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SEXUALIDADE NO CONFESSIONÁRIO / Stephen Halicser
SEXUALIDADE NO CONFESSIONÁRIO / Stephen Halicser

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Não obstante as reformas introduzidas durante o reinado de Fernando e Isabel que tornaram a Espanha bastante imune à ameaça luterana, a Igreja Católica espanhola mantinha-se uma instituição profundamente agitada nas vésperas da Reforma. Em nenhum outro lado foram estes problemas tão notórios quanto nas atitudes do espanhol da época em relação ao sacramento da penitência. A partir do Quarto Concílio de Latrão (1215), os católicos eram obrigados a confessar anualmente os seus pecados a um sacerdote legalmente qualificado, mas as provas sugerem que muito poucos o faziam.

 

 

 

 

Existia uma série de razões para esta abstenção em massa do sacramento da penitência. Uma explicação óbvia era o desconhecimento do preceito que obrigava à confissão anual. Quando a Inquisição espanhola fez convergir a sua atenção para as ofensas religiosas cometidas pelas massas populares, como a blasfémia, a bigamia ou a superstição, os funcionários ficaram alarmados corn o que descobriram. Em largas partes de Espanha, em particular nas regiões mais retrógradas e inacessíveis, os camponeses e os artesãos desconheciam sobremaneira os dogmas básicos da fé católica. Além disso, o absentismo generalizado entre os padres e bispos deixava os leigos sem liderança ou instrução básica.

À parte a ignorância, a razão mais importante apontada para a abstenção do sacramento, revelada nos julgamentos inquisitoriais dos princípios do século xvi, era a falta de confiança no clero, em particular no que se refere às questões de natureza sexual. Os membros das comunidades de aldeia herméticas, que constituíam a maior parte da Espanha, tinham plena consciência de que muitos, se não a maioria, dos sacerdotes viviam em pecado, violando regularmente a regra do celibato. A literatura medieval espanhola, bem como as cantigas populares e os estribilhos estão cheios de referências à actividade sexual dos sacerdotes, frades e freiras. A luz das sobejamente conhecidas deficiências morais da casta clerical, era difícil, se não mesmo impossível, ao comum dos penitentes sentir-se à vontade ao confessar pecados a um sacerdote que era tão pecador. O problema revestia particular acuidade no caso dos pecados de natureza sexual, que começavam a ser referidos nos manuais dos confessores medievais.

Dado os delitos do clero terem chegado ao conhecimento dos delegados presentes ao Concílio de Trento (1545-1563), não surpreenderá que o Concílio legislasse extensivamente sobre areforma. Mas outros concílios, designadamente o Quinto Concílio de Latrão (1512-1517), aprovou legislação idêntica sem qualquer utilidade. A novidade do período póstridentino foi o aparelho repressivo que a hierarquia da Igreja se encontrava agora na disposição de montar para aplicar a legislação aprovada em Trento. Este aparelho repressivo, que concedia poderes muito maiores aos tribunais episcopais, previa visitas frequentes dos bispos ou seus representantes ao clero da sua diocese, a censura sistemática do pensamento e da expressão através dos catálogos de livros proibidos e envolvia também os grandes tribunais inquisitoriais da Europa mediterrânica.

O presente estudo debruça-se sobre o aliciamento sexual no confessionário, uma das várias esferas de actividade em que a Inquisição espanhola procurou aplicar ao clero a nova lei moral pós-tridentina. Começa por examinar a transformação da prática popular da confissão e o surgimento de uma nova função mais lata para o confessor como um «médico das almas», um autêntico conselheiro espiritual que ofereceria consolo às consciências em sofrimento. corn o aumento da popularidade da confissão entre o laicado, especialmente entre as mulheres, o problema do convite sexual ganhou acuidade e a hierarquia da Igreja pediu à Inquisição que assumisse a responsabilidade nesta área. Nos capítulos que se seguem, é feita uma análise da maneira como o Santo Ofício desempenhou as suas incumbências, os processos especiais dejulgamento usados corn os solicitantes e os castigos a que eram obrigados a submeter-se. É conhecido o impacte devastador que o castigo podia ter nas vidas dos condenados, bem como a dificuldade em conseguir provas suficientes para iniciar o processo de acusação e o longo intervalo entre a acusação e o julgamento. Os últimos capítulos são dedicados à discussão das atitudes e do comportamento sexual das vítimas e confessores solicitantes, e o modo como a proposta e a confissão se tornaram sinónimos nas mentes dos anticlericais do século xix.

As fontes desta investigação da confissão e do aliciamento no início da Espanha moderna são 223 casos completos de aliciamento dos tribunais de Toledo (79), Valência (35), Córdova (7), Cuenca (7), Madrid (2), Maiorca (37) e Canárias (56), abrangendo o período compreendido entre 1530 e 1819. Conquanto proporcionem um material rico e valioso sobre os confessores solicitantes e suas vítimas, estas fontes enfermam de graves limitações geográficas. Infelizmente, grande parte dos ficheiros de casos reais perdeu-se, e os historiadores têm estado dependentes de súmulas de casos bem menos interessantes e pormenorizados, ou relaciones de causas, para reconstruir a actividade geral do Santo Ofício. Por conseguinte, o presente estudo teve de se concentrar nos tribunais onde existiam registos completos do caso, muito embora esses processos representem apenas uma parcela dos casos de aliciamento julgados pela Inquisição espanhola. Além disso, o arquivo do tribunal de Cuenca, o mais completo e melhor preservado, estava encerrado na altura em que o autor procedia às pesquisas para o projecto. A necessidade de se concentrar apenas nos registos de casos existentes dificultou imenso o tratamento da questão da incidência geográfica geral do aliciamento, conquanto o grande número de casos das Canárias e Maiorca possa ser uma consequência da chegada tardia do confessionário fechado às ilhas. O número de casos de Toledo representa não só o melhor estado de conservação das fontes, mas também o maior grau de actividade de um tribunal prestigiado localizado na maior arquidiocese de Espanha, em si um centro de defesa da Contra-Reforma. Os inquisidores de Toledo não poderiam mostrar-se indiferentes a uma ofensa como o aliciamento que ameaçava minar uma grande parte do programa de catequização, sacramentalismo e cristianização da Contra-Reforma.

Este estudo assenta também, em grande medida, nos manuais dos confessores e outras obras escritas por teólogos para confessores e penitentes. Estas fontes pouco usadas permitem um conhecimento vital da função social da confissão, dos moldes de actuação e moralidade exigidos aos confessores e dos inúmeros problemas que se deparavam aos penitentes ao fazerem as suas confissões.

Exceptuando um capítulo em History of Sacerdotal Celibacy in the Christian Church, de Henry Charles Lea, e outro capítulo no quarto volume da sua monumental A History of the Spanish Inquisition, os historiadores não deram praticamente a menor atenção ao papel do aliciamento no confessionário ou ao papel da Inquisição espanhola na tentativa de o reprimir. Estamos um pouco melhor servidos quando se trata da história da confissão, no entanto, subsistem ainda graves lacunas na nossa compreensão da mudança para uma confissão de contributo pessoal e em particular na análise de como a confissão se processava realmente. A obra recente de Thomas Tentler, Sin and Confession on the Eve ofthe Reformation, é um estudo precioso, mas fica-se pelo início do século xvi, excluindo os manuais dos confessores de grande parte da Europa ocidental. Durante os finais dos séculosxvi e xvii, especialmente dado a confissão começar a ser encarada como um meio de instrução, os manuais dos confessores proliferaram. A imprensa católica criou toda uma literatura auxiliar destinada a instruir e informar os confessores. Estaliteratura, concebidaparao «mercado dos confessores» do sacerdote melhor educado e mais rico da Contra-Reforma, continua a aguardar um estudo histórico sério.

A obra de Jean Delumeau, em particular Lê péché et Ia peur (1983), é um manancial de informações sobre o conteúdo dos sermões, dos manuais dos confessores e de outras publicações para sacerdotes destinadas a transmitir a sua mensagem aos leigos. Infelizmente, o período que ele escolheu analisar estende-se dos séculos XIH ao xvin e, por conseguinte, ofusca as mudanças concretas operadas na doutrina e na prática confessionais que tiveram lugar após o Concílio de Trento. Além disso, a sua afirmação de que no princípio do século xvi a Igreja impusera a sua doutrina sobre o pecado de uma forma que se manteve inalterada durante o século xix, parece contrariar directamente a sua obra posterior, Uaveuet lepardon, onde discute exaustivamente o atrito, o probabilismo, o laxismo e o rigorismo.

O problema fundamental de todas estas obras é que abordam a confissão na perspectiva dos teólogos, que escreveram para instruir os confessores sobre o modo de desempenhar as suas responsabilidades. Dada a natureza das suas fontes, as obras anteriormente citadas pouco nos dizem sobre a prática confessional e menos ainda sobre a relação entre os confessores e os seus penitentes individualmente. É possível entender uma parte das tensões e dificuldades desta relação através das memórias contemporâneas de pessoas como Teresa de Jesus, mas as experiências de uma pessoa extraordinária como Santa Teresa não são típicas da relação normal confessor-penitente. A presente obra não pode preencher a lacuna porque se debruça principalmente sobre os aspectos sexuais dessa relação. No entanto, pode proporcionar conhecimentos vitais sobre o modo como a execução do celibato clerical e a crescente insistência na função disciplinar e consolatória do sacramento poderiam originar um nível de tensão sexual, ansiedade e culpa sem precedentes, tanto para o confessor como para a penitente. O choque entre a concepção particular da confissão e a nova ênfase dada ao celibato lançam uma longa sombra sobre os esforços da Igreja no sentido de reabilitar o sacramento da penitência. No final do antigo regime, era quase total, em muitas regiões, a obediência aos preceitos da Igreja em relação à confissão, mas estão a surgir novas questões ao nível do impacte das relações confessor-penitente a respeito das mulheres, da família e da própria sociedade.

 

A CONFISSÃO AURICULAR E A CRISE NA IGREJA

Fundamental ao desenvolvimento da confissão auricular e à inclusão da penitência como um dos sete sacramentos da Igreja Católica Romana é o conceito cristão de humanidade pecadora. O pecado, no sentido da prática voluntária de actos maliciosos ofensivos para a ordem divina, não existia para os antigos. Para Platão, um erro moral era um mero erro por parte do indivíduo que julgava prosseguir o bem. Semelhante erro bem-intencionado nunca poderia ofender a Deus. Em contrapartida, o Cristianismo pegou na noção de pecado original do Antigo Testamento e transformou-a numa contravenção deliberada da vontade de Deus, numa oposição que se manifestava não só por actos externos mas por pensamentos, crenças e intenções.

 

É corn S. Paulo que a noção cristã de pecado adquire o seu carácter sistemático. Depois da queda de Adão, o homem entregou-se à força do pecado, capaz de imaginar e desejar o bem, mas incapaz de o alcançar. Em diversas das suas epístolas, S. Paulo fornece as primeiras listas de pecados, incluindo a apostasia, a idolatria, a luxúria e a ganância. Os pensadores cristãos dos séculos n e m continuaram a meditar no pecado e lembraram aos cristãos que, enquanto vivessem num corpo mortal, eram atreitos a cair no pecado, mesmo depois do baptismo.

 

Uma vez que a pena pelos pecados cometidos era o afastamento parcial ou total da comunidade cristã, o Cristianismo tinha de oferecer uma solução em que o indivíduo se pudesse corrigir. Na Igreja primitiva, tratava-se de um processo extremamente difícil e doloroso. Os penitentes confessavam os seus pecados a Deus, frequentes vezes em público, depois submetiam-se a uma penitência prolongada e severa a fim de expiarem o pecado antes de serem readmitidos na comunidade dos fiéis. Esta readmissão, porém, não implicava a recuperação da graça divina, pois só o próprio Deus podia decidir conceder o perdão.

 

Durante os séculos xii e xin, o duro regime penitenciai de um período mais recuado foi substituído por penas mais leves, frequentemente determinadas pelo sacerdote que escutava a confissão. Em vez da penitência, a contrição - a pena sentida pelo pecador que se apercebe de ter ofendido a Deus - era considerada a parte mais importante da penitência. Mas uma das principais virtudes dos antigos e pesados exercícios de penitência era a consolação que ofereciam ao pecador. Era fácil acreditar que se fora perdoado depois de se submeter aos rigores estabelecidos nos rituais das penitências, mas impossível saber se a contrição de uma pessoa era suficientemente perfeita aos olhos de Deus. Além disso, se a contrição era a forma de reconquistar a graça divina, qual a função desempenhada pelo sacerdote?

 

Este duplo problema resolvia-se acentuando a necessidade da confissão e colocando a absolvição do sacerdote no centro do sacramento, independentemente do grau de contrição sentida pelo penitente. No Quarto Concílio de Latrão de 1215, a confissão foi tornada obrigatória para todos os cristãos como dever imposto por Deus que cada indivíduo tinha de realizar na Quaresma diante do pároco. Subsequentemente, teólogos como S. Tomás de Aquino e Duns Scotus realçaram a centralidade do papel do sacerdote. Para S. Tomás, a contrição era o processo normal de alcançar o perdão pelo pecado, mas era ineficaz sem a absolvição do padre, uma vez que a graça era transmitida pela realização do sacramento e não pela aptidão ou estado espiritual do receptor. Para Duns Scotus, a função do padre era ainda mais clara: a essência do sacramento não era acontrição ou a satisfação, nem tão-pouco a confissão, mas simplesmente a expressão da fórmula do perdão por um padre devidamente autorizado. O sacerdotalismo não podia fazer mais; os penitentes, independentemente do seu estado de contrição, ficavam na dependência absoluta do padre para o perdão e só podiam obter a absolvição do padre submetendo-se à confissão.

 

O poder de o sacerdote conceder ou se opor à absolvição, aplicar ou controlar a penitência e a sua educação superior e posição social tornaram a relação confessional inerentemente desigual. corn efeito, o padre servia, directa ou indirectamente, para inculcar, manter e alargar o sistema de valores que sustentava a autoridade política e religiosa constituída e a distribuição da riqueza e do poder. O processo pelo qual a consciência do indivíduo estava ligada à manutenção dos valores sociais predominantes através da confissão foi francamente facilitado pelo aparecimento dos manuais dos confessores a partir de finais do século xiii. Estes manuais, que frequentes vezes estavam escritos em vernáculo, como o Specchio delia confessione e o Renovamini de António de Florença (m. 1459), tinham um objectivo duplo: instruir o sacerdote na maneira de administrar e o penitente na de receber o sacramento. No cerne deste processo estava o interrogatório, que se destinava a proporcionar uma forma altamente estruturada de examinar a consciência do penitente e descobrir as respostas adequadas. De acordo corn os manuais, o penitente seria interrogado a respeito dos sete pecados mortais, dos Dez Mandamentos e dos cinco sentidos. Certos manuais alargavam o questionário de modo a incluir questões como as quatro virtudes cardeais ou as oito beatitudes. Nos finais da Idade Média, os Dez Mandamentos tinham manifestamente suplantado os sete pecados mortais como princípio organizador estabelecido na maior parte dos manuais.

 

O torn conservador e autoritário do interrogatório típico pode ser visto a partir de uma análise do altamente influente Manual de confessores y penitentes de Martin de Azpilcueta Navarro, que foi objecto de oitenta e duas edições em espanhol, latim, português, francês e italiano entre

1553 e 1620. O forte apoio dado por Azpilcueta Navarro ao princípio da hierarquia e subordinação começou corn a família, em que a esposa era nitidamente considerada inferior ao marido e cometeria um pecado mortal se lhe desobedecesse em qualquer assunto respeitante ao governo da casa. Castigá-la-ia fisicamente corn moderação, mas ela não o podia corrigir ou recalcitrar, dado competir ao marido corrigi-la.

 

De acordo corn os ditames do antimaquiavelismo abraçados pela maioria dos teóricos políticos espanhóis, os governantes tinham de acatar a lei, evitar gastos e impostos excessivos e respeitar as liberdades dos seus súbditos. Os juizes e outros funcionários deveriam exercer os seus cargos corn o devido respeito pelos processos legais e certificar-se de que se arranjavam advogados mesmo para aqueles que não tinham condições de pagar. Os funcionários cometeriam um pecado mortal se aceitassem um cargo sem estarem devidamente qualificados ou recebessem dinheiro em troca de decisões favoráveis.

 

Os condicionalismos morais ao comportamento daqueles que detinham uma posição social inferior eram expressos em termos ainda mais inflexíveis. Os subordinados tinham a obrigação absoluta de obedecer aos superiores, definidos como alguém que ia desde os reis e outros representantes da autoridade secular aos pais, mesmo que os seus superiores fossem maus. Qualquer ódio ou ressentimento deles era um pecado mortal visto ser definido como a forma mais hedionda de raiva injustificada. Em determinadas circunstâncias extraordinárias, o «superior» social tinha até legitimidade para obrigar um subordinado a cometer um pecado mortal.

 

Obviamente, o penitente teria de aceitar todos os dogmas do Catolicismo Romano, pois «aqueles que acreditam conscientemente no que é contrário à fé católica são hereges e excomungados». O penitente deveria denunciar casos de heresia às autoridades competentes e rejeitar como pecado mortal a crença de que os infiéis podem ser salvos se viverem de acordo corn a moral. A reverência que o indivíduo devia à Igreja ultrapassava a aceitação das suas crenças religiosas e era extensiva à hierarquia da igreja e membros das ordens religiosas. Azpilcueta Navarro esclareceu inclusivamente que era um pecado mortal os herdeiros terem desnecessariamente em atraso o pagamento de obras de caridade estipuladas por parentes falecidos no seu testamento. Aqueles que recusavam o pagamento do dízimo eclesiástico não só incorriam em pecado mortal como também não poderiam receber a absolvição a menos que a dívida fosse perdoada. Não se tratava de uma ameaça vã, e a confirmá-lo está a experiência de Blas Hernández, um ferreiro da aldeia de Cienposuelos. Ao testemunhar perante o Santo Ofício em Toledo, em

25 de Janeiro de 1531, Hernández referiu que alguns anos antes ouvira o cura em exercício, António de Fareja, declarar do púlpito que quem não tivesse pago o dízimo e tivesse dinheiro para o fazer veria ser-lhe recusada a absolvição.

 

Não obstante, apesar da crescente popularidade dos manuais dos confessores e de uma série de outras obras sobre o pecado e a penitência que surgiram em vernáculo durante o século xv, o católico espanhol normal raramente se confessava sequer, negligenciando até a confissão anual tornada obrigatória pelo Quarto Concílio de Latrão. Os sínodos diocesanos realizados em Leão e Sevilha em 1512 lamentaram o facto de muitos não terem observado o preceito. Os párocos receberam indicações para dividirem cada paróquia em distritos, estipulando para cada uma um dia em que os que lá moravam se confessariam. Seriam fornecidas aos funcionários episcopais listas daqueles que se recusassem a confessar, e tomar-se-iam as devidas providências contra eles, nem que isso implicasse o recurso às autoridades seculares. Não obstante estas e outras medidas tomadas nos sínodos, pouco se fez e o laicado continuou a ignorar a sua obrigação quaresmal. A situação em Cienpozuelos era tão má na década de 1520 que o vigário-geral da Arquidiocese de Toledo enviava um funcionário à aldeia todos os anos para aplicar multas e prender aqueles que se recusassem a cumprir o preceito.

 

À parte o seu desconhecimento, a razão mais óbvia para a nítida falta de participação pública na confissão auricular na Espanha de princípios do século xvi foi o fracasso do programa de reforma eclesiástica de Fernando e Isabel em alterar realmente as vidas dissolutas e corruptas de muitos membros do clero, tanto secular como regular. Em 1528, Alfonso de Valdés, secretário de Carlos V para o latim, denunciou abertamente o clero espanhol pela sua ganância e imoralidade. No ano seguinte, foi a vez de o seu irmão Juan o fazer, naobraDtó/ogo de doctrina cristiana, onde permite que o arcebispo de Granada, o personagem que melhor representa as opiniões do próprio Valdés, ponha em causa a continuação do pagamento do dízimo a um clero tão vergonhosamente incapaz de servir e instruir os fiéis. O arcebispo passa então a criticar a incúria e «ignorância» de muitos confessores, que corn as suas contestações imprudentes ensinam aos seus penitentes mais sobre o pecado do que eles já sabiam antes de se irem confessar.

 

Mas era ao nível da aldeia, e não da corte imperial, que seria travado o conflito pelos corações e pelos espíritos da maior parte dos cristãos espanhóis, e, em finais do século xv, o sistema paroquial espanhol era consideravelmente mais fraco do que há cem anos. Um século de aumento populacional deixara muitas aldeias novas praticamente sem serviços eclesiásticos de qualquer natureza, pelo que em alguns lugares a missa só era celebrada de quinze em quinze dias. O absentismo era frequente e o costume de permitir que um único indivíduo detivesse dois ou mais benefícios em simultâneo implicava que os fiéis fossem por norma atendidos por um funcionário analfabeto e semiesfomeado nas ordens menores, em vez do detentor do benefício. Além disso, não era de todo invulgar o suserano leigo receber o dízimo e outras receitas eclesiásticas sem providenciar sequer alguém para atender às necessidades dos seus vassalos.

 

Para colmatar as enormes inadequações da estrutura paroquial, os bispos de finais do século xv e princípios do xvi admitiram largos números de indivíduos sem qualificação nas fileiras do clero. Em 1519, por exemplo, o Conselho Real descobriu um esquema generalizado de ordenações de pessoas não qualificadas por parte do bispo de Guadix, e em

1529 a imperatriz Isabel escreveu a todos os bispos espanhóis, lembrandolhes que não deveriam ordenar quem fosse analfabeto, não possuísse a idade exigida ou se recusasse a seguir obrigatoriamente uma carreira eclesiástica depois de ter sido tonsurado.

 

As faltas morais do clero paroquiano eram ainda mais notórias do que as suas deficiências educativas. As constantes proibições não tinham conseguido sequer evitar o concubinato. Uma visita ao cabido da catedral de Falência, em 1481, revelou que um terço dos detentores de benefícios viviam abertamente em pecado. Não surpreenderá que um clérigo corn uma educação e uma moral deficientes não só estivesse a alienar os leigos mas a trazer descrédito a sacramentos como a penitência. Em 1530, por exemplo, Alonso de Valdelomar, cura de Almodóvar dei Campo, compareceu perante o tribunal eclesiástico de Alcalá de Henares, acusado de uma variedade de delitos, incluindo tentativa de estupro, blasfémia, convivência corn prostitutas, jogos de azar e porte de armas proibidas. Valdelomar aproveitava-se também da sua posição de confessor para extorquir dinheiro aos seus penitentes. Era hábito exigir uma taxa antes de conceder a absolvição e recusava-se a fazê-lo se não ficasse satisfeito. Obrigava de igual modo os seus penitentes a comprar indulgências que já não eram válidas. Imaginar-se-á facilmente a frustração dos aldeãos que tinham apresentado queixa dele quando souberam que fora condenado a apenas trinta dias de cativeiro na igreja paroquial onde habitava e a uma multa de quatro reais.

 

O pluralismo juntamente corn a simonia, o nepotismo e o absentismo encontraram-se entre os problemas mais graves que afectaram a Igreja durante o período que veio até à Reforma. Ao nível da paróquia, o pluralismo deixava corn frequência a assistência dos fiéis nas mãos de um pároco substituto cujo rendimento era tão baixo que ele tinha de recorrer a uma série de abusos fiscais a fim de sobreviver. Estamos relativamente bem informados sobre as actividades de um desses sacerdotes, que, em 1530, foi obrigado a defender-se perante o tribunal de Toledo de uma acusação de aliciamento sexual. Algures em meados da década de 1520, António de Fareja foi nomeado coadjutor de Cienpozuelos por Pedro Bermudez, cónego da catedral de Toledo e detentor do benefício. No seu julgamento, que decorreu entre 1530 e 1532, uma infinidade de testemunhas denunciou Fareja como autor de uma série de abusos decorrentes do exercício do cargo de confessor. Parej a convidava repetidamente as suas confessoras a prestarem-lhe favores sexuais e vivera inclusivamente corn uma delas nas suas instalações por detrás da igreja. Depois de a rapariga, Catalina Roldana, engravidar, foi expulsa de casa dos pais, mas não recebeu qualquer ajuda do pároco, e ela e o filho vagueavam pela aldeia descalços e andraj osos. As testemunhas referiram também que Fareja obrigava os penitentes a darem-lhe trigo e vinho, que ele vendia depois, e tentara obrigar um dos seus penitentes a pagar-lhe para mandar rezar uma série de missas por alma de um familiar falecido.

 

O registo dos serviços prestados por Fareja ao seu rebanho não são nada animadores, e os aldeãos tinham uma péssima opinião dele. Uma testemunha, Juan Jiménez, chamou-lhe «uma pessoa má e pouco escrupulosa», enquanto outra o denunciou como hipócrita. Como consequência directa do exemplo de Fareja, os aldeãos não eram nada assíduos no cumprimento das suas obrigações cristãs. Juan Jimémez afirmou que, por considerar Fareja «um mau cristão», evitava assistir à missa, enquanto os aldeãos se recusavam a confessar-se-lhe porque ele revelava o que lhe confidenciassem ali.

 

Se as massas populares eram indiferentes ou hostis à confissão em virtude da ganância, da ignorância e da corrupção dos sacerdotes que a ministravam, os intelectuais radicais ligados aos círculos iluministas e erasmistas rejeitavam-na por se afigurar supérflua segundo a perspectiva da relação entre Deus e o homem. Em 1478, por exemplo, Pedro de Osma, um dos teólogos espanhóis mais influentes de finais do século xv, cornpareceu perante uma comissão especial nomeada pelo arcebispo de Toledo porque afirmara que a confissão sacramental não era de origem divina e que os pecados mortais podiam ser expiados sem ela.

 

Tanto os iluministas como os erasmistas partilhavam de uma profunda aversão a toda a espécie de formalismo religioso e entendiam que a confissão deveria fazer parte da relação directa e íntima entre Deus e o homem que tão ardentemente procuravam. Para Juan de Valdés, a confissão não tinha, na verdade, qualquer eficácia sem contrição e deveria recorrer-se a el a o menos possível. Valdés acreditava que aqueles que repetem sistematicamente os mesmos pecados, ou se confessavam corn frequência na crença de existir algo de beatificante na execução do acto de confissão, estavam a transformar o sacramento em mais uma observância, corno rezar o terço, e estavam, por conseguinte, a perverter o seu verdadeiro significado. No que se referia à necessidade de confissão antes da comunhão, Valdés defendia a ideia de que as únicas pessoas que se deveriam confessar antes da comunhão eram aquelas que sentiam uma necessidade premente de o fazer.

 

O próprio Erasmo exprimiu as suas ideias sobre a confissão na obra Pietaspuerilis, que foi traduzida para o espanhol em 1529 como Amor de ninos em Dios. Pietas puerilis reveste a forma de um diálogo entre Gaspar, um jovem estudioso e devoto, e o seu amigo, Erasmillo. Através de Gaspar, Erasmo afirma a sua opinião sobre a confissão auricular como uma formalidade apenas cumprida porque a Igreja assim o exige. A verdadeira confissão consiste em o indivíduo confessar-se directamente a Cristo num estado de contrição. Somente através destaformaparticular e imensamente pessoal da confissão, durante a qual Gaspar lamenta os seus pecados, vertendo um mar de lágrimas e pedindo misericórdia, é que alcança uma sensação de justificação.

 

O julgamento de Diego de Uceda, um cordovão ao serviço de D. Fernando de Córdova, a quem tinham sido confiadas as chaves da ordem militar de Calatrava, por ter afirmado que a contrição e não a absolvição é que era a parte essencial da confissão, denota o impacte do pensamento erasmista em Espanha. Depois de confessar sob tortura que negava a validade da confissão auricular, retratando-se depois, foi obrigado a abjurar de vehementi no auto de fé, de 22 de Julho de 1529.

 

O maior desafio à confissão auricular tal como era praticada pela Igreja Católica Romana não partiu, porém, dos iluministas, dos evangelistas ou dos erasmistas, mas de Martinho Lutero e dos seus seguidores. A base teológica da confissão praticada antes de 1517 era uma crença na contrição como contributo do homem para obter o perdão e uma crença em que os sacerdotes detinham o poder de transmitir a graça através da fórmula da absolvição. Por muito que Erasmo e os seus seguidores tenham sofismado sobre a última doutrina e acusado o sacerdócio de corrupto e indigno, aceitaram a necessidade da contrição e a confissão anual mandatadas pela Igreja.

 

A teologia de Lutero, expressa nos seus enormes tratados de 1520, resume-se a um ataque radical a ambos os elementos fundamentais. A doutrina do sacerdócio de todos os crentes, expressa na sua obra Address to the Christian Nobility ofthe German Nation Concerning the Reform ofthe Christian State, colocou efectivamente todos os cristãos em pé de igualdade e eliminou o estatuto espiritual especial reivindicado pelo clero. Consequentemente, a autoridade do confessor foi eliminada, e este deixou de poder conceder o perdão absolvendo openitente. EmBabilonian Captivity ofthe Church, Lutero reduziu a dois o número de sacramentos: baptismo e comunhão. Avança em On the Liberty ofthe Christian Man a famosa doutrina da justificação pela fé, que colocou a salvação na total dependência da fé do indivíduo independentemente de quaisquer observâncias ou boas acções que se possam ter praticado.

 

Podemos ver, a partir de um sermão instrutivo publicado em meados de Outubro de 1519, o que esta nova teologia significou para a confissão auricular. Neste sermão, Lutero deixa bastante claro que o perdão de Deus não depende do grau de contrição humana, mas do grau da fé do homem em Deus: «O perdão da culpa não é concedido a ninguém em virtude do mérito do seu arrependimento dos pecados, nem tão-pouco em virtude dos seus actos de penitência, mas apenas da sua fé na promessa de Deus.» O perdão de Deus é objectivamente certo e incondicional; já não depende da existência de um sacerdote devidamente ordenado: «Pois não pretendeu Cristo basear o nosso conforto, a nossa salvação, a nossa confiança nas palavras ou nos actos humanos?» Ao invés, basta a promessa de justificação associada ao sacrifício de Cristo: «Então, a palavra sustentar-te-á, e os teus pecados terão de ser perdoados.» Como o baptismo a incorporava na promessa de perdão dos pecados e a combinava corn a água - um sinal visível -, deixava de ser necessário considerar a penitência como um sacramento de direito próprio.

 

Não obstante o facto de inúmeros exemplares das obras de Lutero terem chegado a Espanha, as suas ideias levaram mais de uma geração a ganhar raízes. Em grande parte por a Inquisição ter reprimido tão profundamente os iluministas e os erasmistas locais, o movimento protestante nascente viu ser-lhe negado o apoio tão necessário à sua implementação. A dada altura, porém, nos finais da década de 1540, surgiram dois importantes grupos de protoprotestantes. O maior, constituído por

120 pessoas, formou-se em Sevilha e incluía o prior e os frades do convento jeronimita. Alguns dos que conseguiram fugir de Espanha antes de a Inquisição os apanhar, entre os quais se incluíam Cipriano de Valera, Casiodoro de Reina e António de Carro, tiveram papéis fulcrais na Reforma europeia. As perspectivas religiosas tanto de Cipriano de Valera como de Casiodoro de Reina são-nos amplamente dadas a conhecer através das suas obras. Ambos se norteiam pelos dogmas fundamentais do pensamento luterano a respeito da confissão. Na sua Confessión de fé cristiana, por exemplo, Casiodoro de Reina aceita a penitência como um rito sagrado, mas rejeita o seu carácter sacramental.

 

Constituiu-se um outro círculo de simpatizantes protestantes e erasmistas mais ou menos na mesma época, na cidade de Valhadolid, no norte de Castela. O membro mais distinto deste grupo foi o Dr. Agustín Cazalla, capelão de Carlos V. Cazalla provinha de uma família há muito identificada corn o radicalismo religioso espanhol. Tanto o seu pai, Pedro de Cazalla, um alto-funcionário da fazenda pública, como a mãe, Leonor de Vivera, tinham estado estreitamente associados ao movimento iluminista durante a década de 1530.0 tio, Fray Juan de Cazalla, bispo de Verisa, morreu em 1530, precisamente antes de a Inquisição o levar a tribunal por heresia.

 

Até aqui, os historiadores tinham pouco conhecimento directo das ideias religiosas de Agustín Cazalla. Sem dúvida, os seus colaboradores mais chegados, Carlos de Seso, antigo governador civil de Toro, e Fray Domingo de Rojas, que era filho do marquês de Poza, podem ser situados categoricamente no campo protestante. Felizmente para os historiadores, em 1580, uma antiga criada da família, que entrara para o convento sob o nome de Maria de San Gerónimo, resolveu abrir-se à Inquisição. Segundo Maria de San Gerónimo, Cazalla levava uma espécie de vida dupla. Enquanto pregava perante o tribunal ou em público, tinha sempre o cuidado de se manter dentro dos limites da ortodoxia, mas em casa, quando pregava diante de um grupo de amigos e familiares, mostrava o que era verdadeiramente. Durante um destes sermões, rejeitou o celibato clerical e declarou que os padres e freiras deveriam casar. Pouco depois, envergando todas as suas vestes, Cazalla presidiu ao casamento da sua irmã, Beatriz de Vivero corn Fray Domingo de Rojas. Cazalla colocou-se ao lado do luteranismo ao rejeitar a transubstanciação, defendendo que os sacerdotes não tinham o poder de consagrar os elementos da missa. Maria de San Gerónimo relatou também ao Santo Ofício que ela própria evitava muitas vezes a confissão porque Cazalla lhe dizia corn frequência que os padres não tinham qualquer poder para absolver dos pecados.

 

Confrontadas corn uma verdadeira ameaça protestante após décadas de falsos alarmes, as autoridades espanholas não perderam tempo a desencadear uma atroz vaga de repressão. Uma série de autos-de-fé proclamada entre Maio de 1559 (altura em que Cazalla foi executado) e Outubro de 1562 conseguiu eliminar o luteranismo espanhol como força religiosa, mas não logrou erradicar as principais causas de insatisfação popular em relação ao clero e ao modo como este ministrava os sacramentos.

 

A decepção corn o clero ajudou a transformar o final do século xv e o princípio do xvi na época áurea do laicismo devoto em toda a Europa católica. A época de indulgência, peregrinação, prece mental, confissão directamente a Deus, oratórios e intensa actividade das confrarias significava a minimização do papel do sacerdote. A admissão de uma necessidade crítica de reforma por parte do papado no Quinto Concílio de Latrão, de 1512 a 1517, só contribuiu para aumentar o índice de insatisfação, uma vez que era nítido as reformas estarem longe de ser levadas a efeito. Já em 1538, a comissão especial de cardeais nomeada por Paulo In para ponderar na melhor forma de combater a vaga de heresia se viu forçada a admitir a maior parte das críticas feitas pelos reform adores e chegou inclusivamente a propor a abolição das ordens religiosas.

 

A Igreja poderia ter continuado muito mais tempo a ignorar as crescentes necessidades de reforma e a cada vez maior indiferença do laicado, não fosse a Reforma. Mesmo assim, sofreu uma tremenda pressão do imperador Carlos V e o malogro dos seus próprios esforços para obter uma reconciliação corn os luteranos durante os colóquios que promoveu em Hagenau, Worms e Regensburg a fim de preparar o terreno para o início do Concílio de Trento em 13 de Dezembro de 1545.

 

De acordo corn a Bula de Convocação, o Concílio tinha dois objectivos principais: formular os dogmas fundamentais da fé católica e estabelecer a estrutura para a reforma da Igreja. Os delegados ao Concílio reconheceram que ambas as questões revestiam igual importância crítica para a sobrevivência da Igreja, tendo decidido discutir simultaneamente o dogma e a reforma, não obstante as objecções papais. As principais doutrinas luteranas da justificação pela fé e do sacerdócio de todos os crentes tinham servido para enfraquecer a necessidade de todos os tipos de devoções, particularmente do sistema sacramental, ao mesmo tempo que negavam qualquer papel especial à humanidade na mediação da graça divina. O dogmatismo e o anticlericalismo populares e o aumento das devoções laicas, juntamente corn a manifesta inadequação do sacerdócio estavam a tornar o clero irrelevante para muitas das tendências mais fortes e vitais da devoção do Renascimento. Se o Concílio tivesse desempenhado a sua missão eficazmente, não se limitaria a reafirmar as posições ortodoxas mas a projectar uma visão de um novo tipo de espiritualidade especificamente católico em que a fé e as devoções estavam associadas de modo significativo às obrigações de um sacerdócio reformado e disciplinado.

 

Crítico para este esforço foi o desenvolvimento de uma resposta católica completa à doutrina luterana sobre a graça e a justificação. Se a perspectiva de Lutero da justificação era um acto gratuito de uma divindade todo-poderosa, então as acções, observâncias e sacramentos eram todos igualmente inúteis, exceptuando o sacramento do próprio baptismo. Por outro lado, se o esforço humano deveria ser considerado essencial à graça e à justificação, então os ritos e em particular os sacramentos tornaram-se necessários como canais convencionais através dos quais o homem procura a graça e Deus responde.

 

Não obstante o facto de a justificação ser um dos temas mais acesamente debatidos na teologia da pré-Reforma, a esmagadora maioria dos teólogos que considerou a questão em Trento não teve dificuldade em aceitar que o homem tinha de cooperar corn o acto de justificação e aceitar espontaneamente a graça de Deus. Na fórmula tridentina, a fé, que era tão fortemente realçada por Lutero, torna-se condição necessária mas não suficiente para a justificação. Como é impossível saber só pela fé que ele desfruta da graça divina, o homem vê-se obrigado a perseverar a fim de obter uma segunda justificação para além da primeira que alcançou por via do baptismo. Esta segunda justificação depende do uso que o homem dá à graça divina e dos seus esforços para a aumentar através da participação nos sacramentos, que efectivamente «contêm a graça que denotam» e «conferem essa graça àqueles que não lhe levantam obstáculos».

 

A posição tomada pelo Concílio sobre a justificação significava, por conseguinte, que os sacramentos haviam recuperado a sua posição central no esquema cristão. Todos os sete sacramentos foram considerados válidos e instituídos por Cristo; não só um meio de «acolher» a fé (Lutero) mas «necessário à salvação».

 

O sacramento da penitência era particularmente importante porque estava estreitamente ligado à luta constante do homem pela justificação. Independentemente da fé, o homem nunca pode estar certo da sua salvação em virtude da sua propensão para o pecado, e os pecados mortais eliminam a justificação da graça. Somente através do sacramento da penitência pode o homem esperar recuperar a graça divina.

 

Mas, se a recuperação de um sistema sacramental ia ser a resposta da Igreja ao Protestantismo, então tornava-se ainda mais imperativa a reforma do clero que ministrava os sacramentos. Os padres tridentinos estavam plenamente conscientes do facto de, como declarou o cardeal Polé na Segunda Sessão de 7 de Janeiro de 1546, «nós próprios somos largamente responsáveis pelo infortúnio que ocorreu - porque não conseguimos cultivar o campo que nos foi confiado». Foi corn vista à remodelação do clero paroquial como estrutura fundamental da Igreja pós-tridentina que o Concílio limitou fortemente o absentismo a um máximo de dois meses excepto em circunstâncias invulgares e apenas se pudesse ser encontrado um vigário substituto. Queixando-se do uso generalizado de vestes seculares entre o clero, o Concílio exigiu que todos os clérigos usassem o devido vestuário eclesiástico, sob pena de suspensão do seu benefício.

 

O perfil de um novo tipo de clérigo cujo comportamento o tornaria moralmente diferente e superior à sociedade secular foi traçado pelos padres do Concílio quando insistiram que nenhum eclesiástico deveria, através «das vestes, da atitude, do discurso ou do comportamento», dar provas de algo que não fosse «modesto, sério e cheio de religião». Em geral, o clero deveria inspirar nos leigos uma atitude de veneração, evitando quaisquer transgressões porque até a mais pequena ofensa cometida por um eclesiástico era um erro grave. O Concílio mostrou-se particularmente intransigente corn os sacerdotes em concubinato. Tentou acrescentar um «colete-de-forças» sexual aos condicionalismos comportamentais de modéstia exterior e conformidade, a fim de reforçar a instituição do celibato clerical rejeitado pelos protestantes. Denunciando o concubinato como «a desgraça suprema para a ordem clerical» e referindo a vergonha dos clérigos que «vivem na imundície da impureza e da coabitação indecorosa», os padres do Concílio ordenaram aos sacerdotes que evitassem o contacto corn quaisquer mulheres suspeitas e ameaçassem os desobedientes de excomunhão e perda dos benefícios. O concílio procurou também resolver o grave problema dos clérigos vagabundos que não apresentavam meios de subsistência. A partir de então, ninguém seria admitido nas ordens religiosas se não conseguisse demonstrar estar na posse de um benefício corn rendimentos suficientes para prover ao seu sustento.

 

O Concílio estava igualmente preocupado corn as qualificações daqueles que eram autorizados a entrar para as fileiras do baixo clero. Os bispos estavam proibidos de aceitar subornos ou presentes em troca de ordenações, e foi instituído o conhecimento obrigatório de latim para a admissão nas ordens menores. Foram definidos os escalões etários mínimos para os diáconos e subdiáconos, e determinou-se que tinha de decorrer pelo menos um ano antes de se poder ser promovido de diácono a sacerdote. O candidato a padre tinha de se submeter a um exame rigoroso no tocante ao seu carácter moral bem como aos seus conhecimentos de religião.

 

Obrigar os sacerdotes a atingir um nível superior de moralidade pessoal não bastava em si para transformar os clérigos paroquiais nos verdadeiros líderes religiosos da sua congregação, como o Concílio pretendia. A fim de concretizar este objectivo, era necessário melhorar substancialmente o nível educativo do sacerdote médio. Na famosa 23.a sessão, o Concílio fê-lo deliberando sobre a criação de seminários em cada diocese.

 

A extrema sensibilidade do Concílio à administração capaz do sacramento da penitência é demonstrada pelo facto de, a partir de então, quem desejasse ser confessor só o pudesse fazer se detivesse um benefício paroquial ou requeresse uma licença ao bispo da região. Essas licenças eram geralmente concedidas apenas por um ano e corn frequência somente após rigoroso exame de qualificação.

 

Temos conhecimento do modo como funcionava o sistema de licenças em Espanha reportando-nos à licença de um confessor: Fray Gaspar Nájera, um franciscano que viveu nas ilhas Canárias durante o século xvni. Depois de passar no exame de qualificação, foi concedida a Fray Gaspar, pelo bispo Juan Ruiz Simón, em 29 de Dezembro de 1710, a sua primeira licença para ouvir confissões. Porém, dois grupos sensíveis estavam excluídos desta licença: as mulheres corn menos de 40 anos e as freiras pertencentes à ordem franciscana. Mais tarde, estas restrições foram levantadas, e, em 5 de Setembro de 1711, ele foi nomeado confessor do convento franciscano de Buena Vista. A11 de Novembro de 1713, a licença tornou-se extensiva por mais dois anos, tendo Fray Gaspar sido submetido e passado num segundo exame. Os registos das licenças e das restrições aplicadas aos confessores individuais constam de uma série especial de livros guardados no palácio do bispo.

 

Não se duvidará que, pelo menos no século XVIH , a posse de uma licença válida fosse aceite entre o clero como forma de definir quem podia ou não ouvir confissões. A demonstrá-lo está o caso curioso de Fray Juan Ascanio, outro franciscano que continuou ainda a ouvir as confissões da sua amante, Blasina Domínguez, e de outras mulheres durante nove ou dez meses depois de terminada a sua licença. Então, voluntariamente, deixou de ouvir confissões «por causa do fardo que a administração inadequada do Santo Sacramento impunha à sua consciência».

 

Uma remodelação geral do clero paroquial tornaria possível à Igreja inverter a tendência perigosa para as devoções laicas tão característica da pré-Reforma. Ao invés, o culto religioso do laicado iria incidir, num nível nunca antes visto, na igreja paroquial, nos sacramentos e no sacerdote que os ministrava. Os párocos, que estariam agora melhor preparados intelectualmente pelos novos seminários, assumiriam a responsabilidade das prédicas regulares aos domingos e dias santos e durante a Quaresma e o Advento.
O pároco seria de igual modo responsável pela catequização do seu rebanho vernáculo, recorrendo aos novos catecismos católicos produzidos após o Concílio. Os catecismos publicados pelos jesuítas Peter Canisius (1555) e Robert Bellarmine (1597) foram reeditados corn frequência e traduzidos para muitas línguas e dialectos. A Summa doctrinae christianae, de Peter Canisius, foi objecto de mais de setenta edições alemãs antes de 1800. Em Espanha, o interesse na produção de catecismos vernáculos é anterior ao Concílio de Trento e foi inspirada pelos esforços de converter Judeus e Mouros. Durante o próprio Concílio, Juan de Ávila publicou um catecismo destinado à instrução de crianças (1554) e, mais para o fim do século xvi, foram escritos catecismos populares por Jerónimo de Ripalda (1591) e Gaspar Astete (1599), entre outros.

 

A nova proeminência dada ao pároco era igualmente evidenciada pelo seu papel alargadona administração do sacramento do matrimónio. Eliminando gerações de tradição e a doutrina da lei canónica de que um casamento sacramental válido poderia ser constituído por uma troca de consentimento entre quaisquer dois indivíduos qualificados, os padres do Concílio de Trento insistiram que todos os casamentos teriam de passar a ser celebrados perante o pároco e duas ou três testemunhas, após a publicação de três banhos. Depois de devidamente unido o par, o sacerdote anotaria a ocorrência no registo da paróquia, incluindo os nomes dos recém-casados, testemunhas e a data e o local onde fora contraído o matrimónio. O Ritual Romano de 1612, que trouxe a cerimónia da porta da igreja para o altar, limitou-se a confirmar a transformação do casamento de um processo social que a Igreja considerava sacramentalmente válido ex post facto para um processo eclesiástico através do qual a graça era conferida às partes prometidas pelo pároco.

 

O baptismo foi outro sacramento que cada vez mais se aproximou da esfera do pároco. Para além de ministrar o sacramento, o sacerdote era responsável pelo registo do acontecimento, incluindo os nomes dos padrinhos da criança, no registo paroquial. Não só a criança alcançava a existência legal tanto perante a lei civil como a canónica, como assegurava o controlo da Igreja sobre as relações de apadrinhamento e co-paternidade que viriam a revelar-se extremamente importantes para a criança ao longo da sua vida.

 

A Contra-Reforma procurou também transformar a igreja no único ou principal lugar de culto. Isso seria alcançado através da reserva da Hóstia no altar, de que a igreja paroquial era o único repositório legítimo da hóstia consagrada e, por conseguinte, o único local na comunidade onde Deus estava presente fisicamente. As novas devoções pós-tridentinas, em particular o culto do rosário, que se revelaram tão populares, encontraram também um lugar na igreja paroquial. Em finais do século xvi, até as paróquias rurais nas montanhas da Catalunha estavam munidas de altares dedicados a Nossa Senhora do Rosário.

 

O esforço da Igreja para fazer reincidir a vida católica sobre o sistema sacramental e o pároco deixou pouca margem para a independência contínua das confrarias laicas que adquirira tamanha importância em muitas áreas urbanas durante os finais da Idade Média. Os padres do Concílio reiteraram veementemente a supremacia da missa paroquial aos domingos e dias santos por oposição às devoções das confrarias. O receio de que estas se pudessem envolver em práticas supersticiosas ou ser mesmo uma fonte de heresia levou a Igreja a cercear-lhes a independência. Algumas confrarias foram dissolvidas enquanto outras ficaram sob o controlo directo do pároco. Outras ainda, como a Irmandade Francesa do Sacramento Abençoado ou a Irmandade da Santa Caridade, de Sevilha, foram encorajadas porque se encontravam sob o firme controlo episcopal e se dedicavam a devoções ou actividades do agrado da Igreja.

 

No entanto, dada a má qualidade geral do clero paroquial durante meados do século xvi, os esforços do Concílio para o reformar teriam sido nulos não fosse a possibilidade de fortalecimento da autoridade episcopal. Nos finais da Idade Média, havia três principais problemas que tornavam praticamente impossível aos bispos cumprirem a sua responsabilidade essencial de zelar pela cura das almas dentro dos limites das suas dioceses: o absentismo, a acumulação de benefícios e a debilidade do controlo episcopal sobre os párocos e outros detentores de benefícios na diocese.

 

O absentismo e o pluralismo estavam intimamente ligados porque um bispo que ocupava uma ou mais sedes episcopais dificilmente poderia estar presente em ambas, especialmente se as separasse uma grande distância geográfica. Muito embora a lei canónica proibisse a acumulação de benefícios, o papado sabia perfeitamente contornar a proibição, atribuindo aos cardeais e outros membros do clero sedes da Cúria episcopal que não teriam de ocupar pessoalmente ou sequer visitar. O cardeal Ippolito d’Este, por exemplo, nunca visitou pessoalmente Milão, de que foi arcebispo de 1520 a 1550. Em Espanha, a política de limite das nomeações para os naturais de um local só vigorava parcialmente, e durante os reinados de Fernando e Isabel e Carlos V foram atribuídas quarenta e duas sedes episcopais a cardeais ou membros da Cúria. Era também prática corrente os monarcas espanhóis nomearem os bispos para as presidências das Audiências de Valhadolid ou Granada ou um ou outro dos conselhos reais. Estes homens eram não só bispos ausentes como a sua influência na corte lhes conferia a oportunidade de acumular um grande número de benefícios, que podiam conservar ou transmitir a um dos parentes enquanto reservavam para si próprios uma parte ou a totalidade dos rendimentos. Fernando de Valdés (1483-1568), bispo de Elna e arcebispo de Sevilha, que foi nomeado presidente da Audiência de Valhadolid em 1535 e inquisidor-geral em

1547, deve ter sido, provavelmente, o mais profícuo cobrador de benefícios eclesiásticos do século xvi.

 

Todavia, constata-se, através das discussões havidas no Concílio, que o desejo de acumular benefícios ou a colocação dos bispos em posições burocráticas não foram as únicas razões para o absentismo. Muitos bispos preferiam manter-se afastados das suas dioceses por o seu poder e a sua autoridade serem praticamente inexistentes em virtude de obstáculos ou impedimentos externos provenientes sobretudo da Cúria. Conhecemos a situação em Espanha a partir do memorial que foi apresentado ao Concílio de Trento pelo bispo de Calahorra, Juan Bernal Díaz de Luco, que fora também vigário-geral de Salamanca e funcionário da administração da arquidiocese de Toledo. Fazendo eco de outros memoriais de prelados italianos e franceses, o bispo salientou que os direitos concedidos aos cabidos sede vacante, bispos titulares e núncios para conferirem as Ordens Sacras sem consultar os ordinários cobria de ridículo qualquer tentativa da parte dos bispos de melhorar a qualidade do clero pastoral. Simultaneamente, as isenções concedidas aos detentores de benefícios importantes na diocese, como os arciprestes, arcediagos e cabidos de catedral, permitiam-lhes «escarnecer dos bispos e viver licenciosamente para ultraje do povo». As isenções concedidas aos arciprestes e arcediagos eram particularmente injuriosas, uma vez que tinham a responsabilidade de exercer jurisdição eclesiástica na diocese.

 

Em muitas áreas, os bispos tinham também de enfrentar os poderosos senhores seculares, que controlavam a apresentação dos benefícios e cobravam o dízimo destinado ao clero. O bispo de Maiorca referiu que apenas quarenta dos seiscentos benefícios da diocese estavam atribuídos a superiores eclesiásticos, encontrando-se os restantes nas mãos dos fundadores ou outros leigos poderosos. A autoridade dos bispos era também reduzida pelos direitos de apresentação a benefícios eclesiásticos exercidos pelas instituições monásticas e ordens religiosas. Em 1575, o rico mosteiro de Roncesvalles, em Navarra, usufruía do direito de protecção sobre quarenta e cinco igrejas.

 

Em Fevereiro de 1547, antes mesmo da conclusão do Concílio de Trento, Paulo In deu um grande passo no sentido da reforma, proibindo os cardeais de deterem simultaneamente mais de uma sede episcopal. O próprio Concílio passou então a proibir que se detivesse mais de um benefício de qualquer tipo excepto em determinados casos especiais, ao mesmo tempo que obrigava os que na altura detinham vários benefícios a escolherem um e a renunciarem aos restantes. Tendo posto bruscamente termo ao problema da acumulação de benefícios, o Concílio convergiu então a sua atenção para o absentismo, criando três decretos sobre a obrigação de o bispo residir na diocese e aumentando as penalidades por não o fazer na sessão de 15 de Julho de 1563.

 

A fim de evitar um potencial conflito sobre a autoridade papal, foi concedido aos bispos um novo poder alargado de controlar a vida diocesana em virtude da sua função de delegados apostólicos. Ao abrigo desta rubrica, os bispos recuperaram a sua jurisdição sobre as catedrais e os cabidos colegiais anteriormente isentos, bem como sobre os arciprestes e os arcediagos. Os bispos conquistaram também uma nova autoridade em matéria de ordenação e nomeação para os benefícios de cura de almas, mesmo os controlados por colatores particulares. Independentemente da maneira como ou da pessoa que o nomeava, o candidato teria de se submeter a um exame de qualificação efectuado por uma comissão de examinadores nomeada pelo bispo antes de ser empossado no seu benefício.

 

O Concílio conferiu também aos bispos responsabilidade alargada na supervisão da actividade religiosa do clero activo na diocese. Conforme se referiu anteriormente, os bispos licenciavam todos os confessores, mesmo os das ordens mendicantes. Além disso, os bispos controlavam a pregação em toda a diocese. Eles próprios deveriam ser pregadores activos e zelar para que a pregação fosse realmente efectuada aos domingos e dias santos, nomeando substitutos dos párocos sempre que estes não soubessem pregar.

 

Com vista à aplicação dos decretos do Concílio e a uma melhor governação da diocese, os bispos tinham poderes para efectuar visitas anuais ou bianuais a toda a diocese, incluindo instituições ou indivíduos anteriormente isentos. Estavam também mandatados para comparecer nos sínodos provinciais de três em três anos e realizar anualmente sínodos diocesanos a que todos os que estavam encarregues de igrejas paroquiais ou outras eram obrigados a comparecer.

 

Terminado o Concílio de Trento, a 4 de Dezembro de 1563, a Igreja conseguira estabelecer as bases para a reorientação e renovação do catolicismo romano. A devoção da nova Contra-Reforma colocaria a tónica nas expressões individuais e não nas conjuntas. Seria movida pelo desenvolvimento de novas formas de oração mental e uma propensão para as boas acções como forma de alcançar a graça. Sobretudo, a ContraReforma colocou uma nova tónica no sistema sacramental, que fora gravemente afectado pelas doutrinas da justificação somente pela fé e do sacerdócio de todos os crentes. Durante os séculos xvi e xvii, a missa passou a ser celebrada corn maior frequência, a nova forma de matrimónio acabou por ser cada vez mais amplamente aceite e defendida a comunhão frequente diária para os leigos.

 

Dentro do contexto deste novo sacramentalismo, seria difícil exagerar a importância da função atribuída à confissão sacramental. Quanto mais a ordem antiga era ameaçada pelos Protestantes mais a Igrej a dava valor à importância da confissão, que estava preparada para defender no tribunal da consciência. corn um clero tanto regular como secular reforçado e melhor educado, apto a administrar o sacramento e corn a reposição do episcopado agora em condições de impor disciplina, era possível transformar o confessionário na vanguarda da defesa contra a dúvida religiosa, a imoralidade e o desrespeito pelo sagrado. Estavalivre o caminho para uma experiência social sem precedentes: o uso generalizado da confissão para induzir de facto uma «patologia de escrúpulos», um exame de consciência ansioso e mórbido até, no interesse da manutenção e do enaltecimento do domínio da Igreja sobre o indivíduo. Além disso, o resultado dos decretos tridentinos no respeitante ao sacramento da penitência foi uma mudança significativa na relação entre sacerdote e penitente. Ao exigir que os penitentes procedessem a um relato exacto e minucioso dos seus pecados e das circunstâncias em que tinham sido cometidos, a Igreja pós-tridentina requeria também do confessor que procedesse a um interrogatório mais rigoroso, a fim de poder julgar a relativa gravidade dos pecados. Este inquérito mais minucioso criava forçosamente uma relação intensa e potencialmente mais íntima entre sacerdote e penitente, corn alguns manuais a encorajarem inclusivamente os padres a «confessarem» os seus próprios pecados ao penitente, a fim de o encorajarem a ser mais aberto.

 

Os padres, os frades, os missionários e os membros das novas congregações de clérigos (por exemplo, os Jesuítas) estavam todos empenhados num esforço conjunto de dar novo ânimo ao sacramento da penitência, onde espreitava a oportunidade e o perigo. As pesadas exigências do sacramento da penitência pós-tridentino poderiam resultar na alienação ou confusão de muitos penitentes. A exaltação do novo papel dos confessores podia e iria levar a enormes abusos; simultaneamente, eles e só eles estavam em posição de dispensar o que todo o sistema religioso se afirma capaz de oferecer corn eficácia: consolação. Foi na capacidade de oferecer consolação, ao mesmo tempo que inculcava os ideais religiosos e morais pós-tridentinos através da penitência sacramental, que o futuro da Igreja Católica Romana veio assentar no período crítico que se seguiu ao Concílio de Trento.

CONFISSÃO E CONFESSORES EM TRANSIÇÃO

Uma das características mais extraordinárias do catolicismo pós-tridentino foi a forma como a penitência sacramental surgiu como elemento definidor da nova ordem religiosa. Num sentido muito concreto, a Europa católica tornou-se uma sociedade orientada para a confissão, corn uma elevada consciência do pecado, um aumento da frequência da confissão e uma função altamente enaltecedora do padre/confessor como «médico das almas».

 

A transição de uma ordem moral baseada nos sete pecados mortais, corn a sua ética ligeiramente comunitária, para uma ordem baseada no Decálogo, que definia as obrigações específicas do homem em relação a Deus, lançara já as bases para um novo tipo de confissão que realçava a responsabilidade do indivíduo e o papel do confessor como guia espiritual. Esta tendência, já bastante marcada antes de 1600, era congruente corn outros elementos-chave na espiritualidade da Contra-Revolução e tocou num ponto nevrálgico do laicado, resultando numa agitação dramática devido à frequência das confissões.

 

Caso curioso, o Concílio de Trento, que defendera tão acerrimamente as origens divinas e o carácter sacramental da confissão, pouco se pronunciou sobre a frequência, a não ser subscrever a decisão do Concílio de Latrão de 1215 de obrigar à confissão uma vez por ano. corn efeito, ao escrever a respeito do ponto central do Concílio, Martin de Azpilcueta Navarro declarou que «se afigurava razoável» a confissão anual - ou bianual - antes da comunhão.

 

A crescente sensibilidade em relação à confissão frequente entre os teólogos espanhóis surgiu do debate sobre a comunhão amiudada ou diária e foi movida pela necessidade de o comungante ter o espírito preparado para receber a Hóstia. A ironia deste debate foi que a ideia da comunhão frequente proveio inicialmente dos radicais religiosos, alguns dos quais exprimiram desdém pela confissão. Quando Maria de San Gerónimo vivia corn a família Cazalla, fazia as rondas pelas igrejas locais corn Beatriz e Leonor Cazalla e suas amigas, comungando várias vezes ao dia, mas nunca se confessando, um sacramento que Agustín Cazalla e o seu círculo rejeitavam abertamente. Outro apoiante da comunhão diária desde a primeira hora foi Francisco de Osuna, que, muito embora não rejeitasse a confissão, favoreceu sem dúvida uma forma de cristianismo interiorizada e criticou fortemente o papa e a hierarquia da Igreja. Conquanto Osuna estivesse ansioso por diferenciar as suas crenças das dos iluministas suspeitos, eram ainda suficientemente perigosas e as suas obras figuravam no catálogo de livros proibidos de 1559 e 1612.

 

Mesmo depois de a doutrina da comunhão frequente ter contado corn apoio significativo entre os teólogos, era ainda controversa em alguns quadrantes. Já em 1590, o tribunal de Córdova da Inquisição espanhola condenou Fray Gaspar Lucas, prior de um convento local, pela sua «afirmação arrogante dos dogmas da seita iluminista» e referiu que «tinha muitas beatas sob a sua orientação espiritual e lhes ordenara a confissão frequente e a comunhão diária.

 

Em meados do século xvi, não obstante a oposição feroz dos Jesuítas na pessoa do terrível Luis de Ia Puente, a ideia da comunhão frequente ou mesmo diária ia entrando na corrente principal. Entre os beneditinos, Fray Alonso de Burgos escreveu um breve opúsculo em defesa da comunhão frequente, em 1562, e em 1610 Fray Mauro de Valderas sustentou publicamente a proposta de que quem não se encontrasse num estado de pecado mortal podia comungar numa base diária. No século xvii, a comunhão frequente e diária foi defendida por Pedro de Marcilla, professor da Universidade de Salamanca, que chegou inclusivamente a fomentar nas pessoas o desejo de comungarem para desobedecerem aos confessores se estes as impedissem de o fazer sem um born motivo. Tratou-se, na verdade, de uma posição radical e, como veremos, não partilhada pela maioria dos autores que se debruçaram sobre o assunto. Em meados do século xvii, o número de apoiantes tornara-se tão significativo que Juan Daza y Berrio, que se opôs à comunhão frequente, foi obrigado a reconhecer «a imensidão de tratados a favor da comunhão diária que surgiu recentemente».

 

Aideia peregrina dos argumentos utilizados por aqueles que defendiam a comunhão frequente ou diária pode ser encontrada nas Ensenanzas espirituales, publicadas em Madrid em 1663. Da autoria de Manuel Calisbeta, capelão de Luisa de Sandoval y Rojas, a duquesa de Medina Sidonia, o livro começa corn uma dedicatória à duquesa, louvando a sua devoção ao sacramento, que tomava todas as manhãs. Calisbeta criticou abertamente aqueles que se limitavam a cumprir a norma da Igreja que impunha a comunhão na Páscoa. Tais indivíduos não só pareciam desprovidos de qualquer ambição genuína de melhoramento espiritual, como, ao procurarem apenas cumprir o requisito mínimo, demonstravam um certo desdém pelo próprio sacramento. Os bons cristãos, afirmou, deveriam comungar o mais frequentemente possível, diariamente se pudessem, como forma de glorificar Deus e, corn o seu exemplo, levar os outros a uma maior devoção. Além disso, ao comungar frequentemente, o cristão podia ir acumulando uma reserva maior de graça, pois «a graça recebida hoje iria aumentar a graça recebida ontem e no dia anterior, ao passo que, quanto maior for a graça que enche a alma, mais ela poderá receber na comunhão seguinte. «O que ligava realmente a tendência para a comunhão frequente ao recurso cada vez maior à confissão era, no entanto, não se poder comungar tendo-se pecado. Obviamente, este requisito constituía um forte incentivo para aqueles que queriam tomar o sacramento corn frequência para viverem vidas cristãs perfeitas, mas aqueles que caíam em pecado podiam da mesma forma tomar o sacramento se primeiro se confessassem e recebessem a absolvição. Segundo S. Simón de Rojas, que era confessor da rainha Isabel de Bourbon, e uma das figuras religiosas mais influentes de meados do século xvn, aqueles que não o conseguissem fazer e ousassem comungar estariam a cometer um pecado pior do que o assassínio a sangue-frio numa igreja ou matassem «um padre, um rei ou o próprio papa». Por consequência, a confissão era indispensável antes da comunhão e quanto maior fosse a frequência corn que uma pessoa comungava maior teria também de ser a frequência corn que se confessava, pois só assim tinha a certeza de que a comunhão era recebida sem pecado. Já em 1589, Diego Perez de Valdivia, um dos mais importantes discípulos de Juan de Ávila, notava um forte elo entre a comunhão frequente e um aumento do número de confissões ao afirmar que «os devotos recebem a comunhão frequentemente e por norma confessam-se de cada vez que o fazem». A confissão constituía também uma grande preocupação para as mentes daqueles que defendiam a comunhão frequente porque a maior parte estava de acordo em que o acesso à comunhão deveria ser rigorosamente controlado pelo confessor. Ao falar perante freiras nas aristocráticas Descalzas Reales de Madrid, S. Simón de Rojas elogiou a comunhão frequente, mas admoestou as freiras para que não a recebessem sem a permissão explícita dos seus confessores. Bernardino de Villegas, ao escrever em 1635, foi ainda mais longe, avisando quem ousasse tomar a comunhão sem autorização de que o sacramento perdia automaticamente a sua eficácia assim que o confessor se recusasse a sancioná-la. O impacte que o controlo absoluto exercido pelos confessores sobre o acesso à comunhão teve nas mentes de certos indivíduos pode ser ilustrado pelo caso peculiar de Gerónima de Ia Cruz. Gerónima era uma senhora devota e uma beata que tinha permissão do seu confessor para comungar diariamente. Em 1635, porém, as suas tentativas para o fazer foram coarctadas porque ela acreditava que o Diabo começara a intervir para a impedir de chegar à balaustrada da comunhão. Os seus problemas começaram assim que tentou sair de casa para se dirigir à igreja. O Diabo impedia-a de se deslocar e segredava-lhe ao ouvido, insinuando que, como ela ofendera a Deus, seria condenada quer comungasse quer não.

 

Se se conseguisse libertar do seu amplexo e esforçar-se por alcançar a porta da igreja, então o Diabo impedi-la-ia de se deslocar até lá dentro, a ponto de o seu confessor vir cá fora e lhe anunciar concretamente que podia entrar. Mas os tormentos não terminavam aqui, pois, quando se acercava da balaustrada da comunhão e se ajoelhava para receber o sacramento, o Diabo apertava-lhe a garganta, sufocando-a corn tanta força que ela julgava estar a afogar-se. Mais uma vez, era necessária a intervenção directa do seu confessor, que tinha de vir cá fora e dizer-lhe que podia prosseguir antes de ela efectivamente se conseguir levantar e receber o sacramento. Aparentemente, nas mentes de pessoas tão dadas à ansiedade, como Gerónima de la Cruz, nem mesmo a autorização expressa do confessor era suficiente para que se sentissem completamente seguras de receberem a comunhão sem a sua intervenção directa e aprovação em casos específicos. As indicações de que as pessoas comuns estavam a comungar mais frequentemente provém das descrições escritas pelos teólogos e confessores contemporâneos, bem como de documentos inquisitoriais. Em 1589, Diego Pérez de Valdivia comentou favoravelmente a maneira como a frequência da comunhão aumentara ao longo dos quarenta anos em que desempenhara as funções de confessor. A comunhão frequente recebeu forte apoio de reformadores como Thomás Carbonel, bispo de Sigiienza, que pressionou os seuspárocos em pastorais e durante a sua visita de 1678 a promoverem por todos os meios à sua disposição o recurso frequente ao sacramento. De acordo corn o seu biógrafo, Thomás Reluz, os seus esforços produziram um aumento substancial da confissão e da comunhão na diocese. Muitos confessores encorajaram também todos os seus penitentes a receber a comunhão corn frequência. Durante as décadas de 1670 e 1680, em que o frade agostiniano Pedro Benimelis exerceu a função de confessor em Maiorca, cinco das suas penitentes comungavam diariamente por incentivo da suaparte. Uma destas mulheres, Isabel Riera, umafabricante de cintos analfabeta e corn fama de visionária, insistira até em receber a comunhão do próprio Benimelis. Existem igualmente provas a sugerir que as freiras e beatas comungavam mais frequentemente durante o século xvii. A regra de 1638 do convento de San Ildefonso de Lãs Palmas (Maiorca) permitia a comunhão às freiras aos domingos e quintas-feiras e nas festas da Virgem Maria, S. José, S. João Evangelista e S. João Baptista, S. Benedito, S. Bernardo, nos dias dos fundadores das ordens religiosas e nas festas dos quatro doutores da igreja. Como se não bastasse, se necessário, a prioresa podia autorizar também as freiras a comungar noutros dias. Já em 1575, um relatório dos inquisidores de Sevilha acusava as beatas da cidade de «comungar diariamente, e por vezes corn insuficiente reverência». Os teólogos que escreveram a favor da confissão frequente tenderam a seguir as mesmas linhas de argumento que os que defenderam a comunhão frequente ou diária. Tal como Manuel Calisbeta, Fray Cristobal Delgadillo tentou justificar o recurso à confissão frequente corn base no facto de poder aumentar a graça recebida pela alma e a sua viagem no purgatório ser abreviada de cada vez que o indivíduo recorria ao sacramento. Delgadillo era um defensor tão acérrimo da confissão que encorajou até os penitentes a comparecerem perante os seus confessores corn os mesmos pecados que eles tinham já confessado e dos quais tinham recebido a absolvição em ocasiões anteriores. Semelhante confissão dos mesmos pecados seria válida, no seu entender, porque o penitente podia ainda sentir o mesmo arrependimento que anteriormente. Para Francisco Farfan, a confissão frequente era benéfica ainda que o penitente não sentisse qualquer arrependimento ao ajoelhar-se diante do confessor porque «sucede muitas vezes ser suficiente a poderosa influência deste enorme sacramento para transformar um coração de pedra num de carne e osso». Diego Pérez de Valdivia via a confissão frequente como uma espécie de panaceia espiritual capaz de eliminar a dúvida, conferindo força aos fracos de espírito, dando e aumentando a graça; a alma que beneficia da frequência deste sacramento «evita o pecado e aumenta a devoção». Alguns dos que escreveram em prol da confissão frequente achavam até que o sacramento da confissão poderia ser a solução para os problemas morais e sociais. Francisco Farfan receitava a confissão frequente como remédio contra as tentações da carne. Francisco de Luque Fajardo, ao escrever no princípio do século xvni, achara que o sacramento podia até ajudar a curar os jogadores inveterados. Em 1603, publicou o Fiel desengano contra Ia ociosidad y los juegos, uma obra única que usava especificamente a linguagem dos jogadores para que os confessores pudessem estar melhor preparados para fazerem face a este tipo de penitente em particular e os levassem ao arrependimento com maior eficácia. Há muito que vem sendo defendido entre os estudiosos da Contra-Reforma que a confissão se tornou mais popular entre os leigos do que antes na história da Igreja. A validade desta afirmação para a Espanha nasceu tanto de provas literárias retiradas das obras publicadas por confessores ou outros observadores contemporâneos como dos processos da Inquisição relacionados com a confissão. Pedro Galindo, que publicou um manual do confessor em versão popular em 1680, depois de ter desempenhado as funções de confessor durante trinta e cinco anos, queixou-se de que os penitentes iniciavam as suas confissões corn longos preâmbulos e renúncias e, por conseguinte, gastavam o tempo dos «confessores que já estão tão sobrecarregados». Outros penitentes confessavam-se de oito em oito dias ou corn ainda maior frequência e tão demoradamente que apenas uma das suas confissões bastaria «para contar todos os pecados de um criminoso inveterado». O autor anónimo de uma obra publicada em 1845, em que as idas à igreja estavam já a diminuir, chamou à confissão «o primeiro e o mais importante dever de um sacerdote» e narrou uma conversa havida entre diversos padres na qual comentavam que era frequente permanecerem no confessionário «o dia inteiro e mesmo assim não escutavam as confissões de um grande número de penitentes que se apresentavam». Aexperiência de Salvador dei Castillo veio demonstrar que os confessores recebiam um grande número de penitentes mesmo nas zonas rurais afastadas dos centros, a partir de onde era disseminada a devoção da Contra-Reforma. Castillo, que foi cura na aldeia de Ariço, nas Canárias, afirmou em 1731 que, nos seus trinta e quatro anos de confessor, servira de conselheiro espiritual a cerca de 7000 indivíduos. Outro born indicador do aumento da procura da confissão mesmo em zonas relativamente remotas é a maneira como os membros das ordens mendicantes que possuíam licenças de confessores eram chamados a auxiliar os párocos em virtude de estes últimos terem simplesmente demasiados penitentes. A experiência de Fray António de Arevalo deve ter sido típica. Pouco depois de ter recebido do bispo das Canárias a sua licença de confessor, Arevalo começou a percorrer as zonas rurais pregando em igrej as locais. O seu êxito como pregador levou primeiro a um convite a ouvir confissões numa zona rural pouco povoada, corn cerca de 180 famílias, e depois em várias aldeias. A seguir, passou à aldeia de Texira, onde foi convidado a ajudar o grande número de pessoas que chegara para um feriado local, e depois à aldeia de Sauzel, onde auxiliou o cura local durante a Semana Santa. Por último, depois de ter pregado corn considerável êxito na cidade de La Laguna, diversos curas locais convidaram-no a ouvir as confissões dos membros das suas congregações. Um retrato nada lisonjeiro de um confessor em exercício é o que nos chega através de uma carta escrita ao Suprema pelos inquisidores das ilhas Canárias em 1787. O indivíduo em questão era Fray Nicolás Cabrera, um agostiniano de 74 anos acusado de actos de aliciamento em vinte e seis das suas penitentes. De acordo corn os inquisidores, Cabrera «efectuava muitas confissões corn rapidez» e certificava-se de que recolhia quaisquer pequenos presentes que os penitentes lhe pudessem oferecer. Ouvia as confissões de muitos camponeses, que lhe levavam ovos, leite, queijo e fruta das suas quintas, e os pescadores e os marinheiros mantinham-no bem fornecido de peixe fresco. Não admira que este confessor fosse uma figura «alegre e divertida», sempre muito bem acompanhado, em especial por elementos do sexo feminino, e fosse visto todas as tardes a passear pela aldeia corn o seu chapéu e uma bengala, «divertindo-se e conversando corn todo o tipo de pessoas».

 

No último quartel do século xvi, as provas sugerem que a campanha em prol do aumento da participação popular no sacramento da penitência estava a ter um êxito tremendo. Já no período compreendido entre 1564 e 1580, 75% dos réus que compareciam perante a Inquisição de Cuenca afirmavam terem-se confessado na Páscoa. De 1581 a 1600, depois de uma campanha de doutrinação levada a efeito pelos funcionários episcopais e pela Inquisição, 85% preenchiam o requisito mínimo e uma elevada percentagem da elite social dos cristãos velhos ia confessar-se ainda corn maior frequência. As provas retiradas da análise dos depoimentos das testemunhas em casos de aliciamento parecem vir também em defesa da nossa tese de que as pessoas se confessavam corn maior frequência. Das 137 testemunhas cujas práticas confessionais são mencionadas nos seus depoimentos, apenas 5 se limitavam a cumprir o preceito quaresmal. Bastante mais correntes, abrangendo 10,9% da amostragem, eram aqueles que se confessavam diariamente, enquanto

28,4% o faziam uma ou mais vezes por semana. De um modo geral, cerca de 60,5% das testemunhas na amostragem confessavam-se pelo menos uma vez por mês. Entre os leigos, os que procediam à confissão frequente provinham de todas as classes, indo desde a rainha Isabel de Bourbon, que se confessava a S. Simón de Roj as três vezes por semana, à costureira analfabeta Teresa de Jesus de La Laguna nas Canárias, que se confessava todas as quartas, sextas e domingos aTomás Matos, um frade agostiniano.

 

O caso de Dona Isabel López Gascón, da aldeia de Herencia, próximo de Toledo, ilustra o modo como a alteração das circunstâncias pessoais podia levar à intensificação das práticas confessionais. Imediatamente após a morte do marido, Dona Isabel tomou António Ramón de Santa Olalla, que era cura-adjunto da aldeia, como seu confessor. Não tardou a ficar sob a sua inteira orientação espiritual, pagando-lhe para dizer missas pela alma do marido e confessando-se-lhe duas vezes por semana durante um período de dois anos. Em tempos difíceis, a confissão podia até servir de fuga à dura realidade. Durante a terrível fome que afectou Madrid de 1809 a 1811, Dona Bernarda Lauz foi vista a confessar-se duas ou três vezes por dia em igrejas diferentes, corn cada confissão a durar várias horas, enquanto as filhas ganhavam a vida prostituindo-se.
A vida de Santa Teresa de Jesus proporciona-nos um exemplo invulgar da própria santa a encoraj ar a sua meia-irmã Maria a confessar-se corn maior frequência. Ao que parece, o marido de Maria morrera de repente sem ter tido a oportunidade de se confessar pela última vez. Teresa ficou muito incomodada e, ao ser-lhe revelado numa visão que a irmã também morreria de repente, quis certificar-se de que não se repetiria o mesmo. Após insistentes pedidos, o confessor de Teresa deu-lhe permissão para visitar a irmã, que vivia na aldeia de Castelhanos de Ia Canada, a cerca de 65 km de Ávila. Uma vez lá chegada, não contou nada à irmã a respeito da premonição, mas convenceu-a a «ir confessar-se corn mais frequência» por causa da sua alma. Nesta situação, a confissão frequente constituiria pelo menos uma garantia de que a irmã a teria feito recentemente, mesmo que não a pudesse efectuar por ocasião da sua morte. Cerca de quatro ou cinco anos mais tarde, Maria faleceu em circunstâncias muito idênticas às do marido, mas, como se confessava regularmente de oito em oito dias, a sua última confissão tivera lugar escassos dias antes da sua morte e a sua estada no purgatório seria, por conseguinte, razoavelmente curta. Decorrido menos de uma semana, pouco depois de a santa ter comungado, foi-lhe concedida uma visão da irmã a ascender ao céu.

 

Já no último quartel do século xvi, a confissão frequente tornara-se tão genericamente aceite entre o comum dos católicos que estes tendiam a olhar corn desconfiança quem a pusesse em causa. Depois de Francisco de Espinosa, um capelão da igreja colegial de Huesca, ter feito algumas observações mordazes a duas beatas locais a respeito da frequência corn que se confessavam e comungavam, elas denunciaram-no durante uma visita que o Inquisidor de Granada, Dr. Diego Mesa de Ia Sarte, efectuou à cidade em 1573.

 

Um motivo óbvio para a subida vertiginosa do número de confissões foi o de o sacramento estar a ser fortemente promovido pela Igreja institucional e seus representantes. Nos sínodos diocesanos que passaram a realizar-se corn muito maior frequência após o Concílio de Trento, os bispos insistiram constantemente para que cada pároco mantivesse um registo corn os nomes de todos os que eram obrigados a confessar-se na paróquia. Os nomes dos que não o fizessem seriam enviados ao vigário episcopal, que tinha ordens para «lhes aplicar a pena máxima permitida por lei».

 

O recurso frequente à confissão era defendido tanto pelos principais membros do clero como pelo pároco mais modesto. Na qualidade de bispo de Siguenza, Thomás Carbonel escreveu inúmeras pastorais aos seus clérigos paroquiais exortando-os a induzir as suas congregações à confissão mais frequente. Quando visitou a diocese em 1687, instruiu os confessionários logo ela manhãzinha, em especial nos dias festivos, para que os penitentes não alegassem, como pretexto de não se terem confessado, que o padre não estava lá.

