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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SHOGUN – Volume I - P.2 / James Clavell
SHOGUN – Volume I - P.2 / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SHOGUN – Volume I

Segunda Parte

 

- Serei um maldito espanhol, se isto não é vida!

Blackthorne estava seraficamente deitado de bruços sobre espessos futons, parcialmente envolto num quimono de algodão, a cabeça apoiada nos braços. A garota corria-lhe as mãos pelas costas, tateando-lhe os músculos ocasionalmente, amaciando-lhe a pele e o espírito, fazendo-o quase querer ronronar de prazer. Outra garota servia saquê num minúsculo cálice de porcelana. Uma terceira esperava de reserva, segurando uma bandeja de laca com um cesto de bambu cheio de peixe frito à moda portuguesa, outro frasco de saquê, e alguns pauzinhos.

- Nam desu ka, Anjin-san? O que é isso, Honorávei Piloto? O que disse?

- Não sei dizer isso em nihon-go. - Sorriu para a garota que oferecia o saquê. Apontou para o cálice. - Como se chama isto? Namae ka?

- Sabazuki. - Ela disse a palavra três vezes, ele repetiu, depois a outra garota, Asa, ofereceu o peixe e ele balançou a cabeça. - Iyé, domo. - Não sabia como dizer "estou satisfeito agora", então tentou dizer "não fome agora".

- Ah! Iama hara hette wa oranu - explicou Asa, corrigindo-o. Ele disse a frase várias vezes e todas riram com a sua pronúncia, mas ele acabou conseguindo fazê-la soar corretamente.

Nunca aprenderei essa língua, pensou ele. Não há nada com que relacionar os sons em inglês, em latim ou em português.

- Anjin-san? - Asa oferecia a bandeja novamente.

Ele balançou a cabeça e pousou gravemente a mão sobre o estômago. Mas aceitou o saquê e o tomou. Sono, a garota que lhe massageava as costas, havia parado. Ele lhe pegou a mão, colocou-a sobre o seu pescoço e fingiu suspirar de prazer. Ela compreendeu imediatamente e continuou a massageá-lo.

Cada vez que terminava o pequeno cálice, enchiam-no de novo imediatamente. É melhor ir devagar, pensou, este é o terceiro frasco e já posso sentir o calor nos artelhos.

As três garotas - Asa, Sono e Rako - haviam chegado com o amanhecer, trazendo chá, que Frei Domingo lhe dissera que os chineses às vezes chamavam de "t'ee", e que era a bebida nacional da China e do Japão. Seu sono fora intermitente após o embate com o assassino, mas a bebida quente e picante começara a restaurá-lo. Haviam trazido pequenas toalhas quentes e enroladas, levemente perfumadas. Como ele não soubesse para que serviam, Rako, a chefe das garotas, mostrou-lhe como usá-las no rosto e nas mãos.

Depois escoltaram-no com seus quatro guardas samurais até os banhos de vapor na extremidade daquela seção do castelo e o entregaram às criadas de banho. Os quatro guardas transpiraram estoicamente enquanto ele era lavado, sua barba aparada, o cabelo ensaboado e o corpo massageado.

Após o banho ele se sentira miraculosamente revigorado. Deram-lhe outro quimono de algodão, fresco e até os joelhos, tabis limpos, e as garotas o esperaram novamente. Levaram-no a outra sala, onde se encontravam Kiri e Mariko. Mariko disse que o Senhor Toranaga decidira mandar o Anjin-san para uma de suas províncias dentro de poucos dias a fim de que se recuperasse, que o Senhor Toranaga estava muito contente com ele e que não havia necessidade de se preocupar com nada, pois estava sob os cuidados pessoais do Senhor Toranaga agora. O Anjin-san, por favor, começaria a preparar os mapas com o material que ela providenciaria? Logo haveria outros encontros com o amo, que prometera que ela em breve estaria disponível para responder a qualquer pergunta que o Anjin-san quisesse fazer. O Senhor Toranaga estava muito ansioso para que Blackthorne aprendesse japonês, assim como estava ansioso por aprender sobre o mundo exterior, e sobre navegação. Em seguida Blackthorne fora conduzido até o médico. Ao contrário dos samurais, os médicos usavam cabelo cortado rente, sem rabo.

Blackthorne odiava os médicos e temia-os. Mas aquele era diferente. Era gentil e inacreditavelmente limpo. Os médicos europeus na maioria eram tacanhos barbeiros, cobertos de piolhos e imundos como todo mundo. Aquele médico tocou-o cuidadosamente, examinou-o polidamente e segurou o pulso de Blackthorne para sentir-lhe a pulsação, olhou-lhe dentro dos olhos, da boca e dos ouvidos, e bateu-lhe suavemente nas costas, joelhos e solas dos pés. Tudo o que um médico europeu queria era olhar a sua língua e dizer: "Onde é que dói?", e fazer-lhe uma sangria para libertar a impureza do seu sangue e dar-lhe um vomitório violento para eliminar as impurezas das suas entranhas.

Blackthorne detestava ser sangrado e tomar purgantes, e cada vez era pior que a precedente. Mas aquele médico não tinha escalpelos nem a tigela de sangria, nem o repugnante cheiro de substância química que normalmente os rodeava, por isso seu coração começara a bater mais devagar e ele relaxou um pouco.

Os dedos do médico tocaram-lhe as cicatrizes na coxa de modo inquisitivo. Blackthorne fez o som de um tiro, porque uma bala de mosquete lhe havia atravessado a carne muitos anos antes. O doutor disse:

- Ah so desu -, e assentiu com um gesto de cabeça. Mais apertos, profundos mas indolores, sobre os rins e o estômago. Finalmente o médico falou a Rako, que assentiu, curvou-se e agradeceu-lhe.

- Ichi ban? - perguntara Blackthorne, querendo saber se estava bem.

- Hai, Anjin-san.

- Honto ka?

Que palavra útil, honro! "É verdade?", "Sim, é verdade", pensou Blackthorne.

- Domo, doutor-san.

- Do itashimashité - disse o médico, curvando-se. Não há de quê.

Blackthorne retribuiu a mesura. As garotas o levaram embora e foi só quando se viu deitado sobre os futons, o quimono de algodão afrouxado, Sono relaxando-lhe as costas, que ele se lembrara de que estivera nu diante do médico, na frente das garotas e dos samurais, e que não notara isso nem se sentira envergonhado.

- Nan desu ka, Anjin-san? - perguntou Rako. O que é, Honorável Piloto? Por que ri? Os dentes brancos dela cintilavam. Tinha as sobrancelhas depiladas e pintadas num crescente. Usava o cabelo escuro preso no alto e um quimono rosa florido com um obi verde-cinza.

- Porque estou feliz, Rako-san. Mas como lhe dizer isso? Como lhe dizer que rio porque estou feliz e tirei o peso de cima da cabeça pela primeira vez desde que saí de casa? Porque minhas costas estão ótimas - eu me sinto inteiro ótimo. Porque tenho a consideração de Toranaga-sama e porque descarreguei três boas canhonadas contra os malditos jesuítas e mais seis contra os portugueses sifilíticos! - Depois ele se pôs de pé com um salto, amarrou o quimono, e começou desleixadamente a dançar uma hornpipe[1] entoando uma cantiga do mar para marcar o compasso.

Rako e as outras ficaram curiosas. A shoji se abriu imediatamente e os guardas samurais apareceram, de olhos arregalados. Blackthorne dançou e cantou vigorosamente até não conseguir mais se conter, então explodiu numa gargalhada e caiu. As garotas bateram palmas. Rako tentou imitá-lo e caiu, porque a cauda do quimono inibia-lhe os movimentos. As outras se levantaram e convenceram-no a mostrar-lhes como fazê-lo, e ele tentou, as três garotas em pé e alinhadas a observá-lo, segurando os quimonos levantados. Mas não conseguiram, e logo estavam todas tagarelando, dando risadinhas e se abanando.

Abruptamente os guardas ficaram solenes e fizeram uma profunda reverência. Toranaga apareceu na soleira, ladeado por Mariko, Kiri e seus sempre presentes guardas samurais. As garotas todas se ajoelharam, estenderam as mãos no chão e se curvaram, mas a risada não lhes abandonou o rosto, tampouco sentiram qualquer receio. Blackthorne curvou-se polidamente também, não tão baixo quanto as mulheres.

- Konnichi wa, Toranaga-sama - disse ele.

- Konnichi wa, Anjin-san - respondeu Toranaga. E fez uma pergunta.

- Meu amo pergunta o que está fazendo, senhor - disse Mariko.

- Era apenas uma dança, Mariko-san - disse Blackthorne, sentindo-se imbecil. - Chama-se hornpipe. É uma dança de marinheiros, que executamos, cantando cantigas simultaneamente. Eu só estava feliz... talvez tenha sido o saquê. Sinto muito, espero não ter perturbado Toranaga-sama.

Ela traduziu.

- Meu amo diz que gostaria de assistir à dança e ouvir a canção.

- Agora?

- Agora, naturalmente.

Imediatamente Toranaga sentou-se de pernas cruzadas e sua pequena corte se espalhou pela sala, olhando todos para Blackthorne, expectantes.

Aí está, seu imbecil, disse Blackthorne a si mesmo. É nisso que dá não se vigiar melhor. Agora tem que dançar e você sabe que sua voz é desafinada e dança de modo desajeitado.

Ainda assim, ele amarrou o quimono bem apertado e se atirou à dança com prazer, rodopiando, chutando, girando; pulando, sua voz rugindo vigorosamente.

Mais silêncio.

- Meu amo diz que nunca viu nada parecido em toda a sua vida.

- Arigato goziemashita! - disse Blackthorne, suando em parte pelo esforço, em parte pelo constrangimento. Então Toranaga pôs as espadas de lado, arregaçou o quimono até a cintura, e se postou ao lado dele.

- O Senhor Toranaga dançará a sua dança - disse Mariko.

- Hem?

- Por favor, ensine-lhe, diz ele.

Blackthorne começou. Demonstrou o passo básico, depois repetiu-o várias vezes. Toranaga aprendeu depressa. Blackthorne não ficou nem um pouco impressionado com a agilidade do velho barrigudo e senhor de um amplo traseiro.

Blackthorne começou a cantar e a dançar, e Toranaga imitou-o, tentativamente no começo, para alegria dos assistentes. Depois Toranaga atirou longe o quimono, cruzou os braços e começou a dançar com entusiasmo ao lado de Blackthorne, que também se livrou do quimono e cantou mais alto, marcando o tempo, quase dominado pelo grotesco do que estavam fazendo, mas contagiado agora pelo humor da situação. Finalmente Blackthorne deu uma espécie de salto, girou, pulou e estacou. Bateu palmas e curvou-se para Toranaga. Todos aplaudiram o amo, que estava muito contente.

Toranaga sentou-se no centro da sala, respirando com facilidade. Imediatamente Rako avançou para abaná-lo e as outras correram a buscar-lhe o quimono. Mas Toranaga empurrou o seu quimono na direção de Blackthorne e pegou o quimono simples do outro.

- Meu amo diz que teria muito prazer em que o senhor aceitasse isso como presente - disse Mariko. - Aqui se considera uma grande honra receber um quimono muito velho de um suserano.

- Arigato goziemashita, Toranaga-sama. - Blackthorne curvou-se profundamente, depois disse a Mariko: - Sim, compreendo a honra que ele me faz, Mariko-san. Por favor, agradeça ao Senhor Toranaga com as palavras formais corretas, que eu infelizmente ainda não sei, e diga-lhe que vou guardá-lo como um tesouro, e mais ainda à honra que ele me fez dançando a minha dança comigo.

Toranaga demonstrou uma satisfação ainda maior.

Reverentemente, Kiri e as criadas ajudaram Blackthorne a vestir o quimono do amo e mostraram-lhe como amarrar o sash. O quimono era de seda marrom, com cinco elmos escarlates, e o sash, de seda branca.

- O Senhor Toranaga diz que apreciou a dança. Um dia talvez lhe mostre algumas das nossas. Ele gostaria que o senhor aprendesse a falar.japonês tão rápido quanto possível.

- Eu também gostaria. - Mas gostaria ainda mais, pensou Blackthorne, de estar dentro das minhas próprias roupas, comendo minha comida, na minha cabina, no meu navio, com meus canhões armados, pistolas na cintura e o tombadilho coberto por uma infinidade de velas. - Quer perguntar ao Senhor Toranaga quando é que posso ter meu navio de volta?

- Senhor?

- Meu navio, senhora. Por favor, pergunte-lhe quando posso reaver meu navio. Minha tripulação, também. Toda a carga foi removida - havia vinte mil moedas na caixa-forte. Estou certo de que ele compreenderá que somos mercadores, e embora apreciemos sua hospitalidade, gostaríamos de comerciar - com as mercadorias que trouxemos conosco - e partir para casa. Precisaremos de quase dezoito meses para voltar para casa.

- Meu amo diz que o senhor não precisa se preocupar. Tudo será feito tão logo seja possível. Primeiro deve ficar forte e saudável. O senhor partirá ao crepúsculo.

- Senhora?

- O Senhor Toranaga disse que o senhor partirá ao pôr-do-sol. Falei erradamente?

- Não, não, em absoluto, Mariko-san. Mas há uma hora e pouco, a senhora me disse que eu partiria dentro de alguns dias.

- Sim, mas agora ele diz que o senhor partirá esta noite.

- Ela traduziu tudo isso para Toranaga, que falou mais alguma coisa.

- Meu amo diz que é melhor e mais conveniente para o senhor partir esta noite. Não há por que se preocupar, Anjin-san, o senhor está sob o cuidado pessoal dele. A Senhora Kiritsubo vai para Yedo, a fim de esperar o regresso dele. O senhor irá com ela.

- Por favor, agradeça a ele por mim. É possível... posso perguntar se seria possível libertar Frei Domingo? O homem tem um vasto conhecimento.

Ela traduziu.

- Meu amo diz que sente muito, mas o homem morreu. Mandou buscá-lo assim que o senhor pediu, ontem, mas ele já estava morto.

Blackthorne acabrunhou-se.

- Como morreu?

- Meu amo diz que morreu quando seu nome foi chamado.

- Oh! Pobre homem!

- Meu amo diz que a morte e a vida são a mesma coisa. A alma do padre esperará até o décimo quarto dia e então renascerá. Por que se entristecer? É a lei imutável da natureza. - Ela começou a dizer alguma coisa, mas mudou de idéia, limitando-se a acrescentar: - Os budistas crêem que temos muitos nascimentos ou renascimentos, Anjin-san. Até que finalmente nos tornemos perfeitos e atinjamos o nirvana, o paraíso.

Blackthorne afastou a própria tristeza e se concentrou em Toranaga e no presente.

- Posso, por favor, perguntar a ele se a minha tripulação... - Parou quando Toranaga desviou o olhar.

Um jovem samurai entrou às pressas na sala, curvou-se para Toranaga e esperou.

- Nan ja? - disse Toranaga.

Blackthorne não compreendeu nada do que foi dito. Só teve a impressão de apreender o apelido do Padre Alvito, Tsukku. Viu os olhos de Toranaga esvoaçarem na sua direção e notou o vislumbre do sorriso. Perguntou a si mesmo se Toranaga mandara buscar o padre por causa do que ele lhe dissera. Espero que sim, pensou, e espero que Alvito esteja afundado no estrume até as narinas.

Está ou não está? Blackthorne resolveu não perguntar a Toranaga, embora se sentisse enormemente tentado.

- Kare ni matsu yoni - disse Toranaga bruscamente.

- Gyoi. - O samurai inclinou-se e saiu apressado. Toranaga voltou-se para Blackthorne: - Nan ja, Anjin-san?

- O senhor estava dizendo, capitão? - disse Mariko. - Sobre a sua tripulação?

- Sim. Toranaga-sama poderia tomá-los sob a sua proteção também? Providenciar para que sejam todos bem tratados? Eles também serão enviados para Yedo?

Ela perguntou. Toranaga enfiou as espadas na cintura do quimono curto.

- Meu amo diz que naturalmente os arranjos já foram feitos. O senhor não precisa se inquietar quanto a eles. Ou quanto ao seu navio.

- Meu navio está em ordem?

- Sim. Ele diz que o navio já está em Yedo.

Toranaga levantou-se. Começaram todos a se curvar, mas Blackthorne interrompeu inesperadamente:

- Uma última coisa... - Parou e se amaldiçoou, percebendo que estava sendo descortês. Era óbvio que Toranaga encerrara a entrevista e já haviam todos começado a se curvar, mas foram detidos pelas palavras de Blackthorne e agora estavam todos embaraçados sem saber se completavam a reverência, se esperavam, ou se começavam novamente.

- Nan ja, Anjin-san? - A voz de Toranaga soou irritadiça e inamistosa, pois também ele ficara momentaneamente perturbado.

- Gomen nasai, sinto muito, Toranaga-sama. Não pretendi ser descortês. Sá queria perguntar se a Senhora Mariko teria a permissão de conversar comigo por alguns momentos antes que eu parta. Isso me ajudaria.

Ela perguntou.

Toranaga meramente grunhiu uma afirmativa imperiosa e saiu da sala, seguido de Kiri e da sua guarda pessoal.

Bastardos suscetíveis, todos vocês, disse Blackthorne a si mesmo.

Jesus, como se tem que ser cuidadoso aqui! Ele enxugou a testa com a manga e viu a aflição imediata no rosto de Mariko. Rako ofereceu-lhe às pressas um pequeno lenço que eles sempre pareciam ter pronto num sortimento aparentemente inexaurível, guardado secretamente em algum lugar nas costas do obi. Ele então percebeu que estava usando o quimono do "amo" e que não se enxuga, por distração, o suor da testa com a manga do "amo", por Deus, portanto havia cometido outro sacrilégio! Nunca aprenderei, nunca, Jesus do paraíso, nunca!

- Anjin-san? - Rako estava oferecendo saquê.

Ele aceitou, agradeceu e bebeu. Imediatamente ela tornou a encher o cálice. Ele notou um brilho de perspiração na testa de todos.

- Gomen nasai - disse ele a todos, desculpando-se. Pegou o cálice e ofereceu-o a Mariko, bem-humorado. - Não sei se é costume polido ou não, mas a senhora aceitaria um pouco de saquê? Isso é permitido? Ou devo bater a cabeça no chão?

Ela riu.

- Oh, sim, é muito polido, e não, por favor, não machuque a cabeça. Não há necessidade de se desculpar comigo, capitão. Homens não pedem desculpas a mulheres. Tudo o que fazem é correto. Pelo menos é o que nós, senhoras, achamos.

- Ela explicou às garotas o que dissera e elas assentiram de modo igualmente sério, mas tinham os olhos dançando nas órbitas. - O senhor não tinha como saber, Anjin-san - continuou Mariko, depois sorveu um minúsculo gole de saquê e devolveu-lhe o cálice. - Obrigada, mas não vou tomar mais saquê, obrigada. O saquê me vai direto para a cabeça e para os joelhos. Mas o senhor aprende rapidamente, deve lhe ser muito difícil. Não se preocupe, Anjin-san, o Senhor Toranaga disse que acha sua aptidão excepcional. Nunca lhe teria dado o quimono se não estivesse muito satisfeito.

- Ele mandou buscar Tsukku-san?

- O Padre Alvito?

- Sim.

- Deveria ter perguntado a ele, capitão. A mim não disse nada. E foi muito sábio nisso, pois as mulheres não têm sabedoria nem conhecimento em assuntos políticos.

- Ah, so desu ka? Gostaria que todas as mulheres fossem igualmente. .. sábias.

Mariko abanou-se, confortavelmente ajoelhada, as pernas dobradas sob o corpo. - Sua dança esteve excelente. As senhoras no seu país dançam do mesmo modo?

- Não. Apenas os homens. Era uma dança de homens, de marinheiros.

- Já que o senhor quer me fazer perguntas, posso lhe fazer algumas primeiro?

- Certamente.

- Como é a senhora sua esposa?

- Tem vinte e nove anos. E alta, comparada com a senhora. Pelas nossas medidas, tenho seis pés e duas polegadas de altura, e ela tem mais ou menos cinco pés e oito polegadas. A senhora tem cerca de cinco pés, portanto ela é uma cabeça mais alta e igualmente maior... igualmente proporcionada. O cabelo dela é da cor de. .. - Apontou as vigas de cedro polido e sem manchas e todos os olhos se dirigiram para lá, depois voltaram a se fixar nele. - Mais ou menos daquela cor. Loiro com um toque de vermelho. Os olhos são azuis, muito mais do que os meus, azul-esverdeados. Tem o cabelo comprido e o usa solto na maioria das vezes.

Mariko traduziu para as outras, que olharam para as vigas de cedro e para ele mais uma vez. Os guardas samurais também ouviam atentamente. Uma pergunta de Rako.

- Rako-san perguntou se ela é como nós, de corpo?

- Sim. Mas os quadris são mais largos e mais curvos, o peito é mais proporcionado e... bem, geralmente nossas mulheres são mais arredondadas e têm seios muito mais cheios.

- Todas as mulheres, e os homens, são tão mais altos do que nós?

- Geralmente sim. Mas alguns são tão baixos quanto os daqui. Acho a sua pequenez encantadora. Muito agradável.

Asa perguntou alguma coisa e o interesse de todos se avivou.

- Asa perguntou como o senhor compararia as suas mulheres com as nossas em matéria de "travesseiro".

- Desculpe, não compreendi.

- Oh, por favor, desculpe-me. O "travesseiro'... assuntos íntimos. É como nos referimos à união física de homem e mulher. É mais polido que "fornicação", neh?

Blackthorne conteve o embaraço e disse:

- Eu só... hum... só tive um... hum... uma experiência de "travesseiro" aqui... foi, hum, na aldeia... e não me lembro com muita clareza porque, hum, estava tão exausto da viagem que estava meio dormindo, meio desperto. Mas, hum, pareceu-me satisfatória.

Mariko franziu a testa.

- O senhor "travesseirou" só uma vez desde que chegou?

- Sim.

- Deve estar se sentindo muito incomodado, neh? Uma destas senhoras ficaria encantada em "travesseiras" com o senhor, Anjin-san. Ou todas elas, se o senhor quisesse.

- Hem?

- Certamente. Se não quiser nenhuma delas, não é preciso se preocupar, elas não se ofenderão. Simplesmente me diga o tipo de mulher de que gostaria e tomaremos todas as providências.

- Obrigado - disse Blackthorne -, mas não agora.

- Tem certeza? Por favor, desculpe-me, mas Kiritsubo-san tem instruções específicas para que a sua saúde seja protegida e melhorada. Como pode se sentir saudável sem "travesseiro"? É muito importante para um homem, neh? Oh, sim, muito.

- Obrigado, mas eu. .. talvez mais tarde.

- O senhor teria muito tempo. Eu ficaria contente em voltar mais tarde. Haverá muito tempo para conversar, se o senhor quiser. O senhor teria no mínimo quatro bastões de tempo - disse ela, solícita. - Não vai partir antes do pôr-do-sol.

- Obrigado. Mas não agora - disse Blackthorne, contrariado pela rudeza e falta de delicadeza da sugestão.

- Elas realmente gostariam de obsequiá-lo, Anjin-san. Oh! Talvez... talvez o senhor preferisse um menino?

- Hem?

- Um menino. É "igualmente simples, se é isso o que o senhor deseja. - O sorriso dela era honesto, a voz sincera.

- Hem?

- Qual é o problema?

- A senhora está me oferecendo um menino? A sério?

- Ora, sim, Anjin-san. Qual é o problema? Eu só disse que mandaríamos vir um menino se o senhor desejasse.

- Eu não quero! - Blackthorne sentiu o rosto em chamas.

- Será que eu pareço um maldito sodomita?

Suas palavras açoitaram a sala ao seu redor. Todos arregalaram os olhos para ele, pasmados. Mariko curvou-se humildemente, manteve a cabeça encostada ao chão.

- Por favor, perdoe-me, cometi um engano terrível. Oh, ofendi quando só tentava agradar. Nunca conversei com um... um estrangeiro antes senão com os santos padres, por isso não tinha como saber os seus... seus costumes íntimos. Nunca me ensinaram sobre isso. Anjinsan... os padres não os discutiam. Aqui alguns homens às vezes querem meninos.., os padres gostam de meninos de tempos em tempos, dos nossos e dos deles... eu tolamente presumi que seus hábitos fossem os mesmos que os nossos.

- Não sou um padre e isso não é um costume geral nosso.

O chefe dos samurais, Kazu Oan, observava irado. Estava encarregado da segurança e da saúde do bárbaro, e vira, com os próprios olhos, o inacreditável favor que o Senhor Toranaga demonstrara ao Anjin-san, que agora estava furioso.

- O que há com ele? - perguntou, desafiador, pois era óbvio que a estúpida mulher dissera algo para ofender o seu importantíssimo prisioneiro.

Mariko explicou o que fora dito e o que o Anjin-san retrucara.

- Realmente não compreendo com que ele está irritado, Oan-san - disse ela.

Oan coçou a cabeça, incrédulo.

- Ele ficou como um boi enlouquecido só porque a senhora lhe ofereceu um menino?

- Sim.

- Desculpe, mas a senhora foi polida? Não terá usado uma palavra errada, talvez?

- Oh, não, Oan-san, tenho certeza absoluta. Sinto-me péssima. Obviamente sou responsável.

- Deve ser alguma outra coisa. O quê?

- Não, Oan-san. Foi só isso.

- Nunca entenderei esses bárbaros - disse Oan exasperado.

- Por amor a todos nós, por favor acalme-o, Mariko-san. Deve ser porque ele não "travesseira" há muito tempo. Você - ordenou a Sono -, traga mais saquê, saquê quente, e toalhas quentes! Você, Rako, esfregue a nuca do demônio. - As criadas saíram voando para obedecer. Um pensamento súbito: - Talvez seja porque ele é impotente. A história que ele contou sobre o "travesseiro" na aldeia foi bastante vaga, neh? Talvez o coitado tenha ficado furioso porque não pode "travesseiras" em absoluto e a senhora trouxe o assunto à tona?

- Desculpe, mas não penso assim. O médico disse que ele é multo bem-dotado.

- Se ele fosse impotente... isso explicaria, neh? Seria o suficiente para me fazer berrar, também. Sim! Pergunte a ele.

Mariko imediatamente fez como lhe foi ordenado e Oan ficou horrorizado quando o sangue subiu novamente ao rosto do bárbaro e uma enxurrada de repugnantes sons bárbaros encheu a sala.

- Ele... ele disse que não. - A voz de Mariko não era mais que um sussurro.

- Tudo isso significava "não"?

- Eles... eles usam muitas palavras descritivas quando ficam alterados.

Oan estava começando a transpirar de ansiedade, pois era ele o responsável.

- Acalme-o!

Um dos outros samurais, um soldado mais velho, disse solicitamente:

- Oan-san, talvez ele seja um daqueles que gostam de cães, neh? Ouvimos algumas histórias estranhas em Kyushu sobre os comedores de alho. Sim, gostam de cães e... Lembro agora, sim, cães e patos. Talvez os cabeças douradas sejam como os comedores de alho, já que fedem como eles, hem? Talvez ele queira um pato.

- Mariko-san, pergunte-lhe! - disse Oan. - Não, talvez seja melhor não. Simplesmente acalme... - Parou de repente.

Hiromatsu vinha se aproximando da esquina oposta do corredor.

- Salve - disse o samurai resolutamente, tentando evitar que a voz tremesse porque o velho Punho de Aço, na melhor das circunstâncias um disciplinador, estivera como um tigre com espinhos no traseiro por toda a semana, e naquele dia estava ainda pior. Dez homens tinham sido rebaixados por desmazelo, o turno da noite inteira tivera que desfilar em ignomínia por todo o castelo, dois samurais haviam recebido ordem de cometer seppuku porque se atrasaram para o turno, e quatro dos coletores de fezes noturnas foram atirados dos parapeitos por haverem derramado parte de um recipiente no jardim do castelo.

- Ele está se comportando, Mariko-san? - Oan ouviu Punho de Aço perguntar irritado. Estava certo de que a estúpida mulher, que causara todo o problema, iria torcer a verdade, o que certamente lhes custaria a cabeça.

Para alívio seu, ouviu-a dizer:

- Sim, senhor. Tudo está ótimo, obrigada.

- Você partirá com Kiritsubo-san.

- Sim, senhor. - Hiromatsu continuou a sua patrulha e Mariko se inquietou por estar sendo mandada para longe. Seria meramente para servir de intérprete entre Kiri e o bárbaro durante a viagem? Com certeza isso não era tão importante. As outras damas de Toranaga também iam? A Senhora Sazuko? Não será perigoso para Sazuko ir por mar agora? Devo ir sozinha com Kiri, ou meu marido também vai? Se ele ficar - e seria seu dever ficar com seu senhor - quem cuidará da casa? Por que temos que ir de navio? Com certeza a estrada Tokaido ainda é segura? Com certeza Ishido não vai nos causar dano? Sim, ele faria isso - pense no nosso valor como reféns, a Senhora Sazuko, Kiritsubo, e as outras. Será que é por isso que temos que ir por mar?

Mariko sempre odiara o mar. Mesmo a vista dele quase a punha doente. Mas se tenho que ir, tenho que ir, e ponto final. Karma. Ela desviou a atenção do inevitável para o problema imediato do desconcertante bárbaro estrangeiro, que só lhe estava causando pesar.

Quando Punho de Aço desapareceu na extremidade do corredor, Oan ergueu a cabeça e todos suspiraram. Asa surgiu apressada pelo corredor com o saquê, seguida logo atrás de Sono, com as toalhas quentes.

Todos observaram enquanto o bárbaro era servido. Viram a máscara de sarcasmo que era o seu rosto, e o modo como aceitou o saquê sem prazer e as toalhas quentes com agradecimentos frios.

- Oan-san, por que não deixar uma das mulheres ir buscar o           pato? - sussurrou o velho samurai, solícito. – Simplesmente o soltamos. Se ele o quiser, estará tudo bem, senão, fingirá não tê-lo visto.

Mariko balançou a cabeça.

- Talvez não devamos correr esse risco. Parece, Oan-san, que este tipo de bárbaro tem alguma aversão a falar sobre "travesseiro", neh? É o primeiro de sua espécie a vir aqui, portanto teremos que ir às apalpadelas.

- Concordo - disse Oan. - Ele estava completamente dócil até que isso fosse mencionado. - Olhou carrancudo para Asa.

- Sinto muito, Oan-san. O senhor está absolutamente certo, a culpa foi toda minha - disse Asa imediatamente, curvando-se, a cabeça quase tocando o solo.

- Sim. Relatarei o caso a Kiritsubo-san.

- Oh!

- Realmente penso que a ama deve ser informada, a fim de tomar cuidado quanto a discutir o assunto com este homem - disse Mariko, diplomaticamente. - O senhor é muito sábio, Oan-san. Sim. Mas talvez, de certo modo, Asa tenha sido um feliz instrumento para poupar a Senhora Kiritsubo e mesmo o Senhor Toranaga de um terrível embaraço! Pense apenas no que teria acontecido se a própria Kiritsubo-san tivesse feito a pergunta diante do Senhor Toranaga ontem! Se o bárbaro tivesse agido assim na frente dele...

Oan assustou-se.

- Teria corrido sangue! A senhora tem toda a razão, Mariko-san, devemos agradecer a Asa. Explicarei a Kiritsubo-san que ela foi feliz na pergunta que fez.

Mariko ofereceu mais saquê a Blackthorne.

- Não, obrigado.

- Peço desculpas novamente pela minha estupidez. O senhor queria me fazer algumas perguntas?

Blackthorne os observava enquanto conversavam entre si, aborrecido por não ser capaz de compreender, furioso por não poder xingá-los claramente por seus insultos ou socar a cabeça dos guardas uma contra a outra.

- Sim. A senhora disse que a sodomia é normal aqui?

- Oh, perdoe-me, não poderíamos discutir outras coisas, por favor?

- Certamente, senhora. Mas primeiro, para que eu possa compreendê-los, vamos completar esse assunto. A sodomia é normal aqui, a senhora disse?

- Tudo o que se relacione com "travesseiro" é normal - disse ela, desafiante, incitada pela falta de boas maneiras e a óbvia imbecilidade dele, lembrando-se de que Toranaga lhe dissera que informasse sobre coisas não políticas, mas que lhe relatasse mais tarde todas as perguntas feitas. Além disso, ela não devia aceitar qualquer absurdo da parte dele, pois o Anjin continuava sendo um bárbaro, um provável pirata, e sob uma sentença formal de morte, temporariamente suspensa ao bel-prazer de Toranaga. - O "travesseiro" é absolutamente normal. E se um homem vai com outro, ou com um menino, o que é que isso tem a ver com mais alguém senão com eles? Que dano causa a eles, ou aos outros... a mim ou ao senhor? Nenhum! - O que sou eu, pensou ela, uma pária inculta, sem miolos? Um negociante estúpido para ser amedrontada por um mero bárbaro? Não. Sou samurai! Sim, você é, Mariko, mas também é muito tola! E uma mulher e deve tratá-lo como a qualquer homem para controlá-lo: lisonjeie-o, concorde com ele e adoce-o. Você se esqueceu das suas armas. Por que ele a faz agir como uma criança de doze anos de idade? Deliberadamente ela amaciou o tom da voz. - Mas se o senhor acha...

- A sodomia é um pecado repugnante, um mal, uma abominação amaldiçoada por Deus, e os bastardos que a praticam são a escória do mundo! - Blackthorne ainda estava furioso com o insulto de ela acreditar que ele pudesse ser um deles. Pelo sangue de Cristo, como é que ela pôde? Controle-se, disse a si mesmo. Está falando como um puritano fanático ou um calvinista! E por que tanto acirramento contra eles? Não será porque estão sempre presentes no mar, porque a maioria dos marinheiros já tentou isso? Pois de que outra maneira podem permanecer sadios tantos meses no mar? Não será porque você se sentiu tentado e odiou a si mesmo por ter se sentido tentado? Não será porque quando jovem você teve que lutar para se proteger e uma vez foi agarrado e quase violentado, mas conseguiu se soltar e matou um dos bastardos, a faca rasgando a garganta dele, você com doze anos, a primeira morte na sua longa lista de mortes? - É um pecado amaldiçoado por Deus... e absolutamente contra as leis de Deus e do homem.

- Com certeza essas são palavras cristãs que se aplicam a outras coisas? - retrucou ela acidamente malgrado seu, provocada pela completa grosseria dele. - Pecado? Onde está o pecado disso?

- A senhora devia saber. É católica, não? Foi educada por jesuítas, não foi?

- Um padre me educou e me ensinou a falar latim e português e a escrever em latim e português. Não compreendo o sentido que o senhor dá à palavra "católica", mas sou cristã, e já faz quase dez anos que sou cristã, e não, eles não conversaram conosco sobre "travesseiro". Nunca li os seus livros sobre o assunto, apenas livros religiosos. "Travesseiro" um pecado? Como poderia ser? Como é que qualquer coisa que dê prazer a um ser humano pode ser pecado?

- Pergunte ao Padre Alvito!

Antes pudesse, pensou ela perturbada. Mas tenho ordens de não discutir nada do que é dito aqui com ninguém além de Kiri e do meu Senhor Toranaga. Pedi a Deus e à Nossa Senhora que me ajudassem, mas eles não falaram comigo. Só sei que desde que você chegou aqui, não houve nada além de problemas. Eu só tive problemas...

- Se é um pecado, como o senhor diz, por que é que tantos dos nossos padres o fazem? Algumas seitas budistas até o recomendam como uma forma de veneração. O momento das nuvens e chuva não é o mais próximo do paraíso que os mortais podem obter? Os padres não são maus homens, não todos. E é sabido que alguns dos santos padres também apreciam o "travesseiro" desse modo. Eles são maus? Claro que não! Por que deveriam se privar de um prazer comum se as mulheres lhes são proibidas? É absurdo dizer que qualquer coisa relacionada a "travesseiro" é pecado e amaldiçoada por Deus!

- Sodomia é uma abominação, contra toda a lei! Pergunte ao seu confessor!

Você é que é a abominação, você, capitão-piloto, Mariko tinha vontade de gritar. Como ousa ser tão rude e como pode ser tão imbecil! Contra Deus, você disse? Que absurdo! Contra o seu mau deus, talvez. Clama ser cristão, mas é óbvio que não é, e óbvio que é um mentiroso, um trapaceiro. Talvez você realmente saiba coisas extraordinárias e tenha estado em lugares estranhos, mas não é cristão e é um sacrílego. Foi enviado por Satã? Pecado? Que grotesco!

Você arenga contra coisas normais e age como um louco. Aborrece os santos padres, aborrece o Senhor Toranaga, causa discussão entre nós, põe em dúvida as nossas crenças, e nos atormenta com insinuações sobre o que é verdade e o que não é - sabendo que podemos provar a verdade imediatamente.

Quero dizer-lhe que desprezo a você e a todos os bárbaros. Sim, os bárbaros me atormentaram a vida toda. Não odiavam meu pai porque ele não confiava neles e abertamente rogou ao ditador Goroda que os expulsasse da nossa terra? Os bárbaros não envenenaram a mente do ditador a ponto de ele começar a odiar meu,pai, seu general mais leal, o homem que o ajudara mais até do que o General Nakamura ou o Senhor Toranaga? Os bárbaros não foram a causa de o ditador insultar meu pai, tornando-o insano, forçando-o a fazer o impensável e desse modo causar todas as minhas agonias?

Sim, fizeram tudo isso e mais. Mas também trouxeram a inigualável palavra de Deus, e nas minhas horas sombrias de necessidade, quando fui trazida de volta de um exílio hediondo para uma vida ainda mais hedionda, o padre-lnspetor mostrou-me o Caminho, abriu-me os olhos e minha alma e me batizou. E o Caminho me deu forças para suportar, encheu-me o coração com uma paz sem limites, libertou-me do meu tormento perpétuo, e abençoou-me com a promessa de salvação eterna.

Aconteça o que acontecer, estou nas mãos de Deus. Oh, minha Nossa Senhora, dê-me a sua paz e ajude esta pobre pecadora a vencer os inimigos.

- Peço desculpas pela minha rudeza - disse ela. - O senhor tem razão em estar zangado. Sou apenas uma tola mulher. Por favor, seja paciente e perdoe-me minha estupidez, Anjin-san.

Imediatamente a raiva de Blackthorne começou a desvanecer-se. Como é que um homem pode ficar zangado muito tempo com uma mulher, se ela abertamente admite estar errada e ele certo?

- Também peço desculpas, Mariko-san - disse ele, um pouco abrandado -, mas conosco, sugerir que um homem é pederasta, sodomita, é o pior tipo de insulto.

Então vocês são todos infantis e imbecis, assim como infames, grosseiros e sem educação, mas o que se pode esperar de um bárbaro? disse ela a si mesma. Depois, aparentemente arrependida, disse em voz alta:

- Claro que o senhor tem razão. Não tive más intenções, Anjin-san, por favor aceite as minhas desculpas. Oh, sim - ela suspirou, sua voz tão delicadamente adocicada que mesmo o marido, num dos seus humores mais borrascosos, teria sido apaziguado -, oh, sim, o erro foi inteiramente meu. Sinto muito.

 

O sol já tocara o horizonte e o Padre Alvito ainda esperava na sala de audiências, os portulanos pesando-lhe nas mãos.

Maldito Blackthorne, pensou ele.

Era a primeira vez que Toranaga o fazia esperar, a primeira vez em anos que ele esperava por qualquer daimio, inclusive o taicum. Durante os últimos oito anos do governo do taicum, fora-lhe concedido o privilégio inacreditável de acesso imediato, exatamente como com Toranaga.

Mas com o taicum o privilégio fora merecido devido à sua fluência em japonês e à sua sagacidade nos negócios. Seu conhecimento das engrenagens do comércio internacional ajudara ativamente a aumentar a incrível fortuna do taicum. Embora quase inculto, o taicum tinha um vasto domínio da língua e seu conhecimento político era imenso. De modo que Alvito se sentara prazerosamente aos pés do déspota para ensinar e aprender e, se fosse a vontade de Deus, para converter. Era essa a função específica para a qual fora meticulosamente treinado por Dell'Aqua, que providenciara os melhores professores práticos entre todos os jesuítas e entre os mercadores na Asia. Alvito tornara-se o confidente do taicum, uma das quatro pessoas - e o único estrangeiro - a jamais ter visto todas as salas do tesouro pessoal do taicum.

A poucas centenas de passos estava o torreão do castelo.

Erguia-se sobranceiro a sete andares, protegido pela infinidade de muros e portas e fortificações. No quarto andar havia sete salas com portas de ferro. Cada uma estava abarrotada com lingotes de ouro e arcas com moedas douradas. No andar de cima ficavam as salas de prata, explodindo de lingotes e arcas de moedas. E no superior a esse ficavam as sedas e porcelanas raras, espadas e armaduras - o tesouro do império.

