Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
SHADOWMANCER
O Feiticeiro das Sombras
Às pessoas, os lugares e os espíritos sobre os quais você vai ler em Shadowmancer — O Feiticeiro das Sombras são todos da costa de Yorkshire. Essa é uma região de despenhadeiros e pântanos, rica em histórias e lendas. Se você decidir seguir a trilha de Shadowmancer — O Feiticeiro das Sombras, partindo do Bosque de Wyke e indo até Whitby, como outros o fizeram ao longo de vários séculos, logo os escutará.
O Bosque de Wyke fica aninhado ao redor da Baía de Hayburn. Suas árvores são muito próximas umas das outras e sabe-se que todos os caminhos que conduzem à praia rochosa são assombrados pelas almas dos contrabandistas capturados pelos fiscais e enforcados em York. O som das ondas nunca está muito distante. O mar ecoa por entre as árvores e por entre elas também corre o rio antes de despencar do alto do despenhadeiro para cair na praia rochosa lá embaixo.
A baía é assombrada pela memória dos malfeitores que ali provocavam naufrágios; eram impiedosos caçadores de fortunas que acendiam lamparinas para atrair os marinheiros desavisados que acabavam por naufragar naquela costa. Se você prestar atenção poderá ainda ouvir as vozes dos contrabandistas e os sussurros dos thulaks por ali.
O Caminho do Norte passa por perto do alto círculo de pedras hoje encoberto pelas árvores. A partir dali torna-se rapidamente íngreme e atravessa a Fazenda da Colina do Sino. Nesse lugar existia uma capela, originalmente entregue aos Cavaleiros Templários pelo Rei Stephen e que depois passou à guarda dos Cavaleiros Hospitaleiros. Sua missão era oferecer hospitalidade a qualquer viajante; com os sons de um sino e de uma trombeta, eles guiavam os passantes até sua porta. No lugar agora encontra-se uma casa de fazenda típica de Yorkshire e seu nome é tudo que restou do legado dos generosos Hospitaleiros.
A estrada o levará à Forca de Rudda — encruzilhada onde muitos homens foram enforcados como advertência a outros — e continuará até a aldeia de Ravenscar, no alto de uma escarpa.
Desse ponto descortina-se o Vicariato dominando o horizonte. O longo caminho que leva até ele tem duas colunas negras guardando a entrada. A bela construção de estilo georgiano é conhecida atualmente como Hotel Salão do Corvo. A vista dali já foi considerada uma das mais belas do mundo. Em qualquer dia do ano pode-se ter o espírito enlevado pela visão da Baía de Robin Hood e da aldeia de Thorpe. É fácil entender por que Obadiah Demurral quis tanto que esse lugar fosse seu.
Nos campos de relva existia antigamente uma mina de alume, e a oeste vêem-se profundos sulcos em sua pedreira que lembram feridas na terra. Lá no alto ficam os charcos — o Charco Branco e o do Penhasco. Diz-se que nunca se deve pedir informações sobre o caminho a um estranho por aquelas bandas, pois o estranho pode ser um boggle que ensinará o caminho errado. É isto que os boggles sempre fazem, principalmente quando sabem que a pessoa quer chegar ao Moinho dos Boggles, que fica no fundo do vale lá embaixo, escondido por um pequeno bosque cortado por uma ravina onde as ondas raivosas do Oceano Germânico vêm se quebrar. O Moinho dos Boggles é atualmente uma hospedaria para jovens viajantes, mas não é necessária muita imaginação para se verem Rueben Wayfoot e seus filhos trabalhando no moinho e fazendo farinha.
Os boggles existem mesmo? Bem, por essas paragens cada aldeia tem seus boggles e seus elfos. Às vezes eles são prestativos e trabalham de graça no campo ou curam os doentes e até guardam os rebanhos. Mas Deus o livre de indispor-se com algum deles... eles espatifam sua louça, secam o leite de sua vaca, fazem com que sua mulher fique mais feia a cada dia, suas crianças mais desobedientes e sua cerveja cada vez mais choca. Elfos são elfos e é melhor deixar quem saiba lidar com eles. Se você vir um deles pelo canto dos olhos ao atravessar a ponte perto do Moinho dos Boggles, a melhor coisa a fazer é cumprimentá-lo com um sorriso e deixar uma moedinha reluzente sob a placa que indica o caminho para Baytown.
Baytown é um lindo lugar, apesar de todos os horrores que aconteceram ali, inclusive assassinatos, contrabandos e traições. Do cais até o alto da cidade passa um túnel de contrabandistas, com conexões para vários chalés, que era uma boa rota de fuga e um lugar seguro para armazenar o contrabando.
A estrada para Whitby segue montanha acima e atravessa para o Charco de Hawsker. Este não é um lugar por onde se deva passar sozinho à noite. Os galhos retorcidos das árvores castigadas pelo vento se parecem de fato com os dedos das bruxas que dizem freqüentar essas paragens.
Se você conseguir chegar são e salvo à aldeia de Whitby e seguir pelas meias estreitas que levam à Rua da Igreja, poderá parar para descansar um pouco na Taberna do Grifo. A comida vai reconfortá-lo e há sempre muita gente por lá. É nessa ma que Shadowmancer — O Feiticeiro das Sombras termina. Kate, Thomas e Raphah pisaram nessas mesmas pedras em que você pisará ao passar pela porta da antiga livraria de onde o dono, de cabelos ruivos, tenta atrair fregueses para provar as delícias da palavra impressa.
Seguindo em frente, sempre subindo, você chegará à igreja de Santa Maria, onde Hilda e Caedmon deixaram sua marca na história com poemas e ações pacificadoras.
Se você acredita em anjos, estará no lugar certo. Sente-se num dos bancos laterais circundados por divisórias de madeira, feche os olhos e ouça o que as pessoas aqui sussurraram no decorrer de muitos séculos — as coisas que ardiam em seus corações. Nesses mesmos bancos já se lamentaram as perdas de muitos seres amados, já foram dadas graças por muitos outros que vieram ao mundo e pelas vidas que ali se uniram para sempre. Dizem que algumas pessoas, ao se sentarem ali, tiveram a companhia de anjos disfarçados em pessoas comuns, trazendo consigo uma luz que as sombras do mundo jamais vencerão.
Esse é o lugar de Shadowmancer - O Feiticeiro das Sombras...
A Tempestade Tenebrosa
Era uma noite silenciosa de outubro. No alto da montanha a colheita havia terminado e as pilhas de milho davam a impressão de ser estranhas casas de palha. Uma lua de prata reluzente refletia-se no mar calmo. Ao longe a silhueta do Amizade, um navio-carvoeiro, podia ser vista entre as ondas. Às velas do barco pareciam bandeiras de uma pequena tropa preparando-se para a guerra.
O brilho da lua cheia penetrava as profundezas mais recônditas dos bosques que dominavam os topos das escarpas. Uma pequena figura com vestes escuras e botas até os joelhos caminhava com dificuldade, carregando um comprido estojo de couro negro e seguindo timidamente um homem alto, de porte confiante e longos cabelos brancos esvoaçantes. Perto dali, uma raposa dormia escondida entre as folhagens rasteiras, provavelmente sonhando com algum coelho, quando foi subitamente acordada pelo pânico de um cervo que se lançou às pressas para fora de seu esconderijo em um arbusto de azevinho e pôs-se a correr em direção à mata mais escura do Bosque de Wyke.
? O que foi isso? — O homem de pequena estatura assustou-se e sua voz saiu esganiçada e trêmula. Com o susto, ele deixou cair o estojo de couro e agarrou-se à figura encasacada que havia seguido de perto naquela noite de outono.
— Ele está ali — gemeu o homenzinho. — Posso vê-lo. Está no meio daquelas árvores.
Seu companheiro agarrou-o pela orelha.
— Fique quieto, Beadle. Não é preciso que o mundo inteiro ouça sua voz.
O homenzinho apertou bem os olhos, tentando ver o que havia na escuridão ao mesmo tempo em que procurava se esconder no casaco do companheiro. Beadle não gostava do escuro e detestava a noite. Não queria saber de bravuras, e as noites eram para serem passadas junto à lareira da taberna, ouvindo histórias de terras distantes, relatos de guerras em outras plagas e contrabandos, e bebendo cerveja morna e espumosa.
Ali naquele bosque no alto da montanha o mundo era diferente para Beadle. Era um mundo ao qual ele não pertencia. Os bosques eram lugares para boggles, bruxas do mato, elfos e thulaks. Eram os thulaks que Beadle mais temia — aquelas criaturas estranhas e invisíveis que habitavam as trevas. Os thulaks eram capazes de se aproximar sorrateiramente de uma pessoa no meio da noite, envolvê-la em uma nuvem escura e roubar-lhe o desejo de viver. Havia histórias de como eles entravam sem serem vistos por janelas abertas e cobriam com um manto a vítima que dormia sem de nada suspeitar. Uma vez capturada, a vítima não podia se mexer. Eles retiravam sua força e enchiam sua mente de pensamentos pavorosos. Esses eram os sonhos thulakianos que a vítima passava a ter pelo resto da vida. Eles a deixariam aflita e exausta, de olhos fundos por causa das noites insones por medo de sonhá-los novamente.
Beadle agarrou-se ainda mais ao casaco de seu companheiro quando uma brisa suave mexeu as folhas marrons e secas das árvores, fazendo ruídos.
— Será um homem ou serão... eles? — Ele mal conseguia falar; sua perna direita desequilibrou-se, seu rosto se contorceu, a boca ficou seca e a língua parecia estar grudada no céu da boca.
— Eles? — repetiu o amigo por entre os dentes, olhando-o nos olhos. — Eles quem? Você não consegue dizer a palavra? Por que está apavorado deste jeito?
Beadle encolheu os ombros e escondeu o rosto no casaco negro e surrado do companheiro, que àquela altura já estava irritado.
— Thulaks — sussurrou ele quase sem forças, tentando abafar a voz para que eles não o ouvissem.
Seu companheiro pôs a mão em concha ao redor da boca, como se fosse à boca de um trompete; encheu o peito de ar e, com uma voz que parecia sair das profundezas de sua alma, berrou:
— Thulak! Thulak! Thulak! — A voz ecoou pelo bosque, a raposa saiu em disparada de uma moita e foi esconder-se bem longe dali.
Uma revoada de gralhas negras partiu das árvores acima de suas cabeças e fez vibrar o ar da noite com seus gritos cau-cau-cau e seu vôo em círculos acima dos galhos, dançando ao luar.
—...Não — sussurrou Beadle, agora completamente dominado pelo terror. — Por favor, padre Demurral, não diga essa palavra. Eles nos ouvirão e virão nos pegar. Minha mãe dizia...
Ele foi bruscamente interrompido.
— Nos pegar? Você disse nos? — Demurral curvou-se sobre seu empregado, que parecia menor ainda por estar encolhido de medo. — Não tenho medo de coisa alguma nem de pessoa alguma, e elas têm todos os motivos do mundo para ter medo de mim. Esta noite, meu amiguinho, você verá quem eu realmente sou, mas não dirá nenhuma palavra do que ficar sabendo a quem quer que seja. Eu controlo criaturas que são bem mais assustadoras do que os thulaks. Se disser uma só palavra sobre o que verá esta noite, não ousará nunca mais fechar os olhos nem jamais desejará que o sol se ponha. Agora vamos, temos trabalho a fazer; um navio aguarda seu destino e eu aguardo o meu.
Demurral agarrou Beadle pela gola, pondo-o de pé e arrastando-o pela trilha que levava ao mar. Beadle não tinha como se opor. Era empregado do Vigário de Thorpe havia vinte anos. Ao completar 11 anos de idade, fora posto no trabalho recebendo um penny por semana, com tudo incluído: um lugar para dormir no estábulo, palha limpa e um dia de descanso por mês. Às pessoas diziam que ele tinha sorte - raquítico como era, manco de uma perna, não seria de muita utilidade para pessoa alguma. Demurral era um patrão muito duro: tinha uma fala ríspida e a mão mais ríspida ainda. Às vezes Beadle ia se esconder no fundo da igreja e ficava ouvindo seu discurso empolado proferido do púlpito. Ele falava de fogo do inferno, danação eterna, caldeirões de sangue fervente, serpentes e todos os outros horrores que aguardavam os infiéis.
Beadle resmungava consigo mesmo:
— Fornalha, sangue fervente, que espécie de trabalho é este; está escuro demais, está frio demais, está...
Demurral interrompeu-o.
— Pare de resmungar. Temos coisas a fazer. Veja se arrasta essa sua perna mais depressa. Talvez assim cheguemos à praia antes do nosso navio passar. — Beadle escorregou na lama ao tentar fazer o que o seu mestre lhe ordenava. — Cuidado com o estojo! Gastei muito do meu tempo e do meu dinheiro para encontrar o que precisava. Agora preste atenção: temos de descer pela cachoeira para encontrar a pedra.
Beadle sabia que o dinheiro para comprar o que havia naquele estojo preto não tinha sido de Demurral. Domingo após domingo, ele havia roubado dinheiro das pessoas da aldeia.
Ele se lembrou da noite em que o estojo comprido de couro negro havia chegado ao Vicariato. Beadle tinha espiado por uma fresta da porta do escritório que estava ligeiramente aberta. Pela primeira vez em toda a sua vida viu um homem com a pele tão negra que chegava a reluzir. O proprietário da Taberna Hart disse que ele viera de Whitby. Tinha sido o único passageiro a bordo do cargueiro Salão Branco, que aportara na véspera vindo da Espanha.
Beadle observou atentamente quando o homem abriu o estojo e, à luz bruxuleante das velas, tirou de dentro um bastão de metal longo e reluzente, quase do tamanho do próprio Beadle. Depois retirou do estojo uma mão com o punho fechado feita de pedra negra. Pegou então um punhal de prata incrustado com duas pedras negras e colocou-o na tal mão de modo que esta o segurasse.
Foi então que Beadle viu uma coisa tão linda que a visão ficou gravada em sua alma para sempre. O homem tirou uma sacola de veludo negro de dentro da capa e colocou-a cuidadosamente sobre a escrivaninha. Quando ele abriu a sacola, Beadle pôde ver duas asas de ouro que se projetavam das costas de uma pequena estátua. Antes que ele pudesse ver mais, Demurral rapidamente levantou-se de sua cadeira junto à escrivaninha e bateu a porta com força, fechando-a. Ele e o visitante falavam em voz baixa. Beadle grudou a orelha esquerda na porta e ficou ouvindo.
O visitante falava em inglês fluente.
— Corri grandes riscos e viajei muitos quilômetros para trazer-lhe isto. É poderosíssima sua força mágica e nada os deterá para tentar recuperá-lo. Você é um homem de coragem, Demurral. Ou então é um tolo rico.
Beadle ouviu a risada de seu patrão.
— O que eu sou não é da sua conta. Agora pegue seu dinheiro e vá embora. É não diga uma só palavra a ninguém. Não tema o que pode destruir o seu corpo, mas sim o que é capaz de destruir-lhe a alma. — Demurral fez uma pausa e então perguntou: — Quando chegará o outro Keruvim?
O visitante de Demurral respondeu baixinho:
— Não tardará; eles não podem ficar separados. O Keruvim saberá encontrá-lo.
Beadle ouviu passos aproximando-se da porta e escondeu-se atrás de uma grande cortina da janela do salão.
Agora, passadas muitas noites, Beadle e Demurral deixavam a floresta que encobria o caminho da montanha. O ruído da cachoeira e o cheiro do mar encheram o coração de Beadle de expectativa e ansiedade. Demurral desceu pela escada de corda que havia junto à cachoeira e chegou à praia de seixos. Beadle amarrou uma corda de cânhamo ao estojo e com cuidado baixou-o até as mãos do patrão.
— Vamos logo — gritou Demurral. — Já está quase na hora. Apresse-se. Já posso ver as velas do barco. — Beadle quase se jogou da altura de seis metros até a praia; ele não queria ser deixado para trás à beira do bosque. Um forte arrepio percorreu-lhe a espinha e seus cabelos ficaram em pé. Os thulaks poderiam estar em qualquer lugar.
Demurral caminhou até uma grande pedra plana a poucos metros de distância das ondas que quebravam mansamente. Sob a luz intensa do luar tudo tinha um brilho azul e prata; tudo parecia gelado.
Ele percebeu que a rocha tinha o feitio de mão com a palma voltada para cima, como para receber o mar. No centro havia um furo entalhado. Três degraus haviam sido também entalhados em um dos lados da rocha. Os degraus eram pequenos demais para seus pés, por isso ele subiu usando as mãos e os joelhos.
— Ande logo, homem! — gritou Demurral. — Só temos alguns minutos e aí será tarde demais. — Pela primeira vez ele deixou que Beadle visse tudo que havia no estojo. — Fique longe, Beadle. Este é um trabalho sagrado...
Demurral tirou o bastão dourado e inseriu a haste no furo que havia no centro da rocha. Era uma estaca feita com madeira de acácia e enrolada em lâminas de ouro. Rapidamente ele atarraxou ali a mão de pedra negra e nela pôs o punhal de prata. Em seguida ajoelhou-se e abriu uma tampa longa e estreita que havia no interior do estojo. De seu invólucro em um tecido de lã, retirou a figura alada de ouro maciço. Beadle não conteve uma exclamação de encantamento. A luz da lua cheia, a figura brilhava com uma radiância fantasmagórica.
Demurral olhou para Beadle e ergueu a estatueta de ouro.
— Isto é um Keruvim. Só existem dois em todo o mundo. Agora possuo um e esta noite passarei a ser o dono do outro.
Beadle ficou olhando, fascinado, aquela bela criatura que Demurral tinha nas mãos. Era do tamanho de uma pequena coruja, tinha asas de ouro dobradas para trás acompanhando toda a extensão do corpo e a cabeça era a de uma linda criança com olhos de pérola.
— Não se aproxime, Beadle. Agora começa nosso trabalho — disse Demurral. Ele segurou o bastão dourado e pousou a mão esquerda sobre a mão de pedra. Com a direita ergueu o Keruvim, apontando-o na direção do barco que passava silenciosamente, atravessando a noite com todas as velas enfunadas. Beadle viu as luzes vermelhas e verdes subindo e descendo com o movimento do barco no mar tranqüilo.
Demurral então gritou, rompendo o silêncio:
— Ondas e ventos, fogo e água! Raios e trovões! Cumpram minhas ordens! Obedeçam às minhas palavras! Surjam dos confins do norte e das profundezas da terra. Tempestade, mande sua ventania destruidora e naufrague aquele barco! Faça com que encalhe nesta praia! Traga-me meu Keruvim!
Um único raio de luz muito brilhante saiu da boca do Keruvim. Bateu no mar e subiu até o céu, provocando um estrondo terrível como se um poderoso raio caísse sobre a terra.
Com o susto, Beadle deu um pulo, perdeu o equilíbrio e caiu de costas sobre os seixos da praia.
Ficou imóvel por alguns instantes.
— O que está fazendo aí, Beadle? Isso não é hora para descansar. Levante-se, levante-se! — disse Demurral rispidamente. Beadle gemeu e, ainda caído, enfiou a mão no bolso do casaco. Ali estava, esmigalhado, o ovo cozido que seria seu jantar.
Fez-se silêncio novamente. A princípio nada aconteceu. Tudo permaneceu calmo como antes. O barco continuava a singrar as águas, majestoso, rumo ao norte.
Foi então que tudo começou. De início quase imperceptível, e depois cada vez mais alto, veio do mar um som terrivelmente agudo. A princípio parecia um assovio e foi-se tornando cada vez mais forte, dando a impressão de não entrar pelos ouvidos, mas diretamente pela alma. Das profundezas do mar negro surgiu então o coro das seloths. Graciosas, fluidas, as criaturas femininas cantavam e giravam em torno do barco. Elas haviam sido despertadas de seu sono pelo chamado do Padre.
Dando voltas por entre as cordas e as velas, elas cantavam sem parar, cada vez mais alto. Seus longos cabelos verdes voavam ondulantes pelos ares e seus olhos cegos pareciam fixar-se na escuridão.
De trás da pedra, Beadle podia ouvir suas vozes a cantar repetidamente de um jeito cada vez mais assustador. Ele estava apavorado demais para olhar e, em seu esconderijo, cobria as orelhas, tentando evitar que o canto das seloths o enlouquecesse.
— Que canto é esse? Está me perfurando o cérebro como uma faca incandescente! Diga-lhes para parar!
Beadle enterrou o rosto em um monte de algas ainda úmidas, tentando esconder-se.
— É o cântico das profundezas. Elas estão invocando os mortos para virem festejar. Às seloths não pararão até que o barco naufrague nas rochas. O que elas querem é um sacrifício e nada as deterá! — exclamou Demurral bem alto devido ao barulho do vento e do mar. Seus olhos pareciam devorar o espetáculo que viam. Quanto mais alto elas cantavam, mais violento ia se tornando o mar. Às ondas se arremessavam sobre os rochedos de Baytown, cinco quilômetros ao norte. Espessas nuvens negras formaram-se no céu, produzindo relâmpagos e raios.
A tempestade aumentava. Os barcos de pesca que estavam ancorados na enseada eram atirados contra as pedras que se erguiam próximo à escarpa. O ancoradouro da aldeia era lavado pelas ondas que ali quebravam. O mar foi entrando pela rua principal e as ondas começaram a bater nas portas das casas. Suas batidas insistentes pareciam as dos homens que iam lá de vez em quando à procura de candidatos para trabalhar no mar.
Com a violência das ondas de encontro ao despenhadeiro, parte dele não resistiu. Toneladas de lama e de pedra caíram nas águas enfurecidas. A fúria da tempestade derrubou casas e lojas da Rua do Rei, que foram arrastadas para o mar. Enquanto os prédios desabavam e eram levados no torvelinho, homens, mulheres e crianças, despertados de seus sonos, gritavam por socorro, mas seus gritos eram abafados pelo terrível rugir do Oceano Germânico.
Faíscas cinza e azuis saíam das ondas revoltas. Figuras fantasmagóricas como gigantescos cavalos brancos saltavam das ondas que explodiam na praia.
O céu foi se tornando cada vez mais escuro e a lua cheia sumiu por trás das grossas nuvens, enquanto raios rasgavam o céu e caíam no mar. Um raio caiu como uma espada sobre o barco. O mastro principal rachou e espatifou-se no convés, atirando longe os marinheiros surpresos que dormiam em suas redes.
Enquanto eles corriam pelo convés, outra vela desabou com seu mastro, atirando lascas de madeira pelos ares. O navio subia e descia a cada nova onda. Um marinheiro foi lançado pelos ares e mergulhou nas águas geladas para sempre.
— Este foi um golpe certeiro — exclamou Demurral, rindo e esfregando as mãos de contentamento. — Mais um desses e o Keruvim será meu.
Ele ergueu a estátua bem alto e entoou novamente seus cânticos de magia.
— Ventos, granizos, raios, trovões e ondas! — O mar obedeceu a seu comando e tornou-se ainda mais revolto. Ondas caíam sobre o barco como socos poderosos e já quase o engolfavam.
A bordo, o comandante gritou para a tripulação:
— Para a costa, para a costa! A toda velocidade para a costa! É nossa única chance! — Ele fez o barco girar em direção à praia e partiu a toda velocidade.
O imediato atravessou uma parte do convés já lutando contra as ondas que ali quebravam. Agarrou com dificuldade uma parte do cordame já rompido e assim conseguiu chegar a uma escotilha da popa, forçando-a até ela abrir.
Foi ali na escuridão que ele viu um jovem de pele escura e olhos brancos e brilhantes que se fixaram nos seus.
— Pegue alguns barris vazios e amarre-se a eles. Nós vamos naufragar. — Sua voz mal podia ser ouvida em meio aos rugidos do mar e aos gritos das seloths.
Quando ele acabou de falar, uma onda atingiu a popa do barco, fazendo com que o imediato caísse no porão. Sua cabeça bateu com força no chão. Um enorme mastro de madeira veio em sua direção e imprensou-o contra um compartimento fechado. Quando perdeu a consciência, seu rosto imergiu na água. O jovem pegou os barris e, com um pedaço de corda de vela, amarrou-os ao marinheiro. A água lhe cobria os pés e caía sobre ele como chuva entrando pela escotilha aberta.
— Tudo bem aí embaixo? — gritou o comandante pela escotilha. Foi então que ele se voltou e viu uma onda enorme que se erguia em sua direção. O mar erguia-se como uma montanha cada vez mais alta e mais próxima.
A maior onda que ele jamais vira ergueu o barco pela popa e o partiu ao meio, de cima a baixo, fazendo com que ele rodopiasse e atirando-o em direção à praia. Ao ser lançado de encontro às pedras, ele se partiu como se fosse feito de palitos de fósforo. O estrondo foi mais alto que o rugir das ondas e ecoou no coração do bosque.
Ao ver o que havia acontecido ao barco, Demurral deu saltos de alegria na pedra em forma de mão:
— É meu, só meu! Esta noite ele será meu para sempre! Esta noite, Beadle... Esta noite, eu terei meu Keruvim! — Beadle ergueu os olhos para Demurral e viu seu rosto se transformar. Seus olhos pareciam acesos e uma névoa verde girava ao seu redor.
— Serei dono dos dois Keruvins! Eles serão só meus! — repetia Demurral sem cessar. A mão negra que segurava o bastão de acácia brilhava cada vez mais intensamente.
Ele apontou o bastão na direção de Beadle.
— Veja! A mão está me dizendo que o Keruvim está se aproximando. Quando eu o tiver em minhas mãos, o poder de Deus será meu. Não precisarei mais suplicar pelos favores Dele como uma galinha cacarejando em Seu altar. Quando eu tiver o Keruvim, Ele é quem terá de me ouvir!
Demurral gritou essas últimas palavras para o céu e saltou da pedra para a praia de cascalhos. Em uma das mãos levava o bastão de acácia.
— Venha, Beadle, vamos aguardar a chegada do Keruvim! – Ao dizer isso, agarrou Beadle pela orelha, puxando-o consigo para a praia.
Ao longe, o Amizade jazia encalhado nas pedras, com os mastros arrancados, as velas e os cordames soltos, pendurados como uma forca. Às águas se acalmavam. O casco do barco estava partido de uma ponta a outra, exposto à tortura do mar.
O comandante boiava com o rosto mergulhado na água, ao sabor das ondas. Estava morto, como toda a tripulação, inclusive o imediato. Este, porém, flutuava amarrado aos barris. Seus corpos balouçavam-se nas águas, enquanto as seloths recolhiam suas almas e as levavam para as profundezas. A tempestade desapareceu no breu da noite, as nuvens escuras se afastaram e a lua cheia surgiu já quase desaparecendo por trás das montanhas a oeste.
Demurral andava de um lado a outro da enseada, cada vez mais impaciente, vendo os pedaços do Amizade serem trazidos pelas ondas mansas.
Voltou-se para o mar e exclamou:
— Venha para mim, meu belo! Venha para mim! — Tinha nas mãos o bastão mágico, mas o brilho da mão de pedra começava a perder intensidade.
Beadle seguia-o a cada passo.
— Como é que o senhor sabe que ele estava no barco? Como sabe que estará aqui?
— Tem de estar aqui. Tem de ser esta noite. Há apenas dois Keruvins em todo o universo e eles precisam estar juntos. Sempre acabam se encontrando. Esta é a Lei. — Demurral tinha os olhos fixos no que restava do barco.
— É se ele afundou no naufrágio? Ouro não bóia — disse Beadle.
— Então você, meu caro, vai ter de aprender a nadar ou terá o mesmo destino da tripulação, e as seloths devorarão sua alma também. Demurral apontou um dedo indicador longo e ossudo na direção do barco.
— Onde está você? Venha, venha para mim! — gritou o Padre para as ondas. O mar não respondeu. O vento havia silenciado e pequenas ondas rebentavam calmas nos seixos da praia. Beadle seguia Demurral pela praia à procura do Keruvim entre os detritos. Não o encontraram.
O Anjo Envenenado
Na manhã seguinte, as ondas quebravam calmamente na praia e rolavam sobre os seixos, onde ainda traziam fragmentos do naufrágio. Uma luminosidade cor de âmbar surgiu ao norte, logo acima da linha do horizonte. Às nuvens tinham tons esverdeados em suas bordas, e o sol da manhã surgia vermelho como sangue. Era como se o céu tivesse sido colorido de maneira diferente.
Os habitantes de Thorpe, na praia, comentavam o naufrágio e catavam o que lhes pudesse ser útil. Obadiah Demurral, Vigário de Thorpe e das terras ao sul, correu para o meio deles e subiu em uma pequena rocha, pondo-se mais alto que aquelas pessoas que remexiam caixas e velas do barco e quebravam barris que se espalhavam pela praia. Beadle, seu empregado, subiu na pedra também, com o corpo ainda mais doído pela queda da véspera. O Amizade jazia partido a uns noventa metros da praia, ao sabor das ondas tranqüilas.
— Senhores, senhoras, estamos presenciando uma grande tragédia. Muitos homens de bem perderam suas vidas neste barco e precisamos enterrar os mortos de Baytown. Não nos tornemos ladrões de sepulturas! — Era evidente que sua fala nada tinha de sincera. A multidão se reuniu em torno dele reclamando e resmungando. Demurral falou ainda mais alto.
— Como Vigário desta paróquia, o que for aproveitável do naufrágio é meu de direito. Tudo isto pertence a mim.
— O mundo todo pertence ao senhor, Vigário — gritou do meio da multidão um menino que tinha um par de botas velhas pendurado no pescoço e que logo a seguir escondeu-se por trás de um pescador gordo.
O pescador agarrou o menino pela gola do agasalho esfarrapado e ergueu-o no ar. A gola acabou de rasgar-se e o menino pôs-se a chutar-lhe as canelas.
— Me largue, seu barrica de peixe! — gritava ele.
O pescador agarrou-o pelo cangote e atirou-o longe. Ele foi cair, aos trambolhões, numa poça de água do mar retida pelas rochas, bem ao pé do padre Demurral.
— Thomas Barrick! — trovejou o Padre. — Eu devia saber que era você. Além dessa língua suja, você agora tem os fundilhos sujos também.
A multidão pôs-se a rir enquanto o menino se levantava e limpava a areia molhada do traseiro, indo embora. Demurral continuou a falar.
— Amigos, cuidemos de todas essas coisas com dignidade. Levem tudo o que encontrarem para o Vicariato e eu farei um registro de tudo. Na véspera de Todos os Santos faremos uma grande venda dos despojos do naufrágio no cais de Whitby. Depois dividiremos o lucro das vendas entre todos os que estão aqui. — Demurral sorria ao falar, mas seu rosto estava contraído e misterioso.
Como uma congregação obediente, os aldeões balançaram as cabeças concordando. O pescador gordo exclamou bem alto:
— Concordo com o Vigário. Vamos levar tudo que acharmos para ser vendido no cais. — Ao dizer isso ele sorriu, feliz consigo mesmo.
Thomas voltou-se e gritou para ele:
— Você concordaria até com o carrasco que fosse enforcá-lo! O que vocês catarem não será vendido em seu proveito. — Desafiando Demurral, o menino perguntou-lhe: — O senhor vai roubar a décima parte disso também, como faz com tudo o mais?
— Ignorem este pequeno verme. Ele é preguiçoso demais para ajudá-los e teimoso demais também. É ele quem vai sair perdendo quando receber apenas a esmola de pão. — Essas palavras foram ditas por Beadle, que se surpreendeu consigo mesmo. Ele não tivera a menor intenção de falar; as palavras simplesmente saíram de sua boca sem que ele se desse conta. A multidão o aplaudiu e Beadle estufou o peito, sentindo-se subitamente importante. Suas orelhas ficaram vermelhas e ele sorriu de contentamento, franzindo o nariz e contorcendo-o para um lado e para o outro.
Thomas pegou um pequeno seixo arredondado na areia.
— Eu não tenho problema com trabalho, Beadle. Mais uma palavra sobre mim e eu arranco essa verruga da ponta do seu nariz com uma pedrada. Onde é que você estava na noite em que queimaram o casebre da minha mãe? — Ele lançou o braço para trás e fechou um olho para mirar a pedrada.
Uma velha falou tranqüilamente, gesticulando para que o menino se afastasse.
— Vá embora daqui, Thomas. Não é aqui nem assim que você vai resolver isso. Deixe o Vigário fazer o que quiser e depois você se entende com o Juiz.
— Eu vou, mas ouçam bem o que digo. Este homem tem um plano e não é um plano de Deus. Ele custará a vocês mais do que suas vidas. — Seus olhos se encheram de lágrimas de ódio e ele atirou a pedra com força contra a rocha.
Demurral deu um sorriso complacente para Beadle e disse, calmamente:
— Ele pode atirar pedras, mas vai descobrir que eu posso atirar sombras sobre sua vida. Não vai demorar muito para ele ver as trevas em que se meteu.
Thomas deu as costas e foi andando pela praia na direção de um lugar onde a rocha entrava pelo mar, separando a enseada de Beastcliff. Escalou as pedras e desapareceu entre as árvores do bosque. Sua raiva o queimava por dentro e ele lutava contra as lágrimas que não queria admitir.
Thomas Barrick tinha 13 anos de idade, vividos todos em Thorpe. Jamais havia ido além de Whitby. Seu pai desaparecera no mar durante uma grande tempestade, quando Thomas tinha apenas sete anos. Ele e a mãe continuaram a morar no casebre alugado que pertencia à igreja. Aquilo não chegava a ser uma casa. Tinha um cômodo embaixo e um em cima, sem banheiro. Um sanitário no quintal servia também a três outros casebres. As aldeias de Peak e Thorpe pertenciam ao Vigário. Casas, sítios, lojas e hospedadas, todos pagavam aluguéis e dízimos à igreja: o Vigário ficava com a décima parte de tudo para si. Os aldeões nada recebiam em troca.
Thomas agora não tinha onde morar. A morte do pai e a doença da mãe impossibilitaram o pagamento do aluguel, e com Demurral não se podia falar em caridade. Caminhando pela trilha que atravessava o morro de Beastcliff, ele se lembrava da maneira como Demurral e seus homens haviam ameaçado sua mãe de despejo se ela não pagasse o que devia em uma semana.
Duas noites depois daquela ameaça ele saiu de casa para catar carvão na praia. Estava lá quando viu a fumaça. Voltou correndo para a aldeia e encontrou o casebre ardendo em fogo no ar frio da noite. Ele viu quando Demurral e Beadle passaram sem sequer parar. Sua mãe estava caída na carroça do senhor Leadley, debaixo de um cobertor. A senhora Leadley estava a seu lado.
— Não se preocupe, Tom, ela está bem. Vamos levá-la para a enfermaria. Lá cuidarão bem dela — disse ela.
Demurral, ao passar por ele, comentou:
— É uma pena, Thomas, mas vocês deveriam ter cuidado melhor da minha propriedade. Receio que tenham infringido as regras do inquilinato. Terão de arranjar outro lugar para morar. — Ele ergueu uma sobrancelha e contorceu os lábios em um sorriso malvado. — Se quiserem, podem ir viver com meus porcos.
— Porcos!— gritou Thomas. — Que eu saiba, só há um porco por aqui e é o próprio Vigário.
Pensando nessa cena ao atravessar o bosque, Thomas apoiou-se em um galho de amoreira para subir por umas pedras, e os espinhos enterraram-se na palma de sua mão. Sua raiva era tanta que ele nem se deu conta. Logo encontrou a trilha que passava por trás do Nab e chegava à Baía.
Ele adorava a Baía. Era um lugar de aventuras, com uma areia muito fina, sem cascalho algum. Tinha a forma de uma gigantesca ferradura invadida pelo mar. Quando a maré baixava, formavam-se lindas piscinas de pedra com algas, peixinhos e caranguejos vermelhos. Era um lugar cheio de lendas — histórias de arrepiar de tempos imemoriais, com personagens como o Rei Henrique e Robyn de Loch Sley — emoldurado pela rocha íngreme e pelo mar a perder de vista.
Naquelas últimas semanas, a Baía passara a ser também o lugar onde ele morava. Desde o incêndio ele tinha ido viver em uma caverna que os aldeões acreditavam pertencer ao Elfo de Thorpe. Cada aldeia tinha seu próprio elfo: um espírito encantado que assumia a forma de um homenzinho. Os elfos eram criaturinhas escuras com olhos grandes, orelhas pequeninas e tufos de cabelo espetado — como Beadle. Eles possuíam poderes mágicos e pregavam peças nos desavisados que não lhes deixavam comida ou dinheiro.
O povo de Peak dizia que Beadle era filho de um elfo; que ele havia sido concebido quando sua mãe adormecera certa vez na montanha de Beastcliff.
Os elfos viviam em um buraco ou uma caverna na escarpa junto ao mar, e dizia-se que eram capazes de curar qualquer doença, desde manchas na barriga até coqueluche. A coqueluche havia matado a irmã mais velha de Thomas aos dois anos de idade. Ela passou vários dias e várias noites tossindo e se engasgando, e acabou morrendo. Sua mãe dizia que a coqueluche havia sufocado o espírito da filha e lhe tirado a vida. Na próxima vez, dizia ela, eles levariam um filho seu para ser curado pelo Elfo.
Quando Thomas tinha cinco anos, tossia durante todo o seu quarto inverno e quinto aniversário no Dia da Anunciação, e quando chegou a quinta-feira santa estava tão doente que não podia andar. Seu pai o levou no colo até o Elfo da Baía de Runswick.
Cobriram-no com gordura de ganso, enrolaram-no em papel pardo e, por cima, puseram um cobertor. Seu pai enfrentou uma caminhada de 18 quilômetros com Thomas amarrado a seu peito. Quando chegaram à Baía de Runswick, a tarde já ia ao meio.
O pai parou diante da caverna do Elfo na praia e gritou para seu interior escuro.
— Elfo! Elfo! O menino está com coqueluche. Tire-a, tire-a, tire-a. — Ao dizer isso, ele atirou uma moeda de um penny dentro da caverna, ergueu Thomas, deu-lhe três tapas nas costas antes de enfiar a cabeça do menino na caverna.
Thomas ainda se lembrava do cheiro enjoativo que sentira. Lá dentro era escuro, úmido e cheio de comida estragada jogada pelas velhas que cuidavam do Elfo. Thomas respirou fundo e pôs-se a tossir sem parar. Pensou que fosse ficar completamente sufocado e tossiu até vomitar. Mas nunca mais voltou a tossir.
Mas o menino ficou desapontado. Tinha ido tão longe e não fora capaz de ver o Elfo nem de relance. Ele não podia ser tão pequeno assim que não desse para ver. Aquela caverna de elfo era tão pequena que mal coubera sua cabeça. Como é que lá caberia um elfo também? Na noite da Páscoa ele já estava convencido de que elfos não existiam — mas não podia entender por que sua tosse havia passado.
Agora ele voltava para sua casa improvisada no fundo de uma caverna de elfo de verdade. Pensava na doença da mãe, não mais na sua. Lá ele tinha tudo de que necessitava: pedaços de madeira trazidos pelo mar, com os quais podia fazer uma fogueira, palha para servir de cama, tocos de vela que havia roubado da igreja e pão de esmola. Como era muito pobre, podia ir pegar pão na igreja de São Estevão. Uma vez por semana ia receber uma forma de pão que era deixada para ele em um armário no fundo da igreja. Aquela era a única esmola que recebia; a única que queria também. Thomas disse a si mesmo que, agora que tinha como sobreviver, poderia visitar sua mãe.
Ele sabia que nenhum dos habitantes da aldeia iria à caverna antes do Dia de Finados, pois todos temiam o Elfo. Ele seguiu apressadamente pela trilha, atravessando o bosque. A descida para a praia não era íngreme. Logo a mata densa terminaria e ele poderia ver Baytown e a costa.
Subitamente Thomas ouviu o som de alguma coisa arranhando a madeira de uma árvore, como se um animal estivesse afiando as unhas. O que quer que fosse estava raspando a madeira da árvore no alto do despenhadeiro, à sua direita. O menino voltou-se para ver o que era, mas nada viu. Thomas sabia que não havia cães selvagens naqueles bosques, mas o ruído se fez ouvir novamente, dessa vez por trás dele, e já mais perto. A tal coisa movia-se de uma árvore para outra, arranhando-as ao passar. Lembrava um pouco o ruído de um gato de fazenda arranhando o celeiro ao tentar caçar ratos, só que aquela criatura fazia muito mais barulho e devia ser bem maior.
Thomas encolheu os ombros e levantou a gola rasgada de seu agasalho para proteger-se do vento que passava por entre as árvores. Foi então que ele ouviu o grito que quase arrebentou seus tímpanos e o deixou sem ar. O menino pôs-se a correr apavorado em direção às cavernas.
O que quer que o estivesse perseguindo estava cada vez mais perto. A trilha de Beastcliff estava escorregadia devido ao orvalho gelado da manhã, e ao correr montanha abaixo ele ia aumentando a velocidade, pulando por cima de raízes das árvores que havia pelo caminho. Pouco depois o caminho se bifurcou. Pela trilha da direita ele chegaria à praia e às cavernas. Passaria pelo alto do Nab e logo estaria junto ao mar. Ele se pendurou em um galho novo que se curvou e depois o atirou bem no caminho da praia.
Satisfeito, ele riu consigo mesmo e pensou que jamais seria apanhado por gente ou por fera alguma.
Subitamente, bem à sua frente, a poucos metros de distância, tornou a ouvir o grito. Imensas garras que ele não podia ver arranhavam desesperadamente a madeira das árvores, fazendo marcas profundas no tronco de um carvalho à sua esquerda. À sua volta a luz do dia estava se transformando em profunda escuridão, como que sendo sugada por aquela forma escura que agora lhe bloqueava o caminho, impedindo sua fuga. A luz do sol estava sendo roubada do céu e desaparecia no interior da sombra que se espalhava e aos poucos assumia a forma de um enorme animal negro.
Thomas teve a impressão de que seus pés estavam presos no chão, tamanho era seu medo. Gotas de suor escorriam-lhe pela testa. O enorme animal tomava forma e já parecia quase sólido. Uma aura de energia circundava a criatura, e sua sombra pulsava ao se aproximar do menino.
Reunindo as últimas energias que lhe restavam, Thomas se virou e saiu em disparada na direção do Nab. Logo estava fora do bosque e continuou a correr pela estreita trilha ao longo do rochedo que separava Beastcliff da Baía. Voltou-se para ver os restos do barco naufragado. A praia agora estava vazia, exceto pela figura solitária vestida com uma roupa negra de Padre que mantinha os braços erguidos acima da cabeça. Em suas mãos havia uma pequena figura que reluzia à luz do sol da manhã.
Thomas ouviu novamente o terrível grito vindo do bosque e o ruído de madeira sendo quebrada, cada vez mais perto.
Não havia como escapar. Ele estava sem saída no alto da escarpa. Por trás dele havia o bosque com aquela criatura; à sua frente, um trinta metro abaixo, estava o mar. A certa distância erguia-se o Vicariato, residência de Demurral.
Os arbustos que margeavam a trilha começaram a ser sacudidos, arrancados e jogados para o alto. A criatura já estava na beirada do bosque e a pouca distância de Thomas.
Thomas podia sentir que a energia vital estava sendo sugada de seu corpo. Uma névoa cada vez mais densa o envolveu. Suas pálpebras foram ficando pesadas e ele sentiu um sono irresistível. Começou então a sonhar. Manteve os olhos abertos, mas já não podia ver o mundo à sua volta ou ouvir o som do mar. Formas escuras apareciam e desapareciam à sua frente; rostos desfigurados surgiam de dentro de capuzes negros e voavam em sua direção, falando e rindo, exibindo seus dentes quebrados. Naquela sensação de estupor, ele teve a impressão de estar sendo carregado por aquela névoa. Uma mão escura apertava seu peito com tal força que ele mal conseguia respirar. No sonho, ele podia ver seu pai na noite da grande tempestade. O pai lutava para salvar-se no mar e as ondas se abatiam sobre ele, levando-o cada vez mais para o fundo.
Na escuridão ele podia ver algo que tentava alcançá-lo.
— Venha comigo, Thomas. Venha comigo! Agarre minha mão; ela o libertará dessas trevas. — Era a voz possante, cálida e amorosa de seu falecido pai. — Lute, Thomas, como eu sempre lhe disse para lutar!
Thomas, já quase sem forças, ergueu a mão, lutando contra a espessa nuvem negra que tentava imobilizá-lo.
— Não consigo... Quero dormir. Só dormir. — Sua voz foi ficando cada vez mais fraca. Ele já não tinha forças. Sua energia vital estava sendo sugada por aquela criatura de sombras que girava ao seu redor, prendendo-o cada vez mais.
Deu-se uma súbita explosão, como um violento trovão. A névoa desapareceu e Thomas sentiu que seus braços se arriavam ao longo do corpo. Podia ver o céu, o mar e a escarpa. Estava caindo, num mergulho de trinta metros, em direção às rochas e ao mar lá embaixo. Afundou rapidamente no mar e a água gelada fez sua pele arder. Foi afundando, afundando, cercado por algas rodopiantes, sentindo que seus pulmões estavam a ponto de explodir. Mexendo desesperadamente os braços e pernas, ele tentava desvencilhar-se das algas para chegar à superfície e respirar o ar fresco daquela manhã de outubro. Mas não conseguia. Seus pés estavam presos em um emaranhado de algas que cobriam o fundo rochoso do mar. Ele prendeu a respiração o quanto pôde, até não agüentar mais. Então fechou os olhos e soltou o ar, sabendo que não haveria mais ar para inspirar. Parou de lutar contra as algas e deixou-se embalar pelo movimento do mar. Seus longos cabelos cobriram-lhe o rosto, como uma máscara que se confundia com as algas.
O Tríptico
Thomas acordou em sua caverna de elfo. Uma fogueira aconchegante brilhava no escuro e o cheiro gostoso de peixe assado parecia saudá-lo. Suas roupas estavam penduradas na parede, secando ao calor da fogueira.
— Como vim parar aqui?
Ele fez essa pergunta baixinho, olhando a caverna a seu redor, sua casa havia alguns meses.
— Quem...?
Ouviu então o ruído de passos nas pedrinhas à entrada da caverna. Os passos vinham em sua direção. Uma sombra escura moveu-se na parede da caverna, cada vez maior. Thomas foi escorregando para baixo da velha manta de cavalo com que se cobria e escondeu a cabeça.
— Você está acordado, não está? — Aquilo foi mais uma constatação do que uma pergunta. Thomas puxou a coberta lentamente de cima da cabeça e seus olhos se encontraram com os de um rapaz de pele muito negra e cabelos muito longos enrolados à altura do ombro, onde reluziam com gotas de óleo.
— Quem é...? — Mas Thomas foi interrompido pela voz suave do jovem, que respondeu em um inglês perfeito.
— Sou Raphah. Percebi que você estava em apuros quando o vi cair no mar. Eu o soltei das algas. — Sua voz era tranqüila. O rapaz fez uma pausa, sorriu e disse: — Seja bem-vindo à minha casa. - Seus olhos brilhantes percorreram o interior da caverna iluminado pela fogueira.
— Esta não é a sua casa — retrucou Thomas rapidamente. — É a minha caverna. Eu a encontrei antes de você. Há anos venho aqui. — Ele se enrolou na coberta e encarou Raphah com os olhos semicerrados.
— Talvez eu devesse ter deixado você no mar. Assim eu poderia voltar a morar aqui sozinho. Espero que nem todas as pessoas deste lugar sejam tão ingratas quanto você; ou será que são piores? — Raphah deu uma risada e virou o peixe que assava lentamente em espetos de graveto adaptados acima da fogueira. —Você quer comer, ou ainda está com o estômago cheio de algas?
Thomas estava simplesmente feliz por estar vivo. Lembrou-se de tudo que lhe acontecera na manhã daquela dia e das forças misteriosas que tentaram roubar-lhe a vida. Lembrou-se da criatura que o perseguira no bosque e do padre Demurral na praia. Raphah percebeu seu olhar distante.
— Você pensa muito para um menino da sua idade. Por que mora aqui e não com sua família?
Thomas sentiu as lágrimas lhe encherem os olhos.
— Não posso morar com eles. Perdi minha casa e minha família e não tenho dinheiro. Por isso moro aqui. — Ele enfiou o rosto na manta de cavalo e seu cheiro entrou-lhe pelas narinas. Thomas jamais havia visto uma pessoa como a que estava ali. Raphah poderia ter uns 14 anos, mas também poderia ter uns vinte.
Tinha uma aura de juventude e um incrível sorriso de alguém de bem com o mundo. Vestia um grosso casacão negro abotoado, camisa branca e botas até os joelhos. Sua aparência era a de um assaltante de estradas ou de um contrabandista.
— De onde você é? Eu nunca tinha visto um... — Thomas fez uma pausa, sem saber como continuar.
Raphah já havia visto aquela expressão muitas vezes. Era um jeito constrangido e zangado que as pessoas assumiam ao inspecionar a cor de sua pele antes de se dirigirem a ele de maneira ríspida ou de decidirem ignorar completamente sua presença.
— Posso ter a aparência externa diferente, mas falo inglês... e muitas outras línguas. — Ele fez uma breve pausa. — Eu sou de Cush. Fica em uma terra que vocês chamam de África. Desejo voltar para lá o mais breve possível.
Ele virou novamente o peixe no graveto. Da pele do peixe caiu um pingo que fez o fogo chiar.
— Estou aqui para encontrar algo que foi roubado da minha família; tão logo encontre, volto para lá. Seu mar é frio e seu sol é fraco demais. Deve ser por isso que vocês são tão pálidos. Coma o peixe e depois vou lhe mostrar um segredo.
Enquanto Thomas comia, Raphah puxou um fio que tinha pendurado ao pescoço e pegou uma sacolinha bordada a ouro. Abriu-a cuidadosamente e dela retirou um pedaço de azeviche negro no formato de um enorme olho amendoado. Ele mostrou o objeto para Thomas.
— No lugar de onde venho dizem-nos que, se conhecermos o espírito de Riathamus, os velhos terão sonhos e os jovens terão visões. Olhe bem lá dentro, peixinho, e diga-me o que vê.
Thomas olhou bem dentro da pedra. Viu que seu negrume lentamente se transformava em um azul muito claro, como se fosse o céu da noite virando manhã.
Seus olhos foram levados a olhar ainda mais fundo, até contornos de ouro se transformar em horizontes de um novo mundo. Ele pôde ver nitidamente grandes prédios de pedra semelhantes a catedrais erguendo-se sobre densas florestas. Enormes pássaros vermelhos e verdes voavam em círculos acima das altas árvores. Centenas de pessoas iguais a Raphah reuniam-se nos degraus do prédio maior. Vestiam túnicas de linho branco e tinham no pescoço reluzentes faixas de ouro. De seus cabelos escorria um óleo dourado que reluzia ao sol da manhã.
— Esse é o meu povo. — Raphah sorria ao falar. — Eles estão no templo, encontrando-se com Riathamus. É ele que nos guia em tudo que fazemos. Foi ele quem me enviou aqui e também quem trouxe você para me ajudar. Você foi apanhado como um peixe. — Sua risada ecoou por toda a caverna e sua sombra projetou-se nas paredes, enquanto seu rosto brilhava a luz âmbar da fogueira.
Amedrontado, Thomas interrompeu a visão que estava tendo na pedra em forma de olho e voltou-se para Raphah.
— O que você é? Um feiticeiro? Somente os feiticeiros são capazes de fazer coisas assim. — Thomas pôs-se de pé. — Como é que você sabe que vou ajudá-lo? É ajudá-lo a fazer o quê? Não quero me envolver com bruxarias. Às pessoas podem ser enforcadas por isso. — Thomas sentiu-se repentinamente corajoso. Raphah podia ser mais velho, mas ele não se importava.
Decidiu que se Raphah fosse um bruxo, ele sairia correndo da caverna, mesmo sem suas roupas. Tinha a impressão de que todo aquele dia era um sonho do qual logo acordaria; um dia em que havia sido perseguido, se afogado e foi salvo por um africano que podia fazer aparecer gente no interior de uma pedra de azeviche. Raphah sorriu novamente.
—Eu não sou bruxo, feiticeiro, nem mágico. Esses são cheios de maldade. Todo o poder que eu tenho me é dado por Riathamus.
— Raphah olhou nos olhos de Thomas. — Olhe novamente, peixinho. Este é o poder do bem. Olhe e verá.
Thomas não conseguiu deixar de olhar a pedra. Sentiu que o calor da fogueira aumentava de repente e a lenha ficava mais brilhante. O negrume da pedra atraía seu olhar de maneira irresistível. Lá dentro, em meio a nuvens escuras, ele viu dois homens — um branco e um negro. Eles se afastavam correndo da entrada do Templo, descendo as escadarias e embrenhando-se na floresta. O homem branco carregava a estatueta mais linda que Thomas jamais vira. Enquanto corria, ele enrolou a estatueta em sua camisa manchada de suor e apertou a trouxa contra o peito. A floresta transformou-se subitamente em um mar de ondas encapeladas. Thomas podia ver as velas do barco que se agitavam na tempestade. Às ondas caíam em cheio sobre o navio de mastro alto. Os dois homens estavam escondidos em uma cabine abaixo do convés, agarrando-se um ao outro para se protegerem da fúria do oceano. Novamente a cena na pedra transformou-se e a cabine do barco deu lugar a uma sala de trabalho iluminada por velas. Thomas prendeu a respiração. Ali, dentro daquele olho de pedra, estava um rosto que ele conhecia muito bem.
— Demurral!— gritou Thomas. — Demurral!
— Você conhece esse homem? — Raphah parecia aflito. — Diga-me, preciso saber! Você o conhece?
Pela primeira vez naquele breve encontro, Thomas notou uma mudança em seu companheiro. Raphah parecia estar esperando uma informação urgente, mas que temia receber.
— É este o homem que estou procurando. Ele roubou algo que pertence a meu povo. — Ele tentou manter-se tranqüilo, mas foi fácil para Thomas perceber a aflição que ardia em seus olhos.
— Eu o conheço — respondeu Thomas. — Ele já roubou de tanta gente tantas vezes que roubar é fácil para ele. — Havia rancor em sua voz pelos anos de sofrimento que Demurral impingira à sua família. — Eu o odeio. Eu o odeio tanto que seria capaz de matá-lo como ele tentou matar minha mãe. — Foi com nojo que ele disse: — Ele se diz ser um homem de Deus. Qualquer um que entendesse de Deus agiria de maneira diferente. Com todas as suas tramóias e mentiras, eu diria que ele é uma cria de Satanás. Ele mantém toda a aldeia em seu poder e quer controlar cada um de nós.
Raphah foi rápido ao retrucar.
— É muito mais do que esta aldeia que ele quer controlar. Se conseguir o que deseja, e se o que foi roubado for posto em ação, ele poderá controlar o mundo todo e até mesmo os poderes do próprio Riathamus.
Thomas nada sabia sobre Riathamus nem estava interessado em saber. Mas ele havia esperado muito tempo para se vingar do reverendo Demurral e percebeu que ali estava uma oportunidade. Thomas orgulhava-se de suas habilidades para enfrentar uma luta, pescar, andar pelos esconderijos dos contrabandistas de Baytown sem ser visto, enfim, de fazer coisas difíceis. Conhecia cada palmo da aldeia e as passagens secretas sob o Vicariato. O que quer que Demurral tenha roubado, ele recuperaria. Thomas ficou pensativo olhando as brasas da fogueira que se apagava, tentando guardar para si seus pensamentos.
— Então você vai me ajudar, sei que vai! — Raphah estava agitado. — Quem é esse Demurral? Diga tudo e então faremos nossos planos. — Raphah estendeu sua mão negra e forte, segurou o pulso de Thomas antes que ele tivesse tempo de responder e olhou-o bem nos olhos.
— Primeiro vamos assumir um compromisso com o que temos de fazer. Esse Demurral não é um servo de Deus e usará todos os seus poderes para nos destruir. Estaremos lutando contra espíritos e demônios, contra enormes energias. Demurral é mais do que um homem comum. Ele é alguém que fala com os mortos, um Feiticeiro das Sombras.
A pressão sobre o pulso de Thomas foi aumentando à medida que o sorriso de Raphah se abria.
— Agora eu vou falar com Riathamus. Feche os olhos.
Thomas obedeceu. Aquilo era uma ordem, não um pedido.
Raphah tinha algum poder indescritível ao qual Thomas não podia resistir. Na verdade, ele nem desejava resistir. Só o que o preocupava era aquele aperto forte demais em seu pulso, prendendo a circulação — e o cheiro de pano a ponto de queimar que vinha de suas calças acima da fogueira. Se ele obedecesse, poderia soltar sua mão e, se tivesse sorte, salvar suas calças. Ele apertou bem os olhos, mas tentou deixar um deles um pouquinho aberto para poder ver o que aconteceria.
Raphah pôs-se a falar com uma voz mais grave e mais forte do que antes.
— Poderoso Riathamus... Criador de tudo o que é do bem... Preencha-nos com seu Espírito!
Sua voz, poderosa, ecoou pela caverna. Thomas abriu os olhos e viu algo que parecia línguas de fogo voando por todo lado. Um redemoinho soprou na caverna, levando pelos ares tudo que ali havia. Era como se eles estivessem no olho de um furacão enquanto tudo ao seu redor era um caos. No centro da caverna a fogueira ardia ainda mais, porém em volta tudo girava pelo ar.
Ele se segurou em Raphah enquanto pôde e depois, sem pensar, deu um passo atrás e entrou no furacão. Foi erguido no ar e atirado de encontro à parede da caverna. Seu corpo se estremeceu com o impacto.
Os olhos do menino encheram-se de lágrimas e ele começou a soluçar. Caído no chão da caverna, sentia como se mãos invisíveis houvessem desatado o nó de emoções presas em seu peito que ele carregava havia muito tempo. Todo o rancor pela morte do pai, todo o ódio que sentia contra o mundo, todo o medo que sentia de morrer — todos esses sentimentos pareciam estar se desfazendo e saindo dele. Thomas não conseguia compreender o que estava acontecendo. Aquele cheiro de algas, de paredes úmidas e de pele de peixe foi substituído por uma fragrância maravilhosa, pelo cheiro gostoso do campo em época de colheita. Na escuridão da caverna ele tinha a sensação de estar sendo aquecido por um aprazível sol de verão.
Pôde então ouvir a voz de Raphah, que parecia vir de longe.
— Não lute contra isso. Deixe que Riathamus toque seu coração. Ele sabe o quanto você sofre. Ele conhece as tristezas de sua vida. Em Riathamus todos nós encontramos a paz.
Thomas sentiu o toque cálido de Raphah em sua testa. Era calmante como as bandagens que sua mãe fazia quando ele tinha febre. O calor da palma de mão de Raphah foi se tornando mais intenso e irradiou-se por todo o corpo de Thomas. Ele não ofereceu resistência; permitiu que a experiência continuasse e teve a impressão de que foram várias horas de absoluta paz. Seria aquilo mais um ato de feitiçaria?, pensou consigo mesmo, meio adormecido.
Como se pudesse ouvir os pensamentos de Thomas, Raphah respondeu:
— Não, não há o que temer por isso. Isso não é feito por um homem nem por seus conjurados das trevas. Eu não tenho poder algum. Isto por que você está passando é uma dádiva do Criador para você. Aceite-a... Inspire-a... Permita que este tempo se prolongue. — Essas palavras ecoaram profundamente no coração de Thomas. Eram palavras de tranqüilidade que traziam consigo sono e sonhos.
Raphah cobriu-o com a manta de cavalo, colocou mais gravetos na fogueira e recostou-se, fechando os olhos.
O ruído das ondas na praia interrompeu os sonhos de Thomas e ele acordou primeiro. Vestiu-se à meia-luz da fogueira já quase extinta. Suas calças estavam muito secas e cheiravam à água do mar. Raphah abriu os olhos e seu sorriso abriu-se também como o sol da manhã.
— Você sonhou?
Thomas mal podia conter sua nova sensação de felicidade.
— Sonhei com muitas coisas, meu pai... minha mãe... o que aconteceu ontem... Tudo parecia tão real! Sinto como se tivesse um par de asas. — Thomas fez uma pausa e o sorriso desapareceu do seu rosto quando ele se lembrou de uma visão que tivera. —Sonhei com Demurral. Sei por que você está aqui e o que está procurando. Ele tem a criatura que eu vi em sua pedra. Tentou usá-la contra você.
— Não tenha medo. Foi apenas um sonho. Mas os sonhos nos são dados para nos avisarem do que está por acontecer. É também para nos revelarem o que está em nossos corações.
Raphah levantou-se de sua cama de folhas.
— Os sonhos são sombras do nosso futuro e sombras de nós mesmos; nunca devem ser temidos e sim aceitos e usados para o nosso bem. — Ele pôs a mão no ombro do menino. — Onde é que Demurral mora? É perto daqui?
Thomas pensou em qual seria o caminho mais rápido da caverna ao Vicariato.
— É a uns cinco quilômetros daqui, mas se você não se importar com a escuridão podemos fazê-lo em três, se formos pelo túnel que atravessa o bosque.
Ele conhecia o túnel das noites em que ajudava o pai a descarregar caixas de conhaque, de seda e de tabaco trazidas até a praia por pequenos barcos. Seu pai era pescador, um homem pobre e de vida dura que vez por outra suplementava seus ganhos com umas viagens até uma escuna francesa fundeada em alto-mar, da qual ele trazia coisas maravilhosas. Até dessa atividade Demurral cobrava sua porcentagem. "Taxa de armazenagem", chamava ele. Nada de conhaque para o Pároco ou doces para o sacristão. Nada disso. Demurral exigia sua parte em dinheiro vivo, em ouro ou prata.
Esta noite, pensou Thomas, a ambição de Demurral o levará à ruína.
— Então será pelo túnel — disse Raphah. — Não podemos desperdiçar um só minuto.
A entrada da caverna a luz suave e azulada da lua cheia iluminava as pedras que levavam até a praia de areia. No céu ao norte Thomas podia ver o brilho cor de âmbar que, apesar de intenso, não iluminava muito e fazia com que a noite parecesse ameaçadora.
O ar estava fresco e limpo — muito diferente do ar da caverna. Eles caminharam em silêncio pelo bosque. Thomas evitou a trilha onde havia se encontrado com o thulak e conduziu Raphah pela borda do desfiladeiro, tendo à esquerda o mar e à direita a parte mais densa do bosque.
Puseram—se a subir a montanha afastando-se da Baía e seguindo em direção ao Vicariato, que ficava no ponto mais alto do promontório de Peak. Os galhos das árvores fechavam-se sobre suas cabeças como dedos nodosos de velhos. Folhas secas caíam sopradas por uma brisa suave e farfalhavam sob seus pés. O pio de uma velha coruja, penetrante e forte, rompeu o silêncio, e os galhos secos das árvores fizeram ruídos batendo-se uns nos outros.
Thomas desviou-se da trilha e passou para um pequeno barranco que estava bloqueado por um arbusto de azevinho. Ele afastou alguns galhos com espinhos e mostrou a entrada de um túnel. Esse túnel havia sido aberto na rocha e tinha a largura suficiente para a passagem de um homem carregando um barril de conhaque sem machucar o dorso das mãos na pedra.
— Por aqui. — Thomas falou o mais baixo possível, porém a coruja voou com estardalhaço do galho onde estava, piando bem alto. Antes que eles pudessem se dar conta, uma criatura de pequeno porte saltou da escuridão sobre Thomas e Raphah, agarrando-os pelos pescoços e jogando-os no chão, com os rostos voltados para baixo. Eles ficaram deitados lado a lado sobre a relva. O odor de terra molhada entrava-lhes pelas narinas e eles sentiram o salto de uma bota sobre seus pescoços. Haviam sido apanhados em uma emboscada e não tinham como sair.
— De pé, agora. É a bolsa ou a vida. Vocês preferem tiros de mosquetão ou facadas mesmo? — Thomas ouviu o som de uma arma sendo engatilhada e em seguida sentiu um cano frio na nuca.
— Passe o dinheiro, Barrick, ou seu amigo vai na frente. — Era uma voz de menina e Thomas a conhecia bem.
— Saia de cima das minhas costas, Kate Coglan, ou eu esfolo seu traseiro de hoje até sexta-feira, com mais força que seu pai. — Ele tentou se mexer, mas o peso da menina o mantinha preso ao chão.
— Por onde você andava, Thomas? Hoje é segunda-feira. É dia de eu lhe trazer seu jantar. Estou esperando há horas. — Ouviu-se outro estalido, agora da arma sendo desengatilhada.
— Recebi uma visita e a estou levando para ver Demurral. Mas você vai ou não deixar que eu me levante? — Kate Coglan deu um salto e foi sentar-se em um monte de samambaias quebradas.
— Quem é este seu amigo? Não é um dos nossos.
Raphah pôs-se de pé, limpando o casaco.
— Ainda bem que não sou um de vocês. Estou neste país há menos de um dia e a maneira como sou recebido nada tem de gentil e amistosa. — Parou de falar e olhou para ela de cima a baixo. — Permita-me dizer-lhe que, para uma menina, você se parece demais com um homem. — A luz da lua, Raphah indicou as calças e as botas que ela usava. Não restava dúvida de que Kate Coglan fosse uma menina. Uma menina ousada e desafiadora, mas uma menina.
Thomas colocou-se entre eles. Ele sabia que Kate deveria estar pronta para deixar marcas roxas e arranhões em Raphah.
— Que história é essa de pistola, Kate? Você agora é assaltante de estradas?
— Peguei emprestada de meu pai; ele está bêbado como um gambá e nem vai dar por falta. Trouxe para me defender dos boggles ou de qualquer sombra que surja à minha frente. — Ela apontou a arma para Raphah. — Você é uma sombra ou não toma banho mesmo? Nunca vi uma criatura assim.
— Ele veio da África e salvou minha vida. Agora chega de falar besteira. — Thomas se ressentiu com a rispidez da menina. Aquelas eram palavras capazes de magoar. Ele olhou para Raphah.
— Não se preocupe, Thomas. Já ouvi coisas muito piores e de pessoas bem mais assustadoras que uma menina vestida de homem. — Raphah forçou um sorriso. — Coitada. Pela maneira como se apresenta, ela deve ter mesmo algum problema. — Raphah piscou para Thomas e ambos fizeram uma reverência para Kate.
— Basta — exclamou Kate, dirigindo-se a ambos. — Vamos começar de novo. — Fez uma pausa e sorriu. — Eu sou Kate, este, como você sabe, é Thomas. Mas quem é você? — Ela se pôs de pé, guardou a pistola na cintura e estendeu a mão para ele.
— Meu nome é Raphah. Eu venho da África. Foi uma boa idéia começar de novo. — Ele também estendeu a mão. Kate sentiu a temperatura cálida de sua mão e seus olhos se encontraram. Thomas rompeu o breve silêncio que se fez.
— Estamos indo roubar uma coisa de Demurral. Ele se apossou de algo que pertence à família de Raphah e eu vou ajudá-lo a pega-la de volta. Você topa participar? Essa sua pistola pode nos ser útil, você poderia nos dar cobertura durante a fuga.
Kate enfiou o braço em um arbusto de azevinho e de lá tirou uma sacola de pano que atirou para Thomas.
— Pode ser. Mas primeiro, aqui está o seu jantar. Pão, queijo e bolo de gengibre, que terão melhor sabor agora que mais tarde.
Eles se sentaram na clareira e dividiram a refeição. Raphah falou da viagem e do naufrágio. Kate não parava de fazer perguntas e comentários. A lua cheia foi aos poucos desaparecendo por trás das montanhas distantes. Às três sombras continuaram sentadas na clareira, cercadas pelo bosque. Thomas ergueu-se e foi até o arbusto de azevinho. Enfiou a ponta da bota na terra. Logo apareceu um pedaço de madeira, que era a parte superior de um barril enterrado próximo à entrada do túnel.
— Precisamos de luz, portanto faça-se a luz. — Ele se curvou e enfiou os dedos pela fresta da tampa.
— Lamento, Kate, mas só temos duas lamparinas aqui. Não faz mal. Você tem mesmo olhos de gato. — Ele colocou o pavio e acendeu-o com uma pedra-de-fogo que estava guardada em uma caixinha de metal no fundo do barril. Fez-se então uma luz amarelada e brilhante.
Kate tampou novamente o barril.
— Não queremos deixar vestígio da nossa passagem e eu não quero que meu pai saiba que estive aqui. — O pai dela era o encarregado do fisco. Ele patrulhava a costa de Whitby a Hayburn Wyke à procura de contrabandistas para prender, pelo menos aqueles que não lhe entregavam sua porcentagem de conhaque. Assim era a vida naquela região costeira. Eram tênues as linhas que separavam a ordem da desordem, o bem do mal e este mundo do outro. Pelo menos naquela noite, a menina tinha certeza de que o pai estava tão bêbado que não sabia onde ela estava nem se preocupava com isso.
— Não fiquem remanchando. Não quero passar a noite toda aqui. — Kate gesticulou para que eles saíssem logo. Depois tirou a pistola da cintura e engatilhou.
Thomas recomendou:
— Mantenha sua pólvora seca, fique atenta e atire em qualquer um que vier atrás de nós.
Ela começava a se dar conta de que aquilo não era uma brincadeira; era para valer. Era uma questão de vida ou morte. Raphah e Thomas lançaram-se na escuridão do túnel. Podiam ouvir a água pingando do teto. A cada passo o ar seguia ficando mais frio; a luz das lamparinas tinha pouco alcance e projetava sombras assustadoras nas paredes. Thomas seguia atento a qualquer ruído, temendo deparar—se com a criatura que surgira no bosque ou encontrar por ali esconderijos de elfos ou de boggles.
— Você conhece o caminho, peixinho? — sussurrou Raphah.
— Temos de nos manter à esquerda. Era lá que sempre colocávamos o dinheiro de Demurral. Há um jarro de pedra vazio junto a um portão de ferro. Quando encontrarmos isso, teremos encontrado a entrada do porão do Vicariato e é aí que nossos problemas vão começar.
Raphah foi rápido em responder.
— Esteja certo de uma coisa: o mal acabará punido e aqueles que agem para o bem serão livres. — Essas palavras, embora ditas em sussurro, ecoaram pelo túnel. Eles caminharam por uns dez minutos. O frio era quase insuportável. O cheiro daquelas paredes úmidas tornava-se cada vez mais intenso. Thomas pisou em algo que fez um ruído seco. Viu então que estava caminhando sobre os ossos de um cervo. A cabeça e o chifre do animal morto estavam caídos ali.
—Ele deve ter se perdido. Há muitos quilômetros de túneis e cavernas aqui embaixo. É por isso que os contrabandistas usam este lugar; se a pessoa conhece bem isso aqui, nunca será apanhada.
— Pois é, mas se não conhecer bem pode acabar morto como este cervo. — Raphah esperava que aquele não fosse o caso deles. Ele sentia o peso da responsabilidade que lhe cabia. Era responsável por Thomas e, agora, por Kate. Eles haviam sido trazidos para sua vida para ajudá-lo. Ele precisava cuidar de sua segurança.
Lá em cima, na superfície, Obadiah Demurral estava sentado diante da grande escrivaninha de carvalho de seu escritório, cercado de muitos livros empoeirados. Sobre a escrivaninha estava o bastão de acácia recoberto de lâminas de ouro. À esquerda encontrava-se a figura alada do Keruvim roubado. À luz fraca da vela que iluminava a sala, a mão magra de azeviche começou a brilhar. A princípio isso era quase imperceptível, mas a cada instante ela foi ficando mais brilhante.
