Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SERENATA DE INVERNO / Toni Collins
SERENATA DE INVERNO / Toni Collins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SERENATA DE INVERNO

 

É isto! Está na hora! O bebê vai nascer!

As contrações ainda eram esparsas. Duravam apenas alguns segundos e não passavam de leves pontadas, como cãibra na parte inferior do ventre.

"Tenho muito tempo...", Katie Maxwell pensava, tentando manter a calma. Embora fosse sua primeira experiência, estava certa de que chegara o momento. Além do instinto, lera bastante sobre os sinais de parto.

Respirou fundo e procurou não se desesperar. Ainda era cedo para ir para a maternidade e também queria acabar a última parte da história em quadrinhos em que estava trabalhando. Tentou se concentrar no trabalho, cujo prazo de entrega já se esgotara, mas não conseguia pensar eM nada além do que estava acontecendo dentro de seu ventre.

"Já era hora!", dizia a si mesma, recordando-se de que o bebê devia, segundo os cálculos do médico, ter nascido há duas semanas. A criança parecia estar sem a mínima pressa de vir ao mundo!

Katie olhou para o relógio mais uma vez: tinha de marcar o intervalo entre as contrações. Não queria acreditar que pudesse ser um alarme falso, não queria esperar mais um dia. Não depois de tanto tempo!

O obstetra havia dito para ser paciente, que o primeiro filho sempre se atrasava. Mas a paciência de todo mundo tem um limite e Katie não era exceção. Havia esperado quase oito meses... Oito longos meses desde que o teste de gravidez mudara sua vida tão drasticamente.

Levantou, deixando de lado a mesa de trabalho, e caminhou até a janela. Como começasse a sentir dificuldade para andar, teve de parar duas vezes para respirar fundo, até encontrar energia para continuar. Nos últimos meses engordara bastante no ventre, embora mantivesse a compleição delicada. Os quilos adquiridos, no entanto, dificultavam-lhe os movimentos, roubando-lhe a agilidade e também o sono, pois não conseguia encontrar uma posição de todo confortável na cama. Geralmente adormecia quando o dia começava a clarear, ainda assim por causa do cansaço.

Katie surpreendeu-se com a neve lá fora. Não fazia idéide quanto tempo estava nevando. Não havia levantado da cadeira durante todo o dia, tentando terminar a última tira de desenhos de sua história. Sequer ligara a televisãou o rádio; por isso não ouvira a previsão do tempo para aquela noite.

"Oh, Deus! Por que tinha que começar a nevar justo hoje?", perguntou a si mesma, irritada.

Katie amava o inverno de Connecticut. Aquela região! era verde e florida durante o verão, e no outono tornava-se espetacular, quando as folhas das árvores avermelhavam, ganhando um tom dourado que nunca deixava de encantá-la. Mas nada havia de mais emocionante do que os primeiros flocos de neve cobrindo a cidade. Katie esperava com ansiedade por aquele momento, mas naquel noite a neve só podia significar problemas. Não conseguiria dirigir até a maternidade como havia planejado. Tinha de chamar um táxi ou uma ambulância.

Sentou-se na poltrona e esperou por uma nova contra-l cão. Quando elas começassem a se repetir num intervalregular de quinze minutos, avisaria o dr. Rouven e iria para maternidade. Decidiu que seria mais seguro chamar uma ambulância.

Se por alguma razão não pudesse chegar ao hospital ao menos teria gente treinada para ajudá-la a dar à luz Katie lembrou-se, com certa amargura, das palavras irônicas da mãe, ao avisá-la de que um bebê precisava do pai ao menos para dirigir até o hospital na hora do parto.I

A contração seguinte foi mais forte do que a anterior.!

Katie tornou a respirar fundo e olhou outra vez para o relógio.

"Vinte e cinco minutos... Estão mais próximas...", disse a si mesma, recostando-se na almofada macia e fechando os olhos.

Tentou esquecer a dor e voltou a pensar em Michael, seu ex-marido e pai do bebê que ia nascer.

"Será que fiz bem?", tornou a perguntar-se pela centésima vez desde que engravidara.

Mas Katie sabia que não tivera escolha. Michael havia decidido por ela no momento em que soube da gravidez. Ele nunca desejou ser pai, havia deixado bem claro quando se casaram. Porém Katie sempre acreditou que ele acabaria mudando de idéia. O que não aconteceu. Ficou, sim, furioso.

Ela nunca precisara se preocupar com os anticoncepcionais: Michael nunca a deixava esquecer de tomar os comprimidos. Naquele momento, recostada no sofá à espera de outra contração, lembrou-se com nitidez da noite em que lhe havia contado a novidade... .

— Você não devia ter se esquecido das pílulas! — ele esbravejou, indo para o bar e servindo-se de um drinque, como fazia todas as noites ao voltar do escritório.

Katie observou-o enquanto colocava a bebida no copo. A mesma quantidade de vodca e tônica, dois cubos de gelo, nem mais nem menos, e uma pequena fatia de limão. Ele poderia repetir aqueles mesmos movimentos até dormindo. Nunca variava! Katie tinha a impressão de que o copo devia possuir uma marca visível apenas aos olhos de Michael, tão idêntica era a quantidade de bebida que todos os dias ele tomava. Até a fatia de limão lhe parecia idêntica. Observou-o atentamente à procura de algum sinal de emoção, qualquer emoção. Não havia nada!

— Eu não esqueci, algo deu errado... —respondeu, encolhendo os ombros delicados.

— Ah, claro que não... — Ele levou o copo aos lábios, a expressão de seu rosto tão fria como o gelo da bebida. Tomou um longo gole, devagar, como que ganhando tempo para poder pensar. — Quantas semanas? — perguntou afinal.

— Quase seis — Katie respondeu, imaginando que o marido começava a demonstrar algum interesse.

"É um bom sinal!", pensou cheia de esperanças. Porém não durou muito aquele momento de felicidade. - Bem... graças a Deus! — Michael disse aliviado.

— Eu não entendo... — Katie começou, pressentindo o pior.

— Ao menos não é tarde demais...

— Para quê?!

— Um aborto, é claro! — Michael esclareceu calmamente, colocando o copo sobre a bandeja no bar, como se aquela fosse uma decisão comum e fácil de se tomar.

Katie recuou um passo, sobressaltada, como se as palavras do marido fossem uma arma.

— Eu não pretendo fazer um aborto, Michael! Não planejei esta gravidez, mas pretendo terminá-la — falou com a voz trêmula, chocada com a reação daquele que seria o pai de seu filho.

— Não me diga! — Ele sorriu-lhe com ironia.

— Eu quero ter o bebê não importa o que você pense.

— Se é assim, fique com ele... mas sozinha. Eu lhe disse antes de casarmos que crianças eram um assunto que nunca iríamos discutir. Não queria filhos naquela época e ainda não quero.

— O que você quer? É só isso que importa, não é? O seu desejo!

— Se queria uma família, ficar trocando fraldas o dia inteiro, crianças barulhentas choramingando, penduradas na sua saia, devia ter escolhido outro tipo de homem, não eu! Você sabia muito bem a minha opinião antes de nos casarmos.

— Sua opinião? Meu Deus, Michael! Você fala como se estivéssemos discutindo uma questão legal — Katie replicou incrédula.

— Nós tínhamos um acordo! — Ele a encarou com firmeza.

— Não, Michaei, você tinha um acordo. Eu tinha um casamento; bem, pelo menos era o que imaginava. Você nunca se importou em saber como me sentia! Não entendo como não percebi isso antes...

— Então está mesmo decidida a levar avante essa gravidez? — quis saber, impedindo Katie de continuar o que estava falando.

— Sim, eu estou!

Ele balançou a cabeça devagar e perguntou:

— Ótimo! Quem pede o divórcio, você ou eu?

— Acho que é melhor eu pedir. Pelo que sei, gravidez não é motivo para divórcio neste país.

Katie voltou ao presente. Pensando bem, não devia ter ficado tão surpresa com a reação de Michaei. Ele nunca gostara de crianças, era possível ver isso quando encontravam os sobrinhos de vez em quando. Ele não queria crianças por perto, e esse era um fato definitivo. Pelo menos era honesto, Katie pensou com tristeza. Talvez até nem quisesse realmente um casamento, mas sim alguém para cuidar de suas coisas.

Às três da manhã a neve continuava a cair e as contrações estavam cada vez mais próximas uma da outra. Surgiam de quinze em quinze minutos, mais fortes e mais prolongadas. Já era hora de telefonar para o médico. Katie pegou o telefone da mesinha próxima ao sofá e começou a discar, só percebendo que não havia linha quando estava na metade do número.

— Oh, não! — exclamou angustiada. Tentou durante mais cinco minutos, mas o telefone mantinha-se, para seu desespero, num silêncio tenebroso.

"O que vou fazer agora?", perguntou-se, procurando pensar com clareza, mas em vão. Imaginou-se tendo o bebê ali sozinha e começou a chorar. Não queria entrar em pânico, mas não sabia o que podia fazer.

"Fique calma!", disse a si mesma.

Compreendia que de nada lhe adiantaria chorar; ia apenas piorar as coisas. Recordou-se de repente de ter lido em algum lugar que a ansiedade podia prolongar o trabalho de parto. Assim teria mais tempo para imaginar uma saída para poder chegar até o hospital.

— Oh, meu Deus, o que estou pensando? Quem em seu juízo perfeito quer prolongar o trabalho de parto? — Katie repreendeu-se quando se deu conta do absurdo de seu raciocínio. — Preciso pedir ajuda a alguém. E rápido!

Havia apenas seis apartamentos no prédio em que vivia, dois dos quais estavam vagos. Julie, sua única amiga entre os inquilinos, viajara no final de semana.

— Não tenha esse bebê até eu voltar! — ela dissera, brincando com Katie ao sair.

— Não se preocupe. Acho que ele está esperando pela primavera — Katie devolvera a brincadeira.

Agora, ficaria feliz apenas por ouvir algum som no maldito aparelho de telefone!

Os Keller, um casal idoso que morava no andar de cima, estavam num cruzeiro. Mesmo que não tivessem viajado, o sr. Keller, com aquela idade, dificilmente poderia levá-la para o hospital com o tempo ruim lá fora, e a sra. Keller não sabia dirigir.

O homem que vivia no apartamento ao lado acabara de se mudar. Fazia apenas duas semanas que morava ali. Katie o havia encontrado na escada uma vez e não sabia nada além de seu nome e que gostava de tocar piano no meio da noite. Comentava-se também que era um pouco excêntrico.

Considerou a realidade de sua situação e em seguida levantou-se do sofá, decidida a agir antes que fosse tarde demais.

Com certeza, o homem que vivia no apartamento ao lado era sua única chance!

 

Jack Spangler sentia-se como se não tivesse dormido há uma semana. A barba por fazer, os cabelos negros e fartos longos demais, sem falar que pareciam não ter sido penteados há muito tempo. Estava magro e vestia-se com desleixo.

"Se sair na rua desse jeito, vão me oferecer uma esmola", pensou, diante da imagem que o espelho refletia.

Acabando de anotar mais uma frase musical na folha sobre o piano, resolvera-se por um café quente. A caminho da cozinha, porém, parou espantado diante do espelho da sala. Durante as duas últimas semanas esquecera-se até de comer, tão entusiasmado que estava com a música que compunha. Viveu e respirou música durante todas as horas dos dias. Nada mais existia a sua volta. A música era sua amante, sua amante exigente e possessiva, mais possessiva do que qualquer outra mulher mortal. E, diferente de uma mulher, sua música não o abandonaria, viveria sempre a seu lado, seria sempre parte dele. Quando compunha, o resto do mundo deixava de existir, E era assim que gostava que acontecesse.

Ao levar o café aos lábios, sentiu-o frio. O sabor horrível fez com que decidisse preparar um outro, fresco e gostoso, para mantê-lo bem desperto para mais algumas horas de trabalho. Jogou fora o líquido escuro e gelado que tinha na caneca, lavou-a na pia e colocou um pouco de água quente da torneira. Não queria perder tempo fervendo água. Em seguida, juntou três colheres de café instantâneo e, depois de adoçar, mexeu bem.

— Sam, está com fome? — gritou, enquanto retirava duas bolachas salgadas de um pacote pela metade sobre a mesa.

— Sam está com fome! — Um papagaio grande e branco respondeu de seu poleiro nos fundos da sala de visitas. Ele levantou as largas asas e abanou as penas como para enfatizar sua resposta.

— Você vem se comportando muito bem! Acho que merece essa aqui — Jack disse, ao voltar com o café e as bolachas.

Colocando a caneca sobre a parte de cima do piano, ele quebrou as bolachas e ofereceu os pedacinhos, una a um, ao pássaro. Sam aceitava-os rapidamente, pegando-os com o pé e devorando cada pedaço sem descanso.

— Onde estão suas maneiras, Sam? — Jack perguntou, como se falasse a uma criança a quem estivesse dando balas,

— Obrigado, Jack — Sam respondeu e em seguida voltou toda sua atenção ao pedaço de bolacha que tinha nos dedos.

— Não por isso, Sam.

Jack sentou-se diante do piano e começou a tocar, mas foi logo interrompido pelo som de batidas à porta. A princípio, pensou que estivesse ouvindo coisas. Ninguém naquela calma e normal vizinhança poderia estar fora de casa àquela hora. Imaginara que todos ali iam para a cama quando o sol se punha.

Então, ouviu outra vez. Olhou para o relógio de parede: eram mais de três horas!

"Quem pode ser a esta hora?", perguntou-se espantado.

Até aquele momento acreditava que era a única pessoa em Connecticut que ficava acordada madrugada adentro. Levantou-se e atravessou a sala apressado.

— O que...? — ele começou a perguntar ao abrir a porta, mas parou de repente- Á jovem a sua frente, de pé no hall, parecia-lhe familiar, mas não saberia dizer onde a havia visto antes. Não era muito alta, talvez um metro e sessenta, os cabelos ruivos cortados curtos, um rosto delicado e olhos castanhos bem claros. Não poderia deixar de notar que era atraente. E também que estava grávida. Mesmo sob um casaco de inverno espesso, o enorme ventre se destacava.

— Eu sou Katie Maxwell, moro no apartamento ao lado do seu — ela disse nervosa e agitada.

"Ah! Eu sabia que a conhecia. Encontrei-a nas escadas", Jack pensou.

— Preciso de sua ajuda — Katie continuou. Jack intrigou-se.

— Senhora, são três da manhã...

— Vou ter o bebê — ela cortou. — Preciso de alguém... Preciso do senhor, é isso, para me levar ao hospital.

— Onde está seu marido? — Jack perguntou, estranhando sua própria indelicadeza.

— Não sei e não me importo! Oh, me desculpe, eu não quis dizer isso... Sou divorciada... e neste momento não tenho ninguém para me levar ao hospital. Não há viva alma no prédio e não posso chamar uma ambulância porque o telefone não funciona — Katie falou de um fôlego só, desesperada, ainda mais angustiada pelo olhar incrédulo do vizinho. — Vai me ajudar? — perguntou-lhe quase como numa súplica diante do silêncio de Jack.

Ele hesitou por um momento, considerando as opções.

"Ela pode acabar tendo o bebê aqui mesmo na sala e terei de fazer o parto, refletiu, e aquela possibilidade levou-o ao pânico.

- Claro! Dê-me um minuto para pôr as botas, está bem? — Foi para a sala, — Você tem uma mala ou qualquer coisa?

Jack sentou-se no sofá, calçando apressado as meias e as botas sem desviar o olhar de Katie, que permanecia imóvel diante da porta aberta. Seu rosto estava lívido de dor e seus lábios já não tinham cor.

— Vou buscar — ela respondeu, depois de respirar fundo. Acabara de sentir mais uma contração.

— Não! — ele gritou, mas abaixou o tom de voz imediatamente. Parecia mais apavorado do que ela. Se alguém tinha de fazer esforço, sem dúvida não seria ela. — Pode deixar que eu vou buscar.

Katie balançou a cabeça concordando.

— Está na sala sobre uma poltrona.

— Ei, boa sorte! — Sam gritou, quando Jack começou a procurar pelo casaco.

— Cale a boca, pássaro! — ele ordenou fechando a porta atrás de si.

— Ande devagar... dê-me a mão — Jack ofereceu a Katie, enquanto caminhavam pelo chão coberto de neve. Qualquer descuido seria fatal.

Ao estender a mão para ajudá-la a caminhar até o carro, foi Jack quem escorregou quase perdeu o equilíbrio. Por pouco não caiu!

— Você está bem?

Katie tentou não rir. Apesar da dor que sentia nas costas, não pôde deixar de se divertir ao vê-lo patinando no gelo.

— Sim, eu lhe disse que é preciso ter cuidado. Deixe-me ajudá-la.

— Eu estou tomando cuidado. Acho que é você quem está precisando de...

Katie não conseguiu acabar o que pretendia dizer. Outra contração, mais forte que as anteriores, fez com que se amparasse no braço de Jack.

— Vamos, vou ajudá-la. — Ele a conduziu para o interior do carro, assim que ela se recompôs.

— Acho que temos pouco tempo, agora — Katie disse-lhe quando o viu sentar-se a seu lado.

— O que quer dizer?! — Jack voltou-se para ela alarmado.

— Não vou ter o bebê agora, se é isso que o preocupa, mas é melhor nos apressarmos.

— Ótimo! — ele murmurou ironicamente, enquanto limpava os vidros de dentro do carro. Estavam todos embaçados, não conseguia enxergar coisa alguma.

Katie tremia de frio, sentia-se congelar, não havia percebido como estava frio até aquele momento. Esperava ansiosa que o aquecedor do carro funcionasse e Jack desse a partida. Não queria que seu bebê nascesse ali.

Enquanto estavam sob as luzes que iluminavam a frente do prédio e as contrações lhe davam uma trégua, ela pôde observar melhor o rosto de seu vizinho. Ele não se parecia nem de longe com um astro de cinema, mas havia algo de atraente em seu rosto emagrecido e com a barba por fazer. Seus olhos também tinham um brilho todo especial que a intrigava. Já fazia um longo tempo que não analisava um homem daquela forma.

— Qual hospital? — ele perguntou ao dar a partida.

— O quê?! — As palavras dele sobressaltaram-na.

— Qual hospital? — ele repetiu, nervoso.

— A maternidade...

— É, faz sentido, por que não pensei nisso?! — ele disse baixinho sentindo raiva de si mesmo por fazer uma pergunta tão tola.

Katie cruzou os dedos, assim que entraram na estrada branca e gelada.

Katie soltou um gemido sofrido quando mais uma contração assomou-a.

— Você está bem? — Jack perguntou, temendo o pior.

— Estou bem... Nestas circunstâncias estou bem... — Katie tentou acalmá-lo, mas o tom de sua voz era de desespero e dor.

— Você não vai...?! — ele começou a falar, os olhos presos no volante. A estrada a sua frente tornou-se um pesadelo. Temia desviar o olhar naquele momento.

— Não, não vou. Quanto falta para chegarmos?

— Se a Mãe Natureza permitir, em dez minutos — ele respondeu, mas naquele exato momento o carro deslizou perigosamente e quase sai da estrada.

Katie fechou os olhos, contendo um grito que ameaçara escapar de sua garganta.

— Está tudo bem, não se assuste. Eu sei dirigir na neve. Nasci no Maine. Nós temos invernos muito piores por lá.

Katie abriu os olhos e viu que estavam de novo a caminho da maternidade. Respirou aliviada e recostou a cabeça no espaldar do banco. Depois de um momento de silêncio voltou a falar:

— No que você trabalha, Jack?

— Sou compositor. Escrevo músicas — ele respondeu sem desviar o olhar da estrada.

— Que tipo de musica? Popular? Clássica?

— Música romântica.

— Você é bom? — Katie se arrependeu imediatamente do que acabava de dizer.

"Que pergunta estúpida fui fazer!”, pensou irritada consigo mesma.

— Gosto de pensar que sou — Jack respondeu sem falsa modéstia.

— Já teve algum sucesso? Katie procurou continuar falando apesar das dores estarem aumentando.

— Um ou dois...

— Algum cantor famoso gravou suas músicas?

— Uma vez... há bastante tempo.

Katie hesitou por um momento,

— Você não fala muito, não é? — ela comentou, diante das respostas evasivas de Jack. Ele não parecia disposto a levar adiante a conversa sobre seu trabalho.

— Só quando tenho um assunto interessante. E você, o que faz? — ele perguntou depois de uma manobra perigosa.

— Sou cartunista. Histórias em quadrinhos — Katie respondeu ao se recuperar do susto.

— Você quer dizer que escreve histórias como a do Fantasma, do Snoopy, coisas assim?

— Algo parecido. Você já viu Clarice no Século XXI?

— Oh, sim! Forrei a gaiola do meu pássaro algumas vezes com ela.

— Estou orgulhosa... — Katie disse num tom frio.

— Oh, desculpe, eu não... Não é nada pessoal. Costumo usar os quadrinhos para forrar a gaiola porque acho que o Sam gosta do colorido.

— Sam?

— Meu papagaio. Não o viu nos fundos da sala do meu apartamento?

Katie balançou a cabeça, negando.

— Eu estava muito nervosa para perceber alguma coisa.

— Não viu um piano? Sam é meu letrista.

— Seu o quê? — Katie olhou-o espantada, não tinha certeza de tê-lo ouvido bem.

— Meu letrista. Ele compõe as letras para minhas músicas.

— Eu sei o que faz um letrista, só não tinha certeza de...

— Foi uma piada... Estava brincando.

— Desculpe-me, não estou em condições de rir, dói muito — ela disse, sentindo-se um pouco embaraçada por não ter entendido a brincadeira.

— Eu a compreendo...

— Que letrista você tem! Jack riu.

— Às vezes a gente pensa que foi o Sam que escreveu minhas músicas.

Katie começou a rir baixinho. Seu vizinho era um humorista, afinal.

"Até me fez rir", pensou enquanto tentava controlar a vontade de chorar quando a dor voltou.

Jack ignorou as placas no estacionamento da maternidade e dirigiu para a entrada destinada às ambulâncias. Quando parou o carro junto à porta envidraçada, um segurança uniformizado correu para fazê-lo tirar o carro dali.

— Não sabe ler?! Essa entrada é para ambulâncias. Só pode estacionar do outro lado — ele avisou mal-humorado.

Jack saiu do carro ignorando o que o segurança lhe dizia,

— Olhe, eu trouxe uma mulher que está em trabalho de parto. Ela vai ter o bebê a qualquer minuto e temos de levá-la para dentro.

O homem mudou de atitude imediatamente.

— Está bem, está bem. Vou buscar uma cadeira de rodas —- disse, saindo apressado em direção ao corredor dentro do prédio, enquanto Jack abria a porta do carro para Katie poder sair.

— Você está em ótimas mãos agora — falou ao ajudá-la a descer,

— Aonde você vai? — ela perguntou, o medo da solidão tomando-a. Jack era apenas um estranho, mas não tinha mais ninguém além dele naquele momento.

Ele olhou-a intrigado.

— Não precisa mais de mim, garota, o médico logo estará aqui.

— Pensei estar preparada para tudo isso, mas de repente fiquei apavorada. Por favor, não vá embora...

Katie sabia que não tinha o direito de fazer aquele pedido, mas não conseguiu se controlar.

Jack ficou perplexo. Não queria se envolver muito, mas tinha certeza de que não podia deixá-la daquele jeito tão aterrorizada. Hesitou por um momento e em seguida balançou a cabeça concordando.

— Vou levar o carro para o estacionamento. Não vou demorar — disse, enquanto a ajudava a sentar-se na cadeira de rodas que o segurança acabara de trazer.

Katie sorriu antes de sumir no corredor da maternidade.

— No que eu estou me metendo? — Jack balbuciou, controlando a emoção ao vê-la partir.

