Biblio "SEBO"
A CEIA DE ELSINORE
À esquina de uma rua de Elsinore, junto ao porto, ergue-se uma velha casa, cinzenta, digna, construída no início do século XVIII, e que olha reticente os novos tempos que em seu redor se levantam. Os muitos anos como que lhe criaram uma unidade, e, quando a porta fronteira se abre em dias de vento nor-nordeste, a porta do corredor no primeiro andar abre-se também por simpatia. Demais, quando se pisa um certo degrau da escada, logo num eco lhe responde uma tábua no sobrado da saleta como em vaga melodia.
Estivera a casa por longos anos na posse da família De Coninck, mas depois da bancarrota de 1813, e da tragédia que por essa altura se abateu sobre a família foi a casa abandonada e todos se mudaram para Copenague. Uma velha apenas, de touca branca, ficara a velar pela casa antiga na companhia de um moço e, de viver nos velhos quartos, ela só pensava, só falava dos velhos tempos. As duas filhas da família não se tinham casado, e agora já passavam da idade. O filho morrera. Mas nos Verões de tempos idos - assim contava a senhora Baek - pelas tardes soalheiras de domingo, o Papá e a Mamã De Coninck, com os filhos, saíam no pequeno landau da família para a casa de campo da senhora velha, a avó, onde jantavam, como era de uso, às três horas, na sombra do grande ulmeiro, esse que em Junho espalhava no relvado copiosas sementinhas castanhas, redondas e achatadas. Ali faziam as honras ao pato com ervilhas e aos morangos com natas, e o rapazinho corria, em calções brancos de nanquim, a dar de comer aos cães de Bolonha da avó.
As duas irmãs costumavam recolher em gaiolas os muitos pássaros que lhes ofereciam os seus apaixonados mareantes. Quando alguém lhe perguntava se as duas jovens não tocavam harpa, a velha senhora Baek, num movimento de ombros, dava a entender que era impossível nomear cada uma de tantas perfeições das meninas. Quanto aos seus adoradores, inútil seria abordar esse tema. Era inesgotável.
A velha senhora Baek, que fora por pouco tempo casada com um marinheiro, e reentrara ao serviço da família depois que ele se afogara, lastimava que as bonitas irmãs não estivessem casadas. Nunca se conformara. Aos olhos do mundo vivia teimando que as meninas não haviam conhecido um só homem digno delas, salvo o irmão. Mas ela própria adivinhava que esta sua teoria era inconsistente. Fora esse o caso, e as duas irmãs haviam de procurar esquecer, com um homem, esse ideal. Até ela, no interesse das meninas, faria o mesmo, ainda que muito lhe custasse. E no seu íntimo ela conhecia a verdade. Era dezassete anos mais velha que a mais velha das irmãs, Fernande, a quem chamavam Fanny, e dezoito anos mais velha que Elisa, que nasceu no dia da tomada da Bastilha, e estivera na família durante quase toda a vida. Mesmo incapaz de o expressar por palavras, sentia vivamente, no corpo e na alma, que um triste fado envolvia a família, unindo os três irmãos, e impedindo-os de manter uma relação verdadeira com os outros seres humanos.
Enquanto foram raparigas nenhum acontecimento social seria um sucesso em Elsinore sem a presença das lindas irmãs De Coninck. Elas eram a alma das festas na cidade. Quando entravam nos salões de baile, os tectos das ponderadas casas dos velhos comerciantes pareciam elevar-se um pouco, e das paredes brotar, luminosas, as colunas jónias que as videiras enlaçavam. Quando uma delas abria o baile, tão leve como um passarinho, tão forte como o pensamento, assim consagrava aquela reunião aos deuses da verdadeira alegria de viver, em cuja presença não ousam mostrar-se os cuidados e a inveja. Trinavam duetos como dois rouxinóis e imitavam, sem esforço e sem maldade, as vozes de todo o beau monde de Elsinore, a ponto de fazerem tremer de riso as panças dos inveterados jogadores, amigos de seu pai, a meio de uma partida de cartas. Imaginavam as duas, num ápice, novas charadas e jogos de prendas, e quando saíam para a lição de música ou para o Passeio voltavam transbordantes de histórias do que se passara e do que lhes ditava a fantasia, de improviso, cada qual mais extravagante do que a anterior.
Mas depois, na intimidade dos seus quartos, elas num vaivém obstinado desfaziam-se em prantos, ou sentadas à janela, de olhos fitos no cais, apertavam as mãos no regaço, ou insones pela noite choravam amargamente sem motivo. Falavam então da vida com a triste amargura de um Tímon de Atenas, provocando na senhora Baek uma inquietude, como se ela penetrasse uma atmosfera de ferrugem que tudo corroía. A mãe, que não tinha no sangue a maldição, havia de ficar seriamente alarmada, se fosse testemunha de momentos assim, e suspeitaria de um amor infeliz. O pai tê-las-ia compreendido e sofrido por elas, mas esse estava ocupado com os seus negócios e não entrava nos quartos das filhas. Só esta criada, então na meia-idade, e cujo temperamento era tão oposto ao delas, as compreendia à sua maneira e tudo calava no seu peito, tal como as irmãs, com um misto de orgulho e desespero. Às vezes tentava confortá-las. Quando exclamavam: «Hanne, como é terrível que haja tanta mentira, tanta falsidade neste mundo!» - ela dizia: «E então? Era ainda pior se fosse mesmo verdade tudo o que para aí se diz!»
De novo as raparigas se levantavam, enxugavam as lágrimas, experimentavam ao espelho os chapéus novos, organizavam representações teatrais ou excursões de trenó, escandalizavam e alegravam o coração dos amigos, e tudo voltava ao princípio. Pareciam tão incapazes de fugir a um extremo como ao outro. Em resumo, eram melancólicas natas, dessas criaturas que fazem felizes os outros sendo elas fatalmente desgraçadas, filhas do riso, do encanto e das lágrimas pungentes, da mais louca alegria e da solidão mais profunda.
Se alguma vez estiveram apaixonadas, a velha senhora Baek não o sabia dizer. Desesperavam-na, até, com o duro cepticismo com que negavam que alguém pudesse apaixonar-se por elas, quando a senhora Baek, realmente, bem via os cisnes de Elsinore empalidecer, penar, seguir o rumo do exílio ou ficar solteiros por amor delas. A senhora Baek sentia também que, se elas um dia pudessem convencer-se, de facto, de que eram amadas por um homem, essa seria a salvação das duas condenadas. Mas a relação que mantinham com o mundo era estranha e distorcida, como se fora apenas o seu reflexo num espelho o que mostravam, enquanto na sombra e na distância a mulher real se apagava, espectadora. Seguiria essa mulher com viva atenção os movimentos do amante cortejando a sua imagem, rindo em segredo com a impossibilidade de um dia ser consumado esse amor, chegado que fosse o momento, e sentindo o coração tornar-se de pedra a cada dia. Desejava essa mulher que o homem quebrasse o vidro e a linda criatura que nele se achava, e se voltasse enfim para ela? Ah, isso a senhora Baek sabia estar fora de questão. Talvez as duas lindas irmãs tirassem um estranho prazer da adoração oferecida à sua imagem no espelho. E finalmente já não podiam viver sem ela.
Porque pensavam desta forma tão peculiar, estavam destinadas a ficar solteiras. Agora duas velhas, com cinquenta e dois e cinquenta e três anos, pareciam aceitar melhor a vida, como coisa suportável que em breve terá fim. Que fossem desaparecer da face da Terra sem deixar notícia de si não as perturbava, pois sempre souberam ser esse o seu destino. Dava-lhes uma certa satisfação sentir que já desapareciam em vida, com graciosidade. Elas não haviam de apodrecer, como tantas amigas suas, pois já tinham sido, quais elegantes múmias espirituais, envoltas em mirra e ervas aromáticas. Em dias de maior doçura, e particularmente no convívio com a nova geração, os filhos de amigas suas, exalavam até um odor picante de santidade, que os jovens lembrariam toda a vida.
Essa fatal melancolia revelara-se em Morten, o rapaz, de maneira diferente, e nele fascinou a senhora Baek até à obsessão. Com ele nunca perdia a paciência, como lhe acontecia por vezes com as meninas, pelo facto de ele ser macho e ela fêmea, e por razão da verdadeira aura que o envolvia e estava ausente nas irmãs. Ele, sim, fora em Elsinore, como antes dele outro jovem dandy bem-nascido, o mais observado de todos os observadores, o espelho da moda e o modelo de todos. Muitas foram as raparigas do burgo que não se casaram por sua causa, ou que só tarde vieram a tomar por marido alguém que se assemelhava, talvez não propriamente en face, não propriamente no perfil, a essa cabeça de jovem deus que tinha, então, desaparecido no horizonte. E houve até uma que foi, aos olhos do mundo, a noiva de Morten, ela também já casada agora, e com filhos - aber frage nur nicht wie! Perdera essa beleza radiosa de loura que no seu tempo lhe valera em Elsinore o nome de «cordeirinho de ouro», e onde impara dantes uma criaturinha linda, trilhava agora as ruas uma senhora discreta e pálida. Mas era ainda ela a rapariga que, num dia soalheiro de Março, Morten, ao saltar da lancha no cais de Elsinore, onde a cidade em peso o aclamava entusiasta, roubara ao chão num abraço, e para quem o mundo à sua volta girara em turbilhão, num frémito de leques e longas fitas de todas as cores do arco-íris.
Morten de Coninck fora mais reticente de maneiras que as irmãs. Não via necessidade alguma de esforçar-se. Quando entrava numa sala, discretamente, a todos possuía e dominava. Tinha essa beleza de corpo e elegância de mãos e pés das mulheres da família, mas não a sua delicadeza de traços. O nariz e a boca pareciam talhados por mais rude artista. A sua fronte, porém, era a mais admirável, com uma serenidade, com uma nobreza extraordinárias. Quem falasse com ele erguia os olhos para essa fronte larga e pura, como se nela irradiasse a tiara diamantina de um moço imperador, ou a auréola de um santo. Morten de Coninck parecia incapaz de conhecer a culpa ou o medo. E provavelmente desconhecia-os de facto. Em Elsinore ele foi a figura do herói durante três anos.
Estava-se na época das guerras napoleónicas, quando os alicerces do mundo tremeram. Nessa luta de titãs a Dinamarca pretendera seguir o próprio caminho em liberdade, e pagara o preço: Copenague foi bombardeada e incendiada. Numa noite de Setembro, quando o céu da cidade flamejava rubro aos olhos de toda a Zelândia, o grande carrilhão da Frue Kirke, que o incêndio fizera soar, tocou sozinho o hino de Lutero, Einfester Burg ist unser Gott, antes que a torre alta caísse em ruínas. Para salvar a capital, o Governo teve de render a armada. As orgulhosas fragatas inglesas conduziram pelo canal do Sund os navios de guerra da Dinamarca - a luz dos seus olhos, uma enfiada de pérolas, um bando de cisnes em cativeiro. Os portos vazios clamavam aos céus, e a vergonha e o ódio enchiam os corações.
Foi durante as lutas e os importantes eventos que marcaram os anos seguintes de 1807 e 1808, que uma flotilha de corsários se reuniu, centelhas vivas de uma ruína fumegante. Levados pelo patriotismo, pela sede de vingança e pela mira de lucros, os corsários vieram de toda a costa e das pequenas ilhas da Dinamarca; eram nobres, barqueiros e pescadores, eram idealistas e aventureiros - bravos navegantes todos eles. Um homem que recebesse a carta de corso fazia sua a causa de um país exangue; tinha o direito de atacar o inimigo onde quer que o avistasse e podia voltar rico da batalha. A flotilha de navios corsários mantinha com o Estado uma curiosa relação: era uma sorte de mancebia marítima confessa, um casamento morganático, contando de uma e outra parte com uma dedicação apaixonada. Se não exibia as dragonas e o metal brilhante e santificado da união legítima, tinha pelo menos nos lábios o beijo ardente e rubro do Estado dinamarquês, e essa liberdade da concubina para enfeitiçar o seu real senhor com estes loucos desvarios que uma soberana não sonha sequer praticar. A própria Marinha de Guerra - ou o que dela restava, navios que se encontravam longe de Copenague nesses dias fatais de Setembro - olhava com simpatia a flotilha dos corsários, e com ela vivia em santa paz; a mesma provavelmente que reinava entre Raquel e a sua escrava Bilha, que era capaz do que a senhora não podia. Era um tempo de homens valorosos. Mais uma vez os canhões sibilaram nos canais dinamarqueses, aqui e além, onde menos se esperava, pois os navios corsários raramente operavam em conjunto; cada um deles era livre e sozinho. Feitos incríveis heróicos sucediam-se, valiosas presas eram roubadas às fragatas que as escoltavam e trazidas para o porto por barquinhos triunfantes e temerários, de mastreação pendendo desfeita, por entre os gritos de júbilo. Tudo isto era matéria de canções. Raramente outra classe de heróis pôde calar mais fundo no coração e na alma dos homens e mulheres do povo, e dos rapazes todos, de uma nação inteira.
Depressa se verificou que os navios maiores não se prestavam a esta sorte de comércio. O brigue ou o veleiro de cabotagem, com uma tripulação de doze a vinte homens e com seis a dez canhões giratórios, manobrável e rápido numa emergência, era o que se queria na ocasião. A perícia náutica do capitão e o seu conhecimento das rotas era de sobremaneira importante, e a bravura de cada homem da tripulação, a sua astúcia no manejo dos canhões e na abordagem com armas brancas, eram decisivas para a vitória. Assim se alcançavam as honras da guerra; e não só as honras mas o ouro; e não só o ouro mas a vingança sobre o violador, que é doce ao coração. E quando entravam no porto, com toda a mastreação por vezes coberta de gelo até que o navio parecia desenhado a giz sobre o escuro das ondas, para estes lobos do mar, velhos e moços, a hora do triunfo tinha já soado, mas ainda os esperava uma grande comoção, pois o rebuliço era tremendo quando entravam a barra das pequenas cidades portuárias. Depois vinha o juízo do navio apresado e o leilão dos salvados, que eram por vezes de grande valor. O Governo retirava uma parte, e cada tripulante recebia a sua, do capitão ao artilheiro, do imediato aos rapazes, que tinham direito a um terço da parte de um homem. Um rapaz que embarcasse nos corsários sem ter mais do que a camisa, as calças e a cinta que trazia no corpo, voltava com elas em farrapos e tintas de sangue e uma história de perigos e de alto mar para contar aos amigos, e podia fazer tilintar no bolso quinhentos riksdaler uns quinze dias depois, quando findasse o leilão. Os judeus de Copenague e de Hamburgo, cada um se coroando com três cartolas sobrepostas, surgiam imediatamente no leilão, nele desempenhando um importante papel ou, mais cedo ainda, espoliando os títulos de resgate dos bolsos de marinheiros impacientes.
Logo brilharam, como novos cometas, os nomes dos heróis populares e dos seus navios, erguendo-se a sua fama, dia após dia, à estatura de um mito. Eram esses homens Jens Lind, do Cort Adeler, a quem chamavam «Punhos de Renda», por todo se esmerar no vestir, e que desempenhou por vários anos o papel do grande nababo para depois, esgotado que foi o dinheiro, se acabar em lacaio de meninos. Era o capitão Raaber, do Vingador, uma figura de poeta; eram os irmãos Wulffsen, do Gaivota e do Madame Clark, homens ricos de Copenague; e Christen Kock, do Eolo, cuja guarnição, do primeiro ao último homem, pereceu ou ficou ferida no recontro com uma fragata inglesa ao largo de Laess; e era o jovem Morten de Coninck, do Fortuna II.
Quando Morten se dirigiu ao pai pedindo que lhe equipasse um navio corsário, o coração do velho senhor De Coninck temeu-se um pouco da ideia. Havia muitos, ricos e respeitados armadores em Copenague, alguns deles com um volume de negócios superior ao seu, que nesses dias tinham lançado ao mar os seus corsários, e o senhor De Coninck, que a ninguém consentia maior patriotismo, já sofrera graves perdas às mãos dos ingleses. Era-lhe penoso, porém, aceder a tal pedido. Repugnava-o atacar navios mercantes, mesmo que levassem contrabando. Parecia-lhe o mesmo que assaltar uma senhora ou matar um albatroz. Morten viu-se obrigado a pedir apoio ao primo de seu pai, Fernand de Coninck, um velho e rico solteirão de Elsinore, filho de uma francesa e partidário entusiasta do imperador Napoleão. As irmãs de Morten foram magistrais em ajudá-lo a conquistar o tio Fernand, e em Novembro de 1807 o jovem lançou ao mar o seu navio. Fernand de Coninck jamais lamentou a sua generosidade. Tudo aquilo o remoçava, sentia-se com menos vinte anos, e além disso foi juntando uma colecção de souvenirs dos navios inimigos que lhe dava grande prazer.
O Fortuna II de Elsinore, equipado com doze homens e quatro canhões giratórios, recebeu carta de corso no dia 2 de Novembro - não estava essa data gravada, como as datas que se seguiram, no coração da senhora Baek, tal o nome de Calais no coração de Maria Tudor, mesmo ao fim de trinta anos? Já no dia 4 o Fortuna II surpreendeu um brigue inglês ao largo de Hveen. Um navio de guerra inimigo, que a toda a pressa se dirigiu para o local, atirou sobre o corsário, mas a tripulação conseguiu cortar as amarras da presa e trazê-la em segurança, sob a protecção dos canhões do Kronborg.
O dia 20 de Novembro foi de grande glória para o corsário. Separou de um comboio o brigue inglês Cravina e a corveta Júpiter, que levava um carregamento de lona, faiança, vinhos, licores, café, açúcar e sedas. A carga foi posta em terra em Elsinore, mas as duas presas foram levadas para Copenague, e aí julgadas e condenadas. Duas centenas de judeus estiveram em Elsinore para o leilão da carga da Júpiter no dia 13 de Dezembro. Morten arrematou uma peça de brocado branco que se dizia ter sido fabricado na China e enviado de Inglaterra para dele se talhar o vestido para o casamento da irmã do Czar. Por esta altura já Morten estava noivo, e toda a cidade de Elsinore ria ou sorria vendo-o que se afastava com o seu pacote debaixo do braço.
Muitas foram as perseguições movidas ao corsário pelos navios de guerra inimigos. De uma vez, no dia 27 de Maio, ao lutar com uma fragata inglesa, o corsário encalhou à vista de Aarhus, mas escapou atirando borda fora o lastro de ferro e entrou no porto coberto pelo fogo das baterias dinamarquesas. Os burgueses de Aarhus deram ao jovem e ilustre capitão o ferro preciso para o seu lastro. Conta-se que as costureirinhas lhe foram oferecer os seus ferros de engomar, e para lhe dar sorte os beijaram ao entregá-los.
No dia 15 de Janeiro o Fortuna, auxiliado por outro corsário, o Três Amigos, apresara seis navios e com eles entrava a barra de Dogden, para os leiloar em Copenague, quando uma das presas encalhou no Midelgrund. Era um brigue que trazia um carregamento de lona avaliado em cem mil riksdaler, que os corsários tinham, horas antes, separado de um comboio inglês. Os navios de guerra inimigos ainda os perseguiam. Ao verem o acidente, os perseguidores logo enviaram um numeroso destacamento de seis chalupas, a recapturar o brigue. Os corsários, esses, não estavam dispostos a entregá-lo, e bordejaram contra os ingleses, que foram repelidos a fogo de metralha e obrigados a abandonar a presa. Mas o navio estava condenado. O mestre de corso que seguia a bordo, ao ver as forças superiores dos barcos inimigos, havia lançado fogo ao brigue para que não mais pudesse sair nas mãos dos ingleses. O incêndio alastrou de forma tão violenta que o barco não pôde ser salvo, e toda a noite a cidade de Copenague ficou a ver esse alto farol que, terrível, se consumia para norte. As cinco presas restantes foram levadas para Copenague.
Foi no Verão desse ano que o Fortuna II veio travar uma luta de vida ou de morte ao largo de Elsinore. Por essa altura já era o corsário um espinho atravessado na garganta dos ingleses e, numa noite escura de Agosto, eis que estes se preparam, a partir dos navios de guerra estacionados nas costas da Suécia, para vir aprisio-ná-lo. Duas grandes chalupas se aproximavam, os toletes envoltos em lã. A tripulação do corsário dormia, e só o jovem Morten e o atalaia estavam na coberta quando as chalupas, com uma guarnição de 35 homens, rasparam o costado do Fortuna e cravaram nas suas tábuas os arpéus de abordagem. Das chalupas dispararam tiros, mas a bordo do corsário não houve tempo nem espaço para usar os canhões. Foi uma luta a machado, ao sabre e à navalha. O inimigo enxameava na coberta, vindo de todos os lados; homens cortavam as amarras, outros pendiam da carranca. Mas o combate não durou muito. Os marinheiros do Fortuna lutaram como leões, e em vinte minutos a coberta ficou livre. O inimigo saltou para as chalupas e fez-se ao largo. Os canhões foram então disparados e feitos três tiros de metralha sobre os ingleses, que fugiram deixando 12 homens, entre mortos e feridos, na coberta do Fortuna II.
Em Elsinore tinha-se ouvido o fogo dos mosquetes inimigos, mas nenhuma resposta do Fortuna. A população juntara-se no porto e ao longo dos baluartes do Kronborg, mas a noite era escura e, embora o céu começasse a avermelhar para nascente, ninguém podia ver o que estava acontecendo. Então, ao raiar da primeira luz da manhã no céu cinzento, soaram três tiros, uns a seguir aos outros, e o rapazio de Elsinore jurou que via um fumo branco correr ao longo da escuridão das ondas. O Fortuna II entrou a barra de Elsinore meia hora mais tarde. Parecia negro no céu da manhã. A mastreação vinha toda mutilada e pouco a pouco os de terra foram distinguindo as pequenas silhuetas negras no navio, vermelhas no convés. Disse-se então que não havia a bordo lâmina de sabre ou de navalha que não estivesse tinta de vermelho, e que todas as redes da amurada, da popa à enxárcia, vinham ensopadas de sangue. Ninguém a bordo escapara ileso, também, mas um só havia que fora ferido gravemente. Era um preto das índias Ocidentais, nativo das colónias dinamarquesas ali estabelecidas - «negro na pele mas dinamarquês pelo coração», diziam na manhã seguinte os jornais de Elsinore. O próprio Morten, sujo de pólvora, uma ligadura tapando um dos olhos, branco na luz da aurora, trazendo estampada no rosto ainda a violência do combate, ergueu os braços bem alto à multidão que os aclamava na praia.
No Outono desse ano todo e qualquer corso foi subitamente proibido. Pensava-se que tal comércio atraía as fragatas inimigas aos mares dinamarqueses, e constituíam um perigo para o país. Por outro lado, o corso era tido por muitos como uma forma de luta selvagem e desumana. Foi um rude golpe para muitos marinheiros valorosos, que, abandonando os convés, partiram mundo afora, errando sempre, incapazes de fixar-se de novo e retomar nas pequenas cidades o trabalho como antes. O país chorava as suas aves de rapina.
Para Morten de Coninck, todos concordavam, a ordem nova surgira em tempo apropriado. Ele, que tinha colhido os louros, podia agora casar-se e fixar-se em Elsinore.
Estava ele nesse tempo noivo de Adrienne Rosenstand; o gavião desposaria a branca pomba. Adrienne era amiga chegada das irmãs, que a tratavam como se a tivessem elas inventado, dando-se ao prazer de vestir a sua beleza de modo a realçá-la melhor. O gosto das irmãs era requintado e decidido, e levaram tanto tempo a escolher o enxoval da amiga como se do próprio casamento se tratasse. A sós, nem sempre eram tão indulgentes para com a frágil cunhada, e uma e outra deploravam apaixonadamente o casamento do irmão com uma burguesinha, uma ave ornamental saída da capoeira de Elsinore. Se tivessem reflectido um pouco, haviam de congratular-se com a escolha. A timidez e o convencionalismo de Adrienne permitiam que elas brilhassem ainda, ímpares, no seu mundo de arrojo e fantasia; mas que seria das irmãs do gavião se ele, como bem poderia ter acontecido, lhes metesse em casa jovem águia?
O enlace iria ter lugar em Maio, quando a Natureza em volta de) Elsinore é mais bonita, e toda a cidade aguardava esse dia, impaciente. Mas afinal o casamento não chegou a celebrar-se. Na manhã festiva o noivo tinha desaparecido; e nunca mais foi visto em Elsinore. As irmãs desfizeram-se em lágrimas de dor e de vergonha, e tiveram de dar a notícia à noiva, que caiu desfalecida ao ouvi-la e ficou doente por longo tempo; não mais voltou a ser quem era. Toda a cidade parecia ter emudecido, na dor desse momento, enlutada. Nem um só mexeriqueiro se aproveitou da soberba ocasião. Elsinore sentia como sua aquela perda - irreparável.
Nenhuma mensagem directa de Morten de Coninck chegou jamais a Elsinore. Mas, com o passar dos anos, rumores aportavam do Ocidente. Fizera-se pirata, constou primeiro, e esse não era um destino invulgar para um corsário sem pátria. Correu depois o boato que tomara parte nas guerras da América, onde se distinguira. Mais tarde houve quem dissesse que se tornara um grande plantador e senhor de muitos escravos nas Antilhas. Mas mesmo a esses rumores a cidade não deu muita importância. O seu nome raramente era pronunciado; só voltou a sê-lo muitos anos mais tarde, quando já podia falar-se dele como de uma figura num conto de fadas, como o Barba-Azul ou Sindbad, o Marinheiro. Nas salas da família De Coninck ele deixou de existir no dia seguinte ao do casamento. O seu retrato foi retirado da parede. A senhora De Coninck deixou-se morrer de desgosto pela perda do filho. Era uma mulher cheia de vida, um instrumento afinado onde os filhos iam vibrar em notas claras e puras. Se nunca mais iria ser usado, se nenhuma valsa ou marcha militar voltaria a ouvir-se, mais valia então pôr de parte o instrumento. Pois a morte não era mais contrária à sua natureza que o silêncio.
Para as irmãs de Morten, as raras notícias dele eram o maná que alimentava os seus corações no deserto. Não ousavam servi-lo aos amigos ou aos pais; mas na destilaria dos seus quartos era sujeito a variadas preparações. O irmão voltaria almirante de uma frota estrangeira, o peito coberto de medalhas nunca vistas, para casar-se com a noiva que o esperava, ou voltaria ferido, de saúde arruinada, mas com as mais altas honrarias, para morrer em Elsinore. Desembarcaria no molhe. Não o fizera ele antes, não o tinham elas visto com os próprios olhos? Mas até este fraco alimento foi temperado pelos anos com amarguras pungentes. Elas mesmas, se lhes fosse dado escolher, antes queriam a fome que tragá-lo. Dizia-se que Morten, longe de ser um distinto oficial da Marinha ou um rico plantador, fora na realidade um pirata nas águas de Cuba e Trindade - um dos últimos dessa raça. Mas, perseguido pelos navios Albion e Triunfo, tinha perdido o barco nas águas de Porto Espanha e por pouco não morrera. Tentara ganhar a vida de muitas e difíceis maneiras, e fora visto por alguém doente e miserável nas ruas de Nova Orleães. A última coisa que as irmãs souberam dele foi que tinha sido enforcado.
Desde o dia do casamento de Morten que a senhora Baek sofria a sua dor em silêncio. Foram trinta longos anos. Os sofismas das duas irmãs nunca ela quis compartilhar; entravam-lhe por um ouvido e saíam-lhe por outro. Era toda humildade e atenções para com a noiva abandonada, quando esta vinha depois em visita à família, e no entanto nunca lhe demonstrou grande compaixão. Ela sabia, como sempre, muito mais do que outra pessoa da casa. Não se pode afirmar que pressentira a catástrofe, mas recebera estranhos avisos em sonhos. O noivo ganhara o hábito, desde criança, de sentar-se às vezes ao pé dela no seu quartinho. Fizera-o enquanto se procedia aos grandes preparativos para a sua felicidade. Por cima do croché e dos óculos ela havia espiado aquele rosto. E ela, que tantas vezes seroava até tarde, e já trabalhava na rouparia antes que o sol de Verão surgisse no Sund, estava ao corrente das entradas e saídas que o resto da casa desconhecia. Alguma coisa acontecera entre os noivos. Teria ele pedido a Adrienne que o possuísse e o tomasse nos seus braços para que jamais ele pudesse abandoná-la? A senhora Baek não concebia que uma rapariga, fosse quem fosse, tivesse coragem de recusar alguma coisa a Morten. Ou teria ela cedido, e a magia provara ser ineficaz? Ou tê-lo-ia ela observado, que dia a dia se afastava, e não reunira ainda assim a força de oferecer o sacrifício que poderia retê-lo?
Ninguém jamais o saberia, pois Adrienne nunca falava dessas coisas; aliás, nem o poderia ter feito ainda que o quisesse. Desde a convalescença dessa longa enfermidade parecia ter ficado um pouco surda. Só ouvia o que se consentia ser dito em altas vozes, e assim acabou os seus dias numa atmosfera de estridentes banalidades.
Durante quinze anos a linda Adrienne esperou o noivo; depois casou-se.
As duas irmãs De Coninck assistiram ao casamento. Estavam magnificamente vestidas. Foi essa, de resto, a última ocasião em que apareceram como as beldades de Elsinore, e embora já estivessem na casa dos trinta, foram tão pretendidas como as jovenzinhas da cidade. O seu presente de casamento para a noiva não foi menos grandioso. Ofereceram-lhe os brincos e o alfinete de diamantes de sua mãe, uma parure sem igual em Elsinore. Despojaram também as janelas das suas salas de todas as flores para com elas adornar os altares, pois o casamento celebrou-se em Dezembro. Todos pensaram que as duas orgulhosas irmãs honravam assim a amiga para compensá-la do que sofrera às mãos de Morten. Mas a senhora Baek conhecia a verdade. Ela sabia que agiam movidas por uma profunda gratidão, e que a parure de diamantes era uma oferenda em acção de graças. Porque a bela Adrienne já não era a virgem viúva do irmão querido, e já não ocupava o lugar a seu lado aos olhos do mundo. Se a gentil intrusa deixava agora a casa delas, o mínimo que podiam fazer era segui-la até à porta em rasgadas reverências. Para com os filhos de Adrienne, mais tarde, e pela mesma razão ainda, elas teriam a mais excessiva bondade, deixando-lhes por fim a maior parte dos seus bens terrenos; e em tudo isto eram movidas pela gratidão para com essa linda ninhada de aves ornamentais saídas da capoeira de Elsinore - porque não eram os filhos do irmão.
A própria senhora Baek fora convidada a assistir ao casamento e passara um serão agradável. Quando se servia o gelado, ela subitamente pensou nos icebergs do vasto e negro oceano, como tinha lido num livro, e num rapaz solitário que os olhava da coberta do navio, e nesse momento os seus olhos encontraram os da menina Fanny, que se sentava na outra extremidade da mesa. Esses olhos negros estavam fulgurantes, e brilhavam marejados de lágrimas. Com toda a força de uma De Coninck, a distinta solteirona reprimia alguma coisa: uma grande saudade, uma grande vergonha, ou um grande triunfo.
Mas havia uma outra rapariga em Elsinore cuja história é de direito contar, ainda que muito brevemente, neste passo. Essa era a filha de um estalajadeiro de Stetten, de seu nome Katrine, do sangue dos carvoeiros que vivem junto a Elsinore e são, sob muitos aspectos, aparentados com os ciganos. Alta e bonita, era uma morena de faces coradas, e dizia-se que fora, a certa altura, a eleita do coração de Morten de Coninck. Teve um destino triste. Foi dada por quase todos como louca. Começou a beber e a cair em vícios piores, e morreu nova. Para com esta rapariga mostrava Elisa, a mais nova das duas irmãs, uma grande bondade. Por duas vezes lhe montou uma pequena chapelaria, porque a rapariga era talentosa e sabia por instinto o que era elegante, e Elisa encarregava-se de a tornar conhecida pois não usava outros chapéus que os feitos por ela; no fim da vida, Elisa dava-lhe dinheiro. Quando, depois de muitos escândalos em Elsinore, Katrine se mudou para Copenague e ficou residindo na Rua de Dybensgade, onde em geral nunca uma senhora poria os pés, Elisa de Coninck ainda assim a ia ver, e parecia regressar dessas visitas com mais forças e uma secreta alegria. Porque era assim que uma rapariga amada e abandonada por Morten de Coninck devia portar-se. Só esta ruína evidente, esta miséria e esta degradação eram o contraponto harmonioso que podia ressoar nos ouvidos da irmã e alegrar o seu peito, quando ela se fechava às palavras de consolo que queria dar-lhe o mundo. Elisa sentou-se no leito de morte de Katrine qual feiticeira que observa, atenta, os efeitos da poção fatal e quase nem respira aguardando o resultado a consumar-se.
Esse Inverno de 1841 foi particularmente rigoroso. O frio veio antes do Natal, e em Janeiro instalou-se uma grande geada, mortalmente calma e contínua. Se alguma neve caía por vezes, era em grãos duros e escassos, mas não havia vento, não havia sol, não havia uma agitação no ar ou nas águas. Um gelo espesso cobria o Sund e podia ir-se a pé de Elsinore à Suécia e tomar um café com os amigos, esses cujos pais tinham encontrado os pais dos que atravessavam, agora gelada, essa água ao som dos canhões, quando as vagas foram alterosas. As gentes pareciam fitas de negros soldadinhos de chumbo na infinita planura cinzenta. Mas à noite, quando as luzes das casas e os fracos lampiões das ruas iluminavam apenas um breve caminho no gelo, esta planura branca do mar era toda estranha, como se um sopro de morte varresse o mundo. O fumo das chaminés subia a direito no ar. Nem os mais velhos se lembravam de outro Inverno assim.
A senhora Baek tivera, como os demais, um grande orgulho nos tremendos frios, que a empolgaram sempre, mas nestes meses de Inverno ela mudara. Provavelmente estava já perto do fim, que se aproximava a largos passos. Tudo começou quando ela caiu desmaiada na sala de jantar, numa manhã em que fora sozinha comprar peixe, e durante algum tempo mal se pôde mexer. A partir de então mergulhava em grandes silêncios. Parecia ter mirrado, e os seus olhos ficaram pálidos. Dava a volta à casa como antigamente, mas agora parecia-lhe que tinha de escalar uma encosta infinita e escarpada quando à noite, na companhia da vela e da própria sombra, subia as escadas; e parecia ficar à espera de sons longínquos quando se sentava com a sua malha junto ao alto fogão de porcelana, que fendia. Os amigos começaram a pensar que lá teriam de cortar uma cova para ela nessa terra dura como ferro, antes que viesse o degelo da Primavera. Mas ela aguentava-se, e pouco tempo depois parecia já mais forte, apesar de mais rígida, como se também ela se tornara em gelo, atingida pelo frio Inverno que não havia jamais de abandoná-la. Não recuperou aquela sua alegre e precisa fluência de conversa que, por setenta anos, fora um prazer para tantos, mantivera os criados na ordem, e promovera ou refreara os mexericos de Elsinore.
Uma tarde confiou ao moço que a ajudava em casa que decidira ir a Copenague para ver as meninas. No dia seguinte saiu a contratar a viagem com o cocheiro da praça. A notícia deste projecto correu célere pela cidade, pois a jornada de Elsinore a Copenague não era para brincadeiras. Numa quinta-feira levantou-se ainda à luz da vela e desceu os degraus de pedra até à rua, o seu saco de tapete na mão, enquanto a luz da manhã surgia indecisa.
A jornada não era, de facto, para brincadeiras. Mais de nove léguas separavam Elsinore de Copenague, e a estrada corria ao longo da costa. Em muitos trechos dela quase nem estrada havia; só um trilho que seguia a praia. Aqui o vento, soprando do lado do mar, varrera a neve, de modo que os trenós não podiam passar, e ela era velha e seguia numa carruagem a que se cobrira o chão de palha. Viajava bem agasalhada; mesmo assim, e à medida que a carruagem fazia caminho e o dia de Inverno, surgindo, mostrava toda uma paisagem de silêncio e frio, era como se nada ali pudesse viver, e menos ainda uma velha sozinha numa carruagem. Ia sentada em completa imobilidade, olhando à sua volta. A planura do Sund gelado era cinzenta na luz parda. Aqui e além, algas esparsas na praia marcavam-na de castanho e negro. Junto da estrada, sobre a areia, os corvos marchavam, marciais, ou lutavam por um peixe morto. As casinhas dos pescadores, ao longo da estrada, tinham portas e janelas bem fechadas. Por vezes via os moradores, com altas botas que lhes chegavam acima dos joelhos, lá muito ao longe, no gelo, a que iam cortar buracos para apanhar bacalhau com um isco de arame. O céu tinha a cor do chumbo, mas pelo horizonte corria uma larga faixa da cor de uma casca velha de limão, ou de um marfim muito antigo.
Longos anos se haviam passado desde que ela percorrera aquela estrada. Como ia seguindo, figuras há muito esquecidas vinham acompanhar a carruagem. Parecia-lhe estranho que o cocheiro indiferente, de gorro de peles, e os cavalicoques baios tivessem o poder de a conduzir a um mundo que eles próprios desconheciam.
Passaram por Rungstead, onde em criança ela servira numa velha estalagem de rubras telhas junto à estrada. Dali à cidade o caminho era melhor. Ali vivera, nos seus últimos anos, doente e miserável, o grande poeta Ewald, um génio, o cisne do Norte. De saúde arruinada, profundamente ferido no seu amor pela inconstante Arendose, um alcoólico, ele ainda irradiava uma vitalidade, uma luz brilhante que havia fascinado a rapariguinha. A pequena Hanne, então com dez anos, fora sensível ao magnetismo dos grandes e misteriosos poderes da vida, que ela não compreendia. Era feliz quando podia estar com ele. Três coisas, soubera pelas conversas da estalajadeira, ele sempre implorava: poder casar-se, porque a vida sem uma mulher era para ele insuportavelmente fria e árida; qualquer espécie de álcool e, embora fosse um grande connaisseur de vinhos, era capaz de beber o grosseiro gin da região; e, finalmente, que o levassem à Sagrada Comunhão. Todas as três coisas lhe eram firmemente negadas pela mãe e pelo padrasto, ricos burgueses de Copenague, e até pelo amigo, o pastor Schoenheyder, porque não o queriam ver feliz das duas primeiras formas, e consideravam que ele devia mudar de vida antes que pudesse ser feliz por acção da terceira. A estalajadeira e Hanne sentiam pena dele. Ambas se teriam casado com ele, ambas lhe teriam dado vinho e o teriam levado à Sagrada Comunhão, se tal estivesse ao seu alcance. Muitas vezes, quando as outras crianças brincavam, Hanne deixava-as e ia colher para ele as primeiras violetas da Primavera, nas ervas, com os dedos frios, antecipando já a expressão do seu rosto ao cheirar os raminhos de flores. Havia nisto qualquer coisa que ela não compreendia, e que mesmo assim se apoderava fortemente do seu ser - que as violetas pudessem ter tanto valor. Em geral o poeta era alegre se estava com ela, sentava-a nos joelhos, e aquecia nela as mãos tão frias. O seu hálito cheirava por vezes a gin, mas ela nunca o contou a ninguém. Mesmo três anos depois, quando recebeu a Confirmação, ela imaginava o Senhor Jesus com o longo cabelo em rabicho, e aquele raro sorriso, louco, fraco e altivo, do poeta moribundo.
A senhora Baek entrou em Copenague pelas Portas de Leste no momento em que os lampiões se acendiam. Foi mandada parar e interrogada pelos guardas da portagem que, ao saber que ela era uma honesta mulher e não levava contrabando, a deixaram passar. Assim ela havia de aparecer às portas do Paraíso, ignorante do que dela se queria mas confiando que, se ela se tinha portado com correcção, de acordo com as suas luzes, os outros se portariam também com correcção, de acordo com as luzes que tivessem.
A carruagem seguiu pelas ruas de Copenague, e ela olhava em redor - porque não vinha à cidade há muitos anos - como olharia em volta para formar a sua opinião da Nova Jerusalém. As ruas não estavam cobertas de ouro e crisóprasos, e aqui e além amontoava-se alguma neve; mas, assim como eram, ela as aceitou. Aceitou também os estábulos, onde tinha de descer, e a caminhada a pé, na noite azul e gelada, de Copenague a Gammeltorv, onde ficava a casa das meninas.
Todavia sentiu, ao percorrer lentamente o seu caminho através das ruas, que era uma intrusa e que não era ali o seu lugar. Ninguém dava por ela sequer, excepto dois jovens, imersos numa discussão política, que tiveram de separar-se para a deixar passar, e uns rapazitos que fizeram comentários ao seu chapéu. Destas coisas ela não gostava; em Elsinore não havia disto.
As janelas do primeiro andar da casa das irmãs De Coninck estavam profusamente iluminadas. Lembrando-se que era o dia do aniversário de Fernande, a senhora Baek, no largo, imaginou que as meninas estariam dando uma festa.
Assim era, com efeito, e enquanto a senhora Baek subia lentamente a escada, arrastando os pés pesados e a sua mensagem de degrau em degrau, as irmãs recebiam alegremente os convidados na saleta cinzenta, aquecida e aconchegada, com o tapete verde e os brilhantes móveis de mogno.
A reunião promovida pelas duas solteironas era típica delas, pois os convidados eram quase todos do sexo masculino. Elas existiam, nessa bonita casa de Gammeltorv, quais duas grandes cortesãs espirituais de Copenague, levando ao excesso os seus admiradores e seduzindo-os a esbanjar com elas a saúde e a riqueza intelectuais que possuíam. Tal como duas jovens cortesãs da carne perseguiam os grandes e os príncipes da Terra, assim elas armavam ciladas constantes aos honoratiori do mundo espiritual, e esta noite podiam exibir nem mais nem menos do que o Bispo da Zelândia, o director do Teatro Real de Copenague, que era também um distinto dramaturgo e autor de livros filosóficos, e um velho e famoso pintor de animais, recém-chegado de Roma, onde fora cumulado de honrarias. Um velho comodoro de rosto fresco, que ainda trazia um ferimento recebido em 1807, e uma dama da rainha velha, elegante e boa ouvinte, cuja saia volumosa parecia absolutamente maciça da cintura para baixo, completavam o grupo, ambos velhos amigos que ali estavam nesse dia apenas para fazer sala.
Se estas duas irmãs não podiam viver sem homens era porque tinham essa firme convicção, que corre nas veias de todas as famílias de marinheiros como um instinto, de que a última palavra sobre o nosso real valor cabe ao sexo oposto. Podemos pedir a alguém do nosso sexo uma opinião e um conselho sobre a nossa bússola e a tripulação, sobre a nossa cuisine ou o jardim, mas quando se trata do próprio valor até as palavras dos melhores amigos são vãs e nada contam, e temos de apelar para alguém do outro sexo. Os velhos capitães de cabelos brancos, que dobraram o cabo Horn e enfrentaram já centenas de furacões, guiam-se por esta lei. Podem ser altamente respeitados na coberta ou na messe, e honrados pelos seus contemporâneos leais de cabelos grisalhos, mas são finalmente as raparigas que decidem se eles têm direito ou não a continuar vivos. As mulheres dos velhos marinheiros sabem-no, e dar-se-ão a grandes fadigas para obter dos homens, até dos mais moços, um juízo favorável. Esta doutrina, e este olhar, rápido na apreciação, são desenvolvidos nas famílias de marinheiros, pois nelas os dois sexos têm o ensejo de se verem a distância. Um marinheiro, ou a sua filha, julgam uma pessoa do sexo oposto com a rapidez e a segurança do caçador que ajuíza de um cavalo, o lavrador de uma rês ou o soldado de uma espingarda. Nas famílias de clérigos e de escribas, em que os homens ficam em casa todos os dias da sua vida, as pessoas podem ser extremamente bons juizes dos outros individualmente, mas o homem não sabe o que é uma mulher, e a mulher não sabe o que é um homem; quem vê de perto não vê ao certo.
As duas irmãs, em toucas de longas fitas de seda, faziam as honras da casa com toda a graciosidade. Nesses tempos, em que os homens não fumavam na presença de senhoras, a atmosfera de um serão permanecia até ao fim serena, e só um muito delicado e aromático e exótico fio de fumo subia dos copos de rum velho e raro com água quente, limão e açúcar, pousados sobre a mesa à luz mansa do candeeiro. Nenhum dos presentes escapava à influência deste néctar. Momentos antes todos tinham conjurado a passada juventude ao cantarem velhas canções que se lembravam de ter ouvido aos amigos de seus pais enquanto se bebia o vinho desses bons velhos tempos. O bispo, senhor de uma voz muito agradável, tinha erguido o seu copo a brindar à velha geração, segundo o antigo costume:
A memória dos jovens alegres, os nossos pais e nossos avós, pois livres souberam amar; e a prova aqui está, somos nós!
O eco da canção - porque ela agora afirmava haver um longo caminho de cinco minutos entre o ouvido e o cérebro - pusera Fanny de Coninck pensativa e distante. Que estranha prova, pensa ela, são estes corpos secos e velhos de que as meninas e os rapazes de há meio século suspiraram e estremeceram e se perderam em êxtases! Que prova singular é esta mão pálida, das loucuras de mãos moças numa noite de Maio há muitos, muitos anos!
Como estava de pé, o queixo, neste enfático sonhar, descaíra um pouco sobre a fita de veludo negro que lhe afogava a garganta, e seria difícil, a quem não a tivesse conhecido jovem, encontrar sinais de beleza no rosto de Fanny. O tempo fora um tanto cruel para ela. Uma leve contorsão de feições, que dantes fora adoravelmente picante, tornara-se agora numa pequena mas inquietante deformidade.
A sua ligeireza de pássaro caricaturava-se em pequenos movimentos bruscos, espasmódicos. Mas tinha ainda os olhos brilhantes de outrora, e era afinal uma figura distinta, quase tocante.
Momentos depois já conversava animadamente com o bispo. I Até o lencinho nos seus dedos e os botõezinhos de cristal na seda estreita do busto pareciam tomar parte na discussão. Nem a pitonisa em sua trípode, o corpo envolto em fumos inspiradores, havia de parecer mais profética.
O tema em debate era a questão de saber se, oferecidas umas asas de anjo que não poderiam jamais ser retiradas, o contemplado aceitaria ou recusaria essa oferta.
- Ah, mas Vossa Reverendíssima - dizia Fanny - ao subir pela nave, havia de converter toda a congregação apenas com o espectáculo das suas costas. Nem um só pecador restaria em Copenague. Mas lembre-se de que até Vossa Reverendíssima teria de descer do púlpito ao meio-dia de todos os domingos. Já deve ser difícil agora, mas como é que Vossa Reverendíssima, com um par de asas brancas de anjo, havia de parecer quando...
O que ela desejava realmente dizer era: «quando tivesse de usar I o bispote». Fosse quarenta anos mais nova que o diria. As irmãs De Coninck não tinham impunemente convivido com marinheiros desde a infância. Expressões muito vigorosas, imprecações até, como não se ouvia da boca das outras meninas de Elsinore, vinham naturalmente aos seus lábios rosados e tinham o poder de enfeitiçar os seus admiradores até à idolatria. Elas sabiam os muitos nomes do demónio, e em momentos de agitação exclamavam: «Que inferno, que inferno!». Agora, a longa prática de ser uma senhora e de receber tolhiam Fanny, que em vez disso concluiu suavemente:
- ...estivesse a comer um branco peru assado?
Porque fora peru assado que o bispo comera ao jantar, com evidente prazer. Mesmo assim, a sua imaginação foi tão vívida que achava curioso que o prelado, fitando, assim de perto, os seus olhos penetrantes, não visse neles a imagem dele próprio, todo paramentado, usando o bispote com um par de asinhas nas costas.
O velho ficara tão animado com a discussão que entornara algumas gotas do copo para o tapete.
- Minha deliciosa e prezada senhora - disse ele - sou um bom protestante e orgulho-me de não ter errado muito ao tentar conciliar as coisas do Céu com as da Terra. Numa situação como essa, eu baixaria os olhos e veria, em boa verdade, a minha pessoa celeste reflectida em miniatura, como a senhora vê a sua, todos os dias, nesse pedacinho de espelho em suas belas mãos.
O velho professor de pintura disse:
-Quando estive em Itália mostraram-me um pequeno osso, de forma curiosa, que só se encontra na omoplata do leão, e que é o vestígio de uma asa, desse tempo em que os leões tinham asas, tais como ainda vemos no leão de São Marcos. Foi muito interessante.
- Ah, de facto, é uma bela figura monumental a dessa coluna
-disse o bispo, que também estivera em Itália e sabia possuir uma cabeça leonina.
- A mim, se me fossem dadas asas - disse Fanny - pouco ligaria para a minha bela figura ou para as monumentalidades. Mas, por Sant'Ana, havia de voar!
- Permita-me esperar, minha senhora - disse o bispo - que não o faria. Nós temos as nossas razões para desconfiar de uma senhora que voa. Ouviu talvez falar de Lilith, a primeira mulher de Adão? Ela era, em contraste com Eva, toda feita do barro da Terra, como seu marido. E qual foi a primeira coisa que ela fez? Seduziu dois anjos, fê-los revelar a palavra secreta que abre os Céus, e assim, voando, fugiu a Adão. Isto é para nos ensinar que, mesmo se existe muito do barro terreno numa mulher, nem o marido nem os anjos a conseguem dominar.
- Realmente - prosseguiu ele, muito animado, o copo ainda na mão - na mulher os atributos particularmente celestiais e angélicos, e aqueles que mais admiramos e veneramos, todos lhe pesam e a forçam para a Terra. As longas tranças, os véus da pudicícia, os vestidos que se arrastam, até as adoráveis formas feminis, elas mesmas, o busto e a anca, que se arredondam, são o menos conformes possível à ideia de voar. Nós, todos nós, de boa vontade lhe damos o título de anjo, e as asas brancas, e as erguemos no nosso mais alto pedestal, com a única, inevitável condição de que ela não sonhe voar, de que ela tenha sido educada na estrita ignorância da possibilidade de voar.
- Oh, Ia Ia - disse Fanny - nós bem o sabemos, senhor bispo; e é sempre a mulher que os senhores não amam nem veneram, aquela que não possui a longa trança e o redondo busto, e que tem de arregaçar as saias para varrer o chão, que se ri do emblema da sua escravidão e unge o cabo da vassoura na véspera da Walpurgis.
O director do Teatro Real esfregou suavemente as delicadas mãos.
- Quando ouço as senhoras queixarem-se da sua árdua missão na vida e das restrições que sofrem - disse ele então - lembro-me às vezes de um sonho que tive um dia. Estava eu nessa altura escrevendo uma tragédia em verso. Pareceu-me, no meu sonho, que as palavras e as sílabas desse poema se rebelavam e protestavam dizendo: «Porque teremos de nos dar ao infinito trabalho de ficar de pé ou caminhar ou proceder de acordo com leis difíceis e dolorosas, que as palavras da sua prosa não sonham sequer obedecer?» Eu respondi: «Mesdames, porque vós estais destinadas a ser poesia. Da prosa pedimos e esperamos muito pouco. Ela deve existir - pelo menos para os regulamentos da Polícia e para o almanaque. Mas o poema que não é belo não tem razão de existir.» Deus me perdoe se alguma vez fiz poemas que não tivessem alguma beleza, ou tratei uma senhora de maneira a impedi-la de ser perfeitamente bela - que os meus outros pecados bem posso eu suportar.
- Como - disse o velho comodoro - posso eu ter dúvidas quanto à realidade das asas, eu, que cresci entre os veleiros e as senhoras do princípio do século? Esses medonhos navios a vapor, que por aí andam agora, bem podem ser uma espécie de bruxas do mar - são como as mulheres que se sustentam a si mesmas. Mas, se as senhoras pretendem deixar de ser veleiros de brancas velas ou poemas, então teremos nós, os homens, de ser poemas perfeitamente belos e deixar-lhes a tarefa de regulamentar a Polícia. Sem poesia o veleiro não nayega. Quando eu era cadete, rumando à Gronelândia ou ao Oceano Índico, costumava confortar-me, quando à noite fazia o meu quarto de vigia, pensando, por ordem consecutiva, em todas as mulheres que conhecia, e recitando os poemas que sabia de cor.
- Mas tu sempre foste um poema, Julian - disse Elisa. - Um rondó.
Sentiu-se tentada a abraçar o primo; sempre foram os melhores dos amigos.
- Ah, e a propósito de Eva e do Paraíso - disse Fanny - todos vós ainda tendes um certo ciúme da serpente.
- Quando estive em Itália - disse o professor - muitas vezes pensei no quanto é curioso que a serpente, que foi, se bem entendo as Escrituras, quem abriu os olhos do homem para as artes, seja um assunto impossível de, por si só, figurar num quadro. A cobra é uma criatura linda. Em Nápoles havia uma grande Casa dos Répteis, e eu costumava lá ir estudar as cobras durante longas horas. Elas têm peles que são como jóias, e os seus movimentos são maravilhosas obras de arte. Mas nunca vi uma cobra bem pintada num quadro. Eu próprio sou incapaz de as pintar.
- Lembras-te, Elisa - disse o comodoro, que estivera seguindo o curso dos próprios pensamentos - do baloiço que fiz para ti em Oregaard, no dia dos teus dezassete anos? Escrevi um poema, até.
