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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEU AMOR PROIBIDO / Anne e Serge Golon
SEU AMOR PROIBIDO / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Apesar do interesse do governo de Luís XIV em intensificar a colonização da América francesa, em meados do século XVII o povoamento dos territórios do Canadá e da Acádia esbarra numa série de interesses conflitantes.-Em primeiro lugar, a monarquia francesa cometeu o erro de marginalizar os protestantes, com isso afastando a valiosa colaboração de indivíduos e capitais que poderiam tornar mais sólida a ação colonizadora.

Depois, a política indigenista iniciada desde Samuel de Champlain em 1608 desagradou aos próprios índios, e acirrou as hostilidades entre os grandes comerciantes de peles, colonos e missionários jesuítas.

A partir da segunda metade do século XVII e por toda a primeira metade do século seguinte, as colónias inglesas da América não cessaram de crescer. Apesar dos constantes conflitos, a intensa pregação religiosa puritana, com seu ideário calvinista, cimenta as bases do futuro e resiste à hostilidade de seus inimigos.

Nesse ambiente de lutas e insegurança, Angélica segue seu destino, rodeada de perigos e surpresas...

"Não posso deixá-la", sussurra o pirata Barba de Ouro. "É preciso que você seja minha. Agora!"

No luxuoso camarote do temível pirata Barba de Ouro, Angélica debatia-se num insuportável dilema. Fora seu marido, o Conde Joffrey de Peyrac, quem lhe ensinara todas as artes do amor. Como poderia ao menos pensar em traí-lo?

Sonhadora, em meio ao balanço acalentador do navio, ela deixou o pensamento perder-se sob o luar. Diante de si viu desfilar, numa seleção bastante particular, as antigas silhuetas dos homens que conhecera, todos tão diversos. Agora, o acaso lhe trazia um amante do passado, o único homem que a atingira no mais profundo de si mesma.

Acaso ou gesto calculado? Desde que chegara à América, ardilosos inimigos ocultos conspiravam para separá-la do marido, levá-los à ruína. Primeiro em Katarunk, depois em Wapassu. Agora, oferecendo-lhe esse homem irresistível.

No fundo de seu ser, Angélica teria de buscar forças para resistir a essa tentação proibida...

Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac, tinham sobrevivido ao longo inverno de Wapassu, no Alto Kennebec (interior do atual Estado americano do Maine). Com a chegada da primavera, decidiram partir com uma pequena comitiva rumo ao forte de Gouldsboro, na costa leste da N ova Escócia, no Canadá. Lá o conde pretendia investigar o paradeiro de Kurf Ritz, seu recrutador alemão de mercenários, e as causas de seu misterioso sequestro por piratas a mando do temível Barba de Ouro. Acima de suas preocupações imediatas, porém, pairava uma ameaça velada, maior e mais terrível que a presença de um pirata inimigo. Uma.ameaça semelhante à que originara sua perseguição no Velho"Mundo, baseada em preconceitos religiosos. No Novo Mundo ela se encarnava na sinistra figura do Padre Sebastião d'Orgeval, o jesuíta apelidado pelos índios de "Casaco Negro".

 

 

 

 

O POSTO HOLANDÊS

CAPÍTULO I

A visita do Padre Filipe de Guérande ao acampamento dos Peyrac

O som do tambor índio elevou-se na floresta. Prolongou-se, abafado, ritmado, através do intenso calor que: pesava sobre as árvores e o rio.

Na margem, Joffrey de Peyrac e Angélica imobilizaram-se e escutaram por um instante. Eram batidas surdas mas discretas. Escapavam da rariiagem em notas cheias e suaves, bêm percutidas, como as batidas de um coração vigoroso. E assim, a natureza imóvel, estagnada sob o mormaço de um dia torcido,, lembrava a presença dos homens que trazia em seu seio.

Instintivamente, Angélica agarrou as mãos do marido, ao seu lado.

— O tambor - perguntou -, o que está dizendo?

— Não sei. Esperemos.

Ainda não havia anoitecido. O dia apenas terminava. O rio era uma imensa placa de prata embaciada. Angélica e seu marido, o Conde de Peyrac, permaneciam em pé sob os amieiros à beira da água.

Pouco mais distante, à esquerda, botes de casca de bétula colmatados de resina secavam sobre a areia de uma pequena enseada, que se arredondava, cercada a meio por um promontório alongado, enquanto ao fundo da angra as falésias, altas e negras, coroadas de olmos e de carvalhos, haviam conservado um frescor benfazejo.

Ah havia sido montado o acampamento. Ouvia-se o estalar de galhos partidos para a edificação das cabanas ou para as fogueiras, e já uma cortina azul de fumaça elevava-se e estendia-se indolentemente por sobre a água calma.

Angélica sacudiu a cabeça com um movimento vivo e rápido para afastar uma nuvem de mosquitos que subitamente se agitaram, zumbindo à sua volta. Com isso, procurava também dissipar uma vaga apreensão que acabava de tomá-la com as vibrações do tambor da floresta.

— É estranho - disse quase sem refletir. - Havia poucos-homens nas aldeias abenakis que'encontramos ao descer o Kennebec. Somente mulheres, crianças e velhos.

— De fato, todos os selvagens partiram rumo ao sul para o comércio de peles.

— Não é somente por isso. Nas caravanas e nos botes pelos quais passamos, e que descem como nós para o sul, há sobretudo mulheres. São elas, aparentemente, que estão indo negociar. Mas onde estão os homens?...

Peyrac lançou-lhe um olhar enigmático. Aquela pergunta, ele também fizera a si mesmo, e da resposta, suspeitava como Angélica. Os homens das tribos índias não teriam ido reunir-se em um local secreto para tramar a guerra?... Mas qual guerra? E contra quem?

Ele hesitou em proferir essa suspeita em voz alta e preferiu calar-se.

A tarde estava calma, sem inquietações. A viagem prosseguia há vários dias sem transtornos. Todos sentiam ao voltar para a costa marítima e para as regiões mais habitadas um deleite e uma impaciência juvenis.

-        Veja! - disse Peyrac, com um súbito movimento. - Eis o que

sem dúvida provocou os tambores. Uma visita!

Três botes dobraram o promontório diante deles, avançaram e entraram na enseada.

Adivinhava-se, pelo modo como haviam surgido, que acabavam de subir o curso do Kennebec, ao invés de se deixarem deslizar água abaixo como a maior parte das embarcações nessa época do ano.

Peyrac, acompanhado de Angélica, avançou alguns passos na beira da praia, no local onde as pequenas ondas marcadas pela espuma deixavam um rastro acastanhado no fino cascalho. Semicerrando os olhos, observou os recém-chegados.

Os índios que estavam nos três botes manifestaram a intenção de deter-se. Ergueram as pangaias molhadas, depois deslizaram pela água a fim de empurrar os esquifes para a margem.

_ Em todo caso, ali há homens, e não mulheres - notou Peyrac.

De um dos botes, uma escura-silhueta vestida com uma sotaina negra acabava de erguer-se, para- descer por"sua vez na água, a fim de alcançar a praia sob os salgueiros.

_ O jesuíta - disse Angélica a meia Voz.

E foi tomada de tal pânico que por pouco não fugiu para esconder-se no mais profundo da floresta.

Com os dedos em seu punho, o conde deteve-lhe o movimento impulsivo.

— Mas o que você teme de um jesuíta, meu amor?

— Você nãojgnora a opinião que o Padre d'Orgeval tem a nosso respeito. Toma-nos por perigosos usurpadores, se não por sequazes do Diabo.

— Enquanto apreséntar-se como-visitante, devemos permanecer calmos.

Nesse meio tempo, do outro lado da água, o Toga Negra pusera-se a seguir pela margem com passo rápido. Em meio às ondulações esmeralda dos reflexos das árvores, sua sombra longa e adelgaçada movia-se com uma presteza que possuía algo de inusitado nessa região sufocada, e já como que mergulhando nas brumas de uma noite plena de langor. Era a silhueta de um homem jovem e cheio de vitalidade, indo direto ao seu objetivo, sem preocupar-se com os obstáculos, recusando-se mesmo a vê-los.

Desapareceu por um instante, ao abeirar-se do acampamento, e uma espécie de pesado silêncio estabeleceu-se ao redor das fogueiras; ouviu-se em seguida o som das botas do soldado espanhol que se aproximava, e, bem atrás dele, a alta forma negra ressurgiu, próxima, entre as ramagens dfapejadas dos salgueiros.

-        Não e ele - disse Peyrac entre dentes. - Não é o Padre d'Orgeval.

Sentia-se quase desapontado.  

O recem-chegado era alto e magro, e parecia bastante jovem, considerando-se a ordem a que pertencia, que requer um noviciado bem longo, não poderia, certamente, ter menos de trinta anos. No entanto, havia nele como que a graça natural dos vinte anos. Seus cabelos e sua barba eram louros e os olhos, de um azul quase incolor. O rosto seria pálido, não fossem as placas vermelhas que um sol cruel para com as pessoas claras como ele infligira-lhe na fronte, nas faces e no nariz.

Imobilizou-se ao avistar o conde e sua mulher, e, a alguns passos deles, fixou-os por um breve instante, uma das mãos magras e finas pousada no peito, sobre o crucifixo que lhe pendia do pescoço por uma fita violeta, e a outra carregando um bordão encimado por uma cruz de prata.

Angélica achou-o de uma distinção surpreendente, semelhante aos cavaleiros ou arcanjos guerreiros que se vêem na França, nos vitrais das igrejas.

— Sou o Padre Filipe de Guérande - declarou ele, com voz cortês. - Coadjutor do Padre Sebastião d'Orgeval. Ao saber que descia o Kennebec, Sr. de Peyrac, meu superior encarregou-me de vir apresentar-lhe seus cumprimentos.

— Agradeça-lhe as boas intenções - respondeu Peyrac.

Ele afastou com um gesto o espanhol, que se mantinha quase em posição de sentido, subjugado diante do padre jesuíta.

-        Lamento não dispor senão da rústica hospitalidade de um acampamento para lhe oferecer, meu padre. Mas o senhor está habituado, penso eu, a esse tipo de desconforto. E se nos aproximássemos das fogueiras? A fumaça proteger-nos-á um pouco dos mosquitos. Foi um dos seus, creio eu, que disse que na América não é necessário o cilício, pois os mosquitos encarregam-se sobejamente do ofício.

O outro dignou-se sorrir.

-        O santo Padre Bréboeuf fez, com efeito, esse comentário - reconheceu.

Sentaram-se não longe dos grupos que se movimentavam na preparação da refeição e do pernoite.

Apartados, no entanto.

Com uma pressão imperceptível, Joffrey reteve Angélica, que desejava afastar-se. Queria que ela assistisse à entrevista. Ela tomou lugar, então, junto dele, sobre um grande rochedo coberto de musgo. Já havia constatado, com a intuição imediata das mulheres, que o Padre de Guérande afetava não notá-la.

-        Apresento-lhe minha esposa, a Condessa de Peyrac de Morens d'Trristru - disse Joffrey, conservando a mesma serena urbanidade.

O jovem jesuíta inclinou a cabeça na direção de Angélica num gesto rígido, quase mecânico; depois voltou-se, e seu olhar vagou pela superfície espelhada da água, que escurecia pouco a pouco, enquanto se acendiam, em suas profundezas, os-reflexos-púrpura das fogueiras sobre a margem.

Defronte deles, os índios que haviam trazido o padre instalaram-se para acampar.        

Peyrac propôs convidá-los a partilhar com íles o cabrito e as peruas que já assavam nos espetos, bem como os salmões pescados havia pouco, que cozinhavam, cobertos de folhas, sob as cinzas.

O Padre de Guérande sacudiu a cabeça numa negativa e disse tratar-se de kanibas, indígenas bastante esquivos e que não gostavam de misturar-se aos estrangeiros.

Angélica pensou subitamente na inglesinha Rose Ann, a quem traziam consigo. Procurçíu-a eom.os olhos e não a viu. Soube, mais tarde, que Cantor, desde a chegada do; jesuíta, subtraíra-a rapidamente à sua vista. Enquanto dedilhava o violão para distrair a menina, ele aguardava com paciência, am algum ponto cerrado do bosque, que as conversas terminassem.

— Com que então - disse o Padre de Guérande -, o senhor passou o inverno no coração dos Apalaches? Sofreu com o escorbuto? Com a fome? Perdeu membros de sua colónia?...

— Não, nenhum sequer, Deus seja louvado!

O religioso espantou-se e deu um sorrisinho de surpresa.

-        Estamos felizes por ouvi-lo louvar a Deus, Sr. de Peyrac. Corria o boato de que o senhor e os de seu grupo não se inclinavam para a piedade. Que recrutava sua gente indistintamente entre heréticos, indiferentes, libertinos e até que havia entre eles dessas cabeças perdidas pelo orgulho, que não se privam, por qualquer motivo, de blasfemar e maldizer a Deus, bendito seja seu Santo Nome!...

Com uma das mãos ele recusou o copo de água fresca e a escudela de assado que Yann Le Couénnec, o jovem bretão que servia de escudeiro ao Conde de Peyrac, lhe apresentou.. "É pena", pensou Angélica irreverentemente, "não se poderá""sègurar esses jesuítas pela goela... No passado, o Padre Masserat mostrou-se mais sibarita."

-        Coma, padre - insistiu Peyrac.

O jesuíta baJançbu a cabeça.

— Fizemos uma colação ao meio-dia. Isso basta. Sou como os índios. Como pouco... Mas o senhor não respondeu à minha pergunta... Será deliberadamente que recruta seus homens entre os espíritos rebeldes à disciplina da Igreja?

— Na verdade, padre, o,que peço, antes de tudo, àqueles que tomo a meu serviço, é que saibam manejar as armas, o machado e o martelo, que sejam capazes de suportar o frio, a fome, a fadiga, os combates, em suma, a adversidade, sem um murmúrio, de me serem fiéis e submissos enquanto durar o contrato, e de executar da melhor forma os trabalhos que lhes imponho. Que sejam, porém, piedosos e devotos além de tudo, não me é especialmente inconveniente.

— Não plantou, no entanto, a- Cruz, em nenhuma das colónias que fundou.

Peyrac não respondeu.

O reflexo das reverberações da água, subitamente incendiada pelo sol poente, parecia acender em seus olhos uma luzinha zombeteira que Angélica bem conhecia, mas ele permaneceu paciente e como que particularmente amigável.

O padre insistiu.

— Quer dizer que entre os seus há indivíduos a quem esse símbolo, esse símbolo admirável de amor, de sacrifício, bendito seja, a quem esse símbolo, dizia eu, poderia chocar e até irritar?

— Talvez.

— E se entre sua gente existissem seres, como, ao que me parece, esse jovem de semblante aberto e franco, que há pouco me apresentou a comida, que houvessem, através da recordação de uma infância piedosa, guardado afeição pelo símbolo da Redenção, privá-los-ia deliberadamente do socorro de sua Santa Religião?...

— Sempre nos vemos mais ou menos constrangidos a privar-nos de algo, quando aceitamos viver em companhia diversa, em condições difíceis, e por vezes num espaço muito restrito. Não cabe a mim, padre, assinalar-lhe o quanto a natureza humana é imperfeita, e que é necessário haver concessões para um bom entendimento.

— Renunciar a honrar a Deus e implorar sua misericórdia parece-me a última das concessões e, numa palavra, uma concessão culpável. Não revelaria ela a pouca importância que o senhor atribui ao socorro espiritual, Sr. de Peyrac?... Sem a corrente divina que o vivifique, o trabalho não conta. Sem a graça santificante, as obras nada são. Significam um envoltório' vazio, o vento, o nada. E essa graça não pode ser concedida senão àqueles que reconhecem a Deus como mestre de todas as suas ações, que obedecem às suas leis e oferecem-lhe, pela prece e a cadavdià.de suSs vidas, o fruto de seu trabalho.     

-        No entanto, o apóstolo Tiago escreveu: "Somente as obras têm valor..."

Peyrac endireitou um pouco os ombros, que sé haviam encurvado como se sob o peso da reflexão. Pegou numa abertura do colete de couro um cigarro de folhas de tabaco enroladas e acendeu-o no tição que quase de imediato lhe apresentou o jovem bretão, o qual, em seguida, afastou-se discretamente.

Diante da citação do conde; Filipe de Guérande dera o sorriso frio e sutil do adversária que presta homenagem a um golpe bem aplicado. Mas nem por isso revelava sua adesão.     :

Angélica, silênciosar mordiscava nervosamente a unha do dedo mínimo. Por quem aquele jesuíta se tomava? Ousar -falar naquele tom a Joffrey de Peyrac! Mas, ao mesmo tempo, de sua infância no convento voltava como uma lufada, o sentimento de penosa dependência que toda pessoa laica experimentava diante dos membros do clero, e era evidente e aceito que- osjesuítas pertenciam a uma raça que nada temia, nem ao rei nem ao pap*ã. Haviam surgido para ensinar e fustigar os grandes deste mundo. Pensativa, ela contemplava com seus grandes olhos o rosto emaciado e reencontrava, através daquela presença insólita junto deles, no seio da floresta americana, antigas ansiedades, familiares ao Velho Mundo: o temor ao sacerdote, portador de místicos poderes. Depois seu olhar voltou para o rosto de seu marido, e ela respirou, aliviada. Pois ele escapava - sempre escaparia - a esse tipo de influência. Era filho da Aquitânía e herdeiro de não se sabe que concepção liberal da existência, proveniente de tempos muito antigos e de civilizações pagãs. Não pertencia à mesma essência que ela ou o jesuíta, ambos arrastados por incorruptíveis crenças. Ele escapava a essa atração. E por isso eh õ amava intensamente. Ouviu-o responder no mesmo tom:

-        Junto a mim, reza quem assim o deseja, padre. E, quanto aos outros, não crê que o trabalho bem' executado santifica?

O jesuíta pareceu refletir alguns segundos, depois sacudiu lentamente a cabeça.

— Não, senhor, não. E nisso reconhecemos os desvios grosseiros e perigosos das filosofias que se desejam independentes da Igreja. O senhor é originário da Aquitânia - continuou em outro tom. - As pessoas de sua província mostram-se bastante numerosas e diligentes no Canadá e na Acádiá. Em Pentagouet o Barão de Saint-Castine eliminou os ingleses do rio Penobscot inteiro. Fez batizar o chefe dos etchevinins. Os índios da região consideram-no um dos seus.

— Castine é, com efeito, meu vizinho em Gouldsboro. Conheço-o e o aprecio - disse Peyrac.

— Quais serão os outros gascões de nossa colónia? - retomou o Padre de Guérande com uma bonomia intencional. - Bem, há Vau-venart no rio Saint-Jean...

— Um pirata de minha estirpe!

— Que seja. É bastante devotado à causa francesa e o melhor amigo do Sr. de Ville-d'Avray, governador da Acádia. No norte temos o Sr. de Morsac, em Cataracoui. E não poderia esquecer nosso bem-amado governador, o Sr. de Frontenac.

Peyrac fumava calmamente, parecendo aprovar com a cabeça. Angélica nada conseguia ler em sua fisionomia. Por entre as folhas envernizadas dos enormes carvalhos que pendiam sobre eles, passava a claridade da tarde, filtrada pelas massas de vegetação opulenta, ganhando um reflexo esverdeado que empalidecia os semblantes e acusava as sombras. A cor dourada estava agora do lado do rio. A enseada tornava-se cor de estanho. Devido a um jogo de espelhos entre as águas e o céu, a luminosidade era maior do que antes. Estavam próximas as tardes de junho, que avançam sobre a noite e partilham seu reinado. Nessa época do ano, os homens e os animais consagram poucas horas ao sono.

Haviam jogado nas fogueiras gordos cogumelos, negros, secos e redondos como balas, os quais, ao queimar, espalhavam um odor acre e selvagem com poder de afastar os mosquitos. A ele se misturava o perfume do tabaco que escapava de todos os cachimbos. A enseada estava enevoada e perfumada. Um abrigo escondido à beira do Kennebec.

Angélica passou a mão na fronte e por instantes seus dedos mergulharam na cabeleira opulenta, dourada, destacando as fontes úmidas em busca de um pouco de frescor e também, inconscientemente, para aliviá-la de uma preocupação. Suas pupilas iam de um homem para o outro com apaixonado interesse. Seus lábios estavam entreabertos, devido à atenção que prestava à conversa. Mas o que buscava surpreender era o que se escondia pçír trás-das frases trocadas. E subitamente o Padre de Guérande atacou:'

— Se não é hostil à Igreja, Sr. de Peyrac, poderia explicar-me por qual casualidade todos os membros recrutados pelo senhor em Gouldsboro são huguenotes?

— De muito bom grado, padre. A casualidade a que alude foi aquela que me levou um dia a baixar âncora nos arredores de La Rochelle, quando esse punhado de huguenotes, fadados às prisões do rei, fugiam dos dragões -encarregados de prendê-los. Embarquei-os para subtraí-los a um destino que me pareceu funesto quando vi esses mesmos mosqueteiros desembainharem os sabres. E sem saber o que fazer deles, após tê-los embarcado, lfevei-os a Gouldsboro, para que cultivassem minhas terras em pagamento da passagem.

— Por que tê-los subtraído à justiça do rei da França?

— Não sei - disse Peyrac com um gesto desenvolto e seu habitual sorriso cáustico. - Talvez por estar.escrito na Bíblia: "Aquele que foi condenado, aquele que" conduzem para a morte, salve-o!"

— Cita a Bíblia?

— Ela faz parte das Sagradas Escrituras.

— Perigosamente marcada de judaísmo, ao que me parece.

— E, de fato, bastante evidente que a Bíblia está marcada de judaísmo - disse Peyrac, dando uma gargalhada.

Para surpresa de Angélica, o Padre de Guérande também se pôs a rir, aparentando, agora, tranquilidade.

— Sim, evidentemente - repetiu, verificando de bom grado a tolice do aforisma que enunciara -, mas veja, senhor, nos dias de hoje esse Livro Santo se vê envolvido por tantos equívocos inquietantes que é nosso dever suspeitar dos que a elcse-referem com imprudência. Sr. de Peyrac, de quem obteve o foral que lhe dá direitos sobre as terras de Gouldsboro? Do rei da França?

— Não, padre.

-        De quem, então? Dos ingleses da baía de Massachusetts que se pretendem, indevidamente, proprietários daquelas paragens?

Peyrac esquivou-se com habilidade da armadilha.

— Fiz aliança com os abenakis e os moicanos.

— Esses índios todos são súditos do rei da França, a maior parte batizados, e não deveriam, de modo algum, fazer tais contratos sem comunicá-los ao Sr. de Frontenac.

— Vá, então, dizer-lhes...

A ironia começava a apontar. O conde envolvia-se na fumaça do cigarro, de um modo que lhe traía a impaciência.

-. Quanto aos que estão comigo em Gouldsboro, não são os primeiros huguenotes a pôr os pés nesse local. No passado, o Sr. de Monts para lá foi enviado pelo rei Henrique IV...

-        Deixemos o passado de lado. No presente, ei-lo sem foral, sem confessores, sem doutrina, sem uma nação que o legitime, dirigindo sua escolha para estas terras, e já possuindo, sozinho mais postos, feitorias e populações que a França inteira, que tem poder sobre elas há muito tempo. Sozinho, e tendo obtido tudo isso de si mesmo.

Estará, isso, correto?

Peyrac fez um gesto que podia passar por uma aquiescência. .

— De si mesmo - repetiu o jesuíta, cujos olhos de ágata brilharam subitamente. - Orgulho! Orgulho! Eis a falta inexpiável de Lúcifer. Pois não é verdade que ele desejava assemelhar-se a Deus? Queria obter sua grandeza de si mesmo e com a própria inteligência. É essa a sua doutrina?

— Eu teria medo de associar minha doutrina a tão temível exemplo.

— Está se esquivando, senhor. No entanto, qual foi o destino daquele que quis atingir o Conhecimento sozinho e para sua única glória? Como o aprendiz de feiticeiro, ele perdeu o controle de sua própria ciência e o mundo foi então destruído.

— E Lúcifer e seus anjos maus precipitaram-se numa chuva de estrelas - murmurou Peyrac. - E agora estão misturados com a terra e seus segredos. Pequeninos génios careteiros, que se encontram no fundo das minas, guardiães do ouro e dos metais preciosos. Sabe, padre, o senhor que sem nenhuma dúvida estudou os segredos da cabala, qual o nome, na linguagem hermética das legiões, de demónios formados por esses pequenos gnomos, génios da terra?

O eclesiástico endireitou-se e fixou-o com um olhar faiscante onde havia desafio, mas também uma espécie, de reconhecimento de iniciado.

— Estou acompanhando-o.- disse em tom lento e sonhador. - Esqueceu-se de que certos qualificativos, assimilados à linguagem comum, designavam outrora alguns dos'batalhões do exército infernal. Assim, os génios da água, os ondínos, formavam a legião dos Voluptuosos. Os do ar, os silfos, e os duendes, a dos Covardes. Os espíritos do fogo, simbolizados pela salamandra,, a coorte, dos Violentos. E os da terra, os gnomos, tinham por nome...

— Os Revoltados - disse Peyrac com um sorriso.

-        Os verdadeiros filhos do Maldito - murmurou o jesuíta.

Os olhos de Angélica caminhavam com terror de um a outro dos interlocutores-do estranho diálogo.

Impulsivamente .ela. pousou a mão na do marido para adverti-lo a que se mostrasse prudente.'

Adverti-lo!-Protegê-lo! Retê-lo... No fundo das florestas da América, rondavam subitamente as mesmas ameaças de outrora, no palácio da Inquisição. E Joffrey de Peyrac sorria o mesmo sorriso sardónico .sublinhado pelas cicatrizes do rosto marcado.

O jesuíta relanceou o olhar para a jovem.

Talvez dissesse, no dia seguinte, de volta à missão índia: "Sim, eu os vi! São exatamente corno nos- foram descritos. Ele, espírito perigoso, sutil; ela, bela e carnal como Eva, com gestos de uma liberdade estranha e inigualável..."

Talvez dissesse: "Sim, eu os vi em pé, na margem, refletidos pelas águas azuis do Kennebec, em pé por entre as árvores, ele, trigueiro, duro e sardónico, ela, deslumbrante, apoiados um no outro, o homem e a mulher ligados por um pacto... Oh! que pacto será esse?", perguntaria elg, estremecendo, ao Padre d'Orgeval...

E novamente a febre dos pântanos, que tão amiúde atacava o missionário, fá-lo-ia tremer miseravelmente... "Sim, eu os vi, e me demorei junto deles, e cumpri a missão que o senhor me deu, de sondar o coração desse homem... Mas agora estou exausto."

-        Veio para cá em busca de ouro? - perguntou o jesuíta com voz contida. - E o encontrou!... Veio submeter essas regiões puras e primitivas à idolatria do ouro...

— Não me haviam ainda tratado de idólatra! - disse Peyrac com uma gargalhada alegre. - Esquece-se, padre, de que há cento e cinquenta anos o monge Tritheim ensinava em Praga que o ouro representa a alma do primeiro homem?...

— Mas ele definiu também que o ouro continha em substância o vício, o Mal - replicou vivamente o jesuíta.

— No entanto, a riqueza traz poder e pode servir ao Bem. Sua ordem compreendeu-o; desde os primeiros tempos de sua fundação, ao que me parece, pois é a mais rica do mundo.

Como já o fizera várias vezes, o Padre de Guérande mudou de assunto:

— Se o senhor é francês, por que não se coloca como inimigo dos ingleses e dos iroqueses que desejam a perda da Nova França? - perguntou.

— As brigas que se opõem são antigas, e tomar partido me parecia demasiado penoso para que a isso me submetesse. Tentarei, contudo, viver em bom entendimento com todos, e quem sabe talvez consiga impor a paz...

— Pode fazer-nos muito mal - disse o jovem jesuíta com voz tensa, na qual Angélica sentia vibrar uma verdadeira aflição. - Oh!, por que não plantou a Cruz? - exclamou.

— E um símbolo de contradição.

— O ouro foi a causa de muitos crimes.

— A Cruz também - disse Peyrac, olhando-o fixamente.

O religioso retesou-se. Estava tão pálido que as queimaduras de sol pareciam sangrar como feridas em. seu rosto de cera. No pescoço magro, que se esticava para fora do peitilho branco, único adorno da sombria toga negra, uma veia latejava violentamente.

-        Enfim ouvi sua profissão de fé, senhor - disse com voz surda. - Em vão protestará suas intenções amigáveis para conosco. Todas as palavras saídas de sua boca estavam manchadas por esse detestável espírito de revolta, característico dos heréticos, que costuma frequentar: rejeição dos símbolos exteriores de piedade, ceticismo em relação às verdades reveladas, indiferença ao triunfo da Verdade, e pouco lhe importa que o reflexo exato do Verbo seja apagado deste mundo com a Igreja Católica e que as trevas caiam sobre as almas!

O conde ergueu-se e pousou a mão no ombro do jesuíta. Seu gesto estava cheio de indulgência e de uma espécie de compaixão.

-        Que seja! - disse. - Agora escute-me, padre, e cuide de repetir minhas palavras exatas àquele que ,o enviou. Se veio pedir-me para não ser hostil com relação a vocês, para ajudá-los em caso de fome e de pobreza, eu o farei, como já o fiz desde qieme estabeleci nestas paragens. Mas se foi para pedir-me que me vá embora daqui com meus huguenotes e meus piratas, éu lhe. responderei: Não! E se veio pedir-me para ajudá-los a massacrar os ingleses e combater os iroqueses por puro princípio, sem provocação; eu lhe responderei: Não! Não pertenço a seu grupo, não pertenço a ninguém. Não tenho tempo a perder e não considero útil transpor para o Novo Mundo as querelas místicas do Velho Mundo.        

-        É sua última palavra?

Seus olhares-se defrontaram.

— Sem dúvida, não.será a última - murmurou Peyrac com um sorriso.

— Para nós, sim!

O jesuíta afastou-se em direção à sombra das árvores.

— E uma declaração de guerra? - perguntou Angélica erguendo os olhos para o marido.

— Tem toda a aparência de ser.

Ele sorria e pousou a mão na cabeleira de Angélica, acariciando-a suavemente.

-        Mas estamos apenas no preâmbulo. Impõe-se uma entrevista com o Padre d'Orgeval, e eu tentarei obtê-la. Depois... Bem! Cada dia que ganharmos será uma vitória para nós. O Gouldsboro deve ter retornado da Europa, e da Nova Inglaterra devem chegar pequenos navios costeiros bem armados, e com mais mercenários. Se for preciso, irei até Quebec com minha frota. Mas juro que chegarei ao próximo inverno com paz e força. Afinal, por mais que sejam hostis e que a mim se oponham, não passam de quatro jesuítas para um território mais vasto que os reinos da França e da Espanha reunidos.

Angélica baixou a cabeça. Apesar do otimismo e da lógica tranquilizadora das palavras do Conde de Peyiac, parecia-lhe que a partida iria ser jogada num local onde números, armas e homens contavam pouco em relação às forças misteriosas e sem nome com que se defrontavam, e que, quase a contragosto, representavam.

E ela adivinhava que ele sentia o mesmo.

— Oh! meu Deus, por que lhe disse aquelas tolices? - gemeu Angélica.

— Que tolices, meu amor?

— As alusões aos demoniozinhos das minas ou às teorias de não sei que monge de Praga do passado...

— Tentava falar-lhe em sua própria linguagem. É um cérebro superior, admiravelmente dotado para o estudo. Deve ser dez vezes bacharel e doutor, empanturrado com toda a ciência teológica e oculta de que nossos tempos podem orgulhar-se. Senhor! Que veio ele fazer na América?... Os selvagens darão cabo dele.

Peyrac, que parecia secretamente feliz, e, em todo caso, nada comovido, ergueu os olhos para a abóbada sombreada das ramagens. Um pássaro invisível ali se agitava. A noite chegara, azul-escura e suave, atravessada pelas fogueiras do acampamento. Uma voz chamou por trás das folhagens, convidando a companhia para a refeição.

Em seguida, com o novo silêncio, um pássaro piou, tão próximo que Angélica estremeceu.

— Uma coruja - disse Joffrey de Peyrac -, o pássaro das feiticeiras.

— Oh! meu querido, por favor - exclamou ela, lançando os braços em torno dele e escondendo o rosto em seu colete de couro -, você me assusta!...

Ele riu e acariciou-lhe com doçura e paixão a cabeleira sedosa. Quisera falar, comentar as palavras que haviam sido trocadas, definir o sentido da conversa que havia tido com o jesuíta. Mas subitamente se calara, sabendo que Angélica e ele próprio haviam pressentido, adivinhado, compreendido as mesmas coisas a cada instante do diálogo. Ambos sabiam que a visita representava exatamente uma declaração de guerra. Talvez um meio, também, de se encontrarem os pretextos para ela.

Com a ciência extraordinária dos membros de sua ordem, o jovem jesuíta conseguira que Peyrac dissesse bem mais do que desejava. Devia-se reconhecer que sabiam manejar o ser humano. Possuíam também outras armas, especiais, das quais o conde não subestimava inteiramente o poder.

Insensivelmente, o bom humor de Joffrey de Peyrac anuviou-se, e de um modo bastante inexplicável, era sobretudo por ela, Angélica, sua mulher, que ele temia.

Apertou-a mais estreitamente contra si. Experimentava a cada dia, a cada noite, aquela sede de tê-la junto de si, de envolvê-la em seus braços para assegurar-se de que ela ali estava^i de que nada poderia atingi-la no refúgio de seus braços..."

Ele quisera falar, mas temia deixa-la apreensiva, e preferiu calar-se.

Apenas disse:   

-        A pequena Honorina nos faz farta, não é .mesmo?

Ela concordou, movendo a cabeça inclinada, sentindo-se mais próxima dele com a ternura que a observação lhe despertara. Um pouco mais tarde, perguntou:

— Ela está em segurança, eirTWapassú?

— Sim, meu-amor, ela está em segurança - afirmou ele.

CAPÍTULO II

Angélica tenta aplacar a hostilidade do jesuíta

O Padre de Guérande acampou com os índios e recusou o convite para partilhar a refeição dos brancos.

Partiu com a aurora, sem se despedir, o que, para um homem de sua educação, constituía a forma soberana do desprezo.

Angélica foi a única a vê-lo colocar a bagagem sobre a areia. Alguns índios andavam preguiçosamente em volta dos botes. A bruma matinal dominava até a altura das árvores, leve o suficiente para que se distinguissem as silhuetas e seus reflexos. O orvalho abundante começava a cintilar sob uma claridade translúcida, e um sol invisível esforçava-se por triunfar sobre a neblina da noite.

Angélica dormira pouco. A tenda que os abrigava não carecia de conforto, e se o tapete de galhos de abeto recoberto de peles em que se deitava não era dos mais macios, ela conhecera leitos mais rústicos. Mas a noite provocara-lhe uma sensação de mal-estar.

Agora, fruindo o frescor da alva, ela escovava os longos cabelos diante de um pequeno espelho apoiado a um ramo, dizendo a si mesma que seria necessário encontrar algum assunto para adoçar aquele jesuíta e distender a fibra daquele coração tenso como um arco de guerra.

Avistou-o, então, preparando-se para partir. E após um instante de hesitação, pousou a escova e o pente e sacudiu a cabeleira sobre os ombros.

Na véspera, durante a conversa, tivera o tempo todo uma pergunta na ponta dos lábios, e não encontrara oportunidade de fazê-la durante aquela troca de frases graves, sibilinas e mais ou menos perigosas.

Ora, aquela pergunta persistia dentro dela.

Angélica decidiu-se.  

Segurando a saia para não esbarrar nas fogueiras apagadas e nas panelas de gordura do acampamento; abriu passagem através da habitual desarrumação índia, seguiu pela trilha ao longo da enseada do rio e, desalojando dois cães que roíam as vfsceras de um gamo, aproximou-se do religioso, que, com sua pobre equipagem, preparava-se para retomar viagem.

Já há alguns instantes, ele a vira emergir da bruma evanescente e dourada da manhã. O mesmo reflexo brrlhante que a aurora punha nas folhagens brincava na clara cabeleira solta.

De compleição delicada, o Padre de Guérande, ao despertar, mostrava-se amiúde atênitõ e com a mente vazia. Pouco a pouco voltava-lhe a lembrança de Deus e ele se punha a rezar. Mas precisava de certo tempo para reencontrar o fio de seus pensamentos. Ao ver Angélica aproximar-sêf não a reconheceu de imediato, e perguntou-se com espanto: "Quem é? Quem é essa aparição?"

Ao recordar-s.e em seguida de que era ela, a Condessa de Peyrac, sentiu como que uma súbita dor no lado, e ela adivinhou claramente, apesar de seus traços impassíyeis, seu recuo de medo e de repulsa, um enrijamento de todo o seu ser.

Ela sorriu a fim de desanuviar aquele jovem semblante de pedra.

— Já nos deixa, padre?

— Os deveres de meu cargo a isso me obrigam, senhora.

— Quisera fazer-lhe uma pergunta que me preocupa.

— Estou ouvindo, senhora.

-*- Poderia indicar-me a espécie de plantas com que o Padre d'Or-geval fabrica suas velas verdes?

O jesuíta esperava visivelmente por tudo, menos por aquilo. Com a surpresa, desconcertou-se. De início, procurou nas palavras de Angélica um sentido obscuro. Mas depois, compreendendo que se tratava de questões práticas, desconcertou-se. A ideia de que ela estivesse troçando dele fez-lhe subir o sangue ao rosto. Em seguida recuperou o controle e fez um desesperado esforço de memória para lembrar-se de detalhes que lhe permitiriam responder com precisão.

— As velas verdes? - murmurou.

— Dizem que são muito belas - prosseguiu Angélica - e espalham uma suave luz branca. Creio que são feitas com bagas recolhidas pelos índios no final do verão, mas "se o senhor pudesse ao menos dizer-me o nome dessa planta, o senhor que conhece a língua dos selvagens, eu me sentiria grata...

— Não, não saberia dizer-lhe... Não prestei atenção a essas velas...

"O pobre homem não tem o senso da realidade", disse ela consigo, "ele vive de sonho". Mas era-lhe mais simpático assim, do que entrincheirado em sua couraça de combatente místico. Ela entreviu um campo em que pudessem entender-se.

-        Não tem importância - afirmou. - Não se atrase, padre.

Ele inclinou levemente a cabeça.

Ela o viu subir no bote índio, com o desembaraço adquirido pelo hábito, sem trazer "areia ou pedregulho", conforme o Padre Bréboeuf recomendara a seus missionários. O corpo do Padre de Guérande dobrara-se aos imperativos da vida primitiva, mas seu espírito jamais aceitaria sua intolerável falta de ordem. "Os selvagens darão cabo dele", dissera Peyrac. A América daria cabo dele. Aquela longa carcaça, cuja magra espinha se adivinhava sob a toga usada, conheceria o martírio. Todos morreram como mártires.

O Padre de Guérande lançou um último olhar na direção de Angélica e o que leu em seus olhos fê-lo esboçar um esgar amargo e orgulhoso.

Com ironia, defendeu-se da piedade inexplicável que sentiu dela para com ele.

-       Se a pergunta que me fez lhe interessa a esse ponto, senhora, por que não pedir, a senhora mesma, a resposta ao Padre d'Orgeval?... indo vê-lo em Noridgewook...

CAPÍTULO III

Noridgewook, a missão jesuíta

Três canoas, aparelhadas com, velas enfunadas pelo vento do rio, desciam agora o Kennebec. Na última parada, as bagagens haviam sido transferidas dos botes índios para esquifes maiores e mais confortáveis, reunidos e equipados por três homens do Conde de Peyrac, os quais, após ter invernado no acampamento do Holandês, retomavam seus postos junto a uma pequena mina de prata que aquele homem inventara no ano anterior.

Assim, os homens e aliados do nobre francês pululavam por todo lado. Uma vasta rede de mineiros e de colonos instalava-se imper-ceptivelmente, em seu nome, no Down East.

Após ter acompanhado Florimond de Peyrac até o lago Champlain com a caravana de Cavelier de La Salle, Yann voltara a tempo de retomar seu lugar de escudeiro junto ao Conde de Peyrac na viagem para o oceano. Trouxera boas notícias do filho mais velho, mas não augurava um bom resultado para a expedição ao Mississipi, devido ao temperamento difícil do chefe, o francês Cavelier.

A canoa de madeira, munida de uma única vela e de um pequeno cutelo, não comportava mais ocupantes que os botes índios, os quais sempre se mostravam magicamente ampliáveis.."Nela, porém, viajava-se mais à vontade.

Yann Le Couénnec manobrava a vela enquanto o conde segurava a barra. Angélica estava sentada junto dele.

O vento tépido e caprichoso brincava com seus cabelos.

Ela estava feliz.

E verdade que o movimento de um barco levado pela água harmoniza-se com o impulso vital da alma. Liberdade, fluidez, e no entanto domínio. A posse de si mesmo, e contudo a inebriante impressão de. ter-se libertado temporariamente das contingências terrestres. O rio era largo. As margens estavam distantes e enevoadas.

Estava sozinha com Jofffey. Vivia numa plenitude de sentimentos a um tempo plácidos e vivazes, que completavam todo o seu ser. Desde Wapassu, após venceram o inverno, nela não havia mais conflitos. Estava feliz. Aquilo que poderia chocar-se com sua existência e perturbá-la não a atingia realmente. A única certeza que importava era a de sabê-lo ali, junto dela, e a consciência de ter-se tornado digna de seu amor. Ele lho dissera à beira do Lago de Prata, enquanto a aurora polar se espalhava sobre as árvores. Era sua companheira. Era o complemento de seu grande coração e de seu espírito sem limitações, ela, ignorante de tantas coisas e que por tanto tempo vagara, fraca e desorientada, em um mundo sem porto. Pertencia realmente a ele, agora. Haviam reconhecido seu próprio parentesco de almas. Ela, Angélica, e ele - esse homem tão terrivelmente viril e combativo, fora do comum - estavam agora ligados. Era algo que ninguém poderia desfazer.

Ela o olhava por instantes, captava sua imagem, seu rosto crestado e costurado, de cenho franzido sobre os olhos semicerrados, para suportar a reverberação cintilante da água. Assim, junto dele, sem o tocar, com os joelhos próximos aos dele, sem um gesto, parecia-lhe que estavam unidos carnalmente, com uma intensidade que por momentos lhe coloria as faces. Então era ele quem lhe dirigia um olhar enigmático, como que indiferente.

Ele via seu perfil esmaecido e notava-lhe a curva aveludada da face, fustigada indolentemente pela cabeleira dourada. A primavera a ressuscitara. Suas formas eram cheias e suaves e havia uma graça animal, tanto na imobilidade como em cada um de seus gestos.

Havia estrelas em seus olhos, uma faísca em seu lábio molhado, carnudo e entreaberto.

Subitamente, numa ampla curva do rio, surgiu uma praia com vestígios de uma antiga aldeia. Um índio chamou, de outra embarcação.

Joffrey de Peyrac apontou o dedo na direção da linha das árvores que o mormaço coloria com um azul suave.

-        Por ali! - disse. -- Noridgewook... a missão.

O coração de Angélica estremeceu. Mas ela cerrou os lábios e permaneceu firme. Decidiu em seu foro íntimo que não deveriam deixar a região sem encontrar-se face a.face com o Padre d'Orgeval, e tentar, através de um diálogo diplómátieo, dissipar as dificuldades e mal-entendidos que havia entre eles.'

Enquanto as três canoas viravam na "direção da praia, ela puxou para si o cofre de couro macio no qual trazia uma-parte de seus obje-tos pessoais.

Não convinha a.uma dama da nobreza francesa abordar tão temível jesuíta em trajes displicentes. '

Com destreza-arrumou os_cabelos sob uma touca bem engomada, mas que sabia adequada, e completou o conjunto com seu grande chapéu de feltro ornado com uma pluma vermelha. Impunha-se um toque de fantasia. Ela estivera-em 'ersalhes ê fora recebida pelo rei. Era preciso lembrá-lo àquele orguFioso eclesiástico, o qual se servia um tanto, em demasia de suas relações com a corte para intimidar os que a. rodeavam.

Envergou em seguida um corpete com mangas que confeccionara no forte com um tecido azul de Limbourg, e que cons' guira ornar com uma gola e punhos de"rend* branca.

A chalupa abordava em terra.

Yann agarrou um ramo que pendia e puxou o ban. o para a areia.

Para evitar que sua mulher molhasse c <s sapatos e a saia, Peyrac leve u-a nos braços um pouco adiante após o que lhe dirigiu, para reconfort í-la, um sorriso de conivência.

Aquele trecho de praia estava deserto e rodeado de moitas de su-magre, dominadas por altos e esbeltos olmos. Aparentemente s aldeia fora desalojada há muitas estações, pois o local estava coberto de um maciço de espinheiros.

Um dos índios disse que a missão ericontrava-se mais distante, no interior.  

— E preciso, no entanto, que discuta com aquele intratável - protestou Peyrac, contrariado.

— Sim, é preciso - afirmou Angélica-, embora cheia de apreensão.

Deus não permitiria que dali se afastassem sem uma promessa de paz.

Enquanto enveredavam, uns atrás dos outros, por uma trilha cavada na vegetação, o aroma dos espinheiros em flor os perseguia, obse-dante e delicioso.

A medida que se afastavam da margem, o vento diminuía. O calor instalava-se, imóvel e pesado. O perfume das flores e do pólen oprimia-os, comunicava-lhes uma agitação febril, uma nostalgia imprecisa de não se sabe o quê.

Dois espanhóis abriam a coluna em marcha, dois outros a fechavam. Alguns homens armados haviam sido deixados de guarda às barcas.

A trilha serpenteava através da floresta primaveril, ora estreita e encolhida entre as moitas cerradas, ora alargando-se por entre grupos de cerejeiras e de nogueiras.

Caminharam perto de uma hora. Quando estavam no mais profundo da floresta, ouviu-se o badalar de um sino. Era um som puro. As notas claras voavam na floresta em toques apressados.

- É o sino de uma capela - disse um dos caminhantes, detendo-se, comovido. - Não devemos estar longe.

A coluna dos habitantes de Wapassu retomou a caminhada. O odor que pairava nos arredores das aldeias começava a chegar até eles, feito dos miasmas da fumaça de lenha e de tabaco queimados, de gordura cozida e de milho fervido.

Ninguém vinha ao encontro deles. Isso não se quadrava com a costumeira curiosidade dos índios, sempre ávidos pelo mais simples es-petáculo.

O sino tilintou mais um pouco. Depois emudeceu.

Eles desembocaram na entrada da aldeola, composta de uma vintena de wigwans arredondadas, recobertas de casca de olmo e de bé-tula, cercadas de jardins onde amadureciam cabaças e abóboras de ramificações brincalhonas. Algumas aves magras ciscavam aqui e ali. A parte o alvoroço desses animais, a aldeia parecia deserta.

Eles avançaram ao longo da aléia central, num silêncio denso como lodo.

Os espanhóis haviam pousado o cano de seus grandes mosquetes nos forcados, prontos a colocar-se em posição de tiro ao mínimo movimento suspeito, e seus olhos espreitavam por todo lado.

Seguravam o forcado com a mão esquerda, o índice da mão direita roçando o gatilho do cão, e avançavam com a coronha apoiada na axila.        

Chegaram assim, bem lentamente, ao fundo da aldeia. Ali se achava a pequena capela do Padre d'Orgeval.

CAPITULO IV

A capela do Padre d'Orgeval

Era uma linda edificação de madeira, rodeada de moitas floridas como um altar, e fora construída por um hábil artesão. Sabia-se publicamente que o padre jesuíta a edificara com as próprias mãos.

Um campanário encimava o corpo principal, onde o sino de prata ainda vibrava.

Em meio ao silêncio, Joffrey de Peyrac avançou e empurrou a porta. E quase de imediato eles se sentiram ofuscados por viva e vibrante claridade. Sobre quatro tocheiros de prata com bandejas redondas, feixes de velas acesas brilhavam num leve crepitar, como o sussurro de presenças dissimuladas. Mas não havia ninguém no interior, à exceção dessas velas vivazes de uma suave cor verde que afugentava todas as sombras.

Os tocheiros estavam, aos pares, de cada lado do altar-mor.

Joffrey de Peyrac e Angélica aproximaram-se.

Acima de suas cabeças brilhava uma lâmpada de prata lavrada dourada, forrada de vidro vermelho. Continha um pouco de óleo, onde se achava mergulhada uma mecha acesa.

- As Santas Espécies estão presentes - murmurou Angélica, persignando-se.

O conde tirou o chapéu e inclinou a fronte. Um perfume se exalava no calor abrasante dos círios.

De ambos os lados do altar-mor, capas e casulas expostas e estendidas cintilavam com todo o seu ouro e seda, e com rosto de santos e de anjos bordados, hieráticos e suntuosos - "as togas de luz", assim as chamavam os índios, que as invejavam aos religiosos.

Viam pela primeira vez o estandarte, do qual já lhes haviam feito a descrição, manchado com o sangue dos ingleses, com quatro corações vermelhos em cada canto e o gládio, atravessado ria seda branca e sujo pelos combates.  

Os belíssimos vasos sagrados, corporais lavrados em prata, relicários, achavam-se expostos junto ao tabernáculo^ acima do qual se erguia magnífica cruz de prata de procissão.

O relicário era uma peça antiga, oferecida pela rainha-mãe. Era um cofre de cristal de rocha, com seis faixas de ouro engastadas, onde se alternavam pérolas e rubis. Dizia-se que caminha uma lasca de uma das flechas que haviam matado São Sebastião no século III.

Sobre a pedra ào altar encontrava-se exposto um objeto, que distinguiam com dificuldade.

Aproximaram-se e o viram.

Era um mosquete.

Longo, reluzente, beío objetò de guerra, ali se achava pousado como oferenda, como homenagem?

Como categórica declaração.

Tiveram o mesmo estremecimento. Pareciam escutar a prece tantas vezes ali mesmo pronunciada por aquele a quem a arma pertencia:

"Aceita, como expiação de nossos, pecados, o sangue por Ti derramado, Senhor...

"O sangue impuro do herético.

"O sangue do índio sacrificado.

"O sangue, enfim, de minhas feridas por Ti derramado. Para Tua glória, para Tua maior glória...

"Aceita os esforços e fadigas da guerra, para Ti, Senhor, para fazer que reine a Justiça, para apagar Teus inimigos da superfície da terra, para esmagar o idólatra que Te desconhece, o herético que Te desonra, o indiferente que Te ignora. Que apenas os que Te servem tenham o direito de viver. Que venha apenas Teu reino. Que apenas Teu nome

seja venerado!  

Eu, Teu servidor, tomarei armas e exporei minha vida para Teu triunfo, pois só Tu me importas."

Essa prece violenta e apaixonada, eles a escutavam no fundo de seus corações, e ela lhes era perceptível a ponto de Angélica sentir um temor particular, que nela se insinuava.

Ela "o" compreendia. Compreendia perfeitamente que Deus fosse o Único para aquele homem.

Bater-se pela própria vida?... que escárnio! Para conservar seus bens?... que mesquinharia!

Mas por Deus! Que morte e que premio!...

O sangue dos cruzados, seus antepassados, subiu-lhe ao coração em golfadas. Ela compreendiaem que fonte bebia e se alimentava alternadamente a sede de martírio e de sacrifício daquele que ali depusera aquela arma.

Imaginava-lhe a fronte inclinada e os olhos fechados, distante, separado de seu miserável corpo mortificado. Ali ele ofertara todos os esforços de guerra, as fadigas da batalha, dos massacres, que deixam os braços esgotados por terem vibrado tantos golpes, os lábios secos por não terem tomado fôlego na refrega; ele ofertara a alegria dos triunfos, as preces da vitória, o sacrifício do orgulho, ao abandonar aos anjos e aos santos o mérito de ter tornado diligentes e valorosos os braços dos guerreiros...

"Mosquete da Guerra Santa, fiel servidor, vela aos pés do Rei dos Reis enquanto esperas para estrondear por Ele!

"Arma abençoada, santificada, abençoada, abençoada mil vezes, bela para a honra Daquele a quem serves e defendes, vela, reza, e que os que te contemplam não se prevaleçam de ti.