Os bispos reformadores aproveitaram igualmente os sínodos como uma oportunidade de proporcionar um aumento da actividade confessional. No sínodo de 1592, convocado pelo bispo de Segorbe, Juan Bautista Pérez y Rubert, foi decretado que os médicos deveriam negar os seus serviços aos pacientes gravemente enfermos que se recusassem a confessar-se, sob pena de excomunhão. Em 1668, o sínodo convocado pelo bispo Anastasio Vives de Sotomayor aprovou vários decretos regulamentando as práticas confessionais na diocese e ordenou aos clérigos paroquiais que «encorajassem fortemente os seus paroquianos a confessar-se mais frequentemente».

 

Por seu lado, os párocos não precisavam do estímulo dos seus superiores para encorajarem a confissão mais frequente. Fray Mateo González, que foi cura-adjunto da aldeia de Guia nas Canárias na década de 1690, conquistou uma excelente reputação como conselheiro espiritual, a ponto de conseguir convencer os seus paroquianos a confessarem-se corn maior frequência e em grande número. Estava tão orgulhoso do seu papel no encorajamento à confissão que o usou em sua defesa quando foi acusado de aliciamento em 1699.

 

Os temas penitenciais ganharam de igual modo popularidade na arte da Contra-Reforma. El Greco pintou nada mais nada menos do que cinco versões de S. Pedro arrependendo-se de negar Cristo. Para os católicos, a contrição do santo tornou-se um símbolo poderoso do sacramento da penitência e inclusivamente da capacidade de o pior dos pecadores alcançar o perdão. A Madalena arrependida constituiu outro tema favorito deste primoroso artista da Contra-Reforma. El Greco pintou cinco versões de Maria Madalena em Penitência, a primeira das quais, concluída por alturas de 1577, foi inspirada por um quadro de Ticiano que o jovem artista vira durante a sua estada em Veneza.

 

Naturalmente, nem todos os esforços de promover a confissão foram desenvolvidos por razões meramente altruístas. Quando S. Simón de Rojas veio ocupar a casa trinitária em Ciudad Rodrigo, aquela era pequena e pobre, mas, decorridos escassos meses, ao disponibilizar-se, e aos seus frades, mais para a confissão e dando bons conselhos espirituais, conseguiu reunir urna sólida clientela de penitentes entre os cidadãos mais abastados da cidade, que faziam «ofertas substanciais» ao convento. Agindo sabiamente, em vez de gastar este dinheiro corn os pobres, Rojas usou-o no embelezamento da capela, na aquisição de ornamentos novos, de um sino maior e mesmo de um órgão. Melhorando a capela, conseguiu conservar e até aumentar a abastada clientela do convento e aumentar também o volume dos contributos.

 

É lógico que os teatinos de Madrid fizeram da confissão um negócio durante os finais do século xvi. Segundo Fray Juan Campana, que depôs perante o Santo Ofício em 1594, os membros daquela ordem obrigavam os seus penitentes a pagarem uma taxa que ia de 15 reales a 3 ducados quando vinham confessar-se todos os meses. Se um penitente faltasse a uma das sessões regulares, um dos clérigos deslocava-se a sua casa e denunciava-o perante a família por ter ofendido gravemente a Deus. O uso de semelhantes técnicas coercivas parece ter resultado, dado constar que os teatinos recolhiam anualmente 8000 ducados das taxas confessionais.

 

Mas, acima de tudo, foram as novas devoções populares tão entrosadas na piedade da Contra-Reforma que atraíram às igrejas um número de pessoas sem precedentes e criaram uma constante procura de confissão e confessores. Estas formas de devoção incluíam a forte reafirmação do culto de santos, como o culto de S. José, patrono da Igreja, ou o culto de S. Carlos Borromeu, um dos novos santos da Contra-Reforma. A ligação mais óbvia entre a confissão e as novas devoções foi a difusão pelas terras dos Habsburgo do culto do confessor S. Jan de Nepomuk (João Nepomuceno), que morreu às mãos de um governante boémio do século xiv, por se recusar a revelar o conteúdo da confissão da rainha.

 

Sem dúvida, a devoção mais importante ganhou vulto em redor da imagem da Virgem Maria. As observâncias marianas foram extremamente importantes por toda a Europa católica, mas em nenhum outro lugar como em Espanha o mistério da Imaculada Conceição da Virgem contou corn o forte apoio régio. O resultado foi um número extremamente grande de festivais religiosos. No começo do século xvin, havia mais de noventa festivais da Virgem.

 

Quanto maior fosse o número de dias santos resultante destas devoções maior a tendência para comungar; quanto mais as pessoas quisessem receber a comunhão mais necessitariam de ir confessar-se para terem a certeza de que estavam preparadas espiritualmente. Por isso, o aumento do número de devotos provocou uma espécie de etos penitenciai na cultura, em que as pessoas eram levadas a meditar nos seus pecados e a prometer não ofender mais a Deus. Como notou o jesuíta José Fabiani em 1763:

 

«Estas emoções devotas e virtuosas têm o efeito de todos, ou quase todos, os habitantes desta cidade populosa [Alicante] recorrerem em particular ao Tribunal Sagrado do Sacramento da Penitência, odiando e detestando todos eles os seus pecados, que mais não são do que exemplos da ingratidão demonstrada para corn o nosso querido Redentor.»

 

Ninguém viu, de uma forma tão clara, a relação entre devoções e confissão como S. Simón de Rojas, cuj a proeminência na ordem trinitária esteve intimamente ligada à sua gestão bem sucedida de uma série de empreendimentos um pouco periclitantes. Forte apoiante da posição imaculatista, que costumava saudar as pessoas dizendo «Ave Maria», Rojas introduziu o culto mariano corn sermões, música e flores na capela da casa da ordem em Ciudad Rodrigo. Ordenou aos seus frades que mostrassem maior disponibilidade para ouvir o número crescente de confissões que estava ciente de se seguirem e fez o mesmo quando foi enviado para os conventos de Aleira e Talavera. Lançou-se também na campanha a favor da canonização da Criança Santa de La Guardiã. A prova do sangue da alegada crucificação da criança Christobalico pelos judeus e conversos na aldeia de La Guardiã, em 1491, antes mesmo da expulsão, foi particularmente aproveitada pelos trinitários, que fundaram uma pequena casa em La Guardiã no século xvi. Porém, a devoção manteve-se circunscrita à região, e foi na esperança de a alargar que Rojas visitou La Guardiã, fundou uma confraria dedicada à Virgem e pressionou os funcionários da arquidiocese de Toledo no sentido de apoiarem a canonização. Mais tarde na sua carreira, quando se tornou confessor real, Rojas fundou a aristocrática Congregación de Esclavos dei Dulce Nombre de Maria. O frontispício da biografia de Rojas, da autoria de Francisco de Arcos, mostra a sua devoção para corn a Paixão de Cristo e a Virgem e a sua actuação exemplar como confessor e pregador.

As provas oriundas do depoimento de testemunhas perante os vários tribunais do Santo Ofício evidenciam a relação entre a confissão e as devoções da Contra-Reforma. Isabel de Cristo e sua irmã Philipa, duas irmãs devotas que viviam em Buena Vista, nas Canárias, foram atraídas para a igreja paroquial depois de Fray Diego Sánchez de Cubas introduzir a devoção das estações da cruz, que se dizia ter celebrado corn grande fervor, tocando os sinos da igreja para a anunciar aos aldeãos. As novas devoções marianas constituíram também um poderoso isco, atraindo as pessoas para o confessionário. Tanto Gregória González como a irmã Ana faziam particular questão de se confessar no festival de Nossa Senhora da Conceição. De igual modo, Gregória de Medrano, esposa de um operário da seda muito pobre, confessou-se primeiro a Fray Patrício Cerero por ocasião de um dos festivais marianos em que foi oferecida uma indulgência especial.

 

A recente historiografia da Contra-Reforma aceitou a ideia de que esta levou a uma certa feminização do catolicismo romano. Em Espanha, a constante importância da experiência espiritual interior nas obras de líderes religiosos como Fray Luis de Léon tendeu a colocar todos sacerdote e leigo, educado ou analfabeto, homem ou mulher-no mesmo plano espiritual. Deste modo, as mulheres podiam afirmar-se espiritualmente, comunicando directamente corn o céu sem necessidade dos clérigos do sexo masculino.

 

O número cada vez maior de devoções permitia de igual modo às mulheres uma participação também maior, uma vez que estas não requeriam as qualificações educativas que lhes eram negadas, dependendo apenas do compromisso espiritual e emocional. Uma das devoções marianas mais populares, por exemplo, era a de rezar o terço nas procissões públicas. Em Sevilha, as procissões desta natureza começaram em 1690, e eram totalmente masculinas, mas em 1758 realizavam-se anualmente 128 dessas procissões, 47 das quais eram exclusivamente femininas. As mulheres tiveram também um papel predominante noutras procissões. Em 1771, o visitante diocesano da aldeia catalã de Olesa de Montserrat ficou chocado ao descobrir que quatro mulheres transportavam velas precedendo o padre e os acompanhantes do Tabernáculo ou Leito de Nossa Senhora na procissão da Assunção.

 

Alguns autores contemporâneos afirmaram inclusivamente que as mulheres se prestavam mais do que os homens à comunhão frequente e outras devoções. Diego Pérez de Valdivia achou que tal se devia ao facto de as mulheres serem mais devotas, terem uma vida mais tranquila e menos ocasiões para pecar. Ao escrever em meados da década de 1630, decorrido não muito tempo sobre a canonização de Teresa de Jesus, a quem muito admirava, Bernardino de Villegas foi ainda mais longe. Para Villegas, as mulheres eram pelo menos iguais, e superiores até, aos homens no seu desejo de desenvolvimento espiritual. As provas disso eram ubíquas, afirmou ele, «uma vez que não podemos constatar como é raro os homens, mesmo os bem educados, frequentarem os sacramentos ou usarem as técnicas da prece mental, da mortificação e da penitência». Em troca desta devoção, Deus concedeu benefícios espirituais a mulheres como Santa Teresa, «abandonando os homens que o abandonaram e esqueceram a favor das mulheres que o adoram e servem corn maior fervor e devoção». O exemplo de Gabriela Suner, uma criada analfabeta de Maiorca, poderia indicar que no século xvm o desejo de perfeição espiritual penetrara até às classes mais inferiores de mulheres. Gabriela falou constantemente, no seu depoimento no tribunal de Maiorca, do seu «ardente desejo de fazer o que podia a fim de sobressair no amor a Jesus Cristo. Os seus esforços incluíam actos como a comunhão frequente, a confissão pelo menos duas vezes por semana e o uso da pulseira de penitente à volta da coxa (cilício), que a magoava de cada vez que andava. Tão popular se tornara a confissão entre as mulheres que as conversas sobre a confissão e os confessores eram comuns sempre que grupos de mulheres tinham ocasião de se reunir. O depoimento no caso de Fray Francisco Pons revelou três dessas conversas entre os residentes da aldeia de Manacor. Num caso, Margarita Feber y Fiol e duas outras amigas tinham ido ouvir um sermão pregado por alguns missionários numa paróquia vizinha e depois decidiram passar lá a noite, pois estavam autorizadas a fazer as suas confissões no dia seguinte. Quando se foram deitar, a conversa incidiu sobre os confessores, e as mulheres trocaram experiências e forneceram pormenores de mexericos sobre o comportamento de vários padres locais.

 

A confissão proporcionava também às mulheres oportunidades únicas de expressão pessoal e desenvolvimento espiritual. Ao mesmo tempo que se subordinava a um sacerdote, dava-lhe também a oportunidade de exteriorizar pensamentos e sentimentos que não podia expressar a mais ninguém, muito menos ao marido e à família. A interacção confessional, enquanto inerentemente desigual, implicava uma obrigação por parte do padre em escutar a sua penitente, tratando-a corn respeito efornecendoIhe orientação espiritual. Podia, inclusivamente, envolver uma certa personalização da relação confessor/penitente, dado autoridades como S. Francisco Xavier aconselharem o confessor a «admitir sinceramente os seus próprios pecados» ao penitente a fim de o induzirem a uma confissão mais completa.

 

A feminização da confissão durante este período parece provir do facto de muitos manuais de confessores dos séculos xvi e xvii terem sido escritos sobre penitentes do sexo feminino. Quando o confessor veterano Pedro Galindo mencionou os problemas dos penitentes dados à ansiedade ou dos penitentes que levam demasiado tempo a concluir as suas confissões, referia-se especificamente às «mulheres simples». Outras obras, como La esposa de Cristo instruída, de Bernardino de Villegas, ou Aviso de gente recogida, de Diego Pérez de Valdivia, foram escritas especificamente para instruir certas classes de penitentes do sexo feminino.

 

As provas da feminização da confissão provêm também do depoimento de testemunhas nos casos de aliciamento. Em 1699, quando Michaela Francisca, de 19 anos, chegou ao convento franciscano de Realejo para se confessar a Fray Gaspar Palenzuela, ele mandou-a passar à frente de «muitas outras mulheres que aguardavam». Em duas outras ocasiões, em 1703 e 1704, outras mulheres que foram vítimas das propostas de Fray Gaspar comentaram também o facto de terem sido chamadas a confessar-se antes de inúmeras outras mulheres porque eram jovens e bonitas. Quando Madalena Joffre se deslocou à casa trinitária de Santa Eulália, em Maiorca, para se confessar a Fray António Ballester durante a primeira semana da Quaresma em 1688, comentou duas vezes a respeito das «inúmeras mulheres que aguardavam poder confessar-se». Por vezes, várias mulheres organizavam-se em grupos para se confessarem num convento próximo. Em 1758, por exemplo, Maria Alonso, de 16 anos, e cinco outras amigas deixaram a sua aldeia de Hoyo de Pinares, próximo de Ávila, a fim de se confessarem na casa franciscana de Cabreros, a algumas horas de distância.

 

UmanecessidadedeparticipardaespiritualidadedaContra-Reforma, juntamente corn o esvaziamento da população masculina devido ao recrutamento militar, à emigração e à diminuição das oportunidades económicas, tudo se conjugou para originar o grande número de beatas tão característico do início da sociedade espanhola moderna. As beatas eram geralmente viúvas ou solteironas que tinham feito um juramento de castidade e se dedicavam a servir a Deus, mas não tinham entrado para uma das ordens religiosas. Algumas beatas viviam nas suas próprias casas enquanto outras se reuniam num beatério, mas, independentemente das suas condições de vida, todas tendiam a colocar-se sob a alçada de um director espiritual masculino. Chegou a ser formado um grupo de seis beatas na aldeia de Urda, na província de Toledo, por um franciscano que chegara primeiro à aldeia como missionário e recebera depois autorização para servir de vigário da paróquia. Era o seu director espiritual, ouvindo todas as suas confissões frequentes, e ficava todo enciumado se fossem procurar outro confessor.

 

Algumas beatas, assim como determinadas religiosas, achavam a relação confessional libertadora e satisfatória, especialmente quando os seus confessores eram tolerantes e amáveis. Isabel Riera, que se confessava e recebia todos os dias a comunhão de Fray Pedro Benimelis e foi encorajada por ele a escrever as suas visões e profecias, conseguiu até adquirir uma certa ascendência sobre ele e formar um pequeno grupo de discípulos que lhe eram tão dedicados a ponto de queimarem incenso diante de um retrato seu.

 

No século xvii, o sacramento da penitência tornara-se parte de uma cultura popular de uma forma impossível antes da Reforma, e as mulheres em especial atendiam ao chamado à confissão mais frequente. Simultaneamente, a ênfase dada à confissão levou a pesadas exigências aos próprios confessores no sentido de se conformarem a um ideal de conduta descrito nos manuais dos confessores e apontado como exemplo nas vidas das figuras religiosas da época, No preâmbulo da obra de Jayme de CorellaPrácíica dei confessionário, o confessor, um missionário de longa data, descreveu o confessor ideal como estando sentado no lugar de Deus e exercendo a sua autoridade no confessionário. Deveria servir também de professor, instruindo o penitente sobre a maneira de viver uma vida melhor, e de médico, ministrando os remédios espirituais adequados que protegeriam contra futuros pecados. Tentaria por todos os meios levar o penitente ao arrependimento e à contrição sinceros, dizendo-lhe que «era prisioneiro dos seus próprios pecados» e salientando que pecar era «mais uma crucificação do Filho de Deus». Ao mesmo tempo, o confessor era responsável pela comprovação dos conhecimentos religiosos dos seus penitentes e sua instrução nas áreas em que apresentavam lacunas.

 

Na sua admoestação a um dominicano acusado de aliciamento e que, por conseguinte, falhara no seu papel de confessor, o advogado de acusação do tribunal de Maiorca foi ainda mais eloquente. O confessor ideal, afirmou, deveria ser «um exemplo reluzente da virtude cristã» e um «sol brilhante, bastando aparecer para pôr em fuga o erro e revelar a verdade». Não se duvida que era um padrão difícil para a maior parte dos confessores conseguir estar a essa altura, por isso Martin de Azpilcueta Navarro incluiu uma prece para os confessores no seu Manual:

 

«[...] purifica o meu coração e coloca nos recessos mais recônditos da minha alma um espírito íntegro e uma intenção honesta para que eu não me deixe tentar pela glória, o dinheiro ou um desejo de agradar e tenha sempre como minha meta principal a sua glória e o bem-estar da alma que recorre a mim para que eu a ajude.»

 

A mesma mensagem foi transmitida nos retratos idealizados de figuras religiosas de renome cujo papel como confessores constituiu prova do seus feitos espirituais. A biografia do trinitário S. Simón de Rojas, da autoria de Francisco de Arcos, salienta o seu enorme êxito como confessor e conselheiro espiritual desde a sua primeira nomeação como vigário do convento de Villanueva. Quando Rojas veio para Madrid, Arcos conta-nos que não tardou a ser inundado de pedidos de confissão, e os que se lhe confessavam atestavam «a excelente doutrina corn que os orientava».

 

Na sua biografia do jesuíta Baltasar Alvarez, que passou nove anos (1558-1567) como confessor em Ávila, Luis de Puente fala maravilhas dele como homem que mantinha uns padrões espirituais tão elevados que alguns penitentes o evitavam só para não serem criticados pelas suas faltas. Agia como um conselheiro espiritual para pessoas de todas as classes sociais e criticava fortemente os confessores que procuravam apenas os seus clientes entre os abastados.

 

Se é possível afirmar que alguém na Espanha do século xvri corporizava o ideal de bispo da Contra-Reforma, seria Thomás Carbonel, que foi nomeado para a sede de Sigiienza depois de ser confessor de Filipe In. Na sua biografia de Carbonel, Thomás Reluz refere a maneira como ele se «dedicava ao confessionário corn cuidado especial» depois de vir para Madrid em 1670. Para além de adquirir uma clientela onde se incluía uma série de pessoas influentes, Carbonel demonstrou a sua virtude ouvindo as confissões dos pobres e gravemente doentes. Estas pessoas, dizia, não tinham acesso imediato a um confessor, por isso ele serviria de seu «benfeitor espiritual». Tão grande era a sua reputação como confessor que um nobre gravemente doente e às portas da morte pediu a Carbonel que o ouvisse em confissão. Depois de Carbonel terminar, o cavalheiro estava «tão bem instruído e consolado e conformado corn a vontade de Deus que já não necessitava de mais instruções e consolo a não ser lembrar o que o venerável mestre lhe dissera naquela ocasião».
Mas a história até teve um final feliz, pois o poder taumatúrgico do sacramento, aumentado pelo facto de ser ministrado por uma figura tão virtuosa como Thomás Carbonel, operara a cura. Passado algum tempo, o nobre, recuperada agora a saúde, viu por acaso Carbonel na rua, ao passar na sua carruagem. Comentando corn os seus companheiros que «é certo que ainda há santos nesta terra e no seio desta Igreja militante porque ali vai um agora», apeou-se da carruagem e ajoelhou-se para beijar os pés do seu antigo confessor.

 

As hagiografias publicadas em Espanha deram particular realce ao êxito do santo como confessor. Por exemplo, no relato da vida do papa Pio V, feito por Fray António de Lorea, quase parece que o destaque dado ao santo na ordem dominicana e eventual nomeação como cardeal dependeram das suas virtudes excepcionais como confessor, que lhe trouxeram penitentes como D. Alonso Davalos y Aquino, marquês de Basto e governador de Milão.

 

Há muito que os historiadores do início da Espanha moderna estão conscientes da enorme infl uência exercida pelo clero sobre a administração real. Ao contrário da França, onde os clérigos eram escolhidos arbitrariamente como conselheiros de Estado ou presidentes dos parlamentos, por norma, a Espanha usava-os para presidir às Audiências e servir de presidentes ou membros dos conselhos reais. Mas em nenhum lado foi a influência clerical exercida tão fortemente como no cargo de confessor real. Conforme descrição num memorial escrito em 1718, o confessor real aconselhava o rei em todos os assuntos de Estado corn qualquer tipo de torn moral ou religioso e controlava praticamente as nomeações eclesiásticas efectuadas pela Coroa. Sem dúvida, o registo parece indicar que, corn uma ou duas excepções, os confessores reais eram tidos em tão alta estima pela sua virtude e ortodoxia que lhes podiam ser atribuídas posições importantes na administração central. Dos vinte e nove confessores reais que serviram desde o início do reinado de Fernando e Isabel até ao fim do reinado de Carlos V, cinco foram nomeados para o cargo de inquisidor-mor, enquanto outros serviram no Conselho de Estado ou como comissários das Cruzadas. Entre os confessores reais deste período incluíam-se figuras distintas como Tomás de Torquemada, o primeiro inquisidor-mor (1483-1498), cuja influência sobre Isabel foi decisiva em questões como a expulsão dos judeus. Durante o reinado de Carlos V, tanto Domingo como Pedro de Soto foram confessores reais, e enquanto o primeiro entrou em desacordo corn o seu mestre real, o segundo influenciou praticamente em todos os aspectos da política real na qualidade de confessor e membro do Conselho de Estado, ajudando a forjar uma aliança entre o papa e o imperador contra os protestantes, a negociar a Paz de Crépy e a conduzir o Concílio de Trento.
O facto de os espanhóis, de um modo geral, terem abraçado a ideia de que as qualidades de moralidade, ortodoxia e discrição que convinham a um homem para ser confessor real também os habilitavam para outro alto cargo, é demonstrado por um concurso de poesia realizado em Saragoça para comemorar a nomeação de um filho natural, Luis de Aliaga, como inquisidor-mor em 1619. Todos os poetas foram unânimes em que, como afirmou Diego Gerónimo de Aux, tal como os seus ilustres antecessores que ocuparam o cargo de confessor real, justificara já a sua elevação a chefe do Suprema, uma vez que lhe fora concedida «a maior confiança que um rei pode dar ao seu coração e alma, a chave e o porão».

 

Num nível de menor exaltação entre os párocos e frades mais humildes que ouviam confissões nos seus conventos ou coadjuvavam nas cidades e aldeias, podemos observar o modo como foi assimilado o ideal pós-tridentino. Um retrato do frade franciscano Diego Sánchez de Cubas pelo seu supervisor, Fray Luis de Soto, apresenta-o a desempenhar plenamente todas as múltiplas responsabilidades do confessor e conselheiro espiritual. Pouco depois de chegar ao convento de Buenavista, nas Canárias, Sánchez de Cubas lançou-se no trabalho pastoral corn os aldeãos. Conquistou tão rapidamente uma excelente reputação como confessor que dificilmente conseguia dar resposta à procura dos seus serviços. Mostrou-se particularmente diligente no desempenho da função de catequização exigida ao confessor da Contra-Reforma, instruindo todos na aldeia, jovens e idosos, nos dogmas da Igreja e levando livros religiosos para a capela aos domingos e dias santos para edificação dos fiéis.

 

Quando Jacinto de Belvis, na qualidade de prior e superior do convento dominicano de Yepes, próximo de Toledo, levou a efeito uma série de visitas a fim de verificar as actividades de Fray Gerónimo de los Herreros, que era cura-adjunto em Villaseca, os aldeãos pediram-lhe que o deixasse permanecer no seu cargo porque «a regeneração moral de muitos da aldeia dependia do seu exemplo». O testemunho dos aldeãos revelou que Gerónimo de los Herreros compilara um invejável registo do serviço prestado à comunidade. Intensificara bastante a celebração dos Dias Santos e introduzira as devoções públicas do terço, ao mesmo tempo que se esforçara por ensinar o catecismo e os rudimentos da fé aos aldeãos. Ensinara igualmente as crianças da aldeia a ler e a escrever e a gramática aos adultos. Sabia-se que se levantava da sua cama de doente para celebrar a missa e ouvir confissões e foi tal o seu êxito como confessor e conselheiro espiritual que os aldeãos o vinham consultar a qualquer hora do dia ou da noite. Em face deste registo, não surpreende que todos os frades do seu convento estivessem de acordo em que a sua «vida exemplar» tornava muito mais benéfica a continuação do seu trabalho pastoral na aldeia do que o seu regresso ao convento.

Por vezes, o zelo de um confessor podia causar-lhe problemas. Durante o seu trabalho pastoral nas Canárias, o franciscano Pedro Sobreras adquiriu tamanha reputação como confessor que todas as pessoas importantes da ilha o queriam ter por conselheiro espiritual. No entanto, quando foi prelado-adjunto da aldeia de Arucas, fez inimigos em virtude das suas denúncias directas de relaxamento moral na aldeia. Durante o seu julgamento por aliciamento em 1582, conseguiu provar que quatro das seis testemunhas de acusação eram inimigos que fizera na aldeia. Infelizmente para o meticuloso prelado, as duas restantes testemunhas bastaram para que o Santo Ofício o condenasse.

 

A maior prova de confiança que as pessoas podiam depositar nos seus confessores e na crescente importância dos confessores nas suas vidas é demonstrada pela maneira como começaram a procurá-los para toda uma série de problemas pessoais e familiares. Por vezes, os confessores eram chamados a ajudar a família nas dificuldades económicas. Antonia Grande y Mirona, cujo marido possuía um pequeno cargueiro, veio a Fray Gerónimo Vicente Mayano na esperança de que o influente dominicano conseguisse ajudar o marido em alguns problemas do negócio. Francisca Jiménez, uma viúva empobrecida de 60 anos que vivia em Toledo, entrou no confessionário do convento agostiniano ali existente simplesmente para pedir esmola a Fray Fernando de Ia Rosa.

 

As mulheres jovens consultavam por vezes os seus confessores a respeito de pretendentes matrimoniais. Juana Pita passava a maior parte do tempO-no confessionário a discutir a sua relação corn um sapateiro que manifestara o desejo de a desposar. O seu confessor, Fray Miguel Miguel, ofereceu-se para se encontrar corn o jovem na sua cela e aconselhou-a a não aceitar um anel ou presentes dele até o pai aprovar a união. Alguns confessores estavam até dispostos a servir de casamenteiros. Ana de Artiega, uma viúva de 48 anos que vivia em Madrid, levou a sua filha Manuela, de 24 anos, a Atilano Ortiz, que era cura-adjunto na paróquia de San Gines, a fim de lhe pedir que lhe arranjasse um marido à altura. Nem a mãe nem a filha tinham qualquer intenção de se confessar quando entraram no confessionário corn Ortiz, e ficaram-Ihe ambas extremamente gratas corn o presumível marido para a rapariga.

 

As pessoas também procuravam os seus confessores para conselhos e orientações noutras questões familiares. Em 1680, por exemplo, Isabel Mennassar foi aconselhar-se corn Juan Llobera, prior do convento mercedário em Lãs Palmas, a respeito do sobrinho do marido. Parece que o jovem, que era frade, abandonava frequentemente o convento e andava na companhia de pessoas seculares, por isso esperava que Llobera usasse a sua autoridade de prior e o seu prestígio como representante eclesiástico nas Cortes da Catalunha para o refrear e disciplinar. Andrés Coll, pároco de Manacor, em Maiorca, foi ainda mais longe do que os outros curas na protecção dada a uma das suas peticionárias. Quando Maria Fernández entrou no confessionário para saber do destino do irmão que era procurado por assassínio e roubo, aconselhou-a a não fazer nada e ir mais tarde a casa dele saber informações. Algumas horas mais tarde, quando ela e a mãe chegaram, Coll permitiu-lhes visitar o irmão, que ele escondera num quarto das traseiras.

 

Naturalmente, o enorme poder e prestígio de que os confessores desfrutavam durante a Contra-Reforma encerrava um tremendo potencial para o abuso. Alguns confessores serviram-se da sua posição num esforço para encorajar outros assuntos clericais. Em 1778, o comissário da Inquisição em Santa Cruz de Tenerife comunicou que um franciscano, Guillermo de Carnes y Home, visitava normalmente a cidade na Quaresma e ficava até ao fim de Maio ou princípio de Junho. Enquanto esteve em Santa Cruz, aproveitou todas as oportunidades para ouvir confissões, em grande parte, dizia-se, a fim de estabelecer contactos que aumentassem os seus proventos por sermões ou missas de corpo presente encomendados.

 

Outros confessores abusaram sistematicamente da sua autoridade considerável agindo de modo caprichoso e sem respeito pela reputação das suas penitentes. Em 1747, Bartolomé Bello, capelão do hospital de Guia, nas Canárias, escreveu ao tribunal local a informar os inquisidores sobre as actividades de Ignacio Mederos, que era adjunto da aldeia. Maria Medina informara Bello de que Mederos costumava recusar-se a ouvi-la em confissão, ou, se a ouvia, interrompia-a e obrigava-a a abandonar a igreja sem lhe dar a absolvição, mesmo diante dos outros aldeãos que aguardavam a sua vez de se confessar. Pior ainda era o facto de Mederos não respeitar o segredo do confessionário e falar abertamente sobre o que os seus penitentes lhe contavam, mesmo que os expusesse a embaraço ou humilhação. Num caso, anunciou animadamente a todo um grupo de aldeãos que ouvira a confissão de um homem que admitia manter uma relação incestuosa corn a mãe. Ao que parecia, Mederos dera pistas quanto à identidade do indivíduo e vários homens do grupo puderam descobrir quem ele era. Como consequência, foi molestado e humilhado. Contou igualmente a duas irmãs sobre a relação sexual de Maria Josepha corn um homem, embaraçando-a profundamente e comprometendo a sua relação na aldeia.

 

Encorajados pela ideia de que a humildade e a submissão eram virtudes religiosas positivas, alguns confessores, agindo na sua função de orientadores espirituais, tenderam a comportar-se corn enorme indiferença e insensibilidade em relação às penitentes. Conquanto Teresa de Jesus acreditasse na necessidade de submissão absoluta a um confessor do sexo masculino, refere sucessivamente o tratamento errado que lhe deram e a falta de compreensão das suas preocupações espirituais. Até o padre Baltasar Álvarez, que foi um dos seus melhores confessores, a obrigou a abdicar de certas amizades, muito embora a sua relação corn elas fosse perfeitamente inofensiva, lançou dúvidas sobre as suas visões e recusou os seus planos de fundar o convento de S. José. De facto, foi precisamente durante a época em que a santa mais necessitava de consolo e compreensão, em que sentia que a fé enfraquecia e a sua alma «ardia por dentro», que os seus confessores lhe foram de somenos utilidade. Nestas ocasiões, «diziam-me essas coisas e reprovavam-me corn tamanha aspereza que, quando eu falei corn eles mais tarde, se mostraram surpreendidos». A sua linguagem dura, que se pode ter destinado a mortificá-la e que noutras ocasiões ela teria suportado corn boa graça, era «pura tortura» durante estes tempos de particular tensão espiritual. Os problemas de Teresa corn os seus confessores terão sido provavelmente a razão de ela dar às prioresas dos seus conventos a autoridade de escolherem livremente confessores extraordinários para as suas freiras sem terem de pedir autorização aos superiores hierárquicos masculinos da ordem das Carmelitas. Esta medida, e em especial a cláusula que permitia à prioresa escolher os frades de qualquer ordem religiosa e não apenas entre os Carmelitas, levou a atritos corn os frades carmelitas. corn a eleição de Fray Nicolás de Jesus Maria Oria para superior da ordem em 1588, esta tensão atingiu o auge, e os frades resolveram privar as freiras do seu privilégio. Não foi tarefa fácil, porém, em virtude da firme oposição de Ana de Jesus, uma das colaboradoras mais importantes de Teresa, então prioresa do convento das Carmelitas Descalças em Madrid. Ana e um grupo de outras prioresas procurai am obter um relatório do papa Sisto V confirmando a constituição inicia’ de Teresa, e só foram derrotadas quando Nicolás de Jesus Maria as destituiu dos seus cargos, confinou Ana de Jesus à sua cela e obteve outro documento papal que restringia drasticamente os privilégios das freiras. Ana de Jesus é retratada a receber a comunhão mística no frontispício da biografia de Fray Angel Manrique. Esta comunhão mística, que experimentou durante a sua reclusão, foi alcançada sem a intercessão dos padres .

 

Desde o final do Concílio de Trento até ao princípio do século xvin, a função do sacramento da penitência no Catolicismo transformara-se profundamente. Tendo deixado de ser uma obrigação anual que as pessoas cumpriam relutantemente, se cumprissem, tornou-se uma parte essencial da nova espiritualidade da Contra-Reforma e um dos pontos-chave do reviver católico. Simultaneamente, o papel do confessor foi imensamente enaltecido. Os confessores, quer seculares quer regulares, -Ana de Jesus, uma das seguidoras mais importantes de Santa Teresa e fundadora de Conventos em França e na Flandres.

 

passaram a ocupar o centro dos esforços da Igreja no sentido de catequizar os laicos, purificar a prática da religião e disseminar as ideias heterodoxas. Mas, a fim de validar a nova importância dos confessores e da confissão, a Igreja tinha de conseguir fazer face aos inevitáveis abusos entre o clero, que ia adquirindo muito lentamente a educação e a disciplina necessárias a toda a sua função. Os confessores que revelassem os segredos da confissão em violação de todos os condicionalismos do direito canónico ou abusassem dos ou humilhassem os seus penitentes constituíam uma ameaça a todo o programa da Igreja. Talvez a ameaça mais séria fosse a colocada pelo problema do aliciamento sexual durante a confissão. Se este abuso continuasse por controlar, as massas populares alienar-se-iam do sacramento e o ataque protestante ganharia credibilidade. Foi em virtude da necessidade crítica de lidar rápida e eficazmente corn o aliciamento numa época de crise que a Igreja recorreu à Inquisição espanhola como seu instrumento de repressão mais eficiente.

A INQUISIÇÃO ESPANHOLA E A SUA JURISDIÇÃO SOBRE O ALICIAMENTO

Ao escrever, decorridos cento e trinta e um anos sobre a concessão por Pio IV, à Inquisição Espanhola, da jurisdição sobre o aliciamento, o autor anónimo de uma admoestação ao cura recém-condenado referia que as obras mais antigas da lei canónica haviam sido omissas na menção das penalidades por aliciamento porque «os legisladores não conseguiam sequer imaginar a existência de semelhantes clérigos e confessores depravados». Claro que o aliciamento não constituía nenhuma novidade quando Pio publicou a sua bula de 14 de Abril de 1561. corn efeito, o tribunal de Toledo da Inquisição espanhola julgara já um caso de aliciamento em 1530. A novidade estava na percepção por parte das autoridades da Igreja de que o aliciamento colocava uma grave ameaça a todo o programa tridentino de revitalização do sacramentalismo e alargamento da autoridade dos sacerdotes e confessores. Já em 1543, o bispo reformador de Calahorra, Juan Bernard de Luca, destacado membro da delegação espanhola ao Concílio de Trento, sugerira que as relações ilícitas entre confessor e penitente deveriam ser severamente punidas se fossem do conhecimento público, por se verificar o perigo de o próprio sacramento perder a credibilidade. Foi outro proeminente delegado espanhol a Trento, Pedro Guerrero, arcebispo de Granada, cujo memorial de 1559 a Paulo IV lançou o primeiro alerta para a frequência do aliciamento e levou directamente à bula de 1561. Todos, desde os teólogos e canonistas às próprias penitentes, estavam de acordo num aspecto: a natureza grave do delito e a necessidade de o reprimir o mais rápida e eficazmente possível. Uma indicação segura da penalização do aliciamento é a maior atenção que lhe foi dada por aqueles que escreveram sobre lei e moralidade durante o final do século xvi e o xvii. Se, por um lado, o delito não é sequer discutido no manual do confessor mais popular em meados do século xvi, Manual de confesores y penitentes, de Azpilcueta Navarro, é mencionado corn destaque numa série de manuais importantes e amplamente publicados posteriormente, incluindo-se as obras de António de Escobar y Mendoza e Juan Machado Chaves. Este último dedicou uma série de páginas no segundo volume do seu Perfecto confesor y cura de almas, de 1641, a uma extensa discussão do delito, referindo toda a legislação papal relevante e justificando a atenção que lhe dedicava comentando que «ninguém duvida da gravidade e da natureza atroz do crime cometido por um padre que se torna lúbrico e descarado durante a confissão», pois ao fazê-lo «está a pecar simultaneamente contra a caridade e a virtude e o poder provenientes do sacramento. Destacados canonistas espanhóis e portugueses, como Rodrigo à Cunha e Juan de Azevedo, convergiram também a sua atenção para o delito e publicaram quatro obras dedicadas exclusivamente ao aliciamento entre 1620 e 1726 .

 

Talvez a melhor maneira de compreender a repugnância genuína que o aliciamento suscitava sej a analisar o texto de uma série de admoestações de finais do século XVH copiadas para os livros e destinadas a constituir modelos de processo judicial nos tribunais provinciais. De acordo corn a lei inquisitorial, a admoestação era uma reprimenda anexa à sentença, destinada a levar o acusado a pensar nas consequências do seu comportamento criminoso e exortar o acusado a manter uma conduta melhor de futuro. Um olhar atento sobre estes minissermões revela quatro elementos principais que marcaram a especial atrocidade do aliciamento. Em primeiro lugar, o aliciamento implicava uma inversão radical da função específica do sacramento. De acordo corn a admoestação de 1687, Cristo instituíra a confissão para que as almas maculadas de pecado pudessem limpar-se a si próprias, mas o confessor solicitante, «ao injectar a sua imundície e obscenidade» no sacramento, transformara-o «num campo aberto à maldade e numa tempestade para a alma arrependida». Em segundo lugar, o confessor solicitante era culpado de abuso do seu cargo, pelo que a «cadeira do confessor de onde só a doutrina mais sã devia ser ensinada se tornara a sede da luxúria e da desonra e os cordeiros que deveriam ser levados ao pasto são, ao invés, lançados aos lobos e devorados». Um terceiro factor de agravamento foi envolver o abuso de um espaço sagrado, transformando «os templos que são os arsenais do céu e um baluarte contra o mal em latrinas de luxúria e obscenidade». Por último, e deve ter-se afigurado particularmente importante, em face de uma constante barreira de críticas por parte dos protestantes visando a confissão, o confessor solicitante dava consolo ao inimigo «que se rejubila por ver como os católicos profanam o sacramento que já reiteraram».

 

Se por um lado continham muitos temas idênticos e frases repetidas, as admoestações eram adaptadas à vocação religiosa específica do indivíduo transgressor. No caso de um dominicano, por exemplo, a admoestação atribuía muita importância ao facto de a ordem ter uma longa e gloriosa tradição na defesa da ortodoxia religiosa. Em face dessa tradição e da excelente formação religiosa que deve ter recebido, era ainda mais surpreendente que um representante da ordem pudesse ser responsável pela profanação do sacramento da penitência.

 

A Ordem da Santíssima Trindade dedicou-se à redenção dos prisioneiros no Norte de África durante o início da era moderna, e, quando um frade dessa ordem foi acusado de aliciamento, a admoestação não deixou de apontar que o mesmo homem que salvara corpos após os tremendos perigos e dificuldades de uma missão de salvação na Argélia se tornara um pirata no conforto e segurança do seu próprio convento, «capturando as almas a fim de as tornar escravas do mal». Em veia idêntica, um membro da Sociedade de Jesus foi chamado à atenção de que a ordem sempre se dedicara à pregação e ao trabalho missionário e era considerado pelos hereges como o seu opositor mais perigoso. Consequentemente, os crimes cometidos por um padre jesuíta dariam inevitavelmente conforto aos hereges, que exporiam toda a ordem ao ridículo.

 

Quando as admoestações incidem sobre o clero paroquiano, reflectem a amargura especial da desilusão ante o comportamento dos homens de quem se esperava a orientação de todo o esforço de reforma da cultura popular e a catequização das massas. Evidentemente, segundo uma admoestação dirigida a um cura valenciano em 1692, ele não fora preparado para as responsabilidades de um cargo tão importante, pelo que, em vez de dar à sua congregação um exemplo de virtude que validasse a sua doutrina religiosa e moral, tornara-a ineficaz. Além disso, tendo-lhe sido confiada a guarda das almas que dependiam dele como seu «born pastor», traíra a sua confiança e transformara-se no instrumento da sua perdição.

 

Na décima quarta sessão do Concílio de Trento, os padres da Igreja deixaram bem claro que o estado moral do sacerdote que proferia a fórmula da absolvição era irrelevante para a eficácia do sacramento na transmissão do perdão e da graça. Várias das admoestações, porém, mais parecem afirmar o oposto, dando a entender que o sacramento seria ineficaz sem um sacerdote moral para o ministrar, o que se constata perfeitamente numa admoestação de 5 de Junho de 1687, que declarava que a mão que ministra a fórmula da absolvição tem de ser «limpa e pura», enquanto a mão do padre solicitante é precisamente o contrário, tendo sido conspurcada pela imundície da luxúria. Essa mão, concluía o documento, nunca se poderá tornar o instrumento da limpeza espiritual. A mesma perspectiva está igualmente implícita numa admoestação de

26 de Fevereiro de 1684, a um dominicano, onde se salienta que, se o laicado quisesse retirar o pleno benefício da indústria dos sacerdotes tanto na qualidade de administradores de sacramentos como de pregadores da doutrina cristã válida, os sacerdotes teriam de se manter na pureza, «sem um átomo de corrupção».

 

Em suma, o que parece estar em causa corn o aliciamento é, nada mais nada menos, do que a credibilidade do sacramento da própria penitência e a capacidade de o sacerdote o ministrar eficazmente. corn efeito, várias das admoestações vão no sentido de os pais e maridos deixarem de mandar as filhas e esposas à confissão se os confessores concupiscentes ficarem impunes. Confrontada corn este perigo e decidida a fazer da confissão a peça central do seu novo sacramentalismo, a Igreja tinha de encontrar uma solução para este problema que não só retiraria os padres solicitantes da actividade confessional mas preservaria também a reputação do clero.

Manifestamente, os tribunais episcopais, que tinham jurisdição sobre os delitos cometidos pelo clero secular na diocese, não eram a instituição competente para resolver uma questão de tamanha importância e premência. A descrição que Juan Maldonado fez do tribunal do bispo de Burgos, publicada em 1541, dá-nos uma imagem deprimente de um sistema judicial gerido mais nos interesses dos funcionários do tribunal do que de uma preocupação corn a correcção dos vícios do clero paroquiano. A situação era muito semelhante noutras partes de Espanha. Ao longo do século xvi, o tribunal diocesano da Catalunha manteve-se bastante ineficaz e passivo em face dos delitos morais do clero. De qualquer forma, cerca de três quartos dos casos que compareciam perante este tribunal envolviam questões financeiras.

 

Outra limitação crítica dos tribunais diocesanos foi a sua dependência das multas e taxas. Os transgressores clericais que fossem tratados corn demasiada dureza podiam abandonar a diocese, privando o tribunal episcopal dos seus meios de subsistência. Consequentemente, ofensas morais graves, como a embriaguez, o jogo e o concubinato, eram punidas corn uma multa leve, e o cura podia regressar a casa - e, possivelmente, à família - e retomar o seu trabalho até chegar o momento de voltar ao tribunal eclesiástico e iniciar novamente o processo. Dificilmente esta porta giratória melhoraria o torn moral do clero paroquiano, assim como, provavelmente, não convenceria o laicado de que a justiça dispensada pelos tribunais eclesiásticos pouco mais era do que uma charada.

 

Mesmo muito depois de o Concílio de Trento ter reforçado a autoridade judicial dos bispos, a corrupção e a excessiva brandura dos tribunais episcopais continuou a ser um problema, a demonstrá-lo o caso de Juan de Villacastín, cura de San Benito. Villacastín, que foi acusado de uma série de delitos, incluindo vestuário inadequado, jogo, porte de arma carregada, celebração incorrecta da missa e aliciamento, e julgado em Ciudad Real perante o Dr. Luis de Gamin, vigário-geral da arquidiocese de Toledo, em 1585. A maior parte da sentença consistiu em diversos avisos no sentido de não ter comportamentos impróprios, como jogar, e desempenhar correctamente as suas responsabilidades clericais. Deveria igualmente manter melhores relações corn os membros da congregação. As penalidades espirituais consistiram em ter de ler e recitar os salmos na igreja durante sete sextas-feiras consecutivas e dizer quatro missas pelas almas no purgatório sem cobrar as taxas habituais. Foi também obrigado a pagar uma multa e as custas judiciais e mandado comprar meio quilo de cera para a igreja paroquial. Sobre a acusação específica de aliciamento, foi admoestado a não usar linguagem indecente ou sugestiva no confessionário e suspenso de ouvir confissões durante dois meses sob pena de lhe ser aplicada uma multa de 10 000 maravedis1.

 

Dado o facto de o tribunal eclesiástico não dispor de qualquer sistema de verificação do cumprimento das suas sentenças, o melhor será provavelmente presumir que Villacastín ignorou tudo à excepção da multa e, uma vez regressado à sua aldeia natal, retomou todos os antigos hábitos.

 

Outro grande problema ao nível do sistema dos tribunais episcopais

- e que veio impossibilitar o funcionamento eficaz da repressão de um delito como o aliciamento - foi o facto de a jurisdição do bispo não ser reconhecida em toda a sua própria diocese. Em grandes partes de Castela-a-Nova, por exemplo, os funcionários do bispo entraram em conflito corn o Conselho Real das Ordens Militares, que reclamavam jurisdição porque as ordens eram também fundações eclesiásticas. Além disso, em muitas dioceses, a jurisdição do tribunal episcopal era limitada pela autoridade rival dos arciprestes, que continuaram, mesmo depois do Concílio de Trento lhes ter retirado os poderes episcopais. Na diocese de Ávila, os bispos absentistas tinham conferido o controlo da diocese ao cabido da catedral, cujos quatro arcediagos exerciam jurisdição sobre o clero paroquiano. Quando o bispo Pedro Fernández Tremino tentou estender a sua jurisdição ao clero da catedral de 1581 a 1590, os cónegos e prebendários insistiram que eles, e só eles, tinham o direito de punir os seus colegas. Após anos de polémica, o bispo perdeu a contenda quando o núncio papal decidiu desfavoravelmente em relação a ele.

 

A jurisdição sobre o clero regular era exercida pelos superiores das ordens individuais. Pela sua própria natureza, este sistema era ainda menos eficaz do que os tribunais episcopais por depender da boa vontade dos abades ou funcionários individualmente na aplicação dos regulamentos em seu entender considerados ou não importantes, enquanto um desejo de evitar o escândalo na comunidade os poderia levar facilmente a ignorar um delito como o aliciamento. O único controlo dos delitos cometidos pelo clero regular era às visitas efectuadas pelos funcionários da ordem, mas estas tinham carácter irregular e processavam-se em longos intervalos e dificilmente poderiam ser encaradas como um meio eficaz de repressão.

 

Houve, todavia, uma instituição judicial espanhola que desfrutou de um elevado grau de popularidade e respeito e que dispôs das competências, organização e infra-estruturas necessárias a um tratamento eficaz do

 

1 Maravedi - antiga moeda espanhola que valia um cêntimo e meio. (N. da T.)

problema do aliciamento. Tratou-se, como é lógico, da Inquisição, autorizada inicialmente pela bula de Sisto IV de l de Novembro de 1478 e que entrou oficialmente em vigor no início da década de 1480. Não obstante o facto de a historiografia tradicional ter atribuído enorme importância ao Santo Ofício em Espanha, essa oposição, onde existiu, limitou-se principalmente à Coroa de Aragão e baseou-se mais num desejo de preservar os privilégios locais da usurpação do que era considerado uma instituição castelhana. No seio das massas populares e da maior parte da elite política de Espanha, especialmente em Castela, a Inquisição teve popularidade pela sua repressão dos hereges, foi respeitada pela sua probidade e temida pelo castigo duro que atribuía. Mesmo em Aragão, onde a resistência ao Santo Ofício era um problema no início do século xvi, fora aceite de uma forma tão generalizada que quando um filho de Saragoça, Luis de Aliaga, ascendeu ao cargo de inquisidor-mor, em 1619, se verificou um forte sentimento de apoio à Inquisição e comemoração da promoção de Aliaga. Um dos poemas no compêndio de Luys Diez de Aux, publicado nesta ocasião, condensa provavelmente o que muitos pensavam a respeito de uma instituição que sentiam como unicamente espanhola:

 

Ó Santa Inquisição, Glória de Espanha l

 

Que banhas as nossas almas de água celestial l

 

E sustentas a fé cristã l

 

Cujo nome só por si faz tremer l

 

Tão poderoso é o nosso virtuoso tribunal l

 

Biltres vis e dissimulados.

 

A aceitação quase inquestionada do Santo Ofício em Espanha será talvez melhor condensada no famoso provérbio «Con el Reyycon Ia Santa Inquisición, chitón!» («Sobre o Rei e a Santa Inquisição, nem uma só palavra!»). Claro que este provérbio se refere ao respeito sentido em relação a duas das instituições mais amplamente aceites no início da era moderna em Espanha: a monarquia e a Inquisição, muito embora o apoio à segunda fosse provavelmente mais forte conforme revela o facto de, durante a Revolução Comunero de 1520 a 1521, a revolta da Catalunha em 1640 e a agitação que se seguiu à ocupação de Aragão pelas tropas aliadas durante a Guerra da Sucessão espanhola, as multidões hostis à monarquia se absterem de atacar o Santo Ofício. Para além do respeito, claro que a Inquisição inspir av a uma certa dose de medo. Quando Miguel Mir regressou a Manacor, depois de ter ido depor perante o tribunal de Maiorca, comentou corn um amigo que lhe perguntara como fora tratado que estivera a tremer o tempo todo. No caso de Mir, o temor inspirado pelo Santo Ofício tivera um efeito positivo, dado que o levara finalmente a admitir que mentira no depoimento anterior prestado contra o Dr. Andrés Coll.

 

De início, a Inquisição espanhola foi fundada para resolver o problema da recaída religiosa entre os judeus convertidos e continuou a preocupar-se corn a supressão da heresia religiosa ao longo da sua existência como instituição. Mas, em meados do século xvi, em particular depois de Filipe II incorporar os decretos do Concílio de Trento na legislação espanhola de 12 de Julho de 1564, a Inquisição empreendeu o esforço gigantesco de recristianizar a sociedade e eliminar aqueles elementos da cultura popular que tresandavam a blasfémia, superstição ou desrespeito pelo sagrado. De facto, entre 1540 e 1700, os chamados delitos menores cometidos principalmente pelos cristãos velhos constituíram 57,8% dos

44 674 casos julgados. Além disso, conforme às preocupações em Trento a respeito da deficiente preparação educativa e baixo nível moral do clero, foi alargada a autoridade da Inquisição no sentido de abranger certos delitos frequentemente cometidos pelos padres, em especial propostas heréticas, como as afirmações feitas nos sermões, conversas ou no calor dos debates académicos que pareciam variar significativamente da opinião ortodoxa. No reino de Valência, por exemplo, 30% dos casos de aliciamento julgados pelo Santo Ofício envolveram membros do sacerdócio. Por conseguinte, a jurisdição da Inquisição sobre o aliciamento deveria ser colocada no contexto da aceitação pelas autoridades da Igreja da necessidade de melhorar consideravelmente a educação e a moralidade clericais através do aumento da formação e da supervisão.

 

Independentemente do facto de a Inquisição ser um tribunal eclesiástico que usava o processo da lei canónica e, por consequência, perfeitamente aceitável para a hierarquia eclesiástica, a sua organização e estrutura tornaram-na ideal para a repressão do aliciamento. Em primeiro lugar, a Inquisição era a única instituição judicial nacional de Espanha, corn treze tribunais em Castela e Aragão em 1561 e um outro instituído em Madrid em 1638. Fora do continente, o secretariado de Aragão controlava três outros tribunais europeus em Maiorca, Sardenha e Sicília. Todos estes tribunais, bem como os instituídos nas possessões espanholas na América, estavam sob o controlo do Suprema em Madrid, que era constituído por inquisidores experientes que se haviam distinguido nos tribunais provinciais. Por sua vez, o Suprema actuava sob a direcção do inquisidor-mor, normalmente um prelado notável que servira a Coroa num ou em mais conselhos reais e estava, por conseguinte, bem familiarizado corn a política real.

 

Na qualidade de instituição nacional, a Inquisição podia funcionar corn uma consistência e uma eficiência impossíveis apenas corn os tribunais eclesiásticos, corn a sua jurisdição fragmentada e muitas vezes sobreposta. A direcção central garantia igualmente a uniformidade dos processos judiciais em todo o âmbito territorial da monarquia espanhola, ao mesmo tempo que controlava comportamentos invulgares ou aberrantes por parte dos inquisidores.

 

Além disso, como dispunha de vários tribunais que abrangiam toda a monarquia, a Inquisição encontrava-se numa excelente posição para controlar os movimentos dos indivíduos acusados de aliciamento através do intercâmbio entre os tribunais. Este aspecto era particularmente útil noque se refere aos frades das ordens mendicantes, que eram transferidos corn frequência de convento pelos seus superiores. A partir de princípios do século xvn, instituiu-se o hábito de os tribunais provinciais fazerem circular os nomes das pessoas que haviam sido acusadas de aliciamento por uma testemunha, na esperança de se descobrir algures que tivera lugar outra acusação. Por vezes, todos os tribunais enviavam circulares, e outras vezes apenas os que se situavam na área imediata. Em 1685, por exemplo, o tribunal de Maiorca enviou um pedido de informação sobre Fray Pedro Joseph Pons aos tribunais de Barcelona, Valência e Saragoça. Em meados do século xvin, os tribunais enviavam também descrições físicas detalhadas dos suspeitos, a fim de ajudarem na identificação.

 

A exploração em comum dos recursos por parte dos tribunais provinciais poderia de igual modo revelar-se extremamente útil na detenção de suspeitos como Fray Guillermo de Carnes y Home, em cujo caso uma testemunha-chave mudara de domicílio. Carnes y Home nascera em La Orotava, na ilha de Tenerife, e, exceptuando breves períodos de residência emLaLagunaparareceberinstruçãoemFilosofiaEscolástica,mantivera-se na casa agostiniana situada mesmo à saída da aldeia. Em 1765, o tribunal recebera provas contra ele de Antonia Bautista, mas não pudera actuar sem uma segunda testemunha. Em 1748, porém, a sorte sorriu ao tribunal corn a recepção de uma carta da instância de Sevilha, solicitando informações sobre um tal Fray Guillermo, contra o qual fora recebido o depoimento de Juana Díaz Sol, anteriormente residente em La Orotava e morando actualmente em Cádiz, que ficava no distrito de Sevilha. Ao que parece, Juana Díaz Sol efectuara recentemente uma confissão geral corn um monge capuchinho numa missão em Cádiz, e, quando ele lhe perguntou se alguma vez tivera relações sexuais corn uma pessoa que jurara voto de castidade, ela revelara a história de um incidente de aliciamento envolvendo Carnes y Home ocorrida seis anos antes, quando vivia ainda nas Canárias. O monge capuchinho aconselhou-a logo a ir ao tribunal de Sevilha e prestar depoimento, e, depois de o terem recebido, os inquisidores de Sevilha escreveram ao tribunal das Canárias a pedir informações. O retrato pormenorizado do acusado, enviado de Sevilha, que o descrevia como alto e corpulento, de tez pálida e rosto redondo e bexigoso; olhos salientes; e um nariz grande a achatado, bastou para que o tribunal das Canárias esclarecesse o equívoco e o identificasse como a pessoa contra a qual fora recebido o depoimento em

  1. Como Carnes y Home vivia ainda em La Orotava, o tribunal escreveu a Sevilha solicitando uma transcrição do depoimento de Juana Díaz Sol, que foi recebido em 11 de Maio de 1784.

 

Outro caso bem sucedido de cooperação entre os tribunais envolveu o frade capuchinho Isidro de Arganda. Em Maio de 1753, Arganda vivia na casa da ordem em El Pardo e era vigário na aldeia quando o tribunal de Toledo, em cujo distrito se situava El Pardo, recebeu o primeiro depoimento contra ele. Depois de enviar a sua descrição aos outros tribunais castelhanos, Toledo recebeu uma carta do tribunal de Cuenca referindo que Arganda fora denunciado por uma mulher da aldeia de Jadrique, na parte norte do distrito. Como Arganda passara vários anos na casa capuchinha Daquela aldeia e exercera a actividade de confessor enquanto lá vivera, o tribunal de Toledo solicitou que Cuenca acompanhasse este depoimento voltando a entrevistar a testemunha. O tribunal de Cuenca respondeu nomeando Francisco de Islã, o pároco de Jadrique, comissário especial. Seguindo as suas instruções, Islã entrevistou Angela Pérez e a partir do seu testemunho pôde convocar nada mais nada menos que outras oito mulheres que referiram experiências idênticas. Todas estas provas foram enviadas ao tribunal de Toledo, que ordenou a prisão de Arganda.

 

A direcção central resultou também numa maior eficiência organizacional. Afim de conduzir as actividades dos tribunais provinciais, o Suprema emitiu uma série de minutas administrativas chamadas cartas acordadas, que foram copiadas para livros de registo especiais e guardadas no arquivo de cada tribunal. Numa indicação de como se tornara importante a repressão do aliciamento, a carta acordada de 15 de Agosto de 1601 ordenava a todos os tribunais provinciais que mantivessem livros de registo especiais daqueles contra quem tinham sido recebidas provas de aliciamento. Estes livros estariam à disposição dos outros tribunais, que solicitariam periodicamente cópias suas, a fim de actualizarem os seus ficheiros. Em 16 de Fevereiro de 1644, por exemplo, o tribunal de Múrcia apresentou ao tribunal de Toledo, a rogo deste, uma cópia do livro de registo dos anos de 1602 a 1643 e pediu idêntico procedimento da parte de Toledo.

 

O que um notável estudioso da Inquisição descreveu recentemente como «uma rede de agentes única na Europa ocidental» não passou de mais um elemento organizacional que colocou a Inquisição acima dos seus rivais seculares ou eclesiásticos. Cada tribunal dispunha de um corpo de assistentes leigos e clericais não remunerados - familiares, comissários e notários - espalhados pelo seu distrito, aos quais era possível solicitar serviços como a prisão e escolta de prisioneiros e a entrevista de testemunhas. Estes funcionários serviam também de olhos e ouvidos do tribunal no distrito, recebendo corn frequência informações que transmitiam ao tribunal para posterior acção. Muito embora o presente estado da investigação não nos permita chegar a qualquer número final para o total destes funcionários não remunerados, podemos dizer que pelo menos alguns tribunais possuíam números substanciais ao longo de todo o período sobre o qual nos estamos a debruçar. No distrito de Valência, por exemplo, uma visita efectuada por um membro do Suprema em 1567 revelou 1638 familiares no distrito, corn 183 na própria cidade de Valência. Enquanto os números totais dos que prestavam serviço em qualquer altura terão provavelmente diminuído no século XVH, é possível identificar cerca de 1797 indivíduos. Mesmo no século xviii, não obstante o declínio da importância geral e da enorme popularidade do Santo Ofício, o tribunal de Valência conseguiu manter números significativos pelo menos até 1748, corn cerca de 356 familiares a prestar serviço naquele ano. Os números de outros tribunais são em parte irregulares ou inexistentes em face da extraordinária contrariedade do tribunal provincial em fornecer informações ao Suprema sobre os números, mas sabemos que o tribunal de Toledo tinha 99 familiares no seu distrito já em meados do século xvin, provavelmente mais do que conseguia controlar no seu modesto nível de actividade. No distrito da Galiza, que era consideravelmente mais pobre do que os outros dois, a rede de familiares era um pouco mais pequena, atingindo um máximo de

497 no final do século xvi.

 

Muito embora os familiares raramente servissem de espiões ou agentes do Santo Ofício no sentido da recolha de informações, como a historiografia mais antiga nos levaria eventualmente a acreditar, podiam servir e serviam de condutas de informação ao tribunal. Escolhidos normalmente entre os homens corn algumas posses e proeminência local, a sua relação corn o Santo Ofício era sempre bem conhecida e os indivíduos procuravam-nos esporadicamente para prestar depoimentos ou tentar aconselhar-se no que se referia aos casos de aliciamento.

 

Ainda mais importantes para a manutenção da actividade do Santo Ofício no interior do distrito foram os comissários e notários. Um comissário tinha autoridade para receber informações e transmiti-las ao tribunal e proceder posteriormente ao interrogatório formal das testemunhas. Não podia efectuar uma detenção a menos que temesse que o suspeito escapasse, mas podia chamar as autoridades seculares para manterem um indivíduo à disposição do Santo Ofício. Os comissários eram geralmente escolhidos entre os detentores de benefícios, como os cónegos das catedrais ou igrejas colegiadas, e não entre os párocos, e situavam-se normalmente nas principais cidades do distrito. No de Valência, catorze grandes cidades constavam de uma lista que as autorizava a ter comissários durante o século xvin, mas apenas onze prestavam serviço em 1784. O tribunal de Valência suplementou a sua rede de comissários corn notários que desempenhavam funções idênticas, muito embora não tivessem poderes para ordenar a prisão de ninguém. Havia cerca de cinquenta notários em meados do século xvin, provindo todos das fileiras do clero paroquial.

 

Em contrapartida, no distrito de Toledo, o número de comissários parece ter sido muito maior, corn oitenta e dois já em 1707. Neste distrito, a função dos notários terá estado limitada ao registo dos depoimentos das testemunhas entrevistadas pelos comissários.

 

A Galiza possuía um complemento substancial de comissários, mas aqui eram sobretudo párocos, corn apenas cinco cónegos dos trinta e seis listados na arquidiocese de Santiago em 1611. Nos finais do século xvi, havia mais de quarenta comissários a prestar serviço no distrito.

 

Como destacado clérigo e funcionário importante do Santo Ofício, o comissário estaria, obviamente, em posição de receber denúncias de aliciamento. Em 1695, por exemplo, Luisa Borges conseguiu finalmente encher-se de coragem para comparecer perante o Dr. Pedro Guisla, comissário em La Palma, e depor sobre vários incidentes de aliciamento que haviam ocorrido nos últimos seis anos, envolvendo Fray Cipriano de Armas.

 

Corn maior frequência, o comissário recebia as suas informações não da própria vítima mas de outra pessoa a quem ela confidenciara. Em

1576, Ana Carreras y Gamila, primeira residente de Mahon na Menorca, falou a António Caules de uma experiência que tivera um ano antes corn o seu confessor, Fray Jaime Barcelo. Nitidamente ciente da sua obrigação de denunciar todos os incidentes de aliciamento de que tivera conhecimento, Caules dirigiu-se imediatamente ao comissário Simón Carreras e, passados quatro dias, Carreras recebeu um depoimento pormenorizado de Carreras y Gamila, que enviou então aos inquisidores do tribunal de Maiorca. Os comissários, em virtude da sua influência e conhecimento das gentes locais, estavam também em condições de informar o tribunal sobre a reputação e potencial veracidade das testemunhas. No caso de Luisa Borges, o comissário Guisla pôde asseverar ao tribunal que se tratava de uma pessoa corn uma vida sem mácula e, por conseguinte, que podia confiar-se na veracidade das suas palavras.

 

Todavia, confiar exclusivamente na rede de familiares, comissários e notários teria imposto limitações significativas à eficácia do Santo Ofício. Por um lado, estas redes nunca chegavam realmente a cobrir o território dos extensos distritos inquisitoriais. Na Galiza, por exemplo, apenas 226 dos 3511 centros populacionais do distrito dispunham de familiares, e tanto estes como os comissários estavam fortemente concentrados ao longo da costa, deixando extensas zonas do interior praticamente descobertas. Verificava-se também uma tendência geral para os números absolutos de funcionários não remunerados diminuírem. No caso da Galiza, os 497 familiares constantes de uma lista de finais do século xvi tinham baixado para 118 em 1663. No distrito da Catalunha, a partir de 1585, altura em que se estabeleceu um acordo proibindo os funcionários públicos de se tornarem familiares, o Ofício perdeu considerável prestígio e, em 1632, o tribunal contava apenas corn 5 familiares na cidade de Barcelona.

 

A fim de se fazer ouvir em todo o distrito, a Inquisição cedo se voltou para o tribunal da consciência, aproveitando os confessores e a confissão como forma de obrigar os indivíduos a virem denunciar as heresias de que tivessem conhecimento. Assim, para a Inquisição, bem como para a Igrej a em geral, a confissão assumiu uma função reguladora e prescritiva nunca antes alcançada, tornando ainda mais essencial à Inquisição lançar-se na luta contra tudo o que tendesse a minar a confiança pública no sacramento.

 

Já em 1500, os inquisidores que efectuavam as suas visitas anuais ao distrito estavam instruídos no sentido de instituírem uma declaração pública ordenando a todos os que tivessem conhecimento de heresias que as ousassem revelar. Esta iniciativa veio a ser conhecida como o Édito de Fé, e era publicado anualmente no segundo domingo da Quaresma na cidade-sede do distrito inquisitorial e noutros locais onde os inquisidores efectuassem as suas visitas periódicas. Foram também enviadas aos comissários cópias impressas do édito para distribuição pelas igrejas paroquiais, conventos e mosteiros de todo o distrito.

 

A inclusão definitiva do aliciamento no édito a partir de 1576, sob o título de «heresias diversas», deu à Inquisição uma nova arma poderosa. Os indivíduos eram instruídos no sentido de denunciarem qualquer confessor, secular ou regular, que tivesse tentado, por palavras ou actos, induzir a sua penitente a cometer qualquer acto de lascívia ou imodéstia quer durante quer na estreita proximidade da confissão. Esperavam-se denúncias nos seis dias imediatos, sob pena de excomunhão. Era uma ameaça que deveria ser encarada seriamente, como veio a descobrir Catherina Puig, a filha de 18 anos de um mestre tecelão de Palma, quando compareceu perante o tribunal de Maiorca a fim de depor contra Pedro Onofre Martin, detentor do benefício da catedral. Depois de confessar que tivera conhecimento do Édito de Fé mas não conseguira fazer a denúncia por receio dos pais, o inquisidor informou-a de que estava excomungada e teria de procurar o seu confessor para receber a absolvição. A reforçar poderosamente o édito estava o facto de os confessores serem instruídos no sentido de não darem a absolvição às penitentes que tivessem conhecimento de casos de aliciamento enquanto não os denunciassem ao Santo Ofício. Os confessores que por qualquer motivo concedessem a absolvição a semelhante penitente incorriam também na excomunhão. Além disso, era o próprio Santo Ofício que tinha autoridade para passar licenças aos confessores para absolverem as suas penitentes depois de recebido o seu testemunho.

 

Para alguns indivíduos, não mais de 15 das 560 testemunhas, pelos meus registos, o Édito de Fé e o Anátema que se lhe seguia eram suficientes para os levarem a procurar nas suas consciências e irem voluntariamente ao tribunal ou a um dos seus representantes locais. Lúcia Hernández, uma mulher jovem de Piedrablanca, no distrito de Toledo, dirigiu-se a um comissário próximo a fim de denunciar Gabriel de Osca, seu pároco local, depois de ter ouvido proclamar o édito, porque se apercebera de que o que sucedia entre eles no confessionário era «contrário à nossa fé». Em alguns casos, ouvir o édito era suficiente para lembrar ao indivíduo algo que há muito podia vir reprimindo. Francisca de Melo, uma prostituta de 39 anos, de San Sebastián de Gomera, nas Canárias, foi procurar o seu confessor pouco depois de ouvir proclamar o édito na igreja paroquial, e quando ele lhe perguntou se tinha conhecimento de algo que se inserisse nas disposições do mesmo, ela falara-lhe de um incidente ocorrido há dez anos corn Fray Cipriano de Armas. O confessor alertou-a para a sua obrigação de informar o Santo Ofício, dado o que, no dia seguinte, compareceu perante o comissário Manuel de Milan.

 

corn muito maior frequência, porém, era o confessor quem, através de persuasão, negação imediata da absolvição ou de ambas, levava a efeito a apresentação das provas da penitente ao Santo Ofício. De 560 testemunhas, 191, ou seja, 34%, eram ou persuadidas ou, o que sucedia corn maior frequência, obrigadas a depor perante a Inquisição. Típica deste último grupo foi Isabel Baxach, que se apresentou ao inquisidor de Maiorca, Baltasar de Prado, na sessão da manhã do dia 27 de Março de

1670, para denunciar Fray António Planes depois de ver ser-lhe negada a absolvição pelo seu confessor, a menos que o fizesse. Alguns confessores, movidos pelas tradições da sua ordem e encorajados por manuais dos confessores como Examen y prática de confesores y penitentes do jesuíta António de Escobar y Mendoza, eram zelosos na insistência das denúncias dos seus penitentes. Angela Mulet e Catalina Flexas y Proassi, duas das três testemunhas contra Gabriel Canevas, detentor do benefício da paróquia de Santa Cruz em Palma de Maiorca, foram mandadas ao tribunal pelo mesmo confessor, o jesuíta padre Artalano.

 

Por vezes, quando uma penitente não parecia muito disposta a tomar qualquer iniciativa própria, o confessor recorria a um misto de persuasão e coerção. Em Junho de 1741, Maria Vásquez, de 21 anos, começou a confessar-se a um velho amigo da família, Joseph Carrera, cura-adjunto da aldeia de Leganes. De acordo corn o seu próprio testemunho, as «confissões» corn Carrera transformaram-se em sessões de mexericos que se tornaram cada vez mais sugestivas e indelicadas, até um dia, quando lhe foi beijar a mão depois de receber a absolvição, ele lhe acariciar o rosto. Passados dois meses, tendo ido a Madrid, foi confessarse ao padre Joseph Beleta, que tentou persuadi-la a comparecer perante o tribunal da Corte corn as suas provas, mas ela recusou e ele viu-se obrigado a negar-lhe a absolvição. Decorridos alguns dias, arrependida e assustada, regressou e acedeu a permitir que Beteta enviasse um depoimento escrito ao tribunal.

 

A capacidade de um confessor agir discretamente a fim de transmitir informações à Inquisição em nome de alguém poderia ser realmente benéfica para uma penitente que se encontrasse numa situação difícil a ponto de lhe ser impossível abordar o tribunal ou mesmo um comissário directamente. Francisca Calvo, uma jovem casada, tivera um romance corn Fray Jayme Barcelo durante cerca de seis anos antes de se confessar a outro franciscano, Mateo Ortila, que por sinal era o superior do convento de Barcelo. Conquanto achasse que Barcelo já não a amava, receava denunciá-lo, pois, se «o marido e os parentes descobrissem, matá-la-iam sem piedade». Por conseguinte, ficou extremamente grata a Ortila quando este escreveu ao tribunal em seu nome.

 

Exceptuando mais ou menos aquelas que eram obrigadas pelos seus confessores a comparecerem perante o Santo Ofício, muitas pessoas, clérigos e laicos, estavam ávidas por denunciar casos de aliciamento. A sua inclusão no Édito de Fé tornava-o sinónimo de algumas das piores heresias conhecidas da Europa católica, heresias que o laico vulgar fora obrigado a abominar. A crescente importância do sacramento da penitência e o realce conferido à função social do confessor deu aos sacerdotes e frades um forte incentivo no sentido de garantir o comportamento adequado dos outros clérigos, uma vez que estava em jogo a reputação da própria ordem clerical.

 

Um dia, em Agosto de 1688, Joseph Calafell apresentou-se aos inquisidores do tribunal de Maiorca para denunciar um incidente que observara no ano anterior na capela do convento trinitário de Palma. Ao entrar na capela às nove da manhã de um certo dia viu Fray António Ballester que ouvia uma mulher em confissão, e enquanto Calafell observava, Ballester colocou a mão na camisa dela, tocando-lhe nos seios. Calafell informou também o tribunal de que vira Ballester conversar corn esta mesma mulher na igreja e que corria o boato de que ela era sua amante.

 

O papel do confessor na repressão do aliciamento era tão importante para o cura e detentores de benefícios na aldeia de Artá, uma aldeia no extremo oriental de Maiorca, que em 1687 convocaram uma conferência para o discutirem. Um dos presentes a esta reunião, Mateo Rosa, o vigário local, denunciou Fray Jayme Barceló ao tribunal passados alguns meses.

 

Os membros do clero regular denotavam corn frequência uma ansiedade em denunciar outros frades, num sentimento de lealdade para corn a ordem. Ao efectuar uma visita ao convento trinitário de Palma, o comissário da ordem, Fray Pedro Amaros, recebeu três denúncias de frades que viviam ali contra um outro frade, Rafael Serre. Um exemplo ainda mais claro de como o orgulho na ordem podia ocasionar denúncias ao Santo Ofício envolveu Juan de Robles e Diego de Vega, dois mercedários do convento de Toledo que enviaram um memorial ao tribunal respeitante à reputação de Fray António dei Viso, em 5 de Junho de 1632. Mais tarde nesse dia, quando Juan de Robles foi chamado ao tribunal para explicar o memorial, argumentou que ele e Vega haviam comentado muitas vezes o comportamento vergonhoso de Del Viso, que incluía abandonar o convento a qualquer hora, conviver corn prostitutas e beijar e abraçar abertamente uma mulher casada na capela. Muito embora o bispo tivesse ordenado que o chicoteassem diante de todo o grupo, nem mesmo assim o seu comportamento mudou. Ao saberem que dei Viso fora recentemente detido por acusações de aliciamento e alarmados corn o «enorme escândalo e os danos para a reputação da ordem» causados pela sua conduta, os dois frades tinham enviado o memorial informando o tribunal mais detalhadamente, sem dúvida na esperança de que viesse fortalecer o caso contra ele.

 

Os missionários revelaram-se também uma fonte de informações fértil para a Inquisição em virtude de escutarem normalmente muitas confissões durante o período na missão. A 21 de Maio de 1759, António Fernández Arcaya contou aos seus colegas do tribunal de Maiorca que na manhã anterior recebera a visita do superior da missão mercedária local, o qual acabara de ser informado por um missionário de uma missão em Sineu que Maria Zabater queria depor perante o Santo Ofício. O tribunal nomeou de imediato comissários especiais para ouvirem o seu depoimento, tendo resultado na detenção e julgamento de Fray Pablo Ginard, acusado de aliciamento.

De facto, foi precisamente esta preocupação corn a imagem e a reputação do clero que veio fornecer um outro argumento forte para que se escolhesse a Inquisição e não qualquer outro tribunal eclesiástico normal para tratar da questão delicada do aliciamento. corn o reforço da posição e o aumento da responsabilidade viera uma maior atenção por parte do laicado a ponto de, como comentou um observador franciscano corn amargura, em 1675, «como a populaça espera que nós demos um exemplo de virtude, o pecado de um recai sobre todos nós e olham-nos corn despeito e má vontade por um delito cometido por um único indivíduo». Mas o pesadelo de respeitáveis membros do clero serem levados a tribunal por aliciamento e flagelados publicamente poderia ser evitado mediante recurso à Inquisição, pois os seus procedimentos eram secretos e, inclusivamente, a condenação e reabilitação dos transgressores poderia ter lugar à porta fechada. Como comentaram os inquisidores de Palermo numa carta enviada ao inquisidor-mor Andrés Pacheco em

1625, numa altura em que o tribunal episcopal tentava julgar um caso de aliciamento, «se eles fossem ouvidos nos tribunais vulgares, essas questões, e em particular o aliciamento durante o acto de confissão, resultariam num escândalo horrível e teriam um efeito negativo, causando uma perda de respeito pelos confessores e pelo próprio sacramento da penitência». Até aqui, porém, os inquisidores sicilianos orgulhavam-se do facto de terem usado da máxima discrição nos seus processos, julgando na privacidade da sala de audiências todos os casos que lhes tinham sido levados, evitando, deste modo, «inúmeros constrangimentos». Escusado será dizer que o inquisidor-mor Pacheco transferiu toda a sua força para o tribunal de Palermo, que manteve inalterada a sua jurisdição sobre o aliciamento.

 

Segundo as disposições da bula de 14 de Abril de 1561, o âmbito real de actividade incluído no delito foi drasticamente reduzido. O aliciamento restringia-se apenas às mulheres e tinha de ter lugar durante a própria confissão. Em 1577, e mais tarde, o Suprema interpretou-as no sentido de, não havendo confissão, nesse caso, não haver penalização por aliciar as penitentes no local normalmente reservado ao sacramento. Os teólogos que se debruçaram sobre a questão explicaram depois que, se o confessor fizesse propostas sexuais quer antes de a confissão ter realmente começado quer após a absolvição, não haveria desrespeito pelo sacramento e, por conseguinte, o que sucedera estava fora da competência do Santo Ofício. Quando os teólogos abordaram a questão de quais os actos que constituíam realmente aliciamento, introduziram ainda mais restrições. Muitos defenderam que uma conversa sugestiva como elogiar a beleza da mulher ou tentar saber a sua morada para um encontro seria talvez imprudente, mas não necessariamente um pecado mortal ou uma tentação para o mal. Gerou-se também polémica sobre se o facto de um padre tentar marcar um encontro para benefício de outro ou convencer uma penitente a servir de alcoviteira seria abrangido pela definição do delito.

 

corn limitações tão importantes, era relativamente fácil aos confessores evitar o aliciamento ao mesmo tempo que continuavam a usar o confessionário para fins ilícitos. O cura de Santa Cruz na Maiorca, por exemplo, pôde garantir a uma das suas penitentes que eram livres de dizer o que quisessem no confessionário desde que não se tivessem benzido como preliminar do início da confissão. Fray Juan de Ia Olmeda, um franciscano que detinha o cargo de vigário do convento de La Concepción em Oropesa, esforçou-se deliberadamente por evitar as disposições da bula de 1561 detendo as suas penitentes antes mesmo de se começarem a confessar ou contendo-se até elas terem terminado.