Katie estava sendo levada para o quarto quando Jack a alcançou.

— Eu sabia que não ia fugir — ela disse, tentando sorrir.

— Não faz idéia de como o estacionamento estava lotado. .. — ele replicou, aceitando a xícara de café que uma das enfermeiras lhe oferecia.

— Parece que está gostoso — Kate comentou depois que a colocaram na cama.

— E está!

— A senhora, não! — outra enfermeira se apressou a dizer.

— Sei disso... — Katie concordou.

— Suponho que comeu alguma coisa nas últimas horas... — a enfermeira falou quase numa acusação.

— Sim — Katie admitiu embaraçada.

— Você não podia, Katie! Devia ter adivinhado que viria para o hospital esta noite e não ter jantado — Jack ironizou, aludindo à repreensão da enfermeira.

— Nós estamos preocupados com o bem-estar de sua esposa, sr. Maxwell — a enfermeira replicou. Parecia não ter gostado nem um pouco daquele comentário.

— Eu não sou... — Ele quase deixou cair o café.

— É melhor eu chamar o médico. — A enfermeira saiu do quarto sem dar atenção ao que Jack dizia.

Assim que ficaram sozinhos, Kaíie e Jack entreolharam-se e começaram a rir.

— Ela pode ir para a sala de parto agora — o médico concluiu depois de fazer um exame completo.

— Vou prepará-la — a enfermeira concordou, dirigindo-se para a porta.

Jack, que esperava do lado de fora, ao ver Katie sendo levada na maca, aproximou-se e tocou-lhe a mão com delicadeza.

— Acho que agora é só com você, não é? — disse com um sorriso cansado.

— Obrigada por tudo, Jack — ela agradeceu num fio de voz, sua face transformada pela dor que vinha sofrendo há horas, mas muito iluminada pela graça que viria.

— Vai se sair bem!

— Pode ir agora; estarei bem.

— Ótimo, peça para alguém me avisar quando o bebê nascer.

— Quer mesmo?! — Katie surpreendeu-se.

— Claro! — Jack deu-lhe uns tapinhas no ombro e caminhou para a saída.

— Espere! — Katie chamou-o.

— O que é? —- ele perguntou, voltando-se.

— Eu não sei o número do seu telefone — ela disse, embaraçada.

Jack escreveu o número numa folha de papel de sua agenda e entregou-lhe.

— Agora você sabe! Cuide-se, nem!

— Você também. Preste atenção na estrada.

— Não se preocupe comigo.

A primeira enfermeira que atendeu Katie parou-o no corredor quando já se preparava para sair.

— Aonde vai, sr. Maxwell? — perguntou-lhe surpresa ao vê-lo vestindo o casaco.

— Para casa. E eu não sou ...

A enfermeira balançou a cabeça numa atitude de recriminação.

— Não pode ir agora — ela o interrompeu. — Sua esposa precisa do senhor na sala de parto.

Prendendo-o pelo braço, puxou-o em outra direção.

 

Jack olhou para a enfermeira sem acreditar. Era óbvio que ela acreditava ser ele o marido de Katie e o pai do bebê!

— Você não entende... — começou, balançando a cabeça e tentando recusar o avental que ela lhe estendia.

— Entendo, sim. A primeira vez é sempre assustadora, tanto para o marido quanto para a esposa. Nós temos pais que desmaiam durante o parto, mas a maioria se comporta muito bem quando percebe que suas esposas precisam deles — a enfermeira comentou, empurrando-lhe o avental.

— Mas eu não sou...

— Vamos, vista, não temos muito tempo — ela interrompeu mais uma vez o que Jack tentava dizer e entrou na sala de parto.

Jack ficou lá parado, por um momento sem saber o que fazer. A enfermeira não lhe dera oportunidade para terminar a sentença, muito menos para se explicar. Estava decidida a considerá-lo o "sr. Maxwell", e nada a faria mudar de idéia. Devia pensar que, desde que havia trazido Katie à maternidade, tinha de ser o marido dela. Olhou de novo para o avental verde que tinha entre as mãos. Seu primeiro impulso foi deixá-lo de lado, jogá-lo na cadeira de rodas junto à parede e sair dali antes que aquela enfermeira faladeira voltasse. Colocou-o por um instante na cadeira, mas hesitou, sem saber por quê.

"Meu Deus, Katie Maxwell é uma estranha!", pensou, tomando de volta o avental.

Jack sabia que acabaria se arrependendo, mas foi avante.

A dor era insuportável. Katie já não sabia mais como conseguia se controlar e não gritar. Suas mãos agarravam os lados da mesa onde a haviam deitado, desesperadamente. Estava numa sala de parto pequena e bem iluminada, o que lhe pareceu aterrorizante a princípio, mas logo se acalmou, ao ver o médico junto a ela. Tentou se recordar de toda a orientação sobre as técnicas de respiração e relaxamento.

"Na teoria tudo é muito fácil", pensou quando uma contração violenta deixou-a quase sem ar. Teve vontade de morrer, não sabia como poderia suportar mais aquela tortura.

— Estou no lugar certo?

Alarmada, Katie virou a cabeça na direção da porta. Quase não reconheceu seu vizinho num avental verde de enfermeiro, máscara no rosto e um capuz que lhe cobria todos os cabelos negros.

— O que está fazendo aqui? — perguntou atônita quando ele se aproximou da mesa. Aquilo era embaraçoso demais. Lá estava ela numa posição nada elegante, com a parte inferior do corpo exposta, conversando com um homem que lhe era quase um estranho.

Jack não parecia notar o inusitado da situação.

— Eles ainda pensam que sou seu marido — comentou baixinho como se falasse consigo mesmo.

— Você não lhes disse a verdade?

— Tentei, Deus sabe como tentei, mas aquela enfermeira teimosa não me deixou abrir a boca. Entregou-me este avental ridículo e apontou nesta direção, — Jack encolheu os ombros e balançou as mãos, parecendo resignado.

— Você não pode... — Katie tentou falar, mas outra contração pareceu querer arrebentá-la por dentro e fez com que se calasse e começasse a chorar baixinho.

Jack segurou-lhe a mão, esperando que a dor diminuísse, sem saber como ajudá-la.

— Katie, isso vai passar, respire com calma, pense no bebê. Imagine que daqui a pouco vai saber se é um menino ou uma menina.

Ela mordeu o lábio inferior irritada.

— É fácil falar!

— Vamos, Katie, empurre com força, já estou vendo a cabeça do nenê, vamos... — o médico animou-a. — Você. está indo bem, só mais um pouco...

— Você está indo bem, só mais um pouco... — Jack repetiu, apertando sua mão com mais força. Ele sentia pena vendo todo aquele sofrimento e tentava imitar a calma e a fala do médico. — Respire... Fundo, é isso... Outra vez...

Katie imaginava que aquele tormento nunca cessaria, mas a presença de Jack era um conforto que a surpreendia. Pelo menos seu rosto ansioso e preocupado a ajudava a suportar toda aquela dor. Ele lhe falava com carinho, tentando ajudá-la, e assim conseguia acalmá-la. Queria dizer-lhe que estava feliz por ter ficado, mas não conseguia naquele momento. Prometeu a si mesma que agradeceria quando tudo acabasse.

— Ótimo, Katie, mais um empurrão forte, mais um só e esse bebezinho preguiçoso estará em seus braços... — As palavras do médico fizeram-na tentar outra vez.

— Vamos, você ouviu o doutor, é o grande momento, Katie. O que prefere: um menino ou uma menina? — Jack perguntou, acariciando-lhe a cabeça.

— Um menino — Katie murmurou quase sem voz.

— Se for menina, pode devolvê-la de onde veio — disse Jack, voltando-se para o médico.

— Jack! — Katie o repreendeu ofegante, sem crer nas próprias forças.

— Eu estava brincando — Jack sussurrou-lhe, entre risos.

Com um último esforço, ela sentiu uma dor aguda seguida de um alívio incrível.

— É um menino! — o médico exclamou.

— Parabéns! — Jack congratulou-se com ela satisfeito. Momentos depois, lágrimas escorrendo pelo rosto, Katie recebeu seu filho. Ainda precisava de um banho, mas lhe pareceu a coisa mais linda do mundo.

O sol começava a surgir no horizonte quando Jack afinal deixou a maternidade, percebendo pela primeira vez desde que o bebê nascera como estava cansado.

Enquanto caminhava pelo estacionamento em direção ao carro, pensava no estado de um pai verdadeiro no dia do parto, se tomasse como referência seu próprio esgotamento.

Suas mãos estavam vermelhas e geladas pelo vento frio que soprava naquela manhã. Procurou as chaves no bolso de seu casaco e abriu a porta, trêmulo. Dentro do carro estava tão frio quanto do lado de fora. Ligou o motor rezando para que funcionasse depressa apesar do frio.

— Graças a Deus! — exclamou, ao ouvir o ronco tão seu conhecido, e logo em seguida apertou o botão do aquecimento sabendo que a temperatura dentro do carro só ficaria agradável quando estivesse quase chegando em casa.|

"Por que não comprei um carro mais novo?", questionou-se, sentindo dificuldade para dirigir com os dedos enrijecidos.

Desde o momento em que havia se divorciado prometera a si mesmo viver com o mínimo possível, até que os advogados da ex-esposa o deixassem em paz. Já pagava uma pensão exorbitante e não queria que lhe tirassem mai ainda. Mas, naquele momento, se arrependeria de sua promessa.

Sabia que devia continuar economizando até que Lianna na se casasse outra vez e aí ficaria livre definitivamente de suas exigências. Nos Estados Unidos quase sempre era muito difícil manter as ex-esposas, e Jack sentia na pele o que considerava uma injustiça, mas a única satisfação que tinha era saber que o casamento de Lianna com aquele baterista tolo logo aconteceria, e seus problemas afinal acabariam.

Ela o iludira e enganara com a facilidade que só os cegos de amor não notavam. Quanto tempo demorara até perceber toda a falsidade? Por que fora acreditar no amor da linda, alta e encantadora loira que todos cobiçavam

Caíra na armadilha como um idiota, e se irritava muito cada vez que se lembrava disso.

Jack não era o tipo de astro com que Lianna costumava sair. Era uma mulher por quem qualquer homem se apaixonaria: ao primeiro estalar de dedos o pobre coitado deitava a seus pés servindo-lhe de tapete. Podia ter em suas delicadas e bem cuidadas mãos qualquer um que quisesse, e escolhera justamente Jack Spangler!

"Como fui tolo! Devia ter percebido", ele se recriminou mais uma vez, recordando a última conversa que tiveram na hora da separação.

— "Gostaria de saber por que casou comigo, afinal, Lianna!

Jack acendeu um cigarro, nervoso. Decidiu naquele instante deixar de fumar também; assim se livraria de mais outro vício.

— Devia ser óbvio até mesmo para você, Jack. Estava tendo um grande sucesso como compositor, sua música em primeiro lugar nas paradas... Tinha contatos excelentes, pensei que me pudesse ser útil.

Jack ficou revoltado com tanto cinismo. Teve vontade de esbofeteá-la, mas se conteve pensando que não valia a pena se exaltar com ela.

— Você não presta, Lianna!

— E você é um idiota! Tão cego pelo sucesso que nunca imaginou que estava sendo usado. Acreditou mesmo que eu o amava! — Ela começou a rir diante do olhar de sofrimento e de espanto de Jack.

— Fui um tolo mesmo!... — ele murmurou como que irara si mesmo.

- - Oh, você não foi o único enganado, querido — ela admitiu com relutância, como se fosse difícil oferecer-lhe aquele consolo.

Conhecendo Lianna como conhecia, Jack tinha certeza de que mais outra humilhação estava a caminho.

- Por que diz isso? -— perguntou, decidido a conhecer toda a verdade.

— Seus contatos não eram tão bons quanto eu imaginava. O casamento todo foi uma incrível perda de tempo.

— Nisso concordo com você, Lianna — ele replicou, jogando fora o cigarro que acabara de acender.

Aquela troca de palavras havia deixado um gosto amargo em sua boca.

Agora realmente concordava com ela: o casamento era mesmo uma incrível perda de tempo. Contudo, naquele momento sentia-se aliviado, não sofria mais por ter sido enganado.

As últimas seis horas que havia passado ao lado de Katie Maxwell se transformaram numa experiência que jamais esqueceria. Como nos filmes, tudo acontecera tão depressa que ainda não podia acreditar que fosse verdade. Quando Katie apareceu em sua porta naquela madrugada, pensou que fosse a coisa mais estranha que lhe ha vi acontecido em Connecticut. Não sabia, porém, o que ainda estava por vir.

A estrada que tinha pela frente estava coberta pelo gelo e dirigir se tornava perigoso mesmo à luz do dia. Jack prestava bastante atenção ao caminho para não cometer nenhum engano, mas não podia deixar de pensar em Katie. Se alguém lhe dissesse que iria levar uma mulher grávida para a maternidade e a acompanharia na sala de parto, daria boas gargalhadas e diria que era maluco. Não tinha amigos, gostava de ficar sozinho, e não era do tipo prestativo. Principalmente, não gostava de que o incomodassem quando estava trabalhando.

“Como vai ser de agora em diante?", pensou mal humorado, ao se recordar de que logo teria no apartamento ao lado um bebê recém-nascido, chorando e berrando, paredes daquele prédio eram finas e não lhe garantiram nem um pouco de sossego.

 

— É hora de Jeremy ir para o berçário, sra. Maxwell — a enfermeira avisou ao entrar no quarto de Katie.

— Mas...

— Eu sei que não gosta, mas é para o bem dele.

Em dez minutos começa o horário das visitas e não podemos deixar que estranhos respirem junto do bebê, não é? Katie aconchegou mais o filho ao peito e beijou-lhe a testa.

— Não pode fazer uma exceção? Estou sozinha aqui, não vai haver visitas. A enfermeira balançou a cabeça.

— Desculpe, são as regras — disse um pouco embaraçada enquanto tirava gentilmente o recém-nascido dos braços de Katie — Seu marido não vem vê-la esta noite?...

— Eu não tenho marido...

— Mas...

Katie percebeu a confusão estampada no rosto da enfermeira e entendeu o que devia estar pensando.

— Eu sou divorciada. O homem que estava comigo na sala de parto não é meu marido, é o meu vizinho... Ele me trouxe para a maternidade... mora do lado.

— Eu entendo...

Katie notou a perplexidade da moça e tentou explicar melhor.

— Ele me trouxe porque não consegui chamar uma ambulância, o telefone não funcionava. Acho que pensou que tinha obrigação de ir até o final.

— Muita gentileza da parte dele — a enfermeira observou, confusa ainda, sem dar mostras de que queria entender, se afastou da cama, levando o bebê. — Diga a sua mãe, Jeremy, que você volta quando passar a hora das visitas.

Depois que ela se foi, Katie olhou para o telefone ao lado da cama. Quantas vezes nas últimas horas pensara em chamar Michael e dizer-lhe que seu filho nascera? Mas o receio a impedia. Não acreditava que a reação dele fosse outra. Doía saber que nada no mundo faria Michael se transformar, nem mesmo aquela linda e saudável criança, que nada tinha a ver com a rejeição do pai.

Sabia que, com o passar do tempo, teria de dar satisfação ao garoto sobre o pai. O que podia dizer? Que Michael nunca o aceitaria e por isso haviam se separado? Será que Jeremy merecia o desgosto da pura verdade? Já não lhe bastava crescer sem a companhia e o apoio do pai? "Isso pode destruí-lo", ela pensou angustiada e ao mesmo tempo surpresa por odiar Michael tanto. De repente, desejou poder sair da maternidade e levar o bebê para casa, onde ninguém o tiraria de seus braços.

— Como vai?

Ela voltou-se na direção da porta. Jack Spangler em pessoa, com flores na mão e um sorriso amigo no rosto, fez com que se esquecesse por um momento da dor que o futuro incerto lhe provocava. A primeira coisa que notou foi que ele havia penteado os cabelos. Ainda precisavam de um bom corte, mas ao menos haviam sido penteados. Também tinha feito a barba e trocado de roupa.

— Jack, que surpresa! Eu não esperava vê-lo aqui — disse-lhe sorrindo, sem esconder a alegria que sentia com aquela visita.

— Eu também não esperava voltar aqui... — ele admitiu um pouco encabulado.

— Você não precisava nos levar para casa. Eu podia chamar um táxi — Katie disse quando Jack a ajudava a entrar no carro.

— Já falei que estava na vizinhança, não se preocupe. — Ele fechou a porta e deu a volta para pegar seu lugar junto à direção.

Na vizinhança! Jack havia dito que estava no correio, e o escritório era bem longe dali. Ela própria chamaria aquilo de "vizinhança", mas estava contente por não ter de chamar um táxi. Era muito bom voltar para casa levando Jeremy em companhia de alguém conhecido.

— Não precisa cobrir o rosto dele — Jack disse ao ligar o motor. — Logo, logo vai aquecer. O aquecedor ficou desligado só por alguns minutos. A Lizzi aqui nunca me deixa na mão, não é, garota?

— Você sempre fala com o carro desse jeito? — perguntou divertida.

— Claro! Ele é menos complicado do que as pessoas que conheço. E nunca replica, o que é ótimo.

— Com este tipo de raciocínio você não deve ter muitos amigos, não é?

— Pode apostar que não! Sou um solitário! — Ele sorriu, mas por trás do sorriso Katie notou um tom triste e melancólico.

 

Katie sentou-se exausta na beirada da cama. Enquanto embalava Jeremy, quase não conseguia manter os olhos abertos.

"Por que fui sair da maternidade?", perguntou a si mesma, tirando irritada os fios de cabelos que teimavam em descer-lhe pela testa.

O relógio digital à cabeceira mostrava que já eram duas e quinze da madrugada, e sentia como se não dormisse há uma semana. Fazia pelo menos duas horas que Jeremy estava agitado.

Na verdade, há uma semana havia deixado a maternidade, e seu bebê, que se comportara como um anjo nos três dias posteriores ao parto, tornara-se irritado e manhoso em casa.

Katie sabia que a culpa não era de Jeremy e muito menos dela, Tentara estabelecer uma rotina para a troca de fraldas, amamentação e principalmente para o sono desde o primeiro dia, mas era impossível esperar de um recém-nascido que dormisse à noite quando o vizinho ao lado tocava piano durante a madrugada inteira.

Ela procurara sutil e delicadamente demonstrar a Jack que estava atrapalhando o sono do bebê, mas ele não parecia disposto a mudar seus hábitos para agradar ninguém. A paciência de Katie, porém, estava no fim. Havia perdido muitas horas de sono para poder manter a calma. Tentava se lembrar de que Jack fora um vizinho maravilhoso; nos momentos difíceis que tivera, mas o esgotamento e o mau humor não permitiam que ela tolerasse mais o barulho. Mas, de repente, fez-se silêncio no apartamento ao lado.

Quando o choro de Jeremy finalmente parou, Katie agradeceu a todos os santos que conhecia. Ainda embalando o bebê nos braços, levou-o até o berço. Esperou alguns minutos para se certificar de que dormia realmente e então o cobriu da forma mais gentil e carinhosa que podia. Ao deitar-se também, ficou imaginando se as mulheres que tinham um companheiro se saíam melhor ao tratar de um recém-nascido.

"Será que os homens levantavam às duas da manhã para trocar fraldas ou para dar mamadeira?", perguntou a si mesma no silêncio do quarto e recordou-se de que Michael jamais consideraria oferecer-lhe tal ajuda.

Michael... Por mais que tentasse, não conseguia esclarecer a si mesma o que tinha visto nele para se casarem. Estavam divorciados há menos de um ano e, no entanto, sentia como se houvesse passado uma vida inteira.

Precisava parar de pensar nele! Michael estava fora de sua vida e da de Jeremy também. Seria difícil esquecê-lo completamente; a mágoa era muito grande. Mas tinha de usar o bom senso.

Mal acabara de adormecer quando foi acordada pelo som do piano de Jack, seguido imediatamente pelo choro nervoso e indignado de Jeremy.

— Oh!'Droga de piano! — murmurou baixinho, enquanto se levantava.

Caminhou às pressas até o berço, levantou o bebê e colocou-o outra vez de encontro ao peito. Tentou acalmá-lo ninando-o e murmurando palavras de ternura:

— Vamos, filhinho, durma, não fique bravo! — repetiu, até que fechasse os olhos e ficasse quieto.

Ao recolocar Jeremy no berço, decidiu que não aguentaria outra noite como aquela.

— Isso tem de acabar! É demais!

A paciência de Katie havia chegado ao limite; tinha de falar com Jack naquele momento, sem subterfúgios, sem meias palavras.

Quando estava grávida, aqueles concertos noturnos não a incomodavam. Na hora de dormir, ficava mais preocupada em arranjar uma posição adequada do que com qualquer outra coisa. Agora, tinha certeza de que poderia fazer o mesmo, mas o bebê em hipótese alguma conseguiria adormecer com aquele barulho.

As horas que havia passado acordada nos últimos dias acabaram com todo seu senso de humor. Mentalmente contou até dez, primeiro em inglês, depois em espanhol... Quando o piano voltou a soar depois de uns segundos de pausa, sentiu o sangue ferver. Vestiu o robe, saiu do apartamento e parou diante da porta de Jack. Respirou fundo e tornou a contar até dez antes de bater. A música parou de repente e momentos depois ele abriu a porta, demonstrando-se surpreso ao vê-la.

— Katie! Pensei que estivesse dormindo!

— Oh, como gostaria! Você sabe que horas são? Jack consultou o relógio em seu pulso.

— Três e dez. Por quê?

— Por quê?! Jack, cheguei do hospital há uma semana. Nesse tempo todo não tive uma noite decente de sono. Você sabe por quê? — Katie perguntou, tentando controlar a raiva que sentia.

Ele a olhou intrigado, parecia não entender sobre o que estava falando.

— Bem, acho... Você tem um bebê novo. Não é normal isso acontecer?

— Sim, é normal levantar durante a noite quando se tem um bebê. Claro! Entretanto, não é normal ficar acordada a noite toda pelo som do seu piano.

Jack franziu o cenho. Não esperava por aquela queixa.

— Estou acostumado a trabalhar à noite, sempre compus muito melhor...

— O que tem de errado com a luz do dia? O que você faz, Jack? Fica fechado num caixão enquanto o sol não se esconde?

Katie exagerou um pouco no tom agressivo. Já não aguentava mais o olhar inocente dele, mas o comentário irônico acabou por irritá-lo.

— É um hábito, minha cara. Faço isso há anos. Não pretendo mudar! E... não há por acaso uma cláusula no seu contrato de aluguel sobre crianças?

Katie enrubesceu. Na verdade, naquela parte do país muitos prédios não aceitavam inquilinos com filhos.

— O proprietário nunca aparece, tem medo de precisar fazer algum conserto por aqui. Mas, eu o aviso, Jack, mais uma noite como esta e será você quem vai consertar alguma coisa. Talvez seja até a sua cabeça!

Antes que Jack pudesse pensar numa resposta, ela voltou para o apartamento e bateu a porta com raiva. Em seguida, ele ouviu o bebê chorando de novo.

 

Jack foi acordado no meio da manhã pelos gritos irritantes de Jeremy.

— Meu Deus! Parece que o garoto está sendo torturado! — murmurou, ao sentar na cama.

Passou as mãos pelos cabelos, tenso e nervoso. Mais uma vez havia acordado. Estava tendo um daqueles sonhos deliciosos que qualquer homem anseia viver uma vez ou outra. Daria tudo para voltar a dormir, continuar o mesmo sonho para descobrir o final, mas era impossível com os gritos do bebê.