"Que os que hoje te contemplam compreendam teu símbolo e a mensagem que lhes grito através de ti!..."

A angústia sufocou Angélica.

"É terrível", pensou. "Ele tem os anjos e santos com ele, ao passo que nós..."

Lançou um olhar apaixonado para o homem a seu lado, seu esposo, e já a resposta erguia-se em seu coração:

"Nós... nós temos o Amor e a Vida..."

Na face de Joffrey de Peyrac - o aventureiro, o banido - a luz bru-xuleante dos círios revelava expressões de amargura e de zombaria.

No entanto, naquele momento, ele estava impassível. Não queria assustar Angélica, conferir ao incidente sua medida exata e mística. Mas também ele compreendera a mensagem da arma exposta.

"Tamanho poder! Tamanha confissão!... Entre você e mim, para sempre, a destruição.

"Entre ele, o solitário,, e eles, os privilegiados pelo amor, a guerra... A guerra para sempre!"

E sem dúvida, lá longe na floresta, a fronte contra o chão, ele os via exatamente no fundo de si mesmo', o padre guerreiro, o jesuíta, ele os via, aqueles que haviam escolhido as delícias deste mundo, esse casal em pé diante do símbolo da cruz, assim gomo estavam, as mãos próximas e prestes a se tocar, e que se tocavam de fato, em silêncio...

A mão quente de Peyrac estreitou os dedos frios de Angélica. Mais uma vez ele se inclinou com respeito diante do tabernáculo; em seguida recuou lentamente, levando-a para fora da capela brilhante e perfumada, bárbara e mística, abrasadora, ardente...

Fora, tiveram -que se deter para se firmarem na claridade diferente, para se reintegrarem no mundo com seu sol branco, seu zumbido de insetos, seu cheiro de povoação.

Os espanhóis permaneciam inquietos, alerta...

"Onde estará ele?", pensou Angélica, "onde estará?"

Procurou-o para além das moitas e das árvores tíêmulas, submersas pelo calor, empalidecidas por uma fina poeira dançante.

Com um gesto, o Conde de Peyrac indicou à companhia que deviam retomar o caminho de voltar

A meio caminho, uma chuva leve pôs-se a cair, fazendo a floresta murmurar.

A esse murmúrio veio juntar-se a batida de um tambor, lancinante e distante.

Apressaram o passo.

Quando chegaram às canoas, o rio crepitava sob a chuva súbita e as margens se haviam apagado.

Foi apenas uma pancada.

Logo o sol reapareceu, mais vivo na paisagem lavada pela água, e a vela inflou suavemente.

Seguida pela flotilha de botes índios que sé dirigiam para o comércio, as canoas voltaram a descer o curso da água e breve, por trás de um promontório de cedros e de carvalhos frondosos, escuros e prodigiosos, o local da missão de Noridgewook desapareceu.

CAPÍTULO V

O armazém do Holandês - Apresentação original do Barão de Saint-Castine

Na etapa seguinte, enquanto montavam acampamento, Angélica avistou uma mulher índia que corria carregando um objeto insólito na cabeça. Mandou que a alcançassem e a índia, trazida à sua presença, não se fez de rogada em exibir o objeto em questão, um enorme pão de flor de frumento. Trocara-o naquele dia por seis peles de lontras negras no posto de troca do Holandês, bem como meio litro de aguardente por duas raposas prateadas. Voltava a seu acampamento, onde ainda possuía peles. O posto do Holandês tinha muitos fregueses, afirmava ela.

O local se fez anunciar por um simpático odor de padaria. Os índios eram gulosos por pão de trigo, e na estação de troca o empregado do Holandês não parava de introduzir michas em um grande forno de tijolos. O posto ficava numa ilha.

Fora ali construído com a esperança, talvez vã, de que isso lhe poupasse o destino dos estabelecimentos precedentes, fundados nos últimos cinquenta anos ao redor da grande aldeia de Houssnock, e que haviam sido várias vezes pilhados, queimados, arrasados, sob diferentes pretextos.

Então, Houssnock não era sequer um simples burgo. Permaneciam apenas o nome e o hábito, das tribos nómades que desciam para o sul, de se deterem nesse local.

A partir dali, onde já se começava a fazer sentir o movimento das marés, achava-se a embocadura do Kennebec e, apesar da limpidez das águas, vastas, calmas e poderosas, que corriam entre as margens, adivinhava-se, por toda espécie de indícios, que o mar estava próximo.

Havia como que um sabor salgado no ar úmido, e os índios da região, wawenokes eJeanibas, ao invés de untar-se com gordura de urso, besuntavam-se da cabeça aos pés com óleo de lpbos-marinhos, nome que davam às focas, que caçavam nó inverno, na orla marítima. Fortes eflúvios de peixe misturavam-se pois; aos eflúvios do pão quente e ao odor selvagem das peles amontoadas, para compor em torno do posto de troca uma sinfonia olfativa poderosa, mas pouco adequada aos olfa-tos delicados. Há muito Angélica não se preocupava com tais detalhes. O movimento fervilhante que enegrecia o rio ao redor da ilha pareceu-lhe de bom augúrio. Ali deviam encontrar-se tesouros em mercadorias inéditas.

Ao chegarem à-ilha, cada qual dispersou-se em busca de uma oportunidade, de um negócio. Joffrey de Peyrac foi quase de imediato abordado por alguém a- quem rievia conhecer e que se pôs a falar-lhe numa língua estrangeira.

- Venha - disse Angélica à inglesinha Rose Ann -, iremos primeiro matar a sede, pois penso qúe podemos encontrar cerveja bem fresca. Depois faremos nossas compras, como na Galeria do Palácio.

Elas haviam acabado por se entender suficientemente bem com relação à língua, pois, nos últimos meses, tomando Cantor como professor, Angélica exercitara-se noidioma inglês. Sua pupila, aliás, não era de muito falar. Seu rosto liso e pálido, de maxilar um pouco prognato, possuía uma precoce expressão de sabedoria sonhadora. Por vezes ela parecia desnorteada, levemente aparvalhada.

Era no entanto uma criança gentil, pois no momento da partida de Wapassu deixara sem hesitação sua boneca a Honorina. Essa boneca, no entanto, a pequena cativa moribunda tivera a habilidade e a força do amor de dissimular no corpete, para que não caísse nas mãos dos índios.

Honorina apreciara o presente. Entre o maravilhoso brinquedo e seu urso cativo, ela poderia aguardar sem demasiada impaciência o retorno da mãe.

Apesar disso Angélica continuava a lamentar sua ausência. Aquela mocinha teria se divertido tanto com a animação desse posto onde as trocas estavam no auge!

O Holandês, gerente e representante da companhia da baía de Mas-sachusetts, pavoneava-se no meio do pátio, numa rhingrave negra, farta e empoeirada.

Naquele instante, com um mosquete na mão, ele media um fardo de peles de castor. A altura de um cano de fuzil equivalia a quarenta peles.

O edifício era modesto, feito de ripas revestidas com extrato de casca de noz.

Angélica e Rose Ann penetraram numa grande sala. Duas janelas com losangos de vidro encaixilhados em chumbo vertiam suficiente claridade, conservando ao mesmo tempo uma fresca penumbra. Apesar das idas e vindas dos índios, requeridas pelo comércio, reinava uma certa limpeza, que muito revelava do pulso enérgico e do dom de organização do senhor do lugar.

A direita havia um longo balcão com balanças, recipientes e medidas diversas nos quais se derramavam as pérolas e quinquilharias a serem vendidas.

Acima e ao longo de parte das paredes, pranchas superpostas comportavam mercadorias, entre as quais Angélica distinguia cobertores, toucas de là, camisas e roupa-branca, açúcar mascavo e açúcar branco, especiarias, biscoitos. Havia também tonéis de ervilhas, favas, ameixas, toucinho salgado e peixe defumado.

Uma grande lareira, ladeada de utensílios de cozinha, servia nesse dia quente apenas para cozinhar lentamente a refeição, sem dúvida frugal, do proprietário e de seus funcionários.

Sobre o rebordo do quebra-vento achava-se uma série de picheis e de copos de estanho, reservados aos fregueses desejosos de consumir cerveja, cujo barril imponente, aberto a todos, dominava num canto adequado. Grandes conchas penduradas no rebordo permitiam a todos servirem-se à vontade. Uma parte da sala fazia o papel de taberna, com duas grandes mesas de madeira guarnecidas de escabelos, e mais alguns tonéis virados para completar o mobiliário em caso de maior afluência ou para os bebedores solitários. Homens ali estavam sentados, envoltos em nuvens de fumaça azul.

Quando Angélica entrou, ninguém se moveu, mas cabeças voltaram-se lentamente e olhos luziram. Após saudar à volta, ela pegou dois copos de estanho no quebra-vento da lareira. Precisava, com urgência, beber um pouco de cerveja fresca.

Para atingir o barril, porém, era-lhe necessário desalojar um chefe índio que, envolto em seu manto bordado, fumava com ar modorrento, à extremidade de uma das mesas.

Saudou-o na língua abenaki, com as circunlocuções de costume e o respeito devido à sua linhagem, revelada pelas plumas de águia, fixadas no coque negro de longas tranças.

O índio pareceu sair de seu devaneio nebuloso e subitamente se ergueu.    

Seus olhos brilharam. Considerou-a por alguns instantes com surpresa e encatamento e em seguida, pondo a mão .no peito, avançou a perna direita e inclinou-se numa saudação cortesã impecável.

— Como fazer-rne perdoar, senhora? - disse em excelente francês. - Não contava com tal aparição. Permita "que me apresente: João Vicente d'Abbadie,-senhor de Rasdacq e de outros domínios, Barão de Saint-Castine, tenente, do, rei na fortaleza de Pentagouet, no governo de suas possessões na Arádia.

— Estou radiante em conhecê-lo, barão.. Ouvi falar muito a seu respeito...

— E eu também, senhora..TNão, não é preciso que se apresente. Estou reconhecendo-a, embora jamais a tenha visto... É a bela, a belíssima Sra. de Peyrac! Apesar das muitas descrições que me fizeram, a realidade ultrapassa de longe o que minha imaginação pôde conceber... Tomou-me por um índio?... Como~explic"ar minha atitude descortês? Vendo-a subitamente diante de mim, e ao compreender num relance quem era, e que aqui estava, fiquei possuído, petrificado e mudo, como os mortais que as deusas visitam por não se sabe que incompreensível capricho em sua sombria estadia terrestre. Pois em verdade, senhora, eu sabia, sim, a senhora era infinitamente bela, mas ignorava que o fosse com tanto encanto e suavidade. Ademais, ouvir as palavras na língua índia que tanto amo saindo de sua boca e ver seu sorriso iluminar de repente este antro escuro e rústico, que sensação surpreendente! Jamais a esquecerei!

— E quanto ao senhor, estou vendo agora que é gascão! - exclamou ela, dando uma gargalhada.       

— Tomou-me realmente por um índio?

— Decerto.

Ela examinou-lhe a tez acobreada onde brilhavam duas pupilas intensas e totalmente negras, a cabeleira e o porte.

-        E agora? - perguntou ele, afastando a capa vermelha bordada de pérolas e de pêlos de porco-espinho em que se envolvia.

Surgiu então no gibão azul com sutache de ouro dos oficiais do regimento de Carignan-Sallières, com jabô de renda branca. Mas seu uniforme regulamentar residia apenas nessa peça. Quanto ao resto, calçava altas grevas à moda índia e mocassins no lugar de calças e botas.

Ele firmou-se, um punho no quadril, com a altivez de um jovem oficial do séquito do rei.

-- E agora? Não sou um perfeito cortesão de Versalhes?

Angélica sacudiu a cabeça.

— Não - retrucou -, seu palavrório galante chega tarde demais, senhor! A meus olhos, parece um chefe abenaki.

— Pois bem, que seja! - disse o Barão de Saint-Castine com gravidade. - E tendes razão.

Ele inclinou-se para beijar-lhe a mão.

Essa troca viva e animada de homenagens e de cortesias à francesa efetuara-se com toda a liberdade na sala envolta em fumaça de tabaco; os olhos ousados dos que estavam bebendo não pestanejaram. Quanto aos poucos índios presentes na sala, ocupados com as trocas, não prestaram uma vez sequer atenção à cena. Um deles contava agulhas, uma a uma, com um ímã, outro experimentava o fio de facas na beira do balcão; um terceiro, recuando para medir uma peça de tecido, chocou-se com Angélica e, não contente, empurrou-a sem rodeios, porque ela o estava atrapalhando.

— Vamos a outro lugar - decidiu o barão. - Há um compartimento ao lado, onde poderemos conversar em paz. Pedirei ao velho Josué Higgins que nos traga uma colação. Essa encantadora menina é sua filha?

— Não, é uma pequena inglesa que...

— Psiu! - interrompeu-a com vivacidade o jovem oficial gascão. - Uma inglesa!... Se ficarem sabendo, não respondo por sua cabeça, ou ao menos por sua liberdade.

— Mas comprei-a devidamente aos índios que a capturaram - protestou Angélica.

— Sua condição de francesa lhe permite certas atitudes - disse Saint-Castine -, mas é sabido que o Sr. de Peyrac não tem o hábito de resgatar os ingleses para batizá-los. Isso desagrada às autoridades. Portanto, não deixe sobretudo que suspeitem que a pequena é inglesa.

— No entanto, aqui existem muitos estrangeiros. O chefe deste posto não é holandês? E- seus funcionários parecem vindos diretamente da Nova Inglaterra.  

— O que não prova nada.

— Mas estão bem aqui.

— Por quanto tempo?... Creia-me, seja prudente! Ah! cara condessa - exclamou, beijando-lhe novamente ás pontas dos dedos -, como você é encantadora e faz jus à fama que possui! .

— Eu pensava que junto aos franceses minha fama fosse sobretudo de diabólica.

— Você o é - afirmou ele. - Diabólica para aqueles que, como eu, são demasiado sensíveis à beleza fémininaf.. Diabólica também para aqueles que... Enfim, quero dizçr que é semelhante a seu esposo... a quem admiro e que me assusta. Na verdade, se deixei meu posto de Penta-gouet e viajei pelo Kéhnebec era com a intenção de encontrá-lo. Tenho graves comunicações a fazer-lhe.

— Houve problemas em Gouldsboro? - perguntou Angélica, empalidecendo.

— Não,- trariqúilize-se. Mas suponho que o Sr. de Peyrac a tenha acompanhado. Pedirei que venha ao nosso encontro.

Ele empurrou uma porta. Mas antes que Angélica, sempre com Rose Ann pela mão, pudesse penetrar no compartimento vizinho, alguém atravessou ruidosamente a soleira da sala principal e precipitou-se para o Barão de Saint-Castine.

Era um soldado francês, de mosquete na mão.

-        Desta vez é um fato, senhor tenente - gemeu ele. - Estão preparando as caldeiras para a guerra... Não há engano. É um cheiro que eu reconheceria entre mil. Venha, venha sentir!

Agarrando-o oficial pela manga, puxou-o quase à força para fora.

— Sinta! Sinta o cheiro! - insistiu, apontando o nariz longo e encolhido a um tempo, que lhe dava um ar de arengador de feira. - Há um cheiro... Cheiro de milho e de cachorro cozido. Não o sente, realmente?

— É um cheiro de tantas coisas! - disse Saint-Castine com um momo de desdém.

— Mas a mim não engana. Quando o odor é assim fétido, significa que estão todos na floresta, fazendo um festim antes de partirem para o combate. Comem milho e cachorro cozido! Para ganhar coragem. E bebem água ainda por cima - acrescentou com uma espécie de horror, que fez saltar seus olhos de caramujo assustado.

O militar tinha uma expressão verdadeiramente apalermada. O grupo de comediantes que o contratasse obteria com ele boas risadas.

É verdade que o vento do rio trazia um odor adocicado, proveniente do fundo dos bosques, e que era o cheiro dos festins indígenas.

-        Ele vem de lá, e de lá, e de lá - continuou o soldado, designando diferentes pontos na margem esquerda do Kennebec. A mim, não me engana!

Estranha personagem! Embrulhado num casaco azul, carregava sua arma com uma falta de jeito inquietante. Não usava grevas nem mocas-sins, mas pesados sapatos que pareciam torná-lo ainda mais desengon-çado, e suas grossas meias de tela, mal presas abaixo dos joelhos, caíam em dobras bem pouco regulamentares.

— Por que colocar-se nesse estado, Ademar? - perguntou o Barão de Saint-Castine com hipócrita solicitude. - Não devia entrar para o regimento colonial se tinha tanto medo da guerra índia.

— Mas foi o recrutador, na França, que me embriagou; e, quando acordei, estava no navio - gemeu.

Nesse meio tempo, o Conde de Peyrac chegou, acompanhado pelo Holandês e pelo francês que o haviam abordado quando desembarcara.

Haviam ouvido as informações de Ademar sobre as caldeiras de guerra.

-        Creio que este rapaz tem razão - disse o francês. - Fala-se muito de expedições próximas dos abenakis para castigar o inglês insolente.

Estará com eles, Saint-Castine, você e seus etchevinins?

O barão pareceu contrariado e não respondeu. Inclinou-se diante do conde, o qual lhe estendeu a mão com afeição.

Em seguida, Joffrey de Peyrac apresentou os dois companheiros a sua mulher.

O Holandês chamava-se Pieter Boggan.

O outro era o Sieur Bertrand Défour, proprietário, junto com seus três irmãos, de uma cursiva no istmo, no fundo da baía Francesa.

Picardo, de ombros fortes, traços pesados, como que entalhados e queimados pelo sol, parecia que há muito não tinha a oportunidade de cumprimentar uma mulher bonita.

Pareceu de início embaraçado; depois, recompondo-se, ajudado pela força de sua simplicidade natural, inclinou-se profundamente.

-        Isto merece uma comemoração - disse. - Vamos beber.

Uma espécie de estertor atrás do grupo fez que as cabeças se voltassem.

O soldado Ademar desfalecia contra o alizar da porta. Agora, era Angélica que seus olhos fixavam.

-        A Diaba - balbuciou - é... é elal O senhor não me contou. Isso não está certo. Por que não me contou logo, tenente?

Saint-Castine deu um rugido exasperado.

Agarrou o homem e fê-lo rolar na poeira .lá fora, com um sólido pontapé no local adequado.

— Que o diabo carregue esse cretino! - disse, ofegando de raiva.

— De onde tirou esse fenôrfleno? - perguntou Peyrac.

— Quem pode saber? Aí está o que os recrutamentos de Quebec agora nos enviam. Acreditarão eles que no Canadá precisamos de soldados o tempo todo"com medo?...

— Acalm'e-se, Sr. de Saint-Castine - disse Angélica, pousando a mão em seu braço para tranquilizá-lo. '- Sei o que aquele pobre homem quis dizer, e - ela não pode impedir-se de rir - ele estava tão engraçado com os olhos esbugalhados! Não é culpa dele. Ficou aterrado com os boatos maldosos que circulam no Canadá, e contra os quais nada posso fazer. Não é culpa dele.

— Então não se sente ofendida, senhora?... Não, realmente? - insistiu Saint-Castine, torcendo as mãos com exuberância meridional. - Ah! malditos sejam os imbecis que, aproveitando-se de sua ausência e do mistério em torno de sua fama, espalharam tais histórias fantásticas e uma lenda tão insultante!

— Cabe a mim, agora que saí da floresta, esforçar-me por destruí-las. Foi para isso que acompanhei meu marido na direção dos rios. E preciso que após meu retorno de Wapassu, toda a Acádia esteja enfim persuadida, se não de minha santidade - ó Deus, isso não! -, ao menos de minha inofensiva condição.

— Quanto a mim, já estou convencido - afirmou o grande Défour, levando a mão ao peito.        

-        São ambos excelentes amigos - disse Angélica com gratidão.

E, passando os braços ao redor dos ombros de cada um deles, dedicou-lhes um dos sorrisos encantadores, de que possuía o segredo. Sabia que podia englobar na mesma amizade o aristocrático Barão de Saint-Castine e o bravo camponês picardo, tornados irmãos por sua ligação à terra perigosa e selvagem da Acádia. Peyrac olhou-a, enquanto ela os conduzia até a porta e ria com eles familiarmente.

- Saibam, caros amigos - disse-lhes ela -, que não é tão desagradável para uma mulher ser tratada de criatura diabólica. Há nesses termos não sei que obscura homenagem a um. poder negado com demasiada frequência. O pobre Ademar não merecia tanta violência... Agora, por favor, não falemos mais nisso e vamos beber. Estou morrendo de sede.

Instalaram-se na segunda sala do posto, ao redor de uma mesa. Alegres, discutiam assuntos sérios, e que a outros pareceriam dramáticos, mas que em suas bocas tomavam um ar de gracejo e quase de incidente cómico.

O Holandês, recobrando na companhia dos franceses a jovialidade inata dos flamengos, colocou na mesa copos e picheis, cerveja, rum, aguardente e um frasco de um vinho espanhol tinto e quente, que um navio corsário das Caraíbas, perdido na embocadura do Kennebec, trocara com ele recentemente por peles.

CAPÍTULO VI

Notícias do litoral - Josué Pilgrim, passageiro do Mayflower

Peyrac escutava as,£onversas distraidamente, sorrindo, os olhos fixos em Angélica. Via-se mais uma vez seduzido pelas diversas faces de sua natureza feminina.- Recordava que outrora, em Toulouse, ela atrelara a seu serviço, com um sorriso e algumas palavras, seus próprios amigos,, os mais ciumentos, que a partir de então se deixariam matar por ela. Reencontrava, amadurecidos por sua experiência de mulher, seu espírito vivo e divertido, a inigualável elegância de seus gestos, o encanto de suas réplicas.

Súbito lembrou-se do estado em que ela se encontrava no ano anterior, quando abordara com ele naquelas terras, após a estranha viagem do Gouldsboro, onde se haviam reconhecido e reencontrado.

Tinha, então, o olhar arregalado e patético, e atitudes de mulher acuada. Um halo de desgraça parecia envolvê-la.

Eis que em menos de um ano recobrara a alegria, o entusiasmo de uma mulher feliz. Aquilo fora obra do amor e da felicidade, apesar das privações do inverno. Obra dele, Peyrac!

Ele fizera-a renascer para si mesma. E como seus olhares se cruzassem, dedicou-lhe um sorriso" de possessiva ternura.

A inglesinha, muda e pálida entre aquelas personagens exuberantes, passeava de um para outro o olhar.

O Barão de Saint-Castine contava como o Marquês D'Urville, comandante do Gouldsboro, enfrentara os dois navios cio pirata Barba de Ouro, com a ajuda dos huguenotes de La Rochelle. O que decidira finalmente a vitória haviam sido salvas certeiras de canhão com projéteis inflamados. Com o fogo nas entrepontes, o bandido retirara-se para trás das ilhas. Depois disso, parecia manter-se quieto, mas era preciso ficar alerta.

O conde perguntou se os dois navios que aguardava, um de Boston e o outro, o Gouldshoro, de volta da Europa não se haviam ainda apresentado. Mas era muito cedo. Quanto ao pequeno iate bostonia-no que depusera os homens de Curt Ritz na embocadura do Kenne-bec, fora obrigado a enfrentar o já mencionado Barba de Ouro e retornara ao porto bastante danificado.

-        Aquele bandido pagar-me-á centuplicado o prejuízo - declarou Joffrey de Peyrac. - Não perde por esperar. E se não devolver meu suíço com vida, arrancar-lhe-ei a pele. Persegui-lo-ei até os confins da Terra.

Défour informou que a baía Francesa estava infestada por aquela canalha de piratas e de flibusteiros dos mares quentes. Sabedores de que no verão as nações do norte, francesas e inglesas, recebiam navios da Europa carregados de mercadorias, vinham rondar a região para abordá-los com menos riscos que os galeões espanhóis. Sem contar que isso atraía para a Acádia os navios de guerra ingleses, requisitados para proteger as frotas de pesca de Boston e da Virgínia.

-        Sem contar, senhor conde, que esses ingleses nada têm a fazer na baía Francesa, e que acreditam ser-lhes tudo permitido.

Acrescentou que, estando prestes a empreender uma viagem comercial ao longo da costa, uma ideia lhe ocorrera.

— O senhor me abasteceu tão bem no ano passado, Sr. de Peyrac, quando eu estava a ponto de morrer de fome por falta de víveres, que, ao passar pela embocadura do rio Saint-Jean, apanhei os seis soldados da guarnição do pequeno Forte Santa Maria, e os trouxe para colocá-los à sua disposição.

— Então é a você, Défour, que devemos a presença desse palerma de uniforme, Ademar? - espantou-se o barão.

O concessionário acadiano defendeu-se:

-        Aquele foi-me imposto pela força. Parece que desde Montreal e Quebec, o lago Superior e a baía dos Chaleurs, todos o passam entre si para se verem livres dele. Mas os outros são fortes latagões, e sabem bater-se. Peyrac ria, encantado.

— Agradeço-lhe, Défour. Não desdenho a presença de alguns bons atiradores, mas que disseram.clo rapto que você realizou o Sr. de Vau-venart e o Cavaleiro de Grandrivière?

— Estavam em Jemseg, onde é aguardada a visita do governador da Acádia, Sr. de Ville-'dAvray. Foi por isso, aliás, que segui caminho pela baía. E mais prudente. Meus irmãos encarregar-se-ão de receber aquele importuno - concluiu com grandes gargalhadas zombeteiras.

— Mas por que não deixou seus militares em Gouldsboro? - perguntou Castine.

— A tempestade arrastou-me até as'ilhas Matinicus - respondeu o outro conr simplicidade. - Depois disso, uma neblina manteve-me em completa-escuridão durante quatro dias. Preferi, pois, continuar a dirigir-me pjára oeste. Não é fácil transpor a passagem de Gouldsboro. Eu poderia topar com Barba de Ouro: Mas, como vêem, sempre acabamos por nos reencontrar.

Peyrac levantou-se para ir ver os soldados, e seus companheiros o seguiram.

Angélica permaneceu na sala umbrosa. O vinho da Espanha era delicioso mas um pouco1intontecedo"r. Rose Ann bebera cerveja. Estava com fome. Mal Angélica e a pupila haviam trocado impressões quanto à necessidade de encher o estômago, um amável ancião surgiu diante delas e depôs na mesa pratos com grandes fatias de pão quente cobertas de pasta de aciano, aquela espécie de airela a que os franceses chamam mirtilo e que na América cobre imensos espaços.

Com um sorriso, encorajou-as a comer. Ele possuía uma barbichi-nha branca e.um ar de bondade. Austeramente vestido com um colete negro e calças bufantes acima dos joelhos e de corte um pouco antigo, sua gola branca e plissada lembrava a Angélica o modo de vestir de seu avô, no tempo em que a gola frisada ainda estava em moda. Disse-lhes que se chamava Josué_Pilgrim.

Quando a pequena Rose Ann se viu satisfeita, ele sentou-se junto dela e fez-lhe amigáveis perguntas em inglês.

Pareceu bastante comovido quando ela lhe disse que seus pais tinham por nome William e eram originários de Biddeford-Sébago. Ele revelou a Angélica que os próprios avós de Rose Ann encontravam-se a menos de trinta milhas dali, junto ao rio Andros-coggin. Num local chamado pelos índios de Newehevanick, o que queria dizer "terra de primavera", haviam fundado, uma dezena de anos atrás, uma colónia hoje próspera, que respondia em inglês pelo nome de Brunswick Falis. Os William eram empreendedores, sempre avançando para o iríterior. John William, o filho, deixara Biddeford, uma rica colónia na baía, para fundar uma outra Biddeford no lago Sébago. Sabia-se agora o que isso lhes custara, pois haviam sido conduzidos ao Canadá como cativos, embora as aldeias da costa tampouco estivessem em segurança quando a maré vermelha de índios irrompia dos bosques sobre os ingleses. No entanto era sempre possível, quando se estava junto às margens, fugir para as ilhas.

Mas ele, Josué, compreendia as pessoas como os William, pois jamais gostara de bacalhau e da agitação do mar. Preferia o reflexo dos rios e dos lagos sob as árvores e a carne dos perus selvagens.

Ele próprio tinha dez anos quando, junto com o pai, comerciante de Plymouth, no cabo Cod, viera fundar o estabelecimento de Houss-nock. Por isso chamavam-no Josué Pilgrim. Pois sua colónia era a dos padres peregrinos, e ainda criança ele desembarcara de um navio chamado Mayflower sobre uma terra deserta, onde a metade deles já estava morta no primeiro inverno.

Tendo desfiado suas histórias com voz pausada e um pouco doutoral, o ancião buscou algo numa prateleira e voltou com uma pluma de avestruz, um chifre de tinta e uma fina casca de bétula semelhante a uma folha de pergaminho, onde se pôs a traçar sinais. Era um plano de ida à colónia inglesa, onde estavam o velho Benjamim William e sua mulher Sara, os avós de Rose Ann.

Explicou em seguida a Angélica que, atravessando-se até a margem direita do Kennebec e caminhando-se para o leste, chegava-se ao local em menos de um dia.

- Mas isso é providencial - exclamou ela.

Fora sempre sua intenção, dela e do marido, levar a garotinha de volta aos parentes, mas a empresa apresentava dificuldades. Indo para Gouldsboro, ou seja, para leste, afastavam-se na direção oposta ao povoamento anglo-saxão.

A região onde se achavam naquele momento, o Maine para os ingleses, a Acádia para os franceses, era uma região fronteiriça, da qual o Kennebec marcava os instáveis limites, uma terra de ninguém, sem dono e sem lei.        

A providência quisera que a família de sua protegida se encontrasse a menos de dez léguas de Hpussnock...

CAPÍTULO VII

A recepção de Pieter Boggan

Ao anoitecer, tendo todos retornado ao posto a convite do Holandês, o qual desejava oferecer um festim aos principais visitantes daquele dia, discutiram de início a possibilidade de levar a criança de volta.

O anfitrião trouxe-lhes mapas.

Levando-se em conta os desvios, pistas e colinas, seria necessário prever três dias, entre ida e volta, até estarem em Houssnock e retomarem a caravana para oeste e para Gouldsboro. Mas Joffrey de Peyrac rapidamente descobriu uma outra solução. A colónia de Brunswick Falis situava-se junto ao rio Androscoggin. Navegável e rápido, esse rio permitia atingir-se em algumas horas a embocadura do Kennebec. A expedição do Conde de Peyrac dividir-se-ia em dois grupos. Um deles, o mais importante, desceria, conforme previsto, o vasto rio até o mar, onde os esperava um navio enviado por D'Urville.

Nesse meio tempo, Joffrey de Peyrac e Angélica, acompanhados de alguns homens, ganhariam a aldeia inglesa e, após devolver a menina à família, desceriam o Androscoggin até a costa, onde se juntariam ao primeiro grupo. A ação toda não pediria mais do que dois dias.

Após a conclusão do plano, fizeram-se as honras à candles-party oferecida por Pieter Boggan.

Tratava-se de uma velha, receita, que os holandeses do Novo Mundo passavam entre si à beira do Hudson, desde Nova Amsterdam até Orange.

Colocar em uma panela dois.galões do melhor Madeira, três galões de água, três quilos e meio dé.açúcar, aveia fina moída, especiarias diversas, uvas, limões... Servir quente em uma grande tigela de prata, colocada no centro da mesa. Os eonvidados mergulharão alternadamente suas colheres de prata no aromático cordial.

Nada melhor para despertar o ânimòe confortar os espíritos entristecidos.

Além do Conde e da Condessa de Peyrac e de seu filho, estavam presentes o Barão de Sairít-Castine, o acadiano Défour, o caporal da guarnição de Saint-Jean, o capitão francês do navio flibusteiro da ilha de Tortue e seu confessor. ..

O Holandês e seus deis funcionários ingleses puritanos completavam a assembleia.

Angélica era a única mulher entre eles.

Devido à sua presença, e também a do confessor, o tom da conversa permaneceu comportado.

Angélica,-porém, empenhada em fazer que eles não se aborrecessem, soube criar uma atmosfera alegre, onde cada qual brilhou, cintilou, acreditou-se único. E as mais francas gargalhadas saíam do posto de trocas, misturando-se aos ruídos misteriosos da noite e do rio.

Separaram-se bastante alegres e como muito bons amigos. Deixando o Holandês em sua ilha, retornaram, atravessaram o rio sob o luar e alcançaram seus acampamentos ou seus navios.

Irei vê-lo amanhã - cochichou o Barão de Saint-Castine a Peyrac. - Tenho coisas importantes a comunicar-lhe. Mas, por esta noite, durmamos. Estou cambaleando. Boa noite a todos.

Ele desapareceu na floresta, rodeado de um grupo de índios que logo se haviam destacado das sombras, como fantasmas, para escoltá-lo.

No acampamento, as sentinelas vigiavam. Haviam recebido ordens imperativas de Peyrac. Para maior segurança-, o grupo reunira-se em duas cabanas somente. Ninguém devia permanecer afastado durante a noite. O conde e sua mulher haviam renunciado a seu abrigo pessoal.

Houssnock drenava a escória de todas as florestas. Havia índios de todas as partes, batizados, com suas cruzes de ouro e terços em meio às plumas. Apesar da presença do Holandês e de seus funcionários ingleses, a França acadiana e canadense dominava no local. Aquele ainda era o domínio dos bosques. Ora, em todos os bosques da América, o francês é rei.

CAPÍTULO VIII

As "trevas douradas"

-É pena... - suSpifõu Angélica. - Haverá homem mais encantador que esse Barão de Saint-Castine? E gosto tanto de encontrar franceses...

-        Por que lhe fazem a certe?

Estavam sem sono e Joffrey amparava Angélica, que cambaleava um pouco, ão longo da margem.

Ele se deteve e, pousando a mão na face de Angélica, voltou seu rosto para ela. 

Sob o luar dourado, ela estava rosada e animada, e seus olhos cintilavam, cheios de estrelas.

Ele sorriu, indulgente, terno...

-        Acham que você é bela, meu amor - sussurrou. - Prestam-lhe homenagem... Gosto de vê-los assim, a seus pés. Não sou ciumento em demasia. Eles sabem que. você é da mesma raça que eles, uma francesa, e sentem orgulho disso. E eles pertencem à nossa raça. Por mais remoto que seja o local para o qual nos expulsem, por mais injustamente que nos separem dos nossos, isso permanecerá para sempre. Também eu gosto de encontrar meus irmãos franceses e ler-lhes nos olhos sinceros e ousados a admiração que.você lhes inspira. Penso que é uma raça louca, intratável, e nós pertencemos a ela, meu amor. Isso permanecerá para sempre!...

A sombra escura de um salgueiro estava próxima. Penetraram nela, de um passo, deixaram a claridade crua da lua pela obscuridade propícia e, abraçando-a, ele beijou-lhe docemente os lábios. O desejo, aquele desejo familiar e sempre surpreendente, crescia neles, punha-se a viver entre eles, com sua existência quente, abrasante e devoradora.

Mas não podiam demorar-se. A aurora logo apontaria. A floresta não era discreta. Retornaram, então, a passo lento.

Caminhavam como em sonho, com o desejo a envolvê-los, com esse segredo, essa onda "que os animava, essa dor delicada de um impulso suspenso que não queria arrefecer, e que nuançava os sorrisos que trocavam com lamento, com cumplicidade.

Para Angélica, a mão de Joffrey, levemente pousada em seu quadril, trazia consigo todas as promessas.

E para ele o movimento de sua perna, que ele sentia contra a dele, arrebatava-o até a dor.

Isso ficaria para mais tarde.

Dentro de alguns dias, em Gouldsboro. O encanto e o sabor do prazer adiado. As próximas horas demorariam a passar, alongadas pela espera...

Eles voltaram a trocar algumas palavras com os homens de guarda.

Os abrigos estavam cheios de pessoas adormecidas.

Angélica sentia-se desperta. Preferiu permanecer fora.

Sentou-se sozinha à beira da água, os joelhos entre os braços e o queixo sobre os joelhos.

Seus olhos vagaram pela extensão dourada do rio.

Faixas evanescentes de uma leve bruma flutuavam à superfície.

Ela se sentia feliz e plena de uma vida fremente e impaciente. E tudo tinha um sabor que a encantava. Assim como amava a certeza do amor, também amava a espera. A existência cotidiana era quem decidia seus encontros. Eles podiam ver-se obrigados a passar longos dias comportadamente, ocupados com trabalhos e papéis estranhos ao prazer, e depois, com um olhar, uma inflexão terna da voz, vinha subitamente o fogo, a vertigem, a ansiosa necessidade da solidão a dois.

Então ela mergulhava na obscuridade ciumenta, soçobrava naquilo que chamava consigo mesma de "minhas trevas douradas", abandonava-se ao esquecimento do mundo e da própria vida.

Assim, a vida amorosa de ambos misturava-se tão estreitamente à trama de suas existências, que era ora como o murmúrio subterraneo de um riacho, uma melodia imperceptível, ora como uma tempestade que a tudo dominava, isolando-os no centro do mundo e subjugando-os às suas leis. Mas também libertando-os de todas as leis.

Aquela vida amorosa ao longo do tempo, dos dias e das noites, dos meses e das estações, era um segredo só deles, & fermento de sua irradiante alegria, que ela sentia queimarem si mesma sem cessar. Era como um peso.suave entre os rins,5uma sensação de desfalecimento na região do coração, algo que ocupava seu ser como uma criança no seio materno, o mistério do espírito -no tabernáculo. O amor...

Ela aspirava a voltar a Gouldsboro, a um porto, como Wapassu. Ali havia um grande forte de madeira sobre o mar, e nesse forte, um aposento de vastas.proporções, com um grande leito coberto de peles. Nele dormira com Joffrey. Nele voltaria a dormir, enquanto a tempestade açoitaria a rocha com grandes ondas de espuma e o vento uivaria nas árvores inclinadas do promontório. Ao abrigo desse palácio, nas casas" rústica'? mas sólidas dos huguenotes, as luzes apagar-se-iam uma a uma.

De manhã, tudo seria puro e cintilante. As ilhas brilhariam como jóias no golfo. Ela iria passear na praia com crianças a acompanhá-la, vaguearia.-pelo novo porto, comeria lagostas de deleitável sabor marinho, ostras e mariscos.

E depois abriria cofres e arrumaria as mercadorias trazidas pelos navios, envergaria roupas novas e roçagantes, jóias, e tentaria novos penteados. Em Gouldsboro havia um grande espelho de chão, engastado em bronze veneziano. Em seus reflexos ela se veria nova também. Que imagem surgiria?

Habitava-a uma força tão serena, que ela não temia sofrer um desapontamento. Seria outra, simplesmente. Adquiriria o semblante e a aparência com que por tantos anos-sonhara. Um semblante de mulher feliz, realizada.       

Não era tudo um milagre? Menos de um ano antes aportara, vacilante, naquelas praias, e cheia de temor. Rígida, magra, lívida, com uma espécie de tensão e de esgotamento interiores, cambaleara na praia rosada de Gouldsboro e por pouco não eáíra de joelhos, como uma agonizante. Mas o braço de Joffrey a sustentara.

Um tempo de lutas cruéis, que havia enfrentado em sua juventude, ali terminava.

E como hoje lhe pareciam distantes aqueles quinze anos em que vagara sozinha, suportando nos ombros todo o peso de sua existência. Hoje sentia-se mais jovem, pois estava protegida e era amada.

Uma alegria infantil iluminava, por vezes, seu ser, e uma imensa confiança substituíra a insegurança de animal temeroso e perseguido, encolhido no fundo dela mesma. Pois, no instante de pisar a praia, um braço querido e forte a envolvera. E desde então não mais a deixara.

"Como sermos amados nos faz jovens!", pensou. "Outrora, eu era uma velha. Tinha cem anos. Estava sempre em guarda, armada, agressiva."

Hoje, quando o medo a rondava, não era com a mesma angústia vertiginosa, sem recurso, que sentira ao lutar com o rei e com forças demasiado poderosas.

Aquele à sombra de quem hoje descansava era forte, lúcido e prudente. Encarregava-se de tudo sem emoção. Era diferente dos outros. Mas sabia chegar até eles e fazê-los amigos, e ela começava a adivinhar que o espírito de um só homem digno desse nome pode carregar o mundo. Pois o espírito é mais forte que a matéria.

Ele triunfaria sobre seus inimigos, sobre os que se encolhiam nas sombras e negavam seu poder. Era tão forte que os atrairia por sua sabedoria e sua conduta surpreendentes.

O país atingiria a paz, as nações se ordenariam, as florestas seriam abertas e cidades nasceriam e seriam povoadas. Restaria sempre suficiente beleza selvagem para enobrecer os novos destinos. O Novo Mundo seria sempre rico e admirável. Mas liberto de guerras estéreis.

Semi-entorpecida pelo devaneio e pelo peso da noite grandiosa, o pensamento de Angélica envolvia-se na decoração insólita ao seu redor, cobria-se com a paixão contida da natureza, harmonizava-se com a tensão circundante. Nada feria o seu secreto júbilo.

O odor enjoativo dos festins guerreiros podia flutuar sobre a floresta, o tambor vibrar ao longe como um coração apressado e impaciente, tudo era simples. Eram coisas que lhe diziam respeito, mas que não a atingiam.

Via balançarem-se contra a claridade pálida da noite, a sudoeste, os três mastros do pequeno navio flibusteiro que lançara âncora na curva do rio.

Do outro lado, em contrapartida, reinava no alto uma escuridão cerrada, impregnada de neblina e de fumaça, pontilhada aqui e ali pelo vermelho das fogueiras índias, nas wigwans.

Uma raposa ganiu. Um animal pesado mas flexível introduziu-se na vegetação próxima. Era o glutão de Cantor.,Por um instante, ela entreviu-lhe a luminosidade das pupilas dilatadas, de natural ferocidade, que pareciam interrogá-la.

A ALDEIA INGLESA

CAPÍTULO IX

O velho Shapleigh, criatura dá floresta

No dia seguinte, serftada na salinha do posto de trocas, Angélica costurava ativamente um vestido verme lho para Rose Ann. A família ficaria contente em vê-la belamente vestida, e hão como uma pobre cativa dos "abomináveis" franceses.

Pela janela aberta, avistou uma jangada atravessando o rio.

Três cavalos. Os cavalos que Maupertuis, o andarilho dos bosques •a serviço de Peyrac, trouxera da costa na véspera. Seu filho também lá estava, além de Cantor.-

Assim que aportaram à ilha, o rapazinho correu à toda e entrou, bastante animado.

— Meu pai disse para partirmos imediatamente p^ra Brunswick Falis com Maupertuis. Ele não pode acompanhar-nos, mas devo servir-lhe de intérprete. Encontrar-nos-emos com ele amanhã ou de pois de amanhã, o mais tardar, na .embocadura do Kennebec, onde já está nosso navio.

— Que maçada! - disse Angélica. - Ainda não acabei este vestido. Não terei tempo de coser os laços do corpete. Por que teu pai não pode acompanhar-nqs?

— Ele deve encontrar-se na costa com urn chefe etchevinim ou mie-mac, não sei ao certo, que o Barão de Saint-Castine faz absoluta questão de lhe apresentar. Com os índios, deve-se reconhecer que é preciso sempre agarrar as oportunidades-com unhas e dentes... Eles são tão volúveis! Meu pai preferiu partir sem demora e encarregou-nos de levar a pequena de volta. A caminho daqui, peguei sua bagagem no acampamento.

Angélica ajudou a inglesinha a envergar o lindo vestido. Fechou com alfinetes a gola de renda e os punhos que o velho Josué retirara de algum fardo de mercadorias.

Rapidamente penteou-se e afivelou o cinto de couro que comportava sua pistola, da qual não; se separava de bom grado.

Os cavalos aguardavam do lado de fora, selados e seguros pelo bridão por Maupertuis e o filho. Angélica verificou por hábito os arreios e a sacola de couro que preparara pela manhã. Informou-se sobre as munições de cada uma.

— Pois bem! Partamos - decidiu.

— E eu, que faço? - perguntou o soldado Ademar, que esperava diante da porta, sentado sobre uma barrica virada, o mosquete entre as pernas.

Ele era a piada do lugar. Todos se divertiam às suas custas. Adivinhando o terror que lhe inspirava Angélica, ou porque não sabia o que fazer com ele, o caporal do forte Saint-Jean encarregou-o expressamente da guarda da Sra. de Peyrac. Dividido entre o medo supersticioso e o espírito de disciplina militar, Ademar vivia num calvário.

Maupertuis lançou-lhe um olhar apiedado.

— Fique aqui, meu velho!

— Mas não posso ficar sozinho: isto está repleto de selvagens!

— Então, venha conosco - disse o canadense, aborrecido. - Seu caporal e os outros já partiram com o Sr. de Peyrac.

— Partiram? - balbuciou o rapaz, a ponto de chorar.

— Basta! Venha, estou lhe dizendo. É verdade que não podemos deixá-lo aqui sozinho - continuou, desculpando-se com Angélica. - E, depois, será sempre um fuzil a mais.

Despediram-se do Holandês e, pouco após atingirem a outra' margem, penetraram na penumbra da floresta. Uma trilha suficientemente visível entrava pela ramagem para oeste.

— Aonde se vai por aqui? - perguntou Ademar.

— A Brunswick Falis.

— Que é isso?

— Uma aldeia inglesa.

— Mas não quero ir para junto dos ingleses. São inimigos!

— Basta! Cale-se, pateta, e caminhe.

A trilha mal aparecia, invadida pçfa floração da primavera, mas os cavalos seguiam-na com passo- seguro, com o jnstinto dos animais que reconhecem as passagens freqiíentadas peles humanos, apesar dos mil obstáculos lançados pelas moitas, é arbustos na pista. A primavera insolente varria a selvageria da floresta-com leques de ramos cobertos de folhagens, porém novos e flexíveis, e que se afastavam com facilidade. O capim era macio e baixo," e a vegetação rasteira, luminosa. Eles reconheceram os vestígios de uma aldeia índia, abandonada, que lhes fora indicada. Em seguida, voltaram a mergulhar na ramagem. Pouco depois, por entre troncos de faias e de bétulas alinhados, viram brilhar as águas dèum lago, que luzia ao sol, plácido como um espelho. Com a aproximação do meio-dia, o silêncio fez-se mais pesado, numa espécie de torpor, em meio ao qual zumbiam insetos.    

Angélica levava a inglesinha à garupa. Maupertuis e Cantor montavam os outros dois cavalos. O soldado e o jovem canadense seguiam a pé, sem grande dificuldade, pois as montarias só poderiam mesmo ir a passo durante todo o percurso. Poupavam, porém, à mulher e à menina, as fadigas da caminhada.

Ademar lançava sem cessar olhares assustados à volta.

-        Alguém está nos seguindo, estou dizendo.

Acabaram detendo-se, em atenção a ele, e aplicaram o ouvido.

-        É Wolverines - disse Cantor -, meu glutão.

E o animal surgiu das sebes a seus pés, agachado como se prestes a saltar, sua pequena goela demoníaca voltada para eles num ricto que lhe descobria os caninos brancos e pontiagudos.

Cantor riu da expressão de Ademar.

— Que... que jbicho é esse?

— É meu glutão, que vai devorá-lo vivo.

— Mas essa fera é gorda como um carneiro! - lamentou-se o outro. Depois disso, voltava-se a todo momento para ver se Wolverines

o seguia, e o animal brincalhão roçava às -vezes nele, fazendo-o sobressaltar-se.

-        Pensam que é engraçado caminhar com "isso" nos calcanhares?...

Todos riam dele, e a pequena Rose Ann jamais se divertira tanto.

A floresta assemelhava-se àquela da outra margem. Possuía suaves declives na direção de regatos e riachos em cascatas, aclives que conduziam a platôs pedregosos com pinhos e cedros baixos e percorridos por uma brisa perfumada, mas logo se inclinava, reencontrando a espuma verde das árvores copadas, com a espécie de prazer que se tem ao mergulhar no mar.

Depois do calor do dia, soprou uma brisa, fazendo reverberar as folhas e enchendo de murmúrios a vegetação mais baixa.

Novamente eles se detiveram em consulta ao plano do velho Josué. Depois de outra aldeia onde os índios haviam levantado acampamento, a pista era menos segura. Mas Cantor localizou-se com a bússola e afirmou que, continuando-se naquela direção, o objetivo seria atingido em duas ou três horas.

Sem possuir o faro infalível de Florimond para a arte da topografia, Cantor tinha em comum com o irmão mais velho um agudo senso de observação que jamais o deixava perder-se, e, ademais, ambos haviam sido severamente "treinados" nesse campo pelo pai, que desde a mais tenra idade familiarizara-os com os instrumentos de medição: o sextante, o cronometro e a bússola.

Nesse domínio, Angélica podia confiar inteiramente em seu filho. Mas continuava a lamentar que Joffrey de Peyrac não tivesse podido acompanhá-los. A medida que as horas passavam, via a inconveniência daquela partida precipitada.

Por que Joffrey não estava com eles? E como essa floresta era deserta, silenciosa, rumorosa em demasia, desde que o vento começara a soprar!

- O Sr. de Peyrac não lhe deu explicações sobre a necessidade de sua viagem precipitada? - perguntou, voltando-se para o canadense. Conhecia-o menos que os outros, pois ele não invernara com eles em Wapassu, mas sabia que era devotado e seguro.

— Não vi pessoalmente o conde - respondeu o homem. - Foi Clóvis quem me trouxe a mensagem.

— Clóvis?...

Um alarma, ainda impreciso, começou a vibrar dentro dela. Havia algo anormal em tudo aquilo. Por que Joffrey... não lhe escrevera uma mensagem? Isso não era próprio dele... Aquelas instruções passadas de boca em boca... Clóvis?... Seu cavalo topou com uma pedra à flor da terra e ela teve que firmar a atenção para guiá-lo.

Na folhagem rendilhada dos carvalhos, de um esmeralda escuro, troncos poderosos ramificavam-se em candelabros negros.

"Parece a floresta de Nieul no tempo das emboscadas...", pensou Angélica.

Assaltada por reminiscências, desejava sair da sombra escura.

— Estamos no caminho certo, Cantor?

— Sim, sim - respondeu o garoto, consultando novamente o mapa e a bússola.

Um pouco mais longe, porém, ele desceu do cavalo e, junto com Pedro José, o jovem mestiço, sondou os arredores. A pista desaparecia em meio à mata. Os dpis rapazes afirmaram que se deveria ir por ali. As árvores retraíam-se até formar não- mais que uma abóbada estreita, cada vez jnais escura. Em uma volta do caminho, a saída daquele túnel felizmente apareceu com uma nova luminosidade, uma porta de sol.        

Mas nesse instante, Maupertuis ergueu a mão, e todos, até mesmo os cavalos, imobilizaram-se sob o sinal. Houvera uma mudança imperceptível, que fazia que a floresta se tornasse não povoada, mas como que habitada por outras presenças.

— Os índios! - sussurrou Ademar, desfalecendo.

— Não, os ingleses - disse Cantor.

Com efeito, na auréola de sol que se abria na ramagem, acabava de surgir no sentido oposto a mais inesperada silhueta que se poderia imaginar.

Um pequeno ancião corcunda, retorcido, com enormes sapatos de fivelas de onde saíam as magras panturrilhas e um chapéu de aba cuja alta coifa em forma de pão de açúcar parecia não querer acabar, mantinha-se parado na saída do bosque. Brandia com as duas mãos um velho bacamarte de cano curto e largo na extremidade, cheio de metralha. A descarga poderia sem dúvida colocar em má situação tanto as vítimas como o atirador.

Os recém-chegados não se moveram.

— Alto! - gritou o ancião com voz áspera e aguda. - Se são espíritos, desapareçam ou atirarei!

— Bem vê que não somos espíritos - disse Cantor em inglês.

— A minute, please. Um minuto, por favor.

O velho ergueu a arma obsoleta, e com uma das mãos vasculhou seu colete negro. Dele tirou um enorme par de óculos de aros de madrepérola, que pousou no nariz e que o assemelhavam a uma velha coruja.

-        Ye-es! I see-ee!... - resmungou. - Sim, entendo.

Arrastava o final das sílabas com suspicaz solenidade.