Pela nossa avaliação atual, pensou Alvito, o valor deve ser de no mínimo cinqüenta milhões de ducados, mais do que o valor da renda de um ano de todo o império espanhol, todo o império português e a Europa, juntos! A maior fortuna particular em dinheiro do globo.

Não é esse o grande prêmio? raciocinou ele. Quem quer que controle o Castelo de Osaka não controla também essa riqueza inacreditável? E essa riqueza, por conseguinte, não lhe dá poder sobre a terra? Osaka não foi feita inexpugnável apenas para proteger a riqueza? A terra não foi sangrada para construir o Castelo de Osaka, para torná-lo inviolável para proteger o ouro, a fim de mantê-lo em segurança até que Yaemon atinja a maioridade?

Com um centésimo dessa riqueza poderíamos construir uma catedral em cada capital, uma igreja em cada cidade, uma missão em cada aldeia pelo país inteiro. Se ao menos isso fosse possível, para usar o dinheiro pela glória de Deus!

O taicum amara o poder. E amara o ouro pelo poder que conferia sobre os homens. O tesouro era o fruto de dezesseis anos de poder incontestado, resultado dos presentes imensos, obrigatórios, que se esperava que todos os daimios, por costume, oferecessem anualmente, e proveniente dos seus próprios feudos. Por direito de conquista, o taicum pessoalmente possuía um quarto do país inteiro. Sua renda particular anual excedia cinco milhões de kokus. E como era senhor de todo o Japão, com o mandato do imperador, em teoria possuía a renda de todos os feudos. Não cobrava impostos de nenhum. Mas todos os daimios, todos os samurais, todos os camponeses, todos os artesãos, todos os mercadores, todos os assaltantes, todos os párias, todos os bárbaros, até os etas, contribuíam voluntariamente, e em larga medida. Pela própria segurança.

Enquanto a fortuna estiver intacta, Osaka estiver intacta e Yaemon for o curador de fato, disse Alvito a si mesmo, o herdeiro governará quando atingir a idade, apesar de Toranaga, de Ishido ou de qualquer outro.

Uma pena que o taicum tenha morrido. Com todas as suas falhas, conhecíamos o demônio com quem tínhamos que lidar. Pena, na realidade, que Goroda tenha sido assassinado, pois era um verdadeiro amigo nosso. Mas está morto, assim como o taicum, e agora temos novos idólatras para dobrar - Toranaga e Ishido.

Alvito lembrou-se da noite em que o taicum morrera. Fora convidado pelo próprio para a vigília - ele, junto com Yodokosama, a esposa do taicum, e a Senhora Ochiba, a consorte e mãe do herdeiro. Haviam observado e esperado muito tempo naquela noite de verão, perfumada mas interminável.

Então a agonia começara, e findara.

- Seu espírito partiu. Ele está nas mãos de Deus agora - dissera ele suavemente ao ter certeza. Fizera o sinal-da-cruz e abençoara o corpo.

- Que Buda leve meu senhor consigo e o faça renascer rapidamente, para que possa mais uma vez retomar o império nas mãos - dissera Yodoko em lágrimas silenciosas. Era uma mulher agradável, uma samurai patrícia que fora esposa e conselheira fiel por quarenta e quatro dos seus cinqüenta e nove anos de vida. Ela fechara os olhos e exaltara o cadáver, o que era privilégio seu. Tristemente fizera uma reverência três vezes e depois o deixara, e à Senhora Ochiba. A agonia fora fácil. Durante meses o taicum estivera doente e esperava-se o pior para aquela noite. Poucas horas antes ele abrira os olhos, sorrira para Ochiba e para Yodoko, e sussurrara, num fio de voz: - Ouçam, este é o meu poema de morte:

 

Como orvalho nasci

Como orvalho desapareço

O Castelo de Osaka e tudo o que jamais fiz

Não são mais que um sonho

Dentro de um sonho.

 

Um último sorriso, terno, do déspota para elas e para ele.

- Protejam meu filho, vocês todos. - E os olhos se tornaram opacos para sempre.

O Padre Alvito lembrou-se de como se emocionara com o último poema, tão típico do taicum. Como fora convidado, esperara que o senhor do Japão, no limiar da morte, se arrependesse e aceitasse a fé e o sacramento com que brincara tantas vezes. Mas isso não aconteceu.

- Você perdeu o reino de Deus para sempre, pobre homem - murmurara ele tristemente, pois admirara o taicum como um gênio militar e político.

- E se o seu reino de Deus estiver numa passagem de volta? - disse a Senhora Ochiba.

- O quê? - Ele não tinha certeza de ter ouvido corretamente, indignado com a inesperada malevolência sibilante dela.

Conhecia a Senhora Ochiba há quase doze anos, desde os quinze anos dela, quando o taicum a tomara por consorte, e ela sempre fora dócil, subserviente, mal e mal dizia uma palavra, sempre sorrindo docemente e feliz. Mas agora...

- Eu disse: "E se o seu reino de Deus estiver numa passagem de volta?"

- Que Deus a perdoe! Seu amo morreu apenas há alguns segundos...

- O senhor meu amo morreu, portanto a sua influência sobre ele morreu. Neh? Ele o quis aqui, muito bem, era um direito dele. Mas agora ele se encontra no Grande Vazio e não comanda mais. Agora comando eu. Padre, você cheira mal, sempre cheirou, e a sua sujeira polui o ar. Agora suma do meu castelo e deixe-nos com a nossa dor!

A luz das velas adejou-lhe pelo rosto. Era uma das mais belas mulheres do país. Involuntariamente ele fez o sinal-da-cruz.

A risada que ouviu era de aço.

- Vá embora, padre, e não volte nunca. Seus dias estão contados!

- Não mais do que os seus. Estou nas mãos de Deus, senhora. É melhor que de ouvidos a ele, a salvação eterna pode ser sua se acreditar.

- Hem? Você está nas mãos de Deus? O Deus cristão, neh? Talvez esteja. Talvez não. O que vai fazer, padre, se, quando morrer, descobrir que não há Deus algum, que não há inferno e que a sua salvação eterna é apenas um sonho dentro de outro sonho?

- Eu acredito! Eu acredito em Deus, na ressurreição e no Espírito Santo! - dissera ele. - As promessas cristãs são verdadeiras. São verdadeiras... eu acredito!

- Nan ja, Tsukku-san?

Por um instante só ouviu o japonês e não tinha significado algum para ele.

Toranaga estava em pé na soleira da porta, rodeado por seus guardas. O Padre Alvito curvou-se, recobrando-se, com suor nas costas e no rosto.

- Sinto muito por ter vindo sem ser convidado. Eu... eu estava apenas sonhando acordado. Lembrava-me de que tive a boa fortuna de testemunhar tantas coisas aqui no Japão. arece que vivi toda a minha vida aqui e em nenhum outro lugar.

- Quem lucrou com isso fomos nós, Tsukku-san.

Toranaga caminhou cansadamente para o estrado e sentou-se sobre a almofada simples. Em silêncio, os guardas se dispuseram numa tela protetora.

- O senhor chegou aqui no terceiro ano do Tensho, não foi?

- Não, senhor, foi no quarto. O ano do Rato – respondeu ele, usando o calendário deles, que levara meses para compreender. Todos os anos eram contados a partir de um ano em particular, escolhido pelo imperador reinante. Uma catástrofe ou uma dádiva divina podiam encerrar uma era ou dar início a outra, conforme o capricho do imperador. Os sábios recebiam a ordem de selecionar um nome de presságio particularmente bom nos antigos livros da China para a nova era que podia durar um ou cinqüenta anos. "Tensho" significava "justiça celeste". O ano anterior fora o do Grande Macaréu, quando duzentas mil pessoas morreram. E cada ano recebia um número, assim como um nome - seguindo a mesma sucessão de nomes das horas do dia: Lebre, Dragão, Cobra, Cavalo, Bode, Macaco, Galo, Cão, Javali, Rato, Raposa e Tigre. O primeiro ano do Tensho caíra no ano do Galo, de onde se seguia que 1576 era o ano do Rato no quarto ano do Tensho.

- Muita coisa aconteceu nestes vinte e quatro anos, neh, amigo velho?

- Sim, senhor.

- Sim. A ascensão de Goroda e a sua morte. A ascensão do taicum e a sua morte. E agora? - As palavras ricocheteavam nas paredes.

- Isso está nas mãos do Infinito. - Alvito usou uma palavra que podia significar Deus, mas também podia significar Buda.

- Nem o Senhor Goroda nem o senhor taicum acreditavam em quaisquer deuses, ou em qualquer Infinito.

- O Senhor Buda não disse que há muitos caminhos para o nirvana, senhor?

- Ah, Tsukku-san, você é um homem sábio. Como pode alguém tão jovem ser tão sábio?

- Sinceramente gostaria de sê-lo, senhor. Então poderia ser de mais valia. O senhor queria me ver?

- Sim. Julguei importante o bastante para vir ser sem convidado.

Alvito pegou os portulanos de Blackthorne e colocou-os no chão, diante do outro, dando a explicação que Dell'Aqua sugerira. Viu o rosto de Toranaga se endurecer e ficou contente com isso.

- Prova da pirataria dele?

- Sim, senhor. Os portulanos contêm até as palavras exatas das ordens que receberam, que incluem: "se necessário, desembarcar à força e reivindicar qualquer território atingido ou descoberto". Se o senhor quiser, posso fazer uma tradução exata de todas as passagens pertinentes.

- Faça uma tradução de tudo. Rapidamente - disse Toranaga.

- Há mais uma coisa que o padre-lnspetor achou que o senhor devia saber. - Alvito contou a Toranaga tudo sobre os mapas e relatórios e o Navio Negro conforme fora combinado, e ficou encantado ao ver a reação de satisfação.

- Excelente - disse Toranaga. - Tem certeza de que o Navio Negro chegará mais cedo? Absoluta certeza?

- Sim - respondeu Alvito com firmeza. Ó Deus, deixe que aconteça conforme esperamos!

- Bom. Diga ao seu suserano que estou ansioso por ler os relatórios dele. Imagino que ele levará alguns meses obtendo os fatos corretos?

- Ele disse que prepararia os relatórios o mais depressa possível. Vamos lhe enviar os mapas como o senhor deseja. Seria possível que o capitão-mor tivesse suas autorizações logo? Isso ajudaria enormemente, se é para o Navio Negro chegar mais cedo, Senhor Toranaga.

- O senhor garante que o navio chegará antes?

- Nenhum homem pode garantir o vento, a tempestade e o mar. Mas o navio partirá de Macau mais cedo do que o previsto.

- O senhor as terá antes do pôr-do-sol. Há mais alguma coisa? Não estarei disponível por três dias, até depois da conclusão da reunião dos regentes.

- Não, senhor. Obrigado. Rezo para que o Infinito o conserve em segurança, como sempre. - Alvito curvou-se e esperou ser dispensado, mas em vez disso foram os guardas que Toranaga dispensou.

Era a primeira vez que Alvito via um daimio desacompanhado.

- Venha sentar-se aqui, Tsukku-san - Toranaga apontou para o seu lado, sobre o estrado.

Alvito nunca fora convidado para o estrado antes. Isto é um voto de confiança - ou uma sentença?

- A guerra se aproxima - disse Toranaga.

- Sim - respondeu ele, e pensou: esta guerra não vai terminar nunca.

- Os senhores cristãos, Onoshi e Kiyama, estranhamente se opõem aos meus desejos.

- Não posso responder por nenhum daimio, senhor.

- Há maus rumores, neh? Sobre eles e sobre outros daimios cristãos.

- Homens sábios terão sempre os interesses do império no coração.

- Sim. Mas enquanto isso, contra a minha vontade, o império está se dividindo em dois campos. O meu e o de Ishido. Portanto todos os interesses do império se encontram num lado ou noutro. Não há posição intermediária. Onde se situam os interesses dos cristãos?

- Do lado da paz. O cristianismo é uma religião, senhor, não uma ideologia política.

- O seu Padre Gigante é o cabeça da sua Igreja aqui. Ouvi dizer que vocês... que vocês podem falar em nome do papa.

- Estamos proibidos de nos envolver na sua política, senhor.

- Acha que Ishido vai favorecê-los? - A voz de Toranaga tornou-se mais dura. - Ele é totalmente contra a sua religião. Eu sempre lhes demonstrei o meu favor. Ishido quer pôr em execução os editos de expulsão do taicum imediatamente e fechar totalmente o país a todos os bárbaros. Eu quero um comércio em expansão.

- Nós não controlamos nenhum dos daimios cristãos.

- Como os influencio, então?

- Não sei o suficiente para tentar aconselhá-lo.

- Sabe o bastante, amigo velho, para compreender que se Kiyama e Onoshi se erguem contra mim, ao lado de Ishido e o resto da canalha, todos os outros daimios cristãos logo os seguirão, e então serão vinte homens a se erguer contra cada um dos meus.

- Se a guerra vier, rezarei para que o senhor vença.

- Precisarei de mais do que de orações se vinte homens se opuserem a cada um dos meus.

- Não há um meio de evitar a guerra? Uma vez começada, ela nunca terminará.

- Também acredito nisso. Então todos perderão - nós, os bárbaros, e a Igreja cristã. Mas se todos os daimios cristãos se pusessem do meu lado agora - abertamente -, não haveria guerra. As ambições de Ishido estariam permanentemente refreadas. Ainda que erguesse sua bandeira e se revoltasse, os regentes poderiam aniquilá-lo como um verme de arroz.

Alvito sentiu o laço apertar-se em torno do pescoço.

- Estamos aqui apenas para difundir a palavra de Deus. Não para interferir na sua política, senhor.

- O seu líder anterior ofereceu os serviços dos daimios cristãos de Kyushu ao taicum antes que tivéssemos dominado aquela parte do império.

- Ele errou fazendo isso. Não tinha autorização da Igreja nem dos próprios daimios.

- Ofereceu navios ao taicum, navios portugueses para transportar nossas tropas para Kyushu, ofereceu soldados portugueses com armas para nos ajudar. Mesmo contra a Coréia e contra a China.

- Novamente, senhor, ele o fez incorretamente, sem a autorização de ninguém.

- Logo todos terão que tomar posição, Tsukku-san. Sim. Muito em breve.

Alvito sentiu a ameaça fisicamente.

- Estou sempre pronto para servi-lo.

- Se eu perder, você morrerá comigo? Cometerá jenshi... seguir-me-á, ou virá comigo para a morte, como um partidário leal?

- Minha vida está nas mãos de Deus. Assim como a minha morte.

- Ah, sim. O seu Deus cristão! - Toranaga moveu as espadas ligeiramente. Depois inclinou-se para a frente. - Onoshi e Kiyama comprometidos comigo, dentro de quarenta dias, e o conselho de regentes revoga os editos do taicum.

Até onde me atrevo a ir? perguntou-se Alvito, desamparado. Até onde?

- Não podemos influenciá-los do modo como o senhor crê.

- Talvez o seu líder devesse ordenar-lhes. Ordenar-lhes! Ishido trairá a vocês e a eles. Conheço-o pelo que é. O mesmo fará a Senhora Ochiba. Ela já não está influenciando o herdeiro contra vocês?

Sim, queria gritar Alvito. Mas Onoshi e Kiyama já obtiveram secretamente o juramento de Ishido, por escrito, de deixá-los designar os preceptores do herdeiro, um dos quais será cristão. E Onoshi e Kiyama fizeram um juramento sagrado de que estão convencidos de que você trairá a Igreja, assim que tiver eliminado Ishido.

- O padre-lnspetor não pode lhes dar ordens, senhor. Seria uma interferência imperdoável na sua política.

- Onoshi e Kiyama em quarenta dias, os editos do taicum revogados, e nada de padres imundos mais. Os regentes os proibirão de vir ao Japão.

- O quê?

- Vocês e os seus padres, apenas. Nenhum dos outros, os Roupas Pretas fedorentos, pedintes, os peludos descalços! Aqueles que berram ameaças estúpidas e não fazem senão criar problemas. Eles. Vocês podem ter a cabeça de todos se quiserem. .. dos que estão aqui.

Todo o ser de Alvito gritava por cautela. Toranaga nunca fora tão aberto. Um escorregão e você o ofenderá e o fará inimigo da Igreja para sempre.

Pense no que Toranaga está oferecendo! Exclusividade no império todo!

A única coisa que garantiria a pureza da Igreja e sua segurança enquanto crescesse forte. A única coisa de preço inestimável. A única coisa que ninguém pode oferecer - nem o papa! Ninguém - exceto Toranaga. Com Kiyama e Onoshi a apoiá-lo abertamente, Toranaga poderia esmagar Ishido e dominar o conselho.

O Padre Alvito nunca teria acreditado que Toranaga seria tão abrupto. Ou oferecesse tanto. Onoshi e Kiyama poderiam ser convencidos a voltar atrás? Aqueles dois se odiavam mutuamente. Por razões que apenas eles conheciam, haviam-se unido para se opor a Toranaga. Por quê? O que os faria trair Ishido?

- Não sou qualificado para responder-lhe, senhor, ou para falar sobre um assunto assim, neh? Só posso dizer-lhe que nosso único objetivo é salvar almas.

- Ouvi dizer que meu filho Naga está interessado na sua fé cristã.

Toranaga está ameaçando ou oferecendo? perguntou-se Alvito. Está oferecendo a permissão para Naga aceitar a fé - que cartada gigantesca não seria! - ou está dizendo: "A menos que vocês cooperem, eu lhe ordenarei que pare"? - O senhor seu filho é um dos muitos nobres que têm a mente aberta sobre religião, senhor.

Subitamente Alvito entendeu a enormidade do dilema que Toranaga estava encarando. Ele está encurralado - tem que fazer um acordo conosco, pensou o padre exultante. Tem que tentar! Tem que nos dar o que quisermos - se nós quisermos fazer um acordo com ele. Finalmente ele admite abertamente que os daimios cristãos detêm o equilíbrio do poder! O que quisermos! O que mais poderíamos ter? Nada, em absoluto. Exceto.. .

Deliberadamente ele baixou os olhos para os portulanos que abrira diante de Toranaga. Viu a mão dele estender-se e pôr os portulanos em segurança na manga do quimono.

- Ah, sim, Tsukku-san - disse Toranaga, sua voz melancólica e exausta. - Depois há os novos bárbaros, os piratas. O inimigo do seu país. Logo estarão chegando aqui aos magotes, não? Podem ser desencorajados... ou encorajados. Como este pirata isolado. Neh?

O Padre Alvito sabia que agora tinham tudo. Devo pedir a cabeça de Blackthorne numa bandeja de prata como a cabeça de São João Batista, para selar o negócio? Devo pedir permissão para construir uma catedral em Yedo, ou uma dentro dos muros do Castelo de Osaka? Pela primeira vez na vida o padre se sentiu à deriva, desorientado, diante do limiar do poder.

Não queremos mais do que é oferecido! Gostaria de poder firmar o negócio agora! Se dependesse apenas de mim, eu arriscaria. Conheço Toranaga e arriscaria. Eu concordaria e faria um juramento sagrado. Sim, eu excomungaria Onoshi e Kiyama se eles não concordassem, para ganhar essas concessões para a Madre Igreja. Duas almas por dezenas de milhares, por centenas de milhares, por milhões. É justo! Eu diria sim, sim, sim, pela glória de Deus. Mas não posso firmar nada, como você bem sabe. Sou apenas um mensageiro, e parte da minha mensagem...

- Preciso de ajuda, Tsukku-san. Preciso e agora.

- Tudo o que puder fazer, eu farei, Toranaga-sama. O senhor tem a minha promessa.

Então Toranaga disse com determinação:

- Esperarei quarenta dias. Sim. Quarenta dias.

Alvito curvou-se. Notou que Toranaga retribuiu a reverência mais profunda e formalmente do que jamais fizera antes, quase como se estivesse se curvando para o próprio taicum. O padre levantou-se, trêmulo. Saiu da sala, seguindo pelo corredor. Seu passo acelerou-se. Começou a correr.

Toranaga observou o jesuíta pela seteira enquanto ele cruzava o jardim lá embaixo. A shoji abriu-se, mas ele expulsou os guardas com rudeza e ordenou-lhes, sob pena de morte, que o deixassem sozinho. Seus olhos seguiram Alvito atentamente, através do portão fortificado, no adro, até o padre se perder no labirinto de muros e fortificações. Então, no silêncio solitário, Toranaga começou a sorrir. Arregaçou o quimono e começou a dançar.

Uma hornpipe.

 

Pouco depois do crepúsculo, Kiri desceu nervosamente as escadas, seguida de duas criadas. Dirigiu-se para a sua liteira com cortinas, parada ao lado da cabana no jardim. Um volumoso manto cobria-lhe o quimono de viagem e fazia-a parecer ainda mais corpulenta. Usava um vasto chapéu de aba larga amarrado sob os maxilares.

A Senhora Sazuko esperava pacientemente por ela na varanda, pesadamente grávida, com Mariko ao lado. Blackthorne estava encostado ao muro perto do portão fortificado. Usava um quimono acinturado dos marrons, meias tabi e tamancos militares. No adro, fora do portão, a escolta de sessenta samurais pesadamente armados estava disposta em fileiras, cada terceiro homem portando um archote. A frente desses soldados, Yabu conversava com Buntaro - o marido de Mariko -, um homem pequeno, atarracado, quase sem pescoço. Ambos vestiam cotas de malhas, com arcos e aljavas aos ombros, e Buntaro usava um elmo de guerra, de aço, em forma de chifre. Carregadores e kagas acocoravam-se pacientes, num silêncio bem disciplinado, perto da volumosa bagagem.

A promessa do verão soprava na brisa ligeira, mas ninguém notou isso exceto Blackthorne, e até ele estava consciente da tensão que os rodeava a todos. Também estava intensamente consciente de que apenas ele estava desarmado.

Kiri caminhou lenta e penosamente para a varanda.

- Não devia estar esperando ao frio, Sazuko-san. Vai apanhar um resfriado! Deve pensar na criança agora. Estas noites de primavera ainda estão cheias de umidade.

- Não estou com frio, Kiri-san. Está fazendo uma noite adorável.

- Está tudo em ordem?

- Oh, sim, tudo perfeito.

- Gostaria de que não estivéssemos partindo. Sim. Odeio

partir.

- Não há por que se preocupar - disse Mariko, tranquilizadora, juntando-se a elas. Usava um chapéu de aba larga semelhante, mas o seu era brilhante onde o de Kiri era escuro. - Você vai apreciar muito estar de volta a Yedo. Nosso amo seguirá dentro de poucos dias.

- Quem sabe o que o amanhã trará, Mariko-san?

- O amanhã está nas mãos de Deus.

- Amanhã será um dia adorável, se não for, não será! - disse Sazuko. - Quem se preocupa com o amanhã? O agora é bom. As senhoras são lindas e vamos todos sentir a sua falta, Kiri-san, e a sua, Mariko-san! - Ela olhou para o portão, distraída pelo grito encolerizado de Buntaro com um dos samurais, que havia deixado cair um archote. Yabu, mais velho do que Buntaro, estava nominalmente no comando do destacamento. Vira Kiri chegar e, empertigado, cruzou o portão de volta. Buntaro o seguiu.

- Oh, Senhor Yabu... Senhor Buntaro - disse Kiri, com uma mesura nervosa. - Sinto muito tê-los feito esperar. O Senhor Toranaga ia descer mas acabou resolvendo o contrário. Devem partir agora, disse ele. Por favor, aceitem minhas desculpas.

- Não há necessidade de desculpas. - Yabu queria se ver longe do castelo o mais breve possível, longe de Osaka e de volta a Izu. Ainda mal podia acreditar que estava partindo com a cabeça no lugar, com as armas, com tudo. Enviara mensagens urgentes por pombo-correio à esposa em Yedo, para se certificar de que estaria tudo preparado em Mishima, sua capital, e a Omi, na aldeia de Anjiro. - Estão prontas?

Lágrimas brilharam nos olhos de Kiri.

- Deixe-me apenas recuperar o fôlego e entrarei na liteira. Oh, como gostaria de não ter que partir! - Olhou em torno, procurando Blackthorne, e finalmente deu com os olhos nele, na escuridão. - Quem é responsável pelo Anjin-san? Até que cheguemos ao navio?

Buntaro disse com impaciência:

- Ordenei-lhe que caminhasse ao lado da liteira de minha esposa. Se ela não conseguir controlá-lo, eu o farei.

- Talvez, Senhor Yabu, o senhor devesse escoltar a Senhora Sazuko...

- Guardas!

O grito de advertência viera do adro. Buntaro e Yabu acorreram para o portão fortificado, com todos os homens atrás deles e outros precipitando-se das fortificaçôes internas.

Ishido se aproximava pela avenida entre os muros do castelo, à frente de duzentos cinzentos. Parou no adro, do lado de fora do portão, e, embora nenhum homem parecesse hostil em nenhum dos lados e nenhum tivesse a mão sobre a espada ou uma seta no arco, puseram-se todos de prontidão.

Ishido fez uma elaborada reverência.

- Uma noite excelente, Senhor Yabu.

- Sim, sim, deveras.

Ishido fez um mecânico gesto de cabeça a Buntaro, que foi igualmente gélido, retribuindo com a mínima polidez permissível. Ambos tinham sido generais favoritos do taicum. Buntaro comandara um dos regimentos na Coréia quando Ishido estivera no comando supremo. Um acusara o outro de traição. Apenas a intervenção pessoal uma ordem direta do taicum haviam impedido a carnificina e uma vendetta.

Ishido examinou os marrons. Depois seus olhos descobriram Blackthorne. Viu o homem fazer-lhe uma meia mesura. Através do portão pôde ver as três mulheres e a outra liteira. Seus olhos pousaram em Yabu novamente.

- Poder-se-la pensar que estão todos indo para uma batalha, Yabu-san, ao invés de se tratar apenas de uma escolta cerimonial para a Senhora Kiritsubo.

- Hiromatsu-san expediu ordens, por causa dos assassinos Amida...

Yabu parou quando Buntaro avançou belicosamente e plantou suas pernas imensas no meio da soleira.

- Estamos sempre prontos para a batalha. Com ou sem armadura. Cada um dos nossos homens enfrenta dez, e cinqüenta dos comedores de alho. Nunca damos as costas e corremos como covardes remelentos, abandonando nossos companheiros para serem esmagados!

O sorriso de Ishido veio cheio de desprezo, a voz uma ferroada.

- Oh? Talvez o senhor tenha uma oportunidade dentro em breve... de erguer-se entre homens autênticos, não entre comedores de alho!

- "Dentro em breve" é quanto tempo? Por que não aqui?

Yabu colocou-se cuidadosamente entre eles. Também estivera na Coréia e sabia que havia verdade em ambos os lados e que nenhum dos dois merecia confiança, Buntaro menos que Ishido.

- Não esta noite porque estamos entre amigos, Buntaro-san - disse apaziguador, desejando desesperadamente evitar um conflito que os encerraria para sempre dentro do castelo. - Estamos entre amigos, Buntaro-san.

- Que amigos? Conheço os amigos... e conheço os inimigos! - Buntaro voltou-se para Ishido num repelão. - Onde está esse homem autentico. .. esse homem autêntico de que o senhor falou, Ishido-san? Hem? Ou homens? Deixe-o... deixe-os todos rastejar para fora de suas tocas e erguer-se na minha frente, eu, Toda Buntaro, senhor de Sakura, se algum deles tem sangue!

Todos se prepararam.

Ishido encarava-o malevolamente.

- Não é o momento, Buntaro-san - disse Yabu. - Amigos ou inim...

- Amigos? Onde? Nesse monte de esterco? - Buntaro cuspiu no pó.

A mão de um dos cinzentos voou para o punho da espada, dez marrons o imitaram, cinqüenta cinzentos uma fração de segundo depois, todos à espera de que Ishido desse voz de ataque.

Então Hiromatsu surgiu das sombras do jardim e atravessou o portão para o adro, a espada mortífera frouxa nas mãos e meio para fora da bainha.

- As vezes podem-se encontrar amigos no esterco, meu filho - disse calmamente. As mãos se relaxaram sobre o punho das espadas. Samurais nas ameias opostas - cinzentos e marrons - afrouxaram a tensão dos arcos armados de setas. - Temos amigos por todo o castelo. Por toda Osaka. Sim. Nosso Senhor Toranaga está sempre nos dizendo isso. - Erguia-se como uma rocha diante de seu único filho vivo, vendo o sangue luzir-lhe nos olhos. No momento em que Ishido fora visto se aproximando, Hiromatsu tomara posição de combate no desvão interno do portão. Depois, quando o primeiro perigo passara, movera-se com silêncio felino para as sombras. Cravou o olhar nos olhos de Buntaro. - Não é assim, meu filho?

Com um esforço enorme, Buntaro assentiu e recuou um passo. Mas continuou bloqueando o caminho para o jardim.

Hiromatsu voltou a atenção para Ishido:

- Não o esperávamos esta noite, Ishido-san.

- Vim prestar minhas homenagens à Senhora Kiritsubo. Só fui informado há poucos momentos de que alguém ia partir.

- Será que meu filho tem razão? Deveríamos nos preocupar por não estarmos entre amigos? Somos reféns que devem implorar favores?

- Não. Mas o Senhor Toranaga e eu combinamos quanto ao protocolo durante a sua visita. A notícia da chegada ou partida de altas personalidades devia ser dada com um dia de antecedência, para que eu pudesse apresentar meus respeitos de modo adequado.

- Foi uma decisão repentina do Senhor Toranaga. Não considerou a questão de mandar uma de suas damas de volta a Yedo importante o bastante para perturbá-lo - disse Hiromatsu. - Sim, o Senhor Toranaga está meramente se preparando para a sua própria partida.

- Isso já foi decidido?

- Sim. Partirá no dia em que se encerrar a reunião dos regentes. O senhor será informado no momento correto, conforme o protocolo.

- Ótimo. Claro que a reunião pode ser novamente adiada.

O Senhor Kiyama piorou, aliás.

- Foi adiada? Ou não?

- Simplesmente mencionei que poderia ser. Esperamos ter o prazer da presença do Senhor Toranaga por um longo tempo ainda, neh? Ele caçará comigo amanhã?

- Solicitei-lhe que cancelasse todas as caçadas até a reunião. Não considero seguro. Já não considero nenhum setor desta área seguro. Se assassinos imundos podem passar pelas suas sentinelas com tanta facilidade, a traição fora dos muros não seria muito mais fácil?

Ishido deixou passar o insulto. Sabia que isso e as afrontas inflamariam seus homens ainda mais, mas ainda não lhe convinha acender o estopim. Ficara contente por Hiromatsu ter intercedido, pois quase perdera o controle. O pensamento da cabeça de Buntaro no pó, com os dentes batendo, o invadira voraz.

- Todos os comandantes daquela noite já foram mandados para o Grande Vazio, como o senhor bem sabe. Os Amida serão destruídos dentro de muito breve. Os regentes serão solicitados a tratar deles de uma vez por todas. Agora talvez eu possa prestar minhas homenagens a Kiritsubo-san.

Ishido avançou. Sua guarda pessoal de cinzentos o seguiu. Mas todos estacaram com um estremecimento. Buntaro tinha uma seta no arco e, embora a seta estivesse apontada para o chão, o arco já estava vergado ao máximo.

- Os cinzentos estão proibidos de atravessar este portão. Isso foi combinado pelo protocolo.

- Sou o governador do Castelo de Osaka e comandante da guarda do herdeiro! Tenho o direito de ir a qualquer lugar!

Mais uma vez Hiromatsu tomou o controle da situação.

- Realmente, o senhor é o comandante da guarda do herdeiro e tem o direito de ir a qualquer lugar. Mas apenas cinco homens podem acompanhá-lo através deste portão. Não foi isso o combinado entre o senhor e meu amo enquanto ele estiver aqui?

- Cinco ou cinqüenta, não faz diferença! Esse insulto é int...

- Insulto? Meu filho não teve a intenção de ofender. Está obedecendo a ordens combinadas pelo senhor e pelo suserano dele. Cinco homens. Cinco! - A palavra era uma ordem. Hiromatsu voltou as costas a Ishido e olhou para o filho. - O Senhor Ishido nos honra querendo prestar suas homenagens à Senhora Kiritsubo.

A espada do velho estava duas polegadas fora da bainha e ninguém tinha certeza se era para saltar sobre Ishido se a luta começasse ou decepar a cabeça do filho dele, se este apontasse a seta. Todos sabiam que não havia afeição entre pai e filho, apenas um respeito mútuo pela violência do outro.

- Bem, meu filho, o que diz ao comandante da guarda do herdeiro?

O suor escorria pelo rosto de Buntaro. Após um momento, afastou-se para o lado e diminuiu a tensão do arco. Mas conservou a seta assestada. Ishido vira muitas vezes Buntaro em listas de competição de tiro ao alvo a duzentos passos, seis setas disparadas antes que a primeira atingisse o alvo, todas igualmente precisas. Teria com toda a satisfação ordenado o ataque agora e esmagado aqueles dois, o pai e o filho, e todo o resto. Mas sabia que seria gesto de um tolo começar com eles e não com Toranaga, e, em todo caso, talvez quando começasse a verdadeira guerra, Hiromatsu se sentisse tentado a abandonar Toranaga e a lutar com ele. A Senhora Ochiba dissera que abordaria o velho Punho de Aço quando chegasse o momento. Ela jurara que ele nunca desertaria o herdeiro, que uniria Punho de Aço a ela, afastando-o de Toranaga, talvez até conseguindo que ele assassinasse o amo e assim evitasse qualquer conflito. Que poder, que segredo, que conhecimento tem ela sobre ele? perguntou-se Ishido mais uma vez.

Ele ordenara que a Senhora Ochiba, se possível, saísse em segredo de Yedo, antes da reunião dos regentes. A vida dela não valeria um grão de arroz após o impedimento de Toranaga - com que todos os outros regentes haviam concordado. Impedimento e seppuku imediato, forçado se necessário. Se ela escapar, ótimo. Se não escapar, pouco importa. O herdeiro reinará dentro de oito anos.

Atravessou o portão a passos largos, rumo ao jardim. Hiromatsu e Yabu acompanharam-no. Cinco guardas o seguiram. Curvou-se polidamente e desejou boa viagem a Kiritsubo. Depois, satisfeito por tudo estar como devia, voltou-se e partiu com todos os seus homens.

Hiromatsu respirou de alívio e coçou a barba.

- É melhor partir agora, Yabu-san. Aquele verme de arroz não lhe causará mais problemas.

- Sim. Imediatamente.

Kiri passou o lenço sobre o suor da testa.

- Ele é um maukami! Tenho medo pelo nosso amo. - As lágrimas começaram a fluir. - Não quero partir!

- Não se fará nenhum dano ao Senhor Toranaga, prometo-lhe, senhora - disse Hiromatsu. - A senhora deve partir, agora!

Kiri tentou sufocar os soluços e desatou o espesso véu que pendia da aba do seu vasto chapéu.

- Oh, Yabu-sama, o senhor escoltaria a Senhora Sazuko para dentro? Por favor?

- E claro.

A Senhora Sazuko curvou-se e saiu às carreiras, seguida de Yabu. A garota subiu correndo os degraus. Ao se aproximar do topo da escada, escorregou e caiu.

- O bebê! - guinchou Kiri. - Ela se machucou?

Todos os olhos faiscaram na direção da garota prostrada. Mariko correu até ela mas Yabu alcançou-a primeiro. Ergueu-a do chão. Sazuko estava mais assustada do que ferida.

- Estou bem - disse, um pouco ofegante. - Não se preocupem. Estou perfeitamente bem. Foi tolice minha.

Quando se certificou de que ela dizia a verdade, Yabu voltou ao adro, preparando a partida imediata.

Mariko retornou ao portão, enormemente aliviada. Blackthorne olhava boquiaberto para o jardim.

- O que é? - perguntou ela.

- Nada - disse ele após uma pausa. - O que foi que a Senhora Kiritsubo gritou?

- "O bebê! Ela se machucou?" A Senhora Sazuko está grávida explicou Mariko. - Ficamos todos com medo de que a queda pudesse tê-la ferido.

- Grávida de Toranaga-sama?

- Sim - disse Mariko, olhando para a liteira atrás.

Kiri estava por trás das cortinas opacas agora, o véu solto sobre o rosto. Pobre mulher, pensou Mariko, sabendo que ela estava apenas tentando esconder as lágrimas. Eu, se fosse ela, estaria igualmente aterrorizada por deixar o meu senhor.

Seus olhos dirigiram-se para Sazuko, que acenou mais uma vez do alto da escada, depois entrou. A porta de ferro fechou-se clangorosa atrás dela. Soou como um dobre de morte, pensou Mariko. Será que os veremos de novo algum dia?

- O que Ishido queria? - perguntou Blackthorne.

- Estava... não sei a palavra correta... estava investigando... fazendo uma ronda de inspeção sem prevenir.

- Por quê?

- Ele é o comandante do castelo - disse ela, não querendo dizer a verdadeira razão.

Yabu gritou algumas ordens à frente da coluna e se pôs em marcha. Mariko entrou na sua liteira deixando as cortinas parcialmente abertas. Buntaro fez sinal a Blackthorne que se movesse ao lado dela.

Ele obedeceu.

Esperaram que a liteira de Kiri passasse. Blackthorne olhou fixamente para a figura indistinta, toda velada, ouvindo soluços abafados. As duas atemorizadas criadas, Asa e Sono, caminhavam ao lado da liteira. Então ele olhou para trás uma última vez. Hiromatsu estava em pé junto da pequena cabana, sozinho, apoiado na espada. Logo em seguida o jardim sumiu da sua vista quando os samurais fecharam a imensa porta fortificada. A grande trave de madeira foi colocada no lugar. Não havia guardas no adro agora. Estavam todos nas ameias.

- O que está acontecendo? - perguntou Blackthorne.

- Por favor, Anjin-san?

- É como se eles estivessem sob cerco. Os marrons contra os cinzentos. Estão esperando problemas? Mais problemas?

- Oh, sinto muito. É normal fechar as portas à noite - disse Mariko.

Ele começou a caminhar ao lado dela quando a liteira se pôs em movimento, Buntaro e o remanescente da retaguarda tomando posição atrás dele. Blackthorne observava a liteira à frente, o passo oscilante dos carregadores e o vulto nebuloso por trás das cortinas. Estava muito inquieto embora tentasse ocultá-lo. Quando Kiritsubo de repente gritara, ele olhara para ela imediatamente. Todos os demais olharam para a garota caída na escada. O impulso dele foi olhar para lá igualmente, mas viu Kiritsubo de repente correr com surpreendente velocidade para dentro da pequena cabana. Por um instante pensou que seus olhos lhe estivessem pregando uma peça, porque na noite o manto e o quimono escuros dela, o chapéu escuro e o véu escuro tornavam-na quase invisível. Viu quando a figura desapareceu um momento, depois reapareceu, arremessou-se para dentro da liteira e cerrou as cortinas com um puxão. Por um instante os olhos dos dois se cruzaram. Era Toranaga.

 

O pequeno cortejo que rodeava as duas liteiras seguiu lenta mente através do labirinto do castelo e através dos sucessivos pontos de controle. De cada vez houve reverências formais, documentos foram meticulosamente examinados, um novo capitão e grupo de escolta cinzentos rendeu os que os acompanhavam, e eles foram liberados. A cada parada Blackthorne observava com apreensão sempre crescente o capitão da guarda se aproximar para inspecionar as cortinas cerradas da liteira de Kiritsubo. A cada vez o homem se curvava polidamente para a figura indistinta; ouvindo os soluços abafados, e acenava-lhes que prosseguissem.

Quem mais sabe? perguntava-se Blackthorne desesperadamente. As criadas devem saber - isso explicaria por que estão tão assustadas. Hiromatsu com certeza sabia, e evidentemente a Senhora Sazuko, do engodo. Mariko? Acho que não. Yabu? Toranaga confiaria nele? Esse maníaco sem pescoço do Buntaro? Provavelmente não.

Obviamente isto é uma tentativa de fuga altamente secreta.

Mas por que Toranaga arriscaria a vida fora do castelo? Lá dentro não estava mais seguro? Por que o sigilo? De quem está fugindo? De Ishido? Dos assassinos? Ou de alguma outra pessoa no castelo? Provavelmente de todos eles, pensou Blackthorne, desejando que estivessem a salvo na galera e ao mar. Se Toranaga for descoberto, vai chover bosta. A luta vai ser de morte. Estou desarmado e mesmo que tivesse um par de pistolas ou um morteiro de vinte polegadas e cem rapazes bons de briga, os cinzentos nos arrasariam. Não tenho para onde fugir nem onde me esconder.

- Está se cansando, Anjin-san? - perguntou Mariko delicadamente. - Se quiser, eu caminho e o senhor sobe na liteira.

