobrancelha. - Sua ex-mulher não está ficando hostil, isto é certo. Seu divórcio acabou sendo amigável.
- Não acho que gostaria que fosse ela. Lucille pode ser uma bruxa traiçoeira, mas não é burra. E aquele pessoal era.
- Que pessoal?
- Depois que deixei Drew aqui, fui para meu apartamento na Montaigne. Como sabem, um dos poucos privilégios do meu cargo é uma vaga diplomática defronte a meu prédio. Fiquei surpreso ao encontrá-la ocupada, e para aumentar ainda mais minha irritação, havia várias outras vagas desocupadas ali perto. Em seguida vi dois homens sentados na frente, o motorista falando no seu telefone, uma cena não muito comum às duas da madrugada, especialmente quando o motorista se arriscava a uma multa de quinhentos francos por ter estacionado ali sem um distintivo do governo ou um emblema do Quai d’Orsay no vidro da frente.
- Como sempre - disse Moreau, balançando a cabeça apreciativamente - sua tendência diplomática de introduzir um assunto com suspense e fina observação fica evidente, mas por favor, Henri, deixando de lado este meu insulto a você, diga logo, o que aconteceu?
- Os filhos da mãe começaram a atirar em mim!
- O quê? - Latham pulou da cadeira.
- Você me ouviu! Meu carro dispõe, naturalmente, de uma proteção contra esse tipo de ataque, por isso dei uma marcha à ré rápida e abalroei-os, prendendo o carro deles contra o meio-fio.
- E depois? - exclamou o embaixador Courtland, agora ficando de pé.
- Os dois homens saíram do carro e fugiram correndo. Com o coração disparado, chamei a polícia pelo telefone de meu carro, pedindo que avisassem a Sûreté.
- Você é danado - disse delicadamente um Drew com espanto. - Abalroou-os, enquanto disparavam contra você?
- As balas não conseguiram furar nem o vidro.
- Mas olhe, algumas conseguem, são cápsulas especiais.
- Verdade? - O rosto de Bressard ficou pálido.
- Você tem toda razão, Henri - disse Moreau, balançando mais uma vez a cabeça. - Sua ex-mulher teria sido muito mais eficiente. Agora, vamos acalmar um pouco e ver o que nosso bravo herói conseguiu? Temos o carro, uma placa, e sem dúvida várias impressões digitais, que enviaremos imediatamente para a Interpol. Eu vos saúdo, Henri Bressard.
- Existem balas que podem perfurar carros blindados...?
A ligação com o suicídio de Jodelle e a reunião posterior na casa de Villier em Parc Monceau estava mais do que óbvia. Acrescida ao ataque a Latham, a situação exigia várias providências: tanto Bressard quanto Drew teriam segurança vinte e quatro horas por dia feita pelo pessoal do Deuxième - o francês de modo conspícuo, Latham, a pedido do próprio, de uma maneira menos evidente. Razão pela qual o carro de chapa fria do Deuxième permanecia do outro lado da rua do prédio de Drew até ser rendido por outro, ou até o americano surgir de manhã, dependendo do que ocorresse primeiro. Finalmente, sob nenhum pretexto, seria permitido a Jean-Pierre Villier, que também teria segurança, vagar pelos bairros mais boêmios de Paris à procura de quem quer que fosse.
- Eu mesmo deixarei isto bem claro para ele - disse Claude Moreau, chefe do Deuxième Bureau. - Villier é patrimônio nacional!... Além do mais minha mulher me mataria ou colocaria vários amantes na nossa própria cama se eu deixasse que alguma coisa acontecesse a ele.
As dúvidas inquietantes sobre o serviço de transporte da embaixada foram resolvidas rapidamente. O manobreiro era um substituto que ninguém conhecia, mas que fora aceito para o turno da noite pelas suas credenciais. Sumira alguns minutos depois que o carro de Latham descera a avenue Gabriel. Um americano em Paris, que falava francês, fora recrutado pelo movimento nazista.
As horas antes do amanhecer haviam sido preenchidas com intermináveis análises da situação - o problema de quem incluir e quem não incluir sendo prioritário - e também com longas conversas ao telefone entre Moreau e Wesley Sorenson em Washington. Os dois especialistas do serviço secreto pareciam ambos praticantes das artes mais nefandas, criando um cenário de perseguições ultrassecretas. Drew concordou com o que ouviu. Ele era bom, não chegando a ser tão racionalmente frio quanto seu irmão Harry, mas certamente melhor na hora de tomar decisões rápidas e agir fisicamente. Moreau e Sorenson, entretanto, eram os mestres do subterfúgio e da perspicácia; haviam sobrevivido à matança não divulgada dos espiões nos porões sanguinolentos da Guerra Fria. Ele podia aprender com homens assim, mesmo quando eles é que programavam o que ele faria.
Latham saiu sonolentamente do elevador e desceu o corredor até seu apartamento. Ao começar a enfiar sua chave, seus olhos ficaram de repente cravados na fechadura. Não estava lá! Em seu lugar, um círculo vazado. A fechadura inteira fora removida cirurgicamente, por intermédio de um laser ou de uma minisserra de alta potência. Ele tocou na porta; abriu-se revelando os destroços lá dentro. Drew sacou sua automática do coldre debaixo do braço e entrou cautelosamente. Seu apartamento fora destruído; todos os estofados estavam rasgados à faca, as almofadas despedaçadas, seu enchimento espalhado em todo canto; gavetas haviam sido arrancadas e seus conteúdos atirados ao chão. A mesma coisa quanto aos dois quartos de dormir, os armários, a cozinha, os banheiros, e especialmente seu escritório, onde até mesmo os tapetes haviam sido rasgados. Sua grande mesa fora literalmente feita em pedaços, estando a equipe invasora à procura de esconderijos onde poderiam estar escondidos documentos secretos. A destruição fora total; nada ficara como era antes. E no seu cansaço, Latham simplesmente não queria pensar a respeito; precisava descansar; precisava dormir. Ele observou brevemente aquela perda e sua falta de lógica; o material confidencial ficava guardado no cofre de sua sala no segundo andar da embaixada. Os inimigos do velho Jodelle - agora seus inimigos - deveriam ter imaginado isso.
Ele remexeu num dos armários, divertindo-se sarcasticamente ao encontrar um objeto que os intrusos teriam levado ou destruído se houvessem reconhecido. A barra de aço de cinquenta centímetros possuía duas grandes extremidades de borracha, cada qual contendo um mecanismo de alarme. Quando ele viajava ou se hospedava em hotéis, ele nunca deixava de enfiá-la entre a porta e o piso, ativando os alarmes ao torcer as extremidades. Se a porta assim guarnecida fosse arrombada do lado de fora, uma série de sirenes de estourar os tímpanos começava a tocar, espantando o invasor e pondo-o em fuga. Drew levou-o até a porta sem fechadura do apartamento, ativou os alarmes, ancorou-a no chão e empurrou-a contra a almofada inferior. Entrou no seu quarto destroçado, jogou um lençol em cima do colchão rasgado, tirou os sapatos e se deitou.
Pegou no sono pouco depois, e alguns minutos mais tarde seu telefone tocou. Desorientado, Latham pulou na superfície instável da cama, agarrando o espelho na mesinha de cabeceira.
- Sim?... Alô?
- É Courtland, Drew. Sinto muito ligar essa hora, mas é preciso.
- O que aconteceu?
- O embaixador alemão...
- Ele soube a respeito dessa noite?
- Absolutamente nada. Sorenson ligou para ele de Washington, aparentemente provocando uma altercação danada. Logo depois Claude Moreau fez o mesmo.
- Eles são profissionais mesmo. O que está havendo?
- O embaixador Heinrich Kreitz estará aqui às nove da manhã. Sorenson e Moreau querem também a sua presença. Não apenas para corroborar os relatórios, mas também para fazer um veemente protesto contra o ataque à sua pessoa.
- Aqueles dois vetustos fantasmas estão pretendendo atacar pelos flancos, não estão?
- Não tenho a menor ideia do que você está falando.
- Na Segunda Guerra Mundial, era uma tática alemã. Aproxime-se de ambos os lados, aperte o inimigo de modo que seja obrigado a fugir pelo norte, pelo sul, pelo leste ou pelo oeste. Se ele escolher o lado errado estará liquidado, o que aliás será o caso, pois todos os pontos estão sob vigilância.
- Não sou militar, Drew, mas realmente não considero Kreitz um inimigo.
- Não, não é. Para dizer a verdade, é um homem com uma consciência histórica. Mas até ele não sabe quem compõe as suas fileiras em Paris. Ele certamente vai remexer o fundo do poço, e é isso que Sorenson e Moreau querem que ele faça.
- Às vezes acho que vocês falam uma outra língua.
- Ah, nós falamos, Sr. Embaixador. É chamada de omitir para permitir a capacidade de negar. Poderia chamá-la de nossa língua franca.
- Você está delirando.
- Estou morto de cansaço.
- Quanto tempo leva para você vir de sua casa até a embaixada?
- Primeiro tenho de chegar até a garagem onde guardo o carro...
- Você está com um carro do Deuxième agora - interrompeu Courtland.
- Desculpe, eu me esqueci... Dependendo do tráfego, cerca de quinze minutos.
- São seis e dez. Mandarei minha secretária acordá-lo às oito e meia e o verei às nove. Descanse.
- Talvez eu devesse contar-lhe o que aconteceu... - Mas era tarde demais, o embaixador desligara o telefone. Ainda bem, pensou Latham. Courtland haveria de querer saber detalhes, prolongando a conversa. Drew arrastou-se por cima da cama, conseguindo afinal repor o fone no gancho. A única coisa boa desta noite seria o fato de que ele passaria uma semana, ou o tempo que fosse preciso para restaurar seu apartamento, num excelente hotel, e Washington bancaria a conta.
O planador branco desceu deslizando nas contracorrentes do final da tarde até o vale da Irmandade. Assim que aterrissou, foi imediatamente puxado para debaixo de uma cobertura trançada verde. As coberturas de plexiglas de ambas as cabines anterior e posterior se abriram; o piloto, num macacão branco imaculado, surgiu da primeira, seu passageiro muito mais velho, da segunda.
- Komm - disse o piloto, fazendo um gesto de cabeça em direção a uma motocicleta com um carrinho lateral. - Zum Krankenhaus.
- Sim, claro - respondeu o civil em alemão, virando-se e tirando uma maleta de couro preta do médico do avião. - Eu suponho que o Dr. Kroeger esteja aqui - acrescentou ele, embarcando no carrinho lateral, enquanto o piloto montava no assento e dava partida ao motor.
- Não sei dizer, não senhor. Minha obrigação é apenas trazê-lo até a clínica médica. Não sei o nome de ninguém.
- Então esqueça o fato de eu ter mencionado um.
- Não ouvi nada. - A motocicleta correu por um dos corredores cobertos e, virando em várias esquinas, atravessou o vale até a extremidade norte da várzea. Lá estava de novo, coberto pela proteção, o prédio comum de um andar, mas um pouco diferente. Enquanto as outras construções eram básica e solidamente construídas de madeira, esta era mais resistente, mais pesada - feita de blocos de concreto de cinzas, assentados com concreto - com um enorme gerador no lado sul, cujo zumbido contínuo era baixo, potente.
- Não tenho permissão para entrar, doutor - disse o piloto, ao parar a motocicleta diante de uma porta cinzenta de aço.
- Estou ciente disto, rapaz, e me disseram o que fazer. Aliás, devo partir de manhã, ao raiar da aurora. Suponho que esteja informado disto.
- Estou, sim senhor. É quando os ventos estão melhores.
- Não poderiam ser piores. - O médico desembarcou do carrinho lateral; o piloto se afastou velozmente enquanto seu passageiro caminhou até a porta, olhou para as lentes da câmera em cima, e apertou o botão redondo preto à direita do portal. - Dr. Hans Traupman, cumprindo ordens do general von Schnabe.
Trinta segundos depois a porta foi aberta por um homem com seus quarenta anos, em trajes brancos de hospital.
- Herr Doktor Traupman, que prazer em vê-lo de novo - disse ele com entusiasmo. - Passaram-se muitos anos desde as conferências em Nuremberg. Seja bem-vindo!
- Danke, mas eu gostaria que houvesse um acesso menos árduo até aqui.
- O senhor gostaria muito menos ainda do acesso pela montanha, eu lhe asseguro. Temos de andar quilômetros, e a neve fica mais pesada a cada centena de metros. O segredo tem seu preço... Venha, tome um schnapps e relaxe por alguns minutos enquanto conversamos. Em seguida verá o progresso que fizemos. Posso lhe garantir, é notável!
- Beberemos mais tarde, e conversaremos enquanto observamos - respondeu o médico em visita. - Tenho uma longa reunião com von Schnabe, não é um programa agradável, e quero me informar o máximo e o mais rápido possível. Ele vai exigir de mim conclusões e me responsabilizar por elas.
- Por que me excluíram desta reunião? - perguntou o médico mais jovem com ressentimento, enquanto os dois se sentaram no saguão da clínica.
- Ele acha que você está entusiasmado demais, Gerhardt. Admira o seu entusiasmo, mas não confia nele.
- Meu Deus, quem mais conhece este processo do que eu? Eu desenvolvi-o! Com todo meu respeito, Traupman, este é meu campo experimental, e não o seu.
- Eu sei disso e você sabe disso, mas o nosso general, que não é médico, não entende. Sou um neurocirurgião com certa reputação em cirurgia craniana, e ele busca essa reputação, não a verdadeira perícia. Portanto, convença-me... Segundo me parece, de acordo com você, é possível alterar os processos de pensamento sem o uso de drogas ou hipnose - uma teoria que beira a parapsicologia de ficção científica, mas também eram encarados assim, há não muitos anos, os transplantes de coração e de fígado. Como é, na realidade, feito isso?
- Você praticamente respondeu sozinho. - Gerhardt Kroeger riu, com um brilho nos olhos. - Tire o "trans" de "transplante" e ponha no seu lugar as letras i e m.
- Implante?
- Você implanta placas de aço, não é?
- Claro. Como proteção.
- Eu também... Já fez lobotomias, não é verdade?
- Naturalmente. Para aliviar as tensões elétricas.
- Acabou de pronunciar outra palavra mágica, Hans. "Elétrico", como em impulsos elétricos, impulsos elétricos do cérebro. Eu simplesmente calibro microscopicamente e os ligo a um objeto tão ínfimo comparado a uma placa que apareceria como uma mera sombra numa chapa de raios X.
- Que diabo poderia ser isso?
- Um chip de computador inteiramente compatível com os impulsos elétricos do cérebro de um indivíduo.
- Um o quê...?
- Um circuito integrado de computador. Dentro de poucos anos a doutrinação psicológica será coisa do passado. A lavagem cerebral fará parte da história!
- Como é?
- No decorrer dos últimos vinte e nove meses, fiz experiências... operei... trinta e dois pacientes, às vezes com cinco ou mais em diversos estágios de desenvolvimento...
- Foi que me deram a entender - interrompeu Traupman. - Pacientes fornecidos de prisões e outros lugares.
- Uma seleção criteriosa, Hans, todos homens de educação e inteligência acima da média. Os oriundos das prisões haviam sido condenados por crimes como estelionato, espionagem industrial, ou falsificação de documentos oficiais para ganho pessoal. Crimes envolvendo subterfúgios, que exigiram certo grau de perícia e sofisticação, e não violência. A mente violenta, como também a menos inteligente, é programável com demasiada facilidade. Eu precisava provar que minha técnica teria êxito em níveis superiores a estes.
- E provou?
- "Suficiente até o dia de hoje", como diz a Bíblia.
- Qual o aspecto negativo, Gerhardt?
- Até hoje, o implante só funciona por um mínimo de nove, até um máximo de doze dias.
- O que acontece então?
- O cérebro o rejeita. O paciente faz rapidamente uma hemorragia cerebral e morre.
- Está dizendo que o cérebro explode.
- Sim. Vinte e seis dos meus pacientes morreram assim; entretanto, os últimos sete duraram gradativamente de nove a doze dias. Estou convencido de que com o emprego de técnicas microcirúrgicas mais adiantadas poderei superar a limitação do tempo. Finalmente, e isso poderá levar anos, funcionará em caráter permanente. Políticos, generais e estadistas em todo mundo poderão desaparecer por alguns dias, tornando-se logo depois nossos discípulos.
- Mas nas atuais circunstâncias, no caso deste agente americano, Latham, você acredita que ele está pronto para ser liberado daqui, não estou certo?
- Sem dúvida. Você verá com os próprios olhos. Ele está no seu quarto dia, faltando um mínimo de cinco e um máximo de oito dias ainda. Como nosso pessoal em Paris, Londres e Washington nos informou que ele não será necessário por um período maior do que quarenta a setenta e duas horas, o risco é mínimo. Até lá ficaremos cientes de tudo aquilo que nossos inimigos sabem sobre a Irmandade, além do grande benefício que serão as informações desorientadoras que Latham lhes dará.
- Vamos recapitular, por favor - disse Traupman, mexendo as pernas na cadeira branca de plástico. - Deixando de lado o procedimento em si, como funciona exatamente este seu implante?
- Conhece os circuitos integrados dos computadores, Hans?
- O mínimo possível. Deixo isto a cargo de meus técnicos, do mesmo modo que a anestesia. Já tenho o suficiente com que me preocupar. Mas tenho certeza de que você me informará aquilo que não sei.
- Os microchips mais recentes medem três centímetros de comprimento, com menos de dez milímetros de largura, e podem comportar seis megabytes de software. Isso é suficiente para conter toda a obra de Goethe, Kant e Schopenhauer. Utilizando um queimador de E-PROM para alimentar o chip com informações, podemos em seguida ativar o ROM - a memória de leitura - e ele reagirá às instruções sônicas, do mesmo modo que um computador reage aos códigos implantados por um programador em um processador. É verdade que haverá uma ligeira demora para que o cérebro, o processo de pensamento, se adapte à intercepção, ao comprimento de onda alternado, mas só isto já vai convencer o interrogador de que o sujeito está pensando mesmo, preparando uma verdadeira resposta.
- Pode prová-lo?
- Venha, eu lhe mostrarei. - Os dois homens se levantaram e Kroeger apertou um botão vermelho à direita da pesada porta de aço. Segundos depois apareceu uma enfermeira uniformizada, segurando uma máscara cirúrgica. - Greta, este é o famoso Dr. Hans Traupman.
- Sim, eu sei - disse a enfermeira. - É um privilégio revê-lo, doutor. Por favor, sua máscara.
- Sim, é claro que conheço você! - exclamou Traupman calorosamente. - Greta Frisch, uma das melhores enfermeiras cirúrgicas que já passaram pela minha sala de operação. Minha cara, disseram que havia se aposentado, e para uma pessoa tão nova, isto parecia não apenas lamentável, como bastante inacreditável.
- Aposentei-me para me casar, Herr Doktor. Com este aqui. - Greta fez um gesto de cabeça em direção a Kroeger, que sorria.
- Não tinha certeza se você se lembraria dela, Hans.
- Lembrar? A gente não esquece uma enfermeira como a Frisch, que antecipava cada pedido seu. Para dizer a verdade, Gerhardt, sua credibilidade subiu uns pontos... mas por que a máscara, Greta? Nós não vamos operar.
- Meu marido responderá ao senhor. Estas coisas estão além da minha compreensão, não importa o quanto ele me explique.
- O ROM, Hans, a memória de leitura. No caso deste paciente não seria muito interessante apresentar muitas imagens de rostos identificáveis, e o seu talvez entrasse nessa categoria.
- Também está muito além de mim, enfermeira Frisch. Muito bem, vamos adiante. - Os três atravessaram as portas, entrando em um comprido e largo corredor, pintado de verde desbotado, com uma série de grandes janelas quadradas e envidraçadas de ambos os lados. Atrás das janelas haviam quartos agradavelmente arrumados, cada um com uma cama, uma mesa, um divã e aparelhos de TV e rádio, e uma porta que dava para um banheiro com chuveiro. E também havia outras janelas nas paredes externas que davam para os campos, cheios de capim alto e trançado e flores da primavera. - Se estes são os quartos de hospital dos pacientes, encontram-se entre os mais agradáveis que já vi.
- Os rádios e as TVs são pré-programados, é claro - disse Gerhardt. - São todos programas inócuos, a não ser para os rádios à noite, quando transmitem informação adequada aos pacientes individualmente.
- Diga-me o que me aguarda - disse o neurocirurgião de Nuremberg.
- Encontrará um Harry Latham de aparência normal, que ainda acredita ter nos enganado. Ele responde pelo seu nome falso, Alexander Lassiter, e é extremamente grato a nós.
- Por quê? - interrompeu Traupman. - Por que é grato?
- Porque acredita ter sofrido um acidente do qual mal escapou com vida. Usamos um de nossos enormes carros para terreno montanhoso e fabricamos o incidente da maneira mais verossímil, virando o carro, "prendendo-o" debaixo dele e empregando lança-chamas em volta, para simular fogo... Neste caso permiti que se usassem drogas e hipnose - imediatamente, de modo a apagar seus primeiros minutos aqui no nosso vale.
- Tem certeza de que foram apagados? - Pararam no corredor, o olhar do visitante fixo em Kroeger.
- Completamente. O trauma do "acidente", ao lado das violentas imagens, e também a dor induzida por nós, superaram quaisquer recordações de sua chegada. Foram bloqueadas e expulsas. É evidente que usamos novamente a hipnose para nos assegurarmos. Tudo de que lembra são os gritos, a terrível dor e o fogo pelo qual teve de ser arrastado ao ser salvo.
- Os estímulos são psicologicamente consistentes - observou o neurocirurgião, balançando a cabeça. - Mas o que me diz do fator tempo? Se ele tem consciência disto, como explicou a passagem do tempo?
- Foi o menos difícil. Quando acordou, a parte superior de seu crânio estava cheia de ataduras, e foi-lhe dito, sob leve sedação, repetidamente, que ficara gravemente ferido, que passara por três cirurgias distintas, enquanto se encontrava em profundo coma, durante o qual permaneceu em silêncio completo. Foi-lhe explicado que se seus sinais vitais não tivessem permanecido extraordinariamente fortes, eu teria desistido dele.
- Muito bem colocado. Tenho certeza de que ele é grato... Ele sabe onde está?
- Ah, sim, nós não escondemos nada dele.
- Então como pode liberá-lo? Meu Deus, ele revelará a localização do vale! Mandarão aviões; serão bombardeados até a morte!
- Isso não importa, pois como von Schnabe lhe dirá sem dúvida, nós não existiremos.
- Por favor, Gerhardt, vamos por partes. Eu não darei nenhum outro passo se você não se explicar.
- Mais tarde, Hans. Venha falar com nosso paciente primeiro, e então compreenderá.
- Minha cara Greta - disse Traupman, virando-se para a mulher. - Será que este seu marido ainda é o ser humano lógico que conheci?
- Sim, senhor. Esta parte, a parte que ele lhe explicará, eu compreendo. É brilhante, o senhor verá.
- Mas primeiro vejamos o nosso paciente; ele está na próxima janela, na próxima porta à direita. Lembre-se de que o nome dele é Lassiter, e não Latham.
- O que devo dizer-lhe?
- Qualquer coisa que quiser. Eu sugiro que lhe dê os parabéns pela sua recuperação. Vamos.
- Eu esperarei na mesa - disse Greta Frisch Kroeger.
Os dois médicos entraram no quarto onde Harry Latham, com a cabeça enfaixada ao redor das têmporas, permanecia defronte à grande janela externa. Ele se virou e sorriu; estava em mangas de camisa e trajando calças de flanela cinza.
- Alô, Gerhardt, belo dia, não é?
- Deu um passeio, Alex?
- Ainda não. Você pode amassar um homem de negócios, mas não conseguirá tirar-lhe os negócios do sangue. Andei brincando com números; é possível fazer fortunas na China continental. Estou impaciente parar pegar logo um avião para lá.
- Posso lhe apresentar o Dr.... Schmidt de Berlim?
- Muito prazer em conhecê-lo, doutor. - Latham aproximou-se de mão estendida. - E também estou satisfeito em ver um outro médico no nosso espantoso hospital aqui, só no caso de Gerhardt resolver fazer uma barbeiragem comigo.
- Pelo que sei ele ainda não fez - disse Traupman, apertando a sua mão. - Aliás, ouvi dizer que você é um excelente paciente.
- Acho que não tive escolha.
- Perdoe a máscara, Herr... Lassiter. Estou com um pequeno resfriado e o cirurgião residente é um caxias danado, como diriam vocês americanos.
- Posso dizê-lo em alemão, se quiser.
- Para falar francamente, gosto de praticar o meu inglês. Parabéns pela sua recuperação.
- Bem, o Dr. Kroeger merece um pouquinho do crédito.
- Estou curioso, do ponto de vista médico. Se não for muito difícil, qual a recordação que você guarda quando chegou à várzea do nosso vale?
- Ah. - Latham/Lassiter fez uma ligeira pausa, enquanto seus olhos ficaram momentaneamente vidrados, desfocados. - Você quer dizer o acidente... Meu Deus, foi terrível. Muita coisa ficou confusa, mas a minha primeira recordação é dos gritos, eram histéricos. Em seguida percebi que estava preso sob o caminhão, e uma peça pesada de metal comprimia minha cabeça - eu nunca senti tanta dor. E as pessoas estavam todas em volta, tentando levantar aquilo que me prendia, finalmente me libertando, puxando-me pela grama, onde gritei porque vi o fogo, senti o calor, e pensei que todo o meu rosto fosse ficar queimado. Foi então que desmaiei, por um tempo excessivamente longo, aliás.
- Uma experiência terrível. Mas você está prestes a recuperar sua plena saúde, Sr. Lassiter, e é isso que importa.
- Se acharem um jeito de conseguirem na nova Alemanha uma mansão para Gerhardt na beira do Danúbio, podem deixar que eu pago. - Os olhos de Latham estavam agora totalmente claros, totalmente focados.
- Você já fez bastante por nós, Alex - disse Kroeger, fazendo um gesto com a cabeça para Traupman. - O Dr. Schmidt só queria dar uma palavra com nosso generoso benfeitor, e verificar se eu trabalhei do modo como ele me ensinou... Faça o seu passeio na hora que bem entender, depois de terminar seus cálculos de como extrair muitos milhões a mais da Ásia.
- Não é tão difícil assim, creia-me. O Oriente não só gosta de dinheiro, ele o venera. Quando você achar que é hora de eu poder partir, Gerhardt, a Irmandade só terá a lucrar com isso.
- Você estará sempre nas nossas orações teutônicas, Alex.
- Esqueça as orações, apenas faça com que o Quarto Reich aconteça.
- Nós o faremos.
- Bom dia para o senhor, Herr Lassiter.
Traupman e Kroeger saíram e desceram o corredor até a imaculada antessala.
- Você tinha razão - disse o berlinense, sentando-se. - É extraordinário!
- Você aprova, então?
- Como poderia deixar de fazê-lo? Até a hesitação na voz dele, os olhos vidrados. Perfeito. Você conseguiu!
- Lembre-se, Hans, ainda tem defeitos. Não posso ser desonesto a este respeito. Se as condições continuarem estáveis, na sua anormalidade, eu só garanto cinco a oito dias a mais, não mais do que isso.
- Mas você diz que Londres, Paris e Washington insistem que é suficiente, não é?
- Sim.
- Agora me conte sobre a não existência do vale. Foi um choque. Por quê?
- Não somos mais necessários. Estamos nos dispersando. Durante os últimos anos doutrinamos, treinamos, mais de vinte mil discípulos...
- Você gosta dessa palavra, não é? - interrompeu Traupman.
- Vem a calhar. Eles não são apenas verdadeiros fiéis, são também líderes, líderes menores e também potencialmente maiores... Foram enviados para todos os lugares, na maior parte para toda a Alemanha, mas aqueles com talento para falar línguas estrangeiras e com determinadas habilidades, para outros países, com tudo financiado, prontos para assumirem seus lugares em profissões e ocupações cuidadosamente selecionadas.
- Progredimos tanto assim? Não fazia ideia.
- Então na sua pressa você não reparou que temos agora muito menos gente aqui. A evacuação começou algumas semanas atrás, com nossos dois monstruosos veículos funcionando noite e dia para remover o pessoal e o equipamento. Foi como uma colônia de formigas desertando de um morrote para ir para outro - nosso objetivo e nosso destino - a nova Alemanha.
- E sobre o americano, esse Harry Latham. Além de nos mantermos em contato para saber o que ele soube, o que provavelmente poderia ser feito por informantes pagos, qual a função dele? Ou é só isso? Isso e a comprovação de sua teoria para uso futuro.
- A informação que obtivermos dele será útil, é claro, e exigirá a utilização de um computador miniaturizado bem à mão. Pode ser oculto num pequeno objeto. Porém Harry Latham tem um destino muito superior. Como deve se lembrar, eu mencionei que ele fará com que nossos inimigos saiam correndo nas direções erradas. Isto, no entanto, é algo que mal arranha a superfície.
- Você está praticamente babando, Gerhardt. Conte-me.
- Latham disse que estava calculando uns números para ganhar uma fortuna aproveitando a expansão econômica da China, não foi?
- E ele provavelmente está certo.
- Errado, Hans. Esses números não têm nada a ver com finanças. São códigos que ele inventou para não esquecer nada, depois de escapar.
- Escapar?
- Evidentemente. Ele tem uma tarefa a cumprir. E é um profissional. É claro que o deixaremos escapar.
- Pelo amor de Deus, seja mais claro.
- Durante as semanas que passou aqui, nas nossas sessões, durante almoços e jantares, nós lhe fornecemos centenas de nomes... franceses, alemães, ingleses, americanos.
- Que nomes? - interrompeu Traupman impacientemente.
- Daqueles homens e mulheres na Alemanha, e no estrangeiro, que nos apoiam em silêncio, que contribuem substancialmente para nossa causa... para resumir, gente de poder e influência que na realidade trabalha para a Irmandade.
- Você está maluco?
- Entre esta elite oculta e silenciosa - continuou Kroeger, ignorando a veemente objeção de Traupman - se encontram deputados americanos, senadores, grandes empresários e a mídia. E também membros do governo britânico, um pouco parecidos com a turma de Cliveden, que forneceu adeptos a Hitler na Grã-Bretanha, inclusive alguns políticos que trabalham clandestinamente para o serviço secreto britânico.
- Você perdeu a sanidade...
- Por favor, Hans, deixe-me concluir... Em Paris contamos com importantes simpatizantes no Quai d’Orsay, na Câmara dos Deputados, até mesmo no secreto Deuxième Bureau. E finalmente na própria Alemanha, um sem-número das mais prestigiadas autoridades de Bonn. Eles anseiam pelos velhos tempos, antes de a Pátria ser poluída pelos fracos cheios de queixumes, que querem receber tudo, sem darem nada em troca, e pelas linhagens de sangue inferior que corrompem nossa nação. Latham possui toda essa informação, todos os nomes. Como um bem treinado agente secreto, ele relatará a imensa maioria deles.
- Você está doido de hospício! Eu não permitirei!
- Ah, mas precisa, Dr. Traupman. Pois saiba que, com a exceção de um pequeno número de legítimos adeptos que precisam ser sacrificados para o bem da credibilidade, tudo que Harry Latham vai levar do nosso vale é falso. Os nomes que tem na cabeça e ocultos nos seus códigos são na realidade vitais para nós, mas apenas no sentido de essa gente ser desacreditada e até destruída. Porque, na verdade, eles se opõem profundamente a nós, e muitos com grande estardalhaço verbal. Depois de seus nomes serem secretamente divulgados para as redes globais de órgãos de informação, a caça às bruxas terá início. À medida que os mais sinceros deles forem sendo derrubados por intermédio da suspeita oficial e da desconfiança pública fabricada, os vazios assim criados serão preenchidos por muitos dos nossos... sim, discípulos, Hans. Especialmente na América, o mais poderoso de nossos inimigos, mas também o mais suscetível. Basta lembrar a frenética campanha contra os vermelhos nos anos quarenta e cinquenta. A nação ficou paralisada pelo medo, milhares e milhares tingidos pelo pincel soviético, empresas inteiras entrando em colapso devido à paranoia, o país enfraquecido por dentro. Os comunistas sabiam como fazê-lo; Moscou, como ficamos sabendo, forneceu secretamente tanto dinheiro quanto informações falsas aos fanáticos... Um homem pode dar início a este processo para nós. Harry Latham, codinome Sting.
- Meu Deus! - Traupman voltou a se recostar na cadeira, sua voz pouco mais que um sussurro. - É brilhante mesmo. Porque ele é a única pessoa que penetrou no âmago, que achou o vale. Serão obrigados a acreditar nele... em todos os lugares.
- Ele fugirá esta noite.
4
Heinrich Kreitz, embaixador alemão na República da França, era um homem baixo, magro, de setenta anos, rosto macilento, cabelos brancos sedosos, e olhos tristes cor de avelã, eternamente contraídos. Tendo sido há anos professor de desenvolvimento político europeu na Universidade de Viena, fora arrancado do mundo acadêmico e recrutado pelo corpo diplomático, principalmente devido a seus inúmeros trabalhos detalhando a história das relações internacionais durante os séculos dezenove e vinte. Estes longos artigos foram coligidos em um livro, naturalmente intitulado O discurso entre as nações, de uso obrigatório para diplomatas e traduzido em dezessete idiomas, virando também um texto didático de relações internacionais nas universidades de todo o mundo civilizado.
Eram 9:25 da manhã e Kreitz, sentado diante da mesa do embaixador americano, olhava em silêncio para Drew Latham, à direita do embaixador Courtland. Em um divã encostado na parede, sentava-se Moreau do Deuxième.
- O que me envergonha é a culpa de meu país - disse Kreitz finalmente, num tom de voz que combinava com a tristeza do seu olhar. - A culpa de ter permitido que monstros assim, criminosos assim, tivessem governado nossa nação. Nós aumentaremos nossos esforços para descobri-los e exterminar qualquer núcleo que possuam. Por favor, meus senhores, quero que compreendam que meu governo dedica-se a desmascará-los, a eliminá-los, mesmo que isto signifique ter de construir mil prisões para prendê-los. Sobretudo nós não podemos nos dar ao luxo de tolerar a sua existência, os senhores certamente sabem disso.
- Sabemos, Monsieur l’Ambassadeur - disse Claude Moreau do divã. - Mas parece que vocês têm uma maneira estranha de fazê-lo. Sua Polizei tem conhecimento dos líderes desses fanáticos destruidores em uma dúzia de cidades. Por que não são presos?
- Quando se pode incriminá-los de atos violentos, eles o são. Nossos tribunais estão cheios de processos assim. Mas quando se trata apenas de oposição, somos também uma democracia; temos a mesma liberdade de opinião que lhes permite terem suas greves pacíficas, os americanos seus direitos de reunião, que frequentemente se desdobram em marchas sobre Washington, quando homens e mulheres discursam bombasticamente para seus seguidores de cima de palanques ou, mesmo, de cima de caixotes. Muitas leis de ambos os seus países permitem semelhantes demonstrações de protesto contra o governo. Como poderemos então silenciar todo mundo que discorda de Bonn, inclusive aqueles que lotam as praças contra os neonazistas?
- Não, com todos os diabos! - berrou Latham. - Mas vocês os silenciaram sim! Não fomos nós que inventamos campos de concentração, ou câmaras de gás, ou o genocídio de um povo inteiro. Foram vocês, seus desgraçados, e não nós!
- Repito que foi uma vergonha termos permitido... do mesmo modo que vocês permitiram a escravidão de um povo inteiro e ficaram olhando enquanto homens negros eram enforcados em dez mil árvores nos seus estados do sul, e os franceses fizeram mais ou menos o mesmo na África Equatorial e nas suas colônias orientais. Existe decência e podridão em todos nós. Em todas as nossas histórias.
- Isso não só não faz sentido, Heinrich, como não é pertinente neste caso, e você sabe disto - disse o embaixador Courtland com surpreendente autoridade. - Sei porque li seu livro. Você a chama de "perspectiva das realidades históricas". Aquilo que era percebido como verdades da época. Você não pode justificar o Terceiro Reich nestes termos.
- Eu nunca o fiz, Daniel - retrucou Kreitz. - Condenei veementemente o Reich por ter fabricado falsas verdades, aceitas com a maior facilidade por uma nação devastada. A mitologia teutônica era uma droga que um povo fraco, desiludido, faminto, injetou irracionalmente nas suas veias. Não foi isso que escrevi?
- Sim, foi - reconheceu o embaixador americano, balançando a cabeça. - Digamos que eu só quisesse lembrar-lhe.
- Sua questão foi bem compreendida. Entretanto, do mesmo modo que você precisa defender os interesses de Washington, eu tenho meus deveres em relação a Bonn... Então onde ficamos nós? Todos nós queremos a mesma coisa.
- Eu sugiro, Monsieur l’Ambassadeur - disse Moreau levantando-se do divã - que o senhor me dê permissão para vigiar um determinado número dos adidos mais graduados de sua embaixada.
- Além de constituir uma intrusão de um governo anfitrião a nível diplomático, qual a utilidade disto? Eu os conheço a todos. São homens e mulheres decentes, trabalhadores, bem-treinados e dignos de confiança.
- Isso é algo que não pode efetivamente saber, monsieur. A evidência é indubitável. Existe uma organização aqui em Paris dedicada ao movimento neonazista. Todos os indícios levam a crer que talvez seja a organização principal fora da Alemanha, provavelmente tão importante quanto a que existe dentro de seu país, já que pode funcionar além dos limites legais alemães, além da vigilância alemã. Fora isso, já foi praticamente confirmado, faltando apenas descobrir o elo específico das transferências, que milhões e milhões estão sendo destinados ao movimento a partir da França, sem dúvida através do trabalho dessa organização, cuja origem pode remontar cinquenta anos atrás. Então como pode ver, Monsieur l’Ambassadeur, temos uma situação que extrapola os estreitos limites da tradição diplomática.
- Eu teria que obter a concordância de meu governo para poder conceder-lhe isto, é claro.
- É claro - concordou Moreau.
- Informações de natureza financeira poderiam estar sendo retransmitidas através de nossos canais seguros por alguém do quadro de funcionários da embaixada, para aqueles aqui em Paris que estão ajudando esses psicopatas - disse Kreitz pensativamente. - Eu compreendo o que querem dizer, apesar de ser tão perturbador... Muito bem, darei uma resposta a vocês mais tarde, durante o dia ainda. - Heinrich Kreitz virou-se para Drew Latham. - O meu governo, é claro, se responsabilizará por todas as despesas para cobrir os prejuízos que sofreu, Herr Latham.
- Basta conseguir-nos a cooperação de que precisamos, se não o seu governo será responsável por prejuízos que nunca poderá pagar - disse Drew. - Mais uma vez.
- Ele não está aqui! - gritou Giselle Villier ao telefone. - Monsieur Moreau do Deuxième Bureau esteve aqui há quatro horas e contou-nos sobre os horríveis acontecimentos que se abateram sobre você e Henri Bressard na noite passada, e meu marido pareceu aceitar suas instruções para não interferir. Maintenant, mon Dieu, você conhece os atores! Eles são capazes de dizer qualquer coisa de modo convincente, de modo que nossos olhos e ouvidos acreditem neles, enquanto pensam algo completamente diferente.
- Sabe onde ele está? - perguntou Drew.
- Sei onde ele não está, monsieur! Depois da partida de Moreau ele parecia resignado, e disse que ia ao teatro para o ensaio de uns substitutos. Disse - como já disse muitas vezes antes - que sua presença nesses ensaios estimula os atores coadjuvantes. Eu nunca pensei em duvidar dele, em seguida Henri ligou do Quai d’Orsay insistindo em falar com Jean-Pierre. Por isso mandei-o ligar para o teatro...
- E ele não estava lá - interrompeu Latham.
- Não só não estava lá, como o ensaio dos substitutos não é hoje, e sim amanhã!
- Acha que ele deu prosseguimento aos seus próprios planos, tal como descreveu-os na noite passada?
- Tenho certeza, e estou morrendo de medo.
- Talvez isto não seja necessário. Ele está sob a proteção do Deuxième. Seguem-no a todo canto.
- Novamente, nosso novo amigo Drew Latham, e espero que você seja um amigo...
- Cem por cento. Pode acreditar nisso.
- Você realmente não conhece os atores de talento. Podem entrar num prédio com sua aparência normal, em seguida tornar a aparecer na rua na pele de alguém diferente. Uma camisa enfiada sob o paletó, as calças largas, um andar diferente, e temos que torcer para que não haja uma loja de roupas lá dentro.
- Acredita que ele possa ter feito algo assim?
- Por isso é que estou com tanto medo. Quando ele falou na noite passada, sua decisão foi muito veemente, e Jean-Pierre é um homem de personalidade forte.
- Foi o que eu disse a Bressard quando ele me levou à embaixada.
- Eu sei. Deve ter sido o motivo por que Henri insistiu em falar com ele, para reforçar o pedido de não envolvimento.
- Irei averiguar com Moreau.
- Vai me ligar de volta, não é?
- É claro. - Drew repôs o fone no gancho na sua sala na embaixada, verificou o número do Deuxième Bureau na sua lista, e ligou para o seu chefe. - É Latham - falou ele.
- Eu estava esperando sua ligação, monsieur. O que posso dizer? Perdemos o acteur, uma bagunça total. Ele entrou num mercado de carnes e nenhum dos nossos viu-o saindo!
- Procuravam por alguém que ele não era mais. O que vai fazer agora?
- Mandei unidades vigiarem nossas ruas menos decentes. Precisamos encontrá-lo.
- Não vão.
- Por que não?
- Porque ele é o melhor ator da França. Mas ele precisa aparecer no teatro hoje à noite. Pelo amor de Deus, esteja lá, e se for preciso, ponha-o amanhã sob prisão domiciliar... Se ele ainda estiver vivo.
- Por favor, não insinue...
- Eu estive lá naquelas ruas, Moreau; acho que você não esteve. Você é elite demais; suas táticas sofisticadas não têm nada a ver com os esgotos de Paris, onde ele provavelmente deve estar agora.
- Seu insulto é infundado; conhecemos melhor esta cidade do que qualquer um neste mundo.
- Ótimo. Então vá procurar. - Drew desligou o telefone, pensando para quem mais poderia ligar, o que mais poderia fazer. Seus pensamentos foram interrompidos por batidas na porta de sua sala. - Entre - respondeu impacientemente.
Uma mulher atraente de cabelos escuros, com seus trinta e poucos anos, usando grandes óculos de aros de tartaruga, entrou carregando uma grossa pasta de arquivo.
- Acho que encontramos o material que pediu, monsieur.
- Desculpe, mas quem é você?
- Meu nome é Karin de Vries. Trabalho no Departamento de Pesquisa e Documentação.
- Um eufemismo para tudo que é tipo de assunto, desde "delicado" até "confidencial ao máximo".
- Nada disso, Monsieur Latham. Nós também temos mapas rodoviários, além de tabelas de horários de trens e de aeroportos.
- Você é francesa.
- Flandrense, na realidade - corrigiu a mulher, com um pequeno porém inegável sotaque. - Entretanto, passei alguns anos em Paris, inclusive estudando para obter meus diplomas na Sorbonne.
- Você fala um excelente inglês...
- E também francês, holandês, como também os dialetos flamengo e valão, é claro, e alemão - interrompeu de Vries em voz baixa - podemos ler igualmente bem em todos eles.
- Talento e tanto.
- Não é de todo fora do comum, exceto talvez a leitura em profundidade, as abstrações e o uso de idiomas.
- Que é o motivo por que você está na Pesquisa e Documentação.
- Era uma exigência, naturalmente.
- Naturalmente... O que foi que encontrou para mim?
- Pediu-nos que pesquisássemos as leis do Ministère des Finances, explorando quaisquer brechas existentes em relação ao investimento no estrangeiro e que trouxéssemos as informações para você.
- Deixe-me vê-las.
A mulher deu a volta na mesa, colocou a pasta diante de Drew e abriu-a, revelando uma pilha de impressos de computador.
- São muitos dados, Srta. de Vries - disse Latham. - Vai me custar uma semana examiná-los, e não tenho uma semana. O mundo das altas finanças não é um dos meus pontos fortes.
- Ah, não, monsieur, a maior parte consiste em citações das leis que apoiam nossas conclusões, e casos de pessoas apanhadas desrespeitando essas leis. Os nomes delas e pequenos resumos de suas operações preenchem apenas seis páginas.
- Meu Deus do céu, isto está muito melhor do que eu pedi. Fez isso tudo em cinco horas?
- O equipamento é excelente, e o ministério foi muito prestativo, a ponto de interligar nossos modems.
- Não reclamaram da nossa invasão?
- Eu sabia quem contatar. Ele compreendeu o que estava procurando e por quê.
- E você?
- Não sou cega nem surda, monsieur. Enormes quantias estão sendo transferidas via Suíça para a Alemanha, destinadas a indivíduos desconhecidos e ilegítimos ou então para as contas, utilizando o método suíço de submeter números escritos à mão ao espectógrafo.
- E a identidade desses números?
- Transmitidos imediatamente de volta a Zurique, Berna ou Genebra, onde são invioláveis. Não são negados nem confirmados.
- Você sabe muita coisa dessas operações, não sabe?
- Deixe-me explicar, Monsieur Latham. Trabalhei para os americanos na OTAN. Fui liberada pelas autoridades americanas para lidar com material altamente confidencial dos arquivos porque frequentemente via e ouvia coisas que escapavam aos americanos. Por que pergunta? Está insinuando qualquer coisa?
- Não sei... Talvez esteja apenas impressionado com a sua eficiência... você é responsável por esta pasta, não é? Quero dizer, só você, correto? Posso pedir a outras pessoas na Pesquisa e Documentação?
- Sim - respondeu Karin de Vries, dando a volta lentamente na mesa e permanecendo diante de Latham. - Vi seu pedido - sinalizado em vermelho - na pasta do nosso chefe do departamento. Abri-a e examinei-o. Sabia que estava qualificada para dar andamento a ele, por isso removi-o.
- Falou com seu superior.
- Não. - A mulher fez uma pausa e acrescentou com delicadeza. - Compreendi imediatamente que podia analisar e elaborar a informação mais rápido do que qualquer um em nosso departamento. Trouxe as conclusões em apenas cinco horas.
- Você quer dizer que ninguém na Pesquisa e Documentação sabia que você estava trabalhando nesta pesquisa, inclusive seu chefe?
- Ele está passando um dia em Calais, e não vi nenhum motivo para ir até o seu substituto.
- Por que não? Você não precisava de uma autorização? Este é um assunto que requer uma indicação especial. O sinal vermelho deixa isto bem claro.
- Eu lhe disse. Fui habilitada pelas autoridades americanas da OTAN e pelos seus próprios especialistas do serviço secreto aqui em Paris. Trouxe-lhe o que pediu, e meus motivos pessoais são irrelevantes.
- Não duvido que sejam. Mas eu também tenho alguns motivos próprios, o que quer dizer que vou verificar minuciosamente tudo nesta pasta.
- Verá que as informações são precisas e comprovadas.
- Espero que sim. Obrigado, Srta. de Vries. É só isso.
- Desculpe-me corrigi-lo, mas não é Srta. e sim Sra. de Vries. Sou viúva. Meu marido foi morto no lado ocidental de Berlim pela Stasi, uma semana antes da queda do Muro - a Stasi, monsieur. O nome mudou, mas são facínoras iguais às mais ferozes unidades da Gestapo e da Waffen SS. Meu marido, Frederik de Vries, trabalhava para os americanos. O senhor pode verificar minuciosamente também isto. - A mulher se virou e deixou a sala.
Espantado, Latham ficou espiando enquanto a porta era fechada com força, poder-se-ia dizer batida. Ele pegou seu telefone e apertou as teclas do número do chefe de segurança da embaixada. Depois de passar por uma secretária irritante que insistia em praticar seu francês universitário, menos adequado que o dele, pensou Drew, o chefe de segurança entrou na linha.
- Qual é o problema, Operações Consulares?
- Quem diabo é uma Karin de Vries, Stanley?
- Um presentão que o pessoal da OTAN nos deu - respondeu Stanley Witkowski, veterano de mais de trinta anos do Serviço de Informações do Exército, um coronel transferido para o Departamento de Estado em virtude de seu extraordinário sucesso no G-2. - Ela é rápida, inteligente, imaginativa, e lê e fala fluentemente cinco línguas. Um presente dos céus, meu amigo.
- É isto que quero saber. Quem a mandou?
- O que está falando?
- Seus hábitos de trabalho são um tanto estranhos. Mandei um documento selado com o código vermelho para o Departamento de Pesquisa, e sem autorização ou ser designada, ela tirou-o da pasta e tomou ela mesma todas as iniciativas referentes a ele.
- Código vermelho? Isso é estranho; ela sabe muito bem que não podia. Um código vermelho tem de ser assinado pelo chefe do departamento e seu substituto, a pessoa designada para a tarefa tem de ser aprovada e registrada.
- Foi o que eu pensei, e no que diz respeito a esta operação, estou com uma verdadeira paranoia quanto a vazamentos e informações falsas. Quem a mandou para cá?
- Esqueça isso, Drew. Ela requisitou Paris, e se depender do comandante supremo para baixo, ela é feita de ouro.
- Existe ouro e ouro de tolos, Stan. Ela inferiu coisas que estavam além do conhecimento permitido a ela nesta questão e eu quero saber como e por quê.
- Pode me dar uma pista?
- Vou dar uma fraquinha. É a respeito dos carinhas maus que andam marchando pela Alemanha.
- Isto não me será de grande ajuda.
- Ela disse que seu marido foi morto pela Stasi em Berlim Oriental. Você pode confirmar isto?
- Porra, claro que sim, até pessoalmente. Eu estava posicionado do nosso lado do Muro, me arrebentando o dia inteiro para fazer contato com nosso pessoal do outro lado. Freddie de Vries era um jovem agente infiltrado, danado de esperto. O pobre filho da mãe foi apanhado apenas alguns dias antes de a Stasi entrar para a história.
- Então ela teria um motivo legítimo, até uma obsessão pelos acontecimentos na Alemanha.
- Certamente que sim. Sabe para onde a maioria da Stasi foi depois da queda do Muro?
- Onde?
- Direto para os braços abertos dos skinheads, aqueles nazistas filhos da puta... Ah, por falar em Freddie de V, ele trabalhou com seu irmão Harry. Sei porque o G-2 estava coordenado com os dois. Harry não ficou apenas chateado, ficou furioso quando ouviu a notícia sobre Freddie. Era quase como se ele fosse um irmão caçula, como você, talvez.
- Obrigado, Stanley. Eu acabei de cometer um engano ofensivo. Mesmo assim, há umas duas lacunas que precisam ser preenchidas.
- O que quer dizer?
- Como a Sra. de Vries veio a saber de mim?
Nas sombras do sol da tarde, Jean-Pierre Villier, com o rosto irreconhecível, o nariz duas vezes maior do que o seu, com as pálpebras igualmente inchadas, roupas reduzidas a farrapos, veio cambaleando por uma ruela escura em Montparnasse. Havia corpos de bêbados sentados de maneira intercalada nas pedras da rua, com suas costas apoiadas nos muros, a maioria reclinados, outros desmaiados numa posição fetal. Ele cantava numa cadência alcoólatra, com as palavras enroladas.
- Écoutez, écoutez-gardez-vous, mes amis! Tive notícias do nosso querido amigo Jodelle. Será que alguém se interessa, ou estou desperdiçando meu velho fôlego?
- Jodelle é maluco! - Veio uma voz da esquerda.
- Ele mete a gente em encrencas! - gritou uma voz da direita. - Diga-lhe para ir para o inferno.
- Preciso encontrar seus amigos, ele me disse que era importante.
- Vá para as docas do norte no Sena, lá ele dormia melhor, roubava melhor.
Jean-Pierre foi andando até o Quai des Tuileries, parando em toda viela ou ruela escura que encontrava, mergulhando nelas, mas sempre mais ou menos com os mesmos resultados.
- O velho Jodelle é um porco. Ele não divide seu vinho!
- Ele diz que tem amigos lá em cima, onde estão eles?
- Aquele grande ator que ele diz ser seu filho, tudo uma grande merda!
- Sou um bêbado e não estou mais ligando, mas não chateio os amigos com mentiras.
E então, quando Villier alcançou os embarcadouros acima da Pont de l’Alma, ouviu as primeiras palavras animadoras de uma velha indigente.
- Jodelle é maluco, claro, mas é sempre simpático comigo. Traz flores pra mim... flores roubadas, é óbvio... e me chama de grande atriz. Dá pra acreditar?
- Sim, madame, acredito que ele é sincero.
- Então você é tão doido quanto ele.
- Talvez eu seja, porque você é uma linda mulher.
- Aiyee!... Seus olhos! São como nuvens azuis no céu. Você é o fantasma dele!
- Ele morreu?
- Quem sabe? Quem é você?
E finalmente, horas depois, enquanto o sol se punha sob as altas estruturas do Trocadéro, ele ouviu outras palavras, gritadas numa outra ruela, muita mais escura do que qualquer outra antes.
- Quem está falando a respeito de meu amigo, Jodelle?
- Eu estou - gritou Villier, penetrando mais na escuridão da ruela. - É amigo dele? - perguntou, ajoelhando-se ao lado do mendigo esfarrapado e prostrado. - Eu preciso encontrar Jodelle - continuou Jean-Pierre. - E tenho dinheiro para dar a quem puder me ajudar! Olha aqui, veja! Cinquenta francos.
- Faz muito tempo que não vejo cinquenta francos.
- Veja-os agora. Onde está Jodelle, para onde ele foi?
- Ah, ele disse que era um segredo...
- Mas contou para você.
- Ah, sim, éramos como irmãos.
- Sou seu filho. Conte a mim.
- Para o Vale do Loire, um homem terrível no Vale do Loire, é só isso que sei - sussurrou o indigente. - Ninguém sabe onde ele está.
Uma silhueta emergiu de repente da luz clara do sol e entrou na ruela. Era um homem do tamanho de Jean-Pierre, quando o ator se levantou e deixou a posição acocorada em que estava.
- Por que está fazendo perguntas sobre o velho Jodelle? - perguntou o intruso.
- Preciso encontrá-lo, meu senhor - respondeu Villier, numa voz trêmula e chiada. - Ele me deve dinheiro, sabe, e ando procurando por ele há três dias.
- Sinto muito mas você não irá receber a dívida. Será que não lê os jornais?
- Para que gastar meu dinheiro para ler coisas que não me dizem respeito? Posso dar umas risadas lendo os quadrinhos do jornal de ontem jogado no lixo, de ontem ou da semana passada.
- Um velho mendigo identificado como Jodelle se suicidou num teatro na noite passada.
- Ah, o filho da mãe! Ele me devia sete francos!
- Quem é você, velho? - perguntou o intruso, aproximando-se de Jean-Pierre e examinando-o à pouca luz da ruela.
- Sou Auguste Renoir e pinto quadros. E às vezes sou Monsieur Monet, e frequentemente o holandês Rembrandt. E na primavera gosto de ser Georges Seurat; no inverno serei o aleijado Toulouse-Lautrec. Todos aqueles bordéis quentinhos. Os museus são lugares maravilhosos quando chove e faz frio.
- Ah, você é um velho tolo! - O homem se virou e começou a caminhar em direção à rua, enquanto Villier vinha mancando rapidamente atrás dele.
- Monsieur! - gritou o ator.
- O quê? - O homem parou.
- Já que o senhor foi o mensageiro desta terrível notícia, acho que deveria me pagar os sete francos.
- Por quê? Que tipo de raciocínio é esse?
- O senhor roubou minha esperança.
- Eu roubei o quê...?
- Minha esperança, minha expectativa. Eu não lhe perguntei sobre Jodelle. O senhor é que me abordou. Como soube que eu estava à procura dele?
- Você gritou o nome dele alguns minutos atrás.
- E sob este pretexto trivial o senhor entra na minha vida e destrói minha expectativa? Talvez eu devesse perguntar quem é o senhor, monsieur. O senhor está vestido muito ricamente para ser conhecido do meu amigo Jodelle... aquele filho da mãe! O que representa Jodelle para o senhor? Por que veio aqui?
- Você é um lunático - disse o homem, enfiando a mão no bolso. - Pronto, aqui está uma nota de vinte francos, e peço desculpas por ter entrado na sua vida.
- Ah, obrigado, meu senhor, obrigado! - Jean-Pierre esperou até que o estranho curioso alcançasse a calçada iluminada pela luz do sol, em seguida correu pela ruela, espreitando pelo canto, enquanto o homem se aproximava de um carro estacionado a vinte metros rua acima. Novamente fingindo um mendigo meio aloucado de Paris, Villier se jogou na calçada, pulando como um bobo da corte deformado, gritando para seu benfeitor. - Que Deus lhe seja pródigo com o Seu amor e que o santo Jesus lhe abrace, monsieur! Que as glórias do paraíso celeste...
- Dê o fora de perto de mim, seu velho mendigo bêbado!
Ah, eu certamente darei, pensou Jean-Pierre, estudando bem a placa do Peugeot que partia.
Foi no final da tarde que Latham tomou o elevador e desceu até o complexo no subsolo da embaixada pela segunda vez em dezoito horas, no entanto, não para se dirigir ao centro de comunicações, mas sim ao sacrossanto Departamento de Pesquisa e Documentação. Um fuzileiro montava guarda numa mesa à direita da porta de aço; ele reconheceu Drew e sorriu.
- Como anda o tempo lá em cima, Sr. Latham?
- Não tão frio, nem tão limpo quanto o seu aqui, sargento, mas vocês têm o ar condicionado mais caro.
- Somos muito delicados aqui embaixo. O senhor quer entrar no nosso salão de segredos e pornografia pesada?
- Estão exibindo filmes pornôs?
- Cem francos o ingresso, mas eu lhe arranjo um grátis.
- Eu sempre pude contar com os fuzileiros.
- Por falar nisso, os caras do pelotão querem lhe agradecer pela boca livre que o senhor arranjou para a gente naquele café na Grenelle.
- O prazer foi meu. A gente nunca sabe quando quer assistir a um filme pornô... Na realidade, os donos são velhos amigos e a presença de vocês teve um efeito tranquilizador sobre alguns fregueses habituais antipáticos.
- Sim, o senhor nos disse. Nós nos vestimos da maneira mais perfeita possível, parecia que estávamos numa opereta ou algo assim.
- Sargento - interrompeu Drew, olhando para o guarda. - Você conhece uma tal de Karin de Vries do Departamento de Pesquisa e Documentação?
- Mal, para dizer a verdade, só "bom dia, boa noite". Ela é uma garota muito bonita, mas me parece que tenta esconder isto. Como aqueles óculos que devem pesar dois quilos e aquelas roupas pretas que não têm nada definitivamente a ver com Paris.
- Ela é nova aqui?
- Diria que tem uns quatro meses, desde que foi transferida da OTAN. Dizem que ela é meio quieta e reservada, sabe o que quero dizer?
- Acho que sim... Muito bem, guardião das chaves místicas, me arranje um lugar na frente.
- Na realidade é no primeiro corredor, terceira sala à direita. O nome dela está na porta.
- Você deu uma olhadela?
- Está certo. Quando aquela porta está fechada, a gente faz uma busca toda noite, com as mãos nos coldres das armas, caso haja algum intruso.
- Ah, os verdadeiros agentes das missões secretas. Vocês deviam estar no cinema, em filmes mais inocentes.
- Olha só quem está falando. Um jantar completo com vinho à vontade para treze fuzileiros? E um dono nervoso que vivia correndo para lá e para cá dizendo a todo mundo que éramos seus melhores amigos e provavelmente seus parentes da América, e que estaríamos na sua casa com bazucas na hora em que ele chamasse, sempre que estivesse em apuros? É isto que é um rapaz decente, num cenário cômico?
- Um convite inocente, inofensivo de um ardente admirador da tropa.
- Seu nariz está crescendo, Sr. Pinóquio.
- Você já rasgou meu ingresso. Por favor, deixe-me entrar.
O fuzileiro apertou um botão na sua mesa e ouviu um estalo alto na porta de aço.
- Entre no palácio do Mágico de Oz, senhor.
Latham entrou, penetrando no zumbido baixo e contínuo do complexo de computadores. Pesquisa e Documentação consistia numa série de salas de ambos os lados de um corredor central, e tal como no complexo de comunicações, tudo era branco, antisséptico, com os tubos de luz fria atravessando os tetos baixos como colunas de grossos e reluzentes caules circulares. Ele tomou à direita, terceira porta de sala; no centro da almofada superior havia uma tira preta de plástico com dizeres em branco. MADAME DE VRIES. Não Mademoiselle, e sim Madame, e a viúva de Vries precisava responder a várias perguntas sobre um certo Harry Latham e seu irmão Drew. Ele bateu.
- Entre - disse a voz lá dentro. Latham abriu a porta, recebido pela cara espantada de Karin de Vries; estava sentada na sua mesa, na parede da esquerda. - Monsieur, eu não estava exatamente lhe esperando - disse ela, e no tom de sua voz havia medo. - Peço desculpas por minha indelicadeza. Eu não devia ter saído da maneira como saí.
- Você não entendeu. Sou eu quem devia se desculpar. Falei com Witkowski...
- Ah, sim, o coronel...
- É sobre isso que precisamos conversar.
- Eu devia ter adivinhado - interrompeu a pesquisadora. - Sim, vamos conversar, Monsieur Latham, mas não aqui. Em outro lugar.
- Por quê? Eu examinei tudo aquilo que você me deu, e não era apenas bom, era excepcional. Eu mal consigo distinguir "débito" de "crédito", mas você clarificou muita coisa.
- Obrigada. Mas você está aqui por outro motivo, não está?
- De que está falando?
- Tem um café na Gabriel, a seis quarteirões daqui, Le Sabre d’Orléans. É pequeno e pouco frequentado. Esteja lá dentro de quarenta e cinco minutos. Estarei num reservado atrás.
- Eu não compreendo...
- Compreenderá.
Precisamente quarenta e cinco minutos depois, Drew entrou no pequeno e decadente café na avenue Gabriel, piscando por causa da pouca luz, um tanto surpreso pela pobreza do ambiente, numa das áreas de metro quadrado mais caro da cidade. Ele encontrou Karin de Vries, tal como ela dissera, no último reservado do lugar.
- Isto é uma espelunca e tanto - sussurrou ele, sentando-se defronte dela.
- L’obstination du Français - explicou de Vries. - E não é preciso falar tão baixo. Ninguém que interesse nos escutará falar.
- Quem é obstinado?
- O dono. Já lhe ofereceram uma grande quantia pelo lugar, mas ele se recusa a vender. É rico e o café está na família há muitos anos... muito antes dele ficar rico. Ele o mantém para poder empregar os parentes. Aí vem um deles: não fique espantado.
Um garçom velho, obviamente bêbado, aproximou-se cambaleando da mesa.
- Querem fazer seus pedidos? Nós não temos comida - perguntou ele de um jato.
- Uísque, por favor - respondeu Latham em francês.
- Hoje não tem uísque - respondeu o garçom com um arroto. - Temos uma ótima carta de vinhos, e um negócio japonês que eles chamam de uísque.
- Vinho branco então. Chablis, se tiverem.
- Está bem, branco.
- Eu quero a mesma coisa - disse Karin de Vries. O garçom afastou-se arrastando os pés e ela continuou. - Agora você pode compreender por que não é muito frequentado.
- Não devia existir... Vamos conversar. Seu marido trabalhou com meu irmão em Berlim Oriental.
- Sim.
- Isto é só o que você tem a dizer? "Sim"?
- O coronel lhe contou. Eu não sabia que ele estava aqui em Paris quando requisitei a transferência. Quando descobri, fiquei espantada, e percebi que este momento entre nós era inevitável.
- Você quis a transferência por causa de mim?
- Porque você é o irmão de Harry Latham, um homem tido por Frederik e eu como um bom e querido amigo.
- Você conhece Harry tão bem assim?
- Freddie trabalhava para ele, embora esta combinação não estivesse nas regras.
- Não existem regras nesse terreno.
- O que quero dizer é que nem o pessoal de Harry, muito menos o coronel Witkowski e seu G-2 do Exército sabiam que Harry era o controle de meu marido. Não poderia haver o menor indício da ligação deles nesse "terreno", como você o chamou, nem um sinalzinho.
- Mas Witkowski me disse que eles trabalharam juntos.
- Do mesmo lado, sim, mas não como controle e operador. Não acho que alguém tenha suspeitado.
- Era tão vital manter segredo, até do nosso pessoal mais graduado?
- Sim.
- Por quê?
- Por causa do tipo de trabalho que Frederik fazia para Harry. Voluntária, entusiasticamente. Se determinados acontecimentos fossem atribuídos aos americanos, poderia haver terríveis consequências.
- Nenhum dos lados jogava especialmente limpo, e às vezes ambos podiam ser bastante truculentos. Era um empate técnico, e daí?
- Acho que eram os assassinatos, fui levada a acreditar que era isso.
- Ambos matávamos...
- Talvez fosse o caráter proeminente de muitos que foram assassinados - interrompeu Karin de Vries, com os olhos bem abertos, quase suplicantes. - Soube que muitos ocupavam altos cargos, alemães protegidos de Moscou, líderes que se entendiam diretamente com o Kremlin. Talvez fosse semelhante se os prefeitos de suas grandes cidades, ou os governadores dos estados de Nova York e da Califórnia fossem mortos por agentes soviéticos, compreende o que quero dizer?
- Isto não poderia ter nenhuma possibilidade de acontecer, seria contraproducente. Moscou jamais teria permitido.
- Acontece aqui e Moscou encobriu-o. Sabiamente, se posso acrescentar.
- Você está dizendo que meu irmão, o controle de seu marido, mandou-o assassinar gente assim? Isso é ridículo! Teria feito o fiasco do U-2 parecer uma brincadeira em comparação. Não acredito em você, minha senhora. Harry é esperto demais, experiente demais para fazer qualquer coisa desse tipo; poderia haver represálias em massa nos Estados Unidos, e todo mundo estaria um passo mais próximo da guerra nuclear, coisa que ninguém queria.
- Eu não disse que seu irmão mandou meu marido cometer estes atos.
- Então o que está dizendo?
- Eles estavam comprometidos um com o outro e Harry era o controle de Frederik.
- Você quer dizer que seu marido...
- Sim - interrompeu Karin de Vries com delicadeza. - Freddie trabalhou bem para seu irmão, infiltrando-se na Stasi a ponto de eles darem festas em homenagem a ele, na qualidade de comerciante de diamantes de Amsterdã que estava enriquecendo os apparatchiks. Em seguida um certo padrão ficou claro; as horas e os locais coincidiam, toda vez que poderosos alemães orientais benquistos pelo Kremlin eram assassinados. Juntos e em separado, Harry e eu apertamos Frederik. Ele negou tudo, é claro, e seu charme inocente e sua língua ágil - as mesmas qualidades que o tornaram um extraordinário agente ultrassecreto - nos persuadiram de que tudo era coincidência.
- Não existe coincidência neste negócio.
- Descobrimos isso quando Frederik foi capturado uma semana antes da queda do Muro de Berlim. Sob tortura, e também sob a influência de soros da verdade, meu marido confessou os assassinatos. Harry foi um dos primeiros especialistas a alcançar e desmontar a sede da Stasi, e na sua ira provocada pela morte de Freddie, sabia exatamente o que procurar e a data. Achou uma cópia da transcrição e guardou-a, trazendo-a depois para mim.
- Quer dizer que seu marido virou um franco-atirador, e nem você nem meu irmão conseguiram perceber isso?
- Você deveria ter conhecido Freddie. Havia um motivo por trás de seu descontrole. Ele guardava um ódio extremado pelos alemães militantes, um ódio profundo que não se estendia aos cidadãos tolerantes, e até mesmo penitentes, da Alemanha Ocidental. Sabe, seus avós foram executados em praça pública por um pelotão de fuzilamento da Waffen SS, diante de toda a população da aldeia. O crime deles: levar comida para os judeus famintos mantidos num cercado de arame farpado descoberto ao lado do pátio da estrada de ferro. Além do mais - e isto é ainda mais doloroso - junto com seu avô e sua avó, foram fuzilados sete homens inocentes, todos eles pais de família, para servir de exemplo à desobediência civil. Na hipocrisia gerada pelo pânico, a família de Vries foi estigmatizada por uma geração. Frederik foi criado por parentes em Bruxelas, e só raramente permitiam-lhe ver seus pais, que acabaram se suicidando juntos. Estou convencida de que Frederik guardou as terríveis recordações desses anos até a hora de morrer.
Silêncio. E em seguida o garçom trapalhão voltou com seus copos de vinho, derramando parte de um deles em cima das calças de Drew. Ele saiu, e Latham disse:
- Vamos embora daqui. Tem um restaurante decente, uma brasserie, logo depois da esquina.
- Eu também o conheço, mas prefiro terminar nossa conversa aqui.
- Por quê? Este lugar é horrível.
- Não acho bom que nos vejam juntos.
- Pelo amor de Deus, trabalhamos no mesmo lugar. Por falar nisso, por que nunca te vi nas festinhas da embaixada? Tenho certeza de que teria lembrado.
- Essas festas não constituem uma prioridade para mim, Monsieur Latham. Vivo uma vida meio solitária mas bastante feliz.
- Sozinha?
- É minha opção.
Drew encolheu os ombros.
- Então está bem. Você viu meu nome na nossa lista remetida para Haia, e baseada no fato de que eu era irmão de Harry, pediu sua transferência. Por quê?
- Eu lhe disse, fui liberada pela OTAN para trabalhar com material de arquivo ultrassecreto. Seis meses atrás levei um memorando de um canal seguro vindo por rádio ao comandante supremo, e curiosa como sou - como fui hoje - li-o. Dizia que um certo Drew Latham estava sendo transferido para Paris, com plenas credenciais do Quai d’Orsay para estudar "o problema alemão". Não precisei de muita imaginação para perceber o que era aquilo, monsieur. Foi "o problema alemão" que matou meu marido, e lembro-me nitidamente de seu irmão falando com muito carinho a seu respeito. Como ele nunca quisera que você seguisse seus passos, já que tinha o pavio curto e não tinha facilidade em aprender línguas.
- Harry tinha ciúmes porque mamãe sempre me preferiu.
- Está brincando.
- Claro que estou. Na realidade, tenho a impressão de que ela achava, e ainda acha, que éramos ambos meio esquisitos.
- Por causa de suas profissões?
- Não, nada disso, ela não sabe a respeito delas e papai é bastante esperto para não contar. Ela está convencida de que trabalhamos em algum lugar entre as fileiras do Departamento de Estado, viajando pelo mundo inteiro meses a fio, e não entende por que nós não somos casados, para que ela pudesse mimar seus netinhos.
- Uma preocupação natural, eu diria.
- Não para dois filhos numa profissão nada natural.
- Mesmo assim, Harry admitia que você era muito forte e bastante inteligente.
- Bastante inteligente?... Novamente ciúmes. Eu ganhava um dinheiro a mais durante o período de minha bolsa universitária porque sabia jogar hóquei desde o secundário. Ele caía de bunda em cima de um par de patins.
- Está novamente brincando.
- Não, não, essa parte é verdade.
- Vocês conseguiram bolsas.
- Éramos obrigados. Nosso pai era doutor em arqueologia, e tudo que obteve disso foram escavações do Arizona até o velho Iraque. A National Geographic Society e o Explorers’ Club pagavam as viagens, mas não as da mulher e dos filhos. Quando surgiram aqueles filmes, Harry e eu costumávamos rir e dizer, dane-se a "Arca Perdida", onde estavam os filhos de Indiana Jones?
- Este quadro de referência me escapa, embora eu reconheça o aspecto acadêmico.
- Nosso pai tinha estabilidade, por isso a gente não faliu, mas certamente não éramos ricos, mal dando para nos manter na próspera classe média. Nós tínhamos que arranjar bolsas... Agora que você ouviu a história da minha vida e eu ouvi mais do que queria a respeito de seu marido... e você? De onde você saiu, Sra. de Vries?
- Não é relevante...
- Sim, já disse isto antes e não me convenceu. Antes que progrida muito na embaixada, especialmente no seu departamento, é melhor esclarecê-lo.
- Não acredita em nenhuma palavra do que eu lhe disse...
- Acredito por alto, naquilo que foi confirmado por Witkowski, mas além disso não tenho certeza.
- Então vá para o inferno, monsieur. - Karin de Vries começou a deslizar pelo lado do reservado para se levantar quando o garçom ébrio se aproximou.
- Há alguém aqui chamado Lat’am? - perguntou ele.
- Latham? Sim, sou eu.
- Há uma chamada para o senhor no telefone. Isso acrescentará trinta francos na conta. - O garçom afastou-se devagar.
- Fique aqui - disse Drew. - Eu contei ao centro de comunicações onde estaria.
- E por que haveria eu de ficar?
- Porque quero que fique, quero realmente. - Latham levantou-se e caminhou rapidamente até o telefone antiquado na extremidade de um bar dilapidado. Pegou o fone, que jazia numa poça de vinho azedo, e falou. - Aqui é Latham.
- Aqui é Durbane - disse a voz na linha. - Estou colocando você, através da linha do codificador, em contato com o diretor Sorenson em Washington. Está limpo dos dois lados. Pode falar.
- Drew?
- Sim, senhor...
- Aconteceu! Acabamos de ter notícias de Harry. Ele está vivo!
- Onde?
- Até onde podemos precisar, em algum lugar nos Alpes de Hausruck. Recebemos uma chamada dos antineos em Obernberg dizendo que eles estavam preparando a fuga dele, e para a gente manter abertas nossas linhas de segurança de Passau até Burghausen. Recusaram-se a se identificar, mas só podem ser verídicos.
- Graças a Deus - exclamou Latham, aliviado.
- Não ponha muita fé nisso. Disseram que precisam atravessar mais de vinte quilômetros de neve nas montanhas para chegar até ele.
- Você não conhece Harry. Ele vai conseguir. Talvez eu seja mais forte, mas ele é mais duro.
- De que está falando?
- Deixe para lá. Voltarei para a embaixada e ficarei à espera. - Latham repôs o fone no gancho e voltou para a mesa.
Karin de Vries não se encontrava mais lá.
5
A coluna de pessoas caminhava com dificuldade pela neve, enquanto as longas sombras da noite se espalhavam pela cordilheira, sendo que os faróis dos dois enormes veículos e as lanternas dos guardas constituíam a única iluminação. Harry Latham pulou do caminhão, a dor de cabeça diminuindo na medida em que se aproximavam da ponte sobre a garganta acima da ramificação do rio Salzach. Ele conseguiria! Atravessada a estreita ponte, ele acharia seu caminho; memorizara o caminho de volta e as marcas que deixara, recordando-as mil vezes durante a sua assim chamada hospitalização, também conhecida de outro modo como sequestro. Porém ele não poderia permanecer no caminhão alpino onde se escondera, pois os veículos eram revistados, cada peça de equipamento checada com um catálogo. Em vez disso, precisava se juntar à coluna de Sonnenkinder, marchando cegamente para seu futuro incerto na Alemanha e em toda Europa, cantando suas cantigas sobre a pureza de sangue, a probidade ariana, e de morte aos malnascidos. Harry acompanhou-os o mais alto possível, tendo seu fervor reconhecido por sorrisos e olhos brilhantes, enquanto atravessavam a ponte. Agora só faltavam alguns instantes.
O momento chegara! A coluna marchou para a direita na noite varrida pela neve, e Harry saiu agachado, separando-se dela, correndo para a esquerda, durante uma queda especialmente breve e pesada de neve. Um guarda observador viu-o e levantou a pistola.
- Nein! - disse o Reichsführer do pelotão, agarrando o braço do soldado e baixando-o. - Verboten. Ist schon gut!
O homem que era conhecido no setor de espionagem como Sting avançou com dificuldade pela neve à altura do joelho, que jamais fora pisada por outros pés, esperando, resfolegante, ver a primeira das marcas que ele fizera semanas atrás - anos atrás lhe pareciam - quando o conduziram pela primeira vez ao vale oculto. Lá estava ela! Dois galhos quebrados de uma árvore nova que só reconquistaria o viço na primavera. A pequena árvore ficava à esquerda, a próxima marca era à direita, uma direita descendo em diagonal... Trezentos metros mais tarde, com o rosto quente e corado e suas pernas congelando, avistou-a! O galho de um espruce alpino que ele quebrara; ainda estava caído, seco, sem seiva. A estrada na montanha entre as duas aldeias alpinas ficava a menos de oito quilômetros de distância, a maior parte do caminho em declive. Ele haveria de conseguir. Precisava!
Finalmente, com seus pés numa agonia de gelo, seu corpo dobrado de dor, ele conseguiu. Sentou-se e massageou as pernas, arranhando as mãos nas calças semicongeladas, quando surgiu um caminhão à esquerda. Ele se obrigou a se pôr de pé, chegou cambaleando à estrada e agitou violentamente seus braços no feixe de luz dos faróis. O caminhão parou.
- Hilfe! - gritou ele em alemão. - Meu carro saiu da estrada!
- Não precisa explicar nada - disse o motorista barbado num inglês com sotaque. - Eu o estava esperando. Subi e desci esta estrada durante os últimos três dias, hora após hora.
- Quem é você? - perguntou Harry subindo no assento.
- Seu resgate, como dizem os ingleses - respondeu o motorista com uma risadinha.
- Você sabia que eu ia sair?
- Temos uma espiã no vale oculto, embora não saibamos onde fica. Ela, como todo mundo, foi levada para lá com os olhos vendados.
- Como ela soube?
- É uma enfermeira num hospital lá embaixo, enfermeira quando não lhe mandam copular com outro Brüder ariano para produzir mais uma Sonnenkind. Ela observou você, viu você dobrando tiras de papel e costurando-as na sua roupa...
- Mas como? - interrompeu Latham/Lassiter.
- Os quartos têm câmeras ocultas.
- E como ela te avisou?
- A todas as Sonnenkinder se permite, aliás, até se ordena, que entrem em contato com os pais e parentes, para que expliquem sua ausência com belas histórias fictícias. Sem essas explicações, o Oberführer teme que sejam expostos, tal como seus cultos americanos, que se escondem atrás de barricadas em outras montanhas e outros vales. Ela conseguiu falar com seus "pais" e por intermédio de códigos precisos informou-nos que o americano estava de saída, o dia ou a hora precisa ela não poderia saber, mas era certo que você fugiria em breve.
- A evacuação - e foi exatamente isto - foi a maneira de eu conseguir sair.
- De qualquer maneira, você está aqui e a caminho de Burghausen. Do nosso humilde quartel-general lá, poderá alcançar quem quiser. Sabe, nós somos os antinayous.
- Os quem?
- O oposto daquele que, sob o nome de guerra de Caracala, trucidou vinte mil romanos que se opunham ao seu governo despótico, de acordo com o historiador Dio Cassius.
- Já ouvi falar de Caracala, Dio Cassius também, mas lamento dizer que não o compreendo.
- Então não é um estudante sério da história romana.
- Não, não sou.
- Então vamos trazê-lo para nossa época, em outro contexto, de modo reverso, ja?
- Como quiser.
- Anglicizados, somos antineos, ja?
- Está bem.
- Ponha "neos" no lugar de "nayous", okay?
- Certo.
- Então, o que nós temos? Antineos, nicht wahr? Anti-neo-nazistas. É isso que somos!
- Por que precisam se esconder atrás de um nome tão obscuro?
- Por que eles se escondem sob o nome secreto da Brüderschaft?
- O que tem uma coisa a ver com outra?
- O segredo precisa igualar o segredo!
- Por quê? Vocês são legais.
- Nós damos combate a nosso inimigo tanto de modo subterrâneo quanto acima do solo.
- Eu estive lá - disse Harry Latham, deixando-se recostar no assento. - E mesmo assim ainda não compreendo vocês.
- Por que você foi embora? - perguntou Drew, tendo obtido o número de telefone de Karin de Vries da segurança.
- Não havia mais nada a dizer - respondeu a pesquisadora.
- Havia uma porrada de coisas para dizer, e você sabe.
- Por favor investigue minha ficha na segurança, e se houver qualquer coisa que lhe desagrade, reclame.
- Esqueça essa merda! Harry está vivo! Depois de todos esses anos na clandestinidade, ele fugiu e está a caminho!
- Mon Dieu. Não posso lhe dizer o quanto isto me deixa feliz, o quanto me deixa aliviada!
- Você sabia o tempo todo o que meu irmão estava fazendo, não sabia?
- No telefone não, Drew Latham. Venha a meu apartamento na rue Madeleine. Número vinte e seis, apartamento cinco.
Drew deu o número a Durbane no centro de comunicações, pegou seu casaco e correu até o carro do Deuxième, que era agora seu companheiro constante.
- Rue Madeleine - disse ele. - Número vinte e seis.
- Uma bela vizinhança - disse o motorista, dando partida ao veículo de chapa fria.
O apartamento na rue Madeleine acrescentou outra dimensão ao enigma que Karin de Vries representava. Não só ele era grande, mas mobiliado com gosto e com objetos caros; a mobília, as cortinas e os quadros estavam muito além do salário de uma funcionária de embaixada.
- Meu marido não era um homem pobre - disse a viúva, reparando na maneira como Drew reagira à decoração. - Ele não apenas representava o papel de um comerciante de joias, como participava ativamente do negócio, com seu costumeiro entusiasmo.
- Ele deve ter sido um cara e tanto.
- E também algo além disso - acrescentou de Vries, sem nenhuma crítica no seu tom de voz. - Por favor, sente-se, Monsieur Latham. Posso lhe oferecer um drinque?
- Considerando o vinho azedo do café de sua escolha, aceito de bom grado.
- Tenho uísque escocês.
- Então faço mais do que aceitar, eu lhe rogo.
- Não é preciso - disse de Vries, rindo suavemente e caminhando até um bar forrado de espelhos. - Freddie me ensinou a ter sempre quatro bebidas à mão - continuou ela, abrindo um balde de gelo, uma garrafa e servindo uma dose. - Vinho tinto na temperatura ambiente, vinho branco gelado - um encorpado, o outro seco, e ambos de boa qualidade - como também uísque escocês para os ingleses e Bourbon para os americanos.
- E para os alemães?
- Cerveja, a marca não tem importância, porque ele dizia que eles bebem qualquer coisa. Mas, como lhe disse, ele era extremamente preconceituoso.
- Ele deve ter conhecido outros alemães.
- Natürlich. Ele insistia que eles tinham mania de imitar os ingleses. "Uísque" - que é escocês - sem gelo; embora preferissem com gelo, negam isto. - Ela trouxe o copo de Drew e, acenando para uma cadeira, disse. - Sente-se, Monsieur Latham, temos várias coisas para conversar.
- Para falar a verdade, este é o meu estilo - disse Drew, sentando-se numa poltrona de couro macia, do outro lado do divã verde-claro de veludo leve, escolhido por Karin de Vries. - Não quer me acompanhar? - perguntou ele, levantando um pouco seu copo.
- Talvez depois... se houver um depois.
- Você é um enigma e tanto, minha senhora.
- De onde está sentado, tenho certeza de que devo parecer assim. No entanto, ao olhar para você, sou a própria imagem da simplicidade. É você quem é o enigma. Você e a comunidade de informações americana.
- Acho que esse comentário requer uma explicação, Sra. de Vries.
- É claro que requer, e você a terá. Vocês mandam um homem na mais profunda clandestinidade, um agente extraordinariamente talentoso e fluente em cinco ou seis idiomas, e vocês mantêm sua existência tão secreta aqui na Europa, tão secreta, que ele não tem proteção, ninguém que possa contatar como controle, porque ninguém tem a autoridade, muito menos a responsabilidade, de poder aconselhá-lo.
- Harry sempre tinha a opção de dar meia-volta - protestou Latham. - Ele viajava por toda a Europa e o Oriente Médio. Poderia ter parado em qualquer lugar, pego um telefone, ligado para Washington e dito "É isso, pra mim chega". Não teria sido o primeiro agente ultrassecreto a fazê-lo.
- Então você não conhece seu próprio irmão.
- O que quer dizer? Pelo amor de Deus, fui criado junto com ele.
- Profissionalmente?
- Não, não desta maneira. Estamos em setores separados.
- Então você não tem a menor ideia do verdadeiro cão de fila que ele é.
- Cão de fila...?
- Tão fanático na hora da caçada, quanto os fanáticos que perseguia.
- Ele não gostava de nazistas, quem gosta?
- Não é essa a questão, monsieur. Quando Harry era um controle, ele tinha ajuda na Alemanha, paga pelos americanos, que lhe fornecia informação, informação essa que ditaria as ordens que ele daria a seus operadores, operadores como meu marido. Seu irmão não tinha nenhuma vantagem semelhante. Ele estava sozinho.
- Precisava estar. Fazia parte da natureza da operação, isolamento total. Não poderia haver o mínimo vestígio. Nem mesmo eu sabia seu nome falso. Qual é a questão?
- Harry não tinha nenhuma ajuda aqui, mas seus inimigos tinham ajuda em Washington.
- Que diabo você está dizendo?
- Você acertou quando supôs que eu sabia sobre a missão de seu irmão. Aliás, seu nome falso era Lassiter, Alexander Lassiter.
- O quê? - Estupefato, Latham pulou de sua cadeira. - Onde arranjou essa informação?
- Já que nem você sabia o nome que ele estava usando, onde mais obtê-la? Com o inimigo, é óbvio, com um membro da Irmandade... é esse o nome que usam.
- Isto está ficando terrivelmente confuso, minha senhora. Explique-se mais, por favor.
- Só em parte. Algumas coisas você terá de acreditar por fé. Para minha própria segurança.
- Eu não tenho muita fé, agora menos que nunca, por isso vamos começar com a explicação parcial. Em seguida eu lhe direi se ainda tem um trabalho ou não.
- Considerando minha contribuição, isto não chega a ser justo...
- Tente - interrompeu asperamente Drew.
- Freddie e eu mantínhamos um apartamento em Amsterdã, no nome dele, naturalmente, um apartamento de acordo com a sua fortuna como jovem empresário do comércio de diamantes. Sempre que nossos esquemas de trabalho permitiam, nós nos encontrávamos lá, mas eu era, digamos, uma mulher muito diferente do que a que se via na OTAN... da que você vê hoje na embaixada. Eu me vestia na moda, até mesmo extravagantemente, usava uma peruca loura e muitas joias...
- Você vivia uma vida dupla - interrompeu Latham, balançando novamente a cabeça, novamente impaciente.
- Era obviamente necessário.
- Admito. E?
- Nós recebíamos a visita - não com frequência, e somente dos contatos mais vitais de Freddie, e eu estava em evidência como sua mulher... Preciso parar aqui e explicar uma coisa para você, apesar de você sem dúvida já sabê-la. Sempre que as poderosas agências de informações governamentais são enganadas por gente de fora, elas, é claro, se livram dos agentes inimigos infiltrados através da execução sumária ou simulando que estes abriram o jogo, provocando assim a morte deles por sua própria gente na qualidade de agentes duplos, não concorda?
- Já ouvi falar nisso, é o máximo que posso admitir.
- Mas a única coisa que não toleram é o constrangimento, é admitirem que foram infiltrados; essas ocorrências eram mantidas sob quatro chaves, mesmo dentro de suas próprias organizações.
- Também já ouvi falar a respeito.
- Aconteceu na Stasi. Depois que Frederik foi morto e houve a queda do Muro, vários de seus importantes contatos da Alemanha Oriental começaram a deixar repetidos recados na nossa secretária eletrônica, solicitando encontros com Freddie. Aceitei vários, no meu papel de sua mulher. Dois homens, o primeiro sendo o quarto oficial em importância da Stasi, e o outro um decifrador de códigos, além de estuprador condenado e exonerado por seus superiores, haviam sido recrutados pela Irmandade. Vieram ver Frederik para trocarem seus diamantes por dinheiro. Tal como acontecera com outros, jantei com eles e enchi-os de álcool - misturado a determinados pós que Freddie sempre insistiu que eu guardasse num açucareiro - e na hora em que esses dois tentaram fazer amor comigo, cada um deles arrotando sua importância, revelaram-me ambos na sua embriaguez o porquê de sua importância.
- Meu irmão Harry - disse Drew monotonamente.
- Sim. Instigados por mim, cada um deles falou sobre um agente americano chamado Lassiter, que a Irmandade conhecia e para o qual estava preparada.
- Como você soube que era Harry?
- Da maneira mais clara possível. Minhas primeiras perguntas eram inofensivas, mas com o passar do tempo tornei-me mais específica - Freddie sempre dizia que esta era a melhor maneira, especialmente com álcool e com os pós. Finalmente, cada homem disse fundamentalmente a mesma coisa. Era o seguinte: "Seu verdadeiro nome é Harry Latham, CIA, Operações Clandestinas, Projeto Tempo - mais dois anos, codinome Sting, toda a informação deletada dos computadores do Nível AA-Zero."
- Meu Deus! Isso deve ter vindo lá de cima, lá de cima mesmo! AA-Zero não podia se aventurar mais do que um pouquinho, no máximo um andar abaixo, da sala do diretor... Isso é bastante ultrajante, Sra. de Vries.
- Já que eu não tinha a menor ideia do que AA-Zero significava, eu acredito que seja verdade. Foram essas as palavras que ouvi, o motivo por que solicitei minha transferência para Paris... Estou mantida no trabalho, monsieur?
- Solidamente como uma rocha. Só que há um novo senão.
- Senão? Compreendo a palavra, mas em que sentido a usa?
- Você permanecerá no Departamento de Pesquisa e Documentação, mas agora você faz parte das Operações Consulares.
- Por quê?
- Entre outras coisas, você terá que assinar uma declaração escrita e juramentada de que não divulgará a informação que acabou de me dar, sob pena de passar trinta anos numa cadeia americana.
- E se eu me recusar a assinar esse documento?
- Então você é o inimigo.
- Ótimo! Gostei disso. Foi exato.
- Vamos ser mais exatos - disse Latham, com os olhos cravados nos de Karin de Vries. - Se você virar a casaca, ou lhe fizerem com que vire, não tem apelação. Compreendeu?
- Com toda minha razão e com todo meu coração, monsieur.
- Agora é minha vez de perguntar. Por quê?
- Na realidade é bem simples. Durante vários anos meu casamento foi uma dádiva divina. Um homem que eu adorava me amava do mesmo modo que eu o amava. Depois eu assisti a esse homem ser destruído pelo ódio, não pelo ódio cego, mas ódio consciente, de olhos abertos, postos num inimigo que ressurgia e que havia liquidado sua família - seus pais e os pais de seus pais antes deles. Aquele glorioso e animado rapaz com quem me casei merecia uma sorte muito melhor do que lhe coube. Agora é minha vez de combater seu inimigo, o inimigo de todos nós.
- Isto basta para mim, Sra. de Vries. Bem-vinda ao nosso lado.
- Então eu o acompanharei num drinque, monsieur. Eu não havia dito "mais tarde"?
O F-16 americano aterrissou no aeroporto de Althein. O piloto, um coronel da Força Aérea enviado pela CIA, solicitou partida imediata depois do embarque de seu "pacote". Conduziram Harry Latham através do campo de pouso, ajudaram-lhe a entrar na segunda cabine, a tampa foi fechada e poucos minutos depois o avião já alçara voo de volta à Inglaterra. Três horas depois de sua chegada no Reino Unido, o agente secreto exausto foi conduzido sob escolta até a embaixada americana em Grosvenor Square, consistindo seu comitê de recepção em três funcionários do mais alto escalão, da CIA, do MI-6 britânico e de seu equivalente francês, o Service d’Etranger.
- Ei, é maravilhoso ter você de volta, Harry! - disse o americano.
- Excelente trabalho - disse o inglês.
- Magnifique! - acrescentou o francês.
- Obrigado, cavalheiros, mas será que não poderíamos adiar o interrogatório para depois? Preciso dormir um pouco.
- O vale - disse o americano. - Que diabo, onde fica? Isso não pode esperar, Harry.
- O vale não tem mais importância. Já era, começaram a botar fogo nele há dois dias. Tudo foi destruído, e todo mundo saiu de lá.
- De que está falando? - insistiu o homem da CIA. - É a nossa chave.
- Meu colega americano tem toda razão, meu velho - insistiu o membro do MI-6.
- Absolument - disse o sujeito do Deuxième. - Precisamos destruí-lo!
- Espere, espere só! - retrucou Harry, olhando cansado para o tribunal de agentes. - Pode ser a chave, mas a fechadura não se encontra mais lá. Contudo, não importa. - Para o espanto dos demais sentados à volta da mesa, Latham começou a rasgar o forro de seu casaco, levantando-se em seguida e tirando as calças, virando-as pelo avesso, e fazendo o mesmo com o forro interno dos bolsos. Permanecendo de pé apenas de paletó e cuecas, removeu lenta e cuidadosamente dezenas de tiras manuscritas de papel e empilhou-as em cima da mesa de conferências. - Trouxe tudo de que precisamos. Nomes, cargos, agências, departamentos, a colmeia inteira, como diria meu irmão. Aliás, eu gostaria...
- Já foi feito - interrompeu o chefe da agência da CIA, antecipando o pedido dele. - Sorenson das Operações Consulares disse-lhe que você tinha escapado. Ele está em Paris.
- Obrigado... Se vocês tiverem uma equipe de secretárias totalmente confiável, mandem datilografar isso aqui por rodízio, nenhuma datilógrafa deve saber o que as demais estão fazendo. Quanto aos trechos em código, eu os decifrarei mais tarde.
- O que são eles? - perguntou o inglês, olhando fixamente para as tiras de papel espalhadas, muitas rasgadas.
- Um exército muito influente por trás da Brüderschaft, homens e mulheres poderosos em cada um de nossos países, que por cobiça ou por uma fé deformada, apoiam os neos. Vou lhes avisar, tem algumas surpresas, tanto nos nossos setores públicos, quanto nos privados... Agora, se alguém pudesse me arranjar um hotel decente e me comprar umas roupas, eu gostaria de dormir um dia ou dois.
- Harry - avisou o homem da CIA - vista suas calças antes de sair daqui.
- Bem lembrado, Jack. Você sempre foi muito observador.
Harry Latham estava deitado na cama, tendo terminado de responder à ligação quase insultante, e portanto carinhosa, de seu irmão Drew. Encontrar-se-iam em Paris até o final da semana, ou tão logo acabasse o interrogatório de Harry, incluindo a decifração das informações que trouxera da Alemanha. O irmão mais velho não descreveu sua agenda imediata, nem foi preciso, pois o caçula entendeu o que não foi dito. As únicas informações que este deu foram as que se seguem.
- Com você de volta inteirinho, a gente pode deslanchar. Pegamos a identidade de um carro dirigido por uma dupla de merdas... Aliás, para falar comigo ligue para minha sala ou para o hotel Meurice na rue de Rivoli.
- O que aconteceu a seu apartamento? O síndico te despejou por conduta imoral?
- Não, mas a conduta imoral de outras pessoas faz com que no momento ele seja inabitável.
- Verdade? O Meurice representa uma vida bastante abastada, irmãozinho.
- Bonn está pagando tudo.
- Meu Deus, mal posso esperar para saber. Eu te ligarei na hora em que for pegar o avião para aí. Aliás, estou no Gloucester sob o nome de Moss, Wendell Moss.
- Muito classudo... Estou contente por você ter voltado, mano.
- Eu também, mano. - Harry fechara os olhos, e o sono o dominara rapidamente, quando ouviram-se batidas suaves e insistentes na porta do seu quarto. Sacudindo a cabeça de irritação, ele jogou de lado as cobertas, levantou-se meio cambaleando da cama e estendeu a mão para pegar o roupão fornecido pelo hotel, dobrado sobre uma cadeira. Foi caminhando com um pouco de dificuldade até a porta.
- Quem é? - gritou ele.
- É Catbird da parte de Langley - veio a resposta em voz baixa. - Preciso falar com você, Sting.
- Ah? - Espantado, mas sabedor do segredo máximo que envolvia seu codinome de operações, Harry abriu a porta. No corredor estava um homem relativamente baixo, com uma cara agradável, um tanto pálida e facilmente esquecível, vestido em um terno escuro de negócios e com óculos de armação metálica. - O que é catbird? - perguntou Latham, fazendo um gesto para que o emissário da CIA entrasse.
- Nossos codinomes mudaram, o seu nunca - respondeu o estranho, entrando no quarto e estendendo sua mão. Harry apertou-a, ainda confuso. - Você não imagina como estamos satisfeitos por você ter conseguido sair de uma região tão fria.
- O que é isso, uma reprise de John Le Carré? Se for, ele fazia melhor. Sting dá para entender, mas Catbird é meio banal, não acha? E por que você não estava na embaixada? Eu estou totalmente exausto, Sr. Catbird, preciso realmente dormir.
- Sim, eu sei disto e peço minhas sinceras desculpas. Entretanto, há um nível acima da embaixada, tenho certeza de que você tem conhecimento disto.
- Claro. Há o diretor da CIA, o secretário de Estado e o presidente. Então, repetindo, o que é um catbird?
- Eu só tomarei poucos minutos de seu tempo - disse o homem de cara agradável, pondo de lado a pergunta de Harry e tirando um relógio de bolso do seu colete. - Isto aqui é um bem de família, e com minha vista cansada, acho mais fácil ler. Dois minutos, Sr. Latham, e eu irei embora.
- Antes que você continue, é melhor me mostrar alguma porra de identificação autêntica.
- Claro. - O intruso levantou o relógio diante do rosto de Harry e falou claramente, precisamente, enquanto pressionava a coroa. - Alô, Alexander Lassiter. É seu amigo, Dr. Gerhardt Kroeger, e precisamos conversar.
Os olhos de Harry tornaram-se de repente vidrados, com as pupilas dilatadas; para resumir, ele olhava para o vazio.
- Oi, Gerhardt - disse ele -, como está meu açougueiro favorito?
- Ótimo, Alex. Como está você? Já fez seu passeio hoje pelos nossos campos?
- Ah, espera aí, doutor, já é noite. Quer que eu dê de cara com um bando de Dobermans? Onde está sua cabeça?
- Desculpe, Alexander, andei operando a maior parte do dia, e você tem toda razão, eu estou tão cansado quanto você... Mas diga-me, Alex, quando você se encontrou em pensamento com aqueles pessoas na embaixada americana, o que aconteceu?
- Nada, para dizer a verdade. Eu lhes dei tudo que trouxe quando escapei e durante os próximos dias vamos examinar este material.
- Bom. Mais alguma coisa?
- Meu irmão ligou de Paris. Estão na pista de um carro suspeito. Meu irmão caçula é um bom sujeito, você haveria de gostar dele, Gerhardt.
- Tenho certeza que sim. Ele é aquele que trabalha nas Operações Consulares, não é?
- Isso mesmo... Por que está me fazendo essas perguntas?
No mesmo instante, o estranho de rosto pálido no quarto de hotel voltou a erguer o relógio de bolso, pressionando duas vezes a coroa enquanto os olhos de Harry Latham clareavam e sua coordenação visual ficava firme.
- Você realmente precisa dormir, Harry - disse o homem que se autodenominava Catbird. - Não estou conseguindo me comunicar com você. Vamos fazer o seguinte, tentarei amanhã, está bem?
- O quê...?
- Entrarei em contato amanhã.
- Por quê?
- Você não se lembra? Meu Deus, está exausto. O diretor da CIA, o secretário de Estado... o presidente, Harry. Vim autorizado por eles, não é isso que você queria, certo?
- Certo... está bem. Era isso que eu queria.
- Vá dormir, Sting. Você merece. - Catbird partiu às pressas, fechando a porta depois de sair, enquanto Harry Latham voltava para cama como um robô.
- Quem é Catbird? - perguntou Harry. Era de manhã e os três oficiais da inteligência estavam sentados em volta da mesa de conferências, como no dia anterior.
- Eu recebi sua chamada duas horas atrás - disse o americano, chefe do setor. - Eu mesmo acordei o diretor da CIA e ele nunca ouviu falar de um Catbird. Ele também achou o nome bastante burro, tal como você achou, Latham.
- Mas ele estava lá! Eu o vi, falei com ele. Ele estava lá!
- Sobre o que conversou, monsieur? - perguntou o agente francês.
- Não tenho certeza. Não sei direito, para dizer a verdade. Ele parecia perfeitamente normal, perguntou-me algumas coisas inofensivas, e depois... Eu não consigo me lembrar.
- Posso sugerir, agente Latham - interrompeu o brigadeiro do MI-6 britânico - que você tenha sofrido três anos muito estressantes, ou melhor dizendo, três insuportáveis anos. Não haveria a possibilidade, e digo isto com todo respeito a seu extraordinário intelecto, de estar passando por episódios ilusórios? Deus do céu, meu caro, já tive agentes desempenhando o papel de duas pessoas que começaram a viver fantasias e entraram em colapso, submetidos a apenas metade do seu estresse.
- Eu não entro em colapso, general. Eu não entro em colapso nem faço fantasias.
- Vamos recapitular, Monsieur Latham - disse o francês. - Logo que chegou ao vale da Brüderschaft, o que aconteceu?
- Ah. - Os olhos de Harry se voltaram para baixo; sentiu-se desorientado por vários instantes, em seguida tudo se tornou claro. - Você quer dizer o acidente. Meu Deus, foi terrível. Muita coisa ficou confusa, mas a minha primeira recordação é dos gritos, eram histéricos. Em seguida percebi que estava preso sob o caminhão, e uma peça pesada de metal comprimia minha cabeça... Eu nunca senti tanta dor... - Latham desfiou a litania programada pelo Dr. Gerhardt Kroeger, e quando acabou, levantou a cabeça, os olhos límpidos. - Já lhes contei o resto, cavalheiros.
Os membros do tribunal olharam-se entre si, cada um sacudindo brevemente a cabeça, obviamente confusos. Em seguida o americano falou.
- Olha, Harry - disse ele com delicadeza -, durante os próximos dias vamos examinar tudo aquilo que nos trouxe, está bem? Depois disso, você merece um longo período de descanso, certo?
- Gostaria de pegar um avião e ir até Paris para ver meu irmão...
- Certo não há problema, mesmo ele trabalhando nas Operações Consulares, que não é dos meus setores prediletos.
- Tenho por mim que ele é bastante bom no que faz.
- Credo - concordou o chefe do setor da CIA. - Ele era muito bom quando jogava hóquei para o time rural dos Islanders, em Manitoba. Eu estava num posto no Canadá naquela época, e lhes digo que aquela massa parou muitas massas maiores do que ele, de uma maneira que nunca vi. Ele teria feito sucesso em Nova York.
- Felizmente - disse Harry Latham - eu o convenci a abandonar uma profissão tão violenta.
Drew Latham acordou na cama superacolchoada na sua suíte no Meurice, na rue Rivoli. Piscando os olhos, procurou o telefone na mesinha de cabeceira e apertou a tecla do serviço de quarto. Enquanto a Alemanha estivesse pagando, pediu um bife de filé a cavalo e um mingau de aveia com bastante creme; disseram-lhe que seu pedido seria entregue dentro de trinta minutos. Espreguiçou-se na cama, sentindo o incômodo no braço esquerdo da automática debaixo do travesseiro, em seguida fechou os olhos para prolongar por mais uns minutos o seu descanso.
Um arranhado, uma batida metálica na porta. Nada normal - nada normal mesmo! De repente o barulho ensurdecedor, em staccato, de uma britadeira seis andares lá embaixo na rua, uma obra começando tão cedo de manhã... Estranho - anormal! Mal rompera o dia! Drew pegou sua arma e desceu da cama deslizando pelo lado esquerdo; seguiu rolando no chão até emparelhar com a moldura do canto da parede mais distante. A porta se abriu e uma fuzilaria destroçou a cama, despedaçando o colchão e o travesseiro, sincronizada com o barulho ensurdecedor lá fora. Latham ergueu sua arma e disparou cinco vezes em seguida contra a silhueta escura no vão da porta. O homem caiu para frente; Drew levantou-se no momento em que a britadeira parou na rua, e correu para o seu assassino em potencial. Ele estava morto, mas ao agarrar a parte superior de seu corpo, rasgara seu suéter preto apertado. No seu peito viam-se três tatuagens de pequenos raios. Blitzkrieg. A Brüderschaft.
6
Jean-Pierre Villier aceitou com estoicismo a crítica que lhe dirigiu Claude Moreau do Deuxième Bureau.
- Foi de fato um gesto corajoso de sua parte, monsieur, e pode ficar tranquilo que estamos na pista do carro em questão, mas por favor entenda que se o senhor sofresse qualquer mal, a França inteira se revoltaria contra nós.
- Acho isto meio exagerado - disse o ator. - Contudo fiquei contente em poder ajudar, nem que fosse um pouquinho.
- De uma maneira bastante considerável, mas agora chegamos a um acordo, não é verdade? Não haverá outras contribuições, correto?
- Como quiser, embora fosse um papel fácil de representar, e poderia haver mais informações que eu pudesse obter...
- Jean-Pierre! - exclamou Giselle Villier. - Você não fará nada disso. Não deixarei.
- O Deuxième Bureau não permitirá que ele o faça, madame - interrompeu Moreau. - Vocês sem dúvida saberiam disto mais tarde, de modo que é melhor contar logo. Há três horas houve uma segunda tentativa de assassinato do americano Drew Latham.
- Meu Deus...!
- Ele está bem? - perguntou Villier, inclinando-se para a frente.
- Tem sorte de estar vivo. No mínimo, é um homem muito observador e aprendeu algumas das menos divulgadas leis de Paris.
- Como assim?
- Tudo foi sincronizado com o barulho extremamente forte e desagradável de uma britadeira, que começou a trabalhar numa hora em que a maioria dos nossos visitantes mal se deitara depois de apreciar as alegrias de nossa cidade, especialmente aquelas disponíveis nos hotéis mais caros.
- É verão - disse Giselle, sacudindo a cabeça. - Já temos bastantes problemas resultantes dos nossos maus modos. O Ministério de Turismo cortaria nossas cabeças.
- Nosso amigo Latham percebeu instintivamente isto. Não havia uma turma de consertos, apenas um único homem com uma britadeira debaixo da janela dele. Talvez isto se parecesse com o título de um de seus filmes, Monsieur Villier, Prelúdio a um beijo fatal, se não me engano. É um dos favoritos de minha mulher.
- Deveria ser banido da televisão - disse o ator sucintamente. - O beijo pertencia a uma atriz vazia, mais preocupada com os ângulos da câmera do que com o texto, que ela raramente conseguia acertar.
- É por isso que ela ficou perfeita - acrescentou sua mulher. - A insegurança dela era tão aparente, que transformou sua obsessão em algo crível. O macho perplexo levado à loucura porque não conseguia penetrar no mistério da mulher que ele pensava amar. Você estava realmente ótimo, querido.
- Se me saí sequer toleravelmente bem foi porque estava tentando fazer com que aquela vaca representasse.
- Não acho que Monsieur Moreau esteja aqui para ficar ouvindo as queixas de um ator, querido.
- Não estou reclamando, apenas contando a verdade.
- Nem ao ego de um ator...
- Ah, mas eu estou fascinado, madame. Minha mulher vai beber cada uma de minhas palavras!
- Os interrogatórios policiais não são confidenciais fora do âmbito oficial? - perguntou Giselle.
- Naturalmente, é claro, fiz mal em falar.
- Vá em frente e fale, Moreau - disse Jean-Pierre sorrindo. - Pelo menos para sua mulher. Sabe, minha mulher é promotora aposentada, se é que já não adivinhou, e a atriz em questão já deixou há muito tempo a profissão para se casar com um barão do petróleo no estado americano do Texas ou Oklahoma, esqueço qual.
- Podemos voltar ao problema em pauta, por favor?
- É claro, madame.
- Se Drew Latham escapou de ser morto, o senhor possui alguma informação sobre o assassino fracassado?
- Sim, claro que temos. Ele está morto, alvejado por Monsieur Latham.
- E sua identidade?
- Não há. A não ser três tatuagens muito pequenas acima do lado direito de seu peito. Raios, o símbolo da blitzkrieg nazista. Latham deduziu com acerto a origem, mas não sabia ao certo o que significavam. Nós sabemos... Esses sinais são distribuídos só muito seletivamente, e somente a um grupo de elite altamente treinado dentro da organização dos neonazistas. Não somam, segundo nossa estimativa, mais do que duzentos aqui na Europa, América do Sul e Estados Unidos. São chamados de os Blitzkrieger - são assassinos, matadores treinados, peritos em vários modos de matar, escolhidos por sua dedicação, força física e, sobretudo, por sua disponibilidade - e até mesmo sua necessidade - de matar.
- Psicopatas - disse a ex-promotora. - Psicopatas recrutados por psicopatas.
- Exatamente.
- Que poderiam também ter sido recrutados por um grande número de cultos e organizações, porque esses grupos lhes permitiriam dar vazão a sua tendência natural à violência.
- Não posso deixar de concordar com a senhora, madame.
- E o senhor não contou aos americanos, nem aos ingleses, nem a sabe-se lá quem mais, sobre esse... como se deveria chamá-lo... batalhão de assassinos?
- Os escalões superiores foram informados, é claro. Mas ninguém abaixo deste nível.
- Por que não? Por que não Drew Latham?
- Temos nossos motivos. Há vazamentos nos escalões inferiores.
- Então por que nos contou?
- São franceses famosos. As pessoas célebres são vulneráveis; se vazasse alguma coisa nós ficaríamos sabendo...
- E?
- Apelamos para o seu patriotismo.
- Isto é tolice; a não ser que seja um caminho para destruir meu marido!
- Espere aí, um minuto só, Giselle...
- Fique quieto, Jean-Pierre. Este homem do Deuxième está aqui por outro motivo.
- O quê?
- A senhora deve ter sido uma promotora extraordinária, Madame Villier.
- Sua linha de interrogatório direta, aliada a uma cortina de fumaça indireta, também é extraordinariamente óbvia, monsieur. O senhor quer proibir meu marido de fazer determinada coisa que, segundo me consta e conhecendo seu talento, não chega a ameaçar a sua vida, e, no entanto, logo depois lhe dá informações altamente, extremamente secretas, informações que, se reveladas, poderiam custar sua carreira e sua vida.
- Como disse - reafirmou Moreau -, uma brilhante promotora.
- Não estou compreendendo nenhuma palavra do que vocês estão falando! - gritou o ator.
- Ninguém espera que você o compreenda, querido; deixe isto comigo. - Giselle olhou fixamente para Moreau. - O senhor nos fez avançar um degrau após o outro, não foi?
- Não posso negá-lo.
- E agora que ele ficou vulnerável por saber aquilo que sabe, o que deseja que nós façamos? Não é esta a pergunta fundamental?
- Imagino que seja.
- Então qual é ela?
- Encerre a peça, encerre Coriolano, declarando parte da verdade. Seu marido passou a saber tanta coisa deste Jodelle que não pode prosseguir, está cheio de remorso e principalmente de ódio contra as pessoas que fizeram aquilo com o velho. Vocês disporão de segurança vinte e quatro horas por dia.
- E quanto a meu pai e minha mãe? - gritou Villier. - Como poderia eu fazer uma coisa destas com eles?
- Falei com ambos há uma hora, Monsieur Villier. Contei-lhes o máximo que podia, inclusive sobre o crescimento do movimento nazista na Alemanha. Disseram que a decisão teria de ser sua, mas também esperavam que o senhor honrasse seu pai e mãe verdadeiros. O que mais posso dizer?
- Então eu encerro o espetáculo, e por aquilo que eu não disse em público, viro o homem na alça de mira deles, minha querida mulher também. É isto que o senhor está pedindo?
- Gostaria de repetir que o senhor nunca, jamais ficará sem a nossa proteção. Ruas, telhados, limusines blindadas, agentes em restaurantes, polícia em hotéis... tudo além de qualquer coisa que o senhor puder imaginar em matéria de segurança. Só precisamos de um Blitzkrieger vivo, de modo que possamos saber como recebem suas ordens. Existem drogas, e também outros métodos para convencer um matador a abrir a boca.
- Nunca apanharam um deles? - disse Giselle.
- Ah, sim. Meses atrás pegamos dois numa armadilha, mas eles se enforcaram nas suas celas antes que pudéssemos submetê-los a drogas. Tamanha é a dedicação desses fanáticos psicopatas. Têm a morte como profissão, até a própria.
Em Washington, Wesley Sorenson, diretor das Operações Consulares, examinava as cópias enviadas sob segurança de Londres.
- Não posso acreditar nisso. É inacreditável!
- É o que achei - concordou o jovem chefe de gabinete de Sorenson, de pé à esquerda de sua mesa. - Mas não podemos desconsiderá-lo. Esses nomes vieram de Sting, o único ultrassecreto a ter se infiltrado na Brüderschaft. Foi com este objetivo que o mandamos, e ele o cumpriu.
- Mas, meu Deus, há uma porção desses homens que são acima de qualquer suspeita, e esta nem sequer é a lista completa; certos nomes foram seletivamente retirados dela! Dois senadores, seis congressistas, dirigentes de quatro grandes empresas, e também meia dúzia de homens e mulheres em destaque na mídia, rostos e vozes que ouvimos e lemos todo dia na televisão, no rádio e nos jornais... Olha aqui, dois âncoras e uma apresentadora, e três fanfarrões de programas de entrevistas...
- O gordo eu diria que era possível - interrompeu o chefe de gabinete. - Ataca tudo que ele imagina estar à esquerda de Átila, o Huno.
- Nada disso, ele é óbvio demais. Uma cabeça de terceira categoria, com um mínimo de cultura, cheio de ódio sim, mas não um autêntico nazista. Apenas um palhaço de língua ferina.
- Os nomes saíram do vale da Irmandade. E de nenhum outro lugar.
- Meu Deus, aqui está um membro do gabinete do presidente!
- Esse aí deu um nó na minha cabeça, confesso - disse o chefe de gabinete das Operações Consulares. - É um sulista caipira sem nenhuma importância política... Por outro lado, esse pessoal é mestre em enganar. Houve nazistas no Congresso durante a década de trinta, e comunistas em todo canto na de cinquenta, se formos acreditar na integridade das investigações.
- A vasta maioria era pura balela, meu jovem - disse Sorenson enfaticamente.
- Eu sei, mas houve processos bem-sucedidos.
- Quantos? Se me lembro bem das estatísticas, e me lembro, a quantidade de gente especialmente dedurada por aquele filho da mãe do Hoover e aquele farsante do McCarthy chegou a dezenove mil e setecentas. E depois que a poeira baixou, houve exatamente quatro condenações! Uma merda de quatro para quase vinte mil acusações! Isso se resumiu a zero vírgula zero zero zero dois, um blablablá danado no Congresso, e também um grande desperdício do dinheiro do contribuinte. Não me traga de volta aqueles velhos dias, por favor. Eu tinha mais ou menos a sua idade naquela época... não era tão inteligente, Deus sabe, mas perdi uma porção de amigos devido àquela loucura.
- Sinto muito, Sr. Sorenson, não tive a intenção de...
- Eu sei, eu sei - interrompeu o diretor das Operações Consulares. - Você não pode compreender o sofrimento que passamos naquela época. E é isto o que me preocupa.
- Não compreendo.
- Será que não estaríamos embarcando nas nossas próprias perseguições arbitrárias? Harry Latham é provavelmente o único verdadeiro gênio que a CIA tem em campo, um supercérebro que não pode ser enganado, mas isto é coisa de outro planeta... Ou será que não? Meu Deus, é uma loucura!
- O quê, Sr. Sorenson?
- A idade de toda essa gente é mais ou menos a mesma... quarenta e tantos, cinquenta e poucos, alguns com sessenta anos.
- E aí?
- Há muitos anos, quando ingressei na agência havia boatos oriundos de Bremerhaven - na realidade da base submarina na Heligolândia - que falavam de uma última e desesperada tática elaborada pelos fanáticos do Terceiro Reich, que sabiam ter perdido a guerra. Era chamada Operação Sonnenkinder, crianças escolhidas eram enviadas clandestinamente por toda a Europa e América, a famílias que lhes acolhiam para criar, com o objetivo de fazê-las mais tarde ocuparem posições de poder no mundo financeiro e exercerem influência política. O objetivo final deles era criar um clima propenso ao... Quarto Reich.
- Isso é uma loucura!
- E comprovou-se não ser em absoluto verdadeiro. Tínhamos uns duzentos agentes, junto com o Serviço de Informações do Exército e o MI-6 britânico, vasculhando todas as pistas durante um período de dois anos. Não deu em nada. Se já houve alguma operação deste gênero, foi abortada desde o início. Não há a menor prova de que isto tenha sido posto em prática.
- Mas o senhor está imaginando algo parecido agora, não está, Sr. Sorenson?
- Relutantemente, Paul. Fazendo o máximo para frear uma imaginação que me fez sobreviver nesta área. Mas eu não estou em campo, não me encontro na situação de ter que prever os gestos de alguém na ruela escura mais próxima, ou por cima do topo de um morro à noite. Preciso estudar o panorama global à luz do dia, e não tenho como aceitar a operação Sonnenkinder.
- Então por que não descarta essa premissa e joga a lista de nomes no incinerador?
- Porque não posso. Porque foi Harry Latham quem a trouxe... marque uma reunião amanhã com o secretário de Estado e o diretor da CIA lá na Secretaria ou na sala de Langley. Já que sou filho adotivo, me reunirei em qualquer lugar que eles quiserem.
Drew Latham estava sentado à sua mesa no segundo andar da embaixada americana, engolindo o resto de sua terceira xícara de café. Após uma única batida na porta de sua sala, ela foi aberta, entrando a ansiosa Karin de Vries.
- Eu soube o que aconteceu! - exclamou ela. - Tinha de ser você!
- Bom dia - disse Drew. - Ou já passa do meio-dia? E se trouxe seu uísque, seja bem-vinda.
- Está em todos os jornais - gritou a pesquisadora, atravessando a sala até a mesa e jogando em cima dela a edição vespertina do L’Exprèss. "Ladrão tenta roubar hóspede no Meurice e é morto por vigilante!"
- Puxa, o pessoal das relações públicas deles trabalha rápido, não é? Isto é que é segurança; impossível aperfeiçoá-la mais ainda.
- Pare com isso, Drew! Você estava no Meurice, me contou. E quando liguei para a polícia do arrondissement disseram, muito constrangidos, que não havia informação nenhuma.
- Caramba, todo mundo em Paris protege os dólares que o turismo traz. E, para dizer a verdade é o que deveriam mesmo fazer. Este tipo de coisa só acontece com gente como eu.
- Então foi você.
- Você já disse. Sim, era eu.
- Está bem?
- Acho que já me perguntaram isso antes, mas mesmo assim, estou, respirando, quente, andando. Quer ir almoçar em qualquer canto que não seja aquela espelunca que você recomendou?
- Ainda tenho pelo menos quarenta e cinco minutos de trabalho para fazer.
- Não posso esperar isso tudo. Acabei de dar por encerrado meu encontro com o embaixador Courtland e seu coleguinha, o embaixador Kreitz da Alemanha. Provavelmente ainda estão conversando, mas meu estômago não aguentava mais o joguinho expiatório deles.
- De certo modo, você se parece com seu irmão. Ele não gosta de autoridade.
- Corrija isto, por favor - disse Latham. - Nós dois não gostamos de autoridade quando ela não sabe o que está falando; é só. Aliás, ele deve chegar de avião de Londres amanhã ou depois de amanhã. Gostaria de vê-lo?
- De todo coração. Adoro Harry!
- Dois pontos para meu irmão.
- Como?
- Ele é um babaca.
- Não compreendo.
- O intelecto dele vive tanto nas nuvens que a gente não consegue alcançá-lo, não consegue conversar com ele.
- Ah, sim, me lembro tão bem. Tivemos conversas maravilhosas sobre o aumento da religiosidade no Egito, depois em Atenas e Roma, até chegar à Idade Média.
- Pode marcar de novo: três pontos para Harry. Onde almoçaremos?
- Onde você sugeriu ontem. A brasserie do outro lado do café Gabriel onde conversamos.
- Provavelmente seremos vistos juntos.
- Agora não importa. Falei com o coronel. Ele compreende perfeitamente. Como ele mesmo disse, "não esquenta".
- O que mais disse Witkowski?
- Bem... - de Vries abaixou a cabeça e falou delicadamente. - Ele disse que você não era como seu irmão.
- De que maneira?
- Não importa, Drew.
- Talvez sim. De que maneira?
- Digamos que você não seja o estudioso que ele é.
- Harry acaba de ser expulso de campo por faltas cometidas... Almoço dentro de uma hora, está bem?
- Eu farei as reservas, eles me conhecem. - Karin de Vries saiu da sala, fechando desta vez a porta com muito mais delicadeza do que fizera antes.
O telefone de Latham tocou. Era o embaixador Courtland.
- Sim, senhor. O que é?
- Kreitz acabou de ir embora, Drew, e foi uma pena você não estar presente para ouvir o resto da história que ele tinha para contar. Seu irmão não apenas se meteu com um vespeiro, ele o esmagou em grande parte.
- O que quer dizer?
- Kreitz não teria dito na sua frente, aliás, como medida de segurança. É tão secreto que até eu tive de pedir autorização para guardar esta informação.
- O senhor?
- Diante do fato de Heinrich ter quebrado o sigilo de Bonn, e na medida em que Harry é seu irmão e está de chegada amanhã, acho que os chefões da inteligência acharam que seria besteira me excluir do jogo.
- O que Harry fez? Encontrou Hitler e Martin Bormann em um bar de gays na América Latina?
- Eu gostaria que fosse algo tão insignificante assim. Seu irmão trouxe listas da sua operação alemã com nomes de simpatizantes nazistas dentro do governo e do mundo empresarial de Bonn, e também dos EUA, França e Inglaterra.
- O bom e esperto Harry! - exclamou Latham. - Ele nunca foi de fazer as coisas pela metade, não é? Puxa, eu me orgulho deste velho senhor.
- Você não compreende, Drew. Alguns, não, muitos desses nomes figuram entre as pessoas mais destacadas de nossos respectivos países, homens e mulheres proeminentes de excelente reputação. É tudo tão fora do comum.
- Se foi Harry que trouxe, então a coisa é autêntica. Não há ninguém no mundo capaz de fazer meu irmão trocar de lado.
- Sim, foi o que me disseram.
- Então, qual o problema? É partir para cima dos filhos da mãe? Operações ultrassecretas não são questão de semanas, meses ou mesmo anos. Podem facilmente levar décadas, o sonho de todo estrategista em cada estado-maior de informações imaginável.
- É tudo tão difícil de se compreender.
- Não compreenda. Ponha mãos à obra!
- Heinrich Kreitz põe a mão no fogo por quatro pessoas na lista de Bonn, três homens e uma mulher.
- O que faz com que aja como um deus onisciente aqui?
- Eles têm sangue judeu; perderam parentes nos campos de concentração, especialmente em Auschwitz e Bergen-Belsen.
- Como ele sabe disso?
- Essas pessoas estão com uns sessenta anos agora, mas cada uma delas foi sua aluna antigamente no colégio onde começou a lecionar, tendo ele as protegido do Ministério de Investigações Arianas, com o risco de sua própria vida.
- É possível que lhe tenham passado a perna. Nas duas reuniões que tivemos ele me deu a impressão de ser facilmente enganável.
- É o lado acadêmico dele. Como tantos outros, é vacilante e eloquente, mas nenhum destes defeitos diminui seu brilhantismo. É um homem que enxerga longe, de enorme experiência.
- Esta última afirmação também se poderia aplicar a Harry. Não há possibilidade de ele ter trazido falsas informações.
- Dizem que há nomes sensacionais na lista de Washington. Inacreditável foi a expressão que Sorenson usou.
- Lindbergh também; o Spirit of St. Louis esteve do lado de Goering até Charlie descobrir que os bandidos eram eles, e a partir daí começar a lutar como um demônio do nosso lado.
- Não acho que esta comparação faça sentido.
- Provavelmente não faz. Estou apenas tentando ilustrar o problema.
- E se seu irmão estiver certo? Mesmo certo pela metade ou um quanto certo, ou a metade disto, ou até menos do que isto?
- Ele saiu de lá com nomes, Sr. Embaixador. Ninguém mais conseguiu fazer isto, de modo que eu sugiro que o senhor se comporte como se eles fossem autênticos até prova em contrário.
- Você está querendo dizer, se é que pude entender, que são todos culpados até que provem sua inocência.
- Mas não estamos conversando sobre direito, e sim sobre o ressurgimento da pior praga que o mundo já viu, inclusive a bubônica. Não há tempo para considerações jurídicas. Temos de impedi-los agora.
- Nós já dissemos isto a respeito dos comunistas e dos suspeitos de serem comunistas, e ficou provado que a vasta maioria no nosso país não era nada disso.
- Isto é diferente! Estes neos não estão trabalhando para minar por dentro, como os nazistas na década de trinta; já tiveram o poder na mão e sabem como o conquistaram. Medo. Bandos armados patrulhando as ruas em blue jeans, caras pintadas e cabelos repicados; depois vêm os uniformes - até as pás e as botas dos Schultsefein, os primeiros sicários de Hitler - e tudo vira uma loucura! Precisamos impedi-los!
- Só com os nomes que temos? - perguntou Courtland baixinho. - Homens e mulheres de reputação tão ilibada que ninguém suspeitaria, nem remotamente, que pudessem fazer parte desta loucura. Como continuar? Como qualquer um de nós procederá?
- Junto com pessoas como nós, Sr. Embaixador. Homens e mulheres treinados para varar a casca externa e chegar até a verdade.
- Isto soa de maneira bastante desagradável, Latham. A verdade de quem?
- A verdade, Courtland.
- Como assim?
- Desculpe, Sr. Courtland, ou Sr. Embaixador. A época das delicadezas diplomáticas - ou até mesmo éticas - já passou! Eu poderia ter virado um cadáver todo furado de balas na minha cama no Meurice. Estes filhos da puta jogam com bolas duríssimas, bolas de concreto disparadas de armas.
- Acho que compreendo a situação da qual acaba de escapar...
- Experimente vivenciá-la. Procure imaginar sua cama diplomática destroçada, enquanto o senhor permanece agachado junto à parede, pensando se aquelas rajadas vão acertar o seu rosto, sua garganta ou o seu peito. Estamos numa guerra... uma guerra clandestina, concordo, mas mesmo assim uma guerra.
- Por onde começaria?
- Sei por onde começar, mas quero a lista de nomes de Harry aqui na França, enquanto Moreau e eu vamos no encalço daquele que já possuímos.
- O Deuxième ainda não está convencido quanto à possibilidade de haver colaboradores franceses.
- O quê?
- Você me ouviu. Repito a pergunta, por onde começaria?
- Pelo nome do sujeito que alugou o carro que o nosso célebre, ainda que maluco, ator identificou ao norte da Pont Neuf.
- Moreau deu-lhe esta informação?
- É claro que sim. O carro abalroado por Bressard na Montaigne é uma fria. Era de Marseilles, mas o aluguel está tão enrolado que levaríamos semanas para destrinchá-lo. Este sujeito que temos vai trabalhar no seu escritório às quatro da tarde, hoje. Vamos obrigá-lo a falar nem que seja preciso apertar seus testículos num torno.
- Você não pode trabalhar com Moreau.
- O que o senhor quer dizer? Por que não?
- Ele está na lista de Harry.
7
Aturdido, Drew deixou a sua sala, desceu a escada em caracol até o saguão da embaixada, passou pela porta de entrada de bronze e ganhou a avenue Gabriel. Virou à direita e encaminhou-se para a brasserie onde ele e Karin de Vries haviam combinado almoçar. Ele não estava apenas aturdido, e sim furioso! Courtland se negara até a discutir a espantosa revelação de Claude Moreau, chefe do Deuxième Bureau, figurar na "lista de Harry". Simplesmente deixou esta extraordinária afirmação suspensa no ar, afastando os protestos de Latham com as seguintes palavras:
- Não há mais nada a dizer. Finja que coopera com Moreau, mas não lhe dê informação alguma. Ligue-me amanhã e conte-me o que aconteceu. - Depois dessas preciosas instruções, o embaixador desligara.
Moreau um neo? Era tão inacreditável quanto dizer que De Gaulle fora simpatizante dos alemães durante a Segunda Guerra! Drew não era tolo; compreendia e aceitava a realidade de um inimigo infiltrado e de agentes duplos, mas enquadrar um sujeito com o currículo de Moreau em uma dessas categorias, sem uma investigação aprofundada, era puro sofisma. Para um agente de campo ter progredido na hierarquia, no decorrer de anos de operações clandestinas, até chegar a chefiar um setor tão especializado quanto o Deuxième, teria de ter passado pelo exame de mil olhares, tanto de inveja quanto de admiração, os primeiros procurando fazê-lo descarrilar com toda a gama de informações perigosas que detinham. Mesmo assim Moreau sobrevivera àquele corredor polonês, e não só sobrevivera, como saíra dele com fama de "classe mundial", que outro sujeito também do mesmo quilate, um certo Wesley Sorenson, não lhe teria creditado em vão.
- Monsieur! - gritou a voz vinda de um carro na rua; o veículo do Deuxième estava obviamente mantendo parelha com ele. - Entrez-vous, s’il vous plaît!
- Vou só andar uns dois quarteirões - gritou Drew, esquivando-se dos pedestres, enquanto se aproximava do meio-fio. - Como ontem, lembra? - acrescentou no seu francês limitado.
- Não gostei de ontem e também não estou gostando de hoje. Por favor, entre! - O carro do Deuxième parou, enquanto Latham abria a porta a contragosto e se jogava no assento da frente.
- Está exagerando, René... ou você é Marc? Confundo.
- Sou François, monsieur, e não ligo que me confunda. Tenho meu emprego.
De repente, com explosões de arrebentar os tímpanos, as balas vieram arrebentar contra os grossos vidros externos de segurança das janelas laterais e em seguida contra o para-brisa, enquanto um sedã preto fugia a toda, costurando entre o tráfego.
- Meu Deus! - gritou Drew, agarrando-se ao assento dianteiro, com a cabeça enterrada debaixo do painel. - Você percebeu o que ia acontecer, não foi?
- Somente a possibilidade, monsieur - respondeu o motorista de fôlego curto, o corpo arqueado para trás contra o assento. Ele parou o carro, pois o para-brisa estava com tantas marcas que a visão era nula. - Um automóvel encostado deu a partida quando você saiu da embaixada. Ninguém abandona uma vaga na Gabriel sem um ótimo motivo, e os sujeitos no carro ficaram muito zangados quando eu os fechei e chamei você.
- Fico te devendo uma, François - disse Latham rapidamente, erguendo-se constrangido, virando-se e colocando seus pés no assoalho, à medida que as pessoas na rua se aproximavam com cautela do veículo do Deuxième. - E agora o quê?
- A polícia chegará a qualquer momento, alguém a chamará...
- Eu não posso conversar com a polícia.
- Compreendo. Onde vai?
- A uma brasserie no próximo quarteirão, do outro lado da rua.
- Conheço. Vá agora. Siga junto com a multidão e se misture às pessoas. Finja estar muito excitado, do mesmo modo que todo mundo, e dirija-se para a brasserie do modo mais discreto possível. Permaneça lá até que a gente vá buscá-lo, ou entre em contato pelo telefone.
- Qual o nome?
- Você é americano. Jones fica bem. Diga ao maître que está esperando um telefonema. Está armado?
- Claro.
- Cuidado. Não é provável, mas esteja preparado para o improvável.
- Não é preciso ser tão explícito assim. E quanto a você?
- Nós sabemos o que fazer. Rápido!
Drew abriu a porta, fechando-a logo e se agachando imediatamente, depois ergueu-se e simulou o pânico dos circunstantes. Instantes depois, estava de fato integrado à multidão. Alterando frequentemente a própria altura, andando depressa pelo outro lado da avenue Gabriel, olhando em volta, seus olhos disparando em todas as direções, ele mais uma vez se encaminhou em direção a brasserie e a Karin de Vries.
Chegou com muita antecedência. Percebeu o fato ao ver o restaurante meio vazio, mas precisava se manter afastado de sua sala, longe da embaixada. De repente ambas tomaram um aspecto que ele não gostava de imaginar, não depois daquilo que acontecera a menos de cento e cinquenta metros rua acima. Mesmo assim, precisava pensar naquilo, com persistência e perspicácia.
- Reserva em nome de de Vries - disse ele em inglês ao sujeito de smoking no balcão.
- Sim, é claro... O senhor chegou meio cedo, monsieur.
- Algum problema?
- Não, em absoluto. Venha, levarei o senhor até a sua mesa. Madame prefere a parte de trás.
- Meu nome é Jones. Talvez receba um telefonema.
- Eu o trarei para a mesa...
- Para a mesa?
- Hoje em dia todo mundo tem um telefone, não é? Como é que as pessoas conseguem dirigir e atravessar ruas no meio do tráfego falando ao telefone é algo que acho espantoso. Mon Dieu, não é de admirar que nossas estatísticas de acidentes andem tão altas!
- Diga-me - disse Latham, pensando rapidamente enquanto se sentava. - Poderia me trazer um telefone neste momento?
- Certainement. Local ou interurbano, monsieur?
- Interurbano - respondeu Drew, com o cenho franzido a pensar.
- O telefone é numerado e a tarifa será acrescentada a sua conta.
- Deve ser aborrecido para vocês - disse Latham.
- Poderia ser, mas não divulgamos para todo mundo, nem anunciamos esta facilidade. Por isso muita gente traz seus próprios telefones...
- Mas a mim você contou - interrompeu Drew, olhando para o sujeito.
- Sim, é claro. O senhor é da ambassade américaine, n’est-ce pas? Já veio aqui algumas vezes, Sr. Jones.
- Acredito que sim - concordou Latham, entregando ao maître seu cartão de crédito. - Só que nunca fiz uma reserva.
- Merci. Posso pedir um drinque, ou uma garrafa de vinho para o senhor?
- Uísque. Escocês, por favor. - O gerente se afastou, o uísque veio, e Drew recostou-se no reservado, um tremor começando a surgir nas suas mãos e um rubor no seu rosto.
Meu Deus, não fosse um motorista experiente e observador e eu teria sido morto na Gabriel! Três atentados contra sua vida haviam sido cometidos no decorrer de um dia e meio, o primeiro na noite do penúltimo dia, o segundo no alvorecer daquele dia, e agora há poucos minutos! Estava marcado, e as honras póstumas por ter perecido no cumprimento do dever não lhe eram nada atraentes. Não havia dúvida de que o câncer nazista se espalhava pela Alemanha e alhures. E onde mais, quem saberia? Quem poderia estar numa posição de fazer esta estimativa? Com que precisão? A lista de Harry parecia ser o prenúncio do pior cenário possível para os países da OTAN, e a informação de Karin de Vries, que a Irmandade violara os computadores ultrassecretos da CIA para obter informações sobre a Operação Sting, confirmava com certeza a infiltração em Washington. Meu Deus, ele dissera a Villier que os nazistas ressurgidos estavam se espalhando por todos os lugares, mas aquilo fora um exagero, um golpe para angariar o interesse do ator, de cujo passado ele suspeitava, como também a conexão Jodelle e tudo que ela representava, sem falar nos arquivos do interrogatório roubados. Quando Villier confirmara suas suspeitas, ele ficara tanto entusiasmado quanto horrorizado, entusiasmado porque chegara a uma verdade, amedrontado porque era verdade.
E agora ele se tornara um alvo máximo porque chegara à verdade. Dentro de seu ponto de vista de que agentes mortos não tinham a menor utilidade, ele desobedeceria suas últimas instruções e iria buscar o máximo de segurança que o Deuxième poderia lhe oferecer.
O Deuxième - Moreau? Seria possível? Ao pedir a Moreau um reforço de sua segurança pessoal, estaria ele assinando sua própria sentença de morte? Apesar de toda sua intuição, e a despeito de suas convicções sobre o homem, seria a lista de Harry tão precisa? Não podia acreditar naquilo... era uma loucura! Ou não era?
O maître voltou à mesa trazendo o telefone. Em Washington mal seriam sete horas da manhã, e antes de o diretor das Operações Consulares começar sua manhã, um certo Drew Latham precisava de orientação.
- Aperte a tecla Parlez e disque, monsieur - disse o maître. - Se precisar fazer outra ligação, aperte Finis, em seguida novamente Parlez e disque. - Entregou a Drew o telefone e se afastou. Latham apertou o Parlez, discou, e instantes depois uma voz alerta atendia.
- Sim?
- Chamando de Paris...
- Achei que você talvez ligasse - interrompeu Sorenson. - Harry já chegou? Pode falar, estamos no codificador.
- Ele só deve chegar amanhã, na melhor das hipóteses.
- Merda!
- Então você está a par? Da informação que ele trouxe, quero dizer.
- Sim, mas estou espantado que você saiba. Irmão ou não irmão, Harry não é o tipo que está limpo para divulgar por aí material secreto, e falo de coisas ultrassecretas.
- Harry não me contou nada. Foi Courtland.
- O embaixador? Acho isto incrível. É bom sujeito, mas não está metido neste rolo.
- Precisou ser incluído. O embaixador de Bonn teve de quebrar o sigilo e ficou bastante zangado, pelo que percebi, com a inclusão de quatro nomes do seu próprio governo.
- Que diabo está acontecendo? - gritou Sorenson. - Tudo isto deveria ter permanecido guardado a sete chaves até que se tomassem as decisões.
- Alguém começou a corrida antes de darem a partida - disse Drew. - Os corredores começaram a correr antes do tiro de pistola do juiz.
- Você tem ideia do que está dizendo?
- Ah sim, certamente que sim.
- Então me diga, porra! Tenho uma reunião às dez horas com o secretário de Estado e o diretor da CIA...
- Cuidado com o que vai falar - interrompeu depressa Latham.
- O que quer dizer isto, em nome de Deus?
- Os computadores AA-Zero da CIA foram violados. A Brüderschaft, que é como os neos se chamam, sabia tudo a respeito da missão de Harry. O codinome Sting, a meta, até mesmo a duração presumível da missão - dois anos ou mais. Foi tudo obtido de Langley.
- Isso é completamente loucura! - berrou o diretor das Operações Consulares. - Como descobriu?
- De uma mulher chamada de Vries, cujo marido trabalhava para Harry na ex-Berlim Oriental. Foi morto pela Stasi, e ela está do nosso lado. Trabalha agora na embaixada e diz que ainda tem contas para acertar. Acredito nela.
- Pode ter certeza?
- Nada tão sólido quanto cimento, mas acho que sim.
- Qual a opinião de Moreau?
- Moreau?
- Sim, é claro. Claude Moreau, do Deuxième.
- Pensei que você tivesse a lista de Harry.
- E aí?
- Ele figura nela. Disseram-me para não contar nada a ele.
Após um curto suspiro angustiado, o silêncio vindo de Washington foi eletrizante. Por fim Sorenson falou, com calma, num tom sinistro.
- Quem lhe deu essas ordens? Courtland?
- Presumivelmente vindas de mais alto... Espere um pouco, você tem a lista de Harry...
- Tenho uma lista que me mandaram.
- Então você tem o nome de Moreau. Ele lhe escapou.
- Não, porque não figura na lista.
- O quê?
- Ficou acertado que no benefício da máxima segurança, certos nomes seriam "seletivamente omitidos".
- De você?
- Foram essas as palavras.
- Que balela!
- É, eu sei.
- Pode imaginar um motivo, qualquer motivo?
- Estou tentando, acredite... Entre os altos escalões é bem sabido que Moreau e eu trabalhamos juntos...
- Sim, você falou. Istambul...
- Este foi nosso último posto; houve outros. Formávamos uma boa equipe e, sempre que possível, os analistas em Paris e Washington nos escalavam para trabalharmos juntos.
- Seria isto motivo suficiente para excluí-lo de sua lista?
- Talvez - respondeu o diretor das Operações Consulares, em uma voz pouco audível. - O argumento é possível, mas não é convincente. Você sabe, ele salvou minha vida em Istambul.
- Todos nós procuramos fazer este tipo de coisa quando estamos em condições de fazê-la, presumindo geralmente que o favor possa algum dia ser retribuído.
- É por isso que, como argumento, não convence. Mesmo assim, cria-se um laço indelével, não é?
- Dentro de certos limites e dependendo das circunstâncias.
- Bem formulado.
- Trata-se de um axioma... Eu deveria procurar Moreau esta tarde. Há uma pista sobre o carro alugado que nosso ator identificou, quando representava o papel de agente secreto. O que devo fazer?
- Normalmente - começou Sorenson - até mesmo anormalmente, eu consideraria a presença do nome de Claude naquela lista como algo ridículo.
- De acordo - interrompeu Latham.
- Contudo, foi trazido por Harry. Abstraindo-se o fato de ele ser seu irmão...
- Novamente um axioma - interrompeu Drew secamente.
- Acho extremamente difícil que Harry pudesse ser enganado, e ter mudado de lado está fora de cogitação.
- Novamente de acordo - murmurou Latham.
- Então onde estamos? Se sua amiga for séria, a agência foi violada e há obviamente alguém na inteligência francesa, ou na nossa, que localizou o nome de Moreau e por tabela não confia em mim.
- Isto é ridículo! - disse Drew, levantando a voz e imediatamente tornando a baixá-la quando algumas cabeças se viraram em sua direção, defronte a seu reservado.
- É um tremendo choque, é o que digo.
- Vou ligar para Harry em Londres. Contar-lhe o que estamos pensando.
- Ele está incomunicável, por questões de segurança.
- Não em relação a mim. Quando tinha quatorze e eu oito anos, para fugir de mim e poder ler um de seus malditos livros, trepou numa árvore e ficou preso lá em cima. Eu disse que o ajudaria se ele me prometesse nunca mais me evitar. Ele era meio fresco na hora de descer, sabe o que quero dizer?
- Diante de tais juras os segredos do mundo nada valem. Se conseguir falar com ele, ligue, pelo amor de Deus, de volta para mim. Se não conseguir - e é algo que fica atravessado na minha garganta ao dizê-lo - obedeça às ordens do embaixador. Coopere com Claude, mas de bico calado.
Drew apertou a tecla Finis, em seguida o Parlez e discou. A telefonista do hotel Gloucester em Londres, depois de deixar o telefone tocar repetidamente, fez a observação de que o Sr. Wendell Moss não se encontrava no seu quarto. Latham deixou um recado simples. "Ligue para Paris. Insista." E Karin de Vries chegou, praticamente quase correndo entre as mesas.
- Graças a Deus que você está aqui! - exclamou, sentando-se logo e sussurrando num tom veemente. - A rua está um pandemônio e a embaixada também. Um carro do governo francês foi atacado por terroristas sob as janelas da gente, na Gabriel! - Karin parou bruscamente, ciente do olhar vazio de Drew. Ela franziu a testa em silêncio, enquanto seus lábios formavam a palavra você. Ele balançou a cabeça; ela prosseguiu. - Você precisa sair de Paris, da França! Voltar para Washington.
- Eu lhe asseguro, aliás você mesma poderá avaliar, de que não seria um alvo menor lá do que sou aqui. Talvez mais fácil.
- Mas já tentaram matá-lo três vezes num período de dois dias!
- Para dizer a verdade, de trinta e cinco horas; andei contando.
- Não pode continuar aqui. Eles o conhecem.
- Eles me conhecem melhor em Washington. Talvez seja até recebido por algum comitê de recepção que eu não gostaria de encontrar. Além do mais, Harry vai ligar para mim e preciso vê-lo, conversar com ele. Preciso.
- Ele é o motivo por que está com o telefone?
- Ele e outra pessoa. Alguém em Washington em quem confio. Tenho que confiar, é meu patrão.
O garçom aproximou-se e de Vries pediu um Chardonnay. O sujeito de avental fez que sim com a cabeça e estava prestes a se afastar, quando Latham estendeu o braço para entregar-lhe o telefone.
- Ainda não - interrompeu Karin, inclinando-se e pegando o braço estendido de Drew. O garçom deu de ombros e foi embora. - Desculpe, mas talvez você tenha esquecido de um ou dois problemas.
- Isto é inteiramente possível. Como você frisou, fui alvejado três vezes em poucas horas. Com exceção dos cansativos treinos de campo, quando usavam bolas com tinta, este número representa aproximadamente metade das vezes em que me vi alvejado por armas durante toda a minha carreira. Do que foi que esqueci? Ainda me lembro do meu nome. Ralph, não é?
- Pare de bancar o engraçadinho.
- O que mais me resta fazer? Para seu controle, minha pistola está no meu colo, e se meus olhos vagueiam de vez em quando, é porque estou pronto para usá-la.
- A polícia ocupa toda a Gabriel; nenhum terrorista ousaria matar nestas circunstâncias.
- Você é bem versada nesta arte.
- Fui casada com um sujeito que foi alvejado e já alvejou mais vezes do que era capaz de lembrar.
- E eu me esqueci. A Stasi. Sinto muito. Qual o seu problema?
- Para onde Harry ficou de ligar para você?
- Para a minha sala ou o Meurice.
- Sugiro que seria muita tolice voltar a qualquer um desses lugares.
- Talvez você tenha marcado meio ponto.
- Credite-me um ponto inteiro. Tenho razão, e você sabe disto.
- De acordo - disse relutantemente Latham. - Há multidões nas ruas, uma arma poderia estar a centímetros de mim, sem que eu jamais o soubesse. E se a CIA foi violada, a embaixada é uma brincadeira de criança. E aí?
- Seu superior em Washington. Como explicou-lhe o ataque na Gabriel? Que tipo de segurança ele o aconselhou?
- Não me aconselhou nada porque não contei nada. É um desses assuntos para a gente conversar depois... Ele está com um problema maior, muito maior do que qualquer atentado a que eu sobrevivi.
- É realmente tão caridoso assim, Monsieur Latham? - perguntou Karin.
- Para ser sincero, não, Madame de Vries. As coisas estão acontecendo tão depressa, e o problema que ambos temos de enfrentar é tão grande, que não quis sobrecarregar sua cabeça.
- Pode me contar qual o problema?
- Sinto muito mas não posso.
- Por que não?
- Porque você pediu.
Karin de Vries se recostou no banco e levou o copo de vinho à boca.
- Ainda não confia em mim, não é? - disse ela suavemente.
- Nós estamos falando da minha vida, minha senhora, e de um fungo letal que está se espalhando e que apavora todo o mundo civilizado.
- Fala com certa distância, Drew. Eu falo do imediato, em "close", como dizem vocês os americanos.
- É uma guerra! - sussurrou Latham, num tom de voz gutural, com o olhar aceso. - Não me venha com abstrações!
- Eu cedi meu marido a esta guerra! - disse Karin, adiantando-se no assento. - O que mais querem de mim? O que mais é preciso para merecer sua confiança?
- Por que a deseja tanto?
- Pelo mais simples dos motivos, por aquilo que expliquei a você na noite passada. Presenciei um excelente homem ser destruído por um ódio que ele não conseguia controlar. Foi consumido por ele durante meses, anos, eu não conseguia compreender, até que consegui. Ele tinha razão! Uma nuvem pútrida, horrorosa, se erguia sobre a Alemanha, mais na parte oriental do que na ocidental. "Trocando um monolito diabólico por outro, eles aspiram por líderes que se expressem aos berros; jamais mudarão", era o modo como Freddie via o problema. E ele tinha razão. - Emocionalmente esgotada, de seus olhos fechados brotaram lágrimas, e de Vries abaixou ainda mais a voz. - Ele foi torturado e morto porque encontrara a verdade - concluiu ela num tom monótono.
Encontrou a verdade. Drew examinou a mulher do outro lado da mesa, recordando como ficara excitado ao descobrir a verdade sobre o pai de Villier, o velho Jodelle. E em seguida o medo que sentira por ser verdade. O paralelismo de suas reações com as de Karin diante dos fatos revelados não podia ser fabricado. Eles estavam longe de poder mentir a si mesmos, certamente longe de poderem ocultar o ódio que sentiam, por ser sincero demais.
- Está bem, está bem - disse Latham, cobrindo rapidamente com a mão esquerda livre as mãos apertadas dela. - Vou lhe contar o que puder, sem revelar nomes específicos, que virão mais tarde... dependendo das circunstâncias.
- Aceito. Faz parte do treinamento, não faz? Cuidado com as drogas.
- Sim. - Drew lançou um rápido e englobante olhar em direção à entrada e às mesas vizinhas, com a mão direita escondida. - A chave é o pai de Villier, seu verdadeiro pai...
- Villier, o ator? As notícias no jornal... O velho que se matou no teatro?
- Eu lhe darei os detalhes mais tarde, mas por enquanto presuma o pior. O velho era o pai de Villier, um combatente da Resistência descoberto pelos alemães e levado à loucura num campo de concentração, anos atrás.
- Tinha uma notícia na primeira edição dos jornais da tarde! - disse de Vries, desapertando suas mãos e agarrando a mão esquerda dele. - Ele está encerrando a peça, a remontagem de Coriolano.
- Que burrice! - exclamou Latham. - Explicaram por quê?
- Algo sobre o velho e como Villier se encontrava perturbado...
- Mais do que burrice - interrompeu Latham. - É tremendamente grotesco! Ele virou um alvo tão grande quanto eu agora!
- Não compreendo.
- Não poderia, e de certo modo está ligado a meu irmão.
- A Harry?
- Arquivos confidenciais sobre Jodelle, isto é, o pai de Villier, foram roubados da CIA.
- Como nos computadores AA-Zero? - perguntou Karin, interrompendo.
- Tão seguros quanto eles, acredite-me. Estes arquivos continham o nome de um general francês que não foi só obrigado a trocar de lado pelos nazistas, como tornou-se um deles, um convertido que virou um dedicado fanático, consumido pela causa da raça superior.
- Mas o que importa ele agora? Um general há tantos anos. Provavelmente já morreu.
- Pode ter morrido, ou talvez não, é irrelevante. O problema é que ele deslanchou o que está acontecendo agora. Uma organização aqui na França que está levantando milhões no mundo inteiro e enviando-os para os neos na Alemanha. A mesma coisa que a trouxe a Paris, Karin.
De Vries recostou-se novamente no assento, tirando sua mão da mão dele, os olhos arregalados, olhando espantada para ele.
- O que tem isso tudo a ver com Harry? - perguntou.
- Meu irmão voltou trazendo uma lista de nomes, quantos eu não sei, de simpatizantes dos neos aqui na França, no Reino Unido e no meu próprio país. Parece que é explosiva, homens e mulheres influentes, até mesmo com poder político, gente que jamais alguém suspeitaria dessas inclinações.
- Como Harry conseguiu esses nomes?
- Não tenho a menor ideia, por isso preciso vê-lo, conversar com ele!
- Por quê? Você parece tão perturbado.
- Porque um desses nomes é de um sujeito com quem trabalho, um sujeito em cujas mãos eu depositaria minha vida sem pensar duas vezes. Que tal as maçãs?
- Não entendi.
- É uma expressão popular. Dizem que veio da velha esperteza dos plantadores de maçã, ao colocarem as melhores frutas na parte de cima do barril à venda, enquanto embaixo ficavam as podres.
- Ainda me escapa.
- E por que não haveria de? Provavelmente é apócrifo.
- Está parecendo seu irmão, sem a sua clareza.
- Clareza é o que eu preciso obter dele agora.
- Em relação a este sujeito com quem trabalha, é claro.
- Sim. Não consigo acreditar, mas se Harry estiver certo, e se eu for me encontrar com o próprio hoje mais tarde, poderia estar tomando a decisão mais burra de minha vida. Fatalmente burra.
- Ganhe tempo. Diga-lhe que surgiu algo importante.
- Ele perguntará o que é, e, neste momento, terá todo o direito de saber. Entre outros detalhes de somenos importância, foi um empregado dele, alerta, que me salvou a vida meia hora atrás na Gabriel.
- Talvez a coisa tenha sido feita para parecer assim.
- Sim, esta é outra hipótese possível. Dá para ver que a senhora é vivida.
- Sou vivida sim - admitiu Karin de Vries. - O sujeito é Moreau, Claude Moreau do Deuxième Bureau, não é?
- Por que diz isto?
- Nosso departamento recebe a lista das entradas e saídas a cada vinte e quatro horas. O nome de Moreau constava duas vezes da lista, na noite de anteontem, quando houve o primeiro atentado contra você, e em seguida na manhã seguinte, quando chegou o embaixador alemão. O padrão ficou óbvio. Vários colegas comentaram que não se lembravam de jamais terem visto algum membro, muito menos o chefe do Deuxième Bureau, frequentando a embaixada.
- Não confirmarei o seu palpite, é claro.
- Não precisa, e estou totalmente de acordo com você. Associar Moreau de alguma maneira aos neos me parece ridículo.
- Exatamente a mesma palavra que ouvi de Washington há menos de dez minutos. Mesmo assim, foi Harry que saiu de lá com a lista. Conhece meu irmão. Teria sido ele enganado?
- A palavra ridículo me vem novamente à cabeça.
- Obrigado a trocar de lado?
- Nunca!
- Então, como disse meu experiente patrão, que já trabalhou com Moreau na época difícil e que também concorda conosco: "Onde diabo, ficamos nós?"
- É preciso haver uma explicação.
- E é por isso que preciso falar com Harry... Ei, espere aí. Você tem uma opinião muito segura a respeito de Moreau. Conhece-o?
- Sei que o serviço de inteligência da Alemanha Oriental tinha pavor dele, como depois os neos, pois ele percebera as ligações entre a Stasi e os nazistas antes de qualquer outra pessoa, com a provável exceção de seu irmão. Freddie conheceu-o certa vez, num interrogatório depois de uma missão em Munique, e voltou exultante, alegando que Moreau era um gênio.
- Então, só para recapitular, onde é que nós estamos?
- Há uma expressão que descreve perfeitamente a situação - disse Karin. - "Entre a cruz e a caldeirinha." Acho que vem a calhar perfeitamente, pelo menos até você poder falar com Harry, o que, para sua própria segurança, não pode fazer nem do Meurice nem da embaixada.
- São os únicos números que ele tem - protestou Drew.
- Gostaria de pedir-lhe que mais uma vez confiasse em mim. Tenho amigos aqui em Paris dos velhos tempos de Amsterdã, amigos em que se pode confiar. Se quiser, farei mais, darei seus nomes ao coronel.
- Para quê? Por quê?
- Eles podem escondê-lo para que você possa continuar operando aqui em Paris; eles estão a menos de quarenta e cinco minutos da cidade. Eu mesma posso ir até Moreau com a explicação mais plausível que existe... a verdade, Drew.
- Então você conhece Moreau.
- Não. Não pessoalmente, mas dois funcionários do Deuxième me entrevistaram antes da minha vinda para a embaixada. O nome de Vries me proporcionará a possibilidade de falar com ele pessoalmente, acredite.
- Acredito. Mas qual é a verdade, já que ele mesmo está sob suspeita?
- Uma outra verdade. Foram cometidos três atentados contra a sua vida, e fora a sua preocupação natural...
- Chame-o pelo seu verdadeiro nome - interrompeu Latham. - A palavra é medo. E quase fui morto a cada tentativa, de maneira que meus nervos estão em frangalhos... estou com medo.
- Muito bem, é honesto, ele aceitará... Mas a despeito do medo de perder a própria vida, você precisa se encontrar com seu irmão que chega de avião de Londres - em dia e hora desconhecidos - e também não pode arriscar a sua vida, aparecendo em campo aberto. Vai entrar na clandestinidade durante alguns dias, e entrará em contato com ele quando deixá-la. É claro que não tenho a menor ideia de onde você se encontra.
- Há uma grande falha. Ou seja, por que você seria a minha intermediária?
- Entraremos com mais uma verdade que soterrará a mentira e será corroborada pelo coronel Witkowski, uma rocha no ramo da inteligência, merecedor de respeito unânime. Ele confirmará o fato de que meu marido trabalhou com seu irmão. Moreau acha que você sabia disto, e por isso compreenderá com facilidade por que você me pediu para agir como sua intermediária.
- Há mais duas falhas - insistiu Drew baixinho, olhando mais uma vez em volta da brasserie agora cheia. - Uma, eu não sabia. Witkowski precisou me contar; e duas, por que não me utilizei dele?
- Gente esperta, até mesmo brilhante como Stanley Witkowski, veteranos dos velhos tempos "heroicos", como você o descreveu, conhecem bem a ordem de se fazer as coisas bem melhor do que nós. Para realizarem alguma coisa, para realmente conseguirem, precisam operar a partir de seu nicho. Ele agora se encontra na posição de confirmar as coisas, não de iniciá-las. Você consegue compreender isto?
- É algo que sempre critiquei, mas sim, compreendo. Pomos nossas cabeças mais brilhantes numa espécie de confinamento, seja porque suas aposentadorias estão chegando, ou porque nunca conseguiram uma reputação suficiente para empurrá-los para o próximo patamar na aposentadoria. É uma burrice tão grande, especialmente no nosso negócio, porque são os quietos que invariavelmente permitem o êxito dos "grandes nomes". Quantos agentes secretos tornaram-se uma lenda porque foram orientados pelos quietos... Desculpe, estou mais uma vez divagando; fico confuso diante da possibilidade de haver alguém aqui nesta própria brasserie parisiense, capaz de se levantar e me dar um tiro.
- É muito improvável - disse de Vries. - Estamos perto da embaixada e você não imagina como os franceses são sensíveis quando se trata de pôr em evidência a sua falta de controle sobre o terrorismo.
- Os ingleses também, mas há gente que morre do lado de fora do Harrods.
- Não com muita frequência, e os ingleses conseguiram isolar seu principal inimigo, o IRA, que eles queimem no inferno. Os franceses são alvos de uma porção de outros. Há arrondissements inteiros habitados por facções em guerra no exterior. E nos países escandinavos, também, os protestos estão ficando mais violentos, sem falar na Holanda - o povo mais pacífico que existe, onde esquerda e direita vivem se enfrentando em embates sem fim.
- Acrescente a Itália, com a corrupção da Máfia em Roma destroçando pessoas, brigas no parlamento, explosão de bombas. E olhe para a Espanha, onde catalões e bascos carregam mais do que armas, carregam gerações de ressentidos. E há o Oriente Médio, onde palestinos matam judeus, judeus matam palestinos, cada um culpando o outro, enquanto na Bósnia-Herzegovina, massacres em larga escala se sucedem entre povos que costumavam conviver, e ninguém parece querer tomar uma providência. Assistimos a isso em todos os lugares. Descontentamento, desconfiança, xingamentos... violência. É como se um grande e terrível plano estivesse tomando forma.
- O que você está dizendo? - perguntou de Vries, olhando fixamente para ele.
- Isto tudo é carne para os novos moedores nazistas moerem, não consegue perceber?
- Eu nunca considerei as coisas em tão larga escala. É um tanto melodramático, não acha?
- Pense nisto. Se a lista de Harry estiver certa, mesmo que seja pela metade, há quanto tempo não vêm os descontentes sendo abordados em todos os lugares e sendo informados de que suas queixas podem ser satisfeitas, e seus inimigos esmagados quando a grande nova ordem for implantada?
- Não se trata da "nova ordem" sobre a qual vocês americanos vem falando, Drew. A agenda de vocês é muito mais amena.
- Vamos supor novamente. Supor que tudo isto seja um código para algo diverso, uma "nova ordem" que mergulha cinquenta anos no passado. A Nova Ordem do Reich que durará um milênio.
- Isto é grotesco!
- É sim - concordou Latham, recostando-se no assento e respirando fundo. - Exagerei, você tem razão, porque não poderia acontecer, mas grande parte poderia acontecer sim, bem aqui na Europa, nos Bálcãs e no Oriente Médio. Então qual será o próximo passo? Depois dos múltiplos levantes de povos contra povos, religiões contra religiões, novas nações que se separam das antigas?
- Estou tentando seguir seu pensamento, e não sou burra. Mas, como diria Harry, onde está a clareza?
- Armas nucleares! Compradas e vendidas no mercado internacional, e talvez em virtude de seus milhões, uma quantidade exagerada delas acabe nas mãos da Irmandade, da nova religião, da cura, e talvez, afinal, do porto seguro de todos os descontentes do mundo inteiro, atraídos por ele, convencidos de sua invencibilidade. Aconteceu na década de trinta, e as coisas não mudaram muito desde então.
- Você está muito distante de mim - disse Karin bebendo seu vinho. - Combato uma doença que se espalha, como você a chamou, e que matou Freddie. Você prevê um apocalipse iminente que eu não consigo aceitar. Já passamos por este estágio na civilização.
- Espero que sim, e espero que eu esteja errado, e espero em Deus que pudesse deixar de pensar assim...
- Tem uma imaginação extraordinária, muito parecida com a de Harry, exceto que a dele era - é - sang-froid. Nada existe até ser analisado sem emoção.
- É gozado ouvir você dizer isto. Trata-se da diferença entre nós. Meu irmão foi sempre tão frio, tão sem sentimento, achava eu, até o dia em que uma prima nossa, uma garota de dezesseis anos, morreu de um câncer qualquer. Éramos garotos, e eu fui achá-lo se debulhando em lágrimas atrás da garagem. Quando tentei ajudá-lo da melhor maneira possível, ele berrou comigo e disse, "nunca conte a ninguém que me viu chorando, se não porei uma dupla maldição em você!" Coisa de criança, é claro.
- E você contou?
- Claro que não, ele era meu irmão.
- Tem algo que você não está me contando.
- Deus do céu, desde quando isto é um confessionário?
- Em absoluto. Simplesmente quero conhecê-lo melhor. Não é nenhum crime.
- Está bem. Eu adorava aquele cara. Era tão inteligente, tão legal comigo, ajudava a me preparar para os exames e com meus trabalhos para o trimestre, em seguida na universidade, chegando a escolher para mim meus cursos, dizendo sempre que eu era melhor do que a opinião que tinha de mim mesmo, bastando apenas que me concentrasse. Nosso pai vivia ausente nas suas escavações, então quem era que aparecia na universidade para me ver, que torcia mais alto nos jogos de hóquei - era Harry, quem mais seria?
- Você o ama, não é?
- Eu não seria nada sem ele. Foi por isso que praticamente o ameacei com uma chave de braço se não desse um jeito de me botar também neste negócio. Ele não gostou, mas havia uma organização nova, meio bastarda, sendo implantada, a Operações Consulares, que aparentemente queria atletas que pensassem. Preenchi os requisitos e consegui.
- O coronel disse que você era um tremendo jogador de hóquei no Canadá. Disse que você deveria ter ido para Nova York.
- Foi um interlúdio, um time rural, que me pagava bastante bem, mas Harry foi para Manitoba e disse que já era tempo de eu crescer. Por isso cresci; o resto é aquilo que sou. Terminaram as perguntas?
- Por que é tão agressivo?
- Não sou não, na realidade. Sou bom naquilo que faço, minha senhora, mas como já frisou ad nauseam, não sou Harry.
- Você possui suas próprias qualidades.
- Ah, puxa, sim. O básico de artes marciais, mas não sou nenhum perito, creia-me. Todos aqueles cursos sobre interrogatórios e manipulação dos inimigos, psicológica e química; técnicas de sobrevivência e como determinar a flora e fauna comestíveis - tudo isso foi profundamente absorvido.
- Então o que o incomoda tanto?
- Gostaria de poder dizer, mas nem mesmo eu sei. Acho que é a falta de autoridade. Há uma rígida hierarquia que não consigo contornar - nem tenho certeza se quero. É o que eu disse antes, os "quietos" sabem mais do que eu... e agora não posso confiar neles.
- Dê-me seu telefone, por favor.
- Vou ajustá-lo para longa distância.
- Apertando F zero um oito, você pode fazê-lo reverter a Paris e seus arredores. - De Vries apertou os números que sabia de cor, esperou alguns minutos e falou. - Sou arrondissement seis, por favor, faça uma verificação. - Ela tapou o fone com a mão e olhou para Drew. - Uma simples verificação para interceptar alguma coisa, nada de extraordinário. - De repente Karin dardejou o olhar para o chão, seu rosto congelou, o queixo quase entrou na garganta. Ela se levantou e gritou. - Saiam! Todo mundo saia daqui! - Agarrou o braço de Latham, puxando-o de dentro do reservado, continuando a gritar. - Todo mundo! - berrava ela em francês. - Abandonem suas mesas, saiam! Les terroristes! - A fuga em massa foi caótica; várias janelas se quebraram na fuga dos comensais, que esbarravam nos garçons e ajudantes, enquanto funcionários furiosos da administração tentavam impedir o estouro, mas em seguida acompanhando-os relutantemente. Lá fora na avenue Gabriel todos assistiram horrorizados a explosão destroçar a parte de trás da brasserie, o que sobrava das vidraças se estilhaçando ao impacto, arremessando fragmentos de vidro na rua, que se enterraram na carne dos rostos, furando os tecidos das roupas e penetrando em braços, peitos, pernas. Um pandemônio tomou conta da rua, enquanto Latham caiu por cima do corpo de Karin de Vries.
- O que soube você? - gritou Drew, enfiando a arma no cinto. - Como soube?
- Não há tempo! Levante-se. Siga-me!
8
Eles desceram correndo a Gabriel até chegarem a um portal recuado e escuro de uma loja, um joaillier cujas joias brilhavam ainda mais na relativa escuridão. Karin puxou-o para dentro dele; resfolegantes, tomaram ar antes de Latham dizer.
- Porra, minha senhora, o que aconteceu? Você disse que a pessoa para quem tinha ligado estava fazendo uma verificação para interceptar algo, aí você e o mundo desabaram! Quero uma resposta.
- A verificação nunca chegou a ser feita - respondeu de Vries, ainda ofegante. - Em vez disso, alguém chegou ao telefone e gritou. "Três caras em roupas escuras estão subindo e descendo a rua, parando nos lugares. Eles querem expulsar seu amigo da toca!" Antes de poder perguntar alguma coisa, vi duas baguettes rolando no chão em direção ao nosso reservado.
- Baguettes? Bisnagas de pão?
- Pequenas bisnagas luzidias, Drew. Pão artificial. Explosivo plástico dez vezes mais potente do que uma granada.
- Ah, meu Deus...
- Tem um ponto de táxi na próxima esquina. Rápido! - Ainda resfolegantes, acomodaram-se no banco traseiro de um táxi, enquanto Karin dava ao motorista um endereço no bairro do Marais.
- Dentro de uma hora estarei de volta à embaixada...
- Você está maluca? - interrompeu Latham, virando bruscamente a cabeça na direção dela. - Foi vista comigo, você mesma disse. Vão matá-la!
- Não se eu voltar dentro de um intervalo razoável, e me comportar como se tivesse sofrido um terrível abalo, razoavelmente histérica, embora ainda sob controle.
- Palavras - disse Drew áspera, criticamente.
- Não, simples bom senso numa situação delicada que exige que eu volte à minha antiga rotina o quanto antes.
- Eu repito. Você é louca. Não só estava comigo, como foi você que gritou avisando! Foi você quem começou o estouro da boiada.
- O mesmo teria feito qualquer pessoa vinda da Gabriel, ao ver todos aqueles policiais e as radiopatrulhas, ouvindo dizer como os terroristas tinham alvejado um automóvel. Meu Deus do céu, Drew, duas bisnagas - mesmo se fossem verdadeiras - rolando para dentro do reservado, enquanto um homem de suéter escuro e um boné preto saía correndo, colidindo com um garçom realmente!
- Você não me contou a história do sujeito que saiu correndo...
- Num suéter pesado, num dia quente de primavera, com o rosto escondido, e quase fazendo com que o garçom virasse a bandeja!
- Nem de nenhum garçom.
- Aliás, nenhum garçom de uma brasserie parisiense trataria bisnagas como se fossem bolas de boliche.
- Está bem, está bem, você pode explicar esta parte, mas não o fato de estar comigo.
- Eu cuidarei disto de uma maneira que qualquer francês, terrorista ou não, compreenderá. Farei várias ligações para corroborar este fato.
- Que ligações? Sobre o que e para quem?
- Para pessoas na embaixada, primeiro no Departamento de Pesquisa, é claro, depois para o balcão de entrada, e para mais algumas pessoas conhecidas como fofoqueiras, inclusive o principal assistente de Courtland e a secretária do primeiro adido. Direi a elas que estava junto com você no restaurante atingido pela bomba, que conseguimos sair, você sumiu e eu fiquei desesperada.
- Você está apenas frisando o detalhe de que estávamos juntos!
- Por um motivo bastante diferente, que nada tem a ver com o seu trabalho, sobre o qual eu nada sei, porque não o conheço há tempo suficiente.
- Que motivo?
- Nós nos conhecemos no outro dia, sentimos uma atração mútua, e estamos obviamente nos encaminhando para ter um caso.
- Isto é a coisa mais simpática que você já disse.
- Não tome-o literalmente, Monsieur Latham, é enfaticamente uma história para disfarçar. A questão é que, já que podemos presumir que a embaixada foi infiltrada, o boato circulará depressa.
- Acha que a facção parisiense dos neos acreditará?
- Não têm escolha, em dois níveis. Se for mentira, vão me pôr sob observação, presumindo que você tentará manter contato comigo e aí eles poderão descobri-lo; se for verdade, bem, eu realmente não mereço que eles desperdicem seu tempo comigo. Num caso ou no outro, estarei em posição de poder ajudá-lo onde estou.
- Pelo amor de Freddie, eu compreendo - disse Drew, sorrindo delicadamente enquanto o motorista entrava no Marais. - Mas ainda acho que você está correndo um tremendo risco, minha senhora.
- Posso fazer um comentário sobre seus cacoetes de linguagem, por favor?
- À vontade.
- Sua errática, porém invariável, utilização da palavra senhora tem uma conotação distintamente condescendente.
- Não pretendia que fosse assim.
- Provavelmente não. Mesmo assim, trata-se de uma contradição cultural inconsciente.
- Como?
- Ao usar a palavra senhora, você na realidade a está empregando no sentido pejorativo, como no caso de garota, ou pior, mina.
- Peço desculpas. - Latham sorriu novamente de uma maneira delicada. - Já usei este termo mais vezes do que consigo me lembrar com minha mãe, e posso assegurar que nunca - como foi que você disse? - num sentido pejorativo.
- Uma mãe pode aceitá-lo como um termo carinhoso en famille. Eu não sou sua mãe.
- Diabo, não. Ela é muito mais bonita e não faz tanta algazarra quanto você.
- Algazarra...? - De Vries observou o rosto do americano percebendo o humor nos seus lábios. Riu e pegou no braço dele. - Marque para você o ponto, que me concedera na mesa da brasserie. Às vezes levo as coisas muito a sério.
- Fique fria. Agora compreendo por que você e Harry se dão bem. Você analisa, depois reavalia, depois analisa de novo. Tudo acaba num montão de círculos, não é?
- Não, não acaba, porque em algum lugar no meio desses círculos há uma tangente que se desgarra deles e leva a outra coisa. Sempre a verdade.
- Crê que eu compreendo isso?
- É claro que compreende. Seu irmão tinha razão anos atrás, você é muito melhor do que julga ser... Mas, aliás, não precisa de mim para dizer essas coisas.
- Não, não preciso. Neste exato momento quero saber para onde vou.
- Para um lugar que vocês americanos chamam de casa esterilizada, um lugar intermediário onde suas credenciais serão verificadas antes de ser mandado para um lugar seguro.
- São as pessoas para quem você estava ligando no restaurante, na brasserie?
- Sim, mas no seu caso será mandado imediatamente. Serei sua fiadora.
- Quem é essa gente?
- Basta dizer que estão do nosso lado, o seu e o meu.
- Não basta para mim, minha senhora... desculpe, Sra. de Vries.
- Então pode parar o táxi, descer, depender de seus próprios recursos, e ser caçado como um bicho até que eles o ponham na sua alça de mira.
- Não necessariamente. Não sou Harry, mas possuo algumas habilidades que já me foram úteis em uma ou duas enrascadas. Devo dizer ao motorista para encostar o carro, ou você me dirá exatamente para onde vamos e quem iremos ver?
- Você precisa de segurança neste exato momento e admite que não sabe em quem confiar...
- E você está me dizendo que devo confiar em gente que não conheço? - interrompeu Latham. - Você é doida de carteirinha. - Ele se inclinou para a frente e falou com o motorista. - Monsieur, s’il vous plaît, arrêtez le taxi...
- Non! - interrompeu veementemente Karin. - Não é preciso - prosseguiu ela falando em francês para o motorista, que deu de ombros e tirou o pé do freio.
- Está bem - continuou ela, olhando para Drew. - O que você quer fazer, onde quer ir? Ou prefere que eu saia para que não tenha a menor ideia? Pode entrar em contato comigo na embaixada. Sugiro que use um telefone público, mas não preciso recomendar-lhe isto. Não deve estar com muito dinheiro e não deve ir ao banco, do mesmo modo que à sua sala, seu apartamento, ao Meurice, todos estarão vigiados. Eu lhe darei o que tenho e podemos combinar outras providências para depois... Pelo amor de Deus, resolva. Preciso dar início à minha própria tática dentro em breve - dentro de minutos, para que tenha alguma credibilidade!
- Você realmente fala sério, não é? Me daria dinheiro, sairia do carro, e me deixaria sumir, sem saber do meu paradeiro.
- Claro que falo sério. Não é a opção preferível, e acho você um incrível tolo, mas é teimoso e não há nada que eu possa fazer quanto a isso. É muito mais importante que você preserve sua vida, veja Harry e dê prosseguimento a esse negócio pendente. Cada dia que a nova liderança nazista sobreviver, mais profundamente eles se entrincheiram.
- Então você não insiste em me levar para seus velhos amigos de Amsterdã. - Latham não disse isto em tom de pergunta.
- Como posso? Você não me dá ouvidos, então é claro que não.
- Pois me leve a eles. Você tem razão. Eu realmente não sei em quem confiar.
- Você é impossível, espero que perceba isto!
- Não, não sou não. Sou apenas muito cauteloso. Será que mencionei ter sido alvejado três vezes em menos de trinta e seis horas, e que há dez minutos atrás alguém tentou me explodir em pedacinhos? Ah, sim, minha senhora, eu sou muito cauteloso.
- Tomou a decisão acertada, pode crer.
- Preciso acreditar. Agora quem é essa gente?
- Na maioria, alemães. Homens e mulheres que odeiam os neos mais do que qualquer um de nós. Veem o seu país conspurcado pelos assim chamados herdeiros do Terceiro Reich.
- Estão aqui em Paris...?
- E no Reino Unido, na Holanda, na Escandinávia, nos Bálcãs em qualquer lugar onde creem que a Brüderschaft esteja operando. Cada célula é pequena, quinze a vinte pessoas, mas funciona com a famosa eficiência alemã, com fundos obtidos de um grupo de líderes empresariais alemães que não só desprezam os neos, como também temem o efeito que eles poderiam ter sobre a imagem da nação e portanto sobre sua economia.
- Parecem o outro lado da Irmandade.
- O que você acha que está desorganizando o país? É isto que eles são, e é preciso. Bonn é político; o mundo empresarial é prático. O governo precisa angariar votos de um eleitorado heterogêneo; o mundo financeiro precisa, sobretudo, evitar o isolamento em relação ao mercado mundial devido ao espectro de um ressurgimento nazista.
- Essas pessoas, seus amigos - essas "células" - têm um nome, um símbolo, algo parecido?
- Sim. Eles se chamam de os Antinayous.
- Que tipo de nome é esse?