Alguém bateu à porta. Demurral despertou de seu cochilo.
— Sim, entre.
Beadle entrou com uma bandeja na qual havia pedaços de carne cuidadosamente cortados, parte de um pão e uma enorme taça de vinho tinto.
— Seu jantar, Mestre.
— Coloque-o naquela mesa ali e retire-se — retrucou ele, rispidamente.
— Mestre... — gemeu Beadle.
— Retire-se, Beadle! Já! — gritou ele.
— Mestre... é a mão!
— Qual é o problema com minha mão? Retire-se antes que eu lhe dê um tapa na cabeça. — Demurral pegou o pedaço de pão e atirou-o em Beadle, atingindo seu olho esquerdo e espalhando migalhas pelo chão.
Sem desistir, Beadle fez uma nova tentativa, mas dessa vez protegeu—se com ambos os braços sobre a cabeça para que não lhe caísse em cima o vinho ou o resto da comida.
— Mestre, a... mão... negra... está brilhando!
— O quê?— gritou Demurral, atirando o vinho para cima. Voltou-se então e viu a mão já incandescente, quase branca de tão quente.
Ele correu até Beadle e apertou-o contra si, esfregando a verruga do nariz do homenzinho na fivela de seu cinto.
— Depressa! Vamos preparar a recepção para nosso visitante. Eu sabia que ele não tinha ido para o fundo do mar com o barco e agora ele está aqui! Louvado seja Pyratheon, o deus das trevas do universo!
— Que devo fazer, Mestre? — Beadle corria de um lado a outro da sala catando os pedaços do pão e tentando limpar com eles o vinho derramado.
— Vá ao porão e traga-me a Mão da Glória. Depressa, não podemos perder tempo. — Demurral não quis esperar e os dois saíram correndo para o porão. De uma grande arca de carvalho Beadle tirou a mão, que estava envolta em seda preta. Era a mão decepada de um assassino que morrera na forca. Ela havia sido mergulhada em cera de maneira tal que cada um dos dedos podia ser aceso como uma vela. Uma vez acesos, qualquer pessoa que estivesse na casa cairia em um sono profundo do qual só despertaria quando as velas fossem apagadas. Somente a pessoa que estivesse carregando a mão deixaria de adormecer. Demurral segurou-a e acendeu o dedo mínimo. — Saia, Beadle, ou você também será enfeitiçado.
Demurral voltou-se e caminhou em direção à porta de ferro que dava para o túnel. Em um candeeiro acendeu os outros dedos da mão. Ouviu um chiado vindo dos dedos. O feitiço já estava se processando. Ele abriu a pesada porta de ferro e a luz que irradiava da mão espalhou-se pela escuridão. Demurral entrou no túnel.
— Bem-vindos, amigos. Sejam bem-vindos à minha casa. Venham participar da minha ceia e juntos compartilharemos as coisas maravilhosas que acontecerão esta noite!
Thomas e Raphah espremeram-se de encontro à parede úmida do túnel para não serem vistos. Demurral falou novamente.
— Venham, venham. Ora, não sejam tão tímidos. Sei que estão por perto. Não farei mal algum a vocês. — Ele contorceu os lábios e ergueu uma sobrancelha, rindo da própria mentira. Em seu esconderijo, Thomas e Raphah tentavam nem respirar com medo de serem ouvidos.
— Se eu não conseguir encontrá-los... — Demurral fez uma pausa, pensativo. — Talvez um thulak consiga tirá-los da toca.
Apesar de todo o frio que fazia no túnel, gotas de suor escorriam da testa de Thomas. Raphah percebeu o medo do outro e segurou-lhe a mão. Às pequenas lamparinas que eles haviam levado começavam a se apagar. Em pouco tempo, estariam imersos na escuridão.
O Carvalho Rei
Kate Coglan estava escondida no arbusto de azevinho junto à entrada do túnel esperando por eles. Ao seu redor, a mais profunda escuridão. Ela se gabava de não ter medo de coisa alguma. Não acreditava em fantasmas, em criaturas da noite, nem mesmo em Deus. Seu pai cuidara de pôr fim a qualquer crença que ela pudesse ter. Para ele, ela precisava ser como um filho, em substituição ao que havia morrido dois anos antes de Kate nascer. Aquela era uma morte da qual jamais se falava e cuja única referência era uma pequena lápide no cemitério que ficava no alto do despenhadeiro, lápide essa que assinalava os túmulos da mãe e do filho, juntos na morte como em vida.
Kate sempre usava calças grossas até o joelho, botas de cano alto e uma jaqueta pesada. Na cabeça tinha sempre um chapéu masculino de três pontas. Seus longos cabelos eram amarrados em um rabo-de-cavalo, porém seus grandes olhos e sua pele delicada revelavam a menina que ela era.
Quanto a fantasmas, bem, Kate estava convencida de que não existiam. Em seus 14 anos de vida, jamais havia visto um e o que ela não via não podia lhe fazer mal. Por que ter medo do que não via, se todo o sofrimento de sua vida era causado por pessoas que a cercavam? Muitas vezes ela havia feito perguntas ao pai sobre a vida e a morte. Ele não lhe dava resposta e, se ela insistisse, dava-lhe uma surra. O que ele dizia sempre era que as únicas coisas que existem são as que se podem ver. Quando ela era pequena, ele a sacudia com raiva se ela lhe perguntasse sobre a mãe. Ele gritava, quase sempre bêbado, que sua mãe estava morta e pronto. Que jamais seria vista novamente, que estava debaixo da terra, entregue aos vermes. Depois ele gritava: — Se Deus existisse, por que tiraria de mim meu filho e minha mulher? Quem poderia amar um Deus assim... um Deus inventado... uma muleta para os fracos...
Nessas ocasiões Kate protegia a cabeça com os braços e encolhia-se em um canto do cômodo, pois em seus ataques de ódio ele arremessava os móveis e objetos da casa. Depois ele chorava sem parar abraçado a Kate, mas ela não chorava. Suas lágrimas estavam trancadas, enterradas no fundo de seu coração como as remotas lembranças de sua mãe. O rosto de Kate tinha a expressão decidida de quem não deixaria que ninguém ou coisa alguma a magoasse. Ali sentada, com uma pistola na mão, sentia-se disposta a enfrentar o mundo.
De trás do arbusto onde estava, ela ouviu com atenção e engatilhou a arma. Nada podia ver naquela escuridão, mas ouvira os gritos de Demurral ecoarem, abafados, dentro do túnel. Conhecia bem aquela voz. Em seu esconderijo, ela pensou em Thomas e Raphah e, a cada grito que ouvia sair da boca do túnel, ficava mais preocupada.
Na escuridão da floresta, ela começou a ver figuras estranhas onde quer que olhasse. Uma árvore parecia uma cabeça gigantesca, uma nuvem parecia um ganso parado junto a uma estrela e uma pequena moita assumiu a forma de um porco-do-mato. Kate olhou para a escuridão logo adiante e ficou paralisada de pavor. A escuridão também estava olhando para ela!
Ali na relva, a pouca distância dela, quatro pares de olhos vermelhos e brilhantes fixavam-se no arbusto de azevinho. Kate sentiu que as palmas de suas mãos começavam a suar enquanto ela era tomada de pânico. Não ousava se mexer, com medo que aqueles olhos a vissem. Não ousava engolir a saliva com medo que a ouvissem. Apesar da pequena distância que os separava, ela não conseguia ver o contorno daquelas criaturas — apenas seus olhos vermelhos fixos em sua direção. Se eram contrabandistas, então aquele era o melhor disfarce que ela jamais tinha visto. Ela não os tinha ouvido chegar; eles simplesmente tinham aparecido ali.
Ela continuou a olhar e começou a ver um contorno surgindo ao redor de cada criatura, como milhões de pequeninas partículas brilhantes. Elas brilhavam com intensidade cada vez maior. Então as partículas foram se aproximando, sempre girando, como se sopradas por algum vento imperceptível que agitasse as brasas de uma fogueira. Sua cor foi passando do prata para o vermelho, para o verde e, por fim, para o azul. E então, tão subitamente como surgiram, elas desapareceram. Kate continuava a olhar, estática, para a escuridão. O que viu à sua frente deixou-a perplexa.
Ali, na relva diante dela, estavam cinco figuras altas vestidas dos pés à cabeça em armaduras de metal. Cada uma tinha um capacete polido em forma de cabeça de cobra que brilhava como diamante. Duas grandes presas de marfim desciam da frente de cada capacete como dentes em forma de sabre de criaturas extintas há milhares de anos.
Os peitorais das armaduras acompanhavam o desenho de cada músculo e longas proteções de metal iam até os cotovelos, onde se juntavam as manoplas de couro espesso. Entre cada peça de metal, Kate podia ver a pele das criaturas: era verde-escura e parecia não ter vida. Tinha também uma incandescência assustadora que quase se fundia com a noite. Na cintura de cada uma delas havia um cinto largo de couro preto ao qual estava preso algo que parecia ser uma espada curta com punho de couro preto. A menor das criaturas tinha na mão um escudo circular com tachas de prata e pedras preciosas vermelhas incrustadas.
De seu esconderijo ela não podia ver os rostos daquelas criaturas. Podia apenas ver os olhos vermelhos e brilhantes fixos em sua direção. Kate apontou a pistola para a cabeça da criatura maior. Inspirou fundo sem fazer ruído. Estava aterrorizada. Uma voz dentro de sua cabeça gritava: "Puxe o gatilho!" Mas ela não conseguia fazer movimento algum. Estava paralisada pelo medo, petrificada como uma estátua.
A voz gritou novamente: "Puxe o gatilho!"
Ela continuava incapaz de se mover. A arma pesava em sua mão como se estivesse sendo puxada. Tudo que Kate desejava era sair correndo dali. Ela sabia que não conseguiria dar mais de cinco passos sem ser apanhada. Sabia que se movesse a mão ou baixasse a pistola as criaturas ouviriam. Kate reuniu todas as suas forças para continuar a segurar a pistola à sua frente. Sentia os músculos do braço doerem, desde as pontas dos dedos até o ombro. Ela queria chorar, queria ir para casa. Novamente a voz dentro de sua cabeça comandou-lhe:
"Puxe o gatilho... Puxe o gatilho."
Tremendo de medo, Kate tentou apertar o gatilho, mas seu dedo não lhe obedeceu. Uma dormência gelada começou a lhe subir pelo braço, como se ela estivesse sendo transformada em pedra.
Às criaturas se reuniram e começaram a falar e a cantar em uma língua que ela não conseguia compreender. Emitiam ruídos estranhos, roncando e grunhindo entre si, e foram se aproximando até formarem um círculo.
Ela sabia que dispunha de apenas alguns segundos antes que a pistola caísse de sua mão. Subitamente, do fundo do túnel, veio um grito assustador. Kate sabia que deveria ser de Thomas. O grito foi seguido do barulho de alguém que corria desesperadamente pelo túnel em direção à saída.
Enquanto ele corria, Kate podia ouvir o eco de seus gritos — "Não, Não, Não!". Eram gritos agudos de quem se vê prestes a morrer, de alguém que corre da presença do mal. Os gritos se tornavam mais próximos a cada segundo.
Kate não foi a única a ouvir os gritos vindo em sua direção. Às criaturas se voltaram para a entrada do túnel, com os olhos mais brilhantes do que antes. De suas narinas começaram a sair jatos de fumaça verde que se dissolviam no ar frio da noite. Eles ficaram apreensivos. Sem qualquer palavra de comando, puxaram suas espadas a um só tempo. Então se desfizeram em silêncio e esconderam-se na folhagem espessa dos arbustos ao redor da clareira. Somente seus olhos vermelhos e penetrantes continuaram a brilhar como grandes pirilampos entre as folhas.
Kate podia ouvir os gritos de socorro de Thomas enquanto ele corria em sua direção. Os ecos agudos de seus gritos saindo do túnel pareciam os de um monstro despertado de seu sono. Não havia como avisá-lo do que o aguardava ali fora. Kate pensou que ele estava saindo de um pesadelo para cair em outro.
Thomas saiu da boca do túnel e caiu na relva da clareira. Ergueu-se, arfante, e gritou:
— Kate, saia de onde está, Demurral está vindo aí! Ele está fazendo algum tipo de feitiço! Vamos! — gritou Thomas na escuridão. Kate não respondeu. De onde estava ela podia ver os olhos das criaturas olhando para Thomas de seus esconderijos. Queria falar, mas um medo mais forte do que ela parecia apertar-lhe a garganta, como uma mão gelada.
Paralisada, ela ficou olhando para Thomas, a poucos metros de distância. Eles eram amigos desde pequenos. Haviam crescido juntos, brincado juntos e lutado juntos. Ela gostava dele mais do que de qualquer outra pessoa e de onde estava podia ver as criaturas prontas para atacá-lo.
— Vamos, Kate, pare de brincadeira. Eu sei que você está escondida — disse Thomas. — Temos de ser rápidos. Demurral não está longe daqui. Saia de onde está, Kate! — gritou Thomas, desesperado.
Ela viu um vulto escuro por trás de uma moita, perto da borda da clareira. Pôde ver o contorno de um ombro e a lateral de um braço. A luz das estrelas, pôde ver, vagamente, o reflexo de metal polido.
— Achei você! Vire essa pistola para lá. Sei que você está aí. Silêncio. Nada se moveu. Ele deu um passo à frente e chutou a moita.
— Levante-se daí, sua boba. Temos de dar o fora daqui, e depressa. Ele está vindo atrás de nós. Temos de subir para o Vicariato.
Thomas, querendo que Kate saísse logo dali, tornou a chutar a moita.
Um par de olhos vermelhos e brilhantes voltou-se para ele iluminando-lhe o rosto. A figura de armadura começou a pôr-se de pé e foi ficando cada vez mais alta. Thomas, paralisado, não desgrudava os olhos dos daquela criatura que chegava a uns dois metros e meio de altura. Deu-se conta de que outras como ela saíam de seus esconderijos no bosque e se aproximavam dele. Pôde então perceber que o metal reluzente era de uma espada curta. O espectro subitamente ergueu a espada acima de sua cabeça e soltou um grito pavoroso. Thomas sentiu que alguma força misteriosa o obrigava a cair de joelhos sobre a relva molhada. Ficou esperando que a espada lhe arrebentasse a cabeça.
Fez-se silêncio na floresta e uma estranha paz desceu sobre ele. A sua volta tudo estava quieto. Em seu coração já não havia mais medo. Thomas já não desejava mais correr ou lutar. Ele baixou a cabeça e ficou aguardando o golpe. Aquele instante parecia interminável. Ele jamais havia pensado que morreria em um lugar assim. Sempre imaginara que morreria no mar, como o pai e tantos outros da família antes dele. Morrer no mar era tido como certo. Desde bem pequenino ele usava um amuleto que a mãe lhe dera. Era um pequeno estojo de prata contendo um pedacinho da pele que lhe envolvia a cabeça ao nascer. Era um sinal de grande sorte e proteção contra afogamento. Era o único objeto de valor que ele possuía. Valia nada menos que seis guinéus. Mas como seria possível que um pedacinho de membrana seca do seu nascimento guardado numa caixinha de prata tivesse algum poder para defendê-lo de uma espada?
Ele podia ouvir a respiração ofegante da criatura e foi cercado pela névoa fria que saía de suas narinas. A cada som da expiração, como se fosse o tique taque de um relógio, ele aguardava que a espada lhe caísse sobre a cabeça e acabasse com sua vida.
Ocorreu-lhe que eles estivessem esperando o momento certo para sua execução, como se o silêncio fosse ser subitamente quebrado por uma ordem antes que a lâmina lhe caísse sobre a cabeça. Thomas esperava. A presença daquela criatura à sua frente deixava-o paralisado, como que congelado. A sua volta o orvalho sobre a relva transformava-se em espessa camada de gelo. Cada folha e cada lâmina de relva recobriam-se de cristais de gelo com o ar gelado que saía das narinas daquelas criaturas.
O frio tornou-se tão intenso que Thomas já mal podia respirar, sentindo que a umidade de sua garganta transformava-se em gelo. Ele se curvou e caiu aos pés da criatura. Suas mãos, instintivamente, agarraram-se à parte da armadura de bronze que lhe cobria as pernas. Foi então que algo inesperado aconteceu. No exato instante em que ele tocou a criatura, tornou-se capaz de ver o mundo em que ela vivia. Nos poucos segundos de duração desse fenômeno, foi como se sua mente tivesse sido aberta por uma chave invisível.
Subitamente, Thomas passou a saber seus nomes e o que faziam ali. Eram varrigais! O menino pôde ver, mentalmente, a terra fria e inóspita de onde eles vinham. Era um lugar de trevas, tempestades, chuvas de granizo e trovões. Era um mundo cinzento e sem formas, um mundo sem esperanças. Aquelas criaturas não estavam realmente vivas, mas tampouco mortas — apenas existiam à espera de algum mestre que lhes dissesse o que fazer. Os varrigais eram uma raça de guerreiros enfeitiçados pelo espírito que despertava os mortos. Enfeitiçados por aquele que conhecia as palavras mágicas esquecidas.
Uma súbita explosão tirou Thomas de seu estado de transe. O ruído ensurdecedor parecia não ter fim. O menino sentiu um ar quente em sua nuca e viu que a clareira era tomada por uma luz intensa. Ouviu então o som de metais se batendo e sentiu que a criatura à sua frente estremecia de cima a baixo. A espada curta caiu no chão, passando de raspão por sua cabeça e entrando pela relva gelada. A criatura dobrou os joelhos e foi caindo para frente.
— Corra, Thomas! — gritou Kate de seu esconderijo no arbusto de azevinho.
A criatura estatelou-se na relva e Thomas rolou sobre si mesmo, afastando-se, mas não sem antes agarrar a espada com seus dedos ágeis. Pondo-se de pé na terra fria, ele se lançou em direção à criatura que partira para cima de Kate. A espada atravessou a armadura com a facilidade com que uma faca quente atravessa a manteiga. O varrigal tombou dando urros. Os demais espectros voltaram-se para Thomas com suas espadas erguidas, prontas para se abater sobre ele.
— Rápido, Kate! Vamos correr até o Moinho dos Boggles! — gritou Thomas. Kate surgiu de dentro do arbusto. — Depressa, Kate, corra!
Um varrigal, de espada em punho, avançou para cima de Thomas, que se defendeu com sua espada. Faíscas verdes brilharam na noite com o choque das espadas. Thomas e Kate saíram em disparada. Ele jamais havia corrido tão depressa. Ia puxando Kate pelo braço para que ela o acompanhasse. Embrenharam-se pelas matas de samambaias gigantes que pareciam querer agarrá-los também.
Por algum tempo ainda puderam ouvir os urros dos varrigais, mas depois se fez silêncio. Os únicos sons que ouviam eram os dos seus pés a correr pela trilha, floresta adentro. Corriam quase às cegas pela estreita trilha de veados, para longe da clareira e em direção ao Moinho dos Boggles. Já haviam percorrido quase dois quilômetros. Thomas parou, já quase sem fôlego; não agüentava mais continuar correndo daquele jeito. Deixaram-se cair junto ao tronco de um grande carvalho. No silêncio absoluto, só o que Thomas ouvia era o tum-tum-tum de seu coração. Olhou para Kate, que tentou sorrir e reprimir as lágrimas ao mesmo tempo.
— Que criaturas eram aquelas, Thomas? Elas me congelaram —sussurrou ela ainda sem fôlego e temendo ser ouvida.
— O que quer que sejam, sei que Demurral tem algo a ver com aquilo. — Thomas forçou um sorriso. — Foi um bom tiro aquele seu. Salvou minha vida. — O menino acariciou de leve o rosto dela. Ela ainda estava fria. — Vamos embora. Estamos só a pouco mais de um quilômetro do Moinho e lá podemos nos esconder.
— E Raphah? Você vai abandoná-lo?
— Não. Tudo foi planejado — disse ele ainda arfante. — Quando chegamos à entrada secreta do Vicariato, Demurral apareceu dizendo umas palavras estranhas e segurando uma mão ainda mais estranha com os dedos acesos. Nossas lamparinas se apagaram e Raphah se escondeu, enquanto eu fiquei fazendo barulho para que o bruxo velho corresse atrás de mim. Se teve sorte, Raphah está lá dentro agora, com o que veio buscar. Se não voltar até amanhã, volto eu para procurá-lo.
Kate segurou a mão dele.
— Estou com medo, Thomas. Nunca vi aquilo em toda a minha vida. E eu... matei um deles!
Thomas sabia que não podia demonstrar medo.
— Nossa vida mudou, Kate. Talvez nunca mais volte a ser como antes. Não se pode voltar atrás e o que aconteceu esta noite não tem como ser modificado. Há uma espécie de loucura, algo que está transformando o mundo. No túnel isso podia ser percebido muito bem. Algo muito ruim está acontecendo. Algo relacionado com o mal. Posso sentir isso em meu estômago. — Thomas pegou a espada que havia roubado de uma das criaturas e examinou-a cuidadosamente. Tinha manchas púrpuras de sangue do varrigal.
Kate sussurrou:
— Que vamos fazer? Meu pai vai procurar por mim de manhã. Não posso ir para o Moinho, tenho de ir para casa.
— Para casa? Se Demurral conseguir o que deseja, ninguém mais vai ter casa. Quando toquei na criatura, pude ver o lugar de onde ela veio; pude ver o interior de sua mente. — Ele fez uma pausa e olhou bem para Kate. — Você não tem idéia, Kate, mas Demurral tem um plano para o futuro. Se conseguir seu intento, este mundo será transformado de maneira tal que nem podemos imaginar. Raphah me disse que Demurral tem o poder de despertar os mortos, de controlar os ventos e os oceanos e de fazer com que criaturas como as que vimos obedeçam a seu comando. Não há como voltar atrás; isso está além das nossas possibilidades. Precisamos ajudar Raphah porque ele é a única pessoa que pode impedir Demurral de conseguir o que deseja.
— Como é que você sabe disso? Você acaba de conhecê-lo. — Kate começou a chorar baixinho. — Quero que tudo isso acabe. Quero que as coisas voltem a ser como eram. Eu gostaria de nunca ter conhecido Raphah, com aquela sua conversa maluca. Será que ele enfeitiçou você também? — Às lágrimas rolavam pelo rosto de Kate. — Eu matei alguma coisa esta noite... vi quando ela morreu. Ela queria matar você. Por favor, Thomas, faça com que tudo isso acabe.
Ela encolheu os joelhos de encontro ao peito, bem apertados. Se fechasse bem os olhos, pensou, talvez aquele pesadelo se desfizesse e tudo voltasse ao normal quando o dia amanhecesse. Thomas abraçou-a. Ele jamais a havia visto chorar. Ela sempre se mostrara tão forte, tão capaz de controlar suas emoções! Agora estava chorando como uma criancinha, como alguém que acabava de se descobrir menos forte do que pensava ser. Ficaram os dois abraçados em silêncio na escuridão da floresta. Thomas também tinha medo, mas não ousava confessá-lo. Como poderiam lutar contra Demurral? Ele era o Vigário, o dono da mina, o juiz. Ele era quem detinha todo o poder no mundo de Thomas. E Thomas não tinha poder algum — era um menino pobre e sem lar e, agora, um fora-da-lei.
Ele se recostou no velho carvalho e olhou para o céu escuro por entre os galhos sem folhas das árvores. O Carvalho Rei havia perdido sua glória. Era chegada a época dos arbustos. O carvalho perdera sua força, que se havia recolhido às raízes. A sua volta estavam as folhas mortas. Às sementes partidas aguardariam ali a chegada da primavera, quando os duendes as despertariam para recobrir o mundo de verde novamente, em seu eterno trabalho de recriação da vida.
Thomas falou baixinho para Kate, que ainda chorava.
— Vamos ficar aqui até o dia amanhecer e então iremos para o Moinho. Tente dormir. Eu fico vigiando.
Kate não respondeu, mas escondeu o rosto no ombro dele para aquecer-se. Thomas ergueu a gola áspera e rasgada de seu casaco. Com a outra mão segurava a espada. Ficou olhando atentamente a escuridão. Através das árvores, bem longe, brilhavam pontinhos de luzes de Baytown. Ele tentou ficar acordado, mas o sono fez pesarem suas pálpebras e aos poucos ele foi se esquecendo do medo que sentira todo aquele dia. Seus pensamentos foram se transformando em sonhos e a realidade foi se dissipando.
A terra era como uma cama macia ao fim de um dia muito árduo, e o som ritmado dos galhos movidos pela brisa acalmaram sua mente. Ele se aconchegou a Kate e apertou o rosto contra seus cabelos. Ela cheirava a sabonete, terra e pólvora. Thomas respirava tranqüilo, sentindo-se seguro sabendo que tinha uma amiga.
O Altar Dourado
Thomas sonhava. A escuridão era absoluta e ele se encontrava em um frio aposento de pedra. A escuridão parecia oprimi-lo, envolvendo-o como uma mortalha negra. Num canto afastado do aposento, uma vela acendeu-se subitamente, lançando uma luz bruxuleante à sua volta. Ele pôde então ver que estava em uma galeria espaçosa, toda de pedra e com o teto em abóbada — a maior galeria que ele já vira. O teto era bem alto, sustentado por sete colunas de pedra em cuja parte superior estavam esculpidos chifres de veados. Na extremidade mais afastada, Thomas pôde ver um altar dourado em que havia uma alta cruz toda trabalhada em pedras preciosas — jaspe, calcedônia, sárdio, topázio e crisólito. Um círculo dourado parecia flutuar no ar, por trás da cruz. Nele havia sete lindas esmeraldas incrustadas. Ele foi se encaminhando em direção ao altar. A grande pedra azul no centro da cruz ficou negra e, quando ele se aproximou mais, todas as pedras preciosas transformaram-se em olhos humanos, azuis e brilhantes, que passaram a acompanhar cada passo seu.
Das paredes desceram sete criaturas aladas, altas, vestidas em longas túnicas brancas. Às asas das criaturas dobraram-se para frente cobrindo suas cabeças, enquanto elas se encaminhavam para o altar. Seus cabelos eram longos e dourados, de fios reluzentes. A pele era de um marrom intenso e belo e parecia brilhar. Às criaturas eram fortes e imponentes, com uns dois metros e meio de altura, ombros largos e intensos olhos negros. Quando começaram a caminhar sincronizadas, puseram-se a entoar cânticos e suas vozes poderosas encheram o ambiente. Cada palavra pulsava, ecoando por todo o vasto salão e criando uma profunda sensação de paz. Thomas pôs-se a tremer a cada onda de som que chegava até ele, fazendo vibrar até sua alma. Ele apertou uma mão na outra para que elas não tremessem, entrelaçando os dedos, e prestou atenção a cada palavra.
— Salve! Salve! Salve o Senhor das Hostes! O céu e a terra estão cheios de sua glória!
Às palavras ecoavam por todo o corpo do menino. Às criaturas repetiam essas palavras seguidamente enquanto se encaminhavam para o altar. Uma delas levava uma grande espada, outra levava um escudo e uma terceira levava um capacete. Thomas foi atraído para mais perto, como se tivesse direito a participar daquele ritual. Era como se ele estivesse sendo atraído para algo que transformaria sua vida para sempre. Ele não sabia se as criaturas eram capazes de vê-lo e tampouco se importava com isso.
Elas eram metade humanas, metade alguma outra coisa. A cada passo que davam faziam tudo vibrar. Suas túnicas brilhavam de tão brancas, uma brancura que Thomas nunca vira igual. Tudo era tão real, tão verdadeiro, que ele não podia acreditar que fosse um sonho. Ouviu uma voz chamá-lo, de dentro de sua cabeça.
"Acorde, acorde."
Ele jamais havia se sentido tão desperto, tão vivo. Naquele salão, em meio a tanto brilho, na presença daquelas criaturas aladas, ele sentia a vida com uma intensidade que nunca sentira antes. Thomas percebeu que alguém olhava para ele, que ele não estava sozinho assistindo àquele ritual. Voltou-se e viu que havia um homem de pé à sua direita. Estava vestido com uma túnica de linho, calças largas, e tinha nos pés uns sapatos pontudos de prata, lindos e estranhos como Thomas nunca vira. O homem não era branco nem negro, mas tinha a aparência de alguém bronzeado pelo sol. Seus cabelos eram muito escuros e cacheados. O homem sorriu e dirigiu-se a Thomas com uma voz bela e suave, chamando-o pelo nome.
— Thomas, você precisava ver isso. — Ele fez um gesto em direção ao altar. — Não tenha medo, Thomas, mas saiba que as forças contra as quais você lutará não são de carne e osso. São os senhores das trevas e os espíritos do mal.
O homem segurou a mão de Thomas. O menino o olhou nos olhos e deu-se conta de que eram os mesmos olhos que estavam na cruz, de um azul intenso, olhos que tudo viam e que tudo sabiam. Sentiu-se transparente diante daquele homem, como se ele soubesse tudo sobre sua vida — todos os segredos, todas as mentiras, todos os maus pensamentos estavam à mostra. Porém tudo aquilo foi saudado com um sorriso quando o homem pegou sua mão e apertou-a levemente.
— Não tenha medo. O que quer que você tenha feito de errado pode ser consertado, apagado, esquecido. — Thomas desviou o olhar, sem conseguir encará-lo. Sentia-se envergonhado. Viu então que as roupas que vestia eram trapos sujos que lhe pendiam do corpo. Baixou a cabeça e não teve coragem de erguê-la.
— Quem é o senhor? — perguntou ele com dificuldade. Seus olhos continuaram fixos nos desenhos formados pelas pedras do piso.
— Sou o Rei. Você não ouviu falar de mim? Não reconhece minha voz?
— Nosso Rei é gordo, ambicioso e louco — disse Thomas. — E jamais se dirigiria a alguém como eu. O senhor não pode ser meu Rei. — Seus olhos continuavam fixos no chão, pois ele não queria olhar para o homem.
— Sou o Rei, mas de todo o mundo. Basta você acreditar na minha existência, Thomas, e eu poderei ser seu Rei. — Ele tocou de leve a testa do menino.
— Como eu poderia deixar de acreditar na sua existência se o senhor está aqui, diante de mim? Eu o vejo com meus próprios olhos. Não posso duvidar do que vejo.
— Você só acredita nas coisas que pode ver? Há muitas outras coisas na vida além do que nossos olhos nos dizem. Eu o conheço desde que você se formou no ventre de sua mãe. Desde antes do início dos tempos, sou eu quem cria todos os dias para vocês.
O homem olhou para Thomas, sorriu e continuou a falar.
— Uma pessoa pode acreditar em determinadas coisas, mas não as seguir, necessariamente. É fácil para você acreditar em mim quando se encontra no meu mundo. Mas em que acreditará quando retornar ao seu? Em que acreditará quando não mais me puder ver? — O Rei pôs uma das mãos no ombro de Thomas.
— Acreditarei no senhor, neste e em qualquer outro mundo. —Thomas estendeu a mão para o Rei. Ele a segurou.
— Se você acredita em mim, Thomas, será capaz de me seguir?
Thomas não conseguia falar; jamais havia estado diante de uma pessoa como aquela. Podia sentir a majestade e a autoridade daquele homem, bastando para isso sua presença. O rosto do homem tornou-se radiante de uma luz branca muito intensa que se espalhou por todo o salão e deixou Thomas imerso naquela luminosidade. A luz era tão intensa que o menino fechou os olhos e desviou o rosto.
— O senhor será meu Rei e eu o seguirei. — Thomas disse essas palavras devagar, de cabeça baixa.
— Você sabe perfeitamente o que está dizendo, Thomas?
— Sei — respondeu Thomas com convicção.
— Então erga a cabeça e veja. — O homem ergueu a cabeça de Thomas pelo queixo. — Abra os olhos. Esta luz jamais cegou pessoa alguma que a tivesse olhado com a verdade no coração. É a luz da vida. A luz que os seres das trevas jamais compreenderão.
Thomas abriu os olhos. O salão estava repleto de criaturas aladas que se curvavam diante do homem e seu cântico tornava-se cada vez mais alto.
Salve! Salve! Salve o Senhor das Hostes!
Os céus o proclamam nosso Rei!
A terra está cheia de sua glória!
Thomas não entendia o que estava acontecendo.
— Quem são eles? — perguntou. Havia insegurança em sua voz.
— Eles são os seruvins, são o exército de Mulkuth. Venha até o altar. Algo importante precisa ser feito.
Ele guiou Thomas até o altar. Todo o salão brilhava com a luminosidade que emanava do Rei. Ali não havia sombras, cantos escuros, não havia segredos. Os seruvins formaram-se em círculo ao redor de Thomas e do Rei. O cântico erguia-se cada vez mais alto. Chegando ao altar, Thomas pôs-se diante da cruz, e os olhos que nela havia iluminaram sua alma. A seus pés havia um livro antigo, com uma capa de ouro trabalhado e páginas feitas de um tecido grosso. O livro abriu-se sem que ninguém tocasse nele. Thomas pôde ver que continha muitos nomes. Uma a uma, as páginas foram se virando e, ao chegar à última, ele viu que seu nome estava sendo escrito. A mão, a pena e a tinta eram invisíveis.
— Este é o Livro da Vida. Todos os que têm os seus nomes nele inscritos não precisam temer a morte.
O Rei sorria ao falar.
— Thomas, eu lhe darei dois presentes hoje. Carregue-os sempre consigo. Eles lhe serão úteis nos tempos que virão.
No mesmo instante, um dos seruvins deu um passo à frente e entregou ao Rei um cinturão de couro grosso com uma fivela de ouro. O Rei o amarrou na cintura de Thomas.
— Este é o cinturão da verdade. Seu inimigo usará de mentiras e falsidades, pois é o pai de todas as mentiras. Tome cuidado. Ele é um leão insaciável e desejará destruir sua alma. Mantenha-se sempre do meu lado, do lado da verdade, e jamais será derrotado.
O Rei olhou para o mais alto e mais forte dos seruvins e fez sinal para que ele se aproximasse de Thomas. A criatura tinha o rosto mais lindo que Thomas jamais havia visto. Não era masculino nem feminino, nem jovem nem velho. Seus traços eram quase transparentes, entretanto davam a impressão de muita força.
Thomas notou que a túnica do seruvim era tecida com fios que criavam lindas tonalidades de ouro e prata. Era presa à cintura por um cinturão largo feito de madeira viva. Finos galhos verdes floridos entrelaçavam-se em volta da cintura, formando o fecho do cinturão e a bainha da espada que dele pendia. Às asas do seruvim brilhavam intensamente. Não eram asas de pássaro e não pareciam estranhas naquela criatura, de outra forma tão humana. Pareciam pulsar e mudar um pouco de tamanho a cada pulsação, como se conectadas, de alguma forma, ao coração da criatura. O seruvim desembainhou a espada e ergueu-a acima da cabeça segurando-a pela lâmina, oferecendo-a a Thomas. O Rei olhou bem nos olhos do menino.
— Azrubel lhe dará sua espada. Antes de recebê-la, pense na batalha que precisa ser travada. Não pegue a espada a não ser que esteja pronto para lutar. Hoje você deixa de ser menino para se transformar em homem. Lembre-se, Thomas, é mais difícil acreditar na minha existência quando não se pode me ver, e seguir-me quando se está sozinho. Lembre-se desta noite. Basta você falar que eu responderei. Estarei com você para sempre, até o fim dos tempos.
Sem hesitar, Thomas estendeu a mão e pegou a espada que Azrubel oferecia, segurando-a com força pelo punho. No mesmo instante, tudo mergulhou na mais profunda escuridão. Thomas sentiu a súbita queda de temperatura quando um vento frio começou a soprar a seu redor. Ele não conseguia ver nada. Seus olhos procuravam, aflitos, uma única réstia de luz. Mas havia apenas a mais total escuridão... e o mais absoluto silêncio.
Foi então que começou a ouvir um sussurro. A princípio, parecia um ruído de ratos no lado afastado do salão. Logo ele distinguiu o som de vozes. Eram vozes de jovens que riam, parecendo estar se divertindo. Depois ouviu o choro de uma criança, que começou baixinho e foi aumentando naquela escuridão total.
Muito lentamente, Thomas moveu os pés no chão de pedra. Ao fazer isso, pôde sentir a umidade nos pés descalços. Por todo lado ele podia ouvir o ruído de algo que corria arrastando as unhas no chão. Era um som bem conhecido seu. Som de ratos a correr por toda pane.
Ao mover os pés um pouco mais, ele sentiu que tocava em um pêlo morno e úmido que parecia estar por onde quer que ele pisasse. A cada passo que dava, tinha a impressão de fazer os ratos se assustarem, pularem por cima dos seus pés descalços, mordendo seus tornozelos. Aquele era o maior dos medos de Thomas, o pior dos pesadelos. O som dos ratos à sua volta foi ficando cada vez mais alto. Thomas não conseguia ver nada. Além dos ratos, só ouvia as vozes distantes chorando e pedindo socorro. Subitamente sentiu que uma mão lhe tocava o rosto, outra lhe agarrava uma perna e outras, ainda, puxavam-no pelos cabelos. O medo congelou seu estômago, deixou sua boca seca e os lábios tremendo. O medo era tanto que lhe tirou as forças.
Ele ouviu o ruído de algo sendo riscado, e a luz de uma vela surgiu à distância. Não havia mais altar nem seruvim, apenas aquela luz de vela. Lutando para se desvencilhar, ele conseguiu caminhar lentamente na direção da vela, mantendo sempre a espada em riste à sua frente. A espada não tinha peso algum e mesmo na escuridão mantinha um brilho etéreo, como as primeiras luzes douradas do dia no negrume da noite. Ele pôde ver a forma de uma pessoa agachada junto à vela.
— Quem é você? — gritou Thomas, mas não obteve resposta. — Quem é você? — Thomas bateu com força a espada no chão. Tudo à sua volta pôs-se a tremer, como se houvesse um terremoto.
O chão de pedra se abriu e da fossa que se formou começou a surgir um púlpito de igreja de madeira escura. Ele foi subindo, subindo, até ficar bem mais alto que Thomas. Uma única vela vermelha pingava sua cera no chão de pedra quase dois metros abaixo. Demurral estava de pé no púlpito, olhando para Thomas, e começou a falar.
— Eu conquistarei o céu e a terra e serei mais poderoso que Deus! Serei eu o juiz de tudo que existe. Nenhum ser se erguerá mais alto do que eu e o mundo inteiro se curvará para me adorar!
Demurral pôs-se a rir sem parar.
Thomas olhou para a base do púlpito. Kate e Raphah estavam amarrados a ela com grossas cordas parecidas com cobras que se moviam e se enroscavam por seus pés e por suas cinturas, apertando-os cada vez mais contra o púlpito. Thomas deu alguns passos à frente e bateu nele firmemente com sua espada. Ele se partiu como se fosse de vidro, lançando cacos por todo lado.
Demurral caiu no chão e foi imediatamente cercado por muitas raposas pretas que surgiram das sombras e postaram-se como sentinelas protegendo seu dono.
— Vamos, menino! Se você quer lutar, aproxime-se. Será que tem coragem? — Ele zombava de Thomas, enquanto as raposas pareciam mais agressivas.
Thomas deu um passo à frente e ergueu sua espada, mirando a cabeça de Demurral. A pedra sob seus pés começou a se desfazer em areia. Ele se sentiu escorregando enquanto uma cratera foi se abrindo sob ele. Thomas estava caindo!
— Thomas! — exclamou Kate, acordando-o. Ela viu um varrigal saindo da escuridão da floresta e vindo na direção deles. Ele ergueu sua espada no ar para baixá-la sobre Thomas. — Não!— gritou ela, vendo os olhos vermelhos do varrigal brilharem na escuridão onde começavam a surgir, timidamente, as primeiras luzes do dia.
Thomas foi arrancado de seu sonho e atirado de volta à realidade. Sem pensar, ele ergueu sua espada e o metal bateu no metal, a poucos centímetros de sua cabeça.
— Corra, Kate. Depressa! Para o Moinho! — Kate lançou—se colina abaixo pela trilha. O varrigal deu novo golpe, mas dessa vez Thomas deu um salto afastando-se e a espada enterrou-se no tronco da árvore. O enorme carvalho imediatamente ficou recoberto de gelo, totalmente congelado. Enquanto a criatura tentava puxar sua espada, Thomas atingiu-a nas pernas e, em seguida, vendo uma possibilidade de fugir, saiu correndo atrás de Kate.
O menino correu o mais rápido que pôde e pouco depois enxergou Kate à sua frente, na trilha para o Moinho dos Boggles. Naqueles primeiros instantes do alvorecer, o mundo parecia todo cinza. Não havia cores nem sombras. Thomas olhou para trás e viu que não estava sendo seguido. Ele sentia raiva de si mesmo por ter adormecido, por ter sido apanhado pela criatura novamente e por ter sido novamente salvo por Kate.
— Ei, Kate! — chamou Thomas. — Espere por mim! Não consigo correr tão depressa quanto você. — Ele estava ofegante e tentava fazê-la parar.
— Você correria mais depressa se soubesse que o diabo está correndo atrás de você — disse ela sem parar de correr em direção ao Moinho.
— É ele mesmo, Kate! É ele! Mas não vai nos alcançar! — Thomas segurou-a pelo ombro. — Pare! Precisamos conversar.
— Toda vez que eu falo com você surge alguém querendo me matar.
— Ouça! — Thomas pôs a mão sobre a boca da menina para que ela se calasse. De longe vinham os sons conhecidos de cavalos sendo levados pela trilha que vinha da praia. Eles podiam ouvir os ruídos dos cascos batendo nas pedras.
— Contrabandistas! Esconda-se! Não podemos deixar que nos vejam. — Thomas empurrou Kate para dentro do mato. Eles foram engatinhando pela relva até sumirem. Um a um, os cavalos foram passando pela trilha, cada um acompanhado por um homem a pé. A frente de todos ia um homem montado em um grande cavalo negro. Thomas espiou por cima de uma moita e sussurrou para Kate.
— É Jacob Crane, que está voltando da Holanda.
— Crane, o Matador! Deve ter fugido novamente. — Kate não queria saber de contrabandistas. Sabia que não eram confiáveis e que seriam capazes de negociar as próprias mães por uma garrafa de gim. — Abaixe-se ou ele vai acabar vendo você — murmurou ela para Thomas, puxando-o pela camisa.
Jacob Crane era um homem que sempre se vestia com roupas elegantes, botas de montaria de couro negro e macio, camisas sempre alvíssimas, coletes bem cortados, sempre cobertos pelos casacos mais caros que o dinheiro podia comprar. Levava sempre consigo duas das melhores pistolas, uma com munição comum e outra com uma única bala de chumbo.
O homem virou a cabeça, sem ter certeza de ter ouvido vozes. Puxou as rédeas do cavalo, fazendo-o parar, e ficou olhando para a névoa que se erguia do chão junto aos arbustos. O homem que vinha logo atrás olhou também.
— É o hálito do dragão, Sr. Crane. É só isso. Sobe da terra toda manhã ao alvorecer. É o Dragão da Terra respirando. — Ele balançava a cabeça enquanto falava, tentando fazer com que Crane concordasse.
— Hálito do dragão? Estamos no início do século XVIII! Os dragões já deixaram de existir e o único espírito nessas bandas é o álcool que levamos nestes barris. Ora, vamos embora! Faltam só trinta quilômetros para chegarmos à taberna e o brandy está ficando morno.
Crane parou novamente e tornou a olhar em direção ao lugar onde eles estavam escondidos. Os arbustos mexeram-se um pouco,
— Sr. Agar, acho que estamos sendo observados. — Ele puxou a pistola da cintura e apontou-a para o arbusto. — Saia daí, ou vai levar um tiro aí mesmo onde está.
Thomas e Kate se entreolharam. Ele fez sinal para que ela não se mexesse.
— Pelo visto, você é um homem mais corajoso do que eu. É sua última oportunidade antes que eu atire. — Voltando-se para Agar, disse: — Se for o capitão Farrell, nós o penduraremos em uma árvore; se for o dragão, você poderá comê-lo sozinho.
Nesse instante algo saltou de trás do arbusto. Crane atirou e o tiro ecoou pelo vale em direção ao mar. Uma velha corça deu um guincho e escoiceou, pulando novamente por cima dos arbustos e indo se esconder entre as árvores.
— Aí está o seu dragão, Sr. Agar. Com um tiro no traseiro. Cuidado com ele! — Crane deu uma gargalhada e fez com que seu cavalo seguisse adiante. Agar sorriu e olhou para o lugar onde Thomas e Kate estavam escondidos. Sua resposta foi em voz bem baixa, para não ser ouvida.
— Cuide o senhor para não ser apanhado, Sr. Crane. Se o senhor fosse mesmo tão esperto não teria perdido os dois filhotes. — Ao dizer isso ele deu um tapa no cavalo, que continuou sua marcha pela trilha.
De seu esconderijo, Thomas e Kate ficaram ouvindo o som dos cascos dos cavalos nas pedras se distanciar. Do outro lado do riacho ficava o Moinho dos Boggles. Uma fumaça de fogo recém-aceso saía da chaminé. Eles aguardaram até que o som dos cavalos tivesse se distanciado bastante. Kate foi a primeira a falar.
— Ele ia atirar em nós. — Ela olhou zangada para Thomas e deu-lhe um beliscão na perna.
— Não teria nos acertado. — Thomas tentava se fazer de despreocupado.
— Aquele era Jacob Crane; ele é um matador, um contrabandista. Não quer que ninguém saiba o que faz. — Kate estava zangada. Beliscou Thomas novamente para ver se ele reagia.
— Ele não é contrabandista, é um comerciante independente e não há mal algum nisso. — Thomas fez uma pausa para espiar por cima do arbusto e ver o Moinho dos Boggles no outro lado do riacho. — Seja como for, nós temos mais com que nos preocupar do que ele. — O menino parou de falar e pôs-se a farejar o ar, tentando identificar alguma coisa.
— É o que me diz de Raphah? Ele pode ter sido capturado por Demurral. — Ela o beliscou novamente, com mais força do que antes.
— Pare com isso! — Thomas empurrou a mão dela e pôs-se a farejar o ar novamente.
— Você não está me ouvindo, está distraído com outra coisa qualquer. — Ela o cutucou no peito com a ponta do indicador. — O que está acontecendo, Thomas? Por que não está me ouvindo?
— Estou ouvindo, mas não o que você diz! Tente ouvir também.
Kate ficou atenta, procurando escutar. Aos poucos os sons do dia amanhecendo começaram a sair do mato e das árvores. Um pica-pau pôs-se a bicar o tronco de um grande freixo, um tordo cantou bem alto pousado em um galho de carvalho. Thomas olhou para ela e sorriu.
— Já é de manhã! Conseguimos atravessar a noite e estamos vivos! — Ele começou a rir, mas parou subitamente ao ver a espada a seus pés. Kate também olhou para a espada. O sangue púrpuro do varrigal ainda estava lá. Mesmo à luz do dia, aquela visão os assustava.
Kate olhou para Thomas e segurou a mão dele.
— Você acha que eles virão atrás de nós de novo? — O medo estava estampado em seu rosto.
—Acho que virão atrás de nós de novo, mas não à luz do dia.
O Moinho dos Boggles
O Moinho dos Boggles já estava ali, à margem daquele riacho, havia cem anos. Suas paredes rústicas de pedra formavam uma construção de três andares encimada por um telhado vermelho cujas telhas, em vários lugares, estavam recobertas por um musgo verde espesso. Uma grande roda de madeira projetava-se para dentro do riacho e girava lentamente, rangendo em seu movimento impulsionado pela água, lamentando-se do trabalho que era forçada a fazer. Girava sem parar, recém-pintada de azul e com suas novas placas de metal a mergulharem compassadamente nas águas do riacho. Ali sentia-se bem a umidade do lugar e o cheiro forte de farinha recém-moída, ração de gado e carne sendo defumada. Cada uma das vinte janelas na parte da frente do prédio tinha um sapinho curiosamente entalhado em um canto da madeira que a emoldurava. A luz da manhã, os vidros refletiam o dourado do sol e pareciam placas de ouro sobre a parede de pedra.
No outro lado do riacho, um pouco mais à montante, havia um pequeno chalé de pedra não tão próximo à água. Tinha, a um lado, uma pequena horta e à sua volta várias galinhas ciscavam a terra.
Um bezerro preto e gordo forçava com o focinho uma cerca de varas entrelaçadas que não se deixava derrubar. A porta do chalé era tão pequena que um adulto precisaria curvar-se para passar por ela. Era feita de uma única peça de carvalho maciço. A madeira escura, antiga e cheia de nódulos, formava estranhas figuras.
O chalé dos boggles parecia ser um lugar hospitaleiro, com a fumaça saindo da chaminé a indicar que o fogo estava aceso. A luz fraca da manhã, o lugar parecia oferecer segurança a Kate e Thomas. Eles ouviram a voz de um homem que cantava vindo lá de dentro. Era uma canção do mar que falava de aventuras e riquezas.
Ele cantava com uma modulação bem marcada e forte sotaque estrangeiro, e parecia ser alguém com um forte resfriado. O tom da voz do homem subia e descia como os movimentos do mar. Às vezes parava e logo recomeçava, pulando uma ou duas palavras de um verso e depois as repetindo fora do lugar. A cantoria, definitivamente desafinada, era entrecortada por gargalhadas, como se o homem estivesse se divertindo consigo mesmo.
Thomas e Kate podiam ouvi-lo marcando o ritmo com o que parecia ser uma colher de pau em uma panela. A barulheira espalhava-se pelo ar da manhã. As galinhas e o bezerro aproximaram-se da porta como se esperassem que o homem surgisse lá de dentro em grande estilo.
Com um estalar da tranca, a porta de carvalho abriu-se de súbito e de dentro da casa veio um grito bem alto seguido do arremesso do conteúdo da panela para o quintal. As galinhas disputaram com o bezerro tentando chegar primeiro. O bezerro enfiou o focinho na mistura de grãos, pão e leite, enquanto as galinhas pulavam por cima de sua cabeça e bicavam seu focinho para tirá-lo do caminho.
O homem não notou Thomas e Kate de pé junto à cerca. Ele raspou o resto da comida que estava na panela e começou a cantar novamente, fechando a porta atrás de si ao entrar. Thomas caminhou até a porta e bateu três vezes na madeira escura. Não houve resposta. Ele bateu novamente, dessa vez socando a porta com os punhos cerrados.
— Ó de casa! Pode nos dar um pedaço de pão? — gritou ele.
Uma pequena janela lateral abriu-se e o nariz do homem surgiu, farejando o ar.
— Cão! Onde está o cão? — perguntou o homem com uma voz grave e gutural.
— Não perguntamos por nenhum cão — gritou Kate. — O senhor poderia, por favor, nos dar um pouco de pão?
O homem olhou-os pelo vidro da janela, examinando-os cuidadosamente.
— Bem, se é pão que vocês querem, então pão vocês terão. Não se pode ir a um moinho e não encontrar pão. E um pouco de carne assada também. E que tal uma xícara de chá?
A janela fechou-se bruscamente e a porta se abriu. O homem olhou espantado para Thomas e Kate. Eles estavam enlameados e com pedaços de folhas presos às roupas. Ele não pôde deixar de notar a apreensão nos olhos de Kate. Thomas rapidamente escondeu a espada do varrigal junto à cerca.
— Entrem, entrem! Vocês não podem ficar aí parados o dia todo. Saiam desse frio e venham se aquecer junto ao fogo.
O homem falava rapidamente e os conduziu até uma ampla cozinha. Era arrumada e limpa, com um grande fogão negro ao fundo, junto à parede. Duas cadeiras de couro haviam sido colocadas perto do fogão, com um par de calças secando sobre o braço de uma delas. Um fogo de turfa clareava toda a cozinha com uma luz amarelada e aconchegante, e perfumava a casa com uma fragrância de terra fresca. Havia também um cheiro forte e bom de levedo, bolo de frutas e pão assando. Thomas lembrou-se dos preparativos de Natal de sua mãe. O cômodo era comprido, com um teto baixo de madeira e paredes brancas.
Acima de suas cabeças, dois faisões mortos pendiam pelos pescoços em um gancho de uma das traves do teto. Sobre suas penas vermelhas, marrons e douradas incidiam os raios de sol que entravam pela janela. Ao lado dos faisões estava pendurado um grande pedaço de carne salgada que dava a impressão de ter sido recoberto por uma espessa camada de cera marrom.
— Sentem-se, meninos. Vocês dois parecem que passaram a noite ao relento. O que é que vocês estão fazendo aqui a uma hora destas? — Ele parou de falar e cobriu a boca com a mão. — Que indelicadeza a minha. Eu sou Rueben Wayfoot, o moleiro, e esta é a minha casa. Sejam bem-vindos. — Ele estendeu as duas mãos em um gesto de amizade.
Rueben Wayfoot era um homem grandalhão, forte como um touro. Tinha antebraços vigorosos e ombros largos. Suas mãos eram do tamanho de pás de carvão, mas tinham um aspecto delicado. Para um homem daquele tamanho, ele não parecia ser desajeitado. Tudo nele dava a impressão de ser bem cuidado.
Apesar de suas roupas serem muito gastas e já terem passado por visíveis reformas, ele tinha a aparência de um cavalheiro. Vestia calças de lã, uma camisa que já havia sido branca e um espesso avental de couro com marcas de farinha. Na verdade, tudo em Rueben Wayfoot parecia ter marcas de farinha. Seus longos cabelos brancos, suas grandes orelhas e até mesmo suas sobrancelhas grossas e cabeludas pareciam estar cobertos de flocos recentes de neve. Porém, o que mais chamava a atenção nele eram seus grandes olhos verdes. Eram suaves, sorridentes e amistosos. Eram olhos de alguém em quem se podia confiar, de uma boa pessoa.
— Agora deixem que eu lhes sirva um chá e um pouco de pão. Os dois meninos parecem precisar de alguma coisa para aquecê-los. Eu tenho dois meninos. Estarão acordados daqui à uma hora mais ou menos. São um pouquinho mais novos que vocês dois mas são uns garotões também. — Rueben abriu a portinha lateral do forno e de lá tirou várias fatias grossas de carne bem assada. Colocou a carne quente em um prato e a ofereceu.
— Comam isso, que eu vou buscar o pão. E então vocês poderão me contar o que estão tramando. Nós nunca recebemos muitas visitas, porque este é um moinho mal-assombrado. — Rueben pegou um grande pão e o mostrou a eles. Em seguida, partiu-o ao meio com suas manoplas.
— Aqui está. Nada como começar o dia com um pão quentinho. — Ele pôs o pão em um prato e depois bateu as mãos, fazendo voar uma nuvem de farinha.
Os dois puseram-se a comer, enchendo suas bocas com a carne quente e o pão, enquanto Rueben continuava a fazer suas tarefas matinais. Eles ficaram olhando enquanto o homem varria o chão e arrumava quatro lugares na comprida mesa de madeira que ficava em frente a uma pequena janela. Rueben notou que Kate estava atenta a cada movimento seu. Ela já estava a ponto de falar quando ele disse:
— Antes que você pergunte, a resposta é sim, eu tenho uma esposa. Seu nome é Isabella e ela saiu para catar lenha enquanto os gêmeos ainda estão dormindo. — Ele percebeu que outra pergunta surgia nos olhos da menina. A boca cheia de comida a impossibilitava de falar.
— Eles se chamam Bealda e Ephrig. Vocês vão ouvi-los antes de vê-los. — Ele olhou para o teto de madeira pouco acima de sua cabeça.
— Agora é sua vez de responder. O que fazem tão cedo por estas bandas?
Ele havia observado bem as crianças. Notara a lama de suas botas, as marcas de suor e terra em seus rostos e, acima de tudo, a expressão assustada que tinham nos olhos. A voz grave do homem e seu sotaque carregado davam a impressão de ele não ser daquela parte do mundo.
Ambos conheciam o Moinho dos Boggles, mas aquele era um lugar aonde as pessoas raramente iam e do qual não gostavam de falar. Dizia-se que havia boggles naquele vale. Eram estranhas criaturas que podiam assumir forma humana ou de animais. Os boggles jamais atacavam as pessoas, mas sabia-se que roubavam tudo que elas possuíam.
Se a pessoa estivesse perdida e pedisse informação a um boggle, ele lhe diria para tomar o caminho oposto. Pergunte pela estrada para o mar e um boggle lhe dará a direção da montanha e do traiçoeiro Pântano Voador. Pergunte pela estrada para Whitby e quando se der conta estará diante da estrada velha para o sul, que em certos trechos há muito já desmoronou e caiu no mar. Como ninguém jamais teve certeza de ter visto um boggle, ninguém podia dizer ao certo como eles eram. Histórias envolvendo boggles bastavam para manter tanto o povo da aldeia quanto os visitantes afastados daquele moinho e do longo vale que ia dele até o mar.
Rueben aproximou do fogo uma cadeira de madeira e sentou-se. Ficou olhando para os dois, à espera de uma resposta à sua pergunta. Kate engoliu rapidamente o pão e já estava abrindo a boca para falar quando Thomas antecipou-se.
— Nós nos perdemos no escuro. Foi só isso. Pegamos a trilha errada e não conseguimos achar o caminho de volta. — O menino olhou para a companheira para que ela confirmasse a história. Ele não queria mentir, mas tampouco revelar a verdade. Kate tentou confirmar balançando a cabeça, mas sentiu que seu rosto estava ficando quente. Rueben olhou para ela e percebeu que estava constrangida.
— Há muitas coisas nesta floresta à noite. É um lugar perigoso para dois meninos sozinhos — disse ele baixando a voz.
Kate respondeu rapidamente:
— Eu não sou menino. Sou menina. Meu nome é Kate e o dele é Thomas. Nós não estávamos perdidos, estávamos tentando escapar dos...
— Dos contrabandistas — interrompeu Thomas. — Estávamos caminhando pela trilha e demos com eles, que iam na direção do farol, por isso nos escondemos. Não queríamos que nos apanhassem. Thomas recostou-se na cadeira de couro, contente com sua resposta.
Rueben balançou a cabeça concordando. Thomas deu um suspiro de alívio e pegou mais um pedaço de pão.
— Está me parecendo que isso nas suas botas é lama de alume. — Rueben apontou para a espessa camada de barro nas solas de Thomas. — Não há disso por aqui. Vocês devem ter vindo do outro lado da baía. É uma longa caminhada no escuro, principalmente quando não se sabe para onde se está indo.
Thomas não conseguiu pensar em uma resposta. Respirou fundo e passou os olhos pela sala em busca de inspiração. Mentir costumava ser fácil para ele; as mentiras saíam de seus lábios tranqüilamente. Mas ali estava ele, esforçando-se por encontrar alguma coisa para dizer, alguma frase que escondesse a verdade.
Subitamente ouviu-se um alarido vindo da porta da frente. Às galinhas cacarejavam e pareciam correr alvoroçadas pelo quintal. O bezerro deu um mugido alto e pôs-se a forçar a cerca. A porta de carvalho abriu-se de supetão e foi como se a casa tivesse sido atingida por um furacão. Rueben deu um pulo da cadeira e abriu os braços exclamando bem alto:
— Isabella! Isabella! — Ele pegou a grande cesta que ela carregava em um braço. Thomas e Kate quase caíram na risada diante daquela maneira estranha e ruidosa de saudar quem chegava.
— Isabella, temos duas visitas. Esta é Kate e este é Thomas. Eles estavam perdidos na floresta e acabaram chegando aqui. — O homem fez um pequeno gesto indicando-os. — Eu os estava alimentando porque eles tinham fome e frio. — Rueben falava de um jeito animado e parecia muito feliz ao ver sua esposa. Seus olhos brilhavam e toda sua pessoa parecia cheia de alegria. Era como se ele fosse explodir se não expressasse o que sentia com a chegada da esposa. Ele passou os braços em volta dela e os dois apertaram-se em um abraço.
Nesse momento Thomas notou que Rueben tinha cinco dedos e mais o polegar na mão. Ele contou os próprios dedos, sem acreditar no que vira: quatro dedos e mais o polegar. Thomas olhou para Kate esperando que ela tivesse percebido aquilo também. Ela mantinha os olhos no chão, sem quase olhar para eles. Ela também jamais havia visto uma demonstração de afeto como aquela entre duas pessoas.
Thomas pensou em seus pais. Seu pai estava quase sempre no mar e, quando voltava para casa, passava sempre na taberna. Ele entrava no casebre, pequeno e sempre desarrumado, acariciava rapidamente a cabeça de Thomas como faria com um cãozinho e depois dormia junto ao fogão o sono profundo dos bebedores de gim.
Rueben e Isabella acabaram de abraçar-se e voltaram-se para Thomas e Kate. Isabella era tão alta quanto Rueben, talvez até um pouco mais, e era diferente de qualquer outra mulher que um dos dois jamais houvesse visto. Usava um longo vestido verde com um avental branco e um casaco de algodão negro. Seus cabelos longos eram da mais pura cor de prata, cada fio reluzente como um fio de teia de aranha congelado no inverno. Sua pele tinha o belo bronzeado de quem trabalha ao sol no verão e ao redor de seus olhos e de sua boca havia rugas de quem está sempre sorrindo. Mas Thomas não conseguia calcular sua idade. Isabella e Rueben ficaram parados, juntos, de costas para o sol que começava a entrar pela janela.
Isabella olhou para Kate.
— Você parece estar usando estas roupas há muito tempo. Venha comigo. Talvez eu tenha algo agasalhado para você usar.
Ela segurou Kate pelo braço e levou-a para o andar de cima. O chalé não era pequeno como parecia à primeira vista. Thomas percebeu que havia duas escadas que partiam da cozinha para o andar acima.
Rueben voltou-se para Thomas.
— A noite deve ter sido longa para vocês na floresta.
Thomas não queria responder sem pensar antes no que ia dizer.
— Estou muito acostumado a isso. Já não moro numa casa há algum tempo. — Ele parou de falar e desviou os olhos para a janela aberta. Sentia que seus lábios começavam a tremer e que seus olhos se enchiam de lágrimas. Ele respirou fundo e enterrou as unhas nas palmas das mãos fechadas para conter-se.
— Meu pai morreu. Minha mãe está em uma enfermaria. — Ele aproximou as mãos do fogo para aquecê-las.
— Isso é muito triste. — Rueben fez uma pausa e ficou pensativo. — Acho que já ouvimos falar de você. Você deve ser o menino de Baytown. Uns comerciantes me falaram de você. Pelo que ouvi, você não se entrega facilmente. — Ao ver que Thomas estava constrangido, Rueben sorriu para ele tentando fazer com que sorrisse também. — O que trouxe você para a floresta? Pensei que fosse um menino do mar.
— Foi um amigo. — Ele fez uma pausa. — Encontramos um amigo.
— E esse seu amigo ainda está na floresta? — Rueben aproximou sua cadeira da de Thomas. Curvou-se para frente, aproximando-se mais ainda.
— É perigoso este lugar. Nunca se sabe que coisas podem acontecer. Não são só os contrabandistas que cortam os pescoços das pessoas no escuro.
Thomas podia sentir a respiração de Rueben em seu rosto. Rueben esfregou a barba que começava a crescer em seu queixo.
— Diga-me, Thomas, quem vocês viram ontem à noite? — sussurrou ele.
— Não vimos ninguém. Nunca vejo quem não devo ver. Aprendi a virar o rosto no momento certo e a tomar outro caminho quando os bandidos se aproximam. Nunca vejo um deles. Nunca. — Thomas recostou-se na cadeira tentando afastar o rosto do de Rueben.
— Isso é bom. Às vezes é melhor não ver ninguém nem ouvir nada, principalmente quando se está por perto do Moinho dos Boggles. Jamais recebemos a visita do Inspetor de Impostos e espero nunca recebê-la, meu jovem.
Nesse instante ouviram-se ruídos de pés vindos do andar de cima. O chão sacudiu com uma briga que teve início lá em cima. Começou a cair poeira do teto e os gritos espalharam-se por toda a casa. Ouviu-se o barulho de um corpo caindo no chão, seguido de um grito e do som de louça se quebrando.
Rueben olhou para Thomas.
— Meus dois filhos acordaram. Logo estarão aqui.
O barulho da luta aproximava-se. Dois meninos agarrados rolaram escada abaixo, ainda em suas roupas de dormir. Eles se socavam e se chutavam, cada um tentando chegar primeiro ao pé da escada. O ar se enchia com suas ameaças.
— Solte-me ou arranco seu cérebro pelas narinas, isto é, se você tiver cérebro — gritou Bealda.
— Engraçado, não? Veja se acha graça nisso também — exclamou Ephrig dando um soco em Bealda.
— Meninos! — gritou Rueben. Sua voz ecoou pela cozinha. Thomas jamais ouvira um grito como aquele. Os dois meninos pararam na posição em que estavam e apontaram um para o outro.
— Foi ele! — Os dois falaram exatamente ao mesmo tempo e com vozes idênticas.
Bealda protestou.
— Ele estava tentando arrancar meu dente enquanto eu dormia. É a terceira vez que ele faz isso esta semana.
— Agora chega. Parem com isso os dois. Não vêem que temos visitas? — Rueben afastou—se para o lado a fim de que eles vissem Thomas junto ao fogão. — Agora sentem-se à mesa que eu vou lhes servir o desjejum. E cuidado com as palavras, temos uma menina na casa.
— Para mim ele parece um menino — gritou Ephrig, dando uma cotovelada nas costelas de Bealda. Os dois caíram na gargalhada.
Rueben fez um sinal para que eles se aquietassem e se sentassem à mesa.
— É claro que ele não é uma menina. Este é Thomas. A menina está lá em cima com a mãe de vocês trocando de roupa. Eles são nossos hóspedes, portanto não sejam grosseiros...
— Sim. E não tente arrancar os dentes dele, Ephrig. — Bealda empurrou o irmão para a mesa.
Rueben esforçava-se para não rir dos meninos. Os dois pularam e caíram sentados em um banco comprido junto à mesa, e ficaram esperando. Bealda sorriu para Thomas, um sorriso sem dentes.
— Não se preocupe, Thomas. Eles não vão tentar roubar seus dentes; os seus não podem ser vendidos à Velha Nan, como os de Bealda e Ephrig. — Rueben continuava a preparar a comida e a arrumar a mesa. Ele tirou mais carne assada do forno.
Thomas ficou olhando para os meninos. Eram quase idênticos. Bealda era um pouquinho maior que Ephrig, tinha o rosto mais largo e cabelos mais longos. Eram crianças grandes. Embora não parecessem ter mais de nove ou dez anos, seu tamanho era de meninos de uns 16. Usavam camisolões idênticos até os joelhos, feitos de algodão grosso e abotoados até o pescoço. Calçavam grandes chinelos de pêlo de ovelha que lhes subiam, como botas, até acima dos tornozelos. Estes eram usados sobre meias verdes de tricô que iam até os joelhos. Pareciam meninos bem cuidados e, por sua aparência alegre, deviam ser muito amados.
Rueben virou-se para Thomas.
— Venha tomar um chá quente conosco; acaba de chegar, fresquinho, da Holanda.
Thomas não precisava que insistissem com ele. Adorava aquela bebida. Muita gente se engalfinhava e até mesmo se matava por causa dela. Aquele chá era contrabandeado para o país em pequenas quantidades para fugir dos impostos; muitos homens já haviam perdido a vida tentando trazer para o país uma caixa de chá. Ele adorava apreciar a fumaça subindo de um bule de chá recém-preparado e depois saborear o primeiro gole daquela bebida doce e ao mesmo tempo amarga.
Thomas sentou-se à mesa e ficou esperando pelo chá. Ele sorriu para os meninos, que estavam sentados ao lado um do outro comendo com as mãos a carne quente e gordurosa e limpando seus pratos com pedaços de pão. Ele se dirigiu a Ephrig.
— Vocês vendem mesmo dentes para a Velha Nan? Eu pensava que ela fosse uma bruxa.
Da escada, onde se encontrava, Isabella respondeu.
— Vendem, sim, e ela é mesmo uma bruxa.
Thomas ergueu os olhos e ficou absolutamente surpreso. À sua frente estava Kate, transformada por completo. Seus cabelos estavam soltos e haviam sido bem escovados. Ela usava um vestido longo azul-escuro com uma gola branca e um casaquinho vermelho sobre os ombros. Kate sorria. Ele nunca a tinha visto tão bonita.
— Se você quiser mesmo saber, Thomas, nós vendemos os dentes de leite dos meninos quando eles caem. A Velha Nan acredita que eles tenham certas propriedades...
Ephrig interrompeu o irmão:
— Ela acha que nós somos boggles.
Foi nesse instante que Thomas percebeu que os meninos tinham o mesmo número de dedos que o pai.
—E vocês são boggles? — perguntou Thomas, sem saber se queria mesmo ouvir a resposta.
Isabella foi a primeira a responder.
— Não acho que o que somos seja importante. Basta que nos considere seus amigos. — Ela aproximou-se da mesa e ficou ao lado de Rueben. — Às pessoas pensam que somos muitas coisas. Onde quer que nosso povo tenha estado, temos sido perseguidos e expulsos. Elas nos culpam até pelo mau tempo, pelo leite das vacas secar e pelo preço baixo dos grãos. — Ela fez uma pausa e olhou para Rueben.
— Minha mulher tem razão no que diz. Nós somos diferentes, mas também somos como vocês. Nos últimos dois mil anos nosso povo vive espalhado pelos quatro cantos do mundo. Trabalhamos onde quer que nos permitam, não fazemos mal a ninguém e tentamos viver em paz. O problema, Thomas, é que as pessoas têm inveja quando somos bem-sucedidos. Pelo fato de termos uma aparência diferente e de falarmos nossa própria língua, as pessoas costumam nos culpar por coisas de que não somos culpados. Não estou dizendo que somos perfeitos, mas você acha mesmo que temos a aparência de monstros?
Thomas não achava que Rueben Wayfoot pudesse ser descrito como um monstro. No pouco tempo em que ele conhecia aquelas pessoas, elas tinham sido bem bondosas. Rueben deu um tapinha carinhoso nas costas de Thomas e despenteou seus cabelos, brincando. Isabella pôs o braço no ombro de Kate e puxou-a para perto de si.
— Pelo que Kate me disse, vocês ficaram acordados a noite quase toda. Os dois podem dormir um pouco no quarto dos meninos. Depois vocês poderão decidir o que fazer.
Isabella foi até o fogão e pegou uma chaleira de água fervente que estava sobre as brasas.
De um armário, tirou vasilhas grandes e brancas de boca larga e providas de bicos. Depois pegou um raminho com folhas verdes que estava por trás de uma das traves do teto. Esfregou algumas folhas no interior das vasilhas brancas e cobriu-as com água fervente. Isabella entregou-as a Kate e Thomas. O cheiro bom de menta, lavanda e camomila pareceu girar em torno delas. Os vapores quentes entraram pelas narinas de Thomas e ele respirou fundo aquele cheiro forte. Depois fechou os olhos e deixou que aquela poderosa fragrância o envolvesse.
— Bebam isso. Vai afastar todos os pensamentos maus que atrapalhariam seu sono. Não se preocupem, isso não envenenará vocês; eu não sou a Velha Nan.