- Obrigado - replicou ele acidamente, sentindo falta das botas, ainda desajeitado com as sandálias de correias. - Minhas pernas estão excelentes. Só queria que estivéssemos a salvo no mar.

- O mar é sempre seguro?

- As vezes, senhora. Nem sempre. - Blackthorne mal a ouvia. Estava pensando. Por Jesus, espero não entregar Toranaga. Isso seria terrível! Seria tão mais simples se eu não o tivesse visto. Foi apenas má sorte, um daqueles acidentes que podem pôr a perder um esquema perfeitamente planejado e executado. A velha, Kiritsubo, é uma excelente atriz, e a jovem também. Foi só porque não compreendi o que ela gritou que não caí no logro. Puro azar eu ter visto Toranaga claramente - de peruca, quimono, manto, maquiado, exatamente como Kiritsubo, mas sempre Toranaga.

Na parada seguinte, o novo capitão de cinzentos aproximou-se da liteira mais do que todos antes, as criadas em pranto curvando-se e erguendo-se no caminho, querendo não dar a impressão de estarem erguendo-se no caminho. O capitão olhou para Blackthorne e se aproximou. Após um exame incrédulo, falou com Mariko, que meneou a cabeça e respondeu-lhe. O homem grunhiu e dirigiu-se de volta a Yabu; devolveu os documentos e acenou ao cortejo que fosse em frente.

- Que foi que ele disse? - perguntou Blackthorne.

- Quis saber de onde o senhor era... onde era a sua casa.

- Mas a senhora balançou a cabeça. Como é que isso serviu de resposta?

- Oh, desculpe, ele disse. .. ele perguntou se os ancestrais remotos do seu povo tinham relação com o kami, o espírito, que vive ao norte, nos confins da China. Até bem pouco tempo atrás, pensávamos que a China fosse o único outro lugar civilizado na Terra. Além do Japão, neh? A China é tão vasta que é como o, próprio mundo - disse ela, e encerrou o assunto. O capitão na realidade perguntara se ela pensava que aquele bárbaro descendia de Harimwakairi, o kami que velava pelos gatos, acrescentando que aquele certamente fedia como um tourão no cio, conforme se supunha que o kami cheirasse.

Ela retrucara que não pensava assim, intimamente envergonhada pela rudeza do capitão, pois o Anjin-san não cheirava mal como o Tsukku-san ou o padre-lnspetor, ou os bárbaros habituais.

Seu aroma era quase imperceptível agora.

Blackthorne sabia que ela não estava dizendo a verdade. Como gostaria de saber falar a algaravia deles, pensou. E gostaria ainda mais de poder sumir desta ilha maldita, estar de volta a bordo do Erasmus, com a tripulação em ordem, muita comida, grogue, pólvora e munição, nossas mercadorias comerciadas e nós todos a caminho de casa. Quando será isso? Toranaga disse que seria logo. Será que se pode confiar nele? Como terá levado o navio a Yedo? Rebocado? Os portugueses o pilotaram? Gostaria de saber como está Rodrigues. Será que sua perna apodreceu? Nesta altura ele já deve saber se vai viver com as duas pernas ou só com uma - se a amputação não o matar -, ou se vai morrer. Jesus Deus do paraíso, proteja-me dos ferimentos e de todos os médicos. E dos padres.

Outro posto de controle. Blackthorne não conseguia entender como é que todos permaneciam tão polidos e pacientes, sempre se curvando, entregando os documentos e recebendo-os de volta, sempre sorrindo, sem nenhum sinal de irritação em ambas as partes. São tão diferentes de nós.

Olhou para o rosto de Mariko, parcialmente obscurecido pelo véu e o largo chapéu. Achou-a muito bonita e ficou contente por ter esclarecido o engano dela. Pelo menos não terei que agüentar mais aquele absurdo, disse a si mesmo. Bastardos esquisitos, são todos bastardos. Nojentos!

Depois que lhe aceitara o pedido de desculpas naquela manhã, ele começara a .perguntar sobre Yedo, sobre costumes japoneses, sobre Ishido e sobre o castelo. Evitara o tópico "sexo". Ela respondera pormenorizadamente, mas evitara quaisquer explicações políticas, e suas réplicas foram informativas mas inócuas. Em seguida ela e as criadas deixaram a sala para se prepararem para a partida e ele ficara sozinho com os guardas samurais.

Viver rodeado de gente o tempo todo estava deixando-o irritado. Há sempre alguém por perto, pensou ele. Há gente demais. São como formigas. Gostaria da tranqüilidade de uma porta de carvalho trancada para variar, com o ferrolho do meu lado, não do deles. Mal posso esperar para me ver a bordo de novo, ao ar livre, ao mar. Nem que seja naquela gorda galera sacolejante.

Agora, enquanto atravessava o Castela de Osaka, percebia que teria Toranaga dentro do seu próprio elemento, no mar, onde ele era rei.

Teremos bastante tempo para conversar. Mariko traduzirá e eu arranjarei tudo. Acordos de comércio, o navio, a devolução da nossa prata, e pagamento se ele quiser fazer negócio com os mosquetes e a pólvora. Combinarei para voltar no próximo ano com uma carga completa de seda. Terrível o que aconteceu com Frei Domingo, mas farei bom uso das informações dele. Vou pegar o Erasmus, navegar rio Pérola acima até Cantão, e romperei o bloqueio dos portugueses e dos chineses. Devolvam-me o meu navio e estou rico. Mais rico do que Drake! Quando chegar em casa, convoco todos os marujos de Plymouth ao Zuider Zee e controlaremos o comércio da Ásia toda. Onde Drake chamuscou a barba de Filipe eu vou lhe arrancar os testículos. Sem seda, Macau morre, sem Macau, Malaca morre, depois Goa! Podemos enrolar o império português como a um tapete. "Deseja o comércio com a Índia, Majestade? África? Ásia? Japão? Eis como consegui-lo dentro de cinco anos!"

"Levante-se, Sir John!"

Sim, estava ao seu alcance tornar-se cavaleiro, e facilmente afinal. E talvez mais. Capitães e navegadores tornam-se almirantes, cavaleiros, lordes, até condes. O único caminho de um inglês plebeu para a segurança, a verdadeira segurança de posição dentro do reino, era através do favor da rainha. E o caminho para o seu favor era levar-lhe riqueza, ajudá-la a pagar a guerra contra a Espanha fedorenta, e contra aquele papa bastardo.

Três anos me darão três viagens, regozijava-se. Oh, sei dos ventos, monções e das grandes tempestades, mas o Erasmus estará cochado e transportaremos cargas menores. Espere um minuto! Por que não fazer o serviço adequadamente e esquecer as pequenas cargas? Por que não capturar o Navio Negro deste ano? Depois você terá tudo!

Como?

Facilmente: se ele não tiver escolta e nós o apanharmos desprevenido. Mas não tenho homens suficientes. Espere, há homens em Nagasaki! Não é lá que estão todos os portugueses? Domingo não disse que é quase como um porto português? Rodrigues disse o mesmo! Nos navios não há marujos que foram levados à força para bordo, não há sempre alguns que estarão prontos a escapar para conseguir lucro rápido, seja quem for o capitão e qual for a bandeira? Com o Erasmus e a nossa prata eu poderia contratar uma tripulação. Sei que poderia. Não preciso de três anos. Dois serão suficientes. Dois anos com o meu navio e uma tripulação, depois para casa. Serei rico e famoso. E finalmente nos separaremos, o mar e eu. Para sempre.

Toranaga é a chave. Como é que você vai lidar com ele?

Passaram por outro posto de controle e dobraram uma esquina. À frente estava o último rastrilho e o último portão do castelo; além dele, a última ponte levadiça e o último fosso. Uma infinidade de archotes transformava a noite em dia carmesim.

Foi quando Ishido avançou das sombras.

Os marrons o viram quase simultaneamente. A hostilidade os invadiu a todos. Buntaro quase saltou por cima de Blackthorne para chegar mais perto da vanguarda da coluna.

- Esse bastardo está louco por uma luta - disse Blackthorne.

- Senhor? Desculpe, senhor, mas o que disse?

- Apenas... disse que seu marido parece... Ishido parece deixar seu marido muito enfurecido, e muito rapidamente.

Ela não respondeu.

Yabu deteve a coluna. Despreocupado ele estendeu o salvo-conduto ao capitão do portão e dirigiu-se a Ishido.

- Não esperava vê-lo de novo. Seus guardas são muito eficientes.

- Obrigado. - Ishido observava Buntaro e a liteira fechada atrás dele.

- Uma vez seria suficiente para examinar nosso passe - disse Buntaro, as armas chocalhando agourentamente. - Duas vezes, no máximo. O que somos nós? Uma expedição de guerra? É insultante!

- Não há intenção de insulto, Buntaro-san. Por causa do assassino, ordenei que se reforçasse a segurança. - Ishido olhou Blackthorne rapidamente e se perguntou de novo se devia deixá-lo partir ou detê-lo, como queriam Onoshi e Kiyama. Depois olhou novamente para Buntaro. Lixo, pensou. Logo a sua cabeça estará na ponta de um chuço. Como é que um primor como Mariko pôde permanecer casada com um gorila como você?

O novo capitão verificou meticulosamente um por um, certificando-se de que batiam com a lista.

- Está tudo em ordem, Yabu-sama - disse ele ao voltar à vanguarda da coluna. - Não precisam mais do passe. Conservamo-lo aqui.

- Ótimo. - Yabu voltou-se para Ishido. - Logo nos encontraremos.

Ishido tirou um rolo de pergaminho da manga.

- Gostaria de perguntar à Senhora Kiritsubo se ela levaria isto para Yedo. Para a minha sobrinha. É pouco provável que eu vá a Yedo por algum tempo.

- Certamente. - Yabu estendeu a mão.

- Não se incomode, Yabu-san. Eu mesmo perguntarei. - Ishido dirigiu-se para a liteira. As criadas obsequiosamente interceptaram-no. Asa estendeu a mão. - Posso pegar a mensagem, senhor? Minha am...

- Não.

Para surpresa de Ishido e de todos os que estavam perto, as criadas não lhe saíram do caminho.

- Mas minha am...

- Afastem-se! - rosnou Buntaro.

As duas recuaram com humildade, assustadas agora.Ishido curvou-se para a cortina.

- Kiritsubo-san, gostaria de saber se a senhora teria a gentileza de levar esta mensagem minha para Yedo. Para minha sobrinha.

Houve uma ligeira hesitação em meio aos soluços e a figura curvou-se em assentimento.

- Obrigado. - Ishido estendeu o delgado rolo de pergaminho a uma polegada da cortina.

Os soluços pararam. Blackthorne percebeu que Toranaga estava encurralado. A polidez exigia que pegasse o rolo e sua mão o trairia.

Todos esperavam que a mão aparecesse.

- Kiritsubo-san?

Ainda nenhum movimento. Então Ishido rapidamente deu uma passo à frente, abriu as cortinas com um puxão e no mesmo instante Blackthorne soltou um berro e começou a dançar, pulando como um louco. Ishido e os outros volveram-se rapidamente para ele, aturdidos.

Por um instante Toranaga ficou totalmente à vista atrás de Ishido.

Blackthorne pensou que Toranaga talvez pudesse passar por Kiritsubo a vinte passos, mas aqui, a cinco, era impossível, apesar do véu que lhe cobria o rosto. E no interminável segundo que antecedeu o gesto de Toranaga cerrando as cortinas com força, Blackthorne percebeu que Yabu o reconhecera, Mariko com certeza, Buntaro provavelmente, e alguns samurais também provavelmente. Ele deu um bote e agarrou o rolo de pergaminho, atirou-o por uma fenda nas cortinas e voltou-se, falando de modo ininteligível:

- É má sorte, no meu país, um príncipe entregar uma mensagem pessoalmente, como um bastardo comum... má sorte...

Tudo acontecera tão inesperadamente e tão depressa, que a espada de Ishido não deixou a bainha até Blackthorne estar ajoelhado e delirando diante dele como um insano boneco de mola, quando os reflexos do regente agiram e arremessaram a espada com ímpeto contra a garganta do inglês.

Os olhos desesperados de Blackthorne encontraram Mariko.

- Pelo amor de Cristo, ajude... má sorte... má sorte!

Ela gritou. A lâmina parou a um fio de cabelo do pescoço dele. Mariko, aflita, deu uma explicação do que Blackthorne dissera. Ishido baixou a espada, ouviu um instante, arrasou-a com um palavrório furioso, depois gritou com veemência crescente e esbofeteou Blackthorne com as costas da mão.

Blackthorne ficou fora dê si. Cerrou as manoplas e se atirou contra Ishido.

Se Yabu não tivesse sido rápido o bastante para agarrar o braço de Ishido que levantava a espada, a cabeça de Blackthorne teria rolado sobre o pó. Buntaro, uma fração de segundo depois, agarrou Blackthorne, que já estava com as mãos em torno do pescoço de Ishido. Foram necessários quatro marrons para arrancá-lo de cima de Ishido, depois Buntaro atingiu-o na nuca, deixando-o atordoado. Alguns cinzentos acorreram em defesa do amo, mas os marrons rodearam Blackthorne e a liteiras e por um momento a situação se equilibrou, com Mariko e as criadas deliberadamente gemendo e gritando, ajudando a criar mais caos e a desviar as atenções.

Yabu começou a aplacar a fúria de Ishido, Mariko, em lágrimas, repetia interminavelmente numa forçada semi-histeria que o bárbaro enlouquecido acreditava estar apenas salvando Ishido, o grande comandante - que ele pensou que fosse um príncipe - de um mau kami. - E tocar-lhes o rosto é o pior dos insultos, exatamente como conosco, foi isso o que o deixou momentaneamente louco. Ele é um bárbaro insensato, mas é um daimio em sua terra, e só estava tentando ajudá-lo, senhor!

Ishido cobriu Blackthorne de imprecações e deu-lhe um pontapé. Blackthorne estava voltando a si e ouvia o tumulto com grande tranqüilidade. Aos poucos seus olhos se desanuviaram. Havia cinzentos à sua volta, vinte para um, espadas desembainhadas, mas por enquanto ninguém estava morto e todos esperavam disciplinadamente.

Blackthorne viu que todas as atenções se concentravam nele. Mas agora sabia que tinha aliados.

Ishido virou-se para ele de novo e chegou mais perto, gritando. Ele sentiu o aperto dos marrons se intensificar e soube que o golpe estava vindo, mas desta vez, ao invés de tentar se libertar, coisa que os samurais estavam esperando, começou a se deixar cair, depois imediatamente a se endireitar e tombar outra vez, rindo insanamente, para em seguida se pôr a dançar uma hornpipe corcoveante. Frei Domingo lhe dissera que todo mundo no Japão acreditava que a única causa da loucura era um kami, por isso os loucos, assim como todas as crianças bem novas e os homens muito velhos, não eram responsáveis e tinham privilégios especiais, às vezes. Então saltava em delírio, cantando no ritmo para Mariko:

- Ajude... preciso de ajuda, pelo amor de Deus... não vou agüentar isto muito tempo mais... ajude... - desesperadamente se comportando como um lunático, sabendo que era a única coisa que poderia salvá-los.

- Ele está louco... está possesso - gritou Mariko, imediatamente entendendo o ardil de Blackthorne.

- Sim - disse Yabu, ainda tentando se recuperar do choque de ter visto Toranaga, sem saber ainda se o Anjin-san estava fingindo ou se realmente enlouquecera.

Mariko estava fora de si. Não sabia o que fazer. O Anjin-san salvou a vida do Senhor Toranaga, mas como é que sabia? - não parava de repetir para si mesma, irracionalmente.

O rosto de Blackthorne estava exangue exceto no vergão escarlate deixado pela bofetada. Não parava de dançar, esperando freneticamente a ajuda que não vinha. Então silenciosamente amaldiçoou Yabu e Buntaro como covardes sem mãe, e Mariko, pela cadela estúpida que era. Parou repentinamente de dançar, curvou-se para Ishido como um fantoche convulsivo e, meio caminhando, meio bailando, dirigiu-se para o portão.

- Sigam-me, sigam-me! - gritou, a voz quase estrangulada, tentando indicar o caminho como um Pied Pipe[2]'.

Os cinzentos barraram-lhe o caminho. Ele berrou com raiva fingida e imperiosamente ordenou-lhes que saíssem da frente, para logo em seguida cair numa gargalhada histérica.

Ishido agarrou um arco e uma flecha. Os cinzentos se afastaram. Blackthorne estava quase atravessando o portão. Voltou-se sabendo que não adiantava nada correr, que estava encurralado. Desamparado, recomeçou a dança furiosa.

- Ele é louco, um cachorro louco! Cachorros loucos têm que ser controlados! - A voz de Ishido soou áspera. Armou o arco e fez pontaria.

Imediatamente Mariko deu um pulo da sua posição protetora perto da liteira de Toranaga e começou a caminhar na direção de Blackthorne.

- Não se preocupe, Senhor Ishido - gritou.

- Não há por que se preocupar... é uma loucura momentãnea... peço permissão... - Aproximando-se ela pôde ver a exaustão de Blackthorne, o sorriso rígido de louco, e teve medo, malgrado seu. - Posso ajudar agora, Anjin-san - disse precipitadamente. - Temos que tentar s... sair daqui. Eu o seguirei. Não se preocupe, ele não vai atirar. Por favor, pare de dançar agora.

Blackthorne parou imediatamente, voltou-se e caminhou tranqüilamente para a ponte. Ela o seguiu, um passo atrás conforme o costume, esperando as setas, de ouvidos atentos.

Mil olhos observavam o gigante enlouquecido e a minúscula mulher sobre a ponte, que se afastavam.

Yabu recobrou-se.

- Se o quer morto, deixe-me fazê-lo, Ishido-sama. É inconveniente para o senhor tomar-lhe a vida. Um general não mata com as próprias mãos. Os outros devem fazer isso por ele. - Chegou bem perto e baixou a voz. - Deixe-o viver. A loucura foi conseqüência do seu tapa. Ele é um daimio em sua terra e o tapa... foi como Mariko-san disse, neh? Confie em mim, ele é valioso para nós vivo.

- O quê?

- Ele é mais valioso vivo. Confie em mim. O senhor pode matá-lo a qualquer momento. Precisamos dele vivo. Ishido leu desespero no rosto de Yabu, e verdade. Baixou o arco.

- Muito bem. Mas um dia eu vou querê-lo vivo. Vou pendurá-lo pelos calcanhares sobre o abismo.

Yabu engoliu em seco e fez meia mesura. Nervosamente fez um gesto para que o cortejo prosseguisse, receoso de que Ishido se lembrasse da liteira e de "Kiritsubo".

Buntaro, fingindo deferência, tomou a iniciativa e pos os marrons em marcha. Não questionou o fato de Toranaga ter magicamente aparecido como um kami no meio deles, apenas que o amo estava em perigo e quase indefeso. Viu que Ishido não tirava os olhos de Mariko e do Anjin-san, mas ainda assim se curvou polidamente para ele e se postou atrás da liteira de Toranaga para proteger o amo das flechas, caso a luta começasse ali.

A coluna aproximava-se do portão agora. Yabu tomou posição como solitária defesa de retaguarda. Esperava que o cortejo fosse detido a qualquer momento. Com certeza alguns cinzentos deviam ter visto Toranaga, pensou ele. Quanto tempo vai levar até que contem a Ishido?

Ele não vai pensar que eu fazia parte da tentativa de fuga? E isso não vai me arruinar para sempre?

A meio caminho sobre a ponte, Mariko olhou para trás um instante. - Eles vêm vindo, Anjin-san, as duas liteiras estão atravessando o portão, estão na ponte agora!

Blackthorne não respondeu nem se voltou. Permanecer ereto exigia-lhe toda a força de vontade remanescente. Perdera as sandálias, o rosto queimava do tapa, e a cabeça martelava de dor. Os últimos guardas deixaram-no atravessar o rastrilho. Também deixaram Mariko passar sem detê-la. E depois as liteiras.

Blackthorne liderou a marcha descendo a suave colina, passando pelo pátio aberto, cruzando a última ponte. Foi só quando se viu na área coberta de mato, totalmente fora da vista do castelo, que desfaleceu.

 

- Anjin-san... Anjin-san!

Semiconsciente, ele deixou que Mariko o ajudasse a tomar um pouco de saquê. A coluna parara, os marrons cerradamente dispostos em torno da liteira com cortinas, os cinzentos da escolta à frente e atrás. Buntaro gritara para uma das criadas, que imediatamente providenciara o frasco numa das kagas de bagagem, dissera aos seus guardas pessoais que mantivessem todos longe da liteira de "Kiritsubo-san", depois correra para Mariko.

- O Anjin-san está bem?

- Sim. Sim, acho que sim - respondeu Mariko. Yabu

juntou-se a eles. Tentando desviar a atenção do capitão dos cinzentos, Yabu disse com negligência: - Podemos prosseguir, capitão. Deixaremos alguns homens e Mariko-san. Quando o bárbaro

se recuperar, ela e os homens seguirão.

- Com todo o respeito, Yabu-san, esperaremos. Estou encarregado de entregá-los todos a salvo na galera. Como um grupo

- disse o capitão.

Todos olharam quando Blackthorne engasgou ligeiramente

com o vinho.

- Obrigado - murmurou ele. - Estamos seguros agora?

Quem mais sabe que...

- O senhor está seguro agora! - interrompeu-o ela deliberadamente.

Estava de costas para o capitão e recomendou-lhe cautela

com os olhos. - Anjin-san, o senhor está seguro e não há motivo

de preocupação. Compreende? O senhor teve algum tipo de ataque. Olhe ao seu redor - está em segurança agora!

Blackthorne fez conforme ela lhe ordenou. Viu o capitão e os

cinzentos, e compreendeu. Suas forças estavam voltando rapidamente agora, ajudadas pelo vinho. - Desculpe, senhora. Foi

apenas pânico, acho. Devo estar ficando velho. Fico fora de mim

com freqüência e depois nunca consigo me lembrar do que aconteceu. Falar português é exaustivo, não? — Passou para o latim.

- A senhora compreende?

- Certamente.

- Esta língua é "mais fácil"?

- Talvez - disse ela, aliviada por ele ter compreendido a necessidade de cautela, mesmo usando o latim, que para os japoneses era uma língua quase incompreensível e impossível de ser aprendida, exceto para um punhado de homens do império, todos treinados pelos jesuítas e na maioria comprometidos com o sacerdócio. Ela era a única mulher em todo o seu mundo que sabia falar, ler e escrever latim e português. - Ambas as línguas são difíceis, cada uma tem perigos.

- Quem mais conhece os "perigos"?

- Meu marido e aquele que nos comanda.

- Tem certeza?

- Foi o que ambos deram a entender.

O capitão dos cinzentos agitou-se, impaciente, e disse alguma coisa a Mariko.

- Ele perguntou se o senhor ainda está perigoso, se suas mãos e pés devem ser amarrados. Respondi que não. O senhor está curado do seu acesso agora.

- Sim - disse ele, passando de novo para o português.

- Tenho ataques com freqüência. Se alguém me bate no rosto, fico louco. Sinto muito. Nunca consigo me lembrar do que acontece nessas ocasiões. E o dedo de Deus. - Viu que o capitão se concentrava nos seus lábios e pensou: apanhei-o, seu bastardo, aposto como você compreende português.Sono, a criada, estava com a cabeça curvada ao lado das cortinas da liteira. Ouviu e voltou até Mariko.

- Desculpe, Mariko-sama, mas minha ama pergunta se o louco já está bem para continuarmos. Ela pergunta se a senhora lhe cederia sua liteira, porque minha ama acha que devemos nos apressar por causa da maré. Todo o transtorno que o louco causou deixou-a ainda mais perturbada. Mas, sabendo que o louco é apenas afligido pelos deuses, ela fará preces para que ele recobre a saúde, e lhe dará pessoalmente alguns remédios assim que estivermos a bordo.

Mariko traduziu.

- Sim. Estou bem agora. - Blackthorne levantou-se mas oscilou sobre os pés.

Yabu vociferou uma ordem.

- Yabu-san diz que o senhor viaja na liteira, Anjin-san. - Mariko sorriu quando ele começou a protestar. - Sou realmente muito forte e o senhor não precisa se preocupar. Caminharei ao seu lado e o senhor poderá conversar, se quiser.

Ele se permitiu ser ajudado até a liteira. Imediatamente se puseram em movimento de novo. O passo bamboleante era calmante e ele se reclinou, exaurido. Esperou até que o capitão dos cinzentos se afastasse em direção à vanguarda da coluna, e sussurrou em latim, prevenindo Mariko:

- Aquele centurião compreende a outra língua.

- Sim. E acho que compreende um pouco de latim também. - Respondeu-lhe ela, igualmente num sussurro quase inaudível. Caminhou um momento. - Sinceramente o senhor é um homem corajoso. Agradeço-lhe por tê-lo salvado.

- A senhora tem mais coragem do que eu.

- Não, o Senhor Deus colocou meus pés no caminho e tornou-me um pouco útil. Agradeço-lhe novamente.

A cidade à noite era um reino encantado. As casas ricas tinham muitas lanternas coloridas, a óleo e a vela, pendendo dos portões e nos jardins, as telas shoji difundindo uma deliciosa transparência. Até as casas pobres eram alegradas pelas shojis. Havia lanternas iluminando o caminho de pedestres e kagas, e dos samurais, que andavam a cavalo.

- A iluminação das casas são lâmpadas de óleo, e também usamos velas, mas com a chegada da noite muita gente vai para a cama - explicou Mariko enquanto continuavam pelas ruas da cidade, dando voltas e mais voltas, os pedestres curvando-se e os muito pobres permanecendo de joelhos até que eles passassem. O mar cintilava ao luar.

- Conosco acontece o mesmo. Como vocês cozinham? Num fogão de madeira? - As forças de Blackthorne voltaram rapidamente e suas pernas já não pareciam de gelatina. Ela recusara a liteira de volta, de modo que ele continuava sentado apreciando o ar e a conversa.

- Usamos um braseiro de carvão. Não comemos alimentos como os seus, de modo que nossa cozinha é mais simples. Só arroz e um pouco de peixe, cru na maior parte, ou cozido sobre brasas com um molho picante e vegetais em conserva. Um pouco de sopa talvez. Nada de carne... nunca comemos carne. Somos um povo frugal, temos que ser, já que apenas parte da nossa terra, talvez um quinto do solo, pode ser cultivado... e somos muitos. Entre nós é uma virtude ser frugal, mesmo considerando a quantidade de comida que comemos.

- A senhora é corajosa. Agradeço-lhe. As flechas não foram disparadas por causa do escudo das suas costas - disse ele em latim.

- Não, capitão dos navios. Foi pela vontade de Deus.

- A senhora é corajosa e é linda.

Ela caminhou em silêncio por um instante. Ninguém me havia chamado de linda antes... ninguém, pensou ela.

- Nãosou corajosa e não sou linda. As espadas são lindas. A hora é linda.

- A coragem é linda e a senhora a tem em abundância.

Mariko não respondeu. Estava se lembrando daquela manhã, de todas as más palavras e maus pensamentos. Como pode um homem ser tão corajoso e tão estúpido, tão gentil e tão cruel, tão caloroso e tão detestável - tudo ao mesmo tempo? O Anjin-san foi de uma coragem sem limites ao desviar a atenção de Ishido da liteira, e totalmente esperto ao fingir loucura e assim tirar Toranaga da armadilha. Como Toranaga foi sábio escapando desse modo! Mas seja prudente, Mariko. Pense em Toranaga e não nesse estrangeiro. Lembre-se do mal que ele representa e pare de sentir essa tepidez úmida nos quadris, que você nunca teve antes, a tepidez de que as cortesãs falam e os livros de histórias de "travesseiro" descrevem.

- Sim - disse ela. - A coragem é linda e o senhor a tem em abundância. - Depois voltou ao português. - Latim é uma língua tão fatigante!

- A senhora aprendeu na escola?

- Não, Anjin-san, foi mais tarde. Depois de me casar, vivi no extremo-norte por muito, muito tempo. Estava sozinha, com exceção de criados e aldeãs, e os únicos livros que tinha eram em português e latim - algumas gramáticas, livros religiosos e uma Bíblia. Aprender as línguas ajudou muitíssimo a passar o tempo e ocupou-me a mente. Tive muita sorte.

- Onde estava seu marido?

- Na guerra.

- Quanto tempo a senhora esteve sozinha?

- Temos um ditado que diz que o tempo não tem uma medida única, que o tempo pode ser como a geada, a luz, uma lágrima, ou cerco, tempestade, crepúsculo, ou até como uma rocha.

- É um ditado sábio - disse Blackthorne. E acrescentou: - O seu português é muito bom, senhora. E o latim. Melhor do que o meu.

- O senhor tem mel na língua, Anjin-san!

- É honto!

- "Honto" é uma boa palavra. A honro é que um dia um padre cristão chegou à aldeia. Éramos como duas almas perdidas. Ficou quatro anos e ajudou-me imensamente. Fico contente por saber falar bem - disse ela, sem vaidade. - Meu pai queria que eu aprendesse línguas.

- Por quê?

- Achava que devemos conhcer o demônio com que temos que lidar.

- Era um homem sábio.

- Por quê?

- Um dia lhe contarei a história, é muita tristeza.

- Por que a senhora ficou sozinha por uma rocha de tempo?

- Por que não descansa? Ainda temos um longo caminho pela frente?

- A senhora quer sentar? – Novamente ele começou a se levantar mas ela balanou a cabela.

- Não, obrigada. Por favor, fique onde está. Gosto de caminhar.

- Muito bem. Mas a senhora não quer mais conversar?

- Se lhe agrada, podemos conversar. O que quer saber?

- Por que ficou sozinha uma rocha de tempo?

- Meu marido me mandou embora. Minha presença o ofendera. Foi perfeitamente correto ao fazer isso. Honrou-me não se divorciando de mim. Depois honrou-me ainda mais aceitando-me, e ao nosso filho, de volta. - Mariko olhou para ele. - Meu filho tem quinze anos agora. Na realidade sou uma velha senhora.

- Não acredito, senhora.

- É honto.

- Que idade tinha quando se casou?

- Muita, Anjin-san. Muita idade.

- Temos um ditado. A idade é como geada ou cerco ou crepúsculo, e às vezes até como uma rocha. - Ela riu. Tudo nela é tão gracioso, pensou ele, hipnotizado. - Na senhora, venerável dama, a idade assenta lindamente.

- Para uma mulher, Anjin-san, a idade nunca é linda.

- A senhora é sábia e linda - disse ele em latim, que veio facilmente e, embora soasse mais formal e imponente, era mais íntimo. Vigie-se, pensou ele.

Ninguém nunca me chamou de linda antes, repetiu ela para si mesma. Gostaria que fosse verdade.

- Aqui não é prudente notar a mulher de outro homem - disse em voz alta. - Nossos costumes são muito severos. Por exemplo, se uma mulher casada é encontrada sozinha com um homem numa sala com a porta fechada, simplesmente sozinhos e conversando em particular, por lei o marido dela, ou o irmão, ou o pai, tem o direito de matá-la instantaneamente. Se a garota não for casada, o pai pode, naturalmente, sempre fazer com ela o que lhe aprouver.

- Isso não é justo nem civilizado. - Ele lamentou o deslize imediatamente.

- Consideramo-nos muito civilizados, Anjin-san. - Mariko ficou contente por ser insultada de novo, pois isso quebrou o encanto e afastou a tepidez que estava sentindo. - Nossas leis são muito sábias. Há mulheres demais, livres e sem compromissos, para que um homem tome uma que já pertence a outro. Na verdade é uma proteção para as mulheres. O dever de uma esposa é unicamente para com o marido. Seja paciente. Verá como somos civilizados, como somos avançados. As mulheres têm um lugar, os homens têm outro. Um homem pode ter apenas uma esposa oficial de cada vez - mas, naturalmente, muitas consortes -, mas as mulheres aqui têm muito mais liberdade do que as senhoras espanholas e portuguesas, pelo que me disseram. Podemos ir livremente aonde quisermos, quando quisermos. Podemos abandonar nossos maridos, se desejarmos, divorciarmo-nos deles. Podemos nos recusar a casar, se quisermos. Somos donas de nossa própria fortuna e propriedade, do nosso corpo e espírito. Temos poderes tremendos, se desejarmos. Quem cuida de todos os seus bens, do seu dinheiro, da sua casa?

- Eu, naturalmente.

- Aqui a esposa cuida de tudo. O dinheiro não é nada para um samurai. Está abaixo da crítica para um homem autêntico. Cuido de todos os negócios de meu marido. Ele toma todas as decisões. Eu executo seus desejos e pago as contas. Isso o deixa totalmente livre para cumprir seu dever para com seu senhor, o qual é seu único dever. Oh, sim, Anjin-san, deve ser paciente antes de criticar.

- Não havia a intenção de crítica, senhora. Simplesmente nós acreditamos na santidade da vida, ninguém pode levianamente ser condenado a morte a menos que um tribunal legal, um tribunal legal da rainha, concorde.

Ela se recusou a ser abrandada.

- O senhor diz muitas coisas que eu não compreendo, Anjin-san. Mas não disse "não justo e não civilizado"?

- Sim.

- Isso, então, é uma crítica, neh? O Senhor Toranaga pediu-me que lhe assinalasse que é inconveniente criticar sem conhecer. Deve lembrar-se de que a nossa civilização, a nossa cultura, tem milhares de anos de idade. Três mil estão documentados. Oh, sim, somos um povo antigo. Tão antigo quanto os chineses. A quantos anos remonta a sua cultura?

- Não muitos, senhora.

- Nosso imperador, Go-Nijo, é o centésimo sétimo de uma linhagem intacta, que remonta a Jimmu-tenno, o primeiro elo terrestre, que descendia de cinco gerações de espíritos terrestres e, antes deles, de sete gerações de espíritos celestiais que vieram de Kuni-toko-tachi-noh-Mikoto, o primeiro espírito, que apareceu quando a terra se separou dos céus. Nem a China pode alardear uma história assim. Há quantas gerações os seus reis governam o seu país?

- Nossa rainha é a terceira da dinastia Tudor, senhora. Mas está velha e não tem filhos, portanto será a última.

- Cento e sete gerações, Anjin-san, até a divindade - repetiu ela, orgulhosa.

- Se acredita nisso, senhora, como pode dizer também que é católica?

Ele a viu se empertigar, depois encolheu os ombros.

- Sou cristã há apenas dez anos, portanto uma noviça, e embora acredite no Deus cristão, em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, com todo o coração, nosso imperador descende diretamente dos deuses ou de Deus. Ele é divino. Há muitas coisas que não consigo explicar nem compreender. Mas a divindade do meu imperador está fora de questão. Sim, sou cristã, mas primeiro sou japonesa.

Será que é essa a chave de todos vocês? Serem primeiro japoneses? perguntou Blackthorne a si mesmo. Ele a observava, atônito com o que ela dizia. Os costumes deles são malucos! O dinheiro não significa nada para um verdadeiro homem? Isso explica por que Toranaga foi tão desdenhoso quando mencionei dinheiro no primeiro encontro. Cento e sete gerações? Impossível! Morte instantânea só por estar inocentemente numa sala fechada com uma mulher? Isso é barbarismo - um convite aberto ao crime. Eles defendem e admiram o assassinato! Não foi o que disse Rodrigues? Não foi o que fez Omi? Simplesmente não assassinou aquele camponês? Pelo sangue de Cristo, eu não pensava em Omi há dias. Ou na aldeia. Ou no buraco ou em mim de joelhos diante dele. Esqueça-o, ouça a ela, seja paciente, conforme ela diz, faça-lhe perguntas porque ela fornecerá os meios de dobrar Toranaga ao seu plano. Agora Toranaga está em dívida com você. Você o salvou. Ele sabe disso, todo mundo sabe. Ela não lhe agradeceu, não por salvá-la mas por ter salvado a ele?

A coluna movia-se através da cidade rumando para o mar. Ele viu Yabu mantendo o passo e por um momento os berros de Pieterzoon lhe soaram com força aos ouvidos. - Uma coisa de cada vez - murmurou, quase que com seus botões.

- Sim - estava dizendo Mariko. - Deve ser muito difícil para o senhor. Nosso mundo é tão diferente do seu. Muito diferente mas muito sábio. - Ela podia ver o vulto indistinto de Toranaga dentro da liteira à frente, e mais uma vez agradeceu a Deus pela sua fuga. Como explicar ao bárbaro a nosso respeito, cumprimentá-lo pela sua coragem? Toranaga lhe ordenara que explicasse, mas como? - Deixe-me contar-lhe uma história, Anjin-san. Quando eu era jovem, meu pai era um general a serviço de um daimio chamado Goroda. Naquela época o Senhor Goroda não era o grande ditador, mas um daimio ainda em luta pelo poder. Meu pai convidou esse Goroda e seus principais vassalos para um banquete. Nunca lhe ocorreu que não havia dinheiro para comprar toda a comida, o saquê, a louça de laca e os tatamis que tal visita, por costume, exigia. Antes que o senhor pense que minha mãe era má administradora, deixe-me dizer-lhe que não era. Cada centavo da renda de meu pai ia para os seus próprios samurais vassalos, e embora oficialmente ele só tivesse o suficiente para quatro mil guerreiros, economizando, poupando e manipulando, minha mãe viu-o comandar em batalha cinco mil e trezentos homens, para glória do seu suserano. Nós, a família - minha mãe, as consortes de meu pai, meus irmãos e irmãs -, mal tínhamos o que comer. Mas que importava isso? Meu pai e seus homens tinham as melhores armas e os melhores cavalos, e davam o melhor de si ao seu senhor.

"Sim, não havia dinheiro suficiente para aquele banquete, então minha mãe foi aos peruqueiros de Kyoto e vendeu-lhes o cabelo. Lembro que foi como se as trevas se abatessem sobre ela. Mas ela o vendeu. Os peruqueiros o cortaram no mesmo dia, deram-lhe uma peruca barata, ela comprou tudo o que era necessário e poupou a honra de meu pai. Era dever dela pagar as contas, e ela pagou. Cumpriu seu dever. Para nós, o dever é tudo o que importa."

- O que disse ele, seu pai, quando descobriu?

- O que deveria dizer senão agradecer-lhe? Era dever dela encontrar o dinheiro. Poupar-lhe a honra.

- Ela devia amá-lo muito.

- "Amor" é uma palavra cristã, Anjin-san. Amor é um pensamento cristão, um ideal cristão. Não temos palavra para"amor", do modo como compreendo o significado dela. Dever, lealdade, honra, respeito, desejo, essas palavras e pensamentos são o que temos, e tudo de que necessitamos.            Ela o olhou e, a despeito de si mesma, trouxe à mente o momento em que ele salvara Toranaga e, com Toranaga, o seu marido. Nunca se esqueça de que estavam ambos acuados lá, estariam ambos mortos agora, não fosse este homem.

Ela certificou-se de que não havia ninguém por perto.

- Por que o senhor fez o que fez?

- Não sei. Talvez porque. - Ele parou. Havia tantas coisas que poderia dizer: "Talvez porque Toranaga estava indefeso e eu não queria ser retalhado... Porque se ele fosse descoberto seríamos todos apanhados... Porque eu sabia que ninguém além de mim estava a par, e dependia de mim arriscar... Porque eu não queria morrer - há tanto o que fazer para desperdiçar minha vida, e Toranaga é o único que pode me devolver meu navio e minha liberdade". Em vez disso, respondeu, em latim: - Porque Deus disse: "Dai a César o que é de César".

- Sim - disse ela, e acrescentou na mesma língua: - Sim, era isso o que eu estava tentando dizer. A César umas coisas, e a Deus outras coisas. O mesmo acontece conosco. Deus é Deus e nosso imperador vem de Deus. E César é César, para ser honrado como César. - Sensibilizada pela compreensão e pela ternura na voz dele, ela disse: - O senhor é sábio. As vezes penso que compreende mais do que diz.

Você não está fazendo o que jurou nunca fazer? perguntou-se Blackthorne. Não está se fazendo de hipócrita? Sim e não. Não devo nada a eles. Sou um prisioneiro. Roubaram-me o navio, as mercadorias, e assassinaram um de meus homens. São pagãos - bem, alguns são pagãos e o resto é católico. Não devo nada a pagãos nem a católicos. Mas você gostaria de levá-la para a cama e a estava elogiando, não estava?

Deus amaldiçoe todas as consciências!

O mar estava mais perto agora, a meia milha de distância. Ele podia ver muitos navios, e a fragata portuguesa com suas luzes de âncora. Seria uma presa e tanto, pensou ele. Com vinte rapazes bons de briga eu a capturaria. Voltou-se para Mariko. Mulher estranha, de uma estranha família. Por que ela ofendeu Buntaro, aquele babuino? Como pôde dormir com aquilo, ou se casar com aquilo? O que é "muita tristeza"?

- Senhora - disse ele, mantendo a voz gentil -, sua mãe deve ter sido uma mulher excepcional. Fazer aquilo!