- Lembro-me, sim, Julian - disse Elisa, o rosto iluminando-se. - Tinha a forma de um barco.
Era curioso como as duas irmãs, que tão infelizes foram na juventude, tivessem tanto prazer em relembrar o passado. Eram capazes de ficar horas seguidas falando dos mais insignificantes pormenores desses tempos, que as faziam rir e chorar mais perdidamente que qualquer caso do dia. Talvez para elas só tivesse verdadeiro encanto o que obedecesse a esta condição essencial: não existir no real.
Outro curioso fenómeno era que ambas, a quem tão pouco tinha acontecido, falassem com piedade e um certo desdém das amigas casadas, que tinham maridos, filhos e netos, como se as outras fossem pobres criaturas tímidas cujas vidas tivessem sido monótonas e insípidas. E que elas, que não tinham maridos, nem filhos, nem amantes, se não coibissem de sentir que haviam escolhido o caminho mais romântico e mais aventuroso. A explicação é que, para elas, só as possibilidades tinham algum interesse; as realizações não tinham qualquer peso. Elas próprias tiveram nas mãos todas as possibilidades, e nunca as abandonaram para fazer uma escolha definitiva e ceder a uma realidade limitada. Podiam tomar parte ainda em fugas por escadas de corda, em casamentos secretos, se fosse preciso. Ninguém poderia detê-las. Assim, as suas amigas mais chegadas eram apenas solteironas como elas, ou mulheres casadas mas infelizes, damas da távola redonda das possibilidades. Para com as amigas casadas e felizes, alimentadas de realidade, elas usavam, com toda a benevolência, de uma outra linguagem, como se aquelas fossem uma casta ligeiramente inferior, e para se falarem carecessem de um intérprete.
O rosto de Elisa tinha-se iluminado, como um puro e fino vaso de alabastro atrás do qual se acendesse um candeeiro, à menção do baloiço em forma de barco que lhe fora oferecido no dia dos seus 17 anos. Ela sempre fora, de longe, a mais bela dos três irmãos De Coninck. Na mocidade a velha tia francesa chamara-lhes la Bonté, la Beauté e l’esprit, sendo Morten la Bonté.
Elisa era tão loura quanto a irmã era morena, e em Elsinore, onde por certo tempo foram moda os apelidos, chamavam-lhe «Ariel», ou «O Cisne de Elsinore». A sua beleza encerrara essa particularidade singular de parecer uma promessa, de ser apenas o primeiro passo de uma longa e extraordinária carreira. Ela fora a jovem mulher excepcional que tivera a inspiração de ser, da cabeça aos pés, impressionantemente bela. Mas essa era tão-somente o começo. O passo seguinte seria talvez o seu trajo, pois Elisa primava sempre pelo vestir, e chegava a contrair pesadas dívidas de que por vezes o irmão tomava a responsabilidade perante o pai - na compra de brocados, caxemiras e plumas vindas para ela de Copenague e Hamburgo, e até de Paris. Mas isto era apenas e ainda um começo de algo mais. Vinha depois o modo como ela se movia e dançava. Havia à sua volta uma atmosfera de expectativa, que levava os observadores a conter a respiração. Que iria esta extraordinária rapariga fazer a seguir? Se nesse instante ela tivesse realmente desdobrado um par de longas asas brancas, e se elevasse do cais de Elsinore no céu de Verão, ninguém ficaria surpreendido. Todos sabiam que ela iria fazer alguma coisa de extraordinário, com tal abundância de graças. «Há mais força nessa rapariga - dizia o velho contramestre do Fortuna quando, num dia de Primavera, ele a viu descer ao porto a correr, sem chapéu - do que em todos os marinheiros juntos do Fortuna.» E, afinal, ela nada fizera.
Em Gammeltorv ela apagava-se discreta, intencionalmente, de dia para dia, até raiar numa beleza mais marmórea. Era ainda capaz de medir a cintura com as duas mãos longas e esbeltas, e movia-se com muita leveza e altivez, como uma velha égua árabe, um tanto hirta, sim, mas inequivocamente nobre, serena, no mundo da guerra como no das quimeras. E nela esse não-sei-quê mantinha ainda abertas as perspectivas, a sensação de que algures nela muito se reservava e não era de todo impossível que algo de extraordinário ainda acontecesse.
Meu Deus, esse baloiço, Elisa! - exclamou o comodoro. - Tinhas sido tão mazinha para mim na noite anterior que eu fui para o jardim de Oregaard, nessa manhã de Julho, ainda cedo, resolvido a enforcar-me. E ao olhar a copa do grande ulmeiro ouvi a tua voz dizer atrás de mim: «Esse ramo serve perfeitamente.» Era cruel, pensei eu. Mas ao voltar-me vi-te, ainda de papelotes enrolados no cabelo, e lembrei-me que te tinha prometido um baloiço. Eu não podia morrer; pelo menos enquanto não cumprisse a promessa. Quando o instalei e te vi sentada nele, pensei: Se há-de querer sempre o meu destino que eu seja o lastro das velas brancas das lindas raparigas, então eu dou graças a Deus pelo meu destino.
É E isso que amamos em ti; que amámos sempre - disse Elisa. Uma criadinha extremamente bonita, de fitas de um tom de
azul-pálido na touca - que as duas velhas cortesãs espirituais empregavam para dar um equilíbrio à casa, do mesmo modo que duas jovens cortesãs mundanais teriam, com o mesmo fim, uma criada feia e pouco afortunada, uma anã com espírito e imaginação - trouxe numa bandeja toda a sorte de guloseimas: gengibre da China, tangerinas e frutas cristalizadas. Ao passar pela cadeira de Fanny, disse num murmúrio:
- A senhora Baek chegou de Elsinore e está à espera na cozinha.
A cor de Fanny mudou, que ela nunca soubera receber, serena, as notícias da chegada ou da partida de alguém. A alma deixou-a e voou para a cozinha, de onde Fanny a teve de arrastar até si.
- Nesse Verão de 1806 - disse ela - saiu a tradução da Odisseia em dinamarquês; foi a primeira, creio eu. O papá costumava ler-nos passagens ao serão. Ah, e para nós escolhíamos o papel do herói e dos seus valorosos marinheiros, desafiávamos Ciclopes e navegávamos entre a ilha dos Lestrígones e as praias dos Feaces! Nunca poderei acreditar que não passámos esse Verão navegando em navios de velas castanhas.
Pouco depois a reunião terminava, e as duas irmãs erguiam os estores da janela para acenarem aos quatro homens que ajudavam a menina Bardenfleth a subir para o seu coche de gala, e seguiam, num grupinho falador e animado, atravessando o pequeno deserto de cor ferrosa que era o Gammeltorv nocturno, comentando, por entre as discussões poéticas e filosóficas, o extraordinário frio.
Este momento no final das reuniões sempre tocava de modo peculiar o coração das duas irmãs. Ficavam satisfeitas por se verem livres dos convidados; mas um instante de silêncio e de amargura acompanhava esse prazer. Porque elas sabiam ainda fazer-se amar. Possuíam o esplendor capaz de refractar pequenos efeitos de arco-íris na atmosfera da vida de Copenague. Mas quem saberia fazê-las amar? A taça do vinho intelectual e sentimental que gerava calor e movimento das veias flebolíticas dos velhos convidados, onde iriam elas buscá-la? À outra irmã, bem o sabiam, e em geral contentavam-se com isso. Em momentos assim, porém, a tristesse da eterna anfitriã formalizava-as um pouco.
Não acontecia o mesmo esta noite, pois mal correram os estores rodaram para a cozinha, apressando-se a mandar para a cama a criadinha bonita, como se pressentissem que o verdadeiro prazer da vida se achava unicamente na companhia das velhas. Fizeram mais café para a senhora Baek e para si próprias, usando a antiga cafeteira de cobre pendurada sempre na parede. O café, na opinião das mulheres da Dinamarca, é para o corpo o que a palavra de Deus é para a alma.
Fosse em tempos idos que as irmãs e a criada se voltassem a ver depois de uma longa separação, as raparigas haviam de começar logo a entreter a viúva com histórias dos seus admiradores. O tema era um perpétuo fascínio para a senhora Baek, e caro às duas irmãs pela oportunidade que lhes dava de a chocar. Mas esses dias tinham passado. Deram-lhe notícias da cidade - um velho viúvo tinha voltado a casar, outro tinha enlouquecido - contaram-lhe um ou outro mexerico da Corte, dos que ela entendesse, e que tinham ouvido à Bardenfleth. Mas alguma coisa no rosto da senhora Baek lhes chamou a atenção. Era todo um pesado destino o seu rosto; ela é que trazia notícias para dar. Em breve elas faziam uma pausa para a ouvir.
A senhora Baek deixou que a pausa se prolongasse.
- O menino Morten - disse ela por fim, e ao som dos seus pensamentos que a tinham acompanhado nesses longos dias e longas noites ela ficou muito pálida - está em Elsinore. Anda pela casa.
A esta notícia um silêncio mortal caiu sobre a cozinha. As duas irmãs sentiram arrepiar-se os cabelos. O terror do momento era para elas isto: ser a senhora Baek quem lhes dava tais notícias. Elas o poderiam ter anunciado, por fantasia ou perversidade, e pouco significado teria. Mas ser Hanne, que para elas era o princípio mesmo da solidez e do equilíbrio do mundo, a pronunciar as palavras que lhes atiravam em cara o fim de tudo - isso fez com que os segundos passados na cozinha parecessem às duas irmãs serem os primeiros instantes de um terramoto.
A senhora Baek apercebia-se da estranheza da situação, e de tudo o que estava passando pela cabeça das meninas. Também ela se teria aterrorizado, se pudesse ainda sentir algum terror. Agora, era só um grande triunfo o que sentia.
- Eu vi-o - disse ela. - Sete vezes.
Aqui as irmãs começaram a tremer tão violentamente que tiveram de pousar as chávenas de café.
- A primeira vez - disse a senhora Baek - estava ele em pé, na sala de jantar vermelha, a olhar para o relógio grande. Mas o relógio estava parado. Eu tinha-me esquecido de lhe dar corda.
Subitamente uma chuva de lágrimas brotou dos olhos de Fanny, e banhou as faces pálidas.
- Oh, Hanne, Hanne - disse ela.
- Depois encontrei-o uma vez na escada - disse a senhora Baek. - Três vezes ele veio sentar-se ao pé de mim. De uma vez apanhou um novelo de lã que me tinha rolado para o chão e atirou-mo para o regaço.
- Como te pareceu ele? - perguntou Fanny numa voz aguda e alquebrada, fugindo ao olhar da irmã, que permanecia imóvel.
- Parece mais velho do que quando se foi embora - disse a senhora Baek. - Usa o cabelo mais comprido que os homens de cá; deve ser a moda americana. Tinha umas roupas muito velhas também. Mas ele sorria para mim como antigamente. A terceira vez que o vi, antes de ele se ir embora, porque ele vai-se embora a seu modo e quando a gente pensa que ainda o encontra já lá não está,
atirou-me um beijo exactamente como ele costumava fazer em rapaz, quando eu ralhava com ele.
Elisa ergueu o olhar, muito lentamente, e os olhos das duas irmãs encontraram-se. Nunca, em toda a vida, elas tinham ouvido uma palavra sequer à senhora Baek que se pudesse pôr em dúvida.
- Mas - disse a senhora Baek - desta última vez fui dar com ele a olhar durante muito tempo para os vossos retratos. E pensei que vos quisesse ver, por isso as vim buscar para voltarem a Elsinore.
A estas palavras as irmãs ergueram-se como dois granadeiros na parada. A senhora Baek, essa, embora numa agitação terrível, permaneceu sentada, figura central como sempre daquelas reuniões.
- Quando é que o viste? - perguntou Fanny.
- A primeira vez - disse a senhora Baek - faz hoje três semanas. A última foi no sábado. Então pensei: agora tenho de ir buscar as meninas.
Subitamente o rosto de Fanny incendiou-se. Olhava para a senhora Baek com grande ternura, a ternura dos dias de juventude. Sentiu que este era um grande sacrifício que a velha fazia por dedicação a elas e por um sentido do dever. Porque essas três semanas em que vivera com o fantasma do proscrito da família De Coninck, sozinha, devem ter sido o ponto alto da vida da senhora Baek, e para sempre assim seria. Agora, acabava-se.
Seria difícil dizer se, quando falou, a sua voz se aproximava mais do riso ou do choro.
- Oh, iremos, Hanne - disse - iremos a Elsinore.
- Fany, Fanny - disse Elisa - ele não está lá; não é ele. Fanny deu um passo em direcção ao lume, tão violentamente que na sua touca as longas fitas ondularam.
- Porque não, Lizzie? - disse ela - Deus afinal quer fazer alguma coisa por ti e por mim. E não te lembras, quando o Morten tinha de voltar à escola depois das férias, e não queria ir, que ele nos obrigava a dizer ao papá que tinha morrido? Nós fazíamos uma sepultura para ele, debaixo da macieira, e ele deitava-se lá. Lembras-te?
As duas irmãs neste momento viram, com os olhos da memória, exactamente a mesma imagem do rapazinho corado, com terra nos caracóis, que tinha sido puxado da sepultura por um jovem pai furioso, e a imagem delas, com as pequenas pás e os vestidos de musselina todos sujos, seguindo a procissão até casa, quais carpideiras frustradas. O irmão podia estar desta vez a pregar-lhes uma Partida.
Ao voltarem-se uma para a outra os dois rostos tinham a mesma expressão de facécia juvenil. A senhora Baek, da sua cadeira, ao vê-las, sentiu-se como a mãe feliz que sobre as palhas dá à luz. Um peso, um volume dela se haviam separado, e a sua importância tinha com eles desaparecido. Era sempre assim com as pessoas de posição. Tomavam tudo o que a gente tivesse, até os fantasmas.
A senhora Baek não deixou que as irmãs regressassem com ela a Elsinore. Fê-las adiar de um dia a viagem. Queria velar para que os quartos estivessem aquecidos quando as recebessem, e para que houvesse botijas de água quente nas camas estreitas onde elas há tanto tempo não dormiam. Partiu no dia seguinte, deixando-as passar em Copenague essa noite ainda.
Foi bom para elas que lhes tivessem sido dadas essas horas em que podiam decidir-se e preparar-se para se encontrarem com o fantasma do irmão. Uma tempestade se abatia sobre elas, e os seus navios, que tinham conhecido a calmaria dos remansos, perdiam-se no turbilhão de uma nevasca, por entre vagas tão altas como casas. Mesmo assim elas não eram, nos folhos de renda dos corpetes, marinheiros de primeira viagem nas tempestades da vida. Eram capazes de manobrar ainda, e de aguentar a escota. Nem se debulharam em lágrimas. As lágrimas nunca foram remédio para elas. As lágrimas eram as primeiras a surgir, e uma fraqueza apenas; agora eram passadas, e elas velejavam pelo grande dilema. Bem conheciam a regra dos velhos marinheiros:
Vem o vento antes da chuva - fica a vela em pano roto. Vem a chuva antes do vento - baixa a vela e faz-te ao porto.
As duas irmãs não falaram muito enquanto esperavam ser recebidas na sua casa de Elsinore. Se fosse domingo teriam ido à igreja, porque eram convictas praticantes, e críticas dos pregadores eminentes da cidade, de modo que voltariam para casa seguras de que elas teriam feito melhor. Na igreja talvez lhes tivesse agradado a companhia; só a casa do Senhor, entre todas, as abrigaria juntas. Assim, era preciso que vagueassem em extremos opostos da cidade, por ruas e parques vestidos de neve, as mãozinhas pequenas em regalos, olhando as estátuas nuas e frias e os pássaros gelados nos ramos.
Como iriam duas senhoras altamente respeitadas, ricas, benquistas e amimadas por todos, dar as boas-vindas ao enforcado do seu próprio sangue? Fanny percorria sem descanso a alameda de tílias dos Roseirais Reais de Rosenborg. Não seria capaz de a percorrer mais tarde, nem sequer nos dias estivais, quando se tornava um caramanchão de verde e oiro, cheio como um aviário das vozes das crianças. Levava consigo, de uma ponta à outra da alameda, a imagem do irmão olhando o relógio, e o relógio parado e morto. A imagem agigantava-se. Era a morte da mãe com a dor de o ver partir que ele assim olhava, e o desgosto da sua noiva. Crescia ainda a imagem. Eram todos os corações do mundo que foram traídos e sofreram, todas as dores das criaturas fracas e silenciosas, toda a injustiça e o desespero da Terra que ele assim olhava. E ela sentia que tudo isso lhe pesava sobre os próprios ombros. A responsabilidade era sua. Se no mundo havia sofrimento e morte era por culpa dos De Coninck. A infelicidade fazia com que subisse e descesse a alameda como folha seca ao sabor do vento - uma senhora distinta, de botinas de pele, em seu coração um grande pássaro louco, de asas cortadas, adejando no poente invernoso. Entortando os olhos podia ver no seu grande nariz, rosado sob o véu, um bico tremendo e cruel. De tempos a tempos uma pergunta lhe vinha à mente: O que estará a Elisa a pensar? Era estranho que a irmã mais velha sentisse, com amargura e terror, que a irmã mais nova assim a tinha abandonado na sua hora de aflição. Ela, que procurara estar só, não obstante repetia a si mesma: «Pois não pode ela velar comigo uma hora?» Fora já o mesmo na velha casa dos De Coninck. Se as coisas se tornavam realmente complicadas, Morten, o papá e a mamã De Coninck voltavam-se para a silenciosa rapariga mais nova, muito menos brilhante do que a própria Fanny: «O que pensa a Elisa disto?»
Escurecia, e como reflectisse que a senhora Baek já devia estar na casa de Elsinore, Fanny subitamente se deteve e pensou: Deverei rezar a Deus? Muitas amigas suas, bem o sabia, encontravam conforto na oração. Ela desde criança não rezava. Por ocasião dos seus domingos passados na igreja, que eram visitas de cortesia ao Senhor, os seus breves silêncios, de cabeça baixa, foram gestos de polidez. A sua oração, agora que ela começava a formulá-la, nem por isso lhe agradou. Costumava em pequena ler em voz alta a correspondência do papá, por isso estava habituada ao estilo das cartas de empenhos - «...Sentindo-me profundamente impressionado pela magnificência e nobreza da bem conhecida bondade de Vossa Excelência...» Ela própria recebera muitas cartas semelhantes; também muitos rapazes lhe imploraram de joelhos qualquer coisa. Fora altamente generosa para os pobres e dura para os apaixonados. Ela nunca pedira nada, nem o iria fazer agora em nome do orgulhoso irmão mais novo. Como a sua oração começasse a assemelhar-se a uma carta de empenhos ou a uma declaração, Fanny calou-se. «Ele não há-de sentir vergonha - pensou ela - pois foi ele quem me chamou. Ele não terá medo de dez mil pessoas que tanto se obstinaram em persegui-lo.» E, posto isto, dirigiu-se a casa.
Quando, na tarde de sábado, as irmãs chegaram à casa de Elsinore, conheceram uma profunda agitação de alma. Até o ar, até o cheiro do vestíbulo as penetrava, essa atmosfera de sal e de algas que sempre enlaça as velhas casas junto ao mar. Diz-se, pensou Fanny de Coninck, fungando, que o nosso corpo se muda completa-mente no curso de sete anos. Como eu mudei, como eu esqueci! Mas o meu nariz ainda deve ser o mesmo. O meu nariz eu conservei, e ele lembra-se de tudo. A casa, de tão aquecida, parecia uma estufa, e isto comoveu-as como se fosse um cumprimento, como se um velho admirador tivesse posto o uniforme de gala em sua honra. Muita gente, ao visitar os lugares do passado, suspira ante os sinais do tempo e da mudança. As irmãs De Coninck, pelo contrário, sentiam que a velha casa bem podia, ela sim, deplorar os sinais do tempo e do declínio neste seu reencontro com elas, e gritar: Céus, Céus! São estas as duas raparigas de faces como damascos, de argentinas vozes, de sapatinhos de baile, que usavam deslizar pelo corrimão das minhas escadas? - e em suspiros ecoando pelas altas chaminés: Oh, meu Deus! Ide-vos, ide-vos! Se a velha casa, porém, assim quis ignorar o que sentia e fingir que elas estavam na mesma, dava mostras de uma grande cortesia.
O profundo e cerimonioso prazer com que a senhora Baek as acolhia só poderia comovê-las. Veio à porta para as receber; mudou-lhes os sapatos e as meias, e tinha pronta uma bebida quente. Se a podemos fazer feliz apenas com visitá-la, pensaram elas, porque só hoje aqui viemos? Seria porque essa casa da infância e da mocidade lhes tinha parecido sempre um pouco fria e deserta, como uma sepultura, antes de abrigar um fantasma?
A senhora Baek levou-as pela casa a mostrar-lhes os lugares onde estivera Morten, e repetiu os gestos dele muitas vezes. Às irmãs pouco importavam os gestos que ele teria feito se não os dirigira a elas, mas apreciaram o amor da velha pelo irmão, e escutaram-na pacientes. Afinal a senhora Baek sentia um grande orgulho, como se lhe fora entregue uma sagrada relíquia do esqueleto bem-amado do rapaz, um ossinho que só ela guardaria.
A sala onde seria servida a ceia era de esquina. Duas janelas viravam a leste, de onde se avistava o velho castelo cinzento de Kron-borg, com as suas agulhas acobreadas, qual punho ameaçador em pleno Sund. Sobre os baluartes os antigos capitães da fortaleza haviam plantado um jardim, onde, na nudez do Inverno, tílias mostravam ao mundo como crescem desregradas as árvores que não aprendem a marchar, militares, duas a duas. Outro par de janelas, viradas a sul, davam para o porto. Era estranho ver o porto de Elsinore sem um movimento, onde os marinheiros regressavam dos barcos presos no gelo.
As paredes da sala foram dantes pintadas de carmim, mas com o tempo a cor tinha manchado numa riqueza de tons como um vaso de vidro cheio de rosas vermelhas moribundas. À luz das velas, estas paredes lisas coravam e brilhavam intensas, e em certos lugares resplandeciam como pequenos lagos de laca vermelha seca, ardendo. Numa parede estavam os retratos das duas irmãs De Coninck quando jovens, as beldades de Elsinore. O terceiro retrato, o do irmão, fora retirado há tanto tempo que só uma ligeira sombra na parede marcava o lugar onde estivera um dia. Um potpourri defumava no fogão, e ladeando-o Neptunos vinham, com tridentes, conduzindo as parelhas de cavalos através das altas ondas. Mas as pétalas secas de rosa datavam de Verões de há muitos anos. Só uma leve fragrância de rosa se espalhava dessa pira funerária, um pouco rançosa, como o bouquet de um fino clarete por longo tempo conservado. Frente ao fogão a mesa estava posta, sobre a toalha branca, com delicados pratos e chávenas de porcelana chinesa.
Nesta mesma sala os três irmãos De Coninck tinham celebrado outrora muitas ceias secretas, quando preparavam alguma soirée de máscaras ou de teatro, ou quando Morten voltava, a horas mortas, de uma expedição no seu veleiro que devia ser segredo para os pais. Ao comer e beber em ocasiões como essas, usavam eles de toda a cautela, não fossem acordar a casa, que dormia. Há trinta e cinco anos a sala vermelha assistira a muita hilariedade causada por tais precauções.
Fiéis à tradição, as irmãs De Coninck entraram na sala e tomaram os seus lugares à mesa, em frente uma da outra, junto ao fogão e em silêncio. Nestas velhas beldades infatigáveis de cem bailes a idade e a agitação principiavam enfim a reivindicar os seus direitos. As pálpebras pesavam-lhes, e não poderiam resistir por muito mais tempo se alguma coisa não acontecesse.
Não tiveram de esperar muito. Quando acabavam de servir o chá e levavam aos lábios as finas chávenas, ouviram um leve sussurro no silêncio da sala. Quando ligeiramente se voltaram, viram o irmão de pé ao topo da mesa.
Assim ficou por momentos, e fez um aceno de cabeça, sorrindo-lhes. Depois tomou da cadeira vaga e sentou-se entre elas. Colocou as mãos na quina da mesa, movendo-as mansamente para os lados e retomando a primeira posição, precisamente como dantes costumava fazer.
Morten estava pobremente vestido com um casaco cinzento escuro, que parecia desbotado e muito gasto. No entanto via-se que cuidara muito a sua aparência para vir a este encontro, pois tinha um colarinho branco, uma gravata negra cuidadosamente cingida, e o cabelo bem escovado para trás. Talvez tivesse receio, pensou Fanny por momentos, ele, que viveu tanto tempo em tão rude companhia, de causar nas irmãs uma impressão de menos requinte e pior educação. Não teria por que preocupar-se; até no patíbulo ele seria um cavalheiro. Estava mais velho do que elas o lembravam, mas não tão velho como as irmãs. Parecia ter quarenta anos.
O seu rosto seria talvez mais grosseiro que outrora, estava marcado pelas intempéries e muito pálido. Conservava, a par dos olhos negros, sempre um tanto encovados, o mesmo divino jogo de luz e de sombra que há muitos anos enlouquecia as donzelas. A sua boca generosa tinha ainda a franqueza e a doçura de outros tempos. Mas a sua fronte pura sofrera uma mudança. Não era porque estivesse agora sulcada por um sem-número de pequenos traços horizontais, pois o mármore de que era feita suportava sem deslustre os desgastes superficiais. Mas o tempo revelara o verdadeiro carácter dessa fronte. Não era a tiara imperial o que um dia prendera todos os olhares e encimava as negras sobrancelhas. Era a semelhança nobre e grave com a fronte de uma caveira. A sua luz pertencera ao senhor, não do mundo, mas do túmulo e da eternidade. Agora, que o cabelo se afastava, a fronte revelava essa verdade franca e simplesmente. Para além disso, alguém que tivesse obtido, com o rosto desse irmão, a chave do conhecimento deste singular tipo de beleza familiar, reconhecê-la-ia imediatamente no rosto das irmãs, e até nos dois retratos juvenis que pendiam da parede. A característica mais marcante destas três cabeças era a sua semelhança, em traços largos, com uma caveira.
O semblante de Morten guardara, porém, a placidez, a deferência, a dignidade de sempre.
- Boa-noite, irmãzinhas; bons olhos, bons olhos vos vejam - disse ele - foram muito gentis, muito boas em ter vindo aqui para me verem. Deve ter sido uma...
Deteve-se e por momentos pareceu buscar as palavras, como se não tivesse o hábito já de falar com as pessoas; e depois concluiu:
- ...viagem bem fresquinha, a vossa, até Elsinore, penso eu. As irmãs, sentadas, olharam-no, tão pálidas como ele. Morten sempre tivera o costume de falar em voz muito baixa, ao contrário delas. Assim, uma discussão entre as duas irmãs desenrolava-se com elas falando ao mesmo tempo, correndo-se o risco de uma voz estridente abafar a outra. Mas se alguém queria ouvir o que Morten tinha a dizer, teria de fazer silêncio. Era assim que ele falava agora, e se bem que elas estivessem quase preparadas para o verem, não o estavam para ouvir a sua voz.
Escutaram-no em silêncio, como antes faziam. Mas ansiavam por algo mais. Ao porem os olhos no irmão os troncos secos delas todos se viraram. Poderiam tocar-lhe? Não, elas sabiam que isso não podia ser. Não fora em vão que tinham lido histórias de fantasmas toda a vida. E isto mesmo lhes recordou os velhos tempos quando, para essas suas ceias privadas, Morten vinha por vezes com o seu grande capote encharcado de chuva e de mar, brilhante, negro e áspero como a pele de um tubarão, ou todo lustroso de neve, ou coberto de alcatrão, de modo que elas, rindo, tinham de estender o braço a afastá-lo dos seus vestidos. Oh, como as melodias de há trinta anos tinham vindo transpostas do tom maior para um puro tom menor! Que nevascas teria ele atravessado nessa noite? Com que espécie de alcatrão se havia coberto?
- Como vão, minhas queridas? - perguntou ele. - A vida é tão alegre em Copenague como era nos velhos tempos de Elsinore?
- E tu como estás, Morten? - perguntou Fanny, a voz uma boa oitava mais alta do que a dele. - Estás mesmo com o ar bonito de um capitão de corsário. Trazes contigo o sabor e a riqueza dos ventos alíseos ao nosso mosteiro de Elsinore.
- Sim, eram bons ventos, esses - disse Morten.
- Até onde foste, Morten? - perguntou Elisa, numa voz trémula. - A imensidão de lugares bonitos que deves ter conhecido, e nós nunca vimos! Como eu queria, como eu queria estar no teu lugar!
Fanny lançou à irmã uns olhos vivos e firmes. Teriam os pensamentos de ambas encontrado caminhos paralelos desde as ruas e os jardins brancos de neve de Copenague? Ou daria voz esta silenciosa irmã, mais nova do que ela, muito menos brilhante, à verdade simples que lhe ia no coração?
- Sim, Lizzie, minha pomba - disse Morten. - Bem me lembro. Tenho pensado nisso... O que tu costumavas chorar batendo o pezinho e apertando as mãos num grito: «Ah, quem me dera estar morta!»
- Donde vens, Morten? - perguntou Fanny.
- Do Inferno - disse Morten. - Desculpa - acrescentou, vendo a irmã estremecer. - Vim agora, como vês, porque o Sund gelou. Nessas alturas posso vir. É de norma.
Ah, como o coração de Fanny ganhou asas quando ouviu estas palavras. Ela própria o sentiu, como se tivesse gritado, num berro de libertação, mulher nesse momento de por fim dar à luz. Quando o Imperador, vindo da ilha de Elba, pisou o solo de França, trouxe consigo o tempo antigo. Esquecidas ficaram a rubra Moscovo e as marchas no Inverno terrível de negro e branco. A bandeira tricolor vinha desfraldada ao vento, e os velhos granadeiros erguiam os braços e clamavam ainda: Vive VEmpereur! A alma de Fanny, como eles, vestia o velho uniforme. Era porque os outros a viam, e pelo gozo de o encarnar, que ela doravante se vestia do corpo de uma velha.
- Não estamos um belo par de camafeus, Morten? - perguntou, de olhos brilhantes. - Não é que as nossas tias velhas tinham razão, quando nos censuravam a vaidade, e a vaidade de todas as coisas? Realmente, quem mete na cabeça dos jovens que o melhor será comprar a tempo as muletas e a corneta acústica, acaba sempre por levar a melhor.
- Não, tu estás encantadora, Fanny - disse ele, os olhos brilhando também, gentis, para ela. - Como uma esfinge.
Porque eles costumavam juntos caçar borboletas quando eram pequenos.
- E se as duas me parecessem um par de velhinhas, eu havia de gostar tanto. Não existiam muitas, lá onde eu estive, por muitos anos. Agora, quando a avó dava as suas festas de anos em Oregaard, aí é que se via uma casa cheia de velhinhas lindas. Como um grande aviário, e a avó entre elas como a altiva catatua.
- E no entanto uma vez disseste - replicou Fanny - que darias um ano de vida se pudesses escapar-te à espiga de uma tarde com elas.
- É verdade - disse Morten - mas o conceito em que eu tinha um ano de vida mudou muito desde então. Mas digam-me, a sério, ainda há quem ate pedrinhas aos billets-doux e os atire pela janela da vossa carruagem quando voltam dos bailes?
- Oh! - disse Elisa, sustendo a respiração.
Was klaget aus dem dunkeln Thal Die Nachdigall?
Was seujzet darein der Erlenbach Mit manchen Ach?
Lembrava um poema há muito esquecido de um apaixonado há muito esquecido também.
- Não estão casadas, pois não, minhas queridas? - disse Morten, subitamente receoso (possibilidade absurda) que um estranho pertencesse às irmãs.
- E porque não? - retorquiu Fanny. - Ambas temos maridos e amantes em barda. Eu casei com o Bispo da Zelândia; ele perdeu um tanto o equilíbrio no tálamo nupcial por causa das asas.
Escapou-lhe um risinho fino e delicado, em leves golfadas, como o vapor que sai do bico de uma chaleira. À distância de vinte e quatro horas o Bispo parecia ridiculamente pequeno, como um boneco visto de uma torre.
- A Lizzie casou... - prosseguiu, mas logo se deteve. Quando eram pequenos, os irmãos De Coninck viveram numa peculiar superstição, que lhes viera de uma comédia de marionetas, e que era a seguinte: as mentiras que se dizem acabam por tornar-se verdade. Por esta razão eles sempre tiveram um especial cuidado ao escolher as mentiras que diziam. Assim, nunca invocavam uma dor de dentes para não irem visitar as tias velhas num domingo, pois temiam que Nemesis os perseguisse e ficassem realmente com dores de dentes. Mas já era mais seguro mentir que o professor de música lhes dissera para não praticarem mais as gavottes porque já as tocavam com mestria. O hábito ainda lhes corria nas veias.
- Não, para falar a verdade, Morten - disse Fanny - somos duas solteironas, e tudo por tua causa. Ninguém nos quis desposar. Ficámos com má fama desde o dia em que tu fugiste, levando o coração, a alma e a inocência de Adrienne.
Encarou-o para ver o que ele iria replicar. Tinha-lhe seguido os pensamentos. As irmãs tinham sido fiéis, mas ele - o que fizera ele? Tinha-lhes imposto uma cunhada bonita e gentil.
O tio, Fernand de Coninck, aquele que ajudara Morten a conseguir o seu navio, vivera em tempos em França, durante a Revolução. Era esse o tempo, esse o lugar para quem pertencia à família De Coninck. Também ele nunca se libertou de um e de outro; nem já velho e solitário em Elsinore se sentira feliz com a placidez da sua vida. Muitas anedotas e canções desse outro tempo lhe acudiam aos lábios, e o irmão como as irmãs, meninos ainda, aprenderam-nas de cor. Momentos depois Morten, lentamente e em voz baixa, principiava a recitar uma das cantilenas do tio Fernand. Fora feita numa ocasião especial, quando as tias velhas do Rei de França deixavam o país e a polícia revolucionária mandou que se abrisse toda a bagagem que levavam na fronteira, temendo alguma traição.
Disse Morten:
Avez-vous ses chemises
à Marat?
Avez-vous ses chemises?
Cest pour vous un três vilain cas
si vous les avez prises.
O rosto de Fanny reflectiu imediatamente a expressão da face de Morten. Sem buscar na memória por mais do que um momento, ela seguiu com a segunda estrofe. Desta vez eram as tias velhas do rei que falavam:
Avait-il de chemises
à Marat?
Avait-il, de chemises?
Moi je crois qu'il rien avait pas.
Ou les avait-il prises?
E Elisa pegou no fio da canção, quase rindo:
Il en avait trois grises, à Marat.
Il en avait trois grises. Avec Vargent de son mandat sur le Pont Neuf acquises.
A estas palavras as irmãs sentiram-se mais leves, e os três lavaram para sempre as mãos da linda e infeliz Adrienne Rosenstand.
- Mas tu casaste, Morten? - perguntou, bondosa, Elisa, o riso ainda na voz.
- Casei - disse Morten. - Tive cinco mulheres. As espanholas são lindas, sabem?, como um mosaico de jóias. Uma delas era dançarina. Quando ela dançava era realmente como se um bando de borboletas rodopiasse, arrastado para o vértice de uma pequena chama; a sua dança entontecia, e essa pareceu-me ser então, que eu era novo, uma fascinante qualidade numa esposa. Outra era filha de um capitão inglês, uma rapariga honesta, e ela nunca me teria esquecido. Outra era a jovem viúva de um rico plantador. Uma verdadeira senhora. Todos os seus pensamentos pareciam deixar como a cauda longa de um vestido atrás de si. Deu-me dois filhos. Outra era uma negra, e foi essa que eu mais amei.
- E elas entraram a bordo do teu navio? - perguntou Elisa.
- Não, nenhuma delas entrou a bordo do meu navio - respondeu Morten.
- Mas diz - pediu Fanny - entre tudo o que tiveste, o que foi que mais amaste?
Morten reflectiu por momentos.
- Entre todas - respondeu - é melhor a vida de pirata.
- Melhor que a do capitão de um corsário no Sund? - perguntou Fanny.
- Melhor, sim - disse Morten - porque se está no alto mar.
- Mas o que te decidiu a ser pirata? - insistiu Fanny, muito intrigada, porque isto se parecia com um livro de aventuras romanescas.
- O coração, o coração - disse Morten - é que nos leva sempre à desgraça. Apaixonei-me. Foi um coup de foudre, de que o tio Fernand tanto falava. Ele bem sabia o poder dessas paixões. E ela pertencia a outro, por isso eu não podia tê-la sem infringir um pouco a lei e a ordem. Fora construída em Génova, usada pelos franceses como navio-correio, e tinha a fama de ser a escuna mais veloz que alguma vez cruzou o Atlântico. Deu à costa nas praias da ilha de Saint Martin, que é meio francesa e meio holandesa, e foi vendida pelos holandeses em Philipsburg. O velho Van Zandten, o armador, que então me contratou, e me amava como a um filho, mandou-me a Philipsburg a comprá-la. Era a coisa mais linda, sim, sem favor, a coisa mais linda que eu vi em toda a minha vida. Era como um cisne. Quando a vi, as velas enfunadas, vinha ligeira, garbosa, nobre, uma grande senhora - como um dos cisnes da avó em Oregaard, quando os fazíamos arreliar - pura, leal como as lâminas de Damasco. E depois, minhas queridas, parecia-se um pouco com o Fortuna II. Também ela tinha um traquete pequenino, uma vela mestra excepcionalmente grande, e um alto botaló.
Nesse momento peguei em todo o dinheiro do velho Van Zandten e comprei-a para mim só; e desde então nós tivemos, eu e ela, de nos afastar das pessoas respeitáveis da região. Que há-de um homem fazer quando o amor o domina? Fui seu amante fiel, e sei que ela foi feliz com a sua leal tripulação, por todos adorada e amimada qual mulher caprichosa que tem as unhas dos pés polidas com alcana. Comigo ela foi o terror do mar das Caraíbas, a jovem águia-pesqueira que fazia correr as aves timoratas. Portanto não sei ao certo se fiz bem ou se fiz mal. Não deverá possuir a bela dama o homem que mais amor lhe tiver?
- E ela também se apaixonou por ti? - perguntou Elisa, rindo.
- Mas qual é o homem que vai perguntar a uma mulher se é amado? - disse Morten. - O que se deve perguntar de uma mulher e: «Qual é o seu preço? E se estás disposto a pagá-lo?» Não devemos enganá-las, mas usar de cortesia e pagar de boa vontade, quer seja dinheiro contado, o amor, o casamento ou a nossa vida e honra o que elas nos exijam; senão, se somos pobres e não podemos pagar, que lhe tiremos o chapéu e as deixemos para um homem mais rico. Tem sido este um bom latim, sólido, moral, para os homens e as mulheres desde que o mundo é mundo. Quanto a sermos amados... Primeiro que tudo: as mulheres serão capazes de amar-nos?
- E então as mulheres que não têm preço? - disse Elisa, rindo ainda.
- E então essas, minha querida! - disse Morten. - Essas deviam ter sido tudo menos mulheres. Talvez Deus as queira, e saiba o que fazer delas. Elas atraem os homens aos maus caminhos, e depois não são capazes de os salvar, nem mesmo querendo.
- Como se chamava o teu barco? - perguntou Elisa, de olhos baixos.
Morten encarou-a, rindo.
- O nome do meu barco, era La Belle Eliza - respondeu.
- Não o sabias?
- Sabia, sim - disse Elisa, a voz de novo plena de riso.
- Disse-me o capitão de um navio do papá, há muitos anos, em Copenague, que a tripulação tinha enlouquecido de terror e o obrigara a voltar para o porto quando, ao largo de Santo Tomás espiaram as velas de joanete de um navio pirata. Tiveram tanto medo dele, disse o capitão, como se Satã em pessoa. E contou-me que o nome do navio era La Belle Eliza. Pensei logo que esse barco só podia ser o teu.
Era então este o segredo que a solteirona guardara do mundo inteiro. Ela não fora sempre de mármore. Algures no seu peito essa pequena chama de felicidade se mantivera acesa. Com este fim - pois outro não houvera - se tinha feito uma mulher tão bela em Elsinore. Uma escuna cruzava o mar azul, como reclinada num leito de jacintos, beijada pelos ventos e pelo cálido ar, as pandas velas brancas semelhantes à ousada falésia de greda, tostada pelo sol, com muito e rijo aço na bordada, vermelhos os sabres e as navalhas, e o seu nome, por direito e por justiça, era La Belle Eliza. Oh, burgueses de Elsinore, não me viram pois dançar o minuete? A esse mesmo compasso fui eu que sulquei os mares!
Enquanto ele falava o sangue subia às faces de Elisa. Era de novo rapariga, e as longas fitas da sua touca já não eram a garridice de uma velha, mas o adorno de uma noiva, fogosa e casta.
- Sim, era como um cisne - disse Morten - doce, doce como as melodias.
- Se eu estivera nesse navio mercante - disse Elisa - e tu o tiveras abordado, o teu navio seria meu por direito, Morten.
- Sim - disse ele sorrindo à irmã - e todo o matelotage. Era o costume, quando levávamos a bordo uma jovem mulher. Terias a teus pés um serralho de admiradores.
- Perdi-a - disse ele - por minha culpa, num estuário da Venezuela. É uma longa história. Um dos meus homens revelou o seu ancoradouro ao governador inglês de Porto Espanha, em Trindade. Eu não estava junto dela, nessa altura. Saíra num barco de pesca, a sessenta milhas de Porto Espanha, a obter informações sobre um cargueiro holandês. Vi enforcarem ali toda a minha tripulação, e via-a a ela pela última vez.
- Desde então - continuou ele, feita uma pausa - nunca mais pude dormir bem. Não passava do sono leve. Sempre que tentava mergulhar no sono, logo me sabia arrastado para a superfície, como um pedaço de madeira à deriva. Desde esse dia comecei a perder peso, porque tinha atirado fora o meu lastro. Estava com ela. Tornara-me, de tão leve, incapaz do que quer que fosse. Desde esse dia foi como se não tivesse corpo. Lembram-se de como o papá e o tio Fernand costumavam discutir, ao jantar, os vinhos que tinham comprado e dizer que alguns deles tinham um belo bouquet mas não tinham corpo? Assim eu era então, minhas queridas: o bouquet posso dizer que ainda o tinha, mas não o corpo. Já não podia mergulhar na amizade, no medo, em qualquer verdadeiro prazer. E ainda não conseguia dormir.
As irmãs não precisavam de fingir compaixão pelo seu infortúnio. Era o delas também. Todos os De Coninck sofriam de insónia. Quando eram pequenas riam do pai e das tias que se cumprimentavam de manhã, em primeiro lugar, com minuciosas perguntas e detalhes de como tinham passado essa noite. Agora não riam; o assunto também para elas se tornara muito importante.
- Mas quando não consegues dormir à noite - disse Fanny suspirando - é por acordares muito cedo ou porque nem adormeceste sequer?
- Não, nem adormeço sequer - disse Morten.
- Não é então porque tens...
Diria «frio», mas, lembrando-se de onde ele dissera que vinha, calou-se.
- E eu sempre soube - disse Morten, que pareceu não ter ouvido o que ela disse - que nunca teria paz se não pudesse dormir, mais uma vez, a bordo do La Belle Eliza.
- Mas viveste em terra também - disse Fanny, o pensamento correndo para alcançar o irmão, que ela sentia como se lhe fugisse.
- Vivi, sim - disse Morten. - Tive por algum tempo uma plantação de tabaco em Cuba. E era um aprazível lugar. Tive uma casa branca, de pilares, de que tu havias de gostar muito. Os céus dessas paragens são claros, delicados, como um copo de rum verdadeiro. Foi ali que eu tive a linda esposa, a viúva do plantador, e dois filhos. Ali havia mulheres com quem dançar, nos nossos bailes, tão leves como os ventos alíseos... como vós duas. Tive um pónei muito bonito, chamado Pégaso, parecido com o Zampa do papá... Lembram-se dele?
- E foste feliz em Cuba? - perguntou Fanny.
- Fui, mas por pouco tempo - disse Morten. - Gastava demasiado. Vivia do que não tinha, um perigo de que o papá sempre me prevenira. Tive de abandonar tudo.
Morten ficou silencioso, e depois disse:
- Tive de vender os meus escravos.
A estas palavras a sua palidez tornou-se tão extrema, velou-se de uma tal cor de cinza, que as irmãs, se não soubessem que ele estava morto, teriam medo que ele morresse ali. Os olhos, todas as feições pareciam afundar-se no seu rosto. Era a expressão de um homem na fogueira, quando as chamas principiam a subir.
As duas mulheres, também pálidas e rígidas, ficaram em profundo silêncio. Era como se o sopro da geada tivesse embaciado três janelas. Elas não sabiam uma palavra de conforto que lhe oferecessem nesse transe. Porque nenhum De Coninck jamais se separou de um criado. Era na família um ponto de honra que todo aquele que entrasse ao seu serviço deveria nele permanecer e ficar amparado para sempre. Abriam uma excepção no caso de um casamento ou da morte, mas a contragosto o faziam. Aliás, era opinião geral no círculo de amigos das duas irmãs que estas na velhice se quedaram com um só objectivo real na vida: entreter os criados.
Mais sentiam elas esse desdém secreto por todos os homens, criaturas incapazes de levantar fundos, e que é apanágio das belas mulheres, sabedoras como são dos seus infinitos recursos. As irmãs De Coninck, em Cuba, nunca teriam permitido que a situação chegasse a tão trágico desfecho. Pois não poderiam muito bem elas ter-se vendido trezentas vezes, e fazer felizes trezentos cubanos, e assim garantir o bem-estar dos seus trezentos escravos? Houve, por isso, uma longa pausa.
- Mas o fim - disse Fanny, retomando, com um profundo suspiro, a conversa - não foi nessa altura, então?
- Não, não - disse Morten - só muito tempo depois. Quando me vi sem dinheiro, fiz transportes de carga num velho brigue, primeiro entre Havana e Nova Orleães, depois até Nova Iorque. São mares difíceis, esses.
Conseguira a irmã desviar-lhe o pensamento daquela angústia, e Morten entusiasmava-se agora ao falar das várias rotas do comércio. Em tudo parecera, ao longo do encontro, ficar mais sociável, recuperando aquela serenidade do homem que aprecia o convívio e compreende bem o que vai na alma dos seus companheiros.
- Mas era meu destino que nada me corresse bem - prosseguiu ele. - A pouca sorte perseguia-me. Não sabem?, o meu barco veio a naufragar junto ao recife do Sable, onde meteu água e se afundou numa calmaria fatal; e por umas coisas e outras, enfim, se o posso dizer, fui enforcado em Havana. Já sabiam?
- Já sabíamos - disse Fanny.
- Têm vergonha de mim por isso, talvez? - perguntou.
- Não! - disseram as irmãs com energia.
Podiam ter-lhe respondido sem o olharem, mas ambas volveram os olhos para ele. E pensaram que talvez fosse esta a razão por que ele trazia o colarinho e a gravata tão inusitadamente afogados; talvez houvesse uma marca nesse pescoço forte e delicado, à volta do qual elas haviam cingido a cambraia com tantos cuidados, sempre que saíam juntos para os bailes.
Houve um momento de silêncio na sala vermelha, após o qual Fanny e Morten começaram a falar ao mesmo tempo.
- Desculpa - disse Morten.
- Não - disse Fanny - não. Que ias tu a dizer?
- Perguntava pelo tio Fernand - disse Morten. - Ainda é vivo?
- Ah, não, meu querido Morten - disse Fanny. - Morreu em 30. Já era um velho então. Foi ao casamento de Adrienne, e fez um discurso, mas já estava muito cansado. À noite puxou-me de parte e disse-me: «Minha filha, é uma gênante fête, esta.» Morreu três semanas depois. Deixou à Elisa o dinheiro e as mobílias. Numa gaveta achámos um pequeno medalhão de prata, incrustrado a diamantes cor-de-rosa, com um anel de cabelo louro, e escritas as palavras: «O cabelo de Charlotte Corday».
- Compreendo - disse Morten. - Era um belo homem, o tio Fernand. E a tia Adelaide também morreu?
- Também. Morreu antes dele - disse Fanny.
Quisera contar-lhe da morte de Madame Adelaide de Coninck, mas não o fez. Sentia-se deprimida. Esses, que tinham morrido, Morten devia tê-los encontrado já. O desamparo do irmão morto dava-lhe grande tristeza.
- Como ela nos ralhava, a tia Adelaide - disse ele. - Quantas vezes ela me disse: «Essa tua melancolia, Morten, esse descontentamento da vida que tu e as meninas vos consentis, é uma coisa que me põe furiosa. O que é bom para mim devia sê-lo também para vós. O que precisais é de casar e ter muitos filhos para criar; era remédio santo.» E tu, Fanny, respondeste: «Sim, titi, foi esse o conselho que uma tia do papá lhe deu, e que ele seguiu.»
- Já para o fim - interrompeu Elisa - ela não queria ouvir falar de coisas que aconteceram depois dos seus trinta anos e da morte do marido. Nem pensava nisso. Dos netos dizia: «São as modas-novas dos meus filhos mais novos. Eles ainda hão-de perceber que não valem de nada.» Mas lembrava-se de todos os escrúpulos religiosos do tio Theodore, o marido, e que ele não a deixava dormir, com as suas meditações sobre a queda do homem e o pecado original. Nisso ela tinha orgulho ainda.
- Devem achar que eu sou muito ignorante - disse Morten. - Sabem tanta coisa que eu não sei.
- Oh, meu querido Morten - disse Fanny - mas tu com certeza sabes muitas coisas de que nós duas não sabemos absolutamente nada.
- Não são muitas, Fanny - disse Morten. - Uma ou duas, talvez.
- Conta-nos uma, ou duas - pediu Elisa. Morten reflectiu por breve tempo.
- Uma coisa eu aprendi - disse ele - de que antes não fazia a mínima ideia. Cest une invention três fine, três spirituelle, de la part de Dieu, como dizia do amor o tio Fernand. É isto: não se pode ter tudo. Eu sozinho nunca daria com isto. É de facto uma ideia original. Mas sabem, realmente, Ele é três fin, três spirituel, o Senhor!
As duas irmãs empertigaram-se como se tivessem recebido um elogio. Ambas, como já se disse, frequentavam assíduas a igreja, e a palavra do irmão sempre teve um grande peso para elas.
- Mas, sabem? - disse Morten subitamente - aquele cachorrinho insolente da tia Adelaide, o Fingal, esse eu vi.
- Como foi? - perguntou Fanny - conta.
- Foi quando eu estava absolutamente só - disse Morten - quando o meu navio naufragou nos recifes do Sable. Três de nós conseguimos salvar-nos num escaler, mas não tínhamos água. Os outros morreram, e eu acabei por ficar só.
- Em que pensaste então? - perguntou Fanny.
- Sabem?, pensei em vocês - disse Morten.
- E o que pensaste de nós?-perguntou ainda Fanny em voz baixa. Morten respondeu:
- Pensei: nós não passamos de amadores, quando dizíamos não. Mas Deus sabe dizer não. Meu Deus, se Ele o sabe! Até julgarmos que nem Ele será capaz de continuar assim. Mas Ele persiste, e mais uma vez diz não.
- Já havia pensado muito nisso, dantes - disse Morten - em Elsinore, nesses dias antes do meu casamento. E agora continuamente penso nisso. Pensei nessas grandes, puras e belas coisas que nos dizem não. Porque haveriam elas de dizer-nos sim, e tolerar as nossas carícias insípidas? A quem nos diz sim, nós dominamos, arruinamos e abandonamos, para descobrirmos, quando as deixamos, que nos davam repugnância. A terra diz sim aos nossos planos e às nossas obras, mas o mar diz não; e nós, nós amamos sempre o mar. E ouvir Deus dizer não, na calmaria, com a Sua própria voz, faz-nos muito bem. O céu estrelado surgiu ali, e também ele disse não. Qual mulher altiva e nobre.
- E foi então que viste o Fingal? - perguntou Elisa.
- Foi - disse Morten. - Mesmo nessa altura. Quando voltei levemente a cabeça, o Fingal estava sentado comigo no escaler. Vocês sabem que ele sempre foi um cãozinho com mau génio, e nunca gostou de mim porque eu o fazia arreliar. Sempre me mordia se eu me aproximava. Não ousei tocar-lhe quando o vi no bote. Tive medo que ele me desse outra dentada. Mas ele lá estava, sentadinho, e ficou junto a mim toda essa noite.
- E desapareceu depois? - perguntou Fanny.
- Não sei, minha querida - disse Morten. - Uma escuna americana, que rumava à Jamaica, recolheu-me já de manhã. Ia a bordo um homem que tinha querido comprar o meu navio no leilão de Philipsburg. E assim foi que me enforcaram - foi o meu fim, como tu dizes - em Havana.
- Custou-te? - perguntou Fanny num murmúrio.
- Não, minha pobre Fanny - disse Morten.
- Estava lá alguém contigo? - murmurou Fanny.
- Sim, estava lá um padre jovem, gordo - disse Morten. - Tinha medo de mim. Se calhar tinha ouvido falar mal de mim. Mas, vá lá, deu o seu melhor. Eu perguntei-lhe: «Pode obter-me, agora, mais um minuto de vida?» Ele disse: «Que vai fazer com um minuto de vida, meu pobre filho?» Eu disse: «Vou pensar, com o baraço já em volta do pescoço, por um minuto, na Belle Eliza».