 

Nos princípios do século xvn, tornara-se óbvio que a definição do delito teria de ser alargada se o esforço para o eliminar quisesse ter êxito. A 30 de Agosto de!622,opapa Gregório XV divulgou a Universi Dominici Gregis, que eliminou muitas falhas e ambiguidades da bula anterior. A partir de então, o aliciamento passaria a incluir conversas indecentes ou sugestivas e a abranger o que sucedesse antes e depois da confissão. A falsa confissão que tinha lugar no local onde a confissão era normalmente ouvida e o aliciamento de alguém por parte do sacerdote estavam também incluídos. Tanto os funcionários episcopais como os inquisidores teriam jurisdição sobre este delito, corn poderes para infligir castigos que iam do exílio ao serviço nas galés ou ao degredo e desvinculação do braço secular para execução. Deveria ser afixada uma cópia da bula na sacristia de cada casa monástica e lida em voz alta a toda a comunidade, anualmente, no mês de Agosto.

 

Eventualmente, após fortes protestos da Espanha, foram suspensas as disposições constantes da bula permitindo aos tribunais episcopais a partilha da jurisdição. Enviaram-se então instruções especiais aos tribunais provinciais incorporando as disposições da bula e fazendo especial referência ao aliciamento como cobertura de quaisquer «actos obscenos ou palavras indecentes ou provocatórias» executados ou proferidas antes, durante ou após a confissão. As testemunhas teriam de ser examinadas no mais ínfimo pormenor e de especificar o tempo, o lugar e as circunstâncias da ofensa. Era-lhes pedida a descrição explícita da conversa ocorrida, usando as palavras exactas bem como os pormenores de qualquer contacto físico corn o confessor.

 

Porém, parece ressaltar da análise destes primeiros casos que a bula de 1622 se destinou, pelo menos de alguma forma, a legitimizar as actividades em curso nos tribunais provinciais de Espanha que haviam já ultrapassado os limites do documento de 1561. Dos trinta e dois casos registados anteriormente a 1622, catorze respeitavam a acontecimentos ocorridos durante a própria confissão, mas dezasseis continham provas ocorridas antes de a confissão ter realmente início ou depois de concluída. Em 1586-1587, durante o julgamento de Gabriel de Osca, duas das nove testemunhas de acusação afirmaram que o aliciamento tivera lugar depois de concluídas as confissões e recebida a absolvição. No caso do jeronimita Fray Pedro de Villanueva, que era confessor no convento de La Concepción, nos arredores de Toledo, unia das três freiras que depuseram contra ele tinham sido aliciadas em vinte ocasiões distintas, mas sempre antes de iniciarem a sua confissão.

 

Determinados casos denotam também uma tendência para ultrapassar os limites da bula de 1561 no que se refere a palavras ou actos que eram considerados condenáveis. Em dezanove casos, as provas foram claras e inequívocas, uma vez que o acusado tivera efectivamente contacto físico corn a sua penitente. Mas em nove deles não houve contacto físico, pelo que as provas consistiam apenas na linguagem condenável, obscena ou sugestiva, corn frequência de um tipo que muitos canonistas, na realidade, entendiam não constituir prova de aliciamento. Os indícios acumulados pelo Tribunal de Toledo contra Pedro de Ortega em 1588 consistiam, na sua quase totalidade, em observações feitas durante a confissão, que ocupavam uma espécie de área cinzenta entre o incómodo e excessivamente pessoal e o nitidamente sugestivo. Apenas num caso, em que ele disse a Ana Garcia que gostaria de colocar-lhe entre os seios um ramo que ela levava, é que transpôs o limite. De outro modo, dos seus interrogatórios confessionais constava material ousado mas não necessariamente susceptível de incriminação, como o perguntar a uma penitente se queria casar corn o irmão dele, pedir-lhe a morada, dizer a uma penitente que tinha olhos e cabelo bonitos, garantindo-lhe que era perfeitamente aceitável uma mulher jovem usar maquilhagem e ver-se ao espelho, e avisar outra penitente de que confessar-se-lhe era «confessar-se ao Diabo».

 

Nos casos anteriores a 1622 incluíam-se também aqueles em que um tribunal usara provas retiradas de uma confissão falsificada ou deturpada, algo que não constava do teor da bula de 1561. Por exemplo, em 1576, Catalina Cernuscolo veio ao tribunal de Toledo denunciar Fray Luis de Valdivieso, um agostiniano de Madrid que a abordara enquanto ouvia missa na capela do seu convento, pedindo-lhe para falar corn ela no confessionário, e posteriormente fizera uma série de comentários impróprios sem iniciar sequer o processo de confissão. Ao que se julga, Catalina Cernuscolo era uma das quatro testemunhas contra Fray Luis, de modo que ele acabaria por ser condenado, mas o próprio facto de o seu depoimento ter sido aceite e incluído na acusação indica que o tribunal se esforçava por ultrapassar as barreiras que lhe haviam sido impostas em 1561. Além disso, no princípio do século XVH, este esforço contou corn o forte apoio de teólogos como Fray Pedro de Ledesema, que, num livro publicado em 1608, descrevia o aliciamento como linguagem ou cornportamento obscenos perpetrados ou durante ou logo a seguir à confissão. Se, por um lado, alargavam consideravelmente a definição do delito a fim de incorporarem um maior âmbito da actividade, as disposições constantes da bula de 1622 estavam, em si, abertas à interpretação e constituíam um campo fértil de especulação e controvérsia tanto no seio do próprio Santo Ofício como na comunidade mais alargada dos escolásticos e canonistas. A despeito destas discordâncias, porém, foram criados parâmetros bem nitidamente definidos dentro dos quais a Inquisição exerceria a sua jurisdição recém-expandida, permitindo-lhe aumentar consideravelmente a perseguição movida aos transgressores. A julgar pelo tipo de provas incluído no processo-crime dos indivíduos acusados e nos comentários dos próprios teólogos da Inquisição (califícadores), parecia existir um consenso generalizado de que qualquer tipo de linguagem indecorosa ou sugestiva proferido logo a seguir ou durante o sacramento constituía prova suficiente para acusação, não obstante as opiniões de certos teólogos e mesmo da Inquisição romana de que o que contava era a intenção e não as próprias palavras.

 

A questão do período de tempo que tinha de decorrer de facto entre uma confissão e iniciativas de carácter sexual por parte do confessor era muito mais difícil e tendia a dividir as opiniões no seio do próprio Santo Ofício. Num extremo estavam os advogados de acusação, como Luís António Gomes Cabrero Colodrero, do tribunal deMaiorca, que afirmavam que qualquer abordagem sexual feita por um confessor constituía aliciamento desde que mantivesse uma relação confessional corn a sua penitente independentemente do intervalo entre a confissão e o aliciamento. Regra geral, os teólogos ao serviço da Inquisição rejeitavam esta posição e defendiam uma ligação relativamente estreita entre o aliciamento e a confissão, que não ultrapassasse o próprio dia. Os calificadores que analisaram as provas apresentadas pelo advogado de acusação no caso de Fray Pablo Ginard, por exemplo, lançaram uma acusação de que «alguns dias» depois de confessar uma das suas penitentes fora a casa dela corn fins ilícitos, ao mesmo tempo que aceitava plenamente outra ocorrência em que tivera relações sexuais corn ela nessa mesma tarde. Este acontecimento, de acordo corn os teólogos, constituía «a forma mais obscena de aliciamento porque ocorrera imediatamente após a confissão».

 

Além disso, ao contrário de Cabrero Colodrero, cujas acusações incluíam comportamento imoral que não tinha qualquer relação directa corn a confissão, os teólogos defenderam a ideia do aliciamento como manifesto desrespeito pelo sacramento e, por conseguinte, uma forma branda de heresia. Em 1721, os calificadores rejeitaram uma acusação contra Fray Jaime Massanet porque, muito embora ele tivesse tentado violar uma das suas penitentes na tarde do dia em que ela se lhe confessara, nada dissera durante a confissão a respeito das suas intenções nem tão-pouco chegara a fazer comentários quando ela lhe contara um sonho lascivo que tivera na noite anterior. Porém, estes mesmos calificadores rejeitaram umanoção particularmente insidiosa defendida por alguns teólogos e afirmada por alguns confessores acusados de que, se interviesse um novo elemento entre a confissão e o aliciamento, como uma mudança de local e uma conversa sobre qualquer outro assunto, não se aplicariam as disposições da bula de 1622.

 

Dotada de uma definição consideravelmente alargada do delito e de elementos estruturais e operacionais que faziam dela um instrumento ideal de repressão, a Inquisição espanhola conseguiu facilmente a aquiescência das autoridades episcopais perdendo o que outrora fizera parte da sua jurisdição. O sucesso da Inquisição foi reconhecido por Isidro de Aliaga, arcebispo de Valência, numa carta que escreveu ao irmão, o inquisidor-mor Luis de Aliaga (1619-1621). Em resposta a um pedido do tribunal de Valência para que abrandasse o controlo sobre um cura que fora preso pelo seu vigário-geral por acusação de aliciamento, Isidoro de Aliaga defendeu o direito do tribunal episcopal de julgar a transgressão, afirmando que a Inquisição nunca dispusera de jurisdição exclusiva. Mas admitiu corn pesar que, como consequência da inclusão do aliciamento nos Éditos de Fé, corn a sua insistência no sentido de os confessores não poderem absolver os seus penitentes a menos que eles comparecessem perante o Santo Ofício, «não surpreenderá que, dado o Santo Ofício ter recebido a sua jurisdição sobre o aliciamento, muitos tribunais eclesiásticos normais nunca trataram de um único caso».

 

Na verdade, em finais do século xvii, o reconhecimento pelos bispos da jurisdição da Inquisição fora tão completo que por rotina iam transmitindo as provas ao Santo Ofício sempre que elas lhes chegavam. Em 1661, por exemplo, o bispo das Canárias apresentou provas no tribunal das Canárias contra Diego Clavijo Betancor, que recebera durante uma visita recentemente efectuada à ilha de Lanzarote. Esse respeito episcopal pela jurisdição da Inquisição manteve-se firme, mesmo quando se tornou uma instituição quase moribunda durante o princípio do século xix, a demonstrá-lo o incidente ocorrido em Valência, em 1814. Em Julho desse ano, Maria Masía enviou uma carta ao Dr. António Roca y Pertusa, vigário-geral da arquidiocese, solicitando autorização para prestar depoimento perante um notário do tribunal eclesiástico referente a um assunto importante. O vigário-geral acedeu prontamente ao pedido, mas, quando se apercebeu de que o depoimento dela envolvia aliciamento, enviou-o rapidamente ao tribunal «para que vossas excelências possam continuar a fazer uso dos vossos poderes».

 

As relações corn as ordens religiosas foram consideravelmente mais difíceis. Os superiores das ordens guardavam ciosamente a sua autonomia das interferências externas e estavam extremamente preocupados corn a manutenção da reputação das ordens, dada a competição feroz por penitentes. A resultante campanha de obstrucionismo só poderia ser combatida corn a tomada de medidas mais duras pelo Santo Ofício. Em

1582, o Suprema ordenou ao tribunal de Toledo que admoestasse Pedro de Ávila, superior do convento franciscano de Guadalajara, por ter procedido contra Fray Sebastián de Hontora, sob acusação de aliciamento. Alguns dias mais tarde, Pedro de Ávila foi chamado ao tribunal, onde o informaram claramente de que de futuro não deveria interferir em quaisquer assuntos que fossem da jurisdição do Santo Ofício.

 

A questão da jurisdição da Inquisição sobre os regulares nos casos de aliciamento só ficou decidida corn a resolução por Roma de uma disputa que envolveu dois padres jesuítas afastados de Espanha pelos seus superiores depois de serem considerados culpados do delito pela ordem. A Inquisição respondeu processando o provincial jesuíta de Castela e dois dos seus assistentes. Mas a ordem interveio junto de Sisto V, que chamou a si o caso e ameaçou o inquisidor-mor Quiroga das penas mais extremas se protestasse. Os jesuítas tentaram então obter uma isenção geral da jurisdição inquisitorial aplicável a todas as ordens religiosas. Em 1591, conseguiram um breve papal que reduziu drasticamente a autoridade da Inquisição, ordenando que nenhum padre deporia perante qualquer tribunal régio sobre questões concernentes à sua pessoa ou a qualquer outro membro da ordem, devendo, ao invés, dirigir-se ao núncio papal. A Inquisição espanhola contava, porém, corn amigos nas altas esferas e logrou exercer forte pressão sobre o Vaticano. corn a liderança dos jesuítas profundamente dividida e recusando-se o vice-rei espanhol na Sicília a confirmar os seus privilégios, foi só uma questão de tempo até a Inquisição prevalecer. A 3 de Dezembro de 1592, a Confederação Romana da Inquisição, na presença de Clemente VIII, emitiu um decreto declarando que os superiores dos regulares não podiam exercer jurisdição sobre os membros das suas ordens. Paulo V confirmou-o mais tarde, em 1605, ao revogar sumariamente a jurisdição dos superiores em todas as questões relativas à Inquisição e novamente na bula de 1622, que transformou os inquisidores em juizes especiais nos casos de aliciamento corn jurisdição sobre todo o clero, tanto secular como regular. ”’Xf.«mt

Resolvida a questão da jurisdição, a luta entre as ordens avançou para a frente da batalha, pois, por uma série de razões, corn frequência os frades e os seus superiores tentavam impedir o Santo Ofício de obter as provas necessárias para efectuar a acusação de um membro seu. Por vezes, este obstrucionismo revestiu a forma de um frade tentar pura e simplesmente proteger um dos seus colegas monásticos. Quando Mariana Gómez y Forana foi visitar Fray Juan Mora ao convento agostiniano de Palma, no dia a seguir a outro agostiniano ter tentado seduzi-la no confessionário do convento, pediu-lhe que não mencionasse a ninguém o que sucedera e especificamente que não se dirigisse ao Santo Ofício corn a informação.

 

Noutros casos, foram os funcionários da ordem os responsáveis pela obstrução do trabalho do Santo Ofício. Quando Fray Pedro Joseph Pons, da casa agostiniana de Menorca, cheio de remorsos, quis comparecer perante o Santo Ofício para confessar um caso de aliciamento, os seus superiores recusaram-se a deixá-lo ir, não obstante os seus repetidos pedidos.

 

Por vezes, a intervenção dos superiores revestia uma forma extrema e até violenta. Quando Fray Francisco de San Juan Bautista, que vivia na casa agostiniana de Talavera de Ia Reina, denunciou Fray Alonso de Ia Resurrección ao tribunal de Toledo por aliciamento, os superiores colocaram-no numa cela e mantiveram-no acorrentado durante quarenta dias, até que finalmente conseguiu fugir. Quando o tribunal tentou que a casa agostiniana de Toledo o aceitasse, o seu prior recusou corn base no facto de ele ser «indiscreto» e ter desobedecido às regras da ordem.

 

Os superiores agiam também no sentido de evitar a possibilidade de actividade inquisitorial, transferindo os frades que pudessem apresentar provas concernentes ao aliciamento. Quando o confessor regular de Isabel de Tena, Fray Francisco de Ias Llagas, foi transferido da casa franciscana em Hinojosa, ela começou a procurar Martin Colero, outro franciscano que vivia na mesma casa. Porém, quando ela contou ao seu novo confessor que Francisco de Ias Llagas lhe fizera propostas sexuais durante a confissão, ele declarou que teria de se aconselhar corn o seu superior, Fray Pedro de Ias Missas, a fim de saber se a poderia absolver. Quando De Ias Missas teve conhecimento da situação, ficou extremamente alarmado e pediu a Isabel de Tena que viesse ao convento, onde a entrevistou, dizendo-lhe que o que lhe sucedera no confessionário não tinha importância, e avisou-a para que não comentasse nada corn ninguém sobre o assunto. Passados alguns dias, De Ias Missas foi mais longe e ordenou a transferência de Colero para a casa franciscana em Puebla de Alcocer, a fim de, como explicou Colero a Isabel, «evitar que eu deponha sobre um certo assunto que discuti corn o meu superior».

Não obstante, apesar da oposição esporádica de certos funcionários, a Inquisição pôde afirmar a sua jurisdição efectivamente sobre o clero regular. Para já, a partir de 1592, e por certo de 1622, as ordens não tinham qualquer suporte legal para impedir que a Inquisição investigasse e punisse o aliciamento entre os seus membros. À parte isto, a Inquisição revelou-se bastante diligente na protecção da sua exclusividade, punindo ou humilhando aqueles funcionários que procurassem obstruir a sua acção. Fray Pedro de Ias Missas pagou pela sua temeridade ao ser preso e ficar detido para interrogatório perante o tribunal de Toledo, enquanto Fray Francisco de Ias Llagas, o frade que ele tentara proteger, foi levado a julgamento e condenado, não obstante os seus esforços.

 

Mas o que colocou realmente limites à eficácia do obstrucionismo entre os regulares foi a atitude tanto das penitentes como dos outros monges. As penitentes estavam constantemente a ser expostas ao Édito de Fé, em que o aliciamento era descrito como uma forma de heresia, e pedia-se-lhes que denunciassem qualquer padre, secular ou regular, culpado do delito. Como resultado, as penitentes revelavam, e justificadamente, cepticismo quando algum sacerdote, inclusivamente o superior de um convento, lhes dizia que o comportamento explicitamente sexual ou a linguagem indecorosa e sugestiva no confessionário não tinham a menor importância. Penitentes como Isabel de Tena estavam também preocupadas corn a validade das suas confissões e a absolvição que recebiam. Esta ansiedade e segurança levou-as de confessor em confessor, e acabaram por encontrar um que se recusasse a absolvê-las a menos que se dirigissem ao Santo Ofício. Além disso, como vimos já, frades como Francisco de San Juan Bautista mostravam-se zelosos pela fé e ávidos por ajudar a Inquisição, mesmo incorrendo em grave risco. No outro caso, a decisão de transferir Martin Colero anulou todo o esforço de impedir a Inquisição de acusar Francisco de Ias Llagas, porque, corn o afastamento de Colero, Isabel de Tena necessitava de um novo confessor, e foi este terceiro confessor, Fray Juan de Savedra, outro membro da ordem franciscana que vivia no mesmo convento, que se recusou a absolvê-la e a mandou antes dirigir-se ao Santo Ofício.

 

Fazendo uso dos poderes bastante alargados que lhe foram concedidos pela bula de 1622 e podendo contar corn a lealdade ou aquiescência da maior parte do clero, a Inquisição espanhola estava apta a desencadear uma vaga de perseguições contra os confessores solicitantes, vaga essa que iria ganhar ímpeto ao longo dos finais do século xvn entrando pelo xviii. Mas, ao fazer acusações a membros do clero por este delito, o Santo Ofício iria ter de se confrontar corn problemas únicos que requeriam novas soluções e desafiariam os processos evidenciais vulgarmente usados por todo o sistema dos tribunais criminais espanhóis.

JULGAMENTO E CASTIGO

Os julgamentos dos confessores solicitantes, ao contrário dos delitos mais graves que estavam sob a jurisdição do Santo Ofício, e em que eram aceites provas parciais, requeriam um mínimo de duas testemunhas oculares. Logicamente, a própria natureza da confissão obstava a que essas testemunhas comprovassem a mesma ocorrência, mas, ao abrigo da lei da inquisição, era perfeitamente aceitável se testemunhassem em relação a duas ocorrências distintas do mesmo delito. Esta regra era rigorosamente observada pelo Suprema, não obstante a ciosidade de determinados acusadores e inquisidores provinciais excessivamente zelosos, que muitas vezes procediam às detenções corn base no depoimento de uma única testemunha de carácter excepcional. Em Maio de 1696, o tribunal de Maiorca recebeu um depoimento interessante do padre Jorge Fortuny, um jesuíta que ministrara recentemente um viático a uma jovem mulher casada, na casa desta. Gravemente doente, e às portas da morte, a mulher, Juana Anna Barbarossa y Montagut, de

29 anos, falou a Fortuny da sua relação de sete anos corn Sebastian Rigo, um trinitário que fora inicialmente seu confessor. Como esta relação incluíra inúmeros casos de aliciamento, era sem dúvida assunto para a Inquisição e o padre Fortuny recusou-se a absolver a mulher a menos que ela prestasse depoimento e o autorizasse a levá-lo ao tribunal. Os inquisidores e os advogados de acusação experientes ficavam sempre satisfeitos quando recebiam este tipo de prova por saberem que as confissões eram incrivelmente fidedignas. Decorridos dez dias, o tribunal entrevistou Barbarossa y Montagut e, munido da sua confissão detalhada, o advogado de acusação Sebastian Ferragut escreveu ao Suprema solicitando que Rigo fosse detido e colocado sob prisão secreta enquanto aguardava o julgamento. O Suprema, porém, recusou este pedido, referindo que o caso não poderia ter início sem outra testemunha.

 

A adesão rígida à regra das duas testemunhas impôs um sério limite à eficácia do Santo Ofício no tratamento dos casos de aliciamento. Contra muitos indivíduos, não foi possível acumular provas suficientes para um julgamento, pois ou se tinham emendado ou exercido represálias sobre as suas vítimas, as quais, por um motivo ou por outro, se mostravam relutantes em depor contra eles. De facto, Barbarossa y Montagut foi uma delas, tendo asseverado a Sebastian Rigo, antes de ele deixar Lãs Palmas, que nunca o trairia. No mínimo, a regra significava que podia decorrer um longo período entre a altura em que o tribunal recebia a sua primeira prova contra um confessor e o momento da detenção deste. De facto, a Inquisição espanhola necessitou de trinta e um meses e meio para levar um transgressor a julgamento depois de recebida a primeira denúncia, sendo o intervalo mais longo no caso de Salvador Quijada de Castillo, em 1732, em que a demora chegou aos vinte e nove anos e dois meses. Como o Suprema precisava de três anos completos para ratificar a sentença, a causa da demora neste caso parece ter sido a lassidão administrativa que afectou o Santo Ofício em determinados períodos.

 

No entanto, em muitos casos, a dificuldade na obtenção do número de testemunhas exigido continuou a constituir a principal causa da demora. As primeiras provas contra o mercedário Fray Pedro Esteban foram presentes em Agosto de 1606, altura em que Juana Carriona pediu ao confessor que lhe conseguisse uma entrevista corn um comissário para lhe falar de um incidente ocorrido dois anos antes. Mas o tribunal de Maiorca teve de esperar dezanove anos, até 5 de Abril de 1625, antes de conseguir a segunda testemunha crucial e poder proceder à detenção e acusar Esteban.

 

corn frequência, nem mesmo o aparecimento de uma segunda testemunha bastava, quer porque esse indivíduo se recusava a cooperar corn o Santo Ofício quer porque o próprio depoimento era inconclusivo e, por conseguinte, insuficiente para uma detenção. No caso do Dr. Jorge Rosselló, detentor de um benefício na catedral de Lãs Palmas, o tribunal de Maiorca recebeu a sua primeira prova consistente em 1669, depois de Antonia March y Cifre, uma viúva de 48 anos, ter ido procurar o comissário de Pollanca e denunciar vários casos de aliciamento que tinham tido lugar ano e meio antes, quando estivera em casa do seu irmão em Lãs Palmas. Agindo corn base nesta informação, o tribunal ordenou que Rosselló permanecesse em Lãs Palmas, muito embora lhe fosse permitido servir o seu benefício como antes.

 

Em 28 de Fevereiro de 1670, Rosselló compareceu perante o tribunal e afirmou que, durante a confissão, Feliciana Gari y Peris o convidara a visitá-la em sua casa. Manifestamente desconfiados dos motivos de Rosselló para o revelar em tribunal, os inquisidores intimaram Gari y Peris e interrogaram-na sobre a sua relação corn Rosselló, na esperança de que surgissem provas concretas de aliciamento. Gari y Peris, porém, negou categoricamente que tivesse alguma vez feito observações sugestivas a Rosselló no confessionário e nem estremeceu quando o inquisidor Nicolás Fermosino a avisou solenemente de que estava a obstruir o trabalho do Santo Ofício. O acto seguinte deste drama ocorreu em Outubro de 1672, quando o tribunal recebeu um segundo depoimento contra Rosselló. Infelizmente, o depoimento desta segunda testemunha, que teria decidido o caso, revelou-se inconclusivo. De acordo corn esta testemunha, Rosselló perguntara-lhe onde morava logo após a absolver, mas, quando chegara de facto a casa dela, não conseguira tomar a iniciativa em virtude de se encontrar presente uma série de amigos. Conquanto voltasse diversos dias mais tarde e tentasse acariciar-lhe os seios, estava tão longe do momento da confissão que não constituiu aliciamento, de acordo corn a definição operacional do delito. Somente em Fevereiro de 1681 é que o tribunal conseguiu finalmente a prova clara e inequívoca de que necessitava para a detenção de Rosselló. A 6 de Fevereiro, Francisca Marquês y Campins, de 35 anos, viúva de um tecelão, testemunhou que Rosselló usara linguagem indecente enquanto a ouvia em confissão e que fora depois a sua casa e tentara ter relações sexuais. O tribunal prendeu Rosselló e, passadas algumas semanas, a

25 de Fevereiro, recebeu provas ainda mais conclusivas contra ele quando Isabel Forteza, uma escrava, teve conhecimento da sua detenção e veio depor sobre a sua relação corn ele, a conselho do seu confessor.

 

A lassidão administrativa, os estabelecimentos prisionais superlotados ou a mera pobreza de certos tribunais conseguiam impor enormes atrasos à realização de detenções, mesmo depois de ter aumentado o requisito do número de testemunhas. O tribunal das Canárias, que era dos mais pobres e menos eficazes, levou quase um período inaudito de seis anos para efectuar a detenção de Fray Gaspar de Palenzuela. Já em Outubro de 1700 tinha o depoimento de três testemunhas válidas, e, não se sabe por que motivo, só procedeu à votação da sua detenção em 12 de Julho de 1703, repetiu essa votação em 7 de Julho de 1704, recebeu autorização do Suprema para agir em 8 de Setembro de 1705 e procedeu finalmente à detenção em 11 de Janeiro de 1706.

 

A menos que as testemunhas se apresentassem à porta do tribunal para prestarem depoimento, as provas chegavam, por norma, indirectamente, através de um depoimento levado por um confessor corn autorização da sua penitente ou enviadas por um comissário ou notário ou apresentadas por um familiar. Quando isso se verificava, o tribunal insistia no relato directo da testemunha, que poderia explorar melhor questões que talvez só fossem abordadas no seu depoimento. Para tal, era usada uma série de métodos, que ia desde o envio de um secretário do tribunal à nomeação de um sacerdote local, por vezes o próprio confessor que apresentara a prova, como comissário especial, nas zonas onde o Santo Ofício não dispunha de um representante.

 

Quando o caso era levado a tribunal, todo o depoimento das testemunhas era «ratificado», confirmado pela sua leitura por um representante do Santo Ofício em presença das testemunhas. Em geral, estas ratificações geravam algumas surpresas, pois ou as testemunhas confirmavam o que haviam afirmado antes ou procediam a pequenas alterações ou acréscimos. Em alguns casos, porém, quando as testemunhas revogavam ou negavam ter feito afirmações anteriores, a ratificação poderia prejudicar seriamente o caso contra um indivíduo. Quando o comissário especial Fray Juan Lezur visitou Mana Jorge em

19 de Janeiro de 1692, para ratificar o depoimento contra Mateo Fernández Vello que dera inicialmente em 1688, deparou-se-lhe um dos exemplos mais curiosos e trágicos da maneira como a família e as pressões sociais se podiam conjugar para destruir a credibilidade das testemunhas perante o Santo Ofício. O primeiro golpe foi desferido quando Maria Jorge negou categoricamente alguma vez ter feito a declaração que lhe era atribuída e confirmou ser a única pessoa na aldeia de Sauzel, onde Vello era cura, chamada Maria Jorge. O mistério foi resolvido decorridos menos de dois meses, quando outra mulher jovem, Maria de Ia Encarnación, afirmou perante um comissário do Santo Ofício que era a testemunha inicial contra Vello, mas que assumira simplesmente o nome de Maria Jorge a fim de evitar complicações corn a família de Vello. Dois dias depois, em 13 de Março de 1692, Maria de Ia Encarnación anulou o seu depoimento, declarando que fora completamente forjado. Por esse motivo, foi detida pelo tribunal juntamente corn várias outras pessoas acusadas de perjúrio contra Vello. Mas, em 10 de Fevereiro de 1693, voltou a mudar o seu depoimento, declarando que o seu anterior depoimento sob o nome de Maria Jorge fora verdadeiro.

 

Evidentemente, Maria de Ia Encarnación envolvera-se numa daquelas situações complicadas e difíceis que poderiam surgir tão facilmente dentro dos limites estreitos da vida da aldeia, em que a honra da família estava vinculada ao comportamento sexual das mulheres solteiras enquanto a escolha dos parceiros matrimoniais estava fortemente limitada. Vários anos antes, Maria tivera um filho ilegítimo do irmão de Vello, Miguel Fernández. Como a família de Vello era uma das mais importantes da aldeia e os pais de Maria modestos labradores (camponeses), Miguel Fernández recusou-se a casar corn ela, que o levou a tribunal sob acusação de quebra de promessa. Apesar deste tratamento desprezível, acalentava ainda a esperança de o desposar corn ou sem ordem do tribunal, de modo que, depois de o seu presente confessor, Gaspar Pérez, lhe ordenar que depusesse perante o Santo Ofício a respeito das diversas tentativas de Vello para a aliciar no confessionário, resolvera ocultar o nome ao depor contra o seu irmão. Vira-se obrigada a anular o seu depoimento quando Miguel Fernández viera a sua casa a altas horas da noite de 10 de Março de 1692 e ameaçara matá-la e aos pais. Nesta altura, porém, o tribunal, confrontado corn as múltiplas contradições e pesando na defesa provas de que Maria de Ia Encarnación jurara vingança contra Vello porque ele se opusera ao seu casamento corn o irmão, decidiu submeter o caso ao Suprema, que ordenou a sua suspensão no dia 2 de Abril de 1693.

 

Depois de acumuladas provas suficientes, o tribunal reunia-se uma vez corn um grupo de canonistas, por norma membros bem conceituados das ordens religiosas, para as analisar, a fim de se certificar de que se inseriam na definição do delito. corn a aprovação dos calificadores, ou quando não subsistiam dúvidas sobre as provas, o advogado de acusação culpava o réu perante os inquisidores, levando as informações ao conhecimento destes e exigindo a sua detenção. Se os inquisidores concordassem, seria lavrada uma acusação por escrito. Dado o envolvimento de um membro do clero, o tribunal pedia ao Suprema autorização para a prisão do suspeito. Depois de analisar as provas, o Suprema ou rejeitava o pedido e ordenava a suspensão do caso ou deixava o tribunal levar a cabo a prisão. O tribunal podia então redigir a ordem de prisão, que incluía também uma cláusula corn a confiscação dos bens do acusado.

 

Podemos acompanhar o processo pelo qual um suspeito foi detido e levado a tribunal seguindo o caso de Felipe de Medrano, um jesuíta que foi julgado pelo tribunal de Toledo em 1694. Depois de receber uma carta do seu comissário em Alcalá de Henares referindo que Medrano podia ser encontrado no colégio jesuíta de lá, o tribunal enviou uma ordem de prisão ao comissário, dizendo-lhe que detivesse o suspeito corn a «maior discrição possível». Na sua viagem até à prisão, Medrano foi autorizado a levar uma cama, onde iria dormir, bem como roupas pessoais e de cama. Os restantes bens seriam confiscados até ao resultado do seu julgamento. Receberia igualmente cinquenta ducados do seu superior, a fim de poder pagar a sua alimentação durante a viagem e mais tarde durante o seu encarceramento.

 

Às dez da manhã do dia 23 de Agosto, o comissário Andrés Lorente, acompanhado de um familiar que serviria de notário, dirigiu-se ao colégio jesuíta de Alcalá para prender Medrano. Encontrando-o no regresso de um passeio corn um dos funcionários do colégio, os dois homens informaram-no de que tinham algo de confidencial a discutir corn ele e pediram que os acompanhasse ao seu quarto. Uma vez lá, disseram-lhe que tinham vindo prendê-lo por ordem dos inquisidores de Toledo. Chocado, mas provavelmente contando já corn algo do género, Medrano submeteu-se à autoridade do Santo Ofício corn «a maior humildade» e declarou que agora se considerava preso. O comissário efectuou então o inventário dos bens de Medrano para confiscação. Cumprindo as ordens para manter o máximo sigilo no transporte do preso, o comissário confiou-o a um familiar local, que foi instruído para deixar Toledo ao anoitecer. Por último, ao fim da noite seguinte, Medrano chegou ao tribunal e foi entregue ao alcaide da prisão secreta, que registou no seu livro de entrada uma descrição sumária do acusado e também dos bens pessoais que trazia consigo.

 

Não obstante os enormes esforços no sentido de poupar aos membros do clero acusados a vergonha da exposição pública durante a sua viagem até à sede do tribunal, as deslocações das aldeias remotas implicavam passar de familiar em familiar e podiam revelar-se bastante embaraçosas para o acusado. O distrito de Toledo, corn os seus 47 770 km2, ocupando à vontade metade de Castela-a-Nova, era um dos maiores. Por isso, quando Fray Juan Girón, o superior do convento franciscano de Tamajón, nas faldas da serra de Guadarrama, foi detido pelo comissário de Torija, enfrentou vários dias de viagem dura, sendo transferido de um funcionário inquisitorial para outro, antes de conseguir chegar ao tribunal. É óbvio que não se podia ocultar esta longa viagem corn alojamento nocturno nas casas de familiares em vários locais, e Girón tinha-o em mente ao ser entregue ao familiar de Casa de Uceda, que se deslocara expressamente até Tamajón para o receber. Depois de passar a noite em Casa de Ulceda, Girón prosseguiu a sua viagem até Alcalá de Henares, onde foi entregue ao familiar de Torres de Alameda. À chegada, porém, Girón adoeceu e foi obrigado a interromper a viagem e a permanecer em casa do familiar até conseguir andar. A 8 de Setembro, como se sentisse consideravelmente melhor, o familiar informou-o de que na manhã seguinte iriam seguir viagem até Toledo. Naquela noite, passou algo pela mente de Juan Girón. Tentado pelo demónio, como referiu mais tarde ao tribunal, e muito mortificado corn a perspectiva de recomeçar a sua vergonhosa viagem na companhia de um familiar, resolveu fugir. Vestindo apenas uma camisa de dormir e levando o seu breviário, deixou a casa do familiar depois da meia-noite e dirigiu-se primeiro para Alcalá, onde passou a noite gelado numa mata mesmo à saída da cidade, e depois para Madrid, onde mandou recado ao provincial da sua ordem para que lhe enviasse um hábito e outro vestuário, a fim de lhe poder fazer uma visita. Rojando-se aos pés do seu superior, Girón contou-lhe a sua história, marcando-a por acessos de choro incontrolável, e pediu-lhe depois que fosse escoltado até Toledo. O provincial anuiu de imediato, e a 13 de Setembro de 1676, decorridos seis dias sobre a sua fuga da custódia, Girón apresentou-se às portas do tribunal de Toledo. Em vez de tentar rebelar-se contra a jurisdição do Santo Ofício, Girón limitou-se a fugir ante a perspectiva horrível de ser levado como um criminoso por cidades e aldeias, envergando o hábito da sua querida ordem franciscana. Como o seu superior, o provincial Fray Nicolás Lozano, explicava na carta que entregou a Girón para se apresentar no tribunal, quando deixou a casa do familiar estava «quase fora de si» e apenas viera a Madrid «procurar o consolo» de uma pessoa que obviamente julgava ir compadecer-se da sua sorte. Pela posterior conduta de Girón, o seu pedido para ser acompanhado ao tribunal por um frade da sua ordem (o que levaria quem o visse passar a julgar tratar-se de uma viagem perfeitamente banal), a sua nítida aversão a ser visto na companhia de um familiar e a sua manifesta vontade de aceitar qualquer castigo que o tribunal procurasse impor, parecem existir poucos motivos para duvidar da sua afirmação de que fora unicamente motivado por um desejo de «evitar a desonra» de passar como prisioneiro por áreas povoadas. A odisseia deste pobre indivíduo ilustra muito bem o poder exercido pela Inquisição sobre as mentes dos clérigos espanhóis. Girón aproveitara-se de um elo fraco na cadeia do controlo inquisitorial e lograra escapar. Conseguira, inclusivamente, refugiar-se em casa de uma família camponesa durante a viagem, mas, ao invés de prosseguir a fuga, entregara-se, satisfeito por ter evitado pelo menos a vergonha e a desgraça de ser conduzido publicamente ao tribunal por um familiar.

 

A obediência absoluta e cabal devida à Inquisição, que era vista pelos Espanhóis como um «bastião inexpugnável da fé católica», torna compreensível a conduta de Girón e permite-nos aceitar um fenómeno ainda mais curioso - os sacerdotes que, depois de notificados da sua detenção por um funcionário do Santo Ofício, chegavam à sede do tribunal de sua livre e espontânea vontade. Em 14 de Maio de 1605, por exemplo, o tribunal das Canárias mandou levar Fray Juan Felipe Cabeza da sua cela para a prisão secreta. Quinze dias antes, Cabeza fora informado da sua detenção na ilha de Tenerife, onde residia no convento franciscano. Em resposta à ordem de prisão, Cabeza apanhou o primeiro barco para a Grande Canária e depois apresentou-se no tribunal para encarceramento, sem qualquer tipo de escolta. Noutro caso do mesmo tribunal, foi despachada para o convento de San Miguel de La Palma, na ilha de Garachico, uma ordem assinada por um secretário, notificando o prior da sua responsabilidade nos preparativos para que Fray José de Acuna apanhasse o primeiro barco para a Grande Canária. Em 4 de Dezembro de 1746, Acuna chegou ao tribunal sem escolta e levando a ordem, que apresentou ali. Foi imediatamente preso e colocado sob detenção na casa dominicana local, onde lhe ordenaram que permanecesse na sua cela até ser chamado a comparecer perante o Santo Ofício.

 

Claro que alguns indivíduos conseguiam adiar ou mesmo evitar a prisão efectuando confissões espontâneas. Se estas confissões tivessem lugar antes de recebido qualquer depoimento do exterior, eram aceites como autênticas e o indivíduo tratado corn clemência. Fr ay Juan Llobera, um mercedário que fora superior do seu convento em Palma de Maiorca, representara também em diversas ocasiões o estado eclesiástico nas cortes da Catalunha, beneficiando desta clemência quando compareceu no tribunal de Maiorca no dia 18 de Abril de 1689 para confessar dois casos de aliciamento ocorridos dezanove anos antes. Conquanto Llobera se tivesse inspirado para a sua entrega voluntária no facto de três monges do seu convento haverem sido detidos por acusação de aliciamento, não existiam provas contra ele nos arquivos do tribunal nem qualquer indício de que se soubesse de alguém disposto a denunciá-lo. Consequentemente, o advogado de acusação Hidalgo pediu que fosse admoestado, mas libertado corn o fundamento de que se apresentara apenas em virtude do «remorso da consciência e não porque temesse vir a ser denunciado».

 

Em contrapartida, a maior parte das confissões espontâneas tinha pouco peso no modo como o acusado era tratado porque os inquisidores possuíam bons motivos para crer que os movia ou o conhecimento de que fora já apresentada queixa ao Santo Ofício ou um receio bem fundado de denúncia num futuro próximo. Quando Fray Bernardo dei Castillo veio ao Santo Ofício, em 26 de Maio de 1698, o tribunal recebera já três depoimentos contra ele. Nestas circunstâncias, a sua «confissão espontânea» significava pouco, em especial por não abranger qualquer dos assuntos abordados pelas testemunhas. Decorridos escassos cinco dias, o tribunal escreveu ao Suprema pedindo permissão para prender Castillo; esta foi concedida em 5 de Junho de 1698.

 

Em 1787, quando o tribunal das Canárias recebeu uma confissão espontânea de Fray Nicolás Cabrera, reagiu corn considerável desconfiança. Não só Cabrera tinha já três testemunhas contra ele como o actual arcebispo pedira publicamente aos confessores da sua diocese que instigassem as penitentes, que haviam sido vítimas de aliciamento e tencionassem denunciá-lo ao Santo Ofício, que informassem o sacerdote que as aliciara para que ele pudesse confessar «espontaneamente» antes de serem recebidas provas contra ele. Tais confissões eram insinceras e motivadas por um desejo de beneficiar das vantagens de apresentação e confissão antes da detenção pelo Santo Ofício.

 

Tendo falhado todos os esforços de aliciamento e sido o acusado levado à sede do tribunal, era normalmente colocado na prisão secreta destinada a receber os prisioneiros durante os seus julgamentos. A frase célebre de Henry Charles Lea de que «as prisões secretas da Inquisição eram locais de morada menos intoleráveis do que os cárceres episcopais e públicos» já não pode ser totalmente aceite à luz da actual investigação. Alguns tribunais, em especial os mais ricos, possuíam prisões bem mantidas, onde os seus ocupantes gozavam de relativo conforto. Houve até casos, como o do padre detido numaprisão episcopal em 1675 que fez afirmações heréticas para que pudesse ser transferido para as prisões do Santo Ofício. Por outro lado, os tribunais mais pobres nunca tinham dinheiro suficiente para manterem as celas devidamente reparadas, e as condições de vida dos presos eram frequentemente abomináveis. Em 1672, por exemplo, os inquisidores do tribunal de Maiorca descreveram a sua prisão secreta como sendo quase inabitável, corn as celas cheias de humidade durante a maior parte do tempo e os prisioneiros a sofrerem tremendamente.

 

As condições parecem ter mudado pouco, decorridos cento e dezasseis anos, quando, em 5 de Abril de 1788, Fray Nicolás Cabrera pediu uma audiência aos inquisidores. Cabrera, que já estava preso há quase dois meses, queixara-se de fortes dores no peito, arrepios e uma sensação geral de exaustão exacerbada pela humidade extrema da sua cela, em virtude da chuva que entrava pelos buracos no telhado do edifício. Depois de chamar o médico do tribunal para examinar o preso, os inquisidores concordaram corn o seu pedido de regresso ao convento a fim de recuperar.

 

No tribunal das Canárias, ao estado degradado da própria prisão vinha-se juntar a sua falta de privacidade. Os presos eram expostos aos olhares públicos dos telhados planos das casas que rodeavam o complexo, pelo que não podia ser garantida a confidencialidade desejada nos casos de aliciamento. Além disso, como a casa do próprio carcereiro se encontrava em ruínas, ele e a família eram obrigados a viver na casa dos familiares e, por conseguinte, não podiam dar resposta às necessidades dos seus presos. Conquanto o tribunal tivesse escrito oito vezes ao Suprema sobre esta situação calamitosa, desde Maio de 1740, nada fora feito a esse respeito, pelo que o tribunal se viu obrigado a colocar os presos clericais nos conventos próximos.

 

Exceptuando a falta de receitas para investimento, o que afligia o tribunal das Canárias, juntamente corn o resto da Inquisição espanhola, era o custo dos cuidados prestados aos presos pobres. Não obstante o facto de alguns solicitantes chegarem corn uma certa quantia em dinheiro que serviria para custear a sua alimentação enquanto estavam na prisão secreta, muitos vinham quase sem recursos, e, se a sua comunidade de origem não pudesse dar algum contributo, o Santo Ofício era responsável por eles. O caso de Fray Pedro Barbero de Torres, que entrou na prisão secreta de Toledo em 19 de Setembro de 1690 e saiu em 10 de Fevereiro de 1691, é bastante típico. O custo total da sua estada cifrou-se em 466 reales, dos quais pôde contribuir corn apenas 77, tendo o tribunal de entrar corn a restante parte. Como disse o tribunal das Canárias ao Suprema quando se queixou do estado degradado da sua prisão, até corn aquelas quantias relativamente pequenas era difícil contar. A Inquisição exigia regularmente uma verba, por norma entre trinta e cinquenta ducados, ao convento de origem de um regular acusado de aliciamento, mas, dadas as fracas condições económicas do século xvii, algumas comunidades tinham dificuldade em pagar sequer quantias tão modestas. Quando o familiar Ginés Prado foi enviado pelo tribunal de Toledo para receber trinta ducados do convento mercedário de Ciudad Real, em 1699, encontrou uma comunidade empobrecida, a que «faltava corn frequência o pão» e que há três meses não servia uma gota de vinho aos seus frades. Surpreso corn as condições, mas decidido a cumprir a sua obrigação, tentou encontrar um cálice de cerimónia ou qualquer outro artigo de valor para levar como compensação, mas não conseguiu encontrar nada. Prado achou uma saída para esta situação embaraçosa quando se lhe deparou inesperadamente o tio, que prometeu transferir, das suas próprias economias, os fundos para o tribunal.

 

Quaisquer que fossem as condições da prisão secreta, no entanto, o mero facto de se entrar nela era suficiente para desencadear uma profunda crise psicológica. Afinal, as prisões inquisitoriais tinham sido concebidas para os hereges e inimigos da fé católica, pelo que qualquer clérigo, mesmo consciente de que o seu delito pouco tinha a ver corn heresia, passava por fortes sentimentos de vergonha e ódio em relação a si próprio. Estes sentimentos explicam a atitude de Gabriel Canevas, que recusou assistência médica, apesar de gravemente doente após várias semanas na prisão infame do tribunal de Maiorca «por se sentir tão envergonhado de estar ali preso que não queria ser visto por ninguém a menos que corresse enorme perigo.»

 

corn o encarceramento do acusado e a sua primeira audiência no tribunal, que tinha normalmente lugar um ou dois dias depois, começava a fase de julgamento. Os julgamentos dos solicitantes acusados podiam ser muito dilatórios, e os mais longos, especialmente aqueles em que se tornava necessário entrevistar demoradamente as testemunhas de defesa, podiam levar algo como três anos e cinco meses. A média de um julgamento era cerca de sete anos e meio, enquanto 12% levavam mais de um ano. Uma pequena percentagem, normalmente os tribunais onde os acusados confessavam totalmente numa audiência inicial ou se recusavam a defender-se, durava menos de um mês. Alguns presos queixavam-se amargamente da reclusão e pediam aos inquisidores que concluíssem o caso. Por exemplo, em 1731, Salvador Quijada y Castillo solicitou ao tribunal das Canárias que fosse tomada uma decisão rápida, lembrando aos inquisidores que já se encontrava preso há quase cinco meses. Durante este período de cativeiro desnecessário, salientara ele corn amargura, as almas no purgatório morriam sem o benefício das 144 missas que teria celebrado por elas se estivesse em liberdade.

 

No decurso da primeira audiência, que foi um dos acontecimentos mais importantes de todo o processo, o acusado apresentou a sua genealogia, corn os nomes, origens étnicas e por vezes as profissões dos pais, avós, tios, primos e assim sucessivamente. Deu também pormenores sobre a sua educação, demonstrou o seu nível de cultura religiosa e forneceu uma extensa biografia, incluindo o local e data de nascimento, a idade corn que entrara para a vida religiosa, os sítios onde residira, os cargos ou benefícios que ocupara até ao momento da sua detenção pelo Santo Ofício. Este interrogatório apresentou não só um quadro pormenorizado do acusado como forneceu também conhecimentos valiosos sobre as suas actividades e lugares de residência durante o período em que deveriam ter ocorrido os alegados casos de aliciamento.

 

Após a primeira audiência e antes da acusação formal, o réu foi chamado ao tribunal para mais três audiências e interrogado sobre se teria algo a confessar ao Santo Ofício. Durante este período, ojulgamento avançava, por via de regra, bastante rapidamente, sendo cada uma das audiências realizadas um ou dois dias depois da outra. A confissão nesta fase inicial do processo poderia revelar-se útil ao preso, mas, se fosse incompleta e não incluísse os nomes das testemunhas de que o tribunal possuía depoimentos, de pouco lhe valeria. Por outro lado, as informações fornecidas pelo acusado durante estas audiências poderiam fornecer ao tribunal potenciais testemunhas a entrevistar futuramente.

 

Concluídas as três audiências, o advogado de acusação apresentava a sua acusação formal perante o tribunal, na presença do preso. Esta acusação incluía normalmente toda e qualquer prova, inclusivamente o que se ouvira dizer, que pudesse ser apresentada contra o réu, não obstante esse material não poder ser usado para o condenar. O advogado de acusação concluiria corn uma exposição final, declarando que o preso, que era j á culpado de uma série de crimes hediondos, seria provavelmente também culpado de outros mais, e reservava-se o direito de apresentar outras provas caso fosse necessário. De facto, o tribunal continuava a entrevistar potenciais testemunhas de acusação durante ojulgamento, e o seu depoimento constituiria a base para uma segunda acusação.

 

Durante os séculos xvi e xvii, as acusações tenderam a ser extremamente vagas em relação ao tempo e às circunstâncias do alegado delito. A acusação feita a Fray Pedro Fiol pelo tribunal de Maiorca em 1619 referia um incidente ocorrido no confessionário «há vários anos» e «num determinado local» do seu convento. Durante o século xvm, porém, como a Inquisição encontrasse um clima político menos favorável e se confrontasse corn um coro crescente de críticas internas e externas a respeito dos seus métodos, reagiu alterando a acusação de modo a torná-la mais específica quanto à data, ao tempo e ao lugar. Em 1722, perante o mesmo tribunal, a acusação contra Fray Jaime Massenet referia o ano em que ocorrera o primeiro delito e indicava a capela exacta em que tivera lugar.

 

O acusado era obrigado a responder imediatamente à acusação ponto por ponto. A falta de preparação prévia poderia levá-lo a deixar escapar certos pormenores que ajudariam o caso da acusação ou forneceriam ao Santo Ofício mais testemunhas contra ele. Não obstante os porfiados esforços do tribunal para ocultar os nomes das testemunhas, a acusação fornecia certos pormenores que poderiam permitir ao réu fazer uma pequena ideia. Na sua resposta à acusação levantada contra ele pelo tribunal das Canárias em 1686, por exemplo, Fray Diego Sanchez de Cubas identificou correctamente tanto as testemunhas contra ele como pôde também denunciá-las como seus inimigos mortais. Além disso, no século xvm, a especificidade das acusações contra os réus proporcionava a certos indivíduos uma maneira de lançar a dúvida sobre a veracidade do caso da acusação. Respondendo perante o tribunal das Canárias, em

1731, à acusação contra ele, Salvador dei Castillo salientou que a primeira testemunha deixara decorrer vinte e quatro anos entre o alegado incidente de aliciamento e a sua queixa ao Santo Ofício. Uma demora tão grande, durante a qual ela teria ignorado os pedidos dos seus confessores, as sucessivas leituras do Édito de Fé, bem como inúmeras missões, afiguravam-se altamente suspeitas e poderiam indicar uma denúncia por motivos que nada tinham a ver corn qualquer suposto acto de aliciamento.

 

Depois da acusação, era permitida ao réu a escolha de um advogado de defesa. A escolha limitava-se, por norma, a dois ou três advogados locais corn prática aceite pela Inquisição. Estes homens tinham de ser cristãos velhos e eram obrigados a demonstrá-lo submetendo-se a uma investigação formal da sua genealogia. Eram também funcionários do tribunal, corn a obrigação de promover o objectivo principal deste de conseguir a confissão do prisioneiro, que constituiria, em si, a mais cabal de todas as provas. Fiéis às instruções, teriam então de admoestar o preso no sentido de dizer a verdade sem ocultar nada e sem se incriminar de nada que não tivesse feito. Munido de uma cópia da acusação, o advogado de defesa teria de elaborar uma sentença de absolvição em nome do seu cliente. Este documento era, por via de regra, breve e estereotipado. Geralmente, não reflectia a opinião do advogado a respeito do caso contra o seu cliente, porque a acusação revelava pouco sobre as provas reunidas contra ele. Esporadicamente, porém, um acusado poderia mostrar-se insatisfeito corn o seu advogado de defesa, mesmo nesta fase do processo. Em 1707, por exemplo, Fray Juan de San Jacinto insistiu em apresentar as suas próprias alegações de defesa, para descoroçoamento dos inquisidores de Toledo, que o avisaram de que até ao momento nada dissera que pudesse sequer reduzir as provas contra ele e lhe pediram que recorresse aos serviços do advogado de defesa nomeado pelo tribunal. Pela sua parte, o Suprema acedeu relutantemente ao pedido de mais folhas de papel para apresentar outra argumentação, mas demonstrou a sua irritação em relação a ele aumentando a severidade da sua sentença final.

 

Neste ponto, pode dizer-se que fica concluída a primeira fase do julgamento. O acusado fora detido pelo Santo Ofício, constantemente instado a confessar, e por fim presente corn uma acusação formal. As duas partes ratificavam as suas acções prévias e pediam a revelação das provas tanto da acusação como da defesa. A acusação passava à verificação do depoimento das suas testemunhas na presença de um comissário ou outro indivíduo autorizado como preparativo para a apresentação formal do seu depoimento durante a segunda fase. Asegunda parte dojulgamento era consideravelmente mais longa do que a primeira metade, especialmente se tivessem de ser entrevistadas bastantes testemunhas de defesa longe da sede do tribunal. A primeira fase dojulgamento de Diego Sánchez de Cubas no tribunal das Canárias, desde o dia em que deu entrada na prisão secreta até à resposta à acusação formal, levou apenas vinte e quatro dias. A segunda fase, desde a revelação das testemunhas até à sentença proferida pelo tribunal, demorou seis meses e vinte e quatro dias, em grande parte como consequência das entrevistas demoradas das testemunhas de defesa em várias localidades.

 

A segunda fase dojulgamento começou corn a «divulgação» ou apresentação do depoimento das testemunhas de acusação. Era lida ao preso uma versão detalhada deste depoimento, omitindo qualquer material que pudesse revelar os nomes das testemunhas, esperando-se uma sua resposta imediata. O advogado de defesa recebia então uma cópia deste documento, a fim de poder elaborar uma argumentação de defesa pormenorizada. Teria também na sua posse apontamentos facultados pelo acusado no tocante à sua resposta aos pontos focados pelas testemunhas de acusação. Era nesta fase, reveladas as linhas gerais do caso da acusação e da resposta do seu cliente perante ela, que o advogado de defesa decidia se seria útil para o seu cliente prosseguir a defesa a ponto de elaborar uma resposta formal à divulgação e chamar realmente as testemunhas de defesa a depor. Depois de avaliadas estas provas, alguns advogados de defesa limitavam-se a lavar as suas mãos do caso, recusando-se a apresentar qualquer defesa. O Dr. Rafael Calafat, que agia como advogado de defesa de Fray Jayme Barcelo num caso julgado no tribunal de Maiorca em 1689, reviu o texto da divulgação e as notas do seu cliente e limitou-se a informá-lo de que os seus comentários não tinham qualquer relação corn as provas e que, por conseguinte, ele era indefensável. Depois de o seu advogado de defesa recordar a Barcelo que o instara diversas vezes a dizer a verdade, Barcelo acedera a aceitar a defesa do caso de acordo corn as conclusões e colocara-se à mercê do tribunal. Por vezes, os advogados de defesa procuravam até ajudar os seus clientes apresentando uma breve declaração reconhecendo que fora provada de forma conclusiva a culpa do seu cliente e pedindo ao tribunal que fosse clemente corn ele.

 

A experiência de Jayme Barcelo corn o Dr. Calafat revela a natureza condicional do papel do advogado de defesa nos processos inquisitoriais. Na prática, enquanto o acusado tinha direito a um advogado de defesa, não lhe era reconhecido o direito de apresentar a defesa. Na qualidade de funcionário do tribunal, o advogado de defesa era quase obrigado a ter uma perspectiva céptica do seu cliente, uma vez que o mero facto de ser intimado a comparecer perante a Inquisição era considerado meiaculpa. Se o advogado de defesa, por qualquer motivo, se recusasse a apresentar a defesa, era impossível o acusado, que frequentes vezes tinha pouco ou nenhum dinheiro, e cujos bens haviam sido confiscados, conseguir contratar outro, mesmo que o Santo Ofício estivesse na disposição de o aceitar. Além disso, um réu que fosse obstinado, que insistisse em apresentar a defesa mesmo depois de o seu advogado o desaconselhar, poderia ser alvo da ira dos inquisidores ou então do próprio Suprema. Após a divulgação das testemunhas no caso do agostiniano Fray Juan Alcocer, o seu advogado de defesa, o Dr. Pedro Juan Canet, informou-o de que, «como fora já condenado pelo depoimento de duas testemunhas, deveria parar corn as aldrabices e admitir a verdade». Como Alcocer persistisse em negar, Canet acedeu relutantemente a apresentar a argumentação da defesa em resposta à divulgação das testemunhas, m as depois recusou-se afazê-lo, referindo que Alcocer «estavaj á condenado e devia deixar-se de fantasias». Alcocer insistiu e a argumentação de defesa acabou por constar do registo. Mas a sua falta de cooperação parece ter aborrecido o Suprema, que insistiu em o condenar à privação permanente do direito de ouvir confissões tanto de homens como de mulheres em vez da privação temporária votada pelo tribunal.

No entanto, seria errado presumir, unicamente corn base na discussão, que a defesa adoptava sempre uma perspectiva negativa do réu ou que não estivesse disposta a ou fosse incapaz de levar a cabo uma defesa eficaz. Avaliar as provas contra o acusado depois da divulgação das testemunhas era um autêntico processo e o mesmo advogado de defesa que declarava um caso perdido era capaz de preparar uma defesa obstinada se entendia que o caso da acusação era fraco.

 

Depois de estudar o caso contra o franciscano Fray Francisco Pons e achando que a acusação possuía o depoimento de sete testemunhas oculares fortes, o Dr. Joaquín Foil, que agia na qualidade de advogado de defesa, avisou o seu cliente de que não tinha outra alternativa senão ficar à mercê do tribunal. Decorridos vários anos, quando o Dr. Foil estava a defender Fray Juan Llobera, apercebeu-se de que o caso da acusação era fraco e, por conseguinte, pôde preparar uma defesa forte. A acusação possuía efectivamente as provas de duas testemunhas, mas a primeira tinha valor marginal porque, muito embora o incidente por ela referido no seu depoimento tivesse ocorrido no local normalmente destinado à confissão, ela nunca se lhe confessara e viera realmente ao seu convento a fim de lhe pedir, na qualidade de superior, que disciplinasse o sobrinho do marido, que era frade na mesma casa. O depoimento da segunda testemunha respeitava a incidentes que podiam ou não ter ocorrido no local por norma destinado à confissão, e o Dr. Foil detectou logo a incerteza da testemunha em relação a este ponto do seu argumento de defesa. Foil esforçou-se de igual modo por salvar a posição do cliente como réu colaborador, uma vez que fizera uma confissão espontânea antes de terem sido acumuladas quaisquer provas contra ele. Muito embora a confissão espontânea de Llobera fosse incompleta, Foil salientou o facto de o tribunal não possuir qualquer indicação de que ele temesse ser denunciado antes de o fazer e que depois se abstivera voluntariamente de ouvir confissões de mulheres. Manifestamente convencido pelos argumentos de Foil, o tribunal condenou apenas Llobera para ser absolvido de levi perante os funcionários do tribunal em vez da habitual audiência, que incluía curas locais e representantes das ordens religiosas, e pediu-lhe apenas que continuasse a abster-se de ouvir confissões femininas.

 

Na avaliação da defesa, surgiam vários temas destinados a desculpar ou explicar a conduta do acusado, quer apresentados na altura da divulgação das testemunhas, quer pelo advogado de defesa numa posterior argumentação formal. Por um lado, os confessores contrapunham que era precisamente o seu zelo pelo sacramento que lhes trazia sarilhos. Ao argumentar em nome de Fray Miguel Miguel, acusado de fazer observações indecentes a uma das suas penitentes durante a confissão, o Dr. José Bassa admitiu que a bula de Gregório xv, de 1622, integrara semelhante linguagem na definição do aliciamento, mas desculpou o seu cliente dizendo que por vezes essa linguagem era «indispensável a fim de compreender as circunstâncias agravantes que poderiam aumentar a perversidade ou modificar a natureza dos pecados». Se uma linguagem mais branda poderia ser suficiente para uma penitente vinda das classes média ou superior, as perguntas feitas a uma pessoa rude ou inculta teriam de usar «linguagem adequada à sua condição».

 

O Dr. Joaquín Foil usou uma variação deste tema para explicar as perguntas sexualmente sugestivas por parte dos confessores. No caso de Fray Jaime Massanet, acusado de perguntar a uma penitente se alguma vez tivera um caso amoroso corn um frade e tentando apurar se ela tivera pensamentos lascivos, Foil argumentou que, longe de indicar qualquer má intenção por parte de Massanet, estas perguntas se inseriam no dever de um confessor «penetrar nas consciências das suas penitentes». Afirmando que Massanet tinha fama de ser um confessor altamente escrupuloso, Foil rejeitou as alegações da testemunha como «distorção deliberada efectuada para os seus próprios fins sinistros».

 

Fray Francisco Pons procurou defender-se das alegações de que fizera perguntas sugestivas durante a confissão salientando que a responsabilidade do confessor era certificar-se de que a penitente fazia uma confissão completa, em especial dos pecados sexuais. Muito embora este fosse um dos requisitos mais vulgares exigidos aos confessores em manuais populares como On the Art ofHearing Confessions, de Jean Gerson, este e a maior parte das outras autoridades sempre alertaram o confessor para que não fosse ofensivo e em particular que evitasse o incitamento à tentação. É muito duvidoso que Gerson tenha aprovado que Francisco Pons perguntasse a uma das suas penitentes se alguma vez se sentira tentada por outro homem enquanto o marido, um pescador, andava embarcado numa longa viagem ou se ela alguma vez se masturbara ao pensar noutros homens. É óbvio que ele não conseguiu convencer o seu advogado de defesa, que se recusou a representá-lo, ou o tribunal de Maiorca, que o condenou às penas máximas por este delito.

 

Outra defesa típica dos que eram acusados de acariciar as penitentes durante a confissão referia que não podiam deixar de o fazer no decurso do cumprimento dos seus deveres. Um dos casos mais invulgares desta defesa foi o apresentado pelo Dr. Joaquín Foil em nome de Fray Jaime Massanet. Uma das acusações contra Massanet era que introduzira o dedo por uma abertura no painel que o separava da sua penitente e lhe tocara nos lábios e no rosto. Foil alegou, por incrível que pareça, que Massanet apenas se agarrara ao buraco no painel para evitar cair no confessionário, que estava velho e abanava, de modo que lhe tocara no rosto sem querer. Fray Francisco Pons, na sua resposta à divulgação das testemunhas, rebatera as acusações de que esfregara o rosto nas faces de várias penitentes, alegando que só o fizera para as escutar melhor, visto a igreja se encontrar repleta e haver muito barulho.

 

Após a divulgação das testemunhas e a resposta por escrito do advogado de defesa, era dada oportunidade à defesa de apresentar uma lista das testemunhas de defesa e uma série de perguntas que lhes seriam colocadas por um funcionário do tribunal onde quer que vivessem. Este questionário teria, por norma, dois objectivos: primeiro, determinar a reputação do réu como excelente padre e óptimo confessor que muito improvavelmente teria feito aquilo de que era acusado, e, segundo, lançar a dúvida sobre o caso da acusação, demonstrando que as suas testemunhas não eram fiáveis, quer por serem inimigas pessoais do réu quer porque elas próprias tinham reputação duvidosa.

 

Ao elaborar a sua lista de potenciais testemunhas de defesa, o acusado era obrigado a cingir-se aos condicionalismos das regras que excluíam quem quer que pudesse demonstrar uma propensão indevida a seu favor, como criados e parentes até ao quarto grau. Os advogados de acusação estavam atentos a qualquer tentativa de violação destas regras, de maneira que, quando se descobriu que duas das testemunhas apresentadas por Fray Gaspar de Nájera na sua defesa perante o tribunal das Canárias eram parentes, o seu depoimento foi anulado. Temendo possíveis críticas do Suprema, o inquisidor Dr. Juan Eusebio Campomanes chegou ao extremo de mandar o seu secretário certificar que ele informara especificamente Nájera e o seu advogado das disposições das instruções de 1561 aplicáveis aos tipos de testemunhas que podiam ser apresentadas pela defesa.

 

Claro que, se o acusado não conseguisse identificar todas as testemunhas contra ele ou fosse incapaz de demonstrar que as testemunhas de acusação não ofereciam confiança, então a sua defesanão se sustentaria. Juan de Ia Olmeda, um franciscano que desempenhava as funções de vigário do convento de La Concepción em Oropesa, só conseguiu identificar duas das três freiras que depuseram contra ele, deixando, por conseguinte, incólume o principal depoimento da acusação. Os seus esforços no sentido de destruir a credibilidade das testemunhas da acusação alegando que eram reputados mentirosos foram também contrariados pelo comissário de Oropesa, que referira anteriormente que as freiras possuíam uma excelente reputação e provinham de boas famílias, pelo que os seus depoimentos «deveriam ser aceites sem questão». O caso de Olmeda também não foi ajudado pelo facto de ele ter efectuado confissões parciais em várias das audiências perante o tribunal e na própria argumentação de defesa. Em resposta às acusações de Bernarda de San António, que o acusara de a aliciar tanto durante como após a confissão, primeiro ele confessara ter usado linguagem sugestiva após a confissão e depois, na sua declaração de defesa, complicara tudo afirmando que o incidente ocorrera enquanto usavam o confessionário para troca de mexericos.

 

As testemunhas chamadas pela defesa podiam revelar-se também pouco fidedignas, por vezes mesmo prestando depoimentos que contrariavam manifestamente as alegações de defesa. O questionário de defesa elaborado por Fray Sebastian de Calçadilla pedia às testemunhas que confirmassem que Maria Romera, uma das suas acusadoras, era uma mulher de «baixa condição e mau carácter, perfeitamente capaz de levantar falsos testemunhos contra ele por ser sua inimiga mortal. Infelizmente para Calçadilla, umas quantas das suas próprias testemunhas de defesa contradisseram-no. Mateo Rodríguez, o mestre-escola local, por exemplo, manifestou surpresa ante a pergunta da defesa relativa ao carácter de Maria Romera, uma vez que sempre soubera ser considerada «honesta e recatada», enquanto os pais eram gente trabalhadora e respeitada muito preocupada em preservar a castidade da filha. Testemunhou também quenunca tivera conhecimento de que Maria ou a família fossem hostis a Calçadilla, conforme alegara a defesa. Para agravar a situação da defesa, o mestre-escola testemunhara até que lhe constara que Calçadilla usara de linguagem indecente enquanto ouvia a confissão de Maria, transformando-se, deste modo, praticamente numa testemunha de acusação.

 

Fray Bernardo dei Castillo viu-se confrontado corn um problema muito semelhante ao das suas testemunhas de defesa, quando tentou impugnar o carácter de duas mulheres que haviam deposto contra ele por aliciamento enquanto estava numa missão em Orcajo. Segundo ele, as mulheres não passavam de umas dissolutas que ohaviam denunciado por terem ficado furiosas corn ele por as admoestar no sentido de mudarem de vida. Porém, o depoimento de três testemunhas-chave da defesa contradizia redondamente as alegações da defesa a respeito das duas mulheres. Fray Alonso López, que acompanhou Bernardo dei Castillo na sua missão a Orcajo, testemunhou que não ouvira senão elogios na aldeia a respeito das duas mulheres, enquanto Fray Miguel Duran, que passara quatro meses ali como cura, descreveu as mulheres como «boas e virtuosas» e disse que nunca ouvira nada em contrário durante todo o tempo que ali vivera.

 

Não era fácil para um solicitante conseguir ter êxito na absolvição ou ver o seu caso suspenso. Hipoteticamente, teria de apresentar uma forte argumentação em resposta tanto à acusação como à divulgação das testemunhas, identificar correctamente as testemunhas contra ele e conseguir levar a que elas fossem consideradas suas inimigas mortais e, por conseguinte, desacreditadas. O exame das testemunhas de defesa teria de corroborar fortemente as alegações feitas em anteriores argumentações de defesa, bem como demonstrar que o réu possuía uma reputação excelente e seria improvável ter cometido o delito.

 

Por sorte, o caso de António de Contreras, um jesuíta de Cuenca, conseguiu reunir todos estes elementos. Acusado de aliciamento pela primeira vez em 1691, o caso contra ele foi suspenso por só existir uma testemunha e uma pesquisa dos registos não ter conseguido revelar mais quaisquer provas.

 

O segundo processo contra Contreras começou por uma denúncia de Juana Salcedo, uma freira do convento de San Bernardo em Cuenca, onde Contreras era confessor de muitas freiras, incluindo a prioresa. Depois de tomar a decisão de o julgar em Toledo e não em Cuenca, onde havia apenas um inquisidor, foi detido e encarcerado na prisão secreta. Nas suas respostas às acusações e divulgação das testemunhas, Contreras identificou correctamente Francisca de Cabreros e Juana de Salcedo como as testemunhas principais da acusação. Ambas as mulheres, afirmou, eram suas inimigas mortais e declaradas. Francisca de Cabreros ameaçara-o porque ele arranjara o casamento entre o seu sobrinho e a irmã dela contra a vontade de toda a família, que queria que ela fosse para um convento. Quanto a Juana de Salcedo, Contreras admitiu que fora seu confessor durante um ano, mas afirmou que ela lhe fizera propostas de carácter sexual e que, como consequência, deixara de ser seu confessor. Além disso, alegou que estivera doente durante a maior parte de 1689 e 1690, precisamente o período em que supostamente teria aliciado Salcedo em quarenta e oito ocasiões diferentes.

 

O depoimento das testemunhas de defesa chamadas no caso de Francisca de Cabreros só conseguiu corroborar parcialmente as alegações de Contreras. Das cinco testemunhas chamadas em Almagro, onde o delito teria tido lugar, duas afirmaram desconhecer qualquer animosidade na questão do casamento e uma salientou que Contreras deixara a aldeia dois anos antes da ocorrência. As outras três testemunhas confirmaram uma certa hostilidade em relação ao casamento, mas nenhuma sabia de quaisquer ameaças contra Contreras.

 

Se o depoimento de defesa contra Cabreros era no mínimo ambíguo, o depoimento contra Juana de Salcedo revelou-se altamente prejudicial. Testemunhas credíveis, como José Nunez de Castilblanque, que era cavaleiro da prestigiosa ordem militar de Alcântara, declarou que Salcedo «não inspirava confiança, era perigosa e de virtude fácil», enquanto José Fernández, que conhecia muito bem Salcedo, confirmou que ela ameaçara Contreras e, durante uma conversa que tivera corn ela, confessara tudo menos que tentara sem êxito seduzi-lo. O Dr. José Torralba, familiar do Santo Ofício em Cuenca e médico oficial deste, descreveu Salcedo como uma pessoa perigosamente instável que uma vez se tentara suicidar. Mais importante, tanto Torralba como o cirurgião oficial do tribunal de Cuenca, Gerónimo Andrés, confirmaram que haviam tratado Contreras de uma doença grave durante 1689 e 1690 e que nessa altura estava tão incapacitado que não conseguia deixar os confins do seu convento. A reputação de promiscuidade e implacável hostilidade de Salcedo em relação a Contreras foi confirmada pelo depoimento de José Anezeto, que declarou que a denunciara à prioresa por ter conservado um homem na sua cela durante uma semana. Nessa ocasião, Salcedo e outra freira que tinha igualmente deposto contra Contreras foram sumariamente encarceradas pela prioresa. Este depoimento parecia ainda mais convincente porque o tribunal recebera antes três cartas confirmando os acontecimentos escandalosos no convento envolvendo as duas freiras. corn o caso da acusação fortemente cornprometido pelo depoimento das testemunhas de defesa, a votação da consulta de fé foi inconclusiva. O caso passou então para o Suprema, que votou uma segunda suspensão a 26 de Fevereiro de 1695.

 

Claro que, dadas, de um modo geral, as tendências acusatórias da Inquisição, até a defesa melhor concebida poderia não ter qualquer impacte sobre o veredicto final. As testemunhas de defesa chamadas por Sebastián Menchero, o cura substituto de Daimiel, no distrito de Toledo, conseguiram desacreditar a principal testemunha de acusação a tal ponto que se verificou uma rara rotura na consulta de fé. Os três inquisidores votaram que Menchero deveria ser privado do direito de ouvir confissões de mulheres durante oito anos, enquanto o consultor e o representante do bispo se declararam convencidos da manifesta parcialidade da segunda testemunha e, por conseguinte, preferiram ignorar o facto de mesmo os inquisidores terem votado uma penalização menor do que a normal nestes casos e condenar Manchero à privação perpétua do direito de ouvir as confissões tanto de homens como de mulheres e a quatro anos de exílio.

 

Após a apresentação do depoimento da defesa, o caso estava pronto para a votação final por consulta de fé, consistindo nos inquisidores, no representante do bispo e em vários consultores escolhidos pelo tribunal. Uma das particularidades dos casos de aliciamento por oposição a outros delitos abrangidos pela jurisdição do Santo Ofício era o facto de os consultores laicos estarem impedidos de ter assento no júri. A razão de tal foi afirmada anteriormente pelo autor anónimo da «admoestação a um dominicano», de 1667: o receio de afastar o laicado do sacramento se este «viesse a saber ou ter conhecimento de confessores tão maus». Uma consulta de fé típica, como a citada em 1589 na sentença do caso de Fray Juan Colomer, consistia em dois dos inquisidores que então prestavam serviço no tribunal de Toledo; em Alonso Serrano, o vigário-geral da arquidiocese; e em cinco consultores - Bautista Veles, Mexia de Gomara e Pedro Carvajal, cónegos da catedral, o Dr. Salazar de Mendoza, administrador do hospital do convento de San Juan Bautista; e Fray Juan de Ovando, o superior do convento de San Juan. Mais tarde na história do Santo Ofício, como este perdesse a sua importância política, os consultores provinham de um grupo de clérigos menos distinto, enquanto em alguns distritos os bispos locais não conseguiam sequer enviar um representante, limitando-se a nomear um inquisidor que actuaria no seu lugar.

 

Como os casos de aliciamento envolviam clérigos, as sentenças que chegavam por via da consulta de fé eram cuidadosamente apreciadas pelo Suprema. De um modo geral, o Suprema confirmava estas sentenças sem modificações, optando por alterá-las em pouco mais de 20% dos casos. Havia o dobro das probabilidades de tais alterações irem no sentido de uma maior severidade do que de uma maior brandura. Por vezes, as modificações eram ligeiras, como o acréscimo de exercícios espirituais a uma sentença, mas, noutros casos, o Suprema aumentava significativamente a penalidade. Em alguns casos, como o de Fray Diego Sánchez de Cubas, em que o Suprema alterou completamente a sentença decretada pelo tribunal, indicava a sua falta de confiança nas deliberações da consulta de fé.

 

Dos 223 casos constantes da minha base de dados, 36% foram suspensos principalmente por falta de provas, corn as suspensões durante os séculos xviii e princípios do xix a um ritmo superior ao dobro das do século xvin. Semelhante esquema é compatível corn uma instituição em declínio, uma instituição que estava cada vez menos disposta a pressionar as investigações internas numa altura em que a sua própria existência corria perigo.

 

Nos restantes casos, 68% abjuravam de levi, por outras palavras, estimava-se que fossem ligeiramente suspeitos de heresia. É uma designação séria mas dificilmente de gravidade e indicava a fraca ligação entre uma ofensa como o aliciamento e os grandes crimes como a judaização ou o luteranismo, em que estava em questão uma autêntica heresia e que constituía uma ameaça para o catolicismo romano. Os que abjuravam estavam também sujeitos a outras incapacidades e destruíam efectivamente as suas carreiras.

 

Como o aliciamento respeitava à maior violação do espírito e função do sacramento da penitência, não surpreenderá que 74% dos condenados ficassem privados do direito de ouvir confissões. Muito embora apenas uma escassa minoria dos casos de aliciamento envolvesse de facto vítimas do sexo masculino, a esmagadora maioria dos transgressores ficava privada do direito de prestar serviço como confessores a ambos os sexos, corn apenas pouco mais de 8% que perdiam somente o direito de ouvir confissões de mulheres.

 

A privação do direito de ouvir confissões era incomparavelmente a mais grave de todas as penas aplicadas por aliciamento. Estava estreitamente ligada ao ideal de castigo que «lançaria tanto terror nos corações dos outros confessores que eles não ousariam cometer tamanho sacrilégio», conforme referiu o autor anónimo da «admoestação a um jesuíta», de 1687.

 

Podemos ficar corn uma boa ideia do destino de um frade que sofreu este castigo, a partir de uma carta escrita pelos inquisidores das Canárias ao Suprema, pedindo clemência para um franciscano que tinham acabado de sentenciar. Francisco Garcia Encinoso tinha 60 anos quando o seu julgamento terminou, e o tempo que passara na prisão secreta arruinara-lhe a saúde. O tribunal retirou-lhe apenas o poder de ouvir confissões de mulheres, mas permitiu-lhe retomar a audição de confissões de homens após uma suspensão de quatro anos. Ao levar o caso ao Suprema para revisão, o tribunal salientou que, se ele fosse perder completamente o seu estatuto de confessor, seria inútil a qualquer comunidade em que entrasse e ficaria, por conseguinte, exposto à «fome, nudez e sofrimento por que outros da sua ordem tinham passado em circunstâncias semelhantes». A profunda humilhação pessoal sentida pelo clérigo, que se via privado do direito de ouvir confissões, vem nitidamente expressa numa carta enviada ao tribunal de Toledo por Luis López de Quiros y Toledo, em 1676. Quiros y Toledo, que provinha de uma proeminente família fidalga de Alcázar de San Juan, continuou a viver na casa de sua mãe e detinha inclusivamente o seu benefício na aldeia, onde era cura da paróquia de Santa Guitería. Em 1664, corn quinze testemunhas contra ele, foi condenado por aliciamento, ficando privado para sempre do direito de ouvir confissões, e foi exilado de Alcázar de San Juan durante dez anos. Decorridos dez anos sobre o seu regresso do exílio, escreveu ao tribunal recordando a sentença, que suportara corn resignação muito embora se sentisse constantemente mortificado. Agora, corn 53 anos, pedia permissão para ouvir confissões nos dias santos, «para que, ocupando o seu lugar corn os outros confessores, pudesse começar a recuperar a sua reputação».

 

A maior parte das sentenças incluía uma combinação de penalidades. A pena mais frequente era o exílio (50%), que podia ir de seis meses a dez anos ou mais. Normalmente, uma sentença de exílio evitava que o indivíduo residisse no local ou locais onde fora cometido o delito e era costume impedi-lo de ficar na cidade que servia de sede ao tribunal. Era frequente os tribunais castelhanos, como o de Toledo, acrescentarem uma proibição de residência em Madrid, possivelmente num esforço para colaborar corn outros tribunais régios no afastamento dos indesejáveis da capital. O exílio fazia-se acompanhar corn frequência de reclusão (43%), o que para os clérigos seculares significava terem de passar a residir num convento numa determinada aldeia ou cidade onde houvesse algum funcionário do Santo Ofício que os vigiasse. Para os regulares, a reclusão significava o destacamento para um convento da própria ordem, onde ficavam privados de voz ou voto nos assuntos da comunidade e eram os últimos a entrar no coro e no refeitório, à excepção dos noviços e dos leigos. Em certos casos particularmente graves (7,7%) teriam de jejuar pão e água uma vez por semana durante um determinado período, ou eram-lhes distribuídos exercícios espirituais.