- Para falar a verdade, não sei, mas seu irmão riu quando Freddie lhe contou. Ele disse que tinha algo a ver com a Roma antiga e um historiador chamado Dio Cassius, acho. Harry disse que vinha a calhar na situação.
- Harry é um número - murmurou Drew. - Lembre-me de substituir minha enciclopédia... Está bem, vamos conhecer seus amigos.
- Eles ficam a apenas duas ruas de distância.
Wesley Sorenson chegara a uma conclusão. Ele não passara toda sua vida adulta a serviço do seu país para ser excluído das informações essenciais por um burocrata da inteligência que chegou a uma conclusão errada, ofensiva. Para resumir, Wes Sorenson estava revoltado, e não via motivo para esconder a sua raiva. Ele não lutara pelo cargo de diretor das Operações Consulares, fora convocado por um presidente pensante que viu a necessidade de coordenar os serviços de informações de modo que qualquer um de seus ramos não frustrasse as metas pós-Guerra Fria do Ministério da Guerra. Ele atendera ao chamado, dispensando uma aposentadoria tranquila, na qual, graças à sua família rica, ele não precisaria de uma pensão. Mesmo assim, ele a merecera mais de uma vez, como de fato merecera o respeito e a confiança de toda a comunidade de informações. Externaria seus sentimentos na conferência da qual em breve participaria.
Ele foi conduzido até a enorme sala onde o secretário de Estado, Adam Bollinger, estava sentado atrás de sua mesa. Defronte ao secretário, sentado em uma das duas cadeiras de conferência, com seu corpo virado em saudação, estava um grande e troncudo homem negro com seus sessenta e poucos anos. Seu nome era Knox Talbot, diretor da CIA, um ex-oficial da inteligência no campo na batalha do Vietnã, e um gênio que fizera fortuna no mundo traiçoeiro das commodities e da arbitragem de câmbio. Sorenson gostava de Talbot e se divertia sempre com a maneira como ele ocultava seu brilhantismo atrás de um senso de humor autodepreciativo e a exibição de uma candura de olhos inocentes. O secretário Bollinger, por outro lado, constituía um problema para o diretor das Operações Consulares. Sorenson reconhecia a sagacidade política do secretário de Estado, até mesmo seu status internacional, mas havia um vazio no homem que o perturbava. Era como se tudo que dissesse e fizesse fosse calculado, programado, com ausência de um empenho apaixonado - um homem frio, com um sorriso radiante que demonstrava um encanto superficial, mas pouco calor humano.
- Bom dia, Wes - disse Bollinger, com seu sorriso perfunctório, pois esta era uma reunião de terríveis consequências, não havia tempo para amenidades, e ele queria que seus subordinados sentissem isto.
- Alô, espectro dos espectros - acrescentou Knox Talbot, a sorrir. - Parece que nós neófitos estamos precisando de uma informaçãozinha aqui.
- Não há nada na nossa agenda que seja nem remotamente divertido, Knox - observou o secretário, seus olhos neutros se levantando dos documentos em cima de sua mesa, e se fixando em Talbot.
- Nem será de grande ajuda ficar supertenso, Adam - retrucou o diretor da CIA. - Nossos problemas podem ser imensos, mas há uma parte deles que pode ser descartada com um sorriso.
- Eu acho que esta afirmação é quase uma irresponsabilidade.
- Pode achar o que quiser, mas eu considero uma porção de coisas que obtivermos da Operação Sting, para resumir, realmente irresponsáveis.
- Junte-se a nós, Wesley - disse Bollinger, enquanto Sorenson se encaminhava para a cadeira à direita de Talbot e se sentava. - Não nego - continuou o secretário de Estado - que a lista do agente Latham é pavorosa, mas precisamos levar em consideração a fonte. Eu lhe pergunto, Knox, existe na CIA algum agente secreto com mais experiência do que Harry Latham?
- Que eu saiba, não - respondeu o diretor da CIA. - Mas isto não invalida o fato de ele ter sido abastecido com falsas informações.
- Significa que sua identidade foi descoberta pela liderança dos neos.
- Não tenho nenhuma informação a este respeito - disse Talbot.
- Pois foi - disse Sorenson num tom de voz inexpressivo.
- O quê?
- O quê?
- Falei com o irmão de Harry - disse Sorenson. - Ele é um dos meus homens, e soube disto por intermédio de uma mulher em Paris, a viúva do operador de Latham em Berlim Oriental. Os neos sabiam tudo sobre Sting. Nome, objetivo, até a duração presumível de sua missão.
- Isto é impossível! - gritou Knox Talbot, sua considerável envergadura inclinando-se para a frente na cadeira, sua cabeça virada na direção de Sorenson, os olhos negros brilhando. - Esta informação é tão sigilosa que não poderia ser violada.
- Experimente seus computadores AA-Zero.
- Invioláveis!
- Não são, Knox. Você tem alguém dentro do galinheiro secreto que na realidade é uma raposa.
- Eu não acredito em você.
- Acabei de lhe dar a informação detalhada, o que mais precisa?
- Quem diabo poderia ser?
- Quantas pessoas operam os AA-Zeros?
- Cinco, com três substitutos, cada um deles investigado até o dia em que nasceu. Cada um deles totalmente limpo, branquinho, fato que eu, a despeito da minha óbvia implicância em relação a este termo, aceito totalmente. Pelo amor de Deus, eles são os nossos cobras de alta tecnologia.
- Um deles morde, Knox. Um deles conseguiu se enfiar nas suas impenetráveis redes.
- Vou colocar a todos sob total vigilância.
- Fará mais do que isto, Sr. Diretor - disse Adam Bollinger.
- O senhor porá todo mundo da lista de Harry Latham sob vigilância. Meu Deus, a gente pode ter nas mãos uma conspiração global.
- Por favor, Sr. Secretário, não estamos perto disso. Não ainda. Porém, preciso lhe perguntar uma coisa, Knox, quem omitiu o nome de Claude Moreau da lista que me foi enviada?
Demonstrando espanto, Talbot estremeceu, em seguida se recompôs.
- Sinto muito, Wes, veio de uma fonte confiável, um velho agente que trabalhou com vocês dois em Istambul. Disse que ambos eram muito próximos, que Moreau salvou sua vida nos Dardanelos, durante uma missão em Marmara. Nosso informante não tinha certeza se você seria capaz de tratar o caso com objetividade. Foi tão simples quanto isso. Como descobriu?
- Alguém liberou uma lista para o embaixador Courtland.
- Precisávamos - interrompeu Talbot. - Os alemães deixaram a coisa vazar e Courtland ficou numa desvantagem diplomática... o nome de Moreau figura nela?
- Só para você ver o descuido da agência.
- Um erro. Errar é humano, o que mais posso dizer? Existem máquinas demais a cuspir dados depressa demais... A justificação, no seu caso, entretanto, era compreensível. Um sujeito salva a sua vida, e é claro que você virá rapidinho defendê-lo. Talvez sem querer, só por uma questão de solidariedade, você quisesse tirar o coelho de sob o microscópio.
- Não se você for um profissional, Knox - disse secamente o diretor das Operações Consulares. - E eu acredito ter atingido este nível.
- Meu Deus, você certamente o atingiu - concordou Talbot, balançando a cabeça. - Você estaria ocupando o meu cargo se tivesse querido aceitá-lo.
- Eu nunca quis.
- Aceite novamente as minhas desculpas. Mas aproveitando a ocasião, que acha você da inclusão de Moreau?
- Acho uma loucura.
- Igualmente vinte a vinte e cinco outros só neste país, e quando você leva em consideração seus funcionários e associados, bem mais do que duzentos em cargos elevados. Há mais uns setenta no Reino Unido e na França, e poderia ser multiplicado por dez. Entre eles figuram homens e mulheres que consideramos verdadeiros patriotas, e a despeito de filiações partidárias que podemos desaprovar, gente que merece nosso respeito. Terá Harry Latham, um dos melhores e mais inteligentes, ficado biruta, um agente secreto que perdeu a cabeça?
- Isto é difícil de imaginar.
- Razão pela qual todo homem e mulher na sua lista será investigado até o momento em que começaram a andar e a falar - anunciou enfaticamente o secretário de Estado, seus lábios descarnados formando agora uma linha reta. - Revirem todas as pedras, tragam-me relatórios que façam com que os dossiês do FBI pareçam listas de vendas de vendedores ambulantes.
- Adam - protestou Knox Talbot - isso é território do Bureau, e não nosso. Está bem explícito na "emenda quarenta e sete".
- Para o diabo com a emenda. Se existem nazistas passeando pelos corredores do governo, da indústria, e das assim chamadas artes, precisamos descobri-los, desmascará-los!
- Com que autoridade? - perguntou Sorenson, observando o rosto do secretário de Estado.
- Com minha autoridade, se quiser. Serei responsável.
- O Congresso pode protestar - insistiu o diretor das Operações Consulares.
- Foda-se o Congresso, é só manter a coisa abafada. Meu Deus do céu, você pode pelo menos fazer isto, não pode? Ambos fazem parte do governo, não fazem? É chamado poder executivo, senhores, e se o executivo, a própria presidência, for capaz de exterminar a influência nazista neste país, a nação ficará para sempre grata. Agora vamos ao trabalho, coordenem e tragam-me os resultados. Nossa reunião está terminada. Tenho um compromisso com um desses produtores de um programa de entrevistas das manhãs de domingo. Vou anunciar a nova política do presidente para o Caribe.
Lá fora, no corredor do Departamento do Estado, Knox Talbot virou-se para Wesley Sorenson.
- Além de ter que achar quem anda violando nossos computadores AA-Zero, não me agrada nada esta história.
- Eu pedirei demissão primeiro - disse o chefe das Operações Consulares.
- Não é o caminho, Wes - retrucou o diretor da CIA. - Se você for embora, e eu também, ele achará outros dois a quem poderá realmente controlar. Eu acho que ambos devemos ficar e "coordenar" esta coisa tranquilamente com o FBI.
- Bollinger excluiu esta hipótese.
- Não, ele censurou e desprezou especificamente a emenda 47 que proíbe você e eu de operarmos no terreno doméstico. Nós filtramos suas palavras e chegamos à conclusão de que ele na realidade não queria que agíssemos inconstitucionalmente. Mais tarde, ele provavelmente irá nos agradecer. Que diabo, os acólitos de Reagan faziam isto o tempo inteiro.
- Será que vale a pena fazer isto por Bollinger, Knox?
- Não, por ele não, mas por nossas organizações sim. Já trabalhei com o diretor do FBI. Ele não é obcecado por prerrogativas territoriais. Não é nenhum Hoover. É um cara decente, um ex-juiz que era considerado justo, e ele tem uma porção de agentes de rua. Eu o convencerei de que tudo precisa ser feito de modo discreto e aprofundado, porém conclusivo. E, vamos encarar o problema, Harry Latham não pode ser ignorado.
- Eu ainda acho que Moreau é um engano, um erro terrível.
- Pode haver outros também, mas também poderia haver outros, além destes, que não são. Detesto dizê-lo, mas Bollinger poderia ter razão a este respeito. Eu farei contato com o FBI, você mantenha Harry Latham vivo.
- Vejo outro problema, Knox - disse Sorenson franzindo a testa. - Você se lembra do lixo dos anos cinquenta, da merda do McCarthy?
- Por favor - respondeu o negro diretor da CIA. - Eu era calouro na universidade e meu pai um advogado dos direitos civis. Disseram que ele era comunista, e fomos obrigados a nos mudar de Wilmington para Chicago, de modo que minhas duas irmãs e eu pudéssemos ir a pé para os nossos estudos. Porra, sim, como eu me lembro.
- Assegure-se de que o FBI tenha em mente a possível semelhança destas duas situações. Nós não queremos arruinar reputações, nem mesmo carreiras, através de acusações irresponsáveis - ou pior, de boatos intermináveis. Nós não queremos agentes federais tipo pistoleiros; precisamos de profissionais discretos.
- Já vivi a época dos pistoleiros, Wes. É uma prioridade acabar com eles. Estritamente profissional, estritamente discreto, esta será a palavra de ordem.
- E desejo boa sorte a nós todos - disse o diretor das Operações Consulares. - Mas metade do meu cérebro, se é que possuo um, me diz que estamos em águas agitadas.
A casa esterilizada dos Antinayous no bairro parisiense do Marais tinha como habitantes duas mulheres e um homem, era um apartamento confortável em cima de uma elegante butique na rue Delacort. As apresentações foram breves, Karin de Vries se encarregando da maior parte da falação, defendendo enfaticamente uma solução urgente para o caso de Drew Latham. A encarregada de cabelos grisalhos debateu rapidamente com seus colegas.
- Nós o mandaremos para a Maison Rouge no Carrefour. Você terá tudo que precisa, monsieur. Karin e seu finado marido estiveram sempre do nosso lado. Boa viagem, Sr. Latham. A Brüderschaft precisa ser liquidada.
O velho prédio de pedra chamado Maison Rouge foi inicialmente um pequeno hotel barato, convertido num pequeno prédio de escritórios baratos. De acordo com a lista surrada dos inquilinos, ele abrigava negócios como uma agência de empregos de trabalhos braçais, uma firma de bombeiros hidráulicos, uma gráfica, uma agência de detetives particulares especializados em "processos de divórcio", e também um punhado de escritórios de contabilidade, de datilografia, de serviços de limpeza e de aluguel de escritórios, sendo que não havia nenhum disponível. Na realidade, só a agência de empregos e a gráfica eram autênticas; o resto não constava do catálogo de Paris, ou se encontrava ostensivamente de portas fechadas ou fechados durante determinado período (alterado sucessivamente nos avisos afixados às portas). Em seus lugares, existiam quartos simples e de casal, e uma quantidade de pequeninas suítes, todas completas com telefones fora da lista, faxes, máquinas de escrever, aparelhos de televisão e microcomputadores. O prédio era isolado, e duas estreitas passagens levavam à sua parte de trás, onde havia uma porta corrediça oculta, disfarçada de uma panóplia alta e retangular formada por vidraças do térreo. Nunca era usada durante o dia.
Cada hóspede dos Antinayous recebia instruções precisas do que deveria fazer, inclusive quanto à vestimenta (provido de guarda-roupa, se necessário), comportamento (não haut Parisien), comunicação entre os residentes (absolutamente verboten, a não ser que liberada pela "administração") e a escala precisa de entradas e saídas (novamente liberadas pela administração). O fracasso em obedecer ao regulamento era punido com a imediata expulsão, sem apelo possível. As regras eram francamente severas, mas para o bem de todos.
Latham foi instalado numa minissuíte no terceiro andar; ele ficou tão impressionado com as instalações técnicas quanto ficaria com aquilo que Karin descrevera como "eficiência alemã". Depois de ter sido extensamente orientado sobre o funcionamento do equipamento por um membro da administração, ele foi até o quarto e se deitou, consultou seu relógio e calculou que poderia ligar para Karin de Vries na embaixada dentro de um pouco mais de uma hora. Quisera ele que fosse antes; a espera para descobrir se sua tática dera certo era de deixar os nervos à flor da pele, embora a mentira que ela inventara fosse exótica, e até cômica, dadas as circunstâncias. A tática era simples: estivera na companhia dele na brasserie que sofrera o atentado à bomba; ele desaparecera e ela estava desesperada. Por quê? Porque ela o achava encantador e os dois se "encaminhavam para terem um caso". Era uma possibilidade atraente, mas igualmente fora de cogitação - pensando bem, nem tão atraente assim, pensou Drew. Ela era uma estranha mulher, justificadamente cheia de ódio e dolorosas recordações, sua atração diminuída por ambas as coisas. Era herdeira de uma angst europeia, dos levantes nacionais e raciais que envenenavam todo o continente, e Latham não estava preparado para se juntar à turma dela. Ficava perturbado ao observar suas feições bem-talhadas, e no entanto estranhamente suaves, tornarem-se geladas, seus olhos estonteantes transformarem-se em duas pedras de gelo, quando ela era consumida pelo seu passado. Não, ele já tinha seus próprios problemas.
Então por que ficava pensando nela? Salvara-lhe a vida, é claro... mas mesmo assim, salvara a própria pele também. Sua vida... Qual era a frase que ela usara? "Talvez a coisa tenha sido feita para parecer assim." Não! Ele estava farto de círculos dentro de círculos, em que não havia tangentes que levavam a uma verdade irrefutável. Onde estava a verdade? Na lista de Harry? Na preocupação de Karin? Em Moreau? Sorenson... Quase fora morto quatro vezes e isto bastava! Precisava descansar, em seguida pensar, mas descansar primeiro. O descanso era uma arma, com frequência mais potente do que pólvora, dissera-lhe certa vez um velho treinador. Assim, com a exaustão provocada pelo medo e a ansiedade, Drew fechou os olhos. O sono, embora agitado, chegou rápido.
A campainha estridente do telefone de Paris acordou-o; sentando-se abruptamente na cama, ele pegou-o.
- Sim?
- Sou eu - disse Karin. - Estou falando do telefone do coronel.
- É "limpo" - interrompeu Latham, esfregando os olhos com a mão esquerda para espantar o sono. - Witkowski está aí?
- Achei que perguntaria isto. Aqui está ele.
- Alô, Drew.
- Os atentados contra minha vida estão se multiplicando, Stosh.
- É o que parece - concordou o veterano do G-2. - Permaneça bem escondido até as coisas melhorarem.
- Até que ponto devem melhorar? Eles querem que eu saia, Stanley!
- Então precisamos convencê-los de que temporariamente isso não lhe trará vantagem. Precisa ganhar tempo.
- Como faremos isso?
- Terei de saber mais do que sei para poder responder, mas basicamente é convencê-los de que você é mais útil vivo do que morto.
- O que precisa saber?
- Tudo. Sorenson é seu patrão, seu controle fundamental. Conheço Wesley, não bem, mas nos conhecemos, por isso ligue para ele, e me dê o serviço rápido.
- Não preciso ligar para ele. Trata-se de minha vida e estou tomando uma decisão no calor da batalha. Tome notas, depois queime-as, coronel. - Latham começou do início, com o desaparecimento de Harry nos Alpes de Hausruck, sua captura e fuga da Irmandade, em seguida os arquivos que faltavam em Washington, relacionados a um general francês desconhecido, seguido pela conexão Jodelle, seu suicídio no teatro, e seu filho Jean-Pierre Villier. Nesta altura Stanley Witkowski interrompeu abruptamente.
- O ator?
- Sim, ele. Ele é tolo bastante para ter saído sozinho bancando o mendigo, e ter trazido informação que pode ser valiosa.
- Então o velho era realmente seu pai?
- Confirmado e reconfirmado. Era membro da Resistência, preso pelos alemães, e mandado para os campos de concentração, onde foi levado à loucura, quase completamente.
- "Quase completamente?" O que significa isto? Ou você é, ou não é.
- Uma pequena parte dele não era. Sabia quem era... o que era... e durante quase cinquenta anos nunca tentou entrar em contato com o filho.
- Ninguém tentou entrar em contato com ele?
- Como milhares que nunca voltaram, ele foi dado como morto.
- Mas não estava - disse Witkowski pensativamente - apenas mentalmente perturbado e sem dúvida fisicamente destroçado.
- Irreconhecível, assim dizem. Mesmo assim não pôde deixar de ir atrás de um general traidor que ordenara a execução de sua família e cujo nome desaparecera junto com o arquivo. Villier confirmou isto, ele soube que era alguém no Vale do Loire, em cujos arredores moram quarenta ou cinquenta generais de pijama, geralmente em modestas casas de campo ou em lugares maiores de propriedade de terceiros. Foi esta a sua informação, isto é, além do número da placa de um carro que andou ameaçando-o por fazer perguntas.
- E quanto ao general?
- Um, entre quatro ou cinco dezenas naquele lugar. Um militar com patente de general há cinquenta anos teria de ter noventa e poucos ou noventa e tantos anos agora, se ainda estivesse vivo.
- Na realidade, a probabilidade é muito remota - concordou o coronel. - Velhos militares, especialmente aqueles que passaram por combates, raramente duram muito mais do que oitenta e poucos anos, têm muitos traumas de guerra. O Pentágono fez um estudo alguns anos atrás por questões de segurança.
- Isto é terrível.
- E necessário quando se possui informação confidencial e o equilíbrio mental declina junto com a saúde geral. Esses velhos em geral ficam meio reclusos, se apagando lentamente, conforme a expressão do Grande Mac. Se não desejam ser encontrados, você não os encontrará.
- Agora você está exagerando, Stosh.
- Estou pensando, porra... Jodelle descobriu alguma coisa, em seguida se matou diante do próprio filho que ele nunca reconhecera, enquanto berrava que ele era seu filho. Por quê?
- Eu acho que foi porque seja lá o que descobriu, era grande demais para que ele o combatesse. Logo antes dele enfiar o cano na boca e explodir os miolos, também gritou que tinha fracassado com seu filho e sua mulher. Sua derrota foi total.
- Li nos jornais que Villier encerrou Coriolano, sem nenhum motivo especial a não ser que ficou muito afetado pelo suicídio do velho. O artigo não era nada claro; até parecia que ele sabia coisas que não queria falar. Naturalmente, como eu, há milhares de pessoas imaginando se Jodelle dizia a verdade. Ninguém quer acreditar, porque a mãe de Villier era uma grande estrela e seu pai um dos membros mais respeitados da Comédie Française, e estão ambos ainda vivos. É claro que não puderam ser contatados pela imprensa; parece que se encontram numa ilha particular no Mediterrâneo. As colunas de mexericos são os campeonatos de futebol de Paris.
- Tudo isso faz de Villier um alvo tão grande quanto eu, fato que deixei claro para nossa patroa, a Sra. de Vries.
- É uma loucura. Villier devia ter sido posto sob controle, impedido.
- Estive pensando a respeito disso, Stanley. Chamei Villier de burro, e por ter feito o que fez, merece, mas não é um burro cego. Não tenho dúvidas de que ele arriscaria a vida, confiante nos seus disfarces e técnicas de ator. No entanto, não acredito sequer um minuto que ele arriscaria a vida de sua mulher e de seus pais, expondo-os tão publicamente diante dos neos - repito, tornando-se um alvo.
- Está dizendo que ele foi programado?
- Não quero nem pensar nisto porque foi Moreau do Deuxième o último agente, até onde sei, a estar com Villier antes de ele anunciar o encerramento da peça.
- Não compreendo - disse Witkowski hesitantemente. - Claude Moreau é o que há de melhor. Eu realmente não estou te entendendo, Drew.
- Aperte seu cinto de segurança, coronel. Harry fugiu trazendo uma lista de nomes. - Latham passou a descrever a informação tremendamente perturbadora a que seu irmão tivera acesso durante sua prisão pelos neonazistas. Como eram espantosas e alarmantes as identidades de tanta gente poderosa, que aparentemente não só eram simpatizantes ao objetivos dos neos, fanáticos defensores da raça superior, como na realidade trabalhavam para eles.
- Não seria a primeira vez desde as legiões dos faraós que as nações se viram às voltas com infestações de piolhos nos seus altos escalões - interrompeu Witkowski. - Se foi Harry Latham quem trouxe, você pode botar no banco. Ele está naquele raro patamar em que também está Claude Moreau: inteligência, sensibilidade, talento, tenacidade, tudo junto. Não existe ninguém neste negócio melhor do que esses dois.
- Moreau está na lista de Harry, Stanley - disse Drew baixinho. O silêncio no telefone "limpo" da embaixada foi tão eletrizante quanto fora no caso de Sorenson, quando Latham dera-lhe a mesma informação. - Espero que você ainda esteja na linha, coronel.
- Eu queria não estar - murmurou Witkowski. - Não consigo dizer nada.
- Que tal merda?
- Esta é a minha primeira reação, mas existe uma segunda tão forte quanto ela. O nome dele é Harry Latham.
- Eu sei... por todos os motivos que você mencionou e várias dezenas que não disse. Mas mesmo meu irmão pode se equivocar, ou aceitar informação falsa até poder analisá-la. É por isso que preciso falar com ele.
- A Sra. de Vries explicou que ele é aguardado em Paris dentro de um dia ou dois, que você deixou recado para ele insistir em telefonar para você, o que agora será obviamente impossível fazer.
- Não posso sequer dar-lhe um número de telefone, porque não consta do aparelho aqui. Mas você deve tê-lo.
- Esse número está soterrado nas linhas telefônicas clandestinas, pelo menos o endereço está, e é sem dúvida um endereço falso.
- Então o que faremos?
- É um ato de fé que nem eu nem Sorenson normalmente aprovaríamos, mas diga à Sra. de Vries onde Harry se encontra em Londres. A gente entra aí e combina um jeito de vocês dois se encontrarem. Aí está ela.
- Drew? - disse Karin, agora no aparelho. - Tudo bem na Maison Rouge?
- Fora de série, minha senhora... perdão, que tal "minha boa amiga"?
- Pare de fazer gracinhas, não ajuda nada. Os Antinayous podem ser bastante hostis, mesmo com seus aliados certos.
- Ah, eles são ótimos, exceto que tudo que dizem parece terminar com um ponto de exclamação.
- É a língua. Deixe para lá. Você ouviu o coronel, como posso contatar Harry?
- Ele está no Gloucester sob o nome de Wendell Moss.
- Tomarei as providências. Permaneça onde está e tente ficar calmo.
- Não é tão fácil assim. Estou nesta encrenca, e ao mesmo tempo fora dela. Não posso controlar os resultados, e isso me aporrinha.
- Você não está em condições de "controlar os resultados", meu caro. O coronel e eu estamos, e agiremos segundo seus mais legítimos interesses, nos melhores interesses de todos nós, creia-me.
- Novamente, é preciso, e obrigado pelo "meu caro". Um pouquinho de calor humano é bem-vindo no momento. Aqui está muito frio.
- Dou de graça. Tal como você faz com a minha senhora, como costumava chamar a sua mãe, que é mais bonita e menos aflita do que eu. Estamos agora en famille, pois poucas famílias poderiam ser tão unidas quanto nós, queiramos ou não.
- Sabe, eu bem que gostaria que você estivesse aqui.
- Não devia. Eu seria uma terrível decepção, agente Latham.
Lá embaixo, nos imaculados porões da embaixada, um membro da Equipe C, de avental branco, do turno da tarde, desligou o interrupto independente que gravava tudo que era falado em todos os telefones da embaixada; os codificadores não funcionavam nas ligações internas, um fato que nem o embaixador sabia - ordens de Washington. O interceptador olhou para o relógio na parede; eram sete para as quatro, faltavam sete minutos para terminar seu turno, sete minutos para pegar a fita e substituí-la por uma em branco. Ele era capaz de fazê-lo. Tinha de fazê-lo. Sieg Heil!
9
Paciente Nº 28
Harry J. Latham, americano. Agente de Espionagem da CIA. Secreto.
Codinome: Sting
Operação Terminada: 14 de Maio, 17:30. "Fuga."
Situação Atual: Sexto dia após intervenção.
Estimativa de tempo restante: mínimo 3 dias, máximo 6 dias
O Dr. Gerhardt Kroeger examinou a tela do computador nas suas novas salas nos arredores de Mettmach. Uma clínica completa estava sendo construída no meio das florestas de Vaclabruck; até a sua conclusão ele poderia prosseguir com a sua pesquisa, mas, infelizmente, sem experiências humanas. A despeito disto, ainda havia muita coisa por fazer em termos de novas técnicas inexploradas da microcirurgia com laser, para mantê-lo ocupado, embora no momento o progresso do paciente Nº 28, um certo Harry Latham, fosse tão vital quanto o resto. O relatório inicial de Londres fora entusiasmante. O paciente respondera a um interrogatório sob impulsos eletrônicos computadorizados. Excelente!
Harry Latham repôs o fone no gancho no seu quarto do hotel Gloucester de Londres. Uma onda de bem-estar tomou conta dele, boas recordações de coisas acontecidas, horas de conforto num mundo enlouquecido. Ele era um solteirão convicto, percebendo já ser tarde demais para compartilhar ou impor suas manias a outra pessoa. Mas se existisse uma mulher capaz de contradizer esta conclusão, seria a mulher de Frederik de Vries, Karin. Freddie de V. havia sido o melhor operador sob seu controle nos anos da Guerra Fria, mas Harry detectara sua falha, a falha que o tornava extraordinário. Para dizê-lo de maneira direta, tratava-se do ódio - um puro ódio passional e implacável. Latham tentara constantemente impor uma neutralidade fria às emoções de de Vries, advertindo-o de que um dia seu íntimo haveria de explodir e o trair. Era um pedido inútil, pois Freddie era um romântico demoníaco, a cavalgar a crista branca da onda, sem compreender o poder subjacente, preferindo a armadura luzidia de um Siegfried surfista à força oculta de um Netuno submarino.
Sua mulher, Karin, compreendia. Quantas vezes ela e Harry conversaram em Amsterdã, sozinhos, enquanto Freddie se encontrava ausente, representando o papel impossível do comerciante de diamantes, enganando os praticantes da mais sombria arte da espionagem até que eles se abrissem para ele... temporariamente. Essa própria imagem acabou destruindo-o, pois seu ódio levou-o a querer realizar mais um golpe que ele não deveria ter tentado.
Foi o fim da pequena lenda chamada Freddie de V., Harry tentara consolar Karin, mas ela estava além de todo consolo. Ela sabia muito bem o que o havia levado à morte, e jurou que trabalharia de uma maneira diferente.
- Esqueça! - gritara Harry. - Você não fará nenhuma diferença, será que não compreende isso?
- Não, não consigo - respondera. - Não fazer nada é admitir que Freddie não representava nada. Será que você não consegue compreender isto, caro Harry?
Ele não teve resposta para lhe dar, então. Seu único impulso era abraçar aquela mulher, aquela companheira intelectual por quem sentia tanta afinidade, e amá-la. Mas não era a hora, nem, talvez, jamais haveria de ser. Ela vivia com seu finado Freddie, amava seu finado Freddie. Harry Latham fora o superior daquele homem, mas não era par para ele.
E agora, quase cinco anos mais tarde, ela voltara de Paris para sua vida. E mais incrivelmente ainda, no papel de guardiã de seu irmão, Drew, marcado para morrer! Cristo... não, ele precisava se impor seu lendário autocontrole. Talvez fosse a sua dor de cabeça, a cada dia mais intensa, que permitiu que sua frustração aflorasse, quando normalmente isto não aconteceria. Mesmo assim, ele voaria para Paris de manhã, a bordo de um jato diplomático, até uma pista particular do aeroporto De Gaulle, onde seria recebido por Karin de Vries num veículo sem a placa da embaixada.
Ficou imaginando o que diria a ela. Seria bastante tolo para dizer-lhe, ao vê-la, coisas que não deveria dizer? Não era muito importante... Sua cabeça latejava. Foi até o banheiro, abriu a torneira e tomou mais duas aspirinas. Ao se olhar no espelho, subitamente olhou de novo. Uma erupção pálida estava se espalhando acima de sua têmpora esquerda, parcialmente oculta pelos cabelos. Seu sistema nervoso estava literalmente deixando sua marca. Desapareceria com um antibiótico fraco ou alguns dias de menor tensão; talvez ver Karin de Vries apressasse o seu desaparecimento.
Ouviu-se uma batida na porta da suíte, provavelmente uma arrumadeira ou um camareiro que viera perguntar se precisava de alguma coisa; era no início da noite, e tais cortesias eram hábitos nos melhores hotéis de Londres. Início da noite, pensou ele, indo até a saleta de estar. Como se passara o dia? Passando? Desperdiçado era a palavra mais exata, já que passara dez horas sendo interrogado pelo seu tribunal. Fora interrogado ad nauseam sobre as informações que trouxera do vale da Brüderschaft. Para tornar as coisas ainda piores, o painel de três homens foi acrescido da presença de vários agentes graduados da inteligência do Reino Unido, da França e dos EUA, todos eles rabugentos, argumentativos e arrogantes. Não seria possível que lhe tivessem passado contrainformação, dados errados que poderiam ser facilmente desqualificados ante a possibilidade excepcional de Alexander Lassiter ser um agente duplo? É claro que era possível! respondera ele. Informações falsas, contrainformação, falha humana ou do computador, fantasias, racionalização de desejos - tudo era possível! Fazia parte do trabalho deles negá-lo ou confirmá-lo, não cabia a ele. O seu trabalho terminara: entregara seu material, a função deles era avaliá-lo.
Harry chegou até a porta e perguntou.
- Quem é?
- Um novo velho amigo, Sting - foi a resposta que veio do corredor.
Catbird! pensou Latham, congelando imediatamente sua reação. O Catbird de que ninguém na agência jamais ouvira falar. Harry recebeu o estranho intruso: ele estava cansado demais, tenso demais para pensar claramente na hora em que o impostor da CIA lhe fizera uma visita na noite anterior.
- Só um instante - disse ele em voz alta. - Estava tomando banho e ainda estou molhado. Vou pôr um roupão. - Latham foi correndo até o banheiro, jogou punhados d’água no rosto e no cabelo, em seguida foi até o quarto, tirou as calças, os sapatos, as meias, a camisa e pegou o roupão do hotel no armário. Ele parou um segundo, olhando para a mesinha de cabeceira; abriu a gaveta de cima e tirou uma pequena pistola fornecida pela embaixada, enfiando-a no bolso de tecido felpudo. Em seguida voltou atá porta e abriu-a. - Catbird, se não me engano - disse ele, deixando entrar o homem muito branco, de rosto cinzento, com os óculos de aros de aço.
- Ah, isso - comentou o visitante, sorrindo agradavelmente. - Foi uma brincadeira inofensiva.
- Uma brincadeira? O que quer dizer? Para quê?
- Washington me disse que você estaria provavelmente exausto, mais fora dos acontecimentos do que dentro deles, por isso eu resolvi usar esse condinome no caso de você estar muito agitado e precisar fazer ligações. A capital não deseja que minha participação seja conhecida a esta altura. Mais tarde, é claro, mas não agora.
- De modo que você não é Catbird...
- Eu sabia que se usasse seu codinome Sting você me deixaria entrar - interrompeu o sujeito. - Posso me sentar? Ficarei apenas alguns minutos.
- Certo - respondeu um Harry espantado, fazendo um gesto meio confuso em direção ao divã e a várias cadeiras. O visitante escolheu o centro do divã, enquanto Latham sentava-se numa poltrona logo em frente, com a mesinha de centro no meio. - Por que Washington não deseja que sua presença... sua participação seja conhecida?
- Você está certamente mais alerta do que estava na noite passada - disse o estranho, novamente de modo simpático. - Só Deus sabe. Não estava traumatizado, mas certamente não era você mesmo.
- Estava bastante cansado...
- Cansado? - O visitante ergueu sua voz e suas sobrancelhas. - Meu caro, você quase apagou enquanto conversávamos. Em certo momento, tive de agarrá-lo pelo braço para impedi-lo de cair. Não se lembra, eu disse que voltaria depois que descansasse?
- Sim, me lembro vagamente, mas por favor responda a minha pergunta, e por falar nisso, mostre-me algum tipo de identificação. Por que será que Washington quer que você banque o fantasma? Acho que o oposto seria mais plausível.
- Simplesmente porque não sabemos quem é realmente de confiança e quem não é. - O homem tirou primeiro seu relógio de bolso, colocando-o na mesa, e em seguida uma pequena carteira de plástico preto para carregar documentos de identidade; manteve-a fechada, entregando-a a Latham por cima da mesinha de centro. - Vou cronometrar meu tempo para não cansar você. São ordens novamente.
Ao manejar a carteira, Harry teve dificuldade em abri-la.
- Como abre? - perguntou ele, enquanto o visitante erguia o relógio e apertava sua coroa. - Não consigo abrir... - Latham interrompeu o que estava dizendo. Seus olhos saíram de foco, as pupilas se dilataram; piscava fraca porém repetidamente, em seguida seu rosto relaxou, os músculos tensos tornando-se flácidos.
- Alô, Alex - disse o visitante abruptamente. - É seu velho carniceiro, Gerhardt. Como está você meu amigo?
- Ótimo, Dr. Gerhardt, é bem ter notícias suas.
- Nossa ligação telefônica está melhor esta noite, não está?
- Telefônica? É acho que sim.
- Foi tudo bem hoje na embaixada?
- Diabo, não! Aqueles idiotas insistiam em me fazer perguntas cujas respostas eram eles que deveriam descobrir, não eu.
- Sim, compreendo. Os homens daquele outro negócio seu - aquele que jamais mencionamos - se protegem, custe o que custar, não é?
- Está em todas as perguntas que fazem, cada palavra que dizem. Francamente, é deplorável.
- Tenho certeza que sim. Então quais são seus planos, o que os idiotas deixaram você fazer?
- Vou para Paris de manhã. Verei meu irmão e também alguém de quem gosto muito, Gerhardt. A viúva de um homem com quem trabalhei cobrindo Berlim Oriental. Estou bastante excitado diante da possibilidade de revê-la. Ela vai me encontrar no aeroporto, no complexo diplomático, num carro da embaixada.
- Seu irmão não pode se encontrar com você, Alex?
- Não... Espere! O irmão de Alex?
- Não tem importância - disse depressa o visitante de rosto cinzento. - O irmão do qual você fala, onde está ele?
- Isto é em off. Tentaram matá-lo.
- Quem tentou?
- Você sabe. Eles... nós tentamos.
- Amanhã de manhã, no complexo diplomático. Isso fica no Aeroporto de Gaulle, certo?
- Sim. Nosso encontro é às dez horas.
- Ótimo, Alex. Tenha uma esplêndida reunião com seu irmão e com a mulher que acha tão atraente.
- Ah, é mais do que a aparência dela, Gerhardt. Ela é tremendamente inteligente, uma estudiosa, para dizer a verdade.
- Tenho certeza que é, porque meu amigo Lassiter é um homem profundo com muitas facetas. Voltaremos a conversar, Alex.
- Onde vai, para onde?
- Estão tocando meu bip para ir à sala de cirurgia. Agora tenho de operar.
- Sim, é claro. Você ligará de novo?
- Certamente. - O visitante de óculos de aro de aço se inclinou para a frente, por cima da borda da mesinha do centro; ele continuou em voz baixa, firme, olhando bem nos olhos neutros de Latham. - Lembre-se, meu amigo, respeite os desejos de seu hóspede de Washington. Ele obedece ordens. Esqueça seu nome, que acabou de ler nos seus documentos de identidade. É autêntico, e isto deve bastar para você.
- Certo. Ordens são ordens, mesmo quando são burras.
Levantando-se pela metade, o "hóspede" estendeu o braço e pegou a carteira de identidade da mão esquerda relaxada de Harry. Abriu-a, recostou-se no divã, e apanhou o relógio de bolso da pequena mesa baixa de centro. Apertou sua coroa, segurando-a assim, até que os olhos de Latham voltassem a ficar em foco, piscando, novamente consciente do ambiente em volta, seu rosto novamente firme, os músculos do seu queixo rijos.
- Pronto - disse o visitante, fechando ruidosamente a carteira de identidade. - Então agora que sabe minha identidade verdadeira, chame-me apenas de Peter.
- Sim... verdadeira. Ainda não compreende... Peter. Está bem, você é um fantasma, mas por quê? Quem não é de confiança no tribunal?
- Não é da minha conta especular por que ou quem, sou apenas a presença invisível que fala com você e vai e vem... Meus Deus, acho que rimou.
- Péssima, mas não dê importância. Como poderia qualquer um deles ser questionado?
- Talvez não sejam, individualmente, mas trouxeram outros, não trouxeram?
- Um bando de palhaços, sim. Não queriam examinar os nomes que lhes dei. Só queriam isentar uma porção deles antes que os microscópios fossem ativados - menos trabalho e menos chances de pisar em alguns calos grandes.
- O que acha dos nomes?
- O que eu acho não importa, Peter. É claro que vários deles me parecem ridículos, mas fui à fonte, confiaram em mim como confidente antes que eu fugisse. Era um grande colaborador, um fiel da causa deles, então por que haveriam de me dar porcaria?
- Corre um boato de que os nazistas, os neonazistas, poderiam ter sabido desde o início quem você era.
- Isso não é um boato, será o credo deles. Que diabo faríamos nós, e quantas vezes o fizemos, ao descobrir um espião encoberto ou um traidor que fugira para a Mãe Rússia depois de nos lesar? É claro que anunciávamos como éramos espertos, eficientes, e como era inútil a informação que nos fora surrupiada - quando não era verdade.
- É uma charada, não é?
- O que não é neste negócio? Neste exato momento, em benefício de minha própria sanidade, preciso expurgar Alexander Lassiter do meu psiquismo. Preciso voltar a ser Harry Latham; meu trabalho acabou. Deixe que outros continuem.
- Concordo com você, Harry. E também meu tempo acabou. Por favor, lembre das minhas ordens. Nós não nos encontramos esta noite... Não ponha a culpa em mim, culpe Washington.
O visitante desceu o corredor até os elevadores. Tomou o primeiro livre e desceu um andar, seguindo pelo corredor até a sua própria suíte, bem abaixo da de Latham. Lá dentro, em cima da mesa, havia um conjunto de equipamentos eletrônicos. Foi até eles, apertou várias teclas, rebobinou uma fita, verificando sua fidelidade. Pegou o telefone e discou para Mettmach, Alemanha.
- Covil do Lobo - disse a voz tranquila do outro lado da linha.
- É Catbird.
- Introduza seu codificador, por favor.
- Imediatamente. - O homem que se autodenominava Peter tirou um fio fino de seu equipamento, com a ponta ligada a um grampo boca de jacaré superafiado, enrolando-o em volta do fio do telefone até haver uma descarga de estática na linha. - O metrômetro indica funcionamento, e aí?
- Funcionando. Pode prosseguir.
"Catbird, se não me engano", começou a gravação. O hóspede abaixo de Harry Latham tocou-a até terminar. "Concordo com você, Harry... Não ponha a culpa em mim, culpe Washington."
- Qual a sua opinião? - perguntou o visitante de Latham.
- É perigoso - disse Gerhardt Kroeger na Alemanha. - Tal como a maioria dos agentes ultrassecretos, ele está subconscientemente passando de uma identidade para outra. Foi dito com suas próprias palavras: "Preciso expurgar Alexander Lassiter do meu psiquismo." Ele já foi Lassiter por um período demasiadamente longo, e está lutando para voltar a ser ele mesmo. Não é uma ocorrência incomum, a persona dupla tornando-se uma personalidade dupla.
- Ele realizou o que você queria que ele fizesse nesse período de dois dias. A própria lista foi o bastante para pôr nossos inimigos num estado de choque coletivo. Não querem acreditar na sua informação, estão sendo muito veementes a este respeito, mas também têm medo de negá-la. Posso apagá-lo com um único tiro no corredor. Devo?
- Emprestaria credibilidade à lista de nomes, mas não, ainda não. Seu irmão está quente na pista daquele vagabundo senil, Jodelle, e isto seria catastrófico para nós. Apesar do fato de não poder acompanhar o progresso do meu paciente me deixar torturado, o movimento vem primeiro e preciso fazer este sacrifício. Alexander Lassiter nos levará ao outro Latham intrometido. Mate os dois.
- Não será difícil. Temos o itinerário de Lassiter.
- Siga-o, siga-os, e não deixe nada para trás senão cadáveres. O filho renascido de Jodelle, o ator, será o próximo, então todas as pistas que levam ao Vale do Loire virarão pó, tal como o Hausruck.
Harry Latham e Karin de Vries se abraçaram fortemente, como irmãos próximos há muito separados. Sua conversa, de início, era confusa, cada um dizendo excitadamente ao outro como era maravilhoso estarem novamente juntos. Karin, em seguida, pegou-o pelo braço, conduzindo-o ao saguão diplomático, onde Harry viu-se rapidamente desembaraçado dos trâmites burocráticos do aeroporto, saindo em seguida para o estacionamento reservado, repleto de guardas, muitos dos quais seguravam pela coleira cães especialmente treinados para farejarem narcóticos e dispositivos explosivos. O carro deles era um Renault preto comum, indistinguível de milhares de outros que rodavam pelas ruas de Paris. De Vries ocupou o assento do motorista, enquanto Harry se sentava no de passageiro.
- Você não tem direito a motorista? - perguntou Latham.
- Digamos que não nos permitem um - respondeu Karin. - Seu irmão está sob a proteção dos Antinayous. Lembra deles?
- Muito especialmente. De poucas noites atrás, para ser exato; estavam me esperando. Fingi não entender uma palavra do que meu contato me disse no caminhão porque envolveria uma explicação que levaria a Freddie, e por conseguinte, a você.
- Não precisava ter medo. Trabalho com eles desde meu último ano em Haia.
- É tão bom ver você de novo... ouvir você - disse Harry, com a voz embargada pela emoção.
- Sinto o mesmo, velho amigo. Desde que soube que a Brüderschaft sabia a seu respeito, fiquei tremendamente preocupada...
- Eles sabiam a meu respeito? - interrompeu Latham abruptamente, com os olhos arregalados de espanto. - Você não está falando sério!
- Ninguém te contou?
- Como poderiam contar? Não é verdade.
- É, Harry. Expliquei a Drew como descobri.
- Você?
- Presumi que seu irmão passara a informação.
- Meu Deus, não consigo pensar! - Latham levou ambas as mãos às suas têmporas, fechando com força os olhos, os pés de galinha se destacando.
- O que é Harry?
- Não sei, uma dor horrível...
- Você passou por tanta coisa e durante tanto tempo. Vamos levá-lo a um médico.
- Não. Sou Alexander Lassiter... eu era Alexander Lassiter, para eles era só o que eu era.
- Lamento muito, mas não era, meu caro. - Karin olhou para seu velho amigo, subitamente alarmada. Havia um círculo vermelho-escuro na sua têmpora esquerda; parecia pulsar. - Comprei seu conhaque predileto para comemorarmos, Harry. Está no porta-luvas. Abra-o e tome um pouco. Vai relaxá-lo.
- Eles não podiam ter sabido - engasgou Latham, abrindo com mãos trêmulas o porta-luvas e tirando a garrafa de meio litro de conhaque. - Você não sabe o que está dizendo.
- Talvez eu esteja errada - disse de Vries, agora amedrontada. - Tome um gole e relaxe. Vamos encontrar Drew numa velha pousada no campo, nos arredores de Villejuif. Os Antinayous não permitiram que nos encontrássemos no aparelho deles. Fique calmo, Harry.
- Sim, sim, ficarei, porque, minha cara... minha querida Karin... você está errada. Meu irmão lhe dirá, Gerhardt Kroeger lhe dirá, sou Alex Lassiter, eu era Alex Lassiter!
- Gerhardt Kroeger? - perguntou uma espantada Karin. - Quem é Gerhardt Kroeger?
- Um nazista filho da puta... e também um excelente médico.
- Dentro de quinze ou vinte minutos estaremos na pousada onde seu irmão nos espera... Vamos falar dos velhos tempos em Amsterdã, meu velho amigo. Você se lembra da noite em que Freddie chegou em casa meio de porre e insistiu para que jogássemos aquele jogo americano de Monopólio?
- Meu Deus, claro que sim. Ele jogou um punhado de diamantes no chão e disse que devíamos usá-los no lugar do dinheiro de papel.
- E aquela vez em que você eu ficamos bebendo vinho e ouvindo Mozart até quase o amanhecer.
- E como não? - gritou Latham, engolindo conhaque e rindo, mas seus olhos, no entanto, não revelavam o brilho do humor, mas sim uma sombra, um olhar fixo. - Freddie saiu do quarto de vocês e deixou claro que preferia Elvis Presley. Nós jogamos travesseiros em cima dele.
- E aquela manhã no café na Herengracht, quando você e eu desafiamos Freddie a pular no canal para protestar contra a poluição?
- Ele ia fazê-lo, minha cara... minha querida Karin. Juro que ia.
A conversa bem-humorada preencheu os minutos restantes até de Vries entrar no estacionamento de cascalho da pousada campestre decadente, campestre porém mal fora dos limites da cidade, cercada de campos cheios de mato, isolada, e não realmente convidativa. O encontro entre os dois irmãos foi tão caloroso, embora mais caloroso ainda da parte do irmão caçula, do que o abraço de boas-vindas entre Harry e Karin. A diferença estava no irmão mais velho; havia entusiasmo na superfície, mas frieza sob a superfície. Era inesperado, não era normal.
- Ei, irmãozão, como foi que você fez? - exclamou Drew, enquanto os três se sentavam num reservado, de Vries ao lado de Harry. - Tenho um irmão lendário!
- Porque Alexander Lassiter era uma pessoa. Era a única maneira de poder fazê-lo.
- Bem, você certamente conseguiu, pelo menos até certo ponto, o bastante para chegar até lá.
- Está falando sobre aquilo que Karin te contou?
- Bem, sim...
- É mentira. Totalmente falso!
- Harry, eu disse que podia estar errada.
- Você está errada.
- Está bem, Harry, está bem. - Drew fez um gesto com as duas palmas das mãos levantadas. - Então ela está errada, acontece que ela simplesmente ouviu isto.
- Fontes irregulares, ilegítimas, não confirmadas.
- Estamos do seu lado, mano, você sabe disto. - O irmão caçula olhou para de Vries, com uma expressão interrogativa, perturbado.
- Alexander Lassiter era real - afirmou Harry enfaticamente, estremecendo ao levar a mão à sua têmpora, massageando-a em círculos. - Pergunte a Gerhardt Kroeger, ele lhe dirá.
- Quem é...
- Não importa - intrometeu-se Karin, sacudindo a cabeça - é um excelente médico, seu irmão me explicou.
- Mas por que não me explica, mano? Quem é esse Kroeger?
- Você gostaria realmente de saber, não gostaria?
- É segredo, Harry?
- Lassiter pode lhe dizer, eu acho que não devo.
- Pelo amor de Deus, de que está você falando? Você é Lassiter, Harry Latham é Lassiter. Pare com essa conversa, Harry.
- Como dói, ah meu Deus, como dói. Tem algo errado comigo.
- O que é, Harry querido?
- "Harry querido"? Você sabe o que isto representa para mim? Será que tem alguma ideia de quanto eu te amo, te adoro, Karin?
- E eu também te adoro, Harry - disse de Vries, vendo de repente o irmão Latham mais velho a chorar e a mergulhar a cabeça no peito dela. - Você sabe que sim.
- Eu te amo tanto, mas tanto! - continuou o choroso e semi-histérico Harry, enquanto Karin o embalava nos seus braços.
- Mas dói tanto...
- Oh, meu Deus - disse Drew baixinho, diante da espantosa imagem do outro lado da mesa.
- Precisamos levá-lo a um médico - disse de Vries num sussurro. - Começou assim no carro.
- Você tem toda a razão - concordou Drew. - Um médico da cabeça. Ele esteve na clandestinidade por um período demasiadamente longo. Céus!
- Ligue para a embaixada, arranje uma ambulância. Eu fico com ele.
O Latham mais jovem levantou-se do reservado no momento exato em que dois sujeitos armados entraram correndo pela porta, ambos com meias a lhes esconder a cabeça. O alvo e a caça eram evidentes.
- Abaixem-se - gritou ele, tirando sua arma do coldre na cintura e atirando antes que os assassinos tivessem se adaptado às condições de pouca luz. Ele derrubou o primeiro homem e pulou para trás do balcão do bar enquanto o segundo avançava correndo, sua arma automática disparando. Drew levantou-se, espremendo repetidamente o gatilho, esvaziando seu pente. O segundo homem caiu, enquanto o punhado disperso de clientes fugia histericamente pela porta da frente. Latham abandonou depressa sua inútil barricada. Karin de Vries estava no chão, sua mão esquerda agarrando ainda o braço de seu irmão, tentara arrastá-lo atrás dela. Estava viva, com a mão direita ensanguentada, mas viva! Porém Harry Latham morrera, com a cabeça destroçada, uma terrível massa de sangue e tecidos esbranquiçados, com o que sobrara de seu cérebro metade para fora do crânio. Drew, boquiaberto de medo, fechou os olhos apavorado, em seguida obrigou-se a abri-los enquanto mergulhava as mãos nos bolsos de seu irmão morto, tirando sua carteira e todos os papéis que pudessem revelar sua identidade. Por quê? Não tinha certeza, sabia apenas que precisava fazê-lo.
Ele então puxou a soluçante Karin de sob o reservado e, embrulhando a mão dela com um guardanapo, empurrou-a, afastando-a da terrível cena. Gritou para a gerência, que fugira para a cozinha, para chamar a polícia. Ele faria as devidas investigações mais tarde. Não havia tempo para chorar a morte do irmão que ele amava, nem um instante de contemplação do seu cadáver, para que pudesse guardar a sua imagem na memória. Precisava levar Karin de Vries a um médico, e em seguida voltar ao trabalho. A Irmandade precisava ser destruída, precisava, mesmo se para isso levasse o resto da vida, ou mesmo se isto lhe tirasse a vida. Era um compromisso que ele jurou diante de qualquer, ou de todos os deuses existentes.
- Você não pode ir a sua sala, não compreende isso? - disse Karin, sentada numa maca no anexo cirúrgico do médico de confiança da embaixada. - A notícia correrá e você será um homem morto!
- Então meu escritório precisa ser transferido para onde estou - disse Drew, falando em voz baixa, num tom insistente. - Preciso de todos os recursos que temos, em todos os lugares, e não me satisfaço com nada menos do que isso. A chave é um sujeito chamado Kroeger, Gerhardt Kroeger, e acharei o filho da puta, preciso achá-lo! Quem é ele? Onde está?
- É um médico, sabemos isso, e deve ser alemão. - De Vries observou o caçula dos Latham enquanto erguia lentamente e abaixava sua mão direita enfaixada, seguindo as instruções do médico. - Pelo amor de Deus, Drew, sossegue um pouco.
- O quê? - perguntou Latham asperamente, de pé ao lado dela e tirando seus olhos da sua mão ferida.
- Está querendo fingir que não aconteceu, e isso não faz sentido. Você chora por Harry como eu - sem dúvida até mais - porém está prendendo o sentimento dentro de você, e isto a está destroçando. Pare de fingir uma fria eficiência. Isso era Harry, não você.
- Quando vi o que fizeram com ele, eu disse a mim mesmo que o choro viria depois. Está sob controle e é assim que vai ficar.
- Compreendo.
- Será?
- Acho que sim. Seu ódio não pode ser contido. Deseja vingança, e isso vem primeiro.
- Você usou uma expressão sobre Harry antes, sobre a maneira como ele enfrentava problemas e crises. Chamou-a de sang-froid, que acho querer dizer, calma e desapaixonadamente.
- É verdade.
- Meu francês é limitado, algo que me lembram com frequência, mas existe uma variante para esta expressão...
- De sang-froid... a sangue-frio - disse Karin, com o olhar preso no dele.
- Exatamente. Era nisso que Harry era realmente excelente. Ele lidava com tudo na vida, não apenas de uma maneira calma ou fria, mas a sangue-frio - gelada. Eu era a única exceção; quando olhava para mim havia um calor naqueles olhares que eu raramente via em outra ocasião... Não, havia outra sim, nossa prima, aquela que te contei que morreu de câncer. Ela era algo especial para ele, muito especial. Falando de modo geral, ela era o seu "Rosebud" até você aparecer.
- Está se referindo a Cidadão Kane de Orson Welles, é claro.
- Certo, virou parte do nosso vocabulário agora. Um símbolo do passado que tem mais valor no presente do que a pessoa percebe.
- Eu não tinha a menor ideia que ele tinha estes sentimentos por mim.
- Nem Kane. Na sua imaginação, ele apenas via uma coisa que amara em criança ser destruída pelo fogo, e nunca mais achou nada que pudesse substituí-la. Deixou apenas suas realizações.
- Harry era assim em criança?
- Em criança, como rapaz, e como homem. Sempre com as notas mais altas e um QI fora do comum. Bacharelado, mestrado, doutorado, antes de atingir os vinte e três anos. Ele sempre se esforçava para ser o melhor de todos, e no decorrer deste processo tornou-se fluente em cinco, ou seis, idiomas. Como disse, ele era um gênio.
- Que vida fora do comum.
- Puxa, eu suponho que os freudianos diriam que ele era um garoto dotado reagindo a um pai distante - geográfica e emocionalmente - e a uma mãe doce, intuitivamente inteligente, porém não intelectual, que fizera um casamento disparatado e resolvera que ser atraente, carinhosa e elegante era seu papel na vida, e então para que entrar em discussões que ele não conseguiria vencer?
- E você?
- Acho que herdei um pouco mais dos genes da minha mãe do que Harry. Beth é uma mulher grandalhona e foi uma excelente atleta na juventude. Ela liderava o time de corredoras da universidade, e se não tivesse conhecido meu pai, teria tentado participar das Olimpíadas.
- Você tem uma família muito interessante - disse Karin, observando mais uma vez o rosto de Drew. - E está me contando isto por outro motivo além da minha curiosidade, não está?
- Você é rápida, minha senhora... desculpe, tentarei parar de dizer isto.
- Não se preocupe, estou começando a achá-lo meio simpático... Qual o motivo?
- Quero que você me conheça, onde me situo e de onde vim. Pelo menos uma parte de sua curiosidade deveria ser satisfeita.
- Levando em consideração sua tendência a ser reticente isso é algo estranho para se dizer.
- Percebo isto. Estou apenas coordenando as coisas... Lá na pousada, quando a fuzilaria parou e aquela coisa horrível terminara, vi-me em pânico, mexendo nos bolsos de Harry, a centímetros do que restou de seu cérebro, de seu rosto destroçado, odiando-me a cada instante, como se estivesse cometendo algum ato desprezível. Estranho é que não sabia por quê, apenas que precisava fazê-lo. Eu recebia ordens para fazer e precisava obedecer àquela ordem apesar de saber que não faria diferença alguma, que isto não o traria de volta.
- Você estava protegendo seu irmão na morte, como o faria em vida - disse de Vries. - Não há nada estranho nisso. Você estava protegendo seu nome.
- Acho que disse isto a mim mesmo - interrompeu Latham. - Mas não me convenceu. Com as técnicas de patologia atuais, sua identidade seria conhecida em poucas horas... A não ser que seu corpo fosse removido e ficasse de quarentena.
- Depois você obteve o nome do médico da embaixada...
- Através do coronel, na realidade - esclareceu Drew.
- Você tornou a ligar, depois de pedir ao médico um telefone particular. Foi uma longa conversa.
- Novamente com Witkowski. Ele sabe a quem apelar e como fazer essas coisas.
- Que coisas?
- Como remover um corpo e mantê-lo em isolamento.
- Harry?
- Sim. Ninguém presente poderia ter sabido quem ele era depois de termos partido. Foi quando percebi tudo, mais ou menos entre a nossa saída de lá e minha segunda ligação para o coronel. Harry estava me dando aquelas ordens, estava me dizendo o que fazer.
- Por favor, seja mais explícito.
- Eu devo me transformar nele, vou substituí-lo. Sou Harry Latham.
10
O coronel Stanley Witkowski agiu depressa, cobrando velhas dívidas dos anos da Guerra Fria. Entrou em contato com um delegado chefe da Sûreté de Paris, um ex-oficial da inteligência que chefiara a guarnição francesa de Berlim, e com quem um frustrado Witkowski, naquela época um major do G-2 do Exército, tinha achado por bem passar em revista os regulamentos e trocar informações. ("Achei que estávamos do mesmo lado, Senador!") Como resultado, o coronel tinha sob seu exclusivo controle não só o cadáver de Harry Latham, mas também os corpos dos dois assassinos. Todos os três se encontravam guardados sob nomes fictícios no necrotério da rue Fontenay. Além do mais, no interesse de ambos os países, fato prontamente aceito pelo delegado da Sûreté, o ato terrorista foi completamente abafado, em busca de informações adicionais.
Porque Witkowski compreendera aquilo que Drew só percebera pela metade. O sumiço do corpo de seu irmão haveria de criar uma confusão parcial, mas em conjunto com o abafamento do caso, o desaparecimento dos assassinos faria com que ela fosse total.
Num quarto de hotel em Orly, preparado para embarcar no voo de três e meia da tarde para Munique, o homem dos óculos de aros de aço caminhava nervosamente diante de uma janela, distraído aleatoriamente pelos aviões que decolavam e aterrissavam na pista. O trovão abafado dos jatos só servia para aumentar sua ansiedade. Ele olhava repetidamente para o telefone, furioso porque não tocava, trazendo-lhe as notícias que justificariam seu retorno a Munique, com a missão cumprida. Que a tarefa falhasse era impensável. Fizera contato com a facção parisiense dos Blitzkrieger, os assassinos de elite da Brüderschaft, altamente treinados e habilitados, tão superiores nas suas técnicas mortíferas que contavam com menos de duzentos predadores, de mobilidade instantânea, a operarem na Europa, América do Sul e Estados Unidos. Catbird fora oficialmente informado de que, no período de quatro anos desde que iniciaram suas missões, só três haviam caído, dois deles tendo preferido se matar a serem interrogados e um morto em Paris no cumprimento do dever. Nenhum detalhe jamais fora revelado; no que dizia respeito aos Blitzkrieger, o segredo era absoluto. Até mesmo Catbird tivera de apelar ao segundo líder no comando da Irmandade, o tempestuoso general von Schnabe, para poder empregar esses assassinos de elite.
Então por que o telefone não tocava? Por que a demora? A mortífera vigilância entrara em vigor desde a chegada de Harry Latham às 10:28 da manhã no Aeroporto De Gaulle e sua partida de carro às onze. Já passara agora de uma e meia da tarde! Catbird não aguentava aquela falta de comunicação; foi até o telefone à cabeceira da cama e discou o número dos Blitzkrieger.
- Armazéns Avignon - respondeu a voz feminina em francês. - Para onde deseja fazer sua ligação?
- Divisão de congelados, por favor. Monsieur Giroux.
- Sinto muito mas sua linha está ocupada.
- Esperarei exatamente trinta segundos, e se a linha não estiver livre, cancelarei meu pedido.
- Sei... Isto não será necessário, meu senhor, posso ligar agora.
- Catbird? - perguntou uma voz masculina.
- Pelo menos usei as palavras certas. Que diabo está acontecendo? Por que não ligou?
- Porque não há nada para relatar.
- Isso é ridículo! Já se passaram mais de três horas!
- Estamos tão alarmados quanto você, por isso não grite comigo. Nosso último contato foi há uma hora e doze minutos; tudo estava conforme o programado. Nossos dois homens de elite seguiam Latham num Renault dirigido por uma mulher. Suas últimas palavras foram "Tudo sob controle, a missão será cumprida dentro em breve".
- Foi só isso? Uma hora atrás?
- Sim.
- Mais nada?
- Não. Foi a última transmissão.
- Bem, onde estão eles?
- Gostaríamos de saber.
- Onde estavam indo?
- Saindo de Paris pelo norte, detalhes não mencionados.
- Por que não?
- Com o tráfego na frequência, seria burrice. Além disso, aqueles dois são uma equipe excepcional, nunca falharam.
- Será possível que tenham falhado hoje?
- Extremamente improvável mal chega a ser uma resposta inequívoca. Você tem alguma ideia da importância dessa missão?
- Todas as nossas missões são vitais, do contrário não seriam entregues a nós. Gostaria de lembrar-lhe de que somos a solução de último caso.
- Que poderei dizer a von Schnabe?
- Por favor, Catbird, a esta altura o que poderemos nós dizer-lhe? - disse o líder do setor parisiense dos Blitzkrieger, desligando o telefone.
Passaram-se trinta minutos e o sujeito chamado Catbird não pôde mais se controlar. Discou um número das profundezas das florestas de Vaclabruck, Alemanha.
- Este é o tipo da informação que não gosto de ouvir - disse o general Ulrich von Schnabe, suas palavras provocando uma névoa gelada. - Os alvos deveriam ter sido eliminados o quanto antes. Eu aprovei as ordens do Dr. Kroeger, já que você, você mesmo, disse ao doutor que não haveria dificuldade, pois possuía o itinerário. Baseado nisto, e só nisto, permiti que você entrasse em contato com os Blitzkrieger.
- O que posso dizer, Herr General? Simplesmente não há uma única palavra, nenhuma comunicação. Nada.
- Verifique com nosso homem na embaixada americana. Ele pode ter ouvido alguma coisa.
- Já fiz isso, de telefones públicos, é claro. Sua última escuta simplesmente confirmou que o irmão de Latham está sob proteção dos Antinayous.
- Aquela gentalha que defende os pretos e vive puxando saco de judeus. Naturalmente, na clandestinidade.
- Naturalmente.
- Permaneça em Paris. Permaneça em contato com nossos homens de elite e mantenha-me informado de quaisquer desdobramentos.
- Agora é você que está maluco! - gritou Karin de Vries.
- Eles o viram, conhecem você, não pode sob hipótese alguma ser Harry!
- Claro que posso, se eles não me virem de novo, e não verão - disse Drew. - Funcionarei in absentia, de um lugar a outro, mantendo contato com você e o coronel porque não ouso aparecer na embaixada. Aliás, já que sabemos que a embaixada está infiltrada - que diabo, sabíamos quando o Pequeno Adolf apareceu como meu motorista naquela noite - talvez possamos descobrir quem é, ou quem são.
- Mas como?
- Uma armadilha ferroviária.
- O quê?
- Tal como numa série de vagões cheios de passageiros, quando só um deles abriga cães selvagens.
- Por favor...
- Ligarei para você como Harry três ou quatro vezes pedindo documentos dos arquivos do meu finado irmão Drew, determinando que um dos mensageiros de Witkowski me encontre num determinado lugar e hora - um lugar apinhado de gente. Você dá andamento aos pedidos e eu estarei lá onde deverei estar, mas num ponto em que ninguém possa me ver. Se um mensageiro legítimo aparecer - conheço-os todos - e não for seguido, ótimo. Jogarei fora aquilo que você mandou. Aí mais tarde ligarei de novo, com outro pedido, dizendo que é urgente, que descobri uma pista. Isto é o código para você desligar e não dizer nada, não transmitir nada.
- E se alguém aparecer, você saberá que ele é um neo e que meu telefone foi grampeado internamente - interrompeu Karin.
- Exatamente. Se as chances forem boas, talvez eu possa capturá-lo e entregá-lo aos nossos cientistas.
- E se tiver mais de um?
- Falei no condicional. Não estou pronto para desafiar uma turma de suásticas.
- Empregando sua própria técnica, percebo uma "falha" enorme, como diria você. Por que Harry Latham permaneceria aqui em Paris?
- Porque ele é Harry Latham. Tenaz ao exagero, implacável nas suas perseguições, todas as coisas que Harry costumava ser com o acréscimo intensamente pessoal de seu irmão caçula ter sido assassinado aqui em Paris.
- Certamente um motivo convincente - concordou de Vries. - Mas como você divulgará a notícia? Não é um problema?
- É delicado - disse Drew, balançando a cabeça e franzindo a testa. - Primeiro porque a CIA inteira vai levantar suas mãos e gritar falta. No entanto, será tarde demais se nós já tivermos partido e correndo, e tenho uma intuição de que o coronel talvez apareça com alguma coisa. Vou encontrá-lo mais tarde num café em Montmartre.
- Você vai se encontrar com ele? E eu? Acredito que faço parte integrante desta tática.
- Você foi alvejada, minha senhora, não posso pedir-lhe...
- Não peça, monsieur - interrompeu Karin. - Vou lhe dizer uma coisa. Irei com você. A mulher de Frederik de Vries irá com você. Você perdeu um irmão da maneira mais terrível, Drew, e eu perdi um marido... da mais horrível. Não me exclua.
A porta da sala de cirurgia do ambulatório se abriu, e o médico de confiança da embaixada entrou.
- Tenho notícias relativamente boas para a senhora, madame - disse o médico em francês, com um sorriso constrangido no rosto. - Examinei as chapas de raios X do pós-operatório, e com fisioterapia a senhora deverá recuperar pelo menos oitenta por cento da função de sua mão direita. Entretanto, a ponta do dedo médio ficou perdida. É claro que uma prótese permanente pode ser ajustada.
- Obrigada, doutor, é um preço pequeno e sinto-me grata. Verei vê-lo de novo dentro de cinco dias como me mandou.
- Pardon, monsieur... seu nome é Lat’am?
- É a maneira mais próxima dele que vocês conseguem pronunciar. Sim.
- É para o senhor telefonar para um Monsieur S em Washington assim que for conveniente. Pode usar o telefone daqui. Todas as tarifas serão cobradas, é claro.
- É claro, mas não é conveniente neste momento. Se ele ligar de novo, diga-lhe que eu já tinha saído antes que pudesse me transmitir o recado.
- Isso é direito, monsieur?
- Ele lhe agradecerá por não acrescentar mais um problema aos que já tem e aprovará pessoalmente sua conta.
- Eu compreendo - disse o médico, com um sorriso agora de simpatia.
- Eu não - disse Karin, suas primeiras palavras ao atravessarem a entrada do prédio do ambulatório e se dirigirem ao estacionamento.
- Não o quê?
- Compreendo. Por que não falou com Sorenson? Pensei que quisesse se aconselhar com ele. Você disse que confiava nele.
- Confio. Mas também sei que ele acredita basicamente no sistema, convive com ele há décadas.
- Aí?
- Aí ele teria problemas com o que vou fazer. Ele diria que isto é terreno da CIA, que compete à CIA decidir o que irá acontecer em seguida, e não a mim. É claro que ele teria razão.
- Se ele tem razão, por que está fazendo isso?... Perdão, não se dê ao trabalho de responder, foi uma pergunta burra.
- Obrigado. - Latham consultou o relógio. - São quase seis horas. Como está sua mão?
- Não posso dizer que me sinta muito agradável. A anestesia local está passando e graças a Deus que não pude ver nada com a minha mão embrulhada naqueles panos que pareciam uma tenda.
- Duas horas na faca representam uma cirurgia bastante séria. Tem certeza de que deseja ir comigo ver Witkowski?
- A droga da minha mão pode cair e mesmo assim você não me impedirá.
- Mas por quê? Você é uma dama exausta e ferida. Eu não omitiria nenhuma informação de você, já devia sabê-lo a esta altura.
- Sei. - Pararam diante do carro, enquanto Drew abria a porta; seus olhares se encontraram. - Sei que você não omitirá nada de mim e aprecio esta fato. Mas eu talvez possa somar alguma coisa desde que compreenda o que você está tentando fazer. Por que não explica?
- Está bem, tentarei. - Latham fechou a porta, deu a volta no Renault e sentou-se no assento do motorista. Deu partida no motor, manobrou o carro até a pista de saída, e prosseguiu, ciente de que ela o estava observando. - Quem é Gerhardt Kroeger e qual a ascendência que ele tinha sobre Harry?
- Ascendência? Que ascendência? Ele é obviamente um médico nazista, aparentemente de grande perícia, que seu irmão conheceu em Hausruck. Provavelmente tratou algum trauma sério de Harry. A gente pode gostar até do inimigo, quando ele é de algum auxílio, especialmente no terreno médico.
- O caso deste Kroeger vai além da gratidão normal - disse Drew, observando as placas sinalizadoras, procurando aquela que os levaria a Montmartre em Paris. - Quando perguntei a Harry quem era Kroeger, ele me respondeu com essas palavras; são exatamente estas e acho que jamais as esquecerei. "Lassiter pode lhe dizer. Eu acho que não devo." Isso é apavorante.
- Sim, é, ou foi. Mas também condizia com o comportamento dele. A súbita demonstração de emoção, o choro, os pedidos de socorro. Isto não era típico do Harry que ambos conhecíamos e descrevíamos entre nós, não era do homem frio, analítico, desapaixonado sobre o qual conversávamos.
- Discordo - disse Latham baixinho. - Isole essas palavras, repita-as, e ouvirá o Harry que conhecíamos falando, especulando sobre uma alternativa, ainda não preparado para tomar uma decisão até que tivesse pensado muito bem em tudo. "Lassiter pode lhe contar. Eu acho que não devo." - Drew estremeceu enquanto entrava com o Renault na rodovia principal em direção ao centro de Paris. - Gerhardt Kroeger é mais do que um médico que ele encontrou no vale da Brüderschaft. Chamei-o de filho de puta antes, mas talvez estivesse errado. Talvez tivesse sido ele a pessoa que ajudou meu irmão a escapar. Seja lá quem for, poderá nos contar o que aconteceu com Harry enquanto se encontrava lá, como conseguiu aquela lista de nomes.
- Está dizendo que Kroeger talvez seja um aliado, não um neo, e que Harry na sua confusão psicológica talvez estivesse de fato protegendo-o?
- Não sei exatamente, mas sei que ele é algo mais do que um médico que tratou de um resfriado complicado, ou da artrite sobre a qual Harry começava a reclamar. Gerhardt Kroeger era importante demais para meu irmão, eu pressinto; estou convencido disto. É por isso que ele é a chave, por isso preciso encontrá-lo.
- Mas como?
- Novamente, não sei. Witkowski talvez tenha algumas ideias. Talvez possamos engajar os Antinayous; eles podem fazer circular a informação de que Harry ainda está vivo. Eu simplesmente não sei. Estou voando às cegas, mas nossas antenas juntas captarão coisas, minha senhora... ah, desculpe.
- Concordo. Estou também espantada com suas constantes desculpas a respeito das coisas que diz ou que pensa, como se estivesse corrigindo seu comportamento, como se eu fosse uma "tia" qualquer.
- Acho que é porque você era mais próxima de Harry do que eu nesse terreno. Ele vivia me corrigindo, na maioria das vezes sempre de uma maneira simpática, mas era incessante.
- Ele te amava...
- Sim - interrompeu Drew com a voz demonstrando cansaço. - Vamos mudar de assunto, está bem?
- Tudo bem. Acha que o coronel vai aparecer com o quê?
- Não tenho a menor ideia, mas se for alguma coisa parecida com um dossiê dele, será algo muito bem elaborado.
The International Herald Tribune
Edição de Paris
Ataque Terrorista a Funcionários da Embaixada dos EUA
A embaixada dos Estados Unidos revelou que no dia de ontem, terroristas com os rostos ocultos por meias atacaram um restaurante na região de Villejuif onde dois americanos almoçavam. O Sr. Drew Latham, um adido da embaixada americana, foi morto. Seu irmão, Sr. Harry Latham, um oficial de ligação da embaixada, sobreviveu e se encontra agora escondido por ordens de seu governo. Os assassinos escaparam e nem a identidade nem o motivo deles ficou claro já que desapareceram. Foram descritos como dois homens, de estatura mediana, trajando ternos escuros formais. O sobrevivente, Sr. Latham, afirmou que os dois agressores saíram bastante feridos em virtude da presença de espírito de seu irmão. O Sr. Drew Latham estava armado e disparou sucessivamente sua arma antes de ser morto. As autoridades francesas, sob enorme pressão da embaixada americana, estão investigando o caso. Especula-se principalmente sobre o possível envolvimento de iraquianos ou sírios.
- Pelo amor de Deus, o que está acontecendo aí? - gritou o secretário de Estado, Adam Bollinger, no telefone para o embaixador na França, Daniel Courtland.
- Se soubesse, teria lhe dito. Você deseja me substituir? Se quiser, vá em frente, Adam. Vocês, seus filhos da mãe, me jogaram no fogo e não sei francês bastante bem para pedir socorro. Sou homem de carreira, Sr. Secretário, não sou nenhuma de suas nomeações políticas de merda. Pensando bem, nenhum deles também fala a língua, a maioria mal fala inglês.
- Não é hora de botar o ódio para fora, Daniel.
- É hora sim de se ter uma cadeia de comando, Bollinger! Drew Latham, um dos poucos agentes a ter uma cabeça aberta sobre os ombros, é morto após quatro atentados anteriores à sua vida, e eu não tenho nenhuma resposta!
- Seu irmão está vivo - disse o secretário de Estado meio constrangido.
- Ah, isso é uma beleza! Onde é que ele está?
- Estou em comunicação permanente com a agência. Logo, assim que souber, você saberá.
- Você é admirável - disse Courtland desdenhosamente, com uma espécie de assobio. - Acha realmente que o pessoal ultrassecreto da CIA lhe dirá alguma coisa? Você está atrás de uma mesa, mas eles precisam sobreviver. Porra, eu aprendi isto quando me nomearam para a Finlândia e a KGB estava ali do lado. Nós somos zero em situações iguais a essa, Adam. Eles nos dizem aquilo que querem que saibamos.
- Não é bem assim. Nós somos a autoridade primeira, a sua cadeia de comando, se você quiser.
- Diga isto a Drew Latham, que foi para o beleléu porque não pudemos apoiá-lo. Até nossa embaixada está infiltrada.
- Simplesmente não consigo entender vocês.
- É melhor começar, Sr. Secretário. Os nazistas estão de volta.
O diretor Wesley Sorenson das Operações Consulares estava sentado à sua mesa, com a cabeça inclinada para a frente, apoiada nos dedos. Sua dor era tanta que as lágrimas rolavam lentamente de seus olhos, a perda tão trágica, tão desnecessária que ele passou a questionar a essência de sua própria vida. Drew Latham morto - do mesmo modo que ele poderia ter sido tantas vezes - e para quê? Que mudanças poderia a vida de um único agente provocar quando os chefões das negociações internacionais se reuniam nos seus hotéis de luxo e seus banquetes, seus congressos decorados de bandeiras nos salões de convenções, nada mais significando do que hipocrisia cercada de cerimonial?
Sorenson sentiu que era o fim da linha para ele. Não podia contribuir com mais nada; já fora testemunha de mortes em demasia à sombra daqueles cerimoniais. Se havia uma centelha de luz, ela não veio.
E então veio!
- Wes, espero que estejamos no codificador - disse a voz familiar no telefone.
- Drew? Meu Deus, é você? - Sorenson inclinou-se abruptamente na mesa, uma palidez tomando conta de seu rosto. - Você está vivo?
- Também espero que você esteja sozinho. Perguntei à sua secretária e ela respondeu que sim.
- Sim, claro... Deixe-me recuperar o fôlego; isso é incrível. Não sei o que dizer, o que pensar. É você?
- Da última vez que tomei meu pulso, era.
Silêncio. A tranquilidade antes da tormenta.
- Então acho que você tem muito que explicar, meu rapaz! Porra, eu escrevi um bilhete de pêsames a seus pais.
- Mamãe é uma mulher forte, aguenta; e papai, se estiver por aí, tentará descobrir provavelmente qual de nós recebeu as balas.
- Você está muito senhor de si, muito desagradável.
- É melhor do que se fosse o inverso, Sr. Diretor - interrompeu Latham. - Não temos tempo para isso agora.
- É melhor que sobre tempo para uma explicação. Então foi Harry que foi morto?
- Sim. Eu estou tomando o seu lugar.
- Você está fazendo o quê?
- Acabei de lhe dizer.
- Pelo amor de Deus, por quê? Nunca dei meu beneplácito a nada semelhante, nem daria agora.
- Eu sei. Foi por isso que contornei as coisas e eu mesmo fiz. Se fizer algum progresso, o crédito pode ser seu. E se não, bem, aí não importa mais, não é?
- Para o inferno com o crédito. Quero saber o que você acha que está fazendo. Isto é uma quebra intolerável das normas de conduta operacionais, e você sabe muito bem!
- Não inteiramente, diretor. Todos nós temos a liberdade de tomar decisões em cima da hora, na cena de ação, e foi o senhor quem nos deu.
- Só nas ocasiões em que os canais competentes de autoridade fiquem fora de alcance nas horas de crises. Eu estou aqui e você pode me alcançar, na minha sala, ou em casa, num campo de golfe, e na porra de um bordel... se visse alguma utilidade em frequentá-lo! E por que não fez isso?
- Acabei de lhe dizer. O senhor não aceitaria, e estaria errado porque não está aqui, e não há nenhuma maneira de fazê-lo entender, já que eu mesmo não compreendo direito, embora saiba que estou certo. E se me permite, conhecendo parte do seu currículo profissional, acredito que também o senhor já tomou decisões unilaterais assim no passado.
- Pare com essa merda, Latham - disse um Sorenson cansado, frustrado. - O que você arranjou e como está lidando com isso? Por que está representando o papel de Harry?
Dolorosa e relutantemente, Drew descreveu os últimos minutos da vida de seu irmão, as explosões estranhas de emoção, as lágrimas, a aparente confusão na hora de diferenciar sua identidade falsa da verdadeira, e finalmente sua recusa de dar mais informações sobre um nome, um médico, que citara várias vezes com Karin de Vries e em seguida com o próprio Drew.
- Ele mencionou-o - explicou Latham - como se o homem fosse algum tipo de figura reservada que devesse ser protegida ou desmascarada.
- Um pecador e um santo? - perguntou Sorenson.
- Sim, acho que se poderia dizer isto.
- É a síndrome de Estocolmo, Drew. O preso se identifica com o carcereiro. Seus sentimentos são uma mistura de ressentimento, e no entanto ele ainda está tentando agradar, até que, finalmente, se imagina como detendo episodicamente o poder. Muito simples, Harry teve um esgotamento; viveu por demasiado tempo sobre o fio da navalha.
- Compreendo isso tudo, Wes, inclusive a superconhecida teoria de Estocolmo, que é um pouco abrangente demais para mim, pelo menos no caso de Harry. Seu famoso e frio racionalismo ainda se fazia sentir. Este Dr. Gerhardt Kroeger, é o seu nome, era de alguma maneira importante para meu irmão, não importa se santo ou pecador. Ele sabe o que aconteceu com Harry, talvez até como ele conseguiu aquela lista de nomes. É possível que este Kroeger esteja do nosso lado e tenha passado os nomes para ele.
- Bem, suponho que tudo seja possível, e neste exato momento aqueles nomes são uma catástrofe nacional à espera de acontecer. Neste instante, o FBI está organizando uma porção de operações secretas para investigar de perto todo mundo daquela lista.
- As coisas já foram assim tão longe?
- Nas palavras do nosso ubíquo secretário de Estado, a quem o presidente dá ambos os ouvidos, se esta administração "conseguir extirpar a influência nazista neste país, a nação lhe ficará eternamente grata". É tipo, "fodam-se os torpedos, avançar a pleno vapor".
- Meu Deus, que temeridade.
- Concordo, mas também compreendo por que está acontecendo. Harry Latham era considerado o melhor e mais experiente agente secreto da CIA. Não é fácil fazer pouco do material que conseguiu.
- Era não - corrigiu Drew. - É, Wes. Harry está vivo; ele tem de permanecer vivo até eu encontrar esse Gerhardt Kroeger.
- Se está vivo, terá de fazer contato com a CIA, seu burro!
- Ele não pode porque sabe, conforme eu lhe disse, que Langley está infiltrado, até o nível de seus computadores AA-Zero, e isto é praticamente o mais próximo que se possa chegar do diretor Talbot.
- Transmiti esta informação a Knox. Ele não quer acreditar.
- É melhor acreditar. Foi bem no alvo.
- Está trabalhando no caso, convenci-o - disse Sorenson. - Mas seu ato solo não vai colar, rapaz. Se fizer isto, irá se transformar num agente marginal, em quem ninguém confiará.
- Meu ato solo fica comprometido porque tenho que prestar contas a Langley.
- Eu não. Não irei comprometer as Operações Consulares passando por cima da CIA. Já existe muita invasão traiçoeira de território alheio nesta cidade na atual conjuntura, e admiro e respeito Knox Talbot. Não serei conivente nesta questão.
- Eu sabia que você não seria, por isso arranjei outra pessoa. Lembra de Witkowski, coronel Stanley Witkowski?
- Certamente. G-2 Berlim. Encontrei-o várias vezes, um sujeito inteligente - é isso, está trabalhando na embaixada agora.
- Chefe de segurança. Tem todos as credenciais que satisfaçam o diretor da agência. Harry trabalhou com Witkowski em Berlim, e ele é o conduto natural, porque meu irmão confiava nele. Que diabo, tinha de confiar, o coronel deu-lhe suficientes informações do G-2 para prolongarem seu posto e provavelmente sua vida. Stanley irá descobrir uma maneira de fazer contato com Talbot através de um canal confidencial e pedir que ele faça um detalhado rastreamento deste Kroeger.
- Isso faz sentido, Witkowski faz sentido. O que quer que eu faça?
- Absolutamente nada, não podemos arriscar nenhuma investigação dupla que possa ser detectada pelos ratos infiltrados. Entretanto, apreciaria se você ficasse aí a postos, para quando e se eu achar que estou perdendo o pé e precisando de alguns conselhos.
- Não tenho certeza se sou capaz disso. Já se passou muito tempo.
- Aceito até mesmo as suas mais remotas recordações de sua experiência prática, Senhor Diretor... E aqui vamos nós. Harry Latham está vivo, passando bem e vai à procura do médico... santo ou pecador, ou ambos. Manteremos contato.
A linha emudeceu e Wesley Sorenson ficou segurando o telefone na mão, como se estivesse aturdido. As atividades de Latham o caçula eram perigosamente não ortodoxas e deveriam ser abortadas. O diretor das Operações Consulares sabia isto, sabia que deveria ligar para Knox Talbot e dar todo o serviço, dizendo tudo que poderia dizer para explicar e proteger seu agente, mas não estava na sua índole fazê-lo. Drew tinha razão; quantas vezes o agente Sorenson não agira por conta própria, porque sabia que suas decisões seriam derrubadas, embora tivesse certeza de que aquela linha de ação era a única que poderia tomar. Ele não só sabia, como acreditava apaixonadamente nisto. Estava ouvindo a versão mais jovem dele mesmo falar, enquanto escutava as palavras de Drew Latham. Lentamente, repôs o fone no gancho, seus lábios a formarem silenciosamente a toada de uma oração.
Jean-Pierre e Giselle Villier saltaram de uma limusine no hotel L’Hermitage em Monte Carlo; vinham de Paris, em um jato particular. O motivo da viagem, segundo a imprensa, eram as férias que o célebre ator merecia depois de seis árduos meses representando Coriolano, culminando numa ocorrência emocionalmente estressante que levou-o a encerrar a temporada da peça. Esta informação, contudo, foi tudo que a mídia recebeu, tudo que receberia, já que não haveria mais declarações e certamente entrevistas. E depois de alguns dias de agradável distração no Cassino de Paris, sabia-se que o casal voaria para uma ilha não identificada no Mediterrâneo, talvez para juntar-se aos pais.
O que a imprensa não sabia é que dois caças Mirage escoltaram o jato particular desde Paris até o seu destino. Além disso, dois dos porteiros uniformizados, o assistente do gerente no balcão da frente, e um número variado de empregados do hotel, eram todos gente do Deuxième, todos eles pertencentes à Bain de Mer, a seleta organização que controlava os negócios de Monte Carlo funcionando como ligação diplomática com o principado de Mônaco. E mais, toda vez que Monsieur e Madame Villier deixavam o hotel no lento trajeto de três quarteirões até o cassino, a limusine blindada era seguida por um cortejo lateral de homens armados, trajando ternos caros e bem-cortados, até o veículo de luxo chegar à escadaria do majestoso estabelecimento de jogo, onde eram rendidos por outros tantos.
Por ocasião de sua chegada, o casal recebeu na sua suíte a visita do chefe do Deuxième Bureau, Claude Moreau.
- Como veem, meus amigos, está tudo protegido, inclusive os telhados, onde temos atiradores de elite: e lá embaixo, de dentro de carros, todas as janelas estão sob o escrutínio de lunetas móveis. Os senhores nada têm a temer.
- Não somos seus "amigos", monsieur - disse Giselle Villier friamente. - E quanto a essas precauções, um único tiro põe abaixo esta fachada.
- Somente se dermos a oportunidade para um tiro, madame, e não faremos isso.
- E no próprio cassino, como poderão controlar aquela multidão que poderá me reconhecer? - perguntou o ator.
- Na realidade ela própria faz parte da proteção, mas só uma proteção periférica. Conhecemos os jogos que vocês apreciam, e em cada uma dessas mesas teremos homens e mulheres que lhes seguirão, os cercarão e bloquearão seus corpos com os corpos deles. Nenhum assassino, e certamente nenhum Blitzkrieger, tentará atirar se seu tiro não for livre. Esse tipo de pistoleiro não arriscará outra coisa.
- Vamos supor que o assassino seja alguém na mesa - interrompeu Giselle. - Como poderá proteger meu marido?
- Mais uma pergunta astuta, que eu certamente esperaria da senhora, Madame - respondeu Moreau. - E espero que minha resposta a satisfaça. Em cada mesa os senhores irão observar um homem e uma mulher circulando, parando atrás de cada jogador - circunstantes curiosos, tentando decidir se vão entrar no desafio do jogo. Na realidade, estarão carregando nas palmas das mãos detectores metálicos que acusarão o aço sólido até das armas de menores calibres.
- O senhor é detalhista - concedeu Giselle.
- Nós somos, eu lhe prometi isso - concordou Moreau. - Por favor, para mim basta um Blitzkrieger que tente fazer um atentado. Meu objetivo é pegá-lo vivo. Se isto não acontecer aqui, com toda a publicidade que divulgamos, estará livre para voar de encontro aos seus sogros.
- Naquela ilha mítica?
- Não, senhor, é bastante real. Eles estão fruindo umas agradáveis férias numa propriedade na Córsega.
- De certa maneira, portanto - disse Jean-Pierre -, estou torcendo para que aconteça aqui. Eu nunca apreciei como é bom ser livre.
Aconteceu, mas não da maneira que Claude Moreau previa.
11
A música que vinha do salão flutuava em acordes cada vez mais baixos na medida em que as pessoas se afastavam da entrada de mármore do Cassino de Paris e penetravam no interior daquela majestosa casa de jogo. Não era difícil imaginar as primeiras e gloriosas décadas do século, quando carruagens maravilhosamente aparelhadas, e depois enormes automóveis, encostavam na escadaria reluzente e deles desembarcavam a realeza e a riqueza da Europa nos seus trajes mais requintados. A época mudara, a clientela não chegava a ser tão requintada agora, porém permanecia no âmago a opulência, definida pela elegância restaurada de épocas passadas.
Jean-Pierre e Giselle caminhavam por entre a multidão de mesas em direção à exclusiva sala de bacará, cujo ingresso exigia um depósito inicial de cinquenta mil francos, quantia imediatamente dispensada para o célebre ator e sua mulher. Ao avançarem, cabeças se viravam, gritos abafados de surpresa eram ouvidos, e não poucas exclamações de "C’est lui!" se sobrepuseram ao zunzunzum generalizado à medida que vários hóspedes reconheciam Villier. O ator sorria e balançava continuamente a cabeça em sinal de satisfação, porém com uma modéstia distante que traduzia o desejo de preservar sua privacidade. Enquanto ele fazia isto, o círculo de casais bem-vestidos flanqueava Jean-Pierre e sua mulher, permitindo apenas uma visão fugaz do casal. A teoria de Moreau de que nenhum assassino ousaria disparar contra um alvo tão esquivo se confirmava.
Uma vez dentro da grande sala restrita, repleta de balaústres de prata ligados por grossas cordas de veludo vermelho em volta das mesas, pediu-se champanhe. Gargalhadas de alegria contagiaram os presentes quando Jean-Pierre e Giselle se sentaram, duas pilhas de fichas caras diante de cada um, um controle, passando imperceptivelmente um recibo para o ator assinar. O jogo teve prosseguimento, muito melhor para Giselle do que para Pierre, que fazia troça da tragédia a cada virada da sorte. Seu séquito de "amigos" circulava sutil, lenta e silenciosamente em volta da mesa, cada um deles com uma das mãos escondida na sombra. Novamente as palavras de Moreau; detectores seguros na palma da mão trabalhavam no sentido de detectar armas de metal. Obviamente não encontraram nenhuma e o jogo continuou até que o ator exclamasse de muito bom humor. C’est finis pour moi! Un autre table, s’il vous plaît!
Mudaram-se para outra mesa, as taças de champanhe foram novamente cheias para todos, inclusive para os companheiros de jogo dos Villier na mesa anterior, tudo por conta do ator. Acomodaram-se para mais uma série de rodadas e apostas, a sorte agora se inclinando mais para Jean-Pierre. À medida que as risadas ficavam mais altas, alimentadas pelo Cristal Brut gelado, vários membros de sua comitiva se sentavam nos lugares vagos na mesa. O ator tirou um double neuf e, em consonância com suas reações teatrais e nervosas, deu uma gargalhada de satisfação.
De repente, na mesa que haviam deixado, houve um grito prolongado, um berro histérico de dor. Todas as cabeças se viraram; a sala inteira reagiu consternada, enquanto os homens de Jean-Pierre se levantaram todos num único impulso, com a atenção dirigida para o homem que caía de sua cadeira, arrebentando o cordão de veludo ao desabar no chão.
Em seguida ouviu-se um outro ruído, mais do que um grito, muito mais alto do que um berro. Era um sinal de alarme, gritado por uma voz feminina, enquanto uma mulher elegantemente vestida se jogava por cima da mesa contra outra mulher sentada ao lado do ator, uma assassina com um furador de gelo, prestes a mergulhá-lo no lado da sombra, entre as costelas esquerdas de Jean-Pierre, a apenas centímetros de distância. A ponta tirou sangue, um golpe completo teria penetrado no coração de Villier, porém a agente de Moreau agarrou o pulso da assassina, torcendo-o no sentido anti-horário. Imobilizando-a pela garganta, ela derrubou a pretensa assassina no chão.
- O senhor está bem? - gritou a agente do Deuxième, levantando o olhar para o ator, enquanto prendia com seu corpo a agressora imóvel.
- Uma pequena perfuração, mademoiselle... como poderei agradecer-lhe?
- Jean-Pierre...
- Calma, querida, estou bem - respondeu o ator segurando seu lado esquerdo e se sentando. - Mas devemos tanto a essa mulher corajosa. Ela salvou minha vida!
- Machucou-se, jovem? - gritou Giselle, inclinando-se por cima das pernas do ator e agarrando o braço da agente de Moreau.
- Estou ótima, Madame Villier, sentindo-me muito melhor depois que a senhora me chamou de jovem. Já deixei esta época há bastante tempo - sorriu ela, sem fôlego.
- Já a ultrapassamos todos, minha cara... Preciso levar meu marido a um médico.
- Meus parceiros estão cuidando disto, madame, creia-me.
Claude Moreau entrou, como se tivesse surgido do nada, na sala de bacará, com uma expressão simultânea de preocupação e de muda satisfação.
- Nós conseguimos, monsieur e madame... vocês conseguiram! Temos agora nosso Blitzkrieger.
- Meu marido foi ferido, seu idiota! - gritou Giselle Villier.
- Razão pela qual peço desculpas, madame, mas não foi nada sério, e sua contribuição foi enorme.
- Prometeu que ele estaria seguro!
- No meu negócio, as garantias nem sempre são absolutas. Entretanto, se assim posso dizê-lo, ele fez progredir enormemente a busca de seu verdadeiro pai e fez um gesto pelo qual a República será sempre eternamente agradecida.
- Isso é uma bobagem gratuita!
- Não, não é não, madame. Aceite-o ou não a senhora, os impiedosos nazistas estão saindo da lama, saindo da imundície criada por eles. Cada pedra que possamos revirar nos leva a todos mais próximos de poder esmagar as cobras escondidas. Mas sua parte neste caso está encerrada. Divirta-se nas suas férias na Córsega. Depois de ver o médico, nosso avião está esperando pelo senhor em Nice, tudo pago pelo Quai d’Orsay.
- Dispenso o seu dinheiro, monsieur - disse Jean-Pierre. - Mas eu gostaria de reabrir Coriolano.
- Deus do céu, por quê? O senhor já provou seu triunfo. Certamente não precisa do emprego, então para que voltar para tão cruel rotina?
- Porque, tal como você Moreau, eu sou bastante bom naquilo que faço.
- Vamos discutir o assunto, monsieur. O êxito de uma noite não significa que a batalha terminou.
De cabelos grisalhos, com sessenta e três anos, o senador Lawrence Roote do Colorado desligou o telefone no seu escritório de Washington, um homem perturbado. Perturbado, alarmado, revoltado. Por que estava sendo ele objeto de investigação pelo FBI, sobre a qual nada sabia? A quem interessava e quem a solicitara? Novamente, por quê? Seus bens, que eram, não havia como negar, consideráveis, se encontravam em um fundo de investimentos administrado por outros, de acordo com seu próprio desejo, de modo a evitar até mesmo a menor insinuação de comprometimento legislativo; seu segundo casamento era sólido, sua primeira mulher havia morrido tragicamente num desastre de avião; seus dois filhos, um banqueiro, o outro reitor de universidade, eram personalidades respeitadas na comunidade, tanto que às vezes Roote os achava intragáveis; ele servira na guerra da Coreia, sem nenhum incidente, mas tendo merecido uma estrela de prata; e seus hábitos alcoólicos consistiam em dois martínis antes do jantar. O que havia para investigar?
Seus pontos de vista conservadores eram bem conhecidos, e frequentemente combatidos pela imprensa liberal, que repetidamente isolava suas palavras do contexto, fazendo-o parecer um odioso propagandista da extrema direita, o que ele definitivamente não era. Entre seus colegas de ambas as bancadas, era de conhecimento geral que ele era justo e ouvia a oposição sem rancor. Ele simplesmente acreditava que quando o governo fazia demais para as pessoas, elas faziam de menos para si próprias.
Além do mais, sua fortuna não provinha de nenhuma herança; sua família fora pobre demais. Roote escalara aquela esquiva escada do sucesso, quase sempre escorregando nos degraus, trabalhando em três empregos, enquanto cursava a obscura Faculdade de Economia Wharton, onde vários membros do corpo docente recomendaram-no aos recrutadores das empresas. Ele optou por uma firma recente, lucrativa: havia tempo e espaço para que ele se desenvolvesse nas fileiras executivas. No entanto, a pequena empresa foi adquirida por uma empresa maior, por sua vez absorvida por um conglomerado, cuja diretoria reconheceu os méritos e a audácia de Roote. Quando tinha trinta e cinco anos, o letreiro na porta de seu anexo de escritórios dizia, Diretor-executivo. Aos quarenta, dizia Presidente e Diretor-executivo. Antes dos cinquenta, suas fusões com outras empresas, aquisições e títulos na Bolsa haviam feito dele um multimilionário. A esta altura, cansado da busca incessante do lucro e preocupado com os rumos de seu país, ele se dedicara à política.
Ao permanecer sentado na sua mesa, remoendo seu passado, procurou ser friamente objetivo, tentando descobrir onde seus atos poderiam ter ferido a ética ou o código moral. Nos primeiros dias, trabalhando demais e vulnerável, tivera vários romances, mas foram discretos e só com mulheres iguais a ele, que também apreciavam a discrição. Era um negociador duro nos negócios, sempre utilizando as vantagens obtidas pela pesquisa, e até inventando supostos propósitos de seus adversários, mas sua integridade jamais fora questionada... Que diabo o FBI estava fazendo?
Começara minutos antes, quando sua secretária ligara.
- Sim?
- Tem um certo Sr. Roger Brooks de Telluride, Colorado, na linha - disse sua secretária.
- Quem?
- Um Sr. Brooks. Ele disse que foi seu colega de ginásio em Cedaredge.
- Meu Deus, Brooksie! Há anos que não me lembrava dele. Ouvi dizer que tem um centro de esqui em algum lugar.
- Eles esquiam em Telluride, Senador.
- Era isso. Obrigado, sabichona.
- Posso completar a ligação?
- Certo... Alô, Roger, como vai você?
- Ótimo, Larry, faz muito tempo.
- Pelo menos trinta anos...
- Bem, não exatamente - negou Brooks delicadamente. - Eu fui o chefe de sua campanha aqui há oito anos. Na última eleição, você realmente não precisava.
- Meu Deus, desculpe! É claro que me lembro agora. Perdão.
- Não é preciso, Larry, você é um cara ocupado.
- E você?
- Construí quatro pistas a mais desde então, de modo que poderia dizer que sobrevivo bastante bem. E os veranistas mochileiros estão crescendo com mais velocidade do que somos capazes de abrir novas trilhas. É claro que o pessoal do leste quer saber por que não oferecemos serviço de quarto no meio da floresta.
- Que bom, Rog! Eu serei seu hóspede da próxima vez que tiver de discutir alguma coisa com um de meus célebres colegas de Nova York. Eles querem serviço de quarto para todo mundo às custas da previdência.
- Larry - disse Roger Brooks, com o tom de voz mudado, sério. - O motivo por que estou ligando para você é, provavelmente, porque fomos colegas de escola e eu organizei sua campanha aqui.
- Não compreendo.
- Nem eu, mas sabia que precisava ligar para você, apesar de ter jurado não fazê-lo. Para ser franco, não gostei do filho da mãe; falava baixinho como se fosse meu melhor amigo e estivesse me contando os segredos do túmulo do faraó Tut, enquanto enfatizava o tempo todo que era para o seu próprio bem.
- Quem?
- Esse cara do FBI. Obriguei-o a me mostrar sua identidade e era autêntica. Cheguei quase a expulsá-lo daqui, mas depois achei que era melhor saber do que se tratava, nem que fosse apenas para poder te informar.
- E o que era, Roger?
- Uma maluquice, isso é que era. Sabe como parte da imprensa te rotula, como faziam com o velho Barry Goldwater no Arizona? O pirado nuclear que nos fará explodir a todos, os opressores e os oprimidos, sabe essa loucura?
- Sim, eu sei. Ele passou por isto com honra e eu também passarei. O que queria o cara do FBI?
- Queria saber se eu já tinha ouvido demonstrações de simpatia de sua parte por... por "causas fascistas". Se alguma vez você dera indícios de achar que havia uma justificativa para os feitos da Alemanha nazista que levaram à guerra... Olha, Larry, a essa altura eu já estava fervendo, mas mantive a calma e disse que ele estava na pista totalmente errada. Frisei o fato de que você fora condecorado na Coreia, e sabe o que o filho da puta disse?
- Não, Roger. O que foi que ele disse?
- Disse, e disse com uma espécie de sorriso de gozação: "Mas isso foi contra os comunistas, não foi?" Merda, Harry, ele estava procurando armar alguma coisa quando não havia nada para armar.
- Os comunistas sendo anátema na Alemanha nazista, foi isso que você deduziu?
- Porra, foi, mas aquele garoto não tinha idade suficiente para saber onde ficava a Coreia, e ele era educado... Cristo, muito bem-vestido e falava como um anjo. Todo inocência com aquela conversa mole.
- Devem estar usando seus melhores agentes - disse Roote baixinho, olhando fixamente para a sua mesa. - Como acabou a conversa?
- Deixou claro que sua informação confidencial estava obviamente errada e que a investigação seria interrompida ali mesmo.
- O que significa que apenas começou. - Lawrence Roote pegou um lápis e quebrou-o ao meio com sua mão esquerda. - Obrigado, Brooksie, não sei como te agradecer.
- O que está acontecendo, Larry?
- Não sei, realmente não sei. Quando descobrir, ligarei para você.
Franklyn Wagner, âncora do noticiário da MBC, o programa noturno de maior audiência no país, estava sentado no seu camarim, reescrevendo grande parte do texto que teria de recitar diante das câmeras dali a quarenta e cinco minutos. Ouviu-se uma batida na sua porta e ele disse displicentemente:
- Entre.
- Alô, Sr. Sinceridade - disse Emmanuel Chernov, chefe de produção dos noticiários da rede, entrando e fechando a porta; foi até uma cadeira e sentou-se. - Está tendo problema com o texto de novo? Detesto me repetir, mas provavelmente já não dá tempo de mudar os TelePrompTers.
- E repetindo o que eu digo, não será preciso. Nada disto seria preciso se você contratasse redatores que conseguissem escrever a palavra jornalismo, ou que soubessem pelo menos seus princípios básicos.
- Vocês da imprensa, ou deveria dizer, os refugiados da imprensa, que agora podem bancar casas com piscina nos Hamptons, vivem reclamando.
- Só fui aos Hamptons um vez, Manny - disse o bem-apessoado e grisalho Wagner, enquanto continuava a editar suas folhas de texto - e lhe direi por que não quero voltar. Você quer ouvir?
- Sim.
- As praias viviam repletas de gente de ambos os sexos, magras ou gordas demais, que ficavam andando para cima e para baixo na areia carregando provas tipográficas para provarem que são escritores. Depois à noite se reúnem em cafés à luz de velas para elogiarem seus rabiscos e exaltarem seus egos à custa de editores que não tomam banhos.
- Isso é bastante pesado, Frank.
- É bastante preciso, porra. Eu me criei numa fazenda em Vancouver onde, se os ventos do Pacífico trouxessem areia, isto significava que as plantações não iriam crescer.
- Deu um salto meio grande, não é?
- Talvez, mas não aguento escritores, de televisão ou de qualquer outra coisa, que deixam empilhar areia entre as palavras... Pronto, acabei. Se não houver notícias extraordinárias, teremos um programa relativamente alfabetizado.
- Ninguém pode te acusar de modéstia, Sr. Sinceridade.
- Eu não finjo que sou. E por falar em modéstia, a qual parece que só você está autorizado a ter, qual o motivo de sua presença aqui, Manny? Pensei que você delegasse todas as críticas e objeções televisivas ao nosso produtor executivo.
- Trata-se de outra coisa, Frank - disse Chernov, com seus olhos de pálpebras pesadas, tristes. - Recebi uma visita hoje, esta tarde, um cara do FBI, que, Deus sabe como, eu não poderia ignorar. Estou certo?
- Até agora, sim. O que ele queria?
- Sua cabeça, acho eu.
- Como?
- Você é canadense, certo?
- Sou sim, e me orgulho disto.
- Quando cursou a universidade, a... a...
- Universidade da Colúmbia Britânica.
- Sim, essa aí. Você protestou contra a guerra do Vietnã?
- Foi uma demonstração das Nações Unidas, e sim, opus-me a ela veementemente.
- Recusou-se a servir?
- Não éramos obrigados a servir, Manny.
- Mas você não foi.
- Não me pediram que fosse, e nem que pedissem eu iria.
- Você foi membro do Movimento Universal Pela Paz, não é correto?
- Sim. Fui. A maioria de nós foi, não todos, é claro.
- Sabia que a Alemanha era um dos patrocinadores?
- Os jovens da Alemanha, organizações estudantis, mas certamente não o governo. É vedado à Bonn participar de conflitos armados ou até mesmo de discussões parlamentares sobre essas questões. A rendição deles os obriga à neutralidade. Meu Deus, apesar do seu diploma, não sabe nada?
- Sei que uma porção de alemães faziam parte do Movimento Universal Pela Paz, e que você era um membro de razoável destaque. "Paz Universal" poderia significar outra coisa, como "Paz Através do Poder Universal e da Força Moral" de Hitler.
- Será que você está representando o papel do judeu paranoico, Manny? Se é este o caso, gostaria de lembrar a você que minha sogra era judia, o que aparentemente tem mais força do que se meu sogro fosse. Portanto, por extensão, meus filhos mal podem ser chamados de arianos. Além deste fato irrefutável, que me desqualifica como membro da Wehrmacht, o governo alemão não tinha nada a ver com o nosso movimento.
- Mesmo assim a influência alemã era bastante evidente.
- Culpa, Manny, profunda culpa era o motivo deles. Que diabo você está tentando dizer?
- Este cara do FBI queria saber se você tinha quaisquer ligações com os novos movimentos políticos na Alemanha. Afinal de contas, Wagner é um nome alemão.
- Eu não acredito nisto.
Clarence "Clarr" Ogilvie, diretor aposentado da Global Electronics, saiu da Rodovia Merritt com seu Duesenberg restaurado e tomou a entrada em Greenwich, Connecticut, mais próxima de sua casa, ou mansão, como a imprensa sarcasticamente a denominava. Nos anos dourados de sua família, antes da Depressão de 1929, uma propriedade com um hectare e pouco de área, uma piscina de tamanho normal e sem quadras de tênis ou estábulo, mal poderia ser considerada uma mansão. No entanto, como ele "descendia de berço de ouro", era de certo modo sujeito ao desprezo público, como se tivesse escolhido nascer rico e suas realizações merecessem ser rotuladas como insignificantes, apenas produto de relações públicas caras, que ele evidentemente podia pagar.
Esquecidos, ou, para sermos menos caridosos, propositalmente desprezados, ficaram os anos que ele passara, doze a quinze horas por dia, transformando uma empresa familiar pouco lucrativa em uma das mais bem-sucedidas empresas eletrônicas do país. Ele se formara no MIT no final dos anos quarenta, era um defensor das novas tecnologias e, quando entrou no negócio da família, reconheceu imediatamente que a empresa estava uma década atrasada. Dispensou praticamente a hierarquia executiva inteira, dando a todos pensões que esperava poder pagar, substituindo-os por sangue novo de mentalidade igual à sua, que pensava em termos de computadores, e não eram só homens, porque ele empregava talento independente do sexo.
Lá pela metade dos anos cinquenta, os avanços tecnológicos apresentados por suas equipes de inovadores de cabelos longos, calças jeans e fumadores de maconha, chamaram a atenção do Pentágono - com alarme e impacto. A paciência da turma de "uniformes" engomados fora duramente posta à prova pela desprezada turma dos "barbados" desleixados e das "minissaias", que punham displicentemente os pés em cima de mesas envernizadas ou bufavam entediados durante as conferências, enquanto explicavam pacientemente a nova tecnologia. Porém seus produtos eram irresistíveis e o poderio armado da nação foi consideravelmente incrementado; o negócio da família virou um empreendimento global.
Tudo isso parecia ontem, pensou Clarr Ogilvie, enquanto percorria o trançado de estradas vicinais em direção a sua casa. Aquele fora um dia que ele jamais pensou que enfrentaria, nem nos seus mais extravagantes pesadelos. Sabia que nunca fora o participante mais popular do assim chamado complexo industrial militar, mas isto estava além dos limites.
Para resumir, ele fora rotulado como um inimigo potencial de seu país, um fanático encoberto que apoiava os objetivos de um crescente movimento Nazifascista na Alemanha!
Ele fora até Nova York para ver seu advogado e bom amigo, John Saxe, que disse ao telefone tratar-se de uma emergência.
- Você forneceu a uma firma alemã chamada Oberfeld equipamento eletrônico que envolvia transmissões por satélite?
- Sim, fornecemos. Com permissão do Comitê Federal de Comércio, o pessoal da exportação, e do Departamento de Estado. Não foi necessário um contrato garantindo que a firma seria a usuária final.
- Você sabia quem era a Oberfeld, Clarr?
- Só que pagavam suas faturas pontualmente. Eu acabei de dizer-lhe, eles foram autorizados.
- Nunca examinou, digamos, a sua base industrial, seus objetivos em termos de negócios?
- Compreendemos o desejo deles de se expandirem eletronicamente, suas especificações. Qualquer outra coisa era tarefa para os controladores de exportação de Washington.
- Isto é nossa desculpa, naturalmente.
- De que está falando, John?
- São nazistas, Clarr, a nova geração de nazistas.
- Que diabo, como saberíamos nós se Washington não sabia?
- Isso é a nossa defesa, é claro.
- Defesa contra quê?
- Alguns podem alegar que você sabia aquilo que Washington não sabia. Que você sabendo, de plena consciência, forneceu a última palavra em equipamento eletrônico a uma cambada de revolucionários nazistas.
- Isso é loucura!
- Talvez seja o processo que teremos de enfrentar.
- Por amor de Deus, por quê?
- Porque você está numa lista, Clarr, é isto que me disseram. E também que você não é universalmente admirado. Francamente, eu me livraria daquele seu Duesenberg.
- O quê? É um clássico.
- É um carro alemão.
- Porra nenhuma! O Duesenberg é americano, construído quase todo na Virgínia.
- Bem, o nome, compreende.
- Não, não compreendo merda nenhuma!
Clarence "Clarr" Ogilvie parou na entrada da casa, imaginando o que diria à sua mulher.
O sujeito meio idoso com a cabeça raspada e os óculos de grossos aros de tartaruga que ampliavam seus olhos permanecia a dez metros da fila de passageiros que confirmavam suas partidas pelo voo 7000 da Lufthansa para Stuttgart, na Alemanha. Enquanto cada um deles mostrava seu passaporte e a passagem, o único intervalo neste processo era provocado pela verificação dos passaportes em relação a uma tela oculta de computador do lado esquerdo do balcão. O homem calvo já tinha sido liberado, e estava com seu cartão de embarque no bolso. Observava ansiosamente enquanto uma mulher de cabelo grisalho se aproximava de um funcionário e mostrava seus documentos. Momentos depois ele dava um suspiro audível de alívio; sua mulher afastou-se do balcão. Encontraram-se três minutos depois numa banca de jornal, ambos examinando as revistas expostas, mas nenhum reconhecendo o outro, a não ser através de palavras sussurradas.
- Bem, isto já passou - disse o homem em alemão. - Embarcaremos dentro de vinte minutos. Serei um dos últimos. Você um dos primeiros.
- Não está sendo exageradamente cauteloso, Rudi? Nossos passaportes e fotografias mostram duas pessoas completamente diferentes de nós, se, para a dizer a verdade, houvesse alguém remotamente interessado na gente.
- Prefiro uma cautela excessiva à indiferença nestes assuntos. Darão por minha falta amanhã no laboratório... pode ser que isto já tenha acontecido se qualquer um de meus colegas tentou entrar em contato comigo. Estamos chegando a uma velocidade incrível no aperfeiçoamento de fibras óticas que interceptarão transmissões internacionais via satélite, independentemente das frequências.
- Sabe que não compreendo essa conversa...
- Não é conversa, minha cara mulher, mas pesquisa sólida, difícil. Trabalhamos em turnos, vinte e quatro horas por dia, e a qualquer momento um associado poderá querer verificar a pesquisa nos nossos computadores.
- Deixe-os, querido marido.
- Você é uma tola em matéria de assuntos científicos! Eu tenho o software, e espalhei um vírus no sistema.
- Sabe, sua cabeça careca é muito menos atraente do que sua cabeleira cheia e ondulada de cabelo branco, Rudi. E se eu jamais me permitir tanto cabelo branco assim, eu lhe perdoarei por procurar uma amante.
- Você também é impossível, minha adorável jovem esposa.
- Ach, então por que passarmos por toda esta besteira?
- Já lhe disse não sei quantas vezes. A Brüderschaft, só existe a Brüderschaft!
- Acho a política tão chata.
- Nós nos veremos em Stuttgart. Por falar nisso, comprei para você o colar de diamantes que viu na Tiffany’s.
- Você é um amor! Serei invejada por todas as mulheres de Munique!
- Vaclabruck, querida. Munique só nos fins de semana.
- Que chatura!
Arnold Argossy, empresário de rádio e televisão da ala ultraconservadora e histérica do pensamento político americano, conseguiu espremer seu corpanzil na cadeira inadequada da mesa do estúdio. Colocou seus fones de ouvido e olhou para a janela de vidro colorido, atrás do qual se encontravam seu produtor e os vários técnicos que faziam com que a voz familiar, aguda e rascante, tão amada pelo seu eleitorado, se fizesse ouvir pelo país em vários horários diferentes. Somente alguns deles eram horários nobres, já que a quantidade anterior espantosa de seus ouvintes começara a declinar, talvez insultados pelos seus ataques especialmente virulentos contra qualquer coisa que considerasse liberal, sem que apresentasse nenhuma alternativa viável aos projetos por ele atacados. A sua decrescente audiência nada fizera para diminuir seu ego; pelo contrário, ele a mantinha por intermédio de crescentes e constantes ataques aos "comunas liberais", "fascistas feministas", "assassinos de embriões", "idiotas sem-teto", e inúmeros rótulos variados que acabaram desagradando até a vasta "maioria silenciosa" que acabou questionando suas diatribes.
A luz vermelha piscou. NO AR.
- Alô, América, seus íntegros e robustos filhos e filhas de gigantes que talharam uma nação de uma terra de selvagens e dela fizeram um doce país. Aqui A.A. falando, e nesta tarde quero ouvir a opinião de vocês! Da gente honesta, trabalhadora deste grande país, emporcalhado e estragado pelos doentios sicofantas, escravos do sexo, antirreligiosos e amorais que dominam nosso governo, enquanto somem com o seu dinheiro. Ouçam a última, meus amigos! Há uma lei para ser apreciada pelo Congresso que permitiria que nossos impostos financiassem a educação sexual obrigatória, especialmente dirigida à juventude dos centros urbanos. Podem acreditar nisto? Uma grana preta jogada fora num assunto de fazer corar, nossos dólares para financiar pelo menos um milhão de camisinhas por dia, de modo que a prole sem raízes dos preguiçosos e indolentes possa fornicar ao primeiro sinal de - não posso dizê-lo, porque isto aqui é um programa familiar. Nós propagamos a moralidade de nosso Deus; não alimentamos os apetites monstruosos e selvagens de Lúcifer, o arcanjo do inferno... Qual a solução para esta promiscuidade ensandecida? É tão óbvio que posso ouvir vocês gritarem a resposta. Esterilização, meus amigos! A negação benévola da procriação movida pela luxúria, por que a luxúria não é o amor dentro do casamento. A luxúria é o apetite não seletivo de animais, e não há uma assim chamada educação sexual capaz de curá-la, senão a que provoca sua proliferação!... Agora, vocês sabem e eu sei de quem estamos falando, não sabemos? Ah sim, posso ouvir os liberais gritando em coro racismo! Mas eu lhes pergunto, meus amigos, é racismo inaugurar projetos que, sem dúvida nenhuma, irão beneficiar as próprias pessoas que estão sendo degradadas pela sua promiscuidade? Acho que não. O que vocês acham?
- Dá-lhe! - gritou o primeiro a telefonar. - Eu não tenho nada contra ninguém, mas aposto que se a gente pagasse a cada preto vivendo às custas da previdência vinte e cinco mil paus pra voltar pra África e começar sua própria tribo, eles topariam na hora. Cheguei até a fazer os cálculos. Ficaria mais barato, certo?
- Nós não podemos justificar a migração através do suborno, é contra a Constituição. Mas, para resumir, você viu, não é? O próximo, por favor.
- Estou ligando da cidade de Nova York, A.A., no West Side, e gostaria de dizer que o fedor da cozinha cubana-cucaracha está empestando todo o prédio, e eu não consigo mais ler os letreiros das lojas. Será que a gente não consegue se livrar de Fidel Castro e mandar essa gente de volta de onde veio?
- Nós também não podemos justificar estigmas étnicos, mas a despeito do termo infeliz com que o senhor descreveu uma nacionalidade, o senhor tem razão. Escreva para seus senadores e congressistas e pergunte a eles por que ainda não mandamos uma equipe de elite assassinar o ditador comuna. O que mais se pode fazer?
- Dá-lhe duas vezes, A.A.! Os senadores e congressistas precisam ouvir a gente, não precisam?
- Certamente que sim, meu amigo.
- Ótimo!... Quem são eles?
- A agência dos Correios tem essa informação. O próximo no telefone para Argossy Argonaut, por favor.
- Boa noite, mein Herr, estou ligando de Munique, na Alemanha, onde é noite. Ouvimos o senhor no programa Religião do Mundo, e agradecemos a Deus o fato deles o trazerem até nós. E também agradecemos ao senhor por tudo que tem feito por nós!
- Que diabo, quem é? - disse Argossy cobrindo o microfone com a mão e olhando para a janela de vidro colorido.
- A Alemanha Ocidental é um excelente mercado para nós, Arnie - respondeu o produtor nos fones de ouvido. - Estamos alcançando a Europa em ondas curtas. Seja simpático e ouça o cara, a moeda é dele e ele tem uma porção de moedas.
- Então como estão as coisas aí em Munique, meu amigo?
- Muito melhor depois de ouvir a sua voz, Herr Argossy.
- É bom saber. Eu estive na sua bela cidade há mais ou menos um ano e comi o melhor chucrute do mundo. Misturaram tudo com batatas amassadas e mostarda. Incrível.
- É o senhor que é incrível, mein Herr! O senhor é obviamente um de nós, um da nova Alemanha.
- Me perdoe, mas acho que não compreendo...
- Natürlich, é claro que compreende! Construiremos o novo Reich, o Quarto Reich, e o senhor será nosso ministro de Propaganda. Será muito mais eficiente do que Goebbels jamais foi. O senhor é muito mais convincente!
- Porra, quem é esse cara? - gritou Arnold Argossy.
- Desliguem os microfones e parem a fita! - gritou o produtor. - Meu Deus, quantas estações estavam nos transmitindo ao vivo?
- Duzentas e doze - respondeu um técnico desinteressado.
- Santa Mãe de Deus! - exclamou o produtor, se deixando cair numa cadeira.
The Washington Post
INVESTIGAÇÕES SECRETAS ALARMAM HILL
Agentes do FBI circulam fazendo indagações
WASHINGTON, D.C., Sexta-feira - O Post foi informado que agentes do FBI têm percorrido o país atrás de informação sobre figuras de destaque do Congresso e do Senado, e também do governo. O caráter dessas investigações não ficou claro e a Justiça não esclareceu, nem sequer confirmou a existência desses interrogatórios. Os boatos, no entanto, persistem, alimentados por um revoltado senador Lawrence Roote, do Colorado, cujos assessores admitiram ter ele solicitado audiência ao Procurador Geral. Depois deste encontro, Roote também se recusou a fazer comentários, declarando apenas ter havido um mal-entendido.
Indícios que outros "mal-entendidos" também se espalharam além da capital. Surgiram ontem à noite quando o popular e respeitado âncora do noticiário noturno da MBC, Franklyn Wagner, separou dois minutos da programação para um comunicado intitulado por ele de "ensaio pessoal". No seu tom normal e bem modulado de voz havia uma evidente amargura, se não uma bem-controlada fúria. Ele atacou o que rotulou como "hienas do patrulhamento que se lançam sobre posições políticas muito antigas, embora legítimas, e até nomes e suas origens, para emporcalhar seus desafetos". Lembrou "a histeria em massa dos anos de McCarthy, quando homens e mulheres decentes foram arruinados por insinuações e acusações de culpa sem base nenhuma", concluindo seu ensaio ao dizer que ele era "um hóspede agradecido deste magnífico país" - Wagner é canadense - mas que pegaria o próximo avião de volta a Toronto se ele e sua família fossem postos "no pelourinho".
Fustigado mais tarde por perguntas, ele também se recusou a fazer comentários, dizendo apenas que os investigadores sabiam quem ele era, e que "isso bastava". A MBC declarou que suas linhas telefônicas ficaram sobrecarregadas, calculando os telefonemas aos milhares, mais de oitenta por cento em apoio ao Sr. Wagner.
A única pista que esta reportagem conseguiu levantar é que as investigações se relacionam de certo modo com os acontecimentos recentes na Alemanha, onde facções direitistas conseguiram uma boa penetração no governo de Bonn.
No seu complexo médico ainda por terminar, Gerhardt Kroeger caminhava a esmo, impetuosamente, para lá e para cá na frente de sua mulher, Greta, que estava sentada numa cadeira nos seus aposentos bem no interior das florestas de Vaclabruck.
- Pelo que sabemos, ele ainda está vivo - disse excitadamente o cirurgião. - Superou a primeira crise e isto é um bom sinal para a minha técnica, mas não é saudável para a causa.
- Por quê, Gerhardt? - perguntou a enfermeira cirúrgica.
- Porque não conseguimos achá-lo!
- E daí? Morrerá dentro em breve, não é?
- Sim, claro, mas se ele tiver uma hemorragia cerebral e morrer no meio do inimigo, seus médicos farão uma autópsia. Encontrarão meu implante, e isto não podemos permitir!
- Não há muita coisa que possa fazer, então para que se torturar?
- Porque ele precisa ser encontrado. Eu preciso encontrá-lo.
- Como?
- Haverá um momento, durante seus últimos dias, em que terá de fazer contato comigo. Sua confusão será tanta, que ele exigirá instruções, exigirá.
- Não respondeu à minha pergunta.
- Sim. É porque não sei a resposta.
O telefone tocou na mesa ao lado da cadeira de sua mulher. Ela atendeu.
- Sim?... Sim, é claro, Herr Doktor. - Greta tapou o fone com a mão. - É Hans Traupman. Diz que é uma emergência.
- Deve ser, ele raramente liga. - Kroeger pegou o fone das mãos de sua mulher. - Isto deve ser realmente urgente, doutor. Não consigo me lembrar da última vez que me ligou.
- O general von Schnabe foi preso uma hora atrás em Munique.
- Meu Deus do céu, por quê?
- Atividades subversivas, incitamento à desordem, crimes contra o estado, enfim todo o lixo legal que nossos antepassados refinaram num ambiente muito mais proveitoso.
- Mas como?
- Ao que parece o seu Harry Latham-Lassiter não era o único infiltrado no nosso vale.
- Inconcebível. Cada um de nossos seguidores passou pelos mais rigorosos testes, até o ponto de passarem por detectores de mentiras eletrônicos, que além de mentiras revelariam até dúvidas, hesitações. Eu mesmo criei a técnica; é infalível.
- Talvez alguns deles tenham sofrido uma mudança nas suas convicções depois de ter deixado o vale. Mas independente disto, von Schnabe foi preso pela polícia e identificado por alguém oculto, que o acusado não podia ver. De acordo com o pouco que conseguimos descobrir, pode ter sido por uma mulher, já que, ao que parece, houve referências a abuso sexual. Ouviram um policial de médio escalão rindo a respeito disso junto com seus colegas na estação de Munique.
- Avisei várias vezes o general, repetidamente, a respeito de seus casos com as funcionárias. Ele sempre respondia, "Apesar de toda a sua ciência, Kroeger, você não compreende. Um general traz uma conotação de poder, e o poder é a essência do sexo. Elas me desejam".
- E ele nem sequer era um general - disse Traupman no telefone. - Muito menos um von.
- Verdade? Eu achava...
- Você achou o que foi induzido a achar, Gerhardt - interrompeu o médico de Nuremberg. - Schnabe é um brilhante estrategista militar, um fervoroso partidário de nossa causa - poucos de nós teriam conseguido encontrar, criar e administrar nosso vale - essas eram suas enormes qualidades. Na realidade, em termos médicos ele era, é, um psicopata da mais elevada inteligência, o tipo de pessoa exigido por um movimento como o nosso, especialmente nos seus estágios iniciais. Depois, é claro, devem ser substituídos. Isto foi o erro do Terceiro Reich; acreditaram nos seus falsos títulos, viveram como se fossem verdade e superaram os verdadeiros generais, os junkers, que poderiam ter ganho a guerra com uma invasão bem sincronizada da Inglaterra. Não cometeremos esses erros.
- O que faremos agora, Herr Doktor?
- Demos um jeito para Schnabe ser morto esta noite na sua cela. O assassino usará uma pistola com silenciador. Não é difícil; o desemprego anda alto, até mesmo entre os segmentos criminosos. Precisa ser feito antes do início de seu interrogatório, especialmente antes das drogas que vão ministrar-lhe.
- E Vaclabruck?
- Agora cabe a você administrá-lo. O que nos preocupa, o que preocupa nosso líder em Bonn, é seu robô computadorizado em Paris. Quando morrerá, pelo amor de Deus?
- Um dia, três dias no máximo, não pode durar mais do que isso.
- Ótimo.
- Perdão, Herr Traupman, mas é bem possível que sofra uma virtual explosão no seu lobo occipital.
- Onde fica o seu implante?
- Sim.
- Precisamos encontrá-lo antes que isso aconteça. Se descobrirem um robô, acreditarão que existem milhares de outros!
- Foi o que eu disse à minha mulher.
- Greta, é claro. O que sugere ela?
- Concorda comigo - respondeu Kroeger, enquanto sua mulher se levantava e sacudia violentamente a cabeça. - Preciso ir a Paris e encontrar nossa gente. Primeiro, os Blitzkrieger, eles estão perdendo alguma pista. Em seguida com nosso homem na embaixada americana; precisamos depurar nossas informações sobre os Antinayous. Finalmente, nosso homem no Deuxième Bureau. Ele está vacilando.
- Cuidado com Moreau. Ele é um dos nossos no coração, mas é francês. Na verdade, não sabemos exatamente de que lado está.
12
Drew Latham, agora na pele de seu irmão Harry, esperava nas sombras do Trocadéro, atrás da estátua do rei Henrique, o Inocente, com os olhos a contemplar através de binóculos de visão noturna. A quase cem metros de distância do vasto calçadão de concreto ficavam igualmente as sombras entre as estátuas de Luís XIV e de Napoleão I. Era o ponto de encontro de seu último pedido a Karin de Vries naquele dia. A remessa de documentos confidenciais específicos de que ele precisava, da sala de seu "irmão morto". Eram quase onze horas, a noite parisiense iluminada por uma lua de verão, uma lua branca de caçador profissional branco na savana africana, que consolava Drew Latham.
Dois homens desembarcaram de um sedã preto estacionado no meio-fio da longa entrada à grande fachada dos monumentos. Trajavam ternos escuros formais e caminharam em direção ao ponto de encontro, cada um deles carregando ostensivamente uma pasta que deveria conter os documentos da mesa de seu "irmão" que ele "pedira com urgência". Eram neos, porque este último pedido, de acordo com o combinado, não fora passado adiante por Karin de Vries. Prova de que o telefone dela estava grampeado dentro da embaixada.
Drew perambulava no meio de grupos esparsos de pedestres, muitos deles parisienses, a maioria composta de turistas estrangeiros com câmeras. Em todos os lugares pipocavam esporadicamente flashes. A gola do casaco de Drew estava virada para cima, e um gorro preto com pala escondia seu rosto enquanto seguia caminho por entre a multidão, permanecendo sempre na companhia de um grupo após o outro, até chegar a uns quinze metros do ponto de encontro. Ele observou bem os dois homens entre as estátuas imponentes; estavam calmos, imóveis como os monumentos, a imobilidade apenas quebrada pelo lento girar das suas cabeças. Latham avançou com seu atual grupo de turistas e reparou de estalo, com espanto, que eram asiáticos, e uniformemente mais baixos do que ele. Outro pequeno grupo de ocidentais se aproximava na direção oposta; juntou-se a eles, percebendo ironicamente pela língua que esses turistas eram alemães. Talvez fosse um presságio favorável que em seguida virou sinal de otimismo. O grupo acercou-se em bloco do monumento a Napoleão, conquistador dos conquistadores, e pela algazarra estridente dos comentários era-se obrigado a fazer determinada e inequívoca associação. Sieg Nappy! - pensou Drew, enquanto ficava de olho nos dois falsos mensageiros, agora a menos de três metros de distância. Chegara o momento de fazer alguma coisa, mas Latham não tinha certeza do que seria. Então veio-lhe a cabeça. Les rues de Montparnasse. Batedores de carteiras! A praga do sétimo arrondissement.
Escolheu a mulher mais magra e menos imponente, mais próxima a ele, e de repente agarrou sua bolsa. Ela gritou - Ein Dieb! - Na semiescuridão Drew jogou a bolsa para um homem desprevenido mais próximo ao primeiro mensageiro falso da embaixada, e empurrou a socos um casal em cima dele, em seguida outro sujeito, e mais outro, enquanto gritava palavras ininteligíveis em alemão inventado. Segundos depois formou-se um pequeno tumulto diante da estátua de Napoleão, os gritos atingindo um rápido clímax na medida em que a multidão tentava localizar o larápio e os objetos roubados por entre as sombras. O primeiro mensageiro falso foi apanhado na confusão; lutava desajeitadamente contra a multidão que se comprimia contra ele, até que Latham surgiu repentinamente à sua frente.
- Heil Hitler - disse Drew baixinho, em contraste com as vozes histéricas a seu redor, enquanto esmurrava com toda a força o sujeito na garganta. Quando o neo caiu desmaiado, Latham arrastou-o para a escuridão atrás da fileira de estátuas que dão para a Torre Eiffel, cujas pontas se encontravam majestosamente banhadas de luz.
Ele precisava tirar aquele sujeito do Trocadéro! Tirá-lo, mas evitar o segundo mensageiro e qualquer reforço porventura existente no sedã preto. Viera preparado para este encontro do mesmo modo que para os demais, com equipamento fornecido de bom grado pelos Antinayous. Um spray medicinal de Arcane, para anestesiar as cordas vocais, um garrote de arame para prender os punhos e um telefone celular com um número não rastreável. Utilizou os dois primeiros, com um pequeno intervalo para fazer seu preso voltar ao estado inconsciente, tirando em seguida o telefone de seu bolso. Teclou o número da casa do coronel que não se encontrava na lista telefônica.
- Sim? - respondeu a voz suave no aparelho.
- Witkowski, sou eu. Peguei um deles.
- Onde está?
- No Trocadéro, lado norte, última estátua.
- A situação?
- Não tenho certeza. Tem um outro sujeito e um carro preto de quatro portas estacionado perto. Não sei quem está lá dentro.
- O lugar tem muita gente?
- Mais ou menos.
- Como conseguiu agarrar seu alvo?
- A gente tem tempo para isto?
- Se for para eu agir eficientemente, é preciso ter tempo. Como?
- Uma turma de turistas perto dos alvos. Roubei uma bolsa e armei uma confusão.
- Isso é bom. Vamos fazer uma escalada. Telefonarei para a polícia e direi que achamos que um americano foi morto num latrocínio.
- Eles eram alemães.
- Não faz nenhuma diferença. As sirenes estarão aí, dentro de poucos minutos. Vá para o lado sul e dê um jeito de chegar a rua. Estarei lá dentro em breve.
- Meu Deus, Stanley, o cara é um peso-morto danado!
- Você não está em boa forma física?
- Puxa, não, mas o que direi se for parado?
- Ele é um americano de porre. Todo mundo em Paris adora ouvir isso. Quer que eu o repita em francês? Aliás, é melhor não, você terá mais credibilidade se o fizer à sua maneira. Agora mexa-se!
Confirmando as palavras do coronel, noventa segundos mais tarde as sirenes barulhentas da polícia de Paris tomaram conta do vasto complexo do Trocadéro, e cinco radiopatrulhas convergiram para a entrada. A multidão acorreu em direção à rua e à novidade, enquanto Latham, apoiando uma figura desmaiada, apressava-se em atravessar o concreto até o lado sul. Lá, uma vez chegado atrás das estátuas, levantou e enganchou o neo em seus ombros, como os bombeiros carregam as suas vítimas, e prosseguiu correndo no escuro até a rua. O corpo do nazista desabou a seu lado e Drew esperou ajoelhado pelo sinal de Witkowski. Este chegou quando um carro da embaixada encostou de repente no meio-fio, acendendo e apagando duas vezes o farol, o sinal básico de retirada.
The New York Times
LABORATÓRIO ULTRASSECRETO DO GOVERNO ROUBADO
Desaparece o Cientista Rudolph Metz. Dados Deletados
BALTIMORE, Sábado - Nos arredores de Rockland, um complexo científico altamente secreto e pouco conhecido que abriga experiências ultrassecretas em microcomputação, chamou hoje de manhã a polícia, inicialmente porque a equipe não conseguia entrar em contato com o Dr. Rudolph Metz, o cientista de renome internacional na área das fibras óticas, nem pelo telefone nem pelo seu bip. Visitas feitas à sua residência não surtiram resultado. A polícia, munida de um mandado judicial, arrombou a porta, não encontrando nada de anormal, a não ser a quantidade mínima de vestuário encontrado nos armários, destoando de um casal tão afluente quanto o Dr. Metz e sua mulher. Mais tarde, os técnicos do laboratório revelaram que toda a pesquisa do ano anterior fora apagada dos computadores, deixando em seu lugar uma tela congelada, sinal de vírus no sistema.
O Dr. Metz, a ex-criança prodígio da ciência alemã, agora com setenta e três anos, e uma pessoa que vivia exaltando e "dando graças ao Pai Eterno" pela sua cidadania americana, era uma pessoa estranha, tanto quanto sua quarta mulher, de acordo com os vizinhos em Rockland. "Eles sempre viveram retraídos, a não ser quando sua mulher cismava de repente em dar grandes festas, nas quais exibia suas joias, mas, para dizer a verdade, ninguém os conhecia", declarou a Sra. Bess Thurgold, que mora ao lado. "Eu não conseguia me relacionar com ele", acrescentou Ben Marshall, um advogado que mora do outro lado da rua. "Ele se fechava toda vez que eu mencionava qualquer assunto de natureza política, sabe? Quero dizer, aqui estávamos nós, um grupo de pessoas que conseguiu certa projeção - puxa, não teríamos condições de morar aqui se isto não fosse verdade - mas ele nunca deixava escapar uma opinião. Nem mesmo sobre o imposto de renda!"
Especulações de fontes não reveladas versam agora sobre estresse psicológico devido a excesso de trabalho, problemas conjugais em consequência da diferença de idade entre sua atual mulher e Metz, homem de muitos casamentos, e até mesmo a possibilidade de sequestro por organizações terroristas, que poderiam tirar benefícios de seus conhecimentos.
Latham e Stanley Witkowski levaram o corpo inconsciente do falso mensageiro diretamente ao apartamento do coronel, na rue Diane. Usando a entrada de serviço, subiram com o neo pelo elevador de carga até o andar de Witkowski e arrastaram-no até o seu apartamento.
- Assim não estamos fazendo nada oficialmente, e isso é bardzo dobrze - disse Witkowski ao estenderem o corpo do assassino no divã.
- O quê?
- Significa que é "bom". Harry teria compreendido, ele falava polonês.
- Desculpe.
- Ah, não faz mal. Você se saiu muito bem esta noite... Agora precisamos apenas acordar este gato e apavorá-lo até que fale.
- E como faremos isso?
- Você fuma?
- No momento, estou tentando largar.
- Eu não represento sua consciência ou ninguém de seu grupo de apoio. Tem um cigarro?
- Bem, carrego alguma coisa para situações de... emergência, sabe.
- Acenda um e me passe. - O coronel passou a esbofetear o rosto do neo; os olhos do assassino começaram a piscar quando Witkowski pegou o cigarro aceso das mãos de Latham. - Há uma garrafa de Evian no meu bar ali. Traga-a para mim.
- Aqui está.
- Ei, Junge! - gritou Witkowski, jogando água na cara do seu prisioneiro, cujos olhos se arregalaram. - Mantenha esses olhões azuis de bebê abertos, cara, porque vou queimar suas retinas, está certo? - O coronel colocou o cigarro aceso a meio centímetro de distância do olho esquerdo do neo.
- Ah-haa! - gritou o nazista. - Por favor, nein!
- Está querendo me dizer que não é tão durão assim, afinal de contas? Porra, vocês queimaram gente, olhos e tudo, corpos e tudo. Quer me dizer que não aguenta só um olho... e depois, talvez, só o outro? - O cigarro aceso mal tocou a camada gelatinosa externa do olho do neo.
- Ahhiaa-aiahh! - O coronel afastou lentamente o cigarro. - Talvez você recupere a visão deste aí, mas só com tratamento adequado. Mas, se eu repetir a mesma operação com seu outro olho, a coisa será diferente. Queimarei através da retina e, Deus me livre, nem eu aguentaria a dor; pode esquecer a cegueira. - Witkowski mudou o cigarro para o olho direito, onde caiu uma cinza. - Agora vamos nós, Wehrmacht, sinta só como vai ser.
- Nein... nein! Pergunte-me o que quiser, mas não faça isto comigo!
Instantes depois, o coronel prosseguia falando, enquanto o neo segurava uma compressa de gelo sobre seu olho esquerdo.
- Agora você sabe de que sou capaz, Herman, ou seja lá como for seu nome. Do mesmo modo como vocês, filhos da puta, há cinquenta anos, quando perdi dois avós em Auschwitz. Quanto a mim, vou te colocar de volta naquelas almofadas e não só queimar seus olhos, como cortar fora o seu saco. Em seguida te libertarei e quero ver como vai enfrentar a rua!
- Calma, Stosh - disse Latham, pegando Witkowski pelo ombro.
- Não me venha mandar ter calma com coisa alguma, rapaz! Minha família escondeu judeus e por isso foram mortos na câmara de gás!
- Está bem, está bem, mas agora precisamos de informação.
- Certo... certo. - O coronel respirava com dificuldade, falando em seguida baixinho. - Perdi a cabeça... não sabe o quanto odeio esses filhos da puta.
- Posso fazer ideia, Stanley. Eles mataram meu irmão. O interrogatório, por favor.
- Está bem. Quem é você, de onde veio e o que representa?
- Sou um prisioneiro de guerra e não preciso...
Witkowski golpeou a boca do neo com a parte de trás de sua mão livre, golpe violento, o anel de ouro do exército tirando sangue.
- Tem uma guerra, para dizer a verdade, seu canalha, mas não foi declarada, e você não tem direito a porra nenhuma, a não ser àquilo que eu resolver inventar para você. E posso assegurar, que não será agradável. - O coronel levantou os olhos para Latham. - Tem uma velha baioneta minha ali em cima da escrivaninha, que eu usava para abrir envelopes. Seja um bom rapaz e traga-a para mim, está bem? Vamos ver como ela corta gargantas, na realidade foi feita para isso, você sabe.
Drew foi até a escrivaninha e voltou com a lâmina de cabo arrebitado, enquanto Witkowski futucava a carne em volta do pescoço do apavorado falso mensageiro.
- Ei-la, doutor.
- Gozado você dizer isto - disse o veterano do G-2, muito mais idoso. - Estava pensando exatamente em minha mãe na noite passada; ela sempre quis que eu fosse médico, cirurgião para ser exato. Ela deve ter dito mais de mil vezes. "Você tem mãos grandes e fortes, Stachu. Torne-se um cirurgião, eles ganham um bom dinheiro."... Deixa ver se consigo descobrir o jeitinho. - O coronel enfiou o dedo bem no tecido macio logo acima do esterno do alemão. - Isto parece ser um bom lugar para começar - prosseguiu ele, abaixando a ponta da lâmina. - Parece meio gelatinoso, e você sabe como gelatina se esparrama logo assim que a borda da colher é enfiada nela. Porra, deve ser fácil com uma faca, e creia-me, isto aqui é uma faca mesmo. Está legal, vamos começar a primeira incisão. Que tal? "Incisão."
- Nein! - berrou o espemeante neo enquanto um filete de sangue escorria pelo seu pescoço. - O que querem de mim? Eu não sei de nada. Só cumpro ordens.
- Quem lhe dá as ordens?
- Não sei! Recebo uma chamada telefônica. Às vezes um homem, outras uma mulher. Usam meu número de código e preciso obedecer.
- Isso não basta, seu monte de merda...
- Ele está dizendo a verdade, Stosh - interrompeu Latham rapidamente, impedindo que Witkowski cortasse mais fundo. - Naquela outra noite, aquele motorista me disse a mesma coisa, praticamente com as mesmas palavras.
- Quais eram as suas ordens esta noite? - insistiu o coronel, enquanto o nazista berrava sob a crescente pressão da lâmina. - Esta noite! - tonitroava Witkowski.
- Era para matá-lo, ja, para matar o traidor, mas para que tivéssemos certeza de levar o corpo para bem longe e queimá-lo.
- Queimá-lo? - interrompeu Drew.
- Ja, e para cortar a cabeça e queimá-la também, mas noutro lugar, bem longe do corpo.
- "Longe"...? - Drew olhou fixamente para o nazista que tremia de pânico.
- Eu juro, isso é tudo que sei.
- Porra nenhuma! - gritou o coronel, arrancando mais sangue. - Já interroguei centenas como você, seu merda, e eu sei. Seus olhos sempre traem algo que você não disse, que não nos contou!... Um assassinato não é grande coisa, o resto é um pouco mais forte, talvez muito mais perigoso, transportar um cadáver, cortar a cabeça, queimar isso tudo. Chega a ser meio esquisito até para vocês psicopatas. O que não nos contou? Fale, se não este será o seu último alento!
- Nein, por favor! Ele morrerá dentro em breve, mas não pode morrer entre o inimigo! Precisávamos encontrá-lo primeiro!
- Ele vai morrer?
- Ja, não pode ser impedido. Três dias, quatro dias, isso é o máximo de que ele dispõe, é tudo que sabemos. Devíamos pegá-lo esta noite, matá-lo antes do amanhecer, bem longe, onde não seria achado.
Latham afastou-se do divã, meio aturdido, tentando decifrar o enigma que o revolucionário nazista revelara. Nada fazia sentido, a não ser uma projeção aparentemente incontroversa.
- Vou mandar esse rato para a inteligência francesa com todo nosso testemunho, com todas as palavras que ele disse aqui, que possuímos graças àquele aparelhinho em cima da minha escrivaninha - disse Witkowski.
- Sabe, Stosh - retrucou Drew, virando-se e olhando para o coronel. - Talvez devesse colocá-lo num jato diplomático até Washington, para Langley, sem informações disponíveis, a não ser para o pessoal da CIA que irá recebê-lo.
- Deus do céu, por que? Este é um problema francês.
- Talvez seja mais do que isso, Stanley. A lista de Harry. Talvez devêssemos ficar de olho em quem na agência tentará proteger este sujeito, ou, também, quem tentará matá-lo.
- Você está fora do meu alcance, rapaz.
- Estou fora do alcance de mim mesmo, coronel. Sou Harry agora, e alguém espera que eu morra.
13
Eram três da madrugada em Monte Carlo, as ruas escuras e estreitas além do cassino estavam desertas a não ser pelos retardatários do palácio do jogo ainda aberto; alguns melancolicamente bêbados, vários animados, a maioria cansada. Claude Moreau desceu uma ruela que levava a um muro de pedra a cavaleiro do porto. Chegou ao muro, seu olhar examinando a cena embaixo; era um refúgio para os ricos deste mundo, sinalizado pelas luzes dos enormes e luxuosos iates ancorados no cais. Ele não sentiu nenhuma espécie de inveja; era apenas um observador a contemplar a beleza aparente daquilo tudo. Sua falta de inveja típica dos servidores públicos lhe vinha com facilidade, pois seu trabalho lhe exigia que passasse algum tempo entre os proprietários daquelas opulentas embarcações, observando o estilo de vida deles, às vezes escavando mais a superfície. Era bastante. Se fosse o caso de rotular, eles constituíam de várias maneiras gente desesperada, sempre à procura de novos interesses, novas experiências, novas sensações. A eterna procura tornava-se sua realidade, a procura sem fim, que levava apenas a mais uma procura. Tinham seu conforto; precisavam dele, já que o resto era tédio, a busca do próximo estímulo a lhes ocupar o tempo. E então? Qual a novidade?
- Allô, monsieur - disse a voz saída da escuridão, enquanto uma figura se aproximava vinda das sombras. - É o amigo da Irmandade?
- A causa de vocês é inútil - disse Moreau sem se virar. - Já lhes disse mais de cem vezes, mas se continuarem a melhorar minha pobre situação, farei o que pedirem.
- Nossa Blitzkrieger, a mulher na mesa do cassino. O senhor a prendeu. O que aconteceu?
- Ela se suicidou, do mesmo modo que os outros dois fizeram na prisão meses atrás. Somos franceses; no momento de sua prisão não lhe examinamos as partes pudendas. Se tivéssemos, teríamos encontrado cápsulas de cianureto embrulhadas em plástico.
- Sehr gut. Ela não lhe disse nada?
- Como poderia? Ela nunca chegou a sair viva do banheiro das mulheres.
- Então estamos limpos?
- Por enquanto. E estou esperando o pagamento de sempre em Zurique, por minha considerável cooperação. Amanhã.
- Será feito.
A figura se afastou e se perdeu dentro da escuridão, enquanto Moreau enfiava a mão no seu bolso de cima interno e desligava o gravador. Contratos de boca nada valiam, a não ser que seus rompimentos fossem gravados.
Basil Marchand, membro da Câmara dos Lordes, bateu o peso de papel de cobre com tanta força em cima de sua mesa que o vidro que a cobria se fez em pedaços, espalhando cacos pela sala inteira. O homem à sua frente afastou-se um passo, enquanto escondia por um momento o rosto.
- Como ousa? - gritou o senhor idoso, as mãos tremendo de ódio. - Os homens desta família remontam à guerra da Crimeia, e a todas as guerras desde então, inclusive a dos boêres, quando um reporterzinho chamado Churchill elogiava sua coragem sob fogo inimigo. Como poderia insinuar uma coisa destas a meu respeito?
- Perdoe-me, Lorde Marchand - disse calmamente o agente do MI-5, porém sem se deixar intimidar. - Sua família obteve um merecido reconhecimento por todas suas contribuições militares no decorrer deste século, mas houve uma exceção, não foi? Refiro-me, é claro, a seu irmão mais velho, que foi um dos fundadores do grupo de Cliveden, que nutria uma admiração bastante grande por Adolf Hitler.
- Expulso da família! - interrompeu furiosamente Marchand, enquanto abria com violência uma gaveta de onde arrancou um pergaminho com uma moldura de prata. - Olha aqui, seu filho da puta insolente! Isto é uma citação do próprio rei a respeito do meu barco em Dunquerque. Eu era um garoto de dezesseis anos e retirei trinta e oito homens que teriam sido dizimados ou capturados. E isto foi antes de eu ter merecido a Cruz Militar pelos meus serviços na Marinha Real!
- Temos consciência de seu notável heroísmo, Lorde Marchand...
- Por isso não me atribuam as ilusões distorcidas de um irmão mais velho que mal conheci, e que não me fez gostar nada do pouco que vi - prosseguiu o indignado membro da Câmara dos Lordes. - Se tivessem feito sua pesquisa direito, deveriam saber que ele deixou a Inglaterra em 1940, para nunca mais voltar, tendo sem dúvida bebido até morrer numa daquelas ilhas do sul do Pacífico onde se escondeu.
- Não foi bem assim, lamento dizer - disse o visitante do MI-5. - Seu irmão acabou em Berlim sob um nome falso, e trabalhou durante a guerra no Ministério de Informações do Reich. Casou-se com uma alemã e teve, como o senhor, três filhos...
- O quê...? - O velho deixou-se cair lentamente na sua cadeira, boquiaberto, mal podendo respirar. - Nunca nos disseram nada - acrescentou tão baixinho que mal se pôde ouvir.
- Não havia nenhum sentido. Depois da guerra ele sumiu com toda a sua família na América do Sul, provavelmente num daqueles enclaves germânicos na Argentina ou no Brasil. Já que não fora oficialmente arrolado como criminoso de guerra, não houve uma busca, e em consideração às perdas sofridas pelos Marchand...
- Sim - interrompeu delicadamente Lorde Marchand - meus dois outros irmãos e minha irmã. Dois pilotos e uma enfermeira.
- Exatamente. Nossa agência resolveu por uma pá de cal em cima de todo este episódio desagradável.
- Isso foi muito simpático da parte de vocês, muito simpático. Perdoe-me por ter lhe tratado de modo tão rude.
- Por favor, nem pense nisso. Como o senhor disse, não poderia saber aquilo que não lhe informaram.
- Sim, sim, é claro... Mas aqui mesmo, agora, nesta tarde, você praticamente me acusou, e por extensão minha família, de fazer parte de um movimento fascista qualquer na Alemanha. Por quê?
- Trata-se de uma técnica muito desajeitada que nos constrange a quase todos, mas que se revela eficaz. Eu não o acusei especialmente: se se recorda bem, eu exprimi a insinuação de "como se sentiria ofendida a Coroa se soubesse" etcétera, etcétera. A reação imediata é sempre de indignação, mas existe a falsa indignação e a verdadeira indignação. Não é difícil distinguir entre elas, especialmente quando já se viveu bastante, como é meu caso.
- E o que foi que fiz de certo?
- Acredito que se o senhor fosse mais jovem teria me agredido fisicamente, posto à força para fora de sua casa.
- É bem verdade. Eu o teria feito.
- Foi uma reação autêntica de sua parte, nada falsa.
- Volto a perguntar, por quê?
- Os nomes de dois de seus filhos constam de uma lista, uma lista altamente confidencial de pessoas que apoiam em surdina os revolucionários nazistas na Alemanha.
- Meu Deus do céu, como?
- A Marchand Ltda. é um complexo têxtil, correto?
- Sim, é claro, todo mundo sabe isso. Contando nossas fábricas na Escócia, somos o segundo maior grupo no Reino Unido. Dois de meus filhos administram-no, desde que me aposentei; o terceiro, que Deus tenha piedade de sua alma, é músico. Por isso, o que fizeram eles para merecer tal condenação?
- Negociaram com uma empresa chamada Oberfeld, despacharam milhares e milhares de rolos de tecidos para o fabrico de camisas, blusas, calças e calças esportes iguais, tudo para seus armazéns em Mannheim.
- Sim, eu examinei as faturas, por minha própria insistência. A Oberfeld obedece pontualmente aos prazos de pagamento e é um excelente cliente. E daí?
- A Oberfeld não existe, trata-se de uma fachada para o movimento neonazista. Há sete dias, o nome e os armazéns de Mannheim sumiram, do mesmo modo que seu irmão desapareceu há cinquenta anos.
- O que está insinuando?
- Eu exprimirei isto da maneira mais delicada possível, Lorde Marchand. Não seria possível que os filhos de seu irmão tivessem voltado, e de uma maneira terrivelmente irônica, envolvido, inadvertidamente, seus próprios filhos numa conspiração para acelerar o ressurgimento nazista, através do fornecimento de uniformes?
- Uniformes?
- Será o próximo passo, Lorde Marchand. Historicamente, isto já é clássico.
Knox Talbot não gostava de bancar Deus, uma vez que muita gente já bancara por demasiado tempo tal papel em relação à sua raça. Assumia constrangido o papel, não deixando de se sentir um pouco hipócrita, mas não tinha escolha. Os poderosos computadores ultrassecretos da agência foram comprometidos, o software contendo segredos mundiais violado, inclusive as mais delicadas operações montadas pela CIA no mundo inteiro, entre elas a tortuosa odisseia de três anos de Harry Latham-Alexander Lassiter... codinome Sting.
Sob o pretexto de rodízio de funções, ele solicitara mais de três dúzias de fichas pessoais, mas somente oito mereciam sua atenção. Dos homens e mulheres responsáveis pelos computadores AA-Zero, porque apenas eles possuíam as chaves, os códigos que poderiam terminar com a vida de agentes secretos e informantes, ou também inutilizar operações inteiras. Alguém tinha - não mais do que alguém, dois alguéns, porque os discos protegidos por mecanismos de segurança requeriam que duas pessoas teclassem dois códigos diferentes, para se ter acesso ao software e à transmissão na tela. Mas qual dupla, e o que teria ela de fato conseguido fazer? Harry Latham escapara, ao preço terrível da vida de seu irmão, mas estava naquele momento vivo e escondido em Paris. Não apenas vivo, mas tendo trazido uma lista incriminadora de nomes que já alarmava o país, ou pelo menos a mídia, que aliás vivia fazendo o máximo para alarmar o país, sempre que possível. De acordo com Drew Latham, assassinado, os nazistas sabiam a respeito de Sting, mas quando souberam? Antes ou depois de Harry ter revelado os nomes? Se antes, a lista inteira era suspeita, mas mesmo este argumento não explicava o desaparecimento de Rudolph Metz, um neonazista fanático como poucos. Os laboratórios de Rockland haviam descoberto que Metz usara arrogantemente seu próprio código para deletar uma pesquisa de um ano inteiro, e o FBI rastreara a fuga de Metz e de sua mulher para Stuttgart, via o Aeroporto Internacional de Dulles, no voo 7000 da Lufthansa. Quantos Metz a mais haveriam? Ou para fazer a pergunta em sentido inverso, quantos mais inocentes como o senador Roote haveriam? Tudo estava girando de modo a fugir de controle, ou dentro em breve isto aconteceria, à medida que as investigações prosseguiam.
Dois entre oito especialistas completamente "limpos" das mais exigentes operações de computador eram agentes inimigos infiltrados. Como era possível? Ou era mesmo? Não havia nada nas suas fichas pessoais que revelassem os menores indícios... Em seguida trechos dos interrogatórios londrinos de Harry Latham vieram a memória de Talbot. Abriu uma gaveta e tirou a transcrição deles. Encontrou a página certa.
Q (MI-5): Existem boatos de que os nazistas, os neonazistas, poderiam ter sabido desde o começo quem você era.
HL: Isso não é um boato. Será artigo de fé para eles. Quantas vezes não procedemos do mesmo modo ao descobrirmos um agente infiltrado que fugira para a Mãe Rússia depois de ter nos depenado de informações? É claro que declarávamos como éramos espertos, e que inútil era a informação que nos fora roubada - quando era mentira.
Q (DEUXIÈME): Acha possível terem lhe fornecido contrainformação?
HL: Fui um confidente de confiança até a hora em que fugi, um grande colaborador e fiel da causa deles. Por que haveriam de me fornecer lixo? Mas em resposta à sua pergunta, sim, é claro que é possível. Informações falsas, contrainformação, falha humana ou do computador, racionalização de desejos, fantasias - tudo é possível. Faz parte da tarefa de vocês confirmar ou negar. Eu lhes trouxe o material, agora cabe a vocês avaliá-lo.
Knox Talbot estudou as declarações do agente. Poderia ser aventado que o próprio Harry Latham deixara a porta completamente aberta. Tudo era loucura, uma loucura de prováveis confirmações e possíveis contradições, exceto a existência e a proliferação de um vírus nazista na Alemanha. O diretor da CIA guardou a transcrição e ficou olhando paras as oito fichas separadas, espalhadas em leque sobre a sua mesa. Releu as palavras mas não encontrou nenhuma pista, nada que tivesse consistência. Ele pegaria uma a uma e tentaria com toda a atenção possível ler entre as linhas, até que seus olhos ficassem vermelhos. Então, seu telefone fez o favor de tocar. Ele apertou a tecla do console; sua secretária falou.
- O Sr. Sorenson na linha três.
- Quem está na um e dois?
- Dois produtores de programas de televisão. Querem a presença do senhor em programas que discutirão os interrogatórios domésticos do Bureau.
- Saí para almoçar durante um mês.
- Entendi. E a linha três, a não ser que o senhor queira que eu diga a mesma coisa?
- Não, vou falar... Alô, Wes, por favor não aumente meus problemas.
- Vamos almoçar juntos - disse Wesley Sorenson. - Precisamos conversar. Sozinhos.
- Minha cara está meio manjada, meu velho, no caso de você ainda não ter notado. A não ser que você queira ir a um restaurante na parte mais negra da cidade, com o resultado de que ficará muitíssimo mais em evidência do que eu.
- Então vamos eliminar essa hipótese. O zoológico em Rock Creek Park. Na ala dos pássaros, tem uma carrocinha de cachorro-quente que conheci graças a meus netos. Não é ruim, tem chili.
- Quando?
- É algo prioritário. Será que consegue chegar lá dentro de vinte minutos?
- Suponho que terei que chegar, não é?
Oliver Mosedale, um estudioso de cinquenta anos ligado ao Ministério das Relações Exteriores e eminente conselheiro do ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, serviu-se de uma dose de conhaque enquanto sua jovem empregada enchia seu cachimbo, compactava-o e trazia-o para ele.
- Obrigado, menina - disse ele, caminhando até uma grande poltrona forrada de couro diante do aparelho de televisão. Com o cachimbo enterrado na boca, sentou-se com um suspiro, colocando o drinque numa mesinha ao lado, e enfiou a mão no bolso e acendeu o cachimbo com um isqueiro Dunhill de ouro. - A noite não passou de uma interminável chatura - prosseguiu Mosedale. - O chef estava sem dúvida bêbado. Tenho certeza de que o canard à l’orange estava ensopado de Gatorade. E com aqueles idiotas da Fazenda querendo cortar nossos orçamentos, chegaremos a ponto de não conseguirmos sequer representar o Liechtenstein, muito menos o que sobrou do Império Britânico. Isso tudo é na verdade uma loucura, além de tremendamente irritante.
- E vocês pagam o pato - disse a saudável empregada de seus vinte anos, com mais do que vestígios de um sotaque cockney na sua voz.
- Por favor, não me fale em patos, minha cara.
- O quê?
- Lembra-me daquele desastre chamado pato que tive de engolir no jantar.
- Desculpe... Escute, deixe-me fazer uma massagem no seu pescoço, sempre o relaxa. - A garota foi até a parte de trás da poltrona e inclinou-se sobre seu patrão, com seus generosos seios, tornados evidentes pelo seu decote, encostando na sua nuca, enquanto suas mãos apertavam o pescoço e os ombros dele.
- Esplêndido - gemeu o funcionário das Relações Exteriores, exprimindo essa palavra enquanto esticava o braço para pegar seu conhaque, do qual tomava pequenos goles no intervalo das cachimbadas. - Você faz isso tão bem, mas aliás, você faz tudo bem, não é?
- Procuro fazer, querido Ollie. Como disse, fui criada para respeitar homens de valor, fazendo-lhes as vontades por admiração a eles. Não sou uma dessas idiotas que vivem berrando o tempo todo contra a classe privilegiada, não sou não. Minha mãe costumava dizer: "Se o bom Deus quisesse que você morasse num castelo, teria feito com que tivesse nascido num deles." E minha mãe é uma velha sabida. Ela também costumava dizer que deveríamos ter um orgulho cristão por prestar serviço às pessoas mais importantes que nós, porque tem um trecho da Bíblia que diz ser melhor dar do que receber, ou algo assim. É claro que meu pai trabalha no cais e não tem o refinamento da minha velha...
- Na realidade, não é preciso que você fique tagarelando assim, menina - interrompeu Mosedale, com as sobrancelhas arqueadas de contida frustração. - Aliás, está na hora do noticiário da BBC, não está? - Ele consultou o relógio. - Está mesmo! Acho que chega de massagem, meu amor. Por que não liga a TV, sobe e vai tomar um banho. Eu irei estar com você dentro em breve, por isso me espere, meu anjo.
- Está bem, Ollie. E porei aquela camisola que você tanto adora. Deus sabe como é fácil vesti-la, tão pequenininha ela é. - A empregada-concubina foi até o aparelho de TV, ligou-o, e ficou à espera de que o canal certo entrasse em foco. Ela jogou um beijo em direção a Mosedale e atravessou insinuantemente a arcada até chegar a escada.
O locutor da BBC, com voz e expressão neutras, começou com as últimas notícias dos Bálcãs, passando para notícias da África do Sul, comentando brevemente os últimos feitos da Academia Real de Ciências, fazendo em seguida uma pausa e prosseguindo com palavras que fizeram com que Oliver Mosedale sentasse alerta e fixasse bem os olhos sobre a figura na tela.
- Informes de Whitehall dão conta de que vários membros do Parlamento e outros funcionários do governo estão furiosos com o que parecem ser investigações do Serviço de Informações Britânico sobre suas vidas particulares. Jeffrey Billows, representante de Manchester, ergueu sua voz para denunciar o que chamou de táticas de "estado policial", alegando terem seus vizinhos sido questionados a seu respeito, inclusive o vigário. Outro membro do Parlamento, Angus Ferguson, protestou que não apenas seus vizinhos foram interrogados, como seu lixo fora examinado, e as livrarias que ele frequentava interrogadas sobre os livros que ele comprara. Ao que parece, nem mesmo o Ministério das Relações Exteriores ficou imune, já que vários altos funcionários declararam preferir pedir demissão a serem submetidos a "tamanho absurdo", conforme declarou um deles. Seus nomes estão sendo omitidos a pedido do ministro de Relações Exteriores.
Estes acontecimentos parecem espelhar as notícias provenientes dos Estados Unidos, onde figuras célebres do governo, e fora dele, têm passado por semelhantes violações de privacidade. Uma reportagem no Chicago Tribune frisou bem o problema, "Será a Caçada contra Velhos Comunistas ou Neofascistas?" A BBC os manterá informados sobre o desdobramento desta história.
E agora, vamos às penosas, e mais do que familiares, estripulias da Família Real...
Mosedale pulou da poltrona, desligou a televisão e correu até o telefone em cima da mesa em estilo Queen Anne, posta contra a parede. Discou nervosamente.
- Que diabo está acontecendo? - gritou o conselheiro do ministro das Relações Exteriores.
- Você tem tempo, Rute - disse a voz feminina ao telefone. - Íamos ligar para você cedinho de manhã, sugerindo que não fosse a Whitehall. Eles não chegaram ainda a sua seção, mas estão perto. Temos uma reserva para você na British Air para Munique, amanhã ao meio-dia, à passagem está em seu nome. Tudo resolvido.
- Isto não basta. Quero sair hoje à noite!
- Por favor, fique na linha. Vou verificar os computadores. - O intervalo silencioso transformou-se numa tortura para Mosedale. Finalmente a voz voltou. - Tem um voo da Lufthansa para Berlim às onze e meia. Será que dá para você pegá-lo?
- Pode ficar certa que o pegarei. - Oliver Mosedale repôs o fone no gancho, caminhou até o saguão e gritou ao pé da escada. - Anjo, faça uma mala para mim! Apenas uma muda de roupa, tal como você já fez antes. Depressa!
Um "Anjo" despido apareceu apoiado contra o corrimão em cima.
- Onde vai, amor? Estou prestes a vestir a camisola que você tanto gosta de despir. É divina, não é, Ollie?
- Cale a boca, e faça o que eu mandei! Preciso fazer mais uma ligação, e quando terminar espero que minha valise esteja prontinha aqui embaixo! - Mosedale correu de volta à mesa Queen Anne, pegou o telefone, e discou de novo nervosamente. - Estou de partida - disse ele a uma voz que mal acabara de dar um grunhido.
- Meu indicador telefônico me informa que se trata do número de Rute. É você, codinome Switch?
- Você sabe muito bem que sim. Cuide dos meus negócios aqui em Londres.
- Eu já fiz isso, Switch. A casa está à venda, o dinheiro será remetido para Bern, quando e se for vendida.
- Você provavelmente embolsará metade...
- Pelo menos, Herr Rute - interrompeu a voz na linha. - Acho apenas justo. Quantos milhares já não transferi para Zurique, correndo eu o risco?
- Mas você é um de nós!
- Não, não, você está enganado. Sou apenas um advogado que protege homens nefastos, possivelmente, ou não, também traidores da Coroa. Como posso saber?
- Você não passa de um cambista safado!
- Novamente você se engana, Switch. Sou um comissário, não importa o quanto isto possa me doer às vezes. E para ser sincero, terá sorte se receber dez libras pela sua casa. Sabe, na verdade não gosto de você.
- Você trabalhou para mim, para nós, há anos! Como pode dizer isto?
- Tão fácil, que não posso lhe contar. Adeus, codinome Switch, e para a sua tranquilidade, se existe algo que permanecerá o mesmo entre nós é o meu segredo ético entre advogado e cliente. Sabe, é a minha força. - O advogado inglês desligou e Mosedale olhou em volta da enorme sala de visita, apavorado ao pensar que jamais veria tantas lembranças de sua vida de novo. Em seguida ele endireitou o corpo, numa postura rígida, lembrando-se das palavras que seu pai gritara de cima da escada quando a guerra fora declarada. - Iremos combater pela Inglaterra, mas pouparemos Herr Hitler! Ele acerta muito mais do que erra! As raças inferiores estão corrompendo nossos países. Venceremos este conflito temporário, instauraremos uma Europa Unida e o colocaremos no cargo de fato de chanceler do Continente!
A moça chamada Anjo deixou uma valise escorregar escada abaixo, vestida própria ou impropriamente, como diríamos, na sua mínima camisola.
- O que há, amor, o que está acontecendo?
- Talvez eu possa te mandar buscar mais tarde, mas neste momento preciso partir.
- Mais tarde? De que está falando, Ollie?
- Não há tempo para explicações. Preciso pegar um avião.
- E eu? Quando voltará?
- Não durante algum tempo.
- Ah, isso não é simples e legal! O que espera que eu faça?
- Fique aqui até que alguém te ponha para fora.
- Me ponha para fora?
- Você me ouviu. - Mosedale agarrou a valise, correu até a porta da frente e ficou espantado pelo que viu. A neblina de Londres se transformara num toró, e dois homens de capas esperavam na escada de tijolos de sua casa. Atrás deles, na rua, havia um furgão preto com uma antena lateral no teto.
- Obedecendo a todos os trâmites legais, seu telefone foi grampeado - disse o primeiro homem. - É melhor o senhor nos acompanhar.
- Ollie - gritou a empregada em trajes sumários no saguão. - Não vai me apresentar a seus amigos?
Os gritos das crianças organizadas em grupos por pais e recreadores do local misturavam-se aos gritos de uma miríade de pássaros atrás das telas do enorme aviário do Zoológico de Rock Creek Park. As multidões de veranistas eram barulhentas, exceto os habitantes de Washington, que vinham ao parque para fazerem tranquilos passeios, longe do ritmo frenético da capital da nação. Ao se virem frente a frente a essas hordas de turistas, os locais geralmente interrompiam seus interlúdios, preferindo buscar a tranquilidade dos monumentos silenciosos. Um condor de aspecto especialmente ameaçador, com as asas abertas medindo quase três metros, de repente desceu planando de um poleiro alto, gritando enquanto suas garras se fechavam sobre o aramado da enorme jaula. Crianças e adultos se afastaram imediatamente, da mesma maneira; os olhos brilhantes do gigantesco pássaro transmitiam uma satisfação hostil.
- Isso aí é uma senhora predadora, não é? - disse Knox Talbot, de pé atrás de Sorenson.
- Jamais compreendi o uso da palavra senhora para indicar enormidade - respondeu o diretor das Operações Consulares, olhando bem em frente.
- Experimente tenacidade. Foi a agressividade implacável da fêmea ao proteger suas crias que nos fez transpor a Era Glacial.
- E o que nós homens estávamos fazendo?
- Mais ou menos a mesma coisa que agora. Caçando lá fora, enquanto as mulheres protegiam as cavernas de feras muito mais perigosas do que nossa caça.
- Você é bastante preconceituoso.
- Sou é bastante casado, e foi minha mulher que chegou a esta conclusão. Já que só estamos juntos há trinta e seis anos, para que desequilibrar a canoa tão cedo?
- Vamos comprar um cachorro-quente. A carrocinha fica mais ou menos a cinquenta metros à esquerda, e podemos sentar num banco. Geralmente é repleto de gente, e duvido muito que reparem na gente.
- Chili me dá gases.
- Experimente chucrute.
- Pior.
- Então só mostarda.
- Já viu como os cachorros-quentes são feitos, Wes?
- Você já viu?
- Acho que sou proprietário de uma empresa que os fabrica.
Sete minutos depois Sorenson e Talbot estavam sentados um ao lado do outro, lembrando um pouco avós tirando um momentinho necessário de descanso de seus netinhos levados.
- Tem uma coisa que posso te dizer, Knox - começou o diretor das Operações Consulares - e você ficará furioso pra burro mais tarde quando descobrir.
- Tipo retirar o nome de Moreau da cópia da lista de Harry Latham que te mandamos?
- Há uma grande semelhança.
- Então estamos quites. O que pode me contar?
- Primeiro, posso lhe dizer abertamente que o pedido vem de um ex-especialista do G-2 que operava nos setores de Berlim durante a época da brabeira. Seu nome é Witkowski, coronel Stanley Witkowski...
- Atualmente chefe de segurança na embaixada de Paris - interrompeu Talbot.
- Você o conhece?
- Só de reputação. É um cara tão inteligente que poderia vir logo depois de você na fila para meu cargo, se tivesse o reconhecimento que merece. Mas não podia; trabalhava na zona silenciosa.
- Neste exato momento, parece que ele está trabalhando como porta-voz de Harry Latham, que não quer correr o risco de contatar Langley ele mesmo.
- Os computadores AA-Zero?
- Aparentemente... Latham queria um acesso confidencial até você, mas ele não te conhece. Lembra, você tornou-se diretor da CIA com a nova administração, quase dois anos depois de Harry ter desaparecido na clandestinidade. Por isso, conhecendo Witkowski dos velhos tempos, ele o está usando; e já que conheço o coronel dessa mesma época, ele decidiu me usar como o acesso confidencial.
- É lógico - disse Talbot, balançando a cabeça.
- Talvez lógico, Knox, mas mais tarde, quando eu abrir tudo, verá que é tão irônico que poderá até me perdoar.
- Qual o comunicado confidencial?
- Tem um homem, um médico alemão, que pode exercer uma enorme influência no movimento nazista, ou, inversamente, pode ser um homem de consciência que se revoltou contra eles. Precisamos saber tudo que pudermos a respeito dele, e vocês são reis neste terreno.
- Assim me dizem - concordou o diretor da CIA. - Qual é o nome dele?
- Kroeger, Gerhardt Kroeger. Mas existe um porém, e um grande porém.
- Diga.
- Essa investigação precisa de sigilo total. O nome dele não pode circular dentro da agência.
- Novamente os computadores AA-Zero?
- A resposta direta a isto é sim, mas também poderia haver outras pessoas além dos computadores. Você é capaz de fazê-lo?
- Acho que sim. Quando peguei este cargo, cargo que você deveria ter pego, insisti em trazer minha secretária de vinte anos. É tão inteligente e rápida que com ela não preciso completar minhas frases. E também é inglesa; isto empresta-lhe aparentemente certa autoridade sobre nós colonizados... Kroeger, Gerhardt, médico, é isso aí. Ela irá pessoalmente aos cofres e trará tudo que existe a respeito.
- Obrigado.
- Você merece. Ligarei quando tiver o material. Tomaremos uns drinques na minha casa.
- Ótimo. Gostarei disto.
- Há outra coisa que nenhum de nós disse, não é, Wesley?
- A caça às bruxas, naturalmente. A lista de Harry está saindo de controle:
- Disse a mesma coisa com meus botões instantes antes de você ligar. Ouviu a última da Grã-Bretanha?
- O clamor no Parlamento, sim. Até mesmo a maldosa comparação ao que está acontecendo aqui. Desconfio que não poderia ser evitado. Sua culpa, secretário Bollinger, e espero que ele tenha consciência disto.
- Então não soube. Recebemos este tipo de material antes de vocês, presumo.
- De que está falando?
- Sobre um sujeito chamado Mosedale, cargo muito alto no Ministério das Relações Exteriores.
- E o que houve com ele?
- Diante de várias alternativas, confessou. Vinha trabalhando para a Irmandade durante os últimos cinco anos. Ele constava da lista de Harry, e alega que existem centenas, talvez milhares de gente como ele em todo canto.
- Ah, meu Deus. Mais lenha na fogueira. Em todo canto.
14
Gerhardt Kroeger desembarcou no Aeroporto de Orly carregando duas peças de bagagem, uma maleta médica e uma mala de náilon de tamanho médio, ambas feitas para serem carregadas na mão. Ele dobrou à esquerda e prosseguiu pelo longo corredor de concreto até se deparar com a área chamada PETITE CARGAISON, carga pequena. Examinou atentamente o tráfego a fluir sem parar, em seguida concentrou-se nos poucos veículos estacionados no meio-fio defronte às enormes portas metálicas de correr, através da qual eram carregadas em carrinhos as caixas e os caixotes até os seus destinatários. Viu aquilo que esperava ver, um furgão cinza com letreiro branco do lado. ENTREPÔTS AVIGNON, Armazéns Avignon, um colossal depósito onde mais de uma centena de distribuidores armazenava seus bens de consumo antes de distribuí-los às lojas varejistas por toda Paris. E em algum ponto dentro daquele complexo labiríntico ficava a sede dos Blitzkrieger, os assassinos de elite da Irmandade. O médico aproximou-se de um sujeito que vestia uma camisa de rúgbi vermelha e branca, encostado no lado do furgão. Tal como lhe ordenaram.
- O Malasol chegou, monsieur? - perguntou ele.
- O melhor caviar dos mares iranianos - respondeu o sujeito musculoso de camisa de rúgbi, jogando fora um cigarro e olhando Kroeger fixamente.