Enquanto ficavam agora em silêncio por momentos, ouviam a gente que passava na rua por baixo da janela, e conversava. Por entre as gelosias podiam seguir o brilho fugidio das lanternas.
Morten recostou-se na cadeira, e parecia agora às irmãs mais velho e fatigado. Parecia-se, na verdade, e muito, com o pai, quando o velho De Coninck voltava cansado do escritório e era um prazer para ele sentar-se tranquilo na companhia das filhas.
- Está-se muito bem aqui, nesta sala - disse ele - é tal e qual como nos velhos tempos... não acham? Com o papá e a mamã lá em baixo. Nós três ainda não estamos muito velhos. Ainda somos bonitos.
- O círculo está de novo completo - disse Elisa mansamente, numa das suas frases antigas.
- Está completo, Lizzie - disse Morten, sorrindo para ela.
- O círculo vicioso - disse Fanny automaticamente, lembrando outro dos seus termos familiares.
- Sempre foste - disse Morten - uma rapariguinha tão inteligente.
A estas palavras amáveis e directas, Fanny, impetuosamente, susteve a respiração.
- E, oh meninas - exclamou Morten - como nós suspirávamos então, estranhamente, por fugirmos de Elsinore!
A irmã mais velha de súbito rodou todo o corpo na cadeira e encarou-o de frente. O seu rosto estava mudado numa careta de dor. A longa vigília e a tensão começavam a ser evidentes, e a voz com que falou era rouca e insegura, como se ela a fosse buscar ao mais fundo do seu peito.
- Sim - exclamou ela - tu falas bem! Mas queres ir-te embora outra vez e deixar-me aqui. Tu! Tu estiveste nesses grandes mares de águas quentes de que falas, estiveste em mais de cem países. Casaste com cinco mulheres... Ah, que sei eu! Para ti é fácil falar com calma, e ficar aí sentado e quieto. Nunca precisaste de agitar os braços para te aqueceres. Nem precisas agora!
A sua voz soçobrou. Gaguejando, fincou os dedos no bordo da mesa.
- E aqui - gemeu ela num grito - eu tenho frio! O mundo à minha volta é um gelo. Tenho tanto frio à noite, na minha cama, que nem as botijas me dão calor!
Neste momento o alto relógio de escada começou a bater as horas, porque Fanny lhe havia dado corda nessa tarde. Bateu a meia-noite num compasso grave e lento, e Morten rapidamente ergueu os olhos para ele.
Fanny quisera continuar a falar, aliviando dos seus ombros, finalmente, todo o peso de uma vida, mas sentiu uma opressão no peito. Não podia a sua voz sobrepor-se à do relógio, e a sua boca abriu-se e fechou-se duas vezes sem que dela se ouvisse um som.
- Ah, que inferno - bradou - que inferno!
Como não podia falar, estendeu os braços para o irmão, tremendo. Às pancadas do relógio a face do irmão surgia-lhe cinzenta e indistinta, e um pânico horrível se apossou dela. Era para isto que ela tinha dado corda ao relógio! Atirou-se ao encontro do irmão, por sobre a mesa.
- Morten! - gritou num uivo longo. - Irmão! Espera! Ouve! Leva-me contigo!
Quando soou a última badalada e o relógio voltou ao seu tiquetaque, como se quisera prosseguir fazendo alguma coisa, fosse ela qual fosse, por toda a eternidade, a cadeira entre as duas irmãs ficou vazia, e Fanny, ao vê-la deixou-se cair sobre a mesa.
Ficou assim por longo tempo, sem se mover. Da noite invernosa, de muito longe, lá do Norte, veio um ressoar como o eco de um tiro de canhão. Os filhos de Elsinore bem sabiam o seu significado: era o gelo quebrando-se algures, abrindo uma larga fenda.
Fanny pensou, sombria, ao fim de um longo momento: «em que estará a Elisa a pensar?» e num esforço levantou a cabeça, ergueu os olhos, e secou os lábios com o lencinho. Elisa sentava-se, imóvel, à sua frente, no lugar que sempre ocupara. Unia sobre o peito as longas fitas da touca, como se puxasse uma corda, e Fanny lembrou-se de a ter visto assim, há muitos, muitos anos, quando se irritava, puxar as tranças louras. Elisa ergueu os olhos descoloridos e fitou a irmã.
- Pensar - disse então - pensar, com o baraço já em volta do pescoço, por um minuto, no La Belle Eliza.
OS SONHOS
Numa noite de lua cheia de 1863 um dhou vogava entre Lamu e Zanzibar, costeando a cerca de uma milha da praia.
Levava pandas, as velas ao vento da monção, e carregava um frete de marfim e corno de rinoceronte. Este último é artigo muito apreciado pelas suas propriedades afrodisíacas, e os mercadores chegam a Zanzibar vindos até da longínqua China. Mas para além destas cargas trazia o dhou também uma outra, essa secreta, que iria em breve desencadear grandes forças e de que as regiões adormecidas por onde ele ia passando não suspeitavam sequer.
A noite calma era desconcertante no seu profundo silêncio, na sua grande paz, como se alguma coisa tivesse acontecido ao mundo; como se a alma do mundo se tivesse por magia confundido. Os ventos favoráveis da monção chegavam de longes terras, e o mar rolava, sob o seu poder seguindo a eterna viagem, à luz baça da Lua. Mas o brilho do luar nas águas era tão vivo que já parecia que a luz do mundo irradiava do mar para depois reflectir-se no céu. As ondas eram como sólidas, e quase se poderia em segurança caminhar sobre elas, enquanto era no céu vertiginoso que nos arriscávamos a cair e afundar, em abismos turbulentos e infinitos, em mundos de prata, ora cintilantes, ora empanados de sombra, que se moviam, se transformavam, se acastelavam, imponderáveis, lentos.
Os dois escravos seguiam à proa na imobilidade das estátuas, e os seus corpos, nus até à cintura no calor da noite, eram cinzentos da cor do ferro, como esse mar onde a Lua não brilhava, e só as sombras nítidas correndo-lhes nas costas e nos braços destacavam as suas formas na planura vasta. O gorro vermelho de um deles tinha a cor baça de uma ameixa madura ao luar. Mas uma ponta da vela, ao captar a luz, resplendia como o branco ventre de um peixe morto. O ar era o de uma estufa, e tão húmido que as tábuas e o cordame do navio exsudavam um salgado orvalho. As águas fundas cantavam, murmuravam da popa à proa.
No convés de ré ia suspensa uma pequena lanterna, e três homens se agrupavam ali à sua volta.
O primeiro era o jovem Said Ben Ahmed, o filho da irmã de Tippo Tip e sobrinho bem-amado do grande homem. Estivera, por traição dos seus rivais, preso no Norte por dois anos e fugira alcançando Lamu por muitos e estranhos caminhos. Agora estava aqui, ignorado do mundo, rumando à terra natal para se vingar dos inimigos. Era o desejo de vingança no coração de Said que, mais poderoso que a monção, impelia na verdade aquele barco, sendo vela e lastro para o dhou. Se eles soubessem que esta noite Said navegava rumo a Zanzibar, muitos dos grandes se apressariam a reunir os bens e o serralho e a debandar antes que fosse tarde. Da vingança que Said tomou afinal, outros contos se ocuparam.
Ia sentado o jovem de pernas cruzadas, o tronco inclinado para a frente, as mãos soltamente enlaçadas descansando nas tábuas do convés, imerso em pensamentos.
O segundo e o mais velho do grupo era um homem de grande nomeada, o famoso contador de histórias Mira Djama, cuja inventiva de espírito mais de cem tribos amavam. Sentava-se com as pernas cruzadas, como Said, e de costas voltadas para a Lua, mas a noite era clara o suficiente para revelar que, num recontro qualquer com o seu destino, lhe haviam sido cortados cerce o nariz e as orelhas da cabeça escura. Ia pobremente vestido, mas ainda conservava um certo cuidado na aparência. À volta do corpo magro tinha um lenço de seda grossa, carmesim e desbotada, que por vezes, num movimento do velho, fulgurava brilhando à luz da lanterna como o fogo ou os mais puros rubis.
O terceiro homem era um inglês ruivo, de nome Lincoln Forsner, a quem os nativos da costa chamavam Tembu, o que pode significar tanto marfim como álcool, conforme o capricho do momento. Lincoln era filho de uma família abastada do seu país, e fora impelido por muitos ventos para o dhou onde esta noite seguia, deitado de bruços no convés, vestido com uma camisa árabe e largas calças indianas, mas ainda bem barbeado e com as suíças de um gentleman. Ia mascando as folhas secas que os Suaílis chamam murungu e que os mantêm acordados e de excelente disposição; de tempos a tempos cuspia-as para longe. Estava comunicativo. Juntara-se à expedição de Said pelo amor que tinha ao rapaz, e também por ver o que a empresa lhe traria, outra de tantas que vivera em diferentes partes do mundo. O seu coração ia alegre. Gostava muito de andar de barco, e achava prazer na noite cálida, na lua cheia, na velocidade.
- Como é isto, Mira? - disse ele - Não nos contas uma história esta noite enquanto navegamos? Costumavas ter tantas histórias, daquelas que gelam o sangue nas veias e nos fazem ter medo de confiar nos nossos melhores amigos; histórias boas para as noites quentes e para os homens que partem em grandes demandas. Já não tens mais histórias?
- Não, já não tenho mais histórias, Tembu - disse Mira - o que, só por si, é uma triste história, boa para os que partem em grandes demandas. Fui outrora um contador de histórias e especializei-me naquelas que fazem gelar o sangue. Demónios, venenos, traições, torturas, trevas e loucura: estas eram as mercadorias de Mira.
- Lembrei-me agora de uma das tuas histórias - disse Lincoln. - Fiquei aterrado com ela, e ficaram aterradas duas jovens dançarinas de Lamu, que realmente não precisavam de ter assim tanto medo, e olha que não pregámos olho em toda a noite. O Sultão queria uma verdadeira virgem, e depois de muitos trabalhos uma virgem foi encontrada, nas montanhas e trazida ao Sultão. Mas ele viu...
- Sim, sim.
Mira retomava a história, e todo o seu rosto subitamente se inflamou, os olhos pretos luziram e as mãos ganharam vida, à boa maneira das comadres, quais velhas dançarinas chamadas pelo som da flauta das profundezas de um cesto.
- O Sultão queria uma verdadeira virgem, uma virgem como homem nenhum tivesse ouvido nomear. Com muitos trabalhos a trouxeram do reino das Amazonas, nas montanhas, onde todas as crianças do sexo masculino são mortas pelas mulheres que, sozinhas, travam desvairadas guerras. Mas quando o Sultão entrou nos aposentos, no umbral da porta ficou a vê-la olhar na janela para um jovem aguadeiro por ali andando no palácio, e ouviu-a dizer para consigo: «Ah, eu vim para um bom lugar e aquela criatura ali deve ser Deus, ou um anjo forte, aquele que arremessa o raio. Não me importava de morrer agora, pois vi o que jamais alguém viu.» E nesse momento o jovem aguadeiro ergueu os olhos também e ali ficou especado, os olhos fitos na donzela. Veio ao Sultão uma grande tristeza, e mandou que sepultassem vivos o rapaz e a donzela, num caixão de mármore tão largo como um leito nupcial, sob uma palmeira do jardim; e sentando-se ele à sombra dessa árvore, pensava em muitas coisas com espanto, e em como ele não satisfazia nunca os desejos do próprio coração, e ali ficava um rapazinho tocando flauta para ele. Foi esta a história que um dia tu ouviste.
- Sim, mas foi mais bem contada da outra vez - disse Lincoln.
- Foi - disse Mira - e o mundo não podia então viver sem Mira. As pessoas gostavam de experimentar o medo. Os grandes príncipes, fartos da doçura da vida, queriam sentir de novo o sangue pulsar nas suas veias. As mulheres honestas, a quem nada jamais acontece, ansiavam por tremer nas suas camas uma só vez que fosse. As dançarinas recebiam a inspiração de um passo mais ligeiro nas histórias de fugas e perseguições. Ah, como eu era amado pelo mundo nesse tempo! Então eu era belo, tinha as faces redondas. Bebia nobres vinhos, cobria-me de panos bordados a ouro e usava o âmbar, e o incenso ardia junto de mim.
- Mas como sucedeu esta mudança em que estás? - perguntou Lincoln.
Ai de mim! - disse Mira, mergulhando já nos seus modos tranquilos de antes. - Com o viver fui gastando a capacidade de sentir o medo. Quando conhecemos as coisas como na realidade são, não podemos fazer poemas sobre elas. Quando já conversámos com fantasmas e fomos aliados dos demónios, temos afinal mais medo dos credores do que deles; e quando já estamos encornados que nos importa o medo de um dia o sermos. Eu conheço tão de perto a vida que ela já não pode iludir-me em crer que uma coisa será muito pior que outra qualquer. O dia e a treva, o amigo e o inimigo - eu sei que tudo é quase a mesma coisa. Como poderemos provocar o medo nos outros se nós próprios já esquecemos o que é o medo? Antes eu tinha uma história trágica, realmente, uma bela história, cheia de agonia, muito apreciada, a história de um homem a quem no fim cortam o nariz e as orelhas. Agora já não posso assustar ninguém com ela, mesmo que o quisesse, pois agora eu sei que passar sem nariz e sem orelhas não é muito pior que tê-los. E por isso que me vês aqui, só pele e osso, vestido de farrapos, seguindo Said na miséria e na prisão, em vez de me acercar do trono dos poderosos, farto na riqueza e na lisonja, como foi o jovem Mira Djama.
- Mas não podias, Mira - perguntou Lincoln - inventar uma história terrível de miséria e solidão?
- Não podia - disse com altivez o contador de histórias. - Não é esse o género de histórias que Mira Djama conta.
- Pois não - disse Lincoln, voltando-se de lado - mas o que é a vida, Mira, afinal, senão uma excelente máquina, de uma complexidade infinita, cuidadosamente montada, que transforma os cachorrinhos gordos e brincalhões em cães velhos, cegos, e cobertos de sarna, ou altivos ginetes em cavalicoques magros, ou rapazes suculentos, para quem o mundo encerra só delícias e terrores, em velhos fracos, de olhos remelosos, que bebem corno moído de rinoceronte?
- Ah, Lincoln Forsner - disse o mutilado contador de histórias - o que é o homem afinal senão uma engenhosa máquina, minuciosamente montada, que transforma, com infinita astúcia, o vinho tinto de Shiraz em urina? E qual dos dois é o desejo maior e o prazer mais intenso: beber ou urinar? Mas, entretanto, o que se fez? Uma canção foi escrita, um beijo foi roubado, um caluniador foi morto, uma sentença justa lavrada, uma gargalhada surgiu. O mundo foi beber ao jovem Mira, o contador de histórias. E Mira subiu-lhe à cabeça, correu nas suas veias, fê-lo irradiar calor e colorido. Agora ando percorrendo o resto; o meu efeito já passou. O mundo em breve terá o mesmo prazer em me expelir, em me urinar, e só sei que já eu próprio anseio pelo fim. Mas as histórias que eu lhe contava, essas, hão-de viver.
- E que fazes entretanto, para lhe mostrares assim tão bondoso o rosto, nesta urgência que o mundo tem de se ver livre de ti? - perguntou Lincoln.
- Sonho - disse Mira.
- Sonhas? - retorquiu Lincoln.
- Sim, pela Graça de Deus - disse Mira. - Todas as noites, assim que adormeço, eu sonho. E em sonhos conheço ainda o medo. As coisas são ainda terríveis para mim. Em sonhos levo por vezes uma coisa que me é infinitamente cara e preciosa, como eu bem sei que não podem ser as coisas reais, e em sonhos sei que devo conservá-la à custa de um perigo horrível, como não existem perigos assim no mundo real. E parece-me também que hei-de ser jogado ao chão e aniquilado se a perder, embora eu saiba muito bem que, no mundo de hoje, não se é jogado ao chão e aniquilado por maior tesouro que se perca. Nos meus sonhos a treva é habitada por horrores indescritíveis, mas há fugas também e perseguições que me dão extraordinário prazer.
Ficou por momentos em silêncio o velho.
- Mas o que mais prazer me dá nos sonhos - prosseguiu - é que o mundo a si mesmo se cria à minha volta, sem qualquer esforço da minha parte. Aqui, agora, se eu quero ir a Gaza, tenho de regatear o aluguer de um barco, e comprar e carregar as provisões, manobrar contra o vento, e até ferir as mãos nos remos. E depois, quando chegar a Gaza, que vou eu lá fazer? Também nisso eu tenho de pensar. Mas nos meus sonhos acho-me a subir uma longa série de degraus de pedra que saem do mar. Estes degraus eu não vira antes, e no entanto eu sinto que subi-los é uma grande felicidade, e que eles me hão-de conduzir a algum prazer extraordinário. Ou acho-me a caçar numa longa fila de cabeços, e tenho gente comigo, empunhando os arcos e as setas, e cães presos pela trela. Mas o que vou caçar não sei, nem a razão de estar ali. Uma vez entrei num quarto por uma varanda, estava o dia amanhecendo, e sobre o chão de pedra vi duas pequenas sandálias de mulher, e nesse preciso momento pensei: são as dela. E ao pensá-lo o meu coração encheu-se de júbilo, embalado em serenidade. Mas nenhum esforço eu fizera. Não entrara em despesas para ter essa mulher. E de outras vezes tenho consciência de que só uma porta me separa de um homem grande e preto, muito preto, que me quer matar, mas eu nada fiz para que este homem ficasse meu inimigo, e eu espero que o sonho, ele próprio, me indique a maneira de fugir-lhe, pois eu sozinho não acho forma de o fazer. O céu, nos meus sonhos, e particularmente depois de ter estado na prisão com Said, é sempre muito alto, e quase sempre me vejo a mim mesmo como uma pequena figurinha numa grande paisagem, ou numa casa enorme. Em tudo isto não teria prazer um homem novo; mas a mim, agora, dá-me um prazer igual ao de urinar quando já não se acha prazer no vinho.
- Eu não sei, Mira; raramente sonho - disse Lincoln.
- Ah, Lincoln, possas tu viver para sempre! - disse o velho Mira. - Tu sonhas de facto mais do que eu próprio. Pois não reconheço eu os homens que sonham, se os encontro? Tu sonhas acordado, e enquanto vais seguindo. Tu próprio nada farás para escolher o teu caminho: deixas que o mundo se forme à tua volta, e depois abres os olhos para veres onde te encontras. Esta jornada em que vais, nesta noite, é um sonho teu. Deixas que as ondas do destino te levem, e amanhã hás-se abrir os olhos para veres onde estás.
- Para ver a tua cara linda - disse Lincoln.
- Tu sabes, Tembu - disse Mira de súbito, após um silêncio - que, se ao plantares um cafezeiro, dobrares a raiz principal, a árvore começará, pouco depois, a criar um sem-número de pequenas raízes delicadas junto à superfície. Será sempre uma plantinha frágil, sem frutos, mas há-de florescer mais opulenta que as outras.
Essas delicadas raízes são os sonhos da árvore. Quando elas nascem já a planta não precisa de pensar na sua raiz-mestra que ficou torcida. É delas que vive agora - por pouco tempo viverá, porém. Ou podes dizer que é por elas que morre, se quiseres. Porque, na realidade, sonhar é a forma de suicídio das pessoas bem-educadas.
Se queres dormir à noite, Lincoln, não deves pensar, como os outros dizem, numa longa fila de carneiros ou de camelos passando uma cancela, porque eles seguem numa só direcção, e os teus pensamentos hão-de acompanhá-los. Deves antes pensar num imenso poço. No fundo desse poço, mesmo ao meio, jorra uma nascente e a água escorre em fios para todas as direcções possíveis, como os raios de uma estrela. Se conseguires que os teus pensamentos acompanhem os movimentos dessa água, não numa só direcção, mas igualmente em todas elas, hás-de adormecer. Se conseguires que o teu coração o faça inteiramente, como a árvore do café às pequenas raízes da superfície, encontrarás a morte.
Então é esse o meu mal, querer esquecer a minha raiz mestra? - perguntou Lincoln.
- Sim - disse Mira - deve ser isso. A menos que tu, como tantos dos teus compatriotas, nunca a tenhas tido.
- A menos que seja isso - disse Lincoln. Navegaram depois por algum tempo em silêncio. Um escravo pegou numa flauta e tirou algumas notas, a experimentá-la.
- Porque não diz Said uma palavra? - perguntou Lincoln a Mira.
Said ergueu um pouco os olhos e sorriu, mas não falou.
- Porque está a pensar - disse Mira. - Esta nossa conversa parece-lhe muito insípida.
- Em que está ele a pensar? - perguntou Lincoln. Mira reflectiu brevemente e respondeu:
- Bom, só há duas linhas de pensamento que são dignas de uma pessoa com alguma inteligência. Uma delas é: Que irei fazer agora, neste momento? Ou esta noite?, ou amanhã? E a outra é: Que desígnio teve Deus ao criar o mundo, o mar e o deserto, o cavalo, os ventos, a mulher, o âmbar, os peixes e o vinho? Said pensará em uma destas coisas.
- Talvez sonhe - disse Lincoln.
- Não - disse Mira, passado um instante. - Said não. Ainda não sabe sonhar. O mundo está agora a bebê-lo. Ele está subindo à cabeça do mundo e correndo no seu sangue. Quer controlar as pulsações do coração do mundo. Não está a sonhar, mas talvez esteja a rezar a Deus. Quando se deixa de rezar a Deus - isto é, quando em nós despontam as raízes de superfície - então é o tempo de começarmos a sonhar. Said pode estar a rezar a Deus esta noite, lançando a sua oração ao Senhor com tanta energia como a que há-de ter o Anjo que, no dia derradeiro, lançar ao mundo o som da sua trombeta, com a mesma energia com que o elefante cobre a fêmea. Said diz a Deus: «Deixa que eu seja o mundo inteiro.»
- Ele diz - continuou Mira, momentos depois - «Não usarei de misericórdia nem peço misericórdia». Mas é aí que Said se engana. Ele usará de misericórdia enquanto se ocupar de todos nós.
- Já sonhaste duas vezes com o mesmo lugar? - perguntou Lincoln pouco depois.
- Já, já - disse Mira. - É uma grande Graça de Deus, e a alma do homem que sonha rejubila. Volto, após longo tempo, em sonhos, ao lugar de um velho sonho, e o meu coração desfalece de
alegria.
Navegaram por algum tempo sem que um dos dois falasse. Então, subitamente, Lincoln mudou de posição, sentou-se, e cuidou do seu conforto. Cuspiu para o convés o último pedaço de murungu, enfiou o braço num bolso e ocupou-se depois a enrolar um cigarro.
- Vou eu contar-te uma história esta noite, Mira - disse ele - visto não teres nenhuma. Fizeste-me recordar coisas passadas há muito. Foram tantas as histórias que o teu mundo ofereceu ao nosso, e quando era pequeno eu gostava muito de as ouvir. Agora vou contar-te esta, para dar prazer aos teus ouvidos e alguma coisa ensinar ao coração de Said. Nela se fala de como eu, há vinte anos, aprendi (como tu dizes, Mira) a sonhar, e da mulher que me ensinou a fazê-lo. Aconteceu tal como vos contarei. Mas, quanto aos nomes e aos lugares, e particularidades dos países em que se passou, e que vos podem parecer muito estranhos, nenhuma explicação vos darei. Entendam ambos dela o que puderem, e não se detenham no resto. Não é de todo mau que de uma história se compreenda apenas a metade.
Há vinte anos atrás, era eu um jovem de 23 anos, sentava-me, numa noite de Inverno, na sala de um hotel entre montanhas, ao abrigo da neve, da tempestade, das grandes nuvens, e de uma Lua errante.
O continente europeu, de que já ouviste falar, compõe-se de duas partes, uma delas sendo mais aprazível que a outra, e estas duas estão separadas por altas e escarpadas cadeias montanhosas. Só se pode atravessá-las em alguns lugares onde as formações montanhosas são talvez menos hostis e aí, à custa de muitos perigos, foram abertos caminhos que as atravessam. Um desses caminhos ficava junto ao hotel em que me hospedara. Era uma estrada aberta na rocha, que peões percorriam, cavalos e mulas e até carruagens, e no cimo do desfiladeiro, onde, após uma subida laboriosa, maldizendo a nossa sorte, começamos a descer ao encontro da doçura desse ar que nos beija o rosto e os pulmões, uma irmandade de homens santos construirá uma grande casa para o repouso dos viajantes. Eu vinha do Norte, onde tudo é frio e morto, e seguia para um Sul de volupias e de azuis. Esse hotel era a última paragem antes da íngreme jornada até ao cimo do desfiladeiro, que eu queria vencer no dia seguinte. Apenas tinha começado a estação do ano propícia às viagens neste lugar. Raros se atreviam a meter-se à estrada, e no topo das montanhas a neve era espessa ainda.
O mundo via em mim um rapaz rico, bonito, estúrdio, em busca de prazeres e nessa demanda rodeado do bom e do melhor. Mas na verdade eu ia arrastado em vaivém pelo remoinho do meu coração sofrido, eu era um pobre diabo que partira buscando em vão uma mulher.
Sim, Mira, uma mulher, acredites ou não. Já antes a procurara em muitos e variados lugares. Com efeito, era tão inútil a perseguição que eu teria desistido certamente se estivesse em meu poder fazê-lo. Mas a minha pobre alma, meu estimado Mira, habitava no peito dessa mulher.
E ela não era uma rapariga da minha idade. Era muito mais velha do que eu. Dela eu nada sabia, excepto o que me era doloroso aceitar, e, o que era o pior de tudo, eu não tinha quaisquer motivos para esperar que ela ficasse muito satisfeita em ver-me se algum dia alcançasse encontrá-la.
Tudo começou assim: Meu pai era um homem muito rico de Inglaterra, dono de grandes fábricas e de uma linda propriedade no campo, pai de muitos filhos e homem de grande capacidade de trabalho. Lia muito a Bíblia - o nosso Livro Santo - e acabara por julgar-se o único vigário de Deus na Terra. Realmente eu nem sei se ele seria capaz de distinguir entre o temor de Deus e a sua egolatria. Era seu dever, pensava ele, transformar o mundo caótico num universo de ordem e velar para que todas as coisas se tornassem úteis - o que era o mesmo que dizer: úteis para ele mesmo. Do seu carácter eu sei que duas coisas ele não podia controlar: tinha, muito contra os seus princípios, um grande amor pela música, particularmente pela ópera italiana; e às vezes não conseguia adormecer. Mais tarde minha tia, irmã de meu pai, e que não gostava nada dele, contou-me que na juventude, passada nas índias Ocidentais, meu pai levara um homem ao suicídio, ou o matara por suas mãos. Talvez isto fosse o que não o deixava dormir. Eu e a minha irmã gémea éramos muito mais novos do que os nossos irmãos. Que bicho mordera a meu pai não sei, que o fizera conceber mais dois filhos quando já tinha acabado quase de criar os outros. No Dia do Juízo hei-de perguntar-lhe porquê. Às vezes penso que era realmente o fantasma desse homem das índias Ocidentais que o perseguia.
Meu pai não gostava de nada que eu fizesse. Acabei, penso eu, por me tornar o seu tormento constante, e, não fora eu de sua manufactura, estou certo de que teria prazer em que eu levasse um mau fim. Sentia-me, enquanto «o meu filho Lincoln», sempre deformado, puxado, batido, moldado, na sua vontade de fazer de mim coisa útil entre a uma hora e as três da madrugada. Nestas horas eu geralmente mergulhava no ruído e na agitação, pois já era oficial de um regimento elegante do exército e ali, para manter o meu prestígio entre os filhos das mais antigas famílias do país, gastava muito do dinheiro, do tempo e da inteligência que meu pai se achava com direito a reclamar para si.
Por esta altura morreu um vizinho nosso, deixando uma viúva ainda jovem. Ela era bonita e rica, e fora infeliz no casamento; consolara-se das suas provações dedicando uma amizade sentimental à minha irmã gémea, que era tão parecida comigo que, se eu vestisse as suas roupas, ninguém poderia distinguir-nos um do outro. Por isso meu pai era de opinião que esta senhora havia de consentir em casar-se comigo, e aliviá-lo a ele do fardo que eu era nos seus ombros. Não tinha por que não me convir este noivado, que eu pouco esperava então da vida. Apenas pedi a meu pai o seu consentimento para fazer uma viagem pela Europa durante o ano de luto dessa senhora. Nesse tempo eu tinha várias inclinações fortes - o vinho, o jogo, as lutas de galos, e a companhia dos ciganos - bem como a paixão pelas discussões teológicas, que herdara de meu pai, e todas elas meu pai me aconselhava a abandonar antes do casamento com a viúva, ou, pelo menos, a esconder enquanto ela estivesse a tempo de voltar atrás. Como sabia que eu era impetuoso e ardente nas minhas ligações amorosas, creio que meu pai receava também que eu pudesse convencer a minha noiva a ter comigo relações mais íntimas, aproveitando-me da nossa vizinhança campestre, e, talvez, da parecença com minha irmã. Por todas estas razões meu pai acedeu a que eu fosse viajar durante nove meses, na companhia de um seu velho condiscípulo que vivera da sua caridade e a quem lhe aprouve dar, por este meio, alguma serventia.
Deste homem, porém, cedo me libertei, pois quando chegámos a Roma ele deu em estudar os antigos mistérios priápicos de Lampsacus e eu pude bem gozar a vida.
Mas no quarto mês do meu ano de graça aconteceu que me apaixonei por uma mulher num bordel de Roma. Costumava frequentá-lo à noite com um grupo de teólogos. Não era, evidentemente, um lugar deslumbrante onde os muito ricos vão divertir-se, nem era também uma dessas casas medonhas, frequentadas por artistas e ladrões. Era apenas um bordel respeitável de classe média. Lembro-me da rua estreita onde ficava, e dos muitos cheiros que ali vinham ter. Se alguma vez voltar a senti-los hei-de crer que torno a casa. Devo a esta mulher o ter compreendido, o lembrar-me, ainda hoje, do significado de palavras como lágrimas, coração, saudade, estrelas, que os poetas como tu utilizam. Sim, e quanto às estrelas em particular, Mira, havia nela muita coisa que fazia lembrar uma estrela. Havia a diferença, entre ela e as outras mulheres, que há entre um céu negro de nuvens e um céu estrelado. Talvez também tu tenhas conhecido, ao longo da tua vida, mulheres desta sorte, que têm luz própria e brilham nas trevas, que são fosforescentes como as brasas do carvão.
Quando, no dia seguinte, acordei no meu quarto de hotel em Roma, lembro-me que senti um grande medo. Pensei: Eu estava bêbado ontem à noite; foi uma alucinação; não há mulheres assim. Ao pensá-lo senti todo o meu corpo que ardia e gelava. Mas - pensei ainda, deitado na cama - eu não seria capaz, por mim só, de inventar uma personagem igual a esta mulher. Pois só o maior dos nossos poetas algum dia o fez. Eu não conseguiria imaginar uma mulher com tanta vida, tão grande força. Levantei-me e voltei imediatamente ao bordel, e ali fui encontrá-la ainda, tal como eu a recordava.
Mais tarde vim a saber que a extraordinária impressão de grande força que ela me transmitia era, afinal, um tanto falsa; ela não possuía a força que aparentava. Dir-te-ei que força era aquela.
Se toda a tua vida tivesses enfrentado os ventos e as marés, e subitamente, uma vez única, fosses levado a bordo de um navio que seguisse, como este em que vamos, impelido por grandes correntes e ventos de popa, ficarias sem dúvida muito impressionado com o poder desse navio. Mas seria uma ilusão; e no entanto, de certa maneira, não te enganarias, porque o poder das águas e dos ventos pode bem dizer-se que pertence a tal navio, visto que foi ele, entre todos, o único a saber aliar-se aos elementos. Assim eu fora toda a vida ensinado, sob a égide de meu pai, a manobrar contra os ventos e marés da vida. Nos braços desta mulher eu sentia-me em harmonia com os elementos, erguido e levado pela própria vida. Isto, supunha-o eu então, fora devido à grande força desta mulher. E mesmo assim, nessa época, eu não sabia até que ponto ela se tinha aliado a todas as correntes, todos os ventos da vida.
Depois dessa primeira noite nunca mais nos separámos. Nada me deram, nunca, os amores ortodoxos do meu país, que principiam na sala com banalidades, galanteios e risinhos, continuam com carícias de pés e mãos, e acabam no que é geralmente considerado o clímax, na cama. Este meu amor romano, que tinha começado na cama, propiciado pelo vinho e pela música mais ruidosa, e cresceu e se transformou numa espécie de namoro e de amizade que eu até então desconhecia o que fossem, foi o único amor que me satisfez. Pouco tempo depois acostumei-me a levá-la a sair comigo o dia inteiro, ou por um dia e uma noite. Comprei uma pequena carruagem e um cavalo, e dávamos passeios por Roma e pela Campagna, indo por vezes até Frascati e Nemi. Ceávamos em pequenas estalagens, e nas manhãs, muito cedo, parávamos na estrada, deixando que o cavalo pastasse na berma, enquanto, sentados no chão, bebíamos uma garrafa de vinho tinto, novo, com travo, merendávamos amêndoas e uvas, e olhávamos as muitas aves de rapina que em círculos voavam sobre a grande planície, e cujas sombras corriam, na erva rasteira, ao lado da nossa carruagem. Se havia festa numa aldeia, com lanternas chinesas à volta de uma fonte, na noite clara, ficávamos observando da varanda. Várias vezes, também, íamos até à beira-mar. Foi no mês de Setembro, um bom mês em Roma. O mundo começa a ficar castanho, mas o céu é límpido como a água do monte, e é estranho ver como está cheio de cotovias, e que ali elas cantam nessa altura do ano.
A Olalla tudo isto agradava. Ela tinha muito amor à Itália, e era grande conhecedora dos seus vinhos e dos seus pratos. Por vezes vestia-se de gala, no júbilo de um arco-íris de caxemiras e plumas, como a amante de um príncipe, e então nenhuma inglesa se lhe comparava; mas também era capaz de usar a capucha de linho das italianas, e dançar nas aldeias à moda da região. E não havia dançadeira mais forte do que ela e mais graciosa, embora ela preferisse ficar sentada ao meu lado a vê-las dançar. Olalla era extraordinariamente sensível às impressões. Em todos os lugares ela observava muito mais coisas do que eu, que toda a vida fui um amante da Natureza. Mas, no entanto, não parecia haver para ela uma diferença grande entre alegria e dor, ou entre o que era triste ou agradável. A tudo ela acolhia por igual, como se no íntimo soubesse que tudo era a mesma coisa.
Uma tarde em que voltávamos a Roma, já o Sol se punha, Olalla, de cabeleira ao vento, sem chapéu, conduzia o cavalo e fazia estalar o chicote, incitando-o a galopar.
A brisa afastava os longos caracóis castanhos da sua face, e mostrava-me de novo uma longa cicatriz de uma queimadura que, pequena e alva serpente, ia da orelha direita à omoplata. Perguntei-Ihe nesse dia mais uma vez como lhe acontecera ficar tão queimada. Nunca me respondia, e agora começava a falar dos grandes homens, negociantes e prelados, que se apaixonavam por ela, até que eu, rindo, lhe disse que ela não tinha coração. Ao ouvir-me ficou silenciosa, enquanto seguia à desfilada, a forte luz do sol batendo em cheio nos nossos rostos.
- Ah, tenho - disse por fim - tenho coração. Mas está sepultado no jardim de uma pequena villa branca nos arredores de Milão.
- Para sempre? - perguntei.
- Sim, para sempre - disse ela - porque esse é o mais lindo lugar.
- O que há - perguntei-lhe, devorado pelo ciúme - nessa pequena villa branca para ali te prender o coração para sempre?
- Não sei - disse ela. - Já não deve haver muito, porque ninguém vai mondar o jardim ou afinar o piano. Pode ser que estranhos nela vivam agora. Mas há o luar, quando a Lua sobe, e as almas dos mortos.
Ela muitas vezes falava deste modo vago e caprichoso, e era tão graciosa, tão gentil, quase humilde assim, que eu sempre ficava enfeitiçado. Gostava muito de agradar, e era capaz de grandes esforços para o conseguir, mas não como uma criada, rígida pelo tanto medo de afinal desagradar, antes como alguém muito rico, a cumular-nos de benesses saídas de um corno de abundância. Como a leoa domesticada, de fortes garras e dentes possantes, ela insinuava-se nas boas graças de todos. Às vezes mais me parecia uma criança, e logo depois uma velha, como aqueles aquedutos construídos há mil anos projectam longas sombras pela terra, de paredes majestosas, antiquíssimas, fendidas, brilhando como âmbar à luz do sol da Campagna. A seu lado eu sentia-me como uma coisa nova no mundo, embrutecido, um rapazinho, e tolo. E sempre ela tinha um não sei quê, que me fazia acreditá-la muito mais forte do que eu. Tivera a certeza de que ela podia voar, e voando me fugira, a mim e à Terra, sempre que quisera, que havia de sentir a mesma coisa, creio eu.
Foi só no fim desse mês de Setembro que eu comecei a pensar no futuro. Percebi então que não podia viver sem ela. Se tentasse afastar-me de Olalla o meu coração, pensava eu, correria para ela como a água da nascente para o vale. Por isso pensei que devia casar-me com ela e trazê-la comigo para Inglaterra.
Se quando a pedi em casamento ela tivesse levantado a mínima objecção, eu não me teria sentido tão transtornado pelo que ela me fez depois. Mas ela disse logo que sim, que me acompanharia. E foi então mais caridosa, mais doce do que antes, e conversávamos sobre o que seria a nossa vida em Inglaterra, rindo muito de tudo. Falei de meu pai, e contei-lhe que ele sempre fora um entusiasta da ópera italiana, o que era o melhor que eu podia achar nele que dizer. Sabia, ao falar com ela destas coisas, que nunca mais o meu país me causaria tédio.
Foi por essa altura que, pela primeira vez, eu reparei, onde quer que me aproximasse de Olalla, numa figura de homem que antes eu não vira. A princípio não lhe atribuí muita importância, mas ao fim do sexto ou sétimo encontro ele começou a ocupar-me os pensamentos e a provocar em mim um estranho mal-estar. Era um judeu de cinquenta ou sessenta anos, de fraca figura, sumptuosamente vestido, as mãos cobertas de diamantes, e com os modos requintados de um homem de sociedade. Era pálida a sua cor, e muito negros os seus olhos. Nunca o vi com Olalla ou no bordel, mas tropeçava na sua presença quando lá entrava ou de lá saía, de modo que me parecia que ele girava em torno dela como a Lua em volta da Terra. Desde logo pressenti nele, com íntima certeza, qualquer coisa de extraordinário, ou não teria tido a ideia, que me tirava o sossego, de que ele tinha algum poder sobre Olalla e era o seu espírito maligno. Acabei por tomar tanto interesse nele, que mandei o meu criado italiano a descobrir pormenores no hotel em que vivia, e assim fiquei a saber que o homem era um judeu holandês, fabulosamente rico, e que o seu nome era Marcus Cocoza.
Tanto me intrigava o que essa personagem teria que fazer na rua de Olalla, e a razão por que assim aparecia e desaparecia, que acabei, quase contra minha vontade - pois temia o que Olalla pudesse dizer-me - por perguntar-lhe se o conhecia. Levou ela dois dedos ao meu queixo e ergueu-mo.
- Não notaste ainda, caríssimo - perguntou - que eu não tenho sombra? Um dia vendi a minha sombra ao Diabo em troca de um pouco de alegria, de alguma paz. Esse homem que tens visto lá fora, perspicaz como és, adivinharás facilmente que outro não é que a minha sombra, à qual já nada me liga. O Diabo às vezes deixa que a sombra erre por aí. E a sombra, naturalmente, tenta voltar para mim e deitar-se a meus pés como antigamente. Mas eu não deixarei jamais que ela o faça. O Diabo podia vir desfazer o trato, se eu o permitisse! Não te preocupes com esse homem, minha estrelinha.
Obviamente ela estava, à sua maneira, falando a verdade nesse instante. Percebi-o ao ouvi-la: ela não tinha sombra. Não havia escuridão ou tristeza perto dessa mulher, e os tons negros dos cuidados, dos remorsos, da ambição, do medo, que parecem inseparáveis do ser humano - até de mim, embora eu nesses dias vivesse despreocupado - esses foram banidos da sua presença. Por isso apenas a beijei, e lhe disse que deixaríamos na rua a sua sombra, e lhe correríamos os estores na cara.
Foi por essa altura também que senti pela primeira vez a sensação que jamais depois me abandonou, e que na minha inocência eu julguei ser de felicidade. Parecia-me, onde quer que fosse, que o mundo à minha volta perdia peso, que lentamente começava a fluir para o alto, um mundo só de luz, em que nada era sólido. Já nada me parecia maciço. O Castelo de Sant'Angelo era inteiramente um castelo no ar, e eu sentia que me era possível erguer com dois dedos toda a Basílica de São Pedro. Nem tinha medo de ser atropelado por uma carruagem, nalguma rua, tão consciente eu ficara de os carros e o cavalo não terem mais peso do que se fossem recortados de papel. Sentia-me, assim, extremamente feliz, se bem que de cabeça oca, e acreditava que tal era um presságio de uma felicidade maior, ainda por chegar, como uma apoteose. Ao universo, e a mim mesmo, pensava eu, tinham crescido asas, e estávamos subindo ao sétimo céu. Agora sei muito bem o que tal significa: é o começo do último adeus; é o canto do galo que anuncia a mudança. Desde então, nas minhas viagens, tenho conhecido países e gentes tomados dessa imponderabilidade. E num ponto eu estava certo. Ao mundo em meu redor haviam, de facto, crescido asas, e tudo voava para o alto. Só eu, a que o peso não permitia voar, só eu ficaria para trás em completa solidão.
Preocupava-me a carta que teria de escrever a meu pai, comunicando-lhe que já não podia casar com a viúva, quando recebi a notícia que um meu irmão, oficial da Armada, se encontrava em Nápoles com o seu navio. Reflecti que seria melhor talvez eu dar-lhe a carta a ele, para que a levasse a meu pai, e disse a Olalla que teria de ir a Nápoles por alguns dias. Perguntei-lhe então se iria encontrar-se com o velho judeu na minha ausência, mas ela assegurou-me que não: nem o veria nem lhe falaria.
Eu não me dava muito bem com meu irmão. Conversando com ele pude ver como o futuro que escolhera para mim havia de soar aos ouvidos dos outros, e senti-me bastante inquieto. Pois ainda que julgasse a opinião dos outros idiota e desumana, lembrei-me, o que não acontecera desde que vira Olalla, da atmosfera de frio e morte que fora antes o meu mundo, e era ainda a minha casa. Dei todavia a carta a meu irmão, pedi-lhe que intercedesse por mim junto do nosso pai o melhor que ele pudesse, e apressei-me a voltar para Roma.
Ao chegar soube que Olalla havia desaparecido. Primeiro disseram-me, na casa onde estivera, que ela tinha morrido subitamente levada por uma febre. A notícia deixou-me às portas da morte e da loucura por três dias. Mas depressa descobri que tal não podia ser e fui, entre súplicas e ameaças, pedindo a cada moradora da casa que me contasse a verdade. Compreendia já que devia tê-la tirado dali antes de partir para Nápoles - mas o que me teria adiantado, se ela estava disposta a deixar-me? Uma estranha superstição me fez relacionar o desaparecimento de Olalla com o judeu, e numa derradeira conversa com o madama do bordel apertei-a pela garganta, disse-lhe que sabia tudo, e jurei que a estrangulava se ela não me dissesse a verdade. Tomada de terror, a velha confessou: Sim, fora ele quem a levara. Olalla saíra um dia e não mais voltara. No dia seguinte um velho judeu, bem-posto, pálido, de olhos muito negros, tinha vindo ali, tinha liquidado as dívidas de Olalla e pago à madama para que se calasse. «E para onde é que eles foram?», gritei-lhe, com a náusea de não poder dar vazão ao desespero matando ali mesmo a marafona. Isso não me podia ela dizer mas, pensando melhor, achava que tinha ouvido o judeu mencionar, falando ao criado, o nome de uma cidade: Basileia.
A Basileia me dirigi, mas só quem passou por tal faz ideia da dificuldade que é querer-se encontrar, numa cidade estrangeira, alguém cujo nome não sabemos.
As minhas buscas ficaram mais difíceis ainda porque eu não sabia em que estradas da vida procurar Olalla. Se ela tivesse ido com o judeu estaria agora uma grande senhora, que eu acharia viajando em carruagem própria. Mas porque a teria o judeu deixado no bordel onde eu fora encontrá-la em Roma? O mesmo podia ele fazer agora, por razões que eu desconhecia. Por isso bati a todas as casas de má nota de Basileia, e elas são ali em maior número do que se poderia pensar, pois Basileia é a cidade da Europa que mais severamente prescreve a santidade do matrimónio. Não lhe achei o rasto. Lembrei-me então de Amsterdão, onde pelo menos teria a referência de um nome: Cocoza. Encontrei de facto em Amsterdão a antiga e bela casa do judeu, e soube que ele era o homem mais rico da cidade, e que a sua família negociava em diamantes há trezentos anos. Mas ele, segundo me disseram, andava sempre em viagem. Calculavam que estivesse agora em Jerusalém. Deixei Amsterdão e segui muitas pistas, todas elas falsas, que me levaram a outros tantos países. Esta minha viagem de loucura durou cinco meses. Por fim decidi-me a partir para Jerusalém, e seguia já de volta a Itália, onde em Génova tomaria o barco, e tudo isto não me saía da cabeça, quando me achei sentado, como te disse, numa sala de hotel em Antermatt, esperando atravessar o desfiladeiro no dia seguinte.
Na véspera encontrara uma carta de meu pai, que me andava no encalço há uns meses, e me tinha sido enviada de cidade em cidade. Nela meu pai escrevia:
«Estou agora em condições de apreciar a sua conduta com calma e compreensão. Devo-as a ter folheado uns papéis da família, a que nestes três meses tenho dedicado grande parte do meu tempo e atenção. Do estudo destes papéis pude concluir a evidência de um destino muito singular que há dois séculos se abate sobre a nossa família.
Se, como família, somos muito melhores que os outros, é tão-somente porque tivemos sempre, no seio de nós, um indivíduo que encerra todas as fraquezas, todos os vícios da sua geração. Os defeitos que normalmente se encontrariam repartidos por um grupo lato de pessoas têm-se juntado numa só, e nós outros temos podido, assim, até hoje, e podemos ainda, ser o que somos.
Examinando os nossos papéis não tenho quaisquer dúvidas do que afirmo. Eu mesmo fui capaz de identificar esse delinquente escolhido pelo destino ao longo de sete gerações, desde a nossa tia-bisavó Elizabeth, de cujo comportamento não quero agora falar. Dar-lhe-ei apenas como exemplo meus tios Harry e Ambrose, que em seus dias foram, sem dúvida...»
Seguiam-se vários nomes e factos que corroboravam as teorias de meu pai. E depois continuava:
«Não sei se não seria um golpe mais fatal, em vez de benção, para a nossa família e para o nosso nome se este singular estado de coisas deixasse um dia de existir. Podia acabar com muito sofrimento e muita preocupação, mas também poderia fazer com que a família não fosse melhor que as outras.
Quanto a si, o senhor tem-se obstinado, de tal forma, em desobedecer às minhas ordens e ignorar os meus conselhos que julgo ter razões para crer que é o senhor a vítima escolhida na sua geração. O senhor recusou-se, com o seu exemplo, a tornar atraente a virtude e óbvia a recompensa de uma boa conduta. Estou agora conformado com o seu destino, o que me permite dar-lhe a minha benção para prosseguir nesse caminho que pode fazer da desobediência filial, da tibieza e do vício um exemplo que, pela sua repugnância, será útil e dissuasivo para os que na nossa família pertencem à sua geração.»
Nunca mais tornei a ver meu pai. Mas o meu antigo preceptor que, muitos anos depois, eu viria a encontrar por acaso em Esmirna, em tristes circunstâncias aliás, deu-me notícias dele. Meu pai conformara-se com a situação ao ponto de ele próprio casar com a viuvinha. Tiveram um filho, a quem ele deu o nome de Lincoln. Mas se o fez porque afinal gostava mais de mim do que eu supunha, ou querendo apagar quaisquer lembranças desagradáveis que lhe surgissem entre a uma hora e as três da madrugada, relacionadas com o seu outro filho Lincoln, isso eu não sei.
Relera já a sua carta, e ia tirá-la do bolso para a ler de novo, a fim de passar o tempo, quando, erguendo os olhos, vi dois homens entrarem na sala de jantar do hotel, vindos da noite fria. Eram novos, e um deles eu conhecia. Pensei que, se ele me visse, viria ter comigo; assim aconteceu, e os três passámos juntos o resto da noite.
O primeiro destes dois homens bem vestidos e bem-educados era filho de uma nobre família de Coburgo, que no ano anterior eu tinha conhecido em Inglaterra, onde fora conhecer o nosso regimento parlamentar, pois pretendia seguir a carreira diplomática, e estudar a criação de cavalos, que era a ocupação da família. O seu nome era Friedrich Hohenemser; mas era tão parecido, nas feições como nos modos, com um cão que eu tivera e se chamara Piloto, que eu o tratava por esse apelido. Era um rapaz alto, louro, bonito.
Mas como hás-de gostar, Mira, de ouvir na minha boca as palavras da tua engenhosa parábola, dir-te-ei dele que era alguém que a vida não se consentia em tragar. Ele ansiava loucamente por ser engolido pela vida, e em qualquer ocasião tentava passar-lhe à força pela garganta, mas a vida, tão teimosa como ele, recusava-o. Talvez, de quando em quando, o impregnasse de ilusão, o sorvesse um pouco, embora nunca lhe tomasse um bom trago; mas mesmo em tais ocasiões a vida logo o vomitava. O que ele tinha para assim lhe dar volta ao estômago eu não posso dizer; só isto eu sei: todos aqueles que se aproximavam dele experimentavam de algum modo a mesma sensação, e, conquanto nada tivessem contra ele, não lhe encontravam préstimo. Pode-se dizer que ele estava, mentalmente, no estado primário do embrião.
Talvez seja precisa alguma astúcia, ou alguma sorte, ao homem que se afirma como um embrião. O meu amigo Piloto nunca passara disso. Ele próprio se dava conta por vezes, creio eu, de que a sua condição era alarmante; e era-o, de facto. Nos seus olhos azuis surgia por vezes um reflexo dolorido, como da batalha sem remédio pela existência que no seu íntimo se travava. Achando algum dia em si mesmo qualquer parcela de gosto natural, aproveitava-a ao máximo. E era vê-lo falar então perpetuamente das suas preferências por um ou outro vinho, como se quisesse convencer-se de um achado precioso. Um filósofo que eu li na escola, e de quem tu havias de gostar, Mira, disse uma vez: «Penso, logo existo.» Também o meu amigo Piloto repetia a si próprio e ao mundo: «Prefiro o Moselle ao Reno, logo existo.» Ou, se apreciava um espectáculo ou um jogo, passava o serão inteiro a falar disso, e dizia: «Isto é uma coisa que me diverte.» Mas não tinha imaginação, e era, além do mais, muito honesto. Nada inventava em seu proveito, e limitava-se a descrever as preferências que tinha realmente, e que eram sempre pouquíssimas. Provavelmente era esta sua falta de imaginação que o impedia de existir. Porque, para criarmos, como tu bem sabes, Mira, temos primeiro de imaginar, e como ele não conseguia imaginar o homem que Friedrich Hohenemser havia de ser, não podia gerar nenhum Friedrich Hohenemser.
Dei-lhe o nome, como já te disse, de um cão que eu tive, e o seu temperamento era tão esse - nunca tinha a mínima ideia do que queria fazer, ou do que devia fazer - que eu acabei por abatê-lo. O Deus de Friedrich Hohenemser foi mais indulgente, afinal.
Com tudo isto o Piloto não se saía mal em sociedade, que, suponho, exige um mínimo de existência apenas dos seus membros no continente europeu. Era, além disso, um homem rico, de pele rosada e branca, com umas pernas vigorosas - que eram toda a sua vaidade - e era tido como um rapaz modelo pelas senhoras de uma certa idade. Ele gostava de mim, e era uma alegria supor que me causara uma impressão tão definida, pois lhe dera até um apelido. Alguém - pensava ele - me deu um apelido, logo existo.
Quando ele agora se encaminhou para mim, reparei que alguma coisa nele mudara. Tinha ganho vida, todo ele irradiava. Assim o meu cão Piloto irradiava alegria e abanava a cauda nas raras ocasiões em que julgava ter provado que realmente existia. Podia ser talvez, no rapaz, o efeito da sua nova amizade com o jovem que o acompanhava. Fosse o que fosse eu sentia nele a certeza de que me iria bater o ás de trunfo no decurso dessa noite. Suspirei. Nem sei o que daria para ter nessa noite a companhia de um cão bom e verdadeiro. E senti saudades dos meus cães que há muito deixara em Inglaterra.