 

Tanto para os seculares como para os regulares, o exílio e a reclusão num convento podiam revelar-se uma experiência dolorosa. A posição desagradável de um frade recluso por aliciamento poderia expô-lo ao ridículo ou ao abuso dos outros membros da ordem. Em 1699, o tribunal de Toledo teve de intervir a fim de proteger o carmelita Bernardo dei Castillo do prior do convento a que fora confinado. O prior mantinha-o acorrentado na sua cela e meio esfomeado, mesmo depois de ter terminado um período de seis meses de reclusão solitária. Após receber informação do seu comissário sobre a situação, o tribunal ordenou a libertação de Castillo e a sua transferência para a casa carmelita em Toledo.

 

Em contrapartida, muito embora fosse um fardo financeiro para os que o haviam acolhido, o regular recluso era membro da mesma ordem que os outros frades e, por conseguinte, podia contar corn a sua cornpaixão. Uma demonstração de contrição exemplar e de uma vida excepcionalmente santa por parte de um indivíduo nitidamente arrependido podia garantir born tratamento e até a intercessão em seu nome junto do Santo Ofício pelos seus superiores. Em 1591, por exemplo, o novo prior nomeado para o convento de San Augustín de Arenas escreveu ao tribunal de Toledo em nome de Fray Luis de Valdivieso, que se encontrava preso ali desde a sua condenação, ocorrida no ano anterior. Ahumildade e contrição de Valdivieso tinham cativadotodaacomunidade, a ponto de o prior escrever a pedir que fossem alterados os termos da reclusão, permitindo-lhe ir para uma quinta próxima onde os frades estavam acostumados a fazer exercício.

 

Por norma, os seculares chegavam ao seu local de exílio empobrecidos corn as custas do julgamento e a perda dos rendimentos de quaisquer benefícios que pudessem deter. Em 1690, Sebastián Menchero, que fora condenado a quatro anos de exílio, dos quais os primeiros seis meses seriam cumpridos num convento em Malagón, escreveu ao tribunal de Toledo queixando-se de que chegara à aldeia tão doente que mal conseguia caminhar. As despesas do julgamento e a perda do seu benefício empobreceram-no tanto que pedia permissão para permanecer na aldeia após o seu período de reclusão, onde poderia ganhar a vida ensinando as crianças da região.

 

Um dos casos mais trágicos de que possuímos registo é o de Gabriel de Osca, cura de Piedrabuena. Gabriel de Osca foi um dos malogrados párocos cujo benefício era suficiente para lhe permitir um estilo de vida desafogado. Aos 63 anos de idade, quando foi detido pelo tribunal de Toledo, Osca conseguira acumular bens pessoais consideráveis, incluindo-se arte sacra e estatuetas, uma enorme quantidade de mobiliário e uma excelente biblioteca. Tinha também cerca de vinte ducados em dinheiro, assim como alguma joalharia em seu poder e uma porção considerável de cereais no seu celeiro. Um ano após a sua chegada ao convento de San Gerónimo de Guisando, para onde o haviam mandado, foi descrito como tão carenciado que a comunidade teve de o vestir e alimentar dos seus magros recursos. Foi o resultado directo da recusa do tribunal em o deixar regressar a Piedrabuena e vender os seus bens, que acabaram por desaparecer nas mãos dos responsáveis pela sua confiscação. Afastado de San Gerónimo depois de o prior escrever ao Suprema a queixar-se de que ele era demasiado pobre para o sustentar, Osca foi transferido para a casa mais abastada de Valdeglesias, mas aqui a sua situação agravou-se ainda mais, pois o vale onde se situava o convento foi atacado por uma epidemia. Como Osca estivesse muito debilitado, o abade escreveu ao Suprema pedindo a sua remoção para um local mais rico, «pois, em virtude da peste, até os jovens e fortes mal conseguem sobreviver aqui».

 

Doente e empobrecido, andando de um lado para o outro, o destino de Gabriel de Osca dificilmente poderá ser considerado único. A pobreza de muitos conventos ou a sua localização remota ou insalubre tornava-lhes difícil a instalação dos «hóspedes» que a Inquisição insistia em lhes enviar. A reclusão num convento continuava a ser um castigo grave e mesmo susceptível de pôr em risco a vida de algumas pessoas, em particular os idosos, mas conseguia evitar que o transgressor fosse visto e cessar as suas actividades ilícitas. A presença de frades ou padres seculares caídos em desgraça num convento servia também de aviso. Estas figuras sinistras, existindo à margem da vida da comunidade, privadas de honra e posição, constituíam uma prova arrepiante do poder do Santo Ofício, que poderia impedir os frades mais jovens ou os noviços de cometerem delitos semelhantes.

 

Outra forma de o Santo Ofício incutir o terror nos corações dos membros das ordens regulares era ordenar-lhes que presenciassem a leitura da acusação e da sentença, associando-os depois ao próprio cãstigo, obrigando-os a açoitar o transgressor. Chamado «disciplina circular», este processo particularmente humilhante era executado normalmente no dia seguinte à leitura em voz alta, num convento da ordem a que o transgressor pertencia, da sentença proferida nas câmaras do tribunal. Depois de alertado por um secretário, o prior ou superior reunia todos os frades excepto os noviços, ou nos seus aposentos ou no coro. O indivíduo condenado era escoltado até à câmara e lida a sentença na presença do grupo reunido. O transgressor ajoelhava-se depois e descobria os ombros, enquanto cada frade, por ordem de antiguidade, lhe batia corn uma chibata.

 

Eram extremamente raros os apelos para o Suprema de sentenças aplicadas pelaconsw/tó de fé Q tinham de ser elaborados numa linguagem extremamente obsequiosa, a fim de evitar ofensas, dado a Inquisição, de um modo geral, ser particularmente sensível a qualquer crítica, ainda que justificada. Estes cânones do comportamento, que seriam, por certo, sobejamente conhecidos dos clérigos espanhóis, foram completamente ignorados por Jacome Campana, um capuchinho napolitano que resolveu apelar de um veredicto apresentado pelo tribunal de Toledo em 1594. Campana, que contava 70 anos quando foi detido em Madrid e levado para a prisão secreta em Toledo, era o representante geral da ordem em Itália e doutor em Direito Civil e Canónico. Enquanto esteve em Madrid, serviu como capelão do príncipe de Palermo e celebrou a missa regularmente na casa do embaixador veneziano. Não obstante estes contactos, parece ter sido pouco mais do que um dos muitos parasitas pretenciosos e impecuniosos que infestaram os palácios dos ricos durante o início do período moderno. Certamente, quando os inquisidores lhe perguntaram se tinha alguém que o pudesse ajudar a fazer face às despesas da sua detenção, ele fora obrigado a responder que não tinha «nenhum senhor ou patrono que lhe pudesse valer».

 

Tendo sustentado, ao longo do seu julgamento, que era vítima de uma conspiração envolvendo os seus inimigos políticos, Campana ficou ultrajado ao ser considerado culpado pelo tribunal e insistiu em apelar para o Suprema, muito embora o seu advogado de defesa o aconselhasse vivamente a não o fazer. No seu apelo, afirmava que a sentença fora «extremamente injusta» e baseada em provas insuficientes das testemunhas femininas que tinham participado voluntariamente no delito e, por conseguinte, não eram dignas de crédito. Recusou-se igualmente a abjurar de levi porque se afirmara inocente de qualquer tipo de heresia, por menor que fosse.

 

É fácil ver como os inquisidores de Toledo e o Suprema terão achado ofensivo o seu apelo. A própria recusa de abjurar de levi era. equivalente a pôr em causa toda a jurisdição do Santo Ofício, mais perigosa em virtude de ser extremamente ténue a ligação entre o aliciamento e a heresia formal. De facto, em vez de admitir que ocorrera um grande erro judiciário, o que era bastante improvável em face das evidências, o Suprema ordenou ao advogado de acusação do tribunal que desse início a um novo processo contra ele por causa das «muitas afirmações ousadas e impertinentes» contidas no seu apelo. Ignorando a sua objecção de que, segundo a lei canónica, ele tinha pleno direito a apelar da sentença que considerava injusta, o Suprema não só confirmou a sentença inicial como aumentou as penas nela contidas. Por último, protestando ainda a sua inocência, Campana abjurou de levi a 7 de Julho de 1595 e foi finalmente mandado para um convento mesmo às portas de Toledo para cumprir seis anos de reclusão. Em circunstâncias normais, a avançada idade e a folha de serviço exemplar poderiam ter aconselhado clemência neste caso, mas Campana ofendera tanto os inquisidores de Toledo ao apelar do seu veredicto que em duas ocasiões diferentes usaram da sua influência para bloquear qualquer redução da sua pena de reclusão.

 

Em ocasiões raras, o Suprema reduzia a sentença no todo ou em parte, por norma quando o acusado era ou uma pessoa corn alguma influência política ou demonstrara um arrependimento exemplar. Em

1637, por exemplo, o Suprema retirou quatro dos cinco anos de exílio da sentença do Dr. Pedro Onofre Martin, cónego da catedral de Maiorca. Onofre Martin pôde também candidatar-se a outro benefício eclesiástico em substituição do rendimento do canonicato que perdera após a sua condenação. Simultaneamente, porém, o Suprema confirmou explicitamente o afastamento definitivo do seu direito de ouvir confissões.

 

Num gesto ainda mais invulgar, o Suprema restituiu o poder de ouvir confissões ao Dr. António Segui. Ao tomar esta decisão, o Suprema terá sido influenciado pelo facto de a consulta de fé estar dividida em relação à sua condenação. O que provavelmente fez pender a balança a seu favor foi o estilo de vida exemplar que levou após a sua libertação da prisão secreta. Exilado da capital durante quatro anos, Segui passou a residir num eremitério próximo da aldeia de La Pobla. Ali, de acordo corn o comissário local, granjeou uma reputação invej ável entre a população da região pela sua santidade. Após a investigação de um comissário o ter confirmado, o Suprema ordenou a suspensão do seu exílio e emitiu-lhe uma licença para ouvir confissões.

 

Não obstante as nítidas dificuldades em conseguir provas suficientes para levar uma acusação de aliciamento ao Santo Ofício, não se duvidará que o julgamento e castigo fossem experiências difíceis, dolorosas e mesmo trágicas para muitos clérigos acusados. Só o facto de provir da Inquisição, a instituição que repelira a suposta ameaça à fé, representada pelos odiosos judaizantes e mouriscos, constituía em si um profundo choque para um sacerdote católico devoto que provavelmente nunca tivera qualquer pensamento manifestamente herético na sua vida. Além disso, as sentenças proferidas nos casos de aliciamento, muito embora não envolvessem execução ou um período de serviço nas galés, eram consentâneas corn um delito levado muito a sério pelas autoridades. A privação da licença de confessor, que era um privilégio avidamente procurado por todos os clérigos; a perda dos rendimentos de um benefício; longos períodos de reclusão, por vezes em condições extremamente desconfortáveis; períodos de exílio acompanhados de um empobrecimento, eram castigos cuja severidade não podia ser subestimada. É particularmente este o caso se recordarmos que destruíram de facto as vidas e aspirações dos transgressores clericais, que não podiam julgar escapar às suas consequências corn uma mudança oportuna de carreira. Incapazes de ganhar a vida, afligidos pela desastrosa perda da posição e olhados corn desconfiança e repugnância pelos outros clérigos, os inúmeros solicitantes condenados a uma existência precária em conventos ou aldeias deveriam constituir um aviso aterrador do poder do Santo Ofício e um travão eficaz para os que pudessem vir a transgredir.

O CONFESSOR SOLICITANTE

Caso curioso, a análise do estatuto eclesiástico dos transgressores que compareciam perante a Inquisição demonstra de forma conclusiva que a grande maioria provinha das ordens religiosas. Dos 223 acusados, somente 59 (26%) pertenciam ao clero secular. De entre os seculares, os grupos maiores eram constituídos por párocos (13,9%) e curas substitutos (14%)), seguidos de números mais reduzidos de cónegos e outros detentores de benefícios e uma série de assistentes e capelães.

 

Entre os regulares, predominavam os membros das ordens mendicantes há muito instituídas, só os franciscanos abrangendo setenta e dois casos, ou seja, 32% do número global. Ao todo, os mendicantes, incluindo franciscanos, dominicanos, carmelitas, trinitários, agostinianos e mercedários, correspondiam a 96,9%; dos casos de aliciamento provenientes das ordens religiosas, enquanto apenas três casos envolviam membros da Sociedade de Jesus. Tudo isto se afigura ainda mais extraordinário considerando o crescimento significativo da ordem dos Jesuítas de 1440 membros por alturas de 1580 para 2746 precisamente antes da sua expulsão em 1767. Naturalmente, as ordens monacais (beneditinos, cistercienses, cartuxos e jeronimitas) apresentavam pouquíssimos casos em virtude do seu envolvimento mínimo nas questões externas ao mosteiro. Os registos das acusações efectuadas durante o período de 1723 a 1820 transmitem a impressão da preponderância das ordens mendicantes há muito instituídas entre aqueles que eram acusados de aliciamento. Dos 3775 nomes registados, apenas 981 eram clérigos seculares, enquanto 2794 pertenciam a ordens religiosas; destes, os vários ramos dos franciscanos forneciam 1297 (46%;) enquanto os jesuítas abrangiam apenas 92 (3,2%). Só podemos presumir que os baixos números dos solicitantes jesuítas correspondiam ao cuidado corn que os seus membros eram escolhidos e educados, à sua libertação das rotinas tediosas e estupidificantes da vida conventual e à sua determinação em evitar os tipos de actividade conducentes à imoralidade e ao escândalo.

À primeira vista, a esmagadora predominância das ordens mendicantes sobre os solicitantes poderá afigurar-se algo surpreendente, em particular à luz da forte ênfase dada no Concílio de Trento à importância dos clérigos paroquiais no desempenho das funções sacerdotais e da repressão política que exerciam sobre muitas aldeias. Uma explicação bastante óbvia, claro, é a mobilidade. Os curas não podiam ouvir confissões fora das suas paróquias sem uma autorização especial das entidades episcopais, enquanto os membros das ordens mendicantes podiam percorrer dioceses inteiras ouvindo confissões onde quer que fosse. Os frades encarregues da recolha das esmolas para as suas ordens tinham de igual modo muitas oportunidades de ouvir confissões de mulheres numa ampla área geográfica. Todavia, o problema mais fundamental era o facto de a Igrej a espanhola nunca conseguir criar uma rede eficaz de curas, capaz de dar resposta à crescente procura, por parte do laicado, de confissões e outros serviços sacerdotais e, por conseguinte, ser obrigada a confiar predominantemente nos frades das ordens mendicantes para o preenchimento da lacuna.

 

Em primeiro lugar, o número de curas era pura e simplesmente demasiado pequeno para servir a população, enquanto a maior parte da expansão que se registava entre os seculares era justificada pelos detentores de benefícios e capelães, especialmente pelos clérigos das ordens menores, que não podiam ouvir confissões. Na diocese de Barcelona, entre 1635 e 1717, apenas foram criados 622 padres diocesanos dos 2667 que receberam o primeiro grau das ordens. No censo de 1591, a Coroa de Castela tinha 33 087 seculares, dos quais somente 13 000 eram párocos. Em 1768, a situação agravara-se, pois, não obstante uma população que crescera pelo menos um terço desde o seu apogeu em finais do século xvi, a Espanha inteira não se podia gabar, corn pouco mais de 15 639 curas para servirem 18106 paróquias, deixando 2467 paróquias absolutamente desprovidas.

 

Em geral, o grande número de paróquias vagas encontra justificação noutro fenómeno típico da Igreja espanhola durante este período: a distribuição absurda dos recursos financeiros. Muito embora o dízimo se destinasse a sustentar a Igreja ao nível local, a maior parte acabava nas mãos dos bispos, dos cabidos das catedrais ou de particulares. Quando os curas retinham uma parte significativa do dízimo ou possuíam outros tipos de rendimentos para se sustentarem, conseguiam manter-se e dificilmente arranjavam um sucessor. Em contrapartida, em cidades como Leão, em que as paróquias eram demasiado pequenas ou pobres, era impossível encontrar um cura disposto a aceitá-las e os bispos viam-se, corn frequência, na obrigação de nomear um frade para servir de pároco. Sucedeu o mesmo nas Canárias, quando, em 1785, José Estrada, um franciscano, foi nomeado cura do Valle de Santiago, não obstante a sua má reputação, em virtude de mais ninguém querer aceitar o cargo. Rendimentos inadequados impediram também as paróquias de Barlovento e Puntagorda de recrutarem um cura secular, de maneira que tiveram de se contentar corn os serviços de um outro franciscano, Francisco dei Castillo, que foi preso por acusações de aliciamento em Agosto de 1604.

 

Exceptuando os factores financeiros, a má distribuição do clero secular espanhol correspondeu a determinadas realidades históricas intimamente ligadas aos esquemas de repovoamento que se seguiram à Reconquista. Por exemplo, quando a região de Duero foi repovoada durante a Reconquista, verificou-se uma tendência para criar novas igrejas paroquiais principalmente nas zonas urbanas, de modo que Toro, que nunca tivera mais de 10 000 pessoas, se podia orgulhar de ter

22 paróquias. O centro e sul, em particular a Andaluzia (onde o repovoamento tendeu a criar grandes aldeias, muitas das quais foram dotadas apenas de uma paróquia), tornaram-se o grande alvo da expansão das ordens mendicantes. Foram particularmente frequentes as novas fundações nos séculos xvi e princípios do xvn até cerca de 1650, altura em que a Espanha tinha cerca de 3000 instituições monásticas. A relação inversa entre o número de paróquias e o número de instituições monásticas pode ser ilustrado através da comparação da cidade nortenha de Bilbau corn o porto meridional de Málaga. Em Bilbau, o número de paróquias e conventos era quase igual, corn 4 e 5, respectivamente, mas em Málaga havia 4 paróquias e 22 conventos. O número insuficiente de paróquias em Málaga confere alguma lógica ao pressuposto de que os regulares assumiam grande parte da responsabilidade de ouvir confissões. Mas, mesmo nos locais onde parecia existir um número adequado de paróquias, os frades eram chamados a coadjuvar o cura. Na arquidiocese de Toledo, corn as suas 575 paróquias, era frequente os curas necessitarem da ajuda dos membros das ordens mendicantes. Sucedeu que, no final da década de 1640, Gerónimo de los Herreros, um dominicano, servia de auxiliar na aldeia de Villaseca de Ia Sagra, onde conquistou excelente reputação entre os seus paroquianos, muito embora a sua presença fosse levada bastante a mal pelos seculares da região. Um deles explicou ao Santo Ofício que, muito embora não tivesse nada contra Herreros pessoalmente, sentia que os regulares não deviam transpor os muros dos seus conventos e «sair das aldeias onde competiam corn o clero secular». De facto, o ressentimento e a inveja por parte do clero secular, que «ficava mortalmente ofendido corn a mínima falha ou deficiência dos seculares», era a principal razão de a Inquisição condenar os solicitantes in comera.

Porém, mesmo onde existiam já párocos, os regulares eram corn frequência os confessores eleitos porque possuíam determinadas vantagens sobre os seculares. Em primeiro lugar, os membros das ordens mendicantes tinham poderes para absolver a maior parte dos casos, mesmo os normalmente reservados ao papa, algo que os vulgares párocos não podiam fazer. Em 1768, os 15 639 párocos tinham pelafrente

55 453 regulares, muitos dos quais corn licença para ouvir confissões. Durante períodos de festas importantes, como a Semana Santa, em que a procura de serviços confessionais aumentava consideravelmente, até o cura mais assíduo se via obrigado a contar corn a ajuda das ordens religiosas. Testemunhas no julgamento de Mateo Fernández Vello, cura substituto de Sauzel, nas Canárias, entre 1684 e 1693, recordaram que ele chamava regularmente os franciscanos e agostinianos de dois conventos das redondezas para o ajudarem nessas ocasiões.

 

Exceptuando alguns indivíduos excepcionais, como José de Barca y Zambrana, um secular de Málaga que acabou por ser nomeado bispo de Cádis, os regulares dominavam também o movimento missionário que se tornou tão importante na Espanha de finais dos séculos xvii e xvm. A enorme importância de muitos párocos, bem como a falta de números suficientes, foram as forças motrizes subjacentes ao movimento missionário, como admitiu o inquisidor Alonso de Salazar Frias quando pedia aos jesuítas e outras ordens que enviassem missionários para a região a fim de confessarem e catequizarem a população na sequência da caça às bruxas movida na região basca. Mesmo em locais onde não existia uma crise particular se sentia que o complicado clima moral da Espanha do século xvii requeria missionários porque somente a sua formação e conhecimentos seriam eficazes corn certos pecadores e certos tipos de pecados. Muito embora quase todas as ordens religiosas participassem desta actividade em maior ou menor grau, era dominada sobretudo pelos jesuítas e capuchinhos (franciscanos), em especial Diego de Cádis (1743-1801), que se tornou o pregador mais popular da segunda metade do século xviii.

 

Deslocando-se por norma aos pares, os missionários realçavam a pregação e a confissão. Quando detectavam indícios de aliciamento, costumavam recusar-se a absolver as suas penitentes, a menos que acedessem a depor perante o Santo Ofício. Por último, a preponderância dos regulares em toda a actividade confessional foi assegurada pelo seu domínio absoluto da vida conventual e do seu papel de orientadores espirituais e confessores do maior número de beatas. Uma série de factores, incluindo o custo em rápida ascensão dos dotes e o desequilíbrio demográfico entre homens e mulheres acentuado pela guerra e pela emigração, levou a um aumento do número de religiosas de aproximadamente 25 000 em 1591 para 33 347 em 1747. Um decreto do Concílio de Trento exigia que as freiras se confessassem pelo menos uma vez por mês e obrigava os seus conventos a ter tanto um confessor regular como um extraordinário para o caso de as freiras se quererem confessar corn maior frequência.

 

Os observadores da época estavam perfeitamente conscientes do potencial perigo de ter um confessor do sexo masculino em contacto tão íntimo e frequente corn mulheres que estavam cada vez mais enclausuradas por detrás dos muros dos seus conventos. A pressão da clausura rigorosa significava que em muitas casas femininas o confessor era quase a única figura masculina corn quem a freira podia interagir, exceptuando um familiar esporádico. A relação entre freira e confessor não era, além disso, vulgar, pois a freira revelava todos os seus pensamentos, sentimentos e tentações a este homem que, por seu lado, se apresentava como uma figura de elevada sabedoria e autoridade. Consequentemente, o jesuíta Bernardino de Villegas fez questão de que o confessor de freiras fosse uma pessoa de capacidades morais e intelectuais superiores, corn paciência e maturidade para lidar corn todos os problemas emocionais especiais normalmente encontrados nas freiras. Infelizmente, como Alonso de Andrade avisava num livro que publicou em 1644, muitas freiras desenvolviam uma dependência emocional excessiva e doentia dos seus confessores, tornando-se «tão obcecadas corn a consideração em que as tinham que nem pensavam nem falavam de mais nada». Estas freiras tendiam a idealizar o saber e a santidade dos seus «pais espirituais» e a não perder a oportunidade de se lhes confessarem a qualquer hora do dia ou da noite. Porém, esta excessiva familiaridade podia transformar a natureza da relação espiritual em sensual porque «em última análise, ele é um homem e tu és uma mulher e ambos são criaturas frágeis feitas de carne mortal».

 

Tendo em mente os muitos avisos dos perigos da relação confessional no convento, os superiores das ordens religiosas masculinas que detinham o principal controlo dos conventos usavam do maior cuidado na nomeação como confessor, e apenas daqueles clérigos que houvessem conquistado boa reputação na ordem e demonstrado sobejamente a sua maturidade emocional. Mesmo assim, o número de freiras jovens e atraentes em determinados conventos fazia que fosse extremamente difícil alguns confessores resistirem à tentação.

 

Os perigos e armadilhas advenientes de ser um confessor de freiras, mesmo no caso de um clérigo extremamente dedicado, não seriam melhor demonstradas corn o exemplo do jeronimita Pedro de Villanueva, que foi nomeado em 1601, pelos seus superiores, confessor do aristocrático convento de La Concepción em Madrid. corn 43 anos, Villanueva estudara Teologia em Alcalá durante cinco anos e concluíra os seus estudos corn nove anos nos colégios que a sua ordem mantinha em Siguenza e Salamanca. Depois de ocupar vários cargos na ordem, foi nomeado prior do importante convento em Salamanca. corn as suas origens de fidalgo e distinta carreira na ordem, Villanueva parecia constituir um candidato ideal para o cargo de confessor das freiras de La Concepción. Infelizmente para Villanueva, porém, tinha inimigos na ordem, e um deles espalhou o boato entre as freiras de que era frígido e impotente, de maneira que, mal chegou ao convento para ocupar o seu novo cargo, algumas das freiras mais novas começaram a arreliá-lo e a provocá-lo impiedosamente, chamando-lhe um «santo ou então dificilmente um homem» nas suas costas e competindo umas corn as outras de modo a garantirem o seu afecto por ele e o desejo de lhe agradar. Apesar dos seus esforços sinceros para levar a cabo corn êxito a sua difícil tarefa e ignorar todas aquelas provocações, acabou por se deixar afectar, como referiu uma das freiras mais velhas no seu depoimento perante o Santo Ofício, que se lembrava de o ver «deambular pelo convento corn ar comprometido e embaraçado porque algumas das freiras lhe chamavam frígido e impotente».

 

Enfurecido por estes ataques à sua virilidade e decidido a salvar a sua reputação, Villanueva acabou por aliciar três freiras que eram as suas piores atormentadoras mas que também se lhe confessavam corn maior frequência, como se estivessem decididas a mostrar às próprias pessoas que o atacavam como estavam redondamente enganadas. De acordo corn o depoimento de Villanueva, as três colaboravam voluntariamente na satisfação dos seus apetites sexuais, mas, quando ele começou a dedicar maior atenção a uma quarta freira, ficaram furiosas e denunciaram-no ao Santo Ofício. Como se atendesse à extraordinária pressão a que fora submetida, a consulta de fé estava dividida no veredicto final, corn dois dos três inquisidores a votarem apenas a privação temporária do direito de ouvir confissões de mulheres. O Suprema, num rasgo de clemência, seguiu esta sugestão, condenando apenas Villanueva a dois anos de suspensão do serviço de confessor de mulheres e o seu afastamento de tudo o que se prendesse corn o convento.

 

Por vezes, um frade apercebia-se da sua incapacidade de resistir às pressões e tentações decorrentes de ser confessor num convento e afastava-se da cena antes de se envolver em profundos sarilhos. José de Jesus Maria foi um carmelita de Toledo tido em alta estima pela sua ordem e, depois de desempenhar cargos de responsabilidade, foi nomeado confessor do convento carmelita em Malagón. Pouco depois da sua chegada ao convento, começou a falar amorosamente a Sor Maria de Jesus e pensou até retirá-la do convento. Atacado pelo remorso, Fray José renunciou inclusivamente ao seu cargo de confessor e conseguiu transferência para o convento deserto de Bolanque, onde estaria a salvo da tentação.

 

Durante o final do século xvi e o xvii, o medo do Diabo e da sua actividade no mundo tornaram-se uma obsessão partilhada igualmente por eruditos e massas populares em toda a Europa. A Espanha não constituiu excepção, muito embora a Inquisição espanhola tendesse a tomar uma atitude mais moderada em relação à bruxaria e conseguisse evitar que os piores excessos da caça às bruxas atravessassem os Pirenéus. No entanto, a Espanha encontrava-se exposta à histeria em relação à possessão demoníaca que esteve na origem de muitos escândalos. Entre

1628 e 1631, o aristocrático convento de San Plácido em Madrid foi palco de esforços frenéticos para exorcizar vinte e cinco das freiras, incluindo a prioresa, que parecia estar possuída pelo demónio. Mais tarde no mesmo século, o confessor real Froilan Diáz usou as palavras do Diabo tal como haviam sido proferidas pelas freiras possuídas num convento em Cangas (Toledo) para provar que o rei Carlos II fora vítima de bruxaria. Quando as freiras estavam possuídas por demónios, era natural que os seus superiores chamassem um membro masculino da ordem para os expulsar mediante recurso a formas de exorcismo oficialmente aceites. Contudo, o exorcismo podia implicar o contacto físico corn o indivíduo possuído, incluindo acariciar, massajar e ungir corn óleo santo, e, nalguns casos, isso levava a consideráveis abusos, aliciamento mesmo, em especial quando o exorcista acumulava as funções de confessor do convento.

 

O exorcismo era apenas uma das maneiras de os sacerdotes serem levados ao contacto físico e emocional íntimo corn as penitentes, numa altura em que os escapes sexuais que os tinham servido tão bem no passado estavam a ser eliminados. Tratava-se apenas de mais uma maneira de o confessor afirmar o seu controlo sobre as vidas íntimas das penitentes, mas o poder e a solidão criaram uma mistura estranha e volátil que poderia explodir no seio do clérigo mais virtuoso e levá-lo à barra do Santo Ofício.

 

As origens sociais dos padres levados a julgamento encontravam-se, sobretudo, nas camadas mais humildes, corn apenas 20% dos setenta e dois indivíduos cuja profissão do pai era mencionada como de origem fidalga e não provindo de nenhum dos estratos da nobreza superior. Os quarenta e nove indivíduos que vinham de famílias de labradores, artesãos e mercadores (68%) demonstram nitidamente que, ao longo do início do período moderno, a Igreja espanhola permanecia um canal para a nobreza social pelo menos ao nível inferior. Claro que entre os vinte e um labradores havia vários oriundos de famílias abastadas, que tinham até influência suficiente nas suas aldeias natais, a ponto de garantirem que os seus filhos obtivessem benefícios locais. Salvador Quijada dei Castillo foi talvez o mais abastado daqueles corn origens camponesas. Desempenhou as funções de cura substituto na aldeia de Ariço, onde o seu irmão era alcaide, e herdou dos pais campos de trigo e vinhas.

 

Para a maioria dos que eram, na origem, labradores ou artesãos, porém, a Igreja proporcionaria, talvez, o único meio de mobilidade social e a única oportunidade de fugir a uma vida de labuta. A fim de ajudar o filho a entrar para a Igreja, o pai de Juan Alcocer, um carpinteiro, comprou-Ihe uma gramática e ajudou-o a aprender a ler e a escrever. Depois de Alcocer ter entrado para a ordem agostiniana, corn 18 anos, pôde concluir os seus estudos em diversos colégios da ordem. Outros homens de origens humildes conseguiram também alcançar posições importantes nas ordens religiosas. Fray Pedro Estéban, cuja família de labradores vivia na aldeia de Realejo, nas Canárias, frequentou a escola local e depois entrou para os Agostinianos corn 16 anos. Após frequentar colégios monásticos em La Laguna, Estéban cumpriu dois mandatos como prior do convento de Vera Cruz. O pai de Gregorio de Tapia tirou partido das abundantes instituições de ensino em Alcalá de Henares, onde amanhava terras, para enviar o seu filho para uma escola de gramática. Tapia concluiu os seus estudos depois de entrar para os Franciscanos corn

16 anos e prosseguiu até se tornar superior da casa franciscana em Toledo.

 

Os inventários dos bens do acusado por ocasião da detenção revelam, no entanto, que a origem social era apenas um dos vários factores que determinavam o nível relativo de conforto material na vida religiosa vinte ou mais anos após a ordenação. Entre os mais pobres dos dezanove indivíduos cuj o inventário de bens foi concluído no seu processo constavam três alcoólicos, um dos quais proveniente de uma conhecida família de hidalgos. Noutros casos, o empobrecimento resultava de benefícios corn renda insuficiente. Juan de Villacastín era um membro típico do proletariado eclesiástico descrito por Juan Maldonado no seu Pastor bónus. Um dos vinte e sete curas de Toledo, uma cidade que iniciara já o seu longo declínio, cumpria os seus deveres corn indiferença, jogava e fora até multado pelo tribunal eclesiástico em Ciudad Real por vários delitos. O inventário feito na altura da sua detenção, em Junho de 1580, revelou um estado de extrema pobreza, raiando a indigência, pois apenas possuía as roupas que trazia no corpo, uma cama de rede, uma mesa e duas cadeiras e alguns livros. Em contraste, quando o Dr. Diego Ordáz y Villalta, cónego da igreja colegiada de Santos Justo y Pastor, corn uma boa renda, entrou para a prisão do tribunal de Toledo para aguardar julgamento, pôde depositar mais de 1400 reates para pagar as suas despesas a uma taxa dupla da do preso comum.

 

O empobrecimento podia resultar também das responsabilidades incómodas e dispendiosas impostas a um regular pela sua ordem. Domingo Tomás Matos, um agostiniano proveniente de uma abastada família de labradores em La Laguna, teve o azar de ser eleito prior do seu convento precisamente na altura em que a Espanha entrou na aliança contra a Grã-Bretanha durante a Revolução Americana. Tal levou ao bloqueio naval britânico e a quebras bruscas no comércio corn as Baleares, de maneira que Tomás Matos se viu na obrigação de pedir emprestadas largas somas de dinheiro a fim de cumprir as suas obrigações de prior. Na altura em que os seus bens foram confiscados, na Primavera de 1782, devia 1300 pesos e os seus bens pessoais limitavam-se à sua biblioteca e a algumas peças de mobiliário e vestuário usado.

 

Apesar das circunstâncias individuais, as origens sociais desempenharam, sem dúvida, uni papel de destaque na determinação da situação em que um clérigo, secular ou regular, se iria encontrar ao cabo de vinte ou trinta anos de vida religiosa. Não só as famílias mais abastadas podiam deixar as casas e bens aos filhos como não será difícil imaginá-las a dar-lhes ajuda financeira. Terá sido o que sucedeu a Patrício Cerero, um trinitário, que viveu no convento da ordem em Toledo, onde nascera filho de um rico mercador. Somente a ajuda financeira dos pais podia justificar a sua abundante biblioteca e a sua cela luxuosamente mobilada, corn cama, várias mesas, secretárias e diversas peças decorativas incluindo quadros religiosos, crucifixos e um relicário de prata. Dado o conforto material de Cerero, não nos surpreenderá que quando Gregoria de Medrano, esposa de um operário da seda, se queixou das dificuldades económicas da família durante a confissão, Cerero se pudese dar ao luxo de lhe emprestar dinheiro em troca de favores sexuais.

 

As diferenças no relativo bem-estar dos clérigos também se podem explicar pelo simples facto de alguns serem consideravelmente mais empreendedores do que outros no aproveitamento das oportunidades financeiras. Luis Lopez de Quiros, cura em Alcázar de San Juan, que também ofereceu dinheiro a diversas das suas penitentes enquanto as aliciava, complementou o rendimento do seu benefício agindo como cobrador das receitas da paróquia de Santa Maria. Salvador Quijada dei Castillo, cura substituto de Ariço, nas Canárias, provinha de uma família de abastados labradores e herdara dinheiro e bens dos seus pais. Pôde aumentar consideravelmente os seus rendimentos emprestando dinheiro aos agricultores da região e desempenhando as funções de capelão num convento próximo, cobrando a taxa de 200 reales. Foi tamanha a sua prosperidade que conseguiu até embelezar a sua igreja paroquial corn diversos objectos valiosos, incluindo os sinos e um turíbulo de prata. A considerável variação das fortunas e relativo bem-estar do clero inferior que estes inventários revelavam deveria constituir um aviso contra qualquer tentativa de generalizações fáceis. Muito dependia do indivíduo, e se alguns eram suficientemente ricos para tentarem comprar o amor de algumas das suas penitentes, outros eram tão pobres que mal conseguiam manter um aspecto de respeitabilidade.

 

A análise dos níveis educativos dos 102 confessores cujos antecedentes educativos constam dos seus processos sustentam a ideia de que os seculares estavam muito atrás dos regulares. Não obstante os decretos do Concílio de Trento, o número de seminários existente para a formação dos párocos continuava, infelizmente, inadequado em Espanha, tendo dezassete sido fundados na segunda metade do século xvi e apenas nove no decurso do xvn. Os regulares estavam em melhor situação, pois desenvolveram rapidamente um sistema de colégios, alguns dos quais, como S. Tomás de Sevilha, podiam quase ser considerados universidades.

 

Dos oitenta e nove indivíduos que recebiam educação para além da escola de gramática, apenas dezanove eram seculares e destes somente seis tinham estudado Teologia formalmente. Na verdade, alguns curas e curas substitutos encontravam-se entre aqueles corn pior nível de educação, de todos os padres levados à presença do Santo Ofício. Gabriel de Osca, que era cura substituto em Piedra Buena, frequentara a escola de gramática em Alcaniz, onde nascera, mas não estudara em qualquer instituição superior. Noutros casos, a educação que um secular recebera era irregular e desigual. Cristóbal Jacinto Mendez, cura em Santiago de Tenerife, teve professores particulares tanto de Gramática Latina como de Teologia Moral. Dado o seu pai ser apenas um operário da seda e os professores provirem todos da sua aldeia natal, é possível duvidar do valor da educação que recebera.

 

Devido à incapacidade de instituir um sistema de seminários até finais do século xvin, os seculares que queriam um nível de educação mais avançado e não podiam aceder a uma universidade tinham de se valer dos ubíquos colégios das ordens religiosas como último recurso. António Segui desempenhou durante vários anos as funções de cura-adjunto e depois foi nomeado prior do hospital geral em Lãs Palmas. Iniciou a sua educação aos 8 anos corn um professor particular, entrou para o colégio franciscano de Sapiena, onde passou oito anos a estudar Artes e Teologia, e depois efectuou o doutoramento na Universidade de Gandía. Os curas e outros seculares que possuíam educação superior provinham geralmente de famílias abastadas que podiam pagar as propinas nas escolas de gramática e universidades. Juan Fernández de Villareal, que foi cura de Villaseca de Ia Sagra e Mocedón, a cerca de 30 km de Toledo, vinha de uma família hidalga ligada aos duques de Albuquerque. Aos 15 anos, Fernández de Villareal deixou a sua casa em Guadalajara, integrando o séquito do herdeiro do ducado, e passou nove anos em Salamanca a estudar Gramática Latina e Artes Liberais, completando a sua educação na Universidade de Sigvienza, onde obteve um grau avançado em Teologia.

 

Os regulares, corn a sua densa rede de colégios especificamente criados para a formação dos membros das suas ordens, estavam consideravelmente melhores. Dos que mencionaram estudos superiores nos seus depoimentos, 66% tinham cursado Teologia durante uma média de quatro anos. Os colégios monásticos eram preferidos pelo elevado nível dos seus estudos, corn apenas um quarto a frequentar as universidades. Claro que a educação pode ser algo perigoso, especialmente quando leva a questionar a autoridade. Foi o cisterciense nascido em Nápoles, Jacome Campana, que estudara Teologia em Siena e se doutorara em Direito Canónico em Bolonha, que levantou enormes dificuldades ao tribunal de Toledo durante o seu julgamento.

 

O bem desenvolvido sistema de colégios monásticos significava que os jovens ambiciosos e inteligentes de famílias pobres podiam encontrar um lugar nas ordens e obter uma educação que, não obstante o seu âmbito circunscrito, era muito superior à que teriam obtido noutro lugar. Juan de Monserate nasceu em Valência de pai imigrante francês e mãe espanhola que estavam dispostos a despender alguns esforços corn a educação do filho, pois ensinaram-no a ler e a escrever em casa. Evidentemente, adquiriu por si próprio os rudimentos de latim e depois passou dois anos na Universidade de Valência a estudar as Artes Liberais. Entrando para a ordem dominicana corn a idade comparativamente avançada de 20 anos, foi enviado para o colégio dominicano de Salamanca, durante dois anos, a fim de estudar Teologia e prosseguir os seus estudos corn restrições nos colégios monásticos de Valência e Orihuela. Depois de deixar Orihuela, leccionou disciplinas que foram desde a Teologia à Gramática Latina em vários colégios dominicanos e acabou por ser eleito prior da casa dominicana em Ibiza.

 

Para além da educação formal, outra maneira de avaliar a qualidade intelectual do clero espanhol era saber quais os livros que constavam das suas bibliotecas particulares. Muito embora tal trabalho mal tenha sido iniciado em Espanha, por sorte, possuímos alguns inventários das bibliotecas clericais, provenientes de fontes inquisitoriais, uma vez que, no momento da detenção, os funcionários nomeados pelo tribunal procediam a um inventário minucioso de todos os bens do réu, incluindo os seus livros. Em dezasseis casos, entre 1576 e 1790, a Inquisição confiscou bibliotecas corn mais de 80 livros. Enquanto alguns funcionários se limitavam a mencionar apenas o número de livros que o réu tinha na sua posse, outros elaboravam uma lista por autores e títulos. Dos

173 títulos mencionados nos inventários, as obras de Teologia integravam a maior categoria isolada, correspondendo a quase 17%. A segunda maior categoria, cerca de 11%, eram sumas e manuais de confessores, contendo um inventário 8 de um total de 23 livros. Os breviários terão sido particularmente apreciados, uma vez que constam de todas as colecções, constituindo perto de 10% do total. Eram manifestamente os livros predilectos, por vezes apenas um livro, que os réus levavam consigo ao comparecerem perante o Santo Ofício aquando do seu julgamento.

 

As duas maiores bibliotecas do século xvm, uma do agostiniano Domingo Tomás de Matos, antigo prior do convento em La Laguna, cujos livros foram confiscados em 1782, e a outra de Fray Guillermo Carnes y Home, detido em 1790, não só eram enormes mas mais variadas do que as bibliotecas apreendidas nos séculos xvi e xvn. A julgar pelos livros que possuíam, ambos os homens tinham reduzido interesse pelos temas seculares, corn apenas um livro não religioso dos noventa e nove constantes das suas bibliotecas. Por outro lado, o seu interesse por assuntos religiosos era consideravelmente vasto, contendo ambas as bibliotecas livros sobre teologia, história eclesiástica e hagiografia. Particularmente interessante é a presença de várias edições em volumes múltiplos de sermões de pregadores oitocentistas famosos. Estes livros de sermões, em especial a edição de 1776-1778 dos sermões de Nicolás Gálio, pertença de Carnes y Home, indicam que ambos os agostinianos foram apanhados pelo movimento de remodelação e reforma da pregação tão curioso na Igreja espanhola do século xvm. O facto de os sermões de Gálio servirem de modelo nas relativamente remotas ilhas Canárias demonstra precisamente a generalização do movimento nos finais do século. De um modo geral, o conteúdo das bibliotecas particulares que nos chegou indica que, dentro do contexto de uma educação clerical de interesse restrito, pelo menos alguns clérigos tinham consciência das contracorrentes intelectuais e dos movimentos de reforma que afectaram a Igreja espanhola, mesmo que residissem em locais distanciados do coração de Castela.

 

Arraigados a um elevado nível de moralidade, os zelosos párocos saídos dos colégios e seminários monásticos do período pós-tridentino eram bem menos tolerantes do que os seus precursores nos casos de imoralidade, superstição e desrespeito pelo sagrado que se lhes deparavam em muitas aldeias. Se noutra altura um cura se teria acomodado às indiscrições morais do seu rebanho, a nova geração de prelados estava muito menos disposta a fazê-lo, mas os seus esforços de impor padrões mais elevados afastavam corn frequência a comunidade em que tinham de viver.

 

Quando Mateo Fernández Vello regressou à sua aldeia natal de Sauzel, na ilha de Tenerife, para ocupar o cargo de cura, era um enérgico jovem de 24 anos, corn catorze de colégio monástico e um grau avançado em Teologia. Pouco depois da sua chegada, criou fama de diligente no cumprimento das obrigações clericais, em especial a confissão, que «ouvia corn grande regularidade». Simultaneamente, Vello recusava-se a tolerar qualquer comportamento imoral entre os membros da sua congregação. Numa ocasião, Vello envergonhou publicamente Juan Baptista de Oliver em virtude de uma relação adúltera corn Sebastiana de Heredia e denunciou-o ao tribunal eclesiástico, que o deteve durante quatro meses. Vello denunciou igualmente Salvador Díaz, sacerdote das ordens menores, por manter uma relação ilícita corn Francisca Riero, de quem tinha cinco filhos. Em resposta à queixa de Vello, o tribunal eclesiástico multou e prendeu Riero e expulsou-o da aldeia. Estes e outros actos semelhantes serviram para alienar grande parte da aldeia. Vários dos seus inimigos, incluindo Salvador Díaz, tentaram afastá-lo acusando-o de imoralidade perante o tribunal eclesiástico. Após uma investigação das acusações pelos funcionários episcopais, Vello foi libertado, mas a tensão causada pelo seu encarceramento e o seu crescente isolamento na aldeia acabaram por abalar a sua disciplina férrea e levá-lo a tentar obter favores sexuais de Maria de Ia Encarnación, uma mulher de 22 anos que alimentava esperanças de se casar corn seu irmão Miguel, corn quem mantinha uma ligação.

 

Para além do esforço de tentar cumprir o programa tridentino de reforma da cultura popular contra a oposição por vezes tenaz do seu rebanho, o clérigo enfrentava uma série de potenciais problemas psicológicos provocada pela própria natureza da vida eclesiástica. Em demasiados casos, estes problemas, conjugados corn a frustração emocional e sexual devido ao cumprimento rígido da regra do celibato, levaram ao aliciamento.

 

Ainsistência da Igreja pós-tridentina na melhoria dos níveis educativos do clero implicava que os pais se vissem obrigados a enviar muito cedo os seus filhos para longe de casa, de modo a obterem a educação adequada. Mateo Fernández Vello tinha apenas 10 anos quando os pais o mandaram para o convento agostiniano em La Laguna, e não voltou durante catorze anos.

 

As circunstâncias ou as ambições familiares podiam obrigar uma criança a deixar a sua casa corn ainda muito pouca idade. Diego Sánchez de Cubas foi enviado pelos pais, aos 7 anos, para viver corn o tio, que era padre, na esperança de que ele desse uma boa educação ao rapaz.

Muito embora nem todos os jovens deixassem os pais tão cedo, a idade média de entrada para as ordens religiosas era aos 17 anos, havendo muitos que entravam ainda mais cedo, aos 14 anos ou, num caso, aos 11 anos. Uma vez na ordem, o indivíduo ficava sujeito a disciplina rígida e podia ser mandado de um lugar para outro, a bel-prazer dos seus superiores. Por ocasião da sua detenção, os regulares tinham mudado em média seis vezes, ou aproximadamente todos os quatro anos e oito meses. Caso curioso, em especial se considerarmos o elevado número de solicitantes provenientes da ordem, os Franciscanos mudavam os seus frades corn muito maior frequência, em média nove vezes, ou todos os três anos e dois meses.

 

As razões destas frequentes mudanças variavam, indo desde a necessidade de maximizar o uso das instalações educacionais da ordem a um desejo de aproveitar o melhor possível os recursos humanos. O jesuíta Felipe de Medrano, que foi preso pelo Santo Ofício em 1694, entrou para a ordem corn 14 anos e mudou em média cada dois anos e quatro meses. Nascido em Daimiel, a sueste de Toledo, Medrano deu os primeiros passos na sua educação corn um mestre-escola local. Após entrar para a ordem, a sua educação prosseguiu em vários colégios jesuítas em locais tão dispersos como Madrid e Múrcia, na costa mediterrânica, voltando depois a Huete, na província de Cuenca, onde fez um exame. Transformado de aluno em professor, Medrano passou então o resto do tempo na ordem em diferentes localidades de Castela-a-Nova (Ocafia, Toledo) e Estremadura (Llerena) como leitor de Teologia Moral, pregador e administrador, terminando no prestigioso colégio em Alcalá, onde foi preso.

 

Intencional ou não, o efeito destas mudanças frequentes era dificultar ao máximo aos frades ou clérigos o estabelecimento de relações estreitas e duradouras entre os seus semelhantes. O sentido de isolamento era ainda maior corn o afastamento extremo dos pais e irmãos. As crises demográficas periódicas, em virtude de epidemias e colheitas perdidas, implicavam que, no momento da detenção, 71% dos sacerdotes da minha amostragem tivessem perdido ambos os pais. Os irmãos eram também objecto de elevadas taxas de mortalidade devido às mesmas causas, corn 43% dos irmãos e 24% das irmãs referidos pelos réus já falecidos no momento da detenção. Em alguns casos, toda a família mais chegada de um sacerdote morrera na altura em que rondava os 50 anos. Mateo González, um franciscano corn 47 anos por ocasião da sua detenção em

19 de Novembro de 1699, referiu que ambos os pais haviam falecido, enquanto o seu único irmão morrera recentemente numa missão de guerra na Flandres e a sua única irmã, o marido e ambos os filhos tinham morrido na América. Tivera vários outros irmãos, mas todos falecidos tão novos que nem se recordava dos seus nomes.

 

Os longos períodos de ausência do lar significavam também que, mesmo que um padre tivesse irmãos sobrevivos, corn frequência eram raros os contactos corn eles e pouco sabiam a respeito das suas vidas. O carmelita Diego de Ia Trinidad, que contava 42 anos quando compareceu perante o tribunal de Toledo, perdera a tal ponto o contacto corn a família que não sabia se o irmão mais velho ainda se encontrava vivo, muito embora continuasse a residir em Soria, onde tinham crescido juntos. Ignorava o paradeiro do seu irmão mais novo ou o que fazia. Também não se conseguia lembrar da profissão do pai ou onde nascera e não sabia os nomes dos avós. O isolamento dos irmãos era ainda maior se eles estivessem também na vida religiosa. Bernardo dei Castillo, um carmelita nascido em Toledo, teve a sorte de permanecer na sua cidade natal praticamente durante os vinte anos em que foi membro da ordem. Mas, dos seus seis irmãos e irmãs, dois tinham morrido muito novos, outro entrara para os Franciscanos e morrera oito anos antes corn 24 anos, e o seu único irmão vivo era dominicano num convento «algures em Castela-a-Velha».

 

Ainda que vivendo na mesma aldeia como membros da família, isso não era, todavia, garantia de proximidade. Sebastian Menchero, que era cura substituto de uma igreja paroquial em Daimiel, a sueste de Toledo, perdera ambos os pais, mas tinha ainda seis dos sete irmãos. Viviam todos em Daimiel, mas Menchero não se lembrava sequer do nome da mulher do seu irmão mais velho nem do de qualquer dos quatro filhos da sua irmã mais nova. Muitos factores, como dissidências a respeito de heranças, casamentos e dotes, podiam levar as famílias a distanciar-se e contribuir para a sensação de afastamento do padre. De um modo geral,

36% dos acusados desconheciam os nomes dos maridos ou mulheres dos seus irmãos, enquanto 31% não se conseguiam lembrar sequer dos nomes dos sobrinhos.

 

Dado o facto de a idade média dos clérigos solicitantes, conforme constava da lista quando compareciam perante o Santo Ofício, ser de

46 anos, corn quase 64% destes 133 indivíduos a oscilarem entre os 35 e os 50, podemos presumir que muitos estariam a passar por uma forma de crise da meia-idade quando começavam a aliciar as suas penitentes por volta dos 41 anos. Os psicólogos estão geralmente de acordo em que «a meia-idade é uma fase de vulnerabilidade psicológica, social e fisiológica». O «balanço» emocional que acompanha a meia-idade transfere invariavelmente a atenção para as necessidades internas do indivíduo, e, depois de passar vinte e quatro anos na vida religiosa, um padre pode ter-se sentido imensamente frustrado uma vez que as suas necessidades de proximidade emocional não foram correspondidas. Por um lado, os teóricos têm salientado que a auto-análise inerente ao «balanço interno» pode ser particularmente tensa para homens que foram ensinados a controlar qualquer sinal de fraqueza ou vulnerabilidade emocional, precisamente o tipo de formação que os seminaristas e noviços recebiam durante a adolescência. Em muitos casos, o resultado foi uma crescente frustração corn os condicionalismos da vida religiosa, uma incapacidade de cumprir devidamente as suas obrigações e uma procura frenética da satisfação emocional, de outro modo impossível de obter.

 

Para muitos dos sacerdotes acusados de aliciamento, uma comparência perante o Santo Ofício era o culminar de um processo de decadência moral, emocional e psicológica iniciado alguns anos antes, assinalando o começo da crise da meia-idade. Por vezes, o seu comportamento cada vez mais problemático chegara já ao conhecimento dos seus superiores. No caso do dominicano Francisco Carrascosa, revestiu a forma de uma luta para escapar aos condicionalismos da vida monástica. Em 1743, corn 46 anos, foi transferido de Oran para Granada, mas, ao invés, dirigiu-se para Portugal e serviu como capelão na ilha de Fuenteventura, tudo sem autorização dos seus superiores. Por ocasião do seu julgamento perante o Santo Ofício sabia-se que, vários anos antes, fora castigado pelos seus superiores em duas ocasiões, por fazer comentários sugestivos a uma mulher quando era seu confessor.

 

Para José Estrada, a maneira de se livrar da autoridade dos seus superiores foi secularizar-se. Após uma carreira turbulenta numa série de casas franciscanas, incluindo inúmeras transferências, foi nomeado superior do convento de Buena Vista mas afastado quando agrediu outro frade. Estrada solicitou então aos seus superiores que o deixassem tornar-se cura. Foi concedida a autorização, mas a sua conduta não melhorou, e os seus superiores tiveram de o afastar novamente, desta vez para o convento de La Orotava, onde seria mais tarde detido pelo Santo Ofício.

 

Outro franciscano, José Nuela, de 35 anos, admitiu pura e simplesmente que não se enquadrava na vida de mendicante e pediu aos inquisidores, por ocasião do seu julgamento, que intercedessem por ele para que pudesse deixar a ordem. Também Nuela teve uma carreira corn altos e baixos; escassos meses antes de ser detido pelo Santo Ofício, sob acusação de aliciamento, tinham-lhe sido dados seis meses de reclusão, e os seus superiores privaram-no do direito de ouvir confissões depois de ser apanhado a masturbar-se diante de um rapazinho.

 

Para alguns, o fracasso do progresso das suas carreiras dentro das ordens religiosas ou apenas o mero tédio de ouvir confissões atrás de confissões numa série de aldeolas, levava-os a abusar do álcool. Corn vinte e poucos anos de idade, decorridos apenas alguns sobre a sua entrada para os Franciscanos, Gaspar de Nájera parecia adaptar-se bem à sua vida na ordem. Como descreveu Domingo Pinto, um jovem que estudou Gramática Latina sob a sua orientação, Nájera tinha excelente reputação e nada fez que pudesse afrontar a moralidade cristã. Alguns anos mais tarde, quando Nájera contava 33 anos, Pinto voltou a encontrá-lo, desta vez na aldeia remota de Adzanete, onde Nájera admitiu que a sua carreira na ordem não correra bem. Foi igualmente nesta altura que outras testemunhas confirmaram que o haviam encontrado embriagado a meio do dia. A dada altura, recusou-se inclusivamente a fazer um sermão, pois não lhe tinham trazido vinho. Dois anos depois, corn 35 de idade, tentou aproveitar-se de uma criada de 15 anos durante a confissão, e, quando ela recusou, seguiu-a até casa, onde a patroa o encontrou na cozinha a beber vinho de uma taça de cobre. Quando compareceu perante a Inquisição, cinco anos mais tarde, aliciara nove penitentes e tentara seduzir um rapaz de 12 anos.

 

Um dos casos mais interessantes de alcoolismo, demonstrando que a natureza monótona da vida religiosa poderia ter um efeito desmoralizador sobre pessoas de imaginação e sensibilidade, diz respeito a António de Arvelo, um franciscano que foi detido pelo tribunal das Canárias em 1784. Manifestamente inteligente, a carreira de Arvelo na ordem tivera um início promissor no final da casa dos 20, corn cargos de professor nos colégios de Izod e Santa Cruz, que combinou corn a audição de confissões das gentes do povo da região. Algures a meio da casa dos 30, ter-se-á aborrecido corn a vida na ordem, em particular corn o tédio da confissão, e começou a beber bastante. Aos 37 anos, foi privado dos seus cargos académicos e enviado para o convento de Lanzarote, onde lhe ordenaram que ajudasse o cura da aldeia vizinha de Ária. Como do que ele gostava menos no seu trabalho era de ouvir confissões, continuou a beber a todas as horas na companhia do cura e vendeu os seus livros a fim de comprar mais bebidas alcoólicas. Ouvia confissões inebriado e deitado na cama em casa do cura, enquanto um criado lhes levava mais bebida. A fim de variar a rotina de ouvir sempre os mesmos pecados recitados incessantemente, Arvela começou a contar às penitentes os seus pecados antes de elas iniciarem sequer a confissão, explicando aos inquisidores no seu julgamento que era muito fácil adivinhar o que aquelas simplórias iam dizer. Ouvir confissões de mulheres embriagado e semidespido dificilmente permitiria manter a decência, e Arvelo acabou por ser denunciado pelo aliciamento de várias penitentes. Foi condenado à privação do direito de ouvir as confissões tanto de homens como de mulheres, não obstante a sua alegação, na altura, de «demência» durante os acessos de embriaguez.

Independentemente do seu estatuto religioso, a capacidade de o confessor aliciar as suas penitentes foi imensamente facultada pelo fracasso da Igreja em impor o confessionário fechado até finais do século xviii. Nas sumas e manuais medievais, as confissões deviam ser ouvidas num local público, e os factos provenientes do século xve princípios do xvi sugerem que as penitentes, de um modo geral, pressupunham uma posição ajoelhada junto ao padre, sentado numa cadeira ou banco. Uma tal intimidade forçada conferia ao confessor imensas oportunidades de abusar das penitentes tanto em termos verbais como físicos. A fim de reduzir o perigo para a moralidade inerente ao antigo sistema, a Igreja pós-tridentina introduziu gradualmente o confessionário fechado corn uma divisória a separar o padre da penitente. Como a actividade ilícita do confessor solicitante dependia inicialmente do acesso físico à penitente, o recurso rápido a um dispositivo capaz de ocultar a identidade da penitente e protegê-la do contacto físico corn o padre teria servido de forte impeditivo.

 

Infelizmente, os registos dos julgamentos da Inquisição espanhola indicam que o confessionário fechado ou dividido se difundiu de uma forma muito lenta e desigual pelo território da monarquia espanhola e que, na melhor das hipóteses, proporcionava uma fraca protecção contra os esforços de um solicitante determinado. Revelam também o conjunto confuso e variado de práticas confessionais em que os locais onde a confissão era ouvida dependiam mais da tradição ou do expediente do que dos ditames da igreja pós-tridentina.

 

De um modo geral, o compartimento fechado do confessionário foi usado em apenas 41% dos casos de aliciamento que registei. Perto de

42% continuavam a usar o sistema tradicional, corn o padre sentado numa cadeira ou banco e a penitente ajoelhada diante dele. À vontade, 68% dos locais onde o sistema tradicional ainda vigorava situavam-se nas Canárias e Baleares, indicando um nítido atraso nestes distritos remotos da monarquia, em comparação corn zonas mais próximas do coração da reforma pós-tridentina, como a arquidiocese de Toledo.

 

Independentemente do local e da altura em que era usada, a postura tradicional da penitente proporcionava oportunidades tentadoras a um confessor corn propensão para seduzir a sua penitente. Durante o período de vinte anos compreendido entre 1667 e 1687, Pedro Pons, o prior do convento agostiniano de Nuestra Senora dei Toro, na ilha de Menorca, aproveitou-se da sua proximidade física das penitentes para as beijar, agarrar-lhes os seios e tentar marcar encontros corn elas. Numa ocasião em que uma viúva de 35 anos, corn quem mantinha uma longa relação, se lhe veio confessar, primeiro estimularam-se corn linguagem sugestiva e depois começaram a masturbar-se.

Claro que a confissão numa capela ou na nave de uma igreja em si expunha o confessor solicitante a riscos consideráveis, em especial se as suas actividades fossem notadas por um colega intrometido ou vingativo. A19 de Março de 1639, por exemplo, Justo de Aguilera, um trinitário do convento da Santíssima Trindade de Toledo denunciou um seu colega, Alonso Guerro, ao Santo Ofício, porque um dia reparou que, enquanto Guerro ouvia a confissão da mulher de um ferreiro local, ela tinha as mãos debaixo do seu hábito. Como Guerro fora sucessivamente castigado pelos seus superiores por viver abertamente corn uma mulher, era já objecto de desconfiança e curiosidade por parte dos outros frades, por isso não surpreenderá que o seu comportamento impulsivo numa capela pública levasse à sua queda.

 

A acrescentar aos problemas da Inquisição em determinar se um delito tivera realmente lugar estava o facto de em muitas igrejas não existir um local estabelecido para ouvir confissões. O depoimento no caso do carmelita Pedro Barbero de Torres indicou que, na igreja paroquial de Los Yébenes, uma aldeia a sueste de Toledo, onde fora mandado pela sua ordem ouvir confissões, o padre mudava simplesmente a cadeira de lugar várias vezes e ouvia confissões onde achava mais conveniente.

 

Em alguns lugares, o confessor nem sequer usava cadeira, mas sentava-se informalmente num degrau ou banco enquanto a penitente se ajoelhava diante dele. Em 1674, o franciscano Juan Girón sentou-se nos degraus do altar-mor enquanto ouvia Francisca Gomez em confissão. Nesta posição, fez-lhe comentários licenciosos e sugestivos em doze ocasiões diferentes, e uma vez, quando ela tentou pôr um pouco mais de distância entre ambos ajoelhando-se mais atrás, ele agarrou-lhe a saia e atraiu-a a si. O cura da aldeia de La Gomera, na ilha de La Laguna, nas Canárias, ouvia por norma confissões sentado nos degraus do baptistério. Foi ali que Francisca Paula, uma prostituta de 21 anos, o encontrou certa manhã em 1710 quando se foi confessar. Depois de ouvir a sua confissão e lhe dar a absolvição, perguntou-lhe se a podia ir visitar em sua casa a fim de dormir corn ela, mas admoestou-a no sentido de não aceitar outros amantes «porque as pessoas dali costumavam ser ciumentas».

 

Em determinados conventos que seriam talvez demasiado pobres para terem confessionários fechados, era usada a casa do guarda quando as freiras precisavam de se confessar. Esta era conveniente e oferecia protecção à freira, pois a casa do guarda era normalmente o local onde conversavam corn os membros da família que as vinham visitar, pelo que se supunha ter uma divisória. A casa do guarda era por rotina usada para as confissões pelas freiras da casa carmelita em Guadalajara quando Fray Corbera foi nomeado para ouvir as confissões das freiras na década de 1670. Neste caso, porém, a divisória não foi de grande utilidade para impedir que ele visse ou tocasse nas freiras, porque muitas vezes era inexistente. Por diversas ocasiões, uma das freiras, Sor Eugenia de Santa Teresa, retirou mesmo a divisória e depois levantou o hábito para que Corbera lhe pudesse ver as coxas.

 

Foram dadas ainda mais oportunidades aos vigários ou confessores de religiosas corn a regra que permitia às freiras confessarem-se na privacidade das suas celas quando estivessem indispostas. Em 1705, Fray José Lozano, um franciscano que foi confessor de um convento na aldeia de Alcázar de San Juan, aproveitou a liberdade que esta regra lhe concedia para visitar Sor Antonia de Santa Rosa Romani, uma prima afastada que era uma das freiras e sucedia estar doente. Assim que ela iniciou a confissão, Lozano disse-lhe que se sentia muito atraído por ela. Surpreendida, a freira censurou a sua linguagem «especialmente agora que iniciei a minha confissão». No entanto, rejeitou-o, referindo casualmente que a ocasião em si não tinha importância, e prosseguiu tentando introduzir a mão no hábito dela enquanto ela se desviava para o outro lado da cama. Seguiu-se alguma luta, corn a freira a tentar cobrir os seios corn uma mantilha e Lozano a tirá-la. A situação ter-se-ia arrastado por mais algum tempo não fosse Sor Antonia ameaçar começar aos gritos e acordar todo o convento, «para que pudessem testemunhar o seu descaramento».

 

O pároco podia de igual modo aproveitar-se da doença ou indisposição das penitentes para as visitar em casa, a fim de as ouvir em confissão. Uma vez no quarto da mulher, o seu pouco vestuário ou a ausência de olhares indiscretos oferecia possibilidades ilimitadas. Das nove testemunhas que depuseram contra Gabriel de Osca, que foi cura substituto de Piedrabuena no final da década de 1570 e na de 1580, quatro tinham sido aliciadas em suas casas quando se encontravam doentes. Num caso, Osca introduziu a mão no saiote de Lúcia Hérnandez a pretexto de acariciar o sítio onde lhe doía. Quando lhe passou a mão por entre as coxas, Lúcia ficou alarmada e começou a gritar, obrigando Osca a retirá-la e a garantir-lhe que não a quisera ofender. Osca mudou então de estratagema, convidando as penitentes a deslocarem-se a sua casa quando estava doente, a fim de poder ouvir as suas confissões. Uma das mulheres que caiu nesta armadilha foi Catalina Fernández, que ficou horrorizada quando Osca a agarrou e tentou beijá-la ao ajoelhar-se à beira da sua cama.

 

Nos locais onde foi introduzido o confessionário, nem sempre resultou de forma eficaz na prevenção da intimidade entre padre e penitente. Por um lado, os confessionários não obedeciam a um modelo fixo, pelo que podiam ser concebidos de molde a proporcionar uma reduzida protecção. Em 1684, o confessionário usado no convento dominicano de San Vicente Ferrer em Manacor (Maiorca) tinha uma porta e estava dividido em duas partes. Quando Antonia Fornes se confessou a Fray António Gelebert, constatou que podia colocar as mãos na parte inferior da porta de modo a que ela as agarrasse durante a confissão. Nesta casa em particular, o confessionário não era o único local onde um frade podia ouvir confissões. O confessionário estava situado na capela de San Román, mas os frades ouviam também confissões na capela de Santa Rosa, onde as penitentes se limitavam a ajoelhar diante deles. Quando Antonia voltou para se confessar a Gelabert mais tarde nesse mesmo dia, ele levou-a para a outra capela, onde lhe tocou no rosto e nos seios durante a confissão.

 

Mesmo durante o século xvm, em que os confessionários se estavam a tornar mais comuns e o uso de um banco ou cadeira pelos confessores baixara 52% do nível dos séculos xvi e xvii, muitos deles eram ainda rudimentares. Em 1722, o único «confessionário» existente no convento franciscano de Palma de Maiorca consistia numa cadeira corn uma mesa diante dela que tinha presa uma divisória corn tantos orifícios que Fray Miguel Miguel conseguia facilmente tocar nos rostos das penitentes. Mais ou menos na mesma altura, no convento carmelita, o confessionário consistia numa estrutura parcialmente fechada. O confessor sentava-se lá dentro numa cadeira frágil, separado da penitente por uma fina cortina azul.

 

Logicamente, nem o confessionário mais forte ia além de evitar o contacto físico entre padre e penitente. Nada impedia o confessor de fazer observações sugestivas através da divisória. Estas, ainda que estivessem rasgadas ou ausentes, eram muitas vezes transparentes, de modo que um confessor podia identificar facilmente a penitente e marcar um encontro corn ela fora da igreja, muitas vezes corn a sua colaboração. Durante várias confissões, na Primavera de 1801, José Borges, um mercedário de Almusafes (Valência) pediu a Mariana Mas, uma jovem casada, que tivesse relações sexuais corn ele. Mariana, indignada, recusou sempre, dizendo-lhe que ele não devia falar assim corn ela num local sagrado. Somente depois de Borges conseguir permissão de uma viúva que possuía uma casa pequena para usar um quarto para confessar uma penitente extremamente sensível e escrupulosa é que ela assentiu. A partir de então, as suas recusas no confessionário precediam sempre outra visita a casa da viúva.

 

Além disso, ao invés da confissão tradicional numa igreja ou capela abertas, o confessionário fechado proporcionava uma maior privacidade a quem desejasse discutir ou planear uma relação em curso. Em 1781, Maria Lopez Molina confessou no seu leito de morte que mantivera durante dois anos uma relação corn Juan de Ia Visitación, o prior do convento carmelita em Ciudad Real, que era também seu confessor. Nas suas confissões semanais ou bissemanais, que se estenderam por um período de dois anos, ele indicava-lhe o momento exacto do seu próximo encontro, que muitas vezes tinha lugar num santuário deserto fora das muralhas, bastante depois da meia-noite, altura em que haviam terminado seguramente as suas obrigações no convento.

 

À semelhança do seminário, o confessionário fechado não se divulgou até meados do século xvin, e, mesmo então, algumas partes remotas da monarquia espanhola não viram realmente confessionários senão no final do próprio século. Mas nem sequer o confessionário fechado era estanque aos esforços determinados dos padres que quisessem aproveitar o sacramento como uma oportunidade de obter favores sexuais das suas penitentes. Numa altura em que um número sem precedentes de mulheres ia à igreja e vinha confessar-se e cada vez mais os elementos eclesiásticos se dedicavam a ouvir confissões, o aliciamento iria continuar a colocar uma ameaça à reputação do estado clerical, apesar das tentativas da Inquisição para o suprimir.

 

Não obstante as melhorias na educação e na formação, a vida de um clérigo na Igreja espanhola pós-tridentina estava longe de ser fácil. As expectativas sociais extraordinariamente elevadas depositadas sobre o clero, a cada vez maior procura da confissão e outros serviços a que os clérigos das gerações anteriores nunca esperariam ter de dar resposta conjugaram-se para criar tremendas tensões e ansiedades que todos os padres terão, em certa medida, sentido. A solidão e o isolamento trouxeram ainda mais pressão, a acompanhar a entrada para as ordens religiosas e a natureza problemática da relação entre padre e laicado ao nível paroquial. Elementos de tensão social, como a morte de pais e irmãos, o movimento constante de comunidade em comunidade e a rotina cansativa das ordens religiosas afectavam os indivíduos de maneiras diferentes. Muitos foram os que se conseguiram adaptar a estas circunstâncias difíceis, mas outros ficaram desmoralizados, deixaram de cumprir correctamente as suas responsabilidades, tentaram fugir dos conventos ou tornaram-se alcoólicos. Muitos outros procuraram desesperadamente o afecto das suas penitentes, não obstante a pecaminosidade e o desrespeito da penitência implícitos no acto de aliciamento. Mas, se a confissão auricular implicava uma relação de desigualdade, impunha também ao sacerdote uma pesada obrigação moral e religiosa, regra geral bem compreendida pela sua penitente. Ao fazer propostas de carácter sexual no confessionário, o sacerdote destituía-se da sua autoridade moral de uma forma particularmente dramática e inequívoca e tornava-se um mero homem cujos carreira, conforto e liberdade futuros dependiam da tolerância, discrição ou afecto da penitente.

VÍTIMAS E PENITENTES INVOLUNTÁRIAS

As vítimas de aliciamento provinham de uma vasta amostragem da sociedade espanhola que ia desde escravas e prostitutas às filhas de hidalgos. Absolutamente excluídas estavam as mulheres da alta nobreza, que, à semelhança de muitas senhoras aristocráticas que apoiavam Teresa de Jesus, podiam escolher os melhores confessores e aqueles cujo prestígio social as teria protegido de tamanha indignidade. Entre as catorze nobres que pude identificar, a maioria era constituída pelas esposas ou filhas de membros da pequena nobreza, como Maria de Mora e Juana de Magan, duas primas órfãs de uma família hidalga de Villaseca de Ia Sagra, próximo de Toledo. Ambas as primas foram aliciadas por Gerónimo de los Herreros, um dominicano que ajudava o cura local no desempenho das suas responsabilidades pastorais na aldeia. Mesmo na base da pirâmide social estava um número quase tão pequeno de escravas (três), como Isabel Forteza, que se tornou cristã em Palma de Maiorca depois de ter sido vendida a um cónego da catedral, e pessoas empobrecidas (seis), como Gutierra Gonzáles, que residia no asilo de Ciudad Real quando prestou o seu depoimento na presença do comissário Luis de Aguilera. Havia também seis prostitutas cujo estatuto de mulheres «perdidas» excitava a imaginação dos seus confessores, mesmo quando se esforçavam por se reabilitar numa casa madalenata.

 

A grande maioria das vítimas (81,6%), porém, provinha da classe inferior e da baixa classe média. Particularmente bem representadas neste estrato estavam as mulheres e filhas de artesãos e operários têxteis (setenta), como Francisca Gómez, de 20 anos, cujo marido era alfaiate. Em Abril de 1676, Francisca informou o comissário local do tribunal de Toledo de que, dois anos antes, o seu confessor, Juan Girón, superior da casa franciscana em Tamajón, começara a importuná-la no sentido de permitir que a fosse visitar a sua casa sempre que estivesse sozinha. A sua recusa em dar ouvidos às solicitações dele só inflamaram a sua paixão, e, durante uma confissão, enquanto se ajoelhava diante dele, ele agarrou-lhe o colete e atraiu-a a si, beijando-a e introduzindo as mãos na blusa dela. O grande número de mulheres oriundas de famílias de artesãos constante destes registos constitui outro sinal de uma economia mista nas pequenas cidades e aldeias espanholas, cada uma das quais corn o seu próprio contingente de alfaiates, sapateiros, chapeleiros e outras profissões.

 

Outro grupo fortemente representado, possivelmente de uma fornia desproporcionada em relação ao seu número na população em geral eram as criadas, abrangendo cerca de trinta e quatro pessoas ou 6% das vítimas. Provindo sobretudo da classe inferior da sociedade rural, e longe das suas famílias, muitas serviçais encontravam-se à mercê de patrões rígidos ou intolerantes. Pouco podiam fazer para resistir à exploração e, para muitas, a confissão e outras devoções da igreja eram a sua única fonte de alívio da constante monotonia, uma vez que os seus patrões dificilmente recusariam pedidos de cumprimento das obrigações religiosas. Em 1702, por exemplo, Sebastiana Josepha, de 20 anos, que servia em casa da viúva de um notário da região, contou ao seu confessor que a patroa não lhe queria dar um dia de folga e inclusivamente a obrigava a trabalhar nos dias santos importantes, só a deixando sair de casa para se confessar na igreja paroquial. Sebastiana Josepha, que era uma órfã de uma pequena aldeia próxima da cidade interior de La Orotava, nas Canárias, obviamente dispunha de poucos meios e não teria a quem apelar se desagradasse à patroa; por conseguinte, era obrigada a suportar o tratamento duro, independentemente da sua opinião sobre o assunto.

 

Um dos aspectos mais curiosos da composição social das vítimas é que somente trinta, ou seja, 5,3% provinham do sector agrícola, muito embora os pequenos proprietários, rendeiros e trabalhadores jornaleiros constituíssem a esmagadora maioria da população espanhola. A maior representatividade das vítimas era originária das pequenas e grande cidades (31%), numa altura em que a população urbana da Espanha provavelmente não atingiria os 20%, e isso dever-se-á talvez à superabundância do clero nas áreas urbanas. Ao mesmo tempo, não deveremos esquecer que os esquemas de emprego no sector agrícola eram extremamente variados. Muitos trabalhadores agrícolas e agricultores constituíam parte da população urbana mesmo nas grandes cidades, enquanto muitos camponeses que não possuíam terra suficiente levavam a vida como artesãos e operários têxteis. Regra geral, as vítimas de aliciamento eram bastante jovens, corn uma idade média de 27 anos, quando prestavam depoimento perante o Santo Ofício. Esta impressão de juventude é confirmada pelo facto de o primeiro incidente ocorrer em média seis anos antes, corn algumas vítimas a retardarem o seu depoimento qualquer coisa como trinta anos. Foram muitas as razões deste atraso, desde esquecer pura e simplesmente um incidente que acontecera há tanto tempo, e podia não ter causado grande impressão, à repressão de algo profundamente doloroso. Foi particularmente este o caso das trinta e seis vítimas corn 15 anos, ou menos, quando confrontadas corn o primeiro incidente de aliciamento. Estas testemunhas, corn frequência ficavam demasiado perturbadas para se apresentarem ou, em virtude da sua juventude, desconheciam a obrigação de denunciar o seu confessor. Sucede ter sido precisamente esta a explicação que Jerónima Verd, de

20 anos, alojada num hospício em Palma de Maiorca, apresentou quando inquirida sobre as razões da demora de cinco anos na denúncia do trinitário Pedro Jorge Fiai. Evidentemente, ela abafara o incidente, que a chocara profundamente na altura, e foi necessária uma confissão geral perante um missionário jesuíta para o recordar. corn a permissão de Jerónima, o missionário informou outro jesuíta, que, por sinal, era calificador do Santo Ofício, que foi então autorizado a visitar o hospício para ela prestar depoimento.

 

As testemunhas muito jovens levantavam problemas especiais aos funcionários inquisitoriais, do mesmo modo que o seu depoimento em caso de abuso de menores gera polémica nos tribunais dos nossos dias. D. Ambrosio Cayetano de Ayala Navarro, o comissário que registou o depoimento de Catalina de Ia Cruz, de 10 anos, contra Gaspar de Nájera, que era pregador e confessor na zona rural de Lanzarote, mostrou-se extremamente relutante em levar a sério o depoimento dela, conquanto referisse que Nájera tinha tão má reputação que as crianças de Granadilla haviam inventado uma pequena cantiga que começava corn «rapazes e raparigas, cuidado corn o padre Nájera». Quando a pequena Catalina se apresentou, avisou-a de que não deveria mentir, «pois os mentirosos vão para o Inferno», e, depois de acabar de tomar o seu depoimento, manifestou as suas dúvidas em o aceitar como válido por ela ser tão nova e ingénua. Mas foi obrigado a admitir que a reputação de Nájera e o facto de o seu abuso sexual da menor ter sido presenciado pelo avô e pela avó conferiam credibilidade ao seu depoimento.

 

Muito embora a maior parte da actividade da Inquisição se relacionasse corn homens, um dos aspectos mais interessantes em relação às vítimas de aliciamento é que só quatro foram homens. Em parte, explicar-se-á pela inclusão tardia (1612) das vítimas masculinas de aliciamento sob a jurisdição do Santo Ofício. Na mente do público, o aliciamento era identificado como um delito envolvendo vítimas do sexo feminino, e os homens que haviam passado por ele eram menos susceptíveis de ter consciência da sua obrigação de informar o Santo Ofício. Já em 1762, Joseph de Ilisarri lhe fizera alusão, explicando que a sua demora de oito anos em comparecer perante o Santo Ofício para relatar um incidente de tentativa de sodomia envolvendo o seu confessor se devia ao facto de, como homem, não estar muito certo da sua obrigação legal. Indiferente a que poucos homens fossem realmente afectados pelo aliciamento, o anticlericalismo do século xix retratava a relação entre os noviços e os seus confessores como manifestamente suspeita .