Aproximou-se devagar -dos cavaleiros, medindo Cantor de alto a baixo e afetando ignorar Angélica.

— E quem é você, que fala com acento de Yorkshire, como aqueles malditos professores de Boston? Não tem o medo de um bom cristão de ir à floresta? Não sabe que não é recomendável que os jovens e as mulheres se dirijam à floresta? Podem encontrar o Homem Negro e com ele cometer mil abominações. Não é você que zomba de mim, filho de Belial, o Voluptuoso, Príncipe das Águas, com quem aquela que o acompanha tê-lo-ia concebido numa noite de sabá? Eu não ficaria surpreso! Aliás, você é demasiado belo para ser uma criatura humana, rapaz!

— Estamos indo à casa de Benjamim e de Sara William - respondeu Cantor, que vira tipos piores que aquele em Boston, com os sábios iluminados. - Levamos-lhes a neta, Rose Ann, filha de John William.

— Eh! Eh! A casa de Benjamim William.

O velho inglês debruçou-se para observar, com seu olhar agudo por trás das lentes espessas dos óculos, a garotinha de vestido vermelho que o rapaz lhe indicava.

-        Você diz que essa criança é neta de William. Oh! Oh! Isso simé divertido! Daremos boas risadas.

Esfregou as mãos como se subitamente fosse testemunha de uma excelente farsa

-        Eh! Eh! Já estou vendo daqui.

Com um olhar vivo, e sem dar a perceber, ele registrara as outras personagens: os dois andarilhos com roupa de pele, franjada à moda índia, o cinto e o boné colorido dos canadenses, e atrás deles o soldado da França em sua túnica desbotada, mas reconhecível.

Devolvendo a arma ao ombro musculoso, afastou-se do atalho.

-        Pois bem! Vão, vão, franceses - disse, continuando a dar pequenas risadas. - Devolvam, pois, a neta ao velho Ben. Oh! Oh!

Imagino a cara de William! Eh! Eh! Isso, sim, é divertido... Mas não contem muito com o resgate, pois ele é avarento...

Angélica acompanhou o diálogo como pôde. Apesar de compreender o inglês bastante inteligível do ancião, não apreendia quase nada do que ele estava contando. Felizmemte, Cantor mantinha uma calma olímpica.      

-        Ainda estamos longe de Brunswick? - insistiu ele com polida --- Tememos ter-nos perdido.

O outro balançou a cabeça com uma careta, parecendo dizer que quando se é suficientemente desmiolado para passear na floresta diabólica, deve-se saber aonde se está indo, e desembaraçar-se sozinho.

Durante a conversa, uma-outra personagem surgira e aproximara-se em silêncio por trás do velho. Era umnndio alto de olhar frio, um abenaki da região dos sokokis ou dos scbeepscots, a julgar por seu perfil afilado, de incisivos pronunciados. Trazia uma lança na mão, um arco e uma aljava à*bandõleíra. Acompanhava a conversa com indiferença.

-        Não poderia mesmo indicar-nos o caminho até Brunswick Falis, respeitável ancião? - insistuTCantor, após esgotar seus argumentos.

A pergunta formulada no entanto com toda a cortesia possível, o rosto do velho gnomo transformou-se, contraiu-se de cólera, e ele partiu em meio a um fluxo de palavras violentas, em que Angélica discerniu versículos da Bíblia", maldições^ profecias, acusações e frases inteiras em latim e grego, onde ressaltava que as pessoas de Brunswick - Newehevanik para os índios - eram loucas, ignaras, descrentes e possuídas pelo Demónio, e que ele, John Shapleigh, jamais tornaria a pôr os pés naquela aldeia.

Cantor continuou a insistir com a candura da juventude. O velho acalmou-se pouco a pouco, resmungou, lançou ainda alguns anátemas conjuradorea e depois, dando as costas, pôs-se a caminhar diante deles na trilha, enquanto o índio, sempre silencioso e impassível, colocava-se atrás da caravana.

— Devo compreender que esse-velho louco yenngli está decidido a mostrar-nos o caminho? - resmungou _Maupertuis.

— Parece que sim - disse Cantor. - Sigamo-lo. Veremos aonde nos conduz.

— Ofereça-lhe lugar em nossas montarias - disse Angélica. - Talvez esteja cansado.

Cantor transmitiu a proposta da mãe, mas o velho inglês, sem se voltar, fez gestos veementes, que significavam claramente que o estavam ofendendo e que aliás, para ele, os cavalos também eram, bem entendido, criaturas do Diabo.

Ele andava rapidamente e como que saltitando, e o mais surpreendente era que, apesar dos. grossos sapatos, não fazia nenhum ruído e mal parecia aflorar no;chão.

— Ê um velho "medecirís man" - explicou Cantor -, que pretende ter percorrido todas as florestas da América em busca de plantas e de cascas para seus remédios. Isso bastaria para explicar a desconfiança que lhe devem devotar seus compatriotas. Na Nova Inglaterra, não se gosta daqueles que andam na floresta, como ele próprio explicava há pouco... Apesar de ser uma pessoa original, creio que se pode confiar nele para mostrar-nos o caminho certo.

— Não quero ir para junto dos ingleses e não gosto de caminhar com um índio que desconheço em meus calcanhares - lamentou-se na penumbra o soldado Ademar.

Cada vez que se voltava, ele via a face de pedra escura e os olhos de águia negra que o fixavam. Suores frios molhavam-lhe a camisa, que já estivera encharcada por muitos suores de aflição.

Eles eram obrigados a avançar tropeçando nas raízes.

O homenzinho de chapéu pontiagudo continuava a precedê-los, saltitando como um elfo escuro, um fogo-fátuo de luto, e desaparecendo por instantes quando entrava na sombra, para ressurgir num raio de sol avermelhado, esgueirando-se, por entre os troncos. Em meio a todas essas voltas, Angélica via, com impaciência, a noite cair.

Um entardecer violeta espalhava-se no fundo das ravinas.

Enquanto caminhava, o ancião em certos momentos girava sobre si mesmo, murmurando palavras indistintas, e seus braços erguidos, os dedos abertos e magros, pareciam indicar não se sabia o que no ar.

— Pergunto-me se não é completamente louco e se sabe aonde nos está conduzindo - acabou por dizer Maupertuis, pouco à vontade. - Esses ingleses!...

— Oh! que nos leve a qualquer lugar, mas que sa;amos desta floresta - disse Angélica, com a paciência a esgotar-se.

Quase de imediato, como se obedecendo a seu desejo, desembocaram num vasto platô de relva verde, entrecortada de rochedos e de apanhados de zimbro. Aqui e ali, um cedro batido pelo vento, um conjunto de pinheiros, perfilavam-se como sentinelas. Longe, bem depois de um aglomerado de colinas de pequenos vales, o céu a oriente era de um branco de nácar, um céú'que"se adivinhava suspenso sobre o mar. Estava longe. Era uma promessa. Mas o vento que soprava nesse platô trazia um odor familiar, indefinível, ainda carregado de lembranças.

Após serpentearem por entre os rochedos e as moitas, desceram um pequeno vale, já dominado pela noite, onde não subsistia nenhuma luz. A outra encosta erguia-se diante deles, arqueando ao alto a crista negra contra o céu pálido. Dali vinha o odor esquecido. O odor intenso e familiar de um campo lavrada.'

Nada se via na-sombra espessa. Apenas se adivinhava a terra gordurosa e úmida a exalar um perfume de primavera, os sulcos abertos pela relha. "

O velho Shapleigh se pôs a resmungar e a escarnecer.

— Tal e qual! Roger Slougton ainda está em seu campo. Ah! se pudesse suprimir a noite, as estrelas, o sono a lhe' pesar nas pálpebras, ah! conjo seria feliz! Jamais conheceria um momento de descanso. Agitar-se-ia sem cessar, escavando, sulcando, manejando a picareta até a eternidade, sem nunca se deter. Sem nunca se deter, seu forcado rodopiaria como'o do Diabo" no fundo do inferno, eternamente, eternamente.

— O forcado do Diabo é estéril, não o meu, velho malcriado - respondeu, cavernosa, a voz vinda do campo lavrado. - Com a ponta de seu forcado, o Diabo revolve apenas a escória das almas. Eu faço surgir os frutos da terra, abençoados por Deus...

Uma sombra indistinta aproximou-se.

-        E para tal tarefa, jamais consagrarei horas suficientes de minha vida - continuou a voz em tom de homilia - comigo não acontece como com você, velho feiticeiro, que não teme macular seu espírito com o contato da selvageria mais desordenada da natureza. Olá! Olá! Quem nos traz esta noite, Espírito das Trevas? Quem nos traz dessas terras malditas?

O camponês, que se aproximava, deteve-se e esticou o pescoço.

-        Está fedendo a francês e a índio desse lado - grunhiu. - Alto! Não avancem mais!

Adivinhou-se-lhe o gesto de pôr a arma ao ombro. A esse monólogo, Shapleigh respondeu apenas com um rosário de zombarias, como se estivesse se divertindo muito. Os cavalos embicaram, alertados pela voz estrondeante que saía da noite. Cantor mostrou seu melhor inglês para saudar o lavrador, anunciou a pequena Rose Ann Wil-liam e, sem procurar esconder sua qualidade de francês, apressou-se a dizer o nome do pai:, o Conde de Peyrac, de Gouldsboro.

-        Se tem algumas relações em Boston, ou na baía de Casco, terá ouvido falar do Conde de Peyrac, de Gouldsboro. Ele construiu muitos navios nos estaleiros da Nova Inglaterra.

Desdenhando de responder, o camponês aproximou-se e rodeou-os, farejando-os como um cão desconfiado.

— E sempre esse bicho ruim de pele-vermelha, que arrasta com você - disse, continuando a se dirigir ao velho medecins man. - É preferível introduzir um bando de serpentes numa aldeia a um único índio!

— Ele virá comigo - disse o velho, agressivo.

— E amanhã despertaremos mortos e escalpelados por esses traidores, como sucedeu aos colonos de Wells, que ofereceram hospitalidade a uma pobre índia, numa noite de tempestade. Ela guiou seus filhos e netos de pele-vermelha, abriu-lhes a porta do forte, e os brancos foram todos massacrados. Pois, assim diz o Eterno, "jamais devem esquecer que a região que adentram para dominar está maculada pelas obscenidades dos povos dessas terras... Não dêem, pois, suas filhas aos filhos deles e não tomem suas filhas para seus filhos, e jamais se inquietem com a prosperidade dessa gente, nem com seu bem-estar, e assim se tornarão fortes..." Mas você, Shapleigh, você se enfraquece a cada dia, frequentando esses índios...

Após essa rude citação bíblica, o silêncio voltou a cair entre eles, e, ao cabo de um momento, Angélica deu-se conta de que o habitante de Brunswick Falis parecia enfim decidido a dar-lhes passagem.

Pôs-se mesmo à testa do pequeno grupo e começou a subir a encosta diante deles. A medida que emergiam da ravina, reencontravam a claridade de um longo crepúsculo primaveril. Uma rajada de vento trouxe-lhes um odor de estábulo, de ruídos ainda distantes do gado voltando das pastagens.

CAPÍTULO X

Chegada a Brunswick Falis

E de repente, contra o céu dourado, barrado de vermelho, surgiu o desenho de u-ma grande propriedade inglesa, solitária à primeira vista, e onde o olho aberto de uma janela parecia espreitar o pequeno vale escuro de onde eles emergiam.

Ao aproximarem-se, os viajantes distinguiram cercados que abrigavam carneieps. -

Era um aprisco, onde estava sendo feita a tosquia, e queijos, também. Homens e mulheres voltaram-se e acompanharam com os olhos os três cavalos que conduziam estrangeiros.

Quanto mais avançavam ao longo da aléia, mais alcançavam a claridade do poente.

A uma volta, a aldeia descobriu-se por inteiro com suas casas de madeira escalonadas no flanco de uma colina, coroada de olmos e de bordos, e que dominavam um valezjnho relvoso onde corria um riacho. Dele voltavam lavadeiras, os -cestos de vime cheios de roupa na cabeça. Seus-vestidos de tela azul drapejavam ao vento.

Depois do riacho, pradarias ascendiam em suave inclinação até a floresta de cerrados troncos.

O atalho transformou-se em rua e, após leve descida, tornou a subir por entre as casas e os jardinzinhos.- *.-

Velas acesas atrás das vidraças ou dos quadrados de pergaminho faziam brilhar aqui e ali, na claridade cristalina da tarde, estrelas de uma luminosidade mais viva, substituindo a luz do dia e salpicando esse plácido quadro com um coruscar de pedras preciosas.

No entanto, sem que se soubesse como, assim que eles se detiveram na outra extremidade da aldeia, diante de uma importante moradia com empenas e sacadas, quase todos os habitantes de Brunswick Falis achavam-se reunidos às costas deles, de boca aberta e olhos arregalados. Formavam urrj mar de roupas azuis e negras, de rostos estupefatos, de toucas brancas e de chapéus pontiagudos.

Quando Angélica apeou e saudou em torno, houve um murmúrio indistinto, um recuo de medo; mas quando Maupertuis, aproximando-se, pegou a pequena Rose Ann para colocá-la no chão, o murmúrio cresceu como o marulho do mar, e ergueu-se um clamor de estupefação, de indignação e de protestos, com todos se interpelando e se interrogando a meia voz.

-        Que fiz eu? - perguntou Maupertuis, estupefato. - Não é a primeira vez que vêem um canadense, pois não? E, ademais, não estamos em guerra, penso eu.

O velho médico estava agitado como um peixe fora d'água.

-        It's here! It's here! - repetia, impaciente, apontando a porta da grande residência. - E aqui! É aqui!

Ele estava radiante. Foi o primeiro a subir os degraus da escada externa de madeira e empurrou energicamente a porta.

-        Benjamim e Sara William! Trago-lhes sua neta Rose Ann, de Biddeford-Sébago, e os franceses que a capturaram - gritou com sua voz áspera e triunfante.

Num relance, Angélica entreviu no fundo do compartimento uma lareira de tijolos ornada de inúmeros utensílios de cobre e de estanho, e dois velhos, um homem e uma mulher, um de cada lado da lareira, vestidos de negro e hieráticos como retratos, com a mesma gola branca frisada e engomada, a mulher com uma touca de renda imponente, ambos empertigados em poltronas de espaldar alto e trabalhado. No colo do velho havia um enorme livro, uma Bíblia sem dúvida, e a mulher fiava o linho em uma roca.

Junto deles, a seus pés, havia crianças sentadas e criadas de azul, ocupadas com suas rodas de fiar.

Visão rápida, pois, à simples menção da palavra "franceses", as duas personagens ergueram-se, a Bíblia e a roca caíram no chão sem cerimónias e, com uma vivacidade surpreendente, eles despenduraram dois fuzis de cima da lareira, aparentemente carregados, logo apontando-os para os que chegavam.

Shapleigh escarnecia à grande e esfregava a$ mãos.

Quase de imediato, porém, a-visão de Angélica levando à frente a garotinha pareceu causar nos dois velhos um inominável temor, uma impressão ainda mais aterradora que a dos franceses, a ponto de suas mãos tremerem e de as armas subitamente parecerem demasiado pesadas em seus velhos braços... Lentamente, os canos se abaixaram, como se sob o golpe de uma esmagadora surpresa.

-        Oh! God! God!... - murmuraram os pálidos lábios da velha se nhora. - Oh! Deus! Deus!

- Oh! Lord! - exclamou o marido. - Oh! Senhor!

Angélica esboçou uma reverência e, desculpando-se por seu inglês imperfeito, exprimiu4hes a alegria de poder devolver sã e salva, às mãos dos avós, uma' menina que correra grandes perigos.

-        É sua neta Rose Ann - insistiu, pois lhe pareceu que ainda não haviam compreendido. --JSÍão querem abraçá-la?

Sem desanuviar o semblante, Benjamim e Sara William baixaram sobre a garotinha um olhar sombrio e deram juntos um profundo suspiro.

-        De fato - declarou, .por fim, o yelho Ben -, de fato, estamos vendo que é Rose Ann e queremos abraçá-la. Mas, antes, é preciso... è preciso que ela tire esse infame vestido vermelho.

CAPITULO XI

O decoro dos puritanos

-Você bem poderia tê-la trazido completamente nua, com os chifres do Diabo nos cabelos - disse Cantor à mãe, um pouco mais tarde.

Consciente de seu equívoco, Angélica repreendia a si mesma.

— O que não teria ouvido se tivesse tido tempo de pregar os laços dourados no corpete do vestido vermelho...

— Teriam estremecido ao vê-los - disse Cantor.

— Você, que viveu na Nova Inglaterra, devia ter-me advertido. Assim não magoaria os dedos confeccionando um vestido de festa para o retorno de Rose Ann entre pessoas tão puritanas.

-. Perdoe-me, mãe... Mas bem poderíamos ter topado com uma seita menos intolerante. Pois elas existem. Ademais, eu dizia a mim mesmo que, se acontecesse o contrário, eu poderia divertir-me com a cara que fariam.

-        Você é tão maldoso quanto o velho boticário, de quem parecem desconfiar como da peste. Não me espantaria que ele também, ao ver o vestido vermelho de Rose Ann, não se tivesse rejubilado de antemão com a farsa. Sem dúvida foi o que o fez decidir-se a mostrar-nos o caminho.

Haviam-nos introduzido, juntamente com sua malfadada pupila Rose Ann, numa espécie de parlatório contíguo à sala grande, sem dúvida para subtrair mais rapidamente à vista do povo beato a neta de Benjamim e Sara William, vestida com uma roupa tão disparatada e infamante, bem como a mulher que a trouxera, cujos adornos vistosos e inconvenientes revelavam a raça e a religião perdidas à qual pertenciam: os franceses e o paplsmo!

Seres bizarros, esses puritanos, de quem se poderia perguntar se possuíam coração... ou sexo. Quando se descobria a frieza de suas relações familiares, parecia inconcebível que um ato de amor pudesse ter presidido ao estabelecimento jde suas famílias. No entanto, a descendência de Mr. e Mrs. William,era numerosa. Pelo menos dois casais com os filhos estavam instalados na grande casa de Brunswick Falis. Angélica espantou-se de que ninguém parecesse interessado na sorte dos garotos William, levados como cativos ao Canadá pelos selvagens.

A notícia de que a nora dera à luz em condições de miséria na floresta índia, é que com isso tivera um outro filho, deixou Mrs. William impassível. E seu marido principiou um longo sermão, dizendo que John e Margaret haviam sido justamente punidos por sua indo-cilidade.

Por que não haviam permanecido em Biddeford-Saco, uma colónia sólida e piedosa junto ao mar, ao invés de acreditar-se, em seu orgulho, ungidos pelo Senhor e designados para fundar sua própria casa em sítio solitário, perigoso para a alma e para o corpo, tendo ainda a audácia de batizar o novo local, fruto do orgulho e da indisciplina, com o mesmo nome de Biddeford, o Piedoso, onde haviam nascido? Agora estavam no Canadá, e era bem feito. Ele, Ben William, sempre achara que John, o filho, não tinha o estofo de um condutor de povos.

Repeliu com a mão os detalhes que Cantor tentava fornecer a respeito dos cativos.

Os pormenores do rapto, ele os obtivera de Darwin, o marido da irmã da nora deles, rapaz sem envergadura e que logo voltaria a se casar. "Mas sua mulher não está morta", tentou explicar Angélica... "pelo menos não estava na última vez em que a vi em Wapassu..."

Benjamim William não quis ouvir. Para ele, tudo o que estivesse além dos grandes bosques ao norte, rumo a essas regiões distantes, inacessíveis, onde franceses possessos amolavam suas facas de escalpo em vapores de incenso, tudo isso era já o Outro Mundo, e, de fato, bem poucos ingleses haviam dali regressado!

— Seja franco ao menos uma vez - disse Angélica ao filho. - Há algo em minha aparência que possa descontentá-los? Estarei, eu também, indecente?

— Deveria colocar algo aqui - disse Cantor em tom doutoral, apontando o decote do corpete de Angélica.

Ambos riam como crianças sob o olhar triste da pobre Rose Ann, quando as criadas de vestido azul entraram com um tacho de madeira com armação de cobre e numerosos picheis, de onde escapava um vapor de água fervente. Um rapaz alto, sério como um pastor, veio à procura de Cantor, que o seguiu adotando a mesma expressão afetada e preocupada, desmentida por suas faces louçãs de adolescente.

Em contrapartida, as criadas, graciosas jovens de tez queimada pelo ar dos campos, pareciam de humor menos rígido. Assim que se viam longe do olhar severo do velho amo, sorriam de bom grado, e seus olhares, ao observarem Angélica, faiscavam de animação. Era um acontecimento prodigioso, a chegada dessa grande dama francesa. Examinavam cada peça de seu vestuário, bastante modesto no entanto, e acompanhavam cada um de seus gestos, o que não as impedia de mostrar-se bem ativas, trazendo uma pasta de sabão numa tigela de madeira, apresentando toalhas aquecidas diante da lareira.

Angélica ocupou-se primeiro da menina. Não mais se espantava de que a inglesinha lhe tivesse parecido por vezes um pouco embrutecida, ao ver de onde ela provinha. Era preciso voltar à atmosfera de La Rochelle... ou a bem pior!

Ao chegar, porém, o momento de vesti-la, quando Angélica quis passar-lhe o vestido escuro que lhe haviam preparado, a tímida menina revoltou-se. Decididamente, sua permanência junto aos franceses não fora nada boa. O pouco tempo que passara entre eles perdera-a para sempre, era o que teria verificado o reverendo pastor, pois viram-na de súbito repelir com violência a triste vestimenta que lhe era apresentada. E, voltando-se para Angélica, ela enroscou a cabeça em seu peito e prorrompeu em soluços.

-        Quero ficar com meu belo vestido vermelho! - gritou.

E para confirmar de onde lhe vinha aquele humor rebelde, repetiu a frase diversas vezes em francês, o que teve o dom de aterrar as criadas. Aquela língua ímpia na boca de uma William, as manifestações sem pejo de cólera e de obstinação, a confessa coqueteria, tudo era terrivelmente desconcertante, não anunciava nada de bom... - Mrs. William jamais conserítirá - disse uma delas, hesitante.

CAPITULO XII

Refeição à mesa dos William - O Reverendo Tomás Patridge

Muito tesa, alta e magra, hierática, imponente, a velha Sara William abateu um olhar pesado sobre a neta e sobre Angélica.

Haviam procurado a avó para resolver o impasse, o que aparentemente só poderia ser conseguido com o sacrifício de uma das partes.

Ninguém evocava melhor a ideia de Justiça e de Renúncia do que aquela grande Sara, bastante impressionante vista de perto, em suas roupas escuras, o alto pescoço sustentado pela gola frisada.

Possuía pupilas imensas, pesadas, azuladas, que velavam olhos um pouco saltados, cujo fogo negro faiscava por instantes num rosto muito pálido, mas cujas curvas envelhecidas tinham uma espécie de majestade.

Ao se olhar suas mãos magras e diáfanas, uma sobre a outra num gesto piedoso, era impossível esquecer a presteza com que essas mesmas mãos podiam brandir uma arma.

Angélica afagava os cabelos de Rose Ann, que não se acalmava.

- É uma criança - defendeu-a, olhando a intratável dama - as crianças naturalmente gostam do que é vivo, alegre, gracioso...

Então notou que os cabelos de Mrs. William estavam cobertos com uma encantadora touca de renda de Flandres. Um daqueles objetos no mínimo diabólicos e que arrastavam à perversão da vaidade, denunciados há pouco pelo velho Ben.

Baixando as longas pálpebras, Mrs. William pareceu meditar. Em seguida deu uma breve ordem a uma das moças, a qual retornou trazendo uma roupa branca e pregueada. Angélica viu que era um avental de tela com um largo peitilho.

Com um gesto, Mrs. William indicou que Rose Ann podia voltar a vestir a roupa incriminada, com a condição de velar parcialmente seu esplendor agressivo com o avental.

Em seguida, voltando-se para Angélica, deu uma piscadela de conivência, enquanto a sombra de um sorriso malicioso perpassava por seus lábios severos.

Após essas mútuas concessões, os William e seus hóspedes puseram-se à mesa, arrumada para a refeição da noite.

Maupertuis e o filho mandaram avisar que estavam sendo recebidos por um membro da comunidade com o qual haviam outrora negociado peles, durante uma viagem a Salem.

Ademar vagava como uma alma penada pelos atalhos herbosos da colónia, seguido por uma nuvem de pequenos puritanos curiosos, os quais de quando em quando tocavam com dedo assustado seu uniforme azul de soldado do rei da França, e seu mosquete, na ponta do braço desanimado.

-        A floresta- está cheia de soldados - gemia. - Sinto-os à nossa volta.

Angélica foi à sua procura.

— Ora, Ademar, não encontramos- vivalma o dia todo! Venha comer.

— Eu, sentar-me em meio a esses heréticos, que odeiam a Virgem Maria? Isso nunca!...

Permaneceu diante da porta, esmagando os mosquitos nas faces e avaliando as desgraças que o espreitavam por todo lado naquela horrível região: os selvagens e os ingleses... Chegara a sentir-se mais seguro junto de.uma pessoa que alguns suspeitavam ser um espírito diabólico, mas que possuía ao menos o mérito de ser francesa. E lhe falava com gentileza e paciência, ao invés de pressioná-lo, aquela dama que diziam ser a Diaba. Pois bem, ele montaria guarda para defendê-la, pois os recrutadores do rei haviam feito dele um soldado e posto um mosquete em sua mão.

Haviam colocado diante de Angélica uma tigela de leite morno onde flutuava um ovo batido. Esse prato simples, de sabor quase esquecido, encheu-a de alegria. Havia perua cozida, acompanhada por um molho fortemente perfumado de menta para dar-lhe gosto, e milho em grãos. Depois trouxeram uma torta, cuja cobertura de massa deixava escapar o vapor perfumado de uma compota de mirtilo.

Saber que o Conde de Peyrac e sua família haviam vivido no Alto Kennebéc, a mais de quatrocentas milhas do mar, punha os ingleses em transe. Decerto eram franceses, mas a empresa, sobretudo para as mulheres e crianças, não deixava de ser incomum.

- E verdade que tiveram que comer seus cavalos? - insistiam.

Os jovens, principalmente, interessavam-se pelo gentil-homem francês, amigo e delegado da baía de Massachusetts. Quais eram seus pro-jetos? Era verdade que pretendia fazer uma aliança com os índios e os franceses seus compatriotas, para evitar as incursões assassinas na Nova Inglaterra?

O velho Benjamim não fazia coro com eles. Decerto ouvira falar do Conde de Peyrac, mas preferia não refletir naquelas presenças diversas, de todas as nações, que pretendiam povoar o Maine.

Não bastava que não se soubesse mais onde colocar os pés, à beira do Massachusetts? Não lhe agradava pensar que existiam outras pessoas na Terra além dos membros de sua pequena tribo.

Queria estar sozinho com os seus, na aurora do mundo, ou como Noé saindo da arca.

Sempre fugira para os lugares desertos, sempre tentara imaginar que eles eram os únicos a poder louvar o Criador, "o pequeno rebanho bem-amado, desejado por Deus para Sua maior glória"; mas o mundo sempre o alcançava e lhe lembrava que o Criador devia partilhar sua bondade com não se sabe quantas populações desinteressantes e ingratas.

Angélica, que adivinhava sem dificuldade, somente ao olhá-lo - grande nariz audacioso, investigador, por cima da barba branca, olhares intolerantes -, a vida errante do patriarca, condutor de povos, perguntava por que ele queria tão mal ao filho por ter seguido o exemplo de independência paternal, saindo de Biddeford-Saco e indo instalar-se em Biddeford-Sébago. Mas aquele era um dos costumeiros mistérios das relações entre pais e filhos desde que o mundo é mundo. Os reveses do género humano apontavam sob as carapaças duras e santas, e Angélica sentia nascer, com relação àquelas pessoas honestas e intratáveis, uma terna simpatia.

Reconfortada pela excelência da .refeição, percebia um certo calor comunitário a ligar aquelas personagens de roupas escuras, cheias de princípios.    

Uma vez expressos e confirmados os princípios, os sentimentos mais humanos retomavam seus direitos.

Rose Ann conservara o vestido vermelho,, e ela, Angélica, francesa e papista, não era por isso menos homenageada à mesa da família.

A presença de Cantor intrigava. Não pertencia a nenhum dos lados aquele adolescente de olhos claros.

Devido a seu excelente" inglês e a seu conhecimento de Boston, era unanimemente aceito. Ao lembrarem, depois, que também ele era francês e papista, houvera um recuo. Todos os homens presentes, o velho Benjamim e seus filhos e genros, examinavam-no com interesse sob as sobrancelhas severas, interrogavam-no, faziam-no falar, meditavam sobre cada .uma de suas respostas.

Mais para o final da refeição, a pofta se abriu para um homem barrigudo e colossal, cuja aparição introduziu como que uma corrente de ar frio na atmosfera jovial e íntima que aos poucos se havia estabelecido.

Os avós logo adotaram sua máscara mais rígida.

Era o Reverendo Tomás Patridge. A união que o fizera nascer sanguíneo e de cepa irlandesa, somando-se às dificuldades de toda criatura terrestre em manter-se nas virtudes da mansidão, humildade e castidade, só lhe permitira atingir a retidão moral que o tornava um dos maiores ministros de seu tempo através de uma cultura vasta e minuciosa, uma denúncia constante dos pecados dos outros, e pela explosão frequente - como um jato de vapor saindo pela tampa da panela - de santas e tonitruantes cóleras.

Além disso, lera Cícero, Terêncio, Ovídio e Virgílio, falava latim e sabia hebraico.

Lançou sobre a assembleia um olhar sombrio, demorou-se sobre Angélica com uma espécie de pasmo fingido, como se realmente sua visão ultrapassasse o que de pior se pudesse prever, relanceou o olhar com desprezo e tristeza a Rose Ann, que se lambuzava com mirtilos sem constrangimento, e depois envolveu-se em sua larga e longa capa genovesa, como se quisesse defender-se e isolar-se de tanta torpeza.

— Com que então, Ben - disse com voz cavernosa -, a sabedoria não veio para você com a velhice; introdutor jesuíta e papista, ousa fazer sentar-se à sua mesa a própria imagem daquela que precipitou o género humano na maior das angústias. Eva, adornada com sua inconsciência e suas seduções tentadoras! Ousa acolher no seio de sua piedosa família uma criança que só lhe pode trazer vergonha e confusão. Ousa enfim receber aquele que encontrou o Homem Negro na floresta e assinou com seu sangue o livro infame apresentado pelo próprio Satã, de onde lhe vem a impunidade com que pode percorrer as trilhas pagãs, mas que devia interditar-lhe para sempre a soleira de uma moradia santa...

— É para mim que fala, pastor? - interrompeu o velho Shapleigh, erguendo o nariz da escudela.

— Sim, para você, insensato! - trovejou o reverendo -, que, sem cuidado com a salvação de sua alma, ousa envolver-se com Magia para satisfazer curiosidades infames. Quanto a mim, a quem o Senhor dotou de uma vida espiritual que mergulha no segredo das consciências, vejo sem dificuldade uma faísca diabólica em seu olho que...

— E eu, pastor, vejo sem dificuldade em seu olho injetado de sangue, de um sangue que, não sendo infernal, nem por isso é menos espesso e perigoso para a saúde, que se arrisca a encontrar-se, um belo dia, mudo pelo efeito de um virulento transporte dos humores...

O velho medecin's man ergueu-se e caminhou com ar astuto até o arrebatado ministro. Obrigando-o a inclinar-se, examinou-lhe o branco dos olhos.

-        Não o obrigarei à lanceta - disse-lhe. - Com o senhor seria um trabalho sem fim. Mas tenho em meu alforje algumas ervas descobertas graças à minha infame curiosidade e cujo tratamento, corretamente seguido, lhe permitirá encolerizar-se sem riscos, tantas vezes quantas lhe forem necessárias. Vá para a cama, pastor, eu cuidarei do senhor. E para afastar os demónios queimarei coriandro e grãos de funcho.

O discurso exprobatório do pastor parou por ali naquela noite.

CAPÍTULO XIII

Pregação na meeting house

As vigas rústicas exalavam um odor de mel. Tinham nos cantos alguns buques de flores secas dependurados.

Angélica despertou uma primeira vez durante a noite. O canto do engole-vento enchia a escuridão pontilhada de estrelas distantes. Seu chamado contínuo sobre duas notas lembrava uma roca, ora próximo, ora a se extinguir. Angélica levantou-se e, apoiando as mãos no peitoril da janela, espreitou a floresta. Os ingleses da Nova Inglaterra contam que o engole-vento repete nessas duas tonalidades monótonas: "Chora! Chora, pobre Guilherme!"

Isso desde que Guilherme encontrou a mulher e os filhos massacrados. Na noite precedente, ele ouvira o canto do engole-vento. Ora, esse canto era emitido pelos índios escondidos na mata, que se reuniam, aproximando-se da cabana do colono branco.

Súbito, o canto cessou... Uma sombra passou contra o céu notur-no. Duas grandes asas pontiagudas, uma longa cauda arredondada, um vôo brando e silencioso cortado por bruscos ziguezagues e por um único olho vermelho fosforescente. O engole-vento caçava.

Um ruído poderoso de granizo, composto pelo canto de mil gafanhotos, grilos e rãs, acompanhava a noite junto com o cheiro dos animais selvagens proveniente da floresta, com o odor de morangos silvestres e de tomilho, expulsando os miasmas de estábulo e de lama.

Angélica voltou a deitar-se no alto'leito de carvalho, de colunas espiraladas, que sustentavam uma alcova cujas cortinas índias estavam abertas, devido ao calor dessa noite de junho.,

Os lençóis de linho, tecidos pelas mãos de Sara William, tinham o mesmo perfume fresco e floral do quarto.

Haviam retirado de sob a cama uma armação de madeira com tiras de lona, sobre as quais jogaram uma enxerga. O leito da criança ao abrigo do leito dos pais. Rose Ann ali dormia naquela última noite.

Angélica voltou a adormecer quase de imediato.

Quando abriu novamente os olhos, o céu estava cor de resedá por sobre a frisa escura e harmoniosa dos olmos na colina, e o canto do tordo, de solene suavidade, substituíra aquele do engole-vento. O perfume dos jardinzinhos e dos lilases junto às cercas de madeira afugentava os eflúvios noturnos vindos da floresta.

Cabaças e abóboras ao pé das casas, em meio à vegetação e abrigadas em suas folhas festonadas, brilhavam como esmalte sob o abundante orvalho matinal.

O perfume dos lilases nos jardinzinhos ou nas cercas de madeira tinha um novo frescor no ar impregnado de orvalho.

Novamente Angélica apoiou-se à pequena janela. As silhuetas irregulares das casas de madeira saíam uma a uma da bruma da manhã com seus telhados de águas assimétricas, algumas descendo quase junto ao chão, "caixas de sal", com suas empenas, andares com sacadas, chaminés de tijolos bem no meio da cumeeira do telhado, amplas e sólidas como os solares elisabetanos. Construídas em pinho, na sua maior parte, tinham reflexos prateados sob a luz nascente.

Algumas granjas eram de toras de madeira cobertas de palha, mas o conjunto da aldeia respirava uma harmonia opulenta.

Velas acendiam-se por trás das vidraças de pequenos losangos encaixilhados em chumbo, em janelas sem painéis de madeira. Revelava-se todo um conforto proveniente do cuidado, da atenção para com a vida e com o tempo precioso que nada deve perturbar. A vida de uma residência nesses vales isolados não era feita de detalhes ínfimos e necessários? Assim, os jardins em vários matizes brotavam por todo lado, não tanto para o prazer da alma e dos olhos, mas mais para abrigar plantas medicinais, alimentícias e aromáticas em profusão.

Surpresa, seduzida, Angélica interrogava-se sobre aquela raça de ingleses habituados a contar apenas consigo próprios e que despertavam com invocações nos lábios, seres tão diferentes daqueles que ela habitualmente encontrava. Impelidos para a América pelo gosto rebelde e imutável de rezar à sua manç-ira e pela necessidade de encontrar um pedaço de terra para fazê-lp, traziam com eles um Deus à sua imagem, que proibia os espetáculos, a música, as cartas e os vestidos escarlates, tudo o que não fosse Trabalho e Pregação.

Era na retidão do trabalho bem-feito e produtivo que hauriam a exaltação dõ gosto de viver. O sentimento de perfeição tomava o lugar do gozo, e a placidez do home, do" lar, o da sensualidade.

Mas a dúvida e a inquietação queimavam sem cessar, como a vela acesa na casa de um morto. O país, o clima, ajudavam. Criados em praias desertas, entre apelos dolentes do mar e do vento e os odores pagãos da floresta, os terríficos sermões dos pastores .mantinham-nos em patética vulnerabilidade...

Tendo sua teologia suprimido os santos e os anjos, só lhes restavam os demónios. Viam-nos por todo lado. Conheciam todas as hierarquias, desde os geniozinhos de unhas pontiagudas que furam os sacos de grãos até os principados temíveis, coroados de nomes cabalísticos.

No entanto, a beleza do país para onde o Eterno os conduzira clamava pelos anjos.

Assim divididos entre a mansidão e a violência, o lilás e o espinheiro, a ambição e a renúncia, tinham apenas o direito de viver com a preocupação constante com a morte.

Ainda não estavam suficientemente impregnados dela, estimava o Reverendo Patridge.

E isso se fez sentir de modo contundente em seu sermão daquele domingo.

Debruçada à janela, Angélica surpreendera-se por ver o dia nascer sem que houvesse qualquer agitação.

Ninguém saía das casas, salvo algumas mulheres que iam buscar água no riacho, e que o faziam sem pressa.

Ora, era domingo. Domingo! Para os católicos, também, conforme Ademar lhe lembrou com voz chorosa, "vindo chamá-la sob as janelas.

— Hoje festejamos Santo António de Pádua, senhora.

— Que ele faça com que encontre sua cabeça e sua coragem perdidas! - retorquiu Angélica, já que o santo francês possuía a fama de ajudar a encontrar objetos perdidos. O francês não levou a coisa na brincadeira.

— No Canadá, é uma grande festa, senhora. E eu, ao invés de lá estar, acompanhando uma bela procissão, numa boa e santa cidade francesa, encontro-me aqui, no inferno, bem no meio de heréticos que crucificaram Nosso Senhor. Não há dúvida de que serei punido! Algo acontecerá, eu o sinto...

— Cale-se - sussurrou-lhe Angélica - e guarde seu terço. A visão desse objeto incomoda os protestantes.

Mas Ademar continuava a apertar convulsivamente o rosário e a implorar, resmungando a meia voz, a proteção da Virgem Maria e dos santos, acompanhado pela nuvem de pequenos puritanos, sempre calados, com os calçados particularmente lustrosos nesse dia, e com os olhos arregalados sob os chapéus redondos e as toucas negras.

A chegada do domingo, não prevista pelo grupo de franceses, contrariava os projetos de partida.

Tudo parava. Estava fora de questão movimentar-se em preparativos. Escandalizariam fortemente a população.

E o velho Shapleigh, que atravessou a aldeia com seu alforje e seu bacamarte ao ombro, dirigindo-se ostensivamente para a floresta em companhia de seu índio, foi escoltado por olhares sombrios, murmúrios, e até gestos de ameaça. Ele não se preocupava com isso, sempre trocista e sardónico. Angélica invejou sua independência.

O velhote inspirara-lhe a mesma confiança que lhe inspirara outrora o notável Savary. Envolvido com a ciência, há muito rejeitava os preconceitos de seus correligionários, que poderiam impedir a satisfação de suas manias. E quando, na floresta, ele girava sobre si mesmo, agitando os dedos pálidos e delgados, era porque acabava de perceber algumas flores e brotos nas folhagens, que designava com seus nomes latinos, fixando o local onde se encontravam.

Angélica não fazia o mesmo quando ia colher plantas medicinais nos bosques de Wapassu?

O velho Shapleigh e ela se haviam identificado.

Ela deplorou vê-lo afastar-se e desaparecer, mergulhando com o índio na ravina umbrosa, que conduzia ao rio Androscoggin.

Um sino tilintava na colina. Os fiéis puseram-se a caminho da meetine house fortificada, que se erguia no alto da aldeia, emoldurada de olmos. A casa de reunião era para eles a igreja, um edifício ao mesmo tempo civil e religioso.

Feita da tábua, só se distinguia dos outros edifícios por uma pequena torre pontiaguda onde balançava o sinofe por sua forma quadrada. Pois era ao mesmo tempo um fortim, onde em caso de invasão índia era possível refugiar-se, e "nq andar superior abrigava dois canhões, cujas negras goelas, apontando nas seteiras, enquadravam a torre, símbolo de paz e de orações. „

Ali os habitantes de Brunswick Falis, a exemplo dos padres da Nova Inglaterra, iam realizar suas assembleias, louvar o Senhor, ler a Bíblia, acertar os negócios da colónia, admoestar e fazer-se admoestar, condenar o vizinho e fazer-se condenar-;- envolvendo a Deus em todas essas tarefas.

Angélica hesitava em seguir a austera companhia. Um velho resquício de educação católica constrangia-a diante da ideia de penetrar em um templo herético. Pecado mortal, perigo incomensurável para a alma do fiel. Reflexos enraizados na infância impressionável.

- Devo usar meu vestidtrvermelho? - pergurltou a pequena Rose Ann.

Enquanto subia até a igreja com a menina, Angélica viu que os habitantes de Brunswick Falis pareciam ter abrandado, em honra do Senhor, a severidade de suas vestimentas. '

Se não havia vestidos vermelhos como o que confeccionara para Rose Ann, havia vestidos rosa, brancos e azuis entre as meninas, toucas de renda, fitas de cetim, chapéus de altas coifas negras e abas largas, com fivelas de prata ou pluma, e que as mulheres usavam sobre as toucas de beiradas reviradas e bordadas. Uma moda inglesa, porém muito prática e graciosa, e que Angélica; por seu turno, adotara, quando começara a peregrinar pela América.

Elegância discreta, mas que se harmonizava com a discrição das moradias claras, empenachadas de lilases; e com a serenidade do céu, cor de flor de linho.

Era um belo domingo em Newehevanik- a terra da primavera.

A passagem de Angélica, os moradores arriscavam um sorriso afe-tuoso e uma pequena inclinação de cabeça. E vendo-a seguir pela vereda que conduzia à igreja, colavam-se a seus passos-, felizes por tê-la como hóspede naquela manhã. Cantor foi ao encontro da mãe.

— Sinto que não podemos falar na partida. Não seria conveniente - disse-lhe Angélica. - No entanto, o navio de seu pai nos aguarda na embocadura do Kennebec esta noite, ou amanhã, o mais tardar...

— Talvez possamos pedir licença para retirar-nos após a pregação. Hoje-os animais estão no campo, sob a guarda de um único pastor. Os bezerros podem mamar em suas mães. Assim, reduz-se o trabalho suprimindo-se a ordenha. E todo mundo descansa. Vi Mauper-tuis há pouco. Ele levava nossos cavalos ao riacho. Disse que os deixará pastar enquanto os vigia com o filho, e que os trará de volta perto do meio-dia. Então pegaremos a estrada, com o risco de acampar à noite na floresta.

Na esplanada aonde haviam chegado, diante da casa de reunião, havia um tablado sobre o qual estava uma prancha com três furos, o do meio, maior. O furo para a cabeça, explicou Cantor, enquanto os outros prendiam apenas os punhos. Era o pelourinho, onde se expunham os condenados. O bárbaro instrumento tinha ao lado um cartaz onde deviam inscrever-se o nome da pessoa exposta e os motivos da condenação.

Um mourão para o uso do chicote completava o equipamento judiciário da pequena colónia puritana.

Felizmente, nessa manhã, o estrado do pelourinho estava vazio.

No entanto, o Reverendo Patridge insinuou em seu sermão que ele em breve talvez estivesse ocupado.

Sentada entre os fiéis, imóveis como personagens de cera, Angélica percebeu que a elegância que observara nesse dia não se devia a um desejo lícito de honrar o dia do Senhor, mas a uma rajada de loucura que parecia ter soprado de súbito sobre as ovelhas indisciplinadas do ministro. Furacão de origem estrangeira... Não era preciso buscar muito longe a inspiração dessas desordens, pois vinha direto de uma religião semi-oriental, cujos desvios através dos séculos quase arrastaram à perdição, sob o báculo de chefes dedicados ao Demónio, a humanidade inteira. Seguia uma lista histórica em que os nomes dos papas Clemente e Alexandre misturavam-se estreitamente aos de Astaroth, Asmodeu e Belial. Angélica compreendia suficientemente bem o inglês para discernir que o tonitruante pastor tratava o atual papa alternadamente de Anticristo e Belzebu, e achava que ele exagerava um pouco em seus arroubos.

Aquilo lhe trazia recordações da infância, suas brigas com os pequenos camponeses huguenotes, as'fazendas heréticas no Poitou, que eram apontadas com reprovação;.separadas das comunidades católicas, com seus túmulos solitários junto a um cipreste. Mas uma reti-dão ingénua e rude, sem as finas nuanças do tato e sem o senso do ridículo, caracterizava aquela boa gente.

Tomás Patridge lembrou de que os atributos da graciosidade estão entre os mais evanescentes e os que mais depressa desaparecem.

Enfureceu-se contra as cabeleiras demasiado longas, tanto para os homens como para as mulheres. Contra o excesso de escovadelas e os cacheados imodestos. Réprobos, idólatras!

-        Berthos! Berthos! - clamou.

As pessoas sé perguntaram que Demónio ele ainda invocava, mas era o sacristão,.a quem-ele chamava à ordem, encarregando-o de despertar um insolente, que adormecera apesar de seus clamores.

Berthos, um gnomo de cabelos de corte arredondado, saltou, armado de uma longa vara munida de um pé de corça e de uma pluma, e veio assentar violento golpe na cabeça do dorminhoco. A pluma cumpria o mesmo ofício junto às damas, porém de modo mais delicado, sendo passada sob o nariz se um sermão demasiado longo inclinava à sonolência".      -

— Infelizes! - retomou o ministro com voz lúgubre -, em sua inconsciência, fazem-me pensar nos habitantes de Lariche, de que fala a Bíblia, que se recusavam a preocupar-se com sua salvação e sua defesa, enquanto seus inimigos danitas afiavam as facas, preparando-se para degolá-los. Eles riam, dançavam, acreditavam que não tinham mais inimigos do mundo, não queriam ver o que se prenunciava, não tomavam nenhuma medida de cautela.

— Perdão, protesto! - exclamou o velho Benjamim William, empertigando-se. - Não vá dizer que não velo pela salvação dos meus! Escrevi uma mensagem ao governo de Massachusetts, pedindo às autoridades que nos enviem de oito a dez homens, robustos e alertas, para proteger-nos durante as colheitas...

— Tarde demais! - rugiu o ministro, enraivecido com a interrupção. - Quando a alma não está santificada, as preocupações humanas de nada servem. Assim, predigo: quando vierem as colheitas, não estarão mais vivos! Que estou dizendo? Amanhã? Esta noite mesmo, quantos de vocês já não estarão mortos! Os índios estão na floresta à nossa volta, prontos para degolá-los! Eu os vejo, ouço-os amolar suas facas de escalpo. Sim, eu os vejo, vejo brilhar-lhes nas mãos um sangue vermelho, o seu... e o seu - rugiu, apontando bruscamente o indicador para alguns, que empalideceram.

A assistência, agora, estava petrificada de terror.

Ao lado de Angélicar uma frágil velhinha, Elisabete Pidgeon, que se ocupava com a instrução das meninas do lugar, tremia inteira.

- Pois o vermelho não é a cor da alegria - declamou Tomás Pa-tridge com voz lúgubre, fixando Angélica -, mas a cor da calamidade, e a introduziram entre vocês, insensatos! E breve ouvirão ressoar a voz do Todo-Poderoso nas nuvens, dizendo: "Você preferiu os prazeres deste mundo à alegria de contemplar minha face. Pois bem! vá, afaste-se para sempre de mim!" E mergulharão para sempre nas trevas do Inferno, no abismo insondável e escuro, para sempre... Sempre, sempre... Sempre!

Todos tremeram. Saíram, hesitantes, para a esplanada ensolarada, perseguidos pelos ecos da voz cavernosa e implacável:

For ever!... For ever!... For EVER!

CAPÍTULO XIV

Confidências de Mrs. Wjlliam- O ataque dos abenakis

-Ainda seouviráfalar desse vestido vermelho - resmungou Angélica.     

A serenidade da refeiçãodominical, acompanhada de versículos da Bíblia, não conseguiu dissipar o mal-estar criado pelo sermão do pastor. Após-íD almoço, Angélica demorou-se no jardim de ervas, examinando as espécies plantadas, esmagando-as entre os dedos para identificar-lhes o perfume^O ar superaquecido vibrava com a ronda ativa das abelhas. Angélica ficou impaciente por ver Joffrey. O mundo parecia-lhe vazio. E sua própria presença naquela aldeia inglesa pareceu-lhe bizarra, intolerável, como em sonhos, quando se começa a perguntar o que se está fazendo em certo lugar e se percebe que há algo suspeito, sem explicação.

— Mas que estará fazendo Maupertuis? - gritou para Cantor. - Olhe! O sol declina. E ele ainda não voltou da floresta com os cavalos!

— Vou até la - disse Cantor, dirigindo-se imediatamente com passo rápido para a extremidade da aldeia.

Ela o viu avançar para a cortina de vegetação que cercava tudo em derredor. Esteve a ponto de detê-lo, de gritar; "Não, não vá, Cantor! Cantor, meu filho, não vá à floresta..."

Mas ele desapareceu na virada do caminho para o aprisco, última construção da aldeia antes da floresta.

Ela entrou na moradia de Benjamim, subiu a escada e afivelou vivamente sua bolsa de couro, pegou suas armas, lançou o manto sobre os ombros, pôs o chapéu e desceu. Criadas sentadas junto às janelas devaneavam, rezavam ou nada faziam. Ela não quis perturbar-lhes a meditação, passou por elas e saiu na rua ervosa da colónia. A pequena Rose Ann corria atrás dela, em seu vestido vermelho.

— Oh! não partir, cara dama - murmurou em seu francês trôpego, ao alcançá-la.

— Querida, tenho que partir agora - disse Angélica sem diminuir o passo. -Já me demorei em demasia. Não sei como se passa o tempo aqui, num domingo, mas eu já tinha que estar na costa, onde me espera o navio... Já se faz tão tarde, que não chegaremos antes do alvorecer!...

Comovente em sua afeição e solicitude, a inglesinha tentava tomar-lhe a bolsa para carregá-la.

Subiram juntas a encosta e deram algumas voltas antes de avistar as últimas casas do vilarejo, as menores e mais pobres, de toras de madeira e cobertas de ervas ou cascas de árvore, e mais ao longe, a última. O grande aprisco.

Antes dele havia ainda um celeiro de milho, onde os franceses haviam passado a noite e onde Ademar devia estar curtindo seus temores. Depois vinha o chalé de Miss Pidgeon, a professora, rodeado de um aglomerado de flores. Isolado a distância, o sólido aprisco, com sua empena e seu cata-vento, era uma bela construção em meio aos pastos com cercas. Para além dele mergulhava a ravina, por onde haviam subido na noite anterior. Alguns campos lavrados na encosta e depois o universo das árvores, das quedas-d'água e das rochas abruptas: a floresta.

No jardim de Miss Pidgeon, o busto altivo de Mrs. William, a avó de Rose Ann, emergia das malvas-rosas, das quais ela retirava com dedos ágeis as pétalas fenecidas. Ela fez um gesto de imperioso chamado para Angélica, que pousou a bolsa e aproximou-se para se despedir.

-        Veja estas rosas - disse Mrs. William. - Devem sofrer porque hoje é o dia do Senhor? Com isso fiz jus à nova admoestação pelo nosso reverendo. Mas obriguei-o a calar-se. Já ajustamos nossas contas por hoje...

Com um gesto do indicador, envolvido por uma dedeira de couro, indicou a casinha atrás de si.

-        Ele está aqui, conversando com Elisabete sobre seus fins últimos, coitada!