Thomas e Kate sabiam que não faria sentido discutir. Ele confiava em Isabella. Sempre se acreditara capaz de avaliar as pessoas pelos olhos e os dela eram cheios de amor. Isabella colocou as duas mãos nos ombros de Kate e fez com que ela se voltasse para a escada.
— Agora subam, vocês dois. Nós temos trabalho a fazer. Quando for hora de acordarem, nós os chamaremos.
Thomas seguiu Kate até o quarto dos meninos, que era amplo e claro, com duas largas camas de madeira feitas à mão. Era muito diferente daquele canto de caverna onde Thomas dormia em um velho colchão de palha, coberto por uma manta de cavalo gasta e áspera. Ele tomou um gole da bebida quente e olhou à sua volta, apreciando cada coisa que via.
Às paredes eram de argamassa e madeira, como o resto do chalé. Em cada quadradinho da parede havia uma pequena pintura de um cordeiro ou de uma raposa. Na parede onde havia uma janela, via-se uma incrível árvore pintada cujas raízes pareciam firmemente plantadas no chão. O tronco e os galhos subiam contornando a janela, e suas folhas, de um verde intenso, pareciam tão naturais que davam a impressão de poder ser arrancadas.
Em cada galho estavam pintadas esferas douradas penduradas como frutas. No interior de cada esfera estava escrita uma palavra, com belas letras azuis, em uma língua que Thomas não entendia. Às vezes ele achava difícil entender até mesmo o inglês, sua própria língua, mas aquelas palavras pareciam ser de outro mundo. A pintura ocupava toda a parede e ele teve a sensação de fazer parte dela. O brilho do dourado, do verde, do amarelo e do azul parecia vibrar diante de seus olhos.
Cada galho da árvore conectava-se aos demais e cada esfera dourada ligava-se a outra por folhas de parreira douradas. À esquerda havia uma lua cheia já quase se escondendo por trás das colinas e à direita um sol dourado erguia-se do mar. Ao pé da árvore estavam pintados um homem e uma mulher de mãos dadas. Entre eles havia um cordeirinho. Arrastando-se na relva pintada via-se uma criatura negra monstruosa, metade lagarto e metade cobra. Seus olhos cor de púrpura fixavam-se em Kate e Thomas, acompanhando-os para onde quer que eles fossem no quarto.
Os dois ficaram hipnotizados por aquela pintura e seus olhos procuraram todos os detalhes. Escondidos por entre as folhas havia rostos de crianças. Pequenos pássaros e frutas enchiam cada ramificação. A cada segundo que eles olhavam, mais e mais coisas iam percebendo, como se o quadro estivesse sendo pintado diante de seus olhos.
Thomas invejou aqueles dois meninos por terem um quarto tão bonito. Ao lado de cada cama havia uma pequena mesa e, sobre cada uma, uma vela em um castiçal de madeira no formato de um barquinho verde. O chão era de madeira e o fogo crepitava em uma bela lareira.
Nem Thomas nem Kate falaram. Sentaram-se nas camas e em seguida deitaram-se naqueles colchões macios. Logo adormeceram.
Na cozinha, Rueben e Isabella sentaram-se junto ao fogão e ficaram esperando até que não viesse mais ruído algum do quarto acima. Bealda e Ephrig continuavam a tomar café junto à janela. Isabella virou-se para Rueben e fez um gesto para que ele chegasse mais perto.
— Eles estão em apuros, Rueben. A menina me disse que eles foram perseguidos na floresta por criaturas estranhas. Ela tem uma pistola que roubou do pai e quando eu estava voltando para casa encontrei uma espada escondida junto à cerca do bezerro. — Isabella falava em voz baixa para que os meninos não a ouvissem.
— Ela disse que há outro rapaz que está tentando entrar na casa de Obadiah Demurral, o Padre. Disse que o tal rapaz é negro como a noite. É da África. — Isabella continuou a falar em voz baixa, mas assustada. — O nome dele é Raphah. Você sabe o que esse nome significa. Ele é um menino do Livro. Kate me disse que ele veio aqui encontrar uma coisa roubada por Demurral.
Rueben esfregou as mãos uma na outra, olhou primeiro para os meninos e depois novamente para Isabella.
— Raphah é o nome de um mago da cura. Espero que o tal rapaz esteja à altura do nome. Eu sabia que o medo que vi nos olhos de Thomas não era apenas de contrabandistas. Se aquele bode velho do Demurral estiver envolvido nisso, então este não é um trabalho para dois meninos e uma menina, mas não podemos impedi-los. Não queremos que ninguém descubra o que estamos fazendo aqui. Nós poderíamos ajudá-los, Isabella, mas esta não é a hora de nos envolvermos com Demurral e seus planos malignos.
Rueben levantou-se da cadeira e ficou de pé, de costas para o fogão.
— Eles estão determinados a continuar. Devemos rezar por eles, pois vão precisar de toda ajuda dos céus se estão lutando contra o Padre. — Rueben pegou a mão de Isabella. — Vamos guardar essa pistola e essa espada. Quando acordarem, eles decidirão o que querem fazer. Jacob Crane está voltando hoje à noite; eles precisarão ter partido antes que ele chegue.
Dagda Sarapuk
O Vicariato era um lugar sempre sombrio. Mesmo nas manhãs mais luminosas do outono, tinha-se a impressão de que a noite ainda se prolongava em seus portais. Sua beleza era estranha e rude, e ele parecia ter sido esculpido nas rochas que se erguiam acima da baía.
Demurral havia usado seus ardis para conseguir o cargo de vigário de Thorpe. Muitos anos antes, ele havia sido hóspede do pároco Dagda Sarapuk. Demurral era um pregador visitante que ganhava a vida fazendo sermões por uns poucos trocados em cima de carroças ou sobre pilhas de feno, onde quer que conseguisse reunir uma congregação. Desde o instante em que ele se viu naquele jardim no alto do penhasco e seus olhos contemplaram Baytown, a cinco quilômetros dali, sentiu-se fascinado pelo poderoso encanto do prédio e pela beleza que se desfraldava à sua frente. Na baía, as ondas quebravam de encontro às pedras, e o mar, tingido pela luz do alvorecer, estendia-se a perder de vista. O verde das colinas dava a impressão de ser um tapete exuberante que cobria quilômetros e mais quilômetros da costa. Ele decidiu, então, que não sairia mais dali. Acontecesse o que acontecesse, ele teria de se tornar dono daquilo tudo. Cada pedra, cada folha de grama seriam suas. Ali de pé, no alto do Pico do Vicariato, com o mar a rugir lá embaixo, Demurral foi tomado pela cobiça.
Propósitos sombrios e desejos inconfessáveis passaram a consumi-lo, apagando nele qualquer vestígio de caridade. Demurral transformou-se num piscar de olhos. Nele não ficaram sequer os mínimos resquícios de bondade, de misericórdia, um cintilar que fosse de alegria. Com um estremecimento de todo o seu corpo, todas as forças nele existentes transformaram-se em forças do mal.
Na sua primeira noite como hóspede do pároco Sarapuk, quando este havia tomado muito vinho, Demurral convenceu-o a apostar tudo que possuía no resultado de uma corrida: uma corrida de duas baratas sobre a mesa da cozinha. Sarapuk escolheu a maior e mais gorda que encontrou. Demurral escolheu, dentre as muitas que corriam pelo chão, uma baratinha leve e ágil. Foi a que seus dedos, sob o efeito do vinho, puderam pegar. Às mini-criaturas foram colocadas lado a lado e, para dar início à corrida, Sarapuk deixou seu lenço cair sobre a mesa. Demurral cerrou os olhos e pôs-se a rezar. Sentiu, pela primeira vez em toda a sua vida, uma força que vinha de dentro de seu ser. Sentiu que não estava mais sozinho em seu corpo, mas que o compartilhava com outro ser. Teve a sensação de ser Deus, com o poder de comandar todos os elementos da natureza.
Para sua surpresa, a baratinha magra, de pernas compridas, atacou a rival gorda, arrancando sua cabeça à força de mordidas e deixando-a inerte, de barriga para cima. A barata vitoriosa então caminhou até o outro lado da mesa, assim conquistando para Demurral o Vicariato e tudo que ele pudesse extrair daquela terra a perder de vista. Sarapuk pôs-se a chorar, dando-se conta da sua estupidez. Ele havia perdido tudo. Demurral saltou de sua cadeira e ergueu a barata vitoriosa com as pontas dos dedos.
— Parabéns! Parabéns, minha criaturinha escura! — gritou ele, dando pulos pela cozinha e gesticulando, e por fim deixando suas mãos caírem sobre a mesa. Nesse instante ele sentiu novamente a força do desejo crescer dentro dele. Olhou para Sarapuk e começou a gargalhar. — E você, seu velho estúpido, estará fora daqui logo de manhã.
Demurral curvou-se na direção de Dagda Sarapuk, sacudindo a barata sobre sua cabeça.
— Você quer tentar a sorte novamente? Vamos, agarre-a. Vamos apostar outra corrida, que tal? — disse ele, zombeteiro.
Sarapuk soltou um grande gemido e seus olhos encheram-se de lágrimas. Esticou a mão trêmula para agarrar o inseto. Demurral puxou para si a barata e esmagou-a na palma da mão. Com um estalo, ela se desfez por entre seus dedos.
Essa noite fora 25 anos atrás, e a maldade no coração de Demurral havia crescido com o passar do tempo.
Raphah estava escondido no porão do Vicariato, entre maçãs estocadas em caixotes de madeira e cobertas com sacos de tecido grosseiro. Ele conseguira penetrar num espaço entre dois caixotes e cobrira-se com um daqueles panos. Já estava lá havia horas, tentando respirar o mais silenciosamente possível, esperando não ser encontrado. Na quase total escuridão, ficava ouvindo Demurral e Beadle procurarem por ele. Depois de muito tempo, eles haviam desistido de procurar e ido embora, trancando a porta que ligava os túneis ao porão. Saíram furiosos, praguejando contra os jovens invasores que haviam conseguido fugir.
Raphah não tinha como saber se já era de manhã. Da cozinha, acima dele, vinham ruídos de panelas e dos passos da cozinheira que andava mancando de um lado para o outro. Ele ficou prestando atenção às passadas. Podia dizer, pela maneira como ela andava, que puxava muito da perna e que era muito pesada. Os passos eram desiguais e as tábuas do chão rangiam acima da cabeça dele. Ele sabia que era uma mulher porque também ouvia sua voz esganiçada a gritar com Beadle para que ele saísse da cozinha e fosse para longe dali. Tudo isso tinha começado uma hora antes, portanto ele calculava que o dia estivesse amanhecendo. Havia passado a maior parte da noite tentando permanecer acordado e rezar. Pensara muito em Thomas também, rezando para que ele ficasse a salvo de Demurral. O plano deles dera certo; ele já estava no interior do Vicariato, mas o destino de Thomas era desconhecido. Na última vez em que o vira, ele estava correndo pelo túnel, perseguido por Demurral. Raphah conseguira entrar sorrateiramente no porão e se esconder.
No esconderijo, ele pensou no que teria a fazer. Sabia que não seria fácil recuperar o Keruvim. Aquilo era precioso demais para que tudo corresse bem. Também sabia que o desejo de Demurral de possuir o Keruvim era tão grande que nada o deteria.
Raphah não sabia se a porta interna do porão estava trancada; não tinha ouvido o ruído de chave girando. Ele sabia que em algum momento teria de sair dali em busca do Keruvim.
Raphah enfiou a mão em uma das caixas e tirou de lá uma bela maçã, grande e firme. Deu uma mordida, mas seu sabor era de madeira úmida. O jovem cuspiu e pôs a maçã de volta na caixa. Arrastando-se ao longo da parede, ele foi se aproximando da porta, pois vira uma fina réstia de luz por baixo dela. Não havia chave na fechadura. Raphah segurou firmemente a maçaneta e, com muito cuidado, virou-a para baixo. A porta deu um estalido alto ao se abrir.
Um lance de dez degraus de pedra levava a uma passagem onde havia luz. Ele subiu cuidadosamente, parando e tentando ouvir alguma coisa a cada degrau. A mulher continuava a resmungar e a praguejar contra Demurral. Ao chegar ao último degrau, Raphah pôde ver que a porta que dava para a cozinha estava aberta. O cheiro de peixe cozido e repolho espalhava-se pela cozinha e saía pela porta de carvalho escuro. Ele podia ver as costas da cozinheira. Ela estava de frente para uma janela alta, lavando panelas em uma pia de pedra. Era grande e gorda e usava um vestidão azul-escuro com avental amarrado atrás. Ele se esgueirou pelo corredor sem entrar na cozinha e foi andando lentamente. No fim do corredor, viu a grande porta da frente. Acima dela havia um enorme espelho com moldura dourada que ia Até o teto muito alto. Entalhada na moldura, viu a figura de um grande corvo de mais de dois metros de altura. Suas garras prendiam-se ao espelho e suas asas abertas desciam pelos lados, acompanhando a moldura. Seus olhos pintados de verde pareciam seguir Raphah. O rapaz tornou a olhar para cima, pois teve a impressão de ter visto o corvo se mexer. Por alguns instantes, achou que o pássaro havia sacudido suas penas douradas e depois ficado imóvel novamente. Teve a sensação de que a qualquer momento o pássaro poderia lançar-se sobre ele e agarra-lo com suas garras afiadas.
Raphah continuou a caminhar, sempre rente à parede. Ele sabia que a qualquer instante uma das portas de carvalho empoeiradas poderia abrir-se e dela surgir Demurral para pega-lo. Tentava ouvir algum ruído de maçaneta ou algum ranger de tábua do piso. Ainda ouvia, agora já distante, a cozinheira resmungando e jogando as panelas, mal-humorada. Chegou à porta principal, dominada pelo corvo que olhava para ele como se estivesse a ponto de atacá-lo. A sua direita havia uma passagem, e à esquerda, uma escada em caracol que levava ao andar superior. Raphah fechou os olhos e inspirou lentamente para recuperar a calma. Só então murmurou.
— Riathamus, conduza-me.
Ele abriu os olhos e voltou-se para o corredor. Por baixo da porta que havia ali, viu que subia uma nuvem de poeira. Ele sabia que precisaria entrar ali. Pôs a mão na grande maçaneta de bronze e forçou-a. A porta foi se abrindo. Ele nem se perguntou se poderia haver alguém ali dentro. Sabia que estava sendo conduzido para aquele lugar e isso lhe bastava.
Na sala havia uma grande escrivaninha com vários livros antigos. Farelos de pão espalhavam-se pelo chão e sobre uma mesinha estava uma jarra de vinho. Uma grande janela em sacada com cortinas verdes desbotadas destacava-se na sala. Ali mesmo da porta ele podia ver o mar e, ao longe, Baytown. Lá fora o dia estava claro, mas aquela sala era muito escura.
A sala, em si, era bonita, mas o descuido e alguns objetos tornavam o ambiente esquisito. Raphah passou os olhos por toda ela em busca do Keruvim, mas não o encontrou. Revistou as gavetas da escrivaninha de Demurral e um grande baú de navio que estava colocado junto à lareira. Tampouco estava lá. Foi então que Raphah ouviu passos descendo a escada. Ele sabia que não teria para onde fugir. Outros passos foram também ouvidos, estes vindo do corredor. Eram pisadas fortes e compassadas que faziam ranger o piso de madeira. Raphah pensou que só dispunha de alguns segundos para se esconder.
A porta abriu-se de supetão. Demurral entrou na sala e dirigiu-se à sua escrivaninha. Sentou-se na cadeira, recostou-se e pôs os pés longos e magros sobre a mesa. Enrolou-se em um agasalho de seda e ali ficou, de ombros encolhidos. Beadle chegou e, como um cão obediente, pôs-se a seu lado aguardando ordens. A lama da noite anterior cobria suas botas e ele ficou esfregando seus dedos gordos e sujos enquanto esperava, aflito.
— Você os perdeu, Beadle! Agora jamais saberemos quem eles eram.
— Ou por que vieram aqui — acrescentou Beadle.
— Isso eu sei! Eles vieram aqui atrás do Keruvim. Queriam roubar o meu pequeno anjo de ouro. — Ele coçou o queixo e olhou a sala à sua volta. — Tentarão novamente, portanto precisamos descobrir quem são e quem os enviou aqui. — Demurral deu um chute na mesa, espalhando papéis pelo chão.
— Por onde começamos a procurá-los? Passamos a noite tentando encontra-los e não conseguimos — disse Beadle catando os papéis.
— Não será tão difícil encontra-los. Certamente ninguém sabe o que temos aqui, a não ser que você tenha falado o que não devia novamente. — Ele olhou para Beadle de maneira acusadora, erguendo uma sobrancelha. — Isso de você beber e sair por aí falando ainda vai custar-lhe a vida. O que temos precisa ser protegido, e gente como você pode ser sacrificada pela causa.
Beadle engoliu em seco. Sabia que Demurral seria capaz de cumprir sua palavra, que não hesitaria em matá-lo da maneira mais cruel.
— Traga-me a bacia de visões. Talvez Pyratheon possa nos guiar. — Demurral pôs-se de pé e começou a arregaçar as mangas. Beadle foi até onde havia uma mesinha e de uma gaveta tirou uma sacola negra. De dentro dela retirou uma bacia de porcelana verde adornada com serpentes pintadas que se enroscavam desde a base até a borda e colocou-a sobre a mesa. Demurral abriu a gaveta superior de sua escrivaninha, tirou de lá uma garrafa contendo um fluido incolor e verteu-o na bacia. Voltou-se então para Beadle.
— Sangue, Beadle! Precisamos de sangue! — Os olhos de Beadle vagaram pela sala como se procurassem algo e, por fim, fixaram-se em Demurral, assustados.
— O seu sangue, Beadle. Preciso do seu sangue! — Fez sinal para que Beadle se aproximasse.
— Mas eu só tenho o suficiente para mim, não posso abrir mão dele! Eu morreria sem sangue — suplicou o homenzinho dando um passo para trás.
Demurral tirou uma faca da gaveta e apontou-a para Beadle.
— Eu não preciso de um balde cheio. Basta uma gota. Prometo que não vai doer.
Demurral agarrou Beadle pelo braço com um movimento súbito. Puxou—o para junto da escrivaninha e, segurando sua mão direita acima da bacia, enterrou a ponta afiada da faca no polegar do homenzinho. Fez caírem duas gotas de sangue na bacia e, com a faca, dissolveu—as no líquido que ali estava. Assustado, Beadle afastou-se com um gemido estridente que mais pareceu um pio de coruja. Enfiou o dedão na boca e pôs-se a chupá-lo, como se fosse um bebezão:
— O senhor mentiu. Doeu! E o senhor ficou com o meu sangue todo — gemia Beadle com o dedo na boca.
— Venha, meu amigo, e olhe para esta água.
Demurral estendeu as palmas das mãos acima do líquido que rodopiava. Fechou os olhos e, com uma voz grave que não era a sua, começou a falar.
— Pyratheon-Kaikos-Theon-Anethean!
Enquanto ele falava, o líquido foi ficando negro e pôs-se a girar dentro da bacia, como se fosse uma tempestade ali capturada.
— Mostre-me, Pyratheon, Senhor das Trevas, mostre-me — repetia ele alto, e a água foi ficando da cor de prata escura e por fim endureceu como gelo. Na superfície do gelo, Beadle viu surgir uma casa. Era um pequeno chalé na floresta, junto a um riacho.
— Veja, Beadle, eles estão aqui! Ou estarão aqui. Você conhece esse lugar?
— É o chalé de um moleiro onde moram boggles. — Beadle olhou novamente para dentro da bacia. — Este lugar fica a umas duas horas daqui, caminhando-s pela floresta; como é que podemos vê-o aí? — Beadle tremia de medo ao falar.
— Isto é magia e vem de Pyratheon. Perdi muitos anos seguindo o caminho errado. Tentei, com todas as minhas forças, compreender o que me foi ensinado quando criança, mas no fim foi inútil. Não havia naquilo poder nem glória, apenas palavras vazias. Eu queria que Deus me desse um sinal. Bastava que ele transformasse água em vinho para mim, mas nada consegui. Ensinou-me a amar o próximo como a mim mesmo e Deus acima de tudo, com rodo o meu coração. Mas como se pode amar alguém que se opõe ao verdadeiro senhor do mundo? Como se pode amar o próximo quando não se ama a si mesmo?
Beadle ficou ouvindo, confuso, aquele discurso. Demurral continuou a falar, olhando pela janela.
— Pode ser que algum dia você compreenda, mas com este pequeno sinal de sangue na água, agora sei onde eles estão e vou acabar com eles. Há apenas uma coisa neste mundo pela qual vale a pena morrer, e esta coisa é o poder. Poder sobre as pessoas, poder sobre os elementos e, por fim, poder de ser Deus! Com os Keruvins poderei controlar os elementos da natureza. Quando tiver a posse dos dois, transformarei o mundo e acabarei com Deus! Desta vez ele ficará pregado na madeira para sempre.
Demurral deu um violento soco na escrivaninha. A água que estava na bacia saltou. Já não era mais gelo e não havia mais a visão do chalé. Mas seus reflexos brilharam, trêmulos, quando Demurral enfiou os dedos nela e fez sobre si o sinal do pentagrama. Às últimas gotas do líquido foram jogadas sobre Beadle. Nesse mesmo instante, Demurral ficou imóvel, olhando para o baú do navio. Ele estremeceu, e a mesma voz grave e sombria recomeçou a falar.
— Beadle, leve aquele baú daqui, tranque-o e queime-o. — Demurral lançou um olhar raivoso para Beadle. — Faça isso agora, Beadle!
O empregado atravessou a sala e segurou a alça de bronze do baú, tentando arrasta-lo. Mas ele estava pesado e difícil de arrastar. Com muito esforço, Beadle conseguiu, com a ajuda de Demurral, empurrar o baú porta afora, levando-o para o corredor. Arrastaram-no pela porta principal e chegaram até a escada. Foi aí que Beadle não agüentou o peso e soltou o baú, que foi descendo pelos degraus de pedra até se arrebentar ao pé da escada.
Raphah, zonzo com a queda, foi atirado fora do baú e caiu numa poça de lama. No mesmo instante Demurral lançou-se sobre ele e, agarrando-o pelo pescoço, ergueu-o do chão.
— Ninguém consegue se esconder de mim! Pensou que eu fosse guardar o Keruvim onde você pudesse encontrá-lo?
Raphah não podia responder porque o Padre apertava cada vez mais sua garganta, erguendo-o do chão.
— Assim o senhor mata o menino, mestre — exclamou Beadle.
— Ele já estava morto no instante em que entrou nesta casa. Mas talvez não seja esta a hora para isso. Nunca se sabe, Beadle. Talvez ele me seja útil se viver mais um pouco.
Com um safanão, Demurral atirou Raphah no chão.
— Você tem algumas explicações a me dar. Agora ponha-se de pé e não faça a tolice de tentar fugir. Nossos cães o pegariam em poucos minutos.
Raphah ergueu-se da lama e foi arrastado por Beadle de volta para dentro. Ele não falou com seus captores e tentou não olhar para eles quando o atiraram novamente no escritório de Demurral. Beadle trancou a porta e de um grande vaso de plantas vazio tirou uma bengala de bambu. Demurral sentou-se em uma velha cadeira de couro e ficou olhando para Raphah. Seus olhos examinaram cada pedacinho do corpo do menino, estudando cada detalhe de sua aparência, procurando algum sinal que pudesse indicar quem ele era e o que fazia ali. Passados vários minutos em silêncio, Demurral finalmente falou.
— Como você se chama? — perguntou. Raphah não respondeu.
— Será melhor para você se disser quem é. Como dois cavalheiros que não se conhecem podem conversar? — disse ele, irônico, tentando sorrir. — Posso ver, por sua pele, que você não é destas bandas. Você é escravo?
Raphah mantinha os olhos fixos no chão. O ar tinha um cheiro desagradável de suor e livros úmidos. O lugar era sujo, frio e brutalmente agressivo. A sujeira do chão parecia ser de vários anos, e por toda parte viam-se cacos de louça, papéis e restos de pão. Em um canto junto à porta, as ratazanas haviam arrancado a madeira e comido a beirada do rodapé. Tudo estava coberto por uma camada espessa de poeira, como se fosse neve cinzenta, e a beleza da sala estava submersa em anos de abandono. Tudo isso deu a Raphah a maravilhosa oportunidade de distrair-se do interrogatório de Demurral.
— Vamos logo, diga-me quem você é — gritou ele para Raphah, já sem o sorriso de antes. A voz grave parecia sair de seu estômago como um esgoto transbordando. — Posso obrigá-lo a falar usando métodos de que você não vai gostar. Se há algo que odeio é a arrogância do silêncio. Você veio aqui para roubar meu Keruvim?
Raphah respirou fundo aquele ar malcheiroso. Olhou para Demurral, que estava sentado, protegido por sua escrivaninha e diante da lareira vazia.
— Roubar? Não vim aqui para roubar, mas para levar de volta o que pertence a mim. É esta a verdade. — Ele encarou o Padre e, pela primeira vez, viu aquele rosto ossudo, magro e anguloso.
— Verdade! O que é a verdade? Ora, tudo é relativo. Você estava aqui, escondido no meu baú, a espionar-me. A única coisa de valor que possuo me foi trazida por um dos seus. E fique sabendo que paguei por ela — rosnou Demurral. — Portanto, só posso supor que você esteja aqui para roubá-la de mim. Gebra Nebura lhe disse que ela estava aqui?
Demurral abriu uma gaveta e de lá tirou um punhal, que apontou para Raphah.
— Nebura é um ladrão. Ele roubou seu próprio nome e roubou o Keruvim. Não haverá paz para ele, nem mesmo na morte — disse Raphah. Ao ouvir essa resposta corajosa, Beadle tentou acertar o jovem com a bengala, mas errou por muito pouco.
— Não brinque comigo — disse Demurral. — Nós aqui enforcamos as pessoas que roubam, e há muita corda sobrando na prisão para enrolarmos no seu pescocinho. Diga a verdade! Quem é você e o que quer aqui? — Demurral enterrou a ponta da faca na escrivaninha.
— Só quero o que me pertence e irei embora. O senhor então poderá fazer o que quiser. Basta que me entregue o Keruvim e eu não lhe causarei problema algum — disse Raphah.
— Você, meu caro, não vai a lugar algum. Ficará aqui até morrer. Isso poderá ser amanhã ou depois, mas não passa daí. Um dos Keruvins já é meu e dentro em breve possuirei o outro também, e então o mundo se transformará de maneira tal que ninguém conseguiria imaginar. — Ele apontou para o céu. Desde a tempestade que se abatera sobre aquele lugar, o céu e o mar apresentavam cores estranhas que pareciam se mover em ondas em direção ao norte. O horizonte tingia-se de laranja e verde, que reluziam ao sol da manhã.
— Olhe só aquilo, meu caro. O mundo já começa a mudar. O Keruvim tem poderes que você nem imagina. Dentro em breve o céu será sempre negro e a lua reluzirá vermelha como sangue. Haverá sinais no céu que farão tremer até os mais corajosos. Nem mesmo o seu Deus é capaz de impedir o que está por acontecer. — Demurral pôs-se de pé e caminhou até a janela. — E tudo isso será comandado por mim!
Raphah tinha ainda os olhos fixos na lareira quando falou.
— O senhor se engana. Não sabe que jamais conhecerá o poder desse Deus contra o qual quer lutar? Não percebe que é ele quem lhe permite ter uma migalha de vaidade? O senhor fala em corda, mas o único enforcado será o senhor. Deus virá, sim, mas para julgar, e o senhor terá o castigo que merece.
Demurral pegou uma garrafa vazia, deu dois passos até Raphah e quebrou-a na cabeça dele, por trás. O golpe pegou-o de surpresa. Raphah caiu, batendo com a cabeça na quina da escrivaninha e indo parar no chão imundo, cheio de poeira, restos de comida e dejetos de ratos.
— Carregue-o daqui, Beadle! Essa história de Deus me dá náuseas. Vá pegar o ferro de marcar gado. Vamos deixá-lo com uma marca da qual jamais se esquecerá.
Enxofre e Repolho Frio
Foi o forte cheiro a lhe entrar pelas narinas que deu a Raphah a certeza de que não estava morto. Era um cheiro cáustico que irritava a garganta e os olhos, provocando lágrimas. Ao respirar, ele sentia-se sufocado pelas emanações à sua volta. O cheiro era de enxofre, algas queimadas e xixi de cachorro. Na mais absoluta escuridão, Raphah jazia de bruços, esforçando-se não apenas para respirar, como também para recuperar a consciência. A ferida na parte de trás da cabeça latejava sem parar e aquela agonia espalhava-se por todo o seu corpo. Seu ombro direito doía terrivelmente. Era como se ali a carne tivesse sido despregada do osso e retalhada mais de mil vezes. Se ele sentia dor, era porque estava vivo, pensou enquanto tentava cuspir a palha seca e a lama que lhe haviam ficado presas aos dentes. Um forte gosto de amônia encheu sua boca de saliva; ele tentou reprimir a ânsia de vômito e deu-se conta de estar com as mãos fortemente atadas nas costas.
Raphah podia ouvir o som de água correndo e vozes de homens em algum lugar fora dali. Um dos homens gritava ordens com uma voz grave e áspera que parecia um latido de cão de guarda.
Ouvia também o vento sacudindo com força uma janela, sem parar. De longe vinha o som agudo de um martelo batendo em metal. Raphah abriu os olhos e ficou procurando alguma nesga de luz, por menor que fosse. A escuridão parecia envolvê-lo em uma neblina negra que nenhuma luz podia penetrar.
Com dificuldade, contorcendo-se bastante, Raphah conseguiu sentar-se e apoiar as costas em uma parede de pedra fria e úmida, que parecia coberta de limo. Apoiou as mãos no chão molhado e tentou descobrir de que maneira seus pulsos estavam amarrados. Foi nesse instante que ouviu um choro baixinho que vinha de algum canto daquele lugar escuro.
— Que a paz esteja com você — disse Raphah. — Fale para que eu saiba quem é.
Não houve resposta alguma, mas o choro baixinho continuou. Raphah ouviu o ruído de correntes de metal arrastando-se no chão de pedra. A porta abriu-se de supetão e dois homens com botas de marinheiro e roupas de algodão compridas e sujas entraram em seguida. Um homenzinho magro com os pés deformados tinha nas mãos uma lanterna usada em tempestades pelos marinheiros. O outro, grandalhão e gordo, segurava um par de algemas e um martelo. A claridade da lanterna permitiu que Raphah visse que quem estava chorando era um menino encolhido num canto, enrolado em palha úmida. Ele vestia uma camisa rasgada e calças esfarrapadas; seus cabelos estavam misturados com lama e grudavam-lhe no rosto.
O homem do martelo e das correntes agarrou Raphah pelos cabelos e o pôs de pé. Ele cheirava a cerveja e repolho frio. Seu rosto era grosseiro e avermelhado, e do queixo saía uma barba branca espetada.
— Vamos lá, menino; Demurral quer que você use isso para não tentar fugir. — Ele deu uma gargalhada e sacudiu a corrente junto ao rosto de Raphah. — Não vá tentar fazer uma burrice qualquer. A única saída é pela porta da frente, e ela está trancada.
O homem arrastou Raphah para outro lugar e depois atirou-o ao chão novamente. O jovem deu um grito de dor quando a ferida de seu ombro roçou contra a pedra.
— Ora, ora, parece que ele andou bebendo muito. É melhor esfriar a cabeça dele.
Ao dizer isso, o homenzarrão gordo pegou um balde de água suja e virou-o sobre a cabeça de Raphah.
— Isso vai deixar você cheiroso para as meninas. Agora vamos logo botar este negócio em você.
O homenzinho magro olhou com raiva para Raphah. Não podia compreender por que o jovem não reagia — ele nada dizia nem tentava lutar. A luz fraca da lanterna, Raphah sorriu com o rosto retesado pela dor. Os dois homens se entreolharam. Esperavam, ambos, que Raphah expressasse alguma reação à tortura. Queriam que ele gritasse pedindo misericórdia. Não estavam entendendo aquilo. Entreolharam-se novamente e depois olharam para Raphah, que estava de joelhos sobre a palha velha espalhada pelo chão.
Antes que eles pudessem fazer qualquer coisa, o menino que estava no canto do calabouço ergueu-se de um salto. Com os pés descalços, ele chutou por trás as pernas do homenzarrão, fazendo com que este caísse com a cabeça enfiada no balde. Ele se pôs de pé rapidamente, com o balde ainda na cabeça, e deu um grito terrível ao tirá-lo.
O menino começou a sorrir satisfeito, mas foi interrompido por um forte tapa na cabeça aplicado pelo homenzinho, que o fez sair girando pelo chão. O menino encolheu-se no canto novamente, tentando proteger as costelas com os braços. Ele sabia que a qualquer instante cairia sobre ele um dilúvio de socos e pontapés.
De seu canto, o menino olhou para Raphah. Os golpes esperados chegaram rapidamente e com muita força; os dois homens chutavam e socavam o menino, que, caído, não tinha como se defender.
— Parem com isso! Já! — gritou Raphah com uma voz tão alta que ecoou pelo calabouço. — Se querem brigar com alguém, então briguem comigo. Ou será que só conseguem bater em crianças?
O homenzinho deu um último chute e levantou o menino. Os dois homens olharam para Raphah, que estava de pé, empertigado, tentando parecer mais alto do que era. O homenzinho deu uma gargalhada.
— Nós adoraríamos lhe dar uma boa surra. O problema é que o padre Demurral tem outros planos para você. Não quer que se toque em um único fio de seu cabelo. Por isso não podemos lhe dar uma lição. — Ele fez uma pausa ameaçadora. — Bem, pelo menos por enquanto.
Os dois aproximaram-se de Raphah. O grandalhão balançava a corrente, assustador. Raphah baixou a cabeça, esperando a pancada. O homem agarrou-o pelo pescoço e empurrou-o contra a parede, aproximando de tal forma o rosto do dele que Raphah pôde sentir seu hálito de cerveja e a barba áspera espetar seu queixo macio.
— Ouça bem, menino, o que eu mais queria era apertar o seu pescoço até acabar com a sua vida. Mas você vai ser sacrificado como um cordeirinho e ele quer que você chegue lá sem uma marquinha sequer.
Raphah retesou os músculos do pescoço, tentando resistir àquela mão grande e forte que o impedia de respirar.
— Por que vocês batem em crianças? É porque elas não têm força para bater em vocês? — ele conseguiu perguntar apesar da falta de ar.
— Aquele menino? Você perde seu tempo preocupando-se com ele. Ele não pode ouvir você. É surdo-mudo. Aquele ali não serve para nada. Deveria ter sido afogado na hora em que nasceu. — Ele parou de falar, pensou por alguns segundos, depois sorriu e disse:
— Como... você.
Ao dizer isso o homem soltou Raphah, que caiu no chão. Ele respirou fundo, tentando conter as lágrimas.
— Vocês não sabem o que estão fazendo. São como ovelhas sem pastor. Já nem sabem mais distinguir o bem do mal. — Raphah olhou para o menino e voltou-se novamente para os homens. — Que mal ele fez a vocês? Certamente nenhum, mas vocês o tratam como a um animal.
O homem gordo ficou em silêncio. Depois tirou do cinto um punhal longo e fino. Com uma das mãos empurrou o rosto de Raphah contra a palha. Com um movimento rápido, cortou a corda que prendia seus pulsos. Os dois homens ergueram-no do chão e puseram algemas em seus pulsos, prendendo-os em seguida a uma corrente. O homem magro segurou o queixo do rapaz.
— Agora venha, cordeirinho. Venha ver os outros que também aguardam a hora de serem sacrificados. Vamos levar seu novo amiguinho também, para vocês trabalharem juntos. Vamos ver se continuam a ser amigos.
Ele levou Raphah para fora do calabouço. O homem gordo seguiu-os, puxando o menino pelos cabelos. A tarde estava clara e os dois foram levados aos trancos para a mina. A menos de cem metros abaixo do Vicariato, a mina era como uma pequena aldeia em uma área plana entre o mar e a escarpa, cercada por um denso bosque. Dois enormes montes de pedra dominavam a vista no lado oeste. Eles haviam sido formados com pedras de alume retiradas da mina por milhares de mãos ulceradas por mais de cem anos. Aquelas montanhas de pedra contrastavam com a beleza do vale como duas grandes feridas abertas na superfície da terra. Aquelas cicatrizes sujas e avermelhadas nada tinham a ver com o verde e o marrom suaves da colina coberta de árvores. O ar era tomado pela fumaça densa que saía dos montes de alume. Esse cheiro misturava-se ao fedor rançoso de urina, alga queimada e enxofre.
Raphah ficou olhando aquela devastação. Sentiu uma revolta crescente ao ver, do outro lado, a área suja e degradada onde moravam os mineiros, em casebres com janelas quebradas e paredes sujas. Para onde quer que ele olhasse, tudo era sujeira e decadência.
Vindo do alto, o som de picaretas quebrando a pedra sem cessar explicava a razão de toda aquela desolação. Enquanto era arrastado por um caminho lamacento, ele pensava na enorme ganância de Demurral.
A dor que sentia no ombro tornava-se ainda mais intensa à medida que o frio aumentava. O frio parecia enterrar-se em sua carne. Ele não podia ver o que lhe causava tanta dor, mas podia senti-lo como algo que o queimava, penetrando-lhe até o osso. O homem passou a arrastá-lo pela corrente ainda mais depressa, quase fazendo com que ele caísse. Ele olhou fixamente os olhos de Raphah. O jovem sorriu, mas a expressão do homem era de desprezo.
Ao final do terraço onde ficavam os casebres havia uma grande casa de pedra com três pavimentos e telhado de ardósia. Era uma casa escura e assustadora, com as janelas do andar superior pintadas de negro. Junto à porta verde e desbotada espalhavam-se restos de comida. Dois corvos gordos beliscavam os dejetos e foi com relutância que voaram dali quando os homens se aproximaram.
Com seu jeito grosseiro de agir, os homens chutaram a porta para que ela se abrisse e empurraram Raphah e o menino para dentro da casa. Lá dentro havia uma grande sala com uma mesa comprida de madeira ladeada de bancos. No fundo da sala ficava uma lareira embutida em uma parede de pedra e uns poucos pedaços de lenha estalavam ali. Ao longo das paredes enfileiravam-se camas de madeira empilhadas quatro a quatro, de modo que mal era possível se espremer entre elas. Às camas, na verdade, eram precárias tábuas sobre as quais havia colchões de palha e colchas sujas.
Na cabeceira da mesa estava sentada uma mulher de cabelos ruivos e desgrenhados. Seu rosto, comprido e magro, estava coberto por um pó branco que parecia chumbo. Os lábios tinham uma pintura vermelha muito intensa que se espalhava pelos cantos da boca. Uma pinta negra havia sido feita em um lado do queixo de maneira descuidada. Raphah olhou para ela e achou que a pinta mais parecia uma enorme mosca que havia pousado em seu rosto.
A mulher, sentada em uma grande cadeira, tinha os pés sobre a mesa e fumava um longo cachimbo de barro. A fumaça subia-lhe pelo rosto e entrava por seus cabelos maltratados. Junto a seus pés havia um pequeno frasco de vidro verde e espesso com um líquido até a metade.
A mulher pôs-se de pé, subitamente animada ao vê-los. Ajeitou a saia comprida e a gola da blusa.
— Sr. Consitt, Sr. Skerry, a que devo o prazer desta visita... inesperada?
O Sr. Consitt, o gordo, sorriu e curvou-se um pouco, num arremedo de cortesia. Ele se julgava irresistivelmente cortês.
— O mesmo de sempre, Sra. Landas. Este jovem aqui gostaria de experimentar as melhores acomodações, sob a responsabilidade da mais bela hoteleira deste distrito. — Ele passou a mão pelos poucos fiapos de cabelo do alto de sua cabeça. — Este bom jovem é hóspede do pároco Demurral e deseja conhecer sua famosa hospitalidade. — Uma espumazinha branca de saliva formava-se nos cantos de seus lábios enquanto ele dizia essas palavras sarcásticas.
— Deixe-o comigo, Sr. Consitt. Cuidarei que tenha uma noite maravilhosa antes de começar a trabalhar. — Ela pôs o cachimbo sobre a mesa e, sorrindo, fez sinal com as mãos para que os dois saíssem. Eles se despediram rapidamente e partiram. A Sra. Landas, contorcendo seu rosto em um sorriso, apressou-se em trancar a porta firmemente.
Foi quando a mulher se voltou para Raphah que ele percebeu a transformação que se dera nela. O sorriso e toda aquela atitude pretensamente educada haviam desaparecido. Ela se mostrava tão cheia de ódio que até parecia ter ficado maior. Seu peito estufou-se e sulcos fundos surgiram em sua testa empoada de branco. Toda ela era ódio e agressividade quando se pôs a gritar para Raphah e o menino.
— Não pensem que isso aqui vai ser fácil para vocês! Vieram para cá trabalhar e é isso que farão. Se cometerem qualquer descuido verão o que os espera.
Ela apontou para uma pequena porta de madeira no outro lado da sala. O menino não podia ouvi-la, mas agiu como se pudesse, encolhendo-se por trás de Raphah.
— Só porque você é surdo-mudo, não pense que vai se dar bem desta vez. Sei que você não é burro, menino, e agora não vai mais conseguir fugir de mim.
Ao dizer isso, ela pegou um esfregão com cabo de vassoura que estava ao lado da porta e bateu no ombro ferido de Raphah, que se encolheu de dor. A Sra. Landas parou de gritar, deixou cair no chão o esfregão e aproximou-se de Raphah, abraçando-o com um carinho fingido.
— Ora, você está ferido! O que foi que fizeram com você? — Sua voz mudara novamente. Agora era gentil e quase suave; toda a agressividade havia desaparecido. — Deixe que eu veja, queridinho.
Ela tirou o agasalho do rapaz e abriu sua camisa, tentando desnudar-lhe o ombro.
— É melhor deixar como está — disse ela. — Vou ter de pegar um pano úmido. A ferida grudou na camisa.
Raphah sentiu o cheiro forte de gim barato e de fumo de seu hálito. Os dentes da mulher eram tortos e amarelos, e os fios ralos de um bigode branco surgiram espetados naquela cara horrível, com lábios muito vermelhos e rachados e olhos injetados. Ela fez com que Raphah se sentasse e gesticulou para que o menino fosse buscar um pano molhado, indicando um balde que estava junto à janela.
Ela puxou o agasalho de Raphah até onde pôde, pois as algemas impediam que ele fosse retirado, e em seguida Umedeceu a camisa com o pano molhado que o menino trouxera. Aos poucos, foi desgrudando a camisa da ferida.
— Que bela fazenda a dessa camisa. Nunca vi tão fina assim. Deve ser muito cara, e você, certamente, um ladrão refinado.
— Não sou ladrão. O navio em que eu viajava naufragou — disse Raphah.
— Você pode dizer o que quiser, mas se veio parar aqui, é porque boa coisa não fez. Agora vamos ver o estrago que fizeram em você.
A Sra. Landas afastou a camisa do ombro de Raphah. Na parte de trás do ombro havia uma queimadura profunda, na qual se podia ver a letra D nitidamente impressa.
— Ai, ai, ai, eles o marcaram a ferro! Quando foi que ele o comprou? — disse ela com uma voz esganiçada de gaivota. Estava surpresa com a brutalidade da ferida.
— Ele não me comprou. Eu sou náufrago. O barco em que eu estava naufragou duas noites atrás em uma baía perto daqui. Não sou escravo.
— Por aqui, qualquer um que tenha essa marca é propriedade de Demurral. Essa é a marca dele e, para todos os efeitos, você pertence a ele. É melhor se considerar escravo, ou as coisas vão ficar muito mais difíceis para você.
Ela lavou a ferida e improvisou um curativo com pedaços de pano que encontrou na cozinha. Raphah chegou à conclusão de que aquele lugar devia ser uma espécie de albergue para trabalhadores da mina e que a Sra. Landas era responsável por ele. Enquanto procurava pedaços de pano para fazer o curativo, ela tomou vários goles de gim da garrafa verde. O menino surdo procurava ficar fora do seu caminho escondido em um canto, com olhos grandes arregalados como os de uma coruja.
Ela acabou de fazer a atadura e olhou para Raphah com interesse.
—Ah, como eu queria ter um homem só para mim! Alguém de quem eu pudesse cuidar e que cuidasse de mim quando eu ficasse velha... — Seu lábio superior ficou trêmulo; ela estava a ponto de chorar. — Não tenho ninguém, ninguém mesmo. — A mulher cobriu o rosto com as mãos e começou mesmo a chorar. Suas emoções se transformavam de um instante para outro. Agora já começava a falar com raiva. — Se não fosse ele ter me largado aqui como um saco de lixo, eu seria uma dama de verdade. Não teria de receber todos esses bêbados que vêm aqui para se divertir.
Ela parou de falar, recostou-se na cadeira e ergueu a garrafa de gim já quase vazia.
— Se não fosse isto aqui, eu não sei o que seria de mim. Isto é o melhor amigo que se pode ter; aquece seu coração, faz com que você fique alegre e...
— Quem é ele? — interrompeu Raphah, indicando o menino.
— Ele não é ninguém, não tem nome, também não tem voz e não ouve o que a gente fala. — Depois de uma pequena pausa, ela prosseguiu. — Ele é bom para limpar o chão e carregar a roupa suja, mas não pára de fugir daqui. Está sempre fugindo e sempre sendo trazido de volta. — Ela olhou para o garoto. Raphah notou que os olhos da mulher agora tinham uma expressão gentil, quase carinhosa.
— Onde estão os pais dele?
— Pelo que se sabe, o pai dele pode ter sido qualquer um. A mãe era muito popular com os homens. Vivia dizendo estar apaixonada, só não sabia bem por quem — respondeu a mulher, pensativa.
— Então a senhora a conheceu?
— Conheci e muito bem, mas ela morreu há 11 anos e cinco meses, e o menino está aqui desde então. — Ela olhou para o menino. — Eu até que gosto dele. Ele me deixa louca de raiva metade do tempo e na outra metade eu o amo incrivelmente. Só queria que ele pudesse ouvir minha voz. — Ela parou de falar subitamente e olhou desconfiada para Raphah. — É o que é que você tem a ver com isso? Por que motivo eu deveria lhe contar essas coisas? Você precisa descansar e eu preciso de mais um trago de gim. — Ela pegou a garrafa e derramou todo o resto da bebida em uma caneca. — Este será o seu dia mais tranqüilo aqui. — Em seguida apontou para as camas. — Escolha uma. Todas elas têm pulgas. Quanto mais alto você for, menos elas morderão e melhor dormirá.
A mulher ajudou Raphah a se levantar e a acomodar-se em uma cama das de cima. Ele se deitou sobre o lado que não estava machucado e, como tinha as mãos presas, recostou a cabeça como pôde. O colchão de palha o espetava e ele sentiu o corpo cocar.
Assim, deitado, Raphah ficou vendo a Sra. Landas preparar a comida. A luz lá fora começava a desaparecer. Um a um, ela foi acendendo os lampiões espalhados pela cozinha e, por fim, pôs uma vela acesa na janela. O menino surdo não parava de correr de um lado para outro carregando lenha e indo buscar o que ela precisava. Ela deixou cair uma colher de pau e ele prontamente a apanhou, com um sorriso, e a entregou a ela. Os dois pareciam se dar bem, sem perceberem que estavam sendo observados. A Sra. Landas acariciou os cabelos do menino, olhando-o de maneira afetuosa, e depois beijou-lhe a testa. Raphah foi fechando os olhos e sendo levado para outro mundo pelo sono. Os sons e os odores da mina foram desaparecendo em um abismo de sonhos.
O Enforcado
O som da porta da frente batendo com força despertou Thomas de seus sonhos. A batida fez a casa estremecer como um pequeno tremor de terra, agitando a chama da vela e fazendo chacoalhar a xícara sobre a mesinha ao lado da cama em que ele estava. Ao ruído da porta batendo seguiu-se o som da voz de um homem. Era uma voz forte e confiante, a voz de um homem rude. Thomas já a tinha ouvido antes e jamais se esqueceria dela. Era a voz de Jacob Crane.
Em seguida o menino percebeu que falavam em voz baixa na cozinha. Crane, Rueben e Isabella conversavam. Thomas saiu da cama e apertou a orelha contra o chão, tentando ouvir o que diziam. Kate continuava a dormir, sem perceber nada. Por mais que se esforçasse, porém, ele não conseguiu compreender o que diziam. Apenas algumas palavras chegavam até ele: esta noite... na baía... enforcado...
Foi esta última palavra que prendeu sua atenção. Quando bem pequeno, ele havia sido levado a Whitby para assistir ao enforcamento de Charles Mayhew, um assaltante apanhado pela milícia depois de assaltar uma carruagem de York. Toda a cidade tinha ido ao embarcadouro para ver a forca improvisada e o condenado. Ele se lembrava daquela manha clara de junho, do cheiro de peixe e das redes que secavam.
Mayhew foi arrastado aos gritos para fora da Alfândega, tendo as mãos firmemente atadas às costas. Foi empurrado até o cadafalso, onde amarraram a corda em seu pescoço. Pelos gritos que dava e pela maneira como se debatia, era óbvio que ele estava desesperado e não queria morrer. Thomas havia sido empurrado para a frente da multidão. Um menino começou a tocar seu tambor solitário. A multidão silenciou. Mayhew não parava de chorar e de gritar ofensas ao carrasco e ao magistrado. Thomas tentou se afastar dali, mas a multidão fechou-se como uma parede humana. A cada batida do tambor, Thomas aguardava, aflito, que o assaltante fosse empurrado para a morte. Aquele momento parecia uma eternidade. Às batidas no tambor lembravam tiros de canhão. Mayhew gritou para a multidão.
— Esta não é a última vez que vocês me verão! Eu vou voltar para assombrar um por um! — Ele olhou com ódio para o magistrado. — Quanto a você.... antes que o galo cante... você estará mono.
O Padre gritou para ele pedindo que se arrependesse, mas antes que ele pudesse dizer qualquer coisa já o haviam empurrado para a morte. O som de seu corpo caindo e o estalido da corda provocaram um suspiro na multidão. Foi como o ruído de uma onda a se quebrar na areia. Mas depois de um breve silêncio a multidão começou a gritar de maneira selvagem. O corpo do homem se contorceu, pendurado, enquanto havia um resto de vida. Algumas mulheres bateram na perna dele com bastões e crianças atiraram pedras no cadáver ainda morno que se balançava na corda. Thomas ficou imóvel, em silêncio. Ele olhava para o corpo daquele homem e se perguntava para onde teria ido sua vida. Como era possível que toda aquela energia, a vida de uma pessoa, deixasse de existir como a chama de uma vela que se apaga? Thomas achou cruel aquele Deus que dava a vida, por mais dura que fosse, e num piscar de olhos a retirava, condenando a pessoa ao nada.
Foi Kate, ao acordar, que o despertou desses seus pensamentos. Ela o cutucou com a ponta do pé e fez uma careta engraçada. Thomas pôs o dedo indicador sobre os lábios para que a menina fizesse silêncio.
Ele então olhou para o chão e fez sinal de que estava escutando a conversa lá embaixo. Kate deitou-se ao seu lado e apertou a orelha contra uma fresta do chão. A conversa continuava na cozinha. Até mesmo Bealda e Ephrig entraram nela. Kate ouviu seu nome sendo mencionado por Rueben. Sua voz grave e melodiosa destacava-se das demais. Foi nesse instante que Thomas ouviu passos apressados subindo a escada e logo a porta se abriu de supetão. Bealda entrou no quarto e tropeçou nos dois corpos no chão, entre as camas.
Bealda pôs-se a rir com aquele seu jeito barulhento, parecendo um vulcão. Era uma criança grande para a sua idade e tinha mãos do tamanho das de um homem. Ela se levantou e, sem parar de rir, ergueu Kate e Thomas ao mesmo tempo.
— Meu pai quer falar com vocês lá embaixo — disse ele. —Temos uma visita. Ele quer ver vocês. Tem notícias de seu amigo.
Eles sabiam que Bealda se referia a Raphah. Ao dormir haviam se esquecido do amigo, mas as lembranças da noite anterior voltaram com nitidez. Thomas olhou para a janela. A árvore pintada à sua volta emoldurava uma escuridão total. Era noite. Ele sentiu que aquelas horas de paz e tranqüilidade chegavam ao fim. Era como se estivesse preso a uma pedra junto ao mar e a maré começasse a subir. Sabia que precisariam partir daquele lugar seguro que era o Moinho dos Boggles e enfrentar Demurral.
Relutantes, os dois desceram a escada atrás de Bealda.
A cozinha estava iluminada pela bela luz cor de âmbar de várias velas grandes que enfeitavam a lareira e o batente da janela. Thomas passou os olhos pela sala, ansioso. Lá estavam Rueben, Isabella, os gêmeos e... Jacob Crane.
Crane era o que estava mais próximo da lareira, vestido de negro da cabeça aos pés, com botas sujas de lama. Ele se inclinou para a frente e seus olhos atentos e penetrantes voltaram-se para Thomas e Kate. Thomas sentiu que o medo lhe dava um nó na garganta, quase impedindo que ele engolisse a saliva. Ele sabia que ninguém se aproximava de Crane sem um bom motivo. E ali estava o homem, bem à sua frente, sentado numa cadeira de carvalho, a olhá-lo como um enorme corvo ameaçador à espera do momento de atacar a carniça.
Thomas cumprimentou Crane com um leve movimento de cabeça, enquanto Kate tentava se esconder por trás do amigo. Crane foi o primeiro a falar.
— Sentem-se, os dois. Tenho notícias de um amigo seu que está em um grande apuro. — Crane pronunciava cada palavra pausadamente. Isabella pôs-se de pé e puxou duas cadeiras de junto da mesa para que Thomas e Kate se sentassem. Eles ficaram de frente para Crane e para as brasas que ardiam na lareira. Thomas fixou o olhar nas brasas rubras e brilhantes.
— Vocês dois foram longe demais com sua ousadia, e seu amigo já pode ser considerado morto. — Ele pôs-se a esfregar uma mão na outra, pensativo. — O que vocês fizeram ontem à noite poderia ter feito de mim um homem muito pobre. —Crane olhava para Thomas.
— Nós apenas tentamos entrar no... — Ele foi interrompido por Crane.
— O que vocês fizeram foi correr de um lado para outro nos túneis onde eu tinha cinqüenta barris de aguardente e 24 caixotes de chá que acabavam de chegar e já tinham um bom preço. — Sua voz ia ficando cada vez mais forte. — Demurral não sabia que aquilo tudo estava lá até sair à procura de vocês e de seu amigo. Vocês me deram um prejuízo enorme. Tivemos de pagar duzentas libras por uma noite de armazenagem. — Ele olhava com raiva para Thomas. Kate sentiu seus olhos se encherem de lágrimas e o coração bater forte, sem saber o que Crane faria com eles.
O rosto magro de Crane contorcia-se de ódio. Era como se os músculos se mexessem de maneira descoordenada. Ele continuava a esfregar uma mão na outra, impaciente, como se fosse lixa na madeira.
— Então, como ficamos, Thomas? Como é que vocês vão me pagar pelo prejuízo?
— O que o senhor sabe sobre o nosso amigo? Ele está vivo? —Thomas engoliu em seco para poder falar.
— Seu amigo já pode ser considerado morto. Demurral me disse isso, ele mesmo, hoje de manhã. Ele mandou que lhe marcassem o ombro a ferro em brasa com a letra D, como a um escravo. Seu amigo vai trabalhar na mina de alume até cair morto de cansaço. Morrerá lá mesmo ou na masmorra.
Thomas abriu a boca para falar, mas Rueben falou antes. O simples tom de sua voz já trazia alguma calma àquela conversa.
— O senhor Crane tem um plano. Nós lhe contamos tudo que sabemos sobre vocês e ele pode ajudá-los. — Ele fez uma pausa e olhou para os dois. — Esse plano pode salvar a vida de Raphah e as de vocês.
— Quem lhe falou sobre Raphah? Em nenhum momento nós dissemos seu nome. — Thomas olhou para Kate.
— Eu contei a Isabella — admitiu a menina. — Eu precisava falar com alguém. Foi por causa daquelas criaturas. Elas me deixaram muito assustada. — Kate começou a chorar, enxugando as lágrimas na manga do vestido. Isabella passou um braço ao redor da menina e aproximou-a de si.
— Eu não tenho medo das bruxarias de Demurral — disse Crane, fazendo pouco do Padre. — Ele pode ter a seu lado todas as hostes do inferno, mas não vou permitir que atrapalhe meu comércio de aguardente. Ele pode até botar o velho Satanás atrás de mim, mas só quero ver o que ele faz diante de chumbo grosso ou de um sabre afiado. — Crane deu uma gargalhada. — Tenho vinte homens e um barco leve ancorado fora da baía. Só o que eu quero de vocês é que sejam minhas iscas para pegar Demurral. Feito isso, vou buscar seu amigo e o que quer que ele tenha vindo apanhar. Quero minha aguardente livre de impostos e também recuperar parte do que paguei àquele cachorro velho nos últimos dez anos.
— Não confie nele, Thomas. Meu pai disse que ele é um bandido assassino. — Subitamente Kate parecia uma gata prestes a atacar Crane com unhadas. Isabella segurou-a, enquanto ela tentava se soltar. Crane nem se abalou.
Ele se dirigiu à menina, tranqüilo.
— Seu pai, Kate Coglan, é tão ruim quanto eu. As quantidades de aguardente e de chá que ele já me ajudou a contrabandear davam para abarrotar o porto de Whitby. Você não tem idéia do quanto ele já recebeu de mim, e é com esse dinheiro que ele compra roupas e comida para você desde que sua mãe morreu.
— Mentiroso! Mentiroso! Meu pai é um fiscal do governo, trabalha para o Rei. Ele prende contrabandistas! — gritou ela para Crane. — Ele jamais trabalharia para um bandido contrabandista e assassino como o senhor! Ele é um homem honesto, mas esta é uma palavra que o senhor nunca vai compreender!
Crane continuava sentado, impassível, enquanto ela gritava. Ele olhou para Rueben e fez um sinal com a cabeça, indicando a porta da frente do chalé. Rueben levantou-se de sua cadeira, atravessou a cozinha e escancarou a porta. O ar frio da noite entrou na sala. Às chamas das velas tremularam e quase se apagaram. Tinha-se a impressão de que o ar da noite estava sugando a luz do chalé para dentro da escuridão.
Rueben falou baixinho com alguém que estava lá fora. Kate pôde ver a silhueta de um homem que se aproximou da porta. Ele vestia uma capa marrom enlameada e um chapéu impermeável que reluziu à luz âmbar da sala. O homem curvou-se um pouco para passar pela porta e entrou. Ficou parado ali mesmo com a água da chuva a lhe escorrer do casaco. Retirou então o chapéu e ergueu os olhos. Kate estremeceu de susto quando seus olhos encontraram os de seu pai.
— Acho que vocês dois não precisam ser apresentados, não é mesmo? Kate Coglan, espero que possa reconhecer seu pai apesar da pouca luz. Entre, Sr. Coglan, e sente-se. Com certeza ela vai querer lhe dar um tapa na cara ou um chute na canela por não cuidar bem dela todos esses anos. Creio que ela já tenha idade suficiente para saber de toda a verdade entre nós dois.
Kate continuava a olhar fixamente para o pai, sem acreditar no que via. Esforçava-se por conter as lágrimas, enterrando as unhas nas palmas das mãos.
— Ele conhece o senhor. Sabe seu nome — exclamou ela para o pai. — O senhor me disse que ele era um bandido e que queria vê-lo morto.
— Quem você acha que pagou nossa comida todos esses anos? Não foi o salário do fisco. Se não fosse o meu trabalho com Jacob, nós já estaríamos na rua há muito tempo.
— Se não fosse a sua bebida, teríamos o suficiente para comer sem que o senhor precisasse mentir, trapacear e roubar, meu pai!
— Se não fosse a morte de seu irmão e depois a de sua mãe, eu não teria caído na bebida nem me tornado contrabandista. Mas nem você nem eu podemos mudar o passado, Kate. E, pelo que estou sabendo, você também se meteu em uma grande encrenca. Não vai demorar muito para que Demurral force seu amigo a dizer quem estava com ele, e aí vocês dois estarão prontos para a forca. Não quero ver uma filha minha pendurada na forca.
Ele deu alguns passos na direção de Kate com os dois braços estendidos para ela. Era a primeira vez na vida que ele demonstrava afeto. Ela percebeu que as mãos dele tremiam. Ele tentava sorrir, mas sorrir, para ele, não era natural. Muitos anos já se haviam passado desde a última vez em que ele teve vontade de sorrir para alguém. O cenho franzido e uma palavra dura eram sua maneira de expressar afeto. Isso e as lágrimas que derramava quando estava bêbado e melancólico, chorando a morte da mulher.
— Eu te amo, Kate — disse ele.
— Se o senhor me amasse, não teria mentido para mim. — Sua voz ríspida era uma forma de ocultar o que de fato sentia. O que ela queria mesmo era correr para ele, apertá-lo em seus braços e consertar o passado. Mas ela se sentia imobilizada pelo rancor. Mordeu os lábios para se conter.
— Todo mundo mente de vez em quando, Kate. A vida é assim. A verdade às vezes é difícil demais para se suportar. Contar um segredo a uma criança e querer que ela o guarde para si é como tentar prender uma borboleta.
— O senhor não precisava ter mentido para mim. Eu sou sua filha, poderia tê-lo ajudado. Mas o senhor só queria se encharcar de gim, e quando saía para trabalhar era para ajudar Jacob Crane!
Crane levantou-se de sua cadeira e chegou perto da menina. Era a primeira vez que ela o via assim tão perto. Ele era um homem magro e alto. Um colarinho branco saía pela gola de seu casaco. Seus cabelos louros caíam-lhe na testa, e no lado direito do rosto ela pôde ver uma longa cicatriz recente.
— Esta noite não é o momento certo para discussões ou para se revirar o passado. — Ele olhou para Kate e Thomas e colocou suas mãos fortes sobre os ombros dos dois. — Vocês dois têm um acerto de contas a fazer comigo, e antes que o dia amanheça podem ter a oportunidade de fazê-lo. — Ele fez uma pausa e olhou-os fixamente. — Ou poderemos estar todos mortos quando o dia amanhecer.
O Dunamez
Raphah não podia acreditar no que estava vendo. Ele havia adormecido naquele quarto escuro e quase vazio onde a Sra. Landas e o menino acendiam os lampiões. Mas acabava de acordar numa espécie de asilo para indigentes, num salão cheio de fumaça. Uma grande algazarra vinha da mesa em que as pessoas estavam.
Do alto de sua cama ele ficou olhando aquela cena como um espectador de ópera sentado na fileira mais elevada de um teatro. Lá embaixo reuniam-se os pobres mais maltrapilhos que ele já havia visto. Eram muitos homens, mulheres e crianças imundos, cobertos de uma poeira e uma lama vermelhas que pareciam espalhar-se por toda a mina.
O ruído de toda aquela gente conversando ecoava nas paredes de pedra. Sobre a mesa espalhavam-se muitos pratos já vazios. Todos pareciam querer falar ao mesmo tempo, enquanto as crianças brincavam diante de uma grande lareira acesa. A cena era a de um festival de indigentes esfarrapados que acabavam de comer um banquete de batatas e nabos cozidos com alguns ossos de carneiro. O que ainda restava da refeição encontrava-se no fundo de um caldeirão negro que, sobre o fogo, borbulhava como a cratera de um vulcão.
Raphah notou que havia uma certa hierarquia à mesa: os mais velhos e os menos esfarrapados sentavam-se perto da lareira, em uma extremidade da mesa. A Sra. Landas sentava-se à cabeceira, em grande estilo, fumando seu cachimbo e bebendo, além do gim, cerveja de terceira categoria em um grande caneco. Raphah achou que ela tinha a pose de uma rainha diante de seus cortesãos.
À sua direita encontrava-se sentado um homem corpulento vestindo um paletó rasgado e uma camisa esfarrapada com uma faixa de pano vermelho amarrada no pescoço. Tinha olhos fundos e o maxilar desafiador. O homem não sorria, limitando-se a olhar em volta com desprezo e atenção, recostado em uma cadeira.
— Podemos ver as cartas esta noite, Mary? — perguntou ele por entre os dentes marrons à Sra. Landas. — Seria bom saber o que o futuro nos reserva.
A Sra. Landas fez um sinal com a cabeça para uma jovem à sua esquerda, que abriu uma gaveta da mesa e dela tirou uma pequena trouxa de seda azul. A Sra. Landas desfez a trouxa e pegou um grande baralho de figuras.
A sala ficou no mais profundo silêncio enquanto ela embaralhava as cartas lentamente, passando os olhos pela longa mesa e sorrindo.
— Quem será esta noite? — perguntou ela, olhando para cada um daqueles rostos e procurando dar à voz um tom solene. — O que dirão as cartas sobre nossas vidas?
Várias das crianças mais velhas tentaram chamar sua atenção, porem a Sra. Landas sacudiu a cabeça como se dissesse que não era a vez delas. Elas se afastaram desapontadas.
— Leia a sorte de Demurral, vejamos o que as cartas têm para ele. Afinal de contas, o futuro dele é o nosso — disse um homem sentado perto dela, enquanto esvaziava seu cachimbo batendo com ele na sola da bota.
Uma mulher entrou na conversa.
— Não posso sair daqui até que tenha pagado tudo o que devo a ele. Diga-nos, Mary. O que acontecer a ele hoje vai sobrar para nós amanhã. Se o futuro dele for bom, quem sabe ele não me liberta sem que eu tenha de pagar sete anos de aluguel e os juros do dinheiro que ele me emprestou.
Todos os que estavam ali tinham débitos com Demurral. Quando já não tinham condições de pagar, iam trabalhar na mina por um salário miserável. Quanto mais trabalhavam, maiores iam ficando suas dívidas. Ele lhes cobrava tudo: comida, alojamento, pelos filhos que tinham e até mesmo pelas ferramentas que usavam para quebrar as pedras de sua mina.
— Está bem, está bem. Então será Demurral! — exclamou a Sra. Landas, batendo com força as cartas sobre a mesa. Aquele era o sinal para que o menino surdo começasse a apagar as velas do parapeito da janela e do aparador da lareira. Ele baixou as luzes dos candeeiros e a sala ficou quase às escuras. Uma aura cor de laranja produzida pelo fogo da lareira destacava o contorno da Sra. Landas.
— Todos vocês devem se concentrar na figura do Padre, reproduzir o rosto dele em suas mentes. Então pediremos ao espírito das cartas que fale conosco.
Devido à sombra projetada pelo brilho do fogo, as pessoas diante dela não podiam ver bem o seu rosto. A luz de uma pequena vela bruxuleava por suas feições, dando a impressão de que elas mudavam a cada instante. A mulher pôs as cartas sobre a mesa e cobriu os cabelos com um xale que tinha nos ombros. Quando a refeição da noite terminava, e depois de vários copos de gim bem forte, a Sra. Landas costumava fazer sua mágica. Ela mexia em suas cartas de adivinhação e ia juntando fatos com ficção, dizendo às pessoas o que elas queriam ouvir e surpreendendo-as com segredos de suas próprias vidas que, sem que soubessem, ela captava aqui e ali em conversas com outras pessoas. Naquela noite, ela estava decidida a fazer sua melhor apresentação.
— Vocês não estão se concentrando o suficiente. Não consigo captar nada. Como querem que eu entre em contato com o espírito se não se concentram direito? Precisamos de concentração para abrirmos a porta do além. — Ela falava apressadamente, com os olhos fechados e o rosto contorcido. — Espírito... faaaale.... comiiiigo...
Sua voz era esganiçada e ela fingia ser outra pessoa. De algum ponto na escuridão ouviram-se três batidas fortes. Todos os que estavam à mesa estremeceram. Uma mulher tomou um grande gole de gim e outra agarrou-se ao braço do homem ao seu lado. Às crianças amontoaram-se junto à lareira, onde havia ainda um pouco de claridade. A Sra. Landas, fazendo-se de assustada com aquela manifestação do além, abriu um dos olhos e olhou à sua volta.
— Quem está aí? — perguntou ela timidamente, com voz de menina pequena.
O homem ao seu lado estava empolgadíssimo, muito impressionado com tudo aquilo. Ouviu-se então uma única batida, ainda mais forte. Todos se encolheram de medo.
— Desejamos saber o que acontecerá ao padre Demurral. Você pode nos dizer?
O som da batida não se fez esperar, mais forte ainda, fazendo com que todos, inclusive a Sra. Landas, estremecessem assustados. Sua voz ficou mais estridente, mas agora por medo mesmo. Aquilo nunca havia acontecido antes. Nenhum espírito de verdade baixara ali.
A Sra. Landas espalhou as cartas à sua frente e pegou várias delas ao acaso. Em seguida desvirou-as, uma a uma.
— Este é o lugar onde ele atua, onde fala do céu e do inferno. —Ela desvirou a primeira carta. Tinha a figura de um homem vestido de Padre e segurando um cálice de ouro em um altar.
— Ah! — exclamou ela. — Este é Demurral, o mágico! Os espíritos sempre falam dele por meio desta carta. Vejamos o que está em seu caminho. — Ela começou a desvirar outra carta.
— Aqui está tudo que pode haver em seu caminho: espada, tempestade, amor e glória.
Ela acabou de desvirar a carta. Era a figura de uma torre sendo atingida por um raio e um homem caindo de seu topo. Sem dizer mais uma só palavra, ela foi desvirando as cartas e dispondo-as em círculo ao redor das outras. A cada carta que pegava, ela parecia ir ficando mais assustada.
— O que foi, Mary? O que as cartas estão dizendo? — O homem ao lado dela puxou levemente seu xale querendo uma resposta. Ela desvirou a última carta para completar o círculo: a figura era a de um esqueleto retorcido, cercado por chamas rubras como sangue.
Pela primeira vez na vida, a Sra. Landas pôs-se a rezar. Tentava não cair em prantos. Tremia de medo de que aquilo que via diante de si fosse mesmo verdade.
— O que está acontecendo, Mary? Você não pode ficar aí parada sem nos dizer!
Ela respirou fundo e começou a falar lentamente.
— Às cartas falam de uma força poderosa que dominará este lugar. Muita gente morrerá se não conseguirmos impedi-la. Haverá uma catástrofe. A terra será tomada pelo mar e o demônio em pessoa caminhará entre nós. Todos correm um enorme perigo.
— Só se vocês permitirem que isso aconteça — disse uma voz vinda da escuridão.
Todos voltaram-se para ver quem ousava falar e romper a magia daquele momento. Raphah estava sentado na última cama de cima com as pernas para fora.
— Vocês acreditam mesmo no que dizem estas cartas? Pois há poder muito maior do que esse que controla dados e baralhos. — Ele desceu de seu posto e aproximou-se da mesa. — Todos vocês se deixam enganar pelo que ouvem. Acreditam logo que estão ouvindo espíritos, quando é apenas alguma pessoa fazendo barulho. Ninguém aqui está disposto a procurar aquele que é o único capaz de libertá-los.
— Quem é você para falar em liberdade? Um escravo vem nos falar em liberdade, o que acham disso? — disse o homem sentado ao lado da Sra. Landas.