- Sim. Mas devido ao que fez, viverá para sempre. Agora é uma lenda. Era tão samurai quanto... quanto meu pai.

- Pensei que apenas homens fossem samurais.

- Oh, não, Anjin-san. Homens e mulheres são igualmente samurais, guerreiros com responsabilidades para com seus senhores. Minha mãe foi uma autêntica samurai, seu dever para com o marido excedia a tudo.

- Ela está na sua casa agora?

- Não. Nem ela, nem meu pai, nem nenhum dos meus irmãos, irmãs ou parentes. Sou a última da minha linhagem.

- Houve uma catástrofe?

Mariko de repente se sentiu cansada. Estou cansada de falar latim e essa língua portuguesa de sons abomináveis e cansada de ser professora, disse a si mesma. Não sou professora. Sou apenas uma mulher que conhece o seu dever e quer cumpri-lo em paz. Não quero sentir essa tepidez de novo, não quero nada desse homem que me perturba tanto. Não quero nada dele.

- De certo modo, Anjin-san, foi uma catástrofe. Um dia lhe falarei sobre isso. - Ela acelerou o passo ligeiramente e se afastou, aproximando-se da outra liteira. As duas criadas sorriram nervosas.

- Ainda temos muito que andar, Mariko-san? - perguntou Sono.

- Espero que não - disse, ela, tranqüilizadora.

O capitão dos cinzentos assomou abruptamente da escuridão, do outro lado da liteira. Ela perguntou a si mesma quanto do que dissera ao Anjin-san fora ouvido às ocultas.

- Quer uma kaga, Mariko-san? Está ficando cansada? - perguntou o capitão.

- Não, obrigada. - Ela retardou a marcha deliberadamente, afastando-o da liteira de Toranaga. - Não estou cansada em absoluto.

- O bárbaro está se comportando? Não a está incomodando?

- Oh, não. Parece absolutamente calmo agora.

- Do que estavam falando?

- De todo tipo de coisa. Eu estava tentando explicar-lhe algumas de nossas leis e costumes. - Fez um gesto na direção do torreão do castelo, gravado contra o céu. - O Senhor Toranaga me pediu que tentasse inculcar-lhe um pouco de bom senso.

- Ah, sim, o Senhor Toranaga. - O capitão olhou brevemente para o castelo, depois novamente para Blackthorne. - Por que o Senhor Toranaga está tão interessado nele, senhora?

- Não sei. Suponho que seja porque ele é uma anomalia.

Dobraram uma esquina, para outra rua, com casas por trás de jardins murados. Havia poucas pessoas à vista. Adiante havia ancoradouros e o mar. Mastros erguiam-se acima das construções e o ar estava denso com o cheiro de algas marinhas.

- De que mais falaram?

- Eles têm umas idéias muito estranhas. Pensam em dinheiro o tempo todo.

- Dizem que o país deles inteiro é feito de imundos mercadores piratas. Nem um samurai entre eles. O que o Senhor Toranaga quer com ele?

- Sinto muito, mas não sei.

- Corre o boato de que ele é cristão, que clama ser cristão. É mesmo?

- Não do nosso tipo de cristão, capitão. O senhor é cristão, capitão?

- Meu amo é cristão, portanto sou cristão. Meu amo é o Senhor Kiyama.

- Tenho a honra de conhecê-lo bem. Ele honrou meu marido tratando o casamento de uma de suas netas com meu filho.

- Sim, eu sei, Senhora Toda.

- O Senhor Kiyama melhorou? Tomei conhecimento de que os médicos não deixaram ninguém vê-lo.

- Não o vejo há uma semana. Nenhum de nós. Talvez seja a sífilis chinesa. Deus o proteja disso e amaldiçoe todos os chineses! - Olhou de relance na direção de Blackthorne. - Os médicos dizem que esses bárbaros trouxeram a peste para a China, para Macau, e depois para as nossas praias.

- Sumus omnes in manu Dei - disse ela. Estamos todos nas mãos de Deus.

- Ita, amen - retrucou o capitão sem pensar, caindo na armadilha.

 

Blackthorne também percebera o deslize e viu um relâmpago de raiva no rosto do capitão e ouviu-o dizer alguma coisa por entre os dentes a Mariko, que corou e também parou. Ele deslizou para fora da liteira e voltou até eles.

- Se o senhor fala latim, centurião, seria muito gentil em conversar um pouco comigo. Estou ávido por aprender sobre este seu grande país.

- Sim, falo a sua língua, estrangeiro.

- Não é a minha língua, centurião, mas a da Igreja e de todas as pessoas cultas do meu mundo. O senhor a fala bem. Como e quando aprendeu?

O cortejo estava passando por eles e todos os samurais, tanto os cinzentos quanto os marrons, os observavam. Buntaro, perto da liteira de Toranaga, parou e se voltou. O capitão hesitou, depois recomeçou a andar e Mariko ficou contente por Blackthorne se ter juntado a eles. Caminharam em silêncio um instante.

- O centurião fala a língua fluentemente, esplendidamente, não e? - disse ele a Mariko.

- Sim, de fato. O senhor a aprendeu num seminário, centurião?

- O senhor também, estrangeiro - disse o capitão friamente, sem prestar atenção nela, detestando a lembrança do seminário de Macau, para onde fora mandado criança por Kiyama, para aprender as línguas. - Agora que falamos diretamente, diga-me com sinceridade por que o senhor perguntou a esta senhora: "Quem mais sabe...?" Quem mais sabe o quê?

- Não me recordo. Minha mente estava delirando.

- Ah, delirando, hem? Então por que o senhor disse: "Dai a César o que é de César"?

- Foi apenas um gracejo. Eu estava discutindo com esta senhora, que me contou histórias esclarecedoras, mas às vezes difíceis de compreender.

- Sim, há muito que compreender. O que o fez enlouquecer no portão? E como se recuperou tão depressa do ataque?

- Foi a benevolência de Deus.

Estavam mais uma vez caminhando ao lado da liteira, o capitão furioso por ter caído na armadilha com tanta facilidade. Fora prevenido pelo Senhor Kiyama, seu amo, de que a mulher era dona de uma esperteza sem limites:

- Não se esqueça de que ela traz a nódoa da traição dentro de todo o seu ser, e o pirata foi gerado por Satanás. Observe, ouça e lembre-se. Talvez ela se inculpe e se torne uma futura testemunha contra Toranaga, para os regentes. Mate o pirata no momento em que a emboscada tiver início.

As setas saíram da noite e a primeira cravou-se na garganta do capitão, que, ao sentir os pulmões encher-se com fogo derretido e a morte a engoli-lo, teve um último pensamento de espanto, porque a emboscada não era para acontecer naquela rua, mas mais adiante, junto aos ancoradouros, e o ataque não era para ser contra eles, mas contra o pirata.

Outra seta se chocou contra a coluna da liteira a uma polegada da cabeça de Blackthorne. Duas setas atravessaram as cortinas fechadas da liteira de Kiritsubo, à frente, e outra atingiu Asa na cintura. Quando ela começou a gritar, os carregadores largaram as liteiras e sumiram na escuridão. Blackthorne rolou no chão para se proteger, levando Mariko consigo para o abrigo da liteira tombada. Cinzentos e marrons dispersaram-se. Uma chuva de setas derramou-se sobre as duas liteiras. Uma bateu surdamente no chão no ponto onde Mariko estivera um instante antes. Buntaro estava cobrindo a liteira de Toranaga com o corpo do melhor modo que podia, uma seta cravada nas costas da sua armadura de couro, bambu e malhas de ferro. Quando a saraivada cessou, ele investiu e abriu as cortinas com um repelão. As duas setas encontravam-se enterradas no peito e no flanco de Toranaga, mas ele estava ileso e arrancou as farpas da armadura de proteção que usava sob o quimono. Depois lançou fora o chapéu de aba larga e a peruca. Buntaro perscrutou a escuridão, à procura do inimigo, em guarda, uma seta pronta no arco, enquanto Toranaga se desvencilhava das cortinas e, puxando a espada de sob a manta, se punha de pé com um salto. Mariko começou a se arrastar na direção de Toranaga, a fim de ajudá-lo, mas Blackthorne puxou-a de volta com um grito de advertência, ao ver que novas setas eram disparadas contra as liteiras, matando dois marrons e um cinzento. Outra passou tão perto de Blackthorne, que lhe arrancou um pedaço de pele da bochecha. Uma outra prendeu-lhe a saia do quimono na terra. Sono, a criada, estava ao lado da garota desfigurada de dor, que corajosamente retinha os próprios gritos. Então Yabu gritou, apontou e atacou. Divisavam-se alguns vultos indefinidos sobre um dos telhados de telhas. Uma última saraivada sibilou na escuridão, sempre visando as liteiras.

Buntaro e outros marrons bloquearam o caminho delas até Toranaga. Um homem morreu. Uma flecha dilacerou uma junta no ombro da armadura de Buntaro e ele grunhiu de dor. Marrons e cinzentos encontravam-se perto do muro agora, em busca do inimigo, mas os atacantes desapareceram no negrume da noite e, embora uma dúzia de marrons e cinzentos corressem para a esquina a fim de interceptá-los, todos sabiam que não havia esperança de êxito. Blackthorne ergueu-se vacilante e ajudou Mariko a se levantar. Ela estava abalada mas ilesa.

- Obrigada - disse ela, e correu na direção de Toranaga, para ajudar a escondê-lo dos cinzentos. Buntaro gritava a alguns de seus homens que apagassem as tochas perto das liteiras. Então um dos cinzentos disse: - Toranaga! - e embora falasse baixo, todos ouviram. A tremulante luz dos archotes, a maquilagem riscada pelo suor fazia Toranaga parecer grotesco.

Um dos oficiais cinzentos curvou-se, ansioso. Ali, inacreditavelmente, estava o inimigo de seu amo, livre, fora dos muros do castelo.

- O senhor esperará aqui, Senhor Toranaga. Você - falou ele com rispidez a um de seus homens -, apresente-se ao Senhor Ishido imediatamente - e o homem disparou na corrida.

- Detenha-o - disse Toranaga tranqüilamente. Buntaro disparou duas setas. O homem tombou agonizante. Num átimo o  oficial sacou da espada de duas mãos e saltou para Toranaga com um grito de batalha, mas Buntaro estava preparado e aparou o golpe. Simultaneamente, os marrons e os cinzentos, todos misturados, sacaram as espadas e atacaram. A rua foi engolida em torvelinho pela escaramuça. Buntaro e o oficial golpeavam e se esquivavam. Repentinamente um cinzento separou-se do bando o investiu contra Toranaga, mas Mariko imediatamente agarrou um archote, avançou e atirou-o no rosto do oficial. Buntaro cortou o atacante em dois, depois girou sobre os calcanhares, atirou longe o segundo homem, e derrubou um outro que tentava atingir Toranaga enquanto Mariko retrocedia rapidamente, com uma espada nas mãos agora, os olhos sempre em Toranaga ou em Buntaro, o monstruoso guarda-costas.

Quatro cinzentos se agruparam e se lançaram contra Blackthorne, que ainda estava parado junto da sua liteira. Indefeso, viu-os se aproximar. Yabu e um marrom deram um pulo para interceptá-los, lutando demoniacamente. Blackthorne por sua vez agarrou uma tocha com um salto e, como uma maça rodopiante, momentaneamente deixou os atacantes desnorteados. Yabu matou um deles, desmembrou outro, depois quatro marrons retrocederam para liquidar os dois últimos cinzentos. Sem hesitação, Yabu o marrom ferido se lançaram ao ataque mais uma vez, protegendo Toranaga. Blackthorne avançou, pegou uma arma comprida, meio espada, meio lança, e correu mais para perto de Toranaga. Este era a única pessoa que permanecia imóvel, de espada embainhada, em meio à balbúrdia da rixa.

Os cinzentos lutavam corajosamente. Quatro se uniram para uma investida suicida contra Toranaga. Os marrons esfacelaram o      ataque e ganharam mais terreno. Os cinzentos reagruparam-se e atacaram de novo. Depois um superior ordenou que três deles se retirassem e fossem em busca de reforços, e o resto guardasse a retirada deles. Os três cinzentos arrancaram e, embora fossem perseguidos e Buntaro acertasse um, dois escaparam.

O resto morreu.

 

Eles estavam correndo através de ruas desertas, fazendo uma volta para atingir o ancoradouro e a galera. Havia dez deles - Toranaga liderando, Yabu, Mariko, Blackthorne, e seis samurais. O resto, comandado por Buntaro, fora enviado com as liteiras e a bagagem pela estrada prevista, com instruções de rumar com calma para a galera. O corpo de Asa, a criada, encontrava-se numa das liteiras. Durante um momento de trégua na luta, Blackthorne lhe extraíra a flecha farpada. Toranaga vira o sangue escuro que esguichou e vira, desconcertado, quando o piloto a enfaixara ao invés de permitir que ela morresse calmamente com dignidade, e depois, quando a luta cessara inteiramente, a suavidade com que o piloto a colocara dentro da liteira. A garota era corajosa e não se lamuriara em absoluto, só olhara para ele até que a morte viera. Toranaga deixara-a na liteira acortinada como engodo e um dos feridos fora colocado na segunda liteira, também como engodo.

Dos cinqüenta marrons que formavam a escolta, quinze tinham sido mortos e onze mortalmente feridos. Os onze tinham sido rápida e honrosamente encaminhados ao Grande Vazio, três pelas próprias mãos, oito solicitaram a ajuda a Buntaro. Depois Buntaro reunira os remanescentes em torno das liteiras fechadas e partira. Quarenta e oito cinzentos jaziam no pó.

Toranaga sabia que se encontrava perigosamente desprotegido, mas sentia-se contente. Tudo correra bem, pensou ele, considerando as vicissitudes da sorte. Como a vida é interessante! Primeiro pensei que fosse um mau presságio o piloto ter-me visto trocando de lugar com Kiri. Depois o piloto me salvou e comportou-se como um louco à perfeição, e por causa dele escapamos de Ishido. Eu não havia imaginado que Ishido estivesse no portão principal, apenas no adro. Isso foi negligência. Por que Ishido estava lá? Não é próprio dele ser tão cuidadoso. Quem o aconselhou? Kiyama? Onoshi? Ou Yodoko? Uma mulher, sempre prática, poderia suspeitar de um subterfúgio assim.

Era um bom plano - a escapada secreta -, estabelecido há semanas, pois era óbvio que Ishido tentaria mantê-lo no castelo, voltaria os outros regentes contra ele prometendo-lhes qualquer coisa, de bom grado sacrificaria seu refém em Yedo, a Senhora Ochiba, e usaria qualquer meio de mantê-lo sob guarda até a reunião final de regentes, quando ele seria encurralado, impedido e morto.

- Mas eles ainda o impedirão! - dissera Hiromatsu, quando Toranaga mandara chamá-lo logo após o crepúsculo, na véspera, para explicar o que devia ser tentado e por que ele, Toranaga, estivera vacilando. - Mesmo que o senhor escape, os regentes o impedirão pelas costas tão facilmente quanto o farão na sua cara. Depois o senhor será obrigado a cometer seppuku, quando eles o ordenarem, e é certo que ordenarão.

- Sim - dissera Toranaga. - Na qualidade de presidente dos regentes, sou obrigado a fazer isso se os quatro votarem contra mim. Mas aqui - ele tirara da manga um pergaminho enrolado - está a minha renúncia formal ao conselho de regentes. Você a entregará a Ishido quando a minha fuga se tornar conhecida.

- O quê?

- Se eu renuncio deixo de ser obrigado pelo meu juramento de regente. Neh? O taicum nunca me proibiu de renunciar, neh? De isto a Ishido, também - dissera ele, estendendo a Hiromatsu o carimbo, o selo oficial do seu posto de presidente.

- Mas agora o senhor está totalmente isolado. Está condenado!

- Engana-se. Ouça, o testamento do taicum implantou um conselho de cinco regentes no reino. Agora há quatro. Para ser legal, antes que possam exercer o mandato do imperador, os quatro têm que eleger ou designar um novo membro, um quinto, neh? Ishido, Kiyama, Onoshi e Sugiyama têm que concordar, neh? O novo regente não tem que ser aceitável para todos eles? Claro! Agora, companheiro, com quem, no mundo inteiro, esses inimigos concordarão em partilhar o poder supremo? Hem? E enquanto estiverem decidindo, não haverá decisões e...

- Estaremos nos preparando para a guerra, o senhor não terá mais obrigaçoes e poderá soltar um pouco de mel aqui, um pouco de fel ali e esses cagões peludos se devorarão entre si! - dissera Hiromatsu com ímpeto. - Ah, Yoshi Toranaga-noh-Minowara, o senhor é um homem entre homens. Comerei meu traseiro se o senhor não é o homem mais sábio do globo!

Sim, era um bom plano, pensou Toranaga, e todos desempenharam o seu papel: Hiromatsu, Kiri e a minha adorável Sazuko. E agora estão trancados lá e permanecerão assim ou serãoautorizados a partir.

Acho que nunca serão autorizados a partir.

Sentirei em perdê-los.

Liderava o grupo com segurança, com passo rápido mas comedido, o passo com que caçava, o passo que podia manter continuamente por dois dias e uma noite, se necessário. Ainda usava o manto e o quimono de viagem de Kiri, mas as saias estavam arregaçadas.

Cruzaram outra rua deserta e rumaram por uma rua estreita. Ele sabia que logo o alarme chegaria a Ishido e então a caçada seria deflagrada com determinação. Há tempo suficiente, disse ele a si mesmo.

Sim, foi um bom plano. Mas não previ a emboscada. Custoume três dias de segurança. Kiri tinha certeza de poder manter o logro em segredo pelo menos durante três dias. Mas agora o segredo foi descoberto e não poderei embarcar e zarpar despercebido. Para quem era a emboscada? Para mim ou para o piloto? Claro que para o piloto. Mas as setas não visavam as duas liteiras? Sim, mas os arqueiros estavam bem longe e devia ser difícil enxergar, e seria mais sábio e mais seguro matar os dois, só por precaução.

Quem ordenou o ataque, Kiyama ou Onoshi? Ou os portugueses? Ou os padres cristãos?

Toranaga voltou-se para examinar o piloto. Viu que ele não estava esmorecendo, nem a mulher, que caminhava ao seu lado, embora estivessem ambos cansados. No horizonte podia ver a massa atarracada e vasta do castelo e o falo do torreão. Esta noite foi a segunda vez que eu quase morri lá, pensou ele. Será que esse castelo realmente vai ser a minha nemesis? O taicum me dizia com freqüência: "Enquanto o Castelo de Osaka existir,. minha linhagem nunca morrerá e você, Toranaga Minowara, seu epitáfio será escrito em suas paredes. Osaka lhe causará a morte, meu fiel vassalo!" E sempre a risada sibilante, molesta, que o deixava muito nervoso.

Será que o taicum vive em Yaemon? Viva ou não, Yaemon é o herdeiro legal.

Com um esforço, Toranaga desviou os olhos do castelo, dobrou outra esquina e nveredou por um labirinto de alamedas. Finalmente parou diante de um portão gasto pelo tempo. Havia um peixe gravado em suas toras. Ele bateu em código. A porta se abriu de imediato. Instantaneamente um samurai desgrenhado curvou-se.

- Senhor?

- Traga os seus homens e siga-me - disse Toranaga, e pôs-se em movimento de novo.

- Com prazer. - Esse samurai não usava o uniforme marrom, apenas coloridos trapos de ronin, mas fazia parte das tropas de elite secretas que Toranaga havia contrabandeado para Osaka, para o caso de uma emergência assim. Quinze homens, semelhantemente vestidos, e igualmente bem armados, seguiram-no e rapidamente tomaram posição à vanguarda e à retaguarda, enquanto outro abalava para espalhar o alarme para outros destacamentos secretos. Logo Toranaga tinha cinqüenta homens consigo. Mais cem cobriam-lhe os flancos. Mil estariam prontos ao amanhecer, se viesse a precisar deles. Ele descontraiu-se e afrouxou o passo, sentindo que o piloto e a mulher estavam se cansando depressa demais. Precisava deles fortes.

 

De pé em meio às sombras do depósito, Toranaga estudou a galera, o embarcadouro e a praia. Yabu e um samurai estavam ao seu lado. Os outros reunidos tinham sido deixados a cem passos atrás, na viela.

Um destacamento de cem cinzentos esperava perto da escada de costado da galera a uns cem passos de distância, do outro lado de uma larga extensão de terra batida que impedia qualquer ataque de surpresa. A galera estava atracada a pilares fixados no embarcadouro de pedra que avançava cem jardas para dentro do mar. Os remos estavam armados com cuidado e Toranaga podia ver, indistintamente, muitos marujos e guerreiros no convés.

- São nossos ou deles? - perguntou em voz baixa.

- A distância é muita para se ter certeza – respondeu Yabu.

A maré estava alta. Além da galera, barcos de pesca aproximavam-se e partiam, com lanternas servindo de luzes de âncora e de pesca. Ao norte, ao longo da praia, havia fileiras de barcos de pesca de muitos tamanhos, abicados na areia e cuidados por alguns pescadores. Quinhentos passos ao sul, ao longo de outro embarcadouro de pedra, estava a fragata portuguesa, a Santa Theresa. A luz dos archotes, enxames de carregadores azafamados carregavam barris de fardos. Outro grande grupo de cinzentos espalhava-se à toa por perto. Isso era habitual, porque todos os navios portugueses atracados, e os estrangeiros em geral, deviam, por lei, estar sob perpétua vigilância. Era só em Nagasaki que a navegação portuguesa ocorria livremente.

Se a segurança pudesse ser reforçada lá, todos nós dormiríamos mais seguros à noite, disse Toranaga a si mesmo. Sim, mas poderíamos mantê-los sob estrita vigilância e continuar tendo o comércio com a China em índices sempre crescentes? Isso é uma armadilha dentro da qual os bárbaros meridionais nos têm e de onde não há escapatória, não enquanto os daimios cristãos dominarem Kyushu e os padres forem necessários. O melhor que podemos fazer é o que o taicum fez. Dar um pouco aos bárbaros, fingir tomar de volta, tentar blefar, sabendo que, sem o comércio com a China, a vida seria impossível.

- Com a sua permissão, senhor, atacarei imediatamente - sussurrou o samurai.

- Aconselho o contrário - disse Yabu. - Não sabemos se nossos homens estão a bordo. E poderia haver mil homens escondidos por toda parte aqui. Aqueles homens - apontou para os cinzentos perto do navio português - darão o alarme. Nunca conseguiríamos tomar o navio e zarpar antes que eles nos retivessem. Precisamos de dez vezes o número de homens que temos agora.

- O Senhor Ishido logo estará informado - disse o samurai. - Então Osaka toda estará fervilhando com mais inimigos do que moscas num campo de batalha recente. Tenho cento e cinqüenta homens, contando com os que estão nos nossos flancos. Serão suficientes.

- Não para que tenhamos segurança. Não se os nossos marinheiros não estiverem prontos aos remos. É melhor criar uma situação que desvie a atenção dos cinzentos, e de quaisquer outros que estejam escondidos. Aqueles, também - Yabu apontou novamente para os homens perto da fragata.

- Que tipo de situação? - perguntou Toranaga.

- Incendiar a rua.

- E impossível! - protestou o samurai, agastado. Incêndio doloso era crime punível com a queima em público de toda a família da pessoa culpada, de cada geração da família. A penalidade era a mais severa, por lei, porque um incêndio era o maior perigo que podia haver para uma aldeia ou cidade do império. Madeira e papel eram os únicos materiais de construção utilizados, com exceção de telhas em alguns telhados. Cada lar, cada depósito, cada choupana e cada palácio era um isqueiro. — Não podemos incendiar a rua!

- O que é mais importante - perguntou Yabu -, a destruição de algumas ruas ou a morte do nosso amo?

- O fogo se alastraria, Yabu-san. Não podemos queimar Osaka. Há um milhão de pessoas aqui, mais que isso.

- É essa a sua resposta à minha pergunta?

Empalidecido, o samurai voltou-se para Toranaga:

- Senhor, farei qualquer coisa que o senhor peça. É isso o que quer que eu faça?

Toranaga limitou-se a olhar para Yabu. O daimio sacudiu o polegar desdenhosamente na direção da cidade.

- Há dois anos a metade dela se incendiou e olhe agora. Há cinco anos foi o Grande Incêndio. Quantas centenas de milhares se perderam então? O que isso importa? São apenas lojistas, mercadores, artesãos, e etas. Não é como se Osaka fosse uma aldeia cheia de camponeses.

Toranaga havia avaliado o vento de há muito. Era leve e não alastraria o fogo. Talvez. Mas uma labareda podia facilmente transformar-se num holocausto, que devoraria a cidade inteira. Exceto o castelo. Ah, se fosse apenas consumir o castelo, eu não hesitaria nem um momento.

Girou sobre os calcanhares e voltou-se para os outros.

- Mariko-san, leve o piloto e nossos seis samurais e vá para a galera. Finja estar quase em pânico. Diga aos cinzentos que houve uma emboscada, de bandidos ou ronins, você não tem certeza. Diga-lhes onde aconteceu, que você foi mandada na frente com urgência pelo capitão da nossa escolta de cinzentos para levar mais cinzentos como ajuda, que a batalha ainda não terminou, que você acha que Kiritsubo foi morta ou ferida. Que eles se apressem, por favor. Se você for convincente, isso afastará daqui a maior parte deles.

- Compreendi perfeitamente, senhor.

- Depois, não importa o que os cinzentos façam, vá para bordo com o piloto. Se nossos marinheiros estiverem lá e o navio seguro e protegido, volte à escada de embarque e finja desmaiar. Esse é o nosso sinal. Faça isso exatamente no topo da escada. - Toranaga pousou os olhos em Blackthorne. - Diga-lhe o que você vai fazer, mas não que você vai desmaiar. - Afastou-se para dar ordens ao resto de seus homens e instruções especiais aos seis samurais.

Quando Toranaga terminou, Yabu puxou-o de parte.

- Por que mandar o bárbaro? Não seria mais seguro deixá-lo aqui? Mais seguro para o senhor?

- Mais seguro para ele, Yabu-san, mas não para mim. Ele é um ardil útil.

- Incendiar a rua seria ainda mais seguro.

- Sim. - Toranaga pensou que era melhor ter Yabu ao seu lado do que ao lado de Ishido. Ainda bem que não o fiz pular da torre ontem.

- Senhor?

- Sim, Mariko-san?

- Desculpe, mas o Anjin-san perguntou o que vai acontecer se o navio estiver em poder do inimigo.

- Diga-lhe que não precisa ir com você se não for forte o suficiente.

Blackthorne conservou a calma quando ela lhe disse o que Toranaga mandara.

- Diga ao Senhor Toranaga que o plano dele não é bom para a senhora, que a senhora devia ficar aqui. Se tudo estiver bem, eu posso dar o sinal.

- Não posso fazer isso, Anjin-san, não é o que o nosso amo ordenou - disse-lhe Mariko com firmeza. - Qualquer plano idealizado por ele com certeza é muito sábio.

Blackthorne entendeu que não havia sentido em discutir. Deus amaldiçoe a arrogância sanguinária e teimosa deles, pensou. Mas, por Deus, que coragem eles têm! Os homens e esta mulher!

Ele a observara na emboscada, empunhando a longa espada que tinha quase o mesmo tamanho que ela, pronta para lutar até a morte por Toranaga. Vira-a usar a espada uma vez, com perícia, e embora fosse Buntaro quem tivesse matado o atacante, ela lhe tornara isso mais fácil, forçando o homem a recuar. Ainda havia sangue em seu quimono agora, rasgado em alguns lugares. Seu rosto estava sujo.

- Onde aprendeu a usar a espada? - perguntara-lhe enquanto se apressavam na direção do embarcadouro.

- O senhor devia saber que todas as senhoras samurais aprendem bem cedo a usar uma faca para defender a própria honra e a de seus senhores - dissera ela simplesmente, e mostrara-lhe como o estilete era guardado no obi, pronto para uso imediato. - Mas algumas de nós, poucas, também aprendem a usar espada e lança, Anjin-san. Alguns pais acham que as filhas, assim como os filhos, devem ser preparadas para a batalha pelos seus senhores. Claro que algumas são mais belicosas do que outras e apreciam ir à batalha com o marido ou o pai. Minha mãe era assim. Meu pai e ela resolveram que eu devia conhecer a espada e a lança.

- Não fosse o capitão dos cinzentos estar no caminho, a primeira seta teria ido bem na sua direção - dissera ele.

- Na sua direção, Anjin-san - corrigira ela, muito segura. - Mas o senhor realmente me salvou a vida puxando-me para a segurança.

Agora, olhando para ela, soube que não gostaria que nada lhe acontecesse.

- Deixe-me ir com os samurais, Mariko-san. A senhora fica aqui. Por favor.

- Isso não é possível, Anjin-san.

- Então quero uma faca. Melhor ainda, dê-me duas.

Ela passou o pedido a Toranaga, que concordou. Blackthorne escorregou uma por sob o sash, dentro do quimono. A outra, amarrou-a com o cabo para baixo na face interna do antebraço com uma tira de seda que rasgou da bainha do quimono.

- Meu amo pergunta se todos os ingleses portam facas secretamente na manga assim.

- Não. Mas muitos marujos sim.

- Não é comum aqui, nem com os portugueses - disse ela.

- O melhor lugar para uma faca sobressalente é a bota. Então se pode causar um dano bem sério, muito depressa. Se necessário.

Ela traduziu isso e Blackthorne notou os olhos atentos de Toranaga e Yabu, e sentiu que os dois não gostaram da idéia de vê-lo armado. Bom, pensou ele. Talvez eu possa continuar armado.

Novamente sentiu curiosidade em relação a Toranaga. Depois que a emboscada fora repelida e os cinzentos mortos, Toranaga, através de Mariko, lhe agradecera diante de todos os marrons pela sua "lealdade". Mais nada. Nenhuma promessa, nenhum acordo, nenhuma recompensa. Mas Blackthorne sabia que isso viria mais tarde. O velho monge lhe dissera que a lealdade era a única coisa que eles recompensavam.

- Lealdade e dever, señor - dissera -, é o culto deles, esse bushido. Enquanto nós damos a vida a Deus e a seu abençoado filho Jesus, e a Maria, mãe de Deus, esses animais se dão a seus amos e morrem como cães. Lembre-se, señor, pela salvação da sua alma, de que são animais.

Não são animais, pensou Blackthorne. E muito do que o senhor disse, padre, é um erro e um exagero fanático.

- Precisamos de um sinal que diga se o navio é seguro ou não - disse a Mariko.

Novamente ela traduziu, inocentemente desta vez.

- O Senhor Toranaga diz que um dos nossos soldados fará isso.

- Não vejo bravura em mandar uma mulher para fazer o serviço de um homem.

- Por favor, seja paciente conosco, Anjin-san. Não há diferença entre homens e mulheres. As mulheres são iguais, enquanto samurais. Neste plano uma mulher seria muito melhor do que um homem.

Toranaga disse concisamente alguma coisa a ela.

- Está pronto, Anjin-san? Devemos ir agora.

- O plano é péssimo e perigoso e estou cansado de ser um maldito pato depenado sacrifical, mas estou pronto.

Ela riu, curvou-se para Toranaga, e saiu correndo. Blackthorne e os seis samurais correram atrás dela.

Ela foi muito veloz e ele não a alcançou quando dobraram a esquina e rumaram para espaço aberto. Nunca se sentira tão vulnerável. No momento em que apareceram, os cinzentos os localizaram e arremeteram. Logo estavam cercados, Mariko palrando febrilmente com os samurais e os cinzentos. Depois ele também se juntou à babel numa arquejante mistura de português, inglês e holandês, gesticulando para que se apressassem, e tateou na direção da escada de embarque a fim de se encostar nela, precisando fingir estar sem fôlego. Tentou ver dentro do navio, mas não conseguiu distinguir nada, apenas muitas cabeças aparecendo à amurada. Viu o crânio raspado de muitos samurais e muitos marujos. Não conseguiu discernir a cor dos quimonos.

Atrás dele um dos cinzentos lhe falava rapidamente e ele voltou-se dizendo que não compreendia, que ele fosse para lá, depressa, para onde estava acontecendo a maldita batalha.

- Wakarimasu ka? Ponha o seu traseiro rabudo para fora daqui! Wakarimasu ka? A luta é lá!

Mariko derramava freneticamente uma enxurrada de palavras sobre o oficial superior dos cinzentos. O oficial encaminhou-se de volta ao navio e gritou ordens. Imediatamente mais de cem samurais, todos cinzentos, começaram a brotar do navio. O oficial mandou alguns para norte, ao longo da praia, para interceptar os feridos e ajudá-los se necessário. Um foi enviado às pressas para buscar ajuda dos cinzentos da galera portuguesa. Deixando dez homens para trás a fim de guardar a escada de embarque, comandou os demais numa investida à rua que subia coleando do embarcadouro, rumo à cidade propriamente dita.

Mariko aproximou-se de Blackthorne.

- O navio lhe parece em ordem? - perguntou.

- Está flutuando. - Com um grande esforço Blackthorne agarrou as cordas da escada e se içou para o convés. Mariko seguiu-o. Dois marrons vieram atrás dela.

Os marujos que se amontoavam junto à amurada de bombordo abriram caminho. Quatro cinzentos guardavam o tombadilho e havia mais dois na popa. Estavam todos armados de arco e flechas, assim como de espadas.

Mariko interrogou um dos marinheiros. O homem respondeu-lhe serviçalmente.

- São todos marinheiros contratados para levar Kiritsubo-san para Yedo - disse a Blackthorne.

- Pergunte-lhe... - Blackthorne parou ao reconhecer o pequeno e atarracado imediato que fizera capitão da galera depois da tempestade.

- Konbanwa, capitão-san! Boa noite.

- Konbanwa, Anjin-san. Watashi iyé capitão-san ima - retrucou o imediato com um sorriso, abanando a cabeça. Apontou para um marinheiro baixinho com o cabelo cinza-ferro preso numa cauda eriçada, que se erguia sozinho no tombadilho. - Imasu capitão-san!

- Ah, so desu? Halloa, capitão-san! - disse alto Blackthorne, curvando-se. Baixando a voz, disse a Mariko: - Descubra

se há cinzentos lá embaixo.

Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o capitão estava

retribuindo a mesura e gritava ao imediato. Este assentiu e respondeu pormenorizadamente. Alguns dos marinheiros também expressaram seu assentimento. O capitão e todos a bordo estavam muito impressionados.

- Ah, so desu, Anjin-san! - Então o capitão gritou: - Keirei! Saudação! - Todos a bordo, exceto os samurais, curvaram-se para Blackthorne em saudação.

- Este imediato disse ao capitão que o senhor salvou o navio durante a tempestade - disse Mariko. - O senhor não nos contou sobre a tempestade nem sobre a sua viagem.

- Há pouco que contar. Foi apenas mais uma tempestade. Por favor, agradeça ao capitão e diga-lhe que estou feliz por me encontrar a bordo de novo. Pergunte-lhe se estamos prontos para partir quando os outros chegarem. - E acrescentou em voz baixa: - Descubra se há mais cinzentos lá embaixo.

Ela fez conforme o ordenado.

O capitão aproximou-se e ela pediu mais informações e depois, pegando a deixa do capitão sobre a importância de Blackthorne a bordo, curvou-se para Blackthorne:

- Anjin-san, ele lhe agradece pela vida de seu navio e diz que estão prontos - e mais baixo: - quanto ao resto, ele não sabe.

Blackthorne deu uma olhada na praia. Não havia sinal de Buntaro nem da coluna ao norte. Os samurais enviados ao sul, na direção do Santa Theresa, ainda se encontravam a umas cem jardas do seu destino, ainda despercebidos.

- E agora? - disse ele, quando já não conseguia agüentar a espera.

O navio está seguro? Resolva-se, dizia ela a si mesma.

- Aquele homem chegará lá a qualquer momento - disse ele, olhando para a fragata.

- O quê?

Ele apontou.

- Aquele... o samurai!

- Que samurai? Desculpe, não consigo enxergar a essa distância, Anjin-san. Posso ver tudo no navio, embora os cinzentos na dianteira do navio estejam nebulosos. Que homem?

Ele lhe disse, acrescentando em latim:

- Agora ele está a uns cinqüenta passos de distância. Foi visto. Precisamos de ajuda seriamente. Quem dá o sinal? Deve ser dado rapidamente!

- Meu marido, há algum sinal dele? - perguntou ela em português.

Ele meneou a cabeça.

Dezesseis cinzentos erguem-se entre meu amo e a segurança, pensou ela. Oh, minha Nossa Senhora, proteja-o!

Então, encomendando a alma a Deus, receosa de estar tomando a decisão errada, ela se dirigiu debilmente para o topo da escada de embarque e fingiu desmaiar.

Blackthorne foi pego de surpresa. Viu a cabeça dela bater desagradavelmente contra os sarrafos de madeira. Os marinheiros começaram a se aglomerar, cinzentos convergiram do ancoradouro e dos conveses, enquanto ele acorria. Levantou-a e carregou-a por entre os homens, para o tombadilho.

- Tragam água... água, hai?

Os marujos olhavam-no sem compreender. Desesperado, ele rebuscou na memória à procura da palavra japonesa. O velho monge lhe dissera cinqüenta vezes. Cristo, como é?

- Oh... mizu, mizu, hai?

- Ah, mizu! Hai, Anjin-san. - Um homem se afastou às carreiras. Houve um súbito grito de alarme.

Em terra, trinta dos samurais de Toranaga disfarçados de ronins vinham disparados da viela. Os cinzentos que haviam começado a deixar o cais voltaram às pressas para junto da escada.

Os que estavam no tombadilho e na popa espicharam o pescoço para ver melhor. Abruptamente um gritou ordens. Os arqueiros armaram os arcos. Todos os samurais, marrons e cinzentos lá embaixo, sacaram as espadas, e muitos acorreram de volta ao molhe.

- Bandidos! - gritou um dos marrons, seguindo o plano. Imediatamente os dois marrons no convés se separaram, um indo para a frente, outro para a popa. Os quatro em terra se desdobraram em leque, misturando-se com os cinzentos à espera.

- Alto!

Os samurais ronins de Toranaga investiram. Uma seta atingiu um homem no peito e ele caiu pesadamente. Instantaneamente o marrom na popa matou o arqueiro cinzento e se lançou sobre o outro, mas este foi mais rápido e eles travaram espadas, o cinzento gritando uma advertência de traição aos outros. O marrom no tombadilho de popa havia mutilado um dos cinzentos, mas os outros tres o liquidaram rapidamente e correram para o topo da escada, marujos se dispersando. Os samurais no embarcadouro lutavam encarniçadamente, com os cinzentos sobrepujando os quatro marrons, sabendo que tinham sido traídos e que, a qualquer momento, também eles seriam engolidos pelos atacantes. O líder dos cinzentos no convés, um homenzarrão violento de barba grisalha, encarou Blackthorne e Mariko.

- Matem os traidores! - vociferou ele e, com um grito de batalha, arremeteu.

Blackthorne vira-os olhar para Mariko, ainda deitada no seu desmaio, todos com a morte nos olhos, e entendeu que, se não conseguisse auxílio depressa, logo estariam ambos mortos, e que o auxílio não viria dos marujos. Ele se lembrou de que apenas samurais podiam lutar com samurais. Deslizou a faca para a mão o arremessou-a num arco. Atingiu o samurai na garganta. Os outros dois cinzentos arremeteram contra Blackthorne, espada em riste. Ele empunhou a segunda faca e fincou pé junto de Mariko, sabendo que não ousaria deixá-la desprotegida. Olhando de soslaio, viu que a batalha pela escada de costado estava quase vencida. Apenas três cinzentos ainda defendiam a ponte, apenas esses três impediam o auxílio de afluir para bordo. Se ele pudesse continuar vivo por menos de um minuto, estaria salvo, e ela também. Matem-nos, matem os bastardos!

Sentiu, mais do que viu, a espada descendo sobre a garganta o pulou para trás, para fora do caminho da arma. Um cinzento tentara transpassá-lo, enquanto o outro, hesitante, atacava Mariko, espada erguida. Nesse momento Blackthorne viu Mariko recobrar os sentidos. Ela se atirou contra as pernas do desprevenido samurai, fazendo-o estatelar-se no convés. Depois, arrastando-se por sobre o cinzento morto, agarrou-lhe a espada da mão que ainda se contraía e investiu contra o guarda com iim grito. O cinzento se pusera em pé de novo e, urrando de raiva, atacou-a. Ela recuou o golpeou bravamente, mas Blackthorne sabia que ela estava perdida, já que o homem era forte demais. De algum modo Blackthorne evitou outro golpe mortal do seu próprio antagonista, afastou-o com um pontapé e lançou a faca contra o atacante de Mariko. Acertou o homem nas costas, fazendo-o desviar-se do alvo. Logo em seguida Blackthorne se viu no tombadilho, indefeso e encurralado, um cinzento saltando os degraus na sua direção, o outro, que acabara de vencer a luta na popa, correndo para cima dele ao longo do convés. Ele saltou para a amurada e a segurança do mar, mas escorregou no convés molhado de sangue.