Com mão ágil, retomou a tarefa. O olho^gudo sob a pesada pálpebra malva virou, esmiuçou, enquanto um dos cantos de seus lábios inexpressivos erguia-se num; meio, sorriso.

-        Talvez eu mereça o pelourinho'- disse. - E se escreverá no cartaz: "Por ter amado as rosas em demasia!"

Angélica olhava-a, sorrindo também, um pouco desconcertada. Desde a véspera, quando se vira pela primeira vez diante da enérgica avó, esta parecera divertir-se em mostrar-se por diversas vezes sob um aspecto inesperado. Angélica não sabia mais o que pensar a seu respeito. Naquele instante, não sabia se Mrs. Wílliam troçava, gracejava, provocava, ou. seela própria, Angélica, interpretava mal as palavras inglesas^ Ocorreu-lhe a ideia de que a honorável puritana talvez tivesse uma leve inclinação para as bebidas fortes, gim ou rum, o que poderia deixá-la, por momentos, de humor brincalhão, mas logo afastou a ideia como incongruente, monstruosa. Não, era outra coisa. Uma espécie de embriaguez, talvez, mas inconsciente, vinda de uma fonte muito pura.

E ali, em pé, diante daquela mulher altiva, bem mais alta que ela, sólida, rígida como uma rocha e.que súbito lhe falava com viva independência, Angélica sentiu a mesma impressão de irrealidade de há pouco, uma dúvida de estar ali, a sensação do cenário vacilante, do chão fugindo sob os pés. E o despertar próximo, mas que não chega...

Nada! A natureza permanecia imóvel, carregada de odores e de zumbidos de abelhas.

Sara William^saiu do maciço de malvas-rosas, roçou com o dedo, numa carícia, as hastes com rebentos verdes, rosa e branco-puros.

-        Agora estão contentes - murmurou.

Afastando a cancela, aproximou-se de Angélica. Retirou a luva e colocou-a num grande bolso, preso ao cinto, que continha alguns pequenos instrumentos de jardinagem. Enquanto assim fazia, seu olhar não deixava o rosto da mulher estrangeira, que na véspera lhe trouxera sua neta.

-        Viu o Rei Luís XIV, da França? - perguntou. - Esteve com ele? Sim, isso se sente. O reflexo do Sol continua em você. Ah! As mulheres francesas, quanta graça!... Vamos, caminhe, caminhe - disse, afastando-se --, caminhe um pouco diante de mim...

Seu curioso meio sorriso acentuou-se, como que distendido por uma alegria prestes a explodir.

-        Também eu estou ficando como as crianças. Gosto do que é vivo, do que é gracioso, do que tem frescor...

Angélica deu alguns passos conforme a velha mulher lhe ordenara e voltou-se. Seu olhar verde era interrogativo e ela possuía, sem o saber, uma expressão infantil. A velha Sara William fascinava-a. Em pé no meio do caminho - esse caminho único, a um tempo rua, estrada, atalho, que ia da floresta à casa de reuniões sobre a colina, atravessando toda a aldeia -, recebendo sobre si a sombra dos grandes olmos cujo reflexo das folhas empalidecia-lhe ainda mais as faces cerosas, a alta mulher inglesa postava-se com um punho no quadril, muito tesa, o pescoço tão longo e cheio de elegância para fora da pequena gola frisada, que qualquer rainha lhe invejaria o porte. O talhe estreito e comprimido por rígidos espartilhos arredondava-se através de uma espécie de almofada de veludo negro colocada ao redor dos quadris. Era uma moda do início do século, que Angélica vira usar sua mãe e suas tias. Mas o casaco negro, sobre a segunda saia de um violeta escuro, era mais curto que outrora, e ao suspendê-lo um pouco, devido ao punho nos quadris, Mrs. William não temia revelar as botas de montaria também negras, porém finas, com que devia sentir-se mais à vontade para percorrer os caminhos e prados encharcados.

"Como essa mulher deve ter sido bela no passado!", pensou Angélica.

Talvez viesse a parecer-se com ela, um dia... Via-se assim, de botas, percorrendo seus domínios com passo vivo e altivo, um pouco temida, segura de si, liberta, e o coração em festa à simples visão de uma pradaria florida ou de uma criancinha tentando os primeiros passos. Seria sem dúvida menos rígida, menos rude. Mas Mrs. William era assim tão rude?... Ela avançou, e seu rosto, de traços pesados e caídos, mas harmoniosos, expunha-se à luz esmeralda do bosque e traía um sentimento de felicidade inesquecível. Detendo-se junto a Angélica, mudou subitamente de expressão.

— Não sente o cheiro de selvagem? - perguntou, franzindo o cenho e recobrando sua expressão hierática e intimidante. - The redman... O homem vermelho.

Medo e repulsa perpassavam ern sua voz.

— Não está sentindo?        

— Não, sinceramente - disse Angélica.

Estremeceu, porém, a contragosto. É no entanto jamais o ar lhe parecera tão perfumado como nessas paragens onde o aroma das madressilvas e dos cipós vinha misturar-se ao dos jardins floridos, em que dominavam o lilás e o mel.

-        Sinto amiúde esse cheiro, demasiado amiúde - disse Sara William, sacudindo a cabeça, como a reprovar algo em si mesma. - Sinto-o sempre. Está misturado a toda a minha vida. Ele me obseda. No entanto, há muito não tenho oportunidade de atirar junto com Benjamim, na defesa de nossa morada contra aquelas serpentes vermelhas. Quando eu era menina... e mais tarde, quando morávamos na cabana perto de Wells...

Interrompeu-se e sacudiu a cabeça novamente, renunciando a evocar as lembranças de'medo e de luta, todas elas semelhantes.

-        Havia o mar... Em último caso, podia-se fugir. Aqui não existe mar...     

Deu mais alguns passos.

-        Não é bem bonito este local? - perguntou, abandonando o tom peremptório.

A pequena Rose Ann, ajoelhada na grama, colhia aquilégias cor de coral.

— Newehevanik - murmurou a anciã.

— Terra da primavera - disse Angélica.

— Também o sabe? - interrogou a inglesa, olhando-a com vivacidade.

Seus olhos intensamente negros sob a pálpebra sombreada novamente fixaram Angélica, a estrangeira, a franeesa, parecendo tentar ler, adivinhar algo, descobrir uma resposta,- Uma explicação.

— A América? - perguntou. - Então é verdade, você a ama?... No entanto você é tão jovem!...

— Não tão jovem assim - protestou Angélica. - Saiba que meu filho mais velho tem dezessete anos e que...

O riso da velha Sara interrompeu-a. Era a primeira vez que ela ria. Um riso delicado, espontâneo, quase o riso de uma garotinha, que descobriu seus dentes um pouco grandes mas perfeitos e sãos.

— Oh, sim, você é jovem - repetia. - Ora! Ainda não viveu, minha cara!...

— Deveras?

Angélica estava quase aborrecida. Os prováveis vinte e cinco anos que Mrs. William possuía a mais talvez a autorizassem a mostrar-se condescendente, mas Angélica estimava que seu destino não fora tão curto nem tão monótono para que não soubesse o que era a vida...

— Sua vida é nova! - afirmou Mrs. William num tom irretorquí-vel. - Mal está começando!

— Deveras?

— E encantador o acento com que você diz: deveras. Ah! as mulheres francesas, como são felizes! Você é como uma chama que começa a brilhar e a crescer com segurança num mundo de trevas que não mais a assusta!... Somente agora começa a viver, não o sente? Quando se é uma mulher muito jovem, tem-se todo o peso da própria vida a ser construída, provas a serem dadas... É esmagador! E se está sozinha para assumir tudo isso... Depois que se deixa a infância, o que existe de mais solitário que uma mulher jovem?... Aos quarenta, cinquenta anos, pode-se começar a viver! As provas já foram dadas! Não se fala mais nelas. Volta-se a ser livre como as crianças, a se encontrar a si mesma... Creio não ter conhecido satisfação maior do que no dia em que verifiquei que a juventude me deixava, finalmente me deixava - suspirou. - Minha alma pareceu leve de repente, o coração tornou-se-me mais terno e sensível e meus olhos viram o mundo. O próprio Deus pareceu-me amigável. Eu estava sempre sozinha, mas já me habituara. Comprei de um mascate duas toucas de renda das mais belas, e nem a cólera do pastor, nem a reprovação de Ben conseguiram fazer-me ceder. Passei a usá-las desde então.

Riu novamente com malícia. Sua mão roçou a face de Angélica como faria com uma criança. Angélica esquecia-se de que precisava partir! O sol parecia ter-se retardado em seu curso e repousava como uma grande flor desabrochada, bem amarela ainda, num leito de nu-venzinhas brancas e aveludadas, acima do horizonte.

Ela escutava Mrs. William.

Esta tomou-lhe o braço e continuaram a caminhar lentamente para a aldeia. A maior parte das casas permanecia semi-oculta pela curva e o desnível de terreno, mas um mormaço cristalino parecia elevar-se do riacho que corria ao pe das casas^

— Gosta desta terra, não é mesmo, minha cara? - retomou Mrs. William. - É sinal de boa raça. A beleza dela étão grande! Não a conheci como desejaria. Você a conhecerá melhor que eu. Quando eu era jovem, sofria com a existência miserável e perigosa do litoral. Quisera ir a Londres, da qual nos falavam os marinheiros e nossos pais. Deixei-a aos seis anos. Ainda tenho a lembrança de seus campanários compactos, de suas -ruelas estreitas como ravinas, por onde rangiam nossas carruagens. Na adolescência, sonhava fugir, retornar ao Velho Mundor Somente o temor da danação mo impediu. Não - disse, como que respondendo a uma possível reflexão de Angélica -, não, eu não era bela nâ juventude. Agora sou bela. Atingi o tempo de minha significação. Quando.jovem, porém, eu era magra, demasiado alta, apagada, pálida, feia de verdade. Sempre fui grata a Ben por não ter desistido de desposar-me era troca do'lote de terrenos e do sloop para a pesca de bacalhau que ele queria obter de meu pai. Assim, suas próprias terras com uma pequena enseada ficavam valorizadas, pois eram vizinhas às nossas. Era um bom negócio para ele. Devia desposar-me e não recuou....

Deu uma piscadela para Angélica.

-        E não se arrependeu, creio eu.

Ela riu docemente.

-        Naquele tempo, porém, eu não teria provocado uma única faísca de interesse nos olhos dos piratas que desembarcavam perto de nossas casas para trocar rum e tecidos pilhados aos caraíbas por víveres frescos. Eram nobres aventureiros, amiúde franceses. Estou revendo seus rostos crestados de piratas, as roupas extravagantes ao lado de nossos trajes escuros e nossas golas brancas. Não nos teriam feito mal, pois éramos pobres como Jó. Estavam contentes por encontrar brancos naquela praia selvagem, e por comer os legumes e frutas que plantávamos, Eles, sem fé e sem lei, e nós, mais piedosos que o necessário, sentíamos pertencer à mesma raça, aos abandonados do fim do mundo... Agora há gente em demasia na costa e um excesso de navios mal-afamados na baía. Preferimos então estar longe, nas fronteiras...

- Ela olhou Angélica e comentou: - Surpreendo-a com minhas histórias, minhas confissões, minha criança... Mas recorde também que seu Deus é menos terrível que o nosso. Quando envelhecemos, devemos ficar loucas, ou ser más, ou feiticeiras, ou passar a agir segundo nossa vontade. Então tudo se acalma. Na verdade, nada mais tem importância!...

Ela sacudiu novamente a touca num gesto de desafio, e depois de aprovação, de serenidade.

Na véspera, tanta rigidez e implacável distância! Hoje, tanta finura e uma espécie de humildade!

Mais uma vez Angélica se perguntou se a honorável puritana não teria uma fraqueza escondida por um frasco igualmente bem escondido de aguardente de ameixa ou de absinto.

Mas logo afastou a dúvida, o coração comovido com essas confidências súbitas e emitidas como se ela estivesse semi-adormecida.

Mais tarde reviveria esse instante patético, compreenderia seu sentido...

O destino suspenso, mas já em marcha, levava uma mulher na última etapa da vida a ter gostos espontâneos, quase irrefletidos, movi- . mentos da alma, na verdade, expressão encarnada de um coração ardente, que permanecera caloroso e terno sob a armadura da severa religião.

A velha Sara voltou-se para Angélica e, tomando-lhe o rosto entre as mãos longas e brancas, ergueu-o para o seu, contemplando-o com fervor maternal.

-        Que a terra americana lhe seja propícia, cara filha - disse a meia voz -, e por favor... por favor, salve-a!

Suas mãos deslizaram, e ela as contemplou como que perturbada com seu gesto e suas palavras.

Enrijou-se, e sua face readquiriu uma frieza marmórea enquanto seu brilhante olhar negro fixava o céu vasto para além do valezinho.

-        Que estará acontecendo? - murmurou.

Ela escutou, depois retomou a marcha.

Deram alguns passos em silêncio. Em seguida Mrs. William novamente se deteve. Levou a mão ao punho da jovem e apertou-o com tal força que Angélica sobressaltou-se.

-        Escute! - disse a inglesa, com voz alterada, nítida, precisa, glacial.

Então ouviram um rumor que se elevava na noite. Intraduzível, indecifrável. Um rumor de mar, de-vento, atravessado por um grito distante, fraco, agudo:

-        Waubenakis! Waubenakis! Os abènakisl! Os abenakis!

Com passo vivo, Sara William, arrastando Angélica, caminhou até a curva da estrada que encobria e resto do aglomerado de casas.

A aldeia apareceu, calma e deserta, adormecida.

Mas o rumor crescia, estrondeante, com o ulular de milhares de vozes, sobre o qual irrompia o grito trágico de alguns habitantes, que se puseram a correr como ratos enlouquecidos por entre as habitações.      

-        Waubenakis! Waubenakis!..:

Angélica olhou a pradaria. Terrível espetáculo ofereceu-se à sua visão. O que temera, pressentira, aquilo em que não quisera acreditar: um exército de índios'Seminus," brandindo tacapes e facões, brotava da floresta. Como um exército de formigas expulso do formigueiro, em alguns segundos os índios cobriram o vale, espalhando-se como uma capa escura e movediça", uma água avermelhada, uma maré trazendo à frente um clamor de morte.

-        Iu-u-u! Iu-u-u!

A vaga atingiu o riacho, cobriu-o, ultrapassou-o, subiu a outra encosta do vale, chegou às primeiras casas.

Uma mulher de vestido azul subia a vertente na direção delas, titubeando, o rosto branco, a boca negra movendo-se num apelo.

Algo invisível golpeou-lhe as costas. Ela deu uma espécie de soluço e caiu, a face contra o chão.

— Benjamim! - gritou Sara William. - Benjamim!... Está sozinho na casa.

— Pare!

Angélica tentou deter a velha dama, mas esta, num ímpeto irresistível, lançou-se à frente, rumo à moradia onde seu velho esposo corria o risco de ser surpreendido," dormindo sobre sua Bíblia.

A menos de cem metros, Angélica viújuirr índio surgir da mata, alcançar Sara William com algumas passadas e abater a alta mulher com um único golpe de tacape. E, inclinando-se, agarrar a touca e a cabeleira e escalpelá-la.

Angélica voltou-se para fugir.

-        Corra! - gritou para Rose Ann, com gestos veementes na direção do aprisco -, lá, junto à floresta, corra! Rápido!

Correu ela própria até perder o fôlego. Próximo ao jardim de Miss Pidgeon, fez alto para apanhar a bolsa que ali deixara. Fechou a cancela e mergulhou na casinhola onde o Reverendo Patridge e a solteirona continuavam a discutir sobre os fins últimos.

-        Os selvagens!... Estão chegando!...

Esbaforida, não conseguia recordar a palavra inglesa, procurando em vão...

-        Os selvagens! - repetiu em francês -, os abenakis... Estão chegando... Abriguemo-nos no aprisco...

Achou que a construção sólida, aparentemente fortificada, poderia resistir a um cerco, permitir uma defesa.

Existe a inspiração do momento. Igualmente, a da experiência, do hábito. Angélica viu o corpulento Tomás Patridge dar um pulo, apanhar a pequena Miss Pidgeon nos braços como uma boneca e, atravessando o jardim, lançar-se sem delonga para o refúgio indicado.

A ponto de segui-los, Angélica mudou de ideia. Escondida pela porta da casa, carregou suas duas pistolas, empunhou uma delas e tornou a sair.

O local felizmente permanecia deserto. A mulher que tombara na curva após ter subido a encosta continuava imóvel. Tinha uma flecha plantada entre os ombros.

Aquele trecho da aldeia, oculto das outras habitações por uma encosta e uma curva, ainda não atraíra os índios, exceto aquele que escalpelara Mrs. William e que partira em outra direção.

O rumor que vinha a distância era plangente, horrível. Mas ali ainda havia o silêncio, uma espécie de espera angustiada, febril. Os pássaros haviam emudecido.

Sempre correndo, Angélica retornou ao celeiro de milho.

Ademar dormia!

-        Levante! Os selvagens! Corra! Corra até o aprisco! Pegue seu mosquete!...

Enquanto ele fugia, assustado, ela viu as armas de Maupertuis e seus polvorinhos suspensos em um gancho. Estava carregando o fuzil com movimentos febris, e esfolando os dedos, quando algo despencou atrás dela, e ela viu um abenaki que entrara pelo teto e descia a montanha de milho. Com um impulso dos quadris ela girou, segurando o mosquete pelo cano, e a coronha veio golpear o selvagem na têmpora. Ele caiu. Ela fugiu.

A aléia ensombreada continuava deserta. Ajigélica enfiou por ela. Alguém galopava atrás dela. Com unr olhar por cima do ombro, ela identificou um índio - aquele qúe golpeara ou um outro? -, que com o machado erguido se aproximava em largas passadas.

Seus pés não faziam ruído sobre o capim. Angélica não podia deter-se para fazer pontaria. Sua salvação estava numa fuga desesperada e parecia-lhe que seus pés não mais tocavam o chão.

Atingiu por fim o pátie do aprisco e abrigou-se atrás de uma carroça. O machado lançado pelo índio ressoou contra a madeira, onde a extremidade de metal aguçada se enfiou. Controlando a respiração, Angélica mirou.eabateu o selvagem à queima-roupa. Ele girou, ficando atravessado na-entrada, as mãos crispadas no peito enegrecido de pólvora.

Com algumas passadas, ganhou a-soleira da moradia, cuja porta entreabriu-se antes mesmo Ijue ela batesse.

Porta que se fechou, bloqueada imediatamente por duas sólidas barras de carvalho...

CAPÍTULO XV

Resistência desesperada

Ali estavam, além do ministro e de Miss Pidgeon, do soldado francês Ademar e da pequena Rose Ann, toda a família do dono da casa, Samuel Corwin, a mulher e os três filhos, seus ajudantes, dois jovens empregados, a criada, um vizinho, o velho Jos Cater, o casal Stougton com seu bebe, igualmente em visita quando ocorrera o ataque.

Não havia choro nem lamentações. Os lavradores haviam adquirido, à força, o sangue guerreiro. As mulheres, munidas de escovilhões de pêlo negro, limpavam os canos dos fuzis dependurados sobre a lareira.

Samuel Corwin apoiara o cano da arma em uma das múltiplas seteiras de que a casa era provida, à moda de todas as moradias da Nova Inglaterra, sobretudo dos primeiros tempos. Por outra abertura espreitavam o exterior.

Assim haviam visto a Condessa de Peyrac, a francesa, abater o índio que a perseguia.

Lançaram-lhe um olhar rápido e sombrio: ela trazia armas. Era como os outros, eficaz, diligente. O ministro jogara a sobrecasaca num banco. Em mangas de camisa, preparava as cargas de pólvora, os lábios arregaçados sobre os dentes carniceiros. Esperava uma arma disponível. Angélica passou-lhe o mosquete de Maupertuis e pegou o de Ademar, que tremia como vara verde.

Uma das crianças pôs-se a chorar. Fizeram, em voz baixa, com que se calasse.

Os arredores estavam silenciosos. Apenas se percebia o ruído distante, como o barulho do mar, que por instantes crescia: o rumor do massacre. 

Em seguida houve surdas detonações e Angélica pensou nos pequenos canhões da igreja fortificada. Esperava-se, pois, que uma parte dos habitantes tivesse conseguido refugiar-se em seu interior.

-        O Eterno protegerá os seus - resmungou o pastor -, pois formam o seu exército.        

Imediatamente alguém fez-lhe um vivo sinal para que se calasse.

No caminho, passava um pequeno grupo de índios empunhando archotes. Pareciam vir da ravina e não se detiveram.

Uma criança chorou novamente. Numa súbita ideia, Angélica dirigiu-se a um dos grandes caldeirões vazios que devia servir para o cozimento dos queijos. Disse a Rose Ann que ali se escondesse com três das crianças menores. .Estariam como em um ninho. Não deveriam mexer-se.    

Tampou-o parcialmente. Nesse esconderijo, as crianças se assustariam menos e não se arriscariam a ser atropeladas pelos combatentes.

Ela voltou a seu posto de observação.

Havia índios diante da cancela. Tinham notado o cadáver de um dos seus atravessado no caminho.

Eram quatro e discutiam, olhando na direção da casa. Na penumbra avermelhada da noite, seus rostos com pinturas de guerra tinham uma aparência horrível, e Angélica, comprimida entre os homens brancos ameaçados, sentiu invadi-la o temor ao índio, enquanto sua pele se eriçava.

Os índios empurraram a cancela e avançaram pelo pátio da propriedade, um pouco inclinados para a frente, bestas-feras, felinos, cercados de mistério e de horror.

-        Tire - disse Corwin a meia voz. - Fogo!

Ouviu-se uma salva.

Quando a fumaça se dissipou, três abenãkis debatiam-se no chão, nas convulsões da agonia; um outro fugiu.

Em seguida a invasão. Os selvagens vinham da ravina, na parte de trás. Como uma maré que parecia surgir de todos os lados, os corpos castanhos se multiplicavam, misturando seus clamores ao fragor das detonações.

No aprisco, os sitiados atiravam, passavam as armas às mulheres, apanhavam um mosquete carregado, enquanto o escovilhão limpava o cano fumegante, a mão febril de alguém virava o polvorinho, baixava o fecho do fuzil com um ruído seco que escandia a fuzilaria e o clamor demoníaco dos gritos no exterior. A fumaça pegava nas gargantas secas, o suor escorria-lhes nos rostos, levando um sabor amargo aos cantos dos lábios entreabertos, que deixavam passar um sopro rouco.

Angélica pôs o mosquete de lado. Não havia mais munição! Pegou as pistolas, carregou-as, encheu os bolsos com balas de pequeno calibre, forrou com elas a boca para tê-las ao alcance mais rapidamente, prendendo o chifre de pólvora e sua caixa de espoletas turcas no cinto, para não desperdiçar nenhum gesto.

O telhado estalou. No fundo do compartimento, um índio des-pencou. Caiu junto ao Pastor Patridge, que o abateu com uma coronhada. Mas outro selvagem veio atrás, vibrando o tacape no sólido crânio do Reverendo Tomás. Este dobrou os joelhos. O selvagem agarrou-lhe a cabeleira e fazia-lhe um largo rasgão na fronte, quando recebeu em pleno peito a descarga da pistola de Angélica.

Diante da invasão dos índios pelo telhado, os ingleses recuaram para o canto da maciça lareira. Angélica virou a grande mesa de grossa madeira, empurrando-a contra o ângulo da parede e fazendo com ela uma barreira, atrás da qual todos se reuniram. Onde encontrara força suficiente para fazê-lo? Mais tarde perguntaria isso a si mesma. Mas o furor do combate dava-lhe forças sobre-humanas, pois a ele se misturava uma verdadeira raiva à ideia de que ela se deixara prender totalmente numa armadilha; nessa aldeia de colonos estrangeiros, e de que se arriscava a deixar ali a vida.

Entrincheirados, os camponeses continuavam a atirar em duas di-reções: o fundo da peça, onde os assaltantes saltavam do telhado, e a porta que cedia sob golpes de machado.

Foi uma verdadeira carnificina e por pouco o fogo cerrado não deu a vitória aos brancos obstinados e providos de armas.

Mas os colonos atiravam as últimas balas. Um machado atingiu Corwin no ombro e ele desabou com um grito.

Torcendo-se como uma serpente, um índio deslizou entre a parede e a beira da mesa e, agarrando uma mulher pela saia, puxou-a para si. Ela se debateu como um demónio e deixou cair o chifre de pólvora que segurava. .     .

Por cima da mesa, o velho Carter golpeava à volta com a coronha da arma. Ao erguer os braços para baixar novamente a arma, a lâmina aguda de um punhal sorrateiro introduzju-se entre as suas costelas. Ele girou, dobrado em dois, boneco de palha de braços pendidos.

Súbito, como um bailarino, alguém deu.um salto do fundo do cómodo, passou acima das cabeças com as pernas abertas e caiu do outro lado da mesa, entre os ingleses.

Era o sagamore Piksarett,-chefe dos patsuiketts e o maior guerreiro da Acádia.

Angélica ouviu- atrás de si seu riso escarninho, a mão violenta abatendo-se em sua nuca.

-        Você é minha cativa - falou o patsuikett, triunfante.

Angélica largou as armas agora inúteis e agarrou-se com ambas as mãos nos longos cabelos enfiados em patas de raposa do índio.

Como ela o conhecia, e séll rosto de roedor de blhos maliciosos lhe era familiar, deixou de se sentir assustada e mesmo de considerá-los, a ele e a seu bando, inimigos. Eram índios abenakis e ela conhecia sua língua e os arcanos de seus pensamentos primitivos e sutis. Voltou-se vivamente para cuspir as. duas "balas que lhe restavam na boca.

-        Foi para me capturar que tomou a aldeia? - gritou ao selvagem, firmando-se em seus cabelos. - Foi o Casaco Negro que lhe deu essa ordem?...

E tal faísca brotou de seu olhar esverdeado, que o índio ficou imóvel. Não era a primeira vez que o sagamore Piksarett e a mulher do Alto Kennebec se encontravam.

Apontada como inimiga! Mas qual mulher ousara agarrá-lo assim, por suas tranças de honra, e olhá-lo com ta! ousadia enquanto a morte planava sobre ela?

No passado, ela se erguera entre ele e o iroquês, com o mesmo olhar. Ela não conhecia o medo.

— Você é minha cativa - repetiu ele em tom feroz.

— Posso ser sua cativa, mas você. não me matará e não me entregará ao Casaco Negro, porque sou francesa e porque lhe dei meu manto para que nele envolvesse os ossos de seus antepassados.

Em torno deles, os gritos e convulsões do combate continuavam, atingiam o paroxismo. Agora era a luta corpo a corpo. Depois, o fim. E os clamores de raiva, de horror e de defesa extinguiram-se pouco a pouco, dando lugar a um silêncio ofegante, de onde logo se elevou o concerto dolente dos gemidos dos feridos.

Cárter fora escalpelado, mas os outros europeus estavam vivos, pois os abenakis procuravam assegurar o resgate por sua captura. O Reverendo Patridge, retirado do amontoado de cadáveres sob o qual se engolfara, mantinha-se titubeante, o rosto coberto de sangue, entre os dois guerreiros.

Um grito de agonia elevou-se:

-        Socorro, senhora, ou estarei perdido!

Era Ademar, a quem tiravam de trás de algum móvel.

-        Não o matem! - gritou Angélica. - Não estão vendo que é um soldado francês?

Isso se via mal, com efeito.

Angélica vivia esses instantes fora de si, obsedada pela ideia de safar-se desse vespeiro onde viera tão tolamente meter-se. O absurdo trágico da situação provocava-lhe uma cólera que intensificava seus reflexos de defesa.

Havia alguns instantes, um pensamento dominava-a. Ela conhecia os índios. E com isso escaparia à armadilha. Pois eram feras, mas as feras podem ser domadas. No deserto do Maghreb, Colin Paturel falava aos leões e fazia deles cúmplices...

Ela se deu conta de que a horda de Piksarett estava apartada dos outros e os assaltara vinda de outra direção. De sorte que a batalha de que o aprisco fora palco permanecia ainda isolada do resto do combate.

Piksarett hesitava. Certas palavras de Angélica haviam-no deixado perplexo. "Sou francesa!" Pois era ao inglês que o haviam ensinado a combater. E por outro lado ele não era capaz de esquecer o dom extraordinário do manto que ela lhe dera para seus antepassados.

— Você é batizada? - perguntou.

— Claro que sim - gritou ela, desesperada.

E fez o sinal-da-cruz diversas vezes, invocando a Virgem Maria.

Pela porta arrombada, Angélica acreditou ver a silhueta familiar de um mensageiro canadense dos bosques. Ela precipitou-se, reconheceu-o e chamou-o com veemência:.

-        Sr. de LAubignière!

Era Três Dedos de Trois-Rivières.-Alertado góf ela, ele retrocedeu. Na guerra, desdenhava as armas dos brancos. Empunhava um tacape de madeira polida e a machadinha índia de fio aguçado e vermelha de sangue. Seu olhar azul brilhava no rosto enegrecido pela poeira e pelo sangue. Sangue que se via também nas roupas de pele acamurçada, e nos escalpos presos com mão lesta ao cinto multicolorido, que deixavam escorrer longos filetes purpurinos.

Como atingir aquele homem, como influenciá-lo?... Era um cavaleiro incorruptível, guerreiro de Delis, o espirito em outro lugar, junto ao dos Maudreurl, dos Loménie, dos Arreboust, totalmente ocupado com seu sonho de -vingança, de salvação e de paraíso.

No entanto ele a reconheceu.

-        Olá, Sra. de Peyrac!... Que faz aqui, entre estes condenados heréticos?... Ah! que desgraça para a senhora.

Entrou na moradia devastáHa, onde os abenakis, após reunir os cativos, abandonavam-se à pilhagem. Ela o agarrou pelas abas do casaco de pele de búfalo.

-        O Casaco Negro - gritou -, estou certa de ter visto o Casaco Negro na pradaria, com seu estandarte..."Foi o Padre d'Orgeval que os levou ao ataque, não é fato? Ele sabia que me encontraria nesta aldeia!...

Ela afirmava, mais do que interrogava. Ele a olhou com a boca entreaberta, um pouco aturdido. Buscou uma resposta, uma desculpa.

-        A senhora matou Pont-Briand - disse por fim - e agita a Acádia, a senhora e seu marido, com sua, aliança. É preciso que os dominemos...

Então era isso.

Joffrey! Joffrey!

Iriam levá-la, como prisioneira, a mulher do temível nobre de Wapassu, que já reinava, devido à sua influência extraordinária, sobre toda a terra da Acádia.

Levá-la-iam a Quebec. Pressionariam Joffrey através dela. Ela não mais o veria.

— E Maupertuis? - perguntou, ofegante.

— Nós o aprisionamos, a ele e ao filho. São canadenses da Nova França. Em um dia como este deviam estar com seus irmãos.

— Participaram do ataque com vocês?

— Não! O caso deles será julgado em Quebec. Serviram aos inimigos.da Nova França...

Como convencê-lo? "Ele era puro, intratável, crédulo, hábil, ávido, versátil, acreditava em milagres, nos santos, na causa de Deus e do rei da França, na supremacia dos jesuítas. Uma espécie de arcanjo São Miguel. Não se interessava por ela. Tinha ordens. E também erros a resgatar, aos olhos dos todo-poderosos.

— Se crê que depois disto o Conde de Peyrac, meu esposo, irá ajudá-lo a vender seus castores na Nova Inglaterra... - lançou-lhe, rangendo os dentes. >- Não se esqueça de que ele lhe adiantou mil libras e até lhe prometeu o dobro se houvesse lucro...

— Psiu! - fez ele, empalidecendo e olhando em torno.

— Tire-me desta situação difícil ou falarei de você na praça pública de Quebec.

— Entremos num acordo - disse ele a meia voz -, tudo pode ser arranjado. Eu não a vi...

E voltando-se para Piksarett:

-        Deixe esta mulher, sagamore! Ela não é inglesa, e sua captura nos traria a desgraça.

Piksarett estendeu a mão vermelha e oleosa e pousou-a no ombro de Angélica.

— É minha cativa - repetiu num tom irreplicável.

— Certo - disse Angélica -, sou sua cativa, não o nego. Pode seguir-me aonde quiser, não me oponho a isso. Mas não me levará a Quebec... que faria de mim em tal lugar? "Eles" não quererão resgatar-me, pois já sou batizada. Leve-me até Gouldsboro, e lá meu marido pagar-lhe-á um belo resgate conforme seu desejo.

Era uma terrível partida de pôquer. Feras a domar, a confundir, a persuadir. Mas ela os conhecia. Vinham-lhe aos lábios os argumentos mais absurdos, mas que atingiam os espíritos furtivos, obscuros, com os quais tinha que se entender. Estava fora de questão negar os direitos de Piksarett sobre ela. Para afirmá-los, ele a abateria imediatamente com um golpe de tacape; mas ela sabia que ele era livre, caprichoso, absolutamente independente de seus aliados canadenses, e agora, privado de ganhar uma alma para o paraíso de seus caros franceses, pois ela era batizada, ele/hesitava, duvidando da importância de sua captura. Era preciso .convencê-lo, ^antes que outros franceses, que sabiam'o que se podia ganhar com rSrà. de Peyrac, e quem sabe o próprio jesuíta aparecessem na virada do caminho. E também porque LAubignière, por sorte, eia seu' cúmplice.

Archotes inflamados começaram a cair sobre suas cabeças, pois, enquanto discutiam, os abenakis de PiKsarett, introduzindo suas tochas metodicamente por todo lado, haviam posto fogo no aprisco.

-        Venham! Venham! - apressou-os Angélica, empurrando-os para fora.

Ela ajudou alguns ingleses feridos ou aturdidos a se levantar...

-        Oh! meu Deus, as crianças!...

Voltando, ergueu "a tampa do_ grande caldeirão e dali tirou, um a um, os pequenos, mudos de terror. A descoberta do estranho esconderijo provocou a hilaridade, dos índios presentes. Torciam-se de rir, batendo nas coxas e apontando com o dedo o espetáculo.

O calor tornava-se intolerável.

Uma viga estalou e partiu-se ao meio, numa chuva de fagulhas.

Toda a companhia correu para fora, no pátio, saltando por cima de cadáveres e destroços.

A vista das árvores próximas, da ravina umbrosa da floresta, aguçou o irresistível desejo de fuga de Angélica. Os instantes estavam contados.

-        Deixe-me partir, sagamore - disse ela a Piksarett -, ou seus antepassados o odiarão por ter tão pouca consideração para comigo. Eles sabem que meus génios particulares não merecem ser tratados com desprezo e leviandade. Você conheceria um grande erro conduzindo-me-a Quebec. Em contrapartida, não lamentará vir comigo.

O rosto crispado do alto abenaki provava que seu espírito era palco de um debate bastante confuso. Angélica não lhe deu tempo de achar o fio da meada.       

-        Faça com que não nos persigam. Testemunhe que não estive nesta aldeia - disse a Três Dedos, também ele perturbado pelos acontecimentos e pela inapelável autoridade de Angélica. - Saberemos ser-lhe reconhecidos. Meu filho Cantor, sabe onde se encontra? Você o capturou?

— Juro-lhe pelo Santo Sacramento que não o vimos.

— Avante, pois - disse ela. - Eu vou embora. Come on! Come on! Vamos! Vamos!

— Alto lá! - gritou Piksarett, ao ver que ela reunia os ingleses sobreviventes do aprisco -, esses pertencem a meus guerreiros...

— Pois bem! Que venham também. Mas somente os donos dos cativos.

Três homenzarrões emplumados e desajeitados precipitaram-se para a frente com exclamações, mas uma ordem brutal de Piksarett suspendeu-lhes o arrebatamento.

Foi o tempo de Angélica apanhar uma criança nos braços, de arrastar com ela uma mulher, de empurrar à sua frente o colossal Tomás Patridge, titubeante e cego pelo sangue.

-        Por aqui, Ademar! Dê a mão a este garotinho. Sobretudo não o largue. Coragem,'Miss Pidgeon!

Ela desceu a vertente, dando as costas à aldeia destruída e em chamas, conduzindo-os para a liberdade como outrora, como sempre, em La Rochelle, no Poitou, e mais distante ainda, na tarde de sua infância, em que fugia sempre em frente com um rebanho de deserdados que arrancava à morte.

E nessa noite, a alma da velha Sara estava com ela, enquanto mergulhava sob a ramagem, engolfando-se no silêncio das árvores tenebrosas de Brunswick Falis.

Piksarett e os três índios que consideravam os ingleses como lhes pertencendo lançaram-se em seu rastro. Seguiam-nos com largas passadas, mas sem alcançá-los e conservando certa distância.

Não era uma perseguição.

Angélica sabia-o, e à medida que se afastavam da aldeia maldita, temia-os, percebendo que perdiam a tensão guerreira e histérica.

A maneira como ela se conduzia era um enigma para os ingleses, os quais, a cada vez que se voltavam, gemiam que os selvagens os estavam perseguindo.

-        Nada temam - respondia-lhes Angélica -, não são mais que quatro, ao invés de cem. E estou com vocês. Eles não mais lhes farão mal. Eu os conheço. Nada temam. Caminhem! Apenas caminhem!

Os pensamentos de Piksarett eram-lhe agora tão claros e nítidos, como se ela própria os houvesse formulado com um cérebro selvagem.

Pueril, ele amava o inédito, a novidade, o insólito.

Supersticioso, os génios particulares de Angélica divertiam-no a um tempo. 

Intrigado, ele caminhava sobre seus.pàssos, acalmava com uma palavra seus guerreiros impacientes, curiosa por saber o que aconteceria e de que espécie eram os espíritos malignos, fugazes e indomáveis, que vira dançar em faíscas esverdeadas rios olhos da mulher branca.

Mais ao longe, na parte baixa, a água calma do rio Androscoggin brilhou entre os galhos. Botes estavam parados na margem.

Todos subiram neles e começaram a descer a correnteza rumo ao mar.

CAPÍTULO XVI

O estertor da aldeia arrasada

A noite... Ao pé da queda-d'águà, noite adentro, com a luz dos pirilampos a se acender e a se apagar, noite quente a ressoar com o coaxar dos sapos e onde rondava um odor de incêndio, os europeus pararam para repousar um pouco. Comprimidos uns contra os outros juntos às canoas de casca de árvore, tremendo apesar da temperatura amena, alguns oravam, outros gemiam baixinho...

Esperaram pela aurora.

Entre aqueles que Angélica conduzira para fora do aprisco^em chamas e arrancara a seu destino de cativos, estavam o lavrador Stoug-ton, a mulher e o bebe, e toda a família Corwin. Louvado seja o Senhor! Pode haver algo mais terrível que salvar a própria vida deixando para trás a de um ser amado?... Os dois criados de Corwin e a criada também os haviam acompanhado.

Rose Ann comprimia-se junto a Angélica. Do outro lado estava Ademar, que bem desejaria fazer o mesmo, e não se afastava dela uma polegada.

- "Eles" estão aqui - cochichou. - Ah! eu bem sabia, quando me vi nesta terra de selvagens, que aqui deixaria meus cabelos um dia!

A frágil Miss Pidgeqn não tinha um arranhão e fora ela quem guiara o grande corpo sem cabeça em que se tornara momentaneamente o Reverendo Patridge, pois não somente o sangue o cegava, como ele estava praticamente inconsciente e se mantinha em pé pela força do hábito e porque esse tipo enorme de carcaça só pode vir ao chão com a morte. Fora a boa professora que, assim que pudera, lhe lavara o rosto e lhe enrolara o xale ao redpr da testa. Por fim, no bote, Angélica conseguira abrir a bolsa e tirar o saquinho com pó amarelo de sal de ferro que lhe dera Joffrey, o qual possuía a propriedade de ajudar o sangue a coagular-se, e assim a hemorragia cessara. De seu semi-escalpo, sem dúvida o pastor ínglêsnão guardaria senão um feio corte atravessado na fronte, o qual certamente.não contribuiria para torná-lo mais sereno.

Profundamente adormecido, sua respiração difícil enchia os intervalos de silêncio com um sofrido som rouco.

Todo um lado da face sob o curativo estava tumefato, negro e violáceo. Era melhor a escuridão, pois, já pouco privilegiado pela natureza, ele se tornara verdadeiramente hediondo.

Uma menina chorava, em pé, muito rígida, e seu rosto branco punha alguma claridade na noite.

-       É preciso dormir, Maria, tente dormir - disse-lhe Angélica sua vemente em inglês -, you must try-to sleep.

-        Não posso - soluçou ela -, os pagãos estão me olhando.

Estavam-íos quatro no alto, sentados no cimo das quedas, quatro índios, quatro abenakis, entre eles o grande Piksarett, e olhavam para o fundo escuro onde se agitavam os miseráveis cativos.

A luz de uma pequena fogueira' que haviam acendido, distinguiam-se suas faces acobreadas e o brilho de seus dedos de serpente.

Tinham continuado a segui-los. Mas sem procurar atacá-los, estavam calmos e fumavam enquanto conversavam, intrigados, curiosos. Que iria acontecer agora? Que inventariam ainda espíritos desconhecidos que habitavam a mulher branca de Wapassu? Que lhe ditariam seus génios particulares?... Olhares-trocados por sobre a água que jorrava.

Angélica tentava tranquilizar seus protegidos.

-        Agora não mais nos farão mal. É preciso levá-los até o litoral, e lá meu esposo, o Conde de Peyrac, saberá falar com eles, adulá-los, dar-lhes presentes em troca de nossa vida -e de nossa liberdade.

Eles a olhavam, petrificados adivinhando em seus cérebros frios e rigorosos de puritanos que ela também era de uma outra espécie humana, um pouco assustadora e até um tanto repugnante. Aquela mulher branca demasiado bela, que tratava com índios, falava sua língua, parecia introduzir-se em sua horrível e obscura mente pagã, para melhor domá-los e sujeitá-los a si mesma.

Estavam conscientes do fenómeno que ela representava, tinham-lhe medo e desprezo, um pouco como pelo velho Shapleigh, mas compreendiam também que lhe deviam a vida, ou ao menos a liberdade.

Era à sua indecorosa familiaridade com os selvagens, à sua loquacidade, a seus discursos veementes na linguagem execrada dos pagãos, a qual transpunham seus belos lábios com volubilidade, que eles deviam a mudança de humor dos índios, os quais lhes poupavam a vida e lhes permitiam fugir pelos bosques sob sua vista, longe do local do massacre.

Conscientes também do milagre e da necessidade de permanecer sob sua égide, tranquilizados apenas com sua voz, os ingleses buscavam desculpar-lhe o caráter estranho, dizendo que, afinal, era uma francesa...

No meio da noite Angélica subiu até onde estavam os selvagens para perguntar-lhes, com toda a simplicidade, se tinham um pouco de gordura de urso ou óleo de lobo-marinho, pois ela desejava untar" as queimaduras do pequeno Sammy Corwin, de nove anos, que estava sofrendo muito.

Eles se comprimiram em torno dela, para logo confiar-lhe uma bolsa de pele de alce com o precioso óleo de foca, malcheiroso, mas puro e salutar.

— Olhe! Não esqueça, mulher, que esse garoto me pertence - disse um dos guerreiros. - Mas trate-o bem, pois amanhã o levarei comigo à minha tribo.

— Esse garoto pertence a seu pai e sua mãe - replicou Angélica. - Pagar-se-á um resgate por ele.

— Mas eu o peguei durante o combate... e quero uma criança branca em minha wigwam.

-        Não o deixarei levá-lo - disse Angélica com inexorável calma.

Para apaziguar a cólera do selvagem, acrescentou:

-        Dar-lhe-ei outras coisas para que não se prive de sua parte no butim... Amanhã discutiremos isso.

Exceto por esse fato, a noite transcorreu sem incidentes. Nada mais chegava dos ecos do massacre. Enquanto fugiam, haviam entrevisto na curva do rio, ao longe, uma .claridade vermelha. Brunswich Falis, aldeia de fronteira, acabava de se consumir.

Permaneceram então encolhidos, sem pensar em nada, abrigando-se nas trevas.

Quase ao amanhecer, algo desceu a encosta, marcando a erva e as urzes, e Wolverines, o glutão, surgiu exibindo as presas num ricto que, desta vez, parecia um sorriso dcboas-vindas. Cantor apareceu em seu rastro, trazendo nos braços uma criança inglesa adormecida, um garotinho de três anos, sugando o polegar.

— Achei-o em pé junto à mãe escalpelada - explicou. - Ela lhe repetia: "Nada tema. Prometo que não lhe farão mal". Quando ouviu que eu o apanhava, fechou, por fifn, os olhos e morreu.

— É o filho- de Rebeca Turner - disse Jane Stougton. - Pobre pequeno! Seu pai já-havia sido morto no ano passado.

Calaram-se; pois os*quatros índios aproximaram-se. Não pareciam agressivos. Separados de seu bando e perplexos com a atitude desses estranhos cativos que não se deixavam apanhar, haviam mudado de humor.

Aquele que reclamara o filho dos Corwin veio até Cantor e estendeu as mãos para a criança.

-        Dê-mo - disse ele. - Dê-mo. Sonhei tanto com um menino branco em minha wigwarfT, e-sua mãe "jamais quererá dar-me aquele que capturei em Newehevanik. Dê-me esse, que não tem mais pai, nem mãe, nem família, nem aldeia. Que quer fazer com ele? Eu o levarei, farei dele um caçador e um guerreiro, torná-lo-ei feliz. As crianças são felizes em nossas cabanas.

Tinha um ar súplice e quase lastimoso.

Piksarett devia tê-lo convencido, durante a noite, não sem malícia, de que Angélica jamais o deixaria levar seu jovem cativo, Samuel, e que se ele ignorasse sua decisão, ela o transformaria em alce até o fim de seus dias.

Dividido entre o temor de tão triste destino e seus próprios direitos, ele acreditava estar propondo uma solução aceitável, contentando-se com o pequeno órfão salvo por Cantor.

Angélica olhou o filho com uma interrogação patética no olhar.

-        Que pensa disso, Cantor?

Realmente ela não sabia mais que decisão tomar. A ideia de ver aquele pequeno inglês, aquele pequeno branco, levado para o fundo da floresta, partia-lhe o coração. E, por outro lado, um certo sentimento de justiça, de prudência também impelia-a a conceder a esse guerreiro abenaki seu pedido humildemente apresentado. Ela abusara deles,, fizera-os caminhar desde a véspera. De tanto disputar-lhes as presas, não corria o risco de vê-los subitamente perder a paciência?

Ela se torturava: "Não posso aceitar isso".

— Qual é sua opinião, Cantor?

— Oh! - disse o adolescente, sacudindo a cabeça. - Sabe-se que as crianças brancas não são infelizes com os índios. E melhor deixar que esta, que não tem mais família, parta, do que termos todos o crânio fendido.

A voz da sabedoria falava por sua boca.

Angélica lembrou-se dos gritos de desespero do pequeno canadense, sobrinho de TAubignière, quando em uma troca quiseram arrancá-lo a seus educadores iroqueses. As crianças brancas não são infelizes com os índios.

Olhou os ingleses com interrogação. Mas a Sra. Corwin estreitava ferozmente o filho, compreendendo que a sorte dele estava em jogos e os outros mostravam-se, por suas atitudes, bastante indiferentes ao destino do pequeno Turner naquelas conjunturas. Se o Reverendo Patridge estivesse consciente, talvez protestasse em nome da salvação eterna do menino. Mas continuava entorpecido.

Era melhor que o órfão fosse com eles, do que arrancar o filho aos Corwin, todos felizmente salvos.

-Dê-lhe o menino - murmurou Angélica a Cantor.

Compreendendo que obtivera ganho de causa, o índio esboçou algumas mesuras e manifestou grande reconhecimento.

Em seguida estendeu suas grandes mãos e pegou delicadamente o menino, o qual olhou sem temor a face pintada que s« inclinava sobre ele.

Bastante contente por ter o que desejava mais que tudo, um menino branco em sua wigwam, o guerreiro se retirou.

Após trocar algumas palavras de entendimento com os companheiros, afastou-se estreitando preciosamente, sobre seus colares de dentes de urso e suas cruzes de batizado, o menino herético arrancado por ele à barbárie da própria raça e a quem faria conhecer a verdadeira vida dos Verdadeiros Homens.

Cantor contou como, ao afastar-se em busca dos cavalos de Mau-pertuis, adivinhara silhuetas suspeitas deslizando por entre as árvores.

Caçado pelos guerreiros, fora obrigado, pára escapar, a arrastá-los para bem longe, rumo ao platô.

Ao retornar por um longo desvio, captara os ecos da batalha. Aproximara-se então com mil precauções, não querendo cair como refém nas mãos dos canadenses.

Com isso assistira à partida dos cativos ingleses para o norte, entre os quais não vira a mãe, deduzindo que ela conseguira escapar.

— Então não pensou que eu poderia, ter sido degolada ou escalpelada?

— Oh, não!- disse Cantor, como se fosse evidente que isso não aconteceria.        

Ele rodara por Brunswick Falis em chamas e encontrara Três Dedos de Trois-Rivières. Soube através dele que a Sra. de Peyrac, sã e salva, dirigia-se à baía de Sabadahoc com um punhado de fugitivos.

O incidente com o menino parecia provar que, até nova ordem, os índios deixavam a Angélica uma certa latitude na tomada de decisões que concerniam a todos eles. Por mais bizarra que fosse a situação, distante algumas horas, do assalto que os lançara contra a aldeia inglesa, ela correspondia à mentalidade versátil dos selvagens.

Angélica, com sua personalidade, arrastara-os para uma outra pista. Por pouco teriam esquecido as razões do combate da véspera e o que faziam ali com ela e alguns ingleses estúpidos, mostrando-se unicamente desejosos de conhecer o prosseguimento da aventura que ela lhes propunha.

Contudo, Piksarett fez questão de lembrar alguns princípios essenciais.

— Não se esqueça de que você é minha cativa - interrompeu, apontando com o indicador o jpescoço de Angélica.

— Eu sei, eu sei, já lhe disse que o reconhecia de bom grado. Será que o impeço de estar onde estou?... Pergunte a seus companheiros se tenho a atitude de uma cativa que desejasse escapar.

Perturbado pela sutileza do raciocínio, no qual distinguia algo de obscuro, mas também de divertido, "Piksarett inclinou a cabeça de lado para refletir mais profundamente, e seu olhar oblíquo cintilava de prazer, enquanto seus dois comparsas emitiam com estardalhaço sua opinião.

-        Em Gouldsboro, você poderá até vender-me para meu próprio marido - explicou Angélica. - Ele é muito rico e estou certa de que não hesitará em mostrar-se generoso. Enfim, ao menos é o que espero - emendou, com uma mímica sombria que alegrou os três índios.

Diante da ideia de que o esposo de Angélica se veria obrigado a resgatar a mulher, a hilaridade deles não conheceu mais limites.

Decididamente era bastante divertido seguir a mulher branca do Alto Kennebec e os ingleses que ela levava consigo.

Todos sabem que não há animal mais desastrado que um yenngli, e os que ali estavam, ainda mais desajeitados devido ao medo e aos ferimentos, não se privavam de patinhar, de estatelar-se a cada passo, de virar os botes à mínima corrente contrária.

'Ah! esses yennglis!... Ah! Far-nos-ão morrer de rir", repetiam os índios, contorcendó-se. Depois disseram de súbito, dando-se ares de proprietários:

-        Rápido! Vamos! Caminhem, ingleses! Mataram nossos missionários, queimaram nossas cabanas, zombaram de nossas crenças. Sem o batismo dos Togas Negras, vocês nada são para nós, sequer serem de pele branca, cujos antepassados pagãos foram no entanto deuses!

Assim escoltada por esse palavrório, a pobre caravana chegou à noite à baía de Sabadahoc, onde confluíam a embocadura do Androscog-gin e a do Kennebec.

A bruma esmaecia o horizonte do estuário, e a esses eflúvios marinhos provenientes das margens misturavam-se ainda suspeitos miasmas de incêndio.

Angélica soube instintivamente que a baía estava deserta. Nenhuma embarcação cruzava ao largo, espreitando a chegada de silhuetas humanas no litoral, para se aproximar e tomá-los a bordo.