 

Todavia, a verdadeira explicação para o reduzido número de vítimas do sexo masculino prende-se corn as restrições extremas impostas à liberdade de as mulheres se deslocarem nas ruas, visitarem os vizinhos, admitirem a entrada de estranhos em casa ou irem sequer à igreja. Claro que estas restrições provinham do medo geral de perda da honra da família devido a uma falta de pureza sexual entre as mulheres. A honra da família só estaria salva, por conseguinte, se as mulheres se abstivessem de uma conduta que poderia ter implícita uma falta de castidade, mesmo que esse comportamento fosse perfeitamente inocente. Afim de o evitar, Pedro Galindo avisou as jovens honradas para que não deixassem a «sombra da casa dos seus pais» e pusessem os maridos de sobreaviso para não deixarem quiromantes ou mulheres que vendiam tecidos entrar em casa porque poderiam colocar uma ameaça à fidelidade das suas mulheres, possivelmente sendo portadoras de bilhetes de potenciais amantes. Quanto às viúvas, Galindo referiu categoricamente que não podiam deixar as suas casas sem serem objecto de desconfiança.

 

Estas restrições arbitrárias dos movimentos e interacção social das mulheres espanholas não eram meramente teóricas, a demonstrá-lo uma série de referências retiradas do depoimento ou descrições efectuadas por comissários. Bernarda Suárez de Quintana, uma mulher solteira de

31 anos, era tão cerceada pelos pais que teve de esperar seis anos, até eles morrerem, para se poder deslocar à aldeia de La Guia, a fim de prestar depoimento contra o seu confessor.

 

O aviso de Pedro Galindo às raparigas solteiras de que perderiam quaisquer liberdades inocentes que possuíssem depois de se casarem e que ficariam presas corn «mil correntes» parece ter sido verdadeiro para Antonia Pennaroja y de Pedro, que não conseguiu denunciar o seu confessor por aliciamento ainda em solteira porque, segundo o comissário local, era vigiada constantemente pela família do marido e só tinha liberdade para ir de sua casa à igreja e regressar.

 

Estes factos levam-nos a recordar que o confessionário era, em muitos aspectos, a forma mais conveniente e, corn frequência, a única de um padre poder falar a uma mulher dos seus apetites sexuais. Mulheres como Antonia Pennaroja y de Pedro estavam autorizadas a ir à igreja e pouco mais, e era impossível visitá-las em suas casas. Se queriam manter uma relação, como mantinham, Pennaroja y de Pedro e o seu confessor, Luis Climent, tinham de recorrer ao confessionário. Mas o mesmo já não sucedia no caso de um padre ou frade homossexuais, que possuíam muitos escapes para as suas necessidades sexuais. A maior liberdade pessoal de que desfrutavam os rapazes e homens significava que havia sempre um grande número de vagabundos, estrangeiros e trabalhadores itinerantes disponíveis para exploração. Além disso, existia em muitas cidades espanholas uma subcultura homossexual organizada, em que um padre podia satisfazer os seus desejos sem incorrer nos riscos do aliciamento no confessionário. O crescimento dos colégios monásticos, a cada vez maior participação dos sacerdotes ao ministrarem a educação básica aos rapazes, a que as raparigas não tinham acesso, e a criação de seminários proporcionavam também muitas oportunidades. Garcia Ferrer, um agostiniano expulso do sacerdócio que foi enviado para as galés por ordem do Suprema em 1617, foi mestre-escola na aldeia de Bétera e condenado por sodomizar inúmeros alunos corn idades compreendidas entre os 10 e os 12 anos. Significativo das diferentes maneiras de um sedutor abordar os rapazes e raparigas é o facto de o mercedário bissexual Juan Nolasco ser obrigado a usar o confessionário para tentar obter favores sexuais de Angela Regual, de 19 anos, mas conseguir facilmente satisfazer as suas propensões homossexuais seduzindo os noviços que estudavam sob a sua alçada no colégio monástico. Caso interessante, Pedro Sánchez de San Basilio, uma das nossas quatro vítimas do sexo masculino, era um estudante do seminário, de 15 anos, em Getafe (Toledo) quando o padre Indefonso Milla, professor de Arte no seminário, tentou seduzi-lo. No entanto, a cena não se passou no confessionário, mas na casa de Milla, onde o jovem seminarista se fora confessar no dia do seu santo. Em vez de ouvir a confissão, Milla prometeu fazê-lo noutra ocasião, empurrou-o para a cama e começou a beijá-lo e acariciá-lo. Como a confissão não tivera efectivamente lugar, o caso contra Milla foi suspenso.

 

Mais de 50% das vítimas femininas de aliciamento eram çolteiras, em contraste corn 35,5% casadas e 11,4% viúvas. É provável que, não obstante as restrições impostas às observâncias religiosas de muitas mulheres solteiras, em especial das classes alta e média, as mulheres casadas e as viúvas pudessem ter maior dificuldade em ir confessar-se corn a frequência que desejavam. No segundo caso, o preceito social e a pobreza sem dúvida lhes restringiam os movimentos, enquanto no primeiro era corn frequência uma questão de estarem muito ocupadas em casa. Podemos ter uma ideia da azáfama da vida de uma mulher casada a partir da história de Ana Maria Ramírez, que pediu ao seu confessor alguns exercícios de mortificação para realizar em casa, pois achava que corn três filhos pequenos era impossível rezar ou ir à igreja fazer as suas devoções corn a mesma frequência que as outras mulheres corn menos responsabilidades.

 

Claro que eram muitos os moralistas que insistiam que o lugar da mulher casada era em casa e que, nas palavras de Luis de León, «assim como os homens eram criados para a vida pública, também as mulheres estavam talhadas para o retiro». Conquanto insistisse que a principal virtude de uma mulher devesse ser a sua crença fervorosa em Deus, avisava especificamente as mulheres casadas da negligência dos seus lares por causa das devoções religiosas.

 

Também não existem dúvidas de que muitos maridos não tinham o menor pejo em restringir duramente a actividade religiosa das mulheres ou impedi-las de se irem confessar. Um exemplo particularmente gritante disso, mas de modo algum invulgar, surgiu no depoimento tomado em Granada em 1635. Durante três anos, a esposa de Gaspar de Espinoza vira o marido abusar sexualmente da filha e acabou por contar ao confessor. Este reagiu recusando-se a absolvê-la a menos que o levasse a confessar e receber penitência por cometer um pecado tão grave. Quando ela contou tudo aquilo ao marido, ele, furioso, quis saber por que motivo ela confessara tal, dizendo-lhe que a sua única obrigação era obedecer-lhe em tudo. Proibiu-a de ir à missa e de se confessar, e ela ficou tão receosa de que ele lhe fizesse mal ou inclusivamente a matasse que durante um ano não se confessou. Que abusos desta natureza não eram invulgares é o que demonstra o facto de, no seu manual do confessor, o veterano Pedro Galindo aconselhar os seus colegas a chamarem a atenção dos homens casados para o facto de estarem a cometer um pecado mortal impedindo as mulheres de assistirem à missa ou outras devoções.

 

Entre as vítimas de aliciamento incluíam-se também quarenta e seis freiras, ou seja, 8,2% do total. A percentagem relativamente elevada de vítimas em relação ao número de religiosas na população em geral indica que, apesar dos esforços no sentido de melhorar a qualidade dos confessores destacados para os conventos, um determinado número estava preparado para abusar das suas posições, a fim de satisfazer as suas necessidades sexuais.

 

Um reduzido número de beatas (catorze) passou também por experiências de aliciamento sexual. As atitudes sociais ambivalentes em relação às beatas, que poderiam ter levado ao aliciamento, são nitidamente reveladas em Aviso de gente recogida, de Diego Pérez de Valdivia, publicado pela primeira vez em 1585. Pérez de Valdivia, que detinha a cátedra de Sagradas Escrituras na Universidade de Barcelona, escreveu o livro num esforço para ajudar as beatas a comportarem-se de modo a contrariarem os seus críticos, que insistiam que só se tinham tornado beatas para escaparem ao controlo masculino e viverem como lhes aprouvesse. Porém, apesar da sua atitude ostensivamente favorável em relação às beatas, Pérez de Valdivia tinha muitas dúvidas quanto à maneira de lidar corn elas. Se, por um lado, admirava a sua austeridade e fervor religioso, mostrava-se muito desconfiado em relação a quaisquer manifestações de poder espiritual, como as visões e êxtases através dos quais algumas beatas exprimiam a sua proximidade de Deus. Estas formas tipicamente femininas de liderança religiosa podiam levar certas beatas, como Mari Díaz, de Ávila, nos finais do século xvi, a uma posição de influência considerável na comunidade. Mas, para Pérez de Valdivia, beatas como Mari Díaz eram «presunçosas no seu íntimo» e tinham «muita liberdade e pouca modéstia». Modéstia e disciplina eram indispensáveis se as beatas queriam ser bem sucedidas ao defenderem-se dos seus críticos, especialmente em virtude de, para muitas, «o Diabo, o mundo e a sua própria carne» lhes apresentarem muitas tentações. Era tão grande o perigo para a castidade que aconselhava as beatas a evitarem quaisquer contactos corn os homens, incluindo os parentes mais chegados. Até as conversas sobre assuntos espirituais eram desaconselhadas, pois, «para cada pessoa boa, vi 100 000 que eram más». A única maneira de evitar verdadeiramente os perigos e armadilhas que espreitavam a beata era arranjar um born confessor e obedecer-lhe sem questionar, pois «não seguir as suas ordens mais não é do que uma tentação do Diabo». Sendo o mais problemático de todos os grupos de mulheres no início da Espanha moderna e o menos compatível corn as categorias sociais femininas tradicionais, a beata encontrava-se numa posição particularmente vulnerável. Ao insistir na sua vulnerabilidade às tentações da carne, Pérez de Valdivia corria o risco de enaltecer a posição da beata perante alguns confessores, que se sentiam encorajados a vê-la como uma mulher sexualmente desejável que apenas usava a devoção religiosa como uma cortina de fumo para ocultar as suas paixões desenfreadas.

 

Num livro publicado em 1529, o cronista régio e pregador da corte António de Guevera queixava-se da falta de educação entre as mulheres espanholas de todas as classes. Guevera foi um daqueles intelectuais humanistas que, juntamente corn Erasmo e Luis Vives, defendiam acerrimamente uma educação mínima para as mulheres das classes superiores. Quando começaram a ser julgados pela Inquisição inúmeros casos de aliciamento, realizou-se o sonho humanista; muitas mulheres da classe alta recebiam educação básica e muitas entravam em contacto corn a sabedoria mais erudita através de professores particulares e escolas conventuais. Já em 1572, Teresa de Jesus exigia conhecimentos de latim às candidatas ao seu convento e as suas cartas transbordam de referências ao saber e entusiasmo das suas jovens noviças, a maior parte das quais provinha de famílias endinheiradas. Foi destabase de mulheres educadas das classes alta e média-alta que provieram figuras literárias do século xvii como Maria de Carbajal y Saavedra e Maria de Zayas. Não surpreenderá, por conseguinte, que muito embora, de um modo geral, a percentagem de literacia das vítimas femininas se mantivesse nos 17,7%, a esmagadora maioria daquelas que sabiam ler (76,3%) se encontrasse na nobreza e nas religiosas.

 

Simultaneamente, a incapacidade de a Espanha criar ordens para a instrução de mulheres, como as Filhas da Caridade em França, significava que a instrução básica era negada às mulheres das classes inferiores. A nítida distinção corn base na classe entre as poucas educadas e as massas analfabetas é ilustrada pelo facto de, se por um lado não existiam freiras analfabetas e apenas duas nobres iletradas, só três das trinta e quatro criadas puderam assinar os seus depoimentos e, destas três, duas tinham servido longos períodos de tempo em conventos onde tiveram acesso a oportunidades educativas. Na realidade, tão invulgar era uma mulher da classe baixa possuir uma educação básica, e muito mais ter quaisquer ambições a nível de educação superior, que, quando Isabel Riera quis que o seu confessor, Pedro Benimelis, lhe ensinasse latim, teve de lhe dizer que fora inspirada por uma revelação divina. Muito embora o seu confessor fosse um dos seus admiradores, recebeu o pedido corn o maior cepticismo, uma vez que achava demonstrar uma «tremenda falta de humildade». Ela teve de repetir a história da sua visão em inúmeras ocasiões antes de ele assentir finalmente em ensinar-lhe latim, mas somente depois de consultar um colega mais graduado, a fim de saber se era apropriado fazê-lo, «dado que não conseguia compreender que uso iria ela fazer disso». É fácil imaginar qual teria sido a reacção do padre Benimelis se semelhante pedido proviesse de uma mulher das classes elevadas. Em questões de aprendizagem, era atribuída a uma mulher de posses uma parte da personalidade social do homem, e ninguém contestaria o seu direito à educação.

 

Foi a superioridade cultural do sacerdócio e não a social que tendeu a aumentar a distância social entre padre e penitente. A literacia, as viagens e o acesso ao mundo misterioso da cultura latina, que estavam directamente associados ao conhecimento do direito canónico, das escrituras e, sobretudo, da própria revelação divina, colocavam o confessor num nível incomensuravelmente elevado. As penitentes pobres e iletradas pouco mais podiam fazer a não ser aceitar a sua autoridade, ao passo que as mulheres relativamente bem educadas da classe alta eram presas fáceis do seu encantamento porque permaneciam dependentes do seu conhecimento superior de uma ordem intelectual dominada pelo homem.

 

Ao traçarmos um perfil da vítima típica de aliciamento, terão de ser consideradas características pessoais que os dados sociológicos básicos não podem revelar. Muito embora estas informações sejam manifestamente difíceis de destrinçar, um elemento que as fontes revelam é que muitas vítimas eram assíduas frequentadoras da igreja, interessadas em devoções específicas, enquanto muitas mais efectuavam a confissão e a comunhão frequentes. O que estes dados sugerem é que as vítimas podem ter sido mais devotas do que a população em geral e, por conseguinte, ao frequentarem a igreja corn maior assiduidade e ao participarem de uma forma mais activa, expor-se-iam muito mais aos padres. Pelo seu lado, os padres e frades corn quem estas mulheres estavam em contacto, ao detectarem o seu enorme interesse pela religião, sentiam que tinham muito maiores probabilidades de êxito na sua satisfação emocional e sexual do que corn alguém não tão profundamente religioso.

Sem dúvida, o êxito de Rafael Serre na formação de um grupo de sete mulheres que eram induzidas a satisfazer as suas necessidades sexuais estava directamente relacionado corn o facto de todas elas serem não só extremamente devotas mas efectuarem a confissão frequente ou mesmo diária. De facto, foi uma destas mulheres que insinuou que as técnicas de exorcismo usadas pelo padre Serre eram um pretexto para ter contacto físico íntimo corn ela e outros membros do grupo. O potencial perigo para a castidade adveniente da excessiva familiaridade que poderia surgir entre confessor e penitente no decurso da confissão frequente constituía motivo de grave preocupação para Pérez de Valdivia, que avisou que a confissão frequente levava inevitavelmente a penitente ao contacto corn homens e que o confessionário não mudava o instinto, uma vez que «os confessores são, ao fim e ao cabo, homens, por mais santos que se afigurem».

 

Uma elevada sensibilidade religiosa poderia levar também algumas mulheres a irem de confessor em confessor até encontrarem um que pudesse ser um verdadeiro conselheiro espiritual. Infelizmente, a proximidade emocional adveniente de uma experiência religiosa m ais intensa podia levar facilmente ao aliciamento. No seu depoimento perante o tribunal de Maiorca, Gabriela Suner, de 31 anos, referiu que viera confessar-se ao padre capuchinho Pablo Ginard porque estava aborrecida corn o seu anterior confessor. Não só ele lhe ordenara que não se confessasse mais de duas vezes por semana como se limitara a não satisfazer o seu desejo de «vencer todos os obstáculos a fim de se exceder no amor a Jesus Cristo». Em contraste, estava plenamente satisfeita corn Ginard, que a deixava confessar-se numa base diária e a quem podia confiar os seus ardentes sentimentos religiosos. Evidentemente, o facto de Ginard se ter revelado um excelente orientador espiritual compensava o seu uso de linguagem aviltante e sugestiva no confessionário e impossibilitava que Suner depusesse contra ele mesmo quando foi levada à barra da Inquisição.

 

Os hábitos de devoção religiosa profundamente arraigados podiam igualmente revelar-se inconvenientes e embaraçosos quando uma penitente queria cortar uma relação corn um confessor que a aliciara. Um dia, depois de Catalina Vives se ter confessado ao franciscano Jayme Barcelo durante uma série de anos, ele perguntou se a podia ir visitar a casa, não para ter relações mas apenas para a acariciar. Ela autorizou-o a fazê-lo, mas depois foi vencida pela culpa e resolveu terminar a relação. Deixou de se lhe confessar, mas continuou a visitar a capela do seu convento nos dias santos e por ocasião de certas devoções especiais. Numa altura, durante a festa de San Salvador, acercou-se dela quando se encontrava diante da imagem e segredou-lhe que gostaria de introduzir a língua na boca dela. Um segundo incidente ocorreu na Quinta-Feira Santa, quando ele lhe tocou nas costas e nos flancos corn o pé, estava ela ajoelhada a orar numa das capelas laterais. As atenções forçadas de Barcello obrigaram-na a abandonar as idas à capela, mas o seu novo confessor, que era o vigário da igrej a paroquial, insistiu para que denunciasse Barcello ao Santo Ofício.

 

A ansiedade sentida por muitas penitentes em relação à confissão, intensificada pelos receios de condenação e confusão sobre o que eram pecados mortais e veniais, poderia estar também na origem de situações difíceis e embaraçosas ocorridas no confessionário. O problema da «alma perturbada» que se aproximava da barra do confessionário corn frémito deu origem a uma literatura abundante mas bastante contraditória durante a Contra-Reforma. Por outro lado, as penitentes eram obrigadas a fazer confissões demoradas e completas. No segundo volume do seu manual dos confessores, Pedro Galindo realçou este aspecto corn a história aterradora de uma penitente que fizera uma confissão apressada e incompleta sem a menor intenção de mostrar arrependimento. Precisamente no momento em que o confessor se preparava para a absolver, Cristo aparecera no ar sobre as suas cabeças e condenara ambos solenemente. Este incidente, advertia Galindo, era uma demonstração visível e dramática, mas dificilmente única, do desagrado de Deus em relação às confissões inadequadas, porque Deus condenava todos os dias em silêncio muitos penitentes insinceros e confessores desleixados.

 

Mas Galindo estava ainda mais preocupado corn o penitente «escrupuloso», normalmente uma mulher, que tinha tantas dúvidas em relação à validade e integralidade da sua confissão que ela nunca tinha qualquer sensação de confidência e necessitava de regressar constantemente para fazer novas confissões ou confessar coisas que não eram realmente pecados. O seu conselho a pessoas tão dadas à ansiedade era submeterem-se completamente ao controlo do confessor e seguir de modo humilde e obediente as suas orientações, mesmo que laborassem no erro.

 

A combinação da intensa ansiedade em relação ao imperativo de confessar plenamente os pecados e a incessante necessidade de obediência cega ao confessor criava uma situação em que as penitentes sentiam não se poderem recusar a discutir o que quer que um confessor entendesse dever abordar, mesmo que fosse manifestamente de carácter sexual. Os confessores que transpusessem a fina linha entre a sondagem prudente da conduta sexual e o interesse ávido destinado a satisfazer a sua própria excitação sexual colocavam as penitentes perante um grave dilema. Se fossem devotadas filhas da Igreja e se confessassem frequentemente, como sucedia a muitas das vítimas de aliciamento, estariam em sintonia corn a ideia de obediência absoluta aos seus confessores, mas quando estes mesmos confessores começavam a fazer perguntas de natureza manifestamente sexual, a sua confusão e ansiedade de terem de fazer uma confissão completa impossibilitava a resistência, muito embora as suas respostas fossem provocar uma maior ebulição sexual na mente do confessor.

 

Há muito que a prática de uma série de mortificações físicas destinadas a aplacar o corpo fazia parte integrante da devoção cristã. Além disso, se a história de santas podia servir de guia, parece que as mulheres espiritualmente ambiciosas nos mostraram uma afinidade em matéria de actividades penitenciais. Conquanto as sociedades de flagelantes de estilo medieval tivessem desaparecido na quase totalidade no século xvi, a penitência física mantinha-se um método aceite de alcançar uma maior espiritualidade. Se, por um lado, eram praticadas formas extremas de disciplina física por figuras religiosas tão proeminentes como S. Simón de Rojas, por outro, eram recomendadas pelos moralistas e teólogos formas mais brandas para a gente vulgar. Pérez de Valdivia defendeu que as beatas se deveriam submeter a alguma forma de penitência física pelo menos duas noites por semana e exigiu que usassem diariamente uma veste penitenciai constituída por um cinto ou cinta corn pontas de ferro (cilício). Entre as vítimas de aliciamento, é possível identificar quarenta que praticavam alguma forma de mortificação física, desde a flagelação ao uso regular do cilício. Normalmente, era efectuado um programa deste tipo sob a orientação do conselheiro espiritual da mulher, mas para determinados confessores semelhantes práticas continham um poderoso estímulo erótico que conduzia directamente ao aliciamento.

 

Muito embora pouco mais da maioria das vítimas (50,7%) estivesse disposta a aceitar a aproximação dos confessores ou fosse ambígua em relação a eles, a ponto de participar, pelo menos, de algum modo, o grupo maioritário das solteiras (228) rejeitava logo este tipo de iniciativa. O esquema de rejeição, porém, variava consideravelmente desde uma percentagem elevada de 76,9% entre as mulheres de origem aristocrática e burguesa e pouco mais de 70% entre artesãs, rurais e criadas, a uma baixa de 58,6% entre as freiras. Este número extraordinariamente baixo conferiria credibilidade aos muitos observadores do século xvii, e posteriormente, que se queixavam das devoções religiosas forçadas e alertavam para os perigos do contacto excessivo entre confessores e religiosas.

 

Ao analisarmos o esquema de rejeição, delineiam-se várias causas distintas. Nitidamente, as reacções negativas de algumas penitentes reflectiam uma elevada consciência religiosa que demonstrava o êxito da Contra-Reforma na criação da maior sensibilidade religiosa entre as massas populares. Para este tipo de penitente, o comportamento do confessor violava tudo o que tinham aprendido sobre o seu papel de conselheiro espiritual, e a sua reacção violenta à tentativa de conseguir favores sexuais delas reflectia a sua amarga desilusão. Quando José Estrada, o superior do convento franciscano de Buena Vista, em Realejo (Tenerife), tentou seduzir a sua penitente Barbara Agustina Padrón, dizendo-lhe que o marido era infiel e que só ele a amava, ela recordoulhe que «ele estava sentado no lugar de Jesus» e que tudo o que faziam era observado por uma imagem da Virgem das Mágoas que fora colocada na parede da capela. A ideia de imagens sagradas penduradas por cima do confessionário, que lembrava tanto a história de Pedro Galindo de que Cristo observava e depois castigava os confessores indolentes e as penitentes pecadoras, foi repetida por outra das penitentes de Estrada. Numa das suas viagens para pregar e pedir esmola, Estrada ficou em casa de Maria Barrosa e do marido, um abastado agricultor. Barrosa pediu-lhe que a ouvisse em confissão ali, mas ficou ultrajada quando ele lhe tentou tocar nos seios. Denunciando-o amargamente por ter traído a sua confiança, ela perguntou-lhe o que lhe aconteceria se morresse subitamente sem ter efectuado uma confissão completa. Então, ela apontou irada para as imagens de Cristo e da Virgem penduradas na parede e lembrou-lhe que as imagens sagradas o observavam. Envergonhado e em dívida para corn a sua anfitriã pela suahospitalidade, Estrada prometeu ministrar uma confissão plena, e cumpriu-o.

 

O enorme respeito pelo sagrado estava também no coração de Juana Dias dei Sol quando rejeitou as iniciativas do seu confessor, Guilherme Carnes y Home. Em 1777, a viúva de 23 anos encontrou Carnes y Home pela primeira vez quando se lhe foi confessar na igreja colegiada de La Orotava. Enquanto escutava a sua confissão, perguntou-lhe onde morava, e, embora mentisse a respeito da sua morada, ele acabou por a conseguir encontrar. Juana foi suficientemente incauta para o deixar entrar, mas, assim que o fez, ele disse-lhe que viera para ter relações corn ela e começou a despir o hábito. Ela fugiu de casa, mas, alguns dias depois, ele enviou-lhe a chave de uma casa vaga corn um bilhete sugerindo que se encontrassem para terem relações. Na manhã seguinte, Juana foi à igreja para devolver a chave, acabando por o ouvir sugerir que tivessem relações ali à noite numa das capelas laterais dedicadas à Virgem. Ao escutar tal, Juana enfureceu-se e perguntou-lhe «como podia ser tão ímpio a ponto de pecar assim numa igreja e em particular diante de uma imagem da Virgem Maria».

 

Não obstante a baixa moral em muitos conventos e o grande número de freiras involuntariamente frustradas ao nível social sexual e, por consequência, vulneráveis aos ardis de confessores inescrupulosos, as freiras não eram de modo algum um alvo fácil. Muitas freiras possuíam uma vocação religiosa genuína e profunda. Nas suas Cartas, Teresa de Jesus refere vezes sem conta a avidez corn que as raparigas vinham juntar-se à ordem. Numa carta de Segóvia escrita em Setembro de 1574, fala de uma noviça que iria chegar no sábado seguinte, «cujo fervor a todos surpreende». Em Janeiro desse ano, discute o caso de uma jovem aristocrática, Casilda de Padilla, que entrou para a casa das Carmelitas Descalças em Valhadolid em face da oposição dos pais e como consequência não trouxera consigo qualquer dote. Que esse entusiasmo não se limitava às filhas das classes altas é o que demonstra o facto de ter recebido, mais ou menos na mesma ocasião, uma rapariga pobre e analfabeta que estava extremamente ansiosa por entrar para a ordem.

 

Algumas comunidades religiosas femininas demonstravam também um forte esprit de corps1 que lhes permitia lutar corn êxito contra o domínio dos vigários nomeados pelos superiores das ordens religiosas masculinas. Em muitos casos, as freiras apontaram como razão da sua luta as iniciativas de carácter sexual feitas pelos religiosos. Noutro caso, as freiras do convento bernardino em Alcalá de Henares conseguiram até obrigar o seu vigário, o Dr. Diego Ordaz, a demitir-se em virtude de ter desenvolvido o hábito de murmurar obscenidades às penitentes enquanto ouvia as suas confissões.

 

Paralelamente à literatura admonitória ou obscena dos séculos xvii e XVIH, que dava aos conventos a imagem de casas de passe, encontramos uma outra literatura que fala eloquentemente das frustrações de uma freira para mover uma acção em tribunal. Para Quevedo, amar uma freira era o mesmo que amar «um tordo numa gaiola», enquanto um poeta anónimo descreveu as relações entre as freiras e os seus admiradores como «desejos impossíveis abortados» e «chamas no meio de ferro frio».

 

A marginalização social do comportamento sexual impróprio por parte das freiras era reforçada por toda uma série de histórias populares horríveis sobre o destino daquelas que desobedeciam. Se os maridos mortais ficassem muito aborrecidos corn a infidelidade das esposas, a ira de Deus ante a infidelidade de qualquer das suas esposas seria inimaginável. Alonso de Andrade procedeu a recolhas destas histórias e contou-as novamente no seu livro de conselhos às freiras. Normalmente, a história envolvia uma freira que recebia o amante na sua cela ou se encontrava corn ele na igreja e, no momento em que estavam prestes a abraçar-se, o Diabo aparecia e vencia.

 

1 Em francês no original: espírito associativo. (N. da T.)

Mas nem todas aquelas que recusavam as iniciativas de carácter sexual do confessor o faziam por motivos tão nobres. Lúcia Vera, de

19 anos, proveniente de uma proeminente família fidalga em La Laguna, pura e simplesmente não conseguiu levar a sério as iniciativas de Juan Felipe Cabeza, de 44 anos. Depois de deixar o confessionário sem concluir a sua confissão, relatou à mãe todo o incidente e as duas riram a born rir.

 

O medo da Inquisição era outro motivo para as penitentes poderem rejeitar iniciativas de carácter sexual, muito embora se pudessem sentir fortemente tentadas. Josepha Maria, uma mulher solteira de 21 anos que vivia na aldeia de Santa Cruz na ilha de San Juan Miguel nas Canárias, ficou satisfeita quando o seu confessor sugeriu que lhe poderia enviar um presente a sua casa. Mas, passados alguns dias, antes de acontecer algo, ela ouviu apregoar o Édito de Fé na igreja da aldeia e denunciou o seu confessor ao comissário local.

 

Em determinados casos, era o simples recato que levava à rejeição. O frade agostiniano Luis de Valdiviesa estava a arriscar-se quando começou a falar a Isabel Pérez de Salazar dos seus muitos casos corn mulheres pouco depois de ela terminar a sua confissão. Sem que ele soubesse, Pérez de Salazar era pau-de-cabeleira oficial (duena) da condessa de Priego. Esta denunciou-o imediatamente ao comissário local, mas ficou tão aflita corn o que ele dissera que se recusou a ser mais específica sobre os termos que ele usara, «pois eram tão ousados que a modéstia a impedia de os proferir».

 

Para muitas penitentes, a perda da reputação e em especial as consequências potencialmente terríveis de um caso ilícito numa sociedade em que tanto a lei como o costume sancionavam o assassínio de uma adúltera pelo marido impediam-nas de aceitar propostas do confessor. Sem dúvida, o receio de violência que teria de enfrentar da parte do marido e dos sogros era o que mais absorvia o espírito de Catalina Flexas y Proassi quando recusou os repetidos pedidos do seu confessor para um encontro fora da igrej a. Ao longo dos seis meses que a ouviu em confissões quase semanais, ela recusou sistematicamente os seus pedidos, comentando que «ele era incapaz de guardar um segredo» e avisou-o para não incomodar os vizinhos ao passar diante da sua casa. Era tamanho o medo dos sogros que não ousava sequer ir ao Santo Ofício, apesar de o novo confessor lhe ordenar que o fizesse, temendo que, se eles descobrissem que fora aliciada, a assassinassem.

 

O choque de descobrirem que um padre que, nas palavras de uma penitente desiludida, «consideravam um santo» e em quem lhes haviam dito para depositar a maior confiança não passava de um homem deixava algumas penitentes extremamente perturbadas. Algumas ficavam até corn profundas feridas psicológicas cuj as cicatrizes deixavam marca bastante tempo depois. A reacção mais comum entre as sessenta e nove mulheres que testemunharam terem tido sensações extremamente negativas em relação ao aliciamento era ficarem muito agitadas. Por vezes, as penitentes tentavam levantar-se e abandonar a igreja sem concluírem a confissão, mas, em casos mais extremos, apresentavam sintomas físicos. Quando Francisco Pons começou a perguntar a Catalina Real y Massanet sobre as suas relações sexuais corn o marido recentemente falecido, ela teve um acesso de suores frios e abandonou o confessionário a correr. Para Madalena Joífre, uma mulher jovem particularmente devota, que, por norma, se confessava todos os dias, foi ainda maior o choque da traição do seu confessor. Depois de escutar corn crescente frustração e desalento enquanto o seu confessor, António Ballester, tentou várias vezes levá-la a contar os pormenores da sua vida sexual, desmaiou e teve de ser levada para casa sem sentidos.

 

Muitas penitentes procuraram reprimir os sentimentos de raiva e traição que sentiam tão intensamente. Quando Antonia Pérez foi aliciada pelo confessor, Pedro de Ortega, ficou furiosa e teve vontade de o agredir. Ao invés, nada disse e deixou-se ficar para concluir a sua confissão porque havia muitas pessoas na igreja e não queria suscitar quaisquer comentários.

 

Os sentimentos de raiva, vergonha e nojo reprimidos tiveram consequências trágicas para outra devota, Mariana Llorens, filha de um mestre operário da seda, de Valência. Em 1764, referiu no seu depoimento que, quatro anos antes, quando tinha 19 anos, se fora confessar a José de San Miguel no dia da festa da Virgem dei Carmen. Conquanto fosse muito devota, tinha um born motivo para se confessar nesse dia, uma vez que cometera o pecado de se masturbar na noite anterior. E fácil imaginar o seu horror quando, em vez de mitigar o que deveria ter sido uma sensação dolorosa de culpa atribuindo-lhe uma penitência, San Miguel lhe garantira que não era de modo algum pecaminoso uma mulher acariciar-se corn intuito sensual. Pressentindo manifestamente uma oportunidade, começou por lhe fazer perguntas de carácter pessoal, como por exemplo se lhe tinham nascido os pêlos púbicos e começara a menstruar. No seu depoimento perante o funcionário destacado para a entrevistar, Llorens descreveu graficamente como a dada altura se sentira «sufocada» e fora obrigada a fugir do confessionário. Durante os quatro anos que se seguiram, não conseguiu deixar de pensar no sucedido e sentiu-se extremamente «deprimida e desconsolada», mas ficou tão envergonhada que não lhe foi possível falar da experiência a ninguém. Finalmente, um dia, quando se preparava para ir à igreja, atingiu uma espécie de crise durante a qual o horror do que sucedera surgiu diante dos seus olhos corn uma força extraordinária, ao mesmo tempo que sentia também que o próprio Deus a impelia a relatar a sua experiência ao novo confessor, em quem depositava enorme confiança. Indo ao seu convento, efectuou uma confissão completa e sentiu-se imediatamente aliviada, muito embora ele a avisasse de que teria de depor perante o Santo Ofício.

 

Uma mulher que recusou as iniciativas de um padre particularmente obstinado viu também a sua vida pessoal destruída, especialmente em virtude de não conseguir encontrar outro confessor que a apoiasse na denúncia do delito ao Santo Ofício. Francisca de Jesus, uma mulher solteira de 35 anos oriunda de La Orotava, teve o azar de se ver precisamente nesta situação quando se foi confessar a Pedro de Castro na ausência do seu confessor normal. Castro, que tinha já um caso corn a irmã e corn sobrinha dela, decidiu imediatamente que a queria somar às suas conquistas. Depois de Castro lhe pegar na mão no confessionário e a incomodar enquanto ela se encontrava na igreja para uma vigília, o seu confessor regular voltou e ela pediu-lhe conselho sobre o que fazer. Em vez de a mandar ir ao Santo Ofício, absolveu-a e aconselhou-a a enfrentar Castro no confessionário e ameaçar denunciá-lo. Esta táctica falhou completamente quando Castro se limitou a rir das suas ameaças e declarou que iria a sua casa naquela noite, uma vez que estava loucamente apaixonado por ela. Assustada corn o que se podia seguir, Francisca fugiu para casa de uma parente na aldeia de Guia, onde permaneceu mais de um mês. Mas se tinha esperança de que, na sua ausência, a paixão de Castro por ela tivesse esfriado, iria ficar profundamente desapontada, pois, assim que ela regressou, entrou à força na casa dela e tentou violá-la. Privada de qualquer apoio do seu confessor regular e sem marido ou parente do sexo masculino que a protegessem, caiu numa profunda depressão e viu-se obrigada a ficar de cama várias semanas enquanto os médicos a sangravam. Ao saber do seu estado debilitado, Castro invadiu a casa dela em duas ocasiões diferentes e abusou sexualmente dela. Finalmente, após quatro anos durante os quais o seu confessor continuava a prometer-lhe queixar-se ao bispo em seu nome mas não fez nada, Francisca encheu-se de coragem para ir pessoalmente a um comissário do Santo Ofício, e Castro foi preso e condenado sob a acusação de aliciamento. Para Francisca de Jesus e muitas outras mulheres vulneráveis porque não tinham quaisquer protectores masculinos, a Inquisição proporcionava-lhes a única oportunidade autêntica de se livrarem das atenções indesejadas de um confessor abusivo. Infelizmente, a jurisdição da Inquisição sobre o aliciamento abrangia apenas uma pequena percentagem das potenciais investidas e dos abusos sexuais que os padres eram capazes de perpetrar. Uma preocupacão exclusiva corn ouso incorrecto do sacramento da penitência significava que a maior parte das mulheres que era assediada pelos padres teria de ir corn o caso para a frente num tribunal eclesiástico que frequentemente estava mais interessado em evitar o escândalo e proteger a reputação do estado eclesiástico do que em proporcionar auxílio às vítimas de crimes sexuais.

 

Claro que uma mulher arguta conseguia usar o aliciamento em seu benefício. Quando Juana Díaz se foi confessar ao agostiniano Ignacio Sauce pela primeira vez, sugeriu vagamente o seu desejo de ter relações sexuais corn ela e depois tentou sem êxito entrar em casa dela várias vezes. Díaz, filha de um abastado labrador, estava a ser cortejada por um mulato, mas a união contava corn a oposição de um parente dela, o Dr. Juan Díaz de Llanos, influente detentor de um benefício local. Aproveitando os seus problemas corn Sauce como forma de afastar as objecções de Díaz de Llanos à união, Díaz foi confessar-se-lhe e disse-lhe que vários pretendentes agressivos lhe faziam cerco e fora inclusivamente aliciada no confessionário. Por esse motivo, prosseguiu ela, «queria casar-se, ainda que tivesse de ser corn um negro». Este apelo nada subtil à ansiedade masculina em relação à perda da honra da família como consequência da promiscuidade feminina tivera um efeito imediato. Díaz de Llanos retirou as suas objecções à união, mas insistiu para que Díaz denunciasse Sauce ao Santo Ofício.

 

O aliciamento tinha também um impacte negativo sobre as vidas religiosas das suas vítimas, aumentando a ansiedade que muitas delas sentiam ao aproximarem-se do sacramento da penitência e tornandolhes ainda mais difícil, ou mesmo impossível, comungarem. Algumas vítimas que se apercebiam de não estarem a receber uma confissão adequada limitavam-se a ir a outro confessor a fim de receberem o que julgavam ser a absolvição adequada. Depois de Gaspar Palenzuela, um franciscano de um convento na aldeia de Telde, nas Canárias, ter feito perguntas a Barbara Rodríguez sobre pormenores da sua vida sexual corn o falecido marido, ela não pôde comungar e foi imediatamente procurar o cura local para se confessar de novo.

 

A situação não foi tão fácil para Ursula Sardana, ex-prostituta de

32 anos que vivia na casa madalenata em Lãs Palmas. Um dia, por mero acaso, veio confessar-se a António Pastor, um franciscano que, por sinal, era um dos seus antigos amantes. Ele recordou a sua anterior relação e começou aimportuná-la corn questões de sexo. Elaficou muito perturbada, dizendo-lhe que isso lhe poderia fazer «grande mal» pois estavam na presença do sagrado sacramento. Ao deixar o confessionário, sentiu uma imensa onda de ansiedade e receio e não conseguiu contar o que sucedera nas duas outras confissões. Porém, o problema complicou-se quando ela se apercebeu de que não fizera uma confissão completa em qualquer das duas ocasiões e, por conseguinte, entendia não poder comungar. Passados dois meses, a sua incapacidade de comungar despertou a atenção da prioresa, que a interrogou sobre o assunto, e Sardana viu-se na obrigação de discutir os pormenores do «impedimento» que a mantinha afastada do cumprimento de semelhante acto religioso. Por ordem da prioresa, ela confessou-se então ao confessor regular nomeado para a casa madalenata, que lhe ordenou que denunciasse Pastor à Inquisição.

 

Caso curioso, e não obstante a repugnância que muitas delas sentiam em relação ao padre que lhes solicitara favores sexuais no confessionário, quarenta e nove vítimas voltaram para se confessar corn o culpado uma ou duas vezes depois do primeiro incidente de aliciamento. A distribuição irregular do clero paroquiano espanhol significava que em algumas aldeias as penitentes tinham a opção de não se confessar ou de se confessar corn o mesmo padre que as aliciara. Foi exactamente o que sucedeu na pequena aldeia de Piedrabuena (Toledo), onde, no final da década de 1570, só existiam dois confessores disponíveis, o lascivo Gabriel de Osca e Pedro dei Pinar, que estava velho, doente e meio surdo. Consequentemente, quando Lúcia Hernandez se enfureceu corn Gabriel de Osca depois de ele lhe ter posto as mãos nos seios enquanto ela se confessava, resolveu reduzir drasticamente o número de confissões que fazia, cumprindo apenas o preceito anual. Por outro lado, Maria Díaz, outra das vítimas de Osca, regressou para se lhe confessar simplesmente porque não existia outro confessor decente na aldeia.

 

O antifeminismo tradicional e a ansiedade masculina em relação à possível má conduta sexual das esposas e amantes era também responsável pelo facto de muitas vítimas serem obrigadas a estar na presença de confessores abusivos. Maria Quadrada tentou deixar de se confessar a Pedro López depois de ele a aliciar no confessionário e tentar depois violá-la, mas, sempre que ela faltava, ele mandava-lhe mensagens através das criadas do marido, pedindo-lhe que viesse falar corn ele e ameaçou inclusivamente ir a sua casa num nítido esforço de usar o medo que ela tinha do marido para que continuasse a ir lá.

 

Para as mulheres solteiras que viviam em casa, o problema era uma absoluta falta de autonomia pessoal. O confessor de Bernarda Suárez de Quintana, Mateo González, era amigo da família e visita assídua da casa dela, pelo que, quando ela deixou de se lhe confessar, ele procurou os pais para se queixar de que o abandonara e recorria a «confessores estranhos». Não só foi obrigada a voltar ao confessionário dele como, quando ela adoeceu gravemente, foi chamado pelos pais e violou-a duas vezes no seu próprio quarto.

Um exemplo ainda mais terrível do que podia acontecer quando as necessidades dos filhos ficavam à mercê dos desejos dos pais e familiares é o que nos apresenta o caso de Paula Petronila de Ia Paz, de 19 anos, filha de uma família de labradores da aldeia de Santa Cruz nas Canárias. O confessor de Paula era o tio, Mathias de Ia Paz Carvello, de 53 anos, franciscano e superior do convento local, que a começou a aliciar durante a sua segunda confissão. A jovem ficou profundamente ofendida corn o que sucedera e resolveu nunca mais se lhe confessar, mas, quando tentou romper a relação, Paz Carvello procurou-a em casa e convenceu os pais de que ela precisava de se confessar todas as semanas. Estas «confissões» ocorriam nas horas mortas da manhã, altura em que Paz Carvello tinha a certeza de não haver ninguém na capela. Invariavelmente, abusava sexualmente dela durante estas sessões e, quando ela protestava, escarnecia dela e dizia-lhe que não tinha em casa ninguém que a protegesse. Pediu-lhe igualmente que esquecesse o noivo porque queria que se guardasse só para ele. Ao cabo de vários meses desta tortura, Paula conseguiu finalmente encher-se de coragem para falar corn o pai e conseguiu convencê-lo a pôr cobro aos abusos do tio.

 

Tanto as vítimas de aliciamento como os padres que as confessavam eram apanhados pelas contradições da nova ética sexual e moral da Contra-Reforma. Esperáva-se dos padres, mais do que nunca, o celibato, ao mesmo tempo que as pessoas casadas e as não casadas cometiam muitos actos sexuais antinaturais sobre os quais era legítimo e necessário inquirir no confessionário. O laicado estava a aprender a respeitar, inclusivamente venerar, o padre na sua função de confessor, enquanto o submetia a um nível de conduta sem precedentes na história da Igreja. Simultaneamente, as mulheres, cada vez mais limitadas, nos seus movimentos, pelos meios sociais em relação à promiscuidade, afluíam às igrejas atraídas pelas muitas novas devoções e pela promessa de um sacramento da confissão renovado que lhes oferecesse oportunidades de expressão pessoal impossíveis corn os maridos e as famílias. A frustração sexual, a crescente devoção e a necessidade de expressão pessoal podiam transformar o confessionário num local de encontros. Mas aquelas vítimas de aliciamento sexual que resistiam às iniciativas do confessor podiam contar corn a elevada consciência proveniente da educação religiosa da Contra-Reforma. Sabiam que a linguagem indecente, as perguntas sugestivas e as iniciativas sexuais directas no confessionário estavam erradas e eram pecaminosas. Apesar da pressão das famílias para continuarem a confessar-se a padres abusivos, que teve consequências graves para certos indivíduos, a presença da Inquisição conferia às vítimas um meio institucionalizado de punir o poderoso sacerdócio que, de outro modo, poderia ter escapado incólume.

PENITENTES SUBMISSAS E AMBIVALENTES

Conquanto cerca de metade das penitentes rejeitasse os abusos do seu confessor, por vezes corn tremenda indignação, 39% (220) mostravam-se receptivas a eles. Em alguns casos, desafiando o estereótipo da passividade feminina que encontramos na literatura da época, as mulheres assumiam até um papel agressivo e buscavam inclusivamente os favores sexuais do seu confessor.

 

Entre as mulheres leigas, que constituíam a esmagadora maioria das penitentes que condescendia (84%), duas características são particularmente dignas de menção: estas penitentes eram, por norma, mais velhas do que as que rejeitavam o aliciamento e, de um modo geral, as mulheres casadas estavam representadas desproporcionadamente em relação ao seu número no grupo de vítimas. A idade média das penitentes que assentiam no aliciamento por ocasião do seu depoimento perante o Santo Ofício era de 36,8 anos, consideravelmente mais velhas do que a média de 25,0 para aquelas que rejeitavam os abusos dos seus confessores. corn um atraso de, aproximadamente, seis anos entre o aliciamento e a cornparência perante o Santo Ofício, estimar-se-ia a idade média das pessoas concordantes em 30,8 anos na altura em que se dava o aliciamento. Esta impressão de maior maturidade é corroborada pelo estado civil, corn 39,6% das penitentes concordantes casadas, em contraste corn 33% das que recusavam o aliciamento. As viúvas compreendiam umapercentagem relativamente maior das penitentes dispostas a colaborar, mais 14,0% das vítimas do que aquelas que ignoravam o confessor.

 

Estes números sugerem que, apesar dos esforços da Igreja no sentido de garantir que as jovens pudessem casar corn a pessoa por elas escolhida, os problemas conjugais eram ainda extremamente comuns e o confessor proporcionava uma fonte, talvez a única, de alívio emocional e sexual para as mulheres casadas. De facto, alguns confessores estavam tão acostumados a ouvir queixas de natureza conjugal que as interpretavam como um indício para fazerem propostas sexuais às suas penitentes.

Quando a recém-casada Maria Vélez contou ao seu pároco Joseph Sánchez dos maus tratos que recebia às mãos do seu marido, ele respondeu dizendo-lhe que «ele lhe poderia dar tudo o que ela necessitava e desejava» e pediu-lhe que não deixasse a igreja sem antes voltar a falar corn ele.

 

O primeiro obstáculo à felicidade conjugal era a escolha de um cornpanheiro corn o acordo das famílias sem consultar os interessados. Muito embora os tribunais eclesiásticos oferecessem protecção às jovens que fugiam corn os amantes contra a vontade dos pais, a Igreja não era unânime no apoio do livre-arbítrio. No princípio do século xvi, Juan Luis Vives evidenciou a ortodoxia predominante ao declarar que uma rapariga não devia ser ouvida na escolha de um companheiro, pois os seus pais tinham muito mais experiência e, por conseguinte, estavam em melhor posição para julgar o que a faria feliz. Ela deveria limitar-se a observar o processo, sem exteriorizar tanto o seu desejo de casar, e rezar para que os pais não escolhessem alguém que a impedisse de exercer a sua devoção e a caridade cristã. Em 1642, o destacado jesuíta, teólogo e censor do Suprema Alonso de Andrade previu o pior para aquelas que casavam sem o consentimento dos pais. Os seus maridos revelar-se-iam «perversos e maliciosos» e tratá-las-iam mal, enquanto aquelas que aceitassem a escolha dos pais desfrutariam de toda a felicidade que um casamento bem sucedido poderia proporcionar. A amplamente usada Summa de Manuel Rodríguez, publicada pela primeira vez em 1593, foi inclusivamente ao ponto de afirmar que os filhos que casavam contra os desejos dos pais cometiam um pecado mortal. Poderemos, sem dúvida, partir do princípio de que, na maior parte dos casos, e em especial nas zonas rurais, as raparigas não contavam escolher livremente a pessoa corn quem iriam casar. Quando Pedro de Ortega, sacristão na aldeia de el Prado, perguntou a Maria Izquierda, de 19 anos, se queria casar corn o seu irmão, ela respondeu «que isso é algo que terá de falar corn o meu avô e não comigo». Frustrado porque contava aproveitar a proposta de casamento como uma forma de desfrutar de favores sexuais da rapariga, de conivência corn o irmão, Ortega pressionou-a, declarando que o que ele queria saber era a vontade dela, mas a rapariga continuou a recusar deixar-se persuadir, mesmo quando ele a lisonjeou dizendo-lhe que ela era atraente e que não constituía qualquer pecado para uma jovem pintar o rosto ou mirar-se ao espelho.

 

Numa obra extraordinária publicada em 1681, Pedro Galindo pinta um quadro triste do casamento na sociedade espanhola contemporânea. Muito embora Galindo representasse a tradição católica de depreciação do casamento a favor do celibato, a sua longa experiência de confessor que entrevistara milhares de mulheres penitentes faz do seu livro um guia extremamente útil para os problemas do casamento no século xvii. Galindo começa por lamentar a frequência dos casamentos arranjados corn contratos assinados muito antes de a rapariga ter alcançado a idade adulta. Quando estas filhas são mais velhas, costumam levar por diante o acordo quer por respeito da autoridade paterna quer por causa das «ameaças e maus tratos» que tinham de sofrer até concordarem. Muitas vezes, o próprio casamento tem lugar corn uma pressa excessiva, para que o casal não disponha de muito tempo ou oportunidade para se conhecer mutuamente. Uma vez a sós, a esposa jovem e ingénua não tarda a descobrir que o marido, que se mostrara tão gentil, cortês e generoso quando a cortejava, começa a dar-lhe maus-tratos, proibindo-a de visitar as amigas e os pais, insulta-a e, inclusivamente, bate-lhe. Depois de desaparecer o vigor da juventude e de a jovem mulher ser mãe, o marido desinteressa-se quase completamente dela, começa a esbanjar ao jogo a fortuna da família e obriga-a a vender os bens dela para poder sustentar a amante. Mais tarde, após uma visita do cobrador de impostos, que confisca praticamente tudo o que existe de valor em casa, incluindo o xaile em que ela se envolvia para ir à missa, ela espera que o marido abandone os desvarios, teme que, se não abrir a porta à primeira pancada, ele lhe bata impiedosamente. Tudo isto, claro, em nítido contraste corn a felicidade e tranquilidade que tivera em solteira em casa dos pais. Aos que respondiam a esta história deprimente afirmando que nem todos os homens são maus e que há muitos que amam as esposas e cumprem lealmente as suas obrigações familiares, Galindo retorquiu que todos fazem belas promessas, mas para muitas mulheres a realidade é bem diferente.

 

Podemos ter uma ideia destes maridos brutais e abusivos através do depoimento recebido num caso da Inquisição em que a penitente se queixara tanto do marido que o seu confessor acabou por acreditar que ela aceitaria as suas iniciativas. Vicenta Roig, que vivia em Onteniente corn o marido António, carpinteiro, confessava-se mensalmente a Vicente Yago, um dominicano do convento de San Juan y San Vicente. Encorajado pelas suas queixas frequentes a respeito do marido, Yago sugeriu-lhe repetidas vezes que se encontrassem em casa de uma «respeitável senhora» que os deixaria ficar juntos. Muito embora se sentisse tão tentada, a ponto de perguntar quem seria o seu confessor se ela aceitasse a sua proposta, no fim acabou por não fazer nada porque tinha medo do ma’ rido, um homem que descreveu como de «carácter selvagem», que provavelmente a mataria se descobrisse.

 

As enormes confusão, ansiedade e aflição que uma jovem esposa podia sentir durante os primeiros meses do seu casamento são perfeitamente ilustradas pelo caso de Esperanza Olivera, de 17 anos, que compareceu perante o tribunal de Maiorca em Abril de 1636. Pobre, analfabeta e receosa do marido, que a tratava de uma forma tão brutal que uma vez ameaçou cortar-lhe a cabeça se ela se recusasse a tirar o xaile num piquenique, Olivera estava também grávida de vários meses quando se começou a confessar a Pedro Onofre Martin. Sentindo que estava aterrada corn o parto, Martin procurou convencê-la oferecendo-Ihe comprimidos para abortar, que dizia serem seguros uma vez que os dera a algumas freiras. Conquanto Olivera rejeitasse as iniciativas do confessor e deitasse fora os comprimidos, sentia-se suficientemente infeliz corn o seu casamento para ver uma figura parecida corn Martin numa visão quando estava na cama corn o marido. De facto, não só pôde ver Martin como ele chegou inclusivamente a falar-lhe, confirmando o seu receio de que nem o marido nem os sogros gostavam realmente dela, e encorajou-a a fugir corn ele. Esperanza Olivera, tal como muitas outras mulheres pobres, pouco mais podia fazer do que esconder o seu ressentimento e receio sob uma máscara de obediência. Na ausência do divórcio ou separação legal corn base em crueldade física ou mental, as fantasias sobre a fuga em pouco contribuíam para alterar uma situação de infelicidade.

 

A visão pessimista que Galindo tinha do casamento foi partilhada por muitos observadores dos séculos xvi e xvn, incluindo Fray Luis de León, que avisou as jovens de que «perdereis a vossa liberdade no dia em que vos unirdes pelo matrimónio». Ele, tal como Galindo, defendia a vida do claustro, onde as mulheres podiam exprimir-se mais livremente. Era dada uma imagem tão negativa do casamento que algumas mulheres chegaram ao extremo de o evitar. Isabel Riera, uma espírita de Maiorca, falou favoravelmente de uma mulher jovem que fingia estar possuída pelo demónio a fim de «evitar o casamento e, consequentemente, servir melhor a Deus».

 

Exceptuando o facto de as ideias de Galindo a respeito do casamento se basearem nas confissões de inúmeras mulheres que o tinham procurado corn histórias tão más ou piores do que a por ele contada, o aspecto interessante da sua obra é que tinha percepção de alguns dos condicionalismos sociais que obstavam a um casamento feliz, enquanto o seu próprio conservadorismo o impossibilitava de sugerir quaisquer soluções concretas. Galindo salienta a extrema insegurança económica que muitas mulheres casadas sentiam. Tremiam sempre que os maridos saíam de casa, nem que fosse para irem apenas à praça, e, se os maridos partiam para uma longa viagem, as esposas receavam que eles fossem roubados ou mortos. Se sucedesse algo aos seus maridos, ficariam sem meios de subsistência, corn filhos para criar e sem qualquer capacidade de exercerem uma profissão. Simultaneamente, porém, descreve a esposa ideal como extremamente tímida e obediente ao marido, desacostumada às relações sociais e corn habilitações literárias limitadas, exactamente o tipo de pessoa que ficaria sem meios de subsistência se o marido desaparecesse de cena.

 

Galindo estava igualmente disposto a admitir que um dos piores problemas inerentes ao casamento era a sua indissolubilidade. Aqui, usa das suas metáforas mais coloridas para comparar um casamento infeliz à maneira como alguns tiranos pagãos martirizavam os cristãos atando-os a um homem morto e os deixavam até o horror e a carne putrefacta ocasionarem a sua própria morte. De igual modo, um casal infeliz passava pelo seu próprio calvário de sofrimento e morte espiritual estando irrevogavelmente presos a outra pessoa que abominavam.

 

Por vezes, o próprio aliciamento podia ser apanhado no tipo de antagonismo violento mútuo a que Galindo se referia. Apesar de Barbara Agustina Padrón ter sucessiva e indignadamente repelido os avanços do seu confessor, Joseph Estrada, continuou a confessar-se-lhe durante mais de um ano depois de ter contado ao marido do primeiro incidente, para lhe fazer ciúmes.

 

No entanto, esta tentativa para irritar o marido quase terminou em tragédia. Durante uma discussão particularmente violenta a respeito da sua relação corn Estrada, a mãe dela entrou no quarto e encontrou o genro de pé junto à cama corn um alfange e só conseguiu impedi-lo de matar a filha interpondo-se entre ambos.

 

Aquelas mulheres que se davam conta, demasiado tarde, de que os maridos eram negligentes, usavam linguagem agressiva ou, pior, tinham poucos recursos. Em alguns casos, os tribunais eclesiásticos ordenavam a retirada de uma mulher no caso de uma situação de abuso, mas, regra geral, mostravam-se relutantes em emitir uma sentença de separação formal, que divulgaria o fracasso de um elo matrimonial. Dos

152 pedidos de separação recebidos pelo tribunal eclesiástico da diocese de Barcelona entre 1565 e 1650, somente 20 resultaram numa sentença favorável à requerente.

 

As discussões violentas eram apenas uma das manifestações mais espectaculares dos problemas profundamente arraigados que obstavam ao alcance da felicidade conjugal no início da época moderna em Espanha. Conquanto teólogos liberais como Vicente de Mexia estivessem dispostos a conceder à esposa, teoricamente, a mesma igualdade que ao marido, a maior parte dos autores colocava-se numa posição manifestamente inferior. Esperava-se que as esposas tolerassem o comportamento do marido, independentemente do seu carácter, pois, mesmo que fosse mau e desagradável, um ébrio ou um vagabundo, continuava a ser o seu marido «e nenhuma qualidade sua [poderia] retirar a obrigação que ela tinha».

 

A existência de um critério duplo em relação ao adultério será talvez a demonstração mais conclusiva desta inferioridade, uma vez que as esposas eram induzidas a tolerar o comportamento do marido «pois ele tem mais liberdade para fazer o que lhe apetecer». A mulher deveria convencer o marido corn paciência e tolerância. Juan Luis Vives apresenta inclusivamente o exemplo de uma matrona flamenga que convidou o marido a levar a amante para casa, cedendo-lhe os aposentos e tratando-a como uma irmã até o marido, reconhecendo o seu erro, romper corn ela. Por outro lado, como a fidelidade era o principal atributo de uma boa esposa, as indiscrições sexuais eram muito mais graves para as mulheres do que para os maridos e uma adúltera não passava de uma «prostituta traiçoeira». A total imunidade de acusação legal por adultério concedida por lei aos homens contrastava nitidamente corn a legislação que aplicava a pena de morte às mulheres acusadas do mesmo delito. A falta de vias legais para as mulheres exporem as suas queixas contra um marido ausente implicava que a sua raiva e o seu ciúme convergissem para o próprio casamento. Uma das principais razões para o cornportamento descuidado e provocante de Barbara Agustina Padrón era : a reputação do marido como adúltero.

 

” A elevada mortalidade infantil, em especial durante as muitas epidemias que devastaram a Espanha do início da era moderna, foi outro factor que tendeu a retirar o conteúdo emocional ao casamento e a tornar as mulheres mais vulneráveis às coacções dos confessores. As gravidezes frequentes expunham as mulheres a muitos reveses trágicos, uma vez que, durante o século xvn, em cada dois nados-vivos um chegava à idade adulta. A fim de minimizar o efeito destes choques, as mulheres eram aconselhadas a limitar o seu envolvimento emocional corn os filhos. De acordo corn Vives, a mulher que não conseguisse conceber era «afortunada, mesmo abençoada», pois seria poupada às dores e perigos da gravidez. Além disso, avisava as mães para não tratarem os filhos corn excessiva ternura, dado serem todos propensos ao vício, em especial as raparigas. Muitas mulheres casadas estavam também expostas ao fardo emocional e económico de maridos ausentes por longos períodos. A privação emocional e a austeridade económica, por sua vez, podiam tornar os seus confessores particularmente atraentes. Manuela Bessa, cujo marido, trabalhador agrícola, estava corn frequência ausente à procura de trabalho, foi descrita pelo padre Felipe dei Carmen como «correndo às cegas atrás de todos os confessores» e ficando extremamente zangada se algum deles recusava as suas iniciativas. Um destes confessores foi Felix Petarch, o pároco de Eslida, na remota Sierra de Espadán de Valência, corn quem manteve uma relação de três anos que começou no confessionário da igreja paroquial.

 

O marido de Maria Lorenzo servia como marinheiro na esquadra das índias quando ela iniciou o seu romance corn Balthasar de Clivares, o prior em exercício do convento dominicano em La Palma. Para além de se beijarem e acariciarem através dos buracos na divisória do seu confessionário na capela, tinham corn frequência relações sexuais em casa de uma das amigas dela.

 

Uma consequência das dificuldades económicas e do elevado desemprego sentidos em muitas partes de Espanha durante os séculos xvn e xviii traduzia-se no abandono das famílias por parte de muitos homens. A recusa dos tribunais eclesiásticos em consentir que se voltasse a casar, não obstante o longo abandono, deixava muitas mulheres privadas não só de apoio financeiro mas também de quaisquer saídas legítimas para as suas necessidades emocionais e sexuais, proporcionando, assim, uma oportunidade aos confessores dados a seduzir as suas penitentes. Na sua confissão perante o tribunal de Maiorca, o trinitário Pedro Jorge Foil referiu o caso de uma penitente que respondera à pergunta sacramental do confessor sobre se detestava ou desej ava a morte de alguém, afirm ando que desejara corn frequência que o marido morresse, pois abandonara-a, deixando-a sem recursos e a braços corn três filhos. Foil, que aliciara outras mulheres casadas, viu uma oportunidade e ofereceu-se para a ajudar em troca de favores sexuais. Neste caso, a penitente recusou, alegando que preferia ser pobre a ofender a Deus, mas outros confessores tiveram mais sorte em idêntica situação. O franciscano Juan Ascanio, do convento de San Miguel, por exemplo, conseguiu manter um romance durante quatro anos corn Blasina Domínguez, cujo marido a abandonara para ir para as índias cerca de vinte anos antes.

 

Ainda mais fundamentais ao fracasso de tantos casamentos foram os sentimentos de insatisfação e frustração sexuais, consequência quase inevitável da concepção tradicional católica das relações nupciais. Os primeiros padres da Igreja revelaram uma enorme desconfiança em relação ao sexo, vendo-o como um forte impulso capaz de vencer a razão humana. O sexo antes do casamento era um pecado mortal, mas as relações sexuais no casamento também eram suspeitas. Para Santo Agostinho, quaisquer relações sexuais no casamento destinadas a evitar a procriação eram pecaminosas e mesmo os casais que agiam devidamente eram encorajados a deixar de ter relações depois do primeiro ou segundo filho. São Jerónimo assumiu inclusivamente uma visão mais negativa do sexo no casamento, que viu como não tendo qualquer valor a não ser como forma de evitar a fornicação extraconjugal ilícita. Consequentemente, ele e outros autores afirmaram que um homem que tivesse relações corn a sua mulher amiudadas vezes era um adúltero. O sexo no casamento deveria ocorrer muito esporadicamente e corn espírito de moderação, em vez de luxúria, pois «nada é mais sujo do que ter relações corn a esposa como se fosse corn qualquer outra mulher». Esta frase famosa inspirou significativamente o pensamento medieval no que se refere às relações sexuais no casamento e esteve na origem de uma série de opiniões, algumas extremamente pessimistas, outras mais racionais. O facto de as relações sexuais socialmente aceites no casamento ou lícitas serem tão difíceis de definir criou uma enorme confusão e insegurança e tornou cada acto conjugal um motivo de ansiedade. Apesar do facto de teólogos posteriores, como o jesuíta espanhol Tomás Sánchez, tentarem moderar a doutrina da Igreja no que se refere às relações sexuais no casamento, a ideia de existir nelas algo de pecaminoso penetrara profundamente na imaginação popular. Pedro Galindo alude a este assunto ao discutir as concepções populares erradas sobre os pecados mortais e veniais quando nos conta que alguns indivíduos confessam erradamente como pecado mortal as relações sexuais no casamento destinadas a assegurar ou aumentar a estimulação. Estas concepções populares erradas foram reforçadas pelos sacerdotes que não abdicavam da velha tradição rigorista. Numa visita efectuada em 1585, o inquisidor Fernando Martínez recebeu o depoimento de uma testemunha que declarou que o Dr. Francisco Bezerria, cónego da igreja colegiada de Antequera, declarara em vários sermões que «o sexo no casamento é sempre pecaminoso» e que «Nosso Senhor já não pode tolerar a pecaminosidade do coito no matrimónio».

 

Muito embora Tomás Sánchez e outros teólogos pós-tridentinos adoptassem uma atitude mais liberal no que se refere às relações sexuais no casamento, pairava ainda uma nuvem de desconfiança sobre algo que não levasse a relações sexuais «naturais», que eram cuidadosamente definidas como coito segundo a posição missionária. Outras posições eram vistas como uma redução das probabilidades de concepção e, por conseguinte, uma subversão do próprio objectivo de todas as relações sexuais. Eram permitidas outras práticas sexuais se levassem arelações sexuais «naturais», mas constituíam um pecado venial se tivessem lugar por mero prazer. Se o orgasmo resultasse de carícias e outros preliminares, o pecado era considerado mortal.

 

Independentemente dos condicionalismos impostos às carícias, às posições coitais e ao orgasmo, os moralistas entendiam que as mulheres deveriam representar um papel absolutamente passivo nas relações sexuais. Segundo Juan Luis Vives, as mulheres nunca deveriam ser agressivas na procura de satisfação sexual dos maridos. Ao invés, as mulheres casadas deveriam seguir o exemplo de Zenóbia, a antiga rainha de Palmira, que nunca deixava o marido ter relações sexuais corn ela, a menos que desejasse engravidar e «não tivesse mais sensibilidade nas suas partes íntimas do que nas mãos ou nos pés».

 

Confrontadas corn uma sociedade que ignorava sistematicamente as suas necessidades sexuais, condenava todas as formas de experiências sexuais e limitava drasticamente a frequência do coito, muitas mulheres sentiam uma profunda insatisfação sexual. Estes sentimentos foram transmitidos nos Colóquios matrimoniales, de Pedro de Luxán, em que Eulalia, uma das mulheres que intervinha no diálogo, declara que «por vezes, preferia dormir ao lado de uma porca prenhe» do que partilhar o leito do marido. A insatisfação sexual era, sem dúvida, uma das razões da extraordinária sequência de êxitos que o franciscano Francisco de Ias Llagas teve corn mulheres casadas. A sua relação corn Victoria Casas iniciou-se no confessionário quando se queixou das suas relações sexuais corn o marido. Levado, como afirmou mais tarde, aos inquisidores de Toledo pelo «seu desejo» e «atraído pelas armadilhas do Diabo», perguntou-Ihe se gostaria que ele ocupasse o lugar do marido na cama. Ela assentiu e da vez seguinte que se veio confessar, disse a Llagas que se sentia muito melhor porque de cada vez que tinha relações corn o marido pensava nele. À medida que a sua relação avançava, foi sendo marcada pela quebra de inúmeros tabus sexuais, incluindo carícias no confessionário e masturbação mútua, que Victoria lhe confessou gostar ainda mais do que das relações sexuais corn o marido. Sucedeu algo muito idêntico a Isabel de Tena, de 25 anos, que iniciou o seu caso corn Llagas oferecendo-Ihe flores que retirou de entre os seios durante a confissão. Ele respondeu oferecendo-lhe amêndoas que ela lhe tirou da boca através de um orifício na divisória do confessionário. Ficou obcecada corn Llagas, pensava nele todas as noites e teve relações corn ele na sua casa em mais de vinte ocasiões. Empreenderam igualmente formas de sexo não tradicionais, incluindo estimulação oral e masturbação mútua no confessionário e em casa dela.

 

Aos 43 anos, altura em que Francisco de Ias Llagas foi levado a cornparecer perante o tribunal de Toledo, tinha uma longa história de casos amorosos, sobretudo corn mulheres casadas, ocorridos tanto dentro como fora do confessionário. Na qualidade de amante invulgarmente sensível e imaginativo numa época de conformismo, ansiedade e negativismo absurdos em relação ao sexo, ele podia oferecer o tipo de prazer sensual tantas vezes ausente dos casos da época. Para Isabel de Tena, que o notório inquisitorial Bartolomé Sánchez Plaza descreveu como «devota» e «extremamente modesta», a sua mistura de suave sensualidade e práticas sexuais ousadas foi simplesmente de mais. Ela ficou tão obcecada corn ele que começou a confessar-se-lhe três vezes por semana só para poder estar junto dele.

 

Mas também Llagas foi vítima da imagem negativa que a Contra-Reforma tinha do sexo. Conservava uma chibata à cabeceira da cama e usava-a corn frequência na sua pessoa e sentia constantemente as pontadas da ira de Deus a entrar-lhe no peito para o alertar que mudasse de vida e resistisse à tentação. Infelizmente para Llagas, mas talvez felizmente para algumas das suas penitentes casadas, ele não pôde fazê-lo e, por conseguinte, proporcionou-lhes um certo grau de prazer sensual que tanto lhes faltava em casa.

 

Se as mulheres casadas sentiam frustrações e dificuldades que as tornavam participantes voluntárias na sedução dos seus confessores, as viúvas tinham também razões especiais para achar os seus confessores atraentes. Os teólogos e moralistas que escreveram durante o início do período moderno eram unânimes em que a perda de um marido era a pior calamidade que podia acontecer a uma mulher, mas também não estavam na disposição de sustentar a solução mais óbvia: voltar a casar. O tradicional preconceito católico contra um segundo casamento foi expresso por Santo Agostinho, que viu na morte de um cônjuge uma oportunidade de as viúvas alcançarem mérito espiritual levando uma vida de continência. São João Crisóstomo, à semelhança de Santo Agostinho, escreveu contra segundos casamentos por representarem uma concessão aos desejos sensuais. Aconselhou as viúvas a dedicaremse a vidas de observância e devoção religiosas após a morte do cônjuge. Idênticas atitudes continuaram a repetir-se nos manuais dos confessores e outros textos, mesmo até ao final do século xvii e para lá dele. Na sua obra Excelências de Ia castidady virgindad, publicada em 1681, Pedro Galindo segue esta tradição denunciando as viúvas que voltam a casar como «cedendo à luxúria». A lei e o costume obstavam também a que as viúvas casassem segunda vez.

 

O estado de penúria em que muitas viúvas ficavam, porém, tornou intolerável e irrealista que elas seguissem os preceitos estabelecidos para elas pelos padres da Igreja. Estavam desesperadas por voltar a casar se isso fosse possível, e esse mesmo desespero poderia levá-las a cair nas mãos de um confessor decidido a aproveitar-se da sua aflição para conseguir favores sexuais. Um retrato trágico de uma dessas viúvas, ansiosa por voltar a casar, mas confrontada corn a forte oposição da família do candidato a marido, é o que nos apresenta o caso do agostiniano Juan Alcocer, julgado por aliciamento em 1621.

 

Ana Conellas, que ficou viúva e pobre aos 27 anos, conseguiu estabelecer uma ligação corn um jovem canteiro que prometeu desposá-la. O pai dele opôs-se tão veementemente à união que o filho se viu obrigado a entrar para um convento na remota aldeia de Mercadel. Esta separação forçada levou Ana ao desespero, de maneira que, quando Alcocer, seu confessor de há muito tempo, prometeu visitar o seu amante e encorajálo a resistir à pressão paternal enquanto estava de visita a Mercadel para fazer um sermão, ela ficou-lhe imensamente grata.

 

No regresso, porém, deixou bem claro que esperava que Ana lhe pagasse concedendo-lhe favores sexuais. Aterrada ante a ideia de o amante não a poder desposar e, como se descreveu, «infeliz e sem ter quem a consolasse», estava disposta a fazer fosse o que fosse para poder contar corn o apoio constante de Alcocer. Depois de lhe garantir que tudo faria para que o casamento se realizasse, Ana permitiu-lhe que acariciasse o seu corpo e as partes íntimas em seis ou sete ocasiões no confessionário e depois teve relações corn ele em sua casa num dia em que se fingiu muito doente e necessitada de um confessor. No fim, tudo acabou em bem para Ana Conellas, pois casou corn o jovem canteiro após o futuro sogro ceder. O seu depoimento confirmou o caso do tribunal de Maiorca contra Alcocer, que fora já denunciado onze anos antes. A sua situação difícil ilustra a ansiedade e insegurança que podiam tornar algumas viúvas presa fácil dos ardis de um confessor inescrupuloso.

 

Os motivos que as mulheres solteiras tinham para aceder à coacção dos confessores solicitantes eram idênticos aos das viúvas, especialmente se passavam já do meio da casa dos 20 ou tinham poucas hipóteses de se casar em virtude de circunstâncias económicas ou pessoais. Numa altura em que o casamento era visto como um acordo comercial baseado na capacidade de a esposa fornecer ao marido, através do dote, algum capital necessário para proporcionar a subsistência dela e dos filhos, muitas mulheres eram obrigadas a permanecer solteiras. Ao mesmo tempo, a sua conduta sexual tinha de estar acima de todas as censuras, visto qualquer passo em falso ser fatal para a honra da família. Tal como Antonia Sastre, cujo irmão a obrigou a terminar o seu caso corn o padre Jayme Massanet, as mulheres solteiras eram vigiadas de perto e tinham pouca ou nenhuma liberdade social ou sexual.

 

Em determinados aspectos, a reforma moral, que foi uma faceta tão importante do período pós-tridentino, agravou a posição das mulheres solteiras pobres e tornou-as ainda mais ávidas de se casarem. O concubinato, profundamente condenado no Concílio de Trento, tornou-se uma opção cada vez menos viável para as mulheres pobres que desejavam estabelecer uma relação afectiva duradoura mas não possuíam o dote necessário para casar. A proibição de concubinato significava que a antiga tolerância em relação às mães solteiras fora substituída pela hostilidade, e uma mulher que tivesse um filho ilegítimo sentia-se muitas vezes tentada a abandoná-lo ou matá-lo.

Todas estas tendências se juntaram no trágico caso de Antonia González, de 19 anos, filha de um agricultor pobre da aldeia de Zujar, nas Canárias, e proporcionaram ao seu confessor, Francisco Carrascosa, a oportunidade de sedução. Um dia, no confessionário, Antonia contou a Carrascosa que estava grávida do noivo e que provavelmente chegaria ao termo pouco depois da data marcada para o casamento. Temendo que a família do noivo a repudiasse, pediu a Carrascosa que lhe conseguisse um aborto. Ele prometeu arranjar uma poção especial para ela tomar, mas disse-lhe que não resultaria se ele não tivesse um tufo dos seus pêlos púbicos e o deixasse ter relações sexuais corn ela. Desesperada, a rapariga concordou, e tiveram relações numa divisão da casa dela que não era usada, mas recusou-se a ingerir a poção que Carrascosa preparara para ela e acabou por afogar a criança.

 

Alguns padres inescrupulosos serviam-se da avidez de uma mulher solteira em se casar a qualquer preço para terem o acesso sexual a elas facilitado, casando-as corn um parente ou amigo disposto a tal. Estes quase-casamentos terão estado longe de ideais para o casal, mas proporcionavam ao sacerdote um meio conveniente de continuar a desfrutar dos favores da jovem senhora de uma maneira que não o comprometia na qualidade de confessor. Um padre que usou deste artifício corn bastante êxito foi José de Acuna, que prestou serviço como prior do convento dominicano na ilha de San Miguel nas Canárias. Acuna, que admitiu na sua confissão ter tido inúmeros casos corn mulheres, pôde continuar a sua relação corn Josepha Volcana, casando-a corn o seu próprio primo direito, não obstante as proibições canónicas. O novo marido de Volcana fingia não ver que Acuna prosseguia a sua ligação corn ela e tiveram relações em casa dela em inúmeras ocasiões. O marido condescendente acabou por recuperar os serviços sexuais da esposa quando Acuna se fartou dela vários anos mais tarde.

 

As mulheres solteiras recorriam a uma série de artimanhas para escaparem à vigilância dos pais e parentes a fim de satisfazerem as suas necessidades sexuais. Catalina Gascón, de 31 anos, filha de um operário da seda de Cartagente em Valência, conseguiu autorização dos pais para visitar amigas em Ayora, onde a família morara. Partiu acompanhada de Estefana López, uma viúva de confiança que era amiga da família. Mas Estefana pouco conseguiu fazer no sentido de evitar que Gascón se confessasse no convento franciscano da região, onde deixou que o seu confessor tomasse liberdades sexuais no confessionário e na casa do guarda. Teve, porém, o cuidado de não engravidar e limitou-se a trocar linguagem obscena corn ele e a deixá-lo beijá-la e tocá-la e acariciar-lhe os seios.

 

Como é de prever, o resultado das restrições aplicadas às mulheres solteiras fez aumentar o seu nível de frustração sexual, especialmente se as suas perspectivas de casamento eram reduzidas. Aos 25 anos, Maria de Rosário vivia e trabalhava no convento de San José em La Orotava. Como ambos os pais tinham falecido e ela se encontrava afastada de qualquer vida social normal pelos muros do convento, as hipóteses de conhecer homens, quanto mais casar-se, eram quase nulas. Consequentemente, mostrou-se extremamente receptiva quando o confessor ordinário do convento, Fernando Cabrera, lhe disse que a achava atraente e começou a deixar-lhe bilhetes de amor na casa do guarda. Reagiu avidamente às suas aproximações e passaram várias horas de delícia no confessionário, acariciando os dedos e trocando palavras carinhosas. Pouco depois, Cabrera foi transferido, mas, antes de partir, escreveu a pedir-lhe que não contasse nada sobre o que se passara entre eles. Rosário queimou os bilhetes de amor e a carta e guardou silêncio, ocultando a verdade aos seus confessores, até um dia, decorridos cinco anos, em que o seu sentido de remorso foi superior às suas forças e contou a história ao confessor, que a obrigou a prestar depoimento perante o Santo Ofício. Foi precisamente este receio de exposição através da confissão de pecados de natureza sexual a um outro indivíduo menos tolerante que serviu de tema a uma caricatura no semanário anticlerical El Motín. Nesta caricatura, um jovem padre astuto e anafado adverte uma jovem, obviamente sua governanta e esposa de facto, no sentido de não falar de certos «pecados» se tiver de se confessar a outro padre (Kg. 7.1).