O pior de tudo era não conseguir se lembrar de certos detalhes da história maravilhosa que sua mente projetara. Estava fazendo amor, disso tinha certeza, vivendo momentos apaixonados e maravilhosos. O que não conseguia lembrar-se era do rosto da mulher que tinha em seus braços. No sonho, as imagens estavam fracas, não podia distinguir com clareza, mas podia jurar que ela se parecia com Katie Maxwell.

Grande!, pensou decepcionado. Katie Maxwell! Entre tantas mulheres ele precisava ter um sonho erótico justamente com ela!

Não, não podia ser Katie, devia ser alguém parecida... Sim, era isso: a mulher de seu sonho apenas parecia-se com Katie. Talvez por causa dos cabelos avermelhados... Não podia aceitar que havia sonhado com a vizinha com quem havia brigado na véspera e que dera à luz fazia apenas uma semana.

O choro de Jeremy aumentou mais ainda, interrompendo até seus pensamentos e elevando ao máximo sua irritação.

— E ela tem coragem de se queixar do meu piano! — exclamou em voz alta, enquanto colocava as calças e procurava o cinto que havia largado em alguma parte do quarto.

Encontrou-o debaixo da cama. Ao passar pela sala, pegou a camisa sobre o sofá e vestiu-a a caminho do apartamento de Katie. Bateu e esperou impaciente diante da porta até que fosse aberta.

Ela estava com Jeremy nos braços, tentando fazê-lo aceitar a mamadeira. Ao vê-lo, espantou-se.

— Olhe, Jack, se é sobre ontem à noite... — começou hesitante.

— Não é sobre ontem à noite, é sobre agora. Você faz idéia de como essas paredes são finas?

Katie elevou os olhos num gesto impaciente.

— Sei muito bem! — respondeu num tom cansado.

— Esse garoto tem uns pulmões! Estou tentando dormir — Jack continuou, irritado, apontando para o bebê.

— Ótimo! Agora você sabe como é! — Katie quase gritou e em seguida bateu a porta na cara dele.

Katie estava sentada diante da mesa de trabalho sem qualquer idéia para sua nova história. O prazo de entrega venceria em uma semana e não conseguia encontrar um assunto que a motivasse. Quando havia criado Clarice no Século XXI, pretendia fazer histórias em quadrinhos com senso de humor e classe, no que se saíra muito bem. Mas depois do nascimento de Jeremy sua capacidade de criação parecia ter diminuído bastante e naquele exato instante dava-lhe a impressão de estar esgotada.

Muitas vezes chegou a pensar em contar um pouco de sua vida nos quadrinhos, mas logo deixou a ideia de lado. Afinal, aqueles quadrinhos pretendiam ser divertidos e não havia nada de engraçado no rompimento de um casamento. Muito menos num homem que considera a gravidez um motivo para divórcio. Clarice, a personagem das historinhas, nunca havia se casado. Seus quadrinhos, Katie reconhecia naquele instante, eram o oposto de sua própria vida. Sua personagem acreditava conseguir tudo o que sonhasse.

— Não se vive desse jeito, Clarice! Isso é uma utopia — Katie conversou com o desenho, inclinando-se sobre a mesa. — Qualquer dia desses vou fazê-la descobrir por si mesma.

Ela considerou permitir a sua criação experimentar os prazeres de uma gravidez como a dela, sozinha, sem apoio de marido e principalmente viver as horas do nascimento de um filho como ela havia vivido. Sabia que poderia tirar de tudo aquilo momentos divertidos que agradariam seus leitores. Não tinha dúvida de que ririam quando contasse o olhar atônito de Jack Spangler ao vê-la parada na porta, a caminho da maternidade, e mais ainda quando o viu surgir à porta da sala de parto fantasiado de enfermeiro...

"Cheguei a pensar que seríamos bons amigos” disse a si mesma ao se recordar da ajuda providencial dele.

Na vida real as coisas não aconteciam como nos romances, Katie bem-sabia, e, da mesma forma que o relacionamento com Michael havia acabado, o curto episódio feliz com o vizinho ao lado, igualmente, estava tendo um triste final,

Katie olhou para Jeremy no carrinho a seu lado. Ainda estava dormindo. Era a única coisa boa que a vida com Michael lhe oferecera. O bebê fazia diminuir a dor e o desapontamento que o marido lhe dera. Porém cinco anos de convivência e um final tão trágico a tornaram amarga e descrente do amor e de uniões em geral. Mesmo Jeremy não podia apagar aquilo.

Seus pensamentos foram interrompidos de repente pelo som de uma batida na porta. Deixou de lado o lápis e levantou apressada antes que aquele ruído inesperado acordasse o bebê. Abriu a porta devagar e viu Jack de mãos na cintura e olhar agressivo.

— A caminhonete da lavanderia está estacionada na minha vaga outra vez — ele avisou, indo direto ao assunto sem esconder seu mau humor.

— Fale baixo! Vai acordar o Jeremy!

— Deus me livre! Você tem de fazer alguma coisa, desse jeito não pode continuar, Katie — ele baixou o tom de voz mas continuava furioso.

— O que posso fazer? O estacionamento é pequeno!

— Tente fraldas descartáveis! — ele sugeriu, controlando o descontrole total.

Katie fechou a porta depois que ele saiu e recostou-se nela, também muito irritada.

— Homens!... Quem precisa deles? — esbravejou, depois de um longo suspiro.

O café havia esfriado outra vez. O sanduíche que permanecia meio comido sobre o piano também parecia horrível. Jack relia as notas que acabara de escrever.

Algo estava errado, mas ele não conseguia descobrir o quê. Não dormiria até que a música que compunha ficasse como desejava, apesar de saber que já era tarde.

Jack havia prometido a si mesmo não passar da meia-noite. Não queria acordar o bebê de Katie, e passara a trabalhar durante uma parte da tarde, mas naquele dia faltava muito pouco para terminar e não podia deixar tudo de lado, excitado como estava, só para não acordar um bebê.

O telefone soou, provocando-lhe um susto.

— Responda, Sam! — pediu ao papagaio, sem vontade de falar com ninguém. Esperava que quem quer que fosse desistisse ao ouvir o pássaro.

O papagaio retirou o fone úo gancho com o pé direito e largou-o sobre a mesa.

— Alô? Alô? — disse, em voz ardida.

— Oi, cara! — alguém gritou do outro lado da linha.

Jack logo descobriu quem era e se apressou a responder, quase se lançando sobre o telefone.

— Patch, é você?

— Claro que sou eu. Você é uma figurinha difícil de a gente encontrar, hein? O que está fazendo em Connecticut, afinal?

— Fugindo dos advogados de Lianna.

— O quê? Ainda Lianna?! Pensei que tudo estivesse arranjado.

— Quase, falta pouco agora.

— Mas... ela não vai casar com aquele cara do conjunto inglês?

— Vai, mas até lá corro perigo. Os advogados dela querem me tirar até as cuecas! Mas deixa isso pra lá, é uma longa história, conto tudo depois.

— Pode me contar amanhã. Eu e os meninos precisamos falar com você. Como vão as músicas que está compondo para nós?

— Quase prontas. Sabe como chegar até aqui?

— Harry me explicou. Vejo você amanhã.

Depois do telefonema, Jack voltou ao piano. Estava satisfeito por saber que Patch apareceria, mas aquilo significava que precisava acabar aquela música imediatamente. Os "meninos", como ele dizia, iam querer ouvi-la, era óbvio, e por isso vinham vê-lo. Estavam à espera de mais um sucesso que lhes prometera. Como um autôato, levou a xícara de café à boca para rejeitá-la em seguida. Esquecera que o líquido estava gelado.

—- Droga!

Levantou-se e foi para a cozinha preparar outra caneca. Sobre a pia havia pratos, talheres e caixas de comida congelada vazias. O estado do lugar era calamitoso. Precisava arranjar uma faxineira com urgência!

Recordou-se de que Katie poderia emprestar-lhe de vez em quando a senhora que a ajudava; pelo menos era uma pessoa conhecida, de confiança e competente, já que o apartamento da vizinha estava sempre bem limpo. Mas a lembrança de Katie, porém, levou-o sem perceber a pensar na ex-esposa e comparar as duas.

Admirava Katie por sua autenticidade e pela coragem de ter um filho sozinha. Não era dependente de ninguém, sabia o que queria e seguia em frente, enquanto Lianna não passava de uma parasita. Gostava de Katie. Gostava de tudo nela, até mesmo de Jeremy, que com os gritos o despertavam no meio da manhã durante os sonhos mais deliciosos e relaxantes. Ela era diferente, ela era especial...

Irritado com o rumo que seus pensamentos estavam tomando, voltou a sua música e por mais uma hora trabalhou sem parar. Então, de repente percebeu o que havia de errado e corrigiu umas poucas notas na folha de papel que tinha sobre o piano.

— É isso! — exclamou satisfeito.

Correu para o telefone e fez uma ligação interurbana. Impaciente, esperou que o atendessem. Podia ouvir o sinal de chamada, uma, duas, cinco, e nada.

— Vamos, Harry! Responda essa droga de telefone — murmurou baixinho.

Finalmente a voz sonolenta e grave se fez ouvir.

— A... lô...

— Harry, é Jack. Ouça, eu...

— Jack Spangíer? Você faz idéia de que horas são?

— Passa de meia-noite. Qual o problema? — Jack perguntou impaciente.

— É mais de uma hora, Jack! Gente normal costuma estar dormindo, sabia? A guerra foi declarada, por acaso?

— Muito mais importante dó que isso, Harry. Eu terminei Encantamento.

— Ora, três vivas para você! Mas não podia esperar para me contar quando amanhecesse?

— Não! Tenho um sucesso aqui. Vamos entrar nas paradas outra vez!

— Já era tempo!

— Eu sei, mas o casamento com Lianna acabou com toda a minha inspiração. Agora, as coisas vão mudar...

— Fico feliz por ouvir isso, Jack, mas... agora não é hora para conversarmos, quero dormir, preciso levantar cedo amanhã, ou melhor, daqui a pouco... — a voz de Harry soava suplicante.

— Está bem, cara. Vá dormir, vá.

 

Quando Jeremy finalmente adormeceu, Katie tentou trabalhar em seus desenhos, mas estava tão cansada que não conseguia pensar com clareza, quanto mais acabar a história. Mas estava sob a pressão do prazo de entrega, que se esgotaria em poucos dias, e por isso insistiu em continuar o trabalho. Contudo, não demorou a verificar a inutilidade de seu esforço. Não conseguia produzir mais nada naquela noite.

Deixou de lado o lápis e a prancheta, trocando-os pela cama. Jeremy com toda certeza dormiria por algumas horas seguidas e Katie pretendia aproveitar para descansar também. Como seria dormir uma noite inteira, sem ter de acordar a cada duas horas? Parecia fazer séculos que não tinha uma noite inteira de sono. Mesmo que Jeremy não acordasse, a preocupação de mãe fazia-a levantar-se para se certificar de que tudo ia bem.

Já entrava na penumbra do sono quando a música lhe trouxe de volta à realidade. Somente quando Jack Spangler e seu piano se mudassem dali é que poderia ter esperanças de noites calmas. Havia notado que ele começava a trabalhar bem mais cedo, dando-lhe um pouco de paz durante a madrugada, porém, de vez em quando, como naquela noite, o piano voltava a irritar sem trégua.

"Ele parece nervoso!", pensou ao ouvir Jack repetir uma determinada parte da música que compunha por várias vezes.

Jeremy, como por milagre, parecia ter se acostumado com aquela melodia e dormia em seu berço com um doce sorriso nos lábios, mas Katie, sem entender, pois estava exausta, não adormecia. Virava-se por entre as cobertas, tentava diferentes posições, e nada! Era a preocupação com o trabalho que a deixava ansiosa. Estava tão cansada que lhe doíam todos os músculos da perna. Tirou o travesseiro, jogou as cobertas de lado e levantou-se para preparar um leite quente, na esperança de conseguir adormecer depois.

Antes de Jeremy nascer, seus familiares haviam se oferecido para ajudá-la quando saísse do hospital, mas ela recusara veementemente.

"Fui uma idiota!", pensou desanimada ao colocar o leite na caneca e acender o fogo.

Katie, ao decidir ter o bebê sozinha, decidiu também que não podia aceitar a ajuda dos pais. Mesmo que quisesse, não havia espaço em seu apartamento para mais ninguém. Teria de acomodá-los mal e eles não eram mais jovens para dormir em sofás ou em sua cama de solteiro. Desejou fazer tudo por seu bebê. Tudo! E fá estava eía, desesperada, esgotada, sem poder acabar o trabalho... Sem poder dormir.

— Oh, meu Deus, eu não posso fraquejar agora — balbuciou, passando a mão pelos cabelos num gesto nervoso. Afinal, não era o fim do mundo. Estava enfrentando uma situação que muitas outras mulheres tinham enfrentado, talvez em condições mais adversas. Sabia que podia contar com a ajuda de sua mãe a qualquer momento que pedisse, mas para isso teria de aturar seus irmãos censurando-a. Ninguém mais do que eles a haviam prevenido contra Michael, sem que lhes desse ouvidos.

Os irmãos a adoravam. Era a caçula, bem mais nova que eles, e por isso sempre a mimaram, tratando-a como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. Gostavam de irritá-la de vez em quando, mas não permitiam que ninguém a maltratasse. Protegiam-na ao exagero e sofreram muito quando tiveram de deixá-la ir para a faculdade e consequentemente viver sozinha.

Katie tivera muito trabalho para impedi-los de tirar satisfações com Michael depois do divórcio. Durante semanas precisou usar de todos os argumentos possíveis para afastá-los de seu ex-marido. Pareciam dispostos a estrangulá-lo se pudessem, mas acabaram respeitando o desejo dela.

As lembranças fizeram-na sorrir. Quantas vezes teve vontade de deixá-los frente a frente com Michael! Delirava só de imaginar a cara do ex-marido!

Voltando à cama com a caneca de leite bem quente, ligou o pequeno abajur de cabeceira e olhou para o porta-retrato onde a foto dos irmãos abraçados a emocionou.

Que boas recordações tinha de sua infância e juventude junto aos irmãos, em especial daquela tarde em que ela, Jamie, Johnny e Frank haviam saído para pescar no pequeno rio que circundava a cidade.

Sempre foram muito unidos. Johnny, o mais velho, tinha agora quarenta anos, era o mais bonito e charmoso dos Sullivan: alto e moreno, cabelos negros e olhos azuis e um sorriso que deixava qualquer mulher encantada. Estava casado e tinha dois filhos adolescentes.

Jamie, o do meio, tinha trinta e seis anos e trabalhava em Boston. Era o sonhador da família. Loiro, olhos azuis e sempre simpático. Katie lembrou-se de como o pai costumava brincar dizendo que Johnny devia ser o filho do carteiro e Jamie o do leiteiro, desde que nenhum dos dois lembrava nem de longe os Sullivan. Ela e Frank, entretanto, eram sem dúvida filhos de irlandês: olhos castanho-esverdeados e cabelos avermelhados, o que não deixava dúvida alguma de sua herança genética.

Katie tivera uma infância maravilhosa. Pais carinhosos e dedicados e três irmãos espetaculares. Amor, muito amor. Uma família de verdade! O tipo de família que desejava para seu bebê. Nunca imaginou que ele cresceria como filho único. Sempre sonhara com uma família grande, talvez três ou quatro crianças, uma casa num lugar tranquilo, com um belo jardim, um vasto quintal arborizado e um cachorro peludo e brincalhão que fizesse companhia aos garotos. E muita criatividade para suas histórias em quadrinhos.

O que haveria de errado com aquele sonho? Não era uma mulher de negócios, cheia de ambições, ou sequer tinha o espírito aventureiro, qualidades que ela admirava, mas que não faziam parte de sua índole. E, no entanto, cometera o grave erro de se casar alimentava a ilusão de que Michael mudaria no futuro. No lugar de uma infância maravilhosa que havia imaginado para o filho, ele cresceria sozinho, apenas ao lado da mãe, sem pai ou irmãos. Mas lutaria com todas as forças por sua felicidade. E conseguiria isso sozinha, pois não acreditava mais, não alimentava mais ilusões falsas de que pudesse se apaixonar novamente.

Jack apertou com força o volante entre as mãos ao ver a caminhonete da lavanderia estacionada outra vez em sua vaga.

— Esta é a terceira vez! — recordou-se com raiva. — Isto tem de acabar. Agora! — murmurou entre dentes enquanto manobrava.

Decidiu não adiar por mais nem um segundo uma conversa com Katie. Já não aguentava mais chegar em casa e ter de deixar o carro na rua.

Naquele dia, para piorar as coisas, nem na rua havia um lugar e teve de estacionar na calçada.

"Não vou demorar muito", pensou, sem receio de se arriscar a levar uma multa.

Jack precisava desabafar e a única forma de fazê-lo era-procurar Katie e o motorista da caminhonete e dizer a ambos que não iria admitir que usassem sua vaga outra vez. Saiu do carro e bateu a porta com raiva, sem dó. Não parou ao dar com o motorista da lavanderia no corredor; apenas o olhou com animosidade e continuou seu caminha.

Bateu à porta de Katie e esperou com impaciência. Ela atendeu quase em seguida; carregava o bebê nos braços e parecia bastante irritada.

— Se alguma coisa o acordou, não foi Jeremy desta vez — disse, sem esperar para ouvir a queixa de Jack.

— Ninguém me acordou — ele replicou furioso.

— Ainda bem! Então, o que deseja?

— Temos de falar sobre a caminhonete da lavanderia — ele a informou elevando o tom de voz.

— Por quê? Você tem fraldas para lavar?

— Muito engraçado para você, Katie, mas não para mim — ele respondeu à brincadeira, furioso. — É a terceira vez que esse motorista imbecil estaciona na minha vaga!

— Desculpe-me, Jack, mas não há lugar para ele estacionar. Entra na vaga que encontra, O que posso fazer?

— Ele pode estacionar na rua, na calçada, onde bem entender, menos no lugar do meu carro! Sugiro que converse com ele, senão terei de falar com o proprietário do prédio.

— Isso é uma ameaça?!

— Entenda como quiser. O que me importa é que tenha uma conversa com ele, entendeu?

— Claro que entendi! Sugiro agora que coloque seu carro no lugar. Tenho certeza de que ele está vago agora.

Sem nenhuma palavra mais, sem mesmo lhe dar a chance de replicar, Katie fechou á porta.

— E um bom dia para você também, sra. Maxwell! — Jack falou inclinando-se com cortesia exagerada. Voltou-se e caminhou para a rua apressado.

No momento em que chegou à calçada, teve tempo de ver o policial saindo de motocicleta. No para-brísa de seu carro encontrou uma multa.

— O que mais pode acontecer hoje?! — desabafou, sem se importar com o olhar de curiosidade de um casal que passava.

— Eu sei que só tenho mais um dia. Estou acabando e lhe envio a história hoje à tarde ou amanhã cedo.

Katie tentava se desculpar, mas estava irritada e seu tom de voz não conseguia enconder isso. Ajeitando o fone sobre o ombro direito, firmou-o com o rosto de modo que pudesse conversar com Liz, sua editora, e ao mesmo tempo trocar a fralda de Jeremy.

— Comecei a pensar que a maternidade fosse atrapalhar sua carreira, querida — a outra confessou aliviada,

— Eu também... Na primeira semana não consegui fazer quase nada. Jeremy precisava de mim as vinte e quatro horas do dia, mas agora as coisas estão mais calmas. Já consigo dormir um pouco — Katia explicou enquanto virava o bebê e o limpava com cuidado.

— O que você precisa é sair um pouco. No lugar de mandar a história pelo correio, venha pessoalmente. Podemos almoçar juntas. Que tal aquele restaurante italiano?

A risada de Katie soou cansada.

— E quem vai cuidar de Jeremy? — quis saber.

— Você ainda não tem uma babá?!

— Ainda não...

— Não.me diga que pretende fazer tudo sozinha! O médico não cortou o cordão umbilical? — Liz perguntou preocupada.

— Eu pretendo ter uma pessoa para cuidar dele quando precisar sair, mas acho que ainda é muito cedo para deixá-lo sozinho.

— Ora, deixe disso, Katie. Você precisar sair um pouco!

— Liz! Você faz a maternidade parecer uma prisão!

— De uma certa maneira, é isso que penso. Mas acredito também que mesmo as mães mais devotadas precisam de um descanso de vez em quando. Ouça a voz da

experiência!

Liz era divorciada e tinha duas filhas. Costumava brincar alegando que as crianças quase a levaram ao divã de um analista. Por isso, não perdia a oportunidade de aconselhar às amigas que não se dedicassem integralmente aos filhos, caso desejassem manter a sanidade.

— Mas, se você não pode deixar o bebê por um dia apenas, ou não quer, não sou eu quem vai obrigá-la, Traga-o junto. Ao menos poderá sair, vai fazer bem para ele também — ela continuou em seu costumeiro tom profissional.

— Eu não sei... Está muito frio... — Katie começou, hesitante.

— O que pretende fazer? Mantê-lo dentro de casa até os vinte e um? Seja realista, Katie! Você quer que ele cresça como um daqueles garotos que vivem doentes o tempo todo, espirrando e tossindo cada vez que a temperatura cai? A melhor coisa é sair com ele, precisa ir se acostumando. Minhas filhas vão esquiar no parque mesmo a cinco graus abaixo de zero.

— Suas filhas são grandes! — Katie retrucou.

— Anne tem seis e Julie, oito.

— E Jeremy ainda não fez um mês!

— Quanto mais cedo começar, melhor. Você vem ou não?

— Eu não sei...

— Eu ouvi dizer que os trens têm aquecimento agora. — Liz disse rindo, como se isso fosse novidade,

— Você devia ser uma humorista, sabia?

— Katie, você vem? Eu preciso fazer a reserva para o restaurante.

— Está bem, você venceu! Acho que está certa. Vai ser bom sair um pouco. Ao menos vou ficar livre de Jack Spangler e seu piano.

Jack estava intrigado. Deitado em sua cama, olhava para o teto sem conseguir adormecer. Não havia nenhum ruído que o impedisse, mas não podia dormir. Talvez fosse por isso: silêncio demais!

Nenhum som vinha do outro lado da parede, do apartamento de Katie, e Jack não entendia por quê.

Talvez tivesse se mudado, deixando-o em paz para sempre, imaginou satisfeito por um momento, mas em seguida percebeu que estava tão acostumado com Katie e Jeremy e os ruídos do apartamento vizinho que já não mais podia dormir sem eles.

— Oh, droga, só faltava essa! — exclamou batendo com o punho fechado na cama.

Ele havia alugado aquele apartamento apenas porque o proprietário lhe garantira que era calmo e silencioso, ressaltando inclusive que não aceitava crianças; e, de um momento para o outro, descobrira que não podia dormir porque era silencioso demais!

A ausência de qualquer espécie de ruído vindo do apartamento de Katie o incomodava. Já se habituara com o choro de Jeremy a plenos pulmões durante o dia todo e um silêncio como aquele se tornava enervante. De repente, sentia-se como que isolado do mundo. Sozinho, como jamais se sentira.

Desistindo de ficar na cama, levantou-se. Vestiu as calças e foi até a janela. O carro de Katie não estava no lugar de sempre, o que explicava aquele sossego inesperado,

"Aonde teria ido tão cedo?", perguntou-se ao consultar o relógio e verificar que ainda não eram oito horas.

Decidido a não pensar mais em Katie, foi para a cozinha preparar seu café. Logo depois do desjejum, começou a pôr em ordem o apartamento, Patch e os rapazes do conjunto viriam naquele dia e não queria que tivessem uma má impressão de onde vivia.

— Isso aqui está um chiqueiro, Sam! A gente precisa começar a limpar um pouco, o que acha?

— Sam... acha... Sam acha — o papagaio repetiu durante uns segundos.