- É realmente melhor que o russo? - prosseguiu Gerhardt.
- Qualquer coisa é melhor do que o russo.
- Ótimo. Então sabe quem sou.
- Não, não sei quem é, monsieur, e não faço questão de saber. Apenas entre atrás com o resto do peixe, e eu o levarei a outra pessoa que, esta sim, o conhece.
A viagem até o seu destino foi horrenda para Gerhardt, tanto pelo intenso cheiro de peixe congelado, quanto pelo fato de ter sido obrigado a ir sentado num banco duríssimo, enquanto o furgão de suspensão dura corria por ruas cheias de buracos, que bem poderiam ter sido herança da linha Maginot. Finalmente, depois de quase meia hora, pararam e uma voz áspera saiu de um interlocutor invisível.
- Saia, monsieur. E por favor lembre-se de que jamais nos viu, e nós nunca o vimos, e o senhor jamais foi transportado no nosso veículo. - As portas traseiras do furgão foram abertas mecanicamente. Kroeger pegou sua bagagem, inclinou-se para não bater com a cabeça no teto, e saiu curvado até a saída e o ar livre. Um homem jovem, de terno escuro, cabelo cortado curto, estudou-o em silêncio enquanto o furgão se afastava velozmente, cantando os pneus na sua rápida retirada.
- Que tipo de transporte foi esse? - exclamou Gerhardt. - Sabe quem eu sou?
- Sabe quem nós somos, Herr Kroeger? Se souber, sua pergunta é tola. Nossa presença precisa ser a coisa mais secreta da França.
- Discutiremos isto quando eu me encontrar com os seus superiores. Leve-me a eles imediatamente!
- Não há ninguém superior a mim, Herr Doktor. Insisti em conhecê-lo pessoalmente.
- Mas você é, é...
- Tão jovem?... Somente os jovens são capazes de fazer o que fazemos. Nossos reflexos estão no ápice, nossos corpos esplendidamente em forma. Pessoas idosas como o senhor seriam reprovadas durante a primeira hora de doutrinação.
- Exatamente, em concordância com o seu raciocínio, você deveria estar desqualificado em duas horas por não ter cumprido suas ordens!
- Nossa equipe é a melhor. Posso lembrar-lhe de que conseguiram matar um dos alvos em condições extremamente adversas...
- Mas não o certo, imbecil!
- Encontraremos o outro. É apenas uma questão de tempo.
- Não há tempo! Precisamos conversar mais; você não compreendeu uma coisa. Vamos à sede de vocês.
- Não. Conversaremos aqui. Ninguém vai à nossa sede. Arranjamos acomodações para o senhor, o hotel Lutetia, a antiga sede da Gestapo. Mudou, mas as lembranças ficaram conservadas nas paredes. Ficará com todo conforto, Herr Doktor.
- Precisamos conversar agora.
- Então converse, Herr Kroeger. O senhor não irá a mais lugar algum.
- Você é insolente, rapaz. Sou agora o comandante de Vaclabruck até que um substituto para von Schnabe seja nomeado. Receberá ordens de mim.
- Sinto muito discordar, Herr Doktor. Desde a remoção do general von Schnabe, fomos instruídos a receber ordens apenas de Bonn, do nosso líder em Bonn.
- Quem é?
- Se eu soubesse, teria jurado manter segredo, mas já que não sei, isto não importa. Usam-se códigos, e através deles reconhecemos a autoridade máxima. Todas as nossas tarefas precisam ser sancionadas por ele, e só por ele.
- Este Harry Latham precisa ser caçado e morto. Não podemos desperdiçar nem um minuto!
- Compreendemos isto, Bonn deixou-o muito claro.
- E no entanto você fica aqui e me diz displicentemente que é "apenas uma questão de tempo"?
- Não adianta nada gritar, mein Herr. O tempo se mede em segundos, minutos, horas, dias, semanas, e...
- Pare! Atravessamos uma crise e exijo que você o reconheça.
- Reconheço, nós reconhecemos.
- Então o que fizeram, o que estão fazendo? E onde diabo estão seus dois homens? Teve notícias deles?
O jovem Blitzkrieger, com o corpo rígido mas com os olhos piscando de insegurança, respondeu lentamente e em voz baixa.
- Como expliquei a Catbird, Herr Kroeger, há várias hipóteses. Escaparam, mas ambos saíram feridos, a que ponto, não sabemos. Se a situação deles ficasse insustentável, teriam tomado a saída honrosa, como cada um de nós jurou fazer, e teriam acabado com suas vidas com cianureto ou tiros na cabeça.
- Está dizendo que não teve notícias deles.
- Certo. Mas sabemos que fugiram num carro.
- Como souberam?
- Estava em todos os jornais e noticiários. E também sabemos que está em andamento uma busca colossal a ambos, uma caçada humana envolvendo a polícia, a Sûreté, até o Deuxième Bureau. Espalharam-se por todo canto: nas cidades, aldeias, até mesmo nas montanhas e florestas, investigando cada médico a duas horas de distância de Paris.
- Então sua conclusão é suicídio duplo, mas também disse haver várias hipóteses. Que outras?
- É a mais provável, mas também é imaginável que estejam recuperando sua força, o mínimo possível, fora do alcance de um telefone. Como sabe, fomos treinados a fazer como os animais, tratar as nossas próprias feridas escondidos até recuperarmos bastante força para entrarmos em contato. Fomos todos treinados no tratamento de perfurações do corpo e ossos quebrados.
- Isso é esplêndido. Devolverei meu diploma e mandarei meus pacientes para vocês.
- Não é uma brincadeira, mein Herr, somos apenas treinados para sobreviver.
- Quaisquer outras hipóteses?
- Está perguntando se foram capturados ou não?
- Sim.
- Saberíamos se eles fossem. Nossos informantes na embaixada teriam sabido, e a caçada humana foi desencadeada sem dúvida nenhuma. O governo francês tem uma equipe de mais de cem homens procurando os nossos dois. Nós os vigiamos e escutamos.
- Você é convincente. Mas e aí? Onde que fica? Harry Latham precisa ser descoberto!
- Acreditamos estar apertando o cerco. Latham está sob a proteção dos Antinayous...
- Nós sabemos isto! - interrompeu Kroeger zangado. - Mas saber não adianta nada se não soubermos localizá-los e onde o esconderam.
- Talvez saibamos o local do quartel-general deles dentro de duas horas, mein Herr.
- O quê?... Por que não disse isto antes?
- Porque preferia apresentar-lhe uma situação de fato, no lugar de simples especulações. Eu disse "talvez saibamos", mas ainda não sabemos.
- Como?
- Contatos telefônicos com os Antinayous foram feitos pelo chefe de segurança da embaixada, cujo telefone, tal como o do embaixador, é impossível de grampear. Entretanto, há um registro das chamadas que ele fez; nosso homem acha que conseguirá dar uma olhada nele e copiá-lo manualmente. Uma vez de posse dos números, podemos facilmente subornar alguém da companhia telefônica para desencavar os locais. Daí em diante vai-se por eliminação.
- Parece simples demais. Segundo sei, os números fora da lista telefônica são bem guardados. Deus sabe, os nossos são. Duvido muito que vocês possam simplesmente entrar na sala de um funcionário da companhia e botar dinheiro em cima de sua mesa.
- Não entraremos em sala nenhuma. Usei a palavra desencavar e foi exatamente isto que quis dizer. Encontraremos alguém que trabalhe nos cabos subterrâneos, pois é lá que se encontram as verdadeiras localizações, nos computadores. Precisam estar, para fins de instalação e consertos.
- Você parece conhecer o seu negócio, Herr... como é seu nome?
- Não tenho nome, nenhum de nós tem. Sou Número Zero Um, Paris. Venha, providenciei transporte para o senhor e ficaremos em permanente contato, talvez minutos depois de ter chegado a seu hotel.
Sentado na sua mesa na Maison Rouge dos Antinayous, Drew pegou o telefone e discou para a embaixada, pedindo à telefonista que o pusesse em contato com a Sra. de Vries na Pesquisa e Documentação.
- Aqui é Harry Latham - disse Drew em resposta a saudação de Karin. - Você pode falar?
- Sim, monsieur, não há ninguém aqui, mas primeiro tenho instruções para o senhor. O embaixador me chamou e pediu que eu as transmitisse da próxima vez que o senhor ligasse.
- Prossiga - disse Latham, agora na pele do seu irmão morto Harry, apertando os olhos e ouvindo com cuidado. Karin estava prestes a mandar-lhe uma mensagem. Ele pegou um lápis enquanto ela falava.
- O senhor deve fazer contato com nosso mensageiro dezesseis no alto do teleférico da igreja Sacré-Coeur às nove e meia desta noite. Ele levará comunicados de Washington para o senhor... Compreendeu, non?
- Sim - respondeu Drew, sabendo que o non francês, no lugar do mais comum n’est-ce pas, significava que ele deveria ignorar a informação. Witkowski estava armando outra armadilha, baseado no conhecimento de que o telefone de Karin estava grampeado. - Mais alguma coisa?
- Sim. Estava programado que o senhor encontrasse o amigo de seu irmão Drew, das Operações Consulares de Londres, nos chafarizes do Bois de Boulogne às oito e quarenta e cinco, certo?
- Sim, estava combinado.
- Foi cancelado, monsieur. Iria interferir com o contato na Sacré-Coeur.
- Pode contatá-lo e adiar o encontro?
- Já fizemos, oui... sim. Providenciaremos outro encontro.
- Por favor faça isto. Ele poderá me contar coisas que desejo saber sobre as últimas semanas de Drew, especialmente os detalhes daquele negócio do Jodelle... É só isso?
- Por enquanto, sim. O senhor tem alguma coisa?
- Sim. Quando poderei voltar à embaixada?
- Nós o informaremos. Estamos convencidos de que ela está sendo vigiada vinte e quatro horas por dia.
- Não gosto deste negócio de ficar escondido. Não é nada conveniente.
- O senhor pode sempre voltar para Washington, sabe disto.
- Não! Foi aqui que Drew foi morto, é aqui que estão seus assassinos. Ficarei aqui até os encontrarmos.
- Muito bem. Ligará amanhã?
- Sim, quero mais documentos das pastas de meu irmão. Tudo que ele possui sobre aquele ator.
- Au revoir, monsieur.
- Até logo. - Latham desligou o telefone e estudou as breves notas que tomara, breves porque compreendera depressa o método das instruções ocultas de Karin. A Sacré-Coeur estava eliminada e os chafarizes do Bois de Boulogne estavam valendo; o francês non eliminara o primeiro, o duplo oui-sim confirmara o segundo. O resto era mera "encheção de linguiça" para frisar a insistência de Harry Latham em permanecer em Paris. Não tinha meios de saber quem encontraria no Bois, mas certamente reconheceria quem quer que fosse, ou se não o fizesse, alguém tomaria a iniciativa do contato.
No final de seu turno, o informante que trabalhava no centro de comunicações da embaixada saíra para a Gabriel, esperara um pouco, em seguida cruzara abruptamente a avenida, esbarrando num homem de motocicleta. Ele passou escondido a fita para o motociclista e a motocicleta acelerou velozmente rua abaixo, costurando entre o tráfego. Vinte e seis minutos mais tarde, exatamente às 4:37 da tarde, a fita era entregue no quartel-general clandestino dos assassinos nos Armazéns Avignon.
Segurando uma foto de doze e meio por quinze centímetros de Alexander Lassiter/Harry Latham, o Blitzkrieger Zero Um, Paris, ouvia pela terceira vez a gravação da conversa entre Latham e a de Vries.
- Parece que nossa busca terminou - disse Zero Um, em pé junto a mesa e se inclinando para desligar o gravador. - Quem irá a Sacré-Coeur? - perguntou ele, dirigindo-se a seus colegas em volta da mesa de reunião.
Levantaram em bloco suas mãos.
- Quatro de vocês serão suficientes, mais poderia chamar atenção - prosseguiu o líder. - Separem-se e levem a foto com vocês, lembrando-se de que Latham deverá sem dúvida ter disfarçado sua aparência.
- O que pode ele fazer? - perguntou o Blitzkrieger mais próximo de Zero Um. - Botar um bigode e usar barba? Sabemos sua altura, o tipo de corpo e sua estrutura facial. Finalmente ele fará contato com um mensageiro que estará à sua espera, um homem ou mulher parado que certamente distinguiremos na área escolhida para o contato.
- Não seja tão otimista, Zero Seis - disse o jovem líder. - É preciso lembrar que Harry Latham é um agente secreto de muita experiência. Do mesmo modo que temos nossos truques, ele também tem. E, por amor de Deus, lembrem-se de que o abate tem de ser via cabeça, um golpe de misericórdia que destroce o lado esquerdo de seu crânio. Não me perguntem por que, só não o esqueçam.
- Se você tem tantas dúvidas sobre nós - aparteou um Blitzkrieger mais velho, na extremidade mais distante da mesa, seu tom de voz insinuando uma hostilidade implícita - por que não vai você mesmo?
- Instruções de Bonn - respondeu Zero Um com frieza. - Preciso permanecer aqui para receber ordens que chegarão às dez horas. Algum de vocês gostaria de tomar o meu lugar no caso de não encontrarmos Harry Latham e termos de transmitir essa notícia?
- Non.
- Nein.
- É claro que não. - Foram as respostas que surgiram ao redor da mesa, algumas acompanhadas de um risinho, outras sérias.
- Mesmo assim, cobrirei o Bois de Boulogne.
- Por quê? - perguntou Zero Sete. - Foi cancelado. Você ouviu a fita.
- Novamente, eu lhes pergunto, algum de vocês não gostaria de cobrir o Boulogne no caso de uma negativa enfática ser sinal de uma afirmativa, ou dos planos terem sido novamente trocados?
- Você tem razão aí - disse Zero Sete.
- Provavelmente uma razão inútil - concedeu o jovem líder. - Mesmo assim, não me levará mais do que quinze ou vinte minutos, em seguida tomarei o carro e voltarei aqui até às dez horas. Se estivesse na Sacré-Coeur, jamais daria tempo.
Escolhida a equipe para a Sacré-Coeur, Zero Um, Paris, voltou para sua sala e sentou-se à sua mesa. Era um homem aliviado, porque suas míticas instruções de Bonn não foram questionadas, nem ninguém insistiu que, como superior deles, liderasse o ataque a Harry Latham e deixasse outra pessoa atender a ligação de Bonn. Na realidade, ele não queria tomar parte na ação, pelo simples motivo de que poderia não ser bem-sucedida. Um número imprevisível de contingências poderia pôr a perder tudo, e Zero Um, Paris, não podia se dar ao luxo de ter mais um "erro" na sua ficha, como o motorista que não conseguira dar conta do finado Drew Latham, ou a equipe que fora enviada para eliminar os dois americanos, errara o principal e depois sumira, ou a camarada que não sobrevivera a Monte Carlo. Se Alexander Lassiter/Harry Latham fosse executado direito, inclusive com o crânio esfacelado, o crédito seria dele, já que orquestrara o ataque. Se a armadilha falhasse, ele não estaria presente; a culpa caberia aos outros.
Pois Zero Um de Paris compreendia o que os outros não compreendiam; como líder precisava cumprir ordens. Se um Blitzkrieger fracassasse uma vez, seria severamente censurado; se falhasse duas vezes, seria fuzilado, seu lugar entregue a alguém em fase de treinamento. Se a operação Sacré-Coeur falhasse, ele sabia quem seria eliminado - Zero Cinco, de trinta anos, para começo de conversa; seu ressentimento contra seu superior mais jovem estava aflorando com demasiada frequência... e criticara duramente a equipe que sumira. - Um é um bebê que simplesmente gosta de matar, e o outro é um estúpido; se arrisca demais! Deixe que eu resolva o problema! - Foram essas as palavras de Zero Cinco, ditas na frente de Zero Seis. Ambos estavam se encaminhando para a Sacré-Coeur; ambos seriam executados se o assassinato fracassasse. Zero Um, Paris, não podia permitir mais uma mácula no seu currículo. Ele precisava ser levado ao círculo íntimo da Irmandade; precisava merecer o respeito dos verdadeiros líderes do movimento, do próprio novo Führer, e prestar sua obediência de todo coração e com toda sua alma. Pois ele acreditava, sinceramente acreditava.
Levaria sua câmera ao Bois de Boulogne, tirando bastante fotografias noturnas para provar que estivera lá, a própria câmera fornecendo a prova, na medida em que imprimia a data e a hora de cada foto. Era meramente uma fachada, se sequer precisasse de uma, o que duvidava.
O telefone tocou, assustando o jovem dirigente dos Blitzkrieger. Ele atendeu.
- O código está certo - disse a telefonista. - É o caviar Malasol na linha.
- Herr Doktor...
- Você não ligou! - gritou Gerhardt Kroeger. - Esperei aqui mais de três horas e você não ligou para mim.
- Apenas porque estávamos aperfeiçoando nossa tática. Se meus subordinados não errarem o cálculo, talvez alcancemos o objetivo, mein Herr. Orquestrei a ação até nos mínimos detalhes.
- Seus subordinados? Por que não você?
- Recebemos uma informação contraditória que poderá se revelar muito mais perigosa, mas igualmente produtiva. Decidi eu mesmo correr o risco.
- Não entendi.
- Não posso explicar pelo telefone.
- Por que não? O inimigo não tem a menor ideia de quem eu sou, ou mesmo de que eu esteja aqui, de modo que a mesa do hotel mal poderia ser comprometedora. Eu exijo saber o que está acontecendo!
- Há duas situações convergindo dentro da mesma hora. Diga a Bonn que Zero Um, Paris, empregou toda sua habilidade para controlar ambas, mas que não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Já que não pode, escolheu a de maior risco. Isso é tudo que posso lhe dizer, mein Herr. Se eu não sobreviver, pense bem de mim. Preciso ir.
- Sim... sim, claro.
O jovem revolucionário neonazista bateu o telefone. Não importa o que acontecesse, estava escorado. Ele jantaria longamente, à vontade, no Au Coin de la Famille, em seguida caminharia até o chafariz principal do Bois de Boulogne, tiraria fotos inúteis e voltaria aos Armazéns Avignon, aceitando seja lá o que acontecesse. Ou o crédito pelo assassinato, ou a morte dos dois Blitzkrieger executados por incompetência.
Ele acreditava piamente.
Drew caminhou em torno do reluzente chafariz do Bois de Boulogne, banhado de luz dos refletores situados na água embaixo, e perambulou no meio dos pedestres noturnos, procurando algum rosto conhecido. Chegara ao ponto de encontro logo antes das oito e meia; eram agora quase nove horas, e não vira ninguém que reconhecesse, nem fora procurado por ninguém. Teria ele interpretado mal as instruções de Karin? Teria Karin invertido as instruções para que ele interpretasse as afirmações ao pé da letra? Não, isso não fazia sentido. Apesar dos anos de Karin em Amsterdã, eles não se conheciam o suficiente para fazer joguinhos dentro de jogos; eles não possuíam nenhuma história em comum de comunicação intuitiva sob estresse. Latham consultou seu relógio; eram 9:03. Daria mais um giro pelo local e depois voltaria à Maison Rouge.
- Américain! - Ele virou-se depressa diante deste som. Era Karin, seu rosto coroado por uma peruca loura, a mão direita enfaixada. - Caminhe para seu lado esquerdo, rápido, como se eu tivesse esbarrado em você. Há um homem tirando fotos à direita. Encontre-me no caminho norte.
Latham fez o que lhe mandaram, aliviado em saber da presença dela, mas preocupado com suas palavras. Ele fez o giro, no lânguido ritmo das multidões dos chafarizes, até atingir o caminho de lajes de pedra à sua extrema direita. Penetrou nele, percorreu trinta ou quarenta metros do túnel ladeado de árvores, e ficou à espera. Dois minutos depois chegava Karin... Como se por um acaso que nenhum deles previra, caíram nos braços um do outro, abraçando-se, não durante muito tempo, mas o suficiente.
- Sinto muito - disse de Vries, afastando-se delicadamente e ajeitando inutilmente sua peruca loura com a mão enfaixada.
- Eu não sinto - interrompeu Drew sorrindo. - Acho que ando há alguns dias com vontade de fazer isto.
- Fazer o quê?
- Abraçá-la.
- Eu simplesmente fiquei contente de ver que você estava bem.
- Estou bem.
- Isso é ótimo.
- Também foi ótimo abraçá-la. - Latham riu delicadamente. - Olha, minha senhora, foi você que pôs a ideia na minha cabeça. Foi você quem disse como pretexto na embaixada que me achava atraente etcétera, etcétera.
- Não era um desejo encoberto, Drew. Era uma desculpa, taticamente utilizada.
- Espera aí, eu não sou Quasímodo, sou?
- Não, você é um sujeito meio grandalhão, com uma aparência nada ruim, que muitas mulheres, tenho certeza, acham bastante atraente.
- Mas você não.
- Minhas preocupações se encontram em outro lugar.
- Você quer dizer que eu não sou Freddie, o incomparável "Freddie de V".
- Ninguém poderia ser Freddie, os bons ou os feios.
- Isto quer dizer que eu ainda estou no páreo?
- Que páreo?
- Pelo seu afeto, talvez, tão pequeno ou temporário que seja.
- Está se referindo a dormir comigo?
- Que diabo, não é nada disso. Lembre-se, sou um americano da Nova Inglaterra. Não é nada disso, madame.
- Você também é um prevaricador.
- O quê?
- Para não dizer mentiroso, que é duro demais.
- O quê?
- Você também é um homem violento que arrebenta outros homens nas, como se chamam, partidas de hóquei. Ah, sim, já ouvi falar. Harry me contou.
- Só quando eles ficavam na minha frente. Jamais gratuitamente.
- Quem tomava essas decisões?
- Eu, eu presumo.
- Então provei meu argumento. Você é um indivíduo belicoso.
- E o que tem isso a ver com qualquer coisa?
- É que no momento estou grata que você o seja.
- O quê?
- O homem com a câmera, do outro lado do chafariz.
- O que tem ele? As pessoas tiram fotos de Paris à noite. Toulouse-Lautrec pintava-a, hoje tiram fotos.
- Não, ele é um neo, sinto isso, sei que sim.
- Como?
- Pela pose dele, pela maneira como é tão... agressivo.
- Isso não representa muitos indícios.
- Então por que está aqui? Quantas pessoas realmente tiram fotos de noite no Bois de Boulogne?
- Você tem razão. Onde está ele?
- Diretamente do lado oposto a nós. Ou estava. No caminho do sul.
- Fique aqui.
- Não, irei com você.
- Porra, faça o que eu digo.
- Você não pode me dar ordens!
- E você não tem uma arma, e mesmo se tivesse, não poderia atirar. Sua mão está toda enfaixada.
- Eu tenho uma arma, e se fosse mais observador, teria reparado que sou canhota.
- O quê?
- Vamos.
Juntos correram entre as árvores até atingirem o caminho do sul que levava ao chafariz iluminado. O homem que tirava fotos ainda estava lá, parecendo ter engolido uma espada e batendo o que parecia ser fotos a esmo dos passantes que circulavam em volta do chafariz. Silenciosamente, Latham aproximou-se, sua mão na coronha da automática no seu cinto.
- Você se diverte tirando fotos de gente que não sabe estar sendo fotografada - disse Drew, batendo no ombro do sujeito.
O Blitzkrieger virou-se rapidamente após o toque, olhando para Drew na luz fraca, os olhos arregalados.
- Você! - gritou ele guturalmente. - Mas não, não o mesmo! Quem é você?
- Tenho uma pergunta a lhe fazer. - Latham agarrou o sujeito pelo pescoço, arremessando-o contra o tronco de uma árvore. - Kroeger! - gritou ele. - Quem é Gerhardt Kroeger?
O neo se recuperou depressa, chutando imediatamente com sua bota na direção das virilhas de Drew; Latham pulou para trás, fugindo do chute, e desferindo um golpe com o cano de sua automática na cara do nazista.
- Seu filho da puta, você estava me procurando, não estava?
- Nein! - berrou o neo, com o sangue a escorrer pelo rosto, cegando-o parcialmente. - Você não é o homem da fotografia!
- Mas alguém parecido comigo, certo? Mesmo tipo de rosto, mais ou menos, certo?
- Você é maluco! - gritou o nazista, mandando um golpe mortífero na direção do pescoço de Drew; Latham agarrou o pulso e torceu-o violentamente no sentido anti-horário. - Eu só estava tirando fotos! - O sujeito caiu no meio dos arbustos.
- Agora que ficou provado isto - disse Drew sem fôlego, sentando-se em cima do nazista e subitamente mandando um joelho contra as costelas do sujeito - vamos falar a respeito de Kroeger! - Latham apertou o cano da automática no tecido entre os olhos do nazista. - Diga-me ou vou furar um túnel na sua cabeça!
- Estou pronto para morrer!
- Isso é ótimo, porque é o que você está prestes a fazer. Tem cinco segundos, Adolf... Um, dois, três... quatro...
- Nein!... Ele está aqui em Paris. Precisa encontrar Sting!
- E você achou que eu era Sting, correto?
- Você não é o mesmo homem!
- Tem toda a razão, porra. Não sou. Endireite-se!
De onde tinha saído ela, ele nunca saberia, mas antes que pudesse absorver o fato, havia uma grande pistola na mão direita do nazista. Sem nenhum ruído que o precedesse, o barulho forte de um tiro soou atrás deles; a cabeça do nazista fez um movimento de chicote, o sangue escorrendo de seu pescoço. Karin de Vries salvara a vida de Latham. Ela veio correndo pelo caminho até ele.
- Você está bem? - gritou ela.
- Onde ele arranjou a arma? - perguntou um combalido e espantado Drew.
- Do mesmo lugar de onde você tirou a sua - respondeu de Vries.
- O quê?
- Do cinto. Você agarrou-o e mandou-o se endireitar; foi aí que o vi botando a mão sob o casaco.
- Agradecido...
- Não me agradeça, faça alguma coisa. As pessoas estão fugindo do chafariz. Dentro em breve chegará a polícia.
- Vamos! - ordenou Latham, enfiando a automática no cinto e puxando o telefone celular do seu bolso. - Vamos para dentro das árvores, bem para dentro. - Correram desajeitadamente por mais ou menos sessenta metros dentro da folhagem escura, quando Drew levantou a mão. - Basta - disse ele sem fôlego.
- Onde arranjou isso? - perguntou Karin, apontando para a silhueta quase invisível na mão de Latham.
- Os Antinayous - respondeu Drew, apertando os olhos e pressionando as teclas na pouca luz filtrada do chafariz. - São muito chegados a uma tecnologia.
- Não quando qualquer pessoa pode detectar a frequência de um celular, embora em emergências, talvez...
- Stanley? - disse Latham, interrompendo-a. - Meu Deus, aconteceu de novo! No Bois de Boulogne, um neo que estava cobrindo a área, mandado para me eliminar.
- E?
- Ele está morto, Stosh, Karin atirou nele quando ele estava prestes a fazer saltar os meus miolos... mas Stanley, escute só. Ele disse que Kroeger estava aqui em Paris, aqui para encontrar Sting!
- Qual a sua situação?
- Estamos dentro do arvoredo, perto de um caminho, talvez a uns vinte ou trinta metros do corpo.
- Olha, escutem só - disse Witkowski asperamente. - Se conseguirem fazer isso sem topar com a polícia... Que diabo, mesmo correndo o risco de fazê-lo, limpem completamente os bolsos do filho da puta e deem o fora daí.
- Como eu fiz com Harry... - A voz de Drew baixou para um doloroso sussurro.
- Faça-o agora por Harry. Se o que você disse sobre Kroeger não é besteira de segunda mão, esse corpo é a nossa única ligação com ele.
- Por um instante ele achou que eu fosse Harry; tinha uma fotografia, disse ele.
- Está perdendo tempo!
- E se a polícia chegar...?
- Utilize sua conversa fiada oficial para se safar. Se não der certo, tomarei conta disso mais tarde, embora eu não gostasse de fazer nada legalmente a respeito. Vamos lá!
- Ligarei mais tarde.
- É melhor dentro em breve do que mais tarde.
- Vamos - disse Latham, agarrando o pulso direito de Karin acima da atadura e se dirigindo para o caminho.
- Vamos voltar para lá? - gritou de Vries, aturdida.
- Ordens do nosso coronel. Precisamos andar depressa...
- E a polícia!
- Eu sei, por isso mais depressa ainda... Já pensei! Você fica no caminho, e se a polícia chegar banque a amedrontada, o que não exigirá muito talento se você for um pouquinho parecida comigo, e diga-lhes que seu namorado entrou no mato para fazer pipi.
- Não é improvável - concordou Karin, segurando na sua mão e evitando as árvores e a vegetação baixa junto com Latham. - Mais tipicamente americano do que francês, mas viável.
- Eu arrastarei nosso quase-assassino para dentro do arvoredo e limparei seus bolsos completamente. O relógio dele é melhor que o meu; levarei ele também.
Atingiram o caminho, o chafariz lá embaixo agora praticamente deserto, somente alguns observadores curiosos estavam espalhados nas suas extremidades. Vários deles olhavam frequentemente para os demais caminhos, obviamente à espera da polícia. Drew arrastou o cadáver pelos pés para dentro dos arbustos e revistou seus bolsos, tirando tudo que encontrara neles. Não se deu ao trabalho de procurar pela arma que quase dera um fim à sua vida; não lhes traria nenhuma informação. Depois de terminar, correu de volta ao caminho e a Karin, os gritos lá embaixo já se fazendo ouvir.
- Les gendarmes, les gendarmes! De l’autre côté!
- Où?
- Où donc?
Felizmente, em resposta às indagações de onde "do outro lado", por parte dos policiais, os civis remanescentes apontaram em várias direções, inclusive vários caminhos sombrios. Frustrados, os policiais se dividiram e desceram correndo por vários caminhos. Era o bastante; Latham e de Vries correram pelo espaço aberto do chafariz e subiram novamente o caminho norte até que ficasse plano, e se encontrassem no esplendor de jardins de verão circundando um pequeno lago artificial, onde cisnes brancos nadavam majestosamente sob a luz dos holofotes. Distinguiram um banco vazio, e com muito pouco fôlego sobrando nos pulmões de ambos, sentaram-se, suas colunas chocando-se contra os espaldares negros. Karin arrancou a peruca loura da cabeça e enfiou-a na sua bolsa, sacudindo o cabelo liberto.
- Assim que eu puder falar, ligarei para Witkowski - disse Drew, respirando fundo. - Como está sua mão. Doendo?
- Consegue pensar na minha mão numa situação igual a esta?
- Bem, eu agarrei-a lá atrás, porque você ainda segurava a arma com a mão esquerda e achei que aquela porra podia disparar se eu esticasse o braço para pegá-la... sua mão esquerda, é claro.
- Sei o que quer dizer. Não tive tempo então de guardá-la novamente na minha bolsa... Ligue para o coronel, por favor.
- Está bem. - Latham tirou de novo o celular do bolso e teclou, grato por poder ver os números claramente sob os holofotes do lago. - Stanley, conseguimos - disse ele.
- Alguém mais não conseguiu, rapaz - interrompeu o coronel. - E não sabemos como diabo aconteceu.
- De que está falando?
- Aquele neo de merda que pus num jato militar para Washington, às cinco desta madrugada.
- O que aconteceu?
- Chegou na Base Aérea de Andrews às três e meia da manhã, horário da capital, sob escuridão total, aliás, e foi morto a tiros sob escolta, quando se dirigia à área de espera.
- Como?
- Um rifle superpoderoso com luneta infravermelha, de um dos telhados. Naturalmente, nada foi encontrado.
- Quem procurou?
- Quem sabe? Tal como combináramos, passei a informação mínima necessária para os funcionários mais graduados de Knox Talbot, de que pegáramos um autêntico nazista e que o estávamos mandando de avião, e o resto.
- E então?
- Alguém contratou um assassino de aluguel.
- E nós onde ficamos?
- Definindo melhor as coisas, é aqui que estamos. Sabemos sobre os computadores AA, e agora temos mais quatro ou cinco diretores-adjuntos na lista. É assim que se faz, meu filho, vai se fechando portas até que sobrem apenas uma ou duas na sala.
- E quanto a mim, quanto a Paris?
- É um jogo de gato e rato, não é rapaz? Este Kroeger quer achar Harry - você - tanto quanto você quer achá-lo, não é verdade?
- Aparentemente, mas por quê?
- Só saberemos quando o pegarmos, não é?
- Você não está sendo um grande consolo...
- Não estou me esforçando muito para isso, compreenda bem. Quero você alerta cada minuto do dia e da noite.
- Muito obrigado, Stosh.
- Traga-me o que quer que tenha conseguido...
- Peguei tudo que havia - interrompeu Latham furiosamente. - Por isso não diga "o que quer". Só que me esqueci de pegar a merda do relógio!
- Gosto disso - disse o coronel. - Gosto de uma zanga em situações como esta. Minha casa, dentro de uma hora, e troque três vezes de condução.
15
As chamas lambiam o céu, labaredas explosivas que iluminavam a escuridão. O enorme complexo de Vaclabruck estava quase concluído, inclusive uma grande área derrubada, que descia de uma colina ligeiramente inclinada e que abrigava mil e quinhentos discípulos escolhidos da Brüderschaft vindos do mundo inteiro. Nenhuma nuvem vagava no céu noturno e as tochas enchiam aquela arena natural, tanto ao longo de seus limites quanto defronte à plataforma no topo da colina, sobre a qual ficava uma mesa de cinquenta metros de comprimento onde se sentavam os líderes. Havia um microfone na tribuna central, cujos fios iam se encontrar com vários alto-falantes dispostos pelo local, e encimando altos postes atrás da imponente mesa, iluminadas e desfraldadas ao vento, viam-se as bandeiras vermelho vivo e preta do Terceiro Reich, com uma espantosa diferença. Um raio branco atravessava as suásticas. Era a bandeira do Quarto Reich.
Uma série de oradores, todos envergando uniformes militares nazistas, já haviam falado, suas exortações levando a plateia a ruidosos clímaxes de fanático apoio. Finalmente, o penúltimo orador aproximou-se do centro da plataforma; ele agarrou a tribuna, seu olhos de fogo passeando sobre as fileiras cerradas, e falou com uma tranquila e reverberante autoridade.
- Vocês ouviram uma porção de coisas esta noite, os gritos daqueles que no mundo inteiro precisam de nós, exigem nossa presença, insistem que nós empunhemos a espada da ordem global, purificando as raças e eliminando o lixo humano e ideológico que polui o mundo civilizado. E estamos prontos!
O aplauso, pontuado por gritos em coro de apoio, fez o chão tremer, reverberando pela floresta circunvizinha. O homem uniformizado levantou a mão pedindo silêncio; este logo se fez e prosseguiu ele.
- Mas para nos liderar, precisamos de um Zeus, um Führer maior que o último - não quanto ao pensamento, pois ninguém supera Adolf Hitler na filosofia - mas quanto à força e determinação, um líder que derrube os tímidos e não se acanhe diante da cautelosa estratégia dos intelectuais militares; que golpeie os inimigos do progresso racial, e que saberá atacar no momento certo! A História provou que se o Terceiro Reich tivesse invadido a Inglaterra quando Herr Hitler ordenou aos seus exércitos que o fizessem, teríamos um mundo diferente e muito melhor do que temos hoje. Ele foi persuadido a não fazê-lo pelos diletantes privilegiados do corpo de Junkers. Nosso novo líder, nosso Zeus, jamais se submeterá a uma interferência tão covarde assim... Entretanto, e sei que isto será uma decepção, ainda não está na hora de revelar a sua identidade, nem a vocês. Por isso, ele gravou uma mensagem para todos e cada um de vós.
O penúltimo orador levantou o braço na saudação nazista. Ao recolhê-lo abruptamente, uma voz amplificada saiu dos alto-falantes em todos os lugares. Era uma estranha voz, medianamente grave, precisa e cortante, que exprimia cada consoante como se fosse um golpe de machado contra um lenho duro. De certo modo, evocava as diatribes de Hitler, no sentido da rápida sucessão e abundância de clímaxes histéricos, mas aí cessava a semelhança. Porque este orador pertencia mais à nossa época; os efeitos de choque dos seus clímaxes berrados eram precedidos de palavras frias, pronunciadas lenta e friamente, seguidas de súbitas explosões emocionais que emprestavam autoridade às suas conclusões. Suas arengas não perdiam a força pela expressão monocórdica berrada como as de Hitler; ao invés disso, eram coloridas pelo contraste, como se estivesse fazendo confidências à plateia, que sem dúvida compreendia cada argumento que ele desfiava, e recompensava a própria agudeza com gritos, confirmando os julgamentos que já haviam sido previamente feitos. A Era de Aquário há muito se fora, substituída pela era da manipulação. As lições da Madison Avenue foram aprendidas no mundo inteiro.
- Somos o início e o futuro nos pertence! Porém vocês o sabem, não sabem? Vocês que trabalham incansavelmente aqui na Pátria, e vocês que trabalham incansavelmente em países estrangeiros - podem ver o que está acontecendo, não podem? E não é magnífico? A mensagem que trazemos não só é aceita, como piamente desejada, desejada no coração e na mente de pessoas em todos os lugares - e vocês o constatam, ouvem-no, sabem-no!... Eu não posso vê-los, mas posso escutá-los, e aceito a sua gratidão, embora a meu ver ela se encontre deslocada. Eu sou apenas a voz de vocês, a voz dos justamente descontentes de todo o mundo civilizado. E compreendem isto, não compreendem? Vocês compreendem a agonia que sofremos em todos os lugares quando gente inferior nos obriga a pagar pela sua inferioridade! Quando homens e mulheres trabalhadores são roubados dos proventos que adquiriram através do árduo trabalho por aqueles que se recusam a trabalhar, ou que são incapazes de trabalhar, ou tão imbecilizados que não conseguem nem tentar! Seremos obrigados a sofrer por causa da sua indolência, da sua incompetência ou do seu desequilíbrio? Se assim for, os indolentes, os incompetentes e os desequilibrados governarão o mundo! Porque eles roubarão nossa liderança moral derrubando-nos, esvaziando nossos cofres em nome do humanitarismo - mas não, não se trata de humanitarismo, meus soldados, porque eles são lixo!... Mas não serão capazes nem farão isto, porque o futuro é nosso!
- Em todos os lugares nossos inimigos tornam-se cada vez mais confusos, espantados por aquilo que os varre, incertos sobre quem faz ou quem não faz parte de nós, no mais profundo de seu pensamento aplaudindo nosso progresso, apesar de negarem esses pensamentos. Continuem a marcha, meus soldados. O futuro é nosso!
Novamente o aplauso foi tonitroante e se misturou aos acordes do hino de Horst Wessel que encheram o enorme estádio esculpido na floresta. E numa última fileira pré-combinada, dois homens, que intercalavam aplausos com gritos de devoção, viraram-se um para o outro e falaram baixinho, cada qual reconhecendo as sobrancelhas opostas parcialmente raspadas.
- Que loucura - disse o francês em inglês.
- Meio parecido com aqueles documentários que vimos dos discursos de Hitler - acrescentou o holandês do Serviço de Informações Holandês.
- Acho que está errado, monsieur. Este Führer tem muito mais credibilidade. Ele não obriga a multidão a engolir seus argumentos através de constantes berros. Ele a leva onde quer fazendo perguntas aparentemente razoáveis. E de repente explode, dando-lhe as respostas que deseja ouvir. Compreende a dinâmica da coisa... é mesmo muito inteligente.
- Quem é ele, você sabe?
- Poderia ser qualquer um dos extremistas de direita do Bundestag, imagino. Conforme instruções, gravei sua voz para que nosso departamento possa fazer comparações das vozes, se o gravador ridiculamente pequeno no meu bolso estiver à altura da tarefa.
- Eu não entro em contato com o departamento há mais de um mês - deixou escapar o holandês.
- Nem eu, há seis semanas - disse o francês.
- Precisamos, no entanto, dar crédito aos nossos superiores. Os satélites detectaram a clareira na floresta do mesmo modo que os aviões de grande altitude revelaram os mísseis em Cuba há trinta anos. Não podiam aceitar a explicação de mais um opulento retiro religioso do Extremo Oriente, apesar dos documentos oficiais. Estavam certos.
- Meu pessoal se convenceu de que havia alguma coisa errada quando recrutaram operários de construção estrangeiros.
- Eu era um simples carpinteiro, e você?
- Um eletricista. Meu pai era dono de um magasin électrique em Lion. Trabalhei ali até ir para a universidade.
- Agora precisamos sair daqui, e não acho que a coisa será tão fácil assim. Este complexo não é nada mais do que um velho campo de concentração, arame farpado, torres com metralhadoras, e todo o resto.
- Tenha paciência, encontraremos um jeito, monsieur. Vamos nos encontrar no café da manhã, tenda seis. Precisa haver um jeito.
Os dois homens se afastaram um do outro, apenas para enfrentarem um semicírculo de homens uniformizados, com as túnicas trazendo o emblema do Quarto Reich, o raio branco atravessando a suástica.
- Já ouviram bastante, meine Herren? - perguntou um oficial, destacando-se dos guardas que confrontavam os dois estrangeiros. - Vocês se acham tão espertos, nicht wahr? Chegam até a conversar em inglês. - O soldado ergueu um pequeno aparelho de escuta, bastante comum nos círculos policiais e de informações. - Este é um excelente aparelho - prosseguiu o oficial. - Pode-se chegar a, digamos, duas pessoas numa multidão e ouvir todas as suas palavras, eliminando os ruídos externos. Admirável... Estavam ambos sendo observados desde o momento em que apareceram entre os privilegiados, os verdadeiros convidados, alegando com entusiasmo fazerem parte deles. Acham que somos tão pouco sofisticados assim? Acham que não tínhamos listas computadorizadas para averiguação? Antes de vocês surgirem, nós examinamos a força de trabalho estrangeira. Imaginem o que encontramos? Não importa, vocês sabem. Um carpinteiro holandês de poucas palavras e um eletricista francês especialmente rabugento.... Mitkommen! Zackig! Conversaremos por pouco tempo, e sinto muito que suas acomodações não sejam mais luxuosas, mas dentro em breve acharão a paz, seus despojos enterrados numa vala funda, junto com os demais vermes.
- Vocês são peritos nesse tipo de execução, não são?
- Lamento dizer, holandês, é que eu não estava vivo para ter participado. Mas nosso tempo, meu tempo, chegará.
Witkowski, Drew e Karin estavam sentados em volta da mesa de cozinha do coronel no seu apartamento na rue Diane. Os objetos que Latham tirara dos bolsos do neonazista morto jaziam espalhados em cima do seu tampo.
- Nada mal - disse o veterano do G-2 do Exército, pegando intercaladamente os objetos e examinando-os. - Eu vou lhe dizer uma coisa - prosseguiu ele - este filho da puta, filho de Siegfried, não esperava nenhuma confusão no Bois de Boulogne.
- Por que diz isto? - perguntou Latham, fazendo um gesto em direção ao seu copo de uísque vazio.
- Vá se servir sozinho. - O coronel ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça na direção do bar decorado com cobre, sob a arcada que levava à sala de estar. - Nesta casa, sirvo o primeiro, o resto é por sua conta. A não ser para as senhoras - pergunte à senhora, seu burro.
- Senhora é um termo pejorativo - disse Drew, levantando-se e olhando para Karin, que sacudiu a cabeça.
- O quê?
- Não ligue, coronel, é infantilidade dele - interrompeu de Vries. - Mas, por favor, responda à pergunta dele. Não existem documentos, nenhuma identificação; por que "nada mal?"
- Para dizer a verdade, é bastante bom. Ele lhe diria ele mesmo, se se desse ao trabalho de examinar o material, em vez de ficar entornando a garrafa.
- Eu bebi um drinque, Stosh! E muito bem merecido, porra, gostaria de acrescentar.
- Sei, rapaz, mas você ainda não olhou direito, não é?
- Olhei sim. Na hora em que espalhei tudo na mesa. Tem uma caixa de fósforos de um restaurante chamado Au Coin de la Famille, um canhoto de lavanderia da avenue Georges Cinq em nome de André - que não significa nada; um prendedor de notas de ouro com duas palavras encantadoras em alemão, eu presumo, e mais nada; outro recibo de um cartão de crédito, cujo nome e número são tão obviamente falsos, ou tão secretos, que levaríamos dias seguindo sua pista até nos encontrarmos em outro beco sem saída. Os bancos pagam; é só isso que os comerciantes querem e eles são pagos... O resto, admito, não examinei, mas o que listei foi resultado de aproximadamente oito segundos. Alguma coisa mais, coronel?
- Eu lhe disse, Sra. de Vries, mérito ele tem. Duvido até que chegasse aos oito segundos - está mais próximo dos cinco, pelas minhas contas, porque queria um drinque tão depressa.
- Estou impressionada - admitiu Karin. - Mas achou outras coisas, outros detalhes?
- Só dois. Um, outro, canhoto de conserto de uma loja de botas sob medida, também no nome de André, e o segundo um ingresso amarrotado de um parque de diversões nas vizinhanças de Neuilly-sur-Seine - um ingresso grátis.
- Nunca vi essas coisas! - protestou Latham, servindo-se de mais um drinque no bar.
- O que lhe dizem elas?
- Sapatos, especialmente botas, são coisas extremamente pessoais, Sra. de Vries.
- Por favor, pare de me chamar assim. Karin está ótimo.
- Está bem, Karin. Calçados são, como diria, idiossincráticos; um fabricante sob medida atende ao tamanho e formato especiais de um pé individual. Se alguém vai a uma loja deste gênero, já esteve lá antes, isto é, se sua permanência em Paris já for considerável. De outro modo, ele teria voltado a seu sapateiro original, compreende?
- Sim. E o parque de diversões?
- Por que ganhou um ingresso grátis? - aparteou Drew, trazendo seu drinque de volta à mesa e sentando-se. - Eu realmente não vi essas coisas, Stosh.
- Eu sei, chlopak, e não estou tentando te enganar, elas estavam aí.
- Então amanhã de manhã vamos cair em cima de um fabricante de botas e de alguém num parque de diversões que distribui ingressos de cortesia, o que não chega a ser exatamente uma tradição francesa. Jesus, eu estou cansado. Vamos para casa... Não, espere um minuto! E a armadilha que você armou na Sacré-Coeur?
- Que armadilha?
- A armadilha! O mensageiro dezesseis no alto do teleférico.
- Nunca ouvi falar disso. - Os dois homens olharam para Karin de Vries. - Você?
- Fiz isso para Freddie inúmeras vezes - disse Karin constrangida. - Ele costumava dizer, "Invente alguma coisa, quanto mais tolo melhor, porque somos todos uns tolos".
- Escutem só, vocês dois - disse Witkowski balançando a cabeça, em seguida olhando para Drew. - Tem certeza de que ninguém poderia ter seguido vocês até aqui?
- Relevarei o insulto e lhe darei minha resposta profissional. Não, seu filho da mãe, porque eu fui mais esperto do que apenas trocar três vezes de veículo, que poderia ter sido detectado eletronicamente, mas que você é por demais antediluviano para saber. Nossas trocas aconteceram no subsolo, no metrô, e não foram três e sim cinco. Compreendeu?
- Ah, gosto quando fica zangado. Minha santa mãe polaca sempre dizia que há verdade na ira. Que era a única coisa em que se podia confiar.
- Ótimo. Agora posso chamar um táxi que nos leve a ambos para casa?
- Não, isso é uma coisa que não pode fazer, meu rapaz. Já que ninguém sabe onde você está, permaneçam aqui, todos os dois. Tenho um quarto de hóspedes e aquele divã muito simpático ali... Suponho que o divã caberá a você, rapaz, e eu lhe agradeceria se não bebesse todo o meu uísque.
A equipe frustrada dos Blitzkrieger voltou ao quartel-general depois da "armadilha" na Sacré-Coeur, para encontrar apenas uma confusão formada. Só serviu para aumentar a ira dos assassinos de elite.
- Não havia ninguém! - cuspiu o mais velho Paris Cinco, jogando-se numa cadeira à mesa de reunião. - Nenhum homem ou mulher que de longe se parecesse com um contato! Fomos enganados. Um tolo e perigoso desperdício de tempo.
- Onde está o nosso tão brilhante líder, Zero Um? - perguntou outro membro da equipe, dirigindo-se aos três Blitzkrieger restantes, que não foram à Sacré-Coeur. - Pode ser que ele comande, no intervalo da troca de fraldas, mas nos deve uma explicação ou outra. Se fomos enganados, fomos indubitavelmente reconhecidos!
- Ele não está aqui - respondeu outro assassino neo, com o cotovelo em cima da mesa, sua voz uma mistura de tédio e cansaço.
- O que vocês estão dizendo? - gritou Paris Cinco, endireitando-se abruptamente. - A ligação das dez horas de Bonn. Ele precisava estar aqui para atendê-la.
- Não estava e não houve nenhuma ligação - disse outro.
- Não poderia ter sido feita na sua linha particular?
- Não, não podia e não foi feita - respondeu o Blitzkrieger cansado, cujo codinome era Zero Dois, Paris. - Quando ele não apareceu, eu me sentei na sua sala imunda, das nove e meia até quinze para as onze. Nada... Zero Um pode ser o grande queridinho dos nossos superiores, mas eu gostaria que ele tomasse banho com mais frequência. A sala é uma fedentina.
- Tomar banho afasta-o de seu trono e de todos os seus brinquedinhos.
- Ele é um garoto maluco dentro de uma loja de equipamentos eletrônicos...
- Cuidado - interrompeu outro ainda. - A dissidência não é bem vista, devo adverti-los.
- E a crítica legítima, não é? - insistiu Paris Cinco. - Onde está Um e por que não se encontra aqui? Suponho que vocês nem sequer tiveram notícias dele.
- "Supõe" corretamente, mas todos nós compreendemos o atrito entre vocês dois.
- Aceito, porém é irrelevante - disse Cinco, erguendo-se, sua figura magra dominando a mesa, apoiada em mãos fortes espalmadas. - Contudo, seu comportamento de agora é inaceitável, e exprimirei essa opinião a Bonn. Nossa equipe é enviada a uma falsa missão cheia de riscos...
- Todos nós ouvimos a fita da embaixada - interrompeu o cansado Paris Dois. - Concordamos que era prioritário.
- Certamente que sim, sobretudo eu. Mas em vez de liderar este ataque prioritário, nosso comandante Zero escolheu o secundário Bois de Boulogne, sob pretexto de que não conseguiria voltar da Sacré-Coeur a tempo para a ligação de Bonn. Não houve ligação nenhuma e ele não está aqui. Uma explicação é definitivamente necessária.
- Talvez não haja nenhuma disponível - comentou um Blitzkrieger que até então se mantivera calado, sentado na extremidade direita da mesa. - No entanto, houve outra chamada, do nosso informante na embaixada americana.
A equipe da Sacré-Coeur reagiu em bloco como gatos espavoridos. Novamente falou o Cinco.
- É absolutamente proibido que ele nos contate diretamente, especialmente por telefone.
- Achou que sua informação justificava a transgressão.
- Qual era ela? - perguntou o Três.
- O agente secreto, o coronel Witkowski.
- O coordenador - acrescentou Paris Dois em voz baixa. - Suas impressionantes conexões com Washington são bem sabidas por nosso... nosso pessoal de lá.
- Qual era ela? - insistiu Cinco.
- O nosso homem estacionou seu carro diante do apartamento do coronel na rue Diane. Foi puro instinto, baseado nas conversas grampeadas da viúva de Frederik de Vries na Pesquisa e Documentação.
- E?
- Há mais de uma hora um homem e uma mulher entraram depressa no prédio. Estavam encobertos pelo escuro e ele não conseguiu enxergar direito o homem, mas achou que o conhecia. A mulher ele conhecia. Era a viúva de Vries.
- O homem é Latham! - explodiu Paris Cinco. - Ela está com Harry Latham; não pode ser com mais ninguém. Vamos!
- Fazer o quê? - perguntou o cético Blitzkrieger Zero Dois.
- Completar a caçada que Um calculou errado.
- As circunstâncias são outras, e levando em consideração a experiência do coronel em matéria de segurança, o local é extremamente perigoso. Na ausência de Zero Um, sugiro que obtenhamos permissão de Bonn.
- Sugiro que não - interrompeu Paris Seis. - A operação Sacré-Coeur já bastou como um fiasco, por que abrir uma janela, muito menos uma porta? Se trouxermos a caça, isto apagará o fiasco.
- E se fracassarmos?
- A resposta a isso é óbvia - respondeu outro integrante da Sacré-Coeur, passando a mão direita pelo contorno do seu coldre sob o casaco, sua mão esquerda alcançando a gola, dentro da qual estavam costuradas três cápsulas de cianureto. - Podemos ter nossas diferenças, nossos atritos, se quiser, mas o básico é o nosso compromisso com a Brüderschaft e a instauração do Quarto Reich. Que ninguém perca de vista este compromisso.
- Acho que ninguém o está perdendo - disse o Dois. - Então você concorda com Paris Seis? Vamos a rue Diane.
- Certamente. Seríamos idiotas se não fôssemos.
- Apresentemos a Bonn um triplo assassinato que nossos líderes só poderão aplaudir - acrescentou o zangado e frustrado Paris Cinco. - Sem Zero Um, que já nos fodeu bastante. Quando voltar, poderá nos prestar obediência, do mesmo modo que a Bonn. Suspeito que, na melhor das hipóteses, ele será chamado de volta.
- Você realmente deseja comandar esta equipe, não deseja? - perguntou o Dois, levantando os olhos cansados para a imponente figura do Cinco.
- Sim - respondeu o assassino mais velho, mais velho porque atingira a idade de trinta anos. - Sou o mais velho e o mais experiente. Ele é um adolescente maluco que age e toma decisões antes de elaborar bem as coisas no pensamento. Eu devia ter recebido o cargo há três anos, quando fomos lotados aqui.
- E por que não recebeu? Afinal de contas, loucos somos todos nós, de maneira que a loucura não conta, não é?
- Que diabo está dizendo? - insistiu outro Blitzkrieger, endireitando-se no assento e olhando fixamente para Zero Dois.
- Não confundam o que digo, aprovo nossa loucura. Sou filho de diplomata, fui criado em cinco países. Vi em primeira mão aquilo que vocês só sabem de ouvir dizer. Nós estamos certos, absolutamente certos. Os fracos, os intelectuais e racialmente inferiores estão se infiltrando nos governos, em toda a parte; somente os cegos não enxergam isto. Não é preciso ser um historiador social para constatar o empobrecimento geral do nível intelectual, e não sua elevação. É por isto que temos razão... Porém minha pergunta a Paris Cinco começou esta digressão. Por que Zero Um foi escolhido, meu amigo?
- Sinceramente não sei.
- Deixe-me tentar explicar. Todo movimento precisa de seus fanáticos, suas tropas de choque que moram atrás da zona escura da loucura, que os compele a se atirarem contra barricadas intransponíveis, de modo a criarem um fato político ouvido em toda a terra. Em seguida desaparecem na retaguarda, suplantados - ou pelo menos deveriam ser suplantados - por gente superior. O erro mais grave do Terceiro Reich foi permitir que as tropas de choque, os bandidos, controlassem o partido e portanto a nação.
- Você é um pensador, não é, Dois?
- As teorias filosóficas de Nietzsche sempre me atraíram, especialmente sua doutrina do aperfeiçoamento através da afirmação pessoal e da glorificação moral dos dirigentes supremos.
- Você é muito instruído para meu gosto - disse Zero Seis - mas já ouvi essas palavras antes.
- É claro que sim. - Paris Dois sorriu. - Suas variações nos foram marteladas.
- Está perdendo tempo! - interrompeu Cinco, numa postura ereta, com os olhos ligeiramente vesgos, cravados no Dois. - Você é um pensador, não é? Nunca te ouvi falar tanto, especialmente sobre esses assuntos. Existe alguma coisa a mais sob as palavras? Talvez acredite que deveria comandar a equipe de Paris.
- Ah, não, você está enganado, não possuo as qualificações. Aquilo que posso ter na minha cabeça, me falta em termos de experiência prática, e também devido à minha juventude.
- Mas tem outra coisa...
- Tem mesmo, Número Cinco - interrompeu o Dois, seus olhares se cruzando. - Quando da instauração do nosso Reich, não tenho a mínima intenção de sumir numa obscura retaguarda - não mais do que você tem.
- Compreendemos um ao outro... Venham, escolherei a equipe para a rue Diane - seis homens. Dois de vocês ficam aqui para tomarem medidas de emergência, se forem necessárias.
Os seis escolhidos se levantaram da mesa, três deles indo até seus quartos para vestirem suéteres e calças pretas, os restantes Blitzkrieger ficando a estudar um grande mapa das ruas de Paris, concentrando-se na região da rue Diane. Os três assassinos envergando roupas especiais voltaram; a equipe testou suas armas, juntou o equipamento que Zero Cinco determinara e o telefone tocou.
- A situação tornou-se agora intolerável! - gritou o Dr. Gerhardt Kroeger. - Denunciarei vocês todos por total incompetência e recusa a manter contato com um membro da Brüderschaft do mais alto escalão.
- Então o senhor estaria trabalhando contra si mesmo - disse um controlado Zero Cinco. - Antes do final da noite, teremos terminado a caçada que o senhor tanto deseja, além de dois alvos adicionais. E neste processo o senhor teve um papel determinante, como Bonn terá a satisfação de saber.
- Disseram-me isto quase quatro horas atrás! O que aconteceu? Deixe-me falar com o jovem insolente que alega ser o líder de vocês.
- Gostaria de fazê-lo, mein Herr - respondeu o Cinco, escolhendo com cuidado suas palavras. - Infelizmente Zero Um, Paris, não manteve contato conosco. Escolheu perseguir uma fonte secundária, uma fonte altamente questionável, se me permite dizer, e ainda não chegou para relatar o que aconteceu. Para dizer a verdade, já está mais de duas horas atrasado.
- Uma fonte "questionável"? Ele disse que era a mais arriscada. Talvez algo lhe tenha acontecido.
- Nas delícias do Bois de Boulogne? Novamente, é muito improvável.
- Então, o que aconteceu no primeiro lugar, pelo amor de Deus?
- Nada mais que um engodo, mein Herr, mas minha equipe, a equipe de Zero Cinco, evitou-o. Entretanto, esta missão levou a uma terceira pista, esta incontestável, e que vamos perseguir agora. Antes do nascer do sol o senhor terá as provas da morte do alvo principal, com as recomendações sobre o modo de execução bem evidenciadas. Eu, Zero Cinco, mandarei entregar as fotos no seu hotel.
- Suas palavras me dão certo alívio; você pelo menos fala de uma maneira mais razoável do que aquele jovem maluco com olhos de serpente.
- Ele é jovem, mas muito apto quanto aos aspectos físicos de nosso trabalho.
- Sem uma cabeça em cima dos ombros, este tipo de talento não vale nada!
- Tendo a concordar, mas, por favor, mein Herr, ele é meu superior, de modo que nunca proferi as palavras que acabaram de ser ditas.
- Você não disse. Fui eu. Você apenas concordou com uma generalização... Qual é mesmo seu número? Cinco?
- Sim, senhor.
- Traga-me as fotografias e Bonn será informada de seu valor.
- O senhor é muito gentil. Precisamos ir agora.
Stanley Witkowski estava sentado no escuro, olhando através de uma janela para a rua lá embaixo. Seu rosto largo e duro estava imóvel, enquanto vez por outra colocava um par de binóculos infravermelhos nos olhos. O objeto de sua atenção era um automóvel parado no canto direito extremo do quarteirão, não mais do que a cem metros de distância da entrada de seu prédio de apartamentos. O que chamara a atenção do veterano agente da inteligência fora o vislumbre de um rosto no banco dianteiro, iluminado brevemente pela luz da rua. O rosto aparecia esporadicamente, em seguida retrocedia no escuro, como se o sujeito estivesse esperando alguém ou observando algo do lado oposto. A pressão oca no peito do coronel, pressão que já sentira centenas de vezes no passado, era um sinal para ser aceito ou negado com o passar dos minutos ou das horas.
Então aconteceu. O rosto apareceu novamente, mas havia um telefone contra o ouvido direito do sujeito. Ele parecia excitado, zangado, com a cabeça inclinada para cima, com o olhar dirigido para os andares superiores do prédio, do edifício de Witkowski. O observador então guardou o telefone, novamente zangado e frustrado. Era o suficiente para o coronel. Ele se levantou da cadeira e caminhou rapidamente para a porta do seu quarto, saindo para a sala de estar e fechando a porta atrás dele. Encontrou Drew Latham e Karin de Vries sentados no divã, e para sua grande satisfação, nas extremidades opostas dele; Witkowski detestava relacionamentos pessoais no trabalho.
- Oi, Stanley - disse Drew. - Você veio tomar conta da gente? Se for verdade, não há nada a temer. Estamos discutindo a situação pós-Guerra Fria e esta senhora não gosta de mim.
- Eu não disse isto - retrucou Karin, rindo ligeiramente. - Você não fez nada que fizesse com que eu o detestasse, e eu o admiro.
- Tradução: fui abatido, Stosh.
- Vamos esperar que esteja falando de modo figurado - disse o coronel friamente, seu tom de voz fazendo com que Drew parasse.
- De que está falando?
- Disse que não foi seguido, rapaz.
- Não fomos. Como poderíamos?
- Não tenho certeza, mas há um homem num carro na rua que me faz imaginar coisas. Ele falou no telefone e vive olhando aqui para cima. - Drew levantou-se depressa do divã e partiu para a porta do quarto de Witkowski. - Apague a luz antes de entrar aí, seu idiota - berrou Witkowski. - Não pode deixar nenhuma luz escapar pela janela. - Karin estendeu a mão e apagou a única luz em cima dela. - Boa menina - prosseguiu o agente da inteligência. - Os binóculos infravermelhos estão no peitoril, e fique abaixado, longe da vidraça. É o sedã do outro lado da rua, na esquina.
- Certo. - Latham desapareceu no quarto, deixando Witkowski e Karin sozinhos na relativa escuridão, já que somente a luz refletida das lâmpadas da rua fornecia a única iluminação existente.
- Está realmente preocupado não está? - perguntou Karin.
- Já vivi muito para não ficar preocupado - respondeu o coronel, ainda em pé. - E você também.
- Pode ser um amante ciumento, ou um marido bêbado demais para ir para casa.
- E também podia ser a fada madrinha procurando a caminha certa.
- Não estava sendo sarcástica, e não vejo nenhum motivo para que o senhor o seja.
- Desculpe. Sinceramente. Repetindo o que meu velho conhecido - amigo não seria exato, eu não estou na panelinha dele - Sorenson disse em Washington, "As coisas estão mudando rápido demais e ficando complicadas demais". Ele tem razão. Achamos que estamos preparados, mas não estamos. O movimento nazista está saindo da lama como larvas brancas de um monturo de lixo, muitas, de verdade, outras não, apenas pedacinhos de lixo branco. Quem é e quem não é? E como descobrirmos sem acusar todo mundo, obrigando os inocentes a provarem que não são culpados?
- O que seria tarde demais, depois das acusações terem sido feitas.
- Não poderia ter sido mais precisa, moça. Eu já vivi esta situação. Perdemos uma porção de agentes secretos e ultrassecretos. Nosso próprio pessoal traía suas identidades secretas, adulando políticos e os assim chamados jornalistas investigativos, nenhum dos quais sabia a verdade.
- Deve ter sido muito difícil para o senhor...
- As demissões-padrão incluíam frases como "Eu não preciso disto, capitão" ou major, ou seja lá o que fosse na época. E "Quem diabo você pensa que é para poder arruinar minha vida?" e a terrível, "Você limpa minha ficha ou apelarei para a balística e acabarei com toda a sua operação". Devo ter assinado cinquenta ou sessenta "relatórios confidenciais" afirmando que os indivíduos envolvidos eram extraordinários agentes secretos, muitos deles contendo mais lisonjas do que mereciam.
- Mas não depois do que fizeram com eles, com certeza.
- Talvez não, mas uma porção desses palhaços está agora na iniciativa particular, ganhando vinte vezes o que ganho devido a mística do seu emprego anterior. Vários dos tipos menores, que não conseguiriam decifrar nem o código de uma caixa de cereais, chefiam a segurança de grandes empresas.
- Isto parece uma piração, para usar um termo de gíria.
- Claro que é. Somos todos pirados. Não é o que fazemos, foi o que fizemos, não importa quão ridículo. Chantagem está na ordem do dia, de cima abaixo, minha cara.
- Por que o senhor mesmo não pediu demissão, coronel?
- Por quê? - Witkowski estava sentado na cadeira mais próxima, com os olhos postos na porta do quarto. - Deixe-me exprimi-lo deste modo, não importa quão arcaico possa parecer. Porque sou muito bom naquilo que faço, o que não conta muitos pontos a favor do meu caráter. Ser astuto e suspeitoso não são exatamente traços admiráveis, mas se aperfeiçoados e aplicados ao trabalho que faço, podem constituir vantagens. O cômico americano Will Rogers disse certa vez, "eu nunca encontrei um homem de quem não gostasse". E eu digo, nunca encontrei um homem no meu terreno de quem não suspeitasse. Talvez seja o meu lado europeu, a minha herança. Sou de descendência polaca; na realidade foi minha língua materna.
- E a Polônia, que contribuiu para as artes e a ciência mais do que a maioria dos outros países, já foi traída mais vezes do que eles - disse de Vries balançando a cabeça.
- Suponho que faça parte do negócio. Acho que você poderia dizer que já é inato.
- Freddie confiava no senhor.
- Gostaria de poder devolver o elogio. Eu jamais confiei no seu marido. Ele era um fusível em chamas que eu não podia controlar, que não podia apagar. Sua morte nas mãos da Stasi foi inevitável.
- Ele estava certo - disse Karin, alteando a voz. - A Stasi e seus semelhantes formam agora o núcleo dos nazistas.
- Seus métodos eram errados, sua raiva mal colocada. Ambos traíram sua identidade secreta e ele morreu por causa disso. Não queria nos ouvir, me ouvir.
- Eu sei, eu sei. Ele também não quis me ouvir... A essa altura, contudo, já não importava mais realmente.
- Não tenho certeza se estou entendendo.
- Freddie tornou-se violento, não só comigo mas com todo mundo que discordava dele. Ele tinha uma tremenda força, treinado pelos seus comandos na Bélgica, e veio a acreditar que era invencível. No final, era tão fanático quanto seus inimigos.
- Então você deve compreender por que eu disse que nunca confiei no seu marido.
- Naturalmente. Nosso último mês em Amsterdã foi uma época que eu não gostaria de reviver.
De repente a porta do quarto de Witkowski foi aberta com força, e Latham surgiu no vão.
- Bingo! - gritou ele. - Você tinha razão, Stanley. Aquele filho da puta lá na rua é o Reynolds, Alan Reynolds do centro de comunicações!
- Quem?
- Quantas vezes você já desceu até o centro de comunicações, Stosh?
- Não sei. Talvez três ou quatro vezes no último ano.
- Ele é o informante secreto. Vi seu rosto.
- Então algo está prestes a acontecer, e sugiro que tomemos medidas defensivas.
- O que vamos fazer e por onde começamos?
- Sra. de Vries, Karin, poderia fazer o favor de ir até a janela do meu quarto e manter-nos informados dos desdobramentos?
- Já estou indo - respondeu Karin, levantando-se do divã e correndo para o quarto do coronel.
- E agora? - perguntou Drew.
- O óbvio - respondeu Witkowski. - Primeiro as armas.
- Tenho uma automática com um pente cheio. - Latham tirou a arma do cinto.
- Eu lhe darei outra com um pente de reserva.
- Está esperando o pior então?
- Venho esperando-o há quase cinco anos agora, e se você também não o espera, não é de admirar que seu apartamento tenha sido destroçado.
- Bem, tenho este instrumento que impede que qualquer um abra a porta.
- Sem comentários. Mas se os filhos da puta mandarem dois ou três atrás de você, que beleza, eu certamente gostaria de despachar uns dois para Washington. Compensaria aquele que perdemos lá.
O coronel dirigiu-se até uma impressionante gravura de Mondrian na parede e fê-la girar, revelando um cofre. Girou a fechadura, abriu o grande cofre e tirou dele duas armas de mão e uma Uzi, que prendeu no seu cinto. Jogou uma automática para Drew, que ele agarrou, e depois um pente, que ele errou, deixando-o cair no chão.
- Por que não jogou ambos ao mesmo tempo? - disse um irritado Drew, se inclinando para apanhar o pente.
- Queria testar seus reflexos. Não foram ruins, nem bons.
- Você também marcou a garrafa?
- Não precisei. Contando o que sobrou no seu copo, você tomou talvez uns cinquenta mililitros durante a última hora. Mas é um cara grandão, como eu, dá pra aguentar.
- Obrigado, mãe. Agora que diabo vamos fazer?
- A maior parte já foi feita. Eu simplesmente tenho que ativar meu sistema de segurança externo. - Witkowski foi até a pia da cozinha, desatarrachou a torneira cromada do centro, enfiou os dedos no buraco, e puxou dois fios; cada extremidade estava encapada com um pequeno terminal plástico. Ele quebrou os selos e juntou os fios; cinco bips altos encheram os cômodos vizinhos. - Aí estamos - disse o coronel, recolocando a torneira e voltando para a região da sala de estar.
- Onde estamos nós, Ó Mago?
- Vamos começar pelas escadas de incêndio; nestes velhos prédios existem duas - uma no meu quarto, a outra ali na alcova, que eu tolamente chamo de minha biblioteca. Estamos no terceiro andar e o prédio tem sete. Ao ativar meu sistema de segurança, as escadas de incêndio entre a parte de cima do segundo andar e a parte de baixo do quarto ficam eletrificadas, com uma voltagem suficientemente alta para desacordar, mas não matar.
- Imagine se os vilões, sejam lá quem forem, simplesmente subam pela escada ou tomem o elevador?
- É óbvio que a gente precisa respeitar a privacidade e os direitos civis dos nossos vizinhos. Existem mais três apartamentos neste andar. Meu apartamento fica no quadrante esquerdo de frente, a porta a vinte metros do vizinho mais próximo à direita. Você provavelmente não notou, mas tem uma passadeira oriental grossa, bastante atraente, que vai até a minha porta.
- E quando você liga seu sistema de segurança - interrompeu Latham - algo acontece quando o bandido pisa no tapete, não é isso?
- Você acertou na mosca. Holofotes de quatrocentos watts são ligados, acompanhados de uma sirene que pode ser ouvida na place de la Concorde.
- Você não pegará ninguém deste jeito. Correrão até não poder mais.
- Não pelas escadas de incêndio; e se usarem a escada, acabarão recebidos pelos nossos braços abertos.
- O quê? Como?
- No andar de baixo existe um patife, um húngaro que trabalha, digamos, com joias desapropriadas. Ele mal passa de um escroquezinho e não faz grande mal, e tornei-me amigo dele. Um telefonema, ou uma batida na porta, e ficamos esperando dentro de seu apartamento. Quem quer que venha correndo pelas escadas, receberá balas nas pernas - confio que seja bom de pontaria, eu não quero ninguém morto.
- Coronel! - A voz de Karin vinda do quarto era enfática. - Um furgão acabou de encostar na frente do carro; há homens desembarcando... Quatro, cinco, seis - seis homens de roupas escuras.
- Eles realmente querem te pegar, rapaz - disse Witkowski, enquanto ele e Drew corriam para o quarto, juntando-se a Karin na janela.
- Um par deles está carregando mochilas - disse Latham.
- Um deles está falando com o motorista do carro - acrescentou de Vries. - Obviamente está dizendo que vá embora. Ele está dando marcha à ré.
- Os outros estão se espalhando, examinando o prédio - completou o coronel, pegando no braço de Karin, obrigando-a a virar-se para ele. - O rapaz e eu vamos sair. - Os olhos da mulher brilharam de espanto. - Não se preocupe, estaremos bem lá embaixo. Feche a porta do quarto e ponha a tranca; é feita de chapas de aço e ninguém poderia arrombá-la sem um caminhão ou um aríete empurrado por dez homens.
- Pelo amor de Deus, chame a polícia, ou pelo menos a segurança da embaixada! - Drew estava calmo, porém firme.
- A não ser que eu me engane redondamente, meus amigáveis vizinhos chamarão a polícia, mas não antes de você e eu termos uma oportunidade de agarrar nós mesmos um ou dois desses filhos da puta.
- E você os perderia se envolvesse nossa segurança - interrompeu Karin. - Seriam obrigados a cooperar com a polícia, que prenderia todo mundo.
- Você é muito perspicaz - concordou Witkowski, balançando a cabeça na sua direção, na pouca luz vinda da rua. - Ouvirá uma sirene alta do hall, e provavelmente muitas descargas elétricas das escadas de incêndio...
- Foram eletrificadas. Você ligou a corrente.
- Você sabia disto? - perguntou Latham, espantado.
- Em Amsterdã, Freddie fez a mesma coisa com a nossa.
- Eu ensinei a ele - disse o coronel sem alterar a voz. - Vamos lá, chlopak, não podemos perder tempo.
Oitenta e cinco segundos mais tarde, o irritado húngaro fora persuadido a aceitar o preço que lhe fora oferecido pelo influente americano que intercedera por ele no passado e que poderia ser útil no futuro. Witkowski e Drew ficaram atrás da porta do vizinho de baixo, aberta menos de dois centímetros. A espera revelou-se interminável, e passaram-se quase oito minutos.
- Tem algo errado - cochichou o coronel. - Não faz sentido.
- Ninguém subiu as escadas e não houve nenhuma descarga elétrica em nenhuma das duas escadas de incêndio - disse Latham. - Talvez ainda estejam estudando o prédio.
- Isso também não faz sentido. Esses velhos edifícios são livros abertos, e como livros numa prateleira, ficam juntos... Meu Deus, "juntos..." As mochilas!
- De que está falando?
- Sou um burro completo, é isso. Eles trouxeram ganchos de alpinismo e cordas! Estão atravessando de um prédio para outro e descendo pelo lado externo. Fora! Lá para cima o mais rápido possível. E pelo amor de Deus, não pise no tapete!
Karin estava sentada no escuro, afastada da janela, sua arma na mão, à escuta dos ruídos elétricos de alta voltagem lá de fora. Nenhum foi ouvido, e já se haviam passado agora quase dez minutos desde que o coronel e Latham se foram. Ela começou a pensar. Witkowski, segundo ele mesmo admitira, suspeitava de tudo e de todos quase ao ponto da paranoia, e Drew estava exausto. Seria possível que todos eles estivessem errados? Teria o coronel tomado um amante ciumento ou um marido amedrontado por algo sinistro? E teria o exausto Latham visto um rosto que o lembrava de Alan Reynolds do centro de comunicações, mas que na realidade pertencia a alguém bem diferente? Seriam os homens do furgão, homens que se moviam com tanta rapidez que deveriam ser jovens, apenas um grupo de universitários de volta de uma excursão para acampar ou de alguma farra na noite parisiense? Ela largou a arma numa pequena mesa ao lado da cadeira e se espreguiçou, a cabeça esticada para trás, bocejando. Meu Deus do céu, ela precisava dormir.
E então, como uma enorme combinação do trovão com o relâmpago, uma figura entrou voando pela vidraça da janela, arrebentando o vidro e a madeira, aterrissando de pé e largando uma corda. Karin pulou da cadeira, recuando instintivamente, sua mão direita enfaixada tateando por alguma coisa, por qualquer coisa. E em seguida chegou outra silhueta, outro audaz intruso a escorregar pela sua corda até parar perto da cama.
- Quem são vocês? - gritou de Vries em alemão, tentando coordenar alguns pensamentos, percebendo que sua arma estava na mesinha. - O que querem aqui?
- Você fala alemão - disse o primeiro invasor - por isso sabe o que queremos! Por que outro motivo falaria a nossa língua?
- É a minha segunda língua, e muito pouca gente entende minha língua materna, o valão. - Karin foi andando em círculo, aproximando-se da mesa.
- Onde está ele, Sra. de Vries? - perguntou ameaçadoramente o segundo homem perto da cama. - Vocês não conseguirão sair daqui, sabe disso. Nossos camaradas bloquearão sua passagem. Estão subindo agora. Estavam apenas esperando nosso sinal, que era a própria janela.
- Eu não sei de que vocês estão falando! Já que sabem quem sou, será que ficarão chocados em saber que tenho um caso com o dono deste apartamento?
- A cama está vazia, ninguém dormiu nela...
- Tivemos uma briga de casal. Ele bebeu demais e brigamos. - Karin estava agora com a arma a seu alcance, e nenhum dos nazistas tinha se dado ao trabalho de tirar a sua do coldre. - Vocês nunca tiveram brigas assim com suas mulheres? Se não, são apenas crianças! - Ela mergulhou em direção à arma, agarrou-a e atirou no primeiro neo, enquanto o segundo aturdido abria seu coldre. - Pare se não morre! - disse de Vries.
Ao dizer isto, a porta do quarto de lâminas de aço se escancarou, batendo contra a parede.
- Ah, meu Deus! - berrou Witkowski, acendendo a luz. - Ela pegou um vivo.
- Pensei que precisasse de um caminhão ou um aríete para se entrar aqui - disse Karin, visivelmente alarmada.
- Não se você tem netos que vêm te visitar em Paris; eles são muito brincalhões. Há um botão escondido no portal. - Foi só até onde o coronel chegou. Uma sirene altíssima começou a tocar, tão alta que alguns segundos depois haviam luzes acesas nos prédios próximos.
- Estão vindo para impedir que vocês deixem o prédio! - gritou de Vries.
- Vamos dar-lhes as boas-vindas, rapaz - disse Witkowski. Ele e Latham correram pela sala de estar até a porta da frente. O coronel abriu-a, ficando ele e Drew escondidos atrás dela. Dois homens entraram correndo, com suas armas disparando em fogo rápido, arrebentando tudo a sua frente. O coronel e Drew miraram, e dando três tiros cada um, arrebentaram os braços e as mãos dos assassinos. Eles desmaiaram, gemendo e se contorcendo. - Cubra-os! - gritou Witkowski, correndo até a cozinha. Segundos depois a sirene parara e as luzes no hall foram desligadas. O coronel voltou, dando ordens rapidamente, enquanto se podia ouvir passos cada vez mais fracos a descer pelas escadas do corredor. - Vamos amarrar esses filhos da puta e jogá-los no banheiro social junto com o outro vivo que está no meu quarto. Daremos aos gendarmes o filho da puta que Karin mandou para Valhalla.
- A polícia vai querer saber o que aconteceu, Stan.
- Até amanhã, esta manhã, isto será problema deles. Eu só preciso mexer uns pauzinhos e botar este rebotalho num de nossos supersônicos até Washington. Sem contar a ninguém, a não ser a Sorenson.
De repente ouviu-se um grito vindo do quarto; era Karin. Drew passou correndo pela porta e viu-a, com a arma de lado, a olhar fixamente para a figura inerte, de olhos arregalados, em cima da cama.
- O que aconteceu?
- Não tenho certeza. Ele pegou sua gola e mordeu-a. Segundos depois desmaiou.
- Cianureto. - Latham pegou a garganta do neo para sentir seu pulso. - Deutschland über Alles - disse ele baixinho. - Fico imaginando se o pai e a mãe desse garoto se orgulhariam. Meu Deus, espero que não.
16
Com as mãos e antebraços enfaixados, os colarinhos da camisa arrancados, Zero Cinco, Paris, estava sentado, junto com Paris Dois, nas apertadas acomodações do jato que voava por cima do Atlântico rumo a Washington. Era improvável que fossem executados, pensou o Cinco; os americanos eram fracos neste terreno, especialmente se um prisioneiro parecia irracional ou arrependido. Ele sacudiu o erudito Zero Dois, que cochilava.
- Acorde - disse em alemão.
- Was ist?
- O que deveremos fazer quando chegarmos? Tem alguma ideia?
- Umas duas - respondeu o Dois a bocejar.
- Vamos escutá-las.
- Os americanos são, por natureza, chegados à violência, embora seus líderes afirmem o contrário. Igualmente inata, é uma tendência para farejar conspirações, não importa quão remotas. Nossos líderes têm as suas amantes, quem se importa? Quando os líderes deles se divertem com uma puta, veem-se de repente presos aos maiorais do crime. Será que esses homens precisam realmente de criminosos para arranjarem essas mulheres para eles? É ridículo, mas os americanos acreditam; seu puritanismo hipócrita rejeita a lei natural. Uma vida monogâmica simplesmente não faz parte da natureza do macho humano.
- Que diabo está dizendo? Não está me respondendo.
- Certamente que sim. Quando chegarmos lá, iremos alimentar a hipocrisia deles, além da sua necessidade de conspirações.
- Como?
- Acreditam, ou certamente devem acreditar a esta altura, que somos uma facção de elite da Brüderschaft, e de certo modo somos, embora não da maneira como acham. O que devemos fazer é fingir que somos realmente importantes. Que temos ligações com os devotos de Bonn, que nos consideram as verdadeiras tropas de choque, que confiam em nós porque precisam da gente.
- Mas não fazem isto. Nós não temos nomes, somente dígitos que mudam duas vezes por semana. Os americanos vão nos submeter a drogas e ficarão sabendo.
- Hoje em dia o soro da verdade não é considerado mais confiável do que a hipnose nos círculos sofisticados; a gente pode ser, de modo geral, programada para resistir-lhes. A inteligência americana sabe disto.
- Não fomos programados.
- Por que haveríamos de ser? Como disse, não temos nomes, somente dígitos que nos autorizam a dar prosseguimento às nossas ordens. Se formos submetidos a produtos químicos e revelarmos estes inúteis dígitos, eles ficarão apenas mais impressionados.
- Ainda não está me respondendo. Gostava mais de você quando falava menos e era menos erudito. Como lidar com os americanos?
- Primeiro, reconhecemos nossa importância, nossos estreitos laços com a liderança, tanto na América quanto na Europa. Em seguida, relutantemente, também confessamos que existe um grau bastante grande de hipocrisia nas nossas ações. Nossos estilos de vida são extravagantes - residências caras, escondidas, fundos ilimitados, as mais sensuais mulheres, toda vez que as desejamos. As fantasias de todo rapaz são a nossa realidade, e a causa que torna isto possível é a causa pela qual trabalhamos, não necessariamente uma causa pela qual morreríamos.
- Muito bom, Dois, muito convincente.
- É a base. Daí atenderemos à necessidade conspirativa deles. Voltaremos a frisar nossa importância, nossa influência, o fato de sermos constantemente consultados e de estarmos, nestes dias de viagens supersônicas, constantemente em contato com nossos companheiros no mundo inteiro.
- Especialmente nos Estados Unidos, é claro - disse Zero Cinco, Paris.
- Claro. E a informação que temos - determinados nomes, e na falta deles, cargos tanto no governo quanto na iniciativa privada - é verdadeiramente alarmante. Homens e mulheres que eles jamais imaginariam são simpatizantes da Irmandade da Vigília.
- Isto já está sendo feito agora.
- Pois nós elevaremos esse processo a novas alturas. Afinal de contas, ninguém ainda o ouviu de fonte limpa. Se nossos computadores estão certos, e acredito que estejam, somos os primeiros da nova elite nazista a serem capturados vivos. Na realidade, somos troféus, prisioneiros de guerra do mais alto valor. Podem até nos conceder privilégios especiais se aparentarmos vacilar. Chego a esperar com alguma satisfação os próximos dias.
Zero Quatro e Sete, sobreviventes quase-histéricos da rue Diane, entraram de chofre no quartel-general dos Blitzkrieger no complexo dos Armazéns Avignon, tentando controlar de alguma maneira suas emoções, mas sem grande êxito. Seus dois companheiros remanescentes estavam na sala de conferência - um à mesa, outro servindo café.
- Estamos liquidados! - gritou o impulsivo Zero Quatro, jogando-se sem fôlego numa cadeira. - Foi um pandemônio!
- O que aconteceu? - O Blitzkrieger que servia café deixou cair a xícara.
- Não foi nossa culpa. - Paris Sete, que permanecia em pé, resistia, num tom de voz alto e defensivo. - Era uma armadilha, e Cinco e Dois entraram em pânico. Correram para dentro do apartamento disparando suas armas...
- Em seguida ouvimos tiros diferentes e eles caindo - interrompeu Zero Quatro, com os olhos esgazeados. - Provavelmente estão mortos.
- E os outros, os dois que escalaram o prédio até a janela?
- Não sabemos, não havia como sabermos!
- O que faremos agora? - perguntou o Sete. - Alguma notícia de Zero Um?
- Nada.
- Um de nós precisa tomar seu lugar e entrar em contato com Bonn - disse o assassino de elite perto do café.
Em bloco, os três restantes sacudiram com ênfase suas cabeças.
- Seremos executados - disse o Quatro, calma e normalmente. - Os líderes o exigirão, e falando pessoalmente, não vou morrer pelos erros dos outros, pelo pânico deles. Se fosse eu responsável, tomaria de bom grado o cianureto, mas não sou, nós não somos!
- Mas que podemos fazer? - repetiu o Sete.
O ereto Quatro caminhou pensativamente em volta da mesa, parando diante do Blitzkrieger ao lado da máquina de fazer café.
- Você é quem toma conta do nosso dinheiro, não é?
- Sim, sou eu.
- Quanto temos?
- Vários milhões de francos.
- Pode obter mais, depressa?
- Nossos pedidos de fundos não são questionados. Fazemos uma ligação e eles nos são enviados. Mais tarde os justificamos, tendo naturalmente consciência das consequências se forem por pretextos falsos.
- As mesmas consequências que agora enfrentamos, certo?
- Essencialmente, sim. A morte.
- Faça sua ligação e peça o máximo que puder. Talvez valha a pena insinuar que temos o presidente da França ou o presidente da Câmara dos Deputados no nosso bolso.
- Isso permitiria o máximo. A transferência seria imediata, mas só disporíamos dos fundos quando o banco algeriano abrisse... Já passa das quatro agora; o banco abre às nove.
- Menos de quatro horas - disse Zero Sete a olhar fixamente para Zero Quatro. - Em que está pensando?
- No óbvio. Se ficarmos aqui, enfrentaremos a execução... O que estou prestes a dizer poderá lhes fazer vomitar, mas eu adianto que somos mais úteis vivos para a nossa causa, do que mortos. Especialmente quando a nossa morte é fruto da incompetência alheia; ainda temos muito que oferecer a ela... Eu tenho um tio idoso que mora nos arredores de Buenos Aires, a cento e dez quilômetros do Rio de la Plata. Ele foi um dos muitos que fugiu da destruição do Terceiro Reich, mas a família ainda tem a Alemanha na conta de santa. Temos passaportes, podemos voar até lá e a família nos dará proteção.
- É melhor do que a execução - disse o Sete.
- Execução injusta - acrescentou solenemente o Blitzkrieger à mesa.
- Mas será que podemos ficar cinco horas fora do ar? - perguntou o assassino/contador.
- Podemos se arrancarmos os fios telefônicos e partirmos - respondeu o Quatro. - Vamos arrumar o que precisamos, queimar o que precisa ser destruído, e dar o fora daqui. Um longo dia e uma noite nos esperam. Depressa! Amassem as pastas e todos os demais documentos, enfiem-nos nas cestas metálicas de papéis e queimem-nos.
- Estou até antecipando um pouco a coisa - disse um aliviado Zero Sete.
Os últimos fiéis haviam achado uma brecha conveniente no seu compromisso, e quando a primeira cesta de papéis foi incendiada, o contador abriu uma janela para deixar sair a fumaça.
Knox Talbot, diretor da CIA, abriu a porta da frente para Wesley Sorenson. Era no início da noite, o sol da Virgínia descendo sobre os campos da propriedade de Talbot.
- Bem-vindo a essa humilde casa, Wes.
- Humilde porra nenhuma - disse o chefe das Operações Consulares, entrando. - Você possui metade do estado?
- Só um pedaçozinho. O resto deixo para os brancos.
- Realmente, é muito bonito, Knox.
- Não irei contestar o fato - concordou Talbot, conduzindo-os através de uma sala de estar luxuosamente mobiliada, até um enorme jardim de inverno. - Se você quiser e tiver tempo, eu lhe mostrarei o celeiro e o estábulo. Tenho três filhas que se apaixonaram por cavalos até o momento em que descobriram os rapazes.
- Que diabo - exclamou Sorenson, sentando-se. - Tenho duas filhas que fizeram a mesma coisa.
- Elas te deixaram depois de encontrarem maridos?
- Bem, voltam de vez em quando.
- Mas te deixaram com os cavalos.
- Foi sim, meu amigo. Felizmente minha mulher os adora.
- A minha não. Como não cansa de frisar, ter crescido na rua 145 do Harlem não preparou-a exatamente para ter uma propriedade rural com cocheiras. Ela me permite mantê-los porque atraem as garotas de volta, às vezes até demais... Posso lhe oferecer um drinque?
- Não, obrigado. Meu cardiologista me permite oitenta mililitros por dia, e já bebi cem. E depois irei para casa, o que resultará nuns cento e cinquenta, junto com minha mulher.
- Então ao trabalho. - Talbot inclinou-se em direção a um porta-revistas de vime e tirou uma pasta de bordas pretas. - Primeiro os computadores AA - disse ele. - Não havia nenhuma, mas nenhuma pista mesmo em que eu pudesse trabalhar. Não questiono Harry Latham e sua fonte, mas se estiverem certos, a coisa está tão escondida que precisaríamos de um arqueólogo para desenterrá-la.
- Eles estão certos, Knox.
- Não duvido, por isso enquanto continuo a cavar, substituí a equipe toda, como parte de uma nova política de rodízio de funções. Para expandir o acesso a escalões superiores, foi como eu a expliquei.
- Como foi aceito?
- Não muito bem, mas sem objeções visíveis, pelas quais eu estava, é claro, procurando. Naturalmente a ex-equipe está debaixo de um microscópio.
- Naturalmente - disse Sorenson. - E quanto a este Kroeger, Gerhardt Kroeger?
- Isso é muito mais interessante. - Talbot passou várias páginas do fichário. - Para começar, ele era aparentemente algum tipo de gênio no campo da neurocirurgia, não só na remoção de tumores delicados, mas na eliminação de "tensões subcutâneas" que curavam doentes mentais.
- Era? - perguntou Wesley Sorenson. - O que quer dizer com era?
- Ele desapareceu. Pediu demissão do cargo de chefe-adjunto de neurocirurgia no Hospital de Nuremberg com a idade de quarenta e três anos, alegando estresse, incapacidade psicológica de continuar operando. Casou-se com uma destacada enfermeira cirúrgica chamada Greta Frisch, e a última coisa que ouviram falar deles - o último vestígio, de fato - é que tinham emigrado para a Suécia.
- O que dizem as autoridades suecas?
- É muito interessante. Possuem o registro de sua entrada em Göteborg, quatro anos atrás, ostensivamente numa viagem de turismo. A ficha do hotel revela que ele e sua mulher passaram dois dias e partiram. A trilha acaba aí.
- Ele voltou - disse o diretor das Operações Consulares. - Na realidade, presumo, ele nunca se afastou. Encontrou uma outra causa além de devolver a saúde aos doentes.
- Que diabo poderia ser, Wes?
- Não sei. Talvez adoecer pessoas. Simplesmente não sei.
Drew Latham abriu os olhos, aborrecido com os barulhos da rua, mais altos devido à janela quebrada do quarto de dormir. Witkowski, junto com uma escolta de fuzileiros navais, levara os prisioneiros nazistas até o aeroporto, e alguém tinha que permanecer no quarto do coronel. Uma janela aberta era por demais convidativa. Lentamente, Drew deslizou até o lado oposto da cama e se pôs de pé, evitando cautelosamente cacos de vidro. Pegou sua camisa e calças de uma cadeira, vestiu-as e andou até a porta. Abriu-a e viu Witkowski e de Vries do outro lado da sala de estar, numa mesa na alcova, tomando café.
- Já levantaram há muito tempo? - perguntou, sem realmente se importar.
- Deixamos você dormir, querido.
- Lá vem você de novo com esse "querido". Não acredito sinceramente que deseje que eu o tome por uma expressão de carinho.
- É uma expressão, Drew - disse Karin. - Você foi formidável a noite passada, nesta manhã.
- Mas naturalmente o coronel foi melhor.
- Naturalmente, mas você fez bonito, rapaz. Você é um cara tranquilo na hora de encarar o inimigo.
- Você acreditaria, coronel, que já fiz isto antes? Não que me orgulhe, foi apenas uma questão de sobrevivência.
- Venha - disse de Vries. - Vou pegar café para você. Sente-se. - Ela se dirigiu para a cozinha. - Sente na terceira cadeira.
- Aposto que ela não me daria a dita cuja, mesmo se fosse dela - disse Latham, tropeçando ao atravessar a sala. - Então, o que aconteceu, Stosh? - perguntou ele, sentando-se.
- Tudo que queríamos, rapaz. Às cinco da madrugada botei nossos sacos de merda num jato para a capital e ninguém, a não ser Sorenson, saberá.
- O que quer dizer com saberá? Não falou com Wes?
- Falei com a mulher dele. Conheci-a uma vez e ninguém poderia imitar aquele sotaque meio americano, meio britânico. Eu disse a ela para dizer ao diretor que chegaria um pacote em Andrews às quatro e dez da manhã, no horário deles, sob o nome em código de Peter Pan Dois. Ela me disse que transmitiria isso a ele na hora em que chegasse.
- Isso está muito solto, Stanley. Devia ter pedido uma confirmação.
O telefone do apartamento tocou. O coronel se levantou e atravessou rapidamente a sala; atendeu-o.
- Sim? - Ficou escutando por seis segundos e desligou. - Era Sorenson - disse ele. - Estão com um pelotão de fuzileiros no chão e nos telhados. Alguma coisa mais, Sr. Agente?
- Sim - respondeu Latham. - Desistimos do fabricante de botas e do parque de diversões?
- Acho que deveríamos sim - respondeu Karin, trazendo o café de Drew e sentando-se. - Dois neos morreram, e dois estão a caminho da América. Os outros fugiram, eram mais dois, pelas minhas contas.
- Seis ao todo - concordou Drew. - Não chegavam a um pelotão - acrescentou olhando para Witkowski.
- Nem mesmo metade de um. Quantos mais haverão?
- Vamos tentar descobrir. Eu fico com o parque de diversões...
- Drew - gritou de Vries, interrompendo abruptamente.
- Você não vai ficar com nada - acrescentou o coronel. - Parece que não possui uma memória a curto prazo, rapaz. Eles querem você - ou melhor dizendo, Harry - em cima de uma mesa de mármore com rigor mortis, se lembra?
- O que esperam que eu faça, que abra um bueiro e me esconda nos esgotos?
- Não, vai ficar bem aqui. Mandarei dois fuzileiros guardarem as escadas e um carpinteiro para consertar a janela.
- Se não se importa, eu gostaria de ser útil.
- Pois será. Esta será sua base temporária e você será o contato.
- De quem?
- De quem quer que eu lhe diga. Eu ficarei lhe telefonando pelo menos de hora em hora.
- E eu? - perguntou Karin apreensiva. - Posso ser útil na embaixada.
- Eu sei, especialmente na minha sala, com um guarda na porta. Sorenson conhece você e sem dúvida Knox Talbot também. Se qualquer um deles quiser falar comigo no meu telefone seguro, tome os recados e transmita-os para o nosso amnésico aqui, que eu os pegarei dele. Agora, se eu pudesse imaginar uma maneira de te fazer chegar lá, já que pode haver elementos hostis na rua.
- Talvez eu possa lhe ajudar a nos ajudar. - De Vries inclinou-se para apanhar sua bolsa ao lado da cadeira, levantou-se e partiu para o quarto. - Isto só levará um minutos ou dois, mas requer um pouco de engenho e arte.
- O que ela está fazendo? - perguntou Witkowski, enquanto Karin passava pela porta.
- Acho que sei, mas não quero estragar a surpresa dela. Talvez então você a promova a sua assistente.
- Eu poderia lazer pior. Freddie ensinou-lhe uma porção de truques.
- Que você ensinou a ele.
- Só a da escada de incêndio; o resto ele mesmo inventava e botava a gente no chinelo... quase todos nós, com a possível exceção de Harry.
- O que vai acontecer quando ela deixar a embaixada, Stanley?
- Ela não vai. Há uma porção de acomodações para os funcionários. Eu porei alguém na rua durante alguns dias e ela ficará lá.
- Com uma guarda, é claro.
O coronel olhou para Latham com um olhar firme.
- Você se importa, não é?
- Me importo sim - respondeu simplesmente Drew.
- Normalmente eu não aprovaria, mas neste caso reduzirei minhas críticas.
- Eu não disse que levaria a alguma coisa.
- Não, mas se levar, você vai ter duas milhas de vantagem sobre mim. Ela está no mesmo ramo.
- Não entendi.
- Fui casado por treze anos com uma bela mulher, uma mulher maravilhosa que finalmente admitiu que não poderia aguentar o meu trabalho, com todas as complicações envolvidas. Por uma vez na vida, supliquei, mas sem resultado - ela desmascarou aquelas súplicas. Eu estava por demais acostumado ao que fazia, por demais antenado àquilo todo dia. Ela foi muito generosa, aliás - deu-me o direito ilimitado de visita aos meus filhos. Mas, é claro, eu não vivia sempre ali presente para poder visitá-los com frequência.
- Sinto muito, Stanley. Não fazia ideia.
- Não é o tipo de coisa que você publica no jornal, não é?
- Aposto que não, mas você obviamente se dá bem com seus garotos. Quero dizer, visitas de netos e tudo mais.
- Que diabo, sim, eles me acham um barato. A mãe deles fez um novo casamento muito bom, e que farei, porra, com o dinheiro que ganho? Eu tenho mais grana do que posso gastar, por isso quando todos eles vêm a Paris, você pode imaginar.
Foram interrompidos pela figura no vão da porta do quarto, uma mulher louríssima de óculos escuros, com o vestido levantado acima dos joelhos, a blusa desabotoada até a metade do peito. Ela se apoiou ora numa perna, ora noutra, numa paródia de sensualidade.
- O que os rapazes no quarto de trás vão querer? - disse ela, imitando o clichê gasto do cinema.
- Extraordinária! - exclamou o espantado Witkowski.
- E mais alguma coisa - disse Drew tranquilamente, acrescentando um assobio baixinho.
- Isto serve, coronel?
- Certamente, exceto que terei de selecionar os guardas, verei se acho alguns gays.
- Não se preocupe, Ó Mago - disse Latham. - Sob o fogo jaz uma vontade gélida.
- É óbvio que não consigo enganá-lo, monsieur. - Karin riu, soltou seu vestido, abotoou a blusa e dirigiu-se à mesa quando o telefone tocou. - Quer que atenda? - perguntou ela. - Posso dizer que sou a empregada, em francês direito, é claro.
- Por obséquio - respondeu Witkowski. - Hoje é o dia da lavanderia; eles geralmente telefonam por essa hora. Diga-lhe para subir, e aperte o botão Seis no interfone para abrir a porta do hall.
- Allô? C’est la résidence du grand colonel. - De Vries escutou um instante ou dois, tapou o telefone com a mão e olhou para o chefe de segurança da embaixada. - É o embaixador Courtland. Diz que precisa falar imediatamente com você.
Witkowski levantou-se depressa e atravessou a sala, pegando o telefone das mãos de Karin.
- Bom dia, Sr. Embaixador.
- Escute só, coronel! Não sei o que aconteceu na sua casa ontem à noite, nem na pista anexa do Aeroporto de Orly, e nem tenho certeza se quero saber, mas se tem planos para esta manhã, pode riscá-los, e isso é uma ordem!
- O senhor teve notícias da polícia, então?
- Mais do que eu gostaria. E a propósito, ouvi-as do embaixador alemão, que está cooperando plenamente conosco. Kreitz foi alertado várias horas atrás pela seção germânica do Quai d’Orsay que havia um incêndio no complexo de escritórios dos Armazéns de Avignon. Entre os destroços haviam lembranças do Terceiro Reich, junto com milhares de páginas carbonizadas, impossíveis de serem lidas, queimadas em cestas de papel.
- Os papéis incendiaram todo o local?
- Parece que deixaram uma janela aberta e a brisa espalhou as chamas, deflagrando o sistema de alarme e os chuveirinhos. Dê um pulo até lá!
- Onde ficam os Armazéns?
- Como é que vou saber? Você fala francês, pergunte a alguém.
- Verei no catálogo telefônico. E, Sr. Embaixador, eu preferia não ir no meu próprio carro, ou de táxi. O senhor poderia chamar - mandar que sua secretária chamasse - o serviço de transporte e pedir que mandassem equipamento de segurança aqui para meu apartamento na rua Diane? Eles sabem o endereço.
- Equipamento de segurança? Que diabo é isso?
- Um carro blindado com uma escolta de fuzileiros.
- Meu Deus, como eu gostaria de estar na Suécia! Descubra o que puder, coronel. E depressa!
- Diga ao serviço de transporte para vir logo, embaixador. - Witkowski desligou, sem deixar contudo de fazer um gesto com o dedo em direção ao telefone. Virou-se para Latham e Karin de Vries. - Tudo mudou, pelo menos por agora. Com alguma sorte, talvez tenhamos tirado a sorte grande. Karin, você permanece como está. Você, rapaz, vá ao meu armário e vê se consegue arranjar um uniforme que lhe caiba. Somos mais ou menos do mesmo tamanho, um deles tem que servir.
- Onde vamos? - perguntou Drew.
- A um grupo de escritórios em alguns armazéns que foram incendiados pelos neos. Uma brigada nazista de cestas de papel não funcionou exatamente como previam. Algum idiota abriu uma janela.
O quartel-general dos neonazistas estava uma bagunça, paredes chamuscadas, as poucas cortinas totalmente queimadas, e toda aquela calamidade ensopada pelo sistema de chuveirinhos. Numa sala cheia de equipamento eletrônico computadorizado, sem dúvida usado pelo líder da equipe, havia um enorme armário de aço trancado. Depois de arrombado, revelou um verdadeiro arsenal, desde poderosos rifles com miras telescópicas, a caixas de granadas, lança-chamas miniaturizados, garrotes, vários tipos de armas curtas e punhais - alguns disfarçados dentro de bengalas e guarda-chuvas. Tudo coincidia com a descrição que Drew Latham fizera dos assassinos de elite nazistas em Paris. Este era seu covil.
- Usem pinças - ordenou o coronel Witkowski, falando francês e se dirigindo a polícia, enquanto apontava para folhas de papel carbonizadas no chão. - Arranjem pedaços de vidro e coloquem tudo que não estiver completamente destruído entre dois deles. Nunca se sabe o que se pode descobrir.
- Os telefones foram todos arrancados pelos fios das paredes e seus aparelhos destruídos - disse um detetive francês.
- As linhas não foram, não é?
- Não. Tem um técnico da companhia telefônica que está a caminho. Ele consertará as linhas e poderemos rastrear as suas chamadas.
- Talvez para fora, mas de fora para dentro, negativo. E se bem conheço esses palhaços, as chamadas feitas aqui devem ser pagas por alguma velhinha em Marseilles, que recebe todo mês uma ordem de pagamento e um dinheirinho extra.
- Como fazem os traficantes de drogas, não?
- Sim.
- Mesmo assim, deve haver ordens de pagamento em algum lugar, não é?
- Certamente, mas nenhuma que se possa rastrear. Devem provir de algum banco suíço ou de Cayman, cujas contas estão sob sigilo bancário. É assim que as coisas funcionam hoje em dia.
- Eu só investigo domesticamente, monsieur, em Paris e arredores, mas não internacionalmente.
- Então chame alguém que o faça.
- Terá que apelar para o Quai d’Orsay, o Service d’Etranger. Isto está além dos meus limites.
- Eu os encontrarei.
O uniformizado Latham e Karin, na sua peruca loura, se aproximaram, pisando com cuidado no chão, seus sapatos evitando as páginas carbonizadas e revoltas pelo vento.
- Descobriu alguma coisa? - perguntou Drew.
- Não muito, mas certamente aqui era o centro de operações deles, sejam lá quem fossem.
- Quem se não os homens que nos atacaram na noite passada? - disse Karin.
- Aposto que sim, mas para onde foram? - concordou Witkowski.
- Monsieur l’Américain - gritou outro policial à paisana, entrando correndo de um cômodo externo. - Olhe o que eu achei. Estava debaixo de uma almofada de uma cadeira da sala de estar! É uma carta - o início de uma carta. "Meine Liebste", começou Witkowski apertando os olhos. "Etwas Entsetzliches ist geschehen."
- Dê-me ela - disse de Vries, impaciente com as hesitações de Witkowski. Ela traduziu para o inglês. "Minha querida, esta noite foi muito alarmante. Precisamos partir todos imediatamente, sob pena de danos à nossa causa e de sermos executados por erros de outras pessoas. Ninguém em Bonn deve saber, mas estamos voando para a América do Sul, para algum lugar onde seremos protegidos até podermos voltar e recomeçar a luta. Eu te adoro tanto... Preciso acabar mais tarde, alguém está vindo pelo corredor. Porei esta no correio no aero..." Acaba aqui, as letras estão tremidas.
- O aeroporto! - gritou Latham. - Qual deles? Quais as empresas aéreas que voam para a América do Sul? Podemos interceptá-los!
- Esqueça isso - disse o coronel. - São dez e meia da manhã, e existem mais de duas dezenas de empresas que partem entre sete e dez e que vão para vinte ou trinta cidades na América do Sul. Esses voos estão além da nossa capacidade. Entretanto, há algo positivo. Nossos assassinos fugiram correndo de Paris, e seus irmãos de merda em Bonn não têm a mínima ideia. Até que eles sejam substituídos por outros, a gente ganha um tempinho para respirar.
Gerhardt Kroeger, cirurgião e alterador do juízo alheio, estava prestes a perder o seu próprio. Ele ligara para os Armazéns Avignon uma dúzia de vezes nas últimas seis horas, usando os códigos certos, ouvindo da telefonista que todas as linhas dos escritórios estavam "fora de operação no momento. Nossos computadores mostram que houve uma desconexão manual". Não havia protestos de sua parte capaz de reverter a situação; era tudo mais do que óbvio. Os Blitzkrieger tinham encerrado suas atividades ali. Por quê? O que acontecera? Zero Cinco, Paris, fora tão confiante: as fotos do assassinato seriam entregues a ele de manhã. Onde estavam eles? Onde estava Paris Cinco?
Não havia outra alternativa. Precisava falar com Hans Traupman em Nuremberg. Alguém devia ter uma explicação!
- É tolice sua falar comigo aqui - disse Traupman. - Eu não possuo o equipamento telefônico adequado.
- Não tive alternativa. Vocês não podem fazer isto comigo, Bonn não pode fazer isto comigo! Ordenam-me que encontre minha criação custe o que custar, até o ponto de empregar as assim chamadas incomparáveis habilidades de nossos associados aqui de Paris...
- O que mais você pode desejar? - intercalou arrogantemente o médico em Nuremberg.
- Alguma coisa, qualquer coisa que faça sentido! Fui tratado abominavelmente, recebendo promessas após promessas, sem que me mostrassem nada. Agora, neste minuto, nossos associados não podem sequer serem alcançados!
- Eles têm modos especiais de agir, como cabe a agentes confidenciais.
- Eu utilizei-os. A telefonista diz que seus computadores mostram que os telefones foram desconectados, manualmente desconectados. O que mais precisa, Hans? Os... nossos associados se isolaram de nós, se isolaram de todos nós! Onde estão eles?
Passaram-se segundos antes de Traupman falar.
- Se o que você diz for verdade - disse ele em voz baixa - é muito alarmante. Presumo que esteja no hotel.
- Estou.
- Fique aí. Eu irei para casa, falarei com vários outros e telefonarei de volta a você. Isto pode levar mais de uma hora.
- Não faz mal. Apenas torne a ligar.
Quase duas horas se passaram antes que o telefone no Lutetia tocasse.
- Sim? - respondeu Kroeger, pulando para atendê-lo.
- Algo muito estranho aconteceu. O que você me disse é verdade... mais do que verdade, é catastrófico. O único homem em Paris que sabia do local dos nossos associados foi até lá e achou a polícia em todo canto.
- Então eles desapareceram!
- Pior do que isso. Às quatro e meia desta manhã, o "contador" deles contatou nosso departamento financeiro, e contando uma história plausível porém incrível, envolvendo mulheres, rapazes, drogas e altos funcionários do governo francês, requereu uma soma enorme - para ser averiguada mais tarde, como despesas necessárias, é claro.
- Mas não houve mais tarde, nem nenhuma verificação.
- É óbvio. São covardes. Traidores. Vamos caçá-los até os confins da terra.
- Caçá-los não vai me adiantar nada. Minha criação atingiu o ponto crítico. O que devo fazer? Preciso encontrá-lo!
- Discutimos isso. Não é a melhor linha de ação, mas achamos que é a única que te resta. Faça contato com Moreau no Deuxième Bureau. Ele sabe de tudo que acontece na comunidade de informações da França.
- Como contatá-lo?
- Sabe como ele parece?
- Já vi fotos, sim.
- Deve ser feito ao ar livre, sem nenhum telefonema, mensagens, um simples encontro na rua, num café, em algum lugar onde ninguém suspeitaria de um encontro. Diga algo curto, não mais do que uma frase ou duas, de maneira que só ele possa ouvir. O importante é usar a palavra irmandade.
- E o que mais?
- Ele pode dispensá-lo, mas mesmo assim, dirá onde pode encontrá-lo. Será num lugar comum, provavelmente cheio de gente, e numa hora tardia.
- Você me disse antes para suspeitar dele.
- Nós levamos isso em conta, mas temos um modo de contra-atacar se ele não se relevar o simpatizante que alega ser. Até o momento, nós já lhe pagamos vinte milhões de francos na sua conta numerada na Suíça, comprovadas por registros escritos. Ele seria destruído, preso durante anos, se esses registros vazassem anonimamente para o governo francês, sem falar na imprensa. Ele não poderia negá-los. Use isto, se for preciso.
- Irei imediatamente até o Deuxième - disse Kroeger. - Talvez amanhã, Harry Latham.
17
Na sua sala no Deuxième Bureau, Claude Moreau estudava a mensagem decodificada de seu homem em Bonn. O conteúdo era valorativo, não factual, e não muito esclarecedor, mas havia ali uma substância que poderia ser útil.
Na sessão de ontem, o Bundestag atacou de frente o problema crescente dos ressurgimentos nazistas que se espalham pela Alemanha, sendo que os partidos esqueceram suas diferenças, unidos na denúncia. Entretanto, minhas fontes confidenciais, várias das quais jantam frequentemente com os líderes das facções direitistas e esquerdistas, relatam a existência de um forte cinismo entre ambas. Os liberais não confiam nas denúncias proferidas pelos conservadores, e um pequeno grupo de conservadores parece não levar a sério sua própria oratória. Os líderes empresariais, é claro, estão apavorados, temendo que o movimento nazista lhes feche mercados no exterior, mas relutam em apoiar a esquerda socialista, e não sabem em quem confiar na direita. O dinheiro deles se espalha como manchas de tinta por Bonn, sem uma direção certa.
Moreau recostou-se na cadeira, abstraindo mentalmente a frase que chamara sua atenção: Não apenas chamara, como a incendiara. Um pequeno grupo de conservadores parece não levar a sério sua própria oratória. Quem eram eles, especificamente? Quais os seus nomes? E por que seu homem em Bonn não os incluiu?
Ele pegou seu telefone de mesa, pondo-se na linha para sua secretária.
- Quero falar num codificador absoluto, sem possibilidade de grampos.
- Eu ativarei o mecanismo, e o senhor saberá pelo zumbido de cinco segundos na linha três, como sempre - disse a voz feminina na sala de recepção.
- Obrigado, Monique, e já que minha mulher me espera para almoçar no L’Escargot dentro de poucos minutos, ela certamente ligará diante da minha ausência. Diga-lhe por favor que me atrasei um pouco, mas que chegarei dentro em breve.
- Não tem problema. Régine e eu somos boas amigas.
- Certamente. Ambas conspiram contra mim. O codificador, por favor.
Terminado o zumbido baixo no telefone, Moreau discou seu homem em Bonn.
- Hallo - disse o homem na Alemanha.
- Ihr Mann in Frankreich.
- Pode falar - interrompeu o homem em Bonn. - Estou tão limpo aqui que minhas ligações são através da embaixada da Arábia Saudita.
- O quê?
- Uso as linhas deles, não os telefones. Imagine o dinheiro que estou poupando à França. Eu devia receber uma recompensa.
- Você é um bandido.
- Por que outro motivo me pagaria, Paris?
- Li seu relatório para nós. Várias coisas foram omitidas.
- Tais como?
- Quem faz parte do "pequeno grupo de conservadores que parece não levar a sério a própria oratória". Você não deu os nomes, nem mesmo uma pista de suas filiações partidárias.
- Naturalmente. Isto não faz parte de nosso acordo extremamente pessoal? Quer que o Deuxième Bureau inteiro tenha acesso à informação? Se for o caso, seu banco suíço está sendo generoso demais com este bandido aqui.
- Basta! - disse incisivamente Moreau. - Você faz o que faz e eu faço aquilo que faço, e nenhum precisa saber o que o outro faz. Compreendeu?
- Creio que sim. Então o que deseja saber?
- Quem são as pessoas da liderança, ou por trás deste pequeno grupo que descreveu?
- A maioria não passa de oportunistas com poucas qualidades que querem pegar carona num movimento que lhes trará de volta os velhos tempos. Outros são seguidores que marcham à batida dos tambores do passado porque não possuem seus próprios tambores...
- Seus líderes? - disse Moreau rispidamente. - Quem são?
- Isto vai lhe custar alguma coisa, Claude.
- Vai custar é a você, se não soletrar seus nomes. Financeiramente e de outro modo.
- Eu acredito. Aliás, minha ausência nem seria sentida. Você é um sujeito duro, Moreau.
- E principalmente justo - respondeu o chefe do Deuxième. - Você é bem pago, tanto oficial quanto extraoficialmente, sendo que o último é muito mais perigoso para você. Não seria preciso deixar esta sala ou dar uma única ordem, a não ser: "Passe informalmente algumas informações ultrassecretas escolhidas para nossos amigos em Bonn." Seu falecimento nem sequer apareceria nos jornais.
- E se eu lhe der o que tenho?
- Então uma ótima e produtiva amizade vai continuar.
- Não é muito, Claude.
- Espero que isto não seja um prelúdio para omitir qualquer coisa.
- Claro que não é. Não sou bobo.
- Vejo lógica nas suas palavras. Por isso dê-me a pequena informação referente ao nosso "pequeno grupo".
- Meus informantes me contaram que toda terça à noite se realiza uma reunião em diferentes casas ao longo do Reno, geralmente numa casa grande, uma mansão. Cada uma delas possui cais e os presentes chegam de barco, nunca de carro.
- A esteira de um barco é bastante menos identificável do que as marcas dos pneus de um carro - interrompeu Moreau - ou de veículos com placas.
- Certo. Portanto, essas reuniões são secretas e a identidade dos participantes oculta.
- As casas, no entanto, não são, não é? Ou este fato não ocorrera a seus informantes?
- Eu estava chegando a elas. Pelo amor de Deus, dê-me algum crédito.
- Estou impaciente. Os nomes dos proprietários, por favor.
- É um saco de gatos, Claude. Três são dignos aristocratas cujas famílias se opuseram a Hitler e pagaram por isso; três, possivelmente quatro, fazem parte dos novos-ricos que querem preservar seus bens de desapropriações governamentais; e dois são homens de fé. Um deles um velho padre católico, o outro um pastor luterano que aparentemente leva a sério seu juramento de não ostentação. Ele está arrolado como o mais pobrezinho, da menor casa à beira do rio.
- Os nomes, porra.
- Só tenho seis...
- Onde estão os outros?
- Os três desconhecidos são inquilinos, e as locadoras de imóveis na Suíça não revelam nada. Isto é rotina entre os milionários que querem evitar impostos no exterior.
- Dê-me os seis, então.
- Maximilian von Löwenstein, ele é dono da maior...
- Seu pai, o general, foi assassinado pela SS no incidente de Wolfsschanze, a tentativa de assassinato de Hitler. O próximo?
- Albert Richter, ex-playboy, agora convertido a político sério.
- Ainda é um diletante, com propriedades em Mônaco. Sua família ia lhe cortar as asinhas se não mudasse de conduta. É figuração. O próximo?
- Günter Jäger, ele é o pastor luterano.
- Não o conheço, pelo menos nada me vem à cabeça. O próximo?
- Monsenhor Heinrich Paltz, ele é o padre.
- Um velho católico direitista que encobre seus preconceitos com uma besteirada religiosa. O próximo?
- Friedrich von Schell, ele é o terceiro dos ricaços que identificamos. Sua propriedade tem mais de...
- Ele é esperto - interrompeu Moreau. - E é duro em relação aos sindicatos. Um prussiano do século dezenove em ternos Armani. O próximo?
- Ansel Schmidt, muito direto; um engenheiro eletrônico que fez milhões em exportações de alta tecnologia e que luta contra o governo ponto por ponto.
- Um porco que foi de empresa em empresa roubando tecnologia até possuir toda ela, e aí formou suas próprias empresas.
- É isso que tenho, Claude; não chega a valer a minha vida.
- Quais são as imobiliárias suíças?
- O contato é uma imobiliária aqui de Bonn. Manda-se um emissário com cem mil marcos alemães como sinal de proposta, e eles remetem-nos para um banco em Zurique, junto com o perfil do pretendente a inquilino. Se o dinheiro for devolvido, não houve negócio. Se não for, alguém vai a Zurique.
- Contas de telefone e de despesas domésticas? Presumo que as tenha investigado nos nossos três desconhecidos.
- Em cada caso são mandadas para administradores pessoais, dois em Stuttgart, um em Munique, todos com códigos, sem nomes incluídos.
- Certamente o Bundestag deve ter uma lista de endereços.
- Residências particulares são bastante protegidas, tal como nos governos de todos os lugares. Eu poderia tentar, mas poderia ser perigoso, se fosse apanhado. Francamente, não aguento dor, nem na imaginação.
- Então você não tem os endereços específicos?
- Aí, lamento dizer, eu falhei com você. Poderia descrevê-los à distância, e do rio, mas os números das residências foram retirados, os portões fechados, e existem patrulhas com cachorros, tanto dentro quanto fora. Não existem caixas de correio, é claro.
- É um desses três, então - disse Moreau baixinho.
- Um de quem? - perguntou o homem em Bonn.
- O líder de nosso "pequeno grupo"... Ponha seus homens nas estradas que levam a essas casas e mande-os identificar os veículos que passam pelos portões. Em seguida compare-os com os do Bundestag.
- Meu caro Claude, talvez eu não me fizesse entender. Essas propriedades são patrulhadas por dentro e por fora, dezenas de câmeras instaladas no terreno. Se eu pudesse contratar esses homens, o que é improvável, e eles fossem apanhados, a pista levaria a mim, e como mencionei, até a perspectiva da dor é abominada por este seu criado fiel.
- Várias vezes me pergunto como você chegou a sua posição.
- Vivendo bem, com as finanças adequadas para ser simpático aos poderosos, mas, o mais importante, não sendo apanhado. Isto te satisfaz?
- Que Deus te proteja se você jamais for apanhado.
- Não, Claude, que Deus proteja a você.
- Não vou continuar.
- Meus estipêndios?
- Quando os meus entrarem, os seus seguirão.
- De que lado está, meu velho amigo?
- De ninguém e de todos, especialmente do meu. - Moreau desligou o telefone e olhou para as notas que tomara. Fez um círculo em volta de três nomes: Albert Richter, Friedrich von Schell e Ansel Schmidt. Um deles era provavelmente o líder que buscava, mas cada um deles tinha um motivo e uma localidade para poder montar uma base política. Pelo menos, eles lhe forneciam a munição imediata de que precisava. Ele viu que a linha três ainda estava acesa; o codificador ainda estava funcionando. Pegou o telefone e discou um número em Genebra.
- L’Université de Genève - respondeu a telefonista a seiscentos quilômetros de distância.
- Professor André Benoit, por favor.
- Allô? - respondeu a voz do mais célebre professor de ciência política da universidade.
- É seu confidente de Paris. Podemos conversar?
- Um momento. - Fez-se um silêncio de oito segundos no telefone. - Agora podemos - disse o professor Benoit, de volta a linha. - Você está sem dúvida me telefonando a respeito dos problemas que tivemos em Paris. Posso já lhe dizer que eu não sei nada. Ninguém sabe! Pode nos esclarecer?
- Não sei de que você está falando.
- Onde esteve?
- Em Monte Carlo, com um ator e sua mulher. Acabei de voltar esta manhã.
- Então não ouviu falar? - perguntou espantado o homem em Genebra.
- Sobre os ataques ao americano Latham e seu assassinato posterior num restaurante no campo, sem dúvida bolada pela sua psicopata Equipe K aí na cidade? Um ato burro.
- Não! Zero Um, Paris, sumiu e cedo esta manhã a polícia relatou um ataque na rue Diane...
- À casa de Witkowski? - interrompeu Moreau. - Não vi ainda esta informação.
- Eles também não sabem o que eu sei. Toda a Equipe K desapareceu.
- Eu nunca soube onde se reuniam...
- Nenhum de nós sabia, mas eles se foram!
- Não sei o que dizer.
- Não diga nada, vá atrás dos fatos e descubra o que aconteceu! - exigiu Genebra.
- Lamento ter mais más notícias para você e Bonn - disse o chefe do Deuxième hesitantemente.
- O que poderia ser?
- Meus agentes na Alemanha descobriram nomes, gente que se reúne toda terça de noite em casas ao longo do Reno.
- Ah, meu Deus! Que nomes?
Claude Moreau deu-lhe os nomes, soletrando-os devagar.
- Diga-lhes para terem muito cuidado - disse ele. - Estão todos sob os microscópios da inteligência.
- Fora determinadas reputações, não conheço nenhum deles! - exclamou o professor em Genebra. - Eu não fazia a menor ideia...
- O senhor não está aí para ter ideias, Herr Professor. O senhor obedece ordens, como eu.
- Sim, mas... mas...
- Os acadêmicos não são muito competentes na hora dos assuntos práticos. Assegure-se por favor de que nossos associados de Bonn recebam a informação.
- Sim... sim, é claro, Paris. Ah, meu Deus!
Moreau desligou o telefone e recostou-se na cadeira. As coisas - as coisas - estavam indo numa direção favorável a ele. Podiam não ser as melhores, mas eram melhores do que as dos demais. Se perdesse, ele e sua mulher podiam sempre se aposentar confortavelmente fora da França. Por outro lado, também podia ser executado por um pelotão de fuzilamento. C’est la vie.
Era final de tarde, o sol poente filtrava pelas vidraças do apartamento de Karin de Vries na rue Madeleine.
- Fui até o meu apartamento esta tarde - disse Drew, sentado numa poltrona, conversando com Karin do lado oposto, no divã. - É claro que tinha um fuzileiro de cada lado, a quem Witkowski obrigou a jurarem segredo, sob pena de voltarem para a base de origem, com as mãos nos coldres de suas armas. Mesmo assim foi uma ótima sensação poder voltar a andar nas ruas, sabe o que quero dizer?
- Claro que sim, mas me preocupa sua confiança equivocada. Suponha que existam outros que não conhecemos?
- Que diabo, sabemos de um, Reynolds, do centro de comunicações. Disseram-me que ele fugiu como um rato de esgoto, e deve estar vivendo de uma pensão nazista no Mediterrâneo, se é que não decidiram antes matá-lo.
- Se ele estiver no Mediterrâneo desconfio que seu corpo esteja a várias centenas de metros no fundo do oceano.
- Mar, na realidade.
- Não acho que a definição fará nenhuma diferença para ele.
Silêncio. Por fim Drew falou.
- E nós onde ficamos, madame?
- O que quer dizer?
- O que preciso fazer, contar até cem?
- O quê?
- Como "um, dois, três, quatro, cinco..." Você está me escondendo há um dia e uma noite, mas não consigo chegar perto de você.
- De que está falando, Drew?
- Meu Deus, não tenho sequer certeza de como exprimi-lo... Jamais achei que iria pensar nisso, realmente, e certamente não dizê-lo a alguém que protege minha vida, um subordinado que tem um apartamento que eu nunca poderia bancar.
- Por favor, seja mais claro.
- Como? Eu sempre achei que dançaria conforme a música do meu irmão; era tão certo, tão perfeito. Em seguida ouvi-o naquela cabine antes de ser morto. Sabe o que quero dizer. Chorando e dizendo o quanto a amava, a adorava...
- Pare, Drew - disse de Vries rispidamente. - Você quer dizer que está imitando seu irmão, quanto a seus delírios?
- Não, não estou - disse Latham calmamente, baixinho, seus olhos bem postos nos dela. - Seus delírios não representam meus sentimentos, Karin. Já superei essa síndrome; aliás, nunca me fez muito bem. Você entrou primeiro na vida dele, anos mais tarde na minha, e a equação, não importa quão semelhante, é muito diferente. Não sou Harry, jamais poderia ser como ele, mas sou eu, e nunca conheci alguém como você... Que tal, como declaração?
- Extremamente comovente, querido.
- Lá vem esse "querido" de novo. Que não quer dizer nada.
- Não faça pouco dele, Drew. Preciso me libertar dos meus fantasmas, e quando o fizer, será simpático pensar que você poderá estar aí à minha espera. Talvez eu me ligasse a você, porque possui qualidades que admiro muito, porém uma relação é algo remoto e distante para mim agora. Preciso apaziguar o passado. Compreende isto?
- Compreendendo ou não compreendendo, farei o máximo para que aconteça.
A multidão pós-meio-dia enchia as ruas, os prédios de escritórios ficavam severamente desfalcados, na medida em que hordas de funcionários corriam para seus cafés e restaurantes prediletos, para cumprirem compromissos de almoço. O almoço parisiense era mais do que uma refeição; quase sempre tratava-se de um pequeno acontecimento, e Deus acudisse o patrão que esperasse que seus funcionários, especialmente seus executivos de mãos bem-cuidadas, voltassem na hora, especialmente na época do verão.
Era por isso que o Dr. Gerhardt Kroeger ficava cada vez mais agitado, levando esbarrões sem parar da multidão em retirada, enquanto permanecia com o jornal dobrado diante de seu rosto, com os olhos postos na entrada do prédio do Deuxième Bureau, à sua esquerda. Ele não podia se dar ao luxo de perder a pessoa de Claude Moreau. O tempo era crucial, não poderia se perder nem uma hora. Sua criação, Harry Latham, começara sua contagem regressiva; tinha, no máximo, dois dias, quarenta e oito horas, e mesmo isso era impreciso. E o que aumentava o estresse quase insuportável do cirurgião era um detalhe que não contara a seus superiores na Brüderschaft: antes da rejeição do implante pelo cérebro do paciente, que virtualmente explodia, a região em torno da cirurgia tornava-se terrivelmente descolorida; aparecia uma inflamação na pele do tamanho de um pires de café, o que certamente chamaria a atenção de quem fizesse a autópsia, levando-o a investigar aquela manifestação incomum. Ao contrário da crença generalizada, os dados armazenados em um disco ROM com um propósito específico ou afim, poderiam ser extraídos por equipamento alheio a seus controles originais.
Nas mãos erradas, a Irmandade da Vigília poderia ser destruída, seus segredos revelados, seus objetivos globais evidenciados. Mein Gott! - refletiu Kroeger. - Somos vítimas de nosso próprio progresso! - Em seguida pensou na proliferação das armas atômicas e percebeu a verdade de sua conclusão nada original.
Lá estava Moreau! O chefe do Deuxième, com seus ombros largos, saiu da entrada do prédio e virou à direita, apressando seus passos na calçada. Estava com pressa, o que significava que Kroeger tinha quase que correr para alcançá-lo, pois o francês estava indo na direção oposta. Abrindo caminho entre os corpos à sua frente, pedindo desculpas metade em francês, metade em alemão, ele diminuiu a distância que o separava de Moreau, deixando para trás um rastro de furiosos caminhantes. Finalmente, chegou ao alcance de tocá-lo.
- Monsieur, monsieur! - gritou ele. - O senhor deixou cair algo!
- Pardon? - O chefe do Deuxième parou e se virou. - Deve estar enganado, não deixei cair nada.
- Tenho certeza de que deixou - continuou o cirurgião em francês. - Uma carteira, ou um caderninho de anotações. Um homem apanhou-a e correu!
Moreau apalpou depressa seus bolsos, suas feições passando da preocupação ao alívio.
- Está enganado - disse ele. - Não estou dando falta de nada, mas de qualquer maneira, muito obrigado. Os batedores de carteira são muitos em Paris.
- Como eram em Munique, monsieur. Eu peço desculpas, mas a irmandade a que pertenço insiste que sigamos os preceitos cristãos de ajudar uns aos outros.
- Sei, uma irmandade cristã, que admirável. - Moreau olhou fixamente para o homem enquanto pedestres passavam depressa de cada lado. - Na Pont Neuf às nove horas hoje à noite - acrescentou ele, abaixando a voz. - O acesso norte.
A neblina de Paris espalhava o reflexo da lua sobre as águas do Sena; uma chuva de verão era iminente. Contrastando com a maioria dos passantes na ponte que corria para fugir da inclemência do tempo, as duas figuras caminharam lentamente em direção uma da outra na calçada para pedestres do norte. Encontraram-se no meio da ponte; Moreau falou primeiro.
- O senhor se referiu a algo que talvez me fosse familiar. Poderia esclarecê-lo?
- Não há tempo para jogos, monsieur. Ambos sabemos quem somos e o que somos. Coisas terríveis aconteceram.
- Assim fiquei sabendo, coisas das quais nada sabia até o meio-dia de hoje. O aspecto alarmante é que meu departamento não foi posto a par. Não posso deixar de imaginar por quê. Teriam alguns de seus mensageiros sido indiscretos?
- Certamente que não! Nossa missão agora, nossa suprema missão é encontrar o americano Harry Latham. É mais vital do que possa imaginar. Sabemos que a embaixada, com a ajuda dos Antinayous, o mantém escondido aqui em Paris. Precisamos achá-lo! O serviço secreto americano certamente o mantém informado. Onde está ele?
- Você deu vários saltos que extrapolam as coisas que sei, monsieur... Qual o seu nome? Não falo com pessoas que não se identificam.
- Kroeger, Dr. Gerhardt Kroeger, e um telefonema a Bonn confirmará meu posto elevado.
- Que impressionante. E que "posto elevado" o senhor ocupa, doutor?
- Fui o cirurgião que... salvou a vida de Harry Latham. E agora preciso encontrá-lo.
- Sim, já disse isto. Tem consciência, ou não tem, de que o irmão dele foi morto por aquela idiota Equipe K de vocês?
- Foi o irmão errado.
- Sei, novamente. Então foi a Equipe K, mal saída da escola, se é que frequentou alguma.
- Não tolerarei seus insultos! - gritou um frustrado Kroeger. - Para ser sincero, você não é tido como inteiramente confiável, por isso aconselho-o a ser bem franco comigo. Sabe as consequências se não for.
- Se o que você diz é verdade, então sou um felizardo.
- Encontre Harry Latham para nós!
- Tentarei com certeza...
- Fique a noite inteira acordado, contate todas as fontes que possui, francesas, americanas, britânicas, todo mundo. Ache onde esconderam Harry Latham! Estou no Lutetia, quarto oitocentos.
- O andar mais alto. Você deve ser importante.
- Não dormirei até ter notícias suas.
- Isto é tolice, doutor. Como médico, deveria saber que a falta de sono atrapalha o juízo perfeito. Mas já que é tão persuasivo, inclusive nas suas ameaças, pode ficar tranquilo que farei o máximo para satisfazê-lo.
- Sehr gut! - disse Kroeger, voltando ao alemão. - Irei embora agora. Não me decepcione; não decepcione a Brüderschaft, porque não sabe o que acontecerá.
- Sei.
Kroeger afastou-se caminhando depressa, sua silhueta logo encoberta pela neblina que se assentava. E Claude Moreau foi andando devagar para encontrar um táxi na Rive Gaúche. Ele precisava pensar em muitas coisas, entre outras na segurança do equipamento de comunicações do Deuxième Bureau. Muitas coisas tinham se tornado demasiadamente confusas.
Eram 7:42, horário de Washington, quando Wesley Sorenson entrou na sua sala das Operações Consulares; a única outra pessoa presente era sua secretária.
- Todos os relatórios que chegaram de noite estão em cima de sua mesa - disse ela.
- Obrigado, Ginny. Como não me canso de dizer, acho que você deveria pedir hora extra. Ninguém chega aqui antes de oito e meia.
- O senhor é muito compreensivo quando meus filhos estão doentes, Sr. Diretor, então para que levar as coisas a ferro e fogo? E também é mais fácil para mim; posso conferir as coisas antes da tropa chegar.
Elas já chegaram, de mais maneiras do que você pensa, pensou Sorenson. Ele estivera na Base Aérea de Andrews às quatro horas da madrugada, escoltando pessoalmente os dois neonazistas depois que desembarcaram do jato vindo de Paris, acompanhando-os até entrarem num furgão da marinha até um local seguro na Virgínia. Apesar de sua exaustão, o diretor das Operações Consulares seria levado lá depois do meio-dia, para interrogar pessoalmente os prisioneiros; era uma tarefa que ele conhecia bem.
- Alguma coisa urgente? - perguntou a sua secretária.
- Só tudo.
- Como sempre.
Sorenson entrou na sua própria sala, atravessou-a em direção à mesa e sentou-se. As pastas estavam assinaladas: REPÚBLICA POPULAR DA CHINA, TAIWAN, FILIPINAS, ORIENTE MÉDIO, GRÉCIA, BÁLCÃS... e finalmente, ALEMANHA e FRANÇA.
Empurrando o resto para o lado, ele abriu a pasta de Paris. Era explosiva. Utilizando os relatórios de polícia, descrevia o ataque ao apartamento do coronel Witkowski, sem mencionar que o coronel enviara dois prisioneiros por jato militar até Washington. Falava do incêndio no quartel-general neonazista no complexo dos Armazéns Avignon. Alegava serem assassinos que haviam desaparecido. A notícia final de Paris era uma informação em código de Witkowski, decodificada nas Operações Consulares; isto era explosivo. Gerhardt em Paris. Caçando Harry Latham. O alvo foi alertado.
Gerhardt Kroeger, neurocirurgião, homem misterioso, e a chave de muitas coisas. Ninguém, fora o serviço secreto americano, sabia a seu respeito. De certo modo, pensou Sorenson, era errado. Os franceses e os ingleses deviam ser incluídos, mas a CIA - com a concordância de Knox Talbot - não podia confiar neles.
Às oito da manhã seu telefone tocou.
- Ligação de Paris - disse sua secretária. - Um Sr. Moreau do Deuxième Bureau.
Sorenson engoliu em seco, silenciosamente, seu rosto de repente empalideceu. Moreau fora cortado; era suspeito. O diretor das Operações Consulares respirou profundamente, pegou o telefone, em seguida falou, com palavras contidas.
- Alô, Claude, que bom ouvir você, velho amigo.
- Aparentemente, Wesley, não fica bem eu ouvir você, se posso falar francamente.
- Não sei o que quer dizer.
- Ah, venhamos, durante as últimas trinta e seis horas muitas coisas aconteceram que nos dizem respeito, mas nem uma só palavra sobre elas chegou a meu departamento. Que tipo de cooperação é essa?
- Eu... Eu não sei, Claude.
- Claro que sabe. Fui sistematicamente excluído da operação. Por quê?
- Não posso responder a isto. Não controlo a operação, você sabe. Eu não fazia ideia...
- Por favor, Wesley. Na hora da ação você era um mentiroso perfeito, mas não com alguém que contava mentiras junto com você. Ambos sabemos como essas coisas funcionam, não é? Alguém ouviu falar algo de alguém e a doença se alastra, produzindo um falso doente. Mas há tempo para isso mais tarde. Presumindo que você ainda esteja na ativa, eu talvez tenha uma peça de xadrez para você.
- O que é?
- Quem é Gerhardt Kroeger?
- O quê?
- Você me ouviu, e é óbvio que já ouviu o nome antes. Ele é um médico.
Kroeger estava fora dos limites do Deuxième. Moreau tinha escapado do bloqueio! Teria ido ele pescar?
- Não tenho certeza se já ouvi falar dele, Claude. Gerhardt... Kroeger, foi isso?
- Agora você está positivamente me insultando. Perdoarei, novamente, porque minha informação é muito importante. Kroeger seguiu-me e parou-me durante minha caminhada vespertina. Para resumir, ele deixou claro que ou eu o levava a Harry Latham, ou seria um homem morto.
- Não posso acreditar! Por que ele abordaria você?
- Eu lhe fiz a mesma pergunta e poderia ter esperado a resposta. Tenho gente na Alemanha, como tenho na maioria dos países. Um ano atrás negociei a vida de um homem preso por uma turma de skinheads em Mannheim. Consegui soltá-lo por mais ou menos seis mil dólares americanos, uma barganha, eu diria. Mesmo assim, eles tinham o nome do Deuxième, e sabiam que a combinação não poderia ter sido feita sem minha aprovação.
- Mas você nunca ouvira falar de Gerhardt Kroeger antes?
- Não até a noite passada, como acabei de lhe dizer. Voltei para minha sala e pesquisei nossos arquivos dos últimos cinco anos; não havia nada. Aliás, ele está hospedado no hotel Lutetia, quarto oitocentos, e está esperando que eu ligue para ele.
- Pelo amor de Deus, prenda-o!
- Ah, ele não vai embora, Wesley, posso lhe assegurar. Mas por que não brincar um pouco com ele? Ele certamente não trabalha sozinho, e nós estamos atrás de peixes maiores.
Uma onda de alívio tomou conta de Sorenson. Claude Moreau estava limpo! Ele jamais teria oferecido Gerhardt Kroeger, com o hotel e inclusive o número de quarto, se estivesse trabalhando para a Irmandade.
- Se isso te faz sentir melhor - disse o diretor das Operações Consulares -, eu mesmo fui excluído durante algum tempo. Adivinhe por quê? Porque trabalhamos algum tempo juntos, especialmente em Istambul, onde você me fez o favor de salvar minha vida.
- Você teria feito o mesmo por mim.
- Foi isso que eu disse zangado à CIA, e é o que vou dizer-lhes de novo, mais zangado ainda.
- Um momento, Wesley - disse Moreau lentamente. - Por falar em Istambul, você se lembra quando os apparatchiks da KGB acreditavam que você era um duplo, na realidade um informante dos superiores deles em Moscou?
- Certamente. Eles viviam como nababos com os tesouros do Topkapi à sua disposição. Ficaram morrendo de medo.
- Aí fizeram confidências a você, não fizeram?
- Sim.
- Então, por hora, vamos deixar as coisas como estão. Ainda estou de fora porque não sou confiável. Talvez eu possa brincar com Herr Doktor Kroeger e descobrir algumas coisas.
- O que significa que você precisa de alguma coisa primeiro.
- "Qualquer coisa", como disse você, referindo-se a Istambul. Não precisa ser exato, mas razoavelmente crível.
- Como o quê?
- Onde está Harry Latham?
Não existia Harry Latham. As dúvidas voltaram ao ex-agente ultrassecreto.
- Eu mesmo não sei - disse Sorenson.
- Não quero dizer onde realmente esteja - interrompeu Moreau - apenas onde talvez estivesse. Algo que eles pudessem acreditar.
As suspeitas diminuíram.
- Bem, tem uma organização chamada Antinayous...
- Eles conhecem - interrompeu Moreau. - Essa gente não deixa pistas. Algo diferente.
- Eles certamente sabem sobre Witkowski e a de Vries...
- Certamente que sim - concordou o chefe do Deuxième. - Dê-me algum lugar onde, com um pouco de pesquisa, eles poderiam perceber como vocês operam.
- Acho que seria Marseilles. A gente vigia a proibição de drogas; muitos dos nossos foram comprados ou desapareceram. Na realidade, a gente é bastante evidente, se alguém quiser investigar. É uma questão de dissuasão.
- Isso é bom. Usarei-a.
- Claude, quero ser sincero, vou limpá-lo aqui! É insuportável vê-lo sob suspeita.
- Ainda não, velho amigo. Lembre-se de Istambul. Nós já jogamos esses jogos antes.
Em Paris, Moreau desligou o telefone, mais uma vez se recostando na sua cadeira, olhando para o teto, seus pensamentos pulando de um fragmento de informação para outro. Ele agora estava no páreo até o fim. Os riscos que estava correndo eram gigantescos, mas não podia parar. Vingança, era tudo que importava.
18
Já que Drew Latham supostamente deixara este mundo, seu carro do Deuxième fora recolhido. Para substituí-lo, Witkowski ordenara que o serviço de transporte da embaixada providenciasse medidas de segurança: três guarda-costas em turnos de oito horas, e um veículo sem identificação para um oficial e sua senhora, que se encontrava no momento na rue Madeleine. O coronel deixou claro para os fuzileiros dos turnos de guarda que se eles por acaso reconhecessem o oficial, sua identidade deveria ficar em segredo. Caso contrário, certos "praças" seriam mandados de volta para a ilha de Parris junto com os recrutas mais baixos, e seus méritos apagados de sua folha de serviços.
- O senhor não precisava dizer isto, coronel - disse um sargento dos fuzileiros. - Se me perdoe, é tremendamente humilhante.
- Então peço desculpas.
- Acho que o senhor deveria - acrescentou um cabo. - Nós já servimos na segurança da embaixada desde Pequim até Kuala Lumpur, onde a segurança era realmente necessária.
- Isto mesmo! - sussurrou um segundo cabo, e então alteando a voz. - Não somos do exército. Somos fuzileiros navais.
- Então eu realmente peço desculpas, rapazes. Esqueçam as velhas diferenças militares. Não passo de um fóssil.
- Sabemos quem o senhor é, coronel - disse o sargento. - O senhor não precisa se preocupar nem um pouco conosco.
- Obrigado.
Enquanto os três partiam para se enfiar nas entranhas do serviço de transporte, Witkowski ficou impressionado com um comentário que ouviu de um dos cabos. "Ele devia ser um fuzileiro, porra. Que diabo, eu seguiria aquele filho da mãe até a boca de um canhão."
Stanley Witkowski pensou por um instante que este fora o maior elogio que já recebera em toda a sua carreira. Mas agora precisava pensar em outras coisas, sem falar que as menores das quais se chamavam Drew Latham e Karin de Vries. A combinação da hora com a exaustão exigia que Latham ficasse no apartamento de de Vries em vez de voltar para o esconderijo dos Antinayous - na realidade os Antinayous insistiam nisso, no caso de o alvo ainda estar sendo seguido. Depois de vários dias sem nenhuma ocorrência desagradável, eles haveriam de reconsiderar o caso, mas apenas reconsiderar. "Ele se envolvera em ocorrências por demais públicas para os nossos objetivos", dissera uma mulher ríspida na Maison Rouge. "Nós o admiramos, mas não podemos tolerar a mais remota possibilidade de sermos descobertos."
Quanto a Karin ficar na embaixada, simplesmente não havia sentido. Como membro da confidencial Pesquisa e Documentação, que morava fora da embaixada, seu endereço estava arquivado na Segurança, e qualquer pessoa que o requisitasse precisava do aval do próprio coronel. Vários adidos homens o tinham feito; foram recusados. Acresce a isto, que a viúva de Vries compartilhara certa vez uma informação que muito o aliviara.
- Não sou uma mulher pobre, coronel. Tenho três carros aqui em Paris guardados em diferentes garagens. Mudo de aparência com cada mudança de carro.
- Isto tira um peso da minha consciência - disse Witkowski. - Considerando as informações estocadas na sua cabeça, é muito esperto de sua parte.
- Não da minha parte. O general Raichert, comandante supremo da OTAN, foi quem o ordenou em Haia. Lá, eram os americanos que pagavam por isso, mas as circunstâncias eram outras. Não espero o mesmo tratamento aqui.
- Você não deve ser pobre mesmo.
- Sou dedicada àquilo que faço, coronel. O dinheiro não é importante.
Essa conversa acontecera há quatro meses, e Witkowski não tinha a menor ideia então de quão "dedicada" a recém-chegada era. Agora não tinha nenhuma dúvida. O telefone tocou na sua linha particular, interrompendo o devaneio do coronel.
- Sim?
- Aqui é o seu anjo perambulante, Stanley - disse Drew. - Teve alguma notícia da Casa Vermelha?
- Não tem quarto na pensão, pelo menos por agora. O fato de você estar marcado os preocupa.
- Estou de uniforme, seu uniforme, pelo amor de Deus! Aliás, você é um pouquinho maior na cintura e na bunda do que eu. Porém a túnica ficou ótima.
- Que alívio, disfarçará os defeitos quando os fotógrafos de moda tirarem suas fotos... Você poderia ser substituído por aquele ator Villier disfarçado, e mesmo assim eles gostariam de guardar distância de você.
- Acho que não posso realmente culpá-los.
- Nem eu - concordou o coronel. - Será que Karin te aguenta mais um dia ou dois até que eu possa arranjar um lugar decente para você?
- Não sei, pergunte a ela. - A voz de Latham tornou-se mais fraca quando ele afastou o fone do rosto. - É Witkowski. Quer saber se meu contrato de locação já acabou.
- Alô, coronel - disse Karin. - Presumo que os Antinayous estejam vacilando.
- Lamento dizer que sim.
- É compreensível.
- É sim, mas não descobri ainda uma alternativa conveniente. Será que pode aturá-lo por mais um dia, talvez dois? Ate lá arranjarei alguma coisa.
- Não é problema. Ele me disse que fez sua cama esta manhã.
- Que diabo, sim - a voz de Drew foi ouvida ao fundo. - Voltei para o acampamento de escoteiros, com uma porção de duchas frias!
- Não lhe dê nenhuma atenção, coronel. Acho que mencionei que ele às vezes é bastante infantil.
- Ele não está no Trocadéro, no Meurice nem no Bois de Boulogne, Karin. Até eu tenho que admitir.
- De acordo - disse de Vries. - Mas se você tem problemas, existe uma solução possível, que pelo menos funcionou várias vezes em Amsterdã. Freddie costumava envergar um de nossos inúmeros uniformes - americano, holandês, inglês, não importava - e se registrar no Amstel para encontros confidenciais.
- Era um dos seus truques bem conhecidos, então? - perguntou um circunspecto Witkowski.
- Um dos benignos, coronel. Como Drew disse, seu uniforme lhe coube bastante bem, e posso facilmente costurar enchimentos na barriga e em outros lugares...
- É o outro lugar que me preocupa... Mas então; ele continua parecido com Latham?
- Com uma pequena alteração da aparência, certamente menos.
- Como?
- Uma mudança na cor do cabelo - respondeu ela falando delicadamente. - Especialmente em volta das têmporas, que ficam obviamente encobertas pelo seu quepe de oficial, e óculos de aros grossos, com lentes sem grau, é claro, e uma identidade militar falsa. Eu posso me encarregar do cabelo e arranjar os óculos se você arranjar a carteira de identidade. Ele poderia então se registrar em qualquer hotel cheio de gente, o que tenho certeza você ajeitaria.
- Isto não está exatamente dentro do alcance da embaixada, Karin.
- Mas pelo que sei das Operações Consulares, fica dentro de suas atribuições.
- Você me pegou aí, confesso. Deve realmente estar com vontade de despejá-lo.
- Não é pela pessoa, coronel, mas pelo fato de ele ser homem, e ser tido aqui apenas como um oficial americano. Duvido que alguém no prédio saiba que trabalho na embaixada americana, mas se alguém souber e suspeitar, isso comprometeria Drew e eu, e nossos objetivos.
- Para resumir, sua residência vai se tornar outro alvo.
- Meio exagerado, talvez, mas não fora de cogitação.
- Nada está fora de cogitação nesta guerra. Precisarei de uma foto.
- Ainda tenho a câmera de Freddie. Terá uma dúzia delas de manhã.
- Gostaria de estar presente para ver você tingir o cabelo dele. Seria muito engraçado.
De Vries desligou o telefone, caminhou até um armário no saguão, abriu-o e apanhou uma pequena valise com duas fechaduras de segredo. Latham observava-a da poltrona, com um drinque na mão.
- Espero que isto aí não contenha uma arma automática de rápida montagem - disse ele, enquanto Karin depositava a valise em cima da mesinha de centro diante do divã e se sentava.
- Deus do céu, não - respondeu ela, manipulando as fechaduras de segredo e abrindo a valise. - Na realidade, espero que isto o ajude a evitar a possibilidade de se ver diante de uma arma assim.
- Espera aí. O que tem aí dentro? Consegui ouvir a maioria das coisas que disse quando estava falando com Stanley. O que está se passando nessa sua cabecinha atraente?
- Isto é o que Freddie chamava de sua "valise de viagem de emergência".
- Já não estou querendo saber. Freddie a tratava com violência e isso me faz encará-lo de maneira hostil.
- Houve também os outros anos, Drew.
- Obrigado por não ter dito nada. O que tem aí?
- Simples objetos de disfarce, nada dramáticos ou para se ficar embasbacado. Vários bigodes já com adesivos, também dois cavanhaques e vários óculos... e algumas tinturas laváveis básicas. - Ela abaixou a voz ao descrever estas últimas.
- E agora?
- Você não pode ficar aqui, meu amigo - disse Karin, olhando para ele por sobre a valise. - Agora, não tome a defensiva e não leve a mal, porque as casas aqui na Madeleine são como os pequenos arrebaldes da América. As pessoas falam, e os boatos correm nos cafés e nas padarias. Para usar seus termos, isto poderia chegar a ouvidos "inimigos".
- Aceito o fato, compreendo-o, mas não foi isto o que lhe perguntei.
- Você vai se hospedar em um hotel sob um nome falso, que será fornecido pelo coronel, e com um aspecto ligeiramente diferente.
- O quê?
- Vou tingir seu cabelo e sobrancelhas com uma tintura lavável. Louro, meio ruivo, eu acho.
- De que está falando? Não sou nenhum Jean-Pierre Villier!
- Não precisa ser. Basta ser você mesmo; ninguém o reconhecerá a não ser que esteja a poucos metros diante de você e o olhando fixamente. Agora, por favor, vista as calças do coronel. Eu porei uns alfinetes nelas e marcarei o tamanho certo.
- Sabe, você é mais louca do que eu pensava!
- Pode imaginar uma solução melhor?
- Porra! - gritou Latham, engolindo o que restava de seu uísque. - Não, não posso.
- Pensando bem, atacaremos primeiro o cabelo. Por favor, tire a camisa.
- Que tal minhas calças? Eu me sinto mais natural, mais em casa assim.
- Não está em casa, Drew.
- Te peguei, madame!
Moreau apanhou seu telefone de mesa, apertando um botão que gravaria sua conversa, e falou para a mesa do Lutetia.
- Quarto oitocentos, por favor.
- Certamente.
- Sim? - respondeu a voz gutural, abafada, do outro lado da linha.
- Monsieur le docteur? - perguntou o chefe do Deuxième, não sabendo se a ligação tinha caído no lugar certo. - Sou eu, da Pont Neuf. É o senhor?
- É claro que sim. Qual a novidade?
- Mergulhei fundo, Doutor, muito mais fundo do que seria aconselhável para mim. Consegui fazer com que a CIA americana me dissesse que está mesmo escondendo Harry Latham.
- Onde?
- Talvez não aqui em Paris, talvez em Marseilles.
- Talvez, talvez? Isto não me serve! Como pode ter certeza?
- Eu não, mas o senhor talvez possa.
- Eu?
- Vocês têm gente em Marseilles, não tem?
- É claro. Uma grande parte das finanças passa por ali.
- Procure os "Consulares", é assim que são chamados.
- Sabemos sobre eles - disse um Gerhardt sem fôlego. - O maldito grupo de agentes das Operações Consulares. A gente os avista em cada esquina, em cada café.
- Pegue um deles, vê o que consegue descobrir.
- Dentro de uma hora. Onde posso falar com você?
- Eu ligo de volta dentro de uma hora.
Passou-se a hora e Moreau ligou para o Lutetia.
- Alguma coisa? - perguntou ele ao hipernervoso Gerhardt.
- É loucura! - disse o médico. - O sujeito com quem falamos é um cara a quem pagamos milhares para que pudéssemos recolher milhões através da rede financeira. Ele disse que estávamos malucos; não existe nenhum Harry Latham na lista deles em Marseilles!
- Então ele ainda está em Paris - disse Moreau, deixando transparecer frustração na voz. - Vou voltar ao trabalho.
- O mais depressa possível!
- Sempre assim - disse o chefe do Deuxième, desligando o telefone com um sorriso enigmático. Esperou exatamente quatorze minutos e em seguida tornou a ligar para o Lutetia. Era o momento de soprar o fogo da ansiedade.
- Sim?
- Sou eu novamente. Algo acaba de acontecer.
- Pelo amor de Deus, o que foi?
- Harry Latham.
- O quê?
- Ele ligou para um dos meus homens, um sujeito com quem trabalhara em Berlim Oriental, que pensou que deveria me informar. Aparentemente Latham está muito nervoso, o isolamento provoca essas coisas sabe, a ponto de achar que sua própria embaixada está infiltrada...
- É Latham! - interrompeu o alemão. - Os sintomas são previsíveis.
- Que sintomas? O que quer dizer?
- Nada, nada em absoluto. Como você disse, o isolamento pode produzir estranhos efeitos nas pessoas... O que queria ele?
- Possivelmente proteção francesa, é o que deduzimos. Meu homem deverá encontrá-lo na estação de metrô da Georges Cinq às duas horas desta tarde, nos fundos da plataforma.
- Eu preciso estar lá! - gritou Gerhardt.
- Não é aconselhável, nem é política do Bureau envolver a caça com o caçador, monsieur, quando elas não fazem parte de nossa organização.
- Você não compreende, eu preciso ir com vocês!
- Por quê? Pode ser perigoso.
- Não para mim. Para mim nunca.
- Agora não o compreendo.
- Isto não é preciso! Lembre-se da Irmandade, é a ela a quem precisa obedecer, e estou lhe dando ordens.
- Então, é claro, devo obedecê-las, Herr Doktor. Vamos nos encontrar na plataforma às dez para as duas. Nem antes, nem depois, compreendido?
- Compreendido.
Moreau não desligou o telefone; apertou a tecla para findar e em seguida as que o ligavam a seu agente de maior confiança.
- Jacques - disse ele calmamente. - Temos um confronto muito importante às duas horas, só você e eu. Encontre-me embaixo a uma e meia e te darei as informações. Aliás, traga a sua automática, mas encha o pente com balas de pólvora seca.
- Isto é um pedido muito estranho, Claude.
- O confronto também é muito estranho - respondeu Moreau, repondo o fone no gancho.
Drew olhou bem para o espelho, com os olhos arregalados de espanto.
- Pelo amor de Deus, estou parecendo com um personagem de Walt Disney! - gritou ele.
- Não está nada - disse Karin, mais alta do que ele à beira da pia da cozinha e tirando o espelho de sua mão. - Você apenas não está acostumado, só isso.
- É ridículo! Pareço com o líder de uma passeata pelos direitos dos gays.
- Isto o preocupa?
- Que diabo, não, tenho uma porção de amigos nessa turma, mas não faço parte dela.
- A tinta sai com um banho de chuveiro, por isso pare de reclamar. Agora, ponha o uniforme e tirarei algumas fotos para o coronel Witkowski, em seguida apertarei as calças.
- Em que merda me meteu aquele filho da mãe?
- Principalmente salvou a sua vida, aceita isto?
- Você é sempre tão racional?
- A racionalidade e a irracionalidade salvaram tantas vezes a vida de Freddie, que nem posso lhe contar. Por favor, vista o uniforme.
Latham fez o que lhe pediram, voltando dois minutos mais tarde como um perfeito, coronel do Exército dos Estados Unidos.
- Você fica bem de uniforme - disse de Vries, observando-o. - Especialmente quando adotar uma postura ereta.
- Não tenho outra escolha, neste casaco. Desculpe, túnica. Está tão apertado, que se você não dobrar a espinha pode furar alguma coisa e não conseguir respirar. Eu daria um péssimo soldado. Insistiria em usar roupa de faxina.
- O regulamento não permitiria.
- Mais um motivo por que eu daria um péssimo soldado.
- Na realidade, acho que você seria um bom soldado, desde que fosse general.
- Não seria muito provável.
- É, não seria. - Karin fez um gesto em direção ao saguão. - Venha para cá. Estou pronta. Aqui estão seus óculos. - Ela entregou-lhe um par de óculos com pesados aros de tartaruga.
- Pronta? Óculos? - Drew deu uma olhada no pequeno saguão que recebia as visitas ao entrarem pela porta da frente. Havia uma câmera em cima de um tripé, virada para uma parede branca vazia. - Você também é fotógrafa?
- Não. Mas, no entanto, várias vezes Freddie precisava de uma nova foto para um novo passaporte. Ele me ensinou a usar isto, embora eu não precisasse de instruções. É uma câmera instantânea que já tira fotos no tamanho para o passaporte... Ponha os óculos e fique contra a parede. Tire o quepe; quero que seus cabelos louros se evidenciem em sua plena glória.
Quinze minutos depois de Vries tinha quinze pequenas fotos Polaroid de um coronel de cabelos claros e de óculos, parecendo tão tristonho e constrangido quanto em qualquer foto de passaporte.
- Esplêndido - exclamou ela. - Agora vamos voltar ao divã, onde tenho meu equipamento.
- Equipamento?
- As calças, se lembra?
- Ah, esta é a parte boa. Devo tirá-las?
- Não se quiser que eu as ajuste. Vamos.
Quinze minutos depois, tendo sofrido apenas duas dolorosas alfinetadas, Latham foi mandado de volta ao quarto de hóspedes para que voltasse ao seu aspecto normal. Novamente retornou ele, agora encontrando Karin na mesa da alcova, em cima da qual havia uma máquina de costura.
- As calças, por favor.
- Sabe, você está me fazendo ficar maluco, madame - disse Drew, entregando-lhe o uniforme do exército. - Será você algum factótum feminino ultrassecreto que trabalha nos bastidores?
- Digamos que já passei por muita coisa, Monsieur Latham.
- Sim, não é a primeira vez que diz isto.
- Aceite-o, Drew. Além do mais, não é da sua conta.
- Tem razão aí. É que, à medida que cai uma casca e surge outra, não tenho certeza com quem estou falando. Tenho de aceitar Freddie, e a OTAN, e Harry, e a maneira clandestina como chegou a Paris, mas por que será que tenho uma intuição de que aquilo que a move é outra coisa?
- Graças a sua imaginação. Porque você navega num mundo de prováveis e improváveis, possíveis e impossíveis, o que é real e o que não é. Já lhe contei tudo que deveria saber a meu respeito, isto não basta?
- Por hora deve bastar - disse Latham, com os olhos cravados nos dela. - Mas minha intuição me diz que existe outra coisa que você não quer me contar... Por que não ri mais? Você fica radiante quando ri.
- Não tenho tido muitos motivos para rir, tenho?
- Vamos lá, você sabe o que quero dizer. Uma risadinha aqui e ali alivia a tensão. Foi o que certa vez Harry me disse, e nós ambos acreditamos em Harry. Daqui há anos, quando nos encontrarmos, provavelmente riremos do Bois de Boulogne. Teve seus momentos cômicos.
- Uma vida foi ceifada, Drew. Não importa se a vida era de um homem bom, ou de um homem mau, o fato é que matei-o, abreviei a vida de uma pessoa muito jovem. Eu nunca matei ninguém antes.
- Se você não o tivesse feito, ele teria me matado.
- Sei, vivo me dizendo isto. Mas por que é necessário que a matança continue? Assim era a vida de Freddie, não a minha.
- E não era para ser a sua. Mas para responder à sua pergunta com alguma lógica, a lógica fazendo parte do seu léxico, se não matarmos quando for preciso, se não pararmos os neos, acontecerão dez mil vezes mais mortes. Dez mil, nada, podemos começar com seis milhões. Ontem eram os judeus e os ciganos e outros "indesejáveis". Amanhã poderiam ser os republicanos e os democratas no meu país que não conseguem engolir a merda deles. Não se engane, Karin, se eles conquistarem uma posição firme na Europa, o resto deste mundo descontente cai como uma fileira de dominós, porque eles vivem apelando todo dia, insistentemente, para cada fanático que deseja a "volta dos velhos bons tempos". Nenhum crime nas ruas, porque até os curiosos serão fuzilados na hora; as execuções grassando, porque não existem apelações; nenhum habeas corpus, porque é desnecessário; os supostos culpados e inocentes estão misturados, então vamos nos livrar de ambos, já que as prisões custam mais caro do que as balas. Este é o futuro contra o qual lutamos.
- Acha que não sei? - disse Karin. - Claro que sei, seu caga-regras tolo! Por que acha que vivi do modo como vivi durante toda minha vida adulta?
- Mas além do enaltecido Freddie, existe mais alguma coisa, não existe?
- Você não tem direito de mexer nisso. Podemos interromper este assunto?
- Por enquanto, sim. Mas acho que botei meus sentimentos por você em pratos limpos, sejam eles retribuídos ou não, de modo que é possível que isto volte à tona.
- Pare! - disse de Vries, as lágrimas a escorrer lentamente dos seus olhos que piscavam. - Não faça isto comigo.
Latham correu até ela, ajoelhando-se ao lado de sua cadeira.
- Sinto muito, sinto realmente muito. Não queria feri-la. Eu não faria isto.
- Sei que não faria - disse Karin, compondo-se e segurando o rosto dele com ambas as mãos. - Você é uma boa pessoa, Drew Latham, mas não faça mais perguntas. Elas doem demais. Em vez disso, me ame, me ame! Eu preciso de alguém como você.
- Gostaria que você tirasse esse "alguém" e só deixasse o "você".
- Então eu digo. Você, Drew Latham, me ame.
Com gentileza, Drew ajudou-a a se levantar, em seguida carregou-a nos braços e levou-a para o quarto.
O resto da manhã passou-se em excessos sexuais. Karin de Vries ficara muito tempo sem homem; era insaciável. Finalmente, ela deixou cair seu braço direito em cima do peito dele.
- Meu Deus - gritou ela. - Essa aí era eu?
- Você está rindo - disse um Latham exausto. - Não imagina como é maravilhoso quando você ri.
- Sinto que é uma maravilha poder rir.
- Agora não temos volta, você sabe - disse Drew. - Temos alguma coisa agora, somos alguma coisa agora que não éramos antes. E não acho que seja apenas cama.
- Sim, meu querido, e não sei se é prudente.
- Por que não?
- Porque preciso funcionar friamente na embaixada, e se você estiver envolvido, não sei se conseguirei funcionar com frieza.
- Será que estou escutando aquilo que queria escutar?
- Sim, está sim, seu americano ingênuo.
- O que significa isto?
- Acredito que significa, no seu dialeto, que acho que estou apaixonada por você.
- Bem, como disse certa vez um velho menino do Mississippi - se isto não for melhor do que brigas de galo, macacos me mordam!
- O quê?
- Venha aqui que eu te explico.
Eram doze minutos para as duas da tarde quando Claude Moreau e seu agente de maior confiança, Jacques Bergeron, chegaram à estação Georges Cinq do metrô de Paris. Caminharam separados até a parte de trás da plataforma, cada qual carregando um walkie-talkie.
- Ele é um homem alto, bastante magro - disse o chefe do Deuxième para o seu instrumento. - Com a tendência a se inclinar, devido ao hábito de ter de falar com gente mais baixa...
- Avistei-o! - exclamou o agente. - Está encostado na parede, esperando a chegada do próximo trem.
- Quando ele chegar, faça como lhe disse.
O trem do metrô chegou e parou; as portas se abriram, despejando várias dezenas de passageiros.
- Agora - disse Moreau no seu rádio. - Atire.
De acordo com as ordens, os tiros de Bergeron reverberaram pela plataforma, enquanto os usuários do metrô debandavam em massa rumo à saída. Moreau correu até o apavorado Gerhardt Kroeger, agarrando seu braço e gritando.
- Eles estão tentando matá-lo! Venha comigo.
- Quem está tentando me matar? - berrou o cirurgião, correndo com Moreau até um depósito aberto, previamente preparado.
- O que sobrou da sua imbecil Equipe K, seu idiota.
- Eles desapareceram!
- Sumiram para seus olhos e ouvidos. Devem ter subornado alguma criada ou faxineiro e colocado um grampo no seu quarto.
- Impossível!
- Você ouviu o tiroteio. Vamos trazer o trem de volta e ver de onde partiram os tiros? Teve sorte de ele estar cheio.
- Ach, mein Gott!
- Precisamos conversar, Herr Doktor, se não poderemos ambos ficar diante das suas miras.
- Mas e Harry Latham? Onde está?
- Eu o vi - mentiu Jacques Bergeron, andando atrás deles, no seu bolso a pistola e os cartuchos vazios de pólvora seca. - Quando ouviu os tiros, entrou de volta no trem.
- Precisamos conversar - disse Moreau, olhando fixamente para Kroeger, e caminhando rumo a uma grande porta de aço parcialmente aberta. - De outro modo, todos nós sairemos perdendo. - E entraram.
O chefe do Deuxième encontrou o interruptor e ligou a luz. Estavam num recinto de tamanho médio, feito de tijolos de cimento brancos neutros, que abrigava enormes e antiquados interruptores e luzes de sinalização, junto com caixotes ainda não abertos de equipamento novo.
- Espere lá fora, Jacques - disse Moreau a seu agente. - Quando a polícia chegar, como certamente acontecerá, identifique-se e diga a eles que você estava no trem e saltou quando ouviu os tiros. Feche a porta, por favor.
Sozinho com o alemão na luz fraca e cinzenta de uma lâmpada de teto com uma proteção de arames, Moreau sentou-se num dos caixotes.
- Fique confortável, doutor, ficaremos aqui durante algum tempo, pelos menos até a polícia vir e ir embora.
- Mas se eles me acharem aqui...
- Não acharão. A porta tranca ao fechar. Tivemos muita sorte de algum idiota tê-la deixado aberta. Por outro lado, quem iria roubar alguma coisa aqui? Quem iria mesmo carregar alguma coisa?
- Nós o perdemos, nós o perdemos! - gritou Kroeger, batendo com o punho num caixote, em seguida sentando-se na enorme caixa de madeira, sacudindo sua mão machucada.
- Telefonará de novo - insinuou Moreau. - Talvez não hoje, mas certamente amanhã. Lembre-se de que estamos lidando com um homem desesperado, um homem isolado. Mas devo perguntar-lhe, por que é tão importante que ache Latham?
- Ele... ele é perigoso.
- Para quem? Você? A Irmandade?
- Sim... para todos nós.
- Por quê?
- Quanto você sabe?
- Tudo, naturalmente. Eu sou o Deuxième Bureau.
- Digo especificamente.
- Muito bem. Ele escapou do vale alpino de vocês, deu um jeito de achar caminho entre as neves da montanha até encontrar uma estrada, e foi apanhado por um aldeão que passava num veículo.
- Um aldeão? Agora quem está bancando o bobo é você, Herr Moreau. Os Antinayous, foram eles que o resgataram. Sua fuga foi organizada de dentro, por um traidor dentro do vale. Precisamos encontrar esse Hochverräter!
- "Um traidor", sim, compreendo. - No decorrer dos anos como chefe do Deuxième, aprendera a distinguir uma mentira, quando contada por amadores sob estresse. O desespero vazio nos olhos, as palavras se atropelando, muitas vezes acompanhadas por cuspe nos cantos da boca. Ao observar Gerhardt Kroeger, os sinais estavam todos ali. - Então é por isso que precisa encontrá-lo? Para interrogá-lo antes de executá-lo, de modo a saber a identidade do traidor de vocês?
- Você precisa compreender que era uma mulher, e precisa ser alguém muito bem situado na organização. Ela tem que ser eliminada!
- Sim, é claro, eu também compreendo isto. - Filetes de suor começaram a se formar na franja do cabelo de Kroeger, e a sala do metrô estava fria. - Então é isso, o motivo de sua Equipe K, o motivo de um homem tão importante quanto o senhor ter vindo a Paris... para conhecer a identidade do traidor nos altos escalões da Irmandade.
- Exatamente.
- Sei. E não há outro motivo?
- Nenhum. - Dois filetes de suor começaram a escorrer da testa do alemão, atravessaram suas sobrancelhas e continuaram até suas faces. - Está fazendo muito calor aqui - disse Kroeger, enxugando seu rosto com as costas da mão direita.
- Não notei. Na realidade, pensei até que fazia um pouco de frio, mas é verdade que ocorrências iguais às desta tarde me são bem conhecidas, e não abalam grande coisa meus nervos. Aqui e ali, os tiroteios têm feito parte de minha vida.
- Sim, sim, isso é você, não eu. Aposto que se o levasse a uma sala de cirurgia para assistir a uma intervenção especialmente escabrosa, você provavelmente desmaiaria.
- Não há dúvida, certamente desmaiaria. Mas, sabe, doutor, para que eu funcione com a máxima eficiência, preciso saber tudo, e alguma coisa me diz que o senhor não me disse tudo.
- Do que mais haveria de precisar? - O suor de Kroeger era mais abundante.
- Talvez tenha razão, às vezes sou preocupado demais. Então procederemos assim. Quando Harry Latham ligar de novo, eu não lhe telefonarei para o Lutetia, prendendo-o em vez disso nós mesmos. Depois de preso, nós o trataremos muito bem, e depois de algumas horas eu faço contato com o senhor.
- Inaceitável! - gritou o cirurgião, levantando-se do caixote, com as mãos a tremer. - Preciso estar lá quando o acharem! Preciso ficar a sós com ele antes de haver qualquer interrogatório, longe de todos vocês, pois estarei discutindo informação que ninguém pode ouvir. É vital, e essas são as suas ordens da Brüderschaft!
- E se eu, de minha livre iniciativa, não obedecer?
- Notícias de mais de vinte milhões de francos depositados na sua conta na Suíça poderiam chegar ao Quai d’Orsay e à imprensa francesa.
- Bem, isto é certamente um argumento convincente, não é?
- Espero que sim.
- Quando diz "longe de todos vocês", o que quer dizer?
- Exatamente o que disse. Levo comigo uma porção de seringas e narcóticos que obrigarão Harry Latham a me revelar o que precisamos saber. Natürlich, ninguém mais deve estar por perto.
- Você quer dizer num quarto sozinhos?
- Absolutamente não. As conversas num quarto podem ser transmitidas, do mesmo modo que você alega que meu próprio quarto de hotel está grampeado.
- Então como poderemos acomodá-lo?
- Num carro de minha própria escolha, não num dos seus. Eu irei com Latham a algum lugar, administrarei minhas substâncias químicas, descobrirei o que preciso descobrir e o entregarei a você.
- Nada de execução?
- Só se eu for seguido.
- Novamente, ao que parece, não tenho escolha.
- Tempo, Moreau, tempo! É extremamente importante. Ele precisa ser achado dentro das próximas trinta e seis horas!
- O quê? Agora deixo de compreendê-lo totalmente. Por que trinta e seis horas? Será que a Terra deixará de girar em torno do Sol neste prazo? Por favor, explique-me.
- Muito bem, é o que intuiu, aquilo que não lhe contei... Lembre-se, sou um médico, e alguns dizem que o melhor neurocirurgião da Alemanha, e não contestarei este juízo. Harry Latham está maluco, uma combinação de esquizofrenia com síndrome maníaco-depressiva. Eu salvei sua vida no nosso vale, operando-o para aliviar as tensões que provocavam sua doença. Ao reler minhas anotações, encontrei um terrível fato. Se não receber determinada medicação seis dias depois de ter fugido, morrerá! Ele já atingiu quatro dias e meio, desses seis. Está vendo agora? Precisamos interrogá-lo antes que leve o nome do traidor com ele para a sepultura.
- Sim, agora compreendo, mas, doutor, está se sentindo bem?
- O quê?
- O senhor ficou muito pálido e seu rosto está molhado de suor. Está sentindo dores no peito, talvez? Posso conseguir que uma ambulância chegue aqui dentro de minutos.
- Não quero uma ambulância, quero Harry Latham! E não tenho nenhuma dor no peito, nenhuma angina, apenas uma intolerância a burocratas de lenta compreensão.
- Acredita que também compreendo isto? Porque o senhor é um homem de ciência, um homem brilhante, e além de minha devoção à vossa causa, tive a honra de conhecê-lo... Vamos, partamos agora, e empregarei todas as minhas energias ao máximo.
Lá fora no Champs-Élysées, Moreau e seu agente de campo acenaram enquanto Gerhardt Kroeger embarcava num táxi, em seguida se encaminharam para seu veículo do Deuxième.
- Depressa! - disse o veterano de Istambul e de mais postos do que se poderia lembrar. - Aquele filho da puta estava mentindo a ponto de engolir a própria saliva! Mas sobre o que mentia ele?
- O que vai fazer, Claude?
- Sentar, pensar e fazer várias ligações. Uma para o eminente erudito Heinrich Kreitz, o embaixador alemão. Ele e seu governo vão desenterrar umas fichas para mim, queiram ou não queiram.
19
Drew Latham, segurando a pasta, apresentou-se ao balcão principal do Intercontinental. Colocou um pedido de reserva da parte da embaixada americana em cima dele e também uma carteira de identidade militar. Foram rapidamente apanhados por um funcionário do hotel vestido formalmente, que pegou um cartão de seu fichário.
- Ah, oui, coronel Webster, o senhor é um hóspede muito bem-vindo. A embaixada pediu uma minissuíte, e sabe que arranjamos uma para o senhor. Um casal espanhol partiu mais cedo.
- Fico muito agradecido.
- Além disso - disse o funcionário - o senhor talvez receba visitas, e devemos ligar para o senhor antes de dar-lhes o número de seu quarto, n’est-ce pas?
- Exatamente.
- Sua bagagem, monsieur?
- Deixei-a no balcão da portaria com o meu nome.
- Excelente. Então o senhor está de passagem.
- O exército me obriga a me deslocar - disse Drew, assinando o registro. Anthony Webster, Coronel do Exército dos Estados Unidos. Washington, D.C., EUA.
- Ah, tão interessante. - O funcionário girou o livro de registros e destacou a ficha do hotel.
Levantou os olhos e tocou sua campainha.
- Leve Monsieur le Colonel à suíte 703, e informe à portaria para mandar subir sua bagagem. O nome é Webster.
- Oui - respondeu o boy uniformizado. - Siga-me, monsieur. Sua bagagem chegará dentro de poucos minutos.
- Obrigado.
A viagem de elevador até o sétimo andar não apresentou novidades, a não ser um casal americano de meia-idade que estava brigando. A mulher, com o cabelo azulado e o pescoço e pulsos cheios de joias, ralhava com seu marido obeso, que usava um chapéu Stetson de aba larga.
- Lucas, você podia ao menos ser simpático!
- Que motivo há para ser simpático? Eu não consigo arranjar uma limusine de verdade, só aqueles trocinhos que mal dão para acomodar a sua bunda, e ninguém fala americano até você dar-lhes uma gorjeta, em seguida parece que foram criados em Texarkana.
- Isso é porque você não quer aprender a moeda daqui.