Mariko, lívida, fitava de olhos arregalados o imenso samurai que ainda a tinha acuada, oscilando sobre os pés, sua vida escoando-se depressa, mas não depressa o bastante. Ela o atacou com todas as forças, mas ele aparou o golpe, segurou-lhe a espada e arrancou-lhe a arma das mãos. Reuniu suas últimas forças e deu o bote no momento em que os samurais ronins irromperam pela escada acima, por sobre os cinzentos mortos. Um se atracou ao atacante de Mariko, outro disparou uma seta na direção do tombadilho.

A seta dilacerou as costas do cinzento, fazendo-o perder o equilíbrio com violência, e sua espada desviou-se de Blackthorne, indo atingir a amurada. Com dificuldade Blackthorne tentou se afastar, mas o homem alcançou-o, arrastou-o para o convés e cravou-lhe os dedos nos olhos. Outra seta atingiu o segundo cinzento no ombro e ele largou a espada, gritando de dor e raiva, tentando em vão arrancar a flecha. Uma terceira seta fê-lo contorcer-se. O sangue jorrou-lhe da boca aos borbotões e, sufocado, os olhos vítreos, o samurai tateou rumo a Blackthorne e caiu sobre ele quando o último cinzento chegou para a matança, uma curta faca pontuda nas mãos. Desferiu o golpe, Blackthorne indefeso, mas uma mão amiga segurou o braço da faca, depois a cabeça do inimigo desapareceu de cima do pescoço, cedendo lugar a um jorro de sangue. Os dois cadáveres foram puxados de cima de Blackthorne e ele foi posto de pé. Enxugando o sangue do rosto, viu vagamente que Mariko estava estendida no convés, samurais ronins agitando-se em torno dela. Ele se soltou dos que o ajudavam e cambaleou na direção dela, mas seus joelhos cederam e ele desabou.

 

Blackthorne levou uns bons dez minutos para recuperar forças suficientes que lhe permitissem erguer-se sem auxilio. Nesse meio tempo os samurais ronins liquidaram os feridos graves e lançaram todos os cadáveres ao mar. Os seis marrons haviam perecido, e todos os cinzentos. Limparam o navio e deixaram-no pronto para partida imediata; puseram os marujos aos remos e postaram alguns junto dos pilares, esperando para soltar as cordas de atracação. Todos os archotes tinham sido apagados. Alguns samurais foram mandados para patrulhar a praia ao norte, a fim de interceptar Buntaro. O grosso dos homens de Toranaga correu na direção sul, para um quebra-mar de pedra, a uns duzentos passos de distância, onde tomaram uma forte posição de defesa contra os cem cinzentos da fragata que, tendo visto o ataque, aproximavam-se velozmente.

Quando todos a bordo tinham sido conferidos e reconferidos, o líder pos as mãos em concha em torno dos lábios e chamou na direção da praia. Imediatamente mais samurais disfarçados de ronins, comandados por Yabu, saíram da noite e se desdobraram em escudos protetores, a norte e a sul. Depois Toranaga apareceu e começou a caminhar lentamente na direção da escada de embarque, sozinho. Descartara-se do quimono de mulher e da capa escura de viagem, e removera a maquilagem. Agora usava a sua armadura, e sobre ela um quimono marrom simples, espadas ao sash. A brecha atrás dele era fechada pelos últimos dos seus guardas e a falange movia-se com passo comedido rumo ao molhe.

Bastardo, pensou Blackthorne. Você é um bastardo cruel, de tripas geladas, sem coração, mas tem majestade, não há dúvida.

Vira Mariko ser carregada para baixo, ajudada por uma jovem, e presumira que estivesse ferida, mas não gravemente, por que todos os samurais com ferimentos graves eram mortos imediatamente, se quisessem, ou se não pudessem se matar, e ela era samurai.

Tinha as mãos muito fracas, mas agarrou o leme, aprumou-se ajudado por um marinheiro, e sentiu-se melhor, a leve brisa dissipando os vestígios de náusea. Ainda atordoado, oscilando sobre os pés, observou Toranaga.

Houve um súbito clarão vindo do torreão e o débil ecoar de sinos de alarme. Depois, dos muros do castelo, fogos começaram a se lançar para as estrelas. Fogos de aviso.

Jesus Cristo, eles devem ter recebido a notícia, devem ter sabido da fuga de Toranaga.

Em meio ao grande silêncio, viu Toranaga olhar para trás e para cima. Luzes começaram a bruxulear por toda a cidade. Sem pressa, Toranaga voltou-se e subiu a bordo.

Do norte, gritos distantes desciam com o vento. Buntaro! Deve ser ele, com o resto da coluna. Blackthorne perscrutou a escuridão à distância, mas não conseguiu ver nada. Ao sul a brecha entre os cinzentos atacantes e os marrons defensores estava se fechando rapidamente. Blackthorne avaliou quantidades. Mais ou menos iguais no momento. Mas por quanto tempo?

- Keirei! - Todos a bordo se ajoelharam e se curvaram profundamente quando Toranaga veio ao convés. Toranaga fez um gesto a Yabu, que o seguia. Imediatamente Yabu tomou o comando, dando ordens para zarpar. Cinqüenta samurais da falange subiram correndo a escada de embarque para tomar posições de defesa, de frente para a praia, armando os arcos.

Blackthorne sentiu alguém puxar-lhe a manga.

- Anjin-san!

- Hai? - Olhou para o rosto do capitão. O homem proferiu uma torrente de palavras, apontando para o leme. Blackthorne percebeu que o capitão presumia que ele estivesse no comando e pedia permissão para zarpar.

- Hai, capitão-san - respondeu. - Levantar ferros! Isogi! - Sim, depressa, disse a si mesmo, perguntando-se como conseguira lembrar a palavra tão facilmente.

A galera afastou-se lentamente do molhe, ajudada pelo vento e impelida pelos hábeis remadores. Então Blackthorne viu os cinzentos atacarem o quebra-mar, e o violento assalto começou. Naquele instante, saindo da escuridão por trás de um alinhamento de botes encalhados na areia surgiram três homens e uma jovem enredados num combate de retirada com nove cinzentos. Blackthorne reconheceu Buntaro e a jovem Sono.

Buntaro liderava a retirada para o molhe, a espada ensangüentada, setas fincadas na armadura sobre o peito e as costas. A garota estava armada com uma lança, mas cambaleava, sem fôlego. Um dos marrons parou corajosamente para cobrir a retirada. Os cinzentos o engoliram. Buntaro subiu correndo os degraus, a garota ao lado dele com o último marrom, depois se voltou e atacou os cinzentos como um touro enlouquecido. Os dois primeiros foram arremessados para fora do ancoradouro: um quebrou as costas contra as pedras embaixo, o outro caiu berrando, sem o braço direito. Os cinzentos hesitaram momentaneamente, dando à jovem tempo para assestar a lança, mas todos a bordo sabiam que era apenas um gesto. O último marrom se precipitou à frente do amo e se lançou de cabeça contra o inimigo. Os cinzentos o liquidaram, depois atacaram maciçamente.

Arqueiros do navio disparavam saraivada atrás de saraivada, matando ou mutilando todos os cinzentos menos dois. Uma espada ricocheteou no elmo de Buntaro e bateu-lhe no ombro da armadura. Buntaro golpeou o cinzento sob o queixo com o antebraço protegido de armadura, quebrando-lhe o pescoço, e se atirou contra o último.

Esse homem também morreu.

A garota estava de joelhos agora, tentando recobrar o fôlego. Buntaro não perdeu tempo certificando-se de que os cinzentos estavam mortos. Simplesmente decepou-lhes a cabeça com golpes únicos, perfeitos, e depois, quando o molhe estava completamente seguro, voltou-se para o mar, acenou para Toranaga, exausto mas feliz. Toranaga retribuiu o aceno, igualmente satisfeito.

O navio estava a vinte jardas do molhe e a brecha continuava se alargando.

- Capitão-san - chamou Blackthorne, gesticulando com urgência -, volte ao ancoradouro! Isogi!

Obediente, o capitão gritou as ordens. Todos os remos pararam e começaram a se mover em sentido contrário. Imediatamente Yabu arremeteu do outro lado do tombadilho e falou energicamente ao capitão. A ordem foi clara. O navio não devia retornar.

- Há muito tempo, pelo amor de Cristo! Olhe! - Blackthorne apontou para o trecho de terra batida, vazio, e o quebramar, onde os ronins estavam mantendo os cinzentos cercados.

Mas Yabu balançou a cabeça.

O afastamento era de trinta jardas agora e a mente de Blackthorne gritava: o que é que há com você? Aquele é Buntaro, o marido dela!

- Você não pode deixá-lo morrer, é um dos nossos! - gritou para Yabu e para o navio. - Ele! Buntaro! - Voltou-se para o capitão. - De volta para lá. Isogi! - Mas desta vez o marujo meneou a cabeça, sem ação, manteve a rota de fuga e o mestre remador continuou a bater no grande tambor.

Blackthorne correu para Toranaga, que estava de costas para ele, estudando a praia e o ancoradouro. Imediatamente quatro samurais guarda-costas se puseram no caminho do piloto, espadas levantadas. Ele chamou:

- Toranaga-sama! Dozo! Ordene que o navio volte! Lá! Dozo - por favor! Volte!

- Iyé, Anjin-san. - Toranaga apontou uma vez para os archotes de aviso no castelo e uma vez para o quebra-mar, e deulhe as costas de novo com determinação.

- Por que você, seu covarde de merda... - começou Blackthorne, mas parou. Saiu correndo para a amurada e se debruçou. - Naaaaadem! - gritou ele, fazendo os gestos. - Nadem, pelo amor de Cristo!

Buntaro compreendeu. Pôs a jovem em pé, falou-lhe e empurrou-a ligeiramente na direção da beirada do ancoradouro, mas ela gritou e caiu de joelhos diante dele. Obviamente não sabia nadar.

Desesperadamente Blackthorne esquadrinhou o convés. Não havia tempo para descer um bote. A distância era muita para atirar uma corda. Ele não tinha forças suficientes para nadar até lá e voltar. Não havia salva-vidas. Como um último recurso, correu para os remadores mais próximos, dois a cada grande remo, e interrompeu-lhes o movimento. Todos os remos a bombordo ficaram momentaneamente fora de tempo, remo batendo contra remo. A galera girou desajeitadamente, a batida parou, e Blackthorne mostrou aos remadores o que queria.

Dois samurais avançaram para contê-lo, mas Toranaga ordenou-lhes que se afastassem.

Juntos, Blackthorne e quatro marujos atiraram um remo como um dardo. A madeira planou um instante, depois chocou-se com a água habilmente, e o seu impulso carregou-a para o ancoradouro.

Naquele momento houve um grito de vitória no quebra-mar. Reforços de cinzentos afluíam rapidamente da cidade e, embora os samurais ronins estivessem rechaçando os atacantes presentes, era apenas uma questão de tempo para que o muro fosse rompido.

- Vamos - gritou Blackthorne. - Isogiiiii!

Buntaro puxou a garota, fazendo-a levantar-se, apontou para o remo e depois para o navio. Ela se curvou debilmente. Ele a ignorou e voltou toda a atenção para a batalha, suas pernas imensas firmes sobre o molhe.

A garota chamou alguém no navio. Uma voz de mulher respondeu e ela pulou. Sua cabeça feriu a superfície. Ela se debateu na direção do remo e agarrou-o. Ele lhe agüentou o peso com facilidade e ela deu impulso com as pernas. Uma pequena onda apanhou-a, Sono flutuou sobre ela com segurança e se aproximou mais da galera. Então o medo fez que afrouxasse o aperto e o remo escorregou para longe. Ela se debateu por um momento interminável, depois desapareceu abaixo da superfície.

Não voltou mais.

Buntaro estava sozinho agora sobre o ancoradouro e observava a evolução da batalha. Mais cinzentos de reforço, alguns a cavalo, vinham do sul para se unir aos outros e ele sabia que logo o quebra-mar seria tragado por um mar de homens. Cuidadosamente olhou para o norte, oeste e sul. Depois deu as costas à batalha e se dirigiu para a ponta do molhe. A galera estava seguramente a setenta jardas dessa extremidade, parada, esperando. Todos os barcos de pesca haviam sumido da área há muito tempo e esperavam tão longe quanto possível de ambos os lados da enseada, suas luzes de âncora parecendo inúmeros olhos de gatos na escuridão.

Quando atingiu o fim do cais, Buntaro tirou o elmo, o arco, a aljava e a armadura, e colocou tudo ao lado das bainhas. A espada mortífera e a espada curta, nuas, ele as colocou separadamente. Depois, despido até a cintura, apanhou seu equipamento e atirou-o ao mar. Examinou reverentemente a espada mortífera, depois jogou-a com toda a força, bem longe. Desapareceu quase sem ruído.

Ele se curvou formalmente para a galera, para Toranaga, que se dirigiu imediatamente para o tombadilho, onde podia ser visto. Retribuiu a reverência.

Buntaro ajoelhou-se e colocou a espada curta cuidadosamente sobre a pedra à sua frente, o luar rutilando sobre a lâmina, e ficou imóvel, quase que como em oração, encarando a galera.

- Que diabos ele está esperando? - resmungou Blackthorne, a galera lugubremente silenciosa sem a batida do tambor.

- Por que não pula e nada?

- Está se preparando para cometer seppuku.

Mariko estava em pé ao seu lado, sustentada por uma jovem.

- Jesus, Mariko, a senhora está bem?

- Sim - disse ela, mal o ouvindo, o rosto abatido mas nem por isso menos belo.

Ele viu a atadura grosseira no seu braço esquerdo perto do ombro onde a manga fora cortada, o braço descansando numa tipóia de tecido rasgado de um quimono. Havia sangue manchando a atadura e um filete correndo-lhe pelo braço.

- Estou muito contente... - Então apreendeu o que ela dissera.

- Seppuku? Ele vai se matar? Por quê? Ele tem tempo de sobra para chegar até aqui! Se não souber nadar, olhe... há um remo que lhe servirá facilmente de apoio. Ali, perto do molhe, está vendo? A senhora não ve?

- Sim, mas meu marido sabe nadar, Anjin-san - disse ela.

- Todos os oficiais do Senhor Toranaga devem... devem aprender, ele insiste. Mas resolveu não nadar.

- Pelo amor de Cristo, por quê?

Uma súbita agitação irrompeu na praia, alguns mosquetes dispararam, e o muro foi rompido. Alguns dos samurais ronins recuaram e o feroz combate individual começou de novo. Desta vez a ponta de lança do inimigo foi contida, e repelida.

- Diga-lhe que nade, por Deus

- Ele não fará isso, Anjin-san. Está se preparando para morrer.

- Se quer morrer, pelo amor de Cristo, por que não vai para lá? - perguntou Blackthorne, de dedo em riste para a luta. - Por que não ajuda os seus homens? Se quer morrer, por que não morre lutando, como um homem?

Mariko, sempre apoiada à jovem, não desviou o olhar do ancoradouro.

- Porque poderia ser capturado, e se nadasse também poderia ser capturado, e depois o inimigo o exibiria diante do povo comum, o envergonharia, faria coisas terríveis. Um samurai não pode ser capturado e permanecer samurai... a pior desonra, ser capturado por um inimigo, por isso meu marido está fazendo o que um homem, um samurai, deve fazer. Um samurai morre com dignidade. Pois o que é a vida para um samurai? Nada em absoluto. A vida é sofrimento, neh? É direito e dever dele morrer com honra, diante de testemunhas.

- Que desperdício estúpido! - disse Blackthorne por entre dentes.

- Seja paciente conosco, Anjin-san.

- Paciente para quê? Para mais mentiras? Por que a senhora não confia em mim? Não mereci isso? A senhora mentiu, não mentiu? Fingiu desmaiar e isso era um sinal. Não era? Eu lhe perguntei e a senhora mentiu.

- Recebi ordens... foi uma ordem para protegê-lo. Claro que confio no senhor.

- A senhora mentiu - disse ele, sabendo que não estava sendo razoável, mas perdera o controle, abominando a insana desconsideração para com a vida e ansiando por sono e paz, ansiando pela sua própria comida, sua própria bebida, seu próprio barco e sua própria espécie. - Voces são todos animais - disse ele em inglês, sabendo que não eram, e se afastou.

- O que ele estava dizendo, Mariko-san? - perguntou a jovem, a muito custo disfarçando a própria repugnância. Era meia cabeça mais alta do que Mariko, de ossatura maior, de rosto quadrado com pequenos dentes pontiagudos. Era Usagi Fujiko, sobrinha de Mariko, e tinha dezenove anos.

Mariko contou-lhe.

- Que homem horrível! Que maneiras abomináveis! Repulsivo, neh? Como a senhora tolera estar perto dele?

- Porque salvou a honra do nosso amo. Sem a sua bravura, estou certa de que o Senhor Toranaga teria sido capturado... nós todos teríamos sido capturados. - As duas mulheres estremeceram.

- Os deuses nos protejam dessa vergonha! - Fujiko deu uma olhada em Blackthorne, que estava encostado à amurada do convés, olhando a praia. Observou um momento. - Ele parece um gorila dourado com olhos azuis... uma criatura para assustar as crianças. Horrendo, neh? - Fujiko teve um calafrio, desviou a atenção dele e olhou novamente para Buntaro. Após um momento, disse: - Invejo seu marido, Mariko-san.

- Sim - respondeu Mariko tristemente. - Mas gostaria que ele tivesse um assistente. - Por costume outro samurai sempre assistia a um seppuku, erguendo-se logo atrás do homem ajoelhado, para decapitá-lo com um único golpe antes que a agonia se tornasse insuportável e incontrolável e portanto envergonhasse o homem no momento supremo da sua vida. Sem um auxiliar, poucos homens conseguiam morrer sem desonra.

- Karma - disse Fujiko.

- Sim. Tenho pena dele. Era a única coisa que temia: não ter um assistente.

- Temos mais sorte do que os homens, neh? - As mulheres samurais cometiam seppuku enfiando a faca na garganta e por isso não precisavam de assisténcia.

- Sim - disse Mariko.

Berros e gritos de batalha vieram soprados pelo vento, distraindo-os. O quebra-mar foi novamente rompido. Uma pequena companhia de cinqüenta samurais ronins de Toranaga surgiu em disparada do norte, com alguns cavaleiros entre eles. Novamente a ruptura foi ferozmente contida, os atacantes rechaçados e mais alguns momentos ganhos.

Tempo para que? estava se perguntando Blackthorne com amargura. Toranaga está seguro agora. Está ao mar. Traiu a todos vocês.

O tambor começou de novo.

Os remos feriram a água, a proa afundou e começou a cortar as ondas, e logo surgiu um sulco à ré. Fogos de aviso ainda ardiam em cima dos muros do castelo. Quase toda a cidade estava desperta.

A massa principal de cinzentos atacou o quebra-mar. Os olhos de Blackthorne dirigiram-se para Buntaro.

- Seu pobre bastardo! - disse em ingles. - Pobre e estúpido bastardo!

Girou sobre os calcanhares e caminhou ao longo do convés principal, em direção à proa, à espreita de recifes à frente. Ninguém, exceto Fujiko e o capitão, notou-o afastando-se do tombadilho.

Os remadores puxavam com excelente disciplina e o navio avançava. O mar estava excelente, o vento favorável. Blackthorne provou o sal e sentiu-o com alegria. Então detectou os navios aglomerados à boca da enseada, meia légua à frente. Barcos de pesca, sim, mas apinhados de samurais.

- Estamos enrascados - disse em voz alta, sabendo de algum modo que se tratava de inimigos.

Blackthorne olhou para trás. Os cinzentos calmamente escalavam o quebra-mar, enquanto outros rumavam sem pressa para o molhe, em direção de Buntaro, mas quatro cavaleiros - marrons - surgiram a galope pelo trecho de terra batida, vindos do norte, com um quinto cavalo, um cavalo sobressalente, puxado pelo comandante. Esse homem subiu com estrépito os largos degraus de pedra do embarcadouro com o cavalo sobressalente e percorreu-lhe toda a extensão enquanto os outros tres se atiravam contra os cinzentos invasores.

Buntaro também havia olhado em torno, mas permanecia ajoelhado e, quando o homem susteve as rédeas atrás dele, afastou-o com um gesto e segurou a faca com ambas as mãos, a lâmina voltada para o corpo.

Imediatamente Toranaga pôs as mãos em concha e gritou:

- Buntaro-san! Vá com eles agora! Tente escapar!

O grito estendeu-se sobre as ondas, foi repetido, e Buntaro o ouviu claramente. Hesitou, atordoado, a faca suspensa no ar. Novamente o chamado, insistente e imperioso.

Com esforço Buntaro se arrancou do mundo da morte e gelidamente contemplou a vida e a fuga que era ordenada. O risco era grande. Melhor morrer aqui, disse a si mesmo. Toranaga não sabe disso? Aqui está uma morte honrosa. Lá, a captura quase certa. Fugir para onde? Trezentas ris até Yedo? A captura é certa!

Sentiu a força do braço, viu a adaga firme, decidida, a ponta aguçada pairando perto do seu abdome nu, e ansiou pela agonia libertadora da morte, afinal. Finalmente uma morte para expiar toda a vergonha: a vergonha por seu pai se ajoelhando diante do estandarte de Toranaga, quando deviam ter-se mantido fiéis a Yaemon, herdeiro do taicum, conforme haviam jurado; a vergonha por haver matado tantos homens que honradamente serviam à causa do taicum contra o usurpador, Toranaga; a vergonha pela mulher, Mariko, e pelo único filho, ambos maculados para sempre, o filho por causa da mãe e ela por causa do pai, o monstruoso assassino, Akechi Jinsai. E a vergonha de saber que por causa deles seu próprio nome estava conspurcado para sempre.

Quantos milhares de agonias não suportei por causa dela?

Sua alma clamava pelo esquecimento. Agora tão perto, fácil, honroso.

A próxima vida será melhor, como poderia ser pior?

Ainda assim, pousou a faca e obedeceu, e se lançou de volta ao precipício da vida. Seu suserano ordenara o último sofrimento e decidira cancelar a sua tentativa de encontrar a paz. O que mais existe para um samurai além da obediência?

Levantou-se de repente, saltou para a sela, fincou os calcanhares nos flancos do cavalo e, junto com o outro homem, disparou. Outros ronins a cavalo saíram a galope da noite a fim de guardar-lhes a retirada e liquidar os cinzentos na liderança. Depois também desapareceram, com alguns cavaleiros cinzentos a persegui-los.

Uma gargalhada irrompeu por todo o navio.

Toranaga martelou a amurada com o punho, alegremente, Yabu e os samurais riam a bandeiras despregadas. Até Mariko ria.

- Um homem se safou, mas e os mortos todos? – gritou Blackthorne enraivecido. - Olhem para a praia... deve haver trezentos, quatrocentos corpos lá. Olhem para eles, pelo amor de Cristo!

Mas o seu grito não varou a gargalhada.

Então um grito de alarme do vigia de proa. E o riso extinguiu-se.

 

- Podemos passar através deles, capitão? - perguntou Toranaga calmamente. Estava observando os barcos de pesca agrupados quinhentas jardas à frente, e a sedutora passagem que haviam deixado entre si.

- Não, senhor.

- Não temos alternativa - disse Yabu. - Não há mais nada que possamos fazer. - Olhou para trás para os cinzentos concentrados que esperavam na praia .e no molhe, seus insultos indistintos e escarnecedores cavalgando o vento.

Toranaga e Yabu encontravam-se na popa. O tambor silenciara e a galera arrastava-se em mar brando. Todos a bordo esperavam para ver o que seria resolvido. Sabiam que estavam encurralados. Em terra, catástrofe, à frente, catástrofe, se esperassem, catástrofe. A rede se fecharia cada vez mais e então seriam capturados. Se fosse necessário, Ishido poderia esperar dias.

Yabu estava espumando. Se tivéssemos corrido para a boca da enseada assim que embarcamos, ao invés de desperdiçar tempo com Buntaro, estaríamos em segurança ao mar agora, dizia a si mesmo. Toranaga está perdendo os miolos. Ishido acreditará que o traí. Não há nada que eu possa fazer - a menos que consigamos abrir caminho, e ainda assim estou comprometido a lutar por Toranaga contra Ishido. Nada que eu possa fazer. Exceto dar a Ishido a cabeça de Toranaga. Neh? Isso faria de você um regente e lhe traria o Kwanto, neh? E então, com os seis meses de tempo e os samurais com mosquetes, por que não até presidente do conselho de regentes? Ou por que não o grande prêmio? Eliminar Ishido e tornar-se general-chefe do herdeiro, senhor protetor e governador do Castelo de Osaka, o general responsável por toda a lendária riqueza do torreão, com poder sobre o império durante a minoridade de Yaemon, e depois com poder inferior apenas ao de Yaemon. Por que não?

Ou até o maior prêmio de todos: shogun. Elimine Yaemon e você será shogun. Tudo por uma única cabeça e alguns deuses benevolentes!

Os joelhos de Yabu se sentiram fracos à medida que sua cobiça se elevava. Tão fácil de fazer, pensou ele, mas não há como tomar a cabeça e escapar - ainda não há.

- Ordenar posições de ataque! - comandou Toranaga finalmente.

Quando Yabu deu as ordens e os samurais começaram a se preparar, Toranaga voltou a atenção para o bárbaro, que ainda estava perto da popa, onde parara quando o alarme fora dado, encostado ao curto mastro principal.

Gostaria de poder compreendê-lo, pensou Toranaga. Num momento tão corajoso, no momento seguinte tão fraco. Num momento tão valioso, no momento seguinte tão inútil. Num momento matador, no momento seguinte covarde. Num momento dócil, no momento seguinte perigoso. Ele é homem e mulher, yang e yin. Não é mais que forças opostas, e imprevisível.

Toranaga estudara-o cuidadosamente durante a escapada do castelo, durante a emboscada e depois. Ouvira de Mariko, do capitão e dos outros o que acontecera durante a luta a bordo. Testemunharam a sua raiva surpreendente há poucos momentos, quando Buntaro fora deixado para trás, ouvira o grito e vira com olhos furtivos a censura estampada no rosto do homem, e depois, quando deveria ter havido riso, apenas raiva.

Por que não rir quando um inimigo é batido em esperteza? Por que não rir para afastar a tragédia para longe quando o karma interrompe a bela morte de um autêntico samurai, quando o karma causa a morte inútil de uma linda garota? Não é apenas através do riso que nos tornamos um com os deuses e assim podemos suportar a vida e superar todo o horror, o desperdício e o sofrimento aqui na terra? Como nesta noite, assistindo ao encontro daqueles homens com seu destino, ali, naquela praia, naquela noite suave, devido a um karma ordenado mil vidas atrás, ou talvez há apenas uma.

Não é apenas através do riso que podemos permanecer humanos?

Por que o piloto não percebe que também é governado por karma, assim como eu sou, como todos somos, como até esse Jesus Cristo foi, pois se se soubesse a verdade se saberia que foi apenas o seu karma que o fez morrer desonrado como um criminoso comum, entre outros criminosos comuns, na colina de que os padres bárbaros falam.

Tudo karma.

Que barbaridade pregar um homem a um pedaço de madeira e esperar que ele morra. São piores que os chineses, que se comprazem com a tortura.

- Pergunte-lhe, Yabu-san! - disse Toranaga.

- Senhor?

- Perguntê-lhe o que fazer. Ao piloto. Isto não e uma batalha marítima? O senhor não me disse que o piloto é um gênio ao mar? Ótimo, vejamos se o senhor tem razão. Deixe-o provar isso.

A boca de Yabu era apenas uma linha cruel e apertada, Toranaga podia sentir o medo do homem e se deliciou com isso.

- Mariko-san - vociferou Yabu. - Pergunte ao piloto como sair... como passar por entre aqueles navios.

Obedientemente Mariko afastou-se da amurada, a garota ainda lhe servindo de apoio.

- Não, estou bem agora, Fujiko-san - disse ela. - Obrigada. - Fujiko deixou-a ir e olhou Blackthorne com desagrado.

- Ele diz "com canhões", Yabu-san - disse Mariko.

- Diga-lhe que ele terá que fazer melhor do que isso se quiser conservar a cabeça!

- Devemos ser pacientes com ele, Yabu-san - interrompeu Toranaga. - Mariko-san, diga-lhe polidamente o seguinte: "Lamentavelmente não temos canhões. Não há outro meio de passar? Por terra é impossível". Traduza exatamente o que ele responder. Exatamente.

Mariko fez isso.

- Sinto muito, senhor, mas ele disse "não". Apenas isso: "Não". Sem polidez.

Toranaga moveu o sash e coçou-se sob a armadura.

- Bem - disse cordialmente -, o Anjin-san fala em canhões e ele é o perito, portanto com canhões será. Capitão, vá até lá! - Seu dedo áspero, calejado, apontou malevolamente para a fragata portuguesa. - Prepare os homens, Yabu-san. Se os bárbaros meridionais não me emprestarem canhões, o senhor terá que tomá-los. Não é?

- Com um enorme prazer - disse Yabu suavemente.

- O senhor tinha razão, ele é um gênio.

- Mas o senhor encontrou a solução, Toranaga-san.

- É fácil encontrar soluções depois que a resposta foi dada, neh? Qual é a solução para o Castelo de Osaka, aliado?

- Não há solução. Nisso o taicum foi perfeito.

- Sim. Qual é a solução para a traição?

- Naturalmente, morte ignominiosa. Não compreendo por que me pergunta isso.

- Um pensamento fugaz... aliado. - Toranaga olhou de relance para Blackthorne. - Sim, é um homem inteligente. Tenho uma grande necessidade de homens inteligentes. Mariko-san, os bárbaros me darão os canhões?

- Naturalmente. Por que não dariam? - Nunca ocorrera a ela que eles não dariam. Ainda estava cheia de apreensão por Buntaro. Teria sido tão melhor permitir-lhe morrer ali. Por que colocar-lhe a honra em risco? Ela se perguntava por que Toranaga ordenara que Buntaro partisse por terra, bem no último momento. Toranaga poderia, com a mesma facilidade, ter ordenado que ele nadasse para o barco. "Teria sido muito mais seguro e havia muito tempo para isso. Ele poderia até ter ordenado isso assim que Buntaro atingira a extremidade do molhe. Por que esperar! Seu eu mais secreto respondia que o seu senhor devia ter tido uma boa razão para esperar e ordenar o que ordenara.

- E se não derem? Está preparada para matar cristãos, Mariko-san? - perguntou Toranaga. - Essa não é a lei mais severa deles? "Não matarás"?

- Sim, é. Mas pelo senhor, iremos prazerosamente para o inferno, meu marido, meu filho e eu.

- Sim. Você é uma verdadeira samurai e não me esquecerei de que empunhou uma espada para me defender.

- Por favor, não me agradeça. Se ajudei, de algum modo de pouca importância, foi porque era o meu dever. Se alguém deve ser lembrado, por favor que seja o meu marido ou o meu filho. Eles são de mais valia para o senhor.

- No momento você é mais valiosa para mim. E poderia sê-lo mais ainda.

- Diga-me como, senhor, e assim será feito.

- Repudie o Deus estrangeiro.

- Senhor. - O rosto dela congelou-se.

- Repudie o seu Deus. Você deve lealdades demais.

- Quer dizer, tornar-me apóstata, senhor? Renunciar ao cristianismo?

- Sim, a menos que você ponha esse Deus no lugar que lhe cabe: no fundo de seu espírito, não à tona.

- Por favor, desculpe-me, senhor - disse ela tremulamente -, mas a minha religião nunca interferiu na minha lealdade para com o senhor. Sempre a mantive como assunto particular, o tempo todo. Como foi que lhe falhei?

- Ainda não me falhou. Mas falhará.

- Diga-me o que devo fazer para agradar-lhe.

- Os cristãos podem se tornar meus inimigos, neh?

- Os seus inimigos são os meus, senhor.

- Os padres se opõem a mim agora. Podem ordenar aos cristãos que se levantem contra mim.

- Não podem, senhor, são homens de paz.

- E se continuarem a se opor a mim? Se os cristãos fizerem guerra contra mim?

- O senhor nunca precisará temer pela minha lealdade. Nunca.

- Esse Anjin-san talvez diga a verdade e os seus padres talvez falem com língua falsa.

- Há padres bons e maus, senhor. Mas o senhor é o meu suserano.

- Muito bem, Mariko-san - disse Toranaga. - Aceitarei isso. Ordeno-lhe que se torne amiga desse bárbaro, aprenda tudo o que ele sabe, relate tudo o que ele disser, aprenda a pensar como ele, não "confesse" nada sobre o que está fazendo, trate todos os padres com desconfiança, relate tudo o que os padres lhe perguntarem ou lhe disserem. O seu Deus deve se encaixar no meio disso, ou não se encaixar em parte alguma.

Mariko afastou um fio de cabelo dos olhos.

- Posso fazer tudo isso, senhor, e continuar cristã. Juro.

- Ótimo. Jure pelo seu Deus cristão.

- Juro diante de Deus.

- Ótimo. - Toranaga voltou-se e chamou: - Fujiko-san!

- Sim, senhor?

- Trouxe criadas consigo?

- Sim, senhor. Duas.

- Ceda uma a Mariko-san. Mande a outra buscar chá.

- Há saquê se o senhor quiser.

- Chá. Yabu-san, prefere chá ou saquê?

- Chá, por favor.

- Traga saquê para o Anjin-san.

A luz reluziu sobre o pequeno crucifixo de ouro que pendia do pescoço de Mariko. Ela viu Toranaga olhá-lo fixamente.

- O senhor... o senhor deseja que eu deixe de usá-lo? Que o lance fora?

- Não - disse ele. - Use-o como lembrete do seu juramento.

Todos observaram a fragata. Toranaga sentiu que alguém o olhava e correu os olhos em torno. Viu o rosto duro, os frios olhos azuis e sentiu o ódio - não, ódio não, a desconfiança. Como se atreve o bárbaro a suspeitar de mim?

- Pergunte ao Anjin-san por que ele simplesmente não disse que há muitos canhões no navio bárbaro? Que fôssemos buscá-los para nos escoltar para fora da armadilha?

Mariko traduziu. Blackthorne respondeu.

- Ele disse... - Mariko hesitou, depois continuou num fôlego só: - Por favor, desculpe-me, ele disse: "E bom que ele use a própria cabeça".

Toranaga riu.

- Agradeça-lhe pela dele. Foi muito útil. Espero que ele a conserve sobre os ombros. Diga-lhe que agora somos iguais.

- Ele disse: "Não, não somos iguais, Toranaga-sama. Mas dê-me o meu navio e uma tripulação e eu limparei os mares. De qualquer inimigo".

- Mariko-san, acha que ele me considera como aos outros - os espanhóis e os bárbaros meridionais? - A pergunta foi feita negligentemente.

A brisa soprou-lhe fios de cabelo por sobre os olhos. Mariko os afastou de modo cansado.

- Não sei, sinto muito. Talvez sim, talvez não. Quer que eu lhe pergunte? Sinto muito, mas ele é... é muito estranho. Receio não compreendê-lo. Em absoluto.

- Temos tempo de sobra. Sim. Oportunamente ele se explicará conosco.

 

Blackthorne vira a fragata silenciosamente soltar-se das amarras no momento em que a escolta de cinzentos saíra correndo. Vira-a descer a chalupa, que rapidamente espiara o navio longe do atracadouro no molhe, em meio à correnteza. Em seguida a fragata deitara algumas amarras em águas profundas a pouca distância da praia, ilesa, uma leve âncora de proa segurando-a suavemente, paralela à praia. Essa era a manobra habitual de todos os navios europeus em enseadas estrangeiras ou hostis quando havia a ameaça de um perigo em terra. Ele também sabia que embora não houvesse - nem tivesse havido – nenhum movimento suspeito no convés, a esta altura todos os canhões estariam preparados, os mosquetes distribuídos, as metralhas, balas de canhão e a munição preparadas em abundância, cutelos esperando nas prateleiras - e homens armados nos ovéns. Haveria olhos esquadrinhando em todos os sentidos. A galera teria sido notada no momento em que mudara o curso. Os dois canhões de popa e trinta peças de artilharia, que ficavam bem na sua direção, estariam apontados para eles. Os atiradores portugueses eram os melhores do mundo, depois dos ingleses.

E devem estar sabendo sobre.Toranaga, pensou Blackthorne com grande amargor, porque são espertos e devem ter perguntado aos seus carregadores ou aos cinzentos sobre o que estava acontecendo. Ou a esta altura os malditos jesuítas, que sabem de tudo, já teriam enviado uma mensagem sobre a fuga de Toranaga, e sobre mim.

Sentia os curtos cabelos em pé. Qualquer um daqueles canhões pode nos mandar para o inferno com uma única explosão. Sim, mas estamos em segurança porque Toranaga se encontra a bordo. Graças a Deus por Toranaga.

- Meu amo pergunta qual é o seu costume quando o senhor quer se aproximar de uma belonave - estava dizendo Mariko.

- Se se tem um canhão, dispara-se uma saudação. Ou podem-se emitir sinais com bandeiras, pedindo permissão para se aproximar.

- E se não se têm bandeiras, pergunta o meu amo?

Embora ainda se encontrassem fora do alcance dos canhões, para Blackthorne era quase como se já estivessem sob a mira de um deles, ainda que as portinholas continuassem fechadas. O navio carregava dezesseis canhões no convés principal, dois na popa e dois na proa. O Erasmus poderia capturá-lo sem sombra de dúvida, disse ele a si mesmo, desde que a tripulação fosse adequada. Gostaria de capturá-lo. Acorde, pare de devanear, não estamos a bordo do Erasmus e sim desta galera pesadona e aquele navio português é a única esperança que temos. Por trás dos canhões dele estaremos salvos.

- Diga ao capitão para hastear a bandeira de Toranaga no topo do mastro. Isso será suficiente, senhora. Tornará a coisa formal e informará a eles sobre quem está a bordo, embora eu aposte que eles já sabem.

Isso foi feito rapidamente. Todo mundo na galera parecia mais confiante agora. Blackthorne notou a mudança. Até ele se sentiu melhor sob a bandeira.

- Meu amo pergunta como lhes dizemos que queremos emparelhar.

- Sem bandeiras sinalizadoras, ele tem duas escolhas: esperar fora do alcance dos canhões e enviar uma delegação num pequeno bote, ou ir diretamente até uma distância de onde se possa chamar a bordo.

- Meu amo pergunta qual é o seu conselho.

- Ir direto e emparelhar. Não há motivo para cautela. O Senhor Toranaga está a bordo. É o daimio mais importante do império. Claro que o navio nos ajudará... Oh, Jesus Deus!

- Senhor?

Mas ele não respondeu, então ela traduziu rapidamente o que fora dito e ouviu a pergunta seguinte de Toranaga.

- A fragata fará o qué? Por favor, explique o seu pensamento e o motivo por que parou.

- De repente entendi, ele está em guerra com lshido agora. Não está? Portanto a fragata pode não estar inclinada a ajudá-lo.

- Claro que o ajudará.

- Não. Que lado mais beneficia os portugueses, o do Senhor Toranaga ou o de lshido? Se eles acreditarem que é o de lshido, nos mandarão pelos ares.

- É impensável que os portugueses disparem contra qualquer navio japonês - disse Mariko imediatamente.

- Acredite-me, eles o farão, senhora. E aposto como aquela fragata não nos deixará emparelhar. Eu não deixaria, se fosse o piloto dela. Jesus Cristo! - Blackthorne arregalou os olhos na direção da praia.

Os cinzentos insultantes haviam deixado o molhe e estavam se espalhando paralelamente à praia. Nenhuma chance ali, pensou ele. Os barcos de pesca continuavam a obstruir malevolamente a garganta da enseada. Nenhuma chance lá, tampouco.

- Diga a Toranaga que há um outro meio de sair da enseada. Esperar por uma tempestade. Talvez pudéssemos enfrentá-la, enquanto os barcos de pesca não podem. Então poderíamos escorregar pela rede.

Toranaga interrogou o capitão, que respondeu longamente, depois Mariko disse a Blackthorne:

- Meu amo pergunta se o senhor acha que haverá uma tempestade.

- Meu nariz diz que sim. Mas não já. Dentro de dois ou três dias. Podemos esperar tudo isso?

- O seu nariz lhe diz? Há um cheiro para tempestades?

- Não, senhora. É apenas uma expressão.

Toranaga ponderou. Depois deu uma ordem:

- Vamos nos aproximar até ser possível chamar a bordo, Anjin-san.