 

A frustração sexual e a falta de perspectivas matrimoniais explica de igual modo a conduta de Francisca Romero, de 24 anos. Descrita pelo comissário do Santo Ofício em Almagro como proveniente de uma família muito pobre, viu-se obrigada a trabalhar em casa sob a disciplina férrea da mãe. Segundo os vizinhos, Romero tivera já problemas corn os pais quando se começara a confessar a Narcisio António Cabanas, conhecido pregador e bibliotecário na casa franciscana da região. No decurso da terceira confissão a Cabanas, seduziu-o abertamente, queixando-se de que sentia uma dor nos seios e convidando-o a examiná-los. Cabanas acedeu prontamente e, depois de lhe apalpar os seios, convidou-a para a casa do guarda onde passaram a ter relações sexuais. No fim, foi o arrependido Cabanas que deu início ao processo inquisitorial denunciando-se ao tribunal de Toledo. Por seu lado, Romero confirmou o depoimento dele quando entrevistada a respeito do assunto por um comissário, mas fê-lo muito relutantemente e a dado ponto tentou inclusivamente repudiar as suas afirmações e negar que tivera qualquer contacto corn ele. A extrema relutância de Romero em depor contra o amante e a angústia de o ter prejudicado revela que a sua relação corn Cabanas foi um raio de luz numa existência de outro modo monótona. Para uma mulher solteira como Francisca Romero, cuj a pobreza constituía um sério obstáculo ao casamento, um padre condescendente como Narcisio António Cabanas, cujo papel como confessor permitia usar de discrição, constituiu a melhor e talvez a única verdadeira fonte de satisfação sexual, exceptuando a prostituição.

 

Por vezes, a extrema frustração sexual conjugada corn uma culpa em relação aos desejos sexuais desenvolvia uma reacção psicossomática capaz de levar o indivíduo a apresentar tanto sintomas físicos como perturbações mentais. Aos 31 anos de idade, Francisca Noseras era bem conhecida em Lãs Palmas pelos seus ataques de histeria, durante os quais mais parecia uma «mujer loca» (mulher louca) e se queixava de dores nos seios, flancos e útero.

 

Simultaneamente, como contou a Vicente Pellicer, um dos seus confessores, sentia fortes desejos sexuais, que não tinha como satisfazer por ser muito pobre, solteira e viver corn a mãe e a irmã. Sendo os médicos da região incapazes de a ajudar, virou-se para os remédios espirituais e consultou diversos padres, que concluíram que ela estava possessa e tentaram, em vão, curá-la corn exorcismes. Foi nesta altura, em que todas as soluções existentes pareciam ter falhado, que Catalina Roca, viúva de um médico, recomendou que procurasse Rafael Serre, um trinitário que confessara e exorcizara uma série de mulheres que se queixavam de problemas semelhantes.

 

Depois de aceitar ser seu confessor, Serre iniciou o seu «tratamento» garantindo a Francisca Noseras que era capaz de resolver o problema dela e fazendo depois cruzes corn as mãos sobre os seios e os flancos dela. Ao mesmo tempo, começou a submetê-la a um interrogatório cerrado sobre questões de natureza sexual, e ela foi obrigada a admitir que começava a ter fortes fantasias sexuais a respeito dele. Como, confessou ele mais tarde, usara o exorcismo para satisfazer as suas próprias necessidades sexuais, a confissão de Nosera permitira que ambos dessem largas aos seus desejos sexuais e mantivessem uma ligação durante dois anos, em que os actos sexuais decorreram nos diversos confessionários da capela. A relação corn Serre, porém, iria proporcionar somente alívio temporário a Francisca Noseras. Os seus sintomas físicos, que podiam muito bem estar associados à menstruação, continuaram, e ela passou por uma profunda sensação de culpa que a atormentou até conseguir finalmente sentir algum alívio ao fazer uma confissão geral a Vicente Pellicer. Por irónico que pareça, foi esta confissão que deu ao tribunal de Maiorca as provas necessárias para condenar o seu antigo amante por aliciamento.

Tanto as mulheres solteiras como as casadas e bem assim as viúvas foram vulneráveis a situações de carência económica extremas em alguma fase das suas vidas. Semelhante penúria, temporária ou permanente, foi sabiamente aproveitada pelos padres que, como vimos, tinham corn frequência dinheiro na mão proveniente de benefícios, heranças, gratificações por celebrarem missas, ouvirem confissões ou fazerem sermões. O dominicano Fray Juan de Monseratte teve uma longa e distinta carreira na ordem, ascendendo ao cargo de leitor de teologia e artes e por último a prior do convento dominicano na ilha de Ibiza. Como parte das suas obrigações, Monseratte era responsável por um fundo de caridade criado para providenciar dotes às filhas dos soldados da guarnição. Já a meio da casa dos 40, corn poucas perspectivas de se casar sem um dote substancial, Francisca Salazara estava disposta a oferecer sexo em troca do apoio dele na obtenção dos fundos necessários. Em 1621, quando Monseratte foi detido pelo tribunal de Maiorca por ousar afirmar publicamente que a ordem dominicana tinha poderes especiais para absolver em caso de aliciamento, Salazara estava já casada e veio depor contra o antigo amante e benfeitor corn considerável relutância.

 

Outro dominicano, Baltasar de Clivares, subprior do convento em Lãs Palmas, conseguiu aproveitar-se de uma mulher solteira que viera ao mundo após a morte súbita do pai. Catalina de Segredos era filha de um notário que ficou praticamente na miséria quando o pai morreu, de modo que, quando Oliveras lhe ofereceu dinheiro um dia durante a confissão, agradeceu-lhe profusamente e deixou que ele a fosse visitar a casa. Durante os meses seguintes, Oliveras deu presentes e dinheiro a ela e às irmãs em troca de favores sexuais.

 

Claro que, por vezes, um confessor que se aproximava de uma mulher corn uma proposta de auxílio financeiro ditava as regras do jogo. Foi sem dúvida o que sucedeu ao trinitário Pedro Jorge Fiol, que referiu ao inquisidor Juan de Godoy y San Clemente, em 1619, que uma vez aliciara uma jovem que lhe pedira dinheiro e roupas novas depois de confessar determinados pecados de natureza sexual. Fiol, que não era alheio ao aliciamento, viu a oportunidade e presenteou a rapariga corn um real de prata e prometeu-lhe uma saia nova se ela se livrasse do amante. Evidentemente que fora pedir demasiado, e Fiol confessou pesarosamente que nunca mais voltara a ver a rapariga.

 

Frequentemente, a complacência de uma mulher em ter um envolvimento de carácter sexual corn o seu confessor não era uma decisão repentina baseada numa frustração sexual extrema ou oferta de dinheiro, mas como consequência de uma relação longa e positiva corn ela ou a sua família, que originava sentimentos de confiança ou dependência. O padre António de Contreras, um dos poucos jesuítas condenados por aliciamento, pôde tirar partido da sua relação corn a família Cabreros de Almagro seduzindo a jovem Francisca de Cabreros, corn quem teve uma ligação que se prolongou por nove anos. Se, por um lado, a facilidade de Contreras em entrar na casa de Cabreros praticamente quando queria foi de importância crítica para o estabelecimento desta relação, por outro, ajudou também o facto de a família viver mesmo em frente ao Colégio Jesuíta onde ele ensinava Teologia Moral. Francisca de Cabreros parecia ter também uma nítida preferência pelos membros da Sociedade de Jesus. A dada altura da sua ligação, chegou a partilhar o leito corn outro membro do Colégio enquanto mantinha a sua relação corn Contreras.

A crescente visibilidade e a cada vez maior importância dos padres nas vidas das massas populares da Europa católica conduziu, naturalmente, à criação de toda uma série de relações amistosas entre o laicado e o clero. A maioria destas relações era inofensiva, podendo os padres travar amizade sem uma excessiva familiaridade que levasse a situações comprometedoras. Em 1774, por exemplo, o carmelita José de Cristo foi acusado por alguns inimigos da ordem de ter permanecido em casa de Ana Carrasco por um longo e suspeito período de tempo enquanto a ouvia em confissão quando estava doente. O caso contra Cristo foi rejeitado depois de um comissário entrevistar a senhora, que insistiu que se tinham limitado a conversar sobre alguns conhecidos comuns, um casamento que ela ajudara a arranjar e assuntos religiosos como o jejum e a mortificação.

 

Porém, até as relações mais inocentes entre os padres e as suas penitentes tinham potencial para se transformarem em aliciamento. Em 1607, quando Juana Ana Piza começou a confessar-se ao padre Pedro Estéban, o superior do convento mercedário em Lãs Palmas, a sua relação era estreita mas perfeitamente inocente. Durante a confissão semanal, Estéban dava-lhe os melhores conselhos espirituais possíveis, instava-a a «servir Deus corn todo o seu coração» e lia-lhe inclusivamente os sermões que ia proferir no domingo. Mas, ao fim de algum tempo, a relação começou a mudar. Durante uma confissão, Estéban comentou que, se ao menos a tivesse em seu poder, a levaria para a cama e «ofenderia a Deus corn ela». Em confissões subsequentes, os dois começaram a beijar-se e a usar linguagem sugestiva e pouco depois adquiriram o hábito de ter relações em casa dela antes de se ir confessar.

 

A crescente participação do clero na educação, quer através de aulas particulares quer em colégios clericais quer privados, aumentava-lhes as oportunidades de estabelecerem relações de amizade que mais tarde viriam a constituir pretexto para aliciamento. Uma viúva de 35 anos, Mariana Mulet, ficou extremamente grata ao seu confessor, Pedro José Pons, por começar a ensinar ao filho os rudimentos de gramática. A partir de então, a amizade entre confessor e penitente aprofundou-se. Trocaram-se presentes, e Mulet começou a ir ao convento dele não só para se confessar mas para conversar sobre uma variedade de assuntos. Foi numa destas ocasiões, em que viera falar do progresso do filho na escola que ela e Pond tiveram a primeira conversa usando abertamente linguagem sexual. Durante as confissões subsequentes, começaram a tocar-se e acariciar-se e a masturbar-se mutuamente. Antes de Pons deixar Lãs Palmas para Menorca em 1861, obrigou Mulet a guardar segredo sob juramento, dizendo que, se ela confessasse o que sucedera, estaria pura e simplesmente a admitir uma relação corn uma pessoa que fizera um voto de castidade.

 

A educação constituiu também a base para a amizade entre o franciscano Manuel de Peraleja e Juan António de Escobar, de 15 anos. Conquanto a relação começasse quando Peraleja foi nomeado professor de Gramática Latina de Escobar, em breve se tornou muito mais do que isso, pois Peraleja tornou-se também seu confessor e mentor intelectual enquanto Escobar o ajudava a celebrar a missa. O born tratamento e excelentes conselhos espirituais que Escobar recebera do seu professor e confessor permitiram de uma forma relativamente fácil que o bissexual Peraleja o seduzisse. Tiveram relações homossexuais em inúmeras ocasiões na cela de Peraleja e noutras zonas do convento.

 

A posição social de destaque do clero no período pós-tridentino, a crescente importância do confessor e o impacte da pregação sobre a vida e a cultura espanholas conjugaram-se no sentido de conferirem a alguns padres uma qualidade de estrela, que aumentou inevitavelmente a distância social entre eles e o laicado. Relatos de prédicas de finais do século xvi e xvii mencionam corn frequência as multidões que esperavam para ouvir os sermões de pregadores populares. Francisco Pacheco conta-nos que era tão grande a popularidade de Fray Luis de Ia Cruz, em finais do século xvi, que quando ele vinha pregar apareciam tantas pessoas para o ouvir que, para os sermões matutinos, «faziam bicha à porta da igreja antes de o sol raiar» e, para os vespertinos, «comiam tão cedo que começavam a ocupar os seus lugares antes das onze». O mesmo se refere sobre o famoso pregador dominicano Agustín Salucio durante os quatro ciclos pentecostais que pregou em Sevilha na década de 1580.

 

Numa sociedade e numa cultura muito dadas à pregação, um pregador popular podia facilmente abusar da sua posição a fim de obter favores sexuais de mulheres jovens e impressionáveis. Quando o carmelita Fray Bernardo dei Castillo foi enviado numa missão para o remoto distrito de Montes de Toledo, o sermão que pregou na pequena aldeia de Hinojosa causou tamanha impressão em Ana Díaz, de 16 anos, e na sua amiga de 17 anos, Josepha Ledesema, que ambas se lhe vieram confessar na manhã seguinte. Muito embora a sua tentativa de seduzir Ana Díaz fracassasse, Castillo teve muito maior êxito corn Josepha Ledesema, que lhe revelou que gostava muito dos frades da sua ordem, corn quem tivera anteriores experiências sexuais. Após um encontro sexual preliminar no confessionário da igreja paroquial, tiveram relações sexuais em casa dela nessa mesma tarde. Enquanto estavam no confessionário, foi Ledesema que iniciou o contacto sexual falando das suas anteriores experiências nesse campo e pegando-lhe na mão. Antes de deixarem a igreja, ela sugeriu inclusivamente que lhe desse a absolvição como forma de ocultar o que sucedera já durante a confissão.

 

O trinitário Rafael Serre, figura carismática de mais de uma maneira, foi também um pregador dinâmico. Chamado a fazer uma série de sermões quaresmais na aldeia maiorquina de Alaro, Serre impressionou tanto Catalina Sastre, de 22 anos, corn a sua «espiritualidade requintada» que ela se lhe foi confessar todos os dias durante as duas últimas semanas da Quaresma. Passados alguns dias, claro, Sastre começou a apresentar os mesmos sinais de histeria evidenciados pelas outras penitentes de Serre, e este não perdeu tempo a aplicar os seus remédios espirituais ordenando-lhe que desabotoasse a blusa para que ele lhe pudesse fazer o sinal da cruz sobre os seios. Como ela protestasse, logrou convencê-la facilmente de que era para seu benefício espiritual, para a livrar dos espíritos maus.

 

Como foi Freud o primeiro a reconhecer, o desequilíbrio das forças numa relação pode originar um forte afrodisíaco, o que era válido para a relação confessional ainda mais do que para a relação entre pregador e congregação. Ajoelhadas diante deles durante a confissão e revelando os seus segredos mais íntimos, era demasiado fácil as penitentes idealizarem os seus confessores e estes aproveitarem-se da necessidade de afecto e aprovação das suas penitentes. Este fenómeno, que é mencionado na literatura psiquiátrica como transferência, constitui um paradigma válido do desenvolvimento de certos tipos de relações de exploração sexual entre confessor e penitente em que a dependência emocional e o desequilíbrio de forças podem ser tão importantes quanto a experiênciapsicanalítica. Tal como na psicanálise, algumas penitentes procuravam os seus confessores enquanto pessoas necessitadas de ajuda, submetendo-se, por conseguinte, voluntariamente a uma relação desigual em que o «médico de almas» detinha superioridade de conhecimentos e de autoridade. Consequentemente, «são inevitavelmente despertados os sentimentos de transferência relacionados corn a experiência universal da infância de dependência de um progenitor».

 

De facto, alguns confessores chegavam inclusivamente ao ponto de transferirem a relação pai-filho para as suas penitentes, a fim de aumentarem o seu nível de dependência e, por conseguinte, as tornarem mais conformes às necessidades sexuais dos padres. A correspondência de Juan Rosello corn Sor Maria Rafaela Alzamora combina linguagem obscena corn referências ao seu desejo de reduzir a noviça de 35 anos a um estado infantil e de dependência. Numa carta, avisa-a para não fazer nada sem a sua permissão e refere-se a si como um «pai que te quer educar como uma rapariguinha, modesta e humilde, porque a humildade agrada a Deus e satisfaz o teu Juanito».

O trinitário Fray Rafael Serre, cujo caso fascinante foi já mencionado anteriormente, desenvolveu uma relação quase terapêutica corn as suas penitentes que, em termos objectivos, era muito semelhante à interacção psiquiatra-paciente. As penitentes que procuravam Serre ou sofriam de histeria ou exibiam sintomas de histeria a dada altura depois de terem começado a confessar-se-lhe. Como sete das nove mulheres que aliciou passavam quase todas as tardes juntas a costurar e a conversar, a semelhança dos sintomas que apresentavam poderia atribuir-se perfeitamente ao poder de sugestão, em especial por as mulheres discutirem entre si a sua relação corn Serre. Estes ataques de histeria incluíam acessos de profunda ansiedade e explosões intempestivas de excitação descontrolada, e bem assim sintomas físicos, como fortes dores no peito e falta de ar, e dores nas ilhargas, braços e ombros. Os sentimentos de transferência eram despertados, pois as penitentes dependiam de Serre para uma cura através do exorcismo e porque o idealizavam, não obstante o facto de ele usar o processo de exorcismo como modo de satisfazer as suas próprias necessidades sexuais.

 

Além disso, à semelhança dos transgressores reincidentes nos estudos recentes de psiquiatras que tinham contacto sexual corn as suas pacientes, Serre tinha relutância em reconhecer os seus erros. Quando pressionado por Francisca Noseras sobre o motivo de insistir em colocar as suas mãos nos seios dela descobertos, ele asseverou-lhe que a sua única intenção «era curá-la nos sítios onde sentia a dor». Tentou, de igual modo, sem êxito, justificar perante o Santo Ofício o seu contacto sexual como intervenção terapêutica, afirmando que mais não fizera do que tentar exorcizar as mulheres soprando-lhes nos rostos e fazendo o sinal da cruz sobre os seus corpos.

 

As dezanove penitentes que passaram por processos de transferência como parte da sua relação corn o confessor constituem um claro indício dos perigos que esses sentimentos representam para a viabilidade de uma relação profissional estreita baseada num enorme desequilíbrio de forças. Na qualidade de grupo profissional que reclamava um estatuto especial e a capacidade de mitigar tanto os males espirituais como os seus sintomas físicos, os padres tinham a obrigação extrema de proteger as suas penitentes das consequências desses sentimentos. Talvez seja um dos motivos para a imensa modéstia, que raiava o recato, denotada por alguns padres na presença de mulheres. Juan Machado de Chaves aconselhava até os confessores a colocarem as mãos diante dos olhos quando ouvissem mulheres em confissão, se não dispusessem de um confessionário normal, a fim de não «as olharem no rosto». Não obstante, indivíduos como Juan Rosello ou Rafael Serre procuraram conscientemente encorajar sentimentos de abandono e dependência que lhes permitiriam satisfazer as suas próprias necessidades sexuais. Como o demonstraram estudos psiquiátricos recentes, o sacerdócio não é o único grupo profissional em que os sentimentos de transferência foram manipulados por indivíduos inescrupulosos corn vista à satisfação dos seus desejos sexuais. Claro que, entre os psiquiatras que tinham relações sexuais corn as suas pacientes bem como os confessores que aliciavam as suas penitentes, um determinado número era motivado pelo afecto genuíno. Ao invés dos psiquiatras, que têm a opção de casar corn as pacientes que retribuem os seus afectos, as relações de amor entre confessor e penitente podiam acabar tragicamente, pois o casamento era impossível e a culpa e a ansiedade sentidas por ambas as partes levavam corn frequência ao termo da relação e à denúncia ao Santo Ofício.

 

Uma destas relações amorosas, que acabou por ter consequências trágicas para ambas as partes, foi a que nasceu em 1705 entre Margerita Baretta, uma criada de 28 anos, e o seu confessor, Cristóbal Mendez, o cura de Santiago de Tenerife. Os dois apaixonaram-se decorridos pouco mais de dois anos desde o momento em que Baretta começou a confessar-se-lhe. Por essa altura, tanto Isabel de Sacarias, sua patroa, como Teresa, a escrava negra que trabalhava na casa, principiaram a reparar que ela se vestia corn cuidado antes de se ir confessar. Após várias semanas daquele procedimento, a patroa admoestou-a pelos preparativos impróprios e ordenou-lhe que mudasse de confessor, mas Baretta recusou-se, dizendo que «estava resolvida quanto ao confessor e não havia nenhum mal em se ir confessar». Claro que, como Teresa pôde confirmar escondendo-se ao pé da porta da igreja e escutando os dois a planear um encontro mais tarde, Mendez e Baretta tinham uma ligação haja algum tempo. À medida que o seu envolvimento emocional cresceu, os dois amantes foram vistos a conversar tanto no interior como no exterior da igreja paroquial. Baretta começou igualmente a visitar Mendez em sua casa, onde tiveram relações em diversas ocasiões. Numa invulgar reviravolta, que acima de tudo demonstrava o seu afecto por Baretta, Mendez começou a sentir remorsos da ligação amorosa, dizendo-Ihe que devia deixar de o ver e «arranjar um marido digno dela», mas ela retorquiu que o amava não obstante a sua posição clerical. Por fim, Baretta ficou grávida do seu confessor e foi para a sua aldeia natal a fim de ter a criança. Depois de o bebé nascer, abandonou-o num hospício de enjeitados e voltou para casa da patroa, que denunciou Mendez ao Santo Ofício. Munido deste depoimento e do de Teresa, o comissário local chamou Baretta à sua presença e ela confessou corn relutância os factos sobre a sua relação corn Mendez. Em 1712, após uma segunda denúncia entretanto recebida, o tribunal das Canárias julgou e condenou Mendez sob a acusação de aliciamento.

Uma relação amorosa que seguiu o esquema mais típico de culpa e remorso por parte da penitente e não do seu confessor foi a que se desenvolveu entre o dominicano Fray Francisco Marrero e LuisaRamírez, que vivia na aldeia de Garachico em Tenerife. Luisa, que tinha 22 anos quando se começou a confessar ao dominicano na capela do seu convento, apaixonou-se por ele aos 28 anos, depois de ele lhe dizer que estava «louco por ela». Começou a ter relações corn ela quando a mãe desta se ausentava de casa e depois obrigava-a a confessar o que fizera, concedialhe a absolvição e advertia-a para que não procurasse outro confessor. Movida pela ansiedade em relação à validade das confissões corn ele, que se aprofundou quando ele se recusou a deixá-la comungar em duas ocasiões depois de a ter acariciado no confessionário, ela foi procurar outro confessor, transbordante de culpa pelo que fizera, decidida a evitar o pecado pondo termo à relação corn Marrero. Mas quando ela voltou a confessar-se-lhe, ele conseguiu convencê-la a continuar e, deste modo, o ciclo do pecado, arrependimento e novo pecado continuou por mais seis anos. Arelação chegou ao fim somente quando Ramírez ficou gravemente doente e encontrou finalmente a paz mandando chamar o comissário de Garachico, Gaspar de Montesdoca, para denunciar o amante logo após ter recebido os últimos ritos da Igreja.

 

As relações amorosas revelaram constituir uma importante barreira ao exercício da jurisdição da Inquisição sobre o aliciamento, uma vez que as penitentes ocultavam muitas vezes o que tinham feito a fim de protegerem os seus amantes clericais, não obstante os seus próprios sentimentos de ansiedade. Madalena de Saavedra estava no seu leito de morte quando confessou finalmente um caso que tivera corn o agostiniano Diego Núnez cerca de vinte anos antes. Phelipa de Mor ales tinha 40 anos e era casada quando procurou um comissário do Santo Ofício para confessar que tivera uma relação corn Salvador Quijada dei Castillo. De facto, Morales confessara antes o seu pecado ao pároco de uma aldeia vizinha, que lhe disse que ela tinha a obrigação de denunciar Quij ada dei Castillo à Inquisição, mas, em vez de o fazer, ela foi procurar Quijada dei Castillo e contou-lhe o que o padre dissera. Como aquele lhe pedisse que hão o denunciasse, ela manteve segredo até chegar um novo pároco a Ariço e ter oportunidade de aliviar a consciência corn ele decorridos vinte e dois anos sobre a primeira vez que Quijada dei Castillo a aliciara no confessionário do seu convento.

 

Algumas penitentes estavam inclusivamente preparadas para perjurarem perante a Inquisição, não obstante o risco de lhes ser movida uma acção judicial. A17 de Junho de 1625, dois dias depois de ter entrado para a prisão secreta da Inquisição em Lãs Palmas, Fray Pedro Estéban confessou que aliciara Juana Ana Piza. No entanto, quando ela foi chámada a comparecer perante o tribunal, a 7 de Julho, negou ter sido sequer aliciada e continuou a negar mesmo depois de os inquisidores desconfiarem de que estava a usar parte do depoimento de Estéban. O inquisidor Pedro Díaz, de Cienfuegos, ficou tão irritado corn a obstinação dela que recorreu a uma medida invulgar, reuniu a consulta de fé para que acusasse Piza de perjúrio e obstrução do Santo Ofício, mas a consulta de fé votou a suspensão destas acusações até Piza poder ser ouvida num segundo interrogatório. A 9 de Agosto, Piza foi levada novamente a tribunal e voltou a negar qualquer conhecimento de ter sido aliciada por Estéban, mas, passados dois dias, os seus sentimentos de culpa e ansiedade por estar a enganar o Santo Ofício venceram-na finalmente e confessou tudo. Mesmo assim, tentou proteger o antigo amante insinuando que ele não fizera senão usar linguagem sugestiva no confessionário, e, quando isso sucedera, ela não o procurara corn a intenção de se confessar. No princípio de Setembro, o seu depoimento foi contrariado quando Onofre Llompaid, outro clérigo da mesma casa mercedária, veio depor que um dia, há nove anos, quando estava a decorar um altar, vira Juana Ana Piza ajoelhada no confessionário diante de Estéban, corn a mão por debaixo do hábito dele.

 

A tentativa de Francisca Noseras de libertar Fray Rafael Serre após a sua primeira detenção constitui para nós o exemplo mais extraordinário de até onde as penitentes eram capazes de ir para protegerem o confessor que amavam das garras do Santo Ofício. A 24 de Fevereiro de 1688, receando sarilhos após a conclusão de uma visita ao seu convento, Serre pediu a Noseras que não se lhe confessasse e procurasse antes o seu amigo, o Dr. Nadai, cura da paróquia de Santa Eulália. Alguns dias mais tarde, soube que Serre fora colocado sob rigorosa reclusão e que provavelmente iria ser acusado de aliciá-la e a várias outras mulheres. Muito embora Noseras tivesse prometido já a Serre que negaria qualquer envolvimento seu corn ele se fosse chamada a comparecer perante a Inquisição, ficou muito assustada, não fossem os inquisidores detectar que ela estava a mentir, e resolveu aconselhar-se corn Catalina Pont, outra das penitentes de Serre. Vários dias depois, efectuou a primeira visita a casa de Catalina Pont e foi apresentada a vários outros membros do grupo. Conquanto admitissem que tinham sido aliciadas por Serre, acordaram que, se fossem chamadas a tribunal, diriam que ele não fizera mais do que tocar-lhes na roupa durante o exorcismo. Ainda insegura de si e receosa da Inquisição, Noseras deu então um passo e resolveu contactar Serre directamente para obter a sua aprovação. Muito embora Serre estivesse bem guardado, ela conseguiu fazer-lhe chegar uma mensagem através do cunhado dele e, passados alguns dias, foi recompensada quando Catalina Pont lhe entregou um bilhete de Serre próveniente do mosteiro e em que ele lhe dava a conhecer que aprovava os seus planos. Confrontado corn a recusa de as suas testemunhas principais deporem contra ele, o tribunal tinha poucas alternativas, a não ser aceitar provisoriamente a falsa «confissão espontânea» de Serre de 15 de Março de 1688, que coincidia em grande parte corn o que ele mandara as mulheres dizer, e suspender o caso até à recepção de novas provas. Serre foi libertado como consequência do que Francisca Noseras, Catalina Pont e outras mulheres do seu conventículo fizeram por ele, não obstante o medo quase paralisante da Inquisição. Não foi senão em 9 de Março de 1691, decorridos quase três anos desde a primeira questão de Serre corn a Inquisição, que o tribunal de Maiorca considerou ter provas adicionais suficientes para o indiciar novamente. Infelizmente para Serre, desta vez, a culpa e a ansiedade que Francisca Noseras e as outras mulheres sentiam por terem enganado o temido Santo Ofício cresceram ao ponto de acabarem por confessar que tinham tido relações sexuais corn ele durante e após a confissão.

 

Noutras relações ilícitas entre os padres e as suas penitentes, não se colocava a questão do afecto mútuo, mas, ao invés, existiam indícios de que o confessor a usava exclusivamente para sua própria satisfação sexual. O primeiro encontro de Juana Oliver corn o trinitário Fray António Ballester não ocorreu no confessionário mas em casa de Antonia Tomás, esposa de um negociante de azeite. Juana, de 18 anos, que provinha de uma família pobre e vivia corn a mãe e as irmãs, apaixonou-se imediatamente por Ballester, de 46 anos, que era não só o superior do seu convento mas gozava de extrema popularidade junto das mulheres que afluíam ao seu confessionário. Pouco depois, Oliver começou a confessarse a Ballester. No entanto, os dois teriam aproveitado a ocasião principalmente para marcarem encontros. Tiveram relações por diversas vezes em casa de Antonia Tomás quando ela esteve doente e em casa de Oliver quando a mãe e as irmãs se ausentaram.

 

Porém, decorrido um ano, Ballester começou a cansar-se de Oliver e resolveu deixar de a ver. Oliver ficou muito perturbada e, como não tinha outra forma de comunicar corn ela, foi vê-lo à capela. Enquanto fingia confessar-se, censurou-o amargamente por a abandonar e tentou tudo para o atrair novamente. Sucumbindo às suas blandícias, Ballester voltou para ela durante cerca de seis meses e tiveram relações em várias ocasiões numa casa abandonada próximo do convento e mesmo na sua cela. Mas Ballester, que tinha outras amantes, perdera realmente o interesse na relação e resolvera pôr-lhe termo de vez. Desesperada, Oliver convenceu Antonia Tomás a ir ao confessionário dele e suplicar-Ihe que voltasse. Ballester manteve-se irredutível, e quando Tomás lhe contou que Oliver chorava de cada vez que pensava nele, este retorquiu corn frieza que «ela devia era chorar pelos seus pecados e entregar-se a Deus».

 

O misticismo, precisamente porque dependia dos sentimentos directos e imediatos e era basicamente irracional, mantinha-se à margem da estrutura formal da Igreja, que estava vedada às mulheres. Estes mesmos elementos, porém, proporcionavam às mulheres a oportunidade de conquistarem autoridade e respeito junto dos clérigos e na sociedade dominada pelos homens em geral, precisamente porque, à semelhança do sexo supostamente irracional, se esperava delas uma aptidão especial para comunicarem corn Deus mediante o recurso a esses meios. Os séculos xvi e XVH estiveram repletos dessas «mulheres de força», desde Isabel de Ia Cruz e Francisca Hernández, no princípio do século xvi, a Sor Maria de Jesus de Agreda, na década de 1640. Estas «mães espirituais», como vieram a ser designadas, iriam reunir uma roda de clérigos e seguidores laicos e por vezes exercer uma influência desproporcionada face à sua posição na sociedade.

 

Na sua maioria, estas mulheres levaram vidas de santas e acabaram por ocupar uma posição de autoridade e respeito em virtude de os seus poderes sobrenaturais serem considerados autênticos pelo público em geral. Mas verificou-se, ao longo de toda a história do misticismo espanhol, uma quantidade considerável de tensão sexual. Por vezes, a interacção sexual entre a mãe espiritual e os seus discípulos masculinos surgiu como consequência de uma crença na bondade fundamental de qualquer impulso proveniente de Deus. O culto que se formou em redor de Gertrudis Tosca, uma jovem mulher valenciana, em meados da década de 1660, foi típico desta crença na impecabilidade. Os seus discípulos masculinos, incluindo três padres, acreditavam que ela era particularmente favorecida por Deus, e as suas devoções incluíam beijos frequentes nas mãos, na boca e no pescoço. Quando os três padres se tornaram seus amantes, justificaram a conduta corn base em que fora ordenada por Deus e constituía uma forma de avançar no sentido de uma perfeição espiritual.

 

Manifestamente, no caso de Gertrudis Tosca e outras mães espirituais, o sexo constituía não só uma forma de alcançar metas espirituais mas servia também para cimentar o apoio dos discípulos do sexo masculino. Por vezes, a confissão tornou-se o veículo dessa luta da mulher para manipular sexualmente o padre, por forma a alcançar os seus fins.

 

Em meados da década de 1680, Isabel Riera atraíra um pequeno grupo de discípulos, onde se incluíam dois prelados locais, o arcediago Gabriel Mesquida e o cónego Juan Martorell. Aconselhou também os indivíduos abastados e devotos sobre as suas vidas espirituais e problemas familiares e foi até apresentada ao vice-rei para que lhe pudesse falar de uma visão em que descortinara as soluções para muitos dos problemas que afligiam a região. Decidida a acrescentar o influente Fray Pedro Benimelis à lista das suas conquistas, escolheu-o para seu confessor. Como, provavelmente, Benimelis era o exorcista mais famoso na ilha, começou a contar-lhe que fora invadida pelo demónio e a pedir-lhe para a exorcizar. Benimelis acedeu de born grado e iniciou um regime de exorcismo que incluía fazer cruzes sobre os seios dela e obrigá-la a abrir a boca corn a sua mão depois de o Diabo a ter fechado. Um dia, enquanto se confessava, Isabel lançou os braços à volta dele e tocou-lhe no rosto, nos ombros e no hábito, dizendo que Deus o ordenara. Longe de ser repelida por este agressivo confessor, Benimelis mostrou-se encantado, em especial porque ela lhe garantira que a sua prece - para que ele se mantivesse sempre puro e casto enquanto fosse seu confessor - fora atendida. Nos meses subsequentes, Benimelis tornou-se o discípulo mais dedicado de Riera, queimando incenso diante de uma imagem que os seus seguidores tinham feito dela e registando fielmente as suas visões e profecias «porque elas contribuirão para a maior glória de Deus». Durante este período, Benimelis ofereceu alimentos e dinheiro a Riera, ensinou-lhe preces especiais e acedeu inclusivamente ao seu pedido para que lhe ensinasse latim. Começou até a acreditar na capacidade dela de exorcizar demónios, normalmente uma prerrogativa ciosamente reservada aos clérigos.

 

A relação manteve-se durante algum tempo nestes moldes, muito embora Benimelis afirmasse mais tarde ter começado a ficar desiludido corn Riera em virtude de algumas das sua profecias se terem revelado falsas. Mas o que conservou o seu envolvimento, como admitiu mais tarde no seu depoimento perante o Santo Ofício, foi a excitação sexual sempre que ela o abraçava ou ele lhe colocava a mão no braço durante a confissão. Foi a Inquisição que pôs finalmente termo ao caso quando, em 5 de Novembro de 1688, ordenou que Benimelis deixasse de ser seu confessor e entregasse todos os livros em que registara as visões dela. Pedro Benimelis terá aprendido uma lição difícil e valiosa, mas o problema do tratamento a dar às mulheres místicas e visionárias capazes de usar o confessionário de uma forma que manipulava sexualmente os clérigos continuou a preocupar as autoridades eclesiásticas muito depois de encerrado este caso.

 

Para além das duas categorias de penitentes já abordadas, havia outras cuj a reacção à aproximação do seu confessor será melhor descrita como ambivalente. Entre estas cinquenta e três pessoas, a ambivalência evidenciou-se, em certa medida, através de uma atracção pelo confessor e de uma aquiescência limitada às suas necessidades sexuais, mas acompanhada de uma relutância em permitir que se desenvolvesse uma relação sexual aberta. corn frequência, as penitentes desta categoria encontravam formas de racionalizar o seu comportamento a fim de lhe darem seguimento sem passarem por sensações acabrunhantes de culpa e pecado que as teriam movido a denunciar o confessor ao Santo Ofício. Quando Francisca de Santa Ana, de 33 anos, veio ao tribunal das Canárias denunciar Francisco de Rosário por lhe ter acariciado o rosto e tentado introduzir as mãos na sua blusa, afirmou, de uma forma bastante dissimulada, que, como conseguira evitar que ele lhe tocasse realmente nos seios, não vira necessidade de o denunciar. Esta explicação é ainda mais difícil de aceitar à luz do facto de ter admitido voltar para se lhe confessar vários meses depois, afirmando que esquecera o primeiro incidente. Claro que sucedeu exactamente o mesmo, mas Santa Ana continuou a guardar silêncio mesmo depois de uma conversa corn outras mulheres que referiram experiências semelhantes corn ele.

 

A prima de Francisca de Santa Ana, Barbara Osório, foi talvez mais dissimulada quando explicou que voltara a confessar-se a Rosário depois de ele lhe ter metido a mão dentro da blusa porque acreditara ter-se tratado de uma forma de a encorajar a confessar os seus pecados. Muito embora ele lhe segurasse a mão durante toda a confissão, ela não o denunciara ao Santo Ofício a não ser quando obrigada por outro confessor. Em ambos os casos, as semelhanças na situação da vida das duas mulheres permitirá imaginar por que motivo teriam tolerado um grau limitado de contacto sexual corn o seu confessor. Ambas as mulheres eram sós, tendo Santa Ana enviuvado recentemente e o marido de Osório, que era sapateiro, abandonara-a e nenhuma teria tido muito contacto lícito corn homens. Permitindo ao seu confessor um certo contacto sexual e racionalizando depois o seu comportamento, encontrariam um alívio temporário para a solidão e a frustração sexual, ao mesmo tempo que limitavam o seu envolvimento, a fim de evitarem um caso mais prolongado que lhes teria arruinado a reputação.

 

Nas mentes de algumas mulheres, a manifesta atracção sexual pelos seus confessores debatia-se corn o recato e o receio de pecar produzindo uma relação desconfortável de cessar e que vinha terminar na barra do Santo Ofício. Á 6 de Fevereiro de 1681, Francisca Marquéz y Campins, uma viúva de 35 anos de reputação irrepreensível, apresentou-se na sede do tribunal de Maiorca para denunciar o seu confessor, o Dr. Jorge Roselló, um dos quatro curas destacados para a catedral de Lãs Palmas. Marquéz y Campins, que estava de boas relações corn a maior parte dos detentores de benefícios da catedral, começara a confessar-se a Roselló cerca de oito meses antes, e fazia-o semanalmente, por vezes mesmo todos os dias durante aquele período. As suas duas primeiras sessões foram perfeitamente normais, mas na terceira Roselló disse-lhe que a vira conversar corn Mateo Gari, outro detentor de benefício, vários dias antes de ela se lhe começar a confessar e que comentara a sorte de Mateo estar a falar corn «uma jovem senhora tão encantadora». Este comentário nitidamente sugestivo, feito durante a confissão, chocou Marquéz y Campins, mas não evitou que dissesse a Roselló onde morava depois de ele lhe pedir a morada corn o pretexto frívolo de que necessitaria visitá-la caso ela adoecesse.

 

Na tarde seguinte, Roselló veio visitar Marquéz y Campins, sem ser anunciado, aos seus aposentos enquanto ela conversava corn Pedro Gelabert, um padre que vivia também lá em casa. Deixando Gelabert, levou Roselló a visitar os seus aposentos, mas mostrou-se muito ofendida quando ele a tentou abraçar e mais tarde no quarto a olhou de uma forma extremamentelasciva. Enfurecida corn semelhante atitude, interrompeu a visita e ordenou-lhe bruscamente que se retirasse da casa.

 

Decorridos vários dias, precisamente depois de ter iniciado a sua confissão, Roselló disse-lhe que estava tão furioso corn ela que lhe apetecia arranhar o rosto corn as unhas. Alarm ada ante a perspectiva de perder as atenções de um homem na sua opinião tão atraente, Marquéz y Campins assumiu um torn mais conciliatório e os dois conversaram sobre uma variedade de temas, incluindo algumas mulheres que usavam perfume feito de pétalas de flores. Marquéz y Campins comentou até bastante timidamente que tinha por hábito levar uma rosa acabada de colher para a igreja quando era a época delas. Encorajado pela sua atitude mais favorável, Roselló convidou-a para a sua casa parajantar e conhecer a mãe e o sobrinho, assegurando-lhe que não precisava ter medo de perder a reputação uma vez que muitas pessoas o visitavam. Marquéz y Campins aceitou o convite e, depois de jantarem, foi até ao quarto de Roselló, onde ele lhe leu em voz alta Santa Teresa de Jesus enquanto a fazia sentar-se numa cadeira tão próxima da sua que os joelhos se tocavam. Obviamente satisfeito corn a deferência dela nesta ocasião, Roselló começou a fazer-lhe uma série de perguntas deliberadamente provocatórias durante uma outra confissão, levando-a mesmo a admitir que pensava frequentemente em sexo e se masturbava pensando no marido falecido. Mais encorajado ainda por estas revelações, Roselló convidou-a novamente para ir a sua casa e depois do jantar acompanhou-o ao quarto, onde começou a beijá-la e a acariciar-lhe os seios, acabando por a empurrar bruscamente para cima da cama. Profundamente alarmada então, em especial quando notou a sua excitação sexual, Marquéz y Campins não deixou que o assunto fosse mais longe anunciando que ambos deveriam rezar, pois, se insistissem no que estavam a fazer, «iriam parar ao Inferno». A culpa e o medo tinham-se combinado para causar repulsa na mente desta senhora excepcionalmente devota, que pertencia simultaneamente às ordens terceiras dominicana e franciscana. No dia seguinte, entrou no confessionário apenas para anunciar que as suas propostas sexuais não tinham tido qualquer efeito sobre ela, mas que temia a possibilidade de na hora da morte o Diabo ressuscitar essas cenas lamentáveis para a atormentar. Roselló, que provavelmente contaria que ela retomasse a sua hostilidade inicial, pouco mais fez do que pedir-lhe que poupasse a sua honra não o denunciando à Inquisição, mas em vão o fez porque ela se foi logo aconselhar corn outro dos curas da catedral, que achou que deveria prestar depoimento.

 

O problema da ambivalência é que pode ser interpretada como provocação ou como importúnio sexual capaz de desencadear uma reacção violenta na outra pessoa. Pouco depois de Inés González, de 16 anos, passar a confessar-se ao franciscano Fray Pedro de Castro em 1600, ele começou por lhe dizer que a amava e suplicar insistentemente que fosse a casa de Meneia Rodríguez, uma amiga comum, onde poderiam ter relações sexuais. Como confessou no seu depoimento de 1604 perante o tribunal das Canárias, González era muito ambivalente em relação às iniciativas de Castro, costumando dizer-lhe que não podia nem queria ter relações corn ele, mas outras vezes dando a entender que talvez pudesse, nas circunstâncias adequadas. Pedro de Castro, que nada tinha de cavalheiro, interpretou-o como uma luz verde. Um dia, quando González estava de visita na mesma casa onde ele sugerira o encontro, sucedeu Castro passar na rua. Detectando-a através da janela, entrou na casa, mandou sair Tomasina, filha de Meneia Rodríguez, que se encontrava na sala, e arrastou González para uma cama próxima, onde a violou. Superando a sua vergonha e humilhação, González viu-se obrigada a voltar ao confessionário de Castro em diversas ocasiões, a fim de evitar que a mãe desconfiasse que sucedera algo invulgar.

 

Os motivos das vinte freiras que aceitaram as iniciativas dos seus confessores encontram-se sobretudo na mudança das circunstâncias da vida conventual durante a Contra-Reforma. Estas mudanças tiveram como efeito o isolamento dos conventos da vida secular, ao mesmo tempo que produzia uma vaga de novos membros. Enquanto a maioria das mulheres que afluía às casas femininas durante os séculos xvi e xvii tinha ou uma verdadeira vocação religiosa ou via o convento como forma de evitar um casamento indesejado, muitas outras eram mais ou menos obrigadas a entrar para a vida religiosa ou achavam que não era do seu agrado depois de tomarem os yotos.

 

Por certo, o aumento do número de conventos fundados na segunda metade do século xvi correspondeu principalmente a factores sociais pouco ou nada relacionados corn o forte zelo religioso dos seus fundadores.

Ao longo dos séculos xvi e xvii, os dotes aumentaram tão rapidamente que se tornaram uma das causas primordiais do forte endividamento das famílias nobres. Como resultado, muitas famílias preferiram enviar as suas filhas para os conventos, onde os dotes eram menores. Muitas destas raparigas tornaram-se freiras ainda adolescentes, por vezes depois de terem passado um longo período como internas no mesmo convento. As regras de alguns deles, de facto, permitiam especificamente às raparigas tomarem votos antes dos 18 anos, que era o mínimo decretado pelo Concílio de Trento. corn frequência, as violações do decreto tridentino pelas ordens femininas espanholas impecuniosas foram provocadas por razões de ordem financeira. Numa das suas cartas, Teresa de Jesus aconselhou a prioresa do convento de Sevilha a aceitar Elvira de San Angelo, de 14 anos, como noviça, não obstante a sua idade, porque o dote relativamente elevado que os pais estavam dispostos a pagar ajudaria o convento a fazer face às suas despesas.

 

Os elevados dotes a pagar eram apenas um dos problemas que as famílias da elite procuravam evitar enviando as suas filhas casadoiras para conventos. Depois de tomarem votos, os monges e freiras tornavam-se não-pessoas em relação à sociedade civil e não podiam reivindicar direitos ou bens materiais. Este estado de morte civil assegurava às famílias que os direitos das filhas não complicavam a herança e levavam a uma maior divisão dos bens da família ou endividamento.

 

O atractivo financeiro de um acordo que permitiria às famílias manter intactos os bens transmissíveis e poupar nos dotes dispendiosos implicava que, em demasiados casos, as vocações surgissem sob pressão familiar extrema conducente a um tumulto emocional e frustração sexual para a jovem mulher. No seu depoimento perante o tribunal de Toledo, Maria Magdalena de San António, filha de D. Fernando Moscoso, membro do Conselho de Castela, recordou que, pouco depois de fazer voto de castidade e entrar para a casa carmelita em Guadalajara, apaixonouse por um homem e bem tentou deixar a ordem. Extremamente infeliz, dividida entre o desejo de casamento e o seu dever em relação aos pais, cometeu o erro de entrar em confidências corn o seu confessor, Fray Francisco Corbera. Este, que a tinha já tentado abraçar e beijar no confessionário, aconselhou-a então a deixar o convento e casar, porque nesse caso «ninguém o poderia impedir de a procurar em sua casa e fazer corn ela o que queria». No fim, ela conseguiu obter o apoio emocional das outras freiras e manteve-se na ordem apesar do facto de Corbera, que obviamente conhecia muito bem o jovem pretendente, estar constantemente a levá-lo consigo de cada vez que tinha oportunidade de falar corn ela. Noutros casos, as mulheres obrigadas à vida do convento apresentavam sinais de instabilidade emocional, histeria e desajustamento, que criavam sérios problemas à comunidade. O convento carmelita reformado que Teresa de Jesus fundou em Sevilha foi quase destruído quando uma das freiras acusou as outras de imoralidade e heresia. No ano seguinte, o mesmo convento foi abalado pela partida súbita de uma noviça que declarou que a prioresa chicoteava as freiras e as deixava penduradas pelos pés. Uma freira que não se conseguisse acostumar à vida do convento poderia tornar-se um problema a longo prazo para toda a comunidade. Maria dei Sacramento, uma freira do convento bernardino de La Concepción entrara como interna laica corn 11 anos, mas foi tão difícil e desordeira durante o noviciado que, quando chegou a altura de professar, a encarregada das noviças teve de ir de cela em cela pedir às freiras que votassem a favor dela. Claro que, ao ser mantida no convento devido às fortes pressões familiares, Maria transformava a vida das outras freiras num inferno discutindo constantemente corn elas e corn as serviçais. Era particularmente dada ao ciúme em relação aos seus confessores, e uma vez chegou a atacar fisicamente uma criada que era penitente de Fray Pedro dei Cristo, que acusou mais tarde de a aliciar. A má interpretação de Maria dei Sacramento no convento e o relatório negativo respeitante ao seu carácter elaborado pelo comissário Joseph António de Medina y Beltrán foram suficientes para o Suprema ordenar a suspensão do caso contra Fray Pedro.

 

A presença de pessoas mal adaptadas em muitos conventos pode ser uma explicação para as vagas de possessão demoníaca que assolaram as casas religiosas femininas durante o século xvo. Um born exemplo do impacte que semelhante pessoa poderia causar numa comunidade é o que nos chega de Catalina Maura, que entrou para um convento em Lãs Palmas como forma de evitar um casamento indesejado, mas nunca se conseguiu adaptar à vida monástica. Logo a partir do primeiro mês no convento, discutia constantemente corn a prioresa, recusava-se a estudar, chegava atrasada ao coro e abandonava a capela antes de as freiras terem terminado as suas preces. Decorridos seis meses, Catalina mostrava já indícios de estar possuída, de modo que a prioresa teve de chamar o agostiniano Fray Pedro Benimelis para a exorcizar. Porém, quando Benimelis chegou ao convento, ficou descoroçoado ao constatar que as outras freiras haviam começado a reunir-se à volta de Catalina sempre que estava possessa e conversavam corn o espírito mau. Temendo um ataque de possessão das outras freiras e chocado corn a linguagem grosseira que Catalina usava quando falava corn incoerência, Fray Pedro começou imediatamente a aplicar o exorcismo, que parece ter tido um efeito calmante sobre a comunidade, se não mesmo sobre a própria Catalina Maura.

As famílias que colocavam as suas filhas em conventos queriam ter a certeza de que estavam efectivamente «mortas para o mundo». Temiam que, sem uma regra rígida e vinculativa que as isolasse efectivamente das preocupações mundanas, as filhas pudessem um dia reclamar a sua parte dos bens da família. Foi, pelo menos em parte, para responder às preocupações da sociedade secular que os padres da Igreja em Trento impuseram às religiosas uma clausura rigorosa. Muito embora esta não fosse imposta de uma forma generalizada e se abrissem excepções para algumas ordens religiosas após o Concílio de Trento, não se duvidará que teve o efeito de aumentar consideravelmente a frustração sexual das freiras que passavam por ela. Inevitavelmente, a clausura fazia recair os seus desejos sexuais sobre o confessor, o único homem corn quem lhes era permitido algum contacto regular. Para três jovens freiras, Eustacia dei Sacramento, de 16 anos, Inés de San Francisco, também de 16 anos, e Jerónima Evangelista, de 17, a vida no aristocrático convento de Nuestra Senora de los Angeles, em Madrid, ter-se-á afigurado particularmente deprimente. Vigorava a regra do silêncio absoluto excepto durante a confissão, e as freiras encontravam-se tão enclausuradas que nem sequer os familiares estavam autorizados a visitá-las a menos que houvesse alguma emergência familiar. Esta situação adaptou-se perfeitamente a um frade lascivo como Sebastián de Hontora, de 52 anos, um franciscano que fora nomeado vigário do convento em 1577. Hontora estava decidido a seduzir as três raparigas e começou por dizer a cada uma delas que estava apaixonado e queria ver os seios delas e «apreciálos». Enfadadas, frustradas e agitadas pelas imposições de uma regra monástica excessivamente rigorosa, as raparigas predispuseram-se a colaborar. Eustacia dei Sacramento falou a Hontora de um sonho erótico durante uma das suas confissões e permitiu que ele a beijasse e abraçasse. Uma noite, conseguiu convencer Jerónima Evangelista a masturbá-lo através da janela da comunhão, e noutra ocasião beijou e acariciou Jerónima Evangelista e Eustacia dei Sacramento no altar da comunhão. Nesta fase, as raparigas estavam preparadas para tudo, por isso Hontora convenceu-as a esgueirarem-se do convento e encontrarem-se corn ele na capela, onde poderiam ter relações sexuais em grupo. Certa noite, a irmã Inés conseguiu obter uma chave da porta lateral do convento e desceu à capela para se encontrar corn o amante. Depois de ter relações corn ele ali, chamou as outras raparigas, que entraram na capela onde Hontora beijara, abraçara e acariciara as três. Infelizmente para Hontora, a relação corn as raparigas não passara despercebida e chegara mesmo aos ouvidos da prioresa, que informou o provincial. Hontora foi imediatamente suspenso e punido pelo comissário da ordem, Fray Pedro de Alva. Entretanto, o tribunal de Toledo foi alertado para a situação pelo próprio Hontora, que efectuou uma confissão espontânea afirmando que desconhecia que aquilo que fizera se pudesse inserir no âmbito do Santo Ofício até ouvir recentemente o Édito de Fé. Depois de o inquisidor Juan Llano de Vargas ter entrevistado as freiras, o tribunal censurou o comissário Alva por interferir num caso que ele deveria ter mencionado à Inquisição e por não ordenar a detenção de Hontora. Munido do depoimento algo relutante das três freiras, o tribunal condenou Hontora por aliciamento, muito embora a sua sentença fosse quase idêntica à emitida pela ordem.

 

As mulheres do início da Espanha moderna, exceptuando aquelas cuja posição social lhes conferia privilégios normalmente associados aos homens, viram-se confrontadas corn um conjunto semelhante de duras realidades. Numa época de desequilíbrio social, declínio económico e instabilidade política, o casamento era difícil para muitas e impossível para algumas. As restrições à liberdade de escolha individual imposta pelas famílias, por razões económicas ou sociais, tiveram como efeito obrigar algumas mulheres a casar corn homens que não amavam enquanto outras se viam atiradas para uma vida religiosa para a qual não possuíam qualquer vocação autêntica. Muitas mulheres ficavam, por conseguinte, num estado de frustração sexual e insatisfação emocional que tornava os seus confessores atraentes e desejáveis. A incapacidade de a sociedade apresentar às mulheres alternativas ao casamento, ao chauvinismo masculino e à insensibilidade geral face às suas necessidades gerou uma situação em que muitas mulheres se tornaram receptivas às iniciativas de carácter sexual dos seus confessores, não obstante o ostracismo social ou mesmo o perigo físico que semelhante relação poderia acarretar.

 

COMPORTAMENTO CARNAL E DISTÚRBIOS SEXUAIS

A Contra-Reforma trouxe a toda a Europa católica uma nova atitude mais repressiva em relação à expressão sexual. No campo das artes, a cobertura dos nus no Juízo Final de Miguel Angelo demonstra a atitude mais restritiva da Igreja face à representação do corpo humano. Francisco Pacheco, o mais destacado teórico de arte espanhol, reflectiu o novo recato exagerado na sua famosa obra A tos profesores dei arte de Ia pintura (1622), onde realçou o decoro nas pinturas religiosas e criticou os artistas que pintavam temas mitológicos corn excessiva sensualidade. Na França do século xvi, a tolerância oficial das violações colectivas e das «jubilosas confrarias» de homens jovens que as perpetravam foi dando lentamente lugar à sua proibição. Os bordéis municipais, que haviam proporcionado a tão necessária saída para as frustrações sexuais dos jovens do sexo masculino numa sociedade caracterizada pelo casamento tardio, foram banidos primeiro para os arredores das cidades e depois encerrados entre 1520 e 1570.

 

Em Espanha, o medo da sífilis e as crescentes preocupações corn os pecados originados pela prostituição levaram o Governo de Filipe II a publicar novos decretos em 1570 que obrigavam as prostitutas a residir num bordel municipal onde se submeteriam a inspecções médicas periódicas . Mas as regras impostas não foram suficientes para o conventículo dos devotos leigos, clérigos e membros da ordem jesuíta que se tornaram cada vez mais influentes em Sevilha durante as primeiras décadas do século xvii. Críticos como Juan de Mariana e Pedro de Léon lamentaram o mal que a prostituição legal estava a fazer aos jovens da cidade e empreenderam uma campanha cada vez mais vociferadora contra o bordel. Cedendo a esta pressão, o Governo da cidade fechou-o em 1620, para o reabrir no ano seguinte em face das queixas dos padres dos bordéis e das instituições que recebiam uma parte dos rendimentos do mesmo. Porém, apesar das novas disposições mais restritivas que incidiam sobre o bordel, as autoridades municipais de Sevilha não conseguiram controlar a forte onda de repulsa contra a prostituição legalizada, e Filipe IV decretou, em 1623, o encerramento de todas as casas de passe em Espanha.

 

As décadas finais do século xvi viram também o começo de uma campanha concertada levada a efeito pelos tribunais inquisitoriais espanhóis no sentido de destruir a crença popular de que o coito corn o consentimento de uma mulher solteira não constituía um pecado mortal. Esta campanha contra a «fornicação simples» destinava-se manifestamente a desacreditar a aceitação do sexo pré-conjugal e da prostituição como formas toleradas de comércio sexual, tornando, por conseguinte, a cultura popular mais consentânea corn as ideias dos principais teólogos. Em Novembro de 1573, o Suprema enviou uma circular aos tribunais regionais anunciando que, a partir daquela data, a crença de que a fornicação simples não era pecaminosa seria considerada herética, muito embora fizesse a concessão de que a heresia não era intencional mas fruto da ignorância. Entre 1575 e 1590, a «fornicação simples» justificava mais de um terço da actividade do tribunal de Toledo. A Inquisição reforçou a sua campanha judicial contra os «fornicarios» corn um programa de educação. Os pregadores e confessores deveriam denunciar a crença e os funcionários afixariam éditos especiais sobre o assunto. No início do século xvn, as provas constantes dos casos sugerem que a Inquisição conseguira corn êxito convencer até os aldeãos de que o contacto corn prostitutas era um acto pecaminoso.

 

Simultaneamente, a Igreja pós-tridentina desenvolveu um tremendo esforço para definir uma nova moralidade sexual mais restritiva. Ao separar o noivado e o casamento e insistindo para que os noivos se abstivessem de relações sexuais até ser celebrado o casamento eclesiástico, a Igreja declarara praticamente guerra aos costumes tradicionais que permitiam diversas formas de sexo pré-conjugal. Sob a designação de «albergement» na Sabóia, «escraignes» na Champagne ou «truwen» na Frigia Oriental, foram estas as formas encontradas pelas comunidades rurais para canalizar os impulsos sexuais dos jovens que tinham corn frequência de esperar até meio da casa dos 20 para se casarem de facto. corn início nos princípios do século xvii, os bispos em França e os Estados católicos da Alemanha começaram a condenar estas práticas e a proibi-las sob pena de excomunhão.

 

A mudança de atitude em Espanha em relação às formas tradicionais das relações sexuais antes do casamento pode ser constatada através da comparação das ideias de dois teólogos importantes. Martin de Azpilcueta Navarro, cujo manual dos confessores, tão popular, foi publicado pela primeira vez em 1553, aprovava especificamente os jogos pré-conjugais entre as pessoas comprometidas a casar-se como forma legítima de «desfrutar dos primórdios da bênção matrimonial». Em 1612, porém, o dominicano Bartholomé de Medina, que ocupou a prestigiosa cátedra de Teologia na Universidade de Salamanca, condenou como pecado todas as formas de sexo pré-conjugal entre os noivos, incluindo carícias, abraços, beijos ou mesmo a troca de cartas. Na Catalunha, a Igreja empreendeu uma longa campanha corn vista à erradicação do casamento secular, e os bispos e sínodos reiteraram as proibições contra os casais que começavam a viver juntos antes de celebrado o casamento na igreja. Em Maio de 1620, o vigário-geral da diocese de Barcelona proibiu os padres diocesanos de realizarem cerimónias de casamento de homens que tivessem começado a viver corn as suas noivas, sob pena de pagarem uma multa de dez ducados.

 

É um pouco difícil avaliar o impacte geral desta campanha sobre o controlo moral do comportamento sexual. A ofensiva da Inquisição contra a fornicação simples tivera manifestamente êxito, mas o encerramento dos bordéis municipais levou pura e simplesmente a prostituição para as ruas e becos. Por outro lado, a pressão contínua dos bispos conseguiu eliminar certos costumes tradicionais que sancionavam as relações sexuais antes do casamento. Na Sabóia, por exemplo, o costume de albergement, proibido sob pena de excomunhão em 1609, desaparecera praticamente em 1820. Os Jesuítas mostraram-se também particularmente activos contra o casamento secular e afirmaram tê-lo eliminado no marquisado de Cenete em 1591. Os municípios de toda a Europa aprovaram igualmente leis contra o adultério. No século xvi, em Valência, a Justicia interveio para punir o adultério corn multas e períodos de exílio que podiam ir até três anos para os reincidentes.

 

Muito embora a incidência real da actividade sexual ilícita possa não ter baixado, são cada vez maiores as provas que sugerem que a crescente atitude repressiva tanto das autoridades seculares como eclesiásticas teve um profundo efeito sobre as atitudes sexuais. As discussões entre os casuístas sobre questões tão críticas como se era devido o marido exigir a dívida conjugal durante a menstruação ou o casal ter relações antes da comunhão, bem como o aumento do âmbito das perguntas sobre sexualidade no confessionário, deixaram muitas pessoas casadas corn uma ligeira sensação de desconforto e culpa a respeito das suas relações sexuais.

 

Estas reacções, por sua vez, podem ter sido responsáveis pelo crescente número de casos levados a tribunal e que pediam a dissolução do casamento por motivo de impotência. Dado predominar a atmosfera de ansiedade, culpa e medo, não surpreenderá que a impotência se tornasse um problema sério para certos indivíduos, que, de outro modo, poderiam não sofrer corn ele. Em 1738, Fray Francisco Carrasco relatou ao tribunal das Canárias que, apesar de se ter masturbado corn frequência em criança e já adulto e se dedicar a preliminares como acariciar, beijar e tocar os órgãos genitais, nunca lograra ter relações e corn frequência as mulheres escarneciam dele chamando-lhe impotente porque não conseguia ter uma erecção.

 

Para os solteiros, as oportunidades de actividade sexual socialmente tolerada ou estavam vedadas ou eram consideravelmente mais difíceis. O encerramento dos bordéis oficiais tornou a prostituição menos aceitável em termos sociais e, por conseguinte, menos acessível aos respeitáveis, devotos ou tímidos que não só tinham de se arriscar ao bordel privado e não inspeccionado ou à praticante autónoma, mas também não podiam ignorar o desconhecimento da natureza pecaminosa da sua conduta.

 

Conquanto muitos pares de noivos continuassem a coabitar em violação da proibição da Igreja, a sua actividade sexual entrara também numa zona de penumbra. No princípio do século xvii, os contratos de casamento, mesmo na Catalunha rural, reflectiam a mova moralidade. Antes do Concílio de Trento, os contraentes eram declarados «marido» e «mulher», mas os contratos posteriores chamavam ao casal «futuros marido e mulher». Por conseguinte, os noivos não podiam deixar de sentir que os longos períodos de coabitação já não eram socialmente aceites e tendiam a celebrar a missa nupcial passados meses, e não anos, da assinatura do contrato inicial, legalizando deste modo a sua união sexual.

 

Na realidade, antes mesmo do Concílio de Trento, o comportamento moral e em especial o comportamento sexual dos rapazes e homens jovens fora sujeito a um cada vez maior controlo e regulamentação. Muitas escolas secundárias instituídas ao abrigo da influência humanista em toda a Europa católica submetiam os adolescentes a uma disciplina austera. Depois de Trento, a influência cada vez maior de ordens religiosas como os Jesuítas e os Oratorianos na educação laica e a criação de colégios internos e seminários intensificou a atmosfera de repressão. A disciplina moral foi acentuada como principal objectivo da educação jesuíta num memorando ao duque Cosimo I de Florença, escrito em 1551 e realçando o seu apoio a um projectado colégio jesuíta, por Diego Lainez, amigo íntimo do fundador, Inácio de Loyola, e futuro geral da ordem. Lainez referiu que tal escola faria que os jovens da região abandonassem a sua «turbulência, blasfémias e desonestidades» e se tornassem «calmos, devotos e obedientes aos pais». Nas inúmeras escolas que os Jesuítas fundaram pela Europa católica, aplicaram uma rígida disciplina moral aos seus alunos. Os Jesuítas que dirigiam a escola em Novara, a oeste de Milão, por exemplo, isolavam os alunos da vida da cidade, proibindo-os de visitar as lojas e conviver corn «mulheres más».

A educação das raparigas durante a Contra-Reforma foi também assinalada por um grau extremo de repressão sexual. As Ursulinas, uma das principais ordens docentes da Europa católica do século xvii, elaboraram um catecismo especificamente destinado a evitar o máximo possível as referências ao sexto mandamento. Algumas das congregações femininas votadas ao ensino mostravam-se tão reticentes sobre questões de natureza sexual que se recusavam a usar a palavra casamento. Este recato exagerado levou as congregações docentes a impor uma rigorosa moralidade às suas alunas, proibindo-as de frequentar bailes, cantar cantigas, usar vestuário provocante ou dar-se corn homens novos.

 

No que se refere ao clero, a manifesta necessidade de combater a rejeição protestante do celibato clerical obrigou o Concílio de Trento a emitir uma forte condenação dos sacerdotes concubinários e a reafirmar todos os antigos cânones, penalizando-os e aos seus filhos ilegítimos. Não existia nenhuma novidade em tudo isto, mas o êxito da Igreja pós-tridentina em levar a maioria dos, se não todos os, padres a aceitarem o celibato deveu-se não a algumas novas fulminações contra os prevaricadores clericais mas antes à concessão aos bispos e seus vigários de maiores poderes sobre o clero diocesano e à alteração da natureza da educação clerical.

 

Durante os debates a respeito da obrigatoriedade de residência realizados em Trento, em Maio e Junho de 1546, muitos bispos salientaram que um dos principais motivos para a não residência era o facto de o bispo ter perdido a autoridade sobre os padres da sua diocese devido à intervenção dos serviços curiais e dos tribunais. O arcebispo de Sassari declarou que mais de metade dos clérigos da sua diocese escapavam à sua jurisdição. Como podiam ser eficazes, nestas circunstâncias, as proibições contra os padres concubinários? Os padres refractários podiam desafiar e desafiavam a autoridade episcopal e, por norma, a regra do celibato era ignorada. Na sua Constituciones Synodales, publicada em 1531, o bispo reformador de Cuenca, Diego Ramírez de Villaescusa, criticou duramente a negligência dos seus antecessores predominantemente ausentes por não punirem as violações do celibato e denunciou o facto de muitos padres na diocese ignorarem a regra do celibato de uma forma tão descarada que celebravam abertamente a missa corn a sua «família» na igreja e estavam até presentes aos casamentos dos filhos. Durante as discussões havidas em Trento, o bispo de Lanciano referiu que na sua diocese um concubinário assegurara a isenção fazendo-se nomear protonotário apostólico, evitando deste modo o castigo. A dimensão do problema foi de tal maneira evidenciada pelo representante do duque da Baviera que notou corn pesar, numa visita recente, que noventa e seis padres em cem mantinham amantes ou esposas clandestinas.

Dada a gravidade da questão do celibato, o Concílio procurou colocar especificamente os padres concubinários sob a firme jurisdição episcopal para que «os ministros da Igreja possam ser levados a essa continência e pureza de vida que lhes é própria». Bispos pós-tridentinos como Juan de Ribera, em Valência, ou Charles Borromeo, em Milão, foram escrupulosos na aplicação da disciplina rígida ao seu clero diocesano, muito embora Borromeo descobrisse que alguns dos seus padres tinham conseguido fugir para a região vizinha de Como, onde a disciplina eclesiástica era menos rigorosa.

 

A mudança dramática na maneira como o clero diocesano e o laicado ficavam expostos à pressão da hierarquia pode ser ilustrada através dos registos das visitas. Na diocese de Pamplona, a maior parte dos bispos de finais do século xv e princípios do xvi nunca se deslocava à diocese. Muitos eram estrangeiros, como Antoniotti Pallavicino (1492) ou Alejandro Cesarini (1520), enquanto outros, como o cardeal Labrit, eram figuras de grande importância política corn pouco tempo ou propensão para lidar corn as questões comezinhas da sua diocese.

 

A reforma pré-tridentina em Pamplona iniciou-se em 1540 corn a nomeação do castelhano Pedro Pacheco como bispo, e foi ele que iniciou a primeira visita episcopal, que nunca tivera lugar na diocese. Pacheco, que ascendeu ao cargo de cardeal em 1545, foi seguido por uma série de bispos residentes que eram reformadores zelosos e, em alguns casos, distintos prelados que haviam servido como delegados ao Concílio de Trento. Álvaro de Moscoso, nomeado bispo em 1550, leccionara na Sorbona, fora reitor da Universidade de Paris e acompanhara Carlos V às Dietas de Worms e Ratisbona. Em 1551, Moscoso veio ao Concílio de Trento a convite expresso do imperador, onde serviu até à Primavera de

  1. O impacte destes bispos sobre a vida espiritual e moral da diocese pode ser visto no Libro de Mandatos de visita da paróquia de San Vicente em San Sebastián, que regista trinta e duas visitas dos bispos ou seus funcionários entre 1540 e 1670. A legislação posterior a 1564, em que a visita pastoral passou a ser aplicável aos cónegos do Concílio de Trento na diocese, respeitava a decretos sobre a instrução regular do catecismo, a concessão de licenças a pregadores e confessores, as vestes e moralidades clericais, os casamentos clandestinos e a manutenção de um registo de confissão e comunhão. A inobservância destas disposições seria punida corn multas até cinquenta ducados, a suspensão dos benefícios ou a excomunhão.

 

Não menos importante para o êxito da Igrej anã imposição do celibato clerical foi a criação de seminários para a formação de padres, na sequência do decreto «Pró Seminariis», emitido pelo Concílio de Trento em 15 de Junho de 1563. Apesar da considerável oposição proveniente dos cabidos da catedral, foram fundados vinte e oito seminários em Espanha entre 1565, corn mais dezoito entre 1700 e 1797. Reunindo os candidatos ao sacerdócio em colégios internos durante os anos de formação compreendidos entre os 12 e os 20 de idade, não só a Igreja proporcionava uma preparação intelectual mais uniforme e sistemática como incutia também um rígido código moral. A disciplina era rigorosa, sendo cada falta, por mais pequena, anotada por «acusadores» de estudantes nomeados todas as semanas pelo reitor. O castigo era frequente e duro, incluindo o cepo, jejuar a pão e água durante longos períodos e encarceramento. Os seminaristas deveriam ficar completamente isolados da sociedade secular e de todas as formas de diversão. Não podiam participar em quaisquer jogos inapropriados, possuir instrumentos musicais ou convidar amigos ou familiares para o seminário. Naturalmente, todo e qualquer contacto corn mulheres, por mais inocente, estava proibido. Eram preparados para a prece mental, ir à missa, rezar o terço e a Ave-Maria todos os dias e confessarem-se e comungarem semanalmente.

 

Sem dúvida, o duro regime disciplinar imposto pelos seminários espanhóis destinava-se propositadamente a vacinar os aspirantes ao sacerdócio contra os atractivos da sociedade secular e reforçar bem a prática do celibato preparando-os para a sublimação das tentações sexuais através da imersão nas rotinas do ritual e das devoções religiosos. Ao invés de acentuar o desenvolvimento intelectual dos estudantes mais velhos, o seminário de San Julián, fundado em Cuenca em 1584, recrutava propositadamente rapazes corn idades compreendidas entre os 12 e os 18 anos, altura em que eram mais maleáveis, para melhor inculcarem neles os ideais do clero pós-tridentino. Cada passo dos rapazes durante o dia era controlado pelo director; só estavam autorizados a sair do seminário aos pares e para fins específicos e não podiam sequer tirar férias ou receber a visita de familiares.

 

O recato era igualmente a ordem do dia no cada vez maior número de colégios religiosos onde os jovens frades recebiam a sua formação. Nas instituições geridas pelos jesuítas e trinitários, os noviços estavam proibidos de tomar banho, a não ser por razões médicas, e nunca podiam banhar-se ou nadar em rios corn receio de exporem mutuamente os seus corpos nus. Um documento contendo as regras aplicáveis aos noviços trinitários nos conventos espanhóis exige que não se dispam uns diante dos outros se partilharem uma cela e que durmam sempre corn os escapulários vestidos e as mãos cruzadas sobre o peito. As ordens religiosas, em especial os Jesuítas, estavam também muito preocupadas corn a conduta sexual dos seus membros. Um sistema de visitas regulares servia para impedir os piores abusos e os visitantes podiam punir a má conduta sexual corn reclusão, transferência e privação do direito de ouvir confissões.

 

Aforte combinação de maior autoridade episcopal corn a educação nos seminários e colégios religiosos conseguiu produzir uma mudança de atitude entre os próprios clérigos em relação às violações do celibato sexual. Tal como a prostituição legal ou o sexo pré-conjugal sancionados pela sociedade, o concubinato clerical passou da categoria de um escape sexual quase legítimo e abertamente tolerado para uma actividade inaceitável e pecaminosa que se reflectia no estado clerical. Esta mudança de atitude entre o clero é bem ilustrada pelo pedido dos detentores de benefícios de Alcaraz ao seu bispo Garcia de Loaysa antes do Sínodo de 1597, no sentido de punir os padres diocesanos que sustentassem filhos ilegítimos ou mantivessem «mulheres suspeitas» em suas casas.

 

Os padres ou frades concubinários eram também menos susceptíveis de obterem preferências ou posições cobiçadas. Em 1718, o tribunal de Valência recebeu um pedido de um dominicano, Fray Pedro Soler, um popular pregador e professor de Teologia na Universidade, para o cobiçado cargo de calificador. Apesar do elevado nível de educação de Soler, o tribunal considerou-o inadequado corn base em razões de ordem moral. Vários anos antes, uma mulher corn quem Soler tinha relações sexuais fora deportada à força da cidade pelo alcaide de Crimen. Mais recentemente, Soler fora visto a entrar na casa de várias mulheres de má fama e causara tamanho escândalo público que o secretário do tribunal comentara que seria «algo sem precedentes» a nomeação de semelhante indivíduo. Receava-se igualmente que outros membros da sua comunidade o denunciassem ao provincial da ordem, que estava prestes a realizar uma visita. Como a transferência era a maneira de as ordens tratarem os frades que se dedicavam à actividade sexual ilícita, Soler seria provavelmente retirado de Valência, e o tribunal decidiu que os seus «excessos» impossibilitariam a sua defesa.

 

Simultaneamente, porém, um grande número de clérigos não conseguiu manter o celibato. corn a relativamente aberta actividade sexual do passado agora cerceada, tais clérigos foram obrigados a recorrer ao segredo do confessionário como sua única ou principal saída. O nítido aumento do número de casos de aliciamento surgidos nos tribunais da Inquisição espanhola na década de 1600, e especialmente a partir de 1650, indica o crescente desespero de um clero exposto como nunca à mercê da aplicação da regra do celibato. Os registos manifestamente incompletos dos sete tribunais abrangidos pelo presente estudo revelam apenas vinte e nove casos de 1535 a 1599, aumentando para quarenta e sete entre 1600 e 1650 e oitenta e um entre 1651 e 1699.

Para estes padres, o confessionário oferecia talvez a única verdadeira oportunidade de falar a sós corn mulheres e abordar temas sexuais a pretexto de inquirir sobre os pecados cometidos ao abrigo do sexto mandamento. Conferia de igual modo uma medida de privacidade, quer porque era fechado quer porque a confissão tinha lugar em igrejas desertas ou capelas laterais não frequentadas, onde seria difícil ou impossível a observação. Como vimos, a confissão por vezes também decorria em lugares irregulares como as casas ou celas de penitentes que estavam demasiado doentes para se deslocarem à igreja. A análise do comportamento sexual dos padres e penitentes durante a confissão ou como consequência de combinações feitas no decurso da mesma revela um amplo leque de actividade e interacção sexuais condicionadas pelo local e pelas circunstâncias específicas em que eram efectuadas. Esta análise é também reveladora de um esquema de distúrbios sexuais que demonstram a forma como os indivíduos corn perturbações emocionais reagiam a uma das experiências mais prolongadas de repressão sexual na história da Humanidade.

 

Tendo em conta os condicionalismos físicos impostos pelo próprio confessionário e o risco de o padre ser visto a tentar uma abordagem física à penitente, é de esperar que, de per si, a maior categoria do delito fosse verbal. De um modo geral, as vítimas de aliciamento sofreram 405 incidentes separados de abuso verbal, dos quais 335 envolveram alguma linguagem provocatória, 35 fantasias sexuais ou sonhos eróticos por parte do confessor e relativos à penitente e os restantes 35 provenientes da curiosidade por parte do confessor em relação a algum aspecto da vida sexual da penitente.

 

A linguagem provocatória envolvia corn frequência afirmações de amor ou afecto por parte do confessor, quer fossem retribuídas pela penitente quer não. Em 1699, quando Maria Sarmiento, de 25 anos, se foi confessar a Salvador Quijada dei Castillo pela primeira vez, ele disse-Ihe bruscamente que «a amava e tinha em alta estima». Sarmiento ficou tão chocada que nãodissenada,e Quij ada dei Castillo deve ter interpretado a sua falta de resposta como uma negativa porque quando ela voltou para se lhe confessar dois meses depois, ele nada disse de inapropriado e comportou-se devidamente.

 

Por vezes, as expressões de afecto faziam-se acompanhar de indicações mais directas do desejo do confessor de uma nítida relação sexual. Ao escutar a confissão de Sebastiana Josepha, uma órfã de 16 anos natural de Ariço, na ilha de Tenerife, Quijada dei Castillo comentou primeiro a sua beleza, depois perguntou-lhe onde morava e, quando descobriu que era serviçal, inquiriu se a patroa a deixava sair de casa para que se pudesse encontrar corn ele. Depois de o Dr. Diego Ordáz y Villalta, capellán mayor do convento bernardino de Alcalá de Henares, dizer a Sor Manuela González que a achava muito atraente e comentar «sou como os turcos; gosto de muitas mulheres», perguntou-lhe se arranjariam maneira de «copularem juntos».

 

Por vezes, os confessores faziam uma observação sugestiva corn o nítido intuito de provocar pensamentos ou actos lascivos numa penitente que nunca considerara o seu confessor como parceiro sexual. Em duas ocasiões, depois de ter acabado de ouvir a confissão de Sor Bernarda de San António, Fray Juan de Ia Olmeda falou-lhe do seu desejo de a beijar e acariciar e sugeriu que pensasse nele quando urinasse.

 

A linguagem sugestiva ou provocatória podia constituir também a parte excitante de uma relação em curso que incluía preliminares durante a confissão e outra actividade sexual fora do confessionário. Isabel de Tena tinha 15 anos quando se começou a confessar a Francisco de Ias Llagas, um franciscano, que residia no convento em Hinojosa de San Vicente, a noroeste de Toledo. Llagas começou a usar linguagem sugestiva quase desde o início do período de doze anos durante os quais ela foi sua penitente. De início, disse-lhe apenas que a amava, mas, mais tarde, corn o intensificar da sua relação, afirmou não poder viver sem ela e não a conseguir tirar do pensamento, acordado ou a dormir. Nas vinte ou trinta ocasiões em que tal ocorreu, pedia-lhe que o beijasse e introduzia a língua num orifício da divisória do confessionário para que ela a pudesse colocar na sua boca. Isabel obedecia, muito embora fingisse relutância ao inquirir timidamente: «Mas, padre Llagas, como pode fazer isto... e num local sagrado?» Após a excitação do confessionário, Llagas e Isabel de Tena passaram a ter relações sexuais e a masturbar-se mutuamente em casa de uma viúva que ganhava dinheiro disponibilizando-a para encontros.