Apresentou-me ele o amigo como sendo o barão Guildenstern, da Suécia. Não tinha gozado ainda o prazer de tal sociedade por cinco minutos quando ambos me informaram que o barão tinha no seu país a fama de ser um grande sedutor. Isto fez-me pensar - embora nessa altura as conversas com os outros se desenrolassem apenas à superfície do meu cérebro - na espécie de mulheres que haveria na Suécia. As senhoras que me deram a honra de se deixar seduzir por mim, todas insistiram em ser elas a decidir que havia de ser a figura central do quadro. Por isso me agradaram, porque nisso estava para mim a variedade do que poderia ter sido um desempenho monótono. Mas, no caso do barão, era evidente que o seu centro de gravidade fora sempre, e inteiramente, ele próprio. Podíamos supô-lo de natureza pouco dada a entusiasmos pelo modo como falava das beldades que tinha cortejado, mas não lhe acharíamos o mesmo defeito quando finalmente nos dirigia o olhar para o que de facto ele queria que nós admirássemos. Quase parecia, ao ouvi-lo, que todas as mulheres tinham sido exactamente iguais, e esse tipo de mulher eu jamais conheci. Sendo ele o único herói, e tão visível, de cada aventura, eu perguntava a mim próprio porque se dera ao imenso incómodo - e ele estava evidentemente na disposição de se dar a todos os incómodos possíveis nestas questões - de obter, vezes sem conta, uma fiel repetição da mesmíssima coisa. Eu estava, enfim, e porque era também um rapaz, extremamente impressionado com tal superabundância de apetites.
Mesmo assim pouco depois, e pela sua conversa, que era muito animada e mais ficou ainda quando esvaziámos umas quantas garrafas, descobri a chave da existência do jovem sueco, e que se resumia a uma só palavra: competição. A vida era para ele uma competição na qual se obrigava a brilhar entre todos os concorrentes. Eu próprio tinha amado a competição em garoto, mas já quando frequentava o colégio lhe tinha perdido o gosto, e por esta altura, a menos que apreciasse verdadeiramente o prémio, considerava uma tolice cansar-me com alguma coisa só porque ela era ao gosto dos outros. Não era assim para este barão sueco. Nada no mundo era inteiramente bom ou mau, em sua opinião. Pronto sempre a seguir uma alusão, um cheiro, um rasto, procurava o que seria aos outros mais precioso para depois os superar na demanda ou os roubar. Sozinho sentia-se perdido. Assim se tornou mais dependente dos outros que o próprio Piloto, e provavelmente fugia da solidão como do próprio Diabo. O passado, soube-o pela sua conversa, era para ele uma série de triunfos sobre uma série de rivais, e nada, absolutamente nada mais, embora pouco mais velho fosse do que eu. Nem pelos rivais nem pelas vítimas ele demonstrava o mínimo interesse. Não sabia o que fossem admiração ou piedade, nada sentia para além da inveja e do desprezo.
Mas não era parvo. Pelo contrário, eu achava-lhe uma grande perspicácia. Adoptara na vida o estilo do homem franco, simples, bom, com uma certa rudeza que facilmente se desculpava num rapaz de espírito aberto e limitado. Tinha porém uma certa maneira de olhar, atenta e dissimulada, que nos espiava quando menos o esperávamos para de nós obter uma avaliação das coisas que lhe permitisse depois o defraudar-nos delas. Como não tinha os nervos que faziam os homens vulgares ressentir-se da tensão, a sua força e energia eram sem dúvida extraordinárias, e ele considerava-se, como também os outros o consideravam, um gigante comparado com aqueles que são capazes de imaginar ou de compadecer-se.
Os dois davam-se muito bem, pois o Piloto sentia-se existir com as atenções do jovem e bonito sueco - tenho, pensaria o Piloto, um amigo que é um tremendo sedutor de mulheres, logo existo - e o barão comprazia-se em eclipsar todos os amigos anteriores do jovem e rico alemão, e em ser admirado por ele. Acho que ambos dispensariam de bom grado a minha presença. Mas eu exercia sobre eles uma atracção magnética: sobre o Piloto porque podia exibir-me amigo, sobre o barão porque lhe dera forte o cheiro que eu havia de estimar ou querer alguma coisa que ele pudesse roubar-me de um modo mais ou menos leal.
Era tanto o tédio que logo a conversa do barão me provocou, que me voltei para o Piloto - coisa que alguém só muito raramente faria - e, assim que pôde, eis que ele principia a revelar-me os grandes casos da sua vida.
- Talvez você não gostasse que o vissem em minha companhia, Lincoln - disse-me ele - se soubesse tudo. Só estarei fora de perigo quando sair da Suíça. As paredes têm ouvidos num país de tanta agitação política.
Calou-se, a ver o efeito que teriam as suas palavras, e depois continuou:
- Venho de Lucerna.
Eu já sabia que tinha havido um recontro na cidade, mas nunca me ocorrera que o Piloto pudesse ter estado envolvido num tumulto.
- Aquilo lá estava o diabo!
Pobre Piloto! Na sua boca pequena, que um sorriso tímido franzia, até a verdade parecia uma tosca ficção. O sueco, tenho a certeza, haveria de inventar um chorrilho de mentiras com tal presença de espírito que os seus ouvintes nem por um momento iriam pô-las em dúvida.
- Matei um homem nas barricadas do 3 de Março - disse o Piloto.
Eu sabia que tinha havido um combate nas ruas entre, de um lado, os partidos no poder, e particularmente os partidários dos padres, e do outro o povo em rebelião.
- O quê? - perguntei, torturado pela inveja, porque fora ele quem participara num combate - matou um rebelde?
Pois o Piloto sempre fora para mim um homem de grande respeitabilidade e de pequeno intelecto. Logo presumi que ele se pusera ao lado dos padres, e isto pelo menos eu não lhe invejava.
O Piloto abanou a cabeça com orgulho e mistério. Momentos depois, dizia:
- Matei o capelão do bispo de Saint Gallen.
Os jornais tinham apregoado a notícia do assassínio, e havia-se procurado em vão o criminoso por toda a parte. Naturalmente, fiquei interessado em saber como coubera ao Piloto executar tão grande feito, e obriguei-o a contar-me tudo desde o princípio. O barão, enfastiado pela história das proezas guerreiras de outrem, para ali ficou, sem escutar uma só palavra, entretido a beber e a observar quem entrava e saía do hotel.
Quando saí de Coburgo - disse o Piloto - foi com a intenção de ficar em Lucerna três semanas, em casa de meu tio De Watteville.
Preparava-me para partir quando as senhoras elegantes da cidade, uma após outra, me imploraram que lhes trouxesse de Lucerna um chapéu de uma modista a quem chamavam Madame Lola. Esta mulher, asseveravam elas, era famosa de um extremo ao outro da Europa. Damas de grandes cortes e importantes capitais a ela encomendavam os chapéus, e jamais na história da chapelaria tinha havido um génio assim. Eu, naturalmente, não era avesso a fazer um favor às senhoras da minha cidade natal, por isso lá parti, com os bolsos atulhados de amostrinhas de sedas e até, quer crer?, de aneizinhos de cabelo para Madame Lola confeccionar os chapéus a condizer. Todavia em Lucerna viviam-se intensamente as paixões políticas, e eu esqueci Madame Lola até que uma noite, jantava eu com um grupo de políticos e oficiais superiores, saquei do bolso, juntamente com o meu lenço, uma tirinha de cetim cor-de-rosa e tive de lhes dar uma explicação. Para minha surpresa, toda a conversa imediatamente se concentrou na modista de chapéus. Os homens casados, pelo menos, e todos os clérigos a conheciam. Com efeito, disse o bispo de Saint Gallen, que estava presente, a mulher era um génio. O mais leve toque das suas mãos, como num gesto de fada, criava milagres de arte e de elegância, e as grandes damas de Sampetersburgo e de Madrid, e mesmo de Roma, vinham em peregrinação à sua loja de chapéus. Mas ela era algo mais do que uma fada. Suspeitava-se de que era também uma conspiradora de primeira apanha, e que utilizava o atelier de chapéus como ponto de encontro dos mais perigosos revolucionários. E nisto era também uma mulher de génio, uma Circe, que punha e dispunha e tudo organizava com as suas pequeninas mãos, e até o mais grosseiro dos revoltosos teria morrido por ela.
Todos tanto insistiram para que eu a evitasse que, naturalmente, a primeira coisa que fiz no dia seguinte foi ir a sua casa, na rua que me tinham indicado. Nessa ocasião achei-a tão-só uma mulher muito inteligente e agradável. Aceitou todas as encomendas que eu levava e conversou comigo sobre a minha carreira. Um rapaz ruivo entrou enquanto ali me demorei, e voltou a sair, e esse, sim, tinha todo o ar de um revolucionário, mas ela pouca atenção lhe prestou.
Enquanto ela fazia todos estes chapéus para mim, os céus de Lucerna carregavam-se: uma tormenta pairava sobre a cidade. Meu tio, que detinha um alto cargo no Conselho Municipal, previa uma catástrofe. Mandou minha tia e minhas primas para o château e aconselhou-me a que fosse com elas. Mas eu sentia que não podia abandonar a cidade sem voltar a ver Madame Lola, e sem receber das suas mãos todas as minhas encomendas.
No dia em que por fim voltei à loja, o tumulto nas ruas era tal que eu tive de meter por um labirinto de vielas, e mesmo assim só cheguei a sua casa com extrema dificuldade. Ao entrar fui encontrá-la, da porta às águas-furtadas, ocupada por uma mole imensa de gente armada que entrava e saía, e transformada num verdadeiro caldeirão de bruxa. Não havia tempo para se falar de chapéus. Ela, a um canto, arengava instruções à populaça, e ao ver-me saltou para os meus braços.
- Ah! - exclamou ela - o seu coração trouxe-o por fim ao bom caminho!
E a multidão, e Madame Lola com ela, neste momento avançou, transpôs a porta da cave e desceu a rua. Eu era arrastado pela turba, ou então contagiara-me tanto o entusiasmo da mulher que fui de minha livre vontade. Assim, e numa questão de segundos, me vi envolvido numa luta de barricadas, e, nas barricadas, sempre ao lado de Madame Lola.
Ela carregava as armas e passava-as aos combatentes, e nesta obra de morte ela usava de toda a verve e despacho que eu lhe vira quando enfeitava os chapéus. Agora, todos os que a rodeavam, corajosos embora, tinham medo - e com razão; só ela não tinha medo algum. Ao passar as espingardas aos homens barricados ela dava-lhes também o seu próprio destemor. Eu via-o no rosto desses homens. E, coisa estranha, eu nessa altura estava convencido de que nada poderia atingir a mulher, ou atingir-me, enquanto ficasse perto dela. Lembrei-me do que a nossa velha cozinheira me dizia em Coburgo: os gatos têm sete vidas. Madame Lola, pensava eu, deve ter a vida de sete gatos. Nesse momento eu via nela realmente uma mulher sobre-humana, embora ela não fosse, creio que já lho disse, uma senhora de nobre nascimento e apenas uma modista de chapéus de Lucerna, e que já não era nova.
Foi então que eu próprio, no entusiasmo da raiva que me cercava, peguei numa arma e disparei contra a multidão de soldados e milícias que lentamente avançavam em direcção à barricada. Meu próprio tio, o senhor De Watteville, quem sabe, talvez viesse a comandá-los, mas nesse momento nem pensei nele. Imediatamente me senti atirado ao chão, não sei como, e caí como morto.
Quando recuperei os sentidos vi-me num quarto estreito, numa cama, e Madame Lola estava comigo. Ao tentar mexer-me percebi que a minha perna direita estava toda envolvida em ligaduras. Ela deu um grito de alegria vendo-me acordar, mas logo se aproximou levando um dedo aos lábios. Nas sombras do quarto me contou como terminara o combate, e que eu tinha morto o capelão do bispo de Saint Gallen. Suplicou-me que ficasse muito quieto, em primeiro lugar porque um tiro me fracturara a perna, e em segundo lugar porque a cidade estava ainda conturbada. Eu corria um grande perigo, e devia permanecer escondido e em segredo na sua casa.
Passei três semanas nessas águas-furtadas, tendo-a a ela por minha enfermeira. Ainda se combatia nas ruas, e eu ouvia os tiros. Mas com isso, com o meu ferimento, com o que tinha feito e com o que a minha família iria dizer, até com o perigo que eu corria, eu pouco me importava.
Parecia-me que eu me tinha erguido por magia até muito alto, a um lugar fora do mundo onde costumara viver até então, e que estava aí completamente a sós com ela. O médico passava a ver-me de vez em quando. Mais ninguém ali entrava, mas Lola por vezes punha o xaile e saía, implorando-me que ficasse muito quieto até ela voltar. Estas horas em que ela não estava comigo pareciam-me infinitas.
Mas quando estávamos juntos conversávamos bastante. Ao recordar depois esse tempo vi que ela não tinha falado muito, e que eu tivera ali o dom da palavra que sempre ambicionara. Senti que chegara a uma compreensão geral da vida e do mundo, de mim próprio, de Deus até, enquanto estive naquela água-furtada. Falávamos em particular das grandes coisas que eu havia de fazer na vida. Eu, você compreende, tinha já feito o suficiente para que o povo me conhecesse, mas éramos ambos de opinião que isto seria apenas um começo.
Soube que muitos dos seus amigos tinham saído de Lucerna, e que ela se expunha a perigos por minha causa; implorei-lhe que saísse da cidade. Não, disse ela, por nada no mundo me deixaria. Em primeiro lugar, e depois do que eu fizera, os revolucionários de Lucerna consideravam-me um seu irmão, e todos estariam prontos a morrer por mim. Mas, mais importante do que isso, explicou ela, corando violentamente, se os tiranos da cidade ou a milícia me encontrassem, ela e eu deveríamos, ambos, insistir em que não havíamos tomado parte na revolta, e que sempre ali estivéramos juntos por um caso de amor. Ela se declararia a minha amante, e eu o seu, enquanto que o meu ferimento seria imputado a um rival ciumento. Estas palavras, ainda que tudo fosse uma comédia, fizeram-me de novo extraordinariamente feliz, e levaram-me a sonhar com tudo o que eu havia de conseguir quando estivesse bom. Sim, não sei se um caso de amor me teria feito mais feliz.
Por fim, uma tarde, ela disse-me que o médico me tinha considerado fora de perigo, e que devíamos separar-nos. Ela iria deixar Lucerna nessa mesma noite. Eu partiria em segredo à alvorada. Um amigo, disse ela, poria a sua carruagem à minha disposição e ele próprio me conduziria para fora da cidade. Um terror me invadiu então ao ouvi-la. Mas eu era um parvo. Quando percebi o que sentia já era demasiado tarde. Madame Lola continuava a falar-me, meigamente. Eu receberia, disse ela, a paga do meu incómodo, e ela me entregaria todos os chapéus que tinha na sua loja.
- Porque eu - disse ela - não voltarei mais a Lucerna. E assim, ajudada pela criadinha, ela subiu e desceu as escadas
uma dúzia de vezes, a cada viagem trazendo caixas de chapéus que colocava à minha volta. Eu ria, e no fim já não conseguia parar de rir, pois me achava quase soterrado por chapéus de todas as cores do arco-íris, enfeitados de flores, de fitas, de plumas. O chão, a cama, a cadeira e a mesa estavam cobertos de chapéus, provavelmente os mais belos chapéus de toda a Europa.
- Ora aqui tem - disse ela, quando o quarto ficou cheio de chapéus - com que seduzir o coração das mulheres.
Ela pôs um chapéu discreto e um xaile, e tomou a minha mão.
- Nunca me queira mal - disse ela. - Tentei fazer-lhe o bem que pude.
Lançou-me os braços em volta do pescoço, beijou-me e partiu.
- Lola! - gritei, e caí para trás na cadeira, desmaiado. Quando recobrei os sentidos passei uma noite horrível. Não me restava um só pensamento agradável. A imagem do cura do bispo de Saint Gallen começava também a afligir-me, e parecia-me que nada neste mundo me poderia ajudar.
Lola foi fiel à sua palavra. Na manhã seguinte um cavalheiro de certa idade, judeu, muito elegante, apresentou-se na minha trapeira e, junto ao último degrau da escada vi que a sua bela carruagem me aguardava. Ele próprio me conduziu através da cidade, onde pude ver, aqui e além, vestígios da luta, e soube ser um agradável companheiro de viagem. Aproximando-nos dos limites da cidade, ele disse-me:
- A carruagem do barão De Watteville virá ter connosco neste parque assim, assim. Mas o senhor seu tio ofendeu-se com o seu procedimento e encarregou-me de lhe comunicar que prefere que o senhor continue viagem sem se deter, e que o vosso reencontro se dê apenas mais tarde.
- Mas meu tio - exclamei, muito surpreendido - já sabe do que me aconteceu?
- Sabe - disse o velho. - Aliás, sempre o soube. O senhor Barão é um homem influente junto do clero de Lucerna, e não sei se teríamos podido passar sem o seu auxílio.
Nada mais disse, e seguimos em silêncio, sentindo-me eu muito perturbado.
A carruagem de meu tio esperava, com efeito, junto a um parque, tal como o judeu tinha dito. Quando parámos, um homem desceu e lentamente veio ao nosso encontro; reconheci o rapaz que eu tinha visto em casa de Madame Lola no dia em que lá fui pela primeira vez, e que depois, lembrava-me agora, encontrei nas barricadas. Pelo seu aspecto parecia que tinha sofrido muito. Coxeava, e ao curvar-se, cumprimentando o meu companheiro, o seu rosto era muito pálido e muito severo. Não obstante, quando me procurou com o olhar sorriu inesperadamente.
- Então é este - ouvi-o dizer - o pintassilgozinho que estava preso na mansarda de Madame Lola?
- Sim - disse o velho judeu num sorriso - é o golem de Madame.
Não o percebi, mas vim a saber mais tarde que a palavra golem em língua judaica significa uma grande figura de barro em que a vida é insuflada por magia, na maior parte das vezes para que ela execute um crime que o mágico não ousa cometer por suas mãos. Estes golems imaginavam os judeus que eram muito grandes e muito fortes.
Os dois esperaram que eu entrasse na carruagem de meu tio, e despedimo-nos. Prossegui viagem, mas agora tinha muito que reflectir, e não sabia onde me encontrar de novo comigo mesmo. O cheiro a pólvora das barricadas, as nossas conversas sobre Deus e o beijo de Lola nas águas-furtadas, e mais todos os chapéus que ela me havia dado, tudo me parecia estar vendo, como esses pontos coloridos que temos diante dos olhos quando fitamos o sol por longo tempo. Não tenho conseguido, desde então, pensar muito nesses grandes feitos que eu havia de realizar. Nem me lembro sequer de quais eram. Mas a verdade é que matei o cura do bispo de Saint Gallen, e tenho de me rodear de cautelas até sair deste país. Fui a um médico, e ele disse-me que a minha perna foi tão habilmente tratada que é como se nunca a tivesse partido.
- Ê portanto você - disse eu - anda à procura dessa mulher por toda a parte, incapaz de conciliar o sono?
- Como adivinhou? - disse o Piloto. - Sim, ando à procura dela. Não sei o que pensar, o que sentir, até que a veja novamente. Mas ela já não era nova, sabe, nem uma senhora de nobre nascimento, apenas uma modista de chapéus, em Lucerna.
Agora eu tinha ouvido a história do Piloto. E enquanto o escutara mais de uma vez sentira medo. Havia ali muitas coisas que eram alarmantes para mim. Pensei: Desde que perdi Olalla nunca mais me embriaguei, até hoje. É óbvio que hoje, quando bebo nem que seja duas garrafas deste vinho suíço, a cabeça me anda à roda.
É de ter há longo tempo o mesmo e único pensamento. Esta narrativa do meu amigo parece-se toda com um sonho meu. Há muito nesta mulher das barricadas que me lembra a minha cortesã de Roma, e quando, a meio da sua história, aparece um velho judeu, como o djinn da lâmpada, é mais do que evidente que não estou no meu juízo perfeito. O que me separa, pergunto a mim próprio, sim, da loucura completa?
Para esclarecer a questão, continuei a beber.
O barão Guildenstern, durante a narrativa do Piloto, tinha de quando em vez olhado para mim com um sorriso, e às vezes piscara-me o olho. Mas, como a história se prolongasse, ele perdera todo o interesse nela e mandara vir mais uma garrafa. Agora abria-a e enchia os copos.
- Meu bom Fritz - disse ele, rindo - eu sei que as senhoras adoram chapéus. Para elas um marido é simplesmente um homem que lhes compra chapéus de todas as formas e cores possíveis, Deus o abençoe. Mas é um fraco artigo de vestuário de que despir uma mulher. Eu sempre as deixo conservar o chapéu depois de tudo o resto desaparecer; e para as que gostam de -no-lo atirar à cara, prefiro-lhe a chemise.
- Então nunca fez a corte a uma mulher sem levar com a chemise? - perguntou o Piloto, um tanto nervoso, os olhos fitos num ponto à sua frente, como se olhasse para longe.
O barão observou-o, atento, como se prestes a descobrir que um fracasso e um apetite frustrado podiam ter valor para um certo tipo de gente.
Meu caro amigo - disse ele - vou contar-lhe uma aventura minha, em paga da sua confissão.
- Há sete anos fui mandado pelo coronel do meu regimento em Estocolmo, o príncipe Oscar, à escola de equitação de Saumur. Não cheguei a completar o tirocínio, porque me envolvi num certo tipo de problemas em Saumur, mas enquanto lá estive passei algumas horas agradáveis na companhia de dois amigos meus, jovens e ricos, um dos quais era Waldemar Nat-og-Dag, que tinha vindo comigo da Suécia. O outro era um belga, o barão Clootz, que pertencia à nova nobreza e era senhor de uma grande fortuna.
Graças às cartas de recomendação de velhas tias nossas, eu e o meu amigo sueco visitámos por algum tempo uma curiosa comunidade de velhos e arruinados Legitimistas, grandes aristocratas que tinham perdido tudo na Revolução Francesa e viviam numa pequena cidade de província perto de Saumur.
Eram todos velhos, pois na juventude as senhoras não tiveram os dotes que lhes permitissem casar na sua roda, nem os homens o dinheiro para manter uma família no estilo a que os obrigavam os seus antigos nomes, de modo que não se pudera procriar uma geração mais nova. Assim, profetizavam que o mundo iria acabar em breve, e para eles ser-se novo era sinónimo de pertencer a uma sociedade de segunda. As senhoras juntavam-se a ler as cartas de minha tia, espantadas com a estranheza da vida na Suécia, onde a nobreza tinha ainda a coragem de procriar.
Aquilo tudo era para mim uma seca. Era como ser posto numa prateleira com velhas garrafas de vinho e boiões de pickles, selados e vedados com pergaminho.
Nesta sociedade falava-se muito de uma jovem de meios, que tinha tomado de aluguer por um ano uma bonita casa de campo nos arredores. Eu próprio vira a casa, cercada de jardins murados, nas manhãs em que saía a cavalo. A princípio a rapariga nem sequer me interessou. Julgava-a mais uma da ordem das Beguinas. Intrigava-me, porém, como se dava que a juventude e a riqueza não fossem nela defeitos, mas ao contrário parecessem fazê-la amada por todos os corações secos e velhos da cidade.
Eles próprios acorreram a dar-me a explicação, informando-me que esta senhora tinha consagrado a sua vida à memória do general Zumala Carregui, que foi, creio eu, um herói e um mártir da causa do herdeiro legítimo da coroa de Espanha, e acabara assassinado pelos rebeldes. Em sua honra ela vestia sempre de branco, vivia numa perpétua quaresma de pão e água, e todos os anos ia a Espanha em peregrinação ao seu túmulo. Era muito caritativa com os pobres, e mantinha a expensas suas uma escola para as crianças da aldeia e um hospital. De vez em quando tinha também visões e ouvia vozes, provavelmente a voz doce e marcial do general Zumala. Por tudo isto ela era muito considerada. Que ela tivesse mantido uma relação mais terrena com o mártir antes da sua morte não maculava a sua reputação. A donzelaria de velhadas dos dois sexos estava, pelo contrário, muito intrigada com a experiência que tivera a jovem criatura, como estariam muito provavelmente as onze mil virgens mártires de Colónia quando, no Paraíso, foram apresentadas à santa de maior posição no Céu, Santa Maria de Magdala.
Mas o coração do meu amigo Waldemar, quando a viu, derreteu-se tão rapidamente como um torrão de açúcar numa chávena de café quente.
- Arvid - disse-me ele - não vi jamais uma mulher assim, e sei que foi por vontade do destino que eu a encontrei agora. Pois, como bem sabe, o meu nome é Noite-e-Dia, e as minhas armas partidas de branco e negro. Por isso ela foi feita para mim... ou eu para ela. Porque esta madame Rosalba é mais plena de vida que outra qualquer pessoa que eu jamais conheci. É uma santa de primeira grandeza, e usa em sê-lo de tanto vigor como o capitão em tomar de assalto a cidadela. É uma flor, fresca e exuberante, no círculo de velhos e secos peristemas. E um cisne vogando no lago da vida eterna. Essa é a metade branca do meu escudo. E ao mesmo tempo nela paira a morte, e essa é a metade negra do brasão dos Nat-og-Dag. Só lhe posso explicar isto por metáforas, que me surgiram quando a olhava.
- Temos ouvido falar muito do cultivo da vinha desde que aqui estamos, e aprendemos também que, para tornar perfeito o vinho branco especial desta região, os lavradores deixam ficar por mais tempo as uvas nas videiras. Assim elas vão secando, tornam-se maduras de mais, e muito doces. Para além disso, desenvolveu-se aqui esse curioso processo a que os franceses chamam pourriture noble e os alemães Edelfaule, e que dá perfume ao vinho. Na atmosfera que envolve Rosalba há um perfume, Arvid, que não tem outra qualquer mulher.
Pode ser o verdadeiro odor a santidade, ou pode ser a nobre putrefacção, a real ferrugem de um vinho forte e raro. Ou então, Arvid, meu amigo, pode ser ambas as coisas, uma alma partida de branco e negro, uma alma de Nat-og-Dag.
No domingo seguinte, era em Maio, consegui ser apresentado a Madame Rosalba depois da missa, num jantar em casa de um velho amigo meu.
Esses velhos aristocratas, em plena ruína, mantinham farta a mesa e não desprezavam uma garrafa de vinho. Mas a jovem mulher comeu lentilhas e pão seco, bebeu um copo de água, e isto num recato franco e tão doce que a dieta parecia já muito nobre, e a ninguém ocorreria oferecer-lhe um outro manjar. Acabada a refeição, na sala fresca e sombria, ela entreteve os circunstantes com a mesma franqueza e modéstia, descrevendo a visão que tivera ultimamente. Encontrara-se, dizia ela, num vasto e florido prado, com um bando enorme de criancinhas, cada qual tendo em volta da cabeça uma pequena auréola, clara como a chama de uma vela. São José viera então em pessoa ao seu encontro para informá-la que ali era o Paraíso e que ela seria a ama daqueles meninos. Estes, explicara o santo, outros não eram que os primeiros mártires, os inocentes de Belém assassinados por Herodes. Fez-lhe ver o santo a doçura daquela tarefa, pois, tal como o Senhor sofrera e morrera pela humanidade, assim estas crianças tinham sofrido e morrido pelo Senhor. Uma grande bem-aventurança desceu sobre ela a estas palavras do santo, e suspirando de felicidade declarou que jamais havia de querer da eternidade outra coisa que não fosse cuidar das crianças mártires e brincar com elas.
Eu não acredito muito nas visões e no Paraíso, mas ao ouvir esta jovem mulher contar a sua história não tive dúvidas de que ela tinha visto realmente com os próprios olhos o que assim descrevia, e que tinha sido escolhida para habitar o Paraíso. Era tão plena de vida que fazia sentir quem a ouvisse que a escolha fora acertada; os pequenos mártires haviam de brincar muito.
Uma vez, enquanto falava, ela ergueu os olhos. Meu Deus, que olhos aqueles! Eram, de facto, poderosíssimos; e quando ela nos assestava um dos seus olhares de trinta arráteis... puff!
Agora*, ouvindo-a eu também com recato e olhando em volta o círculo feliz dos seus velhos discípulos, convenci-me de que havia algures nesta história uma bela e descarada vigarice. Rosalba podia muito bem ser uma santa de primeira apanha. Podia também cumular de caridade os ricos e os pobres, como se possuísse um corno de abundâncias. E talvez tivesse amado o general Zumala Carregui, e nesse caso o general seria digno de inveja. Mas ela não o tinha amado apenas a ele no mundo, e não vivia agora só para recordá-lo. A monogamia - que existe, sim, e eu próprio já fui amado por mulheres de temperamento monogâmico - é uma coisa que se nota logo numa mulher. Podemos confundir a freira com a mundana, mas essas mulheres que na índia, ao que se diz, imploram que as lancem às chamas das piras funerárias dos maridos, essas sabemos reconhecê-las. Ou este cisne branco, pensei eu, esta Rosalba, pode desfiar os nomes dos amantes pelas contas do rosário, ou é uma solteirona perversa - porque, para donzela, já não tinha idade; contava mais de trinta anos - que por desespero se faz passar aos olhos dos meus Legitimistas pela amante de um general.
Rosalba não tinha olhado para mim mais do que uma vez, mas estava consciente da minha presença. Eu e ela, sentados embora tão longe um do outro, estávamos em contacto tão estreito como se dançássemos um pas-de-deux no centro de um palco, com o idoso corps du ballet agrupado à nossa volta. Quando ela foi à janela ver se a sua carruagem tinha chegado, as pregas do seu vestido branco e as tranças do seu cabelo negro moveram-se e flutuaram para que eu as admirasse.
Pensei: Nunca tive na vida um morto por rival; vejamos do que é capaz o general Zumala. Na Páscoa tive de ouvir um sermão sobre Santa Maria Madalena - esta Maria santa teria sido mais difícil de conquistar que outra qualquer Maria da terra? Ou mais fácil? O ginete, mesmo velho, levanta a cabeça, diz-se, ao ouvir o cornetim.
Logo me tornei visita assídua no château de madame Rosalba. Não sei se a velha comunidade aristocrática da cidade fazia alguma ideia dos perigos que corria a sua santa. Passou a aceitar o meu braço sempre que saía a visitar os pobres e os doentes. A princípio eu consultava-a muito sobre a salvação da minha alma. Confessei-Ihe muitos dos meus pecados, e nenhum deles pareceu impressioná-la grandemente. Talvez os conhecesse por experiência. Deu-me realmente bons conselhos, creio eu, e, se quisesse reformar-me, decerto faria bem em os seguir. Ela conservava a sua severidade e gentileza de maneiras, e parecia gostar de mim, mas no nosso pas-de-deux amoroso era lenta de movimentos. Por meu lado, eu era paciente. Tinha de manter o meu amigo Waldemar debaixo de olho, e sabia que reservava a essa mulher uma bela surpresa no fim da dança.
Uma coisa me parecia estranha nessa casa. Fui criado na fé luterana e a minha boa avó costumava levar-me à igreja no dia de Natal. Ouvi muitos sermões e conheço a diferença entre a santidade e o pecado tão bem quanto o velho pastor Methodius, mesmo se os nossos gostos pessoais divergiam na escolha. Mas, pela minha honra de oficial da Guarda, nela era difícil destrinçar o bem do mal. Ela pregava teologia com tal voluptuosidade como se a mesa do Senhor fosse um regalo de gourmet, e, se era de amor que falávamos, nos seus lábios ele parecia um jogo de crianças em pleno kindergarten. Disto eu não gostava. Tive uma ama que acreditava em bruxas, e por vezes, na companhia de Rosalba, lembrava-me das histórias sinistras da velha maja-Lisa. Mas uma tão piedosa bruxa e uma tão libertina santa eu não tinha encontrado antes.
Acabei, todavia, por obter de Rosalba a promessa de um rendez-vous em sua casa, no fim de uma tarde de sexta-feira. Nesse dia toda a gente iria ao enterro da viúva de um marechal, que morrera aos 100 anos. Era no fim do mês de Junho. Por essa altura já me enfastiavam as suas hesitações, e pensei: Será na sexta-feira, ou nunca mais eu hei-de possuir mulher alguma.
Tudo isto, posso assegurar-lhe, talvez tivesse terminado de outra maneira se um caso não se tivesse dado em Saumur. Mas sucedeu que um velho e rico judeu - ao estilo do judeu da sua história, Fritz - ali se demorou uma semana, na viagem que o trazia de Espanha. Tudo o que tinha era do bom e do melhor. A sua carruagem, os seus criados, os seus diamantes, eram o assunto das conversas. Mas o que mais impressionava o coração da nossa escola de equitação era uma parelha de cavalos andaluzes que ele trazia consigo. Eram, e um deles particularmente, dos mais belos cavalos que se viram em França. Até no meu regimento na Suécia não havia outros que se lhe comparassem. Para mais, tinham sido treinados no manège real de Madrid, e era uma pena que tivessem ido parar às mãos de um judeu, e de um civil.
Por causa desses cavalos negligenciei Madame Rosalba durante alguns dias, de tanto que se falava deles. Poucos de nós seriam suficientemente ricos para os comprar, e no entanto considerávamos um ponto de honra fazer com que eles não deixassem Saumur. Por fim o barão Clootz, que era milionário, nobre, jovem e de muito engenho, uma noite, depois do jantar, fez uma proposta a cinco de nós que éramos, há longo tempo, os seus amigos e associados mais íntimos. Jurou que havia de comprar o cavalo ao judeu e pô-lo como prémio numa competição em que havíamos de mostrar do que éramos capazes. A regra desta competição era que, no espaço de um dia, cavalgássemos três milhas francesas, bebêssemos três garrafas de vinho da região, e possuíssemos três mulheres. A ordem por que havíamos de cumprir as provas éramos nós senhores de decidir, mas o cavalo do judeu pertenceria àquele de nós que primeiro chegasse a casa do barão Clootz depois de ter cumprido as condições.
A proposta fez um enorme sucesso, e eu já mentalmente decidira a ordem consecutiva das provas e passava em revista as mulheres bonitas do meu círculo de conhecimentos na região, quando me lembrei que o dia escolhido para a competição era o dia do meu rendez-vous com Madame Rosalba. O dia fora escolhido para ambos os fins pela mesma razão: a elite da cidade estaria ocupada, e impedida assim de meter o nariz nos nossos assuntos.
Eu tinha, porém, confiança em mim próprio, e ao sair de braço dado com o jovem Waldemar, pensei que a coisa teria alguma graça. Ele ainda adorava a Rosalba erguida no pedestal, a ponto de querer por sua causa mudar de religião e até, julgo eu, fazer-se monge. Quantas vezes eu tive de lhe ouvir os panegíricos à Rosalba! Todavia, e após alguma persuasão, tinhamo-lo convencido a entrar na nossa competição. Acho que ele pretendia mostrar-se a Rosalba no cavalo espanhol, pois era um razoável cavaleiro.
Eu fui, sem vaidade, pontual ao meu rendez-vous no branco château de Rosalba, nessa tarde de sexta-feira. A sua criada de quarto - porque não havia mais ninguém em casa; todos tinham ido ao funeral - foi quem me conduziu ao boudoir, na torre e ao cimo de uma longa escada de pedra. As gelosias estavam cerradas, a sala mergulhada numa semiobscuridade e, quando se vinha de fora, era tão fresca como o interior de uma igreja. Havia uma quantidade imensa de lírios brancos, saturando o ar com o seu perfume. Sobre uma mesa estavam copos e uma garrafa do melhor vinho que eu jamais provei, um Château Yquem seco. Seria esta a minha terceira garrafa do dia.
Rosalba estava ali também. Como sempre, vestia com singeleza, mas num só e grande movimento da sua pessoa tornara-se numa beldade esplêndida.
Se o que me aconteceu na torre parece uma alucinação, uma fantasia, e antes um conto de fadas ou uma história de fantasmas do que uma história de amor, a culpa não é minha. É verdade que o dia estava quente; uma tempestade sobreveio à noite; e que ao entrar, vindo de uma estrada branca, com pesadas botas de montar, não tinha já muita confiança na minha cabeça. Talvez me tivesse apaixonado por ela sem o saber, porque tudo parecia girar à sua volta, e nas minhas garrafas e nas minhas corridas em galope desenfreado outra coisa eu não via que as cerimónias de iniciação mais próprias a este momento grande de amor físico. Mas lembro-me bem do que se passou.
Eu não tinha muito tempo a perder. Um pouco toldado, sentindo o quarto oscilar diante dos meus olhos, as palavras vieram-me fáceis e em breve eu a tinha nos meus braços, os vestidos em desalinho. Era como o lírio na tempestade, branca e vacilante, o rosto molhado. Mas impôs-me distância com os braços estendidos.
- Ouve-me um instante - disse ela. - Aqui estamos sós. Não está mais ninguém em casa, além da criada que te trouxe aqui, essa linda rapariga. Não tens medo?
- Arvid, nunca ouviste contar a história de Don Giovanni? Ela olhou para mim tão fixamente que eu tive de responder que
tinha ouvido até a ópera que dela se fez.
- Lembras-te, então - disse ela - da cena em que a estátua do Commandante o vem buscar? Há uma estátua assim no túmulo do general Zumala, em Espanha.
Eu disse-lhe: - Ah, pois que lhe pese e o conserve lá bem fechado!
- Espera - disse Rosalba. - Rosalba pertencia ao general Zumala Carregui. Se ela o trair, a pobre Rosalba desaparecerá. Mas a ópera, mais cedo ou mais tarde, terá de ter um quinto acto. E tu, minha estrela do Norte, irás ter o teu papel de herói. É a tua honra que está em jogo, como se fosses mulher. Não terás Santa Maria de Magdala a interceder por ti. Rosalba era uma fantasia cintilante, e quando tu a desfizeres, só ficarás com um resto de coisa nenhuma. Mas é chegado o tempo de ela se acabar. As pessoas, e até quem a criou, todos começam já a gostar dela em demasia. Tu vais oferecer-lhe um grande fim trágico. Nenhum homem no mundo, creio, o poderia fazer melhor do que tu. És digno de figurar na sua história.
- Deixa-me então figurar na tua história - disse-lhe em voz sufocada.
- Não tens pena da pobre Rosalba? - perguntou-me. - Que ela vá perder o seu único refúgio, e se veja perseguida e amaldiçoada para sempre, isso não tem importância para ti?
- Tu também não tens pena de mim - exclamei.
- Ah, como te enganas! Preocupo-me contigo, Arvid, fazes-me tanto dó. Um futuro medonho te espera, a desolação, o deserto... oh, que tortura! Se eu pudesse ajudava-te; mas é-me impossível fazê-lo. A recordação de Rosalba nunca te fará qualquer bem; o seu exemplo não poderá ajudar-te. A lembrança desta hora talvez um dia te faça algum bem, mas nem isso é certo. Oh, meu amante, se para te salvar eu te fizesse presente de um lindo cavalo, já selado, tão fogoso que te levasse a galope para bem longe deste pecado terrível e da perdição de nós ambos, e se eu mandasse a minha criada, aquela bonita rapariga que te conduziu aqui, se eu a mandasse contigo a buscá-lo, tu ias-te embora?
- Porque em breve - disse ela, erguendo-se a toda a sua altura, a sua mão ainda no meu peito, como a minha mão pousava no seu, e falando à maneira de uma sibila - pode ser tarde, e talvez ouçamos os passos fatais na escada, o mármore pisando outro mármore.
Na nossa agitação o seu cabelo negro, que ela usava caído em pequenos anéis emoldurando o rosto, foi atirado para trás e eu vi que ela tinha na realidade a marca das bruxas. Da orelha esquerda à omoplata estendia-se uma funda cicatriz, como uma pequena serpente branca...
Ao ouvir estas palavras do barão, o Piloto exclamou:
- O quê? O que está você a dizer?
- Dizia - replicou o barão com paciência, agradado com a impressão que a sua história causava - que da sua orelha esquerda à omoplata havia uma cicatriz como uma serpente.
- Eu ouvi muito bem - exclamou o Piloto. - Porque repete você as minhas palavras? A modista de chapéus de Lucerna, Madame Lola, tinha no pescoço uma cicatriz assim, e eu ainda há pouco lha descrevi.
- Você não disse nada de cicatriz nenhuma - disse o barão.
- Não disse? - exclamou o Piloto virando-se para mim. Eu nada respondi. Pensava: Estou a sonhar. Agora tenho a certeza de estar a sonhar. Este hotel, o Piloto, o barão sueco, tudo faz parte de um sonho. Meu Deus, que pesadelo! Por fim perdi irremediavelmente a razão, e o que vai acontecer agora é Olalla entrar por aquela porta, ligeira, como sempre me aparece em sonhos. Esperando vê-la, eu não tirava os olhos da porta.
De vez em vez, enquanto conversávamos, hóspedes chegavam ao hotel, sentavam-se ou passavam por aquela sala em direcção aos aposentos no interior do hotel. Entrava agora uma senhora com a criada, que passou por nós, apressada e sem rumor. A senhora usava uma capa negra que lhe escondia o rosto e a silhueta. A criada tinha o cabelo enrolado em volta da cabeça, à maneira suíça, e levava os xailes. Ambas pareciam tão recatadas que o barão lhes dispensou mais do que um olhar. Foi somente quando elas já tinham desaparecido que o Piloto, cessando a acalorada discussão que mantinha com o sueco, ficou feito numa estátua, olhando fixamente a porta. Quando lhe perguntámos, rindo - porque tínhamos bebido o suficiente para nos acharmos ridículos uns aos outros - que diabo lhe mordera, o Piloto volveu o grande rosto para nós.
- Era ela - exclamou, profundamente abalado, e mais abalado ficou ao ouvir o som da própria voz. - Era Madame Lola, de Lucerna.
O raio da loucura sempre caíra, afinal, mas atingira o Piloto e não a mim. Ninguém sabia, porém, o que iria acontecer agora; e de facto, ao ouvir as suas palavras, pareceu-me que a senhora tinha qualquer coisa que não me era estranha. O Piloto puxava os cabelos.
- Então, meu rapaz - disse eu, travando-lhe o braço. - Não é preciso ficar assim. Vamos todos perguntar ao porteiro, que a há-de conhecer, se esta senhora não for como a parteira de Ander-matt, que se descobriu nada ter em comum com a donzela de Orleães.
Rindo ainda, arrastámo-lo até à loge do porteiro, e começámos a interrogar o suíço, um velho careca, sobre as recém-chegadas. O porteiro, a princípio, estava ocupado em contar as variadas e elegantes bagagens e não nos deu muita atenção.
- Olhe - disse-lhe eu - aqui tem uma bela recompensa em troca de um favorzinho seu. Aquela senhora de juste-au-corps negro é uma revolucionária que inspirou o assassínio do cura do bispo de Saint Gallen? Ou é uma mística que dedicou a sua vida à memória do general Zumala Carregui? Ou é uma rameira de Roma?
O velho deixou cair o lápis e olhou-nos fixamente.
- Valha-me Deus, que diz Vossa Senhoria? - exclamou ele. - A senhora que passou agora pela sala de jantar, e que se hospedou no número nove, outra não é senão a esposa do senhor conselheiro Heerbrand, de Altdorf. O conselheiro é a pessoa mais grada da cidade, e era um viúvo com muitos filhos. A presente conselheira Heerbrand é viúva de um viticultor italiano, e tem uma propriedade na Toscana, o que a obriga a viajar assim para lá e para cá. Em Altdorf, onde tenho três netas a servir, ela é altamente respeitada. Aquela senhora é que dá o tom na cidade, e é uma jogadora de cartas de fama.
- Bom, Piloto - disse, ao guiá-lo de volta à sala, pois ficara tão pasmado que teria permanecido no mesmo lugar se eu lhe tivesse largado o braço - eis uma prosaica solução para o nosso enigma. Hoje podemos dormir descansados nos quartos oito e dez, com a cama da Conselheira de permeio.
Eu não via muito bem por onde ia, e tropecei em alguém que, de bengala na mão, atravessava lentamente a sala de jantar em nossa direcção. Pedi-lhe desculpas, e, quando ele ergueu de leve a cartola, reconheci que se tratava do velho judeu de Roma, Marcus Cocoza. Na mesma fracção de segundo ele prosseguiu o seu caminho e saiu por essa mesma porta por que passara a senhora.
Tive um primeiro momento de puro terror, ao olhar a face pálida e os olhos de um negro profundo, e depois fui tomado de uma fúria que me fez estremecer da cabeça aos pés. Eu não me enfureço com facilidade, como tu sabes, Mira, e já era assim em novo. Quando realmente me enfureço, sinto um alívio extraordinário. Eu tinha andado deprimido, desapontado, fora ridículo, estivera inactivo durante longo tempo, e o meu desespero tinha atingido o clímax ao encontrar-me com os dois amigos no hotel. Agora, pensava eu, se tudo no mundo estava de facto contra mim, e se tudo me era igualmente odioso, chegara o momento de lutar. Pelo menos foi o que eu senti no momento. Mais tarde reflecti que não fora eu quem operara essa mudança em mim próprio, mas a proximidade dessa mulher. Ela tinha passado a uns dez palmos de mim, e tinha libertado o meu coração com o roçar das suas saias, e mais uma vez os ventos da vida enfunaram as minhas velas, e sobre as correntes navegava a minha quilha.
Olhei para os meus dois companheiros, e vi que ambos tinham reconhecido o judeu. Naquele espanto mais pareciam dois bonecos articulados. A magia que eu tinha encontrado envolvia-os a eles também - ou então não passavam de figuras da minha imaginação. Isso pouco me importava. Agora estava decidido a ajustar contas com o destino. Tirei o meu cartão, escrevi nele o nome do velho judeu e o desafio da praxe no melhor estilo, pedindo-lhe que me recebesse imediatamente, e mandei o criado do hotel entregá-lo no seu quarto. Não era pouco o medo que eu sentia desse velho a que Olalla chamara a sua sombra. Acreditava piamente que ele tinha parte com o Diabo, mas era imperioso que eu lhe falasse. O criado, porém, voltou para dizer-me que isso era impossível. O cavalheiro em questão já se recolhera, mandara o seu criado pessoal levar-lhe uma bebida quente e agora tinha fechado a porta e não queria ser incomodado. Disse ao homem que era um assunto de gravidade, mas ele recusou-se a fazer alguma coisa mais. Conhecia bem o hóspede, que viajava numa esplêndida carruagem com os seus próprios criados, e era senhor de uma fortuna incalculável.
- Ele tem passado por aqui - perguntei ao criado do hotel - em companhia de Madame Heerbrand?
- Não, nunca - afirmou o pobre diabo, a quem expressão do meu rosto, creio, assustava. Parecia-lhe que a senhora e o cavalheiro nem sequer se conheciam, disse ele.
Era odioso para mim ter de esperar toda a noite para resolver o assunto. Mas, como não podia ser de outro modo, arrastei uma cadeira para junto do fogão e aticei o lume, não ousando sequer adormecer. Tinha medo que essa mulher saísse de manhã cedo do hotel, por isso voltei a chamar o criado, dei-lhe uma gorjeta e intimei-o a vir avisar-me assim que a senhora do número nove deixasse o hotel no dia seguinte.
- Mas - disse o rapaz - a senhora já partiu.
- Partiu? - exclamei, com o Piloto e o barão repetindo o meu grito em ecos sucessivos.
Sim, partira. Mal tinha deixado a sala por uma porta, voltara por outra à loge do porteiro, em grande aflição, e mandara que uma carruagem a levasse ao mosteiro nessa noite mesmo. Tinham-lhe entregado uma carta no hotel, disse ela ao porteiro, informando-a de que a irmã estava moribunda, na Itália. Precisava de seguir viagem, era um caso de vida ou de morte.
- Mas será possível - perguntei - fazer essa jornada de noite, e com esta tempestade?
O criado concordou que seria difícil, mas ela insistira, oferecera-se para pagar o dobro e o triplo do aluguer e apertara as mãos em tanto sofrimento que o coração do cocheiro se comovera. Além disso, não era fácil desobedecer a Frau Heerbrand. Não era uma senhora como as outras. Lá foi. Nós até devíamos ter ouvido as rodas da sua carruagem. Era verdade. De facto, nós tínhamos ouvido.
Ali ficámos, pois, como três cães à volta do covil de uma raposa.
Não duvidei que fosse a presença do velho judeu o que fizera fugir essa mulher. Ele era de facto um mágico, um demónio, o djiin que lograra apoderar-se da bela dama. Por instantes mergulhei na angústia mais profunda por não poder entrar no seu quarto e matá-lo. Mas isso provocaria um grande rebuliço, e haviam de mo impedir. Nada mais restava que segui-la e protegê-la desse judeu. A esta ideia o meu coração ganhou asas como a alegre cotovia.
Tivemos alguma dificuldade em arranjar uma carruagem, mas finalmente o barão ultrapassou-a, demonstrando uma grande energia e eficiência. Compreendi que os meus dois companheiros, que desconheciam qualquer interesse pessoal meu no assunto, se surpreendiam com o meu zelo. O barão, supondo-me perdido de bêbado, não era, mesmo assim, avesso a que mais alguém fosse espectador das suas façanhas. O Piloto, esse, tomou a minha impaciência como prova de amizade por ele. Basta dizer que tentou expressar em palavras, embora até ali parecesse ter emudecido, o quanto me estava grato.
- Vai para o Inferno, Piloto - disse-lhe eu.
E ele contentou-se, por isso, em me apertar a mão.
Finalmente, e a peso de ouro, veio a carruagem e nós partimos a caminho do mosteiro.
O vento era temível, e uma espessa camada de neve cobria a estrada. Por consequência, a nossa carruagem seguia em marcha desigual, aos trancos e barrancos, e por vezes chegava mesmo a parar. Nós íamos sentados cada um a seu canto. Desde que penetrámos na atmosfera sufocante da carruagem fechada, por detrás dos vidros que a borrasca fustigava e rapidamente encobriu, não trocámos uma só palavra. Cada um de nós ambicionava, tenho a certeza, que os companheiros perecessem na viagem. Eu, porém, logo me deixei todo invadir pela ideia de rever Olalla a ponto de o mundo exterior se sumir e desaparecer dos meus olhos. Subíamos sempre. Quase podíamos continuar subindo ao Céu. O meu céu, se eu fosse livre então de o escolher, seria também turbulento, todo feito de um galope frenético.
À medida que prosseguíamos viagem, a estrada tornou-se mais íngreme e a nevasca mais violenta. O cocheiro e o moço não viam dez palmos à sua frente. Subitamente a carruagem deu um grande solavanco e imobilizou-se. O cocheiro, descendo da boleia, abriu com violência a porta e uma forte rajada de vento e neve penetrou com ele no interior, todo coberto de neve como estava, bradando furioso que era impossível fazer sair as rodas do atoleiro onde se atascavam.
Consultámo-nos brevemente, o que de nada nos serviu, pois todos quisemos prosseguir viagem. Saímos aos tropeções, abotoando os capotes e levantando as golas e, dobrados como velhos, continuámos a perseguição a pé.
Parara de nevar. O céu estava quase claro. A Lua, correndo por trás de finas nuvens, indicava-nos o caminho. Mas o vento aqui era medonho. Lembrei-me, quando saí da carruagem, de um conto de fadas que em criança me contavam, e no qual uma velha bruxa tem todos os ventos dos céus presos num saco. Os ventos aqui encerrados bramiam enfurecidos, caindo sobre nós como cães de combate que a coleira prende. Por vezes pareciam abater-se a direito sobre as nossas cabeças, para de novo se erguerem do chão, fazendo a neve girar em remoinhos de grande altura. Na carruagem sentíramos frio, mas aqui, estando já a uma grande altitude e em plena montanha, o ar era glacial, como se alguém tivesse despejado um balde de água gelada sobre nós. Quase nem se podia respirar. Mas toda esta fúria dos elementos me fez bem. Num mundo como este, numa noite como esta, eu iria encontrá-la, e ela iria precisar de mim.
As silhuetas dos meus companheiros, indistintas e vagas apenas à distância de um braço como sombras na neve da estrada, eram insignificantes para mim. Esta procura, eu a sentia como só minha, e em breve me distanciava um pouco deles. Ao Piloto perdi-o de vista. O barão mantinha-se relativamente próximo de mim, mas não me alcançava.
De súbito, após talvez uma hora de caminho, quando a estrada rodeou um rochedo, um vasto objecto quadrangular, inclinado na berma do trilho, agigantou-se qual torre imensa à minha frente. Era a carruagem de Olalla. Ali ficara, atolada como a nossa e meio virada, não se vendo nem cavalos nem cocheiro. Abri de um sacão a porta, e uma mulher no interior da carruagem deu um grito medonho. Era a criada que eu tinha visto no hotel. Acocorava-se no chão da carruagem, coberta com xailes. Estava só, e quando percebeu que eu não vinha matá-la ou para a roubar, gritou-me que o cocheiro tinha desatrelado os cavalos para os levar para um abrigo, depois de abandonar, como o nosso também, a esperança de ir mais longe. Mas onde, gritei-lhe eu, estava a senhora? Seguira, disse-me a criada, seguira viagem a pé. A rapariga estava num susto horrível, e ao descrever a fuga da ama e os perigos que ela corria soluçava, chorava, mal podendo articular as palavras. Libertei-me dela a custo, pois não queria que eu a deixasse, e bati a porta da carruagem. Que terror, que perigos, pensei, encerraria aquela carruagem para fazer uma mulher abandoná-la, sozinha, no breu da noite e nas montanhas mais ermas? O que teria, que a ameaçava, o velho judeu de Amsterdão?