- Diga-lhe, então, que vá diretamente em direção à popa. Assim seremos um alvo menor. Diga-lhe que eles são traiçoeiros. Sei quão seriamente traiçoeiros eles são quando os seus interesses estão ameaçados. São piores do que os holandeses! Se aquele navio ajudar Toranaga a escapar, lshido vai descontar em todos os portugueses e eles não vão se arriscar a isso.

- Meu amo diz que logo teremos essa resposta.

- Estamos vulneráveis, senhora. Não temos chance alguma contra aqueles canhões. Se o navio for hostil, mesmo que seja simplesmente neutro, estamos afundados.

- Meu amo diz que sim, mas será seu dever persuadi-los a serem benevolentes.

- Como posso fazer isso? Sou inimigo deles.

- Meu amo diz que na guerra, como na paz, um bom inimigo pode ser mais valioso do que um bom aliado. Ele diz que o senhor conhece a mente deles... pensará num modo de convencê-los.

- O único meio seguro é pela força.

- "Ótimo. Concordo", diz o meu amo. Por favor, diga-me de que modo o senhor atacaria aquele navio como pirata.

- O quê?

- Ele disse: "Ótimo. Concordo. De que modo o senhor atacaria o navio como pirata, como o conquistaria? Preciso usar os canhões deles". Desculpe, não ficou claro, Anjin-san?

 

- E eu digo novamente que vou mandá-lo pelos ares declarou Ferreira, o capitão-mor.

- Não - retrucou Dell'Aqua, olhando a galera do tombadilho.

- Atirador, ele já está ao alcance?

- Não, Dom Ferreira - respondeu o atirador-chefe. Ainda não.

- Por que mais estaria se aproximando de nós senão por motivos hostis, Eminência? Por que simplesmente não escapou? O caminho está limpo. - A fragata estava longe demais da boca da enseada para que qualquer pessoa a bordo visse os barcos de pesca aglomerados em emboscada.

- Não arriscamos nada, Eminência, e ganhamos tudo - disse Ferreira. - Fingimos não saber que Toranaga está a bordo. Achamos que bandidos, bandidos comandados pelo pirata herege, iam nos atacar. Não se preocupe, será fácil provocá-los assim que estiverem ao alcance.

- Não - ordenou Dell'Aqua.

O Padre Alvito voltou-se da amurada.

- A galera ostenta a bandeira de Toranaga, capitão-mor.

- Bandeira falsa! - disse Ferreira sardonicamente. - É o truque marítimo mais velho do mundo. Não vimos Toranaga. Talvez não esteja a bordo.

- Não.

- Pela morte de Deus, a guerra seria uma catástrofe! Vai prejudicar, se não arruinar, a viagem do Navio Negro deste ano! Não posso permitir isso! Não vou deixar que nada interfira nisso!

- Nossas finanças encontram-se em situação pior do que as suas, capitão-mor - vociferou Dell'Aqua. - Se não comerciarmos este ano, a Igreja irá à bancarrota, fui claro? Não recebemos fundos de Goa ou de Lisboa há três anos e a perda do lucro do ano passado... Deus me dé paciência! Conheço melhor do que o senhor o que está em jogo. A resposta é não!

Rodrigues estava penosamente sentado na sua cadeira de convés, a perna entalada descansando sobre um banquinho estofado que estava amarrado perto da bitácula.

- O capitão-mor tem razão, Eminência. Por que a galera se aproximaria de nós, se não para tentar alguma coisa? Por que não escapou, hem? Eminência, temos uma oportunidade incrível aqui.

- Sim, e trata-se de uma decisão militar - disse Ferreira.

Alvito voltou-se bruscamente.

- Não, Sua Eminência é o árbitro nisto, capitão-mor. Não devemos ferir Toranaga. Devemos ajudá-lo.

- O senhor me disse dúzias de vezes que uma vez que a guerra começasse duraria para sempre - disse Rodrigues. - A guerra começou, não? Vimos que começou. Isso tem que prejudicar o comércio. Com Toranaga morto a guerra está acabada e todos os nossos interesses estão ilesos. Digo que devemos mandar esse navio para o inferno.

- Até nos livramos do herege - disse Ferreira, observando Rodrigues. - O senhor impede a guerra pela glória de Deus e outro herege vai para o tormento.

- Seria uma imperdoável interferência na política deles - disse Dell'Aqua, evitando a verdadeira razão.

- Interferimos o tempo todo. A Companhia de Jesus é famosa por isso. Não somos camponeses simplórios, cabeças duras!

- Não estou sugerindo que sejam. Mas enquanto eu estiver a bordo o senhor não vai afundar aquele navio.

- Então tenha a gentileza de desembarcar.

- Quanto mais depressa o arquiassassino estiver morto, melhor, Eminência - sugeriu Rodrigues. - Ele ou Ishido, que diferença faz? São ambos pagãos, e o senhor não pode confiar em nenhum dos dois. O capitão-mor tem razão, nunca teremos uma oportunidade como esta de novo. E quanto ao nosso Navio Negro? - Rodrigues era o piloto, com direito a quinze avos do lucro todo. O verdadeiro piloto do Navio Negro morrera de sífilis em Macau há três meses e Rodrigues fora tirado do seu navio, o Santa Theresa, e colocado no novo posto, para sua eterna alegria. A sífilis era a razão oficial, lembrou Rodrigues de cara fechada, embora muitos dissessem que o outro fora esfaqueado nas costas por um ronin, numa briga num depósito. Por Deus, esta é a minha grande chance. Nada vai interferir nisso!

- Assumo toda a responsabilidade - estava dizendo Ferreira. - Trata-se de uma decisão militar. Estamos envolvidos numa guerra nativa. Meu navio se encontra em perigo. – Voltou-se para o atirador-chefe. - Já estão ao alcance?

- Bem, Dom Ferreira, depende do que o senhor deseja. - O atirador-chefe soprou no pavio do círio de cera, o que o fez incandescer e faiscar. - Eu poderia lhe acertar a proa agora, ou a popa, ou atingir a meia-nau, o que o senhor preferir. Mas se o senhor quer um homem morto, um homem em particular, então mais um instante ou dois os colocaria ao alcance exato.

- Quero Toranaga morto. E o herege.

- Refere-se ao Inglês, o piloto?

- Sim.

- Alguém terá que apontar o japona. O piloto, eu reconheço, sem dúvida.

- Se o piloto tem que morrer para que se mate Toranaga - disse Rodrigues - e para deter a guerra, então sou a favor, capitão-mor. De outro modo ele devia ser poupado.

- Ele é um herege, um inimigo do nosso país, uma abominação, e já nos causou mais problemas do que um ninho de víboras.

- Já assinalei que em primeiro lugar o Inglês é um piloto, e em último lugar é um piloto, um dos melhores do mundo.

- Pilotos devem ter privilégios especiais? Mesmo os hereges?

- Sim, por Deus. Poderíamos usá-lo, assim como eles nos usam. Seria um maldito desperdício matar tanta experiência. Sem pilotos não há um império incrível, não há comércio, não há nada. Sem mim, por Deus, não há Navio Negro, não há lucro, não há como voltar para casa, portanto a minha maldita opinião é importante!

Houve um grito vindo do topo do mastro:

- Ó do tombadilho, a galera está mudando o rumo! - A galera vinha rumando direto para eles mas girara alguns pontos para bombordo. Imediatamente Rodrigues gritou:

- Posições de ação! Atenção a estibordo! Todas as velas, ho! Ancora para cima! - No mesmo instante acorreram homens para obedecer.

- Qual é o problema, Rodrigues?

- Não sei, capitão-mor, mas estamos saindo para mar aberto. Aquela grande puta está indo a barlavento.

- O que importa isso? Podemos afundá-lo a qualquer momento - disse Ferreira. - Ainda temos que trazer suprimentos para bordo e os padres têm que regressar a Osaka.

- Sim. Mas nenhuma nave hostil vai se pôr a barlavento contra o meu barco. Aquela puta não depende do vento, pode ir contra ele. Poderia estar dando a volta para nos atacar pela proa, onde só temos um canhão, e nos abordar!

Ferreira riu desdenhosamente.

- Temos vinte canhões a bordo! Eles não têm nenhum! Acha que aquele imundo barco pagão se atreveria a tentar nos atacar? Ora, você é muito simples de cabeça!

- Sim, capitão-mor, é por isso que ainda tenho uma. O Santa Theresa vai levantar ferros!

As velas estalaram soltando-se das cordas e o vento enfunouas, os mastros rangendo. Os dois turnos estavam no convés, em posições de combate. A fragata começou a avançar, mas lentamente.

- Vamos, sua cadela - instou Rodrigues.

- Estamos prontos, Dom Ferreira - disse o atirador-chefe.

- Estou com ela na mira. Não posso agüentar muito tempo. Quem é esse Toranaga? Aponte-o!

Não havia tochas a bordo da galera; a única iluminação vinha do luar. A galera ainda estava à popa, a umas cem jardas, mas virou para bombordo e rumou para a margem oposta, os remos mergulhando e caindo num ritmo constante. - Aquele é o piloto? O homem alto no tombadilho?

- Sim - disse Rodrigues.

- Manuel e Pedrito! Acertem-no e ao tombadilho! - O canhão mais próximo sofreu alguns ajustes leves. - Qual é o Toranaga? Depressa! Timoneiros, dois pontos a estibordo!

- Dois pontos para estibordo, atirador!

Consciente do leito arenoso e dos recifes nas proximidades, Rodrigues estava observando os ovéns, pronto para a qualquer momento tomar o lugar do atirador-chefe, que por costume tinha o comando numa canhonada de popa.

- Ho, canhão no convés principal de bombordo! - gritou o atirador. - Assim que tivermos disparado, vamos deixá-la virar a sotavento. Abram todas as portinholas, preparem para a carga! - Os marujos obedeceram, de olhos nos oficiais sobre o tombadilho. E nos padres. - Pelo amor de Deus, Dom Ferreira, quem é esse Toranaga?

- Quem é, padre? - Ferreira nunca o vira.

Rodrigues reconhecera Toranaga claramente na coberta de proa de samurais, mas não queria ser ele a apontá-lo. Deixemos os padres fazerem isso, pensou. Vamos, padre, faça-se de Judas. Por que devemos nós fazer sempre o trabalho nojento? Não que eu me importe um dobrão furado por aquele pagão filho de uma prostituta.

Os dois padres permaneciam em silêncio.

- Depressa, quem é Toranaga? - perguntou de novo o atirador.

Impaciente, Rodrigues apontou-o.

- Ali, na proa o bastardo, baixinho, atarracado, no meio daqueles pagãos.

- Estou vendo, senhor piloto.

Os marujos fizeram os últimos ajustes de mira.

Ferreira tomou o círio da mão do imediato do atirador.

- Está apontada para o herege?

- Sim, capitão-mor. O senhor está pronto? Vou baixar a mão. Será o sinal!

- Ótimo.

- Não matarás! - exclamou Dell'Aqua.

Ferreira virou-se rapidamente para ele.

- São pagãos e hereges!

- Há cristãos entre eles, e mesmo que não houvesse...

- Não preste atenção a ele, atirador! - rosnou o capitão-mor. - Disparamos quando vocês estiverem prontos!

Dell'Aqua avançou para a boca do canhão e se postou no caminho. Seu corpanzil dominou o tombadilho e os marinheiros armados que se mantinham emboscados. Sua mão estava sobre o crucifixo.

- Eu digo "Não matarás!"

- Matamos o tempo todo, padre - disse Ferreira.

- Eu sei, e estou envergonhado e imploro o perdão de Deus por isso. - Dell'Aqua nunca estivera antes no tombadilho de um navio de combate com canhôes preparados, mosquetes, dedos em gatilhos, aprontando-se para a morte. - Enquanto eu estiver aqui, não haverá mortes, e não desculparei morte por emboscada!

- E se nos atacarem? Tentarem tomar o navio?

- Rogarei a Deus que nos ajude contra eles!

- Que diferença faz, agora ou mais tarde?

Dell'Aqua não respondeu. Não matarás, pensou ele, e Toranaga prometera tudo, Ishido nada.

- O que vai ser, capitão-mor? O momento é agora! - gritou o mestre atirador. - Agora!

Ferreira deu as costas aos padres, com brusquidão, jogou o círio no chão e foi até o parapeito.

- Preparem-se para repelir um ataque - gritou. - Se ela se aproximar a mais de cinqüenta jardas sem ser convidada, mandem-na pelos ares digam os padres o          que disserem!

Rodrigues estava igualmente furioso, mas sabia que era tão impotente quanto o capitão-mor contra o padre. Não matarás? Pelo abençoado Senhor Jesus, e vocês? queria ele gritar. E os seus autos de fé? E a Inquisição? E os seus padres que pronunciam a sentença de "culpado", "feiticeira", "satanista", ou "herege"? Lembra-se das duas mil feiticeiras queimadas só em Portugal, no ano em que parti para a Asia? E quase cada aldeia e cidade em Portugal e na Espanha, e os domínios visitados e investigados pelos flagelos de Deus, como os inquisidores encapuzados orgulhosamente chamam a si mesmos, o cheiro de carne queimada no rastro deles? Oh, Senhor Jesus Cristo, proteja-nos!

Afastou o próprio medo e aversão e se concentrou na galera. Podia ver apenas Blackthorne, e pensou: ah, Inglês, é bom ver você, em pé aí, no comando, tão alto e insolente. Tive medo que você tivesse ido para o pátio de execução. Fico contente por ter escapado, mas ainda assim é muita sorte que você não tenha um único canhão a bordo, pois então eu o mandaria pelos ares, o para o inferno, com tudo o que os padres pudessem dizer.

Oh, minha Nossa Senhora, proteja-me de um mau padre!

 

- Olá, Santa Theresa!

- Olá, Inglês!

- É você, Rodrigues?

- Sim!

- E a perna?

- A tua mãe!

Rodrigues ficou enormemente satisfeito com a risada trocista que veio por sobre o mar que os separava.

Por meia hora os navios manobraram procurando posição, perseguindo, mudando o curso e recuando, a galera tentando se pôr a barlavento e obstruir a fragata a sotavento, a fragata a ganhar espaço para navegar para fora da enseada se desejasse. Mas nenhum dos dois conseguira obter uma vantagem, e fora durante essa perseguição que os que estavam a bordo da fragata viram os barcos de pesca aglomerados à boca da enseada pela primeira vez e entenderam o seu significado.

- É por isso que estão vindo até nós! Por proteção!

- Mais uma razão para que nós a afundemos agora que está encurralada. Ishido nos agradecerá para sempre - dissera Ferreira. Dell'Aqua permanecera irredutível.

- Toranaga é importante demais. Insisto em que primeiro devemos conversar com Toranaga. O senhor sempre pode po-lo a pique. Ele não tem canhôes. Até eu sei que só canhões podem lutar com canhôes.

Assim Rodrigues permitira um empate, uma pausa para tomar fôlego. Ambos os navios estavam no centro da enseada, a salvo dos barcos de pesca e a salvo um do outro, a fragata tremulando a barlavento, pronta para desviar instantaneamente, e a galera, de remos travados, vindo à deriva, de lado, até a distância de onde se pudesse chamar a bordo. Foi só quando Rodrigues viu a galera travar todos os remos e colocar-se lado a lado com os seus canhões que ele se voltou para barlavento para permitir ao outro que se aproximasse até o raio de tiro, e se preparou para a próxima série de movimentos. Graças a Deus, ao abençoado Jesus, a Maria e a José, por termos canhôes e aquele bastardo não ter nenhum, pensou Rodrigues de novo. O Inglês é esperto demais.

Mas é bom ser enfrentado por um profissional, disse a si mesmo. Muito mais seguro. Porque ninguém comete nenhum engano temerário e ninguém se machuca desnecessariamente.

- Permissão para ir a bordo?

- Quem, Inglês?

- O Senhor Toranaga, sua intérprete e guardas.

- Guardas, não - disse Ferreira, baixo.

- Ele tem que trazer alguns - disse Alvito. -        É uma questão de dignidade.

- Que se dane a dignidade dele. Nada de guardas. Não quero samurais a bordo - concordou Rodrigues.

- Nao concordaria com cinco? - perguntou Alvito. - a guarda pessoal dele? Você compreende o problema, Rodrigues.

Rodrigues pensou um instante, depois assentiu.

- Cinco está bem, capitão-mor. Destacaremos cinco homens como "guarda pessoal" sua, cada um com um par de pistolas. Padre, o senhor estabelece os detalhes agora. É melhor que o padre arranje os detalhes, capitão-mor, ele sabe como. Vamos, padre, mas conte-nos o que estiver sendo dito.

Alvito dirigiu-se para a amurada e gritou:

- Você não ganha nada com as suas mentiras! Preparem a alma para o inferno, você e os seus bandidos! Vocês têm dez minutos, depois o capitão-mor vai mandá-lo para o tormento eterno!

- Estamos hasteando a bandeira do Senhor Toranaga, por Deus!

- Bandeira falsa, pirata!

Ferreira avançou um passo.

- O que é que o senhor está representando, padre?

- Por favor, tenha paciência, capitão-mor - disse Alvito.

- Isto é apenas uma questão formal. De outro modo Toranaga ficará permanentemente ofendido por termos insultado a bandeira dele, coisa que fizemos. Aquele é Toranaga, não é um daimio qualquer! Talvez fosse melhor o senhor se lembrar que ele, pessoalmente, tem mais soldados em armas do que o rei da Espanha!

O vento suspirava no cordame, os mastros estalavam nervosamente. Então se acenderam tochas no tombadilho e todos puderam ver Toranaga claramente. A voz dele veio por sobre as ondas.

- Tsukku-san! Como ousa evitar a minha galera? Não há pirata algum aqui, apenas naqueles barcos de pesca à boca da enseada. Gostaria de emparelhar imediatamente!

Alvito gritou de volta em japonês, fingindo estar atônito:

- Mas Senhor Toranaga, desculpe, não podíamos imaginar! Pensamos que se tratasse de um truque. Os cinzentos disseram que bandidos ronins haviam tomado a galera à força! Pensamos que os bandidos, sob o comando do pirata inglês, estivessem navegando sob bandeira falsa. Irei imediatamente.

- Não. Eu emparelharei imediatamente.

- Rogo-lhe, Senhor Toranaga, permitir-me ir até aí para escoltá-lo. Meu amo, o padre-lnspetor, está aqui e também o capitão-mor. Eles insistem em que façamos alguns ajustes. Por favor, aceite nossas desculpas! - Alvito passou para o português e gritou bem alto para o contramestre: - Desça uma chalupa -, depois, em japonês, para Toranaga: - O bote está sendo descido, meu senhor.

Rodrigues ouviu a humildade nauseante na voz de Alvito e pensou em como era muito mais difícil lidar com japoneses do que com chineses. Os chineses compreendiam a arte da negociação, do compromisso, da concessão e da recompensa. Mas os japoneses eram cheios de orgulho e quando o orgulho de um homem era injuriado - de qualquer japonês, nao necessariamente apenas de um samurai -, a morte era um preço pequeno para reparar o insulto. Vamos, acabe com isso, queria ele gritar.

- Capitão-mor, irei imediatamente - disse o Padre Alvito.

- Eminência, se também viesse seria um cumprimento que faria muito para apaziguá-lo.

- Concordo.

- Não é perigoso? - perguntou Ferreira. - Os senhores poderiam ser usados como reféns.

- Assim que houver um sinal de traição - disse Dell'Aqua -, ordeno-lhe, em nome de Deus, que destrua o navio e todos os que navegam nele, estejamos nós a bordo ou não. - Avançou a passos largos pelo tombadilho, desceu para o convés principal, passou ao lado dos canhões, as saias do seu hábito oscilando majestosamente. No topo da escada de embarque, virou-se e fez o    sinal-da-cruz. Em seguida desceu ruidosamente para o bote.

O contramestre zarpou. Todos os marinheiros estavam armados de pistolas, e sob o assento do contramestre havia um barrilete de pólvora com estopim.

Ferreira debruçou-se sobre a amurada e falou, baixo:

- Eminência, traga o herege com o senhor.

- O quê? O que disse? - Divertia Dell'Aqua brincar com o capitão-mor, cuja contínua insolência o ofendera mortalmente, pois é claro que ele resolvera há muito tempo reaver Blackthorne, o tinha ouvido perfeitamente bem. Che stupido, estava pensando.

- Traga o herege consigo, hem? - repetiu Ferreira.

No tombadilho Rodrigues ouviu o abafado: "Sim, capitão-mor", e pensou: em que traição está pensando, Ferreira?

Mudou de posição na cadeira com dificuldade, o rosto exangue. A dor da perna judiava muito e exigia-lhe muita força reprimi-la. Os ossos estavam unindo-se bem e, a Senhora seja louvada, o ferimento estava limpo. Mas a fratura continuava sendo uma fratura e mesmo a leve oscilação do navio parado era incômoda.

Ele tomou um trago de grogue do velho cantil que pendia de uma cavilha na bitácula.

Ferreira o observava.

- A perna vai mal?

- Está muito bem. - O grogue amorteceu o ferimento.

- Vai estar bem o bastante para viajar daqui até Macau?

- Sim. E para enfrentar uma batalha marítima por todo o trajeto. E para voltar no verão, se é isso que o senhor quer dizer.

- Sim, é isso que quero dizer, piloto. - Os lábios se estreitaram de novo, apertados naquele sorriso zombeteiro. - Preciso de um piloto em perfeitas condições.

- Estou em perfeitas condições. Minha perna está cicatrizando bem. - Rodrigues repeliu a dor. - O Inglês não virá a bordo de boa vontade. Eu não viria.

- Cem guinéus dizem que você está errado.

- Isso é mais do que ganho num ano.

- Pagáveis depois de chegarmos a Lisboa, com os lucros do Navio Negro.

- Feito. Nada o fará vir a bordo, não de boa vontade. Estou cem guinéus mais rico, por Deus!

- Mais pobre! Você se esquece que os jesuítas o querem mais do que eu.

- E por que quereriam?

Ferreira encarou-o e não respondeu, exibindo o mesmo sorriso evasivo. Depois, molestando-o, disse:

- Eu escoltaria Toranaga para fora da enseada, em troca do herege.

- Fico contente por ser seu amigo e necessário ao senhor e ao Navio Negro - disse Rodrigues. - Não gostaria de ser seu inimigo.

- Ótimo que nos compreendamos um ao outro, piloto. Finalmente.

 

- Solicito escolta para sair da enseada. Preciso dela rapidamente - disse Toranaga a Dell'Aqua por intermédio do intérprete Alvito. Mariko estava ao lado, também ouvindo, com Yabu. Toranaga erguia-se no convés de popa da galera, Dell'Aqua abaixo, no convés principal, com Alvito ao lado, mas ainda assim os olhos estavam quase ao mesmo nível. - Ou, se o senhor preferir, a sua belonave pode remover os barcos de pesca do meu caminho.

- Perdoe-me, mas isso seria um ato hostil indesculpável que o senhor não recomendaria... não poderia recomendar à fragata, Senhor Toranaga - disse Dell'Aqua, falando diretamente a ele, achando a tradução simultânea de Alvito misteriosa como sempre. - Isso seria impossível... um ato de guerra declarada.

- Então o que sugere?

- Por favor venha à fragata. Deixe-nos perguntar ao capitão-mor. Ele terá uma solução, agora que sabemos qual é o seu problema. É ele o militar, não nós.

- Traga-o aqui.

- Ser-lhe-la mais rápido ir até lá, senhor. Além, é claro, da honra que o senhor nos concederia.

Há apenas poucos momentos tinham visto mais barcos de pesca carregados de arqueiros, lançados da praia meridional e, embora estivessem seguros no momento, era claro que dentro de uma hora a garganta da enseada inteira estaria entupida de inimigos.

E ele sabia que não tinha escolha.

- Sinto muito, senhor - explicara-lhe o Anjin-san antes, durante a malograda perseguição. Não consigo me aproximar da fragata. Rodrigues é esperto demais. Posso impedi-lo de escapar se o vento permanecer assim, mas não conseguirei pegá-lo, a menos que ele cometa um erro. Teremos que parlamentar.

- Ele cometerá um erro e o vento permanecerá assim? - perguntara ele através de Mariko.

- O Anjin-san diz - respondera ela - que um homem prudente nunca aposta no vento, a menos que se trate de um vento alísio e se esteja em alto-mar. Aqui estamos numa enseada, onde as montanhas fazem o vento soprar em círculos. O piloto, Rodrigues, não cometerá nenhum erro.

Toranaga presenciara os dois pilotos opondo um ao outro as respectivas habilidades, e entendeu, para além de qualquer dúvida, que ambos eram mestres. E viera a entender também que nem ele, nem suas terras, nem o império jamais estariam seguros sem possuir navios bárbaros modernos e, com esses navios, controlar os próprios mares. O pensamento o deixara abalado.

- Mas como posso negociar com eles? Que desculpa aceitável poderiam dar para tal hostilidade declarada contra mim? Agora o meu dever é afundá-los pelos insultos à minha honra.

Então o Anjin-san explicara o estratagema da bandeira falsa: como todos os navios usavam o ardil para se aproximar do inimigo, ou para tentar evitar o inimigo, e Toranaga ficara enormemente aliviado por haver uma solução aceitável para o problema, uma solução que lhe poupasse a dignidade.

- Penso que deveríamos ir imediatamente - estava dizendo Alvito.

- Muito bem - concordou Toranaga. - Yabu-san, assuma o comando do navio. Mariko-san, diga ao Anjin-san que ele deve permanecer no tombadilho e que fica responsável pelo leme. Você venha comigo.

- Sim, senhor.

Pelo tamanho da chalupa Toranaga entendera perfeitamente que só poderia levar cinco guardas consigo. Mas isso fora igualmente previsto, e o plano final era simples: se não conseguisse persuadir a fragata a ajudar, ele e seus guardas matariam o capitão-mor, o piloto e os padres, e se entrincheirariam numa das cabinas. Simultaneamente a galera se lançaria contra a fragata pela proa, conforme sugerira o Anjin-san, e juntos tentariam tomar a fragata de assalto. Tomariam a fragata ou não, mas em qualquer caso haveria uma solução rápida.

- É um bom plano, Yabu-san - dissera ele.

- Por favor, permita-me ir no seu lugar para negociar.

- Eles não concordariam com isso.

- Muito bem, mas assim que estivermos fora da armadilha expulse todos os bárbaros do nosso reino. Se o fizer, ganhará mais daimios do que perderá.

- Considerarei o assunto - dissera Toranaga, sabendo que aquilo era absurdo, que precisava dos daimios cristãos Onoshi e Kiyama ao seu lado e, conseqüentemente, dos outros daimios cristãos, caso contrário ele seria engolido. Por que Yabu quereria ir à fragata? Que traição planejava para o caso de não haver ajuda?

- Senhor - dizia Alvito por Dell'Aqua -, posso convidar o Anjin-san a nos acompanhar?

- Por quê?

- Ocorreu-me que ele talvez gostasse de saudar seu colega, o piloto Rodrigues. O homem está com uma perna quebrada e não pode vir aqui. Rodrigues gostaria de revê-lo, agradecer-lhe por lhe haver salvado a vida, se o senhor não se importasse.

Toranaga não conseguia pensar em nenhuma razão por que o Anjin-san não devesse ir. O homem se encontrava sob a sua proteção, portanto inviolável.

- Se ele quiser, muito bem. Mariko-san, acompanhe Tsukku-san.

Mariko curvou-se. Sabia que a sua tarefa era ouvir, relatar o            assegurar que tudo o que fosse dito seria relatado corretamente, sem omissão.

Sentia-se melhor agora, o penteado e o rosto novamente perfeitos, um quimono limpo emprestado pela Senhora Fujiko, o braço esquerdo numa tipóia. Um dos imediatos, aprendiz de médico, pensara-lhe o ferimento. O corte não atingira nenhum tendão o a ferida estava limpa. Um banho a teria revigorado completamente mas não havia instalações para isso.

Ela e Alvito caminharam até o tombadilho. Alvito viu a faca no sash de Blackthorne e o modo como o quimono, embora sujo, parecia assentar-lhe. Até onde ele terá ido no caminho para a confiança de Toranaga? - perguntou-se ele.

- Salve, Capitão-Piloto Blackthorne.

- Apodreça no inferno, padre! - respondeu Blackthorne afavelmente.

- Talvez nos encontremos lá, Anjin-san. Talvez. Toranaga disse que o senhor pode vir a bordo da fragata.

- Ordens dele?

- Se o senhor quiser, ele disse.

- Não quero.

- Rodrigues gostaria de agradecer-lhe de novo e de revê-lo.

- Transmita-lhe os meus respeitos e diga que o verei no inferno. Ou aqui.

- A perna o impede de fazer isso.

- Como está a perna dele?

- Sarando. Com a sua ajuda e a graça de Deus, dentro de poucas semanas ele estará andando, se Deus quiser, embora fique coxo para sempre.

- Diga-lhe que estimo suas melhoras. É melhor ir agora, padre, está perdendo seu tempo.

- Rodrigues gostaria de vê-lo. Há grogue a mesa, um excelente frango assado, molho, pão fresco, e manteiga. Seria triste, piloto, desperdiçar tanta comida.

- O quê?

- Há um dourado pão fresco, capitão-piloto, biscoitos frescos, manteiga e um bom peso de carne. Laranjas frescas de Goa o até um galão de vinho da Madeira, ou conhaque, se o senhor preferir. Há cerveja, também. Depois há o frango de Macau, quente e suculento. O capitão-mor é um epicurista.

- Deus o mande para o inferno!

- Mandará, quando lhe aprouver. Só lhe digo o que há.

- O que quer dizer "epicurista"? - perguntou Mariko.

- É uma pessoa que aprecia a comida e uma mesa refinada, Senhora Maria - disse Alvito, usando o nome de batismo dela.

Notara a mudança repentina no rosto de Blackthorne. Quase podia ver as glândulas salivares funcionando e sentir a agonia do estômago roncando. Naquela noite, ao ver a refeição servida na grande cabina, a prata cintilante, a toalha branca, e cadeiras, autênticas cadeiras estofadas de couro, e ao cheirar os pães frescos, a manteiga, as carnes suculentas, também ele fora dominado pela fome, e não estava ansioso por comida, nem desacostumado à cozinha japonesa.

É tão simples agarrar um homem, disse Alvito a si mesmo. Tudo o que se precisa é conhecer a isca certa.

- Até logo, capitão-piloto! - Alvito deu-lhe as costas e dirigiu-se para a escada de embarque.

Blackthorne seguiu-o.

 

- Qual é o problema, Inglês? - perguntou Rodrigues.

- Onde está a comida? Depois podemos conversar. Primeiro a comida que você prometeu. - Blackthorne encontrava-se no convés principal, desconfiado.

- Por favor, acompanhe-me - disse Alvito.

- Aonde o está levando, padre?

- Naturalmente para a grande cabina. Blackthorne pode comer enquanto o Senhor Toranaga e o capitão-mor conversam.

- Não. Ele pode comer na minha cabina.

- É mais fácil, certamente, ir até onde está a comida.

- Contramestre! Veja que o piloto seja alimentado imediatamente. Leve para a minha cabina tudo de que ele necessita. Inglês, quer grogue, vinho ou cerveja?

- Primeiro cerveja, depois grogue.

- Contramestre, providencie e leve-o para baixo. E ouça, Pesaro, dê-lhe algumas roupas do meu baú, botas, tudo. E fique com ele até que eu o chame.

Sem dar uma palavra Blackthorne seguiu Pesaro, o contramestre, um homenzarrão corpulento, gaiúta abaixo.

Alvito começou a voltar para junto de Dell'Aqua e Toranaga, que conversavam por intermédio de Mariko, mas Rodrigues o deteve.

- Padre! Espere um instante. O que foi que disse a ele?

- Apenas que você gostaria de vê-lo e que tínhamos comida a bordo.

- Mas era eu quem queria oferecer a comida?

- Não, Rodrigues, eu não disse isso. Mas você não ofereceria comida a um piloto amigo que estivesse com fome?

- Aquele pobre bastardo não está com fome, está faminto. Se comer neste estado, vai se empanturrar como um lobo voraz, depois vomitará tudo tão depressa quanto uma prostituta bêbada e comilona. Agora, nós não gostaríamos que um de nós, mesmo um herege, comesse como um animal e vomitasse como um animal na frente de Toranaga, não é, padre? Não diante de um maldito filho da puta, particularmente um que tem a mente tão limpa quanto a racha de uma prostituta sifilítica!

- Você precisa aprender a conter a imundície de sua linguagem, meu filho - disse Alvito. - Isso vai mandá-lo para o inferno. Faria melhor em rezar mil ave-marias e jejuar durante dois dias. Apenas pão e água. Uma penitência pela graça de Deus, para lembrá-lo da sua mercê.

- Obrigado, padre, farei isso. De bom grado. E se eu pudesse me ajoelhar, me ajoelharia e beijaria o seu crucifixo. Sim, padre, este pobre pecador lhe agradece pela paciência dada por Deus. Preciso vigiar a minha língua.

Ferreira chamou à gaiúta:

- Rodrigues, você vai descer?

- Permanecerei no convés enquanto aquela galera estiver ali, capitão-mor. Se precisar de mim, estarei aqui. - Alvito começou a se afastar. Rodrigues notou Mariko. - Um instante, padre. Quem é a mulher?

- Dona Maria Toda. Um dos intérpretes de Toranaga.

Rodrigues sussurrou:

- É boa intérprete?

- Muito boa.

- Estupidez permitir-lhe vir a bordo. Porque o senhor disse "Toda"? Ela é uma das consortes do velho Toda Hiromatsu?

- Não. É a esposa do filho dele.

- Estupidez trazê-la a bordo. - Rodrigues chamou um dos marujos com um gesto. - Espalhe o aviso de que a mulher fala português.

- Sim, senhor. - O homem se afastou correndo e Rodrigues voltou-se para o Padre Alvito.

O padre não ficou nem um pouco intimidado com a cólera evidente.

- A Senhora Maria fala latim também, e exatamente com a mesma perfeição. Mais alguma coisa, piloto?

- Não, obrigado. Talvez o melhor seja eu começar com as minhas ave-marias.

- Sim, deveria fazer isso. - O padre fez o sinal-da-cruz e partiu. Rodrigues cuspiu nos embornais e um dos timoneiros estremeceu e se persignou.

- Vá se pendurar ao mastro pelo seu prepúcio verde de podre! - sibilou Rodrigues.

- Sim, capitão-piloto, desculpe, senhor. Mas fico nervoso perto do bom padre. Não tive má intenção. - O jovem viu os últimos grãos de areia passarem pela garganta da ampulheta e virou-a.

- Daqui a meia hora, desça, leve um maldito balde, água e um esfregão com você e limpe a sujeira da minha cabina. Diga ao contramestre que traga o Inglês para cima e deixe a minha cabina limpa. E é melhor que fique bem limpa, ou usarei as suas tripas como jarreteiras. E enquanto estiver fazendo isso, reze ave-marias pela sua alma amaldiçoada.

- Sim, senhor piloto - disse o jovem debilmente. Rodrigues era um fanático, um louco por limpeza, e sua cabina era como o Santo Graal. Tudo tinha que estar impecável, fizesse o tempo que fizesse.

 

- Deve haver uma solução, capitão-mor - disse Dell'Aqua pacientemente.

- O senhor deseja um ato declarado de guerra contra uma nação amiga?

- Claro que não.

Todos na grande cabina sabiam que estavam na mesma armadilha. Qualquer ato declarado os colocaria definitivamente ao lado de Toranaga contra Ishido, coisa que deviam evitar de qualquer modo, para o caso de Ishido ser o vencedor eventual. No momento Ishido controlava Osaka e a capital, Kyoto, e a maioria dos regentes. E agora, através dos daimios Onoshi e Kiyama, controlava a maior parte da ilha meridional de Kyushu e, com Kyushu, o porto de Nagasaki, o centro principal de todo o comércio, e assim controlava o comércio e o Navio Negro daquele ano.

- Por que tanta dificuldade? - disse Toranaga por intermédio do Padre Alvito. - Só quero expulsar os piratas da boca da enseada, neh?

Toranaga estava desconfortavelmente sentado no lugar de honra, na cadeira de encosto alto junto à grande mesa, Alvito estava ao seu lado, o capitão-mor à sua frente, Dell'Aqua ao lado do capitão-mor. Mariko permanecia de pé atrás de Toranaga e os guardas samurais esperavam perto da porta, encarando os marujos armados. E todos os europeus tinham consciência de que embora Alvito traduzisse para Toranaga tudo o que era dito na sala, Mariko estava lá para se certificar de que nada fosse dito abertamente entre eles contra os interesses do seu amo, e que a tradução fosse completa e acurada.

Dell'Aqua inclinou-se para a frente.

- Talvez, senhor, pudesse enviar mensageiros ao Senhor Ishido. Talvez a solução se encontre na negociação. Poderíamos oferecer este navio como um lugar neutro para a negociação. Talvez desse modo os senhores pudessem encerrar a guerra.

Toranaga riu com escárnio.

- Que guerra? Não estamos em guerra, Ishido e eu.

- Mas, senhor, vimos a batalha na praia.

- Não seja ingênuo! Quem foi morto? Alguns ronins sem valor. Quem atacou a quem? Apenas ronins, bandidos ou fanáticos enganados.

- E a emboscada? Tomamos conhecimento de que os marrons lutaram contra os cinzentos.

- Os bandidos estavam atacando a todos nós, marrons e cinzentos. Meus homens meramente lutaram para me proteger. Em escaramuças noturnas os enganos ocorrem com freqüência. Se marrons mataram cinzentos ou cinzentos mataram marrons, foi apenas um erro lamentável. O que representam uns poucos homens para qualquer um de nós? Nada. Não estamos em guerra.

Toranaga leu-lhes a incredulidade no rosto, então acrescentou:

- Diga-lhes, Tsukku-san, que no Japão as guerras são travadas por exércitos. Essas ridículas escaramuças e tentativas de assassinato são meras sondagens, para serem ignoradas quando falham. A guerra não começou esta noite. Começou quando o taicum morreu. Antes disso, até; quando ele morreu sem deixar um filho adulto para sucedê-lo. Talvez até antes disso, quando Goroda, o senhor protetor, foi assassinado. Esta noite não tem nenhum significado duradouro. Nenhum de vocês compreende o nosso reino, ou a nossa política. Como poderiam? Naturalmente Ishido está tentando me matar. Assim como muitos outros daimios. Fizeram isso no passado e farão no futuro. Kiyama e Onoshi já foram tanto amigos quanto inimigos. Ouçam, se eu fosse morto, isso simplificaria as coisas para Ishido, o verdadeiro inimigo, mas só por um momento. Estou na armadilha dele agora, e se ele for bem sucedido terá meramente uma vantagem momentânea. Se eu escapar, nunca terá havido uma armadilha. Mas compreendam claramente, todos vocês, que a minha morte não eliminará a causa da guerra, nem impedirá conflitos posteriores. Só se Ishido morrer deixará de haver conflito. Portanto não há guerra declarada agora. Nenhuma guerra. - Ele mudou de posição na cadeira, detestando o odor na cabina, proveniente das comidas gordurosas e dos corpos não lavados. - Mas temos de fato um problema imediato. Quero os seus canhões. Quero-os agora. Piratas me cercam na boca da enseada. Eu disse antes, Tsukku-san, que logo todos terão que tomar posição. Agora, de que lado está você, o seu chefe e toda a Igreja cristã? E os meus amigos portugueses estão comigo ou contra mim?

- Pode ter certeza, Senhor Toranaga - disse Dell'Aqua -, de que todos nós apoiamos os seus interesses.

- Ótimo. Então elimine os piratas imediatamente.

- Isso seria um ato de guerra e não traria proveito algum. Talvez possamos tratar de negócios, hem? - disse Ferreira.

Alvito não traduziu isso mas disse, ao contrário:

- O capitão-mor diz que estamos apenas tentando evitar interferência na sua política, Senhor Toranaga. Somos comerciantes.

Mariko disse em japonês para Toranaga:

- Desculpe, senhor, isso não está correto. Não foi isso o que foi dito.

Alvito suspirou.

- Simplesmente transpus algumas das palavras dele, senhor. O capitão-mor, sendo estranho aqui, não tem consciência de certas cortesias. Não compreende nada sobre o Japão.

- Você compreende, Tsukku-san? - perguntou Toranaga.

- Tento, senhor.

- Que foi que ele disse realmente?

Alvito contou-lhe. Após uma pausa, Toranaga disse:

- O Anjin-san me disse que os portugueses têm grande interesse pelo comércio, e que em comércio não têm boas maneiras nem humor. Compreendo e aceitarei a explicação, Tsukku-san. Mas daqui em diante, por favor, traduza tudo exatamente como for dito.

- Sim, senhor.

- Diga isto ao capitão-mor: quando o conflito estiver concluído, expandirei o comércio. Sou a favor do comércio. Ishido não.