Nenhum Le Rochelais, pequeno iate com estandarte vermelho, onde Le Gall a acolheria, e talvez até Joffrey!...

Uma chuva fina começou a cair. Angélica apoiou-se ao tronco de um pinheiro. O local cheirava a morte, a deserto. A esquerda, inflando-se no céu, um cogumelo de fumaça negra se elevava. Vinha da direção de Sheepscot, um estabelecimento inglês que lhe haviam indicado na embocadura do Androscoggin, e onde ela contava deixar os fugitivos antes de embarcar/ho Le Rochelais.

Aparentemente, Sheepscot acabava de queimar. Sheepscot não existia mais.

Uma angústia insuportável apoderou-se de Angélica, e ela sentiu que as forças a abandonavam. Voltóu-se e viu Piksarett a observá-la. Era preciso não mostrar o medo que sentia. Mas ela não podia mais.

— Não estão aqui - disse-lhe ela, quase com desespero.

— A quem esperava?        

Ela explicou-lhe que seu esposo, o senhor de Wapassu e de Goulds-boro, deveria estar ali com um navio. Ele os teria levado a Goulds-boro, onde Piksarett poderia adquirir as mais belas, pérolas da terra, beber a melhor aguardente Ao mundo...

O selvagem balançava a cabeça com ar pesaroso e parecia partilhar sinceramente sua decepção e seu aborrecimento. Olhava em torno com inquietação.

Entrementes, Cantor e osjngleses subiam mais,lentamente a colina, seguidos pelos dois outros índios.

Fatigados sentaram-se com melancolia sob os pinheiros, para proteger-se da chuva. Angélica colocou-os a par da situação. Os três índios puseram-se a discutir agitadamente.

-        Dizem que os índios sheépstots são seus piores inimigos - explicou Angélica aos ingleses. - Esses três são do norte wonolancet...

Ela não se espantava, conhecendo os eternos conflitos entre os índios, que podiam fazê-los arriscar a vida ao penetrar em território inimigo, sozinhos e desarmados.

-        It just does not matter. Isso não importa - disse Stougton, desa nimado -, sheepscots ou wonolancets; para nós é a mesma coisa. Sempre saberão escalpelar-nos. Qual a vantagem de termos vindo até aqui?... Nossa hora já está chegando.

A silenciosa paisagem marinha parecia encerrar uma ameaça escondida. Por trás de cada cortina de árvores, de. cada promontório, esperavam ver surgir índios com os tacapes erguidos, e Piksarett e os seus não estavam mais tranquilos que seus cativos.

Angélica esforçava-se para dominar o medo.

"Não! não! desta vez não me deixarei abater", disse para si, cerrando os punhos, sem saber exatamente a quem se dirigia o desafio.

Primeiro decidiu que era necessário deixar essa costa onde se acendia a guerra índia e tentar a todo custo chegar a Gouldsboro. Talvez houvesse outras aldeias mais distantes, outras embarcações.

Gouldsboro! O feudo de Joffrey de Peyrac. O domínio deles. O refúgio. Como estava longe, Gouldsboro!

Nenhuma vela no es"tuário...

Poucas horas antes, não havia sequer.passado um dia, a velha Sara William tomara o rosto de Angélica nas mãos e lhe dissera: "A América! A América! Salve-a!"

Uma última mensagem, um pouco disparatada. Pois a morte já estava ali, encolhida entre as moitas, para abater-se sobre ela.

Seria uma angústia semelhante à que Angélica sentia agora na noite deserta com cheiro de algas, de bruma e de carnificina?

- Ei! - disse Piksarett, pousando-lhe a mão no ombro.

Com o dedo apontou duas silhuetas humanas, que subiam por uma trilha na margem.

Por um momento ela teve esperança, mas logo reconheceu, pelo chapéu pontudo, o velho medecin's man John Shapleigh e seu índio.

Todos correram até ele para obter informações. Ele disse que vinha da praia, onde os índios sheepscots haviam queimado tudo..Uma embarcação? Havia uma embarcação? Não.

Os habitantes que haviam escapado ao escalpe ou ao cativeiro haviam se refugiado nas ilhas com suas canoas.

Vendo o desespero da pobre gente de Brunswick Falis, ele acabou, não sem caretas e reticências e também porque Angélica pediu-lhe conselho, decidindo-se a conduzi-los até uma cabana que possuía a dez milhas dali, na baía de Casco. Lá poderiam repousar e tratar-se... Enquanto esperavam, apesar do pouco divertimento que havia em passar uma noite ao ar livre, sob a chuva fina, a maior parte deles, e a própria Angélica, relutava em deixar o local do encontro. O navio de Gouldsboro talvez estivesse atrasado. Quem sabe não surgiria em algumas horas ou no dia seguinte ao alvorecer?

A questão foi resolvida com a súbita aparição, na volta do bosque, de um pequeno grupo de uma dezena de índios sheepscots.

Piksarett e seus guerreiros lançaram-se prontamente na direção oposta e desapareceram.

Felizmente, Shapleigh e seu acolito estavam em bons termos com os recém-chegados. O velho Shapleigh, homem de medicina digno de seus melhores "prestidigitadores", era bastante respeitado na região, onde "trabalhava" há mais de -trinta anos. Sua ascendência permitiu-lhe estender sua proteçãó a Angélica e seus companheiros. Os sheepscots levaram a obsequiosidáde a ponto de propor-se a vigiar a possível chegada de navios, naquele ponto da costa. Ouviram com cuidado a descrição do Le Rochelais e prometeram, se o vissem, enviá-lo à ponta Maquoit, onde o velho Shapleigh possuía sua cabana.

CAPÍTULO XVII

Joffrey de Peyrac e o Barão de Saint-Castine no golfo do Maine

Joffrey de Peyrac deu um salto.

-        Como? Que estão dizendo?

Acabavam de informar-lhe que a Sra. de Peyrac partira sozinha para a aldeia de Brunswick Falis com o filho, a fim de levar de volta a jovem inglesa.

A notícia foi-lhe comunicada incidentalmente por Jacques Vignot, com quem se encontrou no cabo Small, nos arredores de Popham, para onde o conde se dirigira dois dias antes com o Barão de Saint-Castine.

Caixas com mercadorias atrasadas devido à falta de embarcações chegavam de Houssnock escoltadas pelo carpinteiro e um soldado.

— Mas quando a condessa tomou essa estranha decisão?

— Algumas horas após sua própria partida, senhor, no mesmo dia...

— Não lhe entregaram a mensagem em que a advertia de minha possível ausência por alguns dias e lhe pedia que me aguardasse com paciência no posto do Holandês?

Os dois homens de nada sabiam. "Com todos esses rumores de guerra! O posto do Holandês, em contrapartida, era uma espécie de campo entrincheirado... Ali não se corria nenhum risco. Mas embrenhar-se no interior, quase sem escolta..."

— Com quem partiram?

— Com os dois Maupertuis.

- Que estranha ideia! Mas que ideia! - exclamou Peyrac, encolerizado.

No íntimo enraiveeia-se contra angélica, defendendo-se com dificuldade de uma ansiedade profunda que o assaltou brutalmente.

Realmente, que ideia! Era inconcebível. Ek só seguia a própria cabeça! Quando a visse, passar-lhe-ia considerável reprimenda, fazendo-a compreender que, apesar da situação privilegiada em que se encontravam, a região durante longo tempo não seria segura, particularmente a oeste do Kennebec.

Ele fazia cálculos. Três dias haviam transcorrido desde sua partida para a costa, e a de Angélica, aparentemente simultânea, rumo à colónia da fronteira... Más onde poderia ela encontrar-se agora?...

A chuva caía, a bruma escondia a baía, onde a rqaré cheia murmurava, contornando com suas correntes torrenciais as ilhas semi-submersas.     

Devido a essas mares de equinócio, muitos dos europeus ou índios que deveriam ir a esse encontro por mar se haviam atrasado.

O grande chefe tarratine Mateconondo desejava que todos os seus estivessempresentes. Enquanto esperavam, dedicavam-se a conversas preliminares. No dbmingo, o capelão do Barão de Saint-Castine, um monge recoleto bastante barbudo e mais queimado que um pirata, celebrara a missa.

Por fim, na terça-feira, nessa mesma manhã, a população toda daquela localidade que se chamava mais precisamente, dentre as circunvoluções infinitas da costa, de o pequeno golfo do Maine, achava-se reunida. As últimas caixas de presentes acabavam de chegar. A cerimónia ia começar.

Foi então que Peyrac soube da escapada de Angélica.

Onde podia ela encontrar-se? Retornara a Houssnock? Ou então, seguindo o pla«o que haviam discutido juntos, ganhara pelo rio An-droscoggin uma das ramificações do estuário do Kennebec, a baía de Merrymeeting, onde Corentin Le Gall devia aguardá-los com o pequeno navio Le Rockelais?...

Na dúvida, decidiu chamar seu escudeiro, o bretão Yann Le Couénnec.

Recomendou-lhe primeiramente que se alimentasse bem, verificasse o estado de suas armas e sapatos, e se colocasse em condições de efetuar uma corrida rápida.

Em seguida sentou-se, afastado, rabiscou algumas palavras enquanto um dos soldados espanhóis de sua guarda segurava com deferência o chifre de tinta.      

Quando o bretão apresentou-se, pronto para partir, entregou-lhe a mensagem, acrescentando porém, de viva voz, suas instruções particulares.

Se Yann encontrasse a Sra. de Peyrac no posto do Holandês, deveriam todos aprontar a bagagem e encontrá-los ali. Em contrapartida, se ela ainda não houvesse regressado de Brunswick Falis, ele, Yann, deveria ir até lá e pôr mãos à obra para encontrar a Sra. de Peyrac custasse o que custasse, onde quer que ela estivesse... e fazê-la retornar a Gouldsboro... pelo caminho mais curto.

Com essas estritas recomendações, o homem afastou-se. Peyrac teve que fazer considerável esforço para espantar sua pungente preocupação com Angélica e voltar toda a atenção para o encontro que iria acontecer.

Acorrendo ao chamado do Barão de Saint-Castine, toda aquela pobre gente viera de longe, por vezes não sem perigo, para encontrá-lo.

E juntando-se aos índios das principais tribos do lugar, havia alguns brancos dispersos que, ignorando as diferenças de nacionalidade ou os antagonismos de seus reinos de origem, haviam feito questão de reunir-se e deliberar junto com o senhor francês de Gouldsboro.

Havia comerciantes ingleses de Pémaquid, de Croton, de Oyster River - o rio das ostras -, de Wiscasset, de Thomaston, de Wool-wiec, de Saint-George, de Névagan, ao todo uma vintena de ingleses ou comerciantes das pequenas feitorias disseminadas nos fiordes da baía de Muscongus, do rio Damariscotta e da entrada do Kennebec. Ao lado deles viam-se muitos de seus vizinhos inimigos, com os quais, quando não se matavam entre si, trocavam utensílios domésticos e o leite de algumas raras vacas; franceses acadianos, colonos ou pescadores, um dumaresque ou galatin da ilha dos Cisnes, onde cultivavam flores, carneiros e batatas ao lado de descendentes diretos de Adam Winthrop dê Boston, holandeses enviados de Campdem, e até mesmo um velho escocês encanecido da ilha Monégan - a ilha do Mar, a orgulhosa, com suas falésias de granito, a mais isolada do golfo -, um MacGregor que viera com os três filhos e cujas mantas xadrezes coloridas flutuavam ao vento, na outra extremidade do cabo.

Aos ingleses e holandeses, o Estado de Massachusetts recomendara expressamente que se dirigissem,ao Conde de Peyrac se um dia precisassem de proteção em seus distantes estabelecimentos da selvagem costa do Maine, infestada de franceses e de índios sanguinários, onde era preciso ser um pouco, louco para se arriscar.

Os acadianos acompanhavam os'movimentos do Barão de Saint-Castine.

Os escoceses seguiam a própria cabeça.

Em suma, estavam todos lá.       

Mais uma vez pensando em Angélica, Peyrac amaldiçoou as mulheres, cujos caprichos, pôr vezes encantadores, porém mais amiúde inoportunos, vinham perturbar e complicar a vida dos homens.

Em seguida, dominando-se, caminhou para diante de seus hospedeiros, ladeado por suã-guarda de espanhóis com couraça e morriões de aço.

O Barão de Saint-Castine escoltava-o. O grande chefe Mateconon-do veio ao seu encontro em_sua mais'magnífica roupa de gamo, bordada com conchas e pêlos de porco-espinho. Cobria os longos cabelos, untados de óleo de lobo-marinho, com um chapéu achatado e redondo de cetim negro, de aba pequena, ornado com uma pluma de avestruz branca que tinha ao menos cem anos.

Um de seus avós havia-o recebido do próprio Verrazano. O explorador florentino a serviço do rei francês Francisco I, ao passar por lá com seu navio de cento e cinquenta toneladas, fora um dos primeiros a chamar aquela região de Arcádia, pela beleza de suas árvores. O nome, um pouco alterado, permanecera desde então.

Sobre esse chapéu de senhor do século XVI, a candura lirial da pluma de avestruz, que mal amarelara, atestava o cuidado com que os índios, apesar-de tão sujos e negligentes, haviam conservado a relíquia.

O mais importante dos chefes só o trazia na cabeça em ocasiões solenes.

Ao chefe tarratine, Joffrey de Peyrac ofereceu uma espada adamascada de ouro e prata, alguns estojos com navalhas, tesouras e facas, dez braças de miçangas azuis.

Em troca, o selvagem deu-lhe algumas conchas de nácar e um punhado de ametistas. Gesto simbólico de amizade.

-        Pois sei que não está ansioso por peles, mas somente por nossa aliança.

"Compreenda", dissera Saint-Castine a Peyrac, "quero afastar meus índios da guerra, senão em algumas décadas eles deixarão de existir."

O grande chefe tarratine tocou o Barão de Saint-Castine com afeto e lançou-lhe um olhar de admiração.

De talhe médio, se não pequeno, mas de incrível vigor, ágil, resistente, rápido, sensível, Saint-Castine conquistara a dedicação de todas as tribos costeiras.

-        Farei dele meu genro - confiou Mateconondo a Peyrac -, e mais tarde ele me sucederá no comando dos etchemins e dos mic-macs.

CAPÍTULO XVIII

Peyrac tortura-se pela ausência de Angélica - Compromisso com Saint-Castine

"Angélica!.,. Tomara que nada lhe tenha acontecido! Deveria tê-la trazido comigo... Saint-Castine pegou-me desprevenido. Jamais deveria ter-me separado dela,' noite e.dia, em nenhum instante... Minha preciosa, minha louca querida.., Teve por demasiado tempo uma vida livre. Quando^é abandonada a si mesma, sua independência renasce... Devo fazer que compreenda os perigos que nos cercam. Desta vez mostrar-mè-ei severo... E, agora, é preciso afastar essa preocupação... Devo recolhèr-me... Nãò posso desapontar os homens que vieram até mim. Compreendo o que deseja pedir-me em nome deles esse jovem Saint-Castine... Rapaz notável!... que vê com precisão... Mas que conhece os limites das próprias forças.?. O que me pede... Não é uma tarefa demasiado pesada, se não irrealizável? Um desempenho semeado de ciladas..."

O Conde de Peyrac meditava, sentado na erva espessa, diante do abrigo de cascas de árvore armado para ele.

Após a cerimónia, o festim, o cachimbo, ele se afastara, dizendo que desejava ficar sozinho durante algumas horas. Fumava, os olhos fixos na extremidade do promontório, onde por momentos o choque violento de uma onda mais alta punha um penacho branco.

Na cabeceira cheia de vegetação das margens, o oceano vinha chocar-se, salpicando de espuma os pinheiros, cedros, carvalhos, faias vermelhas gigantescas, e por vezes, quando o vento virava, o bosque soprava um hálito perfumado de jacinto e de morangos silvestres.

Joffrey de Peyrac fez um sinal a Dom Juan Fernández, o grande fidalgo que comandava sua guarda. Pediu-lhe que fosse à procura do barão francês. Era melhor dialogar com o entusiasmado gascão, apaixonado pelas próprias ideias, que permanecer sozinho, pois a lembrança de Angélica atravessava seu espírito sem cessar, como uma ponta aguçada de apreensão, e não levava a nada de bom.

O Barão de Saint-Castine acorreu, pressuroso, e sentou-se a seu lado. Afeito aos hábitos do país, tirou um cachimbo índio do casaco e fumou também. Depois se pôs a falar. A conversa foi sobretudo um monólogo de sua parte, onde passava todo um mundo de sonhos, projetos, ameaças...

A chuva cessara, mas a bruma se espalhava e as fogueiras do acampamento tremeluziam em meio a ela como grandes orquídeas vermelhas desabrochadas, escalonadas ao longe, na costa. Um halo envolvia todas as luzes.

Com o crepúsculo, o mar pôs-se a rugir mais profundamente, misturando seu canto ao dos pássaros, que em bando mergulhavam no estuário.

Eram pomarins, de longas asas castanhas de andorinha, e bico rapace.

-        Houve tempestade ao largo - disse o barão, acompanhando-lhes o vôo com os olhos. - Esses pequenos piratas só buscam abrigo em terra quando a agitação das vagas impede que pousem na água.

Ele aspirou o ar num hausto cheio e, reconhecendo os eflúvios delicados da floresta, suspirou profundamente. O verão chegaria, e ali o verão significava o surgir dos piores aborrecimentos.

— E chegado o momento em que os bacalhoeiros de todas as nações virão invadir-nos - disse -, e os bucaneiros de São Domingos também. Que o diabo carregue com esses ladrões! Arriscam-se menos que com o espanhol, abordando nossos pobres navios que vêm da França para abastecer nossos estabelecimentos da Acádia. No entanto, Deus sabe como esses navios são raros. E ainda é preciso que os roubem diante de nosso nariz. Casta suja, a desses flibusteiros da Jamaica!

— Barba de Ouro?

— A esse, eu ainda não conheço.

— Creio ter ouvido falar dele quando eu estava no mar das Caraíbas - disse Peyrac franzindo o cenho num esforço de memória. - Exatamente em minha última viagem por lá. Falava-se dele entre os nobres aventureiros como de um-bom marinheiro, um condutor de homens... Ele faria melhor se permanecesse nas ilhas.

— Correm boatos de que se trata de .um corsário francês que adquiriu recentemente na França a patente de uma rica sociedade de combate aos huguenotes franceses, onde-quer que estes se encontrem. Isso explicaria o ataque contra sua gente de Gouldsboro. Está bastante de acordo com nossa administração de Paris. Da última vez que fui até lá, vi que cada vez mais o sucesso depende de um sinal-da-cruz, o que complica singularmente nossa tarefa na Acádia...

— Quer dizer que se deveria lembrar que os primeiros fundadores eram protestantes.

— E que o-muito católico Champlain era de início o cartógrafo de Pierre de Guast, senhor de Monts, notório huguenote.

Eles trocaram um sorriso. Estavam felizes por sentirem que se compreendiam em tudo comlheias palavras.

— Esses .tempos «stão longe - disse Saint-Castine.

— E se distanciam cada vez mais... sua informação interessa-me, barão. Começo a compreender melhor o ódio desse pirata contra Gouldsboro, no entanto tão bem escondido! Se se trata de uma missão sagrada, como poderia ele estar informado?

— As notícias voam. Não há três franceses em cem léguas aqui, mas existe entre eles um espião do rei... e os jesuítas.

— Seja prudente, filho.

— O senhor está rindo? Isso não me faz rir. Queria viver em paz, aqui, com meus etchemins e meus mic-macs. Os franceses e corsários pagos por eles jião têm o direito de rondar por aqui. Eles não são da baía. - O barão fez uma pausa e continuou: - A baía?... Prefiro os bascos, caçadores de baleias, ou os pescadores maluins que empestam nossas costas com a secageín do bacalhau. Mas eles ao menos têm direito de cidadania na Acádia. Já vinham para este local há quinhentos anos... Porém sua aguardente e sua libertinagem com as índias... Ah! que desastre!... Pensando bem, prefiro os navios bostonianos, com os quais pode-se ao menos trocar ferro e tecidos...

Mas há um excesso desses navios. Com um gesto, englobou o horizonte.

— Centenas... centenas de navios ingleses, por todo lado, por todo lado. Bem armados, bem equipados. E a alguma distância daqui, Salem, seu grande centro de secagem, e o pez, o piche, a terebintina, o couro novo, as barbatanas e o óleo de baleia e de lobo-marinho... Fazem de oitenta a cem" mil quintais de óleo por ano... Aquilo tem cheiro fétido mas traz lucro... E pedem-me que controle a Acádia francesa... Que a conserve para o rei com meus quatro canhões, meu castelo de madeira de sessenta por vinte pés, trinta residentes, e que concorra com o inglês na pesca, com minhas quinze chalupas...

— Você não é tão pobre! - disse Peyrac. - Dizem que seus negócios com peles vão bem.

— Que seja, já sou rico, concordo. Mas são meus negócios... E se quero ser rico, é para meus índios,, para estabilizá-los, fazê-los prosperar. Os etchemins formam o mais importante contingente de minhas tribos, mas tenho também mic-macs da tribo dos tarratines. São suriqueses do Canadá, os mesmos da baía de Casco, parentes dos moicanos. Falo todos os seus dialetos, cinco ou seis... Etchemins, wawe-noks, penobscots, kanibas, tarratines, esse é o meu lote, os melhores entre os abenakis. É por eles que quero ser rico, para cuidar deles, civilizá-los, protegê-los... Sim, protegê-los, a esses guerreiros loucos e admiráveis.

Deu algumas tragadas no cachimbo. E novamente seu braço estendeu-se para a escuridão franjada de espuma a oeste.

-        Veja, na baía de Casco, possuo uma ilha que conquistei aos ingleses há pouco tempo. Não apenas para expulsá-los. Essa ilha possuía uma lenda. Ela se situa na entrada do Presumpscot, nas paragens de Portland, ao sul da baía de Casco. Foi, desde tempos imemoriais, para todos os moicanos, suriqueses e etchemins o lugar de um paraíso antigo, pois, dizem eles, "se você dormir uma vez nessa ilha, jamais será o mesmo de antes". E estava nas mãos de agricultores ingleses há várias gerações... Os índios sofriam por não mais poder ali reunir-se para suas festas ancestrais, quando o calor de agosto torna insuportáveis as regiões não costeiras. Então a conquistei e a devolvi aos índios. - O barão sorriu e continuou: - Que alegria! Que delírio! Que festa! Mas, se a paz não se mantém, para que tanto esforço?

— Acredita que a paz esteja ameaçada?

— Eu o creio, estou certo disso. Por isso quis apressar seu encontro com Mateconondo. Desde o T/âtado de Breda, as coisas vão assim, assim. Eu já havia organizado alguma coisa: todos os ingleses que desejassem comerciar na costa, de Sabaéahoc a Pémaquid e até mais distante, na baía Francesa, deveriam pagar tributo às populações ribeirinhas. Desse modo esquecer-se-ia que o Massachusetts tinha, pelo tratado, direito de controle. Mas a.paz vai ser quebrada. O Padre d'Orgeval, esse cruzado dos tempos antigos, reuniu os abe-nakis do norte e do oeste, filhos da floresta quase tão temíveis como os iroqueses. E o grande Piksarett, seu chefe, o melhor cristão que qualquer missionário jamais fez brotar nestas terras, quem pode com ele? E terrível!... A guerra é iminente, Sr. de Peyrac. - Suspirando, o barão continuou: - O Padre d'Orgeval a deseja e preparou-a bem. Estou certo de que-veto até aqui com ordens e diretivas do próprio rei da França para suscitar o- conflito com os ingleses. Isso seria providencial para nosso soberano, ao que parece. E é preciso reconhecer que esse religioso é o mais_ temível* político que tivemos até agora nestas terras. Sei que enviou um de seus vigários, o Padre Maraícher de Vernon,-eminissão secreta à Nova Inglaterra e Maryland, em busca de pretextos pára romper a trégua, e sem dúvida espera apenas seu retorno para desencadear a ofensiva. E, não faz muito tempo, recebi a visita do Padre de Guérande,' que me pedia para juntar-me à cruzada com as tribos de meus amigos. Evitei responder. Decerto sou um gentil-homem francês, oficial e homem de guerra, mas...

Fechou subitamente os olhos com sofrimento.

— Não posso mais ver isso.

— Ver o quê?

— Essa hecatombe, essa imolação,- esse contínuo massacre de meus irmãos, essa extinção irremissível de sua raça.

Quando dizia "meus irmãos", Peyrac não ignorava que ele falava dos índios.

-        Certamente é fácil arrastá-los a uma guerra: eles se entusiasmam com rapidez e são fáceis de enganar. Sabe-como eu, senhor, que a maior paixão dos selvagens é o ódio implacável a seus inimigos e sobretudo aos inimigos de seus amigos: é seu código de honra. Por natureza, não sabem viver em paz. Mas já vi morrer muitos deles, a quem amava, e com que finalidade?... Pode compreender o que não posso dizer a ninguém... Aqui, estamos muito longe do sol. Compreende o que quero dizer? Daqui, não podemos dar informações ao rei. Esquecidos, sozinhos... A administração do reino só se lembra de nós quando se trata de ter acesso aos dividendos sobre as peles ou de reclamar tropas contra os ingleses, para os jesuítas e suas guerras santas. Mas não é verdade que pertencemos à França. Ninguém pertence a ninguém aqui na Acádia. Todas estas ilhas, estas penínsulas, são recantos povoados apenas por homens livres. Franceses, ingleses, holandeses, nórdicos, pescadores ou comerciantes, embarcamos todos na mesma galera: peles e bacalhau, troca e cabotagem. Somos habitantes da baía Francesa, gente das margens do Atlântico... Com os mesmos interesses, as mesmas necessidades. Seria preciso que nos agrupássemos sob sua égide!"

— Por que a minha?

— Porque não há outro além do senhor - disse Saint-Castine com ardor. - Só o senhor é forte, invulnerável, está com todos e no entanto independente de todos. Como explicar-me? Sabemos que é amigo dos ingleses e contudo estou certo de que se fosse a Quebec colocaria toda essa gente em seu bolso. E até... Veja a nós, os canadenses; somos sem dúvida corajosos e lúcidos, mas falta-nos algo que o senhor possui: senso político. Diante de um Padre d'Orgeval, nós nada contamos. Só o senhor... só o senhor pode enfrentá-lo.

— A Ordem dos Jesuítas é bastante poderosa, é mesmo a mais poderosa de todas - disse Peyrac em voz neutra.

— Mas... o senhor também o é!

Joffrey de Peyrac voltou a meio a cabeça para observar seu interlocutor. Rosto magro e jovem devorado por olhos ardentes, com olheiras azuladas, que lhe conferiam algo de efeminado, talvez por isso o achassem parecido a um índio, pois estes, imberbes, apresentam por vezes em seus traços uma certa ambiguidade. Nele, era o refinamento de uma velha raça indomável onde se misturaram iberos e mouros e quem sabe - dizem - longínquos antepassados asiáticos. Sangue semelhante corria nas veias de Peyrac, que devia seu alto talhe, raro num gascao, à ascendência inglesa da mãe.

O Barão de Saint-Castine voltava para ele um semblante ansioso.

-        Estamos prontos para agrupar-nos sob sua bandeira, Sr. de peyrac...

Peyrac continuava a observá-lo, sondava-o como se não o ouvisse. Assim, todo um povo voltava-se para ele, através dessa voz jovem onde cantava o acento da Guiana, sua província natal.

-        Compreenda, ah! compreenda - repetiu-á voz. - Se a guerra prosseguir e renascer sem cessar, ela nós devorará a todos. E em primeiro lugar os mais vulneráveis, nossos índios, nossos amigos, nossos irmãos; nossos parentes... Sim, nossos parentes: cada um de nós na Acádia tem um genro, cunhados, primos na floresta. É preciso que se o diga. Estamos ligados a eles, ligados pelo sangue das mulheres índias que amamos e desposamos. E breve eu mesmo desposarei Matilde, minha princezinha índia. Ah! que tesouro, senhor, essa menina...

O barão fez ujrna pausa e qpntinuou:

-        Mas morrerão todos se não os protegermos de seus impulsos belicosos... Pois úm dia.os ingleses se cansarão de ser degolados sem cessar. Os ingleses de nosso litoral certamente não gostam da guerra. Eles demoram para se comover. Não odeiam senão o pecado. Serão precisos ainda muitos escalpos no cinto dos abenakis para decidi-los a reunir-se de armas na mão. Mas quando o fizerem, que Deus nos proteja! Eles custam a se abalar, porém, quando se decidem, fazem a guerra como se lavra o solo... Pesadamente... Metodicamente... sem paixão... sem ódio, como lhe disse-, mas como um dever, um dever religioso... eles limparão a região que o Senhor lhes deu... Exterminarão meus etchemins e meus suriqueses até o último deles, como exterminaram os péquots há quarenta anos e os narrangasetts há pou co tempo... até o último, lhe disse, até o último!

Ele quase gritava.

-        Naturalmente tentei explicar isso em Quebec, mas, ora!, eles dizem que os ingleses são poltrões e que é preciso lançá-los ao mar, varrer o litoral da América de toda a canalha herética, protestante... Talvez seja verdade. Os ingleses são poltrões, porém, tenazes e trinta vezes mais numerosos que nossos "canadenses, e o medo pode torná-los terríveis, traidores e astutos... Conheço os englishmen, já tratei muito com eles, escalpelei muitos deles em combates. Sim, ninguém pode censurar-me por ser um mau oficial francês, pois tenho mais de cem cabeleiras inglesas secando nos muros de meu forte de Pentagouet, as quais conquistei com meus índios no combate aos estabelecimentos da baía... Há dois anos fomos quase até Boston; se nosso rei houvesse enviado um só navio de guerra, tê-la-íamos conquistado. Mas ele não tem um gesto para com "sua" Acádia francesa...

Deteve-se, ofegante.

Depois disSe, num tom de prece patético:

-        O senhor o fará, não é mesmo, conde? O senhor nos ajudará?

Ajudar-me-á a salvar meus índios?

O Conde de Peyrac pousara a fronte na mão e cobria com ela o olhar.

Parecia-lhe que jamais desejara de modo tão agudo a presença de Angélica a seu lado.

Que ela estivesse ali! Que pudesse senti-la contra ele! Uma suave e feminina presença misericordiosa. Silenciosa, profunda, como ela tão bem sabia ser às vezes, de um modo sutil e misterioso só dela.

Compreensiva em seu silêncio! Humana.

Clarividente também.

Sua mulher resgatava, com sua presença, todos os crimes e todos os horrores evocados.

Ele ergueu a cabeça, afrontando o destino.

-        Que seja! - disse. - Eu o ajudarei.

CAPÍTULO XIX

O mensageiro do navio fantasma

A neblina sobre o estuário era tão densa, naquele dia, que o piar agudo dos pássaros amortecia-se, vogando através das faixas fumosas da bruma como o chamado inquieto de almas penadas.

No caminho de volta paraJHoussnóck, Joffrey de Peyrac ia separar-se de Saint-Castine, quando avistaram um navio subindo o Kenne-bec, com aspecto de fantasma. Impelido molemente por um vento pesado, o barco passou perto deles num roçagar de seda. Era um naviozinho de comércio ou-de pilhagem, de cento e vinte a cento e cinquenta toneladas, e seu mais alto mastro, onde flutuava uma flâmula alaranjada, mal ultrapassava o cimo pontudo dos grandes carvalhos centenários que bordejavam a margem. Ele passou e sumiu como um sonho, mas pouco mais tarde, por trás da neblina, eles ouviram o ruído da corrente da âncora sendo desenrolada. O navio estava avariado. E alguém veio até eles pela trilha maltcaçada à beira d'água, um marinheiro de malha listrada de vermelho e branco, com facões presos ao cinto.

— Um de vocês não é o Sr. de Peyrac?

— Sou eu mesmo.

O outro lançou para trás o boné de lã num gesto de breve saudação.

-        Trago-lhe uma mensagem da parte de um navio que cruzamos na baía, ao largo da ilha Séguin, antes de pegarmos a corrente de Dresden. Era para lhe dizer, caso o encontrasse, que se tratava do iate Le Rochelais. A Sra. de Peyrac estava a bordo e mandou comunicar-lhe que encontraria sua Senhoria em Gouldsboro.

— Oh! muito bem! - exclamou Peyrac, bastante aliviado. - Quando esteve com eles?

— Ontem, pouco antes do pôr-do-sol.

Era quarta-feira. Com que então, disse ele consigo, Angélica levara a bom termo sua escapada um pouco impensada à aldeia de Brunswick Falis. O Le Rochelais, que cruzara o local, pudera embarcá-la, como combinado. Sem dúvida, razões particulares de carregamento ou de ventos haviam obrigado Corentin Le Gall, o capitão, a partir.

Tranquilizado com a sorte da mulher e do filho, o conde não se preocupou com um possível atraso de sua parte. Encontraria outros meios de chegar rapidamente a seu feudo de Gouldsboro. Em nenhum instante suspeitou que o homem mentia, pois esses embustes são raros no mundo do mar.

-        Venha comigo a Pentagouet - propôs o Barão de Saint-Castine. - Sem dúvida o caminho de terra ainda está enlameado e atravancado com os galhos quebrados pelo degelo. Iremos, porém, mais rapidamente que por mar, ao invés de o senhor esperar um bom navio ou contentar-se com suas canoas que ficaram em Houssnock, e que farão o caminho sem pressa.

-        A ideia é boa - concordou Peyrac... - Olá! rapaz!

Chamou o marinheiro, cuja silhueta distanciava-se na bruma.

-        Aqui tem, para você - disse Peyrac, pondo-lhe na mão um punhado de pérolas.

O marinheiro sobressaltou-se e olhou-o de boca aberta.

— Pérolas rosa, pérolas de "lambi". Das Caraíbas...

— Sim... Sempre terá o que fazer com elas, aposto. Não é dado a todos possuí-las.

O homem parecia perturbado com o esplendor do presente.

-        Obrigado, senhor - balbuciou por fim.

Fez várias mesuras precipitadas e, ao fitar Peyrac, uma luz de medo brotou em seu olhar.

Deixou-os como se fugisse.        

Joffrey de Peyrac saberia mais tarde que o hojmem havia mentido.

CAPÍTULO XX

Angélica apreensiva na baía de Casco

A casa de John Shapleigh, na baía Maquoit, não passava de uma cabana vetusta de toras e cascas, derruída pelo vento, na extremidade de um promontório de cedros inclinados.

A barreira que cercava o lugar mal merecia o nome de paliçada. Mas Angélica e os ingleses haviam levado quase um dia percorrendo as três léguas que separavam o Androscoggin dessa península alongada, e o abrigo pareceu-lhes bom.

Uma velha e gorda índia, que ali vivia e talvez fosse a mãe do indígena que acompanhava o velho médico, serviu-lhes um puré de abóboras e eles comeram clams, gordos mariscos de carne rosada e saborosa. Havia também na cabana uma grande quantidade de remédios: pós, ervas e bálsamos em caixas de casca de árvore. Angélica passou a tratar dos feridos e dos doentes.

Por mais floridos que estivessem os bosques, com a estrela de prata da triental, a starflower, pontuando por todo lado a erva tenra, e apesar dos arrulhos suaves das rolas e dos pombos bravos, a caminhada foi uma provação. Era preciso amparar e encorajar os pobres ingleses esgotados, feridos, aterrorizados. Mais do que os espíritos maus que temiam encontrar na travessia dos pântanos, Angélica receava ver surgir outros selvagens pintados e gritando, com o tacape erguido.

Que significariam vinte cadáveres a mais estendidos num pequeno vale florido, com o crânio sangrando, abandonados às aves de

rapina, nessa primavera em que perto de três mil guerreiros haviam

partido para o assalto às colónias da Nova Inglaterra, devastando mais de cinquenta delas e massacrando várias centenas de colonos?...  

Campos de flores cintilantes, pilriteiros aveludados, aquilégias cor de coral erguendo-se sobre frágeis hastes à sombra de admiráveis carvalhos, durante séculos as cercanias do encantador rio Androscog-gin contariam uma terrível história."'

Deste lado era o mar.

Para além do promontório abria-se a baía de Casco, com suas inúmeras ilhas.

O mar insinuava-se por todo lado, através das rochas e florestas, e sentia-se seu,sabor de sal e-de sargaços ao vento mais vivo, enquanto o chamado dos lõbóvmarinhos nas praias misturava-se ao amplo murmúrio da ressaca.

Havia ao redor da cabana um pequeno campo de milho, cabaças de feijões, e na beira da Mésia, sob' um grupo de salgueiros baixos, colmeias começavam a despertar.'

Durante dois dias esperou-se que surgisse uma vela. Depois um índio sbeepscot, amigo de Shapleigh, passou por ali dizendo que não vira na direção de Sabadahoc nenhum navio de brancos

Que estaria fazendo o Le Rõchelais} Onde estaria Joffrey? Angélica impacientava-se, e sua imaginação mostrava-lhe a maré dos abenakis, no lado leste do Kennebec, rebentando até Gouldsboro.

E se o Barão de Saint-Castine houvesse atraído Joffrey para uma armadilha? Não, era impossível. Joffrey tê-lo-ia pressentido... Mas e quanto a ela? Seu próprio instinto não falhara?... Não adormecera sorrateiramente?... Ela não rira do pobre Ademar quando este gritara, desesperado: "Eles preparam os caldeirões para a guerra!... e para degolar a quem?"

Ademar parecia completamente perdido. Rezava terços a meia voz e olhava em torno, desvairado. De fate, -ainda desta vez ele tinha razão. Nessa ponta solitária de uma região perdida, estavam tão afastados, tão esquecidos quanto numa ilha deserta. E, apesar disso, seu isolamento não os protegia inteiramente dos selvagens que rondavam pelo local e que.gostariam de ter seus escalpos.

Em outros tempos, os mais dispostos dentre eles poderiam tentar chegar a pé a um estabelecimento qualquer da costa inglesa do Mai-ne, que pululava com pequenas colónias, e ali achar uma canoa. Mas hoje, a maior parte dessas aldeotas de madeira queimava. Ir para oeste era caminhar ao encontro da faca do vermelho degolador.

Dava no mesmo permanecer afastado, fazer-se esquecer, miseráveis seres de pele branca naufragados nessa costa terrível e cruel, de um continente feroz. Ao menos tinham um teto sobre a cabeça, medicamentos para os enfermos, legumes, mariscos e crustáceos para matar a fome e um pedaço de paliçada como ilusão de proteçào. Mas seu despojamento de armas angustiava Angélica. Exceto o bacamarte do velho Shapleigh, de munição restrita, e o mosquete de Ademar, sem pólvora nem bala, possuíam apenas seus facões e facas pessoais.

O sol retornara.

Angélica encarregou Cantor de observar o horizonte a fim de localizar as velas que brincavam de esconde-esconde entre as ilhas, e que poderiam chegar suficientemente perto para que se lhes fizessem sinais. Mas os navios pareciam fugir para outro destino. Com suas velas brancas ou castanhas infladas no azul cru das vagas, essas naus vistas ao longe, surdas aos apelos e gestos, tinham como que um comportamento humano, uma indiferença que confrangia o coração.

Não obstante a desconfiança que lhe inspiravam as tribos da região, o abenaki Piksarett continuara a vigiar de longe em longe os prisioneiros - ou por ele considerados como tal. Na verdade parecia antes velar por eles. Durante a caminhada para a costa, viram-no surgir para carregar uma criança que já não podia consigo mesma.

Depois, quando já estavam na cabana, ele veio e virou diante deles uma cabaça de tubérculos selvagens que os ingleses apreciavam e nomeavam: potatoes.

Cozidas sob as cinzas, as batatas eram saborosas, menos adocicadas que as batatas-doces e os tupinambos. Trouxe também liquens aromáticos e um salmão gigante que ele próprio assou em um espeto.

Quando os três selvagens chegavam com o índio gigante à frente, a pobre gente de Brunswick Falis recuava precipitadamente.

Ainda secavam ao cinto dos paísuiketts as cabeleiras recentemente arrancadas aos crânios de seus .parentes e amigos.

Após trocarem algumas palavras, Piksarett e seus acólitos retiravam-se para os bosques, mas amiúde, ao sair para sondar o horizonte, Angélica avistava do outro lado do fiorde Piksarett e seus dois companheiros vermelhos empoleirados no cimo das árvores, observando não se sabia o que na baía. Eles lhe faziam sinais e lançavam-lhe gracejos, dos quais ela só compreendia alguma coisa, adivinhando porém que eram amigáveis.

Era preciso habituar-se à desenvoltura desses selvagens, à sua versatilidade a um tempo perigosa e tranquilizadora, e procurar viver com eles com a familiaridade de feras que só são subjugadas pela transcendência e pêlo-valor real do domador. No momento, ela nada tinha a temer dá parte deles.

Um desfalecimento, e então sim: poderia recear tudo.

Piksarett apresentara-lhe seus dois guerreiros," de nomes facilmente memorizáveis: Tenuienant, o que queria dizer: que-conhece-bem-as-coisas, está-habituado-ao-trabalho, e Uauenuruê, ou seja, que-é-astuto-como-um-cão-de-caça.

Pensando bem, ela preferiu chamá-los por seus nomes de ba-tismo católico, que eles haviam enunciado com orgulho: Miguel e Jerónimo. E esses nomes santos combinavam com eles na medida do possível, apostos às suas faces tatuadas - vermelho ao redor da órbita esquerda, o primeiro ferimento, branco sobre o outro olho, para a clarividência, uma terrível barra negra atravessada na fronte para assustar o inimigo, azul no queixo, o dedo do Grande Espírito etc. - e o conjunto encimado e ladeado por bárbaros tufos de cabelos, entremeados de plumas e peles, de rosários e medalhas.

Com o peito nu, tatuado e pintado, a tanga de pele flutuando ao vento, amiúde de pés nus, besuntados de- gordura, arreados com suas armas, eles avançavam quando ela os chamava.

"Miguel! Jerónimo!"

E ela se continha para não dar uma gargalhada, tomada por uma espécie de ternura ao vê-los.

Havia na língua deles um diabo de acento impossível de se apreender, um acento quase inglês. Ela jamais pudera levar Piksarett a sério, por culpa unicamente de seu patronímico divertido: "Piksarett, chefe dos patsuiketts". O nome, porém, não era esse, dizia ele.

Originalmente, devido a seu caráter alegre, ele era o Piuerlet, ou seja, aquele-que-conhece-brincadeiras, mas suas proezas guerreiras haviam feito que seu nome evoluísse para Pikasu'rett, o Homem Terrível, e os franceses diziam Piksarett para facilitar as coisas.

Enfim, que seja, Piksarett!

Desde o dia em que ela se erguera entre ele e o iroquês ferido e lhe oferecera em troca da vida do inimigo seu manto cor da aurora, começara a aventura de sua insólita amizade. Aliança que provocou os comentários da crónica da época, espantando, escandalizando, assustando, indignando.

Angélica ainda não sabia do papel que Piksarett teria em sua existência num futuro próximo, mas ele não a atemorizava.

Por vezes ele devaneava, parecendo responder a uma pergunta não formulada.

-        Sim - afirmava -, decidimos negociar com os ingleses, mas depois os franceses retornaram. Poderia magoar aqueles que me batizaram?

E passando a mão pelo colar de medalhas e de cruzes:

-        O batismo foi bom para nós, wonolancets, ao passo que fez a desgraça dos huronianos. Quase todos morreram de varíola ou massacrados pelos iroqueses. Mas nós somos wonolancets... Não é a mesma coisa!

O velho Shapleigh também se mostrava loquaz com Angélica. Descobrira seu conhecimento das plantas. Ensinava de bom grado e discutia quando ela não seguia suas crenças particulares. Tendo examinado a farmacopeia que ela trazia em sua sacola de viagem, censurava-a por empregar a beladona, a erva do Diabo, pois brotara no jardim de Hécate.

Em contrapartida, ele gostava particularmente do aurôme mâle, "erva soberba sob a influência de Mercúrio e digna de maior estima do que a que lhe era concedida".

Os astros e seus poderes também estavam encerrados em suas caixas. Ele professava que um bocado de cobre, um pedaço de verbena, uma pomba eram "venusianos". E quanto ao cardo-santo, dizia:

-        É uma erva de Marte que sob o signo de Aries cura as doenças venéreas, em oposição a Vênús, que as govern^. Vendo grande quantidade para o pessoal dos navios. Eles vênrtmscá-lo sob o pretexto de ter a peste a bordo, mas sei o que isso quer dizer...

Assim, voltando a ser de súbito um autêntico sábio, ele dava um nome latino a quase todas as ervas que conhecia, e ela encontrou entre seus formulários, no fundo de um velho cofre, um exemplar do livro Herbatum virtutibus, de Aemilius Maces, e um outro do notável Regimen sanitatis salerno... verdadeiros tesouros!

Dois dias assim se passaram. Eles ali estavam, quase náufragos, na incerteza de sua sorte.

Na direção-sudoeste, quando clareava, adivinhava-se a linha encurvada da costa. Dali_elevavarn-se tufos cinza, que se diluíam lentamente na atmosfera- suave e turva que reina na baía, rosa e azul, leitosa, uma fina porcelana...

As manchas cinza traíam os incêndios provocados pelas tochas índias...

Freeport, Yãrmouth e todas as aldeias em torno queimavam. Port-land estava ameaçada.

Tudo isso estava a grande distância. Demasiada distância para que se pudesse adivinhar a agitação"das fugas desesperadas pelo golfo. As velas que percorriam grandes espaços nasciam e se apagavam, apenas um vôo branco a mais, misturado ao vôo incessante das gaivotas, cormorões e petréis.

Eram tantos os pássaros que, apesar da luz ofuscante de junho, a todo instante se mergulhava numa espécie de crepúsculo, com uma cortina de milhares de asas a atravessar o céu, atraídas pelos cardumes de bacalhau, arenque, atum, cavala, que vinham desovar nessas águas da grande baía de Massachusetts, semelhante a uma cornucó-pia aberta de um lado para o Atlântico e fechada na outra extremidade pela rica e terrível baía Francesa, de marés gigantescas.

No terceiro dia de sua presença na pcrnta Maquoit, Cantor disse à mãe:

-        Se amanhã nenhum navio, nenhuma barca, lançar âncora neste maldito lugar, vou embora a pé. Seguirei a costa para leste.

Escondendo-me dos selvagens, encontrando um bote aqui e ali, para a travessia das passagens e deltas, acabarei por atingir Gouldsbo-ro. Sozinho, atrairei menos atenção do que se estivéssemos em caravana.

— Não levará dias e dias para realizar tal expedição?

— Caminho tão rápido como um índio.

Ela aprovou o projeto, embora sentisse profunda apreensão à ideia de vê-lo afastar-se. Sua juventude vigorosa, já afeita às contingências insólitas da vida americana, era para ela um conforto.

Mas era preciso fazer alguma coisa. Não era possível permanecer assim indefinidamente à espera de um socorro duvidoso.

Nessa noite, ela prosseguia em sua vigília, ajudada pela claridade do crepúsculo.

Os pássaros aos gritos abatiam-se sobre os estuários dos rios. A bruma densa, impalpável, se dissipava.

A baía de Casco adormecia em meio a uma deslumbrante serenidade.

O mar, banhado em ouro, mostrava como jóias suas ilhas com reflexos cor de topázio queimado, azul-amarelado e azeviche. Comentava-se que eram em número de trezentos e sessenta e cinco, como os dias do ano.

A claridade diminuía ainda mais. O ouro estava ficando opaco. O mar adquiria um branco baço e glacial, enquanto pouco a pouco a terra e seus meandros anulavam-se numa sombra opaca.

O odor do golfo subia até eles, drenado por vento rijo.

A paisagem era cor de bronze.

A leste, na ponta de Harpwells, assim que o sol desapareceu, Angélica avistou um navio. Dir-se-ia que era de ouro, em meio à luz derradeira emitida pelo astro do dia. Quase de imediato, ela deixou de vê-lo.

— Ele não tinha uma tíbia gigante na proa? - gritou o velho medecin's man. - Aposto que arriava as velas, preparando seu regresso ao porto. Eu o conheço. É o navio fantasma que aparece na ponta de Harpwells quando uma desgraça está a caminho daquele - ou daquela - que o avista. E o porto em que se prepara para penetrar é a Morte...

— Ele absolutamente não arriava as velas - replicou Angélica, irritada.

O jovem Cantor, vendo-a quase transtornada pelas palavras do velho mágico, lançou-lhe uma piscadela cúmplice e tranquilizadora.

O NAVIO DOS PIRATAS

CAPÍTULO XXI

Nova aparição do navio fantasma

No dia seguinte, desde as primeiras horas, Angélica, sem poder dormir, desceu para apanKar mariscos etttre os rochedos desnudados pela maré baixa. Numa'praia próxima, a colónia de lobos-marinhos agitava-se e lançava clamores cortantes que despertavam o eco das enseadas.

A jovem foi observá-los. Eram de hábito animais pacíficos. Desajeitados e pesados em terra, seus corpos escuros e luzidios mostravam-se no cintilar das vagas, aerpoeate, de"encantadora flexibilidade.

Nessa manhã ela descobriu, ao aproximar-se, a causa de sua turbulência.

Duas ou três focas jaziam de lado, mortas, já cobertas pela sombra rodopiante e rumorosa dos pássaros marítimos. Haviam sido brutalmente espancadas. Entre os de sua espécie, os grandes machos, senhores da praia, tentavam afastar, encolerizados, o bando emplumado e voraz.     

Diante desse quadro, Angélica sentiu um sobressalto de alerta: o massacre era obra de humanos. Com que então, homens tinham vindo...

E não eram índios, pois. estes só praticam a caça ao lobo-marinho em janeiro, no inverno.    

O olhar de Angélica vagou pela enseada. Um navio, sem dúvida o navio fantasma, ali baixara âncora naquela noite, na sombra enevoada.

Ela tornou a subir.

O sol ainda não surgira, oculto por uma barreira de nuvens no horizonte. A manhã era de um azul original, puro e sereno.

Então, no frescor do ar, ela percebeu o odor de uma fogueira de ervas, diferente do cheiro da fumaça que escapava da pequena chaminé de pedra, acima da cabana. Com passo leve e rápido, esgueirando-se por instinto atrás das moitas e dos troncos de pinho, ela acompanhou a borda da faixa de terra acima do fiorde.

O odor de fumaça de madeira verde e de ervas úmidas tornou-se mais pronunciado.

Inclinando-se entre as árvores, Angélica avistou a ponta de um mastro com sua vela alongada. Uma embarcação estava ancorada, escondida por um dos meandros do longo corredor de água que mergulhava no interior das terras.

Vinda de baixo, inflando suas espirais preguiçosas, a fumaça subia, azul e opaca, trazendo com ela o murmúrio de uma voz.

Angélica estendeu-se no chão e avançou até o rebordo da falha rochosa. Não conseguiu ver, porém, aqueles que acampavam embaixo, na estreita banda de cascalho, infestada de algas. Somente as vozes fizeram-se mais próximas. Palavras em francês e em português. Vozes rudes e grosseiras.

Em contrapartida ela descobriu por inteiro o navio, que era, na verdade, uma simples barca, uma chalupa.

CAPÍTULO XXII

Angélica enfrenta os filibusteiros

De volta à cabana, e a fez. entrar as crianças, que, recuperadas do cansaço, começavam â brincar com uma pequena bola de crina.

-        Há homens defumando carne lá na enseada. Têm uma barca onde poderíamos achar lugar, ao menos oito ou dez de nós. Mas não estou certa de que nos ofereçam passagem generosamente.

Ela não augurava nada de bom vindo de indivíduos que massacravam animais inocentes sem necessidade e sem mesmo os recolher...

Cantor foi por sua vez espiar o ponto indicado e voltou dizendo que os havia visto, que eram cinco ou seis, não mais, e pertenciam à espécie de piratas do mar que frequentam as margens da América do Norte no verão em busca de um butim, talvez menos fabuloso, porém menos difícil de conquistar, que os dos navios espanhóis.

-        Precisamos dessa barca - insistiu Angélica -, nem que seja, para buscar socorro.