Havia jornais velhos sobre o sofá, chinelos e camisas sob a cama; na pia, canecas, latas e caixas de alimentos que precisavam ir para o lixo. Por uma hora mais ou menos Jack cuidou da faxina com dedicação.

— Pronto! Já parece uma casa de gente, não é, Sam?

— Casa de gente... casa de gente...

— Agora chega, Sam! Preciso trabalhar de verdade, mas antes vou dar uma olhada na caixa de correspondência. Já volto.

Descalço como estava, Jack foi até a entrada do prédio, recolheu os envelopes que lhe eram destinados e voltou apressado para o apartamento. Não havia nada de interessante, só contas. Mas poderia ser pior, ele ponderou.

Podia até ter recebido uma carta dos advogados de Lianna ou dela mesma. Justamente do que não precisava naquele momento! Parou diante da porta de Katie por um momento. Sentindo o frio penetrar-lhe os ossos, tentou imaginar o que teria feito Katie sair num dia como aquele. Embora não estivesse nevando, a temperatura tinha baixado muito.

— Não é da minha conta! — disse baixinho, encolhendo os ombros, e logo em seguida entrou no próprio apartamento.

 

— É bem mais difícil do que eu imaginava — Katie confessou a Liz, enquanto se servia de mais um pouco da macarronada deliciosa do Fino's Restaurante.

Sentadas numa das mesas mais distantes da entrada, onde muitas pessoas se aglomeravam à espera de uma mesa vaga para almoçar, as duas conversavam, enquanto Jeremy dormia placidamente em seu cesto de bebê sobre duas cadeiras ao lado delas.

— E Michael? Soube alguma coisa dele depois do nascimento de Jeremy? — Liz perguntou interessada; o semblante era de preocupação.

Katie meneou a cabeça, negando.

— Não, mas também não esperava, você bem sabe.

— Está bem melhor sem ele!

Katie sorriu. Não podia deixar de concordar com a amiga. Michael só poderia atrapalhá-la. Nem por um momento ele acreditara que aquela gravidez fosse um acidente. Pensava que tinha planejado tudo para forçá-lo a aceitar uma criança que não desejava,

— Ele não lhe dá uma pensão? — Liz quis saber.

— Não, e não vou pedir. Foi decisão minha ter o bebê. E sozinha.

— Mas devia exigir alguma coisa! — Liz continuou o assunto sem qualquer diplomacia. Não percebia como estava deixando Katie nervosa com aquela conversa.

— Não é o que penso, Liz. Legalmente, sei que tenho direito, mas não quero.

— Não se deixe levar pelo orgulho, minha querida. Criar um filho sozinha nunca foi fácil — Liz aconseihou-a enquanto se servia de um pouco de vinho.

— Por favor, vamos falar sobre algo mais agradável.

Pensar, em Michael me tira todo o apetite — Katie disse de repente.

— Está bem, que tal falar sobre seu vizinho? Ele é o mesmo que a levou para a maternidade?

— O mesmo.

— Ele assistiu ao parto, de verdade?! Isso é difícil de acreditar.

— Eu também nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer... Ele é um compositor, um cara estranho mesmo... Mora sozinho, não tem amigos, exceto um pássaro com quem vive conversando.

— Um pássaro?!

— Um papagaio branco. Ele o trata como a uma criança.

— Qual é o tipo?

— Dorme de dia e trabalha à noite. Tem um piano na sala e passa a vida compondo músicas. No começo, quando cheguei da maternidade, Jeremy não conseguia dormir com o barulho, mas agora parece que está se acostumando.

— Por que não se queixa com o proprietário?

— Não posso! O contrato não permite crianças. Se for me queixar, quem vai ter de sair sou eu.

— Então por que não se muda? Sei de um apartamento excelente aqui em Nova York. Por que não volta para cá?

— Não! Não quero que Jeremy cresça numa cidade grande.

— E por que não? Minhas filhas estão crescendo muito bem aqui... — Liz replicou.

— Eu sei, não se ofenda, mas cresci num meio diferente e não é isso que quero para meu filho.

— Então, por que não se muda para Boston, para perto de sua família?

— Eles iam estragar Jeremy.

— Ouça, Katie, onde quer que você viva, vai ter sempre problemas. Essa é a vida! — Liz recordou-lhe num tom sério.

Katie refletiu por uns instantes.

— Talvez na primavera, quando meu contrato acabar, eu me mude.

 

— A minha vizinha é cartunista. Ela tem um garoto. Um bebê. Você já tentou fazer alguma coisa com uma criança berrando o tempo todo? As paredes aqui são finas como papel!

— Não, acho que não conseguiria — Patch disse, com um enfático meneio de cabeça.

— Eu não sei como consegui compor...

— Por que não se muda?

— Assinei um contrato por um ano — Jack respondeu num tom conformado.

— Deixe ver se entendi direito: você conheceu essa moça quando a levou para a maternidade, certo?

— Exatamente.

— E eles o tomaram por marido dela, certo? Jack concordou outra vez.

— E você a trouxe também para casa?

— Sim...

— Voluntariamente?

— Outra vez você acertou.

— Não posso acreditar que Jack Spangler, o compositor mais chato e irritante que já conheci, tenha se dado ao trabalho de levar, e de buscar, também, uma mulher desconhecida, mesmo que se tratasse de um caso de maternidade! — Patch ironizou, lançando ao amigo um sorriso de incredulidade.

— Mas foi assim mesmo que aconteceu. Nem mesmo eu acredito, se é isso que quer saber.

— E depois dizem que a vida em Nova York é uma loucura... — completou Patch, jogando-se na poltrona.

 

Jack devia ter saído. Não havia outra explicação.

Era impossível que estivesse em casa, ela concluiu ao ir para cama e apagar a luz do abajur.

Já passava da meia-noite e desde a hora que havia chegado de Nova York não ouvira o som do piano. Se ele estivesse em casa, obviamente o bebê não teria dormido tão depressa, para seu sossego e satisfação.

Quando entrou debaixo das cobertas quentes, o cansaço moendo-lhe o corpo, desejou que Jack, onde quer que estivesse, não voltasse tão cedo.

Aonde teria ido? Desde que o conhecera, não o tinha visto sair por tanto tempo, ainda mais à noite, o horário preferido para trabalhar.

Será que tinha um encontro com alguém? Uma namorada, talvez... De certa forma, Katíe não conseguia imaginar Jack envolvido com uma mulher. Mas também não podia negar que ele era atraente e interessante com aquele jeito todo desleixado e olhar sonhador.

Tentou imaginar o tipo de mulher que se interessaria por ele, até que afinal decidiu que seria alta, loira, pele bem clara, corpo escultural, que pensasse pouco e falasse menos ainda. Riu-se por um momento daquela idéia, mas logo em seguida sentiu algo que lhe pareceu ciúme e espantou-se.

— Você não pode estar gostando dele, não é, Katie? Nem bem acabou de sair de um relacionamento frustrante com um cara egoísta como Michael, já está pensando em outro homem! — disse, enquanto tentava encontrar a posição mais adequada para adormecer naquela silenciosa noite de inverno.

Percebeu depois de uns instantes que não conseguia dormir. Não tirava Jack do pensamento.

— Só faltava mais essa! — falou baixinho irritada consigo mesma por deixar-se envolver daquela forma.

Sabia que não tinha nada a ver com a vida dele, ou com quem ele havia saído, mas saber que ele não estava do outro lado da parede a incomodava.

Katie teve a impressão de ter dormido muito quando foi acordada por um barulho que mais lhe pareceu risadas muito altas. Assustada, sentou-se na cama, tentando imaginar de onde vinha aquele ruído, certificando-se, em seguida, de que Jereniy ainda estava dormindo.

Levantou-se às pressas, vestiu o robe e correu descalça para a porta da frente, abrindo-a um pouco, apenas o suficiente para poder ver o que estava acontecendo no corredor.

Era Jack com quatro homens muito estranhos. Um alto, cabelos bem curtos, todo vestido em couro preto; o outro, bem baixo, cabelos pintados de verde; o terceiro e o quarto nada tinham de especial, a não ser os casacos exóticos que usavam: de peles, compridos até os pés.

A curiosidade tomou-a. Que gente estranha! Contudo, havia neles alguma coisa que lhe despertava uma inesperada simpatia.

 

— Pensei que estávamos sendo invadidos por seres extraterrestres.

— Não me diga! De onde você tirou essa idéia? — Jack comentou enquanto abria a caixa do correio e retirava algumas cartas.

— Nunca vi gente tão estranha! Quem são eles?

— O que você estava fazendo acordada àquela hora?

— Não estava acordada! Você e seus amigos é que me acordaram. Espero que não tenha intenção de trazer gente assim todas as noites para cá...

— O que há de errado com eles? Só porque não se parecem com você, não gosta deles?! Nem mesmo os conhece, Katie — Jack replicou magoado e voltou para o apartamento, com uma despedida fria.

 

Cedo ou tarde ele teria de parar um pouco e sair para fazer compras. Jack sabia que a despensa estava vazia e precisava de alguma coisa para jantar à noite, sem falar que o café instantâneo estava no fim e o açúcar daria apenas para adoçar mais outra xícara.

Deixou o piano e sua nova composição por uns momentos. Trocou o papel que forrava a gaiola de Sam e colocou água fresca no copinho do pássaro. Fechou-a em seguida, mesmo sabendo que Sam poderia sair quando quisesse. Afinal, ele próprio havia ensinado o segredo a Sam.

Muitos conhecidos de Jack diziam-lhe que tratava o papagaio como uma criança. Dava-lhe afeto e o encorajava a ser independente, justamente por não ter recebido isso dos próprios pais.

Tivera uma infância infeliz ao lado de um pai alcoólatra e de uma mãe angustiada e fraca. Não que o desprezassem, mas a força das circunstâncias distanciaram-nos. Conheceu um pouco mais de carinho apenas quando faleceram e foi viver com o avô, mas já era um adolescente, então.

Ainda se aprontando para sair ouviu o choro de Jeremy. Muito familiar, pensou. Mas, quando abriu a porta, notou uma diferença: o garoto parecia estar desesperado, tal o choro convulsivo. Jack ficou intrigado com o fato de Katie não conseguir fazer Jeremy parar.

Notou que a porta do apartamento vizinho estava aberta e antes mesmo de começar a fazer conjecturas apressou-se em ver qual era o problema.

O bebê estava deitado no carrinho, o rostinho angelical rubro de tanto gritar. Jack espantou-se por não ver Katie por perto. Saiu do apartamento e vasculhou os corredores com o olhar, sem encontrá-la. Voltou para o interior do apartamento. O bebê continuava a chorar, cada vez mais angustiado.

— Katie? Katie? — chamou bem alto, imaginando que pudesse estar no banheiro.

Não houve resposta. Aproximou-se do carrinho.

-— O que foi, garoto? Sua mãe o abandonou? — perguntou-lhe num tom carinhoso, procurando acalmá-lo.

Por alguns segundos, Jeremy pareceu satisfeito com a companhia, mas logo em seguida retomou a ladainha. Jack ofereceu-lhe o dedo indicador, que foi recusado com gritos mais fortes ainda. Jack olhou a sua volta à procura de ajuda. — Onde está Katie, afinal? — perguntou em voz alta, furioso com aquela ausência. Não conseguia mais suportar ver o bebê naquele desespero.

Sem outra opção, pegou-o no colo, sem jeito e assustado. Jamais havia carregado uma criança e aquela era uma experiência perturbadora. Colocou a mão trêmula na cabeça e no pescoço de Jeremy para ampará-lo, como via as mães fazerem nos comerciais de fraldas e de alimentos para bebês na tevê.

— Espero que não molhe minha camisa limpa, garoto — disse, encostando o bebê ao peito e ninando-o para que se acalmasse.

Depois de algum tempo de embalo bem cadenciado, Jeremy calou-se, para satisfação de Jack.

— Parece que gostou de mim, hein?!... — disse-lhe sorrindo.

O bebê começou de repente a olhá-lo, fazendo caretas.

— Não! Você não ousaria... Oh, sim, ousaria!... — Jack murmurou, ao perceber que Jeremy acabava de sujar as fraldas. Um odor forte impregnou a sala. — O que vou fazer agora? Não me olhe desse jeito, como se eu fosse...

— Eu vejo, mas não acredito!

Jack voltou-se, aconchegando o bebê mais ainda de encontro ao peito numa atitude protetora. Katie estava na entrada do apartamento encostada à porta, observando-o sorridente.

— Droga! Onde você esteve, Katie? — perguntou-lhe furioso.

— Pegando a correspondência.

— Onde? Em Boston?

— Você é uma graça, sabia? Eu entrei no apartamento de Julie por um momento.

— E esqueceu o garoto aqui sozinho?!

— Claro que não. Não pretendia ficar mais do que um minuto.

— Você faz idéia do que poderia acontecer enquanto estava batendo papo, minha cara?

— Eu não pretendia ficar mais do que um minuto! — ela repetiu já irritada.

— Mas ficou!

— Pelo amor de Deus, Jack, você está se comportando como um pai nervoso, sabia? — Katie reprèendeu-o, mas voltou a sorrir.

— Não vejo razão alguma para rir! Este garoto estava berrando! Você não liga?

— Claro! Que pergunta estúpida é essa? — Katie se aproximou e pegou o bebê cuidadosamente.

— Acho que nessas circunstâncias é uma pergunta muito válida. — Jack manteve-se mal-humorado.

— Para sua informação, não que eu lhe deva qualquer tipo de explicação, Jeremy estava num sono ferrado quando o deixei. Algo o acordou. Com certeza foi aquele seu piano infernal! — Katie replicou, perdendo a paciência.

— Eu não toquei meu piano infernal, como você disse. Não costumo trabalhar a esta hora do dia, lembra-se?

— Oh, se me lembro! Você gosta de trabalhar à noite! Isso nunca vou me esquecer.

— E para sua informação eu estava indo ao mercado quando ouvi o garoto chorando. Vim até aqui porque parecia não estar bem. Desculpe-me se a incomodei! — Jack deixou-a-, sem lhe dar tempo para outra resposta.

"É isso que dá, fazer algo por alguém!", Jack pensava enquanto caminhava para seu apartamento e batia a porta com um empurrão tão forte que um dos pequenos quadros pendurados na parede despencou.

— Ninguém é agradecido hoje em dia, Sam — disse, aproximando-se do pássaro como à procura de consolo, mas Sam naquele momento estava mais preocupado em comer a banana que Jack havia deixado para ele antes de ir às compras.

Na cozinha, guardou as compras que fizera deixando fora da geladeira uma lata de cerveja. Enquanto bebia o líquido gelado, lembrou-se da estranha sensação de bem-estar enquanto segurava o bebê de Katie. Devia ser bom ter um filho; cuidar dele enquanto precisasse de amparo, vê-lo crescer, tornar-se um jovem, depois um homem...

Jack deu um longo gole na cerveja.

Devia estar louco, pensando aquilo. Há muito decidira viver sozinho. E assim pretendia ficar.

Katie sentia-se horrível. Não sabia como podia ter falado com Jack daquela forma.

— Ele só quis ajudar! — disse em voz alta. Havia deixado Jeremy sozinho e ele acabara acordando. Jack não era culpado! — Por que fui atacá-lo, daquela forma? — tornou a perguntar.

Qualquer coisa podia acontecer com o bebê enquanto estivesse fora. Qualquer coisa, se Jack não tivesse acudido. Katie desesperava-se ao imaginar cenas tristes e angustiantes em vez de se preocupar em criar cenas humorísticas para sua história em quadrinhos.

Parou diante da folha de papel em branco e voltou-se para Jeremy, que estava acordado, porém quieto, no carrinho a seu lado.

— Você vai comigo! Criou toda essa encrenca e agora tem de me ajudar — disse, levantando-se.

Pegou o bebê no colo e foi bater na porta de Jack. Ele atendeu em seguida.

— Oh, não! O que quer? Não, não diga, deixe-me imaginar. Você tem uma queixa, não é? Não pode ser meus amigos extraterrestres; eles não estão aqui. Meu piano infernal também não, porque não toquei nele ainda... Ah, já sei! Foi o barulho que fiz ao abrir a lata de cerveja, não é? Foi alto demais?... — Diante da recusa dela, Jack fingiu total espanto. — Não?! Então, eu desisto! Diga qual é o problema desta vez.

— Se você ficar quieto por um minuto, eu direi. Olhe, sei que tem toda razão em estar irritado, mas...

— Droga, claro que tenho! E francamente, minha cara, seja lá o que for desta vez, não quero ouvir.

Ele começou a fechar a porta, mas Katie o impediu com a mão que tinha livre.

— Não estou aqui para me queixar. Quero é pedir desculpas.

Jack parou surpreso. Embora incrédulo, ficou a olhá-la procurando não demonstrar o que sentia.

— Eu estava errada. Quero que me desculpe. Saiba que fiquei muito feliz por ter socorrido Jeremy — ela admitiu um pouco embaraçada.

Jack balançou a cabeça confuso. Não sabia o que dizer.

— E... gostaria de convidá-lo para jantar. Pode considerar como uma oferta de paz.

— Vamos fumar o cachimbo da paz também? — Jack perguntou.

O sorriso iluminando o rosto de Jack fez Katie perder a faia. Sem dúvida, ele era muito charmoso quando sorria, embora fosse raro vê-lo sorrir.

Diante do silêncio de Katie, Jack começou a explicar:

— Os índios costumavam fumar juntos um cachimbo quando queriam a paz, ou algo mais ou menos assim...

— Sim, claro, o cachimbo...

— A que horas, então?

— A que horas?! — Katie parecia não entender a pergunta.

— O jantar! Que horas quer que eu apareça para o jantar?

— Oh! Que tal sete e meia?

— Ótimo. — E, Jack...

— Sim?

— Obrigada de novo.

— Estou às suas ordens.

Jack esperou que Katie entrasse no apartamento dela para fechar a porta. Ficou por uns momentos recostado à parede pensando no que acabava de acontecer. Que reviravolta! Estavam quase se batendo pouco tempo atrás e agora iam jantar juntos!

— Ela deve ser uma boa cozinheira! — refletiu em voz alta, recordando-se do cheiro gostoso que vinha do apartamento vizinho quando chegava a hora das refeições.

E já fazia muito tempo que Jack não comia uma boa refeição caseira!

Lasanha foi a escolha de Katie para aquele jantar. Ela estava certa de que Jack gostaria de iguaria italiana. E quem não gostava?, perguntou-se, enquanto verificava se tinha em casa todos os ingredientes de que ia precisar para preparar o prato.

Uma pessoa que passava à base de enlatados e congelados não podia deixar de gostar do molho caseiro, do queijo gratinado no ponto certo... Será que devia colocar presunto? Algumas pessoas eram alérgicas a presunto. Talvez devesse usar carne, como aprendera na adolescência com um amigo italiano, de Bolonha, que tivera. Ou, quem sabe, poderia...

Katie parou subitamente. Por que diabos estava tão nervosa com um simples jantar? Mais parecia uma garotinha prestes a receber o primeiro namorado em casa! Jack Spangler era apenas o vizinho que a ajudara, e nada mais natural recebê-lo como amigo.

Voltando a se preocupar com problemas mais práticos, percebeu que não tinha mozarela suficiente e que precisaria colocar um pouco de queijo fresco picadinho para deixar a lasanha bem gostosa. Novamente as dúvidas começaram a assolá-la. Será que ele perceberia a diferença?

— Claro que não! Por que estou tão nervosa? — recriminou-se, retomando o trabalho.

Jack não estava acostumado com comida caseira. Desde a infância comia congelados. Na verdade, não se lembrava de ter sido convidado para um jantar em casa, preparado com cuidado e carinho.

Nunca tivera nada mais do que colegas! Um bom amigo, jamais!, concluiu deprimido depois de checar seus trinta e cinco anos de vida e não encontrar um relacionamento mais profundo além daquele que conhecera com o avô. Lianna seria a última pessoa do inundo que se ofereceria para preparar um jantar. Tal como a mãe de Jack, odiava uma cozinha. Gostava, sim, de comer bem, mas em restaurantes de primeira classe, onde poderia encontrar gente famosa.

— Mas não me casei mesmo com ela por seus dotes culinários, não é, Sam? — Ele riu ao se recordar de como gostava de sair com a ex-esposa e ver como todos a admiravam. Pensava que era feliz naquela época. — Pode deixar, Sam, eu trago um pouquinho para você. Não vou esquecer o meu companheiro. Está bem?

— Está bem... Está bem... — o pássaro repetiu, batendo as asas brancas.

— Você gosta de lasanha?

— Adoro!

— Ótimo! Pois é o que vamos ter — Katie avisou sorridente.

Jack observou o ambiente. A mesa havia sido posta com muito cuidado: toalha branca, velas, as taças para vinho, pratos e talheres especiais... Tudo perfeito! E o cheiro da lasanha no forno já começava a abrir-lhe o apetite.

— Parece que vamos ter um jantar e tanto!

— Aceita um pouco de vinho? Vou servir em poucos minutos.

— Aceito, sim. Onde está o garoto? — ele perguntou olhando a sua volta.

— Dormindo! Por quanto tempo, não sei.

— Sinto falta do choro dele.

— Não fale desse jeito! Ele pode ouvir e para agradá-lo começar a chorar. Espero que durma ao menos enquanto jantamos.

Jack riu e Katie, ao vê-lo à vontade, também riu.

Jeremy, como se soubesse que a mãe precisava de uns momentos a sós com Jack, dormiu o tempo todo.

A princípio sentaram-se um diante do outro em silêncio, sem saber o que dizer, incapazes de encontrar um assunto para conversar.

Costumavam apenas, durante aquelas semanas que se conheciam, falar sobre o bebê e sobre o piano de Jack, o que na maioria das vezes acabava em discussão ou batidas de portas.

— O que está achando? — Katie perguntou, tentando iniciar uma conversa.

— Muito boa! É a melhor que comi nos últimos tempos. "Ele não percebeu que coloquei queijo fresco", ela pensou aliviada e sorriu agradecida pelo cumprimento.

— Está trabalhando em algo novo? — perguntou-lhe.

— Você não tem me ouvido?!

— Oh, claro que tenho! Mas essas paredes não me permitem distinguir claramente uma melodia da outra.

— Você devia testar o meu lado da parede. Acredite-me, consigo distinguir muito bem quando seu filho chora de sono, fome ou quando as fraldas estão sujas e tudo o mais — Jack comentou depois de engolir um pedaço de lasanha.

Katie recriminou-se instintivamente por ter falado em "paredes".

— Eu sei. Jeremy sabe demonstrar muito bem suas necessidades — falou corando.

— Não é tão ruim assim, depois que a gente se acostuma. — Jack disse sem saber bem por quê.

Aquela era a primeira vez desde o episódio da maternidade que não discutiam, e o último comentário dele deixou Katie contente e com esperança de que pudessem mesmo se tornar ao menos bons amigos dali em diante.

— No que está trabalhando agora? — ela voltou a perguntar tentando manter a conversa.

— Num álbum para aquele grupo de alienígenas que você viu no corredor.

Katie corou, tinha sido indelicada também naquela ocasião.

— Foi bom você falar neles... Eu queria me desculpar. Não tinha o direito de...

— Não precisa se desculpar! — Jack a interrompeu. — Eles parecem estranhos mesmo mas são ótima gente, acredite.

Katie sorriu agradecida. Tudo indicava que dali em diante a guerra havia terminado. Teriam paz e sossego afinal.

Sem dúvida, não podia conceber o que ainda estava por vir.

 

Jack não podia trabalhar com o choro de Jeremy. Há uma hora o bebê não parava de gritar. Decidido, bateu à porta de Katie.

— O que ele tem?

— Não sei, Jack — Katie respondeu, num tom cansado, enquanto embalava o filho.

— Você não pode dar um jeito?

— Não sei mais o que fazer. Ele está irritado desde cedo.