Dell'Aqua acompanhara a troca de idéias e esperava que Alvito tivesse disfarçado a estupidez de Ferreira.

- Não somos políticos, senhor, somos religiosos e representamos a fé e os fiéis. Realmente apoiamos os seus interesses. Sim.

- Concordo. Estava pensando... - Alvito parou de interpretar, seu rosto se iluminou e por um momento o japonês de Toranaga escapou-lhe. - Desculpe, Eminência, mas o Senhor Toranaga disse: "Estava considerando a possibilidade de lhe pedir que construísse um grande templo em Yedo, como medida da minha confiança nos seus interesses". - Fazia anos, desde que Toranaga se tornara senhor das Oito Províncias, que Dell'Aqua vinha manobrando para obter essa concessão. E obté-la agora, na terceira maior cidade do império, era uma concessão inestimável.

Dell'Aqua entendeu que chegara o momento de resolver o problema dos canhões.

- Agradeça-lhe, Martim Tsukku-san - disse, usando a codifrase que combinara previamente com Alvito -, e diga que tentaremos sempre estar ao seu serviço. Oh, sim, e pergunte-lhe o que tem em mente sobre a catedral - acrescentou.

- Talvez eu possa falar um instante diretamente, senhor - começou Alvito, dirigindo-se a Toranaga. - Meu amo lhe agradece e diz que o que o senhor pediu anteriormente talvez seja possível. Ele se empenhará sempre por dar-lhe assistência.

- "Empenho" é uma palavra abstrata e insatisfatória.

- Sim, senhor. - Alvito relanceou os olhos para os guardas, que, naturalmente, ouviam sem dar a entender isso. - Mas lembro-me de o senhor ter dito que às vezes é sábio ser abstrato.

Toranaga compreendeu imediatamente. Fez um gesto aos seus homens, dispensando-os.

- Esperem lá fora, todos vocês.

Apreensivos obedeceram. Alvito voltou-se para Ferreira.

- Não precisamos dos seus guardas agora, capitão-mor.

Depois de os samurais terem saído, Ferreira dispensou seus homens e deu uma olhada em Mariko. Ele estava com pistolas ao cinto e tinha outra na bota.

- O senhor não gostaria, talvez - disse Alvito a Toranaga -, que a Senhora Mariko se sentasse?

Toranaga entendeu de novo. Pensou um instante, depois assentiu e disse, sem se voltar:

- Mariko-san, leve um dos meus guardas e encontre o Anjin-san. Fique com ele até que eu mande chamá-la.

- Sim, senhor.

A porta fechou-se atrás dela.

Agora estavam a sós. Os quatro.

- Qual é a oferta? - perguntou Ferreira. - O que ele está oferecendo?

- Tenha paciência, capitão-mor - respondeu Dell'Aqua, os dedos tamborilando sobre o seu crucifixo, rezando pelo sucesso.

- Senhor - começou Alvito -, meu amo diz que tudo o que o senhor pediu será tentado. Dentro dos quarenta dias. Ele enviará a sua mensagem em particular. Serei eu o mensageiro, com a sua permissão.

- E se ele não for bem sucedido?

- Não será por falta de tentativa, de persuasão ou de pensamento. Ele lhe dá a sua palavra.

- Diante do Deus cristão?

- Sim. Diante de Deus.

- Ótimo. Quero isso por escrito. Com o selo dele.

- As vezes os acordos satisfatórios, os acordos delicados, não devem ser transpostos para a escrita, senhor.

- Está dizendo que, a menos que eu ponha o meu acordo por escrito, você não fará isso?

- Simplesmente me lembrei de um dos seus próprios ditos: que a honra de um samurai é certamente muito mais importante do que um pedaço de papel. O padre-lnspetor lhe dá a sua palavra diante de Deus, a sua palavra de honra, como um samurai o faria. A sua honra é totalmente suficiente para o padre-lnspetor. Só pensei que ele se entristeceria por não merecer confiança. O senhor quer que eu peça uma assinatura?

Depois de um tempo, Toranaga disse:

- Muito bem. A palavra dele diante do Deus Jesus, neh? A palavra dele diante do Deus dele?

- Dou-a em seu nome. Ele jurou tentar pela cruz abençoada.

- Você também, Tsukku-san?

- O senhor tem igualmente a minha palavra, diante de Deus, pela cruz abençoada, de que farei tudo o que puder para ajudá-lo a persuadir os senhores Onoshi e Kiyama a se tornarem seus aliados.

- Em troca farei o que prometi anteriormente. No quadragésimo primeiro dia vocês podem lançar a pedra fundamental do maior templo cristão do império.

- As escavações poderiam ser iniciadas imediatamente, senhor?

- Tão logo eu chegue a Yedo. Bem, bem. E quanto aos piratas? Os piratas nos barcos de pesca? Vocês os liquidarão imediatamente?

- Se tivesse canhões, o senhor mesmo faria isso?

- É claro, Tsukku-san.

- Peço desculpas por ser tão tortuoso, senhor, mas tivemos que elaborar um plano. Os canhões não nos pertencem. Por favor, conceda-me um momento. - Alvito voltou-se para Dell'Aqua: - Está tudo arranjado quanto à catedral, Eminência. - Depois, para Ferreira, dando início ao plano combinado: - O senhor ficará contente por não tê-lo afundado, capitão-mor. O Senhor Toranaga perguntou se o senhor levaria dez mil ducados de ouro para ele quando partir com o Navio Negro para Goa, a fim de investir o dinheiro no mercado de ouro da Índia. Nós teríamos muito prazer em colaborar na transação por intermédio das nossas fontes habituais lá, colocando o dinheiro para o senhor. O Senhor Toranaga diz que metade do lucro será seu. - Alvito e Dell'Aqua haviam resolvido que, pela época em que o Navio Negro voltasse, dentro de seis meses, Toranaga ou estaria novamente empossado como presidente dos regentes, e conseqüentemente mais que satisfeito em permitir essa transação muito lucrativa, ou estaria morto.

- O senhor facilmente receberia um lucro líquido de quatro mil ducados. Sem risco algum.

- Em troca de que concessão? Isso é mais do que o subsidio anual que o rei da Espanha concede a toda a sua Companhia de Jesus. Em troca de quê?

- O Senhor Toranaga diz que os piratas o impedem de deixar a enseada. Ele deve saber melhor do que o senhor se se trata ou não de piratas.

Ferreira retrucou no mesmo tom sincero que ambos sabiam ser de proveito apenas para Toranaga.

- É desavisado depositar confiança nesse homem. O inimigo dele detém todos os trunfos. Todos os daimios cristãos estão contra ele. Com certeza os dois principais; ouvi-os com meus próprios ouvidos. Disseram que esse japona é o verdadeiro inimigo. Acredito neles e não neste idiota sem mãe.

- Estou certo de que o Senhor Toranaga sabe melhor do que nós quem e pirata e quem não é - disse Dell'Aqua impassível, conhecendo a solução assim como Alvito. - Suponho que o senhor não faça objeção a que o Senhor Toranaga lide com os piratas sozinho?

- Claro que não.

- O senhor tem muitos canhões de reserva a bordo – disse o padre-lnspetor. - Por que não lhe ceder alguns em particular? Venda-lhe alguns, na realidade. O senhor vende armas o tempo todo. Ele está comprando armas. Quatro canhões seriam mais que suficientes. Seria fácil baldeá-los na chalupa, com pólvora e munição suficientes, sempre em particular. E o assunto fica resolvido.

Ferreira suspirou.

- Os canhões, cara Eminência, são inúteis a bordo da galera. Não há portinholas, não há cordas de canhão, não há espeques de canhões. Eles não podem usar canhões, mesmo que tivessem os atiradores, que não têm.

Os dois padres ficaram pasmados.

- Inúteis?

- Totalmente.

- Mas com certeza, Dom Ferreira, eles podem adapt...

- Aquela galera é incapaz de usar canhões sem uma reforma. Levaria no mínimo uma semana.

- Nan ja? - disse Toranaga desconfiado, percebendo que alguma coisa estava errada, apesar do muito que tentavam esconder-lhe isso.

- Toranaga perguntou-lhe o que há - disse Alvito.

Dell'Aqua sabia que a areia corria contra eles.

- Capitão-mor, por favor, ajude-nos. Por favor. Peço-lhe francamente. Obtivemos enormes concessões para a fé. O senhor deve acreditar em mim e, sim, deve confiar em nós. De algum modo deve ajudar o Senhor Toranaga a sair da enseada. Rogo-lhe em nome da Igreja. Só a catedral já é uma enorme concessão. Por favor.

Ferreira não se permitiu demonstrar nada do êxtase da vitória. Até acrescentou uma gravidade simulada à voz.

- Já que o senhor pede ajuda em nome da Igreja, Eminência, claro que farei o que pede. Vou tirá-lo da armadilha. Mas em troca quero o posto de capitão-mor do Navio Negro do próximo ano, seja o deste ano bem sucedido ou não.

- Isso é uma concessão pessoal do rei da Espanha, dele apenas. Não cabe a mim conferi-la.

- Depois: aceito o oferecimento do ouro dele, mas quero a sua garantia de que não terei problemas com o vice-rei de Goa, nem aqui, nem por causa do ouro nem com os Navios Negros.

- Atreve-se a reter a mim e à Igreja em troca de resgate?

- Trata-se meramente de um acordo de negócios entre mim, o senhor e esse macaco.

- Ele não é macaco algum, capitão-mor. É melhor que se lembre disso.

- Depois: quinze por cento da carga deste ano, em vez de dez.

- Impossível.

- Depois: para manter tudo em ordem, Eminência, a sua palavra diante de Deus, agora, de que nem o senhor nem nenhum dos padres sob a sua jurisdição jamais me ameaçará de excomunhão a menos que eu cometa um futuro ato de sacrilégio, coisa que nenhum destes é. E a sua palavra de que o senhor e os santos padres me apoiarão ativamente e ajudarão esses dois Navios Negros - também diante de Deus.

- E depois, capitão-mor? Ainda não acabou? Com certeza há mais alguma coisa?

- Por último: quero o herege.

 

Da soleira da cabina, Mariko olhava fixamente para Blackthorne, deitado em semicoma no chão, vomitando. O contramestre estava encostado ao beliche, olhando-a furtivamente, os cotos dos seus dentes amarelos à mostra.

- Está envenenado? Ou está bêbado? - perguntou ela a Totomi Kana, o samurai ao seu lado, tentando inutilmente cerrar as narinas ao mau cheiro da comida e do vômito, ao mau cheiro do horrendo marujo à sua frente, e ao sempre presente mau cheiro dos porões que impregnava o navio inteiro. - Parece quase como se ele tivesse sido envenenado, neh?

- Talvez tenha sido, Mariko-san. Olhe para aquela imundície! - O samurai apontou com desagrado para a mesa. Estava coberta de travessas de madeira contendo os restos de um quarto mutilado de rosbife, malpassado, metade da carcaça de uma galinha assada, pão partido, queijo, cerveja derramada, manteiga, um prato de molho frio e gordo de toucinho, uma garrafa de conhaque pela metade.

Nenhum dos dois jamais vira carne à mesa antes.

- O que querem? - perguntou o contramestre. - Nada de macacos aqui, wakarimasu? Nada de macacos-sans nestu saiu! - Olhou para o samurai e fez-lhe sinal que se fosse. - Fora! Dêem o fora! - Seus olhos se fixaram em Mariko de novo. - Qual é o seu nome? Namu, hem?

- O que ele está dizendo, Mariko-san? - perguntou o samurai.

O contramestre olhou de relance para o samurai um instante, depois fitou Mariko.

- O que o bárbaro está dizendo, Mariko-san?

Mariko desviou os olhos hipnotizados da mesa e concentrou-se no contramestre.

- Desculpe, senhor, não o compreendi. O que foi que disse?

- Hem? - A boca do contramestre se escancarou. Era um homem gordo de olhos muito juntos e orelhas grandes, o cabelo num rabicho ensebado. Um crucifixo pendia-lhe das dobras do pescoço e pistolas dançavam-lhe no cinto. - Hein? Você sabe falar português? Uma japona que sabe falar bom português? Onde aprendeu a falar civilizado?

- O... o padre cristão me ensinou.

- Serei um maldito filho de uma prostituta! Minha Nossa Senhora, uma flor-san que fala civilizado!

Blackthorne vomitou de novo e tentou debilmente levantar-se.

- O senhor pode... por favor, o senhor pode pôr o piloto ali? - Ela apontou para o beliche.

- Sim. Se o macaco ajudar.

- Quem? Desculpe, o que disse? Quem?

- Ele! O japona. Ele.

As palavras a atingiram como uma pedrada e ela precisou de toda a força de vontade para permanecer calma. Fez um gesto para o samurai.

- Kana-san, ajude o bárbaro, por favor. O Anjin-san deve ser posto ali.

- Com prazer, senhora.

Os dois homens ergueram Blackthorne e ele caiu com um baque no beliche, a cabeça pesada demais, mexendo a boca estupidamente.

- Ele deve ser lavado - disse Mariko em japonês, ainda meio atordoada pelo modo como o contramestre tratava Kana.

- Sim, Mariko-san. Ordene que o bárbaro mande chamar alguns criados.

- Sim. - Seus olhos incrédulos voltaram inexoravelmente para a mesa.

- Eles realmente comem isso?

O contramestre seguiu-lhe o olhar. Imediatamente se inclinou, arrancou uma perna de galinha e ofereceu a ela.

- Está com fome? Aqui está, pequena flor-san, é bom. É carne fresca, um autêntico capão de Macau.

Ela meneou a cabeça.

O rosto cinzento do contramestre fendeu-se num sorriso. Solicitamente mergulhou a perna da galinha no pesado molho e segurou-a sob o nariz dela.

- O molho a torna melhor ainda. Ei, é bom poder conversar adequadamente, hem? Nunca fiz isso antes. Vamos, isto lhe dará forças, no lugar onde a força é importante! E um capão de Macau, estou lhe dizendo!

- Não... não, obrigada. Comer carne.., comer carne é proibido. E contra a lei, contra o budismo e o xintoísmo.

- Em Nagasaki não é! - O contramestre riu. - Muitos japonas comem carne o tempo todo. Todos comem quando podem consegui-la, e também se encharcam com o nosso grogue. A senhora é cristã, hem? Vamos, experimente, pequena dona. Como vai saber sem experimentar?

- Não, não, obrigada.

- Um homem não pode viver sem carne. Isso é comida de verdade. Faz a gente forte, faz a gente se saracotear como um arminho. Aqui está... - Ele ofereceu a perna de galinha a Kana.

- Você quer?

Kana abanou a cabeça, igualmente nauseado.

- Iyé!

O contramestre deu de ombros e jogou descuidadamente a perna de frango em cima da mesa.

- Iyé será. O que fez no braço? Feriu-se em combate?

- Sim. Mas não é grave. - Mariko moveu-se um pouco para mostrar-lhe o ferimento e engoliu a dor.

- Pobre coisinha! O que quer aqui, senhorita, hem?

- Ver o An... ver o piloto. O Senhor Toranaga me mandou. O piloto está bêbado?

- Sim, e cheio de comida também. O pobre bastardo comeu e bebeu depressa demais. Tomou meia garrafa de um trago. Os ingleses são todos iguais. Não agüentam o grogue e não têm co jones. - Mediu Mariko com os olhos. - Nunca vi uma florzinha tão pequena quanto você. E nunca conversei com uma japona que soubesse falar civilizado antes.

- O senhor chama todas as senhoras e samurais japoneses de japonas e macacos?

O marujo riu brevemente.

- Ora, senhorita, isso foi um escorregão da língua. Isso é para comuns, a senhora sabe, os alcoviteiros e as prostitutas em Nagasaki. Sem intenção de ofender. Nunca conversei realmente com uma senhorita civilizada, nunca soube que havia alguma, por Deus.

- Nem eu, senhor. Nunca conversei com um português civilizado antes, além do santo padre. Somos japoneses, não japonas, neh? E macacos são animais, não?

- Claro. - O contramestre mostrou os dentes quebrados.

- Fala como uma dona. Sim. Não tive a intenção de ofender, dona senhorita.

Blackthorne começou a balbuciar. Ela se aproximou do beliche e sacudiu-o suavemente.

- Anjin-san! Anjin-san!

- Sim... sim? - Blackthorne abriu os olhos. - Oh... alo... descul... eu. .. - Mas o peso da dor que sentia e os giros que a sala dava forçaram-no a continuar deitado.

- Por favor, mande chamar um criado, senhor. Ele deve ser lavado.

- Há escravos... mas não para isso, dona senhorita. Deixe o Inglês. Que mal faz um pouco de vômito para um herege?

- Não há criados? - perguntou ela, pasmada.

- Temos escravos, bastardos pretos, mas são preguiçosos. Eu não confiaria neles para lavá-lo - acrescentou com um sorriso enviesado.

Mariko sabia que não tinha alternativa. O Senhor Toranaga poderia ter necessidade do Anjin-san imediatamente, e era dever dela.

- Então preciso de água - disse. - Para lavá-lo.

- Há um barril ao pé da escada. No convés inferior.

- Por favor, vá buscar um pouco, senhor.

- Mande a ele. - O contramestre sacudiu o dedo na direção de Kana.

- Não. Vá o senhor, por favor. Agora.

O contramestre olhou para Blackthorne.

- Você é a zinha dele?

- O quê?

- A zinha do Inglês?

- O que é "zinha", senhor?

- A mulher dele. A companheira dele, você sabe, senhorita, a namorada desse piloto. Zinha.

- Não. Não, senhor, não sou a zinha dele.

- Dele, então? Deste mac... deste samurai? Ou do rei, talvez, desse que veio a bordo? Tora-alguma-coisa? Você é uma das mulheres dele?

- Não.

- Nem de ninguém a bordo?

Ela balançou a cabeça.

- Por favor, quer ir buscar um pouco de água?

O contramestre assentiu e saiu.

- É o homem mais feio e de cheiro mais repugnante de que jamais me aproximei - disse o samurai. - O que ele estava dizendo?

- Ele... o homem perguntou se... se eu sou uma das consortes do piloto.

O samurai dirigiu-se para a porta.

- Kana-san!

- Exijo o direito, em nome do seu marido, de reparar esse insulto. Imediatamente! Como se a senhora pudesse coabitar com algum bárbaro!

- Kana-san! Por favor, feche a porta.

- A senhora é Toda Mariko-san! Como se atreveu ele a insultá-la? O insulto deve ser reparado!

- Será, Kana-san, e lhe agradeço. Sim. Dou-lhe o direito. Mas estamos aqui por ordem do Senhor Toranaga. Antes que ele dê a sua aprovação, não seria correto que o senhor fizesse isso.

Kana fechou a porta relutantemente.

- Concordo. Mas formalmente peço-lhe que solicite isso ao Senhor Toranaga antes de partirmos.

- Sim. Obrigada por seu interesse pela minha honra. - O que Kana faria se soubesse de tudo o que foi dito, perguntou-se ela, aterrorizada. O que faria o Senhor Toranaga? Ou Hiromatsu? Ou meu marido? Macacos? Oh, minha Nossa Senhora, ajude-me a me manter calma e a conservar a mente funcionando. Para abrandar a fúria de Kana, ela rapidamente mudou de assunto.

- O Anjin-san parece tão indefeso. Como um bebê. Parece que os bárbaros não agüentam o vinho. Exatamente como alguns dos nossos homens.

- Sim. Mas não é o vinho. Não pode ser. É o que ele comeu.

Blackthorne moveu-se desajeitado, arrastando-se de volta à consciência.

- Eles não têm criados no navio, Kana-san, portanto terei que substituir uma das damas do Anjin-san. - Ela começou a despir Blackthorne, desajeitadamente por causa do braço ferido.

- Deixe-me ajudá-la. - Kana foi muito hábil. - Eu costumava fazer isso para o meu pai quando o saquê o tirava de si.

- É bom que um homem se embebede de vez em quando. Liberta todos os maus espíritos.

- Sim. Mas meu pai costumava passar muito mal no dia seguinte.

- Meu marido passa muito mal. Durante dias.

Após um instante, Kana disse:

- Permita Buda que o seu Senhor Buntaro escape.

- Sim. - Mariko olhou em torno da cabina. - Não compreendo como podem viver num lugar sórdido assim. E pior do que o mais pobre do nosso povo. Eu estava quase desmaiando na outra cabina, por causa do mau cheiro.

- É revoltante. Eu nunca tinha estado a bordo de um navio bárbaro.

- Eu nunca estive ao mar antes.

A porta se abriu e o contramestre pousou o balde. Ficou chocado com a nudez de Blackthorne. Puxou uma coberta de sob o beliche e cobriu-o.

- Ele vai se resfriar. Além disso, é uma vergonha fazer isso com um homem, mesmo com ele.

- O quê?

- Nada. Qual é o seu nome, dona senhorita? - Os olhos dele cintilavam.

Ela não respondeu. Empurrou a coberta para o lado e lavou Blackthorne, contente por ter alguma coisa para fazer, odiando a cabina e a repugnante presença do contramestre, perguntando-se sobre o que estariam conversando na outra cabina. Nosso amo está seguro? Quando acabou, enrolou o quimono e a tanga suja.

- Isto pode ser lavado, senhor?

- Hem?

- Isto deve ser limpo imediatamente. Poderia mandar chamar um escravo, por favor?

- São um bando de pretos preguiçosos, já lhe disse. Levaria uma semana ou mais. Jogue fora, dona senhorita, isso não vale o seu fôlego. O nosso Capitão-Piloto Rodrigues disse que eu lhe desse roupas adequadas. Aqui estão. - Ele abriu um baú. - Disse para dar-lhe algumas daqui.

- Não sei como vestir um homem com isso.

- Ele precisa de uma camisa, uma calça, codpiece, meias, botas e uma jaqueta. - O contramestre tirou-as e mostrou-lhe.

Depois, juntos, ela e o samurai começaram a vestir Blackthorne, ainda no seu estupor semiconsciente.

- Como é que ele usa isto? - Ela segurou o codpiece triangular, parecido com um saco, com os cordões pendurados.

- Nossa Senhora, ele usa na frente, assim - disse o contramestre embaraçado, apontando o seu. - Amarra-se no lugar sobre as calças, como eu disse. Sobre o saco.

Ela olhou para o do contramestre, estudando-o. Ele sentiu-lhe o olhar e ficou agitado.

Ela pôs o codpiece em Blackthorne, colocou-o cuidadosamente no lugar, e junto com o samurai passou os cordões por entre as pernas dele e amarrou-os em torno da cintura. Em voz baixa ela disse ao samurai:

- Este é o modo de se vestir mais ridículo que já vi.

- Deve ser muito desconfortável - retrucou Kana. - Os padres também usam, Mariko-san? Sob o hábito?

- Não sei.

Ela afastou um fio de cabelo da frente dos olhos.

- Senhor, o Anjin-san está vestido corretamente agora?

- Sim. Exceto pelas botas. Estão ali. Elas podem esperar. - O contramestre se aproximou e as narinas dela se taparam. Ele baixou a voz, mantendo-se de costas para o samurai. - Você quer dar uma rapidinha?

- O quê?

- Eu lhe agrado, senhorita, hem? O que diz? Há um beliche na cabina ao lado. Mande o seu amigo lá para cima. O Inglês ficará inconsciente por uma hora ainda. Pago o habitual.

- O quê?

- Você merecerá uma moeda de cobre, até três, se for boa, e será montada pelo melhor galo daqui até Lisboa, hem?

- O que diz?

O samurai viu o horror dela.

- O que é, Mariko-san?

Mariko empurrou o contramestre para longe do beliche. Suas palavras soaram trôpegas.

- Ele... ele disse...

Kana sacou a espada imediatamente, mas viu-se diante do cano de duas pistolas engatilhadas. Ainda assim começou a avançar.

- Pare, Kana-san! - ofegou Mariko. - O Senhor Toranaga proibiu qualquer ataque até que ele ordenasse!

- Vamos, macaco, venha, seu cabeça de bosta fedorento! Você! Diga a esse macaco que largue a espada ou será um filho da puta sem cabeça antes de poder peidar!

Mariko erguia-se a um pé do contramestre. Tinha a mão direita no obi, o cabo do estilete na palma da mão. Mas lembrou-se do seu dever e tirou a mão.

- Kana-san, embainhe a espada. Por favor. Devemos obedecer ao Senhor Toranaga. Devemos obedecer-lhe.

Com um esforço supremo, Kana fez o que ela disse.

- Estou disposto a mandá-lo para o inferno, japona!

- Por favor, desculpe-o, senhor, e a mim - disse Mariko, tentando soar polida. - Houve um engano, um eng...

- Esse bastardo com cara de macaco puxou uma espada. Isso não foi engano algum, por Jesus!

- Por favor, desculpe, senhor, sinto muito.

O contramestre lambeu os lábios.

- Esquecerei isso se você for boazinha, florzinha. Vamos para a cabina ao lado e diga a esse macac... diga a ele que fique aqui e esquecerei tudo isto.

- Qual... qual é o seu nome, senhor?

- Pesaro. Manuel Pesaro. Por quê?

- Nada. Por favor, desculpe o mal-entendido, Sr. Pesaro.

- Vá para a cabina ao lado. Agora.

- O que está acontecendo? O que... - Blackthorne não sabia se ainda estava acordado ou ainda no pesadelo, mas sentiu o perigo. - O que está acontecendo, por Deus?

- O japona fedorento sacou a arma contra mim!

- Foi um... um engano, Anjin-san - disse Mariko. Eu... eu pedi desculpas ao Sr. Pesaro.

- Mariko? É a senhora, Mariko-san?

- Hai, Anjin-san. Honto. Honto.

Ela chegou mais perto. As pistolas do contramestre não vacilavam. Ela teve que esbarrar nele e exigiu-lhe um esforço ainda maior não puxar a sua faca e estripá-lo. Naquele momento a porta se abriu. O jovem timoneiro entrou na cabina com um balde de água. Olhou estupidamente para as pistolas e saiu em disparada.

- Onde está Rodrigues? - disse Blackthorne, tentando pôr a cabeça a funcionar.

- Lá em cima, onde um bom piloto deve estar - disse o contramestre, a voz rascante. - Este japona sacou a espada, por Deus!

- Ajude-me a subir ao convés. - Blackthorne agarrou os lados do beliche. Mariko segurou-o mas não conseguiu levantá-lo.

O contramestre acenou com a pistola para Kana.

- Diga-lhe que ajude. E diga-lhe que se há um Deus no paraíso, ele estará pendendo do lais antes da troca de turno.

 

O Primeiro-lmediato Santiago afastou a orelha do nó da madeira, secreto, na parede da grande cabina, com o "Bem, está tudo resolvido, então" de Dell'Aqua ressoando-lhe no cérebro.

Silenciosamente deslizou pela cabina escura, saiu para o corredor e fechou a porta sem ruído. Era um homem alto, magro, de rosto marcado, e usava o cabelo preso num rabicho. Suas roupas estavam em ordem e, como muitos marujos, não usava calçados. As pressas, subiu à gaiúta, atravessou o convés principal e rumou para o tombadilho, onde Rodrigues conversava com Mariko. Desculpou-se, inclinou-se para colocar a boca bem junto da orelha de Rodrigues e começou a relatar tudo o que ouvira, e fora enviado para ouvir, de modo que ninguém mais no tombadilho pudesse ouvir.

Blackthorne estava sentado atrás, no convés, encostado à amurada, a cabeça apoiada sobre os joelhos dobrados. Mariko estava sentada de costas eretas, de frente para Rodrigues, à moda japonesa, e Kana, o samurai, gelidamente ao lado dela. Marinheiros armados aglomeravam-se nos conveses, e havia dois outros ao leme. O navio ainda apontado a barlavento, o ar e a noite limpos, os nimbos mais fortes e a chuva não muito longe. A cem jardas de distância encontrava-se a galera, à mercê dos canhões da fragata, remos travados, com exceção de dois de cada lado que a mantinham em posição, ao embalo da leve correnteza. Os barcos de pesca emboscados com arqueiros samurais hostis estavam mais próximos, mas ainda não haviam ultrapassado os limites de segurança.

Mariko observava Rodrigues e o imediato. Não podia ouvir o que estava sendo dito e, ainda que pudesse, seu treinamento a teria feito preferir não ouvir. A privacidade em casas de papel era impossível sem a polidez e a consideração; sem privacidade não podia existir vida civilizada, por isso todos os japoneses eram treinados para ouvir e para não ouvir. Para o bem de todos.

Quando ela subira ao convés com Blackthorne, Rodrigues ouvira a explanação do contramestre e a explanação vacilante dela de que a culpa era sua, que ela interpretara mal o que o contramestre dissera, e que isso levara Kana a sacar da espada a fim de proteger-lhe a honra. O contramestre ouvira, com um sorriso malicioso, as pistolas ainda apontadas para as costas do samurai.

- Só perguntei se ela era a zinha do Inglês, por Deus, já que estava tão à vontade lavando-o e arrumando as intimidades dele no cod.

- Baixe as pistolas, contramestre.

- Ele é perigoso, eu lhe digo. Amarre-o!

- Eu o vigiarei. Vá para a proa!

- Esse macaco me teria matado se eu não fosse mais rápido. Ponha-o no lais. É isso o que faríamos em Nagasaki!

- Não estamos em Nagasaki. Vá para a proa! Já!

E quando o contramestre se afastara, Rodrigues perguntara:

- O que ele disse, senhora? O que realmente disse?

- Dis... nada, senhor. Por favor.

- Peço desculpas pela insolência daquele homem, à senhora e ao samurai. Por favor, transmita-lhe isso, peça-lhe perdão. E peço formalmente aos dois que esqueçam os insultos do contramestre. Não ajudará nem ao seu suserano nem ao meu termos problemas a bordo. Prometo-lhe que cuidarei dele ao meu modo e no momento oportuno.

Ela falara a Kana, que, ante a persuasão dela, finalmente concordara.

- Kana-san diz que está bem, mas se voltar a ver o Contramestre Pesaro em terra, cortar-lhe-á a cabeça.

- É justo, por Deus. Sim. Domo arigato, Kana-san - disse Rodrigues com um sorriso -, e domo arigato goziemashita, Mariko-san.

- Fala japonês?

- Oh, não, só uma ou duas palavras. Tenho uma esposa em Nagasaki.

- Oh! Está há muito tempo no Japão?

- Esta é a minha segunda viagem de Lisboa. Passei sete anos nestas águas, aqui e entre Macau e Goa. - Rodrigues acrescentou: - Não prestem atenção nele, é eta. Mas Buda disse que até os etas têm direito à vida. Neh? Minha esposa fala um pouco de português, embora nem de longe tão perfeito quanto o da senhora. É cristã, naturalmente?

- Sim.

- Minha esposa converteu-se. O pai dela é samurai, embora não seja importante. O suserano dela é o Senhor Kiyama.

- Ela tem sorte por ter um marido como o senhor - disse Mariko polidamente, mas perguntou a si mesma, confusa, como é que alguém podia se casar e viver com um bárbaro. Apesar da sua educação inerente, perguntou: - A senhora sua esposa come carne como. .. como aquela da cabina?

- Não - replicou Rodrigues com uma risada, mostrando dentes brancos, ótimos e fortes. - E na minha casa em Nagasaki eu também não como. Ao mar sim, e na Europa. É um costume nosso. Mil anos atrás, antes que Buda viesse, era um costume seu também, neh? Antes que Buda vivesse para indicar o Tao, o Caminho, todas as pessoas comiam carne. Mesmo aqui, senhora. Mesmo aqui. Agora, claro, estamos mais bem informados, alguns de nós, neh?

Mariko pensou sobre isso. Depois disse:

- Todos os portugueses nos chamam de macacos? E de japonas? Pelas nossas costas?

Rodrigues puxou o brinco que estava usando.

- Vocês não nos chamam de bárbaros? Mesmo na nossa cara? Somos civilizados, pelo menos pensamos que somos, senhora. Na Índia, a terra de Buda, chamam os japoneses de "demônios orientais" e, dispondo de armas, não dariam permissão de desembarque na terra deles a nenhum japonês. Vocês chamam os hindus de "pretos" e "não humanos". Como é que os chineses chamam os japoneses? Como é que vocês chamam os chineses? Como chamam os coreanos? Comedores de alho, neh?

- Não creio que o Senhor Toranaga ficasse satisfeito ao saber disso. Ou o Senhor Hiromatsu, ou mesmo o pai da sua esposa.

- O abençoado Jesus disse: "Prestai atenção à trave que existe em vossos olhos antes de notar o argueiro que está nos meus".

Ela pensou sobre isso novamente enquanto observava o primeiro-lmediato cochichar ao piloto português. É verdade: zombamos dos outros povos. Mas somos cidadãos da Terra dos Deuses e portanto especialmente escolhidos pelos deuses. Apenas nós, de todos os povos, somos protegidos por um imperador divino. Não somos, então, absolutamente únicos e superiores a todos os outros? E quando se é japonês e cristão? Não sei. Oh, Nossa Senhora, de-me a sua compreensão. Este piloto Rodrigues é tão estranho quanto o piloto inglês. Por que são tão especiais? Por causa do treinamento deles? É inacreditável o que fazem, neh? Como podem navegar ao redor do mundo e caminhar sobre o mar tão facilmente quanto nós fazemos por terra? A esposa de Rodrigues saberia a resposta? Gostaria de conhecé-la, e conversar com ela.

O imediato baixou a voz ainda mais.

- Ele disse o quê? - exclamou com uma praga involuntária, e Mariko, malgrado seu, tentou ouvir. Mas não conseguiu entender o que o imediato repetiu. Depois viu os dois olharem para Blackthorne e seguiu-lhes o olhar, inquieta com o interesse deles.

- O que mais aconteceu, Santiago? - perguntou Rodrigo cautelosamente, consciente da presença de Mariko.

O imediato contou-lhe num sussurro, por trás de uma em concha.

- Quanto tempo vão ficar lá embaixo?

- Estão brindando um ao outro. E ao acordo que fizeram.

- Bastardos! - Rodrigues agarrou a camisa do imediato.

- Nem uma palavra sobre isso, por Deus. Pela minha vida!

- Não era preciso dizer isso, piloto.

- Sempre é necessário dizer. - Rodrigues olhou para Blackthorne, do outro lado. - Acorde-o!

O imediato aproximou-se e sacudiu-o asperamente.

- Que que há, hem?

- Bata-lhe!

Santiago o esbofeteou.

- Jesus Cristo, eu... - Blackthorne estava de pé, o rosto em chamas, mas oscilou e caiu.

- Deus o amaldiçoe, acorde, Inglês! - Furiosamente Rodrigues estirou um dedo na direção dos dois timoneiros. - Atirem-no ao mar!

- Hem?

- Já, por Deus!

Quando os dois homens o agarraram, Mariko disse:

- Piloto Rodrigues, o senhor não deve... - mas antes que ela ou Kana pudessem interferir os dois homens já haviam atirado Blackthorne por sobre o costado. Ele caiu os vinte pés, de barriga na água, erguendo uma nuvem de borrifos, e desapareceu. Num instante voltou à tona, engasgando e falando incompreensivelmente, debatendo-se na água, o frio de gelo clareando-lhe a mente.

Rodrigues estava tentando levantar da cadeira.

- Nossa Senhora, dêem-me uma mão! - Um dos timoneiros correu para ajudá-lo quando o primeiro-imediato passou-lhe uma mão sob a axila. - Jesus Cristo, tenha cuidado, olhe o meu pé, seu cabeça de bosta desajeitado!

Ajudaram-no a se aproximar da amurada. Blackthorne ainda tossia e resmungava, mas agora, enquanto nadava para o navio, gritava imprecações contra quem o havia atirado na água.

- Dois pontos a estibordo! - ordenou Rodrigues. O navio pôs-se levemente a sotavento e se afastou de Blackthorne. Rodrigues gritou para baixo: - Fique longe do meu navio! - Depois, com urgência, ao primeiro-lmediato: - Pegue a chalupa, recolha o Inglês e coloque-o a bordo da galera. Depressa. Diga-lhe...

- Ele baixou a voz.

Mariko estava grata por Blackthorne não se ter afogado.

- Piloto! O Anjin-san está sob a proteção do Senhor Toranaga. Exija que ele seja recolhido imediatamente!

- Só um momento, Mariko-san! - Rodrigues continuou a cochichar com Santiago, que assentiu, depois saiu correndo.

- Desculpe, Mariko-san, gomen kudasai, mas era urgente. O Inglês tinha que ser despertado. Eu sabia que ele sabia nadar. Ele tem que estar alerta e logo!

- Por quê?

- Sou amigo dele. Ele lhe disse isso?

- Sim. Mas a Inglaterra e Portugal estão em guerra. Assim como a Espanha.

- Sim. Mas os pilotos devem estar acima da guerra.

- Então para com quem o senhor cumpre o seu dever?

- Para com a bandeira.

- sso não quer dizer para com seu rei?

- Sim e não, senhora. Devo uma vida ao Inglês. - Rodrigues observava a chalupa. - Cuidado, devagar... agora coloque-o a barlavento - ordenou ao timoneiro.

- Sim, senhor.

Ele esperou, examinando e reexaminando o vento, os bancos de areia e a praia a distância.

- Desculpe, senhora, estava dizendo? - Rodrigues olhou-a momentaneamente, depois se afastou mais uma vez para examinar a posição do seu navio e a chalupa. Ela também olhou a chalupa. Os homens haviam içado Blackthorne do mar e remavam rapidamente em direção à galera, sentados ao invés de em pé, e puxando os remos ao invés de empurrá-los. Ele já não conseguia ver-lhes o rosto com clareza.

O Anjin-san tornou-se indistinto com o outro homem bem atrás dele, o homem com quem Rodrigues cochichara.

- O que foi que disse a ele, senhor?

- A quem?

- A ele. Ao senhor que mandou apanhar o Anjin-san.

- Só que desejo boa viagem ao Inglês e adeus. - A resposta foi insípida e não comprometedora.

Ela traduziu para Kana o que fora dito.

Quando Rodrigues viu a chalupa ao lado da galera, começou a respirar de novo.

- Ave Maria, mãe de Deus.. .

O capitão-mor e os jesuítas subiram ao convés. Toranaga e os guardas seguiam-nos.

- Rodrigues! Desça a chalupa! Os padres vão a terra - disse Ferreira.

- E depois?

- Depois zarpamos. Para Yedo.

- Por que para lá? Estávamos navegando para Macau respondeu Rodrigues, a imagem da inocência.

- Vamos levar Toranaga para Yedo, primeiro.

- Vamos o quê? Mas e a galera?

- Fica ou abre caminho à força.

Rodrigues pareceu ficar ainda mais surpreso e olhou para a galera, depois para Mariko. Viu a acusação escrita nos olhos dela.

- Matsu - disse o piloto em voz baixa.

- O quê? - perguntou o Padre Alvito. - Paciência? Por que paciência, Rodrigues?

- Rezar ave-marias, padre. Eu estava dizendo à senhora que isso ensina paciência.

Ferreira fitava a galera.

- O que a nossa chalupa está fazendo lá?

- Mandei o herege de volta.

- Você o quê?

- Mandei o Inglês de volta. Qual é o problema, capitão-mor? O Inglês me ofendeu, por isso atirei o sodomita ao mar. Deveria tê-lo deixado se afogar, mas ele sabia nadar, então mandei o imediato recolhê-lo e colocá-lo de volta no navio dele, já que ele parece contar com o favor do Senhor Toranaga. O que há de errado nisso?

- Traga-o de volta a bordo.

- Terei que enviar um destacamento armado para abordagem, capitão-mor. É isso o que deseja? Ele estava blasfemando e cuspindo o fogo do inferno sobre nós. Não voltará de boa vontade desta vez.

- Quero-o de volta.

- Qual é o problema? O senhor não disse que a galera deve ficar e lutar, etcétera e tal? E então? O Inglês está afundado na merda. Ótimo. Quem precisa daquele sodomita, afinal? Certamente os padres o preferem longe de suas vistas. Hein, padre?

Dell'Aqua não respondeu. Nem Alvito. Aquilo alterava o plano que Ferreira formulara e que fora aceito por eles e por Toranaga: que os padres desembarcariam imediatamente para apaziguar Ishido, Kiyama e Onoshi, alegando que tinham acreditado na história de Toranaga sobre os piratas e não sabiam que ele "fugira" do castelo. Enquanto isso a fragata rumaria para a boca da enseada, deixando a galera para desviar a atenção dos barcos de pesca. Se houvesse um ataque aberto contra a fragata, seria rechaçado com canhões, e os dados estariam lançados.

- Mas os botes não devem nos atacar - raciocinara Ferreira. - Têm a galera para pegar. Será sua responsabilidade, Eminência, convencer Ishido de que não tivemos outra escolha. Afinal de contas, Toranaga é o presidente dos regentes. Por último, o herege fica a bordo.