Dirigia-se sobretudo a Cantor e a Stougton, único homem válido que poderia ajudá-la a tomar a decisão.

O pastor, presa de forte febre, estava semi-inconsciente. Corwin, ferido, sofria muito e concentrava forças para se impedir de praguejar, devido à vizinhança do pastor. Os dois criados, atarracados e taciturnos, estavam prontos para todos os golpes mas não podiam dar nenhum conselho. O velho Shapleigh não se solidarizava com os hóspedes. Deveria deixá-los ao anoitecer ou no dia seguintepara ir à floresta, pois se aproximava a noite da colheita da verbena selvagem.

Quanto a Ademar, era um irresponsável.

Restava Stougton, lavrador sem imaginação mas corajoso, e Cantor, filho de nobre, cuja curta vida era já rica em experiências. Angélica, em seu filho, confiava na sabedoria da primeira adolescência, período em que se misturam na criança uma prudência instintiva, o conhecimento de siias forças e uma audácia já viril.

Cantor empenhava-se em capturar a chalupa nas barbas dos bucaneiros e em conduzi-la ao outro lado do promontório, onde o restante da companhia embarcaria.

Nesse ponto da discussão, Angélica ergueu-se e foi abrir a porta. Logo soube o que a havia atraído para fora.

O canto do engole-vento elevava-se repetido, sonoro, insistente.

Piksarett a chamava.

Ela correu até a beira da península e, na outra margem, no cimo de um carvalho-negro, avistou o índio, que, semi-escondido na folhagem espessa, fazia-lhe veementes sinais.

Ele indicava algo abaixo dela.

Ela baixou os olhos, olhou para a praia e seu sangue gelou. Agarrando-se aos tufos de zimbro e aos pinheiros mirrados que cresciam nas fendas da falésia, homens subiam.

Eram sem dúvida alguma os flibusteiros da chalupa, e quando um deles, adivinhando-se surpreendido, ergueu para ela a face de pirata, ela viu que ele tinha uma faca entre os dentes.

Também eles deviam ter verificado que possuíam vizinhos nesse local perdido, e, saqueadores inveterados, vinham surpreendê-los.

Vendo-se descobertos no ataque surpresa, lançaram horríveis imprecações e apressaram a escalada.

O olhar de Angélica caiu sobre as colmeias junto dela. Antes de fugir, ela apanhou uma delas, e como os flibusteiros emergissem na beira do platô, lançou-lhes com gesto pronto a colmeia e seu enxame a zumbir. Eles a receberam em plena fronte, com gritos assustadores.

Ela não ficou para vê-los debater-se contra a nuvem negra e furiosa das abelhas.

Enquanto corria, desembainhou sua faca afiada, o que foi acertado, pois os bandidos haviam-se dividido em dois grupos.

Assim, ela viu erguer-se entre ela e a residência de John Shapleigh uma espécie de polichinelo escarninho, vestido de andrajos e coberto com um tricórnio de plumas vermelhas de avestruz, e brandindo um porrete. 

Devia estar um pouco ébrio ou então acreditava que não havia o que temer numa mulher. O fato é quis avançou e, como ela se furtou ao golpe do bastão que assobiou no ar, ele tropeçou e foi literalmente empalar-se na lâmina aguçada que ela brandia diante de si o melhor que podia para defender-se.

Ele emitiu um grito rouco, e ela sentiu sobre si, por um breve instante, seu hálito fétido de bebedor de rum de dentes estragados. Suas mãos crispadas sobre o corpo de Angélica distenderam-se. Ele quase a arrastou na queda. Gelada de terror, ela o repeliu com um soco e viu-o desmoronar a seus pés, as mãos crispadas no ventre. Os olhos remelosos de celérádqlexprimiam imensa surpresa.

Sem cometer a imprudência de preocupar-se por mais tempo com sua sorte, Angélica aleançou-com três pulos a moradia de Shapleigh, onde logo se fechou a oscilante paliçada.

CAPÍTULO XXIII

Armistício na madrugada

-Ele está perdendo as tripas!

O grito lúgubre subia na tarde pura de junho, que se estendia demoradamente sobre a baía de Casco.

-        Ele está perdendo as tripas!

Um homem atrás das moitas chamava por outro, e os ingleses e franceses, sitiados na cabana bem protegida, ouviam o grito que se prolongava num clamor dolente e trágico.

O dia, que tão mal começara, terminava do mesmo modo. De um lado, Angélica e os ingleses, pouco armados sem dúvida, mas à espreita, abrigados atrás das paredes de toras, e do outro, os piratas, ferozes e agressivos, mas agora doentes e com um ferido que perdia as tripas.

Infelizmente, para Angélica e seus companheiros, eles se haviam refugiado junto ao riacho próximo da casa, a fim de banhar o rosto e os membros tumefatos devido às picadas das abelhas.

Ali postados, não deixariam que nenhum habitante saísse da cabana. Clamavam injúrias, depois recomeçavam a gemer. Não era possível vê-los, mas adivinhava-se sua presença por trás da cortina de árvores e ouviam-se seus queixumes.

E quando caiu a noite, seus gemidos, suspiros e gritos de dor passaram a encher o ar a intervalos regulares, o que, acrescido aos gritos dos lobos-marinhos embaixo, na praia, produzia uma melopeia de arrepiar os cabelos.

Logo o luar veio banhar os arredores. O mar tornou-se prateado, e a esquadra inteira das ilhas, de um negro de tinta, pareceu aparelhar-se rumo aos longes esbranquiçados.

Mais para o meio da noite, Angélica subiu num escabelo e deslocou uma telha do teto para olhar lá fora e considerar de cima a situação.

-        Vocês, marinheiros aí embaixo, escutem! - gritou em francês com voz alta e clara.

Viu moverem-se as sombras dos piratas.

-        Podemos entrar num acordo. Tenho remédios que aliviarão seu sofrimento. Posso medicar seu ferido... Venham até duas toesas da casa e joguem as armas. Não queremos sua morte. Apenas nossa vida e sua barca emprestada. Em troca, trataremos de vocês.

De início, teve como"resposta_o silêncio, seguido de um sussurro confuso que se misturava às rajadas do vento.

— Trataremos de vocês -.repetiu Angélica. - Senão morrerão. As picadas de abelha não pgrdoam. £ seu ferido irá sucumbir sem tratamento.

— Pois sim! Sucumbir... Ele está perdendo as tripas, vai morrer - grunhiu uma voz grossa na noite.

— Isso não é bom para ajsaúde dele. Sejam razoáveis. Joguem as armas, conforme lhes disse. E tratarei de vocês.

No meio da noite, sua voz leve de mulher tranqiiilizava-os, parecendo vir do céu.

No entanto, os piratas não cederam de imediato. Foi necessário esperar a aurora.

-        Olá, mulher - gritou então alguém. - Estamos indo.

Ouviu-se um tinir de aço por trás-dos bosquetes, e uma gorda silhueta titubeante apareceu, os braços carregados de facões, facas, sabres, além de um machado e uma pequena pistola, os quais pousou a alguns passos da barreira.

Angélica, protegida pelo bacamarte do velho Shapleigh e por Cantor, que carregava o mosquete, veio até o homem. Estava quase cego sob o inchaço das picadas que lhe crivavam o rosto. O pescoço, os ombros, os braços, as mãos, mostravam-se intumescidos e esticados.

Shapleigh lançou para trás seu altochapéu de puritano e rodeou o homem, escarnecendo e farejando-o com ar alegre.

— Entendo... Entendo! A abóbora parece estar no ponto!

— Salvem-me! - suplicou o homem.

A camisa enegrecida por velhas manchas de sangue, bem como o calção de tela curto, que deixava à mostra os joelhos hirsutos, eram os atavios de um autêntico bucaneiro.

Seu cinto, de onde pendiam bainhas de facas de todo tamanho, vazias, no momento, porém inúmeras, traía sem engano o fato de ele pertencer à corporação dos homens que no mar das Caraíbas caçam, matam, retalham os porcos e bois selvagens das ilhas e, depois de secarem suas carnes, abastecem os navios de passagem. Simples açougueiros do oceano, na verdade, e comerciantes, se se quiser, não eram mais malvados que outros, mas levados à pirataria e à guerra pelo espanhol conquistador, que não tolera outra presença além da sua nos arquipélagos da América.

Os companheiros, por trás do aglomerado de árvores, encontravam-se em estado ainda pior. Um jovem grumete, machucado e macilento parecia a ponto de expirar. O português de face esverdeada tinha o aspecto de um repolho, e o último, vagamente amarelado, o de uma abóbora. Quanto ao ferido...

Angélica ergueu o trapo sujo que haviam jogado sobre ele e um murmúrio de horror veio aos lábios dos espectadores. Angélica conteve a custo sua náusea.

O ferimento aberto tinha pelo menos quinze polegadas de comprimento, e estava coroado por uma enorme hérnia, semelhante a um ninho de serpentes a se contorcer, inchando e deformando-se sob os movimentos espasmódicos, como um pesadelo encarnado. As vísceras a nu do homem de ventre aberto!

Todos ficaram imóveis, estupefatos, salvo Piksarett, que surgiu de súbito, inclinando-se curioso e divertido, sobre o objeto do horror.

Angélica, quase de imediato, teve a intuição de que poderia tentar tudo numa jogada. O ferido, que não estava desmaiado, mas, ao contrário, lúcido e vagamente zombeteiro, espreitava-a com um olhar vivo sob as espessas sobrancelhas. Apesar da tez cerosa, dos traços vincados, Angélica não descobriu nessa feia face de bêbado os estigmas da morte. Era surpreendente, mas ele parecia decidido a viver. O golpe não lhe perfurara os intestinos, o que o teria levado à morte em pouco tempo. Foi ele quem falou, com voz sufocada, e contendo algumas caretas:

-        Yes... Milady! Para um golpe à traição, não poderia ter sido melhor, hein?... Um verdadeiro trabalho de egípcia que não perdoa, e olhe que me conheço... Agora é preciso cqstúrar tudo.

Ele devia ter sonhado com isso durante a longa noite de agonia, persuadindo-se pouco a pouco de'que a coisa era possível. Um homem simples a quem não devia faltar inteligência, embora fosse, sem dúvida, um fino crápula. Não era necessário observar por muito tempo seu aspecto e o de seus companheiros para compreender a categoria à qual os cinco pertenciam. Ao rebotalho da equipagem!

O olhar de Angélica caminhou do rosto do homem, que revelava diabólica vitalidade, para a monstruosa hérnia, que exalava um odor pútrido, enquanto gordas moscas começavam a zumbir em torno.

-        Está bem --- disse eia -, vamos tentar.

CAPITULO XXIV

Angélica salva Cabeça-de-Mula

"Já vi casos iguais", repetia ela para si mesma, enquanto dispunha apressadamente alguns instrumentos tirados da sacola sobre uma prancheta na cabana.

Não era totalmente exato... Era verdade que durante o inverno em Wapassu, ela fora levada a executar verdadeiras operações cada vez mais diversas e complicadas. A habilidade extraordinária de seus dedos delgados, tão leves, como que animados de vida própria, o instinto seguro de suas mãos, a impeliam a experiências que para a época e para a região não eram faltas de ousadia.

Assim, na primavera, ela tratara de um chefe índio, no qual o chifre de um alce abrira grande ferida ao longo das costas, e pela primeira vez num caso como esse ela tentara juntar os lados do corte com alguns pontos. A cicatrização fora fulminante.

Sua reputação espalhara-se. E em Houssnock, grande número de indígenas se havia apresentado para fazer-se tratar pela Dama Branca do Lago de Prata.

Às agulhas mais finas tiradas do estojo de instrumentos, os dedos de relojoeiro do Sr. Jonas haviam dado uma forma semicurva, que Angélica achava preferível para o delicado trabalho em questão. Ela se felicitou por ter salvo sua preciosa bolsa em meio às peripécias recentes. Era maravilhoso. Descobria em todos os cantos muitas coisas necessárias. Em um saquinho, encontrou um punhado de cascas de acácia esmagadas. Reservava esse pó de tanino salvador como emplastro, que talvez evitasse que os humores venenosos se espalhassem pelo corpo após o fechamento da ferida. A quantidade não era uficiente. Ela mostrou o pó a Piksarett, que, após tê-lo examinado e aspirado, deu um sorriso entendido e laaçou-se à floresta.

-        Encarregue-se da barca com urri dos ingleses - ordenou Angélica a Cantor. - Certifique-se de'que esteja em estado de velejar com parte de nossa companhia. E'permaneçam em guarda e bem armados, embora esses pobres brutos não'me pareçam por enquanto em condições de causar-nos mal.    

Elisabete Pidgeon propôs-se timidamente a ajudar Angélica, mas sta preferiu enviá-la pára tratar com pomadas as tristes vítimas das belhas. Com o Reverendo Patridge a ser medicado, não faltaria tra-alho à solteirona, que, consciente da nova situação, escolheu o sabre menos estragado entre as armas dos piratas e, após passá-lo alhardameritê no cinto, caminhou com passo curto e rápido até a abana onde Shapleigh começava a prodigalizar seus remédios, companhando-os com muita zombaria.

Sob a árvore, junto ao ferido, Angélica escovou uma pedra achata-Ja e nela dispôs o estojo de agulhas, o de pinças, um frasco de forte aguardente, tesouras, ataduras, que se conservavam limpas e alvas em um envelope de tela engomada.

Era inútil deslocar o homem: Ali, a água do riacho estava próxima. Ela reanimou as brasas de uma pequena fogueira, colocou sobre elas uma panela de barro com um pouco de água, onde derramou o pó de casca de acácia.

Piksarett retornou com as mãos cheias de cascas. Ainda estavam verdes. Angélica apanhou uma, mordeu-a e fez uma careta, cuspindo a seiva verde e adstringente. Embora bastante desagradável, nào era ainda o sabor do tanino maduro, que possuía um gosto metálico de tinta e inestimáveis propriedades, como fechar as feridas, cicatrizá-las, combater as purulências perigosas e enfim, por seu poder tónico e revigorante, evitar as supurações que tornam tão longa a cura das feridas, mesmo das não-malignas. Aqueks-oascas verdes seriam menos eficazes.

-        Deveremos contentar-nos com elas.

Ia pô-las a cozinhar, quando Piksarett a deteve.

-        Deixa que Maktera o faça - disse.

Ele indicou a velha índia, criada ou companheira do curandeiro inglês. Ela parecia conhecer o valor da planta. Acocorou-se junto ao fogo e pôs-se a mastigar as cascas, dispondo-as em seguida em cataplasmas sobre largas folhas. Angélica concordou, pois sabia - o velho feiticeiro do campo dos Castores perto de Wapassu lho ensinara - que era assim preparado que o remédio mostrava todo o seu alcance.

E voltou até o paciente, cujos olhos, sempre abertos brilhavam a um tempo de esperança e de terror ao vê-la ajoelhar-se e baixar sobre ele o rosto emoldurado por cabelos luminosos, e com tal expressão de resolução concentrada que ele desfaleceu, e em seu olhar de velho pirata surgiu uma luz patética.

— Devagar, minha bela - sussurrou, com voz fraca. - Antes de começar, devemos entender-nos. Se você me remendar, e se eu voltar a caminhar com minhas próprias pernas, não vai exigir que entreguemos as armas e lhe cedamos nosso velho barco? É tudo o que aquele sujo do Barba de Ouro nos concedeu para permanecermos vivos neste fim de mundo. Então, não vai ser por acaso pior que ele, vai?

— Barba de Ouro - disse Angélica, aplicando o ouvido. - Então você faz parte de sua equipagem?

— Fazíamos, você quer dizer... Aquele garoto asqueroso desembarcou-nos aqui sem sequer pólvora suficiente para nos defendermos contra os animais ferozes, os selvagens e a gente como você, na costa, que sabemos ser toda de náufragos...

— Cale-se agora - disse Angélica, conservando a calma. - Você fala demais para um moribundo... Mais tarde conversaremos.

Ele estava esgotado, e toda a sua carne macilenta parecia afundar-se nos vãos da ossatura do rosto, compondo já uma máscara de morte, com um círculo vermelho em torno dos olhos saltados.

Mas o bordo corado da pálpebra falava por sua resistência final. "Ele viverá", pensou ela. E cerrou os lábios. Depois pensaria nessas histórias sobre Barba de Ouro.

— É cedo demais para impor condições, senhor - retomou, em tom alto. - Faremos o que quisermos com suas armas e sua barca. Serão felizes se continuarem vivos.

— De qualquer modo... levarão dias... para remendá-lo ... o barco... - sussurrou o outro, sem capitular.

-        Também levará dias para remendá-lo, Cabeça-de-mula. E, agora, poupe as forças, rapaz, fique,Calmo.

E ela lhe pousou a mão na fronte flácida, pegajosa de suor.

Hesitava em fazê-lo beber uma poção calmante, justamente à base da beladona de que Shapleigh não gostava. Nada seria tão forte para dominar a dor durante a intervenção:

— Um bom grogue - gemeu o ferido -, um bom grogue bem quente com um limão dentro, poderia bebê-lo pela última vez?

— A ideia não é má - observou Angélica.--- Ajudá-lo-á a suportar o choque. Esse flibusteiro está tão completamente embebido em rum, que isso talvez o salve... Ei, maroto - disse ao bucaneiro válido que voltara junto deles -, não teria uma pinta de rum à disposição?

O grandalhão aprovou, na medida em que as inchações doloridas permitiam-lhe balançar a cabeça. Acompanhado de um inglês, foi até o acampamento ha enseada e voltou com um frasco de vidro preto de longo gargalo^ cheio pela metade com um dos melhores runs da ilha, a julgar pelo odor que se espalhou quando Angélica fez saltar a rolha.

-        Cá está =- disse. - Engula isto, rapaz, o quanto conseguir, até

ver o céu rodar como um pião.

Como ela subitamente o tuteasse, ele compreendeu que o momento era grave.

— Isso vai doer - estertorou. E com o olhar desvairado:

— Há um confessor neste fim de mundo?

— Eu - disse Piksarett, caindo de joelhos. - Sou chefe catequista do Toga Negra e chefe de todas as tribos abenakis. O Senhor também me escolheu para distribuir o batismo e as absolvições.

— Senhor Jesus, um selvagem, era o que faltava para eu desmaiar! - exclamou o ferido, perdendo os sentidos, sem que se soubesse se era de pasmo ou devido aos exagerados esforços.

— Assim é melhor - disse Angélica.

"Lavarei a ferida com água morna e essência de beladona", pensou.

Pegou de perto de si um pedaço de casca em forma de tubo, que lhe permitia dirigir melhor o filete de água que saía da cabaça carregada por Piksarett, e debruçou-se sobre a horrenda ferida aberta.

Ao primeiro contato, embora leve, o ferido estremeceu e tentou erguer-se. Foi detido pelas mãos vigorosas de Stougton.

Angélica deitou o alto bucaneiro no colo do camarada, a face contra o chão, e o índio de Shapleigh segurou-lhe os tornozelos. Como isso não adiantasse, o ferido voltou em parte a si e suplicou que lhe erguessem a cabeça; tomou mais alguns goles de rum e depois, semi-inconsciente, permitiu que" lhe atassem os punhos em espeques fincados no chão. Angélica fez uma bola com um pedaço de atadura e a introduziu entre os dentes dele depois apoiou-lhe a nuca num feixe de palha, cuidando para que a respiração pelas narinas se fizesse com facilidade.  

O velho curandeiro inglês, ajoelhara-se do outro lado. Tirara o grande chapéu, e o vento agitava seus cabelos brancos e anelados. Foi ele quem, por ofício, e compreendendo sem palavras o de que ela precisava, apanhou e colocou as primeiras pinças de caniços, destinadas a aproximar os bordos da ferida.

Era quase impossível consegui-lo totalmente, mas com um golpe seco e decidido, Angélica plantou a agulha nas carnes aparentemente flácidas, e no entanto coriáceas e resistentes, com seus dedos a segurá-las enquanto com um movimento de punho imperceptível, mas que exigia um vigor e destreza pouco comuns, passava o fio untado de sebo e dava-lhe um nó. Trabalhava rápido, com regularidade, sem hesitação, debruçada, inteiramente imóvel, à exceção do movimento inexorável de suas mãos hábeis. O velho John acompanhava-a, ajudando com as pinças ou com os dedos, quando as pinças cediam sob os puxões das carnes torturadas.

O infeliz mártir permanecia prostrado, mas seu corpo era percorrido por sobressaltos contínuos e embaraçosos, e, por instantes, através da mordaça, ouvia-se um terrível estertor, que parecia o derradeiro. Então o conjunto dos intestinos fétidos, viscosos e que se moviam sem cessar irrompia, novamente prestes a saltar, e era preciso enfiá-los novamente para dentro como um animal que se sufoca. As espirais esbranquiçadas e violáceas das vísceras, que saíam continuamente pelos interstícios, formavam múltiplas hérnias e faziam temer a todo momento um rompimento ou uma perfuração, que Angélica sabia que seria fatal. Mas o rosário de entranhas resistiu e se fez a última sutura.

O homem estava como que morto.

Angélica apanhou o emplastro de tanino que lhe passou a índia, cobriu com ele todo o ventre do ferido e atou fortemente uma faixa de tela, que passara sob os rins do paciente, antes de iniciar a operação.

Assim amarrado, Cabeça-de-Mula não tinha senão que se acomodar novamente às suas tripas vagabundas recolocadas no lugar corre-to, e era de se esperar que elas definitivamente se mostrassem razoáveis.

Angélica ergueu-se, as costas moídas. O trabalho durara mais de uma hora.

Foi lavar as mãos no riacho. Depois voltou e pôs ordem em tudo.

Ouvia-se na enseada o ruído das redes. A barca estaria pronta para a partida antes de seu miserável capitão.

Angélica de Peyrac ergueu a pálpebra do ferido, auscultou-lhe o coração. Ele continuava a vjyer. Então, avaliando-o das pontas dos pés encardidos e cober-tos de calos à grenha inculta, ela sentiu um impulso de simpatia pôr aquele triste rebotalho da humanidade, de quem acabava de salvar a miserável existência.

CAPÍTULO XXV

Revelações assustadoras de um convalescente

Nem todo mundo, e menos ainda os doentes e os feridos, poderia tomar lugar a bordo da chalupa dos flibusteiros, já em condições de navegar. A escolha dos que partiriam ou ficariam deu lugar a debates de consciência, dos quais Angélica deveria mais uma vez assumir a direçao.

Era evidente que Cantor, afeito às artes da navegação, deveria assumir o comando para conduzir a barca a Gouldsboro. Os homens, Stougton e Corwin, criados à beira da água, ajudá-lo-iam nas manobras, e era lógico que partissem com a família completa. Ademais, os criados não queriam deixá-los. Morriam de medo sem os amos e não saberiam o que fazer no mundo. Esses já lotavam a barca, e não se podia pensar em ali estender os doentes, necessitados de cuidados. Desde o primeiro instante, Angélica compreendera que se veria obrigada a permanecer junto deles, e jamais seu senso de responsabilidade lhe custara tão caro. Mas como abandonar moribundos à própria sorte, tanto o enorme Patridge como os flibusteiros envenenados pelas abelhas, e seu operado miraculado? Cantor protestou com veemência. Repugnava-lhe ao extremo deixar a mãe em tão miserável e perigosa companhia.

- No entanto, você bem vê que não podemos levar nenhum doente - disse-lhe ela. - Atrapalhariam as manobras, exigiriam um tratamento impossível de ser feito a bordo, arriscar-se-iam a morrer no caminho.

— Pois bem! Que permaneçam aqui, com o velho Shapleigh, e que ele os trate.

— Shapleigh disse-me que partiria para a fjpresta numa dessas próximas noites e que não pode atrasar a viagem por causa da lua. Penso sobretudo que ele não quer permanecer face a face com essa canalha das Caraíbas...  

— E você mesma não corre grandes perigos na companhia deles?

— Sei defender-me. E ademais estão muito doentes.

— Nem todos. Há um que começa a se firmar, a enxergar bem, e cujo olhar não diz nada que preste.

— Pois bem! Eis então a solução. Você o levará a bordo, e Corwin e Stougton o vigiarão até que possam livrar-se dele em alguma ilha da baía de Casco. Em seguida singrarão rapidamente para Gouldsboro. E com bom vento, épossível que o veja voltar no Le Rochelais dentro de menos de oito dias. Nada pode acontecer-me de muito grave até lá...

Ela queria persuadir a si_mesma,'V Cantor acabou por admitir que não havia outra solução.

Quanto-'mais depressa içassem as. velas, mais depressa estariam em família, ao abrigo dos muros de Gouldsboro, que lhes aparecia como o porto de paz e o término de toda inquietação. Em Gouldsboro havia armas, riquezas, homens, navios...

Eles não eram agora mais que oito na ponta do cabo, na baía Maquoit.

Fazia dois dias que a barca dos flibusteiros, devidamente aparelhada com suas velas e dirigida com mestria por Cantor, deslizara para fora da enseada e, inclinada à frente como uma gaivota sob o vento, introduzira-se por trás das últimas ilhas.

Levava, então, as famílias Corwin e Stougton, seus empregados, a pequena Rose Ann e o flibusteiro menos doente, de quem tentariam livrar-se numa ilha, na primeira oportunidade. Antes de partir, ele conversara longamente em seu jargão com os companheiros.

O pequeno Sammy Corwin, mal recuperado das queimaduras, ficara, assim como o Reverendo Tomás, muito fraco, e Miss Pidgeon quisera permanecer ao lado de seu pastor. Ademar hesitara, querendo também embarcar, mas seu medo do mar e dos ingleses prevalecera, e no final das contas, ele preferira permanecer perto de Angélica, de quem dizia consigo mesmo que, por razões diabólicas ou não, devia possuir certo poder de proteção. Angélica utilizava-o para buscar lenha, água, mariscos, ou para abanar os enfermos, atormentados pelos mosquitos. A chalupa de fato não poderia embarcar mais ninguém, e fora necessária a selvagem imprudência de Wolverines, o glutão, que se precipitou na esteira de Cantor, para que lhe arranjassem lugar a bordo.

Angélica sentia-se ligada à plangente carcaça do operado, que teimava em sobreviver, e tinha por nome Aristides Beaumarchand, conforme informara um de seus amigos. "Nem belo, nem bom mercador, aposto", dissera Angélica, encolhendo os ombros. "Cabeça-de-Mula ou Barriga Aberta assentam-lhe muito melhor."

Naquela manhã, o Reverendo Patridge abriu os olhos, disse que era domingo e pediu a Bíblia a fim de preparar o sermão. Pensou-se que ele delirava sob o efeito da febre, quis-se acalmá-lo, mas ele esbravejou e repetiu tão energicamente que era domingo, dia do Senhor, que foi preciso render-se à evidência: era domingo.

Uma semana decorrera desde o ataque à pequena aldeia inglesa.

E Angélica mantinha a esperança de que navios de Joffrey de Pey-rac estivessem ainda cruzando a embocadura do Kennebec. Talvez Cantor tivesse a sorte de encontrar um deles. Um bom, sólido e grande navio, protegido por gordos canhões, onde, sobre o mar livre, seria possível repousar e voltar em completa paz para casa.

Que felicidade!

Mas já se haviam passado dois dias e nada surgia no horizonte.

Com voz trémula, Elisabete Pidgeon lia a Bíblia para o pastor. Escutavam-na também, com ar desconfiado e arrogante, os dois bu-caneiros doentes. Era preciso tratá-los bem, mas não havia pressa em vê-los recobrar as forças. O terceiro, 0 mais alto e mais sólido, ia da cabeceira de Barriga Aberta à dos dois outros camaradas, deitados na cabana, mantendo com eles longos conciliábulos numa algaravia inaudível. Seu andar dolente dos primeiros dias firmava-se. Ele era gigantesco, pesado e inquietante.

- Vigie-o - disse Angélica a Ademar. - Senão ele conseguirá recuperar uma de suas facas e irá plantá-la em nossas costas.

Ele mostrava uma solicitude sincera para com o operado.

— E meu irmão - dizia.

— Não são parecidos - notou Angélica, comparando o talhe de ogro de um à silhueta frágil que'se adivinhava sob as cobertas.

— Somos irmãos da costa. Trocamos nosso? sangue e partilhamos nossos lucros há cerca de quinze anos.

E com um sorriso hediondo-no rosto deformado pelas picadas de abelha:

-        Talvez por isso eu não a degole... Porque salvou Aristides...

Ela devia velá-lo durante a noite. Estendera acima dele uma coberta, menos para protegê-lo do sol filtrado pela árvore, do que do orvalho noturno ou das chuvas súbitas que por vezes caíam, senão dos respingos que a maré alta fazia^ soprar, até eles.

Velava, tenaz, atenta, surpresa por ver a cura í'nstalar-se naquele corpo condenado, e tão apaixonante era o sucesso previsto, que em certos momentos ela-quase amava o pobre Aristides.

Na própria noite da intervenção, ele abrira os olhos, pedira tabaco e um grogue "com tfrri limão inteiro... que você descascará para mim, Jacinto..."        

Se ele não tivera seu grogue e seu limão, que ela substituíra por um cozido de peixe bem peneirado, nem por isso deixava de se recuperar rapidamente.

E sobreveio o famoso domingo, em que o Pastor Tomás começara a ressuscitar...

— Ajudá-lo-ei a sentar-se - disse Angélica ao ferido.

— Sentar-me, você quer minha morte?

— Não, é preciso fazer seu sangue circular, para que não se torne espesso. E proíbo-lhe de tomar liberdades comigo, agora que está fora de perigo.

— Ah, Não! Mas que mulher!

-        Você, açougueiro do litoral, venha ajudar-me.

Apanharam-no pelos braços, ergueram-no e o mantiveram em posição sentada. Ele estava pálido e coberto de suor.

— Brandy! Brandy!... 

— Ademar, traga a garrafa.

Depois de beber, ele pareceu melhor; ela encostou-o a um amontoado de sacos cobertos de peles e observou-o longamente com satisfação.

— Aí está, Cabeça-de-Mula! Só falta p... e c... como todo mundo e você é um homem salvo.

— Em boa hora - disse ele -, ao menos você tem seu falar franco... Têm razão os que dizem que você saiu da coxa do Diabo... Porque isso é verdade!

Ele enxugou a fronte úmida. Ela lhe raspara a barba cheia de piolhos, e ele agora possuía o aspecto inofensivo de um pequeno merceeiro maltratado pela mulher e pelos credores.

-        Não valho mais nada-para Barba de Ouro - gemeu. - Esse é o caso...

Ela o ajudou a deitar-se novamente, e mais tarde, depois de ele ter repousado:

— Falemos um pouco desse Barba de Ouro - retomou - e dos que dizem que saí da coxa do Diabo.

— Oh! nada tenho a ver com isso - defendeu-se ele.

— Então sabe quem sou eu?

— Não muito bem, mas Barba de Ouro sabe. Você é a francesa de Gouldsboro que dizem feiticeira, ligada a um mágico que faz ouro com conchas.

— E por que não com rum? - disse Angélica gravemente. - Isso seria bom para você, hein?

— Em todo caso, é o que contam os marinheiros que encontramos na baía Francesa. E deve haver confiança entre os marinheiros.

— Marinheiros como você são todos piratas. Para início de conversa, os marinheiros não utilizam seu jargão.

— Fale então por nós dois, se quiser - disse Cabeça-de-Mula com ar digno e ofendido -, mas não por Barba de Ouro. Perdão, mas ele é um cavalheiro!... E, ademais, o melhor marinheiro que se possa encontrar ao redor do globo. Pode acreditar no que lhe digo, porque tirando isso, você viu como ele nos tratou, aquele garoto sujo, desembarcando-nos, abandonando-nos como clandestinos, por assim dizer, sem víveres e sem armas nesta terra de selvagens. Ele dizia que desonrávamos seu barco.

O português, um pouco desinchado, que se encontrava nas imediações, aprovou:

-        Sim, conheço Barba de Ouro há mais tempo que você, chefe, desde Goa e as índias. Briguei com ele por causa daquela história de Gouldsboro, mas me arrependerei para sempre disso.

Angélica passava os dedos nos cabelos. O vento os jogava em seus olhos e ela afastava-os sem cessar.

Tentava juntar as ideias, mas q vento forte a.confundia, e ela não conseguia reunir dois raciocínios,

— Quer dizer que sabiam quem eu era e que eu estava aqui quando Barba de Ouro os deixou nainseada?

— Não, isso não sabíamos - disse Beaumarchand. - Isso é o acaso. O acaso que dá uma piscadela aos bravos rapazes como nós, quando estão na m... Não é a primeira vez que o acaso vem nos tirar dela pela última mecha do crânio, não é verdade, Jacinto?

— Mas como souberafh que eu estava aqui? --- insistiu ela, impaciente.

— Ora! Quando percebemos que havia gente na falésia, aproximamo-nosj pusêmo;nos a escutar, e ao compreender que era você, a francesa de Gouldsboro, a Condessa de Peyrac, com um bando de inglese"s, então acreditamos que nossa sorte havia chegado.

— Por que sua sorte?

— Ora! Barba de Ouro dizia que tinha ordens para o Conde e a Condessa de Peyrac, que se deveria matá-lo, e a ela, capturá-la...

— Somente isso?... e ordens de quem?

O coração de Angélica saltava no peito. O que seu bêbado tinha de interessante era que, tagarela como um papagaio, entre dois goles de álcool, ele sempre falava a torto e a direito.

CAPÍTULO XXVI

O sinal de Barba de Ouro

No entanto, ele respondeu a essa pergunta com um momo de quem nada sabia.

-        Isso aconteceu após ele ter ido a Paris, antes de sua última campanha nas Caraíbas. Para que o ministro assinasse suas cartas de corso. Ele fora com você, hein, Lopes?

O português balançou a cabeça, afirmativo.

— E quem era esse "ele" a quem deveriam matar? - insistiu Angélica.

— Bem, seu companheiro, o conde, aquele que faz ouro com conchas.

— Matá-lo! E foi por isso que tentaram apanhar-me?

— Ora! Coloque-se em nosso lugar. E agora que me cortou e me costurou, eu bem sei, confesse-o, que você é feiticeira.

Deu-lhe uma piscadela, na qual ela não pôde definir se havia cumplicidade ou maldade. Deu também uma risada sardónica e muda.

— Por que então seu capitão os desembarcou? - interrogou ela.

— Não estávamos de acordo com a repartição do butim; isso não é assunto para mulheres, mesmo uma feiticeira - disse Aristides com altivez.

— Penso antes que vocês destoavam de sua equipagem, se ele é, como dizem, um cavalheiro - observou Angélica.

Não era preciso um exame profundo para afirmar que os cinco filibusteiros encontrados na praia não passavam de gentalha. Da espécie que Joffrey de Peyrac devia ter enforcado nas vergas de seu navio no curso da última viagem. Atingido por essas palavras, o operado fechou-se num silêncio digno.

-        Que ia fazer Barba de Ouro em Gouldsboro? - insistiu Angélica.   

Ele não podia permanecer digno e mudo por muito tempo.

— Ora, não seja tola: tomar posse de suas terras, cáspite!

— ?...

— Não é preciso abrir os olhos como pratos, minha bela. Já lhe disse que o Sieur Barba de_Ouro é um corsário que tem as cartas outorgadas pelo ministro, por sua companhia de Paris e até pelo governador de Tortue. Além disso, porém - o ferido ergueu um indicador doutoral -, ele obteve eTomprou, como concessão do rei da França, todas as terras dgúponta das montanhas Azuis até a baía de Gouldsboro.

— Então é isso! - exclamou Angélica.

— E uma ideia que Barba d# Ouro sempre teve em mente, apesar de ser marinheiro. Instalar-se com os companheiros num pedaço de terra, para plantar trigo francês. Eis por que eu não estava de acordo com ele, nem Lopes. Quero enfrentar o mar até que os tubarões me engulam, e era eu que tinha razão. Por mais astuto e protegido pelo rei que Barba de Ouro seja, ele viu aonde o levaram suas grandes ideias de colonização. Atiraram projéteis inflamados em suas obras vivas... Eles são valentes, os rapazes de Gouldsboro... Nosso pobre Coeur-de-Marie...

— Que vem a ser isso?

— E o nome de nosso barco.

Angélica refletiu que quanto mais os flibusteiros pareciam mal-intencionados, mais escolhiam vocábulos pios para seus navios, sem dúvida com a esperança de obter a proteção... ou o perdão dos espíritos celestes.

— Seu grande chefe ignorava deveras que a costa já possuía um proprietário e gente ali instalada?

— Haviam-nos dito: há mulheres por lá. Mulheres brancas, não índias. Então, que sorte, isso arranjava tudo. Tomar-se-ia a terra e cada qual, uma mulher para começar. Enfim, uma verdadeira colonização! Mas qual! Fomos recebidos com projéteis inflamados, como lhe disse, e quando tentamos desembarcar, aqueles furiosos nos partiram em pedaços. O navio encalhou e começou a incendiar-se. Só nos restou esconder-nos nas ilhas como poltrões. E meu Barba de Ouro venerado, mas tolo, afinal, com suas ideias de grandeza, com sua carfa sob o braço e seus projetos de lavoura - terra e mulheres -, bem avançado, decerto... Ele deu uma risada rouca que terminou num acesso de tosse.

-        Não tussa - disse Angélica, severa.

Ela verificou se a cicatriz não se distendera.

Era um horrível crápula, esse Aristides, mas, se dizia a verdade, suas informações eram preciosas.

Ela tremia ao pensar que, sem a defesa enérgica dos huguenotes em Gouldsboro, suas amigas de La Rochelle poderiam ter caído nas mãos daqueles miseráveis.

-        Não, Barba de Ouro não é tal como se acredita - retomou o doente com voz enfraquecida mas persistente, e como se houvesse acompanhado seus pensamentos. - Cartas de corso, o apoio do rei como corsário sob a bandeira da flor-de-lis, e príncipes para emprestar-lhe dinheiro, ele tem tudo como lhe disse... Tratou-me duramente, mas não tínhamos queixa sob seu pavilhão. Um cavalheiro, o Barba de Ouro. E todos os dias, um quarto de aguardente, exatamente como nos navios do rei. Ali se era alguém, que está pensando?... Eu não poderia comer um pedacinho de queijo, senhora?

-        Queijo? Você está louco! Durma! - disse Angélica.

Puxou-lhe a coberta até o queixo, prendeu-a sob ele e enxugou-lhe a boca frouxa.

"Pobre Cabeça-de-Mula! Cabeça-dura, você não vale a corda com que o enforcariam."

E apesar da fria costa, dos gritos das focas, da escura fileira de pinheiros enegrecendo as cercanias das praias, ela evocou, enquanto o olhava, os piratas do Mediterrâneo e seu povo cosmopolita de aventureiros. Recobrava o medo e a fascinação por eles...

Em Brunswick Falis, Mrs. William dissera-lhe que outrora os mais endurecidos entre esses riobres aventureiros, que baixavam âncora diante das pobres aldeias de colonos da Nova Inglaterra, não lhes teriam feito nenhum mal; mas essa época havia passado. A vida, a riqueza próspera nas praias da América, atraíam agora os saqueadores.

Era preciso sanear tudo aquilo, policiar, ordenar a vida anárquica das praias e das margens dos rios. E,a alta silhueta de Joffrey erguia-se diante de seus olhos, segura, como se, envolvida com tudo o que era vida e ação, ele lhe aparecesse como o princípio viril de um mundo novo.

Oh! meu amor... Eles disseramr Ele, matá-lo...

Ele não se deixará matar.

Mas com o recrudescimento da guerra índia, que precipitava pelas baías e ilhas uma população aterrorizada, e que tornaria a pôr em questão as alianças dos reinos distantes, a tarefa anunciava-se confusa, e os barcos maléficos a4i recobrariam sua aparência de rapinantes. Ela própria, por quais voltas do acaso, oú por algo premeditado, fora conduzida a esse local, enquanto poucos dias antes deixava o forte de Wapassu, pensando atingir sem transtornos suas terras de Gouldsboro?

-        Lopes - disse em voz alta ---, você estava com Barba de Ouro em Paris, quando ele foi buscar suas* cartas de corso, e sem dúvida procurar dinheiro para armar seu barco. Que senhor o protegia? Quem eram. seus armadores ou associados? Poderia citar-me um nome?

O português sacudiu a cabeça.

-        Não... Eu estava lá apenas como seu criado. Por vezes outros

criados traziam mensagens. Havia também...

Ele pareceu refletir.

-        Não sei seu nome. Mas se um dia encontrar um grande capitão com uma mancha roxa aqui - ele tocou a fonte -, então acautele-se, seus inimigos não estão longe. Serviço por serviço: afinal, feiticeira ou não, você salvou meu camarada...

CAPITULO XXVII

Vigília na baía de Casco - O Irmão da Costa seduzido por Angélica

E a noite ainda caía sobre a baía de Casco, arrastando uma luz alaranjada ao longe, a oeste - onde a terra se inclina numa longa curva - e mergulhando subitamente no sul, para envolver como em um imenso gesto de carinho o mundo dos múltiplos golfos e as ilhas desse vasto anfiteatro azul do mar, onde se precipita através de todas'as correntes do norte a provisão azul e prata dos peixes.

Ninho dos peixes de todo o mundo, essas águas, confluentes das grandes correntes oceânicas quentes e frias, carreando suas imensas reservas de plâncton, atraindo os peixes, uma infinita provisão para os pescadores do mundo desde a noite dos tempos.

Os maluins vinham até o local em suas chalupas, muitos séculos antes que Cristóvão Colombo descobrisse as Antilhas.

A primavera fazia pulular na superfície das vagas, como flores abertas de nenúfares gigantes, as velas brancas das naus.

E quanto mais caía a noite, mais Angélica via acenderem-se luzes avermelhadas na escuridão, porém afastadas e evanescentes como estrelas.

— Ele não bebe - balbuciou Aristides junto dela... - Que pensa você de um marujo que não bebe?

— De quem está falando, rapaz?

— Daquele diabo do Barba de Ouro... Ele não bebe, salvo quando está com uma mulher. Mas isso não é frequente. Dir-se-ia que não gosta das mulheres... nem de beber. E no entanto é um homem terrível. Na tomada de Portobelo, fez-marcharem os monges do Mosteiro de Santo António diante de seus homens como escudo. Os espanhóis da guarnição atiravam', chorando. Angélica estremeceu.

— Esse homem é um ímpio! '

— Não! Não tanto como você pensa. Sempre se reza a bordo de seu navio. E aos mais teimosos, ele obriga a permanecer no cesto da gávea até rezarem vinte terços.        

Angélica, pouco à vontade, acreditava ver a barba de ouro do sangrento flibusteiro flutuando na noite. A ideia de que o navio de semelhante indivíduo baixara âncora um dia ao pé do promontório, para ali abandonar seus amotinados, dava-lhe arrepios.

-        Ele voltará; você verá - gemeu o ferido.

Novo calafrio sacudiu Angélica, e as rajadas de vento nos cedros pareceram-lhé sinistras, junto com um súbito clarão ao longe, no horizonte.

-        Durma, amigo.

Ela conchegou o hianto. Queria velar até o meio da noite. Depois, o bucaneiro, o Irmão da Costa, assumiria a vigília. Ele estava ali, agachado junto ao fogo, maciço, o pescoço enterrado nos ombros, e ela o ouvia coçar a barba grosseira"para acalmar os pruridos da carne irritada.

Pensando em mil coisas com o perfil erguido para as estrelas, ela não via que ele a fixava com seus olhos reluzentes. Agora que estava um pouco menos doente, ele experimentava estranhas sensações ao olhar aquela mulher. Imóvel como uma estátua em seu manto negro, com um rosto que emergia como um raio de luar, tinha no entanto sempre uma mecha dourada a dançar-lhe na face, e que ela afastava com um movimento da mão. E esse único gesto evocava sua opulenta beleza escondida, o vigor de suas formas, que ele admirava.

-        Não sou como Barba de Ouro - disse em voz baixa. - Gosto das mulheres.   

Ele pigarreou.

-        Nunca lhe ocorre divertir-se um pouco, senhora?

Ela voltou lentamente a cabeça para sua forma maciça.

— Com gente da sua espécie? Não, meu rapaz.

— Que tem a gente de minha espécie, que não lhe agrada?

— Uma face de abóbora é muito feia para que se sinta prazer em beijá-la.

— Não precisamos beijar-nos se isso não lhe diz nada - disse ele concilia'dor. - Poderíamos fazer outra coisa.

— Fique onde está - intimou ela secamente, vendo que ele esboçava um gesto em sua direção. - Já rasguei o ventre de muitos, por bem menos que isso. E não me darei ao trabalho de cosê-lo.

— Ah! Você é muito severa - grunhiu ele, coçando-se de novo com frenesi. --- No entanto, é uma oportunidade que lhe ofereço. Estamos sós, temos tempo. Chamo-me Jacinto... Jacinto Boulanger. Não lhe inspiro mesmo, nem um pouco?

— Não, sem querer ofendê-lo. E a prudência que me faz falar, Jacinto - disse ela depressa, para não fazer um inimigo. - As equipagens que se abandonam nas praias nem sempre são da primeira safra. Só de olhá-lo aposto que está sifilítico até os ossos.

— Ah! não, isso não é verdade, juro-lhe - gritou o bucaneiro francamente ultrajado -, se estou com esta aparência é devido às colmeias infernais que você nos lançou em plena cara.

Aristides lamentou-se:

-        Cessem de brigar por cima de mim, como se eu já fosse um cadáver.

O silêncio tornou a cair entre eles.

Angélica dizia para si que não havia motivo para drama. Ela já enfrentara situações semelhantes. Mas com a ansiedade em que se encontrava, o desejo desse indivíduo sinistro, na noite lúgubre nessa costa abandonada e batida pelas ondas, causava-lhe um mal-estar e um medo incontroláveis. Tinha os nervos à flor da pele e sentia um desejo irresistível de fugir à toda. Obrigou-se a não se mover e a manter uma atitude indiferente para que ele não soubesse que ela estava assustada. Depois serviu-se do primeiro pretexto para erguer-se, recomendou ao bucaneiro que vigiasse o fogo e seu Irmão da Costa e voltou para a cabana.

Debruçada à luz das brasas, Miss Pidgeon parecia uma miúda feiticeira ocupada com seus filtros.

Angélica inclinou-se para o garoto Sammy, tocou-lhe a fronte morna, apalpou as bandagens e em seguida, após dirigir um sorriso à solteirona, saiu e foi sentar-se atrás da cabana, junto à índia Maktera.

A lua em quarto-crescente surgia das nuvens. Era uma noite em que não se podia dormir. O canto entrecortado e acelerado dos grilos parecia sustentar com uma nota, aguda, sincopada e lancinante, o canto conjunto do vento e do.mar;

O velho medecirís man surgiu envolto em seu amplo manto, que não deixava visíveis entre o colarinho é a aba do chapéu senão as grossas lentes dos óculos, onde um reflexo" da lua acendeu subitamente duas vivas estrelas. O índio acompanhava-o como- uma sombra, embrulhado ele também numa coberta vermelha e com o bacamarte atravessado nos braços.

-        Desta vez vou colher a verbena selvagem - disse Shapleigh -, a erva sagrada, a Jrva das feiticeiras: uma lágrima de Juno, uma gota do sangue de Mercúrio, à- alegria dos simples. Ê preciso colhê-la quando a estrela Sirius ascende no céu, no momento em que nem o Sol nem a Lua estão acimado horizonte para assistir a esse gesto; e está próxima a noite da conjunção dos signos. Não posso mais esperar... Deixo duas cargas de pólvora para seu mosquete, e algo com que drogar seus doentes para'torná-los menos perigosos... Acautele-se com essa ralé!

Ela murmurou em inglês: "Obrigada, Mr. Shapleigh".

Ele deu alguns passos e voltou-separa aplicar o ouvido à terna voz estrangeira que murmurara na noite: "Thank you, Mr. Shapleigh".

Ele a observou. Os olhos verdes de Angélica, à luz da lua, tinham um brilho insustentável.

Um riso sardónico distendeu-lhe a boca desdentada.

-        Você irá ao sabá? - perguntou. - Espetará sua vara? É esta noite ou nunca, para uma mulher como você. Nesta lua encontrará o demónio de pés de-pato... Você não tem a vareta ungida com o unguento do sabá? Conhece a receita? Cem onças de banha ou de gordura humana, cinco de haxixe, meio punhado de flores de cânhamo, meio punhado de papoulas, uma pitada de raiz de heléboro, se mentes de girassol trituradas...        

Como ele falava em inglês, ela não compreendia o sentido de tudo o que ele dizia, mas ele repetiu a fórmula em latim e ela teve um gesto de terror.

A velha índia, grande e pesada, acompanhou Shapleigh pela península até o limite dos bosques, e depois voltou com seu andar solene. Angélica perguntou-se qual o lugar que Maktera ocupava junto àquele velho inglês louco. As índias raramente se empregavam como criadas. Teria sido sua companheira? Isso explicaria a indiferença dos compatriotas para com o sábio, pois para eles a pele vermelha não significa senão decadência.

Um dia Angélica conheceria a história desse casal estranho que vivia na ponta extrema e selvagem da baía de Maquoit; a de uma jovem índia, última sobrevivente do extermínio da tribo dos péquots, a quem, quarenta anos antes, haviam conduzido à praça de Boston para ser vendida como escrava. Fora comprada por um jovem empregado inglês, que desembarcara havia pouco com seu diploma de boticário no bolso, e que a levava para seus amos. Amarrando-a com cordas, ele se pusera a caminho, puxando-a atrás de si, e fora então que, ao olhar sua fragilidade de corça e seus olhos negros como uma fonte na sombra, ele sentira a obscura paixão do bem e da loucura que obseda todos os filhos de Shakespeare tomar conta de si.

E ao invés de voltar para casa, ele caminhara direto para a floresta. E assim haviam penetrado, juntos, no reino maldito dos réprobos.

CAPÍTULO XXVIII

Chega o emissário do Conde de Peyrac - Noite de traição

Pela planície acastanhada e cintilante com os rochedos descobertos pela vazante, um homem aproximava-se, saltando os charcos com passo rápido.

Quando se aproximou, Angélica reconheceu Yahn Le Couénnec, o bretão de Wapassu, escudeiro de seu marido.

Correu até ele, louca de alegria, e estreitou-o nos braços amigavelmente.

— Yann, caro Yann! Que felicidade vê-lo!... O conde... onde está?

— Estou só - disse o jovem bretão.

E diante da decepção que lia no rosto de Angélica:

-        Quando o conde soube de sua partida para a aldeia inglesa, encarregou-me de encontrá-la custasse o que custasse. Há oito dias sigo sua pista, de Houssnock a Brunswick Falis, e depois ao longo do Androscoggin.

Ele tirou um papel da camisa que vestia.

-        Devo entregar-lhe isto, da parte do conde.

Ela agarrou a mensagem com avidez, feliz por ter algo que pertencia a ele nas mãos, contendo-se para não pousar nela os lábios antes de romper o lacre.

Esperava que Joffrey marcasse um encontro em algum ponto da costa, que anunciasse sua chegada, contra toda possibilidade. Mas ali so havia algumas linhas secas: "Se esta mensagem encontrá-la em Brunswick Falis, retorne com Yann ao posto de Pieter Boggen. Se já estiver de volta a Houssnock, aguarde-me pacientemente. Cuide, por favor, de não mostrar-se demasiado temerária e impulsiva".

O tom da carta - e uma espécie de animosidade contida a insinuar-se nas entrelinhas - deixou Angélica desconcertada. Em seguida ela se sentiu gelar.

O bravo Yann, adivinhando por sua expressão que devia faltar amenidade à carta do amo - ele vira Joffrey de Peyrac com seu mais terrível semblante ao entregá-la *-j tentava, com a delicadeza das pessoas simples, atenuar o efeito produzido.

— O senhor conde preocupava-se com a senhora, devido aos boatos sobre a guerra...

— Mas... - disse ela.

Uma frase de Yann a impressionara: " Quando o conde soube de sua partida para a aldeia inglesa..." Ora, não fora ele quem a enviara para lá?... Ela buscava rememorar as circunstâncias da partida. Isso ocorrera alguns dias antes e começava a perder-se em um caos obscuro.