— Não acha melhor levá-lo ao médico?

— Ele é um bebê, Jack, e os bebês costumam chorar.

— Não sei nada sobre crianças, mas isso não é normal. Ele deve estar sentindo alguma coisa. Será que não são os. dentes?

— É muito novinho para ter dente — Katie respondeu, sem vacilar.

— Talvez algo que tenha comido.

— Ele só toma leite.

— Talvez tenha alergia ao leite,

— Bem, isso até pode ser possível. Mudei de leite esta semana.

— Acho que deve telefonar para o médico. O choro dele está diferente.

Jack olhou para Jeremy com pena. O bebê continuava a resmungar, apesar do embalo e do calor que Katie lhe oferecia.

— Pensei que não soubesse nada sobre bebês! — Katie comentou espantada.

— E não sei. Mas tenho um bom ouvido e posso distinguir muito bem os sons uns dos outros. E esse garoto não está chorando como antes.

Katie tinha de admitir que Jack estava certo. Hesitou um instante antes de responder:

— Também acho. Vou telefonar para o pediatra.

— Tenho certeza de que Jeremy tem alguma dor — Jack insistiu, confiante em seu bom ouvido.

Katie hesitou mais uma vez, não sabia o que fazer com o bebê. Olhou para Jack e perguntou-lhe:

— Você se importa de segurá-lo para mim enquanto telefono?

Foi a vez de Jack hesitar. Afinal, ele estendeu as mãos.

— Vamos lá! — disse, pegando o bebê no colo um pouco desajeitado.

— Segure bem a cabecinha dele — Katie explicou.

— Disso eu sei, não se preocupe — ele replicou. Jeremy voltou a chorar recostado no ombro de Jack.

Ficou mais irritado longe da mãe e não se acalmava nem mesmo com o balanço ritmado que recebia. Gritava, impedindo que Jack ouvisse o que Katie falava ao telefone, apesar de estar a alguns passos de distância.

— E então? — perguntou ao vê-la desligar. Katie estava preocupada.

— O dr. Ellis quer que eu leve o bebê para ele ver. Agora mesmo.

— Ele acha que há algo errado, então?

— Talvez. Disse que quer ter certeza... Não sei se consigo dirigir com o Jeremy chorando desse jeito....— Katie balbuciou para si mesma.

— Posso levá-la — Jack ouviu-se dizer, espantado consigo mesmo.

O rosto de Katie animou-se de repente.

— Você é ótimo! Não sei como agradecer.

Cólicas abdominais, foi o diagnóstico do dr. Ellis. Katie não sabia se ficava aliviada ou não com a notícia.

Esperava algo muito pior quando o pediatra quis ver Jeremy. Durante o caminho para o consultório, desfilaram por sua imaginação desde infecção do ouvido ou da garganta a doenças contagiosas. Estava à beira do desespero ao entrar no consultório com o filho chorando nos braços, depois de tanta elucubração. Se não fosse por Jack, jamais teria calma para conversar com o médico.

Era apenas dor de barriga, cólicas, como o médico preferia chamar. Por outro lado, sabia de muitas noites insones por causa daquelas cólicas. E nada havia que pudesse fazer além de esperar, oferecendo-lhe o melhor conforto possível. Era o organismo do bebê que estava passando por transformações e só quando elas terminassem pararia de chorar. Compressas de água quente ajudariam, foi o que o médico aconselhou.

Além disso, outra preocupação desvendou-se. Katie sabia que Jack precisava de sossego, pois estava trabalhando noutra composição e esperava ganhar muito dinheiro com ela. Como ela não pudesse fazer quase nada por seu filho, Jack teria de ouvir o choro de Jeremy por muito tempo.

"Vai ser uma loucura!", pensou desanimada. E o receio dela não era infundado. Horas mais tarde, Jack deitava a cabeça sobre o piano, desgostoso. Respirou fundo, tentando se acalmar. Durante alguns segundos ficou praguejando contra os construtores daquele prédio, que na certa tinham economizado muito material naquelas paredes.

O bebê não parava de chorar, o lamento desesperado roubando-lhe completamente a inspiração. Como podia compor alguma coisa com aquele barulho todo?

Jack não conseguia entender como Jeremy podia gritar tanto sem se cansar. O som daqueles gritos chegava a sua sala com tal nitidez que tinha a impressão de que o garoto estava ao lado do piano. Nem tanto pelo barulho, mais pela angústia e impotência dele próprio, Jack Spangler, o vizinho que nada tinha a ver com aquela criança.

— Katie, faça alguma coisa! — falou baixinho.

Sabia que ela não poderia fazer coisa alguma. As cólicas passariam sozinhas, ele mesmo ouvira o médico, mas àquela altura Jack já estava fora de si.

Levantou-se e foi para a cozinha. Os gritos de Jeremy de repente lhe pareceram mais agudos ainda. Tampou os ouvidos com as mãos. Tinha certeza de que não aguentaria nem mais um dia daquilo. Enlouqueceria em poucas horas se o bebê continuasse naquele ritmo.

— Vou cortar os pulsos! — ironizou para si próprio próprio no auge da angústia ao se imaginar tentando compor ao som dos gritos do bebê de Katie.

Decidido, pegou o casaco e bateu a porta atrás de si, na esperança de que um passeio pudesse acalmá-lo.

 

— O que aconteceu? Por que Jeremy não está chorando? — Jack quis saber.

— Não me pergunte. Espero que as cólicas tenham passado. Agradeço a todos os santos por esses momentos de calma — Katie explicou, enquanto colocava a travessa de salada sobre a mesa de jantar.

Jack, depois do passeio, fora até o apartamento dela para saber do bebê e Katie o convidou para entrar e jantar com ela, convite que aceitou de imediato.

— Que Jeremy não tenha mais cólicas! — desejou ao levantar o copo de suco num brinde, antes de começar a comer.

— Ao fim das cólicas! — Katie também brindou sorridente,

— O que fez de gostoso hoje? — Jack perguntou, esticando o olhar para o fogão.

— Nada especial. Na verdade nem fui ao supermercado, não deu... Do jeito que Jeremy chorava, não podia sair de casa.

Ele concordou, num lento movimento de cabeça. Sabia que devia ter se oferecido para ajudá-la. Queria ajudá-la e não entendia por que não o fazia. Talvez estivesse se preocupando com o rumo que as coisas começavam a tomar. Não queria se envolver demais, muito menos com uma mulher com um filho. Mas, ao mesmo tempo, gostava de estar junto de Katie, e Jeremy era um bebê lindo, apesar da manha.

"Se eu não enlouquecer por causa do choro de Jeremy, vou perder a razão por causa da mãe", ele refletiu, observando discretamente o rosto delicado de Katie, que de cabeça baixa mastigava um pedaço de batata.

— O que o levou a deixar Nova York, Jack? — ela perguntou durante a sobremesa.

Jack encolheu os ombros e a fitou com tristeza.

— Os advogados de minha ex-mulher. Ela é gananciosa demais. Precisei sumir do mapa.

Katie percebeu que estava certa ao imaginar que ele não tinha as mulheres num bom conceito. Pelo que falava da ex-esposa, o divórcio devia ter sido uma experiência traumatizante.

Bem, ao menos tinham algo em comum, pensou, achando irônico que a única coisa que compartilhavam era um casamento fracassado, além de uma parede.

E uma aversão muito grande em se envolver outra vez.

 

— Então, como está indo? — Liz Peterson quis saber.

— A história está quase pronta. Espero entregá-la antes de terminar o prazo — Katie respondeu.

Elas estavam almoçando num pequeno restaurante francês em Manhattan. Receosa de deixar o filho com uma babá, Katie o levara consigo outra vez, e agradecia a sua boa sorte por ele estar num daqueles ótimos dias: deitado no cesto, quieto e sorridente, se comportava como um anjo enquanto a mãe e a amiga comiam.

— Quer dizer que a maternidade não vai atrapalhar mesmo sua carreira? E eu que não acreditava em milagres!

— Não pense que tudo está sendo um mar de rosas para mim, não. Jeremy passou vinte e quatro horas chorando de dor de barriga. Quase morri!

— Ele parece tão bem! — Liz comentou, inclinando-se sobre o cesto.

— Agora, graças a Deus!

— E o outro problema? O vizinho compositor e seu piano?

— Bem, as coisas melhoraram um pouco também em relação a Jack.

— Jack?! Hum!

— Oh, Liz! Ele é apenas um amigo...

Liz ia replicar quando uma voz masculina chamou-a:

— Liz Peterson!

Ambas voltaram-se e viram que um homem se aproximava da mesa. Embora Katie não o visse há mais de um ano, reconheceu-o imediatamente. Era David Haskell. Havia trabalhado como editor de arte para Liz. Tinha por volta de trinta anos, era alto, cabelos loiros, olhos azuis e um sorriso fascinante. Além de atraente, era solteiro. O partido mais cobiçado na equipe de Liz. As jovens não sabiam o que fazer para chamar-lhe a atenção.

Katie lembrava-se de que também o achava bonito e sexy, mas casada com Michael nunca demonstrou qualquer interesse pelo mais atraente editor de arte que Liz já tivera.

— David! Há quanto tempo! — Liz recebeu-o com evidente entusiasmo.

— Que bom vê-la!

— Você não se esqueceu de Katie, não é? David olhou para Katie e sorriu.

— Claro que não! Eu pretendia lhe perguntar o que andou fazendo, mas acho que é óbvio — ele disse, indicando Jeremy,

Katie riu com vontade.

~ Tenho dois empregos agora — contou-lhe.

— Nenhuma ajuda do marido? — ele perguntou,

— Não. Estou divorciada.

Se David ficou surpreso, não demonstrou. Tampouco fez qualquer comentário.

— Aposto que esse garotão não lhe deixa muito tempo livre — ele continuou, brincando com Jeremy.

— Não muito, mesmo — Katie admitiu.

— Sente-se, David. Vou chamar o garçom para...

— Oh, obrigado, Liz, mas não posso. Estou esperando meu contador. Temos de discutir alguns probleminhas com impostos — ele explicou.

— Probleminhas?! — Liz brincou, mas não houve tempo para resposta.

— Lá vem ele, preciso ir. Falo com você depois, Liz. Foi bom vê-la outra vez, Katie. — David se apressou em ir na direcão de um homem que acabava de entrar no restaurante.

Quando já estava a boa distância, Liz olhou para Katie e assobiou baixinho.

— Não acha que ele é muito jovem para você? — Katie perguntou-lhe, divertida com aquela reação de entusiasmo.

— Não, absolutamente! Acontece que gosto de homens jovens. Mas, na verdade, estava pensando em você e David...

— É melhor ir parando por aí! Não estou interessada em David Haskell ou em qualquer outra pessoa.

Liz balançou a cabeça numa atitude crítica.

— Como é que aão se entusiasma com um homem como este? Ele é maravilhoso!

— Talvez...

— Não é "talvez". Ele é o homem mais sexy e sedutor que já encontrei.

Katie não queria que Liz soubesse que concordava e tentou mostrar um desinteresse total.

— Ele tem ótima aparência, isso não posso negar.

— Oh, Katie! O que vou fazer com você? Dizer apenas que David tem boa aparência é um sacrilégio, querida.

— Olhe, Liz, depois de Michael não tenho vontade de me envolver com mais ninguém,

— Mas quem falou em se envolver?! Será que pretende viver o resto da vida só criando um filho? Daqui a pouco ele cresce e você fica sozinha, não percebe? Os filhos são muito importantes, mas você não pode viver só para eles.

— Eu preciso de um tempo, Liz.

— Eu sei, querida. Estava apenas brincando. Só quero que entenda que um homem como David não se pode jogar fora assim.

— Liz, quem ouve você falar pensa que acabei de rejeitar uma proposta dele. David apenas me cumprimentou...

— Não viu como a olhou? Eu já vivi bastante e reconheço um olhar como aquele.

— Escute, Jack, você pode não ser bom em nada mais, mas é um compositor e tanto! — o agente disse-lhe ao telefone.

— Obrigado, Harry, ainda bem que gostou — Jack respondeu, rindo da forma como seu agente o cumprimentava.

— É a melhor coisa que já fez. Acho que tem toda razão. Vai ser um sucesso e tanto.

— Então valeu a pena acordá-lo no meio da noite? — Jack perguntou, recordando-se de como Harry ficara mal-humorado quando lhe telefonara para avisar que Encantamento estava pronta.

— Nenhuma música vale tanto quanto o meu sono. Mas acho que esta vai nos trazer muitas alegrias. E sucesso. E dinheiro!

— Lianna e seus advogados vão ficar felizes também — Jack comentou baixinho.

— O quê? Não o ouvi bem...

— Nada, nada... Você tem algum cantor em mente?

— Precisa ser alguém com uma voz especial, Streisand, talvez Dionne Warwick...

— Uma voz feminina? Por quê? — Jack questionou, um tanto surpreso.

— Tenho certeza de que sua música deve ser gravada por uma mulher — Harry explicou com convicção.

— Engraçado!... Eu não tinha em mente uma voz feminina — Jack começou, hesitando.

— Acredite no meu sexto sentido, esta é uma canção para uma mulher! — Harry insistiu.

Jack não estava convencido, mas não replicou. O entusiasmo de Harry pela música já era o suficiente naquele momento.

Era uma boa pessoa o Harry, pensou ao desligar. De repente sentiu necessidade de celebrar com alguém.

Não seria divertido comemorar sozinho. Jack olhou para Sam, sentado em seu poleiro, comendo uma bolacha sossegadamente.

— Sam, você é quase da família, mas hoje preciso de alguém para um brinde — disse ao pássaro, que o encarou sem entender ou mesmo se preocupar em falar, entretido que estava com seu petisco.

Katie! Por que não? Ela era sua única amiga em Connecticut, ou pelo menos o que mais se aproximava de um amigo de verdade.

Katie havia saído logo cedo para encontrar-se com sua editora em Nova York, mas dissera que estaria de volta ao anoitecer. Jack não esperava que ela deixasse Jeremy com uma babá, por isso decidiu fazer umas compras no supermercado e surpreendê-la.

— Não acha brilhante esta idéia, Sam? O jantar estará pronto quando ela chegar. — Ponderou um instante. — É claro que não vai ficar tão bom quanto o dela, mas não sou um péssimo cozinheiro. Pelo menos quando tenho vontade de cozinhar...

De pé diante da janela da cozinha, olhando para o céu de fevereiro, começou a analisar o relacionamento que mantinha com Katie há quase dois meses. Não tinha certeza do que na verdade existia entre eles. Nem sempre pensava em Katie como uma amiga! Já se flagara pensando nela com um carinho muito especial. Será que estava se apaixonando?

— Não! Isso é um exagero. Somos bons amigos! — disse em voz alta, tentando convencer a si mesmo.

— 1984! É um bom ano. 1988 é outra história — Jack comentou enquanto abria a garrafa de champanhe.

— Ano ruim? — Katie quis saber.

— Horrível! — ele respondeu sem hesitação.

— O que aconteceu com a safra nesse ano, para ser tão ruim assim?

— Com a safra, não, comigo, sim! — Jack respondeu, enchendo a taça de Katie.

— Quer me contar?

— Por que não? Foi o ano em que me divorciei e que minha mulher levou quase tudo o que ganhei — ele respondeu, levantando a cabeça para encarar Katie.

— Sinto muito!

— Obrigado, mas não deve. Agora que tudo passou vejo que ainda saí ganhando.

Katie olhou-o intrigada.

— Ganhando?!

— Claro! Não vê? Ao menos fiquei livre dela. Não há dinheiro nesse mundo que pague a paz de espírito — ele replicou, colocando champanhe em sua taça.

— Você a amava muito, não é? — Katie perguntou depois de beber um pouco.

— Acho que sim. Ou melhor, eu pensei que a amava. Foi uma forte atração física, disto tenho certeza,

— Ainda bem que encara dessa forma.

— E você? Por que o casamento não deu certo? — Jack perguntou interessado.

— Casei com um homem a quem amava desesperadamente. Ele me disse que não queria filhos, e eu, ingenuamente, pensei que mudaria com o tempo. Mas enganei-me.

Jack parou de beber e fitou-a espantado.

— Seu marido a deixou porque ficou grávida? É isso que está dizendo?

Katie balançou a cabeça concordando.

— Não acredito!

— Mas é verdade!

— Que tipo de homem abandona o próprio filho?

— Aquele que não gosta de crianças! Michael deixou bem claro, praticamente desde o dia em que nos conhecemos, que filhos não faziam parte de seus planos futuros. Eu realmente fui muito ingênua. Ele já tinha aberto o jogo.

— Tola! — Jack a corrigiu com um sorriso irônico. Katie olhou-o e também sorriu.

— Tola, isso mesmo — disse concordando.

— Bem-vinda ao clube dos tolos. Tolos deste mundo, uni-vos! — Ele ergueu a taça num brinde.

Katie tomou a balançar a cabeça concordando com o que Jack falava.

— Nós precisamos nos ajudar — disse-lhe, depois de beber mais um pouco do líquido espumante.

— Precisamos cuidar um do outro, isso sim — ele replicou.

Aquelas palavras deram a ela a certeza de que Jack já havia percebido que estavam se envolvendo demais. Que a amizade dos dois era mais forte do que imaginavam e, também como ela, estava com medo. Medo de ser tarde gemais parav olhar atrás e verdadeiro pavor de ir adiante. Já haviam falhado no casamento anterior, e um novo relacionamento os aterrorizava.

— Vamos comer antes que esfrie — ele sugeriu, desviando o olhar de seu rosto preocupado.

— Concordo plenamente! — ela brincou.

Katie e Jack começaram a comer, embora em suas mentes o medo e a incerteza estivessem presentes.

 

O telefonema de David Haskell surpreendeu Katie. Não esperava que ele a contatasse, mesmo tendo compromissos em Connecticut.

Começou a imaginar que Liz havia preparado tudo aquilo, mas logo recusou a hipótese, David não precisava de ninguém para arranjar-lhe encontros, concluiu para si mesma, tentando afastar a sensação incómoda de que a amiga estaria por trás daquele convite inesperado.

Katíe conhecia David o suficiente para saber que podia escolher suas companhias quando e onde desejasse. As mulheres a todo momento lançavam-se a seus pés como tolas. Era só tomar como referência o comportamento absurdo das garotas do escritório de Liz enquanto David trabalhava lá. Fora a única, nas palavras de Liz, imune ao charme dele.

Não exatamente imune, ela podia admitir agora. Katie havia reparado em David, como todas as outras. Que mulher não o faria? Mas naquela época estava casada com Michael e acreditava que tinha um bom casamento. Nem olhava para os outros homens, tão confiante estava em seu relacionamento com o marido. Não tinha motivos para se interessar por outra pessoa. E ainda não tinha sentido, graças à amargura adquirida, a decepção na vida conjugal. No entanto, havia aceitado o convite de David para jantar sem hesitação, quando recebera o telefonema, logo depois do almoço. Por que não? Aquele convite lhe parecia inocente. David estava na cidade para tratar de negócios, não conhecia ninguém ali. Não queria jantar com o cliente com quem passara o dia todo e, então, procurara uma velha amiga, como lhe explicara ao telefone.

"Não somos tão velhos amigos assim!", Katie argumentou para si mesma. Sabia que era exagero considerar um relacionamento de trabalho distante e já antigo como amizade, mas admitia que eram colegas, o que por si só explicava o convite para jantar. Boa conversa, boa comida, sair um pouco fariam muito bem, ela pensou, tentando se convencer de que não havia errado ao aceitar o convite. Em Nova York, David podia ter amigos de sobra para convidar para um jantar, mas alí, em Connecticut, estava só, por isso lhe havia telefonado. Era tudo tão claro! Não começaria um namoro só por causa de um jantar!

"Claro que não é um encontro romântico! Se fosse, não aceitaria!", Katie decidiu-se. Mas a parte mais difícil ainda não havia resolvido.

Precisava encontrar uma babá para Jeremy. Era a pior parte, ela bem sabia. Não tinha ilusões quanto a isso. Não havia muitas babás na vizinhança e ainda menos em quem poderia confiar o bebê. A maioria delas era de garotas muito novas e Katie tinha medo de deixar Jeremy com uma menina. Sabia que a consideravam uma supermãe, mas na verdade não sairia sossegada deixando o bebê com uma delas.

Pensou em pedir a Julie.. Julie Mandel, sua vizinha e amiga do andar de baixo, uma das poucas pessoas em quem confiava, era ótima com crianças. Poderia deixar Jeremy com ela.

"Julie vai sair esta noite!", Katie recordou-se, desanimada.

Considerou outras moças que trabalhavam como babás tinha relativa confiança. Foi para o telefone com a agenda na mão, mas apenas para se certificar de que todas já haviam assumido outros compromissos.

— Não dá para hoje, dona Katie, é uma pena! Se precisar outro dia, é só telefonar com um pouco de antecedência — dissera-lhe a última delas.

Katie deixou-se cair no sofá, desanimada. Não era uma ocasião que pudesse levar Jeremy, não era a mesma coisa que um almoço com Liz. Não tinha outra alternativa. A única solução seria cancelar o jantar. Um pouco frustrada, começou a procurar na agenda o número que David lhe dera se precisasse se comunicar com ele. De repente teve outra idéia.

— Jack! — exclamou para si mesma.

Jack era perfeito! Jeremy já o conhecia e o aceitava, e, apesar de ele dizer que não tinha jeito com crianças, sabia segurar e embalar o bebê muito bem. Claro que não aprendera a trocar fraldas e dar mamadeiras, mas Katie decidiu que poderia ensiná-lo em alguns minutos.

Dificilmente saía, exceto para fazer compras no supermercado ou ir ao correio. Nunca tinha visitas, a não ser aqueles músicos estranhos. Não havia recebido ninguém desde que o conhecia.

— Não vai custar nada perguntar — decidiu, e foi bater à porta de Jack.

 

— Você está brincando... Só pode estar brincando! Jack, de pé no centro da sala de visitas, com as mãos na cintura, olhava para Katie. Em seu rosto a surpresa e a incredulidade pelo que acabara de ouvir eram evidentes. Ela por sua vez mantinha-se calma, recostada à porta da entrada.

— Alguma vez lhe pedi para cuidar de Jeremy antes?

— Não! E se tivesse um pouco de inteligência não me pediria agora.

Katie deu alguns passos para dentro do apartamento.

— Vai ser por algumas horas apenas e... Se eu tivesse outra opção, não lhe pediria, não mesmo — ela insistiu.

Jack ficou a observá-la por um momento em silêncio.

— É uma emergência? Um caso de vida ou morte? — perguntou-lhe desconfiado.

— Não exatamente.

— Um problema de família?

— Bem, não...

Jack encolheu os ombros, o cenho franzido.

— Não é uma emergência! Nem um problema de família! Trabalho, então?

— Não... — ela confessou hesitante.

Ele refletiu por um instante, encarando-a como se tentasse ler em seus olhos o verdadeiro motivo daquele pedido. Subitamente, percebeu tudo.

— Ah, ah! Deixe-me adivinhar: Katie tem um encontro, estou certo?

Ela corou.

— Eu não tenho exatamente um encontro — Katie começou, procurando não demonstrar a perturbação.

— Vai jantar com um cara. Estou certo?

Katie balançou a cabeça numa afirmativa, corando mais ainda.

— Oh, claro, claro... — Ele parecia indignado. — Você vai sair, à noite, com um cara... Ele é solteiro? — perguntou de súbito.

Ela tornou a concordar com um simples aceno.

— Um homem solteiro! Não é um dos seus irmãos, é?

— Não.

— Nem um primo, tio ou um parente distante?

— Não.

— Negócios?

— Não — Katie respondeu num fio de voz.

— Não pode levar o garoto com você?

— Não, não posso!

— Então é um namorado?!