—O que os toma diferentes de mim? Eu sou negro e vocês são brancos. Temos muitas coisas em comum, porém vocês são muito mais prisioneiros do que eu jamais serei. Posso ter correntes nos meus pulsos, mas nem mesmo Demurral pode escravizar a alma de um seguidor de Riathamus.
O homem foi rápido na resposta.
— Você fala muito para um escravo. Nós sabemos que tipo de vida o aguarda, isto é, o pouco que ainda lhe resta viver. — Eles todos puseram-se a rir.
— Minha alma está nas mãos daquele que me enviou aqui. Ele tem um plano para a minha vida e sei que o plano é bom. Sou parte de seu plano de esperança e futuro. Estas cartas dizem mentiras e só servem para escravizá-los ainda mais.
Raphah curvou-se sobre a mesa e pegou o baralho de cartas. Ele sabia que precisava dizer a verdade. A Sra. Landas deu um salto de sua cadeira tentando tomá-las de volta.
Ele ergueu as cartas enquanto falava.
— Isto aqui é um instrumento do mal e os levará a lugares de onde não poderão mais escapar. Aquele que me enviou aqui não admite o uso dessas coisas.
— Quem você está chamando de instrumento do mal? Eu cuido de sua ferida, dou-lhe comida, deixo que durma quando deveria estar trabalhando, e você diz que sou do mal? Estas cartas são preciosas. Custaram-me mais de um ano de salário. Tire essas mãos imundas das minhas cartas!
A Sra. Landas tentou arrancar as cartas das mãos dele, mas ele a impediu. Ela estava chocada com o que Raphah dissera. Em seu mundo, a Sra. Landas tinha sempre razão e não prestava contas a ninguém que não Demurral. Jamais havia sido desafiada daquela maneira. Para ela, as cartas eram apenas uma forma dramática de fazer-se mais importante, utilizando-se de informações que os outros não possuíam. Agora vinha alguém dizer que suas cartas eram instrumentos do mal. Ela olhou para o baralho na mão dele sem saber o que fazer. Mas alguma coisa acontecera e ela sentiu medo até mesmo de tocar naquelas cartas. Uma dúvida insinuava-se em sua mente. Aquilo já não era mais a brincadeira de salão que aprendera com sua mãe. Ela sentia medo e raiva por ter sido desafiada daquela maneira em sua própria hospedaria.
Havia algo em Raphah que a deixava nervosa e irritada. Talvez fosse aquela autoconfiança que ele transmitia. Talvez fosse aquela pureza de alma que se podia ver em seus olhos e parecia irradiar uma luz de esperança sobre a desolação à sua volta.
— E o que, exatamente, "esse tal" vai fazer? — perguntou ela com raiva. — Ele é capaz de melhorar nossas vidas? Tirar-nos deste lugar? Pode impedir que Demurral continue a nos matar aos poucos de tanto trabalho e tão pouca comida, com um salário de miséria? — A cada pergunta, a Sra. Landas espetava o peito do rapaz com seu dedo indicador ossudo. — Onde está "esse tal" de quem você fala? Podemos vê-lo?
— Ele está por trás da senhora — disse Raphah tranqüilamente. A Sra. Landas virou-se rapidamente para ver quem estava atrás dela. —Não, Sra. Landas, ele está por toda parte. Não se pode vê-lo, mas ele conhece os segredos dos corações de cada um.
— Quem é você? De onde você vem? — quis saber ela, já com raiva daquela impertinência dele. Raphah olhou para aqueles rostos voltados para ele. Parecia que toda a sala aguardava sua resposta.
— Isso não tem importância. Esta noite, aquele que me enviou aqui mostrará a vocês algo que transformará suas vidas para sempre. — Raphah aproximou-se dela entregando-lhe as cartas.
— E se nós não quisermos mudar?
— Nesse caso, ele abrirá seus olhos para que vocês vejam o monte de excrementos no qual suas almas estão adormecidas. — Ele a tocou no ombro. — Acorde. Saia das trevas e deixe a luz brilhar na escuridão em que você vive.
O menino surdo tentou afastar Raphah da mulher. Raphah agarrou-o pelos ombros e empurrou-o para o colo da Sra. Landas.
— Segure seu filho, Sra. Landas. A senhora logo o terá de volta. —Ele então pousou as duas mãos com firmeza sobre a cabeça do menino. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Raphah começou a falar em uma língua que ninguém ali compreendia.
— Abba-shekinah, El Shammah, soatzettay-isthi hugiez!
Estas palavras foram ditas com toda a força de sua voz. Todos na sala ficaram imóveis, sem saber o que ia acontecer, amedrontados.
Foi então que começou a acontecer algo estranho e assustador. O prédio inteiro pareceu tremer. Às crianças jogaram-se embaixo da mesa e os adultos se entreolharam, atônitos, sem acreditar no que viam. Um ranger de madeira fez com que todos se virassem para ver a grande porta de entrada curvar-se para dentro. Com um súbito estalido, ela se abriu, batendo com força na parede. Uma tempestade de raios prateados entrou pela porta e espalhou-se por toda a sala, batendo nas paredes e no teto como se fossem tiros de mosquetão. Logo uma fina nuvem dourada cobriu tudo. Pequenos globos com as cores do arco-íris dançavam no ar acima das cabeças daquelas pessoas apavoradas.
Raphah, sem se deixar abalar por tudo aquilo que estava acontecendo, continuava a repetir as palavras sem cessar. O menino surdo pôs-s a tremer com força. Todos os músculos do seu corpo pareciam tomados por uma energia que os percorria. A Sra. Landas levantou-se rapidamente, empurrando o menino e atirando-se no chão. Com o rosto enterrado nas mãos, ela suplicava a Raphah que fizesse aquilo tudo parar.
Aquela altura todos já estavam de bruços no chão, cobrindo os olhos com as mãos para protegê-los da intensa luz dourada que se espalhava por toda a sala. Era como se alguma força os mantivesse deitados no chão daquele jeito. Cada gotícula daquela névoa parecia pesar mais do que ouro. Ninguém conseguia se mexer: seus membros pesavam como se fossem de chumbo. Enquanto aquela neblina dourada se movia pela sala, eles foram sendo tomados por uma profunda sensação de paz. Por fim, homens, mulheres e crianças pareciam todos entregues a um sono profundo.
Foi a súbita gritaria do menino surdo-mudo que rompeu o silêncio. Ele pulava e gritava sem cessar. Jamais havia emitido um único som em toda a sua vida e agora não parava de gritar e de rir, saltando como um animalzinho. Ele gritava com toda a força dos pulmões, protegendo os ouvidos com as mãos.
O som de sua risada alta fez com que a Sra. Landas saísse do esconderijo onde estava, debaixo da mesa, entre duas cadeiras. O menino gritava e pulava sem parar, feliz por ouvir pela primeira vez o som da própria voz. Ela olhou para o menino e começou a chorar, com os braços abertos, chamando-o pelo nome pela primeira vez.
— John, venha aqui... venha para sua mãe!
Às lágrimas continuavam a lhe escorrer pelo rosto enquanto o menino balbuciava a palavra "mãe". Ele correu para os braços dela e juntos ficaram chorando de felicidade. A Sra. Landas sentia-se finalmente livre para amá-lo.
Acontecesse o que acontecesse, ela sabia que seu amor pelo filho duraria para sempre. Por muitos anos ela havia acreditado que seu coração era de pedra, que ela era incapaz de amar ou ser amada. Naqueles poucos instantes tudo havia mudado. Ela agora sentia que tinha um coração humano, cheio de alegria em vez de desespero.
Tão rapidamente como surgira, a névoa dourada se foi. Às crianças saíram de seu esconderijo embaixo da mesa e os homens e as mulheres puseram-se de pé. Ficaram todos olhando para Raphah, John e a Sra. Landas à cabeceira da mesa, iluminados apenas pelo fogo da lareira atrás deles. Ninguém ousava falar.
— Como foi que você soube? — perguntou a Sra. Landas a Raphah, enquanto acariciava os cabelos de John. — Como soube que ele era meu filho?
— Vi isso nos seus olhos, Mary. Os olhos são as janelas da alma. Nem mesmo todo o ódio que havia em você pôde ocultar a semente de amor em seu coração. — Ele enxugou uma lágrima que escorria lentamente pelo rosto dela. — Aqui está quem você tanto queria. Agora ele pode ouvir o que você diz e logo será capaz de falar também. Ele será o seu futuro.
A Sra. Landas pegou o baralho de adivinhação da mão dele.
— Não creio que eu vá precisar mais disto.
Ao dizer essas palavras, atirou ao fogo as cartas e o pano de seda azul. Elas se espalharam nas chamas. Uma carta, porém, pareceu saltar das brasas do inferno, impulsionada pelo calor. Ela voou e girou no ar até cair, voltada para baixo, na pedra ao pé da lareira. Parecia ter sido salva do fogo por uma mão invisível.
Raphah curvou-se e pegou a carta. Deu uma risada e mostrou-a para que os outros a vissem.
— Nem mesmo este mago aqui conseguirá escapar de seu destino tão facilmente. — Raphah esmigalhou a carta na palma da mão e lançou-a ao fogo.
Ninguém percebeu a entrada na sala, pela porta aberta, de uma pequena figura sombria. Tinha a aparência de um homenzinho com o rosto comprido e branco, dentes tortos e a boca muito grande. Parecia uma sombra. Certas partes de seu corpo eram opacas e outras eram transparentes. A criatura entrou lentamente na sala, com os olhos fixos em Raphah, e foi se aproximando.
O homem que tinha um lenço vermelho no pescoço agora estava sentado na outra extremidade da mesa. Estava ainda perplexo, sem entender o que havia acontecido. Com um rápido tremor do corpo, a criatura saltou para dentro do corpo daquele homem. O homem sentiu que alguma coisa lhe acontecia, mas não conseguiu gritar por socorro. Fechou os olhos. Teve a sensação de estar se afogando, de que alguma coisa lhe sufocava a alma. Sentiu que algo se apossava dele e logo o hálito terrível da criatura lhe saía pela boca. Ele então abriu os olhos, mas agora quem olhava através deles já não era mais o homem, que não podia mais controlar seus pensamentos e seus atos. Ele tossiu, sufocado pelo cheiro horrível que lhe vinha dos pulmões. A criatura olhou para Raphah, à espera do momento certo de matá-lo. Sobre a mesa havia uma faca de trinchar. Usando a mão do homem, a criatura pegou a faca e escondeu-a no bolso do agasalho dele.
Sino, Livro e Vela
De luvas pretas e punhos cerrados, Jacob Crane bateu com força na grande porta de carvalho do Vicariato. Era meia-noite, e em um quintal próximo uma grande gralha branca gritou para a lua cheia que surgia, rubra como sangue.
Às fortes batidas ecoaram pelas salas e pelos corredores vazios até chegarem ao ouvidos de Beadle, que dormia debruçado sobre a mesa da cozinha. Tinha o rosto em cima de uma grossa fatia de pão de centeio com manteiga que havia preparado para reduzir o efeito das muitas canecas de cerveja morna que bebera naquela noite. Beadle gostava de beber, não para matar a sede, mas para sentir a bebida correndo em suas veias e tornando menos aguda a dor de viver. Com o passar do tempo, ele havia se tornado um cervejeiro competente. Preparava sua própria cerveja, acrescentando a ela algumas ervas que colhia em um lugar secreto perto do Moinho dos Boggles. Ele secava as folhas e algumas flores também, para então misturá-las à cevada, ao levedo, ao lúpulo e a algumas boas colheradas de mel.
Naquela noite ele se deu conta de ter cometido dois erros. Um foi beber a cerveja que ainda estava fermentando. O outro foi ter acrescentado valeriana demais à mistura. Sabia apenas que não conseguia manter os olhos abertos, pois o efeito da valeriana fechava-os imediatamente, dando-lhe também a sensação de estar preso para sempre naquele sono, com os lábios e os braços dormentes e pesados como tapetes enrolados.
O pior era a sensação de que a cerveja em fermentação faria sua barriga explodir a qualquer momento. Ali caído, bêbado, ouvindo o som distante de alguém batendo na porta, sentia golfadas de cerveja mal digerida subindo pela sua garganta. Beadle soltou um sonoro arroto que ecoou pela cozinha. Tentou levantar a cabeça da mesa, pois sabia que precisaria ir ver quem batia à porta com cada vez mais força e insistência.
Ao levantar a cabeça, ele pegou a grande fatia de pão com manteiga e com ela enxugou a testa, pensando tratar-se de um pedaço de pano. Os farelos do pão colaram em sua pele, mas ele não tinha idéia de sua aparência e tampouco se importava com ela. Só conseguia pensar nas belas flores brancas de valeriana. Elas não lhe saíam da cabeça. Naquele seu estado de meia sonolência, esforçando-se para acordar, vinha-lhe à mente a pequena planta que colhera em um dia de verão, deixando uma moedinha junto à raiz como pagamento ao Homenzinho Verde. Depois ele a secara cuidadosamente junto ao fogão da cozinha. Beadle murmurou algumas palavras incompreensíveis.
Durante o dia, ele até que não bebia muito, preferindo tomar do chá que roubava de seu patrão. Aguardava sempre até as seis horas, no mínimo, quando então abria a torneira do grande barril de madeira e enchia seu caneco até a beirada, repetidamente.
A cerveja lhe permitia sonhar, ser alguém que jamais poderia ser. Dava-lhe liberdade para pensar, ou pelo menos era isso que ele achava. Mas descobriu que precisava de doses cada vez maiores para chegar ao estado de beatitude de um ano antes. Quando bebia, sentia-se livre do tédio de sua servidão. Em pensamentos, tornava-se um homem de respeito, alguém que fazia coisas mais importantes que correr atrás do Vigário. Na verdade, porém, a bebida tornava-o mais mal-humorado e ainda mais insatisfeito consigo mesmo e com a vida.
Agora o gosto de levedo e de cevada grudava no céu de sua boca e, ainda meio acordado, ele ouviu o som mais alto das batidas à porta. Saiu desequilibrado da cozinha, tentando caminhar em linha reta pelo corredor. Os socos na porta ficavam cada vez mais fortes. Ele saiu cambaleando, batendo nas paredes do corredor, agarrando-se às esquadrias das portas por onde passava. O enorme corvo dourado acima da porta principal olhou-o fixamente. Ele teve a leve impressão de ter visto a ave sacudir as penas e fechar um olho. Beadle segurou a grande maçaneta da porta da frente e começou a girá-la. Subitamente a porta foi forçada de fora e ele quase caiu. O ar frio da noite entrou pela casa e a luz tremulante da vela iluminou a enorme figura de Jacob Crane à entrada.
—Onde está o seu patrão? — perguntou Crane como quem quisesse uma resposta imediata. Beadle, ainda tonto pela bebida, ficou olhando para ele espantado.
— Patrão? — Fez uma pausa como se não soubesse a resposta. Balançava-se de um lado para outro, sem deixar de olhar para Crane. — Acho que ele está deitado, mas pode ter saído. Ou pode ser que...?
Crane curvou-se bastante e encarou Beadle, olhos nos olhos. A distância entre eles era a da largura de um fio de cabelo.
— Vá buscá-lo. Agora! - gritou ele sem se afastar. Beadle tentou focalizar os olhos na ponta do longo nariz de Crane.
A resposta foi absolutamente inesperada. Beadle deu um arroto longo, alto e fedorento bem nas narinas de Crane. Aquele cheiro horrível provocou em Crane uma careta de nojo. Sua resposta foi rápida. A mão enluvada de Crane deu um tapa na cara de Beadle e depois arremessou-o longe. O homenzinho foi cair do outro lado do saguão, dentro de um armário para casacos que lhe caiu por cima.
— Seu porco — exclamou Crane, enojado, aproximando-se da figura prostrada no chão.
— Sinto muito, Sr. Crane. É a cerveja. Não consigo evitar. —Beadle arrotou novamente, tentando provar que tinha sido um acidente. — Não consigo segurar... É a cerveja... Às vezes ela faz isso comigo.
— Então sugiro que pare de beber. — A voz veio do balcão no alto da escada. Lá estava Demurral, vestido em um camisolão negro com uma touca de dormir vermelha. — Beadle, leve o Sr. Crane para o escritório. Logo estarei lá. Traga-nos uma bandeja com xerez.
Beadle pôs-se de pé e, ainda com a visão perturbada, procurou a porta do escritório. Todas as portas pareciam-lhe iguais e ele não sabia a qual se dirigir. Crane percebeu o estado de confusão mental estampado no rosto do homenzinho e abriu a porta do escritório. Levou consigo a vela que iluminava o saguão, deixando Beadle sozinho no escuro.
Crane dirigiu-se à janela do escritório e abriu as cortinas. A luz intensa e prateada da lua cheia clareou a sala, dando a tudo ali um brilho de mercúrio. Depois de pôr a vela na grande mesa redonda no centro da sala, ele se sentou em uma cadeira de couro junto à lareira. Demurral chegou em seguida e atirou na lareira uma tora de pinho.
— E a que devo esta visita noturna de Jacob Crane? — perguntou ele.
— Ao que importa na vida: dinheiro — respondeu Crane.
— Mas eu fiz voto de pobreza. Por que me interessaria por dinheiro? — Demurral sorriu ao falar, inclinando levemente a cabeça para um lado.
— Nesse caso minha tarefa será ainda mais fácil. Tenho uma carga de aguardente em seu depósito e você quer que eu pague o armazenamento de uma noite. — Ele olhou Demurral com uma expressão decidida. — Não quero pagar. Em compensação pelo armazenamento gratuito da minha carga, estou disposto a lhe dar algo que você deseja. — Crane tirou as luvas de couro e alisou-as no colo com cuidado. Os homens ficaram se olhando nos olhos por um longo instante.
— O que eu poderia desejar? Já tenho tudo que desejo.
— Desejo. Esta palavra fica estranha na boca de um Padre. Ambição não satisfeita, cobiça luxuriosa. A palavra evoca uma porção de coisas que não deveriam ocupar a mente de um Padre. Não, esta não é realmente uma palavra para um homem da Igreja. — Crane torceu as luvas. — Se eu lhe dissesse que tenho comigo duas pessoas que pretendem privá-lo de um de seus objetos de desejo, quanto elas valeriam para você?
— Roubo é crime e elas teriam de responder por seu crime. — Demurral aproximou sua cadeira da de Crane. — Afinal de contas, essas pessoas pretenderam roubar algo muito precioso, algo pelo qual paguei um bom dinheiro. O senhor não pode negar que sua obrigação, como bom cidadão, é entregá-los simplesmente a quem de direito.
Em um único movimento, Crane saltou de sua cadeira, desembainhou o punhal e pressionou a longa lâmina afiada contra a garganta de Demurral.
— Não vim aqui para brincadeiras, Vigário. Responda: vai pagar para ficar com eles ou devo soltá-los? Você tem um deles e eu tenho os outros dois. Por trezentas libras, poderá ficar com todos eles. Não creio que eles tenham a menor chance de serem levados a uma corte de justiça, portanto você poderá fazer com eles o que quiser. — Ele apertou a parte plana da lâmina no pescoço de Demurral, na altura da garganta. — Ouvi dizer que você gosta de levar os mais jovens para o alto daquela sua torre. — Ele fez uma pausa e um gesto em direção à janela. — Vejo que tem havido muita escavação de terra em seu jardim, e esta não é a época do ano para plantio... Mas suponho que isso depende do tipo de sementinha que o senhor tem colocado sob a terra. — Ele pôs a ponta do punhal sob o queixo de Demurral, pressionando-a levemente contra sua pele.
— Trezentas libras são um preço justo. Vou mandar Beadle lhe entregar o dinheiro. Quando receberei meus novos hóspedes? —Demurral falava com cuidado, sem ousar se mexer.
Crane guardou novamente o punhal no forro de seu agasalho.
— Estarei aqui com eles dentro de uma hora. Espero que o dinheiro já esteja me aguardando. Se tentar qualquer trapaça, vai ter o mesmo destino de suas plantinhas. Estamos entendidos?
— Ora, Sr. Crane, eu jamais trapacearia um cavalheiro tão distinto.
— Diga-me uma coisa, Demurral, o que você tem aqui que leva esses garotos a arriscar suas vidas? — Seus olhos percorreram a sala mal iluminada em busca de algo precioso.
— É uma bobagem, um objeto trazido por um explorador, uma relíquia religiosa que não tem qualquer valor para outra pessoa que não um homem religioso como eu. — Demurral estava inseguro, sem saber por que Crane havia feito aquela pergunta.
— Sou um homem que viaja muito pelo mundo. Teria grande interesse em ver tal artefato. — Crane enfiou a mão no casaco e segurou o cabo do punhal. Deu um sorriso para Demurral.
— Compreendo esse seu interesse — retrucou Demurral apressadamente. — Não creio que haja inconveniente algum em mostrar-lhe o pequeno objeto. — Gritou, então, em direção à porta: —Beadle, traga aquele estojo que está no meu quarto. Nosso visitante gostaria de ver o que tem causado todo esse rebuliço.
Beadle estava sentado no chão do corredor, ainda se recuperando da bebedeira e da pancada. Tinha até se esquecido de levar as bebidas que Demurral pedira. Esquecera-se até mesmo de onde estava. Fez um esforço para pôr-se de pé, com muita dificuldade para se equilibrar. Estava tão bêbado que não sabia sequer se havia respondido a Demurral.
— Beadle, seu peru bêbado, levante-se daí e vá buscar o que mandei. Minha visita está esperando. — O grito ecoou pela casa. Os dois homens ouviram os passos apressados de Beadle ao subir a escada e passar pelo corredor a caminho do quarto de Demurral. Podiam também ouvir o ruído seco dos tombos do homenzinho que tropeçava nos tapetes, nas tábuas soltas do piso e nos próprios pés.
— Ele tem uma pequena fraqueza — disse Demurral erguendo os olhos para o teto acima do qual Beadle acabava de levar um tombo com estardalhaço. — Gosta de beber. São tão poucos os prazeres que tem na vida, que tenho dificuldade em negar-lhe esse.
— E o que lhe dá prazer, Vigário? Dinheiro? Fortuna? Poder?
— Não, não, não. Sou um homem de prazeres simples e procuro apenas cumprir o que de mim espera aquele que me enviou.
— Então não é verdade que você seja mentiroso, trapaceiro e, até mesmo, segundo alguns, assassino? — Crane ria ao falar. Demurral não tinha certeza de que o contrabandista estivesse zombando dele. Jacob Crane era um homem de temperamento irascível, curtido em longos anos de mar. Aos 14 anos de idade havia entrado à força para a Marinha Real. Fora enganado e, ao acordar, estava no porão de uma embarcação a vela a caminho da índia. Aos 24 anos, fugiu do navio e, desde então, passara a ganhar a vida como contrabandista e assassino profissional. Beadle entrou arrastando um longo estojo de couro preto que pôs sobre a mesa no meio da sala. Demurral levantou-se e acendeu outra vela. Começou então seu ritual de desempacotar o bastão de acácia e a mão negra. Como quem não desse importância, pegou o Keruvim. Crane olhou para a pequena figura alada que brilhava a luz da lua.
— .Afinal, quanto pagou por isso, Vigário? — Ele queria dar a impressão de não estar muito interessado no valor da peça.
— Pouca coisa. Essas peças nativas não têm valor monetário. Para mim ela é... digamos... de interesse religioso. — Ele ergueu o Keruvim da mesa.
— Para que lhe serve uma coisa dessas, então?
— O senhor acredita no mundo do espírito, Sr. Crane? — Demurral fez esta pergunta olhando o outro nos olhos. Depois continuou a falar em voz mais velada: — Um mundo de poderes tais que não somos capazes sequer de imaginar?
— Não acredito que uma pedra filosofal ou uma bruxaria qualquer sejam de qualquer utilidade neste nosso mundo. Vivemos em tempos modernos; religião é para os fracos e ignorantes — disse Crane, resoluto. — Tudo que consegui até hoje foi com o trabalho destas duas mãos e o sangue de quem ousou ficar no meu caminho. Não tenho tempo para Deus nem para essas palhaçadas supersticiosas. — Crane aproximou-se do Keruvim, interessado na delicadeza da peça esculpida em ouro e em seus olhos de pérola. Demurral ignorou aquele comentário de Crane.
— Imagine um mundo onde as leis naturais e o tempo deixassem de existir. Um mundo onde o poder e o controle fossem mais importantes que o amor ou a caridade. — Ele girou o Keruvim na mão para que ele reluzisse ao luar. — Imagine como seria ter mais poder que o próprio Deus, ser capaz de controlar os elementos, o vento, os oceanos e até mesmo o movimento do sol. Imagine que poder isso daria... imagine a satisfação... ser capaz de destruir todos os que se levantassem contra você. A vingança seria perfeita e eles nem se dariam conta de que foi você. — Demurral pôs a estatueta de volta na caixa. — Eu também jamais me daria por satisfeito com uma pedra que transformasse tudo em ouro ou com o poder das bruxas. A única coisa capaz de me satisfazer seria o poder do próprio Deus.
Demurral pôs o bastão e a mão negra de volta no estojo preto e fechou a tampa. Depois recostou-se em sua cadeira junto à lareira.
— Então você não deseja muita coisa, Vigário. Eu pensava que os homens que vestissem hábitos servissem ao Todo-poderoso, e não o contrário.
— Isso depende de quanto tempo mais ele continuará a ser Todo-poderoso; convenhamos: ele não poderá manter esse poder para sempre. — Demurral esfregou as mãos e deu um chute na tora de madeira que queimava. Ela chiou e cintilou quando suas partes ainda úmidas tocaram nas brasas incandescentes.
— Você é um homem de coragem para se referir a seu Deus dessa maneira, padre Demurral. Mas seja como for, acredita mesmo num mundo dos espíritos, com fantasmas e demônios? — Crane foi ate a janela e ficou olhando o mar, que se estendia até Baytown. Às luzes dos casebres dos pescadores piscavam na escuridão sob uma nuvem brilhante. Na baía, ele viu a silhueta de seu próprio barco com o despenhadeiro ao fundo. — Seria necessário um milagre para me fazer acreditar em algum outro poder que não o da espada e da bala de mosquete. Nada é capaz de transformar chumbo em ouro mais depressa que isso. — Ele se voltou para Demurral, que remexia as brasas com um grande atiçador de cobre.
— Com a minha ajuda, Sr. Crane, o senhor poderia se tornar o homem mais rico do mundo. Não precisaria mais ir para o mar ou arriscar a vida. Poderia descansar e gozar de toda a riqueza do mundo. — Ele se aproximou da janela e parou ao lado de Crane. — Veja, tudo isso poderia ser seu, e tudo o que o senhor precisa fazer é trabalhar para mim.
— Eu não sabia que isso tudo lhe pertencia. Pensei que fosse propriedade do Rei concedida por Deus. — Ele deu um passo para trás afastando-se de Demurral, que estava perto demais. O Vigário parecia tentar conter sua excitação, como se percebesse, por antecipação, algo maravilhoso que só ele sabia.
— As coisas mudam, Sr. Crane, as coisas mudam. O senhor será testemunha disto esta noite. Traga-me os dois ladrões e isso será o início de tudo. Venha comigo até a torre e eu lhe mostrarei algo que ficará para sempre gravado em sua mente. — Demurral olhou bem dentro dos olhos de Jacob Crane. — O senhor tem razão quando diz que o sangue dos que se põem em seu caminho pode satisfazer seu coração. Não foi um rabino que disse que o homem que ama sua vida acaba por perdê-la, e o que odeia a vida que leva neste mundo a terá para sempre? — Ele fez uma pausa; foi um silêncio tenso. — O senhor ama sua vida, Sr. Crane?
A Azimute
Obadiah Demurral e Jacob Crane subiram a escadaria de pedra e chegaram a uma grande laje que formava o piso do alto da torre. Demurral puxou de leve a manga do casaco de Crane e empurrou Beadle porta adentro. Juntos, eles entraram em um amplo salão circular com janelas compridas de escuros vitrais. A luz brilhante da lua iluminava cada vitral. No centro do salão, no meio de um círculo pintado no chão de pedra e entre duas colunas de pedra que iam até o teto, havia uma mesa de madeira coberta por uma toalha de linho, com um castiçal em cada extremidade. Acima de suas cabeças, o telhado de cobre tremia agitado pelo vento.
— Bem-vindo ao meu lugar sagrado, Sr. Crane. Este lugar concentra mais poderes espirituais que qualquer igreja. — Demurral passou os olhos bem abertos por toda a sala escura. Fez um sinal para que Crane se aproximasse. — Não tenha medo, não há nada aqui que possa lhe causar mal... Bem, ainda não.
Crane não respondeu, guardando para si a crescente sensação de desconforto que sentia. Ele entrou no círculo e parou junto à mesa.
— Por favor, não toque no altar, mãos sagradas, somente mãos sagradas. — Demurral estava animado. O simples fato de estar naquela sala dava-lhe um profundo prazer.
— Afinal, para que serve este lugar? Pensei que você se restringisse à igreja para suas cerimônias de adoração. — Jacob Crane olhou à sua volta. Havia símbolos místicos, o altar, o círculo e uma estrela de seis pontas pintada na parede em um tom de azul-cobalto.
— A igreja é um lugar para se recitarem palavras sem sentido dirigidas a um Deus que já não escuta mais — respondeu Demurral. — Este aqui é o lugar onde se encontram as respostas. Dentro de cada um de nós há um deus aguardando ser libertado. Tudo o que precisamos é da chave do poder. — Demurral passou as costas das mãos sobre a toalha de linho branco que cobria a mesa e olhou para Crane, aguardando sua reação. Crane enfiou a mão no casaco e segurou com firmeza o cabo do punhal. Sentiu o metal frio na palma da mão quente e suada. Em seus 32 anos de vida, Jacob Crane vira muitas coisas e matara muita gente. N Ias algo em Demurral deixava sua pele arrepiada e sua boca seca. Crane não tinha medo de muitas coisas nesta vida, mas a presença daquele homem dava um nó no seu estômago e desencadeava nele um impulso de matá-lo ali mesmo.
— Então o que você adora? Você mesmo, ou outra coisa? — perguntou ele abruptamente, e ficou aguardando a resposta.
— Um deus precisa merecer ser adorado. Pessoalmente, nunca achei que nosso Deus estivesse à altura de nossas expectativas humanas. Pedimos a ele vida e as pessoas morrem; pedimos paz e só o que temos é sofrimento. Ele nos diz para amar o próximo mas não conseguimos amar sequer a nós mesmos. Ele tira todos os prazeres desta vida e promete o paraíso depois. Quando morrermos, encontraremos esse paraíso? — Demurral respirou fundo e lançou seus longos cabelos brancos para trás. Em seguida se recompôs e lançou um olhar para Beadle. — Passei a vida quase toda servindo ao Todo-poderoso. Sofri por causa dele, fui ridicularizado por causa dele e abri mão de tudo por causa dele. E o que foi que ele fez por mim? Quando vim para cá, descobri outra coisa, ou, melhor dizendo... outra coisa me descobriu.
— Seja o que for que você tenha encontrado, não me interessa. Se este é o lugar para onde devo trazer as crianças, estamos conversados. Só recomendo que não deixe de ter à mão o meu dinheiro quando eu chegar aqui — disse Crane. Ele sabia que o que quer que Demurral estivesse fazendo não era boa coisa, e quem quer que ele estivesse seguindo agora não era Deus. Ele deu as costas para sair, sem por um instante soltar o cabo do punhal dentro do casaco. Aquilo poderia ser uma armadilha.
— Não tenha tanta pressa, Sr. Crane. Pensei que pudesse lhe mostrar algo que o fizesse mudar de opinião acerca de milagres. O senhor é um homem vivido, um homem que precisa de provas. Conceda-me o prazer de lhe mostrar o mundo como ele realmente é.
Demurral fez um gesto para Beadle, que estava de pé junto à parede em silêncio. Beadle abriu um grande baú de madeira que se encontrava sob uma das estreitas janelas. Às dobradiças de metal rangeram quando ele levantou a tampa e uma nuvem de pó verde se ergueu do interior do baú. O homenzinho debruçou-se para pegar algo e quase caiu lá dentro, engolfado pela poeira. Suas pernas curtas esforçaram-se para recuperar o equilíbrio, mas ele caiu para trás apertando de encontro ao corpo uma grande pedra azul. Pôs-se logo de pé e levou a pedra para o altar, colocando—a cuidadosamente sobre a toalha de linho branco. Demurral exibiu seus dentes tortos e quebrados em um sorriso prazeroso. Em seguida pôs as duas mãos sobre a pedra e começou a murmurar palavras ininteligíveis.
A pedra começou a se partir em dois pedaços iguais. Demurral ergueu a metade superior e foi possível ver o formato perfeito de uma mão de homem em cada segmento da pedra. Às mãos pareciam feitas de prata polida. Bem devagar, ele pôs as próprias mãos sobre os moldes e elas coincidiram perfeitamente. O Padre pôs-se então a declamar:
— Pedra que tudo sabe e com nada se importa, Ouça meu chamado pela criança morta. Venha para mim com seu brilho prateado, Filha de Azimute, seu nome é invocado!
Demurral abaixou a cabeça e olhou fixamente para as próprias mãos. Uma súbita rajada de vento frio entrou por baixo da porta de carvalho, espalhando a poeira do chão. A poeira foi rodopiando e formando um redemoinho diante do altar. Pequenas luzes prateadas, verdes e púrpuras cintilavam no interior daquele tornado que não parava de crescer. Diante de seus olhos, uma menina foi aparecendo. Primeiro foram seus pés descalços, depois a barra de sua túnica verde, em seguida o restante de seu corpo, como se ela estivesse sendo montada aos poucos.
Crane não conseguia acreditar no que via. Ele se encostou com força na parede de pedra como se quisesse sumir dentro dela. Demurral mantinha as mãos sobre a pedra partida que estava no altar, olhando fixamente o fantasma que ia adquirindo forma e substância. Não cessava de repetir palavras em uma língua estranha, invocando a presença daquela aparição e insistindo para que tomasse forma.
Crane olhou para a menina que surgiu à sua frente. Tinha pouco mais de um metro e meio de altura, longos cabelos louros e a pele muito branca. Na cintura da túnica verde havia um cinto dourado, e sobre sua cabeça, uma coroa de flores e frutinhas silvestres. Seus olhos negros não tinham qualquer expressão de vida. Eram como olhos de uma pessoa cega, fixos em algum ponto mas sem nada ver. Havia algo familiar naquele rosto. Crane já vira aquela menina antes.
— Veja, Crane. Seus próprios olhos lhe revelam outro mundo. Pode negar isso?
Ele olhou para Crane e novamente para a menina.
— Esta criança-fantasma pode prever o futuro. Ela é uma Azimute, uma criança que ficou presa entre a vida e a morte, entre o passado e o presente. Ela é o único ser em que eu confio. Uma Azimute jamais pode mentir.
Crane percebeu que as mãos de Demurral tremiam enquanto ele as apertava contra as pedras. Não respondeu; sentia o medo crescer em seu estômago enquanto se esforçava para agarrar—se a alguma coisa real. Apertou com mais força o cabo do punhal. Olhou para Beadle e voltou a olhar para a menina. Demurral começou a falar novamente.
— Azimute, invoco-a novamente para falar a verdade. Diga-me
o que acontecerá esta noite.
Fez-se um longo silêncio. O vento sacudia o telhado de cobre, que rangia e estalava na tempestade cada vez mais violenta. Crane olhou para a menina, esforçando-se para se lembrar de onde a vira antes. A memória não o ajudava, mas sua mente parecia gritar que ele a conhecera antes de ela virar uma Azimute. Gotas de suor escorriam pelo seu rosto. Sua boca estava seca de medo. Ele sentia o coração bater forte e descompassado. A menina pôs-se a falar com uma voz estranha e suave.
— Será como você deseja. Eles virão aqui. Os três que você procura estarão juntos novamente. — A Azimute permanecia imóvel enquanto falava. Tinha as mãos postas como se orasse.
— E o que me diz de Crane, pode-se confiar nele?, — perguntou Demurral, preocupado.
— Uma pergunta como esta pode lhe custar a vida, Demurral! — exclamou Crane, cheio de raiva. — Não estou tão perturbado com suas bruxarias que não lhe possa cortar a garganta. — Crane aproximou-se rapidamente da mesa tirando o punhal de dentro do casaco. A Azimute estendeu a mão como que para fazê-lo parar.
— Ele é um homem que tem a verdade no coração e não mudará suas intenções. Ele os trará até este lugar e partirá com o que veio buscar. — A menina voltou a cabeça lentamente para Crane. Seus olhos cegos e sem expressão fixaram-se nos dele. — Sua vida está se transformando. Você encontrará o que seu coração sempre desejou.
Crane ficou olhando para a menina, certo de que tinha visto aqueles olhos antes não havia muito tempo. Começou a tremer de medo, sem saber se o que tinha diante de si era um espectro ou algo criado pela sua própria imaginação. Foi então que se lembrou. Seis meses antes, havia levado seu barco para a praia em Baytown a fim de fazer reparos no casco. Uma menina chamada Hester Moss aproximara-se com um cesto de peixes oferecendo-os à tripulação. Ele se lembrava dos olhos, dos cabelos e do sorriso alegre dela. A Azimute era aquela menina. Ela havia desaparecido nas pedras e seu corpo jamais fora encontrado. Crane começou a compreender como ela havia morrido.
— Deixe a criança descansar, Demurral, mande-a para seu túmulo e deixe-a em paz.
— O senhor não compreende, Sr. Crane. Os Azimutes são muito raros. Não são todas as crianças que podem fazer isso, e seu espírito precisa estender-se de um horizonte a outro. Foi preciso que muitas crianças morressem para que eu achasse esta. Ela morreu na hora e no lugar certos. — Ele não demonstrava qualquer sentimento, como se falasse sobre o preço do pão e não sobre um assassinato.
— Você fala de uma criança que você mesmo matou na hora e no lugar certos para fazer uso dela em suas bruxarias. Assassinou-a para fazer dela sua escrava, sem a misericórdia de deixá-la descansar em paz depois de morta!
— O que o leva a crer que fui eu quem a matou? Às pessoas podem morrer sem a ajuda de outras.
Crane se aproximou de Demurral e agarrou-o pelo pescoço, atirando-o de encontro à parede.
— Está me dando vontade de ajudá-lo a juntar—se a ela. Matá-lo aqui mesmo e o dinheiro que se dane — Crane empurrava Demurral contra a parede apertando-lhe a garganta. Com a outra mão, encostava a ponta do punhal no rosto dele.
— Prometa-me uma coisa, Padre. Quando tudo isso terminar, ela poderá descansar em paz para sempre.
Demurral não podia falar porque já estava sufocado. Apenas balançou a cabeça concordando e tocou a mão de Crane, pedindo que o soltasse. Crane soltou-o e o Padre caiu no chão tossindo, engasgado, tentando respirar. Voltou-se então para a Azimute. A visão de seu espírito começava a desaparecer diante dele. Ela esticou os braços como que tentando agarrar-se a esta vida. Crane exclamou para ela:
— Hester, eu vou libertar você! Ele pagará caro pelo que lhe fez!
A imagem desapareceu no redemoinho que girava, girava, com sua poeira colorida. Foi-se tão rapidamente quanto havia chegado. Beadle continuava encolhido junto ao baú de madeira.
Demurral, ainda caído, rolou até o pé do altar com a mão na garganta. Jacob Crane ficou parado junto à porta, com o punhal na mão. Olhou para aqueles dois com desprezo.
— Estarei de volta dentro de uma hora com os meninos. Não deixem de ter o dinheiro à mão.
Crane já ia saindo, mas voltou.
— E mais uma coisa. Se um de vocês tentar fazer alguma coisa contra mim, meus homens atearão fogo a esta casa com os dois dentro. E se disserem ao coletor de impostos que estarei aqui, enforcarei os dois numa árvore e depois os deixarei para os corvos. — A lâmina do punhal brilhou à luz suave da vela. — Nada me daria mais prazer. Não me obriguem a isso.
Ele desceu ruidosamente a escada da torre em espiral. O som de suas passadas nos degraus ecoou no ar frio da noite. Demurral levantou-se com dificuldade apoiando—se no altar. Ouviu a grande porta ao final do corredor bater violentamente. Beadle ainda estava encolhido ao lado do baú, com o rosto escondido nas mãos.
— De pé! Ponha-se de pé! Ele quase me matou e você ficou encolhido aí com medo de se mexer! — Demurral arrancou uma vela do castiçal e atirou-a em Beadle. Depois pegou o castiçal, atravessou a sala brandindo-o no ar e com ele pôs-se a dar uma surra no homenzinho.
— Que isso nunca mais se repita! — gritava Demurral entre uma e outra pancada no empregado. — Da próxima vez proteja-me em vez de ficar se escondendo como rato de esgoto. — E deu-lhe mais uma pancada nas costas. Beadle soltou um gemido agudo e pediu ao patrão que parasse. Mas isso só lhe aumentou o ódio.
Demurral ficou ainda mais violento, batendo com o castiçal para todo o lado — nas paredes, no altar, novamente em Beadle. Dava urros de ódio enquanto quebrava tudo ao seu redor, brandindo o castiçal com ambas as mãos. Por fim, deixou-se cair e ficou parado, olhando sem parecer ver as sombras dos vitrais projetadas no chão.
— Vá buscar o rapaz e traga-o aqui. Temos uma hora até Crane voltar. Vamos ver o quanto ele pode suportar de dor até lá. — Demurral pôs-se a escrever com a ponta do indicador na poeira do chão de pedra.
— Mas o Sr. Crane disse... — Beadle começou a dizer, trêmulo, ainda se recuperando da surra.
— Não me interessa o que aquele contrabandista tem a dizer. O patrão aqui sou eu, não ele. Agora ande logo. — Ele atirou o castiçal contra Beadle, atingindo-o no peito. — Veja se mexe essas banhas e não fique aí parado!
— Devo trazer o dinheiro também?
Demurral pensou por alguns instantes olhando a sala à sua volta, decidindo.
— Não. Não haverá necessidade de dinheiro. Os varrigais cuidarão disso. Não há bolsos nas mortalhas nem onde gastar dinheiro no Inferno! — Ele se pôs a gargalhar cada vez mais alto.
— E agora fora daqui, Beadle, antes que eu mande você para o inferno também, para fazer companhia a ele.
Têmpora Mutantur
A meia-noite chegou, espalhando um frio úmido por toda a mina enquanto uma neblina malcheirosa se infiltrava no alojamento dos trabalhadores. Lá dentro todos dormiam em apertadas camas de madeira; as crianças mais velhas dormiam sozinhas, enquanto as menores se empilhavam nas camas mais baixas. Os homens e as mulheres descansavam onde podiam, sem ter se lavado nem trocado de roupa. A Sra. Landas ficava na cama mais próxima à lareira, separada das demais por uma velha cortina de veludo azul. Uma comprida vela de sebo sobre uma das extremidades da mesa lançava sua luz fraca e as brasas da lareira aqueciam o ar, tornando ainda mais intenso o cheiro de suor azedo que se espalhava.
Raphah cochilava em sua cama, despertado a todo instante pelas pulgas e pelas saudades de casa. O som dos roncos e o choro baixinho das crianças pequenas não o deixavam pegar no sono. Sentia cansaço e dor. Seu ombro parecia arder em fogo e seu coração se enchia de angústia por ele estar tão longe de casa. Ouvia o som da ventania sacudindo as árvores lá fora e o espocar das ondas no rochedo.
Ele tentou sonhar, libertar sua mente daquele lugar onde era agora prisioneiro e do futuro que parecia tão incerto. Suplicou a Riathamus que o levasse dali, que lhe permitisse ver seu lar novamente. Já se passara quase um ano desde que ele havia partido de sua aldeia. Sua última noite lá fora passada sob as estrelas, com a brisa morna do deserto a invadir a floresta, espalhando as nuvenzinhas claras pelo céu muito escuro. Ele adormecera ouvindo as mulheres a cantar salmos e os estalidos da fogueira que pareciam fazer parte da música.
Raphah permitiu-se pensar em coisas tristes e perigosas sobre seu país. Sabia que aqueles pensamentos lhe trariam lágrimas aos olhos por aquele lugar de onde sentia tantas saudades, por aquelas pessoas que ele tanto queria abraçar novamente. Raphah se sentia muito só. Desejou ter por perto um amigo e ouvir uma calorosa voz africana lhe dando as boas-vindas.
Ele sabia que ali era um estranho, separado dos que estavam à sua volta pela cor de sua pele. Aquelas pessoas, pensou ele, eram pobres de corpo e de espírito. Naquela noite eles tinham ouvido um menino surdo-mudo falar, mas ainda assim não tinham fé. Era como se eles mesmos fossem cegos e surdos, incapazes de captar os sinais que lhes haviam sido dados. Talvez alguma maldição os tivesse tornado pessoas sem fé. Eles preferiam confiar em um estúpido baralho de adivinhação e em uma velha enlouquecida do que em Riathamus, o Deus vivo. Pareciam até estar satisfeitos com aquela sua vida miserável.
Raphah recostou a cabeça em seu casaco enrolado, fechou os olhos novamente e dessa vez foi escorregando, lentamente, para o mundo dos sonhos.
Foi nesse mesmo instante que o homem possuído pelo espírito do Dunamez despertou de seu sono. Havia uma hora sua mente era ocupada por uma criatura de outro mundo. Ele mesmo havia sido encurralado em um pequeno canto de seu ser e era forçado a ver o que se passava no pensamento do Dunamez, sem qualquer possibilidade de controlá-lo. Via cenas das vidas que o Dunamez havia atormentado. Aquela era uma criatura do reino dos mortos que sentia prazer com o sofrimento humano, que passava de uma pessoa para outra enlouquecendo-as até a morte. Aquela sua nova vítima era Samuel Blythe, ex-fazendeiro que se endividara e tornara-se mineiro na mina Alumes Raventhorpe. Ele estremecia a cada visão de terror que o Dunamez o forçava a ter. Elas eram infinitamente piores que pesadelos, pois nelas ele era ao mesmo tempo a vítima e o perpetrador do mal.
Blythe esforçava-se para recuperar sua própria mente, para escapar daquele tormento. Queria gritar por socorro, mas não sabia a quem chamar. O Dunamez sussurrava para ele toda vez que ele chegava perto de recuperar sua própria consciência, sua sanidade. Ele sabia seu nome. Conhecia seus medos mais profundos.
— Preste atenção no que digo, Samuel — sussurrou ele baixinho. — Faça o que eu mandar e não resista. Logo tudo isso chegará ao fim. Posso até permitir que você continue vivo. — Blythe sentia aquela voz percorrer todo o seu ser, retesando cada pedacinho de seu corpo. Ele queria responder, mas não conseguia sequer movimentar os músculos da garganta. — Deixe que eu fale por você — disse a criatura tranqüilamente. — Relaxe e deixe tudo comigo. Afinal, você nada tem a perder e tudo a ganhar.
O Dunamez fez com que ele despertasse de seu sonho e abrisse os olhos. Controlado pela criatura, Blythe afastou a coberta, pôs-se de pé e caminhou até a lareira. Olhou por trás da cortina e viu a Sra. Landas, que dormia.
— Fogo, fogo! — murmurou baixinho. — Há anos não sinto o calor de uma lareira. Vocês, humanos, não têm do que se queixar. Têm corpos que podem ser aquecidos, tocados, corpos que podem sentir prazer. A existência para mim é fria e solitária. Ah, como deve ser bom sentir um abraço afetuoso! — Dunamez estendeu a mão de Blythe para tocar o rosto da Sra. Landas. — Ah, minha linda, que mulher bonita você é.
Mas o Dunamez interrompeu bruscamente seus sussurros ao ver Raphah dormindo em sua cama no alto. Blythe foi subitamente tomado por uma emoção bem diferente. O desejo que sentia pela Sra. Landas desapareceu e ele foi possuído por um ódio avassalador. Era um ódio sentido com a alma e com o corpo. Blythe começou a tremer violentamente. Veio-lhe uma incontrolável vontade de gritar, mas ele foi incapaz de emitir um único som. O desejo de matar foi se avolumando dentro dele.
O Dunamez sussurrou-lhe novamente.
— Faça isso por mim, Samuel, e eu sairei de você tão rapidamente como entrei. Pegue a faca e mate-o. Ele não é um dos seus, é um estranho. Merece morrer, e é você quem o matará.
Blythe não pôde oferecer resistência. Não tinha o menor controle sobre si mesmo. Sentia-se como um espectador impotente diante de uma grande tragédia. Aproximou-se então da cama de Raphah, subiu em uma cadeira e tirou a faca de dentro do agasalho. Olhou à sua volta. Todos dormiam profundamente. O silêncio era absoluto. Ninguém sequer ressonava, como se estivessem todos mortos.
Ele ergueu a mão acima da cabeça, incapaz de resistir ao poder do Dunamez, que agora controlava todos os músculos do seu corpo. O golpe já estava a ponto de ser desfechado. O Dunamez voltou a falar com ele.
— Mate-o agora! Eles jamais suspeitarão de você...
Blythe queria gritar e correr. Ele era um simples fazendeiro que acabara devendo setenta libras a Demurral, mas que estaria livre com mais dez meses de trabalho. Se obedecesse àquela ordem, iria se tornar um assassino. Olhou para Raphah, cuja pele negra e macia podia ser vista à luz da vela. Blythe permaneceu imóvel, com a mão erguida, sem saber por que Raphah tinha de morrer.
— Agora! — exclamou a voz ainda mais forte dentro de sua cabeça. — Agora, antes que... Veja bem, pela primeira vez na vida você fará algo de que poderá se orgulhar... Tudo que fez até hoje deu errado: veja se acerta desta vez. — A voz do Dunamez tornava-se mais insistente. Blythe sentia a criatura forçar seu braço para que ele o baixasse e enterrasse a faca no peito de Raphah. Ele lutou contra o próprio corpo, enrijecendo os músculos com toda a sua força. Teve a impressão de que seu braço se partiria em dois, tal era a força do Dunamez.
— Solte o braço, Samuel! Faça o que estou ordenando! — A voz não parava de gritar dentro de sua cabeça, apagando todo o resto.
Subitamente a porta se abriu com violência, despertando a Sra. Landas de seu sono desconfortável por causa do excessivo calor da lareira e das pulgas. Ela se sentou, puxou a cortina em um só movimento e pôs-se de pé. O Dunamez atirou Blythe no chão.
Consitt e Skerry estavam junto à porta escancarada, com suas botas cobertas de lama e seus chapéus de três pontas. Eram umas figuras lastimáveis, tremendo de frio àquela hora da madrugada. Consitt não sorriu e sequer cumprimentou a Sra. Landas.
— Ele quer o menino negro lá na torre e não quer que o façam esperar.
Ela tentou ajeitar os cabelos desgrenhados enquanto se encaminhava até a cama de Raphah, que já estava acordado àquela altura.
— Não façam mal a ele, ou não permitirei que o levem. Ele fez muito por mim. Transformou minha vida e não vou deixar que você ou Skerry o maltratem novamente.
A voz alta da mulher acordou todos os que ali estavam. Os rostos foram surgindo por baixo dos cobertores esfarrapados, os olhos arregalados de susto.
— Não me interessa se ele transformou você na Rainha de Sabá. Demurral quer ele lá e o que Demurral quer ninguém discute. — Consitt aproximou-se da cama de Raphah e afastou Blythe, que se levantou e encaminhou-se para a porta. — Fique aqui, Sam. Talvez eu precise de você. Você vem também até a torre porque ele pode tentar fugir. Se ele tentar, tem minha permissão para dar uma boa surra nele. — Blythe tentou afastar—se, mas o Dunamez o impediu de sair.
Consitt tirou o bastão de madeira de dentro de seu casaco.
— Vamos, vamos, menino! É hora de ir se encontrar com seu dono. — Ele brandiu o bastão ameaçadoramente para Raphah. — E nada de truques, porque se tentar vai levar uma surra de ficar caído no chão. — Ele ficou olhando para Raphah e batendo com o bastão na palma da mão.
— Nada de surras, Sr. Consitt. Nada de surras. Se tocar no menino, vai ter de se ver comigo. — A Sra. Landas quase tocava o nariz do homem com um dedo comprido e torto em riste.
— E Demurral vai expulsar a senhora deste seu lar — retrucou Consitt, afastando-a rispidamente. — Desça daí, menino. Vamos retirar suas algemas — disse ele, dando uma sonora bordoada na lateral da cama.
— Venha, Sam. Ajude a tirar este pestinha do seu poleiro.
Blythe não pôde responder. A criatura apertava sua garganta. Ele simplesmente balançou a cabeça concordando. Sentia-se como um boneco de marionete controlado por um louco. Nesse meio-tempo, Raphah esforçava-se para descer da cama. Os curativos que a Sra. Landa havia feito repuxavam-lhe a pele. A queimadura em seu ombro doía mais a cada movimento de seu corpo.
Ele olhou para Blythe, fixando os olhos profundamente nos do homem. Desviou o olhar e logo voltou a encará-lo mais intensamente ainda, como que procurando descobrir alguma coisa secreta.
Os três homens conduziram—no para fora, pelo meio da noite fria e escura. Por pior que fosse sua cama dura e cheia de pulgas, o ambiente aquecido onde estava antes era bem melhor que aquele. Agora ele caminhava com dificuldade pela noite gelada, com o frio penetrando-lhe até os ossos.
Eles subiram a colina por um caminho estreito e tortuoso, pisando em uma grossa camada de lama vermelha. A lua cheia parecia perseguir fiapos de nuvens escuras no céu.
Ao norte, bem longe, um intenso clarão vermelho e amarelo dava a impressão de que o mar estava em chamas. Blythe segurava Raphah pelo ombro e com a mão forte empurrava-o morro acima. Skerry ia à frente, resmungando o tempo todo, lastimando o dia em que conhecera Demurral. Arrastando-se por último ia Consitt, que dava alguns passos e parava para recuperar o fôlego e olhar para o mar.
— Ainda está lá, Skerry; parece a aurora, mas está muito ao norte e ainda é cedo demais. — Skerry parou e virou-se para olhar.
— Aquilo está ali há duas noites e dois dias. Parece que o mar está pegando fogo. Está tão claro que quase dá para ler com esta luz. — Ele se virou e recomeçou a caminhada colina acima.
— Mas o problema é que você é burro demais para ler, Skerry — disse Consitt, rindo com falta de ar enquanto caminhava. Blythe ia em silêncio. Raphah continuava a encará-lo. Sabia que algo sinistro controlava aquele homem. Já vira muitas pessoas dominadas por espíritos do mal e percebera nos olhos de Blythe a presença de um demônio ou algo assim. Às pessoas possuídas desse jeito tinham o olhar perdido, como se vissem outro mundo através das pessoas e coisas que olhavam. Raphah sabia que o que mais atormentava alguém assim possuído era ouvir o nome do único Deus verdadeiro. Com o poder de Riathamus, Raphah não temia nenhum espírito malévolo.
— Você não poderá controlá-lo para sempre — sussurrou Raphah.
— Em algum momento terá de desencarnar dele. Afinal, ele não viverá eternamente. — O Dunamez não respondeu. — Qual é o seu nome, espírito? Diga-me quem você é.
Blythe puxou Raphah com força para junto de si, repuxando o agasalho do rapaz e aumentado a dor em seu ombro. Olhou para a frente e viu que Skerry havia se distanciado. Consitt subia com dificuldade, mais afastado ainda. Ele podia falar sem que os dois o ouvissem. O Dunamez então falou, ameaçador. Blythe podia ouvir os sons vibrando em sua garganta, incapaz de controlar o que dizia.
— Você não pode me impedir, rapaz. — A voz era rouca e cheia de ódio. — Há muito tempo eu o sigo, e esta noite, enfim, vou acabar com você. — O Dunamez apertou-o ainda mais, aumentando a dor que lhe causava no ombro.
— Você pelo menos ousa falar. Os demônios costumam ficar escondidos, com medo da luz. Que espécie de espírito você é? É um príncipe das trevas ou um simples kadesh, o cachorrinho de estimação de alguma bruxa? — Raphah olhou bem nos olhos da criatura através dos olhos arregalados de Blythe. — O que o leva a crer que eu não vá invocar o nome de Riathamus e que ele não enviará uma tropa de seruvins para acabar com você? — Raphah fez uma pausa e olhou bem nos olhos de Blythe. A criatura não respondeu. — Eu sei quem você é, Dunamez... Agora solte-me antes que eu invoque aquele nome diante do qual até mesmo você tem de se curvar. É possível até que ele o deixe viver.
Blythe podia sentir a criatura agitar-se por dentro dele enquanto seu corpo se retorcia em convulsões. Sua mão soltou-se do ombro de Raphah e enfiou-se pelo casaco, à procura da faca que ali havia escondido. Ele empurrou Raphah e pôs-se a dar facadas no ar, tentando atingi-lo. Conseguiu dar um talho no rosto do rapaz, que se desequilibrou e caiu. Incapaz de controlar-se, Blythe jogou-se sobre Raphah, tentando enterrar-lhe a faca no peito. Raphah agarrou o braço de Blythe quando a lâmina já estava a poucos centímetros de seu rosto.
— Você pensou que pudesse me fazer parar com simples palavras, não foi? — sussurrou o Dunamez. — Neste corpo não vai ser fácil me fazer parar. Com estes braços já ergui uma vaca morta e logo erguerei um sacerdotezinho morto e o atirarei ao mar. — O Dunamez tremia, tentando aproximar a faca de Raphah. — Quero ver o seu sangue nesta lâmina, e quando você estiver morto vou dançar sobre o seu cadáver.
— Ele babava ao falar e roncava como um porco.
— Em... nome... de... Riathamus... ordeno-lhe... que vá embora!
— Raphah gritou essas palavras com todas as suas forças. Elas ecoaram pela mina e pela floresta adentro e foram carregadas pelo vento para o mar. Blythe deu um salto e pôs-se de pé, mas perdeu o equilíbrio e caiu. Skerry se virou e começou a correr caminho abaixo. Consitt subiu o mais rápido que suas pernas gordas e cansadas permitiram. Ouviu-se um grito terrível quando o Dunamez saiu do corpo de Blythe, que ficou caído, inerte, como algo inanimado.
A criatura surgiu diante de Raphah imobilizada por correntes de luz, incapaz de mexer-se enquanto as correntes foram ficando cada vez mais apertadas. Blythe cobriu os olhos com o braço para se proteger daquela visão horrenda. Skerry, que vinha correndo, não podia acreditar no que via.
Raphah ficou de pé olhando para aquela miserável criatura que se encolhia de medo. Ela o olhava com seus olhinhos apertados, contorcendo sua horrível boca de dentes afiados e tortos numa tentativa de sorriso.
— Tenha misericórdia de mim! Eu não queria fazer mal algum — disse a criatura patética e amedrontada. — Deixe-me ir em busca de outra pessoa que me carregará pela vida!
— Que direito tem você de se intrometer neste mundo? Você deu a este homem a possibilidade de dizer não? — Raphah indicou Blythe. A criatura contorcia-se no chão, cada vez mais apertada pelas correntes de luz.
— Ele é um humano. Não tem direito algum. Os humanos deram as costas a Riathamus, como eu. Perdemos o direito ao céu quando fomos expulsos do jardim... enganados por uma serpente. — O Dunamez, já mal podendo respirar, deu uma risada. — O que é que vocês, humanos, sabem da vida? Vivem uns setenta a oitenta anos e depois o que é feito de vocês? A maioria de vocês acaba em Gehenna, o deserto de sombras povoado por almas ingratas. —A criatura parou de falar e olhou para Skerry, que estava parado, petrificado, a pouca distância deles.
— Deixe que eu entre nele. Que mal poderia eu fazer em um corpo desses? Eu lhe daria um pouco de inteligência, de que ele tanto precisa.
Raphah ergueu a mão na direção do Dunamez.
— Silêncio, espírito! Você nunca ficaria satisfeito. Foi por este motivo que os da sua espécie foram expulsos do paraíso. Vocês queriam ser deuses e tomar o poder de Riathamus. E até hoje têm planos malévolos e se escondem por trás de toda a infelicidade que conseguem criar no mundo. — O Dunamez contorcia-se ao ouvi-lo falar. — Você lembra os justos de seu passado. É chegada a hora de descobrir seu futuro. — Raphah estendeu o braço na direção da criatura.
Blythe escondeu o rosto nas mãos e encolheu-se por trás de um arbusto, enquanto Skerry mergulhava em uma espessa moita de capim ao lado da trilha. Raphah ergueu a voz e o ar vibrou quando ele exclamou:
— Pelas forças do Altíssimo, ordeno-lhe que parta para o lugar de tormentos que lhe é destinado... Vá!
Fios prateados e dourados enrolaram-se na criatura, que se pôs a girar cada vez mais depressa. Seu corpo tornou-se negro e o rosto branco e comprido foi a última coisa a desaparecer. Ela estava toda enrolada naqueles fios, como se fosse vítima de uma aranha invisível sendo preparada para a morte. A criatura urrava, tentando em vão se libertar. De um instante para outro fez-se um clarão e o Dunamez desapareceu por completo. A noite ficou novamente escura e silenciosa.
Blythe e Skerry estavam mudos, assustados demais para saírem de seus esconderijos. Lá embaixo, Consitt espiava por trás de uma grande pedra.
— Não nos mate — disse ele, assustado. — Não lhe faremos mal algum. Deixe-nos ir embora daqui e vamos agora mesmo.
Skerry espiou do buraco para onde havia rolado e Blythe deitou-se de costas, murmurando palavras desconexas, ansioso por acordar logo daquele pesadelo. Raphah sentou-se em uma pedra ao lado da trilha e pôs-se a rir. Tudo aquilo, para ele, era natural.
— De que vocês têm tanto medo? Ontem de manhã não tiveram medo quando me chutaram, me bateram e me arrastaram pela lama. Agora estão aí assustados como criancinhas depois de um pesadelo. — Fez sinal para que Consitt saísse de trás da pedra. — Venha logo, leve-me para Demurral. Tenho ainda negócios para resolver com aquele cachorro velho. Ele está com uma coisa que me pertence e é chegada a hora de me devolver. Blythe sentou-se e olhou assustado para Raphah.
— Você é um espírito como aquele que me possuiu? — perguntou ele com a voz quase inaudível de tanto medo.
— Um espírito pode expulsar outro? Um exército pode lutar consigo mesmo?
— Então com que poder você faz essas coisas? — Blythe empertigou-se e ficou olhando para Raphah, cuja sombra era projetada como uma silhueta pelo luar. — Que espécie de criatura é você?
— Sou um ser humano como você, sem qualquer poder especial. Não faço bruxarias nem magia.
— Então como foi que fez aquilo? Como sabia da criatura? Aquela coisa queria matar você, como conseguiu destruí-la?
— Foi com o poder de Riathamus, o único Deus verdadeiro. Você nunca ouviu falar dele? — Raphah percebeu que aquelas pessoas só acreditavam em superstições e pouco sabiam da verdade.
— Deus? Como é possível saber alguma coisa sobre algo tão distante? Por que esse tal de Riathamus se interessaria por alguém como eu? Sou apenas um fazendeiro. — Blythe fez uma pausa e olhou para Skerry, que estava saindo do buraco. — Nós dois éramos fazendeiros e perdemos tudo que tínhamos para Demurral. O aluguel das terras foi ficando cada vez mais caro e nós não pudemos pagar. Por isso somos prisioneiros de nossas dívidas e agora trabalhamos aqui como porteiros do alojamento. — Ele olhou novamente para Skerry, esperando que ele falasse, mas depois continuou. —por que motivo esse tal Riathamus se interessaria por alguém como nós? Deus é para os ricos, que usam roupas finas e moram em casas grandes. Gente que tem lugar bom para se sentar na igreja, enquanto nós ficamos lá atrás e não sabemos o que acontece lá na frente. O que Deus poderia querer com a gente?
— Talvez ele queira vocês exatamente por isso. Vocês nunca pensaram que Deus pudesse amá-los? Já ficaram olhando o mar e se perguntando, maravilhados, quem teria criado aquilo tudo? Acham que tudo neste mundo resulta do acaso? — Raphah ajudou Blythe a se levantar.
— Talvez no seu país seja assim, mas aqui... — O homem baixou os olhos. —Já pensei em todas essas coisas, mas aí olhei para a lama nas minhas botas, para as ovelhas morrendo de fome no campo, pensei no aluguel que eu não podia pagar e cheguei à conclusão de que as únicas coisas de que se pode ter certeza na vida são a morte e os impostos que temos de pagar a Demurral. Afinal, ele não é o homem de Deus por aqui? Ele é o Vigário e é ele quem deve nos mostrar o caminho. Mas tudo que faz é nos dar casa e comida no alojamento dos trabalhadores. — Blythe sentou-se ao lado de Raphah na pedra. Os dois ficaram em silêncio apreciando o mar. Skerry ficou parado atrás deles, perguntando-se o que deveria fazer, enquanto Consitt subia com dificuldade o caminho íngreme até onde eles estavam. Raphah passou um braço pelo ombro de Blythe.
— O que quer que esse homem seja, ele não é um homem de Deus. Ele segue alguma força poderosa, mas essa força não é a de Riathamus. Ele é um bandido mentiroso. Terá de pagar por tudo que fez.
Skerry então falou, com a voz ainda trêmula.
— Você é apenas um rapaz. Como pode saber tantas coisas?
— Conhecer Riathamus é conhecer a sabedoria, e seu conhecimento trará a compreensão. Isso é tudo de que se precisa na vida. —Raphah sorriu para Skerry.
— Mas como podemos conhecê-lo? Ele está lá em cima, no céu, e nós aqui embaixo, neste inferno.
— Abra os olhos e diga-me o que consegue ver.
Skerry teve medo de que aquilo fosse uma cilada,
— Consigo ver o céu, o mar...
— Não. Diga-me o que realmente vê.
Skerry pensou um pouco e olhou em volta novamente.
— Há a escuridão e a luz.
— Há algo mais — disse Raphah suavemente. — Riathamus está batendo à sua porta. Se você lhe abrir a porta, ele entrará na sua vida e ficará para sempre com você. Ele pode libertá-lo de sua pobreza, liberta-lo para ser a pessoa que ele criou e não aquela na qual você se transformou.
Consitt chegou arfante, com as pernas gordas trêmulas de cansaço e susto, o rosto vermelho e inchado.
— Quero que me levem até Demurral. Não contem a ele o que viram. Quando me deixarem com ele, quero que partam para longe daqui. Vocês serão homens livres. Vão embora daqui e comecem suas vidas novamente. Encontrem Riathamus por vocês mesmos. — Ele olhou para Blythe. — Você conheceu o mal e foi dominado por ele. Pelo poder do Altíssimo, você agora está livre. Lembre-se que, quando ele torna uma pessoa livre, ela é livre de verdade.
O vento soprou e sacudiu a árvore à beira do caminho. Os três homens se entreolharam e em seguida olharam para Raphah, sem saber o que fazer.
— Levem-me até Demurral agora. Pelos sinais que vejo no céu, temos pouco tempo.
Raphah foi à frente, subindo a colina. Eles atravessaram um pequeno bosque muito escuro, cruzaram o pátio de entrada do Vicariato e passaram por três sepulturas recém-cavadas na terra escura.
O Homem em Chamas
A bravura é algo fácil de conquistar para algumas pessoas, mas Thomas e Kate tiveram de pagar um preço muito alto por ela. Juntos, os dois haviam percorrido mais de dez quilômetros de um caminho ermo que os levara do Moinho dos Boggles até uma clareira no bosque, a oeste da Colina do Cálice. No centro da clareira erguia-se da grama um círculo de pedras pontudas que pareciam enormes dedos apontando para o céu. A luz da lua, as pedras projetavam sombras nas moitas de urzes que cresciam aos tufos na clareira.
Isabella dera a Kate uma longa capa preta; a menina apertava-a contra o corpo para proteger-se do vento frio que vinha do mar, trazendo consigo o cheiro da maresia. Ela aconchegou-se junto a Thomas. Crane lhes dissera para esperar por ele naquele lugar e que dali ele as levaria ao encontro do amigo.
Kate sentia muita raiva do pai por ele ter se associado a Jacob Crane e o ajudado a contrabandear durante todos aqueles anos. Era como se a vida dele fosse toda uma grande mentira. Logo ele cuja profissão era combater o contrabando, tornara-se contrabandista também!
Ela estava tão decepcionada que temia ser surpreendida por novas mentiras. Perdera toda a confiança que depositava no pai e começava a achar que, na verdade, não poderia confiar em ninguém. A vida com o pai nunca havia sido fácil. Mas a causa do problema era a bebida dele. Ele tinha acessos de raiva por qualquer motivo, gritava muito e depois caía em um pranto sentido. Durante muito tempo, ela pensou que a culpa fosse dela, que, de alguma forma, ela fosse responsável por aquilo. Kate jamais conseguia corresponder às expectativas do pai, não sabia ser uma criança como as outras. Tampouco lhe era permitido brincar. Cabia a ela cozinhar, lavar, costurar e remendar. Ele exigia dela desempenhar o papel de dona de casa, de empregada, mas nunca o de filha.
Naquela noite ela havia descoberto que ele levava uma vida dupla e chegado à conclusão de que seu pai se deixara levar pela dor, pela culpa e por pessoas que o enganavam. "A culpa não é minha, a culpa não é minha", repetia ela baixinho, pensando no pai e em como ele a traíra.
Às árvores moviam-se embaladas pelo vento. Os olhos da menina examinavam a escuridão à volta da clareira à espera de algum sinal da aproximação de Crane e seus homens.
Não demorou muito e eles ouviram o som de cavalos se aproximando. Thomas olhou para ela e deu um sorriso confiante. Passou o braço pelo seu ombro e puxou-a para si.
— Aconteça o que acontecer, Kate, eu estarei sempre ao seu lado. Quando estávamos no bosque ontem à noite eu tive um sonho. Conheci um homem. — Thomas fez uma pausa, pensou um pouco e então prosseguiu. — Bem, ele era mais do que um homem, acho que era um Deus. Ele falou comigo e meu nome apareceu em um livro. Foi sendo escrito ali, diante dos meus olhos. Ele me disse que era um rei e que se eu acreditasse nele jamais precisaria temer a morte. Qual seria o significado desse sonho?
Kate não respondeu logo. Sentia seus olhos se turvarem de lágrimas e a garganta apertar. Depois não pôde mais conter sua aflição:
— Por que nos metemos nisso tudo? Deveríamos ter logo visto que não ia dar certo. — Até então ela havia feito um esforço enorme para não chorar. Mas aquela mistura de raiva, medo, impotência e predestinação davam-lhe a certeza de que algo terrível estava prestes a acontecer.
Enquanto os cavalos procuravam passagem por entre as árvores, Thomas e Kate ficaram aguardando que eles surgissem na clareira. Sem qualquer aviso, o céu estalou e ouviu-se um forte trovão. Os meninos sentiram a terra tremer sob seus pés. Um cavalo relinchou na extremidade da clareira e eles logo puderam ver um dos homens de Crane saindo da mata. Sem descer do cavalo, ele foi até o centro do círculo de pedra, olhou à sua volta demoradamente e só então dirigisse a Thomas e Kate.
— Aproximem-se — exclamou ele com uma voz de quem havia bebido muito rum. —Aproximem-se para que eu veja bem vocês dois.
Thomas deu alguns passos na direção do homem e fez um sinal para que Kate ficasse logo atrás dele. O menino desconfiava de Crane e de seus homens cada vez mais.