- E você aprendeu?
- Eu faço compras. Sabe quanto deu para o último motorista de táxi?
- Que diabo, não. Eu só tirei umas notas do maço.
- A corrida era de cinquenta e cinco francos, mais ou menos dez dólares. Você lhe deu cem, que está mais próximo de vinte dólares.
- Ah, diacho. Então foi por isso que ele não parava de me piscar o olho quando você saiu, dizendo num inglês perfeito que ele estaria a maior parte da noite do lado de fora do hotel e que eu deveria procurá-lo.
- Claro! - Felizmente a porta do sexto se abriu e o casal deixou o elevador.
- Peço desculpas pelos meus compatriotas - disse Drew, na falta do que dizer, diante das sobrancelhas erguidas do boy.
- Não precisa, Monsieur le Colonel. Mais tarde esta noite é bem possível que aquele senhor seja visto na calçada à procura do táxi.
- Touché.
- D’accord. Este é o Paree dos sonhos deles, n’est-ce pas?
- C’est vrai, lamento dizer.
- Tudo isto não faz mal a ninguém... Este é seu andar, monsieur.
A suíte era pequena, um pequeno quarto e uma sala de estar separada, mas era encantadora, muito europeia, e o que a fazia extraordinária era a garrafa de uísque no pequeno bar. Witkowski deve ter sentido pontadas de culpa, o que era bem feito. Latham detestava a porra do uniforme. Seu peito, sua cintura e seu traseiro estavam enfeixados num tubo de pano. Por que não aconteciam demissões em massa nas Forças Armadas somente por causa da roupa?
Depois que o boy se fora, Drew ficou à espera de sua mala, que continha umas mudas básicas de roupas civis, apanhadas no seu apartamento por uma Karin de peruca loura. Ele despiu a túnica sufocante, serviu-se de um drinque, ligou o aparelho de televisão, trocando de canais até achar a CNN, e sentou-se. O noticiário estava focalizando esportes, especialmente o beisebol americano, que não o interessava; quando chegava a temporada do hóquei, a coisa era diferente.
A campainha da porta tocou; era um jovem boy com sua bagagem. Drew agradeceu e deu-lhe uma gorjeta, ficando espantado quando ele disse:
- Isto é para o senhor. - E o rapazinho de olhos bem abertos entregou-lhe um bilhete. - É, como se diz, confidentiel?
- Muito bem, muito obrigado.
Ligue para quarto 330. Um amigo.
Karin? Era tão típico dela, ser assim imprevisível. Eram amantes agora - mais do que amantes. Havia algo entre eles que ninguém poderia roubar. Tão parecido com ela!
Ele pegou o telefone, examinou as instruções impressas e discou.
- Oi, consegui - disse ele, no instante em que atenderam.
- Ei, cara, então é você mesmo! - disse uma voz masculina na linha.
- O quê? Quem é você?
- Vamos lá, Bronco, será que não reconhece seu velho companheiro de quarto dos Manitoba Stars? É Ben Lewis! Eu te vi no saguão. No começo pensei estar com visão dupla, mas sabia que era você! Aí, é claro, você tirou seu quepe e achei que eu estava maluco, até que você se encaminhou para o elevador.
- Eu... eu realmente não sei de que você está falando.
- Preste atenção, Bronco! Seu pé direito. Lembra quando seu tornozelo foi cortado por um cara dos Toronto Comets? Sarou poucas semanas depois e você voltou para o gelo, mas seu pé direito ficou sempre com aquele ângulo, ligeiramente para a esquerda. Ninguém que não te conhecesse, repararia, mas eu reparei. Sabia que era você!
- Legal, legal, Benny, sou eu, mas não deve contar isso a ninguém. Agora trabalho para o governo e você precisa manter a boca calada.
- Ei, eu compreendo, amigão. Sabe, joguei pelos Rangers durante duas temporadas...
- Eu sei, Benny, você era tremendo.
- Porra nenhuma. Me cortaram na terceira.
- Acontece.
- Não se fosse contigo, amigão. Você batia em todos nós.
- Isso é lenda. Como me encontrou, Ben?
- No balcão da portaria. Perguntei para onde ia a mala.
- Eles te contaram?
- Certo, porque eu disse que era minha!
- Meu Deus, você me traz recordações. A gente ia a um restaurante caro em Montreal, chegava a conta, e se fosse muito grande, você alegava, que pertencia a outra mesa, ou outra ainda depois da primeira, até que a conta baixasse o suficiente para você aceitá-la. O que está fazendo em Paris?
- Estou no ramo de fast-food, representando todos os maiorais; recrutam caras como eu e você porque temos muito músculo e exageram nossa reputação. Acredita que botaram no meu currículo que era uma estrela dos Rangers? Aqui não sabem nada? Eu era de segunda categoria, mas tenho corpo para encher um casaco.
- Eu nunca enchi tanto quanto você.
- Não, você não enchia. Era, conforme disse um jornal de Toronto, "só puro tendões e velocidade". Eu adoraria que tivessem dito isto a meu respeito naquela época.
- Volto a repetir que isto já faz parte do passado, Ben, mas preciso lhe dizer mais uma vez. Você precisa esquecer que me viu! É tremendamente importante que se lembre disso.
- Pode deixar, amigão. - O sujeito chamado Lewis deu um soluço, depois outro.
- Benny - disse Latham com firmeza. - Você não está bebendo de novo, está?
- Não - respondeu o empresário internacional de fast-food, dando um arroto junto com um soluço. - Mas que diabo, amigão, isto aqui é Paris.
- Falo contigo mais tarde, amigão - disse Latham, desligando o telefone. Tão logo o fizera, ele tocou de novo.
- Sim?
- Sou eu - disse Karin de Vries. - Tudo correu bem?
- Não, merda, alguém que conheci anos atrás me reconheceu.
- Quem?
- Um velho jogador de hóquei do Canadá.
- Representa algum problema?
- Acho que não, mas está de porre.
- Então é um problema sim. Qual é o nome dele?
- Ben-Benjamin Lewis. Está no quarto trezentos e trinta.
- Vamos atacar este problema... Como está, querido?
- Querendo estar junto de você, é como me sinto.
- Resolvi.
- Meu Deus, o que você resolveu? É algo que eu gostaria de escutar, ou não?
- Espero que sim. Eu te amo mesmo, Drew, e como você disse, com toda razão, a cama foi apenas uma pequena parte disso tudo.
- Eu te amo tanto que não consigo encontrar as palavras para te dizer... Não acredito que acabei de dizer isto! Jamais acreditei que pudesse acontecer...
- Nem eu. Espero que não estejamos enganados.
- O que sentimos não poderia ser um equívoco. No decorrer de poucos dias, passamos por mais coisas do que a maioria das pessoas durante toda uma vida. Fomos testados, madame, e nenhum de nós se despedaçou. Em vez disso, encontramos um ao outro.
- O meu lado europeu poderia achar isto inconsequente, mas sei o que sente, porque também sinto a mesma coisa. Sinto, e anseio por você.
- Então venha ao hotel, com peruca loura e tudo.
- Não hoje à noite. O coronel nos mandaria para uma corte marcial. Talvez amanhã.
Uma hora depois, já que não era nem meio-dia em Nova York, o presidente da Associação Internacional de Serviços Alimentícios na Sexta Avenida recebeu uma ligação de Washington. Trinta minutos depois, um de seus representantes, um ex-craque do New York Rangers, atualmente em Paris, foi mandado a Oslo, na Noruega, para preparar o caminho para novas oportunidades de negócios. Só houve um pequeno problema. O vendedor em questão estava num tremendo porre na sua cama, e foram necessários dois ajudantes da portaria para acordarem-no, fazer com que atendesse ao telefone, ajudá-lo a fazer suas malas e botá-lo num táxi para o Aeroporto de Orly.
Infelizmente, como tudo foi feito de maneira um tanto apressada, Benjamin Lewis entrou na fila errada, perdeu o avião, e comprou uma passagem para Helsinque, já que não conseguia se lembrar de Oslo, mas sabia que seu patrão lhe dera o nome de uma cidade escandinava, embora nunca estivera em Helsinque. Este é o destino daqueles que interferem com complicadas operações de espionagem.
A meio caminho do voo, Benny de repente se lembrou de Oslo, e perguntou à aeromoça se podia descer e pegar carona em outro avião. A outra aeromoça, uma finlandesa loura espetacular, demonstrou simpatia, mas não achou uma boa ideia. Por isso Benny convidou-a para um jantar tarde à noite em Helsinque. Ela recusou delicadamente.
Wesley Sorenson deixou o quartel-general dos Operações Consulares e foi levado até o local seguro em Fairfax, Virgínia, onde estavam encarcerados os dois revolucionários nazistas. Quando o carro passou pelo portão, entrando num longo caminho circular que levava à imponente entrada principal daquela propriedade que já pertencera a um diplomata argentino, o diretor das Operações Consulares tentou lembrar-se de todos os truques que já usara nos interrogatórios práticos. O primeiro, claro, era "oi, caras, prefiro ver vocês vivos do que mortos, o que não dependerá de minha decisão, espero que compreendam. Não podemos ficar de brincadeiras aqui; existe um recinto subterrâneo, à prova de som, cuja parede está bastante furada por balas de execuções anteriores"... etcétera, etcétera. Naturalmente que aquela parede não existia, nem o recinto, e geralmente só os prisioneiros mais fanáticos eram levados no elevador coberto de panos pretos para uma morte antecipada. Aqueles que escolhiam fazer aquela pequena viagem de quinze metros, eram injetados com derivados de escopolamina e ficavam tão gratos quando ressuscitavam, que normalmente cooperavam à perfeição.
A grande cela para dois não era do tipo penitenciária. Tinha sete metros de comprimento por quatro de largura, e continha duas camas de tamanho normal, uma pia, um banheiro murado, uma pequena geladeira e um aparelho de televisão. Estava mais próximo de um quarto de hotel duas estrelas do que de qualquer coisa saída da velha Attica ou Alcatraz. O que os prisioneiros não sabiam, mas provavelmente desconfiavam, é que havia câmeras escondidas nas paredes, cobrindo cada centímetro de espaço.
- Posso entrar, cavalheiros? - disse Sorenson, do lado de fora da porta da cela. - Ou deveria falar alemão, para me fazer entender bem?
- Falamos bem inglês, mein Herr - respondeu o descontraído Paris Dois. - Fomos capturados, então o que poderíamos dizer?... Não, não pode entrar?
- Interpreto isto como uma afirmativa. Obrigado.
- Seu guarda com a arma ficará do lado de fora - disse o menos cordial Paris Cinco.
- São os regulamentos, não os meus pessoalmente. - Sorenson foi conduzido até dentro da cela pelo guarda, que recuou até a parede mais afastada, tirando sua arma do coldre. - Acho que precisamos conversar, conversar seriamente, cavalheiros.
- Que assunto há para conversar? - perguntou Paris Dois.
- Se vocês vão viver, ou morrer, acho a questão principal - respondeu o diretor das Operações Consulares. - Sabe, a decisão não é minha. Lá embaixo da terra, a dez metros de profundidade, tem uma sala... - Sorenson descreveu a sala de execuções perturbando Paris Cinco, e tendo uma recepção mais fria da parte de Paris Dois, que olhava fixamente para o diretor, contendo um sorriso nos lábios.
- Acha que somos tão comprometidos a ponto de lhes darmos o pretexto de nos matarem? - disse ele. - A não ser que estejam predispostos a tanto, de qualquer maneira.
- Neste país encaramos a liquidação de uma vida de modo muito sério. Nunca de maneira predisposta ou para ser aceita rapidamente.
- Mesmo? - prosseguiu Paris Dois. - Então por que, fora determinados estados árabes, a China, e o que restou de algumas repúblicas russas, vocês são o único país do mundo civilizado a manter a pena de morte?
- A vontade do povo... em certos estados, é claro. Entretanto, a situação de vocês está excluída da política nacional. Vocês são assassinos internacionais, funcionando a serviço de um partido político desacreditado que não ousa mostrar sua face, já que seria denunciado através do mundo inteiro.
- Tem tanta certeza disto? - interrompeu Paris Cinco.
- Espero que sim.
- Então estaria equivocado.
- O que meu companheiro quer dizer - interrompeu o Dois - é que talvez a gente disponha de mais apoio do que você imagina. Olhe só os nacionalistas extremistas russos, são tão diferentes do Terceiro Reich? E seus próprios fanáticos direitistas e seus irmãos, os fundamentalistas incendiadores de livros. A agenda deles poderia ter sido preenchida por Hitler ou por Goebbels. Não, mein Herr, existe muito mais simpatia por nossos objetivos purificadores do que poderia imaginar.
- Espero que não.
- "A esperança tem asas" como disse um dos seus maiores escritores, não é?
- Não acredito em vocês, mas você é bastante instruído, não é, rapaz?
- Já vivi em vários países e, assim espero, absorvi algo de suas culturas.
- Você mencionou algo sobre comprometimento - disse Sorenson. - Perguntou-me se os achava "tão comprometidos" a ponto de usar isto como pretexto para mandar executá-los.
- Eu disse para "nos mandar matar" - corrigiu Zero Dois. - A execução implica uma justificativa legal.
- Para a qual, no caso de vocês, existe ampla prova. Refiro-me às três tentativas e ao assassinato final do agente Latham, para início de conversa.
- Mas é uma guerra! - gritou Paris Cinco. - Na guerra, soldados matam soldados!
- Não tenho conhecimento de nenhuma declaração de guerra, de nenhum apelo nacional às armas. Portanto, trata-se de assassinato, pura e simplesmente assassinato... Entretanto, isto tudo é uma discussão acadêmica e além das minhas atribuições. Posso apenas transmitir informação; a decisão cabe a meus superiores.
- Que tipo de informação? - perguntou o Dois.
- O que podem vocês oferecer em troca de suas vidas?
- Por onde quer começar, se é que temos essa informação?
- Quem são seus colegas em Bonn?
- Isto, posso lhe dizer sinceramente, não sabemos... Deixe-me recapitular, mein Herr. Somos um grupo de elite que vive uma vida extraordinária, as fantasias de todos os rapazes que são bem treinados para obedecer ordens. Essas ordens nos chegam por códigos, códigos que mudam constantemente. - Paris Dois descreveu o estilo de vida deles conforme dissera a Zero Cinco que faria, no jato a caminho de Washington. - Somos as tropas de choque, as tropas de assalto, se quiser, e mantemos contatos com nossas equipes em todos os países. Nenhum nome é jamais usado, o prefixo zero pertence a Paris - eu sou Paris, Zero Dois - o prefixo Três pertence aos Estados Unidos, com os referentes aos nomes próprios o precedendo.
- Como estabelecem contato?
- Por rodízio e usando números telefônicos seguros fornecidos por Bonn. Novamente, usam nossos dígitos, sem nomes.
- Em relação a este país, o que podem me informar de modo que eu possa recomendar a comutação de suas execuções?
- Mein Gott, por onde quer começar?
- Por qualquer coisa que desejarem.
- Muito bem, vamos começar pelo vice-presidente dos Estados Unidos.
- O quê?
- É um dos nossos até a medula. E tem também o presidente da Câmara dos Comuns, descendência alemã, naturalmente, um senhor já idoso que alegou pacifismo durante a Segunda Guerra Mundial. É claro que existem outros, mas seus nomes e cargos dependerão de sua recomendação ao comitê de execução.
- Vocês podem estar mentindo de cara lavada.
- Se é o que pensa, fuzilem-nos.
- Vocês são lixo.
- Tal como você é aos nossos olhos! - gritou Paris Cinco. - Porém o tempo está do nosso lado, e não do lado de vocês. Mais cedo ou mais tarde o mundo acordará e verá que temos razão. Os pretos desumanizados cometem a maioria dos crimes; os árabes constituem a maior parcela de terroristas, e os judeus são os manipuladores do mundo, esbulhando e corrompendo tudo a seu alcance - tudo para eles, nada para mais ninguém!
- Apesar do meu passional companheiro, querem a nossa informação ou não? - perguntou Zero Dois. - Eu adorava minha vida privilegiada em Paris, mas se ela tiver de ser interrompida, por que não fazê-lo radicalmente?
- Vocês podem apresentar alguma prova das terríveis acusações que fizeram?
- Só podemos dizer aquilo que nos contaram. Mas, por favor, lembre-se, somos a elite da Irmandade.
- Die Brüderschaft - disse o diretor das Operações Consulares, com uma voz enojada.
- Exatamente. Este nome varrerá o mundo e será venerado.
- Não se eu tiver qualquer voz ativa nisto.
- Mas você tem, mein Herr? Você não passa de uma pequena engrenagem dentre muitas rodas, tal como eu. Francamente, estou entediado com tudo isso. Deixe que a história siga seu inevitável rumo, ela está acima de homens como você e eu. E também prefiro muito mais viver do que morrer.
- Conversarei com meus superiores - disse Wesley Sorenson, friamente, andando até a porta da cela e fazendo um sinal para o guarda.
Quando ambos desapareceram pela porta externa, Paris Dois pegou um bloco, e cobrindo sua escrita, escreveu em alemão, "Ele não pode se dar ao luxo de nos executar".
- Monsieur l’Ambassadeur - disse Moreau, sozinho com Heinrich Kreitz na sala deste último na embaixada alemã. - Espero que nossa conversa não esteja sendo gravada. Não seria vantajoso para nenhum de nós dois.
- Não está - respondeu o embaixador idoso, cuja pequena estatura, rosto pálido e enrugado, e óculos de aros finos de aço, faziam-no parecer mais um gnomo envelhecido do que um gigantesco intelectual europeu. - Eu obtive a informação que pediu...
- Pediu por uma linha segura, n’est-ce pas? - interrompeu o chefe do Deuxième Bureau, sentado na frente da mesa.
- Naturalmente, eu lhe dou a minha palavra... os registros recuam até tudo aquilo que é conhecido sobre a família e a infância de Gerhardt Kroeger, passando pela sua vida universitária e pelo ensino médico, sua nomeação hospitalar, até sua demissão final em Nuremberg. É um arquivo notável, cheio de êxitos de um homem brilhante; e com a possível exceção de seu abrupto afastamento da comunidade médica, não há nada que indique irregularidades, muito menos simpatia por movimentos neonazistas. Tirei uma cópia para você, é claro. - Kreitz inclinou-se para a frente e colocou um envelope fechado de papel manilha diante de Moreau, que pegou-o, impressionado pelo seu peso e grossura.
- Poupe-me um pouquinho de tempo, se o senhor tiver tempo.
- Não há nada mais importante do que nossa investigação conjunta. Por favor, prossiga.
- O senhor leu isso tudo?
- Como se fosse uma tese de doutorado que tivesse de aprovar ou recusar. Com muito cuidado.
- Quem eram os pais dele?
- Sigmund e Elsi Kroeger, e você tocou no primeiro ponto que desacredita qualquer associação com os neonazistas. Sigmund Kroeger foi oficialmente arrolado como desertor da Luftwaffe nos meses finais da guerra.
- Como milhares de outros.
- Da Wehrmacht talvez, mas da Luftwaffe não, e pouquíssimos oficiais mais graduados. O velho Kroeger era um major condecorado, condecorado pelo próprio Goering. Os registros militares, os seus e os nossos, indicam que se a guerra tivesse continuado e Kroeger fosse capturado, teria sido submetido à corte marcial e fuzilado. Pelo Terceiro Reich.
- O que aconteceu a ele depois da guerra?
- A confusão de sempre. Ele voara com seu Messerschmitt por cima das linhas aliadas, saltara de paraquedas e deixara seu avião se espatifar num campo ali perto. As tropas britânicas evitaram seu massacre pelos aldeões dali e foi-lhe dado status de prisioneiro de guerra.
- E depois da rendição, foi repatriado?
- Confusão, o que posso lhe dizer? Ele era filho de um pequeno empresário que empregava centenas de pessoas. Entretanto, no frigir dos ovos, era um desertor, e nenhum devoto seguidor do Führer. Isto não constituiria a premissa para seu filho se tornar um deles.
- Sim, compreendo. E sua mulher, a mãe de Gerhardt?
- Uma sólida Hausfrau da alta classe média, que provavelmente detestava a guerra. De qualquer maneira, nunca constou como filiada ao partido nacional socialista, nem que frequentasse os numerosos comícios.
- Não era exatamente uma influência pró-nazista.
- Isto é que estou tentando lhe dizer.
- E durante a vida colegial e universitária de Kroeger, havia algumas facções estudantis contra a democratização da Alemanha, contra sua rejeição cio Terceiro Reich, que pudessem ter influenciado Kroeger?
- Nenhuma que eu pudesse encontrar. Seus professores, de modo geral, descreveram-no como um sujeito retraído, um estudioso nato e um médico em formação simplesmente extraordinário. Sua residência cirúrgica foi tão excelente, que ele já estava operando vários meses antes disto ser normal.
- Sua especialização?
- O cérebro. Dizem que ele tem "mãos de ouro e dedos de mercúrio"; trata-se de uma citação exata do célebre Hans Traupman, outro gigante neste terreno.
- Quem?
- Traupman, Hans Traupman, chefe da neurocirurgia do Nuremberg.
- São amigos?
- Além da convivência profissional, não há registros de qualquer amizade especial.
- No entanto, ele se excedia na hora de elogiar o seu subordinado.
- Nem todos os cirurgiões são mesquinhos, Moreau.
- Presumo que não. Existem conclusões ou opiniões por que Kroeger pediu demissão do cargo e emigrou para a Suécia?
- Além de suas próprias declarações passionais, não. Ele vinha fazendo operações extremamente delicadas, quase dir-se-ia de abalar os nervos, há vinte anos. Sua avaliação pessoal era de que ele se esgotara, e que havia um início de tremor naqueles dedos de "mercúrio" dele, e que não queria mais pôr em risco a vida dos pacientes. Admirável.
- Muito confuso - disse Moreau calmamente. - Alguém seguiu alguma pista de onde ele foi parar?
- Só boatos, conforme lerá. Vários ex-colegas, que tiveram notícias suas há menos de quatro anos, disseram que ele abriu uma clínica geral com um nome sueco, ao norte de Göteborg.
- Quem são esses "ex-colegas"?
- Seus nomes estão no relatório. Você mesmo poderá verificá-los, se quiser.
- Quero.
- Agora, Monsieur Moreau - disse o embaixador alemão, recostando seu corpo curto e esquelético na cadeira -, acho que já é hora de ser claro comigo. Quando falamos - numa linha segura, conforme sua exigência - o senhor insinuou que um determinado Gerhardt Kroeger, cirurgião, poderia fazer parte do movimento nazista, mas o senhor não mostrou nenhum indício, sem falar em provas. Em vez disso, o senhor disse, de maneira um tanto ultrajante, que se meu governo, representado por esta embaixada, se recusasse a cumprir sua exigência de levantar um dossiê completo sobre Kroeger, o senhor reclamaria ao Quai d’Orsay que nós estaríamos provavelmente encobrindo a identidade de um membro poderoso da nova liderança nazista. Novamente, sem provas. E depois que o senhor alimentar seu sistema com este arquivo, é bem possível que um médico inocente em algum lugar da Suécia venha a sofrer terríveis perturbações na sua vida particular, porque não duvido que o senhor o encontrará. Aí está sua informação, Monsieur Moreau. Dê-me alguma coisa, pelo menos para apaziguar minha consciência, pois, como disse, o senhor haverá de achá-lo.
- Nós já o encontramos, Monsieur l’Ambassadeur. Está aqui em Paris, a menos de vinte quarteirões daqui. Sua missão é encontrar Harry Latham e matá-lo. Mas por que ele, por que um médico, um cirurgião? Esta é a indagação que precisamos responder.
Lá fora na rua, Moreau se encaminhou diretamente para o seu veículo do Deuxième Bureau, entrou, fez um gesto com a cabeça para o motorista arrancar e pegou o telefone da embaixada do seu descanso. Discou uma linha doméstica ultrassegura.
- Jacques?
- Sim, Claude?
- Faça uma investigação detalhada sobre um médico chamado Traupman, Hans Traupman, um cirurgião de Nuremberg.
A noite passava lentamente, demasiadamente lenta para um agitado Drew Latham. A suíte do hotel era sua prisão domiciliar; até mesmo o ar reciclado começava a se tornar opressivo. Abriu uma janela, fechando-a imediatamente; a noite de Paris estava úmida, era preferível o ar condicionado. Ele já passara muito tempo engaiolado como o fugitivo que deveria ser. Precisava sair, como fizera na tarde anterior, para visitar seu apartamento na rue du Bac, acompanhado pela sua escolta de fuzileiros navais. Levara menos de uma hora, somente alguns minutos na rua, mas aquela hora, aqueles minutos, foram uma breve trégua dos recintos sufocantes da Maison Rouge dos Antinayous, da casa de Witkowski, e até mesmo do apartamento de Karin - não, do apartamento de Karin não. Aquilo fora um alívio de outra ordem, de algo do qual ele andava fugindo há anos, e fora esplêndido, caloroso, um consolo.
Mas agora, agora precisava se sentir novamente como um homem livre, nem que fosse por um instante; precisava andar na rua entre gente, era tão simples quanto isso, talvez. Falara com Karin duas horas antes, quando ela ainda se encontrava na embaixada, concordando que no interesse da segurança absoluta, ele não iria visitá-la na Madeleine. Certamente que não; a última coisa que ele queria era transformá-la numa fugitiva também. Ela lhe dera, entretanto, uma mensagem urgente de Washington. Era para ele entrar em contato com Wesley Sorenson na sua linha particular, e para insistir até que o diretor das Operações Consulares atendesse; e se até seis horas, hora de Washington, eles ainda não tivessem feito contato, era para ele ligar para Sorenson em casa, não importando a hora.
Ele tentara repetidamente, sabendo que o número não poderia ser rastreado, até que fizesse onze horas em Paris, seis em Washington. Em seguida ligara para a casa de Wes. A Sra. Sorenson atendera; a mulher do espião perfeito dissera as palavras certas.
- Meu marido está esperando um chamado de nosso antiquário em Paris. Se for ele, o Sr. Sorenson está ocupado até sete horas, no nosso horário, mas se não for muito inconveniente, tente de novo, já que não temos o número do seu apartamento. Ele está muito interessado na tapeçaria que vimos no mês passado.
- Não foi vendida, madame - disse Drew. - Eu ligarei logo depois da meia-noite, hora de Paris. É o mínimo que posso fazer para clientes tão excelentes.
O que seria tão importante para Sorenson tê-lo descrito como "urgente"? Não importava, o fato é que precisar passar uma hora especulando sobre uma dúzia de hipóteses no confinamento da pequena suíte do hotel era mais do que poderia suportar. Além do mais, ele envergava o inibitório uniforme que mal o permitia respirar, seu cabelo estava tingido de um louro ridículo, usaria os óculos que Karin lhe dera e estava escuro lá fora. O que poderia ser mais seguro do que a combinação de uma outra aparência com a escuridão? Finalmente, ele carregava seu minúsculo telefone celular. Se Witkowski, ou alguém na embaixada, altamente autorizado, precisasse dele numa emergência, tentariam aquele número, se não conseguissem falar com ele no hotel.
Ele tomou o elevador até o saguão, passou andando pelo balcão da portaria, sentindo-se tolo na medida em que dedos subiam para os bonés com saudações do tipo "mon colonel?" e "Monsieur le Colonel Webster?", até que passou pela porta giratória e saiu para rue de Castiglione. Meu Deus, que sensação boa estar lá fora, longe das paredes de sua prisão! Ele virou à direita, afastando-se das lâmpadas da rua, e prosseguiu caminhando pela calçada, respirando profundamente, o passo firme, quase militar, percebeu, rindo com seus botões.
E em seguida aconteceu. O telefone na sua túnica tocou, uma campainha baixa, enfática. Espantou-o tanto que ele ficou desajeitado, esquecendo os botões da túnica do exército, querendo apenas que a porra do barulho parasse. Afinal, retirou o instrumento estridente, apertou a tecla de falar e botou o fone no ouvido.
- Sim, o quê?
- É da unidade W dos fuzileiros, é você?! O que está fazendo do lado de fora do hotel?
- Tomando só um pouquinho de ar, vocês se importam?
- Claro que nos importamos, porra, mas já é tarde demais. Está sendo seguido.
- O quê?
- Temos uma foto; não podemos ter certeza, mas achamos que é Reynolds, Alan Reynolds do centro de comunicações. Estamos com ele nos binóculos, mas a luz não é grande coisa e está com a lapela levantada e usando um chapéu.
- Como, porra, poderia ele me reconhecer? Estou de uniforme e com o cabelo louro!
- Um uniforme pode ser alugado, e cabelo louro não significa grande coisa quando está escuro e a pessoa usa um quepe de oficial... Continue a andar e dê boas gargalhadas quando guardar o telefone no bolso. Em seguida vire à direita na próxima ruazinha estreita. Estudamos a área; sairemos e estaremos atrás de você.
- Pelo amor de Deus, prendam-no, prendam-no! Se me achou, é mais do que provável que tenha descoberto a casa da Sra. de Vries!
- Ela não é nossa prioridade, seja lá quem for. É você, amigo.
- Ela tem uma enorme prioridade no que me diz respeito, Sr. Fuzileiro!
- Comece a rir de verdade e guarde o telefone.
- Está bem! - Drew fazendo-se passar por tolo na apinhada rue de Castiglione, riu como uma hiena, repondo o telefone celular no bolso, e tomou à direita na primeira ruazinha, só a poucos metros dali. No entanto, em vez de andar, ele rompeu a correr, dirigindo-se até o portal mais próximo à direita, e dobrou a esquina de pedra, sumindo de vista. A própria rua, pouco mais do que uma viela dupla, não passava de uma daquelas zonas residenciais parisienses mais pobres, tão ricas de tradição quanto eram baixos os aluguéis. A única iluminação provinha de dois postes, nas extremidades opostas da via pública; o resto estava mergulhado na mais profunda escuridão. Tirando seu quepe de oficial, Latham deu uma olhada, centímetro após centímetro, em torno da pedra. A figura que caminhava cautelosamente pela rua estreita carregava uma arma na mão, fazendo com que Drew praguejasse silenciosamente. Ele não pensara em trazer uma arma - embora, que diabo, não houvesse espaço algum debaixo do pano do uniforme para que portasse uma!
Então, obviamente sem ver ninguém, o homem com a arma começou a correr em direção ao poste na outra extremidade; era tudo que Latham precisava observar. No momento em que a figura apareceu, Drew chutou de pé direito, acertando a vítima na virilha, em seguida deu um pulo para a frente, jogando Alan Reynolds do outro lado da larga viela, contra a parede, sua mão agarrando a arma que se afrouxara, devido à perda de equilíbrio do traidor.
- Seu filho da puta! - trovejou Drew, arremessando Reynolds contra a pedra do modo mais agressivo que já interceptara alguém. - De onde está vindo, o que sabe? Onde é que se encaixa meu irmão?
- Você não é ele! - disse o nazista numa voz entrecortada. - Eu suspeitava que sim, mas eles não me davam ouvidos!
- Estou escutando, seu filho da puta - disse Latham, com a arma do traidor fazendo pressão contra a testa dele. - Fale!
- Não há nada para falar, Latham, eles receberam meu relatório. Você e aquela mulher de Vries, a armadilha que armaram.
De repente o braço direito de Reynolds surgiu das sombras e pegou seu colarinho. Ele puxou o pano e mordeu a saliência sob o tecido.
- Ein Volk, ein Reich, ein Führer! - gritou Alan Reynolds com seu último alento.
A unidade de fuzileiros chamada W correu pela ruela escura e estreita com as armas engatilhadas.
- Você está bem? - berrou o sargento em comando.
- Não, não estou bem! - respondeu um furioso Drew. - Como esse filho da puta foi aceito? Como conseguiu passar por todos aqueles microscópios de alta tecnologia, os psiquiatras e pesquisadores que supostamente conseguem acertar o dia, a hora e o minuto da concepção do candidato? É tudo uma balela! Esse cara não era apenas um neo atrás de uma grana ou de algumas medalhas, era um fanático enlouquecido que berrou a saudação nazista enquanto tomava seu cianureto. Devia ter sido descoberto anos atrás!
- Não posso discutir com você a este respeito - disse o sargento. - Nós comunicamos ao coronel Witkowski que tínhamos descoberto ele, ou achávamos que sim. Ele nos disse para fazermos o que precisávamos fazer, para atirar nas pernas ou no braço dele, mas para trazê-lo vivo.
- A não ser que o Corpo de Fuzileiros tenha lhe concedido poderes que acho que ele não tem, isto será um pouquinho difícil, sargento.
- Levaremos o corpo para a embaixada, mas primeiro vamos acompanhá-lo de volta ao Intercontinental.
- Teriam que dirigir por vários quarteirões para me deixarem lá. Vou mais depressa andando.
- O coronel ia nos torrar vivos se o deixássemos fazer isto.
- E eu também torrarei se não me deixarem. Não sou responsável perante Witkowski, mas se isto fizer com que se sintam melhor, ele será a primeira pessoa para quem telefonarei.
De volta a sua suíte do hotel, Latham pegou o telefone e discou para o apartamento do coronel.
- Sou eu - disse ele.
- Da próxima vez que você disser a meu pessoal que fará o que quiser porque não é responsável perante mim, dispensarei sua proteção e farei tudo para encaminhá-lo a uma unidade de extermínio nazista.
- Acredito que faria mesmo.
- Pode apostar que sim! - confirmou o coronel, zangado.
- Tive meus motivos, Stanley.
- Quais foram eles, porra?
- Karin, para início de conversa. Reynolds fez um relatório para os neos alegando que eu não era Harry, e sim o outro Latham, e que Karin fazia parte da armadilha.
- Bastante preciso. Disse de que armadilha se tratava?
- O cianureto interrompeu-o...
- Sim. Soube isto pelo sargento e também suas opiniões bastante extremadas sobre nossa segurança.
- Acredito que disse que eram uma balela, e é exatamente o que são... Tire Karin do apartamento dela, Stanley. Se Reynolds me achou, a rue Madeleine não fica muito atrás. Tire-a de lá!
- Quaisquer sugestões?
- Aqui no Intercontinental, de peruca loura e tudo.
- Isso é a coisa mais burra que você poderia dizer. Se Reynolds o encontrou aí, a quem mais deve ter contado, e quem lhe contou?
- Eu me enrolei nessa.
- Certamente que sim. Existe um outro Alan Reynolds, um outro traidor na embaixada, e numa posição das mais altas. Vou transferi-lo para o Normandie, sob o pretexto de que o coronel Webster está sendo transferido de volta a Washington para sofrer uma reavaliação.
- Isso é meio negativo, não é?
- Na realidade, insinuaremos que você é incompetente. Os franceses adoram ouvir isso a respeito dos americanos.
- O coronel Webster está insultadíssimo. Pelo menos posso lavar esse cabelo louro e me livrar do uniforme, certo?
- Errado - disse Witkowski. - Mantenha-os por mais um pouco. Não pode recuperar seu antigo nome e tem uma carteira de identidade direitinha como Webster. Vazou, e mantendo as coisas do mesmo jeito, talvez descubramos o traidor aqui. O círculo está apertando e estamos de olho nos poucos que sabem, e são mesmo poucos. Talvez só os fuzileiros, Reynolds e aquele vendedor bebum, Lewis, que provavelmente está batendo de porta em porta nos iglus, em alguma tundra por aí.
- Se Reynolds deixou vazar para as pessoas certas, pode tomar as medidas do meu caixão!
- Não necessariamente. Você está bem guardado, coronel. Aliás, Karin lhe falou? Wesley Sorenson está tentando falar com você. Nós não abrimos seu esconderijo e ele não queria saber, mas deve ligar para ele.
- É a próxima coisa na minha lista. Volte a me ligar sobre minha transferência para o Normandie, e tire Karin do perigo. Que tal o Normandie?
- Para um espião, você não é lá muito sutil, Latham.
Drew desligou o telefone e consultou seu relógio. Já passava da meia-noite, mais de sete em Washington. Ele pegou o telefone e apertou as teclas para os Estados Unidos.
- Sim? - respondeu a voz de Sorenson.
- É seu antiquário de Paris.
- Graças a Deus! Desculpe por eu ter estado ocupado, mas isto é outro caso, outra tremenda dor de cabeça, se não uma calamidade.
- Pode me contar?
- Não no momento.
- Então o que era tão urgente?
- Moreau. Está limpo.
- Isto é bom de se ouvir. Nossa embaixada não está.
- Ouvi dizer, por isso deixo o julgamento a seu critério. Se estiver numa enrascada e não tiver para onde se virar...
- Espere aí, Wes, não tenho problemas com Witkowski - interrompeu Latham.
- Nem eu, mas não sabemos quem o grampeou.
- Concordo. Foi alguém.
- Então procure Moreau. Ele não sabe que você está vivo, então antes de fazê-lo, entre em contato comigo e eu colocarei ele a par dos fatos.
- Ele ainda está de fora?
- Um de nossos maiores erros.
- Aliás, Wes, já ouviu falar de um Alan Reynolds, do centro de comunicações da embaixada?
- Não posso dizer que sim.
- Gostaria de não termos cometido este. Ele era um neo.
- Era?
- Está morto.
- Presumo que seja uma bênção.
- Não posso concordar. Queríamos ele vivo.
- As coisas às vezes não dão certo. Mantenha-se em contato.
20
Gerhardt Kroeger se esfalfava com o fax de Bonn, um livro de código na mão esquerda, um lápis na direita. Inseria com cuidado as palavras adequadas acima das palavras em código da mensagem. Quanto mais se aproximava do término da tarefa, mais excitado ficava, excitado porém contido, pois o cientista nele exigia uma concentração total. Tendo finalmente acabado, o entusiasmo tomou conta dele. O informante deles na embaixada americana tivera êxito quando o jactancioso Blitzkrieger falhara. A informação do agente infiltrado não era completa, mas ele achara o Latham sobrevivente! Sua mais recente fonte permanecia anônima, mas alegava ser ela irrefutável, uma pessoa que cultivara no decorrer dos anos, uma mulher a quem fizera muitos favores e que agora vivia acima de suas posses. Não mentiria a ele por dois motivos específicos, o primeiro, pelo seu atual estilo de vida caríssimo; o segundo e muito mais eficaz, pelo medo de ser descoberta. Eram os componentes normais para se manter na coleira uma fonte interna.
Onde o informante errara era quanto a sua convicção de que o irmão sobrevivente não era Harry Latham, e sim seu irmão, Drew Latham, o agente das Operações Consulares. Kroeger sabia ser isto absurdo; todos os indícios apontavam para o oposto, indícios provenientes de tantas direções diferentes que não poderiam ter sido fabricados. Além dos relatórios da polícia, da imprensa, e da crescente caçada aos assassinos por parte do governo, havia Moreau do Deuxième e seu companheiro. Este último vira Harry Latham voltar para o trem do metrô depois do tiroteio. De todos os agentes de informação franceses, Moreau seria o último a ousar mentir à Irmandade. Se assim o fizesse, tornar-se-ia um pária, um homem arruinado, sem salvação. Uma porção de remessas financeiras para sua conta em Berna constituíam a garantia.
Minha fonte interna, concluía a mensagem de Bonn, me diz que o Departamento de Pesquisa e Documentação falsificou documentos para um certo coronel Anthony Webster, uma carteira de identificação militar, e uma requisição da embaixada de quartos no hotel Intercontinental na rue de Castiglione. A mesma fonte afirma além disto ter visto rapidamente a carteira de identificação. A fotografia inserida era também falsa, de um homem de feições conhecidas mas com cabelos louros, em vez de castanhos, de uniforme e usando óculos de aros grandes. Apesar de nunca ter visto uma foto de Harry Latham, ela acredita que o homem da foto seja seu irmão, Drew Latham, agente das Operações Consulares. De acordo com relatórios da embaixada, autorizados pela segurança, o corpo de Drew Latham foi enviado para a sua família nos Estados Unidos de avião. Entretanto, segundo minha própria pesquisa, incluindo os relatórios oficiais dos aviões diplomáticos americanos, não há evidência de ter havido esta transferência na data indicada. Portanto, é de minha opinião que o Latham no Intercontinental não é Harry Latham, mas seu irmão. Junto com a segurança da embaixada e a holandesa, de Vries, ele montou uma armadilha para capturar algum membro, ou membros de nossa Irmandade. O caráter desta armadilha espero conhecer esta noite, já que ficarei a postos do lado de fora do hotel de Latham, e mesmo se levar a noite toda e um dia, eu o prenderei e ficarei sabendo. Ou o matarei da maneira recomendada.
Bobagem! pensou Kroeger. Irmãos têm frequentemente feições parecidas. Por que haveriam os americanos de mentir sobre o Latham morto? Não havia motivo para tanto, e todos os motivos para que não o fizessem! A lista de Harry Latham era a chave para a busca global aos nazistas emergentes em todos os lugares. Precisavam dele, por isso é que estavam indo a tais extremos para mantê-lo vivo, desde arregimentar os agressivos Antinayous, até providenciar carteiras falsas de identidade e transferi-lo de um hotel para outro. Harry Latham/Alexander Lassiter era uma fera do serviço secreto; ele sentiu a morte do irmão e jurou vingança de qualquer maneira. Desconhecia que dentro de mais ou menos vinte oito horas isto não faria a mínima diferença para ele; estaria morto. Mas faria para Gerhardt Kroeger. Precisava achá-lo e destroçar seu crânio. Agora sabia onde ir, esperando um tanto desesperadamente que seu informante já tivesse efetuado a execução - da maneira prescrita.
Eram duas e dez da madrugada e Kroeger vestiu seu casaco e uma capa de chuva leve; a capa era necessária, pelo menos para esconder a grande pistola de grosso calibre que continha seis balas pretas explosivas. Cada bala penetrava nos tecidos e se espalhava com o impacto como se fosse um morteiro, deixando para trás uma destruição total.
- Você será apanhado pontualmente às três horas - disse Witkowski.
- Não antes? - perguntou Latham.
- Que diabo, são só quarenta e cinco minutos. Na hora de você descer, quero uma unidade no saguão e uma equipe na rua. Isso precisa de certa organização, roupas civis adequadas e tudo mais.
- Aprovo. E Karin?
- Ela está fora da zona de perigo, como você queria. De peruca loura e tudo, como acho que sugeriu.
- Onde?
- Não onde você está.
- Você tem um coração de ouro, Stanley.
- E você parece minha mãe, que Deus proteja sua alma.
- Por que não posso desejar o mesmo em relação à sua?
- Porque você sempre quer uma gratificação instantânea, e eu não o permitirei... Um dos meus homens apanhará sua bagagem e pasta quinze minutos antes de você descer. Se alguém perguntar para onde vai, diga simplesmente que não consegue dormir. Mais um de seus passeios lá fora. Nós cuidaremos do hotel mais tarde.
- Realmente acredita que Reynolds deu a deixa para os demais neos aqui em Paris?
- Francamente não, porque, pelo que conseguimos saber, seu pelotão assassino se foi. Com quem poderia entrar em contato? Ninguém na Alemanha poderia chegar aqui a tempo, e este Kroeger é um médico, não um assassino. A minha avaliação é de que ele estava aqui para confirmar, não para apertar nenhum gatilho, presumindo que saiba fazê-lo. Reynolds estava agindo sozinho porque fora flagrado do lado de fora de minha casa e queria compensar o fato. Matá-lo lhe faria ganhar pontos.
- Não podemos ter certeza se ele sabia ter sido descoberto, Stanley.
- Mesmo? Então por que não apareceu na embaixada de manhã? Lembre-se, chlopak, dois neos escaparam, sobrevivendo ao meu sistema de segurança...
- As escadas de incêndio e o tapete, certo? - interrompeu Drew.
- Ah, está ficando mais esperto. Se A é igual a B e B é igual a C, então há uma boa probabilidade de A ser igual a C. Não é uma má norma para se orientar.
- Agora está parecendo com Harry.
- Obrigado pelo elogio. Prepare-se.
Latham fez sua mala depressa, o que foi fácil, porque mal a desarrumara, tirando apenas suas calças de civil e um blazer, o uniforme diurno do adido de embaixada. Agora começara a expectativa, os minutos passavam dentro das paredes de sua prisão. Em seguida seu telefone tocou; esperando Witkowski, ele atendeu.
- Sim, o que é agora?
- É Karin, querido.
- Meu Deus, onde está?
- Jurei que não lhe diria...
- Bobagem!
- Não, Drew, chama-se segurança. O coronel me disse que ia transferi-lo, e eu não quero saber para onde.
- Isto está ficando ridículo.
- Então você não conhece nosso inimigo. Só quero que tenha cuidado, muito cuidado.
- Ouviu sobre esta noite?
- Reynolds? Sim, Witkowski me contou, razão pela qual estou te ligando. Não consigo contato com o coronel, o telefone dele está ocupado, o que significa que está falando sem parar com a embaixada, mas algo me ocorreu instantes atrás, e outra pessoa além de mim deveria sabê-lo.
- De que está falando?
- Alan Reynolds vinha frequentemente ao meu departamento sob um pretexto qualquer, geralmente pedindo nossos mapas e informações sobre transportes.
- Ninguém achava estranho? - interrompeu Latham.
- Sinceramente, não. É mais fácil do que telefonar para as empresas aéreas e ficar a par dos horários de trem, ou, pior ainda, comprar mapas rodoviários com letrinhas pequenas em francês. Os nossos são em inglês legível.
- Mas você achou estranho, certo?
- Só depois de o coronel ter me contado sobre esta noite, não antes, juro. Muitos dos nossos funcionários fazem viagens de fim de semana por toda a França, Suíça, Itália e Espanha. Especialmente aqueles que não têm oportunidade de dar giros por Paris. Não, Drew, foi outra coisa, e estranha.
- O que foi?
- Em duas ocasiões, quando me dirigia para a seção de transportes, vi Reynolds saindo do último corredor antes da porta da seção. Presumo que devo ter imaginado algo assim, "Ah, deve ter algum amigo numa das salas e deve estar combinando algum almoço ou jantar," ou algo do gênero.
- E agora pensa de outra maneira?
- Sim, mas poderia estar totalmente equivocada. Todos nós na Pesquisa e Documentação trabalhamos com material confidencial de vários níveis, a maioria não merecendo sequer esta designação de confidencial, mas é de conhecimento geral que aqueles que ficam no último corredor, o mais longe da porta, possuem somente informações ultrassecretas.
- Um esquema pré-organizado? - perguntou Latham. - Do primeiro ao último corredor níveis crescentes de teor confidencial?
- Em absoluto - respondeu Karin. - As salas são simplesmente diferentes. Quando a gente está trabalhando com material ultrassecreto, vamos para o último corredor, onde os computadores têm dados mais completos e a comunicação é organizada para contato internacional imediato. Já trabalhei lá três vezes desde que cheguei aqui.
- Quantas salas existem no último corredor?
- Seis de cada lado do corredor central.
- De que lado você avistou Reynolds?
- Do lado esquerdo. Virei minha cabeça para a esquerda, lembro disso.
- Ambas as vezes?
- Sim.
- Em que dias, quais as datas em que você o viu?
- Meu Deus, não sei. Já se passaram várias semanas, há um mês ou dois.
- Tente se lembrar, Karin.
- Se eu pudesse determiná-los, Drew, eu o faria. Na época, eu simplesmente não achei importante.
- Mas é. Ele é.
- Por quê?
- Porque sua intuição está certa. Witkowski diz que há outro traidor infiltrado, outro Alan Reynolds na embaixada, alguém numa posição muito elevada, muito por dentro.
- Pegarei um calendário e tentarei o máximo isolar as semanas, em seguida os dias. Vou me esforçar muitíssimo para tentar me lembrar no que eu estava trabalhando.
- Ajudaria entrar na sua sala na embaixada?
- Isto significaria ter acesso ao supercomputador, que fica em algum lugar abaixo dos nossos porões. Armazena tudo por cinco anos, porque nossos próprios documentos são destruídos.
- Isto pode ser ajeitado.
- Mesmo que sim, não tenho a menor ideia de como operá-lo.
- Alguém sabe.
- São duas e meia da madrugada, meu querido.
- Eu não me importo se já tiver passado três luas e meia! Courtland pode mandar chamar quem o opera, e se ele não puder, Wesley Sorenson pode, e se ele não puder, a porra do presidente pode!
- Ficar zangado não ajuda nada, Drew.
- Quantas vezes tenho de lhe dizer que não sou Harry.
- Eu amava Harry, mas ele também nunca foi você. Faça o que tiver de fazer. Zangado mesmo, que é provavelmente a única maneira de conseguir fazê-lo.
Latham apertou a tecla, desfazendo a ligação, discando imediatamente a embaixada, pedindo para falar com o embaixador Courtland.
- Eu não me importo com a hora! - gritou ele, quando a telefonista o censurou. - Isto é um problema de segurança nacional, e recebo ordens diretas das Operações Consulares de Washington.
- Sim, quem fala é o embaixador Courtland. O que pode ser tão urgente numa hora tão tarde assim?
- Este telefone é seguro? - perguntou Latham, abaixando a voz até que se tornasse um sussurro.
- Espere na linha que eu atenderei em outro quarto. O outro é mais seguro, além disso minha mulher está dormindo. - Vinte segundos mais tarde Courtland prosseguiu num telefone do segundo andar. - Está bem, quem é você e o que significa isto tudo?
- É Drew Latham, embaixador...
- Meu Deus, você está morto! Não compreendo...
- Não precisa compreender, embaixador. Eu queria apenas que o senhor encontrasse nossos crânios dos computadores e os mandassem ir para o super no subsolo.
- Que complicação, meu Deus, você tinha sido morto!
- Às vezes ficamos complicados demais, mas por favor, faça o que eu peço... E também, o senhor tem esse poder. Entre na linha de Witkowski e peça que me telefone.
- Você está onde?
- Ele sabe. Faça-o depressa. Devo deixar o lugar onde estou dentro de quinze minutos, mas não posso antes de falar com ele.
- Está bem, está bem, farei o que quer... Acho que deveria dizer que me sinto contente por você estar vivo.
- Eu também. Faça isso, Sr. Embaixador.
Três minutos depois o telefone de Latham tocou.
- Stanley?
- Que diabo está acontecendo?
- Dê um jeito de me levar e Karin à embaixada o mais rápido possível. - Drew explicou em poucas e enfáticas palavras o que de Vries lhe contara a respeito de Alan Reynolds.
- Alguns minutos não mudarão o cenário, rapaz. Respeite o esquema que organizei, e eu mudarei seu itinerário para a embaixada, onde encontrarei os dois.
Latham esperou; o fuzileiro de Witkowski em roupas civis chegou e pegou sua mala e sua pasta.
- Desça dentro de quatro minutos - disse o sujeito educadamente. - Estamos preparados.
- Vocês são sempre tão polidos assim nessas ocasiões? - perguntou Latham.
- Não ajuda nada a gente ficar ranheta. Atrapalha o foco.
- Por que será que acho já ter ouvido isto antes?
- Não sei. Vejo o senhor lá embaixo.
Três minutos mais tarde, Drew saiu da porta e se dirigiu aos elevadores. Naquela hora a descida era rápida, o saguão estando praticamente deserto, exceto por alguns farristas, japoneses e americanos, em geral, todos eles tendo sumido nos elevadores. Latham caminhou pelo piso de mármore, cem por cento o homem da caserna, quando de repente espoucaram tiros de estourar os tímpanos, reverberando nas paredes, vindos do mezzanino. Drew mergulhou no espaço entre o mobiliário do saguão, com os dois olhos cravados nos dois homens atrás do balcão da portaria. Ele viu o peito e a barriga de um deles literalmente explodir, uma detonação monstruosa que mandou os intestinos sanguinolentos do homem pelos ares, atravessando o saguão; o outro levantou a mão enquanto sua cabeça era destroçada, os tecidos do crânio espalhados por todo canto. Que loucura! Um tiroteio adicional encheu então o enorme recinto ornamentado, seguido de vozes gritando em inglês com sotaque americano.
- Nós o pegamos! - gritou um homem, também no nível do mezzanino. - Nas pernas!
- Ele está vivo! - berrou outro. - Pegamos o filho da puta! Ele é maluco! Chora e geme em alemão!
- Leve-o para a embaixada - disse uma voz mais calma no saguão, e virando-se para os funcionários apavorados atrás do balcão da frente. - Esta é uma operação antiterrorista - prosseguiu ele. - Já terminou e vocês podem assegurar aos proprietários que todos os danos serão ressarcidos, como também será dada uma generosa ajuda financeira às famílias dos seus funcionários que perderam tragicamente suas vidas. Apesar de isto agora não fazer sentido para vocês, eles morreram como heróis, e uma Europa agradecida lhes renderá homenagens... Depressa!
Os funcionários horrorizados permaneciam petrificados atrás do balcão de mármore. O sujeito à esquerda começou a chorar, enquanto seu colega estendia lentamente a mão, transido, para o telefone.
Latham e de Vries se abraçaram sob os olhos desaprovadores do coronel Stanley Witkowski e do embaixador Daniel Courtland, na sala deste último na embaixada americana.
- Podemos ir direto ao assunto... aos assuntos prementes, por favor? - disse o embaixador. - O Dr. Gerhardt Kroeger sobreviverá e nossa equipe de dois especialistas em computação chegará dentro em breve. Na realidade, um deles já está aqui, e seu superior está vindo dos Pireneus de avião, onde passava férias. Será que agora alguém me dirá que diabo está acontecendo?
- Certas operações do serviço secreto estão fora do seu raio de ação, Sr. Embaixador - respondeu Witkowski - para que o senhor possa até negá-las.
- Sabe, acho esta frase um tanto obscena, coronel. Desde quando a inteligência civil, a inteligência militar ou quaisquer operações clandestinas têm precedência sobre o controle final do Departamento de Estado?
- Foi por isso que criaram as Operações Consulares, embaixador - respondeu Drew. - O objetivo era coordenar o Estado, a administração e os serviços de informação.
- Então não se pode dizer que você vem fazendo isto, não é?
- No meio de crises não podemos nos dar ao luxo de demoras burocráticas - disse Latham decidido. - E pouco estou ligando se isto vai me custar o emprego. Quero a pessoa, as pessoas que mataram meu irmão. Porque fazem parte de uma doença muito maior, e que é preciso interromper - não pelo debate burocrático, mas pela decisão individual.
Courtland recostou-se na cadeira. Finalmente falou.
- E você, coronel?
- Fui um soldado a vida toda, mas aqui preciso rejeitar a cadeia de comando. Não posso ficar esperando que o Congresso declare guerra. Nós estamos em guerra.
- E você, Sra. de Vries?
- Eu dei-lhes meu marido, que mais querem?
O embaixador Daniel Courtland inclinou-se para a frente na sua cadeira, com ambas as mãos na testa, massageando-a.
- Vivi em meio a conciliações durante toda minha vida diplomática - disse ele. - Talvez já seja hora de parar. - Ele levantou a cabeça. - Provavelmente serei rebaixado para a Tierra del Fuego, mas vão em frente, seus bandidos. Porque estão com a razão, há momentos em que não se pode esperar.
Os três bandidos foram levados ao supercomputador, dez metros abaixo dos porões. Era tão enorme quanto amedrontador; uma parede inteira de três metros coberta por uma placa de vidro espesso com discos giratórios atrás dela, dezenas deles a girar e a parar abruptamente, armazenando informações dos céus.
- Oi, sou Jack Rowe, a metade de seus gênios subterrâneos - disse um sujeito de aparência agradável com cabelos amarelados, com menos de trinta anos. - Meu colega estará aqui, se estiver sóbrio, dentro de alguns minutos. Ele chegou a Orly meia hora atrás.
- Não esperávamos encontrar ninguém de porre - exclamou Witkowski. - Este assunto é muito sério!
- Tudo é sério aqui, coronel. Sim, sei quem é o senhor, este é o procedimento operacional padrão. Você também, agente das Operações Consulares, e a senhora, que provavelmente teria comandado a OTAN, se fosse homem e usasse uniforme. Não existem segredos aqui. Todos eles vêm parar aqui nos discos.
- Podemos ter acesso a eles? - disse Drew.
- Não até que meu colega chegue. Sabem, ele possui o outro código, que não me é permitido ter.
- Para poupar tempo - disse Karin - você pode conferir dados da minha sala com datas específicas, à medida que eu as lembre?
- Não é preciso, é a mesma coisa. Você nos dá as datas, e seja lá o que tiver gravado naqueles dias aparecerá na tela. Não poderia mudá-lo ou apagá-lo, nem se quisesse.
- Não tenho a menor intenção, aliás.
- É um alívio. Quando recebi o chamado de urgência do chefe, eu imaginei que talvez tivéssemos nas mãos uma dessas coisas do tipo Rose Mary Wood que lemos nos livros de história.
- Livros de história? - As sobrancelhas de Witkowski se levantaram de indignação.
- Bem, eu tinha cerca de seis ou sete anos quando isso tudo aconteceu, coronel. Talvez história seja a palavra errada.
- Espero beijar um porco se assim não fosse.
- Esta é uma expressão interessante - disse o jovem técnico de cabelos amarelados. - A etimologia do vernáculo é uma espécie de hobby meu. Isto é irlandês ou da Europa Central, provavelmente eslavo, onde sus scrofa - porcos ou suínos - eram valiosos pertences, na realidade um sinal de status. E se substituir um por meu, portanto meu porco, significaria ou que você fosse muito rico, ou estava prestes a ficar.
- É isso o que vocês fazem com computadores? - perguntou um atônito Latham.
- Você ficaria surpreso com a quantidade de informações incidentais que esses Pássaros Gigantescos podem estocar. Uma vez rastreei um cântico latino, um canto religioso, até um culto pagão na Córsega.
- É muito interessante, rapaz - interrompeu Witkowski. - Mas nossas preocupações aqui são rapidez e precisão.
- Nós lhe daremos ambas, coronel.
- Aliás - disse Witkowski - a expressão que usei era polonesa.
- Não tenho certeza - disse Karin. - Acredito que vem de raízes gaélicas, na realidade, irlandesas.
- E eu pouco estou ligando! - gritou Drew. - Será que pode se concentrar nos dias, nos lapsos de tempo que pode recordar, Karin?
- Já fiz - respondeu de Vries, abrindo sua bolsa. - Aqui estão eles, Sr. Rowe. - Ela entregou ao técnico de computação um pedaço de papel rasgado de um caderno de anotações.
- Isto aqui está tudo espalhado - disse o técnico que gostava de étimos do vernáculo.
- Estão numa sequência, foi o melhor que pude fazer.
- Não será problema para o maior pássaro da França.
- Por que você chama esta coisa de pássaro? - perguntou Latham.
- Porque ele voa no éter das infinitas recordações.
- Desculpe por ter perguntado.
- Porém isto será de ajuda à Sra. de Vries. Eu programarei minha metade, de modo que quando Joel chegar, ele pode digitar e o show vai começar.
- Show?
- A tela, coronel, a tela.
Enquanto Rowe inseria seus códigos e libertava sua metade do enorme computador, digitando dados, a porta metálica do complexo subterrâneo se abriu, e outro técnico, este talvez com seus trinta e poucos anos, talvez mais velho, entrou. O que o distinguia de seu colega era um longo e belo rabo de cavalo, bem amarrado por uma fitinha azul na nuca.
- Alô - disse ele com simpatia. - Sou Joel Greenberg, o clínico geral residente daqui. - Como está indo, Coringa?
- Esperando por você, Gênio Dois.
- Ei, eu sou Numero Uno, se lembra?
- Acabei de tomar seu lugar, cheguei primeiro - respondeu Rowe, digitando ainda.
- Você deve ser o enaltecido coronel Witkowski - disse Greenberg, estendendo a mão para o perplexo chefe de segurança, cujo olhar fixo não traía muita satisfação diante do sujeito magro de blue jeans e um casaco de caçador desabotoado na gola, para não falar no rabo de cavalo. - É uma honra conhecer o senhor, e digo isto sinceramente.
- Pelo menos, você está sóbrio - disse o coronel meio constrangido.
- Não estava na noite passada. Uau, que belo flamenco eu dancei... E você deve ser com certeza a Sra. de Vries. Os boatos não estavam errados. É uma esplêndida, primeiríssima...
- E sou também uma oficial funcionária da embaixada, Sr. Greenberg.
- Aposto que meu cargo é mais alto, mas quem se importa... Peço perdão, senhora, não quis ofendê-la. Sou apenas um cara meio extravagante. Não houve insulto, está bem?
- Está bem - disse Karin, rindo baixinho.
- E você deve ser o nosso Sr. Operações Consulares, certo? - disse Greenberg, apertando a mão de Drew, ficando em seguida sério. - Meu coração se une em sentimentos ao senhor. Perder um dos pais, é mais ou menos esperado, sabe o que quero dizer? Perder um irmão - sim, contaram para o Coringa aí e para mim o cenário - é algo diferente. Especialmente da maneira como aconteceu. Não sei mais o que dizer.
- Você o expressou muito bem, eu o aprecio por isso... Quem mais aqui embaixo sabe o que acaba de me contar?
- Ninguém, só Rowe e eu. Não temos turnos. O último foi embora com a chegada do Coringa, mas nenhum deles tem os códigos para invadir nosso superpássaro. Se algum de nós tiver um acidente ou parada cardíaca, um substituto virá de avião da OTAN.
- Eu nunca o vi pela embaixada - disse Witkowski. - E tenho certeza que me lembraria se o tivesse visto.
- Não nos permitem confraternizações, coronel. Temos uma entrada separada e nosso próprio e mínimo elevador.
- Parece um pouco exagerado.
- Não quando se pensa no que existe na Mãe Pássaro. As únicas pessoas aceitas para este cargo são doutores em computação, homens e livres. Isto pode ser sexista, mas é como as coisas são.
- Você anda armado? - perguntou Latham. - É só curiosidade.
- Duas armas. Ambas Smith and Wesson, nove milímetros. Uma num coldre debaixo do braço, a outra amarrada à perna. Treinado no seu uso, aliás.
- Talvez seja melhor começarmos a trabalhar - disse Karin com decisão. - Acredito que seu colega inseriu a informação de que preciso.
- Não adiantará nada até eu repetir o processo - disse Greenberg, encaminhando-se para sua cadeira à esquerda do gigantesco equipamento, sentando-se e fornecendo seu código. - Imprima-o para mim, está bem, Coringa?
- Transfira em sequência - respondeu Rowe. - Está no seu campo. Repita e solte na tecla de imprimir.
- Estou te acompanhando. - Joel Greenberg girou na sua cadeira e se dirigiu aos três intrusos. - À medida que eu repetir seus dados, eles sairão da impressora abaixo da tela central. Deste modo vocês não terão de se lembrar de tudo no filme.
- Filme?
- A tela, coronel, a tela - disse Jack Rowe.
À medida que as páginas impressas foram saindo, uma depois da outra, data por data, Karin as destacava e examinava. Passaram-se vinte minutos. Quando a impressão acabou, ela voltou a cada uma, fazendo círculos em volta de determinados itens com um lápis vermelho. Por fim ela disse suave porém enfaticamente:
- Achei. As duas ocasiões em que voltei à seção de transportes. Lembro-me exatamente... Será que poderia agora reproduzir os nomes dos funcionários da Pesquisa e Documentação do lado esquerdo do corredor central? - Ela entregou os impressos anotados em vermelho para Greenberg.
- Certo - disse o PhD de rabo de cavalo, em coro com seu colega. - Pronto, Jack?
- Vá em frente, Numero Duo.
- Babaca.
Os nomes apareciam na tela antes dos dez segundos de demora da impressora.
- Não vai gostar disso, Sra. de Vries - disse o PhD em computação chamado Rowe. - Nos seis dias que especificou, a senhora estava presente em três salas.
- Isso é loucura.
- Vou reproduzir seus dados, veja se consegue se lembrar.
Na tela começou a aparecer a informação. - Sim, isso é meu! - gritou Karin, com os olhos na linha de letras verdes enquanto apareciam. - Mas eu não estava lá.
- O Grande Pássaro não mente, minha senhora - disse Greenberg. - Não saberia como.
- Tente os outros, os dados deles - insistiu Latham.
As letras verdes brilhantes apareceram de novo na tela, cada uma de salas diferentes. E novamente, os mesmos dados que Karin reconhecera apareceram em duas outras.
- O que mais posso dizer? Eu não poderia estar em três salas ao mesmo tempo. Alguém violou seus sacrossantos computadores.
- Isto exigiria um número tão complexo de códigos, inclusive inserções e deletações, que seria preciso alguém que soubesse mais do que Joel e eu para fazê-lo - disse Jack Rowe. - Não é agradável dizê-lo, Sra. de Vries, mas a informação que temos sobre a senhora de Bruxelas dizia que era bastante perita neste terreno.
- Por que haveria eu de implicar a mim mesma? Com três inserções?
- A senhora me pegou aí.
- Mostre o que tem dos nossos funcionários de escalão superior, nem que leve até ao amanhecer, não me importo - disse Drew. - Quero averiguar cada résumé, pode começar pelo chefão e ir descendo a lista.
Os minutos se passaram, as páginas impressas continuavam a sair, examinadas por todos, até que se passou uma hora, uma hora e meia.
- Que merda! - exclamou Greenberg, olhando para sua tela. - Talvez tenhamos uma probabilidade.
- Quem é? - perguntou Witkowski, com a voz gélida.
- Não vão gostar disso, nenhum de vocês. Eu não gosto.
- Quem é?
- Leiam vocês mesmos - disse Joel, levantando a cabeça, com os olhos fechados, como se estivesse descrendo.
- Ah, meu Deus - gritou Karin, olhando fixamente para a tela central. - É Janine Clunes!
- Deixe-me corrigir - disse o coronel. - Janine Clunes Courtland, a embaixatriz, a segunda mulher do embaixador, para ser exato. Ela trabalha na Pesquisa e Documentação sob seu nome de solteira, por motivos óbvios.
- Quais eram suas qualificações? - perguntou um atônito Latham.
- Posso reproduzi-las dentro de poucos minutos - respondeu Rowe.
- Não se dê ao trabalho - disse Witkowski. - Posso lhes dar um retrato bastante preciso. Não acontece com muita frequência pedirem a segurança que avalise a mulher de um embaixador. Janine Clunes, Universidade de Chicago, PhD e titular da cátedra de Informática antes de casar com Courtland, depois de seu divórcio, um ano e meio atrás.
- Ela é brilhante - acrescentou Karin. - E também a mais doce e simpática mulher do meu departamento. Se ouve dizer que alguém tem algum problema e acha que pode ajudar, vai direto a seu marido. Todo mundo a adora porque, entre outros motivos, jamais tira vantagem de sua posição; ao contrário, ela frequentemente substitui aqueles que chegam atrasados, ou que não conseguem cumprir suas tarefas a tempo. Vive se oferecendo para ajudar.
- Uma verdadeira borboleta errante - disse Drew. - Jesus, será que Courtland está agora na nossa lista, a lista de Harry?
- Não posso acreditar - respondeu o coronel. - Não sou muito de defendê-lo, mas não posso acreditar. Ele se abriu demais conosco, chegou até a se arriscar um pouco. Deixe-me lembrar à Karin e a você que não estaríamos aqui sem a anuência dele, porque não deveríamos estar aqui sem autorização do Departamento de Estado, em Washington, da CIA, do Conselho de Segurança Nacional, e provavelmente do Estado-maior das Forças Armadas.
- Os únicos que faltaram é o pessoal da Casa Branca - disse o irreverente Greenberg. - Mas o que sabem eles também? Estão por demais ocupados em reaver suas vagas privativas.
- Lembro de ter lido sobre o divórcio de Courtland no The Washington Post - interrompeu Drew, olhando para Stanley Witkowski. - Segundo recordo, ele deu tudo para sua mulher e filhos, admitindo que as constantes transferências do pessoal do Departamento de Estado não eram uma boa maneira de criar os filhos.
- Posso compreender isto - disse o coronel friamente, devolvendo o olhar de Latham. - Mas não quer dizer necessariamente que sua atual mulher seja o informante.
- Claro que não - disse Jack Rowe. - Meu companheiro de computação disse que ele tinha uma possibilidade, não é, Joel?
- Acredito que ele disse "probabilidade", não é, Joel? - respondeu Latham.
- Está certo, Operações Consulares. É porque acontece que acredito. O Grande Pássaro nos forneceu bastante para que não o fizesse. Não me diga que Courtland não sabe sobre a nossa dama da OTAN aqui, e por favor não me diga que não andaram conversando sobre ela. Seu aspecto, seu retraimento, seu serviço na OTAN. Ela é alimento de alta qualidade para as fábricas de boatos. Se alguém era candidato lógico a suspeito, devo dizer que esse alguém era a Sra. de Vries. Pelo menos desviava as pessoas da pista do verdadeiro traidor.
- E quanto a línguas? - disse Latham, virando-se para Karin. - Teriam de ser importantes.
- Janine fala um francês e italiano aceitáveis, mas seu alemão é fluente de cabo a rabo... - De Vries parou, consciente do que acabara de dizer.
- Uma "probabilidade" - ruminou Drew baixinho. - Mas onde vamos daqui para a frente?
- Já fui - respondeu Greenberg. - Acabei de fazer uma consulta para Chicago, pedindo informações detalhadas sobre a professora Clunes. Este negócio está todo arquivado, de modo que deve estar de volta dentro de poucos minutos.
- Como pode ter certeza? - perguntou Karin. - Lá é quase meia-noite.
- Shhh! - sussurrou o perito em computação, num arremedo de segredo. - O banco de dados de Chicago recebe fundos do governo, como o equipamento para detectar terremotos, mas não conte a ninguém. Sempre há alguém lá porque não existe ninguém no rol dos funcionários públicos que deseja ser pego de calças curtas por omitir informações a uma máquina como a nossa.
- Lá vem ela! - gritou Jack Rowe, enquanto a tela se iluminava lá de Chicago.
A mulher chamada Janine Clunes deteve a cátedra de Informática por um período de três anos antes de seu casamento com Daniel Courtland, na época embaixador na Finlândia. Ela era tida em alta conta tanto pelo corpo docente quanto pelos estudantes por sua capacidade em desmistificar o computadores. Era ativa na política do campus, conservadora até a medula na época em que isto não era popular, porém sua personalidade simpática neutralizava as reações negativas. Correram boatos de que teve vários romances durante seu período de residência, mas nada importante ou que depusesse contra sua posição. Notava-se, entretanto, que com exceção de ocorrências políticas, ela nunca era vista em reuniões sociais, morando fora do campus em Evanston, Illinois, a uma hora de carro da universidade.
Seu passado é bastante conformista para a época. Emigrou ainda criança da Bavária no final da década de quarenta, depois da morte dos pais, e foi criada por parentes, o Sr. e a Sra. Charles Schneider, em Centralia, no condado de Marion, Illinois. Seu currículo demonstra que foi uma estudante extraordinária no segundo grau, tendo ganho uma bolsa de mérito para a Universidade de Chicago, e depois de completar a graduação, o mestrado e o doutorado, recebeu a oferta de um cargo na faculdade. Fazia frequentes visitas, na qualidade de consultora política não remunerada, a Washington, D.C., onde conheceu o embaixador Courtland. É isso aí, Paris. Lembranças, Chicago.
- Não se trata de "é isso aí" - disse Witkowski baixinho, ao ler as letras verdes brilhantes na tela. - Ela é uma Sonnenkind.
- De que diabo está falando, Stanley?
- Pensei que a teoria das Sonnenkinder estivesse desacreditada - disse Karin baixinho, quase inaudivelmente.
- Para a maioria das pessoas - respondeu o coronel -, mas não para mim, nunca esteve. Olhe só para o que está acontecendo agora.
- O que é Sonnen... qualquer coisa?
- Um conceito, Drew. A premissa sendo que antes e depois da guerra, os fanáticos do Terceiro Reich mandaram crianças escolhidas para "pais" selecionados em volta do mundo, cuja tarefa era criar as kinder de modo que alcançassem posições de poder e influência para preparar o caminho para o Quarto Reich.
- Isso é pura fantasia, não poderia acontecer.
- Talvez tivesse, contudo - disse Witkowski. - Meu Deus, o mundo ficou louco! - explodiu o chefe de segurança da embaixada.
- Esperem aí - disse Joel Greenberg no computador, suplantando o desabafo de Witkowski. - Há um adendo vindo de Chicago. Assistam ao filme. - Todas as cabeças se viraram para a tela e para as letras verdes brilhantes.
Informação adicional sobre Janine Clunes. Apesar de lutar por bandeiras conservadoras, ela se opôs violentamente à marcha dos nazistas através de Stokie, Illinois. Subiu à tribuna da parada, correndo perigo, para denunciar o evento como um barbarismo.
- O que acha disso, Stanley? - perguntou Drew.
- Deixe-me dizer o que acho disso - interrompeu De Vries. - Qual a melhor maneira de implementar um credo horrível, se não negando-o. O senhor poderia ter razão, coronel. A operação Sonnenkinder pode estar viva e com muita saúde.
- Então digam-me, como vou me aproximar do embaixador? Que diabo poderei dizer? Que está vivendo e dormindo com uma filha do Terceiro Reich?
- Deixe isto por minha conta, Stanley - disse Latham. - Sou o coordenador, certo?
- E a quem vai atribuir isto, rapaz?
- A quem mais? A um sujeito que ambos apreciamos. Wesley Sorenson.
- Que Deus tenha piedade de sua alma.
O telefone tocou no computador de Rowe. Ele atendeu.
- Aqui S-Dois, o que é?... Sim, senhor, imediatamente. - Voltou-se para Witkowski. - É para o senhor se dirigir imediatamente para o departamento médico, coronel. Sua "presa" está acordada e falando.
21
Gerhardt Kroeger, amarrado numa camisa de força, jazia na cama estreita, agachado contra a parede, seu corpo curvado e fazendo pressão contra a madeira. Estava sozinho numa sala da enfermaria da embaixada, com as pernas feridas enfaixadas sob o pijama de doente, de olhos arregalados, esgazeados, movendo-se em todas as direções mas sem focalizar nada.
- Mein Vater war ein Verräter - sussurrava ele roucamente. - Mein Vater war ein Verräter!... Mein Leben ist vorbei, alles vernichtet!
Dois homens observavam-no através de um falso espelho numa sala ao lado - um, o médico da embaixada, o outro, o coronel Witkowski.
- Ele está ficando realmente louco - disse o chefe de segurança.
- Não compreendo alemão. O que está dizendo? - perguntou o médico.
- Algo sobre seu pai ser um lixo, um traidor, e que sua vida acabou, está tudo destruído.
- O que acha?
- Só o que ouço. Ele é um caso desesperador, carregando uma tonelada de culpa que o impele a subir na parede que ele não consegue escalar.
- Então tem tendência suicida - concluiu o médico. - Fica na camisa de força.
- Tem toda razão - concordou o coronel. - Mas ainda vou entrar e tentar interrogá-lo.
- Cuidado, sua pressão sanguínea está quase invisível. O que, presumo, seja natural, considerando o que ele é, ou era. Quando os poderosos caem, eles o fazem com grande estardalhaço.
- Sabe quem ele é... era?
- Claro. Quase qualquer pessoa que tivesse passado por uma faculdade de medicina saberia. Especialmente as especialidades que lidam com o crânio.
- Informe-me, doutor - disse Witkowski, olhando para o médico.
- Ele é, ou era, um célebre cirurgião alemão. Não tenho tido notícias dele há anos, mas sua especialidade era doenças cerebrais. Na época se dizia que ele curara mais pacientes com deficiências mentais do que qualquer outra pessoa do ramo. Com um bisturi, e não drogas, que estão cheias de efeitos colaterais.
- Então por que mandaram esta porra de gênio a Paris para matar alguém, quando é incapaz de acertar a parede do galpão com uma espingarda de cartucho?
- Não saberia dizer, coronel, e se ele dissesse algo a respeito, eu não compreenderia.
- Está bem, mas não basta, doutor. Deixe-me entrar, por favor.
- Certo, mas lembre-se de que estarei observando. Se vir que ele está atingindo um ápice - a camisa de força tem eletrodos que controlam a pressão, batimentos cardíacos, e o oxigênio - você sai. Compreende?
- Não gosto muito de receber ordens assim quando se trata de um assassino...
- Mas as cumprirá, vindo de mim, Witkowski - interrompeu rispidamente o médico. - Minha tarefa é mantê-lo vivo, talvez até no seu benefício. Fui claro?
- Não tenho alternativa, não é?
- Não, não tem. Eu aconselho que a conversa seja calma.
- Este conselho eu não preciso aceitar de você.
O coronel sentou-se numa cadeira defronte da cama; permaneceu imóvel até que o confuso Kroeger percebeu sua presença.
- Guten Abend, Herr Doktor. Sprechen zie Englisch, mein Herr?
- Sabe perfeitamente que falo - disse Kroeger lutando contra a contenção da camisa. - Por que me vestiram desta maneira tão humilhante? Sou um médico, um cirurgião famoso, então por que me tratam como um animal?
- Porque as famílias de duas de suas vítimas no hotel Intercontinental o consideram, sem dúvida, um animal feroz. Será que deveríamos o libertar para que enfrentasse o ódio delas? Eu lhe asseguro que a morte nas suas mãos seria muito mais dolorosa do que uma execução nas nossas.
- Foram um equívoco, um erro! Um acontecimento trágico causado pelo fato de vocês estarem escondendo um inimigo da humanidade!
- Um inimigo da humanidade...? É uma acusação muito séria. Por que Harry Latham é um inimigo da humanidade?
- Porque é louco, um esquizofrênico violento que precisa ser livrado de suas torturas, ou receber medicação de modo que possa ser internado. Moreau não lhes disse?
- Moreau? Do Deuxième Bureau?
- Claro. Expliquei tudo a ele! Ele não fez contato com vocês? É claro que é francês, e os franceses gostam de guardar segredo, não é?
- Talvez eu não tenha prestado atenção no comunicado.
- Sabe - disse Kroeger, ainda lutando contra a camisa, mas sentando-se ereto na cama. - Tratei Harry Latham na Alemanha. Onde, não importa. Salvei sua vida, mas vocês precisam trazê-lo para mim, para que eu possa injetar-lhe os remédios que trouxe e estão nas minhas roupas. É a única maneira de ele continuar vivo e servir aos objetivos de vocês!
- Um cenário tentador - disse Witkowski. - Ele trouxe uma lista de nomes, sabe, várias centenas de nomes...
- Como e onde os obteve? - interrompeu Gerhardt Kroeger. - Ele viajou com a escória drogada da Alemanha. Alguns poderiam estar corretos, muitos não. É por isso que vocês precisam trazê-lo até a mim, num recinto neutro, para que possamos aprender a verdade.
- Meu Deus, você está tão desesperado que apela para tudo, não é?
- Was ist?
- Sabe muito bem was ist, Doktor... Vamos conversar sobre outra coisa por um instante, está bem?
- Was?
- Seu papai, seu Vater, se importa?
- Jamais discuto o assunto de meu pai - disse Kroeger, com os olhos vidrados, desfocalizados, apenas dirigidos para a parede.
- Ah, mas acho que devemos - insistiu o coronel. - Sabe, fizemos averiguações sobre sua vida, toda ela, e consideramos seu pai um herói, um herói esclarecido da Alemanha.
- Nein! Ein Verräter!
- Não achamos. Ele queria salvar vidas, alemãs, inglesas e americanas. Acabou desmascarando a merda rasteira de Hitler e seus asseclas e decidiu tomar uma posição arriscando a sua vida, enfrentando quase a morte certa. Isto é um verdadeiro herói, doutor.
- Nein! Ele traiu a Pátria! - Kroeger se contorcia na camisa de força, dando pulos na cama, um homem agoniado, enquanto lágrimas escorriam de seus olhos. - Durante todo o Gymnasium, em seguida durante toda a Universität, os alunos se aproximavam de mim, e frequentemente me batiam. "Seu pai era um traidor, todos sabemos!" e "Por que os americanos o nomearam Bürgermeister contra a vontade de todos?" Mein Gott, que tortura!
- Então você decidiu compensar o pecado dele, não é, Herr Kroeger?
- Não tem direito de me interrogar desta maneira! - gritou o cirurgião, sentando-se ereto, com os olhos vermelhos e molhados. - Todos os homens, até os inimigos, têm o direito à privacidade de sua vida!
- E eu respeito isso - disse Witkowski, com uma postura rígida na cadeira. - Mas o senhor é uma exceção, doutor, porque é inteligente demais, educado demais para aceitar o lixo que lhe empurraram em cima, e que está agora tentando repassar. Diga-me, o senhor respeita a santidade da vida fora do útero?
- Naturalmente. A vida que respira já é vida.
- Inclusive dos judeus, ciganos, doentes, retardados mentais e homossexuais de ambos os sexos?
- Bem, essas são decisões políticas, fora do alcance do reino da medicina.
- Doutor, o senhor é um filho da puta. Mas lhe direi uma coisa. Talvez eu o coloque diante do Latham que tanto procura, só para vê-lo escutar as suas palavras e lhe cuspir na cara... "Decisões políticas?" Você me enoja.
Wesley Sorenson olhou pela janela de sua sala em Washington, reparando distraidamente no engarrafamento matutino na rua lá embaixo. A cena parecia um labirinto de aquário cheio de insetos, cada qual tentando alcançar o próximo tubo horizontal, apenas para encontrar-se em outro tubo, que levava a outro tubo, nenhum dos quais possuindo uma linha de chegada. Era uma metáfora virtual para seus pensamentos, concluiu o diretor das Operações Consulares, girando a sua cadeira, encarando as diversas pilhas de anotações em cima de sua mesa, anotações que seriam desintegradas e queimadas antes de ele deixar a sua sala no final do dia. As informações estavam chegando depressa demais, entupindo as vias de acesso à sua mente, cada nova revelação parecendo tão explosiva quanto a anterior. Os dois alemães presos em Fairfax implicaram o vice-presidente dos Estados Unidos e o presidente da Câmara dos Comuns na crescente caçada aos neonazistas, com a promessa de mais nomes a seguir; a CIA estava infiltrada em seus altos escalões (quantas agências mais se encontravam igualmente infiltradas?); um laboratório de comunicações do Ministério da Guerra tivera um ano inteiro de pesquisa apagado de seus computadores por um neo que desaparecera num voo da Lufthansa para Munique; senadores, congressistas, poderosos homens de negócios, até mesmo âncoras de noticiários haviam sido enodoados pelo pincel nazista, sem uma prova de peso sequer, as alegações tendo sido ignoradas até que um influente membro do Ministério das Relações Exteriores britânico fora apanhado, entregando aparentemente os nomes de outras figuras influentes na hierarquia governamental do Reino Unido. Finalmente, Claude Moreau estava limpo, mas a embaixada americana em Paris não estava - Meu Deus, estava longe disso, se a última informação fosse precisa! A mulher do embaixador Courtland?
Era um furacão de acusações e contra-acusações, de implicações traiçoeiras furiosamente negadas, um campo de batalha onde haveria derramamento de sangue, onde os inocentes seriam mortalmente feridos, e o feridos sumiriam de cena. Era como se a loucura da desvairada época de McCarthy tivesse se fundido com a loucura nazista do final da década de trinta, as marchas dos Bunds em todo canto, todos carne e unha com líderes demoníacos, cujas exortações vociferadas faziam os mentalmente fracos se porem de pé, seus medos e ódios - frequentemente os mesmos - encontrando saídas vulcânicas para suas próprias fraquezas. A doença do fanatismo se espalhava novamente pelo mundo; quando isso tudo acabaria, se algum dia acabasse?
O que preocupava Sorenson no momento, entretanto - preocupava nada, o chocava - era a informação, seguida de um fax com a investigação dos antecedentes da segunda mulher de Courtland, Janine Clunes. Aparentemente, isto parecia algo inconcebível; fora exatamente o que dissera a Drew Latham no telefone de segurança somente alguns minutos antes.
- Não posso acreditar!
- Foi o que Witkowski disse até ler a investigação de Chicago. Em seguida, disse outra coisa, só que quase num sussurro. Mal dava para se ouvi-lo, mas as palavras eram distintas. "Ela é uma Sonnenkind."
- Sabe o que isto significa, Drew?
- Karin me informou a respeito. É uma loucura, Wes, e jamais poderia funcionar. Crianças, adolescentes, enviados para todos os lugares...
- Você deixou de fora alguns itens - interrompeu Sorenson. - Crianças selecionadas, de puro sangue ariano, com os pais cujos QIs combinados chegavam a mais de duzentos e setenta, nada menos do que isso.
- Você sabe?
- Foram chamados de produtos do Lebensborn. Oficiais da SS que fecundavam mulheres nórdicas louras, de olhos azuis, aquelas mais próximas ou além das fronteiras escandinavas, sempre que possível.
- Isso é uma loucura!
- Isso é Heinrich Himmler. São suas ideias.
- Aconteceu?
- Não, de acordo com todos os relatórios de informação pós-guerra. A conclusão é que os planos do Lebensborn tinham sido abandonados, devido à dificuldade de transporte e o tempo que levaria para fazer avaliações médicas.
- Witkowski não acredita que tenham sido abandonados.
Silêncio. Em seguida Sorenson disse:
- Eu estava convencido que sim - disse ele. - Agora não tenho tanta certeza.
- O que quer que a gente faça? Que eu faça?
- Fiquem frios e de boca calada. Se os neos souberem que Kroeger está vivo, vão arrebentar tudo na frente para encontrá-lo. Se tiver sorte, ninguém do nosso lado será morto.
- Isto é muito ingênuo, Wes.
- "Em Busca do Tempo Perdido", se você me perdoar esta apelação literária - disse Sorenson. - Mande um aviso para os Antinayous. Diga-lhes que capturou a presa.
- Pelo amor de Deus, por quê?
- Porque a esta altura não confio em mais ninguém, e quero cobrir todos os nossos flancos. Faça o que eu disse. Volte a me ligar dentro de uma hora, ou antes, conforme a evolução das coisas.
As coisas, porém, haviam evoluído para o veterano agente da inteligência, atual diretor das Operações Consulares. Ninguém jamais encontrara uma Sonnenkind. Até mesmo aqueles suspeitos foram totalmente inocentados em virtude dos documentos legais e dos casais felizes, perfeitamente americanizados, que adotaram os órfãos carentes. Mas agora, apesar dos tribunais, uma possível Sonnenkind viera à tona! Uma mulher adulta, ex-filha da Alemanha nazista, atualmente uma professora universitária altamente capaz e desejável, que enfeitiçara um alto funcionário do Departamento de Estado. Era um programa para as Sonnenkinder, como não poderia vir mais a calhar.
Sorenson pegou seu telefone e apertou as teclas do número direto do diretor do FBI, um sujeito decente sobre quem Knox Talbot dissera:
- Ele é legal.
- Sim?
- É Sorenson das Operações Consulares, estou atrapalhando?
- Nesta linha, nem um pouco. O que posso fazer por você?
- Vou confessar logo. Estou invadindo sua área, mas não tenho alternativa.
- Isso não acontece com todos nós às vezes? - perguntou o diretor do FBI. - Não nos conhecemos, mas Knox Talbot diz que você é amigo dele, o que lhe dá um grande crédito comigo. Onde foi a invasão?
- Na realidade, ainda não atravessei a cerca, mas quero e acho que preciso.
- Disse que não tinha alternativa.
- Acredito que não. Entretanto, isto tem que ficar dentro das Operações Consulares.
- Então por que me ligar? Fazer sozinho não é melhor?
- Não neste caso. Preciso de um atalho.
- Fale logo, Wes. É assim que Knox o chama. Sou Steve.
- Sim, eu sei. Steven Rosbician, o paradigma da obediência à lei.
- Minhas tropas levam a justiça democrática bem para atrás das linhas de gol. Eu era um juiz branco de Los Angeles que teve sorte, porque os negros acharam que eu era justo. Sua solicitação, por favor.
- Vocês têm alguma unidade no condado de Marion, Illinois?
- Tenho certeza que sim. Illinois é importante na nossa tradição. Que cidade?
- Centralia.
- Bastante perto. O que precisa?
- Tudo que tiverem sobre um Sr. e Sra. Charles Schneider. Podem já ter morrido e não tenho seu endereço, mas tenho um palpite que devem ter imigrado da Alemanha no início ou no meio da década de trinta.
- As pistas não são muitas.
- Concordo que não, mas no contexto de nossa investigação e levando em consideração a época, o FBI talvez tenha as fichas deles.
- Se tivermos, estarão nas suas mãos. Então qual a invasão de área? Não estou há tanto tempo assim neste negócio, mas não consigo perceber onde está ela.
- Então deixe-me explicar, Steve. Estou entrando na área doméstica, Steve, que é sua reserva, e não posso comunicar-lhe os antecedentes da minha investigação. Nos velhos tempos, J. Edgar, o cão de caça, teria me esfregado isto na cara ou batido com o telefone.
- Eu não sou nenhum Hoover da vida, e o FBI mudou consideravelmente. Se não pudermos cooperar um com o outro, havendo ou não possibilidade de compartilhar totalmente a informação, onde estamos nós?
- Bem, isto está mais ou menos claro nos nossos princípios...
- Mais seguidos nas suas violações, devo dizer - interrompeu Rosbician. - Dê-me seu número de fax seguro. Seja lá o que tivermos, você o terá dentro de uma hora.
- Muito obrigado - disse Sorenson. - E também, como você sugeriu, o que eu fizer daqui para a frente, será sozinho.
- Por que essa bobagem toda?
- Espere até ter de enfrentar uma comissão parlamentar de inquérito com cinco caras amargas que não gostam de você. Aí compreenderá.
- Então voltarei para um escritório de advocacia e viverei muito melhor.
- Gosto da sua maneira de ver as coisas, Steve. - Sorenson deu ao diretor do FBI o número seguro do seu fax.
Trinta e oito minutos se passaram até que o bip alto da máquina na sala das Operações Consulares anunciasse o recebimento de uma única página de informação do FBI. Wesley Sorenson pegou-a e leu-a.
Karl e Johanna Schneider vieram para os EUA em 12 de janeiro de 1940, expatriados da Alemanha, tendo parentes em Cicero, Illinois, que se responsabilizaram por eles, declarando que o jovem Schneider possuía habilidades que o fariam facilmente encontrar trabalho no terreno técnico da optometria. As suas idades eram, respectivamente, vinte e um e dezenove anos. O motivo alegado para deixarem a Alemanha foi que o avô de Johanna Schneider era judeu, e que ela sofrera discriminação pelo Ministério Ariano em Stuttgart.
Em março de 1946, o Sr. Schneider, a esta altura Charles, em vez de Karl, era dono de uma pequena fábrica optométrica em Centralia, e solicitou ao Serviço de Imigração que permitisse a imigração de sua sobrinha, Janine Clunitz, uma menina, já que seus pais haviam morrido num desastre de automóvel. A solicitação foi concedida e os Schneider adotaram legalmente a criança.
Em agosto de 1991 a Sr a. Schneider faleceu de parada cardíaca. O Sr. Schneider, com 76 anos de idade, ainda mora em 121 Cyprus Street, Centralia, Illinois. Aposentou-se; mas ainda vai à sua fábrica duas vezes por semana.
O motivo desta ficha baseou-se na antiga vigilância exercida sobre imigrantes alemães do início da Segunda Guerra. Na opinião deste agente, ela deveria terminar aqui.
Graças a Deus que não tinha, pensou Sorenson. Se Charles-Karl Schneider fosse realmente um receptador de uma Sonnenkind, uma enormidade de informações poderia ser extraída dele, presumindo-se que as Sonnenkinder constituíssem uma rede. Seria asneira presumir ao contrário. Os canais legais e técnicos burocráticos do processo de imigração para os Estados Unidos eram tão complexos a ponto de virarem uma total confusão; um sistema de apoio era obrigatório. A época em que isto deveria ter acontecido bem poderia já ter passado, mas uma rachadura no gelo agora talvez libertasse a água suja embaixo, revolvendo muita lama que seria importante na atualidade. Sorenson pegou seu telefone e apertou a tecla que chamava sua secretária.
- Sim, senhor?
- Reserve uma passagem para mim numa empresa aérea que voe até Centralia, Illinois, ou até o lugar mais próximo. Sob um nome falso, é claro, que espero que me diga.
- Para quando, Sr. Diretor?
- No começo desta tarde, se for possível. Em seguida ligue para minha mulher. Não irei jantar em casa.
Claude Moreau estudou a transcrição de Nuremberg, Alemanha, o dossiê decodificado sobre um certo Dr. Hans Traupman, cirurgião chefe do Hospital de Nuremberg.
Hans Traupman, nascido a 21 de abril de 1922, em Berlim, filho de dois médicos, Drs. Erich e Marlene Traupman, demonstrou precocemente um alto QI, de acordo com seus primeiros anos na escola...
O dossiê continuava descrevendo as realizações acadêmicas de Traupman, inclusive uma breve passagem pela Juventude Hitlerista, obrigatória, e seu trabalho depois de formado pela faculdade de medicina em Nuremberg, como jovem médico na Sanitätstruppe, o corpo médico da Wehrmacht.
Depois do conflito, Traupman voltou a Nuremberg, onde fez sua residência e se especializou em neurocirurgia. Dez anos depois, com muitas operações a seu crédito, era considerado um dos mais importantes neurocirurgiões do país, quando não do mundo livre. Quanto a sua vida particular, pouca coisa se sabe. Foi casado com uma certa Elke Mueller, casamento desfeito pelo divórcio, depois de cinco anos e nenhum filho. Desde essa época mora num apartamento elegante no bairro mais valorizado de Nuremberg. É um homem rico, jantando com frequência nos mais caros restaurantes e conhecido pelas suas gorjetas excessivamente generosas. Seus hóspedes vão de colegas médicos a figuras políticas de Bonn, além de várias celebridades do cinema e da televisão. Para resumir, se for lícito fazê-lo, é um bon vivant dono de uma especialização médica capaz de financiar seu estilo de vida extravagante.
Moreau pegou seu telefone e apertou a tecla que o punha em contato direto com seu homem em Nuremberg.
- Sim? - respondeu a voz na Alemanha.
- Sou eu.
- Eu te mandei tudo que havia.
- Não, não mandou não. Descubra tudo que puder sobre Elke Mueller.
- A ex-mulher de Traupman? Por quê? Ela já era.
- Porque ela é a chave, seu idiota. Um divórcio depois de um ano ou dois é compreensível, depois de vinte perfeitamente aceitável. Mas não depois de cinco. Existe uma história aí. Faça como eu disse e me mande o material o mais rápido possível.
- Terei de agir de uma maneira completamente diferente - protestou o agente em Nuremberg. - Ela mora agora em Munique, com o nome de solteira.
- Mueller, é claro. Tem o endereço?
- Naturalmente. - O agente do Deuxième forneceu-o.
- Então esqueça minha ordem anterior. Mudei de ideia. Avise Munique que estarei chegando de avião. Quero eu mesmo me encontrar com essa senhora.
- O que você quiser, mas acho que está maluco.
- Todo mundo é maluco - disse Moreau. - É a época em que vivemos.
O avião de Sorenson aterrissou em Mount Vernon, Illinois, aproximadamente a cinquenta quilômetros ao sul de Centralia. Usando a carteira de motorista e o cartão de crédito falsos fornecidos pela Operações Consulares, ele alugou um carro, e seguiu as estradas marcadas para ele pelo funcionário da locadora, dirigindo para o norte até a cidade. As Operações Consulares também tinham lhe dado um mapa da ruas da cidade de Centralia, com o endereço 121 Cyprus Street claramente demarcado, e os caminhos, a partir dos limites da cidade na Rodovia 51, especificados. Vinte minutos depois Sorenson descia a rua tranquila e arborizada em busca do número 121. A própria rua era tipicamente do centro da América, mas de uma época diferente, passada. Era a Norman Rockwell de classe média alta, com casas grandes, generosas varandas de frente, uma profusão de trabalho em madeira rendado, e até cadeiras de balanço. Poder-se-ia imaginar facilmente seus proprietários sentados nelas, a tomar chá de tarde com os vizinhos.
Em seguida ele distinguiu a caixa postal 121. Somente esta casa era diferente, não quanto a estilo e tamanho, mas em relação a algo mais, algo sutil. O que seria? As janelas, pensou o diretor das Operações Consulares. As janelas do segundo e terceiro andares estavam todas com as persianas arriadas. Mesmo no térreo, a grande janela envidraçada, flanqueada por dois retângulos verticais de vidro colorido, estava fechada por venezianas. Era como se aquela residência em especial não fosse muito acolhedora com as visitas. Wesley imaginou se ele pertencia a essa categoria, ou pior. Estacionou em frente, saiu, subiu o caminho de concreto, galgou os degraus e tocou a campainha.
A porta se abriu, revelando um velho magro com cabelos brancos que rareavam e usando óculos de grossas lentes.
- Sim? - disse ele numa voz suave e trêmula, com quase nenhum vestígio de sotaque.
- Meu nome é Wesley Sorenson e sou de Washington, D.C., Sr. Schneider. Nós precisamos conversar. Aqui, ou em algum outro lugar muito menos confortável.
Os olhos do velho se arregalaram, e a pouca cor que havia no seu rosto sumiu. Tentou começar a falar várias vezes, mas se engasgou com as palavras. Finalmente, tornou-se claro.
- Ach, vocês levaram tanto tempo... Entre, estou lhe esperando há quase cinquenta anos... Venha, venha, está fazendo muito calor aí fora, e o ar condicionado é caro... Mas, aliás, nada importa agora.
- Nós não temos uma diferença de idade tão grande, Sr. Schneider - disse Sorenson, entrando num grande saguão vitoriano e seguindo o receptador da Sonnenkind até uma sala de estar sombreada, cheia de mobiliário exageradamente estofado. - Cinquenta anos não é tempo demais para nenhum de nós dois.
- Posso lhe oferecer schnapps? Francamente, me cairia bem um ou dois, provavelmente mais.
- Uma pequena dose de uísque seria ótimo, se o senhor tiver. Bourbon seria excelente, mas isto não importa.
- Ah, é importante sim, e eu tenho. Minha segunda filha é casada com um sujeito de uma das Carolinas, e ele o prefere... Sente, sente-se, desaparecerei por um minuto ou dois e trarei nossos drinques.
- Obrigado. - O diretor das Operações Consulares ficou de repente a imaginar se não devia ter trazido uma arma qualquer. Ele estava há muito afastado do trabalho de campo! O velho filho da mãe poderia estar buscando a dele naquele instante. Mas, em vez disso, Schneider voltou, carregando uma bandeja de prata, copos e duas garrafas, sem nenhuma saliência na sua roupa.
- Isto facilitará as coisas, nicht wahr? - disse ele.
- Estou surpreso que o senhor me esperasse mesmo - comentou Sorenson, depois que seus drinques se encontravam diante deles, o seu na mesinha de centro, e o do alemão no braço de uma espreguiçadeira do outro lado. - Como disse, foi há tantos anos.
- Minha jovem mulher e eu fazíamos parte da juventude fanática da Alemanha naquela época. Todas aquelas marchas à luz de tochas, os slogans, a euforia de pertencer à verdadeira raça dominadora do mundo. Era tudo muito sedutor, e fomos seduzidos. Nossas tarefas nos foram dadas pelo lendário Heinrich Himmler em pessoa, que pensava "a longo prazo", como se diz hoje em dia. Acredito francamente que ele achava que perderíamos a guerra, mas era totalmente dedicado à causa da supremacia ariana. Depois da guerra fizemos o que a Odessa nos ordenou. E até mesmo então, acreditávamos.
- Então vocês solicitaram e aceitaram a imigração de uma certa Janine Clunitz, mais tarde Clunes, e a adotaram?
- Sim. Ela era uma criança extraordinária, muito mais inteligente que Johanna e eu. Toda terça à noite, desde a época em que tinha oito ou nove anos, vinham homens que a levavam a algum outro lugar onde era, presumo que a palavra seja esta, doutrinada.
- Onde era esse lugar?
- Nunca descobrimos. No começo só lhe davam doces, sorvete, enquanto seguia de olhos vendados. Mais tarde, na medida em que ficava mais velha, ela simplesmente nos dizia que estava sendo iniciada na nossa "gloriosa tradição", essas eram as palavras que usou e nós, naturalmente, sabíamos o que queriam dizer.
- Por que está me contando isto agora, Sr. Schneider?
- Porque vivi cinquenta e dois anos neste país. Não posso dizer que é perfeito, nenhum país é, mas é melhor do que aquilo de onde vim. Sabe quem mora do outro lado da minha rua?
- Como poderia?
- Os Goldfarb, Jake e Naomi. Judeus. E são os melhores amigos de Johanna e meus. E lá embaixo no quarteirão, o primeiro casal negro a comprar uma casa aqui. Os Goldfarb e nós demos uma festa de boas-vindas e todo mundo veio. E quando queimaram uma cruz no gramado deles, todos nós nos juntamos, caçamos os vândalos e fizemos com que fossem processados.
- Não condiz com o modo de agir do Terceiro Reich.
- As pessoas mudam, todos mudamos. O que posso lhe dizer?
- Quanto tempo faz desde que o senhor teve o último contato com a Alemanha?
- Mein Gott, aqueles idiotas insistem em me ligar duas, três vezes por ano. Eu lhes disse que sou um homem velho e para me deixar em paz, porque não estou mais envolvido. Eu devo estar nos seus computadores ou seja lá em que novas máquinas que os mandam fazer isto. Ficam na minha pista, nunca me deixam em paz, nunca param de me ameaçar.
- Não tem nomes?
- Sim, um. O último a ligar há um mês estava quase histérico, gritando que um certo Herr Traupman poderia ordenar minha execução. - Para quê? - perguntei. - Morrerei dentro em breve e seu segredo morrerá comigo.
Claude Moreau foi levado de carro pela Leopoldstrasse pelo seu homem em Munique, que tinha feito um reconhecimento prévio do prédio de apartamentos onde Elke Mueller, a ex-Frau Traupman, morava. Para poupar o tempo de Moreau, o escritório secreto do Deuxième na Königinstrasse, telefonara a Madame Mueller, explicando que um funcionário de alto escalão do governo francês gostaria de conversar com ela sobre um assunto confidencial, o que poderia lhe trazer vantagens financeiras... Não, quem ligara não tinha a menor ideia sobre o que era esse assunto confidencial, exceto que ele não comprometeria de nenhuma maneira a digna senhora.
O prédio de apartamentos era imponente, o próprio apartamento ainda mais, uma mistura de barroco com art déco. Elke Mueller combinava com seu ambiente, uma mulher alta, imperiosa, com seus setenta anos, seu cabelo escuro bem-penteado manchado de grisalho, com um rosto angular, feições aquilinas. Era obviamente uma mulher com quem não se devia brincar; estava nos seus olhos, separados e brilhantes, e beirando a hostilidade ou a suspeita, ou ambos.
- Meu nome é Claude Moreau, madame, e trabalho no Quai d’Orsay em Paris - disse o chefe do Deuxième Bureau em alemão, tendo sido conduzido à sala de estar por uma empregada uniformizada.
- Não é necessário falar die Deutsche, monsieur. Meu francês é fluente.
- A senhora muito me alivia - mentiu Moreau. - Porque meu alemão é sofrível.
- Suspeito que seja mais do que isso. Sente-se diante de mim e explique este assunto confidencial por gentileza. Não posso imaginar por que o governo francês poderia ter o menor interesse por mim.
- Perdoe-me, madame, mas suspeito que imagina.
- O senhor é impertinente, monsieur.
- Peço desculpas. Só desejo me fazer compreender e falar a verdade tal como a percebo.
- Agora foi admirável. É Traupman, não é?
- Então minha leve suspeita estava correta, não?
- Estava, é claro. Não poderia haver nenhum outro motivo.
- A senhora foi casada com ele...
- Não por muito tempo, considerando de modo geral os casamentos - interrompeu Elke Mueller depressa, com firmeza. - Mas por um tempo excessivamente longo, no que me diz respeito. Então suas imundas galinhazinhas estão vindo para casa empoleirar-se, não é?... Não fique tão surpreso, Moreau. Leio os jornais e assisto à televisão. Vejo que está acontecendo.
- Sobre essas "galinhas imundas"? Posso perguntar a respeito delas?
- Por que não? Eu deixei a incubadora há mais de trinta anos.
- Seria impertinente de minha parte pedir à senhora que detalhasse - só o que não lhe cause desconforto, é claro?
- Agora está mentindo, monsieur. Preferiria que eu me sentisse amargamente constrangida, até amargamente histérica, desde que eu lhe contasse que homem horrível que ele era. Bem, não posso fazer isto, nem que fosse mentira ou verdade. Contudo, posso lhe dizer que quando penso em Traupman, e é raro, fico enojada.
- Ah...?
- Ah, sim, os seus detalhes. Muito bem, o senhor os terá... Casei-me com Hans Traupman um pouco tarde. Eu tinha trinta e um, ele trinta e três anos, e era um cirurgião famoso já naquela idade. Fiquei impressionada com o seu brilhantismo médico e acreditava que havia um homem bom por baixo de sua capa externa de frieza. Havia explosões de calor que me excitavam, até que logo eu percebesse ser um teatro. O motivo pelo qual se sentira atraído por mim ficou rapidamente evidente. Eu era uma Mueller de Baden-Baden, os proprietários mais ricos da região, e também com grande projeção social, o que lhe dava acesso aos círculos a que tanto desejava ascender. Seus pais eram ambos médicos, mas não eram pessoas realmente atraentes, e certamente não muito bem-sucedidas, relegados a clínicas que atendiam às classes mais baixas...
- Por obséquio - interrompeu Moreau -, ele usou sua posição como seu marido para promover sua ambição social?
- Acabei de lhe dizer isto.
- Então por que arriscou um divórcio?
- Não teve muita voz ativa no caso. Além do mais, depois de cinco anos ele já penetrara onde precisava, e sua perícia conseguiu o resto. Em deferência a família Mueller, concordei com um assim chamado divórcio amigável, simples incompatibilidade, nenhum dos lados sendo acusado de nada. Foi o maior erro que fiz, e meu pai, antes de morrer, criticou-me duramente por isso.
- Posso perguntar por quê?
- O senhor não conhece minha família, monsieur, e Mueller é um nome comum na Alemanha. Eu explicarei. Os Mueller de Baden-Baden se opuseram àquele criminoso Hitler e a seus gângsters. O Führer não ousava tocar em nós por causa de nossas propriedades e da lealdade de vários milhares de empregados. Os aliados jamais compreenderam o medo que Hitler tinha das dissidências internas. Se tivessem compreendido, poderiam ter desenvolvido estratégias dentro da Alemanha que possivelmente teriam abreviado a guerra. Como Traupman, o bandidinho de bigode, queria abarcar o mundo com as pernas, misturando-se com gente que ele admirava à distância, mas que nunca o aceitou. Meu pai sempre dizia que as arengas de Hitler eram os delírios de um homem com medo, levado a eliminar pelo assassinato a menor oposição, desde que não houvesse consequências. Entretanto, Herr Hitler, através do serviço militar obrigatório, assegurou-se que meus dois irmãos fossem mandados para a frente de batalha russa, onde foram mortos, mais provavelmente por balas alemãs do que soviéticas.
- E Hans Traupman, por favor?
- Era o nazista completo - disse madame Mueller baixinho, voltando seu rosto para o sol da tarde que entrava pela janela. - Era estranho, quase inumano, mas ele queria poder, simplesmente poder, além das recompensas de sua profissão. Recitava as teorias desacreditadas da supremacia da raça ariana como se fossem infalíveis, apesar de ser obrigado a saber que não eram. Acho que era o ressentimento amargo do rapaz rejeitado que não podia andar lado a lado com a elite da Alemanha, apesar de sua crescente reputação, simplesmente porque ele era uma pessoa antipática e grosseira.
- A senhora quer nos levar a outra coisa, acho - disse Moreau.
- Sim, quero. Ele começou a organizar reuniões em nossa casa em Nuremberg, reuniões com pessoas que eu sabia serem nazistas até hoje em dia, hitleristas fanáticos. Ele tornou o sótão à prova de som e lá se reuniam toda terça-feira. Não me era permitido assistir. Havia muita bebedeira e do nosso quarto eu conseguia ouvir gritos fracos, "Sieg Heils" e a canção de Horst Wessel, repetidamente. Isto continuou durante três anos, até o quinto ano de nosso casamento e finalmente enfrentei-o... por que não o fiz antes, eu simplesmente não sei... A afeição, não importa se em declínio, envolve proteção. Eu gritei com ele, acusei-o de coisas terríveis, de tentar trazer de volta os horrores do passado. E numa quarta de manhã, depois de uma daquelas noites terríveis, ele me disse, "Não importa o que você pensa, sua vagabunda rica. Estávamos certos naquela época e estamos certos agora!" Eu fui embora no dia seguinte. Estes detalhes são suficientes, Moreau?
- Certamente, madame - respondeu o chefe do Deuxième. - Consegue se lembrar de qualquer homem ou mulher que assistisse àquelas reuniões?
- Não, não posso. Foi há mais de trinta anos.
- Nem dos nazistas "não arrependidos"?
- Deixe-me pensar... Havia um Bohr, um Rudolf Bohr, acredito, e um ex-coronel, muito jovem, da Wehrmacht chamado Von Schteifel, acho. Além desses dois, minha memória não me ajuda. Lembro-me deles porque eram hóspedes constantes para o almoço ou jantar, quando não se discutia política, mas eu os via saindo de seus carros, pela janela do meu quarto.
- A senhora foi uma enorme ajuda, madame - disse Moreau se levantando de sua cadeira. - Eu não lhe importunarei mais.
- Impeça-os - sussurrou Elke Mueller rispidamente. - Eles levarão a Alemanha à morte!
- Lembraremos de suas palavras - disse Claude Moreau, entrando no saguão.
Na sede do Deuxième na Königinstrasse, Moreau se serviu de seus privilégios e ordenou a Paris que contatasse Wesley Sorenson imediatamente.
Sorenson estava no avião voltando para Washington, quando seu bip tocou. Ele deixou seu assento e foi até o telefone no anteparo da primeira classe, inseriu seu cartão, e ligou para sua sala.
- Fique na linha, Sr. Diretor - disse a telefonista nas Operações Consulares. - Vou chamar Munique e deixar o senhor falar.
- Allô, Wesley?
- Sim, Claude?
- É Traupman!
- Traupman é a chave!
Falaram simultaneamente.
- Estarei na minha sala dentro de mais ou menos uma hora - disse Sorenson. - Ligarei de volta para você.
- Nós dois andamos ocupados, mon ami.
- Pode apostar essa sua bunda francesa!
22
Drew estava deitado ao lado de Karin no quarto dela no hotel Bristol. Estarem juntos fora uma concessão relutante de Witkowski. Tinham se amado, e agora gozavam aqueles momentos deliciosos após o ato de amantes que sabiam pertencer um ao outro.
- Onde diabo estamos agora? - disse Latham, tendo acendido um dos seus raros cigarros. - A fumaça se enrolava por cima de suas cabeças.
- Agora está nas mãos de Sorenson. Você perdeu o controle.
- É disso que não gosto. Ele está em Washington e nós em Paris e aquele filho da puta do Kroeger em outro planeta.
- Drogas poderiam extrair alguma informação dele.
- Os médicos da embaixada dizem que não podemos fazer nada no gênero até que ele se recupere dos ferimentos de bala. O coronel está mais furioso do que nunca, mas não pode passar por cima do médico. Eu também não estou exatamente calmo; cada vinte quatro horas que perdemos torna mais difícil acharmos os filhos da puta.
- Tem tanta certeza? Os neos vêm se entrincheirando há mais de cinquenta anos. Que diferença poderia fazer um dia?
- Não sei, talvez outro Harry Latham. Digamos que estou impaciente.
- Não consigo entender. Existe alguma tática no que diz respeito à Janine?
- Você sabe tanto quanto eu. Sorenson disse para ficarmos frios e calados, e deixar que os Antinayous soubessem que pegamos Kroeger. Nós fizemos ambas as coisas e deixamos um recado para Wesley, na sua sala, que suas instruções tinham sido cumpridas. Assinado, Paris.
- Será que realmente acredita que os antineos foram infiltrados?
- Ele me disse que estava cobrindo todos os nossos flancos; mal não pode fazer. Pegamos Kroeger e ninguém consegue chegar perto dele. Se alguém tentar, saberemos que temos um flanco exposto.
- Será que Janine poderia ser uma ajuda neste sentido?
- Isso é tarefa para Wesley. Eu não saberia nem como me aproximar dela.
- Fico pensando se Courtland contou-lhe sobre Kroeger.
- Ele teve de dar alguma desculpa depois que o acordamos às três da madrugada.
- Poderia ter dito qualquer coisa, e não necessariamente a verdade. Todos os embaixadores são treinados naquilo que devem ou que não devem contar às suas respectivas famílias. Geralmente para sua própria proteção.
- Existe uma falha neste argumento, Karin. Ele colocou sua própria mulher na Pesquisa e Documentação, um vespeiro de informações confidenciais.
- Seu casamento é relativamente recente, e se o que acreditamos for verdade, Janine é quem quis a colocação. Não seria muito difícil para uma recém-casada persuadir seu marido. Meu Deus do céu, com as qualificações que tinha, e com certeza deve ter colocado a coisa em termos de querer dar uma contribuição patriótica.
- É verdade, ou pelo menos, terei que acreditar na sua versão, já que Eva e a maçã são o seu modelo...
- Porco-chauvinista - interrompeu de Vries, rindo e cutucando com delicadeza a coxa dele.
- A maçã não foi ideia da gente, minha senhora.
- Lá está você sendo pejorativo de novo.
- Imagino como Wes irá resolver isto - disse Latham agarrando a mão dela e segurando-a, enquanto apagava o cigarro.
- Por que não liga para ele?
- Sua secretária disse que ele só voltaria amanhã, na realidade hoje. O sol já está nascendo.
- Deixe que nasça, querido. Não podemos chegar perto da embaixada, então vamos considerar isto aqui como nossas férias, suas e minhas.
- Gostei da ideia - disse Drew, virando-se para ela, seus corpos se tocando. E o telefone tocou. - Que férias! - acrescentou Latham, esticando o braço para o telefone intrometido. - Sim?
- É uma e pouco da madrugada aqui - disse a voz de Wesley Sorenson. - Desculpe se o acordei, mas peguei o número de seu hotel com Witkowski e queria manter você logo informado.
- O que aconteceu?
- Seus crânios dos computadores acertaram na mosca. Tudo se encaixou. Janine Clunitz é uma Sonnenkind.
- Janine quem?
- Clunitz é seu verdadeiro nome. O Clunes é uma anglicização. Foi criada pelos Schneider em Centralia, Illinois.
- Sim, lemos isto. Mas como pode ter certeza?
- Fui até lá de avião esta tarde. O velho Schneider confirmou-o.
- Que diabo faremos nós agora?
- Não nós, eu - respondeu o diretor das Operações Consulares. - O Departamento de Estado vai convocar Courtland por trinta e seis horas para uma reunião de emergência com vários outros embaixadores europeus, o assunto só será revelado depois da chegada deles.
- O Departamento concordou em fazer isto?
- O Departamento não sabe. É uma diretriz Quatro Zero emitida via canal clandestino por esta agência para evitar quaisquer interrupções no tráfego.
- Espero que faça sentido.
- Quem está ligando? Nós o pegaremos no aeroporto e ele estará na minha sala antes que o secretário Bollinger peça seus ovos mexidos.
- Uau, acho que estou ouvindo a voz de um velho agente.
- Pode ser.
- Como vai lidar com Courtland?
- Confiante que ele seja inteligente como seu currículo diz que é. Eu gravei o que Schneider disse, com a permissão dele, e fiz com que confirmasse o depoimento. Mostrarei a Courtland tudo, na esperança de que enxergue a luz.
- Ele talvez não enxergue, Wes.
- Estou preparado para isso. Schneider está pronto para chegar de avião a Washington. Ele realmente detesta as suas origens, segundo suas próprias palavras.
- Parabéns, patrão.
- Obrigado, Drew, a coisa não foi tão mal, se assim posso dizer... E também tem outra coisa.
- O quê?
- Contatei Moreau. Falei com ele alguns minutos atrás e ele está esperando que você ligue esta manhã, à hora que quiser.
- Não me sinto bem passando por cima de Witkowski, Wes.
- Não estará. Ele sabe tudo. Também fiz contato com ele. Seria burrice deixá-lo de fora; precisamos de sua perícia.
- O que houve com Moreau?
- Ambos tivemos caçando em direções opostas, mas voltamos com a mesma informação. Achamos nosso túnel até a Irmandade. É um sujeito, um médico em Nuremberg, onde houve o julgamento.
- Que ironia. Aquilo que vai acaba voltando.
- Falarei com você depois, depois de ter falado com Moreau.
Latham desligou e virou-se para Karin.
- Nossas férias foram só um pouquinho abreviadas, mas ainda temos uma hora mais ou menos.
Ela abriu os braços, com a mão direita enfaixada mais baixa que a esquerda.
A noite estava escura e silenciosa enquanto, uma a uma, as lanchas, com dez minutos de intervalo, faziam a curva até o longo cais no rio Reno. Uma luz vermelha fraca no poste mais alto era o sinal de chegada, já que a lua errática não ajudava muito, o céu estando encoberto. Os pilotos desses velozes veículos tinham, no entanto, familiaridade com aquela hidrovia e com as propriedades que frequentavam. Os motores eram desligados a mais ou menos uns trinta e cinco metros do cais, as ondas do rio empurrando os barcos suavemente até seus atracadouros, onde uma equipe de dois homens apanhava as cordas atiradas e puxava os barcos até encostarem direito no cais. E, um a um, os homens que vieram assistir à conferência caminharam pela doca até um caminho de pedra que levava à mansão na beira do rio.
Os recém-chegados se cumprimentavam numa enorme varanda à luz de velas, onde café, drinques e salgadinhos eram servidos. A conversa era inócua - escores de golfe e de partidas de tênis, nada importante: isto haveria de mudar abruptamente. Uma hora e vinte minutos depois o grupo estava completo, os empregados foram dispensados, e a reunião formal teve início. Os nove líderes da Die Brüderschaft der Wacht sentaram-se num semicírculo dando para uma tribuna. O Dr. Hans Traupman levantou-se de sua cadeira e caminhou até ela.
- Sieg Heil! - gritou ele, levantando o braço na saudação nazista.
- Sieg Heil! - gritaram os líderes em coro, erguendo-se e levantando os braços em bloco.
- Sentem-se, por obséquio - disse o médico de Nuremberg. Todos obedeceram, com a postura rígida, prestando uma atenção total. Traupman prosseguiu. - Temos gloriosas notícias para dar. Por todo o mundo, os inimigos do Reich encontram-se altamente desorganizados, tremem de medo e de confusão. Já é chegada a hora de uma nova etapa, um ataque que os fará mergulhar ainda mais no pânico e na perplexidade, enquanto nossos discípulos - sim, nossos discípulos - estão prontos para avançar cautelosa, porém firmemente, até ocuparem posições influentes em todos os lugares... Nossa ação exigirá sacrifícios de todos no campo de batalha, risco de prisão, até mesmo de morte, mas nossa decisão é inabalável, nossa causa poderosa, porque o futuro pertence a nós. Passarei agora a condução da reunião ao homem que escolhemos para ser o Führer da Brüderschaft, o Zeus que guiará nosso movimento à vitória, pois ele é um homem sem comprometimentos e com uma vontade de ferro. É uma honra pedir a Günter Jäger que lhes dirija a palavra.
Novamente, a pequena plateia em bloco ergueu-se, e novamente levantou os braços.
- Sieg Heil! - gritava. - Sieg Heil, Günter Jäger!
Um homem esguio, louro, de um metro e oitenta e tanto de altura, envergando um terno preto, e com o pescoço envolto por um colarinho branquíssimo de religioso, ergueu-se de uma cadeira no meio e aproximou-se da tribuna. Sua postura era ereta, caminhava com largos passos elásticos, sua cabeça parecia com a de uma escultura de Marte. Eram seus olhos, entretanto, que chamavam atenção. Cinza-esverdeados e penetrantes, simultaneamente frios e, subitamente, calorosos, quando seu olhar descansava nos indivíduos, banhando a todos com a glória de seu olhar.
- Sou eu que me sinto honrado - começou ele em voz baixa, permitindo-se um sorriso simpático. - Como todos sabem, sou um sacerdote destituído das ordens pela minha própria igreja, já que ela desaprova as minhas posições políticas, porém encontrei um rebanho muito maior do que na Cristandade. Vocês representam esse rebanho, aqueles milhões que acreditam em nossa causa. - Jäger parou, e enfiou o dedo entre seu colarinho de clérigo e o pescoço, acrescentando num tom de humor autodepreciativo. - Eu quis inúmeras, vezes que os líderes de nossa equivocada igreja tornassem pública a minha expulsão, porque esta fita branca em volta do pescoço está me sufocando. Mas é claro que não podem; seria politicamente incorreto. Escondem mais pecados nefandos do que as escrituras enumeram; eles sabem disso e eu sei disso, de modo que chegamos a um acordo.
Delicadamente, enquanto a plateia ria, Günter Jäger continuou.
- Como Herr Doktor Traupman lhes disse, estamos prestes a desencadear outra fase de desorientação em nossos inimigos. Será devastador, um exército invisível a atacar a mais vital fonte de vida na terra... A água, cavalheiros.
A reação agora foi de perplexidade; a plateia falava entre si.
- Como deverá ser isto alcançado, meu irmão destituído das ordens? - perguntou o velho sacerdote católico, monsenhor Heinrich Paltz.
- Se sua igreja soubesse o quê, e quem o senhor é, padre, seríamos gêmeos siameses.
Novamente risos.
- Eu posso basear nossas teorias no livro do Gênesis - interrompeu o monsenhor. - Caim era obviamente negro, a marca de Caim era sua pele e era negra! E no Levítico e no Deuterônimo, ambos falam de tribos inferiores que rejeitavam as palavras dos profetas!
- Não vamos entrar em uma discussão acadêmica, padre, porque poderemos ambos perder. Os profetas, em geral, eram judeus.
- E também as tribos!
- Similias similibus, meu amigo. Isso foi há dois mil anos, e agora estamos aqui, dois mil anos depois. Mas o senhor perguntou como esta operação poderia ser efetuada. Posso explicar?
- Por favor, Herr Jäger - disse Albert Richter, um diletante que virou político, mas com propriedades e um outro estilo de vida em Mônaco.
- Os reservatórios, cavalheiros, os principais reservatórios de água de Londres, Paris e Washington. Enquanto nos reunimos, elaboram-se planos para despejar toneladas de produtos químicos tóxicos nesses reservatórios centrais, de aviões durante a noite. Uma vez diluídos, milhares e milhares de pessoas morrerão. Haverá pilhas de cadáveres nas ruas, o governo de cada país será responsabilizado, já que cabe a eles proteger os seus reservatórios. Em Londres, Paris, Washington, o cenário não será diferente do que de uma terrível praga, deixando os cidadãos apavorados, ultrajados. Na medida em que os políticos caírem, nosso pessoal tomará seus lugares, alegando ter as respostas, as soluções. Semanas, talvez meses depois que a crise tenha sido reduzida através de antitóxicos específicos introduzidos na água da mesma maneira, nós teremos penetrado consideravelmente nos seus governos e forças armadas. Quando uma relativa calma for restabelecida, nossos discípulos receberão o crédito, pois somente eles saberão e terão controle sobre os antídotos.
- Quando isto acontecerá? - perguntou Maximilian von Löwenstein, filho do general traidor do Wolfsschanze executado pela SS, mas cuja mãe era amante de Josef Goebbels, uma cortesã dedicada ao Reich que detestava o marido. - Minha mãe falava constantemente das promessas extravagantes saídas da Chancelaria, sem especificá-las. Ela achava que eram muito infelizes e enfraqueciam o Führer.
- E nossos livros de história exaltarão a contribuição de sua mãe ao Terceiro Reich: como, entre outras, a de ter delatado seu marido traidor. No entanto, na situação atual, estudam-se táticas, inclusive a carga útil de aviões que voam à baixa altitude, enganando o radar. Está tudo estacionado a duzentos quilômetros dos alvos, nossos especialistas no local. Segundo as últimas projeções, a operação Raio N’Água ocorrerá de três a cinco semanas a contar deste dia, cada calamidade nacional acontecendo ao mesmo tempo, nas horas mais escuras da noite de ambos os lados do Atlântico. Ficou agora determinado que será às quatro e meia da madrugada, horário de Paris, às três e meia no de Londres, e dez e meia da noite anterior em Washington. São as horas mais propícias de escuridão. Esta é a informação mais exata que por ora posso lhes dar.
- É mais do que suficiente, mein Führer, nosso Zeus! - exclamou Ansel Schmidt, multimilionário da indústria eletrônica, que roubara a maior parte da sua alta tecnologia de outras empresas.
- Vejo um problema - disse um homem muito gordo, cujas enormes pernas faziam com que sua cadeira ficasse muito pequenina, seu rosto parecendo um balão, sem rugas, apesar da idade. - Como sabem, fui engenheiro químico antes de me dedicar a outras atividades. Nossos inimigos não são tolos; amostras de água vivem sendo analisadas. A sabotagem seria revelada e estabelecido um tratamento para seus efeitos. Como lidaremos com este problema?
- A inventiva germânica é a resposta simples - respondeu Günter Jäger a sorrir. - Do mesmo modo que há várias gerações nossos laboratórios criaram o Zyklon B, que livrou o mundo de milhões de judeus e outros indesejáveis, nossa gente desenvolveu outra fórmula mortífera empregando componentes solúveis de elementos aparentemente incompatíveis, tornados compatíveis por bombardeio isogônico antes da mistura. - Aqui Jäger parou e encolheu os ombros, continuando a sorrir. - Sou um homem de fé, da nossa fé, e não tenho a pretensão de dominar o assunto, mas temos os melhores químicos, alguns dos quais recrutados dos seus próprios laboratórios, Herr Waller.
- "Bombardeio isogônico?" - disse o homem obeso, um sorriso aflorando lentamente nos seus grossos lábios e se espalhando por toda sua enorme face. - Uma simples variação de fusão isométrica, criando uma simetria nos elementos hostis, forçando a compatibilização, como um revestimento na aspirina. Poderia levar dias, semanas, para analisar os componentes, e muito mais para isolá-los de modo a encontrar antídotos específicos... Absolutamente engenhoso, Herr Jäger, mein Führer, eu o saúdo, saúdo o seu talento para congregar outros brilhantes talentos.
- É muita bondade sua, mas eu não saberia nem como andar no meio de um laboratório.
- Os laboratórios são feitos para cozinheiros, a visão vem primeiro! A sua foi "atacar a fonte mais vital de vida na terra. A água..."
- Os ricos e mesmo os menos afluentes comprarão suas Evians e Pellegrinos nos mercados - objetou um homem baixo, medianamente encorpado, de cabelo escuro cortado curto. - Às classes mais baixas se recomendará que fervam água pelos doze minutos geralmente receitados para purificá-la.
- Os doze minutos normais não serão suficientes, Herr Richter - interrompeu o novo Führer. - Substitua este número por trinta e sete e me diga então quem poderá cumprir esta rotina. É claro que serão os degraus de baixo da escala social que serão mais afetados, mas repito, isto não contradiz as nossas técnicas de limpeza, não é? Guetos inteiros serão dizimados, poupando nosso tempo mais tarde.
- Vejo uma vantagem maior ainda - disse Von Löwenstein, filho da cortesã do Reich. - Dependendo do êxito da operação Raio N’Água, os mesmos componentes poderiam ser despejados em reservatórios escolhidos pela Europa inteira, no Mediterrâneo e na África.
- Primeiro Israel! - gritou o senil monsenhor Paltz. - Os judeus mataram nosso Cristo! - Grande parte da plateia se entreolhou, olhando em seguida para Günter Jäger.
- Certamente, irmão sacerdote - disse o Zeus da Irmandade. - Mas nunca devemos elevar nossas vozes a respeito dessas soluções, a despeito da justificativa para o nosso ódio, não é?
- Eu simplesmente queria clarificar a lógica da minha posição.
- Pois conseguiu, padre, conseguiu.
Naquela mesma noite, num campo de pouso há muito esquecido a dezesseis quilômetros do lendário Lakenheath, na Inglaterra, um pequeno grupo de homens e mulheres estudava plantas e um mapa à luz de uma única lanterna. Atrás deles, à distância, jazia camuflado um velho jato 727, fabricado mais ou menos em meados da década de setenta. Permanecia junto à floresta vizinha, sua cobertura apenas afastada de modo a permitir acesso à cabine da frente. A língua falada pelo grupo era o inglês, várias vozes com sotaque britânico, as demais falavam alemão.
- Eu lhes digo é impossível - disse um alemão. - A capacidade de carga útil é mais do que adequada, mas a altitude não. Nós arrebentaríamos vidraças a quilômetros do alvo e seríamos detectados pelo radar no momento que decolássemos. É um plano louco, qualquer outro piloto lhes diria o mesmo. Loucura conjugada com suicídio.
- Teoricamente poderia funcionar - comentou uma inglesa. - Uma única passagem baixa na abordagem final para a aterrissagem, em seguida aceleração rápida permanecendo abaixo dos trezentos metros, assim evitando os radares até o outro lado do Canal da Mancha. Mas compreendo seu ponto de vista. O risco é enorme, e com qualquer defeito, a coisa vira definitivamente suicida.
- E os reservatórios aqui são relativamente isolados - acrescentou outro alemão. - Mas Paris é mais perigoso.
- Então vamos voltar à ideia de veículos terrestres? - perguntou um idoso inglês.
- Fora de questão - respondeu o piloto. - Exigiria um número demasiado de veículos grandes para ser viável, e elimina o efeito de diluição, exigindo semanas para o veneno penetrar nas saídas maiores.
- Então onde é que ficamos?
- Acredito que é óbvio - disse um jovem neonazista que se mantivera na retaguarda do grupo e que agora se aproximava. - Pelo menos para quem manteve os olhos abertos durante nosso treinamento na Hausruck.
- Isto é uma comentário gratuitamente ofensivo - reclamou a inglesa. - Minha vista vai muito bem, obrigada.
- Então o que via, o que todos viam, circulando com frequência e mergulhando do céu?
- O planador - respondeu o segundo alemão. - Um planador bastante pequeno.
- O que tinha em vista, mein junger Mann? - perguntou o piloto. - Uma esquadrilha de aviões deste tipo, digamos cinquenta ou cem, colidindo em cima das águas dos reservatórios?
- Não, Herr Flugzeugführer. Substitua-os por aviões que já existem! Dois gigantescos planadores de carga militares, cada um capaz de carregar duas ou três vezes a tonelagem daquela relíquia excessivamente pesada do outro lado do campo.
- De que está falando? Onde se encontram aviões assim?
- No aeródromo de Konstanz, guardadas por pesadas cobertas, existem quase vinte dessas aeronaves. Estão lá desde a guerra.
- Desde a guerra? - gritou o atônito piloto alemão. - Eu realmente não o compreendo, junger Mann!
- Então seus estudos do colapso do Terceiro Reich deixaram a desejar. Durante os anos finais da guerra, nós alemães, que éramos peritos em matéria de planadores, elaboramos o Gigante, o Messerschmitt ME 323, que evoluiu do ME 321, ambos os maiores planadores de transporte no ar. Foram inicialmente criados para auxiliar as linhas de suprimentos para a frente de batalha russa, esperando que fossem usados em grande escala na invasão da Inglaterra, já que sua construção de madeira e pano enganava o radar.
- Ainda estão lá? - perguntou o idoso britânico.
- Tal como sua Marinha Real e os destróieres americanos. Conservados "em naftalina", acho que é essa a expressão. Já pedi a pilotos que os checassem para mim. Com pequenas modificações, serão perfeitamente funcionais.
- Como pretende fazê-los alçar voo? - disse o segundo alemão.
- Dois jatos de transporte podem facilmente fazer com que levantem voo de campos de pouso bem curtos, ajudados por foguetes desprendíveis debaixo das asas. A Luftwaffe provou que podia ser feito. Eles o fizeram.
Houve um breve silêncio, quebrado pelo britânico mais velho.
- A ideia deste jovem tem mérito - disse ele. - Durante a invasão da Normandia, uma porção de planadores deste tipo, carregando jipes, pequenos tanques e soldados, foram lançados atrás de suas linhas, provocando um desastre. Muito bem, meu filho, muito bem mesmo.
- Concordo - disse pensativamente o piloto alemão, apertando os olhos. - Eu retiro o meu sarcasmo, meu jovem.
- E ainda mais, se me é permitido acrescentar - prosseguiu o jovem e satisfeito neo. - Os jatos poderiam soltar ambos os planadores de uma altitude, digamos, de três mil metros acima dos reservatórios, em seguida subir rapidamente para quarenta mil, cruzando num átimo o Canal, antes que os operadores de radar pudessem compreender alguma coisa.
- E os próprios planadores? - perguntou um cético neobritânico. - A não ser que a missão seja especificamente de não retorno, eles precisam aterrissar em algum lugar, ou colidir em algum lugar.
- Responderei a isto - disse o piloto. - Campos abertos e pastos perto dos reservatórios deveriam ser demarcados como campos de aterrissagem, e uma vez na terra, os planadores deveriam ser explodidos, enquanto os pilotos fugiriam depressa em veículos previamente posicionados.
- Jawohl. - O segundo alemão levantou a mão no feixe da lanterna. - Esta tática poderia muito bem mudar uma porção de coisas - disse ele com tranquila autoridade. - Vamos discutir com nossos engenheiros aeronáuticos a respeito das modificações nesses planadores. Preciso voltar a Londres e ligar para Bonn. Qual é o seu nome, meu jovem?
- Von Löwenstein, senhor. Maximilian von Löwenstein Terceiro.
- Você, seu pai e sua avó apagaram a marca da traição no escudo d’armas de sua família, provocada pelo seu avô. Caminhe com orgulho, meu filho.
- Eu me preparei para estes momentos toda a minha vida.
- Muito bem. Preparou-se brilhantemente.
- Mon Dieu! - exclamou Claude Moreau ao abraçar Latham. Estavam ao lado de um muro de pedra que dava para o Sena, uma Karin de Vries de peruca loura a alguns metros à esquerda deles. - Está vivo e isto é a coisa mais importante, mas o que aquele louco do Witkowski fez com você?
- Na realidade, lamento dizer que a ideia foi minha, monsieur - disse Karin, aproximando-se dos dois homens.
- É a senhora de Vries, madame? - perguntou Moreau, tirando um boné com pala.
- Sou sim.
- As fotos que vi da senhora me fariam dizer que não. Mas também, se este gárgula de cabelo amarelo for Drew Latham, presumo que tudo seja possível.
- O cabelo não é meu, Monsieur Moreau, é uma peruca.
- Certainement. Contudo, madame, devo admitir que não combina com um rosto tão belo. É, como poderia dizer, um pouco mais extravagante?
- Agora compreendo por que dizem que o chefe do Deuxième é um dos homens mais encantadores de Paris.
- Um belo sentimento, mas por favor não diga à minha mulher.
- Se não se importam - interrompeu Drew. - Sou eu que ele está contente de rever.
- É verdade, meu amigo, mas sinto muito a morte de seu irmão.
- Eu também, então vamos logo ao motivo por que estamos aqui. Eu quero pegar os filhos da puta que o mataram... entre outras coisas.
- Todos nós queremos, entre outras coisas. Tem um café com mesas ao ar livre rua acima; geralmente vive cheio e ninguém nos notará. Conheço o proprietário. Por que não caminhamos até lá e pagamos uma mesa longe da entrada? Na realidade, já combinei isto.
- Uma excelente ideia, Monsieur Moreau - disse Karin, pegando no braço de Latham.
- Por favor, madame - continuou o chefe do Deuxième Bureau, botando seu boné ao continuarem a caminhar. - Meu nome é Claude, e suspeito que andaremos juntos até o final, se houver um. Portanto o "monsieur" não chega a ser necessário, mas não precisa dizer nada à minha adorável esposa.
- Eu adoraria conhecê-la.
- Não nessa peruca loura, querida.
O proprietário do café na calçada saudou Moreau discretamente atrás de uma fileira de jardineiras cheias de flores e escoltou-os até a mesa mais distante da entrada com treliças. Confinava com a fileira de flores vizinhas, da altura dos ombros, mais na sombra do que na luz, com uma única vela bruxuleante no centro da toalha de quadradinhos.
- Pensei que o coronel Witkowski talvez viesse - disse de Vries.
- Eu também - concordou Latham. - Por que não veio? Sorenson deixou claro que precisaríamos de sua experiência.
- A decisão partiu dele - explicou Moreau. - Ele é um homem grande, imponente, conhecido de vista por muita gente em Paris.
- Então por que não nos encontramos em outro lugar? - perguntou Drew. - Digamos, num quarto de hotel?
- Novamente o coronel. Sabe, de modo virtual, ele está presente aqui. Estacionado no meio-fio há um carro não identificado da embaixada americana. O motorista permanecerá atrás do volante, e seus dois colegas fuzileiros, em roupas civis, estão perambulando pela rua, entre os transeuntes, além do nosso muro de jardim.
- Ele está fazendo um teste, então - disse de Vries afirmativa e não interrogativamente.
- Exatamente. É por isso que nosso amigo mútuo aqui ainda está posando de soldado, um papel mais do que contraditório. Witkowski quer ter certeza de que não existem outros vazamentos, mas se houver, ele pretende fazer um prisioneiro e conhecer a fonte.
- Isso é típico de Stanley - concordou novamente Latham. - O único risco que ele corre é com minha vida.
- Você está em perfeita segurança - disse o chefe do Deuxième. - Eu tenho a maior admiração pelos seus agressivos fuzileiros... Karin - acrescentou ele, ao ver a mão dela enfaixada. - Sua mão... o coronel me disse que tinha sido ferida. Sinto muito!
- Está sarando bem, obrigado, e mais tarde uma pequena prótese completará as pomadas. Irei ao médico amanhã, depois do qual estarei usando um par de luvas elegantes, eu presumo.
- Um veículo do Deuxième está à sua disposição, é claro.
- Stosh já tomou as iniciativas - disse Drew. - Eu insisti porque quero que tudo fique por conta da embaixada. Deus me livre dela pagar um sou pelas contas dos médicos.
- Meu amor, não importa...
- Para mim importa!
- Ah, "mon chou". Então é assim que as coisas vão. Fico muito contente por vocês dois.
- Deixei escapar, monsieur. Je regrette.
- Não faça isso, por favor. Apesar de minha profissão sou um romantique au coeur. E também, o coronel Witkowski chegou a mencionar, confidencialmente, sobre um namoro entre vocês. É muito melhor não estar sozinha nessas situações, a solidão é um tremendo peso sob estresse.
- Bem expresso, monsieur... mon ami, Claude.
- Merci.
- Uma pergunta - interrompeu Latham. - Posso compreender que Stanley não esteja aqui, mas e você? Também não é bastante conhecido em Paris?
- Quase nada - respondeu Moreau. - Minha foto jamais apareceu nos jornais ou na televisão, essa é a política do Deuxième Bureau. Até mesmo minha sala não tem um letreiro, Le Directeur, no vidro da porta. Não estou dizendo que nossos inimigos não tenham fotos minhas, claro que sim, mas minha presença é insignificante. Não sou um homem alto, nem me visto de maneira extravagante, sou na realidade muito comum. Como dizem vocês americanos, eu mal me destaco numa multidão, e tenho uma grande coleção de chapéus; o exemplo é este boné idiota que estou usando. Só preciso deles.
- Exceto no caso de seus inimigos - disse Drew.
- Este é um risco que todos corremos, não é, meu amigo? E agora deixe que eu o situe até agora. Como deve ou não saber, o embaixador Courtland estará no Concorde para Washington amanhã de manhã...
- Sorenson disse que o estava convocando por trinta e seis horas - interrompeu Drew. - O pretexto é um compromisso qualquer inventado com o Departamento de Estado, mas que o Departamento não sabe.
- Exatamente. Neste meio tempo, a Sra. Courtland está sob nossa vigilância; acredite-me, e absoluta. Cada gesto que ela fizer fora da embaixada será observado, e mesmo dentro da embaixada, cada número de telefone que chamar será automaticamente transmitido para minha sala, por cortesia do coronel...
- Não podem grampear as conversas dela? - interrompeu Latham.
- O risco é muito grande, não dá tempo de reprogramar os telefones. Ela com certeza conhece essa tática e fará testes ela mesma. Se confirmasse um grampo, passaria a saber que está sob vigilância.
- Do mesmo modo que você confirmou que meu telefone estava grampeado, Drew.
- As reuniões em locais específicos - concordou Latham com a cabeça. - Está bem, vocês a têm sob um microscópio. Suponha que nada aconteça.
- Então nada acontece - disse Moreau. - Mas isso me pareceria altamente incomum. Lembre-se que debaixo de sua aparência externa encantadora, existe uma fanática, uma seguidora treinada de uma causa fanática. Lá está ela, a uma hora das fronteiras do santo Reich de sua paixão, e progrediu tanto no trabalho de sua vida inteira que seu ego exigirá uma certa satisfação. Aclamação, exprimiria melhor a coisa, porque as Sonnenkinder devem ter egos extraordinários. A tentação será igualmente extraordinária. Segundo acho, na ausência do embaixador, ela fará uma jogada e saberemos algo mais.
- Espero que tenha razão. - Latham franziu a testa quando um garçom se aproximou da mesa trazendo copos e duas garrafas de vinho numa bandeja.
- O proprietário daqui vive me trazendo suas últimas aquisições de vinho para ver se aprovo - exclamou o chefe do Deuxième Bureau baixinho, enquanto o garçom tirava as rolhas da garrafa. - Se preferirem alguma outra coisa, por favor me digam.
- Não, está ótimo. - Drew olhou para Karin, e ambos balançaram as cabeças.
- Posso perguntar algo? - começou de Vries depois que o garçom se foi. - Se Drew tiver razão e nada acontecer, seria possível forçarmos Janine a fazer uma jogada qualquer?
- De que maneira? - perguntou o francês. - À votre santé - acrescentou ele delicadamente, levantando o copo. - A nós todos... Como, minha cara Karin?
- Não tenho certeza. Os Antinayous talvez. Conheço-os e eles me conhecem; para ser mais exata, gostavam muito do meu marido.
- Continue - disse Latham, com os olhos fixos nela. - Lembrando-se sempre de que Sorenson não lhes garantiu a saúde.
- Isso é bobagem.
- Pode ser, mas o velho Wesley tem uma intuição que poucas pessoas possuem instintivamente, com a exceção talvez de Claude aqui, e provavelmente de Witkowski.
- Você é generoso demais no que me diz respeito, porém posso pôr a mão no fogo pelo meu amigo Sorenson. Brilhante é uma descrição que cobre apenas metade do talento dele.
- Ele diz o mesmo de você. E também que você salvou sua vida em Istambul.
- Ao mesmo tempo que salvava a minha própria, ele devia ter acrescentado. Mas vamos voltar aos Antinayous, Karin. Como poderíamos usá-los para forçar a mulher do embaixador a fazer uma manobra indiscreta?
- Repito que não tenho certeza, mas o conhecimento que eles têm dos neos é muito extenso. Descobriram nomes, códigos, métodos de fazer contato, seus arquivos contêm milhares de segredos que não compartilham. Entretanto, isto pode ser uma exceção.
- Por quê? - perguntou Drew.
- Eu devo concordar com ele - acrescentou Moreau. - De tudo que sabemos sobre os Antinayous, eles realmente não compartilham nada. São uma organização secreta independente, totalmente fechada em si mesma, seus membros não se subordinam a ninguém a não ser a eles mesmos. Por que haveriam de mudar as regras agora, e abrir seus arquivos a estranhos?
- Não os "arquivos", apenas informação apropriadamente selecionada, talvez simplesmente um método de contato que tenha um código de emergência e seja usado pelas Sonnenkinder, se é que existe uma.
- Não está nos escutando, madame - disse Latham, inclinando-se para a frente e cobrindo com delicadeza a mão enfaixada dela. - Por que o fariam?
- Porque temos algo sobre o qual não sabem. Temos uma autêntica, altamente visível Sonnenkind aqui em Paris. Eu mesma negociarei.
- Uau - sussurrou Drew, recostando-se na cadeira. - Isto é uma isca poderosa.
- Não deixa de ser razoável - disse o chefe do Deuxième Bureau, examinando de Vries. - Mas não exigirão uma prova qualquer?
- Sim, exigirão, e acho que vocês do Bureau poderão fornecê-la.
- De que maneira?
- Desculpe-me, querido - disse Karin, olhando para Latham. - Mas os Antinayous se sentem um pouco mais à vontade com o Deuxième do que com a CIA. Ambos são europeus, é um sentimento que até certo ponto se justifica. - Ela virou-se para Moreau. - Um pequeno bilhete em papel timbrado seu, com a data, hora e o grau de confidencialidade registrados no seu equipamento de segurança, afirmando que me autoriza a descrever uma operação de vigilância em andamento de uma Sonnenkind confirmada e de alto escalão aqui em Paris, sem dar nomes, até ser autorizado por vocês. Isso deverá bastar. Se eles estiverem dispostos a cooperar, nós entraremos em contato com eles por um codificador, e eu te ligarei por uma linha particular.
- Neste instante, não posso imaginar uma falha - disse Moreau com admiração.
- Eu posso - reclamou Drew. - E se Sorenson tiver razão? E se um neo ou dois estiverem infiltrados nos Antinayous? Ela vira presunto e eu não o permitirei.
- Ah, por favor - disse de Vries. - Os três Antinayous que encontramos juntos eu conheço desde que vim para Paris, e dois deles eram contatos de Freddie.
- E o terceiro?
- Pelo amor de Deus, querido, ele é um padre!
De repente ouviram-se gritos da calçada além da fileira de jardineiras. O proprietário correu até a mesa e falou urgentemente com Moreau.
- Há problemas! - exclamou ele. - Vocês precisam sair. Levantem-se e sigam-me! - Os três se levantaram e foram andando atrás do proprietário, não mais do que três metros, quando ele apertou um botão oculto e a última jardineira se abriu. - Corram para a rua! - gritou ele.
- O vinho estava excelente - disse o chefe do Deuxième, enquanto ele e Latham, segurando os braços de Karin, passaram correndo pela abertura.
De repente todos os três se viraram, sua atenção atraída pela multidão em pânico, a gritar diante das mesas na calçada do café. Em seguida cada um deles compreendeu. Karin prendeu um suspiro, Moreau fechou rapidamente os olhos de dor, e Latham praguejou de fúria. A luz do poste penetrava pelo para-brisa do carro não identificado da embaixada, iluminando o motorista atrás do volante. Ele estava arqueado para trás no assento, com o sangue descendo pelo rosto.
23
- Meu Deus, eles estão por todo canto, e não podemos vê-los! - gritou Drew, esmurrando a mesa do hotel. - Como conseguiram me achar?
Claude Moreau permanecera até então calado junto à janela, olhando para fora.
- Não a você, meu amigo - disse ele baixinho. - Não ao coronel Webster e seu uniforme, mas a mim.
- Você? Pensei que tivesse falado que quase ninguém em Paris o conhecia - interrompeu calorosamente Latham. - Que você era tão comum e tinha uma coleção de chapéus!
- Não tem nada a ver com o fato de me reconhecerem, eles sabiam onde eu estaria.
- Como, Claude? - perguntou de Vries, sentada na cama de seu quarto no hotel Bristol, para onde resolveram fugir, cada qual entrando separadamente.
- A embaixada de vocês não é o único lugar infestado. - Moreau afastou-se da janela, com uma expressão mista de tristeza e ódio. - Meu próprio departamento está infiltrado.
- Você quer dizer que o sacrossanto Deuxième Bureau tem um traidor ou dois?
- Por favor, Drew - disse Karin, sacudindo a cabeça, comunicando o fato de Moreau estar profundamente abalado.
- Não quis dizer o Bureau, monsieur. - O chefe do Deuxième olhou bem nos olhos de Latham e falou friamente. - Falo sobre minha própria sala.
- Não compreendo. - Drew abaixou a voz, o sarcasmo tendo agora desaparecido.
- Não haveria como, pois não conhece nosso sistema. Como le directeur, o meu paradeiro precisa ser conhecido o tempo todo em caso de haver alguma emergência. Fora Jacques, que me ajuda a agendar meus dias, só o dou para uma única pessoa, um subordinado que trabalha junto a mim, pessoa em quem confio inteiramente. Essa pessoa tem um bip e pode ser alcançada a qualquer hora do dia ou da noite.
- Quem é ele? - Karin sentou-se mais ereta na cama.
- Não é ele, devo relutantemente confessar, mas ela. Monique d’Agoste, minha secretária há mais de seis anos, uma auxiliar confidencial. Ela era a única pessoa a saber do café - até contar a mais alguém.
- Você jamais teve alguma dúvida sobre ela? - continuou Karin.
- Você tinha sobre Janine Clunes? - perguntou Drew.
- Não, mas afinal de contas ela era mulher do embaixador.
- E Monique é sem dúvida a melhor amiga de minha mulher. Na realidade, empreguei-a por sugestão da minha mulher. Foram colegas de universidade e Monique teve experiência no Service d’Etranger, onde trabalhou durante um desastroso casamento. Todos esses anos as duas eram como duas colegiais juntas... e agora está tudo tão claro. - Moreau interrompeu e foi até a mesa onde estava sentado Latham. Pegou o telefone e discou. - Todos esses anos - repetia o chefe do Deuxième, esperando que a ligação se completasse. - Tão amiga, tão carinhosa... Não, não eram vocês os alvos, meus amigos, e sim eu. Tomaram a decisão, meu tempo se esgotou. Me descobriram.
- De que está falando? - insistiu Latham da sua cadeira.
- Lamento dizer que não posso contar nem a você. - Moreau levantou a mão e falou em francês ao telefone. - Vá à residência de Madame d’Agoste em St. Germain imediatamente e prenda-a. Leve uma agente feminina e faça uma revista íntima na prisioneira para evitar uma possível autoadministração de veneno... Não responderei a perguntas, faça apenas o que estou mandando! - O francês desligou o telefone e sentou-se abatido no pequeno divã duplo contra a parede. - A tristeza odienta disso tudo - murmurou baixinho.
- São duas coisas diferentes, Claude - disse Drew. - Não se pode odiar e ficar triste ao mesmo tempo, pelo menos um precisa superar o outro, no que diz respeito a sua vida.
- Não pode deixar as coisas suspensas, mon ami - acrescentou de Vries. - Considerando tudo que já passamos juntos, eu acho que merecemos algum tipo de explicação, não importa quão vaga.
- Fico imaginando há quanto tempo ela vem planejando isto, quantas coisas soube, quantas revelou...
- Para quem, pelo amor de Deus? - perguntou Latham.
- Para aqueles que informam à Brüderschaft.
- Vamos lá, Claude - prosseguiu Drew. - Dê-nos alguma pista!
- Muito bem. - Moreau recostou-se na cadeira, massageando os olhos com os dedos da mão esquerda. - Há três anos que faço um jogo perigoso, enchendo meus bolsos com milhões de francos, que seriam meus só se eu fracassasse e a causa deles tivesse êxito.
- Tornou-se um duplo? - Latham abandonou sua cadeira.
- Como Freddie - continuou o chefe do Deuxième, olhando para Karin. - Estavam convencidos de que eu era um poderoso e adequado informante, mas era uma tática que eu não podia levar para dentro do Bureau.
- Para não despertar a suspeita, não importa quão remota, de que você estava infiltrado - concluiu enfaticamente de Vries.
- Sim. Minha grande falha é que eu não consegui encontrar uma rede de segurança. Não havia ninguém, ninguém na Paris oficial em quem eu sentisse poder confiar. Os burocratas vão e vêm, os mais influentes saindo para a iniciativa privada, e os políticos mudam como o vento. Tive que agir por conta própria, sem autorização, um "solo", como se diz, altamente questionável.
- Meu Deus! - exclamou Drew. - Por que se colocou nesta posição?
- Essa parte não posso lhe informar. Remonta ao passado e deve permanecer no esquecimento... a não ser para mim.
- Se foi esquecido, não pode ser tão importante assim, mon ami?
- É para mim.
- D’accord.
- Merci.
- Deixe-me montar esse quebra-cabeça - disse Latham, andando meio à esmo diante da janela. - Você disse "milhões", estou certo?
- Sim, está certo.
- Gastou alguma parte deles?
- Muito, circulando em ambientes que o salário de um directeur não permitiria, sempre me aproximando mais, pagando a outros que podiam ser comprados, colhendo cada vez mais informações.
- Uma verdadeira missão solo. Danem-se os outros, dane-se você mesmo, quem contará?
- Infelizmente, isto é bastante exato.
- Mas você nos contou - interrompeu Karin. - Logo deve ter um significado.
- Você não é francesa, minha cara. Na realidade a gente começa a fazer parte dos movimentos secretos, das operações clandestinas que nenhum país quer revelar, mas que para o cidadão médio cheira a corrupção.
- Não acho que você seja corrupto - frisou bem Drew.
- Em também não acho - anuiu Moreau. - Mas ambos poderíamos estar errados. Tenho uma mulher e filhos, e antes de humilhá-los diante das calúnias que serão assacadas contra um miserável pai e marido - para não dizer nada de um pelotão extraoficial de fuzilamento ou anos na cadeia - prefiro fugir com meus milhões e morar confortavelmente onde eu quiser no mundo inteiro. Lembre-se, sou um agente secreto experiente com garras em todo canto. Não, meus amigos, já pensei muito nisto. Sobreviverei mesmo se falhar. Devo isto a minha família.
- E se não fracassar? - perguntou Karin.
- Então cada sou que sobrar será devolvido ao Quai d’Orsay, junto com um relatório de como gastei cada franco na minha missão solo.
- Então você não fracassará - disse Latham. - Nós não fracassaremos. Entre outras coisas, eu não possuo milhões, apenas um irmão cujo rosto foi destroçado, e Karin um marido que foi torturado até a morte. Não sei qual é seu problema, Moreau, e você não quer nos contar, mas presumo que seja tão importante para você quanto os nossos são para nós.
- Pode ter certeza.
- Por isso acho que devemos nos atirar ao trabalho.
- Com o quê, mon ami?
- Com nossas cabeças, nossas imaginações. É tudo que temos.
- Gosto de suas frases - disse o chefe do Deuxième. - É mesmo tudo que nos resta.
- Mesmo na morte, o irmão vive através dele - disse Karin, indo até onde Drew estava, e pegando sua mão.
- Vamos voltar a Traupman e Kroeger e a segunda Sra. Courtland - disse Latham, soltando a mão de Karin e sentando-se à sua mesa, abrindo impacientemente uma gaveta e tirando várias páginas de papel timbrado do hotel. - Uma conexão terá de ser feita, precisa ser feita. Mas como? A primeira possibilidade é sua secretária, Claude, a sua Monique seja lá como for o nome dela.
- Totalmente possível. Podemos pegar seus telefonemas internos; isso nos mostrará quem ela contatou.
- E também as chamadas que fez de casa...
- Certainement. Posso conseguir isto dentro de minutos.
- Junte isto tudo e confronte-a com o material. Diga-lhe que ela é descartável, se for preciso aponte uma arma para a sua cabeça. Se Sorenson tiver razão, este Traupman precisa saber o que está acontecendo, e ela é a filha da puta que pode contar-lhe! Em seguida passamos àquele erudito tão fraquinho, Heinrich Kreitz, embaixador da Alemanha, e pouco estou ligando se o pusermos numa fria até que ele envie sinais de alarme a Bonn.
- Você age depressa, meu amigo, passa por cima de imperativos diplomáticos. É atraente, mas é uma faca de dois gumes.
- Foda-se! Estou impaciente.
O telefone tocou. Moreau atendeu, identificou-se e ficou escutando. Os músculos de seu rosto forte despencaram; sua pele ficou pálida.
- Merci - disse ele, desligando. - Mais um fracasso - acrescentou ele, fechando os olhos. - Monique d’Agoste foi espancada até a morte. É óbvio que foi assim que a informação sobre o local onde eu estava foi-lhe arrancada... Onde está nosso Deus?
O vice-presidente Howard Keller tinha um metro e setenta e dois, mas dava a impressão de ser um homem muito maior. Muita gente já comentara este fato, mas poucos deram uma resposta satisfatória. Talvez quem tenha chegado mais perto fosse um coreógrafo nova-iorquino, já entrado em anos, que observara o vice-presidente durante uma daquelas noites culturais da Casa Branca. Ele sussurrara para uma dançarina, "Olhe só ele. Está simplesmente caminhando até um microfone para anunciar alguém, mas olhe só para ele. Rompe o espaço à sua frente, repartindo o ar com seu corpo. Truman fazia isto; é um dom. Um galo no terreiro".
Independentemente do dom ou do galo, Keller era um político que era preciso levar em conta, íntimo até o pescoço de todas as manobras de Washington, tendo servido quatro mandatos como deputado e doze anos como senador, progredindo até chefiar a poderosa Comissão de Finanças. Ele aguentara golpes violentos e setas mortíferas ao ser nomeado vice-presidente, apesar do fato de ser muito mais velho e sábio do que o candidato à presidência pelo seu partido. Aceitou porque sabia que podia contar com os estados que garantiriam a eleição, para ele uma prioridade nacional. Além disto, sentia sinceramente afeto pelo presidente, admirando sua coragem e inteligência, embora faltasse a esta última absorver muito mais sobre Washington do que até agora demonstrara ter feito.
No momento, entretanto, estas considerações eram preocupações distantes, enquanto permanecia sentado atrás de sua grande e desordenada mesa, a olhar para Wesley Sorenson das Operações Consulares.
- Já ouvi falar de merda de gorila, mas isto faz com que King Kong se pareça com um mico de realejo - disse ele tranquilamente.
- Eu compreendo, Sr. Vice-presidente...
- Vamos parar de besteiras, Wes, nós nos conhecemos há muito tempo para isso - interrompeu Keller. - Fui eu quem tentou levá-lo à diretoria da CIA, lembra? A única pessoa que não me apoiou foi você; a porra do Senado inteiro fecharia comigo.
- Eu nunca quis o cargo, Howard.
- Por isso pegou um mais duro. Uma pequena agência bastarda que deveria coordenar o Estado, a CIA e a administração, para não dizer nada dos engomadinhos do Pentágono. Você é louco, Wes. De todas as pessoas, sabe que isto é impossível.
- De acordo, achei que seria algo mais no gênero da consultoria e do veto... não, não precisa me dizer, que é tarefa do Congresso.
- Obrigado por me poupar o trabalho... Agora, para jogar mais lenha na fogueira do hospício em que está metido, dois nazistas dizem que os apoio, que faço parte de sua nova insurreição fascista. Seria histericamente engraçado não fosse o perigo traiçoeiro disto. Foi Hitler quem disse que se você contasse uma mentira bastante grande pelo tempo suficiente, todo mundo acreditaria... E esta é bastante grande, bastante ultrajante, Wes.
- Pelo amor de Deus, Howard, eu jamais a deixaria circular!
- Talvez não consiga impedi-lo. Mais cedo ou mais tarde seus dois skinheads terão de ser interrogados por outras pessoas, entre elas críticos do governo que não perderão a oportunidade de fazer passar prata por ouro.
- Não deixarei que a coisa chegue a isso. Fuzilarei primeiro aqueles filhos da puta.
- Isto não condiz com o estilo americano, não é? - disse Keller com um risinho.
- Então sou bastante antiamericano, porque já fiz isto antes.
- Foi em operações de campo, e você era muito mais jovem.
- Bem, se servir de consolo, eles também implicaram o presidente da Câmara dos Comuns, e ele é de outro partido.
- Meu Deus, que conveniente. A linha direta de sucessão a presidência. O próprio, em seguida o vice, depois o presidente da Câmara. Seus nazistas conhecem a Constituição.
- Um deles é bastante instruído, eu diria.
- O presidente da Câmara...? Aquele gentil e bondoso velho batista, cujo único verdadeiro pecado é fechar acordos de que ele não gosta só para conseguir passar determinadas leis? Como chegaram a ele?
- Disseram que era de ascendência alemã e que alegou a condição de pacifista durante a Segunda Guerra.
- Ele também foi voluntário, na condição de enfermeiro não combatente, foi gravemente ferido ao salvar vidas. Veja só, seus nazistas não são tão espertos assim. Se tivessem feito sua pesquisa direito, saberiam que ele usa um colete ortopédico nas costas desde que o retiraram da praia de Omaha, a rezar pelos garotos que deixou para trás, quase morrendo ele mesmo. Faz parte da citação de sua Estrela de Prata. Esses hitlerzinhos idiotas!
- Escute só, Howard - disse Sorenson inclinando-se para a frente na sua cadeira. - Só vim até você porque achava que precisava saber, não porque achasse que houvesse um grão de credibilidade nessa acusação. Creio que deve compreender isto.
- Assim espero, e considerando o que anda acontecendo em todo este país, o dito "é melhor prevenir do que remediar" tomou outra conotação.
- Não apenas aqui. Em Londres e Paris eles estão se arrastando pelos porões, procurando debaixo das camas, em busca de nazistas.
- Infelizmente encontraram alguns. Infelizmente no sentido de que mesmo uns poucos incendeiam o faro dos caçadores. - Keller estendeu o braço para pegar um jornal na sua mesa; estava dobrado de modo que um artigo no canto direito da primeira página ficasse legível. - Veja só - acrescentou o vice-presidente. - É o jornal de hoje de Houston.
- Puta merda! - murmurou Sorenson, pegando o jornal e lendo, a pequena manchete impressionando-o imediatamente.
NAZISTAS NA EQUIPE HOSPITALAR?
Reclamações de Pacientes Denunciam Linguagem Ultrajante
HOUSTON, 14 de julho - Baseado em declarações escritas e orais, com os nomes específicos omitidos pelo Conselho de Provedores, o Hospital Meridian deu início a um inquérito entre seus funcionários. As reclamações giram em torno de vários comentários partidos de médicos e enfermeiras e considerados abertamente antissemíticos, além de ultrajantes aos afro-americanos e católicos. O Meridian é uma instituição não sectária, mas é de conhecimento geral que sua clientela é predominantemente protestante, uma grande maioria de origem episcopal. Também não é segredo nenhum que entre os mais luxuosos country clubs o hospital é conhecido como "o bar dos bacanas", brincadeira com o fato de o Meridian possuir um centro ativo e altamente sigiloso de reabilitação de alcoólatras, localizado a uns trinta quilômetros ao sul da cidade.
Este jornal recebeu cópias de doze cartas enviadas por ex-pacientes à administração do hospital, mas por prudência, e até que a situação se esclareça melhor, deixamos de publicá-las, até para proteger nomes que aparecem nelas.
- Pelo menos não identificaram ninguém - disse Sorenson, batendo com o jornal dobrado na mesa.
- Quanto tempo acha que isso dura? Eles vendem jornais, se lembra?
- É enojante.
- Está se espalhando, Wes. Em Milwaukee houve uma grande sabotagem a uma cervejaria dois dias atrás porque o nome da cerveja e do dono eram alemães.
- Li a respeito. Não consegui acabar meu café da manhã.
- Até onde você leu?
- Até onde li este último artigo. Por quê?
- O nome era alemão, mas a família é judia.
- Revoltante.
- E em San Francisco, um vereador chamado Schwinn demitiu-se por causa de ameaças à sua família. Motivo: Afirmou num discurso não ter nada contra os gays, muitos eram seus amigos, mas que na hora da distribuição de verbas públicas destinadas às artes, eles possuíam um peso muito maior do que sua legítima representatividade. Sua lógica pode ser questionável - sem os gays, a cultura sairia perdendo uma enormidade - porém ele tinha um ponto de vista político ao qual tinha direito... Foi chamado de nazista e seus filhos importunados na hora de irem para o colégio.
- Jesus Cristo, está tudo voltando a acontecer de novo, não é, Howard? Basta trocar de sinais, os cães estão novamente latindo nos calcanhares das pessoas, quaisquer pessoas.
- Diga-me - disse Keller. - Tenho uma porção de inimigos nesta cidade, e não estão todos no partido de oposição. Imagine que nossos dois nazistas fossem convocados pelo Senado e, com autoridade germânica afirmassem que eu, é claro, era um deles, e o presidente da Câmara também. Você acha que qualquer um de nós sobreviveria?
- Eles são mentirosos terríveis. Claro que sobreviveria.
- Ah, mas as sementes ficariam, Wes. Nossos currículos seriam examinados por fanáticos, a retirarem de seu contexto centenas de comentários feitos por nós, que uma vez costurados juntos sustentariam o ultraje... Você acabou de mencionar Cristo. Sabia que a velha KGB fez um dossiê inteiro sobre Cristo, tirando suas conclusões apenas do Novo Testamento, e concluiu que ele era um tremendo marxista, um verdadeiro comunista?
- Não só sei a respeito, como já o li - respondeu o diretor das Ops. Cons., sorrindo. - Era muito convincente, só que, segundo minha opinião, demonstrava ser ele mais um reformista social, não chegando a comunista. Não havia nunca nenhuma referência a sua defesa de uma só autoridade política.
- E o "Dai a César", Wes?
- É um trecho nebuloso, teria que relê-lo. - Os dois homens riram baixinho. Sorenson continuou. - Mas compreendo o que quer dizer. É como a estatística, tudo pode significar qualquer coisa, desde que extraído selecionadamente de um corpo de dados.
- Então que faremos? - perguntou o vice-presidente.
- Fuzilo os filhos da puta, o que mais?
- Não, outros irão apenas tomar seus lugares. Não, você os transforma em idiotas. Exija que sejam ouvidos por uma comissão do Senado, um circo completo, expondo-os ao ridículo.
- Você deve estar brincando.
- Em absoluto. Poderia ser o remédio para a loucura que assola este país, o Reino Unido e a França... e Deus sabe mais onde.
- Howard, isso é uma loucura! Somente o aparecimento deles na televisão poria lenha nas fogueiras do patrulhismo!
- Não se for feito direito. Do mesmo modo que eles têm um programa de ação, precisamos ter o nosso.
- Que tipo de programa? Aonde você quer chegar?
- Você traz os palhaços - disse Keller.
- Os palhaços? Que palhaços?
- Será preciso procurar um pouco, mas você traz os prós e os contras, testemunhas que confirmem as acusações e aquelas que as desmintam veementemente. Os "contras" são mais fáceis de se achar; o presidente e eu temos currículos basicamente honestos e teremos gente ajuizada, da Casa Branca para baixo, para nos defender. Os "prós", nossos palhaços, serão um pouco mais difíceis, mas eles serão a chave.
- Chave para quê?
- Para a porta atrás da qual a loucura viceja sem freios. Você precisa encontrar um número suficiente de malucos, que à primeira vista pareçam estar em seu juízo perfeito e serem até gentis, mas que debaixo desta fachada, sejam fanáticos. Devem ser fanáticos inflexíveis, dedicados à sua causa, mas que uma vez desnudados, submetidos a interrogatório, entrem em colapso e revelem o que são.
- Parece terrivelmente perigoso - disse o diretor das Ops. Cons., franzindo a testa. - Suponha que eles não entrem em colapso?
- Você não é advogado, Wes, e eu sou, e lhe asseguro que é o truque mais velho do mundo em direito criminal - nas mãos do advogado certo. Meu Deus, até o cinema e o teatro já aproveitaram isso, porque dá um excelente melodrama.
- Estou começando a compreender. The Caine Mutiny e o capitão Queeg...
- E quase todos os espetáculos de Perry Mason jamais escritos - completou Keller.
- Mas isso era ficção, Howard. Diversão. Estamos falando da realidade, e os neos existem!
- E assim também os "comunas" e os "melancias" e os "companheiros de viagem", e, porra, quase perdemos de vista os tranquilos espiões profissionais soviéticos porque estávamos caçando patos iluminados em centenas de estandes de tiro ao alvo, enquanto Moscou morria de rir da gente.
- Tenho de concordar com você neste ponto, mas não tenho certeza de que a analogia seja adequada. A Guerra Fria era real, sou um produto dela. Como podem os advogados negar o que acontece agora? Não os falsos patos dos estandes, como você e o presidente da Câmara, mas os verdadeiros abutres como aquele cientista Metz, ou aquele assistente do ministro das Relações Exteriores britânico, Mosedale... E ainda tem outro, mas é muito cedo para abordar isso.
- Não estou sugerindo nem por um instante que a caça aos verdadeiros abutres seja desacelerada. Só quero esvaziar a mania de se considerar todo mundo nazista em potencial ou colaborador. Além disso, acredito que você concorda comigo.
- Concordo. Só não sei como uma audiência no Senado poderá resolvê-lo. Só consigo enxergar uma tempestade sobre as águas.
- Deixe-me explicá-lo a partir de acontecimentos recentes, afirmando primeiro que servi na comissão militar. Se o advogado, aquele sujeito Sullivan que defendia Oliver North, tivesse sido um advogado da comissão do Senado, o senhor North ainda estaria sentado no xadrez e não como agora, pensando na sua próxima candidatura a um cargo público. Pura e simplesmente, ele era um mentiroso que quebrara seu juramento de soldado, um ultraje a seu uniforme e a seu país, que recobriu suas irregularidades com uma nuvem conveniente de fumaça tranquilizadora, transferindo sua culpa para uma entidade superior - que pode ser vista como Deus - e que não tinha nada a ver com o que ele fez.
- Está dizendo que um advogado poderia tê-lo posto num curto-circuito?
- Acabei de sugerir um, e posso imaginar pelo menos mais uma dúzia. Durante aqueles dias meus colegas e eu ficávamos sentados numa de nossas salas, tomando uns drinques enquanto assistíamos às audiências pela televisão. A piada corrente era saber qual dos nossos irmãos de toga poderia botar aquele filho da puta de joelhos - chorando, é claro - e éramos uma mistura dos dois partidos. Concordamos que seria um senador agressivo do Meio-oeste, um ex-promotor que enchia o saco da gente mas que era um clamoroso advogado.
- Acredita que ele teria conseguido?
- Sem sombra de dúvida. Sabe, ele também era um fuzileiro e recebera a Medalha de Honra do Congresso. Pensamos em vesti-lo no seu uniforme azul com a faixa escarlate e a medalha de ouro em volta do pescoço, e soltar o bicho.
- Será que ele teria feito isso?
- Lembro de suas palavras. "Aquele mariquinha não vale a pena. Estou dando duro como o diabo para levar algumas indústrias para o meu estado." Mas sim, acho que ele teria gostado.
- Farei algumas averiguações discretas nos arquivos - disse Sorenson, levantando-se. - Ainda tenho grandes dúvidas, porém. As caixas de Pandora não me atraem, uma herança de meus anos como agente. Pensando bem, estou prestes a abrir uma delas em menos de uma hora.
- Gostaria de me dizer?
- Agora não, Howard, mas talvez mais tarde. É possível que eu precise que você interceda junto ao presidente, ao menos para manter o secretário de Estado em linha.
- O problema é no terreno diplomático, então?
- Num posto elevado de uma embaixada.
- Bollinger é um pé no saco, mas gostam dele na Europa. Consideram-no um intelectual. Não percebem que suas pausas para pensar são mais para encontrar um jeito de tirar vantagem para nós do que para encontrar verdadeiras soluções.
- Devo dizer que concordo. Sempre achei que ele era um homem pouco dedicado.
- Você está errado, Wes. Ele possui um único compromisso ao qual se dedica profundamente: ele mesmo. E felizmente para nós, e também o presidente, o que, naturalmente, acaba canalizado de volta a ele mesmo.
- O presidente sabe disso?
- É claro que sim, é um homem muito inteligente, brilhante até. É um quid pro quo. Acho justo dizer que nosso homem no Gabinete Oval precisa de vez em quando de um porta-voz malandro.
- É claro que sim, não duvido, e como você diz, ele é inteligente, está aprendendo.
- Se eu pudesse apenas fazer com que desse mais uns coices aí pela cidade, ele aprenderia mais depressa. É muito mais fácil assim.
- Obrigado pelo tempo concedido, Howard. Sr. Vice-presidente, me manterei em contato.
- Não banque o estranho, Sr. Diretor. Nós dinossauros temos que guiar as jovens criaturas bípedes que saem da água aos trambolhões.
- Fico pensando se somos capazes.
- Se não for a gente, então quem será? Os Adam Bollinger deste mundo? Os caçadores de bruxas?
- Volto a falar com você dentro em breve, Howard.
A cinco mil quilômetros de distância, em Paris, estava no meio da tarde, com o sol quente e brilhante, um dia perfeito para se passear pelos bulevares, ou caminhar pelos Jardins das Tulherias, ou pegar as brisas do Sena, contemplando os barcos a deslizarem em cima d’água e sob a miríade de pontes. Paris no verão era uma bênção inigualável.
Para Janine Clunes Courtland, o próprio dia não era apenas uma bênção, mas um símbolo de triunfo. Ela estava livre por um dia ou dois, livre da moralidade classe média de um marido chato que ainda lamentava a perda de sua outra mulher, repetindo frequentemente seu nome durante o sono. Por um momento ou dois, pensou em como seria maravilhoso, como seria satisfatório ter um encontro com alguém, com um amante que pudesse satisfazê-la como muitos jovens estudantes viris em Chicago, escolhidos a dedo, motivo por que morava a uma hora da universidade. Havia um adido da embaixada alemã, um homem atraente de seus trinta e poucos anos, que flertara algo abertamente com ela; poderia telefonar-lhe e ele viria correndo para qualquer programa que ela sugerisse, sabia que sim. Mas não podia ser, não importa quão delicioso ou tentador; seu tempo livre teria de ser dedicado a interesses mais imediatos, menos egoístas. Ela pedira licença do Departamento de Pesquisa e Documentação durante o tempo que seu marido, o embaixador, estaria ausente, já que havia tarefas domésticas pendentes mais bem realizadas na sua ausência. Ninguém discordou, naturalmente, e ela fez saber, naturalmente, ao principal assistente de Daniel que ela estava correndo as lojas atrás de vários novos tecidos para os aposentos deles... Não, ela não aceitaria uma limusine da embaixada; era um exercício de gosto pessoal e não deveria ser cobrado ao Departamento de Estado.
Como as palavras vieram fáceis. E por que motivo não deveriam? Ela fora treinada desde os nove anos no trabalho de sua vida. Permitiu, no entanto, que o assistente lhe chamasse um táxi.
Janine recebera o endereço e o código de contato de um membro da Irmandade antes de deixar Washington. Era a loja de um fabricante de botas no Champs-Élysées, o nome "André" devendo ser usado duas vezes no meio de uma breve conversa, tal como "André diz que você é o melhor fabricante de botas em Paris, e André quase nunca erra". Ela deu ao motorista de táxi o endereço e recostou-se no assento, pensando em que informação mandaria para a Alemanha... A verdade, é claro, mas expressa de tal maneira que a liderança não só admiraria suas realizações extraordinárias, como reconheceria a sabedoria de trazê-la para Bonn. Afinal de contas, o posto de embaixador na França era um dos postos diplomáticos de maior importância na Europa, no momento tão delicado que o Departamento de Estado tinha usado o expediente de aproveitar alguém do seu próprio corpo de profissionais experientes, em vez de aceitar a nomeação política de alguém cru neste terreno. E ela era a mulher daquele profissional. Haviam lhe dito que aquele funcionário do Ministério das Relações Exteriores recém-divorciado haveria de surgir dentro em breve como uma estrela do departamento. O resto foi fácil; Daniel Courtland estava deprimido e solitário, em busca do consolo que ela lhe forneceria.