 

E através do registo em crónicas das fantasias sexuais dos confessores solicitantes que poderemos talvez demonstrar melhor o impacte psicológico da repressão sexual no clero durante a Contra-Reforma. Estranhas fantasias sexuais assaltavam a imaginação mesmo dos mais devotos, reflectindo a extrema frustração sexual e os desejos reprimidos da época. Até o santo Diogo Pérez de Valdivia, cujoAwso de gente recqjida constituía um modelo extremo de ascetismo na tradição do contemptus mundi para as beatas, não ficou imune a semelhantes fantasias. No Aviso, Pérez de Valdivia revelou as suas próprias obsessões sádicas e fascínio pela violação referindo as visões das santas que transbordavam de imagens de «homens lascivos» que abusaram delas sexualmente e os sonhos dos homens devotos que imaginavam violações ou outras formas de aviltar mulheres santas. A fim de demonstrar a ideia clássica de que Deus dará sempre força a uma mulher virtuosa, a fim de evitar que seja violada, Pérez de Valdivia revelou inadvertidamente os seus próprios sonhos eróticos contando a história de uma bela virgem que fora capturada por corsários e levada à presença dos chefes das tribos mouras na Argélia, despida até à cintura. Antes que abusassem dela, mutilou os seus próprios seios, que eles acharam tão atraentes, e não tardou a ser libertada do cativeiro. No final desta pequena e curiosa homilia, Pérez de Valdivia observou em torn pesaroso: «Hoje estamos longe desses tempos heróicos, pois as mulheres vendem a sua virgindade facilmente e a baixo preço.»

 

A um nível mais prosaico, dissociadas dos desejos culposos da elite espiritual, as fantasias dos confessores ordinários estavam directamente ligadas às frustrações por eles sentidas enquanto indivíduos celibatários em contacto frequente corn mulheres, mas incapazes de satisfazer as suas necessidades sexuais. Por vezes, os confessores limitavam-se a sonhar corn uma vida normal de casados e a desfrutar dos benefícios de esposa e filhos. Diego de Rocha, um franciscano residente no convento de Santa Cruz em Tenerife, estabelecera relações de amizade corn a família Puizada e era visita assídua de sua casa. Começou também a ouvir as confissões da sua filha mais nova, Beatriz, por quem não tardou a apaixonar-se. Um dia, depois de terminar de se confessar, perguntou-lhe se podia ficar na igreja, pois queria falar-lhe. Ela acedeu, e quando se encontraram a sós ele disse-lhe que a amava e que, se ela retribuísse o seu afecto, fugiria da ordem e levá-la-ia para o continente ou mesmo para a América, onde se poderiam casar.

 

Gabriel Canevas, detentor de um benefício em Lãs Palmas, quis conhecer a experiência da paternidade sem perder os benefícios da sua posição. Enquanto o marido estava ausente numa viagem de negócios, Catalina Flexas y Proassi recebeu sucessivas declarações de Canevas, que lhe pediu que fosse mãe do filho dele, que, asseverou corn modéstia, haveria de ser tão belo quanto ele próprio. Garantiu-lhe que a sua reputação não seria afectada, pois todos atribuiriam o filho ao marido dela. Claro que, numa época anterior, Canevas teria podido ter um filho da sua amante ou «governanta» e não só criá-lo abertamente como transmitir-lhe também o benefício. Após o Concílio de Trento, corn o seu violento ataque ao concubinato e legislação contra os filhos ilegítimos dos padres, isso era bem menos possível, e Canevas viu-se obrigado a ter de pedir a uma mulher relutante que tivesse um filho que ele nunca poderia reconhecer ou acompanhar.

 

Noutros casos, as fantasias sexuais foram desencadeadas pelas frustrações de uma existência celibatária. Manuel Ibánez chocou Maria Antonia Minana, uma criada de 19 anos, durante uma das confissões semanais, quando lhe disse que sonhara ter tido relações corn ela na noite anterior. Aparentemente, a origem desta fantasia erótica não estava propriamente em Minana, mas na visão de outra rapariga que usava um vestido decotado.

 

A frustração sexual foi também directamente responsável pelas fantasias eróticas de Pedro Sobreras, um franciscano de 16 anos. Depois de passar meses a tentar em vão seduzir uma das suas jovens penitentes, disse-lhe que sonhara ter tido relações sexuais corn ela na noite anterior enquanto abraçava a almofada.

 

Se, por um lado, as fantasias sexuais de alguém como Pedro Sobreras se afiguram bastante insignificantes, em alguns indivíduos, essas fantasias tornaram-se tão fortes que intensificaram a excitação sexual a ponto de ser quase insuportável o celibato. No começo de uma carta enviada a pedido do tribunal de Valência em Abril de 1819, Cristóbal Valles, o superior da casa mercedária em Valência, admitiu que Fray Juan Ibánez ficava extremamente ciumento quando alguma das suas penitentes recorria a outro confessor e tinha o hábito de olhar corn desejo qualquer mulher que entrasse na capela. Tão óbvio e ofensivo se tornara este hábito que o marido de uma das suas penitentes proibiu a esposa de se lhe continuar a confessar.

 

Ibánez estava nitidamente a brincar corn a regra do celibato e aliciara já uma das suas penitentes sem êxito, quando Sor Agustina dei Corazón de Jesus o escolheu para seu confessor. Ao fim de alguns dias, desenvolveu uma violenta paixão por ela e disse-lhe que pensava nela de dia e sonhava corn ela de noite. Ouvia-a em confissão num confessionário fechado, e quando pressentia a sua entrada do outro lado, dizendo «Ave Marta», apoiava a cabeça no corrimão e sonhava que estava assente entre os seios dela. Numa ocasião, Sor Agustina foi bastante incauta e concordou em introduzir o dedo por um pequeno orifício na divisória do confessionário e Ibánez agarrou-o corn tanta força que a magoou a sério. Ele ficou então muito agitado, murmurando de forma agressiva que desejava poder entrar no lado dela do confessionário e estar a sós corn ela, e dava murros no corrimão «feito um louco». Após alguns momentos assim, acalmou-se e comentou corn azedume que «afinal sou um frade e tu uma freira, e não está correcto fazermos nada porque quebraremos um voto de castidade».

 

O desejo de testemunhar actos sexuais proibidos ou pecaminosos figurava também em muitas fantasias sexuais. Fray Juan Ibánez instava constantemente Sor Agustina a limpar-se após a menstruação introduzindo o dedo fundo na vagina, mas excitava-o também muito a ideia da homossexualidade feminina, e, a dado momento, manifestou o desejo de ver Sor Agustina e outra freira simularem o acto sexual.

Alguns confessores tiveram também fantasias envolvendo tipos de comportamentos sexuais bizarros ou invulgares. Fray Pablo Ginard exprimiu o desejo de rapar os pêlos púbicos de Juana Ana Tarrasa e de lhe lavar o clitóris. Revelou também o seu fascínio pela bestialidade perguntando-lhe se tinha quaisquer sensações eróticas ao ver cães copularem.

 

Uma variação no tema da masturbação feminina surgiu no depoimento prestado no tribunal de Valência, a respeito de Vicente Ripoll, por Sor Catalina Angelo, uma freira que vivia no convento da Santíssima Trindade. Alguns meses depois de ter começado a servir-lhe de confessor, tinham atingido tal intimidade que marcavam outros encontros apenas para se excitarem recorrendo a linguagem indecorosa. Foi numa dessas ocasiões que Ripoll lhe pediu que introduzisse os dedos na vagina e depois os fizesse passar pelos orifícios da divisória do confessionário.

 

Por último, o cunilíngua, extremamente raro entre padres e penitentes nos registos da Inquisição, e sem dúvida raro nas práticas sexuais da sociedade espanhola, surgiu no ardente imaginário sexual de Gabriel Canevas. Depois de tentar sem êxito levar Catalina Flexas y Proassi a masturbá-lo, ofereceu-se para lhe beijar o clitóris «muitas vezes» se ela lhe permitisse fazê-lo.

 

Numa sociedade que restringia severamente qualquer tipo de actividade sexual, a fantasia sexual podia servir de eficaz substituto simbólico do prazer físico, que se tornara difícil ou impossível. No caso do sacerdócio, em que o cumprimento do celibato levantava importantes barreiras ao comportamento sexual físico, a actividade sexual mental era apenas uma das várias formas de sublimar as necessidades sexuais.

 

Os teólogos conferiam até alguma legitimidade a essas fantasias eróticas nas suas discussões sobre a masturbação voluntária e involuntária. Enquanto a masturbação intencional era condenada como pecado mortal, a maioria dos casuístas estava disposta a isentar a masturbação involuntária, especificamente durante sonhos eróticos.

 

Hámuito que a grejatinha horror ànudez. No séculoxv, S. Bernardino de Siena aconselhou as esposas a morrerem em vez de permitirem que os maridos as vissem nuas, e, nos séculos posteriores, os pregadores invectivaram contra a nudez e as modas indecentes. Numa obra publicada em 1700, Jean Leduger aconselhava os jovens missionários a vestirem-se corn a maior circunspecção de manhã, como se Deus os observasse, e a «nunca aparecerem nus a ninguém, especialmente do outro sexo».

 

A curiosidade em relação ao corpo é um instinto natural e um aspecto normal da maturidade sexual, porém, também o extremo recato que caracterizou a sua formação nos seminários, escolas dirigidas por ordens religiosas e colégios monásticos deixava muitos padres corn um forte desejo de se informarem mais sobre o corpo feminino e o seu funcionamento sexual. Uma vez, enquanto ouvia a confissão de Antonia Grande y Mirona, Geronimo Vicente Maymo disse-lhe que a sua maior felicidade seria se ela se despisse e o deixasse «ver todas as partes do seu corpo».

 

Os padres eram também extremamente curiosos em relação à actividade sexual, especialmente das mulheres casadas. O frade agostiniano Joaquín Ubeda fez perguntas a Maria Teresa Cervera, uma mulher de

36 anos, casada, sobre as posições que assumia quando tinha relações sexuais corn o marido. O dominicano Fray Andrés Frau ficava realmente fascinado corn a vida sexual das suas penitentes casadas e instava-as constantemente a contarem-lhe pormenores. Ao escutar a confissão de Barbara Mornay, de 28 anos, Frau colocou as mãos nos seios dela e pediu-Ihe que lhe dissesse quantas vezes tivera relações corn o marido. Frau interrogou também Gerónima Obrador, esposa de um médico local, sobre a sua vida sexual e perguntou-lhe se copulara corn o marido na noite anterior e se gostara.

 

A atenção que as culturas tradicionais dedicavam à castidade da noiva na altura do casamento pode justificar as perguntas de Gaspar de Nájera sobre os acontecimentos da primeira noite. Quando Lúcia Rodríguez, de 15 anos, que casara recentemente corn um labrador, se lhe veio confessar, ele quis saber o tamanho do membro do marido e se ele o introduzira todo dentro dela na primeira noite juntos. Mostrou-se também interessado em saber se ela perdera muito sangue e onde caíra. A obsessão do próprio Nájera corn o desfloramento de uma virgem é nitidamente revelada por outro incidente que teve lugar corn Ana de Jesus, de 15 anos. Depois de lhe fazer algumas perguntas de rotina sobre obediência ao pai e à mãe, comunicou-lhe que se ia deslocar à aldeia dela a fim de ouvir as confissões dos filhos de um notável local. Enquanto ali estivesse, tencionava levá-la para a cama, e depois prometeu: «Derramarás três gotas de sangue e descobrirás como dói da primeira vez.»

 

Sem dúvida, os motivos subjacentes a alguns destes interrogatórios ultrapassavam a mera curiosidade. Francisco Pons, um franciscano de La Palma, questionava as suas penitentes a respeito dos pormenores das suas vidas sexuais para saber se existiam frustrações dessa natureza. Quando descobriu que Catalina Real y Massenet era viúva, encorajou-a a falar da sua relação corn o marido e perguntou-lhe se sentia saudades de o ter ao seu lado na cama à noite. Quando ela admitiu que sim, tentou provocá-la mais perguntando-lhe quantas vezes tinham relações numa noite, enquanto aproximava o seu rosto do dela. Pons agiu de modo semelhante corn Francisca Juan, de 21 anos, casada corn um curtidor. Depois de lhe comunicar que não tinha filhos, ele perguntou-lhe se o marido a abraçava na cama e se apreciava as relações sexuais corn ele, ao mesmo tempo que se oferecia para «a servir em algo de que ela pudesse necessitar».

 

Muitas culturas tradicionais em todo o mundo proibiam as relações sexuais durante o período do fluxo menstrual de uma mulher, quer pelos receios e ansiedades que rodeavam a menstruação quer porque se presumia que o coito provocaria um enorme mal-estar físico à muiHev. A Europa medieval e do princípio da Era Moderna não constituía excepção a esta regra, e a maior parte dos teólogos achava que era um pecado e um perigo empreender actividade sexual durante a menstruação, corn base na proibição do Antigo Testamento no Levítico. Mesmo as sumas que tendiam a reduzir as relações sexuais durante a menstruação a um pecado venial contavam ainda corn muita oposição, em virtude de uma concepção muito arraigada de que a progenitura poderia sair deformada. Até Martin de Azpilcueta Navarro, que tinha uma atitude relativamente liberal sobre o assunto, uma vez que acreditava que o coito durante a menstruação não constituía sequer um pecado venial se se destinasse a evitar a incontinência, não obstante, alertava para o risco de se poder «conceber um monstro».

 

A curiosidade dos confessores a respeito da menstruação provinha sem dúvida da sua natureza e origem inexplicável, ao passo que as proibições tradicionais contra as relações sexuais durante o período menstrual contidas em todos os manuais de confessores só serviam para aumentar o mistério. Quando José de San Miguel passou a ser confessor de Mariana Llorens durante o Verão de 1760, pressionou-a sucessivas vezes no sentido de lhe mostrar de onde saía o fluxo menstrual. Mas era Fray Juan Ibánez quem se mostrava realmente obcecado corn a menstruação. Durante o tempo que serviu como confessor de Sor Agustina dei Corazón de Jesus, perguntava-lhe constantemente se estava corn o período e muitas vezes ia até à sua parte do confessionário e abria a porta a fim de ver se apresentava palidez ou tinha a tez descolorida. Instavaa também repetidas vezes a limpar-se e pensava evidentemente na menstruação como uma espécie de doença, pois manifestava o desejo de ficar corn ela na cela a fim de «ver se estava completamente curada».

 

A outra fornia de comportamento de cariz sexual entre os transgressores é aquilo a que, na sociedade moderna, se chama vulgarmente «carícias». Entre os 246 casos de carícias inclui-se uma série de actividades como beijos, afagos e festas no rosto e no corpo que não chegavam ao orgasmo. Para o solicitante, as carícias revestiam duas funções distintas. Em primeiro lugar, as carícias, quer feitas corn pouca frequência quer praticamente em qualquer oportunidade, constituíam um substituto para o orgasmo ou o coito. Nestes casos, as carícias tornam-se uma forma de compromisso sexual entre as necessidades manifestas de satisfação sexual do indivíduo e o enorme peso que a disciplina social impunha à sua vida sexual.

 

A carga da disciplina social, o medo do castigo e o grau extremo de inibição sexual inculcado no seminário e no colégio religioso justificarão provavelmente o facto de alguns confessores que recorriam às carícias o fazerem corn a maior timidez e serem depois vencidos pelo receio e o remorso. O único caso de contacto físico que levou à denúncia de José Carrera perante o tribunal da Corte em 1741 envolveu Maria Vásquez, de 21 anos, uma rapariga solteira da aldeia de Leganes, onde Carrera era cura substituto. Nos dois meses anteriores ao incidente, Maria viera inúmeras vezes ao confessionário, mas nem sempre para se confessar. A cumplicidade da jovem no fingimento da confissão, a fim de falar corn ele, convenceu Carrera de que se sentia atraída por ele. A situação atingiu o auge um dia, quando ela veio à igreja e passou mais de uma hora no confessionário a falar corn Carrera de mexericos sobre mulheres da aldeia. Ao levantar-se para sair, depois de fingir receber a absolvição, pegou na mão do padre para a beijar, mas Carrera passou os dedos ao de leve pelo rosto dela e depois pediu-lhe que não dissesse nada a qualquer outro confessor sobre o sucedido.

 

Alguns confessores conseguiram recorrer a um esquema congruente de carícias e festas nas suas penitentes, tão cuidadosamente calculado a ponto de evitarem o castigo durante anos. O dominicano Francisco dei Rosário desfrutava de excelente reputação tanto na sua ordem como entre o público em geral. Em 1690, a sua comunidade no convento de San Pedro Martyr, nas Canárias, nomeou-o seu representante ao sínodo provincial realizado na ilha de Tenerife e depois elegeu-o seu prior. De acordo corn informação recebida pelo tribunal e proveniente do seu comissário, nunca houvera o menor escândalo sobre Rosário antes da sua detenção e era conhecido como «um irmão devoto de excelentes hábitos».

 

Mas a fachada de Francisco dei Rosário tão cuidadosamente construída era uma fraude. Por detrás dela, escondia-se um indivíduo profundamente perturbado e imensamente solitário, que, pelo menos durante sete anos, procurara satisfação sexual tocando e acariciando as suas penitentes de uma forma tão subtil que elas se convenciam de que ele o fazia apenas para as encorajar a apresentar uma confissão mais completa. Convocada a comparecer perante o tribunal em Julho de 1691, Gerónima Díaz, que começara a confessar-se a Rosário quando tinha apenas 19 anos, testemunhou que sempre julgara que ele o fazia para o seu próprio bem, uma vez que, sendo uma rapariga jovem e tímida, poderia ter «omitido um dos seus pecados». Rosário foi ainda mais cuidadoso corn Ana Joachim. Ao invés de lhe tocar de cada vez que se confessava, arriscou-se apenas duas vezes, uma no rosto e outra na garganta, durante todo o período de três anos em que ela se lhe foi confessar. Dadas as circunstâncias, não surpreenderá que Joachim nunca se apresentasse a denunciar Rosário e estivesse convencida de que ele apenas lhe tocara para lhe incutir confiança, pois, como ela referiu aos inquisidores, «às vezes as pessoas não fazem uma confissão completa porque o confessor é um pouco severo de mais».

 

Até Rosário se conseguiu convencer de que agia no interesse das suas penitentes. Durante as duas primeiras audiências no tribunal, não confessou nada e, em resposta à acusação formal, limitou-se a dizer que poderia ter alarmado algumas delas aproximando-se demasiado durante a confissão, mas que nunca tivera quaisquer más intenções. Por último, a 3 de Julho de 1691, decorridos onze dias sobre a sua detenção, admitiu que, «levado pela sua própria infelicidade e pelo prazer sensual que esperava obter», acariciara as suas penitentes.

 

Condicionado pela posição que ocupava na ordem e desejoso de manter a reputação na comunidade, Francisco dei Rosário adoptou a sua técnica de carícias como principal ou única forma de satisfação sexual numa altura em que se tornava insuportável uma vida de completo celibato. Rodeando-se do maior cuidado para não fazer algo abertamente, tocando e afagando em vez de acariciar e evitando acuradamente o uso de linguagem sugestiva ou obscena, conseguia sentir uma pequena quantidade de prazer sexual. Mas nem todas se deixavam iludir cornpletamente. Enquanto algumas penitentes estavam dispostas a aceitar os gestos de Rosário como parte legítima da sua função, outras, mais «escrupulosas», mais preocupadas em fazer uma confissão completa de todos os seus pecados, procuravam outros confessores a fim de aliviarem a culpa e a incerteza provocadas pelo facto de se terem confessado a Rosário. Outras ainda, livres de quaisquer suspeitas em relação à conduta de Rosário, mas faladoras, horrorizavam as suas amigas ao contarem-lhes como as tentara «encorajar» a confessar devidamente tocando-lhes de uma forma tranquilizadora. Movido por necessidades sexuais cada vez mais prementes, Rosário não conseguiu limitar as suas atenções a uma só pessoa. corn a divulgação de boca em boca das suas actividades e a tensão a acumular-se em algumas das suas antigas penitentes, que viam ser-lhes negada a absolvição por não conseguirem denunciá-lo, foi inevitável a sua detenção pelo Santo Ofício.

 

Ao invés de se tornarem um fim em si, as carícias podiam ser de igual modo uma forma de testar e alimentar os desejos sexuais de uma penitente, constituindo, por conseguinte, um passo intermédio que levaria a uma interacção sexual mais significativa. Pascual de Ia Hoz, cura de Benimodo no Reino de Valência, serviu também como confessor no convento franciscano local, onde conheceu Sor Maria de Ia Purificación, de 29 anos. Após as primeiras confissões, começaram a encontrar-se no confessionário para trocarem mexericos e La Hoz beijou-a diversas vezes através de um orifício na divisória. Uma vez transposto este limiar de intimidade, não foi muito difícil a La Hoz abraçar e acariciar Sor Maria e convencer a freira, agora profundamente excitada, a mostrar-se-lhe, o que ela fez em oito ocasiões distintas.

 

As carícias tendentes ao orgasmo foram seguidas de relações sexuais nos casos entre o dominicano Juan de Monseratte e duas das suas penitentes, Margarita Tura e Catalina Planellas. Em ambas as circunstâncias, a interacção sexual iniciou-se corn os beijos e carícias de Monseratte às mulheres, apalpando-lhes seguidamente os seios e por fim induzindo-as a masturbá-lo. Neste caso, bem assim como em muitos outros, a interacção sexual entre padre e penitente tornava-se extremamente conveniente porque a capela do convento não possuía um confessionário fechado, de modo que as mulheres apenas se ajoelhavam diante do seu confessor numa posição submissa. Depois de ambas as mulheres terem sido profundamente excitadas durante a confissão, Monseratte tinha relações corn elas em casa de uma mulher que lucrava corn o seu aluguer para servir de local de encontro para interacção sexual ilícita.

 

A rotura nas práticas, há muito aceites, de autorização do sexo pré-conjugal, de eliminação da prostituição oficial e de substituição da formação disciplinada e rigorosa por aprendizados informais e professores particulares do período medieval implicou que as oportunidades de contacto sexual lícito e tolerado pela sociedade fossem fortemente reduzidas durante o início da época moderna. Mesmo entre as casadas, a ansiedade em matéria de relações sexuais tornava cada vez mais difícil a vida conjugal. Em semelhante atmosfera, é muito provável que as práticas solitárias, em particular a masturbação, não só prosperassem mas fossem extensivas a grupos sociais que dificilmente a terão praticado em épocas mais recuadas.

 

Um indício pequeno, mas, não obstante, significativo da crescente frequência da masturbação na sociedade espanhola provém do facto de, muito embora a palavra «polución» conste mas não seja definida no famoso dicionário de Covarrubias Orozco, de 1610, já o é, no entanto, no dicionário de 1726 da Real Academia Espanola. Consideravelmente mais importante é a mudança no tratamento das práticas masturbatórias nos manuais dos confessores. Para Azpilcueta Navarro, a masturbação não constituía motivo de grande preocupação. Evidentemente, a masturbação era contrária à ordem natural, mas^ masturbação involuntária, ou mesmo o desejo de um «sonho húmido», não era particularmente grave. Por extraordinário que pareça, Azpilcueta Navarro comenta até que alguns médicos aconselhavam os doentes a masturbarem-se por razões de saúde, algo que, no seu entender, podiam fazer sem receio de pecar. Em 1612, a crescente preocupação, entre o público em geral, corn a frequência da masturbação reflectiu-se no aviso de Bartolome de Medina aos confessores sobre a necessidade de usar da maior cautela ao discutirem o assunto corn as suas penitentes. A masturbação era não só «tão vulgar que se estava a tornar um hábito» entre muitos indivíduos, mas existia de igual modo um grande equívoco a respeito do significado do pecado em questão e tanta vergonha e culpa a rodeá-lo que muitos não se encontravam na disposição de revelar o que haviam feito. Consequentemente, os confessores teriam de usar de subtilezas para apurar a verdade e receitar uma série de remédios como exercícios espirituais, jejum, aumento da devoção à Virgem Maria e confissões mais frequentes, a fim de ajudarem as suas penitentes. Mais tarde no século xvii, a crescente preocupação entre os teólogos, pregadores e missionários sobre o aumento da frequência da masturbação reflectiu-se na Christian Pedagogy jesuíta e através dos pregadores lazaristas, que a denunciaram como pecado contra a natureza ao mesmo tempo que referiam que «infelizmente, este pecado é por de mais vulgar».

 

No princípio do século xvin, as penitentes terão falado corn tanta frequência da masturbação na confissão que Jayme Corella até conseguiu apresentar um diálogo realista entre um confessor e uma penitente a este respeito. Este diálogo, retirado sem dúvida da longa experiência de Corella como confessor e missionário, respeita a um camponês que foi confessar ter começado a masturbar-se duas ou mais vezes por semana quando tinha 12 anos até se casar aos 24. Nos seus comentários, que se destinavam a aconselhar os confessores sobre os problemas intricados que teriam de encontrar, Corella revela não só que a masturbação se estava a tornar bastante generalizada entre o campesinato como servia também de substituto do tipo de sexo pré-conjugal corn mulheres solteiras ou prostitutas que era reprimido ao abrigo da rubrica «fornicação timples». Advertindo os confessores para perguntarem se essas penitentes tinham consciência da natureza pecaminosa da masturbação, Corella afirma que esta é necessária porque esses «campónios» pensam muitas vezes não existir pecado nas questões sexuais se não se deitarem corn uma mulher, de modo que «eu mesmo descobri que muitos eram alheios ao facto de a masturbação constituir um pecado».

 

Estes sacerdotes mostravam-se ainda mais vulneráveis aos discursos oficiais do que os leigos e eram objecto de uma repressão sexual consideravelmente maior no período subsequente ao Concílio de Trento. É de esperar que as práticas solitárias tenham aumentado também entre eles e que o confessionário, onde o contacto corn mulheres se aliava a um certo grau de privacidade, proporcionasse o local ideal para a masturbação. Esta hipótese é parcialmente confirmada pelo contraste entre a relativa falta de preocupação entre Azpilcueta Navarro, em relação ao potencial para a ejaculação involuntária durante a confissão, e Bartholomé de Medina, que retracta o confessionário como um local onde o padre podia ter uma erecção e ejaculação enquanto ouvia as confissões das penitentes. Nestas circunstâncias, a ejaculação foi considerada involuntária e, por conseguinte, não pecaminosa, mas apenas um dos riscos morais inerentes ao cargo de confessor.

 

Claro que Bartholomé de Medina e todos os outros casuístas condenaram a masturbação voluntária como pecado mortal sempre que tivesse lugar. A masturbação voluntária no confessionário era vista como particularmente grave, uma vez que combinava elementos de blasfémia e profanação. A reprovação oficial dos padres que violavam esta proibição foi expressa pelo advogado de acusação do tribunal de Maiorca, Luís António Gómez Cabrero Colodrero, na indiciação do Dr. Jorge Roselló em 1682. Cabrero Colodrero condenou Roselló por ter cometido o «delito mais odioso e detestável que é possível imaginar contra a realização de semelhante cerimónia sagrada e num local santo», induzindo Antonia March y Cifre a masturbá-lo numa capela na catedral de Lãs Palmas.

 

Todavia, apesar da forte marginalização social e do risco de castigo por aliciamento, os confessores procederam a masturbação voluntária corn sessenta e três penitentes. Destes casos, a esmagadora maioria (74,6%) envolvia apenas o próprio sacerdote, que ou induzia ou obrigava a sua penitente a manipulá-lo ou, mais vulgarmente, ele próprio o fazia enquanto a ouvia em confissão. Uma mulher que o inquisidor de Córdova, Miguel Ximémez Palomino, encontrou durante uma visita ao seu distrito em 1607, teve um tremendo azar corn os frades da casa mercedária em Baeza. Pouco depois de iniciar a sua confissão corn Fray Ginés de Carranza, viu-o inclinar-se no seu lado do confessionário e começar «a fazer movimentos vergonhosos como se fosse uma mulher em pleno acto sexual». Depois de ejacular, retomou a compostura e, sem dizer nada, ajudou-a a concluir a confissão. Horrorizada corn o que sucedera a Carranza, decidiu nunca mais se lhe confessar e resolveu dar preferência a Antolín Cavallero, outro frade do mesmo convento. Infelizmente, o resultado foi idêntico, e viu-o masturbar-se através da divisória do confessionário «corn grande nojo e lascívia». Depois de experimentar outro frade e descobrir que ele não parava de esfregar o seu membro durante a confissão, resolveu abandonar qualquer tentativa de encontrar um confessor entre os mercedários e retirou-se irada, declarando que «este convento mais parece uma casa de passe do que uma casa de culto».

 

A automanipulação não era o único método ou o preferido para conseguir a ejaculação, pois podia alcançar-se uma maior satisfação sexual corn a colaboração de uma parceira do sexo oposto. Juan Llobera, outro mercedário de Maiorca, teve considerável êxito ao induzir as penitentes a masturbá-lo falando-lhes de forma afectuosa e prometendo-lhes, nem sempre corn honestidade, que tentaria ter relações corn elas fora do confessionário. Em Abril de 1689, veio à barra do tribunal confessar que dezanove anos antes induzira uma jovem serviçal a masturbá-lo no confessionário, mas não conseguiu cumprir a promessa de encontrar um quarto onde pudessem ter relações. Outra mulher que o procurou inicialmente para que a ajudasse a recuperar um objecto que empenhara foi induzida a masturbá-lo como pagamento do auxílio. Depois da confissão de Llobera, Juana Mulet, casada, de 37 anos, veio depor que se lhe confessara durante mais de um ano em média duas a três vezes por mês e que em cada ocasião lhe manipulara os órgãos genitais. Neste caso, Llobera prometera também arranjar uma oportunidade para ter relações corn ela, mas apenas fora a sua casa uma vez e abandonara quaisquer outras tentativas quando descobriu que não conseguia estar a sós corn ela. Juan Llobera constitui um born exemplo de um padre que usava a masturbação como forma de compromisso sexual. Na qualidade de superior do seu convento e delegado pelo estado eclesiástico nas Cortes da Catalunha, não se podia permitir o escândalo de uma relação sexual ilícita. Ao invés, usou do seu charme ou dos seus recursos financeiros para conseguir a emoção sexual extra de ser acariciado até ao clímax por uma pessoa do sexo oposto até a culpa ou o medo de denúncia o levarem ao Santo Ofício.

 

Houve dezasseis casos de masturbação mútua, e isso constitui um indício de que as mulheres procuravam também libertar-se das tensões sexuais acumuladas em virtude de uma sociedade sexualmente repressiva. Uma das descrições mais completas de masturbação mútua nos registos de casos é a que consta do depoimento de Eugenia Ordónez respeitante ao seu romance corn Alonso Guerrero, um frade trinitário. Depondo perante o tribunal de Toledo a 19 de Junho de 1639, Ordónez descreveu a maneira como em inúmeras ocasiões se ajoelhara diante de Guerrero, que estava sentado num banco numa capela lateral onde os frades ouviam normalmente as confissões. Depois de trocar linguagem lasciva e obscena corn ele, introduzia a sua mão no hábito dele e manipulava os seus órgãos genitais até ele atingir o orgasmo. Então, levantava-lhe as saias e inseria os dedos dentro dela, esfregando-a até ela sentir o orgasmo também. Imediatamente depois, beijava-a corn paixão.

Para Eugenia Ordónez e Alonso Guerrero, a masturbação mútua não se limitava a um compromisso sexual, fazia antes parte de uma interacção sexual complexa onde se incluía o uso de linguagem provocatória, e passavam às relações sexuais tanto na casa dela como por debaixo do coro da igreja.

 

Porém, o compromisso sexual foi o papel desempenhado pela masturbação mútua na relação entre o frade trinitário Patrício Cerero e Maria Barrientos, uma freira do convento da Encarnación em Toledo. Maria Barriento começou a confessar-se a Cerero a dada altura da sua adolescência, quando pertencia ainda à vida secular. No início da sua relação, Cerero manifestou um profundo afecto por ela, que evidentemente foi retribuído, mas recusou as iniciativas sexuais dele, limitando-se a beijá-lo uma vez quando a convidou para jantar em casa da mãe. Falando-lhe do desejo de entrar para a vida religiosa, comunicou-lhe que o queria para seu confessor e que, se se entregassem a qualquer tipo de actividade sexual antes de ela entrar para a ordem, perderia o respeito por ele e, consequentemente, não o poderia voltar a ver. Confrontado corn o dilema de se abster de relações sexuais ou nunca mais ver Maria Barrientos, Cerero concordou corn estes termos e começou a servir-lhe de confessor no convento quando ela para lá entrou aos 21 anos. A recusa de Maria Barrientos em ter relações sexuais corn Cerero implicava que ambos haviam negado o alívio da tensão sexual, e, durante as suas confissões no convento, ele tornou-se cada vez mais agitado, dizendo-lhe constantemente que a amava e usando linguagem sugestiva para indicar o seu desejo por ela. À medida que a sua frustração sexual aumentava, começou a mostrar-lhe os órgãos genitais através da divisória do confessionário. Masturbou-se também em pelo menos seis ocasiões, quer no confessionário quer na casa do guarda onde por vezes iam conversar. Altamente excitada, Barrientos retribuiu masturbando-se do seu lado do confessionário, informando Cerero exactamente do que fazia e qual a sensação, recusando-se, porém, a mostrar-lhe os seus órgãos genitais. Finalmente, oito anos após a transferência de Cerero para outro convento, Barrientos denunciou o antigo amante. Na sua carta ao tribunal, Barrientos afirmou desconhecer que tivessem feito algo errado, confirmando a ideia expressa por Jayme Corella e outros observadores contemporâneos de que predominava uma tendência entre os leigos no sentido de aceitarem a masturbação como substituto legítimo do coito.

 

Por último, apesar do risco de descoberta e marginalização e da pressão social cada vez maior contra os padres que quebravam os votos de celibato, as relações íntimas entre confessor e penitente no confessionário levavam por vezes a relações sexuais. Assim sucedeu em setenta e oito casos, uma incidência quase idêntica à da masturbação, mas consideravelmente menor do que as ofensas verbais ou os preliminares sexuais. O número relativamente pequeno de incidentes de coito constitui um indício da dificuldade de arranjar um lugar seguro e privado para o efeito bem como das enormes inibições que alguns sacerdotes tinham de vencer antes de se dedicarem a uma actividade que constituía uma violação derradeira dos anos de preparação nos seminários e colégios.

 

A extrema ansiedade incidente sobre as relações sexuais, mas que não parecia estar presente noutras formas de actividade sexual, pode ser ilustrada através do caso do frade carmelita Agustín de Cervera. Enquanto se limitasse ao uso de linguagem sugestiva e tocasse ou acariciasse as suas penitentes, não sentiria remorsos, mas, nos dois casos em que as relações chegaram ao ponto de existir contacto sexual, tornou-se extremamente ansioso e foi-lhe insuportável a sensação de ter pecado. No seu depoimento perante o tribunal, recordou que, antes de ter relações sexuais corn Ana de Tovar, «tremia» de medo por saber que estava a ofender a Deus. Rezou depois para que Deus enviasse um raio que o destruísse antes de voltar a pecar daquelaforma. Caso interessante, Cervera foi afectado pela importância na segunda ocasião. Depois de Ana de Carvajal, outra das suas penitentes, o levar a casa dela para que pudessem ter relações sexuais, não conseguiu atingir a erecção, apesar de a desejar corn todas as suas forças, porque tinha plena consciência do «grave pecado» que estariam a cometer.

 

Quando tinha lugar, o coito entre confessor e penitente era quase sempre o resultado de um esquema previamente estabelecido de interacção sexual durante a confissão, incluindo carícias, beijos ou mesmo masturbação, que se mantinham durante um período de tempo relativamente longo até ao compromisso sexual que sustentava aquele nível de actividade que depois deixa de ser suficientemente satisfatório para ambas as partes. A relação de Jayme Massenet corn Antonia Sastre começou no confessionário em finais de 1713. Durante uma das confissões iniciais, ele começou a beijá-la e a usar linguagem sugestiva. Depois, pelo período de quase um ano, acariciaram-se e dedicaram-se a masturbação mútua numa capela pouco frequentada, numa base quase diária. Realizaram uma série de actos sexuais na capela, mas, segundo Sastre, Massenet recusou-se a ter relações ali, preferindo ejacular entre as pernas dela, sem dúvida numa tentativa de evitar acrescentar às suas outras transgressões o pecado do coito num local sagrado. Consumavam a sua relação em casa de Margatita Canelles, normalmente duas horas após terem terminado a confissão. Neste caso, as relações sexuais parecem ter criado uma obrigação financeira, pois Massenet confessou ter dado a Sastre pequenas quantias de chocolates e dinheiro após cada ocorrência.

 

As relações sexuais entre Fray Raphael Serre e Francisca Noseras também só se iniciaram após um período prolongado durante o qual se dedicaram apenas aos preliminares. Neste caso, porém, foi a dificuldade em encontrarem um local seguro, e não quaisquer inibições de carácter sexual, que obstou a que o par tivesse relações. Como Noseras vivia corn a mãe e a irmã e nunca tinha nenhuma privacidade, revelou-se impossível ela ceder às repetidas insistências de Serre no sentido de uma maior intimidade sexual, mas manifestou-lhe a sua vontade de ir onde pudessem encontrar-se a sós. Conseguiu finalmente um pequeno quarto próximo de um dos conventos locais, e, no seu depoimento perante o tribunal de Maiorca, ela descreveu o seu encontro ali corn ele certa tarde. Depois de satisfeita a curiosidade anatómica mútua, despindo-se completamente e olhando-se e acariciando os órgãos genitais um do outro, tiveram lugar as relações sexuais, quatro vezes seguidas.

 

A violação da imposição oficial de procriar contida na ética tradicional cristã e a associação do comportamento homossexual à heresi a significava que a sodomia passara a ser considerada a mais grave de todas as ofensas sexuais cometidas por canonistas medievais, como Raymond de Penafort. A partir de 1348, em virtude da preocupação corn o declínio drástico da população causado pela Peste Negra, a sodomia veio a constituir uma grave ameaça à sobrevivência da própria sociedade e criou-se toda uma série de novas leis que instituíam castigos inauditos e mais terríveis. A morte pelo fogo ou a decapitação constavam vulgarmente dos decretos municipais, e a cidade de Bergamo exigiu não só que o público mas também a família do réu assistissem, enquanto o seu corpo era consumido pelas chamas. Nas partidas (códigos legais) medievais espanholas, a sodomia era punida corn a morte, enquanto nos seus éditos de 22 e 27 de Agosto de 1497, Fernando e Isabel declaravam que os culpados seriam queimados vivos no local onde fora cometido o crime. O código penal de Valência continha penalidades muito graves para a sodomia, que iam desde a flagelação e as galés, para os menores, à morte pelo fogo para aqueles corn idade superior a 20 anos.

 

Estes castigos draconianos e o horror popular pela homossexualidade terão sido responsáveis pelo facto de apenas dois dos dez padres homossexuais ou bissexuais acusados de aliciamento terem confessado a penetração anal. Os restantes transgressores limitaram-se a afirmar terem empreendido masturbação mútua. Semelhante comportamento parecia ser o mínimo esperado de um encontro homossexual, pelo que, quando José Vernad, de 16 anos, se recusou a masturbar José Gracian, o frade franciscano atirou-se para cima do rapaz e esfregou nele os órgãos genitais até conseguir ejacular.

 

O facto de os bissexuais ultrapassarem os homossexuais à razão de seis para catorze entre os solicitantes parece confirmar determinados estudos modernos que indicaram que um número significativo de homens teria tido pelo menos uma experiência homossexual na vida. Dado que nenhum dos padres confessou apenas um incidente homossexual, mas todos eles aliciaram várias mulheres, podemos concluir corn segurança que a bissexualidade constituía uma estratégia adoptada por eles quando privados por longos períodos de qualquer contacto sexual corn mulheres. Nos dezoito anos que vão de 1608 a 1626, Pedro Estéban tentou aliciar sexualmente quatro mulheres, uma das quais abandonou o confessionário, chocada, quando ele se começou a masturbar, enquanto duas outras deixaram que as acariciasse numa ocasião. Estéban apenas conseguiu ter relações sexuais corn uma das suas penitentes, corn quem manteve uma ligação entre 1608 e 1609. A fim de compensar os seus insucessos sexuais e a tremenda privação heterossexual que a vida de um franciscano acarretava, Estéban conseguiu recorrer a uma subcultura homossexual bem estabelecid ano seu convento. Na qualidade de superior, Estéban tinha acesso fácil ao grupo de homossexuais e concentrava as suas atenções sobre aqueles que desejava.

 

Numa ocasião, ordenou a Fray Onofre Llompaid, mais tarde expulso da ordem pela sua excessiva homossexualidade, que viesse à sua cela a pretexto de o ajudar a limpar as suas partes íntimas onde afirmou ter uma infecção. O auxílio de Fray Llompaid revelou-se mais sexual do que higiénico, uma vez que Estéban o abraçou e beijou e depois teve relações anais corn ele três ou quatro vezes. No caso de Pedro Estéban, uma tendência bissexual pode perfeitamente ter facilitado um certo grau de confusão em relação à própria função sexual, pois confessou também uma relação incestuosa corn a irmã antes de entrar para a ordem.

 

A rejeição da homossexualidade por parte da sociedade obstou a que os transgressores bissexuais confessassem uma relação homossexual, muito embora estivessem talvez na disposição de confessar o aliciamento de mulheres. Nas audiências perante o tribunal de Maiorca realizadas em 15 de Maio e 2 de Junho de 1614, José Nuela admitiu ter aliciado três das suas penitentes, mas recusou corn indignação a acusação de que seduzira Guilén Mas na sua cela três anos antes. A veemência corn que Nuela negou a acusação de sodomia pode perfeitamente ter provindo de uma incómoda consciencialização de que a sua verdadeira tendência sexual era mais homossexual do que heretossexual. O único caso de relações sexuais constante do registo ocorreu durante o incidente.

Mas, enquanto na sua relação corn as penitentes se limitava a acariciar-Ihes timidamente os rostos enquanto lhes desejava boa sorte antes mesmo de abandonarem o confessionário.

 

Curiosamente, nenhum dos tribunais inquisitoriais intervenientes nestes casos desenvolveu qualquer esforço no sentido de aplicar castigos pesados àqueles que eram acusados de sodomia. Os casos ou foram suspensos por falta de provas ou os acusados punidos apenas por aliciamento. Este esquema de benevolência era perfeitamente compatível corn as políticas moderadas do Conselho Supremo em relação aos sodomitas e ergue-se em nítido contraste corn as atitudes histéricas dos tribunais seculares em Espanha e outras partes da Europa relativamente a transgressões afins.

 

Desde muito cedo, a doutrina cristã no que se refere a questões sexuais condenou qualquer forma de experiência sexual corn base em que era antinatural qualquer desvio ao modo normal de ter relações sexuais. Na prática, correspondia ao que actualmente se identifica como a «posição missionária». As variantes a essa posição, em especial as relações anais, que tendiam a ser consideradas como uma forma de sodomia, constituíam ofensas graves e eram severamente condenadas.

 

Todavia, apesar destas proibições de longa data, alguns confessores e penitentes nitidamente heterossexuais tiveram a coragem de entrar em diversas formas de sexo «antinatural». Em 1696, o frade carmelita Alejandro Lloret compareceu perante o tribunal de Valência para confessar que tivera relações anais corn Maria Garcia, mulher de um sapateiro de Játiva, em várias ocasiões. Aparentemente, a senhora apreciava tanto aquela forma de fazer amor que, quando Lloret deixou de a ver, ela ameaçou «fazê-lo pagar» pela sua negligência. Terá sido provavelmente o medo de denúncia, e não quaisquer pontadas da consciência, que levou Lloret à barra do Santo Ofício. Em virtude do facto de, como tribunal aragonês, Valência ter jurisdição sobre a sodomia, o advogado de acusação deste caso insistiu que Lloret fosse colocado na prisão secreta e levado a tribunal depois de uma consulta ao Suprema. Este, porém, em pouco apoiou o excessivamente zeloso advogado de acusação de Valência, limitando-se a ordenar ao tribunal que admoestasse formalmente Lloret na acusação de sodomia e suspendesse o caso.

 

O sexo oral, condenado por Theodore de Canterbury e outros casuístas como sendo pior do que as relações anais, era ainda relativamente raro entre os casais na América do pós-guerra. Os estudos Kinsey de finais da década de 1940 indicam que apenas 50% das mulheres tinham experiência de felação e cunilíngua e menos de 45% dos homens referiram contacto bucal corn os órgãos genitais femininos. Considerando a força das proibições tradicionais contra o sexo oral mesmo na América de finais do século xx, não surpreenderá constatar-se que houve apenas três casos de sexo oral entre os confessores solicitantes. O único caso de cunilíngua envolveu um frade corn antecedentes de alcoolismo e que alegou ter bebido quando o incidente ocorreu. Evidentemente, a fim de levar a efeito um acto que estava sujeito a uma forte proscrição social, Fray António Planes tinha pelo menos de estar parcialmente inebriado para que diminuíssem as suas inibições.

 

Os dois incidentes de felação envolveram frades que eram transgressores múltiplos e tinham já demonstrado uma certa tendência para experiências em modos ousados de expressão sexual. O entusiasmo religioso, evidenciado pelos votos de pobreza, castidade e obediência, propiciou o contexto em que Magdalena Aldover, de 22 anos, consentiu na felação corn o seu confessor de longa data, Pablo Ginard. A relação entre Ginard e Aldover compôs-se da mais fervorosa devoção religiosa e práticas sadomasoquistas justificadas corn mortificação da carne. Foi precisamente neste contexto de obediência de inspiração religiosa e degradação pessoal que Ginard pediu a Aldover que realizasse a felação como «um acto de humilhação». Nesta ocasião, até a forma que aquela felação revestiu foi congruente corn o entusiasmo religioso, uma vez que Ginard a mandou fazer uma cruz sobre os seus órgãos genitais antes de os introduzir na sua boca.

 

As irmãs Aldover, Magdalena, Francisca e Margarita, devem ter sido invulgares para a sua época, lugar e posição social, já que todas elas estavam preparadas para se dedicarem a experiências sexuais. Francisca e Ginard procederam a masturbação mútua em inúmeras ocasiões e ela permitiu que ele lhe acariciasse os seios na casa do guarda do convento. Encorajado, Ginard tentou, sem êxito, levá-la a executar a felação. A irmã mais nova, Margarita, aceitou um vibrador de Ginard e guardou-o em sua casa durante duas semanas, pois, como referiu aos inquisidores, não viu nada de pecaminoso no uso de semelhante dispositivo.

 

Tendo em conta que as proibições religiosas tradicionais contra o uso de objectos de culto para propósitos ímpios foram fortemente reforçadas durante a Contra-Reforma pela nova ênfase no respeito do sagrado, alguns indivíduos sentiram uma enorme tentação de romperem o tabu usando-os para fins sexuais. Na qualidade de confessor do convento carmelita de Guadalajara, Francisco Corbera foi chamado a exorcizar Mana Leocadia de Ia Santíssima Trinidad depois de ter ficado histérica e os médicos que a examinaram concluírem que estava possessa. Parte do «tratamento» de Corbera era a aplicação de uma hóstia consagrada nas zonas afectadas. Mas, como confessou Maria Leocadia numa carta ao tribunal de Toledo, usara também a hóstia nos órgãos genitais dela, esfregando-os corn a mesma e introduzindo-a dentro dela por diversas vezes. O uso da hóstia como objecto fálico constituía para alguns não só um estimulante sexual, mas também um excitante emocional, no entanto, podia ser facilmente racionalizado por ambas as partes como elemento de cura para a possessão demoníaca, pois acreditava-se, de um modo geral, que continha importantes poderes taumatúrgicos.

 

A ressacralização da igrej a como lugar vital à observância sacramental, em especial nas áreas do casamento, da confissão e da comunhão, e a natureza cada vez mais obrigatória da frequência da missa constituíam igualmente um poderoso incentivo à violação do tabu da fornicação num espaço sagrado. A necessidade humana de quebrar as proscrições sociais pode muito bem ter sido a grande responsável pelo número de mulheres que cediam às exigências sexuais dos seus confessores dentro das igrejas ou capelas. Como contou Jayme Barcelo aos inquisidores do tribunal de Maiorca, não era invulgar surgirem-lhe penitentes que não só admitiam ter tido pensamentos lascivos mas que diziam que estes pensamentos se tornavam mais fortes ao entrarem numa igreja.

 

Consequentemente, exceptuando a interacção sexual que tinha lugar no confessionário, registaram-se doze incidentes que envolveram mais actividade sexual em algum local no seio da igreja. Cristóbal Jacinto Mendez, pároco da aldeia de San Sebastián na ilha de La Comera, nas Canárias, ouvia regularmente em confissão Juana de Armas Cabeza, sentado nos degraus do baptistério. Durante a confissão, falava-lhe dos sentimentos amorosos que nutria por ela enquanto esta colocava as mãos nos órgãos genitais dele. Numa ocasião, a meio da confissão, ele pegou-lhe na mão e levou-a a um local no coro onde tiveram relações sexuais.

 

O espaço sagrado no exterior das igrejas era procurado como local para interacção sexual. Numa confissão efectuada pouco antes de morrer, Maria López Medina chocou o frade carmelita Juan de San Ildefonso contando-lhe uma relação de dois anos corn o seu superior, Fray Juan dela Visitación. Durante a confissão, ele indicava o lugar onde se iriam encontrar mais tarde par a ter em relações sexuais. Estes lugares situavam-se sempre nas instalações dos conventos locais ou em santuários fora das muralhas da cidade. Uma vez, quando estavam a fazer amor muito de manhãzinha dentro do santuário de Cristo, foram vistos por uns horticultores, que lhes atiraram pedras, e tiveram de procurar outro local para o encontro.

 

Uma variação sobre o tema da violação do sagrado, que envolveu tanto o espaço sagrado como objectos também sagrados, é o que nos apresenta o caso do Dr. Juan Ibánez, pároco da aldeia de Auna no reino de Valência. Ibánez levou Maria Angela Polop, de 33 anos, à sacristia e teve relações corn ela na almofada ornamentada colocada sob a efígie de Cristo durante a Semana Santa.

 

Claro que as relações sexuais entre padres e penitentes se cingiam às igrejas e outros espaços sagrados. Os registos indicam doze casos de relações sexuais que tiveram lugar nas casas das próprias mulheres, por vezes corn a aquiescência dos maridos. O franciscano António Refold confessou livre e espontaneamente vários incidentes envolvendo uma mulher casada cujo marido assistia quando ele tinha relações sexuais corn a mulher. Fray Francisco Deya conseguiu deitar-se corn a sua penitente, Juana Parello, porque um dos seus amigos mais chegados no convento tinha uma ligação corn Juana Masquida, uma jovem casada que estava separada do marido. Sabendo das suas dificuldades em conseguir um lugar para o encontro, o amigo convidou-o a levar Parello a casa de Masquida, onde cada um dos frades teve relações corn a respectiva amante. Então, durante os oito meses seguintes, os dois frades usaram alternadamente a casa de Masquida para fins sexuais, um de manhã e o outro à tarde.

 

Algumas penitentes, que não podiam dispor das suas casas para se encontrarem corn os amantes clericais, tinham de arranjar outras formas. Maria Lorenzo, casada corn um marinheiro, receava por de mais os vizinhos para convidar Fray Baltasar de Olivares para sua casa, mas pôde usar a casa de uma das amigas em diversas ocasiões.

 

Era também possível os clérigos utilizarem o seu próprio domicílio ou aposentos como local de encontro. Os frades das ordens mendicantes deslocavam-se imenso, não só a fim de obterem esmolas mas também para ouvirem confissões nas zonas rurais, onde o clero secular não estava presente. Deste modo, o franciscano Marcos de Ia Tançon pôde usar o seu quarto numa casa particular na aldeia de Orche como o local onde tentava seduzir ou violar as várias jovens. Porém, o facto de se terem registado apenas doze casos de padres que conseguiam usar os seus quartos como local de actividade sexual é revelador da dificuldade de encontrarem privacidade suficiente para levarem uma vida sexual.

 

Esporadicamente, os padres recorriam aos serviços de mulheres que aumentavam os seus rendimentos disponibilizando as suas casas para encontros dessa natureza. Quando Vicente Yago viu que não conseguia convencer Vicenta Roig a deixá-lo ir a casa dela, arranjou um quarto em casa de um prateiro cuja mulher era especialista nesse tipo de cornbinações. Por vezes, estas mulheres concordavam também em servir de intermediárias, oferecendo não só as suas casas para os encontros mas prestando-se também a levar bilhetes de amor ou a convencer uma penitente relutante em ceder aos pedidos libidinosos do seu confessor. Depois de Maria de Solis ter recusado as ofertas de roupas e dinheiro em troca de favores sexuais, Francisco de los Cobos recorreu a Magdalena Hernández, uma viúva que ganhava a vida como alcoviteira. Em diversas ocasiões, Magdalena levou bilhetes de Los Cobos a Maria de Solis, pedindo-lhe que aceitasse os seus presentes e oferecendo a casa da viúva como local de encontro.

 

O fracasso da maior parte destas tentativas de usar intermediários a fim de ganhar favores sexuais de penitentes constitui um born indício das dificuldades encontradas pelos padres da Contra-Reforma ao tentarem estabelecer relações sexuais corn mulheres fora do confessionário. Vicenta Roig nunca contactou a mulher do prateiro corn medo de que o marido e os sogros descobrissem, enquanto Maria de Solis e as irmãs tiveram uma discussão violenta corn Magdalena Hernández sobre o seu papel na ajuda prestada a Francisco de los Cobos. Independentemente do que estas mulheres achavam das relações sexuais ilícitas, a ligação a um padre fora da igreja teria suscitado, como notou Vicenta Roig, «imensos comentários» e sem dúvida levado a uma grave e quiçá fatal perda da reputação.

 

O âmbito alargado dos comportamentos sexuais descritos até aqui afastava-se consideravelmente das normas da sociedade católica póstridentina. Num contexto social em que o celibato era imposto ao clero e em que os confessores, em particular, estavam sujeitos a uma maior fiscalização e presos a um elevado nível moral, a actividade sexual por eles empreendida tanto dentro como fora do confessionário não só constituía blasfémia como manifestava um perigoso grau de excesso carnal. Em quarenta e oito casos, porém, os confessores adoptavam um comportamento que se afastava consideravelmente dos esquemas normais de excitação sexual. Muito embora semelhante comportamento não fosse punido corn maior severidade do que um aliciamento vulgar, ilustra as reacções extremas de certos indivíduos à atmosfera predominante de forte repressão sexual.

 

A escatologia, ou a constante necessidade de ouvir linguagem sexual obscena, responde por mais de 40% destes incidentes. Relacionada corn as tentativas de desvio social de muitos confessores solicitantes ao seduzirem as suas penitentes através do uso de linguagem sugestiva, difere, no entanto, pelo facto de o uso dessa linguagem suja ou indecente se afigurar intimamente ligado ou essencial a um despertar erótico por parte do confessor. Dos doze incidentes de aliciamento envolvendo Fray Manuel de Peraleja, por exemplo, oito respeitaram à sua insistência para que a penitente dissesse ou repetisse obscenidades ou mencionasse os órgãos sexuais. Seis destes incidentes tiveram lugar no mesmo dia, quando várias jovens efectuaram uma peregrinação ao seu convento a fim de confessarem o pecado de uso de linguagem obscena. Em cada um destes casos, Peraleja insistiu para que a penitente repetisse os termos exactos que usara «da forma mais expressiva possível». Depois de o terem feito, ou lhes pedia que dissessem o nome dos órgãos sexuais ou as interrogava sobre os seus conhecimentos «exactos do que sucedia entre um homem e uma mulher durante o coito». Num incidente à parte, Peraleja interrompeu a confissão de uma mulher solteira para lhe dizer que quando casasse nunca deveria negar o sexo ao marido e dizer-lhe sempre que a sua «cona» (conito) estava à disposição dele. Então, ele proferiu a palavra «cona» várias vezes e tentou levá-la a repetir depois dele.

 

Conquanto para Manuel de Peraleja a preferência pelo estímulo verbal parecesse ocorrer apenas esporadicamente e não interferir no funcionamento sexual normal, o caso de Juan de San Jacinto, que garantiu ao tribunal de Toledo que, «nas questões do sexto mandamento, sou tão puro quanto no dia em que nasci», revela que os distúrbios sexuais se fazem por vezes acompanhar da redução da capacidade de actividade sexual. Ao denotar simultaneamente escatologia e sadismo, o caso de San Jacinto confirmatambém as observações clínicas modernas desses indivíduos, indicando ser frequente apresentarem mais de um distúrbio sexual.

 

O caso San Jacinto envolveu Rosa Díaz Moreno e Catalina de Jesus Maria. Ambas as mulheres eram viúvas e beatas que viviam na aldeia de Herencia (Toledo), onde San Jacinto residia na casa mercedária local. Em 1703, Rosa Díaz Moreno pediu a San Jacinto que fosse seu confessor porque desfrutava de uma excelente reputação local. Correu tudo bem durante meses, de modo que ela resolveu fazer-lhe uma confissão geral, mas, quando começou a discutir a sua vida de casada, fez questão de que ela lhe contasse tudo sobre a sua actividade sexual antes e durante o casamento «de forma clara e inequívoca», incluindo «palavras, actos e pensamentos». Muito embora, de início, tivesse relutância em fazê-lo, ele convenceu-a apelando para o desejo de perfeição espiritual e dizendo-lhe que constituiria uma prova do seu amor a Deus, podendo assim alcançar «muitos graus de santidade» obedecendo-lhe. Associando ainda mais os seus impulsos sexuais à observância religiosa, San Jacinto obrigou Díaz Moreno a repetir o que lhe contara sobre a sua vida sexual durante todos os principais dias santos da Igreja Católica.

 

Durante os dois anos seguintes, em todas as confissões que lhe fez, Fray Juan insistiu para que repetisse os mesmos pecados «usando as palavras exactas que trocara corn o marido». Durante uma confissão, obrigou-a até a repetir cinquenta vezes os nomes dos órgãos sexuais masculinos e femininos e ameaçou esbofeteá-la se se recusasse a fazê-lo. corn frequência, mesmo antes de ela começar a recitação, ele sentia um afluxo de excitação sexual ante a perspectiva de ouvir as palavras e instava-a: «Di-las, di-las, minha puta descarada.» Quando terminava, informava-a de que se comportara como uma «prostituta imunda» corn o marido. É difícil conceber, especialmente à luz dos episódios sadomasoquistas que marcaram a sua relação, que de alguma forma Díaz Moreno não gostasse das palavras insultuosas e as achasse sexualmente estimulantes. A fim de aumentar a mortificação dela, costumava insistir para que o encarasse enquanto dizia os palavrões, como se fitasse os olhos de Deus, que ele representava. Mais adiante na sua relação, os temas sadomasoquistas foram levados ao extremo quando insistiu para que repetisse a mesma linguagem diante dele na sua própria casa e depois obrigava-a a despir-se parcialmente para que pudesse fustigar-Ihe os ombros.

 

A relação de San Jacinto corn a sua outra penitente, Catalina de Jesus Maria, foi algo idêntica pelo facto de estarem presentes muitos elementos comuns. Como era também viúva, insistiu para que lhe contasse todas as suas experiências sexuais, repetisse os nomes dos órgãos sexuais e usasse linguagem indecorosa. A dado ponto, insistiu até que recorresse à escatologia enquanto mantinha uma hóstia sagrada na boca. Humilhava-a também corn frequência, agredindp-a no confessionário, e batia-lhe regularmente corn um cinto em casa, enquanto insistia para que repetisse os palavrões. Por consequência, a escatologia e o sadomasoquismo constituíam, corn estas duas penitentes, um esquema perfeitamente integrado de actividade sexual que, num determinado nível, terão agradado a todas as partes. Em nenhum dos casos, como informou San Jacinto orgulhosamente ao tribunal, tentou de facto seduzir ambas as mulheres, e isso constitui um nítido indicativo de que estas perturbaç 5es sexuais eram a sua principal forma de satisfação sexual.

 

A prova de que os distúrbios sexuais de San Jacinto faziam parte de um esquema mais amplo de instabilidade mental e emocional chega-ncs através do seu comportamento alienatório depois de encarcerado na prisão secreta da Inquisição durante o julgamento em 1706-1707. Decorridos cerca de oito meses sobre a sua prisão, começou a ouvir uma voz que identificou corn Deus. Esta voz orientou os seus movimentos e instruiu-o sobre a maneira de se comportar perante os juizes, prometendo-Ihe que seria ilibado. Passado pouco mais de um mês, quando entrou na sala de audiência para uma entrevista corn o inquisidor Estéban Francisco de Espadana, fez questão de que o secretário do tribunal abandonasse a sala, pois tinha assuntos importantes e confidenciais a falar corn o inquisidor. Quando este explicou que o seu secretário tinha de permanecer para registar o depoimento, Fray Juan apontou de repente para o secretário e gritou: «Em nome de Nosso Senhor Jesus, ordeno-lhe que caia morto neste instante.» Ao ser instado pelo inquisidor Espadana a explicar o motivo desta explosão, San Jacinto falou-lhe das vozes e esclareceu que lhe tinham ordenado que o fizesse. O inquisidor Espadana respondeu advertindo San Jacinto para que dissesse a verdade em relação às acusações que pesavam sobre ele e mostrou-se céptico a respeito do significado das suas visões, dizendo-lhe que provavelmente não passariam de «ilusões do demónio».

 

corn o agravamento da sua perturbação mental, Jacinto continuou a levantar problemas ao tribunal. Ao cabo de dois meses sobre o incidente na sala do tribunal, pediu e recebeu dez folhas de papel para redigir a sua defesa, mas usou apenas cinco. Quando lhe solicitaram que devolvesse as folhas em branco, recusou e, após falharem as várias tentativas para encontrar o papel na sua cela, foi posto a ferros durante quatro dias. Em vez de apaziguar Jacinto, este tratamento duro teve por efeito desencadear distúrbios emocionais ainda mais violentos. Profundamente irado no tribunal e ainda imbuído da ilusão da sua própria força espiritual, começou a devolver vazio o balde da sua cela. Quando o carcereiro lhe perguntou onde deitava os detritos do seu corpo, afirmou que não necessitava de o fazer, pois Deus concedera-lhe uma graça especial que lhe permitia comer e beber sem defecar. Impassível ante esta declaração extraordinária, o carcereiro e o seu ajudante começaram a procurar e acabaram por encontrar fezes de sete dias misturadas corn um monte de lixo a um canto c|a cela dele. O tribunal resolveu então chamar o seu médico, o Dr. Escudero, para analisar a capacidade mental de San Jacinto. A 21 de Julho de 1707, Escudero entrou na cela e examinou San Jacinto, mas declarou não encontrar quaisquer vestígios de distúrbios mentais, pelo que dois dias depois o carcereiro começou a ministrar uma série de clisteres para «curar» a obstinação de San Jacinto. Muito embora os clisteres continuassem por quatro dias, nem mesmo assim San Jacinto voltou à razão. Passados vários dias, os carcereiros notaram o odor horrível que lhes chegava corn a brisa quente de Julho. Como Fray Juan deixara de entregar o balde, não era difícil imaginar o que sucedera. Desta vez, ao invés de tentar encobrir as fezes corn lixo, San Jacinto misturara-as astuciosamente no chão de terra da cela. Foi necessária outra série de clisteres, administrada nas trinta e seis horas seguintes, para San Jacinto lhes suplicar que parassem por amor de Deus e se proclamar curado. Todavia, apesar de se apresentar mais controlado durante o resto do julgamento, continuou a bombardear o tribunal corn afirmações por escrito, denunciando os seus acusadores e declarando que o Santo Ofício o libertaria, uma vez que, se fosse culpado, não lhe teria sido concedido o favor extraordinário de Deus através de vozes e revelações tão «prodigiosas». Não se deixando impressionar pelas revêlações «divinas» ou os seus apelos, o tribunal condenou-o a vários anos de reclusão. Parece ter saído casto e suficientemente calmo, sendo parcialmente reabilitado e autorizado a retomar as suas funções de confessor, muito embora limitadas apenas aos homens.

 

Desde tempos mais recuados, o ideal cristão de uma vida santa incluía imensa abnegação, penitência e humildade. A procura da humildade revestia dois aspectos: obediência destinada a domar a vontade e disciplina física para subjugar o corpo. Os ascetas medievais e do princípio da era moderna dormiam no chão no Inverno e usavam cilícios ou corseletes corn pontas de ferro que se lhes cravavam na carne. A flagelação e outras formas de mortificação física foram também praticadas por figuras religiosas proeminentes como St.a Catarina de Siena, no séculoxiv, e S. Luís de Gonzaga, noxvi. Aflagelação tornou-se uma parte da cultura popular no período da peste negra, altura em que passou a ser uma das actividades mais importantes de muitas confrarias laicas. No século xvn, Pérez de Valdivia recomendou a todos os cristãos a flagelação e outras mortificações. O exemplo dado pelos ascetas extremos exerceu também uma forte influência sobre aqueles que queriam levar uma vida santa, e os santos ou pretensos santos torturavam-se corn frequência a fim de superarem estes «atletas de Cristo».

 

Para o santo, as manifestações físicas de humildade foram concebidas para servir os fiéis, adquirindo o extraordinário poder espiritual de que necessitavam para servirem de intermediários perante Deus. Uma descrição da vida de St.a Rosa de Lima, que morreu em 1617, refere que «sempre que alguma calamidade ameaçava a república, era Rosa que a expiava através da flagelação até sangrar». Castigando o seu corpo, a santa chamou a si a culpa da ira de Deus face à Humanidade pecaminosa, na esperança de escapar, assim, à calamidade que sem dúvida se seguiria. Sacrificando-se, a santa conferia protecção aos outros.

 

Muito embora os motivos altruístas dos santos dificilmente fossem questionados, a aceitação das formas extremas de mortificação e abuso físico como componente significativa, e mesmo indispensável, da vida ascética tendeu a legitimar a expressão dos impulsos sadomasoquistas que trazem satisfação carnal a certos indivíduos. Estas tendências representam um elemento exagerado nos impulsos agressivos que constituem uma parte importante da vida sexual, mas que alcançaram uma dimensão sem precedentes através da ligação entre a mortificação e a santidade na Europa católica.

 

Para S. Simón de Rojas, o trinitário que se tornou confessor real da corte de Filipe In, a insistência na imposição de um regime de flagelação nos conventos por ele visitados, na qualidade de representante da sua ordem, foi igualada pelas suas próprias mortificações sangrentas. As motivações sexuais subjacentes a este regime foram reveladas, sem querer, pelo seu admirável biógrafo, Francisco de Arcos, ao relatar um incidente ocorrido durante a estada como superior na casa trinitária em Madrid.

 

Pouco depois da sua chegada, um frade de constituição particularmente robusta veio pedir-lhe se podia ser seu confessor. Após ouvir a confissão do frade, Rojas exigiu que pegasse num cinto e o arrastasse pelo chão da capela «como se fosse um cão imundo e infiel a Deus». O jovem concordou e, noite após noite, arrastava Rojas pela capela, parando em cada estação da cruz, onde Rojas descobria os ombros para receber a flagelação. Entre os golpes nos joelhos devidos às pedras cortantes que pavimentavam o chão da igreja e os efeitos da flagelação, Rojas derramava uma enorme quantidade de sangue que o frade limpava de manhã. Inquirido a respeito destas práticas por alguns frades mais velhos que questionavam a sua necessidade para a salvação, Rojas insistiu que se limitava a seguir o exemplo dos santos. Mas, ao contrário de S. Luís de Gonzaga, cuja penitência física era sempre solitária, o comportamento de Rojas insere-se preferencialmente num esquema sadomasoquista de subjugação e submissão em que o objectivo era a violência e a humilhação e não a interacção sexual. O «submisso» Rojas reconheceu e usou o potencial para a violência em Fray Bartolomé de Ia Cruz, que desempenhou o papel «principal» no pequeno drama representado todas as noites na capela. Mas Rojas, bem como os solicitantes que se dedicavam a comportamentos sadomasoquistas, podiam sempre justificar-se afirmando buscarem a perfeição religiosa. Claro que os solicitantes cometiam o erro de usar o confessionário como local para as suas actividades e, por conseguinte, tinham problemas corn a Inquisição, enquanto Rojas usava o local mais aceite do mosteiro de uma ordem cujos membros se orgulhavam de uma longa tradição de mortificação física. Usando o contexto adequado de definição social para dar largas à sua necessidade psicológica de abuso físico, Roj as manteve e enalteceu até a sua reputação de santidade. Escolhendo um contexto inadequado, o solicitante tornava-se um transgressor convicto: perda de reputação, honra e posição, e via-se obrigado à reclusão num convento onde era corn frequência desprezado e maltratado.

 

A relação entre S. Simón de Rojas e Bartolomé de Ia Cruz constitui um born exemplo da forma como o domínio tinha um peso superior ao da satisfação sexual como factor de motivação. Do mesmo modo, o sexo desempenhou apenas um papel secundário na relação entre Maria Mallon e Francisco Miralles. Durante os dez anos que Maria viveu corn ele como sua governanta de facto, Miralles costumava acariciá-la e beijá-la corn frequência, mas, quando ela reagia sexualmente, admoestava-a e ameaçava aplicar-lhe uma tremenda sova se alguma vez pensasse ter relações sexuais corn ele. Tendo provocado fortes sensações de culpa, Miralles continuou o esquema de manipulação e negação sexuais. Como Miralles foi também o seu único confessor durante este período, levava a tortura física e emocional à sua vítima a um novo nível, omitindo a menção a qualquer dos pecados que cometera corn ele durante a confissão. Mallon era extremamente tímida e também não os conseguia menciona,’, mas era frequente não comungar depois porque temia que uma co i fissão incompleta não lhe conferisse o direito de o fazer. Todavia, Miralles interrogava-a sempre a respeito da comunhão e, se ela confessasse que não a recebera, flagelava-a «pela sua desobediência». Por conseguinte, nesta relação, a satisfação sexual rmo constituía um fim em si, mas um elemento-chave no esquema de subjugação e manipulação de uma pessoa submissa.

 

Para alguns indivíduos, em contrapartida, a excitação carnal não se pode dissociar da inflicção de dor. Como descreveu António Nieto, na sua relação corn a penitente Feliciana Zeballos, passava constantemente da «ternura à crueldade». Tanto dentro do confessionário como fora dele, acariciava-a e ela reagia corn formas extremas de submissão, abraçandoo e, inclusivamente, lavando-lhe os pés. Ao mesmo tempo, provavelmente por um desejo inconsciente de o levar à violência, violava constantemente as instruções que ele lhe dava respeitantes ao seu bem-estar espiritual, e ele respondia fustigando-a.

 

Por vezes, as fantasias sexuais de confessores excitados pelo desejo de magoar as suas penitentes ultrapassavam consideravelmente o que as mais submissas podiam tolerar. Fray Pablo Ginard insistiu para que Francisca Gilbert se deitasse no chão «como se estivesse morta e o deixasse esbofeteá-la» a fim de praticar a humildade. Ela recusou, mas deixou-o flagelá-la nas costas apenas corn o cinto.

 

Como salientou o próprio Freud no seu estudo das aberrações sexuais, uma das particularidades do sadomasoquismo é que «as suas formas activa e passiva se encontram juntas corn regularidade na mesma pessoa». A noção de que «um sádico é simultaneamente um masoquista» fica confirmada por dois dos dez casos de sadomasoquismo analisados, em que foram evidenciadas tendências sádicas e masoquistas pelo mesmo indivíduo. António Nieto recordou que permitira que Feliciana Zeballos o mordesse no flanco e que quando ela gritara em êxtase que «estava a sair sangue ou leite», ele a encorajou a «apanhá-lo, bebê-lo, chupá-lo».

 

O duplo aspecto deste distúrbio sexual foi especialmente notório no caso de Alonso Pérez de Bascones. Pérez de Bascones, que era pároco na aldeia de Morata de Tajuna, no distrito de Toledo, teve a sorte de conseguir encontrar seis mulheres entre os seus paroquianos corn quem dar livre curso às suas propensões. O seu comportamento corn cada uma delas foi extraordinariamente idêntico. Em cada caso, tinham-se-lhe confessado durante vários anos antes de insistir para se deslocar a casa delas a fim de ministrar flagelação. Diversas mulheres, como Mariana Serrano, uma viúva de 37 anos, tinham já manifestado tendências masoquistas flagelando-se e, por conseguinte, acederam prontamente. Para as renitentes, como María Sánchez, Pérez de Bascones entrou simplesmente à força em casa dela e obrigou-a a entregar-lhe as chaves do armário onde guardava o azorrague. Obrigava então as mulheres a deitarem-se de bruços numa cama, levantarem as saias para exporem as nádegas, e espancava-as ou fustigava-as durante cerca de quinze minutos. Depois de acabar de as flagelar, passava-lhes sempre as mãos pelas nádegas. Estas flagelações tinham lugar diversas vezes por semana, e, no caso de Mariana Serrano, verificaram-se mais de 100 incidentes diferentes. Após vários meses disto, insistia então para que as mulheres o flagelassem no mesmo local. Em cada caso, exigia que elas mantivessem absoluto segredo sobre a relação corn ele.

 

Sempre que alguma das mulheres manifestava dúvidas ou ansiedade em relação ao valor moral ou religioso do que faziam, ele respondia, indignado, que estavam a «alcançar enorme mérito no Além» e que ele receitara a mortificação não para «levar as suas almas à perdição» mas para as salvar. Depois de ser detido, continuou a insistir que o que fizera fora para o benefício espiritual das mulheres e que, quando passava as mãos pelas nádegas delas, era apenas para aliviar a dor. Não obstante, os teólogos consultados pelo tribunal de Toledo a respeito do caso rejeitaram em absoluto os seus argumentos, salientando que, neste caso, a mortificação da carne era apenas um pretexto para a satisfação dos desejos sexuais.

 

O advogado de acusação do tribunal também não se deixou impressionar. Na sua súmula de 2 de Setembro de 1674, expôs ao ridículo as preocupações religiosas de Pérez de Bascones referindo que ele sempre insistira para que as suas penitentes não dissessem nada sobre o que lhes acontecera; algo que teria sido desnecessário se ele acreditasse realmente estar a proporcionar-lhes benefícios espirituais. Na verdade, de acordo corn o advogado de acusação, a mortificação da carne constituíra apenas um pretexto para «carícias lascivas e obscenas».

 

Finalmente, Pérez de Bascones cedeu a este bombardeamento. Na sua resposta ao advogado de acusação, confessou, entre lágrimas, que sempre tivera consciência da natureza pecaminosa do que fizera e que fora inteiramente motivado pelo desejo carnal de «sentir prazer em ministrar a flagelação corn as suas próprias mãos e ver a carne nua» das suas penitentes.

 

Se Alonso Pérez de Bascones se tivesse flagelado ou exigido que as suas penitentes se mortificassem como penitência pelos pecados, ter-se-ia mantido um membro respeitável da comunidade religiosa. Mas, mesmo num período em que a sociedade aceitava formas extremas de mortificação física como um passo para a santidade, os teólogos e juizes que trataram deste caso sentiram que havia algo nitidamente aberrante em relação a este comportamento. Reconheceram que as necessidades de Pérez de Bascones eram sexuais e não religiosas e levaram-no a confessar que apreciava o sofrimento físico das suas vítimas. Por mais dura que fosse a terminologia usada pelos juristas do século xvn que julgaram este caso, compreenderam que estavam em presença de um distúrbio sexual que implicava a inflicção de dor. Este caso e outros como ele, constantes dos arquivos do Santo Ofício, deveriam servir de exemplo ao relativismo que se tornou uma característica tão predominante dos textos históricos de anos recentes. Apesar dos caprichos da interpretação colectiva e da importância cultural de um período de mais de quinhentos anos, a sociedade moderna inicial e ocidental partilharam noções comuns de aberração sexual e reconheceram e estigmatizaram certos tipos de comportamentos como inerentemente patológicos.

 

O parcialismo, ou a incidência da excitação sexual numa determinada parte do corpo, afectou seis confessores. Este distúrbio revestiu a forma de uma preocupação obsessiva corn os pêlos púbicos no caso do frade capuchinho Isidro de Arganda. Este passara algum tempo como conselheiro espiritual de Maria Morales, e a sua decisão de se tornar freira em Guadalajara, impossibilitando-o, deste modo, de a ver corn frequência, desencadeou uma intensa crise emocional. Pouco depois de ela ter entrado para o convento, escreveu-lhe a pedir conselhos sobre a maneira de se comportar e enfrentar os perigos ou tentações que lhe poderiam surgir. A resposta dele seguiu o modelo do que um conselheiro espiritual diria nestas circunstâncias. Mencionou outra freira que sabia ter entrado para aquele convento e conseguira vencer os seus problemas espirituais e consolou Maria dizendo-lhe que a crença em Deus a fortaleceria contra a depressão e o desespero. No final da carta, porém, era óbvio que o frágil equilíbrio emocional de Arganda começara a dar de si. Pediu-lhe que referisse especificamente quaisquer «sonhos ou poluções nocturnas» que sentira. Numa segunda carta, insistira para que o informasse na íntegra sobre as dores e o fluxo menstruais e quis saber se cortava os pêlos púbicos «sem deixar um único pedaço» e pediu-lhe que os enviasse no primeiro correio.

A partir de então, Arganda ficou obcecado corn a obtenção de pêlos púbicos das suas penitentes. Das dezasseis testemunhas no seu julgamento, em 1753, quinze confirmaram que lhes pedira para cortarem os pêlos púbicos e lhos levarem. Por vezes, fingia necessitar deles para ajudar a «curar» infecções vaginais e, numa ocasião, alegou inclusivamente que necessitava deles para confirmar a história de uma penitente de violação pelo antigo amante enquanto estava enfeitiçada. Apesar de os receber, Arganda sentia-se obrigado a deitar fora, de imediato, os pêlos púbicos e da forma mais degradante possível. Por vezes, mandava as mulheres queimá-los na presença dele, e em várias ocasiões atirou-os para uma latrina.

 

O incesto pode ter sido um dos elementos intervenientes no cornportamento de Fray Agustín de Cervera, que estava obcecado corn os seios da suas penitentes. No período de menos de quinze meses entre

1572 e 1573, Fray Agustín aliciou quinze penitentes. Em catorze destes casos, apalpou ou olhou para os seios das raparigas enquanto lhes fazia perguntas sobre o tamanho e relativa maturidade. Curiosamente, enquanto acariciava três das raparigas, de 14,15 e 16 anos, fez questão de lhes dizer que gostava delas por lhe lembrarem uma das suas irmãs. O papel que o incesto terá desempenhado no condicionamento das propensões sexuais de Cervera é também indicado pelo facto de haver começado a aliciar estas raparigas pouco depois de regressar de uma visita não autorizada à sua aldeia natal, onde as suas duas irmãs viviam ainda.

 

Cervera apresenta-nos também o único caso de pedofilia. Muito embora as crianças não fossem a sua opção exclusiva como parceiros sexuais, quinze das dezassete penitentes que aliciou tinham 16 anos ou menos, enquanto três tinham 10 anos. A sua necessidade compulsiva de dizer às penitentes adolescentes que as achava atraentes porque lhe lembravam a irmã parece também encaixar-se no esquema da tendência para a pedofilia, pois o incesto e outras formas de abuso sexual na infância são também frequentemente indicados nestes casos.