— Onde está Jacob Crane? — perguntou Thomas.
— Ele logo estará aqui. Teve de ir à procura do amigo de vocês e voltará para buscar vocês dois.
— E se nós mudarmos de idéia e formos nós mesmos à procura do nosso amigo? — perguntou Thomas.
— E se eu resolver cortar vocês em pedacinhos com este sabre agora mesmo, menino?
Quem fez essa pergunta foi Crane, que surgiu de seu esconderijo escuro junto a uma grande pedra a poucos passos de onde eles estavam. Os dois meninos estremeceram de susto.
—Estou aqui há muito tempo esperando vocês chegarem. Por que demoraram tanto, Martin? — perguntou Crane ao homem que estava a cavalo. — Não conseguia encontrar a porta da taberna para sair? — Crane não esperou pela resposta. — E vocês dois aí? Já estavam pensando em fugir, não é? Pensei que estivessem dispostos a brigar. Vocês queriam encontrar seu amigo e salvar o mundo, não queriam? Por que mudaram de idéia? — Crane fazia uma pergunta atrás da outra e não esperava pelas respostas.
— Encontrei o amigo de vocês, mas se o quiserem de volta terão de fazer o que eu disser. — Ele olhou bem sério para os dois. — Mesmo que vocês achem difícil, precisam confiar em mim sempre, aconteça o que acontecer.
— Como podemos ter certeza de que não está nos enganando? —perguntou Thomas.
— Bem, nunca se pode saber ao certo o que qualquer pessoa fará. Só posso lhes dizer que é necessário ter isca fresca para pegar um rato. Mas o caçador do rato cuidará da armadilha. — Crane voltou-se para o homem a cavalo. — Pegue dez dos meus homens e leve-os diretamente para o Vicariato. Assumam posições estratégicas no jardim ao lado da torre o tempo todo. Quero um mosquete sempre apontado para a porta da torre. Não deixe que os vejam. Irei em seguida com estes dois e o resto dos homens. — Crane deu um forte tapa na anca do cavalo com a palma da mão. Martin manobrou sua montaria e saiu da clareira entrando pelo bosque. Ouviu-se o som de outros cavalos e de outros cavaleiros afastando-se mata adentro pela trilha estreita que os levaria ao alto da colina e ao Vicariato.
— E agora é com vocês dois. Já dividiram um cavalo alguma vez? — Crane atravessou a clareira e deu alguns passos pelo bosque adentro. — Tenho uma égua para vocês. Não tem sela, portanto terão de se segurar. Cuidado com ela, porque ela tem o diabo no corpo. Vai derrubá-los se puder. É o único cavalo que temos disponível. Ou melhor, o único que pudemos roubar da estribaria de Molly Rickets.
Eles atravessaram a clareira; as grandes pedras em pé pareciam pálidas ao luar. Kate olhava ao redor, assustada, temendo qualquer ruído que viesse do bosque. Procurava nas sombras os olhos vermelhos das criaturas que os haviam atacado na noite anterior.
— Que espécie de lugar é este? — perguntou ela. — Eu nunca tive permissão para vir aqui. Sempre me disseram que é aqui que os mortos vivem.
Crane deu uma risada.
— Uma boa história para manter as pessoas afastadas das mercadorias de contrabando. Outros dizem que esta clareira é um relógio que marca o tempo do universo. Há também quem diga que este é o lugar de adoração de deuses antigos por uma raça que há muito deixou de existir. — Seu tom de voz tornou-se mais sério. — Até esta noite eu não acreditava nessas coisas, mas agora já não tenho tanta certeza.
Na borda da clareira havia dois cavalos amarrados a uma árvore. Crane deu um longo assovio agudo e ficou aguardando. De dentro do bosque veio um assovio em resposta.
— São os meus homens; eles não gostam de terra firme. Estão acostumados a lutar em alto-mar. Esperemos que esta noite não tenham de lutar.
Crane ajudou-os a montar na égua e, com um salto, montou no seu cavalo. Thomas segurou as rédeas com força e Kate abraçou-o pela cintura.
— Aconteça o que acontecer, sigam para o Vicariato. Se por acaso nos separarmos, eu os encontrarei lá. — Enquanto falava, Crane dava leves chutes com os calcanhares na barriga do seu cavalo.
Os dois animais com seus cavaleiros entraram lentamente no bosque. Um por um, os homens de Crane foram se juntando a eles em silêncio enquanto seguiam cuidadosamente pela trilha tortuosa que atravessava o bosque até chegar ao alto da escarpa de onde se via o mar lá embaixo.
Jacob Crane logo começou a sentir que havia algo de errado. Quanto mais o grupo se aproximava do topo, mais aumentava sua sensação de estar sendo observado. Crane orgulhava-se de estar sempre alguns passos adiante do coletor de impostos ou do comandante do Regimento dos Dragões. Em todos aqueles anos de contrabando, ele jamais havia sido apanhado. Na verdade, já houvera muitos encontros, mas ele jamais havia sido capturado. É isso não se devia apenas às suas habilidades de cavaleiro, marinheiro ou lutador. Crane sabia também usar o poder da persuasão, o poder do dinheiro e de um barril de aguardente dado à pessoa certa. Ele sabia que ameaças costumam ser tão poderosas quanto certas ações e que a fama de assassino podia bastar para ele conseguir certas coisas que queria.
Ali, naquele bosque, de uma coisa ele tinha certeza: eles três não estavam sozinhos. Crane era um homem que jamais admitia ter medo de alguma coisa, mas naquela noite no bosque sentia um aperto crescente no estômago. Era uma sensação desagradável de que algo estava errado, uma apreensão crescente que chegava ao limiar do medo. Os cavalos, também, ficavam cada vez mais inquietos. Um a um, foram ficando esquisitos, estremecendo a cada passada, erguendo e baixando as cabeças, sacudindo as caudas e expelindo ar ruidosamente pelas narinas. Pareciam comunicar-se entre si e passar seu medo um para o outro.
Para Thomas e Kate não havia dúvida de que a égua em que montavam queria livrar—se deles para sair a galope noite adentro, fugindo da criatura que os espreitava na escuridão. Kate apertou-se ainda mais de encontro a Thomas e este agarrou—se com mais força às rédeas, puxando a cabeça da égua para trás. Mas ela fazia tanta força em sentido contrário que o couro lhe cortava as palmas das mãos. Ela dava safanões e andava de lado, tremendo e bufando.
— O que está acontecendo, Thomas? — perguntou Kate baixinho para que ninguém percebesse sua aflição.
— Os cavalos estão sentindo alguma coisa no ar — respondeu Thomas. — Estão assustados.
Jacob Crane voltou-se na sela e disse em voz baixa:
— Olhem sempre para frente. Estamos sendo seguidos. São cinco deles à nossa esquerda e uns sete à direita. Acho que estão esperando para nos atacar. Se conhecem bem este lugar, aguardarão até chegarmos à próxima clareira antes de nos atacarem. —Ele estendeu a mão e segurou o bridão da égua. — Vou segura-la por algum tempo. Não quero que vocês dois saiam correndo por enquanto.
— O que devemos fazer, Sr. Crane? — perguntou Thomas.
— Você ainda tem aquela velha espada que levou à casa de Rueben?
— Sim, ele me devolveu a espada quando partimos.
— Então sugiro que se prepare para usá-la. Proteja a menina e cuide da sua retaguarda. Use a espada com força e nunca dê a eles uma segunda oportunidade. Lembre-se, menino, será você ou eles.
— Quem está nos seguindo? — quis saber Kate.
— Pode ser o pessoal da Alfândega, ou os Dragões, mas também pode ser algo que Demurral criou para nos pegar. Sejam quem forem, eles sabem andar pelo mato quase sem fazer barulho. Estão nos seguindo desde que deixamos o círculo de pedras. — Thomas e Kate perceberam que as referências aos homens da Alfândega e aos soldados eram uma tentativa de acalmá-los; os cavalos não ficariam tão assustados se fossem eles.
O bosque foi ficando menos denso à medida que eles se aproximavam do topo. Aqui e ali, pedregulhos cobertos por espessas camadas de musgo surgiam na terra escura. Arvores encarquilhadas agitadas pelo vento abriam seus galhos nodosos e sem vida sobre espessos tufos de urzes. A trilha que saía do bosque descia bruscamente até um pequeno barranco cercado por árvores. Por trás das pedras acima desse barranco estava uma figura alta, solitária, imóvel à luz brilhante da lua.
Thomas foi quem a viu primeiro e puxou instintivamente as rédeas para trás. A égua forçou violentamente em sentido contrário. Crane continuou a segurar firmemente o bridão.
— Não se preocupem, eu já o vi — sussurrou ele.
— Quem é ele? — quis saber Thomas.
— Bem, só posso lhes dizer que não é ninguém da Alfândega ou do Regimento dos Dragões. Eles não poderiam estar num lugar daqueles. Aquela criatura deve ter pelo menos uns dois metros e meio de altura.
— E o que devemos fazer? — perguntou Kate, aflita.
— Esperem até que eu dê o sinal e saiam a toda velocidade. Não parem. Se caírem, levantem-se e continuem correndo. Martin estará esperando por vocês junto à torre. Fiquem com ele. Martin é um bom homem e vocês podem confiar nele. — Crane falava com segurança e parecia de fato preocupar-se com eles.
Nem Thomas nem Kate tiveram condições de responder. Ela agarrou-se ainda mais a Thomas, apertando-o pela cintura. Só queria que aquilo não estivesse acontecendo. Foi então que a criatura à beira da pedra explodiu em chamas cor de laranja que subiram pelos ares. Fragmentos ardentes de palha e de folhas misturadas subiam por causa do calor e depois caíam como flocos de brasas e cinzas.
— É um wiccaman. Alguém está tentando nos assustar — disse Crane, surpreso. — Depressa, corram — gritou ele ao mesmo tempo em que o primeiro tiro saído da escuridão passava por cima de suas cabeças e atingia uma pedra a pouca distância deles. A pedra partiu-se em fragmentos como se fosse vidro. Em seguida, outro tiro cortou o ar vindo de trás deles e atingindo uma árvore, que se desintegrou. Depois outro e mais outro. O ar subitamente encheu-se de fragmentos de vidro incandescente que caíam sobre suas cabeças vindo de todas as direções.
— Estão tentando nos forçar a ir para o barranco. Isso é apenas fogo de intimidação, eles não estão tentando nos atingir. — Crane soltou o bridão da égua. — Vá, corra o mais que puder, demônio! — gritou ele para o animal. A égua levantou o focinho e bufou excitada, achatando as orelhas contra a cabeça e com o olhar desvairado. Suas patas enterraram-se na terra fofa e ela saiu quase voando. Por pouco não derrubou Thomas e Kate ao lançar-se em direção ao barranco. Suas patas mal tocavam o chão.
Enquanto a égua galopava loucamente, o wiccaman ardia no pedregulho acima deles e lançava suas chamas alaranjadas e vermelhas. Lá no alto era como se fosse outro mundo, com o brilho prateado da lua, a luz que emanava da efígie de palha em chamas, as sombras escuras das árvores e das pedras. Tudo parecia absolutamente irreal.
Kate continuava agarrada a Thomas com todas as suas forças. Sua capa voava e tremulava atrás dela. A égua galopava por um caminho estreito que subitamente descia para um valão tão escuro que nem mesmo a claridade da lua penetrava. Thomas conseguiu se segurar às rédeas, enquanto a égua saltava às cegas sobre troncos e galhos caídos e moitas de urzes, pulando como louca sem saber para onde ir na escuridão. Suas patas prenderam—se em um emaranhado de galhos e plantas rasteiras e, quando ela tentou se livrar daquela vegetação dando coices, atirou ao chão Thomas e Kate.
Thomas pôs-se rapidamente de pé, puxou a espada curta que levava presa ao cinto e com ela começou a quebrar os galhos que prendiam as patas do animal. Tão logo conseguiu liberta-la, a égua subiu a galope pela ribanceira, deixando-os sozinhos no valão.
Thomas deixou-se cair ao lado de Kate, que havia se escondido debaixo de sua capa preta. O silêncio que se seguiu pareceu durar uma eternidade. A escuridão era quase absoluta. Nenhum dos dois se movia, nenhum falava. Thomas estava sem ar, absolutamente perplexo. Dava-se conta de que havia se metido em tudo aquilo para se vingar de Demurral. Não tinha sido por bondade, nem para ajudar alguém em apuros. Porém, ele também sentia que algo estava mudando dentro dele, algo que crescia inexoravelmente como uma semente que se transforma numa planta.
Ele enterrou a ponta da espada na terra.
— Temos de sair daqui. Se ficarmos, quem quer que esteja tentando nos pegar acabará nos pegando. Já chega de emboscadas no escuro. — Thomas começou a rir sem saber por quê. Aquela vontade e crescia dentro dele sem que ele a pudesse controlar. Enquanto ria, começou a rir por não conseguir parar de rir. Era uma enorme sensação de alegria que vinha de dentro dele e ele desistiu de tentar reprimi-la. Thomas recostou-se em uma moita de urzes, fechou os olhos e, em pensamento, viu o Rei sorrindo para ele. Foi naquele instante que teve a certeza de que, acontecesse o que acontecesse, eles nada teriam a temer.
Ainda rindo, ele tentou falar com a menina.
— Kate, temos de sair daqui.
— Ainda bem que um de nós está achando isso engraçado, sermos perseguidos até quase não agüentarmos mais, sermos derrubados de um cavalo num buraco escuro, e depois o cavalo ainda fugir. Muito engraçado. De que mais você vai rir? — Kate estava com raiva. Era a emoção que ela sabia expressar melhor.
— Eu não sei de que estou rindo. Não consigo me controlar. Mas sei que tudo vai dar certo para nós. É só nisso que estou pensando. Tudo acaba bem para quem conhece o Rei... Isso estava no meu sonho.
— E você acha que esse seu sonho salvará nossas vidas?
— Acho que sim, Kate. Acho que sim. — Ele pensou um pouco e continuou: — Depois de ter conhecido Raphah e de ter tido aquele sonho, cheguei à conclusão que vivemos em um mundo diferente daquele em que eu acreditava viver. É como se eu fosse cego e de uma hora para outra passasse a enxergar. Antes eu só pensava em mim, no que eu tinha, no que eu faria. — Uma brisa soprou fazendo farfalharem as urzes. — Agora sei que existe algo na vida mais importante do que eu. Prometi a Raphah ajudá-lo a recuperar algo que Demurral tomou dele. Não sei por que essa coisa é importante, mas sei que é. É algo pelo qual vale a pena viver. Pela primeira vez na vida encontrei algo em que acreditar, algo cheio de esperança, algo verdadeiro.
— Mas o que vai acontecer conosco, Thomas? Quando vim com você não imaginava que fosse acontecer tudo isso. Eu achava que nós íamos apenas entrar no Vicariato para resgatar uma coisa e tudo acabaria aí. — Kate levantou-se e tirou a capa. — Eu não vim com você por causa de Raphah e da tal coisa que ele quer roubar de volta. Eu vim porque... — Kate parou da falar e baixou a cabeça.
— Por que você veio, Kate? — perguntou ele.
— Não importa agora. Eu acho que qualquer que tenha sido a razão, eu pus tudo a perder quando puxei o gatilho da pistola e atirei naquela criatura.
Thomas olhou para Kate. Ele quase não conseguia vê-la naquela escuridão. Estendeu então o braço e tocou seu rosto de leve com as pontas dos dedos. Não pôde ver que ela sorria.
— Precisamos sair daqui, Kate. Não sei se eles estão atrás de nós nem para que lado Crane foi. Pelo que sei dele, deve ter enfrentado os inimigos sozinho. Vamos seguir em frente até chegarmos ao Vicariato. Veremos se Martin é mesmo alguém em quem se pode confiar.
Kate segurou a mão dele.
— Vá você na frente. Tenho uma coisa a fazer e vou em seguida.
— Não vou deixar você aqui sozinha. Espero por você logo adiante.
Thomas foi se afastando. Kate pegou a capa que havia jogado no chão, sacudiu-a e ficou aguardando pacientemente no escuro.
Passados alguns minutos, um solitário varrigal surgiu do meio da mata lá em cima. Ficou examinando a escuridão com seus olhos vermelhos e brilhantes que podiam ver no escuro como se fosse dia. Lá embaixo na ravina, entre dois arbustos, ele viu uma figura ajoelhada, envolta em uma capa, parecendo rezar. O varrigal retesou seu arco e fez pontaria com sua seta prateada. Com um movimento preciso, ele atirou na escuridão.
Fez-se um ruído surdo. A seta enterrou-se bem no meio do alvo. O varrigal deu um guincho de satisfação e, passando por entre as urzes, desceu em direção à sua vítima. Na lama, entre dois arbustos de azevinho, a capa amassada cobria uma forma sem vida. O varrigal ergueu sua espada e com um único golpe enterrou-a na presa. De dentro da capa rasgada saiu uma boa quantidade de mato seco e de galhos partidos. Kate já estava longe dali, onde havia deixado sua capa cobrindo um pedaço de tronco, recheada de mato seco e urzes.
O Milagre
Ainda faltavam duas horas para o dia amanhecer e a notícia do que acontecera na noite anterior já se espalhava pelos casebres dos operários e por toda a mina de alume como fogo no palheiro.
A história do milagre era repetida várias vezes, passando de boca em boca, de casa em casa. Era comentada no pátio do cervejeiro e junto às tinas de fermentação. Às pessoas ouviam espantadas e passavam adiante a história do menino surdo-mudo que passara a ouvir e a falar. A Sra. Landas não conseguia parar de contar a todo mundo que algo maravilhoso havia acontecido com ele e a todos exibia, orgulhosa, o belo menino que era seu falho. Ela havia lavado o pó branco que lhe cobria o rosto e as pintas que nele usava. Assim limpa, penteada e feliz, ela parecia uma nova mulher. Não havia tomado gim no café da manhã e parara de fumar cachimbo. Tentara até mesmo limpar o amarelo dos cientes. Para a Sra. Landas, o raiar daquele dia era, de fato, o raiar de uma nova vida, de uma vida que ela queria compartilhar com o filho.
— Podem me chamar de doida — disse ela muito séria a uma jovem à porta de uma casa ao lado do alojamento —, mas eu acredito que tenha ficado dez anos mais nova. — Ela falava com a voz carregada de emoção. — Desde que o rapaz negro curou o meu John, não consigo parar de sorrir. Você precisa conhecê-lo. Ele é um verdadeiro cavalheiro, é um anjo. Às coisas que ele diz fazem com que a pessoa se sinta com a alma limpa.
Ela ergueu os olhos para o Vicariato no alto da colina, bem acima da mina. Nuvens escuras cor de púrpura que pareciam altas montanhas espalhavam-se pelo céu onde o luar começava a desaparecer. A luz incandescente que surgia no horizonte iluminava a frente do Vicariato e se refletia nos muitos vidros do prédio, em vários tons de vermelho. O prédio parecia desafiar a tempestade que estava por desabar, com sua torre, como a de Babel, erguendo-se para o céu.
A Sra. Landas enxugou as mãos no avental e continuou a falar com a jovem.
— Não sei o que Demurral quer com o rapaz; só espero que não lhe faça mal. Muitas crianças já foram levadas lá para cima e nunca mais voltaram. — Ela olhou para a tempestade que se formava. — Não acredito na história de que todas elas foram enviadas para navios ou para Londres, onde estariam trabalhando. Alguma coisa Demurral fez com elas. Peço a Deus que nada aconteça ao rapaz.
Ela entrou em casa e fechou a porta, porque a chuva já começava a cair do céu escuro.
Raphah e os três homens protegeram-se da chuva sob os galhos de uma grande árvore que ficava em frente à torre. Consitt apoiou-se no tronco e virou-se para Raphah.
— Você não precisa entrar, rapaz. Não precisa — disse ele. — Pode fugir daqui agora e ir procurar seus amigos se quiser. — Ele olhou para os dois outros homens. — Nós estivemos conversando... Depois do que aconteceu ontem à noite, já não temos certeza de estarmos fazendo a coisa certa. Não queremos entregar você ao Vigário. Queremos que vá embora daqui o mais depressa possível. Você pode pegar um barco em Whitby e ir para qualquer parte do mundo. Ele o levaria para bem longe daqui.
Os outros dois balançaram a cabeça, concordando.
— Não vou fugir e só saio daqui com o que vim buscar. O valor desse objeto é incalculável. — Ele apontou para a porta da torre. —Aconteça o que acontecer lá dentro, sei que Riathamus estará sempre comigo. Além do mais, tenho de ir. É algo que não posso controlar.
Ao dizer essas palavras, Raphah deixou a proteção dos galhos da grande árvore e caminhou em meio à tempestade. A chuva caía como pedras de granizo do céu cor de púrpura. Ele correu até a porta sozinho, segurou a pesada maçaneta de bronze e girou-a para a direita. A porta se abriu com um ruído seco.
Lentamente, ele foi subindo os degraus de pedra até o topo da escada iluminada por velas, prestando atenção a cada passo que dava. No alto da escada defrontou—se com outra porta de carvalho e, através dela, pôde ouvir as vozes abafadas de Demurral e Beadle, que conversavam lá dentro. Ele parou e ergueu a mão para bater na porta. Queria mostrar a eles que não tinha medo e que, por mais que eles tentassem, não conseguiriam provocar seu ódio. Raphah sabia que estava correndo enorme perigo. Mas aquela era uma missão que ele precisava cumprir. Atrás daquela porta estavam as respostas para todas as perguntas que ele se fazia.
Ele havia percorrido uma grande distância, viajando por terra e por mar, para chegar àquele lugar e àquelas pessoas. Aquela era a promessa que jurara cumprir a seu pai, Abraão, nas escadarias do Templo. Não voltaria para lá de mãos vazias.
Raphah sentiu seu coração bater mais forte. Era um misto de excitação e medo. Gotas de suor brotavam de sua testa e misturavam-se às gotas de chuva que escorriam de sua cabeleira negra e densa. Ele se perguntava como seria sua entrada na sala. O que veria lá dentro? O que aconteceria?
Com grande hesitação, ele segurou a maçaneta e abriu a porta bruscamente. Uma espessa fumaça de incenso saiu pela porta como uma onda. Raphah olhou para o interior da sala escura, sentindo entrar-lhe pelas narinas o cheiro azedo de mirra apodrecida que o fez pensar no odor da morte. A fumaça fez seus olhos arderem e ele deu um passo para trás. Na semi-escuridão, pôde ver a figura de Demurral de pé junto ao altar. Ele vestia uma longa túnica branca amarrada à cintura por uma espessa corda negra cheia de nós. Seus cabelos estavam amarrados atrás da cabeça num rabo-de-cavalo, o que acentuava os traços de seu rosto. Ao lado do altar estava o bastão de acácia, já montado com a mão de pedra. No meio do altar estava o Keruvim, com seus olhos de pérola brilhando à luz das velas. Encostadas a uma parede havia três cadeiras de madeira de espaldares altos, com cordas douradas sobre os braços.
Beadle caminhava apressado, carregando uma bacia dourada cheia de ervas recém-cortadas e uma pequena foice também dourada. Os dois pararam o que estavam fazendo e olharam fixamente para Raphah à entrada da sala, envolto pela fumaça das velas bruxuleantes.
— Acho que o senhor quer me ver — disse ele, tentando não deixar que sua voz tremesse. Demurral pareceu absolutamente perplexo ao ver Raphah na entrada da sala. Tentou ver se seus homens que haviam ido buscar o jovem estavam ali. Seus olhos voltaram-se cheios de ódio para Beadle, que, com o susto, deixou cair a foice de ouro no chão.
— Onde estão...? — começou a perguntar Demurral.
— Seus homens estão se protegendo da chuva sob os galhos da grande árvore e pensando no que vão fazer com o resto de suas vidas. Eles vão embora daqui hoje. Eu os libertei. A dívida que tinham com você já está mais do que paga, Demurral. — Raphah podia sentir a força que crescia dentro dele, afastando rapidamente qualquer medo que ainda tivesse.
— O que lhe dá o direito de libertar as pessoas? Aqueles homens não lhe deviam coisa alguma e deviam tudo a mim. — Sua voz saía cheia de ódio e de saliva. — Covardes, todos eles! Quando eu acabar com você vou arrastá-los de volta pelos cabelos. Agora pegue-o, Beadle. Traga-o aqui. — Beadle hesitou, sem saber o que fazer. Ele olhou para Raphah e depois para Demurral. — Não fique aí parado, seu cretino! Vá buscá-lo! — gritou Demurral.
— Fique onde está, Beadle. Você não precisa mais obedecer às ordens dele. Pode ser um homem livre. Que poder pensa que ele tem sobre você? — Raphah entrou na sala e caminhou até o altar.
— Não ouça o que ele diz, Beadle; isso é um truque para enganar você.
— O que sabe das coisas, Demurral? Você ouve, mas não compreende. Você vê, mas é cego para a verdade. Está tão preocupado consigo mesmo que nem se dá conta da vida daqueles a quem escraviza. Venho aqui como um homem livre, não como um escravo, e partirei daqui com o Keruvim agora.
Demurral e Beadle entreolharam-se e começaram a rir. A porta carvalho fechou-se subitamente e Raphah foi engolfado pela fumaça asfixiante do incenso.
— Você é corajoso, mas falta-lhe inteligência. Não imaginou que eu soubesse quem você realmente é? Gebra Nebura disse que os Keruvins não podem ficar separados. Levei muito tempo para descobrir que um deles era feito de ouro, e o outro, de carne e osso. Deus não tem mesmo um senso de humor estranho?
Demurral pegou o Keruvim no altar.
— Só em pensar que isto é o resultado de tudo pelo que lutei na vida! Tudo com que eu sempre sonhei está em minhas mãos! — Ele fez uma pausa e olhou fixamente para Raphah. — E você é o outro Keruvim pelo qual eu estava esperando. Juntos vocês me darão poder para controlar as forças da natureza. O céu e os mares obedecerão ao meu comando. Posso levar a seca para um país e inundar outro. Posso fazer com que uma frota inteira de navios seja engolida pelo mar. Pense no que representa um poder dessa magnitude. Serei o homem mais rico e mais poderoso do mundo. Reis e príncipes vão se curvar diante de mim. O poder dos Keruvins estará a serviço de quem der o lance mais alto! — Demurral estava tão entusiasmado que falava aos gritos. — E você quer saber o que me dá mais prazer? Seu Deus terá de ficar sentadinho em seu trono apreciando o que eu fizer e chorando baixinho!
O Padre apertou o Keruvim ainda mais contra seu peito.
— Será que Deus ainda não se deu conta de que está acabado? As pessoas estão cansadas dele e até já se esquecem de sua existência. Dinheiro... poder... as artes da magia negra! Esses são os novos deuses, e eu tenho em minhas mãos as chaves desse Reino!
Raphah esperou que Demurral terminasse seu discurso. Mas manteve-se atento a Beadle, que se abaixou e pegou do chão a pequena foice de ouro.
— Você acha mesmo que isso é tudo que as pessoas desejam na vida? Esse poder não o tornará imortal e você não poderá levá-lo quando morrer.
— Morte! A grande amiga dos velhos. — Demurral agora falava como se tivesse pena de Raphah. — Você é mais tolo do que eu pensava. Esta noite nós afastaremos a morte para sempre. Com o poder que será invocado pelos Keruvins, eu nunca mais precisarei ter medo de prestar contas a Deus. O deus que haverá dentro de mim será bem maior do que o que está do lado de fora. Esta é a grande novidade. Eu controlarei poderes sobre os quais vocês pouco sabem e vocês serão incapazes de me impedir. — Ao terminar de dizer estas palavras, Demurral curvou-se e pegou alguma coisa sob o altar. Era uma pistola de cano longo que ele imediatamente engatilhou. O gatilho deu um estalido alto quando foi armado, ficando pronto para disparar.
— Acho que isso fará com que você me obedeça. — Demurral viu-se fazendo um sinal com a cabeça para o subserviente Beadle.
Beadle, sempre mancando, aproximou-se de Raphah e conduziu-o cuidadosamente pelo braço para junto das três cadeiras de madeira. Sentou Raphah na cadeira do meio e em seguida amarrou seus pulsos e tornozelos com as cordas douradas. Às cordas apertavam os pulsos do rapaz contra a madeira dura dos braços da cadeira.
A porta de entrada lá embaixo fechou-se com violência e ouviram-se passos de alguém que subia a escada. Demurral voltou-se para Beadle.
— Vá ver quem é. Não quero ser perturbado — disse ele rispidamente.
Beadle encaminhou-se até a porta e já ia pegar a maçaneta quando ela se abriu de supetão, apertando-o contra a parede de pedra. Jacob Crane entrou na sala e olhou, sem se importar, para aquela coisa amontoada no chão que era Beadle. Demurral pareceu surpreso ao vê-lo. Seus olhos se fixaram em uma grande mancha de sangue no ombro e no braço de Crane, mas ele nada disse.
Crane olhou para Raphah.
— Então isto é a causa de toda esta confusão! Pela aparência, ele deve ser egípcio. Se eu fosse você não me meteria com ele, Demurral. Dá azar mexer com os dessa raça. — Crane aproximou-se de Demurral.
— A sorte vem de Lúcifer. Este aí não é nenhum anjo de luz. Onde estão os outros? — perguntou Demurral.
— Vim buscar meu dinheiro. Às crianças estão lá embaixo. — A voz de Crane era de quem não estava disposto a perder tempo.
— Temos aqui um pequeno problema, Sr. Crane. O senhor terá de esperar. — Demurral apontou para Raphah preso à cadeira. — Ele tomou todo o nosso tempo. Beadle o levará até a casa e lhe dará o dinheiro. Traga as crianças. O amigo delas as aguarda, e eu também.
— Não pense em me trapacear, Vigário. Qualquer tentativa de trapaça e seu empregado terá um sorriso cortado a punhal de orelha a orelha. — Crane fez o gesto de cortar o pescoço. Demurral apontou a pistola para ele.
— O que me impede de matá-lo agora mesmo e ficar com o dinheiro?
— Ande, puxe o gatilho! — disse Crane. — Então meus homens tocarão fogo no barril de pólvora que está na base da torre e ela explodirá, levando você junto para o outro mundo. — Crane sorriu. — E aí ficaremos todos sabendo se Deus existe mesmo. — Ele fez uma careta de dor e segurou o ombro ferido ao virar-se para Beadle. — Vamos logo, sua lesma! Levante-se do chão e desça comigo. O cheiro daqui me dá ânsias de vômito. — Ele virou-se para Demurral e disse: — Quando eu receber o dinheiro, mandarei as crianças. O que você vai fazer com elas não me interessa.
Beadle levantou-se como pôde, apoiando-se na maçaneta da porta, e seguiu Crane escada abaixo. Eles saíram da torre.
Raphah passou os olhos pela sala enfumaçada. Demurral estava de pé junto ao altar e começava a erguer a parte de cima da pedra de Azimute. Ele então pôs as duas metades da pedra lado a lado.
— Muito em breve, meu amiguinho negro, terei tudo o que sempre desejei. Quando seus amigos chegarem, tudo ficará perfeito. — Ele sorriu sem abrir os lábios.
— Eles não lhe fizeram mal algum. Por que você os envolve nisso? Não basta eu? — disse Raphah.
— Basta? Não, nunca se deve achar que basta! Afinal de contas, três corações são melhores que um. Você ainda não percebeu que vamos fazer um sacrifício aqui? Até Deus sabe disso. Um sacrifício perfeito, completo e suficiente para o perdão dos pecados. Não foi assim? — Enquanto ele falava, o teto de metal era sacudido pela ventania, fazendo um barulho horrível.
Raphah foi rápido na resposta.
— Sim, e você seria incapaz de sacrificar-se, não é?
— Eu entendo de sacrifícios. A vida inteira tive de abrir mão disso e daquilo. Agora é a vez de se sacrificarem por mim — respondeu Demurral.
Nesse instante a porta se escancarou. Crane empurrou Beadle para dentro da sala e logo atrás dele entraram Kate e Thomas. Dois dos seus homens bloquearam a passagem.
— Aqui estão eles, Vigário, os dois que você queria, em perfeitas condições. Faça com eles o que bem entender. — Crane empurrou as crianças na direção de Demurral.
— Gosto de homens que mantêm sua palavra — disse Demurral.
— Palavra? Ele é um traidor mentiroso! Um trapaceiro! — exclamou Kate.
— Amarre as crianças às cadeiras e ponha o trapaceiro com seus homens para fora daqui. Temos trabalho a fazer. — Demurral apontou a pistola para Crane. — Nada de truques, Sr. Crane. Sei usar uma destas tão bem quanto o senhor.
— Eles são seus, Vigário. Faça o que quiser. Já tenho o meu dinheiro e o barco está pronto para partir.
Crane fez um sinal para que seus homens saíssem da sala e foi se afastando de costas, mantendo sempre os olhos fixos na pistola de Demurral.
— Sinto muito, meus amiguinhos, mas negócio é negócio e a vida vale muito pouco. Trinta moedas de prata em dinheiro do Rei. — Ele sorriu para Kate ao sair da sala. A tempestade sacudiu violentamente o teto de metal.
— Bem a propósito, este efeito sonoro. Eu gosto de uma tempestade. Faz o coração tremer. — Demurral virou-se para Beadle. — Prepare-os para o ritual.
Naquele instante, um raio de sol entrou por uma das janelas estreitas, projetando um prisma de luz colorida na sala enfumaçada. Beadle exclamou:
— É tarde demais, mestre! O dia raiou e agora não é mais possível! Já é de manhã.
— Mais uma noite e teremos perdido a lua cheia! — bradou Demurral. — Amarre-os bem. Prepare tudo e voltaremos à noite. Valerá a pena mais um monótono dia de espera diante do que acontecerá depois. — Demurral despiu sua longa túnica branca e colocou-a dobrada sobre o altar. — Certifique-se de que a porta esteja trancada quando você sair; eles podem resistir a um dia sem comida. Afinal, no lugar para onde vão não tem importância se vão magros ou gordos. — Demurral saiu deixando Beadle mancando atarantado de um lado para o outro, arrumando tudo. Por fim, ele pôs o Keruvim no centro do altar e soprou as velas, apagando-as.
Beadle parou e olhou para Kate. Seus olhos percorreram os belos contornos do rosto da menina. Ele se aproximou dela arrastando a perna atrofiada. Curvando-se na sua frente, olhou-a nos olhos e acariciou-lhe o rosto delicadamente.
— Você é tão bonitinha que será um desperdício. Você ainda teria tanto para fazer na vida, mas tudo isso terá deixado de existir quando o sol nascer amanhã.
— Deixe-a em paz, seu monstro — gritou Thomas para Beadle. —Se tocar nela de novo eu arranco essas verrugas da sua cara uma por uma... — Ele fez força para se soltar da cadeira a que estava amarrado, mas quanto mais forçava, mais as cordas pareciam apertar.
— Faço com ela o que eu quiser — disse Beadle a Thomas —, e vou fazer o que quiser com você também hoje à noite. Esperem a lua surgir no céu e verão o que ele vai fazer com todos vocês.
— Kate, não acredite no que ele está dizendo. Eles não ousarão tocar em qualquer um de nós — disse Thomas, tentando mostrar-se corajoso. Ele olhou para Beadle e disse: — Sairemos daqui assim que o pai dela descobrir onde estamos.
— O pai dela trabalha para Demurral há muitos anos. Quem você pensa que está por trás de todo esse contrabando que há por aí? Durante o dia ele é magistrado e Padre, mas à noite é o maior contrabandista de todos eles. O Vigário é quem manda neste lugar e seu pai não tem autoridade alguma. Se não fosse por Demurral, você também estaria quebrando pedra de alume na mina, menina Kate. — Beadle chegou junto de Thomas e deu-lhe um tapa no rosto com as costas da mão. — Quanto a você, a melhor coisa que pode acontecer a um Barrick é ser afogado ao nascer... Mas, seja como for, vocês sempre conseguem se afogar em bebida antes dos quarenta anos. — Beadle riu da sua própria piada enquanto Thomas se esforçava para controlar sua fúria.
Raphah falou tranqüilamente:
— Deixe-o para lá, Thomas. Ele será destruído pela própria língua. Uma palavra boa pode transformar o ódio. Há coisas mais importantes do que o rancor deste homem.
— É isso mesmo, Thomas. Ouça o que diz esse seu amigo negro. Pode ser a última coisa que você vai ouvir neste mundo. —Beadle pegou a vela do altar e encaminhou-se para a porta. Ao lado da porta havia uma pequena caixa de madeira com um fecho de bronze. A tampa tinha vários furos pequenos. Beadle saiu da sala e, com a ponta do pé esticada, abriu a tampa da caixa. Algo que estava lá dentro deu um silvo ameaçador.
— Talvez isso as distraia um pouco enquanto eu não voltar. Elas detestam companhia, principalmente de crianças. — Beadle chutou a caixa novamente e três víboras puseram a cabeça para fora, perturbadas em seu sono. Suas línguas moviam-se rapidamente no ar, enquanto seus olhos examinavam atentamente toda a sala. Elas mexiam as cabeças marrons de um lado para o outro para melhor perceber as presenças ali. Beadle saiu rapidamente e fechou a porta.
Da escada, ele ainda gritou:
— Adeus, meus amigos. Trarei a luz de volta quando a noite chegar.
A sala ficou fria. A mistura de fumaça de incenso velho e de velas de sebo permanecia no ar como uma neblina suja. Ainda não havia luz do dia suficiente para clarear a sala e, sem as velas, os três ficaram na penumbra. O lugar parecia a tumba antiga e sombria de algum rei. Às serpentes sibilavam dentro da caixa, enroscando-se e deslizando umas sobre as outras. De vez em quando erguiam suas cabeças acima da beirada da caixa, mas não se aventuravam a ir mais longe.
Thomas ficou olhando fixamente para as velas do altar. A fumaça subia dos pavios apagados. Aqueles fiapos de fumaça em espiral pareciam os pequenos seres fantasmagóricos de fogo-fátuo que dançavam sobre o pântano nas noites de verão. Thomas transportou-se em pensamento para aquela época do ano. Era uma época em que ele sentia o calor no rosto, quando não havia vento frio batendo em suas costas nem fazendo doer as pontas de seus dedos. Lembrou-se dos tempos em que nadava com Kate até tarde da noite e ficavam os dois apreciando as libélulas que voavam e saltavam sobre a superfície tranqüila do lago, e iam pousar nos lírios, onde ficavam penduradas como criaturas de outro mundo. Os dois ficavam horas a fio vendo os peixes comer as bolinhas de miolo de pão que Kate enrolava nas mãos.
Thomas lembrou-se de conversas sobre o capitão Farrell, comandante dos Dragões, e sobre como os soldados haviam capturado 12 contrabandistas em uma única noite. Os dois amigos falavam abertamente de seus sonhos e seus segredos, e ele agora se dava conta de que nunca dera importância àquela amizade. Naqueles dias a vida parecia eterna, e ele nem pensava na sua própria morte. Mas ali, no alto da torre, amarrado a uma cadeira à espera do retorno de Demurral, os pensamentos sobre sua morte inundavam-lhe a mente.
A morte não era sua desconhecida. Ele já vira muitos cadáveres de marinheiros que o mar jogava na praia da Baía. A morte visitava Baytown todos os dias sob a forma de doenças, tempestades e outras tragédias.
Mas agora ele se dava conta de como cada momento da vida é precioso. Percebeu que estava consciente das batidas de seu coração aflito, do ar que entrava e saía de seus pulmões. Olhou para Kate. Ela tinha os olhos fechados e a cabeça baixa. Uma lágrima solitária escorria-lhe pelo rosto. Voltou-se então para Raphah, que olhava fixamente para as réstias de luz que entravam pelos
vidros coloridos das janelas estreitas. O rapaz murmurava para si mesmo palavras que Thomas não conseguia ouvir; podia apenas ver o movimento ritmado dos lábios de Raphah, que parecia repetir alguma coisa em silêncio. Thomas não sabia o que dizer. Só sabia que precisava romper aquele silêncio, dizer alguma coisa. Sentia-se desesperançado e impotente. Tinha a sensação de que todas as forças do mundo conspiravam contra ele de maneira irresistível. Seus principais inimigos já não eram mais seres humanos; estes haviam sido substituídos por um medo desmedido de não saber o que estava por acontecer.
— O que vão fazer conosco? — perguntou Thomas.
— Nos matar — respondeu Raphah tranqüilamente.
— Por quê? — Thomas quase não conseguiu fazer essa pergunta, porque subitamente sua garganta ficou seca como as areias de um deserto.
— Por que os homens se matam desde que deixaram o Éden? Por que Caim matou Abel? Alguns homens, ao nascer, já trazem esse instinto de matar — respondeu Raphah sem perder a calma. — Outros o adquirem através do ódio e do rancor.
— Mas por que nós? — insistiu Thomas, aflito.
— Na verdade é a mim que querem matar; vocês não deveriam estar aqui. Eu não deveria ter chamado vocês para me ajudarem. Eu deveria ter vindo sozinho. Serei responsável pela morte de vocês. — Raphah virou-se para Thomas e tentou sorrir.
— Mas ele não pode nos matar, as pessoas acabariam descobrindo — disse Kate, já chorando.
Raphah olhou para Kate ao falar.
— Nós não somos os primeiros nem seremos os últimos. Este homem não vai parar com seus crimes. Ele deseja dominar o mundo por meio de uma magia antiga que acabará se voltando contra ele e o destruindo. Só então poderemos ver o verdadeiro Poder, que nunca deixará de existir. — Raphah fez uma pausa e concluiu: — Mas a essa altura poderá ser tarde demais para nós.
— Mas eu não quero morrer. A morte é para as pessoas velhas... e para as burras — disse ela com raiva. — Deixe que Demurral fique com o que ele quiser... e ele nos deixará livres.
— É a mim que Demurral quer. Ele me quer morto. Se eu morrer, ele ficará mais poderoso. Ele prenderá não apenas o nosso físico mas também o nosso espírito. Nossas almas não terão descanso. Ele nos chamará e nós teremos de atender a seus chamados. Estaremos presos entre a vida e a morte para toda a eternidade.
— Eu não acredito nessas tolices. A vida é o que podemos ver. Como é que ele pode prender o que não está aí para ser preso? —disse ela, zangada.
— Quer você acredite ou não, não poderá alterar a verdade de que cada um de nós é feito de corpo, alma e espírito. Você pode protestar o quanto quiser, Kate, mas dentro de você habita um espírito que é eterno. Você foi criada por Riathamus para viver esta vida e ser transformada na próxima. Esta é a verdade e só a verdade a libertará. — Essas palavras foram ditas em voz bem alta e ecoaram pela sala. — Não tema o que destrói o seu corpo, mas sim o que destrói a sua alma. — Enquanto Raphah forçava as cordas que amarravam firmemente seus pulsos, olhava para a caixa de madeira junto à porta. — Uma cobra arrastou a humanidade para o inferno; talvez três delas a ajudem a fugir para o Paraíso.
A Bruxa do Charco Branco
Crane estava montado em seu cavalo observando Beadle, que, atravessando o pátio de pedrinhas, se encaminhava para a porta dos fundos do Vicariato. De seu esconderijo no bosque ele tinha uma boa visão da entrada para Whitby, de seu barco na baía e da mina de alume uns cem metros abaixo.
Às últimas gotas de chuva tamborilavam nas folhas mortas que ainda se prendiam aos galhos das árvores como mãos escancaradas em agonia. Crane levantou a gola de seu casaco, tirou do bolso um chapéu de lona impermeável e enterrou-o na cabeça até quase os olhos, de modo a poder espiar por baixo da aba. Na bolsa da sela estavam a luneta e as trezentas libras em uma sacola de veludo verde que Beadle lhe entregara. Às pesadas moedas de guinéu podiam ser sentidas através da sacola. Ele a segurou com as duas mãos, avaliando seu peso, e apertou as moedas para ouvir seu ruído. Tinha sido fácil ganhar aquele dinheiro, pensou.
A todo instante seus olhos voltavam-se para o alto da torre. Às primeiras luzes da manhã, ele viu que um estreito muro de pedra conectava a torre ao prédio do Vicariato e tinha a função de um contraforte. O telhado circular da torre era feito de espessas folhas de cobre que haviam se tornado verdes ao longo de anos de exposição ao tempo e de proximidade do mar. Às vigas de suporte eram revestidas de metal e davam à estrutura a aparência de uma bússola. Seus anos de experiência no mar permitiram-lhe perceber que aqueles pontos coincidiam com os quatro pontos cardeais: norte, sul, leste e oeste. No topo havia uma longa haste de metal, e preso a ele Crane viu um cabo de ferro cuja outra extremidade desaparecia sob o beiral do telhado.
Para o lado do mar o céu clareava e a luz dourada do dia irrompia no horizonte, iluminando as nuvens escuras da tempestade que se espalhavam por cima das ondas naquela direção e que logo bloqueariam a luz do sol. Feixes de luz atravessavam as nuvens e eram refletidos na superfície do mar agitado. O estranho brilho que se via ao norte havia ficado mais intenso. Era como se o céu estivesse partido em dois. Do horizonte até o centro do céu, um brilho âmbar, verde e vermelho parecia uma coluna de nuvem incandescente.
Os olhos de Crane percorreram o horizonte de norte a sul, examinando a linha onde o mar se encontrava com o céu. Ele queria descobrir o que causava aquele estranho fenômeno. Já vira muitas coisas estranhas na vida, mas nada como uma nuvem incandescente. Sabia que não se tratava de um fenômeno natural, que na origem e no controle daquilo havia uma força que estava prestes a se revelar.
Ali parado no bosque, Jacob Crane não conseguia tirar da cabeça as lembranças da noite anterior. A visão da Azimute estava impregnada em seus pensamentos. Mesmo à luz da manhã, ele |x a presente o rosto da menina, seus olhos suplicantes, e aquela sua vontade de agarrar—se a uma vida para ela já perdida. Ele fora arrastado do mundo de desgraça em que vivia pela visão do espírito daquela menina. Aquela visão havia plantado nele uma semente que em poucas horas fora transformada em uma hera que lhe sufocava a alma.
Crane reconhecia que em seu ódio por Demurral havia também um quê de admiração e de curiosidade. Aquela ambição desmesurada de Demurral pelo poder conseguia penetrar na forte carapaça com que Crane protegia suas emoções e fazia com que ele sentisse inveja. Jacob Crane não gostava de ser dominado por sentimentos; isso significava que ele não tinha controle da situação. Para ele só havia uma maneira de lidar com um problema, que era livrar—se dele como pudesse.
Crane só desejava uma coisa no mundo: dinheiro. Desde menino apreciava a vida boa dos ricos e os invejava. Já adulto, vira muitos homens lutar e morrer por dinheiro e até mesmo trair as pessoas que lhes eram mais próximas. Tudo pelo chacoalhar de moedas de ouro em uma sacola de veludo.
De alguma forma, Demurral havia conseguido tudo isso para si. Crane adoraria simplesmente cortar-lhe o pescoço e roubar tudo que o outro possuía. A proposta que Demurral lhe havia feito na véspera ecoava em sua cabeça. E se fosse mesmo verdade? E se aquele homem pudesse lhe dar, de fato, tudo que ele queria? Seria o fim daquele cheiro de sal impregnado em sua pele, das noites de tempestade em alto-mar no Oceano Germânico. Tudo isso se transformaria, mas a que preço? Crane lutava contra a idéia de trabalhar para Demurral, de fazer o que ele quisesse. Sua própria cobiça lutava contra o que ele achava que deveria fazer. Crane sempre havia sido seu próprio patrão e não gostava de receber ordens. Sempre havia feito o que queria e não hesitava em usar toda a extensão da lâmina do seu punhal para vencer uma disputa. Se ele se associasse a Demurral, tudo isso precisaria r posto de lado e ele teria de fazer algo que não sabia: confiar. Crane não parava de repassar esses pensamentos na cabeça, apreciando cada detalhe e cada pergunta que giravam como uma roda de moinho dentro dele. Ele tentava pensar com clareza, mas as lembranças da noite e dos olhos da Azimute invadiam sua mente como uma tempestade vinda do mar. Às súplicas por socorro daquela menina, vinda do mundo dos mortos, não o deixavam organizar seu pensamento.
De seu esconderijo, ele podia ver o belo pátio à frente do Vicariato, com suas fileiras de canteiros de flores delimitados por cercas vivas. No interior do canteiro mais afastado viu três fossas rasas recém-abertas. Olhou novamente para o alto da torre e, em seguida, para seu barco. Foi então que ele assoviou dando o sinal. Do interior do bosque veio a resposta, carregada pelo vento. Vários dos seus homens surgiram da mata tendo à frente Martin, que notou o sangue na roupa de Crane.
— O que aconteceu, Capitão? Foi atingido por uma daquelas coisas estranhas?
— Isso mesmo, Martin. Ela me pegou pelas costas e atravessou meu ombro. Queima como o diabo. — Ele fez uma pausa e perguntou: — Perdemos algum homem?
— Kirkby e Randall não voltaram. Parece que ficaram protegendo a retaguarda para defender o senhor do que quer que o estivesse perseguindo. Não foram mais vistos desde então. — Martin fez um gesto indicando um lugar acima do bosque onde os homens haviam desaparecido.
— Quantos homens seriam necessários para pegar tudo que há de valor naquela casa e levar para o barco? — perguntou Crane a Martim.
— Não creio que os rapazes tenham coragem para isso, Capitão. Depois de tudo que viram na noite passada, eles só falam em bruxaria e estão dizendo que foi a Velha Meg transformada em égua que perseguiu o senhor. — Martin olhou para os outros homens, que guardavam um silêncio assustado.
— Quantas vezes preciso repetir que vocês não precisam ter medo da Velha Meg e das suas histórias de transformação? Quem tem medo de um coelho? — zombou Crane.
— Que tinha alguma coisa lá, isso tinha, Capitão. Todos nós vimos. — Martin não desviou os olhos dos de Crane. — Teve aquele wiccaman pegando fogo e todas aquelas coisas estranhas. Aquilo não foi imaginação nem superstição, Capitão.
— Martin, você vai acabar me convencendo se continuar a falar desse jeito. — Crane tentava brincar para esconder o que sentia. —Já é dia. Os acontecimentos da noite não importam agora. Há dinheiro para ser ganho e um barco para viajar para a Holanda. Cuide da comida dos rapazes. Teremos de deixar Kirkby e Randall por lá mesmo. Eles sabiam dos riscos quando se juntaram a nós. Quando chegarmos à Holanda, abriremos umas garrafas em homenagem a eles.
— Há mais uma coisa — disse Martin. — Temos três novos homens que querem embarcar conosco. Dizem ser mineiros de alume. Nós os encontramos quando fugiam da tempestade. Dizem que um estranho os libertou do jugo de Demurral. Contam uma porção de histórias das crueldades dele. Eles estavam tão revoltados que até planejavam invadir a torre para libertar o tal rapaz. O que devemos fazer com eles? — perguntou Martin, quase rindo. Por trás dele, Skerry, Consitt e Blythe deram um passo para trás, assustados.
Crane não respondeu. Ele não estava muito atento ao que Martin lhe dizia, pois acabava de ver uma tropa de homens a cavalo, descendo a estrada estreita que levava ao Vicariato. O sol se refletiu nos botões polidos e nas ombreiras das fardas dos cavaleiros, m suas túnicas vermelhas e calças brancas brilhando à luz da manhã. O ruído dissonante das espadas, fivelas e correias batia ritmado com o dos cascos de vinte belas montarias cinzentas. Dois corpos à frente dos demais ia uma enorme égua negra. Seu cavaleiro usava um uniforme semelhante aos dos outros, acrescido de uma capa curta que lhe pendia de um dos ombros e de um mosquetão de cano longo pendurado às costas. Ele usava um chapéu de meia aba com uma pluma preta que tremulava com a brisa.
— Será...? — Martin começou a perguntar em voz baixa.
— É uma transação inacabada. É disso que se trata. — Crane passou a mão pela cicatriz em seu rosto.
— Por que motivo o capitão Farrell viria tomar café da manha com o Vigário? — perguntou Martin a Crane.
— É justamente quando eu tenho um túnel cheio de contrabando sob seus pés — completou Crane. — Vinte homens a cavalo, todos paramentados, e o nosso barco a duzentos metros de Baytown... o que será que ele quer com Demurral?
— Talvez queira perdão por seus pecados — disse Martin, aproximando-se da borda do bosque. — Deve ter vindo pedir ao Vigário que interceda junto a Deus para perdoá-lo por ter cortado seu rosto no Bosque de Wyke.
— Farrell precisará de um poder maior do que o de Deus para ser perdoado. Enquanto eu carregar esta marca ele não será perdoado pelo que me fez. Um simples golpe de sorte e lá se foi ele gabando-se para o mundo de me haver vencido numa luta de espadas. Eu deveria ter acabado com ele ali mesmo naquela hora e liquidado a fatura. Mais um dragão morto não faria muita diferença. — Enquanto falava, Crane não desviava os olhos do grupo de homens que se aproximava do Vicariato.
— Não creio que tenhamos homens suficientes para atacá-los, Martin. Seja como for, não gosto mesmo de lutar à luz do dia. Não gosto de ver a expressão dos rostos quando os atravesso com minha espada. A noite é melhor. Fica mais dramático — disse ele rindo.
O capitão Farrell chegou ao pátio do Vicariato e amarrou sua montaria na cerca junto à torre. Crane viu quando Beadle chegou apressado para dar-lhe as boas-vindas e levá-lo para dentro da casa. O resto da tropa apeou, amarrou seus cavalos e foi para a estrebaria. Naquele instante, qualquer idéia de associar-se a Demurral dissolveu-se na mente de Crane como a névoa da manhã.
— Martin, deixe dois homens comigo. Quero que você saia com o barco. Atravesse a baía e, quando estiver em condições, dispare o canhão bem no centro do Vicariato. Feito isso, rume para o norte e baixe âncora depois que passar por Ness Point. Ele não o verá lá. Espere três horas e, se eu não chegar, parta para Whitby. — Crane tirou uma pistola do cinto e verificou a munição.
— O que vai fazer, Capitão? — quis saber Martin.
— Não sei. Mas uma coisa eu garanto: antes da meia-noite, Farrell e Demurral estarão cobertos pela terra fria, dividindo o espaço em uma daquelas covas que ele mandou abrir. — Crane fez um gesto apontando para o Vicariato.
— Não dá para deixar tudo isso para trás e ele sabe muito bem; feiticeiro ou não, vai precisar de muito mais que mágica para continuar vivo. — Apontou para Skerry, que ainda estava ali em pé, a poucos passos de Martin, escondido pelo mato. — Você aí, venha cá. Diga-me o que há de tão especial nesse tal africano.
Skerry olhou para Consitt e depois para Blythe. Os dois continuaram em silêncio. Skerry não ousava encarar Crane — ele conhecia a fama do contrabandista e seu temperamento violento —, mas respondeu gaguejando.
— Ele é diferente. É capaz de fazer e dizer coisas que modificam as pessoas. Ele é capaz de curar e parece saber o que se passa nas cabeças das pessoas.
— Então ele é bruxo?
— Não, Capitão, ele não é bruxo e diz que todos os bruxos são maus. Também não gosta de cartas para ler a sorte nem de sessões para invocar espíritos. Sabia que ele até deu um jeito em Mary Landas? — Skerry esfregou a terra com o bico de sua bota e tomou coragem para continuar. — Ele curou o menino surdo lá da mina e expulsou um espírito ruim que se apossou de Blythe. —Skerry olhou para Blythe.
— Isso é verdade — disse Blythe. — Aquela coisa tomou posse de mim e queria que eu matasse o rapaz. Ele chegou perto de mim, deu uma ordem e isso bastou para me livrar.
— Será que o mundo todo enlouqueceu? — perguntou Crane a Martin. — Até ontem à noite, eu tinha certeza de que essas histórias de espíritos e fantasmas eram invenções que só nos serviam para manter as pessoas afastadas das nossas cargas de contrabando. Agora, para onde quer que eu me vire, deparo-me com espíritos, fantasmas e hordas do inferno. Só me falta agora vocês dizerem que vão se voltar para Deus pedindo proteção.
— Bem, Capitão — disse Martin devagar —, alguns de nós temos falado sobre isso e estamos pensando em ir conversar com o Padre lá de Whitby. Dizem que o Sr. Wesley voltará em breve.
— Wesley! — exclamou Crane. — Aquele homem vai fazer com que vocês não queiram mais saber de mulheres, de bebida e, se não cuidarem, nem de contrabando também. Na última vez em que ele veio a Baytown, perdi metade da minha tripulação.
— Você está de miolo mole, Martin. Eu pensei que você seria a última pessoa a querer saber de religião. Tomara que você perca essa vontade no mesmo lugar onde a encontrou, e logo! Agora se apresse. Você tem de zarpar com o barco. Eu vou até Beastcliff e de lá pego o túnel para fazer uma visita a Demurral. Prometi ao velho Rueben que levaria as crianças de volta. Pela primeira vez na vida vou manter minha palavra. Levo Skerry e Blythe comigo; eles conhecem a mina e o tal rapaz. Quem sabe se ele não acaba me transformando também? — disse Crane, rindo da própria piada.
Martin desapareceu na escuridão do bosque. Jacob Crane continuou a vigiar o Vicariato, enquanto Skerry e Blythe aguardavam ordens, sentados num tronco de árvore caída. Não precisaram esperar muito.
Crane pegou a luneta na bolsa da sela e olhou para o Vicariato. Podia ver o interior do aposento que Demurral usava como escritório. Junto à janela que dava para a sacada havia uma pequena mesa com o desjejum à qual Demurral e Farrell estavam sentados. Este último estava de costas para a janela, e Crane podia ver os longos cachos de sua peruca empoada caindo sobre um dos ombros. Era Demurral quem falava o tempo todo, gesticulando muito, entusiasmado.
— Vocês conhecem bem a mina? — perguntou Crane sem se voltar para Skerry e Blythe; não desviava o olho da luneta.
— Conhecemos muito bem. Trabalhamos lá... por tempo demais — respondeu Blythe.
— Conhecem o suficiente para ir buscar um barril de pólvora para mim? — perguntou ele.
— Não seria difícil — disse Skerry. — Acho que podemos encontrar um no depósito, junto ao poço de fermentação.
— Vou precisar de um barril de pólvora, corda de estopim e o que vocês encontrarem para eu comer. Não se deixem apanhar. Encontro-os em Beastcliff dentro de duas horas. Agora sumam daqui.
Montado em seu cavalo e protegido pela mata, Crane mantinha os olhos fixos no Vicariato e na conversa que Demurral estava tendo com Farrell. Era evidente que aquela não era uma discussão pacífica. Eles apontavam dedos em riste um para o outro, socavam a mesa e, num dado momento, Demurral pôs-se de pé enquanto empurrava sua cadeira para trás e curvou-se sobre Farrell, agarrando-o pela túnica. Ele foi empurrado por Farrell e então sentou-se novamente, sacudindo a cabeça. Crane esfregou os olhos. Estava cansado. Mas a dor da ferida no ombro e o movimento suave do cavalo mantinham-no desperto.
Uma sensação desconfortável na boca do estômago pareceu avisar-lhe que ele não estava sozinho ali. Seu cavalo, que estivera tranqüilamente mordiscando os tufos de vegetação, parou e ergueu o focinho, com as orelhas coladas à cabeça e as narinas tremendo. Crane olhou à sua volta. A floresta estava cheia dos ruídos matinais de sempre. No campo à sua frente ele podia ver Skerry e Blythe margeando a cerca onde ela descia na direção do córrego. Ao longe, à direita, ficava a estradinha íngreme por onde passavam as carroças puxadas por cavalos que transportavam as pedras da pedreira para a mina.
Crane teve certeza de que havia alguém perto dele. Seu cavalo havia ficado inquieto, bufando e batendo com os cascos no chão. Crane tornou a olhar em volta e pôs a mão sobre a pistola na cintura. Para chegar a Beastcliff, teria de tomar a estrada que ia para o sul, passando por Staintondale e depois voltar a andar em direto ao mar na Colina do Sino. Levaria uma hora para fazer esse percurso. Poderia deixar seu cavalo lá e descer pela estreita trilha de cabras até uma área ampla onde, num passado remoto, pedras da escarpa haviam despencado, formando um platô inóspito onde nasceram arbustos espinhosos.
Era um lugar onde poucas pessoas ousavam se aventurar. Contavam-se muitas histórias de gente que foi lá e nunca mais foi vista, de seus espíritos que vagavam pelos caminhos estreitos e perigosos entre a escarpa e o mar. Beastcliff era tida como um lugar assombrado, povoado por thulaks, criaturas sempre prontas para perturbar o mundo dos humanos e trazer consigo o sofrimento e o caos.
O fato de estar ali sem um de seus homens sequer fazia Jacob Crane ficar mais agitado que de costume e começar a se preocupar com coisas que não o haviam preocupado até então. A sensação de estar sendo observado tornou-se mais intensa. Ele tocou os flancos do cavalo com os calcanhares e deu meia-volta, tomando o caminho que subia para o Charco Branco. Sentiu-se aliviado por ter saído da escuridão do bosque para a luz do sol. A tempestade havia se encaminhado para o sul, e ao longe ele podia ver a chuva forte de granizo que caia sobre as ruínas do castelo no alto de uma colina, a muitos quilômetros dali.
Encolheu os ombros tentando ficar mais à vontade e afastar aquela sensação esquisita que sentira no bosque. Tentou rir de si mesmo para afastar o medo. O Charco Branco era um lugar desolado, quase sem vegetação, onde se viam apenas carneiros esparsos por entre pântanos e pedregulhos. Crane passou pelo lugar onde estavam os restos do wiccaman. A terra estava queimada. Alguns gravetos de salgueiro jaziam espalhados pelo chão. A luz do dia, o lugar parecia bem diferente. No lugar onde ele tinha sido atacado, Crane apeou do cavalo e, a pé, tentou encontrar fragmentos da seta que havia perfurado seu braço e se chocado com a rocha.
À luz do sol, viu vários fragmentos de setas que pareciam feitas de vidro fundido. Então tudo aquilo tinha mesmo acontecido — não fora imaginação ou uma alucinação causada por alguma estranha mágica. Ele agora tinha provas. A ferida no seu braço e os fragmentos de vidro espalhados por entre as pedras do chão eram as provas de que ele necessitava.
Crane catou vários fragmentos de vidro multicolorido. No interior de cada pedacinho daqueles havia espantosas tonalidades de verde, vermelho, azul-cobalto e púrpura. Ele jamais vira algo feito por mãos humanas que se comparasse à beleza hipnótica daquele vidro.
Foi então que ouviu o cântico que vinha de trás de umas pedras. Não viu ninguém, mas a voz era a de uma mulher. Ela cantava um lamento triste, chorando a morte de uma criança. Junto ao monte de pedras havia uma pequena árvore velha e sem folhas em seus galhos secos. Era da altura de um homem, e todos os galhos estavam enfeitados com fitas e cordões aos quais estavam amarradas mensagens. Oferendas feitas de pão em forma de animais amontoavam—se junto ao tronco. A árvore estava coberta de oferendas de cabelo humano, nomes escritos em papéis e amarrados em pedaços de pano que pendiam dos galhos como se fossem preces, dirigidas a um deus qualquer. Elas batiam nos galhos secos à brisa da manhã.
O cântico ficava cada vez mais alto, mas ele ainda não conseguia ver a mulher. Seguiu a voz. Desceu por um valão, subiu uma encosta, desceu pelo outro lado e finalmente a viu numa a que, com as outras à sua volta, parecia os ossos de uma grande mão. Ele não conseguia entender por que não a havia visto antes, já que acabara de passar por aquele mesmo lugar.
A mulher continuava a cantar, segurando a cabeça entre as mãos, com o rosto coberto pelos longos cabelos ruivos. Estava vestida como uma vendedora de peixes — com um xale cobrindo os ombros sobre um vestido longo e rústico e um avental de pano grosso.
Crane caminhou até onde a mulher estava e parou diante dela. Pôde ver suas mãos ásperas com as unhas lascadas enquanto ela enrolava os cabelos nos dedos e escondia o rosto. Seu canto havia se transformado em uma repetição monótona.
— Ela foi embora para nunca mais. Deixou este mundo e nunca vai voltar.
— Quem se foi, mulher? Por que você está aqui sozinha neste lugar tão isolado?
— Ela foi embora e me deixou para trás — continuou a mulher em sua cantilena.
— Olhe para mim, mulher. Talvez eu possa encontrá-la para você — disse ele.
A mulher sacudiu a cabeça violentamente, sem olhar para ele. Ela agarrava os cabelos e os puxava com força pela raiz.
— Ela foi embora e não volta mais — cantava a mulher, já quase gritando. — Vou caminhar pelo charco até encontrá-la. O fogo está aceso esperando.
Crane agarrou a mão dela e forçou-a a olhar para ele. Ela lutou para manter os olhos cobertos, mas por fim se levantou e empurrou Crane.
— Deixe-me! Saia daqui! — disse ela. — Como ousa vir me dizer o que fazer quando à sua volta voam criaturas que querem levar sua alma? Agora mesmo, enquanto falamos, há uma pronta para levar seu coração em uma bandeja.
A mulher olhou para Crane com dois olhos absolutamente brancos que eram cegos para este mundo.
— Mulher, você é cega! Como pode ver essas coisas?
Ela olhou-o fixamente com seus olhos cegos, que pareciam conhecer tudo sobre ele.
— Ninguém precisa de olhos para ver a morte nem de lábios para falar dela. Agora deixe—me. Quero cantar para minha menina. Ela pode estar passando por aqui e eu não posso perdê-la. —A mulher recomeçou sua cantoria, que parecia o gemido do vento numa noite de inverno.
— Ouça-me, mulher. Quem você procura? Talvez eu possa ajudá-la. Tenho olhos capazes de ver este mundo. — Crane ergueu sua cabeça novamente para ver-lhe o rosto.
— Você precisará de mais do que olhos capazes de ver este mundo. Precisará de olhos que o ajudem a entrar no outro mundo e no que vem depois dele. — Ela ergueu o braço e tocou no rosto dele, passando o dedo pela cicatriz deixada pela espada de Farrell. — ...É você, cortado pelo aço manejado pelo demônio. Seu coração é duro e sua vontade inabalável... Neste lugar, no meu charco, junto à minha árvore, capitão Jacob Crane, descanse em paz. — Enquanto ela falava, acariciava o rosto dele bem de leve.
— Não me dê por morto, enquanto ainda tiver o sopro da vida dentro de mim — protestou Crane. — Estou bem vivo e pretendo continuar assim.
— Por quanto tempo poderá lutar contra as coisas que não pode ver. Por quanto tempo elas podem segui-lo sem que você seja apanhado? Dê-me o vidro da flecha, ponha-o na minha mão
Ela estendeu para ele a mão aberta com a palma voltada para cima. Crane tirou do bolso os pedaços de vidro quebrados e colocou-os na mão dela. A pele daquela mão era dura como couro velho. Ela esmigalhou os pedaços de vidro na mão.
— Veja agora, capitão Crane. — Ela abriu a mão e o vidro havia desaparecido. Tudo que restava era uma poeira vermelha como barro seco. A mulher manteve a mão aberta e o braço esticado, enquanto o vento soprava a poeira fina.
— Veja isso, meu belo rapaz, veja isso — cantarolava ela.
Ao dizer essas palavras, ela soprou a poeira na direção de Crane. Ele rapidamente cobriu o rosto com as mãos para se proteger. A poeira girou em torno dele em uma espiral que mudava de cor e de formato até tomar a forma de uma criatura negra e alada que voava à sua volta, batendo as asas e dando guinchos. Crane tentou bater na criatura com a mão enluvada.
— Deixe-o em paz, capitão Crane, o pássaro não lhe fará mal algum. Ele é tão real quanto você deseja que ele seja — disse a mulher.
Crane parou de dar tapas no ar. O pássaro voou cada vez mais alto, navegando na brisa sobre o charco.
— Com o poder de que deus você faz essas coisas? — perguntou ele à mulher. — Por que está me atormentando assim?
— É você quem atormenta a si mesmo, Jacob. Nunca está satisfeito com o que tem nem com o que é. Seu coração é inquieto e você é um homem sem amigos. Mas dentro de você há uma semente de esperança, pequena como uma semente de mostarda, aguardando para germinar. — Ela deu uns tapinhas no ombro dele. — Você só precisa aprender. Vá até a encruzilhada de Rudda no caminho para Rigg e lá verá o seu futuro.
— Que força malévola atua sobre você? Eu deveria fazê-la em pedaços agora mesmo por praticar bruxaria.
— Isso de nada lhe serviria, Jacob Crane. Haveria sempre uma outra mulher e depois outra e mais outra. Olhe para o céu, não vê que a hora está chegando? Uma transformação está em curso no mundo. Às coisas das trevas reassumirão seu poder e as pessoas voltarão a esta árvore para encontrar o poder que têm dentro de si. — A mulher voltou a cantar pela filha morta.
— Por que você fala por meio de enigmas? Diga-me quem é o seu senhor! — exclamou Crane, erguendo o braço para bater na mulher. Mas ela desapareceu. Ele olhou em volta, mas ela não estava em parte alguma. Ele estava sozinho no charco. Então tornou a ouvir a voz dela, vinda daquelas mesmas pedras de antes, chamando pela filha. Correu até a pilha de pedras ao lado da árvore sagrada e olhou na direção do caminho para Rigg. Ao longe, viu a mulher caminhando por entre as pedras com seu xale e seus cabelos ruivos esvoaçando ao vento. A ave negra voava à sua volta, subindo e descendo, até que ambas desapareceram por trás de umas árvores de flores brancas que assinalavam os limites do Dique da Guerra.
O Keruvim
O capitão Farrell não gostava que gritassem com ele. Era um militar e gostava de ordem — de preferência, dada por ele. Já havia sido insultado demais por Demurral naquela manhã e sua paciência estava se esgotando.
— Estou certo de que o senhor me julga um absoluto incompetente, Vigário, mas eu entendo da minha profissão e a última coisa que o senhor precisaria me dizer é como pegar um patife como Jacob Crane. Afinal de contas, não fui eu quem quase o matou no bosque na semana passada?
— Sim — disse Demurral. — Eu vi o arranhão na cara dele.
— Arranhão? O homem já estava quase morto quando eu o deixei — objetou Farrell.
— Bem, se estar quase morto é assim, então há esperança para todos nós. Ele está mais vivo que o senhor e eu juntos, e eu não gosto nada disso. Paguei-lhe muito bem para matá-lo, e o senhor não fez o trabalho. Agora, diga-me de uma vez: vai fazê-lo imediatamente, ou devo chamar outra pessoa? — perguntou Demurral, dando um soco na mesa.
— Por que tanta pressa? Essas coisas levam tempo. Como um bom vinho, isso tem de ser saboreado aos poucos, não engolido de uma só vez — disse Farrell que, àquela altura, já estava profundamente irritado.
— Esperar mais? É isso que o senhor quer que eu faça? — perguntou Demurral. — Não posso esperar nem mais um pouco: quero-o morto esta noite e quero que seu barco seja explodido. Semana após semana olho da minha janela e lá está ele, ancorado em Baytown, descarregando todo tipo de contrabando que se possa imaginar. O senhor se dá conta de que isso está prejudicando ao senhor e a mim em nossas rentáveis profissões? O senhor é pago para impedir o contrabando, não para permitir que ele continue a ser feito impunemente.