Eu tinha parado junto à carruagem por um quarto de hora talvez, o que permitira ao barão alcançar-me. As duas lanternas do carro ainda estavam acesas e, ao surgir por trás de mim, e ao falar-me, foi curioso ver na noite fria o seu rosto aparecer escarlate, chamejante a esta luz. No abrigo da carruagem poucas palavras trocámos. Prosseguimos, caminhando lado a lado por um tempo.
Onde o trilho era mais íngreme, por entre o nevoeiro que a neve rodopiando levantava, rente ao solo como o fumo de um canhão, avistei uma sombra escura à minha frente, a menos de cem jardas, que poderia bem ser uma figura humana. A princípio julguei vê-la aparecer e desaparecer, e era-me difícil, no breu da noite e nessa tempestade, manter os olhos fitos nela. Mas pouco a pouco, embora eu não me aproximasse, os meus olhos foram-se habituando à escuridão e já podiam segui-la sem fraquejar. Caminhava, nesta íngreme e difícil subida, tão depressa quanto eu, e essa minha fantasia do passado, em que a soubera voando, vinha-me então à lembrança. O vento embaraçava-lhe as saias. Se as enfunava por vezes, espalhando-as, ela parecia uma coruja furiosa num ramo alongando as asas. Cingindo-as depois ao corpo, enrodilhadas, ao andar, as longas pernas pareciam as de um grou, quando corre pelo chão a tomar vento nas asas.
Ao vê-la, a presença do barão tornou-se-me intolerável. Se eu tinha perseguido Olalla durante seis meses para a vir alcançar aqui, no desfiladeiro da montanha, então que a tivesse só para mim. De nada serviria explicar isto ao barão. Parei. E, como ele parasse também, agarrei-o pelas bandas do capote e empurrei-o para trás. A subida cansara-o. Respirava com dificuldade e tinha já parado por várias ocasiões. Mas o barão recobrara forças ao sentir as minhas mãos, e ao ver a expressão do meu rosto. Agora por nada deste mundo me deixaria prosseguir sozinho. Vi um brilho mau naqueles olhos, e nos dentes. Lutámos por alguns minutos no caminho pedregoso, e ele, com um safanão, derrubou-me o chapéu, que rolou montanha abaixo. Mas eu, agarrando-o ainda pela roupa com a mão esquerda, assentei-lhe um murro na cara que o fez perder o equilíbrio. O solo estava escorregadio e ele caiu e rolou pela estrada. Ao cair tinha puxado o cachecol que eu levava ao pescoço, e quase me estrangulou. Maldizendo aquele atraso, galguei a subida, suando e tremendo com o esforço.
De novo só, e certo de alcançar enfim Olalla nestas altas montanhas, sentia-me invadir pela felicidade e pelo medo que me assaltara já quando vira a carruagem. Ambos me deram forças para continuar. Mais uma vez pensei, correndo eu cá em baixo na Terra escura como a Lua pelo Céu, que muito provavelmente estava doido. A situação era, com efeito, de enlouquecer, feita à medida para uma stravaganza dos teatros de Roma. Aqui estava eu, seguindo pelos ermos a mulher amada, e ela fugindo à minha frente, pela noite, tão depressa quanto podia, julgando que eu era esse velho inimigo de nós ambos que primeiro nos separou e me apetecia matar. Ela não voltou a cabeça uma só vez, e teria sido inútil chamá-la contra o vento. Para além do mais, ambos nos íamos consumindo mais do que as nossas forças o permitiam, ela na fuga, eu na perseguição; e mesmo assim, ao seguirmos curvados como dois velhos, apenas podíamos vencer duas milhas por hora. Mas o mais estranho de tudo, e o que mais me afligia, era pensar como ela podia confundir-me com o velho judeu. Nas ruas de Roma e na sala de Andermatt ela caminhara lentamente, apoiada numa bengala. Eu era novo e um bom atleta, e no entanto ela confundia-me com ele. Esse velho devia ser realmente um demónio, ou tinha o poder de tomar os demónios ao seu serviço. Comecei a sentir-me eu próprio o seu mensageiro, o seu enviado. Estava já talvez, sem o saber, nas suas mãos e seria, contra minha vontade, o espírito maligno que servia o velho bruxo de Amsterdão?
Enquanto isto me passava pela cabeça eu tinha ganho terreno. E então, aguilhoado pela sua presença, completamente louco do desejo de a alcançar, de abraçá-la, galguei de um salto o espaço que nos separava. Subitamente a sua longa capa, que o vento enfunava atrás, fustigou-me a cara, e no instante seguinte eu estava a seu lado, ultrapassava-a de um salto e, rodando nos calcanhares, fazia-a parar. Ela correu direita aos meus braços, e teria caído se eu não a amparasse. Segundos depois, sob a Lua errante de Inverno, estávamos confundidos num abraço. Apertados um contra o outro, pela força dos elementos, ambos arquejávamos.
Sabes, Mira, é imensa a loucura dos seres humanos. Eu tinha buscado a salvação, certo de que, ao alcançar essa mulher, a felicidade que eu conhecera em Roma havia de voltar. Não me lembro já do que sonhara fazer - se levantá-la do chão, se possuída sobre a neve, se matá-la, quem sabe, para que ela nunca mais pudesse fazer-me sofrer. Conheci um instante de felicidade, sim, ao apertá-la nos braços, ao sentir a sua respiração no meu rosto, e as suas formas contra o meu corpo saudoso. Mas durou tão pouco esse instante. O vento havia levado o seu chapéu para longe. O rosto que ela erguia, branco de cal, com dois grandes olhos que eram como dois lagos, estava muito próximo do meu. Agora eu via que ela estava apavorada. Não era do judeu que ela fugia - era de mim.
Muitos anos depois, ao atravessar o Mediterrâneo debaixo de uma tempestade, olhei por momentos os olhos de um gavião que tentava repetidamente, sempre em vão, enganchar-se no cordame do meu barco antes que o vento o levasse e o sepultasse no mar. Era de novo a expressão do rosto de Olalla naquele desfiladeiro de montanha. Também o gavião estava perdido, louco de medo, esgotado pela fadiga e já sem esperança.
Suponho que fitava Olalla, tão preso de terror como ela, e quando o percebi, gritei-lhe no rosto o seu nome duas ou três vezes. Ela não tinha forças para falar, e não sei se me ouviu.
Agora que a protegia do vento, os seus longos cabelos negros e os negros vestidos tombaram junto ao corpo. Ela pareceu mudar de forma e transformar-se numa coluna nos meus braços. Ficámos assim por algum tempo, e finalmente eu perguntei:
- Porque foges de mim? Ela fitou-me.
- Quem é o senhor? - disse ela por fim.
Apertei-a nos meus braços mais ainda, e dei-lhe um beijo, depois outro. O seu rosto era muito frio e fresco. Imóvel, ela deixava-se beijar. Mais queria que fossem os farrapos de neve e o vento em fúria a tocar-lhe os lábios que o meu rosto e a minha boca.
- Olalla - disse eu - toda a vida te procurei, corri o Mundo inteiro. Não podemos ficar juntos agora, aqui?
- Eu estou sozinha aqui - disse ela, passado algum tempo. - Assustou-me. Quem é o senhor?
Achei que era altura de impor tréguas a essa perseguição que me vinha acossando. Por isso me quedei imóvel, reflectindo na situação. Não podia deixá-la sozinha, à mercê da noite e do vento. Soltei-a, conservando-a amparada no meu braço direito.
- Madame - disse-lhe - sou um inglês em jornada por estas malditas montanhas. O meu nome é Fosner. Uma senhora não deve andar sozinha por estrada tão má, e a estas horas da noite. Consinta que a acompanhe ao mosteiro. Será uma grande honra para mim.
Reflectiu nisso, e pareceu apoiar-se confiante no meu braço. Mas disse:
- Não posso dar nem mais um passo.
Bem vi que não. Se eu não a amparasse, ela teria caído. Que havíamos de fazer? Ela própria olhou em seu redor, e depois para a Lua. Quando por fim recuperou um certo equilíbrio, disse:
- Deixe-me descansar um pouco. Vamos sentar-nos aqui, e descansar; depois irei consigo até ao mosteiro.
Procurei com os olhos um abrigo e descobri um que era o menos mau, próximo de onde nos encontrávamos, na aba de um grande rochedo que avançava, saliente, sobre a estrada, a umas cem jardas de distância. Cobria-o a neve que o turbilhão do vento para ali atirara, mas no recesso de pedra o vento não penetrava. Levei-a, ou, antes, carreguei-a até lá. Tirei o capote e o cachecol com que o barão quase me havia estrangulado, e aqueci Olalla o melhor que pude. Entretanto a noite clareava. Toda a paisagem imensa era de uma alvura brilhante, excepto quando alguma nuvem escondia a Lua. Sentei-me a seu lado, na esperança de que tivéssemos um momento de paz na solidão dessas montanhas.
Olalla sentava-se perto de mim, o seu ombro roçando o meu, calma e perfeitamente amável. Experimentei de novo essa impressão que ela me dera sempre: a de a dor e o sofrimento não a afectarem, a de tudo ser, de certo modo, a mesma coisa para ela. Sentava-se no desfiladeiro agreste e frio da montanha como uma pequenina havia de sentar-se num prado florido, o bibe cheio das flores que colhera.
Passado algum tempo, disse-lhe:
- O que a traz a estas montanhas, Madame? Eu viajo em busca de uma coisa, mas não tenho sorte. Queria, também, ajudá-la, e lamento se a assustei porque, assim sendo, é-me mais difícil vir em seu auxílio.
- Sim - disse ela após um silêncio - não é fácil viver, não é fácil para ninguém. Do mesmo se queixava Madame Nanine. Ela queria ter as raparigas sempre bem disciplinadas, mas não nos queria submissas, porque assim não teríamos préstimo algum na casa. Madame Nanine era a mulher que dirigia esse lupanar de Roma de que te falei.
Disse-me ela isto num tom afável, como se para me demonstrar cortesia. Evidentemente pensava que, tendo eu a bondade de admitir que ela me era uma perfeita desconhecida, ela me retribuia com a confissão de nos termos conhecido há longo tempo atrás.
Disse-lhe:
- Só aqui é que faz este frio. Amanhã, quando descer o desfiladeiro, irá ao encontro dos ventos da Primavera. Em Itália agora é Primavera, e a Roma, penso eu, já voltaram as andorinhas.
- Lá é Primavera? - perguntou ela. - Não, ainda não é. Mas será em breve, e para si será muito agradável, que é tão novo.
- Sabes, Mira - disse Lincoln, interrompendo a narrativa - que é hoje a primeira vez que penso nessa hora passada nas montanhas? Só a lembro, passo a passo, por assim dizer, à medida que ta vou contando. Nem sei porque não pensava nisto antes. É esta Lua que mo faz recordar, talvez? Ela também lá estava, a Lua.
- Madame - disse-lhe eu - se estivéssemos agora no meu país havia de preparar-lhe uma bebida, quando chegássemos a uma casa, que lhe daria novas forças... sim, e o gengibre havia de aquecer-lhe a boca.
Descrevi-lhe as nossas bebidas fortes, e como se chega a casa num dia de Inverno, com as mãos e os pés gelados, e as bebemos frente à lareira. Principiámos então a falar de comidas e bebidas, e de como nos havíamos de desembaraçar se ali ficássemos retidos para sempre. Era agradável poder falar, ali, e ser ouvido, sem precisão de gritar. Esta caverna sob o rochedo era em muito semelhante, aliás, a uma casa, para ela e para mim, um lar como nunca um e outro antes conhecêramos. Parecia-me que tudo ali havia de harmonizar-se, que até meu pai, se pudesse invocar o seu espírito, ali se nos havia de reunir com prazer e orgulho. Ela não falava muito, mas ria por vezes com o que eu dizia. Eu também não falava continuamente. Ficámos ali sentados, creio, por uns três quartos de hora talvez. Eu sabia que era perigoso adormecer.
Foi nessa altura que me pareceu ver uma luz na estrada, e duas figuras que avançavam, sombrias, parando de vez em quando. Era o Piloto, morto de cansaço, exausto da subida, com o barão que se apoiava no seu braço e coxeava pela difícil estrada à luz do luar. Soube depois que o sueco tinha torcido o tornozelo ao cair, e que o Piloto, que seguia atrás, o tinha ajudado a erguer-se e o socorrera. O barão tinha mandado o outro buscar a única lanterna ainda acesa na carruagem de Olalla. Era essa lanterna que traziam, penosamente, e ambos vinham entorpecidos de frio.
Quis a minha pouca sorte que eles parassem para recobrar forças e prosseguir na jornada, e pousassem a lanterna mesmo ao pé do nosso refúgio. O Piloto não nos viu; nada ele via no mundo em seu redor. Mas o barão, sempre coxeando, o rosto branco de dor, estava atento, e tinha olhos de lince. Voltou-se, arrastando consigo o Piloto. Eu tinha-me levantado ao vê-los. Pensei que talvez fosse bom que eles tivessem vindo: podiam ajudar-me a levar Olalla para o mosteiro.
Não me parece que o barão quisesse lutar de novo comigo, mas estava furioso. Provavelmente fora sempre difícil para alguém de força igual à sua vencê-lo. Mas agora sentia, penso eu, que tinha o Piloto do seu lado. Devia ter-lhe contado o nosso encontro, e dado de mim a imagem de um louco ou de um bêbado.
- Com que então - exclamou ele - a caça terminou e o inglês venceu! E tirou logo partido da situação, mesmo a dez graus abaixo de zero. Não lhe devíamos ter gabado tanto os atractivos. Até agora ele só tinha visto as mulheres do seu país, e nós pusemo-lo completamente doido. Vamos nós agora ver a senhora, Fritz.
Pareciam duas aves de mau agoiro quando se aproximaram de nós. O Piloto havia voltado a lanterna, de modo que a luz incidiu sobre Olalla. Ela tinha-se levantado e ficara de pé a meu lado, mas já não se apoiava em mim.
O barão fitava-a. O Piloto também.
- Então és mesmo tu, minha santa Rosalba - disse o primeiro - repousando um momento na viagem a caminho do Céu. Felicidades é o que eu te desejo nessa mais agradável carreira.
Vi que às suas palavras a custo Olalla se impedia de rir. Com efeito, sempre que olhava para o sueco ela tinha vontade de rir. Mas estava muito branca, e a cada minuto ficava mais pálida.
Agora o Piloto, que vinha segurando a lanterna e ficara imóvel, como se a luz o cegasse, avançou para nós um passo e fitou-a no rosto.
- Madàme Lola - gritou ele - é a senhora?
- Não, não sou - disse ela. - O senhor está equivocado. Isto confundiu terrivelmente o Piloto, que puxava os cabelos.
Tive a impressão de que ele ia ficar louco nesse mesmo instante.
- Não me iluda, peço-lhe - disse ele. - Diga-me, então, quem é.
- O meu nome não teria qualquer significado para si - disse ela. - Eu não o conheço.
- Sei que está zangada comigo - exclamou ele - por eu ter contado a nossa história a outras pessoas. Mas eu não sabia o que fazer. Realmente, desde esse último dia em que a vi eu não tenho sabido mais o que fazer. Sou infeliz, Madame Lola. Diga-me quem é.
À luz da lanterna vi que os vestidos de Olalla estavam empinados e lustrosos de gelo, e os sapatos cobertos com uma grossa camada de neve. Mas nem assim eu a arrastei dali; fiquei, e ouvi.
De súbito o Piloto caiu de joelhos, na neve, a seus pés.
- Madame Lola - exclamou - salve-me! A senhora é a única pessoa no mundo que o pode fazer. Aquelas semanas em Lucerna foram as únicas de felicidade para mim em toda a minha vida. E as coisas que eu havia de fazer! Eu já nem sei quais eram. Diga-me quem é!
O barão arrebatou a lanterna que o Piloto deixara cair e ergueu-a bem alto. Creio que estava transtornado por ver até que ponto o outro tinha descido.
- Essa Madame Rosalba - exclamou - elle se moque des gens! Foi a primeira coisa que me disseram dela. Mas não há-de rir por muito tempo deste jovem Arvid Guildenstern. Essa santa mulher tem nas costas um sinalzinho castanho. É uma prova fácil de tirar, entre nós, e ficaremos a saber quem ela é.
De novo observei Olalla, que a custo não se ria. Mas falou ao Piloto com brandura.
- Se alguma vez o tivesse conhecido - disse ela - não lhe teria feito mal. Teria procurado oferecer-lhe um pouco de prazer. Mas eu não o conheço. Deixe-me passar.
Ela voltou-se para mim, lentamente, como se confiasse que eu ficaria do seu lado. Era o que eu teria feito dez minutos antes, enfrentando tudo e todos, mas é extraordinário como as más companhias depressa nos corrompem. Quando ouvi aqueles dois falar do tempo e da maneira em que a tinham conhecido, eu próprio, que muito mais próximo estava dela, me voltei e a fitei no rosto.
- Diga-lhes! - exclamei. - Diga-lhes quem é!
Os olhos que me fitaram eram escuros e radiosos, e depois, afastando-se de mim, ergueram-se para a Lua. Um longo arrepio percorreu todo o seu corpo.
- Havemos de pôr fim ao mistério - disse o barão - quando apanharmos o teu velho judeu. Parece que ele tem sido a capa de misericórdia de todos os teus disfarces.
- De quem está o senhor a falar? - perguntou Olalla, franzindo um riso. - Aqui não há nenhum velho judeu.
- Mas não anda longe - retorquiu o barão. - Havemos de nos encontrar todos no mosteiro.
Ao ouvir isto ela ficou imóvel como uma estátua. E a sua imobilidade para com os outros era-me intolerável.
- Vou livrá-la destes dois - disse-lhe - mas desta vez diga-me a verdade, só a verdade. Quem é a senhora?
Ela não se voltou nem olhou para mim. Mas no momento seguinte fez o que eu sempre temera que ela fizesse: alargou as asas e voou. Sob a Lua redonda e branca ela desenhou um grande e único movimento, lançando-se para longe de nós três, e o vento alongou os seus vestidos amplos. Disse já que ao fugir de mim, encosta acima, ela me tinha parecido uma grande ave que corresse a tomar o vento nas asas. Agora ela de novo, exactamente, procedia como o guincho negro quando o vemos atirar-se de uma ladeira ou de um telhado para deixar o solo e levantar voo. Por um segundo ela pareceu erguer-se com o vento, e depois, correndo a atravessar o caminho, com todas as suas forças abandonou a terra, lançou-se no abismo e desapareceu.
Não tive tempo de impedi-la, e por um instante eu próprio a quis seguir. Mas ao aproximar-me da borda do precipício vi que ela não tinha caído longe, mas numa saliência mais abaixo, a cerca de uns vinte pés. Parecia, à luz fraca, estar deitada de bruços, toda coberta pela sua grande capa.
Dei com o Piloto soluçando alto a meu lado, e trabalhámos juntos os três uma hora ou mais para a içar. Rasgámos os capotes à luz da lanterna, reunindo as faixas com nós. Quando acabámos, suspendemos a lanterna na berma da estrada. Tornava-se mais difícil a tarefa, em primeiro lugar porque a lanterna subitamente se apagou, tendo-se consumido toda a vela que dentro se encontrava, e depois porque a neve recomeçara entretanto a cair.
Na primeira vez que me desceram não consegui alcançar a plataforma e fiquei suspenso no ar. Finalmente encontrei um apoio na rocha, e pude tocar-lhe. Ela parecia estar sem vida. A cabeça descaiu-lhe quando a levantei, como a corola morta de uma flor, mas o seu corpo não estava ainda completamente frio. Tentei atar-lhe a corda à volta do corpo, mas não o consegui. Quando a içaram ela bateu contra o rochedo de uma maneira horrível. Tive de gritar aos outros, e de a levar comigo abraçada. A saliência onde nos encontrávamos era estreita e cobria-a uma espessa camada de neve. Não era fácil movimentar-me ali. Um fundo abismo se cavava a nossos pés e uma ou duas vezes desesperei de a fazer subir. Pensei então que fora a minha pergunta que a levara afinal a esta morte branca, imensa de luar.
Consegui fazer por fim uma espécie de nó corredio onde enfiar um pé, atei o seu corpo ao meu nem sei bem como, e gritei aos outros que puxassem. Fizeram-no com maior rapidez e desembaraço do que eu os supunha capazes. Ao desatá-la de mim, caí desamparado, incapaz de me suster de pé, ouvi muitas vozes em redor, gritando que ela não estava morta.
Quando pude erguer de novo a cabeça vi, sem surpresa, o velho judeu de Roma, de Amsterdão e de Andermatt, que se havia juntado ao nosso grupo. Pareceu-me natural que ele tivesse ali vindo ter connosco. A sua carruagem estava parada no caminho, e o cocheiro e o lacaio tinham ajudado a içar-me com Olalla. Como ele conseguira fazer passar a pesada carruagem de noite nessa estrada eu não sei; só sei que para um judeu tudo é possível.
Levaram Olalla em braços para a carruagem, e o judeu obrigou-me a entrar também, pois eu sangrava das mãos e dos joelhos. Ali me sentei com ele, segurando os pés de Olalla, e recordahdo a primeira vez que o tinha visto em Roma. Eu estava cheio de sede e de frio, pois tinha suado muito e o ar da noite penetrava-me até aos ossos. Por fim chegámos ao mosteiro, um vasto edifício quadrangular de pedra, onde duas janelas brilhavam iluminadas. Saíram pessoas ao nosso encontro.
Ali me deram a beber um vinho quente e me lavaram as feridas. Quando perguntei por Olalla, conduziram-me a uma grande sala onde, sobre a mesa, duas velas ardiam.
Olalla jazia, tão imóvel como antes, numa padiola que fora colocada no chão. Creio que tinham pensado em levá-la do mosteiro, mas abandonaram tal ideia. Apenas lhe desapertaram as roupas. Uma grande manta de peles, que pertencia ao judeu, cobria-a. A sua cabeça estava ligeiramente voltada sobre a almofada, e uma sombra negra velava um dos lados do seu rosto.
O velho judeu estava sentado numa cadeira junto dela, ainda com o seu capote de peles, a cartola na cabeça, o queixo apoiado no castão da bengala. Os olhos negros estavam fitos no rosto dela, e quase não se movia. Fiquei surpreendido ao ver, no grande relógio da sala, que passavam apenas três horas da meia-noite.
Sentei-me também, e por longo tempo, em silêncio. Ao som do relógio decidi-me a falar ao judeu. Se eu matara Olalla com a minha pergunta, que ao menos tivesse agora a resposta, e o judeu havia de sabê-la. Trocámos algumas palavras, e ele respondeu-me com muita cortesia. Contei-lhe tudo então quanto sabia, e pedi-lhe, enquanto ali esperávamos, que me falasse dela. Algum tempo decorreu sem que ele parecesse disposto a falar. Quando o fez, foi com uma grande energia. O Piloto e o barão estavam presentes também. O Piloto levantou-se da cadeira que ocupava no outro extremo da sala, veio olhar para ela, e voltou ao seu lugar. O barão tinha adormecido, sentado numa cadeira. Mais tarde, porém, acordou e veio juntar-se a nós.
- Conheci de facto esta mulher - disse o judeu - num tempo em que o mundo inteiro a conhecia e adorava pelo seu nome verdadeiro. Era a grande cantora lírica Pellegrina Leone.
A princípio estas palavras nada me disseram, de modo que ficámos em silêncio. Depois, porém, fez-se luz no meu espírito, e vieram-me à lembrança imagens dos meus tempos de menino.
- Mas - exclamei - isso não pode ser! Essa grande cantora foi a estrela com que meu pai e minha mãe deliravam. Quando voltaram de Itália não falavam de outra coisa. E lembro-me bem do que choraram quando ela ficou ferida no incêndio da Ópera de Milão e morreu. Mas tudo isto se passou aí pelos meus dez anos de idade, há treze anos, portanto.
- Não - disse o judeu. - Sim, ela morreu. A grande cantora de ópera morreu. Há treze anos, como disse e muito bem. Mas a mulher continuou a viver, e tem vivido todos estes treze anos.
- Explique-se - disse-lhe eu.
- Explicar-me? - repetiu ele - isso é pedir muito. Mais valia que Vossa Excelência me dissesse: «Dissimule o seu pensamento em frases que eu esteja habituado a ouvir, e que nada significam.» Pellegrina ficou gravemente ferida no incêndio da Ópera de Milão. Os ferimentos e o choque fizeram-lhe perder a voz. Nunca mais voltou a cantar uma só nota que fosse.
Vi claramente, pelo modo como ele falava, que era esta a primeira vez que punha em palavras a sua história. Tanto me comoveu o sofrimento e o pavor que as suas palavras a ele próprio causavam, que não achei o que dizer, embora precisasse de ouvir mais, pois não encontrava explicação no que ele nos contava. Mas o Piloto fez-lhe uma pergunta.
- Então ela não morreu nessa altura?
- Morrer, viver. Viver, morrer - disse o velho. - Ela viveu tanto, ou mais, que qualquer um dos senhores.
- Todavia - insistiu o Piloto - o mundo inteiro a julgou morta.
- Ela assim o quis - disse o judeu. - Nós, ela e eu, fizemos os impossíveis para que o mundo assim julgasse. Eu vi abrir-se o seu túmulo. E sobre ele mandei levantar um monumento.
- Ela foi sua amante? - perguntou o barão.
- Não - disse o judeu com altivez e um imenso desprezo. - Eu via os seus amantes correrem em volta das suas saias, pobres diabos, em galanteios ou em duelos. Eu fui seu amigo. Quando às portas do Céu o porteiro me perguntar quem sou, não direi a esse grande anjo um nome, uma posição, um feito qualquer meu para que me reconheça, mas responderei: «Sou o amigo de Pellegrina Leone.» O senhor, que hoje a matou, como já me disse, perguntando-lhe quem ela era, quando chegar a sua vez e lhe perguntarem quem é, no além-túmulo, o que irá responder? Terá, vendo a face de Deus, de declinar o seu nome, como no hotel de Andermatt.
O Piloto, ao ouvir estas palavras, sentiu-se pouco à vontade; queria falar mas preferiu calar-se.
- E agora, meus jovens senhores - disse o velho judeu - permiti que vos conte esta história à minha maneira. Ouvi bem, pois não voltará a haver outra história como ela.
Toda a minha vida eu fui muito rico. Herdei grandes fortunas de meu pai e de minha mãe, e dos seus parentes, pois ambas famílias eram de grandes comerciantes. Também fui, até aos quarenta anos, muito infeliz, tal como vós sois agora. Corri mundo. Sempre gostei de música. Fui até compositor e escrevi e fiz arranjos para o ballet, arte que me agradava particularmente. Durante vinte anos tive um corps de ballet privativo, que dançava as minhas obras; era o seu público os meus amigos ou eu próprio somente. Tinha um grupo de trinta raparigas, nenhuma delas com mais de dezassete anos, e que o meu maitre de ballet ensinava, e que dançavam nuas para mim.
O barão acordou, já atento, e fez um esgar como se cumprimentasse o velho.
- Não se pode dizer que a vida lhe fosse maçadora - disse ele.
- E porque não? - ripostou o velho judeu. - Era, sim. Terrivelmente, mortalmente maçadora. Podia ter chegado a morrer de tédio se, por um acaso, não fosse ouvir, a um pequeno teatro de Veneza, Pellegrina Leone, então com dezasseis anos. Compreendi nesse dia os enigmas do Céu e da Terra, das estrelas, da vida e da morte, e da eternidade. Ela apossava-se de nós e levava-nos a passear por roseirais onde um rouxinol cantava, e depois, no momento em que o desejasse, erguia-se e erguia-nos com ela mais alto que a própria Lua. Por muito medo que tivéssemos experimentado, por desgraçadas criaturas que fôssemos, ela fazia-nos sentir seguros sobre um precipício como se estivéssemos sentados nas nossas poltronas. Qual jovem tubarão no mar, dominando as fortes águas verdes com um golpe de barbatana, ela mergulhava nos mistérios e abismos do Universo. O nosso coração comovia-se ao som daquela voz, até que se pensava: Não aguento mais; esta doçura mata-me, não posso suportá-la. Então percebíamos que tínhamos caído de joelhos, chorando o infinito amor de Deus e a Sua misericórdia, que nos dera um mundo assim. Tudo era um grandioso milagre.
Senti uma grande compaixão por esse velho judeu que se via obrigado a confiar a estranhos os segredos da sua alma. Nunca, até então, ele falara destas coisas; e agora, que já principiara, não podia mais calar-se. O seu nariz longo e delicado punha uma sombra triste na grande parede caiada.
- Tive a honra, como já disse - continuou ele - de me tornar seu amigo. Comprei-lhe uma villa nos arredores de Milão. Quando não andava em viagem ela ficava ali, e tinha muitos amigos à sua volta; por vezes ficávamos os dois a sós, e então ríamos muito do mundo, e íamos passear de braço dado nos jardins à tarde, ou ao luar.
Ela apoiava-se em mim como uma criança em sua mãe. Dava-me nomes carinhosos, e costumava tomar os meus dedos e brincar com eles, dizendo-me que eu tinha as mais belas mãos do mundo, mãos feitas para tocar só em diamantes. Como nos conhecemos em Veneza e o meu nome é Marcus, ela costumava dizer que era a minha leoa. E era-o, de facto: uma leoazinha alada. Só eu, entre tantos, a conhecia.
Ela tinha duas grandes paixões na vida que a devoravam e eram tudo para o seu altivo coração.
A primeira era a paixão pela grande soprano Pellegrina Leone. Era um amor de nervos, de ciúmes terríveis, tal como sente um dos vossos sacerdotes pela imagem miraculosa da Virgem que está à sua guarda, ou tal como sente uma mulher pelo seu marido, que é um herói, ou um lapidário sente pelo mais puro diamante que jamais se encontrasse. Esta sua relação com o seu ídolo não conhecia reserva ou descanso. Ela não tinha piedade nem a pedia a ninguém. Servia Pellegrina Leone como a escrava sob o chicote, chorando, morrendo às vezes, quando isso lhe era exigido.
Para com as outras cantoras era um demónio, porque precisava absolutamente dos papéis todos para Pellegrina. Ficava furiosa por lhe ser impossível desempenhar dois papéis na mesma ópera. Elas chamavam-lhe Lucifera. Por mais de uma vez esbofeteou uma rival em cena. Tanto as jovens cantoras como as mais velhas andavam constantemente a chorar se contracenavam com ela. E ela não tinha motivos para fazer tudo isto, era a estrela absoluta de todo o firmamento da música. Não era só por consideração pela sua voz que ela tinha ciúmes também da honra de Pellegrina. Ela queria que Pellegrina fosse a mais bela, a mais elegante, a mais vistosa das mulheres, e por isto ela chegava até a ser ridícula na sua vaidade. Em cena só usava jóias verdadeiras e os vestidos mais magníficos. Aparecia no papel de Agathe, uma rapariga da aldeia, toda coberta de diamantes e num vestido com uma cauda de três jardas de comprimento. Nada mais bebia a não ser água, com medo de estragar a pele de Pellegrina. E se um príncipe, ou um cardeal, ou mesmo o Papa a fosse visitar antes do meio-dia, ela o receberia com o cabelo metido em papelotes e as faces cobertas de creme de zinco, para que à noite pudesse arrebatar, e levar a palma a todas as mulheres, não só no palco mas na plateia e nos camarotes também - e tinha por público as mais brilhantes personagens do Mundo. Era moda adorar Pellegrina Leone. Os maiores de Itália, da Áustria, da Rússia e da Alemanha acudiam ao seu salon. E ela gostava, gostava de os ver, a todos, aos pés de Pellegrina. Mas era capaz de ser malcriada com o próprio Czar da Rússia e arriscar-se a passar uns tempos na Sibéria, de preferência a abandonar o repertório ou as horas de estudo.
A outra grande paixão, meus jovens senhores, desta grande mulher era o seu público. E não dedicava esse amor aos grandes, aos príncipes altivos, aos magnatas e às belas damas todas cobertas de jóias; nem mesmo aos compositores famosos, aos músicos, aos críticos e aos homens de letras; ela amava o público das galerias. Essa gente pobre das vielas e das praças de mercado, que ficavam sem cear ou sem um par de sapatos, as recompensas de um trabalho duro, para se amontoarem no calor do galinheiro a ouvir cantar Pellegrina, e que sapateavam, gritavam, choravam por ela - a esses ela amava acima de todas as coisas. Esta sua segunda paixão era tão
forte como a primeira, mas era tão doce como o amor de Deus, ou da vossa Virgem, pelo mundo. Vós, que sois do Norte, não sabeis como são as mulheres do Sul e do Oriente quando amam. Quando beijam os filhos e choram os mortos, elas são como o fogo sagrado. Quando, após a primeira récita da Medeia, o povo da cidade desatrelou os cavalos da minha carruagem, onde ela seguia, para eles próprios a puxarem, ela não tinha olhos para os Ducas que metiam os nobres ombros aos varais. Não, ela chorava numa cascata de quentes lágrimas, mais preciosas que diamantes, ela erguia um arco-íris de ternos sorrisos sobre os varredores das ruas, os carre-jões, os vendedores de fruta e os aguadeiros de Milão. Eu ia com ela na carruagem, e ela segurava a minha mão. Ela não era filha de gente muito pobre. Seu pai fora padeiro e a mãe filha de um lavrador espanhol. Não sei onde ela foi buscar essa paixão pelos mais humildes da Terra. Não era só para eles que ela cantava, de facto, pois também desejava o aplauso dos grandes connaisseurs; mas, se o ambicionava, era por amor às galerias. Sofria por eles se os tempos eram difíceis e eles eram oprimidos. DaMhes-ia todo o seu dinheiro e venderia por eles os seus vestidos. É curioso, eles nunca mendigavam muito dela, como se compreendessem que ela já lhes dava o melhor que possuía cantando para eles. Se lho pedissem, ela teria dado tudo. Os seus jardins e a sua casa tinham as portas abertas para eles, e ela sentava-se com os filhitos dos pobres, à sombra dos aloendros do terraço, quando se recusava a receber os grandes senhores de Inglaterra que tinham atravessado o mar para a verem.
Na relação entre estas duas grandes paixões estava toda a sua felicidade. Nos seus anos de triunfo foi completa. A sua voz e a sua arte iam ficando a cada dia mais extraordinárias. Era inacreditável. Eu sou de opinião que ela não alcançara ainda, no momento da sua desgraça, o apogeu das suas faculdades. A sua fama espalhara-se ao mundo inteiro. Tinha na pequenina mão a pedra filosofal da música, que a tudo em que tocava transformava em ouro. O senhor - disse ele, voltando-se para mim - disse-me que, em países distantes, as pessoas choravam ao lembrar esse caudaloso rio de ouro, essas altas cascatas de diamantes, safiras e rubis sangue-de-pombo. E ela era adorada pelo povo. O povo sentia que, enquanto Pellegrina pudesse cantar para ele, no palco, a Terra não havia sido abandonada pelos anjos.
Isto era, pois - que Pellegrina cantasse como um anjo para as suas galerias, lhes enternecesse o coração e os fizesse derramar lágrimas de alegria e êxtase, que os fizesse esquecer a dureza daquelas vidas, e lembrar o paraíso perdido, que sobre eles semeasse a sua alma como punhados de estrelas, e que eles, por seu lado, adorassem em Pellegrina uma Nossa Senhora mais sua, e a manifestação de Deus e do Paraíso na Terra, e que para eles tudo fosse belo, grandioso, elegante e cheio de luz - isto era toda a sua felicidade.
Mesmo quando representava, como já vos contei, as donzelas de aldeia da ópera, toda em brocados e plumas, não era por uma questão de vaidade pessoal. Era por um sentido do dever para com as suas galerias, igual ao dos sacerdotes das vossas igrejas, que revestem as imagens da Virgem com os mais elegantes vestidos que possam encontrar. Mesmo nos quadros da Natividade, que a todos comove por mostrar a Mãe e o Filho de Deus num estábulo, sobre as palhas, com a manjedoura por berço, o sacerdote não suporta ver a Virgem vestida pobremente e vai adorná-la de sedas, e põe-lhe ao pescoço cadeias de ouro.
Eu próprio sorria desta sua paixão pelos pobres, porque a mim o povo sempre cheirou mal, e não creio nas suas virtudes.
- Ah, então temos de ser todos cortados pelo mesmo molde - perguntava-me ela então - e sermos todos nós os pecadores adorando os deuses? Ora, deixe-me ser quem sou, Marcus, e quem eu escolhi ser. Deixe-me ser uma deusa adorando os pecadores.
Quanto aos seus amantes, conheci-os quase todos, e muito pouco significavam para ela, ou para mim. Aliás, primeiro que se habituasse a eles, causavam-lhe antes mágoa que prazer.
Porque ela sempre foi na vida, apesar do seu excelente bom senso, uma Dona Quixota de la Mancha. Os fenómenos da vida não tinham para ela grandiosidade bastante; não eram proporcionais ao seu grande coração. Ela seria como esse homem a quem deram uma arma capaz de matar um elefante e o mandaram com ela atirar aos pássaros. Ou seria como um grande pássaro, um albatroz, a quem pedissem que saltitasse num poleiro e chilreasse como os passaritos na gaiola. Quando um dos seus amores a fazia sofrer, não era só a sua vaidade que ficava ferida. Porque, fora do palco, não tinha qualquer vaidade, e bem sabia que os rapazes não cortejavam a grande soprano mas a bonita mulher da moda, com dois olhos que eram como duas estrelas, e a graça dessas tímidas e sábias gazelas a que um meu conterrâneo escreveu poemas. Por isso ela não fazia caso da superficialidade e da mentira desses moços. Mas tudo nela era mágoa e decepção se o mundo não era um lugar maior, e se nada acontecia nele de mais colossal, de mais semelhante aos dramas do palco, nem sequer quando ela própria participava do espectáculo com todas as suas forças.
Passados esses amores primeiros, ficava, quando era ainda muito no vinha, sempre um tanto envergonhada. Nessas alturas, penso eu, ela gostaria de ter nascido homem e não via préstimo algum em ser mulher. Porque em toda a glória da beleza feminina, a magnificência dos seios e dos membros, o esplendor dos olhos, dos lábios e da carne, ela seria como essa mulher que tivesse posto o seu vestido mais rico para se apresentar perante um príncipe, num baile de grande gala, e depois verificasse que o convite era afinal para uma reunião de íntimos em honra do magistrado da Polícia, onde todos vestiam os seus fatos costumeiros. Uma senhora, nestas circunstâncias, sente-se também um tanto envergonhada, e suporta o vestido de cauda e a sua rivière de diamantes com fúria e com acanhamento, sentindo que o seu preparo pode, em tal ocasião, cobri-la de ridículo.
Penso até - disse o velho judeu - que muitas mulheres, nas suas ligações, se sentem assim.
Nessas horas de aflição ela recorria a mim, certa da minha compreensão. Ela seria a troça do mundo, se fosse minimamente possível às pessoas vulgares e prosaicas reconhecer numa jovem tão bela e tão rica os traços do cavaleiro da triste figura. Mas eu, francamente, não podia deixar de rir. Dizia-lhe:
Aos olhos do mundo, e dos teus amantes, que dele fazem parte, toda a doutrina do amor, como a teoria das relações humanas, adquire a forma de uma toxicologia, uma ciência dos venenos e dos contravenenos. Todos estão no mundo preparados para os venenos, e adaptados a eles. São como pequenas víboras ou escorpiões orgulhosos da sua mordedura, e estão protegidos dos venenos proporcionais à sua própria virulência. Para quase todos eles o amor é uma distribuição recíproca de venenos e contravenenos, e, no decurso de uma longa carreira de ligações amorosas, orgulham-se de ter ficado imunes a todos os venenos, como os indianos, que se diz conseguirem progressivamente ficar imunes ao veneno de todas as cobras. Mas tu, Pellegrina, não és uma cobra venenosa, és uma píton. Muitas vezes, quando te vejo andar, me lembro das cobras dançarinas que um dia um encantador de serpentes indiano me mostrou. Tu não tens em ti qualquer veneno, e se matas é pela força do teu abraço. Isto só transtorna os teus amantes que estão habituados a viborazinhas, e que não têm a força precisa para te resistir nem a sabedoria que lhes permita avaliar a espécie de morte que podiam alcançar de ti. E, de facto, ver-te desdobrar o grande corpo de serpente para mudar de direcção, impressionar e finalmente esmagar um ratozinho do campo é o bastante para se ficar dolorido de tanto riso.
Assim eu a fazia rir, mesmo por entre as lágrimas.
No entanto, como era muito inteligente e fora educada pela minha inteligência, era ela quem aprendia com os seus amantes, e estas coisas acabavam por não ter mais importância para ela do que para eles. Por isso eu ficava muito grato a esses rapazes. Porque a ajudavam a alcançar um desprendimento nestas coisas que não era inato nela. Quando aprendeu a lição de cor atingiu a perfeição, no palco, nos papéis de rapariga inocente e apaixonada.
- E isto - disse Lincoln, interrompendo a narrativa - tu bem sabes que é verdade. Lembra-te da velha e imortal canção da jovem donzela que recusa tudo o que o Sultão lhe queria dar, para ser fiel ao seu amante, e que começa assim: Ah Rupia, kama na Majasee. É uma bela canção sobre o amor puro e verdadeiro. Só uma prostituta a cantou bem, que eu saiba.
Voltou depois à história contada pelo velho judeu: Assim vivíamos - prosseguiu o judeu - na villa branca de Milão, até ao dia da sua desgraça.
Jovens, vós lembrai-vos como os vossos pais choraram essa terça-feira. Aconteceu durante uma récita do Don Giovanni, no segundo acto, quando Donna Ana entra em cena, com a carta de Ottavio na mão, e começa o recitativo: Crudele? Ah nò, mio bene! Troppo mi spiace allontanarti un ben che lungamente Ia nostfalma desia. No preciso momento em que Pellegrina entrou, dois ou três pedaços de madeira em chamas caíram do tecto à sua frente. Ela era uma mulher de coragem, continuou sem um tremor, apenas levantando brevemente os olhos, e dando a nota aguda tão facilmente como se respirasse apenas. Mas toda uma trave em chamas se seguiu, e o teatro inteiro se levantou em pânico, parando a orquestra a meio de um compasso. Gente corria para as portas, e as mulheres desmaiavam. Pellegrina recuou um passo e olhou em seu redor até que os seus olhos encontraram os meus, que me encontrava sentado na primeira fila da plateia. Sim, ela procurou-me nesse momento de desespero. E não terei razão para estar orgulhoso? Ela não estava minimamente assustada. Ficou no seu lugar, muito calma, como se quisesse dizer: Aqui estamos, para morrermos juntos, tu e eu, Marcus. Mas eu, eu tive medo. Não me atrevi a abrir caminho até àquele palco em chamas, onde todas as árvores e casas e ruas eram de papelão. Nesse mesmo instante, como uma grande nuvem de fumo fosse atirada de uma entrada de cena para a outra através do palco, e o calor rebentasse qual sopro de uma fornalha gigantesca, ela desapareceu da minha vista. Corri com a multidão e consegui sair; já na rua, que estava um verdadeiro manicómio, voltei a sentir o vento frio. O meu criado, que me esperava no átrio, amparou-me. Disseram-nos que Pellegrina fora salva pelo homem que cantava a parte de Leporello, e a quem ela ajudara na sua carreira. Tinha-a levado através dos bastidores em chamas, tinha com ela descido a escada, e os vestidos e os cabelos dela ardiam. O povo, quando soube que ela fora salva, caiu de joelhos.
Levei-a para sua casa, e reuni à sua cabeceira os médicos de Milão. Ela sobreviveu. Fora atingida por uma viga do tecto, e tinha uma queimadura profunda onde a madeira ardendo lhe tocara, da orelha até à omoplata. As restantes queimaduras não eram graves. Delas se curou rapidamente. Mas afinal, com o choque, perdera a voz. Nunca mais voltaria a cantar uma só nota que fosse.
Quando penso no que ela foi durante essa primeira semana depois da sua desgraça, parece-me revê-la totalmente consumida pelas chamas, deitada de lado, imóvel na cama, negra e carbonizada como esses corpos que foram desenterrados da cidade queimada de Pompeia. Fiquei junto dela seis dias, e ela não pronunciou uma palavra. E a mim parecia-me a coisa mais cruel de todas que Pellegrina, em toda a sua dor, tivesse de ser muda.
Eu também não lhe falei. As carruagens do mundo inteiro subiam e chegavam ao pátio empedrado sob a sua janela, pedindo notícias do seu estado.
Eu sentava-me no quarto escurecido, a pensar no caso. Isto para ela, pensava eu, é semelhante ao que seria para o sacerdote descobrir que a imagem miraculosa da Virgem, que esteve à sua guarda, era apenas um ídolo profano, obsceno, pagão, oco e roído dos ratos. Como seria para a mulher descobrir que o marido, que julgara um herói era apenas um doido ou um palhaço.
Não, pensando melhor, dizia eu para comigo, não é assim. Eu sabia de um infortúnio que ao seu podia bem ser comparado. O infortúnio da princesa noiva, que vai, com um reino por dote, enfeitada com os tesouros da casa de seu pai, ao encontro do jovem noivo, o filho de um rei, que está à sua espera na cidade enfeitada para a receber, ressonante de fanfarras e canções de jovens e donzelas, e que é violada por salteadores no caminho. Sim, era assim, pensei eu.
Nenhuma das grandes personagens, que chegavam de todas as partes do mundo a saber notícias dela, tinha acesso a sua casa. Desse facto nasceu o boato que ela estava à morte. O que se teria dito se ela os tivesse deixado entrar eu não sei. Que ela era ainda jovem e bela, e amada por todos eles?
O que teriam dito esses homens, pensei eu, à virgem real e violada que a confortasse? Que ela era jovem, e bela ainda, e que o seu noivo havia de a tratar com carinho? Talvez lhe tivessem dito que a culpa não fora sua, que nada fizera que fosse pecado: «Não há pecado nela que mereça a morte, pois o homem encontrou-a no campo, e a donzela prometida gritou e não havia ali ninguém para a salvar.»
Mas as consolações do vulgo têm um sabor amargo para uma princesa. Porque os físicos e os confeiteiros e os criados das grandes casas são julgados pelo que fizeram, e até pelo que desejaram ter feito; os grandes, esses, são julgados pelo que são. Disse-me alguém que ao leão apanhado na armadilha e fechado na jaula dói mais a vergonha que a fome.
Perdoem-me, meus senhores, se falo de coisas de tanta maravilha e que vós não podeis compreender. Pois quando é que as vossas mulheres dão valor à sua honra, nestes tempos modernos? Serão capazes sequer de reconhecer a palavra honra, se a ouvirem?
Porque eu não lhe disse uma palavra de consolo, e porque nenhuma palavra no mundo me poderia confortar a mim, a minha presença foi suportável a Pellegrina durante esta nossa semana.
Ela pranteava o seu grande nome, e o aplauso das cortes, e a homenagem dos príncipes, como aquela virgem real e violada havia de ter chorado o seu esplendor, a sua coroa nupcial, e os bailes e os desfiles das festas do casamento. Mas ao pensar nas suas galerias ela derramava tais lágrimas como a noiva teria derramado pelo seu noivo real. Pois como havia o povo de suportar a perda de Pellegrina Leone? Teria de viver, agora, dia após dia condenado a esse trabalho duro, humilhado e ofendido pelos patrões e pelas autoridades, mal pago, sem que jamais os Céus se abrissem para ele? E sem a sua Senhora que no firmamento lhe sorrisse? Tinha uma única estrela esse povo, e ela havia desaparecido; estava só esse povo, na escuridão da noite - o povo das galerias que tinha rido e chorado com ela.
Nessa semana eu aprendi a diferença que pode existir, no curso de vinte e quatro horas, entre um e outro mês. Ali em nossa casa o tempo voava ligeiro, dantes, como uma brisa de Maio, como as mariposas, como um aguaceiro de Verão que se encontra com um arco-íris. Agora o dia era tão longo como um ano; a noite como dez anos.
Passada essa primeira semana, Pellegrina pediu-me para lhe dar algum veneno forte com que encurtasse de vez a sua vida. Eu tinha o hábito, quando jovem, de trazer um comigo, para o caso de a vida se me tornar insuportável. Eu, nesta altura, vivia em Milão, e costumava ir todos os dias a sua casa. Entreguei-lhe o veneno ao meio-dia de uma quarta-feira, e ela pediu-me que voltasse na tarde seguinte.
Voltei. Fui achá-la muito doente. Disse-me que havia tomado toda a dose de ópio que eu lhe tinha dado, mas que não fizera qualquer efeito. Não conseguia morrer. Isto, embora ela o acreditasse, eu sabia não ser verdade. O que eu lhe havia dado era suficiente para matar um ser humano. Talvez ela tivesse tomado o suficiente para a fazer doente, para ficar talvez inconsciente, pensando que o tinha tomado todo. Mas o importante não é isto. A verdade, para usar as suas próprias palavras, é que ela não podia morrer. Parecia ter demasiada vida dentro de si.
Pensei mais tarde que, se me tivesse suicidado, ela poderia ter tido forças para me seguir. Pelo que me dizia de tempos a tempos, percebi que ela sempre temera a morte como coisa em tudo estranha à sua natureza, e que fora uma consolação para ela pensar que eu, sendo muito mais velho, naturalmente morreria primeiro, e abriria caminho para ela, ou a receberia no outro mundo, se tal mundo existisse. Essa era uma das razões por que ela me preferia aos homens mais novos e mais fortes. Mas na altura não pensei nisso.
Mesmo assim os meus pés tinham operado nela uma mudança. Já não pensava na morte. Mortalmente cansada, ela havia, por assim dizer, ressuscitado de entre os mortos. Nessa tarde, e pela primeira vez, quis que eu conversasse com ela.
Contei-lhe então como, depois das infindáveis horas da noite anterior, antes mesmo da alvorada, um rouxinol tinha começado a cantar, doidamente, exuberantemente, como se quisesse dominar o tempo, junto à minha janela, e como ao ouvi-lo eu tinha imaginado um ballet que tomaria por tema todas as coisas que nos haviam sucedido. Pellegrina ouvia-me atentamente, e no dia seguinte voltou a essa ideia de um ballet e perguntou-me qual seria o argumento e a música para ele. Disse-lhe que tinha pensado chamar-lhe Philomela, e expliquei-lhe como as cenas e as danças haviam de suceder-se. Enquanto falávamos ela tomou a minha mão e ficou brincando com os meus dedos. Era a primeira vez, desde aquela terça-feira, que tocava um outro ser humano.
Alguns dias mais tarde mandou chamar-me de manhã muito cedo, antes do nascer do Sol. Fiquei surpreso ao achá-la na pérgola do jardim, já levantada e vestida com um négligé.
Era uma linda manhã. As acácias e a relva do jardim espalhavam um delicioso aroma, delicado e moço, no ar azul-es-curo.
Apareceu-me com o rosto de antes do seu infortúnio. As suas faces de flor estavam brancas na luz indecisa. Mas quando começou a falar comigo a sua voz era sussurrada, como se tivesse medo de acordar alguém.
- Mandei-te chamar tão cedo, Marcus - disse ela - para que possamos ter o dia inteiro para conversar, se necessário for.
Pegou-me no braço e fez-me acompanhá-la, que andava de um lado para o outro. Ao chegarmos ao extremo da pérgula ela deteve-se e olhou, antes de se voltar, toda a paisagem. O ar estava muito fresco.
- Tenho muita coisa a dizer-te - disse ela. Mas calou-se. Só quando regressámos ao mesmo lugar ela repetiu: - Tenho muita coisa a dizer-te, Marcus.
Sentámo-nos por fim num banco no interior da pérgula. Ela não me soltou o braço, e assim nos sentámos lado a lado, como numa carruagem.
- Julgas, Marcus - disse ela - que eu não tenho pensado em nada todos estes dias, mas enganas-te. Só que não é fácil dizer-to, porque estes meus pensamentos eu fui buscá-los a longe, a muito longe. Sê paciente, teremos o dia todo.
- Sabes, Marcus - continuou ela, falando ainda em voz muito baixa - foi-me dado agora ver que tenho sido muito egoísta. Só pensava em Pellegrina, em Pellegrina. O que lhe aconteceu pareceu-me extraordinariamente importante, a coisa mais importante no mundo inteiro. Os que amavam Pellegrina, esses só, pensava eu, eram bons e amoráveis, e parecia-me que o mais sensato que uma pessoa de juízo podia fazer era ouvir Pellegrina Leone cantar.
De novo ela ficou silenciosa, apertando levemente o meu braço.
- Mas esta minha desgraça (disse ela repentinamente), se ela tivesse acontecido a uma outra pessoa - digamos por exemplo, Marcus, a uma soprano da China, da Ópera Imperial da China, há cem anos atrás - podíamos ter ouvido falar dela sem nos interessarmos muito, ou talvez derramássemos muitas lágrimas. E no entanto seria uma desgraça também, triste e terrível. Mas porque aconteceu a Pellegrina, pareceu-nos de uma crueldade insuportável. Ora isto não precisa, meu Marcus, de ser assim, e nunca mais o há-de ser para nós.
- Espera - disse ela. - Vou explicar tudo melhor.