O táxi chegou à loja do artesão, contudo era mais do que uma loja, era uma espécie de pequeno empório de couro. Botas reluzentes, selas e vários apetrechos de montaria enchiam as elegantes vitrines da frente. Janine Clunitz desembarcou e dispensou o táxi.
Trinta metros atrás do táxi que saía, o veículo do Deuxième encostou num local onde era proibido estacionar. O motorista pegou o telefone de alta frequência e entrou em contato imediato com a sala de Moreau.
- Sim - respondeu o próprio Moreau, já que nenhuma secretária fora escolhida para substituir Monique d’Agoste, assassinada, cuja morte era mantida em segredo sob pretexto de doença.
- Madame Courtland acaba de entrar na loja do fabricante de botas no Champs-Élysées.
- Fornecedor de cavaleiros ricos - disse o chefe do Deuxième. - Gozado, não havia nada no dossiê do embaixador que mencionasse qualquer interesse por cavalos.
- A loja é também famosa por suas botas. Muito duráveis e confortáveis, assim ouço dizer.
- Courtland de botas, duráveis ou não duráveis?
- Talvez a madame.
- Se ela gostasse deste tipo de calçado, suspeito que iria direto para Charles Jourdan ou a loja de Ferragamo em Saint-Honoré.
- Estou relatando apenas o que está acontecendo, monsieur. Devo mandar meu colega ir até lá para fazer um reconhecimento?
- Boa ideia. Diga-lhe para examinar as mercadorias, perguntar preços, esse tipo de coisa. Se a madame estiver sendo medida para um calçado, ele pode ir embora depressa.
- Sim, senhor.
Num sedã Peugeot que circulara pelo amplo bulevar dos Champs-Élysées e estacionara numa vaga defronte à loja de selas e botas, um homem num terno caro riscado, de negócios, também pegou o telefone em seu carro. Contudo, em vez de chamar um número em Paris, discou o código da Alemanha - Bonn, na Alemanha. Dentro de instantes a ligação se completava.
- Guten Tag - disse a voz na linha.
- Sou eu de novo, de Paris - disse o homem bem-vestido no Peugeot.
- Era necessário matar o motorista fuzileiro na noite passada?
- Não tive alternativa, mein Herr. Ele me reconheceu da sede dos Blitzkrieger no complexo dos Armazéns Avignon. Se o senhor se lembra, pediu-me para colher todas as informações possíveis sobre o desaparecimento deles, e já que eu era o único a saber onde funcionavam, o senhor mesmo ordenou que eu fosse até lá.
- Sim, sim. Mas por que matar o fuzileiro?
- Ele conduziu o coronel e os outros dois, o oficial do exército e a mulher loura, até os armazéns. Ele me viu então, e novamente na noite passada. Gritou para que eu parasse; o que poderia eu fazer?
- Muito bem, devo lhe dar os parabéns então, imagino.
- O senhor imagina, mein Herr? Se tivessem me capturado teriam me enchido de drogas e sabido o motivo por que eu me encontrava lá! Que eu tinha matado a secretária de Moreau e ficara sabendo onde ele estava.
- Então eu realmente lhe dou os parabéns - disse a voz na Alemanha. - Pegaremos Moreau, ele é por demais perigoso para a gente agora. É simplesmente uma questão de tempo até você conseguir, não estou certo?
- Tenho confiança que sim, mas não é por isso que estou ligando para o senhor.
- Então por que é?
- Andei seguindo um carro do Deuxième não identificado. Ficou horas parado defronte da embaixada americana. Estranho, acho que concordaria.
- Concordo. E aí?
- Estão vigiando a mulher do embaixador, Frau Courtland. Ela acabou de entrar numa loja cara chamada Selas e Botas...
- Meu Deus! - interrompeu o homem em Bonn. - O contato de André!
- Perdão...
- Fique na linha, voltarei dentro em breve. - Os minutos se passaram enquanto o homem no Peugeot batia os dedos da mão esquerda contra o volante, com o telefone no seu ouvido direito. Finalmente, a voz da Alemanha voltou a entrar na linha. - Escute-me cuidadosamente, Paris - frisou bem o homem. - Eles a descobriram.
- Descobriram quem, mein Herr?
- Não importa. Apenas ouça suas ordens e cumpra-as... Mate a mulher assim que for humanamente possível! Mate-a!
24
Daniel Rutherford Courtland, embaixador junto ao Quai d’Orsay, em Paris, olhou calado as páginas transcritas que tinha nas mãos, lendo e relendo-as até forçar a vista. Finalmente, as lágrimas escorreram pelo seu rosto; enxugou-as e sentou-se ereto na cadeira diante da mesa de Wesley Sorenson.
- Sinto muito, Sr. Embaixador - disse o diretor das Operações Consulares. - Isso me dói até o fundo d’alma, mas o senhor precisava saber.
- Compreendo.
- Se tiver quaisquer dúvidas possíveis, Karl Schneider está preparado para pegar um avião e vir aqui ter uma conversa particular com o senhor.
- Ouvi a sua entrevista gravada, o que mais preciso?
- Posso sugerir que o senhor converse com ele no telefone? Um depoimento pode ser falso, pode-se usar outra voz. Ele está no catálogo e o senhor pode pedir seu número de uma telefonista normal... É claro que poderíamos ter orquestrado tudo para reafirmar nossas conclusões, mas duvido que até a gente pudesse alterar o sistema de informação telefônico com tanta rapidez.
- Você quer que eu o faça, não quer?
- Para falar francamente, sim. - Sorenson pegou um telefone e colocou-o diante de Courtland. - Esta é minha linha particular, um telefone normal que não está ligado à minha mesa. Terá de acreditar na minha palavra quanto a isto. Aqui está o código da região.
- Acredito na sua palavra. - Courtland pegou o telefone, discou o código da região de acordo com o bilhete escrito na sua frente, e deu a informação à telefonista. Ele apertou a tecla de desligar, soltou-a e voltou a discar.
- Sim, alô - disse a voz com sotaque, em Centralia.
- Meu nome é Daniel Courtland...
- Ach, ele me disse que o senhor talvez ligasse! Estou muito nervoso, compreende?
- Sim, compreendo, eu também estou nervoso. Posso lhe fazer uma pergunta?
- Certamente.
- Qual a cor predileta de minha mulher?
- Vermelho, sempre vermelho. Ou mais claro, cor-de-rosa.
- E qual o seu prato predileto quando janta fora?
- Aquele prato de vitela... um nome italiano. "Picata", acho eu.
- Ela tem um tipo predileto de xampu, pode me dizer qual é?
- Mein Gott, eu tinha que mandar formulá-lo na farmácia e mandá-lo para ela na universidade. Um sabão líquido com um ingrediente chamado ketoconzole.
- Obrigado, Sr. Schneider. Isto é doloroso para ambos.
- Muito mais para mim. Ela foi uma criança tão bonita e brilhante. Os caminhos do mundo me são incompreensíveis.
- Para mim também, Sr. Schneider. Obrigado e adeus. - Courtland desligou o telefone e se afundou na cadeira. - Ele poderia ter inventado as duas primeiras mas não a última.
- O que quer dizer?
- O xampu. É uma fórmula especial, um remédio preventivo para dermatite seborreica, um problema que ela às vezes tem. Jamais quis que alguém soubesse, de modo que tenho que comprá-lo em meu nome, tal como o Sr. Schneider fazia.
- Está convencido?
- Gostaria muito de gritar, é falso, e voltar para Paris com tudo zerado, mas isso não é possível, não é?
- Não, não é.
- É tudo tão doido. Antes de Janine tive um tremendo casamento, pensava eu. Mulher ótima, filhos maravilhosos, mas o Departamento de Estado vivia me jogando daqui para lá. África do Sul, Kuala Lumpur, Marrocos, Genebra, tudo isso como primeiro secretário, e então veio a Finlândia e o verdadeiro cargo de embaixador.
- Foi um teste. Meu Deus, o senhor foi retirado do cargo de primeiro-secretário e nomeado embaixador na França, um cargo geralmente reservado aos figurões da política.
- Somente porque eu era um bom conciliador - disse Courtland.
- O Quai d’Orsay estava ficando cada vez mais antiamericano, e eu poderia retocar os estereótipos antifranceses que vinham de Washington. Acredito que sou bom nisso.
- Obviamente que é.
- E me custou minha família.
- Como foi que Janine Clunes entrou na sua vida?
- Sabe, esta é uma pergunta muito interessante. Não tenho certeza. Tive a ressaca normal depois do divórcio, morar sozinho num apartamento, e não numa casa, a mulher e os filhos de volta a Iowa, eu meio sozinho, procurando aqui e ali arranjar alguma diversão. Foi uma espécie de purgatório. Mas o Departamento vivia me chamando, dizendo que eu devia aparecer nesta festa, naquela recepção. E então uma noite, na embaixada britânica, aquela bela mulher, tão viva e inteligente, deu mostras de sentir atração por mim. Ela segurou meu braço enquanto íamos de grupo em grupo, onde eu recebia muitos elogios, mas de diplomatas conhecidos, e eu não os levava a sério. Ela levava no entanto, e alimentou o resto de ego que ainda me restava... Tenho certeza de que você pode imaginar o resto.
- Não é difícil.
- Não, não é. O difícil é agora. O que farei? Presumo que eu devia estar cheio de ódio, furioso diante da sua traição, pronto para me comportar como um animal uivante, prestes a dar o bote mortal, mas não sinto nada disso. Só me sinto vazio, desgastado. Pedirei demissão, é claro, seria asneira continuar. Se um diplomata de meu escalão pode ser enganado desta maneira, ele deveria voltar correndo, e não andando, para a escola mais próxima.
- Acho que pode servir a si mesmo e a seu país de uma maneira melhor - disse Sorenson.
- Como? Voltar e tentar consertar as coisas?
- Não. Fazendo a coisa mais difícil. Voltar a Paris como se nunca tivéssemos nos encontrado, nunca tido esta conversa.
Atônito, Courtland ficou olhando calado para o diretor das Operações Consulares.
- Além de ser impossível - disse ele finalmente - é inumano. Eu nunca conseguiria fazê-lo.
- O senhor é um diplomata de mão cheia, Sr. Embaixador. Jamais teria parado em Paris, se não fosse.
- Mas o que está me pedindo para fazer está além da diplomacia, atinge o cerne da subjetividade, que mal pode ser tida como aliada do diplomata. Não há como esconder o meu desprezo. Os sentimentos que alego não possuir agora aflorariam rapidamente na hora em que eu a visse. O que me pede não é simplesmente razoável.
- Deixe-me dizer-lhe o que não é razoável, Sr. Embaixador - interrompeu Sorenson, com um tom mais ríspido do que antes. - Foi exatamente o que o senhor disse. Que um homem de sua inteligência e vasta experiência, um diplomata que conhece o caminho das embaixadas em todo mundo e vive constantemente alerta para o perigo de espionagem externa e interna, pudesse ser enganado a ponto de se casar com uma Sonnenkind, uma confirmada nazista. E deixe-me dizer-lhe o que é mais estranho. Essa gente esteve escondida por trinta a cinquenta anos. A hora deles chegou e estão saindo rastejando das frestas nas paredes, mas nós não sabemos quem são nem onde estão. Conseguimos uma lista de centenas de homens e mulheres que podem ou não fazer parte do seu movimento global. Não preciso lhe dizer o clima de confusão e de medo que está se espalhando por este país e pelos países que são nossos aliados mais próximos, o senhor pode constatar isto por si mesmo. Dentro em breve haverá uma histeria - quem é e quem não é?
- Não contesto nada do que diz, mas como minha volta a Paris no papel de marido inocente haverá de modificar as coisas?
- Informação, Sr. Embaixador. Precisamos saber como as Sonnenkinder operam, quem contatam, como se comunicam com seus pares na nova geração de nazistas. Olha, é preciso haver uma infraestrutura, uma cadeia de comando que leva a uma hierarquia, e a atual Sra. Courtland, a brilhante mulher do embaixador na França, não é café pequeno.
- Acha realmente que Janine pode ajudar-lhe sem ter ciência disto?
- Ela é a melhor cartada que possuímos, sejamos honestos, é a única. Mesmo se achássemos outra Sonnenkind, seu posto e o fato de estar a minutos de jato da fronteira alemã a tornam a candidata mais importante. Se ela entrar em contato com a hierarquia ou eles entrarem em contato com ela, isto pode nos levar diretamente aos líderes ocultos do movimento. Precisamos descobrir esses líderes e desmascará-los. Como disse alguém, é a única maneira de nos livrarmos deste câncer... Ajude-nos, Daniel, por favor, ajude-nos.
Novamente fez-se silêncio da parte de Courtland. Ele se mexeu na cadeira e, o que não era nada típico de um diplomata, não sabia o que fazer com as mãos. Mexeu-as nervosamente, passou-as no cabelo grisalho, e massageou o queixo várias vezes. Finalmente falou.
- Já vi o que esses filhos da puta fazem e odeio-os... Não garanto que conseguirei, mas vou tentar.
Janine Clunes Courtland aproximou-se do belo balcão da loja de selas e botas e pediu para falar com o gerente. Dentro em pouco, um pequeno e esguio homem, usando uma cara peruca amarelada que cobria seu crânio e atingia sua nuca, apareceu. Envergava roupas de montaria, completas com culotes e botas.
- Sim, madame, em que posso lhe ser útil? - disse ele em francês, olhando por trás dela, para várias freguesas bem-vestidas, algumas de pé, outras sentadas.
- Sua loja é linda - respondeu a embaixatriz, seu sotaque traindo suas origens.
- Ah, uma americana - disse entusiasmado o gerente.
- É tão óbvio assim?
- Ah, não, madame, seu francês é excelente.
- Meu amigo André me ensina com frequência, porém as vezes acho que André é tolerante demais. Sim, ele deveria ter mais firmeza comigo.
- André? - perguntou o homem baixo de culotes, olhando fixo para Janine.
- Sim, ele me disse que o senhor talvez o conhecesse.
- É um nome tão comum, madame, não é? Por exemplo, um freguês chamado André deixou um par de botas aqui, que foram consertadas anteontem.
- Acredito que André mencionou-o.
- Por favor, venha comigo. - O gerente andou para a direita atrás do balcão, surgiu de uma cortina verde que cobria uma estreita entrada e chamou sua nova freguesa. Foram juntos até uma sala vazia. - Presumo que a senhora seja... quem eu presumo que seja?
- Não pela minha identidade oficial, monsieur.
- É claro que não, madame.
- Um homem em Washington deu-me estas instruções. Disse-me que eu também deveria usar o nome de Catbird.
- Isto já basta, é um codinome que se reveza de poucas em poucas semanas. Novamente, siga-me. Sairemos pela entrada dos fundos e a senhora será conduzida por uma pequena distância até sair de Paris e chegar a um parque de diversões. Pague seu ingresso na entrada sul, no segundo guichê, e proteste, dizendo que um ingresso de cortesia deveria ter sido deixado por "André". Compreendeu?
- Entrada sul, segundo guichê, protestar mencionando André. Sim, compreendi.
- Um momento, por favor. - O gerente inclinou-se e apertou um botão num interfone em cima da mesa. - Gustav, temos uma entrega para Monsieur André. Vá para o carro imediatamente, por favor.
Lá fora, no pequeno estacionamento na viela, Janine embarcou no assento de trás de um furgão, enquanto o motorista entrava atrás do volante e dava partida no motor.
- Não haverá nenhuma conversa entre nós, por favor - disse ele, ao descer a viela e entrar na rua.
O gerente voltou à sala vazia, inclinou-se novamente para acionar o intercomunicador, apertou um segundo botão e disse.
- Hoje vou sair mais cedo, Simone. O movimento está fraco e estou exausto. Feche às seis e nos veremos de manhã.
Saiu e foi até sua motocicleta no estacionamento atrás da fileira de lojas. Enfiou o pé no pedal de ignição. O motor pegou e ele desceu depressa a ruela.
Dentro da loja o telefone tocou. Um vendedor no balcão atendeu-o.
- La Selle et les Bottes - disse ele.
- Monsieur Rambeau! - gritou o homem na linha. - Immédiatement!
- Sinto muito - respondeu o vendedor, ofendido pela arrogância de quem ligara. - Monsieur Rambeau já foi embora e não volta mais hoje.
- Onde está ele?
- Como poderei saber? Não sou sua mãe nem sua amante.
- Isto é importante! - gritou o homem no telefone.
- Não, o senhor não é importante. Eu sou importante. Sou eu quem vende as mercadorias, o senhor meramente interrompe, e a loja está cheia de fregueses. Vá para o diabo.
O vendedor desligou o telefone e sorriu para a moça trajando um vestido de Givenchy, obviamente feito sob medida para seu corpo obviamente caro. Ela deslizou pelo piso de parquete e falou na voz sussurrante de uma amante bem teúda.
- Tenho um recado para André - disse ela sedutoramente. - André quererá ouvi-lo.
- Sinto muito, mademoiselle - disse o vendedor, seus olhos passeando pelo seu volumoso decote. - Mas todas os recados para André são dados apenas ao gerente, e ele já foi embora.
- O que devo fazer então? - ciciou a cortesã.
- Bem, poderia me transmitir a mensagem, mademoiselle. Sou confidente de Monsieur Rambeau, o gerente.
- Não sei se devo. É muito confidencial.
- Mas acabei de explicar, sou um confidente íntimo, um auxiliar confidencial de monsieur Rambeau. Talvez preferisse me contar enquanto toma um aperitivo num café ao lado.
- Ah, não, meu amigo me vigia em todo lugar que vou, e a limusine está bem aí fora. Diga-lhe apenas para ligar para Berlim.
- Berlim?
- Sei lá. Transmiti-lhe o recado. - A moça no vestido de Givenchy deixou, rebolando, a loja.
- Berlim? - disse o vendedor consigo mesmo. Era uma loucura. Rambeau detestava alemães. Quando entravam na loja, tratava-os com desprezo e dobrava os preços.
O agente do Deuxième saiu calmamente da loja, em seguida caminhou depressa pela calçada até o carro sem identificação. Abriu rápido a porta e entrou ao lado do motorista, praguejando.
- Merda, ela não estava lá!
- O que está falando? Ela não saiu.
- Presumo que não.
- Então onde está?
- Porra, como poderei saber? Provavelmente em outro arrondissement, do outro lado da cidade.
- Ela fez contato com alguém e saíram por outra porta.
- Meu Deus, como você é esperto!
- Por que está me massacrando?
- Porque nós dois devíamos ter pensado melhor. Lugares como estes têm entradas de serviço; quando entrei, você devia ter dado a volta até encontrá-la, em seguida esperado.
- Não somos videntes, meu amigo. Pelo menos eu não sou.
- Não, somos burros. Quantas vezes já não fizemos este tipo de coisa? Um de nós segue um elemento, enquanto o outro cobre os fundos.
- Está sendo muito exigente conosco - protestou o motorista. - Isso aqui é o Champs-Élysées e não Montmartre, e a mulher é a mulher de um embaixador, e nenhum assassino desses que seguimos.
- Espero que o diretor Moreau concorde. Por motivos que não quis explicar, ele parece quase obcecado por esta embaixatriz em especial.
- É melhor ligar para ele.
- Por favor, ligue você. Esqueci o número.
O homem elegante do Peugeot a vários metros de distância, do outro lado do bulevar, estava mais do que impaciente, estava profundamente perturbado. Quase uma hora se passara e Frau Courtland não saía da loja. O tempo era aceitável; as mulheres eram compradoras sabidamente lentas, especialmente as ricas. O que o perturbava era o fato de o veículo do Deuxième ter saído correndo, correndo, meia hora atrás, fato aparentemente provocado pelo segundo agente, que voltara depressa para o carro e confabulara com o motorista. O que acontecera? Algo, certamente, mas o quê? Ele ficara dividido entre seguir o automóvel oficial e ficar esperando mais tempo pela embaixatriz. Lembrando-se de suas ordens e da intensidade com que foram transmitidas, resolvera esperar. - Mate a mulher assim que for humanamente possível! - Seu controle em Berlim estava quase tendo um ataque apoplético; o assassinato deveria ser imediato. O significado era claro: haveria terríveis consequências se ocorresse uma demora.
Como assassino de plantão, não ousava falhar. De monitor da equipe dos Blitzkrieger, fora lançado de repente na sua mortífera linha de ação. Não que ele não fosse um assassino consumado, ele era; viera da Stasi, um dos primeiros a trocar a aliança com os comunistas linha-dura pela aliança com os ativistas fascistas. Rótulos, apenas rótulos, que nada significavam para homens como ele. Ansiava pelo acesso e pelo poder de uma vida fora da lei, pela exaltação de saber que não precisava obedecer às ordens de funcionários de antolhos. Esses burocratas, independentemente das posições que ocupavam, tinham pavor da Stasi, do mesmo modo que os ministros do Terceiro Reich ficavam apavorados com a Gestapo. O conhecimento deste fato, agora e naquela época, era verdadeiramente entusiasmante. E no entanto, para permanecer nas suas confortáveis posições, homens como ele precisavam prestar contas às estruturas que os nutriam.
Mate a mulher assim que for humanamente possível! Mate-a!
Um tiro na cabeça no Champs-Élysées apinhado de gente era um opção atraente. Talvez um esbarrão, seguido de um tiro de uma arma de pequeno calibre, facilmente engolido pelo barulho do tráfego, sim, era viável. Em seguida, pegaria a bolsa dela, um troféu a ser enviado para Bonn, e desapareceria entre a multidão de transeuntes verpertinos, tendo se passado não mais do que dois a três segundos. Funcionaria; funcionara quatro anos antes em Berlim Ocidental, quando ele matara um agente do britânico MI-6 que andara fazendo viagens demais além do Muro.
O homem no Peugeot destrancou o porta-luvas, tirou um 22 de cano curto, e enfiou-o no bolso do casaco. Deu partida no motor, dobrou a esquina, e rodou à primeira oportunidade do tráfego. Encostou no meio-fio, assim que uma Ferrari azul deixou a vaga; a entrada da cara loja ficava diagonalmente à esquerda, em plena vista, a não mais de vinte metros de distância. Ele poderia sair do carro e se aproximar a um metro da mulher no espaço de segundos, assim que a visse, porém distingui-la no meio dos corpos dos passantes ocasionais seria um risco demasiado. Saiu do Peugeot e caminhou até as sofisticadas vitrines da Selas e Botas. Observou as peças luxuosas atrás do vidro, sempre prestando atenção às pessoas que saíam da entrada, a apenas poucos metros de distância.
Passaram-se dezoito minutos e a paciência do assassino elegante estava chegando ao fim. De repente, a cara simpática de um vendedor olhou-o através da vitrine, por trás da bancada de bom gosto das amostras. O assassino deu de ombros amigavelmente e sorriu. Segundos depois o rapaz saiu da entrada e veio falar com ele.
- Reparei que estava observando nossos artigos há muito tempo. Será que poderia ajudar?
- Para dizer a verdade, estou esperando por uma pessoa que está muito atrasada. Ficamos de nos encontrar aqui.
- Um de nossos fregueses, sem dúvida. Por que não entra e foge do sol? Nossa, está escaldante.
- Obrigado. - O ex-agente da Stasi seguiu o vendedor porta adentro. - Acho que vou ver as suas botas - continuou ele em francês perfeito.
- Não existem melhores em Paris. Se o senhor precisar de ajuda, por favor, me chame.
O alemão olhou em volta da loja, de início sem acreditar nos seus olhos. Em seguida observou devagar cada mulher individualmente; haviam sete, em pé sobre botas de equitação recém-adquiridas, ou sentadas, tendo suas medidas tomadas para fazer botas. Ela não estava ali!
Fora por isso que o agente do Deuxième saíra correndo até o carro do Bureau! Ele percebera o que o assassino de plantão só conseguira saber uma hora mais tarde. A embaixatriz escapara da vigilância! Para onde fora ela? Quem possibilitara a sua saída sem ser vista? Obviamente alguém na loja.
- Monsieur? - O assassino, de pé, sobre uma fileira de botas reluzentes, chamou o vendedor. - Um instante, por favor.
- Sim, senhor - respondeu o empregado, aproximando-se com um sorriso. - Encontrou alguma coisa que lhe agradasse?
- Não exatamente, mas preciso lhe fazer uma pergunta. Não fui totalmente franco com você lá fora, pelo qual peço desculpas. Sabe, trabalho no Quai d’Orsay e fui destacado para escoltar uma americana importante, para protegê-la das incertezas de Paris, se assim quiser. Como lhe disse, ela se atrasou, mas não pode estar tão atrasada assim. A única resposta é que tenha entrado antes de eu chegar e que tenha saído sem que eu notasse.
- Como se parece ela?
- Altura média e bastante atraente, com seus quarenta e poucos anos, talvez. O cabelo é castanho-claro, nem louro, nem moreno, e, assim me disseram, estava com um vestido de verão, branco e rosa, acho eu, e obviamente muito caro.
- Monsieur, olhe em volta. O senhor poderia estar me descrevendo a metade das freguesas aqui!
- Diga-me - disse o assassino no terno riscado. - Será que ela poderia ter saído por outra saída, talvez pelos fundos?
- Isto seria muito fora do comum. Por que motivo?
- Eu não sei - respondeu o assassino, com um tom de voz que transmitia ansiedade. - Apenas perguntei se era possível.
- Deixe-me pensar - disse o vendedor, franzindo a testa e olhando em volta da loja. - Havia uma mulher num vestido cor-de-rosa, mas deixei de prestar atenção nela porque estava com a condessa Levoisier, uma bela porém exigentíssima freguesa.
Novamente o assassino ficou dividido. Seu controle chamara a loja de "acesso André". Se ele continuasse muito o interrogatório, notícias de seu desleixo poderiam chegar a Bonn. Por outro lado, se a embaixatriz estivesse nos fundos da loja ou tivesse sido levada a outro lugar, ele precisava saber. Frau Courtland deixara a embaixada sem segurança, sem a limusine de sempre, nem a escolta armada. As circunstâncias eram ótimas e poderiam não se repetir durante dias. Durante dias! E o crime não podia demorar.
- Se possível - disse ele ao vendedor solícito - e já que este é um assunto do governo, eu apreciaria muito se você me dissesse se "André" se encontra no recinto?
- Puxa vida, esse nome de novo! "André" está muito popular hoje, mas não existe nenhum André aqui. Entretanto, quando chegam recados para ele, seja lá quem for, é o gerente, Monsieur Rambeau, quem os recebe. Ele já foi embora hoje e não volta mais, sinto muito.
- Muito popular... hoje? - repetiu o assassino, atônito.
- Para falar francamente - disse o vendedor abaixando a voz - achamos que o misterioso André é amante de Rambeau.
- Você disse muito popular... hoje...
- Ah, sim. Há apenas poucos minutos, uma adorável moça com um corpo e tanto, deu-me um recado para André.
- Qual foi ele? Lembre-se, sou um agente do governo.
- Duvido muito que o governo tenha o menor interesse nisto. É na realidade bem inofensivo, bem divertido, se é que decifrei direito.
- Decifrou?
- As cidades, assim como os países também ou os destinos, são nomes substitutos.
- Substitutos de quê?
- Provavelmente de hotéis. "Chame Londres" talvez signifique o Kensington ou o d’Angleterre; "chame Madri", o Esmeralda; "chame St. Tropez", o Saint-Pères; compreende o que quero dizer?
- Não tenho a menor ideia.
- Encontros de amantes, monsieur. Quartos de hotel onde estranhos de qualquer sexo podem se encontrar sem perturbar seus consortes.
- Qual foi o recado, por favor!
- Este é realmente bastante simples. Deve ser o hotel Abbaye Saint-Germain.
- O quê...?
- De Germânia, a Alemanha.
- O quê?
- Foi esse o recado para André, monsieur. Chame Berlim.
Em estado de choque, o assassino estudou as feições delicadas do vendedor. Em seguida, sem dar palavra, saiu correndo da loja.
25
Karin de Vries mudou-se para ficar com Drew no hotel Normandie.
- Só queremos poupar o dinheiro do Departamento de Estado, Stosh, e, como contribuinte, eu insisto nisto!
- Você está tão cheio de merda que poderia ser um torero amarelo. Fique com o uniforme e o cabelo louro mais um dia; estamos vigiando você como se um fosse um puro-sangue na véspera de um grande prêmio. Explicarei para os figurões do hotel que vocês são um casalzinho de micreiros, que não conseguimos aguentar, mas que nos mandaram utilizar. - O colóquio terminou meio mal-humorado; Stanley Witkowski detestava que levassem a melhor sobre ele.
Era final da tarde, e Latham estava sentado à mesa, lendo a transcrição do interrogatório de seu irmão em Londres, depois de sua fuga do vale do Brüderschaft. Karin sugerira que ele o solicitasse; havia muitas e crescentes perplexidades quanto à lista de Harry Latham.
- Está bem aqui - disse Drew, sublinhando certas linhas numa página. - Harry jamais alegou que estes nomes fossem definitivos... Escute só. "... Eu trouxe o material, cabe a vocês avaliá-lo."
- Então ele mesmo tinha dúvidas? - perguntou Karin, sentada no divã da sala de estar da suíte, e baixando o jornal que tinha na mão.
- Não, na realidade, mas deixou a coisa aberta para uma possibilidade externa, não uma probabilidade. Quando foi sugerido que podiam ter-lhe "fornecido lixo", ficou danado da vida. Olha aqui... "Por que fariam isso? Eu era um colaborador importante da causa deles. Acreditavam em mim!"
- O mesmo tipo de ódio que demonstrou quando eu lhe disse que a Irmandade tinha uma ficha dele.
- Ele pulou em cima de nós dois por causa disso. E logo depois, quando lhe perguntei quem era Kroeger, ele disse que não devia contar, "mas que Alexander Lassiter podia". Ele era duas pessoas, em certo momento ele mesmo, no outro, Lassiter. É pesado.
- Eu sei, querido, mas já passou, ele está em paz.
- Espero que sim, realmente espero que sim. Não sou religioso. Aliás, não gosto da maioria das religiões. A violência feita em nome delas é tão divina quanto Gengis Khan. Mas se a morte for o Sono Eterno, isto eu aceito, e também Harry.
- Nunca foi à igreja em criança?
- Claro. Mamãe é uma presbiteriana da Indiana corrompida pela acadêmica Nova Inglaterra, de modo que achava que eu e Harry devíamos frequentar com regularidade até a idade de dezesseis anos. Eu consegui chegar aos doze, mas Harry desistiu com dez.
- E ela não protestou?
- Beth nunca foi muito de brigar, a não ser nas corridas de cavalo e eventos esportivos. Aí ela virava bicho.
- E seu pai?
- Era mais um para lhe dar trabalho. - Drew recostou-se na cadeira, sorrindo. - Um domingo, mamãe estava gripada e pediu a papai para nos levar à igreja, esquecendo-se de que ele jamais fora lá. É evidente que se perdeu, e Harry e eu não estávamos a fim de ajudá-lo. Finalmente parou o carro e disse, "Entrem aí. É tudo mais ou menos a mesma coisa, por isso podem ouvi-lo da boca de alguém diferente". Só que não era nossa igreja.
- Bem, pelo menos era uma igreja.
- Não exatamente. Era uma sinagoga. - Ambos riram, quando o telefone tocou. Latham atendeu. - Sim?
- Sou eu, Moreau.
- Qualquer notícia sobre sua secretária? Isto é, sobre quem a teria matado?
- Nada em absoluto. Minha mulher está desconsolada. Ela é que está organizando os funerais. Eu jamais me perdoarei pelo que cheguei a acreditar.
- Pare de se atormentar - disse Drew. - Isso não leva a nada.
- Eu sei. Felizmente tenho outros assuntos para me manter ocupado. Nossa embaixatriz fez sua primeira jogada. Cerca de uma hora atrás, parou numa loja cara de artigos de couro nos Champs-Élysées, dispensou seu táxi e desapareceu.
- Uma loja de artigos de couro?
- De equipamento de montaria, selas, botas. São bastante famosos pelas suas botas.
- Um fabricante de botas?
- Sim, poder-se-ia dizer...
- Isto foi um dos artigos que encontramos no neo que tentou explodir minha cabeça! - interrompeu Latham. - Um recibo de conserto no nome de André.
- Onde está o recibo?
- Com Witkowski.
- Mandarei alguém apanhá-lo.
- Eu achava que você não gostava de mandar pessoal do Deuxième até a embaixada.
- Só é chato quando ficam fazendo perguntas.
- Então não se dê ao trabalho. Stanley vai mandar um carro para levar Karin ao médico. Direi a ele para dar o recibo à escolta de fuzileiros, espere um minuto! - Drew levantou abruptamente a cabeça, a pensar, com os olhos espremidos, como quando alguém tenta desesperadamente recordar alguma coisa. - Disse que a mulher de Courtland desapareceu...?
- Ela entrou e nunca mais saiu. Meus homens acham que levaram-na a outro lugar; encontraram uma entrada de serviço nos fundos com um pequeno estacionamento. Por quê?
- Provavelmente é uma hipótese bem remota, Claude, mas também havia outra coisa com nosso nazista do Bois de Boulogne. Um ingresso de cortesia para um parque de diversões nos arredores da cidade.
- Algo estranho, para um sujeito assim...
- Foi o que pensamos - interrompeu Latham. - Íamos averiguá-lo, junto com o fabricante de botas, quando o arsenal nos Armazéns Avignon se consumiu em chamas. Isso nos distraiu.
- Acha que talvez a tenham levado até lá?
- Como digo, é uma hipótese bem vaga, mas como ambos achamos que um ingresso de cortesia para um parque de diversões é uma coisa muita estranha para um nazista manter guardada no fundo da carteira...
- Certamente vale uma tentativa - disse Moreau.
- Entrarei em contato com Witkowski; vai mandar o carro para Karin dentro em breve. Quando chegar, terei o recibo e o ingresso. Nesse meio tempo, você providencia um de seus veículos especiais e me espera na entrada lateral do hotel.
- Está feito. Tem uma arma?
- Duas. Eu não dei a automática de Alan Reynolds ao sargento de Stanley na noite passada. Ele estava tão puto comigo por ter saído, que achei que ia botar umas luvas, me dar um tiro e depois dizer que fora Reynolds.
- Boa ideia. Um dos meus homens provavelmente o teria feito. A bientôt.
- Que não demore. - Drew desligou o telefone e olhou para Karin, que estava em pé diante do divã, com uma expressão nada agradável. - Vou ligar para o nosso coronel, quer falar com ele?
- Não, quero ir com você.
- Vamos lá, madame, você vai ao médico. Pensa que me enganou na noite passada, mas não enganou. Você se levantou e foi ao banheiro, onde ficou uma porção de tempo. Acendi a luz e vi o sangue no seu travesseiro. Mais tarde encontrei a atadura na cesta de lixo. Sua mão estava sangrando.
- Não era nada...
- Deixe que o médico diga isto. E se é verdade, por que seu braço direito está dobrado, de modo que sua mão fica à altura do peito, como se ignorasse a força da gravidade? Está se benzendo, ou não quer sujar novamente a atadura?
- Você é muito observador, seu filho da mãe.
- Dói, não dói?
- Só espasmodicamente, e de vez em quando. Você é provavelmente responsável.
- Isto é a coisa mais simpática que disse durante muito tempo. - Latham levantou-se da mesa; foram até um ao outro e se abraçaram. - Meu Deus, que bom ter te encontrado!
- É rua de mão dupla, querido.
- Gostaria de dizer coisas mais adequadas, as coisas que sinto. Não tive muita prática, não de um modo sincero. Sempre achei que fosse besteira.
- De modo nenhum. É um homem adulto, e não um monge. Beije-me. - Eles se beijaram, sensualmente e durante um longo tempo, cultivando sua crescente excitação. Como não podia deixar de ser, o telefone tocou. - Responda, agente Latham - disse Karin, delicadamente se afastando e olhando para os olhos dele. - Alguém está, com razão, tentando nos interromper. Há trabalho a fazer.
- Será que aquele uniforme fez de mim um general? - disse Drew, que agora estava de roupas civis. - Se for o caso, seja lá quem for, o filha da mãe vai servir cinquenta anos em Leavenworth. - Caminhou até a mesa e pegou o telefone. - Sim?
- Se você realmente fosse um dos meus comandados - disse rispidamente o coronel Stanley Witkowski - passaria o resto da sua vida em Leavenworth por negligência ao dever!
- Exatamente o inverso do que eu estava pensando. Só que perdi minha patente por enquanto.
- Cale a boca. Moreau acabou de entrar em contato comigo e perguntou se eu tinha falado com você sobre o parque de diversões.
- Eu ia ligar para você. Tive uma crise de azia...
- Obrigado - sussurrou de Vries.
- Pare de bobagens! - prosseguiu o coronel ao telefone. - O carro para Karin está a caminho, e o sargento leva o que você precisa. Acho que devia ir junto com vocês, mas Sorenson quer que eu fique por aqui. Estamos tentando descobrir uma maneira de tornar a volta para casa de Courtland o mais fácil possível.
- Como reagiu ele às notícias?
- Como reagiria você se descobrisse que Karin era uma neo?
- Não posso nem imaginar.
- Courtland reagiu melhor que isso. Ficou arrasado, porém convencido. Wesley é um veterano como eu. Ele não joga o laço sem antes confirmar bastante os antecedentes para tornar a coisa irresistível.
- Você fala um dialeto esquisito, mas compreendo.
- O xis da questão é que o embaixador vai trabalhar conosco. Vai desempenhar o seu papel.
- Era melhor pegar o ator Villier. Vai ser uma cama de "boas-vindas" danada de difícil amanhã à noite.
- É sobre isto que estamos trabalhando, Courtland tem medo de ficar sozinho com ela. Estamos orquestrando uma série de emergências tarde da noite.
- Nada mal. Junto com o jet lag cumulativo, talvez funcione.
- Precisa funcionar. Como está sua amiga?
- Vive mentindo para mim. Sua mão está doendo e ela não o admite para mim.
- Um verdadeiro soldado.
- Uma verdadeira idiota.
- Nosso carro estará aí dentro de dez minutos. Espere até os fuzileiros entrarem, então leve-a.
- Farei isso.
- Boa caçada.
- Não quero que seja inútil.
Latham, de calça cinza e um blazer, entrou no assento traseiro do carro blindado do Deuxième ao lado de Moreau e entregou-lhe o recibo do fabricante de botas e o ingresso do parque de diversões.
- Este é meu auxiliar, Jacques Bergeron, pode chamá-lo de Jacques - disse o chefe do Deuxième, fazendo um gesto para o homem no assento dianteiro. Trocaram amenidades. - E acho que já conhece nosso motorista - acrescentou Moreau, enquanto o agente atrás do volante virava a cabeça.
- Bonjour, monsieur. - Fora o homem que salvara sua vida na avenue Gabriel, o sujeito que insistira que ele entrasse no carro segundos antes de uma fuzilaria marcar o para-brisas.
- Seu nome é François - disse Drew. - Eu jamais esquecerei aquilo, nem você. Eu estaria morto se você não tivesse...
- Sim, sim - interrompeu Moreau, cortando Latham. - Todos nós já lemos o relatório e François já foi suficientemente elogiado. Ele tirou o resto do dia de folga para acalmar seus nervos.
- C’est merde - disse o motorista baixinho ao dar a partida ao carro. - É para o parque que devemos ir, Monsieur Diretor? - continuou ele polidamente em inglês.
- Sim, depois de Issy-les-Moulineaux. Quanto tempo levará?
- Depois de chegarmos à rue de Vaugirard, não muito. Talvez vinte minutos, mais ou menos. O que atrapalha é o tráfego antes de chegar lá.
- Não se preocupe demais com as leis do trânsito, François. Seria melhor não atropelar ninguém, nem bater em algum carro, mas fora isso, vê se vai o mais depressa possível.
O que se seguiu parecia saído dos mais baratos filmes de televisão, onde os automóveis tomam o lugar dos personagens e se tornam máquinas trovejantes obcecadas pela autodestruição. O veículo do Deuxième não só costurava perigosamente entre os carros, mas por duas vezes François subiu em calçadas relativamente vazias para fugir de pequenos engarrafamentos, espalhando os pedestres presentes que fugiam de ser atropelados.
- Vamos ser presos! - comentou um atônito Latham.
- Talvez tentem, mas não temos tempo para isso - discordou Moreau. - Nosso automóvel tem um motor superior a de qualquer carro de polícia em Paris. Poderíamos até ligar a sirene, mas abala as pessoas e poderia provocar acidentes, o que não podemos nos dar ao luxo de fazer.
- Esse cara é maluco!
- Entre as habilidades de François, está um talento extraordinário de motorista. Suspeito que antes de vir trabalhar para nós ele era o que vocês americanos chamam de "volante" nos assaltos a bancos, esse tipo de coisa.
- Constatei isto na Gabriel há mais ou menos dois dias.
- Então não reclame.
Trinta e dois minutos mais tarde, as testas de Drew, Jacques e até de Moreau estando molhadas de suor devido à viagem doida, chegaram ao Parc de Joie, uma alternativa barata à EuroDisney, porque era francesa e não custava caro. De fato, era um parente longínquo dos espetáculos de Disney, mais mafuá do que parque, com reproduções gigantescas e grotescas dos personagens de quadrinhos em cima da cada uma das atrações e brinquedos, e com os caminhos de terra cheios de detritos. Os gritos de satisfação da multidão de crianças, entretanto, punham-no em pé de igualdade com seu grandioso rival americano.
- Existem duas entradas, Monsieur Diretor - disse o motorista. - Uma ao norte, outra ao sul.
- Você conhece o lugar, François?
- Sim, senhor. Já trouxe minhas duas filhas aqui várias vezes. Esta é a entrada norte.
- Vamos usar o ingresso e ver o que acontece? - perguntou Drew.
- Não - respondeu o chefe do Deuxième. - Isto pode ser feito mais tarde, se acharmos que for útil... Jacques, você e François entrem juntos, dois pais de família atrás de seus filhos e de suas mulheres. Monsieur Latham e eu vamos entrar separadamente, por dois portões diferentes. Onde sugere que nos encontremos, François?
- Há um carrossel no centro do parque. Geralmente fica apinhado de gente e o barulho das crianças excitadas e do aerofone faz com que seja o lugar ideal.
- Vocês dois observaram a foto de Madame Courtland, não?
- Com certeza.
- Então separem-se lá dentro e circulem, procurando-a. Monsieur Latham e eu faremos o mesmo, e nos encontraremos no carrossel dentro de meia hora. Se algum de vocês a virem, usem seus rádios e mudaremos o ponto de encontro.
- Eu não tenho um rádio - reclamou Drew.
- Tem agora - disse Moreau, enfiando a mão no bolso.
Madame Courtland fora conduzida a um pequeno prédio na extremidade sul dos trinta mil metros do parque de diversões. A entrada era uma bagunça, velhos cartazes berrantes pregados nas paredes, em nenhuma ordem aparente ou com preocupação de simetria. Em cima de duas mesas e um longo e instável bufê, havia altas pilhas de volantes sortidos e multicoloridos, muitos com manchas redondas de café e de cinzas de cigarro, enquanto três empregados trabalhavam num mimeógrafo, com vários estêncils. Dois deles eram mulheres supermaquiadas em trajes de dançarinas do ventre, o outro era um rapaz, num costume estranhamente ambíguo - calças justas e sujas cor de laranja e uma blusa azul - seu sexo evidenciando-se através de uma barbinha rala e curta. Havia quatro janelas pequenas nas paredes da frente, muito altas para que alguém de fora pudesse olhar por elas, e o ronronar de um velho ar-condicionado parecia sincronizado com o barulho sincopado do miméografo.
Janine Clunes Courtland ficou espantada. A loja de selas e botas era um palácio em comparação com aquela bagunça, pensou ela. E no entanto aquela confusão, aquele escritório fedorento, era obviamente de status superior à elegante loja de artigos de couro nos Champs-Élysées. Sua perplexidade foi parcialmente aliviada pela visão de um homem alto, de meia-idade, que pareceu se materializar do nada, mas que na realidade saíra de uma estreita porta na parede à esquerda. Estava vestido de maneira informal, com blue jeans e casaco de camurça, da melhor qualidade encontrável no Saint-Honoré, e um plastrão em volta de seu pescoço, o que havia de mais caro no Hermès. Fez um gesto para que ela o seguisse.
Passando pela porta estreita, desceram um corredor igualmente estreito, porém escuro, até chegarem a outra porta, esta à direita. O homem alto no elegante traje esporte apertou uma série de dígitos num painel eletrônico quadrado e abriu a porta. Novamente ela o seguiu, entrando num escritório que era tão diferente do primeiro quanto o hotel Ritz de um pé-sujo.
As paredes e a mobília eram feitas da melhor madeira e couro, os quadros, obras autênticas de mestres impressionistas, o bar meio recuado e forrado de espelhos, completo com copos e garrafas de cristal Baccarat. Era o lar de um homem muito importante.
- Willkommen, Frau Courtland - disse o homem numa voz calorosa e sedutora. - Sou André - acrescentou ele em inglês.
- Sabe quem eu sou?
- Certamente, você usou meu nome duas vezes e o código do mês, Catbird. Estávamos à espera de seu contato já há muitas semanas. Por favor, sente-se.
- Obrigada. - Janine sentou-se diante da mesa, enquanto o gerente do parque sentou-se numa cadeira ao lado dela, e não atrás da mesa. - A época certa ainda não tinha chegado, até agora.
- Presumimos que sim. Você é uma mulher brilhante e suas mensagens em código para Berlim vêm sendo recebidas regularmente. Através de suas informações sobre os indicadores financeiros de Paris e Washington, nossas contas engordaram. Somos todos eternamente gratos.
- Sempre me perguntei, Herr André, por que Berlim? Por que não Bonn?
- Bonn é uma cidadezinha tão pequena, nicht wahr? Berlim é, e ainda permanecerá sendo, uma tremenda confusão. Tantos interesses, tanto caos. A queda do Muro, o influxo de imigrantes; é muito mais fácil esconder coisas em Berlim. Afinal de contas, os fundos permanecem na Suíça, e quando são necessários na Alemanha, vêm por remessas sucessivas, que mal chamam atenção numa cidade de tão altas finanças que milhões são enviados por computador a cada hora do dia.
- Meu trabalho tem sido então apreciado? - perguntou a embaixatriz.
- De modo extraordinário. Como poderia imaginar que não fosse?
- Não acho. Apenas acho que, depois de tantos anos de realizações, já era tempo que eu fosse levada a Bonn e obtivesse algum reconhecimento. Estou agora numa posição de prestar um serviço ainda mais extraordinário. Sou a esposa por conveniência de um dos mais importantes embaixadores na Europa. Seja lá o que for que nossos inimigos planejarem contra nós, eu saberei. Gostaria de ouvir do nosso Führer que os riscos diários que corro serão recompensados. Será que é pedir demais?
- Não, não é não, gnädige Frau. Mas sou apenas André, e não um embaixador, é claro, embora seja talvez o intermediário mais importante da Europa, e faço essas coisas na base da crença. Por que a senhora também não poderia fazê-lo?
- Porque eu nunca sequer vi a Pátria! Será que não pode compreender isso? Durante toda minha vida, desde quando criança, preparei-me e trabalhei à exaustão por uma única causa. Uma causa que jamais podia mencionar, jamais confidenciar a ninguém. Tornei-me a melhor naquilo que faço e não podia contar nem às minhas melhores amigas aquilo que me motivava. Eu mereço ser reconhecida!
O homem chamado André examinou a mulher do lado dele.
- Merece sim, Frau Courtland. A senhora, entre todas as pessoas, merece. Ligarei para Bonn esta noite... Agora, por falar em assuntos mais mundanos, quando voltará o embaixador para Paris?
- Amanhã.
Drew desviava-se da multidão de pais e suas crias, geralmente as mães que corriam atrás dos filhos, que corriam atrás de outras crianças, rindo ou gritando incontrolavelmente, enquanto pulavam de um brinquedo para outro. Ele fazia sua atenção vagar, examinando todas as mulheres mais ou menos do início até o final da meia-idade, o que era praticamente o caso de quase todas no parque de diversões. Erguia esporadicamente o rádio na sua mão, como se esperasse que irradiasse o curto bip, a informá-lo que alguém vira alguma coisa - vira Janine Courtland. Nenhum som era emitido; continuou a percorrer os caminhos de terra cheios de encruzilhadas, passando pelas grandes e mal-elaboradas figuras, cujos sorrisos forçados tentavam os passantes a pagarem o ingresso e entrar.
Claude Moreau escolheu as partes mais sossegadas, na hipótese de que a embaixatriz evitaria instintivamente os lugares de maior estardalhaço, e onde seu contato, se algum houvesse, provavelmente estaria. Portanto ele circulou em volta das jaulas dos animais, das barraquinhas das cartomantes e dos vendedores de souvenirs, onde camisetas e bonés jaziam enfileirados sob toldos. O chefe do Deuxième olhava com frequência não os artigos, mas dentro dos interiores sombreados, esperando ver algum homem ou mulher que não pertencesse àquele lugar. Passaram-se dezoito minutos, e os resultados foram negativos.
O subordinado de mais confiança de Moreau, Jacques Bergeron, foi apanhado irritantemente num rio de gente que o empurrava em direção à roda-gigante, reaberta depois de um corte temporário da energia elétrica, deixando alguns passageiros presos a quase vinte metros de altura. Como resultado, a multidão que acorria aos seus portões incluía mães convencidas de terem sacrificado seus filhos à avareza dos proprietários do parque, tão sovinas que não haviam pago a conta de luz. Em certo momento, Jacques colidiu com uma criança e foi atingido na cara pela bolsa de uma mãe; desequilibrado, caiu ao chão e foi pisoteado. Ficou ali, cobrindo a cabeça com os braços, até que aquele atropelo histérico e entusiástico passasse. Ele, também, não vira ninguém parecido com Madame Courtland.
François, o motorista, que estava francamente encantado com o termo "volante", passou devagar pelas estruturas mambembes na entrada sul, onde os cartazes eram pequenos e menos enfáticos, anunciando as salas de pronto-socorro, reclamações, achados e perdidos, administração (mal era legível), e um cartaz maior anunciando o salão de festas. De repente François ouviu as palavras, ditas por uma mulher obesa à sua companheira, uma mulher meio triste de rosto murcho.
- Que diabo viria uma pessoa assim fazer aqui? Aquele vestido cor-de-rosa poderia alimentar minha família por um ano! - disse a gorda.
- Chamam isso de passear pelas sarjetas, Charlotte. Acham que são melhores que nós, por isso precisam prová-lo.
- É pura merda, isso é o que é. Você viu aqueles sapatos brancos todos embonecados? Aposto que valem cinco mil francos!
François não teve dúvidas sobre quem falavam! A equipe no Champs-Élysées descrevera a embaixatriz trajando um vestido de verão rosado claro e branco, obviamente de um dos melhores estilistas. O motorista observou as duas mulheres, aproximando-se displicentemente delas na medida em que caminhavam pelo largo caminho de terra.
- Vou dizer-lhe o que acho - disse a mulher magra com o perpétuo beicinho. - Aposto o vagabundo do meu marido que ela é uma das proprietárias dessa armadilha fedorenta para arrancar nosso dinheiro. Os ricos fazem isso, sabia? Compram lugares assim porque seu funcionamento é barato e as caixas registradoras tilintam noite e dia.
- Você provavelmente tem razão. Entre outras, porque ela entrou no escritório da administração. Que se danem os desgraçados dos ricos!
François deixou-se ficar para trás, em seguida se virou e caminhou de volta para a fileira de cabanas que funcionavam como escritórios e salas. Divisou o pequeno letreiro que anunciava Administração; a construção tinha mais ou menos sete metros de largura, separada das outras por caminhos estreitos de ambos os lados, que pareciam mais valas. As janelas da frente eram extraordinariamente altas, e embaixo havia uma porta que parecia deslocada ali. Aparentava ser muito mais grossa ou pesada de que a madeira circunvizinha. François tirou o rádio do bolso de seu casaco, apertou uma tecla e botou o aparelho no ouvido.
Em seguida, sem aviso nenhum, ele ouviu duas vozes familiares, muito familiares, e em seguida uma terceira, uma que ele vinha escutando há anos.
- Papa, Papa!
- Notre père! C’est lui!
- François, o que está fazendo aqui?
A imagem de sua mulher e duas filhas deixou o motorista de olhos arregalados em estado de choque. Recuperando a voz, enquanto abraçava constrangido as duas jovens meninas, ele disse.
- Meu Deus, Yvonne! O que está você fazendo aqui?
- Você ligou dizendo que chegaria tarde, provavelmente não para o jantar, por isso resolvemos vir aqui nos divertir um pouco.
- Papa, você pode vir no carrossel conosco? Por favor, papa!
- Minhas queridas, Papa está trabalhando...
- Trabalhando? - exclamou a mulher. - Por que o Deuxième viria aqui?
- Shh! - O atônito François afastou-se um pouco e falou rapidamente no rádio. - O elemento está aqui, perto da entrada sul. Encontrem-me aqui. Tive complicações, como podem ter escutado... Venha, Yvonne; vocês também, crianças, vamos embora daqui!
- Puxa vida, você não estava brincando - disse a mulher enquanto a família caminhava depressa pelo caminho em direção à entrada sul.
- Não, não estava brincando, querida. Agora, por amor de todos nós, entre no carro e vá embora para casa. Eu explico mais tarde.
- Non papa! Acabamos de chegar!
- Vai ser "sim, Papa", se não vocês só voltam aqui quando estiverem na Sorbonne!
O que François não reparara era num rapaz vestido com calças justas e gastas cor de laranja e uma blusa azul, apenas sua barba desgrenhada sinalizando seu sexo masculino. Ele estava do lado esquerdo da porta pesada, fumando um cigarro, com a atenção desperta pela obviamente inesperada e barulhenta reunião familiar. Chamou-lhe atenção especial o rádio no qual o sujeito falava, e mais espantosa ainda, a pergunta feita pela mulher. "... O que estaria o Deuxième fazendo aqui?" O Deuxième?
O rapaz esmagou o cigarro com o pé e correu para dentro.
O elegante proprietário que se chamava André interrompeu sua conversa com Frau Courtland, desculpando-se polidamente ao deixar a cadeira e ir até o telefone que tilintava em cima de sua mesa.
- Sim? - disse ele, escutando depois calado por mais uns dez segundos. - Prepare o carro! - ordenou, repondo o fone no gancho e virando-se para a embaixatriz. - Foi escoltada até aqui, madame?
- Fui trazida da loja de selas e botas, sim.
- Quero dizer, a senhora está sob proteção de agentes franceses ou americanos? Está sendo seguida?
- Meu Deus, não! A embaixada não tem a menor ideia de onde estou.
- Alguém tem. A senhora precisa partir imediatamente. Venha comigo. Existe um túnel subterrâneo daqui até o estacionamento. Os degraus estão ali atrás. Rápido!
Dez minutos depois um André ofegante estava de volta ao seu bem-decorado escritório; sentou-se à sua mesa e relaxou, suspirando audivelmente. Seu telefone tocou de novo.
- Sim?
- Ligue o codificador - mandou a voz da Alemanha. - Imediatamente!
- Muito bem - disse um André preocupado, abrindo uma gaveta e ligando um interruptor lá dentro. - Pode falar.
- Você tem uma organização altamente ineficiente!
- Nós não achamos. Qual é o problema?
- Levou-me quase uma hora para descobrir onde te encontrar, e só depois de ameaçar metade de nossos serviços de inteligência!
- Eu diria que isto é um excelente sinal. Acho que deveria reavaliar seu ponto de vista.
- Idiota!
- Olha, eu acho isto muito ofensivo.
- Ficará muito menos ofendido quando eu lhe contar por quê.
- Então diga.
- A mulher do embaixador Courtland irá vê-lo...
- Já veio e já foi, mein Herr - interrompeu André todo satisfeito. - Assim escapando daqueles que a seguiram até aqui.
- Seguiram-na?
- Provavelmente.
- Como?
- Não tenho a menor ideia, mas fizeram um certo estardalhaço, a ponto de empregarem o nome do Deuxième de um modo estranhíssimo. É óbvio que dei-lhe fuga correndo, sem que fosse vista, e dentro de meia hora deverá estar em segurança na embaixada americana.
- Idiota! - berrou o homem da Alemanha. - Ela não deveria ter voltado para a embaixada. Deveria ter sido morta!
26
Moreau, seu auxiliar principal Jacques Bergeron e Latham convergiram para François com breves intervalos. Juntos, caminharam cinquenta metros a leste da entrada sul, até que o chefe do Deuxième levantasse a mão; era uma área de menor circulação, e à direita tendas sórdidas eram usadas como banheiros e vestiários dos empregados.
- Podemos conversar aqui - disse Moreau olhando para o motorista. - Mon Dieu, meu amigo, que azar! Sua mulher e suas filhas!
- Terei de inventar uma justificativa muito convincente.
- As crianças vão ficar uma semana sem falar com você, François - disse Jacques a sorrir maliciosamente.
- Eu escutei duas mulheres, duas megeras conversando... - O motorista relatou a conversa que ouvira escondido, terminando com as palavras. - Ela está ali, no escritório da administração.
- Jacques - disse Moreau. - Dê uma examinada no prédio do seu modo mais profissional. Eu sugeriria o método do bêbado; tire seu casaco e sua gravata, nós os seguraremos.
- Voltarei dentro de três a quatro minutos. - O agente despiu seu casaco e tirou a gravata, puxou para fora uma fralda da camisa, deixando-a ficar dependurada sobre o cinto, e dirigiu-se cambaleando à entrada sul.
- Jacques faz isto muito bem - comentou Moreau, olhando com admiração para seu subordinado. - Especialmente para um sujeito que não bota uísque na boca, e que mal consegue tolerar um copo de vinho.
- Talvez ele tenha antes tolerado ambos em demasia - disse Drew.
- Não - disse o chefe do Deuxième Bureau. - É seu estômago. Um problema qualquer de acidez. Chega a ser muito constrangedor quando almoçamos com os deputados da Câmara, que controlam as nossas verbas. Acham-no um burocrata puritano.
- O que faremos se a mulher de Courtland permanecer lá dentro? - perguntou Latham.
- Não tenho certeza - respondeu Moreau. - Por um lado, sabemos que ela veio até aqui, o que confirma sua hipótese de que este seja um contato da Brüderschaft, por outro lado, será interessante para nós que, sejam lá quem forem eles, saibam que nós sabemos. É melhor ser paciente e esperar aqui, neste pobre arremedo de escritório, mantendo-o sob constante vigilância e saber quem sai e quem entra, ou forçar a questão tomando-o de assalto.
- Eu sou pelo segundo - disse Latham. - Estamos perdendo tempo se não fizermos isto. Vamos arrancar a filha da puta de lá e prender seus contatos.
- Um atalho tentador, Drew, mas muito perigoso, e talvez contraproducente. Se, como ambos agora acreditamos, este parque de diversões mambembe for um elo vital para a Irmandade, vamos suprimi-lo deixando um vazio alarmante, ou mantê-lo e saber mais coisas?
- Eu diria que devemos tomá-lo.
- Alarmando os neonazistas em toda Europa? Existem outras maneiras, meu amigo. Podemos grampear seus telefones, seus faxes, suas transmissões de rádio em altíssima frequência, se é que existem. Estaríamos desperdiçando um prêmio em ouro, por um jumento empalhado. A mulher de Courtland pode ser vigiada, este parque pode ser mantido sob vigilância vinte quatro horas por dia. Precisamos pensar com muito cuidado sobre nossas iniciativas.
- Você é francês demais, porra... Fala demais.
- Feliz ou infelizmente, é minha herança, nosso ceticismo gaulês.
- E tem provavelmente razão. Gostaria que não tivesse. Estou impaciente.
- Você teve um irmão assassinado com requintes de brutalidade, Drew. Eu não. Se estivesse no seu lugar, sentiria a mesma coisa.
- Imagino se Harry sentiria.
- Isso é uma coisa estranha de se dizer. - Moreau observou o rosto de Latham, reparando no olhar distante e os olhos brevemente esgazeados do americano.
- De sang-froid - disse Drew baixinho.
- Como?
- Nada, não é nada. - Latham piscou várias vezes, voltando a realidade momentânea. - O que acha que Jacques encontrará?
- A embaixatriz, se puder - respondeu François, o motorista louco. - Espero que sim, pois quanto antes eu chegar em casa, melhor. Minhas filhas estavam se desmanchando em lágrimas ao irem embora com Yvonne... Perdão, Monsieur Diretor, não quero deixar que assuntos pessoais interfiram, o que é claro não acontecerá. Na verdade, não tem importância.
- Não é preciso se desculpar, François. Um homem que não tem nenhuma vida fora do Deuxième é um homem sem perspectiva, em si mesma uma situação perigosa.
- Alors! - disse o motorista, levantando o olhar para o caminho de terra.
- O que foi? - perguntou Moreau.
- Aquele sujeito com roupas engraçadas, de calças cor de laranja e camisa azul!
- O que tem ele? - disse Drew.
- Ele está procurando alguém. Não para de correr pra lá e pra cá. Está vindo nesta direção, já passou da entrada.
- Separem-se! - ordenou o chefe do Deuxième.
Os três homens se dispersaram rápido em várias direções, enquanto o rapaz de barba passou depressa, parando de vez em quando e olhando em volta. François andava entre duas das tendas dos empregados, com as costas para o caminho. Um minuto depois, uma mancha alaranjada e azulada passou correndo freneticamente, voltando ao escritório com o letreiro Administração. Moreau e Latham juntaram-se a François no estreito espaço entre as tendas.
- Ele certamente estava à procura de alguém - disse Drew. - Seria você?
- Não vejo motivo - respondeu o motorista franzindo a testa. - Mas pareço lembrar de uma mancha, de um borrão alaranjado, quando me afastei um pouco de minha mulher e filhas e chamei vocês.
- Talvez seu rádio - disse Moreau. - Mas, como disse, não há motivo para você ser destacado... Acredito haver uma explicação bastante comum. Esses lugares, como pequenos parques de diversões, são verdadeiros paraísos para sonegar impostos. Tudo é à vista, e eles mesmos imprimem os bilhetes. Alguém talvez tenha presumido que você era um fiscal de rendas, vigiando o movimento. Não é nada fora do comum; esses fiscais são muito expostos a subornos.
- Mes amis! - Chegou correndo Jacques, tendo abandonado seu método ébrio, e pegando seu casaco e gravata das mãos de François. - Se Madame Courtland entrou na sala da administração, ainda está lá dentro. Não existe outra saída.
- Esperemos - disse Moreau. - Vamos nos separar novamente, mas ficar nesta parte, um de nós mantendo sempre os olhos na porta. Vamos fazê-lo por turnos, turnos de vinte minutos. Irei primeiro, e lembrem-se, guardem seus rádios onde possam ouvir o sinal.
- Eu o substituirei - disse Drew, consultando o relógio.
- E eu depois do senhor, monsieur - acrescentou Jacques.
- E eu depois dele - completou François.
Passaram-se duas horas, cada homem tendo cumprido dois turnos na sua vez, quando o chefe do Deuxième mandou que se reunissem nas tendas a leste da entrada sul.
- Jacques - disse Moreau -, tem certeza que não tinha nenhuma porta dos lados ou atrás da construção?
- Nem sequer uma janela, Claude. A não ser pelas da frente, não há uma única janela.
- Está começando a escurecer - insinuou François. - Talvez ela esteja esperando que a escuridão aumente, quando então sairá junto com a multidão do final da tarde, indo para casa.
- Uma hipótese, mas novamente, por quê?
- Ela conseguiu escapar da nossa equipe nos Champs-Élysées - disse Latham, com as sobrancelhas levantadas em dúvida.
- Não havia nenhum meio de ela saber que estava sendo vigiada, monsieur - objetou Jacques.
- Talvez alguém tenha lhe dito.
- Isto supõe uma dimensão inteiramente diferente, Drew. Da qual não temos a menor evidência.
- Estou tateando, só isso. Talvez ela seja apenas paranoica. É possível. Que diabo, uma pessoa assim teria de ser.... Deixe-me perguntar a todos. Quem viram saindo daquela porta? Vi o esquisitinho de calças justas alaranjadas; encontrou-se com alguém vestido de palhaço, que estava à sua espera.
- Eu vi duas mulheres horrendamente maquiadas, que pareciam egressas do harém de algum xeque empobrecido - disse Jacques.
- Será que qualquer uma delas poderia ser a mulher de Courtland? - perguntou Moreau depressa.
- Negativo. A mesma ideia me veio e voltei ao papel de bêbado, esbarrando literalmente nas duas. Eram duas bruacas, uma com um terrível mau hálito.
- Vê só como ele é talentoso? - disse o chefe do Deuxième para Latham. - E você, François?
- Havia apenas um homem alto, com grandes óculos escuros, mais ou menos do tamanho do nosso americano, vestido em roupas esporte, porém caras. Desconfio que fosse o proprietário, por que ele testou a porta para ver se estava trancada.
- Então apesar de Madame Courtland não ter aparecido, e o escritório ter fechado pelo dia, todos nós insistimos que ela está lá dentro, não é?
- Exatamente - respondeu Drew. - Ela ainda poderia estar lá por inúmeras razões, inclusive por causa de alguma inocente ligação enquanto o embaixador estivesse em Washington... Qual de vocês é o melhor arrombador?
- Arrombador? - perguntou François.
- Ele quer dizer abrir portas e entrar clandestinamente nos lugares - esclareceu Moreau.
- A resposta é Jacques - voltou a esclarecer Moreau.
- Você é realmente talentoso - disse Latham.
- Se François era o volante das fugas durante os assaltos, eu desconfio que nosso amigo Jacques já foi um ladrão de diamantes antes de enxergar a luz e ingressar na nossa organização - disse Moreau.
- Isso também é uma merde, monsieur - disse Jacques a sorrir. - Monsieur le Directeur tem estranhas maneiras de nos elogiar. No entanto, o Bureau me mandou para uma escola de chaveiros durante um mês. Com as ferramentas adequadas, todas as fechaduras são vulneráveis, já que os princípios são os mesmos, a não ser pelas mais recentes, computadorizadas.
- Aquele barraco miserável parece tão computadorizado quanto um banheiro público. Vá trabalhar Jacques, ficaremos perto de você, do outro lado. - O agente do Deuxième com habilidades de chaveiro caminhou rapidamente de volta ao prédio mal-acabado, enquanto os outros prosseguiam, permanecendo nas sombras que aumentavam do lado esquerdo do caminho de terra. Dentro de instantes a opinião de Claude Moreau demonstrou estar erradíssima; um estardalhaço de sinos e sirenes começou a tocar de repente, ecoando pelo parque. Guardas vestidos de várias maneiras, alguns uniformizados, outros em trajes extravagantes - palhaços, engolidores de espada seminus, anões e africanos envergando peles de tigre - convergiram sobre a construção arrombada com a agressividade de um ataque de mongóis. Jacques fugiu, fazendo gestos para seus companheiros evacuarem! Foi o que fizeram, correndo o mais depressa que podiam.
- O que aconteceu? - gritou Latham, uma vez dentro do veículo do Deuxième, que fugia depressa.
- Além dos volteadores, que foram fáceis de se penetrar - respondeu sem fôlego Jacques - devia haver um scanner eletrônico para determinar o peso e a densidade do instrumento que fez com que os volteadores girassem.
- Que diabo significa isso?
- A gente encontra todo dia nos carros de fabricação mais recente, monsieur. O pequeno chip preto na chave de ignição; sem ele não se pode dar partida ao motor. Nos carros mais caros, se você tentar, dispara um alarme.
- E você com a sua ideia de banheiro público, Claude.
- O que posso dizer? Estava errado, mas isto nos deu alguma informação, não foi? O Parc de Joie é, ao que parece, o antro vital da Brüderschaft que suspeitávamos que fosse.
- Mas agora eles sabem que ele foi violado.
- Não é bem assim, Drew. Temos alternativas para emergências assim, em cooperação com a polícia e a Sûreté.
- O quê?
- Há uma porção de crimes toda semana, muitos deles cometidos por primários, cuja situação desesperadora exigiu aquele comportamento, mas que no fundo são seres humanos decentes. Jean Valjean, em Os miseráveis, é o exemplo perfeito.
- Meu Deus, você fala demais. O que está tentando dizer?
- Possuímos listas desses criminosos primários cumprindo pequenas sentenças de, digamos, seis meses a um ano. Em troca de levar a culpa por mais um pequeno crime - como por exemplo tentar roubar um parque de diversões - reduzimos suas penas e, em alguns casos, limpamos suas folhas corridas.
- Devo começar a trabalhar neste sentido? - perguntou Jacques, do assento dianteiro, estendendo o braço para pegar o telefone do carro.
- Por favor. - Enquanto seu agente subordinado discava e falava, Moreau explicava. - Dentro de quinze ou vinte minutos a polícia ligará para a segurança do parque, declarando ter interceptado um carro fugindo a grande velocidade, contendo dois homens conhecidos como arrombadores. Está claro o cenário?
- Acho que sim. Naturalmente, perguntarão se houve algum roubo, e em caso positivo, o que foi roubado, e se há alguém que possa identificar os acusados?
- Exatamente. Acrescentando, é claro, que a polícia, para demonstrar sua gratidão por quaisquer testemunhas, teria o maior prazer em levá-las e trazê-las de carro da delegacia onde estavam os presos.
- Convite este rapidamente recusado - acrescentou Latham, balançando a cabeça nas sombras escuras que passavam correndo pelo banco traseiro.
- Nem sempre, mon ami - contradisse Moreau. - Razão pela qual precisamos de nossos falsos culpados. De vez em quando, nossos desafetos são curiosos, nervosos demais a respeito da própria situação, e acabam aceitando o convite. No entanto, fazem invariavelmente o mesmo pedido.
- Deixe-me adivinhar - disse Drew. - Eles irão para o local de identificação, com a condição de não serem vistos pelos suspeitos.
- Como já disse, você é muito astuto.
- Se não conseguisse adivinhar essa aí, deveria ter pedido demissão desde o primeiro dia em que terminei meu treinamento. Mas a ideia de - como chamou-os? - "falsos culpados" é uma beleza. Pelo amor de Deus, não a deixe vazar até Washington, se não os escândalos "Gates" irão se multiplicar. Watergate e Irã-Gate serão uma brincadeira perto da CIA-Gate e do Departamento de Estado-Gate. Os figurões mesmo vão imaginar a possibilidade de contratar dublês para si mesmos, inclusive o próprio presidente.
- Francamente, nós aqui não podemos compreender por que não o fizeram.
- Vamos manter esta especulação só entre nós, já temos problemas bastante.
- Claude - interrompeu Jacques, virando-se no assento. - Você vai gostar desta. Nossos criminosos são dois guarda-livros mal pagos que tentaram roubar uma cadeia de açougues que estava vendendo carne de segunda a preço de primeira.
- A premissa deles estava correta. Ladrão que rouba ladrão...
- Infelizmente os ladrões mudaram os estoques de noite e nossos guarda-livros foram apanhados pelo vídeo abrindo um cofre.
- Não tinham a mínima vocação para seus novos trabalhos.
- Os gendarmes ficaram felizes em cooperar. O chefe dos detetives comprava carne naquela cadeia de açougues há anos.
- Suas pupilas gustativas não eram muito sensíveis. Quando agirão?
- Agora mesmo.
- Bien. Deixe Monsieur Latham no Normandie e eu na minha sala. Em seguida, pelo amor de Deus, leve François para casa.
- Não há problema se eu ficar com o senhor, Monsieur Diretor - disse o motorista. - No caso de alguma emergência.
- Não, François, você não fugirá de suas responsabilidades domésticas. Sua bela mulher jamais nos perdoaria.
- Não é o perdão dela que me preocupa. As crianças são muito mais cruéis.
- Eu já vivi essa fase, e você também deve vivê-la. Ajuda a formar o caráter.
- Você é todo coração - disse Drew baixinho no ouvido de Moreau. - O que vai fazer no escritório?
- Vou acompanhar os desdobramentos desta tarde, esta noite. Manterei você informado. E você também, mon ami, possui uma preocupação relativamente doméstica. A encantadora Karin foi ao médico. Seu ferimento, lembra-se?
- Cristo, eu me esqueci!
- Eu aconselharia a não dizer isto a ela.
- Está errado, Moreau. Ela compreenderia.
Karin, vestida num robe do hotel, caminhava para lá e para cá diante da janela de batente, quando Latham abriu a porta.
- Meu Deus, você demorou muito! - exclamou ela, correndo até ele, ambos se abraçando. - Você está bem?
- Ei, minha senhora, foi um parque de diversões, e não a queda da Bastilha. É claro que estou bem; nós nem sequer pensamos em olhar para nossas armas.
- Isso levou quase quatro horas? O que aconteceu?
Ele contou, e em seguida perguntou.
- E você? O que o médico disse?
- Desculpe, querido, foi por isso que achei que não devia me envolver com você. Achei que superara esse tipo de sentimento, mas obviamente que não. Quando gosto de alguém, gosto profundamente.
- Isso é ótimo. Mas você não respondeu à minha pergunta.
- Olhe! - de Vries segurou orgulhosamente sua mão direita, com uma atadura menos de metade do seu tamanho anterior, não muito maior do que um nariz. - Ele me colocou uma prótese de dois centímetros de comprimento. Encaixa sobre meu dedo, e tem uma unha ligada, o que a torna muito difícil de ser notada.
- Isso é ótimo, mas como é a sensação? Você estava sangrando na noite passada.
- O médico disse que eu devia estar muito nervosa, e devo ter agarrado alguma coisa. Está com arranhões nas costas, querido?
- Mais uma para me dar trabalho. - Drew novamente puxou-a para seus braços. Seus lábios se encontraram, o beijo sendo lentamente interrompido por Karin.
- Quero conversar - disse ela.
- Sobre o quê? Eu te contei o que aconteceu.
- Sobre sua segurança. A Maison Rouge ligou...
- Sabiam onde te encontrar? Aqui no Normandie?
- Eles costumam saber coisas antes de muitos de nós saberem.
- Então estão recebendo porra de informação que não deveriam estar recebendo!
- Acho que está certo, mas no entanto sabemos de que lado os Antinayous estão.
- Não necessariamente. Sorenson excluiu-os.
- Ele era o agente secreto mais temido durante a Guerra Fria. Suspeita de todo mundo.
- Como sabe disto? Sobre essa parte ultrassecreta?
- Em parte através de você, mas principalmente de Freddie.
- Freddie...?
- É claro. As sub-redes se protegem entre si, Drew. A informação circula. Com quem pode contar, em quem pode confiar. A sobrevivência é o que importa mais, não é?
- Por que a Maison Rouge ligou?
- Os informantes deles em Bonn e Berlim disseram que duas equipes treinadas de Blitzkrieger estão a caminho de Paris para localizar e matar o irmão Latham que sobreviveu ao ataque na pousada em Villejuif. O homem que acreditam ser Harry Latham.
- Isso não é nenhuma novidade, pelo amor de Deus.
- Dizem que o número de assassinos é entre oito e doze. Não é um, dois, nem três, mas um pequeno exército de assassinos que vem atrás de você.
Silêncio e em seguida Latham falou.
- Acho isto realmente impressionante, não é? Quer dizer, sou popular além dos meus sonhos mais loucos, e nem sequer sou o cara que eles querem.
- Tenho que concordar com você.
- Mas por quê? Esta é a questão, não é? Por que querem tanto assim Harry? Sua lista já saiu com ele e já está causando uma tremenda confusão e briga, que eles devem saber que os beneficiam, então por quê?
- Será que tem algo a ver com o Dr. Kroeger?
- Aquele cara está no espaço sem um capacete de astronauta. Conta uma mentira depois da outra, se esquecendo das mentiras que contara antes.
- Não sabia disto. Em que sentido?
- Disse a Moreau, que ele crê ser um dos deles, que precisava encontrar Harry para descobrir a identidade de uma traidora no vale da Brüderschaft...
- Que traidora? - interrompeu de Vries.
- Não sabemos, nem Harry sabia. Quando ele estava em Londres e falamos no telefone, ele mencionou alguma coisa sobre uma enfermeira que alertara os Antinayous sobre sua próxima fuga, mas o motorista do caminhão que o apanhou não quis dizer nada.
- Se for essa a mentira de Kroeger, talvez não seja mentira.
- A não ser que tenha contado a Witkowski uma história inteiramente diferente. Insistiu que precisava descobrir Harry antes que passasse o efeito da medicação que estava tomando e, por isso, morresse. Stanley não acreditou nem um minuto nele e é por isso que queria enchê-lo de drogas, para descobrir a verdade.
- E o médico da embaixada não deixou - disse Karin baixinho. - Agora compreendo por que Witkowski ficou tão aborrecido com ele.
- O que também é o motivo pelo qual a autoridade daquele santo médico vai ser atropelada, nem que eu tenha que obrigar Sorenson a chantagear o presidente.
- É mesmo? Ele é... chantageável?
- Todo mundo é, especialmente presidentes. É chamado genocídio político, dependendo do partido ao qual você pertence.
- Podemos voltar ao outro assunto, por favor?
- Que assunto? - Latham caminhou até a mesa e o telefone. - Quero fritar um médico que prefere prolongar a vida de um canalha a evitar a morte de gente decente do nosso lado.
- Que poderia ser você, Drew.
- Presumo que sim. - Latham pegou o telefone.
- Pare e escute o que tenho a dizer! - gritou de Vries. - Reponha o fone no gancho e escute.
- Está bem, está bem. - Drew repôs o fone e virou-se devagar, encarando-a. - O que é?
- Serei terrivelmente honesta com você, querido, porque você é um homem que amo.
- No momento? Ou posso contar com um mês ou dois?
- Isso não só é gratuitamente injusto, mas também me ofende.
- Peço desculpas. Só que teria preferido ouvir o homem, no lugar de um homem.
- E eu amei um outro, não importa quão equivocada pudesse estar, e não pedirei desculpas por isso.
- Dois pontos para a senhora. Vá, continue a ser terrivelmente honesta.
- Você é um homem inteligente, até brilhante a seu modo. Já reparei nisto, observei-o, reconheço sua capacidade de tomar decisões rápidas, além de sua capacidade física, que certamente supera as de meu marido e de Harry. Mas você não é Freddie, nem é Harry, que viviam ambos com o fantasma da morte desde a hora de acordar, até a noite, quando perambulavam pela rua atrás de encontros clandestinos. É um mundo que não conhece, Drew, um mundo horrível, enrolado, no qual nunca mergulhou. Esteve exposto a ele, sim, mas não é veterano de seus pesadelos.
- Chegue ao cerne de seu argumento, quero fazer uma ligação.
- Por favor, eu te peço, passe toda a informação que tem, todas as conclusões que são fruto de sua imaginação, para aqueles que já estiveram neste mundo... Moreau, Witkowski, seu superior, Sorenson. Eles vingarão a morte de seu irmão; estão equipados para fazê-lo.
- E eu não?
- Meu Deus, há um bando de assassinos que vem atrás de você! Gente com recursos e contatos sobre os quais nada sabemos. Virão preparados com nomes, com fundos ilimitados para corromper esses nomes, e basta só que um deles te traia. Foi por isso que os Antinayous me ligaram. Falando francamente, acham que sua situação é desesperadora, a não ser que suma.
- Então voltamos à nossa questão original, não é? Por que todo esse poder de fogo dirigido contra Harry Latham? Por quê?
- Deixe que outros descubram, querido. Vamos eu e você sairmos deste terrível jogo.
- Você e eu...?
- Isso responde à sua pergunta anterior?
- É tão tentador, que eu poderia chorar como um bebê, mas não funcionaria, Karin. Posso não ter a experiência dos demais, mas tenho algo que eles não possuem. Chama-se ódio, e acrescido a quaisquer talentos menores que possuo, isto me faz o líder da manada. Sinto muito, realmente sinto muito, mas tem de ser assim.
- Estou apelando para seu sentido de sobrevivência - nossa sobrevivência - e não para sua coragem, que não precisa de mais provas.
- Coragem nada tem a ver com isto! Nunca pretendi ser corajoso, não gosto de coragem, ela faz com que os idiotas percam a vida. Estou falando de um cara que era meu irmão, um cara sem o qual eu teria abandonado o colégio ou a universidade, e seria a esta altura um vagabundo do hóquei, de cara inchada, pernas quebradas e nenhum dólar no bolso. Jean-Pierre Villier disse que devia tanto ou mais do que eu devia a um pai que ele nunca conhecera. Discordo. Devo mais a Harry porque conheci-o mesmo.
- Sei. - Karin ficou calada enquanto os olhos deles se encontravam. - Então enfrentaremos isto juntos.
- Que diabo, não estou lhe pedindo que faça isto!
- Não poderia ser de nenhuma outra maneira para mim. Só peço uma coisa, Drew. Não deixe que seu ódio acabe com você. Acho que não aguentaria perder o único outro homem que amei, do mesmo modo que o primeiro.
- Pode apostar. Eu tenho muita coisa pela qual viver... Agora posso fazer aquela ligação? Já passa de meio-dia em Washington e gostaria de pegar Sorenson antes que saia para o almoço.
- Talvez você o estrague para ele.
- Tenho certeza que sim. Ele não aprova o que estou fazendo, mas não tocou o apito por uma razão muito boa.
- Qual?
- Teria feito a mesma coisa ele mesmo.
Em Washington, Wesley Sorenson estava ao mesmo tempo aborrecido e frustrado. O vice-presidente Howard Keller lhe enviara por fax uma lista de apoio de cento e onze senadores e deputados que reagiriam ultrajados se vissem o nome do ex-colega indiciado como nazista, e que estavam mais do que dispostos a testemunhar. Acrescido a ela, veio uma outra lista de adversários em potencial, que ia desde líderes fundamentalistas rejeitados, embora ainda com poder, até os fanáticos da turma lunática, que seriam capazes de denunciar a Volta de Cristo como manipulação política, desde que isto servisse a seus interesses. No final do fax, vinha o resumo, do próprio punho do vice-presidente.
Os palhaços acima estão nos seus lugares, prontos, dispostos e pessoalmente ansiosos para destruir qualquer um que discorde, ainda que vagamente, deles. Arranjei os advogados. Junto com nossos caras bons, reduziremos todos esses asnos a pó! Vamos levar isso ao Senado e desmascarar esses canastrões da caça às bruxas, mostrando o que eles realmente são.
Entretanto, Sorenson não estava pronto para dar uma publicidade tão grande ao problema. Muita coisa poderia ser ganha, mas muita coisa perdida. As Sonnenkinder existiam de fato, apesar de não se saber ainda quem eram e a que alturas chegaram. A coisa mais fácil para a caça era posar de "bons samaritanos". Ele ligaria para Howard Keller e tentaria esclarecer sua posição. E então seu telefone tocou, a linha vermelha que batia diretamente na sua sala.
- Sim?
- É seu agente bandido, chefe.
- Quisera que não, quer dizer, quisera eu não ser seu chefe.
- Continue me apoiando, estamos fazendo progressos.
- Como?
- Bonn e Berlim estão mandando quase duas brigadas para me encontrar, isto é, para encontrar Harry, e me eliminar.
- Isso é progresso?
- Um passo sempre leva a outro, não é?
- Se eu fosse você, e falo por experiência, daria o fora depressa de Paris.
- Você teria feito isto, Wes?
- Provavelmente não, mas não importa o que eu faria. Os tempos são outros, Latham, no nosso tempo era mais fácil. Sabíamos quem eram nossos inimigos, e você não.
- Então ajude-me a descobri-los. Diga ao médico humanitário da embaixada para injetar todos os Amitals do nosso estoque em Kroeger, de modo que possamos descobrir alguma coisa.
- Ele disse que isto poderia matá-lo.
- Que se dane o filho da puta. Dê-nos uma chance! Por que estão fazendo este esforço máximo para matar Harry?
- Temos certos códigos éticos da medicina...
- Para o inferno com eles, eu também tenho minha vida! Não sou nenhum defensor da pena de morte, porque, entre outras coisas, não pode ser aplicada com justiça - qual a última vez que um cara branco e rico, com um advogado importante por trás, foi mandado para a cadeira elétrica? - mas se existe uma exceção à minha opinião, é Kroeger. Vi o filho da puta explodir dois inocentes empregados de hotel com balas explosivas simplesmente porque estavam ali! E além do mais, nosso bondoso médico da embaixada não disse que as injeções o matariam, e sim que poderiam matá-lo. São chances muito melhores do que Kroeger deu àqueles dois sujeitos no hotel.
- Você está adquirindo um bom talento para discussões legais... Digamos que eu te desse luz verde, que conseguisse que o Departamento de Estado também o fizesse, o que acha que descobriria de Kroeger?
- Pelo amor de Deus, não sei. Mas talvez alguma coisa, alguma coisa que explicasse a obsessão dos neos por matarem Harry.
- Concordo que é um enigma.
- É mais do que isso, Wes, é a chave para muito mais coisas que podemos descobrir.
- Inclusive a lista de Harry, talvez?
- Possivelmente. Li a transcrição de seu interrogatório em Londres. Não há dúvida de que ele a considerava autêntica, mas deixava uma brecha para informações erradas vindas de fora, mais no terreno da desinformação, eu concordo, mas deixava.
- Falha humana, nomes trocados, mas não lixo - disse Sorenson em voz baixa. - Sim, lembro-me de ter lido isto. Se recordo com exatidão, ele ficou zangado diante da insinuação de ter sido enganado, e insistiu que cabia aos cobras da contrainteligência avaliarem em última instância o material.
- Não chegou a ser tão preciso, mas era o que estava dizendo.
- E você acha que Kroeger pode preencher algumas lacunas?
- Vamos colocar a coisa assim, não consigo pensar em mais ninguém. Kroeger foi o médico de Harry, e o que era bastante estranho - talvez porque Kroeger o tratasse decentemente - é que tinha algum tipo de poder sobre meu irmão. Pelo menos Harry não o odiava.
- Seu irmão era demasiadamente profissional para deixar que o ódio aflorasse, muito menos que interferisse.
- Percebo isto, e admito que é uma linha sutil, muito fina, mas tenho a impressão de que Harry o respeitava, talvez respeito fosse a palavra errada, mas havia uma ligação de fato. Não posso explicá-la, porque não a compreendo.
- Talvez você tenha acabado de dizê-lo. O médico tratou-o decentemente. O algoz que dá atenção à vítima.
- A síndrome de Estocolmo de novo? Por favor, poupe-me disso. Há muitas falhas nessa teoria, especialmente no que diz respeito a Harry.
- E Deus sabe que você o conhecia melhor do que ninguém... Muito bem, Drew, mandarei a ordem e não me darei nem ao trabalho de importunar Adam Bollinger lá no Departamento de Estado. Ele já nos deu carta branca, embora por todos os motivos errados.
- Motivos? E não razões?
- A razão é algo secundário em Bollinger. Motivos vêm primeiro. Passe bem, mantenha-se vivo, e tome muitíssimo cuidado.
Na enfermaria da embaixada, na realidade uma moderna clínica de seis quartos com equipamento médico de última geração, Gerhardt Kroeger estava amarrado à mesa. Um único tubo transparente que conduzia os líquidos de duas bolsas plásticas acima de sua cabeça estava ligado a seu braço esquerdo, a agulha enfiada na veia cúbita anterior. Ele fora dopado com antecedência, um paciente passivo que não fazia ideia do que o esperava.
- Se ele morrer - disse o médico da embaixada, com os olhos na tela do eletrocardiograma - vocês é que vão aguentar as consequências. Estou aqui para salvar vidas e não para fazer execuções.
- Diga isso às famílias dos homens que ele matou a tiros sem nem saber quem eram - respondeu Drew.
Stanley Witkowski afastou Latham para o lado com seu cotovelo.
- Informe-me quando estiver ficando comatoso - disse ao médico.
Drew afastou-se, ficando ao lado de Karin para assistirem, ambos fascinados e repugnados ao que acontecia.
- Ele está entrando na fase de resistência mínima - informou o médico. - Agora - acrescentou ele com rispidez. - E ordens ou não ordens, fecharei a administração intravenosa dentro de dois minutos! Meu Deus, mais um minuto e ele morre! Eu não preciso deste emprego, caras. Posso pagar ao governo pela minha faculdade de medicina dentro de três a quatro anos, mas jamais poderei apagar isto, nem com toda a grana do Tesouro.
- Então afaste-se, rapaz, e deixe-me trabalhar. - Witkowski inclinou-se sobre o corpo de Kroeger, primeiro falando gentilmente no seu ouvido esquerdo, fazendo as perguntas de costume sobre sua identidade e sua posição no movimento neonazista. Foram respondidas breve, sucintamente, numa voz monótona, e a seguir o coronel levantou a voz; ela tornou-se gradativamente ameaçadora, até que começou a ecoar nas paredes.
- Agora atingimos o cerne, Doktor! Por que deseja matar Harry Latham?
Kroeger contorcia-se na mesa, fazendo força para arrebentar os seus liames, enquanto cuspia um catarro cinzento. O médico da embaixada agarrou o braço de Witkowski, o coronel sacudiu-o violentamente até se livrar.
- Tem trinta segundos - disse o médico.
- Diga-me, seu Hitler de décima categoria, ou morrerá agora! Você não tem mais utilidade para mim, seu filho da puta! Diga-me ou vá se juntar a seu Oberführer no inferno. É agora ou você acabou! O Nada, Herr Doktor!
- Agora você precisa parar - disse o médico da embaixada, agarrando novamente o braço do coronel.
- Vá se foder, largue-me seu desgraçado!... Ouviu isto, Kroeger? Pouco se me dá se você viver ou morrer! Diga-me! Por que precisa matar Harry Latham? Diga-me!
- É seu cérebro! - gritou Gerhardt Kroeger, debatendo-se com tanta força na mesa que arrebentou uma das correias de couro. - Seu cérebro! - repetiu o nazista antes de tornar-se inconsciente.
- Isso basta, Witkowski - disse o médico com firmeza, fechando as válvulas das duas injeções intravenosas. - Seus batimentos cardíacos subiram para cento e quarenta. Mais cinco, e ele acaba.
- Deixe-me lhe dizer algo, seu curandeiro - disse o veterano coronel do G-2. - Sabe quais os batimentos cardíacos dos empregados do hotel que este saco de merda mandou pelos ares no saguão? Zero, doutor, e não acho isto muito agradável.
Os três sentaram-se em uma mesa de um café ao ar livre na rue de Varenne, Drew ainda com suas roupas civis, Karin segurando sua mão debaixo da mesa. Witkowski não parava de sacudir a cabeça, em evidente perplexidade.
- Que diabo quis aquele filho da puta dizer quando falou várias vezes "seu cérebro"?
- O primeiro pensamento que me vem à cabeça - disse Latham relutantemente - é lavagem cerebral, o que acho difícil de acreditar.
- Concordo - disse de Vries. - Conheci esse lado de Harry, sua obsessão pelo controle, se assim quiser, e não posso imaginá-lo mentalmente dobrado. Ele tinha demasiadas defesas.
- Então onde ficamos? - perguntou o coronel.
- Uma autópsia? - sugeriu Karin.
- O que nos diria ela, que ele foi envenenado? - perguntou Witkowski. - Podemos presumi-lo, ou algo assim. Além disso, todas as autópsias são ordenadas pelos tribunais e precisam ser registradas no Ministério da Saúde, com laudos médicos anexos. Não podemos arriscar. Lembrem-se, Harry não é mais Harry agora.
- Então é voltar ao começo - disse Drew. - E eu nem sequer sei onde fica isto.
No necrotério da rue Fontenay, o auxiliar cuja tarefa era verificar os cadáveres nos seus túmulos refrigerados, provisórios, puxou cada corpo para se certificar de que os cadáveres exangues estavam devidamente identificados, e não haviam sido removidos devido à superpopulação. Chegou ao número cento e um, um caso especial, conforme sinalizado por uma marca vermelha, que significava que não deveria ser removido, e puxou-o.
Perdeu o fôlego, sem saber ao certo se o que ele via fazia qualquer sentido. O crânio do cadáver quase sem rosto tinha um enorme buraco aberto, como se uma explosão post-mortem houvesse ocorrido, com os fragmentos de tecido e pele espalhados como um morango a se abrir, exsudando um fluido cinzento e de aspecto mórbido. Rapidamente, o auxiliar fechou a gaveta, evitando respirar os resíduos gasosos. Que outra pessoa o achasse.
27
Claude Moreau deu uma ordem irrevogável às oito e meia da manhã. Latham e de Vries estavam novamente sob proteção do Deuxième. A segurança americana poderia oferecer sugestões, mas as decisões finais caberiam só ao Deuxième. A não ser, é claro, que os dois resolvessem permanecer confinados na sua embaixada que, de acordo com o direito internacional, era território americano e portanto fora da jurisdição do Deuxième. Quando Drew berrou suas objeções, a resposta de Moreau foi sucinta.
- Não posso permitir que os cidadãos de Paris arrisquem suas vidas no fogo cruzado entre as pessoas que querem te matar - disse o francês, sentado diante de Drew e Karin na suíte do hotel Normandie.
- Isso é pura merda! - gritou Latham, abaixando seu café com tanta força que metade derramou no tapete. - Ninguém vai começar uma guerra nas ruas. É a última coisa que eles fariam!
- Talvez, talvez não. Então por que ambos não se mudam para a embaixada e este assunto fica encerrado? Eu não teria nada contra, e os cidadãos de Paris ficariam fora de perigo.
- Você sabe que preciso me movimentar! - Drew levantou-se zangado do divã, seu robe do hotel, pequeno demais, tolhendo seus movimentos.
- Então se movimente junto com meu pessoal ou fique fora das ruas. Isto é uma decisão final, mon ami... Ah, e tem outra coisa. Onde quer que você vá, o que quer que faça, deverá primeiro passar por mim.
- Você não só fala demais, como é impossível!
- Por falar no impossível - continuou o chefe do Deuxième - o embaixador Courtland chega hoje às cinco da tarde no Concorde. Sua mulher irá encontrá-lo no aeroporto. Não conheço nenhum tipo de treinamento que deixe alguém preparado para enfrentar o papel complicado que terá de representar.
- Se Courtland não estiver à altura de lidar com o problema, deveria tirar seu time de campo - disse Drew, servindo-se de café e voltando ao divã com sua xícara.
Moreau levantou as sobrancelhas diante do tom seco de Latham.
- Talvez você tenha razão, mon ami. De uma maneira ou de outra, teremos nossa resposta antes do cair da noite, n’est-ce pas?... E agora, quanto ao resto do dia, quero que vocês se familiarizem com os esquemas de segurança do Bureau. São bastante diferentes das operações do meu amigo Witkowski, mas a bem dizer, o coronel não dispõe dos recursos que temos.
- Aliás - interrompeu Drew -, você já submeteu tudo isso a Witkowski? Ele concorda com suas "ordens" arbitrárias?
- Não só concorda, como se sente extremamente aliviado. Acho que deviam saber que ele tem uma grande afeição por vocês dois - talvez uma pequena preferência pela bela Karin - e sabe que meus recursos são muito maiores que os seus. E também, ele e Wesley Sorenson andam ocupadíssimos orquestrando a reunião do embaixador e de sua mulher, uma situação extremamente delicada que exige um controle constante. O que mais posso dizer?
- Já disse - falou Latham sem entusiasmo. - O que deseja que façamos?
- De início conheçam e se familiarizem com nossos seguranças. Todos eles falam inglês fluentemente, e o líder é, na realidade, quem o ajudou a sobreviver na Gabriel...
- François, o motorista?
- Quem mais seria? Os outros ficarão em volta de vocês noite e dia. Haverá sempre dois no corredor do hotel quando estiverem aqui. Em seguida, pensei que talvez se interessassem pelas nossas diversas vigilâncias sobre o Parc de Joie e Madame Courtland. Tudo está em ordem.
- Vou me vestir - disse Drew, levantando-se novamente e levando seu café, enquanto se dirigia à porta do quarto.
- Não se esqueça de fazer a barba, querido. Suas cerdas escuras contrastam um pouco com seu cabelo.
- Isso é outra coisa - resmungou Latham. - Quero lavar esse negócio assim que possível - frisou, entrando no quarto e fechando a porta atrás dele.
- Bien - disse Moreau, prosseguindo em francês. - Podemos agora conversar, madame.
- Sim, eu sabia que isto surgiria. Alguns momentos atrás, seus olhos eram como dois rifles apontados para mim.
- Vamos falar em alemão?
- Não é preciso. Ele não poderá ouvir nada de onde está, e, de qualquer maneira, francês falado depressa lhe escapa. Por onde começamos?
- Pelo óbvio - respondeu o chefe do Deuxième, com um tom de voz natural. - Quando pretende contar-lhe? Ou não pretende?
- Estou vendo - disse Karin, enunciando lentamente as duas palavras. - E se me fosse dado falar em nome de nós dois, poderia perguntar o mesmo a seu respeito, não é?
- Refere-se a meu próprio segredo, não é? O motivo por que corro os riscos que corro para destruir o alemão fanático, toda vez que o encontro.
- Sim, é isso.
- Muito bem, você não estará numa posição de espalhar a informação, prejudicando assim minha família, então por que não?... Eu tinha uma irmã, Marie, bastante mais nova que eu, e como nosso pai morrera, ela me encarava como seu substituto, e eu certamente a adorava. Ela era tão viva, tão cheia da inocência da juventude, e em acréscimo a esse buquê primaveril, era dançarina - talvez não uma prima ballerina, mas certamente um membro competente do corps de ballet. Entretanto, durante os anos mais furiosos da Guerra Fria, somente para se vingar de mim, a Stasi alemã destruiu aquela gloriosa criança. Raptaram-na e logo transformaram-na numa viciada em drogas, obrigando-a a se prostituir para financiar este vício induzido. Ela entrou em colapso e morreu no Unter den Linden, com a idade de vinte e seis anos, mendigando comida e dinheiro, já que não podia mais vender seu corpo... Esse é meu segredo, Karin. Não é muito bonito, não é?
- É horrível - disse de Vries. - E você não pôde fazer nada a respeito, para ajudá-la?
- Não sabia. Nossa mãe morrera, e eu estava na clandestinidade no setor do Mediterrâneo durante treze meses. Quando voltei a Paris, encontrei na minha correspondência muito acumulada quatro fotos, cortesia da Polizei de Berlim Oriental, através da Stasi. Mostravam os pobres restos mortais da minha irmãzinha.
- Dá vontade de chorar, e falo isto sinceramente, Claude, não apenas por falar.
- Tenho certeza que sim, minha cara, porque tem um caso igualmente dramático para contar, não é verdade?
- Como descobriu?
- Explicarei mais tarde. Primeiro, devo perguntar-lhe de novo. Quando contará ao nosso amigo americano? Ou não pretende contar?
- Não posso neste exato momento...
- Então você está meramente usando-o - interrompeu Moreau.
- Sim, estou - exclamou de Vries. - Começou assim, mas virou outra coisa. Pode pensar o que quiser de mim, mas amo-o mesmo, aprendi a amá-lo. Este fato assustou-me muito mais do que a qualquer outra pessoa. Ele possui tantas qualidades do Freddie com quem me casei - demais, para dizer a verdade, e isto me amedronta. Ele é caloroso, curioso e irado; é um bom homem que está tentando encontrar seu centro, sua régua e compasso, ou seja lá o quiser chamá-lo. Está tão perdido quanto todos nós, mas decidido a encontrar as respostas. Freddie era assim no começo. Antes que mudasse e se tornasse um animal obcecado.
- Ouvimos ambos Drew falar, há alguns minutos, sobre Courtland. Fiquei espantado com sua frieza. Será a síndrome de Freddie?
- Não. Não em absoluto. Drew está influenciado pela persona do irmão que ele representa. Precisa ser Harry.
- Então quanto falta para virar Freddie? O animal?
- Ele não pode, não pode. É bom demais para isso.
- Então conte-lhe a verdade.
- O que é a verdade?
- Comece pela honestidade, Karin.
- O que significa ser honesto?
- Seu marido está vivo. Frederik de Vries está vivo, mas ninguém sabe onde está, nem quem é.
A escolta do Deuxième consistia do motorista maluco, François, e de dois guardas cujos nomes foram falados tão depressa que Latham apelidou-os de "Monsieur Frick" e "Monsieur Frack".
- Suas filhas estão falando com você, François? - perguntou Drew do assento traseiro, enquanto ele e Monsieur Frack sentavam-se ao lado de Karin.
- Nem uma palavra - respondeu o motorista. - Minha mulher zangou bastante com elas, explicando-lhes que deveriam respeitar seu pai.
- Adiantou alguma coisa?
- Nada. Foram marchando para seu quarto e fecharam a porta, na qual penduraram um letreiro "Não perturbe".
- Estão falando de algo que eu devia saber? - perguntou de Vries.
- Concluindo apenas que as criancinhas do sexo feminino podem ser tremendamente cruéis com seus santos papais - respondeu Latham.
- Bem, acho que esta passa.
Vinte minutos depois chegaram ao Deuxième Bureau, um prédio comum de pedra com um estacionamento no subsolo, no qual se entrava apenas depois de uma revista por guardas armados. Frick e Frack levaram Drew e Karin num elevador eletrônico encapado em aço, que exigia uma série tremendamente complicada de códigos para funcionar. Chegaram ao quinto andar e foram encaminhados à sala de Moreau, menos um escritório do que uma grande sala de estar, com as venezianas meio fechadas. Qualquer conforto que existia antes sofrera a intrusão brutal de um exército de computadores e vários equipamentos de alta tecnologia.
- Você sabe como tudo isso funciona? - perguntou Drew, fazendo um gesto que abarcava a sala inteira.
- O que não sei, minha nova secretária, recém-nomeada, sabe, e o que ela não sabe, meu auxiliar Jacques sabe. E se a gente realmente ficar com um problema insolúvel, chamo simplesmente minha nova amiga, Madame de Vries.
- Mon Dieu - exclamou Karin. Isto aqui é o sonho de todo técnico! Olhe só lá, você está em contato imediato com uma dezena de satélites de retransmissão, e ali, telecomunicações para qualquer lugar remoto da terra que possua equipamento para recebê-la, que vocês devem obviamente possuir, se não ele não estaria aqui.
- Estou com pequenos problemas com esse aí - disse Moreau. - Talvez pudesse ajudar.
- As frequências mudam constantemente, até a cada átimo de segundo - disse de Vries. - Os americanos estão trabalhando nisso.
- Estavam, mas um cientista em computação chamado Rudolph Metz provocou-lhes um pequeno problema ao fugir dos Estados Unidos e desaparecer na Alemanha. Espalhou um vírus pelo sistema inteiro; ainda estão tentando recuperá-lo.
- Quem quer que o aperfeiçoe, terá os segredos do mundo - disse Karin.
- Então esperemos que a Brüderschaft precise do equipamento que Metz deixou para trás - acrescentou o chefe do Deuxième Bureau. - Aliás, isto é uma especulação inútil. Temos outras coisas para mostrar a vocês, ou mais precisamente, para que ouçam. Tal como o prometido, e com a ajuda de Witkowski na embaixada, entramos no telefone privativo do embaixador, um telefone que vasculha todas as linhas e só funciona naquela tida como livre de grampos. O Parc de Joie foi muito mais simples; nós simplesmente criamos um defeito nas suas linhas, sob pretexto de um incêndio na companhia telefônica. Foi amplamente divulgado, provocou milhares de reclamações, mas o truque foi aceito... Na realidade chegamos a começar um incêndio, mais fumaça do que chamas, mas funcionou.
- Descobriram alguma coisa? - perguntou Latham.
- Escutem vocês mesmos - respondeu Moreau, andando até um console na parede esquerda. - Esta fita é do telefone do embaixador, que é constantemente varrido, e que fica na sua sala particular, dentro dos recintos do andar de cima. Nós editamos de modo a só passar a informação pertinente. Quem está interessado em ouvir cortesias inócuas?
- Tem certeza de que são inócuas?
- Meu caro, Drew, você pode ouvir a fita original a qualquer hora que quiser; foi marcada digitalmente.
- Perdão, continue.
- Madame Courtland acabara de ligar para a loja de selas e botas nos Champs-Élysées.
A fita começou.
- Preciso falar com André no Parc de Joie. É urgente, uma emergência!
- E quem está falando?
- Uma pessoa que conhece o código André e foi levada ao parque de diversões no seu próprio veículo ontem.
- Me informaram disto. Espere na linha, voltarei dentro de poucos instantes. - Silêncio. - Você deve estar no Louvre à uma hora desta tarde. Na galeria do Antigo Egito no segundo andar. Vocês irão se reconhecer e ele a mandará segui-lo. Se por algum motivo, forem interrompidos, ele é conhecido como Louis, conde de Estrasburgo. Vocês são velhos amigos. Compreendeu?
- Compreendi.
- Até logo.
- A próxima fita é entre o gerente da loja e André no Parc de Joie - disse Moreau. - Na realidade, ele é o conde de Estrasburgo.
- Um conde verdadeiro? - perguntou Latham.
- Já que há tantos, digamos que é mais verdadeiro do que a maioria. É uma fachada bastante inventiva, e realmente genuína. É o único herdeiro masculino de uma tradicional e célebre família da Alsácia-Lorena, que amargou dias difíceis no pós-guerra; a família acabou, sabe.
- De conde a dono de parque de diversões? - continuou Drew. - É uma decadência bastante grande. O que arruinou a família?
- Na Alemanha a região da Alsácia é conhecida como Elsass-Lothringen. Um lado lutou pela Alemanha. O outro pela França.
- Então o lado deste Louis, conde de Estrasburgo, ficou com os nazistas - disse Latham, balançando a cabeça.
- Não. Não em absoluto - discordou Moreau, seus olhos brilhando de surpresa. - É isto que torna sua fachada inventiva. Ele era apenas uma criança, mas seu "lado", como você o descreveu, combateu valentemente pela França. Infelizmente o contingente germânico transferiu a fortuna para bancos suíços e norte-africanos, deixando a parte mais nobre quase sem um tostão no bolso.
- Mesmo assim trabalha para os neos? - interrompeu Karin. - Ele é nazista.
- Obviamente.
- Não compreendo - disse Drew. - Por que o faria?
- Foi aliciado - respondeu de Vries, olhando para Moreau. - Foi corrompido pelo lado rico da família.
- Para administrar um parque de diversões de quinta categoria e, além do mais, imundo?
- Com promessas de muito mais - acrescentou o chefe do Deuxième. - Ele é uma pessoa no Parc de Joie, e outra completamente diferente nos salões de Paris.
- Acho que deve ser alvo do ridículo - disse Latham. - Totalmente excluído desses salões.
- Porque administra um "parque de diversões"?
- Bem, sim.
- Completamente errado, mon ami. Nós franceses admiramos qualidades práticas, especialmente as qualidades humilhantemente práticas dos ricos destronados, que encontram maneiras de reconstruir seus recursos. Vocês também são assim na América, e mais extrovertidos a respeito. Um empresário multimilionário perde suas empresas, ou seus hotéis, ou suas posses, perde tudo. Em seguida recupera sua fortuna e vocês o transformam num herói. Não somos tão diferentes assim. O senhor feudal se torna um pobretão e, em seguida, com um grande dispêndio de energia, recupera o trono. Nós o aplaudimos, independentemente da questão moral envolvida. Em relação ao que o conde espera ganhar dos nazistas, quem poderá saber?
- Vamos ouvir a fita.
- Podem é claro, mas confirma apenas as ordens de Estrasburgo para que Madame Courtland se apresentasse no Louvre à uma hora desta tarde.
Washington, D.C. Era pouco mais do que cinco horas da madrugada, mas Wesley Sorenson não conseguia dormir. Lentamente e sem fazer barulho, saiu da cama ao lado da mulher, e atravessou silenciosamente o quarto de dormir principal, em direção a seu quarto de vestir.
- O que está fazendo, Wes? - disse sonolenta sua mulher. - Você foi ao banheiro há menos de meia hora.
- Você me ouviu?
- Na maior parte da noite. O que foi? Está com algum problema de saúde que não me contou?
- Não é de saúde.
- Então não devo perguntar, não é?
- Tem algo errado, Kate, algo que não estou enxergando.
- Isso é difícil de acreditar.
- Por quê? É a história da minha vida, a busca pelas partes que faltam.
- Vai procurá-las no escuro, querido?
- Já é final da manhã em Paris, e não está mais escuro. Volte a dormir.
- Voltarei. Haverá mais silêncio.
Sorenson mergulhou o rosto numa pia de água fria - rotinas do trabalho de campo que voltavam - vestiu seu roupão de banho e desceu até a cozinha. Apertou o botão da cafeteira automática, programada pela empregada depois do jantar da noite anterior, esperou até quase encher uma xícara, serviu-se, e foi arrastando os pés até o seu escritório, além da sala de estar. Sentou-se à sua mesa de quase três metros de comprimento, bebericou café, e abriu uma gaveta para pegar um maço de seus "terminantemente proibidos" cigarros - rotinas de campo que estavam voltando. Inalando agradecido a fumaça apaziguante, pegou o telefone no seu complicado console, verificou se havia grampos, e discou a linha privativa de Moreau em Paris.
- É Wes, Claude - disse Sorenson, depois de ouvir o breve e seco "Oui?" ao telefone.
- Já é manhã, Wesley. O seu intratável Drew Latham acabou de sair junto com a sua bela, ainda que enigmática, Karin de Vries.
- Onde está o enigma?
- Não sei ainda, mas quando descobrir, você também haverá de. Contudo, estamos fazendo progressos. Sua incrível descoberta, Janine Clunitz, está nos abrindo o caminho. Nossa Sonnenkind se comporta previsivelmente dentro de sua imprevisibilidade. - Moreau descreveu as ocorrências relativas à embaixatriz, durante aquela manhã em Paris. - Ela vai se encontrar com Estrasburgo no Louvre no começo desta tarde. É claro que estarão ambos sob vigilância.
- Os Estrasburgo da Alsácia são um caso incrível, se bem me recordo.
- Lembra sim, e o conde deu vários passos mais nessa história.
- Elsass-Lothringen? - perguntou o diretor das Operações Consulares.
- Não, refiro-me a passos adicionais, e mais tarde iremos recapitulá-los, meu amigo. E o embaixador, sua agenda permanece a mesma?
- Sua agenda permanece sim, e teremos sorte se ele não se descontrolar e estrangular a filha da puta.
- Estamos preparados aqui para ele, eu lhe asseguro... Agora, e você, mon ami? O que está acontecendo do seu lado do lago?
- Apenas a mais tremenda confusão que você possa imaginar. Sabe aqueles dois assassinos nazistas... como se chamam mesmo?
- Suponho que esteja falando dos dois que Witkowski mandou para a Base Aérea de Andrews.
- Eles mesmos. Vomitaram sujeira suficiente para derrubar o governo, se fosse divulgada.
- O que está dizendo?
- Eles alegam ter provas diretas e específicas que ligam o vice-presidente e o presidente da Câmara ao movimento neonazista na Alemanha.
- Isso é totalmente ridículo! Onde está a suposta prova?
- A insinuação é que poderiam pegar um telefone, ligar para Berlim, e a documentação seria imediatamente enviada, presumivelmente por fax.
- É um blefe, Wesley, certamente você sabe disso.
- Com certeza, mas um blefe que poderia incluir documentos falsos. O vice-presidente está furioso. Quer uma audiência completa do Senado e já chegou a ponto de arregimentar uma bancada de furiosos senadores e deputados, de ambos os partidos, para refutar as acusações.
- Pode ser uma linha imprudente de ação - disse Moreau - considerando o clima daí de caça às bruxas.
- É isso que tenho de deixar claro para ele. Eu me preocupo até com o impacto que as mais falsas "provas oficiais" poderiam ter sobre a nossa mídia ávida de escândalos. Comunicados governamentais, especialmente comunicados do setor de inteligência, e mais especialmente ainda, comunicados da inteligência alemã, podem ser copiados em segundos. Meu Deus do céu, imagine só, seriam transmitidos como relâmpagos por todas as telas de televisão do país!
- Os acusados seriam condenados antes de serem ouvidos - concordou o chefe do Deuxième Bureau. - Espere um minuto, Wesley... - Moreau hesitou. - Para que tais acontecimentos ocorram, os dois assassinos precisariam da cooperação da hierarquia neonazista, não é?
- Sim. É verdade.
- Impossível! A unidade parisiense dos Blitzkrieger caiu em desgraça! São considerados traidores e não receberiam nenhum tipo de assistência da hierarquia, porque são considerados perigosos demais para o movimento nazista. Encontram-se isolados, abandonados... Quem mais aí sabe sobre seus dois prisioneiros?
- Bem, nós estamos com muito pouca gente aqui, por isso usei fuzileiros e uns dois sujeitos de Knox Talbot para pegá-los em Andrews. E também um local seguro da CIA em Virgínia, para mantê-los presos e escondidos.
- Um local seguro da CIA? Da CIA que está infiltrada?
- Não tive muita escolha, Claude. Nós não temos nenhuma.
- Compreendo. Mesmo assim, aqueles dois sujeitos são um perigo maior para os neos.
- Assim você disse. E?
- Vá averiguar aqueles prisioneiros, Wesley, mas dê uma incerta, não avise nada.
- Por quê?
- Não tenho certeza. Pode dizer que se trata da intuição que ambos desenvolvemos em Istambul.
- Estou a caminho - disse Sorenson, desligando a linha para Paris e apertando a tecla de discagem rápida, para o serviço de transporte das Ops. Cons. - Preciso de um carro na minha casa dentro de meia hora.
Trinta e seis minutos depois, de barba feita e vestido, o diretor das Operações Consulares mandou o motorista levá-lo ao esconderijo na Virgínia. Imediatamente após receber a ordem, o motorista pegou o rádio UHF à prova de interceptação para informar o destino a um oficial da CIA.
- Não se preocupe com isso - disse Sorenson do assento traseiro. - É cedo demais para um comitê de recepção.
- Mas é a rotina.
- Tenha dó, rapaz, o sol mal se levantou.
- Sim, senhor. - O motorista repôs o rádio no seu descanso, sua cara traindo sua avaliação de que o velho era bastante boa praça para um figurão. Meia hora depois alcançaram a serpenteante estrada vicinal aberta na mata e que levava ao portão de concreto, ladeado por uma cerca de arame eletrificada. O portão permaneceu fechado, enquanto saía uma voz de um alto-falante embutido no concreto, abaixo de uma vidraça grossa e à prova de balas.
- Por favor identifique-se e informe sua missão.
- Wesley Sorenson, diretor das Operações Consulares - respondeu o chefe das Ops. Cons., abaixando o vidro do carro. - E minha missão é altamente confidencial.
- Reconheço-o - disse a figura desfocada atrás do vidro escuro. - Mas o senhor não está na lista da manhã.
- Se checar a lista de Entradas Permanentes, descobrirá meu nome.
- Um momento... Motorista, abra a mala do carro. - Houve um estalo interno, seguida de um clarão móvel de uma lanterna na traseira da limusine. - Desculpe, Sr. Diretor - continuou a voz desencarnada - eu deveria ter checado, mas as Permanentes geralmente chegam mais tarde no dia.
- Não é preciso se desculpar - disse Sorenson. - Provavelmente eu deveria ter ligado para o diretor da CIA, mas é um pouquinho cedo demais para ele também.
- Sim, senhor... Motorista, pode deixar o veículo e fechar a mala agora. - O motorista obedeceu, voltou a seu assento atrás do volante, e o pesado portão de aço se abriu. Uns quatrocentos metros depois, entraram no caminho circular que levava à escada de mármore da frente da ex-propriedade do embaixador argentino. A limusine parou, enquanto a grande porta de entrada se abriu, e um major do exército, de meia-idade, atarracado, surgiu na luz da manhã cedo, a dragona no seu uniforme cheio de fitas indicando pertencer ele a um regimento Ranger. Desceu rapidamente os degraus e abriu a porta para Sorenson.
- Major James Duncan, Oficial do dia, Sr. Diretor - anunciou agradavelmente. - Bom dia.
- Bom dia, major - disse o chefe das Ops. Cons., saindo do assento traseiro. - Perdão se não liguei para avisar que vinha tão cedo.
- Estamos acostumados, Sr. Sorenson.
- O portão da frente não estava.
- Não poderia ser diferente. Tiveram uma surpresa maior ainda às três desta madrugada.
- Ah? - A antena do veterano oficial de espionagem detectou um sinal negativo. - Alguma visita inesperada? - perguntou ao subirem os degraus até a porta aberta.
- Não, não realmente. Seu nome foi acrescentado à lista das Entradas Permanentes por volta da meia-noite. Aquela lista é muito longa e ele não gostou da demora; os tipos de agentes secretos da agência podem ser muito suscetíveis. Que diabo, acho que eu também seria, se trabalhasse o dia todo e ainda fosse chamado aqui àquela hora da noite. Quer dizer, isto aqui não é exatamente o Vietnã, com a iminência de um combate.
- Não, mas as emergências sempre existem, não é? - comentou Sorenson, sabendo que era melhor não aprofundar mais nada.
- Não muitas a essa hora - disse o major Duncan, encaminhando o diretor das Ops. Cons. até o balcão da segurança, atrás do qual estava sentada uma oficial feminina de aspecto cansado. - Como podemos lhe ser útil? Se o senhor der a informação à tenente Russell, ela providenciará uma escolta.
- Quero ver os dois prisioneiros da Seção E, isolamento. - A tenente e o major se entreolharam, como se estivessem espantados. - Eu disse algo errado?
- Não, Diretor Sorenson - respondeu a tenente Russell, suas olheiras movendo-se em cima do teclado de um computador, enquanto digitava. - Apenas uma coincidência.
- O que quer dizer?
- Foram exatamente eles que o diretor-adjunto Connally veio ver às três horas desta madrugada - respondeu o major James Duncan.
- Disse por quê?
- Mais ou menos as mesmas palavras que o senhor usou no portão. A reunião era tão confidencial que nosso próprio guarda teve de permanecer fora da Seção E depois de ter aberto a cela.
O sinal era completo.
- Major, leve-me lá imediatamente. Ninguém tinha licença de interrogar aqueles sujeitos, a não ser eu!
- Perdão mas o diretor-adjunto Connally tinha licença total. Foi o que estava escrito claramente numa ordem interagências assinada pelo diretor Talbot - disse a tenente.
- Ponha Talbot no telefone para mim! Se não tiverem seu número particular, eu o darei.
- Alô? - disse a voz gutural, sonolenta, de Knox Talbot no telefone.
- Knox, é Wesley...
- Soltaram alguma bomba em cima de alguém? Sabe que horas são?
- E você sabe quem é um diretor-adjunto Connally?
- Não, não sei, porque não existe.
- E quanto a uma ordem interagências, assinada por você, dando-lhe licença para vir encontrar os neos?
- Nunca existiu essa ordem, de modo que jamais poderia tê-la assinado. Onde está você?
- Onde é que você acha?
- Aqui em Virgínia?
- Só espero que meu próximo telefonema seja menos perturbador, porque se não for, você precisa fazer uma boa limpeza doméstica.
- Os computadores AA?
- Experimente algo menos sofisticado, algo mais humano. - Sorenson bateu com o telefone. - Vamos, major!
Os dois Blitzkrieger estavam nas suas camas, deitados de lado. Quando as portas das celas se abriram estrepitosamente, nenhum deles se mexeu. O diretor das Operações Consulares foi até cada um deles e puxou os cobertores. Os dois sujeitos estavam mortos, seus olhos arregalados no momento da morte, com o sangue ainda escorrendo de suas bocas fechadas, e as nucas destroçadas, sujando a parede.
O som sincopado de um conjunto de jazz vinha flutuando até a sala de jantar particular misturava-se aos ruídos vibrantes do lado de fora, em Bourbon Street, no bairro francês de Nova Orleans.
Em volta da mesa sentavam-se seis homens e três mulheres, todos, com a exceção de um, vestidos com certa formalidade - ternos e gravatas conservadoras, e vestidos sóbrios de negócios, quanto às mulheres. Novamente, exceto um, eram brancos, arrumadinhos, e pareciam ter sido arrancados, quando muito mais novos, de álbuns de retratos das universidades da Ivy League, na época em que as contribuições valiam alguma coisa. Suas idades variavam dos quarenta aos setenta e poucos, e cada um deles possuía uma atmosfera de circunspecta superioridade, como se se encontrassem constantemente na presença de pessoas irritantemente inferiores.
No meio deste grupo haviam dois prefeitos de duas grandes cidades da Costa Leste, três deputados de primeira linha, um proeminente senador, um presidente de uma empresa de computação, e uma mulher elegantíssima, que era a principal porta-voz do Movimento Cristão Pela Ética no Governo. Sentavam-se devidamente eretos nas suas cadeiras, com olhares céticos dirigidos ao sujeito na cabeceira, uma figura grande e troncuda de pele morena, usando um casaco safári branco aberto até o meio do peito e grandes óculos escuros que escondiam seus olhos. Seu nome de batismo era Mario Marchetti; sua alcunha nas fichas do FBI era Don de Pontchartrain. Ele falou.
- Vamos compreender uns aos outros - começou ele, com um voz grave e aveludada, medindo as palavras. - Nós estabelecemos o que os historiadores chamariam de uma convenção, um acordo entre entidades que não concordam necessariamente sobre todas as coisas, mas que encontraram uma agenda comum que permite a sua coexistência. Vocês me compreendem?
Ouviram-se murmúrios afirmativos e leves movimentos de cabeça, até que o senador interrompeu.
- Isso é uma maneira muito complicada de expor a coisa, Sr. Marchetti. Não seria mais fácil dizer simplesmente que ambos queremos alguma coisa, e cada um pode ajudar ao outro?
- Sua história no Senado, senador, não chega exatamente a refletir este modo franco de falar. Mas sim, tem razão. Cada entidade pode dar assistência à outra.
- Já que nunca o vi antes - disse a mulher vestida de finas roupas, da extrema direita cristã - como pode o senhor exatamente nos ajudar? É uma pergunta que acho até meio humilhante na hora de fazê-la.
- Desça da porra do seu pedestal - disse o Don de Pontchartrain baixinho.
- O quê? - A reação em volta da mesa foi mais de silêncio aturdido, do que de raiva, ou de alarme.
- Você me ouviu - continuou Marchetti. - Você veio a mim, eu não saí por aí à sua procura, minha senhora. Trouxe sua alteza aqui para nos dar informações, Sr. Fabricante de Computadores?
Todos os olhares convergiram para o diretor-executivo de uma das mais célebres empresas de computação da América.
- Foi uma decisão meticulosamente pesquisada - respondeu o homem esguio no terno cinza tradicional. - Era crucial que impedíssemos o progresso feito por um executivo meu muito curioso, um preto que empregamos, é claro que por motivos de fachada. Ele começou a questionar nossas duplicatas de exportações para Munique - com destino ao Hausruck - e chegou a ponto de rastrear o cliente, o que naturalmente era complicado. Não podíamos despedi-lo, é claro, por isso voei milhares de quilômetros e vim conhecer o Sr. Marchetti.
- Que fez sua própria pesquisa - interrompeu o Don de Pontchartrain, polidamente, com um sorriso simpático. - Quero dizer, por que sumir com um sujeito preto altamente inteligente com uma porção de letras depois do nome? Não fazia sentido. Por isso, antes de o cavalheiro ser recebido pelos braços de Jesus, mandei meus auxiliares fazerem uma pequena investigação - como arrombar e entrar no seu escritório em casa... Nossa Senhora, Sr. Fabricante de Computadores, ele estava quente atrás do senhor, ou bem próximo disto. Suas anotações, que mantinha trancadas na sua mesa, explicavam tudo. Você estava exportando equipamento muito sofisticado, quase a preço de custo, para pessoas das quais ninguém ouvira falar, e que era recebido por pessoas que ninguém conhecia. Isto foi muito displicente, se não francamente amadorístico. O cavalheiro que mencionamos estava prestes a alertar as autoridades em Washington... Entretanto, nós resolvemos seu problema e você encontrou um parceiro "de várias qualidades", várias qualidades no campo operacional, bem entendido.
- Não percebo a ligação - insistiu a mulher cristã elegante, como se estivesse se dirigindo a um monstruoso sapo.
- Se não percebeu uma vez, minha senhora, a culpa é sua. Duas, é minha. Não volte a fazê-lo.
- Mesmo!
- Por favor, não nos insulte a ambos - prosseguiu calmamente Marchetti. - Nossos amigos na Alemanha não ficaram sabendo o destino das remessas, ponto pra vocês, mas descobriram quem as apanhou.
- Acho que já se falou demais - interrompeu o prefeito de uma grande cidade do nordeste. - Você não tem ideia de como o crime e as minorias estão interligados. São necessárias medidas drásticas.
- Basta! - Pela primeira vez o Don alteou a voz. - Experimentem educação, educação mesmo! Sou um "carcamano", um "mamma mia" sebento. Há algum tempo não podíamos nem nos candidatar a empregos, a não ser para assentar tijolos e cultivar jardins. Em seguida vieram os espertos, os Giannini e os Fermi - herdeiros dos Da Vinci, dos Galileos, e até dos Machiavelli. Porém vocês não nos aceitavam... Não me venha falar de minorias, Sr. Prefeito de Soluções Rápidas, como fazer explodir os guetos. Eu conheço a história, vocês não.
- Onde está isso nos levando? - perguntou outro prefeito frustrado de uma grande cidade da Pensilvânia.
- Vou lhe dizer agora mesmo - disse Marchetti. - Não gosto de vocês e vocês não gostam de mim. Consideram-me um lixo, e acho vocês uns babacas, mas podemos trabalhar juntos.
- Considerando suas lamentáveis explosões - disse outra mulher, pudica, com o cabelo grisalho preso num severo coque - não acho isso viável.
- Deixe-me explicar, cara senhora. - O Don de Pontchartrain inclinou-se sobre a mesa, a abertura do casaco revelando mais ainda seu peito cabeludo, sua voz grave novamente tranquila e aveludada. - Vocês desejam um país e seu governo, isto para mim está ótimo, não poderia me importar menos. O que eu quero são os lucros resultantes do controle do país, do governo. Quid pro quo. Eu os deixo em paz, vocês me deixam em paz. Eu faço algum trabalho sujo para vocês - que já fiz antes e estou preparado para fazer no futuro - e vocês dão enormes contratos do governo para quem eu indicar. É tão simples quanto isso. Tem algum problema?
- Não segundo minha opinião - disse o senador. - Tenho certeza de que precedentes semelhantes existem. Nós devemos nos conciliar para o bem de todos.
- Naturalmente - concordou o mafioso. - Vejam Mussolini e Hitler, Il Duce e o Führer, eles tinham enormes diferenças, mas capitalizaram os lucros globais da guerra. Infelizmente, eram ambos paranoicos, com delírios de invencibilidade. Nós não somos, porque a guerra não está na nossa agenda. Buscamos uma coisa diferente.
- Como descreveria isso, Sr. Marchetti? - perguntou o sujeito mais jovem da mesa, um louro de cabelo curtinho, envergando o blazer de uma célebre universidade de Massachusetts. - Tenho um mestrado em ciência política, e estou completando meu doutorado... um pouco tarde demais, lamento dizer.
- Muito simples, Sr. Acadêmico, e não aquilo que se aprende na escola - respondeu o Don. - Política é influência e política bem-sucedida é poder, e poder político é fundamentalmente dinheiro - o destino dele, e os destinatários. O assim chamado povo, quem paga a conta, não está nem ligando para onde ele vai, porque prefere muito mais assistir a um bom jogo na televisão ou ler um jornaleco comprado no supermercado. Se quiserem saber a verdade, somos uma nação de idiotas... É por isso que vocês babacas talvez consigam conquistá-la.
- Sua linguagem é extremamente ultrajante - acrescentou o jovem doutorando. - Devo lembrar-lhe de que existem senhoras presentes?
- Engraçado, não consigo ver nenhuma. E também, deixe-me lembrar-lhe de que isto aqui não é uma escola de boas maneiras, nem sou algum consultor de etiqueta... O que sou é um fornecedor de últimos recursos. Se precisarem fazer alguma coisa, e se devido às circunstâncias, sentirem que não podem usar seus próprios e extensos recursos, então venham a mim. A iniciativa é realizada, corro os riscos, e nada pode ser rastreado até vocês... como poderia ter sido no caso do nosso Sr. Fabricante de Computadores e seu executivo preto curioso demais. Capisce?
- Entretanto, como o senhor acabou de frisar - disse a terceira mulher, uma senhora idosa, tensa, com olhos negros reluzentes, ampliados por lentes de fundo de garrafa - nós possuímos nossos próprios e extensos recursos. Por que usar os seus?
- Va bene! - exclamou Marchetti, espalhando suas mãos extravagantemente. - Então não usem, e desejo-lhes boa sorte. Eu simplesmente quero que saibam que estou aqui em benefício de vocês, se houver necessidade. Foi por isso que convidei nosso gigante dos computadores - e seu amigo do Congresso - para trazer-lhes aqui, de modo a clarificar o nosso acordo. Nos meus jatos particulares, é claro.
- Seu amigo...? - perguntou o prefeito da Pensilvânia.
- Eu - respondeu ligeiramente constrangido, mas sem ser num tom apologético, o membro da Subcomissão de Inteligência do Congresso. - Ordens retransmitidas pela célula de Berlim. Pode haver um porra-louca na CIA que precisa ser submetido a uma total vigilância e liquidado, se for preciso. Usar algum dos nossos é correr um risco demasiado. O Sr. Marchetti se ocupará da tarefa.
- Então parece que temos um casamento por conveniência... de várias qualidades - disse a mulher de setenta e poucos anos com os olhos ampliados e brilhantes. - Por menor que seja, é conveniente.
- De meu modo inadequado, é o que venho tentando lhe dizer, cara senhora.
- Sim, você o disse muito bem e, como sempre, a ação fala muito mais alto de que as palavras... O senhor conseguiu seu acordo, Sr. Marchetti, e acredito que meus associados hão de concordar comigo quanto ao fato de eu desejar partir daqui o quanto antes.
- As limusines estão lá embaixo à sua espera, do mesmo modo que os Lears no aeroporto particular.
- Os congressistas e eu sairemos pela entrada de serviço e iremos em carros diferentes - disse o senador.
- Tal como chegaram, senhor - concordou o Don de Pontchartrain, levantando-se junto com os demais. - Eu agradeço a todos do fundo de meu coração sicilano. A conferência foi um sucesso, e nosso acordo está em vigor.
Um por um, com vários graus de constrangimento, os nazistas americanos deixaram a ornamentada sala de jantar em Nova Orleans. O Don enfiou a mão debaixo da mesa, desligando um comutador oculto. Interrompeu o funcionamento das câmeras de vídeo móveis, ocultas nas paredes cobertas de veludo. Seu nome, voz e imagem seriam apagados das fitas, o nome de outro, talvez de um inimigo, inserido.
- Babacas - disse Marchetti baixinho consigo mesmo. - Nossa família será a mais rica da América, ou então seremos heróis da República.
28
Os artefatos do Antigo Egito, espetacularmente grandes e delicadamente pequenos, figuram entre as amostras mais interessantes do Louvre. Os focos ocultos de iluminação acentuam aqui, e envolvem em sombras fantasmagóricas ali, como se os séculos passados fossem ressuscitados para o benefício do observador atual. E não obstante, em meio àquela vida, existe a constante lembrança da morte; aqueles homens e mulheres viveram, respiraram, se amaram, procriaram e tiveram de sustentar os filhos, geralmente graças ao dadivoso Nilo. E depois morreram, soberanos e escravos, deixando uma herança tão majestosa quanto triste; sem serem especialmente bons ou maus, dando a impressão de terem simplesmente vivido.
Foi dentro deste etéreo cenário que os dois agentes do Deuxième seguravam as ferramentas de sua profissão, à espera do encontro entre Louis, conde de Estrasburgo, e Janine Courtland, mulher do embaixador americano. Ferramentas estas que consistiam em uma filmadora de 8 mm miniaturizada, com um microfone capaz de captar uma conversa em voz baixa a sete metros de distância, e um gravador de bolso ativado por voz, para encontros cara a cara. O agente que manejava a filmadora, com o fone no ouvido, posicionou-se entre dois sarcófagos enormes, com a câmara apontada, inclinado sobre ela, ocultando-a, como se fosse um erudito a decifrar uma inscrição antiga. Seu colega perambulava pela sala entre uma multidão de espectadores não muito numerosa, esta pouca quantidade devido ao fato de ser hora de almoço em Paris, na época de verão; ambos os homens mantinham contato entre si através de pequenos microfones na lapela.
Janine Courtland chegou primeiro. Olhou nervosamente em volta da sala de exposição, apertando os olhos nas áreas menos iluminadas. Não encontrando ninguém, passou a vagar sem rumo entre as peças expostas, parando a certa altura ao lado do "erudito" que estudava, inclinado, as inscrições num sarcófago, para em seguida ir até um mostruário, recoberto por vidro, contendo peças de ouro. Finalmente André - Louis, conde de Estrasburgo - entrou pela arcada principal, envergando um elegantíssimo traje masculino para a tarde, completado por um plastrão de paisley de seda azul. Ele localizou a embaixatriz, observou lenta e cautelosamente a sala e, uma vez satisfeito, aproximou-se dela. O primeiro agente do Deuxième mirou sua filmadora e ativou o microfone, pondo para rodar o mecanismo quase silencioso. Escutava ao mesmo tempo que olhava através da lente, com o braço esquerdo cobrindo o instrumento.
- O senhor está totalmente enganado, Monsieur André - começou delicadamente Janine Courtland. - Eu falei casualmente e com bastante firmeza com o chefe de segurança da embaixada. Ficou escandalizado quando insinuei que ele me fizera seguir.
- E o que mais poderia ter respondido? - perguntou friamente Estrasburgo.
- Já vivi demais e tenho bastante experiência - de uma vida inteira, aliás - para reconhecer quando uma pessoa mente. Disse-lhe que parara numa loja e que um dos vendedores se aproximara de mim dizendo que meus dois ou três acompanhantes estavam me esperando na calçada, e se deveria convidá-los a entrar e a saírem do sol do meio-dia.
- Uma história bem bolada, madame, eu reconheço - disse de modo mais caloroso o homem chamado André. - Vocês são esplendidamente treinados mesmo.
- O senhor me dá crédito por isto? Eu mesma me dou, obrigada. Todos nós passamos a vida aperfeiçoando nossas habilidades com um único objetivo.
- Admirável - concordou Estrasburgo. - Será que a segurança de sua embaixada sugeriu quem poderiam ser seus "acompanhantes"?
- Levei-o a me contar isso, naturalmente; também faz parte de nosso preparo. Perguntei-lhe se achava possível que os franceses me mantivessem sob vigilância. Sua resposta foi inteligente e provavelmente correta. Respondeu que se acontecesse das autoridades parisienses localizarem a atraente e bem-conhecida mulher do mais poderoso embaixador estrangeiro na França a fazer compras sozinha, poderiam facilmente ordenar uma segurança discreta.
- Imagino que isto seja lógico, a não ser que seu chefe de segurança tenha sido tão bem-treinado quanto a senhora.
- Que bobagem! Agora escute só. Meu marido vai chegar pelo Concorde dentro de poucas horas, e passaremos um dia ou dois dedicados a uma reunião conjugal, porém eu ainda insisto em ir à Alemanha encontrar nossos superiores. Tenho um plano. De acordo com os documentos oficiais, tenho uma tia-avó viva em Stuttgart; está perto dos noventa anos e eu gostaria de vê-la antes que morresse...
- O cenário é perfeito - interrompeu Estrasburgo, fazendo um gesto para que Janine o seguisse para a área mais escura da sala. - O embaixador dificilmente poderá ser contra, por isso, é o que faremos e Bonn certamente haverá de aprovar.
Observando através da lente, o agente do Deuxième apontou a filmadora, seguindo o casal até a área escura no canto. De repente, perdeu a respiração ao perceber que o conde enfiara a mão no bolso de seu casaco, tirando lentamente uma seringa, com a agulha protegida por uma cobertura de plástico. Com sua outra mão escondida nas sombras, Estrasburgo retirou esta proteção, expondo a agulha.
- Impeça-o! - sussurrou rispidamente o agente ao seu microfone na lapela. - Interfira! Meu Deus, ele vai matá-la. Está com uma agulha!
- Monsieur le Comte! - gritou o segundo agente do Deuxième, abrindo passagem entre as pessoas e espantando tanto Estrasburgo quanto a embaixatriz. - Não pude acreditar, mas é o senhor mesmo! Eu era o garotinho que costumava brincar nos pomares de sua família anos atrás. Que bom revê-lo! Agora sou advogado em Paris.
- Sim, sim, é claro - disse o frustrado e zangado Estrasburgo, deixando cair a seringa no chão escuro, durante a confusão do encontro inesperado, e esmagando-a com o pé. - Advogado, que bom... Sinto muito, mas esta ocasião não é propícia. Eu o procurarei. - Com essas palavras, Louis, conde de Estrasburgo, recuou abrindo caminho entre as pessoas e deixou a sala de exposição.
- Perdoe a interrupção, madame! - disse o segundo agente do Deuxième, com um olhar de desculpas, como se tivesse acabado de atrapalhar desajeitadamente um encontro romântico.
- Não tem importância - gaguejou Janine Courtland, virando-se e se afastando depressa.
Passava das cinco horas, quando Latham e Karin de Vries voltaram uma segunda vez do Deuxième Bureau. Haviam sido convocados por Moreau depois das fitas do Louvre, tanto as de vídeo quanto as de áudio foram copiadas e preparadas para serem examinadas. Seus seguranças, Monsieur Frick e Monsieur Frack, vinham atrás em elevadores separados, com cinco minutos de intervalo, para terem certeza de que nenhum estranho no saguão demonstrasse qualquer interesse indevido nos funcionários belga e americano da embaixada.
- O que há entre vocês dois? - perguntou Drew enquanto percorriam o corredor do Normandie até a suíte deles.
- De que está falando?
- De você e Moreau. De manhã estavam como dois velhos amigos, colados um no outro. E durante o resto do dia mal se falaram.
- Não tive consciência disto. Se essa foi a impressão dada, a culpa foi minha. Estava tremendamente interessada em tudo que aconteceu. A operação do Louvre foi brilhante, não foi?
- Foi esperta e tudo fluiu bem, especialmente o aborto da ação de Estrasburgo. Mas também o Deuxième tem muita quilometragem rodada.
- Aqueles dois agentes tiveram uma bela reação, não acha?
- Seria burrice não achar. - Latham aproximou-se da porta da suíte, levantou a mão para que ambos interrompessem o passo e tirou uma caixa de fósforos do bolso.
- Pensei que você estivesse reduzindo drasticamente os cigarros. Será que não pode esperar que entremos antes de acender um?
- Estou reduzindo mesmo, mas isto não tem nada a ver com fumar. - Drew acendeu um fósforo e mexeu com ele aceso em volta da fechadura da porta. Houve uma pequenina e súbita chama, rapidamente extinta. - Está ótimo - disse Latham, enfiando sua chave. - Não tivemos intrusos.
- O quê?
- Isso foi um fio de seu cabelo verdadeiro, e não da peruca.
- O quê?
- Achei-o na cama.
- Você se importaria...
- É muito simples e praticamente à prova de embustes. - Latham abriu a porta, deixando Karin passar; seguiu-a e fechou a porta. - Foi Harry quem me ensinou esse aí - prosseguiu ele. - Um fio de cabelo, especialmente de cabelo escuro, é praticamente invisível a olho nu. Você enfia um deles na fechadura, deixando um pouco para fora, e se alguém entrar o fio desaparece. O seu fio de cabelo ainda estava onde o deixei, portanto ninguém entrou desde a hora em que saímos daqui.
- Estou impressionada.
- Com Harry. Eu também ficava. - Drew despiu rapidamente o paletó, dependurou-o numa cadeira e virou-se para de Vries. - Está bem, madame, o que anda acontecendo?
- Não estou te entendendo mesmo.
- Aconteceu alguma coisa entre Claude e você e eu gostaria de saber o que foi. A única vez em que esteve a sós com ele foi da primeira vez que ele veio aqui cedo de manhã para nos impor sua lei e eu saí para me vestir.
- Ah, isso - disse Karin com naturalidade, mas com um olhar nada natural. - Creio que exagerei... que desafiei sua autoridade, por assim dizer.
- Desafiou sua autoridade...?
- Sim, disse-lhe que ele não tinha direito de impor aquelas restrições a um agente das Operações Consulares americanas. Respondeu que tinha todo o direito de fazer aquilo que achava melhor fora da embaixada, e eu retruquei, como se sentiria ele se o Deuxième ou o Service d’Etranger fossem informados que não teriam liberdade de movimentos em Washington, e então ele disse...
- Está bem, está bem - interrompeu Latham. - Compreendi a cena.
- Pelo amor de Deus, Drew, eu agia em seu benefício!
- Está bem, reconheço. Vi como ele ficou zangado quando eu o encostei na parede. Os franceses ficam realmente zangadinhos quando se questiona sua toda-poderosa autoridade.
- Desconfio que qualquer um que esteja em uma posição de responsabilidade, sejam eles franceses, alemães, ingleses ou americanos, não gosta quando sua autoridade é questionada.
- E os belgas, ou são flandrenses? Eu jamais acertarei qual dos dois.
- Não, somos civilizados demais, damos ouvidos à razão - respondeu de Vries sorrindo. Ambos riram levemente; a rusga passara. - Pedirei desculpas a Claude de manhã e explicarei que estava simplesmente estressada... Diga-me, Drew, você realmente acha que Estrasburgo iria matar Janine com aquela agulha?
- Claro. Seu anonimato fora destruído, uma Sonnenkind desmascarada, os neos não têm alternativa. E isto certamente fará com que o trabalho de Moreau se torne mais difícil. Ele agora não apenas tem de prosseguir vigiando-a, como estar preparado para um ataque frontal à vida dela. O que a preocupa agora? Você concordou conosco há uma hora.
- Não sei. Tudo parece tão esquisito. O Louvre, a multidão de turistas. Desculpe, estou apenas exausta.
- Está me sinalizando qualquer coisa? Devo mandar comprar meio quilo de cantárida?
- Eu disse exausta, e não fora de mim. - Eles se abraçaram e se beijaram, longa e arduamente. O telefone tocou. - Acredito piamente - disse Karin - que o telefone é um inimigo nosso natural.
- Vou arrebentar seus fios da parede.
- Não vai, não. Vá atendê-lo.
- Esta mulher foi educada pela Inquisição. - Latham andou até a mesa e pegou o telefone. - Sim?
- Sou eu - disse Moreau. - Wesley ligou para você?
- Não, deveria ter ligado?
- Ligará, mas neste instante anda tremendamente preocupado, e nosso amigo Witkowski está quase prestes a voar até Washington e destruir pessoalmente as instalações da CIA em Langley, Virgínia.
- Bem, Stanley era do G-2 e nunca morreu de amores pela CIA. O que aconteceu?
- Os dois Blitzkrieger que o coronel mandou para Washington sob o maior esquema de segurança foram encontrados mortos no esconderijo, baleados na cabeça.
- Que merda! No esconderijo da CIA?
- Como Wesley me disse, "Onde estava você, James Jesus Angleton, quando poderia ter sido útil?" Estão mostrando fotos de cada um dos funcionários de cada seção da CIA a todo mundo que estava presente naquela casa em Virgínia.
- Não vai lhes adiantar nada. Eu, por exemplo, estou com os cabelos louros e óculos, provisoriamente, e só isso mostra como essa tática pode ser neutralizada. Diga-lhes para procurar alguém nos baixo e médio escalões, que já tenha brincado com teatro universitário ou comunitário.
- Outro Ames?
- De certo não um Jean-Pierre Villier. Algum amador, um idiota de cabeça grande e que recebe propinas ainda maiores. Alguém que teria acesso a material confidencial.
- Diga você isto a Wesley, eu já tenho muito com que me preocupar. O embaixador Courtland estará de volta dentro de meia hora, e preciso manter sua mulher viva.
- Qual o problema? Ela estará num veículo blindado da embaixada.
- Tal como você, quando quase foi morto naquela noite. Au revoir. - A linha ficou muda.
- O que foi? - perguntou Karin.
- Os dois neos que Stanley mandou para Washington foram mortos à bala no esconderijo da CIA! Veja só!
- Você disse na noite passada - falou de Vries baixinho. - Eles se encontram por todo canto e nós não conseguimos vê-los... O que faz com que as pessoas sigam suas ordens? Os assassinatos, as traições, é tudo tão maluco. Por quê?
- Os especialistas dizem que existem três tipos de motivação. O primeiro é o dinheiro, muito dinheiro, bem além das circunstâncias normais, e neste grupo se enquadram os jogadores, os que amam o luxo e os exibicionistas psicóticos. Em seguida há os fanáticos que se identificam com algum movimento fanático que os faz se sentirem superiores, já que o movimento é absoluto e desqualifica todo mundo que não faz parte dele - como no caso de uma raça superior. O terceiro, e bastante estranho, é o que os analistas consideram mais perigoso. São os descontentes que se sentem convencidos de terem sido traídos pelo sistema, e que seus talentos não tiveram o reconhecimento merecido.
- Por que são os mais perigosos?
- Porque se tornam seres rotineiros, sentando-se durante anos às suas mesas, desempenhando seus trabalhos sem importância de maneira suficientemente adequada para não serem despedidos.
- Se não são importantes, por que são perigosos?
- Porque aprendem o próprio sistema que desprezam. Onde estão os segredos, como ter acesso a eles, ou mesmo como interceptá-los enquanto vão de uma seção a outra. Veja só, ninguém presta muita atenção a esses tipos sem importância, eles ficam simplesmente ali, lendo relatórios burocráticos chatos ou pesquisando assuntos tão confidenciais quanto um catálogo telefônico. Se eles se dedicassem assiduamente a seu trabalho, como fazem em relação à análise do sistema, alguns poderiam progredir mesmo, embora não muitos. Os psicólogos dizem que eles são geralmente preguiçosos, como estudantes que preferem entrar num exame com papeletas de cola enfiadas em suas mangas, em vez de se preparar para ele.
- "Assiduamente?" Você está começando a se parecer com Harry. - Qualquer dia desses você começa a deitar falação sobre a terza rima da Divina Comédia de Dante.
- Como os entregadores de pizza do Brooklin, certo?
- Você consegue ser realmente adorável, sabia disto?
Houve uma batida na porta da suíte do hotel.
- Agora quem diabo poderia ser? - disse Latham atravessando a sala. - Sim, o que é?
- O Deuxième - respondeu a voz de Monsieur Frack.
- Ah, está bem. - Drew abriu a porta, vendo-se de repente diante de uma arma apontada para sua cabeça. Ele deu um golpe com a mão para cima, chutando simultaneamente a virilha do agente. O homem caiu para trás no corredor; Drew pulou em cima dele, arrancando-lhe a arma da mão, enquanto Monsieur Frick desceu correndo o corredor a gritar.
- Pare, monsieur! Por favor, pare! Foi só um exercício.
- O quê? - berrou Latham, prestes a cobrir de coronhadas seu quase-assassino, que segurava a virilha em grande agonia.
- Se monsieur fizer o favor de ouvir - disse Frack tossindo, deitado no chão. - Nunca deve abrir a porta até ter certeza de que é um de nós!
- Você disse que era do Deuxième! - exclamou Drew, levantando-se. - Quantos Deuxièmes existem aqui em cima?
- Esta é a questão - disse Frick olhando com pena para seu colega que se contorcia. - Monsieur le Directeur deu-lhe uma lista de códigos de identificação que são mudados a cada duas horas. O senhor devia ter perguntado pelo código do atual período.
- Códigos? Que códigos?
- Você nunca chegou a olhar para eles, querido - respondeu Karin, de pé no vão da porta e segurando um papel. - Deu-os para mim e disse que os leria mais tarde.
- Ah...?
- O senhor jamais deve presumir que é um de nós até sermos identificados! - gritou o agente prostrado, constrangido pelo surgimento de de Vries, e removendo temporariamente a mão da região afetada, mas só temporariamente.
- Pelo amor de Deus, entrem todos vocês - disse Karin. - O mínimo que pode fazer, Monsieur Latham, é oferecer um drinque a nossos amigos.
- Claro - concordou Drew, ajudando seu pretenso atacante a se levantar, enquanto dois hóspedes do hotel surgiam, saindo de um quarto no final do corredor. Ao vê-los, Latham acrescentou com suficiente clareza para que fosse ouvido. - Pobre sujeito! Deve ter sido seus dois últimos drinques.
Dentro do quarto, com a porta fechada, o agente atingido se jogou no divã.
- O senhor é très rapide, Monsieur Lat’am - disse ele, recuperando sua voz. - E muito, muito forte.
- Se estivéssemos em cima do gelo, você já teria virado picadinho - disse Drew sem fôlego, atirando-se no divã ao lado de sua vítima.
- Gelo...?
- É difícil traduzir - explicou rapidamente Karin, de pé junto ao pequeno bar. - O que ele quer dizer é, você quer seu uísque com gelo?
- Oui, merci. Mas mais uísque do que gelo, s’il vous plaît.
- Naturellement.
O embaixador Daniel Courtland, seguindo ordens do governo da França, desembarcou escoltado do Concorde por uma rampa na parte da frente, antes de a aeronave chegar a seu ponto final. Os motores a jato desacelerados eram ensurdecedores, enquanto Courtland, ladeado por um pelotão de escolta de fuzileiros, era levado para a limusine da embaixada americana, que o esperava na pista. Ele armou-se para os minutos que se seguiriam, sabendo que seriam os mais difíceis de sua vida. Ser abraçado pelo inimigo radical, um inimigo treinado desde a infância para enganar alguém como ele mesmo, era quase tão ruim quanto perder a mulher que ele amava.
A porta da limusine lhe foi aberta e ele caiu nos braços de sua adorada e radical inimiga.
- Foram só três dias, mas senti tanta falta! - exclamou Janine Clunitz Courtland.
- E eu de você, querida. Preciso compensá-la disto, compensar a nós dois.
- Precisa, precisa! O fato de que você estava a milhares de quilômetros de distância fez-me sentir mal, positivamente mal!
- Agora passou, Janine, mas você precisa se acostumar às exigências de Washington. Sou obrigado a ir onde precisam de mim. - Beijaram-se violenta, selvagemente, e Courtland podia sentir o veneno na sua boca.
- Então você precisa me levar contigo. Eu te amo tanto!
- Nós daremos um jeito... E agora, por favor, querida, não vamos constranger os dois fuzileiros na frente, não é?
- Ah, isso seria bem possível. Poderia arrancar as suas calças e fazer coisas maravilhosas contigo.
- Mais tarde, querida, mais tarde. Lembre-se, eu sou o embaixador na França.
- E eu uma das maiores autoridades em informática, e por isso digo: que se danem! - A Dra. Janine Courtland agarrou a virilha murcha do marido.
A limusine correu pela avenue Gabriel até a entrada principal da embaixada; era o caminho mais rápido até os elevadores que os levariam a seus aposentos. O grande veículo parou, enquanto mais dois fuzileiros se adiantaram para ajudar o embaixador e a embaixatriz.
De repente, parecendo terem surgido do nada, três carros comuns sem placa, com os motores roncando, vieram se encostar no meio-fio, cercando a limusine, enquanto Courtland e sua mulher caminhavam na calçada. As portas se abriram, e figuras com máscaras de meias pretas sobre as cabeças, saltaram para fora, com suas armas automáticas disparando em fogo rápido, espalhando suas mortíferas balas para todo canto. Quase que simultaneamente, surgiram disparos adicionais de dois automóveis que estavam obviamente seguindo o carro da embaixada. A multidão na Gabriel corria em busca de abrigo. Quatro terroristas mascarados caíram; um fuzileiro despencou, apertando a barriga; o embaixador Courtland mergulhou na calçada, com uma mão agarrando a perna direita, e outra seu ombro. E Janine Clunitz, a Sonnenkind, jazia morta, com o cérebro despedaçado e seu peito minando sangue. Uma parte dos assassinos mascarados - ninguém sabe quantos - fugiu correndo, jogando fora suas máscaras e se misturando aos transeuntes vespertinos de Paris.
- Merde, merde, merde! - berrava Claude Moreau, surgindo de trás de um dos veículos do Deuxième que viera fazendo a segurança dos americanos. - Fizemos tudo e não fizemos nada!... Levem todos os corpos para dentro e não digam nada a ninguém. Estou desmoralizado e merecidamente!... Acuda o embaixador, ele está vivo. Rápido!
Entre os americanos que correram de dentro da embaixada para prestar ajuda, estava Stanley Witkowski. Ele correu até Moreau, agarrou-o pelos ombros enquanto as sirenes da polícia ficavam mais altas, e gritou.
- Escute só, francês! Vai dizer e fazer exatamente o que eu lhe disser, ou declaro guerra a você e à CIA! Ficou claro?
- Stanley - disse o chefe do Deuxième, totalmente desanimado. - Fracassei miseravelmente. Faça o que quiser.
- Não, não fracassou não, seu idiota de merda, porque jamais poderia ter controlado isto! Esses porras de assassinos estavam prontos para morrer esta noite, e quatro deles morreram! Ninguém consegue controlar fanáticos como eles. Você não pode, nós não podemos, ninguém pode, porque eles não estão ligando a mínima para a própria vida. Não podemos barrar seu empenho fanático, mas podemos pensar melhor do que eles, e você, de todas as pessoas, sabe isto!
- O que está dizendo, coronel?
- Entre comigo, e eu queimarei sua bunda apertada com um maçarico se recusar a fazer o que eu quero que faça.
- Posso perguntar, em que terreno?
- Claro que pode. Você vai mentir de cara lavada para seu governo, para a imprensa, para qualquer filho da puta que queira te escutar.
- Assim, cavo mais fundo minha sepultura?
- Não, é sua única maneira de sair dela.
29
O Dr. Hans Traupman manobrou sua pequena lancha até atracar no modesto cais do pequeno chalé à beira do rio. Não era necessário nenhuma iluminação, já que a lua de verão brilhava forte, prateando a água. E não havia ajudantes para auxiliar Traupman a amarrar sua embarcação; seria uma despesa extraordinária com a qual o ministro luterano, expulso da ordem, mal poderia arcar. Günter Jäger, como sabiam seus poucos amigos no Bundestag, andava com seus marcos alemães contadinhos; diziam que pagava um aluguel mínimo pela antiga casa de barcos agora convertida em chalé à beira do Reno. A antiga sede, que ficava além, fora demolida, antecipando a construção de uma nova mansão em futuro próximo. Uma nova mansão seria construída mesmo, embora fosse mais do que uma mansão, na realidade uma magnífica fortaleza, equipada com toda a tecnologia moderna para assegurar o isolamento e a segurança do novo Führer. Este momento não tardaria, quando a Brüderschaft controlasse o Bundestag. As montanhas de Berchtesgaden seriam substituídas pelas águas do magnífico Reno, já que Günter Jäger preferia o rio sempre a fluir aos Alpes estáticos e cobertos de neve.
Günter Jäger... Adolf Hitler! Heil Hitler... Heil Jäger! Até mesmo a divisão silábica convinha ao homem. Cada vez mais, Jäger assumia as características menos públicas de seu antecessor: a cadeia de comando absoluta; o pequeno e seleto número de auxiliares pessoais e através de quem eram marcados todos os compromissos; seu desapreço pelo contato físico, a não ser por abruptos apertos de mão; seu afeto aparentemente sincero por crianças de tenra idade, mas não bebês, e, finalmente, sua assexualidade. As mulheres podiam ser admiradas esteticamente, mas não de maneira lasciva; até mesmo comentários picantes eram impensáveis na sua presença. Muitos creditavam este traço puritano a suas antigas atribuições eclesiásticas, com o que Traupman, médico do cérebro, não concordava. Pelo contrário, suspeitava que a explicação fosse outra, muito mais obscura. Ao observar Jäger na presença de mulheres, acreditava poder discernir breves lampejos de ódio nos olhos do novo Führer diante de qualquer mulher vestida de modo muito provocante, ou usando obviamente seus encantos físicos para seduzir os homens. Não, Günter Jäger não era motivado pela pureza, e sim - como seu antecessor - patologicamente obcecado por um grande temor às mulheres, pelo alto grau de destruição que poderiam infligir com seus truques femininos. Porém o cirurgião decidiu sabiamente guardar este pensamento para si. A nova Alemanha representava tudo, e se fosse preciso uma figura carismática, com um defeito ou outro, para torná-la realidade, que assim fosse.
O médico pedira uma audiência particular naquela noite, pois havia ocorrências no campo de batalha das quais Jäger talvez não tivesse ciência. Seus auxiliares eram tremendamente leais, mas nenhum deles gostava de ser o porta-voz de más notícias. Traupman, entretanto, sabia ter chão firme sob os pés, já que fora praticamente ele quem arrancara o carismático pregador de sua irada igreja, empurrando-o para o primeiro plano da Irmandade. No frigir dos ovos, se havia alguém capaz de reverter este quadro, seria o célebre cirurgião.
Ele amarrou sua embarcação e subiu dolorosa e desajeitadamente no embarcadouro, onde foi recebido por um guarda troncudo, saído das sombras de uma árvore às margens do rio.
- Venha, Herr Doktor - chamou o sujeito. - O Führer o espera.
- Na casa, é claro?
- Não, senhor. No jardim. Siga-me, por favor.
- No jardim? Um canteiro de couves virou agora jardim?
- Eu mesmo plantei uma porção de flores e nossos empregados limparam a margem do rio. Calçaram com pedras onde antes só havia juncos e detritos.
- Você não exagerou - disse Traupman, ao se aproximarem de uma pequena área limpa à margem do Reno, onde duas tochas pendiam dos galhos de uma árvore, e cujos pavios estavam sendo naquele instante acendidos por outro auxiliar. Em volta do pequeno pátio calçado de pedra havia várias peças de mobiliário de jardim, três cadeiras de espaldar reto e uma mesa branca de ferro batido. Era um recanto pastoril destinado à meditação pessoal e aos encontros secretos. E sentado na cadeira mais distante, com seus cabelos louros absorvendo os reflexos irregulares das tochas, jazia Günter Jäger, o novo Führer. Diante de seu velho amigo, levantou-se de braços estendidos, baixando imediatamente o esquerdo e esticando a mão direita.
- Que bom que tenha vindo, Hans.
- Eu solicitei a audiência, Günter.
- Bobagem. Você não precisa solicitar nada de mim, basta dizer o que deseja. Sente-se, sente-se. Posso lhe oferecer alguma coisa, um drinque talvez?
- Não, obrigado. Quero voltar a Nuremberg o quanto antes. As mensagens não grampeadas não deixam que a campainha de meu telefone pare de tocar.
- Não grampeadas?... Ah, sim, os codificadores.
- Exatamente. Tal como você tem.
- Eu tenho?
- Talvez funcionando em canais diferentes, mas tudo que eu souber você também deve saber.
- Isto posto, o que há de tão urgente, caro doutor?
- Até que ponto está informado sobre os acontecimentos recentes em Paris?
- Tudo, espero.
- Gerhardt Kroeger?
- Morto a tiros pelos americanos naquela confusão do hotel Intercontinental. Bem-feito, ele jamais deveria ter ido a Paris.
- Acreditava ter de completar uma missão.
- Que missão?
- A morte de Harry Latham, o agente da CIA que se infiltrou no vale e foi descoberto por Kroeger.
- Nós o acharemos, isso não importa - disse Jäger. - O vale não existe mais.
- Mas você está convencido de que Gerhardt Kroeger morreu.
- Foi o que disse o relatório enviado por nossa embaixada ao Serviço de Informações de Bonn. Nesses círculos, isto é coisa bem sabida, embora eles o estejam abafando porque não querem nos dar a publicidade.
- Relatório que, se não me engano, teve origem na embaixada americana.
- Presumivelmente. Sabiam que Gerhardt Kroeger era um dos nossos... como poderiam deixar de saber? O imbecil começou uma fuzilaria louca naquele lugar, acreditando poder matar Latham. No entanto, os americanos não receberam nenhuma informação. Ele morreu a caminho da embaixada americana.
- Sei - disse Hans Traupman, remexendo-se na cadeira e olhando apenas esporadicamente para Günter Jäger, como se lhe fosse doloroso encontrar o olhar do novo Führer. - E nossa Sonnenkind, Janine Clunitz, mulher do embaixador americano?
- Nem chegamos a precisar de nossos agentes infiltrados para sabermos o que aconteceu, Hans. Apareceu em todos os jornais da Europa, América e o resto do mundo, confirmado por testemunhas. Ela escapou por pouco de uma emboscada organizada por extremistas israelenses para matar Courtland, por causa do que chamam "pró-islamização" do Departamento de Estado. Ficou ferida e, infelizmente, nossa Sonnenkind Clunitz sobreviveu. Morrerá dentro de um dia ou dois, foi-me assegurado.
- Finalmente, Günter... mein Führer...
- Já lhe disse antes, Hans, não é preciso isto entre nós.
- Exijo isto de mim mesmo. Você é muito mais do que o gângster de Munique jamais foi. É altamente educado, historicamente fundamentado e posicionado ideologicamente, não só em relação ao que está acontecendo na Alemanha, mas em todos os países. Os malnascidos, os indignos e os medíocres estão assumindo posições de mando nos governos, em todo canto, e você compreende que esta tendência destrutiva precisa ser barrada. Você pode fazer com que isto se torne realidade... Mein Führer.
- Obrigado, Hans, mas você estava dizendo "Finalmente"... Finalmente o quê?
- Este homem Latham, este agente supersecreto da CIA que se infiltrou no vale e foi desmascarado por Gerhardt Kroeger...
- O que tem ele? - interrompeu Jäger.
- Ainda está vivo. É melhor do que pensávamos.
- É apenas um homem, Hans. Carne, sangue e um músculo cardíaco que pode ser parado, varado por uma bala ou por uma faca. Autorizei duas equipes de Blitzkrieger a voarem a Paris para fazer o serviço. Não falharão. Não ousarão falhar.
- E a mulher com quem ele vive?
- Aquela vagabunda da de Vries? - perguntou o novo Führer. - Precisa ser morta junto com ele, ou de preferência antes dele. Sua morte repentina o desequilibrará, o tornará mais vulnerável; cometerá mais erros... Foi isso tudo que veio me contar, Hans?
- Não, Günter - disse Traupman, levantando-se da cadeira e andando para lá e para cá entre a luz e as sombras das duas tochas. - Vim lhe dizer a verdade, tal como pude discerni-la a partir de minhas próprias fontes.
- Suas próprias fontes?
- Que não são diferentes das suas, eu lhe asseguro, mas sou um velho criado entre as engrenagens da cirurgia e acostumado a ver com frequência os clientes se enganarem quanto a seus sintomas, amedrontados pelos meus diagnósticos, quando totalmente francos. No final, você aprende a detectar um certo grau de autoengano.
- Por favor, seja mais claro.
- Serei, e fundamentarei o que disser com minhas próprias pesquisas... Gerhardt Kroeger não morreu. Suspeito que esteja vivo e mantido prisioneiro na embaixada americana.
- O quê? - Jäger propulsionou-se num átimo para a borda de sua cadeira.
- Mandei um dos nossos ao hotel Intercontinental, com identificação oficial francesa, é claro, interrogar os funcionários sobreviventes. Todos eles falam inglês e afirmaram ter ouvido claramente dois guardas no balcão gritarem que o maníaco fora atingido nas pernas, mas que ainda estava vivo.
- Meu Deus!
- Em seguida, mandei nosso pessoal entrevistar as chamadas testemunhas do ataque à embaixada americana, em que o embaixador saiu ferido e sua mulher supostamente sobreviveu. Essas testemunhas não podiam compreender os relatos subsequentes na imprensa e na televisão. Disseram à nossa gente que jorrava sangue da parte superior do peito e do rosto da mulher... "Como poderia ela ter sobrevivido?" perguntaram.
- Então nosso pessoal cumpriu a tarefa. Ela se foi.
- Mas por que eles o abafaram? Por quê?
- Aquele desgraçado do Latham, é o motivo! - gritou Jäger, o ódio retornando a seus olhos gélidos. - Está tentando nos enganar, nos atrair para alguma armadilha.
- Você o conhece?
- Claro que não. Conheço homens como ele. Todos corrompidos pelas vagabundas.
- Conhece ela?
- Deus do céu, não. Mas desde as legiões dos faraós que as vagabundas corrompiam o exército. Seguiam em suas caravanas cobertas, roubando o vigor dos soldados por alguns minutos de prazer pecaminoso! Putas!
- Não importa o quão acertado possa ser este juízo, Günter, e não o contesto, mas ele não é muito relevante ao que estou dizendo.
- Então o que está dizendo, Hans? Você me diz que as coisas não são como foram relatadas e eu respondo que talvez tenha razão, que nossos inimigos estão tentando nos prender em armadilhas, tal como fazemos com eles. Não há nada de novo nisso - a não ser que estamos ganhando. Analise as circunstâncias, meu amigo. Os americanos, os franceses e os ingleses nos acham em todo canto e em lugar nenhum. Em Washington, senadores e deputados são considerados suspeitos; em Paris temos vinte e sete membros da Câmara dos Deputados legislando em nosso benefício, e o chefe do Deuxième no nosso bolso. Londres é ridícula; descobrem um conselheiro ineficaz do ministério das Relações Exteriores e esquecem o auxiliar direto do ministro, que está tão furioso com a imigração dos negros que poderia ter escrito o Mein Kampf. - Jäger interrompeu-se por um instante, enquanto se levantava da cadeira e ficava de pé no pátio calçado de pedras, contemplando por cima de uma cerca viva florida as águas tranquilizadoras do Reno. - E no entanto, apesar disso tudo, nosso trabalho ainda é mais impressionante nas áreas menos importantes. Um político americano disse certa vez "Toda política é local", e ele tinha razão. Adolf Hitler compreendeu isto; foi por isso que ganhou o Reichstag. Você joga uma raça contra a outra, um grupo étnico contra o outro, uma classe econômica contra a outra, aparentemente sugada pela primeira, você provoca um caos, onde existe um vácuo. Ele fez isso de uma cidade a outra - Munique, Stuttgart, Nuremberg, Mannheim; os membros das tropas espalhando boatos por todos os lugares, semeando o descontentamento. Por fim, ele deu uma arrancada e tomou a Berlim política; não poderia tê-lo feito sem o apoio errático porém caloroso das regiões circunvizinhas.
- Bravo, Günter - gritou Traupman, aplaudindo. - Você percebe o panorama com tanta clareza, com tanta lucidez.
- Então o que lhe preocupa tanto?
- Coisas que você talvez não saiba...
- Tais como?
- Dois Blitzkrieger foram apanhados vivos em Paris e levados de avião para Washington.
- Não me contaram isso - disse Jäger, suas palavras parecendo talhadas em gelo.
- É verdade, mas não tem mais importância agora. Foram mortos a tiros num esconderijo na Virgínia pelo nosso Homem Três da CIA.
- Ele é um idiota, um burocrata! Damos a ele vinte mil dólares americanos por ano para nos contar o que os outros departamentos andam investigando.
- Agora quer duzentos mil por ter cumprido uma ordem que ele acha que só deveria ter lhe sido dada se estivesse num escalão mais alto.
- Mate-o!
- Isso não é uma boa ideia, Günter. Não até soubermos a quem ele pode ter falado a nosso respeito. Como frisou você, ele é um idiota, é só garganta.
- Aquele porco! - rosnou Jäger, desviando-se do brilho da tocha, com o rosto na sombra.
- Um porco que nos prestou um serviço considerável - ajuntou o médico. - Vamos conviver um pouco mais com ele, até promovê-lo. Chegará a época em que lhe daremos cartas diferentes e ele se tornará um escravo agradecido.
- Ach, meu caro Hans, você me faz tanto bem. Sua mente tem a firmeza de sua mão de cirurgião. Se meu antecessor tivesse mais homens como você à sua volta, ainda estaria ditando ordens ao Parlamento britânico.
- É neste espírito que espero que você me escute agora, Günter. - Traupman andou vários passos pelo pátio; os dois homens se encontravam cara a cara nas sombras cambiantes.
- Quando foi que não lhe dei ouvidos, caro amigo e mentor? Você é meu Albert Speer, com a mente precisa do arquiteto substituída pela mente analítica e aguda do cirurgião. Hitler cometeu o erro de ter finalmente desprezado Speer em benefício dos Goerings, Bormans e semelhantes. Eu jamais cometerei esse erro. O que é, Hans?
- Estava certo quando disse que vencíamos a guerra de nervos contra os nossos inimigos. Foi também exato quando afirmou que em determinados lugares, especialmente nos Estados Unidos, nossas Sonnenkinder fizeram maravilhas, criando divisões e descontentamento.
- Fiquei impressionado com meus próprios julgamentos - interrompeu Jäger, sorrindo.
- Essa é a questão, Günter, eles são apenas julgamentos baseados na informação corrente... E no entanto, a situação poderia mudar, e mudar rapidamente. Este exato momento poderia ser o auge de nosso êxito estratégico.
- Por que o auge?
- Porque estão preparando armadilhas demais para nós sobre as quais não podemos saber. Talvez jamais cheguemos a uma posição tão vantajosa quanto agora.
- Então o que você está na realidade dizendo é "Invada a Inglaterra agora, mein Führer, não espere" - interrompeu mais uma vez Jäger.
- Raio N’Água, é claro - disse Traupman. - Precisa ser acelerada. Seis planadores ME 323 Gigant foram recuperados e estão sofrendo readaptações. Temos de atacar o mais cedo possível, e provocar um pânico cada vez maior. Os reservatórios d’água de Washington, Londres e Paris precisam ser envenenados assim que nosso pessoal da aviação estiver treinado. Depois que os governos estiverem paralisados, nossa gente estará preparada no mundo todo para ocupar posições influentes, até de poder.
A mulher na maca foi retirada da embaixada americana em plena vista dos passantes na avenue Gabriel. Seu corpo estava coberto por um lençol e uma coberta leve de algodão; seu cabelo escuro e comprido penteado para trás por cima de seu pequeno travesseiro branco, e seu rosto oculto por uma máscara de oxigênio, por baixo de uma máscara de seda cinza, que protegia seus olhos do sol parisiense. Os boatos se espalharam rapidamente, auxiliados por vários adidos da embaixada que circulavam entre a multidão que se agrupava, respondendo às perguntas em voz baixa.
- É a embaixatriz - disse uma mulher em francês. - Acabei de ouvir de um americano. Pobre mulher, ela ficou ferida ontem à noite durante aquele horrível tiroteio.
- O crime aqui está ficando intolerável - disse um homem esguio de óculos. - A gente devia trazer de volta a guilhotina!
- Para onde a estão levando? - perguntou outra mulher, estremecendo de pena.
- O Hospital Hertford em Levallois-Perret.
- Mesmo? É chamado de hospital inglês, não é?
- Dizem que o equipamento deles é o mais moderno para o tipo de ferimentos que ela sofreu.
- Quem disse isso? - interrompeu um francês indignado.
- Aquele rapaz robusto ali... onde foi parar ele? Bem, ele estava lá e foi isso que disse.
- Até que ponto os ferimentos dela são graves? - perguntou uma adolescente, agarrando com o braço direito um estudante jovem, cuja mochila estava cheia de livros.
- Ouvi um dos americanos dizer que os ferimentos eram muito dolorosos, mas não mortais - respondeu mais uma francesa, secretária de um pequeno empresário, carregando um grosso envelope pardo sob o braço. - Um pulmão perfurado torna a respiração difícil. Ela usava uma máscara de oxigênio. Me deu tanta pena!
- Pena é que os americanos sejam tão intrometidos - disse o estudante. - Ela tem dificuldade em respirar, e um de nós, talvez gravemente doente, seja posto de lado para que a vida dela fique mais confortável.
- Antoine, como pode dizer uma coisa dessas?
- Com muita facilidade. Sou licenciado em história.
- Você é um cão ingrato! - gritou um senhor idoso com um pequeno emblema da Croix de Guerre na lapela. - Eu combati com os americanos e entrei em Paris marchando junto com eles. Salvaram nossa cidade!
- Sozinhos, velho combatente? Acho que não... Vamos, Mignon, vamos sair daqui.
- Antoine, sinceramente! Seu radicalismo não só é obsoleto, como chato.
- Merdinha, "Fuck-up" - dizia o velho combatente para quem quisesse ouvir. - "Fuck-up" é uma expressão que aprendi com os americanos.
Lá em cima na embaixada, na sala de Stanley Witkowski, Claude Moreau estava desconsoladamente escarrapachado numa cadeira na frente da mesa do coronel.
- Felizmente - disse ele numa voz cansada - eu não preciso de dinheiro, mas nunca conseguirei gastar o que tenho em Paris, ou mesmo na França.
- De que está falando? - perguntou Stanley, acendendo um charuto cubano, com uma expressão de estar satisfeito consigo mesmo.
- Se você não sabe, coronel, deveria receber aquilo que os militares americanos chamam de Dispensa Oito, ou seja, por motivos de ordem psicológica.
- Por quê? Estou em meu juízo perfeito e fazendo aquilo em que sou bom à beça.
- Pelo amor de Deus, Stanley, menti para meu próprio Bureau, para a comissão arregimentada às pressas pela Câmara dos Deputados, à imprensa, ao próprio presidente! Eu jurei literalmente que Madame Courtland sobrevivera, que não morrera, que recebera um excelente tratamento na clínica de vocês!
- Bem, não te fizeram jurar pela Bíblia, Claude.
- Merde! Você é maluco!
- Maluco é uma ova. Eu trouxe seu corpo coberto para dentro e levei-o para baixo antes que qualquer pessoa pudesse constatar que a sem-vergonha morrera.
- Mas será que vai funcionar, Stanley?
- Funcionou até agora... Olha, Claude, só estou tentando confundir. O Latham que os neos procuram é o que eles mataram, mas não sabem disso. Por isso, vêm atrás do outro, e estamos à espera deles. A piranha do embaixador não é menos importante para eles, talvez mais importante ainda porque descobriram que sabíamos quem e o que era ela. Afinal de contas, o conde de Estrasburgo não ia lhe aplicar uma dose de vacina antitetânica. Com sorte, ao lado de nossas mentirinhas, nosso pequeno quebra-cabeças vai dar resultado...
- Mentirinhas? - engasgou Moreau, interrompendo. - Você tem alguma noção do que eu fiz? Menti para o presidente da França! Jamais terei novamente alguma credibilidade!
- Que diabo, amplie um pouco seu próprio raciocínio. Você o fez para o próprio bem dele. Tinha bons motivos para acreditar que o gabinete dele estava grampeado.
- Ridículo. Compete ao Deuxième assegurar-se de que isto não aconteça!
- Reconheço que isto não dá para usar - concordou Witkowski. - Por que não averiguações sobre a confiabilidade de seus auxiliares mais imediatos?
- Fizemos isto da maneira mais exaustiva alguns meses atrás. No entanto, o seu equívoco sobre a ampliação de meu raciocínio talvez tenha seu mérito.
- Para o próprio bem do seu presidente - interrompeu o coronel, dando uma extensa e satisfeita baforada no seu charuto.