— Então eu teria de prender a mim mesmo, e ao senhor, é claro — disse Farrell, achando-se extremamente esperto.
— Não seja burro. Será que eles não ensinam nada a vocês no exército? — Demurral fez uma pausa e respirou fundo. — Nós estamos metidos até a alma neste negócio e precisamos acabar com a concorrência. — Demurral deu um suspiro de irritação, enquanto Farrell tirava a poeira de sua vistosa farda vermelha com as pontas dos dedos e alisava seus longos bigodes.
— Por favor, capitão Farrell, faça alguma coisa. Mate-o. Não me importa como. Pode matá-lo de tanto rir, se quiser, mas eu o quero morto. Atire-o do alto do penhasco, faça o que quiser, mas MATE-O! — explodiu Demurral. Beadle, que ouvia tudo do lado de fora da sala, cobriu as orelhas com as mãos.
— Eu pensei que o senhor fosse capaz de fazer isso, Vigário. Afinal está sempre me falando de seus poderes sobrenaturais. Certamente teria como usar sua magia negra para acabar com ele, não haverá algum espírito do além que o senhor possa invocar para carregá-lo para o inferno? Assim meus dragões não precisariam se envolver com isso. Fardas sujas de sangue não ficam bonitas, sabe? — Farrell sorriu para Demurral.
— O senhor... o senhor é um almofadinha, um dândi! É um maricas mimado e vaidoso como um pavão, mas não vale mais do que uma galinha velha! Eu precisava de alguém para fazer só isso para mim e pensei que o senhor fosse a pessoa certa. Não se sai por aí fazendo passes de mágica quando se pode resolver o problema de maneira natural. A magia negra é algo muito especial... bonito... encantador. É como fazer uma pintura muito delicada. Não se pode desperdiçar a tinta.
Farrell olhou para Demurral e depois para o mar. O barco de Crane estava lá na baía, perto da praia. Era uma bela visão ao sol da manhã.
— O que é que eu vou lucrar com isso? — perguntou ele. — Sei que não se trata só de contrabando e que há algo mais por trás disso. Qual é o seu plano?
Farrell ergueu uma sobrancelha ao fazer essa pergunta. Sabia que estavam lhe escondendo alguma coisa. Aquela vida de soldado não lhe agradava e ele sentia falta da vida na alta sociedade de Londres. Ali, naquele norte distante, sentia—se terrivelmente afastado das coisas que conhecia e amava e para as quais gostaria de voltar assim que possível. Seu pai havia comprado aquele posto para ele a fim de livrá-lo de um caso amoroso complicado. Era para ser apenas algo temporário, para poupar a família de um escândalo, e ele logo voltaria. Mas 11 anos haviam se passado e ele ainda estava naquele lugar pedregoso junto ao Oceano Germânico, perseguindo contrabandistas, gritando ordens para os soldados e afundando as botas nas estradas lamacentas entre Baytown e Whitby. Aquela, a seu ver, não era vida para um cavalheiro.
— Se eu lhe contasse uma história, um conto imaginário, o senhor seria capaz de guardá-la para si e não falar dela com ninguém, Capitão?
Farrell ficou curioso. Não respondeu imediatamente. Passou os olhos pela sala, a fim de ter tempo para pensar.
— Se a história for verdadeira, eu honrarei sua confiança — respondeu ele. — Se for algo inventado pela menina que serve gim na taberna, então por que mantê-la em segredo?
— Porque esta é uma história de poder, com palavras vivas que podem lançar raízes em nossas vidas. Palavras que podem modificar a própria essência do mundo. Cada uma delas é como uma seta pronta para perfurar o coração. — Demurral aproximou sua cadeira da de Farrell. — Cada vez que ela é contada, as setas voam pelo mundo fazendo seu trabalho. Não podemos controlá-las. Não temos como direciona-las, e elas acabam encontrando seus próprios alvos. E nunca erram.
Farrell balançou a cabeça para que ele continuasse.
— Posso supor então, Capitão, que o senhor guardará meu segredo?
— Quanto a isso, não haverá dificuldade. Guardarei comigo o que ouvir. Mas o que aconteceria se eu falasse dele com alguém? quis saber Farrell.
— Nesse caso a criatura que o senhor quis que eu invocasse para levar Crane irá atrás do senhor e cortará sua garganta, enquanto você ainda estiver respirando. — Demurral deu um sorriso prazeroso.
Farrell acariciou o próprio pescoço.
— Então não falarei.
— Bom. Essa história está me queimando por dentro. O senhor é única pessoa a quem ouso dizer o que está por vir. Deixarei a seu critério decidir se é verdade. — Ele se curvou na direção de Farrell e fez sinal para que ele se aproximasse. — Imagine dois exércitos inimigos frente a frente em uma batalha, um mais poderoso que o outro. O lado mais fraco tem um comandante que não dá os meios necessários à sua artilharia, que apesar de tudo luta bravamente e está prestes a vencer o inimigo. Subitamente, em meio à batalha, o comandante é capturado, morto, e seu cadáver é abandonado no campo. A batalha termina com a vitória do exército mais poderoso, e os soldados derrotados espalham-se como ovelhas sem pastor.
— Continue. E então...
— Passados muitos anos, começa a correr a história de que o comandante estaria vivo, de que sua vida lhe fora restituída por alguma magia poderosa. Novamente os dois exércitos estão para se defrontar. O comandante descobre que pode dispor da única arma capaz de derrotar o inimigo. Na verdade, com aquela arma, ele poderá tornar-se comandante do exército mais forte que jamais existiu. Teria o poder de controlar os ventos e os mares. Em suma, poderia controlar tudo, até mesmo o tempo. É uma arma tão poderosa que até Deus se curvaria diante dele e todos os anjos se jogariam a seus pés. O que o senhor faria?
Farrell sentiu vontade de rir, nervoso, mas percebeu que aquilo não era uma piada nem uma história qualquer. Seus olhos percorreram o rosto de Demurral à procura de algum sinal de que ele estivesse falando sério.
— Eu faria... eu faria... eu não saberia o que fazer e pediria a Deus que isso jamais acontecesse. — Pela expressão do rosto de Demurral, ele viu que aquilo não era uma história inventada. Viu que Demurral acreditava nela.
— O senhor tem essa tal arma? — perguntou ele ao Vigário, sem saber se aquela não seria uma pergunta estúpida para lhe fazer.
— Capitão Farrell, o senhor é um militar — diga-me, essa arma existe?
— Se tal coisa existisse, valeria todo o ouro do mundo. Com uma arma dessas nenhum exército o deteria. Não sei por que, mas creio que o senhor esteja falando por meio de uma parábola Essa arma existe? — Farrell ergueu novamente uma sobrancelha, sem saber qual resposta teria.
— Existe e está aqui... na torre. Já a experimentei uma vez e os resultados foram inimagináveis. Ela pegou um navio e atirou-o contra as pedras, partindo-o ao meio como uma criança parte um graveto. Imagine que uma coisa dessas cabe na palma da sua mão e que pode controlar todas as forças cósmicas! — Demurral ria, animado.
— Como é que essa coisa funciona? — quis saber Farrell.
— Por enquanto ainda não entendo totalmente. É uma questão de fé. Só sei que ela concentra um poder há muito esquecido em uma forma como não se vê há milhares de anos. O Keruvim não é usado desde os tempos de Moisés.
— E o senhor o tem aqui? — perguntou Farrell.
— Sim. Suponho que gostaria de vê-lo?
— Eu gostaria de saber o que o senhor vai fazer com ele.
— Meu caro, eu farei o que quiser, quando quiser, contra quem eu quiser. Um homem como o senhor poderia me ser útil. Todo general precisa de um Capitão.
— E todo Capitão precisa ser pago por seu trabalho — disse Farrell.
— Isso é um detalhe de pouca importância. Que país você gostaria de controlar? — Demurral não parecia estar brincando. A excitação era visível em seu rosto. Ele parecia um garotinho que acabava de ganhar um lindo presente. Era algo que ele precisava mostrar; alguém precisaria ver aquilo, e Farrell era o que ele tinha de mais parecido com um amigo. Demurral era incapaz de demonstrar afeto por qualquer pessoa e sabia disso. Sua frieza o protegia de complicações desnecessárias na vida. Ele achava que amizade era algo muito complicado, que exigia demais das pessoas. Às amizades precisavam ser cuidadas, trabalhadas, suportadas. Ele não tinha paciência para essas coisas. Quando era pequeno, ganhou um bichinho de estimação — um ratinho branco — que ficava em uma caixa de madeira. Durante alguns dias brincou com o animal, deixando que a criaturinha lhe subisse pelos braços agarrando-se à sua roupa. Então cansou do bicho. Fechou a tampa da caixa pela última vez e enterrou-a no jardim. Nunca mais voltou a pensar no ratinho nem se importou com a maneira como ele morreu. À medida que foi envelhecendo, foi ficando mais fácil ainda para ele ignorar o sofrimento dos outros e até mesmo infligir sofrimento.
— Quem mais sabe sobre essa arma? — perguntou Farrell.
— O único que conta é Jacob Crane, mas nem mesmo ele tem noção de seu verdadeiro valor. Crane é um homem sem fé. É um espertalhão cruel que seria capaz de vender o próprio pai, se é que um dia teve um — respondeu Demurral. — Quando acabarmos com ele, poderemos fazer o que quisermos.
— Há apenas um pormenor que me preocupa. — Farrell não queria fazer essa pergunta a Demurral, mas não pôde deixar de fazê-la: — O que o impedirá de me matar quando tiver todo esse poder?
— Nada. Absolutamente nada. O senhor simplesmente terá de confiar em mim — disse Demurral enquanto tirava um relógio do bolso de seu casaco. — Tenho umas pessoas lá na torre que gostaria de lhe apresentar. Elas tentaram roubar o Keruvim e agora aguardam sua punição. Posso também mostrar-lhe algo que o ajudará a compreender o poder que tenho à minha disposição.
Latet Anguis in Herba
As cobras permaneciam enrascadas em sua caixa aberta junto à porta no alto da torre. A brisa gelada que soprava por baixo da porta as mantinha quietas e elas apenas levantavam as cabeças de vez em quando para investigar o ar com suas línguas compridas.
Kate, Thomas e Raphah conversaram sobre o que poderia acontecer a eles quando Demurral voltasse e depois se calaram. Cada um se recolheu a seu mundo interior, lutando contra seus medos.
Kate forçou as cordas que amarravam seus pulsos aos braços da cadeira e se deu conta de que seria impossível soltar-se dali. Porém, por mais impotente que se sentisse, ela estava decidida a não se entregar a Demurral. A revolta que aumentava dentro dela dava-lhe forças para pensar em fugir — ou fugir ou tentar fazer alguma coisa terrível contra Demurral nos últimos instantes de sua vida. Sua mente não parava de planejar o que ela faria. Ela olhou pela sala e viu que os únicos objetos que poderiam ser usados como armas eram os castiçais. Depois lembrou-se de outra coisa: quando eles foram traídos por Crane, não haviam sido revistados. Thomas ainda tinha a espada do varrigal presa às costas, sob a túnica. Nem Demurral nem Beadle pensaram em revista-los, de tão excitados que haviam ficado com sua captura. Kate imaginou-se livrando-se das amarras, pegando a espada de Thomas e acertando golpes mortais no feiticeiro e no seu aprendiz.
Ela tornou a forçar os cordões dourados que prendiam seus pulsos, mas eles pareciam mais apertados ainda e lhe machucavam a pele. Parecia que, quanto mais ela pensava em fugir, mais as cordas ficavam apertadas. Kate se deu conta de que suas esperanças de fuga provavelmente seriam frustradas.
Thomas não conseguia mais ficar calado. Havia duas horas que Raphah não parava de murmurar coisas que ele não compreendia. Ele se achava culpado por tudo que estava acontecendo. Não deveria ter confiado em Jacob Crane. Quando conseguiram fugir pela primeira vez, ele deveria ter levado Kate para casa. Sentia-se um tolo e sabia que estava sendo castigado por isso.
A única maneira de escapar dali, pensava ele, seria tentar convencer Demurral a soltá-los. Ele não poderia lhes recusar isso. Demurral conhecia Thomas desde bem pequeno. Thomas tinha ouvido incontáveis sermões proferidos por ele, sentado bem quieto no banco desconfortável da igreja por horas a fio. O Vigário teria coragem de matar uma pessoa que conhecia? Thomas recostou-se na cadeira. Suas mãos já estavam dormentes devido às cordas apertadas. O menino pensou naquele lado secreto e violento de Demurral, que ele escondia e que agora revelava para eles. Quanto mais pensava sobre isso, mais crescia dentro dele a dúvida quanto a seu futuro. Não tinha quem se interessasse por ele, ninguém que pudesse salva-lo. Sua única esperança era a de que o sonho que tivera se tornasse realidade.
Durante todo esse tempo, Raphah mantivera os olhos fixos na parede e um sorriso confiante nos lábios. Estava concentrado em Riathamus. Percebeu que Kate e Thomas olhavam para ele tentando ouvir as palavras que ele repetia sem parar.
"Abençoada seja a força de Riathamus,
Que ensina minha mão a guerrear.
Minha bondade e minha fortaleza;
Minha torre alta e meu salvador,
Meu escudo e minha fé.
Ele derrota meus inimigos diante de mim..."
Raphah parou e virou-se para os outros.
— Antes que vocês perguntem, essa é uma canção para Riathamus. Ela está no Livro — disse ele. — Eu estou rezando, falando com ele. Isso ajuda.
— E o que é que Riathamus está dizendo? Que vamos todos morrer? — perguntou Kate, impaciente. — Se é só isso o que ele diz, então de nada vale essa sua conversa. É o mesmo que você falar para o teto ou para o ar. — Ela forçou novamente as cordas tentando se libertar. — Foi por causa de seu Deus que viemos parar neste lugar. Quando é que ele vai nos tirar daqui? — perguntou ela.
— Você já tentou falar com ele, ou sua boca só tem palavras de rancor? — retrucou Raphah.
— Já falei com Deus muitas vezes, mas ele nunca escuta — declarou ela com raiva. — Quando minha mãe morreu, eu pedia a ele todos os dias que a trouxesse de volta, mas nada aconteceu. Se é um ser perfeito, como pode ser tão surdo? Ou será que não se importa com gente como eu?
— Ele tem mais amor por você do que você possa imaginar, mas a fé começa pela aceitação e pelo reconhecimento de nossa fraqueza. Só então somos capazes de perceber o poder e a majestade de Riathamus. Em nossa fraqueza encontraremos sua força, em nossa pobreza, sua riqueza. É somente nele que encontramos a paz. Ele é o ser mais poderoso de toda a criação. — Raphah deu um belo sorriso para eles.
— Então por que você vai morrer conosco, se seu Deus é tão poderoso? — perguntou ela.
— Muitos outros, melhores do que eu, já deram suas vidas por ele — disse Raphah tranqüilamente. — Todos nós morremos e isso é algo de que não podemos escapar. O mais importante é saber para onde iremos ao atravessarmos a Ponte das Almas. — Raphah percebeu que os olhos de Kate brilhavam, enquanto ela procurava as palavras para expressar sua raiva.
— Palavras! — exclamou ela. — Palavras vazias, sem utilidade alguma, sobre um Deus inventado! Pois eu não quero morrer aqui. Nem aqui nem em lugar nenhum. Quero envelhecer e só então dormir para não acordar mais. E aí não sei nem quero saber o que vai acontecer comigo. Como é que você pode provar que esse seu Deus existe?
— Você precisa de fé — disse Raphah. — Bastaria uma sementinha de fé. Algo em que você acreditasse e confiasse. Você sofreu muito e por muito tempo, e a dor a cegou para a fé. Abra seu coração. Deixe entrar nele o único ser que pode salva-la.
— Como posso acreditar no que eu não conheço? — A essa altura da discussão, Kate já estava chorando. — Eu estou com medo. Estou com tanto medo. Só quero que tudo isso acabe.
Thomas sentiu uma enorme pena de Kate. Eles haviam compartilhado tantas coisas em suas vidas e agora estariam juntos na morte também. Teve vontade de gritar para ver se despertava daquele pesadelo. Teve vontade de abraçá-la e protegê-la como ela sempre o havia protegido. Ela sempre tinha sido forte Ele se sentiu inútil por não ter como salva-la. Kate era quem tinha maior força interior. Era ela quem lhe dava coragem para enfrentar as adversidades, quem levava roupa e comida para ele na caverna junto à praia, quem mantinha viva, dia após dia, sua decisão de resistir.
Quando seu pai morreu, foi Kate quem procurou consola-lo, quem o abraçou, apesar de ela mesma ser uma criança. Ela afastara dele o medo da solidão e a dor da perda que o dominavam. Kate havia sido tudo para ele e agora ali estava ela com as lágrimas escorrendo pelo rosto e indo cair no chão de pedra.
Thomas sabia que estava prestes a chorar também. Sentia a garganta tão apertada que nem podia mais engolir, e seus olhos ardiam. Ele respirou fundo tentando não chorar, mas sentiu-se pior, porque o choro saiu mais forte ainda. Às lágrimas rolaram de seus olhos e ele procurou controlar a situação de pânico que o dominava. Seu coração batia forte e descompassado, e o medo retesou os músculos de seu corpo. Ele chorava por si mesmo, por Kate, por tudo que estava prestes a acontecer. Sentia como se estivesse afundando no desespero. Às cobras ergueram suas cabeças de dentro da caixa e sibilaram em resposta.
— Meu salvador, meu protetor, meu Deus em quem confio! Pela Palavra Sagrada, salve-nos! — Essas palavras saíram da boca de Thomas sem que ele soubesse como. Mas ele esperava que aquele ser com o qual havia sonhado, o misterioso Rei, não fosse apenas fruto de sua imaginação, e que pudesse ouvi-lo.
Imediatamente o menino sentiu uma profunda sensação de paz. Às lágrimas pararam de rolar por suas faces e sua agonia deu lugar à tranqüilidade. Em sua mente, ele voltou a ver o Rei, que lhe sorria.
Vindo de algum lugar acima da torre, Thomas ouviu um som que lhe era familiar. Eram gaivotas que passavam em revoada. Os gritos dos pássaros, porém, foram ficando intensos e ameaçadores, e um frio percorreu a espinha do menino. Ele já as ouvira gritar assim certa vez, quando estava em alto-mar no barco do pai. Uma revoada colossal e ameaçadora daqueles pássaros do mar devorava ferozmente o corpo de uma pequena baleia ainda com vida que afundava e voltava à superfície do mar calmo. Ele as vira arrancar com seus bicos pedaços da carne do pobre animal enquanto a água ao redor dela ia sendo coberta de óleo, sangue e pedaços de seu corpo.
Pelas janelas estreitas ele podia ver as silhuetas de centenas de pássaros voando em círculo ao redor da torre. Seu número era cada vez maior, e a algazarra que faziam também aumentava. Eram tantas que chegavam a impedir a entrada da luz na sala onde os três se encontravam. Os pássaros pousaram no teto de metal e, sem parar de gritar, arranhavam—no com suas garras e bicavam ferozmente sua superfície dura.
— Meu pai dizia que as gaivotas são almas de marinheiros que se afogaram no mar e que voltam ao porto de onde partiram — disse Thomas.
— Meu pai dizia que quando morremos vamos para junto de Riathamus, e que aqueles que falam em retorno a esta vida enganam-se a si mesmos e a quem lhes dá ouvidos — disse Raphah com firmeza.
Ao longe, o sino de alarme da mina alume soou. O DONG... DONG... DONG grave e assustador indicava a iminência de algum perigo. Do alto do prédio principal da mina, ele avisava todas as pessoas para procurar abrigo no Vicariato.
Kate foi a primeira a falar, tentando ver, aflita, o que estava acontecendo.
— O que essas gaivotas estão tentando fazer? — perguntou ela à medida que mais e mais pássaros pousavam no telhado fazendo uma barulhada infernal.
Foi neste instante que eles sentiram o estrondo. A princípio pareceu-lhes um forte trovão ecoando nas colinas, mas a torre tremeu, fazendo vibrar o Keruvim e os castiçais no altar. Às cobras encolheram-se na caixa e as cadeiras escorregaram pelo chão de pedra.
Uma nuvem de poeira branca despencava do teto a cada tremor, e os pássaros levantaram vôo todos ao mesmo tempo em enorme gritaria. Às colunas que sustentavam o telhado soltaram-se de seu apoio no chão e as paredes da torre pareciam se mover.
— A terra está tremendo! — exclamou Thomas. Kate olhou ao seu redor, certa de que ouvira seu nome ser chamado.
— Riathamus ouviu sua prece e está fazendo a terra tremer para demonstrar sua ira. O mar se erguerá — disse Raphah. — Os pássaros sabiam do que estava acontecendo antes que fôssemos capazes de sentir a terra tremer. Precisamos fugir daqui antes que a torre desabe.
Foi Kate quem primeiro ouviu os passos de alguém que subia a escada da torre com dificuldade.
— Ouçam... alguém está subindo — disse ela baixinho, mas quase não foi ouvida por causa da algazarra das gaivotas. Beadle destrancou a porta e entrou na sala, olhando para as cobras em sua caixa. O homenzinho tinha no rosto uma expressão de pânico. Kate aproveitou-se do medo dele para desafiá-lo.
— Qual é o problema, Beadle? Seu patrão mandou você vir fazer o trabalho sujo?
— Ele quer o Keruvim. Acha que ele estará mais seguro fora daqui. As escarpas de North Cheek e metade de Baytown já sumiram no mar — respondeu Beadle apressado, sem querer perder tempo ali.
— Então leve-nos também — disse Kate. — Ele não vai querer que a gente morra soterrado, vai? Ele tem outros planos para nós.
— Ele não mencionou vocês. Só disse para eu pegar a estátua e é o que vou fazer — respondeu ele.
— Se nos levar também, ele ficará muito satisfeito. Ele precisa de Raphah vivo até hoje à noite, quando fará a cerimônia — disse ela rapidamente.
Beadle parou. Parecia confuso. Olhou para os três ali amarrados sem saber o que fazer.
— Se eu os desamarrasse dessas cadeiras, o que me garante que não tentariam fugir?
Kate olhou para Thomas e para Raphah. Seus olhos disseram a eles que não falassem. Ela faria a negociação.
— Nós não temos mesmo como escapar — disse ela. — Seja como for, Beadle, como é que você se sente envolvido em tudo isso? Você é um homem bom; meu pai sempre disse coisas boas a seu respeito. Você não concorda com o que Demurral está tentando fazer, não é mesmo?
Beadle olhou para Kate e viu que ela falava com sinceridade.
— Às vezes eu mesmo nem me reconheço. — Beadle tentou sorrir. — É como se alguma coisa me possuísse e eu tivesse de fazer tudo que ele manda. Mas também não sei onde estaria se não fosse ele.
— Você estaria bem melhor sem ele — disse Kate, estimulando-o a se revoltar contra o patrão. Ela percebeu que havia conseguido plantar uma semente de dúvida na mente do empregado. A conversa foi interrompida por um novo tremor que sacudiu a torre. Do teto e das paredes, uma poeira caiu sobre eles. Beadle agarrou rapidamente o Keruvim e correu para a porta, arrastando a perna doente. Kate gritou:
— Você não pode nos deixar aqui! A torre é capaz de desabar! Beadle parou e pôs o Keruvim no chão. Virou-se então para Raphah.
— Acho que ela tem razão. O Vigário não iria ficar satisfeito comigo se eu deixasse vocês morrerem. Só lhes peço uma coisa: que não façam nada contra mim, estamos de acordo? — Ele começou a desamarrar as cordas com dificuldade. Cada nó parecia querer lhe dizer para não fazer aquilo.
Ele desamarrou Raphah, em seguida Kate e depois Thomas. Foi então que se deu conta do erro que cometera. Kate rapidamente pegou a espada do varrigal que estava presa às costas do menino e que Beadle não tinha visto. Ela brandiu a arma diante dos olhos dele, e ele pôde ver que ela estava manchada de sangue. Beadle deu um pulo para trás na direção do altar e ergueu os braços.
— Por favor, não me matem! Eu faço o que vocês quiserem, mas não me matem — suplicou ele. — Posso ajudá-los a fugir. Eu mostro o caminho.
— Não precisamos de ajuda de ninguém — disse Kate. — O que vamos fazer com ele, Raphah?
A resposta veio na forma de outro tremor de terra que sacudiu a torre. Os pássaros levantaram vôo gritando como se anunciassem algo horrível que estava por acontecer.
— Não podemos deixá-lo aqui ou ele teria o mesmo destino que íamos ter. Devemos nossas vidas a ele. — Raphah agarrou Beadle pelo cangote. — Você me marcou com ferro em brasa como um escravo, mandou que me espancassem e me prendessem para seu patrão. — Ele fez uma pausa e olhou bem nos olhos de Beadle. — Mas eu o perdôo pelo que fez.
Beadle não respondeu; baixou a cabeça e ficou olhando para as pedras do chão.
— Pegue as cobras. Elas parecem conhecê-lo bem — ordenou Raphah arrastando Beadle pelo pescoço até a porta. — Leve a caixa. Isso manterá suas mãos ocupadas e estas cobras ainda podem vir a nos ser úteis. Eu levarei o Keruvim. Demurral achava que seria poderoso se o pudesse controlar, mas jamais poderia imaginar as forças que o Keruvim pode desencadear.
Kate estava extasiada. Não cabia em si de tanta emoção, ainda apontando a espada trêmula para Beadle. Ela se voltou para Thomas.
— Ele respondeu! Parecia um trovão, mas eu ouvi a voz dele! Ele falou meu nome!
Seus olhos encheram-se de lágrimas, mas eram lágrimas da felicidade que transbordava de seu coração. Raphah sabia como ela se sentia e pôs a mão no ombro da menina.
— Ainda não saímos dessa. Não sei que forças Demurral já conseguiu liberar com o Keruvim. Talvez haja criaturas que terei de enfrentar. — Ele olhou para Thomas e Kate. — Vocês podem ir embora agora, ou ficar até o fim. — Raphah olhou-os nos olhos aguardando a resposta. Os dois se entreolharam e em seguida olharam para Raphah.
— Vamos com você — disse Kate baixinho. — Somos tão parte disso quanto você.
O Corvo de Ouro
O corpo do assaltante de estradas balançava de leve ao vento dois metros acima da cabeça de Jacob Crane. O nó da corda apertava bem o pescoço do defunto ali pendurado, que mais parecia um boneco de marionete esquecido naquele lugar ermo. Crane olhava para cima pensando em pegar para si aquelas botas novas que o defunto usava. Na verdade, estava surpreso por elas ainda não terem sido roubadas. Eram botas elegantes, de couro negro com fivelas de prata, agora protegendo inutilmente os pés de um homem que já apodrecia. Foi quando ele o examinou mais de perto que percebeu as marcas reveladoras de varíola no rosto do homem: suas bochechas inchadas e a pele com feridas profundas. Ali estava a explicação: ninguém tiraria coisa alguma do cadáver de um homem com varíola. Crane estava surpreso até com o fato de alguém ter tido a coragem de enforcar aquele homem com varíola sem temer contaminar-se com a doença. Ele se lembrou das palavras ditas pela mulher no charco e ali, agora, na encruzilhada de Rudda, estava a resposta, era aquele o seu futuro: morrer de varíola ou enforcado e ficar ao relento exposto à brisa do outono, sem alguém que o enterrasse ou chorasse a sua morte?
— E você, o que me diz — perguntou ele ao defunto. — Quem chorou sua morte? Teremos o mesmo destino, você e eu? — Crane puxou seu cavalo pelo bridão e foi caminhando pela trilha que levava ao mar. — Fique em paz, companheiro. Nós nos veremos no inferno — disse ele Voltando-se uma última vez para o enforcado.
Ele caminhou por algum tempo pela trilha estreita que atravessava o bosque de Uggle até achar que não haveria perigo em montar novamente. Quando o primeiro tremor de terra ocorreu, ele decidiu ir puxando seu cavalo, sem saber o que estava acontecendo. Crane olhou para o norte, onde uma nuvem em forma de coluna crescia e espalhava-se no céu no sentido leste-oeste. Ela irradiava um brilho estranho que mesmo à luz da manhã era mais intenso do que o do sol. Mas não parecia irradiar calor. Aquilo tudo era muito estranho. Crane olhou para o chão e viu que projetava duas sombras — uma para o norte e outra para o sudoeste.
Ele cavalgou pela trilha esburacada e pouco depois já podia ver Beastcliff. Novamente sentiu que não estava sozinho e olhou para trás. Tinha certeza de que estava sendo observado. Na beira da escarpa havia outra trilha, estreita e íngreme demais para ser descida a cavalo. Ela descia bruscamente para o platô e continuava fazendo curvas até desaparecer na vegetação de arbustos e espinheiros. "Aqui daria para esconder um exército inteiro ou toda a carga de aguardente de um navio", pensou Crane consigo mesmo.
Tirando o alforje duplo da sela e jogando-o no ombro, ele deixou o cavalo no alto da escarpa e pôs-se a descer pela trilha. Logo chegou a um lugar onde ficaria ao abrigo da vegetação. Uma trilha feita por animais entrava pelo bosque e em várias árvores ele notou marcas estranhas e profundas que o deixaram preocupado.
Pensou no que a mulher do charco lhe dissera. O rosto daquele homem enforcado, com a cara deformada pela varíola, não lhe saía da cabeça. Ele tirou a pistola da cintura e a engatilhou, certo de que alguém seguia seus passos no meio do mato.
Ele não queria ser apanhado de surpresa por homem ou animal, nem por — pois Jacob Crane havia sido forçado pelas circunstâncias a ampliar o universo de suas crenças — criaturas ou espectros de qualquer natureza.
Com extrema precaução, ele foi seguindo pela trilha que atravessava o bosque. Às copas das árvores fechavam-se acima de sua cabeça impedindo que ele fosse visto. Ao olhar por entre os malhos, ele viu a figura de um homem bem acima dele, no alto da escarpa. Crane abaixou-se e tirou a luneta do alforje. Sua apreensão tornou-se ainda mais intensa. Pela lente de sua luneta de cobre, viu um homem não muito mais velho do que ele, de longos cabelos negros e com uma pequena barba. Vestia-se dos pés à cabeça de couro negro e usava uma camisa branca com babados. O homem olhou para baixo, onde Crane estava escondido, sorriu para ele e, erguendo a mão, fez-lhe um leve aceno. Crane olhou novamente e o homem já não estava mais lá.
Pouco depois Crane chegou à entrada do túnel secreto que ia da escarpa ao Vicariato. Na clareira estavam Blythe e Skerry. A seus pés havia uma lanterna de tempestade e um pequeno barril de madeira. Pólvora.
Ele correu até lá.
— Bom trabalho, rapazes, é exatamente disso que precisamos. Deve bastar para sacudir o velho Demurral da cama. Isto é, se ele já não foi sacudido o bastante hoje — disse ele.
— Foi o despenhadeiro de North Cheek, ele despencou inteiro no mar, junto com metade de Baytown — disse Skerry.
— E o que aconteceu com meu barco?
— Depois do desmoronamento, uma enorme onda ergueu-se de um lado a outro da baía — disse Blythe olhando para Skerry. —Vimos quando a onda pegou seu barco, ergueu—o no ar como quem tira a rolha de uma garrafa, e depois tornou a colocá-lo no mesmo lugar, como se nada tivesse acontecido. O terremoto sacudiu toda a mina. Parecia o fim do mundo.
— O fim do mundo pode estar mais próximo do que vocês pensam, rapazes — disse Crane, abaixando-se para pegar a pólvora. — Vamos logo para o túnel. Daremos àquele cachorro velho a grande surpresa de sua vida, ou, mais precisamente, de sua morte.
Ele entrou no túnel. Água pingava do teto e as paredes estavam cobertas por uma espessa camada de musgo pegajoso. Os outros o seguiram. Crane parou e olhou para trás, onde estava a entrada iluminada pela luz do dia. Ficou aguardando.
— Algum problema, Capitão? — perguntou Blythe.
— Vamos esperar um pouco. Acho que alguém está interessado nesta nossa jornada. Quero ver se estou sendo seguido ou se os acontecimentos dos dois últimos dias me deixaram com os miolos moles.
Debaixo dos galhos da grande árvore e dos arbustos que a cercavam, Kate mantinha a espada apontada para Beadle, que carregava a caixa com as cobras a pouca distância dela. Raphah e Thomas espiavam por entre a vegetação à procura dos Dragões.
— Por onde vamos, Thomas? — perguntou Raphah. — Entramos na casa e atravessamos o túnel, ou será melhor descer pela mina?
Thomas pensou por alguns segundos, avaliando cada alternativa.
— Pela casa e pelo túnel. Isso nos dará melhor cobertura, mas teremos de passar por Demurral.
— Eu posso ajudá-los a passar sem serem vistos — ofereceu-se Beadle.
— Não Beadle — disse Kate sem deixar de apontar a espada para ele — Não acho que possamos confiar em você. Vamos levá-lo conosco e, quando estivermos longe de casa, nós o libertaremos. Fique bem quieto, ou eu corto suas orelhas e faço uma bolsa com elas. — Ela deu uma risada. Já se sentia forte novamente, agora que estavam livres da torre e tinham a possibilidade de fugir. Kate pensou em sua casa, que ficava na parte mais alta de Baytown. Queria logo saber se a casa ainda estava lá e encontrar seu pai.
Raphah olhou para a nuvem que espalhava sua estranha claridade pelo céu.
— Não temos muito tempo. Talvez uns dois dias, no máximo — disse ele. — Demurral fez alguma coisa com o mundo da qual nem ele mesmo se deu conta ao usar o Keruvim. É possível até que ele tenha liberado os glashans. Se eles estiverem soltos, não vão demorar para nos encontrar.
— Quem são os glashans? — perguntou Thomas.
— São criaturas que eu jamais gostaria de encontrar. São seres tão malignos que não se pode imaginar o que fariam neste mundo. Antes do início dos tempos, os glashans se rebelaram contra Riathamus. Tentaram conquistar o poder, mas os seruvins lutaram contra eles e muitos caíram no campo de batalha. O chefe deles foi exilado para a terra; ele tem tentado os homens desde então. O poder dos glashans foi contido desde os tempos da Grande Captura, quando Riathamus os derrotou na batalha da Caveira. Seu chefe era uma criatura chamada Pyratheon; ele quer ter a posse do Keruvim. Minha família sempre o protegeu deles, mas um dos nossos ajudou a trazer o Keruvim para cá e a vendê-lo para Demurral. — Raphah baixou a voz. — Há dois Keruvins no mundo: um é de ouro e o outro é de carne e osso. Agora estamos entre vocês.
— Então é por isso que Demurral quer matá-lo? — perguntou Kate.
— Sim, e se ele fizer isso os glashans lutarão novamente contra Riathamus. A Grande Captura terá terminado. Demurral pensa que o Keruvim é um brinquedo mágico que ele pode usar como quiser. Pyratheon jamais lhe permitiria controlar seu poder. Demurral não sabe do risco que está correndo.
— E o que acontecerá se Demurral fizer isso? — perguntou Thomas.
— Está escrito que a lua ficará da cor do sangue, o céu se tornará negro e a terra será atingida por um corpo celeste que cairá no mar e envenenará todos os oceanos. Epidemias de peste vão se espalhar pela terra. Guerras e terremotos destruirão todas as cidades. E Pyratheon dominará a terra por mil anos. Seria melhor nós todos morrermos a termos de passar por tudo isso. — Raphah temia que mais alguém o ouvisse. Fez um sinal para que os dois se aproximassem. — Demurral pagará caro por sua ganância; Pyratheon exigirá que tudo seja seu. Ele tentará capturar o Keruvim antes que termine a lua cheia.
— Como poderemos impedi-lo se somos apenas três? — perguntou Kate.
— Aqui neste país festeja-se uma data que se chama Samhain; alguns a chamam de Halloween. Nessa noite, os portões da prisão dos glashans atingem seu ponto mais vulnerável. Precisarei estar longe daqui com o Keruvim. O poder de Pyratheon é limitado; ele não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ele não é todo-poderoso e precisa contar com seus seguidores, seres humanos que praticam magia negra e bruxarias. Aqueles que o seguem Serão destruídos com ele — disse Raphah, apertando o Keruvim contra o peito.
— Então temos de ajudá-lo a chegar a Whitby. Podemos chegar lá hoje à noite e você partirá em um barco amanhã logo cedo — disse Thomas. — Vamos depressa. Demurral não vai imaginar que nós usaremos a casa para chegar aos túneis. De lá podemos chegar à praia e, quando a maré baixar, caminharemos até Baytown.
Thomas sabia que não seria tão fácil assim. Vinte soldados do Regimento dos Dragões estavam sentados na estrebaria entre a grande árvore e a porta dos fundos do Vicariato. Lá dentro, o capitão Farrell e Demurral estariam em uma das salas dando para o longo corredor que passava também pela cozinha, e que os levaria à adega e ao túnel. Não se podia confiar em Beadle. Com um único grito, ele poderia alertar os soldados ou, se esperasse até entrar na casa, poderia gritar por Demurral, e aí não haveria como escapar.
Thomas pegou a espada da mão de Kate e cutucou Beadle.
— Se você abrir a boca para falar, vou ter de atravessar você com isto, entendeu? Farei mesmo isso, Beadle: é a sua vida ou a nossa.
Beadle olhou para os três. Eles estavam sujos e cansados. Era obvio que Raphah sentia a dor da queimadura e da pancada na cabeça. Algo dentro dele lhe dizia que era culpado por aquilo. Sabia que parte da culpa pelos sofrimentos infligidos ao rapaz era sua, e aquele sentimento o incomodava. Deixava-o perturbado. e olhou para Raphah e lembrou-se do que o rapaz dissera pouco antes de eles saírem da torre.
— Como é possível você me perdoar se eu lhe fiz tanto mal? — Perguntou Beadle.
— É o que Riathamus nos manda fazer — respondeu Raphah.
— Mas eu não conheço nem gosto de você. Seria capaz de maltratá-lo mais ainda. Como é possível você dizer que me perdoa por isso? — Ele falava baixinho, com aquela voz anasalada e com a verruga na ponta do nariz sempre tremendo.
— Se eu não o perdoasse, não estaria sendo coerente comigo mesmo. O rancor come a pessoa por dentro. Eu poderia odiar você para sempre pelo que fez e pelo que teria feito, mas que bem isso me faria? Isso me tornaria uma pessoa ruim como você e seu patrão. Seu problema foi agarrar-se ao casaco de Demurral enquanto ele tomava o caminho do mal. Você não fez nada para tentar demove-lo, e por isso essa cumplicidade acabou manchando de sangue as suas mãos também.
Essas palavras doeram em Beadle como chicotadas de vara. Ele não teve como responder.
— Então, como ficamos? — perguntou Thomas a Beadle. — Se você abrir a boca para nos denunciar, enfio esta lâmina nas suas costas e depois ainda corto fora esta verruga do seu nariz.
— Eu lhes dou a minha palavra, se é que ela vale alguma coisa para vocês, de que ficarei em silêncio — respondeu Beadle.
— Não podemos confiar nele. Vamos amarrá-lo na árvore e deixa-lo aí — sussurrou Kate.
— Algo me diz que é melhor levá-lo conosco. Se formos descobertos na casa, poderemos negociar nossa vida com a dele — disse Raphah.
— Eu lhes mostro o caminho até o túnel. Prometo dar-lhes uma hora de fuga antes de falar com Demurral. É o tempo que levarei para caminhar da escarpa até a casa, podem ter certeza... —disse Beadle.
— Temos a sua palavra? — perguntou Raphah. — Então vamos levá-lo conosco. Mostre-nos o caminho. Mas, se nos trair, terá de se entender com Riathamus.
— E terá de se entender com esta espada também — disse Thomas baixinho no ouvido de Beadle. — Posso ser apenas um menino mas nestas duas últimas noites aprendi a ser homem. Ele pode ter perdoado você, Beadle, mas meus pulsos ainda estão queimando por causa daquelas cordas que você amarrou.
Juntos, eles deixaram a proteção da grande árvore e dos arbustos e puseram-se a atravessar o pátio de cascalho em direção à porta dos fundos do Vicariato. Não havia qualquer sinal da presença dos Dragões, a não ser seus cavalos, que descansavam na estrebaria. Beadle ia um pouco à frente, ainda carregando a caixa de madeira com as cobras. Thomas ia logo atrás, com a espada escondida junto ao braço, pronta para ser usada ao menor sinal de problema.
Beadle levou-os para dentro da casa. Andando sem fazer barulho, eles logo chegaram ao corredor que passava pela porta da cozinha e seguia até o porão, de onde sairiam pelo túnel. Não havia sinal de Demurral; a casa estava estranhamente silenciosa. A cozinheira não resmungava na cozinha nem fazia barulho atirando panelas a pia. A casa estava imersa em um silêncio sobrenatural.
—- Não há ninguém aqui — murmurou Beadle. — Eles devem ter ido para a frente da casa ver o despenhadeiro que desmoronou em Baytown.
Era um grande alívio saber que nada os atrapalharia em sua ga. O desmoronamento do despenhadeiro significava que a mina teria sido evacuada. Todos deveriam estar vendo a terra escorregar para dentro do mar e o brilho cada vez mais intenso daquela estranha nuvem vermelha a se espalhar pelo céu.
O longo corredor fedia a peixe e carne podres. Era escuro, triste, sem qualquer luz vinda de fora. A cada poucos metros, pequenas velas espetadas em prendedores nas paredes descascadas tremulavam à passagem do grupo e projetavam longas sombras nas paredes. No fim do corredor, uma janela deixava entrar o brilho vermelho da nuvem. Este se refletia no grande espelho dourado pendurado na parede e cintilava nas asas do corvo dourado. Beadle parou e fez um sinal para que os outros ficassem muito quietos.
Temendo serem descobertos, eles caminharam o mais silenciosamente possível ao passarem pela entrada do salão. A porta do escritório de Demurral estava fechada; na escadaria que levava ao andar de cima da casa não havia ninguém. A grande estátua do corvo dourado que parecia montar guarda ao salão tinha os olhos fixos neles. Os quatro iniciaram então o longo percurso que passava pela cozinha e ia até o porão. Naquele exato momento, ouviram um som de trovão e a casa estremeceu. Seus passos se apressaram e seus corações dispararam. Eles sentiam as pernas fracas e as bocas secas. Foi necessário um grande esforço de cada um para não gritar e sair correndo da casa.
Raphah viu a expressão de pavor estampada no rosto de Thomas. Olhou então para Kate, que mordia os lábios e tinha a testa franzida pela ansiedade.
Foi então que ouviram um baque surdo vindo da direção da porta da frente. Beadle foi o primeiro a olhar para trás. Uma expressão de terror contorceu-lhe o rosto. O corvo havia caído no chão e estava se levantando, sacudindo as penas. Ele estava vivo! Seus olhos dourados voltaram-se em cheio para eles, enquanto seu enorme bico dava bicadas ameaçadoras no ar. Ele sacudiu novamente as penas, deu dois passos em direção a eles e abriu as asas.
Todos começaram a correr o mais depressa que podiam. Beadle que lutava com sua perna aleijada, logo distanciou-se do grupo enorme corvo dourado lançou-se sobre ele como se ele fosse um coelho no campo prestes a ser despedaçado pelo poderoso bico dourado da ave.
— Corram! Não parem! Vou tentar fazer alguma coisa — exclamou Beadle. Ele atirou a caixa com as cobras no corvo. Às três víboras saíram serpenteando pelo chão, mas foram destroçadas pelo gigantesco pássaro. Beadle tentou correr mais rápido, e pelo caminho ia abrindo as portas que davam para o corredor, a fim de dificultar a passagem do animal.
Eles ouviram o bang-bang-bang das portas sendo derrubadas pela enorme criatura ao passar. Thomas parou e olhou para trás. Viu Beadle correndo como podia e o pássaro se aproximando dele. Com a espada erguida, ele correu de volta na direção de Beadle.
— Não seja tolo, menino, salve-se! — exclamou Beadle desesperado. Ao dizer isso, ele entrou pela porta da cozinha e fechou-a atrás de si com violência. O corvo lançou-se contra a porta, arrancando dela pedaços que se espalharam pelo corredor. Thomas podia ouvir Beadle empilhando cadeiras contra a porta para proteger-se. — Corra! Vá para o porão! — A voz abafada de Beadle mal podia ser ouvida, tamanho o barulho.
Thomas não correu. Sabia que em poucos segundos o gigantesco pássaro derrubaria a porta e faria Beadle em pedaços.
— Venha me pegar, sua galinha gorda! — exclamou Thomas para o pássaro, brandindo a espada do varrigal acima da cabeça.
O corvo parou de destruir a porta e virou-se para ele, olhando-o fixamente. Tinha quase dois metros de altura e ocupava toda a largura do corredor. Suas longas garras de metal enterraram-se nas tábuas do chão, preparando-se para o bote.
Thomas estava em pânico. Raphah e Kate haviam corrido para o porão. Ele estava sozinho. Foi então que ouviu uma voz que parecia falar diretamente a seu coração.
— Eu estarei com você até o fim dos tempos. — Era a voz do Rei.
O corvo atirou-se em cima de Thomas, que se surpreendeu com a velocidade do animal. O menino deu alguns passos para trás sem saber o que fazer nem como enfrentar tal criatura. Ele o atacou com sua espada, mas esta não teve efeito algum ao bater contra o metal. O pássaro agarrou o menino pela roupa, ergueu-o e pôs-se a sacudi-lo com o bico, batendo com ele nas paredes do corredor. Thomas deixou cair a espada quando sua cabeça se chocou contra uma quina da porta. O pássaro o atirou no chão e prendeu-o com uma enorme garra. Curvou então a cabeça para destroçar o menino com o bico afiado.
Já quase inconsciente, Thomas ouviu o canto dos seruvins:
Santo, Santo, Santo, Senhor dos Exércitos
Os céus e a terra estão cheios da vossa Glória!
Uma luz muito intensa que parecia penetrar seu corpo cercou-o por completo; ele abriu os olhos. Estava aos pés de uma longa escadaria de pedra, cercado por seruvins. Do alto da escada, o Rei olhava para ele.
— Você deseja continuar a lutar, Thomas, ou quer vir para mim? — Era uma voz suave e terna, que deu a Thomas uma profunda sensação de paz. — A escolha é sua. Eu bati na porta de sua vida e você ouviu meu chamado; se quiser, pode vir agora participar da minha mesa.
Thomas sentiu uma enorme vontade de deixar o mundo e ir para junto do Rei. Numa fração de segundo que pareceu uma eternidade, viu sua vida como se estivesse congelada no tempo. Pôde ver todo o Vicariato como se suas paredes fossem transparentes e as pessoas paradas como estátuas. O pássaro acima dele estava na posição de começar a destroçá-lo. Beadle estava atrás da porta da cozinha. Raphah e Kate estavam na metade da escada que levava ao porão. Demurral, o capitão Farrell e dois soldados estavam no túnel, já quase entrando de volta no porão. Eles haviam se protegido no túnel quando o tremor abalou a casa.
De onde estava, a ponto de atravessar o portal do céu, Thomas pôde ver que Kate e Raphah estavam prestes a ser apanhados por Demurral. O corvo o mataria e depois iria atrás deles. Os dois acabariam caindo nos braços de Demurral, do capitão Farrell e de seus homens.
— Deixe que eu volte para lutar; preciso avisá-los do perigo. Se eu não voltar, a missão não será cumprida. Por favor, meu Rei, deixe-me voltar — pediu Thomas.
— Muito bem, vá, mas terá de agir depressa. Precisará atacar o corvo antes que ele o ataque. No coração do pássaro está concentrada a força do mal que deu vida à criatura. Atinja-o no coração com um só golpe em meu nome.
Quando essas palavras foram ditas, a luz intensa, os seruvins e a escadaria desapareceram. O cheiro desagradável do corredor entrou pelas narinas de Thomas. Ele pegou depressa a espada do varrigal que estava no chão. O corvo deu um salto no ar com as garras esticadas, prontas para enterrá-las no peito dele. Thomas abriu os olhos e gritou com todas as suas forças:
—Em nome do Rei... suma daqui! Enterrou a espada no peito da criatura quando as garras desta já arranhavam seus ombros. A espada penetrou o metal e entrou no coração do grande pássaro. Ele soltou um grito longo e agudo e caiu de lado. O metal começou então a derreter e a borbulhar diante de seus olhos, queimando a madeira do chão e fazendo sair fumaça das paredes úmidas.
Thomas viu a criatura transformar-se em uma figura humana. Viu um homem com um narigão adunco, o rosto muito branco e cabelos vermelhos e brilhantes. Ele usava uma túnica de couro, calção preso abaixo dos joelhos e botas. Enquanto ele ainda estava caído de lado, Thomas viu que seus dentes eram de ouro maciço. De sua boca saía uma fumaça azul cada vez que ele expirava. O homem parecia agonizar. Já quase sem vida, ele lançou para Thomas um olhar penetrante e felino. Era um olhar desafiador, carregado de ódio. Seu último olhar antes de morrer.
— Thomas! — exclamou Raphah. — O que foi que você fez? — Raphah ficou olhando para o corpo que jazia no chão. — Ele é um glashan! Era essa a criatura! O período do Grande Cativeiro chegou ao fim. Se os glashans estão por aqui, então Pyratheon não deve estar longe.
Neste instante, a porta da cozinha abriu-se de supetão. Beadle saiu tropeçando na pilha de móveis, paredes, vassouras, tudo que ele havia juntado para segurar a porta.
— Você o matou, salvou minha vida — disse ele, soluçando.
— Demurral e Farrell estão no porão com dois soldados — disse Thomas. Virando-se para Beadle, perguntou: — Existe alguma outra forma de se chegar ao túnel?
Beadle fez sinal para que eles os acompanhassem. Os quatro atravessaram a cozinha e entraram na despensa, que ficava na outra extremidade. Beadle puxou uma pedra e abriu uma pequena porta que havia na parede. Três degraus de pedra desciam para um lugar escuro. De uma prateleira, Beadle pegou um lampião e uma pederneira de fazer fogo, acendeu o pavio e regulou a chama no ponto máximo.
— Este caminho os levará a Beastcliff. Muito cuidado com esse 1ugar lá há criaturas controladas por Demurral. Corram para a praia o mais rápido possível. — Beadle virou-se para Raphah, que abraçava firmemente o Keruvim. — Saia destas terras e leve essa coisa com você; ela não pertence a este lugar.
— Venha conosco, Beadle, você pode vir também — disse Kate, puxando-o pela manga.
— Não, vou ficar aqui e prestar contas a Demurral. Terei de fechar a porta secreta deste lado, portanto não posso ir com vocês. Agora vão: ele logo estará aqui.
Thomas agarrou a espada e a lanterna com firmeza e foi na frente. Os outros o seguiram escuridão adentro. Beadle empurrou a pedra e a porta se fechou com grande ruído. Ele varreu os restos da massa que havia caído da parede e, ignorando os pés do glashan junto à porta, pôs-se a arrumar a cozinha. Ao ouvir passos se aproximando pelo corredor, preparou-se para o que aconteceria a seguir.
Pyratheon
Durante algum tempo o silêncio foi total, a não ser pelo leve ruído das gotas que pingavam do teto úmido do túnel. A luz da lanterna iluminava as paredes de pedra e o chão inclinado por onde eles começaram a descer.
O túnel cheirava a mar, a rochas com algas e a peixe morto, tudo isso misturado ao odor de barro fresco. Cada passada ecoava pelo túnel, que era frio como a morte. Thomas segurava com força a lanterna e a espada. Não queria ser apanhado de surpresa. Kate caminhava entre ele e Raphah, que pôs uma das mãos no ombro da menina e olhava para a escuridão atrás deles a cada instante.
— Ninguém deve falar — sussurrou Thomas o mais baixo que pode. — Num túnel como este, qualquer ruído viaja quilômetros. — Suas palavras ecoaram como sussurros de crianças de outro mundo.
Os dois seguiam Thomas pelo túnel abaixo, esperando que ele estivesse indo na direção certa. Ele sabia que, enquanto estivesse descendo, estaria a caminho do despenhadeiro ou da praia. Se chegassem ao despenhadeiro, estariam a salvo. Se chegassem à praia na maré cheia, ficariam presos dentro da caverna, sem poder sair até que a maré baixasse.
Thomas sabia bem disso. Alguns anos antes, havia sido apanhado pela maré alta que cobriu a areia e as pedras abaixo de Beastcliff. Naquela ocasião, conseguira se salvar escalando a rocha e agarrando-se a uma pedra por várias horas, enquanto uma onda depois da outra parecia tentar agarra-lo e levá-lo para o fundo do mar.
Foi naquele dia que ele descobriu o túnel que ia até o Vicariato, e foi então, também, que viu os barris de aguardente escondidos por entre as pedras junto ao mar. Desde então, passara a ir àquele lugar com freqüência, durante o dia ou à noite. Remava da praia até o barco ancorado longe da costa e depois remava de volta levando para o túnel caixotes de chá, de seda e um remédio só para homens. Este último era um líquido verde e espesso que vinha em garrafas escuras e tinha cheiro de gato morto. Seu pai dizia que aquilo era feito de absinto e podia enlouquecer quem o tomasse. Thomas ouvira dizer que era a bebida predileta de Demurral.
O som do mar podia ser ouvido ao longe, vindo de algum lugar mais abaixo. Eles pararam, atentos. Kate pensou ter ouvido o barulho de botas nas pedras do chão. Não ousou falar, mas tocou no ombro de Thomas e, à luz do lampião, apontou para seus pés e para a escuridão do túnel.
Thomas indicou com a cabeça que havia compreendido. Ele também ouvira as passadas ao longe no túnel escuro. Fez sinal para que caminhassem sem fazer ruído. À frente do grupo, Thomas olhava o chão com atenção, para não pisar em algo que pudesse fazer barulho, ao conseguia parar de pensar na criatura que havia matado. Sentia-se ao mesmo tempo orgulhoso e assustado. Não sabia o que pensar da visão que tivera do Rei; tinha sido tão real que ele se sentira no Paraíso. Aquilo havia sido mais do que um sonho. Se aquele era mesmo um glashan, então deveria haver outros que viriam atrás deles. Ele sabia que eles queriam Raphah e o Keruvim. Thomas pensava em todas essas coisas, perguntando-se se sua lealdade a Raphah seria maior do que seu medo da morte.
O som de metal batendo na pedra e ecoando pelo túnel fez com que eles ficassem imóveis. Não tinham onde se esconder. O que quer que estivesse fazendo aquele barulho estava se aproximando deles. Ao longe, podiam ver a luz de uma lanterna de tempestade refletida nas paredes molhadas. Thomas rapidamente baixou a chama da sua lanterna, reduzindo-a a um pequeno brilho, e cobriu-a com seu casaco. Eles ficaram na mais absoluta escuridão. A luz que vinha em sua direção tornava-se cada vez mais intensa. A criatura bufava e chiava, subindo com esforço o caminho íngreme dentro do túnel. A cada instante, ela tossia e cuspia, quase vomitando na escuridão.
Thomas puxou sua espada preparando-se para a luta e apoiou-se na parede. Pôde perceber, pelo tato, as marcas deixadas na rocha compacta pela escavação do túnel. A criatura movia-se com dificuldade, dando a impressão de que batia com vários pares de pés na rocha úmida.
Kate prendeu a respiração com medo do que surgiria na sua frente. Apertou-se de encontro à parede do túnel como se procurasse algum buraquinho dentro do qual pudesse desaparecer. Raphah permanecia de costas para a parede, falando silenciosamente com Riathamus.
A luz do lampião da criatura chegou bem perto e subitamente desviou-se para a direita. Ela havia tomado o caminho, a poucos metros deles, que ia dar na entrada do porão. Os três então notaram que os sons que a criatura emitia se afastavam deles mais e mais. Misturado ao enorme alívio pelo fato de a criatura não os ter visto havia o pavor que os cercava como se fosse uma infinidade de mãos invisíveis a agarrar-lhes o pensamento, terror este tornado ainda maior pelo cheiro daquele túnel, pela umidade penetrante e pelo eco longo e agudo de suas próprias passadas.
Eles esperaram por alguns minutos, e depois Thomas tirou o lampião de dentro do casaco e aumentou o tamanho da chama para continuar a caminhada pelo túnel. Sabia que logo estariam livres daquela escuridão e respirariam ar fresco em Beastcliff.
Um pequeno ponto de luz tornou-se visível a uns duzentos metros de onde eles estavam. Era a entrada do túnel. O brilho vermelho da nuvem havia se misturado ao dourado do sol, resultando em uma bela luminosidade que tingia as paredes de amarelo e de ocre. Foi com uma grande sensação de alívio que eles apressaram seus passos, querendo correr em direção à luz. Raphah apertava o Keruvim contra o peito. No fundo de seu coração, ele acreditava que havia uma possibilidade de levar a estatueta de volta para o Templo. Viajara tanto para chegar àquela terra que lhe diziam ser civilizada e onde se deparara com tanta hostilidade, tanto ódio e tanta ignorância. Havia conhecido gente que, sob vestes religiosas, invocava o poder dos espíritos. E conhecera também pessoas que acreditavam em deuses antigos, mas que os vestiam com roupagem moderna; que os chamavam por nomes diferentes, mas que ainda acreditavam em seus poderes.
Foi então que ouviram a tosse abafada de alguém que se aproximava. Raphah olhou para trás e viu, horrorizado, a luz de um lampião que tornava a descer o túnel. Thomas olhou então para a entrada do túnel e viu, contra a luz, a silhueta de um homem alto com uma espada na mão. Eles não tinham como fugir.
Detrás deles vinham vozes de homens, cada vez mais próximas. Thomas olhou para trás e em seguida para a entrada do túnel. Não viu qualquer possibilidade de fuga. Kate agarrou-se ao ombro dele.
— O que podemos fazer? — perguntou ela, desesperada.
— Eles nos pegaram — disse Thomas. — Só nos resta lutar ou desistir.
— Há uma outra possibilidade — disse Raphah, tirando o Keruvim de dentro do seu casaco.
— Pode guardar isso de volta — gritou o homem na entrada do túnel. — Você não vai mais precisar da ajuda desse seu Deus. — Era Jacob Crane.
A respiração ofegante e asmática de quem estava atrás deles ficou ainda mais audível quando Skerry e Blythe se aproximaram. Blythe estava sem ar e arrastava os pés ao andar. O ruído que eles faziam ecoava pelo túnel, aumentado pelas paredes úmidas de pedra e pela imaginação dos meninos.
— Nós voltamos para buscar vocês — disse Blythe, ofegante, aproximando deles o lampião. — O capitão Crane veio libertar vocês, mas pelo visto vocês mesmos já se encarregaram disso.
Seguiram todos para a entrada do túnel, onde Crane os aguardava encostado à parede e segurando o ombro ferido. Thomas viu a expressão de raiva no rosto de Kate e não precisou esperar para ouvir aquela raiva explodir.
— Você nos abandonou! — exclamou ela. — Nos deixou na torre para sermos mortos!
— Deixei-os lá para ganhar tempo e foi bom ter feito isso. O capitão Farrell e seus Dragões chegaram logo em seguida. Aquele velho trapaceiro ia me entregar a Farrell. Se eu tivesse esperado, a esta altura já estaria acorrentado e a caminho da forca em York. — Ele apontou para a cicatriz no rosto. — Tenho um assunto para acabar de resolver com Farrell. Meu plano era vir buscá-los hoje à noite. Dei ordens para que meu barco dê um tiro de canhão na casa quando o Vigário estiver começando a jantar.
— Há algo que você precisa saber — interrompeu-o Raphah. — Algumas criaturas foram liberadas por Demurral. Elas também querem o Keruvim.
— Uma delas tentou nos matar na casa — disse Thomas.
— Que criaturas são essas, meu jovem? — perguntou Grane. — Nestes dois últimos dias já vi coisas demais que não compreendo.
— São os glashans, seruvins que tomaram o caminho do mal e são seguidores de Pyratheon. Eles pretendem capturar o Keruvim e começar uma guerra contra Riathamus. O céu e a terra correm grande perigo. Demurral está sendo usado por eles e não creio que ele sequer saiba da sua existência — disse Raphah.
— Então como posso identificar uma dessas criaturas se me deparar com ela? Elas podem ser mortas? — quis saber Crane.
— Elas têm olhos verdes como gatos e podem assumir diferentes formas — disse Raphah. — Parecem gente. A única maneira de identificá-los é pelos olhos. Se você tiver fé, pode destruí-las, mas se não tiver elas o dominarão.
Crane tirou a pistola da cintura e apontou-a para Raphah.
— Esses tais glashans podem levar chumbo grosso e não morrer? Podem ser cortados por um sabre e não sangrar? — perguntou Crane.
— Sim, podem — disse Raphah. — Essas são armas deste mundo. O que você precisa é de algo bem mais poderoso do que chumbo ou ferro trabalhados por mãos humanas. O que você precisa vem de Riathamus e não pode ser visto.
— Um só golpe em seu nome? — perguntou Thomas.
— Sim, em seu nome — responder Raphah.
— Vocês me deixam confuso — disse Crane. — Vou lutar contra esses glashans com as armas que sei manejar. Se elas não forem suficientes, que me matem. Você que lute com esses poderes misteriosos. Veremos quem sairá vencedor. — Ele baixou a pistola e disse a Raphah: — Eu sei que preciso ajudá-lo a fugir. Desde que você chegou aqui, o mundo já não é mais o mesmo. Talvez depois que você vá embora o mundo volte a ser como antes e eu possa voltar a cuidar dos meus negócios.
— Se não impedirmos Pyratheon e os glashans de agir, você não terá mundo algum onde realizar seus negócios. O que você precisa entender é que Demurral abriu os portões da Grande Captura. Os glashans estão livres novamente; eles vão dominar o mundo e dominar Riathamus. — Raphah olhou para os homens à sua volta, com seus rostos iluminados pelo lampião. Eles olhavam como se ele estivesse falando uma língua incompreensível, como se suas mentes não conseguissem entender o que ele tentava dizer. — Existem dois mundos, um mundo visível e um invisível. Neste mundo somos regulados pelo tempo, pelos movimentos do sol, das estrelas, das marés. No outro, o tempo não existe: passado, presente e futuro são uma coisa só. Uma oração feita hoje pode afetar um acontecimento de ontem; uma ofensa amanhã pode ser uma flecha atirada contra o passado. Pyratheon quer mudar a ordem de tudo.
— Mas foi isso que Demurral me disse, que quer controlar as forças da natureza — disse Crane. Ao falar, ele apertava a ferida com a mão, pois a dor já estava se tornando insuportável.
— Você está ferido — disse Raphah. — Precisa se curar para enfrentar a luta que temos pela frente.
— O que eu preciso é de um jarro de rum e de uma cama macia — disse Crane.
Raphah ignorou essas palavras e pôs a mão na testa de Crane. Fechou os olhos e ficou imóvel por alguns segundos; começou, então, a murmurar palavras quase inaudíveis. Crane sentiu um forte calor irradiar da mão de Raphah e espalhar-se por todo o seu corpo. Ele começou a tremer, pois aquela energia fazia seus músculos vibrarem. Crane teve a sensação de estar sob uma cachoeira de água quente, que o lavava por fora e por dentro, que lavava até pensamentos e desejos. Instintivamente, pôs a mão sobre a ferida e para sua surpresa, a dor havia desaparecido. Puxou a roupa de lado para ver a ferida, e em seu lugar não havia mais nada além de seu corpo são. Crane era um homem de ações, avesso a pensamentos elevados e a teorias. Aquelas coisas inacreditáveis que estavam acontecendo pareciam virar o seu mundo de cabeça para baixo. Ele procurava compreender o que se passava, mas não encontrava explicação para aquilo. Começou a entrar em pânico, achando que estava enlouquecendo.
Mas esses pensamentos ruins foram subitamente afastados, pois uma inesperada corrente de ar atravessou o túnel. Eles ouviram, vindo de longe, o som de uma pesada porta de metal fechando-se violentamente.
— Temos pouco tempo! — disse Raphah. — Cada um de vocês já teve provas da existência de outro mundo. Agora precisam decidir de que lado vão lutar. Se não estiverem do lado de Riathamus, então estarão contra ele; não há neutralidade nos reinos do céu e do inferno.
— Nunca pensei que fosse chegar o dia em que me pedissem para lutar do lado de Deus. Ele não pode fazer suas guerras sozinho? — perguntou Crane.
— Não pense que ele nos deixará desamparados. Ele nos deu alguém que lutará conosco, lado a lado, na grande batalha. Ele estará conosco e os seruvins lutarão num campo que não podemos ver.
— Bem, rapaz — disse Crane —, ou você é louco ou foi este mundo que mudou completamente. Dois dias atrás eu o teria levado para um hospício por falar essas coisas, mas agora sei que deve haver alguma verdade no que você está dizendo. Nós só podemos lutar contra o que vemos. Você terá de nos mostrar o que não podemos ver. Nossos olhos são cegos para as coisas de que você fala e meu coração endureceu demais para aceitar seu Deus. Foram muitos os anos de lutas e de roubos.
O som de pés marchando ecoou pelo túnel. Ele foi ficando cada vez mais alto à medida que o eco se multiplicava.
— Os Dragões! — exclamou Crane. — Depressa, vamos para o bosque.
— Foi lá que vimos os varrigais — disse Kate. — Talvez eles ainda estejam por lá.
— Sejam eles o que forem, não serão capazes de nos impedir de passar; temos três pistolas, um barril de pólvora e duas espadas. É o suficiente para acabarmos com vinte dragões — disse Crane. —Agora vamos para o bosque! Lá nos esconderemos e prepararemos uma surpresa para quem vier atrás de nós.
Thomas foi o primeiro a sair do túnel e embrenhar-se bosque adentro. A clareira estava fresca e agradável. O orvalho da manhã ainda se prendia às folhas do capim. Às árvores protegiam a entrada da clareira como cortinas de um verde intenso. Ele parou junto a um arbusto de azevinho e olhou em volta; não havia ninguém ali. Fez então um sinal com a mão para que os outros o seguissem. Crane permaneceu junto à entrada do túnel, escondendo o barril de pólvora em umas raízes de árvores, que se entrelaçavam na pedra. Pegando um pedaço de corda que havia sido encharcada de óleo de lampião e recoberta de raspas de ferro e pólvora negra, ele a estendeu do barril até um toco de árvore alguns metros acima da entrada.
O som dos pés em marcha cadenciada ficava cada vez mais alto.
— Agora falta pouco. — Aquela voz era bem conhecida de Crane.
— Preparar armas! Eles devem estar lá fora. — Às palavras ecoaram no túnel.
Crane sorriu. "É o capitão Farrell”, pensou. Se ele conseguisse controlar o tempo, explodiria o túnel bem em cima da cabeça dele. Fez um sinal para que os outros se afastassem e se escondessem.
Thomas Kate e Raphah correram pela trilha e esconderam-se por trás de galhos secos. De seu esconderijo podiam ver a entrada do túnel por trás de um arbusto e ouvir os homens se aproximando.
Foi Kate quem viu a primeira túnica vermelha surgir de trás do arbusto. Era um homenzinho baixo com uma farda grande demais para seu tamanho. Ele protegeu os olhos da claridade, olhou em volta e voltou para o túnel.
Então o capitão Farrell apareceu, com as plumas de seu chapelão tremulando à brisa. Em uma das mãos tinha uma pistola e na outra, uma espada de fio duplo cuja lâmina reluziu ao sol. Ela viu quando Crane pôs fogo na corda, que chiou, lançou fagulhas e fumaça de um azul intenso.Farrell se virou para olhar, sem saber ainda o que estava acontecendo. A corda queimou rapidamente, levando apenas alguns segundos. Crane correu para trás de um grande carvalho, apertando-se de encontro a ele quando a explosão fez tremer tudo em volta.
Farrell foi lançado para trás em cima do arbusto e grandes torrões de terra caíram sobre ele. O ar deslocado curvou para trás os galhos das árvores e fez voar galhos secos pelos ares. A entrada do túnel havia desabado por completo com a explosão do barril de pólvora. Só o que se podia ver era uma cratera de lama desabada, e a argila cobria o lugar onde antes havia sido a entrada do túnel.
Os Dragões estavam presos no túnel. Sua única saída seria pelo Vicariato. Farrell, agora sem seus homens, continuava caído sobre os restos do arbusto, coberto de barro. Sua bela túnica vermelha estava enlameada e seu garboso chapéu de plumas havia desaparecido.
Crane saiu de trás do carvalho que lhe servira de escudo e cujo ronco estava incrustado de fragmentos de pedra e madeira, lançados pela a explosão. Crane encaminhou-se na direção de Farrell e, do alto de um monte de terra ao lado da cratera, ficou olhando para ele. Tirando a pistola da cintura e com a espada na outra mão, ele se dirigiu ao outro, que continuava na posição em que havia caído ainda atordoado pela explosão.
— Levante-se e diga a que veio, ou que o diabo te carregue! — gritou Crane. — Aqui não tem um jarro de uísque para você, meu elegante Capitão. E ninguém para ajudá-lo a se levantar daí. — Ele desceu de onde estava e aproximou-se do Capitão, que com grande dificuldade conseguiu pôr-se de pé. — Fique onde está. Ainda não acabei. Eu esperava que você morresse na explosão, mas agora vou ter de matá-lo eu mesmo. — Ele encarou Farrell. — O que você prefere, pistola ou espada? Prometo que com qualquer uma das duas sua morte vai ser a mais lenta possível.
— Leve meu dinheiro; deixe-me viver — murmurou Farrell em agonia. — Prometo não ir atrás de você.
— Eu vou levar seu dinheiro e sua vida: não se fazem acordos aqui. Você veio pegar o rapaz e eu peguei você. — Crane engatilhou a pistola e encostou-a na têmpora de Farrell. — Diga adeus a Jacob. A próxima vez em que o verá será no inferno. — Seu dedo ia pressionando lentamente o gatilho.
Uma mão tocou o ombro de Crane que, surpreso, se virou para ver quem era. Era Raphah.
— Há outra solução, capitão Crane. Ele não precisa morrer.
— Fique fora disto, rapaz. A história aqui é mais complicada do que você pensa — disse Crane, aborrecido. — Ele vai morrer agora. Nada mais justo que isso. Se eu deixar que ele viva, meus homens vão pensar que amoleci. Não há um único lá naquele barco que não queira tomar o meu lugar. Se eu matar Farrell, eles saberão que continuo o mesmo.
— Então você o mataria só para manter as aparências? Que espécie de homem age dessa maneira? Ele não é um cão doente que se possa matar, é um homem de carne e osso, como você e eu. — Raphah segurou a pistola. — Outros viriam depois dele e você precisaria matá-los todos até acabar sendo morto também.
— Ele é um oficial do Exército, sabia em que estava se metendo quando resolveu aceitar o dinheiro do Rei. Sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria assim. Ele se preocupou com a minha saúde quando tentou cortar minha cabeça na floresta? — Crane tornou a engatilhar a pistola.
— Você não precisa fazer o que ele espera que você faça. Pode acabar com esse círculo vicioso de uma vez por todas. Uma ação bondosa pode pôr fim ao ódio. Deixa-lo viver não significa que você seja fraco; é uma prova de que na sua força há também misericórdia. Se ele estiver envolvido com Demurral, então há outra maneira para você conseguir o que realmente deseja.