- Pellegrina morreu - disse ela. - Não era ela uma grande cantora, uma estrela? Lembras-te da canção:
Uma luz de glória se apagou, Dos altos céus uma estrela caiu...
- Assim foi com ela; a sua morte foi um grande pesar para o mundo. Ah, tão triste, tão triste. Tu agora tens de me ajudar a dizer ao mundo que ela morreu; tens de abrir o túmulo de Pellegrina e levantar sobre ele um monumento. Não mandes erguer uma estátua muito esplêndida, como nós havíamos de escolher se eu tivesse morrido sem perder a minha voz, mas ainda assim uma placa de mármore, dando o nome e as datas do seu nascimento e morte. Põe também nela uma breve inscrição. Põe isto, Marcus: Pela Graça de Deus. Sim, Pela Graça de Deus, Marcus.
- Pellegrina morreu (repetiu ela ainda). Ninguém, ninguém mais será no futuro Pellegrina. Tê-la de novo no palco da vida, neste vale de lágrimas, e acontecer-lhe a ela tudo o que de horrível acontece aos que vivem neste mundo - não, isso não, não aguento. Nenhum ser humano aguentaria sequer pensá-lo. Então prometes-me isso, Marcus, primeiro do que tudo? - perguntou-me ela.
Eu disse que faria o que ela quisesse.
Ela voltou a erguer-se e foi até ao extremo da pérgula. O dia começava agora a clarear; sumiam-se as últimas e pálidas estrelas; todo o mundo em redor gotejava de orvalho, e as ervas, que até então foram escuras, cintilivam prateadas do orvalho. Havia no ar toda uma claridade, como se o Céu se estivesse erguendo acima da Terra. Pellegrina ficou de pé junto a mim. As suas roupas estavam húmidas e orvalhadas. Brincava com as longas tranças negras, levando uma aos lábios, e tremia um pouco no frio da manhã. Nesse extremo da pérgula começava o jardim a descer para um vale; uma vasta paisagem se estendia a nossos pés; agora já se distinguiam as estradas, os campos e as árvores. Lá em baixo, no caminho, vimos operários e mulheres que saíam para os campos.
- Olha - disse ela. - Estava à espera deles para te explicar. É mais fácil de entender o que se vê. Repara, ali vai uma mulher para o trabalho nos campos. Talvez seja a mulher de um camponês; talvez se chame Maria. Está feliz esta manhã, porque o marido é bom para ela e lhe ofereceu um colar de contas de coral. Ou talvez esteja infeliz, porque ele a faz sofrer com os seus ciúmes. Então, o que pensamos nós disto, Marcus, tu e eu? Uma mulher de nome Maria é infeliz, é o que pensamos. Sempre há-de haver Marias na Terra, e não ligamos muito. Olha, vem ali outra, em sentido contrário. Vai ao mercado levar fruta e hortaliça no seu burrinho, e vai preocupada, pois o burrico é velho e caminha devagar, e assim ela não vai chegar a tempo a Milão. Também a isso pouco ligamos, Marcus. Ah, eu vou ser como elas a partir de agora. Chegou a minha hora de ser assim: uma mulher com um nome qualquer. E se essa mulher for infeliz, pouco nos iremos preocupar com isso.
Ficámos ali em silêncio, e eu tentei seguir o rumo dos seus pensamentos.
- E se eu - disse ela - começar a pensar de mais no que pode acontecer a essa mulher, fugirei imediatamente para ser outra diferente: uma rendilheira na cidade, uma mulher que ensina as crianças a ler, uma senhora em viagem para Jerusalém, onde vai rezar no Santo Sepulcro. Eu posso ser tantas mulheres. Serão felizes ou desgraçadas, serão tolas ou sábias essas mulheres, isso não me há-de importar muito. Não voltarei a ser uma só pessoa, Marcus, serei sempre muitas, a partir de agora. Nunca mais terei a vida e o coração presos a uma só mulher para sofrer assim. Até pensar nisso é terrível. Já sofri demais, sabes? Não se me pode pedir que sofra ainda. Acabou-se.
- E tu, Marcus - disse ela - tu deste-me tanto; agora vou eu dar-te este bom conselho. Sê muita gente. Abandona esse vício de ser um só e de ser sempre Marcus Cocoza. Já te preocupaste muito com Marcus Cocoza, agora és tão-somente o seu escravo e o seu prisioneiro. Nada fizeste sem antes ponderar em que medida isso afectaria a felicidade e o prestígio de Marcus Cocoza. Sempre te apavorou que Marcus pudesse fazer um disparate, ou levar uma vida aborrecida. Que diferença teria feito, afinal? Há tanta gente no mundo que faz disparates, tantos que se aborrecem, e nós sempre o soubemos. Deixa agora de ser Marcus Cocoza; e, depois, que diferença fará ao mundo se mais uma pessoa, um velho judeu, fizer um disparate ou se aborrecer por um dia ou dois? Gostaria que encontrasses a serenidade, que sentisses o teu coraçãozinho leve outra vez. Tens de ser, a partir de agora, mais do que um, tens de ser muita gente, tanta quanta puderes imaginar. Sinto, Marcus - tenho a certeza - que todas as pessoas neste mundo deviam ser, cada uma, mais do que uma só, e assim todas elas, sim, todas, viveriam de coração sereno. Saberiam o que é a alegria. Não é estranho que nem um filósofo tenha pensado nisto e fosse eu a descobri-lo?
Pensei no que ela me dizia, e interroguei-me se o seu conselho não me faria bem afinal. Mas eu sabia que não me era permitido segui-lo enquanto ela fosse viva. Se ela estivesse morta eu poderia achar refúgio no seu capricho. A Lua deve seguir a Terra, mas se a Terra se desagregasse e evaporasse, talvez se libertasse a Lua da sua dependência, e fosse, num voo sem peias pelo éter, por algum tempo a lua de Júpiter, por algum tempo a lua de Vénus. Não sei o suficiente de astronomia para o poder afirmar. Deixo isso a vós outros, que tereis talvez maiores conhecimentos dessa ciência.
- Que linda manhã - disse Pellegrina. - A gente pensa que está escuro ainda, mas o ar realmente está cheio de luz, tal qual uma taça de vinho. Como tudo é húmido. Mas em breve o mundo estará seco, e fará calor pelas estradas. Não nos importaremos com isso. Estaremos aqui, juntos, todo o dia.
- E que queres tu que eu faça? - perguntei-lhe.
Ela ficou por longo tempo mergulhada em profundo silêncio.
- Sim, Marcus - disse ela - devemos separar-nos. Eu vou partir.
- E nunca mais nos voltaremos a encontrar? - perguntei. Pellegrina levou um dedo aos lábios.
- Nunca deverás falar comigo - disse ela - se por acaso nos encontrarmos. Porque um dia conheceste Pellegrina.
- Deixa-me - disse eu - seguir-te e ficar perto de ti, para que possas mandar-me chamar quando precisares da ajuda de um amigo.
- Sim, façamos assim - disse ela. - Fica perto de mim, Marcus, para que, se alguém um dia me tomar por Pellegrina Leone, eu te possa chamar e tu me ajudes a fugir. Nunca te afastes muito, para que possas manter sempre afastado de mim o nome de Pellegrina. Mas falar-me, isso nunca o deverás fazer, Marcus. Não poderia ouvir a tua voz sem me lembrar da voz celestial de Pellegrina, e dos seus grandes triunfos, e desta casa onde estamos agora, e do jardim.
Olhou em seu redor como se a casa não existisse mais.
- Ah, são frias as correntes da vida, Pellegrina - disse eu. Ela riu brevemente no ar da manhã, e depois voltou a ficar imóvel.
- As andorinhas voam por aqui - disse ela. - Como achas - perguntou, passado um momento - que seria o Paraíso de que as pessoas falam? Existirá realmente um tal lugar? Havemos de caminhar no Paraíso dentro desta casa, e os ventos do Paraíso hão-de fazer esvoaçar as cortinas. Será Primavera, e as andorinhas hão-de voltar, e tudo será perdoado.
Ela partiu - disse o velho judeu - como tinha dito, no fim desse mesmo dia.
Desde então nunca mais lhe dirigi a palavra - disse ele - mas ela tem-me escrito de tempos a tempos para que eu a ajude quando quer fugir e mudar de identidade. Em Roma, se o senhor não lhe tivesse dito - e ele voltou-se para mim - que o seu pai era um amante de ópera, ela teria partido consigo para Inglaterra. Mas só por um ano ou dois. Tê-lo-ia deixado ao fim desse tempo. Ela nunca se permitiria envolver-se com qualquer uma das suas personagens.
Assim o velho terminou a sua história. Olhou-nos a todos, e depois retomou o seu silêncio de antes, pousou o queixo no castão dourado da bengala, e mergulhou em profundos pensamentos, sem nunca deixar de fitar o rosto da mulher que na padiola agonizava.
Nós três, que o estivéramos a ouvir, guardámos silêncio, sentindo-nos, creio eu, todos nós, um pouco embaraçados.
O próprio Lincoln, chegado a este ponto, mergulhou em sonhos e por algum tempo nada disse.
E devia dizer-te agora, Mira, chegados a este ponto, que mais tarde o meu amigo Piloto seguiu na vida o conselho de Pellegrina Leone.
Foi assim: Não me lembro agora bem se muitos anos mais tarde, conheci no Cabo da Boa Esperança um clérigo alemão de certa idade, de seu nome Rosenquist, que, discutindo nós a singularidade da natureza humana, me contou essa história do meu amigo, ou se eu me entretive, muitos anos depois, a imaginar que havia conhecido no Cabo da Boa Esperança um clérigo alemão que me contara tudo isto do Piloto.
Mas, em todo o caso aqui vai. O Piloto seguiu o conselho, e passou a ser mais do que uma pessoa. De tempos a tempos interrompia a tarefa inútil e laborisa de ser Friedrich Hohenemser e revestia-se da existência de um pequeno proprietário rural, numa província distante, que dava pelo nome de Fridolin Emser. Rodeou esta segunda existência do maior segredo, e a ninguém permitiu que soubesse o que lá se passava. Sentiu, quando se foi embora, que era como se estivesse fugindo da morte, e anichou-se na casita de Fridolin Emser, junto a uma aldeia, como um animal no seu covil. Se alguém suspeitasse e lhe seguisse o rasto, que ele não se dava ao trabalho de iludir, para descobrir afinal o que fazia no seu esconderijo, teria achado que o Piloto, na pele de Emser, não fazia rigorosamente nada. Cuidava da sua quintarola com desvelo, angariava cada dia algum dinheiro para Fridolin, e sentava-se pela tarde fumando um longo cachimbo no caramanchão do seu jardim, que um melro na gaiola encimava; ou às vezes ia beber cerveja para a estalagem e discutir política com essa gente franca. Lá era feliz. Pois, sabendo ele, desde o primeiro dia, que Fridolin não existia, nunca se afligiu por fazê-lo ter uma existência. Uma só coisa o perturbava: não ousar permanecer demasiado tempo nesta existência que o descansava, por medo que ela começasse a ter demasiado peso e o fizesse aceitá-la como existência real. Tinha de voltar à casa de campo dos Hohenemser. Mas até o Friedrich Hohenemser passou a ser mais feliz desde que seguiu o plano de Pellegrina, porque uma vida secreta era uma riqueza para ele, tal como para Fridolin.
Não sei se, em alguma das suas existências, ele se casou. O casamento de Friedrich Hohenemser só poderia ter sido extremamente infeliz, e eu havia de ter pena da mulher que o tivesse de arrastar consigo para o resto da vida; mas Fridolin pode bem ter casado, e ter dado à mulher uma vida tranquila e agradável. Porque ele não estaria permanentemente ocupado em provar-lhe que realmente existia, e que é o calvário de muitas mulheres, antes poderia ter-lhe agradado observar, tranquilamente, apenas a existência dela. Não sei porque há-de ser assim, mas sempre que penso agora no Piloto, vejo-o debaixo de um guarda-chuva - ele que dantes se expunha tanto a todas as intempéries. Sob esta protecção o Sol não o há-de castigar de dia, nem a Lua à noite.
Sacudindo estas reflexões, Lincoln findou o seu relato da história do velho judeu:
Subitamente uma alteração violenta se estampou no rosto do velho judeu. Era como se nós, a quem ele tinha acabado de contar a história da sua vida, tivéssemos sido imediatamente aniquilados. Baixando a bengala, curvou-se para a frente, todo o seu ser concentrado no rosto de Pellegrina.
Ela mexeu-se no leito. O seio alteou-se e ela moveu ligeiramente a cabeça na almofada. Um tremor percorreu-lhe a face; momentos depois as sobrancelhas ergueram-se um pouco, e as franjas negras dos cílios estremeceram, como as asas de uma borboleta pousado numa flor. Todos nos levantámos. De novo olhei para o judeu. Estava visivelmente apavorado com a ideia de ser visto por ela, no caso de Pellegrina abrir os olhos. Recuou, encolheu-se, abrigou-se atrás de mim. Nesse instante ela abria lentamente os olhos. Pareciam sobrenaturais de tão grandes e sombrios.
Apesar do movimento do judeu para se esconder, o seu olhar, caiu directamente sobre ele. Ele sustentou-o, imóvel, tão mortalmente pálido como se temesse uma explosão de ódio. Mas tal não sucedeu. Ela fitou-o atentamente, nem sorrindo nem carregando o sobrolho. Nesse instante ouvi-o inspirar duas vezes, profundamente, como numa ansiedade. Depois, tímido, acercou-se dela um pouco.
Ela tentou falar duas ou três vezes sem que um som se ouvisse, e de novo cerrou os olhos. Mas ainda uma vez os abriu fixando como antes directamente o judeu. Quando falou, foi na sua voz murmurada de sempre, talvez lenta, mas sem denunciar um esforço.
- Boa noite, Marcus - disse ela.
Ouvi o esforço da garganta daquele homem para falar, mas nenhuma palavra ele disse.
- Chegas tarde - disse ela, como se levemente aborrecida.
- Não pude vir mais cedo - disse ele, e surpreendeu-me a sua voz, tão perfeitamente calma e agradável que era, e tão nobremente sonora.
- Que te pareço eu? - perguntou Pellegrina.
- Pareces-me bem - respondeu-lhe ele.
No momento em que ela falara o rosto do velho judeu tinha sofrido uma estranha e impressionante mudança. Já antes falei da sua invulgar palidez. Enquanto nos contava a sua história tinha ficado branco, como se não tivesse um pingo de sangue nas veias. Agora, que ela falava e ele respondia, um profundo e delicado rubor, como o de um rapazinho ou do uma donzela surpreendida no banho, se espalhou por todo o seu rosto.
- Ainda bem que vieste - disse ela. - Estou um pouco nervosa esta noite.
- Não, não tens razão para isso - tranquilizou-a ele. - Tem corrido tudo muito bem até agora.
- É verdade? - perguntou ela, perscrutando o seu rosto. - Não tens críticas a fazer? Nada poderia ter sido melhor? Eu estive bem e tu estás a gostar de tudo?
- Sim - respondeu ele - não tenho críticas a fazer; nada poderia ser melhor. Estiveste bem, e eu estou plenamente satisfeito com tudo.
Ela ficou em silêncio por uns dois ou três minutos, talvez. Depois os seus olhos escuros deslizaram do rosto do velho para os nossos.
Quem são estes senhores? - perguntou ela ao judeu.
- Estes senhores - disse ele - são jovens estrangeiros que fizeram uma longa viagem para terem a honra de te serem apresentados.
- Apresenta-os, então - disse ela. - Mas creio bem que terás de ser breve. Não me parece que o entfacte se vá prolongar por muito mais tempo.
O judeu, avançando para nós, pegou-nos pela mão, um a um, e conduziu-nos à beira da padiola.
- Meus jovens e nobres senhores - disse ele - de belos e distantes países, tenho o prazer de vos dar um momento inesquecível nas vossas vidas. Vou apresentar-vos a Donna Pellegrina Leone, a maior cantora do mundo.
Depois disse os nossos nomes, que lembrava, um a um, correctamente.
Ela volveu para nós os olhos com bondade.
- Tenho muito gosto em ver-os aqui esta noite - disse. - Irei cantar para vós agora, e espero que ireis gostar.
Beijámos a sua mão com profundas reverências, todos três. Lembrei-me das carícias que tinha exigido àquela nobre mão. Mas imediatamente ela se voltou de novo para o judeu.
- Mas, realmente estou um pouco nervosa esta noite - disse ela. - Que cena é, Marcus?
- Minha estrelinha - disse ele - não estejas nervosa. Tenho a certeza de que tudo correrá bem esta noite. É o segundo acto do Don Giovanni, a ária da carta. Começa agora com o teu recitativo: Crudele? Ah nò, mio bene! Troppo mi spiace allontanarti un ben che lungamente la nostr'alma desia.
Ela deu um suspiro profundo e repetiu as suas palavras:
- Crudele? Ah nò, mio bene! Troppo mi spiace allontanarti un ben che lungamente la nostr’alma desia.
Ao dizer estas palavras da bela ópera uma onda de cor profunda e rósea, como a de uma noiva, inundou a face branca e ferida. Alargou-se depois ao peito e à raiz do cabelo. Todos três, que éramos espectadores, estávamos, creio, pálidos; mas aqueles que se olhavam resplandeciam num êxtase mudo e crescente.
Subitamente, a expressão do seu rosto desfez-se, como o gelo que à noite se formava no tanque se dissolvia quando eu, rapaz ainda, lhe atirava uma pedra. O seu rosto era uma constelação de estrela tremulando no Universo. Uma chuva de lágrimas brotou dos seus olhos e banhou as suas faces. Todo o seu corpo vibrava com a paixão, como a corda de um instrumento.
- Oh! - exclamou ela. - Vê, olha para mim! É Pellegrina Leone... É ela, é ela mesma outra vez... É ela que voltou. Pellegrina, a maior cantora, a pobre Pellegrina, ela está no palco outra vez. Para honra de Deus, como antes. Oh, ela está aqui, é ela... Pellegrina, Pellegrina em pessoa!
Custava a crer que, meio morta como estava, ela pudesse albergar no peito essa tempestade de triunfo e dor. Era, claro está, o seu canto do cisne.
- Venham para junto dela, agora, todos, outra vez - disse ela. - Voltem, meus filhos, meus amigos. Sou eu... eu para sempre, agora.
Chorava num arrebatamento de alívio, como se tivesse dentro de si um rio de lágrimas longamente reprimido.
O velho judeu estava num estado horrível de tensão e dor. Vi-o cambalear por momentos, incapaz de se manter de pé. As suas pálpebras estavam inchadas, e grossas lágrimas se comprimiam nos seus olhos e depois correram pelas suas faces. Mas ele permaneceu de pé, e não ousou dar largas à sua emoção, embora isto lhe fosse dificílimo. Creio que lutou com todas as suas forças, por medo de, abandonando-se à dor débil como estava, morrer antes dela, e faltar-lhe nos seus últimos momentos.
Subitamente pegou na sua bengala e deu três pancadas secas no lado da padiola.
- Donna Pellegrina Leone - exclamou em voz clara - en scène pour le deux.
Como um soldado respondendo à chamada, ou um ginete ao som do clarim, ela serenou ao ouvir estas palavras. Instantes depois aquietou-se numa calma valorosa e espectral. Olhou com os seus enormes olhos negros. Num movimento poderoso, como a vaga que se eleva e se afunda, ela ergueu o meio do corpo. Um estranho som, como o urro distante de um grande animal, veio do seu peito. Lentamente o rubor da sua face se extinguiu e uma palidez de cinza o sepultou. O seu corpo caiu para trás, alongou-se na padiola e ficou perfeitamente imóvel; e ela morreu. O velho enfiou a cartola.
- Iisgadal rejiiskadisch schemel robô - disse ele. Ficámos ali por algum tempo, de pé ainda. Depois fomos para o refeitório e lá nos sentámos. Mais tarde, quando já quase amanhecia, anunciaram-nos que as nossas duas carruagens tinham chegado por fim. Saí a dar ordens aos cocheiros. Queríamos seguir viagem assim que houvesse luz suficiente. Seria o melhor, pensei eu, embora não soubesse ainda para onde ir.
Quando passei pela comprida sala vi que as velas continuavam acesas, mas a luz matinal entrava pelas janelas. Ali estavam os dois: Pellegrina na sua padiola o velho judeu a seu lado, o queixo apoiado na bengala. Pensei que não devia separar-me dele ainda. Acerquei-me do velho.
- Então, senhor Cocoza - disse-lhe - o senhor não está desta vez a enterrar a grande artista, cujo túmulo o senhor abriu há muitos anos atrás, mas a mulher de quem foi o amigo.
O velho ergueu os olhos para mim.
- Vous êtes trop bon, Monsieur - disse ele, o que quer dizer: É muita bondade a sua, senhor.
- Esta, Mira - disse Lincoln - é a minha história. Mira inspirou, expirou depois lentamente, e assobiou.
- Já tenho pensado - disse Lincoln - no que seria feito dessa mulher se não tivesse morrido ali. Podia estar connosco esta noite. Era boa companhia, e ter-se-ia harmonizado com tudo isto. Podia ter-se feito dançarina em Mombaça, como Thusmu, esse mostrengo de olhos fulvos, a amante do pai e do avô de Said, por cujo abraço ela ainda hoje suspira. Ou podia ir connosco para os planaltos, ou numa expedição a buscar marfim ou escravos, e decidir-se a ficar aqui com uma tribo guerreira dos nativos dos planaltos, e ser por eles honrada como grande feiticeira. Cheguei a pensar que, no final da vida, ela quisesse fazer-se um bonito e pequeno chacal, e procurar o seu covil na planície, ou na encosta da montanha. Imaginei-o tão vividamente que, numa noite de luar, acreditei ter ouvido a sua voz nos montes. E vi-a então, correndo, brincando com a sua pequenina sombra, graciosa, de coração sereno e divertida.
- Ah, Ia, Ia - disse Mira, que, na sua qualidade de contador de histórias, era um imaginativo e excelente ouvinte - eu também ouvi esse pequeno chacal. Eu também a ouvi. Ela diz assim: «Eu não sou um pequeno chacal, um não; sou muitos pequenos chacais.» E pás!, logo ela é realmente outro chacal, que diz mesmo atrás de nós: «Eu não sou um pequeno chacal. Agora sou outro.» Espera, Lincoln, até que eu a ouça mais uma vez. Então farei uma história sobre ela, para emparelhar com a tua.
- Bom - disse Lincoln - esta é a minha história. A lição para Said.
- Eu conheço toda a tua história - disse Mira. - Já a ouvi antes. Agora acredito que fui eu próprio que a inventei.
O Sultão Sabour de Corassã era um grande herói, não só um herói, como um homem santo, que tinha visões e ouvia vozes que lhe comunicavam a vontade do Senhor. Por isso ele queria dá-la a conhecer a todo o mundo, a ferro e fogo. Mas infelizmente foi atraiçoado por uma mulher, uma dançarina, mesmo no zénite da sua órbita; é uma longa história. O seu grande exército foi aniquilado. A areia do deserto bateu o sangue dos guerreiros; os abutres alimentaram-se deles. Os lamentos das viúvas e dos órfãos subiram aos Céus. O seu harém foi repartido pelos seus inimigos. Ele próprio foi ferido, e só um escravo o arrastou dali e o salvou. Por amor dos seus soldados, agora ele não se mostra nem se dá a conhecer na sua condição de pedinte. Como a mulher da tua história, ele se transformou em muitas pessoas e abandonou-se, como ela, de ser um só. Uns dias é aguadeiro, depois o servo de um khadi, logo um pescador junto do mar, ou um santo ermita. É um homem muito sábio. Sabe muitas coisas e deixa fundo a marca dos seus passos onde quer que vá. Faz a todos que encontra muito bem e algum mal; ainda é um rei. Mas não permanecerá o mesmo por longo tempo. Quando ganha amigos e mulheres que o amam, foge deles e da região, tal é o seu medo de voltar a ser o Sultão Sabour, ou qualquer uma pessoa apenas. Ao o seu escravo o conhece. A este escravo, lembro-me agora, cortaram o nariz por amor a Sabour.
- Ai, Mira, a vida é cheia de coisas desagradáveis - disse Lincoln.
- Ah, como para mim - disse Mira - onde quer que vá. Tu próprio tens escrito no teu Livro Santo que todas as coisas se unem para o bem daquele que ama a Deus.
- Essa declaração de amor - perguntou Lincoln - vem do coração ou dos lábios do poeta da corte?
- Não, eu falo com o coração - disse Mira. - Há muito tempo que venho tentando compreender Deus. Agora tornei-me Seu amigo. Para O amarmos verdadeiramente temos de amar a mudança, e temos de amar o riso, pois são estas as verdadeiras inclinações do seu coração. Em breve aprenderei a amar o riso tão bem que eu, que dantes gelava o sangue do mundo inteiro, me tornarei um contador de histórias divertidas, para fazer todos rir.
- Então, e de acordo com a Lei do Profeta - disse Lincoln - tu estarás, como os barbeiros e os homens que beijam as esposas em público, impedindo de ser testemunha num tribunal.
- Assim é - concordou Mira. - Estarei impedido de ser testemunha.
- O que diz Said? - perguntou Lincoln.
Said, que estivera sentado e imóvel por todo esse tempo, riu brevemente. Olhou em direcção à terra. Na luz da Lua uma faixa branca e indecisa estava surgindo e um murmúrio enchia o ar, como a vibração de uma corda.
- Aqueles - disse Said - são os grandes rápidos do rio Takaungu. Estaremos em Mombaça à alvorada.
- A alvorada? - disse Mira - Então vou dormir por uma ou duas horas.
Agachou-se nas tábuas do convés, puxou a capa para si, tapou a cabeça, e deitou-se a dormir, imóvel como um morto.
Lincoln ficou sentado por algum tempo, fumando um ou dois cigarros. Depois também ele se deitou, voltou-se um par de vezes, e adormeceu.
O POETA
À volta do nome da cidadezinha de Hirschholm, na Dinamarca, teceram-se muitas lendas.
Nos primeiros anos do século xvm a rainha Sofia Madalena - mulher do pio rei Cristiano V, esse que ia à capela três vezes por dia com a sua corte e mandou fechar todos os teatros de Copena-gue - uma noite, após longa montaria, matou um veado na margem de um lago tranquilo em plena floresta. Tanto lhe agradou o lugar que resolveu ali construir um palácio a que deu o nome do veado: Hirschholm. Acabou por ser o edifício, como quase toda a arquitectura teutónica desse período, pomposo e afectado, erigido como o foi no meio do lago, com longos e rectos cais cruzando as águas, e que os coches reais percorriam, em todo o seu esplendor, reflectidos ao invés na superfície clara como antes se reflectira o veado que os mastins da rainha acossavam. Em volta do lago a cidadezinha, com as suas casas de empregados, as tavernas, e um pequeno e modesto comércio, cresceu, as rubras telhas cercando as colossais cavalariças e os reais manèges. Pacata na maior parte do ano, era grande o alvoroço quando a corte magnífica chegava para ali passar a temporada de caça.
Cinquenta anos mais tarde, quando o neto de Sofia Madalena, Cristiano VI, reinava na Dinamarca, foi Hirschholm o teatro, ou os bastidores, da tragédia da sua jovem consorte inglesa Carolina Matilde. Esta princesa patética, de faces rosadas e redondo seio, atravessara o mar do Norte com a idade de 15 anos para casar-se com um reizinho devasso e cruel, pouco mais velho do que ela, mas já perdido nessa real loucura que o havia de tragar anos mais tarde, espécie de Calígula em miniatura, cujo retrato nos dá a estranha impressão de uma alma completamente só, desiludida. Foi aqui, passados alguns anos de infelicidade, e provavelmente de monotonia e confusão para a donzela inglesa, que se consumou, num tempo em que o rei se dedicava a brincar aos cavalinhos com o pajem negro, o destino de Carolina Matilde. Ganhou a jovem um amor imenso, desesperado, ao médico alemão que viera, com os seus novos tratamentos de águas frias curar o novo e enfermiço herdeiro. Este médico era um homem de génio, muito avançado para o seu tempo. A grande paixão da rainha começou por elevar o amante aos mais altos cargos do país, em que brilhou, para surpresa de todos, como estrela de primeira grandeza, tirano, temerário, inovador, e acabou por os perder a ambos. Foi para eles um tempo feliz e breve, esse em Hirschholm, onde Carolina Matilde impressionou os seus súbditos dinamarqueses trajando e montando como um homem nas caçadas - fato que podemos imaginar, olhando o seu retrato, não lhe ter assentado bem. O rancor da indignada rainha velha perseguiu então os dois amantes, e abateu-se sobre eles. Ao médico foi cortada a cabeça por ter posto a mão no que era privilégio da Coroa Dinamarquesa, e a jovem rainha foi exilada para uma pequena cidade de Hanôver, onde veio a morrer. Triunfou a virtude, mas aquela mais sombria, e o palácio onde se albergara tal blasfémia foi abandonado e por fim demolido - em parte porque, dizia-se, ele se estava afundando no lago. Todo o esplendor assim desapareceu, e uma igreja ao estilo clássico dos alvores do século XIX foi construída no local onde o palácio se erguera, como a cruz que se levanta sobre um túmulo. Muitos anos mais tarde, estátuas e móveis de talha dourada, com grinaldas de rosas e cupidos, foram vistos nas casas dos lavradores abastados nos arredores de Hirschholm.
Passada a tormenta, a cidadezinha deu por muitos anos a impressão de alguém emudecido e humilhado no torpor de um grande choque. Não pudera crer a cidade que tal coisa acontecesse, pelo menos de suas portas adentro. Guardara talvez no coração os restos de uma simpatia leal pela jovem e alegre rainha que um dia lhe sorrira. Mas acabar às mãos do carrasco é assunto sério, e à cidadezinha bastava olhar o sítio onde se erguera o palácio para claramente ver qual o preço do pecado. Duros tempos então assolaram o país: guerras, a perda da esquadra, a bancarrota, a cruzada pela virtude, severas economias. As frivolidades do século XVIII pertenciam já ao passado.
Foi então que, volvidos cinquenta ou sessenta anos sobre a tragédia da jovem rainha e do seu ministro, a cidade conheceu um breve e doce renascimento.
Não podia continuar indefinidamente a sua penitência por pecados em que, afinal, não tomara parte, nem viver para sempre, como de resto o país inteiro, convicta das excelências da ponderação.
Quando nos encontramos presos a uma triste vida de cuidados, é bom pensar em tempos e homens descuidados. Além do mais, quem não admite que se ponham em dúvida as virtudes da mãe pode sorrir ao encanto das loucuras das avós. Num tempo em que os homens principiavam a deixar crescer suíças, e as senhoras a emoldurar de longos caracóis o rosto, os erros dos homens e mulheres empoados começavam a parecer românticos, como as paixões e os crimes no teatro. Chegara o tempo em que os poetas vinham em breques de Copenague e se alojavam em Hirschholm para cantar a infeliz rainha Carolina Matilde, e ver a sua sombra, vaga neblina montando um corcel fantasma, perpassar a galope na floresta. As alamedas de tílias, plantadas sobre os cais à generosa maneira do século XVIII - que deve ter-se passeado por entre estacas de seis pés de altura para oferecer às gerações vindouras a folhagem e a sombra - tinham crescido e envelhecido, e pelos seus verdes recantos os velhos, que viram em criança passar a rainha em tropel nas pontes de pedra com os seus cães, ou o reizinho, qual boneco empoado, espartilhado, de rosto inexpressivo, rolar na carruagem, falavam, expansivos, dos alvoroços da vida na Corte às bonitas donzelas, às matronas e aos rapazes da cidade, que, à cautela, não se queriam perder com entusiasmos perigosos.
Nesse tempo viviam em Hirschholm dois homens que se distinguiram, por caminhos diversos, do burguês médio.
O primeiro deles era, por direito próprio, a figura proeminente do burgo, um cidadão de grande influência, homem não só de rendas e prestígio, mas também de seguro encanto e vasto conhecimento do mundo. O seu nome era Mathiesen, e fora feito Kammer-raad, conselheiro municipal. Mais tarde havia de ser descerrado um busto em sua homenagem à entrada de uma dessas longas avenidas bordadas de tílias onde ele gostava de passear.
Rondava ele por essa altura - estava-se no começo dos anos 30 - os cinquenta e cinco ou sessenta anos, e vivia tranquilo e feliz em Hirschholm. Mas já tinha sido novo, já tinha vivido noutros lugares. Viajara muito, até, e estivera na Alemanha e em França nos tempos conturbados e fatais que precederam o idílio: os dias da Revolução Francesa e das Guerras Napoleónicas. Ali fora espectador, e, quem sabe, actor de muitas coisas que a cidadezinha não sonhava sequer, e quem o tinha conhecido em jovem dizia que ele havia regressado com outros olhos - dantes foram azuis, e agora eram cinzentos-claros, ou verdes. Se tinha perdido as ilusões não considerava que a perda fosse de monta, e ganhara em compensação esse talento que é dar prazer à vida e sossego a si mesmo. Não há talvez melhor lugar para um epicurista sensato que uma cidadezinha de província. O conselheiro, que era viúvo há quinze anos, tinha uma excelente governanta e uma adega que seria o orgulho de um cardeal. Dizia-se em Hirschholm que nos serões solitários ele bordava a ponto-de-cruz; mas também não havia motivo para um homem da sua posição abandonar um passatempo que lhe era agradável só por amor às convenções.
De entre os tesouros que o conselheiro juntara pelo vasto mundo e trouxera para Hirschholm, nenhum ele apreciava mais que as suas lembranças de Weimar, onde estivera dois anos, e a recordação de um dia ter respirado o mesmo ar que respirara o Geheimrat Goethe. É excelente coisa ver cara a cara os nossos maiores, e é uma lei da vida que, de todas as nossas experiências, uma só se grave mais profundamente em nossa alma; e a imagem dessa cidade sereníssima e do grande poeta ficaram indelevelmente impressas no seu ser. Ele era o homem ideal - o super-homem, teria dito o conselheiro se a palavra já estivesse inventada - que reunia em si as qualidades que os outros homens invejam e querem a todo o custo alcançar: poeta, filósofo, estadista, ele era o amigo e o conselheiro dos príncipes, e o conquistador das mulheres. O conselheiro tinha muitas vezes encontrado Goethe nos seus passeios matinais, e tinha-o ouvido conversar com os amigos que o acompanhavam. Numa dessas ocasiões havia sido até apresentado ao grande homem, tinha visto o brilho desse olhar olímpico, e todavia humano, e trocara breves palavras com o Titã. O poeta discutia com Herr Eckermann um problema de arqueologia nórdica, e Herr Eckermann chamara o jovem estrangeiro para testemunhar no debate, Goethe interrogara-o então sobre o assunto e cortesmente perguntara se o rapaz não poderia obter-lhe determinadas informações. Mathiesen curvara-se num profundo cumprimento e respondera:
Ich bin Eurer Excellenz eherbietigster Diener.
O conselheiro não era um homem comum, e não tinha as ambições próprias dos homens comuns. Prezava muito a sua posição em Hirschholm - e não lhe faltavam motivos para tal - e a sua vida .diária não comportava exigências que ele não pudesse satisfazer a seu contento. Se por toda a vida albergou no coração, junto ao retrato do Geheimrat, um desejo de sentir-se, no seu mais limitado meio, um super-homem em miniatura, a ninguém o fez saber, e na vida real desempenhava essa ambição o papel de um ideal - uma força motriz e invisível que leva ao equilíbrio. Mas ele era um homem de vistas largas, um liberal, que tudo contemplava com demora. Mantivera uma noção de Paraíso, pois a sua geração fora imbuída do princípio de que há uma vida eterna, e a ideia da imortalidade era para ele uma coisa natural. O seu Paraíso era uma espécie de Weimar - um elísio de graça, inteligência e dignidade. Pensar no Além, todavia, não considerava ele que fosse de importância vital; podia esquecê-lo sem muita dificuldade. Mas tinha uma fé obstinada na História, e na imortalidade que ela oferece ao Homem. Ele vira a História acontecer, sentira os ventos da História na face, e não duvidava que o grande Imperador e os heróis da Revolução estivessem mais vivos que os funcionários e comerciantes de Hirschholm, que lhe tiravam o chapéu nas ruas mal pavimentadas e com quem trocava, dia a dia, palavras fugazes de ocasião. Era no palco da História, junto a essa alta-roda, que ele ambicionava ficar após a morte.
Fosse pela profunda impressão que a poesia lhe causara, ao manifestar-se em todo o seu esplendor, ou porque sentisse na alma uma tendência inata para ela, talvez inesperada num tal homem - mas quem poderia dizê-lo?, sabemos tão pouco da alma humana! - esta arte ocupava um lugar de relevo na sua ordenação das coisas. Para além da poesia não cuidava o conselheiro que existisse um outro ideal verdadeiro na vida, nem sequer uma promessa convincente de imortalidade. Nada mais natural, portanto, que ele próprio experimentasse fazer poesia. Recém-chegado de Weimar, escrevera uma tragédia que fora buscar o seu tema à história antiga da Dinamarca, e mais tarde fizera alguns poemas inspirados na lenda de Hirschholm. Mas era um homem de espírito crítico e logo percebeu, como aliás outro qualquer leitor, que poeta não era. Tinha compreendido já que a poesia, a entrar na sua vida, teria de surgir por outra forma, e reconhecera que o seu papel nessa arte seria o de um Mecenas, papel para que se julgava talhado e presumia digno de si nessa imortalidade futura que todo se esforçava por ganhar.
O que andava o conselheiro procurando veio afinal ao seu encontro na pessoa de um rapaz que se instalara em Hirschholm e que era nessa altura amanuense da comarca e - coisa que só ele e o conselheiro sabiam - um grande poeta.
Chamava-se Anders Kube e tinha 24 anos. Quem o conhecesse não diria que fosse um rapaz bonito, mas um pintor de temas sacros que estivesse procurando o rosto para um anjo talvez fosse encontrar nele o seu modelo. Tinha Anders Kube um rosto largo e olhos de um azul profundo, muito afastados. Para trabalhar usava óculos e, se os tirava, para fitar nuamente o mundo, os seus olhos tinham a expressão clara e profunda que os olhos de Adão teriam tido no dia primeiro em que percorreu o Jardim e olhou os animais. Nessa graça lenta, estranha e inesperada, angulosa de movimentos, com os seus cabelos ruivos e de mãos enormes, ele era um exemplar quase perfeito do camponês da Dinamarca, um tipo raro hoje em dia, quando os camponeses se sentam nos bancos do Parlamento, mas que era vulgar encontrar-se dantes entre os amanuenses das paróquias e os rabequistas.
Dos dois mundos em que vivia, um deles, o que lhe dava o pão do seu sustento, era muito limitado, confinando-se às paredes caiadas da sua sala no Tribunal da Comarca, aos seus aposentos - muito asseados sempre, que a patroa tinha-lhe afeição - no cimo de uma escada e ocultos por uma grande tília, e aos bosques e campos em redor de Hirschholm, por onde vagueava nas horas de ócio. Era recebido em casa de alguns burgueses de Hirschholm, respeitáveis e bons, para jogar às cartas e ouvir as discussões políticas, e tinha amigos entre os carroceiros da estrada real, que vinham desatrelar as bestas e cear na estalagem, e entre os membros também dessa curiosa tribo dos carvoeiros, que levavam o carvão desde as grandes florestas junto a Elsinore até Copenague. A casa do conselheiro, essa, ocupava uma posição ímpar na sua existência. Três anos antes, quando se mudara para Hirschholm, trouxera cartas de um seu amigo, o velho boticário Lerche, recomendando-o como rapaz talentoso e diligente, e por força delas tinha recebido um convite para cear com o conselheiro, regularmente, aos sábados. Estes serões agradavam a Anders Kube, e ofereciam-lhe muitas impressões. Nunca antes tivera oportunidade de ouvir tais provas de sabedoria mundana, tais e tão ricas provisões de experiência como aquelas com que ali se regalava. Provavelmente o conselheiro falava com ele usando de uma franqueza que a outros não dispensava, mas o rapaz não fazia ideia do muito que ele próprio representava na vida do seu protector.
Não tinha também quaisquer vislumbres da teoria que o Conselheiro concebera em seu benefício, e que era a seguinte: o rapaz tinha de ser mantido em uma espécie de redoma ou de estufa, para que pudesse vingar como poeta. Talvez a teoria estivesse baseada nas experiências de vida do próprio conselheiro; talvez este sentisse que, por força dos acontecimentos do seu passado, fora perdendo as faculdades e os ideais próprios de um poeta. Talvez fosse puramente uma questão de instinto. De qualquer modo, era a convicção íntima e arreigada do conselheiro que tinha de vigiar o seu protegido. Enquanto pudesse mantê-lo no sossego de Hirschholm, palmilhando as compridas alamedas ou a rua que o levava de casa à sala do Tribunal, as grandes forças que nele existiam tinham de expressar-se em poesia. Mas se o mundo, com as suas influências desenfreadas e imprevistas, se apossasse dele, o rapaz havia de perder-se para a literatura e para o seu Mecenas; e ser desencaminhado para tumultos e rebeliões contra a lei e a ordem, de que o próprio conselheiro era um acérrimo defensor, e acabar os seus dias numa qualquer barricada. Como ninguém mais iria imaginar o jovem Kube lutando numa barricada, a teoria revelava, a provar-se verdadeira, uma profunda compreensão da natureza por parte do conselheiro - se esquecermos o facto de que as pessoas que se vêm nas barricadas são geralmente aquelas que menos se esperava ali encontrar. Fosse como fosse, e em resultado dessa teoria, o velho mantinha sempre uma apertada vigilância sobre o rapaz, como o amante que desconhece o egoísmo e, qual digno e poderoso Kislar Aga, vigia uma beldade em botão do seu serralho a quem destina um futuro de grandeza.
Por seu lado o conselheiro não podia saber que ele próprio estava, aos olhos do seu protegido, aureolado de poesia. Tudo nascera nos primeiros dias da estada do rapaz em Hirschholm, com uma história contada pela senhoria, cuja veracidade é duvidosa, e se resume no seguinte:
O conselheiro era, como já se disse, um viúvo, mas antes de o ser passara por muita coisa. A falecida Madame Mathiesen fora a herdeira de uma fortuna modesta. Viera de Christiansfeld, que é a região por excelência na Dinamarca dos Hernutos, uma severa seita puritana semelhante à dos Jansenistas em França, e era senhora de uma consciência altamente desenvolvida. Mas numa noite de Verão, dois anos antes de morrer, tinha subitamente perdido a razão num acesso de terror do Demónio, e quisera matar o marido, ou matar-se a ela própria, com uma tesoura. Chamado, o velho médico empregara todas as artes da medicina com ela sem lhe fazer qualquer bem, e assim, por não haver ali perto um hospital para esse género de doenças, puseram-na em casa do velho jardineiro de Fredensborg - outro palácio real próximo de Hirschholm - e da mulher, que eram gente boa e deviam a colocação à influência do conselheiro. Ali viveu, sem recobrar o juízo, mas num estado de espírito mais feliz, pois acreditava que morrera e subira aos Céus, onde esperava pelo marido. Às vezes, porém, ela expressava o receio de que ele nunca lá chegasse, pois dizia que ele era um grande pecador; mas confiava na misericórdia divina.
A narradora da história, que nesse tempo era criada em casa de Madame Mathiesen, fora a única pessoa, para além do pequeno círculo de familiares, a saber como tinha surgido esta crise. Num quente fim de tarde, em Julho, depois de uma trovoada, e enquanto um duplo arco-íris brilhava sobre a paisagem, o conselheiro e a esposa, com uma rapariguinha que era filha de um seu amigo e funcionário da corte, e que fora mandada para Hirschholm a curar-se de uma decepção amorosa, preparavam-se para sair a passeio. Madame Mathiesen, no seu quarto, punha o chapéu quando, pela janela aberta, viu a rapariga apanhar um amor-perfeito amarelo e prendê-lo ao casaco do conselheiro. Há talvez para os Hernutos uma qualquer magia num amor-perfeito amarelo ou no céu que um duplo arco-íris cruza. Fosse como fosse, ver aquilo teve sobre Madame Mathiesen um efeito que ninguém poderia ter previsto.
Dois anos mais tarde, pela mesma altura do ano, o conselheiro recebeu de Fredensborg a notícia de que a saúde da esposa melhorara, que ela já não julgava estar no Céu, e que o jardineiro e a mulher achavam que lhe faria bem vê-lo. Assim, uma bela tarde, o conselheiro mandou sair o seu bonito cabriole, subiu, e ele próprio tomou as rédeas. Depois, pensando melhor, desceu e foi ao jardim, onde colheu um amor-perfeito amarelo que meteu na botoeira. O encontro dos esposos não correu como as duas boas almas esperavam, embora ela sempre tivesse estado à janela, à espera do marido. Mal o viu, teve um acesso do seu antigo delírio. Ficou tão violenta que foi preciso pedir ajuda. Com efeito, ela tinha recaído na loucura tão completamente que nunca mais recuperou a lucidez, pois veio a morrer um ano mais tarde.
O jovem Kube não tinha capacidade crítica, e nunca, por si só, teria considerado qualquer fenómeno da vida de um ponto de vista moral. Não admirava nem censurava o conselheiro pelo seu papel no drama. Mas tinha a capacidade de aumentar as proporções de tudo o que se lhe deparava. Tocadas pela sua arte, as coisas tornavam-se imensas, como as sombras na neblina que os viandantes encontram nas montanhas e de que têm pavor, enormes e quase grotescas, quais formas sólidas pairando um pouco além da razão humana. Assim a figura do conselheiro principiou a agigantar-se, evaporando-se, movendo-se em contorsões serpentinas e místicas, como o espírito que saiu da garrafa de Salomão e se mostrou ao pescador pobre de Bagdade; e todas as noites de sábado o jovem poeta se sentava a cear com o deus Loki em pessoa.
As outras noites passava-as quase sempre só, e como o seu trabalho de amanuense era mal pago, e ele era todo cauteloso com o seu dinheiro, inclinação que a senhoria apoiava, comia umas papas de aveia e deixava depois que o grande gato lambesse o leite que sobrara. Sentava-se o rapaz então, muito quieto, a olhar o lume, ou, em noites de Estio a olhar pela janela o lugar onde uma ténue neblina indicava os contornos do lago, e deixava que o mundo inteiro lhe abrisse o coração, se desnudasse e revelasse nas formas singulares que ao rapaz pareciam naturais. O jovem filho da terra, preso a um arquivo, tinha a alma dos antigos Eddas, que criavam o mundo à sua volta em termos de deuses e demónios, e o enchiam de cumeadas e de abismos que no país eram desconhecidos; e a facécia dos místicos antigos que povoavam o seu de centauros, de faunos e ninfas das águas, que nem sempre se portavam muito bem. Esses camponeses da Dinamarca, que eram por natureza os seus descendentes, escondiam, sob uma gravidade profunda, quase infantil, um espírito mais travesso e impudente que o de um palhaço. Não têm sido, em geral, muito bem compreendidos ou apreciados excepto se revelam esta faceta, e numa ânsia de serem entendidos muitos se têm entregado à bebida. Anders Kube, porque achava que devia fazê-lo, escrevia poemas sobre a aranha num ramo de rosas, mas depois, quando ficou mais senhor de si próprio, as suas obras adquiriram dimensões completamente diferentes.
Por vezes saía de noite para só voltar ao romper da aurora, e a senhoria não tinha artes de lhe arrancar o segredo de onde estivera.
A uma légua de distância de Hirschholm fica uma pequena propriedade, com um lindo solar branco rodeado por árvores e belos jardins, chamada La Liberte. Durante anos ninguém ali viveu. O dono fora um velho boticário, aquele mesmo que dera a Anders Kube as suas cartas de recomendação, estabelecido em Copenague, e que sempre vivera desafogadamente. Aos setenta anos, depois de ler umas novelas românticas que levara do clube, resolveu-se a correr mundo. Começou a viagem por Itália. Uma aura de aventura tinha rodeado a sua empresa desde a primeira hora. Mais brilhante ficou ela quando se soube que o boticário tinha experimentado um tremor de terra em Nápoles, e ali travara relações com um compatriota, uma figura misteriosa, que era por vezes dado como capitão de um navio mercante e outras como director teatral, e que morreu nos braços do boticário, deixando os muitos filhos na penúria. De Nápoles o homem informara os amigos que tinha tomado a seu cargo a filha mais velha do amigo, e andava pensando em adoptá-la; mas de Génova, duas semanas mais tarde, escreveu que se tinha casado com ela. «Mas porque foi ele fazer uma coisa dessas?», perguntavam, na cidade natal, as senhoras suas conhecidas. Ele nunca lhes disse porquê. Morreu em Hamburgo, durante a viagem de regresso, deixando toda a fortuna aos parentes, e La Liberte e uma pequena pensão à sua jovem viúva. Nos finais do Inverno de 1836 ela veio instalar-se na propriedade.
O conselheiro visitou-a, para lhe oferecer os seus préstimos e ver com os seus olhos a aventureira de Nápoles que tinha seduzido - e, suspeitava ele, assassinado - o velho amigo. Achou-a recatada, pronta a fazer tudo o que se lhe dissesse. Era uma rapariga baixa, franzina, que parecia uma boneca; não uma dessas bonecas de hoje, que são imitações dos rostos e das formas dos bebés humanos, mas daquelas de outros tempos que procuravam atingir, por caminhos paralelos aos da raça humana, um ideal abstracto da beleza feminina. Os seus olhos grandes eram límpidos como o cristal e as suas longas pestanas e sobrancelhas delicadas eram tão negras como se fossem pintadas sobre o rosto. O que nela havia de mais admirável seria a leveza rara de todos os seus movimentos, que eram como os de um pássaro. Tinha o que o conselheiro apelidava, na linguagem técnica do bailado, o ballon, uma agilidade que não é só a negação do peso mas que parece elevar na realidade o corpo e preparar o voo, e que é raro encontrar em bailarinas magras - como se a própria matéria se tornara mais leve do que o ar, e quanta mais acumula melhor voa a bailarina. Os seus vestidos de luto e os chapéus eram um pouco mais elegantes dos que os vistos habitualmente em Hirschholm; ou talvez por terem sido comprados em Hamburgo houvesse neles um quê de exótico se usados na aldeia. Mas era tão económica a rapariga como simples era o seu gosto. Nada alterou na velha casa, nem sequer mudou de lugar os velhos móveis bolorentos que há tantos anos só conheciam o abandono entre as paredes pintadas. Na sala térrea havia uma grande e sumptuosa caixa de música que fora trazida da Rússia. Ao que parece, ela gostava de passear pelo jardim, onde passava longas horas, mas deixou-o como estava, crescendo sem disciplina. Por temperamento, talvez, comportava-se com a máxima correcção, pois ia de carruagem visitar as senhoras das redondezas, que lhe davam bons conselhos e receitas de enchidos e pão de gengibre, mas falava pouco e era retraída, talvez por razão de um ligeiro sotaque ao falar dinamarquês. Outra característica notou ainda o conselheiro: uma profunda timidez, ou uma aversão, impedia-a de tocar em alguém. Nunca beijava ou acariciava qualquer das outras senhoras, como era o costume em Hirschholm, e dava mostras de não gostar que a acarinhassem. A boneca tinha o seu quê de psique. As senhoras de Hirschholm julgavam-na inofensiva. Ela não seria um rival, nem nos segredos do pão de gengibre nem do limitado círculo das comadres de Hirschholm. Talvez ela fosse, diziam, um tanto imbecil. O conselheiro concordava, e não concordava. Ali andava coisa, pensava ele.
No Domingo de Páscoa o conselheiro dirigia-se com Anders à igreja de Hirschholm. O sol brilhava, e o lago em volta da igreja tinha uma viva cor azul, mas o tempo estava frio, com um vento de leste, cortante, e caíam aguaceiros. Os narcisos, as coroas-imperiais e essas flores a que os dinamarqueses chamam «coração-de-tenente» - porque, ao entrebrir a corola, se acha no meio uma garrafa de champanhe e uma dançarina - que já abriam nos pequenos jardins, eram fustigadas e sujeitas pelo vento e pela chuva. As camponesas, que vinham tomar a sagrada comunhão com as suas toucas bordadas a ouro, debatiam-se com as pesadas saias e as longas fitas de seda à entrada da igreja.
Quando o conselheiro e o seu protegido se encaminhavam para o portal, a jovem senhora de La Liberte chegou num pequeno landau tirado por dois possantes cavalos baios, que tudo copiosamente se permitiram em frente da porta da igreja. Tinha ela deixado pela primeira vez os crepes de viúva, pois fazia um ano que o velho marido morrera, e pusera uma capa cinzenta-clara e um chapéu azul. Sentia-se feliz como o passarinho em verde ramo, e irradiava uma alegria de viver que era como uma valsa tocada num violino com surdina.
Como o conselheiro estivesse de momento ocupado numa troca de ideias com o pastor, foi o jovem Kube quem se apressou a ajudá-la a descer da carruagem. Por respeito à viúva do seu antigo patrono, Kube manteve o chapéu na mão enquanto por instantes se falavam. O conselheiro observava a cena do portal, e achou-se curiosamente atraído pelo que via. Não tirava os olhos deles. Os jovens eram ambos extremamente acanhados. A graça pesada e lenta do semblante do rapaz e a extraordinária leveza de movimentos dela, essa dupla timidez parecia dar ao breve encontro uma expressividade toda peculiar, uma importância, como se nele houvesse algum segredo, e qualquer coisa dele por força resultasse. Nem o conselheiro sabia ao certo o porquê desta impressão, que o comovia. Era, pensava, como os primeiros compassos de uma peça musical, ou o primeiro capítulo de um romance intitulado Anders e Fransine.