-        O conde tinha razão - comentou Yann. - Ah! encontrei uma bela confusão a oeste do Kennebec. O formigueiro vermelho inteiro sob as árvores, de tacape e tocha na mão... Só cinzas e vigas enegrecidas e cadáveres e corvos a rodar... Felizmente havia ainda alguns selvagens saqueando Newehevanik. Disseram-me que a senhora havia partido com Piksarett para o sul, e não para o norte como os outros cativos... Depois disso, eu temia ser apanhado como um inglês, sobretudo porque sou como eles, um pouco ruivo. Era obrigado a esconder-me sem cessar...

Ela considerou-lhe o rosto pálido, barbudo, cansado, e recompôs-se.

-        Mas você deve estar esgotado, pobre amigo! Você pôde ao menos alimentar-se convenientemente no caminho?... Venha comer!

Yann ali estava, trazendo com ele a presença dos seus, dos fiéis, do círculo caloroso de Wapassu, e ela evocou com nostalgia infinita o forte dos bosques, distante, tão rústico, e Honorina...

Tudo isso parecia já estar nos confins do mundo.

Pois algo rompera o círculo mágico, o círculo de amor... o círculo de giz das velhas lendas celtas.

A noite caía. Angélica sentia-se tomada pelo mesmo intenso medo de outrora. O refrão do mar falava-lhe de sua solidão no passado, de seu extenuante combate de mulher só e sem saída para sobreviver em qualquer lado para o qual se voltasse, por entre as armadilhas dos homens ávidos; e particularmente devido ao ruído do mar, de seu vento rijo, da voz dos piratas, ela pensava^nò Mediterrâneo, onde fora, em tanta solidão, uma presa, perseguida.

Mas logo conseguira vencer essa fraqueza. A felicidade dos últimos meses fortificara-a.        

Sentia que conseguira transpor os obstáculos ao. desenvolvimento de sua personalidade, e que pouco a pouco atingia a tranquilidade interior da alma, apanágio de sua idade e um de seus maiores encantos.

Segura de si, segura de um amor junto ao qual podia refugiar-se, repousar, o mundo parecia-lhe menos hostil, mais fácil de dominar.

Um pouco mais de paciência e a provação terminaria. Tudo estaria em ordem.

Ela procurou conversar mais demoradamente com Yann, pois via refletir-se em seu honesto semblante o espanto por encontrá-la em tão sinistra companhia. Por obra do acaso ou de um pequeno com-plô, não conseguiu estar a sós com ele depois que anoiteceu. Os outros o monopolizavam. A solicitude de Boulanger e Beaumarchand em querer admiti-lo em seu círculo não conseguia vencer a repulsa que sentia por eles o escudeiro do Conde de Peyrac.

-        Coma, amigo - disse cordialmente Jacinto, servindo-lhe uma concha cheia de sopa, e tentando dar à sua carantonha inchada e sinistra uma expressão acolhedora,

Yann agradeceu com polidez, mas permaneceu tenso e por momentos tentou surpreender o olhar de Angélica para solicitar uma muda explicação.

Jantaram nessa noite uma sopa de tartaruga, que o próprio Jacinto cozinhara, e como todos sabiam que o cozido de tartaruga é a especialidade do bucaneiro que se preza, devia-se reconhecer que esse estava particularmente saboroso, pois o aventureiro das Caraíbas, como muitos companheiros, era fino cozinheiro.

— Sinto-me reviver - disse Aristides escalando a língua.

— Breve você correrá como um coelho, meu caro - afirmou Angélica, prendendo-lhe novamente as cobertas para a noite.

Ela agora tinha menos a impressão de velar por ele do que de ser por ele vigiada.

Conseguiu no entanto afastar-se um pouco com Yann para colocá-lo a par dessas presenças insólitas.

-        O capitão deles abandonou-os na costa, sem dúvida por insubordinação. Doentes e inválidos, não são perigosos... por hora. Gostaria, no entanto, que o Sr. de Peyrac nos encontrasse logo. Cantor já deve ter chegado a Gouldsboro... você tem munição?

Ele a esgotara, caçando para alimentar-se. Restava-lhe apenas um pouco de pólvora no fundo do chifre.

Angélica preparou o mosquete e pousou-o a seu lado.

O calor era esmagador, e a noturna brisa marinha não conseguia dissipar uma sensação de opressão.

Como de hábito, Angélica instalou-se sob a árvore, não longe de seu doente. Uma curiosa fadiga não tardou a pesar sobre ela, fazendo que logo sentisse dificuldade em manter os olhos abertos.

Sua última visão foi a da lua em quarto-crescente, emergindo das nuvens, enquanto seu longo reflexo dourado saltava as massas negras das ilhas dispersas, atravessando num átimo a baía silenciosa.

"É minha lua", pensou Angélica vagamente, "a que me deixa apaixonada...", pois sabia que ficava mais acessível nessas noites em que ' o astro se enfuna como uma vela latina no horizonte.

Depois adormeceu profundamente. Teve um sonho angustiante: uma multidão os cercava e ela não conseguia distinguir os semblantes, que se destacavam em sombras negras contra o céu de um rosa frio.

Súbito, estremeceu. Não era sonho, estava de olhos abertos. Uma multidão os cercava. Ela via as silhuetas escuras e pesadas ir e vir lentamente em torno dela, e o céu era rosa, pois a aurora se erguia sobre a baía de Casco.

Angélica soergueu-se. O corpo pareceu-lhe de chumbo. Maquinalmente, passou a mão no rosto.

Em seguida avistou Yann a alguns passos. Estava em pé, amarrado a uma árvore. Solidamente atado, e a boca comprimida de raiva.

Depois estava Aristides Beaumarchand, sentado, sustentado por dois marinheiros desconhecidos, e engolindo o conteúdo de uma enorme garrafa de rum recém-aberta.

-        Cá estamos, minha linda - disse, escarnecendo. - É nossa vez de possuí-la...

Uma voz se fez ouvir:

-        Cale-se, velho imbecil. Não é próprio de um nobre aventureiro que se respeite insultar o adversário vencido... Sobretudo quando se trata de uma bela dama.

Angélica ergueu os olhos para aquele que acabava de falar. Ele parecia jovem, avantajado, bem-postò; com ares de antigo pajem no sorriso e nos modos.

-        Mas quem é você? - interrogou ela com voz sem timbre.

Ele tirou o amplo chapéu ornado de uma pluma vermelha e inclinou-se galantemente.

-        Chamo-me Francisco de Barssempuy.

E com um segundo profundo suspiro, a mão no peito:

-        Sou o tenente do Capitão Barba de Ouro.

CAPÍTULO XXIX

Angélica à mercê dos malfeitores

Então ela descobriu que havia um navio ancorado na baía, ao pé do promontório.

E o que de início a impressionou foi o fato de ele parecer um navio muito belo, embora bastante curto e de um modelo antigo, com seus castelos de proa e de popa, cujos ornatos de cores vivas cintilavam ao sol nascente.

Era mais uma carraca do que um barco, uma nave... Que balançava molemente, enquanto um bote se desprendia de seus flancos para pousar na água calma, onde o reflexo da corrente da âncora quebrava-se num ângulo agudo...

-        A sopa de tartaruga faz dormir, hein?... - disse Jacinto - quando nela se acrescenta alguma coisinha... Só tive que escolher em seus frascos...

Bruscamente, Angélica acordou. Acabava de compreender tudo. Com um movimento flexível e uma rapidez fulminante lançou-se sobre Beaumarchand, agarrando-o pelos ombros e sacudindo-o como uma ameixeira.

-        Miserável! Costurei sua pança e você me vendeu a Barba de Ouro!

Tiveram de empregar grande esforço para arrancá-lo dela. Seriamente maltratado, ele estava branco como uma vela e pôs-se a suar em bicas.

— Vai saltar tudo! - gemeu, as mãos no ventre.

— É o que desejo - disse Angélica, feroz.

— Segurem-na firme - suplicou ejé. - Viram como ela me tratou?... Uma mulher que sacode um pobre doente desse modo não merece pena.    

— Cretino! - lançou-lhe Angélica.

Com um gesto irreplicável, desprendeu-se das mãos que a seguravam.

-        Não ponham as mãos em mim!

Respirando precipitadamente, considerou Aristides com um olhar terrível, e ele se viu em situação crítica.

Não era belo de se ver, emurchecido em seus andrajos, demasiado largos para o corpo emagrecido.

— Você é um Borrível macaco - lançou-lhe ela com desprezo -, o ser mais abjeto que já encontrei. Cuspiria em você de bom grado...

— Tomem-lhe a faca - implorou ele.

— Que ninguém ouse aproximar-se - disse Angélica recuando, a mão no punhal. 

E o círculo de homens estupefatos considerou-a como a uma aparição, com suá cabeleira reluzente desarrumada pelo vento e seus olhos verdes e pálidos que pareciam refletir as reverberações do mar.

— Senhora - disse com bastante polidez o Sr. de Barssempuy -, é preciso que me entregue essa arma.

— Venha pegá-la.

— Cuidado, tenente! - gritou Aristides -, ela sabe usá-la. Foi com isso que me rasgou.

— E jogou-nos colmeias na cabeça - acrescentou o bucaneiro Jacinto, que se mantinha prudentemente afastado -, tanto que ainda estamos com cara de abóbora.

Os homens, ao olhá-lo, deram uma gargalhada.

-        Ela é perigosa, ora! - berrou Jacinto, indignado. - É uma feiticeira, essa mulher, bem o sabe. Disseram-no na baía.

Mas os homens só fizeram rir" mais alto..

Angélica adivinhou que a maior parte deles tinha em pouca estima aqueles piratas e desertores que a haviam tão covardemente traído.

Fingiu desinteressar-se das míseras personagens e voltou-se para o Tenente de Barssempuy, um francês e certamente um gentil-homem.

— Como fizeram para trair-me desse modo? - interrogou, aproximando-se dele com desenvoltura. - Esse crápula está horrivelmente ferido e os outros não estão em melhor estado. E os tínhamos sob nossa vista. Como puderam preveni-lo de minha presença aqui?...

— Foi'Martinez - disse o rapaz. - Vimo-lo chegar a uma ilha do golfo onde estávamos a carenar, e ele nos advertiu.

— Martinez?... O quinto pirata, que partira com Cantor e o inglês? Um companheiro incómodo, de quem tinham a intenção de separar-se antes de deixar a baía de Casco. Assim fora fácil para o astuto rapaz fazer-se desembarcar em uma das costas da ilha, onde ele não ignorava que os antigos companheiros repousavam e calafetavam o navio.

Levando para Barba de Ouro a notícia de que a Condessa de Pey-rac podia ser capturada sem dificuldade a poucas milhas dali, o revoltoso estava certo de ser bem acolhido.

E nesse meio tempo, Angélica empenhava-se em tratar daquele gnomo malvado que, embora moribundo, conservara suficiente fôlego para tramar, antes da partida de Martinez, aquela maldade, aquele golpe velado de que ela agora era vítima!

A chegada de Yann não devia ter sido conveniente, mas ele estava só.

Advertidos sem dúvida, através de sinais distantes, da chegada de seus cúmplices na véspera, haviam derramado um soporífero na sopa.

Ela olhou em torno. Onde estavam Ademar, a velha índia, os quatro ingleses salvos do massacre? Uma agitação para os lados da praia fê-la supor que talvez já tivessem sido conduzidos a bordo como prisioneiros.

E Piksarett? Procurou-o com os olhos, na direçâo da floresta. Mas a floresta estava fechada, imóvel, sem apelação. Diante dela, o mar, um horizonte limitado por uma leve neblina malva, a entrada da pequena baía Maquoit, na qual balançava um barco pintado de diversas cores, e onde o rosa da aurora empalidecia, diluía-se pouco a pouco, numa claridade mais neutra.

Angélica recobrara o sangue-frio, e seu cérebro trabalhava febrilmente. Perguntou-se que vantagem havia em ter topado com corsários franceses. Os aventureiros das Caraíbas alternavam obediência, metade aos franceses, metade aos ingleses. Os ingleses talvez não se tivessem ocupado com ela e tê-la-iam deixado em paz no rochedo; mas com seus compatriotas, ao menos poderia discutir.

Aquele Barba de Ouro!.,. Bem! Ele queria a guerra. Capturava-a sem dúvida para servir-se dela corno refém contra Joffrey de Peyrac! Que seja! Ele iria ouvi-la! Lamentaria o golpe qué aplicara... Qualquer que fosse o tipo de homem que ele.sê revelasse, ela se comprometia a ludibriá-lo.

Barba de Ouro! Um nome para causar medo, um nome de alguém vaidoso, de um valentão, que crê que um disfarce faz um homem!... Não muito astuto, sem nenhuma dúvida! E talvez, .mais civilizado, mais acessível do que muitos de seus congéneres.

Angélica observou nos homens de equipagem que a rodeavam uma aparência, um asseio desusado, que lhe faziam augurar a possibilidade de entender-se com seu senhor. Decerto estavam vestidos de modo vistoso e coloridOjXomQ a maior parte dos marinheiros que, livres de quaisquer liames e conros bolsos amiúde cheios de ouro, levando vida farta, não resistem à tentação de pavonear-se. Em todo homem aventureiro, há um glorioso menino adormecido. Mas nada havia na atitude deles de indecoroso~Bu de verdadeiramente devasso, e ela compreendia melhor por que os cinco camaradas da ralé, recolhidos por ela, haviam sido abandonados como indesejáveis numa praia deserta.

Tudo isso Angélica registrou~em alguns segundos, o tempo de recobrar o ritmo normal das batidas do coração, e de armar seus planos.

— Seu capitão, esse tal Barba de Ouro, onde está?

— Ei-lo que vem até nós, senhora.

CAPÍTULO XXX

Angélica encontra-se com o Barba de Ouro

A mão de Francisco de Barssempuy indicava o bote que se desprendera do navio e que se aproximava impelido pelos remos.

Na frente, em pé, estava um homem de estatura gigantesca. Visto contra a luz, como um escuro e enorme vulto, não se podiam distinguir-lhe os traços, mas adivinhava-se que era barbudo e cabeludo como um viking, pois havia uma espécie de pequena auréola flamejante e eriçada ao redor de sua cabeça. Envergava uma sobrecasaca com mangas de largos punhos bordados com sutache dourada, atravessada por um largo boldrié carregado de armas, e calçava botas de cavaleiro até o meio das coxas, que sublinhavam de modo impressionante as duas colunas robustas das pernas. Desse modo, perfilado contra o fundo cintilante da baía, ele pareceu a Angélica gigantesco.

Algumas toesas da praia, cobriu-se bruscamente com um grande chapéu de feltro, com plumas de arara amarelas e verdes, que trazia na mão.

Uma ponta de apreensão sacudiu novamente Angélica. Seria o capitão menos civilizado e tranquilizador que sua equipagem?

Aproveitando o fato de que todos os olhares pareciam voltados para aquele que chegava, ela disfarçadamente aproximara-se de Yann, amarrado na árvore.

- Fique pronto - sussurrou. - Vou cortar-lhe as cordas com minha faca. Quando esse Barba de Ouro aportar, todo mundo estará olhando para ele e irá ao seu encontro. Então você fugirá para a floresta... Corra!... Avise ao Sr. de Peyrac para que não se preocupe em demasia comigo. Tentarei manter esse pirata aqui até que chegue socorro...

Ela falava à maneira índia, sem quase mover os lábios, enquanto olhava fixamente na direção do bote::

Barba de Ouro devia ser um chefe temido, de grande ascendência sobre seus homens, pois era um fato que todos acompanhavam sua aproximação e retificavam a postura.

No momento em que ele desceu na água e caminhou para a praia com passo pesado e arrastado, o punhal de Angélica introduziu-se por trás da árvore, entre os punhos de Yann. Os.nós foram cortados num só golpe.        

Em meio a um completo silêncio, em que o súbito grito das gaivotas trespassava os corações como fugidia angústia, o pirata caminhou para o promontório.

A fim de afastar os-outros de Yann, Angélica avançou corajosamente.

Yann galopou como umalebre, saltou as moitas, pulou os buracos e as falhas, deslizou^por entre os troncos dos pinheiros, escalou as rochas, subindo pouco a pouco; guiando-se pela luz da baía, por entre as árvores, contornou a costa e achou-se por fim do outro lado do fiorde.

Deteve-se então, certo de não estar sendo seguido. Ofegante, recobrou fôlego, depois aproximou-se da beira da falésia para examinar os arredores.

Do local em que se encontrava, descobria amplamente a baía, o navio ancorado, a praia repleta de gente.

Procurou com os olhos a Sra. de.Peyrac.

Não a vendo,-inclinou-se mais ainda, agarrando-se à raiz de uma árvore mirrada que brotara na extremidade da falésia.

E então ele viu... Ele viu...

Seu queixo caiu, os olhos arregalaram-se, e Yann, o marujo, que não vira poucas coisas em sua danada vida, sentiu o mundo ruir como se sob um cataclisma.

Barba de Ouro estava lá embaixo, na praia, e havia uma mulher em seus braços.

Uma mulher que erguia para ele um semblante transfigurado.

E era ela, ela, a esposa do Conde de Peyrac!

E no meio do círculo de homens imóveis e quase tão estupefatos quanto Yann, longe, em sua falésia, Barba de Ouro e Angélica olhavam-se, abraçavam-se, beijavam-se perdidamente diante da multidão, como amantes que se reencontravam...

Como amantes que se' reencontravam!

CAPÍTULO XXXI

Colin Paturel, corsário do rei de França

-Colin! -.disse ela.

A penumbra do quarto do navio para onde ele a havia conduzido era fresca, e pelas janelas abertas do^astelo de popa viam-se cintilar a baía e o oscilar do refles» de uma ilha.

O navio permanecia ancorado.

Silencioso, entorpecido em meio ao calor do dia, ele balançava docemente, sonhadoramente. Não se ouvia outro ruído além daquele das pequenas ondas contra-o casco. O Coeur-de-Marie parecia subitamente desertado de seus habitantes, para conservar em seu seio apenas aqueles dois seres que o Destino acabava de colocar novamente, de modo brutal, face a face.

-        Colin! Colin! - repetiu ela com voz sonhadora.

Com os lábios entreabertos, Angélica o olhava. Ainda mal-recuperada da violenta emoção, do choque feito de surpresa, de terror e de uma intensa felicidade que ela sentira quando no gigante que vinha pela praia ela acreditara subitamente reconhecer, adivinhar... mas sim, aqueles largos ombros, o olhar azul, e quando ele a viu, a expressão indescritível, 0 estremecimento que o imobilizou. Ela correra para ele. Colin! Colin! Oh, njeu:caro amigo do deserto!

A elevada estatura daquele que hoje se chamava Barba de Ouro ocupava todo o estreito espaço da cabina.

Ele se conservava em pé diante dela, mudo.

Fazia bastante calor. Por isso ele tirara o boldrié e pousara-o na mesa, e depois a sobrecasaca. No boldrié encontravam-se presas três pistolas e uma machadinha. Ela se lembrava da dor que sentira quando ele a abraçara a ponto de esmagá-la contra todo esse arsenal. Mas, ao mesmo tempo, ele se inclinara e pousara seus lábios nos dela, provocando uma impressão espontânea, violenta e deliciosa.

Agora que a emoção fulminante daquele instante se desvanecia, ela via melhor o pirata em que ele se tornara e lamentava o impulso que a jogara em seus braços.

O colarinho branco da camisa aberta no peito maciço e o tecido das mangas enroladas em seus fortes braços punham manchas de uma luminosidade crua na sombra opressiva...

A última vez que ela o vira fora em Ceuta, a cidade espanhola em terra sarracena.

Quatro, não, cinco anos haviam decorrido desde então. Agora estavam na América.

Angélica recompunha-se, compreendia os fatos. Nessa manhã, em meio à aurora inquietante, ela esperava por Barba de Ouro, um pirata temível, um inimigo... Vira chegar Colin, seu companheiro, amigo... amante de outrora! Terrível e sufocante surpresa!

Uma realidade, no entanto. Um pouco disparatada mas verossímil. Os aventureiros do mundo, os marinheiros do mundo, não foram todos eles feitos para reencontrar-se em todos os pontos do globo para onde o mar impele os navios?

Um acaso no qual jamais pensara punha-a de novo diante daquele com quem se evadira de Miquenez, com quem escapara da Barbaria... Mas isso acontecia no outro lado da Terra, após terem ambos vivido existências desconhecidas.

Essa alta presença silenciosa, semelhante mas também diferente daquela de que guardava a lembrança, devolvia-lhe mais precisa e densa a realidade dos anos passados, como se eles se pusessem a encher o estreito espaço da cabina com uma água pesada, um pouco lodosa, a separá-los. E agora eles se afastavam um do outro, franqueavam o espaço do tempo. O tempo retomava forma, voltava a ser um elemento palpável.

Angélica pousou o queixo nas mãos e esforçou-se por sorrir para dissipar a perturbação que lhe punha fogo nas faces e tornava seus olhos muito brilhantes.

- Então é você - disse ela... Rapidamente se recompôs. - Então é você, caro amigo Colin, que r0je reencontro na pessoa do corsário Barba de Guro de quem tanto ouvi falar?... Dizer que eu esperava por isso seria mentir... Estava a cem léguas de imaginar...

Interrompeu-se porque ele se movera.

Ele puxou um escabelo e sentou-se,- diante dela, do outro lado da mesa, os braços cruzados, inclinado'para a frente, a cabeça um pouco enterrada nos ombros, e observoú-a com seus olhos claros, azuis e sonhadores, que não pestanejavam.  

E diante desse exame ela não sabia o que dizer, consciente de que ele buscava, reconhecia, cada um de seus traços, como ela também o fazia naquela face crestada, engolida pela barba loura, na fronte vasta riscada~por três rugas claras, que a atravessavam como cicatrizes sob os cabelos caídos e emaranhados de normando; reencontrava quase sem alteração uma face amigavelmente familiar, tranquilizadora... amada. E sem dúvida era uma ilusão. Pois durante os anos transcorridos ele não se sobrecarregara de crimes?

Mas ela não podia impedir-se de vê-lo assim, inclinado para ela, ainda que o medo a fizesse tremer. E sob seu olhar incisivo ela sabia que lhe oferecia a visão daquela em que se tornara, e que a luz que entrava pelas janelas abertas ondeava-lhe os cabelos com reflexos nacarados. Eram os traços dê uma-mulher que não procurava dissimulá-los, impregnados de orgulho e de livre conhecimento, com o selo imperial que a maturidade neles colocava. Com mais pureza nas linhas, na curva da boca, mais doçura, sombra e mistério no olhar de água do mar, e a perfeição no acabamento de todo o seu ser, que dela emanava e que enfeitiçara Pont-Briand até a loucura.

CAPITULO XXXII

Tentação a bordo do Coeur-de-Marie

Ele abriu a boca e disse:

-        É espantoso! Você está ainda mais bela que a lembrança que guardava. E no entanto - continuou - Deus sabe que essa lembrança povoou minha vida.

Angélica sacudiu a cabeça, rejeitando a confissão.

-        Não há grande milagre em ser hoje mais bela que o pobre destroço que eu era então... E meus cabelos branquearam, veja.

Ele balançou a cabeça.

-        Recordo-me... Começaram a branquear nas estradas do deserto... Dor em demasia... Sofrimento em demasia... Pobre criança corajosa...

Ela lhe reconhecia a voz com leve acento camponês e, no timbre baixo, a nuança de carinho paternal que tanto a perturbava outrora. Queria a toda força afastar a confusão que sentia e não conseguia mais encontrar as palavras necessárias.

E seu gesto de roçar a fronte com a mão, com uma graça um pouco sofredora, para afastar a cabeleira luminosa, fê-lo suspirar profundamente.

Angélica quisera conferir uma leveza maior ao incidente, falar, gracejar. Parecia-lhe que o olhar de Colin Paturel penetrava nela e captava-a por inteiro, paralisando-a.

Ele sempre fora sério e não ria de bom grado. Hoje, parecia ainda mais sério, com uma pesada impassibilidade, que talvez dissimulasse tristeza e astúcia.

— Com que então, você sabe que sou a esposa do Conde de Peyrac? - retomou ela, para preencher o silêncio.

— Sim, decerto... Por isso estou aqui. Papa capturá-la, pois tenho contas a ajustar com o senhor, de Gouldsboro.

Um sorriso aflorou em seu rosto, suavizando de repente sua rude fisionomia.

-        Mas dizer que esperava reencontrá-la sob o nome dele seria mentir - disse, imitando-a. - E cá está você, sonho de meus dias e noites há tantos anos!

Angélica perdia o controle. Dava-se conta de que os últimos dias, passados na ponta extrema de uma península batida pelos ventos em meio a uma espera estéril, haviam esgotado sua resistência, e ela se achava entregue, sem defesa, a uma prova... Uma prova... intransponível!

-        Mas você é BarJaa de Ouro - exclamou, como se defendendo-se de si mesma. - Não é Çplin Patúrel... Tornou-se um criminoso.

-        Não, não, que ideia! - disse ele, surpreso.

Continuava tranquilo.

— Sou corsário em nome do rei, e tenho boas cartas de corso assinadas.

— É verdade que você fez atirar nos monges, na entrada de Portobello?

— Oh! Isso é uma outra história! Eles nos foram enviados pelo governador. Pensavam levar-nos a um acordo com seus padres-nossos, mas traição é sempre traição, disfarçada ou não sob um burel. Tínhamos vindo para vencer o espanhol. Vencêmo-lo. Os espanhóis não são da mesma espécie que-nós, gente do norte. Jamais serão. Têm nas veias-sangue mouro em demasia... Oh! e não é tudo... Sua crueldade em nome do Cristo, abomino isso. No dia em que fizemos caminhar os monges, havia dez fogueiras queimando nas colinas, ordenadas por esses pios religiosos: autos-de-fé em sacrifício pela vitória, com centenas de índios sobre eles; que se haviam recusado a trabalhar com ouro ou a converter-se... Mais cruéis que os mouros e mais rapaces que cristãos, eis o que são os espanhóis. Uma terrífica mistura de avidez e fanatismo... Não, não sinto remorsos por ter posto os monges a caminhar como um escudo em Portobello. E verdade, é preciso que lhe confesse, minha linda, não sou mais um bom cristão como outrora... Quando deixei Ceuta no Bonna-venture, fui primeiro às índias Orientais. Tive a oportunidade de salvar a filha do grão-mogol, que havia sido capturada por piratas, e isso me trouxe muita riqueza, devido ao reconhecimento que me testemunhou esse grande príncipe da Ásia. Então, através das ilhas do Pacífico, fui até o Peru, depois a Nova Granada e por fim até as Antilhas, e após guerrear junto com o grande capitão inglês Morgan contra os espanhóis - estava com ele no Panamá -, segui-o até a ilha da Jamaica, da qual ele é governador. Com o que me dera o grão-mogol e com o butim conseguido armei um navio para expedições de corso. Isso foi no ano passado. Sim, reconheço-o, desde o Marrocos deixei de ser um bom cristão. Não podia senão orar à Virgem, porque era uma mulher e me fazia pensar em você. Sei que isso também não está correto, porém sentia que o coração da Virgem é indulgente para com os pobres homens, que ela compreende tudo, e particularmente coisas como essas. Por isso, assim que me tornei o senhor do navio, pus-lhe o nome de Coeur-de-Marie.

Tirou pausadamente as luvas de couro e estendeu para ela, por sobre a mesa, as mãos nuas com as palmas abertas.

-        Veja - disse ele -, reconhece as marcas dos pregos? Continuam aqui...

Ela baixou o olhar de seu rosto, que fixava, e reconheceu as marcas violáceas da crucifixão. Um dia, em Miquenez, o sultão Mulay Ismael mandara crucificá-lo no bosque da Porta Nova, na entrada da cidade. Se ele não morreu, foi porque nada podia abater Colin Paturel, o rei dos escravos.

-        Houve um tempo em que, entre a gente do mar, começaram a chamar-me de Crucificado - retomou. - Disse que mataria a quem assim me chamasse, e passei a usar luvas. Pois sabia que eu era indigno de um epíteto santo como esse. Mas tampouco sou um criminoso. Apenas um homem do mar que, à força de combates... e de rapinagens, conseguiu tornar-se seu único senhor... Ganhar a liberdade, ora! Só nós podemos compreender que isso é mais que a vida.

Ele falara durante bastante tempo.

E o coração de Angélica começou a acalmar-se, e ela sentiu-se grata por ele permitir que ela se recompusesse. O calor do exterior parecia-lhe menos penoso.

-        Seu único senhor - repetiu ele. -Após doze anos de escravidão, e tantos outros de servidão sob as ordens de capitães que não valiam a corda com que se os enforcassem, eis o que pode tornarradiante o coração de um homem. .

Suas mãos aproximaram-se das de; Angélica, envolvendo-as, porém sem segurá-las.

-Recorda-se - perguntou ele -, recorda-se de Miquenez?

Ela fez que não com a cabeça e retirou as mãos, mantendo-as junto a si, num gesto de recusa.

— Não, não me recordo de quase nada, não quero recordar. Tudo é diferente, agora. Estamos em outra terra, Colin, e sou a esposa do Conde de Péyrac...

— Sim, sim, eu sei -falou ele, com o mesmo leve sorriso -, você já o disse.

Mas ela via que para ele tal afirmação nada significava, que a seus olhos ela sempre seria a escrava solitária e perseguida que ele tomara no passado sob sua proteção, a companheira de fuga, a criança querida do deserto, que ele carregara nas costas, e aquela que ele tomara diretamente sobre o solo pedregoso do Rif, para fruir das mais surpreendentes delícias do amor.

E bruscamente ela se lembrou de que carregara um filho de Colin no ventre, e algo atravessou-a, pungente como a dor que a transpas-sara quando aquele fruto se desprendera dela.

Suas pálpebras baixaram, e ela inclinou a cabeça um tanto para trás, enquanto revia a carreira louca da carruagem que a conduzia, como prisioneira do rei, pelas estradas da França, em seguida o acidente, o choque atroz, a dor, depois-o sangue que se pusera a correr... Estava então abandonada por todos; numa súbita reminiscência, perguntou-se, assustada, como pudera escapar da tenaz esmagadora do ostracismo do rei da França e recomeçar uma segunda existência. Aquilo parecia loucura.

O homem que a observava viu passar, como que transparente nesse rosto perturbador de mulher, o reflexo de dores e de uma angústia jamais revelados... jamais confessados. Dessas dores secretas que as mulheres guardam para si, pois os homens não podem com preender...

Na luz rosada do sol, o rosto dourado de Angélica, com a sombra alongada dos cílios nas faces, de uma beleza supraterrestre, devolvia a Colin a lembrança maravilhosa, que povoara seus dias e noites, de uma mulher adormecida contra ele, ou expirando de voluptuosi-dade em seus braços.

Soerguendo-se, num único impulso, inclinou-se para ela.

— Que há, meu carneirinho? Você está doente?

— Não é nada - disse ela debilmente.

A voz surda, alterada, de Colin, tão semelhante à do passado, atravessou-a novamente de lado a lado, mas desta vez num movimento mais suave, como poderia ter sido o de uma criança revirando-se dentro dela, e ela reconhecia a perturbação, a onda suave do desejo carnal que a presença daquele homem inspirava-lhe a contragosto.

-        Estou cansada - murmurou. - Todos esses dias aguardando na praia, tratando daquele crápula... qual é mesmo o nome dele?

E pasmava nervosamente as palmas das mãos na fronte, nas faces, evitando olhá-lo.

Ele se ergueu, contornou a mesa, ficou em pé diante dela. Parecia enorme sob o teto baixo. Os ombros de Hércules, só ossos e músculos, do mais robusto escravo de Mulay Ismael, se haviam forrado de carne nos anos de navegação, conferindo àquele gigante, que ninguém abatera ou curvara, uma estatura impressionante, ombros quadrados, um pescoço roliço e forte, uma fronte de touro e um peito largo como um escudo.

-        Descanse - disse ele brandamente -, farei que lhe tragam alguns refrescos. Você deve repousar. Tudo irá melhor depois. Conversaremos.

Ele mantinha o tom calmo e seguro que tranquilizava, desfazia a angústia. Mas ela sentia que ele tomara com relação a ela uma resolução implacável, e lançou-lhe um olhar quase súplice.

Ele estremeceu, e seus maxilares se crisparam.

Ela esperava que ele saísse. Mas ele se ajoelhou. Ela sentiu no tornozelo a força de sua mão muito quente, à qual nada poderia permitir-lhe escapar. Dedos ergueram-lhe a barra do vestido até o joelho nu.

Ele descobriu a perna de tenra brancura nacarada, com o sulco tortuoso e azulado na antiga cicatriz.

- Aqui está - gritou, com admiração contida -, ainda está aqui, ela também, a marca da serpente'

Debruçado, pousou bruscamente, com. fervor, os lábios na carne magoada.

Quase de imediato deixou-a, e, alçando-lhe um olhar devorador, afastou-se por fim.        

Ela ficou só, mas a queimadura do beijo na" antiga ferida, causada outrora pela faca de Colin para salvá-la da picada da serpente, permanecia.

E em seu tornozelo persistia, como um bracelete de ferro, a pressão de seus dedos.

Viu-os inscritos em marcas róseo-avermelhadas, e que se apagavam lentamente.

Ele sempre fora assim; àquele homem, suave, pacifista, generoso, não conhecia a própria força! Ele machucava amiúde, sem querer, dominado pela emoção, e no amor assustara-a por vezes e a fizera gemer, de tal modo ela scsentia em seus braços uma coisa fraca e frágil, que ele poderia quebrar por descuido. Diante das manifestações de sua inconsciente violência, ele suplicava: "Perdoe-me... sou um bruto, não é mesmo? Diga, diga-me, ora!"... e ela ria: "Claro que não, não sentiu que me fazia feliz?..."

Violento tremor sacudiu Angélica, e ela se pôs a andar de um lado para outro da estreita cabina, sem conseguir dominar seu mal-estar. O calor era abominável, e a luminosidade da tarde tornava-se alaranjada, sulfurosa.

O vestido colava-se-lhe nas omoplatas e ela sentia-se impaciente por trocar de roupa, por deixar correr sobre si uma água fresca.

Surpreendida pelos piratas de manhã, ao despertar, haviam-na capturado descalça. E descalça ela descera até a praia, onde Barba de Ouro a esperava. - Oh! Que força houvera em seu abraço! - e era ainda descalça que caminhava nesse momento pelo assoalho de madeira. Foi até a janela, sacudiu a cabeleira, fruindo um pouco da brisa marinha. Mas o ar permanecia lúgubre e pesado. Trazia um miasma de breu derretido. Os marinheiros continuavam a colmatar, a calafetar... Com uma sensação de esmagamento, ela pensou no acaso que lhe trouxera um amante do passado, ignorando que ele deixara em seu coração tão viva lembrança. E novamente, como um sobressalto, espalhava-se a onda suave ao evocar sua voz baixa: "Que há, meu carneirinho? Você está doente?..."

Palavras simples, mas que sempre a haviam atingido no mais profundo de si mesma. Assim como sua posse, primitiva mas inteira, tão poderosa, e que ela sentia mais do que poderia partilhar.

Voltavam, como uma vaga que a fizesse perder o fôlego, o arrebatamento, o ardor do gigante normando, libertado de seu comedimento quando o olhar dela dizia; Sim. Voltavam em todo o seu corpo sensações esquecidas, a volúpia insólita dos abraços no deserto.

Ele estava sempre terrivelmente impaciente por possuí-la. Queria-a imediatamente. Deitava-a na areia e logo a penetrava. Sem uma palavra de amor, sem uma carícia. E no entanto ela jamais ficara magoada com seu comportamento. Todas as vezes, sentira sob o ímpeto de seus quadris poderosos, naquela invasão inexorável, o impulso de uma força prodigiosa mas serena, generosa, uma doação imensa, quase mística, de todo o seu ser.

Despreocupado com ela, talvez, mas não com o ato.

Um celebrante perdido de amor, celebrando a oferenda, a união, a felicidade dos homens sobre a terra.

Seria sacrilégio pensar que Colin Paturel amava da mesma maneira como fazia todas as outras coisas, com fé, piedade, força e violência?

Abraços sob os quais por vezes parecia que ela iria morrer, demasiado fraca com seu corpo esgotado pelas provações para suportar seus arrebatamentos e responder a eles, e que no entanto lhe haviam ensinado o gozo patético da submissão, o sabor de não ser nada, nada além da taça em que ele bebia, do instrumento de carne que suscitava sua alegria, do corpo enfim de fêmea, abandonado, esquecido sob ele, mas do qual ele obtinha êxtases tão completos!

Abnegação, abdicação, de onde surgia subitamente a recompensa, num lampejo imprevisível, no instante em que a consciência dela soçobrava, quando o assédio viril chegava a seus fins e arrancava-a ao nada, devolvia-a à vida com um grito de despertar, de renascimento, de renovação a brotar de todo o seu ser, contorcido pelo espasmo.

Dessa irreprimível convulsão ela guardava a lembrança de uma onda maravilhosa espalhando-se como uma torrente por sua carne semimorta e no entanto ainda capaz do prazer que faz gerar a vida.

Como o botão subitamente desabrocha com a luz da primavera.

Por esse ímpeto nas entranhas, ela rec.onhecia-a força da vida.

- Ah! Estou viva, estou viva -. repetia-se entao.

Com seu cego desejo, parecia que ele a arrancara ao sono da morte, no qual ela mergulhava, e seu sangue cifculava mais vivamente; e ela maravilhava-se com o precioso milagre, os olhos abertos sobre a face de Colin, tão próxima, com suas pupilas azuis e límpidas como água fresca, a boca escura entre os pêlos da barba dourada e cujo sopro ofegante roçava-a docemente.

Sim, Colin não lhe salvara simplesmente a vida: devolvera-lhe a vida e a alegria de viver, e não apenas de sobreviver. Fora essencialmente graças a ele-que ela tivera-a coragem e a força de reencontrar o marido e os filhos. ' " .- .

Ah! Por que era hoje -necessário que o movimento do mar e o rumor das correntes, com a maré alta a mergulhar entre as ilhas, trouxessem com tanta força ag,visões do passado? Nos bosques de Wapassu, ela ttria esquecido Colin.

"E preciso que saia daqui", disse consigo, presa de pânico.

Correu até a porta e tentou abri-la. Mas estava aferrolhada. Viu então, no chão, sua bolsa de viagem; e sobre a mesa havia uma bandeja com vitualhas, salmão grelhado com milho em grãos cozido, uma salada e, numa cuba de vidro, fatias de cidra e de abacaxi cristalizados. O vinho contido em um.frasco parecia bom. A água da bilha era fresca.

Enquanto ela devaneava, alguém entrara e colocara aquilo tudo na mesa. Ela estava com a mente tão alheia, que não o percebera.

Não tocou nos pratos, bebeu apenas um pouco de água.

Abriu a bolsa, -verificou que faltava metade de suas coisas e impacientou-se. Pediria a Colin que enviasse aqueles ociosos marujos a terra, para que lhe trouxessem todos os seus pertences.

Ele obedeceria. Era seu escravo. Só ela contava para ele. Ela o soubera desde que seus olhares se haviam reencontrado.

Tudo o que ele queria na terra era ela... ainda ela, sempre ela. E ela acabava de ser-lhe devolvida...

Como escapar-lhe? Como escapar a si mesma?

A ponto de bater na porta e de chamar alguém com estardalhaço, mudou de ideia. Não, não queria ver Colin. A simples ideia de seu olhar sobre ela lançava-a em extrema agitação e ela se sentia confusa.

Ah! que Joffrey viesse logo buscá-la!

- Tomara que Yarm se apresse!

Olhou para fora. O dia findava. O sol desaparecera por trás de uma barreira de nuvens e, nessas nuvens acinzentadas, tremulavam por vezes clarões de sol, enquanto o balanço do navio ancorado se acentuava.

Angélica tirou a roupa.

Derramou a água fria da bilha na nuca e fê-la correr pelo corpo. Sentiu-se melhor depois disso. Vestiu uma camisa de fina cambraia. No quartinho agora sombrio, continuou a ir e vir com impaciência, semelhante a uma pálida sombra agitada. A camisa curta causava uma sensação agradável e leve em seu corpo febril e, em torno das pernas nuas, ela sentia a carícia de um sopro de vento que por fim se erguia, vento ainda incerto que, de surpresa, desmanchava a crista das vagas, antes de baixar molemente.

"Está ameaçando um temporal... Eis por que o navio permaneceu ancorado ao invés de içar vela", pensou. "Colin pressentiu a tempestade."

Ela apanhou o pedaço de tecido índio que estava sobre o catre e envolveu-se nele, deitando-se em seguida.

Queria dormir.

Múltiplos pensamentos entrechocavam-se em seu cérebro. Por que Barba de Ouro queria capturá-la? Que títulos de propriedade detinha sobre Gouldsboro? Por que Joffrey enviara-a, a ela, Angélica, à aldeia inglesa?... Ah! mais tarde! Mais tarde pensaria em tudo aquilo.

Ouviu-se o ruído surdo do trovão, despertando o eco da terra próxima. Mas o segundo soou mais distante.

"A tempestade passa mais ao largo..."

O balanço do navio arrastava-a, mergulhava-a em doce torpor. Colin... Outrora... no deserto.

Só a beijava depois, quando os sentidos houvessem acalmado sua fome urgente. Só a acariciava depois... Os beijos eram suaves, hesitantes, cuidadosos, pois os lábios de ambos, gretados pelo ar seco e as queimaduras de sol, amiúde sangravam... Um calafrio percorreu-a inteira, e ela enrijou-se com a lembrança dos lábios secos e feridos de Colin sobre os seus, os lábios de Colin vagando por seu corpo...

Ela se voltou violentamente.

Depois, cansada e com os nervos esgotados,, mergulhou num so no profundo.    

CAPITULO XXXIII

Arroubos de volúpia proibida

-Não, Colin, isso não, suplico-lhe... isso não...

Os braços de Barba de Ouro, os braços nodosos de Colin, erguiam-na irresistivelmente até ele, e, abraçada a seu rijo peito nu, ela sentia os dedos de Colin entre os seios, agarrando o decote da fina camisa de cambraia e puxando-o, o tecido rasgando-se sem esforço, num único e silencioso arranco, como a neblina a se dissipar. A mão do homem inserindo-se entre suas pernas, ali, no local preservado em que a pele tem a suavidade do cetim, e subindo numa carícia sem fim.

-        Não, Colin, isso não, suplico-lhe... Suplico-lhe!

Ao redor dela, a escuridão profunda iluminava-se com reflexos castanho-avermelhados.

O homem pousara atrás dele na mesa uma vela.

Para Angélica, porém, nua e a desfalecer nos braços de Colin, tudo era escuridão. Ele próprio era uma noite imensa como um abismo, uma forma opaca, debruçada sobre ela, a envolvê-la por inteiro com sua paixão obscura e feroz. E enquanto a estreitava contra ele e a acariciava tenazmente, sua boca tentava encontrar-lhe os lábios, que ela furtava a ele, rolando a cabeça da direita para a esquerda numa última reação de defesa.

-        Dengosa, minha dengosa! - sussurou ele, buscando acalmá-la.

Assim a chamava no passado.

Conseguiu por fim dominá-la, e ela lhe sentiu os lábios, macios e frescos na cálida aspereza de sua fcarba, tomando os seus.

Em seguida ele ficou completamente imóvei, paralisando-lhe a nuca com seu braço de ferro, mas sem procCrar forçar a barreira de seus lábios fechados. E pouco-a pouco foi ela quem buscou despertar, comover, descobrir o segredo da boca masculina sobre a sua, como um sinete, exigindo que ela se animasse,-solicitando sua resposta, sentindo-a por fim entreabrir-se. Então ela cedeu por seu turno, numa espécie de grito ávido e mudo, invadida por uma brusca fome, e abandonou-se à aproximação íntima e misteriosa do beijo.

Mudo diálogovertiginoso, procura mais lenta, mais delicada que a outra posse, curiosidade hesitante, reconhecimento, confissão, descoberta, e a faísca que sg. acende,, renovando-se incessantemente em seu crepitar, trazendo O desejo e a suavidade no sangue, fazendo explodir o sol na cabeça, contato eterno, sede jamais saciada, gosto paradisíaco do nada, polpa saborosa oferecida à fome, resposta... cada vez mais terna, mais total, até que o corpo solicitado não seja mais que essa imensa oferenda impaciente, um festim de amor preparado para a celebração dos ritos.

O vigor de Colin inclinou^ para trás,£ ela se viu, sem forças, colada ao leito.

-        Não, Colin!... Oh! suplico-lhe, meu amor, isso não... Tenha pena, não posso mais... não posso mais... resistir.

Os joelhos de Colin forçavam-lhe as pernas comprimidas, querendo afastá-las com um movimento seguro, num só golpe, sem remissão... E um grito brotou:

-        Ah! Eu o odiarei!

Angélica emitira esse grito de recusa quase sem o ouvir.

-        Por Deus, eu o odiarei, Colin!

E ele se imobilizou, como se atingido por um raio, ouvindo o eco desse grito penetrá-lo como uma lâmina,. -

Passou-se um longo momento, suspenso no silêncio. A luz bruxuleante da vela projetava nas paredes a sombra eterna das noites humanas, a sombra difusa, sempre recriada desde a noite dos tempos, de um homem e de uma mulher enlaçando-se para o amor...

Com um movimento dos quadris, Angélica desprendeu-se dos braços fortes que a aprisionavam e saltou do catre com tanta vivacidade e arrebatamento, que virou a mesa e a vela caiu, apa-gandp-se.

Angélica arrastara consigo o xale de tecido índio no qual se envolvera antes de adormecer. Cobriu-se de novo, febrilmente, enquanto tentava, não sem magoar duramente o corpo todo, colocar a barreira da mesa entre Colin e ela.

Não mais o via, pois a escuridão agora era total. A noite lá fora era sem lua, noite de nuvens e de neblina a deslizar.

Ela adivinhou que o homem se colocava como um animal prestes a saltar.

— Angélica! Angélica! - Era a voz de Colin na escuridão; e nesse grito não havia somente todo o fervor de um desejo frustrado, mas também um desespero dilacerante.

— Angélica!

Ele avançou, titubeando, os braços estendidos, e chocou-se com a mesa.

— Cale-se! - disse Angélica em voz baixa, os dentes cerrados - e deixe-me. Não posso entregar-me a você, Colin, sou a esposa do Conde de Peyrac.

— Peyrac! - sussurrou a voz rouca, e ela teve a impressão de que ele iria expirar. - Peyrac, esse fora-da-lei, fidalgo aventureiro, que se faz de príncipe, de rei, no litoral da Acádia...

— Sou sua mulher!

— Desposou-o como todas as prostitutas que viajam pelas Antilhas o fazem... Por seu ouro, sua frota, pelas jóias com que a adornou, porque ele lhe deu de comer... Hein? Em que rochedo o encontrou?... Viajava à procura de um rico corsário?... Hein? E ele ofereceu-lhe esmeraldas e pérolas... Hein? Diga!...

— Não tenho explicações a dar-lhe. Sou sua esposa, desposei-o diante de Deus.

— Travessuras!... Isso se esquece!...

— Não blasfeme, Colin!

— Também eu posso oferecer-lhe esmeraldas e pérolas... Posso ser tão rico quanto ele... Você o ama?

-        Isso não lhe diz respeito! - gritou ela com desesperança. - Sou sua mulher e não posso passar a vida traindo juramentos sagrados.       

Ele vacilou. Ela acrescentou rapidamente.:

-        Não podemos fazer isso, Colin:.. E impossível! Acabou... Você destruiria minha vida...

Ele lhe perguntou com voz surda:

— É verdade que você me odiaria?

— Sim, é verdade! Eu o odiaria. Odiaria até. sua lembrança, até o passado... Você ter-se-ia tornado o instrumento de minha própria infelicidade, meu pior inimigo... o instrumento de meu pior crime... Eu odiaria a mim mesma. Ah! preferiria que você me matasse imediatamente... Mate-me! Mate-me, antes...

A respiração de Colin fazia um barulho de forja. Como se ele sofresse até a morte.

-        Deixe-me! Deixe-me, Colin!...

Ela falava em voz baixa', mas a violência contida de suas palavras conferia a cada um? delas a força de punhaladas cortantes, agudas.  

— Não posso deixá-la - sussurrou ele -, você me pertence em todos os meus sonhos... E agora que está aqui, diante de mim, não desistirei... Senão, que significaria o fato de havê-la reencontrado?... Que significaria o acaso que tornou a colocá-la em meu caminho?... Senti muita falta de você, noites e dias... sofri muito com sua lembrança para desistir... É preciso que você seja minha.

— Então, mate-me! Mate-me imediatamente.

O ruído de suas respirações entrecortadas enchia a sombra espessa. E Angélica desfaleceu, agarrada à mesa, em meio ao balanço do navio, que lhe parecia vertiginoso, porque não mensurável, uma vertigem de cegos, onde o terror por sua própria fraqueza juntava-se ao medo pelo que aconteceria se um dia esse "algo" inelutável, e que ela sentia estar de volta, acontecesse... E era verdade que nesse instante ela preferia a morte.

Quando ouviu Colin mover-se e teve a sensação de que ele se aproximava, um grito silencioso brotou de suas entranhas, como jamais ocorrera antes, e que ela não sabia ser um pedido de socorro a algo mais forte que sua fraqueza, algo mais lúcido, mais clemente...

Então, pouco a pouco, ela discerniu a imobilidade dos objetos em torno, a paz, um vazio. Percebeu que estava novamente só.

Colin deixara-a. Colin partira.

CAPÍTULO XXXIV

Angélica sonha com seus amores

Foi um momento muito duro para ela, momento de confusão, de desespero, onde tudo o que existe de eternamente infantil numa mulher vinha à tona com ilogismos, arrependimentos, desafios à realidade, onde todo o seu corpo-atormeritado e a mente desorientada debatiam-se em insuportável dilema. Parecia-lhe sentir uma dor, a ponto de gritar, até a extremidade das unhas.

Por fim seus nervos se acalmaram e, tateando, ela buscou em vão encontrar a vela. Devia ter rolado em algum canto. Mas uma claridade leitosa que renascia anunciou a lua filtrando-se entre duas nuvens, e Angélica, vacilante e como que ébria, veio apoiar-se ao balaústre de madeira dourada do balcãozinho diante da porta-janela aberta.

Apoiou ali os cotovelos, respirou profundamente diversas vezes.

A lua desnudava-se, espalhando sua claridade purificante.

Ondeado de nuvens, o céu estendeu-se acima dela como uma concha nacarada cheia do rumor contínuo da ressaca e daquele, nostálgico e um pouco lúgubre, do latido dos lobos-marinhos nas praias.

Os olhos de Angélica vagaram em torno sem fixar nada, mas quando seus sentidos se acalmaram, a sensação do assustador perigo que acabava de correr, e do qual escapara por pouco, impôs-se a ela, e suas pernas fraquejaram.

'"Quase fiz 'aquilo' ", disse consigo. E um suor frio inundou-a.

Quanto mais os segundos passavam, mais o medo vinha quebrar, reduzir a migalhas a miragem ofuscante e sinuosa da tentação.

"Se eu tivesse feito 'aquilo'!"

Reconheceu que no mesmo instante seria como uma morta... como... não encontrava palavras para definir a impressão devastadora de total destruição, que experimentaria se...

Doravante ela saberia que o desejo podia ocupar lugar entre os cataclismos terrestres mais terríveis, no mesmo nível dos maremotos, dos terremotos, dos ciclones, um ato acima da razão, envolvendo irresistivelmente a fraqueza humana em sua cega força material.

Como tivera forças para esquivar-se? Aterrada, mordia os dedos, vendo diante de si um abismo.

"Como pude?..."

Tocou os lábios.

"E o beijo... Eu não deveria... Não deveria ter trocado aquele beijo com Colin..."

Sua língua contra a língua de Colin.

Pôs o rosto entre as mãos.

"Imperdoável! Imperdoável!..."

Joffrey!

Sentia um temor supersticioso de evocá-lo. Parecia-lhe que ele estava atrás dela, fixando-a com seus olhos ardentes.