— Blythe! Skerry! — chamou Crane. — Amarrem este homem. Ele ainda está tonto por causa da explosão e não dará trabalho a vocês. Vamos deixá-lo aqui e alguém acabará por encontrá-lo. — Crane curvou-se e olhou bem nos olhos de Farrell. — Vou deixar você viver, mas não vá sair por aí dizendo que por pouco não me pegou, porque se fizer isso eu volto e acabo meu serviço. Diga a seu patrão que agora meu preço é bem maior. Quero metade do que ele roubou do povo e que suma daqui para sempre. Diga-lhe que quero receber em moedas de ouro e que ele as deixe junto à árvore dos desejos hoje à meia-noite. Se ele tentar prender algum dos meus homens, darei ordem para que meu barco bombardeie a casa dele e a destrua a tiros de canhão. Entendeu bem? — Crane afastou a pistola da cabeça de Farrell. — Amarrem-no àquela árvore de espinhos e cuidem para que ele fique bem desconfortável.
Blythe e Skerry arrastaram Farrell, ajoelhado, através da clareira ate uma árvore de espinhos. Com o resto da corda, eles amarraram seus braços firmemente a um dos galhos mais baixos e prenderam os pés ao tronco. Assim pendurado, ele parecia um boneco de marionete em tamanho natural. Skerry encontrou o chapéu do Capitão, já todo estraçalhado, e o pôs sobre a cabeça do dono, cobrindo-lhe os olhos para que ele não pudesse enxergar. Crane fez um gesto indicando que todos deveriam descer em silêncio pela trilha que levava à praia.
Poucos minutos depois, já estavam em um lugar enlameado de onde podiam ver a baía. A maré estava baixa e uma larga faixa de areia estendia-se até longe. Puderam ver, do outro lado da baía, o lugar onde o despenhadeiro havia ruído. Era como se um ser gigantesco houvesse arrancado uma parte da terra e a jogado no mar. Espalhados pela praia e misturados com a areia, lama e pedra, estavam os destroços de casas e lojas da Rua do Rei que haviam desabado. O navio de Crane estava ancorado na baía. Três quilômetros de areia os separavam da segurança do barco e da fuga de Raphah com o Keruvim para a liberdade.
— Se formos todos pela praia, Demurral poderá nos ver — disse Crane, cauteloso. Se nos dividirmos, teremos mais possibilidade de fazer a travessia. — Ele se virou para Thomas. — Vocês levarão o rapaz para a casa de Rueben junto ao Moinho, enquanto eu vou para o barco. Martin já deve estar lá. Levantaremos âncora às seis horas para partir e não vou poder ficar esperando por vocês. — Ele apontou para uma trilha esburacada usada pelos mineiros para transportar alume para os navios que o levavam para Londres. — Sigam por ali. Passem bem afastados da mina e cheguem ao Moinho o mais depressa possível. Vou com meus homens por aqui. Chegaremos lá bem na hora. Boa sorte.
— Eu não acredito em sorte — disse Raphah. — Se pensarmos assim, deixamos as coisas para o acaso resolver.
Os três tomaram então o caminho íngreme que ia da praia para o bosque. Thomas olhou para trás e viu Crane com seus dois homens caminhando pela praia bem junto ao desfiladeiro para não serem vistos por Demurral nem pelos Dragões.
No bosque, o capitão Farrell continuava preso à árvore de espinhos pelas mãos e pelos pés. Ele percebeu que havia algo parado perto dele O chapéu que lhe cobria os olhos não deixava que ele visse coisa alguma. Ele ouviu um graveto se quebrar quando alguém pisou nele. Então sentiu a mão de alguém sobre seu ombro e uma respiração em seu pescoço.
— Quem está aí? Quem me atormenta com brincadeiras? — perguntou ele, assustado e humilhado.
— Sou eu — disse uma suave voz feminina —, aquela que você amou e abandonou há tanto tempo. Até que enfim o encontrei.
— Elizabeth, é você? — perguntou ele, sem saber se era um sonho. — Se é você, então tire de mim este chapéu para que eu possa ver seu rosto.
— Se você faz questão... — disse ela com uma voz ainda mais suave e doce que antes. Ele sentiu uma carícia leve em seu pescoço feita por dedos longos e quentes.
O chapéu foi subitamente arrancado de sua cabeça e ele olhou. Em estado de choque, deu um grito longo e agudo. Diante dele, vestido dos pés à cabeça em couro negro, estava um glashan, com seus cabelos longos e brancos e seu cavanhaque tremulando à brisa da manhã.
— O capitão Farrell — disse a criatura com a voz suave de Elizabeth —, que bom vê-lo novamente.
O glashan deu uma gargalhada e em seguida aplicou-lhe um violento tapa na cara.
— Seres humanos... seres imundos — disse ele com desprezo, deixando ver seus dentes de ouro. — Que figura desprezível! A cobiça e o desejo o deixam tão desvairado que você já nem sabe mais quem é. Você se fez escravo das coisas que quis possuir e que, afinal, de nada lhe valerão, pois terão de ser deixadas para trás quando a morte vier beijá-lo e acolhe-lo em seu seio.
A criatura agarrou Farrell pelas orelhas e olhou-o bem de perto com seus olhos de gato.
—- Você, meu caro, será usado para fazer o que melhor sabe fazer. — Ele estalou seus longos dedos e fez surgir a pequena figura agachada de um Dunamez, que se pôs a arranhar o chão como se fosse um porco selvagem, cheio de excitação.
— Calma, ele logo será seu — disse o glashan para o Dunamez, que arfava impaciente. — Vamos saborear este momento. Não sejamos apressados com o capitão Farrell, para que ele possa apreciar bem o que acontecerá com ele.
O glashan deu um passo para trás e fez sinal para que o Dunamez se aproximasse. Antes que Farrell pudesse gritar, ele entrou no corpo do Capitão, deixando-o sufocado. Ele foi tomado pelo cheiro insuportável do hálito da criatura à medida que ela se espalhava dentro dele.
O Carvalho Retorcido
A luz irradiada pela nuvem penetrava as profundezas da floresta, emprestando um estranho brilho às folhas caídas que cobriam o chão. Ela formava inusitados desenhos de sombras que pareciam ainda mais escuras que as sombras produzidas pelo sol.
Thomas, Kate e Raphah caminhavam pela trilha, e o único ruído que ouviam era o das folhas secas sob seus pés. Thomas empunhava a espada. Raphah apertava o Keruvim que estava sob seu casaco. Ele achava que a recuperação da estatueta havia sido fácil demais — ela fora ter em suas mãos sem que ele precisasse de fato lutar. Às forças que desejavam o poder do Keruvim haviam deixado que ele escapasse sem que uma só gota de sangue fosse derramada.
Kate vigiava, examinando a vegetação com os olhos, atenta ao menor sinal das criaturas que os haviam perseguido naquela mesma trilha. Eles passaram pela árvore junto à qual o varrigal os atacara e ela pôde ver o corte profundo feito pela espada. A árvore já começava a apodrecer; a casca transformava-se em uma polpa mole que escorria do corte e se espalhava como uma gangrena. Curvada, murcha, a árvore parecia decompor-se. Um cheiro forte pairava no ar. Eles cobriram suas bocas e narizes com as mãos e apressaram o passo, afastando-se dali.
— Aquele golpe de espada quase foi em você — disse Kate a Thomas.
— Deve haver alguma coisa no metal desta espada — disse Thomas olhando para a arma, com vontade de jogá-la fora. Ele não se sentia bem carregando aquela espada. Era como se ela possuísse um poder malévolo do qual ele não queria fazer parte.
— São criaturas que trazem o mal — disse Raphah. — Onde há vida, elas trazem a morte, onde há crescimento elas trazem decadência, e onde há luz elas trazem a escuridão. Elas são um reflexo de Pyratheon. Às criaturas só podem fazer o que ele deseja.
— E Demurral, então? Ele pensa que pode controla-las — disse Thomas.
— É como se elas tivessem sido emprestadas para ele. Ele pode usá-las, mas elas não lhe pertencem. Ele se engana acreditando ter poder, quando na verdade não passa de um boneco manipulado pela força do mal. Às pessoas que usam essa força nunca compreendem realmente a verdadeira energia que há por trás delas — disse Raphah. — Elas pensam que a dominam, mas logo tornam-se suas escravas. Pyratheon dá-lhes o que elas desejam... enquanto deseja usa-las.
— Mas eu pensava que Demurral fosse um homem de Deus —disse Kate. — Como foi que ele mudou?
— É simples. Muitas pessoas começam pelo caminho certo, mas num dado momento a ganância e a inveja começam a arder em seus corações. Logo os valores materiais passam a dominá-las. Elas se afastam do caminho em que estavam. O poder sempre foi mais desejado que o amor, mas o verdadeiro poder só é atingido quando encontramos o verdadeiro amor. Precisamos então nos apegar a ele de todo o coração.
Thomas foi meditando sobre essas palavras de Raphah enquanto os três seguiam pela trilha. Passaram por um lugar de onde puderam ver a baía lá embaixo. Ele se deu conta de que um novo futuro o aguardava. Não haveria retorno à vida que tinha antes. Acontecesse o que acontecesse, ele sabia que sua vida seria longe dali. Ao olhar para Baytown do outro lado da baía, Thomas viu uma cidade diferente. Não sabia se era por causa da estranha luz lançada pela nuvem, ou se alguma coisa dentro dele fazia com que ele a visse com outros olhos. Sentiu ao mesmo tempo tristeza e alegria. Era como se ele estivesse se transformando, mudando, tornando-se um homem. Ele segurou a espada com mais força. Tentava encontrar algum sentido em tudo por que havia passado. À luz do dia e a céu aberto, o mundo das sombras parecia muito remoto, mas ele sabia que mesmo por trás daquele véu de luz as forças que desejavam destruí-los continuavam a existir, sorrateiras, aguardando o momento de atacar.
A trilha que atravessava a floresta descia para um pequeno vale onde um velho carvalho retorcido abria seus galhos, como se fossem o telhado de uma grande catedral gótica.
Foi Kate quem viu o homem primeiro. Ele parecia ter surgido do nada e caminhava lentamente na frente deles com a cabeça baixa. Segurava um longo bastão de pastor com a mão direita e levava uma bolsa de couro de cabra presa ao ombro. Um grande chapéu de feltro cobria cachos de cabelos negros que lhe desciam pelas costas sobre um casaco de pano cinzento e sujo e com acabamentos amarelos, grande demais para ele.
Ela tocou no ombro de Thomas e apontou para o homem.
— O que vamos fazer? — perguntou ela.
Os três aproximaram-se ainda mais. Foi Raphah quem falou primeiro.
— Vamos continuar andando; ele me parece ser um pastor. Thomas, fique com a espada preparada. Se não for um homem, ataque-o. Depois sairemos correndo. Kate, vá na frente e não pare por nenhum motivo.
O homem sentou-se no tronco de uma árvore caída sobre uma longa vala ao longo da trilha. Tirou a bolsa do ombro e colocou-a no colo. Sua pele era morena e castigada pelo tempo. Com a mão direita, ele enxugou o suor da testa.
— Não precisam se esconder — disse ele então para os meninos. — Eu não gosto que me sigam; principalmente neste bosque. Nunca se sabe quem está querendo pega-lo.
Thomas tentou esconder a espada atrás de si, pois não queria que o homem a visse.
— Você pode precisar disso algum dia, rapaz. Não precisa escondê-la de mim — gritou o homem. — Por que não vêm até aqui? Podem fazer um lanche comigo. Tenho pão fresco e peixe salgado, vocês podem comer o quanto quiserem.
Foi a fome que fez com que Thomas se virasse para os outros e fizesse um gesto para que o seguissem. Eles se aproximaram do homem cautelosamente, e Kate apoiou-se no tronco de árvore. Thomas parou à distância de dois braços, sempre empunhando com firmeza a espada.
— Pelo jeito vocês três estão com fome — disse o homem. — Tomem aqui um pedaço deste pão.
Ele pegou o grande pão e, com suas mãos fortes, partiu-o em dois e depois em quatro. Deu um pedaço a cada um e ficou com sua parte.
— Querem um pouco de peixe? Foi bastante defumado e está com gosto de couro, mas dizem que faz bem à saúde.
Ele lhes ofereceu um pequeno pedaço de peixe seco e marrom que cheirava a fumaça de carvalho. Thomas foi logo enfiando seu pedaço na boca. O sabor do peixe misturou-se ao do pão, e ele achou delicioso. Sentiu a fragrância de madeira queimada, fermento de pão e peixe ao mastigar.
— Vocês três parecem estar com fome. Devem ter vindo de bem longe — disse o homem. Virou-se para Raphah. — Pela sua aparência, julgo que você é o que deve ter vindo de mais longe. Eu não esperava ver alguém como você por estas bandas. — Ele parou de falar e esperou que Raphah respondesse. Havia algo de familiar naquele homem que deixava Thomas intrigado. Ele sabia que já o havia visto antes, mas não conseguia se lembrar de onde ou quando.
— O senhor é dessa região? — perguntou Thomas. — Não me lembro de ter visto o senhor antes, mas tenho a impressão de que o conheço.
— Eu sou pastor e estou aqui à procura de umas ovelhas minhas que se perderam. Você já me viu antes, sim. Você é Thomas Barrick, seu pai era pescador; e você, menina, é Kate Coglan, filha do homem do fisco. Como vêem, conheço-os bem. Para onde vocês vão?
— Vamos para a casa de um amigo — respondeu Thomas, percebendo que o homem não havia respondido à sua pergunta.
— A única pessoa que eu escolheria para ser meu amigo nesta floresta seria Rueben, o Boggle. Ele é um grande amigo meu, um homem em quem se pode confiar. Conheço Rueben desde que ele era um bebê — disse o homem.
Kate olhou para o rosto dele. Ele não parecia ter mais de trinta anos de idade. Tinha olhos joviais, muito azuis, que contrastavam com a moldura morena e gasta da pele de seu rosto.
— Ele tem o dobro da sua idade. Como pode tê-lo conhecido ainda bebê?
— Veja bem, Kate... — disse o pastor. — É como sua avó disse quando seu irmão morreu: não é o tempo de vida nem o ouro dos reis que fazem uma pessoa ser rica, é o amor que ela colhe ao longo da vida.
Foi como se Kate recebesse um golpe inesperado que a deixasse aturdida. Ela estremeceu e deixou-se cair sentada no tronco, boquiaberta. Eram aquelas as palavras que sua avó lhe repetia todas as noites antes de Kate dormir. Foram também as últimas palavras ditas por ela neste mundo. Aquilo era algo muito íntimo e pessoal, dito e ouvido com amor, que a menina costumava repetir como uma oração. Aquele homem não teria como saber daquelas palavras. Ela sentiu como se ele as tivesse roubado dela, como se tivesse entrado sorrateiramente naqueles momentos tão preciosos de sua vida. Ainda assim, ditas por ele, as palavras pareciam carregadas daquele mesmo amor contagiante com que a avó as dissera desde a primeira vez.
— Como é que o senhor sabe disso? — perguntou ela num sussurro.
Thomas e Raphah olhavam para Kate sem entender o que aquilo significava para ela.
— Então, o que me dizem de sua jornada? Rueben vai ajudá-los? — perguntou o homem.
— Como é que o senhor conhece Rueben? Não é possível que seja mais velho do que ele — disse Thomas.
— Sei de muitas coisas que acontecem por estas bandas. Basta ficar bem quieto ouvindo o que diz o vento por entre as árvores, e pode-se ouvir vozes. Para mim não há segredos. Nada pode ser escondido de mim.
Thomas olhou fixamente para ele, agora absolutamente certo de que já vira aqueles olhos antes.
— E você, Thomas? Quando vai aprender a nadar? Não pode confiar apenas nesse amuleto que leva no pescoço ou nesse rapaz aí para tirá-lo do fundo do mar.
Thomas olhou para Raphah perplexo.
— Na minha família ninguém aprendeu a nadar. É preciso confiar no barco. Como o senhor ficou sabendo que Raphah me tirou do fundo do mar? Foi o senhor quem me jogou lá? — perguntou Thomas com raiva.
— Você é igualzinho ao seu bisavô. Ele tinha o gênio esquentado como o seu. Ele me conheceu pouco antes de morrer. Mandou me chamar e eu fiquei ao seu lado... Você é mesmo um Barrick, sem dúvida — disse o homem.
— Como é que ele poderia ter mandado chamar o senhor? Ele estava em alto-mar, a 16 quilômetros da costa, em uma tempestade. Nunca mais o encontraram, e só o que encontraram dele para trazer de volta foi seu velho cachimbo. — Thomas estava irritado. Aquele homem parecia divertir-se, pegando alguma coisa da vida das pessoas e sacudindo-a diante de seus olhos.
Raphah continuava sem falar, apenas observando o homem. Também ele tinha a impressão de conhecê-lo de algum lugar. Havia algo nele que o rapaz já vira antes. Ou ouvira, talvez. Talvez fosse uma inflexão da voz que ele estivesse reconhecendo. A pele do homem parecia escurecida por muitos anos de trabalho ao sol. Ao redor de seus olhos, as muitas linhas de expressão revelavam incontáveis horas de riso. Seu rosto era um sorriso aberto com dentes muito brancos que chegavam a brilhar quando ele falava.
O homem partiu outro pedaço de pão e deu-o a Raphah.
— Você parece estar faminto e muito longe de casa. O motivo que o trouxe aqui deve ser muito importante para você — disse ele.
— É muito mais importante do que certas pessoas jamais serão capazes de compreender — respondeu Raphah. O homem deu uma risada.
— Você deseja de todo o coração ser útil a seu mestre, não? —Ele olhou para Raphah, que puxou o casaco para proteger ainda mais o Keruvim. — O que você tem aí? — perguntou ele.
— Nada — respondeu Raphah depressa, afastando-se alguns passos do homem. — Nada importante. — Os olhos de pérola do Keruvim brilharam à luz do sol.
— E isso é o seu prêmio? — quis saber o homem.
— Meu prêmio vale muito mais do que isto — disse Raphah dando mais um passo atrás, afastando-se do homem.
— Está com medo que eu tome isso de você como um assaltante qualquer? — perguntou o homem. — O gado que pasta em colinas pertence a mim e nem mesmo Salomão, com toda a sua glória, teve a fortuna que eu possuo.
— Salomão? — repetiu Raphah, sem certeza de ter ouvido corretamente.
— Salomão — respondeu o homem prontamente. — O Grande Rei, aquele que construiu o templo para nele colocar o que você tem aí.
Raphah mostrou-se surpreso.
— Você sabe de quem estou falando. Salomão, de quem seu povo descende. A missão que você tem é a de proteger do resto do mundo o que está aí nas suas mãos. Você fez bem em salvar o Keruvim daqueles que o usariam para o mal.
Raphah, Thomas e Kate ficaram perplexos, olhando fixamente para o homem. Foi como se os três, no mesmo instante, se dessem conta de que estavam na presença de alguém poderoso que surgira diante deles nas vestes humildes de um pastor.
— O senhor é... — Raphah não conseguiu completar a frase.
— EU SOU QUEM EU SOU. É só isso que vocês precisam saber. Vocês precisam sair daqui bem depressa. Não vão para o Moinho. Sigam para o porto ao norte. Lá encontrarão uma igreja no alto de um despenhadeiro. Vão para lá. É importante que cheguem antes da meia-noite de amanhã. Naquela cidade encontrarão um homem que me conhece e ele os colocará em um barco para a França. Continuem a ter fé em mim. Enviarei os seruvins quando eles forem necessários.
A terra onde o homem pisava começou a brilhar, e suas roupas foram se transformando. Sua aparência foi ficando mais suave e ele sorriu.
— Estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos — disse ele, já àquela altura envolto em um redemoinho de luz dourada que girava como milhões de fios bem finos.
De repente, um vento forte começou a soprar vindo do mar. Às árvores da floresta sacudiam seus galhos, atirando gravetos pelo ar. O vento, girando cada vez mais forte, ergueu pelos ares as folhas secas, formando uma enorme coluna sólida em tons de marrom, vermelho e verde. Às folhas batiam nos rostos dos meninos. Thomas curvou-se o mais que pôde para se proteger, enquanto Raphah e Kate se encolheram no espaço entre o tronco caído e a terra.
O som de galhos rachando, estalando e caindo tornou-se cada vez mais alto. O ruído de madeira contra madeira ecoava pela clareira quando grandes galhos tombavam das árvores. De dentro dos galhos mais altos saíam línguas de fogo azuis e vermelhas que se chocavam produzindo faíscas. O barulho do furacão era quase insuportável.
Thomas ergueu o rosto todo sujo de terra, pedaços de folha e casca de árvore. Tentou ver o homem que estava no centro do redemoinho, completamente transfigurado. Ele já não usava trajes de pastor. Suas vestes brilhavam como prata, e seu rosto estava radiante como o próprio sol. Thomas afastou os olhos para protegê-los do brilho intenso. No instante seguinte, o homem já não estava mais ali, e tudo que restava dele era a bolsa de couro de cabra encostada no tronco de uma árvore. Fez-se um silêncio absoluto. Uma paz absoluta. Raphah foi o primeiro a sair de seu refugio sob o tronco da árvore. Precisou afastar os galhos e as folhas que haviam caído sobre ele. Kate saiu em seguida, ainda meio sufocada. Thomas estava de bruços no chão, com as mãos ainda nas orelhas por causa do barulho de antes. Pôs-se então de joelhos e ficou olhando, em silêncio, para Raphah e Kate. — Aquele era...? — Thomas não conseguiu concluir a pergunta.
— Era Riathamus, tenho certeza — disse Raphah ainda trêmulo, chocado com a experiência pela qual acabava de passar.
— Como é que você tem certeza, não poderia ter sido uma daquelas criaturas que assumiu outra forma? — perguntou Kate enquanto tirava folhas secas do cabelo. — Ele poderia ter nos matado com aquela tempestade de vento. Onde está ele agora? Como podemos ter certeza de quem era?
— Eu tenho certeza. Não me pergunte como. Foi sua voz, talvez, ou algo em seu olhar. Foi por tudo que ele sabia sobre nós — respondeu Raphah.
— Então temos de fazer o que ele mandou. Whitby fica bem distante daqui; já estará escuro dentro de duas horas e não conseguiremos chegar lá antes que anoiteça — disse Thomas, pondo-se de pé.
Kate pegou a bolsa de pele de cabra. Era feita de um só pedaço de pele dobrado com uma larga alça de couro retorcido. Ela espiou para ver o que havia lá dentro. O cheiro que saía era de capim fresco e melado, canela e pão quente. Ela fechou os olhos e inalou aquele odor agradável. Sorriu.
— O que tem aí dentro? — quis saber Thomas.
Kate olhou para dentro da bolsa, na qual havia um pedaço de pão, vários pedaços de peixe defumado enrolados em um pano fino, algumas moedas de ouro e um pequeno frasco de prata. Procurando o que mais havia no fundo da bolsa, encontrou duas pedras. Quando as tirou da bolsa, viu que eram idênticas, do tamanho de um ovo de ganso e transparentes como vidro. A superfície de cada pedra era muito polida e brilhante, e elas eram mais pesadas do que se poderia supor para pedras daquele tamanho. Ela as mostrou a Raphah.
— Que pedras são essas?
— Nunca vi algo igual — disse Raphah, pegando uma delas para examinar. — Se são de Riathamus, então têm algum poder e algum propósito. Guarde-as na bolsa, pode haver olhos nos espreitando. Tenho uma sensação ruim neste lugar. — Ele olhou para a mata à sua volta para verificar se alguém os seguia. — Devemos continuar nosso caminho. Por onde vamos?
— Se sairmos da floresta, podemos subir até o Charco Branco e de lá tomar a estrada para Whitby — disse Kate. — Seria melhor evitarmos Baytown. Lá todos nos conhecem.
— E o que vamos fazer com esta bolsa? — perguntou Thomas.
— Levá-la conosco. Ela contém tudo de que vamos precisar em nossa jornada. Ela nos foi dada por alguma razão e acho que essa razão em breve vai se revelar.
Seirizzim
A luz da vela que tremulava sobre a mesa da cozinha, Beadle tentava cuidar do ferimento de seu rosto com um pequeno trapo de pano molhado que havia sido usado para limpar a gordura de toucinho da panela. Cada vez que o pano engordurado e sujo lhe tocava a face, uma dor horrível parecia queimá-la ainda mais. Ele havia levado uma demorada e dolorosa surra, tendo apanhado muito na cabeça. Apanhou por ter deixado os prisioneiros escaparem. Foi assim que Demurral extravasou seu ódio, batendo nele com uma frigideira até partir o cabo, com uma cadeira e, quando esta se quebrou, passando a usar os próprios pés para punir seu empregado.
Beadle tinha à sua frente uma grande caneca cheia da mais forte cerveja. Ali estava ela, parecendo um tonel de fermentação com seu conteúdo espesso e opaco, com um alto colarinho de espuma quase sólida de tão encorpada. Ele pegou a caneca e levou-a cuidadosamente aos lábios. A espuma cobriu-lhe o nariz, e a inalou ao mesmo tempo em que tomava um bom gole de cerveja morna. A bebida fez arder o interior de sua boca e escorreu por sua garganta. Beadle ergueu os olhos inchados que mal conseguia abrir e viu o cadáver do glashan ainda caído no corredor. Demurral andava sem parar de um lado para o outro da cozinha. Dava-se por satisfeito com sua vingança por enquanto, limitando-se agora a passar uma descompostura no empregado.
— Você é um idiota! Não podia ter deixado que fugissem! Eu precisava deles aqui! — gritava ele. — Agora eles se foram e levaram o Keruvim! É tudo por culpa sua! Ah, mas você vai pagar caro por isso antes do fim do dia! — Demurral lançou um olhar de ódio para o homenzinho. — Estou tendo a grande idéia de pôr você no lugar dele, de derramar o seu sangue em vez do dele. O que me diz disso?
— Digo que morrer seria um alívio — murmurou Beadle como que para si mesmo.
— O quê? O que foi que você disse?
— Seria compreensível. Sinto muito — gemeu Beadle. Ele estava desesperado. A idéia de passar o resto da vida com aquele homem fazia-lhe muito mal. Tinha vontade de sair correndo, mas sabia que só daria alguns passos antes que Demurral o pegasse e acabasse com ele de uma vez. Estava arrependido de não ter ido com os outros, partido para uma nova vida. Kate lhe dissera que ele poderia ser uma pessoa bem melhor do que era.
— Então arraste aquela criatura até o porão. Quero ver o que ela é — ordenou Demurral.
Beadle levantou-se da mesa, todo machucado, e aproximou-se da criatura. Segurando-a pelas botas, ele a arrastou pelo chão de pedra e depois pelos degraus da escada que levava ao porão. Não prestou atenção aos ruídos que ela fazia ao ser arrastada, nem ao leve subir e descer de seu peito, como se ela estivesse respirando. Não viu o piscar de olhos do glashan nem os lentos movimentos de seus dedos.
Lá em cima, Demurral caminhava pelo corredor, resmungando para atender alguém que socava a porta da frente sem parar. Quando ele ia pegando sua bengala para dar uma bordoada em quem estivesse lá fora batendo tão forte, percebeu, junto à porta, que o corvo dourado já não estava lá no alto.
— Calma! Já vou abrir! — gritou ele.
Ao abrir a porta, ele viu o capitão Farrell, com o uniforme raspado e a cara toda chamuscada pela explosão. Demurral olhou-o em silêncio, perplexo. Farrell passou por ele, caminhando com dificuldade, e deixou-se cair em uma cadeira junto à lareira.
— Dê-me uma bebida... quero algo para beber. — Era o Dunamez, que havia se apossado do corpo de Farrell, quem falava em altos brados. — Uma jarra de uísque, nada menos do que isso!
Demurral foi buscar o uísque e trouxe-o para ele. Farrell pegou a jarra marrom e levou-a diretamente aos lábios, ingerindo a bebida em grandes goles.
— Isto é muito bom — disse a criatura, tentando imitar a voz de Farrell. — Há anos não sinto o gosto de uísque — acrescentou, limpando a boca com a manga da farda. — Sente-se, Padre. Tenho uma mensagem de alguém que deseja falar com o senhor.
Demurral sentou-se em frente a ele.
— Pelo visto, o acidente que o senhor sofreu não melhorou a sua educação londrina, capitão Farrell. O senhor continua petulante como sempre. Pelo que seus homens me disseram, pensei que o senhor estivesse morto.
— Isso não tardará — disse o Dunamez agora com sua própria voz. — E o senhor também morrerá se não fizer o que digo. O senhor trouxe um novo alvorecer para este mundo e, sabendo o que fazia ou não, permitiu que algo maravilhoso acontecesse. Deixamos a era de Riathamus e entramos na era de Pyratheon.
— Farrell, pare com essa brincadeira. O que você sabe sobre Pyratheon? Quem lhe falou dele? — perguntou Demurral.
— Seu amigo não consegue falar — disse o Dunamez, dando uma risadinha. — Ele está absolutamente confinado em sua própria mente. Eu uso seu corpo como se fosse um casaco. Aliás, em péssimas condições.
— Então, criatura, diga logo o que veio me dizer e vá embora daqui — disse Demurral ao Dunamez.
— Ir embora daqui? O senhor até parece mesmo um Padre falando. Ora, Riathamus, eu sei quem é, os seruvins eu sei quem são, mas Demurral? Quem é Demurral? O pouco poder que o senhor tem foi-lhe dado por aquele que controla o mundo agora. O senhor é apenas um fantoche. — O Dunamez deu uma gargalhada. — Eu vim buscar o Keruvim. Tenho ordens de levá-lo para Pyratheon. Onde ele está?
— Em algum lugar aqui por perto — respondeu Demurral pensando rapidamente. — E está em boas mãos.
— Então vá logo buscar. É só isso que quero daqui. Há alguns prazeres da carne dos quais eu quero desfrutar e para isso vou precisar do corpo de Farrell.
Demurral pôs-se de pé e caminhou até a janela. Olhou para Baytown; o brilho da nuvem estava mais intenso do que nunca.
— Não será tão fácil assim. O Keruvim não está aqui. Era grande a possibilidade de ele ser roubado, por isso eu o deixei com Lorde Finnesterre em sua propriedade, na Quinta Stregoika. Ele me prometeu cuidar bem dele e eu vou buscá-lo amanhã — disse Demurral, esperando não ser apanhado na mentira.
— O senhor vai hoje mesmo acabar logo com isso — disse o Dunamez muito irritado. — Pyratheon virá aqui esta noite e não quero ser responsável por fazê-lo esperar.
— Se você não é um homem, que espécie de criatura é você? —perguntou Demurral, tentando ganhar tempo para pensar.
— Sou um ser que atravessa o tempo, que nunca morre, mas que tampouco vive realmente. Sou um espírito que gosta do conforto dos seres de carne e osso. Há algo absolutamente maravilhoso em ser capaz de tocar, de cheirar, de sentir o paladar das coisas. Vocês, humanos, não se dão conta da maneira maravilhosa como foram criados, de todas as coisas que têm e às quais não dão valor. — A criatura fez uma pausa e olhou para Demurral com intensidade. — E você jamais saberá como é terrível existir assim.
— Mas o que me diz de seus poderes? O que você é capaz de fazer? — perguntou Demurral.
— Poder! É só nisso que o senhor pensa? O poder não me interessa; só o que desejo é gozar das maravilhas deste mundo, comer, beber, cercar-me de... — A criatura parou de falar subitamente e pôs-se a escutar. — Acho que seu empregado o está chamando.
— Não estou ouvindo nada — disse Demurral.
— Ele está no porão e posso ouvi-lo gritar. Acho que está quase morrendo — disse o Dunamez tranqüilamente.
Demurral saiu correndo da sala, seguido por Farrell, que caminhava de maneira solene, apreciando o corredor.
O som de gritos abafados podia ser ouvido, vindo da porta que dava para o porão. Era Beadle. Demurral desceu correndo a escada e pôs-se a socar a porta trancada do porão.
— Deixe-me entrar, homem. O que está acontecendo? — gritou ele, enquanto esmurrava a porta. Não ouviu resposta. Ouviu apenas roncos abafados vindos lá de dentro.
Demurral deu um violento chute na tranca e a porta se abriu e supetão. O porão estava escuro. Ele pôde pressentir outra presença além da de Beadle. Sem poder ver quem estava ali, ele continuou a ouvir os roncos e gemidos de Beadle. Mas Demurral sabia que havia mais alguém ali, bem perto dele.
— Saia, quem quer que esteja aí, ou vou ter de tirá-lo daí com minha espada! — exclamou Demurral, blefando.
Da escuridão surgiu, voando, um barril de aguardente que o atingiu no peito, fazendo com que ele rodopiasse para trás e fosse cair aos pés do Dunamez de Farrell. A criatura olhou para ele calmamente.
— Eu não iria lá se fosse o senhor. O senhor pode arranjar outro empregado. Eles são bem fáceis de conseguir — disse o Dunamez.
— Mas ele pode morrer! — disse Demurral, pondo—se de pé.
— Se quiser mesmo ir, é melhor levar minha espada — disse a criatura entregando-lhe a espada de Farrell. — Mas tome cuidado, porque o senhor pode se cortar — acrescentou com sarcasmo.
Demurral foi entrando assustado no porão totalmente escuro. Ouviu Beadle soluçando à sua esquerda. Tentou em vão ver alguma coisa à sua volta. A sua frente, ele sabia, ficava a porta que dava para o túnel, e encostados nas paredes estavam empilhados os caixotes e os barris de contrabando. De sua direita veio um súbito ruído de algo arranhando a parede de pedra. Como um gato gigantesco, uma criatura toda negra saltou de um canto do porão, agarrou Demurral pelas orelhas e atirou-o no chão. Na queda, ele deixou cair a espada, que foi parar no outro lado do porão.
Farrell, que a tudo apreciava de seu lugar seguro perto da porta, viu quando a criatura agarrou Demurral pela cabeça e ergueu-o do chão. Seus olhos de gato brilharam na escuridão. Demurral agarrou o espectro e tentou afasta-lo. A criatura o atirou pelos ares e ele foi se estatelar na escada de pedra junto à entrada. A porta de metal do porão abriu-se e a criatura desapareceu. O som de suas passadas correndo ecoou pelo túnel escuro e úmido.
O caminho para Whitby fazia uma curva, deixando para trás a proteção da floresta e passando pelo Charco Branco, a céu aberto. Expostos agora às forças da natureza, os três caminhavam como ovelhas cansadas, de cabeça baixa para se protegerem do vento na passagem estreita entre espessos tufos de arbustos espinhentos. O sol da tarde caía e a luminosidade da nuvem que se erguia do mar ao leste parecia ainda mais intensa.
À distância, lá embaixo, eles podiam ver Baytown, que dava a impressão de se agarrar ao penhasco enquanto a maré alta arrastava os destroços resultantes do desmoronamento. Na baía, podiam ver o barco preparando-se para zarpar. Cada um dos seus três mastros tinha uma lanterna presa à base e estas pareciam três estrelas brilhando no mar escuro.
Então, surgindo do céu limpo a oeste, caiu uma violenta tempestade de granizo. Às grandes pedras brancas partiam-se como ovos gigantescos ao se chocarem contra o chão pedregoso e os arbustos. Faziam ruídos também ao quebrarem os galhos das árvores e ao ricochetearem na terra. A chuva de pedras de gelo caiu em cheio sobre os três, derrubando Thomas no chão.
Kate e Raphah puseram-no de pé e o arrastaram para a proteção de uma grande pedra. Os três ficaram ali bem juntos e encolhidos, cobrindo as cabeças com os casacos. A chuva de pedras de gelo tornou-se mais forte ainda.
— Temos de sair daqui — gritou Kate tentando fazer-se ouvir em meio ao barulho da tempestade de granizo. — Há uma casa lá embaixo no vale. Estou vendo as luzes acesas... nós poderíamos nos abrigar na estrebaria... não temos a menor possibilidade de chegar a Whitby antes do anoitecer.
Os três saíram correndo pela trilha que levava ao vale. Orientavam-se pelas luzes da casa. Thomas sentia uma aflição crescer dentro de seu peito. Ele já havia estado naquela casa uma vez, quando era bem pequeno. Aquela era a casa de Lorde Finnesterre.
O céu ficou limpo novamente e a nuvem brilhou mais do que a lua cheia quando eles correram suas últimas passadas até a entrada da Quinta Stregoika. Era um belo casarão imponente com sete chaminés que se erguiam, altas, para o céu já escuro. Uma fumaça fina saía de cada uma daquelas chaminés, e em uma janela saliente que dava para os jardins cobertos de grama havia uma vela vermelha acesa. No centro de um canteiro de grama erguia-se uma pedra alta que parecia ter surgido ali vinda das profundezas da terra, chegando ao dobro da altura de um homem. Era como se fosse uma coluna sagrada de tempos antigos, o marco de um povo esquecido cujo propósito já havia sido há muito esquecido.
A casa era feita de pedras cortadas e, vista de lado, dava a impressão de serem três casas, uma colada à outra por sucessivas gerações que teriam ampliado o prédio juntamente com sua fortuna. Em três de seus lados, era cercada por árvores, mas sua face leste dava para o mar e o charco. Da parte da frente tinha-se uma visão de todo o Vicariato e da mina oito quilômetros ao sul. O jardim da casa estava coberto de pedras de granizo que se derretiam. Ali o silêncio era assustador. Não se ouvia um único pássaro sequer. O brilho da luz havia passado do vermelho a um verde soturno. Ao sul, no alto-mar, a lua cheia despontava no horizonte. Enquanto se dirigiam à porta, Thomas puxou a manga do casaco de Raphah.
— Não sei se estamos fazendo a coisa certa. Meu pai me contava histórias sobre esta casa. Ele dizia que não era um lugar bom. —Thomas virou-se para a menina. — Você sabe disso, não sabe, Kate.
— Só o que sei é que gostaria de uma casa quentinha. Nós só vamos pedir permissão para dormir na estrebaria dele. De manhã, logo cedo, partimos para Whitby — disse ela, decidida.
— Nós deveríamos ter feito o que Crane disse. Deveríamos ter ido para a casa de Rueben e de lá para o barco. A esta altura já estaríamos lá e não neste lugar. — Thomas começava a duvidar que Riathamus tivesse mesmo aparecido para eles. Ele se perguntava se algum espírito da floresta não lhes teria pregado uma peça, se tudo não teria passado de uma ilusão compartilhada pelos três. — Eu estou tendo uma intuição ruim, Kate. Raphah e eu aguardaremos no portão, vá você pedir ao lorde que nos deixe dormir na estrebaria.
Thomas e Raphah foram até o portão. Raphah abaixou-se e pareceu esconder alguma coisa em um espaço entre as pedras do muro. Kate dirigiu-se à grande porta de madeira que protegia a entrada da Quinta Stregoika. A porta tinha duas vezes a altura da menina e era bem larga. Era adornada com grandes tachas negras encravadas na madeira, tinha uma imponente maçaneta de bronze e, também em bronze, uma grande cabeça de cabra que servia para bater na porta.
Kate pegou a cabeça de cabra e deu três fortes batidas que ecoaram no silêncio. Ela ficou aguardando. Pouco depois, ouviu que alguém se encaminhava para a porta, pisando com botas pesadas sobre o chão de ladrilhos. A porta abriu-se lentamente e diante da menina surgiu um homenzinho de cara vermelha com costeletas brancas e um sorriso amável. Excessivamente amável, talvez. O homenzinho vestia umas calças elegantes até abaixo do joelho, uma jaqueta de caça vermelha e botas de montaria.
— Nossa, o que você está fazendo aí fora, menina, numa noite estas. — perguntou o homem com uma voz amistosa. — Entre logo para não pegar uma gripe. — Ele deu um sorriso simpático; seus olhos brilhavam à luz da vela. Lá de dentro vinha um cheiro forte de café e canela; Kate só havia sentido aquele cheiro uma vez, na Taberna do Grifo, perto do mercado em Whitby. Ela dera um gole na caneca do pai, enquanto ele conversava com o dono da taberna; era amargo e tinha um pozinho que grudara no céu de sua boca, deixando um gosto de biscoito queimado. Naquele dia ela se apaixonara pelo aroma forte de café com canela. Era um cheiro excitante e sofisticado, que fazia com que ela imaginasse lugares exóticos e distantes. O café era uma bebida de ricos, de intelectuais e de artistas e custava seu peso em ouro. Ali na Quinta Stregoika o aroma do café era um torre convite a entrar, dando à casa um ar aconchegante e fazendo com que a menina perdesse todo o medo. Ela olhou o homem nos olhos e teve certeza de que finalmente havia encontrado alguém que os ajudaria.
— Meus amigos estão lá fora, junto ao portão. Nós estamos em apuros. O senhor permitiria, por favor, que passássemos a noite na estrebaria? — disse ela, sem sequer se perguntar por que havia sido o lorde, e não um mordomo, quem abrira a porta.
— Mas é claro, minha menina. Entre. — Então ele gritou para Thomas e Raphah: — Venham juntar-se à sua amiga. Há lugar junto à lareira e comida no fogão. Entrem para se aquecerem.
Sua voz era amistosa e tranqüila. Pesadas nuvens escuras vindas do oeste moviam-se rapidamente no céu em direção à nuvem de fogo e já quase a engolfavam. A lua ainda tentava lançar sua luz clara sobre o mundo; mas logo foi envolvida por aquele espesso cobertor escuro que se espalhava pelo céu. Ainda relutante, Thomas fez um sinal para Raphah, chamando-o para entrar. Na porta da Quinta, foram recebidos com o mesmo sorriso amável ao entrarem, o homenzinho cumprimentou-os com calorosos apertos de mão.
— Bem-vindos, bem-vindos à Stregoika. Este é o lar da minha família há trezentos anos. Meus ancestrais vieram para cá de uma terra bem distante no oriente, uma terra de montanhas e florestas, e vivemos aqui desde então. — Ele se dirigiu a Raphah, falando apressadamente com uma voz aguda: — Nós também já fomos visitantes vindos de longe, por isso nossa família sempre recebeu bem os estrangeiros que chegam à nossa porta. — Ele os conduziu a um grande salão ornamentado. — Perdão, esqueci de me apresentar. Sou Lorde Finnesterre. E quem tenho o prazer de receber? — Ele exibiu seus dentes muito brancos em um sorriso.
Foi Kate quem fez as apresentações. Ela tremia de frio ao falar, e no chão à sua volta formava-se uma pequena poça de granizo derretido.
— Para a cozinha, todos nós, antes de tenhamos de começar a nadar. Há água morna no fogão para vocês se lavarem. — Ele olhou para Raphah. — Jamais conheci alguém de sua raça; você deve ter vindo de longe e deve ter coisas muito interessantes para contar. Depois que vocês tiverem se secado e comido, podemos nos sentar junto à lareira, e você me dirá de onde vem e o que o traz aqui.
Finnesterre levou-os até a cozinha. Era um ambiente espaçoso, com paredes de pedra e uma grande lareira, também de pedra, da altura de um homem. O fogo ardia forte, lançando chispas e fumaça pela ampla chaminé.
— Fiquem junto do fogo para se aquecerem — disse ele.
Os três se aproximaram do fogo o mais que puderam. Suas roupas, de tão molhadas, lançavam vapor pelo ar à medida que a água evaporava. Num dado momento, eles pareciam estar pegando fogo. Thomas ficou olhando fixamente as chamas que aqueciam seu rosto a ponto de lhe retesarem a pele das bochechas. Ele sentia fome, sua boca estava seca e o odor de café entrava forte por suas narinas, saindo de um caldeirão suspenso acima do fogo à sua frente. No caldeirão enegrecido pela fumaça, um líquido fervia, fazendo estremecer a pesada tampa.
— Gosto do meu café fervendo — disse Finnesterre. — Isso lhe dá um leve sabor de fumaça.
Ele andou pela cozinha, mexendo nas panelas e pondo pão na mesa de carvalho. Era estranho que um lorde, proprietário de uma quinta, estivesse tão à vontade, cuidando da comida. Embora a cozinha estivesse bem varrida e tudo estivesse limpo, não havia qualquer sinal de empregados por ali. Nenhum dos três prestava atenção ao que ele fazia. Estavam pensativos, olhando para o fogo em silêncio, meditando sobre o que lhes havia acontecido antes e no que estaria por vir.
Kate divagava olhando o fogo. O tremular das chamas a transportava para outro lugar, longe dali. Ela via imagens de ruas e casas: a torre de uma grande igreja surgiu e desapareceu, transformando-se nas velas agitadas de um barco. Com as mãos esticadas na direção do fogo, ela sentiu um sono irresistível, uma sensação de entorpecimento que lhe subia pelas pernas, paralisando seus músculos.
— Venham sentar-se à mesa — disse uma voz alegre atrás deles. — A comida não é muita, mas dá para matar sua fome. — Finnesterre sorria, muito amável.
Sobre a mesa havia um grande pão fresco, queijo, maçãs e carne fria. Finnesterre pôs um bule de café quente e quatro canecas sobre a mesa. Ele parecia estar cumprindo um ritual: dispôs as canecas de modo a formarem um quadrado perfeito e foi despejando o líquido quente dentro de cada uma. A fumaça que subia na cozinha mal iluminada parecia os vapores de um caldeirão de bruxa. Tinha um brilho estranho à luz da vela e enroscava-se na mão de Finnesterre enquanto ele servia o café.
— Isto é café? — indagou Kate, para se certificar.
— É querida menina. Devo confessar que sou viciado nisso. Café chocolate e, vez por outra, um copo de vinho são o que posso chamar de meus pecados — disse ele sentando-se à mesa.
— Senhor — disse Raphah —, não quero ser indelicado, mas não posso tomar esta bebida. O efeito que ela produz não é um que eu deseje sentir.
— Um homem sábio sempre sabe o que não deve tomar —disse Finnesterre rispidamente —, mas jamais deve tentar impor suas convicções a outros. — Ele forçou um sorriso e empurrou as canecas na direção de Kate e Thomas. — Estou certo de que vocês gostarão de experimentar um pouco deste maravilhoso elixir, não é mesmo? — Ele fez uma pausa. — O que os traz à Quinta Stregoika?
Thomas pegou a caneca e encostou-se na cadeira de espaldar alto. Ele não era de falar muito, mas o calor aconchegante daquela cozinha e aquele café quente e amargo deixaram-no estimulado. Ele se sentia à vontade com Finnesterre, quase em casa. Seus medos haviam desaparecido e sido substituídos por uma irresistível vontade de contar a alguém tudo por que tinham passado. Ele nem percebeu que Raphah não queria que ele falasse.
Nos dez minutos que se seguiram, Thomas contou a Finnesterre sua aventura desde que entraram no túnel. Falou-lhe sobre o Keruvim, sobre a briga, sobre a travessia dos charcos.
— Meu Deus! — exclamou Finnesterre. — E pensar que todas essas coisas aconteceram tão perto da minha casa! Onde está o Keruvim agora? — Essa pergunta foi feita sem demonstração de grande interesse.
— Está perdido — apressou-se Raphah em responder antes dos outros. — Antes de chegarmos aqui, devo tê-lo deixado cair. No charco, talvez. Quando cheguei ao seu portão foi que me dei conta. Quando partirmos daqui, terei de percorrer de volta o caminho para ver se o encontro.
— Você não nos contou isso — disse Kate, zangada.
— Não tive oportunidade — respondeu ele.
— Bem, um objeto como esse não deve ficar perdido por muito tempo. Vocês não iriam querer que algo tão poderoso caísse em mãos erradas novamente. — Finnesterre deu uns tapinhas nas costas de Thomas. — Você é um menino corajoso. Agora os três precisam dormir. E não me falem mais em dormir na estrebaria, podem ficar no quarto dos empregados lá em cima. Moro aqui sozinho. Infelizmente, ninguém fica aqui por muito tempo; os empregados sempre dizem que não gostam da casa. Venham. Tragam a vela e a comida. Vou levá-los até o quarto. Acendi lá uma lareira esperando por vocês... — Finnesterre parou de falar abruptamente, como se houvesse dito algo que não devia. Depois levantou-se da mesa e fez sinal para que o acompanhassem.
Eles deixaram o ambiente aquecido da cozinha e passaram para o ar gelado da escada de serviço que levava à parte mais alta da casa. Em cada andar havia uma porta para os quartos com chaves nas fechaduras. Finnesterre só parou de subir quando eles chegaram lá no alto, junto ao telhado. O vento balançava as telhas de pedra fina e entrava pelo teto do estreito quarto de empregados. Quatro camas ocupavam metade do quarto, deixando pouco espaço para caminhar. Um grande tapete cobria o chão de madeira e a pequena lareira estava acesa.
— Fiquem à vontade. Vou deixá-los agora e os verei de manhã — disse Finnesterre, já voltando para a porta. — Não se preocupem com algum ruído que ouvirem. Há sempre corujas e raposas lá fora, e às vezes os sons que emitem parecem bem humanos. Esta casa também range e geme, mas não há com o que se preocuparem. — Ele parou de falar e seu rosto assumiu uma expressão preocupada. — É melhor que não saiam do quarto. Eu não sairia pelos corredores se fosse vocês. Seria horrível se sofressem algum acidente.
Ao dizer essas palavras, ele se curvou educadamente e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Eles esperaram até que o som dos passos dele descendo os degraus já não pudesse ser ouvido.
Thomas olhou para as camas e quase não acreditou no que viu. Jamais havia dormido em uma cama tão maravilhosa. Os lençóis eram brancos e bem passados e não havia sinal de percevejos para lhe picarem a pele enquanto dormisse. Deitou-se então naquele colchão aconchegante, deleitando-se com a maciez das plumas. Logo Thomas e Kate já estavam sonhando, gemendo baixinho e remexendo-se como dois bichinhos cansados. Raphah sentou-se em sua cama e, sem apagar a vela, ficou escutando com atenção qualquer ruído que houvesse na casa. Estava esperando alguma coisa que, tinha certeza, não tardaria a acontecer.
O Tambor de Lubbock
Crane subiu ao convés do Magenta. Uma grande onda quase o fez perder o equilíbrio. Ele se segurou no parapeito do barco e olhou para cima. O barco estava pronto para partir. A tripulação puxava as adriças e junto ao mastro principal o canhão estava sendo preparado para atirar. O vento estufava as velas e o barco forçava as amarras da âncora, como que ansioso por zarpar. Crane inspirou fundo; em terra firme, ele sempre se sentia confinado, quase claustrofóbico, mas ali no mar sentia-se um homem livre. Enfiou a mão em um dos bolsos tirando uma pequena moeda de prata e, num só movimento, atirou-a no mar.
— Obrigado pela proteção neste porto — disse ele baixinho ao quitar sua dívida com Selkie, esperando que o espírito do mar cuidasse do barco até seu retorno.
— Tudo pronto, homens — gritou ele. — Vamos entrar na baía e velejar o mais próximo possível do despenhadeiro, depois nos distanciar para entrar em ação.
Martin subiu ao convés e cumprimentou seu comandante.
— Eles conseguiram chegar ao barco? — perguntou Crane.
— Nem sinal deles, Capitão. Deixei dois homens esperando por eles na casa de Rueben, mas já não podemos mais esperar. Ou aproveitamos esta maré ou teremos de ficar aqui até de manhã. —Martin encaminhou-se com Crane para a cabine do comandante.
— Só espero que Demurral não os tenha pegado. Quando atravessarmos a baía, vamos baixar âncora e dar ao pilantra algo de que não vai se esquecer — disse Crane. — Os meninos terão de se safar sozinhos.
O Magenta subia e descia a cada onda. O vento nas velas rapidamente o levou para dentro da baía. Crane podia ver as luzes do Vicariato ao longe, no topo da escarpa. Bem abaixo, a chaminé da mina de alume vomitava sua fumaça escura e malcheirosa.
Crane e Martin ficaram na porta da cabine olhando o Vicariato. Crane tinha consciência de que o que estava a ponto de fazer o tornaria um fora—da—lei para sempre. Sabia que assim que o canhão disparasse ele seria um homem condenado. Farrell se encarregaria disso, e Demurral diria as mentiras que quisesse. Porém, pensou Crane, a satisfação de fazer voar pelos ares aquela casa no alto da escarpa seria bem maior do que o preço a pagar por aquilo: jamais voltar àquela terra. Haveria outros portos, outros países e talvez — quem sabe? — ele encontrasse o que tanto procurava.
Crane olhou o convés à sua volta. Os homens puxavam cordas e empurravam o canhão para posicioná-lo.
— Quero música. Nada melhor do que ouvir música e ver um canhão atirar. Onde estão Lubbock e Fingus? — gritou Crane. — Tragam aqueles beberrões aqui. Eu quero música!
Lubbock e Fingus estavam ambos bêbados, sentados numa bobina de corda, alheios a tudo à sua volta. Lubbock tinha uma larga alça de couro atravessada no ombro e junto aos pés um grande tambor de couro de porco que ele havia roubado de um soldado do Regimento dos Dragões. Fingus tinha no colo um velho violino que guardava em um saco de veludo negro. Ao ouvirem o grito do Capitão, os dois deram um salto e, trôpegos, ficaram em pé.
Fingus era um homem com pernas muito finas e um nariz muito comprido. Quase caiu ao tirar o violino e o arco do saco, prender o instrumento debaixo do queixo e começar a tocar. Lubbock ergueu o tambor e começou a bater nele fora de ritmo, cada vez mais depressa. Alguns dos marinheiros puseram-se a bater palmas ritmadas, enquanto Fingus dançava e tocava o violino. Ele rodopiou, bateu com as costas na porta da cabine e acabou caindo de joelhos sem parar de tocar uma música rouca, tentando acompanhar as batidas de Lubbock no tambor. Quando uma onda fez o barco balançar, ele rodopiou de um lado para o outro do convés sempre tocando, cada vez mais depressa. Alguns dos homens começaram a dançar. Eles se davam os braços e giravam sem parar. Crane não desviava os olhos do despenhadeiro e do Vicariato lá em cima. Ao lado do barco, dois golfinhos surgiram de uma onda e saltaram no ar.
O tambor de Lubbock batia cada vez mais forte e mais depressa, enquanto Fingus serrava desesperadamente as cordas do violino com o arco, tentando acompanha-lo. A espuma do mar pulverizada pelo vento cobriu o convés e, ao norte, o brilho da estranha nuvem irrompeu no céu. Subitamente a música cessou.
— Preparar para atirar! — gritou Crane quando o Vicariato estava ao alcance do pesado canhão. Ele esperou que uma onda erguesse o lado do barco voltado para o despenhadeiro. O barco inclinou-se com a onda. — Fogo!
O cheiro de pólvora queimada espalhou-se pelo ar. Um facho vermelho e brilhante voou pelos ares em direção ao alvo. Então, com uma violência inesperada, o telhado do Vicariato explodiu, espalhando telhas cinzentas para todos os lados e irradiando uma onda de choque para o chão.
— Fogo! — gritou novamente Crane para a tripulação a postos no segundo canhão. O projétil seguiu pelos ares e arrebentou uma parede lateral, provocando uma nuvem de tijolos e de pedra.
Ouviu-se então o crack-crack-crack dos tiros de mosquetão, e clarões surgiram no alto da escarpa. Os tiros de mosquetão choveram sobre o barco como granizo.
— Preparar mosquetões! — ordenou Crane. Ele esperou que a onda erguesse o barco. — Fogo!
O primeiro canhão atirou de novo, agora apontando diretamente para um pequeno grupo de atiradores no alto do despenhadeiro. A luz da lua e da nuvem vermelha, Crane pôde ver que o tiro de canhão acertou o alvo, lançando torrões de terra pelos ares. Os tiros partindo de lá cessaram.
— Fingus, toque alguma coisa alegre para mim. Quero celebrar — disse Crane tranqüilamente, entrando em sua cabine. A tripulação deu um grito de alegria e Fingus pôs-se a tocar outra música acompanhado pelo tambor de Lubbock.
Os tiros de canhão ecoaram pelo vale. Na Quinta Stregoika, Raphah saltou da cama e correu para a janela. Viu ao longe a fumaça e o fogo do Vicariato brilhando como uma vela vermelha no alto da montanha escura.
—Acordem! — disse ele baixinho para Thomas e Kate. — A casa de Demurral está pegando fogo.
Thomas, ainda não totalmente desperto de seu sonho, caminhou até a janela puxando Kate consigo. Juntos ficaram apreciando aquela cena sem se darem conta do que estava acontecendo.
— O que foi que houve? — perguntou Kate.
— O que quer que tenha sido, não creio que vá fazer Demurral feliz. Ele virá nos procurar e nós estamos perto demais dele — respondeu Raphah.
— Vejam! — exclamou Thomas subitamente, apontando para o gramado.
Saindo por entre as árvores e dirigindo-se ao centro do gramado, vinha uma longa procissão de figuras com capuzes negros. Eles se dispuseram em um círculo ao redor da pedra que se erguia do chão.
Thomas apagou rapidamente a vela do quarto e voltou para junto dos outros na janela.
— O que eles estão fazendo? — perguntou ele enquanto viam as figuras darem-se as mãos e lentamente começarem a dar voltas na pedra no sentido contrário ao do relógio.
— São bruxos — disse Raphah. — Estão caminhando no sentido contrário ao do sol. Estão invocando uma força do mal.
— Como é que você sabe o que eles são? Essa gente pode estar fazendo alguma outra coisa — disse Kate.
— Já vi bruxos fazerem isso muitas vezes — disse Raphah. —Estão tentando usar a pedra como um centro de força. Ela vem lá do fundo da terra e...
— Mas por que estão dando voltas na pedra? — interrompeu Kate.
— Eles acreditam que a pedra traz uma força da terra que eles podem usar, mas na verdade é Pyratheon quem os está usando —disse Raphah.
Eles continuaram a observar o grupo de figuras encapuzadas que então começou a cantar. Elas caminhavam cada vez mais depressa e logo estavam dançando. Cantavam mais alto a cada instante. O círculo se desfez quando seus integrantes se soltaram as mãos. Cada uma das figuras passou a dançar sozinha, contorcendo-se e girando em torno da pedra. Uma das figuras parou de dançar e, pegando um comprido bastão de madeira, começou a bater com ele na pedra.
Um, pelo vento que vem do oeste,
Dois, pela terra de onde brota a vida,
Três, pelo fogo que tudo consome,
Quatro, pela água que traz nossa cura,
Cinco, pela lua que ilumina nossos passos,
Seis, pelo sol, a maior das luzes,
Sete, pelo mestre que invocamos esta noite.
A figura gritava o encantamento a cada batida na pedra com o bastão. Em seguida, atirou o bastão no chão e deu alguns passos para trás. O bastão transformou-se em um tronco de árvore que rapidamente foi criando galhos, e estes foram se cobrindo de folhas. Das extremidades dos galhos brotaram folhas brancas que logo se transformaram em pequenas maçãs vermelhas. Todas as maçãs, exceto uma, caíram ao chão e foram tragadas pela terra. A última fruta pendia do galho mais tênue, fazendo com que ele se curvasse. Com uma das mãos, a figura retirou seu capuz. Era Finnesterre.
Não foi necessário que qualquer um dos três dissesse seu nome. Kate e Thomas se entreolharam sem poder acreditar no que viam.
— Precisamos sair daqui o mais depressa possível. Não podemos deixar que o Keruvim caia nas mãos deles, e eles estão mais próximos do Keruvim do que podem imaginar — disse Raphah.
— Olhem! — exclamou Thomas ao ver o que estava acontecendo lá embaixo.
No jardim, as outras figuras começaram também a tirar os capuzes das cabeças. Entre elas estava Demurral, ao lado de Finnesterre, e junto dele o capitão Farrell, cuja fisionomia tinha uma expressão diferente, dada a presença do Dunamez nele incorporado.
Naquele instante, a pedra começou a emitir um ruído grave, como o de um trovão distante, fazendo vibrar a terra à sua volta. Demurral olhou para Finnesterre e sorriu. Um vapor foi então surgindo da terra e formando ao redor do círculo uma cortina branca que refletia o luar. Dois glashans surgiram do meio das árvores e caminharam até o centro do círculo, parando junto à pedra. Estava ficando cada vez mais difícil ver o que acontecia ali, devido à espessa neblina que envolvia o grupo e pairava sobre o jardim. A terra ao lado da pedra abriu-se e do seu interior começou a sair, marchando, uma tropa de varrigais com seus escudos reluzentes, suas espadas curtas e seus elmos adornados com cobras. Eles formaram um outro círculo, por fora do primeiro, como que para protegê-lo de um adversário por ali escondido.
Demurral tirou o bastão de acácia e a mão negra de dentro da sua capa. Ergueu o bastão e em seguida enfiou-o com força na terra. No mesmo instante, o bastão começou a brilhar, incandescente.
— Os dois Keruvins estão por perto — disse ele. — Quando a lua iluminar a pedra, terá chegado a hora. — Ergueu os olhos para a janela do quarto lá no alto da casa. — Eles estão dormindo — disse Finnesterre para Demurral.
Mal ele disse isso, fez-se um silêncio profundo. Demurral virou-se para ver a tropa de varrigais abrir-se rapidamente e dar passagem a um personagem alto de cabelos ruivos e brilhantes, vestindo uma armadura de couro, que se encaminhou para o centro do círculo. Os glashans caíram de joelhos e baixaram suas cabeças diante dele, sem ousar erguer os olhos para o rosto incrivelmente belo do recém-chegado.
Finnesterre e Demurral ficaram em silêncio, sem saber o que dizer. Não ousavam perguntar seu nome e temiam até mesmo pensar em quem ele poderia ser.
— Para quem parecia tão ansioso para falar comigo, vocês dois agora não parecem encontrar as palavras.
O homem falava com uma voz surpreendentemente cativante, com uma certa ternura, até.
— Estou sempre pronto a ouvir os que me procuram, e é muito grande o... prazer... que tenho em conhecê-los. — Ele olhou para os dois e sorriu. — Vocês não precisam se apresentar. Sei quem são e tenho acompanhado suas vidas com grande interesse. Meus auxiliares me falaram tudo sobre vocês e seus desejos. Acredito, padre Demurral, que houve um tempo em que você foi seguidor de... — Ele fez uma pausa e olhou para o céu. — Pergunto-me o que ele estará pensando neste momento, pouco antes de ser destituído de todo o seu poder. Há muito tempo espero por isto... um Adão, uma Eva e os Keruvins. Dessa vez não apenas o ser humano perderá sua glória, mas esta será também a queda de Deus, para todo o sempre. Nunca mais Riathamus vai me importunar. Essas últimas palavras foram ditas aos gritos, transbordantes de ódio, com o rosto desfigurado como que por um insuportável sofrimento. Subitamente, porém, ele recuperou a compostura.
— Queiram me desculpar, cavalheiros. Permitam que eu me apresente. Sou Pyratheon; é este meu verdadeiro nome. Sou aquele que está por trás de todas as divindades que não Ele. Sou Pan, Baal, a deusa terra ou qualquer outra entidade que tenha inventado para captar seu interesse e sua adoração. Já fui chamado por muitos nomes, mas prefiro Pyratheon; foi o nome que meu pai me deu.
— O senhor... o senhor é diferente do que imaginávamos —disse Finnesterre baixinho, assustado.
Pyratheon deu uma risada.
— Vocês imaginavam um ser monstruoso, com chifres, rabo e o corpo coberto de escamas, não é? — Ele olhou para Finnesterre. — Foi isso que pensei. Meu caro Finnesterre, eu já fui um seruvim. Era eu o responsável pela adoração no Paraíso. Eu me sentava aos pés Dele. Vocês acham que ele permitiria que um ser repugnante o servisse? Foi com um prazer inesperado que travei conhecimento com o mal e aproveitei a oportunidade. Se não fosse por Riathamus, eu teria tido sucesso. — Ele se virou para Demurral. — Lamento dizer-lhe isso, Demurral, mas você não terá o poder que esperava ter. Você subestimou aquilo que desencadeou. Eu jamais poderia deixar todo o poder do mundo nas mãos de um humano. Os da sua espécie não são confiáveis. Têm espasmos de compaixão e misericórdia. Até mesmo os seres humanos mais cruéis têm aquela abominável semente de amor em seus corações que os torna fracos. É esse o defeito na criação dos humanos. Sem essa capacidade de amar, vocês teriam um grande potencial. É uma pena, mas nenhum de vocês está livre da redenção, portanto não podem merecer muita confiança. Quando eu estabelecer meu reino, vocês terão o que merecem, de acordo com sua posição. — Ele olhou a sua volta. — Onde estão os três?
— Estão na casa — respondeu Finnesterre.
— Então, Lorde Finnesterre, sugiro que vá buscá-los. — Ele parou e pensou rapidamente. — Não, vou mandar um glashan. Esses não gostam de cometer erros e deixar as pessoas escaparem. — Fez então um sinal para um glashan, que deixou o círculo e se encaminhou para a casa.
Raphah os viu atravessar o gramado com suas figuras negras formando silhuetas em contraste com a densa névoa branca.
— Aquele é Pyratheon. Sei quem ele é. Temos de sair daqui, logo estarão aqui. Vamos descer, sair pela porta da cozinha e correr para o bosque — disse ele.
— E se nos pegarem? — perguntou Kate.
— Se nos pegarem, o que Pyratheon deseja pode se tornar realidade. Riathamus nos fez uma promessa na floresta. Ele disse que jamais nos abandonaria e que enviaria um seruvim quando fosse necessário. Ele sabe do perigo que estamos correndo. Devemos confiar nele.
Eles ouviram a porta bater ruidosamente lá embaixo e, em seguida, pesados passos no corredor.
— Pegue a sacola e corra — disse Thomas, já disparando rumo a porta. Kate pegou a sacola e os três saíram correndo do quarto e chegaram ao pavimento onde ficavam os quartos, dando para o corredor. A chave não estava mais na fechadura, e a porta estava firmemente trancada. Horrorizados, eles viram que a porta da cozinha para a escada se abria e, na semi-escuridão, pairava um glashan olhando para eles.
— Estamos sem saída — disse Thomas, quando um segundo glashan começou a subir a escada na direção deles. O menino sentiu seu corpo gelar como se seu sangue houvesse se transformado em gelo. O ar ficou preso em sua garganta e ele olhou desesperado para Kate e Raphah, sem saber o que fazer. O glashan subia os degraus lentamente, já com a mão enluvada em couro negro estendida para pega-los.
— Tem de haver alguma saída daqui — disse Kate, aflita, procurando os dois cristais na sacola.
— De volta para o quarto, depressa! — gritou Raphah.
Os três correram a toda velocidade escada acima, retornando ao quarto dos empregados. Kate bateu a porta atrás de si e Thomas empurrou as camas para fazer uma barricada. Eles empilharam também os armários sobre as camas e colchões. Era a única defesa com que podiam contar contra os glashans.
— É agora? — perguntou Thomas já quase sem esperanças de que eles fossem se salvar.
— Paz — disse Raphah calmamente. — Pediremos a Riathamus que nos dê sua paz. Sei que ele nos atenderá e nos ajudará a fugir dessas forças do mal. Sentem-se no chão, fechem os olhos e pensem nele.
Os três sentaram-se no chão e fecharam os olhos. Kate apertava um cristal em cada mão. Os glashans começaram a forçar a porta, mas não conseguiram empurrar os móveis que serviam de barricada.
— Concentrem-se nele — disse Raphah. — Deixem que ele fale com vocês.
Em meio àquele caos, os três começaram a se concentrar em Riathamus, enquanto os glashans forçavam a porta tentando empurrar tudo que estava por trás dela. Apesar do pandemônio que se instalou, Thomas e Kate foram se transportando para um estado de espírito da mais absoluta paz. Era como se eles estivessem surdos para o mundo enquanto suas mentes eram transportadas para a presença de Riathamus. Logo o medo desapareceu e uma nova esperança encheu de júbilo seus corações e suas mentes. Eles não se perguntaram o que estava acontecendo nem porque, simplesmente deixaram que aquela estranha experiência os envolvesse e os conduzisse.
Kate apertava com força os cristais; tinha a sensação de eles estarem se derretendo em suas mãos. Em pensamento, viu a parede forrada de painéis de madeira de quarto. Seus olhos foram atraídos para um pequeno pedaço de madeira que formava uma saliência no canto de um dos painéis. Viu quando o painel se abriu dando acesso a uma escada.
— Um túnel — exclamou ela. — Um túnel secreto! Podemos fugir!
Sua voz os trouxe de volta à realidade. Naquele mesmo instante uma mão coberta com uma luva negra atravessou com um soco a madeira da porta, agarrando o que estava pela frente. Outra mão semelhante àquela atravessou a parede junto à porta, espalhando gesso branco pelo chão.
— Depressa! — disse Kate aflita. — Sei como podemos sair daqui! — De um salto, ela se pôs de pé e olhou em volta. No canto mais afastado do quarto, onde o telhado começava a se inclinar, ela viu o pequeno painel de madeira embutido na parede. Era exatamente como a visão que ela havia tido. Ela puxou a pequena tranca de madeira e o painel se abriu. Diante deles estava uma passagem secreta usada para enganar os fiscais da Alfândega. Do outro lado daquela porta, a escuridão era absoluta.
— Não podemos descer por aí nessa escuridão — disse Thomas no momento em que outra mão de couro abria mais um buraco na parede. Kate mostrou-lhe- os cristais nas palmas de suas mãos.
— Veja, eles estão brilhando! Esta luz será suficiente para nos iluminar o caminho — disse ela, enquanto o brilho dos cristais iluminava seus rostos. Por trás deles, a porta já começava a ceder à força dos glashans. O quarto estremecia a cada soco e a barricada ia sendo empurrada. — É melhor irmos logo, antes que eles nos peguem — disse ela.
Com um último chute, a porta cedeu, e a barricada desmoronou pelo quarto. Os dois glashans saltaram por cima dos destroços e entraram. Seus olhos esquadrinharam o quarto escuro sem encontrar vivalma. O quarto estava vazio. Às criaturas se entreolharam. O mais alto dos glashans começou a andar de quatro pelo chão farejando por onde passava, enfiando seu grande nariz pelos cantos à procura dos fugitivos.
A luz dos cristais, foi fácil para os três atravessar o corredor de teto baixo que parecia embutido nas paredes da casa. Na fuga, ainda puderam ver passagens para aposentos onde ficava escondida a mercadoria contrabandeada. O túnel continuava descendo até eles sentirem um cheiro forte de água parada e de terra. O ar ficou mais frio no túnel e mais úmido também. O piso transformou-se em um riacho raso de água doce; a cada intervalo de cerca de dez metros, viam-se grades de metal no teto. Eles já estavam fora da casa. A luz da lua brilhou através de uma das grades de metal, e eles puderam ouvir vozes.
— Coma um pedaço disto — dizia Pyratheon —, e assim ficarei sabendo se você é realmente meu seguidor ou não.
— Mas o que acontecerá comigo se eu comer? — Era a voz de Demurral, assustada como eles nunca haviam escutado.
— Isso fará com que você compreenda como o mundo realmente é e selará seu compromisso comigo para sempre. É isso o que você sempre quis, não? — respondeu Pyratheon. — É você, Finnesterre, pode ficar com a segunda mordida; não se preocupe, o efeito é o mesmo e esta maçã é suficiente para os dois. — Ele sorriu. — Depois que comerem o fruto desta árvore, não haverá volta, e assim que os três estiverem mortos, a grande batalha começará. Demurral olhou para Finnesterre.