O Geheimrat Goethe, reflectiu ele, poderia - teria, sem dúvida - feito alguma coisa com isso. Entrou na igreja pensativo.
Por toda a cerimónia os pensamentos do conselheiro resolveram essa impressão recente. Tivera-a em boa altura, pois naqueles dias andava inquieto com o seu poeta. O seu jovem escravo vivia singularmente abstracto, ausente, de corpo até, em duas noites de sábado. Tudo nele mostrava uma agitação inconsciente, e com ela os sinais de uma grande melancolia que preocupava o conselheiro, pois este bem sabia que não estava em sua mão dar-lhe remédio. De uma conversa com a patroa lhe viera a ideia de que o jovem amanuense talvez estivesse bebendo demais. Grandes poetas houve que foram bêbados, evidentemente, mas não era esse o tipo de poeta de quem ele quisesse figurar como o Mecenas. Sob a influência da bebida, que ele sabia ter desempenhado um certo papel na história da família do rapaz, o poeta ainda lhe saía do propósito e lhe fugia, para andar a tocar rabeca pelas bodas dos camponeses. Na repartição da comarca o conselheiro opusera-se a um aumento de salário ao amanuense, pois não seria daí que lhe vinha qualquer bem, mas mesmo assim preferia ter um modo mais seguro de o encaminhar. Ocorria-lhe agora que o casamento poderia ser a âncora que o prendesse. A viuvinha, com o seu pequeno rendimento e a casa branca de La Liberte era talvez a enviada da Providência, a esposa ideal daquele génio. Podia, até, tornar-se uma segunda Christiane Vulpius, a única mulher, segundo lhe disseram, que passou noites inteiras nos braços do Geheimrat sem lhe fazer perguntas sobre o sentido da vida. Estas vagas imagens satisfizeram o conselheiro.
Da ala direita, que era a dos homens, o conselheiro lançou por uma ou duas vezes o olhar aos bancos das mulheres. A jovem continuava absolutamente imóvel, absorta nas palavras do pastor, mas, por toda a prédica, o seu rosto expressava uma profunda e secreta alegria. Quase no fim da cerimónia, quando se ajoelhou, profundamente comovida, levou o lencinho à cara. O velho não saberia dizer se ela o fez para ocultar as lágrimas ou dissimular o riso.
Depois da cerimónia o rapaz e o velho seguiram a pé para a casa do conselheiro. Ao passarem a ponte uma chuvada caiu, como um açoite de gelo varrendo a paisagem. Tiveram de abrir os guarda-chuvas e pararam na pontezinha de pedra vendo o granizo ferir as águas e os dois cisnes do lago serem levados, contra a vontade, sob o arco da ponte, pelas ondas gris. Ficaram ali por tempo esquecido, ambos imersos nos seus pensamentos.
Anders, depois de ouvir o sermão da Páscoa, tinha a imaginação povoada por uma série de sombras que lentamente ganhavam forma, como nuvens acastelando-se.
Maria Madalena, pensava ele então, correu a casa de Caifás mal rompeu o dia de Sexta-Feira. Tinha tido a visão de que, no dia seguinte, pela tarde, o véu do Templo se havia de rasgar. Ela vira os túmulos abrirem-se, e erguerem-se os justos. Ela contemplara o anjo do Senhor, que rolava a pedra do túmulo e se sentava sobre ela; e Maria Madalena gritava censuras ao sumo-sacerdote pela monstruosidade que iriam cometer se crucificassem Deus. Essas palavras convenceram os velhos de que era Cristo em realidade o filho unigénito de Deus e o redentor do mundo, e que iriam cometer o único, o verdadeiro crime em toda a história da humanidade.
Imediatamente reuniram o Sinédrio na sala escura do palácio, onde uma luz incidia sobre os cafetans multicolores e os rostos barbudos, pensativos, que sofriam. Alguns sacerdotes foram tomados de terror e exigiram que o prisioneiro fosse libertado sem demora; outros caíram em êxtase e profetizaram em agudas vozes. Mas Caifás e alguns dos mais velhos entre todos discutiam a questão com rigor, e concordaram em executar o que estava escrito. Se o mundo tinha na verdade esta única esperança de salvação, eles teriam de cumprir os desejos do Altíssimo, por mais horrendo que fosse o seu acto.
Maria, em desespero, falou aos sacerdotes dos pecados e misérias da Terra, que ela tão bem conhecia, e da santidade de Cristo. Quanto mais a ouviam, mais os sacerdotes abanavam a cabeça.
Caifás invocou Satã para com ele discutir o assunto. Como sua primeira personificação veio Judas, o ruivo, à sala do conselho, e quis devolver as trinta moedas de prata. Tendo os sacerdotes recusado, Judas, rindo, pôs-se a descrever as desgraças futuras que por longo tempo haviam de fustigar o povo eleito, de então em diante perseguido e desprezado pelo mundo, com as moedas de prata para sempre nas mãos. Descreveu até aos grandes sacerdotes o ghetto de Amsterdão, que o próprio conselheiro, num serão de sábado, havia pintado ao seu protegido. A cabeça do velho sacerdote caiu sobre o pesado livro da Escritura.
O conselheiro, esse, encontrava-se algures no Sinédrio, embora não desse rosto a qualquer figura em particular. Maria Madalena, ajoelhada, ocultava o rosto.
O jovem amanuense sentia a cabeça um pouco tonta. Estivera na noite anterior até altas horas na estalagem, jogando às cartas com os viandantes.
A chuva parara. Os dois homens fecharam os guarda-chuvas e retomaram a marcha.
Também ao conselheiro, e apesar dos seus planos matrimoniais, aproveitara o sermão. Reflectia ele em como era estranho que, sendo a única pessoa a saber do facto, e estando em posição de abafá-lo, São Pedro tivesse deixado que se espalhasse aquela história do galo.
Nas três semanas que se seguiram o tempo esteve muito.ameno, mas choveu. A terra germinava e o ar tinha a fragância que só espera um dia de azul e sol para expandir-se. As ameixoeiras floridas flutuavam como nuvens de giz à volta das casas, nas herdades. Depois o chão das florestas, na sombra das faias, cobriu-se de anémonas, rosadas como conchas, de folhas digitadas, e aroma doce e acre. Chegavam os rouxinóis, que transformavam o mundo inteiro num violino, ainda no pingue-pongue da chuva e na cerração das névoas.
Num dos últimos dias de Maio, uma quinta-feira, o conselheiro ceou e jogou às cartas em Elsinore com um seu amigo, que era oficial das alfândegas no Sund. Tais jantares eram festas anuais onde os velhos amigos se reuniam. Davam sempre para tarde, e são quatro léguas de Elsinore a Hirschholm; mas o conselheiro não se importava, pois as noites da Dinamarca são claras na Primavera. Regressou, pois, no belo cabriole que o velho cocheiro, Kresten, guiava, apreciando, embotado de sono, ao aconchego preguiçoso do farto capote gris, a beleza daquela noite de Maio e o aroma que deitavam os campos e os bosques em botão que vinham atravessando. Nas proximidades de Hirschholm alguma coisa nos arreios cedeu. Foram forçados a parar, e Kresten concluiu que teriam de pedir nalguma herdade um pedaço de corda para reparar o estrago. Olhando em volta o conselheiro descobriu que se encontravam nos limites de La Liberte. Temendo que Kresten fizesse muito barulho e perturbasse o descanso da dona da casa, decidiu-se a ir sozinho. Conhecia o caseiro da propriedade - afinal, fora ele quem lhe arranjara o emprego - e podia bater-lhe à janela sem acordar mais ninguém. Tiritando, desceu da carruagem e tomou pela alameda. Era madrugada.
A escuridão rescendia com o cheiro doce e acre da folhagem fresca e húmida. Na alameda de cascalho havia ainda pequenas poças de água; mas a noite estava clara. Seguia lentamente o conselheiro, pois aqui, por entre as árvores e os arbustos, tudo era negrume. Renques de populus balsamifera divergiam da alameda para o pátio, contribuindo com a fragância acre e nectária dos seus tufos de flores para a harmonia do ambiente.
De súbito, enquanto caminhava, chegaram-lhe aos ouvidos uns sons de música. Deteve-se, mal acreditando no que ouvia - sim, não havia quaisquer dúvidas: era música. Alguém tocava uma dançante melodia, e o som vinha da casa. Andou um pouco mais; voltou a parar, surpreso. Quem estava ali tocando e dançando antes do nascer do Sol? Desviou-se da alameda e atravessou o relvado em direcção à frontaria da casa. Ao aproximar-se do terraço, a fachada branca da casa brilhou numa alvura espectral, e ele viu uma luz clara por entre as ripas das gelosias fechadas. Talvez a jovem viúva estivesse dando um baile na sala térrea essa noite.
Os molhados arbustos de lilases no terraço estavam carregados de flores por abrir. Os cachos negros e espinhosos guardavam dentro de si uma surpresa; seriam tão mais claros quando abrissem. Num canteiro as tulipas mantinham, prudentes, as corolas brancas e cor-de-rosa fechadas ao ar da noite. Tudo era calma. O conselheiro recordou os versos de um velho poema:
Mansamente cessam de embalar os zéfiros O berço da Natureza, que adormece.
Nessa hora que precede a alvorada o mundo surge completa-mente descolorido, quase dando, até, a sensação de negar a cor. Os cambiantes ricos da noite já desaparecem, esvaídos, como se afastam as ondas da praia, e todas as cores do dia jazem adormecidas na paisagem como nas tintas do oleiro, que todas são pardas igualmente antes de saírem da fornalha. E neste mundo em silêncio habita uma invulgar promessa.
O velho gris no seu capote gris seria completamente invisível até para alguém que o procurasse. Sentia, com efeito, o conselheiro uma extrema solidão, como se soubesse que não podia ser visto. Não se atreveu a levar a mão à gelosia, com receio de fazer barulho. Colocando as mãos atrás das costas inclinou-se para a frente e espreitou.
A sua surpresa não podia ter sido maior. A longa sala térrea, de três portas envidraçadas que abriam para o terraço, estava pintada num cor azul-celeste já desbotada pelo tempo. As poucas peças que a mobilavam tinham sido afastadas para as paredes. Mas do tecto, a meio da sala, pendia um belo e antigo lustre, e todo ele brilhava, pois nem uma vela tinha ficado por acender. A grande caixa de música estava aberta, em cima da espineta muda, e emitia as notas claras e agudas de uma mazurca.
A dona da casa estava no centro da sala, em bicos de pés. Vestia o fato curtíssimo e diáfano de uma bailarina, e os sapatinhos rasos ajustavam-se com fitas negras à volta dos tornozelos delicados e das pernas. Sustinha os braços acima da cabeça graciosamente arqueados, e estava imóvel, atenta à música, com a expressão feliz e plácida de uma boneca.
Soou o compasso de entrada, e a jovem subitamente ganhou vida. Ergueu muito, muito devagar a perna direita, o bico do pé apontado ao conselheiro, cada vez mais alto, como se na verdade se fosse erguer do chão num voo. Depois baixou-a muito, muito devagar, até a ponta do pé bater o soalho com um som tão leve e manso como o de uns dedos pousando sobre a mesa.
O espectador, no jardim, susteve a respiração. Tal como antes, ao ver o ballet em Viena, sentia que isto era excessivo, impossível de ser executado. E logo se cumpria, com ligeireza, como se fosse uma coisa de nada. E um homem começa a duvidar que tenha havido o pecado original e a não se preocupar com isso, quando uma jovem bailarina consegue alcançar o Céu.
Apoiada agora na ponta do pé direito, ela ergueu a perna esquerda muito, muito devagar, a grande altura, abriu os braços num movimento vivo, audacioso, rodopiou sobre si mesma e principiou a dançar. A dança era algo mais do que uma verdadeira mazurca, de tão fogosa e ligeira que era, e durou talvez dois minutos: um pião musical, uma flor, uma chama dançando, um desafio brincando às leis da gravidade, uma celestial facécia. Era também uma representação: o amor, a doce inocência, as lágrimas, um sursum cordae expresso em música e movimento. A meio houve uma breve pausa para assustar o público, mas depois prosseguiu como antes, mais admirável ainda, talvez, como se transposta para um tom mais agudo. Só quando na caixa de música deu sinais de esgotar-se a melodia ela volveu os olhos na direção do conselheiro e afundou-se no chão em uma trouxinha adorável, como a flor caída sobre a corola, exactamente como se as pernas lhe fossem cortadas com uma tesoura.
O conselheiro conhecia o suficiente da arte balética para avaliar que a actuação fora de excelente nível. Conhecia o bastante das belas coisas da vida para estimar a aparição matinal como digna do Czar Alexandre, se tal se proporcionara.
O olhar franco e directo da bailarina assustou-o e fê-lo recuar uns passos. Quando voltou a espreitar ela tinha-se erguido e ficara como irresoluta, não se voltando mais para a caixa de música. Havia um longo espelho na sala. Pressionando meigamente a palma da mão no espelho, ela curvou-se a beijar a imagem prateada que nele surgia. Depois tomou de uma longa mão-de-judas e, uma a uma, apagou todas as velas do lustre. Abriu a porta e desapareceu.
Mau-grado a sua relutância em ser visto por alguém, o conselheiro permaneceu imóvel no terraço por um ou dois minutos. Estava tão assombrado como se um acaso o tivesse levado a surpreender, nesta alvorada de Maio, Eco praticando sozinha no coração da floresta.
Ao voltar costas à casa impressionou-o a grandeza do panorama que se disfrutava de La Liberte. Não tinha dado por ele ainda. Do terraço viu toda a região circundante, verde e ondulada, até por sobre as copas da floresta. Ao longe o Sund brilhava qual fita de prata, e sobre o Sund o Sol nascia.
Voltou à carruagem mergulhando em pensamentos. Estupidamente ocorreu-lhe um trecho de uma canção infantil, de bonita melodia:
A galinha não tem culpa Se o galarote morreu. A culpa foi do rouxinol Escondido no jardim.
Esquecera por completo a corda. Quando Kresten o informou de que tinha podido consertar o arreio sem ela, o conselheiro não achou o que dizer.
Durante o resto da viagem sentiu-se bem disposto. Parecia-lhe que tinha muito que fazer, que devia corrigir a posição dos peões no tabuleiro de xadrez. Tal ocupação arrastava consigo muitas ideias, agradavelmente refrescantes para um homem que todos os dias lidava só com livros e com leis, e que tinha estado a jogar a arrenegada com três velhos solteirões na noite anterior.
A viúva do boticário não era nenhuma Christiane Vulpius, isso era evidente. Não era mulher para servir de âncora a ninguém. Era capaz, muito pelo contrário, de erguer consigo o poeta que o conselheiro lhe havia destinado e com ele voar para ignotas paragens além da sua supremacia. Que ela assim o tivesse enganado ele não se importava. Por isso mesmo lhe agradou a rapariga, que na vida eram raras as coisas que o surpreendiam. Felizmente ele tinha descoberto a verdade, pois assim não perderia o seu poeta. Aliás, pensou ele, gostaria de os ter aos dois. Tirou o chapéu por momentos, e uma brisa matinal e moça brincou nas suas têmporas. Não era um velho; ainda era novo, comparado com aquilo a que ela estava habituada. Era rico, era um homem que sabia apreciar e merecer as coisas mais raras da vida. Seria capaz de convencê-la a dançar para ele ao serão? Teria uma vida de casado bem diferente da que antes experimentara. O poeta continuaria a ser o seu protegido, o amigo da casa.
Os seus pensamentos foram mais além, enquanto o Sol subia no horizonte. Um amor infeliz é um sentimento inspirador. Tem criado as maiores obras da História. Uma paixão sem remédio pela mulher do seu benfeitor podia fazer imortal qualquer jovem poeta; era um dramazinho que lhe entrava em casa. Os dois jovens continuariam a ser-lhes fiéis, por muito que sofressem, por mais poderosos que fossem o amor e a juventude. E se não lhe continuassem fiéis?
O conselheiro serviu-se de uma pitada de rapé, e nesse prazer o delicado nariz pareceu torcer-se levemente. A viagem estava agora quase a terminar. Na manhã tão límpida, a cidadezinha parecia erguida no fundo do mar. Os telhados das casas desabrochavam quais ramos de coral, audacioso ou pálido; o fumo azul subia quais finas algas emergindo à superfície. Os padeiros tiravam do forno os pães cozidos. O ar da manhã fazia o conselheiro sentir-se um pouco sonolento, mas muito bem disposto. Lembrou-se então do velho ditado a que os camponeses chamavam a reza dos solteirões:
«Faz, meu Senhor, eu te peço, com que eu nunca me case. Mas se tiver de casar, faz com que eu não seja corno. Mas se tiver de o ser, faz com que eu não o saiba. Mas se tiver de o saber, faz com que eu não me importe.»
São estes os pensamentos que só um homem como ele pode consentir-se, que tem na estrutura da sua mente um quarto perfeitamente limpo de que tem a certeza de possuir a única chave.
Na noite do dia seguinte, que era um sábado, Anders veio cear a casa do conselheiro. Depois da ceia leu ao protector um poema sobre um jovem camponês que uma noite vê três cisnes bravos transformarem-se em três donzelas, que se banham no lago. Ele então rouba as asas a uma das raparigas, que as pusera na margem para tomar banho, e faz dela sua mulher. Ela dá-lhe filhos. Mas um dia ela recupera as suas asas de onde o marido as escondera. E voa por sobre a casa desenhando círculos cada vez mais largos até que, por fim, desaparece no ar.
Como é que ele escreveu isto, como é que ele pôde escrever isto? - perguntava-se o conselheiro. - É curioso. Ele não a viu dançar.
Agora as florestas de faias da província desabrolhavam. A chuva caiu por alguns dias à volta do mundo, como um véu gris ocultando a noiva, e surgiu a manhã em que toda a floresta reverdesceu.
Isto acontece sempre na Dinamarca em Maio, mas sempre nos maravilha, e maravilhava também estas pessoas de há cem anos como se fora uma total surpresa, inexplicável. Por todos os longos meses de Inverno se está exposto, até no coração da floresta, aos ventos e à luz de um céu triste. Então, de súbito, o mês de Maio levanta uma cúpula acima de nós e cria um refúgio, um misterioso abrigo para todos os corações humanos. A folhagem nova e ligeira, macia como seda, pubescente, brota aqui e acolá como em pequenos tufos, pequenas asas que a floresta remoçada alarga e bate. Mas no dia seguinte, ou no outro, caminhamos sob um dossel de arvoredo. Todas as linhas perpendiculares podem dar a impressão de uma queda ou de uma ascensão. As colunas de estanho das faias não só ascendem e alcançam, longe do solo, o infinito, o éter, o Sol, que a Terra em movimento persegue, mas levantam e transportam consigo o tecto imenso e altaneiro do edifício do ar. Em baixo a luz, menos brilhante agora, parece toda poderosa, prenhe de sentidos, de segredos que são luz também, embora incompreensíveis aos mortais. Aqui e ali os antigos carvalhos rugosos, lentos no desabrochar, fazem no tecto uma vigia. As fragrâncias e a frescura envolvem-nos como num abraço. Os ramos balouçando vêm lá do alto para nos afagar, ou trazer, enquanto caminhamos, uma perpétua bênção.
Então toda a gente vai à floresta!, à floresta!, para tirar proveito maior de uma glória breve, pois não tarda que as folhas escureçam, duras, e uma sombra se instale no bosque. De carruagem ou a pé a cidade emigra para a floresta, canta e brinca por entre o arvoredo alto, e traz pão e manteiga e faz café sobre um tapete de ervas.
Também o conselheiro passeava na floresta, e Domine non sum dignus, pensava ele. Também o jovem Anders confundia os arquivos da comarca, e deixava a cama por abrir à noite, e de La Liberte saiu Fransine, o chapéu de palha novo atado ao braço.
Quando a paisagem estava mais bonita, o conselheiro recebeu a visita de seu amigo o conde Augustus von Schimmelmann. Apesar de a diferença de idades ser de cerca de quinze anos, os dois eram verdadeiros amigos, que muitas simpatias e gostos em comum aproximavam. Quando o jovem conde tinha 15 anos, o conselheiro ocupara durante um ano o lugar de um amigo, que morrera, como tutor do rapaz, e mais tarde encontraram-se no estrangeiro, em Itália, e juntos conversaram de livros e religiões, de gentes e lugares distantes. Pelo espaço de alguns anos não se tinham visto; tal não se devera, porém, a qualquer desavença entre os dois, mas sim a uma evolução por que passara o conde, durante a qual se ocupara em criar uma sorte de modus vivendi, empresa, para a qual o velho amigo não lhe seria útil.
O conde Augustus era por natureza um homem triste e melancólico. Queria ser muito feliz, mas não tinha talento para achar a felicidade. Sofrera durante a juventude. Algures, algures no largo mundo, pensava ele, devia haver uma felicidade imensa, maravilhosa, fons et origo do poder que se manifesta nos prazeres da música, das flores e da amizade. Coleccionou flores, estudou música, cercou-se de amigos, tentou o prazer da carne e foi feliz em muitas ocasiões. Mas a estrada que dessa vida partia para o coração das coisas, essa ele não encontrava. Com o passar do tempo uma coisa horrível acontecera: tudo se tornara igual para ele. Agora, já maduro, aceitava a felicidade da vida de uma maneira diferente, não como ele acreditava que fosse a felicidade, mas tal o reflexo num espelho, como os outros a viam.
Esta evolução interior começara quando inesperadamente se viu herdeiro de uma grande fortuna. Ele, por si, pouca importância lhe teria dado, pois não sabia o que fazer do dinheiro. Mas nessa ocasião ficou surpreso com a atitude do mundo à sua volta: o caso tinha-o aborrecido inteiramente; o mundo achara que fora óptimo, esplêndido o que lhe acontecera. O conde Augustus era por natureza um homem muito invejoso, e tinha albergado esta peculiar agonia muitas vezes, principalmente em relação às personagens dos livros, de modo que se encontrava em posição de avaliar o significado de uma tal impressão. Se não se pode pintar um quadro de que se gosta, o mais agradável será talvez pintar um quadro de que todo o mundo goste. Assim aconteceu com a felicidade do conde Augustus. Lentamente, ele foi começando a viver, digamos, da inveja do mundo, e a aceitar a sua felicidade em acordo com a cotação do dia. Nunca se deixara envolver na ilusão de acreditar que o mundo estava certo; trabalhava com um sistema de escrituração por partidas dobradas. Dos lançamentos do mundo tinha muito de que se orgulhar e agradecer; raras vezes havia outra coisa além de créditos na sua conta. Tinha um nome antigo, uma das maiores propriedades e uma das mais belas casas da Dinamarca, uma linda esposa, quatro bonitos e diligentes rapazinhos, o mais velho dos quais contava 12 anos, uma grande fortuna e um imenso prestígio. Se fora sempre um homem singularmente bem apessoado, mais vistoso ainda se tornara na idade madura, que favorecia o seu tipo, e nesta altura da vida era uma figura majestosa. Na Câmara Consultiva chamaram-lhe o Alci-bíades do Norte. Parecia mais forte do que era, um homem que pode apreciar os prazeres da mesa e dorme as noites de um sono. Ele de facto não apreciava muito esses prazeres e pensava que dormia mal, mas saber-se a inveja dos vizinhos por disfrutar as coisas boas da vida tornou-se para ele um razoável substituto delas.
Sob este ponto de vista até os ciúmes da esposa lhe eram úteis. A condessa não tinha razões para ter ciúmes do marido. Com efeito parecia não haver dúvidas a tal respeito: entre todas as mulheres que ele conhecia, era da esposa que ele gostava mais. Mas 15 anos de vida em comum e quatro filhos crescidos não a curaram das cautelas e da desconfiança, das lágrimas e das longas cenas, que por vezes culminavam num desmaio, o que o jovem conde Augustus achara ser então uma pesada cruz. Agora o ciúme da mulher ocupava um lugar no sistema arquitectado pelo marido, pois sugeria ou provava a possibilidade, não de as senhoras em veraneio ou na Corte se apaixonarem por ele - porque se apaixonavam, sem dar lugar a dúvidas - mas de ele se apaixonar por elas, ou por uma delas em particular. Assim ele acabou por ficar dependente da atitude da mulher, e se ela se tivera emendado ou esquecido os ciúmes ele haveria de sentir-lhes a falta. Tal como o imperador vestido com o seu fato novo, ele na vida seguia, digno como em contínuo desfile, bem-sucedido sempre sob todos os aspectos excepto aos seus próprios olhos talvez. Não tinha em grande conta o seu sistema, mas não trabalhava mal, e nesses últimos cinco anos fora mais feliz do que nunca.
Enquanto ele assim construía, qual pólipo coralino, o seu mundo moral, o conselheiro não poderia trazer-lhe qualquer bem.
Esse não tinha o dom de invejar os outros, e poderia ter abalado o edifício. Mas agora, que os alicerces eram firmes, e ele próprio se encontrava enquistado nele em segurança, sem expor quaisquer partes vulneráveis, a ponto de levar a vida num tom de brincadeira, o reencontro com o velho amigo deu-lhe muito prazer. Ao conselheiro, porém, sempre seria agradável encontrá-lo. Como a Dióge-nes sempre agradasse talvez encontrar Alexandre. A este agradou o momento em que disse que, se não fora Alexandre, teria gostado de ser Diógenes. Mas quem sabe se ao grande macedónio, que provavelmente dependia em certa medida da opinião alheia, agradaria nessa altura ouvir o filósofo do tonel dizer que, se não fora Diógenes, gostaria de ser Alexandre! Em mais adiantada fase da sua carreira talvez se tivesse permitido o luxo de um segundo encontro e de uma verdadeira discussão com o Cínico sobre a natureza das coisas. O mesmo fez o conde Augustus.
Os dois amigos podiam ter passado por um Alexandre e um Diógenes de 1836 enquanto caminhavam no bosque, por estradas cobertas dos tegumentos de seda que caíam das folhas novas. De fatos negros, eram como dois pássaros sossegados, gralhas ou pegas, saindo a gozar a tarde na companhia dos seus mais alegres semelhantes.
Sentaram-se num banco rústico da floresta e conversaram.
- À medida que vamos vivendo - disse o conde Augustus - damo-nos conta da humilhante situação que é dependermos dos nossos subordinados, e sem o meu barbeiro eu seria, no espaço de uma semana, um fracasso na política, na sociedade e até na intimidade; assim na esfera das ideias somos dependentes de pessoas mais estúpidas do que nós. Há muito já que abandonei, como sabe, quaisquer ambições artísticas, e tenho-me ocupado, dentro do campo das artes, em ser um connaisseur. (Era, com efeito, um crítico perspicaz de todos os objectos de arte.)
- Aprendi então que é impossível pintar um objecto de arte definido, uma rosa, por exemplo, sobre o qual eu, ou outro crítico inteligente, não seja capaz de definir, com uma margem de erro de vinte anos, em que período foi pintada, ou aproximadamente em que lugar da Terra o foi. O pintor quis criar seja um quadro de uma rosa em abstracto, seja o retrato de uma rosa particular; nunca foi sua intenção dar-nos uma rosa chinesa, persa ou holandesa, ou, conforme o seu período, uma rosa do Rococó ou de um puro Império. Se eu dissesse ao pintor que foi isto o que ele fez, ele não me compreenderia. Talvez ficasse furioso comigo. Talvez me dissesse: «Eu pintei uma rosa». Mas não lhe pode fugir. Assim, eu sou superior ao artista na medida em que posso avaliá-lo com uma medida de que ele próprio tudo desconhece. Por outro lado eu próprio não saberia pintar, nem sequer ver, ou conceber, uma rosa. Poderia imitar qualquer das criações de um artista. Poderia dizer: «Vou pintar uma rosa ao estilo chinês, ou holandês, ou Rococó». Mas nunca teria coragem de pintar uma rosa tal qual é. E o que é uma rosa?
Ficou por algum tempo reflectindo, a bengala pousada nos joelhos.
- E o mesmo se passa - disse ele - com a ideia geral da virtude, da justiça ou, se quiser, de Deus. Se alguém me perguntasse qual é a verdade sobre estas coisas, eu diria: «Meu amigo, a sua pergunta não faz sentido. Os Hebreus concebiam o seu Deus de uma maneira; os Aztecas da América, sobre quem se fez um livro que estive a ler, de outra maneira; os Jansenistas de outra maneira ainda. Se quer algum pormenor dessas diferentes opiniões, terei todo o prazer em informá-lo, pois dediquei parte do meu tempo a esse estudo. Mas permita que lhe dê um conselho: não repita a sua pergunta em presença de homens inteligentes.» Mas ao mesmo tempo, em virtude desta minha opinião superior, eu estaria em dívida para com os ingénuos que acreditaram na possibilidade de obter-se uma ideia de Deus, directa, e absolutamente verdadeira, e que estão errados. Pois se eles tivessem por objectivo criar apenas uma ideia particular de Deus, fosse hebraica, azteca ou cristã, onde poderia o estudioso encontrar os seus postulados? Ficaria na posição desses israelitas que foram obrigados a fazer tijolos sem palha. Na realidade, meu amigo, se os néscios podem passar sem nós, nós dependemos dos néscios no que diz respeito ao nosso conhecimento superior.
- Quando - prosseguiu ele, após uma breve pausa - o meu amigo e eu, no nosso passeio matinal, passamos por uma loja de penhores, e, apontando uma tabuleta pintada que está na montra, onde se lê «Calandreiro», você me diz: «Olhe, há aqui um calandreiro, vou trazer a minha roupa branca», eu sorrio e informo-o de que ali não achará calandra ou calandreiro, e que é a tabuleta que está à venda.»
A maior parte das religiões são como essa tabuleta, e nós sorrimos delas.
Mas eu não teria oportunidade de sorrir, ou de sentir - ou de mostrar - a minha superioridade, nem, de resto, a tabuleta ali se encontraria, se alguma vez alguém não tivesse acreditado firmemente na possibilidade - na sabedoria - de calandrar a roupa, se não houvesse alguém firmemente convencido da existência de uma calandra sua, com que de facto os tecidos se calandrassem.
O conselheiro escutava. Estando juntos ali no verde bosque, ele pensou que estimaria falar ao amigo dos seus planos matrimoniais, de que a ninguém tinha dado parte, nem mesmo a Madame Fransine.
- Meu amigo - disse-lhe - em todas essas tolices de que me fala eu me encaixo à maravilha. Aber schutzt vor Thorheit nicht. Sob este meu respeitável chapéu de castor, eu próprio, enquanto o ouvia, estive albergando uns pensamentos que se escaparam esvoaçando como essas duas borboletas amarelas (e ele apontou-as com a bengala) pequenos credos, se mo permite, na virtude absoluta, na beleza talvez até em Deus. Estou pensando muito seriamente em me unir a uma senhora pelos laços de Himeneu, e, se o meu amigo houvera chegado a Hirschholm daqui a três meses talvez eu já tivesse uma Madame Mathiesen para lhe fazer as honras da casa.
O conde Augustus ficou muito surpreendido, mas era tal a sua fé no bom senso do amigo que aos seus olhos imediatamente se formou o retrato de uma beleza madura e afável, espirituosa e frugal, senhora de um agradável dote. Sorrindo, apressou-se a dar os parabéns ao conselheiro.
Pois é, mas eu não sei ainda se ela me quer para marido - replicou o velho - e isso é que é o pior. Porque ela não tem mais do que um terço da minha idade, e, tanto quanto julgo saber, é um diabinho romântico. Não sabe fazer uma panqueca nem passajar umas meias, e não há-de querer discutir a filosofia de Hegel. Se me casar, terei de comprar os jornais das modas francesas, segurar o xaile de minha mulher nos bailes de Hirschholm, estudar a linguagem das flores e aprender a contar histórias de fantasmas nos serões de Inverno.
O conde Augustus, ao ouvir estas palavras, sentiu um certo choque, de tal modo eles recordavam os velhos tempos. Era, de facto, como se visse o jovem Augustus Schimmelmann jogando xadrez com o tutor junto à janela aberta da biblioteca de Linden-borg. Porque fora sempre esta a mania peculiar do conselheiro, todas as vezes que se lhe pedia opinião sobre alguma coisa. Quanto mais confiante se estava nos nossos ases e reis, ele vinha colocar na mesa um pequeno trunfo que os vencia, e isto num momento em que ninguém se tinha dado conta de haver ainda trunfos a jogar. Já assim fora em menino. Se as outras crianças, no Outono, brincavam junto às árvores, fingindo que as castanhas eram cavalinhos, ele aproximava-se com uma gaiolinha de ratos brancos, realmente vivos, e por isso muito mais parecidos com cavalos; ou se comparavam os seus vários tesouros de canivetes, soldadinhos de madeira e anzóis, ele tirava do bolso um pouco de pólvora, que podia lançar tudo pelos ares com um belíssimo clarão. Não depreciava as aquisições dos amigos; nada havia de negativo na sua demonstração. Mas possuía um pequeno demónio que o servia e no momento certo espetava a cabeça e conjurava o peso daqueles tesouros, e o peso desaparecia, de modo que os outros se sentiam um pouco defraudados. Os que não gostavam de demónios detestavam esta faceta do homem. O tipo oposto, o jogador de xadrez, por exemplo, sentia-se atraído por ele. Eis que o conde Augustus, sereno, pavoneava perante ele a sua superioridade em relação à vida, a relação segura e inexpugnável que mantinha com ela, e pim!, o conselheiro tirava do bolso um pedacinho brilhante de riso que fazia brilhar entre os dedos como uma jóia. O mais novo tinha pronunciado palavras sábias, e o mais velho fez surgir uma flauta e nela tocou três notas, só para lembrar-lhe que existia a música, e a folia também, por menos que o quisesse o coração do seu antigo pupilo.
Os olhos do conselheiro seguiram a dança das borboletas até que estas desapareceram por entre as árvores.
- Mas luminosa - disse ele. - Terrível como um exército em ordem de batalha.
O conde Augustus tirou o chapéu e colocou-o sobre os joelhos. A brisa calma e doce de Maio corria como dedos cariciosos pelos anéis do seu cabelo. Tudo era tão semelhante aos velhos tempos, este pequeno, leve choque de inveja, como se as asas das borboletas amarelas tivessem tocado o seu coração. O jovem Augustus de novo caminhava reflectindo no heroísmo e na alegria de viver, ao ar frio e cheiroso, sob uma folhagem que desponta leve, macia como a seda. O conde Augustus deixou que a bengala de castão de prata descrevesse círculos no chão. Que significava a sua fama de apreciar o vinho e dormir bem à noite, o que era o prazer genuíno destas coisas?, perguntava-se agora, que lembrava as palavras ouvidas há muito: «Quem nunca o seu pão comeu com lágrimas e na triste noite se sentou chorando sobre o leito, não vos conhece, ó poderes celestiais.» Esses poderes celestiais - há quanto tempo não pensava neles. O coração quase pulou dentro do seu peito, à lembrança do que sentem verdadeiramente os corações dos outros.
Um vulto vinha ao encontro dos dois homens por um dos atalhos da floresta, aproximou-se, e o conselheiro reconheceu a figura do seu protegido. Apresentou-o ao seu influente amigo e, após uma troca de palavras, pediu-lhe que recitasse um poema.
Foi para Anders difícil pensar em qualquer coisa. O seu coração, nesta Primavera, movia-se em círculos tão largos como os dos planetas à volta do Sol. Contudo, queria obsequiar o cavalheiro de meia-idade, frio e majestoso. Porque a ele não iludia o fato novo do imperador, e logo o viu como a figura central de um cortejo, arrepiado, em camisa. Acabou por achar uma pequena balada que lhes recitasse, uma gota alegre que transbordava da muita felicidade e tanta dor que ultimamente sentia. Era sobre um jovem que adormece na floresta e é levado para o reino das fadas. Elas, que o amam, cercam-no de atenções, dando tratos às cabecinhas para inventar maneiras de o fazer feliz. Era inspirada a pintura dos prazeres da vida na floresta, e um verso longo marcava o fim de cada estrofe, emprestando-lhe os murmúrios da nascente em pleno bosque. Mas as fadas nunca dormem, nem sabem o que é o sono. Sempre que o jovem amigo, fatigado pelas delícias requintadas, adormece, elas dizem, num lamento: «Ele morre, ele morre!», e empregam toda a sua energia a mantê-lo acordado. E é assim que o rapaz, para grande pesar das fadas, acaba por morrer de falta de sono.
O conde Augustus elogiou a beleza do poema e achou encantador o retrato da pequena e bela rainha das fadas. Este rapaz, pensou ele, tem dentro de si um poderoso rio de sensualidade primitiva que é preciso vigiar, não fosse o bom-gosto da sua produção poética vir a sofrer-lhe os efeitos.
- Cautela - disse ele, sorrindo, ao conselheiro - com os prazeres do reino das fadas. Para os pobres mortais o prazer reside, aliás, na sua raridade. Não nos dizem os antigos sábios que o verdadeiro louco é aquele que não sabe que mais vale a metade que o todo? Quando o prazer é eterno, corremos o risco de nos tornarmos blasés ou, segundo o seu jovem amigo, de morrer.
Uma ideia ocorreu ao conselheiro. Este bosque verdejante, pensou ele, seria um belo cenário para um apontamento dramático.
- O conde - disse ele, sorrindo, ao rapaz - sorri de um pequeno segredo que lhe confiei. Vou fazer de si, Anders, meu confidente também; mas não há-de sorrir do seu velho amigo. Tenho esperanças de vir a dar-lhe em breve uma jovem protectora a quem possa recitar os seus poemas, e que há-de ver na beleza das suas fadas, ondinas e dríades a própria beleza reflectida como num espelho.
Como num espelho baço e prateado, antes do nascer do Sol - pensou ele.
O rapaz, que se conservava de pé frente às duas figuras negras sentadas no banco, assim permaneceu por instantes em silêncio, como se absorto em pensamentos. Depois cumprimentou o conselheiro, levando a mão ao chapéu.
- Desejo-lhe as maiores felicidades, naturalmente - disse ele, grave, encarando o conselheiro - e grato por mo ter dito. E para quando é?
- Ah, isso não sei. No tempo das rosas, Anders - disse o conselheiro, um tanto perplexo com a franqueza do rapaz.
- Anders, passado um momento, despediu-se do conde e do seu protector e partiu. O conde Schimmelmann, que era um observador dos homens, seguiu-o com o olhar. O quê! - pensou ele - então o velho mágico de Hirschholm tem à sua disposição não só o velho demónio que o serve, e evidentemente uma dríade a quem amar, mas ainda este jovem escravo da tribo dos Asra, que morrem quando amam?
Sentiu-se frio, quase abandonado, não só pela vida em abstracto como por uma plenitude, neste entardecer de Maio. Ergueu-se do banco rústico e empreendeu o caminho de regresso. Quando, ao conversar com o amigo, o olhou no rosto, notou nele uma expressão profunda, meigamente inspirada e resoluta. «Das - pensou o conde, que era de uma família de militares - ist nur die Freude eines Heldes den schónen Tod eines Helden zu sehen.» Mais tarde, porém, havia de pensar nestes momentos.
Ora o conde Augustus tinha um só talento verdadeiro, e experimentava uma felicidade que os outros bem lhe poderiam invejar se alguma vez ele a confessasse. Fumava haxixe, e pouco de cada vez, sem nunca esgotar o prazer. Algures no mundo talvez encontrasse irmãos em haxixe capazes de lhe oferecer anos de vida em troca desta capacidade, se fora coisa que pudesse vender-lhes.
Caminhando ombro a ombro com o conselheiro, pensou: O que hei-de sonhar esta noite? O ópio, reflectiu, é como um homem brutal, que nos prende pelos colarinhos. O haxixe é uma serva do Oriente, insinuante, que nos cobre de um véu o mundo e, pela experiência, chegamos a alcançar o poder de escolhermos as figuras que preenchem a teia do véu. Assim ele fora um marajá, caçando os tigres sobre o dorso de um elefante, vendo as bailarinas; fora o director da grande Ópera de Paris; e fora Shamil, irrompendo com os seus libertos em rebelião pelos desfiladeiros de neve, nas alturas do Cáucaso. Mas esta noite o que escolheria sonhar? Poderia reviver as noites orvalhadas de Maio nos festões de ramos de Ingolstadt? Se o quisesse, poderia revivê-las? E se o pudesse, quereria fazê-lo?
Depois de cear com o conselheiro mandou trazer o magnífico landau e a sua tão cobiçada parelha de cavalos ingleses, e partiu.
Quando, no dia seguinte, o conselheiro Mathiesen se preparava para ir a La Liberte cortejar a viuvinha, soube de coisas que se revelaram um osso duro de roer. Contou-lhas a governanta, enquanto lhe entregava o chapéu que ele pedira que retirasse da sua caixa.
Esta mulher, que se chamava Abelone, estava na casa havia mais de quinze anos, mas era nova ainda, alta, ruiva, e de uma força física extraordinária. Sempre vivera em Hirschholm, e não havia migalha de vida da cidadezinha que ela não conhecesse. Era estranho que a sua própria vida fosse um mistério, mas dizia-se que, aos quinze anos, fora suspeita de ocultar um nascimento e de cometer um infanticídio, escapando à justiça por pouco. O conselheiro tinha-a em grande conta. Não encontrava quem se lhe pudesse comparar em economia, não somente no governo da sua casa como ainda na vida em geral. Para ela o desperdício era, talvez, o único pecado mortal, o único sacrilégio. Tudo o que entrasse no círculo da sua consciência tinha de ser útil de uma forma ou de outra, e nada, tanto quanto sabia o conselheiro, nada essa mulher jamais desperdiçava. Se outra coisa não tivesse para o jantar que um rato, e fosse preciso apresentar um ragu, ela havia de fazer um bom ragu de rato. Nas suas conversas com ela o conselheiro sentia que a sua mínima palavra, cada seu estado de espírito eram de certa maneira registados, conservados, para mais cedo ou mais tarde virem a ter um uso.
Neste belo dia de Maio ela começou por fazer o relatório do comportamento, na noite anterior, do jovem amanuense, pessoa que até então pertencera ao inventário da casa e a quem ela tratava com afabilidade.
Tinha o rapaz estado com outros mais na estalagem. Como a cerveja se acabasse, prometera aos convivas que lhes daria coisa melhor a provar, e, possuindo, como o senhor conselheiro sabia, as chaves da igreja, onde estivera consultando os registos paroquiais, fora buscar à sacristia quatro garrafas do vinho da comunhão, com que havia regalado os amigos. Não ficara bêbado, longe disso, estivera sempre sossegado como era seu costume. E fizera, acrescentou Abelone, uma saúde ao senhor conselheiro com o vinho da igreja.
Enquanto ela ia contando o conselheiro mirava-se no espelho, pois decidira, com o leve nervosismo de todo o pretendente, pôr uma outra gravata, e estava agora a dar-lhe o nó, com alguma solicitude. Não será exagero dizer-se que a história de Abelone o assustava. Era, nas devidas proporções de Hirschholm, como se Lucifer houvesse tomado de assalto os Céus. Com que palavras se bebera então à sua saúde?
Olhou por acaso Abelone atrás de si, no espelho. Alguma coisa na sua atitude, mais do que no rosto largo e inexpressivo, que era sempre como a porta cerrada sobre o vasto suprimento de material a usar, deu ao conselheiro a impressão de que ela também estava assustada, ou profundamente comovida. Havia então naquela história qualquer coisa por dizer. Abelone não era, de modo algum, uma das comadres de Hirschholm. O que fosse que soubesse dos outros
ela não revelava - provavelmente sabia de melhores maneiras de utilizar a informação - e quatro garrafas de vinho santo não seriam para ela mais do que quatro garrafas de vinho. Se ela não queria que o Demónio se apoderasse do rapaz, era talvez porque o ambicionava para si. Seria ele o rato com que ela ia fazer o seu ragu?
Volveu os olhos para o próprio rosto e encontrou o olhar de um homem de bom conselho. Ser espectador enquanto Lucifer tomava de assalto os Céus poderia ser uma experiência altamente interessante; mais interessante ainda se ele conseguisse meter por ele um pauzinho na engrenagem.
- Minha boa Abelone - disse ele, sorrindo - Hirschholm parece ter uma certa tendência para o escândalo. Fui eu que dei instruções ao senhor Anders para levar o vinho da sacristia. Tenho razões para crer que a esse vinho foi, por engano, misturado rum, e, não sendo feito de uva, não pode, evidentemente, servir para a transubstanciação. O senhor Anders velará para que o vinho seja substituído.
E, dito isto, entrou na carruagem e rolou até La Liberte embrenhado em pensamentos, a maior parte deles, coisa curiosa, sobre a sua governanta. Só quando, na volta do caminho, meteu pelo choupal, os pensamentos se voltaram para o futuro.
Ao chegar, a jovem não se encontrava em casa, e ele teve de esperar um pouco na sala térrea. Sobre uma pequena console Fransine havia colocado um vaso com um grande ramo de jasmins. O aroma doce e acre era forte, quase sufocante, na sala fresca. O conselheiro estava um tanto nervoso por surgir assim no papel de namorado, mas não receava pela resposta da mulher. Porque ela havia de aceitá-lo. Evidentemente que sim, pois tudo fazia na vida como lhe mandavam. Sentiu uma certa curiosidade em saber se, ao vê-lo partir de La Liberte, já sua noiva, ela se ocuparia em pensar no futuro que a esperava como sua esposa. Que, mais tarde, fosse ele quem andaria às ordens da mulher, era uma outra questão, completa-mente diferente.
Parecia-lhe, enquanto esperava, que enfim compreendia melhor os objectos que enfeitavam a sala azul-celeste. A espineta, a caixa de música, as cadeiras tinham recuado um pouco, de costas para a parede, como se intimidadas pela sua presença, quais miniaturas de uma casa de bonecas, assustadas pela intrusão de um adulto. Era passado então o tempo dos jogos? Ele procurou pô-los à vontade. «Não vim aqui - disse ele a todos os objectos - para destruir mas para dar. Os jogos melhores ainda estão para vir.»
Nesse momento, como se fora chamada à vida por essa tranquilidade nova, a jovem Madame Lerche entrou na sala, com um vestido cor-de-rosa, de folhos, seguida pela criada que trazia o samovar e a toalha de chá para a visita. Após uma breve e agradável conversa, o conselheiro pôde entrar no assunto que ali o levava.
Fransine sempre dera ao conselheiro a impressão de estar ansiosa por acabar o que ela própria havia começado, aliviada se lhe via um fim. Porquê não o sabia ele, pois Fransine não gostava realmente de iniciar fosse o que fosse. Ela não corria o risco de, como Fausto, pensou ele, implorar ao momento que se prolongasse por ser tão belo.
Ela despachava cada momento com a pressa de uma freirinha italiana que, ao passar o rosário, empurra as contas. Ao ouvi-lo agora falar do seu amor por ela, e das suas ousadas esperanças, o rosto de Fransine quase empalideceu, e o corpo esbelto agitou-se na poltrona. Uns olhos negros fitaram os do conselheiro e desviaram-se. Foi um alívio, quando ele chegou ao fim. Ela aceitou o pedido, tal como ele esperava, não sem alguma emoção, como se aquele fosse um refúgio na sua vida. O conselheiro beijou-lhe a mão e Fransine sentiu-se aliviada por o assunto estar assim encerrado.
Mais tarde, quando os noivos tomavam o chá, e Fransine presidia no divã, por trás do alto samovar, para se dar alguma importância o conselheiro contou a história de Anders e do vinho da sacristia. Nessa altura quase lhe saía o tiro pela culatra, pois a história impressionou tremendamente Fransine. Parecia querer sumir-se pelo chão abaixo para fugir a um tal sacrilégio. Quando pôde falar perguntou, mortalmente pálida, se o pastor sabia do sucedido. O conselheiro não esperava nela um tão profundo temor das coisas sagradas. Era uma qualidade amável, mas havia ali qualquer coisa mais: um pavor de fantasmas, ou a presença de um fantasma. Tranquilizou-a, portanto, e contou-lhe que decidira libertar o jovem amanuense das consequências da sua loucura. Ao ouvir isto, ela presenteou-o com um olhar tão luminoso, tão enlanguescido e vivo na sua doçura negra, que encheu toda a sala como o perfume dos jasmins, que o fez sentir-se poderoso e benevolente.
Devia - disse o conselheiro - pregar um susto ao rapaz, para seu bem. Olhe que, se eu não lhe tivesse arranjado o emprego, ele hoje estava a morrer de fome.
Às últimas palavras Fransine de novo empalideceu.
- E mesmo assim, sabe, minha querida - prosseguiu o conselheiro - ele tem uma bela carreira à sua frente. É uma pena ver um rapaz insensato, um vagabundo, arruinar o futuro de um grande homem. E, para mim, está de certo modo em jogo também o meu futuro, que ele é como se fosse meu filho. Mas tenho medo de acordar nele uma obstinação que depois eu não poderia vencer.
O fino trato de uma senhora talvez conseguisse apelar para os seus melhores sentimentos. Ele é de facto o tipo de homem que devia ter um anjo da guarda, e seria um acto nobre da sua parte, minha querida, se me ajudasse a salvá-lo fazendo-lhe um pequeno sermão.
E assim se combinou que Fransine iria acompanhar o conselheiro a Hirschholm e pregar uma lição de moral a Anders Kube. Imediatamente Fransine pôs um chapéu cor-de-rosa, através do qual o sol, avivando a cor das suas faces, dava ao seu rosto um brilho de flor. Era um tanto invulgar para uma jovem senhora sair da carruagem sozinha com um homem. Embora Kresten fosse no assento de trás, o conselheiro pensou que os transeuntes haviam de concluir que eles estavam noivos, e a viagem tornou-se assim um prazer para ele. A seu lado, Fransine levava os olhos postos no cavalo, que seguia a trote, e parecia feliz porque tudo iria em breve acabar-se.
O conselheiro e a jovem noiva, que iria desempenhar o papel de anjo da guarda, subiram de braço dado a escada estreita que levava aos humildes aposentos de Anders, por trás da grande tília coberta de folhas novas, e ali o encontraram com a irmã, que estava casada com um capitão de navio mercante de Elsinore, e o filho dela, menino ainda. Isto veio complicar a missão da jovem, mas tranquilizou-lhe o coração. Sentiu que podia passar uns momentos calmos e agradáveis em tal companhia. Os dois irmãos eram muito parecidos, e quando o bebé a olhou o coração de Fransine quis parar de bater, pois via ali um bambino como ela só conhecera nas igrejas de Nápoles - um querubim com os olhos de Anders, reflectindo a personalidade do poeta como se fosse um espelhinho pousado no Céu.
Fransine viera, de elegante xaile, como a protectora que visita os pobres e os transviados. Agora, tão imóvel, de olhos tão negros, tinha na face a expressão de Raquel ao dizer a Jacob: «Dá-me um filho, senão morro». Queria ajoelhar-se para abraçar o bebé, mas temia que não fosse correcto um tal comportamento. Ocorreu-lhe então que podia obter o mesmo resultado se o erguesse até si. Colocou-o sobre uma cadeira, primeiro para lhe mostrar o que se via da janela, depois para que brincasse com os seus dedos descobertos pelas mitènes pretas. O menino fitava-o. Nunca vira tais caracóis, e estendeu a mão a querer tocá-los. Para o divertir, ela tirou o chapéu, inclinou a cabeça e, num movimento, sacudiu a farta cabeleira negra. Era como nuvens caindo à volta do seu rosto, e o menino riu-se e puxou os cabelos com ambas as mãos. Ela apertou-o ao peito, levemente, rindo, olhando o seu rostinho, e por momentos sentiu-lhe o coração, qual pequeno relógio, batendo contra o seu. Quando os outros a olharam ela corou. Ondas de rubra cor inundaram a sua face, mas mesmo assim não deixou de sorrir.
O conselheiro encetou uma conversa com a jovem mãe, que se sentou no sofá, de bela touca branca, plissada, com o seu menino ao colo, e os dois jovens ficaram em tête-à-tête junto à janela. Fransine sentia que era chegado o momento de cumprir a sua missão.
- Senhor Anders - disse ela - o conselheiro... o meu noivo - emendou - disse-me, muito pesaroso, que tem motivos para estar desiludido e zangado consigo. O senhor não sabe, talvez, aqui em Hirschholm, quanta maldade e quanta miséria há no mundo. Mas peço-lhe, senhor Anders, não faça nada que o possa levar à perdição.
Falando embora a Anders com toda a solenidade, o seu rosto conservava o reflexo de um sorriso. Mesmo quando prosseguiu, toda comovida, o sorriso ainda se mantinha.
Anders não ouviu uma só palavra do que ela dizia. Com o seu grande talento para a ausência, que o conselheiro raramente apreciava no seu protegido, Anders há muito que tinha esquecido o assunto a que ela se referia. Sorria-lhe, com o exacto sorriso dela. Se a expressão no rosto dela mudava, a sua mudava também. Captavam a luz e a sombra um do outro, como dois espelhos frente a frente numa sala.