— Claro que não! É só um colega de trabalho que está na cidade a negócios e me convidou para jantar.

— Hum...

— Chega, Jack! Você parece meus irmãos! Quer dizer que uma mulher não pode sair com um homem sem que tenha um caso? Mas que hipocrisia!

— Eu não quis ofendê-la, mas...

— Nem mais nem menos, eu só lhe pedi para cuidar de Jeremy por umas duas horas, nada mais. Se você não quer, tudo bem, mas não tem o direito de me julgar.

— Eu disse não?!

— É claro que sim.

— Eu não disse!

— Você disse que se eu tivesse inteligência não lhe pediria para cuidar do bebê. Consigo entender uma mensagem óbvia como essa. — Katie virou-se para sair.

— Está bem! — ele a interrompeu. — Eu mudei de idéia. Vou cuidar de Jeremy esta noite.

— Você... tem certeza de que quer fazer?

Ele concordou, num meneio. Não quis encará-la com com receio de que ela percebesse que estava com ciúme.

— Não vai mudar de idéia na última hora, vai? — ela perguntou-lhe, preocupada com aquela mudança súbita.

— Por que faria isso?!

— Não sei. Vai mudar de idéia?

— Não, não vou.

— Tem certeza?

— Sim! Mas se perguntar mais uma vez eu desisto.

— Está bem, está bem... — Katie concordou imediatamente.

— A que horas a "madame" vai precisar de mim? — Jack perguntou, carregando a voz, numa alusão aos mordomos.

— Às sete, está bem?

— Pode deixar. Às sete em ponto vou para seu apartamento,

Katie despediu-se e voltou para seu apartamento, embora ainda não estivesse de todo confiante.

Jack por sua vez ficou irritado consigo mesmo. Não sabia por que havia concordado em cuidar do bebê enquanto Katie ia se encontrar com outro homem, mas estava decidido a ir avante e não mudar de idéia.

Por que devia se incomodar com um simples jantar?, perguntava-se, e essa pergunta voltou a ser formulada outras tantas vezes mais, sem querer ouvir a resposta.

Katie tomou um banho demorado, aproveitando o sono de Jeremy. Trocou-se e maquilou-se com cuidado, e o espelho certificou-a de que estava atraente. Já fazia algum tempo que não se preocupava em se arrumar com tanto cuidado. Desde o nascimento de Jeremy não parava diante do espelho. Penteava-se às pressas, quando muito apenas um batom como maquilagem. Mas naquela noite, a primeira que ia sair de casa, sentia-se entusiasmada. — Talvez Liz esteja certa. Tenho de passear de vez em quando — conversou baixinho com sua imagem no espelho.

Por mais que amasse o filho, ele não lhe poderia dar tudo de que precisava e alguns momentos para si mesma só lhe fariam bem e ao bebe também. Katie tentava, enquanto se vestia, afastar a sensação de culpa que a afligia. Queria aproveitar aquele jantar, mas temia que fosse impossível. Algo lhe dizia que não era só por causa de Jeremy que se afligia. Não conseguia tirar da mente o olhar triste de Jack quando concordou em cuidar do bebê.

 

Jack não estava se sentindo nada bem. Não porque tivesse concordado em cuidar de Jeremy, sabia que estava com ciúme e isso deixava-o transtornado.

— O que tenho com isso? Se ela vai se encontrar com um cara, não é da minha conta — dizia baixinho diante do piano, tentando se concentrar no trabalho.

Mas não conseguia esquecê-la, tampouco trabalhar em paz.

— Droga! Mulheres! Para que precisamos delas? — esbravejou, voltando-se para o pássaro, que meneava a cabeça na tentativa de compreender o dono.

— O leite já está pronto. Eu coloquei as mamadeiras na geladeira. Você só tem de colocar em banho-maria, mas tome cuidado para não deixar muito tempo, são de plástico, e não se esqueça de que o leite não pode ser muito quente.

— Eu sei, eu sei... Não se preocupe mais, você já repetiu isso três vezes.

— Comprei fraldas descartáveis, são mais fáceis para você. Debaixo do trocador tem um cesto de plástico para colocar as fraldas que trocar, está bem?

— E os alfinetes? — Jack quis saber.

— Que alfinetes? — Katie olhou-o intrigada. Não estava prestando atenção no que ele dizia, preocupada em dobrar umas roupas de Jeremy.

— Para prender as fraldas.

— Fraldas descartáveis não precisam de alfinetes! Olhe estas fitas adesivas aqui; é só soltá-las, e depois de colocar a fralda no bebê basta juntar de novo. Entendeu? — Katie fez a demonstração e olhou para Jack à espera de outro comentário.

— Entendi — ele concordou com um aceno, mas o tom de voz não era muito convincente.

— Deixei o telefone do restaurante na mesinha. Se acontecer alguma coisa, é só chamar.

— Obrigado pelo voto de confiança — Jack disse num tom de voz ofendido.

Katie percebeu quê o magoara.

— Eu confio em você, mas sei que não tem muita experiência com crianças.

— Você está errada! Eu não tenho nenhuma experiência!

— É isso que quero dizer. A primeira vez sozinho com um bebê pode ser muito difícil, sei por experiência própria.

— Claro!

— E é bom que entenda que nunca deixei Jeremy com ninguém sem dar o número de onde podem me encontrar.

— Você nunca deixou Jeremy com ninguém! — Jack replicou, começando a rir.

— Está bem, eu nunca deixei, mas se deixasse não esqueceria o telefone. E...

Uma leve batida na porta interrompeu a conversa.

— Deve ser o seu amigo — Jack antecipou-se, fingindo desinteresse.

Katie olhou para o relógio e concordou.

— Vou atender.

Jack a seguiu com o olhar. Estava deslumbrante num vestido verde-esmeralda que realçava a cor clara de seus olhos e a linha graciosa do corpo delicado.

Como nunca a tinha visto maquilada, achou-a simplesmente encantadora. Na verdade, sempre fora. Ele é que se recusava a ver.

Esperou no mesmo lugar e em total silêncio até que Katie se aproximasse seguida de um homem vestido elegantemente.

— Jack, este é David Haskell. David, este é meu vizinho, Jack Spangler. Ele vai cuidar do bebê esta noite.

David sorriu e estendeu a mão a Jack.

— Como vai?

Jack cumprimentou-o em silêncio. "O que ela viu nele?", perguntou a si mesmo, irritado com a boa aparência e polidez de David.

— Você não está acostumada a deixar o garoto, não é? — David perguntou a Katie no carro enquanto dirigia para o restaurante.

— Na verdade, não. Está tão evidente assim?

— Oh, sim! Mas não se preocupe, eu entendo. Liz está preocupada com você...

— Liz?! Vocês conversaram sobre mim? — Katie quis saber, sentindo um gosto amargo de decepção na boca.

— Muito pouco. Encontrei com ela outro dia no escritório e eu lhe perguntei sobre você. Foi então que ela me deu o seu número.

— Só isso? — Katie perguntou desconfiada.

— Bem, ela acha que você está exagerando, fechada em casa o tempo todo, sem ver ninguém, sem sair...

Katie sentiu o rosto corar, entre a raiva e a mágoa. Não podia suportar a idéia de que estava ali por causa da pena de uma amiga.

— Eu sabia! Foi ela que o levou a me convidar para jantar, não foi?

— Você se subestima, Katie! — David riu. — Liz não me levou a fazer nada. Este convite foi idéia minha. Na verdade eu a teria convidado antes se não fosse casada.

Katie não comentou o que acabara de ouvir. Estava tão surpresa que não sabia o que dizer. Nunca lhe havia ocorrido que David Haskell, o galã de todas as mulheres, se interessava por ela. Sorriu-lhe agradecida, como se acabasse de receber um cumprimento.

— Aposto que aqueles dentes não são dele. São perfeitos demais! — Jack dizia enquanto dava a mamadeira a Jeremy como se a criança pudesse entendê-lo.

O bebê o olhava satisfeito, ouvindo com displicência, prestando toda a atenção à mamadeira.

— E também usa peruca! O que acha, garoto? Jeremy, depois de tomar todo o leite, dava a impressão de que queria sorrir.

— Você achou graça? Eu não vejo por quê... Sua mãe sai com aquele farsante e você ri? Que tipo de filho vai se tornar? Não se preocupa nem um pouquinho? — Jack perguntou, limpando o canto da boca do bebê por onde escorria um resto de leite.

O bebê ainda sorria.

— Você acha que sua mãe está interessada nele? — Jack continuou o monólogo enquanto colocava uma fralda de pano sobre o ombro e levantava Jeremy, dando-lhe tapinhas leves nas costas.

— É minha imaginação, ou há algo entre você e seu vizinho? — David perguntou em dado momento durante o jantar.

— Jack?! Oh, não, Jack e eu somos apenas bons amigos — Katie respondeu depois de umas boas risadas. — Por que diz isso?

— Não sei, tenho um sexto sentido para essas coisas.

— Então se nos visse há apenas algumas semanas acharia que éramos inimigos. Vivíamos discutindo no corredor do prédio, na minha porta ou na dele.

— Não me diga! — David parecia intrigado.

— Você não acredita, mas é verdade. Vivíamos brigando por causa do piano dele e do choro de Jeremy. As paredes do nosso prédio são finas demais, qualquer barulho atrapalha.

— Interessante... Por que será que eu senti que ele não estava gostando nem um pouco em vê-la sair comigo?

Katie encarou-o surpresa. Aquilo era absurdo

- Você Pensa que Jack está com ciúme?!

— Acho que é óbvio!

— É ridículo! - Katie insistiu, tentando rir.

Era tão ridículo Jack sentindo ciúme quanto ela sentir-se culpada em sair com outra pessoa

 

Jack com cuidado colocou o bebê deitado no sofá da sala diante da televisão.

— Que tal um joguinho de basquete, garoto? — perguntou-lhe enquanto sintonizava o canal que transmitia o jogo dos Celtas de Boston.

O bebê fez uma careta como se houvesse entendido e não estivesse nem um pouco interessado. Jack pôs-se a rir com vontade.

— Você vai gostar, eu sei que mudará de idéia quando o jogo começar — argumentou, sentando ao lado de Jeremy com uma lata de soda dietética na mão. Abriu-a e deu um longo gole. Dessa vez a careta foi dele próprio, que desejou sinceramente que Katie mantivesse algumas cervejas na geladeira. — Não conheço nenhum garoto americano de cabelos vermelhos que não goste de esporte... — continuou a conversa com o bebê, enquanto o jogo não começava.

Jeremy o olhava, depois olhava para a televisão, descoordenadamente. Em seguida tornava a fixar os olhos em Jack. Não chorava, não resmungava, parecia até satisfeito com a novidade. Jack acariciou a penugem na cabeça da criança. Ele estava calmo como um anjo, Jack pensou, animado com a perspectiva de uma noite também calma.

A partida foi iniciada e então ele passou a prestar atenção aos movimentos dos jogadores dentro da quadra por alguns minutos, até que, de repente, percebeu que não estava mais interessado no que acontecia na teia. Era em Katie que estava pensando.

— Que belo fã de basquete eu sou! — falou em voz alta.

Jack só conseguia ver a imagem de Katie diante de seus olhos. O que era pior, podia imaginá-la, sim, linda e encantadora, mas ao lado de outro homem. O ciúme o corroía. Era um sentimento ridículo e mesquinho, ele sabia, mas não conseguia se livrar dele.

"O que ela viu nele?", tornou a perguntar-se pela terceira ou quarta vez naquela noite.

Jack entenderia se fosse Lianna, sua ex-mulher, que estivesse enamorada de David. Mas Katie, não! Sem saber bem por quê, não achava Katie o tipo de pessoa que se interessasse por um galã de novelas. Ou, melhor dizendo, não se ligaria a alguém apenas por causa disso.

Jeremy de repente começou a chorar, interrompendo seus pensamentos. Jack sobressaltou-se.

— Eu sabia que a minha sorte não ia durar por muito tempo, mas por que bem durante o jogo dos Celtas? — resmungou, enquanto pegava o bebê no colo.

Depois de uma inspeção rápida, descobriu a causa do problema. A fralda do garoto precisava ser trocada.

— Grande! Você não podia esperar até sua mãe chegar? Levantou-se e levou Jeremy até o trocador, carregando-o como se fosse uma bomba que explodiria de um momento para o outro, esperando que estivesse apenas molhado, nada pior.

Jack percebeu, ao abrir a fralda, que a sorte o havia deixado realmente. Franzindo o nariz, retirou-a e jogou-a no cesto debaixo do trocador.

— Hum... Acho que vai precisar de um pouco de perfume, garoto!

Segurando o bebê firme no lugar, com uma das mãos começou a procurar na gaveta da cômoda ao lado lenços higiênicos para limpar o bebê. Katie havia dito que guardara ali o que ele precisava.

— Onde estão, meu Deus? — lamentou-se irritado sem conseguir encontrá-los.

Achou cotonetes, loção, óleo, talco, fraldas, mas os lenços, nada! O bebê já estava impaciente naquela posição incômoda e começou a choramingar.

— Não chore, garoto, por favor! Não vê que estou ocupado? — Jack disse num tom brusco, mas logo se arrependeu. — Desculpe, está bem? Sei que você não tem culpa, mas você sabia desde o começo que eu não tenho jeito com crianças...

Em poucos segundos, Jeremy fez mostrar toda a força de seus pulmões, num lamento que deixou Jack ainda mais nervoso.

— Graças a Deus! — ele exclamou ao encontrar uma caixa amarela repleta de lenços higiénicos.

Num gesto rápido, colocou-a sobre a mesa e iniciou a difícil tarefa, tomando todo o cuidado ao virá-lo de costas.

— Não chore, pequenino... Você não quer que sua mãe o encontre neste estado, não é? Então deixe-me cuidar direitinho de você...

Aos poucos, o cesto de lixo foi sendo tomado por um sem-número de lenços, e Jeremy, mais aliviado, foi se acalmando. Jack ergueu-o nos braços.

— Viu como foi bom? Está se sentindo melhor, não está, garoto? — Jack teve a impressão de vê-lo esboçar um sorriso. — Agora, o titio Jack vai dar um trato final nesse bumbum cheiroso...

Deitando-o novamente, Jack alcançou o vidro de óleo e um chumaço de algodão. A dificuldade de abrir o vidro, porém, fez com que, por poucos segundos, deixasse o bebê sobre o trocador sem amparo. Um movimento de Jeremy o assustou, e acabou deixando cair o frasco de óleo na tentativa de segurar a criança.

— Seu desastrado! — recriminou-se, vendo que o bebê estava totalmente seguro ali, ao mesmo tempo que o óleo lambuzava o chão. — Se Katie descobrir, vai me matar.

Sem pestanejar, pegou uma fralda descartável, desta vez segurando novamente o bebê com uma das mãos, abriu-a com a ajuda dos dentes e jogou-a sobre o óleo derramado.

— Você não vai contar, não é? — perguntou a Jeremy, que voltava a espernear e ameaçar o choro.

Depois de conseguir limpar superficialmente o óleo esparramado pelo chão, Jack voltou sua atenção para Jeremy. Abriu, apressado, outra fralda descartável e tentou descobrir como colocá-la, mas havia esquecido por completo as explicações de Katie.

— Temos um novo problema, pequenino. Se você sabe como usar isto, é melhor me dizer. Qual é a parte da frente, garoto? Você vê sua mãe fazer isto o dia inteiro!

Jack olhou bem para a fralda, virou e revirou até que acabou percebendo que o lado mais largo devia ficar para baixo.

— Eureca, rapaz! Parece que conseguimos...

Mas seu entusiasmo durou pouco. Ao tentar descolar o papel da fita adesiva, usou de muita forca e acabou por rasgar a fralda, deixando à mostra o algodão que a preenchia.

— Mais uma para o lixo! Vou ter de levar tudo isso para casa se quiser manter a amizade de Katie — Jack lamentou-se, jogando mais aquela peça no cesto.

Jeremy, alheio a tudo, conseguiu com dificuldade agarrar o indicador de Jack, entretendo-se com o novo contato. Olhando-o com ternura, Jack decidiu que não devia se apavorar tanto.

Pegou uma nova fralda e recomeçou o trabalho. Ajeitou o corpo da criança sobre o tecido macio, mas, quando ia liberar a fita adesiva, recordou-se de uma recomendação importante.

— O talco! Você vai precisar de um talco para as assaduras, não é? — disse de forma carinhosa.

Ao virar a lata, Jack não conseguiu que o talco se soltasse e então bateu com força. Logo uma nuvem branca e perfumada cobriu Jeremy, o trocador e boa parte do carpete para desespero de angústia de Jack. — Droga! Isso tinha de acontecer? Às pressas limpou o rosto do bebê, que parecia sufocado, logo depois levantou-se e tentou tirar o pó de cima do trocador. Com uma fralda, espanou o fino pó e voltou a deitar Jeremy com cuidado, ajeitando-o novamente sobre uma fralda.

— Assim você vai ficar ótimo! — disse, feliz por ter conseguido afinal acertar com os adesivos.

Para não machucar o abdómen frágil não apertou a fralda o suficiente e, ao levantá-lo outra vez do trocador, a fralda deslizou pelas perninhas finas de Jeremy, indo parar no carpete.

— Isso é demais! — murmurou entre dentes enquanto apertava o bebê de encontro ao peito e procurava mais outra fralda, desanimado de ter de começar tudo de novo.

Parou de repente ao sentir algo úmido escorrendo por sua camisa.

— Oh, não! Você não faria... — gemeu baixinho e em vão.

— Você se preocupa demais... — David disse a Katie enquanto o garçom servia a sobremesa.

— Nunca o deixei tanto tempo assim. Na verdade, é a primeira vez que saio sem ele — Katie admitiu.

— Não confia na sua "babá"? Katie riu-se da referência a Jade.

— Sim, é claro. O problema é que Jack não entende muito de crianças. Não consegui ninguém para ficar com Jeremy esta noite. Seu convite foi uma surpresa.

— Não precisa ser delicada, sei que foi muito em cima da hora. Mas não fazia idéia de que viria a Connecticut.

— Eu entendo...

— Você precisa sair mais, Katie. Cuidar do bebê o tempo não lhe vai fazer nada bem...

— Tenho meu trabalho, também — ela argumentou como numa desculpa.

— Sei disso, mas tem de passear também, ver pessoas, conversar com colegas, mudar de ambiente de vez em quando. Minha mãe passou a vida se dedicando aos filhos, quando crescemos e saímos de casa não teve mais motivação para viver. Caiu doente. Sua saúde piora a cada dia... — David contou amargurado.

— Isso é triste, mas não vai acontecer comigo! Gosto de ficar com meu filho, pretendo mesmo me dedicar a ele durante esses primeiros meses. Tenho muita sorte de poder trabalhar em casa e não precisar deixá-lo; mas logo que ficar um pouco maior vai começar a conviver com outras crianças. Já tenho em vista um lugar para levá-lo quando eu precisar sair: é uma espécie de hotelzinho para bebês, encantador...

— Hotel para bebês?!

— Claro! Nunca ouviu falar? Jeremy pode até passar a noite lá. É preferível a uma babá. Vou ficar mais sossegada sabendo que está com gente especializada.

— Se está preocupada agora por que não telefona?

— Telefonar?!

— Para seu vizinho... Seu amigo, ou seja lá como o chama, e pergunte se está tudo em ordem.

Ela pensou por um momento e acabou concordando.

— Boa idéia! Volto num instante.

Kaíie se dirigiu ao hall de entrada do restaurante, onde havia um telefone disponível.

David era encantador, divertido e sabia entreter com sua conversa agradável, mas Katie não estava plenamente à vontade. Na verdade, embora tudo corresse bem até aquele momento, algo a perturbava. Talvez fosse a formalidade a que não estava acostumada. No fundo, preferia os jantares com Jack, os momentos de descontração ao lado dele, na simplicidade da sala de estar de seu apartamento. Não havia comparação com os pratos finos que David lhe oferecia, mas desejava estar em casa, desejava poder sentar-se no sofá e tomar um café fresco ao lado de Jack e não estar ali, junto do homem mais cobiçado pelas mulheres que já havia conhecido. Tudo era maravilhoso com David, reconhecia; um homem que tinha muito mais atributos que a bela aparência. Mas seu coração estava voltado para o sincero, atraente e desajeitado Jack Spangler.

Discou o número de seu apartamento com emoção. Embora inexperiente, sabia, intuitivamente, que Jeremy estava bem sob os cuidados de Jack. Seu coração batia forte, não por apreensão, e sim pela voz que ouviria do outro lado da linha. Esperou pelo primeiro sinal da chamada, o segundo, o terceiro...

— Onde está você, Jack? — falou baixinho, começando a se alarmar.

Na quinta chamada, ele atendeu.

— Alô?...

— Por Deus, Jack! Onde você estava?

— Tomando um banho de mar. O sol está maravilhoso lá fora...

Katie conteve o riso. Ele, sem dúvida, tinha coisas mais importantes para fazer do que atender ao telefone.

— Chamei para saber se tudo está bem... — Katie começou um pouco envergonhada.

—- Por que não estaria?

— Eu só queria saber...

— Aqui tudo vai muito bem. Eu estava esquentando a mamadeira para o garoto — Jack interrompeu sem qualquer escrúpulo.

Katie esticou os ouvidos, tentando ouvir alguma manifestação do filho.

— Jeremy está dando trabalho? — perguntou, enfim.

— Não! Estamos assistindo ao jogo dos Celtas.

— Vocês estão assistindo a um jogo de beisebol? — perguntou, incrédula.

— Basquete, querida. Não confunda os dois, por favor.

— Está bem, basquete... Você acha que ele gosta?

— Adora!

— Não acredito!

— Por que não?! Por que acha que seu filho é diferente dos outros garotos?

— Não é uma questão de ser diferente ou não. Ele ainda é só um bebê! — Katie replicou em seguida; tinha vontade de rir, mas procurava se conter e fingir que estava levando aquela conversa a sério.

— Ele é um bebê, mas já sabe o que é bom. Você não acredita, não é?

— Não fique zangado desse jeito, eu acredito. Só quero saber se tudo está em ordem por aí, nada mais. — Ela colocou a mão sobre o fone para abafar o riso.

— Nenhum problema. Não precisa se preocupar — disse convincente, apesar do odor estranho que chegava a suas narinas naquele instante.

— Tem certeza?

— Absoluta! Volte para seu... colega. Tudo aqui está sob controle — ele insistiu, dando um tom de mais convicção à voz.

— Bem, se é assim... Estarei de volta em menos de uma hora.

— Não precisa se apressar por minha causa.

— Já estamos na sobremesa.

— Você é quem sabe...

Katie desligou, sentindo-se, de certa forma, desapontada. Nem Jeremy nem Jack pareciam sentir sua falta.

— Bem, garoto, temos uma hora para pôr em ordem essa bagunça toda. O que você sugere? Por onde devemos começar? — Jack perguntou ao bebê em seus braços.

O quarto estava um verdadeiro caos. Talco pelo carpete. Manchas de óleo, fraldas pelo chão, a camisa molhada sobre uma cadeira para secar... E, na sala, tinha de dar um jeito no leite respingado no sofá!

— Você não tem mesmo nenhuma idéia, garoto? Jeremy olhava para Jack com tranquilidade. Nada daquilo o atingia.

— Eu devia imaginar! Que tal você ir para seu berço? Vou lhe dar mais uma mamadeira e então o garotão vai dormir...

Jack aspirou fundo. Aquele cheiro... Não era de óleo nem talco, sequer...

— Oh, céus! O leite!

Jack recordou-se de que havia deixado a mamadeira aquecendo para atender ao telefonema de Katie. Correu com Jeremy para a cozinha para se certificar de que o odor que vinha sentindo era o de plástico derretendo.

— Droga! Como vou explicar isso, agora?