— Não estou seguro de que é isso o que devo fazer. Sou apenas um ser humano e essas coisas não são deste mundo. — Subitamente, todo aquele seu ar confiante parecia estar desaparecendo como fumaça. Pela primeira vez, ele começava a se dar conta do que estava prestes a fazer. Finnesterre arrancou a maçã do galho e mordeu um grande pedaço.
— Está vendo? Não tem nada de mais — disse ele com a boca cheia de maçã, mastigando. — Por que se preocupar? Isso não pode nos fazer mal algum. Nós já nos vendemos a ele há muitos anos, Demurral. Não é agora que devemos ter medo. Vamos lá, homem, o mundo espera por nós!
Ele entregou a metade da maçã que restara a Demurral e, no instante em que mudava de mãos, a fruta se recompôs, ficando inteira novamente diante de seus olhos. Demurral, relutante, mordeu um pedaço da maçã. Ao mastigar e engolir o pedaço que mordeu, Demurral sentiu que algo se transformava. Teve a impressão de que seu corpo crescia sem parar, e as árvores do bosque lhe murmuravam palavras ininteligíveis. Cada galho, cada folha parecia ser uma criatura viva. Elas já não tinham mais as tonalidades verdes de antes — cintilavam em todos os tons de azul e púrpura à luz do luar. Ele desejou compreender o que elas estavam tentando lhe dizer, porque parecia que era um segredo há muito esquecido. Uma gaivota voou em círculos sobre sua cabeça, desviando sua atenção das árvores. Demurral olhou para o céu. Foi nesse instante que ele se deu conta de como era pequeno. Sentiu-se cada vez menor ao olhar cada estrela cintilante no céu. Em seguida foi sendo tomado por uma crescente e profunda sensação de bem-estar, de estar perfeitamente integrado ao mundo à sua volta. Era essa a experiência que ele desejava — a de estar perto de seu deus. Ele agora sabia o nome desse deus... Pyratheon.
Uma brisa suave atravessou o jardim. A grama sob seus pés parecia se mover ao ritmo de sua respiração. Ele se sentiu sendo absorvido pela natureza. Olhou então para cada uma das pessoas ali reunidas. Dessa vez, ao olhá-las, pôde ver também a vida de cada uma delas, as mentiras que haviam dito, as pessoas que de fato eram. Pôde conhecer a sórdida realidade de cada uma. Demurral então olhou para as suas mãos. Elas pareciam cintilar com uma luz prateada.
— É isto que significa estar vivo — disse ele. — É isto que significa conhecer a vida.
Finnesterre estava encolhido na grama, chorando baixinho como uma criança. Seus olhos só enxergavam a mais absoluta escuridão. Ele estava só; era um menino de seis anos de idade sozinho em seu quarto escuro. A voz de seu pai ecoava em sua cabeça: — Se você sair da cama, os fantasmas o pegarão. — Ele chorava aprisionado em sua cama, querendo ir para junto da mãe, sabendo que ela o protegeria de tudo que ele temia na noite. Ele estava imobilizado pelo medo e revivia aqueles momentos terríveis. Ali, deitado na grama úmida, podia ouvir as vozes que escutara muito tempo atrás. Vozes dizendo coisas que ele não queria ouvir. Às palavras sussurradas pareciam tocar fisicamente seus ouvidos. Ele levou as mãos a cabeça tentando tapar as orelhas, na esperança de assim não escutar o que diziam. Foi então que descobriu que as vozes estavam dentro de sua cabeça, tentando sair. A voz de seu pai gritava ainda mais alto: — Você diz que é menino, não? Mas para mim é uma menina. Você age como menina, tem jeito e cara de menina. Eu quero um filho, não um maricas. Quero um homem para ser meu herdeiro, não um efeminado que só quer o colo da mãe!
Sua experiência parecia estar sendo compartilhada por todos à sua volta. O grupo permaneceu em silêncio olhando para os dois. Pyratheon não afastava deles seus belos olhos azuis e tranqüilos.
— Assim é o fruto desta árvore — disse Pyratheon. — Para uns ele traz a luz, e para outros, o medo. Não tema, Finnesterre. Isso não vai durar para sempre. Os espíritos do passado não podem perturbá-lo eternamente.
Lá embaixo, no túnel, os três a tudo ouviam em silêncio. Kate escondeu os cristais no casaco, temendo que seu brilho chamasse a atenção na noite escura. Puseram-se então a caminhar com toda a cautela, com a água gelada do riacho lhes chegando aos tornozelos. O túnel ia ficando cada vez mais estreito e mais baixo. Eles caminharam agachados e, por fim, o túnel terminou abruptamente. Acima de suas cabeças havia uma pedra grande e plana como a lápide de um túmulo. Junto a um dos lados da pedra havia alguns degraus que levavam à parte de cima. Kate abriu um pouco o casaco para que a luz dos cristais iluminasse o caminho. Ela clareou as paredes do túnel, que pareciam ter sido lambuzadas com tinta vermelha. Kate examinou a pedra.
— Acho que esta pode ser a pedra junto ao caminho que vai dar na porta da frente, longe de onde eles estão. — Ela passou a mão pela pedra e, em um dos lados, encontrou algo que parecia uma grande dobradiça. — Se empurrarmos deste lado, a pedra vai se abrir — disse ela.
Thomas empurrou a pedra com cuidado. Ela deu um leve estalo e abriu-se com facilidade. Raphah espiou pela fresta estreita e viu o grupo reunido ao redor da pedra, próximo a um canto da casa.
— Vamos — disse ele baixinho. — Podemos chegar ao bosque sem que nos vejam.
Os três subiram depressa os degraus, saíram do túnel e correram para o bosque. Raphah agachou-se junto ao muro do portão. Ele sabia que Pyratheon podia vê-lo de onde estava. Nesse mesmo instante, os glashans irromperam do interior da casa e correram até junto de Pyratheon. Raphah pegou rapidamente o Keruvim de seu esconderijo e correu de volta para o bosque.
Demurral percebeu que seu bastão de acácia havia deixado de brilhar, readquirindo sua cor de madeira.
— O Keruvim não está mais aqui! — gritou ele. — Depressa! Vamos atrás deles!
— Meu caro Demurral, você terá ainda de passar por muitas vidas até compreender isso. Vamos deixar eles fugirem, pois logo serão encontrados. Tragam a Azimute. Ela nos dirá para onde foram.
Vitae Veritas
As primeiras luzes da manhã iluminaram três corpos cansados percorrendo a última etapa do caminho que os levaria do Charco de Hawsker, de onde veriam o estuário, ao alto de um desfiladeiro que cercava a cidade de Whitby.
Eles haviam corrido, caminhado, descansado sob arbustos e em estábulos, sempre com alguém de guarda para assegurarem-se de que não estavam sendo seguidos. Agora, finalmente, já estavam prestes a terminar sua jornada e tinham consigo o Keruvim. Os temores trazidos pela noite desapareciam com o raiar do dia; o brilho estranho e intenso ao norte era o único sinal de que as coisas ainda não estavam como deveriam ser e que o poder de Pyratheon ainda se espalhava pelo mundo.
O porto lá embaixo estava cheio de barcos a vela, alguns dos maiores que Thomas jamais vira e outros tão pequenos que pareciam incapazes de chegar a Baytown, quanto mais ao continente ou a Londres. Os barcos estavam bem próximos uns dos outros, ocupando quase todo o espaço disponível do porto. À luz do alvorecer, pareciam toras de madeira escuras ali levadas por uma enchente do rio.
O cheiro de fumaça e de peixe cozido reforçou aquela sua sensação de que sua jornada havia quase terminado. Eles se lembraram de que tinham fome e foram se esquecendo do medo terrível que se apossara deles na escuridão da noite. Espirais de fumaça saíam das chaminés das casas que se agrupavam na encosta da montanha, logo abaixo da igreja de pedra cuja vista dominava toda a cidade. Por trás da igreja viam-se as ruínas de uma abadia recortadas contra a linha do horizonte. Thomas pôde ver o telhado da enfermaria para a qual sua mãe havia sido levada depois do incêndio. Não sabia se ela ainda estava viva. Ele a deixara sob os cuidados de outros que cuidariam dela. Ao olhar para aquele telhado vermelho, ele sentiu seu coração pesar e desejou saber o que havia acontecido com ela. Mas ainda não havia chegado a hora de procurá-la.
— Se conseguirmos entrar na igreja, talvez encontremos o homem de quem Riathamus nos falou — disse Thomas quando eles deixaram o descampado do charco e começaram a descer pela íngreme trilha de burros na encosta da montanha.
— Não creio que o homem que procuramos possa ser encontrado em tal lugar. Pela experiência que tenho das pessoas que servem a Deus, naquele lugar o que se tem no bolso é mais importante do que a alma, e as coisas que eles inventam valem mais do que as palavras de Riathamus — disse Raphah prontamente. —Aquele que procuramos saberá nos encontrar, e não será como imaginamos que seja. Precisamos ter cuidado: Pyratheon não desistirá de nós tão facilmente.
Eles desceram pela trilha estreita na encosta íngreme, passando por pequenos jardins das casinhas de pescadores, até que chegarem ao mercado. Com dez passadas, deixaram a tranqüilidade do caminho por onde tinham vindo e entraram em uma rua movimentada. Logo o cheiro da rua, com suas barracas de peixe, os envolveu. Toda a rua que levava à igreja estava apinhada de gente que se empurrava tentando passar.
Kate agarrou-se ao braço de Thomas e, forçando caminho, os três chegaram à entrada da Taberna do Grifo. A placa acima da porta balançava à brisa suave da manhã, fazendo com que o cavalo branco e o grifo dourado nela pintados reluzissem quando a luz do sol incidia sobre eles.
Assim que entraram, os três ocuparam uma mesa perto da lareira. A sala estava quase vazia. Junto à entrada, três velhos sentados fumavam seus cachimbos de barro que soltavam fumaça como chaminés. Os velhos compartilhavam uma única caneca de cerveja e a metade de um pão. Passavam a caneca um para o outro e, de vez em quando, lançavam olhares atentos na direção de Raphah. Por trás do balcão, uma moça gorda levava pratos de um lado para o outro do bar. Uma janela comprida abria para a rua e por ela entrava o brilho da nuvem refletido nas paredes caiadas de uma ruazinha estreita.
A mulher ergueu os olhos da louça que carregava e, ao vê-los, encaminhou-se em sua direção.
— Posso lhes servir alguma coisa, ou estão aqui só para se aquecer? — perguntou ela a Raphah rispidamente. — Não costumamos receber gente da sua espécie aqui e não é permitido ficar aí sentado sem pedir alguma coisa. E então, o que vão pedir?
Raphah pôs-se a revirar os bolsos do casaco à procura de dinheiro. Eles estavam absolutamente vazios. Kate enfiou a mão na sacola de pele de cabra, catou as duas grandes moedas e, sem olhar, espalmou-as vigorosamente sobre a mesa. A mulher arregalou os olhos ao ver as duas moedas de ouro. Kate respirou fundo, ela própria surpresa, enquanto Thomas olhava, perplexo, aquele tesouro à sua frente.
— Meu amigo é mercador e veio de muito longe. Queremos algo para comer — disse a menina sem se intimidar. — Traga-nos pão, queijo, três xícaras do seu melhor chocolate — acrescentou ela com crescente confiança em si. Quando a mulher já ia se afastando, Kate chamou-a de volta. — Diga-me uma coisa. Nunca vi uma pessoa como você antes. De onde você é? — A mulher não respondeu. Simplesmente baixou a cabeça e seguiu apressada para a cozinha.
Foi Kate quem viu o homem sorrindo para eles de um canto escuro da sala. Ele usava um chapéu francês e estava recostado na cadeira com os pés sobre a mesa e um copo de vinho tinto na mão. Kate não o tinha visto ali quando chegaram. Ela estava certa de ter olhado para aquele canto e de ter visto aquela mesa desocupada. Tornou a olhar, e lá estava o homem sorrindo. Pela expressão de seu olhar, ela percebeu que ele desejava falar com eles, que a qualquer momento ele se levantaria de sua cadeira, atravessaria a sala e se sentaria perto deles.
O homem continuava a olhar para ela e parecia rir consigo mesmo, como que percebendo o que ela pensava. Ele empurrou o chapéu um pouco para trás, curvou-se para a frente em sua cadeira, pôs-se de pé e atravessou a sala na direção da mesa deles, exatamente como Kate havia imaginado. Kate viu que ele olhava para as duas moedas de ouro e para a sacola de pele de cabra que estavam sobre a mesa.
— É uma bela sacola a que você tem aí, mocinha — disse ele. — Conheço um homem que tinha uma sacola assim. Ele me disse que a havia deixado na floresta e que gostaria de saber que uso tem sido dado a ela.
Thomas não se virou para olhá-lo. Segurou com força o punho da espada que estava bem escondida em seu casaco. O homem pôs a mão no ombro dele.
— Espero que não se importem se eu me juntar a vocês.Whitby não é um lugar onde se deva estar com tanto dinheiro e tão poucos amigos, e nem mesmo uma espada de varrigal pode protegê-los de certas pessoas que andam por aqui.
Thomas soltou a espada e pôs as duas mãos sobre a mesa, tentando cobrir as moedas com a manga de seu casaco. O homem puxou uma cadeira de outra mesa e sentou-se entre Kate e Thomas.
— Não vim aqui para roubá-los. Vim só para tomar café da manhã com vocês. Detesto comer sozinho e os outros clientes daqui são tão... — Ele indicou com a cabeça os velhos cercados por uma nuvem de fumaça de cachimbo. — São tão aromáticos.
— Somos viajantes — disse Raphah — e estamos à procura de um barco que nos leve daqui. O senhor sabe de algum?
— Viajantes? Que palavra tão interessante! Eu já fui viajante. Vi muitas coisas e muitas pessoas diferentes. Estive até mesmo na terra de onde você vem; mas isso foi há muito tempo. Agora só vou aonde preciso mesmo ir. Gosto de usar meu tempo pensando. Recordar o passado é algo maravilhoso. Quando nos lembramos, podemos perceber coisas que passaram despercebidas. É como se a mente pudesse conter tudo que você viu, ouviu, saboreou, ou até mesmo o que pensou, mas que você acaba esquecendo quando cuida de outras coisas. É como se nos esquecêssemos de muito do que somos. — Ele fez uma pausa e olhou em volta — Eu me pergunto se, ainda que pudéssemos viver várias vidas, seríamos capazes de descobrir a verdade, a vitae veritas de por que estamos aqui. Ou será que podemos descobrir isso em um único encontro casual?
— O senhor parece saber muito a nosso respeito, e nós quase nada sabemos do senhor — disse Raphah, segurando com mais força o Keruvim sob seu casaco.
— Sinto muito, a idéia de conversar com vocês e de comermos juntos fez com que eu me esquecesse das boas maneiras. Meu nome é... — ele fez uma pausa, como que tentando se lembrar de um nome. Seus olhos vagaram pela sala. — Abram Richards — disse ele ao ler o nome em uma placa acima da porta. — Mas podem me chamar de Abram.
— Bem, Abram, então por favor junte-se a nós. Temos dinheiro para pagar o café da manhã e há muito não desfrutamos do prazer de uma boa companhia — disse Raphah, ao perceber que o homem não sairia mesmo dali antes de comer. Kate e Thomas olharam para ele sem saber o que dizer. Sabiam que aquele homem, por algum motivo, sabia coisas sobre suas vidas. Mas não sabiam se ele era alguém de Riathamus ou se era mais um inimigo que queria se infiltrar no meio deles para em seguida entrega-los a Demurral ou a Pyratheon.
Abram Rickards tinha toda a aparência de um cavalheiro, mas Thomas sabia que aquilo não era garantia alguma de integridade. Demurral tinha toda a aparência de um Padre, mas não poderia estar mais afastado de Deus. Abram tirou o chapéu e colocou-o sobre a mesa. A mulher veio da cozinha e pôs a comida diante deles sem lhes dirigir o olhar, que manteve no chão.
Abram pegou o pão, partiu-o com a mão e deu um pequeno pedaço a cada um.
— Na França — disse ele —, a última moda é você mergulhar o pão no chocolate e deixar que fique encharcado.
— Como é que você sabe tantas coisas a nosso respeito, Abram? — perguntou Thomas.
— Na verdade, eu sei muito pouco. Encontrar vocês é uma grande coincidência.
— O seu amigo que perdeu a sacola de pele de cabra, ele sabe quem a encontrou? — perguntou Raphah.
— Ele só me disse que, se eu visse uma igual, perguntasse a quem estava com ela para onde estavam indo e os ajudasse a cumprir sua missão — respondeu ele tranqüilamente.
— Seu amigo lhe disse onde encontrar as pessoas que estavam com a sacola? — perguntou Raphah.
— Não. Mas disse que procurasse encontrar quem a achou. É que, quando precisassem de ajuda, eu os ajudasse... que os ajudasse a encontrar um barco, que os protegesse de certas coisas —respondeu Abram.
— O seu amigo tem um nome? — perguntou Kate, tentando pega-lo de surpresa.
— Ele tem muitos nomes. Alguns são conhecidos em todo o mundo, outros são secretos e só ele conhece. Seu nome é importante, mas o importante, de fato, é conhecê-lo.
— Então como você chama esse amigo? — insistiu Kate.
— Posso chamá-lo de Riathamus, mas para chamá-lo basta um anseio do coração. — Ele fez uma pausa. — Sejamos claros. Sei que não confiam em mim, e que só o tempo revelará quem sou. Ele mandou que eu os encontrasse e aqui estou. Consegui um lugar para vocês em um barco que está de partida para a França. Os três precisam ir. Não será seguro permanecerem aqui. — Ele enfiou a mão no bolso e curvou-se para a frente. — Posso lhes mostrar uma coisa para provar quem sou. Ele abriu a mão. Lá dentro havia um ovo de cristal idêntico aos que eles haviam encontrado na sacola. — Sei que agora vocês entendem tudo que eu disse. Precisamos ir. Estou hospedado em uma casa perto daqui, e vocês devem vir comigo.
Ele atirou cinco moedinhas sobre a mesa e todos se levantaram para sair. Kate pôs as moedas de ouro de volta na sacola e pendurou-a no ombro. Nenhum deles havia percebido que o cheiro de fumaça aumentava na sala. Ela surgira no chão como uma névoa invernal e agora chegava à altura de suas cinturas. Quando eles se viraram, ela flutuou como uma nuvem ao vento. Os três velhos desapareceram por trás da espessa fumaça. Os meninos viram a expressão de surpresa no rosto de Abram.
— Depressa! Vamos sair daqui! Isso é o hálito do dragão. Os glashans estão por perto. Corram, depressa!
Abram pegou uma cadeira e atirou-a na névoa. Eles ouviram um grito e então viram uma figura se levantar como uma serpente, bloqueando a porta por onde eles iam sair. Duas outras cabeças surgiram logo em seguida da névoa, e seus olhos de gato se fixaram neles.
— Vocês não vão a lugar nenhum, Raphael. Eles pertencem a nós — disse a primeira criatura.
— Eles pertencem a Riathamus — retrucou Abram.
— Então que ele mesmo venha buscá-los, se tiver coragem. Ou ele não perdeu o costume de enviar você para fazer o trabalho dele? — disse a criatura com desdém.
A névoa estava ficando cada vez mais densa, como uma coberta de fumaça negra. Kate não conseguia enxergar o braço de Thomas.
— Kate, os cristais! — gritou Abram. — Atire um deles na parede.
A menina enfiou a mão na sacola depressa, pegou a pedra lisa de cristal e atirou-a com força contra a parede. Ouviu-se um estalo ensurdecedor seguido de um clarão muito forte e do rugido de um trovão. Tudo na sala estremeceu com a explosão. Os três foram lançados para o fundo da sala, onde caíram embolados. A névoa desapareceu por completo e as criaturas também. Abram não havia sido afetado pela explosão e estava de pé junto à porta, sorrindo.
— Deu certo, minha menina. Os cristais de Abaris têm muitos usos e depende de quem os utiliza descobri-los. — Ele se virou para Raphah. — Em breve vocês serão capazes de reconhecer os glashans mesmo quando eles chegarem usando disfarces. Agora vocês já viram como é urgente irem embora deste lugar. Pyratheon os quer mortos, porque assim terá ainda mais poder.
— Ele o chamou de Raphael, eu ouvi quando ele disse esse nome — disse Raphah.
— Que importância tem um nome? Só o que vocês precisam saber é que estou aqui para ajudá-los. Tenho uma missão a cumprir. Agora vamos, levantem-se daí depressa. Pode haver outros atrás de vocês e precisamos chegar a um lugar seguro.
— Por que Riathamus não acaba logo com tudo isso? — perguntou Kate pondo-se de pé.
— Suas razões não são as nossas e seus desígnios só Ele conhece. Muitas vezes não está a nosso alcance a compreensão do que Ele é ou Sua maneira de agir. Conheço-O desde sempre e nem mesmo eu sou capaz de compreender tudo. Tudo que sei é que Ele tem o controle de todas as coisas, por mais difícil que a vida nos pareça às vezes. Segundo Suas palavras, as pessoas vêem a vida como veriam um espelho nebuloso; enxergam apenas um vago reflexo do que a vida realmente é. É só isso que conhecem, mas há uma vida bem mais importante depois desta para aqueles que O seguirem. Agora apressem-se, pois temos de sair daqui — disse Abram ajudando Thomas a se levantar e olhando a sala à sua volta.
Por trás do balcão surgiu um rosto assustado. A mulher gorda olhava, aterrorizada, a cena de destruição da estalagem.
Kate tirou da sacola as duas moedas de ouro e colocou-as em cima do balcão.
— Isto é por tudo que aconteceu e para pagá-la por seu silêncio. Não conte a ninguém o que viu. Aliás, ninguém acreditaria mesmo se você contasse — disse ela.
A mulher pegou as moedas e mordeu cada uma delas para verificar se eram autênticas. Deu então um sorriso que lhe contorceu o rosto numa horrível careta. Parecia ansiosa que eles fossem logo embora dali.
A rua estava movimentada. Crianças corriam, adultos falavam alto, e carretas de madeira passavam ruidosamente pelas ruas de paralelepípedos. Ouviam-se ordens gritadas de dentro dos barcos atracados no cais, cujos altos mastros se elevavam acima das casinhas. Mulheres carregando cestos de peixes passavam falando alto, algumas reclamando dos maridos, outras praguejando contra as dificuldades da vida. Crianças maltrapilhas e descalças catavam pedaços de rede e de corda para brincar. Um Padre vestido de negro passou por eles, olhou para Kate e sorriu. Ela já não sabia mais em quem podia confiar. A vida havia se tornado absolutamente imprevisível, fantástica e sinistra.
Conduzidos por Abram, eles passaram por lojas e grupos de pessoas comprando e vendendo mercadorias.
— Não é muito longe, fica ao pé da escadaria da igreja. É a casa de um homem bom, em quem podemos confiar. Já estou hospedado lá há algum tempo. Vocês estarão seguros. — Abram falava com tranqüilidade, e o tom amistoso de sua voz tocou os corações das crianças, dando-lhes esperanças.
Kate olhou para ele e notou que ele não tinha no rosto as marcas do tempo. Era velho, mas parecia muito jovem. Aparentava ser um homem sábio, mas às vezes tinha um jeito quase infantil de falar Ela o seguiu peias ruas movimentadas sem olhar para qualquer outra pessoa. Mantinha os olhos fixos nele, como se soubesse que nada lhe aconteceria se fizesse isso.
— O cristal de Abaris — perguntou ela —, o que foi que ele fez?
— Isso é algo sobre o que os seres humanos pouco sabem. Riathamus criou tudo no mundo. Uma cura para todas as doenças nas plantas e árvores. A doçura do mel para afastar todas as tristezas das noites de inverno, as nozes amargas para fazer desaparecerem tumores incuráveis, e os cristais de Abaris para enviar os seruvins que optaram pelo mal de volta ao lugar ao qual pertencem — respondeu ele abrindo caminho na multidão, sendo seguido pelos três.
— Então eles voltarão? — perguntou Raphah.
— Eles serão invocados por alguém que não sabe o que faz. Desde que Demurral fez uso de uma antiga magia as coisas não são mais como antes nos dois mundos. Houve um tempo no qual os seruvins e os homens raramente se misturavam. Agora os dois mundos estão aos poucos se fundindo. — Abram apontou para a nuvem brilhante. — Aquela nuvem é como um portão entre o céu e a terra. Há criaturas do mal que conseguiram penetrar neste mundo e que precisam ser impedidas de levar seu plano adiante. Riathamus está se preparando para uma batalha e minha missão é manter vocês três a salvo.
Eles pararam diante de uma porta azul. A casa era de tijolos e tinha dois pavimentos além do portão. Uma placa acima da porta dizia: Joab Mulberry, Tabelião Público. No porão da casa ficava a oficina de um sapateiro. Na frente em um prédio junto ao cais, ficava uma cervejaria. Um beco estreito ao lado da cervejaria terminava no mar, que ali se quebrava em pequenas marolas.
Abram parou no primeiro dos três degraus diante da porta da casa e virou-se para eles.
— Podem confiar no velho Mulberry; é uma boa pessoa.
Eles entraram na casa. A sala da frente, com uma ampla janela que dava para a rua, estava repleta de fichários e papéis espalhados sobre uma grande escrivaninha que se destacava no aposento.
Joab Mulberry estava sentado à escrivaninha e olhou por cima de um par de óculos de lentes pequenas e redondas apoiado na ponta do nariz. Assim que os quatro entraram, ele se pôs de pé. Thomas observou que o homem era bem alto e magro, vestia uma roupa preta bem cuidada e um jaleco amarelo. A barba grisalha bem aparada que subia pelos lados do rosto magro não escondia um sorriso contagiante. Ele deu uma sonora risada ao cumprimentá-los.
— Então são vocês três o motivo de toda essa confusão, não? Ora, ora, ora, e pensar que metade dos anjos do céu está à procura de vocês por todo o mundo e vocês me surgem de repente aqui em casa com meu bom amigo... — Ele parou de falar e olhou para Abram à espera de um nome.
— Abram os trouxe aqui para o senhor, Sr. Mulberry, como disse que faria — disse Abram apressadamente.
— Sãos e salvos, Abram? Sãos e salvos? — perguntou Mulberry.
— Só tivemos um pequeno problema, mas a mocinha tinha consigo uns cristais de Abaris que logo resolveram o problema —disse Abram.
— E nosso amigo aqui, que veio lá da África? Sempre que algo novo acontece na África, nós o vemos aqui em Whitby.—Ele sorriu cumprimentando Raphah. — Então, o que faremos? Vocês precisarão esperar un pouco até a partida do barco esta noite. Podem descansar lá em cima e a noite seguem viagem. É uma carga sagrada, Sr. Abram. Uma carga sagrada. Suponho que o senhor vá com eles, não? — disse ele com sua voz delicada.
— Falta muito tempo para a meia-noite. Acho que vocês devem descansar — disse Abram Voltando-se para os três. — Vocês estarão seguros aqui. Nem os glashans nem os varrigais ousariam vir a este lugar. Joab já lutou contra essas criaturas e é um homem de grande coragem.
— Você está sendo gentil comigo, Abram. Sou apenas um seguidor do bom caminho como nossos amigos aqui. Posso ver o que você traz consigo, meu jovem? — perguntou Mulberry a Raphah.
Raphah ficou surpreso. Olhou para Thomas e depois para Kate, sem saber como o homem tinha conhecimento do Keruvim. Relutante, tirou a estatueta de ouro de dentro de seu casaco e a exibiu. Mulberry arregalou os olhos para o Keruvim.
— É uma beleza! — exclamou ele. — Compreendo por que querem tomá-lo de você.
— Não é a beleza que eles desejam, é o poder — disse Raphah. — Eles pensam que o Keruvim lhes dará dinheiro, fortuna, felicidade. Mas ele só lhes dará o que eles têm no coração. Se a pessoa for má, colherá apenas o mal; se for boa, colherá bondade. Meu povo o protege desde os tempos de Moisés. Pensávamos que estávamos suficientemente afastados do resto do mundo para que ele estivesse em segurança, mas a ganância tem seus meios de descobrir as coisas de valor. — Raphah olhou fixamente para Mulberry. — Muita gente já morreu por esta criatura. Já foram procurá-la nos confins do mundo. Mas foi um dos nossos que finalmente nos traiu.
A porta da casa se abriu e ouviram-se passos de alguém que entrava. Raphah rapidamente escondeu o Keruvim em seu casaco. Um homem de meia-idade vestindo um casaco rasgado entrou na sala. Tinha a barba por fazer e estava sujo. Seus dedos curtos apertavam uma boina amassada.
— Desculpe, Sr. Mulberry, mas vim lhe falar sobre o roubo. Acho que vão acabar me pegando e não vou ter como escapar da forca. — O homem olhou atentamente as pessoas que ali estavam. Mulberry olhou para Abram como que pedindo para afastar os três dali. Aquele homem chegara sem ser esperado e Mulberry parecia não querer recebê-lo diante deles. Abram levou-os para fora da sala.
— Vamos, meus amigos, já tomamos muito tempo do Sr. Mulberry. Vamos descansar e depois conversamos — disse Abram de costas para o homem, tentando impedir que ele tivesse contato com os três.
— Eu conheço você — disse o homem quando Thomas passou por ele. — Você é Thomas Barrick, o filho desnaturado de Baytown. Acabo de ver sua mãe na enfermaria, em estado lastimável. Ela está morrendo e não pára de chamar por você e de chorar como uma criancinha. E você aqui, na companhia destes cavalheiros. Que filho você é!
— O que quer que ele seja, não é da sua conta. Diga logo ao Sr. Mulberry a que veio e suma daqui. — A voz de Abram havia mudado. Seu ódio era quase visível e ele esticou os braços para empurrar o homem.
— Deixe-o comigo, Abram. Eu cuido do caso dele — disse Mulberry. — Talvez ele esteja fugindo de algo mais do que a forca.
O quarto no andar de cima tinha vista para o cais. Às palavras daquele homem ecoavam na cabeça de Thomas. O menino não conseguia deixar de pensar na mãe. Ficou andando sem parar de lado a outro do quarto, roendo as unhas. Ele estava tão perto dela! Em dez minutos poderia estar com ela, segurar suas mãos, ouvir sua voz, estar a seu lado quando ela mais precisava dele. Ele se sentia como um prisioneiro, sem poder sair daquele quarto, sem saber sequer por que estava preso. À meia-noite iria embora daquela terra, como se uma enorme onda o carregasse para uma nova vida, onde tudo seria diferente. Tudo tinha acontecido tão depressa! Ele se sentia forçado a participar de uma luta com a qual nada tinha a ver e que transformaria sua vida para sempre.
O sol da tarde iluminava o quarto. Thomas ficou olhando para Raphah e Kate, que conversavam em voz baixa sentados na cama, rindo às vezes.
Ele ouviu Kate pedir a Raphah para lhe falar da África. Ela parecia aceitar toda aquela transformação de sua vida muito facilmente. Thomas sentiu raiva dela por estar pronta para ir embora para sempre sem sequer mencionar o pai. Sentiu uma profunda mágoa de Raphah, pois, afinal, ele era capaz de curar as pessoas e nem se oferecera para curar sua mãe.
Thomas olhou para o Keruvim, que havia sido posto no lugar reservado para a vela, junto à porta. Em sua mágoa, o Keruvim pareceu-lhe um pequeno ídolo arrogante que, em silêncio, gabava-se do poder que tinha. Thomas olhou a rua lá embaixo. O ladrão estava lá, olhando para cima. Seus olhos se encontraram. O homem fez um sinal com a mão chamando-o para descer. Ele deu alguns passos e novamente fez sinal para que Thomas o acompanhasse.
Já estava escuro quando Abram entrou no quarto carregando uma bandeja com chá e uma vela. Ele sorriu para Kate e para Raphah. Seus olhos procuraram por Thomas. Ele e o Keruvim não estavam lá.
A Espada de Mayence
Raphah sentiu no rosto o ar gelado da noite, ao deixar a casa aquecida de Mulberry na Rua da Igreja. Olhou para sua esquerda, onde uma escadaria de 199 degraus de pedra levava à igreja lá no alto, que agora parecia uma silhueta negra recortada contra o céu à luz prateada da lua cheia. A rua estava absolutamente vazia. O silêncio era total, quebrado apenas pelo suave bater de pequenas ondas que se ouvia vindo do beco junto à cervejaria.
Ele levantou a gola do casaco e desenrolou as mangas para cobrir as mãos. Depois se virou e fez um sinal para que Abram e Kate o seguissem. Eles saíram sorrateiramente, protegendo-se na sombra do muro comprido e alto que acompanhava a escadaria morro acima. Uma calha junto ao muro servia para escoar a água no inverno, mas naquela noite estava seca e as pedras pareciam crânios humanos surgindo da terra. Eles andavam devagar porque a subida era muito íngreme. O prédio da enfermaria ficava junto à muralha da abadia em ruínas. Seus olhos examinavam as sombras, assustados, pois eles não sabiam se estavam sendo observados ou o que os aguardava no instante seguinte. Thomas havia ido embora, levando consigo o Keruvim.
A enfermaria era o único lugar onde Kate achava que ele pudesse estar, e eles seguiram a intuição da menina esperando encontra-los a salvo.
Abram subia na frente, levando preso às costas um longo estojo negro no formato de uma cruz. Kate ia logo atrás, tentando acompanhar aquelas passadas grandes e firmes. Às vezes ele mais parecia voar que caminhar escada acima, pois seus passos não faziam ruído nem deixavam marcas na lama sobre as pedras.
Quando estavam a meio caminho, viram um homem de pé na escuridão. O fogo de seu cachimbo iluminava-lhe o rosto o suficiente para que eles vissem que o homem tinha um gorro enfiado até a altura dos olhos.
— Um glashan — sussurrou Abram enquanto se aproximavam. — É uma sentinela guardando o que está adiante. Vamos continuar a subir e veremos se ele nos segue. — Abram cumprimentou o homem com um aceno de cabeça ao passarem. O homem respondeu da mesma maneira, sem tirar o cachimbo da boca e mantendo o olhar fixo no chão para que eles não lhe vissem os olhos.
Kate e Raphah já estavam sem fôlego ao subirem os últimos degraus. No alto da colina, eles se viraram e olharam para a cidade lá embaixo. Ela estava tão tranqüila e tão bonita que nem parecia esconder tanto mal.
À direita deles havia um pequeno desvio que levava à porta da frente da enfermaria. Junto à porta, um braseiro de metal iluminava o caminho., lançando sombras tremulantes à sua passagem. Por trás deles um glashan os esperava encostado no muro. A porta se abriu com facilidade e eles entraram no saguão. Uma única vela de sebo saudou sua chegada. De uma sala ao lado, eles ouviram os passos de alguém que se aproximava.
Surgiu da escuridão uma mulher alta e magra, mostrando os dentes estragados em um sorriso forçado. Ela os olhou fixamente em silêncio por alguns instantes.
— Tarde demais para visitas — disse ela rispidamente. — Aqui há pessoas doentes que não podem ser perturbadas. Algumas estão morrendo e não vão querer que gente como vocês tentem mantê-las neste mundo.
— Viemos procurar nosso amigo — disse Raphah. — Talvez a senhora o conheça. A mãe dele foi trazida para cá de Baytown há algum tempo.
— Eles estão no último quarto junto à lareira — disse a mulher rispidamente. — Ela não vai durar muito, mas talvez ainda a encontrem com vida se se apressarem; mas não fiquem a noite inteira, porque gosto que os acompanhantes já tenham saído à meia-noite e que todos os doentes já estejam acomodados para dormir.
Eles foram caminhando com cuidado, passando pelas camas de doentes e moribundos. Raphah ia na frente seguido por Kate e, por último, Abram. Pareciam uma procissão macabra. Iam olhando cada doente em sua cama iluminada por uma pequena vela na cabeceira, todos bem presos por cobertores firmemente enfiados sob os colchões. Alguns dos pacientes tentavam toca-los ao passar; ouvia-se apenas o som de tosses e gemidos.
— Não lhes dêem atenção — gritou a mulher. — Eles são como criancinhas que só sabem chorar. Não sei por que não morrem de uma vez! — Essas palavras cruéis ecoaram no aposento comprido.
Então eles ouviram a voz de Thomas no fundo do quarto. Ele estava sentado ao lado de uma cama e chorava. Tinha as mãos juntas como se rezasse. O Keruvim, ao pé da cama, tinha o olhar parado de quem nada vê. Thomas sequer se virou para olhá-los.
— Não funcionou, Raphah. Eu o trouxe aqui para curá-la e ele não funcionou. É tudo mentira; não há poder algum; não há bondade alguma. Já gritei por Riathamus, mas ele é tão surdo quanto a estátua. Ou então não se importa mesmo com a morte dela. — Thomas se virou e olhou para eles com os olhos cheios de lágrimas. — Ela é tudo que eu tenho e agora até isso é tirado de mim!
Raphah notou um pequeno pote marrom com sal na cabeceira. Ao lado dele havia um pequeno pedaço de pão velho e um ramo de ervas amargas. Thomas viu que ele havia notado.
— É para quando ela morrer. Vou enfiar o pão no sal e comê-lo com as ervas. Assim os pecados dela passarão para mim e ela poderá deixar este mundo com a alma limpa. Poderá ir para a terra dos mortos sem ter de se redimir nem ser torturada por seus pecados. — Ele soluçou, chorando. —Já fiz isso mais de cem vezes, jantei com os mortos. Portanto, é o mínimo que posso fazer por minha própria mãe. Uns mil pecados a mais não farão tanta diferença para mim. Vou mesmo passar a eternidade nas profundezas do inferno quando morrer.
— Não faça isso. Está escrito que as almas dos fiéis vão diretamente para junto de Riathamus. Isso que lhe disseram foi inventado pelos homens. Não se deixe enganar por essa crendice tola. Tudo que você viu é prova disso — disse Raphah.
— Por que você não pede a Deus por ela, Raphah? Você reza por todos, por que não por ela? — perguntou Thomas, chorando.
Fez-se um silêncio constrangedor interrompido apenas pela respiração ruidosa e difícil da mãe de Thomas. Sem abrir os olhos, ela tentou tocar com os dedos o rosto do filho. Parecia o gesto desesperado de uma pessoa se afogando.
— Faça alguma coisa, Raphah... Abram, ajude a fazer alguma coisa por ela... Ajudem-me! É a minha mãe, ela precisa de vocês. Onde está a sua fé agora? — suplicou Thomas.
Abram não respondeu. Tirou das costas o comprido estojo negro. Abriu o fecho e apoiou-o na parede.
— Vou orar por ela, Thomas, mas talvez tenha chegado para ela a hora de morrer. Pode ser essa a Sua vontade — disse Raphah com delicadeza.
— Então você pode curar um menino surdo e um assassino, mas com minha mãe é diferente? Ela não merece? Ou será que a platéia aqui é pequena demais para você fazer sua mágica? — disse ele, amargurado.
Raphah não respondeu. Ele se curvou sobre a cama e pôs a mão na cabeça dela. Estava surpreendentemente fria para alguém que parecia arder em febre. Quando ele tocou sua pele, uma estranha sensação percorreu-lhe o braço, como se ele houvesse tocado algo repugnante. Ele afastou a mão rapidamente daquela pele visguenta.
A mãe de Thomas passou a respirar ainda mais ruidosamente, engasgando-se ao tentar inspirar. Estava morrendo. Ela apertou a mão de Thomas com força, numa súplica desesperada. Sua cabeça ergueu-se do travesseiro e ela arregalou os olhos.
— Ela está morrendo! — disse Thomas aflito. — Você não pode fazer nada por ela, por mim? Eu pensava que você fosse meu amigo.
Raphah não respondeu. Ele olhou para Abram, que apenas balançou a cabeça devagar em uma negativa e em seguida voltou a olhar para a porta. Algo errado estava acontecendo.
Ela puxou Thomas para junto de si, como se quisesse lhe dar um último beijo, uma última recompensa pela tentativa de salvá-la. Ele se aproximou dela, daquela que havia sido a fonte de todo o amor de sua vida. Ela abriu a boca como que para lhe dizer suas últimas palavras. Sorriu. Era um sorriso terno, cheio de amor.
Tudo aconteceu em uma fração de segundo. Ela mordeu o pescoço dele com a ferocidade de um leão. Seus longos dentes de ouro enterraram-se na pele macia tentando alcançar a veia, enquanto suas unhas afiadas arranhavam o rosto do menino. Seus olhos, que antes pareciam cegos, subitamente assumiram o brilho verde dos olhos dos gatos e ela se jogou sobre ele, ainda preso em seus dentes, derrubando-o ao chão com uma força surpreendente.
— Glashan! — gritou Abram, tirando do estojo sua espada longa e fina e atirando-se contra a mãe de Thomas. Com um só golpe, ele cortou a mulher ao meio. Uma fumaça incandescente saiu de dentro do glashan.
A porta da enfermaria abriu-se de supetão e mais três criaturas entraram correndo na direção deles. Thomas pôs-se de pé, com a ferida no pescoço sangrando.
— Não é ela! Ele me enganou e eu acreditei! — exclamou o menino, chutando para livrar—se do cadáver partido ao meio que ainda o agarrava pela perna.
— Não temos como fugir! — gritou Kate, em pânico, enquanto Abram se preparava para usar novamente sua espada.
— Agora temos de lutar por nossas vidas — exclamou Abram, já com um glashan se aproximando dele. — Kate, você está com o cristal de Abaris?
Ela olhou em volta e só então lembrou-se de que, na pressa de encontrar Thomas, havia esquecido a sacola de pele de cabra na casa.
— Ela está na casa de Mulberry... eu a esqueci lá...
— Então temos de nos defender com o que pudermos e correr para a igreja. — Ele encostou a ponta de sua espada no chão de pedra, e no lugar onde ela encostou a pedra se derreteu. — Muito bem, então: com a Espada de Mayence, a espada do varrigal, o Keruvim e os corações dos fiéis, vamos à luta! — exclamou Abram brandindo a espada acima da cabeça. — Fiquem junto de mim. Esta espada nos protegerá. Não se afastem por motivo algum. Seja qual for o sentimento que dominar seus corações, mantenham seus olhos fixos em Riathamus. Agora vamos! Precisamos lutar até alcançarmos a porta.
Abram gritou bem alto palavras em uma língua que nenhum dos três compreendeu. Parecia o grito de um pássaro gigantesco em pleno vôo ou de um leviatã saindo das profundezas da terra. Os quatro partiram para cima da muralha de glashans que se erguia entre eles e a liberdade. Abram partiu com sua espada sobre seus agressores, que estavam armados de grandes bastões com pontas de ferro. Um deles atirou-se contra Abram, que o retalhou várias vezes sem a menor dificuldade. Outro então atacou Thomas com um punhal comprido, que passou raspando por seu rosto.
Um a um, os glashans foram sendo derrotados por Abram, enquanto os quatro iam se aproximando da porta. Em certos momentos a luta era tão intensa que Kate temia ser atingida antes de chegar lá. O som da Espada de Mayence e os urros das criaturas a deixavam trêmula de medo.
Abram chegou à porta protegendo os três, sem parar de brandir sua espada.
— Corram para a igreja. Fiquem junto do santuário no altar. Nada poderá lhes fazer mal enquanto estiverem lá. Logo irei também — disse ele enquanto, sem aviso, mais glashans iam surgindo dos corpos dos doentes e moribundos e vinham na direção deles.
— De onde estão vindo todos estes? — perguntou Raphah ao sair apressado, de costas para a porta.
— Eles usam os corpos dos que estão prestes a morrer. Agora corram! Vocês precisam chegar ao altar!
Eles correram a toda velocidade. Thomas tinha a mão sobre a ferida no pescoço, e Raphah, sobre sua ferida no ombro, que subitamente passara a arder como se estivesse novamente sendo queimada por um ferro em brasa. Seu rosto se contorcia de dor. Kate insistia para que corressem ainda mais depressa. Atrás deles, o som da batalha era cada vez mais forte, com os urros dos glashans ecoando na noite gelada.
Na sua frente estava a igreja com a porta aberta. O brilho das velas se refletia nos vitrais coloridos. Os três atravessaram correndo o cemitério da igreja, passando por túmulos de santos e de pecadores, de pescadores e de homens livres, até chegarem à grande porta de carvalho. Raphah olhou para o alto. Acima de sua cabeça havia a pintura de um cervo branco com o corpo transpassado por uma seta. O cervo usava uma coroa e, no pescoço, um colar de azevinho. Em volta dele, saindo da escuridão, havia muitas mãos tentando alcança-lo.
Kate os empurrou rapidamente para o interior da igreja. Eles entraram por uma passagem à direita e atravessaram duas portas de madeira. Viram-se então diante de um longo corredor entre filas de assentos iluminado por velas acima deles. À sua frente havia um grande púlpito com um dossel de madeira, onde uma vela vermelha iluminava um livro de orações de capa negra que jazia aberto sobre uma almofada.
Thomas estremeceu. Aquele era o lugar que lhe aparecera no sonho; era um lugar tenebroso. Sentiu seu corpo paralisado. Era como se uma força invisível o prendesse. Tentou falar, mas sua língua estava presa ao céu da boca. Kate o empurrou e ele foi tropeçando até os degraus do santuário, que estavam recobertos por um espesso tapete vermelho.
— Já estamos quase lá, Thomas, vamos, logo estaremos a salvo! Eles não podem nos pegar no santuário! — exclamou ela.
— Não, mas eu posso — disse uma voz vinda do púlpito. — Os glashans e os varrigais podem estar impedidos pela lei da santidade, mas eu não estou. — Era Demurral quem falava do alto do púlpito.
Tudo acontecia exatamente como Thomas havia sonhado. Ele estava petrificado, sem conseguir dar um passo sequer.
— Entreguem-me o Keruvim e eu os deixarei partir. Se me forçarem a tomá-lo de vocês, os três morrerão aqui mesmo — disse Demurral descendo lentamente do púlpito.
— Vamos para junto do santuário — gritou Raphah. — Prefiro morrer no lugar da minha escolha do que onde esse cão deseja me matar.
— Entregue o Keruvim a ele, Raphah, e ele nos deixará partir — disse Kate, arrastando Thomas pelos degraus. De cada lado dos degraus havia uma coluna de pedra que sustentava o balcão acima. Cada uma delas tinha gravado um nome em ouro; no da direita, o nome era Boaz, e no da esquerda, Jachin.
— Diga a ele, Raphah. Diga que vai entregar o Keruvim — suplicou Kate usando toda a sua força para arrastar Thomas.
Raphah continuou parado no alto dos degraus, pensando em uma maneira de fugir. A sua esquerda havia uma pequena porta trancada que só dava passagem para uma pessoa de cada vez. Atrás dele estava o altar-mor, na mais total escuridão. Ali estava o santuário... Kate conseguiu puxar Thomas para o primeiro degrau. Foi como se ele tivesse se soltado de correntes fortes que o prendiam. A santidade do lugar havia rompido o poder de Demurral sobre ele. Eles sentiram a sensação de terem atravessado a fronteira para um novo mundo, um mundo de paz e liberdade.
Thomas voltou a si com uma coragem que ele mesmo desconhecia. Puxou então a espada do varrigal de dentro do casaco.
— Ele virá atrás de nós — disse o menino —, mas desta vez não me pegará!
Destemido, ele ficou parado no último degrau, à espera que Demurral se aproximasse.
— Então o menino pensa que pode me parar com uma espada? — O Padre foi chegando cada vez mais perto.
— Não passe de onde está! — disse Thomas com a voz firme. —Este é um lugar sagrado e não é para gente como você. — Ele brandiu a espada para Demurral, ameaçador.
— Bravata! Há um minuto você estava apavorado e agora já pensa que pode dominar o mundo. O que pode fazer contra isso? — Demurral ergueu a mão e todas as velas da igreja tremularam, como se sua luz estivesse sendo sugada para algum buraco negro. Os bancos da igreja encheram-se subitamente com um exército de varrigais vestidos de negro e olhando-os fixamente com seus olhos vermelhos.
— Tranquem as portas! — ordenou Demurral. — Eles não sairão vivos deste lugar, ainda que tenhamos de esperar.
Demurral repetiu o gesto erguendo a mão.
— Pensem bem. Entreguem-me o Keruvim. — Um varrigal fez pontaria com seu arco diretamente na cabeça de Thomas. O menino viu quando a criatura se preparou para atirar.
— Se eu der uma ordem, você cairá morto. Mas seria uma pena. Alguém como você poderia me ser útil. Beadle já não é mais o mesmo, deu até para ter pena das pessoas. Você estaria em melhores condições para me servir. Venha comigo. Siga-me, Thomas.
— Eu só sigo Riathamus! — Thomas sentiu que seus olhos se enchiam de lágrimas ao dizer essas palavras. — Se eu morrer aqui, terá sido uma morte digna. Faça o que quiser. Já não tenho medo de você nem da morte.
Demurral fez um sinal quase imperceptível para o varrigal. O projétil de cristal lascado saltou do arco e atravessou o ar. O tempo parou. Thomas viu o projétil vindo em sua direção. Sorriu. O único som que se ouvia era o silvo da pedra cortando o ar.
Subitamente o projétil explodiu em uma infinidade de fragmentos que caíram sobre Demurral e se espatifaram sobre as pedras do chão.
— Está vendo? — gritou Raphah. — Este é um lugar de paz. Nada que venha de Pyratheon poderá nos fazer mal aqui.
— Fale no demônio e ele aparece... — A voz vinha da escuridão onde ficava o altar, por trás deles. Raphah se virou para ver. Lá estava Pyratheon!
— Mas como...? — perguntou Raphah.
— Você se esquece de que já fui anjo. Já estive na presença de Deus. Posso não gostar deste lugar, mas consigo passar algum tempo aqui. — Pyratheon se aproximou de Raphah. — Então você é Raphah, mestre da cura e responsável pela segurança do Keruvim! É uma missão muito pesada para alguém tão jovem, tão belo e tão ingênuo. Agora entregue-me o Keruvim e pare de fazer tolices. — Pyratheon estendeu a mão, mas Raphah não se moveu. — Não brinque comigo, menino. Posso matá-lo agora mesmo.
— Então me mate — disse Raphah calmamente.
Em um ataque de ira, Pyratheon deu um soco no rosto de Raphah com tamanha violência que o rapaz foi lançado de encontro à porta de madeira. O Keruvim caiu junto aos pés de Pyratheon. Raphah ficou caído, já sem vida, na pedra fria. Foi uma morte nada espetacular. Todos puderam ver o leve brilho dourado de sua alma desprendendo-se do corpo em seus últimos instantes de vida.
— Por fim, depois de cinco mil anos de espera, você é meu! Pyratheon curvou-se para pegar a estatueta. Thomas deu um salto no ar e, ao descer, enterrou a espada bem fundo em Pyratheon. Os dois caíram juntos no chão. Demurral subiu os degraus correndo e agarrou Kate. Pyratheon se levantou, com a espada do varrigal enterrada no peito. Thomas agarrou-o pelas pernas. Pyratheon se curvou e, com uma só mão, ergueu o menino e atirou-o aos pés de Demurral.
— Fique com ele para você, pode lhe ser útil. Entregue a menina para um glashan — disse Pyratheon.
Nesse instante, os vitrais da igreja foram iluminados por luzes de tochas que se aproximavam lá fora. Uma multidão vinha chegando com um barulho surdo e ritmado que fez as portas vibrarem.
— Afastem-se! — gritou alguém lá fora, e logo em seguida ouviu-se um tiro de canhão.
A explosão fez a porta em pedaços, que voaram pelo interior da igreja, enquanto a bola de ferro seguia arrebentando tudo que estava em seu caminho.
Os varrigais saltaram da galeria com suas espadas em punho quando os primeiros homens entraram aos gritos na igreja armados de espadas e pistolas. Jacob Grane comandava aqueles homens dispostos a lutar contra um inimigo que jamais haviam visto.
Um por um, os varrigais foram sendo derrotados, até que uma muralha de espadas abriu caminho para Jacob Crane, que se aproximou de Demurral e encostou a pistola em sua cabeça.
— Solte-os! — ordenou ele, preparando—se para atirar. Pyratheon deu uma gargalhada, sem poder acreditar no que via.
— Quem é este homem? — perguntou ele.
— Um pirata contrabandista insuportável — disse Demurral. Ouviu-se o ruído da engrenagem do relógio da igreja, que se preparava para soar a meia-noite no sino de bronze.
— Se até a ultima badalada do sino você não os tiver soltado, vou explodir sua cabeça — disse Crane, calmamente, com o cano da pistola na cabeça de Demurral.
— Não será assim tão fácil — disse Pyratheon. — Você pode matá-lo, se quiser. Ele não fará falta. Há tantos como ele por aí que um a menos não fará diferença. Dentro de um minuto o mundo se transformará de tal maneira que será capaz até de superar meus sonhos mais ousados.
A primeira badalada soou. Pyratheon ergueu o Keruvim acima de sua cabeça e fechou os olhos. Kate debatia-se para se soltar das mãos de Demurral, que a agarravam pelo pescoço.
A segunda e a terceira badaladas soaram. Os homens de Crane dominavam os varrigais que aguardavam em silêncio as transformações que estavam prestes a ocorrer.
Quatro, cinco, seis badaladas ecoaram pela igreja e espalharam-se pela cidade lá embaixo. Pyratheon movia os lábios lentamente em um sussurro. Crane baixou sua pistola, perplexo. Kate conseguiu se libertar e correu para Raphah.
A igreja começou a tremer enquanto o Keruvim começava a pulsar lançando uma luz insuportável de se ver. A noite se transformou em dia; o sol atravessou o céu, desapareceu e tornou a aparecer. Os movimentos das marés acompanharam aquela passagem acelerada do tempo e dos movimentos da lua. Era como se a terra girasse cada vez mais depressa. A cada batida do sino correspondia um novo dia. Sete, oito, nove, dez, 11 badaladas. Na última badalada do sino, fez-se o mais profundo silêncio no interior da igreja. Lá fora, porém, ouviam-se os gritos de pânico. A escuridão era total no mundo. Não havia mais sol, lua ou estrelas, e um vento gelado vinha da superfície do mar.
— Está tudo terminado — disse Pyratheon em triunfo. — Agora eu sou! EU SOU! — Ele deu uma gargalhada. — Riathamus está morto!
Pyratheon atirou longe o Keruvim, que rodopiou e foi parar junto aos pés de Raphah.
— Então não faz diferença se eu matar seu servo — gritou Crane, pressionando o gatilho de sua pistola. A arma disparou com um ruído abafado e a bala rolou, lentamente, e caiu no chão.
— Agora tudo está mudado, e quem dita as leis da natureza sou eu. A primeira batalha eu perdi, mas nesta fui vitorioso.
Todo o universo ficou em silêncio. Pyratheon olhou à sua volta sem saber por onde começar. Ele havia esperado por aquele momento durante tanto tempo que agora sentia uma profunda tristeza pela perda de Riathamus.
A magia do instante foi rompida pelos soluços de Kate, que chorava abraçada ao corpo do amigo.
— Não está tudo terminado, ouviu? Não está tudo terminado — dizia ela repetidamente, apertando a mão do amigo contra o seu coração.
— O choro de uma criança! Que estranho a primeira coisa que ouço ser o choro de uma criança — disse Pyratheon enquanto o choro sentido de Kate ecoava pela igreja.
Às lágrimas de Kate caíram sobre o Keruvim. Ela o pegou e o pôs nas mãos de Raphah.
— Você cuidou disso durante toda a sua vida. Agora guarde-o em sua morte — disse ela.
Subitamente, a pequena porta que dava para o altar-mor foi arrebentada e a Espada de Mayence apareceu. Abram empurrou os pedaços da porta e entrou no santuário.
— Raphael! — exclamou Pyratheon, surpreso. — Você está...
— Vivo! Sim. Os glashans me tomaram mais tempo do que eu esperava. Dessa vez você foi longe demais com suas loucuras, Seirizzim. Riathamus não vai gostar nada disso.
— Riathamus está morto! Já não existe mais! A bela estrela da manhã brilhou sobre este mundo pela última vez. Ajoelhe-se diante de mim, Raphael! — ordenou Pyratheon.
— Você está enganado. Este não é o lugar nem a hora em que tudo vai terminar. Você andou mexendo com o tempo. Venha até o despenhadeiro ver o que você fez — disse Abram. Nesse instante, ele olhou para o chão e viu o corpo de Raphah. Dirigiu-se então a ele como se o rapaz estivesse vivo. — Tenho um presente para você. Foi o Mestre quem mandou. Ele sabia que isso iria acontecer.
Abram se ajoelhou e soprou em Raphah.
— Receba esse sopro que paira sobre as águas. — Ele então encostou o dedo polegar no meio da testa de Raphah.
Kate chorou ainda mais ao ver que a vida retornava ao corpo frio do amigo. Raphah abriu os olhos.
— Você me traz de volta no exato instante em que eu me encontrava diante do Rei. Pensei que minha missão tivesse terminado — disse ele.
— O Rei está morto! Será que vocês não ouvem o que estou dizendo? Morto! Acabado! — Pyratheon não parava de repetir.
Abram ergueu a Espada de Mayence e apontou-a para a garganta de Pyratheon.
— Vá até o despenhadeiro ver o que você fez com o seu mundo — disse ele.
Um a um, foram todos saindo da igreja. Raphah segurava com força o Keruvim ao passar novamente pelo cemitério, agora ajudado por Kate. Thomas ia atrás, com Demurral, Crane e Pyratheon. A escuridão era tão absoluta que todos tinham a impressão de estar imersos em uma água negra.
Eles foram tateando por entre os túmulos, tentando se guiar pela voz de Abram, que os chamava. Demurral ia de quatro, como um velho cão seguindo a voz de seu dono.
Não havia uma única estrela no céu. A nuvem brilhante havia desaparecido, assim como a lua. Na escuridão, eles ouviam os gritos das pessoas apavoradas lá embaixo. Não havia mais luz.
Abram estava imóvel na beirada do despenhadeiro. Ele brilhava, e era a única fonte de luz visível. Suas vestes douradas cintilavam tão intensamente que era quase insuportável olhar para elas.
— Estão vendo? — disse Pyratheon — É como eu disse. A luz do mundo se foi para sempre! Ninguém mais deve acreditar que Ele esteja vivo!
— Você se engana, e a verdade não está com você, Seirizzim. Veja! Siga a luz da minha mão!
Bem ao longe, um pontinho de luz começou a surgir. A principio era como se houvesse sido feito um furinho de alfinete na escuridão, um pontinho de pura luz branca. Aos poucos ele foi crescendo e se expandindo pelo horizonte com o brilho crescente do sol que nascia.
— Está vendo, Seirizzim? Você apenas brincou com o tempo. O Keruvim nunca lhe pertenceu; enquanto Raphah estava morto, o Keruvim não tinha poder algum. Você precisaria dos dois, mas sua própria ira o traiu. Sua ânsia de matar o dominou. Uma luz brilha na escuridão, e a escuridão jamais a vencerá. Veja, aí está o sol surgindo novamente. A radiante estrela da manhã brilha sobre a terra, e os seus dias, Seirizzim, estão contados.
Abram ergueu a espada para baixá-la sobre Pyratheon, mas este havia desaparecido. Os varrigais também desapareceram, e até mesmo Demurral. Enquanto os outros apreciavam o sol, eles sumiram na escuridão.
— Não há necessidade de se dizer mais nada. Um novo dia começa — disse o Arcanjo. — Agora vão para bem longe desta terra. Vão depressa, pois Pyratheon não vai desistir, e o Keruvim precisa voltar para o seu lugar. Agora vão.
Ao acabar de dizer essas palavras, Abram transformou-se diante dos olhos deles. Suas roupas pareciam incandescentes e seus cabelos eram de ouro polido. Um único raio de sol tocou sua testa, e naquele instante ele desapareceu.
O Magenta zarpou do porto e deslizou para o mar aberto. A brisa soprava fresca e o céu estava limpo. No convés do barco, os três olhavam para os despenhadeiros, a abadia em ruínas e a igreja lá no alto. Um pouco atrás deles, Crane sorria. Ele não sabia o que a vida lhe havia reservado no futuro, mas no fundo do coração era um homem diferente.
Ao longe, o mar começou lentamente a borbulhar e ferver. Uma cortina de névoa espessa e marrom aproximava-se, vinda da linha do horizonte. Sob os gritos das gaivotas podia—se ouvir, distante, o canto das seloths...
A História Continua...
Quando deixamos Kate, Raphah, Thomas e Jacob Crane, eles estavam deslizando para o mar aberto, livres dos demônios — humanos e não-humanos — que os haviam perseguido em terra. Porém, ao longe, o mar começava lentamente a borbulhar e a ferver, e sob os gritos das gaivotas podia ser ouvido o canto das seloths...
Isso é o que realmente aconteceu naqueles momentos finais, revelados aqui pela primeira vez.
No alto do despenhadeiro acima de Whitby, o mundo havia parado. O tempo havia parado. Na cidade, o povo gritava. A longa e estreita escada que levava à igreja estava atulhada de gente desvairada que tentava chegar lá em cima. Muitas daquelas pessoas haviam visto o Arcanjo irromper na escuridão, incendiar-se no céu e desaparecer diante de seus olhos.
Subitamente, uma mulher gorda deu um grito ao dobrar a esquina da igreja e ver Kate, Raphah, Thomas e Jacob Crane em uma corrida desabalada em direção ao Magenta.
— São eles! Eram eles que estavam na Taberna do Grifo. Foi a magia deles que acabou com o sol! Eu os vi lá! Eles têm parte com o demônio!
Quando ela apontou para eles, uma multidão perplexa de homens e mulheres armados de foices, porretes e outras armas improvisadas se virou para olhar.
— Depressa... — Crane nem precisou continuar. A multidão ensandecida partiu atrás deles, cheia de pavor e de ira. Lançaram-se todos contra os novos inimigos que tinham pela frente.
Sem dizer uma só palavra, eles correram para a escada que os levaria até o cais. Outras multidões se juntavam à sua frente. Eles foram abrindo caminho à força, tentando escapar dos golpes e dos gritos, em meio a abomináveis hálitos de gim e de cerveja de má qualidade das pessoas em pânico. Foram descendo, sem parar de correr, os 199 degraus que os levaram à cidade, e continuaram em disparada pelas ruas estreitas ainda na mais completa escuridão. Finalmente chegaram ao cais.
Diante deles estava o barco de Crane com as velas abertas. Três grandes barcos a remo subiam e desciam à mercê das ondas na maré alta. Lentamente, o barco começou a se afastar da mureta, indo em direção ao mar.
— Vocês terão de saltar! — gritou Crane, já quase sem fôlego, correndo a toda velocidade pelo embarcadouro, seguido de perto por Thomas, Kate e Raphah. — Não podemos mais parar o barco! Corram! Se nos pegarem, será o nosso fim — disse ele, arfante. — Estamos quase lá! Mais uma passada, uma só!
Crane parou e se virou para a multidão, que àquela altura já chegava de todas as ruas e de todos os becos ao estreito embarcadouro. Crane puxou sua pistola e apontou-a para a multidão cada vez mais próxima.
— Eu mato o primeiro que tentar nos impedir de sair daqui! — gritou ele.
Por trás dele, Kate saltou da mureta sem saber se conseguiria chegar ao barco que passava a pouco menos de dois metros dali. Ela sentia o sangue lhe correr pelas veias; seu coração parecia a ponto de explodir. Deu um grito atirando-se na direção do barco que passava. Aqueles segundos lhe pareceram intermináveis, com o vento a alvoroçar seus cabelos e as ondas a arrebentar sob seus pés, molhando seu corpo com a água salgada. Ela caiu pesadamente no convés do barco como um albatroz ferido e perdeu o fôlego com a força da queda. Thomas e Raphah caíram sobre ela e rolaram por cima das cordas enroladas no convés.
O som de um tiro de pistola ecoou como um trovão enquanto Crane saltava para a parte final do embarcadouro. Seu barco já estava quase fora do alcance, mas uma corda com uma extremidade solta e a outra presa ao mastro da popa veio em sua direção. Crane deu um salto e agarrou a corda, impulsionando seu corpo para o convés do barco.
No embarcadouro, a multidão se juntava ao redor do corpo da mulher que ele havia matado. Um homem alto e magro, com botas de marinheiro e um casaco negro com a gola levantada, gritava para Crane cheio de ódio.
— Maldito seja você pelo que fez! Que você arda nas chamas do inferno, Crane; nada poderá salva-lo de lá! — O homem sacudiu os punhos cerrados na direção do barco e, cheio de raiva, chutou para dentro d'água uma pilha de cestos de siris.
O Magenta saiu do porto e lançou-se, livre, pelo mar aberto. A brisa soprava fresca e o céu estava claro. No convés do barco, os três ficaram olhando os despenhadeiros, a abadia em ruínas e a igreja lá no alto. Nenhum deles falava. Nenhum ousava mencionar o que havia acontecido. Crane também mantinha-se em silêncio, com os lábios apertados. Depois saiu pelo barco ocupado com as ordens de costume a seus homens. Toda a agitação vivida em terra firme ia se transformando com a paz refrescante do mar. Eles navegaram rumo ao sul por uma hora. Thomas tinha os olhos voltados para o lugar que haviam deixado, perguntando-se o que teria acontecido com Demurral e Pyratheon. Quando abadia desapareceu ao longe, ele tinha a certeza de que jamais retornaria àquele lugar.
Foi Raphah quem primeiro se deu conta da espessa neblina marrom que pouco a pouco se aproximava deles. Ao longe, viu que a espuma do mar parecia ferver e que chamas azuis e púrpuras pairavam sobre as águas como espíritos esquecidos. O céu encheu-se de pássaros marinhos que estavam sendo levados para a terra pela impenetrável parede de neblina malcheirosa que agora vinha na direção do barco. Sob os gritos das gaivotas podia-se ouvir, ao longe, o canto das seloths...
Raphah já ouvira aquele coro. Foi assim que elas cantaram na noite em que o barco em que ele estava naufragou. Um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha quando a cantoria foi ficando cada vez mais audível. O sol radiante da manhã rapidamente desapareceu por trás da neblina escura que encobriu o barco. O mar, até pouco antes de um azul intenso, transformava-se em uma sopa verde, espessa e borbulhante, à medida que o canto das seloths chegava cada vez mais alto. A neblina atingiu o barco com um solavanco inesperado que derrubou a tripulação, espalhando—a pelo convés. Raphah recebeu o golpe de lado e foi atirado de encontro ao mastro; sua estatueta de ouro do Keruvim caiu-lhe das mãos e deslizou pelo convés. Ele ficou imóvel no lugar onde caiu, atordoado pelo golpe.
Em poucos segundos, o barco foi engolfado pelo insuportável fedor da neblina. Todos começaram a tossir, sufocados, sem conseguir respirar, com os olhos ardendo e lacrimejando por causa da fumaça sulfurosa. Como morcegos esvoaçantes, as seloths começaram a voar por entre as velas e cordas dos mastros, fixando seus olhos cegos nas pessoas lá embaixo. Subitamente, algumas avançaram contra Kate e Thomas, tentando tirá-los do barco. Uma das criaturas agarrou os cabelos de Kate, puxando-a na direção da amurada A criatura quase conseguiu ergue-la no ar e, enquanto a arrastava, gritava e cantava com uma voz terrivelmente alta que penetrava nas profundezas do cérebro.
Crane saiu brandindo sua espada para todo lado de maneira frenética, atingindo uma seloth que voava acima dele.
— Para o porão! Para o porão! — gritava ele, dando vários cortes na criatura com sua espada. — Amarrem-se aos mastros e tapem os ouvidos antes que elas os enlouqueçam!
Kate e Thomas não conseguiam ouvi-lo. A cantoria desvairada das seloths e os gritos aterrorizados de Kate impediam que eles ouvissem o que Crane gritava. Thomas agarrava-se com força a um braço da menina para não deixar que ela fosse erguida do convés. A seloth a agarrava pelos cabelos, arrancando grandes tufos pela raiz, aproximando-a cada vez mais de si, como quem puxa um peixe que pescou. A criatura tinha longas mechas fosforescentes que, ao tocarem a pele de Kate, queimavam como gordura quente.
Thomas agarrava-se a Kate com todas as suas forças. Ela continuava a gritar sem parar e a criatura parecia cada vez mais determinada a arrancá-la do convés e carrega-la para o fundo do mar.
— Solte-a! Solte-a! — gritava Thomas. — Ela pertence a mim, não a você! Você não pode levá-la de mim! — Com lágrimas nos olhos, ele continuava a lutar contra a seloth, mas sentia que já não conseguia mais agarrar o braço de Kate com a força necessária e que ela começava a escapar-lhe das mãos.
— Raphah, faça alguma coisa! — gritou ele em pânico, sem se dar conta de que seu companheiro jazia atordoado junto ao mastro.
A sua volta havia se instalado o caos. A tripulação do Magenta rastejava pelo convés, incapaz de qualquer ação, enquanto o barco, à deriva nas ondas, ia sendo levado em direção a um rochedo. Os homens mal conseguiam respirar, pois aquela neblina parecia sugar o ar de seus pulmões, e as seloths voavam sobre eles como pássaros frenéticos. Na proa, Lubbock pegou seu tambor e pôs-se a bater nele como um louco, para tentar espantar as seloths antes que todos morressem sufocados.
Com duas grandes passadas, Crane atravessou o convés erguendo sua espada com tanta força que os nós de seus dedos estavam brancos e reluzentes. Mirando a cabeça de Kate, ele deu um golpe brutal. A espada zuniu cortando o ar e caiu rente à cabeça da menina, cortando-lhe os cabelos. Kate deu um grito e caiu no chão. Crane deu um novo golpe, agora na seloth, que se jogava contra ele com seus braços compridos e suas garras, onde ainda se enroscavam os cabelos de Kate.
Raphah, ainda tonto, foi recuperando a consciência. Ele foi se arrastando até agarrar o Keruvim e depois caminhou, cambaleante, em direção aos degraus que levavam à popa. Sua visão estava turva; seus ouvidos pareciam a ponto de explodir com a cantoria insuportável daquelas criaturas. De repente, uma seloth deu um vôo rasante sobre Raphah, derrubando-o junto à mureta, agarrando o Keruvim e puxando Raphah pela roupa. Ainda tonto, ele tentou se levantar, mas um novo ataque da seloth e o movimento do barco fizeram com que ele perdesse o equilíbrio. Raphah se debruçou na mureta do convés. Não deu tempo de ninguém chegar até ele. Kate deu um grito ensurdecedor, enquanto Crane atravessava correndo o convés para tentar impedir o que parecia ser inevitável. O tempo parou, enquanto Kate e Thomas viam seu amigo perder o equilíbrio e cair de costas no mar. Seu corpo foi então girando, girando para as profundezas, acompanhado pelas seloths Vários espíritos ainda pairaram por alguns instantes acima do lugar onde ele afundou, deram algumas voltas ao redor do barco e depois mergulharam no mar.
Não restou qualquer sinal do que acabara de acontecer. Às ondas passavam tranqüilas pelo lugar onde ele havia caído. Ele havia desaparecido nas profundezas do mar. Fez-se um profundo silêncio. Às seloths haviam partido, e Raphah também.
G. P. Taylor
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