"Foi Joffrey quem me despertou o gosto pelos beijos, que o devolveu a mim. Foi ele quem me ensinou a beijar assim. E amo... amo tanto, junto dele, os beijos que não têm fim, passaria minha vida contra seu peito, meus braços ao redor de seu pescoço, minha boca na dele... Ele o sabe. Como pude estar tão próxima de traí-lo?... Estar separada dele é o que me enfraquece..."

Uma mulher jamais é tão vulnerável como quando precisa ser consolada de uma ausência. Os homens, os maridos, deveriam sabê-lo.

Descobrindo que a confusão que sentia originara-se do insuportável "vazio" que experimentara ao se ver só, longe dele, Angélica começou pouco a pouco a se absolver.

"Ele jamais deveria ter-me deixado sozinha... E depois, será tão grave? E se o tivéssemos feito? Um abraço?... Será que isso teria realmente me separado dele? Tão pouca coisa!... É como beber quando se tem sede. Não há pecado em beber... Se é assim que nos enganam, a nós mulheres, não há motivo para tanto drama... Um ímpeto de desejo, uma fome violenta... Bem pouca coisa na verdade. Doravante mostrar-me-ei mais indulgente para com as travessuras masculinas... Será que se Joffrey um dia... com outra,-mulher?... Ah!, não, eu jamais suportaria isso... Morreria... Ah! agora sei que é bem grave! Perdoa-me... Por que será que um ato acidental pçpvbca tantas tragédias, desde que o mundo é mundo?... O espírito é atento, mas a carne é fraca! Sim... Como isso é verdade!

"Por que com Colin, quase um estranho, por que uma tentação tão irresistível?... O amor, uma questão de pele... É o que me diz Joffrey, com seu cinismo costumeiro, quando quer.me espicaçar... O amor é uma questão de pele, de ondas que se atraem... Não, não apenas isso! Mas uma das condições fundamentais, talvez?... Com certos homens, no passado, não era decerto desagradável, mas eu sabia que faltava algor.. Esse algo que senti de imediato com Joffrey, mesmo quando ele me causava medo...

"E com Colin?..: Sempre4iouve alguma coisa a mais com ele que eu não sabia explicar... Com Desgrez também, parece-me... E... pensando nisso, é curioso, aquele gordo capitão do Châtelet, será que eu teria podido 'pagar' para salvar Cantor se... Ele não deixou uma lembrança tão ruim... Mas e com o rei? Bem, nesse caso compreendo melhor... Faltava 'aquele algo'... Aquele algo, aquele tão estranho, bizarro reconhecimento que se faz à flor da pele, entre certos seres, sem que nada possa explicá-lo.'2"

"Existe isso entre Colin e mim... aí está o perigo... Jamais devo ficar a sós com ele."

Sonhadora, em meio ao balanço acalentador do navio, ela deixou o pensamento perder-se no luar, vendo nele desfilar, numa seleção bastante particular, as antigas silhuetas dos homens que conhecera, todos tão diversos, e em meio aos quais passaram de repente, sem que ela soubesse por que, o rosto franco do Conde de Loménie-Chambord e mesmo distante, hierática mas tão clemente, a nobre figura do Abade de Nieul.

CAPÍTULO XXXV

A tentação da fuga

Havia um homem escondido, agarrado à balaustrada.

Desde alguns instantes, para observá-lo, Angélica interrompera suas divagações sobre as inconseqiiências e o ilogismo do ser humano no amor e suas reminiscências comparativas.

Atraída por leve ruído, debruçara-se e distinguira a sombra de um homem hirsuto com as roupas em farrapos. Agarrava-se àquilo que se chamava "galerias", ornatos pendentes a emoldurar os dois andares do castelo de popa.

- Ei! rapaz - sussurrou ela -, que está fazendo aí?

Vendo-se descoberto, ele deslizou de lado e ela o avistou, um pouco mais abaixo, agarrado desta vez às molduras da amurada, o grande painel com a pintura de uma alegoria do Coração de Maria rodeado de anjos.

O misterioso acrobata lançou-lhe um olhar ameaçador, mas igualmente súplice.

Trazia ferimentos nos pulsos.

Angélica compreendeu. No barco de Barba de Ouro havia prisioneiros, e aquele devia ser um prisioneiro que estava se evadindo.

Ela lhe fez um sinalzinho de entendimento e retrocedeu.

Compreendendo que ela não daria o alarma, o outro recobrou coragem. Ela sentiu seu impulso e ouviu o ruído do mergulho.

Quando voltou a olhar, estava tudo calmo. Procurou-o ao pé do navio, mas ele já emergia ao longe, no reflexo escuro de uma ilhota, e se punha a nadar.

Terrível nostalgia apoderou-se de Angélica. Também ela quisera fugir, fugir, evadir-se desse navio onde se sentia pçesa na armadilha de suas próprias fraquezas. No outro dia, Colin voltaria a surgir diante dela. 

"E preciso que deixe este navio a qualquer preço", disse consigo, "a qualquer preço..."

CAPITULO XXXVI

O Conde de Peyrac no monte Deserto

Ao pé do monte Deserto, há uma fonte fresca e umbrosa, de água clara com gosto de argila. Ali o Sieur Pierre du Guast de Monts matou a sede ao chegar, em 1604, e fundou a primeira colónia europeia na América setentrional. Era um rico senhor huguenote, a quem seu amigo Henrique IV da França nomeara vice-rei da costa atlântica do Novo Mundo. O geógrafo Samuel Champlain acompanhava-o, bem como o poeta Lescarbot, que cantou "as doces águas da Acádia".

Da primeira colónia nada mais resta além de uma cruz apodrecida, semitombada, plantada pelo Padre Biard, jesuíta, e uma capela vetusta com um sino de prata que o vento faz vibrar, ou que sacodem por vezes, curiosos e inquietos, os meninos selvagens da tribo dos cadillac.

Uma velha trilha índia termina ali, vinda do norte, após percorrer lagos e florestas desde o longínquo monte Kathedin, e depois, de rochedo em rochedo, um braço de mar, antes de se apagar na ilha do monte Deserto.

Nessa primavera, a erva verde e os brotos tenros das bétulas traziam até ali os rebanhos de bisontes, a mugir, escuros, ancestrais, gigantescos bovinos de fronte sólida e cernelha velosa.

A massa escura de seus corpos, entrevista na folhagem dourada, inspirava medo, mas na verdade eram animais pacíficos e bucólicos.

Os índios das florestas caçavam-nos pouco, preferindo o gamo, o cervo, o cabrito montês. O bando que naquela manhã pastava as altas ervas ao pé da montanha não se perturbou quando um grupo de homens passou ao alcance de suas ventas penetrantes.

Joffrey de Peyrac, acompanhado pelo normando Rolando D'Urville, do flibusteiro de Dunquerque,'.Gilles Vanereick, e do padre recoleto Erasmo Baure, subia a montanha após ter deixado seu navio de três mastros no porto abrigado, í)a margem oriental da ilha. Era um pico de mil e quinhentos pés, a menos de uma légua por mar de Gouldsboro, ponto culminante da região, composto por dois enormes dolmos de granito rosa.      

Apenas transpostas as árvores frondosas que batiam com sua espuma verde ao pé do monte, a vegetação desaparecia, salvo os tufos escuros de alguns pinheiros mirrados, e no nível da rocha desnuda, cor-de-carne, os mirtilos envernizados e os rododendros anões, que lançavam sobre os flancos arredondados e gastos suntuosos tapetes púrpura e aurora.

O vento rasante sussurrava, tornava-se cada vez mais cortante e glacial à medida que se subia.

Os três homens, acompanhados por sua escolta de marinheiros armados de mosquetes, caminhavam com passo ágil e rápido, sem seguir nenhum caminho ou atalho. As grandes lajes de granito rosa ou violáceo guiavam-nos para o cimo, como os degraus de inclinação suave de uma escada gasta.

Em cada folha, cada fissura, para onde o vento trouxera um pouco de terra arável, mil flores pequenas e delicadas, saiões, saxífragas, brilhantinas, trabalhavam com seus bordados delicados os grandes panos de pedra desnuda.

Indiferente a tanta beleza misturada a tanta rusticidade, o Conde de Peyrac avançava com a fronte baixa, preocupado em chegar ao cimo antes que uma neblina caprichosa, sempre imprevista, viesse ocultar-lhe o horizonte.

Examinar o panorama que se descobriria do alto, enumerar as ilhas, escrutar cada dobra das enseadas e do promontório, tal era o objeti-vo que ele se fixara ao empreender a ascensão.

O tempo estava contado. Os dias precipitavam-se na confusão da estação viva, no tumulto das coisas e dos seres que despertam e mergulham avidamente na corrente do verão.

Os índios vinham até as margens dos rios para as trocas, os navios chegavam para a pesca, os homens cortavam lenha, plantavam, comerciavam, e grandes turbilhões arrastavam-nos na febre das estações demasiado curtas.

Os acontecimentos se emaranhavam e se encavalavam. Uma dezena de dias antes, após ter deixado em Pentagouet, no Penobscot, seu jovem aliado, o Barão de Saint-Castine, o Conde de Peyrac caminhara para o leste, na direção de Gouldsboro.

Demorara-se no caminho, pouco acessível ainda, nas vizinhanças de duas pequenas minas de prata e de silvanita, mineral de ouro invisível e negro, de propriedade do conde. Ele se detivera, avaliara os trabalhos, reconfortara os mineiros que ali haviam invernado, deixara Clóvis como contramestre e partira. Pouco mais adiante esperava-o o confessor de Saint-Castine, um recoleto, o Padre Baure, encarregado de uma mensagem de parte do barão.

Assim soube dos massacres no oeste. Os abenakis haviam desenterrado os machados de guerra e agora devastavam as colónias inglesas do Maine na direção de Boston.

"... Estou conseguindo segurar as rédeas de minhas tribos", escrevia Saint-Castine. "Portanto, ninguém se moverá em nossas regiões" Notifiquei os comerciantes ingleses de Pémaquid e de Wiscasset, meus vizinhos, para que não se assustem e permaneçam em casa.

"Contudo, eles se refugiaram na ilha de Newagan com víveres e munições. Mas coloco-me como fiador de que a paz, com sua ajuda, será mantida em nossa jurisdição."

Assim chegou Peyrac a Gouldsboro.

Simultaneamente, soube que Angélica não atingira Gouldsboro após ter embarcado no Le Rochelais, na baía de Sabadahoc, conforme noticiara o marinheiro desconhecido, mas que seu filho Cantor, depois de conduzir até Gouldsboro uma chalupa de refugiados ingleses, acabara de partir com o referido Le Rochelais e seu capitão, Le Gall, para buscá-la na baía de Casco, onde se comentava que ela se encontrava em companhia de doentes e de feridos.

Tranquilizado com o destino da mulher e ao mesmo tempo aborrecido com esses contratempos, com as atitudes incompreensíveis de uns e de outros, Joffrey de Peyrac hesitou em lançar-se nas pegadas do filho, e diante da inquietação que reinava em sua colónia do oceano, resolveu armar-se de paciência.

O encontro com o homem das pérolas de Lambi no Kennebec, pertencente ao navio de flâmula alaranjada, nem por isso deixou de atormentá-lo. Quem eram essas pessoas que lhe haviam mentido? Haviam compreendido mal uma informação lançada na neblina, de um convés a outro dos navios?        

Era preciso aguardar a volta de Angélicaede Le Gall para esclarecer a confusão. O principal era que Angélica estivesse sã e salva. No entanto ele não estaria completamente tranquilo enquanto não a tivesse em seus braços.

Ora, isso se passara quatro dias antes, e enquanto ele subia com grandes passadas o monte Deserto, não haveria também em sua pressa a secreta esperança de ser o primeiro a distinguir uma vela ao longe, que o tranquilizasse?

Atrás dele, seus companheiros trocavam algumas tiradas, cortadas pelas rajadas de Vento. Gilles Vanereick, de nacionalidade francesa, reformado convertido de origem, alegre e petulante servidor do rei da França, mas preferindo servi-lo a distância, trazia uma casaca de cetim amarelo, cujos botões eram autênticas pistolas, um calção de seda ameixa e meias verdes dobradas. Um lenço índio florido envolvia-lhe a fronte sob O chapéu de plumas de arara e uma écbarpe do mesmo tecido, o ventre levemente proeminente. Ágil, alerta apesar do talhe, tinha a fama de ser um^diabo-em combate e de jamais ter sido ferido. A única cicatriz que trazia era a marca comprida do dorso da mão, feita pela guarda de seu/sabre de abordagem... por ter-se servido dele dia e noite... compreendem? Dia e noite!...

Homem do norte, da região plana que esteve durante longo tempo sob o domínio de Carlos V e de seus descendentes, possuía o olhar sombrio e os bigodes negros compridos e retorcidos à espanhola, acrescidos a uma-sensualidade flamenga e bonachã.

O Conde de Peyrac fizera com ele amizade desde as Caraíbas, e Vanereick decidira visitá-lo em sua colónia do norte, pois estimava que a estação, com os espanhóis, tornàra-se demasiado penosa para um pequeno flibusteiro de São Cristóvão.

Combinara sua vinda com a do Gouldsboro, comandado por Erikson, e que retornava da Europa.

O Gouldsboro trazia artesãos e alguns refugiados huguenotes. Em contrapartida, no navio do corsário havia mulheres de pele mais ou menos escura, entre as quais uma mestiça de índio e espanhol, de grande beleza, e que era amante do homem de Dunquerque. Ela logo se pôs a dançar na praia, ao som das castanholas, e para grande desprazer dos senhores Manigault e Berne, encarregados da disciplina do porto e da moralidade de sua pequena comunidade protestante.

A noite do solstício de verão fora marcada por tumultos bastante violentos. A presença de Joffrey de Peyrac impedira que a coisa acabasse mal, mas o governador D'Urville dizia que estava farto daqueles possessos e que desejava demitir-se do cargo.

No dia que se seguiu amovimentada noite de São João, Peyrac conduziu-os à montanha, para desanuviar-lhes um pouco a mente. E ele próprio sentia necessidade de afastar-se, de avaliar a situação. E de resto esperava que um bom vento lhe permitisse avistar do cimo, por mais distante que estivesse, a vela do barco que traria Angélica.

Por fim, outra ideia ocorreu-lhe sobre o navio suspeito que fora ao encontro deles no Kennebec, e cuja auriflama alaranjada ele vira flutuar por sobre as árvores. Queria verificar sua hipótese.

Atrás dele, o pequeno grupo de seus subordinados, tenentes e amigos, conversava enquanto escalava com passo ligeiro as grandes lajes de granito rosa.

D'Urville interrogava Vanereick sobre as razões que o haviam levado, a ele, um flibusteiro das Antilhas, a vir tentar a sorte na baía de Massachusetts e na baía Francesa.

O flamengo não escondia suas razões.

— Não sou páreo para os enormes galeões espanhóis de seiscentas toneladas armados até os dentes, escoltados por uma verdadeira matilha, que se encontram agora nas Caraíbas. Em contrapartida, poderia comerciar com o Sr. de Peyrac: açúcar, melaço, rum, algodão em troca de bacalhau seco, madeira para mastreação... e talvez pudéssemos unir esforços para atacar alguns de nossos inimigos.

— Veremos - respondeu Peyrac... - Calafete seus barcos, refresque-se em nossos domínios sem problemas. Tenho a impressão de que você poderia de fato assistir-me dentro em breve contra Barba de Ouro, esse pirata de quem deves ter ouvido falar na Jamaica.

Agora percorriam o cume.

O vento que varria com lâmina aguçada o crânio desnudo do monte Deserto assaltou-os com tal violência, que tiveram dificuldade em se manter de pé. Vanereick foi o primeiro a dar-se por vencido. Disse estar habituado aos países quentes e, gelado até a medula, foi abrigar-se no flanco menos exposto, atrás de uma anfractuosidade do rochedo. Rolando D'Urville logo o alcançou, agarrando-se ao chapéu de feltro com ambas as mãos. O Padre Erasmo Baure, a barba ao vento, resistiu o tempo de um padre-rrosso e de uma ave-maria, estimando-se quite, assim como os marujos de Vanereick.

Enrico Enzi, que escoltava Peyrac, permaneceu ao seu lado estoicamente, verde de frio, envolto em suas écharpes e turbantes árabes, que compunham seus trajes" habituais de mediterrânico de Malta.

- Vá, vá - disse-Ihe o conde -, vá abrigar-se.

Permaneceu sozinho no cimo do monte Deserto, encurvado no vento incessante, sem poder tirar os olhos do panorama que se estendia abaixo dele.

Ali estavam, inscritos em hieróglifos de terra e de água, todo o encanto, o gigantesco e a complexidade de uma região que despertava em pleno vigor, reservando sem cessar espetáculos raros.

Por todo lado õ mãr forçando a terra, por todo lado a terra alongando-se em penínsulas, promontórios, através da extensão azul e ondulada do caótico oceano, o qual, porém, visto de tão alto, possuía a maciez e a suavidade do cetim. Ilhas coroadas de ébano pelos pinheiros, ilhas envoltas no ouro verde dos bosquetes de bétulas primaveris.

Ao longe, via-se o fundo da baía, completamente rosa, pedestal de rochas rosa e vermelhas, onde aflorava o arenito sedimentar de minério de ferro, velho arenito quase malva em alguns pontos por ter sido comprimido em demasia pelas enormes geleiras da noite dos tempos.

No cascalho de fragmentos de rocha dos rios, mais recentes que o arenito, encontravam-se os restos milenares de mamutes peludos, de presas longas e encurvadas. Granito polido pelo rabote gigante das geleiras, ou em outros pontos falésias abruptas, fraturas provocadas por desmoronamentos a se refletir, contemplando o brilho de suas feridas vivas na água das enseadas profundas.

E as baías, as ilhas, os rios com a armadilha dos macaréus, onde só se podia penetrar com a maré alta, com seu cortejo de neblinas e de tempestades, as praias onde brincam os lobos-marinhos, as margens cobertas de florestas, formigando de animais de pele, onde se vê o urso negro secando-se habilmente à beira das ondas, pululando de índios que vinham trocar peles com os navios; toda essa porção de terra em torno da baía Francesa, que se apresenta como um pequeno Mediterrâneo, e tão recheada de piratas e de tráfico como ele, por vezes igualmente azul, mais rica em peixes, porém menos explorada, margens novas ao invés de margens antigas, praias rosa ou brancas, ou azuladas, ou às vezes até cor de framboesa; esse deserto, esse paraíso, esse caldeirão de feiticeira, que se retrai num abismo onde cada vez mais se mergulha na escuridão das brumas, entre o bramido da ressaca, até o fundo da baía Francesa, onde os quatro irmãos Défour, Marcelina, a Bela, e seus dez filhos, Gontran, o Jovem, genro do velho Nicolau Parys, e alguns outros ainda patinhando nos charcos de Chignecto, vendem seus cestos de carvão mineral ao navio que melhor pagar, enquanto o Padre Jeanrousse os maldiz por sua impiedade e selvageria; esse lugar ínfimo do mundo americano, e no entanto gigantesco para o ser miserável que nele tentava se agarrar, possuía já uma história à sua imagem, ignorada, cruel e espelhada pelas extensões e os abismos dos horizontes perdidos, história cheia de tristeza e de sofrimento.

Joffrey de Peyrac debruçava-se sobre a oval da bacia abrigada da ilha, avistando, minúsculo, seu navio de linha alongada e aguda.

Esse navio fora construído, conforme um projeto seu, em Kittery, na Nova Inglaterra, já uma velha cidade marítima, sobre o rio Pista-quata, no Estado de Massachusetts. Que restaria agora do ativo estaleiro? Cinzas, talvez? A irrupção da guerra índia iria criar incalculáveis perturbações para todos.

Pássaros subiam até os picos numa ronda barulhenta. Anunciavam um dos senhores do lugar. A neblina...

Joffrey de Peyrac fechou a luneta e juntou-se aos companheiros, que, de nariz metido na gola, suportavam com paciência a situação.

Sentou-se ao lado deles, envolto em seu amplo manto. O vento selvagem abatia as plumas multicoloridas dos chapéus. Foram subitamente atingidos pelo assalto silencioso da neblina, que enrolava as vagas brumosas nos flancos rosados do monte, e que os envolveu, engolindo-os em seu linho. Sob seu sopro imenso, o vento cedeu, fugiu sussurrando, e um tempo de calma reinou. Os homens brancos, sozinhos no universo cego, estavam como que sentados nas nuvens, acima do monte agora desaparecido.

-        Então, Sr. D'Urville, parece que" o senhor se prepara para apresentar-me sua demissão do cargo de governador de Gouldsboro - disse Peyrac.

O fidalgo normando corou, empalideceu e olhou o conde como se este tivesse tido o poder de ler-lhe os- mais recônditos pensamentos. Não havia contudo no caso nada de mágico na adivinhação. Poucos dias antes, Peyrac o vira arrancar os cabelos face às dificuldades de sua jurisdição.

Havia agora gente em demasia em Gouldsboro, exclamou ele. Entre os huguenotes, os mineiros, os piratas, os marinheiros de todas as nacionalidades, ele perdia seu latim, que jamais fora dos melhores. Onde estavam os hõrs tempos em que, quase o único senhor naquele local ermo, ele se entregava a um lucrativo comércio de peles com os índios e com os raros navios que se arriscavam no porto improvisado e de acesso difícil?

Mas hoje era a feira continental, e ele, D'Urville, fidalgo normando da ponta do Cotentin, não tinha mais tempo para honrar com seus favores sua bela esposa índia, filha do chefe local, o abenaki Kaku, nem de ir, a pretexto de""visitar algum distante vizinho francês ou inglês, distrair-se um pouco em meio às vagas tumultuosas do oceano.

-        Senhor - exclamou -, não pense que eu queira deixar de servi-lo. Para colocar-me às suas ordens e assisti-lo o melhor possível, sempre estarei aqui, para correr ao encalço de seus inimigos, defender seus domínios na ponta dos canhões e até de minha espada, comandar seus soldados., seus marujos, mas onde minha capacidade falha, confesso-o, é em reconhecer quando entram em jogo ao mesmo tempo os Santos, os Demónios e as Escrituras. Seus huguenotes são trabalhadores, corajosos, capazes, industriosos e comerciantes como o diabo, e também aborrecidos como o diabo. Farão de Gouldsboro uma cidade bastante limpa, porém nunca sairemos das lengalengas, pois jamais saberemos qual lei impor. O que quer que se lhes tenha feito em La Rochelle, são como mutilados por não mais se sentirem súditos do rei da França; mas se um francês anda com uma medalha da Virgem ao pescoço, ei-los que entram em transe, desejando até impedi-lo de abastecer-se da água doce do local onde moram. Não nos entendemos muito mal neste inverno, conversávamos ao pé do fogo quando desabavam tempestades. Sou um pouco descrente - perdoe-me, padre - e não os importunava com meus padres-nossos. E combatemos juntos, quando foi necessário, contra o pirata Barba de Ouro. Mas, por conhecê-los demasiado bem agora, não me sinto suficientemente diplomata para equilibrar a balança entre protestantes tão diversos, de nacionalidade exacerbada, e todos esses piratas.

Joffrey de Peyrac calou-se. Pensou no amigo, o Capitão Jason, hu-guenote perseguido e submetido à índole latina pelo Mediterrâneo, e que faria maravilhas no papel que agora D'Urville recusava. Mas Jason morrera, e também o admirável sábio, o médico árabe Abd-al-Mechrat, que poderia ajudá-lo na tarefa. O alegre e perspicaz D'Urville não se furtava por covardia, nem por preguiça, embora uma vida sob o signo da maior liberdade lhe tivesse dado uma certa propensão para o bem-estar.

Sendo o filho mais jovem, porém, e como tal sem ter-se beneficiado de nenhum ensino profissional à parte o de empunhar uma espada e de cavalgar uma montaria, mal sabendo ler, ele conhecia suas próprias lacunas. Um duelo mortal conduzira-o à América, para salvar a cabeça das leis instituídas pelo Cardeal de Richelieu. Nenhuma outra necessidade tê-lo-ia levado até ela, pois não concebia a vida fora das tabernas e das casas de jogo de Paris. Felizmente para ele, era filho da península de Cotentin, aquela antena de caramujo da França que aponta seu olho de gastrópode para espiar a Inglaterra, quase uma ilha na solidão de suas praias selvagens, seus soutos e charcos.

Criado em um velho castelo na ponta de La Hague, D'Urville amava e compreendia o mar, seu amo. Hoje, poderia fazer maravilhas no comando da pequena frota de Gouldsboro, a qual, a cada estação, aumentaria com novas unidades, mas Joffrey de Peyrac compreendia igualmente a necessidade de aliviar seus ombros de um peso que ultrapassava sua capacidade.

- E você, Sr. Vanereick, já que está cansado da aventura espanhola, não o atraem as honras de vice-rei em nossas latitudes?

— Talvez!... Mas quando ganhar uma perna de pau. E prefiro isso a vender rábanos e coco nas estradas de Tortue... Gracejos à parte, meus cofres não estão suficientemente^ cheios. É preciso ser rico para se impor a uma população dividida em metade de aventureiros, metade de huguenotes. A estes últimos, já escandalizei com minha Inês. Viu Inês? ...

— Sim, eu a vi. 

— Não é encantadora?

— Sim, é encantadora.

— Bem compreende que não posso renunciar aessa atraente criatura. Porém mais tarde... a coisa me agradaria bastante... Veja Morgan, o maior pirata e saqueador de nosso tempo, hoje é governador da Jamaica e juro-lhe que não brinca com a ordem, c os próprios príncipes lhe tiram o chapéu... Sinto que sou de sua espécie. Sou menos tolo do que aparento, fique sabendo!

— É por isso que lhe Hz tal proposta com total confiança...

— Estou bastante honrado, caro conde... Mais tarde! Mais tarde. Ainda não fiz minhas loucuras, como* velho adolescente que sou.

CAPITULO XXXVII

A flâmula do Barba de Ouro

A neblina se dissipava.

Joffrey de Peyrac ergueu-se e voltou para a plataforma do cimo.

— Ê Barba de Ouro que está procurando e que espera ver escondido em algum canto? - perguntou D'Urville.

— Talvez.

O que procurava exatamente, o que esperava descobrir no labirinto de água e de árvores a seus pés? Era menos uma dedução lógica, do que um faro de cão de caça, o que o havia conduzido ao alto desse belvedere.

O homem das pérolas... O homem a quem dera as pérolas rosa no caminho do Kennebec. O homem que lhe mentira; seria apenas um cúmplice de Barba de Ouro?... E o navio misterioso? Seria o do pirata? E por que haviam por duas vezes tentado enganá-lo quanto ao destino de Angélica?

Seriam esses "enganos" frutos do acaso?... Não acreditava nisso. E raro que no mar as notícias levadas de boca em boca não sejam transmitidas em sua verdade total. Pois são a solidariedade, a alma, a esperança dos marinheiros, que o exigem... Por que então esses enganos súbitos e repetidos? Que novo perigo emergia por trás disso?...

Num bater de asas, uma última rajada de vento varreu a baía até a linha do horizonte. O céu puro, branco e azul, planava sobre o mar como uma asa, uma concha nacarada e sonora.

O fidalgo teve que lutar passo a passo, inclinado para a frente, como na direção de uma força contrária, para avançar, atingir a extremidade do platô e ali estender-se-para expor-se menos ao vento.

A luneta no olho, ele escrutava, ponto por ponto, os arquipélagos dispersos.

Aqui descobria um navio ancorado, áli uma barca, acolá uma flo-tilha de índios que atravessava o estreito, lá duas chalupas de bacalhoeiros, e mais distantes, contra uma ilha, os próprios bacalhoeiros.

A equipagem estava em terra. Via-se'subir a.fumaça das calafeta-gens, dos assadores ou dos moquéns.

A medida que prosseguia na inspeção, ele sentia as arestas duras do granito contra o peito, como um sofrimento, uma opressão.

Encontraria o que viera procurar sobre o monte árido varrido pelo vento?...

A oeste, começando- a surgirem meio aos rasgos na neblina, contra a luz, espalhava-se a cadeia de montanhas azuis, de um azul tão puro que a baía a seus pés carrega-lhe o nome: baía das Montanhas Azuis.      

Seria lá embaixo, atrás delas, que Angélica talvez estivesse em perigo?...

-        Angélica! Angélica! Minha vida!

Agarrado à pedra árida, chamou-a num ímpeto, como se quisesse transpor as distâncias insondáveis.

Ela era subitamente uma entidade distante e sem rosto, mas calorosa e infinitamente animada, atraente, em seu encanto único.

-        Angélica! Angélica! Minha vida!...

Dir-se-ia que o vento perto dele, com um zunido, sussurrava cruelmente num açoite:

"Ele os separará! Você verá! Você verá!"

A predição de-Pont-Briand, o homem morto por ter desejado Angélica, assobiava-lhe aos ouvidos: "Ele os separará... Você verá!"

Devorado por brusca angústia, ele levou maquinalmente a mão ao peito. Depois, mudando de ideia:

-        Mas que posso temer?... Amanhã, depois de amanhã o mais tardar, ela estará aqui... Angélica não é como outrora, uma jovem frágil e sem experiência. Mais de uma vez provou-me que a vida não a desconcerta. Poderia enfrentar qualquer coisa. Não acaba de mostrá-lo escapando - Deus sabe como! - à estranha emboscada de Brunswick Falis?... Sim, é bem da raça dos guerreiros e paladinos, minha indomável! Dir-se-ia que o perigo a faz mais forte, mais eficiente, mais lúcida... Mais bela ainda... como se alimentasse com ele sua incrível vitalidade!... Angélica! Angélica!... transporemos tudo, não é mesmo, minha querida?... Nós dois... Onde você estiver, sei que me encontrará...

Ele estremeceu. Enquanto devaneava, seu olhar errante fixara em meio à confusão de ilhas um detalhe insólito. Uma flâmula alaranjada na ponta de um mastro, escondida entre as árvores de uma ilha. Permaneceu longo tempo imóvel, como um caçador alerta,- o olho atento colado no instrumento ótico. Depois endireitou-se, pensativo.

Encontrara o que fora procurar no cimo do monte Deserto.

CAPÍTULO XXXVIII

Mensagem velada de Yann Le Couénnec - Inquietante relato do mercenário Curt Ritz

-Monseigneur! Mqpseigneur!

Quando o navio do Conde de Peyrac dobrava a ponta de Shoodic, uma voz chamou-o deum bacalhoeiro francês que vogava a algumas braças sob o vento. 

No abrigo de proa, ele reconheceu Yann Le Couénnec, a quem enviara de Popham em busca de Angélica.

Pouco depois, tendo os dois navios lançado âncora diante do cais de Gouldsboro, o conde, cem passo apressado, ia ao encontro do bretão.

-        Fale! Fale logo!

Yann não mostrava sua habitual expressão jovial, e Joffrey de Peyrac sentiu o coração apertado.

-        Encontrou a condessa? Por que não está com você? Cruzou com

o Le Rochelais?

O pobre Yann_ baixara a cabeça. Não, ele não cruzara com o Le Rochelais. Sim, ele encontrara a condessa após ter atravessado a região do Androscoggin incendiada e saqueada pelos índios, e a encontrara em perigo na baía de Casco.

-        Sei de tudo isso... Cantor avisou-nos. Ele partiu de volta atrás deles.

Infelizmente era demasiado tarde, lamentou Yann. Cantor encontraria o lugar deserto. Barba de Ouro mantinha a Sra. de Peyrac como refém. A fim de atenuar os efeitos da aterradora notícia, apressou-se a acrescentar que não acreditava que a condessa estivesse em perigo. Ela sabia defender-se, e aquele saqueador parecia ter uma equipagem de boa qualidade. E ela tivera o sangue-frio de fazê-lo evadir-se a tempo, a fim de que pudesse informar o que acontecera com ela. Ele narrou as circunstâncias em que se efetuara sua evasão.

-        Corri, e felizmente não me perseguiram; caminhei um dia inteiro, acompanhando a costa. Ao anoitecer, aproximando-me de uma enseada, tive a sorte de encontrar este bacalhoeiro francês ancorado.

A equipagem descera em terra para se abastecer de água doce.

Aceitaram-me a bordo e fizeram o favor de desviar-se de seu caminho para trazer-me mais rapidamente até aqui.

Joffrey de Peyrac estava lívido. Cerrou os punhos.

-        Barba de Ouro! Sempre esse bandido... Persegui-lo-ei até a morte! Já capturou o chefe de meus mercenários o mês passado, e agora minha mulher... Que descaramento!

Pensou, inquieto, em Le Gall e Cantor, que deviam ter encontrado o local combinado deserto ou talvez pior: ainda ocupado pelos perigosos bandoleiros dos mares. Ao descobrir que a mãe estava em suas mãos, não se sentiria Cantor tentado a lançar-se numa ação de guerra prematura? Não! O jovem era prudente! Aprendera, no Mediterrâneo, as astúcias da vida de corsário. Contentar-se-iar sem dúvida, em vigiar estreitamente o navio de Barba de Ouro, enquanto tentaria mandar a notícia ao pai.

Infelizmente, o Gouldsboro não estaria em condições de sustentar uma caçada e um combate antes de dois dias. Se trabalhassem a noite inteira, talvez pudessem fazer-se ao mar na noite seguinte com o navio de três mastros acrescido de dois canhões e o navio de Vanereick. Esperava-se que o pirata se deixasse intimidar por esse desdobramento das forças e que fosse possível parlamentar.

Joffrey de Peyrac deu meia-volta e foi até o bretão.

-        Que há ainda, que você não ousa dizer-me?... Que está escondendo?

Seu olhar ardente estava grudado no do assustado Yann, que com a cabeça fazia veementes sinais de negação.

-        Não... senhor, juro-lhe... Juro sobre as imagens da Virgem e de Santa Ana... Contei tudo... Por quê?... Que imagina que eu esteja escondendo?...

— Aconteceu-lhe algo?... Está ferida, não é?... Doente... Fale...

— Não, senhor, não lhe ocultaria tais desgraças... Acontece que a Sra. de Peyrac está com perfeita, saúde... Apoja todos os outros... Se permaneceu lá, foi precisamente devido aostloentes e aos feridos... Chegou mesmo a costurar o ventre, de um daqueles macacos, justamente o que a vendeu...

— Sim, também sei disso...

O olho perspicaz de Peyrac escrutava o semblante honesto do marujo que o inverno anterior lhe dera como companheiro e amigo. O iroquês não o fizera tremer, nem a aproximação da fome. Ora, hoje Yann tremia. Peyrac passou o braço nos ombros do rapaz.

-        Que tem você?

Yann pensou que iria irromper em soluços, como uma criança. Baixou a cabeça.

— Caminhei muito - murmurou »*-, e não foi fácil escapar aos selvagens em guerra.

— E verdade... vá descansar_Há uma espécie de albergue sob o forte, de propriedade da Sra. Carrère e das filhas. Ali se come bem e pode-se beber um vinho de Bordeaux que chegou hoje da Europa. Repare as forças e fique pronto para navegar comigo a partir de amanhã, se o tempo estiver próprio.

O Conde de Peyrac e Rolando D'Urville reuniram em uma das salas do forte, que desempenhava o papel de sala do Conselho, Ma-nigault, Berne, o Pastor Beaucaire e os principais huguenotes do lugar; pediram que Vanereick e seu imediato estivessem presentes, bem como Erikson, o capitão do Gouldsboro. O Padre Baure estava igualmente presente.

Dom Juan Alvarez, o comandante da pequena guarda espanhola, mantinha-se atrás" do conde como uma escura figura hierática, velando por ele.

Joffrey de Peyrac pô-los brevemente a par dos últimos acontecimentos. O fato de sua esposa, a Condessa de Peyrac, ter caído nas mãos do inimigo deles obrigava-o a ter extrema prudência. Por terem vivido nas Caraíbas, conheciam os costumes dos nobres aventureiros, e Gilles Vanereick também era testemunha, a Sra. de Peyrac não corria o risco de ser maltratada enquanto tivesse valor como refém. Jamais uma grande dama capturada, fosse ela espanhola, francesa ou portuguesa, tivera queixas de seus carcereiros, enquanto aguardava o generoso resgate que lhe permitiria recobrar a liberdade. Contava-se até que algumas delas, quando o flibusteiro possuía uma cara simpática, deixavam de ter tanta pressa em ver o fim do cativeiro. Mas sabia-se também que,-quando perseguidos, acuados na batalha ou no naufrágio, frustrados na esperança de resgate, alguns daqueles brutos, prontos para tudo, não hesitavam em executar as ameaças feitas aos reféns.

Precisava-se prever igualmente que, em caso de ataque a Gouldsboro, o posto não disporia senão de defesa por terra. Antes de se separarem, procederam à repartição da munição.

Nesse meio tempo, a sentinela espanhola passou o rosto assustado, sob um capacete de aço negro, pela porta e gritou:

— Excelência, alguém procura pelo senhor.

— Quem é?

— Um hombre.

— Que entre!

Um homem corpulento e bastante barbudo, vestido apenas com uma calça de marinheiro esfarrapada e encharcada, apareceu na soleira.

-        Curt Ritz! - exclamou Peyrac.

Acabava de reconhecer no recém-chegado "o outro" refém de Barba de Ouro, o mercenário suíço que ele contratara como recrutador, numa viagem a Maryland. Os habitantes de Gouldsboro reconheceram-no igualmente, pois ele ali desembarcara em maio, com os soldados que recrutara para o Conde de Peyrac. Preparava-se para partir para o interior, quando, numa noite, deixara-se surpreender na margem pelos homens de Barba de Ouro, emboscados nas ilhas, e que haviam feito o cerco a Gouldsboro. Isso ocorrera pouco antes do combate decisivo, que havia obrigado o pirata a fugir. Temia-se que Curt Ritz houvesse pagado pela derrota. Mas ele lá estava, aparentemente com boa saúde, embora parecesse fatigado por uma boa corrida.

Peyrac pegou-o pelos ombros, cordialmente.

— Gruss Gott! Wie geht es Ihnen, lieber Herr! Bom Deus. Como vai, caro senhor? Estava preocupado com seu destino.

— Consegui enfim fugir daquele maldito navio, daquele maldito pirata, senhor.

— Quando foi isso?   

— Há não mais que três dias.

— Três dias - repetiu Peyrac, pensativo. -, O navio de Barba de Ouro não estava então ao norte da baía de Casco, na direção da ponta Maquoit?   

— O senhor é adivinho!... Foi'esse com efeito o nome que ouvi pronunciarem os homens da equipagem... Havíamos lançado âncora ao alvorecer... Havia muitas idas a terra, uma certa desordem... Ao anoitecer, notei que a cabana em que me mantinham estava mal fechada. O marujo que me levou a refeição esqueceu de trancar a porta. Esperei a noite e "esgueirei-me para fora. Estava no tombadilho. Ora, tudo parecia deserto.. Vi fogueiras na praia. Dir-se-ia que a equipagem festejava em terra. Era uma noite sem lua. Trepei no tombadilho e pulei para o.piso da popa. Em seguida, agarrando-me às molduras do barco, desci até o balcão do quarto principal. Dali mergulhei e cheguei a uma ilha próxima. Esperei para ter certeza de que não haviam dado o. alarma." Então localizei uma outra ilha mais distante e tentei minha sorte, mesmo sem ser muito bom nadador. Cheguei é ela com a aurora. Do lado oeste havia refugiados ingleses. Não me misturei com eles. Esperei a leste, ao lado das falésias. Durante o dia, vi passaremcanoas índias, dos tarratines, sébagots, et-chemins, que subiam rumo ao norte com escalpos ao cinto. Acenei-lhes e mostrei a cruz que trago ao pescoço. Somos católicos, nós do alto vale de Rhône. Pegaram-me e deixaram-me em alguma parte na embocadura do Penobscot. Caminhei dia e noite e, ao invés de contornar os fiordes, atravessei muitas braças de mar a nado. Quase fui arrastado pelas correntes e pela maré alta... Mas enfim cá estou.

— Gott sei Dank! Graças a Deus! --- exclamou Peyrae. - Sr. Berne, não teríamos aqui um frasco de bom vinho para reconfortar o maior nadador dos Walstaeten?

— Claro que sim!

De um consolo, Mestre Berne tirou um frasco de vinho de Bordeaux e um copo de estanho.   

O homem bebeu de um trago. O sal do mar ,deixara-o com sede, mas estava em jejum e o vinho forte subiu-lhe à cabeça e lhe trouxe o sangue ao rosto.

— Ufa! Es schmeckt prima. Einfeiner Wein! Tem um sabor esplêndido. É um vinho de primeira! Fui tão sacudido pelas ondas, que estou tonto.

— Você teve sorte - disse alguém. - Estavam ameaçando cair as tempestades de equinócio, mas não se desencadearam.

O suíço serviu-se de um segundo copo e pareceu revigorado.

— Guardaram minha boa alabarda? - perguntou. - Não estava com ela quando passeava nos rochedos e aqueles malditos me assaltaram.

— Continua no cabide de armas - disse-lhe Manigault, apontando pitões no muro com lanças de vários formatos e entre elas uma lança mais longa terminada pela admirável flor de cardo de aço da arma suíça, cuja ferragem elegante escondeu durante muito tempo o terrível poder mortífero que revelava nas mãos de um suíço: a curva em forma de anzol do cutelo para prender e içar, a lâmina afiada para cortar as cabeças, a ponta aguçada para trespassar ventres e corações.

Curt Ritz apanhou a arma com um suspiro.

— Ah! Ei-la, enfim! Que semanas mortais passei comendo os punhos naquele barco! E meus homens, que aconteceu com eles?

— Estão no forte de Wapassu.

Todos o olhavam, pensando que ele fugira sem dúvida no dia em que Angélica de Peyrac fora capturada por Barba de Ouro. Ele ficara sabendo? Vira a esposa do conde? Indefinível pressentimento continha-os - e ao próprio Peyrac - de interrogá-lo sobre o assunto.

— Maltrataram-no? - perguntou Peyrac, hesitante.

— De modo algum! Barba de Ouro não é malvado, e é um bom cristão. Todas as manhãs e noites seus homens rezavam na ponte. Mas ele quer sua morte, senhor conde. Pois disse que os territórios do Maine onde o senhor se instalou lhe pertencem e que veio com os seus para ali fundar uma colónia... Haviam-lhe prometido que as mulheres de Gouldsboro ficariam para ele e seus homens, e que eram moças deportadas.

— Que insolência! - sobressaltou-se Manigault.

— Ele ficou surpreso com a defesa que encontrou. E, se me sequestrou, foi para ter uma possibilidade de negociação, pois é teimoso como uma mula. Após ter sido atacado por projéteis inflamados, pelos senhores aqui presentes, foi calafetar seu barco numa ilha da baía de Casco, mas voltará... O suíço bebeu novamente. Começava a flutuar em plena euforia.

-        Oh! poderia dizer-lhe muitas coisas s.obre Barba de Ouro. Falei com os marinheiros e com o próprio Barba de*Ouro, pois é rude, mas honesto, sim, honesto... Amedronta aos que o vêem de longe, mas suas intenções são retas... E ademais, há uma mulher lá dentro... Sua amante... Foi ela que se encontrou com ele na ponta Maquoit. Deve ter tramado tudo, pois tem um ar bastante atrevido... Uma dessas mulheres que alinham números num pergaminho; 'enchem seus cofres sem erro e enviam um pobre coitado à guerra para enchê-los mais ainda... A serviço delas... E têm com que pagar, as desavergonhadas. Belas como Vénus, inteligentes. Aquele que não tem vontade de morrer por-elas, é porque realmente não ama a vida nem o amor... A amante de Barba de- Ouro é uma mulher dessa têmpera...

E bela, além de tudo... O navio inteiro estava em efervescência por vê-la subir a bordo. E uma francesa. Aguardava-o na ponta Maquoit. Tem olhos como água de rocha, e cabelos como um raio de sol... Foi graças a ela que pude fugir naquela noite. Barba de Ouro distribuíra três pintas de rum por marujo, para festejar o acontecimento... Quanto a ele...

Curt Ritz pendeu a cabeça para trás e riu em silêncio. Depois emborcou mais um copo.

-        Ele... eu não teria acreditado... Mas está louco por ela... Através das pranchas de minha cabana, vi-o passar no castelo de popa. Ele segurava-lhe o braço e a olhava... olhava...

Os vapores do vinho subiam-lhe à cabeça, ele perorava, sem surpreender-se com o silêncio, sem se perturbar por vê-los imóveis como círios, num halo turvo, com às faces sem sorrisos, rígidas, geladas.

— O nome dessa mulher? - ouviu-se, breve, a voz do conde. Sua voz parecia saída de um universo acolchoado, surda, distante. Todos os homens presentes sentiam-se em pânico e com vontade de fugir. Curt Ritz sacudiu a cabeça. 

— Wéiss nichú Não sei. Tudo o que sei é que é francesa... e bela, isso sim! E que Barba de Ouro morre de paixão por ela... Eu os vi... de noite... no quarto principal, pela janela do castelo de popa... A janela estava aberta... Desci até lá e arrisquei uma olhada... Havia uma vela na mesa, e os vi... A mulher estava nua nos braços de Barba de Ouro... Um corpo de deusa... e os cabelos sobre os ombros... Ao sol, pensei que fossem louros, porém ali, vi que eram como um rasto de luar... Uma capa de ouro pálido... Cabelos de fada... Há algo naquela mulher que não existe em nenhuma outra, algo de... maravilhoso... Compreendo que o pirata esteja louco... Eu não ousava mergulhar devido à janela aberta... Mesmo as pessoas entretidas em se amar podem ter o ouvido aguçado... E Barba de Ouro está sempre à espreita... Tive que esperar um pouco...

Ele falava, falava. Estava ébrio agora e falava sem se surpreender com o silêncio esmagador, sem perceber o que havia de inquietante em que o deixassem falar assim, descrever, demorar-se na cena de amor.

Ele repetiu, balançando a cabeça:

-        De onde veio essa mulher? Eu nada sei. Foi lá que ela se encontrou com ele... Seu nome... Esperem, creio estar lembrado. Ouvi... Enquanto ele a amava, chamava-a Angélica! Angélica!" Um nome que combina com ela...

Fez-se um terrível silêncio!

E subitamente a alabarda escapou dos dedos de Curt Ritz. O homem vacilou, recuou, apoiou-se na parede, desembriagado, a face de repente pálida, os olhos esbugalhados, fitos em Peyrac.

-        Não... não me mate, senhor!

No entanto, ninguém se mexera, nem mesmo o Conde de Peyrac, sempre teso e imóvel. Mas fora de seu olhar sombrio que o suíço sentira brotar o clarão da morte. Como um lutador dos campos de batalha, soubera que a morte estava sobre ele. Agora sóbrio, sem compreender, seu olhar grudava-se no de Peyrac, certo de um perigo mortal.

Ao mesmo tempo, com uma presciência aterrada, ele se dava conta de que todas as personagens dessa cena para ele incompreensível, ali presentes como espectros, num silêncio tumular, teriam preferido ser surdas, mudas, cegas, e estar sete palmos abaixo da terra, a ter que suportar esse instante, naquele compartimento fechado.

Ele engoliu a saliva com esforço.

-        Que acontece, senhores? - gemeu. - Que disse eu?

—      Nada!

O "nada" caiu como um cutelo dos lábios de Peyrac. Mais uma vez o timbre da voz do amo parecia vir de um outro mundo.

-        Nada de que deva censurar-se, Ritz...Vá!.. Vá, agora. Precisa de repouso... Em alguns dias devereis juntar-se a seus homens nos Apalaches, no forte de Wapassu.

Com um andar oscilante, o homem ganhou a porta. Depois que saiu, cada qual apressou-se a se retirar em silêncio, não sem antes fazer profunda saudação ao senhor de Gouldsboro, como o teriam feito diante do rei.

Fora, cada qual recolocou o chapéu na cabeça e foi, sem uma palavra, para casa. Salvo Gilles Vanereick, que puxou D'Urville à parte e lhe disse: "Explique-me..

CAPITULO XXXIX

Le Couénnec confessa a "traição" de Angélica ao Conde de Peyrac

Então Joffrey de Peyrac voltou-se para Juan Fernandez.

- Traga-me Yann Le Couénnec.

Quando Yann penetrou na sala do Conselho, o conde achava-se sozinho. Inclinado sobre um mapa desdobrado, parecia examiná-lo com atenção.

A cabeleira espessa, marcada nas fontes por um matiz prateado, semi-escondia seu rosto, como que absorto no exame do mapa, e as pálpebras abaixadas velavam-lhe o olhar.

Mas quando se ergueu e pousou os olhos em Yann, este estremeceu, invadido por um sentimento de ansiedade que se enrolou nele como uma fria serpente.

"Que tem ele? Que tem meu amo?", pensou. "Estará doente? Ferido? Tê-lo-iam golpeado?... Dir-se-ia... golpeado em seu íntimo... mortalmente golpeado..."

Joffrey de Peyrac contornou a mesa e aproximou-se do bretão. Estava tão calmo e caminhava tão empertigado que o outro duvidou.

"Não, não tem nada... Que estava eu imaginando?..."

O olhar de Joffrey de Peyrac caiu sobre ele, observando-o com penetrante atenção. De porte mediano, Yann batia em seu ombro. Bem proporcionado, dotado de uma expressão viva e ousada, sempre parecia mais jovem que seus trinta anos. No entanto, sua vida movimentada fizera dele um velho andarilho, pronto para tudo. Mas, para Joffrey, aquele rosto de celta seria sempre sem segredo. Podia ler nele como num livro aberto.

-        E agora, Yann - murmurou -, diga-me o que não ousa dizer-me.   

O bretão empalideceu e deu um passo de fedo. Em sua cabeça, posse a esboçar inúteis negativas. Aterrado, sabia que não escaparia. Já vira Joffrey de Peyrac trabalhar 'num objetivo, empenhando-se em descobrir uma verdade revelada por sua diabólica adivinhação: como um caçador, não abandonava a pista acuando o adversário.

— Que foi? Que tem você que não pode dizer-me? Crê que não vejo seu olhar perturbado? Diga-me, o que aconteceu? Foi em Ma-quoit, onde deixou a condessa?... O que viu, o que surpreendeu que possa tê-lo transtornado a esse ponto?

— Mas... Ejí não... - Yann esboçou um gesto de impotência. - Eu lhe disse tudo, senhor.

— Foi lá, hão é verdade? Responda, foi lá?

— Sim -'disse o .pobre, rapaz, de cabeça baixa. E pendeu o rosto entre as mãos!

— O que viu? Quando foi? Antes de fugir?

— Não F- disse ele, abatido.

-        Então foi depois?... Você fugiu, dísse-me... correu, e depois se voltou e viu algo... Foi isso, não é verdade, algo estranho, inconcebível?

Ah! Como podia ele ser adivinho a esse ponto? Era diabólico. Yann desfaleceu.

-        Que viu você? - repetiu a voz implacável. - Que viu quando se voltou para a praia onde a havia deixado?... Que viu?

E subitamente Yann sentiu abater-se em sua nuca, como uma garra, a mão terrível de Joffrey, apertando-a a ponto de parti-la.

-        Fale - disse em voz baixa e ameaçadora.

Depois, percebendo que o rapaz sufocava, arroxeado, o conde relaxou a mão, dominando-se. Pungente suavidade vibrou em sua voz persuasiva.

-        Fale, meu filho... peço-lhe!

Então Yann desabou. Caiu de joelhos,-agarrando-se ao colete de Joffrey de Peyrac com gestos de um cego desnorteado.

— Perdoe-me, senhor. Perdoe-me!

— Fale...

-        Eu corria... corria... Fugi no momento em que Barba de Ouro aportava na margem... aproveitando-me de que todos os olhares estavam voltados para ele... A condessa recomendara-me que aproveitasse aquele momento... Eu corria, corria... e para ver se me perseguiam, voltei-me... na direção da praia...

Ele ergueu para Peyrac um olhar torturado.

-        Ela estava nos braços dele, senhor! - gritou, agarrando-se ao conde como se ele próprio estivesse sendo agredido, recebendo os piores golpes. - Ela estava nos braços de Barba de Ouro... e eles se beijavam... Ah! perdoe-me, senhor, mate-me... eles se beijavam como amantes... como amantes que se reencontram...

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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