- Sim, exato. Ele não pode ser responsabilizado por aquilo que não sabe, e nós estamos lidando com psicopatas, com assassinos fanáticos.
- Não compreendo a ligação, Claude, mas é um início. Aliás, obrigado pelo pessoal extra no hospital. A não ser por dois sargentos e um capitão, meus fuzileiros não falam exatamente um francês fluente.
- Seu capitão foi um estudante de intercâmbio, e um dos sargentos tem pais franceses; francês foi sua língua materna, antes de ele aprender inglês. O francês do seu outro sargento consiste principalmente em obscenidades e como conseguir obter alguns serviços específicos.
- Ótimo! Os neos são obscenos, por isso ele é perfeito.
- Como está nossa estenógrafa, a reencarnação de Madame Courtland, resistindo?
- Ela é um pavio aceso - disse o coronel.
- Espero que não.
- O que quero dizer é que ela é uma senhora judia de Nova York que detesta nazistas. Seus avós morreram na câmara de gás em Bergen-Belsen.
- Estranho, não é? Drew Latham falou certa vez algo parecido com "Tudo que vai acaba voltando". Aparentemente isso é verdade, em termos humanos.
- O que realmente é verdade é que quando algum neo filho da puta vier atrás da nova Sra. Courtland, nós vamos pegá-lo e obrigá-lo a falar!
- Já te disse antes, Stanley, tenho minhas dúvidas se alguém virá. Os neos não são tolos. Vão suspeitar de uma armadilha.
- Já levei isto em consideração. Porém aposto na natureza humana. Quando o que está em jogo é tão alto - e uma Sonnenkind viva põe o jogo lá para cima - todas as apostas ficam cobertas. Os filhos da puta não podem se dar ao luxo de agir de outro modo.
- Espero que tenha razão, Stanley... Como está o nosso argumentativo colega, Drew Latham, aceitando este cenário?
- Bastante bem. Nós fizemos vazar sua identidade falsa como coronel Webster aqui na embaixada, até mesmo para os Antinayous, que aparentemente já o sabiam, aliás. Agora você faça o mesmo. Também estamos deslocando a de Vries aqui para a embaixada, com segurança total dos fuzileiros nos seus aposentos.
- Fico surpreso de ela ter concordado assim tão prontamente - disse Moreau. - É capaz de mil manhas, mas acredito sinceramente que gosta dele, e dado o passado dela, não o deixaria voluntariamente nesta situação.
- Ela ainda não sabe - disse Witkowski. - Vamos trazê-la esta noite.
Era fim de tarde, os dias parisienses estavam ficando mais curtos, e Karin de Vries jazia sentada numa poltrona junto à janela, a luz abafada, macia, de um abajur de pé decaindo sobre seus cabelos escuros compridos, criando sombras aveludadas no seu rosto atraente.
- Você tem alguma noção do que está fazendo? - perguntou ela, cravando os olhos em Latham, mais uma vez vestido pela metade no uniforme do exército, com a túnica dependurada na cadeira da escrivaninha.
- Claro - respondeu ele. - Sou a isca.
- Você pode se considerar morto, pelo amor de Deus!
- Porra nenhuma. Pelos menos as chances estão a meu favor. Do contrário não faria isso.
- Por quê? Porque o coronel mandou que fizesse?... Será que não compreende, Drew, que quando se trata de "missão cumprida", você não passa de um fator X ou Y, dispensável em benefício da competição? Witkowski pode ser seu amigo, mas não se engane, é um profissional. A operação vem primeiro! Por que acha que ele insiste que você use esta porra de uniforme?
- Ei, eu sei disso, ou pelo menos achava que fazia parte do negócio. Mas eles vão me mandar um colete à prova de balas e um paletó grande, ou seja lá o que for; não é igual a ser posto na rua nu. Aliás, não conte a Stanley quantas vezes eu não usava seu horrível uniforme, ele vai fazer beicinho... Eu fico imaginando que tipo de colete mandará.
- Os assassinos não miram no corpo, querido, miram na cabeça com miras telescópicas.
- Eu vivo me esquecendo, você entende tudo sobre esse assunto.
- Felizmente, sim, razão pela qual quero que você diga ao nosso amigo em comum, Stanley, que vá para o inferno!
- Não posso fazer isso.
- Por que não? Ele poderia botar um chamariz nas ruas. Seria tão simples! Mas não você.
- Alguma outra pessoa? Talvez alguém que tenha um irmão fazendeiro em Idaho, ou mecânico de automóveis em Jersey City... Eu não poderia conviver com uma coisa dessas.
- E eu não posso viver sem você! - gritou Karin, deixando abruptamente a cadeira e mergulhando nos braços dele. - Eu nunca, nunca pensei que jamais diria isto a alguém neste mundo, mas digo-o de todo meu coração, Drew Latham. Só Deus sabe, mas é como se você fosse a extensão do rapaz com quem me casei anos atrás, sem a feiura, sem o ódio. Não me despreze por dizer isto, querido, pois eu simplesmente me sinto obrigada a fazê-lo.
- Eu jamais poderia desprezá-la - disse Drew baixinho, segurando-a. - Precisamos um do outro por diferentes motivos, e não precisamos ficar analisando-os durante anos. - Ele inclinou a cabeça dela para trás e olhou nos seus olhos. - Que tal quando a gente for meio idoso e estivermos ambos nas nossas cadeiras de balanço, contemplando a superfície d’água?
- Ou as montanhas. Adoro montanhas.
- Vamos discutir o assunto. - Houve uma batida rápida na porta do hotel. - Que diabo - disse Drew, soltando-a. - Onde está a folha de papel com os códigos horários?
- Colei-a na parede do vestíbulo. Você não pode errar.
- Achei-a. Que horas são?
- Sete e meia já é suficiente. O turno muda às oito.
- Quem e?
- Coelhinho Pernalonga - disse a voz de Frack atrás da porta.
- Isto é infantil - disse Latham, abrindo-a.
- Já é hora, monsieur.
- Sim, eu sei. Dê-me mais uns poucos minutos, certo?
- Certainement - disse Frack, enquanto Drew fechava a porta e se virava para Karin.
- Você está de mudança, minha amiga.
- O quê?
- Você me ouviu. Vai ser transferida para a embaixada.
- O quê?... Por quê?
- Você é uma funcionária da embaixada americana, e foi determinado que seu trabalho com comunicações confidenciais é motivo suficiente para afastá-la do perigo e também de um possível grampo.
- O que está dizendo?
- Preciso trabalhar solo, Karin.
- Pois não o deixarei! Você precisa de mim!
- Sinto muito. Ou você vai em paz ou os senhores Frick e Frack a espetarão com uma agulha e a levarão à maneira deles.
- Como pode, Drew?
- Fácil. Te quero viva para que possamos nos sentar naquelas cadeiras de balanço no Colorado, olhando as montanhas. Que tal isso?
- Seu filho da puta!
- Eu nunca disse que eu era perfeito. Apenas perfeito para você.
Os agentes do Deuxième escoltaram Karin no elevador, assegurando-lhe de que seus pertences seriam removidos do hotel e entregues na embaixada dentro de uma hora. Com relutância, ela aceitou a sua sorte; a porta do elevador se abriu e eles saltaram no saguão. Imediatamente, mais dois agentes do Deuxième se aproximaram; os quatro agentes se comunicaram por acenos de cabeça, e Messieurs Frick e Frack se viraram, caminhando rapidamente de volta à torre dos elevadores.
- Fique entre nós, por favor, madame - disse um homem troncudo, de barba, que se colocou à direita de Karin de Vries. - O carro está logo à esquerda da entrada, além das luzes do toldo da entrada.
- Espero que compreendam que estou indo contra minha vontade.
- O diretor Moreau não nós dá informações confidenciais sobre cada missão, madame - disse o segundo agente do Deuxième, de cara raspada. - Estamos aqui simplesmente para assegurar o seu transporte daqui até a embaixada americana.
- Eu poderia ter tomado um táxi.
- Pessoalmente - disse o agente barbudo, sorrindo -, sem nenhuma intenção de ofender, fico satisfeito que isto não tenha sido permitido. Minha mulher e eu íamos jantar com meus sogros. Acredita que depois de casados há quatorze anos e dando-lhes três netos, eles ainda não têm certeza se sou o marido adequado para sua filha?
- O que tem a dizer a filha deles?
- Ah, ela está esperando de novo, madame.
- Acredito que isto já diz tudo, monsieur. - Karin deu um débil sorriso ao se aproximarem os três das portas de vidro. Lá fora na calçada, guinaram rapidamente à esquerda logo depois do toldo, afastando-se da luz das duas fileiras de lâmpadas sob a lona vermelho-escura. Na relativa escuridão e passando por inúmeros pedestres noturnos na rue de l’Echelle, os dois agentes do Deuxième correram com de Vries uns dez metros rua abaixo até o veículo blindado do Deuxième, que estava esperando numa área de estacionamento proibido. O barbudo da escolta abriu a porta do lado da calçada para Karin, sorrindo e indicando com um gesto que entrasse.
Naquele momento ouviu-se um sopro cuspido, bem alto; a têmpora esquerda do agente arrebentou, com o sangue jorrando do orifício por onde saiu a bala do seu cérebro. Simultaneamente, o segundo homem da escolta do Deuxième inclinou-se para trás, com os olhos arregalados, boquiaberto, um grito gutural saindo de sua garganta, enquanto uma faca de lâmina comprida era arrancada de suas costas. Ambos caíram na calçada; de Vries começou a gritar, mas uma mão forte tapou a sua boca e ela foi empurrada com violência para dentro do carro, seguida de seu atacante, que a arremessou contra o assento de trás. Pouco mais de um segundo depois, a porta oposta se abriu e o segundo assassino, sem fôlego, pulou para dentro, segurando na mão direita uma faca manchada de sangue, cuja lâmina gotejante era tão profundamente vermelha quanto o toldo do hotel.
- Los schnell! - gritou ele.
O carro deu uma guinada para a frente na rua, perdendo-se dentro de instantes no fluxo do tráfego. O primeiro assassino falou, enquanto tirava sua mão de aranha de cima do rosto de Karin.
- Não adianta gritar - disse ele. - Mas se tentar, ficará com cicatrizes em ambas as faces.
- Willkommen, Frau de Vries - disse o motorista, virando parcialmente a cabeça, enquanto empurrava um cadáver meio enrodilhado no assento ao lado. - Parece que a senhora está resolvida a se reunir a seu marido. Isto certamente acontecerá se se recusar a cooperar conosco.
- Você matou aqueles dois homens - sussurrou Karin, com a boca meio machucada, incapaz de recuperar sua voz.
- Somos os salvadores da nova Alemanha - disse o motorista. - Fazemos aquilo que precisamos fazer.
- Como me encontraram?
- Muito simples. A senhora tem inimigos onde acha ter amigos.
- Os americanos?
- Sim, eles. E também os ingleses e franceses.
- O que vão fazer comigo?
- Isso depende da senhora. Pode se juntar ao seu célebre ex-marido, Frederik de Vries, ou pode se juntar a nós. Sabemos que a senhora está à venda.
- Eu simplesmente quero encontrar meu célebre ex-marido, vocês sabem disso também.
- A senhora não faz sentido, Frau de Vries.
Silêncio.
30
Com o rádio alto neutralizando grande parte do irritante ruído de tráfego lá fora, Latham experimentou o colete à prova de balas, pondo por cima a túnica de oficial alargada, surpreso diante de seu relativo conforto. Olhava repetidamente para o telefone na mesa, perguntando-se por que Karin não ligara para ele; dissera que o faria assim que estivesse acomodada nos seus aposentos na embaixada. Já partira há mais de duas horas, sua bagagem logo depois. Sacudindo a cabeça automaticamente enquanto dava um risinho, ele a imaginava encontrando Witkowski, censurando-o, até aos gritos, sobre a decisão de deixá-lo agir sozinho. O pobre Stosh, apesar de sua dureza externa, não estava preparado para um ataque de justa ira da parte da futura mulher de seu agente das Operações Consulares. Drew chegou a ficar com pena do coronel; de certa maneira, ele só poderia vencer por decisão oficial, o que no fundo não era satisfatório. Karin estava com o amor do lado dela, emoção que tanto Stanley quanto o embaixador Courtland haviam experimentado, e perdido, por cortesia de suas carreiras no governo.
Latham foi até o espelho de corpo inteiro no vestíbulo e observou sua imagem. O colete à prova de bala por baixo da roupa tornava-o mais imponente do que era, lembrando-lhe de seus dias em cima do gelo, envergando um uniforme verde e branco, no Canadá, onde trancos e canhonaços eram tão importantes quanto a vida e a morte - totalmente ridículos, vistos retrospectivamente... Já demorou demais! disse consigo mesmo ao voltar à mesa e ao telefone. Pegou-o e começou a discar, em seguida houve uma batida na porta. Ele bateu o telefone no gancho, examinou a folha com os códigos e perguntou.
- Quem é?
- Witkowski - respondeu a voz do outro lado.
- Qual é seu código?
- Vá para o diabo com isso, sou eu.
- Você devia dizer "Bom Rei Venceslau", seu idiota!
- Abra a porta antes que eu faça saltar a fechadura com a minha quarenta e cinco.
- Tinha que ser você, seu cretino, porque provavelmente não sabe que uma fechadura de bronze pode provocar um ricochete da bala e fazê-la voltar contra sua própria barriga.
- Não se você atirar em volta dela, seu verme. Abra!
Contrastando com os insultos berrados, eram um Witkowski e um Claude Moreau sérios que jaziam no vão da porta, com uma expressão dolorosa.
- Precisamos conversar - disse o chefe do Deuxième Bureau, enquanto ele e o coronel entravam. - Algo terrível aconteceu.
- Karin! - explodiu Drew. - Ela não ligou. Disse que ligaria pelo menos há uma hora! Onde está ela?
- Não temos certeza, mas os fatos são preocupantes - respondeu Moreau.
- Que fatos?
- Dois dos homens de Claude foram mortos na calçada aí fora - respondeu Witkowski. - Um com uma bala na cabeça, o outro à faca. O carro do Bureau desapareceu, e o motorista supomos também estar morto.
- Estavam levando-a à embaixada! - berrou Latham. - Ela estava sob segurança!
- Foi sequestrada - disse Moreau baixinho, encontrando o olhar de Drew.
- Vão matá-la! - gritou Drew, virando-se e dando murros na parede.
- Lamento esta possibilidade - retrucou o chefe do Deuxième. - Mas eu estou de luto pela morte de meus colegas, já que dois estão mortos, e provavelmente o terceiro. Quanto a Karin, não temos nenhuma evidência de que tenha sofrido o mesmo destino, e segundo minha opinião, ela está muito viva.
- Como pode dizer isto? - perguntou Drew, virando a cabeça abruptamente em direção a Moreau.
- Porque ela vale mais para eles como refém do que como cadáver. Eles querem um homem chamado Harry Latham, e ele é você.
- Então?
- Eles a usarão para tirar Harry Latham da toca, já que por motivos que nenhum de nós sabe, querem é seu irmão, e você agora é ele.
- O que faremos?
- Esperamos, chlopak - disse o coronel Witkowski, com a postura ereta e falando baixo. - Como sabemos ambos, é a parte mais dura de nosso serviço. Se quisessem matar Karin como mais um exemplo, seu corpo teria sido deixado junto com os outros dois. Não foi. Nós esperamos.
- Está bem, está bem! - exclamou Drew, atravessando a sala de um jato, sendo barrado pela mesa, em cuja borda colocou a mão. - Mas se for assim que é preciso agir, quero os nomes de todo mundo, todo mundo que ficou sabendo quem eu sou e onde eu estou. Os vazamentos, quero saber onde foi plantado cada vazamento!
- Para que serviria isto, mon ami? Esses vazamentos são como pedras jogadas num poço; as ondinhas vão se espalhando até cobrir toda a superfície.
- Preciso deles, é por isso!
- Muito bem, eu lhe darei os nomes das pessoas contatadas, e Stanley terá de fazer o mesmo em relação à embaixada.
- Comecem a escrever - ordenou Latham, dando a volta rapidamente na mesa, abrindo a gaveta e tirando folhas de papel timbrado do hotel. - Tudo que vocês tem.
- Nós já lhes mostramos duzentos e trinta e seis nomes junto com as fotos correspondentes - disse Knox Talbot, diretor da CIA, no telefone, para Wesley Sorenson.
- Já houve qualquer resposta?
- Nada de fato, mas uma quantidade de possibilidades. Temos sorte na medida em que sete funcionários do esconderijo chegaram a ver de fato o "diretor-adjunto Connally", azar porque somente quatro se aproximaram o suficiente dele para poderem nos dar descrições detalhadas.
- E as possibilidades? - perguntou o diretor das Operações Consulares.
- Muito pouco conclusivas. Imagine só que uma testemunha pegou sua foto no meio de outras oito.
- Se fossem todas mais ou menos da minha idade, isto é significativo.
- Não eram. Nós deixamos claro que, seja lá quem fosse o impostor, ele teria alterado drasticamente o seu aspecto, a cor do seu cabelo provavelmente não seria a natural, a cor dos olhos talvez tivesse sido alterada por lentes de contato, todos os truques de costume.
- Exceto um, Knox. Ele poderia aparentar ser mais velho, mas não mais jovem, sem ficar grotesco.
- Isso é que é estranho, Wes. Um homem e uma mulher tiveram a mesma impressão. Que esse "Connally" era tão comum a ponto de ser quase indescritível. Estou resumindo o palavreado, é claro.
- Claro. E quanto a suas roupas?
- De acordo com as velhas normas da CIA. Terno escuro, camisa branca, gravata listrada, tipo gravata de colégio, sapatos marrons de cadarço. Ah, e uma capa de borracha leve, do tipo largo. A mulher que estava no balcão de segurança disse que se parecia com uma que um amigo dela, um oficial, tinha. Para o fog londrino.
- Rosto?
- Novamente neutro, muito comum. Sem bigode, nem cavanhaque, apenas pele clara, sem nenhum detalhe que chamasse atenção, mas usando óculos razoavelmente grossos, grossos demais, eu diria.
- Quantas possibilidades existem?
- Eliminando as óbvias, como você mesmo, vinte e quatro.
- Sem eliminar ninguém, quantas?
- Cinquenta e uma.
- Posso vê-las?
- As vinte e quatro estão a caminho. Mandarei as outras vinte e sete com urgência. Ou deveria tirar a sua? Quero dizer, você nem trabalha aqui.
- Por que incluiu-a?
- Um senso de humor malicioso, eu suponho. Como digo com frequência ao nosso colega de governo, Adam Bollinger, uma gargalhada de vez em quando faz as coisas entrarem nos eixos.
- Concordo, meu amigo, só que não ando de muito bom humor. Soube das notícias de Paris?
- Não, durante as últimas vinte e quatro horas.
- Pois ouça-as agora. Karin de Vries desapareceu. Foi sequestrada pelos neos.
- Ah, meu Deus!
- Parece que Ele nem sempre está à disposição quando se precisa Dele.
- O que disse Witkowski?
- Está preocupado com Latham. Disse que Drew se comportou como se estivesse sob controle, porém Witkowski acha que foi uma farsa.
- Como assim?
- Porque ele exigiu saber onde foram feitos os vazamentos desmascarando sua falsa identidade.
- Um pedido razoável, eu diria. Ele é a isca.
- Você não está atento, Knox. Eu disse "exigiu", e Stanley deixou claro que Latham fez a exigência numa base de, "se não me derem, estou fora".
- Eu ainda não consigo compreender por que isto o torna meio pinel.
- Nós dois já estamos casados há muito tempo para nos lembrarmos. Ele está apaixonado, meu caro. Veio um pouco tarde, talvez, mas provavelmente pela primeira vez. Sua amada lhe foi roubada, e ele no ápice de sua capacidade profissional, que inclui uma porção de potencialidades mortíferas. Na idade dele, a gente tem quase sempre a ilusão de ser invencível. Ele a quer de volta.
- Eu compreendo, Wes. O que podemos fazer?
- Ele precisa fazer algo primeiro, algo que nos dê um pretexto para tirá-lo do jogo.
- Tirá-lo...?
- Qualquer coisa como prendê-lo numa cela com paredes cobertas de esponja, ou pelo menos tirá-lo de Paris. Ele não serve a ninguém se a isca se transformar em caçador.
- Eu supunha que ele estivesse sob vigilância, com segurança.
- E também seu irmão Harry, quando fugiu do vale da Irmandade. Não subestime os genes dos Latham. Por outro lado, Witkowski e Moreau não são exatamente integrantes de uma tropa de choque.
- Não tenho certeza do que isto significa neste contexto, mas suponho que seja animador.
- Espero que sim - disse Sorenson.
Sob a luz da luminária de mesa, Drew examinou os nomes. Na lista de possíveis vazamentos de Witkowski havia sete nomes, inclusive dos Antinayous, e na de Moreau, nove, três deles membros da Câmara de Deputados no Quai d’Orsay, que o chefe do Deuxième achava estarem bem à direita do centro, politicamente falando, isto é, fascistas. Na lista de Stanley havia vários adidos boateiros, "vagabundos", como ele os chamara, que passavam mais tempo puxando o saco de homens de negócios franceses influentes, do que no seu serviço; duas secretárias cujas faltas indicavam problemas alcoólicos; e um padre Manfried Neuman, na Maison Rouge dos Antinayous. A lista de Moreau, além do Quai d’Orsay, consistia dos costumeiros informantes pagos, cuja lealdade se aplica exclusivamente em relação ao dinheiro, sem moral ou ideologia.
Trabalhando sob a perspectiva de reduzir a quantidade, Latham eliminou os informantes de Moreau - ele não tinha nenhum modo de acesso às suas fileiras - e também dois dos deputados; o terceiro ele conhecia de algum acontecimento diplomático. Ligaria para este sujeito, ouvindo-o atentamente. A lista de Witkowski era mais fácil, já que conhecia cinco deles de vista e pelo nome, conhecidos de trabalho na embaixada. Os dois remanescentes, ambas mulheres, ambas suspeitas de terem algum problema com bebida, ele poderia contatar sem nenhum pretexto, por assim dizer. O que precisava era dos números de telefones.
- Stanley, estou satisfeito de vê-lo trabalhar até tão tarde, porque você omitiu algo sobre seus sete candidatos.
- De que diabo está falando? - respondeu o zangado Witkowski. - Foram esses que nós usamos para produzir os vazamentos observáveis.
- Nós? Quem mais? Quem estava de serviço?
- Minha secretária, que veio me acompanhando desde o velho G-2, e um ex-sargento, que promovi a primeiro-tenente antes da dispensa dela.
- Dela? Ela?
- Totalmente dedicada ao exército, meu filho. O marido dela era sargento dos fuzileiros até se aposentar depois de trinta anos, e ele só tinha cinquenta e três. Os filhos são todos guris do exército.
- O que faz ele agora?
- Joga golfe, visita museus, e ainda toma aulas de francês. Não consegue dominar a língua.
- Então não preciso do número de telefone dela, mas quero dos demais. De casa, inclusive da Maison Rouge dos Antinayous.
- Não posso adivinhar o que o leva a isto. Deixe-me batucar no meu computador.
Claude Moreau ofereceu mais resistência. Estava em casa, discutindo sobre política com um filho.
- A juventude de hoje não compreende nada!
- Nem eu, mas preciso de números de telefones, a não ser que você queira que eu induza benevolamente seus agentes a uma longa noite de sono.
- Como ousa dizer uma coisa destas?
- É fácil. Posso fazê-lo.
- Mon Dieu, Stanley tem razão, você é impossível! Muito bem, eu lhe darei um telefone no Bureau. Ligue dentro de cinco minutos e receberá os números que quer.
- Não é que queira, Claude. Mas sim que preciso.
Onze minutos mais tarde, Latham dotara cada nome em ambas as listas de um número telefônico. Começou a ligar, usando basicamente as mesmas palavras em cada caso.
- Aqui é o coronel Webster, e acredito que saiba minha verdadeira identidade. O que me perturba é que outras pessoas ficaram sabendo e nós rastreamos o vazamento e chegamos até você. O que tem a dizer a respeito, antes de não poder mais falar?
Toda resposta era uma variação sobre o mesmo tema. Negativas dramáticas, a ponto de cada um sugerir que suas ligações telefônicas fossem examinadas, tanto em seus escritórios quanto em suas casas; um certo número se ofereceu voluntariamente para se submeter a testes com detectores de mentiras. Depois desses todos, só restou o religioso antineo na Maison Rouge.
- Padre Neuman, por favor.
- Ele está celebrando vésperas, e não pode ser interrompido.
- Interrompa-o. Trata-se de uma questão tremendamente urgente, diretamente relacionada ao segredo de vocês.
- Mein Gott, não sei o que fazer. O padre é um sacerdote ardoroso. Não pode ligar novamente dentro de, digamos, vinte minutos mais ou menos?
- A esta altura a Maison Rouge já pode ter voado pelos ares, e não haverá sobreviventes.
- Ach! Vou chamá-lo!
Quando o padre Manfried Neuman finalmente chegou ao telefone, falou zangado.
- Que bobagem é essa? Estou no meio do serviço do Senhor e você me afasta de Seus suplicantes.
- Meu nome provisório é coronel Webster, mas o senhor sabe quem eu sou, padre.
- Claro que sim! E também muitas outras pessoas.
- Mesmo? Isso me dá um certo susto. Presumi que se tratasse de informação altamente confidencial, à prova de vazamentos, para ser exato.
- Bem, suponho que outros saibam. Agora, que negócio é este de uma bomba aqui?
- Talvez eu a ponha se não responder a minhas perguntas. Já fiquei aí, não sei se se lembra, e neste exato momento estou muito desesperado.
- Como pode se comportar assim? Os Antinayous cuidaram de você, nós lhe demos guarida quando precisava.
- E se recusaram a me aceitar de volta, quando eu ainda precisava.
- Isto foi uma decisão coletiva, baseada nas nossas próprias necessidades de segurança.
- Isto não basta, padre. Lutamos contra as mesmas pessoas, não é correto?
- Não brinque conosco, Herr Latham. Sou um homem de Deus e detesto a violência, mas existem outros aqui que não sentem como eu.
- Será isto uma ameaça, padre?
- Tome-a como quiser, meu filho. Sabemos onde está e nossos veículos circulam constantemente pela cidade.
- Diga-me, sabe onde está Karin de Vries?
- Frau de Vries...? Nossa colega?
- Ela desapareceu. Eles a levaram.
- Não! Isto está errado...!
- Você acaba de se trair, seu Bíblia. O que está certo?... Presumo que não estamos do mesmo lado, afinal de contas.
- Mentira! Eu abandonei tudo...
- Pois terá de abandonar o que lhe resta se não me disser com quem falou a meu respeito - interrompeu Latham. - Agora!
- Que Deus seja minha testemunha, só a nossa informante na embaixada... e a mais ninguém.
- Primeiro, a informante. Quem?
- Uma secretária, uma mulher chamada Cranston, carente do auxílio de Cristo.
- Como a conhece?
- Nós conversamos, nos encontramos, e a carne é fraca, meu filho. Não sou perfeito, que Deus tenha piedade de mim.
- O outro? Quem é ele?
- É tão confidencial, que seria um sacrilégio violá-lo.
- Do mesmo modo que desmascarar a Maison Rouge, junto com umas duas granadas para clarear a entrada.
- Você não seria capaz.
- É claro que seria. Sou um agente Quatro Zero das Operações Consulares, e entre meus truques existem alguns que os Blitzkrieger jamais poderiam imaginar. Entregue!
- Outro sacerdote, um ex-padre. Está velho agora, mas quando era um jovem erudito, foi um talentoso criptoanalista para o setor da inteligência francesa que veio a tornar-se o Deuxième Bureau. Os serviços secretos ainda o têm em alta conta, e frequentemente trazem-lhe confidências, em busca de ajuda. Seu nome é Lavolette, Antoine Lavolette.
- Disse que ele era um ex-padre, então por que é tamanho sacrilégio dar-me seu nome?
- Porque, raio que o parta, eu o procuro para fins de aconselhamento religioso, e não político! Tenho um problema, não muito diferente do que ele teve anos atrás, porém o meu é muito mais imperdoável, porque se trata de uma compulsão que não se limita a apenas uma mulher. Sou um homem imperfeito, indigno da minha santa igreja. O que mais posso lhe dizer?
- Talvez muito mais, eu lhe informarei. Aliás, padre, porque disse que era "errado" que Karin tivesse sido sequestrada?
- Porque foi uma burrice, é tão simples quanto isso! - vociferou o sacerdote.
- De que lado está, pelo amor de Deus?
- Será que precisa usar o nome do Senhor deste modo?
- Depende de que Senhor você está falando. Agora vamos acabar com esse show. Por que foi errado e burro sequestrá-la?
- Falando egoisticamente, isso poderia muito bem estragar nossa atuação aqui. Se o objetivo deles era matá-la, que matassem-na e deixassem a coisa entregue a Deus! Mas sequestrá-la, não deixando atrás de si nenhuma prova da morte dela, representa escancarar os portões - todo mundo haverá de se lançar à sua procura, tal como você agora. Nosso próprio quartel-general poderá ser revelado - do mesmo modo que você o ameaçou com granadas e bombas. Eu lhe peço em nome de tudo que for bom e sagrado para não nos expor, nem revelar nossa localização.
- Você me deu dois nomes, por isso farei o máximo para não expô-los, mas Karin de Vries vem primeiro, e é só o que posso prometer. - Latham desligou o telefone, tentado de imediato a ligar para Moreau e fazer algumas perguntas sobre o ex-padre Antoine Lavolette, extraordinário criptoanalista aposentado. Em seguida mudou de ideia; o chefe do Deuxième era um maníaco controlador, especialmente em se tratando de um certo Drew Latham. Com certeza o próprio Moreau interferiria, ligando ele mesmo para o padre aposentado e usurpando a iniciativa. Não, esse não era o caminho certo. Aquele Lavolette precisava ser encurralado, surpreendido, forçado pelo espanto a revelar o que sabia, ou aquilo que não sabia que sabia, revelando outro nome, ou nomes. O mesmo poderia ser dito em relação aquela mulher Cranston, Phyllis Cranston, secretária errante de um adido de nível médio que estava na lista de "vagabundos" de Witkowski, provavelmente o motivo por que ela se mantinha no emprego.
Primeiro, havia a tarefa principal de sair do hotel. Cada hora, cada minuto que passasse ali, era uma hora e um minuto perdidos na busca de Karin.
Karin dissera que o cabelo louro dele era produto de um pequeno descoloramento junto com um tingimento, mas ela insistia em dizer que com um xampu, mais um preparado que escurecia o cabelo grisalho, ele poderia, ter de volta a cor natural de seus cabelos, ou algo próximo a ela. Ela pusera o tubo mágico no armarinho de remédios, e ele o transferira para uma gaveta do quarto para que ela não pudesse removê-lo. Ainda estava lá.
Meia hora depois, com o banheiro em uma bagunça fumegante, um Latham nu jogava repetidamente água no espelho da pia para desembaçá-lo. Seu cabelo era agora um estranho castanho escuro com pontos castanho-avermelhados, mas não era louro. Fizera um gol bem entre as pernas do goleiro!
Agora havia o problema de Messieurs Frick e Frack, ou, para ser mais exato, quem quer que seja que tivesse revezado com eles, no turno de agora. E se tratava de um novo turno, conforme mencionara Karin. Ele conhecia cada um dos guardas, mas conhecia Frick e Frack melhor do que os demais, e duvidava que os dois houvessem relatado os detalhes de seu constrangimento por causa da omissão de uma palavra de código. Um americano sozinho desarmando um agente do Deuxième, arrancando-lhe a arma, e atingindo sua virilha com um doloroso golpe? Mon Dieu, fermez la bouche!
Drew tirou seu outro uniforme do armário e das gavetas da cômoda. Era praticamente o uniforme do adido masculino da embaixada: calças de flanela cinza, blazer escuro, camisa branca e uma gravata tradicional - preferivelmente com as cores de algum regimento, sendo permitido padrões escoceses para acontecimentos vespertinos informais. Ficou um tanto satisfeito ao ver que o colete supostamente à prova de balas lhe ficara bem, justo, porém sem incomodar. Totalmente vestido, com sua valise cheia, ele abriu a porta do hotel e saiu para o corredor, ficando parado, à espera do óbvio. Este veio logo com o surgimento do guarda que ficava junto dos elevadores, seu colega aparecendo simultaneamente das sombras que escondiam a outra extremidade da passagem.
- S’il vous plaît - começou ele, num francês ainda mais estropiado do que ele era capaz de falar. - Voulez-vous venir ici...
- En anglais, monsieur! - gritou o sujeito dos elevadores. - Nós compreendemos.
- Ah, muito obrigado, eu fico agradecido. Será que algum de vocês poderia me dar uma mão? Acabei de receber um recado pelo telefone e anotei as palavras da melhor maneira possível. É um endereço, acho, mas o camarada não sabia falar inglês.
- Vá você, Pierre - disse o guarda na outra extremidade, em francês. - Eu fico aqui.
- Muito bem - respondeu o sujeito que vinha caminhando da torre dos elevadores. - Não ensinam nenhuma outra língua além do inglês na América?
- Os romanos aprendiam francês?
- Não precisavam, eis a sua resposta. - O primeiro guarda entrou na suíte de Latham, seguido por este, que fechou a porta. - Onde está o recado, monsieur?
- Lá em cima da mesa - disse Latham, andando atrás do francês. - É o papel escrito. Bem no meio, eu virei-o para cá para que pudesse lê-lo.
O guarda pegou o papel com as palavras estranhas escritas foneticamente. Ao fazê-lo, Latham ergueu ambos os braços, com as mãos inclinadas para baixo, dois martelos que desabaram sobre as omoplatas do sujeito, tornando-o instantaneamente inconsciente. Foi um golpe atordoante, doloroso, porém sem perigo de ferir. Drew puxou o corpo para o quarto, onde ele desfizera a cama, rasgando os lençóis em tiras compridas e estreitas de pano. Noventa segundos mais tarde o guarda estava amarrado de cara para baixo, em cima do colchão, com os braços e pernas atados aos postes da cama, a boca tapada por uma tira estreita de pano, que permitia que ele respirasse.
Apanhando uma porção de lençóis rasgados, Latham saiu correndo do quarto, fechando a porta. Jogou as tiras de pano em cima de uma cadeira e abriu a porta para o corredor. Saiu calmamente e se dirigiu ao segundo guarda, que mal podia ser entrevisto na sombra.
- Seu amigo Pierre diz que precisa falar imediatamente com você, antes de ligar para aquele sujeito, como é mesmo seu nome? Montreaux ou Moneau?
- Monsieur le Directeur?
- Sim, é esse cara aí. Diz que o que anotei é incrrrível.
- Saia do caminho! - gritou o segundo guarda, descendo correndo o corredor e entrando na suíte. - Onde...? - Sua pergunta foi interrompida por um golpe de aikidô no pescoço, seguido de uma cutelada com dois dedos abaixo das suas costelas, tendo esta combinação deixado o guarda provisoriamente sem fôlego e inconsciente, mas novamente sem risco sério. Drew puxou-o para cima do divã e fez a mesma mágica que fizera com o primeiro agente do Deuxième, apenas com as variações necessárias. Ele jazia desacordado em cima de almofadas, com os braços e as pernas esticados e atados aos pés do sofá, a boca amordaçada e a cabeça meio em ângulo, porém sem retirar-lhe a capacidade de respirar. O gesto final de Latham foi o de arrancar os fios de telefone de ambos os quartos. Estava agora livre para começar a caçada.
31
Ele subiu a escada do prédio de apartamentos de Phyllis Cranston na rue Pavée, entrou no saguão e apertou a campainha do seu apartamento. Não houve resposta, de modo que ele continuou a tocar, achando que ela estivesse de porre, caso a opinião de Witkowski fosse correta. Estava prestes a desistir, quando uma mulher idosa, obesa, saiu do corredor trancado, reparou na campainha que ele tocava e falou em francês.
- Está procurando a Borboleta?
- Não tenho certeza se compreendi.
- Ah, Américain. Seu francês é horrível - acrescentou ela em inglês. - Eu fui a mulher mais triste de Paris quando seus aeródromos deixaram a França.
- Conhece a Srta. Cranston?
- Quem não a conhece aqui? Ela é uma pessoa doce e já foi muito bonita, tal como eu. Por que haveria de lhe contar qualquer outra coisa?
- Porque preciso falar com ela, é urgente.
- Porque está com "tesão", como vocês americanos dizem? Deixe-me lhe dizer, monsieur, ela pode ter a doença, mas não é nenhuma puta!
- Não estou à procura de uma puta, madame. Procuro alguém que possa me dar uma informação sobre aquilo que eu preciso urgentemente saber, e esta pessoa é Phyllis Cranston.
- Hum - murmurou a velha, examinando Drew. - Não a procura para tirar vantagens dela por causa de sua doença? Se está, fique sabendo que seus amigos neste prédio a protegem. Ela é, como disse, doce e bondosa e ajuda as pessoas que estão precisando de ajuda. Não somos pobres aqui, mas muitos são quase, com todos esses impostos e a carestia. A Borboleta é muito generosa com seu dinheiro americano e nunca cobra dívidas. Nos seus dias de folga toma conta das crianças para que suas mães possam trabalhar. Você não fará mal a ela, não aqui.
- Não pretendo lhe fazer nenhum mal. E não estou procurando nenhuma Madre Teresa. Já lhe disse, quero achá-la porque ela talvez tenha uma informação de que preciso.
- Não mencione catholique para mim, monsieur. Sou católica, mas nós já mandamos aquele padre nojento se afastar dela!
Na mosca, pensou Latham.
- Um padre?
- Ele se aproveitou dela, ainda se aproveita!
- Como?
- Vem tarde à noite e a absolvição que procura fica entre suas duas pernas!
- Ela aceita isto?
- Sente que não tem escolha. Ele é seu confessor.
- Filho da mãe! Escute só, preciso achá-la. Falei com o padre e ele me deu o nome dela. Não pelo motivo que a senhora acha, mas apenas porque ele talvez lhe tenha contado coisas que não devia.
- E você, quem é você?
- Alguém que, acredite ou não, está combatendo pela França tanto quanto pelo seu próprio país. Os nazistas, madame, os filhos das putas dos nazistas estão começando a marchar de novo pela Europa inteira! Sei que isto parece melodramático, mas é verdade.
- Eu era criança quando assisti executarem gente nas ruas - disse a velha, sussurrando, com seu rosto enrugado contraído. - Podem voltar a fazê-lo?
- Ainda falta muito para que eles o façam, mas precisamos barrá-los agora.
- De que maneira está a nossa Borboleta envolvida?
- Ela recebeu informação que pode ter passado adiante inocentemente para outras pessoas. Ou talvez não tão inocentemente. Isso é o máximo de franqueza que posso me permitir. Se ela não está aqui, onde está?
- Eu estava prestes a lhe dizer para ir até o Les Trois Couronnes, um café aí embaixo na rua, mas já passou de meia-noite e o senhor não precisa mais ir até lá. Ela está bem atrás do senhor, subindo a escada com a ajuda de um vizinho, Monsieur Du Bois. Como é evidente, a doença dela é o abuso de vinho. Há coisas que ela precisa esquecer, monsieur, e faz isto com vinho.
- Sabe o que são elas?
- Não é da minha conta, e aquilo que sei guardo para mim mesma. Nós cuidamos da nossa Borboleta, aqui.
- Gostariam de me acompanhar até o seu apartamento, de modo que a senhora e Monsieur Du Bois possam ver com seus próprios olhos que não pretendo lhe fazer nenhum mal?
- O senhor não ficará sozinho com ela, isto eu lhe asseguro. Nada de padres com roupas chiques.
Phyllis Cranston era uma mulher pequena de quarenta e cinco a cinquenta anos, de corpo compacto e até atlético. Embora cambaleante, cada pé estava solidamente plantado no chão, em desafio, tanto admitindo quanto negando seu estado de embriaguez.
- Então quem é que vai fazer café? - perguntou ela, num tom de voz solidamente anasalado do Meio-oeste americano, ao desabar numa cadeira na outra extremidade de seu apartamento, com seu acompanhante, Du Bois, a seu lado.
- Já estou com a água fervendo no fogareiro, Borboleta, não se preocupe - disse a velha, falando do vestíbulo.
- Quem é esse cara esquisito? - perguntou Cranston, fazendo um gesto em direção a Latham.
- Um americano, mon chou, que conhece aquele padre nojento, do qual lhe avisamos para se manter afastada.
- Aquele porco absolve mulheres velhas como eu porque são as únicas que consegue arranjar! Este filho da puta é um deles? Veio aqui para esvaziar o saco?
- Sou a última pessoa do mundo que a senhora poderia imaginar como sendo padre - disse Drew em voz baixa, com calma. - Quanto à satisfação sexual, sou dedicadíssimo a uma senhora que resolve esta questão e com quem pretendo passar o resto de minha vida, com ou sem o beneplácito religioso.
- Cara, você me parece o perfeito quadradão! De onde você é, querido?
- Originalmente de Connecticut. E a senhora? Indiana ou Ohio, ou talvez do norte do Missouri?
- Ei, você tem uma pontaria bastante boa, seu machão. Sou uma garota de St. Louis, nascida e criada dentro do sistema paroquial. Que vantagem, certo?
- Eu não saberia dizer.
- Mas como soube que eu era dessa parte dos bons velhos EUA?
- Seu sotaque. Fui educado para reparar nessas coisas.
- Não é brincadeira?... Ei, obrigado pelo café, Eloise. - A secretária da embaixada aceitou a caneca de café e tomou vários goles, sacudindo a cabeça depois de cada um deles. - Presumo que você me ache totalmente decrépita, não é? - prosseguiu ela, olhando para Latham, e de repente se endireitando na cadeira, cravando os olhos nele. - Espere um pouco, eu te conheço! Você é o agente das Operações Consulares!
- Isso mesmo, Phyllis.
- Que diabo está fazendo aqui?
- O padre Manfried Neuman, ele me deu seu nome.
- Aquele chato! Então você pode me demitir?
- Não vejo nenhum motivo para demiti-la, Phyllis...
- Então por que está aqui?
- O padre Neuman é o motivo. Ele lhe contou quem era um certo coronel Webster, não foi? Que ele era um agente secreto da embaixada prestes a entrar na clandestinidade com uma identidade falsa, uma aparência diferente. Ele lhe contou isto, não contou?
- Ah, pelo amor de Deus, ele é tão cheio de merda que não há latrina que dê conta. Fazia isso o tempo todo, especialmente quando ficava tão excitado que eu achava que ele ia arrebentar meu traseiro. Era como se ele estivesse desempenhando o papel de Deus, contando segredos que só Deus saberia, e aí, quando gozava, pegava minha cara e dizia que Deus haveria de me condenar ao fogo do inferno se eu repetisse o que ele contara.
- Por que está me dizendo isto agora?
- Por quê? - Phyllis Cranston bebeu uma boa porção do seu café. E respondeu de maneira simples. - Porque meus amigos aqui me explicaram que fui uma idiota completa. Sou uma boa pessoa, senhor... sei lá como se chama - e tenho um problema que se restringe a essas poucas ruas. Por isso vá para o inferno.
- Além do óbvio, qual é seu problema Phyllis?
- Eu responderei para o senhor, Monsieur Américain - disse a velha senhora. - Esta filha bilíngue de pais franceses perdeu o marido e três filhos nas enchentes de noventa e um no Meio-oeste americano. O rio caudaloso ao lado de sua casa destruiu tudo. Somente ela sobreviveu, agarrada às pedras até chegar socorro. Por que acha que ela sempre cuida das crianças aqui, sempre que pode?
- Preciso fazer-lhe mais uma pergunta, a única, que realmente conta.
- O quê, Sr. Latham - é este seu nome, não é? - disse Phyllis Cranston, endireitando-se na cadeira, mais cansada agora do que embriagada.
- Depois que o padre Neuman lhe disse quem eu era - a quem a senhora contou?
- Estou tentando me lembrar... Sim, no auge de uma ressaca, contei a Bobby Durbane no centro de comunicações, e a uma estenógrafa de escalão inferior que eu mal conhecia, nem o nome dela.
- Obrigado - disse Latham. - E boa noite, Phyllis.
Drew desceu a escada do prédio de apartamentos na rue Pavée; um homem perplexo. Não tinha a menor ideia de quem seria a estenógrafa, porém seu status não chegava a sugerir que tivesse muita influência. Robert Durbane, no entanto, abalou-o. Bobby Durbane, a raposa grisalha do Centro de Comunicações, o veterano perito das comunicações, o homem que somente há alguns dias pegou Drew nas suas misteriosas retículas e mandou veículos da embaixada socorrê-lo de um ataque neo? Estava além de sua compreensão. Durbane era o cara tranquilo, o asceta, o intelectual que se debruçava sobre os esotéricos quebra-cabeças de suas palavras cruzadas e duplos acrósticos, que era tão generoso com sua equipe que costumava ficar com os turnos da meia-noite até de madrugada, de modo que seus subordinados pudessem ter algum descanso dos bombardeios diários.
Ou existiria um outro Robert Durbane, muito mais secreto? Um homem que escolhia as horas mortas da madrugada de modo a poder enviar suas próprias mensagens para outros que precalibravam suas frequências e decifravam seus códigos. E por que motivo os carros armados da embaixada, com todo seu poder de fogo, só tinham chegado um minuto após a limusine nazista ter surgido na esquina e espalhado suas balas em todas as direções, matando um neo chamado C-Zwölf? Teria Bobby Durbane orquestrado o massacre que haveria de acontecer, alertando primeiro os nazistas? Essas eram perguntas que precisavam de uma resposta; a estenógrafa desconhecida da embaixada precisava também ser rastreada. Ambos poderiam esperar até de manhã; agora era a vez do conselheiro do padre Neuman, Antoine Lavolette, padre aposentado e ex-criptógrafo do serviço de inteligência.
O endereço foi facilmente obtido do catálogo telefônico. Latham encontrou um táxi vazio a dois quarteirões a leste. Era quase uma hora da madrugada, a hora ideal, decidiu ele, para confrontar o idoso Lavolette, o homem de Deus despojado do hábito, que talvez possuísse segredos que teriam de lhe ser arrancados.
A casa no quai de Grenelle era um sólido prédio de três andares de pedra branca e ripas verdes recém-pintadas, lembrando uma tela de Mondrian. O dono também precisava ser sólido, pelo menos quanto à renda, porque a vizinhança rivalizava com a avenue Montaigne em status e opulência; não era para os mais ou menos ricos, somente para os ricos. O ex-criptógrafo e sacerdote aposentado tinha se saído muito bem no mundo material.
Drew subiu a pequena escada até a porta verde envernizada, o bronze polido da campainha e da maçaneta brilhavam à luz que vinha do poste. Ele tocou a campainha e ficou à espera; era uma hora e vinte e seis minutos da madrugada. Às 1:29 a porta foi aberta por uma mulher assustada de robe, ela tinha talvez seus trinta e muitos anos, seu cabelo castanho amarfanhado da cama.
- Meu Deus, o que o senhor deseja a esta hora? - desabafou ela em francês. - Todo mundo em casa está dormindo!
- Vous parlez anglais? - perguntou Latham, estendendo sua identificação da embaixada, um documento que tanto reassegurava quanto intimidava.
- Un peu - respondeu nervosamente o que parecia ser a governanta.
- Preciso ver Monsieur Lavolette. É um assunto de grande importância que não pode esperar até amanhã.
- Por favor, espere aqui fora, vou chamar meu marido.
- É Monsieur Lavolette?
- Não, é o motorista do patron... entre outras coisas. Ele também fala muito melhor anglais. Espere aqui fora!
A porta foi batida, obrigando Drew a esperar no pequeno pórtico de tijolos. O único consolo é que a mulher acendeu as lanternas de carruagem que ladeavam a entrada. Instantes depois, a porta se abriu de novo, revelando um homem troncudo, também de roupão, com rosto largo, e ombros e peito que o qualificavam como jogador de defesa no futebol americano, sem muita necessidade de protetores. Além da sua ameaçadora estatura, a atenção de Drew se viu atraída por um volume no bolso direito de seu roupão; o aço preto do punho de uma automática era claramente visível através da abertura em cima.
- Qual o assunto que deseja conversar com o patron, monsieur? - perguntou o sujeito numa voz surpreendentemente delicada.
- Assuntos do governo - respondeu Drew, novamente estendendo sua identidade. - Só posso falar com Monsieur Lavolette pessoalmente. - O motorista pegou a carteira de identidade e examinou-a à luz do vestíbulo.
- O governo americano?
- Sou do serviço secreto, trabalho com o Deuxième.
- Ahh, o Deuxième, o Service d’Etranger, o serviço reservado da Sûreté, e agora os americanos. Quando é que vão deixar o patron em paz?
- Ele é um homem de muita experiência e sabedoria, e há sempre problemas urgentes.
- E é também um homem que precisa de sono, especialmente desde que sua mulher morreu. Passa exaustivas horas na sua capela conversando com ela e com Deus.
- Mesmo assim, preciso vê-lo. Seria este o seu desejo; um amigo dele poderia estar numa tremenda enrascada que diz respeito aos governos francês e americano.
- Vocês sempre buzinam "emergência", e quando são satisfeitos, sentam a bunda em cima de sua informação durante semanas, meses, e até mesmo anos.
- Como sabe disto?
- Porque trabalhei anos para vocês, e é tudo que direi. Diga-me, por que haveria de acreditar em você?
- Porque, porra, aqui estou eu! À uma e meia da madrugada.
- Por que não às oito e meia, ou mesmo às nove e meia, de modo que o patron possa dormir? - A pergunta foi feita inocentemente: não havia ameaça de nenhuma espécie na voz do motorista.
- Vamos lá, camarada, você está torrando meu saco! Já lhe passou pela cabeça que eu preferiria muito estar em casa com minha mulher e três filhos?
A mentira foi interrompida por um barulho alto, vibrante. O homem enorme virou-se instintivamente à medida que a porta se abria mais, revelando o vestíbulo e uma longa passagem. No final dela havia uma pequena porta de grades de bronze; dentro de instantes um pequeno elevador desceu e se tornou visível.
- Hugo! - gritou a voz frágil da figura de cabelos brancos dentro dele. - O que é, Hugo? Ouvi a campainha e gente discutindo em inglês.
- Teria sido melhor se mantivesse a sua porta fechada, patron. Não teria sido acordado.
- Vamos, vamos, você está me superprotegendo. Agora me ajude a sair desta porcaria, eu não estava dormindo mesmo, bolas.
- Mas Anna disse que o senhor não comeu bem e em seguida passou duas horas ajoelhado na capela.
- Tudo com bons propósitos, meu filho - disse o ex-padre Antoine Lavolette. Auxiliado a se levantar da cadeira do elevador, ele pisou cautelosamente na passagem. Era um caniço no seu roupão vermelho quadriculado, com um metro e oitenta e tantos de altura, porém magro a ponto de parecer estar definhando. Seu rosto tinha as feições esculpidas de um santo gótico - nariz aquilino, sobrancelhas severas, e olhos bem abertos. - Acredito piamente que Deus está escutando as minhas preces. Eu disse a Ele que desde que Ele criara tudo, era responsável pelos sentimentos que eu nutria pela minha mulher. Cheguei a censurá-Lo, frisando que nem Seu Filho, nem as Santas Escrituras jamais disseram qualquer coisa que proibisse o casamento aos sacerdotes.
- Tenho certeza de que Ele o ouviu, patron.
- Se Ele não ouviu, reclamararei bem alto sobre a dor constante que sinto nos joelhos, se eu jamais for saudá-Lo. Fico imaginando se Nosso Senhor tem joelhos que Ele precisa dobrar. Mas é claro que sim, somos feitos à Sua imagem - o que talvez tenha sido um grande erro. - O velho parou diante de Latham, que agora estava em pé no vestíbulo. - Olha só, olha só quem temos aqui? Será você o intruso que penetra na tenda da noite?
- Sou sim, senhor. Meu nome é Latham e trabalho na embaixada americana, como funcionário das Operações Consulares dos Estados Unidos. Seu motorista ainda está com minha carteira de identidade na mão.
- Pelo amor de Deus, devolva-a a ele, Hugo, você já acabou com toda aquela bobagem - mandou o ex-sacerdote, de repente comovido, com a cabeça trêmula.
- Bobagem? - disse Drew.
- Meu amigo Hugo era membro da Guarda Pretoriana recrutada da Legião Estrangeira e enviado para o Comando de Saigon, quando era rapaz. Vocês o deixaram para trás, mas ele conseguiu sair.
- Fala inglês muito bem.
- Deveria, ele era um oficial de atividades especiais sob comando americano.
- Eu nunca ouvi falar de qualquer Guarda Pretoriana, nem de oficiais franceses em Saigon.
- Pretoriana era um eufemismo para equipes suicidas, e houve muitas coisas das quais nunca ouviu falar naquela guerra. Os americanos pagavam-lhes dez vezes mais do que ganhavam na Legião; traziam informação de trás das linhas inimigas. Vocês esquecem com tanta facilidade. O francês era uma língua muito mais conhecida entre os quadros dirigentes do Sudeste da Ásia do que o inglês... Agora, por que está aqui?
- Padre Manfried Neuman.
- Sei - disse Lavolette, olhando fixamente para Latham, com os olhos nivelados, pois o ex-padre era da mesma altura que Drew. - Leve-nos até a biblioteca, Hugo, e tire a arma de Monsieur Latham, que você deverá guardar até terminarmos nossa conversa.
- Oui, patron. - O motorista estendeu a carteira de identidade de Latham, fazendo ao mesmo tempo um sinal com os dedos da sua mão direita para que Drew lhe desse sua arma. Reparando que o olhar de Hugo estava fixo no ligeiro volume do lado esquerdo de seu paletó, Latham enfiou lentamente a mão e tirou sua automática. - Merci, monsieur - disse o motorista, pegando a arma e entregando a Drew sua carteira de identidade. Ele pegou no cotovelo de seu patron e conduziu-os através de uma arcada até uma sala toda forrada de livros e cheia de pesadas poltronas de couro e mesas de mármore.
- Sinta-se em casa, Monsieur Latham - disse Lavolette, sentando-se numa cadeira de espaldar reto, acenando para que Drew sentasse defronte a ele. - Gostaria de beber alguma coisa? Eu sei o que quero. Conversas a esta hora exigem um toque de uva, acredito.
- Beberei a mesma coisa que o senhor.
- Da mesma garrafa, é claro - disse o ex-sacerdote, sorrindo. - Dois Courvoisiers, Hugo.
- Boa pedida - disse Latham, olhando em volta da elegante biblioteca de pé-direito alto. - Belo aposento.
- Já que sou um leitor voraz, ele me convém - concordou Lavolette. - As visitas costumam se espantar quando perguntam se já li todos os livros e respondo, "geralmente duas ou três vezes".
- Isso é muita leitura.
- Quando estiver com minha idade, Monsieur Latham, descobrirá que as palavras são muito mais permanentes do que as imagens fugazes da televisão.
- Tem gente que diz que uma imagem vale por mil palavras.
- Uma foto entre dez mil, talvez, não nego. No entanto, a familiaridade cansa, até mesmo com a pintura.
- Não sei. Nunca pensei muito a respeito.
- Não, você provavelmente não teve tempo. Na sua idade eu nunca tinha. - Seus copos largos de conhaque chegaram, o licor dentro deles enchendo-os exatamente dois centímetros e meio do fundo. - Obrigado, Hugo - prosseguiu o criptólogo aposentado e ex-sacerdote. - E se puder fechar as portas e esperar no vestíbulo, ficarei muito grato.
- Oui, patron - disse o motorista, deixando a sala e fechando as duas folhas da porta pesada.
- Muito bem, Drew Latham, qual a informação que tem a meu respeito? - perguntou rispidamente Lavolette.
- Que o senhor deixou o sacerdócio para se casar, e quando rapaz foi criptógrafo para os serviços de informação franceses. Mais que isso, praticamente nada. Exceto, é claro, Manfried Neuman. Ele me contou que o senhor o estava ajudando com seu problema.
- Ninguém pode ajudá-lo a não ser um psicólogo comportamental, que eu lhe implorei que procurasse.
- Ele disse que o senhor estava lhe dando aconselhamento religioso porque já tivera o mesmo problema.
- Isso é uma merde completa. Apaixonei-me por uma mulher e fui fiel a ela durante quarenta anos. Neuman sente o impulso de fornicar com muitas mulheres, a seletividade da escolha dependendo apenas da oportunidade e da hora. Já lhe pedi repetidamente para buscar auxílio antes que se destrua... Veio aqui a esta hora me dizer isto?
- Sabe que não. Sabe por que estou aqui porque percebi sua expressão quando eu disse quem era. Tentou esconder sua reação, mas foi como se tivesse recebido um soco no estômago. Neuman contou-lhe a meu respeito e o senhor contou a mais alguém. A quem?
- Você não compreende, nenhum de vocês é capaz de compreender - engasgou Lavolette, respirando fundo.
- Compreender o quê?
- Eles nos mantêm a todos com cordas nos pescoços, e não apenas em nossos pescoços - disto seria fácil nos livrarmos - mas há outros, tantos outros!
- Neuman lhe contou quem era o coronel Webster, não contou? Que ele era um sujeito chamado Latham!
- Não foi voluntariamente. Eu arranquei-o dele, já que conhecia a situação. Obrigatoriamente.
- Por quê?
- Por favor, sou um velho e só me resta muito pouco tempo. Não queira tornar minha vida mais complicada do que já é.
- Deixe-me dizer-lhe, padre, o seu gorila lá fora pode estar com minha arma, mas minhas mãos são tão boas quanto qualquer arma. Que diabo o senhor fez?
- Escute, meu filho. - Lavolette bebeu seu conhaque em dois goles, o tremor voltando à sua cabeça. - Minha mulher era alemã. Conheci-a quando a Santa Sé me mandou para a igreja do Santíssimo Sacramento em Mannheim, depois da guerra. Ela era casada e tinha dois filhos de um marido violento, um ex-oficial da Wehrmacht que dirigia uma empresa de seguros. Nós nos apaixonamos desesperadamente, e deixei a Igreja de modo que pudéssemos viver juntos pelo resto de nossas vidas. Ela se divorciou do marido num tribunal suíço, mas de acordo com a lei alemã o marido ficou com a guarda dos filhos... Eles cresceram e eles mesmos tiveram filhos, e em seguida esses filhos começaram a ter filhos. Existem dezesseis membros nas duas famílias que representam o tronco de minha mulher, e ela era dedicada a todos eles, tal como eu vim a ficar.
- Ela se manteve em contato com eles, então?
- Ah, sim. Tínhamos nos mudado para a França, onde comecei o meu negócio, ajudado bastante pelos meus ex-camaradas dos serviços, e com o passar dos anos, as crianças vinham nos visitar com frequência, tanto aqui em Paris, como, durante o verão, na nossa casa de Nice. Aprendi a amá-las como se fossem minhas.
- Estou surpreso que o pai delas deixasse que vissem sua mãe - disse Drew.
- Acho que ele pouco estava se lixando, a não ser pelas despesas, que eu me sentia feliz em poder pagar. Ele casou de novo e teve mais três filhos com sua segunda mulher. Os dois filhos mais velhos passaram a representar mais um estorvo, acredito, que lhe lembrava um padre intrometido que quebrara seus votos e atrapalhara a vida de um homem de negócios alemão. A vida de um oficial da Wehrmacht... Agora está começando a entender?
- Meu Deus - sussurrou Latham, seus olhos mais uma vez cravados nos olhos de Lavolette. - Foi uma barganha. Ele ainda é um nazista.
- Exatamente, exceto que ele não conta mais, morreu há vários anos. Entretanto, deixou sucessores, penhores facilmente aceitos pelo movimento.
- Seus próprios filhos e os filhos de seus filhos, perfeitas vias de acesso a um ex-sacerdote, que já fora altamente apreciado e ainda merecia a confiança dos serviços secretos franceses. Uma barganha, e eu sou a peça de xadrez.
- Sua vida, Sr. Latham, pelas vidas de dezesseis homens, mulheres e crianças inocentes, peões, de fato, num jogo mortífero sobre o qual nada sabem. O que teria feito em meu lugar?
- Provavelmente o que fez - concordou Drew. - Agora, o que foi que o senhor fez? Com quem entrou em contato?
- Eles poderiam todos terem sido mortos, compreende?
- Não se a coisa for feita direito, e farei o máximo esforço para que seja assim. Ninguém sabe que vim aqui, e isto lhe beneficia. Diga-me!
- Há um homem, odeio ter de dizer, um outro sacerdote, mas não da minha Igreja. Um ministro luterano e bastante jovem, com trinta e tantos ou quarenta e poucos anos, diria. Ele é o líder deles aqui em Paris, o contato principal com a hierarquia nazista em Bonn e Berlim. Seu nome é reverendo Wilhelm Koenig, e seu culto é em Neuilly-sur-Seine, é a única igreja luterana da região.
- Já encontrou-o?
- Nunca. Quando há documentos que preciso enviar-lhe, mando um paroquiano no interesse de nossa Associação de Aliança Cristã, ou alguém muito velho, ou muito jovem, cujo único objetivo são os francos que recebem. Naturalmente que indaguei de alguns e soube sua idade e descrição aproximadas.
- Como ele se parece?
- É bastante baixo e muito atlético, muito musculoso. Ele possui uma academia, com vários equipamentos e halteres, no porão da sua igreja. É lá que encontra mensageiros, sem o seu colarinho, e sempre sentado numa dessas bicicletas ergométricas, ou numa máquina de musculação para o tórax, aparentemente para esconder sua pequena estatura.
- Está presumindo isto, é claro.
- Trabalhei para o serviço secreto francês, monsieur, mas não precisei de nenhum treino apara aprender isto. Mandei um devoto de doze anos entregar-lhe um pacote, e Koenig ficou tão excitado que saltou de uma máquina qualquer na qual estava sentado, e o garoto me disse: "Acho que ele não chega a ser do meu tamanho, padre, mas meu Deus, é músculo puro."
- Não deve ser difícil de localizar, então - disse Latham acabando seu conhaque e se levantando da cadeira. - Koenig tem um codinome?
- Sim, conhecido por não mais do que cinco pessoas na França. É Héracles, um filho de Zeus na mitologia grega.
- Obrigado, Monsieur Lavolette, e tentarei proteger a família de sua mulher na Alemanha. Mas como disse a outra pessoa esta noite, é só isso que posso prometer. Há uma outra pessoa que vem primeiro.
- Vá com Deus, meu filho. Muitos acham que perdi meu privilégio de dizer isto, mas estou convencido de que Ele não perdeu sua fé em mim. Às vezes este mundo é terrível, e todos nós precisamos agir segundo o livre-arbítrio que Ele nos legou.
- Tenho alguns problemas com esse cenário, padre Lavolette, mas não o aborrecerei com eles.
- Obrigado por não fazê-lo. Hugo devolverá a sua arma e o conduzirá até a saída.
- Tenho um último pedido, se for possível.
- Isso depende de quê, não é?
- Um pedaço de corda ou de arame, uns três metros e pouco bastam.
- Para quê?
- Ainda não tenho certeza. Só acho que preciso disso.
- Vocês agentes de campo foram sempre tão misteriosos.
- Depende do terreno - disse Drew em voz baixa. - Quando não sabemos o que jaz à frente, tentamos imaginar as possibilidades. Não existem tantas assim.
- Hugo arranjará o que você precisa. Diga-lhe para procurar na despensa.
Eram três e dez da madrugada quando Latham chegou a paróquia luterana em Neuilly-sur-Seine. Dispensou o táxi e se aproximou da igreja, que era ligada a uma reitoria por uma colunata curta e apertada. Estava tudo escuro, a não ser o céu noturno límpido, iluminado por uma brilhante lua parisiense, perfeitamente enquadrado entre as duas construções. Latham passou quase vinte minutos andando em volta da área, observando cada janela e porta do térreo, concentrando-se nos aposentos particulares da reitoria, onde o líder neonazista morava. A igreja era fácil de ser arrombada, o que não acontecia com os aposentos particulares; estavam minados ao máximo, os cabos de alarme à mostra em todo canto.
Fazer disparar o alarme poderia assustar o nazista, mas também seria o mais negativo dos avisos. Drew tinha o número e o endereço da paróquia. Tirou o telefone celular fornecido por Witkowski de um bolso no paletó, e seu livro de anotações fininho de outro. Pesou suas palavras, leu o número e discou.
- Allô, allô? - respondeu a voz masculina de timbre agudo, na segunda chamada.
- Falarei inglês porque sou uma Sonnenkind criada na América...
- O quê?
- Vim para uma conferência em Berlim e fui instruído para entrar em contato com Héracles antes de voltar a Nova York. Meu avião ficou atrasado pelas condições de tempo, se não eu teria chegado aqui horas antes, e meu voo para os Estados Unidos sai dentro de três horas. Precisamos nos ver. Agora.
- Berlim..."Héracles"...? Quem é você?
- Não gosto de me repetir. Sou uma Sonnenkind, o Führer das Sonnenkinder da América, e exijo respeito de sua parte. Tenho informações que precisa receber.
- Onde está você?
- A dez metros de sua porta da frente.
- Mein Gott! Eu não ouvi nada parecido com isto!
- Não houve tempo. Os canais de sempre não podiam ser utilizados, porque você está grampeado.
- Não posso acreditar!
- Acredite, se não usarei este telefone para falar com Berlim, até mesmo Bonn, e outras instruções chegarão removendo Héracles de seu cargo. Desça e venha ter comigo dentro de trinta segundos ou ligarei para Berlim.
- Não! Espere! Já estou indo!
Bem antes de se ter passado um minuto, as luzes no andar de cima se acenderam, seguidas das luzes no térreo. A porta da frente se abriu e o reverendo Wilhelm Koenig, de pijamas e embrulhado numa manta azul, apareceu. Drew observou-o das sombras no gramado. Era de fato um homem baixo, mas com ombros poderosos e pernas grossas, assemelhando-se de certo modo a um bull mastiff, com as pernas bastante arqueadas. E tal como um buldogue enorme, seu rosto grande contraído tinha uma expressão de desafio, como se estivesse preparado para atacar.
Latham saiu da escuridão do gramado e entrou na área iluminada da entrada.
- Por favor, venha aqui, Héracles. Vamos conversar aqui fora.
- Por que não entra? O ar está frio; é muito mais confortável lá dentro.
- Não estou sentindo frio em absoluto - disse Drew. - Para dizer a verdade, está meio quente e úmido.
- Então nosso ar condicionado seria preferível, não?
- Minhas instruções eram para não conduzir nenhuma conversa dentro de sua reitoria; o sentido era óbvio.
- Que eu gravaria tudo que seria dito, incriminando-me? - exclamou Koenig num ríspido sussurro, saindo para a rua. - Está verrückt?
- Outro sentido poderia ser tirado da insinuação.
- Tal como?
- A casa estaria grampeada pelos franceses.
- Impossível! Temos equipamento que funciona sem parar e que detectaria qualquer intrusão.
- Novas tecnologias surgem todo dia, reverendo. Vamos lá, faça a vontade de nossos superiores em Berlim, mesmo se estiverem errados. Francamente, é o que ambos devemos fazer.
- Muito bem. - Koenig começou a descer o único degrau do pórtico, quando Drew interrompeu-o.
- Espere aí.
- O quê?
- Desligue as luzes e feche a porta. Nenhum de nós quer que uma patrulha da polícia nos detenha, não é?
- Tem razão.
- Quem mais está na casa?
- Meu assistente, cujos aposentos ficam no sótão, e meus dois cachorros que estão na cozinha até eu chamá-los.
- Pode desligar as luzes de cima daqui embaixo?
- Do corredor, sim, mas não do quarto.
- Desligue-as também.
- Você é excessivamente cauteloso, Herr Sonnenkind.
- Fruto de minha educação, Herr Demeter.
O pastor entrou; segundos mais tarde as luzes, tanto de cima quanto de baixo, foram desligadas, quando de repente Koenig gritou: - Hunde! Aufrug! - No momento em que o líder neo voltou para a porta, o luar revelou duas silhuetas adicionais, cada uma de seu lado. Eram baixos, com a cabeça grande, troncos largos, e apoiados em pernas ligeiramente arqueadas. Os cães do reverendo se pareciam um pouco com o próprio reverendo; eram pit bulls.
- Estes são meus amigos, Donner e Blitzen; os garotos da paróquia gostam dos nomes. São completamente inofensivos até dar-lhes uma ordem específica que, é claro, não posso repetir, se não eles o fariam em pedacinhos.
- Berlim não gostaria disso.
- Então não me dê motivos para fazê-lo - prosseguiu Koenig, caminhando no gramado, seus guardas acompanhando-o a seu lado. - E por favor, não faça comentários sobre a semelhança dos donos com seus animais de estimação, ou vice-versa. Vivo ouvindo isto o tempo todo.
- Não posso imaginar por quê. Você é um pouquinho mais alto.
- Não é engraçado, Sonnenkind - disse o nazista, olhando para cima para Drew e jogando sua larga manta azul sobre um ombro, ocultando sua mão esquerda. Não era difícil imaginar o que Koenig segurava sob o pano. - Que informação é essa de Berlim? Eu a confirmarei, é claro.
- Não desta casa - retrucou firmemente Latham. - Desça a rua, ou melhor até, vá a outro bairro e ligue para quem quiser, mas não daqui. Você já está numa enorme enrascada, não piore as coisas. Isto é o conselho de um amigo.
- Estão falando sério, então? Acreditam que apesar de todas as minhas precauções, estou sendo vigiado.
- Certamente que sim, Héracles.
- Baseado em quê?
- Primeiro, querem saber se você está com a mulher.
- De Vries?
- Acho que é esse o nome dela, não tenho certeza; a ligação estava terrível. Devo ligar para Berlim dentro de uma hora.
- Como poderiam sequer saber a respeito dela? Nós ainda não fizemos nosso relatório! Estamos esperando por resultados.
- Presumo que tenham gente infiltrada na inteligência francesa, a Sûreté, organizações como essa.... Olha, Koenig, eu não quero saber nada que não seja da minha alçada, já tenho problemas suficientes lá nos Estados Unidos. Só quero que me dê as respostas para que possa retransmiti-las a nossos superiores. Você está com essa mulher, seja lá quem for?
- Claro que sim.
- Não a mataram. - Foi uma afirmação, não uma pergunta.
- Ainda não. Dentro de algumas horas nós o faremos, se não produzir resultados. Jogaremos seu corpo nos degraus da embaixada americana.
- Que resultados? E não me dê uma porção de fatos complicados, apenas um resumo, de modo a satisfazê-los. Acredite, é de seu interesse.
- Muito bem. À primeira luz da aurora nossa equipe entrará em contato com o amante dela, esse Latham, dizendo que se quiser ainda vê-la viva, deverá vir a um encontro, num parque, ou num monumento, algum lugar em que vários de nossos atiradores de elite possam se esconder. Ao chegar, uma barreira de balas matará a ambos.
- Onde é esse encontro?
- Isto será uma decisão da equipe, não minha. Não tenho a menor ideia.
- Onde está ela sendo mantida?
- Por que haveria isso de preocupar Berlim? O neonazista de repente fez uma careta, olhando interrogativamente para Drew. - Jamais quiseram antes informação tática deste tipo.
- Como é que eu vou saber? - Diante do alteamento de sua voz, os mortíferos pit bulls rosnaram. - Estou simplesmente repetindo o que me pediram para perguntar! - Latham em sua ansiedade podia sentir o suor a escorrer pelo seu rosto. Controle-se, porra, controle-se! Só mais alguns instantes!
- Está bem. Por que não? - disse o pit bull baixinho de duas pernas. - Aquilo que foi posto em movimento não pode ser descarrilado por gente que está a oitocentos quilômetros de distância. Ela está num apartamento na rue Lacoste, número vinte e três.
- Que apartamento?
- A equipe nunca me disse. Estava para alugar e eles nem sequer têm telefone. Naturalmente, de manhã cedo irão desaparecer, e determinado senhorio ficará com vários meses de aluguel e nenhum inquilino.
Primeiro passo, pensou Drew. Segundo passo era se livrar da porra dos cachorros e ficar com Koenig à sua disposição.
- Isso parece ser tudo que Berlim pode exigir - disse ele.
- Agora, qual a informação para mim? - perguntou o luterano nazista.
- São ordens, mais do que informações - disse Latham. - Você deve encerrar temporariamente todas as atividades, sem dar nem receber instruções de ninguém. Na hora certa, Berlim entrará em contato e o mandará recomeçar as operações. Além disso, se quiser confirmar essas ordens que estou transmitindo, faça-o através dos mais baixos escalões, de preferência através da Espanha ou Portugal.
- Isso é loucura! - engasgou o pequenino pastor, enquanto os dois cachorros rosnavam e batiam os queixos simultaneamente. - Halten! - gritou ele, acalmando os animais. - Sou o homem mais seguro da França!
- Mandaram-me dizer-lhe que era isto que alguém chamado André achava, e agora está liquidado.
- André?
- Você me ouviu, e eu não sei quem é, nem o que representa.
- Mein Gott. André! - A voz do nazista tornou-se fraca, a perplexidade e o medo tomaram conta de suas feições. - Ele era tão getarnt!
- Desculpe, não o entendo, as células na América não querem que todos nós saibamos alemão. Acharam que seria um ponto fraco.
- Não tinha possibilidade de ser descoberto.
- Suponho que não. Berlim disse algo a respeito dele voltar para Estrasburgo, seja lá onde isso for.
- Estrasburgo? Então você sabe.
- Não sei porra nenhuma, e não quero saber. Quero apenas chegar a Heathrow e pegar um avião para Chicago.
- O que devo fazer?
- Já lhe disse antes, Héracles. De manhã ligue para seus pontos de retransmissão na Espanha e Portugal - de um telefone longe daqui - confirme minhas ordens, e faça o que Berlim mandar. Não posso ser mais claro, posso?
- Tudo ficou tão confuso...
- Confuso, que diabo - disse Latham começando a pegar no cotovelo de Koenig, quando os pit bulls rosnaram. - Vamos lá, diga a seus cães para entrarem, que eu o seguirei. Pelo menos, você me deve um drinque.
- Ah, certamente... Rein - ordenou Koenig, enquanto os dois pit bulls entraram correndo pela porta aberta. - Muito bem, Sonnenkind, entre.
- Ainda não - disse Drew, batendo a porta de repente e puxando o neo para fora, arrancando a manta azul de seus ombros, expondo a pequena automática na sua mão esquerda. Antes que o perplexo Koenig pudesse reagir, Latham agarrou a arma, torcendo-a violentamente no sentido anti-horário, esperando que o pulso do nazista estalasse, ou a arma caísse; soltou-se na medida em que os dedos de Koenig se abriram de dor. Drew apanhou-a e jogou-a no meio da grama escura.
O que se seguiu foi nada mais nada menos que uma luta de morte entre dois animais humanos, pit bulls, talvez, cada um tendo objetivos que o obcecavam, um ideológico, o outro, intensamente pessoal. Koenig era um verdadeiro gato em fúria, arremetendo em mortíferos ataques com suas garras; Latham era o lobo maior, rosnando, com as presas descobertas, mergulhando constantemente para pegar a garganta - na atual situação, para pegar qualquer parte que pudesse segurar, manter segura, imobilizar. No final, o tamanho e a força do lobo prevaleceram. Ambos os animais, sangrando e exaustos, sabiam quem tinha vencido o combate. Koenig jazia no chão, com um braço quebrado, o outro destroncado, os músculos de ambas as coxas parcialmente paralisados. Latham, com as mãos raladas e sangrando, com o peito e barriga tão golpeados a ponto de quase vomitar, ergueu-se acima do nazista, cuspindo na direção de seu rosto.
Drew ajoelhou-se, desenrolando o pedaço de corda dado por Hugo de seu cinto, passando a amarrar o líder neo, os braços e as pernas atadas atrás da coluna de Koenig; com cada repuxão, a corda se tornava mais apertada. Finalmente, Latham rasgou a manta azul era tiras, como fizera com os lençóis no hotel Normandie, e amordaçou o falso ministro de Deus. Consultando o relógio, arrastou Koenig para dentro dos arbustos, deu-lhe umas cutiladas que o tornaram inconsciente, tirou seu telefone e discou para Stanley Witkowski.
32
- Seu filho da puta! - vociferou o coronel. - Moreau quer botar essa sua bunda diante de um pelotão de fuzilamento e não posso dizer que ele não tenha toda razão!
- Seus dois homens se soltaram, então?
- O que você pensa que estava fazendo? O que está fazendo?
- Se você se acalmar por um instante ou dois, eu lhe darei as informações.
- Me acalmar? Ah, eu tenho mil motivos para ficar calmo. Courtland foi chamado ao Quai d’Orsay amanhã de manhã para levar as palmadas em seu lugar; você será declarado persona non grata e expulso do país; um protesto formal foi feito por um governo estrangeiro contra mim, e você vem me dizer para ficar calmo?
- Moreau está atrás disto tudo?
- Não, é a Fada Sininho.
- Então podemos controlá-lo.
- Está me ouvindo? Você agrediu dois agentes do Deuxième, amordaçou-os e sequestrou-os, amarrando-os, de modo que ficaram horas sem poderem se comunicar, atrapalhando assim uma importante investigação dos serviços de informação franceses.
- Sim, Stanley, mas fiz progressos, o tipo de progresso que Moreau deseja mais do que tudo.
- O que...
- Mande uma unidade de fuzileiros até uma igreja luterana em Neuilly-sur-Seine. - Latham deu o endereço a Witkowski e descreveu como Koenig estava amarrado dentro dos arbustos. - Ele é o grande machão do movimento neonazista em Paris, mais importante, acho, do que Estrasburgo, pelo menos seu disfarce é melhor.
- Como encontrou-o?
- Não há tempo para isso agora. Ligue para Moreau e mande os fuzileiros levarem Koenig para o Deuxième Bureau. Diga a Claude por mim que é artigo autêntico.
- Ele vai querer mais do que um pastor luterano meio amassado. Cristo, você pode estar pirado e ele seria expulso a toque de caixa de seu cargo, e ainda enfrentaria todo tipo de processos.
- Não há como. O codinome de Koenig é Héracles, tirado da mitologia.
- Da mitologia grega? - interrompeu o coronel. - Héracles é um filho de Zeus, conhecido pelas suas proezas baseadas na sua força física.
- Isso é ótimo - disse Drew com simpatia. - Agora, ponha as coisas para andar, o que não deverá levar mais do que um minuto ou dois. Em seguida quero que você venha me encontrar...
- Te encontrar? É melhor eu dar um tiro na cabeça!
- É melhor adiar isto, Stanley. Sei onde estão mantendo Karin.
- O quê?
- No vinte e três da rue Lacoste, apartamento desconhecido, mas recém-alugado.
- Você arrancou isto do padre?
- Na realidade, não foi difícil. Ele estava com medo.
- Estava com o quê...?
- Não há tempo, Stosh! Tem que ser só você e eu. Se eles sequer desconfiarem de uma conversa, ou virem um ou dois carros estranhos estacionarem a essa hora na rua, hão de matá-la. Aliás, pretendem fazer exatamente isto dentro de mais ou menos uma hora, se não conseguirem me descobrir e me obrigar a sair da toca.
- Eu o encontro cem metros a leste do prédio, no meio do caminho entre dois postes, na fachada da loja mais escura, ou em alguma viela.
- Obrigado, Stanley, e digo-o sinceramente. Sei quando uma operação solo pede mais alguém, e não há ninguém melhor do que você.
- Não tenho escolha. Não há como surgir com um codinome feito Héracles, se não fosse verdade.
Karin de Vries estava sentada na cadeira de espaldar reto, as mãos atadas atrás das costas, com um esguio assassino neonazista sentado diante dela, as pernas enganchadas no assento de uma cadeira de madeira de cozinha, e os braços descansando no encosto, com uma pistola displicentemente segura na sua mão direita, uma pistola com um grande cilindro no cano. Um silenciador.
- Por que acha que seu marido está vivo, Frau de Vries? - perguntou o nazista em alemão. - Para ser mais exato, se um por um desses acasos da imaginação ele estivesse, por que haveríamos nós de saber alguma coisa a seu respeito? Na realidade, minha cara senhora, ele foi executado pela Stasi, isso é bem sabido.
- Pode ser bem sabido, mas é mentira. Quando você vive com um homem oito anos, conhece a sua voz ao ouvi-la, não importa quão distorcida ou confusa.
- Isso é fascinante. Ouviu a sua voz?
- Duas vezes.
- Os arquivos da Stasi afirmam o contrário, bem categoricamente, posso acrescentar.
- Esse é o problema - disse Karin friamente. - Foi categórico demais.
- Não faz sentido.
- Até mesmo os piores elementos da Gestapo não descreviam com detalhes a tortura e a execução de prisioneiros. Não era interessante para eles.
- Isto foi antes do meu tempo.
- Do meu também, mas existem registros. Talvez devesse lê-los.
- Não preciso de seus conselhos, madame... Essas vozes, como chegou a ouvi-las?
- Como poderia? Por telefone, é claro.
- Pelo telefone? Ele lhe ligou?
- Não usando o nome dele, mas dando-me um tipo de descompostura à qual eu já estava acostumada a ouvir dele durante o último ano de nosso casamento, antes de ele ser presumivelmente executado pela Stasi.
- É claro que deve ter desafiado esta pessoa no telefone, não foi?
- Isto apenas fez com que seus gritos se tornassem mais maníacos. Meu marido é um homem muito doente, Herr Nazi.
- Tomo seu modo de me chamar como um elogio - disse o neo, sorrindo e girando sua pistola na mão. - Por que diz que seu marido é um homem doente, ou, para me exprimir de outro modo, por que me diz isto?
- Porque acho que ele é um de vocês.
- Um de nós? - perguntou incredulamente o alemão. - Freddie de V., o provocador de Amsterdã, o inimigo figadal do movimento? Perdoe-me, Frau de Vries, mas agora você está fora de seu juízo perfeito! Como poderia acontecer algo assim?
- Ele se apaixonou pelo ódio, e vocês são a personificação do ódio.
- A senhora está além da minha compreensão.
- Estou além da minha própria, pois não sou nenhuma psicóloga, porém tenho certeza de que estou certa. Seu sentimento de ódio ficou à deriva, e no entanto, não poderia viver sem ele. Vocês fizeram algo com ele - sobre o qual tenho uma hipótese, mas nenhuma prova. Vocês o fizeram canalizar, canalizaram seu ódio contra tudo que ele acreditava...
- Já ouvi bastante dessa bobagem. Você é realmente louca!
- Não, estou no meu juízo perfeito. Até desconfio de que sei como vocês conseguiram.
- Conseguiram o quê?
- Fazê-lo se virar contra seus amigos, os inimigos de vocês.
- E como foi que conseguimos fazer este milagre?
- Tornaram-no dependente de vocês. Durante seus últimos meses, suas mudanças de ânimo tornaram-se mais extremas... Passava a maior parte do tempo fora, tal como eu, mas quando nos reuníamos, era um homem diferente, ora deprimido, ora violento. Havia dias em que ele parecia uma criança, um garotinho que queria tanto um brinquedo que quando não o obtinha, fugia do apartamento e ficava horas afastado. Em seguida voltava, contrito, pedindo perdão pelas suas explosões.
- Madame - exclamou o nazista. - Não tenho a menor ideia do que está falando!
- Drogas, Herr Nazi, estou falando de drogas. Acredito que vocês fornecem drogas a Frederik, e é por isso que ele ficou dependente de vocês. Com certeza mantêm-no em algum retiro na montanha, satisfazendo seu vício, ou vícios, extraindo informação dele toda vez que há uma jogada contra vocês. Ele é um verdadeiro manancial de segredos, até mesmo de segredos que já esqueceu.
- Você está maluca. Se tivéssemos um sujeito assim, há outros tipos de drogas que poderiam revelar esses segredos em poucos minutos. Por que haveríamos de gastar tempo e dinheiro prolongando sua vida?
- Porque os Amitals e os derivados de escopolamina não podem revelar segredos há muito esquecidos.
- Então de que valeria uma fonte assim?
- As situações mudam, as circunstâncias variam. Quando vocês se deparam com um obstáculo, seja um homem, ou uma estratégia, informam-lhe a respeito e surgem as recordações. Identidades podem ser reveladas, estratégias antes conhecidas podem ser explicadas.
- Meu Deus, você leu romances demais.
- Nosso mundo - o seu, e não faz tanto tempo, o meu - é em grande parte baseado em hipóteses fictícias.
- Basta! Você é acadêmica demais para mim... No entanto, eis uma pergunta, Frau de Vries. Se essa hipótese fictícia fosse correta e nós tivéssemos seu marido nas condições que descreveu, por que deseja encontrá-lo? É um reatamento o que quer?
- É a última coisa que desejo, nazista.
- Então por quê?
- Eu diria que é para satisfazer minha curiosidade mórbida. O que faz um homem se tornar outro homem completamente diferente daquele que você conheceu? Como pode viver perante si mesmo?... Ou, poder-se-ia dizer que se estivesse no meu alcance, eu gostaria de vê-lo morto.
- Estas são palavras graves - disse o neo, se inclinando para trás na cadeira, com a pistola apontada de brincadeira para sua cabeça. - Bum! Faria isto se pudesse?
- Provavelmente.
- Mas é claro. Você arranjou outro, não é? Um agente secreto americano, um agente muito famoso da CIA chamado Harry Latham.
Karin gelou, com a expressão imóvel.
- Isso é irrelevante, ele é irrelevante.
- Nós não achamos, madame. São amantes, sabemos com certeza.
- Podem ficar sabendo o que quiserem, não muda a realidade. Por que estão interessados em... Harry Latham?
- Você sabe por que tão bem quanto nós. - O neo sorriu, apoiando os dois calcanhares no chão, cavalgando a cadeira, um sorridente cavaleiro. - Ele sabe coisas demais a nosso respeito. Infiltrou-se em nosso antigo quartel-general em Hausruck e viu coisas, soube de coisas que não deveria ter visto nem sabido. Mas é apenas questão de uma hora, talvez duas, e ele deixará de ser um espinho para nossos superiores. Seguiremos as ordens até os menores detalhes, inclusive um tiro de misericórdia na parte esquerda do crânio. Está vendo como somos maravilhosamente específicos? Não somos nada hipotéticos, muito menos fictícios. Somos a realidade, vocês a ficção. Vocês não podem fazer nada para nos barrarem.
- Por que seu crânio, a parte esquerda de seu crânio? - perguntou de Vries numa voz monótona, hipnotizada pelas palavras do nazista.
- Nós ficamos imaginando por quê, mas aí um de nossos jovens recrutas, um sujeito muito instruído, nos forneceu a resposta. Remete ao século dezesseis, quando os soldados condenados eram executados por um único oficial. Se o condenado tivesse mostrado coragem no combate, era alvejado do lado direito da cabeça; se não tivesse nenhuma qualidade que o redimisse, era alvejado do lado esquerdo - sinistra em italiano, que foi onde começou o costume, sinistro em inglês. Harry Latham é lixo, preciso dizer mais?
- Isso me parece um ritual bárbaro - disse Karin, mal se podendo fazer ouvir, enquanto olhava fixamente para o assassino magro e musculoso.
- Os rituais, cara senhora, são a base de toda disciplina. Quanto mais antigos, quanto mais imbuídos de tradição, mais dignos de serem cultuados.
Houve um breve ruído de estática no quarto vizinho, seguido de uma voz abafada de homem falando em alemão. A voz parou e instantes depois outro neo apareceu na porta, este mais jovem do que o interrogador de de Vries, porém não menos esguio e musculoso.
- Era Berlim no rádio - disse ele. - As autoridades de Paris estão no escuro, não conseguiram nenhuma pista, por isso devemos prosseguir como combinado.
- Foi uma comunicação inútil. Como poderiam eles obter alguma pista?
- Bem, havia os cadáveres do lado de fora do hotel Normandie...
- E um veículo do Deuxième no fundo do Sena. E daí?
- Disseram para nos assegurarmos de que tudo - bem, sabe o que quero dizer - o Château de Vincennes, ao norte do Bois.
- Sim, sei a que você e Berlim se referem. Alguma coisa mais?
- Começará a clarear dentro de uma hora.
- Helmut está a postos, não está?
- Está, e com as palavras que deverá dizer.
- Diga-lhe para fazer a ligação dentro de vinte minutos.
- Mas ainda estará escuro.
- Sei disto. Melhor para gente chegar ao lugar e fazer um reconhecimento, não?
- Como sempre, é brilhante.
- Sei disso também. Vá! - O segundo neo desapareceu e o interrogador virou-se para Karin. - Lamento dizer que sou obrigado a lhe amordaçar, Frau de Vries, um serviço bastante completo. Em seguida desamarrarei as cordas e você nos acompanhará.
- Para onde mais iremos, a não ser para minha morte?
- Não seja tão pessimista. Matá-la não é nossa prioridade.
- E Hitler protegia os judeus.
- Ach, você consegue ser realmente divertida.
Latham fez contato com Witkowski aproximadamente a oito metros do número 23 da rue Lacoste, numa viela estreita e escura.
- Ótimo local - disse Drew.
- Não há outro. Não sei quem paga a conta da luz da Cidade das Luzes, mas deve ser horrível.
- Por falar em luzes, essa será a única maneira de podermos entrar no apartamento.
- Errado - disse o coronel. - Fica no quinto andar, no canto oeste.
- Está brincando.
- Não costumo brincar quando carrego duas automáticas com silenciosos feitos sob encomenda, quatro pentes de munição e uma versão curta de uma MAC-10 sob a capa.
- Como descobriu?
- Graças a Moreau, que ainda está a fim de te pegar, mas que recebeu seu pacote.
- Koenig?
- Isso mesmo. O engraçado é que a Sûreté tinha o prelado nos seus arquivos.
- Como neo?
- Não, pela sua predileção por garotos do coro. Cinco denúncias anônimas recebidas.
- E quanto ao apartamento?
- Claude fez uma investigação sobre o dono do prédio, o resto foi fácil. Ninguém quer ter problemas com uma instituição que pode botar o imposto de renda e a saúde pública em cima de você.
- Stanley, você é uma maravilha.
- Não sou não, Moreau é que é, e faz parte do acordo que você peça desculpas a seus homens, compre-lhes presentes caros e leve-os para um jantar muito, muito caro no Tour d’Argent. Com suas famílias.
- Lá se vão dois meses de salário!
- Aceitei em seu nome... Agora vamos planejar como fazer isto sem dar problemas.
- Primeiro entramos, em seguida subimos as escadas - respondeu Latham. - Fazendo muito pouco barulho e com muita tranquilidade.
- Terão sentinelas nas escadas. Melhor de elevador. Seremos dois bêbados cantando algo como "Auprès de Ma Blonde", alto, mas não demasiadamente alto.
- Nada mal, Stosh.
- Eu já andava por aí quando você mandava pedir brindes pelo correio oferecidos nas caixas de cereais. Pegamos o elevador até o sexto ou sétimo andar e descemos. Mas você tem razão quanto a sermos silenciosos e cautelosos, por isto eu lhe dou crédito.
- Obrigado pelos elogios. Eu os porei no meu currículo.
- Se você se safar disto, precisará de algo mais enfático do que isto. Tenho uma vaga noção de que Wesley Sorenson vai gostar de vê-lo assumir um posto qualquer na Mongólia Exterior. Agora vamos. Mantenha-se colado ao prédio; do quinto andar, a linha de visão deles é negativa.
Latham e Witkowski, um atrás do outro, subiram devagar a Lacoste, mergulhando seguidamente nas entradas, até alcançarem o número 23. A entrada era ao rés do chão; entraram no pórtico, testaram a porta trancada do vestíbulo, e em seguida examinaram a lista de apartamentos e de seus moradores.
- Sei como fazer isto - disse o coronel, sua mão se estendendo para apertar o botão do interfone de um apartamento do nono andar. Quando uma voz de mulher espantada e sonolenta respondeu, ele falou em francês fluente. - Meu nome é Capitaine Louis d’Ambert da Sûreté. Pode ligar para minha seção para confirmar minha identidade, porém o tempo é crucial. Há uma pessoa perigosa no prédio que pode pôr em perigo a vida dos moradores. Precisamos entrar e prendê-la. Olha, deixe-me dar o número da minha seção na Sûreté para que possa averiguar.
- Não é preciso! - respondeu a mulher. - Hoje em dia o crime está presente em todos os lugares - criminosos, assassinos, no nosso próprio prédio! - Ouviu-se o zumbido do interfone e Drew e Witkowski entraram.
O elevador ficava à esquerda; o indicador em cima mostrava que o carro estava no quarto andar. Latham apertou o botão; o mecanismo interno começou imediatamente o seu fragor. Quando a porta se abriu, uma luz no painel interno indicou que alguém no quinto andar apertara o botão vermelho de descida.
- Temos prioridade - disse Stanley. - Aperte o segundo andar.
- São os neos - sussurrou Drew. - Devem ser eles!
- A esta hora, imagino que tenha razão - concordou o coronel. - Por isso vamos sair, descer pelas escadas, ficar escondidos lá atrás no vestíbulo, e verificar se nossas intuições ainda merecem crédito.
Foi o que fizeram. Desceram correndo até o térreo e foram se agachar na extremidade do vestíbulo forrado de azulejos, observando o elevador chegar e Karin de Vries, com todo o rosto tapado por fitas, surgir acompanhada por três homens, todos eles vestidos em roupas civis normais.
- Halt! - gritou Witkowski, emergindo rápido das sombras, com Latham a seu lado, empunhando suas armas. O neo mais longe virou-se, tentando alcançar o coldre debaixo do braço. Mas o coronel disparou a automática com o silenciador; o homem tornou a se virar, agarrando o braço e caindo ao chão. - Isso foi mais fácil do que pensei, chlopak - prosseguiu Witkowski. - Esses superaria-nos não são tão espertos quanto pensam.
- Nein! - berrou o líder óbvio dos três, agarrando Karin e se escudando nela, em seguida sacando sua pistola. - Se fizerem um gesto, esta mulher morre! - gritou ele, com a arma encostada na têmpora direita de de Vries.
- Então eu devo ter demonstrado coragem em combate - disse Karin com frieza, arrancando a fita do rosto.
- Was?
- Você deixou claro que teria de dar o tiro de misericórdia em Harry Latham do lado esquerdo do seu crânio. Sua arma está do meu lado direito.
- Halt’s Maul!
- Só estou satisfeita que não me considera um lixo, que não sou covarde. Minha execução será pelo menos honrosa.
- Fique quieta! - O líder nazista arrastou-a, com os calcanhares raspando no chão, em direção à porta. - Joguem fora suas armas - gritou ele.
- Deixe cair, Stanley.
- Naturalmente - disse o coronel.
Então uma voz veio da escada, uma voz zangada falando francês.
- Que confusão é essa toda? - gritou uma senhora idosa de camisola, descendo a escada. - Eu pago um aluguel bastante alto para ter uma boa noite de sono depois de trabalhar o dia inteiro na padaria e tenho de aguentar isto?
Com a súbita interrupção, Karin se libertou correndo dos braços de seu algoz, na hora em que Witkowski sacou sua segunda automática de sob a capa. Quando de Vries se abaixou, ele deu dois tiros, um na testa do neo e outro na sua garganta.
- Mon Dieu! - gritou a mulher na escada, subindo correndo os degraus.
Latham correu até Karin, segurando-a com força, seus dois braços como se fossem dois tenazes extremamente fortes.
- Estou bem, querido, estou bem! - disse ela, ao ver as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. - Pobre querido - prosseguiu ela. - Já passou, Drew.
- Passou porra nenhuma! - berrou o coronel, mantendo os dois neos vivos imobilizados sob a sua pontaria. O nazista que ele ferira estava se levantando do chão. - Aqui - disse Stanley, apanhando sua arma e a de Latham e entregando uma delas a de Vries. - Renda este saco de merda que pode andar, e eu arrastarei o outro canalha conosco. Você, chlopak, use seu telefone chique e ligue para Durbane na embaixada! Mande-o trazer veículos para cá!
- Não posso fazer isto, Stosh.
- Por que diabo não?
- Porque ele pode ser um deles.
Era meia-noite, horário de Washington, e Wesley Sorenson estudava o material que lhe fora mandado por Knox Talbot, tirado dos arquivos da CIA. Há horas que estava examinando-o, todas as cinquenta e uma fichas, procurando a informação relevante que destacaria um suspeito dos demais. Sua concentração fora interrompida pelo frenético telefonema de Claude Moreau de Paris, descrevendo o comportamento escandaloso de Latham.
- Talvez ele esteja seguindo alguma pista, Claude - disse Wesley apaziguadoramente.
- Se estava, deveria ter nos contado, e não agido sozinho. Não tolerarei isto!
- Dê-lhe tempo...
- Absolutamente não. Ele deve sair de Paris, deixar a França!
- Verei o que posso fazer.
- Ele já o fez, mon ami.
Mais tarde, depois de uma constrangida conversa com um Witkowski igualmente furioso, Moreau ligara de novo às cinco da madrugada, horário de Paris. O horizonte tormentoso começara a se aclarar. Drew entregara um autêntico neo sob o disfarce de um clérigo protestante.
- Devo dizer que ele está de certo modo fazendo valer sua permanência - dissera o francês.
- Então deixará que ele permaneça em Paris?
- Com as rédeas muito curtas, Wesley.
Voltando às hipóteses possíveis selecionadas do material enviado pela CIA, o chefe das Ops. Cons. passou a eliminar as negativas óbvias, tal como Knox fizera. Dos vinte e quatro remanescentes, ele podou ainda mais, baseado no princípio historicamente testado dos motivos e oportunidades, e mais num elemento que Sorenson chamava de "porquê ao cubo", ou porquê elevado à terceira potência; além do primeiro e do segundo motivos, havia um outro invariavelmente oculto. Finalmente, como resultado de uma vida inteira adulta em busca do elemento impalpável, sobraram três probabilidades, a serem expandidas se nenhuma delas se revelasse precisa. Cada suspeito tinha o que ele chamava de rosto "inexpressivo", fisionomias a que faltava a definição de traços relevantes, do tipo que os cartunistas políticos exageravam. Segundo, nenhum deles tinha um cargo influente ou aparecia muito, qualquer dos dois fatores desqualificaria o risco corrido. Entretanto, cada um deles fizera parte ou tivera acesso a equipes de analistas, como mensageiros ou pesquisadores. Terceiro, cada um parecia viver além de seus aparentes recursos.
Peter Mason Payne. Desenvolvimento do processo de recrutamento segundo as normas da divisão. Casado com dois filhos; moradia, uma casa de U$400.000 em Vienna, Virgínia, completa com uma piscina recém-acrescentada, avaliada em U$60.000. Carros: Cadillac Brougham e um Range Rover.
Bruce N.M.I. Withers. Fiscal de compras de material de escritório, um entre muitos. Divorciado, uma filha, direitos de visita limitados. Ex-mulher morando na costa leste de Maryland, numa casa de U$600.000 alegadamente comprada por seus pais. Residência do suspeito, condomínio no bairro de alta classe de Fairfax. Carro: Jaguar SJ6.
Roland Vasquez-Ramirez. Pesquisador nível três e coordenador, dos quais havia quatro de nível dois superior. Casado, sem filhos. Residência, complexo de jardins apartamentos em Arlington. Mulher, uma promotora de baixo escalão do Ministério da Justiça. Conhecidos frequentadores de restaurantes caros, roupas sob medida. Automóveis: Porsche e Lexus.
Esses eram os fatos essenciais, nenhum dos quais era provavelmente relevante até se estudar os relacionamentos interagências. Peter Mason Payne obtinha recrutas no que concerne à exigência de habilidades específicas. Às vezes tinha de perguntar às várias divisões e pedir exemplos de assuntos para obter uma imagem mais clara. O trabalho de Bruce Withers era justificar os enormes gastos com material de escritório, inclusive equipamento eletrônico complexo. Era bem adequado que observasse e ele mesmo operasse determinados equipamentos antes de pedir a algum superior que assinasse enormes encomendas. Roland Vasquez-Ramirez coordenava o fluxo de informações entre pesquisadores de três níveis. Está certo que haviam restrições extraordinárias, envelopes lacrados e tudo isso, e alguém que os violasse perderia não só o emprego como provavelmente seria processado. Mesmo assim, essas restrições, transgredidas inocentemente com frequência em nome da agilidade, não consistiriam num impedimento para algum inimigo do Estado, nada inocente.
Todos os três homens se adequavam ao modelo do agente inimigo infiltrado. Tinham a motivação de manter seus estilos de vida, oportunidades que lhes eram oferecidas pelas suas posições... o que faltava era o abstrato "porquê ao cubo". O que levava qualquer um deles a ir além disso tudo e se tornar um traidor? Um nazista que matara dois nazistas presos. E então ele achou que talvez tivesse descoberto, mas apenas talvez. Cada candidato era essencialmente um mensageiro, uma ligação entre escalões superiores; nenhum tinha verdadeira autoridade própria. Payne examinava currículos de candidatos, e aqueles que admitia estavam logo ganhando muito mais do que ele. Withers só tinha poder de recomendar compras extraordinárias, compras que tornariam os beneficiários mais eficientes ainda - e quantos deles não receberiam comissões secretas, enquanto ele não receberia nada? Era da natureza das coisas. E Vasquez-Ramirez era realmente um mensageiro, coligindo envelopes A, B e C, segredos que seriam examinados por outros, enquanto ele ficava de fora. E cada um deles trabalhara bastante tempo nos seus empregos inócuos, com suas decisões facilmente revertidas, e sem grandes chances de um progresso na carreira. Homens assim eram poços de ressentimento.
Não havia tempo para racionalizar ainda mais, para analisar mais. Ou ele estava certo, considerou Sorenson, ou estava errado, o que significava voltar ao quadro negro. Tal como ele ensinara a Drew Latham nos estágios iniciais de sua carreira, às vezes um ataque direto era melhor, especialmente quando totalmente inesperado. Ficou pensando se Drew aplicara esta tática na captura do pastor neo. Se não tivesse sido especialmente assim, concluiu Wesley, certamente uma variação. Devido ao limite de tempo, não havia muita alternativa. Pegou o telefone.
- Peter Mason Payne, por favor?
- Aqui fala Pete Payne, quem é?
- Kearns da Agência - respondeu Sorenson, utilizando o nome de um diretor-adjunto relativamente bem conhecido. - Nós não nos conhecemos, Pete, e sinto muito te amolar a esta hora...
- Não tem problema, Sr. Kearns, estou assistindo TV no meu refúgio. Minha mulher já foi para a cama; disse que era uma droga e tinha razão.
- Então você não se importa de interromper por alguns minutos?
- Não, em absoluto. O que posso fazer pelo senhor?
- É um pouco delicado, Pete, mas o motivo por que estou ligando agora é que talvez você seja chamado lá em cima de manhã, e é possível que queira pensar nas suas respostas.
- Que respostas? Que perguntas? - Peter Mason Payne poderia não ser o traidor assassino, pensou Wesley, mas andava recebendo alguma coisa de alguém. Revelara-se na perda de respiração que antecedeu suas palavras.
- Tivemos sérios problemas com o recrutamento, por isso estamos fazendo reuniões de avaliação, reuniões que têm durado praticamente o dia todo. Várias de suas recomendações revelaram-se profundamente não qualificadas, custando à organização uma porção de horas de serviço desperdiçadas.
- Então foram os currículos, ou os candidatos ensaiaram para as entrevistas, Sr. Kearns. Eu nunca recomendei ninguém que não achasse à altura do trabalho, e jamais recebi dinheiro debaixo do pano para fazer qualquer recomendação.
- Sei. - Então era isso, ponderou Sorenson. A negativa fora rápida demais, a insinuação não fora sequer feita. - Mas eu não insinuei isto, não é, Peter?
- Não, mas já ouvi boatos - famílias ricas que querem que seus filhos trabalhem na Agência durante alguns anos, porque conta pontos quando forem procurar outros empregos... Não estou dizendo que seja impossível que alguns tenham escapulido devido, como disse, à informação falsa e entrevistas ensaiadas, mas o senhor deveria procurar os outros recrutadores para saber destas coisas. Eles poderiam dar essa informação. Eu nunca dei!
Graças a Deus que foi poupado do trabalho de campo, Sr. Payne, pensou o diretor das Ops. Cons., duraria apenas onze segundos. Entretanto, Peter Payne acabara por induzi-lo a fazer a última pergunta conclusiva.
- Então talvez algum dos outros esteja tentando botar a culpa em você. Veja só, os pais de um de nossos não qualificados disseram que se encontraram com um recrutador nas primeiras horas da madrugada de anteontem para fazerem seu último pagamento.
- Pelo amor de Deus, não fui eu!
- Onde estava, Pete?
- Olha, isso é fácil. - O alívio na voz de Payne foi, bem, doloroso. - Minha mulher e eu estávamos aqui na rua, na casa do deputado Erlich para um churrasco noturno em homenagem aos vizinhos - que foi tarde porque a Câmara permaneceu em sessão. Ficamos até mais ou menos umas duas e meia da madrugada, e francamente, Sr. Kearns, nenhum de nós tinha muitas condições de entrar num carro e ir a lugar algum.
Candidato rejeitado.
- Sr. Bruce Withers, por favor?
- Nenhuma outra pessoa mora aqui, amigo. Quem é você?
Sorenson repetiu a introdução do diretor-adjunto Kearns, concentrando-se agora nos constantes e consideráveis excessos na compra de material para escritório.
- Alta tecnologia sai caro, Sr. Diretor. Não há nada que eu possa fazer quanto a isto, e para dizer a verdade, não está no meu poder tomar essas decisões.
- Mas está no seu poder fazer recomendações, não está?
- Alguém tem de fazer o trabalho inicial, e é o que faço.
- Digamos que há uma licitação para um computador mais potente na faixa de cem mil dólares. Sua palavra vale muita coisa, não vale?
- Não se meus patrões souberem distinguir um megabyte de um cotovelo.
- Mas a maioria não sabe, não é?
- Alguns sabem, outros não.
- Então junto àqueles que não sabem a sua recomendação é geralmente aceita, não diria isto?
- Provavelmente. Trabalho direitinho.
- E poderia haver situações em que a escolha de determinada empresa lhe beneficiaria, correto?
- Pare de fazer este tipo de pergunta! Está tentando me acusar de quê?
- Foi pago um suborno numa dessas noites, aliás, cedo de madrugada, para ser exato, por uma firma de Seattle com um lobby aqui em Washington. Gostaríamos de saber se foi a você.
- Isto é uma baboseira - gritou Withers, quase sem fôlego. - Desculpe, Sr. Diretor, mas estou profundamente ofendido. Estou neste trabalho vagabundo há sete anos agora porque conheço alta tecnologia melhor do que qualquer outra pessoa, e não tenho futuro nenhum! Não posso ser substituído, por isso não me promovem, nem me rebaixam, e isso é bastante significativo.
- A minha intenção não foi lhe ofender, Bruce, eu só queria saber onde estava às três da madrugada de anteontem.
- O senhor não tem nenhum direito de fazer esta pergunta.
- Acho que tenho. Foi quando o suborno foi entregue.
- Escute, Sr. Kearns, sou divorciado e preciso ir buscar prazer onde possa achá-lo, se é que me compreende.
- Acredito. Onde estava?
- Com uma mulher casada cujo marido está fora do país. O marido dela é um general.
- Ela confirmará o que disse?
- Não posso lhe dar seu nome.
- Nós o descobriremos, você sabe disto.
- Sim, suponho que sim... Está bem, passamos esta noite aqui e ela acabou de ir embora. O general está numa viagem de inspeção ao Extremo Oriente e liga para ela em torno da uma hora - Deus o livre de atrapalhar a rotina militar por causa de uma mulher solitária. É a história do casamento deles.
- Muito comovente, Bruce. Qual é o nome dela?
- Ela leva vinte, vinte e cinco minutos para chegar em casa.
- O nome dela, por favor?
- Anita Griswald, a mulher do general Andrew Griswald.
- "Malucão Andy" Griswald? O terror de Songchow no Vietnã? Ele é bastante velho, não é?
- Para o exército, não tem dúvida. Anita é sua quarta mulher. É muito mais moça, e o Pentágono o mantém sem posto fixo até poderem se livrar dele no ano que vem, que, parece, é o que eles gostariam de fazer o quanto antes.
- Por que ela se casou com ele?
- Estava na lona e tinha três filhos. Basta de perguntas, Sr. Diretor.
Candidato ainda em aberto.
- Sr. Vasquez-Ramirez, por favor?
- Um momento - disse uma voz de mulher, com um ligeiro sotaque hispânico. - Meu marido está no outro telefone mas não vai demorar. Quem devo dizer que é?
- O diretor-adjunto Kearns, CIA, Conselheiro.
- O senhor sabe que sou advogada?... Ah, mas é claro que sabe.
- Peço desculpas por ligar tão tarde, mas é urgente.
- Teria de ser, señor. Meu marido trabalha um longo expediente para vocês, às vezes até tarde à noite. Eu gostaria de que ele ganhasse à altura, se puder desculpar a ousadia da sugestão. Por favor, espere.
Silêncio. Não havia nenhuma evidência de Vasquez-Ramirez ter trabalhado depois do expediente normal. Quarenta e cinco segundos mais tarde, "Rollie" Ramirez surgiu ao telefone.
- Sr. Kearns, o que é tão urgente assim?
- Vazamentos no seu departamento, Sr. Vasquez-Ramirez.
- Por favor, já nos encontramos. Pode me chamar de Rollie ou Ramirez.
- Poupa tempo, não posso negar.
- O senhor está gripado, Sr. Kearns? Está com a voz um pouco diferente.
- É gripe, Ramirez. Mal consigo respirar.
- Rum, chá quente e limão lhe trarão alívio... Agora, quais são esses vazamentos e como posso lhe ajudar?
- Foram rastreados até a sua seção.
- Na qual existem quatro pessoas - interrompeu o hispano. - Por que ligar para mim?
- Ligarei para os outros. Você é o primeiro da lista.
- Por que minha pele não é tão clara quanto a dos demais?
- Ah, pare com isso!
- Não, não vou "parar com isso", porque é verdade. O hispano é o primeiro que é perseguido.
- Agora está insultando tanto a mim quanto a você. Alguém ganhou dinheiro revelando uma informação altamente confidencial da sua seção duas noites atrás, uma porção de dinheiro, e temos duas pessoas que o pagaram. Neste momento o problema é apenas de quem foi pago! Por isso não me venha com essa merda de conversa sobre racismo. Estou procurando um vazamento, e não um hispano!
- Deixe-me lhe dizer isto, americano. Meu povo não paga por informação, recebe-a de graça. Sim, já houve vezes em que abri os envelopes fechados com vapor, mas só quando estavam marcados "Bacia do Caribe". Por que fiz isto? Deixe-me explicar. Eu era um soldado de dezesseis anos durante a Baía dos Porcos e passei cinco anos nas prisões imundas de Castro até ser trocado por remédios. Este grande Estados Unidos fala e fala, mas não faz nada para libertar a minha Cuba!
- Como entrou na Agência?
- Da maneira mais fácil possível, amigo. Levei seis anos, mas tornei-me um erudito, com três diplomas, com muito mais qualificações do que aquilo que vocês me ofereciam, mas aceitei o que me foi oferecido, acreditando sinceramente que vocês reconheceriam minhas qualificações e me promoveriam a um cargo melhor. Nunca fizeram, porque eu era o hispano e vocês protegiam os caras brancos e os negros - ah, quantas vezes fui preterido por negros sem qualificações! Vocês precisavam limpar seu passado racista, e eles eram a solução.
- Acho que está sendo injusto.
- Pode pensar o que quiser. Sairei desta casa em vinte segundos e você jamais me encontrará!
- Por favor, não faça isto! Você não é quem, nem aquilo que estou procurando. Estou atrás de nazistas, e não de você!
- De que diabo está falando?
- É muito complicado - disse calmamente Sorenson. - Permaneça no seu trabalho e faça o que estava fazendo. Não precisa temer nada de mim, e pode ter certeza de que chamarei atenção das pessoas certas para as suas qualificações superiores.
- Como posso confiar nisto?
- Porque sou falso, não sou da Agência. Sou diretor de uma outra agência que trabalha frequentemente em coordenação com a CIA, no mais alto nível.
- Círculos dentro de círculos - disse Vasquez-Ramirez. - Quando isso terá fim?
- Provavelmente nunca - respondeu Sorenson. - Certamente até as pessoas confiarem umas nas outras... o que jamais acontecerá.
Candidato Possível.
33
De repente ocorreu ao diretor das Operações Consulares que ele deveria seguir sua intuição imediata. Peter Mason Payne estava eliminado, Roland Vasquez-Ramirez uma hipótese remota, porém o sapo atravessado na sua garganta era Bruce Withers, o sujeito de respostas rápidas e uma história por demais crível da viúva ou divorciada destituída, com três filhos, que juntara os trapinhos com um general do exército bem adiantado em anos, com todos os benefícios da pensão aí implícitos. Seria fácil para Withers ligar para a mulher do general pelo telefone do carro, se ela realmente tivesse passado a noite com ele, ou na casa dela... Ela levará vinte a vinte e cinco minutos. Mais do que tempo suficiente para que a solitária mulher do general fosse instruída. A resposta talvez estivesse em outro lugar. Na costa leste de Maryland, talvez, com a ex-mulher de Bruce N.M.I. Withers.
Mais uma vez pegou Sorenson o telefone, esperando que o nome Withers estivesse no catálogo, em virtude de sua filha adolescente. Estava, junto com outro nome, McGraw. McGraw-Withers.
- Sim... alô - sussurrou a voz sonolenta no telefone.
- Perdoe-me, Srta. McGraw, por ligar para a senhorita a esta hora, mas é uma emergência.
- Quem é você?
- Diretor-adjunto Kearns da CIA. Diz respeito a seu ex-marido, Bruce Withers.
- Quem ele sacaneou agora? - perguntou a ex-Sra. Withers, mal acordada.
- Talvez o governo dos Estados Unidos, Srta. McGraw.
- Obrigado pelo senhorita, eu mereço. Bem, ele sacaneou o governo, e por que não haveria de fazê-lo? Ele costumava sacudir sua carteira da CIA, sem dizer grande coisa, mas insinuando que ele era o próprio Sr. Superespião, enquanto depenava alguém.
- Ele se utilizava da Agência para obter vantagens?
- Por favor, Sr... eu nem sei seu nome, minha família é muito bem relacionada em toda Washington. Quando descobrimos que ele estava dormindo com todas as secretárias e piranhas que trabalhavam para os fornecedores do Ministério da Guerra, meu pai disse que devíamos nos livrar dele, e foi o que fizemos.
- Ele ainda tem direito de visita a seu filho.
- Sob a mais estrita vigilância, eu lhe asseguro.
- Por que teme, alguma violação?
- Pelo amor de Deus, não. Kimberly é provavelmente a única pessoa neste mundo com quem aquele filho da puta consegue se relacionar.
- Por que diz isto?
- Porque as crianças não o ameaçam. Os abraços dela neutralizam aquela coisa horrível que tem dentro dele.
- O que é essa coisa horrível, Srta. McGraw?
- Ele é a intolerância em pessoa! Detesta tanta gente, que é até difícil começar a contar. Pretos, ou como diz, aqueles crioulos nojentos, e os "carcamanos", e os "puxados" - isto é, os asiáticos -, os hispânicos, os filhos da puta judeus, qualquer um que não seja branco puro e cristão, embora ele não seja absolutamente cristão. Deseja eliminar todos eles. Esta é a sua crença.
Candidato Aceito.
Eram quatro horas da tarde, horário de Paris, hora dada pelas badaladas graves e ecoantes de um relógio de parede nos aposentos do embaixador Daniel Courtland na embaixada americana. O embaixador, sem casaco, com os curativos no peito e ombro esquerdo visíveis sob sua camisa de Oxford azul, estava sentado em uma mesa antiga que servia de escrivaninha, falando calmamente ao telefone. Do outro lado do grande quarto decorado, Drew Latham e Karin de Vries sentavam-se um diante do outro, em poltronas de brocado, também conversando tranquilamente.
- Como está a mão? - perguntou Drew.
- Está ótima, meus pés é que ainda doem - respondeu Karin, rindo baixo.
- Eu disse para tirar os sapatos.
- Aí as solas dos pés estariam em carne viva, querido. Por quanto tempo a gente andou da Lacoste até você conseguir fazer contato com Claude para que providenciasse transporte? Quase quarenta minutos, eu acho.
- Eu não podia ligar para Durbane. Mesmo agora não sabemos em que pé está ele, e Moreau estava ocupado com nosso prelado nazista.
- Vimos três carros de polícia separados. Tenho certeza de que qualquer um deles poderia ter nos acomodado.
- Não, Witkowski tinha razão quanto a isso. Nós éramos cinco, o que significaria dois daqueles carros pequenos ou um furgão. Aí haveria o problema de convencê-los a nos levar para a embaixada e não para a delegacia, pedido que eles certamente ignorariam, devido ao fato de um neo estar ferido. Até mesmo Claude ficou grato de termos esperado por ele. Segundo se expressou, "Já tem cozinheiros demais na cozinha". Não precisávamos de relatórios da polícia ou da Sûreté.
- E o Deuxième não achou ninguém no Château de Vincennes?
- Ninguém armado, e varreram o parque completamente.
- Surpreendente - disse de Vries franzindo a testa. - Eu tinha certeza de que era lá que a matança seria feita.
- Você tem razão e posso confirmá-lo com palavras ditas da própria boca de Koenig. Foi o cenário que ele descreveu.
- Eu fico imaginando o que aconteceu.
- É bastante óbvio. Eles nunca receberam as ordens finais, por isso a matança foi abortada.
- Você percebe que estamos falando de nossas próprias vidas?
- Estou tentando manter um tom friamente clínico.
- E está sendo tremendamente eficaz.
A campainha da porta principal tocou. Latham levantou-se da cadeira e olhou para Courtland, que acenou com a cabeça, ainda falando ao telefone. Drew foi até a porta e abriu-a, deixando entrar Stanley Witkowski.
- Algum progresso? - perguntou Drew.
- Achamos que sim - respondeu o coronel. - Vou esperar que o embaixador deixe o telefone. Ele precisa ouvi-lo. Algum de vocês conseguiu descansar?
- Eu consegui, Stanley - respondeu Karin da cadeira. - O embaixador Courtland fez a gentileza de nos deixar usar o quarto de hóspedes. Eu dormi direto, mas meu amigo aqui não saiu do telefone.
- Só depois que você jurou que era seguro - acrescentou Drew.
- Nenhum telefone aqui em cima poderia ser grampeado nem pelo próprio Doce Piotr, como minha querida e finada mãe costumava chamá-lo. Com quem falou, chlopak?
- Várias vezes com Sorenson. Ele também fez progressos.
- Alguma notícia do assassino da Virgínia?
- Ele pegou-o. Aquele filho da puta não consegue ir ao banheiro sem ser escutado.
Daniel Courtland desligou o telefone, virando-se desajeitadamente, contraindo-se de dor ao saudar Witkowski.
- Como vai, coronel, o que aconteceu no hospital?
- Está nas mãos do MI-5 britânico. Apareceu um pneumologista chamado Woodward da Academia Real de Cirurgiões, alegando que o Ministério das Relações Exteriores havia pedido que ele viesse de avião e examinasse a Sra. Courtland. A seu pedido. Estão investigando.
- Não fiz nenhum pedido deste tipo - disse o embaixador. - Não conheço nenhum Dr. Woodward, muito menos a Academia Real de Cirurgiões.
- Nós sabemos - disse Witkowski. - Nossa equipe franco-americana no hospital impediu-o no momento em que ele estava prestes a injetar estricnina na falsa Sra. Courtland.
- Mulher corajosa. Como é o nome dela?
- Moskowitz. De Nova York. Seu ex-marido era um rabino francês. Ofereceu-se voluntariamente para a tarefa.
- Então devemos oferecer-lhe voluntariamente uma compensação. Talvez férias de um mês, com todas as despesas pagas.
- Eu transmitirei a oferta, senhor... E como está o senhor se sentindo?
- Ficarei ótimo. Só feridas superficiais, nada sério. Tive sorte.
- O senhor não era o alvo, Sr. Embaixador.
- Sim, percebo isto - disse Courtland em voz baixa. - Bom, vamos voltar à atualidade, está bem?
- A Sra. de Vries acaba de me dizer o quanto eles apreciaram o seu convite para ficarem aqui.
- Considerando o que eles passaram, ficam aqui de quarentena pelo tempo que for preciso. Presumo que a sua segurança esteja funcionando a pleno vapor.
- Praticamente um pelotão completo de fuzileiros. Se ouvirem um passo ou um espirro, já estarão de armas ensarilhadas.
- Ótimo. Vamos nos sentar, precisamos recapitular. Comece você, Stanley. Onde estamos?
- Vamos voltar ao hospital - começou Witkowski, sentando-se numa cadeira ao lado de Karin. - Foi uma falha, porém esse especialista britânico estava limpo segundo o Quai d’Orsay, na qualidade de um dos médicos da Sra. Courtland, só que o aviso oficial chegou muito atrasado. Ele já tinha chegado.
- Isso me parece uma atuação muito relaxada para os neos - disse Courtland.
- Paris está uma hora adiantada de Londres - acrescentou Latham, sentando-se. - É um erro banal, embora o senhor tenha razão, foi um relaxamento.
- Talvez não tenha sido - disse de Vries, e todos os olhos se viraram para ela. - Não será possível que tenhamos um amigo nas fileiras nos neos britânicos? Que melhor maneira para chamar atenção sobre semelhante assassino do que sustar a autorização quando necessário e mandá-la suspeitosamente atrasada?
- Isso é complicado demais, Karin - discordou o coronel. - E deixa uma margem grande demais para o erro. O elo na corrente é por demais fraco; um traidor seria descoberto imediatamente.
- As complicações são nossa tarefa, Stosh, e os erros são aquilo que buscamos.
- É esta uma lição das alturas?
- Vamos lá - insistiu Drew. - Ela pode ter razão.
- Pode mesmo, infelizmente nesta conjuntura não podemos saber.
- Por que não? Nós também podemos seguir uma pista. Quem no Quai d’Orsay deu a autorização para o hospital, mesmo atrasada?
- Esta é a razão por que não podemos saber. Veio da sala de um certo Anatole Blanchot, membro da Câmara dos Deputados. Moreau seguiu a pista.
- E?
- Não havia nada. Esse Blanchot jamais ouviu falar de um Dr. Woodward e não havia registro de nenhuma chamada telefônica de sua sala para o Hospital Hertford. Aliás, a única vez que Blanchot ligou para Londres foi há uma semana e da sua casa, para fazer uma aposta no Ladbrokes para o Sweepstake da Irlanda.
- Os neos apenas pinçaram um nome, então.
- É o que parece.
- Filho da puta!
- Amém, chlopak.
- Pensei que você tivesse falado em algum progresso.
- Falei, mas não em relação a Woodward.
- Então em relação a quê? - interrompeu Courtland.
- Estou me referindo ao pacote que Latham entregou ao Deuxième na madrugada.
- O prelado luterano? - perguntou Karin.
- Sem sabê-lo, Koenig canta como um passarinho - disse Witkowski.
- Qual a melodia? - Drew inclinou-se para a frente na cadeira.
- Uma ária chamada "Der Meistersinger Traupman". Já ouvimo-la antes.
- O cirurgião de Nuremberg? - insistiu Latham. - O nazistão que Sorenson descobriu a partir de... - Ele parou, olhando desconsoladamente para o embaixador.
- Sim, Drew - disse Courtland em voz baixa. - Do pai adotivo de minha mulher em Centralia, Illinois... Eu falei pessoalmente com o Sr. Schneider. É um velho agora, cheio de dolorosas recordações e arrependimentos, e seja lá o que disser, acredito que seja verdade.
- Está certamente dizendo a verdade a respeito de Traupman - disse o coronel. - Moreau foi se encontrar com a ex-mulher de Traupman em Munique apenas alguns dias atrás. Ela confirmou tudo, jurando sobre suásticas duplas.
- Também tenho ciência disto. - O embaixador falou novamente em voz baixa, balançando a cabeça. - Traupman foi importantíssimo na montagem da operação Sonnenkinder no mundo inteiro livre.
- O que Claude conseguiu saber sobre Traupman do sacerdote luterano? - perguntou Karin.
- Basicamente que Koenig e outros como ele dos altos escalões têm medo dele, e fazem questão de lhe agradar sempre que possível. Moreau percebera que Traupman era um dos jogadores principais, mas agora acha que é algo diverso. Acha que Traupman tem uma espécie de controle sobre o movimento neonazista, uma força que mantém todo mundo onde ele deseja que eles fiquem.
- O Rasputin nazista? - continuou de Vries. - A figura fantasmagórica atrás do trono, controlando esse trono?
- Sabemos que existe um novo Führer - disse Witkowski. - Só que não temos nenhuma ideia de quem seja.
- Mas se este novo Hitler é o trono...
- É aí que preciso interrompê-la, Karin - disse Daniel Courtland, levantando-se sem aviso, lenta e dolorosamente, da sua cadeira atrás da mesa antiga.
- Sinto muito, Sr. Embaixador...
- Não, não, minha cara, quem pede desculpas sou eu, pois ajo segundo ordens do meu governo.
- Que diabo está fazendo?
- Calma, Drew, fique calmo - ordenou Courtland. - Se lhes interessarem saber, devo dizer que andei falando no telefone com Wesley Sorenson, que assumiu provisoriamente o comando de determinadas ações clandestinas. Não quero ouvir nem tomar parte em nenhuma conversa subsequente a respeito deste assunto. Entretanto, depois de eu ter deixado a sala, você, agente Latham, deverá ligar para ele neste telefone com codificador e ouvir o que ele tem a dizer... Agora, se me dão licença, vou me recolher à biblioteca, onde existe um bar bem provido. Mais tarde, se quiserem bater um papo sem graves implicações, por favor juntem-se a mim. - O embaixador cruzou a sala mancando e saiu por uma porta interna, fechando-a bem, atrás de si.
Drew pulou da cadeira e foi depressa até o telefone. Mal havia se sentado, e já estava teclando os números. - Wes, sou eu. Por que o mistério todo?
- O embaixador em Paris, Daniel Rutherford Courtland, já saiu da sala?
- Sim, claro, o que é?
- No caso desta conversa estiver sendo gravada, eu, Wesley Theodore Sorenson, diretor das Operações Consulares, assumo plena responsabilidade por esta ação de acordo com o Artigo Setenta e Três dos Estatutos de Atividades Clandestinas, no que concerne a decisões individuais, unilaterais no campo...
- Ei, porra, isso aí é o meu terreno!
- Cale a boca!
- O que é, Wes?
- Monte uma equipe, tome um avião até Nuremberg e prenda o Dr. Hans Traupman. Sequestre o filho da puta e traga-o até Paris.
34
Robert Durbane está sentado na sua sala ao lado do isolado Centro de Comunicações, um homem angustiado. Era mais do que uma impressão, já que impressões são abstratas, baseadas em qualquer coisa, desde um mal-estar no estômago a uma briga com a mulher de manhã cedo. Seu estômago estava cem por cento normal e sua mulher há vinte e quatro anos ainda era sua melhor amiga; a última vez que brigaram foi quando a filha deles se casou com um músico de rock. Ela foi a favor; ele contra. Perdeu. O casamento foi não apenas um sucesso, mas seu cabeludo genro chegou àquilo que se chama "paradas" e ganhava mais dinheiro tocando por um mês em Las Vegas do que Bobby Durbane ganharia em meio século. E o que realmente exasperava o sogro era que o genro era um ótimo rapaz que não bebia nada mais forte que vinho branco, não usava drogas, tinha um mestrado em literatura medieval e preenchia as palavras cruzadas mais depressa do que Bobby. O mundo não era lógico.
Então por que estava angustiado? ponderou ele. Provavelmente teve início com uma requisição do coronel Witkowski para que imprimisse todas as ligações de telefone e rádio feitas do centro de comunicações durante os últimos sete dias. Foi reforçado então pelo comportamento sutil, não obstante óbvio, de Drew Latham, um sujeito que considerava seu amigo. Drew estava evitando-o, e isso não era típico do agente das Ops. Cons. Durbane deixara dois recados para Latham, um no seu apartamento da rue du Bac, ainda em processo de restauração, e outro no centro de recados da embaixada. Nenhum deles fora respondido, e Bobby sabia da presença de Drew na embaixada, que ele passara ali o dia todo, fechado nos aposentos do embaixador no andar de cima. Durbane compreendia que ocorrências calamitosas haviam acontecido, que a mulher de Courtland fora tão gravemente atingida durante o ataque terrorista na noite anterior, que tinha poucas chances de vida, mas contudo, não era típico de Latham ignorar recados de seu amigo "intelectual", que vivia preenchendo aquelas "detestáveis palavras cruzadas". Especialmente considerando-se que Bobby salvara sua vida algumas noites atrás.
Algo estava errado; acontecera alguma coisa que Durbane não conseguia compreender, e portanto só havia uma maneira de descobrir o que era. Pegou seu telefone, um aparelho que podia ter acesso a qualquer outro na embaixada, a despeito de restrições, e teclou o número dos aposentos de Courtland.
- Sim?
- Sr. Embaixador, é Robert Durbane do Centro de Comunicações.
- Alô... Bobby - disse Courtland hesitantemente. - Como vai?
- Acho que cabe a mim perguntar-lhe isto, Embaixador. - Havia alguma coisa errada. O geralmente imperturbável homem do Departamento de Estado estava constrangido. - Refiro-me a sua mulher, é claro. Ouvi dizer que foi levada para o hospital.
- Estão fazendo tudo que é possível, e isso é tudo que posso esperar. Além de sua conhecida cortesia, que eu aprecio, há mais alguma coisa?
- Tem, sim senhor. Sei que ninguém deveria saber que Drew Latham está vivo, porém eu trabalho muito próximo ao coronel Witkowski. Portanto, também sei que Drew está aí em cima, e gostaria muito de falar com ele.
- Ah... você me assusta um pouco, Sr. Durbane. Espere um pouco, por favor.
A linha acendeu o Espere, e o silêncio tornou-se enervante, como se uma decisão estivesse sendo tomada. Finalmente, a voz de Drew surgiu no telefone.
- Alô, Bobby?
- Deixei uns dois recados para você, não me ligou de volta.
- E também não escrevi. Além de ter sofrido um atentado e passado deste para um mundo melhor, estive atolado até o pescoço numa confusão danada, além de algumas coisas menos atraentes.
- Posso imaginar. Contudo, acho que devemos conversar.
- Mesmo? Sobre o quê?
- É isso que gostaria de descobrir.
- É um duplo acróstico? Não sou bom nessas coisas, você sabe disto.
- Sei que quero conversar com você, e não no telefone. Posso?
- Espere um minuto. - Novamente o silêncio foi intenso, mas durou menos do que na vez anterior. - Está bem - respondeu Latham no telefone. - Existe um elevador, de cuja existência eu nunca ouvira falar, que para no seu andar. Estarei nele, escoltado por três fuzileiros armados, e você deve esvaziar o corredor. Estaremos aí dentro de cinco minutos.
- A coisa foi tão longe assim? - perguntou em voz baixa Durbane. - Eu? Tornei-me de repente zona perigosa?
- Vamos conversar, Bobby.
Sete minutos e vinte e oito segundos mais tarde, Drew estava sentado na cadeira diante da mesa de Durbane, sua sala tendo sofrido uma varredura dos fuzileiros e nenhuma arma sido achada.
- Que diabo é isso? - exclamou o chefe de operações do centro de comunicações. - O que, em nome de Deus, fiz eu para justificar essas táticas da Gestapo?
- Você talvez tenha usado a palavra certa, Bobby. Gestapo, do léxico nazista.
- O que está dizendo?
- Conhece uma mulher chamada Phyllis Cranston?
- Claro. Ela é secretária do, como se chama mesmo, o terceiro ou quarto adido abaixo do primeiro-secretário da embaixada. E daí?
- Ela lhe contou quem era um certo coronel Webster e onde ele estava?
- Para dizer a verdade, me contou sim, mas não precisava.
- O que quer dizer?
- Quem você acha que estabelecia as comunicações entre a embaixada e o ambulante coronel Webster? Duas, ou três, transferências de hotel. Entre seus deslocamentos e os da Sra. de Vries, nem mesmo Witkowski conseguia acertar tudo.
- Então foi tudo mantido abafado?
- Acredito que a expressão superusada "sigilo máximo" veio anexa a também batida "ordem do dia". Por que acha que fui tão severo com Cranston?
- Eu não sabia que você fora.
- Exigi saber como ela sabia. Cheguei a ameaçar denunciá-la, o que não era fácil para mim porque minha mãe era alcoólatra. É uma doença horrível.
- O que lhe disse ela?
- Ela se desfez em pedaços, chorando e murmurando uma merda qualquer religiosa. Estivera na farra na noite anterior e suas defesas eram praticamente inexistentes.
- Deve conhecê-la bastante bem.
- Quer saber a verdade, Drew?
- É por isso que estou aqui, Bobby.
- Minha mulher e eu fomos a uma dessas recepções na embaixada e Martha, minha mulher, viu Phyllis plantada no bar e entornando a bebida. Eu pensei, de que outra maneira poderia uma pessoa normal aguentar uma daquelas funções sem ficar de pileque, que diabo, eu mesmo já o fizera. Porém Martha sabia melhor; ela acompanhara os últimos anos de minha mãe morando conosco. Disse-me para ajudá-la, que precisava de ajuda devido à "baixa autoestima" e frases deste gênero. Por isso tentei, e evidentemente fracassei.
- Então você nunca mencionou para qualquer outra pessoa quem eu era e em que hotel me hospedava?
- Deus do céu, não. Mesmo quando aquele chato do patrão da Cranston veio fuçar aqui sobre o pessoal que trabalhava com você e seus recursos, eu respondi que não tinha a mínima ideia de quem ia lhe substituir. Dei graças a Deus que Phyllis tivesse entendido meu recado de manter a sua boca calada.
- Por que ele estava fuçando?
- Essa parte parece legítima - respondeu Durbane. - Que diabo, todo mundo sabe que as Operações Consulares não ficam vigiando o cardápio do embaixador. Ele disse que tinha sido procurado por um empresário francês, que lhe pedira para investir num loteamento realmente quente. Ele achou que o teu pessoal poderia checar a situação do cara. Combina com a carreira dele, Drew. Cranston diz que ele passa mais tempo almoçando com homens de negócios parisienses do que com as pessoas com quem ele deveria trabalhar aqui.
- Por que ele não foi a Witkowski?
- Não precisei perguntar-lhe. Isto não é um problema de segurança; ele não pode usar um setor da embaixada numa transação financeira particular.
- E eu, o que sou, o Pequeno Polegar?
- Não, você é mais como um olho ambulante externo, vigiando o funcionamento interno de um importante posto diplomático, ou seja, um conselheiro dos funcionários sobre seu comportamento, financeiro ou qualquer outro. Pelo menos é o que insinua seu curriculum vitae.
- Alguém deveria reescrevê-lo - disse Latham.
- Por quê? É deliciosamente obscuro.
Drew se recostou na cadeira, arqueando seu pescoço, com o olhar perdido brevemente no teto branco, dando um suspiro alto.
- Eu lhe devo um pedido de desculpas, Bobby, e é sincero. Quando soube de Phyllis Cranston que você era uma das duas pessoas a quem ela contou quem eu era e onde me encontrava, dei um salto - aliás um escorregão - e cheguei à conclusão errada. Foi reforçada, eu acho, pelo que aconteceu naquela noite quando os neos quase me mataram no carro da embaixada com aquele filho da puta... como se chamava mesmo?... C-Zwölf. A sincronização pareceu... bem, pareceu desastrada.
- Foi - concordou Durbane. - E houve um bom motivo por que os nazistas chegaram antes de nós...
- Exatamente. Como?
- C-Zwölf. Descobrimos na manhã seguinte e incluímos no relatório. Seu motorista alemão deu a faixa de alta frequência do nosso rádio do carro para seus amigos a quilômetros de distância e deixou a tecla de transmitir ligada. Eles ouviram tudo que você disse desde a hora em que deixou a embaixada. Quando você me ligou pedindo reforços, eles agiram depressa.
- Meu Deus, era tão simples, e eu jamais pensei em olhar para o aparelho de rádio!
- Se tivesse feito, teria reparado num pequeno ponto vermelho no centro do mostrador, significando que estava transmitindo.
- Porra!
- Pelo amor de Deus, não ponha a culpa em si mesmo. Acabara de passar por uma noite horrível, era alta madrugada e você estava exausto.
- Detesto ter de lhe dizer isto, Bobby, mas jamais existe uma desculpa. Quando você chega àquele ponto, já descarregou toda a adrenalina que possui, e é quando você se torna vulnerável... Estranho, não é? Os neos se concentraram em Phyllis Cranston.
- Por que estranho? Ela é instável, e a instabilidade é o caldo de cultura para aqueles que desejam se infiltrar.
- E o patrão dela?
- Não vejo nenhuma ligação.
- Está bem aí, meu amigo, ah, meu Deus, está bem aí.
- Se houver - disse Durbane, olhando para os olhos esgazeados de Drew - terá de ser feita com um alicate. Concentre-se nos dois; bata no alcoólatra e aperte o superior guloso e ambicioso. Um ou outro vão ceder sem que você tenha de se movimentar muito.
- Graças a você, Bobby, a primeira não cedeu. Agora vamos atrás do segundo. Faça contato com o patrão de Phyllis e diga-lhe que você falou com uma das pessoas que está me substituindo. Diga que meu auxiliar concordou em fazer averiguações junto a alguns banqueiros, se ele der o nome daquele empresário.
- Não compreendo...
- Se não lhe der um nome, saberemos que não pode. Se der, saberemos quem está por trás dele, quem o está manipulando.
- Posso fazer isto imediatamente - disse Durbane, pegando seu telefone e discando a sala do adido. - Phyllis, sou eu Bobby. Deixe-me falar com o idiota de terno riscado... e, Phyl, não tem nada a ver com você... Alô, Bancroft, é Durbane do centro de comunicações. Acabei de falar com o investigador principal de Latham, e apesar de ele estar ocupadíssimo, acha que pode dar uns telefonemas para você para alguns banqueiros. Qual é o nome do empresário que deseja que você faça o investimento?... Sei, sim, sei. Sim, eu lhe direi isto. Voltarei a ligar. - Durbane desligou, enquanto escrevia num livro de anotações. - O nome é Vaultherin, Picon Vaultherin, dono de uma empresa do mesmo nome. Bancroft disse para dizer para seu auxiliar que seu consórcio detém direitos exclusivos sobre aproximadamente trinta e três quilômetros de propriedades no Vale do Loire.
- Não é interessante? - disse Drew, virando a cabeça e olhando para a parede.
- Há anos que correm boatos de que uma porção daqueles velhos châteaus estão caindo aos pedaços e que ninguém tem dinheiro para restaurá-los. E também que os empresários estão com água na boca para comprar terra e fazer dezenas de sítios com um enorme lucro. Eu mesmo posso botar uns dólares nisso, ou pelo menos levar meu genro a dar uma olhada nisso.
- Seu genro? - perguntou Latham, virando-se de volta para o chefe das comunicações.
- Deixe para lá, é constrangedor demais. Você não saberia quem é, tal como eu, não fosse ele casado com minha filha.
- Vou deixar para lá.
- Por favor. Como quer chegar até esse Vaultherin?
- Levarei isso a Witkowski, que o passará para Moreau do Deuxième. Precisamos de uma investigação sobre o passado de Vaultherin... e também um exame desses direitos exclusivos no Vale do Loire.
- O que tem a ver uma coisa com a outra?
- Não sei, apenas gostaria de investigar. Alguém pode ter se enganado... E lembre-se, Bobby, eu nunca estive aqui embaixo. Não poderia, estou morto.
Eram nove e meia da noite e a cozinha da embaixada acabara de entregar um excelente jantar para Karin e Drew nos aposentos do embaixador. Os garçons tinham arrumado a mesa da sala de jantar, com velas e tudo e duas garrafas de extraordinários vinhos - um, tinto e na temperatura ambiente (para o bifteck grosso e malpassado de Latham) - e o outro um Chardonnay gelado (para o filé de linguado almondine de de Vries). Daniel Courtland, entretanto, não se juntara a eles, seguindo ordens de seu governo, já que era certo que o coronel Stanley Witkowski apareceria para debater estratégias futuras, das quais o embaixador não podia ter conhecimento. A capacidade de negar estava novamente na ordem do dia.
- Por que tenho a impressão de que esta será a minha última refeição antes de ser executado? - disse Drew, acabando sua última fatia de bife sangrento e bebendo seu terceiro copo de vinho Pommard.
- Será, se você continuar a comer assim - respondeu Karin. - Acabou de consumir colesterol suficiente para entupir as artérias de um dinossauro.
- Quem pode dizer hoje em dia? Vivem trocando as coisas. Um dia margarina é boa, manteiga horrível... noutro dia manteiga é melhor, margarina é pior. Estou esperando o mais recente relatório médico que anuncie que a nicotina é a cura do câncer.
- Moderação e variedade é a resposta, querido.
- Não gosto de peixe. Beth nunca soube fazer peixe. Sempre cheirava a peixe.
- Harry gostava de peixe. Ele me disse que sua mãe fazia-o muito bem grelhado, com pitadas de endro.
- Harry e mamãe viviam numa conspiração contra papai e eu. Ele e eu saímos e íamos comprar um hambúrguer.
- Drew - começou Karin, deixando um instante passar. - Você já fez contato com seus pais para contar-lhes a verdade sobre você e Harry?
- Ainda não, não é hora.
- Isso é terrivelmente cruel. Você é o filho deles que sobreviveu e estava junto com ele quando foi morto. Não pode se esquecer deles; devem estar arrasados.
- Beth, aposto que sim, mas não meu pai. Digamos que ele é bastante desaforado e que não gosta muito das autoridades. Passou a vida brigando na política universitária e contra as restrições que alguns países fazem às explorações arqueológicas. Não seria nada estranho se ele me pedisse para prestar contas, e não posso prestar nenhuma.
- Ele não deixa de se parecer com os dois filhos, eu diria.
- Talvez. Por isso que a hora não é certa. - A campainha do embaixador tocou. Imediatamente, um garçom saiu da cozinha do andar. - Estamos esperando o coronel Witkowski - disse Latham. - Por favor, deixe-o entrar.
- Sim, senhor.
Doze segundos mais tarde, o chefe de segurança da embaixada entrou na sala de jantar, com uma censura nos olhos quando avistou a mesa.
- Que diabo é isso? - perguntou rispidamente. - Vocês fazem parte agora da turma diplomática?
- Eu, pessoalmente, sou o representante do reino de Oz - respondeu Drew, sorrindo. - Se essa luz de velas estiver muito clara, mandaremos os escravos de Jó apagarem algumas.
- Não ligue para ele, Stanley - disse Karin. - Já bebeu três copos de vinho. Se quiser alguma coisa, tenho certeza de que poderemos arranjá-la para você.
- Não obrigado. - Witkowski sentou-se. - Eu comi um bife excelente que mandei levar na minha sala enquanto esperava a ligação de Moreau.
- Colesterol demais - disse Latham. - Não ouviu falar nisso?
- Recentemente, não, mas tive notícias de Moreau.
- O que arranjou ele? - perguntou Drew, de repente sério.
- Este Vaultherin é relativamente limpo na superfície, mas existem perguntas a serem feitas. Fez uma fortuna com os novos prédios em volta de Paris, enriquecendo também seus investidores.
- E daí? Outros já fizeram o mesmo.
- Mas nenhum com o mesmo passado. Ele é um jovem e arrogante bucaneiro nos círculos financeiros.
- Novamente, qual a novidade?
- Seu avô foi membro da Milice...
- Da quê...?
- A polícia francesa pró-nazista durante a guerra - respondeu Karin. - Criada pelos alemães para combater a Resistência. Eram algozes do escalão intermediário, sem os quais os nazistas não poderiam controlar o país ocupado.
- Qual é a moral da história, Stanley?
- Os maiores investidores de Vaultherin vêm da Alemanha. Estão comprando tudo o que podem comprar.
- E o que tem o Vale do Loire?
- Eles praticamente são os donos dele, ou pelo menos de uma quantidade apreciável ao longo do rio.
- Você tem uma lista das propriedades?
- Sim, tenho - disse o coronel, tirando um pedaço de papel do bolso interno do casaco e entregando-o a Drew. - Não tenho certeza de qual a informação que isto poderá nos dar, a maioria pertence há séculos às mesmas famílias. As que não são, ou foram desapropriadas pelo governo pelo não pagamento de impostos, e portanto viraram pontos turísticos, ou foram recém-adquiridas por astros de cinema e outras celebridades, até que seus contadores lhes revelassem o prejuízo que estavam dando. A maioria destas está à venda.
- Tem algum general na lista?
- Como pode ver, quinze ou vinte nominalmente, mas isso só porque compraram pequenas áreas de dois a três hectares e pagam seus impostos. Existem pelo menos uma dúzia de outros, generais e almirantes, que ganharam "domicílios vitalícios" devido aos seus serviços militares prestados à República Francesa.
- Isso é uma loucura.
- Nós fazemos o mesmo, chlopak. Temos alguns milhares de altos oficiais morando em casas elegantes dentro do perímetro das bases militares, depois de terem se aposentado. Não é fora do comum, nem injusto, quando se pensa a respeito. Passam a vida ganhando uma fração do que poderiam ganhar na iniciativa privada, e se no final da vida não entram para a diretoria de grandes empresas, não teriam condições de morar nem em Scarsdale, Nova York.
- Nunca pensei nisto deste modo.
- Tente, agente Latham. Completarei agora meus trinta e cinco anos e dezoito meses de serviço, e ao mesmo tempo que posso proporcionar aos meus filhos e netos uma verdadeira farra em Paris, se você achar que um dos meus filhos poderia chegar e me pedir emprestados cinquenta mil paus para fazer uma cirurgia, está enganadíssimo. Eu emprestaria sim, mas ficaria na lona.
- Está bem, Stanley, já compreendi seu ponto de vista - disse Latham, examinando a lista. - Diga-me, Stosh, em relação a essas compras de pontos tradicionais, por que não estão listados os moradores?
- Normas do Quai d’Orsay. Igualzinho a nosso país. Existe gente pirada que tem ressentimentos dos comandantes. Lembra do veterano do Vietnã que tentou matar Westmoreland atirando através de uma janela?
- Podemos obter esses nomes?
- Moreau pode, provavelmente.
- Peça-lhe para fazer isto.
- Ligarei para ele de manhã... Agora, podemos conversar sobre a operação que nos foi confiada, principalmente o sequestro do Dr. Hans Traupman em Nuremberg?
- Cinco homens, não mais do que isso - disse Drew, depositando a lista de Witkowski na mesa da sala de jantar. - Cada um deles fluente em alemão e com treinamento de comando, nenhum deles casado ou com filhos.
- Eu te antecipei. Descobri dois na OTAN, com você e eu faz quatro, e tem um candidato de Marseilles que pode satisfazer as especificações.
- Parem! - gritou Karin. - Eu sou o quinto homem. Muito melhor, porque sou uma mulher.
- Nos seus sonhos, minha senhora. Aposto que Traupman tem uma segurança tão forte como se usasse o diamante Hope ao redor do pescoço, como um mezuzah.
- Moreau está investigando isto - disse o coronel. - Sinceramente, ele gostaria de comandar ele mesmo a operação, mas o Quai d’Orsay e também o serviço de informações francês cortariam a sua cabeça se tentasse. Mas não há norma que o impeça de nos dar assistência. Dentro de vinte e quatro horas ele espera um relatório sobre a segurança e a rotina diária de Traupman.
- Vou com você, Drew - disse de Vries calmamente. - Não há como me impedir, por isso não tente.
- Pelo amor de Deus, por quê?
- Por todos os motivos que você conhece tão bem e por um que desconhece.
- O quê...?
- Tal como você disse sobre Harry e seus pais, eu contarei quando chegar a hora.
- Que tipo de resposta é esta?
- No momento, a única que você obterá.
- Acha que concordarei com isto?
- Precisa, é um presente que estará me dando. Se recusar, e não importa a dor que isto me causará, eu o deixarei e você nunca mais me verá.
- Significa tanto assim para você? Este motivo que eu desconheço significa tanto assim?
- Sim.
- Karin, você está me pondo a faca no peito!
- Não tenho esta intenção, querido, mas há certas coisas que precisamos simplesmente aceitar. Esta é uma delas.
- Eu deveria ter a capacidade de te dizer que não aceito essa merda toda! - disse Latham, engolindo em seco enquanto olhava fixamente para ela. - Mas simplesmente não tenho.
- Escuta só, chlopak - interrompeu Witkowski, examinando os dois. - Não adoro a ideia, mas tem seu lado positivo. Uma mulher consegue às vezes certos acessos tranquilos que um homem não consegue.
- Que diabo está propondo?
- Obviamente não o que está pensando. Mas já que ela está tão resolvida, poderia ser útil.
- Isto é a coisa mais fria e insensível que já ouvi você dizer, coronel! A tarefa é tudo e o indivíduo nada?
- Existe um terreno intermediário onde ambos são vitais.
- Ela poderia ser morta!
- Do mesmo modo que todos nós. Acho que ela tem tanto direito a esta escolha quanto você. Você perdeu um irmão, ela, um marido. Quem é você para representar o papel de Salomão?
Eram vinte para as cinco em Washington, aqueles minutos frenéticos antes que a hora do rush encha as ruas, quando secretárias, escriturários e digitadores atropelam seus chefes para arrancarem deles as últimas instruções do dia, de modo que todos consigam chegar às garagens, aos estacionamentos e pontos de ônibus antes da multidão. Wesley Sorenson deixara o escritório, já na sua limusine, mas não em direção à sua casa; sua mulher sabia lidar com emergências, filtrando as autênticas e fazendo contato com ele no carro se preciso fosse. Depois de quase quarenta e cinco anos, tinha desenvolvido um instinto tão sensível quanto o seu, e ele lhe era grato por isto.
Em vez de ir para casa, o diretor das Operações Consulares estava a caminho de um encontro com Knox Talbot em Langley, Virgínia. O chefe da CIA alertara-o uma hora antes; a armadilha para Bruce Withers, agente de compras de equipamento de alta tecnologia, fanático, e principal suspeito das mortes no esconderijo da CIA, talvez tivesse desarmado. Talbot mandara grampear o telefone de trabalha de Withers, e às 2:13 da tarde, ele recebera uma ligação de uma mulher que se identificara apenas como Suzy. Knox tocara a fita para Wesley nos seus telefones seguros.
- Oi, bem, é Suzy. Desculpe te atrapalhar no trabalho, querido, mas encontrei Sidney, e ele disse que arranjou aquele velho carango para você.
- O Aston-Martin prateado, DB-Três?
- Se foi esse o que você queria, ele arranjou.
- Ei, posso sentir o cheiro dele! Esse é o carro de "Goldfinger".
- Ele não quer trazê-lo até o estacionamento, por isso você deve encontrá-lo em Woodbridge lá pelas cinco e meia.
- Você, eu e alguns rapazes da pesada vamos segui-lo, Wes - dissera Talbot.
- Certo, Knox, mas por quê? Este homem é um fascista, um ladrão, e um yuppie tardio, mas o que tem a ver o fato de ele comprar esse carro inglês todo esquisito com as demais coisas?
- Lembrei-me de que sou proprietário de uma empresa que fabrica autopeças sob encomenda em Idaho... ou é em Ohio?... Por isso liguei para o cara que a administra para mim. Ele disse que qualquer maníaco em automóveis sabe muito bem que o carro de "Goldfinger" é o Aston-Martin DB-Quatro, e não o Três. Ele ainda disse que compreenderia se alguém tivesse dito DB-Cinco, porque não havia muito diferença no modelo, mas jamais um DB-Três.
- Eu não consigo distinguir um Chevrolet de um Pontiac, se é que ainda os fabricam.
- Um maníaco em automóveis consegue, especialmente se for pagar mais de cem mil por ele. Encontre-me no estacionamento sul. É lá que está o Jaguar de Withers.
A limusine entrou no enorme complexo de Langley, o motorista achando seu caminho até o estacionamento sul. Foram barrados por um sujeito de terno escuro, segurando um distintivo. Sorenson abaixou o vidro.
- Sim, o que é?
- Reconheci o carro. Se puder fazer o favor de sair e me seguir, eu o levarei ao chefe. Vai haver uma troca de carros, para algo menos óbvio do que uma limusine.
- Faz sentido.
A troca de veículos significava que iriam num sedã inexpressivo de propriedade duvidosa. Wesley entrou no banco traseiro junto com Knox Talbot.
- Não se deixe enganar pelas aparências - disse o chefe da CIA. - Este carango aqui tem um motor com o qual provavelmente venceríamos as 500 milhas de Indianápolis.
- Aceito sua palavra, mas também qual a minha alternativa?
- Nenhuma. Além do mais, fora os dois cavalheiros na frente, há um segundo carro nos seguindo com quatro cavalheiros armados até os dentes.
- Você está esperando a invasão da Normandia?
- A minha foi na Coreia, por isso não conheço tão bem a história antiga. Só sei que podemos esperar qualquer coisa desses filhos da puta.
- Estou do seu lado...
- Lá vai ele - interrompeu o motorista. - Está se dirigindo diretamente ao Jaguar.
- Vá devagar, cara - disse Talbot. - Siga o fluxo de tráfego, só não o perca.
- Não há como, Sr. Diretor. Eu adoraria pegar o filho da puta.
- Por quê, rapaz?
- Ele cismou com a minha garota, minha noiva. Ela está no grupo de estenógrafas. Ele encurralou-a e tentou passar a mão nela.
- Compreendo - disse Talbot, inclinando-se em direção ao ombro de Sorenson e cochichando. - Adoro quando existe uma autêntica motivação, você não gosta? É o que tento meter na cabeça do meu pessoal.
Depois de uma viagem de quase uma hora, o Jaguar encostou num motel vagabundo na periferia de Woodbridge. Na extremidade esquerda de uma fileira de cabanas, havia uma construção imitando um galpão em miniatura com um letreiro de néon vermelho anunciando BAR, TV, QUARTOS DISPONÍVEIS.
- O Waldorf das transas rapidinhas vespertinas, com certeza - comentou Wesley, enquanto Bruce Withers deixava seu carro e entrava no bar. - Eu sugiro que você dê a volta e estacione bem longe, à direita da porta - prosseguiu ele, falando com o motorista. - Ao lado daquele fusca prateado rebaixado.
- Aquele é o Aston-Martin DB-Quatro - disse Talbot. - O carro de "Goldfinger".
- Sim, agora me lembro de tê-lo visto... um bom filme. Mas por que haveria alguém de pagar cem mil dólares por ele? Aquela porra não deve ser muito confortável.
- Segundo meu gerente, é um clássico, e custa bem mais do que cem mil a esta altura. Provavelmente perto de duzentos.
- Então como é que um cara feito Bruce Withers poderia ter acesso a esse tipo de dinheiro?
- Quanto vale para o movimento neonazista a eliminação de dois membros presos cujas línguas poderiam ser soltas?
- Percebo o que quer dizer. - Sorenson dirigiu-se novamente ao assento dianteiro, enquanto o motorista estacionava ao lado do carro esporte britânico. - Que tal se um de vocês fosse lá dentro dar uma espiada?
- Sim, senhor - respondeu o agente ao lado do motorista. - Assim que estacionarmos.
- Posso sugerir que você afrouxe ou tire a gravata? Não acho que este lugar seja muito frequentado por homens trajando ternos de negócios. Talvez nas cabanas, sim, mas não aí.
O homem ao lado do motorista se virou. Sua gravata desaparecera e o colarinho da camisa estava aberto.
- E também o paletó - disse ele, tirando-o. - O dia está quente. - O agente saiu do carro, sua postura ereta transformando-se de repente num porte relaxado ao se encaminhar para a porta sob o letreiro de néon.
Dentro do bar mal-iluminado, a clientela era típica: vários motoristas de caminhão, pessoal da construção civil, dois ou três tipos universitários, um homem de cabelos brancos cujo rosto vincado e inchado já tivera no passado um ar aristocrático, e cujas roupas surradas ainda mostravam sua boa procedência original, e um quarteto de prostitutas locais. Bruce Withers fora saudado pelo corpulento barman.
- Ei, Sr. W. - dissera o sujeito. - Vai querer uma cabana?
- Hoje não, Hank, vim encontrar alguém. Não o estou vendo...
- Ninguém perguntou por você. Talvez ele esteja atrasado.
- Não, está aqui. Seu carro está lá fora.
- Provavelmente está no banheiro. Pegue um reservado, e quando ele vier, eu o mando se juntar a você.
- Obrigado, e traga-me um duplo de costume. Hoje estou comemorando.
- Já vem já.
Withers ficou sentado num reservado de encosto alto nos fundos do bar. Seu enorme martini chegou e ele bebericou-o, tentado a voltar à janela da frente e olhar de novo o Aston-Martin. Era demais! Mal podia esperar para cruzar as estradas com ele, para exibi-lo a Anita Griswald - e especialmente não podia esperar que sua filha, Kimberly, o visse! Era muito mais excitante do que qualquer veículo que seus sogros metidos a besta e a puta da sua ex-mulher poderiam arranjar para transportá-la! Seu agradável devaneio foi interrompido por um homem troncudo de camisa xadrez que apareceu de repente e se insinuou no reservado, sentando-se defronte a ele.
- Boa tarde Sr. Withers. Tenho certeza de que viu o DB-Quatro. Belo carro, não é?
- Quem diabo é você? Não é Sidney, é o dobro dele.
- Sidney não estava disponível, por isso vim no seu lugar.
- Nós não nos conhecemos. Como soube que era eu?
- Uma foto.
- Uma quê?
- É banal.
- Já estou aqui há cinco minutos. Por que esperou?
- Só averiguando - disse o intruso, olhando repetidamente para a porta da frente.
- Averiguando o quê?
- Nada realmente. Para ser sincero com você, sou portador de grandes notícias e consideráveis riquezas.
- Ah?
- No meu bolso estão quatro títulos ao portador, cada qual de cinquenta mil dólares, dando um total de duzentos mil. Junto com eles, um convite para visitar a Alemanha, com todas as despesas pagas, é claro. Nós soubemos que você ainda não tinha tirado suas férias de verão, talvez possa agora programá-las.
- Meu Deus, estou boquiaberto! Isso é ótimo. Então minha contribuição foi apreciada, eu sabia que seria! Corri um tremendo risco, vocês todos sabem disso, não sabem?
- A prova é o fato da minha presença aqui, não é?
- Não posso esperar para chegar a Berlim, porque você tem razão, temos razão! Este país está pouco a pouco indo por água abaixo. E por falar em limpeza étnica, vamos precisar de cinquenta anos dela...
- Espere aí! - sussurrou o estranho rispidamente, com os olhos novamente postos na porta. - O cara que entrou depois de você, de camisa branca.
- Não reparei. O que há com ele?
- Ele tomou uns dois goles de cerveja, pagou com uma nota de dois paus e acabou de ir embora.
- E daí?
- Espere aí, voltarei. - O homem saiu se espremendo do reservado, contornou rapidamente o bar e foi até a janela da frente imunda, por onde olhou para fora. Afastou-se imediatamente da vidraça e voltou ao reservado, com a expressão carregada, os olhos semicerrados. - Seu idiota. Foi seguido! - disse ele, sentando-se.
- De que está falando?
- Você me ouviu, seu idiota! Tem três homens lá fora falando com o de camisa branca, e acredite, não são clientes desta espelunca. Têm federais escrito na testa.
- Meu Deus! Um diretor-adjunto chamado Kearns me ligou na noite passada fazendo perguntas idiotas, mas eu respondi direitinho.
- Kearns da CIA?
- É onde eu trabalho, se lembra?
- Muito bem. - O estranho se inclinou sobre a mesa, com a mão esquerda em cima dela, e a direita debaixo. - Você é um risco para aqueles que esperam que eu cumpra minha tarefa, Sr. Withers.
- Me dê o dinheiro que eu sairei pela porta dos fundos, onde fazem as entregas.
- O que fará então?
- Esperarei numa cabana vazia até eles irem embora, subornarei uma das putas para que jure que estava comigo, se for preciso, e irei para casa. Ligue-me depois sobre o Aston-Martin. Vamos!
- Acho que não. - Houve uma explosão de gargalhadas estridentes no bar, acompanhada de quatro cuspidelas abafadas sob a mesa. Bruce Withers caiu para trás no seu assento, a parte superior do corpo grudada contra o encosto, os olhos arregalados, enquanto um filete de sangue gotejava do canto de sua boca. O estranho de camisa xadrez saiu do reservado e caminhou calmamente até a entrada de serviço nos fundos, enquanto enfiava a pistola com o silenciador no seu cinto. A porta se abriu e o capanga de Mario Marchetti desapareceu. O Don de Pontchartrain estava cumprindo seu acordo.
Nove minutos e trinta e sete segundos se passaram até que os gritos, acrescidos dos berros das mulheres, irromperam de dentro do bar do motel. Uma mulher exageradamente maquiada saiu correndo pela porta, gritando.
- Pelo amor de Deus, alguém chame a policia! Mataram um cara a tiros ali!
Os agentes da CIA, acompanhados de seu diretor e Wesley Sorenson, foram para lá correndo. Mandaram que todo mundo no bar ficasse onde estava e que ninguém tentasse usar o telefone. Um Knox Talbot frustrado, abatido, acompanhado de Sorenson, saiu naquele fim de tarde em que a luz findava. O Aston-Martin DB-Quatro sumira.
35
O indivíduo, Dr. Hans Traupman (residência acima), vive acompanhado de guarda-costas vinte e quatro horas por dia, equipes de três homens em turnos de oito horas, fortemente armados, mesmo ao escoltar o cirurgião até a sala de operação, onde permanecem durante toda a cirurgia. Quando Traupman vai a restaurantes ou ao teatro, concertos ou eventos de qualquer natureza, sua segurança é frequentemente redobrada, ladeando-o em assentos ou poltronas e perambulando repetidamente pelo recinto de um modo altamente profissional, varrendo parte por parte. Na residência de Traupman, os guarda-costas patrulham continuamente os elevadores, os corredores, e o exterior de seu prédio de apartamentos de luxo. Isto além dos inúmeros sistemas de alarme. Em suas raras visitas a banheiros públicos, dois guardas entram junto com ele e o terceiro fica do lado de fora, impedindo delicadamente que as pessoas entrem até Traupman reaparecer. O seu veículo de transporte é uma limusine Mercedes blindada, com vidros à prova de balas, jatos de gás em todos os lados para imobilizar atacantes móveis, ativados no painel. Quando viaja, voa no seu jato particular, guardado num hangar isolado e cheio de alarmes numa pista de voo ao sul de Nuremberg. Câmeras digitais, funcionando vinte e quatro horas por dia, gravam todas as atividades, dentro e fora.
O único desvio dessa rotina de segurança é quando Traupman voa até Bonn e sai de lancha no Reno, durante as noites em que presumivelmente vai participar de reuniões clandestinas do movimento neonazista. (Ver relatório anterior.) Aparentemente não é permitido aos membros terem uma tripulação ou arrais, o que explica o tamanho e capacidade de manobras da embarcação. É uma pequena lancha com um motor de 125 hp e flutuadores infláveis a bombordo e estibordo. Entretanto, mesmo aí ele possui uma grande margem de segurança, através de câmeras giratórias que enviam imagens e som para seus guardas na marina, onde fica um helicóptero normal preparado para uma imediata decolagem de emergência. (Aqui, conclusões não derivadas da observação podem ser deduzidas: há um equipamento de radar que transmite coordenadas do mapa fluvial, e, tal como sua Mercedes, jatos de gás nas amuradas, destinados a impedir ou eliminar abordadores indesejáveis, sendo que o timoneiro fica protegido por uma máscara, o que foi observado.)
Boa sorte, Claude. Você vai ficar me devendo realmente este aqui. Tive que despistar na marina de Bonn dizendo que ia comprar uma Chris-Craft americana. Felizmente dei o nome de um porco clandestino espanhol que opera aqui e me deve dinheiro.
Drew Latham, rindo baixinho do último parágrafo, pôs o relatório de Moreau em cima da mesa antiga e lançou um olhar para Witkowski e Karin, que estavam sentados no divã.
- Será que existe alguma possibilidade que aquele filho da puta já não tenha pensado? - perguntou.
- É bastante completa - respondeu o coronel.
- Não sei dizer - disse de Vries. - Ainda não li.
- Leia-o agora e pode chorar. - Drew levantou-se e levou o relatório para Karin, sentando-se em seguida numa das poltronas de brocado diante deles. De Vries começou a ler enquanto Latham prosseguia. - Macacos me mordam se eu sei por onde começar - disse ele. - Aquele filho da puta está realmente coberto, até no banheiro.
- Parece duro no papel, mas de perto poderemos descobrir falhas.
- É melhor que seja verdade. De acordo com isto, seria muito mais fácil matá-lo do que prendê-lo.
- Sempre é.
- Distração - disse de Vries, levantando os olhos do relatório de Moreau. - É a única coisa que posso imaginar. Dar um jeito de distrair de algum modo a atenção dos guarda-costas.
- Isto é axiomático - disse Witkowski. - Prosseguir, imobilizando uns dois e desfechar um ataque. O problema é como, e até que ponto vai a disciplina dos seus capangas.
- Como disse, Stosh, não saberemos até chegarmos lá.
- Por falar nisso, os dois sujeitos da OTAN estão lá embaixo na minha sala. Chegaram no voo das três horas de Bruxelas, com novos passaportes e documentos que provam que são vendedores de uma empresa fabricante de aviões.
- Bom disfarce - disse Latham. - Esses vendedores se encontram por toda a Europa.
- Tivemos de contornar algumas dificuldades para resolver tudo. Levou a manhã inteira e parte da tarde para completar a "autenticidade" deles. Estão na realidade na folha de pagamento da empresa.
- Foi tudo isso necessário? - perguntou Karin.
- Foi mesmo, minha jovem senhora. Quaisquer referências a seus verdadeiros nomes revelariam o currículo de dois membros das Forças Especiais que atuaram atrás das linhas do inimigo na Tempestade no Deserto. Cada um deles é tão habilidoso com uma faca quanto com suas próprias mãos, para não falar de garrotes e pontaria.
- Você está dizendo que eles são assassinos.
- Só quando necessário, Karin. Sinceramente, são dois ótimos sujeitos, meio tímidos aliás, que foram treinados para reagir de acordo com uma dada circunstância.
- Isso é um eufemismo para dizer que eles bateriam com sua cabeça numa pedra se você fosse o bandido - explicou Latham. - Está satisfeito com eles, Stosh?
- Definitivamente.
- E ambos falam francês e alemão fluentemente? - acrescentou de Vries.
- Perfeitamente. O primeiro é o capitão Christian Dietz, trinta e dois anos, formado pela Universidade de Denison, e um oficial de exército de carreira. Os pais e avós eram alemães, os últimos fazendo parte da resistência alemã durante o Terceiro Reich. Seu pai e sua mãe foram mandados para os Estados Unidos quando ainda eram crianças.
- O outro? - perguntou Drew.
- Um tenente chamado Anthony, Gerald Anthony. Ele é um pouco mais interessante - disse o coronel. - Tem dois mestrados em literaturas francesa e alemã, estava se encaminhando para o doutorado enquanto ensinava numa pequena universidade da Pensilvânia, quando chegou à conclusão, segundo suas próprias palavras, de que não conseguia mais aguentar a política universitária. Pensei em trazê-los aqui em cima - continuou Witkowski. - Assim passaríamos a nos conhecer de uma maneira menos formal.
- É uma boa ideia, Stanley - disse Karin. - Mandarei a cozinha preparar um hors d’oeuvres e café, talvez drinques.
- Não - objetou Drew. - Nada de hors d’oeuvres, nem café, e definitivamente nada de drinques. Isto aqui é uma fria operação paramilitar, e vamos mantê-la assim.
- Não acha que é um pouco frio demais?
- Ele tem razão, minha jovem senhora, embora eu jamais pensei que ele diria isto. Errei. A hora para esse tipo de informalidade é mais tarde. Depois a gente vê se pode afrouxar a corda, ou não.
De Vries olhou-o com uma interrogação nos olhos.
- Eles ainda estão sendo avaliados - explicou Latham. - Entrevistados para a tarefa, como se comportam, o que têm para oferecer. Dois oficiais das Forças Especiais que atuaram atrás de linhas inimigas em qualquer guerra devem ter cacife.
- Eu não sabia que nós tínhamos essa quantidade de candidatos.
- Não temos, mas eles não sabem isso. Chame-os aqui em cima, Stanley.
O capitão Christian Dietz, a não ser pela sua relativamente pequena estatura, poderia ter saído de um cartaz da Juventude Hitlerista. Louro, de olhos azuis, e com um corpo que seria invejado por um campeão olímpico, tinha o porte adequado a um membro de comando experiente que ele era. O tenente Gerald Anthony, por sua vez, era igualmente musculoso, mas muito mais alto e com cabelos escuros, um sujeito esguio como um caniço que evocava a imagem de um chicote em pé, pronto para se enrolar e desferir uma mortífera chicotada a qualquer instante. Paradoxalmente, seus rostos eram totalmente despidos de maldade, com olhares nada agressivos. E para completar o quadro contraditório, eram, conforme Witkowski mencionara, basicamente sujeitos tímidos, que hesitavam ao falar de suas atividades passadas e de suas medalhas.
- Estávamos no lugar certo na hora certa - disse Dietz sem fazer mais nenhum comentário.
- Nossa informação era excelente - acrescentou Anthony. - Sem ela, teríamos sido assados numa fogueira iraquiana, isto é, se eles conseguissem aprender a fazer uma na areia.
- Vocês trabalharam juntos, então? - perguntou Drew.
- Nosso código no rádio era Alfa-Delta.
- Delta-Alfa - corrigiu Dietz a Gerald Anthony.
- Ambos eram usados - disse Anthony, sorrindo para o amigo.
- Está bem - concordou o capitão, sorrindo modestamente.
- Vocês leram o relatório sobre Traupman - prosseguiu Latham. - Alguma sugestão?
- Um restaurante - disse o tenente Anthony.
- O rio - disse simultaneamente o capitão Dietz. - Eu esperaria em Nuremberg e o seguiria até Bonn, utilizando o rio.
- Por que um restaurante? - perguntou Karin, dirigindo-se a Anthony.
- Por que é fácil de se criar uma manobra diversionista...
- Eu disse isto - interrompeu de Vries.
- ... começando um incêndio - continuou o tenente - ou localizando os guarda-costas e imobilizando-os à força ou com sedativos instantâneos na sua água ou comida. Sinceramente, acho um incêndio mais eficaz. Todos aqueles pratos flambados; é tão simples trocar os molhos e aí todo o lugar se enche de chamas fugazes, mas que distraem a atenção de todo mundo, enquanto pegamos o alvo.
- E o rio? - perguntou Witkowski.
- Podemos tapar os jatos de gás nas amuradas, já o fizemos no passado. Todas as patrulhas de Saddam Hussein tinham isso. Em seguida você explode as câmeras com projéteis de alta velocidade, como se o sistema elétrico tivesse entrado em pane. O essencial é fazê-lo subaquaticamente, fora do alcance das câmeras, e antes que a embarcação chegue perto da margem. Você sobe a bordo e foge da área.
- Vamos recapitular - disse Latham. - Tenente, por que acha um restaurante em Nuremberg mais eficaz de que o rio em Bonn?
- Primeiro, poupa tempo, e há uma margem muito maior de erro na água. A visibilidade é pequena, é possível deixar de fora algum jato de gás, como também as câmeras... basta uma. O helicóptero de emergência possui potentes holofotes e a lancha é facilmente identificável. E tal como o percebo, o inimigo prefere que o alvo seja morto por rajadas de metralhadora ou bombardeio a ser sequestrado vivo.
- Bons motivos - disse o coronel. - E você, capitão, por que acredita que um restaurante seja uma alternativa pior?
- Novamente, há muito margem de erro - disse Dietz. - Uma multidão em pânico favorece as equipes de segurança. No instante em que começar o incêndio diversionista, correrão até o alvo para protegê-lo, e não há como sedar os guardas que não se encontram nas mesas vizinhas, mesmo sabendo quem são.
- Então discorda do seu colega - disse Karin.
- Não é a primeira vez, minha senhora. Nós geralmente chegamos a uma conclusão.
- Mas você é seu superior - interrompeu abruptamente Witkowski.
- Não ligamos muito para a patente - disse o tenente. - Não durante o combate. Daqui a um mês ou dois serei capitão e teremos de rachar as contas do almoço e do jantar. Não poderei insistir mais em que ele as pague.
- O magrelo aqui come como um boi - resmungou Christian Dietz em voz baixa.
- Tive uma ideia sensacional - interrompeu de repente Latham. - Chegou perto do ideal, se é que existe. Vamos tomar uns drinques.
- Mas pensei...
- Esqueça o que eu disse antes, general de Vries.
Os cinco integrantes da Operação N-2 voaram até Nuremberg em três voos diferentes, Drew com o tenente Anthony, Karin com o capitão Dietz, e Witkowski sozinho. Claude Moreau providenciara tudo: Latham e de Vries tinham quartos anexos no mesmo hotel; Witkowski, Anthony e Dietz ficaram hospedados em hotéis diferentes pela cidade. O ponto de encontro deles seria na biblioteca principal de Nuremberg, na manhã seguinte, no meio de pilhas de livros dedicados à história daquela ex-cidade imperial. Foram conduzidos a uma sala de conferências, na qualidade de três doutorandos da Universidade de Colúmbia, em Nova York, junto com sua guia alemã. Não lhes foram exigidos documentos, porque os agentes de Moreau já haviam azeitado o caminho.
- Eu não fazia a menor ideia de como é bonito este lugar! - exclamou Gerald Anthony, o único ex-doutorando da América. - Levantei cedo e dei um passeio por aí. É tão medieval... os muros do século onze, o antigo palácio real, o mosteiro dos Cartuxos. Sempre que pensava em Nuremberg, só me vinham a cabeça os julgamentos da Segunda Guerra, cerveja e usinas químicas.
- Como é que pode, você um estudante de artes germânicas nunca ter estudado o local de nascimento de Hans Sachs e Albrecht Dürer? - disse Karin, enquanto se sentavam todos em volta da mesa redonda, grossa e polida.
- Bem, Sachs era antes de tudo músico e dramaturgo, e Dürer, gravador e pintor. Eu me concentrei na literatura alemã e nas frequentes e terríveis influências...
- Será que os dois acadêmicos se importariam? - interrompeu Latham, enquanto Witkowski dava um risinho. - Temos outros assuntos na nossa agenda imediata.
- Desculpe, Drew - disse Karin. - É apenas tão animador. Bem, deixe para lá.
- Posso concluir seu comentário, mas não o farei - interrompeu Latham. - Quem quer falar primeiro?
- Eu também levantei cedo - respondeu o capitão Dietz. - Mas por não ter inclinações estéticas tão intensas, examinei a residência Traupman. O relatório do Deuxième esgotou o assunto. Seus gorilas perambulam em volta do condomínio como uma matilha de lobos. Entram, saem, circulam o prédio e voltam; desaparece um, aparece, outro. Não há como entrar e permanecer vivo para contar depois.