- O conselheiro - dizia ela - gosta de si como de um filho, e se ele não o tivesse ajudado, o senhor estaria hoje a morrer de fome. Ele é um grande homem. Ele sabe melhor do que nós como nos havemos de conduzir no mundo. Olhe - disse ela, acariciando um pequeno objecto preso à corrente de ouro do relógio que lhe pendia do pescoço.
Era um pedacinho de coral na forma de um corno, desses que as pessoas simples na Itália usam como talismã.
- Isto deu-me a minha avó. Diz-se que protege do mau-olhado. Mas ela acreditava que nos protege também da varicela e dos pensamentos perigosos. Foi por isso que mo deu. Aceite-o, e deixe-me lembrar-lhe que deve ter cautela, e seguir as recomendações do conselheiro.
Anders aceitou da sua mão o pequeno talismã. Quando as suas mãos se tocaram ambos empalideceram.
Do sofá onde se quedara, o conselheiro viu, de soslaio, o desencadear de grandes forças. E reparou que a sua noiva entregava ao jovem amanuense, à laia de símbolo, o que lhe parecia ser um par de cornos. Teve de contentar-se com isto, que talvez não fosse o que ele pretendia, e acompanhado de Fransine desceu as escadas, dando-lhe o braço, até onde Kresten esperava com a carruagem.
Como não era considerado muito próprio, pela melhor sociedade de Hirschholm, que um casal de noivos, mesmo quando o homem era já de certa idade e a mulher uma viúva, passassem muito tempo sozinhos, tomou Anders o costume, nos meses de Verão, de acompanhar o conselheiro nas suas visitas a La Liberte na qualidade de «pau-de-cabeleira». Em tardes amenas tomavam chá os três cá fora no terraço, e Fransine cozinhava para eles petiscos italianos que lembravam ao conselheiro outras tardes e outros tempos. Olhando, à mesa, nessa luz radiosa e serena de um fim de tarde, os dois jovens que lhe eram tão caros - embora a ordem de precedência no coração do conselheiro os pudesse ter surpreendido se a conhecessem - ele sentia-se feliz e em harmonia com o Universo como só raramente lhe acontecia. Ser-lhe-ia difícil, pensava ele, imaginar um mais perfeito idílio. «Também eu - dizia para consigo o conselheiro - estive na Arcádia.»
As atitudes dos seus jovens pastores surpreendiam-no às vezes, e preocupavam-no, pois lembravam-lhe uma história que lera num livro de viagens. Nele se contava como um grupo de exploradores ingleses descobriu, numa aldeia africana, um número de prisioneiros encerrados, para engorda, numa paliçada, e destinados à mesa dos seus captores. Os indignados europeus ofereceram-se para lhes comprar a liberdade, mas as vítimas recusaram, pois julgavam estar a viver melhor do que nunca. Seria possível - pensava o conselheiro - que estes jovens tivessem concebido um plano de fuga, que habilmente lhe escondiam, ou não seriam eles mais previdentes que os cativos dos canibais? Ambas as hipóteses lhe pareciam improváveis.
Todavia a sua parábola não andava muito longe da verdade; ou a verdade, se ele a conhecera, não lhe havia de parecer menos improvável.
Para Anders a situação simplificara-se com a sua decisão de se matar no dia do casamento de Fransine, uma decisão que tomara quando soubera do seu noivado, e que lhe parecera tão inevitável como a morte. Para um campónio dinamarquês do seu tipo a ideia de acabar com a vida não custa a conceber. A vida nunca lhes parece - nem é, de resto - uma grande maravilha, e o suicídio, seja por que forma for, é, digamos, a sua maneira natural de morrer.
A vida fora madrasta para Anders. Se algum bem lhe concedera, fora agenciado por outros poderes. Ele sentira o destino comum dos seus iguais, que é ser, como se feitos de matéria essencialmente diferente do resto da humanidade, invisível para os outros. Ao conhecer Fransine ela tinha-o visto. Sem qualquer esforço, o seu olhar perspicaz compreendera-o inteiro. Esta sorte de não-existência humana, de que às vezes se cansava, tinha terminado, e ele prometera muito a si próprio ao começar a viver esta nova realidade. Se ela ia casar com o conselheiro, e afastar dele o seu olhar, nada mais razoável que ele se afastasse da vida.
Anders, sempre muito reservado quanto aos seus planos, sentia neste caso que a sua decisão a mais ninguém dizia respeito que a si próprio. Assim, por nenhuma forma a revelou. O conselheiro, se a adivinhasse, não só havia de a impedir como ainda de reprovar. Poucos são os homens que consentem tomar o seu chá com um futuro fantasma. A Fransine talvez lhe doesse. Anders não tinha um temperamento cavalheiresco, mas tinha o dom da amizade, e não gostaria de afligir qualquer dos dois. Para evitar que sofressem, planeava tomar de empréstimo o barco de um amigo, um pescador de Rungsted, e fazê-lo virar num acidente. Hábil marinheiro, saberia como proceder. Por vezes via com estranheza esse Anders Kube, como se ele próprio fosse uma figura central num dos seus poemas. Chegava a sentir algum remorso, e depois voltava a julgar-se um benemérito, pois estaria ajudando Anders Kube a fugir a uma série de coisas desagradáveis. Ao fim e ao cabo ele tinha, preso na sua paliçada, os olhos calmos dos prisioneiros negros da história.
Para além desta sua ideia central, obcecava-o um grande poema, um canto do cisne, que havia de acabar ainda antes de acabar com a vida. Tendo escrito já sobre as florestas e os campos, e confiante como estava no último abraço que lhe daria o mar, deixava que os pensamentos se voltassem todos para as águas. Náiades e tritões dançavam nas ondas desta grande epopeia, que seria a última; as baleias vogavam nas alturas como nuvens; cisnes e golfinhos e peixes brincavam por entre as pérolas da poderosa espuma, e os ventos sopravam flautas e fagotes, juntando-se em grandes orquestras. Essa liberdade em que vivem aqueles que podem morrer tinha alcançado o poema; e, conquanto não fosse, como drama muito extenso, não tinha fim sob muitos aspectos. Leu-o a Fransine, nas tardes em La Liberte, à medida que o ia escrevendo.
Quanto a Fransine, era coisa natural para ela viver assim unicamente o dia que passa. Ela não tinha uma noção real do tempo; aliás, nem sabia distinguir o tempo da eternidade. Era esse um dos traços do seu carácter que levava as senhoras de Hirschholm a julgarem-na um tanto imbecil. Nunca se sentira tão feliz como agora, e talvez esta incerteza do futuro e do tempo que teria de venturas fizesse parte da mesma felicidade. Quanto ao resto, os seus pensamentos seguiam os humores de Anders. Lera o seu último grande poema, e, como ele era todo sobre o mar, logo mandou fazer o enxoval em tons de azul-celeste e azul-marinho - era absolutamente divina, segundo a opinião dos dois homens.
Como, durante esses meses, o conselheiro viesse a conhecer de perto a noiva, muitas vezes o surpreendeu a extrema indiferença dela pela verdade. Ele próprio efabulava a existência, e sob muitos aspectos se parecia com Fransine; considerava, de resto, que os métodos seguidos por ela vinham ao encontro dos seus próprios planos. Em mais de uma ocasião, porém, o especial talento de Fransine o surpreendeu. Era, reflectiu o conselheiro, um dom particularmente feminino, um code de femme da economia prática, que inúmeras gerações de mulheres tinham comprovado. Elas, quando querem ser felizes, têm de enfrentar uma force majeure. Bem se lhes pode perdoar então que, para a alcançarem, trilhem caminhos ínvios e afirmem que uma coisa é, de facto, o que elas pretendem que seja. Tornaram, pelo uso que lhe dão, indispensável este remédio caseiro ao bom governo da vida. Assim, e porque seria o seu futuro marido, foi o conselheiro proclamado ipso facto bom, inteligente e generoso. Não o tomou o conselheiro como elogio à sua pessoa; provavelmente ela tinha aplicado a mesma receita ao velho boticário Lerche. Por isso os presentes que lhe dava eram sempre lindos, os sermões do velho pastor Abel, de Hirschholm, sempre comoventes, e os dias eram amenos quando ele a levava a passear de carruagem. Uma excepção à regra seriam os vestidos de Fransine e os chapéus, com os quais francamente se preocupava, e muito, mas, também, ela tinha um tal gosto na toilette que nesse capítulo podia atingir com pleno êxito um ideal. Se tinha vindo buscar refugio nesta religião feminina por uma necessidade interior, ou fora iniciada por sábios Nestores de saias, isso o conselheiro não sabia. Raras são aquelas, pensava ele, que descobrem o que é o sonho, a felicidade conjugal ou o êxito na vida sem recorrer a um tal procedimento. Guiava-se este pelo mesmo princípio do fato novo do conde Schimmelmann, mas, arquitectado como o foi por simples mulheres, não incluia a ambição masculina da demonstração; era um dogma - sagrado e irrefutável.
Assim noutros tempos faziam as bruxas, que moldavam figuras de cera em forma de crianças, as traziam nove meses sob a saia, e as baptizavam depois à meia-noite com o nome de alguém seu conhecido, e então a criança de cera ocupava, para todos os efeitos da bruxaria, o lugar do seu homónimo. Às mãos de uma bruxa amável, esta magiazinha branca podia operar só o bem. E se uma jovem bruxa concebe e traz no ventre por nove meses uma criança que é carne da sua carne e sangue do seu sangue? Ah, então é que seria o diabo!
O conselheiro, notando o entusiasmo do seu protegido por esse novo poema, pediu-lhe que o lesse. Anders não viu por que não dar a conhecer a sua obra ao velho amigo e recitou-lhe excertos dela uma ou outra vez. O conselheiro ficou muitíssimo impressionado, cheio de uma admiração que tocava as raias da idolatria. Parecia-lhe, de resto, que ele alcançara um novo ritmo, um novo passo em pleno éter, vogando no azul de céus e águas em uma espécie nova de harmonia e felicidade. Julgou ser este o começo de grandes voos. Discutiu muito a obra com o poeta, chegou a dar-lhe conselhos, e não foram poucas as ideias e opiniões do Mecenas que tiveram, de uma forma ou de outra, um eco na epopeia, e durante estes meses de Verão ele esteve, de um certo modo, namorando e escrevendo versos à noiva por interposta pessoa - uma picante situação, que se havia de prolongar até ao dia do casamento. Dias e dias, semanas e semanas os três, até quando bebiam chá no terraço, viveram nas águas dos grandes mares celestes.
Na antevéspera do casamento o conselheiro recebeu, de um amigo na Alemanha, um exemplar de um romance novo, Wally: Die Zweiflerin, da autoria do jovem Gutzkow, que estava desencadeando na Alemanha, por essa altura, ondas de indignação e polémica.
Como se hão-de lembrar, Wally e Caesar amam-se, mas não se podem casar porque Wally está prometida ao embaixador da Sardenha. Caesar exige-lhe então que ela, para simbolizar o casamento espiritual entre os dois, na manhã da cerimónia se lhe mostre nua, em toda a sua beleza. Existe um velho poema alemão onde Sigune assim se revela a Tchionatulander.
Tanto se entusiasmou o conselheiro pelo romance que o levou nessa tarde para La Liberte e ali continuou a leitura, sentado à sombra de uma árvore do terraço, enquanto os jovens iam ver um raposinho domesticado que Fransine criava no canil. Ponderou ele que na semana seguinte não teria muito tempo para leituras e que faria melhor em acabar o livro nesse mesmo dia.
Eis o que leu:
À sua esquerda surge um quadro de extraordinária beleza: é Sigune que se revela, mais tímida que a Vénus dos Mediei quando oculta a sua nudez. Está de pé, sem um amparo, cega pela divina loucura do amor. O amor lhe pedia esta graça, e ela já não tem vontade própria: toda ela é rubor, inocência, lealdade. E, como sinal de que uma piedosa iniciação santifica a cena, não há rosas vermelhas florindo perto dela; só um alto e branco lírio, desabrochando, esconde o seu corpo qual símbolo de castidade. Um instante, um silêncio, um sopro - e nada mais. Um sacrilégio, mas inspirado pela inocência e pela renúncia que para sempre será fiel.
O conselheiro fechou o livro e, recostando-se no banco, de rosto como virado para os altos Céus, cerrou os olhos. O ar, sob a copa da tília, enchia-se de uma luz dourada e verde, um doce aroma de flores, um zumbido de inumeráveis abelhas.
Isto, pensou ele, é muito bonito. Muito bonito, queira ou não queira esse velho rezinza do professor Menzel. O sonho de uma Idade de Ouro, de uma inocência e de uma doçura eternas de novo o possuía. Deixá-lo, se os críticos diziam que tais coisas não existem; pouco importa, pois uma nova espécie de flor vingara já na sua fantasia. Ouviu o conselheiro as vozes de Fransine e Anders, que a uma certa distância conversavam, mas não distinguia qual o assunto da conversa.
Do canil os dois jovens tinham descido à horta, a sul da casa, para apanhar alfaces, ervilhas e cenouras novas para a ceia. A parte baixa do jardim recebia a sombra de um renque de velhos vidoeiros de troncos retorcidos, que formavam a sebe que limitava o jardim. Por uma abertura se podiam ver os campos onde, no oiro suave do entardecer, duas meninas, que saíam a mungir as vacas, levando à cabeça os altos cântaros do leite, projectavam sombras longuíssimas e azuis no campo de trevo semeado.
Fransine perguntava a Anders a sua opinião sobre o raposinho.
- No Outono - dizia ela - se eu o libertar, ele será capaz de se alimentar sozinho?
- Eu libertava-o - disse Anders - só que ele podia, de acostumado ao seu galinheiro, voltar depois, à noite.
E ele viu a imagem do raposo, a dentuça afiada, solitário, o fantasma do fofo companheiro de folguedos das suas tardes de Verão, numa noite invernosa de prata e de gelo, trotando em direcção a La Liberte.
- Então terá de cá vir apanhá-lo um dia - disse Fransine.
- Mas nessa altura eu já cá não estou - disse Anders sem pensar.
- Ah, não? - retorquiu ela - E que nova situação, que altos cargos o afastam da nossa companhia, senhor Anders?
Anders calou-se.
Que altos cargos, que nova situação?
- Tenho de me ausentar - disse ele por fim.
Fransine não replicou. Talvez conhecesse bem a dura miséria, senhora dos homens e dos deuses. Mas, passado um momento, olhou para ele, e tão fixamente como se lhe atirasse todo o seu ser nesse olhar.
- Mas se não estiver aqui - disse ela - será... Ela reflectiu por instantes.
- Será tudo tão frio aqui! - disse ela.
Anders compreendeu-a muito bem. Uma onda imensa de piedade o ergueu e o lançou de rojo a seus pés. Seria tudo frio para ela, de facto. E a sua alma dividia-se entre o desespero de a saber tão cheia de frio e o desespero de estar ele próprio, nessa altura, frio de mais para poder confortá-la.
- Que hei-de eu fazer depois? - perguntou ela.
Estava de pé à sua frente. à excepção dos vestidos, e das mãos, que repousavam ao de leve nos folhos da saia, ela tinha a exacta postura dessa Vénus dos Mediei sobre a qual no momento lia o conselheiro. Olhando-a, Anders lembrou-se de que antes vira nela a criança que não queria perder nele o seu boneco favorito. Agora via-a de maneira diferente, via a boneca que não queria perder a sua criança, essa criança que havia de brincar com ela, vesti-la e despi-la, e extasiar-se com ela - uma boneca sem dono, uma boneca perdida se não estivesse nas suas mãos.
- Senhor Anders - disse ela - naquelas semanas a seguir à Páscoa, quando nós dois passámos tanto tempos junto em casa do conselheiro, e naquele piquenique em Rungsted, lembra-se?, o senhor disse-me que para ser feliz bastava-lhe ficar aqui e ser meu amigo para sempre.
Ele guardou silêncio. Aquelas semanas a seguir à Páscoa doíam-lhe se as lembrava, podiam matá-lo se delas falasse.
- É esta a sua amizade? - perguntou ela.
- Ouça, Madame Fransine - disse ele - sonhei consigo anteontem.
Ao ouvir estas palavras Fransine sorriu, mas estava muito interessada.
- Sonhei - disse ele - que a senhora e eu estávamos andando numa grande praia, onde soprava um vento forte. E a senhora disse-me: «Havemos de ficar assim para sempre». Mas eu disse-lhe que era apenas um sonho nosso. «Ah, não, não diga isso», replicou a senhora. «Agora, se eu tirar o meu chapéu novo e o atirar para o oceano, vai acreditar que não é um sonho?» E a senhora desatou as fitas do seu chapéu e as ondas levaram-no para longe. Mesmo assim eu pensava que era um sonho. «Oh, como é ignorante - disse a senhora - mas se eu tirar o meu xaile de seda e o atirar para longe, irá ver que isto é a realidade.» E a senhora deixou cair dos ombros o seu xaile de seda e o vento levantou-o da areia e levou-o. Mas eu continuava a pensar que era tudo um sonho. «Se eu cortar a minha mão esquerda ficará convencido?» A senhora levava uma tesoura no bolso do seu vestido. Ergueu a mão esquerda, como se fosse uma rosa, e decepou-a. Foi então que...
Ele interrompeu-se, muito pálido.
- Foi então que eu acordei - rematou ele.
Ela ficara imóvel. Tinha muita fé nos sonhos, e sentira-se passeando com ele pela praia enquanto o ouvira. Mas agora procurava reunir todas as suas armas para o conservar junto de si, pois pensava realmente que, se o perdesse, morria. Cortaria, sim, por ele a sua mão esquerda, se ele o quisesse, mas seria melhor que essa mão ficasse enleando a nuca de Anders. No poente claro e doce ela sentiu o corpo leve e robusto, como o tronco de um vidoeiro novo, a cintura delicada e flexível como um ramo, os seios moços repousando, gráceis, como dois ovos macios e redondos, no viço de um cálido ninho de cambraias. Os olhos, fulgurando, estavam tão presos nos dele, e os dele também tão presos nos seus, que só um poderoso engenho conseguiria erguê-los e afastá-los.
Ela ergueu ligeiramente aquela mão que a Vénus conservava perto dele e estendeu-a devagar, como se lhe pesara muito. Ele esticou o braço e tocou-lhe a ponta dos dedos. Era exactamente o gesto do Criador de Michelangelo transmitindo o sopro divino ao jovem Adão. Que variadas reproduções da grande arte clássica perpassavam, nesse fim de tarde, na horta de La Liberte!
Ouviram o conselheiro mexer-se no banco, pôr o livro de parte e olhar a copa da tília. Vagarosa, sem pronunciar uma só palavra, Fransine voltou-se e subiu o terraço ao seu encontro, e Anders seguiu-lhe os passos, com o cesto das alfaces e das ervilhas.
O conselheiro tinha ainda um dedo no livro a marcar a página que estivera lendo.
- Ah, Fransine - disse ele - tenho estado aqui a perturbar o requinte da academia de La Liberte com a intromissãozinha de um sans-culotte da literatura. O seu autor foi preso por causa deste livro na Alemanha. Está certo. Castigue-se embora a carne, mas que se deixe voar o espírito. Desde que os lentes das universidades baniram o jovem poeta, podemos disfrutar a sua poesia. Estou a dizer frivolidades, minha querida - prosseguiu ele - mas, num fim de tarde como este, os moralistas sempre fazem uma triste figura. E o que realmente me cativou foi um curioso incidente, uma coisa de somenos importância. Porque me parece que Gutzkow consegue, ao descrever o local onde se encontram amiúde os dois jovens e estouvados amantes, dar a imagem do vosso templozinho à amizade em La Liberte, além, no bosque de vidoeiros.
E, dizendo estas palavras, levantou-se e foi tomar o chá com a noiva, deixando o livro no banco sob a tília.
Na véspera do casamento o conselheiro não fez a sua costumada visita a La Liberte. É esse o procedimento correcto de um noivo na Dinamarca. À noiva dá-se-lhe esse último dia para meditar em paz sobre o passado e o futuro; e os noivos só voltam a encontrar-se na igreja. O conselheiro tinha, além disso, muito que fazer, e passou o dia a examinar alguns papéis e a dar ordens aos seus subordinados para que assuntos prosaicos não perturbassem depois os primeiros dias da lua-de-mel. Mas mandou o jovem Anders levar um grande bouquet de rosas. Era um belo dia de Verão.
Ao fim da tarde, já o Sol se tinha posto, Anders pegou na arma e saiu a caçar patos. O conselheiro também não encontrava repouso no seu quarto, e iniciou um longo passeio a pé, como é próprio de um noivo, repleto de sentimentos. Tomou pela estrada que atravessa os campos de La Liberte para estar, sem que o mundo ou a noiva o suspeitassem, ainda perto dela.
O céu da noite estival era de um claro azul e cândido, como as pétalas de uma pervinca. Grandes nuvens de prata se acastelavam por todo o horizonte; o arvoredo erguia as copas negras e severas para o céu. As ervas, húmidas e altas, eram de um verde luminoso. Todas as cores do dia se continham na paisagem, tão vivas como à luz do Sol, mas transformadas, como revelando uma faceta nova do seu ser, como se todo o mundo em cor se houvesse transformado de um tom maior num tom menor. Na quietude e no silêncio da noite vibrava intensa a vida, como se no instante seguinte o Universo fosse revelar o seu segredo. Quando o velho conselheiro ergueu os olhos, surpreendeu-o ver uma lua cheia de Verão imóvel no meio do céu. O disco brilhante lançava uma estreita ponte de oiro sobre a planície cor de ferro do mar, como se um cardume de muitas centenas de pequenos peixes brincassem à superfície; e no entanto parecia não espalhar muita luz, como se mais luz não fosse ali precisa.
Sabendo agora que ali estavam, já distinguia as manchas transparentes de sombra em redor das árvores que a Lua projectava, e as poças pequenas e estreitas no caminho, mesmo à beira das ervas fragrantes e húmidas e longas.
O conselheiro viu que ali estivera parado há algum tempo, olhando a Lua. Ela estava muito longe, bem o sabia, mas entre os dois nada se interpunha a não ser o ar diáfano, mas rarefeito, segundo lhe disseram, à medida que se ganha altura. Porque não fora ele capaz de escrever um poema à Lua? Tinha tanto para lhe dizer. Ela era tão branca, tão redonda, e ele sempre amara tudo o que é redondo e branco.
Subitamente pareceu-lhe que a Lua tinha outro tanto para lhe dizer. Mais, até, ou pelo menos expressava-o de uma forma mais poderosa. Um velho, sim, seria um velho; e ela também, mais velha ainda do que ele. Não é má coisa ser-se velho, pensou ele; vê-se e aprecia-se melhor as coisas do que nos tempos da juventude. Não é só no vinho velho que há bouquet; para apreciá-lo é preciso ter-se também o palato de um velho.
Mas seria esta poderosa mensagem da Lua um aviso? Lembrou-se do conto infantil do ladrão que roubou um gordo carneiro e o está comendo ao luar. O homem, por troça, levanta um pedaço do carneiro à luz da Lua e exclama:
Sê bem-vinda
Cara linda!
Vens provar do meu carneiro?
E a Lua responde-lhe:
Ó ladrão,
Tem tu mão!
Chave, queima o zombeteiro!
E, ao dizer isto a Lua, uma chave em brasa desce voando pelos ares e queima o rosto do ladrão. Aquela história devia ter-lha contado a velha ama há uns cinquenta anos. Tudo a noite contém. A vida, sim, e a morte, um memento mori sempre. «Cuidado, a morte está aqui!», dizia a Lua. Seria para ele semelhante aviso?
Ou promessa? O seu velho corpo iria ser erguido, pois, qual Endimião, e receber o prémio dos cuidados desta vida num sono eterno, tão belo como esta noite? E o mundo iria esculpir uma estátua sua, aqui nos campos semeados de feno de La Liberte, em memória da sua apoteose?
Que estranhas fantasias eram estas? O trevo, gotejante de orvalho, pesado, melífluo, roçava-lhe os tornozelos. Experimentava a curiosa sensação de andar um pouco acima do chão. Havia vacas, algures, deitadas ou caminhando; não as distinguia à luz do luar, mas sentia a fragrância doce e forte dos seus corpos.
Subitamente lembrou-se de algo que sucedera havia mais de quarenta anos. O jovem Peter Mathiesen de então, um rapaz, reservado e especulativo, hospedava-se em casa de seu tio, o pároco de Mols, e na mesma casa uma menina, filha de um lavrador, preparava-se para a confirmação. O tio era um homem letrado, que sabia falar de tudo - Deus, o amor, a vida eterna - e um entusiasta da nova literatura romântica. Costumavam ler poesia ao serão, na residência, e uma noite, porque a menina se chamava Nanna, divertiu-se o pastor a fazer os pequenos dar um recital da tragédia A morte de Baldur, e a dizer um ao outro os versos apaixonados de Nanna e Baldur. De óculos arrepiados para a testa, o velho pastor ouvira, num êxtase, com essa mesma impudência que leva as solteironas a plantar jacintos em altos jarros para lhes verem as raízes, sem reparar que os dois jovens camponeses se ruborizavam e empalideciam ao som das próprias vozes. Chegada a hora de dormir, o rapaz não pudera ir para a cama. Confuso e febril, vagueara pelos celeiros da quinta procurando o que pudesse lavá-lo desse contacto, e fora dar ao curral. Era uma noite de luar e de neblina, no início da Primavera. Encostado à parede, ele sentira-se extremamente só, e não apenas só, mas traído, como se alguma coisa esperasse na treva para o atacar. Depois dera em pensar nas vacas, e na sua imperturbabilidade no meio da escuridão. Uma delas, branca e enorme, chamada Rosa, era a favorita dos pequenos. Sentira que ela podia confortá-lo. No estábulo, o peito contra o flanco do animal gentil que, repousando, ainda ruminava, uma doce calma e um equilíbrio o invadiram, e resolveu-se a dormir ali mesmo toda a noite. Mal se tinha deitado, porém, nas palhas, a porta da vacaria abriu-se mansamente, e uns passos leves se aproximaram. Espreitando por cima do lombo da Rosa, ele viu a menina entrar, a sua figura indistinta iluminada pelas névoas de luar. Estava tão infeliz quanto ele, e sentira que só um animal ruminante poderia devolver-lhe a paz de espírito. O luar entrava pela janelinha da vacaria - o mesmo luar - dando às paredes caiadas uma cor branca de leite. Os cabelos louros da pequena brilhavam sob a carícia do luar, mas ele estava na sombra e quedou-se imóvel como um fugitivo que teme ser descoberto. Observou-a que ajoelhava na palha, tão perto dele, respirando ofegante. Estaria chorando, talvez soluçasse. Ali estiveram deitados os dois por algumas horas na curta noite primaveril, ora dormindo, ora acordados, com a tranquila Rosa de oloroso bafo posta entre eles qual espada de dois gumes de um poema cavalheiresco. Muitos pensamentos, muitas imagens bonitas e poderosas cruzaram o espírito do rapaz. Adormecido, sonhou com Nanna, e ao acordar soerguera-se para a ver, e ela ainda lá estava, sem dar pela sua presença. De manhãzinha cedo a pequena levantou-se, sacudiu a palha das saias e desapareceu, e ele nunca chegou a dizer-lhe que tinha estado no curral com ela. O conselheiro prosseguiu na caminhada, satisfeito. Pensava no aforismo do conde Schimmelmann: «Verdadeiro louco é quem não sabe que mais vale a metade que o todo». Este incidente, há muito esquecido, era uma pequena flor na sua vida, na grinalda da sua vida, uma flor campestre, um não-me-esqueças campestre. Não eram poucas as flores, violetas, amores-perfeitos da sua vida. Iria esta noite pôr uma rosa nessa grinalda?
A uma certa distância de La Liberte, nos campos semeados de feno, havia um bosque de vidoeiros. A um extremo dele, ao cimo de um pequeno monte, a dama do solar que, cem anos antes, se afeiçoara à doce e calma solenidade dessa paisagem, tinha ali construído um pequeno pavilhão, um templo à amizade. Belos pilares de madeira suportavam um tecto em cúpula. Subia-se a ele por dois degraus, e um assento corria o lado interior das colunas, desenhando um semi-círculo. Dali podia ver-se o mar. Anos depois, e porque o clima da Dinamarca nem sempre se harmoniza com a arquitectura grega, um dos lados do edifício fora coberto de colmo, para abrigar a pensadora. A construção estava agora em ruínas, e à luz do dia era tristonha; à luz da lua cheia, porém, parecia romântica.
O conselheiro dirigiu os seus passos para o pequeno templo, sítio que lhe pareceu de harmonia com os pensamentos de um noivo, mas caminhou devagar e com prudência, não fosse a jovem noiva ter tido o mesmo devaneio e, sendo assim, não quereria assustá-la ou perturbar-lhe o sossego. Mas, ao aproximar-se, vozes vindas do edifício fizeram-no parar, como petrificado, e depois prosseguir com cautela na direcção do som. Pela segunda vez espreitando furtivo em La Liberte, cuidou de aproximar-se em silêncio, escudado pela parede de colmo.
Anders e Fransine estavam juntos no templo, e falavam em voz baixa. O rapaz sentava-se no banco, imóvel. A jovem, de pé, em frente dele, encostava-se a uma coluna. O luar iluminava-os; o mundo em seu redor era todo feito de luz, como uma paisagem de neve. Mas o conselheiro mantinha-se na treva do seu esconderijo. Era, de facto, como a estátua dele próprio com que ainda há pouco sonhava. Também as estátuas, algumas vezes, vêem muita coisa.
Ela vestia um exótico vestido, uma espécie de dominó preto, ou de capa de sair, que o velho nunca vira em seu poder e em que ela se embrulhava. Os cabelos negros, soltos, eram um manto vivo e cheiroso, e a sua face a rosa branca, húmida de orvalho ao ar da noite. Nunca a tinha visto assim tão linda o conselheiro. Aliás, nunca vira tanta beleza reunida num ser humano. Era como se a noite de Verão tivesse gerado apenas essa flor, epítome da sua própria beleza. Ela parecia vacilante, como um ramo flexível de roseira a que as flores brancas pesassem.
Houve um longo silêncio. Depois Fransine soltou uma gargalhada rouca de felicidade, tão mansa, tão doce como o arrulhar de uma pomba.
- Está toda a gente deitada - disse ela - como os mortos no cemitério. Só tu e eu estamos a pé. Não é uma estupidez estar-se deitado?
O corpo dela agitou-se levemente nas pregas da capa.
- Estou farta deles - exclamou com veemência - sempre a falar, a falar. Oxalá eles ficassem deitados para nunca mais se levantarem, e nós pudéssemos estar sozinhos enfim no mundo por algum tempo.
A doçura dessa ideia parecia subjugar Fransine. Respirou fundo. Permaneceu imóvel, esperando que ele fizesse um gesto, lhe desse uma resposta. Pouco depois era ela quem perguntava, a voz ainda cheia de riso e de ternura:
- Anders, o que tens?
Anders levou muito tempo a responder-lhe, e, quando o fez, disse lentamente:
- Sim - disse ele - bem o podes perguntar, Fransine. Do espírito não é preciso falar não é perigoso. Mas o que temos? Estranha coisa é a matéria. É o flogisto dos nossos corpos, por ser, digamos, de peso negativo. Isto é fácil de compreender, evidentemente, mas é tão doloroso quando é demonstrado em nós próprios. Primeiro somos tratados pelo fogo - ardemos, somos queimados vivos, vai dar no mesmo - e ainda assim o nosso corpo não pode voar.
Então a causa da imobilidade do amante tornou-se clara para o velho, posto à escuta na sombra. O rapaz estava perdido de bêbado. Ainda se aguentava, sentado, em equilíbrio, mas nem um movimento mais podia fazer. Estava pálido como um espectro; o suor corria-lhe pelas faces; e fixava os olhos no rosto da jovem como se lhe causasse uma dor infinita desviá-los dela. O conselheiro, que estivera repetindo mentalmente o seu aforismo particular, «mais vale a metade que o todo», via agora provar-se a teoria diante dos seus olhos.
Fransine sorria ao rapaz. Como tantas mulheres, não reconhecia os sintomas de uma bebedeira num homem.
- Oh, Anders - dizia ela - pois não sabes? Eu to direi: eu sou capaz de voar. Ou quase. O velho maitre-de-ballet Basso disse-me um dia: «Às outras raparigas eu tenho de as obrigar a saltar, mas a ti vou ter de amarrar duas pedras às pernas, senão levantas voo e foges de mim.» Estes velhos são doidos, e querem de nós estranhas coisas. Agora não me importo. Em breve te mostrarei que posso voar, como os peixes-voadores de que os meninos do mar fazem patos e gansos.
- Olha, rapariga - disse Anders - tu és como a cozinheira que mata um pato, vivo, bom, só para fazer uma sopa de miúdos. Podes usar-me para a sopa de miúdos, se quiseres, mas tens de cá vir e cortar por tuas mãos as miudezas que é preciso. As aves não sabem onde ficam o próprio coração ou o fígado. É trabalho de mulheres, Fransine.
Fransine reflectiu por momentos. Tinha a certeza de que as suas palavras todas eram sábias e meigas para ela.
- Minha mãe - disse ela - nasceu no ghetto de Roma. Não sabias isto. Ninguém sabe. Lá eu vi-a matar as aves como deve ser, para que nem uma gota de sangue fique nelas. Esse ghetto, Anders, esse é o lugar, podes crê-lo, onde há pessoas que sofrem, onde é preciso ter cautela para não se acabar roubado e ferido. Enforcado, até. Já vi gente ser enforcada. O meu avô foi enforcado lá. O mundo tem sido mau para mim, Anders, e para ti também. Mas depois até a felicidade é mais doce.
Ela fez uma pausa.
- A felicidade - disse ela. - Não achas assim?
- Agora é tarde - respondeu Anders. - As coisas acontecem mesmo quando estamos ausentes. É esse o problema. É isso que tu não sabes. Os galos cantam, embora aqui não os possamos ouvir.
Citando um velho adágio dos carvoeiros, ele disse, lenta e meigamente:
Quando o galo canta na manhã do São João,
Já vinte e nove caixotes passaram pela minha mão.
- Não cantam, não - disse ela. - Ainda não amanheceu, Anders. Nem sequer é meia-noite.
Ela permanecia imóvel à sua frente.
- Um e outro - disse Anders - me querem como eu sou, inteiro. Abelone quer-me inteiro. Pretende abrir uma taverna em Elsinore e quer que eu case com ela e seja o patrão de uma taverna de marítimos. E o mar também me quer, inteiro. Se uma ou o outro te apanhassem, irias ver como elas te mordem.
O conselheiro, ainda que absorto na conversa dos dois, sofreu nesta altura um ligeiro choque. Então a sua governanta nutria semelhantes esperanças sem nada lhe dizer a ele? E teria até visto em Fransine uma rival, talvez, das suas glórias, mostrando assim mais perspicácia do que ele próprio?
Fransine fitava Anders, confusa.
- Anders - disse ela - não fales assim. Ouve. Nas feiras, quando eu dançava para eles, eles gritavam: «Outra vez! Outra vez!» E diziam «É como ver as estrelas dançar, os corações arder.» Não acreditas que eu te possa fazer feliz?
Oh, minha linda - replicou ele - sejamos bons. Vamos portar-nos como gente de juízo. Deixa-me pagar-te o que os marítimos pagam às raparigas de Elsinore. Não tenho muito para te dar, e é pena, muita pena. Há dias gastei grande parte das minhas economias a pagar cerveja numa noitada na estalagem, e foi muito mal feito. Mas cinquenta táleres de contado ainda eu tenho de parte. Aceita-os, por amor de Deus. Não to peço por mim, juro-te, pois eu vou morrer mais cedo ou mais tarde, seja como for, peço-te por ti, minha pobre, minha linda rapariga. É sempre bom que uma rapariga tenha cinquenta táleres de contado. Compra com eles uma fatiota, e não andes para aí despida nas noites frias.
Fransine não era uma mulher fraca. Ao ouvir isto, fez um movimento na direcção de Anders. A sua capa, que mantinha apertada ao corpo, e os cabelos longos esvoaçaram. No seu rosto, onde parecia haver uma luz própria, os dois grandes olhos negros estavam fixos no rosto dele. Parecia uma jovem bruxa ao luar.
- Anders, Anders! - disse ela - Tu não me amas?
- Ó meu Deus - disse ele. - Eu já estava à espera disto. Posso responder-te, por experiência, e muito bem. Amo-te, minha linda megera. O teu cabelo, agora, é como uma labaredazinha vermelha nas trevas, uma língua fendida, de fogo, um pequeno fogo-fátuo que mostra aos homens o caminho errado, o caminho do Inferno.
Ela tremia da cabeça aos pés.
- Não querias - disse ela, torcendo as mãos - que eu viesse ter contigo, aqui, esta noite?
Ele, ainda sentado, ficou em silêncio por momentos.
- Bom - disse ele - se quer saber a minha opinião sincera, Madame Fransine, não. Preferia estar só.
Fransine voltou-lhe as costas e desatou a correr. A sua longa capa napolitana, arrastando-se atrás de si, impedia-lhe os movimentos. Conservou-se, porém, embrulhada nela. Assim fugiu Aretusa quando, há muitos anos, foi transformada em rio, e em altos prantos se lançou a um bosque de murtas.
Anders ficou por longo tempo sentado como um homem morto. Depois, com os movimentos vagarosos e incertos de um bêbado, pegou na arma e pôs-se de pé. Voltou-se, e ao voltar-se deu de caras com o conselheiro.
Não pareceu nada surpreendido por vê-lo. Talvez tivesse pensado nele, ou pressentido a sua presença na atmosfera daquele rendez-vous. Limitou-se a franzir um esgar quando pôs os olhos nele, como se lhe fosse mostrada a solução de uma engenhosa adivinha. O conselheiro sentiu-se bem mais embaraçado com esse encontro. Por alguns segundos se fitaram os dois. Então, com o sorriso que teria um rapazinho ao pregar uma partida maldosa a alguém, Anders soergueu a arma e, sem fazer pontaria, disparou para o corpo do velho. A resposta soou no eco distante, perturbando a noite de Verão.
O estampido e a dor súbita e opressiva atingiram o velho como se fossem uma só coisa, como se fossem o fim ou o princípio do mundo. Caiu, e ao cair viu o assassino, com uma agilidade surpreendente para um homem perdido de bêbado, apoiar a mão no muro baixo do pequeno templo, saltar para o outro lado e desaparecer.
O conselheiro achou-se, depois de uma longa estada num estranho mundo, deitado de costas no trevo, numa poça de um líquido pegajoso e quente - o seu próprio sangue, que se misturava ao rocio dos campos.
Sentia que estivera terrivelmente furioso. Não sabia ao certo se o estrondo e a escuridão não seriam consequência da sua ira, um anátema que o protegido ingrato lhe atirara à cara. Lentamente recobrando a consciência, sofria ainda com a dor e a exaustão que uma grande cólera deixa no peito, mas já não odiava nem condenava. Tudo acontecera há muito tempo.
Tinha perdido muito sangue. Julgou que todas as balas do tambor lhe haviam sido enterradas no lado direito. Também não era capaz de mover a perna direita. Estranho, como se podia transformar as coisas tão completamente apenas por jazer onde antes se estivera de pé. Jamais soubera que o cheiro do trevo em flor podia ser tão forte, mas isso era porque ele jamais estivera deitado, sepultado, banhado em trevos como agora.
Ia morrer. O rapaz, que ele tanto amava, quisera vê-lo morto. O mundo tinha-o expulsado. O seu testamento, lembrou-se então, estava em ordem. Deixava o seu dinheiro à noiva. Os seus velhos servidores ficariam amparados, e a adega iria para o conde Schimmelmann, que tanto apreciava um bom vinho. Ao fazer o testamento havia perguntado a si próprio se um testamento bem feito traria conforto a um moribundo. Agora sabia que sim.
Momentos depois tentou compreender para onde e para que mundo fora lançado. Reconhecendo o lugar, ocorreu-lhe que talvez ainda se salvasse. Talvez ainda pudesse controlar o seu mundo.
Devia estar a cerca de uma milha de La Liberte. Se conseguisse voltar-se e passar o peso do corpo para o braço ileso, talvez pudesse mover-se. Se alcançasse a longa alameda que conduzia à casa, talvez se arrastasse até ao muro de pedra e pudesse aí descansar.
Sentiu muitas dores mal tentou mexer-se; talvez nem valesse a pena.
- Agora, meu querido amigo - disse ele a si próprio, sentindo que era chegado o tempo de ouvir uma palavra amável - faz o possível. Hás-de salvar-te.
Conseguiu assim progredir, qual velha cobra que uma roda atropelou mas se arrasta ainda, serpenteando.
O braço do conselheiro cedeu; ele caiu com a cara no chão, e a boca, aberta para poder ainda respirar, encheu-se de pó.
Ao erguer-se de novo ele viu que se tinha enganado: não estava na Dinamarca, não, mas em Weimar.
A doçura de tal descoberta quase o subjugou. Weimar, então, era tão fácil de alcançar-se. Uma estrada a ela conduzia desde os campos semeados de feno de La Liberte. Este lugar - via-o agora claramente - era o mirante; a vista sobre a cidade era mais bela do que nunca; era o horto sagrado, e as tílias severas guardavam o santuário; sentia-lhes o cheiro intenso e balsâmico. A Lua brilhava serena sobre tudo aquilo, e de uma janela fulgente o grande poeta estaria talvez agora vendo-a a ela, compondo versos divinos à sua divinal beleza.
Lembrava-se agora: ele próprio andava escrevendo uma tragédia. Tinha outrora considerado esta a grande obra da sua vida, e estranhava que há tanto tempo não pensasse mais nela. Tinha até congeminado o plano de a colocar nas mãos do Geheimrat, para que ele depois lhe desse o seu parecer. Talvez esta noite fosse o momento oportuno. Chamara-lhe O Judeu Errante. Talvez não valesse grande coisa. Havia nela reminiscências do Fausto do próprio Geheimrat; mesmo assim, tinha uma certa inventiva. A cruz imaginária que o seu Assuero carregava pelo mundo, na sua longa e eterna caminhada, não deixava de ter uma certa força.
Pensou: Consentiria o poeta que as suas personagens - Wilhelm Meister, Werther, Dorothea - se associassem às criações do espírito do conselheiro? Sem dúvida haveria uma ordem no mundo da ficção como em qualquer outro, até o de Hirschholm. Com efeito, seria talvez próprio da obra de arte proporcionar ao autor a visão das suas personagens acompanhando as pessoas, e frequentando os lugares das obras dos grandes mestres. Não desembarcariam Elmiro e Tartufo em Chipre, não seriam ali recebidos pelo jovem Cássio em representação do seu general, tendo passado no mar por um navio de velas castanhas rumando a Shéria?
Caiu de novo, e, rolando, ficou deitado de costas. Era esta uma posição de que só poderia erguer-se com mais dificuldade, e, enquanto assim jazia, em ânsias de respirar, um cão ladrou na distância.
«Até os cãezinhos, vê - Tray, Blanche e Sweetheart – me ladram aqui.»
Sim, talvez tivessem razão para o fazer. Olhou a sua roupa, ao luar de Verão, empastada de sangue e de pó. Nem um mendigo estaria pior.
Também o rei Lear, a uma dada altura, estivera em maus lençóis. Assassinos também a ele perseguiram. Tinha estado só numa charneca, tinha-se debatido e caíra. A sua noite no descampado fora muito pior do que esta. Mas ainda assim o velho rei estivera protegido, alcançara uma inabalável segurança. Deitado ainda no chão, ofegante, o conselheiro procurou lembrar-se do que assim protegera tão excepcionalmente Lear, que até a tempestade na charneca, e toda a malvadez do mundo, não lograram sequer feri-lo. Tinha estado à mercê de duas filhas ingratas; elas haviam-no tratado com horrenda crueldade; a sua situação ali era tudo menos segura. Seria outra coisa, então. O velho rei estivera nas mãos, fosse o que fosse que lhe acontecesse, do grande poeta inglês William Shakes-peare. Ora aí estava!
O conselheiro tinha alcançado o muro de pedra do jardim. Com um esforço imenso conseguiu sentar-se, apoiando nele as costas. Descansou. E subitamente, com o rosto da Lua mirando a sua cara suja e tinta de sangue, o velho conselheiro compreendeu o mundo inteiro.
Não era só em Weimar que ele estava. Não, era mais do que isso. Ele tinha penetrado o círculo mágico da poesia. Ele estava no mundo das criações do grande Geheimrat. Toda esta paisagem quieta em seu redor, e esta grande dor também, que de vez em quando o invadia, eram obra do poeta de Weimar. Ele tinha entrado em pessoa nesses livros de harmonia, de profunda reflexão e de ordem indestrutível. Era livre, se o quisesse, de ser Mefistófeles, ou o tolo estudante que vem pedir conselhos sobre a vida. Com efeito ele podia ser tudo, sem correr qualquer risco, pois, fizesse ele o que fizesse, o autor velaria por que tudo terminasse em bem, e essa lei e essa ordem, excelsas e divinas, seriam mantidas. Como pudera ter medo alguma vez na vida? Teria acreditado que Goethe seria capaz de abandoná-lo?
De um faz dez E deixa dois. Faz par de três. E nove é um E dez nenhum...
As palavras deram-lhe um extraordinário conforto. Que louco, que louco tinha sido! Nada tinha importância! Ele estava nas mãos de Goethe.
O velho ergueu, como se fosse aquela a primeira vez em toda a sua vida, os olhos para o firmamento. Os seus lábios moveram-se. Dizia:
Ich bin Eurer Excellenz eherbietigster Diener.
Neste momento da sua apoteose tomou consciência de um choro mais ao longe. O som aproximou-se, e depois subitamente se desviou e desapareceu. Seria a voz, pensou ele, de Margarida chorando no seu abandono?
Minha mãe, a puta, a morte me deu. Meu pai, o canalha, foi quem me comeu...
Não, pensou ele, devia ser a jovem senhora de La Liberte, a sua noiva de um tempo, a pobre Fransine. Pelo som percebeu que ela andaria de um lado para o outro, perto dele. Teria vindo até ao extremo do terraço para que de casa a não ouvissem. Se ele conseguisse avançar um pouco mais, ela poderia ouvi-lo, e ele estaria salvo.
Com esta certeza também uma grande piedade invadiu o conselheiro. Fransine devia ter ouvido o tiro, pensava ela, e estaria louca de medo. Soluçava perdidamente, desesperadamente, parecia-lhe, e estava sozinha nas trevas da noite. Era uma crueldade da parte do Geheimrat. Todavia, já tinha feito pior, como quando levara Margarida a matar o próprio filho; e no entanto esse acto fora acertado, fizera de algum modo parte da ordem.
Encostou-se ao muro, as pernas paralizadas arrastando no pó, e tentou reunir e controlar todas estas ideias. Por ser mais rico em sabedoria, quem senão ele para consolar a infeliz e sossegá-la? Ela era jovem e simples; não valeria a pena procurar convencê-la de que tudo estava na boa ordem. Mas isso não tinha importância; era talvez melhor assim. As crianças, que não conseguem digerir os frutos da Terra, ficam felizes se lhes dão um pedacinho de açúcar. Ele faria com que Fransine tivesse aquilo a que se chama felicidade. Esta, sentia-o, era a vontade do autor, do Geheimrat.
No céu a Lua mudara de posição e de cor. A manhã aproximava-se. O céu de Verão lentamente avermelhava; nele as estrelas, penduradas como gotas claras, estavam prestes a cair. Ventos balsâmicos sopravam rente ao chão.
O conselheiro pensou que devia ter a aparência de um fantasma e, com muita dificuldade, tirou o lenço e limpou a cara. O esforço quase o matava, e apenas conseguiu manchar todo o rosto de sangue e de pó. Sentia que não lhe valia de nada chamá-la; a sua voz estava demasiado fraca. Tinha de chegar mais perto dela. Dois degraus de pedra subiam da estrada ao fim do terraço, através do muro, e se conseguisse transpô-los ela iria vê-lo. Com as forças que lhe restavam ele avançou, apoiado nos cotovelos e nos joelhos, mais dez jardas e agora, sabia-o bem, era o fim; não podia fazer mais. Alcançou a laje inferior e encostou-se ao degrau de cima. Queria chamar, mas não podia articular um som. Foi então que ela se virou e o viu.
Se ele parecia um fantasma, e parecia-o - a ponto de ela o tomar por um espectro - ela própria parecia, ou era já, o fantasma da jovem beldade de La Liberte, a linda Fransine Lerche. Vestia apenas uma simples camisa de noite, que enfiara de qualquer maneira, pois já não tinha corpo. Quando atirara ao chão o dominó de Nápoles tinha despido o seu corpo dessa fragante e delicada coroa de rosas e lírios de nudez que em tempos fora tudo para ela. O generoso seio e as ancas redondas haviam mirrado; dentro da veste branca nada mais existia que um pedaço de pau. Até a longa cabeleira pendia, sem vida, como os seus braços. A fresca e gentil face de boneca dissolvera-se numa ruína de lágrimas; a boneca estava desfeita; os olhos que foram duas estrelas, o botão de rosa dos seus lábios nada mais eram que buracos negros numa superfície branca. Mortalmente cansada, não podia sentar-se nem deitar-se. O desespero mantinha-a de pé, como o chumbo das figurinhas de madeira com que brincam as crianças, como o peso aos pés dos marinheiros que os sepulta, verticais, no fundo do mar.
Os dois se fitaram. Por fim o velho reuniu forças suficientes para murmurar:
- Ajude-me. Já não me posso mexer.
Ela ficou petrificada. A ele ocorreu que devia tranquilizar a rapariga, pois ela estava louca de terror. Disse:
- Deram-me um tiro, como vê. Mas não tem importância. Não sabia se ela o tinha ouvido. Mal sabia sequer se tinha chegado a falar.
Por fim a rapariga compreendeu. O amante havia dado um tiro neste velho. Numa fracção de segundo, como num lampejo imenso e branco, uma visão lhe foi mostrada: Anders, com o baraço em volta do pescoço. E instantaneamente uma sombra da sua antiga força a percorreu, tal um escombro de navio lançado à praia gelada pelo movimento das ondas. Fizesse Anders o que fizesse, os dois pertenciam um ao outro, eram um só. Que ele a tivesse ferido mortalmente, que ela por sua vez lhe tivesse fugido e só temesse no mundo voltar a vê-lo, nada tinha importância.
Ficou olhando o sangue, que escorria do corpo do velho e coloria os degraus de sua casa. Como por magia, ao vê-lo, o coração ergueu-se no seu peito e sossegou. Viu, à luz vermelha deste sangue, que da infelicidade surgida entre ela e Anders a culpa fora sempre sua. Tal convicção liberou toda a sua natureza; que ele fosse culpado terria sido para ela insuportável. O sangue vermelho, o grande alívio do seu coração, e a luz matinal que se anunciava já, tornavam-se para ela numa só e mesma coisa. A treva iria dissipar-se. Depois de ela o ter deixado, Anders provara que a amava. E isto só ela e o velho sabiam.
Qual bacante, a cabeleira escorrendo solta, ela começou a puxar, a esgaravatar à volta de uma das grandes pedras do muro, tentando soltá-la. Quando o conseguiu ficou por momentos a segurá-la, com todas as suas forças, em ambos os braços, contra o peito, como se ela fosse o filho único a que um velho feiticeiro houvesse transformado.
O conselheiro sentiu o sangue escorrer mais rápido; se tinha uma mensagem a dar-lhe, teria de o fazer agora. Com medo que os seus lábios não tivessem pronunciado um som quando quisera falar, ele arrastou a mão direita pelo chão até lhe tocar o pé nu. A rapariga, que tão sensível fora a um contacto, não se moveu; já não tinha corpo.
- Minha pobre filha, minha pomba - disse ele - ouça. Tudo é bom. Tudo, todos!
«Sagrados, Fransine - disse ele - fantoches sagrados.» Teve de esperar uns momentos, mas tinha mais qualquer coisa a dizer-lhe.
E disse, muito lentamente:
- A Lua passa, altaneira e forte. A nós dois jamais poderá vencer a morte.
Não pôde prosseguir; a cabeça tombou-lhe sobre a laje.
Se Fransine não o ouviu, compreendeu-o através do contacto da sua mão. Ele quisera dizer-lhe que o mundo era bom e belo, mas ela sabia que não. Só porque a ele convinha que o mundo fosse bonito, queria conjurá-lo para assim o transformar. Talvez se alongasse depois sobre as belezas da paisagem. Já não seria a primeira vez. Talvez lhe dissesse que era o dia do seu casamento, e que Céus e Terra lhe sorriam. Mas esse era o mundo onde queriam enforcar o seu Anders.
- Poeta! - gritou ela - Maldita poeta!
Ergueu a pedra, com ambas as mãos, acima da cabeça e arremessou-a contra ele.
O sangue jorrou em todas as direcções. O corpo, que até então possuíra um equilíbrio, e uma finalidade, e uma concepção do mundo, tombou, levando-as consigo, ao bel-prazer das leis da gravidade, jazendo no chão como caíra, feito uma trouxa de roupas velhas.
O conselheiro sentiu-se como arremessado, num tremendo movimento, de cabeça para um abismo sem fim. Caía; caía. Era atirado, em três ou quatro ressaltos, de uma catarata para outra. E entretanto, de todas as direcções, como num eco trazido pelas trevas que o engoliam, soprando e rolando por longas cavernas, a derradeira palavra da mulher soou, continuamente se repetindo.
Karen Blixen
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