 

A água, insuficiente, havia secado em pouco tempo e a mamadeira já estava grudando no fundo da panela. Com cuidado, retirou-a e jogou-a no cesto de lixo, imaginando levá-lo consigo, quando voltasse para seu apartamento. "Katie não vai sentir falta desta. Tem tantas mamadeiras na geladeira!", disse a si mesmo.

Pegou outra mamadeira e a amornou num instante, daquela vez com bastante água, para evitar novo acidente. Depois, levou o bebê para o berço e deu-lhe o leite. Antes mesmo de beber tudo, Jeremy já havia adormecido.

— Graças a Deus! Agora, vamos à limpeza.

Jack começou limpando os pingos de leite do sofá e do carpete. Depois o talco, o que foi ainda mais difícil, pois não pôde usar o aspirador. Não queria arriscar-se a acordar o bebê com o barulho. Com um pano de prato úmido tentou tirar o excesso de óleo no carpete, mas acabou sujando mais ainda.

— Katie, minha querida, você vai ter de cuidar disto — decidiu desanimado.

Recolheu o lixo, e em um saco de plástico colocou a camisa molhada. Deixou tudo à porta da saída para não se esquecer na hora de ir embora.

Na cozinha, tentava retirar o plástico grudado no fundo da panela quando ouviu Katie chegar. Permaneceu ali até ter certeza de que David não estava com ela e então apareceu na sala.

— Oh, você já chegou! — disse sorrindo, fingindo uma calma que estava longe de sentir.

Katie olhou espantada. Ele estava sem camisa e com um pano de prato amarrado à volta do pescoço.

— Interrompi alguma coisa? — perguntou-lhe, procurando se manter séria.

— Eu estava limpando algumas coisinhas...

— Limpando?! O que aconteceu?

— Nada, nada... Onde está o seu amigo? — Jack tentou mudar de assunto o mais depressa possível.

— David? Já foi... Você não gostou dele, não é?

Jack encolheu os ombros.

— Ele parece ser legal... respondeu, depois de um momento de silêncio.

— Você não parece muito convencido!

— O que posso dizer? Na verdade, ele não é meu tipo — Jack replicou enquanto tirava o pano do pescoço.

Katie se pôs a rir.

— Ainda bem! Não esperava mesmo que David fosse seu tipo.

— Eu acho também que ele não é o seu tipo! — Jack deixou-se dizer bruscamente, mas logo sé arrependeu.

Katie fitou-o intrigada.

— Por que diz isso?

— Não sei, é uma sensação, um pressentimento, não sei explicar.

— Você não gosta de David e não sabe por quê?

— Já disse que ele é um cara legal... Está bem, não gosto dele, você tem razão. Mas não me pergunte por quê.

— A maioria das pessoas gosta dele.

— Mulheres, tenho certeza! — Mais uma vez ele deixou-se trair.

— Por que está tão certo disso? — ela provocou.

— Porque ele é o tipo que quase todas as mulheres adoram — ele respondeu, depois de um momento de hesitação. — Mas você, acho que não. Ele é bonito demais, elegante demais... tem um sorriso... forçado!

— Forçado?! Isso é um exagero, Jack!

Ele largou o pano de prato sobre uma cadeira, caminhou para a porta e pegou o saco plástico que ali havia deixado.

— Não faça muito barulho quando entrar no quarto, o garoto está dormindo.

— Jack...

— Preciso ir. Amanhã a gente conversa.

Katie concordou, balançando a cabeça. Não sabia o que falar, embora tivesse milhões de perguntas na cabeça.

— Está bem, Jack — concordou, num sussurro.

Ele abriu a porta, mas recuou num impulso e fechou-a outra vez. Voltou para perto de Katie e beijou-a nos lábios Seus lábios se tocaram de leve, hesitantes, assustados. Katie, embora surpresa, retribuiu-lhe aquele carinho tão rápido.

— Vejo-a amanhã de manhã — ele despediu-se apressado enquanto se afastava e fechava a porta atrás de si

Katie não se moveu durante algum tempo, o coração batendo descompassado. Podia tomar aquilo como prova de amor? Será que aquele carinho tão singelo...

“Não, claro que não!", disse a si mesma, tentando recusar a evidência do olhar inebriado de Jack Spangler

 

Foi somente na tarde do dia seguinte que Katie e Jack se encontraram novamente, no corredor do prédio.

— Obrigada por cuidar de Jeremy. Ontem você saiu tão depressa que não tive tempo para agradecer...

— Não foi nada, até que gostei... Você não está zangada com a bagunça que fiz, não é?

Jack sentia-se um pouco envergonhado por ter deixado o apartamento de Katie num estado tão deplorável.

— Claro que não! Eu sabia que você não tinha experiência com bebês. Jeremy está perfumado até hoje,.. Acho que colocou talco demais. — Ela sorriu. — Não preciso me preocupar em deixá-lo cheiroso pelo menos por uma semana.

— A culpa não foi minha. Tentei dosar, mas o talco estava grudado no fundo da lata — ele explicou, calmamente. — Precisei bater com força e aí foi pó para todo lado.

- Não se preocupe, o carpete é claro e...

— Também tentei limpar a sujeira, mas só consegui piorar as coisas — ele não deixou Katie continuar. A expressão de seu rosto era de desolação total e ela teve pena.

— Tudo está em ordem agora, não pense mais nisso. Você me fez um grande favor... Só quero lhe perguntar um coisa: não consegui desgrudar aquela cola da panela. O que é aquilo? — Katie perguntou intrigada.

Jack sabía que ela estava se referindo ao plástico da mamadeira.

— Você não sabe mesmo o que é? — perguntou-lhe, corando.

— Me pareceu uma espécie de cola. Para que usou aquilo?

Jack resolveu confessar e acabar logo com o segredo.

— Não sentiu falta de uma mamadeira? — perguntou, desviando o olhar.

— Não vai me dizer que... — Ela pôs a mão sobre a boca para não rir. — Você deixou a mamadeira derreter daquele jeito?!

— Pois foi o que aconteceu.

— Não acredito! Não sentiu o cheiro?!

— É claro que sim! — Jack respondeu irritado.

— Então, por que não desligou o fogo?

— Porque estava falando com você ao telefone.

— Pronto, agora a culpa é minha! — Katie exclamou sem perder o bom humor.

— E é mesmo! Se você não ligasse, eu não esqueceria a mamadeira no fogo...

— Onde ela está? Não vi nada parecido com uma mamadeira derretida no lixo.

— Levei para o meu apartamento...

— Ora, Jack, por quê?! Isso pode acontecer. É difícil, mas pode. Para provar que não é nada horrível deixar uma mamadeira derreter de vez em quando eu o convido para jantar comigo.

Katie surpreendeu-se com o próprio convite. Era óbvio que o acidente com a mamadeira nada tinha a ver com aquilo. Queria ter Jack por perto, era só!

— Bem... — Jack hesitava.

— Vamos, aceite!

Ele concordou afinal e se afastou em seguida, antes que Katie pudesse notar como estava perturbado com a forma carinhosa como o tratava.

 

Durante o jantar conversaram sem parar.

— Você se saiu muito bem com Jeremy — Katie cumprimentou-o.

— Obrigado. Quando precisei trocar as fraldas dele é que tudo se complicou. Pensei que fosse fácil, mas me enganei totalmente. Nem ao menos sabia qual era o lado certo

— Eu sei, no começo também me complicava com essas fraldas, mas já posso me considerar uma especialista agora.

— Ele dormiu bem depois que eu saí?

— E como! O que fez com ele? Dormiu até hoje de manhã!

— Não me diga! Acho que deve ligar a televisão mais vezes.

— Vão ver que o basquete é o dom dele — ela brincou. Jack acompanhou Katie no sorriso, mas logo ficou sério.

— Sou filho único. Meus pais nunca se deram bem e logo se divorciaram. Morreram cedo... Só tive, na verdade, o amor do meu avô. Quando ele morreu, fiquei desesperado. Deixou uma fazenda no Maine para mimo. Eu ainda a tenho. Um dia, vou morar lá...

— Pretende viver numa fazenda?! — Katie quis saber curiosa.

— Por que não?! É uma vida muito saudável!

— Eu sei, mas você não tem o tipo de fazendeiro...

— Qual é o meu tipo? Você acha que eu pareço um boêmio? — Jack perguntou, olhando-a de frente interessado no que ela pensava.

— De uma certa forma, sim. Parece também um escritor de romances, embora fique melhor mesmo como um compositor.

— Ainda bem...

— Também concordo que deve ser bom deixar a cidade para trás, viver numa fazenda e esquecer a loucura dessa vida.

— A fazenda foi a única coisa que Lianna não quis me tirar. Ela sabia que a mataria se tentasse.

— Acho que Michael nunca vai mudar. Ele não queria uma família e nem os anos que passamos juntos fizeram-no aceitar um filho — Katie confessou sem esconder o desapontamento.

Era sábado. Ela e Jack conversaram sentados no banco do jardim do prédio em que moravam, enquanto Jeremy tomava sol deitado em seu carrinho de passeio. Ela continuou:

— No começo, pensei que ele fosse jovem demais e com a idade passaria a desejar uma família. Estava começando a carreira; imaginei que depois de ter seu próprio escritório as coisas mudassem...

— Muita gente não muda...

— Eu sei, mas acreditava no amor que tinha por Michael. Pensei que ele me amasse também e por mim quisesse afinal um filho.

— Eu tenho medo de ser pai... — Jack confessou depois de um momento de silêncio.

Katie olhou-o espantada.

— Por quê? Parece tão à vontade com Jeremy!

— É diferente! Ele não é meu filho. Tenho medo da responsabilidade de gerar uma criança e não saber criá-la. É terrível!

— Se você se preocupa assim é porque vai ser um bom pai, tenho certeza.

— Não sei, Katie. Sou um cara muito complicado, não entendo nem eu mesmo, como vou poder orientar uma criança?

— Você acabará descobrindo uma resposta, vai ver. Michael, ao contrário, não chegava perto de um bebê. Não gostava de crianças. Tinha uma espécie de alergia quando encontrávamos meus parentes. Ele sempre achava uma desculpa para se afastar das crianças.

— Você vem de uma família grande, não é? — Jack perguntou enquanto pegava e limpava o chocalho que Jeremy havia deixado cair no chão.

— Tenho três irmãos mais velhos. Sou a caçula, a mais mimada, a "menininha da família". Eles me atormentavam o tempo todo com suas brincadeiras, mas dariam a vida por mim se fosse preciso. Não tenho queixas: uma infância melhor é impossível!

— Você não parece mesmo ter grandes traumas.

— E não tenho. Meus dois irmãos mais velhos estão casados e com filhos. O mais novo dirige o jornal com meu pai.

— Até parece um conto de fadas! Tudo muito bonito, tudo feliz — Jack comentou num tom brincalhão.

— É, parece mesmo. Gostaria de dar a Jeremy algo parecido — Katie disse depois de um longo suspiro.

— Por que não haveria de dar? — Jack replicou e em seguida voltou a atenção para o bebê, interessado no que fazia em seu carrinho.

 

Katie não conseguiu dormir naquela noite, embora Jeremy não estivesse dando trabalho algum. Já era a terceira vez na semana, desde o dia em que Jack cuidara do bebê, que ele a beijara na despedida, e não conseguia adormecer logo que se deitava. Estava, como de hábito, pensando nele e no que lhe havia dito à tarde.

Havia se apaixonado mais uma vez, apesar da decepção com Michael, e para piorar seu mal-estar, tinha de admitir que Jack a confundia e muitas vezes a deprimia com seus momentos de silêncio e incertezas.

— Sou assim, Katie. Há dias em que não desejo ver ninguém. Acho que não existe mulher capaz de me agüentar. Lianna vivia comigo apenas por meu dinheiro. Quando percebeu que poderia tirar tudo de mim com o divórcio, não hesitou — ele lhe contara angustiado, certo dia.

"Parece que Jack nunca mais vai se recuperar!", Katie pensava, enquanto tentava adormecer.

— Por que fui me apaixonar de novo? — perguntou em voz alta, revirando-se na cama.

Ela havia prometido não se envolver com mais ninguém e acabara se apaixonando pelo homem errado. Katie sentia que não podia voltar atrás, era tarde demais! Ninguém deixava de amar só porque queria, concluiu, ajeitando o travesseiro com raiva. Mas Jack não queria um filho, tal como Michael. Não, estava mentindo para si mesma. Ele apenas tinha o receio que qualquer um tinha: a responsabilidade de criar uma criança.

E quanto aos sentimentos dele? Tinha algumas suspeitas, mas não passavam de suspeitas. E em nenhum momento Jack havia se declarado. Eram amigos, apenas bons amigos e nada mais. Mas, se ele fosse além disso, se ele lhe dissesse que a amava, o que faria?

Katie não sabia. Resolveu de repente ficar longe por alguns dias, até decidir o que fazer da vida e principalmente o que fazer em relação a Jack Spangler. Iria para a casa dos pais!

Jack sentou-se diante do piano. A música não ó acalmava, não tinha inspiração alguma. Sua mente não se concentrava no trabalho. Estava com Katie, pensava nela e no que haviam conversado naquela tarde. Podia sentir que existia algo profundo entre eles.

"Ela também pensa assim", pensou, passando as mãos nervosamente pelos cabelos.

Jack tinha certeza de que Katie estava tão envolvida quanto ele, era evidente na mudança de seu comportamento. Já não o convidava mais para jantar e quando conversavam estava sempre hesitante.

Ele a amava, tinha certeza, mas também tinha certeza de que não era certo. Katie precisava de um homem diferente dele, precisava de um pai para Jeremy, de alguém que não fosse tão angustiado como ele. O que podia lhe oferecer? Problemas, apenas!, dizia a si mesmo cada vez mais nervoso.

Mas a amava, e não podia negar essa realidade. E ele que imaginava ter amado Lianna... Oh, sim, amara Lianna, mas era diferente... Com Katie, sentia-se um ser humano, não um talão de cheques; podia ser franco com ela, como era consigo próprio. Respeitava e era respeitado.

— Isso é amor, não é? — perguntou a Sam, que olhava sem entender.

— É amor, é amor... — o pássaro repetiu, balançando as longas asas brancas.

 

— Certas coisas nunca mudam, não é, Katie? — Frank, o irmão mais novo, abraçou-a. — Você ainda volta para casa quando tem algum problema!

Eles estavam sentados nos degraus da varanda, depois de um daqueles maravilhosos jantares que a mãe costumava fazer sempre que os filhos vinham visitá-los. Katie sorriu e beijou o irmão com afeto.

 

— Aonde mais eu levaria meus problemas? Quem mais teria paciência para me ouvir? Só você, Frank, me entende!

— Ainda bem que pensa assim! Eu a quero muito, garota! Enquanto puder ajudá-Ja, serei feliz, você sabe muito bem disso. É a irmã de que mais gosto!

— Eu sou a única, seu bobo! Não brinque, é sério! — Katie replicou, tentando não rir.

— Eu sei que é! O que aconteceu dessa vez? Michael a está importunando?

— Não, não é com Michael. Para mim, ele não existe mais. Nunca mais o vi depois do divórcio. Sequer nos falamos pelo telefone...

— Então, é com o trabalho o problema?

— Também não!

— Vamos, diga logo, Katie, você está me deixando curioso.

— Não sei por onde começar... — ela admitiu, sentindo-se um pouco tola.

— Pelo começo, sempre é mais fácil — Frank sugeriu, descontraído.

Katie abaixou a cabeça sem saber o que dizer. Onde tudo tinha começado? Refletiu por um momento e decidiu que devia mesmo voltar ao início, contar desde o primeiro contato com Jack.

— Você se lembra de quando Jeremy nasceu? Do vizinho que me levou ao hospital?

Frank concordou num meneio de cabeça, sorrindo.

— Aquele que pensaram que era seu marido? — ele perguntou, procurando não demonstrar como aquela recordação o divertia.

— Sim, Jack Spangler. Ele é um compositor de Nova York. Divorciou-se recentemente e mudou-se para Connecticut para fugir da ex-esposa. Com certeza foi um divórcio traumatizante, pelo que ele me contou. Ela só o deixou com a roupa do corpo, ele vive dizendo.

Frank deu uma gargalhada sonora.

— Ele deve estar satisfeito. Ao menos não lhe levaram as roupas.

Katie riu também.

— Não, ele não está! Você devia ver as camisas dele!

— Tão ruins assim?!

— Estão piores que algumas das suas.

— Isso é mau! Bem, eu entendo que ele está passando por momentos difíceis, mas o que isso tem a ver com você? — Frank perguntou diretamente, ao perceber que a irmã estava evitando entrar no assunto.

— Ele vem de um casamento fracassado e não teve uma infância muito melhor. Não confia nas mulheres e tem medo de ser pai. Acho que ele é assim por causa de tudo o que passou. Foi muito ferido...

— Como você, em relação ao casamento. — Frank fitou a irmã, procurando desvendar o mistério que envolvia aquela situação. Não demorou a tomar consciência do que estava acontecendo. — Mas mesmo assim você gosta dele, não é?

Ela concordou num gesto, a cabeça baixa, sem encará-lo.

— E ele? O que sente por você? — Frank quis saber.

— Acho que também gosta de mim!

Katie contou rapidamente a reação de Jack na noite em que fora jantar com David. Para ela, era uma das coisas que mais comprovavam o interesse dele.

— Pelo que me diz, também acho que seu vizinho gosta de você — concordou o irmão.

— Eu sei, mas ele nunca vai se declarar. Está muito inseguro.

— Então, faça você alguma coisa! — Frank aconselhou-a.

— Fazer o quê?!

— Você sabe, faça-o declarar-se, e assim acaba toda essa angústia. Irmãzinha, você mais parece uma menininha apaixonada à espera de ajuda do cupido. Não está esperando que eu vá falar com ele, não é?

— Claro que não, seu bobo!

— E você quer que ele se declare?

— Não sei, Frank. Honestamente, não sei.

— Não acha que é hora de descobrir?

— Não é tão simples assim. Eu gosto de Jack. Acho que o amo... Mas depois do que passei com Michael...

— Você está com medo...

— Sim, eu estou — ela confessou, corando.

— Você precisa ter certeza do que quer, querida. Lembre-se de que tem um filho. É necessário pensar nele também.

— E é nele que estou pensando! Jack diz que não quer filhos. Acho que já ouvi isso antes.

— Não vai ser fácil, mas não posso decidir por você, Katie. Você é uma garota inteligente e corajosa. Pense bem e assuma o que vai fazer. Tem de pensar no seu futuro e no de Jeremy também.

— Você não está tornando as coisas mais fáceis, Frank.

— Nada é fácil nesta vida. Tem de ter coragem e ir em frente!

Katie refletiu bastante na conversa que tivera com o irmão durante a longa viagem de volta a Connecticut. Tinha procurado Frank para obter algumas respostas, como se pudesse encontrá-las prontas, adequadas aos problemas que a afligiam. Só naquele momento é que percebia que ninguém poderia ajudá-la. Precisava resolver por si mesma que atitude tomaria em relação a Jack e, como o irmão lhe havia dito, assumir com coragem o que decidisse. Estava confusa em relação aos próprios sentimentos. Estava apaixonada por ele, disso não tinha mais dúvidas, mas tinha também receio de alimentar aquele amor. Precisava conhecer a opinião de Jack sobre aquilo, conversar francamente sobre os medos e as angústias de ambos. Somente a sinceridade poderia ajudá-la agora.

Se não estivesse tão nervosa com a situação, até acharia graça, ela e Jack Spangler, duas pessoas que viviam discutindo, apaixonados! Os dois, que, magoados no passado, juraram não se deixar envolver novamente, não cairiam mais nas malhas ilusórias do amor. Ela, uma mulher divorciada, com um filho recém-nascido; ele, um homem marcado pelo desprezo, amargurado. A carência que os atraía era também a prova mais contundente de que o amor superava todas as barreiras.

 

Na plataforma da estação de New Haven, Jack esperava impaciente a chegada do trem que o levaria de volta a Connecticut. Não desejara ir a Nova York, mas Harry havia deixado bem claro que sua presença era importante para tratar os detalhes finais do contrato que iam assinar.

Por que fora ouvi-lo?, perguntou a si mesmo irritado enquanto consultava mais uma vez o relógio.

Eram 19h42. Talvez Katie já estivesse em casa e então poderiam conversar. Há dois dias esperava ansioso por aquela oportunidade. Para onde ela teria ido, sem sequer despedir-se dele? Não podia ter ido se encontrar com a editora; não levaria tanto tempo. Podia ter ido para a casa da família, mas a alternativa lhe parecia pouco provável. Acabava por restar-lhe apenas uma opção; Katie saíra com David. Imaginá-la nos braços de outro homem fazia-o cair em desespero. Tinha de contar-lhe que a amava, caso contrário enlouqueceria. Não podia perdê-la para David e ia lutar por isso.

Jack consultou o relógio novamente, andando de um lado para outro na plataforma. Já pensava em se dirigir a qualquer das autoridades da estação quando o sistema de comunicação foi acionado: um acidente com outros dois trens na estação da cidade vizinha bloqueara os trilhos. Os passageiros teriam de esperar tempo indefinido até que o problema fosse completamente resolvido.

— Só faltava essa! — Jack praguejou, sem se importar com os olhares curiosos das pessoas que, como ele, estavam à espera do trem.

Ainda tinha de dirigir uns bons quilômetros da estação de Connecticut até sua casa. Havia deixado o carro no estacionamento da estação para poder voltar mais rápido, mas com aquela chuva fina que caía por todo o Estado já sabia que só ia poder dirigir em baixa velocidade.

- Não vou chegar nunca! – dizia, batendo o pé no piso da plataforma.

 

Katie colocou o cesto de Jeremy no chão enquanto procurava a chave do apartamento na bolsa. Estava irritada com a escuridão. Mais uma vez não havia luz no corredor; aquela já era a terceira vez no mês que a lâmpada queimava, e agora concordava com Jack, que achava que algum fio devia estar em curto.

— Ainda bem! — exclamou ao descobrir no tato a chave entre os documentos do carro.

Abriu a porta, acendeu a luz da sala e levou o cesto de Jeremy para o sofá, pensando em Jack e na conversa que havia decidido ter com ele logo que chegasse em casa. Precisava saber o que sentia por ela e como encarava a idéia de um relacionamento mais profundo.

— Mas agora não é hora! — falou em voz alta como para se convencer de que não devia procurá-lo àquela hora. Se não estivesse ao piano, de certo estava dormindo. Além disso, não se sentia bem. Desde que deixara a casa da família estava transpirando muito e sentia o corpo dolorido. A princípio julgara que fosse por causa da tensão e do esforço de dirigir durante tanto tempo sob péssimas condições do clima. Tirou o casaco e o colocou sobre a cadeira do quarto, sentindo-se sufocada. Estava quente demais ali! No carro já havia se queixado do calor, particularmente em seu rosto; sentia-o formigar. Lembrou-se de que seu pai, embora tivesse reassumido suas funções no jornal em que trabalhava, ainda estava se recuperando de uma forte gripe e deduziu que se resfriara também. Mas, como todos os Sullivan, não se abateria com facilidade.

Sorriu ao se lembrar da família, imaginando mais uma vez como seria bom dar a Jeremy algo parecido.

— Que bom se você tivesse a sorte de sua mãe! — disse ao bebê enquanto o retirava do cesto e o colocava sobre o trocador.

Removeu-lhe o agasalho, as luvas e verificou que precisava de uma nova fralda. De repente, sentiu que ia espirrar e desviou o rosto às pressas para não contaminar o filho com o vírus de seu resfriado.