- Nunca consideramos seriamente sequestrá-lo no seu apartamento - disse o coronel. - Os homens do Deuxième aqui em Nuremberg são nossos observadores. Eles nos manterão informados por códigos telefônicos quando o homem deixar sua residência. Um deles deverá chegar aqui dentro em breve. Você desperdiçou seu tempo, capitão.
- Não necessariamente. Um dos guardas é um grande bebedor; é um cara grande, corado, e não parece, mas bebe de um frasco toda vez que entra na sombra. Outro tem urticária na virilha e na barriga - chatos, talvez, ou sumagre venenoso ou hera - ele corre literalmente para as áreas mais escuras e se coça até arrancar a pele.
- Onde quer chegar? - perguntou de Vries.
- A várias coisas, minha senhora. De posse desta informação, poderíamos nos posicionar para prendermos um, ou ambos, e depois de presos, utilizarmos aquilo que aprendemos para tirar informação deles.
- Vocês empregaram essa tática na Tempestade no Deserto? - Witkowski ficou obviamente impressionado.
- Lá era principalmente uma questão de comida, coronel. Uma porção daqueles iraquianos não comia há dias.
- Quero saber como ele entra e sai de sua limusine - disse Drew. - Ele precisa sair andando do seu prédio até entrar no carro, e aí no hospital ele precisa sair da limusine e entrar no hospital. Não importa se em estacionamentos ao rés do chão, ou subterrâneos, ele precisa se expor, ainda que brevemente. Estas talvez sejam as nossas melhores oportunidades.
- Essas breves situações e oportunidades podem também trabalhar contra nós - comentou o tenente Anthony. - Se as levamos em consideração, o mesmo devem fazer seus guarda-costas.
- Teremos armas que disparam dardos, silenciadores e o elemento surpresa - disse Latham. - Isso tem funcionado mais vezes do que fracassado.
- Vá com calma - admoestou Witkowski. - Um erro e a gente vai para o beleléu. Se eles tiverem a mais leve noção do que estamos preparando aqui, despacham Herr Doktor Traupman para um bunker na Floresta Negra. Eu diria que só podemos dar um tiro, e é melhor acertar. Por isso vamos esperar, examinar, e ter certeza de que ele será o nosso melhor tiro.
- É a espera que me incomoda, Stosh.
- A perspectiva de um fracasso me incomoda muito mais - disse o coronel. De repente um barulho baixo, de campainha, veio do paletó do coronel. Ele enfiou a mão e tirou o celular fornecido pelo setor alemão do Deuxième. - Sim?
- Desculpe o atraso para o café da manhã. - Foram as palavras em inglês, com sotaque francês, que surgiram no telefone. - Estou bem perto do café e deverei chegar aí dentro de poucos minutos.
- Vamos pedir outros ovos para você, a essa altura já esfriaram.
- Muito obrigado. Ovo morno não é mais ovo quente.
O coronel se virou para seus colegas em volta da mesa.
- Um dos homens de Moreau estará aqui dentro de poucos minutos. Karin, você se importaria de ir até a recepção e trazê-lo até aqui?
- Em absoluto. Qual o seu nome e disfarce?
- Ahrendt, professor adjunto, Universidade de Nuremberg.
- Já estou indo. - De Vries se levantou de sua cadeira, encaminhou-se até a porta e saiu da sala.
- A senhora é uma pessoa fantástica - disse o jovem oficial, tenente Anthony. - Quero dizer, ela realmente entende de história e de arte...
- Nós sabemos - interrompeu secamente Latham.
O homem que voltou acompanhado por Karin parecia um caixa de banco alemão típico, de altura média, bem-vestido, num terno bem-passado, comprado pronto, de preço médio. Tudo a seu respeito era médio, o que significava que ele era um agente superior da teia do Deuxième.
- Não é preciso declinar nomes, cavalheiros - disse ele, sorrindo simpaticamente. - Mesmo nomes falsos acabam confundindo, não é? Entretanto, só por conveniência, chamem-me de Karl, é um nome tão comum.
- Sente-se, Karl - disse Drew, fazendo um gesto em direção a uma cadeira vazia. - Não preciso lhe dizer o quanto apreciamos a sua ajuda.
- Só espero e rezo que seja útil.
- Esse negócio de reza me deixa nervoso - interrompeu Drew. - Você não parece muito confiante.
- Vocês se lançaram numa tarefa extremamente difícil.
- Mas também temos uma assistência tremendamente competente - disse Witkowski. - Pode acrescentar alguma coisa ao relatório?
- Bastante. Deixe-me começar por aquilo que conseguimos desde o envio do relatório a Paris. Traupman canaliza a maior parte dos seus assuntos pessoais para o escritório do diretor do hospital, uma pessoa extremamente rica e política e socialmente bem relacionada. É uma massagem para o ego de Traupman, como se o diretor estivesse sempre à sua disposição.
- Isso é meio estranho, considerando quem é Traupman - disse Gerald Anthony, o erudito.
- Não na verdade, Gerry - discordou Christian Dietz. - É como se o secretário de Defesa pedisse um avião via Gabinete Oval. Ele pode ser um homem importante, mas não existe ninguém mais importante do que o presidente. Na realidade, é muito germânico.
- Exatamente. - O homem que se chamava Karl balançou a cabeça. - E já que essas instruções são gravadas para evitar erros ou culpa - também muito germânico - nós envolvemos um secretário do hospital para nos retransmitir as instruções de Traupman.
- Não foi perigoso?
- Não, porque ele foi convencido por um uniforme de que se tratava da segurança da Polizei.
- Seus rapazes trabalham bem - disse Dietz.
- Se não o fizermos, morremos - disse Karl. - Aliás, Traupman reservou uma mesa para seis no terraço ajardinado do restaurante Gartenhof, para as oito e meia desta noite.
- Vamos tentar. - O tenente Anthony foi incisivo.
- Por outro lado, nosso homem na pista de pouso nos informou que Traupman deu ordens que preparassem seu avião para decolar às cinco da tarde de amanhã. Com destino a Bonn.
- Uma reunião neonazista no Reno - disse Dietz. - Na água é melhor, eu sei que é.
- Vá com calma, Chris - retrucou o tenente. - Nós nos fodemos naquela praia no norte do Kuwait, se lembra?
- Nós não nos fodemos, amigo, os caubóis da SEAL é que sim. Estavam tão excitados que taparam as descargas dos motores... Mesmo assim, nós os salvamos, nos arrastando pelos lados e...
- Isso é passado - interrompeu o tenente Anthony. - Ganharam suas medalhas e mereceram-nas. Dois deles morreram, espero que também se lembre disso.
- Não devia ter acontecido - disse Dietz em voz baixa.
- Mas aconteceu - acrescentou Anthony, numa voz mais baixa ainda.
- Então temos duas oportunidades - disse Latham incisivamente. - Hoje à noite no restaurante e amanhã no Reno. O que acha, Karl?
- Ambas são igualmente traiçoeiras. Desejo-lhes sorte, meus amigos.
No aeroporto abandonado e obsoleto ao norte de Lakenheath, nos prados baixos do condado de Kent, os dois enormes planadores Messerschmitt ME 323 recondicionados haviam sido remontados. Só faltava os poderosos jatos mergulharem, com os motores desligados aos três mil metros de altura, de modo a descer fazendo o mínimo barulho. Raio N’Água teria início dentro de cem horas.
Na área mais plana dos terrenos à beira do rio entre o reservatório Dalecarlia e o rio Potomac, dois outros gigantescos planadores ME 323 - primeiro desmontados e transportados assim de um lado a outro do Atlântico - permaneciam no chão. O gigantesco reservatório, alimentado por abundantes lençóis de água subterrâneos, se situava no trecho final do MacArthur Boulevard e fornecia água para toda Arlington, Falls Church, Georgetown e o Distrito de Colúmbia, inclusive os guetos e a própria Casa Branca. No momento aprazado, calculado em frações de minutos, dois jatos Thunderbird mergulhariam com os motores desligados e, com seus ganchos no rabo, prenderiam os dois cabos na extremidade de postes, puxando os planadores e fazendo-os alçar voo. Devido a fatores de estresse, as decolagens seriam auxiliadas por foguetes de propulsão descartáveis sob as asas dos planadores. Seriam ativados no momento do impacto. Esta manobra fora testada nos campos de Mettmach, na Alemanha, o novo quartel-general da Brüderschaft. Se executada direito, teria êxito. E seria executada direito aqui, envenenando e paralisando toda a capital dos Estados Unidos. A hora zero: dentro de cem horas.
A quarenta quilômetros mais ou menos ao norte de Paris, no campo de Beauvais, ficam os reservatórios que fornecem água para grandes partes da cidade, inclusive o arrondissement que abriga a maior parte do governo - todo o Quai d’Orsay, o palácio presidencial, o quartel da segurança militar, e uma série de órgãos e departamentos menores. A aproximadamente vinte quilômetros a leste do enorme reservatório existe uma extensão plana de terra cultivável, e dentro daquela gigantesca área existem três pistas de pouso que servem aos ricos que desprezam os inconvenientes dos aeroportos de Orly e De Gaulle. No campo mais longe, a leste, estão dois enormes planadores recém-pintados. A explicação para esta curiosidade é adequadamente exótica. Pertencem à família real saudita, para serem usados com fins esportivos no deserto, e já que haviam sido construídos e pagos na França, ninguém se interessou em saber mais sobre o assunto. Vários jatos - ninguém sabia quantos - deveriam chegar em alguma ocasião para rebocá-los em sua viagem até Riad. A torre de controle foi informada de que eles levantariam voo dentro de aproximadamente cem horas. Peu d’importance?
O terraço ajardinado do restaurante Gartenhof pertencia a uma era mais antiga, muito mais graciosa, quando quartetos de cordas acompanhavam belos jantares admiravelmente servidos e todos os pratos eram levados em mãos vestidas por luvas branquíssimas. O problema é que era um jardim, ao ar livre, num terraço, cheio de jardineiras dando para as antigas ruas de Nuremberg, à vista da idolatrada casa de Albrecht Dürer.
Gerald Anthony, tenente, Forças Especiais, combatente na Tempestade no Deserto, estava furioso. Havia preparado a todos para a missão, para a sua especialidade, uma conflagração que irromperia de repente, distraindo todo mundo, especialmente os guarda-costas sentados perto da mesa de Traupman, que poderiam ser suficientemente imobilizados durante a confusão para se tornarem uma inutilidade para seu patrão. Entretanto, a brisa quente que serpenteava entre os prédios, vinda do rio Regnitz, não parava, tornando-se perigosa demais para aquela manobra; somente os globos de vidro em volta das velas impediam-nas de se apagarem. Uma breve explosão de chamas era tudo que bastava para sequestrar Traupman, mas a possibilidade de as chamas se alastrarem por toda a área, com a probabilidade de matar ou ferir gente inocente dentro do recinto lotado, não era aceitável. Igualmente importante, era que o pânico engendrado por um incêndio de rápida expansão soprado pela brisa poderia facilmente trabalhar contra eles, entupindo a única entrada com os fregueses histéricos. Se apenas um guarda se recuperasse o suficiente para puxar uma arma, a missão fracassaria diante de um único tiro.
Através de sucessivas olhadelas, cada membro da equipe N-2 examinava sub-repticiamente Hans Traupman e seus convidados. O célebre cirurgião era o líder da roda de pavões; só faltavam as penas coloridas a emergirem de meia dúzia de ombros. Sendo que as de Traupman seriam as mais berrantes. Ele era um homem magro, de estatura mediana, gestos vivos e súbitas expressões faciais, exageradas para frisar algum tópico inevitavelmente engraçado, não obstante suas feições envelhecidas lhe emprestarem um aspecto semigrotesco. Não era um homem atraente, mas apesar da sua constante busca de aprovação, se não de aplauso, estava completamente com o controle na mão - o anfitrião rico cujos súbitos silêncios faziam com que os demais ficassem à espera de beber suas próximas palavras.
Latham, com o aspecto mudado devido aos óculos de aros de tartaruga, sobrancelhas grossas coladas e bigode, olhou para Karin, igualmente irreconhecível à luz fraca das velas, com seu rosto branco sem maquiagem, e os cabelos presos num coque sóbrio. Ela não devolveu seu olhar. Pelo contrário, parecia hipnotizada por algo ou por alguém na mesa de Traupman.
O tenente Anthony olhou sobre a mesa para Drew e o coronel Witkowski. Relutante, imperceptivelmente, sacudiu a cabeça. Seus superiores fizeram a mesma coisa, da mesma maneira. De repente Karin de Vries passou a falar alemão, num tom frívolo, displicente, bem diferente dela.
- Acho que vi uma velha amiga indo ao banheiro, e eu também vou. - Ela se levantou da mesa e cruzou o terraço, seguindo outra mulher.
- O que foi que ela disse? - perguntou Drew.
- O banheiro das mulheres - respondeu Dietz.
- Ah, só isso.
- Duvido muito - disse Anthony, tão fluente quanto o colega em alemão.
- O que quer dizer? - insistiu Latham.
- A mulher que ela está seguindo é obviamente a acompanhante de Traupman desta noite - explicou Witkowski.
- Karin ficou maluca? - explodiu Latham, sussurrando com intensidade. - O que pensa que está fazendo?
- Saberemos quando ela voltar, chlopak.
- Não estou gostando disso!
- Não tem alternativa - disse o coronel.
Doze frustrantes minutos depois, de Vries voltou à mesa.
- Em linguagem clara - disse ela em inglês e em voz baixa - minha nova e jovem amiga detesta o "nojento pervertido". Ela tem vinte e seis anos e Traupman sai com ela para se exibir, dá-lhe dinheiro e exige sexo pervertido ao voltarem para seu apartamento.
- Como soube isto? - perguntou Drew.
- Estava nos olhos dela... Já morei em Amsterdã, lembra? Ela é viciada em cocaína, precisando desesperadamente de uma dose para passar a noite. Encontrei-a cheirando. Material também fornecido pelo bom médico.
- Que homem fantástico - disse o capitão Dietz desdenhosamente. - Um dia ainda será contada a história de quantos iraquianos recebiam uma ração diária desta merda. Hussein incluiu-a na ração militar!... Será que isto nos adiantará alguma coisa?
- Só se conseguirmos entrar no seu apartamento - respondeu Karin. - O que nos daria uma enorme vantagem.
- Como? - perguntou Witkowski.
- Ele filma os seus encontros sexuais.
- Que coisa doente! - exclamou o tenente Anthony.
- Mais doente do que você imagina - disse de Vries. - Ela me contou que ele tem uma videoteca inteira, completa, inclusive de menininhos e menininhas. Alega que precisa dessas coisas para se excitar adequadamente.
- Poderiam virar uma colossal artilharia - comentou o coronel.
- Abuso sexual e o desprestígio público - disse Latham. - As mais poderosas armas jamais inventadas pelo homem.
- Acho que podemos fazê-lo - disse Dietz.
- Pensei que tivesse dito que não poderíamos - sussurrou Anthony.
- Posso mudar de ideia, não posso?
- Claro, mas suas avaliações iniciais são geralmente certas, Ringo.
- Ringo?
- Ele gosta daquele filme, esqueça... Como, Chris?
- Primeiro, Sra. de Vries, já que soube sobre os vídeos, presumo que tenha feito indagações discretas sobre o próprio apartamento. Correto?
- Claro que sim. Os três guardas dividem suas tarefas, alternando-se para terem um descanso, ao que parece. Um permanece do lado de fora da porta, numa mesa com um interfone, enquanto os outros dois patrulham, como disse antes, capitão, as passagens, o vestíbulo e a parte externa do prédio.
- E os elevadores? - perguntou Witkowski.
- Não tem na realidade muita importância. Traupman tem a cobertura, que constitui todo o último andar, e para se chegar lá, segundo minha jovem amiga pirada, você ou dá um código, ou então é liberada pela própria mesa da segurança do prédio, depois de terem averiguado se você era esperado.
- Então está falando de duas barreiras - disse Drew. - Os guardas de Traupman e a segurança do próprio prédio.
- Pode pensar em três - interrompeu Karin. - O guarda do lado de fora da porta da cobertura tem de teclar uma porção de números para que a porta se abra. Se teclar os números errados, há um estardalhaço dos diabos. Sirenes, campainhas, esse tipo de coisa.
- A garota lhe contou isso? - perguntou o tenente Anthony.
- Não foi preciso, Gerald, é o procedimento normal. Meu marido e eu tínhamos uma variação deste sistema em Amsterdã.
- Vocês tinham?
- É uma história complicada, tenente - interrompeu Latham secamente. - Não temos tempo para ela agora... Então se conseguirmos dar um jeito, o que é altamente duvidoso, de contornar os guardas e a mesa da segurança com seus códigos do elevador, seremos barrados e provavelmente alvejados do lado de fora da cobertura. Não exatamente um cenário atraente.
- Concorda que talvez possamos superar os primeiros dois obstáculos? - perguntou Witkowski.
- Eu concordo - respondeu Dietz. - Do bêbado e do cara cheio de coceiras Gerry e eu podemos dar conta. A mesa interna poderia provavelmente ser burlada por tipos muito oficiais exibindo distintivos tremendamente oficiais. - O capitão deixou que seu olhar descansasse em Latham e Witkowski. - Se eles realmente têm experiência nesse tipo de manobras, que o tenente e eu enfrentamos duas vezes na Tempestade no Deserto - acrescentou ele.
- Digamos que temos - disse um Drew cada vez mais irritado. - Como vamos enfrentar aquele robô na cobertura?
- Aí o senhor me pegou.
- Mas talvez não a mim - interrompeu Karin, levantando-se da mesa. - Se as coisas derem certo, demorarei um pouco - prosseguiu ela, falando suave, enigmaticamente. - Por favor, peça um expresso duplo para mim, talvez a noite seja exaustiva. - Com essas palavras, de Vries pegou o caminho mais longo através do jardim-restaurante até a entrada, e no caso de estar sendo observada por alguém, voltou rente às paredes, além das mesas apinhadas, até o banheiro das mulheres.
Uns bons cinco minutos depois, a jovem loura sentada ao lado do Dr. Hans Traupman teve um leve acesso de espirros, atribuído pela amena conversa na mesa ao pólen de verão em Nuremberg e à brisa. Ela deixou a mesa.
Dezoito minutos mais tarde, Karin de Vries voltou para seus eruditos americanos.
- Eis as condições - disse ela. - E nem ela nem eu aceitaremos nada menos do que isso.
- Você se encontrou com a garota no banheiro das mulheres. - Witkowski não perguntou, e sim afirmou.
- Sabia que se eu deixasse a mesa e caminhasse até a entrada, ela deveria dar uma desculpa e me encontrar lá dentro em três ou quatro minutos.
- Quais as condições e que fará ela para merecê-las? - perguntou Latham.
- A segunda parte primeiro - disse Karin. - Uma vez lá dentro com Traupman, precisamos dar-lhe uma hora e ela desativará o alarme e abrirá a tranca da porta.
- Ela poderá ser a nossa primeira mulher presidente - disse o capitão Dietz.
- Ela pede muito menos. Quer, e concordo com ela, um visto permanente para os Estados Unidos e dinheiro suficiente para poder bancar a sua recuperação, e também fundos suficientes para que possa viver em relativo conforto durante três anos. Não ousa permanecer aqui na Alemanha, e depois de três anos aperfeiçoando seu inglês, acredita poder encontrar trabalho.
- Já fez jus a isto e até a mais - disse Drew. - Poderia ter pedido muito mais.
- Para ser sincera, querido, ela até que pode, mais tarde. É uma batalhadora, e não uma santa, e é viciada. Essa é a realidade dela.
- Então já será problema para outra pessoa - interrompeu o coronel.
- Traupman acabou de pedir a conta - disse o tenente Anthony.
- Então, como sua guia alemã, farei o mesmo dentro de poucos minutos. - De Vries se inclinou sobre sua cadeira, como se fosse pegar sua bolsa ou algum guardanapo caído. A três mesas de distância a garota loura fez o mesmo, apanhando um isqueiro de ouro que escorregara de seus dedos. Seus olhares se encontraram; Karin piscou duas vezes, a acompanhante de Traupman uma.
A agenda para aquela noite estava feita.
36
O complexo de apartamentos - prédio não lhe faria justiça - era uma dessas construções de aço escovado e vidros coloridos que faziam com que a gente ansiasse por paredes de pedra, flechas de torre, arcos, até mesmo arcobotantes. Não era sequer a obra de um arquiteto, mas o produto de um computador robótico, cuja estética consistia em desperdiçar vastos espaços e explorar a tolerância ao estresse dos materiais. Mesmo assim, era imponente, as janelas da fachada tendo literalmente dois andares de altura, o vestíbulo em mármore branco, no meio do qual havia um grande espelho d’água com uma fonte em cascata, iluminada por luminárias sob a água. Cada andar que se erguia tinha na extremidade de seus corredores internos uma parede de granito manchado de cerca de um metro e quarenta, que permitia a todo mundo, a não ser os anormalmente baixos, contemplar a opulência embaixo. O efeito produzido era menos de beleza do que de triunfante engenharia.
À esquerda do vestíbulo de mármore branco, havia uma janela corrediça de vidro comum que abrigava a segurança. Atrás dela ficava um guarda uniformizado do prédio, cujo serviço era admitir visitas que haviam se identificado no interfone da entrada, depois de ter averiguado se eram bem-vindas pelos moradores. E mais, no interesse da segurança e privacidade, a mesa do segurança tinha ao alcance da mão alarmes de Incêndio, Arrombamento e Polícia; esta, ficando a pouco menos de um quilômetro de distância, poderia chegar ao prédio no máximo em sessenta segundos. O complexo tinha onze andares, e a cobertura ocupava inteiramente o décimo primeiro.
O lado de fora, como era de se esperar, mantinha o padrão dos preços do edifício. Um caminho circular levava de uma cerca viva a outra cerca viva, sendo que no meio havia um jardim que devia representar quase o orçamento anual de algum paisagista; vegetação cortada em forma de esculturas, canteiros de flores, cinco poços de concreto com peixes ornamentais - aerados naturalmente, e cortado por caminhos calçados de pedras para aqueles que gostam de passear ao ar livre no meio das maravilhas da natureza. Nos fundos do complexo, à vista do medieval Muro de Neutergraben, ficava uma piscina olímpica, completa com quiosques e um bar ao ar livre, para os meses de verão. Tudo somado, o Dr. Hans Traupman, o Rasputin do movimento neonazista, vivia muito bem.
- Isto é como penetrar na base de Leavenworth sem um passe do exército - sussurrou Latham, atrás do verde das esculturas vegetais defronte à entrada. Ao lado dele estava o capitão Dietz, que fizera um reconhecimento prévio da área. - Todo acesso lá trás pela piscina está bloqueado. Se você tocar com a mão qualquer divisória, as sirenes disparam. Conheço essas fibras. São sensíveis ao calor.
- Tenho conhecimento disto - disse o membro do comando da Tempestade no Deserto. - Foi por isso que eu disse que a única maneira era neutralizar os dois vigias, passar pela segurança do prédio e alcançar o décimo primeiro andar.
- Será que você e Anthony conseguem realmente se livrar dos guardas?
- Não é este o problema. Gerry fica com o cara grande bebum e eu apago o que vive se coçando. O problema, no meu entender, é como o senhor e o coronel vão conseguir passar uma conversa no segurança do prédio.
- Witkowski estava falando no telefone com uns agentes do Deuxième. Ele disse que está tudo sob controle.
- Como?
- Dois ou três nomes da Polizei. Vão ligar para o segurança e azeitar o caminho. Isso é supersecreto e etcétera e tal.
- O Deuxième trabalha junto com a polícia de Nuremberg?
- Talvez, mas não foi isso que eu disse. Eu disse "nomes" e não pessoas. Presumo que sejam nomes importantes, não importa se forem pessoas de verdade ou não... Que diabo, Chris, já passou de meia-noite, quem vai averiguar? Quando os aliados invadiram a Normandia, ninguém ousou acordar os principais auxiliares de Hitler, quanto mais o próprio.
- O alemão do coronel é realmente bom? Só ouvi-o falar um pouquinho.
- Ele é totalmente fluente.
- Precisa transmitir autoridade...
- Tem alguma dúvida a esse respeito? Witkowski não fala, rosna.
- Olha... ele acabou de acender um fósforo oculto pelas suas mãos dentro dos arbustos no nosso flanco direito. Algo está acontecendo.
- Ele e o tenente estão mais perto. Consegue ver o que é?
- Sim - respondeu o capitão Dietz, olhando através da folhagem. - É o alemaozão com a birita. Gerry está contornando para chegar à extrema direita; ele vai pegá-lo nas sombras, no meio do caminho do prédio.
- Vocês são sempre assim tão confiantes?
- Por que não? É simplesmente um serviço, para o qual fomos treinados.
- Não lhe ocorreu que em combate físico o outro cara pode ser mais forte?
- Ah, certo, e é por isso que somos especialistas nos truques mais baixos conhecidos. O senhor não? Um amigo meu da embaixada de Paris já viu o senhor jogar hóquei em Toronto ou Manitoba, ou num lugar desses; disse que o senhor era o cobra nas técnicas de bloqueio com o corpo.
- Esqueça - ordenou Latham. - O que acontecerá se o bebum não voltar? Será que o outro guarda estará esperando por ele?
- São alemães. Funcionam pelo relógio. Qualquer desvio é inaceitável. Se um soldado é relapso, o outro não pode ser influenciado pela sua falha. Continua a marchar, na sua vigília. Lá está, olha! Gerry pegou-o.
- O quê?
- O senhor não estava olhando. Gerry acendeu um fósforo e fez um meio-círculo com ele à esquerda. Missão cumprida... Agora irei me arrastando para a dianteira, enquanto o senhor irá se juntar ao coronel no flanco.
- Sim, eu sei...
- Levará um tempinho, talvez uns vinte minutos, mas tenha paciência, a coisa vai acontecer.
- Que Deus o ouça.
- Sim. Gerry disse que o senhor provavelmente diria algo assim. Vejo o senhor mais tarde, Sr. Op. Cons.
O capitão das Forças Especiais foi serpenteando em direção à entrada coberta por toldo do condomínio, enquanto Drew rastejava entre os caules das flores do jardim em estilo inglês, até a cerca viva onde Stanley Witkowski jazia deitado.
- Esses filhos da mãe são fora de série! - anunciou o coronel, com um par de binóculos infravermelhos nos olhos. - Têm água gelada nas veias!
- Bem, não passa de um serviço para o qual foram treinados, e o fazem bem - disse Drew, agarrado ao chão.
- Que Deus o ouça, chlopak - exclamou Witkowski. - Lá vai o outro... Meu Deus, são magníficos! Pegam para matar, não fazem por menos!
- Acho que não queremos gente morta, Stanley. É preferível fazer prisioneiros.
- Tanto faz. Eu só quero entrar ali.
- Será que conseguiremos?
- Está tudo no ponto, mas não saberemos até tentarmos. Se houver problemas, a gente entra na marra.
- O guarda alertará a polícia no momento em que vir uma arma.
- São onze andares, onde começam?
- Boa pergunta. Vamos lá!
- Ainda não. O alvo do capitão ainda não chegou.
- Pensei que tivesse acabado de dizer "lá vai o outro"?
- Para a posição dele, mas não para o pote de mel de Maria.
- Para o quê?
- É uma expressão dos fuzileiros. Você só pode atirar quando a mosca surgir.
- Quer fazer o favor de falar direito?
- O segundo dos dois guardas não saiu.
- Obrigado.
Passaram-se seis minutos e Witkowski falou.
- Aí vem ele, exatamente conforme o esperado. Que Deus abençoe o Ein, Zwei, Drei! - Trinta segundos mais tarde um fósforo foi aceso e jogado para o lado esquerdo de quem o acendeu. - Ele está fora da jogada - disse o coronel. - Vamos lá e fique em pé ereto. Lembre-se, você faz parte da polícia de Nuremberg. Fique atrás de mim e mantenha a boca calada.
- O que poderia eu dizer? "O, Tannenbaum, mein Tannenbaum?"
- Lá vamos nós. - Os dois homens subiram correndo o caminho circular e ao alcançarem o toldo largo defronte das grossas portas de vidro da entrada, pararam. Controlando a respiração, aproximaram-se do painel externo onde ficava o interfone da mesa do segurança.
- Guten Abend - disse o coronel, prosseguindo em alemão. - Somos a equipe de detetives chamada para testar a chamada de emergência externa da residência do Dr. Traupman.
- Ach, sim, seus dois superiores ligaram a uma hora atrás, mas conforme lhes disse, o doutor está com visita esta noite...
- E suponho que lhe disseram que não vamos incomodar o doutor - interrompeu Witkowski secamente. - Na realidade, nem ele, nem seus amigos devem ser incomodados. Essas foram as ordens do comandante, e eu não gostaria de desobedecer a essas instruções. O equipamento externo está no depósito do outro lado do andar, defronte à porta do Dr. Traupman. Ele nem sequer perceberá que estivemos aqui. É assim que o chefe da polícia de Nuremberg quer o serviço feito. Mas, tenho certeza de que ele deixou isto claro para você.
- Aliás, o que aconteceu? Ao... equipamento?
- Provavelmente um acidente, alguém empurrando um móvel ou caixas no depósito arrebentou um fio. Não saberemos até examinarmos os painéis, pelos quais somos responsáveis... Francamente, eu não saberia dizer se tropeçasse no defeito. O perito é o meu colega.
- Eu nem sabia da existência desse equipamento - disse o segurança do prédio.
- Tem muita coisa que você desconhece, meu amigo. Aqui entre nós, o doutor possui linhas diretas para todos os altos funcionários da polícia e do governo, e até para Bonn.
- Eu sabia que ele era um cirurgião famoso, mas não tinha ideia...
- Digamos que ele é muito generoso com os nossos chefes, com os seus e com os meus - interrompeu novamente Witkowski, sua voz agora amistosa. - Por isso, em benefício de todos, não vamos deixar entrar água na canoa. Estamos perdendo tempo, deixe-nos entrar, por favor.
- Certamente, mas ainda terão de assinar o livro de registro.
- E provavelmente perder nossos empregos? O seu também?
- Esqueça. Teclarei os códigos do elevador para o décimo primeiro andar, é a cobertura. Precisam da chave do depósito?
- Não, obrigado. Traupman deu uma delas ao comandante, que nos entregou.
- Vocês tiraram todas as minhas dúvidas. Entrem.
- Naturalmente nós lhe mostraremos nossas identidades, mas, repito, pelo amor de Deus, você jamais nos viu.
- Claro. Este é um bom emprego e certamente não quero a polícia pegando no meu pé.
O elevador ficava atrás de uma esquina e fora da vista da entrada da cobertura do cirurgião no décimo primeiro andar. Latham e o coronel avançaram centímetro por centímetro rente à parede; Drew deu uma olhadela rápida pela borda do concreto marmorizado. O guarda na mesa estava de mangas de camisa, lendo um livro de bolso e batucando com os dedos ao ritmo da música suave transmitida por um pequeno rádio portátil. Estava pelo menos a uns trinta metros de distância, a imponente mesa a sua frente, com as várias linhas diretas que poderiam abortar a Operação N-2. Latham consultou o relógio e cochichou para Witkowski.
- Não é uma situação agradável, Stosh - disse ele.
- Não esperava que fosse, chlopak - disse o veterano oficial do G-2, enfiando a mão no bolso do paletó e tirando cinco bolas de gude. - Karin tinha razão, sabe. Distrair é tudo.
- Já passamos da hora em que a garota de Traupman disse que desativaria o alarme. Ela deve estar suando frio lá dentro.
- Eu sei. Use os dardos e mire no seu pescoço. Continue a atirar até atingir a sua garganta.
- O quê?
- Ele vai se levantar e vir andando até aqui, acredite.
- O que vai fazer?
- Olhe só. - Witkowski rolou uma bola de gude no chão de mármore; fez barulho até bater na parede em frente e parou. Em seguida jogou outra na direção oposta; também rolou até parar. - O que está acontecendo? - cochichou ele para Drew.
- O seu cenário. Ele está se levantando e vindo em direção à gente.
- Quanto mais perto ele chegar, mais fácil será seu tiro. - O coronel jogou duas bolas pelo corredor à sua direita; fizeram barulho ao se entrechocarem; o guarda-costas vinha correndo, com a arma na mão. Dobrou a esquina e Latham atirou três dardos com narcótico; o primeiro errou, ricocheteando na parede, o segundo e o terceiro atingiram o neonazista no lado direito do pescoço. O homem perdeu a respiração, agarrou a garganta, e deu um longo grito em voz grave, à medida que despencava lentamente.
- Retire os dois dardos, ache o outro, e vamos botá-lo de novo na mesa - disse Witkowski. - O efeito da droga passa dentro de meia hora. - Carregaram o neo até a mesa, colocando-o na cadeira, a parte de cima do seu corpo desabando sobre o tampo. Drew foi até a porta da cobertura, inspirou profunda e religiosamente, e abriu-a. Não houve alarme, somente o escuro e o silêncio, até que uma voz de mulher falou - infelizmente em alemão.
- Schnell. Beeilen Sie sich!
- Espere aí! - exclamou Latham, mas a ordem foi desnecessária, pois o coronel já estava a seu lado. - O que ela está dizendo? E podemos acender uma luz?
- Sim - respondeu a mulher. - Falo um pouquinho inglês, não bem. - Com essas palavras ela acendeu a luz da entrada. A garota loura estava completamente vestida, com a bolsa e a pequena valise na mão. Witkowski deu um passo à frente. - Vamos agora, ja?
- Nada de atropelos, Fräulein - disse o coronel em alemão. - Negócios primeiro.
- Mas me prometeram! - gritou ela. - Um visto, um passaporte, proteção para que eu possa ir para a América!
- Vai receber isto tudo, senhorita. Mas assim que carregarmos Traupman daqui, onde estão as fitas?
- Tenho quinze. As mais grotescas de todas. Estão na minha bolsa aqui. Quanto a levar o Herr Doktor do edifício, é impossível. A entrada de serviço está trancada e tem um alarme que funciona das oito da noite às oito da manhã. Não há outro caminho, e câmeras de televisão registram tudo.
O coronel traduziu para Drew, que respondeu.
- Talvez possamos passar com Traupman pela mesa do segurança. Que diabo, seus guardas estão fora de ação. - Witkowski voltou a traduzir, desta vez para a alemã.
- Isso é uma besteira que redundará na morte de todos nós! - retrucou ela incisivamente. - Vocês não conhecem este lugar. Os proprietários são o pessoal mais rico de Nuremberg, e com a série de sequestros em toda Alemanha hoje em dia, o próprio morador daqui precisa informar à mesa quando quiser sair.
- Então pegarei o telefone e fingirei que sou Traupman, e aí? Aliás, onde está ele?
- Dormindo no quarto; ele é um velho que se cansa depressa depois de beber vinho... e de outras coisas. Mas vocês realmente não perceberam. Os ricos de toda a Europa viajam com guarda-costas e carros blindados. Vocês podem ter entrado aqui, e lhes dou parabéns por isso, mas se acham que podem ir embora levando o doutor, estão malucos!
- Vamos sedá-lo, exatamente como fizemos com o guarda do lado de fora da porta.
- É mais tolo ainda. É preciso pedir sua limusine na garagem antes de ele poder deixar o prédio, e somente seus guarda-costas têm a combinação do segredo do cofre...
- Segredo?
- Os automóveis podem ser roubados ou mexidos, vocês realmente não compreendem.
- Que diabo estão vocês dois falando? - interrompeu Drew. - Parem com o alemão!
- Estamos fodidos - disse o coronel. - O relatório do Deuxième não chegou ao fundo da situação. Que tal veículos blindados sob o toldo antes de ele pôr os pés lá fora e cofres de segredo na garagem onde são guardadas as chaves?
- Esta porra de país está todo paranoico!
- Nein, mein Herr - disse a acompanhante de Traupman por aquela noite. - Compreendo um pouquinho do que diz. Não é toda Deutschland, só partes, bairros em que moram os ricos. Eles têm medo.
- E quanto aos nazistas? Alguém tem medo deles, minha senhora?
- São um nojo, mein Herr! Não existem pessoas decentes que os apoiam.
- E que diabo você pensa que Traupman é?
- Um homem mau, um velho senil...
- É um nazista filho da puta!
Foi como se a garota tivesse levado um tapa na cara. Fez uma careta e sacudiu a cabeça.
- Eu não tinha... não tinha nenhum conhecimento disto. Seus Freunde... em der Medizin, o respeitam. Muitos são berühmt. Tão famosos.
- Este é o seu disfarce - disse Witkowski em alemão. - Ele é um dos líderes do movimento, e é por isso que queremos pegá-lo.
- Não posso fazer mais do que já fiz! Sinto muito, mas não posso. Vocês já estão com as fitas, foi tudo que prometi. Agora vocês precisam possibilitar a minha fuga da Alemanha, porque se isso que disseram é verdade, ficarei marcada pelos porcos nazistas.
- Nós cumprimos nossos tratos, senhorita. - O coronel virou-se para Latham e falou em inglês. - Vamos dar o fora daqui, chlopak. Não podemos levar o filho da puta sem corrermos o risco de pôr a perder toda a operação. Vamos voar até Bonn dentro de uma hora mais ou menos, num avião do Deuxième, e esperarmos lá pelo filho da puta.
- Acha que ainda irá a Bonn amanhã? - perguntou Drew.
- Não acho que tenha outra alternativa. E também, estou me fiando na cadeia de comando alemã, que é muito mais rígida que a nossa. A culpa deve ser evitada a todo custo, o que mais ou menos a torna idêntica à nossa, para falar a verdade.
- Esclareça, por favor.
- Cada um dos guarda-costas de Traupman foi narcotizado. Devem recuperar a consciência dentro de vinte ou trinta minutos, se borrando de medo, sem dúvida, e indo averiguar depressa a cobertura.
- Onde encontrarão Traupman dormindo em paz - interrompeu Latham. - Mas e as fitas, Stosh?
Witkowski olhou para a jovem loura e fez-lhe a mesma pergunta. A dama da noite de Traupman abriu sua bolsa e tirou uma chave. - Esta é uma das chaves do arquivo de aço que guarda o resto das fitas - respondeu ela em alemão. - A outra está no Banco Nacional de Nuremberg.
- Será que ele dará por falta da chave?
- Não acredito que vá sequer lembrar-se. Ele a mantém guardada na segunda gaveta de sua cômoda, escondida sob suas roupas de baixo.
- Então vou-lhe perguntar isto só porque é preciso. Ele gravou as suas atividades esta noite?
- Claro que não, seria constrangedor demais. Depois que me encontrei com sua auxiliar no banheiro das mulheres, eu percebi, como dizem, a minha porta de saída. Carrego sempre um colírio cheio de uma substância hipnótica, no caso de a noite se tornar muito repugnante.
- Entretanto, você mesma é viciada, não é?
- Seria ridículo negá-lo. Tenho doses suficientes para três dias. Depois disso me prometeram que eu teria meios de vida próprios para morar na América... Não optei por me tornar viciada, meu senhor, fui levada a isso, tal como muitas de minhas colegas em Berlim Oriental. Todas nós nos tornamos garotas de programa de alta categoria e viciadas, para podermos sobreviver.
- Não temos nada a ver com isso - gritou Witkowski. - Essas garotas são vítimas!
- Então vamos, meu coronel - disse Latham. - O capitão Dietz terá sua oportunidade no Reno, afinal de contas.
Um por um os guarda-costas desorientados convergiram para o corredor do lado de fora da porta de Traupman. Cada relato do que se passara era diferente, e no entanto idêntico, as variações por conta de desculpas convenientes, porque na realidade ninguém sabia o que acontecera. Que haviam sido atacados, isto era um fato, mas ninguém se ferira seriamente.
- É melhor entrarmos e vermos se houve alguma desgraça - disse o homem cujo bafo parecia sair de uma destilaria.
- Ninguém poderia ter entrado! - protestou o guarda encarregado da mesa no corredor. - Haveria uma multidão aqui em cima, se alguém tivesse tentado. O alarme avisa simultaneamente o segurança no vestíbulo e a polícia.
- Mesmo assim fomos atacados e drogados - insistiu o guarda-costas cujas mãos não davam descanso à sua barriga e virilhas, a coçar furiosamente.
- Espero só que você tenha ido a um médico - disse o amante de uísque. - Não quero pegar o que você tem.
- Então jamais faça um piquenique nas margens do Regnitz com uma vagabunda que transa no meio dos juncos. A puta!... Precisamos entrar, pelo menos para sabermos se vamos precisar dar o fora correndo de Nuremberg.
- Vou desativar o alarme e destrancar a porta - disse o guarda da mesa, inclinando-se instavelmente e teclando uma série de números no seu console. - Pronto, está destrancada.
- Você vai primeiro - mandou o amante da beira do rio.
Quatro minutos mais tarde os quatro estavam de volta ao corredor, perplexos, inseguros, cada um aturdido à sua maneira.
- Não sei o que pensar - disse o grandalhão. - O doutor está dormindo em paz, nada foi remexido, nenhum documento no seu escritório...
- E a jovem sumiu! - interrompeu o coçador.
- Você acha que...?
- Eu sei - afirmou o guarda cuja pele o estava pondo maluco. - Tentei avisar sutilmente ao doutor, compreende, que ela não era legal para ele. Ela vive com um policial de maus bofes, separado da mulher, e, que Deus sabe, não pode bancar o vício dela.
- A polícia... os alarmes... ela poderia ter feito isto tudo com a ajuda do namorado - disse o guarda do corredor, sentando-se à sua mesa e pegando o telefone no console. - Há uma maneira de descobrirmos - continuou ele. - Vamos ligar para o apartamento dela. - Depois de ler uma lista de números importantes encapada em plástico, ele discou. Passou-se um minuto inteiro antes de ele repor o fone no gancho. - Ninguém responde. Ou deixaram a cidade, ou estão em algum outro lugar para forjar um álibi.
- Para quê? - perguntou o guarda, dando uns goles nervosos no seu frasco, irritado agora porque ele estava vazio.
- Não sei.
- Então nenhum de nós sabe... nada. - O guarda-costas foi inflexível. - O doutor está ótimo, a puta foi embora porque quis - Heinrich pode checar isto - e está tudo nos eixos, certo?
- Sim, por que não? - concordou o guarda chamado Heinrich, que ficava na mesa. - Até mesmo Herr Doktor Traupman acharia o fato aceitável. Prefere não ver esse tipo de mulher de manhã.
- Então, colegas, não aconteceu nada - disse o homem que fitava seu frasco vazio. - Continuarei a minha ronda, parando na garagem e no meu carro para reabastecer.
Os holofotes que iluminavam o cais da marina no rio Reno estavam em pleno funcionamento. Todos, salvo um, seriam apagados quando a pequena embarcação deixasse seu atracadouro em questão de minutos. A uns setecentos metros de distância, em meio à escuridão, estava outro barco, com o casco e o convés pintado de verde-escuro, com o motor desligado, balançando para cima e para baixo nas mansas correntes fluviais; seus ocupantes estavam em roupa de mergulho, com cilindros de oxigênio nas costas. Havia seis deles, o sexto deles, o capitão, era um agente do Deuxième. Dos cinco preparados para mergulhar, somente Karin de Vries teve de justificar vociferantemente sua inclusão.
- Eu provavelmente tenho mais experiência com equipamento de mergulho do que você, agente Latham.
- Duvido muito - respondera Drew. - Fui treinado no Scripps Institute em San Diego, e não é possível arranjar um lugar melhor que aquele.
- E eu aprendi com Frederik no Mar Negro, quatro semanas treinando. Nosso disfarce era bancar o casal esportivo. Se a memória de Stanley ainda estiver preservada, ele talvez se lembre do exercício.
- Lembro sim, jovem senhora - dissera Witkowski. - Nós pagamos pela operação inteira... Freddie de V. trouxe umas duzentas fotos dos navios soviéticos ao redor de Sevastopol. Tonelagem, deslocamento, o serviço inteiro.
- Eu tirei pelo menos um terço daquelas fotos - acrescentou Karin de maneira desafiadora.
- Está bem - concordara Latham. - Mas se sairmos vivos disto, você terá de aprender que não é você quem usa as calças na família.
- E você não entrará para a minha se não mudar de atitude... Acabou de me pedir em casamento?
- Já te pedi antes, não com tantas palavras, mas de modo bastante simples. Qual a novidade?
- Parem com isso, vocês dois - ordenou Witkowski. - Aí vem Dietz.
O capitão de comando se aproximou e se agachou diante deles. - Já repassei as manobras com nosso capitão e ele não consegue achar nenhum furo. Agora, deixe-me fazer o mesmo com vocês.
O plano do capitão Christian Dietz, se não era uma obra-prima de confusão, fora certamente elaborado para impedir infiltração durante as hostilidades. Seguindo a embarcação verde-escura, rebocada por uma corda, vinha uma balsa de salvamento de PVC preto com um motor de 250 hp, capaz de fazer 40 nós por hora. Além disso, enrolada na popa, havia uma lona preta capaz de ser estendida sobre a balsa inteira, inclusive o motor. A tática era de uma cristalina simplicidade - se tudo funcionasse a contento.
A um quilômetro e meio do seu atracadouro, a pequena embarcação de Traupman seria atacada pela equipe de mergulhadores da N-2, e suas aberturas para expelir gás tapadas com tampas de aço líquido que endureciam em segundos. Em seguida, de todos os lados, as câmeras de televisão móveis seriam danificadas por tiros silenciosos disparados de pistolas tão potentes quanto uma Magnum .357. A equipe abordaria então a lancha de Traupman, arrancaria todos os demais sistemas de comunicação, o sedaria e entregaria à balsa de PVC preto com o capitão do Deuxième, que estenderia a lona preta. Ligariam então o piloto automático da lancha de Traupman para que ela continuasse a subir o rio, enquanto a equipe voltaria a seu barco verde-escuro para chegar à margem, perto do destino de Traupman.
As duas primeiras manobras funcionaram. Sob a liderança do tenente Anthony e do capitão Dietz, Latham, Witkowski e Karin emergiram ao lado da lancha em disparada, agarrando-se em qualquer apoio que puderam achar e enfiando as tampas de aço nos pequenos buracos circulares de gás marcados por pequenos círculos vermelhos. A embarcação diminuiu a marcha; estava se dirigindo para a margem. Como se fossem um só, todos os cinco subiram a bordo, deparando-se com um apavorado Traupman.
- Was ist los? - gritou ele, estendendo a mão para pegar o rádio. Este foi imediatamente arrancado por Latham, enquanto Karin se aproximava do nazista, abria seu casaco, e enfiava uma agulha na carne sob a camisa. - Farei você ser fuzilada...! - Foram as últimas palavras que Traupman falou antes de despencar no convés.
- Vamos botá-lo na balsa! - gritou Witkowski, enquanto a embarcação de PVC preto encostava ao lado, e o corpo do nazista era transportado por cima da amurada. - Agora vamos sair daqui a pleno vapor!
- Farei uma curva com a lancha e a porei no automático, rumo norte-noroeste! - gritou Christian Dietz.
- Que diabo é isso?
- Não se preocupe, Op. Cons. - respondeu o tenente Gerald Anthony. - Vai subir direitinho o Reno, inclusive fazendo as curvas. Estudamos os mapas.
- Traupman estava se dirigindo em direção àquela luz amarela num cais à esquerda - disse Karin.
- Você está pensando o que eu estou pensando? - perguntou Drew.
- Espero que sim, pois não queria que isto me fosse negado.
- Então vamos pular fora e nadar até nosso próprio barco, se pudermos distingui-lo.
- Eu ancorei-o, Op. Cons. - disse Anthony. - Está logo ali, a não mais do que cem metros de distância. Depois de embarcarmos, vou levá-lo à margem, debaixo de uma moita de árvores.
- Gostaria de se tornar coronel, Tenente?
- Adoraria! - gritou o capitão Dietz, voltando depois de averiguar se Traupman estava sob a lona preta na balsa motorizada, e a caminho da outra margem do Reno. - Deixe que ele pague pelos meus jantares... Vamos dar o fora daqui! Temos de mandar esse pedaço de madeira rio acima.
A sugestão não veio tarde, pois minutos depois, à medida que a lancha de Traupman alcançava o meio do Reno, o helicóptero da marina desceu, como se fosse prestar socorro. Em vez disso, metralhou continuamente a embarcação, circulando duas vezes, e acabando por destroçá-la a tiros de canhão. Ela afundou.
- Isso é dureza - disse Latham para Karin e seus três colegas, sentados na margem do Reno.
- Acho melhor voltarmos para aquele cais, esperar para ver quem mais vai chegar, e descobrir que dificuldades teremos pela frente - disse Witkowski.
37
Tiraram o equipamento de mergulho das costas, ficando com as roupas negras e molhadas e as coberturas de borracha áspera para os pés do jeito que estavam. Um sortimento de armas e rádios miniaturizados foram retirados da bolsa à prova d’água do capitão Dietz e distribuídos. A unidade de comando rastejou então pela margem do rio até poder avistar o cais com a luz amarela embaçada. Lentamente, a intervalos aproximados de dez minutos, as pequenas e esguias embarcações flutuavam até seus atracadouros, vindas de diversas direções, até que a maioria deles estivesse cheia. De repente, a luz amarela se apagou.
- Acho que a turma já está toda presente - sussurrou Latham para Witkowski. Karin estava à esquerda do coronel, os dois militares à direita de Drew.
- Gerry e eu faremos um reconhecimento - disse Dietz, enquanto ele e o tenente avançaram de rastros, as lâminas de suas grandes facas refletindo esporadicamente à luz da lua.
- Irei com vocês - disse Latham.
- Não é definitivamente uma boa ideia... - protestou Anthony. - Trabalhamos melhor juntos, senhor.
- Pare com essa merda de "senhor". Não sou do exército, mas estou comandando esta operação.
- O que ele quer dizer, Sr. Op. Cons. - explicou o capitão - é que ele e eu temos sinais que conhecemos na hora de examinar uma área. Como o som grave de uma brisa passando pelas árvores, ou o coaxar do sapo, qualquer coisa que pertença à região.
- Vocês estão brincando.
- Nem por um segundo - respondeu o tenente. - É algo fundamental para o trabalho.
- E também, se esta propriedade for como o relatório insinuou, haverá patrulhas perambulando por aí - concluiu Dietz.
- Como na casa de Traupman? - perguntou Witkowski.
- Aquilo foi brincadeira de criança. Eu já fiz um levantamento antes.
- Então está bem, podem ir - disse Drew. - Deixem seus rádios prontos para transmitir e nos chame quando tivermos condições de prosseguir. E cuidado.
- Isso é mais fundamental ainda para o trabalho - disse Anthony, olhando hesitantemente para Karin de Vries, e abaixando seu sussurro até Latham quase não conseguir ouvi-lo. - Nossas ordens em Nuremberg foram para imobilizar, e não neutralizar. Pelo que vimos aquele helicóptero fazer no rio, acho que essas regras não devem se aplicar aqui.
- Não se aplicam, tenente. Este é o núcleo do movimento nazista, por isso podem se considerar numa guerra. Se for de todo possível, precisamos saber quem está presente ali, isto é a coisa mais importante que podemos fazer. Por isso se precisarem usar essas facas, usem-nas bem.
Os minutos seguintes pareceram a trilha sonora de algum sanguinolento filme de suspense, sendo que as imagens eram muito mais fortes, já que precisavam ser imaginadas, e não vistas. Karin e Witkowski dividiam um único rádio, Drew segurava o seu diante dos olhos. O que os três ouviram fez com que estremecessem, o coronel menos que Latham e de Vries. À medida que os dois militares avançavam através da vegetação fechada e emaranhada da beira do rio, ouviu-se o barulho de folhas esmagadas e de passos, e súbitos gritos sufocados, interrompidos pela terrível expulsão de ar e de líquidos, e as lâminas a furar tecidos. Em seguida mais passos, correndo, ficando mais fracos, tossidos roucos acompanhados por cuspidelas estalejantes, que deviam ser tiros de pistola com silenciador. Mais pés correndo, o estalejar de ramos quebrados, mais fortes agora, a distância diminuindo. Em seguida silêncio - total, apavorante - subitamente quebrado por uma explosão de estática e novamente o barulho de passos, desta vez numa superfície dura. Karin, Drew e Witkowski se entreolharam, seus olhares intensos comunicando que esperavam pelo pior. Em seguida vozes, todas falando em alemão, pedindo, suplicando - em alemão! O barulho de metal e vidro se quebrando seguiu-se, acompanhado agora por gemidos e a explosão de um grito em inglês.
- Meu Deus, por favor não me mate!
- Jesus! - explodiu Witkowski. - Foram capturados. Você fique aqui. Vou atrás deles!
- Espere, Stanley - ordenou Drew, agarrando o ombro do coronel com a mão forte de ex-campeão de hóquei. - Fique onde está, e falo sério!
- Macacos me mordam se ficarei! Aqueles rapazes estão numa enrascada!
- Se estiverem, você apenas será morto, e todos nós fizemos essa opção, não foi o que você disse?
- Isto é diferente! Estou com uma automática municiada e pentes suficientes para dar duzentos tiros.
- Sinto da mesma maneira que você, Stosh, mas não é por isso que estamos aqui, não é?
- Seu grande filho da puta - disse o coronel baixinho, abaixando-se contra o chão. - Você realmente daria um oficial.
- Não em nenhum exército que eu conheça, detesto uniformes.
- Está bem, chlopak, o que faremos?
- Vamos esperar. Isto foi outra coisa que você me disse, esperar é o mais difícil.
- E é mesmo.
Mas não foi, pois a voz sem fôlego do capitão Christian Dietz era transmitida pelo rádio.
- Praia Um para Praia Dois. Nós liquidamos quatro patrulhas por necessidade, amarramos e amordaçamos duas outras que não ofereceram nenhuma resistência. Em seguida seguimos os fios e capturamos o centro de segurança num subporão debaixo da garagem, a sessenta ou setenta metros a leste da propriedade. Dos três operadores aqui, um foi morto, alvejado enquanto tentava disparar um alarme auxiliar, outro amarrado e amordaçado, o terceiro - um bom rapaz caipira, sulista, que se casou com uma alemã servindo ao exército - ainda está chorando e cantando "Deus Abençoe a América".
- Vocês são fantásticos! - exclamou Drew. - O que está acontecendo na casa grande? Tiveram alguma chance de ver?
- Somente umas olhadelas através das janelas, depois de liquidarmos as patrulhas no gramado. Entre vinte e trinta sujeitos e um padre louro na tribuna que não está rezando e sim prometendo enxofre e as chamas do inferno. Pelo jeito da coisa, ele é o rabino chefe daqui.
- Um sacerdote?
- Bem, ele está num terno escuro com um colarinho branco em volta do pescoço. O que mais poderia ser?
- Havia um padre ou um pastor em Paris... Qual a sua altura?
- Não da sua, mas quase. Eu diria um metro e setenta e oito a um metro e oitenta e pouco.
- Ah, meu Deus! - interrompeu a voz em pânico de Karin de Vries, seu corpo todo tremendo.
- O quê?
- Um sacerdote... de cabelos louros! - Trêmula, ela tapou o rádio e sussurrou para Latham e Witkowski. - Precisamos chegar até uma dessas janelas.
- O que é? - perguntou Drew, enquanto o coronel fitava de Vries. - Qual o problema?
- Faça o que eu digo!
- Faça-o - disse Witkowski, com olhos ainda postos em Karin.
- Praia Dois para Praia Um, como está a situação na propriedade?
- Acho que não perdemos nenhum, mas não posso garantir. Sabe, um sujeito qualquer poderia estar mijando no mato...
- Então ao sair, descobriria alguns cadáveres, não é?
- Se fosse assim, ele poderia ter optado por dar o fora daqui e ir avisar alguns neos em Bonn.
- Acho que vocês são melhores que isso - disse Drew. - Vamos avançar.
- Acalme-se, Op. Cons. Espere até a gente se posicionar entre a casa e o rio. Avisarei quando vocês devem sair.
- Aceitarei isto, capitão. Vocês são os especialistas.
- É melhor o senhor acreditar - disse a voz do tenente Anthony. - E por favor mantenha a Sra. de Vries no seu flanco do rio, no caso de haver tiroteio.
- Claro. - Latham cobriu o rádio e falou com Karin por cima da cabeça de Witkowski. - Sabe, esse rapaz está começando a me aborrecer.
- Ele é legal - disse Witkowski.
- Tem doze anos de idade.
- Por favor, as janelas - insistiu Karin.
- Quando recebermos o sinal, jovem senhora. - Discretamente o coronel foi buscar a mão trêmula de Karin e agarrou-a. - Calma, garota - sussurrou ele. - Controle-se, se lembra?
- Você sabe...?
- Eu não sei nada. Apenas algumas perguntas que ficaram sem resposta no passado.
- Praia Dois - surgiu a voz tranquila de Dietz no rádio. - Vocês estão limpos, mas mantenham-se agachados. Deve haver focos de luz infravermelha na altura da cintura até se atingir o terraço superior.
- Pensei que vocês tivessem desativado o sistema - interrompeu Witkowski.
- As câmeras e as cercas, coronel. Pode ser o bastante, mas os focos devem ter uma fiação subterrânea e serem independentes.
- Compreendido, Capitão, ficaremos rentes ao chão.
Os três rastejaram para a frente, Latham liderando, as ondas do Reno cobrindo o caminho que Drew ia abrindo na margem do rio. Com lama agarrada às suas vestes molhadas, as armas seguras bem acima da cabeça, alcançaram a extremidade do gramado inclinado da propriedade. Os três emparelhados agora, cada um balançou a cabeça para o outro ao prosseguirem pela grama até o primeiro pátio mais baixo, dando para o cais. Em cima do morrote de grama bem-cuidada havia um segundo pátio, além do qual ficavam os fundos da mansão à beira do rio, cujas paredes de vidros corrediços mostravam um enorme interior, um salão de baile ou de banquetes, a julgar pelos candelabros de luz baixa.
- Já vi este lugar antes - sussurrou Drew.
- Já esteve aqui? - perguntou Witkowski.
- Não. Retratos, fotos.
- Onde?
- Numa daquelas revistas de arquitetura. Não me lembro qual, mas lembro dos terraços descendentes e do painel de portas de vidro... Karin! O que está fazendo?
- Eu preciso olhar lá dentro. - De Vries levantou-se e começou a caminhar como um autômato pelo gramado em direção aos enormes painéis de vidro. - Eu preciso!
- Impeça-a! - disse o coronel. - Meu Deus do céu, impeça-a!
Latham deu um pulo para a frente, agarrando Karin pela cintura e puxando-a para baixo, rolando sempre para a direita, para fugir do largo feixe de luz.
- Qual o problema com você? Quer morrer?
- Eu preciso olhar lá dentro! Você não pode me impedir.
- Está bem, está bem, concordo, mas vamos ser um pouquinho inteligentes a respeito.
De repente os dois agentes das Forças Especiais estavam rastejando ao lado deles, e Witkowski se arrastando no terraço pátio.
- Isso não foi muito inteligente de sua parte, Sra. de Vries - disse zangado o capitão Dietz. - Não sabe quem poderá estar ali perto daquelas portas de vidro, e o luar está bastante forte hoje.
- Sinto muito, sinceramente sinto muito, mas é importante para mim, muito importante. Você falou de um sacerdote louro... Eu preciso olhar para ele!
- Ah, meu... Deus! - sussurrou Drew, fitando Karin, percebendo o pânico no seu olhar, sua cabeça trêmula. - É isso o que você não queria me contar...
- Vá com calma, chlopak! - ordenou o coronel, interrompendo e agarrando o braço esquerdo de Latham.
- Você - disse Drew, virando a cabeça e olhando duramente para o rosto severo e vincado do veterano do G-2. - Sabe tudo a respeito disso, não é, Stosh?
- Talvez sim, talvez não. No entanto, o problema não sou eu. Fique junto com ela, rapaz, talvez precise de todo o apoio que puder lhe dar.
- Sigam-nos - disse o tenente Anthony. - Vamos fazer uma curva para a direita e atingir o canto, depois seguir pelo lado até a primeira porta. Nós soltamos um pouco a tranca e a abrimos alguns centímetros, o suficiente para ouvirmos o que está se passando atrás da cortina.
Meio minuto mais tarde a equipe de cinco integrantes estava embolada no canto do andar térreo da mansão, na beira do terraço de cima. Witkowski bateu no ombro de Latham.
- Vá com ela - sussurrou ele. - Mantenha suas mãos ágeis e livres. Pode não acontecer nada, mas esteja preparado para o que der e vier.
Drew empurrou Karin para a frente com delicadeza, segurando seus ombros, até alcançarem a primeira porta corrediça de vidro. Ela deu uma olhada em volta da cortina interna e viu o homem na tribuna iluminada por um foco de luz, ouviu o sacerdote louro exortando a plateia até que ela explodisse em gritos histéricos de Sieg Heil, Günter Jäger! Ficou boquiaberta, os olhos esgazeados, tentou gritar. Latham tapou sua boca com a mão, enquanto os tonitroantes Sieg Heils enchiam o salão, e virou-a, voltando com ela para o canto da mansão.
- É ele! - exclamou de Vries engasgada. - É Frederik!
- Leve-a de volta ao barco - gritou praticamente o coronel. - Nós acabaremos o serviço aqui.
- O que há para acabar? Mate o filho da puta!
- Agora você não está agindo como um oficial, rapaz. Precisamos de um acompanhamento.
- E estamos fazendo esse acompanhamento, coronel - disse o capitão Christian Dietz, fazendo um gesto para seu tenente, que segurava uma minicâmera de vídeo na mão e gravava o frenético acontecimento que acontecia lá dentro.
- Tire-a daqui! - repetia Witkowski.
A viagem de volta pelo rio foi feita na sua maior parte em silêncio, em deferência ao abalo sofrido por Karin. Durante muito tempo, ela preferiu ficar sozinha na proa, olhando o luar na margem oposta. No meio do caminho virou-se com um olhar suplicante a Latham, que se levantou da amurada e veio estar com ela.
- Posso ajudar? - perguntou ele em voz baixa.
- Já o fez, mas será que poderá me perdoar?
- Pelo amor de Deus, perdoar por quê?
- Perdi o controle, eu poderia ter provocado a morte de todos nós. Stanley me avisara para não perder o controle.
- Você tinha todos os motivos para... Então era esse seu segredo, que seu marido estava vivo e...
- Não, não - interrompeu Karin. - Ou deveria eu dizer sim, mas não desta maneira, não o que eu vi esta noite. Tinha certeza de que ele estava vivo, mudara de lado e fazia parte do movimento nazista, voluntária ou involuntariamente, mas nada parecido com isto.
- O que achou?
- Tantas coisas, há tantas explicações possíveis. Antes da queda de Berlim Oriental, deixei-o, dizendo-lhe que seria o fim a não ser que ele reorganizasse sua estranhíssima vida. Beber nunca fora um problema, porque o álcool o deixava simpático, extrovertido, divertido. Mas depois ele mudou, drasticamente, e tornou-se extremamente violento, batendo-me e me arremessando contra as paredes. Não queria admitir, mas viciara-se em drogas, que eram o oposto de tudo aquilo em que acreditava.
- O que quer dizer?
- Ele acreditava em si mesmo, gostava dele mesmo. Beber esporadicamente era uma diversão ocasional, não um vício. Se fosse, seu irmão não o teria tolerado, tanto por motivos pessoais, quanto profissionais.
- É verdade - disse Drew. - Harry gostava de um bom vinho e de um bom conhaque, mas não apreciava nem um pouco qualquer pessoa que bebesse até entrar num estupor. Nem eu, aliás.
- É o que eu quero dizer, nem Freddie. Qualquer coisa que alterasse sua maneira de ser durante muito tempo era abominada por ele. Contudo, mudou, como disse, drasticamente. Tornou-se um enigma, num minuto um monstro, no outro uma pessoa contrita. Aí numa noite em Amsterdã, depois de ter me convencido de que Harry tinha razão, que Frederik morrera, recebi um trote telefônico obsceno. Era do tipo que os adolescentes gostam de dar, para se mostrarem na frente dos amigos, disfarçando suas vozes, ora tornando-as mais agudas, ora mais graves, ou falando através de uma folha de papel. Houve as costumeiras insinuações e insultos sexuais, por isso estava prestes a desligar o telefone quando uma determinada sequência de frases e palavras me deixou aturdida. Eu já ouvira aquilo antes... da boca de Freddie! Gritei. "Meu Deus, é você, Freddie?..." E ainda posso escutar o grito agoniado que se seguiu, e percebi que eu estivera com a razão e Harry estivera errado.
- O que vimos esta noite foi uma variação daquele monstro - disse Drew. - Será que ele ainda é viciado em drogas?
- Não faço ideia. Talvez devêssemos chamar um psiquiatra para assistir à fita que o tenente Anthony gravou.
- Mal posso esperar para eu mesmo vê-la. Essa fita pode valer uma mina de ouro... Karin, o que sabe Witkowski?
- Repito, não faço ideia. Tudo que ele me disse é que havia perguntas sem respostas do passado. Não sei o que ele quis dizer.
- Vamos perguntar-lhe. - Latham se virou e se dirigiu ao coronel, que estava sentado na amurada de estibordo, junto com os dois membros do comando.
- Stan, pode chegar aqui por um instante?
- Claro. - O coronel atravessou o convés e ficou entre Drew e Karin.
- Stosh, você sabia mais a respeito do que vimos esta noite do que contou a nós dois, não foi?
- Não, não sabia. Eu meramente presumia a possibilidade. Um dos disfarces prediletos de Freddie quando entrava na clandestinidade era de sacerdote, e só Deus sabe, ele era mais louro do que Marilyn Monroe, quando não tingia seu cabelo. Quando o capitão descreveu um sacerdote louro de cerca de um metro e oitenta, eu estava a seu lado Karin, e vi você ficar piradinha. Súbitas recordações me vieram à cabeça.
- Isto não responde ao fato de você poder imaginar que se tratava do marido dela lá em cima - disse Latham.
- Bem, agora vamos recuar alguns anos. Quando o G-2 recebeu a notícia da morte de Frederik de Vries nas mãos da Stasi, havia algumas falhas na história que não podíamos preencher, tal como por que eles registraram seus "interrogatórios" e morte com tantos detalhes. Não era normal, nada normal. Geralmente este tipo de coisa fica encoberto, profundamente encoberto; as lições dos campos de concentração foram aprendidas.
- Foi isso que primeiro me causou estranheza - disse Karin. - A Harry também, mas ele atribuiu-o à mentalidade dos fanáticos da Stasi, que sabiam estar prestes a perder seu poder, a perder tudo. Eu não podia acompanhar este raciocínio, porque Frederik falava com tanta frequência sobre a Stasi, com que brutalidade podiam agir, como eram manipuladores, e no entanto quão profundamente inseguros eram eles. Homens inseguros não se condenam com suas próprias palavras.
- O que meu irmão respondeu quando você lhe disse isto?
- Eu nunca contei. Sabe, Harry não era apenas o controle de Frederik, gostava muito dele. Não tive coragem de contar-lhe nossos problemas. Não havia sentido, Freddie morrera... pelo menos ao que constava.
- Havia também algumas coisas a mais - disse o coronel em voz baixa. - Coisas que você não poderia saber, Karin. Nas suas três últimas infiltrações, a informação trazida por de Vries era obviamente falsa. A essa altura nós mesmos havíamos convertido bastante gente da Stasi, que sabia que dentro em breve estaria desempregada e passível de ser processada, de modo que cooperavam com satisfação. Vários deles apresentaram provas que contradiziam o que de Vries encontrara.
- Por que não lhe exigiu uma prestação de contas? - perguntou Drew. - Tirasse ele do serviço e o submetesse a um interrogatório?
- Era um terreno terrível, confuso - respondeu Witkowski, sacudindo a cabeça no escuro. - Teria sido ele enganado, tapeado? Era estresse? Ele fora extraordinário no passado, então seriam aquilo lapsos devido ao excesso de trabalho? Você pode imaginar, mas nós não.
- Mencionou "umas coisas", Stanley - disse Karin. - O que eram elas?
- Era só uma na realidade, mas foi confirmada por dois de nossos vira-casacas que não se conheciam entre si, e mais tarde por nós. A Stasi era um polvo de cem olhos e mil tentáculos; em certo sentido governava a parte de baixo do país... Levaram seu marido duas vezes de avião a Munique para se encontrar com o general Ulrich von Schnabe, mais tarde confirmado como um dos líderes do movimento neonazista. Ele foi assassinado na prisão pela sua própria gente antes de poder ser interrogado.
- Então a semente fora plantada e uma flor venenosa chamada Günter Jäger cresceu - disse Karin, inclinando a cabeça para trás em sinal de descrença. - Como? Em nome da lógica, como?
- Talvez a fita nos dê algum indício. - Latham empurrou o coronel com delicadeza e pôs o braço em volta dos ombros dela, virando-se em seguida para Witkowski. - Use seu telefone chique e ligue para o pessoal de Moreau aqui em Bonn. Diga-lhes para nos reservar uma suíte tripla no hotel Königshof, uma suíte que tenha um vídeo e equipamento para copiar a fita.
- Jawohl, mein Herr! - disse o coronel, sorrindo simpaticamente nas sombras esporádicas que interrompiam o luar. - Parece um verdadeiro comandante, chlopak.
- Mas como? - gritou de repente Karin de Vries, seu rosto contraído de dor oferecendo uma expressão suplicante às nuvens errantes no céu noturno. - Como poderia um homem se transformar em outro assim?
- Descobriremos - disse Drew, segurando-a.
As palavras, alternadamente abafadas e berradas em alemão, tomaram uma estranha e característica cadência, um fluxo errático de som, tanto eletrizante quanto estupefaciente, mistura de ameaças com sermão. As imagens na tela eram igualmente hipnóticas, apesar da constante oscilação da câmera, que não pode ser fixada e das frequentes intrusões da cortina, bloqueando a lente. O sacerdote louro falava para uma plateia exclusivamente masculina de trinta e seis pessoas, uma parte das quais, a julgar pelas roupas, não era alemã. Todos estavam vestidos com roupas caras, alguns de maneira menos formal do que outros, as roupas de iatismo e de jogging da Dior, contrastando com ternos formais. Sentavam-se prestando a mais completa atenção, alguns olhares passeando pela sala num compreensível constrangimento quando a diatribe do fogoso sacerdote tornava-se por demais violenta, e no entanto todos se levantando como um só nos frequentes Sieg Heils. E o sacerdote impetuoso do cabelo louro brilhante e dos penetrantes olhos azuis era realmente hipnotizante.
Antes de colocar a fita no vídeo, o tenente Anthony se colocara diante da equipe na grande suíte do hotel Königshof para dar alguns esclarecimentos.
- A câmera tem uma lente zoom e um microfone de alta impedância, de modo que ouvirão tudo e tentei obter closes de todos os presentes para fins de identificação. Já que o Sr. Latham não fala alemão, Chris e eu pedimos uma máquina de escrever com teclado em inglês e fizemos o possível para traduzir o que aquele Günter Jäger disse. O texto não é fiel, palavra por palavra, mas bastante claro.
- Muito bem pensado, Gerry - disse Drew, sentando-se entre Witkowski e Karin.
- Mais do que isso. É muito importante - interrompeu o capitão Dietz, ajoelhando-se diante do aparelho e colocando a fita. - Ainda me sinto abalado - comentou enigmaticamente. - Está bem, agora vamos nos entregar à magia do cinema. - A tela encheu-se de repente de som e imagens, ou talvez, de som e de fúria, como queria o poeta. Latham seguiu o texto em inglês.
Meus amigos, meus soldados, verdadeiros heróis do Quarto Reich! - começou o homem chamado Günter Jäger. - Trago-lhes magníficas notícias! Um maremoto de destruição está prestes a se abater sobre as capitais de nossos inimigos. O momento zero já foi determinado, faltando para ele agora exatamente cinquenta e três horas. Tudo pelo qual trabalhamos, nos esforçamos, nos sacrificamos, haveremos de colher. O fim ainda não está à vista, porém o fim da etapa inicial já nos encara! Será o ômega, a solução final, uma paralisia internacional! Como vocês que vieram aqui esta noite oriundos de regiões além de nossas fronteiras, cruzando os mares, bem o sabem, nossos inimigos se encontram num estado caótico, se acusando mutuamente de maneira tão intensa de pertencer ao nosso movimento. Rogam pragas contra nós na superfície, porém milhões nos aplaudem silenciosamente, já que desejam aquilo que nós podemos lhes prover! Livrar as posições do poder dos judeus intrigantes que querem tudo para si e para a detestável Israel, deportar os macacos pretos inferiores, esmagar os socialistas que querem nos liquidar com os impostos e usá-los para promover o bem-estar dos improdutivos - em outras palavras, reestruturar! O mundo precisa aprender com os romanos, antes de eles terem se tornado indolentes e deixarem que o sangue de escravos envenenasse suas veias. Precisamos ser fortes e totalmente intolerantes diante da inferioridade! Sacrifica-se um cão defeituoso, por que não o produto de pais defeituosos?... E agora quanto ao nosso maremoto - a maioria de vocês sabe seu nome, porém alguns não. Seu codinome é Raio N’Água, e é literalmente do que se trata. Do mesmo modo que o raio cai e mata, assim fará a água atingida por ele. Dentro de cinquentq e três horas os reservatórios d’água de Londres, Paris e Washington serão poluídos de maneira tão tóxica que milhares morrerão. Os governos ficarão paralisados, pois levará dias, talvez semanas, até que as toxinas possam ser analisadas, e semanas ainda até que contramedidas possam surtir efeito. Até lá...
- Já ouvi o bastante! - disse Latham. - Desligue essa porra e façam imediatamente cópias. Não sei como vocês farão, mas mandem essa fita para Londres, Paris e Washington! E também mandem um fax desta transcrição para o número que lhes darei. Ligarei para todo mundo que eu possa imaginar. Meu Deus, só nos restam dois dias!
38
Wesley Sorenson escutava enquanto Latham falava pelo telefone de Bonn. O olhar do diretor estava fixo, intenso, enquanto gotículas de suor se formavam na raiz de seus cabelos brancos, na testa.
- Os "reservatórios d’água" - disse ele, mal conseguindo se fazer ouvir, de medo. - São da jurisdição do Corpo de Engenharia do Exército.
- São da jurisdição de todo mundo no Pentágono, Langley, FBI, e da polícia em volta de cada reservatório d’água em Washington!
- Eles são cercados, guardados...
- Dobre, triplique e quadruplique toda a segurança - insistiu Drew. - Este doido não prometeria o que prometeu se não achasse que poderia cumprir a promessa, não diante daquela turma. Aposto que havia mais dinheiro ali do que na metade da Europa. Estão famintos pelo poder, salivando diante dele, e suspeito que ele tenha recursos ilimitados para sacrificar ao deus nazista. Cristo, mal temos dois dias!
- Como está indo o processo de identificação daquela turma?
- Como diabo posso saber? Você é a primeira pessoa para a qual ligo. Estamos enviando as fitas - o presidente da Alemanha nos deu carta branca para usar os canais de satélite dos estúdios do governo - para os serviços secretos francês, britânico, americano, e no nosso caso todas as perguntas e releases serão dirigidos a você.
- Não pode haver qualquer release! O clima aqui e no país inteiro está venenoso; poderia ficar pior do que no período de McCarthy. Já houve vários distúrbios, e uma marcha sobre a capital do estado em Trenton. A multidão começou a gritar nazista à menção de nomes de políticos, burocratas, líderes sindicais e empresários, até mesmo dos que só têm ligações de longe com aqueles que estão sendo abertamente investigados. E isto é só o começo.
- Espere um instante - disse a voz de Latham ao telefone. - Espere um instante! Centenas destes nomes foram originalmente trazidos do vale da Brüderschaft por Harry, não foram?
- É claro.
- E de acordo com a transcrição do MI-6, meu irmão deixou claro que não só os nomes deviam ser examinados, mas todos os outros que tenham relação com eles.
- Naturalmente, é a norma.
- Então depois de esses nomes terem circulado, veio a ordem para matar Harry do alto comando nazista, certo?
- Sim, é evidente.
- Por quê?... Por quê, Wes? Eles andaram me caçando como uma matilha de lobos famintos atrás de um cordeiro.
- Jamais pude entender.
- Talvez eu esteja começando. Me dói afirmá-lo, mas presumo que tenham dado a Harry nomes falsos. Propositalmente, para criar exatamente o clima que você descreveu.
- Pelo que conheço de seu irmão, não acho que ele iria engoli-los.
- Digamos que não tivesse escolha?
- Ele não perdeu o juízo. É claro que tinha escolha.
- Digamos que sim, que tenha perdido o juízo, quero dizer. Gerhardt Kroeger é um neurocirurgião, e arriscou sua vida em Paris para matar Harry. Num cenário ele, eu, era para ser decapitado; noutro, deveria receber um tiro de misericórdia que arrebentasse sua cabeça... o lado esquerdo da cabeça.
- Eu diria que uma autópsia deveria ser feita - disse o diretor das Operações Consulares, acrescentando. - Quando for viável. No momento, é melhor agirmos o mais depressa possível para evitar seja lá o que for que pode matar milhares de pessoas em Paris, Londres e Washington.
- Jäger soletrou-o com todas as letras. Toxinas nos reservatórios.
- Não sou nenhum especialista em abastecimento de água, mas conheço alguma coisa a respeito. Meu Deus, numa época ou outra já pensamos a este respeito em termos de sabotagem tática, e, por incrível que pareça, todos nós a rejeitamos.
- Por quê?
- A tarefa é simplesmente monumental. Para se ter algum efeito na distribuição de água das grandes cidades, isto implicaria numa linha de suprimentos transportados em caminhões pesados, com pelo menos uns cinco quilômetros de comprimento, algo que dificilmente poderia ser oculto. Além disso há o obstáculo da entrada nos reservatórios, que para um número tão grande de veículos seria praticamente impossível. As cercas são como barricadas de penitenciária, equipadas com alarmes laterais por seções; se for rompida, é mandado um sinal para a torre de segurança e é realizada uma inspeção imediata.
- Eu diria que o senhor é um perito e tanto no assunto, Sr. Diretor.
- Bobagem, essa informação poderia ser e provavelmente é aprendida pelos escoteiros, e certamente por qualquer engenheiro civil do governo.
- Então você eliminou por terra, mas e pelo ar?
- Igualmente impossível. Precisaria haver pelo menos duas esquadrilhas de aviões de carga a baixa altitude, jogando seu material com extrema precisão o mais perto possível das torres d’água com entrada para as comportas. Com toda probabilidade, eles colidiriam entre si, e mesmo se não o fizessem, provocariam um barulho semelhante a uma trovoada ensurdecedora em cima da área, sem falar que seriam rastreados pelo radar.
- Uau, você realmente cogitou este tipo de sabotagem, não foi?
- Sabe tão bem quanto eu, Drew, que cogitar várias hipóteses é fundamental para o jogo que jogamos.
- Isto não é um jogo, Wes. Aquele filho da puta falava sério. Descobriu um modo de fazê-lo. E vai fazê-lo.
- Então é melhor todos nós irmos trabalhar, não é? Manterei contato com o MI-5 e o Quai d’Orsay. Você concentre seus esforços no levantamento da identidade de todo mundo naquela mansão no Reno. Coordene com Claude, o MI-6 e a inteligência alemã. Queremos cada um daqueles fanáticos numa cela até amanhã. E feche o cerco sobre os não alemães primeiro; não os deixe sair do país.
Os computadores de quatro países giraram seus discos furiosamente nas vinte e uma horas seguintes, à medida que fotografias isoladas eram enviadas para os serviços de informação da Alemanha, França, Inglaterra e América. Dos trinta e seis homens que haviam berrado Sieg Heil, Günter Jäger, dezessete eram alemães, sete americanos, quatro ingleses e cinco franceses; três não puderam ser identificados e já deveriam ter presumivelmente deixado o país de avião. Todos os demais foram presos secretamente, incomunicáveis, em celas isoladas, sem nenhuma explicação, sem permissão de telefonar. No caso de os indivíduos serem proeminentes, súbitas viagens de negócios e longas conferências foram as histórias contadas a suas famílias, por parte de suas empresas.
- Isto é um ultraje! - vociferou o dono de uma empresa química alemã.
- Ultraje é você - respondeu o agente policial alemão.
Só sobrou Günter Jäger, mantido alheio aos acontecimentos das últimas vinte e uma horas, sozinho com seus empregados na sua modesta propriedade na margem do Reno. Fora uma decisão de comando multilateral, já que nenhum dos neonazistas presos tinha condições de dar detalhes sobre a Raio N’Água. As hipóteses fornecidas por eles, na esperança de serem mais tolerantemente e melhor tratados, não eram práticas, e portanto falsas. Até mesmo o histérico Hans Traupman, depois de lhe exibirem as horríveis fitas de suas experiências sexuais, não pôde fornecer nada de concreto.
- Acha que eu esconderia alguma coisa de vocês? Meu Deus, sou um cirurgião, e sei quando uma operação fracassou. Estamos liquidados!
Somente Günter Jäger tinha as respostas, e era opinião corrente entre os psicólogos comportamentais que haviam examinado a fita de que ele se suicidaria antes de revelá-las.
- É um maníaco-depressivo cuja paranoia está sob controle, mas é um fronteiriço. Um empurrão e ele cairá no abismo da loucura total.
Karin de Vries concordava.
Portanto, todos os meios de comunicação do novo Führer foram monitorados: telefone, frequências de rádio, entregas, até mesmo a possibilidade de pombos-correio. Agentes com potentes equipamentos de escuta eletrônica escondiam-se nos arbustos, nas árvores e entre as ruínas da antiga casa que fora demolida, os "ouvidos" apontados para todas as partes do chalé à beira do rio e de seu terreno. Todos estavam à espera de que Jäger fizesse contato com alguém ou com algo que lhes fornecesse uma pista sobre a Raio N’Água. Não surgiu nada, e as horas se passavam.
Em Londres, Paris e Washington, os reservatórios foram praticamente sitiados. Pelotões de soldados armados patrulhavam cada centímetro da área, as estradas que levavam aos reservatórios foram bloqueadas, estabelecidos desvios. Nas torres d’água de tijolos de Washington, a operação e o sistema de segurança eram controlados pelo Corpo de Engenharia do Exército, sendo que especialistas no assunto haviam sido trazidos de avião do país inteiro.
- Nenhum nazista filho da puta jamais chegará perto deste lugar - dizia o general de brigada que comandava as operações no reservatório de Dalecarlia. - A mesma coisa em Londres e Paris, checamos todas as possibilidades. Acho que os franceses fizeram até uma certa macaquice. Dispuseram equipes com bazucas e lança-chamas a cada cem metros e não estão nem bebendo água.
Em Bonn, como não havia indícios de que a operação Raio N’Água afetaria a cidade, o governo pôs todos os seus recursos à disposição dos aliados, seus aliados agora, porque ninguém mais nesta terra odiava mais o ressurgimento do nazismo do que a liderança alemã. Entretanto, não levaram em consideração a história e sua compulsão de repetição. Porque durante as horas mais escuras da noite da Raio N’Água, caminhões que transportavam aparentemente tudo, desde roupa de cama, a equipamento de cozinha e materiais de limpeza, viriam rodando devagar até entrar nos estacionamentos do Bundestag. Na realidade, dentro daqueles caminhões haveria tanques cheios de puro octano, um combustível altamente explosivo, ligado a bombas capazes de irrigar uma área do tamanho de um campo de futebol. Era um símbolo a que Günter Jäger não podia resistir, um símbolo pessoal que ele compartilhou apenas com seus dedicados discípulos que realizariam a tarefa. Incendiariam o Bundestag, arrasando-o até o chão.
"O Reichstag revisitado", escreveu ele em seu diário particular.
- Não está acontecendo nada! - exclamou Karin na sua suíte do hotel Königshof. Era uma hora da madrugada em Bonn; Witkowski e os dois militares da Tempestade no Deserto, exaustos por quase dois dias sem dormir, dormiam em outros quartos. - Não estamos chegando a lugar nenhum!
- Concordamos todos - disse Latham, suas pálpebras como escudos que ele tinha de manter abertas à força. - Se nada acontecer até seis horas, vamos botá-lo na gaiola.
- Não vai haver gaiola, Drew! Freddie nunca entrou numa operação sem que levasse consigo meios de se matar caso fosse preso. Ele sempre me disse que não era um ato heroico, apenas medo de ser torturado. Se fosse descoberto, sabia que no fim seria executado, então por que não fugir da dor... Era um dos motivos por que eu não podia acreditar no arquivo da Stasi.
- Você quer dizer uma cápsula de cianureto no colarinho e essa merda toda?
- É verdade, você já viu! Seu irmão Harry se armava com a mesma pílula!
- Ele jamais a teria usado. - A cabeça de Latham caiu sobre seu peito, então seu corpo inteiro foi se recostando lentamente no divã.
- Centenas de milhares de vidas estão em jogo, Drew! Foi você mesmo quem disse. Ele arranjou um jeito de fazê-lo! - A súplica dela não fora ouvida; Latham dormia. - Há uma outra maneira de impedi-lo - disse de Vries num sussurro, ao entrar correndo no quarto deles, tirar um cobertor da cama e voltar para cobrir Latham. Então voltou ao quarto e pegou o telefone.
O telefone tocou, desorientando Drew, que caiu do divã, estendendo a mão para uma coisa que não estava ali. Levantou-se cambaleante; a campainha parou e trinta segundos depois um Witkowski quase vestido irrompeu do quarto.
- Porra, ela fez o troço! - gritou o coronel.
- Fez o quê...? - perguntou Latham, de volta ao divã e sacudindo a cabeça.
- Ela mesma foi atrás de de Vries.
- O quê?
- Karin usou os códigos que tínhamos para conseguir passar pela segurança de Jäger.
- Quando?
- Alguns minutos atrás. O oficial de plantão queria saber se listava a entrada dela por código ou por nome.
- Vamos sair daqui!... Onde está minha arma? Estava bem aqui em cima da mesa. Meu Deus, ela levou-a!
- Ponha um paletó e uma capa - disse o coronel. - Vem chovendo durante a última hora.
- Um carro da inteligência alemã está a caminho - anunciou o capitão Dietz, saindo correndo da porta do terceiro quarto, seguido de seu tenente, ambos completamente vestidos, suas automáticas nos coldres. - Peguei o telefone e ouvi - explicou ele. - Precisamos ir depressa, levará no mínimo dez minutos para chegarmos lá.
- Ligue para o chefe da segurança e ordene que a impeça, ou entre para buscá-la! - disse o tenente Anthony.
- Não - respondeu rispidamente Witkowski. - Jäger é um cão raivoso. Se achar que está encurralado, ficará maluco, matando tudo que estiver pela frente. Vocês ouviram os psiquiatras. Seja lá o que for que ela foi fazer lá, é melhor que faça sozinha até chegarmos.
- E quando chegarmos - disse Drew em voz baixa, arrancando um paletó e uma capa de cima de uma cadeira. - Nós vamos entrar. Cada qual tem uma segunda arma. Um de vocês dê-me a sua.
Identificando-se como membro da equipe N-2, seu nome e código averiguado pelo agente de informações alemão encarregado da equipe de vigilância da casa de Jäger, Karin de Vries recebeu as últimas informações gerais, e também instruções específicas.
- Tenho nove homens espalhados estrategicamente pelo terreno, com seus equipamentos - disse o agente, acocorado na chuva torrencial, atrás de uma parede meio demolida da antiga casa. - Cada um deles está camuflado e oculto na vegetação, vários na realidade trepados em árvores, e a chuva, apesar de extremamente desconfortável, nos favorece. As duas patrulhas de Günter Jäger não se aventuram a mais de vinte e cinco metros da casa de barcos. Você diz que precisa atingir a porta sem ser vista, e é vital para nossa situação que você não seja vista, por isso escute o que eu vou dizer. Siga este velho caminho calçado de pedras até alcançar as ruínas de um mirante, onde há um campo de croquê construído para a recreação de Jäger. Do outro lado há um pinheiro de copa larga; mais ou menos a cinco metros de altura acima dos primeiros galhos, está um de meus homens com uma boa visão do chalé. Ele tem uma lanterna estreita, que protegerá com as mãos: se acender duas vezes significa que há um guarda rondando, três, que está tudo bem. Quando avistar a lanterna acendendo três vezes, corra pelo centro do campo de croquê, onde há um outro caminho calçado de pedras que faz uma curva para a esquerda. Tome-o e pare aproximadamente quarenta passos depois, onde a curva é mais apertada. Olhe à sua direita; haverá outro homem nos arbustos, outra lanterna. Ele tem uma visão direta de uma porta lateral que fica bem em frente do final do caminho. Não pode errar.
- Uma porta lateral? - interrompera Karin, tirando a água de seu rosto, sob o chapéu de lona preta.
- Os aposentos de Jäger - respondeu o agente de informações alemão. - Quarto, banheiro, escritório, e um puxado na parede do norte que contém uma pequena capela particular com seu próprio altar. Dizem que passa horas ali meditando. A porta lateral é sua entrada particular, a mais próxima da margem do rio e vedada a qualquer pessoa. A porta da frente é na extremidade esquerda, a entrada original da velha casa de barcos; é a que os guardas e as visitas usam.
- Em outras palavras, ele fica basicamente separado do resto da casa quando está nos seus aposentos.
- Definitivamente. O diretor Moreau ficou especialmente interessado neste arranjo, quando descrevi-o para ele. Ele me ligou depois da senhora ter ligado para ele em Paris, e juntos fizemos um plano para a senhora manobrar com risco mínimo.
- O que lhe disse ele, posso saber?
- Que a senhora conhecera Günter Jäger há muitos anos e que era uma estrategista altamente treinada, que talvez pudesse conseguir o que outros não poderiam. Eu e meus demais agentes de nível superior acatamos a opinião de Moreau como sendo a de um perito. Ele também mencionou que a senhora deveria entrar armada e capacitada para se defender.
- Espero que ele esteja certo quanto a ambas as afirmações - disse Karin em voz baixa.
- Ah? - O agente alemão olhou fixamente para Karin. - Seus chefes estão de acordo com sua tática, evidentemente.
- Claro. Teria o célebre Moreau entrado em contato com você se não fosse o caso?
- Não, não teria... Sua capa ficará em breve encharcada. Não posso lhe oferecer uma outra, mas tenho um guarda-chuva extra. Eu lhe cedo de bom grado.
- Obrigada, fico muito grata. Mantém-se em contato com seus homens através do rádio?
- Sim, mas sinto muito, não posso lhe dar um. O risco é demasiado.
- Compreendo. Apenas informe-os que estou indo.
- Boa sorte e tenha muito, muito cuidado, madame. Lembre-se, podemos lhe indicar o caminho da porta, mas não podemos fazer mais nada pela senhora. Mesmo se gritar, não poderemos reagir.
- Sim, eu sei. Uma vida comparada a de tantos milhares. - Com essas palavras, Karin abriu o guarda-chuva e começou a andar pelo caminho calçado de pedras, no meio do dilúvio. Limpando constantemente a água dos olhos, alcançou o mirante, que já fora bonito, seus restos de madeira queimada e aramado enrolado, lembrando de certo modo uma fotografia de guerra, a ilustrar a lição de que a guerra a todos igualava, atingindo a ricos e pobres. E então, além, como se para contradizer a lição, havia um campo de croquê belamente conservado, com um gramado perfeito, os arcos e os postes pintados de cores brilhantes.
Ela levantou a cabeça, apertando os olhos sob a aba de seu chapéu de lona, examinando o enorme pinheiro, ladeado por árvores menos imponentes. De repente os clarões apenas visíveis da lanterna. Dois deles! Um guarda fazia a ronda. Karin agachou-se no chão, perscrutando a escuridão molhada, à procura de outro sinal. Veio depressa: três clarões, que se repetiram. O caminho estava livre!
Ela correu através da quadra de croquê, seus sapatos sem salto mergulhando na grama encharcada até sentir a superfície dura do segundo caminho calçado de pedras. Sem hesitar, correu por ele, lembrando-se dos quarenta passos aproximados e a curva apertada; encontrou-a tarde demais, mergulhando de cabeça na vegetação crescida, enquanto o caminho guinava abruptamente para a esquerda. Não havia visibilidade, nenhuma maneira de como saber. Ela se levantou desajeitada e doloridamente e pegou o guarda-chuva; estava quebrado, inútil. De joelhos, olhou para a direita, conforme as instruções. Não havia nada senão a chuva torrencial e a escuridão, mas mesmo assim ela não ousava se mexer até que viesse o sinal. Finalmente, ele veio: três clarões. Karin andou lenta e cautelosamente até o final do caminho calçado de pedras; ela estava na beira da mata e avistou o lar de seu ex e agora desprezível marido, Führer do Quarto Reich. Havia luzes na extremidade esquerda da construção, e escuridão em todos os outros lugares.
A casa de barcos era muito mais comprida, embora não necessariamente maior, do que ela imaginara, porque só tinha um andar. O agente de informações alemão dissera que havia um puxado à direita que abrigava os aposentos particulares isolados do homem chamado Günter Jäger. Modificações também haviam sido feitas à esquerda, pensou ela, ao observar a madeira mais clara, mais nova, com uns oito a dez metros de comprimento, e considerando a largura do lado que dava para o rio, suficientes para dois, três, ou quatro quartos adicionais para os empregados. O agente tivera razão quanto a um setor: a porta da frente ficava na extremidade esquerda, no final do caminho de cascalho, simetricamente desequilibrada, como se provisoriamente afastada dos aposentos de Jäger. E logo à sua frente, com o cais curto e o grande rio ao fundo, a porta lateral com um pórtico, da suíte de aposentos de Günter Jäger; uma luz vermelha fraca pendia de cima do teto do pequeno pórtico. Karin respirou profundamente várias vezes, na esperança de controlar seu coração disparado, tirou a automática de Drew Latham do bolso de sua capa, e começou a andar pela grama em direção ao pórtico com a luz vermelha fraca. Um deles viveria, o outro morreria. Seria o fim do seu desgraçado casamento. Mas primeiro havia a Raio N’Água, o ômega de Günter Jäger para paralisar Londres, Paris e Washington. Frederik de Vries, que já fora um dos mais brilhantes agentes provocadores, descobrira uma maneira de fazê-lo. Ela sabia!
Karin alcançou o pórtico com a estranha luz vermelha; subiu o único degrau, segurando uma das duas colunas que sustentavam a aba do telhado, a chuva pesada tamborilando regularmente no telhado. De repente, prendeu a respiração, medo e confusão tomando conta dela. A porta estava entreaberta, não mais do que seis centímetros, e além da abertura apenas a escuridão mais negra. Aproximou-se dela com a automática de Latham na mão esquerda, e empurrou a porta. Novamente apenas a escuridão e agora, a não ser pela chuva torrencial, silêncio. Ela penetrou no interior.
- Eu sabia que você viria, minha querida esposa - disse a figura invisível, sua voz fazendo eco nas paredes invisíveis. - Feche a porta, por favor.
- Frederik!
- Não é mais Freddie, estou vendo. Só me chamava de Frederik quando estava zangada comigo, Karin. Está zangada comigo agora?
- O que fez você? Onde está?
- É melhor conversarmos no escuro, pelo menos por algum tempo.
- Sabia que eu vinha...?
- A porta permanecia aberta desde que você e seu amante voaram para Bonn.
- Então percebe que eles sabem quem você é...
- Isso é totalmente irrelevante - interrompeu de Vries/Jäger firmemente. - Nada mais pode nos impedir agora.
- Você não vai escapar.
- É claro que sim, já foi providenciado.
- Como? Sabem quem você é, não vão deixar!
- Só porque estão lá fora num hectare e pouco de vegetação emaranhada e ruínas, com seus equipamentos de escuta, à espera que eu entre em contato com outros aqui na Alemanha, Inglaterra, França e América? De modo que possam prender os outros, acusá-los só porque falei com eles? Eu lhe digo, querida esposa, que tive uma grande tentação de telefonar para o presidente da França e dos Estados Unidos, e para a rainha da Inglaterra. Foi quase irresistível. Você pode imaginar a perplexidade total na comunidade de informações?
- Por que não o fez?
- Porque o sublime se tornaria ridículo... e somos mortalmente sérios.
- Por quê, Frederik, por quê? O que aconteceu com o homem que, acima de tudo, detestava os nazistas?
- Não era bem assim - disse o novo Führer rispidamente. - Eu detestava primeiro os comunistas, porque eram burros. Desperdiçaram o poder que tinham em todo canto, tentando viver de acordo com a doutrina marxista da igualdade, quando essa igualdade não existe. Entregaram a autoridade para camponeses ignorantes e palermas boçais e feios. Não havia nenhuma grandiosidade em torno deles.
- Você nunca falou assim antes.
- É claro que sim! Você é que nunca escutou com a devida atenção... Mas isso também é irrelevante, pois achei minha vocação, o destino de um ser humano verdadeiramente superior. Percebi um vácuo e preenchi-o, é verdade que com a ajuda de um cirurgião de grande estatura e sensibilidade, que percebeu que eu era o homem de quem eles precisavam.
- Hans Traupman - disse Karin no escuro, imediatamente irritada consigo mesma por tê-lo dito.
- Ele não está mais conosco, graças à sua equipe de desastrados. Será que vocês realmente acreditavam que poderiam assaltar o barco dele e sequestrá-lo correndo? Todas as quatro câmeras enguiçando sucessivamente, o rádio parando subitamente de funcionar, o próprio barco se dirigindo rio acima? Francamente, quanto amadorismo. Traupman deu a sua vida pela nossa causa, e ele não desejaria que fosse de outro modo, pois nossa causa é tudo.
Günter Jäger sabia muita coisa, mas não sabia de tudo, ponderou Karin de Vries. Achava que Traupman morrera na sua embarcação.
- Que causa, Frederik? A causa dos nazistas? Dos monstros que executaram seus avós e obrigaram seu pai e sua mãe a viverem como párias, até que finalmente se mataram?
- Aprendi muitas coisas depois que fui abandonado por você, minha querida.
- Eu abandonei você...?
- Eu troquei minha execução por diamantes, todos os diamantes que me restavam em Amsterdã. Mas quem iria me contratar depois da queda do Muro? Qual a utilidade de um agente supersecreto quando não há nada para se infiltrar? O que aconteceria com meu estilo de vida? As contas de despesas ilimitadas, as limusines, os balneários extravagantes? Lembra do Mar Negro e Sevastopol? Meu Deus, a gente se divertia, e faturei duzentos mil, em moeda americana, pela operação!
- Eu estava falando da "causa", Frederik, e a causa?
- Acabei acreditando nela com todo meu ser. No início, eram outros que escreviam meus discursos para o movimento. Agora escrevo-os todos, componho-os todos, pois se parecem com pequenas óperas épicas, fazendo com que quem as assista se ponha de pé, a me dirigir elogios com vozes vibrantes, homenageando-me, adorando-me, enquanto os mantenho embevecidos!
- Como começou... Freddie?
- Freddie, assim está melhor. Gostaria mesmo de saber?
- Não quis sempre ouvir você contar sobre suas missões? Lembra-se de como às vezes costumávamos rir?
- Sim, aquela parte sua era boa, o contrário da bruxa e da vagabunda que você era a maior parte do tempo.
- O quê...? - Imediatamente Karin abaixou a voz. - Sinto muito, Freddie, francamente. Você foi para Berlim Oriental, foi a última notícia que tivemos de você, todos nós. Até lermos a notícia de que fora executado.
- Eu mesmo escrevi o relato, sabe? Meio sensacionalista, não foi?
- Foi certamente incisivo.
- A boa escrita é como a boa oratória, e a boa oratória é como a boa escrita. Você precisa criar imagens instantâneas para capturar as mentes dos leitores ou ouvintes. Capturá-las imediatamente com fogo e com relâmpagos!
- Berlim Oriental...?
- Sim, foi onde começou. Alguns membros da Stasi tinham ligação com Munique, especialmente com um general interino do movimento nazista. Reconheceram minhas habilidades e por que não, meu Deus? Eu os fizera de tolos com demasiada frequência! Depois que os líderes oficiais pegaram meus diamantes em Amsterdã e me libertaram, vários deles vieram falar comigo dizendo que tinham trabalho para mim. A Alemanha Oriental estava desabando, a União Soviética inteira deveria seguir os mesmos passos dentro em breve, todo mundo sabia. Eles me levaram de avião até Munique e lá encontrei esse general, von Schnabe. Era um homem imponente, talvez até mesmo um visionário, porém basicamente um severo burocrata. Faltava-lhe a impetuosidade do líder. Entretanto ele tinha uma ideia, ideia que ele estava gradualmente transformando em realidade. Poderia no fim mudar a face da Alemanha.
- Mudar a face da Alemanha? - disse incredulamente Karin. - Como poderia um general desconhecido, de um movimento radical desprezado, ser capaz de algo assim?
- Infiltrando o Bundestag, e infiltração era minha especialidade.
- Isso não responde à minha pergunta... Freddie.
- Freddie... gosto disso. Nós nos divertimos durante um bom período, minha mulher. - A voz de Günter Jäger parecia vir de nenhum e de todo lugar, na escuridão do quarto, a fonte ainda mais abafada pelo tamborilar da chuva contra a janela fechada e o telhado. - Respondendo à sua pergunta. Para infiltrar o Bundestag, as pessoas certas precisavam simplesmente ser eleitas. O general, com a ajuda de Hans Traupman, varreu o país à procura de homens talentosos porém descontentes, colocou-os em distritos economicamente decadentes, alimentou-os com "soluções", e financiou suas campanhas, muito além da capacidade de competição de seus adversários. Acredita que temos mais de cem membros no Bundestag neste momento?
- Você era um desses homens... meu marido?
- Eu era o mais extraordinário, minha mulher! Ganhei um novo nome, uma nova biografia, uma vida completamente nova. Tornei-me Günter Jäger, um pároco de uma pequena aldeia em Kuhhorst, transferido pelas autoridades eclesiásticas para Strasslach, nas cercanias de Munique. Deixei a igreja, lutando por aquilo que eu chamava de a desfavorecida classe média, os burgueses que eram a espinha dorsal da nação. Fui eleito por uma avalanche de votos, como dizem, e enquanto eu fazia minha campanha, Hans Traupman ficou me observando e tomou sua decisão. Eu era o homem de que o movimento precisava. Deixe-me lhe dizer, minha querida vagabunda, é fantástico! Fizeram-me imperador, rei, o soberano de tudo que esposamos, o Führer do Quarto Reich!
- E você aceita, Freddie?
- Por que não? É a extensão de tudo que eu fazia no passado. A persuasão que era preciso mostrar para cavar meu caminho até o campo inimigo, os discursos que era obrigado a fazer para dar consistência a meus compromissos, todos aqueles jantares e simpósios, tudo isso foi um treinamento para minhas proezas mais elevadas.
- Mas você já teve essas pessoas na conta de inimigos.
- Não é mais o caso. Estão certas. O mundo mudou e mudou para pior. Até mesmo os comunistas, com seus punhos de aço, eram melhores do que aquilo que temos agora. Se você jogar fora a disciplina de um estado forte, o que sobra é a escória, guinchando uns para os outros, se matando entre si, se igualando a animais na floresta. Bem, nós vamos nos livrar dos animais e reestruturar o estado, selecionando e recompensando apenas os mais puros para servi-lo. A aurora do novo e grande dia está diante de nós, minha mulher, e assim que for compreendida, a verdade de sua força e a força de sua verdade varrerão o mundo.
- O mundo acordará e se recordará da brutalidade dos nazistas, não é... Freddie?
- Talvez durante certo tempo, mas isso passará quando o mundo verificar os resultados de um estado expurgado, sob as rédeas de uma liderança benevolente e forte. As democracias constantemente fazem o elogio das urnas, mas não poderiam estar mais equivocadas! As eleições são decididas na sarjeta, pois é lá que estão a maioria dos votos. E Deus abençoe a América, pois eles nem sequer compreendem direito sua própria Constituição, tal como foi concebida há duzentos anos. Originalmente, só os proprietários de terras, os homens que haviam provado seu êxito e portanto sua superioridade, podiam votar. Este foi o consenso da Convenção Constituinte, sabia?
- Sim, era uma sociedade agrária, mas estou surpresa de que você saiba. A história nunca foi um de seus fortes, meu marido.
- Tudo isso mudou. Se pudesse ver essas prateleiras... estão forradas de livros, sendo que todo dia chegam livros novos. Leio cinco a seis por semana.
- Deixe-me vê-los, deixe-me vê-lo. Senti sua falta, Freddie.
- Logo, minha mulher, logo. Há um certo conforto no escuro, já que posso "vê-la" da maneira como prefiro imaginá-la. A bela e divertida mulher que se orgulhava tanto do marido, que me trazia segredos da OTAN, muitos dos quais, estou convencido, me salvaram a vida.
- Você estava do lado da OTAN, como poderia eu ter feito de outro modo?
- Agora estou de um lado maior. Será que me ajudaria agora?
- Depende, meu marido. Não posso negar que é extremamente convincente. Tendo ouvido suas próprias palavras, fico muito entusiasmada a seu respeito. Você sempre foi um homem tão extraordinário, que até mesmo os seus críticos concordavam...
- Como meu amigo, meu ex-amigo, Harry Latham, que agora é seu amante!
- Está enganado, Freddie. Harry Latham não é meu amante.
- Mentirosa! Ele a vivia paparicando, esperando que você aparecesse, me perguntando por você.
- Repetirei minha afirmação para você. Já vivemos juntos o suficiente para que você saiba quando não estou mentindo. É sua profissão, afinal de contas, e você já me ouviu mentir centenas de vezes em seu benefício... Harry Latham não é meu amante. Devo repeti-lo de novo?
- Não. - Essa única palavra ecoou pela paredes invisíveis. - Então quem é ele?
- Alguém que assumiu o nome de Harry.
- Por quê?
- Porque você quer matar seu amigo Harry, e Harry não se importa de ser morto. Como poderia você, Frederik? Harry o amava como a... um irmão caçula.
- Não fui responsável - disse a voz desencarnada de Günter Jäger baixinho. - Harry infiltrou-se no nosso quartel-general nos Alpes. Ele fazia parte de uma experiência. Não tive escolha senão concordar.
- Que tipo de experiência?
- Algo médico, uma coisa que nunca entendi direito. Traupman, no entanto, estava muito entusiasmado, e eu não podia contrariar Hans. Ele era meu mentor, o homem que me colocou onde estou hoje.
- E onde está você, Freddie? É realmente o novo Adolf Hitler?
- É estranho que você mencione isto. Já li e reli Mein Kampf, e todas as biografias que pude obter. Você tem alguma ideia do paralelismo de nossas vidas, pelo menos de nossas vidas antes de ingressarmos no movimento? Ele era um artista, e eu, a meu modo, também sou. Ele era desempregado, e eu estava prestes a ficar. Ele foi rejeitado pela Liga de Artistas Austríacos e também pela Escola Superior de Arquitetura, supostamente por falta de talento, um ex-cabo sem rumo certo na vida. No meu caso, idem. Quem emprega alguém como eu? E ficamos ambos na lona; no caso dele, nada possuía, e eu vendi todos os meus diamantes para salvar a minha vida... Então alguém na década de vinte viu um radical na esquina, a berrar apaixonada e convincentemente contra as injustiças das condições sociais, e anos mais tarde outra pessoa assistiu a oratória de um extraordinário ex-agente provocador que chegara até a enganá-lo. Homens assim são valiosos.
- Você quer dizer que tanto você quanto Adolf Hitler recuaram até suas terríveis posições?
- Eu formularia isto de outro modo, minha mulher. Nós não encontramos nossas causas, foram nossas causas que nos encontraram.
- Isso é obsceno!
- De modo algum. A fé do convertido é sempre a mais firme, porque foi algo conquistado.
- Provocar isto tudo redundará numa enorme perda de vidas...
- Inicialmente, sim, mas passará depressa, será esquecido depressa, e o mundo será um lugar muito melhor. Não haverá guerras em massa, confrontações nucleares. Nosso progresso será gradual e seguro, porque muita coisa já está pronta. Dentro de alguns meses, haverá trocas de governos, novas leis serão criadas para protegerem os mais fortes, os mais puros, e dentro de alguns anos o lixo inútil, a escória da sociedade que nos suga até os ossos, será varrido.
- Não é necessário fazer um discurso para mim... Freddie.
- Tudo isso é verdade! Não consegue vê-lo?
- Não consigo ver nem você, e você me excita quando fala deste modo, como o extraordinário homem que eu sei que você é. Por favor, acenda uma luz.
- Tenho um pequeno problema a esse respeito.
- Por quê? Mudou tanto assim em cinco anos?
- Não, mas estou usando óculos e você não.
- Eu só os uso quando meus olhos estão cansados, você sabe disso.
- Sim, mas os meus são diferentes. Posso ver no escuro, e vejo a arma na sua mão. Fez-me recordar de que você era canhota. Lembra-se de quando decidiu que devia jogar golfe comigo e eu te comprei um jogo de tacos, só que eram do tipo errado?
- Sim, é claro, lembro que eram para jogadores destros... Carrego a arma porque você me ensinou a jamais ir a uma reunião à noite, mesmo com você, sem carregar uma arma. Você dizia que nenhum de nós poderia saber se você fora seguido.
- Eu tinha razão. Estava te protegendo. Seus amigos lá fora sabiam que você tinha uma arma?
- Eu não vi ninguém. Vim sozinha, sem autorização.
- Agora você está mentindo, pelo menos em parte, mas isso não tem importância. Deixe a arma cair no chão! - Karin obedeceu, e de Vries/Jäger acendeu uma luz, um refletor que lançou seu brilho em cima de um pequeno altar da capela, destacando o crucifixo dourado em cima de um pano roxo. O novo Führer estava sentado num genuflexório à direita, numa camisa de seda branca, com o colarinho aberto, seus cabelos louros reluzindo, e suas belas feições agudas no seu ângulo mais vantajoso. - Como estou depois de cinco anos, mulher?
- Tão belo quanto antes, mas você sabe disso.
- Trata-se de um atributo que não posso negar, e um que Herr Hitler jamais possuiu. Sabia que ele era um homem um tanto baixo, com cara de bebê, que usava sapatos especiais para ficar mais alto? Meu aspecto me é de grande utilidade, mas eu o carrego com brilhante humildade, e finjo ser feito de gelo quando as mulheres chamam atenção para ele. Vaidade física não fica bem num líder nacional.
- Mas os outros acham importante. Acredito que ficam embasbacados por ele. Eu ficava... ainda fico.
- Quando vocês suspeitaram de que "Günter Jäger" era o novo líder neonazista?
- Quando uma das Sonnenkinder cedeu sob interrogatório. Usando-se drogas, suspeito.
- Não pode ser, eu jamais me revelei a qualquer uma delas!
- É evidente que sim, mesmo percebendo ou não percebendo. Você disse que participava de reuniões, fazia discursos...
- Só para aqueles de nós que estavam no Bundestag! Todo o resto era gravado.
- Então alguém o traiu... Freddie. Ouvi algo a respeito de um padre católico que foi se confessar e comprometeu a consciência de seu confessor.
- Meu Deus, aquele idiota senil, Paltz. Eu disse mais de uma vez que ele deveria ser excluído, mas não, Traupman alegava que ele tinha muitos adeptos entre a classe trabalhadora. Farei com que seja fuzilado.
Karin respirou melhor por um breve período. Ela atingira o diapasão de que precisava. O nome Paltz lhe veio à cabeça da identificação da fita, e do fato de que monsenhor Paltz era um velho abertamente detestado pela hierarquia católica da Alemanha, outro fato confirmado por uma ligação ao bispo de Bonn. O bispo não poupara palavras. "Ele é um fanático equivocado que deveria ser aposentado. Foi o que eu disse a Roma." Karin esperou que seu indesejado marido se acalmasse.
- Freddie - começou ela a falar baixinho, sob controle. - Este Paltz, seja lá quem for, este padre, disse que algo terrível acontecerá às cidades de Londres, Paris e Washington. Calamidades de tal magnitude que centenas de milhares morrerão. É verdade... Freddie?
O silêncio negro como a noite vindo do Führer era carregado, ampliado pelo tamborilar da chuva. Finalmente Günter Jäger falou, sua voz tensa, rouca, parecendo as cordas esticadas de um violoncelo prestes a arrebentar.
- Então é por isso que veio aqui, minha querida vagabunda. Mandaram-na para a chance muito improvável de que eu revelasse a natureza de nossa onda de choque.
- Vim por minha própria iniciativa. Eles não sabem que estou aqui.
- É possível, porque você nunca foi boa mentirosa. No entanto, é uma doce ironia. Eu disse antes que nada conseguiria nos impedir, e acontece que é verdade. Sabe, como todos os grandes líderes, delego responsabilidades, especialmente nos terrenos que eu mesmo não conheço profundamente. Expõem-me uma estratégia ou um plano em linhas gerais, especialmente quanto aos resultados finais, mas não os aspectos técnicos, nem mesmo os nomes das pessoas que o estão aperfeiçoando. Não saberia para quem ligar se quisesse eu mesmo saber destas coisas.
- Sabemos que diz respeito aos reservatórios d’água das três cidades, seja lá como se chamam.
- Mesmo? Tenho certeza de que monsenhor Paltz foi muito técnico na hora de confiar seus segredos. Pergunte-lhe.
- Não pode funcionar, Frederik! Cancele isto. Todo mundo envolvido será preso. Há centenas de tropas preparadas para disparar em qualquer um ou qualquer coisa que se aproxime da água. Serão presos e você desmoralizado!
- Desmoralizado? - perguntou Jäger calmamente. - Por quem? Por um velho senil que não tem nem certeza do ano em que estamos, muito menos do mês e do dia? Não seja ridícula.
- Frederik, existe uma fita da reunião de ontem à noite. Todo mundo que estava presente foi preso e está incomunicável! Acabou, Freddie! Pelo amor de Deus, cancele a Raio N’Água!
- Raio... N’Água? Meu Deus, você está dizendo a verdade, está na sua voz, no seu olhar. - Günter Jäger se levantou de seu genuflexório, seu rosto e corpo parecendo com um Siegfried sob um holofote de ópera. - Mesmo assim, minha querida vagabunda, isso nada muda, porque ninguém pode impedir a onda de choque. Em menos de uma hora estarei num jato destinado a um país que aplaude o meu trabalho, nosso trabalho, assistindo aos nossos discípulos em todo o mundo ocidental ocuparem posições de poder.
- Você jamais escapará!
- Agora está sendo ingênua, querida esposa - disse Jäger, andando até o centro do altar e apertando um botão sob o crucifixo de ouro. De repente, mediante este gesto, abriu-se um quadrado no chão, revelando o chapinhar das águas do rio embaixo. - Lá embaixo está um submarino com capacidade para dois homens, cortesia de um construtor naval que faz parte do movimento. Vai me levar até Königswinter, onde meu avião me espera. O resto é a história ressurrecta.
- E eu?
- Tem alguma ideia de quanto tempo se passou desde que possuí uma mulher? - disse Jäger em voz baixa sob a luz do altar. - Quantos anos tive de vestir o manto de uma rígida disciplina monástica, enquanto dava a entender que os demais que sucumbiam a semelhantes tentações eram vulneráveis à corrupção e conciliação?
- Por favor, Frederik, não estou interessada em suas poses.
- Deveria, mulher! Vivi assim por mais de quatro anos, provando que eu, e só eu, era o incorruptível líder supremo. Eu amarrava a cara para mulheres que usavam roupas provocantes e não permitia sequer que fossem contadas anedotas e piadas picantes na minha presença.
- Deve ter sido insuportável para você - disse Karin, seu olhar passeando pelo quarto meio escurecido. - Sempre que voltava de uma de suas aventuras no bloco oriental, você vinha carregando invariavelmente um montão de camisinhas e números de telefone, apostos a nomes de mulheres.
- Revistava minhas roupas?
- Geralmente precisavam ser mandadas para a lavanderia.
- Você sempre tem uma resposta para tudo, sempre foi assim.
- Eu respondo francamente aquilo que me vem à cabeça, à medida que sou informada pela minha memória... Voltemos a mim, Frederik. O que acontecerá comigo? Vai me matar?
- Eu preferia não fazê-lo, minha mulher, pois é isto que você ainda é, legalmente e aos olhos de Deus. Afinal de contas, meu submarino de cortesia pode levar duas pessoas. Você poderia ser minha consorte, minha companheira, finalmente, talvez, a imperatriz junto ao imperador, semelhante a Fräulein Eva Braun em relação a Adolf Hitler.
- Eva Braun se suicidou junto com seu "imperador", com cianureto e um tiro. Não me apetece.
- Você não vai me atender, mulher?
- Não, não vou te atender.
- Atenderá, de outra maneira - disse Günter Jäger, sua voz mal se fazendo ouvir, enquanto desabotoava e tirava sua camisa de seda branca, desabotoando em seguida o cinto.
Karin mergulhou de repente à sua esquerda, tentando alcançar a automática de Latham que deixara cair no chão. Jäger correu para a frente, dando um chute com a sua perna direita, a ponta de sua bota atingiu-a no meio do corpo com tamanha força que ela caiu, gemendo de dor, numa posição fetal.
- Você me atenderá agora, mulher - disse o novo Führer, tirando as calças, perna por perna, dobrando-as, ajeitando os vincos e colocando-as sobre o genuflexório.
39
- Quando foi que ela entrou? - perguntou Latham, alteando a voz para se fazer ouvir no aguaceiro.
- Mais ou menos há vinte minutos - respondeu o agente bilíngue alemão, enquanto o veículo do serviço secreto recuava com os faróis apagados do terreno.
- Meu Deus, ela já está há tanto tempo assim lá dentro? E você deixou-a entrar sem um meio de comunicação, sem nenhuma maneira de entrar em contato?
- Ela compreendeu a situação. Deixei claro que não poderia dar-lhe um rádio e suas próprias palavras foram "eu compreendo".
- Não acha que deveria ter averiguado conosco antes de deixá-la passar? - gritou praticamente Witkowski em alemão.
- Mein Gott, nein! - respondeu zangado o agente. - O grande diretor Moreau em pessoa entrou em contato comigo e nós elaboramos a maneira menos perigosa de ela passar pela segurança.
- Moreau? Eu vou estrangular aquele filho da puta! - explodiu Latham.
- Para responder com mais exatidão a sua pergunta, Mein Herr - disse o agente de informações alemão - a Fräulein não está há tanto tempo assim no chalé; meu homem mais à dianteira relatou através do rádio que ela só entrou há doze minutos. Está vendo, escrevi o tempo exato no meu livro de anotações, com tinta à prova d’água. Sou extremamente eficiente, nós alemães, aliás, somos.
- Então por que todos os meus amigos ricos têm tanta dificuldade em consertar seus Mercedes?
- Não há dúvida de que devem ser os mecânicos americanos.
- Ah, cale a boca!
- Acho que é chegada a minha hora e a do Magro - interrompeu o capitão Christian Dietz, a menos de dois metros de distância na chuva, tendo o tenente Anthony a seu lado. - Vamos fazer uma repetição do que foi feito naquela mansão rio abaixo e tirar os guardas de circulação. - O capitão deu um passo à frente e passou para o alemão, dirigindo-se ao agente. - Mein Oberführer - começou ele. - Quantos guardas existem, e há alguma rotina da ronda? Falo com você em Deutsch, porque não desejo que haja nenhum mal-entendido.
- Meu inglês é tão bom quanto seu alemão.
- Mas é um pouco mais hesitante. E sua gramática...
- Não pagarei meu professor na semana que vem - interrompeu o agente com um sorriso. - Para alcançar meu próximo nível, é preciso que participe de um chá com ingleses de Oxford.
- Abfall! Jamais irá compreendê-los. Eu não compreendo. Falam como se tivessem ostras cruas na boca!
- Ja, assim ouvi falar.
- De que estão falando eles? - gritou Drew.
- Estão se conhecendo - respondeu Witkowski. - Chama-se ganhar confiança.
- Chama-se perda de tempo!
- Os detalhes, chlopak. É só ouvir um homem falar na sua própria língua pelo menos por um minuto, que você distingue quando ele está hesitante. Dietz quer apenas se certificar de que não haverá ambiguidades, vacilos.
- Diga-lhes para se apressarem!
- Não é preciso, estão praticamente concluindo.
- Há só três guardas de ronda - prosseguiu o agente, em alemão, para o capitão de comandos. - Mas tem um problema. Quando um guarda chega à porta na extremidade esquerda do caminho, outro sai logo depois, mas só depois do último guarda ter chegado. E preciso lhe dizer que identificamos dois deles, são assassinos patológicos que carregam sempre um arsenal de armas e granadas.
- Compreendo. É um revezamento. O bastão é passado para o próximo, pela presença do anterior.
- Exatamente.
- Por isso precisamos descobrir uma maneira de fazer com que os demais saiam.
- Ja, mas como?
- Deixe conosco. Vamos dar um jeito. - Ele virou-se para Latham e para Witkowski. - São maníacos lá dentro - disse Dietz. - O que não nos surpreende. "Assassinos patológicos" como explicou nosso amigo aqui. Esses tipos preferem matar a comer; os psicanalistas têm uma palavra para isso, mas a gente está pouco ligando. Vamos entrar.
- E desta vez vou com vocês! - disse Drew incisivamente. - Nem sequer pensem em fazer quaisquer objeções.
- Compreendi, chefe - aquiesceu o tenente. - Apenas faça-nos a todos um favor.
- Não represente o papel de Errol Flynn, como naqueles velhos filmes. Não é assim que se faz.
- Diga-me, garoto.
- Dê-nos o mapa correto da mina dali para diante - disse Witkowski, virando-se para o agente alemão.
- Sigam o caminho de pedras até um mirante em ruínas...
Dez segundos mais tarde, os quatro se puseram a caminho a partir da parede meio demolida da antiga casa, os agentes militares na frente de Drew, a falarem no rádio. Chegaram à quadra de croquê e esperaram pelo sinal da lanterna na árvore. Veio: três clarões, que mal davam para se ver naquele horrendo aguaceiro.
- Vamos - disse Latham. - Está livre!
- Não! - sussurrou Dietz, seu braço forte barrando Latham. - Queremos o guarda.
- Karin está lá dentro! - gritou Drew.
- Alguns segundos não vão fazer diferença - disse o tenente Anthony, enquanto ele e seu capitão corriam adiante. - Fique aqui! - acrescentou ele, enquanto os dois atravessavam a quadra de croquê e sumiam na escuridão encharcada. Não veio sinal nenhum; nada. E então surgiu, dois clarões: um guarda de ronda. De repente, à distância, ouviu-se um grito, um berro de curta duração. E em seguida outro e depois outro. Então, vieram de novo os clarões fracos da árvore, três vezes; a área estava livre. Latham e Witkowski correram pela quadra de croquê e pelo caminho de pedras, a lanterna do coronel iluminando o caminho. Atingiram a curva apertada à esquerda e correram até o final do caminho acima da velha casa de barcos. Na extremidade esquerda, os agentes militares estavam tendo trabalho em dominar dois guardas que haviam saído correndo da casa.
- Vá ajudá-los - ordenou Drew, olhando para o pórtico lateral com a luz vermelha, tal como descrevera o agente da inteligência alemã. - Esta jogada é minha.
- Chlopak...!
- Caia fora daqui, Stosh, eles precisam de ajuda. Isto aqui é para mim! - Latham desceu o morrote de grama com uma automática na mão. Chegou ao pórtico, sob a luz vermelha fraca e, acima do tamborilar da chuva do telhado, ouviu os gritos vindos de dentro. Gritos de Karin! Sua galáxia pessoal explodiu em milhares de infinitos. Jogou-se contra a porta, despedaçando-a, arremessando suas dobradiças longe e sua folha no meio da luz refletida do altar, com sua iluminação obscena e seu reluzente crucifixo. No chão, só de cuecas, estava o louro Führer, seu corpo em cima de uma Karin que gritava, esperneava, lutava, chutava furiosamente e tentava libertar suas mãos das garras dele. Drew disparou sua automática, abrindo um furo no teto. Jäger, alarmado, virou-se e saiu de cima do corpo de sua mulher, cujas feições e o corpo estavam contraídos de medo; o pavor silenciou-o.
- Levante-se, seu verme nazista - disse Latham, num tom de voz gelado, mortífero, de puro ódio.
- Você não é Harry! - disse Jäger de repente, levantando-se devagar, como se hipnotizado. - Parece um pouco com ele... mas não é ele.
- Estou surpreso que você possa distinguir nesta luz. - Drew saiu do feixe de luz. - Você está bem? - perguntou a Karin.
- Provoquei e recebi algumas contusões.
- Quero matá-lo - falou Latham calma e friamente. - À luz de tudo que aconteceu, preciso matá-lo. - Ele levantou sua automática, apontando-a para a cabeça de Jäger.
- Não! - gritou Karin. - Sinto do mesmo modo, mas você não pode, nós não podemos!... A Raio N’Água, Drew. Ele alega que não podemos impedi-la, que ele não conhece os detalhes, mas a vida inteira mentiu.
- Drew...? - interrompeu Günter Jäger, um sorriso malévolo de alívio cruzando seu rosto. - Drew Latham, o caçula meio abrutalhado de Harry. Como é que ele costumava chamá-lo? "Meu irmão caçula, o atleta", era isso mesmo. Eu precisei perguntar-lhe sobre isso. Então Hans Traupman estava errado, os Blitzkrieger mataram Harry, só que o irmão dele tomou seu lugar. Mein Gott, andamos caçando o homem errado! Harry Latham está morto, no final das contas, e ninguém ficou sabendo.
- O que quer dizer, ficou sabendo? - perguntou Drew. - Lembre-se, estou com uma arma na mão, e levando em consideração meu estado emocional desequilibrado, poderia facilmente explodir sua cabeça. Repito, o que quis dizer?
- Pergunte ao Dr. Traupman. Ah, eu me esqueci de que ele não está mais entre nós! E que até a Polizei, inclusive aqueles que estão do seu lado, não podem cobrir todas as frequências da marina ou conhecer nossos códigos de emergência. Como se diz, "Sinto muito, meu velho, mas não posso fazer nada por você".
- Ele disse que Harry fazia parte de uma experiência - interrompeu depressa Karin, enquanto Latham levantava a sua arma. - Uma experiência médica.
- Sorenson e eu chegamos praticamente à mesma conclusão. Podemos descobrir; o corpo de Harry ainda está no necrotério... Está bem, bonitão, pode começar a sair por aquela porta.
- Minhas roupas - protestou Jäger. - Certamente vai me deixar vestir minhas roupas? Está chovendo a cântaros.
- Você acredita se eu lhe dissesse que pouco estou ligando se você se molhasse? E também eu não sei o que você tem nas suas roupas, digamos, no colarinho. Minha amiga aqui levará suas roupas.
- Amiga? Será que não quer dizer sua vagabunda? - gritou o novo Führer.
- Seu filho da puta! - Latham tentou bater com o cano da automática na cabeça de Jäger, ao que o nazista esticou o braço esquerdo, bloqueando o golpe da pistola, seu punho direito golpeando o peito de Drew com tanta força que ele foi arremessado para trás, perdendo o equilíbrio. Jäger pulou então em cima da automática, arrancando-a da mão de Drew, atirando duas vezes, enquanto Latham rolava para a direita, em seguida para a esquerda, com ambos os pés ao lado das pernas do alemão, quando prendeu o tornozelo direito de Jäger, mandando um chute no joelho do nazista com toda a força de que dispunha, advinda de seu desespero. Jäger deu um berro de dor, inclinando-se para trás e atirando mais duas vezes, as balas indo furar as paredes. Karin mergulhou no chão, pegando a automática de Drew, que seu marido a obrigara a largar. Levantando-se, gritou.
- Pare, Frederik! Ou eu o mato!
- Você não faria isso, mulher! - gritou Günter Jäger, defendendo-se dos golpes de Latham, tentando apontar sua arma para o peito de Drew, enquanto Latham prendia o pulso dele ao lado do alçapão aberto, com as águas do rio embaixo. - Você me adora! Todo mundo me adora, me idolatra! - O nazista enfiou seu braço direito atrás de si, além do alcance de Drew. Ele forçou sua mão para a esquerda, depois para a direita; estava livre, poderia atirar.
Karin disparou.
Os membros do comando entraram correndo pela porta aberta, Witkowski logo atrás. Pararam abruptamente, olhando fixamente para a cena diante deles, sob a iluminação espectral do refletor que brilhava sobre o altar deslocado. Por alguns segundos, os únicos ruídos eram do aguaceiro além da porta e da respiração pesada dos cinco integrantes da equipe N-2.
- Presumo que você se viu obrigado a fazê-lo, chlopak - falou finalmente o coronel, fitando o corpo de Jäger, sua testa despedaçada.
- Não foi ele, fui eu! - gritou Karin.
- A culpa foi minha, Stanley, fui eu que provoquei a situação - corrigiu-a Latham, olhando para o veterano oficial do G-2, a morte de Günter Jäger constituindo uma evidente derrota de imensas proporções. - Perdi o controle e ele se agarrou à sua vantagem. Estava prestes a me matar com minha própria arma.
- Sua própria arma?
- Eu tentei golpeá-lo. Não devia ter feito, sei que não devia.
- Não foi culpa dele em absoluto, Stanley! - exclamou Karin. - Mesmo se a situação fosse diferente, eu teria atirado nele! Tentou me violentar, e se Drew não tivesse aparecido, teria conseguido e me deixado morta. Foi o que ele disse.
- Então este será o nosso relatório - disse o coronel. - As coisas nem sempre funcionam como deviam, e eu não gostaria de assistir ao enterro do agente Latham. Soube alguma coisa, Karin?
- Principalmente como ele chegou à sua atual posição. O trato com a Stasi, sua nova identidade, seu talento para a oratória descoberto por Hans Traupman. Quanto à Raio N’Água, ele alegou que ninguém poderia impedi-la, nem ele, porque não conhecia os detalhes técnicos e o pessoal especificamente envolvido. Mas também, ele era um mentiroso perfeito.
- Puta merda! - gritou Latham. - Sou um tremendo imbecil!
- Não sei, rapaz. Se eu me deparasse com alguém tentando fazer algo igualmente obsceno com uma boa amiga, acho que não me comportaria de modo diferente... Vamos lá, vamos desmontar este lugar inteiro e ver se conseguimos achar alguma coisa.
- E quanto àquela patrulha alemã lá fora? - perguntou Christian Dietz. - Talvez pudesse nos ajudar.
- Acho que não, capitão - disse Karin depressa. - Frederik deixou claro que a Polizei, mesmos os seus integrantes que eram simpatizantes nazistas, não poderia controlar todas as frequências de rádio. Isso pode significar que os nazistas infiltraram as autoridades, do mesmo modo que fizeram com o Bundestag. Sugiro que nós mesmos façamos a busca.
- Será uma longa noite - acrescentou o tenente Anthony. - Vamos começar.
- E os outros dois guardas? - perguntou Drew. - Ou o primeiro, para falar nisso?
- Estão amarrados e dormindo profundamente - respondeu Dietz. - Vamos averiguar como estão, de vez em quando, e quando acabarmos, os entregaremos a quem você determinar.
- Vocês, virem o resto da casa de pernas para o ar, nós vamos nos concentrar nos seus aposentos - ordenou o coronel. - Existem três cômodos e um banheiro aqui, um escritório, um quarto e este lugar sacro porém maldito. Um para cada um de nós.
- O que estamos procurando? - perguntou Gerald Anthony.
- Qualquer coisa que possa ter alguma relação com a operação Raio N’Água, e qualquer outro material que tenha nomes e números... E um de vocês, ache um lençol e cubra o cadáver.
Eles não deixaram nada intocado, e quando o amanhecer de verão irrompeu sobre o leste do Reno, foram achadas caixas na despensa, cheias de material, que foram trazidas para a capela. A maioria das coisas contidas nelas provavelmente não tinham valor, mas existiam peritos com muito mais experiência do que qualquer integrante da equipe N-2 para tirar conclusões a respeito. Exceto, talvez, Karin de Vries.
- Flugzeug... gebaut - não tem mais nada, a parte escrita foi rasgada - disse Karin, examinando um pedaço de papel escrito e rasgado, com a caligrafia de seu finado marido. "Construídos os aviões", é só o que diz.
- Qualquer coisa que o ligue à Raio N’Água? - perguntou Witkowski, fechando com fita várias outras caixas.
- Não, aparentemente, não.
- Então por que perder tempo com isso?
- Porque ele o escreveu num estado de espírito exaltado, os ls e os bs ficaram semelhantes, o resto é meio borrado, mas a pressão foi forte. Conheço essa caligrafia; ele costumava deixar listas para mim, coisas que eu deveria comprar antes dele mergulhar na clandestinidade. Ficava estusiasmado, com bastante adrenalina na veia.
- Se quer insinuar o que acho que você quer, sinto muito mas não faz sentido - disse Drew, de pé ao lado do alçapão aberto no chão que levava ao submarino miniatura embaixo do rio. - Não há nada ligando-o à Raio N’Água. Sorenson, que descobri ser praticamente um perito em relação aos reservatórios, excluiu aviões.
- Tinha razão - disse o coronel, colando a fita na última das três caixas. - Só a quantidade e a altitude já tornariam a coisa impossível. Seria uma tática destinada ao fracasso.
- Wes mencionou que os reservatórios e outras fontes de água sempre foram estudados quanto à possibilidade de sabotagem. Eu nunca soube disso.
- Porque jamais foi feito, a não ser na guerra no deserto, quando oásis foram envenenados. Em primeiro lugar, há as preocupações humanitárias, os vitoriosos são obrigados a conviver com os vencidos depois do término das hostilidades. E segundo, a logística é praticamente impossível.
- Eles descobriram uma maneira, Stanley, estou convencido.
- O que podemos fazer, mais do que já fizemos? - disse Karin. - Faltam menos de vinte e quatro horas.
- Mande este material para Londres e chame todos analistas do MI-5, MI-6, e do serviço secreto. Diga-lhes para examinar isso tudo sob múltiplos aspectos, quanto mais melhor.
- Dentro de quarenta e cinco minutos, poderemos fazer com que chegue lá - disse Witkowski, tirando seu celular e teclando.
- Quero voltar a Paris pelo caminho mais rápido, para me encontrar com quem quer que esteja guardando os reservatórios, onde quer que ele se encontre.
- Por que não descobre onde estão e aterrissa o mais próximo possível deles? - perguntou de Vries. - Claude pode conseguir isto.
- Se ainda estiver vivo depois de me encontrar com ele! - exclamou Latham. - Foi ele quem te fez entrar aqui sem nos dizer nada!
- Tinha bons motivos para fazê-lo, porque supliquei-lhe... supliquei.
- Com excelentes resultados, posso acrescentar - disse Drew. - Quase foi estuprada e morta, e o poderoso Günter Jäger está morto sob um lençol, sem nenhuma utilidade mais para a gente.
- Eu jamais me perdoarei por isto. Não por tê-lo morto, tinha que ser morto se não você morreria, mas pelo fato de eu ter provocado tudo isso.
- O que pensava fazer? - prosseguiu zangado Latham. - Que o deixaria todo aceso e que ele então entregaria todo o material?
- Algo no gênero, mas muito mais do que isso. Harry teria compreendido.
- Faça com que eu compreenda!
- Frederik, apesar de todos os defeitos, já foi um filho dedicado aos pais e avós. Como muitas crianças que perdem esse amor através da separação ou da morte, ele tinha uma verdadeira paixão por eles. Se eu pudesse reacender essas recordações, era possível que ele cedesse, mesmo durante um breve período.
- Ela tem razão, chlopak - interrompeu o coronel em voz baixa, enquanto repunha o telefone no bolso. - Os psiquiatras que viram a fita disseram que ele estava desequilibrado ao máximo. Compreendo esta afirmativa como querendo dizer que ele poderia seguir um caminho, ou outro, sob grande estresse. Ela tentou, com uma coragem raramente vista; não funcionou, mas poderia ter funcionado. Correm-se semelhantes riscos todo dia na nossa profissão desgraçada, e frequentemente por gente corajosa que nem sequer recebe mérito nenhum, nem mesmo quando perdem.
- Isso foi anos atrás, Stosh, não hoje.
- Eu afirmo, agente Latham, que hoje somos precursores de nossas piores projeções. Você não estaria aqui, nas margens do Reno, se não acreditasse nisso.
- Está bem, Stanley, acredito. Só que eu gostaria de poder controlar melhor a minha tropa, é "tropa" que ela se chama, não é?
- Não no seu caso, mas está tudo bem em Paris. Moreau está com dois jatos alemães no aeroporto, um a caminho de Londres, o outro na França, cujo destino será decidido durante o voo.
O capitão Dietz e o tenente Anthony entraram na capela pela porta que dava para o resto da casa.
- Não há mais nada ali a não ser jarras e panelas e mobiliário - disse o capitão. - Se existe uma pista posta em papel, está nessas caixas.
- E para onde agora, chefe? - perguntou o tenente.
Latham virou-se para Witkowski.
- Sei que não vai gostar disto, Stanley, mas quero que leve essas caixas para Londres. Elas são o máximo e você é o máximo, e ninguém consegue fazer estalar o chicote melhor que você. Não deixe ninguém descansar, dormir, todo mundo precisa trabalhar sem descanso, lendo, tentando encontrar alguma pista. Karin e nossos dois amigos voarão para a França comigo.
- Está certo, eu não gosto, chlopak, mas a lógica está do seu lado. Não nego. Porém, Drew, precisarei de ajuda, não faço parte exatamente do Estado-maior das Forças Armadas, você sabe. Preciso de mais poder atrás de mim do que o que eu tenho.
- Que tal Sorenson, ou Talbot da CIA, ou o presidente dos Estados Unidos?
- Eu adoraria ficar com este último. Pode consegui-lo?
- Com certeza que sim, Sorenson pode. Ligue para a inteligência alemã e peça um carro aqui dentro de cinco minutos.
- Ele não foi embora a hora nenhuma, só está aí embaixo na estrada. Vamos lá, rapazes, cada um de vocês leva uma.
Enquanto os dois militares atravessavam o aposento para pegar as caixas, o tenente Gerald Anthony localizou um pedaço de papel amassado ao pé do altar. Puro instinto fez com que o pegasse. Haviam apenas algumas poucas palavras num alemão ilegível. Mesmo assim, ele botou-o no bolso.
O jato para Londres, com seus motores abafados porém constantemente roncando, aproximou-se do litoral da Inglaterra. Witkowski falava sem parar no telefone, fazendo ligações internacionais, primeiro para Wesley Sorenson, em seguida para Knox Talbot, o diretor da CIA, Claude Moreau do Deuxième e finalmente, para o seu espanto, falando com o presidente dos Estados Unidos.
- Witkowski - disse o comandante em chefe. - Você agora está no comando da operação de Londres. Isto teve a plena aprovação do primeiro-ministro. Se você disser pule, eles perguntarão a que altura.
- Sim, senhor. Era isso que eu queria ouvir. Pode ser um pouco constrangedor, um coronel do exército ficar dando ordens a civis de alto escalão. Eles se ressentem com este tipo de coisa.
- Não haverá ressentimento, só gratidão, pode acreditar. Aliás, a mesa telefônica da Casa Branca foi instruída para que você possa entrar em contato comigo, a qualquer momento que ligue. Gostaria que me enviasse um relatório a cada hora aproximadamente, se for conveniente.
- Tentarei fazê-lo, Sr. Presidente.
- Boa sorte, coronel. Várias centenas de milhares de pessoas dependem do senhor, mesmo sem sabê-lo.
- Compreendo, Sr. Presidente, mas se posso sugerir, o povo não deveria ser informado das possibilidades?
- E termos pânico nas ruas, com as rodovias entupidas, o transporte público quase arrebentando de tanta gente a querer fugir de Washington? Se for dado um alarme que todo o sistema de abastecimento d’água da cidade pode ter sido envenenado por terroristas, o que mais será possível? Comida contaminada, doenças pulmonares provocadas por todas as unidades de ar condicionado, guerra bacteriológica?
- Eu não tinha pensado, nisto, Sr. Presidente.
- E pode-se ainda acrescentar a destruição maciça de propriedades, os bandos de saqueadores ambulantes que se seguiriam, hostilidades onipresentes e fora do controle. E também, nossos especialistas afirmam que nosso reservatório principal está armado até os dentes, preparados para qualquer tentativa de invasão possível. Não creem que nada parecido com a Raio N’Água possa acontecer.
- Espero que estejam certos, Sr. Presidente.
- É melhor que estejam, Coronel.
Depois de vinte minutos de voo após ter decolado de Bonn, Latham recebeu uma ligação de Claude Moreau.
- Por favor, não desperdice tempo em me acusar, Drew. Podemos discutir minha decisão mais tarde, debater o risco que eu corri.
- Pode apostar que sim. Então, qual a novidade?
- Você aterrissará num aeroporto particular na região de Beauvais; fica a vinte quilômetros do maior reservatório de Paris. Será recebido pelo meu segundo em comando, Jacques Bergeron, você se lembra dele, eu espero.
- Eu me lembro dele. E depois?
- Ele o levará à torre de água e até o comandante militar encarregado da defesa. Responderá a qualquer indagação que queira fazer e o levará para dar um giro entre as fortificações.
- O problema é que eu realmente não entendo nada de reservatórios, a não ser o que Sorenson me disse e Witkowski confirmou.
- Bem, pelo menos foi preparado por especialistas.
- Especialistas? Eles não são sequer engenheiros.
- Todos nós nos tornamos especialistas e engenheiros quando a sabotagem de serviços essenciais está em questão.
- E você, o que está fazendo?
- Supervisionando um exército de agentes, soldados e policiais que estão fazendo uma busca de cada metro quadrado num raio de dezesseis quilômetros do reservatório. Procurando o quê, nós não sabemos, mas alguns de nossos analistas sugeriram lançadores de mísseis ou de foguetes.
- Não é má ideia...
- Tem outros que dizem que é uma loucura - interrompeu o diretor do Deuxième. - Dizem que para usarem lançadores com a precisão necessária precisariam de mais de duas toneladas de equipamento e energia elétrica suficiente para iluminar uma pequena cidade, ou para estourar seus circuitos elétricos. E também, precisariam de locais de lançamento, e nós fotografamos cada centímetro do terreno através de aviões e satélites.
- Silos subterrâneos?
- É disto que temos medo, mas temos mais de dois mil agentes espalhados pelo lugar, perguntando se as pessoas não viram algum equipamento estranho de construção. Você tem alguma ideia de quanto concreto leva um único silo? Ou da instalação elétrica que uma estação de força exige?
- Tem se mantido ocupado, isto estou vendo.
- Não o suficiente, mon ami. Sei que está convencido de que aqueles fascistas descobriram uma maneira, e concordo com você. Sinceramente, foi este o motivo por que me deixei convencer por Karin... mas não vamos entrar neste assunto. Tenho a forte sensação de que deixamos de enxergar alguma coisa, algo um tanto óbvio, mas que ainda me escapa.
- Que tal algo simples como lançadores de foguete tipo bazuca, com metralhas?
- Foi uma das primeiras coisas que pensamos, mas usar armas semelhantes exigiria que fossem às centenas, todas elas posicionadas de modo a ter a mira livre. Você não consegue dar vinte passos na mata em volta da água sem colidir com um soldado. Uma dúzia de lançadores de foguetes, sem falar em centenas, seria imediatamente localizada.
- Não seria tudo um blefe? - perguntou Drew.
- Um blefe para quem? Nós dois vimos a fita. O Führer Günter Jäger não discursava para nós, não nos ameaçava, mas falava para seus eleitores cativos, alguns dos homens mais ricos da Europa e da América. Não, mon ami, ele acredita ser capaz de fazê-lo. E nós também somos obrigados a continuar acreditando. Talvez os analistas londrinos descubram alguma coisa. Se Deus quiser. Aliás, agiu certo ao mandar aqueles materiais para os ingleses.
- Fico surpreso em ouvir isto de você.
- Pois não devia. Não apenas eles têm muito profissionalismo, como o Reino Unido jamais foi ocupado. Concordo que a maioria das pessoas ocupadas em analisar o material ainda não era gente durante aquela guerra, porém as marcas da ocupação permanecem no psiquismo nacional. Os franceses jamais poderiam ser totalmente objetivos.
- Isso é uma concessão e tanto.
- É a verdade, segundo me consta.
Aterrissaram em Beauvais às 6:47 da manhã, no aeroporto particular banhado pelo sol forte do amanhecer. A equipe N-2 desembarcou e foi levada diretamente ao saguão do aeroporto, onde lhe esperavam roupas limpas e secas. Vestiram depressa os uniformes militares de faxina levíssimos, Karin sendo a última a se aprontar. Quando saiu do banheiro das mulheres com seu macacão azul desbotado, Drew comentou.
- Você está com uma aparência melhor do que devia - disse ele. - Enrole o cabelo, ou prenda-o e empurre-o para baixo da boina.
- Ficará desconfortável.
- Uma bala também é, e se alguém naquela turma da segurança alemã estiver do lado de Jäger, será enviada uma ordem para matar a mulher. Então vamos. Só nos restam dezessete horas e um pouquinho. Quanto tempo nos levará para chegar ao - como se chama mesmo - Jacques?
- O complexo da torre de água do reservatório - respondeu o agente do Deuxième enquanto caminhavam até o carro que os esperava no estacionamento - fica a dezoito quilômetros daqui, de modo que não levará mais do que dez minutos. Nosso motorista é o François, você se lembra de François, não lembra?
- Aquele do parque de diversões? O sujeito com duas filhas que choravam e ele mandou para casa?
- Ele mesmo.
- Minha pressão sanguínea lembra-se muito bem, especialmente quando subiu e passou a dirigir em cima das calçadas.
- É bem esperto no volante.
- O sinônimo seria louco.
- O diretor mandou várias centenas de fotografias aéreas para você examinar, para ver se consegue distinguir algo que nos passou despercebido.
- Não é provável. Enquanto eu estava cursando a universidade, tirei brevê de piloto - apenas para motores de explosão - e voei mais ou menos umas trinta horas sozinho, só que sem o rádio, jamais consegui voltar para o aeroporto. Tudo parecia igual.
- Eu posso me solidarizar com você. Passei dois anos como piloto na Armée de l’Air, e comigo era a mesma coisa.
- É sério? A força aérea francesa?
- Sim, mas eu não gostava muito das alturas, por isso pedi baixa e fui estudar línguas. A mística de um piloto militar que fala fluentemente várias línguas ainda existe. O Deuxième me recrutou.
Chegaram ao veículo do Bureau; era o mesmo carro sem características notáveis mas com o motor projetado para Le Mans ou Daytona de que Latham se recordava tão bem. François deu-lhe uma acolhida calorosa.
- Suas filhas já o perdoaram? - perguntou Drew.
- Jamais! - exclamou ele. - Le Parc de Joie fechou, e elas puseram a culpa em mim!
- Talvez alguém o compre e reabra. Vamos, amigão, e estamos com pressa.
A equipe N-2 se apinhou lá dentro e François levantou voo - literalmente, a julgar pela expressão de Karin e dos agentes militares no assento de trás. Os olhos de de Vries estavam arregalados, e os rostos dos veteranos da Tempestade no Deserto estavam lívidos de medo, enquanto François cantava pneus nas curvas, e botava o pé embaixo nas retas, até o velocímetro passar dos cento e cinquenta quilômetros por hora.
- Que diabo este maluco está fazendo? - perguntou o capitão Dietz. - Se for uma corrida suicida, quero saltar!
- Não se preocupe! - berrou Drew, virando a cabeça entre François e Jacques, tentando se fazer ouvir apesar do ronco do motor. - Era corredor antes de ir para o Deuxième.
- Ele deveria é ter parado diante de um tribunal de crimes no trânsito - gritou o tenente Anthony. - É maluco.
- É bom - respondeu Latham. - Olhe só!
- Prefiro não olhar - murmurou Karin.
O sedã do Deuxième parou cantando os pneus no estacionamento da enorme construção de tijolos que constituía a estação de tratamento do reservatório de Beauvais. Enquanto a equipe desembarcava meio aturdida do carro, um contingente de dois pelotões de soldados franceses convergiu sobre o carro, com as armas ensarilhadas.
- Arrêtez! - gritou Jacques Bergeron. - Somos do Deuxième, aqui está minha identidade oficial.
Um oficial aproximou-se, examinou o emblema e o cartão de identificação. - É claro que sabíamos que era o senhor, monsieur - disse ele em francês. - Mas não conhecíamos os seus convidados.
- Estão comigo, isto é tudo que precisam saber.
- Naturalmente.
- Avise seu comandante e diga-lhe que estou entrando com a equipe N-2.
- Imediatamente - respondeu o oficial, tirando um rádio do cinto e anunciando a chegada da equipe. - Pode prosseguir, o comandante da guarda está à sua espera. Disse para se apressarem por favor.
- Obrigado.
Jacques, Latham, Karin e os dois agentes continuaram diante de uma fileira de rifles em posição até a entrada da estação de tratamento. Lá dentro, os quatro recém-chegados ficaram espantados com o que viram. Era como as entranhas de um antigo castelo, despido de ornamentos, escuro e cheirando a umidade. Tudo era feito de tijolo muito, muito antigo, as paredes de pé-direito altíssimo; no centro, ladeada por duas largas escadas de pedra, a enorme área aberta se erguia até o alto do prédio.
- Vamos - disse Jacques Bergeron em inglês. - O elevador fica no final deste corredor, à direita. - A equipe seguiu o francês, enquanto o tenente Anthony falava.
- Este lugar deve ter sido construído há mais de trezentos anos.
- Com um elevador? - interrompeu Dietz com um sorriso.
- Ele veio muito depois - respondeu Bergeron. - Seu colega está certo. Esta planta, com viadutos primitivos porém utilizáveis, foi construída pela dinastia de Beauvais, para captar água e distribuí-la a seus campos e jardins. Isto foi no começo do século dezesseis.
O enorme elevador quadrado era do tipo encontrado em armazéns ou depósitos de cargas, onde é preciso mandar equipamento pesado de um andar para o outro. Ele gemia e sacudia no seu caminho para cima, metal atritando contra metal, até atingir o último andar. Jacques abriu a pesada porta vertical com um esforço tão evidente que o capitão Dietz ajudou-o a empurrá-la. Revelou-se de imediato a imponente figura de um general do exército francês em uniforme. Ele falou depressa, urgentemente, para o agente do Deuxième. Jacques franziu a testa, em seguida balançou a cabeça, murmurou algumas palavras e se afastou andando rapidamente com o militar.
- O que disseram eles? - perguntou Drew, virando-se para Karin, enquanto saíam do elevador. - Falaram depressa demais para mim, mas peguei alguma coisa como "terríveis notícias".
- Basicamente foi isso - respondeu de Vries, apertando os olhos na pouca luz, enquanto os dois franceses desciam o corredor de tijolos mais escuro. - O general disse que tinha notícias terríveis e que precisava falar com Jacques em particular.
De repente houve um grito de desespero. - Mon Dieu, non! Pas vrai! Seguido de um uivo dolente de um homem machucado. A equipe N-2 correu como um só homem pelo corredor escuro.
- O que aconteceu? - perguntou Karin em francês.
- Responderei de modo que nosso amigo, Drew, compreenda - disse Bergeron, recostado contra a parede, murcho, as lágrimas descendo pela sua face. - Claude foi assassinado há vinte minutos no estacionamento subterrâneo do Deuxième.
- Ah, meu Deus! - gritou de Vries, dando um passo à frente e agarrando o braço de Jacques.
- Como pôde ter acontecido? - vociferou Latham. - Aquele lugar é o lugar mais vigiado do mundo... por seu próprio pessoal!
- Os nazistas - sussurrou o agente do Deuxième, com as palavras estranguladas. - Eles estão em toda parte.
40
As grandes janelas retangulares davam para a ampla extensão do reservatório de Beauvais. Ficavam no enorme complexo de escritórios que abrigava o administrador da estação e seus funcionários, temporariamente deslocados pelo comandante militar que supervisionava as fortificações. O general era entretanto suficientemente inteligente e sensível para pedir conselhos ao administrador civil e recusar-se a usar a sua mesa. Jacques Bergeron estava há mais de quinze minutos no telefone, falando com Paris, periodicamente prendendo a respiração e controlando suas lágrimas.
O general estendera um mapa e uma pilha de fotos em cima de uma enorme mesa em frente da janela, e, usando uma régua, descrevia detalhadamente suas defesas. Contudo, o velho militar estava ciente de que sua plateia de quatro não prestava totalmente atenção, com os olhos fugindo e os ouvidos escutando o agente do Deuxième na mesa. Finalmente Jacques repôs o fone no gancho, levantou-se da cadeira e caminhou até a mesa.
- Lamento dizer que a coisa foi muito pior do que imaginamos - disse ele em voz baixa, respirando profundamente para manter seu próprio controle. - De um modo macabro, talvez tenha sido melhor que a vida de Claude lhe tenha sido ceifada ali, se isto tivesse mesmo de acontecer. Porque se sobrevivesse, teria encontrado sua amada mulher morta a tiros em casa.
- Merda! - berrou Drew, abaixando sua voz para um murmúrio gutural. - Não haverá piedade - disse ele. - Piedade nenhuma para todos aqueles filhos da puta! Se forem vistos, é morte para eles; se forem encontrados, morte para eles.
- Tem outra coisa, que considero totalmente irrelevante, porque Claude Moreau era meu mentor, meu instrutor paterno em tantas coisas, mas no entanto é uma realidade. Por ordem do presidente da França, tornei-me o diretor provisório do Deuxième e devo retornar a Paris.
- Sei que nunca desejou que fosse assim, Jacques - disse Latham. - Mas parabéns. Você não teria sido escolhido se não fosse o melhor. Seu mentor treinou-o bem.
- Não importa. A despeito do que possa acontecer durante as próximas dezesseis horas, pedirei minha demissão e arranjarei outro trabalho.
- Por quê? - perguntou Karin. - Você poderia ser nomeado diretor em caráter permanente. Que outra pessoa haveria de ser?
- É muito bondosa, mas eu me conheço. Sou um seguidor, um ótimo seguidor, mas não um líder. A gente deve ser honesto consigo mesmo.
- Detesto o que aconteceu - disse Latham. - Mas precisamos voltar ao trabalho. Você deve-o a Claude, eu devo a Harry. Comece do início, general - prosseguiu ele. - Deixamos de acompanhá-lo por algum tempo.
- Eu preciso voltar para Paris - repetiu Bergeron. - Não quero, mas essas são as minhas ordens, ordens do presidente, e tenho de obedecê-las. As ordens devem ser obedecidas.
- Então obedeça-as - disse gentilmente Karin. - Faremos o melhor possível, Jacques.
- Certo. Vá para Paris e mantenha-se em contato com Londres e Washington - disse Latham com firmeza. - Mas, Jacques, mantenha-nos informados.
- Au revoir, mes amis. - O agente do Deuxième virou-se e saiu desconsoladamente da sala.
- Onde estávamos, general? - perguntou Drew, inclinando-se sobre a mesa, com Dietz e Anthony de cada lado, e Karin defronte.
- Esta é a tropa armada que dispersei pela localidade - começou o velho militar, apontando para o enorme mapa do reservatório e das matas vizinhas. - Com longos anos de experiência, inclusive no sudeste da Ásia, onde as forças de guerrilha do inimigo nos preocupavam da mesma maneira quanto à possibilidade de invasão, não posso imaginar mais nenhuma defesa da qual não cogitamos. Uma esquadrilha de aviões de combate está em estado de alerta numa base aérea a trinta quilômetros daqui, e estão fortemente armados. Temos mais de mil e duzentos soldados nas matas e nas estradas, todas as unidades mantendo constante contato entre si, e também vinte plataformas de artilharia antiaérea com mecanismos de mira automática instantânea. Dezessete esquadrões antibombas vêm trabalhando sem parar, examinando as margens, buscando bombas-relógios. Há também um barco de patrulha, com equipamento de análise química, vasculhando as áreas mais próximas das entradas d’água mais volumosas. Aos primeiros sinais de toxidez, as comportas enviarão sinais, com as válvulas em estado de alerta para deixar entrar fontes alternativas de outras regiões.
- Se isto for necessário - perguntou Drew. - Quanto tempo levaria para essas fontes alternativas começarem a jorrar?
- De acordo com o administrador, que voltará dentro em breve, o maior período registrado foi quatro horas e sete minutos, no meio da década de trinta, devido a falhas mecânicas. No entanto, o primeiro problema maior é a queda drástica da pressão da água em toda parte, seguida inicialmente de grande quantidade de impurezas oriundas das fontes em desuso.
- Impurezas? - interrompeu Karin.
- Nada parecido com envenenamento; alguma sujeira, lama, ou resíduos da tubulação. Talvez suficientes para causar problemas estomacais, vômitos, diarreia, mas que não são fatais. O verdadeiro perigo em potencial é com os hidrantes subterrâneos; a pressão pode inutilizá-los em casos de incêndio.
- Então a crise em potencial tem desdobramentos geométricos - disse de Vries. - Porque se de alguma forma a Raio N’Água tiver êxito, e suas soluções forem postas em prática, ainda assim haverá uma queda da pressão e inúmeros incêndios poderiam ser deflagrados por toda Paris. Günter Jäger usou a expressão "fogo e relâmpago" - fogo e relâmpago. Pode ser significativo. Se bem me lembro da minha história, a última ordem que Hitler deu para seus comandantes que batiam em retirada foi "Queimem Paris!".
- É pura verdade, madame, mas eu lhe pergunto, e lhe perguntarei de novo depois de darmos um giro pelas nossas defesas, a senhora realmente acredita que essa tal de Raio N’Água possa ter êxito?
- Não quero acreditar, general.
- E quanto a Londres e Washington? - perguntou Latham. - Moreau... Moreau me disse que o senhor estava em contato com ambas.
- Está vendo o homem careca na mesa ali com o telefone vermelho? - O velho militar fez um gesto em direção a um major do exército do outro lado da sala, com um telefone vermelho no ouvido. - Ele não é apenas o meu mais confiável ajudante, como meu filho. A calvície vem da família da mãe, pobre coitado.
- Seu filho?
- Oui, Monsieur Latham - respondeu o general com um sorriso. - Quando os socialistas tomaram o Quai d’Orsay, muitos de nós militares praticamos o nepotismo para nossa própria proteção, até descobrirmos que não eram tão maus sujeitos assim.
- Como isso é francês - disse Karin.
- Novamente, é a mais pura expressão da verdade. La famille est éternelle. Contudo, meu filho calvo é um excelente oficial, ao qual devo agradecer o meu lado da família - somos extremamente astutos. Ele está também ao telefone com Londres ou Washington agora. As linhas estão permanentemente ligadas, apenas um botão e a capital muda. - O major desligou o telefone e o general gritou. - Adjutant-Major, há alguma novidade?
- Non, mon général - respondeu o major calvo, de rosto severo, virando-se para responder a seu pai. - E eu gostaria que o senhor não continuasse a repetir a mesma pergunta. Informarei se houver algo inesperado ou alguma sugestão de mudança nas nossas táticas.
- Ele também é malcriado - disse o general baixinho. - Novamente a influência da mãe.
- Meu nome é Latham - disse Drew, interrompendo-o.
- Sei quem o senhor é. Meu nome é Gaston. - O major levantou-se de sua mesa e estendeu a mão para todos os integrantes da equipe N-2. As mãos foram apertadas com constrangimento, como se o comando houvesse sido transferido de pai para filho. - Devo dizer-lhes que o general montou defesas extraordinárias, como somente um homem com sua experiência em incursões e infiltração poderia, e somo-lhe todos gratos. Ele já passou por campanhas e tanto e nós não, pelo menos eu não passei, mas de acordo com as mudanças tecnológicas, as regras também mudaram. Londres e Washington melhoraram suas fortificações, tal como fizemos, utilizando os últimos desenvolvimentos em eletrônica.
- Como o quê, especificamente? - perguntou Drew.
- Sensores infravermelhos pelas matas, e também teias de fios de plástico, formando um tapete nas estradas que, quando pisados, ativam nuvens de vapor que paralisam todo mundo na vizinhança - evidentemente, nossas tropas usam máscaras. Além disso, sinais de rádio e radar que são enviados sobre as árvores de todos os lados, capazes de interceptar mísseis a uma distância de duzentos quilômetros; eles acionam nossos próprios contramísseis com sensores para o calor...
- Como os Patriots na Tempestade no Deserto - interrompeu o capitão Dietz.
- Quando funcionavam - disse o tenente, mal se fazendo ouvir.
- Exatamente - concordou o major, deixando de ouvir, no seu entusiasmo, o oficial de patente menor.
- E quanto ao próprio reservatório? - perguntou Karin.
- Em relação a quê, madame? Para antecipar sua curiosidade, no caso de haver uma porção de tambores cheios de toxinas, ligados a explosivos previamente ajustados para destroçá-los, nossos mergulhadores não os acharam. Eles procuraram, eu lhe asseguro, porém considerando apenas a massa de metal, o sonar a teria acusado. Finalmente, mesmo em épocas normais, o reservatório vive sob constante observação, o perímetro é cercado, qualquer entrada forçada imediatamente detectada. Como poderia acontecer?
- Obviamente não poderia, estou apenas tentando pensar em tudo. Vocês, indubitavelmente, já o fizeram.
- Não necessariamente - discordou o velho general. - Vocês são todos membros experientes de informações, e conhecem o inimigo, vêm lidando com ele. Uma vez, antes de Dien Bien Phu, um espião que se disfarçava em contador, o que ele realmente era em Lyon, contou-me que as forças contrárias ao governo podiam dispor de muito mais poder de fogo do que Paris reconhecia. Paris desdenhou a informação e perdemos um país.
- Não vejo em que isto seja relevante - disse Karin.
- Provavelmente não é, mas vocês talvez reparem em alguma coisa que nós deixamos passar.
- Foi o que Moreau me disse - contrapôs Drew.
- Eu sei. Nós conversávamos. Então vamos entrar num caminhão aberto e cada um de vocês - todos vocês - veja com seus próprios olhos. Dissequem-nos, desmontem-nos, encontrem nossas falhas, se é que existem.
A turnê pela floresta, pelos campos e estradas vizinhas, não só foi exaustiva no caminhão aberto que parecia ter um tropismo por cada buraco e cada vala, mas durou mais de três horas. Todos fizeram anotações, na maioria positivas; somente os dois agentes fizeram observações negativas, no que se referia à incursão pela vegetação baixa.
- Eu poderia mandar cinquenta homens rastejar através desta vegetação, eles liquidariam os soldados e vestiriam seus uniformes - exclamou o capitão Dietz. - Isso é uma loucura!
- E uma vez dentro dos uniformes - acrescentou o tenente Anthony - você poderia atacar seus flancos e abrir um grande e largo bulevar.
- As estradas estão protegidas por teias plásticas que disparam alarmes!
- Você pode congelá-las com sprays de nitrogênio líquido, general - disse Dietz. - Isso bloqueia os impulsos elétricos.
- Mon Dieu...
- Vamos ser práticos, rapazes - disse Latham depois de voltarem à estação de tratamento. - Suas teorias têm mérito, mas vocês estão pensando muito pequeno. Não haveria cinquenta homens, teria que haver quinhentos para a coisa ser eficaz. Compreendem o que eu quero dizer?
- O general pediu críticas, Sr. Latham - respondeu o capitão Dietz. - E não soluções.
- Vamos examinar as fotos - disse Drew, se aproximando da mesa e reparando que elas haviam sido espalhadas em fileiras, em algum tipo de ordem precisa.
- Arrumei-as de cima para baixo conforme sua distância maior do reservatório, até a menor - explicou o filho do general. - Todas foram tiradas por câmeras infravermelhas de uma altitude relativamente baixa, de acordo com o radar aéreo, e quando foram detectadas imagens suspeitas, elas foram repetidas, a uma altura de não mais do que poucas centenas de metros sobre o objetivo.
- O que são? - perguntou Dietz, apontando para vários círculos escuros.
- Silos de fazendas - respondeu o major. - Para ter certeza, fizemos uma inspeção neles por intermédio da polícia local.
- E isto? - disse Karin, com seu dedo indicador em cima de uma série de três fotografias retratando três imagens longas, retangulares, com luzes meio abafadas de um lado. - Parecem terrivelmente com bases de mísseis.
- Estações rodoviárias. As luzes são das lâmpadas das marquises, perto dos trilhos - respondeu Gaston.
- E isso? - Latham usou a régua e tocou numa fotografia que mostrava a silhueta de dois grandes aviões, no que parecia ser um campo fora da pista principal de um aeroporto particular.
- Aviões adquiridos pela Arábia Saudita, esperando transporte para Riad. Nós averiguamos com o Ministério das Exportações e encontramos tudo em ordem.
- Eles compraram da França, e não dos Estados Unidos? - perguntou Gerald Anthony.
- Muita gente faz isso, tenente. Nossa indústria aeronáutica é excelente. Nossos Mirages são considerados um dos melhores caças do mundo. E também, poupam-se milhões de francos, se eles decolarem de Beauvais, em vez de, digamos, Seattle ou Washington.
- Tem razão, major.
E assim foi durante o resto da manhã, cada foto esquadrinhada com lentes, centenas de perguntas feitas e respondidas. Tudo não levou a nada.
- O que será? - exclamou Latham. - O que será que eles têm e que nós não vemos.
No saguão cavernoso e de restrito acesso, nas entranhas do serviço de informações britânico, os mais experientes analistas e criptógrafos do MI-5, MI-6 e do Serviço Secreto de Sua Majestade debruçavam-se sobre as caixas de material trazidas de casa de Günter Jäger no Reno. De repente, uma voz firme e contida se sobrepôs ao zumbido do equipamento próximo.
- Eu achei alguma coisa - disse uma mulher diante de um dos infindáveis computadores em volta da enorme sala. - Não tenho certeza do que significa, mas estava oculto sob um código complexo.
- Por favor, explique. - O diretor encarregado do MI-6 correu até a estação de trabalho dela, com um Witkowski calado a seu lado.
- "Dédalo voará, nada pode impedi-lo." Estas são as palavras decodificadas.
- Que diabo querem dizer?
- Algo a respeito do céu. Na mitologia grega, Dédalo escapou de Creta com asas feitas de penas grudadas a seus braços com cera, mas seu filho, Ícaro, voou alto demais e o sol derreteu a sua cera. Caiu ao mar e morreu.
- Que diabo tem isso a ver com a Raio N’Água?
- Sinceramente, eu não sei não senhor, mas há três tipos de código, A, B e C, sendo que C é o mais complicado.
- Sim, estou sabendo disto, Sra. Graham.
- Bem, este material pertencia ao tipo C, que é equivalente ao nosso ultrassecreto, significando um código de difícil acesso. Outras pessoas do movimento neonazista poderiam interceptá-lo, mas duvido que o decifrassem. A mensagem foi destinada a muitos poucos olhos.
- Alguma ideia de sua procedência? - perguntou o coronel americano. - Tem alguma data, hora?
- Felizmente, sim, em relação às duas perguntas. Foi um fax enviado aqui de Londres, há quarenta e duas horas.
- Muito bem! Será que pode rastreá-lo?
- Já fiz. É um dos seus, senhor. MI-6, Divisão Europeia, seção alemã.
- Merda! Desculpe, minha senhora. Existem mais de sessenta agentes naquela seção... só um momento! Cada um tem de teclar uma identificação de dois dígitos, a máquina não transmitirá se estiverem faltando. Precisa estar aí!
- Está, sim senhor. É do agente Meyer Gold, chefe da seção.
- Meyer? Isso é impossível! Ele é judeu, em primeiro lugar, e perdeu os avós de ambos os lados da família nos campos de concentração. Ele me pediu a seção alemã justamente por este motivo.
- Talvez não seja mesmo judeu.
- Então por que fomos todos assistir ao bar mitzvah do seu filho no ano passado?
- A única explicação plausível é que outra pessoa tenha usado a identidade dele.
- O manual deixa bem claro que os dígitos identificadores não podem ser divulgados a ninguém.
- Sinto muito, mas não posso ajudá-lo mais do que isto - disse a Sra. Graham, de olhos claros e cabelo grisalho, voltando à sua pilha de materiais.
- Eu talvez possa, ou talvez não - afirmou outro analista a várias estações de trabalho de distância, um agente negro do Caribe, um bolsista da Rhodes, oriundo das Bahamas.
- O que é, Vernal? - perguntou o diretor do MI-6, caminhando rapidamente até a mesa do bolsista.
- Outro item do código C. O nome Dédalo aparece, mas só que sem nenhum indicador da identidade, e não de Londres, foi enviado há trinta e sete horas de Washington.
- Qual o comunicado?
- "Dédalo a postos, contagem regressiva iniciada." E aí acaba, eu o direi em alemão. "Ein Volk, ein Reich, ein Führer Jäger."
- Rastreou o fax? - perguntou Witkowski.
- Naturalmente. Veio do Departamento de Estado, da sala de Jacob Weinstein, subsecretário de Assuntos do Oriente Médio. É um negociador tido em altíssima conta.
- Meu Deus, eles estão usando funcionários judeus respeitados como disfarce.
- Isso não deveria surpreender-nos - disse o analista das Bahamas. - A única coisa melhor seria nos usar, os negros.
- Você tem razão - concordou o americano. - Só que o fax não transmite a cor de uma pessoa.
- Mas transmite nomes, e o fato de Dédalo ter aparecido duas vezes em duas mensagens cifradas com nove horas de intervalo precisa ter um significado.
- Eles já nos disseram. A contagem regressiva já começou e estão confiantes demais para o meu sossego. - O agente do MI-6 andou até o centro da grande sala e bateu palmas. - Escutem, todos! - gritou ele. - Façam um esforço para escutar, por favor. - Fez-se silêncio na sala, a não ser pelo zumbido dos computadores. - Parece que encontramos uma informação importante em relação a essa maldita operação Raio N’Água. É o nome Dédalo. Algum de vocês o encontrou?
- Sim - respondeu um sujeito esguio, de meia-idade, de cavanhaque e usando óculos de aros metálicos, com uma aparência muito professoral. - Mais ou menos há uma hora. Achei que fosse um codinome de algum agente ou agentes nazistas, Sonnenkinder, com certeza, e não enxerguei nenhuma relação com a Raio N’Água. Como sabe, Dédalo construiu o grande labirinto de Creta, e como todos nós sabemos, labiríntico quer dizer pensamento circular, complicado, caminhos ocultos, esse tipo de coisa...
- Sim, sim, Dr. Upjohn - interrompeu o impaciente diretor do MI-6. - Mas nesse caso pode estar se referindo ao voo mitológico que ele empreendeu com seu filho.
- Ah, Ícaro? Não, duvido muito. Segundo a lenda, Ícaro era um idiota teimoso. Desculpe, meu velho, mas minha interpretação é mais academicamente válida. Onde, pelo amor de Deus, a Raio N’Água se encaixa nisso? Simplesmente não se encaixa, não vê?
- Por favor, professor, só lhe peço para encontrar o raio deste item, está bem?
- Muito bem - disse o acadêmico ofendido, com um tom de voz de superioridade. - Está em algum lugar na pilha dos rejeitados. Era um fax, acredito. Sim, aqui está ele.
- Leia-o, por favor. Desde o início, meu velho.
- Originou-se de Paris, e foi mandado ontem às 11:17 da manhã. A mensagem é a seguinte. "Messieurs Dédalo em excelente forma, preparados para atacar em nome do nosso glorioso futuro!" É óbvio que ele, ou eles, são fanáticos equivocados e com tarefas a realizar depois desta Raio N’Água. É bem possível que sejam assassinos.
- Ou algo diferente - disse a grisalha Sra. Graham.
- Tal como, cara senhora? - perguntou o professor Upjohn condescendentemente.
- Ah, pare com isso, Hubert, você não está numa sala de aula de Cambridge agora - respondeu asperamente ela. - Estamos todos pesquisando.
- A senhora evidentemente tem uma ideia - disse sinceramente Witkowski. - Qual é ela?
- Não sei realmente, apenas me chamou atenção o plural francês. "Messieurs", e não "Monsieur"; não um, mas mais de um. Essa é a primeira vez que a Raio N’Água, se for Raio N’Água, foi descrita desta maneira.
- Os franceses são excessivamente precisos - sugeriu com acrimônia o Dr. Hubert Upjohn. - Mentem com tanta frequência, que faz parte da sua natureza.
- Besteira - disse a Sra. Graham. - Nós também tivemos nosso quinhão de subterfúgio. Eu submeto à sua apreciação as batalhas de Plassy, e também o casamento de Henrique II com Eleonora da Aquitânia.
- Por favor, podemos interromper este colóquio tão instrutivo? - disse o diretor do MI-6, virando-se para um ajudante. - Junte o material, ligue para Beauvais e Washington, e mande tudo por fax para eles. Alguém precisa dar sentido a isso tudo.
- Sim, senhor.
- Depressa - acrescentou o coronel americano.
No reservatório Dalecarlia em Georgetown, analistas da CIA, G-2 e Agência de Segurança Nacional examinavam os faxes de Londres. Um diretor-adjunto da CIA levantou as duas mãos em desespero.
- Não há nada para o qual não estejamos preparados! Eu estou me lixando se os ataques vierem dos quatro pontos cardeais, nós os destruiremos. Tal como em Londres e Paris, estamos com o terreno coberto, e nossos foguetes com sensores térmicos destruirão quaisquer mísseis no ar. Que diabo resta?
- Então por que eles estão tão confiantes? - perguntou um tenente-coronel do G-2.
- Porque são fanáticos - respondeu um jovem intelectual da Agência de Segurança Nacional. - Precisam acreditar naquilo que lhes foi incutido, ensinado. É chamado de o imperativo nietzschiano.
- Se chama merda! - exclamou o general de brigada encarregado de Dalecarlia. - Será que esses filhos da puta não vivem no mundo real?
- Não - respondeu o analista da ASN. - Eles possuem seu mundo próprio. Seus parâmetros são a adesão total, nada mais importa ou pode interferir.
- Você está dizendo que eles são loucos!
- São loucos, general, mas não burros. Concordo com aquele agente das Operações Consulares em Beauvais. Acham que descobriram uma maneira, e não posso descartar a hipótese de que tenham mesmo.
Beauvais, França. Três para Zero hora. Era exatamente uma e meia da manhã. Os olhos de todos não paravam de consultar os relógios da parede, e os relógios em geral, a tensão aumentando à medida que os minutos passavam e as quatro e meia se aproximava.
- Vamos voltar às fotos, está bem? - disse Latham.
- Já as examinamos, e reexaminamos - respondeu Karin. - Todas as indagações que fizemos tiveram uma resposta, Drew. Que mais resta?
- Não sei, quero apenas olhar de novo.
- O quê, monsieur? - perguntou o major.
- Bem... para aqueles silos, por exemplo. Você disse que tinham sido investigados pela polícia local. Será que ela tem competência para isto? Os silos podem ser enchidos com ração ou feno, e terem outra coisa bem diferente por baixo.
- Receberam informações quanto àquilo que deveriam procurar, e foram acompanhados por um de meus oficiais - disse o general. - Foi examinado o que continha embaixo.