 

Numa cultura que conferia aos objectos ligados à religião um grau de importância tão elevado, não será difícil imaginá-los transformados em fetiches por parte de certos indivíduos. Fray Francisco Corbera, um franciscano que tivera uma carreira distinta na sua ordem, era confessor de Eugenia Maria de Santa Teresa há mais de sete anos quando um dia, antes mesmo de iniciar a sua confissão na casa do guarda do convento, reparou que ela parecia sentir-se pouco à vontade. Quando lhe perguntou o que se passava, ela contou-lhe que começara a usar um cilício na coxa, consistindo numa argola de ferro corn espigões que a magoavam a cada movimento. Evidentemente, só ouvir que ela usava semelhante dispositivo provocou em Corbera um acesso de excitação sexual, e insistiu imediatamente para que erguesse o hábito para «lhe mostrar o cilício e onde assentava na sua coxa». Depois de ela ceder aos seus desejos pela primeira vez, fez idêntico pedido em onze outras ocasiões. Que Corbera estava plenamente consciente da estimulação sexual que lhe advinha da situação é o que demonstra o facto de, quando se apercebeu de que Eugenia Maria perdera a sua relutância inicial em satisfazer os seus pedidos, lhe dizer que tinham de parar, pois «o Diabo era capaz de nos enganar corn alguma lascívia», bem como a sua confissão posterior, perante o tribunal, de que fora movido pela «curiosidade e a luxúria».

 

Nos dois casos de fetichismo constantes dos registos, o mais curioso envolveu Juan dei Castillo, um dominicano que foi levado à presença do tribunal de Cuenca em 1641. Juan dei Castillo estava particularlmente obcecado corn as taças e cálices ornamentais usados nos serviços litúrgicos. Desde a infância que Castillo conferia aos recipientes de vidro ou cerâmica um significado especial, de maneira que instituiu o hábito de os roubar, sempre que podia, para os destruir. Evidentemente, quanto mais se assemelhavam às taças usadas na igreja mais apreciava destruílos. Mais tarde, depois de entrar para a ordem, a sua obsessão revestiu uma forma mais complexa. Em vez de se limitar a destruir as taças, roubava-as, levava-as para a sua cela e enchia-as corn um líquido qualquer. Uma vez foi punido pela ordem por ter levado para a sua cela o cálice mais belo usado na igreja, fazendo sopa nele e enxaguando-o depois corn a sua urina.

 

O delito que chamou a atenção do Santo Ofício ocorreu depois de convidado a fazer o sermão do Corpus Christi num convento local. Enquanto pregava, reparou num cálice de prata particularmente belo que fora usado na celebração da missa. Após alguma persuasão, conseguiu convencer uma das freiras a levar-lho para que o pudesse examinar de perto. Nessa noite ela entregou-lho na casa do guarda, mas, depois de comentar sumariamente a sua beleza e trabalho, anunciou de repente que seria ideal «para uma obscenidade como a que se realizava no buraco de uma mulher», introduziu-o debaixo do hábito e masturbou-se para dentro dele. Nesta altura, o sistema alienatório de Fray Juan tornara-se tão forte que, quando uma freira horrorizada lhe perguntou como era capaz de um acto tão obsceno num objecto tão sagrado, ele manifestou surpresa por ela não ter conhecimento de que era algo que se fazia, pois «não só era praticável como feito corn frequência».

 

Toda a história do comportamento sexual do homem se tem regido por uma série de valores, normas e sanções sociais. Como alvos especiais da tentativa mais abrangente de reprimir e regular o comportamento sexual que a sociedade ocidental alguma vez realizou, o clero pós-tridentino foi obrigado a aceitar o celibato pela primeira vez na história da Igreja romana.

 

Muitos padres, doutrinados corn êxito pelo colégio e pelo seminário, conseguiram aceitar o celibato e encontrar formas de sublimar as suas necessidades sexuais corn trabalho, preces, meditação ou penitência. Mas, para outros, como era difícil manter a abstinência! Limitados nos seus movimentos, sujeitos à vigilância dos seus superiores e vulneráveis à jurisdição dos tribunais episcopais, alguns padres acharam que o confessionário constituía o seu único escape sexual, o único lugar onde podiam estar a sós corn uma mulher e onde empreendiam alguma forma de actividade sexual sem serem observados. Infelizmente para eles, a actividade sexual desenvolvida era mínima. A maior parte nunca ultrapassou o uso de linguagem sugestiva ou as carícias, poucos alcançaram o coito, enquanto a frequência da masturbação reflecte apenas o elevado grau de frustração sexual que levou a uma maior incidência de práticas solitárias na sociedade em geral.

 

Como em todas as sociedades, o impacte da marginalização social incidiu pesadamente sobre os indivíduos emocionalmente mais instáveis. Para esses indivíduos, foi impossível alcançar a satisfação sexual através dos esquemas normais de actividade sexual e, por conseguinte, ficaram sujeitos a uma série de distúrbios sexuais. Enquanto a tipologia de muitos destes distúrbios se assemelha extraordinariamente à encontrada na prática clínica moderna, a forma que revestiram foi profundamente afectada pelo contexto social, ao passo que a frequência de certos distúrbios sem dúvida diferiu consideravelmente da da sociedade moderna.

 

ALICIAMENTO E CONFISSÃO NO IMAGINÁRIO ANTICLERICAL

Muito embora a Inquisição espanhola não fosse abolida formalmente até ao decreto de 19 de Julho de 1834, publicado durante a regência de Maria Cristina, cessara efectivamente as suas funções em 1820, altura em que foi suprimida por ordem de Fernando VII, em face do ressurgimento do liberalismo. A sua recusa em restabelecer a instituição após a queda do regime liberal constituiu um indício de que há muito ultrapassara a sua utilidade, mesmo para um Governo que fora marcado pela intolerância, a brutalidade e o obscurantismo.

 

corn a morte do Santo Ofício, a acusação organizada dos solicitantes chegou ao fim em Espanha. Mas, muito antes de 1820, o aliciamento iniciara a sua evolução de uma ofensa-crime cujo castigo se destinava a repor a confiança pública na confissão auricular até ao elemento definidor na reacção contra a confissão que começava a alastrar no mundo católico. Já no fim do antigo regime, os teólogos e confessores experientes, como S. Alphonsus Lignori (1696-1787), alertavam para o crescente rigorismo de muitos confessores, que negavam sistematicamente a absolvição às suas penitentes e estava a afastar as pessoas do sacramento. Ainda pior do ponto de vista da Igreja, os anticlericais e os católicos liberais contestavam abertamente as práticas que encorajavam uma excessiva proximidade emocional entre o confessor e a penitente. A expressão mais extrema desta perspectiva foi tornar o aliciamento sinónimo de confissão, quer directamente, através do medo da sedução física das penitentes pelos confessores, quer indirectamente, através de uma forma insidiosa de sedução moral em que «por via do confessionário o padre é muito mais o marido da esposa do que o homem corn quem ela se casou aos pés do altar».

 

Uma obra antiga que discute abertamente o aliciamento sexual foi escrita por António Gavin, um padre renegado espanhol que fugiu para Inglaterra pouco antes da assinatura do Tratado de Utreque em Abril de 1713. Como padre secular e confessor durante vários anos em Saragoça e membro da chamada academia moral, onde os confessores locais costumavam discutir os casos mais difíceis corn os seus colegas, Gavin encontrava-se em boa posição para ter conhecimento de casos de aliciamento sexual.

 

Decorridos poucos anos sobre a sua chegada a Inglaterra, Gavin publicou The Master Key to Popery, em que denunciou as perguntas às penitentes sobre assuntos de natureza sexual como escola de escândalo onde «as penitentes aprendem coisas corn que nunca antes sonharam». The Master Key to Popery encontra-se repleto de histórias sobre a lascívia dos padres, obviamente bem calculadas para satisfazerem e entusiasmarem um público protestante já predisposto a ter a pior imagem possível dos papistas. Muito embora a obra de Gavin seja obscurecida por uma história fantástica sobre um serralho mantido pela Inquisição de Saragoça e um nítido grau de exagero, alguns dos casos de aliciamento por ele tratados têm uma aura de verdade. Num deles, Gavin chegou a constituir um grupo de padres e frades que eram tradicionalmente levados a ouvir a sentença de um solicitante condenado.

 

Gavin começa por falar do aliciamento corn uma história que se destina a ilustrar não só a lascívia dos padres mas a influência perniciosa que os confessores exercem sobre as famílias. Como veremos, este último aspecto viria a tornar-se muito mais importante nas obras posteriores que atacaram a confis*são auricular. Levado à academia moral de Saragoça em virtude dos difíceis problemas teológicos que suscitava, o caso envolvia uma jovem cuja família ficara sob a influência do seu confessor a tal ponto que o nomearam tutor dela e lhe deixaram a maior parte do dinheiro. Após o pai da rapariga morrer, aquele seduziu-a e depois deixou-a na miséria. Sem meios para se sustentar, a jovem não teve outra alternativa senão tornar-se amante de um oficial do Exército, que morreu ao serviço do seu regimento na Catalunha. Chocada corn o falecimento do amante, resolveu mudar de vida. Procurou outro confessor, que prometeu ajudá-la a encontrar um marido adequado se ela devolvesse todas as jóias que o oficial lhe dera. Assim fez, mas no dia seguinte o novo confessor procurou-a e ameaçou denunciá-la à Inquisição se se recusasse a ter relações corn ele.

 

Outra das histórias de Gavin recorda o caso de Isabel Riera e do seu confessor, Pedro Benimelis. À semelhança de Riera, Maria Guerrero era de origem humilde e procurou alcançar a proeminência social distinguindo-se como mulher santa. Logrou convencer o seu confessor, um dominicano doutor sem Teologia, muito estimado, dos seus extraordinários dons espirituais, e não tardou a formar um culto à sua volta, enquanto o confessor começou a escrever a história da vida dela. A proximidade espiritual entre confessor e penitente não tardou a dar lugar à intimidade física, e quando Maria Guerrero e o seu confessor foram detidos pelo tribunal de Saragoça, pareceu que a «abençoada» Guerrero «não fora ensombrada pelo espírito mas pelo seu confessor»; pois, como estivesse grávida e desse à luz na Inquisição, um artigo referia que ele tinha a sua cama perto da dela e que era o pai da nova criança ou monstro na Terra».

 

Gavin descreve também a maneira como o exorcismo conferia oportunidades sexuais aos confessores. Ao invés dos casos provenientes dos registos de julgamentos da Inquisição, em que as vítimas pareciam realmente julgar-se possuídas, Gavin apresenta a possessão como pouco mais do que um ardil para enganar os maridos ciumentos. Após descrever em termos genéricos a maneira como as mulheres usavam o pretexto de estarem possuídas para terem relações íntimas corn o seu exorcista, Gavin descreve o caso de Dorothea, de 16 anos, casada corn um homem de 53 anos que detestava. Como o marido era extremamente ciumento e não a deixava ir a lado nenhum sem ele, resolveu fingir-se possuída pelo demónio a fim de ter relações íntimas corn o seu confessor, Fray Juan, um homem jovem por quem estava loucamente apaixonada. Fray Juan alcançara algum êxito a espantar demónios, o marido recompensara-o generosamente e chamava-o sempre que a mulher dava mostras de uma recaída. Como isto sucedesse corn frequência, Dorothea começou a passar cada vez mais tempo na companhia de Juan, enquanto o seu marido enganado dormia «tranquilamente, pensando que a mulher, tendo o Diabo no corpo, não podia ser-lhe infiel». A relação ilícita entre Dorothea e o seu confessor/exorcista continuou durante dois anos, ao fim dos quais foram traídos por alguns inimigos de Juan. Consequentemente, os superiores transferiram-no para outro convento.

 

Independentemente do grau de exagero contido na forma como Gavin trata o aliciamento, The Master Key to Popery é relevante em virtude de o segredo vergonhoso do aliciamento sexual dos padres, tão ciosamente preservado pelo Santo Ofício, ser revelado a uma audiência popular e logo por uma fonte que fora um sacerdote católico espanhol. A obra de Gavin, à semelhança de qualquer outra obra do século xvm que criticava a Igrej a Católica Romana, revelou-se extremamente popular nos círculos liberal e protestante. Teve três edições alemãs (1717,1735 e 1735), cinco edições britânicas, incluindo duas em Dublim (1724 e 1727), e nada menos de quinze nos Estados Unidos entre 1815 e 1860. A obra foi igualmente traduzida para francês em 1727 corn o título Lê Passe-partout de VEglise romaine ou histoire dês tromperies dês prêtres et dês moines en Espagne. Foi esta a edição proibida pela Inquisição espanhola em 1747.

 

Tal como muitas outras obras sacrílegas ou anticlericais que entraram em Espanha durante o século xvrn,Le Passe-partout pôde circular durante um longo período antes de ser proibida por uma Inquisição cerceada pela interferência governamental e uma falta de pessoas qualificadas para procederem à censura. A ampla circulação desta obra garantiu que os seus principais temas, incluindo os potenciais perigos de interrogar as mulheres sobre as violações do sexto mandamento, a influência excessiva dos confessores sobre a família, a frequência do aliciamento sexual, e outras violações do celibato clerical e a hipocrisia dos confessores que usavam da sua influência para conseguirem dinheiro para as ordens religiosas ajudassem a definir a vaga de sentimento anticonfessional que se desenvolveu durante o século xix.

 

António Gavin não foi o único padre espanhol do século xvin a expressar sérias dúvidas em relação à confissão auricular e ligar a confissão e o aliciamento. José Blanco White nasceu em Sevilha, em 1775, de parentesco misto irlandês e espanhol. Foi ordenado em 1799 e, depois de atravessar uma crise religiosa originada pelo contacto corn as ideias do Iluminismo, fugiu para Inglaterra em 1810. Ao longo da sua vida adulta, nutriu um ódio visceral pela confissão, que provavelmente proviria de certas experiências da infância descritas nas suas Lettersfrom Spam, publicadas pela primeira vez em inglês em 1822.

 

Muito embora Blanco White escrevesse as suas obras para um púlico inglês e as Letters froin Spain só fossem traduzidas para espanhol em 1972, não se duvidará de que foi um representante do crescente mal-estar entre o clero liberal, que cada vez ficava mais exposto ao germe intelectual do Iluminismo. Ele próprio lhe faz alusão ao mencionar a facilidade corn que conseguiu pedir emprestados a outros padres livros proibidos «profundamente versados na filosofia francesa».

 

Nesta obra, bem como na posterior, The Preservative Against Popery, Blanco White alerta para os efeitos perniciosos da confissão auricular sobre as crianças e a família e o perigo que colocava ao sexo feminino. Como o padre era obrigado a analisar os pecados sexuais a fim de cumprir as suas obrigações de confessor, «a comunicação obscena é indissociável do confessionário». Consequentemente, Blanco White declarou que a confissão auricular podia levar facilmente à «sedução directa» das penitentes. Este perigo seria controlado enquanto a Inquisição continuasse a funcionar, mas, sem essa instituição, «seria apenas ilusório acreditar que um poder discricionário desta ordem, deixado nas mãos de milhares de homens - expostos a tentações extraordinárias para abusarem dele -, fosse sempre usado corn a devida precaução». Mais ticularmente pavorosa de um frade franciscano que se apaixonara loucamente por uma das suas penitentes e depois a apunhalara até à morte ao saber que estava para casar.

A jurisdição da Inquisição espanhola sobre o aliciamento foi também discutida na obra sensacional a respeito da Inquisição que foi publicada em França entre 1817 e 1818. À semelhança de José Blanco White, Juan António Llorente atravessou uma crise religiosa e converteu-se aos princípios do Iluminismo. Em 1785 foi nomeado primeiro-secretário do tribunal da Corte em Madrid. Depois da invasão francesa de 1810, Llorente juntou-se aos muitos espanhóis iluminados que apoiavam o Governo do irmão de Napoleão, José, e foi encarregue dos arquivos do Suprema. Alonga experiência de Llorente como funcionário inquisitória! e o seu acesso sem precedentes aos arquivos da Inquisição forneceu-lhe o material necessário para escrever a primeira história moderna da Inquisição espanhola. Esta obra surgiu em Paris depois de Llorente se ver obrigado a fugir da sua terra natal corn a derrota das forças francesas na Guerra Peninsular. Llorente morreu alguns dias após o seu regresso a Madrid em 1823. A sua obra tornou-se extremamente popular e foi traduzida para inglês, alemão e italiano. Surgiu uma edição espanhola em 1822, durante o período em que os liberais espanhóis obrigaram Fernando VII a repor a Constituição de 1812.

 

Llorente apresentou aos leitores franceses um relato circunstanciado da jurisdição da Inquisição espanhola sobre um delito que descreveu como inspirador de uma «repulsa legítima» em todos aqueles que se consciencializavam dela. Abordou também os processos de julgamento e os castigos típicos e excitou a imaginação erótica dos leitores corn o caso de um frade capuchinho que seduziu treze beatas convencendo-as de que tivera uma visão divina em que lhe fora ordenada a satisfação dos seus apetites sexuais.

 

Nos séculos xix e xx, a sedução física das penitentes pelos seus confessores tornou-se o tema eterno da literatura anticlerical. Em França, anticlericais como Michel Morphy e Leo Taxil retiraram excertos dos manuais de confessores e citaram-nos fora do contexto para convencerem os seus leitores de que os maridos e pais faziam mal em mandar as esposas e filhas confessar-se. Lês mystères de Ia pornographie cléricale (1884), de Michel Morphy, descrevia o clássico de Jean Baptiste Bouvier Manuel de confesseurs, que era um texto corrente nos seminários da época, como um «curso de vício sem precedentes». Como resultado das instruções contidas no texto a respeito da sodomia, cunilíngua, felação e masturbação, Morphy afirmava que os seminaristas eram corruptos ao ponto de nem um padre em cem conseguir manter o celibato, enquanto, na qualidade de confessores, usavam este «código pornográfico» como base para a sua actividade. Referindo-se à discussão de Bouvier sobre a potência sexual dos homens mais velhos, Morphy comentou corn azedu me que parecia destinar-se a encorajar «a jovem mulher que se queria divertir tendo relações sexuais corn o seu confessor».

 

Na sua introdução a Lês livres secrets dês confesseurs dévoilés aux pères defamille, de Gabriel Page, Leo Taxil ataca o princípio do apoio do contribuinte à educação no seminário corn base no facto de, enquanto a lei proíbe a instrução contrária à moralidade pública nas escolas seculares, nada se fazer no sentido de reformar a instrução ministrada nos seminários «onde a lascívia é ensinada corn a ostentação degradante do pormenor». Se o público viesse a consciencializar-se desta situação, «qual o pai que deixaria as suas filhas e qual o marido que permitiria que a mulher se fosse confessar»?

 

Os teimas da hipocrisia sexual do interrogatório excessivamente franco das penitentes e do aliciamento sexual estão também ligados num romance publicado em 1935 por Pierre Longin. No começo de Unepassion dans lê confessionnal, o bispo enviou um tal Vannier, um padre rigorista, como cure para uma aldeia na Borgonha que se recusara a contribuir para a manutenção da igreja. O bispo vê a nomeação de Vannier como uma forma de castigar a aldeia pela sua teimosia. Vannier revela-se tão duro quanto o bispo desejara, condenando qualquer imodéstia no vestir ou no comportamento «corn uma fúria demente» e recusando a absolvição às mulheres que tencionem ir a um baile que se vai realizar ao lado da igreja.

 

Tal como os confessores descritos por António Gavin, a investigação, por parte de Vannier, dos pecados sexuais permite instruir as suas penitentes nas perversões sexuais que nunca teriam praticado por iniciativa própria. Após uma dessas sessões, durante a qual lhe perguntou a respeito da felação e outros «truques» sexuais a que teria recorrido para evitar a concepção, uma jovem casada contou à vizinha que «era preciso ser-se tão depravado como um cure para se imaginar semelhantes coisas».

 

Mas por debaixo da sotaina deste padre rigorista batia o coração de um homem cujos desejos estavam reprimidos mas não destruídos pelo voto de celibato. Um dia, ao percorrer uma estrada do interior para ir agradecer a um camponês local um presente de frutas, ficou excitado ao ver os seios de uma jovem criada que trabalhava nos campos. Noutra ocasião, depois de ver uma rapariga de uma quinta despida a apanhar batatas, ficou tão agitado que voltou imediatamente a casa para se masturbar. Levado quase à loucura pela sua solidão, Vannier já não se conseguia controlar, e, no dia seguinte a ter proferido um sermão aguerrido contra as danças nos casamentos e declarado que só daria a comunhão às mulheres que fossem «puras», chocou uma respeitável senhora casada apalpando-lhe as coxas enquanto a ouvia em confissão. Após este incidente de aliciamento, não teve outra alternativa senão deixar a aldeia «onde os homens haviam encontrado um paraíso na terra», indo para uma paróquia noutra aldeia «mergulhada na pobreza e na superstição, em suma, tudo o que é necessário para justificar a presença de um padre».

 

Em Espanha, a censura e o poder político da Igreja impediram a publicação de obras que atacassem abertamente os manuais dos confessores, mas o aliciamento sexual e a actividade sexual ilícita durante a confissão foram um constante refrão na literatura e na imprensa popular. A discussão crítica do celibato clerical e a relação entre padre e penitente no confessionário foram apenas um elemento no debate mais alargado sobre a repressão e a emancipação que preocuparam a sociedade espanhola desde meados do século,xix até ao início da Guerra Civil naquele país. No cerne deste debate, especialmente por alturas de 1890, verificou-se uma cada vez maior propensão para a exploração da questão da sexualidade sob uma variedade de formas, desde romances, contos e caricaturas até às mais de duzentas e cinquenta obras científicas ou quase científicas publicadas sobre temas sexuais entre 1900 e 1936.

 

Como parte desta literatura, a questão do celibato clerical e do abuso sexual do confessionário pelos padres desempenhou um papel de relevo. Durante as décadas de 1880 e 1890, o semanário satírico El Motín misturou desenhos de padres e confessores lascivos corn ataques à Igreja e aos políticos direitistas. Entre 1910 e 1936, os artistas da revista popular anticlerical La Traça seguiram esta tradição desenhando inúmeras caricaturas que representavam um padre grotescamente distorcido a tocar ou acariciar uma mulher durante a confissão ou nas imediações do confessionário.

 

Mercedes, uma obra anónima corn nítidos tons pornográficos, publicada em 1890, respeita a um jovem caixeiro-viajante que se apaixona pela filha do seu estalajadeiro numa das suas viagens de negócios. Esquece logo os seus catálogos e amostras e concentra toda a sua atenção para encontrar uma forma de seduzir a jovem. Impedido pela vigilância do pai dela e consciente da sua reputação de sensualidade, resolve enviar-lhe um livro corn ilustrações das posições sexuais sem primeiro se identificar. Se ela estivesse disposta a aceitar o livro e permitir-lhe pôr em prática alguns dos aspectos nele contidos, estava instruída para vir à varanda usando algo no cabelo.

 

A fim de justificar o envio deste presente tão invulgar, explicou que de certeza lhe iria proporcionar horas de prazer e instrução ao mesmo tempo que alimentava a sua imaginação erótica. Simultaneamente, a sua disponibilidade como amante garantiria a não frustração dela, uma vez que facilmente encontraria remédio nos seus braços. Isto, asseverou ele, seria sem dúvida preferível à situação no confessionário, em que ela ficaria facilmente excitada corn as perguntas minuciosas, mesmo «insolentes», do padre a respeito de assuntos sexuais, sem quaisquer meios de alcançar a satisfação. Em contrapartida, a relação no confessionário só proporcionava satisfação sexual ao padre, uma vez que, se ela espreitasse para o outro lado do confessionário, só veria «as suas vestes em desordem, as mãos ocultas e os olhos brilhantes, e quando ele interrompesse o questionário seria porque alcançara o clímax da sua luxúria».

 

El confesionario, de Eduardo López, é uma obra naturalista mais séria, que explora algumas das implicações do celibato clerical para a relação confessor-penitente. Tal como La Regenta de Leopoldo Alas (Clarín), López Bago apresenta-nos uma situação em que um padre inteligente e ambicioso, corn uma excelente reputação como conselheiro espiritual, aceita uma mulher bela e jovem como sua penitente e procura moldá-la à sua vontade. Mas Román Acebedo, o personagem principal dos dois romances, El cura e El confesionario, esconde um segredo monstruoso - a relação incestuosa corn a irmã, corn quem teve relações sexuais aos 16 anos. No início de El confesionario, López Bago deixa bem claro que este crime não é inteiramente culpa de Román. Em circunstâncias normais, este belo jovem teria conseguido encontrar uma saída apropriada para as suas necessidades sexuais, mas como padre é obrigado ao celibato, mercê da política imposta pela Igreja Católica Romana, que «proclama o eunuco como o máximo da perfeição humana». Esta relação incestuosa explica uma grande parte das motivações de Acebedo ao longo do romance. O seu profundo sentido de culpa leva-o a tornar-se um confessor assíduo como forma de expiação do seu pecado, salvando almas, e leva-o igualmente a sublinhar o seu desejo por Gertrudis, a marquesa de Florida, assumindo a sua paixão por ela como uma forma de penitência.

 

A culpa e a ambição levam Román a ver a riqueza da marquesa como instrumento do seu desejo de despertar a atenção dos seus superiores, inclusive da própria Roma. Levando-a a abominar os bens materiais e a entregar-se à religião, espera convencê-la a ceder a sua fortuna à Igreja e sonha apresentá-la pessoalmente ao papa como contributo alcançado em virtude da sua extraordinária habilidade no confessionário. Por sua vez, poderia realizar a sua ambição de ascender na Igreja de simples presbítero ao chapéu cardinalício, até mesmo a usar a tiara papal. A marquesa de Florida não iria passar de um meio para alcançar um fim, o amor seria sacrificado no altar da culpa e da ambição.

 

Todavia, apesar das suas resoluções tão fervorosas, Román sente-se atraído fisicamente por Gertrudis desde o primeiro instante em que entrou no confessionário. Depois de o convidar a visitá-la e de abrir o coração aos seus problemas corn o marido sifilítico e ao seu próprio adultério, este sentimento só aumenta, de maneira que ele rão pode deixar de ceder às fortes emoções que ameaçam vencê-lo e ir a um bordel convenientemente situado próximo da sua igreja. Uma vez lá dentro, ataca uma das mulheres corn tamanha brutalidade que ela foge aos gritos, e é obrigado a pedir às prostitutas ultrajadas, que o queriam pôr na rua, que o deixem lá ficar até ao cair da noite, a fim de evitar qualquer encontro corn os outros seus colegas detentores de benefícios. A sua vida, como admite pesarosamente de si para consigo, tem sido uma luta constante contra as tentações da carne, «que cada vez se rebela corn maior intensidade».

 

Apesar de uma atracção física tão forte que Román acha que seria até capaz de necrofilia se lhe fosse presente o corpo morto de Gertrudis, consegue continuar a desempenhar o papel de confessor virtuoso e austero.

Rejeitando as suas aproximações como imorais, insiste para que ela ceda aos pedidos do marido para ter relações sexuais, como é o seu dever conjugal, pese embora a doença. Depois da morte dele, descobre que também está infectada. Decorridos vários meses, os amantes infelizes realizaram uma «imitação da vida contemplativa», cada um tentando evitar enfrentar o desejo que sente pelo outro. A marquesa cede aos pedidos de Román de dinheiro para a Igrej a e transforma os seus aposentos numa capela, enquanto Román a ouve em confissão pelo menos uma vez por semana.

 

Ao mesmo tempo, a fim de evitar ceder à tentação a que fica sujeito sempre que se desloca £.0 palácio, Román continua as suas visitas ao bordel. Este frágil equilíbrio é bruscamente alterado certa noite, quando Gertrudis lhe revela que o médico lhe fez um diagnóstico favorável. Um mero indício da sua disponibilidade sexual é o bastante para Román, que imediatamente se lança sobre ela e a viola antes de ter tempo de lhe explicar que não está completamente curada e precisa de esperar até à Primavera seguinte antes de ter relações sexuais. Porém, o facto de se ter tornado finalmente amante de Gertrudis leva Román a recompensas financeiras mais ricas do que alcançava quando era apenas seu confessor. Em vez dos 400 000 reales que lhe sacara manipulando a sua devoção espiritual recentemente adquirida, ela promete-lhe agora um milhão de reales, pois, conforme explicou, o seu amante mais recente custara-lhe muito mais.

 

Em 1820, por ocasião da revolução liberal contra o regime repressivo de Fernando VII, José Marchena publicou a primeira história crítica da literatura espanhola. Marchena, cuja vida e obra só recentemente se tornaram mais conhecidas, nasceu em Utrera a 18 de Novembro de 1768 e recebeu ordens menores em Sevilha. Não obstante isto, Marchena era um duro crítico da Igreja e a sua obra constituiu um ataque ao celibato clerical. Marchena recebeu corn enorme entusiasmo a chegada da Revolução Francesa e, depois de se envolver numa conspiração para derrubar a monarquia espanhola, não teve outra alternativa senão fugir para França, onde adquiriu a cidadania francesa e recebeu um cargo no exército do general Moreau destacado no Reno. Foi durante este período que escreveu Fragmentam Petronii, uma brilhante diatribe contra a moralidade sexual ensinada pelos teólogos e confessores católicos, em que «a virtude soberana deve consistir em abstinência e a sensualidade sé situa ao mesmo nível dos crimes mais hediondos». Na introdução a Lecciones de filosofia moral y eloquência, Marchena deplorou o impacte que esta doutrina tradicional teve sobre o desenvolvimento da literatura espanhola e a consequente falta de erotismo «honesto», ao mesmo tempo que denunciava a censura pela ausência de liberdade de expressão que sempre caracterizara a sociedade espanhola.

 

No entanto, foi somente por alturas de 1900 que o sonho de José Marchena de uma literatura erótica espanhola se começou a concretizar corn a obra de autores como Felipe Trigo e Llamas Aguinaliedo. O erotismo ganhou popularidade na década de 1920 corn o aparecimento de edições baratas comoLaNovela Semanal, que foi publicada pela Prensa Gráfica entre 1921 e 1925, ouLaNoveladeHoy, que editou 525 números entre 1922 e 1932. As atitudes mais abertas dos Governos liberais dos primeiros anos do reinado de Alfonso xin, o anticlericalismo do partido liberal e o abrandamento das leis da censura em meados da década de 1920, viriam, no entanto, a ser objecto da atenção que merecem por parte dos historiadores e críticos literários. Desafiando a cada vez maior repressão da ditadura de Primo de Rivera, autores como Artemio Precioso e Fernando de Ia Milla publicaram as suas obras em séries corn nomes sugestivos como «Colección Vénus», «Colección Safo» ou «Libro Galante». Apesar de Marchena reivindicar um erotismo espanhol livre da preocupação mórbida corn os «desejos pecaminosos» do sacerdócio, no entanto, esta primeira pornografia espanhola continuou recheada de referências ao clero e em especial às oportunidades de sedução que se lhes apresentavam na qualidade de confessores.

 

Colegiales Adorables (1930), de Francisco Bullon, constitui um excelente exemplo da maneira como o tema do aliciamento sexual entrou na corrente principal da cultura popular espanhola através do novo meio que era o romance pornográfico. Em Colegiales Adorables, o texto imensamente erótico, que apresenta descrições gráficas de masturbação, sexo anal, felação e cunilíngua, bem como do uso de contraceptivos a fim de facilitar as relações sexuais, oculta um subtexto contendo muitas das preocupações de carácter sexual dos críticos da confissão auricular. Os dois níveis da narrativa estão ligados pelo uso da ironia e de jogos de palavras, como o termo «blandón», que significa um grande castiçal da igreja, referência ao órgão sexual do confessor.

 

Quando o romance se inicia, é-nos apresentado o padre Canuto, que acabava de ser nomeado o novo capelão particular de um colégio feminino dos 14 aos 18 anos, dirigido pela ordem das Hermanas de Ia Tentación. Também aqui podemos constatar os efeitos da ironia e dos jogos de palavras, pois o rei Canuto II (944-1035) da Inglaterra e Dinamarca ficou famoso pelas suas proezas sexuais, enquanto as irmãs da tentação iriam, obviamente, falhar na sua missão de proteger a castidade das suas pupilas. A descrição que Bullon faz do jovem padre teria deliciado os leitores de El Motín ou La Traça, para quem todos os padres eram autênticos ou potenciais libertinos. Na altura da sua chegada ao colégio, Canuto é descrito como um homem jovem de sensualidade quase felina, vestindo uma sotaina de seda que «se moldava tanto ao corpo que se via nitidamente o contorno do tórax». Esta vestimenta era ajustada na cintura, mas alargava nas ancas, dando-lhe quase um «ar coquete». A sua indumentária era complementada corn um par de elegantes sapatos corn sola de cortiça e fivelas brilhantes. Quando as jovens passavam diante dele, «esfregava as mãos finas e magnificamente tratadas corn o prazer de um sibarítico».

 

Conforme referi anteriormente, uma das repetições constantes da propaganda anticonfessional era alertar para o perigo extremo em que a obrigação de o padre «escutar as descrições mais abomináveis de todo o tipo de pecados» colocava em jogo a sua própria moralidade. Este tema é tratado de uma forma satírica em ColegialesAdorables quando o padre Canuto, decidido a comportar-se o melhor possível por causa da confiança que o bispo depositava nele, é confrontado corn Margot, uma das suas primeiras penitentes.

 

Infelizmente para o padre Canuto, Margot, de 17 anos, não só era extremamente bonita como pertencia ao chamado «Trio Fantástico», as três raparigas mais ousadas e desavergonhadas do colégio. Apesar da sua juventude, Margot é apresentada ao melhor estilo da misoginia tradicional católica como um «agente do demónio», cujo olhar só por si significava perigo, e um a hipócrita cuj a devoção era desmentida pelo seu vestuário sedutor. Ao chegar à sacristia, onde, em vez de haver um confessionário, o padre Canuto ouvia as confissões das raparigas ajoelhadas diante dele, Margot trazia vestida uma blusa semitransparente e uma saia consideravelmente mais curta do que o permitido pelo regulamento do colégio.

 

A «comunicação indecorosa» para a qual Blanco White advertira começou mal Margot iniciou a sua confissão, quando informou o padre Canuto de que cometera vários pecados da carne corn um dos outros membros do «Trio Fantástico». Muito embora o pobre padre Canuto «ficasse corn os cabelos em pé» ao ouvir o relato hesitante das suas desventuras, viu-se envolvido no tipo de situação embaraçosa que Blanco White teria em mente ao descrever a enumeração dos pecados sexuais como principal causa do aliciamento. Por um lado, se ele permitisse que Margot e outras penitentes descrevessem plenamente os seus pecados sexuais, «passaria por um tormento tão requintado que não encontraria rival entre os inquisidores mais zelosos do reino ou o próprio Torquemada na época dos autos-de-fé». Por outro, receava que, se interrompesse as suas penitentes demasiado bruscamente, elas deixassem de se confessar e acabassem por ser condenadas à pena eterna.

Como, só de pensar nisso, o born padre ficava horrorizado, desenvolveu um esforço sobre-humano e invocou devotamente todos os santos do calendário, continuando a encorajar Margot a confessar os seus pecados. Aquela jovem traiçoeira, porém, não queria ser privada da sua presa e redobrou os seus esforços de sedução. A falsa confissão terminou finalmente quando Margot expôs os seios e o padre Canuto, apercebendo-se de que «estava perdido», se entregou a Deus e passou a ter relações sexuais corn Margot e as suas duas amigas, Lolin e Inés, que aguardavam no exterior da sacristia a sua vez de se confessarem.

 

Só corn o desenrolar do romance ficamos a saber que, apesar da sua juventude, o padre Canuto tivera mais do que a sua conta de aventuras sexuais, iniciadas quando estivera a seu cargo uma turma de rapazinhos, era ele ainda noviço. Atraído pela relativa segurança da prática, dedicavase a uma brincadeira que terminava quando «introduzia o seu implacável aríete nos seus traseiros rechonchudos». Mais tarde, satisfez a sua luxúria em criadas, mas o seu campo de acção predilecto era o confessionário. Depois de seduzir as suas penitentes durante a confissão, ordenavalhes que se colocassem bem próximo da abertura na divisória do confessionário para que pudesse ter relações anais corn elas. Ao fazê-lo, fingia estar a castigá-las pelos seus pecados, enquanto as raparigas repetiam timidamente, «Sim, padre, dai-me mais penitência» e pediam que introduzisse mais fundo nelas o instrumento penitenciai.

 

No resto do romance, o tema do aliciamento é relegado para segundo plano, pois o padre Canuto fica tão esgotado corn a sua actividade sexual no confessionário que resolve limitar a confissão a um dia por semana. Apesar de abandonar o tema do aliciamento a meio do livro, Colegiales Adorables apresenta uma síntese extraordinariamente completa dos seus elementos importantes em formato popular. Os inconvenientes da discussão excessivamente pormenorizada das questões sexuais durante a confissão, o padre lascivo que se serve da sua posição de confessor pari seduzir as penitentes e os perigos causados pela confissão à moralidade de jovens raparigas impressionáveis estão todos presentes, juntamente corn uma mistura de outros elementos retirados da imaginação sexual espanhola.

 

Durante o século XK, à medida que cada vez mais homens se começavam a retirar da participação na Igreja, a religiosidade intensa veio a ser encarada como o domínio da mulher. O abismo crescente entre a prática religiosa masculina e feminina, que se iniciara realmente durante a segunda metade do século xvm, levou a uma maior preocupação corn a forma como o poder eclesiástico, afirmado em particular no confessionário corn as mulheres, conseguia reduzir a autoridade do marido no casamento. Esta influência invisível não só destruiu o princípio do domínio masculino, que constituía a base da família burguesa, mas serviu também para coarctar os objectivos sociais e políticos liberais.

 

A obra mais famosa e influente a fazer soar o alarme em relação ao que se poderia designar por aliciamento moral das mulheres no confessionário foi publicada pelo notável historiador francês Jules Michelet (1798-1874). O livro altamente anticlerical de Michelet, Lê Prêtre, Ia femme et Ia famille (1845), apresenta uma imagem quase trágica do marido burguês que perde a influência sobre a mulher e os filhos e acaba por se tornar um estranho na sua própria casa através das acções do confessor. Arrastada cada vez mais para as devoções religiosas pela influência desmesurada do confessor/conselheiro espiritual, a esposa «tornou-se outra pessoa; ela está fisicamente presente, mas o seu espírito encontra-se noutro lugar». A diminuição da influência do marido é equiparável à crescente influência do padre, até o marido ser obrigado a aceitar uma proposta humilhante: uma divisão do afecto da esposa. Controlava ainda o corpo da mulher e tinha acesso sexual exclusivo a ela, enquanto o padre, dono dos seus segredos, teria a sua alma. Mas, como a mente domina a personalidade humana, o padre fica corn a melhor parte do negócio, na realidade, tudo o que é realmente importante. corn efeito, quaisquer direitos que o marido tenha ainda só os alcança tolerando o padre, e estes poderiam ser-lhe negados a dado momento. Deste modo, a influência clerical sobre as mulheres, afirmada através do confessionário, torna-se a chave para a constante ascendência da Igreja sobre a sociedade em geral. Ao controlar as mulheres, em especial as casadas, a Igreja influencia a educação e consegue destruir os planos de reformas liberais. Na formulação de Michelet, por conseguinte, a confissão representa o principal obstáculo à criação de uma ordem social liberal e republicana. O receio de que os padres reaccionários se possam aproveitar da confissão para destruírem as famílias de homens corn opiniões liberais ou anticlericais está patente nesta caricatura de El Motín. Aqui, um confessor aconselha uma mulher a deixar o marido se ele continuar a abraçar as ideias liberais e a atacar os membros de uma confraria religiosa .

 

Lê Prêtre, Ia femme et Ia famille, de Jules Michelet, revelou-se uma das obras anticlericais mais influentes do século xix. Foram publicadas dezoito edições entre 1845 e 1918 em França, Espanha, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Hungria. Além disso, os avisos de Michelet para os perigos da confissão tiveram repercussões em autores tão remotos como os das regiões francófonas do Canadá, que começaram a alertar os seus leitores para a sedução moral das mulheres no confessionário. Em 1885, Charles Chiniquy, seguidor de Michelet, publicou uma obra baseada genericamente em Lê Prêtre, Ia femme et Ia famille, por sinal intitulada The Príest, the Woman and the Confessional. Em 1908, foi traduzida para espanhol e publicada em Barcelona pelo anticlerical Centro Editoria Presa corn o título El cura, Ia mujer y el confesionario. Na sua obra, Chiniquy culpa a derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana pela «degradação» das mulheres e a destruição da família através das práticas confessionais.

 

De acordo corn Chiniquy, a destruição e a degradação moral das mulheres é uma consequência inevitável das «perguntas indiscretas» que o confessor católico se vê obrigado a fazer às suas penitentes. Estas perguntas levam não só muitas mulheres ao pecado, ensinando-lhes as práticas sexuais ilícitas, mas condena também outras a um estado de constante ansiedade em virtude da sua incapacidade de vencer a modéstia natural e falar de assuntos de natureza sexual durante a confissão.

 

Ao avaliar o impacte da confissão sobre a família, Chiniquy segue Michelet na denúncia do «abismo intransponível que foi escavado pela Igreja de Roma entre o coração da esposa e o coração do marido». No conflito entre marido e confessor, o padre triunfará sempre, não só porque conhece os seus segredos mais íntimos mas porque lhe promete a salvação eterna. A relação da mulher corn o confessor destrói a partilha mútua que constituiria a base de qualquer casamento pacífico, de modo que, em países católicos como a França, os homens têm poucos incentivos para casar e a população diminui em relação à dos poderosos países protestantes à sua volta. A derrota da França às mãos’da Prússia foi, por conseguinte, inevitável, uma vez que a mulher francesa «entregara a cidadela do seu coração, da sua inteligência e do seu amor-próprio nas mãos do confessor muito antes de os seus filhos entregarem as suas espadas aos alemães em Sedan e Paris». A primeira rendição incondicional levara à segunda.

 

O crescente anticlericalismo popular e o conflito agudo entre o liberalismo e o direito clerical tornaram praticamente inevitável que o livro de Michelet exercesse uma enorme influência em Espanha. Dois dos maiores romancistas modernos espanhóis, Benito Pérez Galdos (1843-1920) e Vicente Blasco Ibánez (1867-1928), ficaram fascinados corn o tema de Michelet da sedução moral das mulheres no confessionário e o impacte que poderia ter sobre a família e a sociedade. Cada um deles escreveu romances que se basearam substancialmente nas ideias de Michelet. O tema foi também retomado por um dos contemporâneos de Blasco Ibánez, Segismundo Pey Ordeix, cujo romance SorSicalipsis (1924, reeditado em 1931) foi vítima da censura oficial durante a ditadura de Primo de Rivera, em que foram destruídos 3000 exemplares por ordem do censor do governo.

 

Em La família de Léon Roch (1878), o último dos quatro romances que abordavam o impacte da religião sobre a família, escritos por Benito Pérez Galdos entre 1876 e 1878, os temas e mesmo os personagens baseiam-se em Michelet. Quando o romance se inicia, é-nos apresentado Léon Roch, o filho brilhante de um industrial abastado, que é a própria epítome do homem racional moderno. Léon está noivo da bela Maria Egipciaca, uma jovem apaixonada cuja fina camada de educação adquirida aos pés da avó materna e mais tarde num colégio feminino a deixou muito impreparada para o mundo. Seguindo o pensamento krausista espanhol e baseando-se no modelo tradicional da inferioridade mental e emocional feminina, o Léon de Galdos declara abertamente a sua intenção de moldar a personalidade ainda informe de Maria. Porém, Léon fica desconcertado ao descobrir que, em vez de ser domável, Maria está decidida a resistir aos esforços dele.

 

A luta de forças no âmago do romance começa por um incidente que ocorre um ano depois do seu casamento, quando Maria diz a Léon que, apesar de ser uma «mulher fraca e inferior a ti em muitos aspectos e principalmente no conhecimento e na experiência», sonha alcançar uma vitória, não o deixando nunca triunfar sobre ela. Em vez de lhe permitir que modifique o seu carácter, tenciona «transformá-lo à sua própria imagem» e, pegando no livro que ele está a ler, atira-o para a lareira, onde «arde corn uma chama viva». Este incidente chocante, corn a sua evocação específica das chamas da Inquisição, enquanto Léon se precipita, desesperado, para a lareira para «salvar o pobre herege», revela o abismo que divide o casal. Tal como a sua homónima Maria do Egipto, que passou de prostituta em Alexandria a eremita no deserto da Palestina, Maria Egipciaca acabará por rejeitar a vida que Léon lhe oferece e retirar-se para uma religiosidade rígida e fanática.

 

Maria Egipciaca demonstrou uma tendência perturbante para se apropriar do papel tradicional de domínio e controlo do homem, mas, como «mulher fraca», necessita de um aliado na sua luta pelo poder. Encontra esse aliado no seu confessor, Paoletti, que reforça a sua determinação de escapar à influência do marido e lhe fornece-lhe os argumentos e o vocabulário para sustentar a sua guerra doméstica. Incapaz de aceitar a afirmação de independência da esposa, Léon acusa Paoletti de a manobrar e se tornar «o governante da minha casa, o dono da consciência da minha mulher e-o-árbitro do meu casamento». Resistindo às tentativas do marido no sentido de moldar a personalidade dela, Maria mostra-se demasiado vulnerável às do seu confessor. No fim do romance, León encontra Paoletti a rezar diante da sepultura de sua esposa, e não pode deixar de «admirar a fidelidade do amigo espiritual que foi seu dono em vida e quis ser o seu guardião na morte». Foi esmagadora a vitória de Paoletti. Como o italiano desse pela presença de Léon, ergueu o olhar corn uma expressão de dureza e depois baixou-o para o livro de orações, «e aquele delicado movimento dos olhos continha o mais absoluto desprezo que se pudesse imaginar».

 

Em Sor Sicalipsis, Segismundo Pey Ordeix aproveitou igualmente o tema de Michelet da influência perniciosa que os confessores podiam exercer sobre as mulheres jovens. Sor Sicalipsis narra a história de uma adolescente que se apaixona pelo seu confessor, o padre Sical. Conseguindo acesso à casa dela, Sical procede a um «rapto espiritual», privando os pais dela de toda a verdadeira autoridade sobre a rapariga e orientando-a subtilmente para o claustro, onde a pode dominar em absoluto. O papel pernicioso que um confessor podia desempenhar ao afastar uma jovem do casamento foi o tema principal do anticlericalismo novecentista. Reflecte-se na caricatura de El Motín, em que um padre diz à sua penitente que terá de entrar para uma ordem religiosa se quiser salvar a alma e promete ajudá-la a fugir de casa dos pais. A caricatura sugere um preço sexual que terá de ser pago por esta protecção .

 

Depois de atrair Sicalipsis a uma viagem à Terra Santa, o padre Sical vê-se obrigado a abandonar a sua relação corn ela chegado o momento de entrar de facto para a ordem. Nenhum deles consegue esquecer o outro, porém, e o romance acaba em tragédia, corn os dois amantes aprocurarem o martírio como missionários, «pois a morte é a única união para os religiosos».

 

Na introdução à terceira edição desta obra, Michelet reforçou o facto de ter despertado tamanha hostilidade nos círculos clericais precisamente porque tocara no «ponto nevrálgico do poder eclesiástico» - a sua influência sobre as mulheres. Através do confessionário, o clero conseguia não só enfraquecer o marido burguês, normalmente considerado mais liberal e progressista do que a esposa, mas garantir também que os filhos fossem educados em escolas da Igreja, pois o confessor instruiria as mulheres da família a oporem-se a qualquer outra situação que fosse encontrada. Desta forma, a influência clerical podia ser perpetuada e tornada extensiva à sociedade pela geração mais nova.

 

Vicente Blasco Ibánez, que efectuou a primeira tradução espanhola da obra de Michelet Histoire de Ia révolution française, em 1898-1900, retoma o tema do pernicioso impacte social da influência do confessor sobre as mulheres no seu romance El Intruso (1904), mas coloca-o num contexto ligeiramente diferente. Ao invés da influência clerical sobre a educação, a extensão negativa da autoridade da Igreja através da sedução moral das mulheres é analisada ao nível da política e da economia. El Intruso situa o epicentro desta tese na relação entre José Sánchez Morueta, um abastado industrial basco, e o seu primo direito, o Dr. Luís Aresti. Tal como Léon Roch, o Dr. Aresti é apresentado como um homem de ciência cujo casamento corn uma devotajovem senhora da sociedade fracassou em virtude da sua incapacidade de a afastar das devoções religiosas. Blasco Ibánez introduz a imagem da estátua, usada corn frequência por Galdos, para descrever a mulher de Aresti, que se tornou fria e indiferente ao marido e repeliu as suas iniciativas sexuais. Aresti acabou por concluir que a mulher já não era totalmente sua e que fora obrigado a dividi-la corn os seus conselheiros espirituais. Ao fim de dois anos de casamento, durante os quais a esposa e a sogra se tornaram cada vez mais críticas das suas ideias progressistas e hostilidade à religião, Aresti guardou os seus poucos objectos pessoais e foi exercer Medicina numa distante região mineira.

 

Muito embora fosse poupado à hostilidade aberta pela sua enorme riqueza, Sánchez Morueta encontra-se em idêntica posição. Ao aproximarse da meia-idade, a sua esposa Cristina torna-se mais devota e é presa da influência do confessor jesuíta, padre Paulí. Sob a orientação de Paulí, as devoções religiosas de Cristina intensificam-se. Começa a dormir no chão, a usar vestes penitenciais e a mortificar-se regularmente. Ao mesmo tempo, torna-se uma forte defensora das actividades políticas de direita encabeçadas pelo militante padre Paulí. Verifica-se um crescente vazio no centro deste casamento, e Sánchez Morueta, tal como o marido burguês de Michelet, não se sente bem em sua casa, «aquilo a que chamam o meu palácio é como uma pensão para mim».

 

Afastado de Cristina pelas devoções religiosas desta e indiferente à defesa acérrima da direita religiosa, Sánchez Morueta procura recuperar a sua juventude nos braços de Judith, uma jovem francesa. Quando Cristina conta ao padre Paulí do romance, ele ordena-lhe que reconquiste o afecto do marido a qualquer preço, pois espera conseguir convencer o industrial e usar o dinheiro e a influência dele em prol da causa clerical. Como instrumento obediente do seu confessor, Cristina concorda em fazê-lo, apesar de sentir repugnância.

 

Quando Judith troca Sánchez Morueta por um homem mais novo, ele cai numa profunda depressão e adoece gravemente. Em consequência, aumenta a influência de Cristina sobre ele e, através dela, a do padre Paulí. O industrial outrora orgulhoso e independente torna-se meio autómato, um boneco nas mãos de Cristina e Fermín Urquiola, um parente afastado por via do casamento, que serve de procurador do padre Paulí. Sánchez Morueta abdica consideravelmente do controlo das suas empresas a favor de Urquiola, que substitui então os empregados e directores que possuem poucos conhecimentos da religião por católicos leais, independentemente da sua experiência ou capacidade. Gradualmente, o próprio Sánchez Morueta é atraído para o círculo do padre Paulí, fazendo um retiro religioso, uma confissão geral de todos os seus pecados e aceitando Urquiola como seu genro.

 

Na cena climática do romance, Aresti tem um último encontro corn Sánchez Morueta durante uma procissão religiosa organizada pelos jesuítas em honra da Virgem de Begona. Apanhado no meio de uma rebelião que eclode entre os operários e os fiéis chefiados pelo odioso Urquiola, Aresti encontra Sánchez Morueta, que ataca os operários corn os seus punhos enormes e lhe cospe no rosto como expressão final do ódio que Aresti sente por aquilo em que o industrial se transformou.

 

Profundamente chocado pela forma como o primo, outrora o seu melhor amigo e confidente, o tratava, Sánchez Morueta prepara-se para falar quando é afastado por «um fantasma negro». É o padre Paulí, que grita: «Vá a Begona, Don José, vá a Begona», e encaminha o pobre milionário atordoado na direcção do santuário. Mais tarde, ao pensar no fim trágico da sua amizade corn o primo, Aresti culpa o padre Paulí, «o intruso, o maldito intruso, como interferiu entre eles, destruindo todo o afecto e eliminando um passado de amor fraterno corn uma mão gélida de morte».

 

Significativo do nível cada vez maior de preocupação corn a confissão no século xix é o facto de o tratamento tão delicado e sensível do aliciamento, físico e moral, na literatura moderna se encontrar em La Regenta (1884), a obra-prima de Leopoldo Alas (1852-1901), que escreveu sob o pseudónimo de Clarín. Num certo nível, La Regenta é a história da relação entre dois indivíduos que se juntam pela solidão e intensa necessidade de satisfação física e emocional. A um nível mais profundo, o romance apresenta-nos uma meditação irónica sobre o sacramento da penitência e o papel do confessor. É La Regenta, e não qualquer obra erudita escrita na época sobre o tema da confissão, que nos fornece os conhecimentos mais profundos dos dilemas morais e frustrações sexuais que os confessores da Igreja da Contra-Reforma tinham de enfrentar.

 

No decorrer do romance, são-nos apresentados três confessores: Fermín de Pás, o brilhante jovem magistral da catedral na cidade provincial de Vetusta; Álvaro Mesía, um libertino que seduz Ana de Ozores, a principal personagem feminina; e o Dr. Benítez, que vem cuidar dela depois de sofrer um colapso nervoso. Dos três, só o Dr. Benítez representa as virtudes do confessor ideal, demonstrando a compreensão e a compaixão desinteressada do verdadeiro médico de almas pela sua paciente.

 

No início do romance, é-nos retratada Ana de Ozores, de 27 anos, esposa de um antigo presidente de escrutínio eleitoral, ou regente, de um dos tribunais provinciais de Espanha. Como tantas outras mulheres neste estudo, Ana é vulnerável ao aliciamento porque se sente frustrada sexual e emocionalmente. O marido, Victor Quintanar, descrito como um homem de quase 50 anos que mais parece ter 60, nutre por ela um amor platónico, mas as suas actividades absorvem-no e mostra pouca sensibilidade ~ãs necessidades dela. «O marido dela é um botânico, ornitólogo, caçador, crítico de teatro, actor, tudo menos um marido.» Sem filhos aos 27 anos, Ana sente que a juventude lhe foge e que morrerá sem conhecer as emoções de um amor romântico.

 

Fermín de Pás é também um indivíduo imensamente frustrado. Criado por uma mãe dominadora que sacrificou tudo para lhe dar uma educação e o trata ainda como uma criança, Fermín sente-se reprimido pela sociedade provincial em que vive e pela sua completa ausência de uma vida emocional satisfatória. Muito embora tenha alcançado a medida do sucesso e seja motivo de inveja dos colegas, apercebe-se de que provavelmente nunca irá conseguir que as ambições da sua juventude o guindem a uma posição mais importante na hierarquia e lamenta amargamente a sua «vida estéril». Muito embora deva tudo à mãe, reconhece que o amor dela não é tudo e que necessita de um «lar só seu» e de uma relação que seja «mais suave, mais íntima» corn alguém de idade e interesses mais próximos dos seus.

 

Ana fica encantada corn o magistral logo na primeira confissão. Adoptando um torn mais doce e familiar do que usa nos sermões, cria imagens vivas que ilustram as suas ideias e a tranquilizam sobre o valor das suas primeiras experiências místicas. Articulando os mais elevados ideais do confessor católico, encoraja-a a pensar nele como pai espiritual corn quem «as dores são aliviadas, as esperanças confirmadas, as ansiedades comunicadas e as dúvidas dissipadas».

Mas, num momento de reflexão, o próprio Fermín é obrigado a admitir que não é digno da fé que encorajou Ana a depositar em si. Na realidade, ele é o que muitos inimigos em Vetusta dizem dele: «Sou ambicioso, egoísta, ganhei dinheiro ilícito, sou um tirano e não um born pastor, trafico na religião daquele que expulsou os cambistas do templo.» Não obstante todo este desprezo pela sua pessoa e fortes sentimentos de culpa, o magistral não suporta perder a sua nova amiga espiritual. Pelo contrário, numa inversão da relação normal confessor/penitente, espera a redenção às mãos dela: «Se um dia a sua amizade corn Ana Ozores atingisse o ponto em que ele também se lhe confessasse, tinha a certeza de que ela o absolveria dos pecados que cometera.» Deste modo, enquanto a salvava, ela salvá-lo-ia também. Emocional, psicológica e espiritualmente, Fermín arriscara muito corn a relação corn Ana. Só uma paixão nobre e desinteressada, baseada na comunhão espiritual, o poderia salvar da esterilidade da sua existência em Vetusta, de modo que, apesar de se sentir atraído fisicamente por Ana, está determinado em evitar a «tentação de converter esta maravilhosa nova amizade numa vulgar história de paixão desonrosa».

 

Por seu lado, Ana procura também a salvação no magistral, e não só do tédio do seu casamento sem paixão e existência monótona em Vetusta. Encontrando-se fortemente atraída pelo belo, fútil e materialista Álvaro de Mesía, espera que Fermín consiga orientá-la numa vida de exaltação mística que a protegesse dos «instintos nitidamente criminosos» de Álvaro. Misturandoj^sagrado e o erótico, ela exprime esta alternativa usando «entregar», a palavra para a rendição sexual. Ela «abandonar-seá» a Don Fermín, confiante de que ele a salvará de cometer adultério corn Álvaro.

 

Se o magistral viola o verdadeiro significado do sacramento da penitência buscando uma relação intensa e íntima corn a sua penitente que raia o erótico, Álvaro é o confessor que procura exclusivamente a satisfação sexual. Na sua relação corn as muitas amantes, Álvaro mistura constantemente a confissão corn o erotismo. Obriga-as depois a «despir completamente as suas almas na presença dele» e, «qual mau padre que abusa do confessionário», a confessarem-se-lhe, vencidas pela paixão, revelando os seus pecados sexuais mais íntimos e vergonhosos. Através da carga sexual que faz provir desta imitação blasfema da confissão, Álvaro conta desfrutar das novas formas de satisfação erótica. A ligação entre sedução e confissão é explicitada mais adiante no romance, quando Álvaro preside a um jantar de doze anticlericais e, «em torn suave, lento, gentil, começa a confessar» as suas aventuras sexuais, não para ser absolvido dos pecados mas para granjear dos seus colegas libertinos a admiração pela sua coragem.

Como a «religião» de Álvaro era o materialismo, identifica prontamente o magistral como seu rival por Ana, não obstante o facto de a sua relação se afigurar platónica. Cinicamente convencido de que «ninguém consegue resistir aos impulsos naturais», teme e ressente-se da força sexual do padre no confessionário sobre a mulher que lhe conta os seus pecados.

 

Muito embora o contacto físico real entre Ana e o magistral se limite a pegar-lhe na mão numa ocasião, o «realismo sincero» de Álvaro é fundamentalmente são. No seu esforço para se libertarem do mundo físico e viverem puramente no plano espiritual, Ana e Fermín são vítimas de uma ilusão perigosa que irá ter consequências trágicas para todos os intervenientes.

 

corn o intensificar da sua relação, instala-se cada vez mais uma mistura instável do profano e do religioso, de exaltação mística e carnalidade. Tornam-se e comportam-se como amantes, ao mesmo tempo que se agarram à crença de que são apenas «dois anjos sem corpos». Finalmente, a sua tentativa de viver no plano puramente espiritual cai perante duas emoções humanas: a luxúria e o ciúme. Tal como as santas tentadas por visões de homens vis e lascivos que abusam delas sexualmente, Ana sonha incessantemente corn Álvaro, e, quando medita sobre o sagrado, Álvaro apresenta-se-lhe no lugar de Deus. Simultaneamente, o magistral torna-se mais possessivo em relação a Ana. Tal como os confessores de Michelet, «ele era o verdadeiro dono, o marido... o marido espiritual». Quando chega ao seu conhecimento que ela foi ao ponto de dançar corn Álvaro no Casino e lhe desmaiou nos braços, fica extremamente ciumento e resolve afirmar o seu poder sobre ela de uma maneira decisiva e inequívoca.

 

Cheia de remorsos e decidida a fazer uma última tentativa desesper ada de resolver o seu conflito interno entre a espiritualidade pura e o detejo erótico, Ana volta para Fermín e oferece-se para caminhar descalça na procissão de Sexta-Feira Santa. Para o magistral, que aceita avidament e a proposta de Ana, a procissão representa uma sedução tão completa que lhe permite exibir a vítima como «prisioneira sem correntes», nua diante de uma multidão surpreendida. «Descalcei os pés mais elegantes da cidade e arrastei-os pela lama... Quem seria capaz de tanto?» Mas este triunfo bárbaro assinala o apogeu do poder do magistral sobre Ana e sobre a sociedade vetustana. Ao caminhar na procissão, Ana sentiu que se submetia a «uma forma invulgar de prostituição» e descalçar os pés era o mesmo que despir o corpo e a alma. Para Álvaro, que assistia à procissão da varanda do Casino, a vitória do magistral foi apenas provisória, e perguntou-se que tipo de loucura cometia Ana, movida pelo amor que lhe tinha, ao comportar-se agora de uma forma tão extravagante, movida pelo amor que tinha ao seu confessor.

Depois da procissão, Ana sofre um esgotamento nervoso e, temendo pela sua sanidade mental, entrega-se completamente nas mãos do born confessor, o Dr. Benítez. Sob a influência deste, começa a ver a exaltação religiosa como uma forma de excitação nervosa nociva à sua saúde física e mental. O sentimento religioso de Ana transforma-se num «panteísmo vago e poético» e está montado o palco para a sua sedução por Álvaro no cenário bucólico de uma casa de campo.

 

Quando o magistral tem conhecimento do caso amoroso entre Ana e Álvaro, fica louco de ciúme. Foi traído por Ana, «minha esposa, irmã da minha alma», e anseia por vingança. Congeminando corn a criada de Ana, Petra, certifica-se de que o marido de Ana vê Álvaro a sair do quarto da esposa de madrugada e depois leva-o a desafiar Álvaro para um duelo. Álvaro mata Victor, mas o escândalo obriga-o a abandonar Vetusta, pelo que o romance acaba. Fermín consegue vencer, mas o esforço emocional de desejo erótico sublimado, da frustração emocional e da traição tem um preço mortal. Já durante a procissão de Sexta-Feira Santa, o momento do seu maior triunfo, começara a sentir-se como «uma concha vazia levada pela água na praia... o padre sem préstimo». Na horrível cena final, em que Ana regressa à catedral após um período de nojo, na esperança de renovar a relação corn o seu antigo irmão espiritual, o outrora orgulhoso Fermín tornou-se pouco mais do que uma «máquina de conceder bênçãos». Abandonada por Álvaro, evitada pelos amigos, Ana tenta desesperadamente provar a si própria que o magistral não é o «solicitante lascivo» pintado por Álvaro. Espera renovar a sua relação corn Fermín para encontrar através dele a misericórdia de Deus e a penitência para os seus pecados, mas tudo o que absorve a mente do farrapo humano em que Fermín se transformou é um desejo insano de vingança. Ao avançar para o confessionário, sai de lá de dentro uma enorme figura escura. É Fermín, o rosto pálido, os olhos brilhantes da fúria demente, e, quando caminha para ela corn o intuito assassino, ela cai no chão sem sentidos. Num esforço hercúleo para se controlar, esse mesmo autocontrole que bebera tanta da sua energia vital, Fermín detém-se e sai cambaleante, quase cego, da igreja.

 

A trágica incapacidade de integrar as necessidades do corpo e da alma em La Regenta revela as pressões sociais e institucionais que deram origem ao aliciamento. Os casamentos infelizes e insatisfatórios, um código sexual rígido e os crescentes condicionalismos à vida sexual do sacerdócio dificultaram imenso a realização do ideal confessional. A mistura do erótico e do espiritual durante a confissão era um barril de pólvora que ameaçava fazer ir pelos ares padre, penitente e o próprio sacramento. Quando Ana Ozores jaz inconsciente no chão da catedral, é abordada por Celedonio, o acólito nojento, efeminado, hediondamente feio na sua batina andrajosa. Movido por um «desejo miserável», inclina-se sobre La Regenta e beija-a. Ana desperta e abre caminho por entre o nevoeiro de um delírio terrível durante o qual imaginou que «o ventre viscoso e frio de um sapo» roçou os seus lábios. Em vez de se tornar o belo companheiro espiritual da imaginação de Ana, o sapo mantém-se sapo e o padre mantém-se um homem, pervertido e destruído por um código sexual inumano.

 

CONCLUSÃO

Desde o início, a Contra-Reforma foi de imediato reformadora e repressiva. Mas, como o demonstrou o presente estudo, estes elementos interagiram uns corn os outros de formas imprevistas que ainda hoje causam impacte no mundo católico. A tónica no sacramentalismo durante o Concílio de Trento e na Igreja pós-tridentina implicou que a confissão auricular e o papel do confessor sofressem uma transformação significativa. De um sacramento que quase não era observado pelo laicado, nem sequer no esforço mínimo estabelecido no Concílio de Latrão de 1215, tornou-se fulcral para a prática religiosa de grande parte da Europa católica. Simultaneamente, a hierarquia da Igreja, alarmada corn a má qualidade de tantos párocos, tentou melhorar a educação e a moralidade clericais de modo a que o laicado aceitasse mais prontamente a catequização e a confissão por eles efectuadas.

 

^ A enorme preocupação dos reformadores da Igreja corn o comportamento moral do clero levou a hierarquia espanhola a atribuir à Inquisição a responsabilidade nos casos de aliciamento sexual. Durante duzentos e cinquenta e nove anos (1561-1820), a Inquisição julgou casos de aliciamento, mas, em meados do século xvin, grande parte da energia e do entusiasmo iniciais que moveram a Contra-Reforma e geraram o respeito pelas suas instituições dissipara-se. Por toda a Europa católica, diminuíam as adesões às muitas confrarias que contavam corn o apoio laico organizado para fins de caridade e educativos. Em Espanha, muitas das confrarias de Sevilha recusaram-se a desfilar nas procissões religiosas a partir de 1778 e, no final do século, as autoridades catalãs tiveram dificuldade em convencer as guildas a participar nas cerimónias litúrgicas.

 

Ainda mais importante, da perspectiva da Igreja institucional, foi a deterioração das relações da Igreja-Estado durante o século xviii. Após a Concordata de 1753, a relação entre Igreja e Estado passou a ser favorável ao Estado, que pôde exercer cada vez mais controlo sobre as ordens religiosas e pressionou e demitiu até os bispos que se opunham à política régia.

A crescente afirmação do realismo nas relações Igreja-Estado levou a uma maior pressão contra a ordem jesuíta, que era vista como a principal apoiante do papado na sua luta pelo estado secular. A ordem foi expulsa de Portugal em 1759 e de França em 1764. Em Espanha, a resistência dos jesuítas às medidas régias tomadas por Carlos In e seus ministros e a desconfiança de que a ordem estivesse de algum modo envolvida no Motim de Esquilache1, que se registou em Março de 1766, levou à sua expulsão em 1767. Infelizmente, a partida dos jesuítas enfraqui céu ainda mais a Igreja, uma vez que a ordem fora a grande força subjacente aos esforços educativos da Igreja entre aélite social, bem como a fonte de inspiração e apoio ao envolvimento laico em muitas actividades relacionadas corn a Igreja.

 

A Inquisição espanhola encontrou-se também numa posição consideravelmente mais fraca em meados do século. Apesar do forte apoio aos Bourbon durante a Guerra da Sucessão, veio a ser considerada inimiga do limitado programa de modernização do regime. Em 1768, Carlos In reduziu a sua autoridade à censura dos livros e dois anos mais tarde alertou a Inquisição para a prisão fosse de quem fosse, a menos que plenamente estabelecida a culpa. Como o encarceramento e o interrogatório, na esperança de obrigar o réu a confessar, constituíam uma parte essencial do procedimento inquisitorial, não surpreenderá que fosse suspenso um número cada vez maior de casos durante a última metade do século xvin. Mesmo existindo provas sobejas que justificassem a acusação, o apoio moderado da Coroa e a crescente lassidão administrativa do Santo Ofício tiveram como resultado que as acusações se iniciassem ao cabo de longos atrasos, pelo que as práticas que a Inquisição deveria impedir puderam continuar quase sem controlo.

 

O declínio da Inquisição não poderia ter ocorrido em pior altura para o programa da Igreja manter a confissão no centro da observação da Contra-Reforma. Conquanto a insistência oficial em certificados de confissão, actividade missionária e catequização tivessem aumentado consideravelmente a participação popular no sacramento, os próprios clérigos estavam a atravessar uma crise de confiança que levou muitos a questionar o seu valor. A abominação que José Blanco White sentia

 

1 Entre 1763-1765, a agricultura espanhola sofreu uma grave crise que provocou o encarecimento dos alimentos. O povo madrileno acusou o marquês de Esquilache (estadista italiano ao serviço de Espanha e nomeado para o cargo de secretário da Fazenda) de não ter tomado as medidas oportunas para evitar a subida dos preços. Por isso, no dia 23 de Março de 1766 o povo amotinou-se. No dia seguinte, as suas petições foram expostas ao rei e aceites, entre as quais a redução dos preços e o desterro de Esquilache. (N. da T.)

pela confissão, que apelidou de «uma das práticas mais traiçoeiras da igreja romanista», foi provavelmente típica de muitos membros do clero durante este período.

 

Ao mesmo tempo, verificou-se uma maior relutância em aceitar os condicionalismos do celibato por parte de muitos membros do clero, encorajada pelo grande afluxo de literatura que entrava em Espanha através de vias clandestinas. Estas obras iam desde temas eróticos como Vénus dans lê cloítre ou Ia religieuse en chemise, publicado em Londres em 1740 e que circulou em Espanha até ser proibido pela Inquisição espanhola em 1804, a obras mais sérias que atacavam o celibato alegando a sua contradição corn a tradição da Igreja, como Lês inconvénients du célibat desprêtres, de Jacques Gaudin, publicada em Genebra em 1781 e que só foi proibida em Espanha em 1801.

 

Será justo presumir que a crescente frustração aos mais altos níveis da Inquisição, corn a sua incapacidade de controlar os elevados índices de aliciamento durante o século xviii, constituiu motivo para esta revolta contra o celibato por parte de muitos outros padres ao denunciarem amargamente o celibato como a principal causa dos «crimes e práticas incorrectas dos padres de Roma» e garantiu aos seus leitores que, «embora os padres façam um voto de castidade, quebram-no ao viverem vidas dissolutas, lascivas e irregulares». A revolta de José Marchena contra a sociedade tradicional espanhola foi mais de carácter sexual do que político. A sua primeira publicação atacou o celibato clerical, e, mais tarde na vida, o seu biógrafo francês referiu-se-lhe como um amante prodigioso e uma pessoa da «imoralidade mais incrível».

 

O ataque protestante ao sacramento da penitência tem dois gumes: um sacerdócio indigno e pecaminoso ministrava um sacramento de validade escriturai duvidosa e sem qualquer valor na obtenção da justificação. Na sua resposta, os líderes da reforma católica tiveram não só de reafirmar a validade e a origem divina do sacramento mas de criar também um sacerdócio digno de o ministrar. No seu zelo, empreenderam uma das experiências mais ousadas de repressão sexual em toda a história humana. Mas, apesar da educação e preparação mais rigorosas, os requisitos do celibato revelaram-se excessivos para muitos padres, e, corn as saídas sexuais e sociais normais extremamente circunscritas, o confessionário era o único lugar onde podiam estabelecer contacto corn as mulheres e falar corn elas sobre assuntos de natureza pessoal e íntima. Reprimindo duramente a actividade sexual e colocando a sua conduta moral sob o controlo dos funcionários episcopais e insistindo para que os padres exigissem um relato exacto e pormenorizado dos pecados, a própria Igreja criara as condições objectivas para o aliciamento no confessionário.

Consequentemente, mais de dois séculos e meio de perseguição pelo Santo Ofício não conseguiram acabar corn o problema do aliciamento, apesar de poucos padres poderem alegar o desconhecimento das leis que o proibiam. No entanto, ao concentrar a sua atenção no confessionário como local de actividade sexual, a Inquisição poderá ter erotizado a confissão. A perseguição organizada ao aliciamento terminou corn o fim do Santo Ofício, mas a obsessão espanhola corn um sacramento erotizado da penitência manteve-se bem viva. Em 1959, foi descoberto em Málaga um caso como o atrás descrito por Llorente: o padre Hipólito Lucena, um respeitável pároco e professor de Teologia, provocou um escândalo horrível ao revelar que diversas das suas penitentes estavam acostumadas a realizar uma série de actividades sexuais corn ele diante do altar-mor da igreja. O padre Lucena foi rapidamente obrigado a sair de Espanha e passou o resto dos seus dias num convento austríaco. Em Novembro de

1992, a polícia de Santander investigou uma denúncia de uma devota de 74 anos que afirmou que, ao sair da igreja às cinco da tarde, fora abordada por um homem que lhe tapara a boca corn a mão e a arrastara para dentro de um dos confessionários e a violara. Ao longo do período pós-Guerra Civil, as jovens espanholas encaravam a confissão corn tremenda ansiedade, precisamente por sentirem que podiam ser interrogadas mais minuciosamente sobre questões sexuais do que os rapazes da mesma idade.

 

A renovação da Teologia Moral na década de 1950, que se iniciou corn a obra dos alemães Tillman e Hõring e do francês Leclerq, recebeu um forte impulso no Concílio do Vaticano II (1962-1965). Os actuais teólogos católicos romanos abandonaram a casuística e o legalismo da Igreja póstridentina e abraçaram uma abordagem mais aberta, tentando relacionar a noção de pecado individual corn os dilemas da vida numa sociedade secular e as descobertas no campo da psicologia, da sociologia e da antropologia. Simultaneamente, o novo ritual de penitência publicado em 1973 reformou substancialmente a forma como o sacramento era ministrado. Manteve-se a confissão individual, mas foi dada preferência a novas formas de penitência comunitária, em que o padre desempenhava a função de uma espécie de presidente de escrutínio eleitoral ou moderador. Mesmo nos casos em que foi preservada a forma antiga, já não se esperava que o padre procedesse a um «interrogatório» ou «investigasse a consciência do pecador». Dados a ousadia e o âmbito destas mudanças, a Igrej a teve uma oportunidade sem precedentes de recuperar a reputação do sacramento da penitência permitindo-lhe desempenhar a sua função ao proporcionar consolo aos aflitos de espírito, a quem, em princípio, se destinava. Infelizmente, os dados provenientes dos estudos sociológicos parecem indicar que a aceitação das novas formas comunitárias de confissão entre o laicado não conseguiu entravar o rápido declínio na popularidade do sacramento já notório no início da década de 1970. Para enorme pesar dos conservadores eclesiásticos, os meados da década de 1980 conheceram praticamente o abandono da confissão auricular em muitas paróquias. Além disso, a ligação entre a comunhão e a confissão, tão firmemente arraigada na mente popular após o Concílio de Trento, rompeu-se, em grande medida, corn percentagens de comunhão que ultrapassam consideravelmente as de confissão na maior parte dos locais. Por irónico que pareça, a indiferença para corn o sacramento da penitência, manifestada tanto pelos padres como pelo laicado, serviu para conseguir em escassas décadas o que a Inquisição espanhola não lograra realizar em várias centenas de anos de perseguição: eliminar consideravelmente o problema do aliciamento sexual. Na Igreja dos nossos dias, continua a haver escândalos sexuais, mas provêm inteiramente da insistência contínua no celibato e têm lugar fora da órbita da confissão, em seminários, colégios ou apartamentos. A rejeição integral do sacramento da penitência tanto pelos clérigos como pelo laicado nas últimas décadas destaca-se em nítido contraste corn a crescente popularidade da comunhão e deveria ser tomada em consideração pelos historiadores da descristianização. À semelhança da popularidade dos cultos de santos, que ascenderam e declinaram de acordo corn uma série de condições locais e regionais, alguns sacramentos podem ter caído em desuso sem indicarem forçosamente uma diminuição geral na importância global dos sacramentos. Talvez um dia, num futuro próximo, o sacramento da penitência possa recuperar a sua popularidade quando o laicado redescobrir o seu verdadeiro potencial para proporcionar alívio, consolo e esclarecimento espiritual. 

 

                                                                                Stephen Halicser  

 

GLOSSÁRIO

Abjuração «de levi» - Renúncia aos erros e retorno à fé necessários por parte dos que foram considerados culpados de ofensas menores pela Inquisição.

Abjuração «de vehementi» - Renúncia aos erros e retorno à fé necessários por parte dos que foram considerados culpados de ofensas mais graves em que existia a suspeita verdadeira de heresia. Auto-de-fé - Cerimónia pública durante a qual os crimes cometidos por pessoas que estavam sob a alçada da Inquisição eram lidos em voz alta juntamente corn os castigos.

Beata - Mulher laica que fez voto de castidade e dedicou a sua vida a Deus.

Libelo de sangue -Alegação feita pelos anti-semitas de que os judeus usavam o sangue das crianças cristãs assassinadas nos seus rituais religiosos.

Carta acordada - Norma administrativa enviada aos tribunais provinciais pelo Suprema.

Comissário - Membro do clero que representava a Inquisição nas zonas rurais. Recebia informação sobre os delitos e enviava-a ao tribunal.

Consulta de fé - O conjunto de pessoas, incluindo os inquisidores, bem como um representante do bispo e alguns licenciados em Direito e Teologia, que pronunciava a sentença nos tribunais inquisitoriais.

Converso - Judeu convertido ou descendente de judeus convertidos.

Familiar - Assistente laico da Inquisição, não remunerado.

Pecados mortais - Os pecados mais graves, envolvendo a perda da graça e a possibilidade de danação eterna. Têm de ser todos confessados, senão a confissão será considerada incompleta e, por conseguinte, inútil.

Penitência sacramental - Ritual eclesiástico, realizado por um padre devidamente autorizado, destinado a reabilitar os cristãos que cometeram pecados graves ou caíram em desgraça perante a comunidade dos fiéis.

Solicitante - Padre, secular ou regular, acusado de seduzir ou tentar seduzir uma penitente por palavras ou actos, antes, durante ou após a confissão.

Suprema - O conselho governativo da Inquisição espanhola, criado em 1483.

Sínodo - Ao nível da diocese, a assembleia do clero regular e detentores de benefícios chefiada pelo bispo, onde eram aprovados os regulamentos para a moral e a vida religiosa do clero e do laicado.

 

 

 

                      

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