Depois de aprontar Jeremy para dormir, colocou-o no berço. Todos os ossos do corpo de Katie doíam. Jogou-se sobre a cama vestida como estava e fechou os olhos. Não soube dizer por quanto tempo dormiu, um sono pesado, repleto de pesadelos. Acordou tremendo e transpirando, as ondas de frio e calor se alternando, a cabeça latejando incontrolavelmente. Levantou-se com dificuldade e procurou no armário do banheiro a caixa de comprimidos descongestionantes e a de vitamina C. Resolveu que logo cedo, no dia seguinte, iria procurar um médico. Não podia ficar doente. Tinha Jeremy para cuidar e um trabalho a concluir, que já estava atrasado devido à viagem que fizera à casa dos pais.

Sentou-se no sofá da sala e ligou a televisão. Não estava interessada nos programas que os diferentes canais exibiam naquele instante; queria apenas que o remédio fizesse efeito e pudesse ir para cama e dormir.

Pensou em telefonar para Jack só para lhe dizer que havia chegado. Quando estava discando o número dele, porém, voltou atrás. Melhor seria deixar para o dia seguinte. Afinal, não seria boa companhia para ninguém naquele estado.

 

Já passava da meia-noite quando Jack estacionou o carro em sua vaga. Depois de uma longa e cansativa viagem de trem ainda precisava dirigir por uma estrada coberta de neve e debaixo de chuva.

Correu para a entrada do prédio esfregando as mãos.

— Droga, que frio! — exclamou irritado.

Mais irritado ficou ao perceber que o corredor estava às escuras.

— Outra vez! Isso já é demais! ~- disse em voz alta decidido a falar com o proprietário logo pela manhã.

Sam começou a gritar quando abriu a porta do apartamento.

- Psiu! Sou eu, bobo — Jack avisou,

Sam era melhor do que um cão de guarda ou que um alarme contra ladrões. O prédio inteiro ficava sabendo quando chegava em casa.

Retirou o casaco e jogou-o sobre o sofá, não se importando ao vê-lo no chão. Estava muito mal-humorado por ter sido obrigado a ir até Nova York por nada. Harry praticamente exigira sua presença e no final os papéis que deviam assinar não chegaram. Por algum motivo, o mensageiro que os levaria ao escritório de Harry se atrasara e até cinco e meia da tarde não havia aparecido.

Furioso, Jack se despedira avisando a seu agente que não pretendia passar a noite em Nova York.

- Mande os documentos pelo correio. Tenho muito que fazer em Connecticut — avisara-o, sem esperar por resposta.

Havia decidido conversar com Katie, contar o que sentia. e nem mesmo aqueles contratos o fariam ficar longe de casa. E alguma coisa lhe dizia que ela voltaria para casa naquela noite; por isso estava tão ansioso.

Olhou para o relógio de parede. "Ela deve estar dormindo", pensou desanimado ao ver que era tão tarde.

— Vamos trabalhar um pouco, Sam? — comentou com o pássaro, sentando-se diante do piano.

— Trabalhar um pouco... Trabalhar um pouco — o pássaro repetiu.

— Psiu! Fale baixo — ordenou.

Depois de meia hora, porém, desistiu. Não havia inspiração. Decidido, foi para o quarto e aprontou-se para dormir, o belo sorriso de Katie embalando seus sonhos...

 

Katie abriu os olhos assustada. A luz brilhante da sala irritou-lhe as vistas. Sentou-se e viu que não estava na cama.

— O que aconteceu? — perguntou alarmada.

Depois de um instante, percebeu que havia adormecido diante da televisão. Sentia-se fraca e desorientada, as faces queimando até a dor.

Levantou-se com cuidado, desligou a tevê e foi até o quarto à procura de um termômetro.

— Quarenta graus! É mais do que eu pensava!

Não era um resfriado comum, Katie tinha certeza; precisava tomar algo mais forte para baixar a temperatura. Pelo menos até amanhecer e poder procurar o médico. Lembrou-se de Jeremy e correu para o quarto do bebê, alarmada. Mas logo percebeu que ele dormia tranquilamente, não tinha febre e respirava normalmente.

— Graças a Deus! — exclamou aliviada.

Voltou à cozinha para preparar leite quente para poder tomar com os comprimidos. Sabia que seu estômago não agüentaria mais qualquer tipo de remédio. Estava horas sem comer, mas não tinha fome alguma. Recordando-se dos conselhos da mãe para que tomasse bastante liquido quando ficasse resfriada, tentou tomar um copo de água, mas quase não conseguia engolir, a garganta lhe doía terrivelmente.

Desesperada, concluiu que estava mal de verdade e não tinha ninguém para ajudá-la a tomar conta de Jeremy. Mais uma vez não poderia contar com Julie, novamente viajando. Se precisasse de ajuda, teria de chamar Jack. Não pretendia incomodá-lo a não ser em último caso, pois, embora ele a atendesse de boa vontade, não queria ser abusiva.

Decidiu voltar para a cama e tentar se recompor enquanto o bebe ainda não precisasse dela, mas sentiu-se tonta e precisou amparar-se no sofá. De repente, os poucos passos que a separavam do quarto pareciam longos demais. Respirou fundo durante alguns segundos, recuperando o equilíbrio, e voltou a caminhar. Conseguiu, depois do que lhe pareceu uma eternidade, chegar até a cama. Deitou-se e cobriu-se com a manta. Não dormiu imediatamente: o rosto de Jack e seu olhar triste preencheram por alguns minutos sua mente tomada pela febre.

— Eu o amo... — dizia baixinho. — Não posso chamá-lo agora: é diferente de quando a gente era apenas amigos... Ele não quer filhos... gosta de viver sozinho... não quer sofrer de novo...

E sua mente mergulhou de vez num delírio alucinado.

 

Jack ouvia o choro de Jeremy sem entender por que Katie não conseguia acalmá-lo. O que acontecera daquela vez? Seria uma recaída das cólicas?, refletiu, de certa forma feliz por saber que ela finalmente estava em casa. O lamento de Jeremy tão perfeitamente audível fazia-no participar da vida dele e da mãe, e isso o reconfortava, embora se preocupasse ao ponto de desespero quando o ouvia chorar. E aquele era o choro "diferente" que seus ouvidos treinados distinguiam. Pensou na possibilidade de Katie tê-lo deixado sozinho de novo, mas recusou a idéia depois que acendeu o abajur e constatou a hora: 4hlO da madrugada!

— O que está acontecendo por lá? — balbuciou, preocupado, levantando-se.

Sabia que Katie o chamaria se algo estivesse correndo mal. Por outro lado, Jeremy não estaria tão desesperado se tudo estivesse bem. Jack tentava, pelo raciocínio simples, deduzir o que estaria perturbando o bebê, mas nada lhe parecia muito lógico. Hesitou por um momento e tomou uma resolução. Pegou o telefone e discou para o apartamento de Katie.

— Ocupado?! Com quem ela está conversando a essa hora? Não pode ser!

Jack tentou outra vez e novamente o sinal de ocupado. Decididamente, algo estava errado. Por que Katie não o procurara, então? Para isso também devia haver uma resposta e, ao que tudo indicava, não lhe era positiva.

Frustrado e desesperado ,com os gritos do bebê, Jack sentou no sofá e fechou os ouvidos com as mãos. Não podia se intrometer na vida deles, se era isso que Katíe queria.

 

O telefone estava na verdade fora do gancho. Katie, sentindo-se cada vez pior, tentou chamar Jack, mas não conseguiu terminar de discar; caiu semi-inconscíente de encontro ao travesseiro, percebendo ao longe o choro desesperado do filho.

Sentia como se estivesse morrendo. Queria ficar de pé e cuidar do bebê, mas não podia sequer erguer a cabeça. — Ah, meu Deus! O que vou fazer? — conseguiu esboçar a idéia, desesperada, mas aos poucos até a angústia por não poder cuidar de Jeremy foi desaparecendo numa névoa branca e pesada que a fez fechar os olhos pouco a pouco, até que nada mais importou. Nem o bebê nem Jack, nada mais. Só queria dormir e esquecer aquela dor que invadia sua cabeça. Esquecer e dormir. Nada mais.

 

Sem suportar mais, Jack decidiu descobrir o que se passava no apartamento ao lado. Já fazia mais de meia hora que Jeremy chorava sem parar. Pegou o roupão e foi bater à porta de Katie.

— Vamos, Katie. Pode abrir. Sou eu, Jack! Não houve qualquer tipo de resposta.

— Droga! Abra essa porta, Katie. Não vou embora até que abra — esbravejou.

Só os gritos de Jeremy se fizeram ouvir de dentro do apartamento. Jack alarmou-se por completo. Já estava decidido a arrombar a porta, mas nem precisou usar a força: ao tocar na maçaneta percebeu que a porta não estava trancada. Seu coração disparou.

— Meu Deus! O que aconteceu? Katie — ele chamou, sem conseguir conter a imaginação de trágicos fatos.

Nenhuma resposta. Só os gritos de Jeremy.

— Katie, por favor, responda! Ainda nenhuma resposta.

Foi para a cozinha e espantou-se com a bagunça. Nada parecido com a organização de sempre: as portas do armário estavam abertas e um vidro de aspirinas tinha o conteúdo espalhado pelo chão.

Jack chegara a imaginar que encontraria um ladrão no apartamento, que estivesse impedindo Katie de responder ou até mesmo que a houvesse sequestrado. Mas podia ser algo pior. Correu para o quarto dela sem pensar em se proteger no caso de eventual ataque. O desespero ao deduzir que algo ruim havia acontecido com a mulher que amava não o deixava raciocinar.

Empurrou a porta entreaberta. O aposento estava na penumbra e Jeremy continuava gritando no berço. Ele acendeu a luz, em pânico.

Katie estava deitada na cama, o rosto virado para o travesseiro. Não se movia.

— Katie! Oh, meu Deus!

Em total desespero, Jack ajoelhou-se ao lado da cama e tomou-lhe o pulso, já que a respiração lhe parecera imperceptível. Com um suspiro de alivio, beijou-lhe a mão quando soube que havia pulsação, mas notou então a alta temperatura. Pousou a mão em sua testa.

— Como está quente! Ela está ardendo em febre. Preciso fazer alguma coisa...

Katie mexeu-se levemente, talvez por causa do estímulo da presença dele, mas foi apenas um gesto tênue. Parecia estar delirando.

Jack olhou a sua volta. Jeremy continuava a chorar, as faces coradas pelo esforço. Jack pensou um segundo e decidiu acudir primeiro o bebê. Afinal, correu para o berço, tomou-o no colo e o levou para a cozinha. Ligou o fogo, pegou uma mamadeira da geladeira e colocou-a numa vasilha com água, preparada por Katie.

Enquanto deixava o leite aquecendo, voltou com Jeremy para o quarto e colocou-o sobre o trocador. Sem perder um segundo, tirou a fralda molhada da criança, jogando-a no cesto, e lançou mão dos lenços higiênicos. Afinai, agora sabia onde estavam, pensou com ironia. Trocou a fralda de Jeremy em poucos minutos e voltou com ele para a cozinha.

— Bem, garotão, o seu jantar já está pronto — disse, levando ambos mais uma vez para o quarto.

Acomodou o bebê no berço assim que arrotou e cobriu-o. Despediu-se com palavras ternas. Jeremy parecia bem tranquilo e logo dormiria. Jack voltou-se para Katie, então.

— Essa febre precisa baixar! -— disse desesperado, encostando as costas da mão na fronte flamejante.

Não podia medicá-la sem saber o que já tinha tomado; dirigiu-se então ao banheiro e encheu uma bacia com água fria, tornando ao quarto também com uma toalha.

Depois de algum tempo, teve certeza de que as compressas não estavam ajudando muito e tomou uma atitude radical: telefonou para o pronto-socorro da cidade e pediu um médico. A telefonista que o atendeu perguntou-lhe a causa do chamado e avisou-o de que estavam com uma emergência, um triste acidente de trânsito que mantinha os médicos ocupados, mas, logo que pudessem, um deles iria ver a doente.

Enquanto esperava, Jack ia trocando as compressas de Katie, agora já com uma bolsa de gelo, e rezando para que o médico chegasse logo.

Cerca de uma hora mais tarde, o médico chegou.

— O senhor fez muito bem; conseguiu impedir que a febre tomasse o organismo dela — ele cumprimentou Jack.

— Era a única coisa que eu podia fazer...

— Que remédios ela tomou?

— Eu não sei dizer. Por isso mesmo nada lhe dei para baixar a febre, mas na cozinha há algumas caixas abertas. Acho que ela tomou algo antes de eu chegar.

— Por favor, vá ver quais são os remédios. E perigoso medicá-la sem saber o que já ingeriu.

Jack foi até a cozinha, voltando em seguida com os remédios na mão.

— Ela está com início de pneumonia... — o médico explicou-lhe logo que o viu no quarto.

— Pneumonia?!

— É o tempo... não sei mais quantos casos atendemos esta semana. — O médico examinou as caixas que Jack lhe oferecia. — Mas é jovem e vai se restabelecer. Por hora, vou aplicar uma injeção. Amanha de manhã leve-a ao seu médico particular. Precisará de muito repouso e de vitaminas para ficar boa depressa,

 

— O médico já foi embora? — Katie perguntou num fio de voz quando Jack retornou a seu lado.

— Sim. E você, como se sente?

— Ainda tonta, mas a dor de cabeça sumiu. Parece um milagre!

— Milagre é você estar falando outra vez. Quando a encontrei, parecia morta!

— E Jeremy, como ele está? - Katie tentou se erguer, mas Jack a impediu.

— Fique quieta aí. Eu cuidei dele. Está dormindo como um anjo.

— O que eu tenho? — Katie perguntou desanimada ao perceber como estava fraca.

— Pneumonia.

— Oh, meu Deus!

— Não fique assim... — Jack abraçou-a com ternura ao vê-la tão nervosa.

— Por que eu tinha de ficar doente? Quem vai cuidar do bebê? — Katie exasperou-se.

— O mesmo cara que cuidou dele e de você até agora — Jack respondeu sorrindo, beijando-a na testa.

— Oh, Jack! Você é tão bom!

— Chega de falar. Agora beba um pouco de água e engula esses comprimidos. Vai dormir até amanhã e, então, vamos conversar de verdade.

— O bebê pode pegar pneumonia também... — Katie balbuciou como que para si mesma. A simples idéia de transmitir a doença ao filho a desesperava.

— Não vai pegar, não. O médico disse que ele está ótimo. Vamos, beba mais um pouquinho.

— Ele precisa mamar...

— Já tomou uma mamadeira. Dessa vez fiz direitinho. Não sujei nada.

— Você é maravilhoso! Obrigada!

— Troquei as fraldas e tudo o mais. Seu filho está em excelentes mãos, acredite. Agora descanse que eu também quero dormir um pouco. Está bem?

Katie recordou-se do que havia decidido ao chegar ao apartamento aquela noite.

— Preciso falar com você, Jack.

— Eu também quero falar com você, garota. Mas agora tem de ficar quietinha. Durma, vamos — Jack disse, acariciando-lhe os cabelos.

O dia amanheceu sob uma neblina densa. Não nevava mais, mas ainda estava frio lá fora. Jack não sabia dizer quando afinal adormecera, depois de passar um longo tempo à cabeceira de Katie tentando acalmá-la.

Acordou deitado no sofá da sala, sem a vaga idéia de como ali chegara. Sentia o corpo dolorido pela posição em que havia dormido, mas ao mesmo tempo estava disposto. Tinha a sensação de já ter passado muitas horas desde que fechara os olhos. Foi com surpresa então que constatou as horas: nove da manhã.

Levantou-se e foi até o quarto para ver como estava Katie. Ela ainda dormia. Por milagre, Jeremy também. Sorriu satisfeito. Na cozinha decidiu preparar algo leve para que Katie pudesse comer. O médico havia aconselhado uma dieta sem gorduras, mas rica em proteínas para que não ficasse enfraquecida. Procurou nos armários e encontrou um pacote de ervilhas secas e decidiu que faria uma sopa para o almoço. Por ora, serviria chá com torradas e algumas frutas, recordando-se de que o médico desaconselhara leite.

Ferveu um pouco de água numa vasilha, arranjou numa bandeja bolachas e torradas, as frutas e a xícara de chá, satisfeito por não ter cometido nenhum erro. No último momento juntou à refeição um copo de suco de laranja.

— Senhor desastrado — disse a si mesmo —, o senhor está de parabéns!

Jack depositou a bandeja na mesinha-de-cabeceira e tocou Katie suavemente. Ela estava pálida e com aparência cansada, mas havia um brilho de vida em seus lindos olhos quando os abriu.

— Achei que devia comer alguma coisa — disse-lhe, indicando a bandeja e ajudando-a a se recostar no espaldar da cama.

- Não precisava se incomodar, não tenho fome.

— É isso que me preocupa. Você deve comer um pouco. Sente-se.vamos — Jack disse, ajeitando-lhe os travesseiros atrás da cabeça.

— Mas, Jack, eu...

— Nada de "mas", Katie. Você tem de comer alguma coisa.

— Só o suco, então. Tenho apenas sede.

Jack entregou-lhe o copo e esperou que bebesse.

— Agora, tente comer umas bolachas. Você não quer que sua mãe. a encontre pálida desse jeito, quer?

— Minha mãe? Você falou com ela? — Katie perguntou surpresa.

— Telefonei há poucos minutos. Contei .que estava doente e ela resolveu vir para cá. Ficou muito nervosa...

— Faço idéia, coitadinha. Viajar até aqui vai ser difícil para ela.

— Seu irmão vem dirigindo, não se preocupe.

— Frank?

— É, falei primeiro com ele. Tive medo de chamar sua mãe e ir dizendo que você estava com pneumonia. Ele parece ser um cara legal! — Jack declarou, recordando-se do jeito amável com que o irmão de Katie lhe falara.

— Eíes vão querer me levar para casa — Katie disse baixinho, já se sentindo triste por deixar Jack.

— Eu sei, mas não vou deixar...

Katie fitou-o, entre surpresa e encabulada.

— O que houve com você? — ela perguntou, tentando mudar de assunto para esconder seu desconcerto. — Um caminhão o atropelou? — completou, rindo.

— Obrigado pelo elogio!

— Oh, desculpe, Jack. Não fui nada delicada...

— Não precisa se desculpar, sei muito bem que estou horrível. Fui e voltei de Nova York debaixo de neve e chuva, enfrentei uma reunião de três horas e duas horas de atraso do trem, acordei de madrugada com os gritos de Jeremy e depois a encontrei delirando. Devo estar parecendo um fantasma.

Jack passou a mão pelos cabelos em desalinho e depois pelo rosto, que precisava ser barbeado.

— Sou muito grata por tudo o que fez, Jack. O bebê lhe deu muito trabalho?

— Não, dormiu a noite toda. Parece que sabia que estávamos tendo problemas.

— Graças a Deus!

Houve um momento de silêncio. De repente, os dois começaram ao mesmo tempo:

— Preciso falar com você, Katie.

— Preciso falar com você, Jack.

— O que eu tenho a dizer é muito importante — Jack completou.

— Eu também. — Ela hesitou, — Fale você primeiro.

Jack concordou.

— Venho pensando muito nos últimos dias... sobre nós... e como as coisas vêm acontecendo e...

Katie esboçou um sorriso. Não podia acreditar que ambos queriam tratar do mesmo assunto.

— E então? — ela incentivou, ao vê-lo hesitar.

— Eu a amo — Jack confessou de um fôlego só.

O coração de Katie disparou. Seus olhares se cruzaram e uma comunicação muda uniu-os num abraço, mas o coração de Katie estava angustiado: entre ela e Jack era preciso haver mais do que uma paixão.

Ela se afastou de Jack sem coragem de encará-lo.

— Você não me ama, não é, Katie? — A voz de Jack era amargurada.

— Oh, não, querido, eu o amo, mas...

— O que há, Katie? O que a preocupa?

— Não vai dar certo, Jack...

— Por que acha que não vai dar certo? Se a gente se ama, tudo é possível!

- Somos tão diferentes...

- - Essa não é uma boa razão, querida, e além disso não acho que somos tão diferentes assim. Temos muita coisa em comum...

E Jeremy? — Katie indagou, sofrendo o medo de uma resposta dura.

Jack parecia surpreso.

— Que tem Jeremy?

— Você deixou bem claro que não quer crianças... Jack não conteve o riso.

— Eu não disse isso, Katie. Disse que tinha medo da responsabilidade de ser pai. Adoro seu filho!

— Já estive casada com um homem que não queria filhos e você sabe muito bem o que aconteceu.

— Não me compare com seu ex-marido. Você mesma disse que ele tinha... como é mesmo a palavra? Ah! Alergia a crianças. Nem de longe é esse o meu caso.

— Estou com medo, Jack...

— Eu a amo e quero assumir a responsabilidade de estar a seu lado e criar seu filho. Era isso que esperava ouvir?

— E se mudar de idéia mais tarde?

— Não vou mudar de idéia. Líanna me fez descrer da sinceridade do amor, mas você me faz acreditar outra vez na vida. Por que não tentar, querida? Se a gente se ama, tudo vai ser mais fácil.

— Você pode se arrepender de se casar com uma mulher que já tem um filho...

— Tudo é possível, Katie, Mas até agora adorei os momentos que passei com você e com o bebê. Não existe garantia para nada nessa vida, por isso temos de apostar no futuro. Não acha?

— É um jeito engraçado de pensar, mas até que faz sentido! — Katie disse, sorrindo.

— Precisamos ser honestos; isso é fundamental para se começar um relacionamento.

— Jack...

— Ouça, Katie, eu não acabei ainda. Posso continuar? Tenho mais uma coisa para dizer.

Ela concordou, balançando a cabeça.

— Mesmo que Jeremy não existisse, mesmo que não tivéssemos casamentos fracassados no passado, nada nos garantiria uma felicidade eterna.

— Mas teríamos mais chance — Katie replicou.

— Talvez tenha razão, Katie. Mas não podemos nos esconder atrás de um desgosto, negando qualquer possibilidade de alegria. Precisamos apostar na felicidade.

— Já apostei uma vez e perdi.

— Não acredito que seja realmente uma perdedora, Katie. Você tem Jeremy e é feliz, eu sei. O casamento não é tudo.

— Não me considero mesmo uma perdedora, mas acho que o fracasso em relação a um casamento já é o suficiente.

— Eu também achava assim, antes de conhecê-la. Sei muito bem que está com medo de aceitar minha proposta por causa do bebê. Mas eu o quero também, tanto quanto a você.

— Verdade? — Katie fitou-o bem nos olhos, buscando a sinceridade que palavras podiam esconder.

— Verdade! Eu juro! E ainda faço uma promessa. Sei que desejava uma grande família; me dê algum tempo e teremos outros filhos. Só preciso acertar minha vida profissional. É uma promessa!

Katie não acreditou que pudesse estar acordada. Imaginou-se ainda delirando. Fitava Jack incrédula.

— Prometo! Acredite em mim! — ele repetiu. Jack a tomou nos braços e beijou-a. Por um momento

Katie deixou-se levar pelo prazer daqueles lábios úmidos e quentes que tocavam os seus com muita ternura e carinho, até que uma alegria imensa a invadiu. Afastou-se e acariciou o rosto de Jack.

— Não é preciso prometer nada, meu amor. A realização do meu sonho começa aqui e agora, com meu filho e com você, um companheiro sincero, autêntico, que me respeita e merece o meu respeito. Eu o amo, Jack.

Quando os lábios ávidos iam novamente se tocar, o choro de Jeremy irrompeu, com força.

— Bem, esse é o futuro que nos espera. É isso mesmo que quer? —- Katie questionou, um sorriso malicioso nos lábios.

— Oh não se preocupe com isso... — ele brincou, levantando-se para ir assistir a criança. — O campeonato de basquete está em pleno curso. E Jeremy é um fã incondicional de basquete, isso eu posso garantir!

 

                                                                                Toni Collins  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"