- Quanto mais penso em mísseis, mais plausíveis parecem.
- Estamos preparados ao máximo - disse o filho do general. - Unidades móveis de foguetes com sensores térmicos cercam o reservatório, eu já lhe disse isso, monsieur.
- Então vamos examinar de novo o material de Londres. Pelo amor de Deus, o que é um Dédalo, ou vários Dédalos?
- Posso explicar de novo - ofereceu-se o tenente Anthony. - De acordo com o mito, Dédalo era tanto artista quanto arquiteto, e estudou os pássaros em Creta, especialmente as gaivotas, acredito, e achou que se o homem pudesse agregar penas a seus braços, as penas estando mais próximas da densidade do ar, e quando em movimento quase tão leves quanto o ar...
- Por favor, Gerry, se eu ouvir isto mais uma vez, queimarei todo passarinho que encontrar pela frente, durante o resto de minha vida!
- A gente acaba sempre voltando para o ar, não é? - disse de Vries. - Mísseis, foguetes, Dédalo.
- Por falar em ar - disse o major calvo com um toque de irritação - nenhum míssil, foguete ou avião pode penetrar no nosso espaço aéreo sem ser detectado com bastante antecedência e derrubado por fogo antiaéreo ou pelos nossos próprios mísseis. E como todos estamos de acordo, para realizar o objetivo da Raio N’Água, haveria a necessidade de vários aviões de carga grandes, ou dezenas de menores, mergulhando de pistas próximas para conseguir o elemento surpresa.
- Vocês verificaram os aeroportos de Paris? - insistiu Latham.
- Por que acha que todos os horários das empresas de aviação estão atrasados?
- Eu não sabia que estavam.
- Estão, provocando uma grande irritação entre os passageiros. A mesma coisa aconteceu em Heathrow e Gatwick na Inglaterra, e Dulles e National em Washington. Não podemos anunciar os motivos, sem arriscar distúrbios e coisas ainda piores, mas todo avião está sendo examinado antes de receber permissão para entrar na pista.
- Eu não sabia disso. Desculpe. Mas então, como é que os neos estão tão seguros de terem descoberto a forma?
- Está além da minha compreensão, monsieur.
Londres, faltando duas horas e oito minutos para zero hora. Era 1:22 da manhã, hora de Greenwich, e o diretor do MI-6 em Vauxhall Cross estava no telefone para Washington.
- Qualquer novidade aí?
- Nem sombra - respondeu uma voz americana zangada. - Estou começando a achar que todas essas manobras fodidas são uma grande merda! Alguém deve estar morrendo de rir lá na Alemanha.
- Tenho tendência a concordar contigo, meu velho, mas você viu a fita e o material que mandamos para vocês. Eu diria que são bastante convincentes.
- Eu diria que eles são um monte de malucos paranoicos representando algum tipo de Götterdämmerung que nem aquele cara Wagner gostaria de chegar perto, ou é Vagner?
- Saberemos dentro em breve, ianque. Fique firme.
- Vou é tentar não dormir.
Washington, D.C., quarenta e dois minutos para zero hora. Eram 9:48 da noite, com o céu de julho carregado, a chuva prestes a cair, e o general de brigada encarregado do reservatório Dalecarlia andando para lá e para cá no escritório da estação de tratamento.
- Londres não sabe nada, Paris está perplexa, e estamos sentados nas nossas bundas, imaginando se não fomos enganados! Esta é uma porra de piada que custará milhões aos contribuintes, e nós ainda levaremos a culpa! Meu Deus, detesto este trabalho. Se não for tarde demais, quero voltar para a universidade e me tornar dentista!
Doze minutos para zero hora. Eram 4:18 em Paris, 3:18 em Londres, 10:18 em Washington, D.C. A quilômetros de distância dos reservatórios das três cidades, e sincronizados até o minuto, seis poderosos jatos levantaram voo, afastando-se imediatamente de seu alvos.
- Activités inconnues! - disse o técnico do radar em Beauvais.
- Aviões não identificados! - disse o técnico em Londres.
- Dois pontos, desconhecidos! - disse o técnico em Washington. - Não estão sincronizados com a transmissão de Dulles nem de National.
Então, embora separados por pequenas e grandes distâncias, cada um falou segundos depois.
- Superflu - corrigiu Paris.
- Alarme Falso - corrigiu Londres.
- Esqueça - corrigiu Washington. - Estão indo na direção oposta. Provavelmente garotos ricos com seus jatos particulares que se esqueceram dos mapas de voo. Espero que estejam sóbrios.
Seis minutos para zero hora. No céus escuros sobre os arredores de Beauvais, Georgetown e norte de Londres, os jatos continuavam com suas manobras, se afastando dos três alvos, ganhando altitude com uma incrível aceleração, cada milissegundo contado pelos computadores. As rotas de voo previamente calculadas foram instantaneamente ativadas. Os jatos se viraram, os motores desacelerados ao máximo, e com a mesma rapidez com que tinham subido, desceram, penetrando em corredores aéreos conhecidos pelo número ínfimo de seus habitantes, e que os levariam aos campos onde seus ganchos no rabo seriam projetados para fora e abaixados, de modo a pegar os grossos cabos de aço que rebocariam os pesados Messerschmitt ME 323, permitindo-os levantarem voo.
Havia um comando final que cada piloto estava preparado para dar quando a desaceleração estivesse completa. Eles o transmitiriam por uma determinada frequência de rádio para cada planador, seu sinal para mandá-lo era uma luz vermelha no seu painel computadorizado. Isto aconteceria dentro de um minuto e sete segundos, variando os segundos de acordo com a velocidade e ventos de frente e os de trás. Tudo agora era pura distância.
Beauvais, quatro minutos para zero hora. Drew olhou pela enorme janela que dava para o reservatório, enquanto Karin estava sentada na mesa junto com o major, falando num segundo telefone vermelho, ambos ligados a Londres e Washington. Os dois agentes militares ladeavam o general, atrás do técnico do radar e sua tela.
De repente Latham virou-se da janela e falou em voz alta.
- Tenente, o que você disse sobre as asas de Dédalo?
- Que eram feitas de penas...
- Sim, eu sei, mas depois disso alguma coisa sobre as penas. O que era?
- Só penas. Algumas pessoas, na maior parte poetas, comparam sua densidade à densidade do ar, pela maneira como flutuam ao vento, suspensas no ar, como se fossem pássaros.
- E os pássaros descem silenciosamente, sendo que é assim que os predadores apanham suas presas.
- De que está falando, Drew? - perguntou de Vries, com o telefone vermelho ainda no ouvido, igual ao major. Este levantou os olhos para o agente das Op. Cons.
- Eles planam, Karin, eles planam!
- E aí, monsieur?
- Planadores, porra! Pode ser isso! Eles estão usando planadores!
- Teriam que ser extremamente grandes - disse o general. - Ou dezenas deles, talvez até mais.
- E teriam sido pegos pelo radar, monsieur - acrescentou o major. - Especialmente pelo radar aéreo.
- Mas foram, nas fotos! Aquelas duas aeronaves da Arábia Saudita - quantas vezes a finalidade das coisas já não foi manipulada? E eles não seriam perseguidos pelos seus mísseis com sensores térmicos. Não existem motores, nenhum calor! Provavelmente muito pouco metal também.
- Mon Dieu! - exclamou o general, de olhos arregalados, intensos, como se súbitas recordações o estivessem consumindo. - Planadores! Os alemães eram especialistas neles, a maior autoridade no assunto. No início da década de quarenta construíram o protótipo de todos os planadores de carga que seriam usados no mundo todo, muito mais adiantados do que os britânicos Airspeed-Horsing ou os WACOs americanos. Na realidade, roubamos seus projetos. Os fabricantes do Messerschmitt fabricaram o Gigant, um enorme pássaro infernal que podia cruzar silenciosamente as fronteiras e sobrevoar os campos de batalha, entregando sua mortífera mercadoria.
- Poderiam ter sobrado alguns, mon père? - perguntou o major.
- Por que não? Todos nós, de ambos os lados, preservamos nossas flotilhas - do mar e do ar - em "naftalina", como se diz.
- Poderiam funcionar depois de tantos anos? - insistiu Karin.
- Independentemente do inimigo - respondeu o velho militar - tudo que as empresas Messerschmitt construíam era para durar séculos. Não há dúvida de que determinados equipamentos teriam de ser substituídos ou aperfeiçoados, mas repito, por que não?
- Mesmo assim, apareceriam na tela - insistiu o técnico do radar.
- Mas com que definição? Que definição de imagem obteria você nessa sua tela de um objeto voador que possui muito pouco metal, motor nenhum, longarinas feitas de bambu, talvez, que no Extremo Oriente eles usam como andaimes e alegam ser mais forte e seguro do que o aço.
- Meu inglês é adequado, mas o senhor fala tão rapidement...
- Alguém diga-lhe o que acabei de falar, de perguntar.
O major fez isso, e o técnico de radar respondeu, sem tirar os olhos da tela.
- Teria menos definição do que a de uma aeronave convencional, é verdade.
- Quero dizer, até nuvens produzem alguma imagem, não é?
- Sim, mas a gente pode distinguir a diferença.
- E as pessoas que têm barcos levam refletores de radar a bordo, no caso de terem problemas e quererem ser apanhadas pelo radar.
- Novamente, isto é bastante normal.
- De maneira que o radar é fundamentalmente interpretativo, não é?
- Tal como os raios X da medicina. Um médico vê uma coisa, outro vê outra. E existem os peritos, e sou um deles no que diz respeito ao radar, monsieur.
- Que bom. Poderia ter se distraído?
- Pelo quê? O senhor está me insultando, se assim posso dizer.
- Claro que pode, e, sinceramente, não é meu desejo insultá-lo...
- Espere! - disse Karin, dando uma busca frenética em seus bolsos, tirando finalmente um pedaço de papel rasgado. - Isto estava numa caixa de papelão, creio eu que na sala de estar externa de Jäger. Guardei-o porque não o compreendi, era apenas parte de uma frase. Tinha apenas duas palavras em alemão, "Aeronaves feitas"... O resto estava rasgado.
- Meu Deus do céu - murmurou Gerald Anthony, enfiando a mão no bolso de cima de seu uniforme militar francês e tirando um pedaço amarrotado de papel. - Eu fiz a mesma coisa. Encontrei isto na capela de Jäger, ao pé de um altar que não deveria estar ali. Desde então tenho olhado para ele de vez em quando, tentando decifrar a caligrafia. Decifrei e encaixa com a informação da Sra. de Vries. Estas são as palavras: "Aus Stoff und Holz", isto é, "de pano e madeira".
- "Aeronaves feitas de pano e madeira" - disse de Vries.
- Planadores - acrescentou Latham em voz baixa. - Planadores.
- Arrêtez! - gritou o técnico do radar, interrompendo a conversa. - As aeronaves voltaram a entrar no nosso espaço aéreo! Estão a quarenta quilômetros da água!
- Preparar para ativar os mísseis! - gritou o filho do general num terceiro telefone.
Londres. Três minutos e dez segundos para zero hora. - Aeronaves não identificadas novamente na tela! Direção, Código Intolerável!
Washington, D.C. Dois minutos e quarenta e nove segundos para zero hora. - Filhos da puta! Os desconhecidos estão de volta e se dirigindo para nós!
Beauvais. Dois minutos e vinte oito segundos para zero hora. - Ponha os caças no ar em todos os lugares! - vociferou Latham. - Informe Londres e Washington!
- Mas e os mísseis - gritou o filho do general.
- Deixe-os decolar!
- Então por que os caças?
- Para fazer aquilo que os mísseis não conseguirem! Informe a Londres e Washington. Faça-o!
- Já foi feito.
Nos céus escuros sobre Beauvais, Londres e Washington, os jatos computadorizados dos neonazistas mergulharam em direção a seus respectivos campos, seu ganchos traseiros soltos para a aproximação final.
- Solte os foguetes!
- Solte os foguetes!
- Solte os foguetes!
Embaixo, em três campos gramados distintos, houve explosões instantâneas dos foguetes sob as asas de todos os seis planadores de carga Messerschmitt. Cada um atingiu uma velocidade de arremesso de seiscentos e cinquenta quilômetros por hora, enquanto os jatos corriam sobre eles, seus ganchos agarrando os cabos, os enormes planadores igualando imediatamente a velocidade das aeronaves que os rebocavam. Em poucos segundos, todos haviam alçado voo, mal chegando a quarenta metros de altitude, os foguetes sob as asas foram descartados sobre os campos. Livres do peso, os planadores foram rebocados para a altitude prevista de nove mil metros. Os cabos foram arrebentados e os planadores estavam livres para começar a sua descida em círculos até os alvos.
De repente, em altitudes mais altas, os céus se iluminaram como relâmpagos em escala menor, à medida que os jatos eram atingidos no ar, cada um explodindo numa bola de fogo imprevisível. Contudo, mais embaixo, cada piloto de planador, ajudado por seus próprios computadores, conhecia bem sua missão. Ein Volk, ein Reich, ein Führer!
Beauvais. Zero hora. - Nós os pegamos! - gritou o general quando as manchas brancas apareceram na tela do radar. - Foram totalmente destruídos. Vencemos a Raio N’Água!
- Londres e Washington concordam! - gritou o major. - Os resultados foram idênticos. Nós ganhamos!
- Não ganharam não! - rugiu Drew. - Olhem para as retículas do radar! Essas explosões aconteceram milhares de metros acima do nível de entrada inicial. Olhem para elas! Diga a Londres e Washington para fazerem o mesmo... Agora olhem mais embaixo para aquelas imagens muito menos visíveis, parecendo esqueléticas. Olhem. São os planadores!
- Ah, meu Deus! - exclamou o capitão Dietz.
- Criisto! - exclamou o tenente Anthony.
- Qual a altitude estimada, Sr. Radar?
- Posso fazer mais do que simples estimativas, monsieur. Essas "imagens" estão entre seis mil e seis mil e quinhentos metros. Giram em círculos lentos descendentes de cem a cento e cinquenta metros...
- Por que fazem isso, Sr. Radar?
- Deve ser para manter a precisão.
- Quanto tempo para que aterrissem? Pode nos dar um número?
- Os ventos mudam, de modo que isto aqui é uma estimativa. Entre quatro e seis minutos.
- Isso representa quatro a seis horas no tempo dos jatos. Major, alerte Londres e Washington, e diga-lhes para mandarem seus caças circularem pelos perímetros dos reservatórios, começando a quinhentos metros de altitude! Os seus também, agora!
- Se estiverem lá, nós os atingiremos e explodiremos - disse o filho do general, pegando o telefone vermelho.
- Você está maluco? - berrou Latham. - Essas aeronaves estão carregadas de veneno, provavelmente líquido, e seus recipientes se autodestruirão automaticamente quando atingirem água ou terra. Manobrem os caças de modo que o jato de ar quente de suas turbinas soprem os planadores para fora de suas rotas, para áreas desabitadas, campos ou matas, mas pelo amor de Deus, não para regiões habitadas. Dê essas instruções a Washington e a Londres.
- Sim, é claro. Compreendi, monsieur. Estou ligado a ambas por uma linha combinada.
Os minutos seguintes foram como ficar à espera de um massacre, todos os presentes fazendo parte dos massacráveis. Todos os olhares estavam na tela do radar, quando de repente as imagens esqueléticas se desviaram em direções diferentes, violentamente à esquerda, e à direita, se afastando da zona do alvo, o reservatório de Beauvais.
- Verifique Londres - disse Drew. - Verifique Washington.
- Estão agora na linha - respondeu o major. - Passaram exatamente por aquilo que nós passamos. Os planadores deles estão sendo empurrados para aterrissarem em locais isolados.
- Tudo foi calculado para chegar em questão de minutos, não foi? - disse Latham sem fôlego, com o rosto lívido. - Deus abençoe a alta tecnologia, ela esquenta um sanduíche num forno de micro-ondas e derrete seu recipiente de plástico. Agora, talvez, vencemos, mas apenas uma batalha, não a guerra.
- Você venceu, Drew. - Karin de Vries aproximou-se dele, colocando os braços em seus ombros. - Harry teria sentido tanto orgulho.
- Não acabamos, Karin. Harry foi morto por gente de dentro, e também Moreau. Cada um deles foi traído. E eu também, mas tive sorte. Alguém possui um telescópio e olha através dele para o núcleo de nossas operações. E esse alguém sabe mais sobre o movimento nazista e o legado daquele general louco no Vale do Loire, do que todos nós juntos... O estranho é que, de repente, acho que sei quem é.
41
Beauvais. Vinte minutos após zero hora. O filho do general arranjou um veículo do exército para levar Latham, Karin e os dois oficiais até Paris. E, tal como costuma acontecer durante cataclismas, coisas insignificantes, como a chegada da bagagem deles do hotel Königshof em Bonn, continuavam a ocorrer. Estava nos fundos de um furgão que lhes serviu de transporte à Cidade das Luzes, cidade que até vinte e um minutos antes poderia ter sido uma cidade em pânico.
- Ficaremos no mesmo hotel - disse Drew, enquanto todos se despediam dos colegas franceses na estação de tratamento de Beauvais e partiam para a porta do antigo elevador. - E vocês dois - prosseguiu ele, dirigindo-se ao capitão Dietz e ao tenente Anthony - podem botar para quebrar em Paris, com todas as despesas pagas.
- Com o quê? - perguntou o capitão. - Acho que não chegamos a possuir os dois nem duzentos francos, e nossos cartões de crédito, junto com qualquer outro tipo de identidade, ficaram em Bruxelas.
- Dentro de aproximadamente quatro horas, um agradecido governo francês fornecerá a vocês, em papel moeda, digamos, cinquenta mil francos para cada um. Que tal, acham suficiente para começar? Vem mais depois, é claro.
- Você é doido - disse Anthony.
- Não, não sou não. Sou doido varrido.
- Monsieur, Monsieur Lat’am! - exclamou um dos vários adidos militares, saindo correndo do escritório da estação de tratamento e entrando no corredor escuro de pedra. - Estão lhe chamando no téléphone. É urgente, monsieur!
- Esperem aqui - disse Drew. - Se for quem eu penso, a conversa será cortês mas acabará rápido. - Latham voltou com o adido e pegou um telefone mais perto da porta. - Aqui fala Op. Cons. - A voz rouca na linha não era do homem que ele esperava.
- Bom trabalho, chlopak! - gritou praticamente o coronel Witkowski de Londres. - Harry teria sentido orgulho de você.
- Já ouvi isso umas duas vezes, o que é demais, Stanley, mas obrigado. Foi um esforço de equipe, como no hóquei.
- Ah, você não acredita realmente nessa merda.
- Ah, acredito sim, Stosh. E começou com Harry, quando ele disse para aquele tribunal em Londres "eu trouxe os dados, cabe a vocês avaliarem". Nós não acertamos aí.
- Deixarei que isso passe até a gente ter uma conversa que não seja por telefone.
- Boa ideia. A pista estava lá e a gente a perdeu.
- Mais tarde - interrompeu Witkowski. - O que acha de Bonn?
- O que quer dizer? O que houve em Bonn?
- Não lhe contaram?
- Contaram o quê?
- A porra do Bundestag inteiro pegou fogo! Há mais de uma centena de carros de bombeiros, de todos os lugares, tentando apagar o incêndio. Moreau não te ligou?
- Moreau está morto, Stanley.
- O quê?
- Morto no seu próprio e impenetrável estacionamento subterrâneo.
- Meu Deus, eu não sabia!
- Como poderia? Está em Londres, incógnito, eu presumo.
- Quando aconteceu?
- Horas atrás.
- Mesmo assim, o Deuxième é o seu controle alternativo. Deveriam ter te contado sobre Bonn.
- Acho que alguém deve ter esquecido. Foi uma noite doida.
- O que é, Drew? Você não parece mais o mesmo.
- Quem estaria idêntico depois desta noite... Você me perguntou o que achava do incêndio do Bundestag, pois eu lhe direi. Aquele filho da puta do Jäger estava escrevendo a própria biografia. Preciso ir, Stosh, há uma pessoa que preciso ver antes que apaguem aquele incêndio. Falarei com você de Paris.
Os quatro ficaram com suítes anexas no hotel Plaza-Athénée, onde o sol conseguia passar pelas cortinas das altas janelas. Eram 6:37 da manhã, e Karin de Vries dormia profundamente quando Latham deixou silenciosamente a cama. Ele dependurara suas roupas civis antes de se despir; vestiu-as e passou para a enorme sala de estar em comum, onde o esperavam os dois oficiais, com seus paletós e calças neutros.
- Um de vocês precisa ficar aqui, eu falei isto - disse Drew. - Lembram?
- Nós tiramos cara ou coroa - respondeu Dietz. - E você ficou com o magro, embora eu ache uma má opção. Sou o oficial de patente mais alta, pelo amor de Deus.
- E sua tarefa poderá ser mais dura do que a nossa. A segurança dos fuzileiros da embaixada está lá fora, mas não pode entrar no hotel sem dar a pista aos neos, se é que estão por aí. Se estiverem, você dispõe apenas de seu próprio poder de fogo e um rádio para chamar nossos homens para o segundo andar, bem rápido.
- Acha que os neos se infiltraram tanto assim? - perguntou o tenente.
- Meu irmão foi morto sob condições de máxima segurança; Claude Moreau foi executado dentro do seu próprio recinto protegido. O que acham?
- Acho que devemos ir embora - disse Anthony. - Tome conta dessa mulher, capitão. Ela é muito especial... de uma maneira acadêmica, é claro.
- Por favor, não parta meu coração - disse Drew, enquanto ele e o tenente pegavam suas armas. - O carro está nos fundos. Saímos pelo porão.
- Monsieur Lat’am! - O guarda do estacionamento subterrâneo do Deuxième reconheceu o nome na lista de permissão de entrada e estava engolindo as lágrimas. - Não foi uma terrível tragédie? E bem aqui, onde isto jamais poderia acontecer!
- O que diz a polícia? - perguntou Drew, examinando o rosto do sujeito.
- Estão tão perplexos quanto a gente! Nosso grande diretor, que ele esteja na paz do todo-poderoso, foi alvejado dentro dos portões ontem de manhã, tendo seu corpo sido achado na extremidade mais afastada. Todo mundo no prédio foi interrogado pela Sûreté, verificou-se onde todo mundo estava; levou horas, com o novo diretor furioso como um tigre, monsieur!
- Suas listas de saída foram examinadas?
- Certainement! Todos os funcionários que saíram foram levados à polícia, parece. Dizem que não surgiu informação nenhuma.
- A maioria está presente agora aqui? Sei que é cedo.
- Quase todo mundo, monsieur. Dizem-me que há reuniões em todos os andares. Olhe só atrás do senhor, três carros esperando para entrar. Tudo está tohu-bohu!
- O quê?
- Numa confusão danada - disse o tenente Anthony em voz baixa. - Num pandemônio.
- Obrigado, guarda. - Latham apertou o acelerador do carro alugado e passou depressa pela área aberta, entrando nas sombras cavernosas do estacionamento subterrâneo. - Mantenha sua mão na coronha da arma, tenente - disse ele, ao virar o carro até um espaço aberto.
- Já está nela, chefe.
- Que título mais irritante.
- Não sei por quê, você fez por onde... Acha que um ou outro neo desgarrado ainda pode estar por aqui?
- Se puder ligar para o hotel e falar com seu colega, eu lhe darei uma pista melhor.
- Por que não fala pessoalmente? Está com o celular.
- Porque não quero acordar Karin. Ela ia querer vir à força aqui, e isso é a última coisa de que precisamos.
- Então acho que devo dizer-lhe - disse Anthony.
- Dizer o quê?
- Algumas horas atrás, quando nos registramos naquele hotel elegante e você telefonou para a segurança do Deuxième para dizer onde estávamos, Dietz monitorou cada telefone existente lá com um pequeno aparelho que detecta escuta clandestina. Estava limpo, por isso ele tirou da tomada o telefone de seu quarto...
- Ele o quê?
- Nós ambos concordamos que vocês dois precisavam dormir. Olhe só, veja a realidade, nós dois somos mais jovens e evidentemente em melhores condições físicas...
- Será que os escoteiros poderiam parar de querer nos ajudar a atravessar a rua! - exclamou Drew, tirando seu celular do bolso interno do paletó e teclando. - Eu ainda dirijo esta ópera, se lembra?
- Se tivéssemos recebido uma ligação importante, teríamos acordado você. Isso é tão difícil assim de compreender?
- Suítes duzentos e dez e onze - disse Latham à telefonista do hotel; atenderam imediatamente.
- Sim?
- Dietz, é Latham. Como estão as coisas?
- Acho que você atingiu a mosca, Op. Cons. - respondeu o capitão, falando baixo. - Alguns minutos atrás, os fuzileiros da embaixada falaram comigo por rádio da rua. Um veículo blindado encostou no canto leste e dois tiras saíram e foram caminhando até a entrada principal, separadamente. Acabaram de entrar...
- Serão neos?
- Não sabemos ainda, porém a portaria está cooperando conosco - espere! A linha para o hotel está ocupada. - Os segundos pareciam minutos para Drew, até que Dietz voltou ao telefone. - A não ser que todas as estatísticas mintam, você estava na mosca. Apertaram o botão do segundo andar.
- Mande os fuzileiros entrarem!
- Acha que não faria?
De repente uma buzina alta tocou atrás de Latham.
- Acho que você roubou a vaga de alguém - disse o tenente.
- Diga-lhe para passar por cima!
- Ei, por que não saímos nós?
- Então você segure o telefone. Cristo, os neos acabaram de entrar no hotel! No segundo andar! - Drew saiu da vaga de marcha à ré.
- Não tem ninguém na linha. O capitão é um soldado traiçoeiro; se eles chegarem até a porta, gostariam de não tê-lo feito.
- A linha está muda? - perguntou Latham, entrando em outra vaga.
- Ele desligou, se é isso que quer saber.
- Volte a ligar para ele!
- Não é uma boa ideia. Ele precisa trabalhar.
- Merda! - explodiu Drew. - Agora eu sei que estou certo.
Juntaram-se a eles no elevador mais cinco homens e duas mulheres, todos falando um francês quase histérico. Latham olhava para um rosto, depois para outro, a imagem borrada de feições atormentadas, vesgas e de olhos arregalados, vozes tensas, e carótidas inchadas, tornando-se uma montagem de desenho animado: animais berrando, cada um tentando berrar mais alto que o outro. Sem pensar, Drew passou a mão por cima de um ombro e apertou o andar que ele vagamente lembrava ter apertado antes, instruído por Moreau. Houve duas paradas antes do andar que Latham apertara; ele o tenente ficaram sozinhos, enquanto subiam para o andar mais alto.
- O que estavam dizendo? - perguntou Drew. - Peguei um pouco, mas não muito.
- Não sabem que diabo está acontecendo, mas se quiser saber a moral da história, estão todos preocupados com seus empregos.
- Bem, acho isso natural. Quando esse tipo de coisa acontece, ninguém está fora de suspeita; e quando algo assim acontece, o governo tira as vassouras do seu depósito.
- Você quer dizer que gente que não tem nada a ver com a história acaba pagando o pato?
- É exatamente o que quero dizer. - O elevador parou, a porta se abriu, e os dois homens saíram para a antessala, cujas várias portas davam para corredores e salas da agência de operações clandestinas. Latham aproximou-se da recepcionista de meia-idade. - Je m’appelle Drew...
- Sei quem é o senhor - disse a mulher com simpatia, em inglês. - O senhor esteve aqui para ver Monsieur le Directeur há alguns dias. Estamos todos ainda em estado de choque, lamento dizer.
- E eu também. Era meu amigo.
- Informarei ao novo diretor que o senhor está aqui. Ele veio direto do Beauvais...
- Eu preferia que não o fizesse - interrompeu Latham.
- Como?
- Considerando o que aconteceu, ele deve estar muito ocupado com inúmeros problemas, não precisa de mais uma interferência de minha parte. Minha vinda aqui não tem importância; deixei umas coisas no carro do Deuxième. Será que o agente chamado François está aí dentro? Acredito que foi ele quem trouxe o diretor do Beauvais.
- Sim, está. Quer que eu ligue para a sala dele?
- Para que se se dar a este trabalho? Ele provavelmente chamará Jacques - desculpe, seu novo diretor - e não quero mesmo interrompê-lo. Certamente não por causa de um par de sapatos.
- Sapatos...?
- Franceses, sabe. Dos melhores, e bem caros, mas que valem a pena cada franco que custaram.
- Naturellement. - A recepcionista apertou um botão na sua mesa; ouviu-se um zumbido na porta à extrema direita e o barulho de uma tranca. - Sua sala é no corredor, a terceira à esquerda.
- Obrigado. Perdão, este é meu auxiliar, o major Anthony, das Forças Especiais do Exército americano. - O tenente virou abruptamente a cabeça em direção a Drew, que prosseguiu. - Ele ficará aqui, se a senhora não se importar. Fala francês fluentemente... e provavelmente urdu, pelo que sei.
- Bonjour, madame. Mon plaisir.
- Je vous en prie, Major.
Drew abriu a porta da antessala e entrou no corredor cinzento e estreito, caminhando depressa até a terceira porta à esquerda. Bateu uma vez, abrindo subitamente a porta, assustando François, que dormia com a cabeça em cima da mesa. Ele deu um pulo, recostando-se novamente na cadeira.
- Qu’est-ce que se passe?
- Olá, seu volante - disse Latham, fechando a porta. - Tirando um cochilo? Eu o invejo, pois estou cansado para diabo.
- Monsieur Lat’am, o que está fazendo aqui?
- Desconfio que você talvez saiba, François.
- Mon Dieu, saiba o quê?
- Você era íntimo de Claude Moreau, não era? Ele conhecia sua mulher, o nome dela, Yvonne... suas duas filhas.
- Oui, em termos que não chegavam a ser familiares, monsieur. Todos nós nos conhecemos, monsieur, inclusive nossas famílias, mas à distância.
- E você também é muito próximo de Jacques Bergeron, o número um de Claude.
- Próximo?
- Você e Jacques, Jacques e você, motorista-chefe e auxiliar-chefe, sempre juntos com o patrão, o trio intrépido que anos de trabalho em conjunto aproximaram. Verdadeiros "Mosqueteiros". Tão familiares, tão comuns, tão fáceis de aceitar porque são vistos todo o dia.
- O senhor fala por meio de enigmas, monsieur!
- Que diabo, sim. Porque se trata de um enigma, um enigma baseado na maior simplicidade. Quem questionaria a imagem dos três juntos, a dor dos dois que escaparam de serem mortos? Algumas horas atrás quando liguei para cá para dizer a Jacques onde estávamos hospedados, imagine quem atendeu?
- Isto não preciso adivinhar. Falou comigo, Monsieur Lat’am.
- Todo mundo subiu um degrau, não foi?
- Não faço ideia do que o senhor está falando! - disse François, inclinando-se para a frente, sua mão direita escorregando pela borda da mesa até uma gaveta. De repente ele puxou-a depressa, mas Drew deu um mergulho, fechando-a com tanta força em cima do punho do motorista, que este começou a berrar, o berro abreviado pelo punho de Latham que atingiu a sua boca. O francês caiu para trás, com cadeira e tudo, despencando no chão. Drew foi imediatamente para cima dele, agarrando-o pela garganta e puxando-o para cima, batendo-o contra a parede, a arma que estava na gaveta, agora na mão de Drew.
- Você vai falar, Volante, e é melhor que sua conversa seja esclarecedora, se não sua vida acaba aqui.
- Sou pai de família, monsieur, tenho mulher e filhos! Como pode fazer isto?
- Você tem ideia de quantas famílias - pais, mães, crianças e netos - foram separados na porra daqueles campos, obrigados a andarem nus nos pátios de cimento, para aparecerem como cadáveres, seu filho da puta!
- Eu nem sequer tinha nascido naquela época!
- Nunca ouviu falar dessas coisas? Milhares eram franceses, presos e enviados para morrer! Isto nunca te fez mal?
- O senhor não compreende, monsieur, eles têm formas de fazer com que você coopere.
- Tais como? E se mentir, não me darei ao trabalho de usar sua arma, simplesmente romperei as artérias carótidas de ambos os lados de seu pescoço e finis. Sabe, sou como o técnico de radar lá em Beauvais, posso distinguir pelo olhar. Espero não cometer nenhum erro... Jacques Bergeron é um neo, não é?
- Sim... Como o senhor poderia sabê-lo?
- Quando você está cansado e perdido, recapitula tudo. Tinha de ser alguém que tivesse acesso a toda a informação, alguém que sabia em cada momento a posição de todos, os jogadores. Primeiro, achamos que era Moreau; figurava numa lista que nos fez temer trabalhar com ele; que diabo, eu não conseguia distinguir nada. Então ele foi afastado de suspeita pelo único sujeito que poderia fazê-lo, meu chefe. Então quem seria? Quem sabia onde eu estava, fosse lá com meu irmão num restaurante em Villejuif, ou num hotel ou noutro, quando vivíamos nos mudando? Quem sabia que numa determinada noite eu e Karin estávamos com Claude num café à beira da rua, onde quase fomos mortos, não fosse o dono que conseguiu nos tirar de lá? Quem falsificou o incidente no metrô com o Dr. Kroeger, os tiros, o homem que alegou ter visto "Harry Latham" no trem que se afastou depressa? Não havia Harry Latham, porque eu era Harry Latham e não estava lá! A resposta a cada uma dessas perguntas é um homem chamado Jacques.
- Não sei nada a respeito dessas coisas, juro pelo Cristo ensanguentado na cruz, eu não sei!
- Mas sabe que ele é um neo, não sabe? Clandestino. Talvez o nazista mais clandestino da França. Não estou certo?
- Sim. - François exalou, até quase não ter mais respiração. - Eu não tinha alternativa a não ser me manter calado e fazer o que ele mandava.
- Por quê?
- Matei um homem e Jacques foi testemunha.
- Como?
- Estrangulei-o. Procure compreender, monsieur. Trabalho até tarde da noite, às vezes me ausento durante dias, largo minha família... o que posso dizer?
- Muito mais do que isso, porra - disse Drew.
- Minha mulher arranjou um amante. Eu sabia, como todo marido sabe, de noite na cama. Usei os recursos do Deuxième para descobrir quem era ele.
- Não se tratava exatamente de assuntos oficiais, certo?
- Certamente que não. Mas o que eu não sabia é que Jacques estava acompanhando cada uma de minhas investigações, cada um de meus telefonemas... Arranjei um encontro com aquele indivíduo, um cabeleireiro escroto com um passado de dívidas e salões falidos, e nos encontramos numa viela em Montparnasse. Ele fez comentários obscenos a respeito do comportamento da minha mulher, dando gargalhadas ao fazê-lo. Perdi a cabeça e ataquei-o, matei-o miseravelmente. Ao sair da viela, fui saudado por Bergeron.
- Então ele o pegou.
- A alternativa seria a prisão perpétua. Ele tirara fotografias com uma câmera noturna, infravermelha.
- E no entanto, você e sua mulher fizeram as pazes, não é?
- Somos franceses, monsieur. Não sou nenhum santo também. Fizemos as pazes entre nós e nosso casamento é estável. Temos nossos filhos.
- Mas você trabalhou com Bergeron, um nazista. Como pode justificar isto?
- O resto da minha vida na prisão, como o senhor o justificaria? Minha mulher, meus filhos, minha família. E, monsieur, eu jamais matei a seu mando, jamais! Ele tinha outros que faziam-no para ele, eu me recusava.
Latham libertou o sujeito da parede e fez um aceno para que se sentasse.
- Está bem, Volante, você e eu vamos fazer um trato, ou não. A não ser que eu esteja enganado, e acho que não estou, você e Jacques são os únicos neos aqui, e você relutantemente. Mais, seria perigoso. Um senhor, um escravo, uma combinação perfeita. Você pode provar sua inocência fazendo o que eu disser; do contrário, considere-se um presunto, e eu mesmo vou te explodir a cabeça. Compreendeu?
- O que é que deseja que eu faça? E caso aceite, qual a garantia que tenho de que aquelas fotografias não vão me mandar para a prisão?
- Nenhuma, na realidade, mas as chances estão do seu lado. Acho que Bergeron terá muito mais interesse em salvar seu rabo de um pelotão de fuzilamento do que condená-lo a outro.
- Não existe esse tipo de execução aqui na França, monsieur.
- Você é realmente ingênuo, não é? Essas coisas não são oficiais, François, simplesmente acontecem.
- O que é, então? - perguntou o motorista, engolindo em seco.
- Jacques fica em outra ala deste andar, se é que me lembro direito.
- Lembra sim. Esta seção é de funcionários subalternos.
- Mas você tem acesso, não tem? Quero dizer, você tem toda a liberdade aqui.
- Se quer insinuar se eu posso lhe levar à sua sala, sim, posso.
- Sem anunciar nenhum de nós dois?
- É claro, estou permanentemente lotado para trabalhar com ele. Há um corredor por trás desta seção, no qual só se pode entrar usando um código; leva às salas do alto escalão. Eu tenho este passe, evidentemente.
- Então vamos, evidentemente.
- O que devo fazer, então?
- Volte e fique aqui, e espere pelo melhor.
- E o senhor, Monsieur Lat’am?
- Eu também esperarei pelo melhor.
O capitão Christian Dietz escondeu o rádio portátil numa estante e posicionou-se do lado esquerdo da porta principal da suíte do hotel. Sua aguda audição captou o barulho de passos abafados do lado de fora no corredor, seguidos de silêncio. Com sua arma pronta, ficou imaginando se os pretensos invasores haviam arranjado uma chave mestra em algum lugar, ou se tentariam um arrombamento da porta.
Aparentemente, fora isto. O silêncio se viu quebrado por um estrondo pavoroso, quando a porta foi arrancada de suas dobradiças e arremessada do lado, contra o oficial. Os dois homens entraram correndo na sala, de armas na mão, suas cabeças virando para a esquerda e para a direita, para a direita e para a esquerda, sem saberem o que fazer em seguida. Dietz resolveu o problema deles, gritando:
- Soltem as armas ou estão mortos!
O primeiro sujeito virou-se violentamente e uma cuspidela silenciosa explodiu do cano de sua arma. O oficial mergulhou para a frente no chão e devolveu o tiro, acertando o intruso na barriga, fazendo com que ele se dobrasse em dois e caísse. O segundo pretenso assassino, aturdido, abaixou a arma quando três fuzileiros irromperam pela porta.
De repente Karin de Vries saiu de seu quarto de camisola.
- Volte para lá! - vociferou Dietz.
Quando Karin mergulhou em direção à porta do quarto, o segundo intruso levantou a arma e disparou. O sangue espirrou da borda de seu ombro esquerdo, enquanto os fuzileiros apontavam suas armas.
- Esperem! - berrou Dietz. - Ele não nos será útil morto!
- Nem nós, amigo! - gritou um sargento dos fuzileiros, com sua Colt .45 apontada para a cabeça do neo. - Solte-a, seu verme, ou está tudo acabado!
O neo deixou cair a arma no chão, enquanto Dietz se punha de pé e atravessava correndo o quarto até Karin, deitada de bruços e sangrando, chutando a arma do nazista ao passar por ela.
- Não se mexa - ordenou ele, rasgando a camisola no ombro e pegando Karin no colo. - Não é grave - concluiu, examinando o ferimento. - A bala só raspou a pele, foi tudo. Fique aí, que pegarei umas toalhas.
- Eu as acho - disse o fuzileiro mais próximo. - Onde?
- Entre na porta do banheiro. Pegue três pequenas e limpas e amarre-as juntas.
- Um torniquete?
- Não exatamente, mas quase. Queremos que a pele permaneça esticada. Em seguida pegue um pouco de gelo no bar.
- Já vou.
- Não me diga que você também é médico - disse Karin, segurando a aba de sua camisola e sorrindo debilmente.
- Isto aqui não é nenhuma neurocirurgia, Sra. de Vries, apenas um ferimento no tecido. Teve sorte; um segundo ou dois mais tarde e teria um problema. Está doendo?
- Está mais dormente do que doendo, capitão.
- Vamos levá-la até o médico da embaixada.
- Onde está Drew? Isto vem primeiro. E Gerry, onde está ele?
- Por favor, não me obrigue a passar por isto, Sra. de V. O Sr. Latham deu-nos ordens e é ele quem está comandando o espetáculo. Ele e Anthony foram até o Deuxième Bureau. Eu perdi no cara ou coroa com Gerry.
- O Deuxième? Por quê?
- Op. Cons. disse-nos que achava ter descoberto quem era o rato no sótão.
- O rato no sótão?
- O traidor nazista que nos grampeava a todos.
- No Deuxième?
- Foi o que ele disse.
- Ele falou algo a respeito em Beauvais, mas quando perguntei-lhe no furgão, deu de ombros, dizendo que era apenas um palpite. Mas você sabia?
- Acho que ele não a queria envolvida nisso.
- Aqui estão as toalhas! - disse o fuzileiro, saindo correndo da porta de um quarto, em seguida voltando depressa para ajudar seus colegas com os dois neos, um morto ou inconsciente, o outro hostil, precisando levar vários golpes no peito. - Manteremos contato, capitão... o senhor é o capitão, não é?
- A patente não conta muito aqui, cabo. Até mais tarde.
- Precisamos dar o fora depressa daqui, acho que compreende. Sinto muito quanto ao gelo...
- Então deem o fora! - ordenou Dietz, enquanto a unidade fugia pelo corredor com os dois prisioneiros, até as escadas de incêndio. O telefone tocou. - Vou colocá-la no chão - disse o oficial, enquanto prendia toalhas em volta do ombro dela e largava-a delicadamente em cima do tapete. - Preciso atender ao telefone.
- Se for Drew, diga-lhe que estou furiosa!
Não era Latham; era a recepcionista da portaria do hotel.
- Vocês precisam partir! - gritou ela em francês. - Tem limites a nossa cooperação com o Deuxième! A mesa telefônica está entupida de chamadas a respeito de estrondos e barulhos de tiros!
- La passion du coeur! - respondeu Dietz com firmeza. - Lacre o quarto que nós a protegeremos. Dê-me cinco minutos e chame a polícia, mas preciso de cinco minutos.
- Faremos o possível.
- Vamos - disse o capitão, desligando o telefone e voltando para Karin. - Eu a carregarei...
- Na realidade, posso andar - interrompeu de Vries.
- Boa notícia. Desceremos a escada, é só um andar.
- E nossas roupas e bagagem? Você certamente não quererá que fiquem aqui e sejam encontradas pela polícia.
- Merda!... Perdoe-me, mas a senhora realmente tem razão. - O capitão correu de volta ao telefone, discando imediatamente a recepcionista. - Se nos quiser ver pelas costas, mande o boy mais rápido que tiver para fazer as malas e levá-las para a área de saída. E também, diga-lhe que se ele não for muito ladrão, ganhará quinhentos francos!
- Naturellement.
- D’accord.
- Vamos embora! - disse o oficial, batendo com o fone no aparelho e correndo de volta até Karin, parando subitamente para pegar uma capa de homem numa cadeira. - Olhe aqui, vista isso, vai ajudar. Levante-se devagar, com seu braço em volta do meu ombro... Bom, consegue andar?
- Sim, é claro. Apenas o braço dói.
- Doerá até levarmos você ao médico. Ele cuidará disto. Firme agora.
- Mas e Drew e Gerry? O que está acontecendo?
- Não sei, Sra. de V, mas uma coisa lhe direi. Aquele seu amigo Op. Cons. em quem não fazia de início muita fé, é de primeira. Ele consegue ver além da neblina, sabe o que quero dizer?
- Não mesmo, capitão - disse Karin caminhando apoiada no oficial enquanto desciam o corredor em direção à escada. - Que neblina?
- A fumaça que encobre a verdade. Ele passa por ela, porque possui aquele instinto visceral que lhe diz que ela está ali.
- Ele é muito aplicado, não é?
- É mais do que aplicado, Sra. de V, é um talento. Eu entraria na clandestinidade por ele a qualquer hora. É meu tipo de controle.
- O meu também, capitão, embora eu preferisse outro termo.
Drew aproximou-se da porta sem indicação do recém-nomeado diretor do Deuxième Bureau. Sem bater, abriu-a rapidamente, entrou e fechou-a. Jacques Bergeron estava diante de uma janela, olhando para fora; virou-se depressa, espantado com a presença de Latham.
- Drew! - exclamou em voz alta. - Ninguém me avisou que estava aqui!
- Eu queria fazer uma surpresa.
- Mas por quê?
- Porque você poderia ter arranjado um pretexto para não me ver, como algumas horas atrás, quando liguei para dizer onde estávamos hospedados. Mandaram-me falar com François.
- Pelo amor de Deus, cara. Tenho mil problemas para resolver! E também nomeei François meu chefe de gabinete provisório; ele mudará para as suas novas salas amanhã.
- Ficará aconchegante.
- Perdão... Écoutez, peço desculpas se o ofendi, mas eu realmente acho que deveria tentar entender. Fui obrigado a não atender ninguém pessoalmente a não ser o presidente e alguns membros da Câmara, porque simplesmente não dou conta. Há tantas perguntas que não posso responder até botar nossas equipes de investigadores trabalhando. Preciso de tempo para pensar!
- Isso é ótimo, Jacques, mas tenho a impressão de que você anda pensando muito, há muito, muito tempo. Há anos, para ser exato. Aliás, François confirmou-o. Foi você quem provavelmente arranjou o romance entre aquele Romeu cabeleireiro e a mulher dele - mais um ser humano descartável.
O rosto delicado e vulnerável do chefe do Deuxième transformou-se de repente em granito malhado, os olhos simpáticos, em duas bolas de vidro cheias de ódio.
- O que fez você? - perguntou ele em voz baixa, tão baixa que mal se podia ouvir.
- Não quero entediá-lo com os caminhos intricados que levaram a você, a não ser para afirmar que foi um tanto brilhante. O Sancho Panza do Dom Quixote Moreau, o lacaio admirador que idolatrava seu mestre, que conseguiu uma maneira de abrir caminho até a confiança e o afeto do mestre, ajudando-o na sua rotina diária - todo dia, toda noite. Ninguém a não ser você poderia ter sabido onde eu me encontrava em determinadas ocasiões, onde meu irmão estava, onde Karin e a pobre secretária de Moreau estariam, e você teve cinquenta por cento de sorte. Matou Harry e a secretária de Moreau, mas falhou comigo e com Karin.
- Você é um homem morto, Drew - disse o diretor do Deuxième, quase simpaticamente. - Está no meu território e está morto.
- Eu não chegaria a uma conclusão assim tão depressa, se fosse você. O tenente Anthony - você conhece o tenente - está lá fora com sua recepcionista. A esta altura tenho certeza de que ele já usou o telefone dela para entrar em contato com o embaixador Courtland, que deve ter pedido uma audiência de emergência com o presidente da França e seu primeiro-ministro. Uma espécie de café da manhã dos poderosos, poderia chamá-lo.
- Sob que pretexto?
- Porque depois que fiz uma visita a François, não voltei e mandei Anthony esperar. Concordamos em oito minutos; era um número seguro. Sabe, você realmente deu um furo quando mandou aqueles imbecis ao hotel, "tiras", como a unidade de fuzileiros os chamou. Ninguém mais em Paris sabia onde estávamos, a não ser você, e por extensão, François.
- Uma unidade de fuzileiros...?
- Não acredito numa morte heroica, Jacques. Pensando bem, é uma burrice, quando não se é obrigado a sofrê-la.
- Você só tem a sua palavra, e contra a minha não vale nada! Foi o próprio presidente quem me nomeou!
- Você é uma Sonnenkind, seu filho da puta.
- Que ultraje! Qual a possível prova que você teria para essa escandalosa mentira?
- É circunstancial, eu concordo, mas junto com outras coisas, torna-se bastante convincente. Sabe, quando comecei a chegar perto de você, eu te dei o benefício da dúvida. Na noite passada, naquele furgão militar vindo de Beauvais, entrei em contato com um geniozinho no nosso complexo de computadores, chamado Joel, e pedi-lhe que fizesse uma pesquisa sobre você. Há cinquenta e um anos, foi adotado legalmente por um casal sem filhos, Monsieur e Madame Bergeron, em Lauterbourg, perto da fronteira alemã. Foi um excelente estudante. Bastava querer e arranjava quaisquer bolsas. Passou direto pela Universidade de Paris e o doutorado. Poderia ter entrado numa dúzia de profissões que teriam feito de você um homem rico, mas não o fez. Escolheu o funcionalismo público, o ramo de informações. Que não chega a ser exatamente vantajoso, em termos financeiros.
- Era meu interesse, meu profundo interesse!
- Aposto que sim. Depois de algum tempo e anos, lá estava você no lugar certo e na hora certa. Não pôde fazer nada a respeito porque já tinha partido quando descobrimos os planadores, mas o que sentiu quando a Raio N’Água deu com os burros n’água? Ein Volk, ein Reich, ein burro.
- Você está maluco! Tudo que diz é mentira!
- Não, não é. Você mesmo o disse com suas próprias palavras, quando nos fez aquela humilde confissão em Beauvais. De uma maneira ou de outra, você sabia que teria de dar o fora; mais cedo ou mais tarde a corda estaria em volta do seu pescoço. Você realmente não esperava ser nomeado diretor do Deuxième; foi a única coisa honesta que disse, porque sabia que havia homens melhores em outros departamentos da inteligência. Por isso declarou para nós todos, "Eu não sou um líder, e sim um seguidor que obedece ordens"... Estava assim repetindo, ad nauseam, as terríveis palavras que já ouvimos tantas vezes do credo nazista. Foi o que me fez pedir ajuda ao nosso especialista em supercomputadores, só para ter certeza.
- Eu repito - disse Jacques Bergeron friamente - que fui um órfão de guerra, meus pais eram franceses, mortos num bombardeio, e meu currículo acadêmico está aí para qualquer um ver. Você não passa de um americano paranoico e encrenqueiro, e providenciarei para que seja expulso da França.
- Isto não pode acontecer, Jacques. Você matou meu irmão ou, melhor dizendo, mandou matá-lo. Eu não o deixarei livre. Vou enfiar sua cabeça cortada no espigão mais alto da Pont Neuf, tal como os fãs da guilhotina gostavam. Apesar de todos os seus êxitos acadêmicos, esqueceu de uma coisa. Lauterbourg jamais foi bombardeada, nem pelos aliados, nem pelos alemães. Você foi contrabandeado até o outro lado do Reno para começar uma nova vida, como Sonnenkind.
Bergeron ficou imóvel, examinando Latham, um sorriso frio e apagado cruzando seu rosto.
- Você realmente tem bastante talento, Drew - disse ele baixinho. - Mas é claro que não sairá daqui com vida, de modo que desperdiçou o seu talento, n’est-ce pas? Um americano paranoico, um homem com um currículo de violência, vem aqui assassinar o diretor do Deuxième, quem é Sonnenkind aqui? Afinal de contas, meu antecessor, Moreau, nunca confiou em você. Ele me disse que você costumava mentir para ele; está em suas anotações, que eu transcrevi devidamente para o seu computador.
- Você transcreveu?
- Estão lá, e isso é tudo que importa. Sou a única pessoa que detém a chave para o seu material secreto. O que existe lá é só dele.
- Por que matou-o? Por que mandou matar Claude Moreau?
- Porque, tal como você, ele começara a descascar as camadas e estava chegando perto da verdade. Começou com a morte de Monique, sua secretária, e aquela noite ridícula no café quando um fanático idiota matou o motorista do veículo americano. Foi um tremendo erro, imperdoável, porque Moreau veio a perceber que eu era a única outra pessoa que sabia onde você estava... Monique poderia, e teria dado uma informação falsa.
- Engraçado - disse Latham - foi quando também comecei a desconfiar. Isto e o fato de que quando meu irmão veio de Londres, estava supostamente sob segurança do Deuxième.
- Facilmente substituída por outra, como foi - disse Bergeron com seu riso contido mais espalhado pelo rosto.
- Uma pergunta - interrompeu Drew zangado. - Quando Moreau - e você - souberam que eu estava representando o papel de Harry, por que não alertou Berlim ou Bonn?
- Agora está sendo tolo - respondeu Bergeron. - O círculo era extremamente pequeno, especialmente aqui no Deuxième. Só Claude e eu sabíamos, e não havia como saber até que ponto era secreto em outros lugares. Um vazamento rastreado até o Deuxième me comprometeria.
- Isso está muito fraco, Jacques - disse Drew, fitando a Sonnenkind.
- Novamente seu talento brilha, monsieur. Era melhor que os erros ficassem a cargo de outros, para nós atravessarmos a neblina de erros carregando a verdade, proclamando-se a verdadeira Valquíria... Para dizer em poucas palavras, eu estava esperando pelo momento certo. Seus políticos americanos sabem disso muito bem.
- Muito bem, Jacquezinho. E se eu lhe disser que tudo que foi dito aqui foi gravado, com a frequência regulada para o aparelho do tenente Anthony na antessala? A alta tecnologia é maravilhosa, não é?
42
Jacques Bergeron, Sonnenkind, berrava histericamente, enquanto mergulhava em direção à sua mesa e pegava um pesado peso de papel, que jogou na sua janela, estilhaçando o vidro. Então, com uma força inesperada de sua compleição média e compacta, levantou sua cadeira a atirou-a em Latham, que puxou a arma de François do cinto.
- Não faça isso! - gritou Drew. - Eu não quero matá-lo! Precisamos de seus registros! Pelo amor de Deus, escute-me!
Era tarde demais. Jacques Bergeron arrancou uma pequena arma do coldre sob seu braço, atirando indiscriminadamente para todos os lugares. Latham mergulhou no chão, enquanto Bergeron correu até a porta, abriu-a com força e saiu rapidamente.
- Segurem ele! - vociferou Drew, correndo em direção ao corredor. - Não, esperem! Deixem! Está com uma arma! Saiam de seu caminho!
O corredor era um caos. Mais dois tiros foram dados enquanto o pessoal saía de suas repartições. Um homem e uma mulher caíram feridos ou mortos. Latham levantou-se e correu atrás do nazista, ziguezagueando através dos corredores que se cruzavam, gritando:
- Gerry, ele terá de sair por aí! Atire nas suas pernas, mantenha-o vivo!
A ordem veio tarde demais. Bergeron entrou esbarrando na porta da sala de recepção, enquanto uma campainha ensurdecedora ecoava nas paredes e o tenente Anthony saía do segundo elevador. O nazista atirou; era a última bala no seu pente, conforme provaram os cliques posteriores, porém a bala penetrou no braço direito do oficial. Anthony agarrou seu cotovelo, largou-o, e sentindo dor, tateou desajeitadamente pela sua arma, enquanto a mulher atrás da mesa mergulhava histericamente no chão.
- Você não vai a lugar nenhum - berrou o tenente, tentando alcançar sua arma com a mão direita, seu braço uma agonia de dor. - Do mesmo modo que esses elevadores! Ativei um alarme em ambos.
- Você está totalmente errado! - gritou o neo, entrando correndo no elevador mais próximo; segundos depois as portas começaram a se fechar e a campainha ensurdecedora parou abruptamente. - É você que não vai a lugar algum, monsieur! - Foram as últimas palavras do nazista.
Drew irrompeu pela porta da antessala.
- Onde está ele? - perguntou furiosamente Latham.
- Naquele elevador - respondeu o oficial encolhendo-se de dor. - Pensei que tivesse provocado um curto circuito em ambos, mas parece que não tive êxito.
- Meu Deus, você foi atingido!
- Eu posso lidar com isso, verifique a senhora.
- A senhora está bem? - perguntou Drew, correndo até a recepcionista que estava se pondo de pé.
- Ficarei melhor quando entregar minha demissão, monsieur - respondeu ela, trêmula e sem ar, enquanto Latham ajudava-a a se levantar.
- Podemos parar o elevador?
- Non. Les directeurs... perdoem-me, os diretores e seus adjuntos possuem códigos de emergência que colocam os elevadores em trajetórias expressas. Não há paradas até atingirem seus andares.
- Podemos impedi-lo de deixar o prédio?
- Baseado em que autoridade? Ele é o diretor do Deuxième Bureau.
- Il est un Nazi d’Allemand! - gritou o tenente.
A recepcionista olhou fixamente para Anthony.
- Tentarei, major. - A mulher estendeu o braço e pegou o telefone na sua mesa e discou três números. - Há uma emergência, viu o diretor? - perguntou ela em francês. - Merci. - Ela apertou a tecla, desligando, discou de novo e falou, repetindo a mesma pergunta. - Merci. - A recepcionista desligou, olhando para Drew e o oficial. - Liguei primeiro para o estacionamento onde Monsieur Bergeron guarda seu carro esporte. Ele não passou pelo portão. Em seguida liguei para o nosso balcão no primeiro andar. O guarda disse que o novo diretor partiu numa tremenda pressa. Sinto muito.
- Obrigado por tentar - disse Gerald Anthony, segurando seu braço direito, que sangrava.
- Se assim posso perguntar - disse Latham. - Por que a senhora tentou? Somos americanos, e não franceses.
- O diretor Moreau o tinha em alta conta, monsieur. Foi o que me disse quando o senhor veio vê-lo.
- Só isso?
- Não... Jacques Bergeron era todo sorrisos e polidez na companhia de Monsieur Moreau, mas quando estava sozinho, era um porco arrogante. Prefiro acreditar na sua explicação, e, afinal de contas, ele atirou no seu simpaticíssimo major.
Estavam de volta aos aposentos particulares do embaixador Courtland na embaixada, Drew, Karin, com seu ombro ferido cheio de ataduras, e Stanley Witkowski, que chegara de avião de Londres. Os dois oficiais, tendo o braço do tenente sido alvo de cuidados médicos e estando agora apoiado numa tipoia, permaneciam no hotel, ora descansando, ora fazendo generosos pedidos ao serviço de quarto.
- Ele sumiu - disse Daniel Courtland, sentado numa cadeira perto do coronel e defronte a Drew e Karin no sofá. - Toda a polícia e todas as repartições da inteligência na França estão caçando Jacques Bergeron e nada surgiu. Todo aeroporto público e particular, todo posto de fronteira tem sua fotografia, com uma dúzia de simulações computadorizadas dos seus possíveis disfarces - nada. Com certeza deve ter voltado para a Alemanha e deve estar em segurança entre seus correligionários, seja lá onde estiverem.
- Precisamos descobrir onde isso fica, Sr. Embaixador - disse Latham. - A operação Raio N’Água fracassou, mas qual será a próxima, e será que fracassará? Seus planos a longo prazo podem ter sido abalados, mas o movimento nazista não parou. Em algum lugar deve haver arquivos, e precisamos achá-los. Aqueles filhos da puta estão em toda parte do mundo, e não resolveram encerrar seu espetáculo. Só ontem uma sinagoga em Los Angeles e uma igreja negra no Mississippi foram incendiadas até não sobrar mais nada. Vários senadores e congressistas que se ergueram em protesto contra este incidente foram acusados de estarem disfarçando suas próprias simpatias. Está tudo uma bagunça danada!
- Eu sei, Drew, todos nós sabemos. Aqui em Paris, nos arrondissements predominantemente judeus as vidraças das lojas amanheceram quebradas, e a palavra Kristallnacht apareceu pixada nos muros. Está se tornando uma palavra muito feia. Muito feia.
- Quando parti de Londres esta manhã - disse Witkowski em voz baixa - os jornais estavam cheios do massacre de várias crianças do Caribe, com os rostos retalhados à baioneta - seus rostos. A palavra alemã "Neger" estava escrita em giz colorido em volta dos cadáveres.
- Pelo amor de Deus, quando isso vai parar! - exclamou Karin.
- Quando descobrirmos quem são eles e onde se encontram - respondeu Drew.
O telefone tocou na mesa antiga do embaixador, que ele usava como uma escrivaninha.
- Quer que eu atenda? - perguntou o coronel.
- Não, obrigado, eu atenderei - disse Courtland, deixando a cadeira e andando até a mesa. - Sim?... É para você, Latham, alguém chamado François.
- Ele é a última pessoa que eu esperaria que me procurasse de novo - disse Drew, levantando-se e andando rapidamente até a mesa. Pegou o fone das mãos do embaixador. - François...?
- Monsieur Lat’am, precisamos nos encontrar em algum local para uma conversa em particular.
- Não há nada mais particular do que este telefone, creia-me. Você acabou de falar com o embaixador americano e seu telefone é tão limpo quanto possível.
- Acredito no senhor porque manteve a sua palavra. Estou sendo interrogado, mas só quanto a tudo que sei, e sem nada a ver com o passado.
- Você estava numa terrível e insustentável posição, e desde que coopere ao máximo, poderá voltar para casa e sua família.
- Minha gratidão está além das palavras, monsieur, tal como a de minha mulher. Nós discutimos tudo - eu nada lhe escondi - e juntos decidimos que eu deveria fazer esta ligação, pelo que ela poderia valer para o senhor.
- O que é?
- Precisamos voltar àquela noite em que o velho Jodelle se matou no teatro onde o ator Jean-Pierre Villier representava. Lembra?
- Jamais esquecerei - disse Drew com firmeza. - O que tem aquela noite?
- Era de madrugada, na realidade, quando o Sous-directeur Bergeron ordenou-me que viesse imediatamente ao seu escritório no Deuxième. Foi o que fiz, mas ele não estava lá. Entretanto, eu sabia que ele estava no prédio, porque os guardas do portão faziam comentários sarcásticos a seu respeito por causa da sua antipatia e como ele era capaz de me acordar, com certeza para ajudá-lo a ir ao banheiro. Fiquei com medo de ir embora. Esperei até que aparecesse; ele apareceu depois carregando uma pasta muito velha dos arquivos no porão, tão antiga que não fora transcrita para os computadores. A própria pasta estava amarelecida pelo tempo.
- Isto não é estranho? - perguntou Latham.
- Há milhares e milhares de pastas nos arquivos, monsieur. Foi realizado um duro trabalho na transposição delas, mas ainda faltam anos até o trabalho ser completado.
- Por quê?
- Especialistas são convocados, entre eles historiadores, para avalizarem sua inclusão, e como em governos mundo afora, as verbas são limitadas.
- Continue. O que aconteceu?
- Jacques instruiu-me para levar a pasta e entregá-la pessoalmente num château no Vale do Loire, usando um veículo do Deuxième, com documentos que ele mesmo assinou, que neutralizariam qualquer ação policial no caso de excesso de velocidade, velocidade que ele me recomendou. Perguntei-lhe, sem pensar, por que era tão necessário àquela hora, e se não poderia esperar até de manhã. Ficou furioso e gritou comigo, berrando que nós - ele e eu - devíamos tudo àquele lugar, aquele homem. Que era nosso santuário, nosso refúgio.
- Que lugar, que homem?
- O château é Le Nid de l’Aigle. E o general André Monluc é o homem.
- Não sei o que da "águia"...?
- O Ninho da Águia, monsieur. Monluc, assim me dizem, era um grande general francês, homenageado pelo próprio De Gaulle.
- Então acha que Bergeron pode ter fugido para lá? - disse Drew.
- Santuário e refúgio são palavras que vivem voltando à minha cabeça. E também Jacques é um perito da inteligência; conhece as inúmeras barreiras que precisará vencer para deixar o país. Precisará da ajuda de correligionários com recursos, e a combinaison de um grande general e um château no Loire parece vir a calhar. Espero que isto lhe sirva para alguma coisa.
- Servirá, e espero não precisarmos mais nos ver ou falar de novo. Obrigado, François. - Latham desligou o telefone e virou-se para os outros. - Temos o nome do general que Jodelle caçava, o traidor que ele disse que enganara De Gaulle. E também onde mora, se ainda estiver vivo.
- Foi uma conversa unilateral bastante estranha, chlopak. Por que não nos dá os detalhes?
- Espere aí, Stanley, fiz um trato. Esse homem já viveu mais tempo no seu inferno pessoal do que merecia, e jamais matou ninguém a mando dos nazistas. Era um menino de recados, com uma arma apontada para a cabeça coletiva de sua família. Moral da história: fiz um trato.
- Já fiz mais tratos do que poderia me lembrar - disse o embaixador. - Conte-nos o que precisamos saber, Drew.
- O nome do general é Monluc, André Monluc...
- André - interrompeu Karin. - É daí que vem o codinome.
- Certo. O château se chama o Ninho da Águia, no Vale do Loire. François acha que Bergeron pode ter fugido para lá, porque certa vez o chamou de santuário, num momento de raiva, talvez de medo.
- Quando? - interrompeu Witkowski. - Quando foi que disse isso?
- Muito esperto, Stanley - respondeu Drew. - Quando Bergeron ordenou-lhe que fosse lá entregar uma velha pasta sobre Monluc, escondida nos arquivos, na noite em que Jodelle se matou no teatro.
- Assim removendo qualquer ligação possível entre Jodelle e o general - disse o embaixador. - Alguém conhece alguma coisa a respeito deste Monluc?
- Não de nome - respondeu Latham - porque os arquivos confidenciais que continham essa informação foram removidos de Washington. Mas a documentação preliminar sobre Jodelle detalhava sua acusação, uma acusação sem nenhuma consistência, sem falar de provas. Foi por isso que a inteligência em Washington achou que estava diante de um maluco. Ele alegava que um general francês, um líder da Resistência, era na realidade um traidor que trabalhara para os nazistas. Era Monluc, é claro, o homem que ordenara a execução da mulher e dos filhos de Jodelle, e que mandara Jodelle para um campo de concentração.
- O caçula que sobreviveu foi Jean-Pierre Villier - acrescentou Karin.
- Exatamente. De acordo com o pai de Villier - o pai que ele jamais conheceu - as suspeitas de Jodelle recaíram evidentemente sobre o general desconhecido, que protegia seu disfarce, enquanto enriquecia com dádivas de ouro e outros bens expropriados pelos nazistas.
- Acho que preciso ter aquele mítico encontro com o presidente da França - disse Courtland. - Faça um relatório completo sobre tudo isso, Drew. Dite para uma secretária ou duas, o que precisar, apenas faça-o depressa, digamos numa hora mais ou menos, e ponha-o na minha mesa lá embaixo.
Latham e Witkowski trocaram olhares. O coronel balançou a cabeça em direção a Drew.
- Isto não vai funcionar, Sr. Embaixador - disse Latham.
- O quê?
- Primeiro, não há tempo, e também não sabemos quem o presidente irá consultar, embora saibamos que existem neos no Quai d’Orsay, talvez no próprio círculo íntimo do presidente. Não sabemos sequer a quem apelar para pedir auxílio, ou quem ele poderá chamar.
- Está sugerindo que ajamos por conta própria, funcionários da embaixada americana num país estrangeiro? Se for verdade, então você perdeu o juízo, Drew.
- Sr. Embaixador, se existe alguma coisa que possa nos dar informações naquele château, quaisquer registros, documentos, números de telefone, não podemos correr o risco de eles serem destruídos. Esqueça Bergeron, no momento; se aquele lugar for um santuário ou um refúgio, deverá necessariamente conter mais do que cerveja, salsichas e canções de Horst Wessel. Não estamos falando apenas da França aqui, estamos falando de toda a Europa e os Estados Unidos.
- Compreendo isto, mas não podemos agir unilateralmente num país que nos hospeda!
- Se Claude Moreau estivesse vivo, a situação seria outra - interrompeu Witkowski. - Ele aceitaria o manto de uma operação clandestina francesa no interesse da França. Nosso FBI aceita este tipo de coisa o tempo todo!
- Moreau não está vivo, coronel.
- Compreendo isto, Sr. Embaixador, mas pode haver um caminho. - Witkowski virou-se para Latham. - Este François com quem acabou de falar tem uma dívida para com você, não tem?
- Pare com isso, Stosh, não quero envolvê-lo.
- Não sei por quê. Acabou de defender bastante bem a causa de uma interferência diplomática séria, suficientemente séria para provocar a substituição de um embaixador.
- Onde quer chegar? - disse Drew, fitando o coronel.
- O Deuxième trabalha com o Service d’Etranger - isto é, o Ministério das Relações Exteriores da França, Sr. Embaixador - e suas linhas de autoridade se cruzam com frequência, tal como a nossa CIA e FBI e DIA. Isto é compreensível, não é?
- Continue, coronel.
- A confusão resultante desses conflitos é tanto uma praga quanto uma bênção para todas as burocracias dos serviços de informações...
- Onde, diabo, quer chegar, Stanley?
- Simples, chlopak. Mande este François ligar para alguém que ele conheça bem no Etranger e contar, digamos, metade da história que contou para você.
- Que metade?
- Que ele se lembrou de repente que Bergeron, caçado por todo mundo, certa vez o mandou entregar aquela velha pasta num château no Loire. Basta dizer isto.
- Por que não daria ele esta informação para o seu próprio pessoal no Deuxième?
- Porque não tem ninguém encarregado. Moreau foi morto ontem, Bergeron sumiu há algumas horas, e ele não sabe em quem confiar.
- E aí?
- Eu cuidarei do resto - respondeu Witkowski em voz baixa.
- Como é? - disse Courtland.
- Bem, Sr. Embaixador, há sempre coisas que um homem na sua posição pode negar legitimamente porque não teve conhecimento delas.
- Conte-me - interrompeu o embaixador. - Parece que gasto um tempão me informando sobre esse tipo de coisas que supostamente eu não deveria saber. O que pode me contar sem chegar a comprometer a minha capacidade de negar?
- Algo muito inexpressivo. Tenho amigos, digamos colegas profissionais, nos mais altos escalões do Etranger. Hipoteticamente falando, houve uma época em que criminosos americanos, digamos membros do crime organizado, barões das drogas, estiveram na França, e nós seguíamos a pista deles melhor do que os franceses... Fui muito generoso com nossa informação.
- O senhor foi o mais enrolado possível, coronel.
- Obrigado, Sr. Embaixador.
- Repetindo - disse um Latham nervoso. - Onde quer chegar?
- Enquanto a informação vier de uma fonte da inteligência francesa, eu posso agir. Os franceses vão adorar, e nós teremos qualquer tipo de pessoal de apoio que possamos precisar durante uma emergência. E sobretudo, teremos o segredo, que é vital porque precisamos agir depressa.
- Como pode ter certeza dessas coisas, coronel?
- Porque, Sr. Embaixador, nós dos serviços clandestinos adoramos espalhar o mito da nossa invencibilidade. Gostamos especialmente de aparecer com resultados surpreendentes, quando ninguém sabia que estávamos agindo. É uma idiossincrasia, Sr. Embaixador, que neste caso trabalha a nosso favor. Como sabe, nós detemos a informação, orquestramos a coisa, e todos os louros irão para os franceses. É um presente do céu.
- Não tenho certeza se compreendi uma só palavra do que disse.
- Ninguém espera isso do senhor - disse o veterano oficial do G-2.
- E eu? - perguntou de Vries. - Eu trabalharei com vocês, evidentemente.
- Trabalhará sim, minha cara. - Witkowski sorriu com simpatia, olhando para Drew. - Estudaremos os mapas da área, o Etranger tem cada centímetro quadrado da França mapeado, e descobriremos uma elevação qualquer perto do château. Você ficará no rádio.
- Isso é uma besteira. Eu mereço estar junto com vocês.
- Não seja injusta, Karin - disse Latham. - Foi ferida e nenhuma quantidade de analgésicos pode fazê-la ficar cem por cento. Em poucas palavras, você será no local mais uma preocupação do que uma ajuda. Certamente no que me diz respeito.
- Sabe - disse de Vries em voz baixa, olhando dentro dos olhos de Drew -, sou capaz de compreender isso e aceitá-lo.
- Obrigado. Além do mais, nosso tenente terá muito pouca utilidade e permanecerá lá na retaguarda, em isolamento. Ele está pior do que você. A única maneira de poder disparar uma arma é se a cimentarmos na sua mão.
- Ele pode ficar no rádio junto com Karin, um contato de socorro - acrescentou o coronel. - Coordenando, para que a gente não tenha que viver se comunicando, bastando deixar os fones abertos.
- Isso me parece tremendamente condescendente, Stanley.
- Talvez seja, Karin, mas nunca se sabe.
O alto funcionário de carreira do Service d’Etranger era um ambicioso analista de quarenta e um anos, cuja sorte foi ter conhecido o volante François. Ele fora um dos pretendentes da mulher de François, Yvonne, antes do casamento dela, e apesar de ter subido mais rápido e mais alto na hierarquia do serviço público do que François, permaneciam amigos e François sabia por quê. O analista oportunista jamais parava de sondar o reservado Deuxième.
- Sei exatamente a pessoa certa para quem ligar - dissera François como resposta ao pedido de Latham. - É o mínimo que posso fazer pelo senhor e, imagino, por ele, depois de todos aqueles almoços e jantares caros em que não ficou sabendo de nada. Ele é muito bem pago, sabe; formou-se na faculdade e é bastante inteligente. Acho que ficará entusiasmado.
Todos sabiam que analistas não eram agentes de campo, nem fingiam que eram. Mesmo assim, numa determinada operação e sob circunstâncias hipotéticas, eram geralmente capazes de surgir com táticas e precedentes muitas vezes valiosos. Directeur Adjoint Cloche, pois esse era seu nome, e lhe cabia bem, encontrou-se com a equipe N-2 no Plaza-Athénée.
- Ah, Stanley! - exclamou ele, entrando na suíte carregando uma pasta. - Depois que você telefonou após a ligação algo histérica de François, fiquei tão aliviado. Tudo era tão trágico, tão catastrophique, mas com sua capacidade de controle, bem, senti-me aliviado.
- Obrigado, Clément, que bom ver você de novo. Deixe-me fazer as apresentações. - Estas feitas, sentaram-se todos em volta da mesa circular da sala de jantar. - Você conseguiu trazer aquilo que pedi? - prosseguiu o coronel.
- Tudo, mas devo dizê-lo, na base de fichiers confidentiels.
- O que é isso? - perguntou Drew, seu tom de voz chegando quase ao da descortesia.
- As cópias foram feitas para o Sr. Cloche numa base confidencial - explicou Karin.
- Como assim?
- Acredito que vocês agentes americanos o chamam de "solo" - esclareceu o diretor-adjunto do Etranger. - Não dei nenhum motivo para pegá-las - de acordo com o que me dissera meu amigo Stanley. Mon Dieu, neonazistas nas áreas mais secretas do governo! No próprio Deuxième. É inacreditável!... Corri um considerável risco, mas se conseguirmos encontrar aquele traidor, Bergeron, meus superiores só poderão me aplaudir.
- E se não conseguirmos? - perguntou o tenente Anthony, com a tipoia em cima da mesa como uma garra palmada.
- Bem, agi nos interesses de um atormentado subalterno de um Deuxième sem direção e de nossos mais caros aliados, os americanos.
- O senhor já participou de alguma manobra clandestina? - perguntou o capitão Dietz.
- Non, capitaine, sou um analista. Dirijo, não participo dessas atividades.
- Então não vai conosco?
- Jamais.
- C’est bon.
- Está bem - interrompeu Witkowski, lançando um olhar de desagrado em direção a Dietz. - Vamos ao trabalho. Está com os mapas, Clément?
- Mais do que simples mapas. As elevações que você pediu foram enviadas por fax pelos escritórios de zoneamento e tributos do Loire. - Cloche abriu a sua pasta, tirou várias folhas dobradas e espalhou-as em cima da mesa. - Aqui está Le Nid de l’Aigle, o château conhecido como Ninho da Águia. Compõe-se de cento e oitenta hectares, certamente não a maior, mas também não a menor das propriedades herdadas. Foi originalmente uma concessão real a um duque menor no século dezesseis à família...
- Não precisamos da história - interrompeu Latham. - O que vem a ser hoje? Desculpe, mas estamos numa tremenda pressa.
- Muito bem, apesar de a história ser relevante em termos de suas fortificações, naturais e não.
- Que fortificações? - perguntou Karin, levantando-se, os olhos postos no mapa.
- Aqui, aqui, aqui e aqui - disse Cloche, também se levantando, tal como todo mundo de repente fez, e apontando para partes do mapa desdobrado. - Existem canais profundos, de leito macio, que cercam três quintos do château e são alimentados pelo rio. Estão cheios de juncos e plantas aquáticas, dando a parecer que atravessá-los é fácil, mas aqueles antigos nobres, que viviam em guerra entre eles mesmos, conheciam bem os instrumentos de defesa contra ataque. Qualquer exército de arqueiros e artilheiros que entrasse às pressas naqueles regatos aparentemente rasos afundava na lama e se afogava, levando sua artilharia com ele.
- Muito estratégico - disse Witkowski.
- Meio espantoso para tantos séculos atrás - concordou o capitão Dietz.
- Quantas vezes já não lhe disse que é preciso olharmos para o passado? - disse o tenente Anthony, empurrando o capitão com seu braço direito e em seguida fazendo uma careta de dor. - Eles trabalhavam com os materiais à disposição deles, e a história se repete.
- Acredito que isto seja uma visão simplista, Gerry - objetou Karin, com os olhos ainda no mapa. - Esses canais teriam secado há muitos anos por assoreamento porque não eram naturais. Foram cavados e constantemente reescavados. Mas você tem razão, tenente, seja quem for que é o proprietário atual, estudou a sua história e dragou-os de novo, abrindo as velhas captações no rio Loire... Estou certa, Sr. Cloche?
- Foi o que eu quis dizer, mas ninguém me deu chance.
- Tem agora - disse Latham. - E peço desculpas. Nós estamos aqui para aproveitar tudo que trouxe.
- Muito bem, merci. Existem basicamente duas avenidas de entrada, os portões da frente, é claro, do lado noroeste. Infelizmente, um muro de pedra de quatro metros de altura cerca todo o château, com apenas uma falha, além dos portões. É nos fundos, uma passagem que leva a um grande pátio aberto, a cavaleiro de partes do vale. É o muro que lhes trará maiores dificuldades. Por acaso, foi construído há quarenta e nove anos, logo após a libertação da França.
- Provavelmente é encimado por arame farpado, talvez eletrificado - ponderou o capitão Dietz.
- Sem dúvida, capitaine. Suponho que a propriedade inteira, o terreno e tudo, deve estar fortemente guardada.
- Mesmo os velhos canais - interrompeu o tenente.
- Talvez menos, mas se obtivemos informações sobre eles, outros também o poderiam.
- E a passagem? - perguntou Drew. - Como pode ser alcançada?
- De acordo com as elevações - respondeu Cloche, apontando para uma área riscada, verde e cinza, do mapa - existe um promontório, a borda de uma colina escarpada, para ser exato, da qual se avista a passagem mais ou menos a trezentos metros abaixo. Descer de rastros é um caminho, mas mesmo se não existirem fios de alarme, e eles provavelmente existem, ainda assim há o muro.
- Que altura tem esse promontório? - perguntou Latham insistentemente.
- Acabei de lhe dizer; trezentos metros acima da passagem.
- O que quero dizer é, alguém consegue ver por cima do muro daquele ponto elevado?
O funcionário do Etranger se inclinou para a frente e examinou a geometria do mapa.
- Eu diria que sim, mas este julgamento baseia-se na precisão daquilo que estou lendo. Se alguém desenhar uma linha reta do cume da colina, uma linha reta descendente, parece que sim.
- Eu posso lê-lo como a um livro, chefe - disse o tenente Gerald Anthony. - Lá será meu posto.
- Isso mesmo, Magro - aquiesceu Drew. - Posto de Observação Número Um, ou seja lá como vocês milicos o chamam.
- Acho que deveria é ser meu - afirmou Karin convicta. - Se houver problemas, posso disparar uma arma. Gerry mal consegue segurar uma.
- Vamos lá, Sra. de V, a senhora também foi alvejada!
- No meu ombro direito, e sou canhota.
- Vamos discutir isto entre nós - avisou Witkowski, virando-se para Latham. - Agora é minha vez de perguntar onde você quer chegar?
- É uma surpresa ver-me obrigado a explicá-lo, Coronel Grande Espião. Vamos voltar para a água, só que desta vez, no lugar de um grande rio, vamos permanecer num velho canal, escondidos pelos juncos e pela vegetação aquática alta. Alcançamos a passagem, e nosso experimentado observador na elevação nos dirá quando escalarmos o muro, se não houver guardas de ronda lá dentro.
- Escalar com o quê?
- Com ganchos de escalada - respondeu o capitão Dietz. - Com o que mais? O tipo sólido, grosso de lucite, com extremidades duras de borracha. São silenciosos, mais duros que aço, e as cordas podem ser curtas, de apenas dois a três metros.
- E se os ganchos atingirem o arame farpado? - disse Witkowski, com um olhar ameaçador. - Esse muro é um terror.
- Não são os penhascos da praia de Omaha, Stanley, só tem quatro metros de altura. Se esticarmos os braços, nossas mãos ficarão a um metro e vinte do topo. Se nos derem dez ou doze segundos, Dietz e eu podemos passar por cima e descer, aproveitando o tempo para dar um jeito em qualquer arame.
- Você e Dietz?
- Discutiremos isso mais tarde, coronel. - Latham virou-se para Cloche. - O que existe atrás do muro? - perguntou rapidamente.
- Veja você mesmo - disse o funcionário do Etranger, acenando novamente para o mapa e se inclinando para a frente, seu dedo indicador pousando sobre determinadas áreas. - Como podem ver, em todas as direções, o muro fica mais ou menos a oitenta metros dos alicerces do château, permitindo uma piscina, vários pátios, e uma quadra de tênis, todos cercados por gramados e jardins. Muito civilizado, além de seguro, com um vista provavelmente belíssima dos morros subindo além do muro.
- O que existe na área atrás do portão da passagem?
- De acordo com esses mapas, há a piscina com uma fileira de cabanas de cada lado, além das quais existem três entradas para o prédio principal, aqui, aqui e aqui.
- Direita, centro e esquerda - disse o tenente Anthony. - Para onde dão as portas?
- A direita leva ao que parece ser uma enorme cozinha, a da extrema esquerda numa varanda fechada ao norte, e a porta central dá para um enorme salão de estar.
- Como uma sala de visitas grande?
- Muito grande, tenente - concordou Cloche.
- Esses mapas estão atualizados? - perguntou Drew.
- Têm dois anos de idade. Deve se lembrar, monsieur, que sob um regime socialista, os ricos e especialmente os muito ricos vivem vigiados pelo Fisco, que baseia suas estimativas no zoneamento e tributos.
- Que Deus os abençoe - disse Latham.
- E as cabanas? - perguntou Dietz.
- Serão as primeiras a sofrerem uma busca, com armas em posição de fogo automático - disse Anthony.
- Então depois de passar pelo muro, o capitão e eu iremos nos dirigir para a porta da direita e a da esquerda, escondendo-nos em qualquer sombra que encontrarmos, depois de jogar de volta os ganchos por cima do muro.
- E eu? - perguntou Witkowski.
- Acabei de lhe dizer, coronel, discutiremos isto mais tarde. Qual é nosso apoio, Monsieur Cloche?
- Tal como concordamos. Dez experientes agents du combat ficarão escondidos a uns cem metros dali, na estrada, preparados para atacar o château assim que receberem sua ordem pelo rádio.
- Certifique-se de que fiquem inteiramente ocultos. Conhecemos essa gente; ao menor indício de intrusos, eles queimarão todos os documentos existentes. É importantíssimo que tragamos o que estiver lá dentro.
- Compartilho suas preocupações, monsieur, mas uma operação de dois homens me parece excessivamente modesta.
- Ele tem razão, Op. Cons.
- Quem falou alguma coisa em operação de dois homens? - interrompeu um agitado Witkowski.
- Ah, pelo amor de Deus, Stanley! - Latham olhou duro para o veterano do G-2. - Verifiquei os registros. Você tem mais de sessenta anos e não serei responsável por você levar uma bala na cabeça porque não conseguiu se abaixar a tempo.
- Eu posso te enfrentar a qualquer hora, chlopak!
- Poupe-me desse machismo. Faremos um sinal para você vir quando for razoável.
- Posso voltar às minhas objeções - interrompeu o funcionário do Etranger. - Já planejamos ataques parecidos no Oriente Médio - Oman, Abu Dhabi, Bahrain, e em outros lugares - quando empregamos a Legião Estrangeira. Deveria ter no mínimo mais duas pessoas, ao menos para cobrir seus flancos traseiros.
- Ele tem razão nesse ponto - disse o tenente Anthony.
- Qualquer coisa menos que isso seria ridículo, se não suicida - acrescentou Karin.
Drew levantou os olhos do mapa, para Cloche.
- Talvez eu não estivesse pensando com lucidez - disse ele. - Está bem, mais dois. Quem vocês têm?
- Qualquer um dos dez seria mais do que adequado, mas há três recrutados da Legião Estrangeira que já trabalharam para as Forças de Segurança das Nações Unidas.
- Escolha dois e traga-os aqui dentro de duas horas... Agora vamos ver o nosso equipamento, e me ajude aqui, Stosh.
- Fora os ganchos e a corda, aquelas MAC-10 novas com silenciadores automáticos de repetição, trinta balas por pente, quatro pentes por homem - começou Witkowski. - Também uma balsa de PVC preto, pequenas lanternas azuis, rádios militares UHF, uniformes de camuflagem, binóculos noturnos, facas de caça pesadas, garrotes, quatro pequenas automáticas Beretta, e no caso de problemas realmente sérios, três granadas por pessoa.
- Pode cuidar disso, Sr. Cloche?
- Se repetir devagar, considere-o já providenciado. E agora quanto a...
- Esta noite - interrompeu Latham. - Na hora mais escura.
43
O antigo château era remanescente do gótico, uma fantasmagórica silhueta contra o claro céu noturno, o luar do Vale do Loire refletindo-se nas suas flechas e torrilhões. Tratava-se, fundamentalmente, de mais um pequeno castelo que um château, a manifestação egocêntrica de um nobre menor que aspirava a uma grande linhagem. Era feito de pedra bruta, intercalada com alvenaria muito bem-feita, os séculos deixando suas marcas, constantemente remodelado com a marcha das gerações. Havia algo hipnótico na justaposição de enormes e altas antenas parabólicas com muros construídos no século dezesseis, algo até amedrontador, como se a civilização progredisse inevitavelmente da terra para o ar, de bestas e canhões para as estações espaciais e ogivas nucleares. O que seria melhor e onde acabaria?
Era um pouco antes das duas da madrugada, a brisa estava leve, os ruídos dos animais noturnos eram ouvidos em surdina, enquanto a equipe N mais dois agents du combat, ex-legionários da Legião Estrangeira, tomaram posição. Seguindo um mapa do terreno, iluminado pelo foco fraco e azul de sua pequena lanterna de bolso, o tenente Gerald Anthony conduzia Karin de Vries através do mato rasteiro da íngreme colina, em direção ao promontório. No caminho, Karin sussurrara:
- Gerry, pare!
- O que é?
- Olhe, aqui. - Ela enfiou a mão entre os galhos de um arbusto, puxando um velho e sujo boné, mais um pano do que um chapéu. Virou-o, sua lanterna azul iluminando o interior do forro. O que ela viu deixou-a sem fôlego.
- Qual é o problema? - cochichou o tenente.
- Olhe! - Karin entregou o boné para Anthony.
- Meu Deus! - exclamou o oficial. Numa letra de imprensa tremida, escrito com força num gesto de intensa possessividade, havia o nome Jodelle. - O velho deve ter estado aqui em cima - cochichou o tenente.
- Certamente preenche algumas lacunas. Dê-me de volta. Vou enfiá-lo no meu bolso... Vamos!
Lá embaixo, nos alagados rasos parecendo um pântano, e ocultos pelos juncos altos, os cinco homens se apertavam na pequena jangada de borracha. Latham e o capitão Dietz estavam na proa, atrás deles cada um dos agents du combat do Etranger, que atendiam apenas pelos nomes de Um e Dois, já que esses funcionários preferiam permanecer anônimos. Na popa da pequena embarcação ia um iracundo coronel Witkowski, e se a aparência fosse capaz de explodir o ambiente, eles teriam sido arremessados da água do pântano.
Drew afastava os juncos, com o olhar no promontório da colina íngreme. Veio o sinal. Dois clarões fracos azulados.
- Vamos! - sussurrou ele. - Eles estão em posição.
Usando os dois pequenos remos pretos, os agentes do Etranger impeliam a balsa de PVC através dos juncos, até a correnteza relativamente aberta e rasa do antigo canal. Lentamente, remada após remada, encaminharam-se para a margem oposta, a mais ou menos sessenta metros de distância, passando por um túnel cilíndrico de tijolo que trazia a água desviada do rio Loire até o alagado.
- Você tinha razão, Op. Cons. - disse o capitão falando em voz baixa. - Olha lá, dois fios de arames sustentados por postes atravessando a abertura. Aposto que ambos estão eletrificados. Os dejetos do rio podem passar, mas não a densidade de um corpo humano.
- Tinha que ser, Dietz - cochichou Latham. - Se não haveria um caminho aberto através da margem até esse castelo medieval maluco.
- Como disse Sra. de V, você é realmente um crânio.
- Que nada. Tive um irmão que me ensinou a examinar um problema de inúmeros ângulos e por fim dar uma olhada final nele para descobrir o que eu tinha deixado passar.
- Esse é o "Harry" do qual ouvimos falar, não é?
- Esse é o Harry, capitão.
- Ele é o motivo de você estar aqui, certo?
- Em parte, Dietz. A outra parte é aquilo que ele descobriu.
A balsa de PVC encostou na margem. Silenciosamente, a equipe tirou as cordas enroladas e os ganchos de escalar do fundo, e passou a vau até a margem lamacenta do canal do pântano abaixo da passagem, mais ou menos a vinte metros acima deles. Drew tirou o rádio UHF do bolso lateral de seu uniforme de camuflagem e apertou a tecla de transmitir.
- Sim? - surgiu o sussurro de voz de Karin no pequeno alto-falante.
- Qual é sua visibilidade? - perguntou Latham.
- Setenta, setenta e cinco por cento. Com nossos binóculos podemos esquadrinhar a maior parte da área da piscina e o setor sul, mas só parcialmente o lado norte.
- Não está mal.
- Muito bom, eu diria.
- Algum indício de movimento? Luzes?
- Afirmativo em ambos os casos - interrompeu o sussurro do tenente. - Com uma regularidade de relógio, dois guardas rondam a área dos fundos, em seguida circulam até o setor do meio dos lados norte e sul. Estão carregando pequenas semiautomáticas, provavelmente Uzis ou adaptações alemãs, e rádios nos cintos...
- O que estão vestindo? - interrompeu Drew.
- O que mais poderia ser? Calças e camisas pretas paramilitares e aquelas braçadeiras vermelhas malucas com um raio atravessando a suástica. Delinquentes comuns bancando os Soldaten, com cortes de cabelo de machões e tudo. Você não pode deixar de vê-los, chefe.
- Luzes?
- Quatro janelas, duas no primeiro andar, uma no segundo e a outra no terceiro.
- Atividade?
- Além dos guardas, somente no setor da cozinha, isto é, no lado sul, primeiro andar.
- Sim, lembro dos mapas. Algum palpite sobre a nossa entrada?
- Definitivamente sim. Ambas as patrulhas entram nas sombras do setor do meio, fora de vista, por não menos do que treze segundos e não mais do que dezenove. Vocês se aproximam do muro, eu lhes darei dois sinais pelo transmissor e vocês pulam por cima - rápido! Há três cabines abertas, de modo que eu retiro o que disse antes; dividam-se e dirijam-se a elas. Esperem os guardas voltarem, liquidem-os como puderem, icem os corpos por cima do muro ou os arrastem para dentro das cabines, o que for mais rápido e mais fácil. Isto feito, vocês têm um acesso livre limitado e podem fazer sinal para o coronel.
- Isto é muito bom, tenente. Onde estão os delinquentes agora?
- Separando-se e se dirigindo de volta para os lados. Escalem o muro!
- Cuidado, Drew! - disse de Vries.
- Todos nós tomaremos cuidado, Karin... Vamos lá. - Como formigas disciplinadas a subirem num monte de terra, os cinco homens subiram a margem e chegaram até o alto muro de tijolos e ao portão de ferro ainda mais alto da passagem. Latham se arrastou para a frente e examinou-o; o "portão" era feito de aço grosso e pesado, erguendo-se acima do muro, sem ranhuras ou fechaduras. Só podia ser aberto pelo lado de dentro. Drew mergulhou para trás em direção aos outros, sacudindo a cabeça ao luar. Cada um deles balançou a cabeça, aceitando a conclusão de que o muro precisava ser escalado.
De repente ouviram o ruído de botas sobre pedra, e em seguida duas vozes flutuaram acima deles.
- Zigarette?
- Nein, ist schlecht!
- Unsinn.
O bater de botas prosseguiu; os agents du combat franceses se levantaram, recuaram um pouco, e tiraram do chão os ganchos e os pedaços curtos de corda enrolada. Prepararam-se e ficaram à espera; silenciosamente, sem respirar, todos estavam à espera. Em seguida vieram, dois barulhos breves e cavos do rádio de Latham. Os franceses atiraram os ganchos sólidos de plástico por cima do muro, puxaram e seguraram as cordas esticadas, enquanto Drew e o capitão Dietz trepavam por elas como primatas, com suas armas amarradas nos ombros, subindo com uma mão após a outra, batendo os joelhos nos tijolos, até que seus corpos desapareceram por cima. Assim que o fizeram, os agentes do Etranger pularam nas cordas, seguindo os americanos; quatro segundos depois os ganchos vieram voando, enterrando-se na terra úmida da margem, por pouco errando o furioso Witkowski.
Do outro lado do muro, Latham fez um gesto ao oficial americano e seu companheiro francês para que se dirigissem à cabine aberta mais distante, enquanto ele e seu agente corriam para a primeira. As cabines eram estruturas simples com um esqueleto de madeira, parecendo tendas, cobertas de lona com listras de cor viva, não passando as entradas de abas com um pequeno peso na extremidade, que podiam ser empurradas para trás e ficarem assim abertas para receber ventilação. A própria piscina estava na sombra, o ruído do equipamento de filtragem mal se destacando como um zumbido à distância. Dentro da primeira cabine, Drew virou-se para o Etranger Um.
- Você sabe o que vem agora, não sabe? - perguntou ele.
- Oui, monsieur, sei sim - disse o francês, tirando sua longa faca da bainha, enquanto Latham fazia o mesmo. - S’il vous plaît, non - acrescentou o agente, segurando o pulso de Drew. - Vous êtes courageux, mas meu colega e eu temos mais experiência nesses assuntos, monsieur. Le capitaine e nós discutimos isso. O senhor é por demais valioso para correr o risco.
- Eu não pediria a você para fazer nada que eu não pudesse fazer!
- Já demonstrou-o, mas o senhor sabe o que veio procurar, nós não.
- Vocês discutiram isso...?
- Shhh! - sussurrou o agente. - Aí vem eles.
Os minutos seguintes foram como um show de marionetes em três tempos: câmara lenta, pare e avance rápido. Os dois agentes do Etranger saíram rastejando lentamente de suas respectivas cabines, dando a volta nelas, mantendo-se colados ao chão até cada um se encontrar atrás de sua presa, como dois predadores. De repente o guarda ao norte divisou o agent du combat do lado sul e cometeu um erro. Ele piscou, para ter certeza de que seus olhos espantados e desarmados não o estavam traindo. Girou a semiautomática do seu ombro e estava prestes a gritar, quando Número Dois se jogou contra ele, sua mão esquerda tapando como uma garra a boca do guarda, enquanto a faca era enfiada cirurgicamente nas suas costas. O assustado guarda do setor sul virou-se enquanto Número Um corria à frente, com a faca segura alta, eliminando todo ruído, ao cortar a garganta do nazista.
Todos os movimentos cessaram, durante os segundos necessários para avaliar o momento. Silêncio. Resultado positivo. Os franceses começaram então a arrastar os corpos para a beirada do muro mais próxima de cada um deles, prestes a jogá-los por cima dele, quando Latham saiu da primeira cabine.
- Não! - sussurrou ele tão alto, que foi quase um grito. - Traga-os ambos de volta para cá!
Dentro, os três homens ficaram ao redor de Drew, perplexos.
- Que diabo está fazendo, Op. Cons.? - perguntou o oficial americano Dietz. - Não queremos que ninguém encontre esses palhaços, pelo amor de Deus!
- Acho que não percebeu algo, capitão. O tamanho deles.
- Um é bastante grande, e o outro não. E daí?
- Você e eu, capitão. Não serão tamanhos perfeitos, mas aposto que poderíamos botar esses uniformes idiotas - por cima dos nossos. Até mesmo as camisas - está escuro lá fora.
- Que diabo - disse Dietz lentamente. - Você pode ter razão. Nesta luz, são melhor camuflagem do que os que estamos vestindo.
- Dépêche-toi, depressa! - disse o Etranger Um, enquanto ele e seu colega se ajoelhavam e começavam a despir os uniformes manchados de sangue dos cadáveres.
- Tem um problema - interrompeu o capitão, com todos os olhos cravados nele. - Eu falo alemão, eles falam alemão, mas você não, Op. Cons.
- Eu não pretendo jogar bridge nem tomar um drinque com ninguém.
- Mas se formos parados, esses não são os únicos palhaços de guarda aqui, pode acreditar na minha palavra, escuro ou não escuro.
- Um momento, por favor - disse o Número Dois. - Monsieur Lat’am, consegue dizer a palavra "Halsweh "?
- Claro, háls-fei.
- Experimente de novo, Op. Cons. - disse Dietz, balançando a cabeça em encorajamento para os franceses. - Isso foi ótimo, caras... Halsweh, vamos lá.
- Háls-vei - murmurou Latham.
- Bastante bom - disse o oficial. - Se alguém nos parar, eu falo. Se se dirigirem especificamente a você, você tosse, enrouquece a voz, e diz com dificuldade a palavra "Halsweh", entendeu?
- Que diabo tenho eu?
- É a palavra alemã para dor de garganta, monsieur. Estamos na estação do pólen, sabe. Muita gente passa mal com dor de garganta, olhos lacrimejando.
- Obrigado, Dois, se eu precisar de um médico, chamo você.
- Chega. Ponham as roupas.
Quatro minutos depois, Latham e Dietz eram fac-símiles razoáveis dos guardas neonazistas, apesar dos calombos e manchas de sangue. Nenhum deles enganaria ninguém sob um foco de luz forte, mas nas sombras e na semiescuridão, ambos poderiam se safar com o truque. Descartando as armas alemãs semiautomáticas, substituíram-nas pelas suas próprias, com silenciadores, pondo-as em posição de ação simples, caso a situação exigisse acertar um alvo solitário, e não em movimento.
- Um de vocês vá pegar Witkowski - ordenou Drew. - Pie uma vez como um pássaro e cuidado, se não um gancho pode vir acertar seu pescoço. Ele não é um bom acampador.
- Irei eu - disse Dietz, saindo da cabine.
- Não, não vai - disse Latham, parando o oficial. - Se ele vir esse uniforme, poderá explodir a sua cabeça. Vá você, Número Um. Você e ele conversaram bastante durante nossa sessão esta tarde; ele o reconhecerá.
- Oui, monsieur.
Noventa e seis segundos mais tarde, a imponente figura do coronel Stanley Witkowski entrou na cabine.
- Estou vendo que andaram ocupados - disse ele, olhando para baixo, para os dois cadáveres despidos. - Para que são esses uniformes bobos?
- Vamos caçar, Stosh, e você vai ficar com nossos amigos franceses aqui. Ele estão na nossa retaguarda e nossas vidas dependerão de vocês três.
- O que vai fazer?
- Comece a olhar, não custa nada.
- Achei que vocês talvez entrassem numa fria por falta de referências específicas - disse Witkowski, arrancando um grande pedaço de papel dobrado de seu paletó, abrindo-o e colocando-o sobre as costas de um dos cadáveres. Ele acendeu sua lanterna de bolso azul: era uma planta desenhada em pequena escala do château do Ninho da Águia. - Pedi ao nosso diretor Cloche que fizesse isto para mim em Paris. Pelo menos, vocês não vão caçar que nem cabras cegas.
- Seu filho da mãe, Stanley! - Drew olhou com gratidão para Witkowski. - Você tinha que me superar de novo. Todas aquelas páginas se reduziram a isto. Como pensou nisso?
- Você é bom, chlopak, mas está atrasado. Precisa de uma ajudinha dos velhos mastodontes, é só isso.
- Obrigado, Stosh. Por onde começamos, dê-me uma pista?
- O ideal seria pegar um refém e conseguir a informação possível. É preciso mais do que mapas de dois anos de idade num pedaço de papel.
Latham enfiou a mão por baixo de sua camisa preta nazista e puxou o rádio.
- Karin? - sussurrou ele, apertando o botão de transmissão.
- Onde está você? - perguntou Karin.
- Estamos dentro.
- Sabemos disto - interrompeu o tenente. - Nós assistimos às manobras que os novos recrutas aprontaram. Ainda estão em volta da piscina?
- Sim.
- Do que precisam? - perguntou Karin.
- Queremos fazer um prisioneiro e algumas perguntas. Tem algum corpo à vista?
- Não ao ar livre - disse Anthony. - Mas tem dois ou três naquela cozinha; ficam passando pela janela dos fundos. Parece muito movimentada, meio estranho para essa hora.
- Berchtesgaden - disse Witkowski numa voz baixa e cava.
- O quê? - perguntou Dietz, enquanto ele e os demais olhavam para o coronel.
- É uma réplica do Berchtesgaden de Hitler, onde os garanhões Oberführer e suas múltiplas amantes farreavam dia e noite, sem saber que Hitler enchera seus quartos de aparelhos de escuta, à procura de traidores.
- Como sabe disso? - perguntou Drew.
- Testemunhos dos julgamentos de Nuremberg. Aquela cozinha não vai fechar; os farristas precisam de um descanso de vez em quando, e estão sempre com fome.
- Desligar - disse Latham no rádio, guardando-o novamente sob sua camisa. - Tudo bem, rapazes, como é que vamos tirar alguém dali?
- Precisa ser eu - respondeu Dietz, acendendo sua lanterna de bolso e examinando a planta do château. - Seja quem for que estiver ali, é alemão ou francês. Você não fala alemão e seu francês mal dá para se compreender, e os outros estão vestidos inadequadamente... Há uma porta aqui do lado. Enfiarei minha cabeça e pedirei uma xícara de café, que alguém faça o favor de trazê-la para mim. Em alemão, os dois guardas eram alemães.
- E se eles perceberem que você não é o mesmo guarda?
- Direi que o outro cara passou mal e eu estou substituindo-o. É por isso que preciso do café. Ainda estou meio sonado. - Dietz deixou apressadamente a cabine e caminhou depressa pelo setor sul até a porta da cozinha, Latham e Witkowski agachados na frente da aba que servia de porta, a observá-lo. O oficial parou abruptamente, ficou paralisado, quando duas fortes luminárias do lado do château de repente acenderam. Dietz ficou completamente exposto, a camisa e a calça pretas obviamente herdadas de um defunto maior. Um casal veio caminhando para a claridade, saído da negra sombra atrás, uma garota de minissaia e um homem alto de meia-idade. O homem reagiu à imagem do capitão com espanto, a seguir com fúria. Quis pegar algo sob o casaco; o oficial não teve alternativa. Disparou um único tiro com o silenciador na cabeça do homem, enquanto corria para a mulher, abortando seu grito com um golpe na garganta. Enquanto ela caía desmaiada, o oficial ergueu sua arma; duas cuspidelas a mais fizeram explodir os holofotes. Em seguida ele levantou a mulher, colocou-a no seu ombro e voltou depressa para a cabine.
- Vá buscar a baixa! - sussurrou rispidamente o coronel, puxando a aba para trás e se dirigindo ao francês.
- Eu irei - disse Drew, avançando correndo. Alcançou as sombras; do cadáver do sujeito distinguia-se uma vaga silhueta provocada pelo luar, que era em grande parte bloqueado pelas laterais do castelo. Ele correu em direção ao corpo, quando a porta da cozinha se abriu batendo. Latham deu uma guinada, saindo do campo de visão, agarrando com firmeza sua arma, encostando-se no muro. Um rosto encimado por um chapéu de chef olhou para fora e apertou os olhos contra a escuridão; a cabeça deu de ombros, e o cozinheiro voltou para a cozinha. Suando, Drew prendeu sua arma por cima de seu ombro e correu até o homem caído; inclinou-se, agarrou seus pés, e começou a arrastar o corpo de volta para a cabine.
- Que faites-vous? - disse uma voz de mulher vinda da escuridão.
- Háls-vei - respondeu hesitantemente Latham, sem fôlego, acrescentando em voz rouca - trop de whisky.
- Ah, un allemand! Votre français est médiocre. - Uma mulher trajando um vestido branco comprido e diáfano surgiu no luar fraco. Ela deu uma risada, cambaleando ligeiramente, e prosseguiu em francês. - Uísque demais, você disse? Quem não bebeu? Estou com vontade de mergulhar na piscina.
- Gut - disse Drew, compreendendo o que ela dizia só pela metade.
- Posso ajudá-lo?
- Nein, danke.
- Ah, é Heinemann que você tem aí. É um touro de alemão, um chato completo. - De repente a mulher perdeu o fôlego, quando Latham arrastou o homem chamado Heinemann até o espaço aberto, onde o luar era mais forte; ela viu a cabeça ensanguentada. Drew deixou cair os pés do morto e arrancou a pequena Beretta de seu bolso.
- Se você gritar, serei obrigado a matá-la - disse em inglês. - Consegue me compreender?
- Compreendo com perfeição - respondeu a mulher num inglês fluente, tendo seu cambalear praticamente cessado, frente a seu pavor.
Os dois agentes do Etranger correram até eles. Sem falar, Número Dois arrastou o cadáver até o pé do muro, removendo artigos de seu bolso, enquanto Número Um ia atrás da mulher, empurrando-a em direção à cabine, agarrando seu pescoço com a mão. Latham seguiu-os, e ficou espantado ao perceber que os cadáveres dos guardas neos não estavam mais lá dentro.
- O que aconteceu...?
- Nossas visitas anteriores tinham compromissos urgentes - respondeu Witkowski. - Saíram voando.
- Excelente trabalho, Op. Cons. - disse o capitão Dietz, sentando-se ao lado da sua prisioneira, ambos em cadeiras de lona listrada, com o pequeno recinto iluminado fracamente por lanternas de bolso azuis viradas para cima. - Bem aconchegante aqui, não é? - acrescentou ele, enquanto Etranger Dois voltava para dentro.
As duas mulheres se entreolharam.
- Adrienne? - disse a prisioneira de Latham.
- Allô, Elyse - respondeu desconsolada a cativa de Dietz. - Somos finis, n’est-ce pas?
- Vocês são putas nazistas! - acusou Número Um.
- Não seja tolo! - contestou Elyse. - Trabalhamos onde existe dinheiro, não temos nada a ver com política.
- Sabe quem são essas pessoas? - disse Número Dois. - São feras nazistas! Meu avô morreu combatendo contra eles!
- Isso pertence à história - desdenhou a fria Elyse, de vestido comprido. - Décadas antes que qualquer uma de nós tivesse nascido.
- Você nunca ouviu falar das mortes? - Número Um exclamou com raiva. - Também pertencem à história, e acontece que também são verdade. São fascistas, massacram raças inteiras. Se pudessem, eles me matariam e a toda minha família simplesmente porque somos judeus!
- Mas somos apenas companheiras provisórias, que passamos mais ou menos uma semana aqui todo mês. Nunca discutimos questões sérias. Além do que, viajo frequentemente para várias cidades da Europa, e a maioria dos alemães que vim a conhecer são cavalheiros simpáticos, encantadores.
- Tenho certeza que são - interrompeu Witkowski. - Mas estes aqui não... Estamos perdendo tempo. Estávamos procurando um homem que trabalhasse aqui, e acabamos com duas mulheres que se encontram de visita. Não é muito animador.
- Não tenho certeza quanto a isso, coronel. - Drew pegou no braço de sua prisioneira. - Elyse aqui disse que ela, e eu presumo, sua amiga também, ficam aqui de visita uma semana, com poucos meses de intervalo, não é?
- Esta é a combinação, monsieur - concordou a mulher, se sacudindo livre da mão de Latham.
- E então? - insistiu Drew.
- Depois de recebermos cuidados médicos adequados, vamos para outro lugar. Eu não sei de nada, nós não sabemos de nada. Nosso trabalho é fornecer companhia, do tipo que, creio, vocês não fariam a grosseria de indagar a respeito.
- Não creia em nada, senhorita. Eles mataram meu irmão de modo que não me restou muita fé. - Latham agarrou novamente o braço da mulher, agora com muito mais força, como um torno. As plantas do château estavam em cima de uma das mesas de beira de piscina arranjada às pressas. Drew empurrou-a naquela direção, pegou uma lanterna, e apontou-a para o desenho. - Você e sua amiga vão nos contar o que e quem está em cada cômodo, e deixe-me explicar por que é melhor não mentirem ou esconderem coisas... A menos de um minuto daqui, estrada abaixo, está posicionado um pelotão de ataque da inteligência francesa, pronto para explodir o portão da frente, entrar aqui e prender todo mundo presente no recinto. Eu as aconselho a nos ajudarem, porque assim poderão viver o suficiente para fazer algum trato que as beneficie, já que estão fazendo o circuito. Entendu?
- Seu francês está melhorando, monsieur - disse a cortesã de vestido longo, seus olhos frios e assustados olhando fixamente para os de Latham. - Tudo é uma questão de sobrevivência, não é?... Vamos, Adrienne, examine essas plantas comigo. - A garota de minissaia e olhar inocente ao lado de Dietz se levantou da cadeira e foi ter com sua colega. - Aliás, monsieur, terei facilidade em decifrá-las. Mes études na Sorbonne foram de arquitetura.
- Santa misericórdia - exclamou baixinho o capitão Dietz.
Minutos se passaram enquanto a ex-estudante da Sorbonne examinava os desenhos. Finalmente, ela falou.
- Como veem, o andar térreo é óbvio - a varanda do norte, o grande recinto social no centro que também serve de sala de jantar, e a cozinha, suficientemente grande para servir a um restaurante popular na Rive Droite. Nos segundo e terceiro andares existem suítes para dignitários em visita, que Adrienne e eu podemos descrever, até quanto aos colchões.
- Quem está nelas agora? - perguntou Witkowski.
- Herr Heinemann estava com você, Adrienne, certo, mon chou?
- Oui - disse a garota. - Um homem tão ruim!
- As outras suítes naquele andar estão ocupadas por Colette e Jeanne, seus companheiros são homens de negócios de Munique e Baden-Baden; e no terceiro andar estou eu e um sujeito extremamente nervoso, tão desequilibrado que bebeu até entrar num estupor e não conseguiu funcionar. Eu fui-lhe grata, é claro, e resolvi dar um passeio, quando o encontrei, monsieur. Os outros cômodos não estão ocupados.
- O sujeito com você, como parece? - perguntou Latham. Elyse descreveu-o, e Drew disse em voz baixa. - Eis o nosso homem. É Bergeron.
- Ele está apavorado com alguma coisa.
- Deveria estar. Ele é um risco e sabe disso... Você descreveu três andares; há um quarto. O que tem lá?
- É completamente vedado a todo mundo, a não ser para uns poucos escolhidos que usam ternos pretos com braçadeiras vermelhas com a suástica. São todos altos, como você, e têm uma pose bastante militar. Os empregados, até os guardas, têm um medo danado deles.
- O quarto andar?
- Parece um túmulo, monsieur, um túmulo vivo de um grande faraó, só que ao invés de estar enterrado nas entranhas da pirâmide, ele está no ponto mais elevado, mais perto do sol e do céu.
- Explique melhor, por favor.
- Eu disse que estava vedado o acesso, verboten, mas eu também devia acrescentar que está lacrado. Este túmulo bastante habitado se compõe do quarto andar inteiro e todas as portas são de aço. Ninguém entra lá a não ser os homens de terno preto. Eles enfiam as mãos em determinadas aberturas na parede e pressionam as palmas das mãos para abrir determinada porta.
- Scanner eletrônico de impressões palmares - disse Witkowski. - Não há maneira de contornar aquelas células fotoelétricas.
- Se nunca foi até lá, como sabe disso tudo? - perguntou Drew.
- Porque as escadas da frente e de trás que dão para o andar de cima, além dos vestíbulos, são constantemente guardadas. Até mesmo os guardas precisam relaxar, monsieur, e alguns deles são muito atraentes.
- Ah, oui - interrompeu alegremente a jovem de minissaia. - O louro Erich me pediu por favor para ir vê-lo sempre que eu estivesse livre, e eu vou.
- É um mundo injusto - murmurou Dietz.
- Quem é o faraó no andar de cima? - insistiu Latham.
- Isso não é segredo - respondeu Elyse. - Um homem velho, muito velho, que é idolatrado por todos eles. Ninguém pode falar com ele a não ser seus ajudantes de terno escuro, mas toda manhã trazem-no para baixo de elevador, seu rosto escondido por um pesado véu, é empurrado na sua cadeira de rodas até um lugar que eles chamam de "caminho da meditação", depois da piscina. Eles abrem o portão e ele dispensa todo mundo, manda todos embora. Em seguida sai de sua cadeira, fica em pé ereto, desmentindo sua idade, e literalmente sai marchando para um lugar que ninguém jamais viu. Dizem que ele o chama de seu "ninho de águia", lugar onde ele medita e toma sábias decisões, enquanto toma seu café da manhã e conhaque.
- Monluc - disse Drew. - Meu Deus, ele ainda está vivo!
- Seja lá quem for, ele é o tesouro que eles mantêm vivo.
- Será um tesouro? - perguntou Witkowski. - Ou na realidade, apenas uma figura de fachada que eles manipulam segundo seus interesses?
- Não posso pressupor que eu tenha a resposta - disse a instruída garota de programa - mas duvido muito que ele seja manipulado por qualquer pessoa. Do mesmo modo que os empregados têm pavor de seus auxiliares, estes parecem aterrorizados por ele. Ele os censura constantemente, e quando os ameaça dispensar, eles literalmente rastejam diante dele.
- Não poderiam estar representando seus papéis? - Latham examinou o rosto da cortesã na luz azulada.
- Se estivessem, nós saberíamos, porque nós também somos obrigadas a desempenhar constantemente nossos próprios papéis. É muito difícil que impostores consigam enganar outros impostores.
- Vocês são impostoras?
- De muitas outras maneiras que jamais poderá imaginar, monsieur.
- Mesmo assim, deve haver boatos. Esse tipo de comportamento não passa despercebido.
- Boatos, sim. O mais insistente é que o velho senhor é dono de uma imensa fortuna, de quantias extraordinárias que só ele pode movimentar. Dizem ainda que ele usa dispositivos eletrônicos sob seus roupões para monitorar sua saúde, enviando informações ininterruptas à equipe médica no quarto andar, que são retransmitidas para locais desconhecidos na Europa.
- Na sua idade, isto é compreensível. Ele deve ter mais de noventa anos.
- Dizem que tem mais de cem.
- E com todas as faculdades intactas?
- Se jogasse xadrez, monsieur, eu não apostaria muito contra ele.
- O equipamento de retransmissão, chlopak - interrompeu o coronel. - Se for programado para retransmitir, pode ser desmontado e aqueles locais desconhecidos para onde retransmite, conhecidos.
- Quando menos não fosse, ele nos levará aos recursos financeiros, aos pontos de transferência. É por isso que ele é monitorado onde quer que vá. Se cair morto, as portas dos cofres se fecham, à espera que venham outras ordens.
- E se pudermos descobrir os locais, saberemos de onde vem essas ordens - acrescentou Witkowski. - Precisamos ir até lá em cima!
Drew virou-se para a fria, porém amedrontada Elyse.
- Se você estiver mentindo, passará o resto de sua vida numa cela.
- Por que haveria eu de mentir numa hora dessas, monsieur? Deixou claro que eu deveria implorar por minha liberdade, de qualquer jeito.
- Não sei. Você é esperta, pode ter achado que nós seríamos mortos tentando chegar lá em cima, sua desculpa sendo que são prostitutas bem-pagas que não sabem de nada. Isto poderia funcionar.
- Aí ela estaria morta, mon supérieur - disse Etranger Dois. - Eu a amarrarei no portão do muro com plastique entre as pernas, que será explodido pelo meu controle eletrônico.
- Meu Deus, eu não sabia que você tinha esse tipo de coisa!
- Acrescentei uma coisinha ou outra, chlopak.
- Eu lhe ofereço uma solução melhor - disse a cortesã, esticando o braço e segurando o ombro da garota mais jovem. - Eu lhe ofereço nós duas.
- Et moi? - guinchou a de minissaia. - O que está dizendo Elyse?
- Fique quieta, ma petite... Vocês querem entrar no Ninho da Águia, n’est-ce pas? Acho que será mais fácil conosco do que sem a gente.
- Como? - perguntou Latham.
- Nós somos conhecidas - entenda isto como quiser - de muitos dos funcionários e da maioria dos guardas. Podemos fazê-los passar pela cozinha até le grand foyer, onde fica a escada principal. A escada dos fundos, como podem ver nas plantas, passam por vestíbulos menores à direita. Podemos fazer isto e mais, algo muito importante. Você precisará de um dos auxiliares do velho para conseguir chegar ao último andar - se conseguir chegar lá. São cinco, todos armados, e seus aposentos são também no quarto andar, mas um ou outro está sempre de folga. Ele fica na biblioteca, na parte da frente do château, onde pode ser imediatamente contatado pelo patron, ou por qualquer um da equipe. Eu indicarei a porta para vocês.
- E nós? - disse Etranger Um. - Como explicará a nossa presença?
- Estive pensando nisso. A segurança aqui é imensa e variada. Técnicos e outras pessoas chegam e vão embora depois de verificar os equipamentos. Direi que vocês são uma patrulha externa enviada para controlar o terreno do lado de fora do muro. Suas roupas emprestarão credibilidade à mentira.
- Sehr gut - disse Dietz.
- Você fala alemão?
- Einigermassen.
- Então você mesmo dirá isto a quem perguntar, terá mais autenticidade.
- Eu não estou vestido como eles.
- Você obviamente ficará, com essas roupas que tirou dos guardas.
- Jean-Pierre Villier...! - disse Drew, como se o nome tivesse lhe vindo à cabeça saído do nada. - "As roupas constituem o camaleão", ou algo assim.
- De que está falando, chlopak?
- Nós estamos fazendo isto errado... Dispa-se, capitão, até ficar de cuecas!
Quatro minutos mais tarde, Latham e Dietz, sem seus uniformes militares, trajavam os uniformes paramilitares dos guardas nazistas, que agora lhes cabiam muito melhor. O pano negro disfarçava as manchas de sangue e o único furo nas costas do oficial, enquanto os cintos com trama acomodavam melhor suas facas, garrotes e pequenas automáticas Beretta.
- Enfiem suas camisas para dentro, especialmente atrás - ordenou o coronel. - Assim parecem mais sob medida.
- Heil Hitler - disse Dietz, olhando aprovadoramente para a imagem que podia distinguir de si mesmo na luz azulada e fraca da cabine.
- Você quer dizer Heil Jäger - corrigiu-o Drew, igualmente satisfeito com sua aparência.
- A única coisa que você diz é "Halsweh ", Op. Cons.
- Lembrem-se, franceses, eu sou seu comandante - disse Witkowski. - Se houver dúvidas, sou eu que as esclareço.
- Très bien, mon colonel - concordou Etranger Dois.
- Pronto, gente? - disse Dietz, pegando as duas semiautomáticas e entregando uma a Latham.
- Tão prontos quanto jamais estaremos. - Drew virou-se para as mulheres, que se levantaram juntas das cadeiras de lona, a jovem Adrienne amedrontada, trêmula, Elyse, mais velha, pálida e resignada. - Eu não faço julgamentos, apenas observações práticas à medida que observo - prosseguiu Latham. - Vocês estão com medo e eu também, porque o que esses dois rapazes fazem, geralmente eu não costumo fazer, fui obrigado a fazê-lo. Creiam, é preciso que alguém faça, e isso é tudo que posso lhes dizer. Lembrem-se, se sairmos desta, nós estaremos do lado de vocês em relação às autoridades... Vamos embora.
44
Os primeiros empregados da cozinha a verem o uniformizado Latham e Dietz passarem pela porta eram dois homens numa longa mesa de madeira de açougueiro, um deles cortando verduras, o outro passando um líquido por uma peneira. Espantados, entreolharam-se, voltando em seguida a olhar para Drew e o capitão, que se afastaram um do outro imediatamente, de modo bem militar, permitindo que Witkowski, no uniforme de camuflagem, se adiantasse até ficar no meio deles. Com caras assustadas, dobraram rapidamente os cotovelos na saudação nazista informal, como se o coronel fosse um homem de considerável posição, impressão reforçada pelo veterano do G-2.
- Sprechen Sie Deutsch? Falls nicht, parlez-vous français? - rosnou ele.
- Deutsch, mein Herr! - respondeu o espantado chef das verduras, prosseguindo em alemão. - Este é um lugar de se preparar comida, e somente nós merecemos confiança... Se assim posso perguntar... quem é o senhor?
- Este é Oberst Wachner do Quarto Reich! - proclamou Dietz num alemão ríspido, com o olhar dirigido para a frente. - Ele e seus colegas da segurança foram ordenados por Berlim para inspecionar o terreno externo sem prévia notificação. Kommen Sie her!
Diante da ordem, os agentes do Etranger, agarrando os braços das duas cortesãs do Ninho da Águia, marcharam pela porta aberta.
- Podem identificar essas mulheres? - rosnou praticamente Witkowski. - Nós as encontramos andando livremente em volta da piscina e da quadra de tênis. O ambiente aqui é muito liberal!
- Temos liberdade de fazê-lo, seu idiota! - gritou Elyse, vestida de branco. - Eu pouco me importo com o que vocês são, digam a seus gorilas para tirarem suas mãos de nós, ou então para começarem a nos pagar.
- Bem? - gritou "Oberst Wachner", olhando fixamente para o pessoal da cozinha.
- Ah, sim, senhor - disse um chef. - Elas são convidadas aqui.
- E nosso contrato não inclui servir a estrangeiros, apenas aos outros convidados a quem fomos adequadamente apresentadas! - Elyse olhava furibunda para Witkowski. O coronel balançou a cabeça; o agent du combat tirou suas mãos, do mesmo modo que Um tirou-as de Adrienne com sua minissaia. - Acredito que nos deve pedir desculpas - disse a garota de programa mais velha, muito mais inteligente.
- Madame. - O coronel bateu os tacões esmeradamente, mal inclinando a cabeça uns cinco centímetros e tornando a virar-se imediatamente para os cozinheiros. - Como podem perceber, nossa tarefa aqui é analisar as medidas de segurança, sem interferência daqueles que encobririam as suas falhas se soubessem que estávamos aqui. Se quiserem, liguem para Berlim para confirmar nossa presença.
- Ach, nein, mein Herr! Isto já aconteceu antes, há vários anos e a gente certamente entende. Somos apenas chefs de cozinha, e jamais interferiríamos.
- Sehr gut! Vocês são os únicos que estão de serviço?
- Neste momento, sim, senhor. Nosso colega, Stoltz, já foi para seu quarto há uma hora. Ele precisa acordar às seis horas para preparar o bufê do café da manhã - o que ainda não preparamos para ele.
- Muito bem, prosseguiremos com nossa inspeção adiante. Se alguém perguntar sobre nós, vocês não sabem do que eles estão falando. Lembrem-se disso, senão Berlim se lembrará de vocês.
- Wir haben verstanden - disse temeroso o homem das verduras, balançando repetidamente a cabeça. - Mas se assim posso dizer, mein Herr, pois desejo cooperar inteiramente com Berlim, os guardas lá dentro são treinados para atirar em intrusos. Eu não gostaria de ter suas vidas na minha consciência, ou na minha ficha. Verstanden?
- Não se preocupe - respondeu Stanley Witkowski, tirando sua identidade americana do bolso e proclamando com a arrogância de um antigo nobre polonês. - Pelo menos, isto os fará guardar suas armas. - E reembolsou rapidamente suas credenciais da embaixada americana. - Nós também vamos levar as mulheres. A puta grande fala alto e tem uma língua ferina. Acho que nos daremos bem!
Com Latham e Dietz encabeçando a procissão, os invasores franco-americanos passaram pela porta dupla até o grande saguão do château. Uma escada circular mal-iluminada por candelabros de parede erguia-se do centro do enorme foyer de madeira encerada. Havia uma arcada logo adiante que levava a outros cômodos escuros, de pé-direito alto, e do lado direito, à esquerda das grandes portas duplas da entrada, uma porta menor, com uma luz que escapava pelo espaço entre a soleira e a própria porta.
- Aqui é a biblioteca, monsieur - sussurrou Elyse para Drew. - Qualquer auxiliar, de serviço, estará aqui, mas você precisa ser rápido e cauteloso, existem alarmes em todo canto. Eu sei, pois já pensei várias vezes em usar vários deles eu mesma.
- Halt! - gritou a voz de uma figura contra a luz, surgida do primeiro patamar da escada.
- Somos uma força especial de Berlim! - exclamou Dietz, em alemão, enquanto subia correndo a escada.
- Was ist los? - O guarda levantou sua arma enquanto o oficial disparava dois tiros com silenciador em rápida sequência, e, sem interromper o passo, alcançou o segurança que caía, arrastando-o até os degraus e rolando-o escada abaixo.
A porta da biblioteca se abriu, revelando um homem alto num terno escuro, com uma longa piteira na sua mão esquerda.
- Que estardalhaço é este? - perguntou em alemão. Latham arrancou o garrote do seu cinto, passando-o imediatamente sobre a cabeça do auxiliar de Monluc, torcendo-o e girando o corpo do homem de modo a ficar atrás do nazista. Afrouxou a correia de couro e falou.
- Faça exatamente o que eu lhe disser ou puxarei a correia e você morrerá!
- Amerikaner! - engasgou o neo, deixando cair a piteira. - Você é aquele que está morto!
- Oberst Klaus Wachner - disse Witkowski, aproximando-se do auxiliar e fitando seu rosto convulso. - As histórias de sua obscena segurança parecem ser verdade - prosseguiu ele num ríspido alemão. - Berlim - até Bonn - sabem a respeito delas! Nós passamos pelo seu sistema de segurança, e se nós pudemos, também poderão nossos inimigos!
- Você é maluco, um traidor. O homem que está me esganando é um americano!
- Um valioso soldado do Quarto Reich, mein Herr. Uma Sonnenkind!
- Ach! Nein!
- Doch. Você obedecerá suas ordens ou deixarei que ele prossiga à sua maneira com você. Ele detesta incompetência. - Witkowski acenou com a cabeça para Latham afrouxar mais ainda as correias do garrote.
- Danke - tossiu o auxiliar de Monluc, agarrando sua garganta.
- Dois - disse Drew, fazendo um gesto com a cabeça em direção ao segundo agente do Etranger. - Pegue esse palhaço aqui! Suba pelas escadas de trás; ela passa por aqueles outros quartos...
- Sei onde eles ficam, monsieur - interrompeu o francês. - Simplesmente não sei quem está lá.
- Irei com ele - disse Dietz. - Falo a língua e minha automática está na frente de nós dois.
- Coloque-a na posição de fogo contínuo - ordenou Latham.
- Já está, Op. Cons.
- De acordo com as plantas - continuou Drew - existe um corredor de paredes em volta do andar inteiro. Quando chegar lá em cima, traga-o para o centro dele.
- A não ser que a gente fique enrascado - redarguiu o oficial.
- O que quer dizer, capitão?
- Você não tem ideia do que existe lá em cima dessas escadas, não mais do que eu. Digamos que você seja recebido por um tiroteio total, um de nós terá de explodir o lugar. Eu enfio a mão desse filho da puta numa das ranhuras, abro a porta e jogo granadas lá dentro.
- Não pode fazer isto, é uma ordem!
- É um procedimento padrão, Op. Cons. Não vamos arriscar nossas vidas para sair de mãos abanando!
- Precisamos pegar seja lá o que for que estiver lá em cima, porra. Não podemos explodir o lugar! Ao invés de fazê-lo, prefiro mandar uma ordem pelo rádio para o pelotão de assalto na estrada.
- Não haverá tempo, pelo amor de Deus! Os próprios neos o farão!
- Parem, ambos! - gritou Elyse. - Eu lhes ofereci nós duas e esta oferta ainda está de pé. Adrienne irá na frente de seu capitão e do nazista na escada de trás, e eu subirei na sua frente, monsieur. Os guardas hesitarão em atirar em qualquer de nós, pois existem constantes encontros amorosos aqui entre homens e mulheres.
- Berchtesgaden - disse Witkowski baixinho. - Um bordel alpino administrado por um Führer que alegava ser mais puro que um cordeiro recém-nascido... Ela tem razão, chlopak. A imagem das garotas nós dará uma vantagem milesimal, na frente e nos fundos. Aceite-a.
- Está bem!... Vamos, e espero em Deus estar dando a ordem certa.
- Não tem escolha, rapaz - disse o coronel com delicadeza. - Você é o líder, e como todos os líderes, ouve seus homens, avalia e toma sua própria decisão. Não é fácil.
- Pare com essa merda militar, Stanley, eu preferiria estar jogando hóquei.
Elyse, no seu diáfano vestido branco, começou a subir regiamente pela escada circular; Drew, o coronel e Etranger Um seguiam-na dez passos atrás, encobertos pela escuridão.
- Liebling! - sussurrou um guarda no vestíbulo além do patamar, com uma voz exuberante. - Já se livrou daquele bêbado de Paris, sim?
- Ja, Liebste, vim só por sua causa. Estou tão entediada.
- Está tudo tranquilo, vem comigo... ach, quem são eles? Atrás de você! - Etranger Um disparou um único tiro com o silenciador. O guarda caiu no corrimão, passou por cima dele e foi despencar no chão de mármore embaixo.
A escada dos fundos estava escura; a única luz, bem acima, criava sombras dentro de sombras mais escuras. A apavorada Adrienne subia degrau por degrau a íngreme escadaria, com o corpo tremendo, os olhos arregalados de medo. Chegaram ao segundo andar.
- Was ist? - veio a voz estridente lá de cima, enquanto o súbito feixe de luz de uma poderosa lanterna iluminava a escada inteira. - Liebchen?... Nein!
Etranger Dois disparou; o guarda nazista caiu, com a cabeça presa no corrimão.
- Adiante! - ordenou o capitão Dietz. - Ainda faltam dois andares.
Arrastaram-se para a frente, a jovem prostituta chamada Adrienne chorando copiosamente, assoando o nariz no pano de sua blusa.
- Não é tão longe assim, ma chérie - sussurrou delicadamente Etranger Dois para a garota. - Você é muito corajosa e diremos isto a todo mundo.
- Por favor, diga a meu pai! - choramingou a jovem. - Ele me detesta tanto!
- Eu o farei pessoalmente. Porque você é uma verdadeira heroína francesa.
- Eu sou?
- Continue, minha filha.
Latham, Etranger Um e o coronel pararam abruptamente na escada, ao verem a mão de Elyse fazendo um gesto nas suas costas; era um aviso. Recuaram pelos degraus descendentes, encostaram-se contra a parede no escuro e ficaram à espera. Um guarda louro apareceu andando apressado no patamar do terceiro piso; estava agitado, zangado.
- Fräulein, viu Adrienne? - perguntou ele em alemão. - Não está no quarto com aquele porco do Heinemann. Ele também não está e a porta se encontra aberta.
- Provavelmente foram dar um passeio, Erich.
- Esse Heinemann é um sujeito feio, Elyse!
- Tem certeza que não está com ciúmes, meu caro? Você sabe aquilo que somos, o que fazemos. Somente os corpos estão envolvidos, não os nossos corações, nossos sentimentos.
- Meu Deus, ela é jovem demais!
- Eu mesma já lhe disse isso.
- Sabe que Heinemann é pervertido, não sabe? Exige coisas terríveis.
- Não pense a respeito delas.
- Detesto este lugar!
- E por que fica?
- Não tenho escolha. Meu pai me matriculou quando eu estava no ginásio e fiquei muito impressionado. Os uniformes, a camaradagem, o fato de estarmos juntos à margem. Disseram-me que eu era especial e me escolheram para carregar os estandartes nas reuniões. Tiraram fotos de mim.
- Você ainda pode partir, meu amigo.
- Não, não posso. Eles pagaram pelos anos que passei na universidade e sei coisas demais. Eles me caçariam e me matariam.
- Erich! - gritou uma voz de homem no vestíbulo, além do patamar. - Kommen Sie her!
- Ach, esse aí vive gritando. Faça isto, faça aquilo! Não gosta de mim porque frequentei a faculdade e acho que ele é semialfabetizado.
- Quando eu vir Adrienne, dir-lhe-ei que você está... preocupado. Lembre-se, rapaz, é só o corpo, não o coração.
- Você é uma boa amiga, Fräulein.
- Espero poder ser melhor, até um dia. - O guarda chamado Erich subiu apressado, para além do patamar, enquanto Elyse recuava vários degraus e vinha sussurrar aos intrusos encostados na parede. - Não matem este aqui. Poderia ser útil para vocês.
- O que está ela falando? - perguntou Drew.
O coronel explicou, enquanto Elyse continuava a subir a escada.
- Ela disse para não desperdiçá-lo, e tem razão.
- Por quê?
- Ele quer sair daqui e sabe muita coisa. Vamos!
O patamar do quarto andar não era, segundo as palavras de Witkowski, muito animador. Uma grande arcada de sete metros era o único espaço vazado na parede que cercava o andar de cima inteiro. Presumivelmente, seria igual na escada dos fundos. Dois guardas permaneciam no portal, outro podia ser distinguido atrás deles, sentado num banco. Novamente Latham, E-Um e o coronel ficaram ocultos, enquanto Elyse subia até ser avistada pelos guardas.
- Halt! - vociferou o guarda neo à direita, tirando sua pistola do coldre e apontando-a para a cabeça da garota de programa. - O que está fazendo aqui em cima? É proibido a todo mundo subir essa escada!
- Então é melhor você verificar com Herr sei lá o quê, na biblioteca. Ele me chamou, dizendo-me para eu me livrar do sujeito novo de Paris, e vir aqui assim que eu conseguisse. O que mais posso dizer?
- Was ist los? - gritou o guarda do banco recuado, levantando-se e avançando depressa até ficar entre os dois homens. - Quem é você? - berrou ele.
- Nós usamos apenas nosso nome de batismo, e você sabe disso - respondeu a cortesã zangada. - Sou Elyse, e não tolerarei a sua grosseria! Fui mandada vir aqui por aquele fantasma na biblioteca e, tal como você, obedeço às ordens! - De repente Elyse pulou fora da linha de fogo e gritou:
- Agora!
As repetidas cuspidelas de explosões abafadas encheram o setor mais alto do château, à medida que os três guardas caíam. A equipe de assalto, liderada por Drew, subiu correndo as escadas, verificando os sinais vitais de cada corpo. Satisfeitos, esperaram de costas contra a parede interna.
- Saia daí! - ordenou Latham, dirigindo-se a Elyse no seu vestido branco, que subira as escadas até a arcada. - Mereceu sua liberdade, menina, nem que eu tenha que explodir o Quai d’Orsay para consegui-la.
- Merci, monsieur. Seu francês melhora a cada minuto.
- Volte à cozinha - disse Witkowski. - Conte-lhes casos engraçados a nosso respeito e mantenha todo mundo calmo.
- Não é problema, mon colonel. Sentarei numa mesa e subirei meu vestido. Ficarão calmos por fora, preocupados por dentro... Au revoir.
- Como disse seu capitaine, é um mundo definitivamente injusto - murmurou Etranger Um, enquanto Elyse desaparecia.
- Onde estão eles? - perguntou Drew. - Já deveriam estar aqui a esta altura!
Na estreita escada dos fundos, Etranger Dois, dando uma chave de braço no auxiliar do general Monluc e com o garrote em posição, empurrava-o escada acima atrás de Dietz e da jovem prostituta. Pararam.
- Bist Du es, Adrienne? - disse a voz calma no terceiro andar. - O que está fazendo aqui?
- Eu queria ter ver, Manfried - choramingou a garota. - Todo mundo é tão mau comigo e eu sabia que você estava aqui.
- Como poderia ter sabido, Liebste? A escala é secreta.
- Os auxiliares falam depois de tomarem muitos schnapps.
- Serão punidos por isso, minha bela menina. Venha aqui, há um tapete macio e faremos uso dele. Será que já lhe disse que seus seios ficam mais bonitos cada vez que você vem aqui?
- Mate-o! - gritou Adrienne, colando-se à parede da escada.
Dois tiros abafados e o guarda chamado Manfried caiu. Com o garrote apertado, prosseguiram até o último, o andar final. Depois da volta da escada havia uma arcada de sete metros, com um único guarda em pé no centro e outro atrás dele, cochilando num banco.
- Conhece-o? - cochichou Dietz em francês na orelha de Adrienne.
- Non, monsieur. Ele é novo. Só conheço-o de vista, é tudo.
- Sabe se ele é alemão ou francês?
- Definitivamente alemão. Quase todos os guardas são alemães, mas muitos falam francês, os mais instruídos.
- Farei algo que vai alarmá-la, mas quero que permaneça calma e quieta, compreende?
- O que vai fazer?
- Haverá um grande fogo brilhante, mas não durará muito. Foi ideia do coronel.
- Le colonel?
- O sujeito grande que fala alemão.
- Ah, oui! O que é?
- É chamado foguete de sinalização - disse Dietz, tirando um tubo curto coberto de papelão do seu bolso direito e acendendo o pavio com um fósforo protegido pela sua mão. Ele deu uma olhadela em volta do canto do corrimão, esperou, com os olhos no pavio, em seguida atirou-o sobre os degraus estreitos, além do corpo do guarda. Aturdido, o neonazista virou-se subitamente ao som do foguete passando por ele e atingindo o chão; antes que ele pudesse se adaptar à situação, uma explosão ofuscante de faíscas incandescentes penetrou nos seus olhos e corpo. Ele gritou, enquanto o guarda que cochilava atrás dele levantou-se apavorado, de um pulo, sua figura destacando-se além da cortina de chamas movediças. Em pânico, disparou repetidamente com sua semiautomática, enchendo de balas a escada estreita. A garota, Adrienne, gritou de dor; fora atingida na perna. Dietz puxou-a para trás, enquanto o auxiliar de Monluc, seguro firmemente por Etranger Dois, exalou abruptamente, sua cabeça caindo para a frente; fora atingido no crânio. O oficial apontou sua arma ao ultrapassar a volta do corrimão, com ela na posição de fogo contínuo, varrendo o recinto. O segundo guarda girou sobre si mesmo, vindo a cair em cima do próprio foguete. Rolos de fumaça negra encheram tudo, enquanto Dietz agarrou a garota pelas pernas, carregando-a escada acima no colo.
- Traga aquele filho da puta aqui em cima! - ordenou ele em francês a Etranger Dois.
- Il est mort, mon capitaine.
- Eu estou pouco me lixando para o seu futuro, só quero a porra de sua mão, e que não seja muito fria!
No corredor do quarto andar, a equipe da escada dos fundos correu para a esquerda, Dietz jogando Adrienne por cima de seu ombro, o agente francês arrastando o nazista junto com ele. Seis segundos mais tarde chegaram à arcada central que interrompia a parede. Latham, Witkowski e Etranger Um estavam à espera. Dietz arriou a garota delicadamente no chão; felizmente, ela desmaiara.
- É grave - disse o coronel examinando o ferimento. - Mas o sangue não está jorrando. - Ele tirou seu garrote e amarrou-o depressa em torno da perna da garota, apertando suas correias. - Isso dará um jeito por enquanto.
Etranger Um e Dois prendiam o auxiliar nazista contra a parede interna, à esquerda do que deveria ser o scanner palmar para abrir a porta, uma ranhura mal iluminada, suficientemente grande para se enfiar a mão, com a palma pressionada para baixo. No entanto, se houvesse algum equívoco na combinação, um alarme dispararia nos aposentos que pareciam um cofre, guardados por grossas paredes.
- Pronto, monsieur? - perguntou E-Dois, agarrando o punho direito sem vida do neonazista.
- Espere um minuto! - disse Latham. - E se ele for canhoto?
- Aí?
- As células fotoelétricas rejeitariam sua impressão e disparariam o alarme. É assim que essas coisas funcionam.
- Não podemos acordá-lo para perguntar-lhe.
- Aquela piteira estava na sua mão esquerda... Vamos olhar nos seus bolsos. - A busca no cadáver continuou. - Moedas e prendedor de notas... bolso esquerdo da calça - continuou Drew. - Maço de cigarros, bolso esquerdo do paletó; duas esferográficas, bolso interno direito do paletó, e o terno é sob medida.
- Não compreendo...
- Os canhotos preferem pegar lápis e canetas do lado direito, do mesmo modo que eu, que sou destro, prefiro pegá-los do lado esquerdo. É mais fácil, só isso.
- Sua decisão, monsieur?
- Preciso pôr toda a minha coragem nisto - disse Latham, respirando fundo. - Empurre-o para o outro lado e eu enfiarei a mão esquerda dele aí.
O francês foi empurrando o corpo contra a parede até ele ficar do lado direito da ranhura. Drew agarrou o pulso esquerdo, e, como se estivesse desmantelando uma bomba complicada, inseriu a mão e lenta e cautelosamente comprimiu a sua palma contra a superfície lá dentro. Ninguém respirou até que a grande porta de aço se abrisse silenciosamente. O nazista morto caiu ao chão e os quatro homens entraram. O cômodo que penetraram era mais um terrível pesadelo do que os aposentos de alguém.
O enorme quarto tinha um formato octogonal, com uma claraboia em cúpula que deixava passar o luar. A cortesã, Elyse, chamara-o de túmulo de faraó, uma sepultura vazia, e sob vários aspectos, ela estava certa. Era estranhamente silencioso, som nenhum vinha do exterior, e ao invés dos bens de um faraó para ajudá-lo a atravessar o rio da morte, havia uma parede cheia de equipamento médico para impedi-lo de entrar naquelas águas. Havia oito portas, uma para cada imensa parede do octógono. Elyse contara que os auxiliares do general Monluc tinham seus quartos dentro do túmulo; cinco portas deveriam pertencer aos homens dos ternos escuros, deixando três desconhecidas, uma presumivelmente um banheiro, duas... pontos de interrogação.
Tudo isso foi registrado durante segundos, em duas ou três olhadelas, mas o que primeiro impressionava o olhar de um estranho eram as fotos grotescamente ampliadas, em todas as paredes, todas banhadas numa luz de um vermelho vivo vinda dos rodapés. Eram o registro das atrocidades nazistas; como se fosse um corredor escuro num museu dedicado ao Holocausto - os horrores infligidos aos judeus e aos "indesejáveis" pelos loucos que compunham as hordas messiânicas de Hitler, com fotos de cadáveres nus empilhados. Ao lado delas, haviam fotos de homens e mulheres louros - provavelmente traidores - enforcados, os rostos se contorcendo na agonia, recordações de que toda dissidência, não importa quão pequena, era proibida. Somente a mente mais doentia poderia acordar no meio da noite e obter uma satisfação instantânea diante daqueles obscenos painéis.
A cena mais hipnótica, entretanto, era a figura de camisola na cama. Estava banhada por uma luz baça e branca, em contraste com o brilho magenta-vermelho que iluminava as paredes. Um homem muito, muito velho, recostado em travesseiros macios que faziam seu corpo parecer pequeno, seu rosto murcho afundado nas dobras sedosas, como se estivesse num caixão. E aquele rosto. De quanto mais perto se olhava, mais hipnotizante ficava.
As faces encovadas, os olhos afundados em suas órbitas! Ambos de aspecto esquelético, devido à idade. O bigode curto sob as narinas, agora branco como a neve, mas aparado com cuidado; as feições pálidas, de fácil lembrança quando coradas sob ira da oratória - estava tudo ali! Até mesmo o famoso tique no olho direito que surgira depois da tentativa de assassinato em Wolfsschanze. Tudo ali! Era o rosto envelhecido de Adolf Hitler!
- Meu Deus do céu! - sussurrou Witkowski. - Será possível?
- Não é impossível, Stanley. Seria a resposta de muitas indagações que vêm sendo feitas há mais de cinquenta anos. Especialmente duas: De quem eram realmente os corpos carbonizados naquela vala do bunker, e como surgiu o boato de que o Führer conseguira alcançar um aeroporto, disfarçado como uma velha? Quero dizer como, por quê?... Agora não há tempo, Stosh, precisamos tomar este túmulo de faraó, antes que ele se transforme realmente nisso.
- Chame a equipe francesa.
- Não até termos certeza de que não existem aqui artefatos de autodestruição. Porque se tem alguma coisa aqui, está nestes quartos... Vamos desentocar os outros quatro auxiliares do faraó.
- Como pretende fazer isso, chlopak?
- Um freguês de cada vez, coronel. As portas têm maçanetas, e posso apostar que não estão fechadas por dentro. Não no Quarto Reich, onde a privacidade não chega a ser uma prioridade nos escalões superiores, especialmente quando Monluc - ou seja lá quem for ele - vive cercado por eles.
- Boa ideia - admitiu Witkowski. - Você está crescendo, rapaz, ficando danado de esperto.
- Hei de guardar sempre como um tesouro este comentário. - Latham fez um sinal silencioso para que Dietz e os agentes franceses se aproximassem dele e do coronel, ao lado da porta de aço. Cochichou suas instruções e os três homens voltaram a trabalhar como uma equipe. Uma por uma as portas foram abertas e fechadas. Quando a última das oito acabara de ser visitada, o capitão Dietz fez um relatório para Drew.
- Nenhuma dessas mães se mexerá durante algumas horas.
- Tem certeza disso? Estão bem amarrados, não há vidro, nem facas ou giletes por aí?
- Estão amarrados mesmo, Op. Cons., mas na realidade não precisávamos.
- O que quer dizer?
O oficial tirou uma seringa hipodérmica e um frasco de líquido do bolso.
- Pouco menos de um cc. por cabeça em média, está certo, coronel?
- O quê?
- Bem, você não pode pensar em tudo, chlopak. Foi só um reforço... Nas artérias do braço esquerdo, correto, capitão?
- Sim senhor. Número Dois agarrou-os de tal modo, que eu não pude errar.
- Você está cheio mesmo de surpresas, Stanley. Mais alguma coisa que não me contou?
- Teria de pensar a respeito.
- Por favor, esqueça-o - sussurrou Latham, virando-se para o oficial. - O que tinha nos outros três quartos?
- O mais perto da cama é o maior banheiro que você já viu, barras cromadas em toda parte, de modo que o velho possa se locomover. Os outros dois são na realidade um quarto. A parede foi derrubada e ele está repleto de material de computador.
- Na mosca - disse Drew. - Agora tudo que precisamos é um perito para o equipamento.
- Achei que tivéssemos um. Seu nome é Karin, no caso de ter esquecido.
- Meu Deus, você está certo! Agora, escute só, Dietz. Você, nosso Grande Espião o coronel, e E-Um e E-Dois fiquem de ambos os lados da cama do velho Monluc...
- Você diz que ele é Monluc - interrompeu Dietz. - Mas eu digo que ele é outra pessoa, não quero nem pensar a respeito!
- Então não pense. Basta ficar a seu lado e se ele acordar, não o deixe botar a mão em nada. Nem num botão, nem num interruptor, nem em qualquer fio que ele possa puxar, nada! Precisamos entrar naqueles computadores e saber o que contêm.
- Por que não usar a agulha mágica do coronel, Op. Cons.?
- O quê...?
- Em vez de pouco menos que um cc, talvez um cc e meio.
- Não sei, capitão - disse Witkowski. - Não sou médico. Na idade dele, esse negócio pode não ser exatamente revigorante.
- Então voltemos à dose de pouco menos de um cc, qual a diferença?
- Não é uma má ideia - sussurrou Drew. - Se você conseguir fazê-lo.
- Ei, aquele Número Dois é um fenômeno com as veias. Acho que deve ter sido médico.
- Todos os integrantes da Legião Estrangeira recebem um treinamento médico - explicou o coronel. - O que vai fazer, Sr. Op. Cons.?
- O que querem que eu faça. Vou fechar aquela porta de aço e chamar a equipe de assalto. Em seguida vou entrar em contato com Karin e com nosso tenente e dizer-lhes que venham atrás. - Latham tirou seu rádio, ligou as frequências militares, e ordenou a equipe francesa do Etranger para explodir o portão da frente e usar seus alto-falantes antes de atacar o château. Em seguida transmitiu para o promontório. - Escutem, vocês dois, os franceses vão entrar. Quando o local estiver seguro, voltarei a chamar; e, Karin, suba até o último andar o mais rápido possível, mas somente quando tudo estiver sob controle! Não antes! Compreendeu?
- Sim - respondeu o tenente. - Então vocês conseguiram?
- Conseguimos, Gerry, mas ainda falta muito para acabar. Essa gente é fascista e louca; se esconderão nos cantos só para apagar um de nós. Não deixe Karin se adiantar em relação a você...
- Sou inteiramente capaz de tomar essas decisões...
- Ah, cala a boca! Câmbio! - Drew correu até a cama de Monluc, enquanto Etranger Dois e Dietz se preparavam para sedar completamente o velho murcho.
- Agora! - disse o oficial. E-Dois agarrou o braço esquerdo magro, apertando o tecido do lado de dentro do cotovelo. - Onde está a veia? - gritou Dietz em francês.
- Ele está velho. O primeiro azul que você vir, acerte bem no meio!
- Mein Gott! - gritou o velho acamado, com os olhos subitamente arregalados, a boca torcida, o tique no seu olho direito tornando-se espasmódico. O que se seguiu fez Witkowski empalidecer, seu corpo inteiro tremendo. A arenga num alemão berrado era eletrizante, numa voz mais estridente do que se pensaria poder sair normalmente de cordas vocais. - Se bombardearem Berlim, destruiremos Londres! Se mandarem centenas de aviões, mandaremos milhares em cima de milhares até que a cidade não passe de sangue e de destroços! Daremos aos ingleses uma lição de morte! Nós... - O velho voltou a se recostar, inconsciente, nos travesseiros de seda.
- Verifique seu pulso! - disse Latham. - Ele precisa permanecer vivo.
- Está acelerado, mas existe, monsieur - disse Etranger Dois.
- Você sabe o que esse filho da puta acabou de recitar? - perguntou Stanley Witkowski, com o rosto pálido. - Ele deu a resposta de Hitler ao primeiro bombardeio de Berlim. Literalmente!... Não consigo acreditar.
Embaixo, do lado de fora, na estrada em frente ao château, carros de assalto blindados soltaram seu foguete, explodindo o portão. Uma voz do alto-falante, audível a milhares de metros de distância, encheu a noite.
- Todos que estiveram aí dentro, larguem suas armas ou serão mortos! Saiam e se mostrem sem suas armas! Por ordem do governo da França. Nossos homens varrerão o château e atirarão em qualquer pessoa que permaneça dentro dele. Vocês têm dois minutos para cumprir nossas exigências!
Lentamente, amedrontados, dezenas de homens e mulheres saíram andando, com os braços erguidos em capitulação. Formaram uma fila na alameda circular, guardas, cozinheiros, garçons e prostitutas. A voz do alto-falante continuava.
- Se restar alguém dentro, nós lhes diremos agora - considerem-se mortos!
De repente um homem louro quebrou uma janela do terceiro andar e gritou.
- Eu descerei, senhores, mas preciso primeiro encontrar alguém. Podem atirar em mim, mas preciso encontrá-la! Vocês têm minha palavra, minhas armas! - Um barulho de vidro quebrado precedeu uma pistola e uma semiautomática atiradas pela janela; bateram na alameda, enquanto a figura desaparecia.
- Entrez! - gritou a voz no alto-falante, enquanto oito homens vestidos para combate, entraram correndo pelas várias entradas, como aranhas se apressando em direção a insetos apanhados em suas teias. Houve tiroteios esporádicos, não muitos, na medida em que alguns fanáticos teimosos morriam pela sua obscena fé. Finalmente, um agente do Etranger surgiu na porta da frente, com um Jacques Bergeron bêbado, cambaleando na sua frente.
- Pegamos nosso traidor do Deuxième! - proclamou ele em francês. - E está bêbado como um político.
- Basta. Deixe os outros dois entrarem.
Karin e o tenente Anthony passaram correndo pelo portão destroçado de duas folhas, encaminhando-se para a porta principal.
- Ele disse para subirmos pela escada! - gritou de Vries, adiante do tenente.
- Pelo amor de Deus, quer por favor me esperar? Devia protegê-la.
- Se você é lento, Gerry, não é minha culpa.
- Serei fuzilado, Op. Cons. arrancará minhas credenciais!
- Tenho uma arma, tenente, não precisa se preocupar nem um pouco!
- Obrigado, amazona. Céus, como este braço dói!
De repente ambos estacaram, interrompendo seu avanço diante da imagem que viram no patamar do terceiro pavimento. Um guarda louro carregava uma jovem mulher nos seus braços, com lágrimas nos olhos.
- Ela está gravemente ferida - exclamou em alemão. - Mas está viva.
- Você era o homem da janela, ja? - perguntou Anthony, também em alemão.
- Sim, senhor. Ela e eu somos amigos, e ela jamais deveria ter estado neste terrível lugar.
- Leve-a para baixo e diga aos outros para levarem-na a um médico - disse o tenente. - Depressa!
- Danke.
- Certo, mas se estiver mentindo, eu mesmo o matarei.
- Não sou mentiroso, não, senhor. Fiz muita coisa ruim, mas nunca menti.
- Acredito nele - disse Karin. - Deixe-o ir. - Alcançaram o último andar, mas não havia como abrir a porta de aço, nenhuma campainha, nenhum aviso, nada. - Drew frisou bem, ele queria que eu viesse aqui, mas como vou entrar?
- Confie num jovem velho tenente - respondeu Anthony, tendo avistado o mecanismo na parede de abrir a porta pela impressão da palma da mão. - Vamos disparar um alarme... Essas coisas já eram a uns dois anos atrás.
- De que está falando?
- Observe só. - Gerald Anthony meteu sua mão na abertura e fez pressão com a palma da mão. Dentro de segundos, a porta de aço foi aberta por um aturdido Latham, com o alarme lá dentro numa altura ensurdecedora.
- Que diabo fez você? - gritou Drew.
- Feche a porta, chefe, e ela desliga.
Latham o fez e a campainha cessou.
- Como sabia disso? - perguntou ele.
- Que diabo, não chega a ser alta tecnologia. São simples interruptores e circuitos que não se recompõem.
- Como sabia disso?
- Não sabia, para dizer a verdade, mas o mecanismo de recomposição automática nesses sistemas é relativamente novo. Como isto aqui é um lugar bastante antigo, eu arrisquei. Qual o problema, nós já tomamos o lugar, de qualquer maneira.
- Não discuta com ele, Drew - disse Karin, abraçando Latham por um breve momento. - Eu sei, eu sei, não é hora de ficar emocionada. Porque quis que eu viesse tão depressa?
- Há um quarto, na realidade dois quartos, cheios de computadores. Precisamos entrar neles.
Passou-se uma hora e uma suada Karin de Vries surgiu da porta.
- Você pegou-o na hora, querido - disse ela, em pé diante de Latham. - Baseados na premissa de que este isolado château no Vale do Loire jamais seria descoberto, todos os registros são guardados aqui. Há quase dois mil documentos impressos dizendo quem faz, e quem não faz parte do movimento nazista. No mundo inteiro.
- Então nós os pegamos.
- Muitos deles sim, querido, mas não todos, jamais todos. Estes são apenas os líderes que berram e falam alto, insuflando o ódio nas multidões, o desprezo por todos que lhes são dessemelhantes. E muitos o fazem de maneira sutil, fingindo generosidade na superfície, mas guardando ódio sob ela.
- Isso é filosófico, madame, mas estou falando de acusações, da porra dos nazistas!
- Estes você agora descobriu, Drew. Vá atrás deles, mas compreenda o que se seguirá a eles.
Num laboratório ultrassecreto do governo nos morros do Vale de Shenandoah, um médico de avental, especialista em patologia forense, olhou para o outro lado da mesa, para seu colega muito mais moço, ambos a estudarem suas telas de computador.
- Você está concluindo o que eu estou? - perguntou em voz baixa o primeiro patologista.
- Não quero acreditar - disse o segundo. - Uma troca, a maior troca de toda a história!
- As informações de Berlim não mentem, rapaz, e estão bem diante de nossos olhos. O DNA não era conhecido na década de quarenta, mas agora é. Eles se casam... Solte fogos, Doutor, o mundo não precisa aguentar isto. Só estaríamos alimentando uma lenda, e aquele velho obsceno morreu ontem à noite.
- Exatamente o que pensei. Se você alimentar uma lenda, estará apenas transferindo combustível para que possam nascer outras lendas.
- Pior, você as glorifica, imortaliza.
- Isso aí, Doutor. Hitler se matou com um tiro naquele bunker há mais de cinquenta anos. Nós já estamos suficientemente confusos sem ter de acreditar no impossível, os fanáticos o agarrariam com unhas e dentes, glorificando-o. O pior filho da puta do mundo engoliu cianureto e enfiou uma bala na cabeça quando os russos chegavam nos arredores de Berlim. Todo mundo acredita nisso, por que contradizer a história oficial?
As provas em contrário, os bicos de Bunsen destruíram no Vale do Shenandoah.
EPÍLOGO
Os diretores dos serviços secretos da França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, instruídos por seus líderes civis, agiram com rapidez, em silêncio e, finalmente, com eficiência, já que estavam de posse da verdade, e não de especulações. Mais de dois mil documentos impressos por computador identificando os legítimos membros da Die Brüderschaft der Wacht. De acordo com os entendimentos entre os quatro países, os releases governamentais diriam basicamente a mesma coisa, conforme foi exemplificado pela edição parisiense do Herald Tribune. Destruída a Espinha Dorsal do Movimento Neonazista.
Todos os artigos prosseguiam descrevendo a prisão secreta de vários homens e mulheres, pertencentes ou não ao governo, cujos nomes eram apenas conhecidos de poucas pessoas e estavam sendo omitidos até a formalização de acusações. A frenética mídia quase teve um breve ataque apoplético, porém as autoridades governamentais não cederam nada em relação aos nomes, que podiam ser apenas fornecidos por aqueles poucos, que não o fizeram, e por isso a mídia frustrada passou para outras e mais proveitosas "revelações". Dois meses depois a atenção dos leitores, ouvintes e telespectadores diminuiu, e a caça às bruxas nazista murchou tão rapidamente quanto a paranoica perseguição aos comunistas, quando o detestável McCarthy caiu do poder. Os empresários compreenderam que não conseguiriam publicidade e popularidade entediando o público. Pouco a pouco as coisas voltaram à sua normalidade. Ei, aquele não é o Elvis Presley no meio do milharal!
- Virei um maldito milionário! - exclamou Drew Latham, andando de mãos dadas com Karin numa estrada de terra em Granby, Colorado. - Ainda não me recuperei disso!
- Harry o amava muito - disse de Vries, olhando para cima, abismada pelas majestosas Montanhas Rochosas. - Jamais duvidou disto, não é?
- Eu também nunca o verbalizava. Fora algumas centenas de milhares para mamãe e papai, que eles jamais vão usar, ele deixou tudo para mim.
- O que o surpreende tanto?
- Onde, diabos, ele o arranjou?
- Os advogados explicaram-no, querido. Harry era solteiro, com poucas despesas, estudou os vários mercados, tanto aqui quanto na Europa, e fez alguns investimentos um tanto brilhantes. Isso não contradiz o que ele era.
- Harry - pensou Drew em voz baixa. - Kroeger implantou aquela porra horrível no cérebro dele. A autópsia disse que era uma nova ciência e que poderia ser reproduzida. Em seguida aquilo destroçou o seu cérebro depois de morto. Imagine se ele não tivesse morrido.
- Os médicos e cientistas disseram que ainda faltariam décadas para aperfeiçoar aquilo, se jamais o viesse a ser.
- Já se enganaram antes.
- Sim, é verdade... Esqueci de dizer que recebemos um telegrama de Jean-Pierre Villier. Vai reabrir a temporada de Coriolano e quer nos ver em Paris na estreia.
- Como poderá você exprimir a ele delicadamente que mais uma dose de gritaria francesa especialmente não me entusiasma?
- Arranjou um jeito.
- Meu Deus, ainda restam tantas perguntas!
- Não precisa se preocupar com elas, querido. Jamais. Somos livres. Deixe que outros façam a limpeza, seu trabalho terminou.
- É mais forte do que eu... Harry disse que uma enfermeira no vale da Irmandade alertou os Antinayous de que ele ia fugir. Quem era ela, e o que lhe aconteceu?
- Está no relatório Mettmach, aquele que você só olhou de relance...
- Era muito doloroso - interrompeu Latham. - Lerei um dia, mas todo aquele jargão médico sobre meu irmão... bem, eu apenas não queria lê-lo.
- A enfermeira era assistente de Greta Frisch, a mulher de Kroeger. Fora obrigada a dormir com von Schnabe, o comandante, conforme ordens recebidas dos novos Lebensborn. Ficou grávida, e se suicidou na floresta de Vaclabruck.
- Os Lebensborn, que adorável som pastoral, e no entanto tão brutal, tão perverso... Mesmo assim, encontramos Mettmach na Vaclabruck. Meu Deus, quase uma base militar de respeitável tamanho, numa roça tão afastada!
- Tornou-se uma colônia penal de dois mil hectares, onde os prisioneiros, homens e mulheres, só recebem uniformes neonazistas. Suas braçadeiras, no entanto, são costuradas na frente de suas roupas, e não nos seus braços, do mesmo modo que eles obrigaram os judeus a usarem a estrela de Davi durante o Terceiro Reich.
- Que loucura.
- Foi ideia do embaixador Kreitz. Disse que isto lhes fará lembrar o motivo de estarem lá como prisioneiros, e não como membros privilegiados da sociedade.
- Sim, eu sei, mas ainda não tenho certeza se o aprovo. Será que não poderia funcionar ao contrário, com os prisioneiros de guerra uniformizados se solidarizando entre si, jurando infinita lealdade à sua causa?
- Não com seus horários de trabalho, rotinas, e constante leitura a respeito do passado nazista, acompanhada de filmes e slides sobre as mais brutais atrocidades. Mandam-nos escrever sobre aquilo que observaram. Ouvimos dizer que muitos deles saem dessas conferências chorando, ajoelhando-se em prece. Lembre-se, Drew, que além do trabalho pesado, ninguém age severamente em relação aos internos. Tudo é conduzido com absoluta firmeza, porém com cortesia.
- Psicólogos e psiquiatras terão um extenso trabalho de campo. Poderia representar o início de todo um novo sistema penitenciário.
- Então algo decente poderia ser gerado a partir de uma loucura indecente.
- Talvez, mas não se fie nisso. Há sempre outros à espera nos bastidores. Seus nomes podem ser diferentes, suas culturas diferentes, mas o denominador comum é sempre o mesmo. "Faça da nossa maneira, sob a nossa autoridade, sem permissão de desvios."
- Precisamos então, todos nós, em todos os lugares, ficarmos de sobrealerta contra essa gente, contra essas causas, esperando que nossos líderes não custem a percebê-las e que tenham a coragem de agir logo, embora não irracionalmente.
- Você nunca se cansa de resumir sempre tão bem assim as coisas?
- Meu marido - quando era meu marido, nos primeiros tempos - geralmente dizia, "Você quer parar com essa chatura acadêmica?" Acho que ele tinha razão. A única vida que tive foi acadêmica, só me ofereceram isso.
- Eu nunca diria nada parecido a você... Aliás, você acompanhou mais os desdobramentos de tudo isso do que eu...
- Claro - interrompeu Karin. - Você precisou viajar para ver sua mãe e seu pai. Eles precisavam de seu filho sobrevivente, na sua dor.
- Sim. - Latham olhou para ela na forte luz do sol da tarde do Colorado. - Sim... - Desviou os olhos dela e prosseguiu. - Knox Talbot descobriu quem entrou nos computadores AA?
- Evidente, estavam nos documentos impressos no Ninho da Águia. Um homem e uma mulher que passaram dezesseis anos progredindo lentamente na Agência. Escoteiros, bandeirantes, acólitos de igreja, um de uma fazenda - Quatro H, seja lá o que isso for - e outro filho de um casal suburbano que ensinava na escola dominical da igreja.
- Sonnenkinder - disse Drew.
- Exatamente. Chegando até a fazer parte do coro da igreja e do Rotary Club.
- E quanto aos arquivos sobre Monluc que foram roubados?
- Um dos diretores que representava o papel de historiador judeu. Quem poderia suspeitar dele?
- Sonnenkind?
- Naturalmente.
- E o tubarão financeiro em Paris que estava comprando terrenos no Vale do Loire com dinheiro alemão?
- Seu castelo de cartas ruiu. Bonn entrou de sola com procedimentos muito criativos sobre contas no exterior, e isso salvou muito dinheiro alemão. Ele era um espertalhão que se aproveitava de velhas lealdades equivocadas.
Karin levantou o olhar para Latham.
- Por que está me olhando desta maneira tão inquisidora?
- Um instante atrás você mencionou meu pai e minha mãe, e isto me fez pensar de repente. Jamais me contou sobre seus pais, sua mãe e seu pai, que te deram toda essa instrução acadêmica. Eu nem sequer sei qual é o seu nome, seu nome de solteira. Por quê?
- Importa?
- Que diabo, não! Mas sinto curiosidade, não é normal? Acho que na minha imaginação, sempre achei que se, e no dia em eu pedisse a mão de alguma mulher, teria de ir ao pai dela e dizer algo assim, "Sim, senhor, posso sustentá-la e eu a amo" - nessa ordem. Posso fazer isso, Karin?
- Lamento dizer que não, de modo que é melhor eu contar a verdade... Minha avó era uma mulher dinamarquesa, sequestrada pelos nazistas e obrigada a entrar no Lebensborn. Quando sua filha, minha mãe, nasceu, ela a roubou, e com uma tenacidade fora do comum, voltou à Dinamarca com aquela criança, e escondeu-se numa pequena aldeia nos arredores de Hanstholm, no mar do Norte. Encontrou um homem, um antinazista, que casou com ela e aceitou sua filha, minha mãe.
- Então você está dizendo...
- Sim, Drew Latham, se não fosse a determinação obstinada de uma mulherzinha feroz, eu poderia ter me tornado uma Sonnenkind, talvez parecida com Janine Clunes. Infelizmente, os nazistas mantinham registros meticulosos, e minha avó e seu marido tinham que viver fugindo, jamais tendo um lar permanente, ou acesso a oportunidades normais de educação. Finalmente, depois da guerra mudaram-se para a Bélgica, onde a criança que mal sabia escrever e ler, cresceu, casou e me teve em 1962. Em virtude de ter sido negado à minha mãe qualquer tipo de instrução formal, tornou-se obcecada por ela.
- Onde estão eles agora?
- Meu pai nos deixou quando eu tinha nove anos e, recuando no tempo, consigo compreender por quê. Minha mãe herdara a intensidade e determinação de minha avó. Do mesmo modo que sua mãe arriscara tudo, inclusive o enforcamento público, para roubar sua filha dos Lebensborn, minha mãe se dedicou totalmente a mim. Não tinha tempo para o marido dela, toda a atenção era dirigida à sua filha. Eu tinha que viver lendo, freneticamente, conseguir os primeiros lugares da classe, estudar, estudar, estudar, até que eu mesmo peguei essa febre. Tornei-me tão obcecada com minha instrução quanto ela.
- Não é de se espantar que Harry e você se dessem tão bem. E sua mãe está viva?
- Está num pensionato na Antuérpia. Poder-se-ia dizer que ela se consumiu como uma chama, e agora mal me reconhece.
- Seu pai?
- Quem sabe? Eu jamais tentei encontrá-lo. Mais tarde pensei muitas vezes em fazê-lo, pois, como disse, eu compreendia os motivos dele ter partido. Na primeira oportunidade, eu mesma parti, antes que ficasse totalmente sufocada, e que palavra precisa é esta. E aí apareceu Freddie e eu saí "como um raio", como diz a expressão.
- Bem, isso já passou! - disse Drew, dando um sorriso e apertando a mão dela. - Agora sinto que sei o bastante a seu respeito para garantir continuidade à dinastia Latham.
- Que generosidade de sua parte, tentarei fazer jus a ela.
- Jus? Para você significa descer um degrau ou dois, mas quero que saiba que a primeira coisa que encomendarei para a biblioteca é um conjunto de enciclopédias.
- Que biblioteca?
- Da casa.
- Que casa?
- Nossa casa. Logo ali depois da curva nesta velha estrada, que eu agora irei evidentemente aplainar, já que tenho condições.
- De que está falando?
- Isso aqui é uma espécie de entrada dos fundos da propriedade.
- Que propriedade?
- Nossa propriedade. Você disse que gostava de montanhas.
- E gosto. Olha lá em cima, elas são tão monumentais, tão emocionantes!
- Então vamos, sua amante de montanhas, estamos quase chegando.
- Onde?
- Bem, sabe - disse Drew, enquanto faziam a curva para a esquerda na estrada de terra - eu tenho um amigo em Fort Collins que me contou a respeito deste lugar. "Seguro" é rico mesmo - a gente o chamava de "Seguro" na faculdade porque ele conseguia assegurar praticamente tudo, desde um compromisso para sair com uma garota, até um negócio - e disse que era a única área maior ainda à venda, se eu pudesse cobrir o preço. E aí, acrescentou que poderia me dar uma ajuda se houvesse algum problema.
- O que faz ele?
- Acho que na verdade ninguém sabe. Tem uma porção de computadores e investe em ações, papéis, commodities, esse tipo de coisa. Mas o momento que me deu maior orgulho foi quando eu disse: "Não tem problema, ‘Seguro’. Se eu gostar, compro."
- O que disse ele?
- "Com um salário de funcionário público, amigão?" E eu respondi: "Não, amigão, eu investi muitas diárias nos mercados europeus", e ele disse: "Vamos almoçar, ou jantar, ou ficar na minha casa pelo tempo que você quiser."
- Você não tem vergonha, Drew Latham! - Eles fizeram a curva na estrada e o que jazia diante deles fez Karin corar de espanto. Era um enorme lago, transparente, verde-azulado, com várias velas passeando em cima d’água e, à distância, várias casas belissimamente construídas, sobressaindo-se seus embarcadouros, embaixo de gramados bem-cuidados. Em cima, brilhando ao sol, o fundo de distantes montanhas, como fortalezas celestiais protegendo um belo recanto terrestre. E à direita deles, havia uma grande extensão de campos à beira do lago, desabitados, cheios de capim alto e de flores.
- Aqui está, madame, esta é a nossa casa. Não consegue vê-la? A alguns quilômetros daqui fica a entrada sudoeste do Parque Nacional das Montanhas Rochosas.
- Ah, querido, eu mal posso acreditar?
- Acredite, está aqui. É nosso. E dentro de um ano a casa estará aí - depois de você aprovar o projeto, é claro. "Seguro" conseguiu para mim o melhor arquiteto do Colorado.
- Mas, Drew - riu Karin, correndo pela colina de capim abaixo até a beira d’água e o córrego que limitava o terreno. - Levará muito tempo, o que iremos fazer?
- Pensei em armar uma enorme barraca, como um grileiro, mas não iria funcionar! - gritou Latham, emparelhando com ela.
- Por que não? Eu adoraria!
- Não adoraria não - disse Drew sem fôlego, segurando os ombros dela. - Adivinhe quem vem de avião para supervisionar o início da construção, já que o chlopak é incompetente?
- O coronel?
- Acertou, madame.
- Ele também o ama muito.
- Acho que você tem uma fatiazinha de participação nisso. Ele recebeu sua pensão integral, mas não tem outro lugar para ir. Seus filhos estão crescidos, com seus próprios filhos, e depois de alguns dias juntos, ele fica sem saber o que fazer. Ele precisa se mexer, Karin. Deixe-o ficar conosco por um tempo, até ele precisar se mexer de novo, está bem?
- Eu jamais poderia negar.
- Obrigado. "Seguro" alugou uma casa para a gente uns quinze quilômetros daqui na Route 34, e concordei em voar até Washington cinco dias por mês, não mais do que isso. Só para consultoria, nada de trabalho de campo.
- Tem certeza? Será que poderá viver assim?
- Sim, porque fiz o máximo que podia, e não me resta mais nada para provar, nem para Harry, nem para ninguém.
- O que faremos? Você é um homem novo, Drew, e eu sou mais jovem do que você. O que vamos fazer?
- Não sei. Primeiro, construiremos a casa, que levará uns dois anos, na realidade, e aí... bem, aí teremos que pensar.
- Vai realmente pedir demissão das Operações Consulares?
- Isso depende de Sorenson. Fora os cinco dias por mês, estou de licença até março do ano que vem.
- Então você não resolveu. A decisão não cabe a Sorenson; ela é sua.
- Wesley compreende. Ele esteve na mesma situação em que estive e saiu.
- Que situação é essa? - perguntou delicadamente Karin, abraçando Latham, seu rosto descansando contra o peito dele.
- Não tenho certeza - respondeu Drew, com os braços em torno dela. - Graças aos genes de Beth sou um sujeito bastante grande, relativamente capaz de cuidar de mim mesmo, mas também aprendi algo durante esses últimos três meses e você faz parte disso, em grande medida... Não gosto de viver temendo por nós dois vinte e quatro horas por dia. Para dizer a verdade, eu realmente não gosto de armas, emboras elas tenham salvo mais de uma vez nossas vidas. Não aguento mais o dilema matar ou morrer. Não quero mais participar deste jogo e certamente não quero que você participe.
- Era guerra, querido, você mesmo disse isto e tinha razão. Mas para a gente, acabou. Vamos viver como seres humanos normais. E além do mais, mal posso esperar para rever Stanley!
Como se obedecendo a uma perfeita deixa, uma figura agitada surgiu na estrada de terra em cima.
- Filho da puta! - vociferava o coronel Stanley Witkowski, transpirando e sem fôlego. - A porra do táxi se recusou a vir até aqui!... Belo terreno, nada mau. Já tenho algumas ideias - muito vidro e madeira. E também, chlopak, Wes Sorenson me telefonou. Somos um time danado de bom, nós três, e tem uma situação que ele acha que você poderá achar interessante, sem dispensar seu novo acordo com as Op. Cons.
- Nada mudou - disse Latham, ainda abraçado a Karin. - ... Esqueça isso, coronel!
- Ele estava pensando em você, rapaz, nós dois estávamos - prosseguiu Witkowski, descendo a colina gramada e enxugando a testa. - Você é jovem demais para se aposentar, precisa trabalhar, e o que mais sabe fazer? Eu diria que o hóquei está definitivamente fora de cogitação; você já está há muito tempo afastado.
- Eu disse para deixar isso para lá.
- Voltarei com você de avião na semana que vem e Wesley explicará tudo. Parece um doce de coco, diárias excelentes e fundos circunstanciais, e podemos todos nos revezar para voltar aqui e vigiar a obra.
- A resposta é não, Stanley!
- Vamos conversar... Minha cara, Karin, você está ótima.
- Obrigada - disse de Vries, abraçando o coronel. - Você parece um pouco cansado.
- É uma caminhada danada.
- Não, não, não!
- Vamos só conversar, chlopak... Agora, vamos examinar o terreno.
Robert Ludlum
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