Nenhum dos padres perguntara por quê. Nem Ferreira expusera voluntariamente a razão disso. O padre-lnspetor deu um tapinha afetuoso no capitão-mor e voltou as costas para a galera.

- Talvez esteja igualmente bem que o herege fique lá - disse, e pensou: Como são estranhos os caminhos de Deus!

Não, Ferreira queria gritar. Eu queria vê-lo afogado. Um homem caído ao mar bem cedo ao amanhecer - nenhum vestígio, nenhuma testemunha, tão fácil. Toranaga nunca seria o mais esperto; um acidente trágico, seria tudo. E era esse o destino que Blackthorne merecia. O capitão-mor também conhecia o horror à morte no mar que tinha todo o piloto.

- Nan ja? - perguntou Toranaga.

O Padre Alvito explicou que o piloto se encontrava na galera e por quê. Toranaga voltou-se para Mariko, que assentiu e acrescentou o que Rodrigues dissera anteriormente.

Toranaga aproximou-se da amurada e perscrutou a escuridão. Mais barcos de pesca estavam largando a praia ao norte e os outros logo estariam em posição. Ele sabia que o Anjin-san era um estorvo político e aquele era um meio simples que os deuses lhe ofereciam, caso desejasse se livrar dele. Quero isso? Com certeza os padres cristãos ficarão imensamente mais felizes se o Anjin-san desaparecer, pensou ele. Assim como Onoshi e Kiyama, que temiam tanto o homem que um deles, ou os dois, organizou as tentativas de assassinato. Por que esse medo?

É karma que o Anjin-san esteja na galera agora e não em segurança aqui. Neh? Portanto o Anjin-san irá ao fundo com o navio, junto com Yabu, os outros, as armas, e isso também é karma. As armas, posso perdê-las, Yabu eu posso perder. Mas e o Anjin-san?

Sim.

Porque ainda tenho mais oito desses bárbaros estranhos de reserva. Talvez o conhecimento coletivo deles seja igual ou exceda ao desse homem isolado. O importante é estar de volta a Yedo tão rapidamente quanto possível, a fim de me preparar para a guerra, que não pode ser evitada. Kiyama e Onoshi? Quem sabe se me apoiarão. Talvez sim, talvez não. Mas um pedaço de terra e algumas promessas não pesam nada na balança, se o peso cristão estiver do meu lado dentro de quarenta dias.

- É karma, Tsukku-san. Neh?

- Sim, senhor. - Alvito olhou para o capitão-mor, muito satisfeito.

- O Senhor Toranaga sugere que não se faça nada. É a vontade de Deus.

- É?

O tambor da galera começou a soar abruptamente. Os remos tocaram a água com grande força.

- Em nome de Cristo, o que ele está fazendo? - urrou Ferreira. Então, enquanto olhavam a galera se afastando deles, a bandeira de Toranaga desceu esvoaçando do topo do mastro.

- É como se estivessem dizendo a todos os malditos barcos de pesca da enseada que o Senhor Toranaga não está mais a bordo - disse Rodrigues.

- O que ele vai fazer?

- Não sei.

- Não sabe mesmo? - perguntou Ferreira.

- Não. Mas se fosse ele, rumaria para o alto-mar e nos deixaria no fundo do poço - ou tentaria fazer isso. O Inglês nos deixou expostos agora. O que se faz?

- Sua ordem é seguir para Yedo. - O capitão-mor queria acrescentar: se você abalroar a galera, tanto melhor, mas não fez isso. Porque Mariko o estava ouvindo.

Os padres rumaram para a praia na chalupa.

- Todas as velas, ho! - gritou Rodrigues, a perna doendo e latejando.

- Sul-sudoeste! Todos os homens a postos!

- Senhora, por favor, diga ao Senhor Toranaga que seria melhor que ele fosse lá para baixo. Será mais seguro - disse Ferreira.

- Ele agradece e diz que ficará aqui.

Ferreira deu de ombros, aproximou-se da beirada do tombadilho.

- Preparem todos os canhões. Carreguem as armas! Posição de ação!

 

- Isogi! - gritou Blackthorne, urgindo o mestre dos remos a acelerar a batida. Olhou para trás, para a fragata que se aproximava a barlavento, cochada a todo pano agora, depois novamente para a frente, avaliando a próxima manobra. Perguntou a si mesmo se julgara corretamente, pois havia muito pouco espaço ali, perto dos penhascos, mal e mal algumas jardas entre a catástrofe e o sucesso. Por causa do vento, a fragata teve que mudar o rumo para atingir a boca da enseada, enquanto a galera podia manobrar à vontade. Mas a fragata tinha a vantagem da velocidade. E na última manobra Rodrigues deixara claro que a galera faria melhor em permanecer fora do caminho quando o Santa Theresa precisasse de espaço.

Yabu estava novamente palrando ao seu lado, mas ele não lhe deu atenção.

- Não entendo, wakarimasen, Yabu-san! Ouça, Toranaga-sama disse, a mim, Anjin-san, ichi-ban ima! Sou o chefe, o capitão-san agora! Wakarimasu ka, Yabu-san? - Apontou a rota na bússola para o capitão japonês, que gesticulou para a fragata, a umas escassas cinqüenta jardas atrás agora, alcançando-os rapidamente em outra linha de colisão.

- Mantenham o rumo, por Deus! - disse Blackthorne, a brisa resfriando suas roupas ensopadas, que o enregelavam mas ajudavam a clarear-lhe a cabeça. Ele examinou o céu. Não havia nuvem alguma perto da lua brilhante, e o vento estava excelente. Nenhum perigo lá, pensou ele. Deus conserve a lua brilhando até que tenhamos atravessado.

- Ei, capitão! - chamou em inglês, sabendo que não fazia diferença se falasse em inglês, português, holandês ou latim, porque estava sozinho. - Mande alguém buscar saquê! Saquê! Wakarimasu ka?

- Hai, Anjin-san.

Um marujo foi mandado às pressas. Enquanto o homem corria, olhava por sobre o ombro, atemorizado com o tamanho da fragata que se aproximava e com a sua velocidade. Blackthorne manteve o curso, tentando forçar a fragata a virar antes de obter todo o espaço a barlavento. Mas ela não vacilou e veio diretamente na sua direção. No último segundo ele girou para fora do caminho dela e depois, quando o gurupês estava quase sobre o seu convés de popa, ouviu a ordem de Rodrigues:

- Virar para bombordo! Velas de estai, manter o rumo! - Depois um grito para ele, em espanhol: - Tua boca no traseiro do Demônio, Inglês!

- Tua mãe chegou lá primeiro, Rodrigues!

Então a fragata mudou de posição, apontando agora para a praia, onde teria que virar de novo para se pôr a barlavento e novamente manobrar antes de poder virar uma última vez e rumar para a boca da enseada.

Por um instante os navios estiveram tão próximos que Blackthorne quase podia tocar o outro. Rodrigues, Toranaga, Mariko e o capitão-mor oscilando no tombadilho. Depois a fragata se afastou, rodeando-os com a sua esteira.

- Isogi, isogi, por Deus!

Os remadores redobraram esforços e por meio de sinais Blackthorne ordenou mais homens aos remos, até se esgotarem as reservas. Tinha que atingir a boca da enseada antes da fragata ou estariam perdidos.

A galera devorava a distância. Mas o mesmo fazia a fragata. No lado oposto da enseada, ela girou como um dançarino e ele viu que Rodrigues acrescentara joanetes e mastaréus.

- Ele é um bastardo astuto, como todo português!

O saquê chegou, mas foi tomado das mãos do marujo pela jovem que ajudara Mariko e que agora, incerta, oferecia-o a ele. Ela permanecera resolutamente no convés, embora estivesse claro que se encontrava fora do seu elemento. Suas mãos eram fortes, o cabelo bem arrumado, e o quimono rico, de bom gosto e asseado. A galera jogou. A garota cambaleou e deixou cair o cálice. Seu rosto não se alterou, mas ele viu o rubor da vergonha.

- Não tem importância - disse Blackthorne quando ela tateou à procura do cálice. - Namae ka?

- Usagi Fujiko, Anjin-san.

- Fujiko-san. Pronto, dê-me. Dozo. - Estendeu a mão, pegou o frasco e bebeu diretamente dele, ávido por sentir o calor do vinho dentro do corpo. Concentrou-se no novo curso, contornando os bancos de areia de que Santiago, por ordem de Rodrigues, lhe falara. Reexaminou a posição em relação ao promontório, a qual lhe oferecia um percurso limpo e sem obstáculos até a boca, enquanto acabava o vinho aquecido, perguntando-se de passagem como a bebida teria sido aquecida, e por que sempre a serviam quente e em pequenas quantidades.

Estava com a cabeça desanuviada agora, e sentiu-se forte obastante, se fosse cuidadoso. Mas sabia que não tinha reservas para entrar em combate, exatamente como o navio.

- Saquê dozo, Fujiko-san. - Estendeu-lhe o frasco e esqueceu-se dela.

Na manobra a barlavento, a fragata comportou-se muito bem e passou cem jardas à frente deles, rumando para a praia. Ouviu obscenidades trazidas pelo vento e não se deu ao trabalho de retrucar, conservando a própria energia.

- Isogi, por Deus! Estamos perdendo!

A excitação da corrida e de estar novamente sozinho no comando - mais pela sua força de vontade do que por posição - juntava-se ao raro privilégio de ter Yabu em seu poder e enchia-o de uma alegria profana. - Não fosse porque o navio iria a pique, e eu com ele, eu o lançaria contra os rochedos só para vê-lo se afogar, Yabu cara de merda! Pelo velho Pieterzoon!

Mas Yabu não salvou Rodrigues quando você não pôde fazer isso? Não atacou os bandidos quando você caiu na emboscada? E foi corajoso esta noite. Sim, é um cara de merda, mas ainda assim corajoso, e isso é verdade.

O frasco de saquê foi oferecido de novo.

- Domo - disse ele. A fragata estava querenada, cochada e satisfazendo-o enormemente. - Eu poderia fazer melhor com o meu navio - disse ele em voz alta ao vento. - Mas se eu o tivesse, passaria por entre os botes, rumo ao alto-mar, e nunca voltaria. De algum modo retornaria a casa e deixaria o Japão aos japoneses e aos pestilentos portugueses. - Viu Yabu e o capitão olhando-o fixamente. - Não, não faria isso realmente, ainda não. Há um Navio Negro para capturar, e saquê. E vingança, hein, Yabu-san?

- Nan desu ka, Anjin-san? Nan ja?

- Ichi-ban! Número um! - respondeu ele, acenando para a fragata. Esvaziou o frasco de bebida. Fujiko pegou-o.

- Saquê, Anjin-san?

- Domo, iyé!

Os dois navios estavam bem perto dos botes de pesca agora, a galera rumando direto para a passagem que fora deliberadamente deixada entre eles, a fragata indo de vento em popa e virando para a boca da enseada. Ali o vento refrescou quando os promontórios protetores desapareceram, o mar aberto a meia milha à frente. Lufadas enfunavam as velas da fragata, as cobertas estalavam como tiros de pistola, a espuma na proa e na esteira do barco.

Os remadores estavam banhados de suor e extenuados. Um homem caiu. E outro. Os cinqüenta e tantos samurais ronins já estavam em posição. À frente, arqueiros nos botes de cada lado do estreito canal armavam os arcos. Blackthorne viu pequenos braseiros em muitos botes e entendeu que as setas seriam incendiárias.

Preparara-se para a batalha do melhor modo que pudera. Yabu compreendeu que eles teriam que lutar, e compreendeu imediatamente que as setas seriam incendiárias. Blackthorne erguera anteparos de madeira, por proteção, em torno do timão. Quebrara alguns engradados de mosquetes e destacara os homens que sabiam fazer isso para armá-los com pólvora e balas. Trouxera vários barriletes de pólvora para o tombadilho e os provera de estopim. Quando Santiago, o primeiro-lmediato, o ajudara a subir a bordo da chalupa, dissera-lhe que Rodrigues ia ajudar, com a boa graça de Deus.

- Por quê? - perguntara ele.

- O meu piloto disse para lhe dizer que ele mandou atirá-lo ao mar para fazê-lo ficar sóbrio, senhor.

- Por quê?

- Porque, senhor piloto, ele disse para lhe dizer, porque havia perigo a bordo do Santa Theresa, perigo para o senhor.

- Que perigo?

- O senhor tem que abrir o seu caminho à força, se puder. Mas ele ajudará.

- Por quê?

- Pelo amor da doce Nossa Senhora, cale essa boca herética e ouça, tenho pouco tempo. - Então o imediato lhe falara sobre os recifes e as posições, o caminho do canal e o plano. E dera-lhe duas pistolas. - Meu piloto perguntou se o senhor é bom atirador.

- Péssimo - mentira ele.

- Vá com Deus, disse-me o piloto que lhe dissesse por último.

- Ele também. E você.

- Por mim mando-te para o inferno!

- A tua irmã!

Blackthorne havia adaptado estopins aos barriletes para o caso de o canhoneio começar ou não haver plano algum, ou para o caso de o plano se comprovar falso, e também contra inimigos que ultrapassassem os limites. Sendo tão pequeno, com o estopim aceso e flutuando contra o costado da fragata, o barrilete a afundaria tão certamente quanto uma canhonada de setenta canhões.Não importa o tamanho do barrilete, pensou ele, desde que estripe a fragata.

- Isogi, pela vida de vocês! - gritou, e pegou o leme, agradecendo a Deus por Rodrigues e pelo brilho da lua.

 

Ali, na boca, a enseada estreitava-se para quatrocentas jardas. A água era profunda quase que de praia a praia, os promontórios rochosos erguendo-se cortantes do mar.

O espaço entre os barcos de pesca era de cem jardas. O Santa Theresa tinha o freio entre os dentes agora, o vento de popa vindo de estibordo, uma forte esteira atrás, e estava ganhando deles de longe. Blackthorne ocupou o centro do canal e fez sinal a Yabu que estivesse pronto. Todos os samurais ronins receberam ordem de se abaixar ao lado das amuradas até que Blackthorne desse o sinal, e cada homem com mosquete ou espada - tomou posição a bombordo ou estibordo, onde quer que fosse necessário, Yabu comandando. O capitão japonês sabia que os remadores deviam acompanhar o tambor e o mestre tamborileiro sabia que devia obedecer ao Anjin-san. E o Anjin-san sozinho devia conduzir o navio.

A fragata estava a cinqüenta jardas à popa, no meio do canal, rumando diretamente para eles, e deixando óbvio que solicitava passagem pelo centro do canal.

A bordo da fragata, Ferreira sussurrou para Rodrigues:

- Abalroe-o. - Estava de olhos em Mariko, que se encontrava a dez passos deles, perto dos balaústres, com Toranaga.

- Não ousaríamos, não com Toranaga ai, e a garota.

- Senhora! - chamou Ferreira. - Senhora, é melhor descer, a senhora e seu amo. Seria mais seguro para ele no convés de armas.

Mariko traduziu para Toranaga, que pensou um instante, depois desceu para o convés de armas.

- Deus amaldiçoe os meus olhos - disse o atirador-chefe a ninguém em particular. - Gostaria de disparar uma carga e afundar alguma coisa. Já faz um maldito ano que não pomos a pique nem um pirata sifilítico.

- Sim. Os macacos merecem um banho.

No tombadilho Ferreira repetiu:

- Abalroe a galera, Rodrigues!

- Por que matar o seu inimigo quando os outros farão isso pelo senhor?

- Minha Nossa Senhora! Você é tão ruim quanto o padre! Não tem sangue! - exclamou Ferreira em espanhol.

- Sim, não tenho sangue de matança - replicou Rodrigues, também em espanhol. - Mas o senhor? O senhor tem. Hein? É sangue espanhol talvez?

- Vai abalroá-lo ou não? - perguntou Ferreira em português, sendo possuído pela iminência da matança.

- Se continuar onde está, sim.

- Então deixe-o ficar onde está.

- O que o senhor tinha em mente para o Inglês? Por que ficou tão furioso por ele não estar a bordo?

- Não gosto de você nem confio em você agora, Rodrigues. Por duas vezes você se pôs do lado do herege, ou parece se pôr, contra mim, ou contra nós. Se houvesse outro piloto aceitável na Ásia, eu o encalharia, Rodrigues, e partiria com o meu Navio Negro.

- Então o senhor naufragaria. Há um odor de morte à sua volta e apenas eu posso protegê-lo.

Ferreira persignou-se supersticiosamente.

- Nossa Senhora, você e sua língua imunda! Que direito tem você de dizer isso?

- Minha mãe era cigana e era a sétima filha de um sétimo filho, como eu.

- Mentiroso!

Rodrigues sorriu.

- Ah, meu senhor capitão-mor, talvez eu seja. - Colocou as mãos em concha em torno da boca e gritou:

- Posições de ação! - e depois ao timoneiro: - Manter o rumo, e se aquela prostituta de galera não se mover, afunde-a!

 

Blackthorne agarrava o leme firmemente, braços doendo, pernas doendo. O mestre dos remos martelava o tambor, os remadores faziam um esforço final.

A fragata estava a vinte jardas da popa, agora a quinze, a dez. Então Blackthorne girou para bombordo. A fragata quase esbarrou, vindo-lhes no rastro, até que os alcançou. Blackthorne girou o leme para estibordo para se pôr paralelo à fragata, a dez jardas. Então, juntos, lado a lado, ficaram prontos para correr o varetão entre os inimigos.

- Puuuuuuxem, puxem, seus bastardos! - berrou Blackthorne, querendo permanecer exatamente emparelhado, porque só ali eles estavam protegidos pela massa da fragata e pelas suas velas. Alguns tiros de mosquete, depois uma salva de flechas incendiárias, foram disparados contra eles, sem causar nenhum dano real, mas várias setas atingiram por engano as velas inferiores da fragata, e o fogo irrompeu.

Todos os samurais em comando nos botes detiveram seus arqueiros horrorizados. Nenhum deles jamais atacara um navio bárbaro meridional antes. Não eram só eles que traziam as sedas que tornavam suportável o úmido calor de cada verão, e o frio de cada inverno, transformavam toda primavera e todo outono numa alegria? Os bárbaros meridionais não eram protegidos por decretos imperiais? Incendiar um dos seus navios não os enfureceria tanto que eles, com razão, jamais voltariam?

Então os comandantes mantiveram seus homens em cheque enquanto a galera de Toranaga estava sob as asas da fragata, não ousando arriscar a menor chance de um deles ser a causa de os Navios Negros cessarem as viagens, sem a aprovação direta do General Ishido. E só quando os marujos na fragata extinguiram as chamas eles conseguiram respirar com mais facilidade.

Quando as flechas cessaram, Blackthorne também começou a descontrair-se. E Rodrigues. O plano estava funcionando. Rodrigues havia suposto que sob a sua proteção a galera teria uma chance, a única chance.

- Mas o meu piloto diz que o senhor deve se preparar para o inesperado, Inglês - relatara Santiago.

- Empurre esse bastardo para o lado - disse Ferreira.

- Maldição, eu ordeno que você o empurre contra os macacos!

- Cinco pontos para bombordo! - ordenou Rodrigues, serviçalmente.

- Cinco pontos para bombordo! - ecoou o timoneiro.

Blackthorne ouviu a ordem. Instantaneamente ele desviou cinco graus a bombordo e rezou. Se Rodrigues mantivesse a rota muito tempo eles se chocariam contra os barcos de pesca e estariam perdidos. Se ele retardasse a batida e ficasse para trás, sabia que os barcos inimigos o destruiriam, acreditassem ou não que Toranaga se encontrava a bordo. Ele tem que ficar emparelhado.

- Cinco pontos a estibordo! - ordenou Rodrigues, bem a tempo. Ele também não queria mais flechas incendiárias; havia pólvora demais no convés. - Vamos, seu alcoviteiro - resmungou para o vento -, ponha os seus cojones nas minhas velas e tire-nos daqui.

Novamente Blackthorne girou cinco pontos para estibordo, para manter a posição com a fragata, e os dois navios correram lado a lado, os remos de estibordo da galera quase tocando a fragata, os remos de bombordo quase tocando os barcos de pesca.

Nesse momento o capitão compreendeu, assim como o mestre dos remos e os remadores. Puseram nos remos tudo o que restava de suas forças. Yabu gritou uma ordem: os samurais ronins depuseram os arcos e correram para ajudar. Yabu arremessou-se também. Emparelhados. Apenas mais algumas centenas de jardas.

Então cinzentos de alguns dos barcos de pesca, mais intrépidos do que os outros, remaram para interceptá-los e atiraram ganchos. A proa da galera afundou os botes. Os ganchos foram lançados ao mar antes de se prenderem ao costado. Os samurais que os seguravam foram ao fundo. E a voga não vacilou.

- Vá mais para bombordo.

- Não me atrevo, capitão-mor. Toranaga não é nenhum imbecil e, olhe, há um recife à frente.

Ferreira viu as saliências perto do último barco de pesca.

- Por Nossa Senhora, conduza-o contra o recife!

- Dois pontos para bombordo!

Novamente a fragata moveu-se em curva e o mesmo fez Blackthorne. Ambos os navios visavam os barcos de pesca aglomerados. Blackthorne também vira os rochedos. Outro bote foi afundado e uma saraivada de flechas caiu a bordo. Ele manteve o curso tanto tempo quanto ousou, depois gritou:

- Cinco pontos para estibordo! - para prevenir Rodrigues, e girou o leme.

Rodrigues esquivou-se e se afastou bastante. Mas desta vez manteve um ligeiro curso de abalroamento, que não fazia parte do plano.

- Vamos, seu bastardo - disse Rodrigues, estimulado pela caçada e pelo temor. - Vamos avaliar os seus cojones.

Blackthorne tinha que escolher imediatamente entre as pontas do recife e a fragata. Abençoou os remadores, que ainda permaneciam aos remos, a tripulação e todos a bordo que, pela disciplina que demonstravam, davam-lhe o privilégio da escolha. E escolheu.

Girou mais para estibordo, sacou a pistola e fez pontaria.

- Ceda o caminho, por Deus! - gritou, e puxou o gatilho. A bala zuniu através do tombadilho da fragata exatamente entre o capitão-mor e Rodrigues.

O capitão-mor abaixou-se e Rodrigues estremeceu. Inglês filho de uma puta sem leite! Isso foi sorte, boa pontaria ou você fez pontaria para matar?

Viu a segunda pistola na mão de Blackthorne e Toranaga a fitá-lo. Ignorou Toranaga.

Bendita mãe de Deus, o que devo fazer? Continuar com o plano ou mudá-lo? Não é melhor matar esse Inglês? Pelo bem de todos nós? Diga-me, sim ou não!

Responda a si mesmo, Rodrigues, pela sua alma eterna! Você não é um homem?

Ouça então: outros hereges seguirão este Inglês, como piolhos, seja este morto ou não. Devo-lhe uma vida e juro que não tenho sangue de assassino - não para matar um piloto.

- Leme a estibordo - ordenou, e cedeu caminho.

 

- Meu amo perguntou por que o senhor quase se chocou com a galera.

- Foi apenas um jogo, senhora, um jogo de pilotos. Para testar os nervos um do outro.

- E o tiro de pistola?

- Igualmente um jogo - para testar os meus nervos. Os rochedos estavam muito perto e talvez eu estivesse empurrando demais o Inglês. Somos amigos, não?

- Meu amo diz que é tolice jogar jogos assim.

- Por favor, peça-lhe as minhas desculpas. O importante é que ele está seguro, agora a galera também está, e por isso eu estou contente. Honto.

- O senhor combinou essa fuga, essa astúcia, com o Anjin-san?

- Aconteceu que ele é muito esperto e foi perfeito em sincronia. A lua iluminou-lhe o caminho, o mar favoreceu-o, e ninguém cometeu erro algum. Mas por que os inimigos não o afundaram, eu não sei. Foi a vontade de Deus.

- Foi? - disse Ferreira. Olhava fixamente para a galera à popa da fragata e não se voltou.

Estavam bem além da boca da enseada agora, a galera a poucas amarras atrás, nenhum dos navios correndo. A maior parte dos remos da galera fora travada temporariamente, deixando só o suficiente para avançar com calma, enquanto a maioria dos remadores se recuperava.

Rodrigues não prestou atenção ao Capitão-mor Ferreira. Estava, pelo contrário, absorto em Toranaga. Fico contente por estarmos do lado de Toranaga, disse a si mesmo. Durante a corrida, ele o estudara cuidadosamente, contente pela oportunidade rara. Os olhos do homem estiveram por toda parte, observando atiradores, armas, as velas, com uma curiosidade insaciável, fazendo perguntas aos marujos e ao imediato através Mariko: para que é isto? Como se carrega um canhão? Quanta pólvora? Como se dispara um canhão? Para que servem estas cordas?

- Meu amo diz que talvez tenha sido apenas karma. O senhor compreendeu, karma, capitão-piloto?

- Sim.

- Ele lhe agradece pelo uso do seu navio. Agora voltará ao dele.

- O quê? - Ferreira voltou-se imediatamente. - Estaremos em Yedo muito antes da galera. O Senhor Toranaga é bemvindo a bordo.

- Meu amo diz que não há razão para incomodá-lo mais tempo. Ele voltará para o seu navio.

- Por favor, peça-lhe que fique. Eu apreciaria a companhia dele.

- O Senhor Toranaga lhe agradece mas quer voltar imediatamente ao seu próprio navio.

- Muito bem. Faça o que ele diz, Rodrigues. Envie sinais à galera e desça a chalupa. - Ferreira estava desapontado. Tinha vontade de ver Yedo e queria conhecer Toranaga melhor, agora que tanto do seu futuro estava ligado a ele. Não acreditara no que Toranaga dissera sobre os meios de evitar a guerra. Estamos em guerra. Estamos em guerra contra Ishido, do lado deste macaco, gostemos nós disso ou não. E eu não gosto. - Sentirei muito não ter a companhia do Senhor Toranaga. - Curvou-se polidamente.

Toranaga retribuiu e falou brevemente.

- Meu amo lhe agradece. - A Rodrigues, ela acrescentou: - Meu amo diz que o recompensará pela galera quando o senhor regressar com o Navio Negro.

- Não fiz nada. Foi apenas um dever. Por favor, desculpe-me por não me levantar da cadeira - minha perna, neh? - respondeu Rodrigues, curvando-se. - Vá com Deus, senhora.

- Obrigada, capitão-piloto. O senhor também.

Avançando às apalpadelas pela escada de escotilha, atrás de Toranaga, ela notou que o Contramestre Pesaro estava comandando a chalupa. Sua pele arrepiou-se, e ela quase vomitou.

Controlou-se com muita força de vontade, grata por Toranaga ter ordenado que todos eles deixassem aquele vaso malcheiroso.

- Um ótimo vento e uma viagem segura - desejou-lhes Ferreira. Fez um aceno, a saudação foi retribuída, e a chalupa zarpou.

- Fique embaixo quando a chalupa voltar e aquela puta de galera estiver fora de vista - ordenou ele ao atirador-chefe.

No tombadilho, parou diante de Rodrigues. Apontou para a galera.

- Você viverá para se arrepender de tê-lo deixado vivo.

- Isso está nas mãos de Deus. O Inglês é um piloto "aceitável', se se pode passar por cima da religião dele, meu capitão-mor.

- Considerei isso.

- E?

- Quanto mais rápido estivermos em Macau, melhor. Faça um tempo recorde, Rodrigues. - Ferreira desceu.

A perna de Rodrigues latejava muito. Tomou um trago do saco de grogue. Que Ferreira vá para o inferno, disse a ,si mesmo. Mas, por favor, Deus, não antes de chegarmos a Lisboa.

O vento mudou de direção levemente e uma nuvem avançou para a auréola da lua. A chuva não estava longe e o amanhecer riscava o céu. Ele concentrou toda a atenção no seu navio, nas velas e no rumo. Quando se sentiu completamente satisfeito, olhou para a chalupa. E finalmente para a galera.

Sorveu mais rum, contente por seu plano ter funcionado tão bem. Até pelo tiro de pistola que encerrara a questão. E contente com a sua decisão.

Dependia de mim fazer, e eu fiz.

- Ainda assim, Inglês - disse ele com grande tristeza -, o capitão-mor tem razão. Com você, a heresia chegou ao Éden.

 

- Anjin-san?

- Hai? - Blackthorne foi arrancado de um sono profundo.

- Aqui está um pouco de comida. E chá.

Por um instante ele não conseguiu se lembrar de quem era ou de onde estava. Depois reconheceu sua cabina a bordo da galera. Um raio de sol atravessava a escuridão. Sentia-se muitíssimo descansado. Não havia batida de tambor agora, e mesmo no mais profundo do seu sono seus sentidos lhe disseram que a âncora estava sendo baixada e que o navio estava seguro, perto da praia, em mar calmo.

Viu uma criada carregando uma bandeja, Mariko ao lado dela - já sem o braço na tipóia -, e ele deitado no beliche do piloto, o mesmo que usara durante a viagem de Anjiro para Osaka, que agora era quase, de certo modo, tão familiar quanto o seu próprio beliche na cabina do Erasmus. Erasmus! Vai ser formidável estar de volta a bordo e rever os rapazes.

Ele se espreguiçou voluptuosamente, depois pegou a xícara de chá que Mariko oferecia.

- Obrigado. Está delicioso. Como vai o seu braço?

- Muito melhor, obrigada. - Mariko flexionou-o para mostrar-lhe. - Foi apenas um ferimento superficial.

- Está com melhor aparência, Mariko-san.

- Sim, sinto-me melhor agora.

Quando ela voltara a bordo ao amanhecer, com Toranaga, estava prestes a perder os sentidos. - É melhor ficar em cima - dissera-lhe ele. - O enjôo passará mais depressa.

- Meu amo pergunta... pergunta para que o tiro de pistola.

- Foi só uma brincadeira de pilotos.

- Meu amo o cumprimenta pela sua habilidade náutica.

- Tivemos sorte. A lua ajudou. E a tripulação foi maravilhosa. Mariko-san, quer perguntar ao capitão-san se ele conhece estas águas? Desculpe, mas diga a Toranaga-sama que não vou conseguir ficar acordado muito mais tempo. Ou podemos lançar âncoras por mais ou menos uma hora, em alto-mar? Preciso dormir.

Ele se lembrava vagamente de ela falando que Toranaga dissera que ele podia descer, que o capitão-san era absolutamente capaz, já que iam permanecer em águas costeiras e não iam para alto-mar. Blackthorne espreguiçou-se de novo e abriu uma vigia da cabina. Havia praia rochosa a umas duzentas jardas de distância.

- Onde estamos?

- Ao largo da costa da província de Totomi, Anjin-san. O Senhor Toranaga quis nadar e deixar os remadores descansar algumas horas. Estaremos em Anjiro amanhã.

- A aldeia de pescadores? Isso é impossível. É quase meio-dia e ao amanhecer estávamos em Osaka. É impossível!

- Ah, isso foi ontem, Anjin-san. O senhor dormiu um dia, uma noite e metade de mais um dia - respondeu ela. - O Senhor Toranaga disse para deixá-lo dormir. Agora ele acha que uma nadada seria bom para despertá-lo. Depois de comer.

A comida eram duas tigelas de arroz e peixe assado na brasa com o molho escuro, agridoce, de vinagre doce, que ela lhe dissera que era feito de feijões fermentados.

- Obrigado. Sim, gostaria de nadar. Quase trinta e seis horas? Não admira que eu me sinta ótimo. - Pegou a bandeja da empregada, ávido. Mas não comeu imediatamente. - Por que ela está com medo? - perguntou.

- Não está com medo, Anjin-san. Só um pouco nervosa. Por favor, desculpe-a. Nunca tinha visto um estrangeiro de perto antes.

- Diga-lhe que, quando faz lua cheia, crescem chifres nos bárbaros e eles põem fogo pela boca, como dragões.

Mariko riu.

- Certamente não lhe direi isso. - Apontou para a mesa. - Há pó dental, uma escova, água e toalhas limpas. - - Depois, em latim: - Agrada-me ver que o senhor está bem. É exatamente como se comentou na marcha: o senhor tem grande coragem.

Os olhos deles se encontraram, mas o momento passou logo. Ela se curvou polidamente. A criada curvou-se. A porta fechou-se atrás delas. Não pense nela, ordenou-se ele. Pense em Toranaga ou em Anjiro. Por que paramos em Anjiro amanhã? Para desembarcar Yabu? Que bom que nos livramos dele! Omi estará em Anjiro. O que vou fazer com Omi?

Por que não pedir a Toranaga a cabeça de Omi? Ele lhe deve um favor ou dois. Ou por que não pedir para lutar com Omi-san? Como? Com pistolas ou espadas? Você não teria chance com uma espada, e seria assassinato se você tivesse uma arma de fogo. O melhor é não fazer nada e esperar. Logo você terá uma chance e então se vingará dos dois. Você goza do favor de Toranaga agora. Seja paciente. Pergunte a si mesmo o que você precisa dele. Logo estaremos em Yedo, portanto você tem muito tempo.

Blackthorne usou os pauzinhos do modo como vira os homens na prisão fazer, erguendo a tigela de arroz até junto à boca e empurrando os arroz grudento da borda da tigela para a boca com os pauzinhos. Os pedaços de peixe eram mais difíceis. Ele ainda não tinha destreza suficiente, então usou os dedos, contente por estar comendo a sós, sabendo que comer com os dedos na frente de Mariko, Toranaga ou qualquer japonês seria muito descortês.

Depois de ter desaparecido cada pedacinho, ele continuava faminto.

- Preciso conseguir mais comida - disse ele em voz alta.

- Jesus do paraíso, gostaria de comer pão fresco, ovos fritos, manteiga, queijo...

Subiu ao convés. Quase todos estavam despidos. Alguns homens estavam se enxugando, outros tomando sol, e uns poucos pulavam do costado. Ao mar, perto do navio, samurais e marujos nadavam, ou chapinhavam como crianças.

- Konnichi wa, Anjin-san.

- Konnichi wa, Toranaga-sama.

Toranaga, completamente nu, vinha subindo a escada de embarque que fora descida até a água.

- Sonata wa oyogitamo ka? - disse ele, gesticulando na direção do mar, tirando a água da cintura e dos ombros com tapinhas.

- Hai, Toranaga-sama, domo - disse Blackthorne, presumindo que o outro lhe perguntava se não queria nadar.

Toranaga apontou de novo para o mar e falou brevemente, depois chamou Mariko para interpretar. Mariko avançou do convés de popa, protegendo a cabeça com uma sombrinha carmesim, o quimono branco informal amarrado com negligência.

- Toranaga-sama diz que o senhor parece muito descansado, Anjin-san. A água é revigoração.

- Revigorante - disse ele, corrigindo-a polidamente. - Sim.

- Ah, obrigada... revigorante. Ele disse: por favor, nade, então.

Toranaga estava negligentemente encostado à amurada, enxugando as orelhas com uma pequena toalha. Quando sentiu o ouvido esquerdo entupido, inclinou a cabeça para o lado e saltou sobre o calcanhar esquerdo até destapá-lo. Blackthorne viu que Toranaga era muito musculoso e muito rijo, com exceção da barriga. Embaraçado, muito consciente da presença de Mariko, despiu a camisa, o codpiece, as calças, até estar igualmente nu.

- O Senhor Toranaga perguntou se todos os ingleses são tão peludos quanto o senhor, com cabelo tão claro.

- Alguns sim - disse ele.

- Nós... nossos homens não têm cabelo no peito nem nos braços como o senhor. Não muito. Ele disse que o senhor tem uma excelente compleição.

- Ele também tem. Agradeça-lhe por favor. - Blackthorne afastou-se, dirigindo-se para o topo da prancha de embarque, consciente dela e da jovem, Fujiko, ajoelhada na popa sob um guarda-sol amarelo, uma criada ao seu lado, também a observá-lo.

Então, incapaz de conservar a dignidade o suficiente para caminhar despido até o mar, ele mergulhou por sobre o costado dentro da água azul-pálida. Foi um mergulho perfeito e o frio do mar atingiu-o de modo estimulante. O fundo arenoso estava três braças abaixo, algas flutuando, multidões de peixes indiferentes aos nadadores. Perto do fundo, interrompeu a queda, girou e brincou com os peixes, depois voltou à tona e começou a nadar para o navio com a braçada aparentemente preguiçosa e fácil, mas muito rápida, que Alban Caradoc lhe ensinara.

A pequena baía era desolada: muitos rochedos, uma minúscula praia de seixos, e nenhum sinal de vida. Montanhas erguiamse a mil pés contra um céu azul, infinito.Deitou-se sobre uma rocha, tomando sol. Quatro samurais haviam nadado com ele e não estavam muito longe. Sorriram e acenaram. Mais tarde ele nadou de volta, e eles o seguiram.

Toranaga continuava a observá-lo.

Subiu ao convés. Sua roupa tinha sumido. Fujiko, Mariko e as duas criadas ainda estavam lá. Uma das criadas inclinou-se e          ofereceu-lhe uma toalha ridiculamente pequena, que ele pegou e com que começou a se enxugar, voltando-se, constrangido, para a amurada. Ordeno-lhe que se sinta à vontade, disse a si mesmo. Você fica à vontade, nu, num quarto fechado com Felicity, não fica? É só em público, com mulheres por perto - com ela por perto -, que você fica embaraçado. Por quê? Eles não reparam na nudez e isso é totalmente sensato. Você está no Japão. Deve agir como eles. Você vai ser como eles e agir como um rei.

- O Senhor Toranaga diz que o senhor nada muito bem. O senhor lhe ensinaria aquela braçada? - estava dizendo Mariko.

- Ficaria contente em fazer isso - disse ele, e forçou-se a se voltar e se encostar como Toranaga fizera. Mariko lhe sorria - parecendo tão bonita, pensou ele.

- O modo como o senhor mergulhou no mar. Nunca... nunca vimos isso antes. Sempre pulamos. Ele quer aprender a fazer isso.

- Agora?

- Sim, por favor.

- Posso ensinar-lhe ... pelo menos, posso tentar.

Uma criada segurava um quimono de algodão para Blackthorne, que, agradecido, deslizou para dentro dele, amarrando-o com o cinto. Agora, completamente descontraído, explicou como mergulhar, como erguer os braços em torno da cabeça e saltar, mas tomando cuidado para evitar o mergulho de barriga.

- É melhor começar do pé da escada de embarque, com queda de cabeça, sem pular nem correr. É assim que ensinamos as crianças.

Toranaga ouviu, fez perguntas e depois, quando se sentiu satisfeito, disse através de Mariko:

- Ótimo. Creio que compreendi. - Caminhou para o topo da escada. Antes que Blackthorne pudesse detê-lo, Toranaga se atirou na água, quinze pés abaixo. A barrigada foi péssima. Ninguém riu. Toranaga voltou ruidosamente para o convés e tentou de novo. Mais uma vez aterrissou na horizontal. Outros samurais foram igualmente mal sucedidos.

- Não é fácil - disse Blackthorne. - Levei um bom tempo para aprender. Deixe estar e amanhã tentamos de novo.

- O Senhor Toranaga disse: "Amanhã é amanhã. Hoje vou aprender a mergulhar".

Blackthorne tirou o quimono e demonstrou de novo. Alguns samurais o imitaram. Todos falharam. Assim como Toranaga. Seis vezes. Após outra demonstração, Blackthorne subiu para o pé da prancha e viu Mariko entre eles, nua, preparando-se para se lançar no espaço. Seu corpo era perfeito. No antebraço, o curativo.

- Espere, Mariko-san! É melhor tentar daqui. A primeira vez.

- Muito bem, Anjin-san.

Ela desceu até ele, o minúsculo crucifixo realçando-lhe a nudez. Ele lhe mostrou como se curvar e cair para a frente no mar, segurando-a pela cintura para que mudasse de posição, de modo que a cabeça atingisse a água primeiro.

Então Toranaga tentou perto da linha d'água e foi razoavelmente bem sucedido. Mariko tentou de novo e o toque da sua pele aqueceu Blackthorne, que de repente começou a fazer brincadeira e caiu na água, orientando-os lá debaixo até se esfriar.

Então subiu correndo ao convés, ficou de pé sobre a amurada e mostrou-lhes um mergulho de morto, que achou que poderia ser mais fácil, sabendo que ter êxito era vital para Toranaga.

- Mas é preciso se manter rígido, hai? Como uma espada. Aí não há como errar. - Atirou-se. O mergulho foi perfeito. Ele voltou à tona e esperou.

Vários samurais avançaram, mas Toranaga fez-lhes sinal que se afastassem. Levantou os braços rigidamente, a coluna ereta. O peito e os quadris estavam escarlates devido às barrigadas. Depois se deixou cair para a frente, do modo como Blackthorne mostrara. Sua cabeça atingiu a água primeiro e as pernas lhe desabaram em cima, mas foi um mergulho e o primeiro mergulho bem-sucedido de qualquer um deles. Um troar de aprovação saudou-o quando surgiu à superfície. Ele repetiu, melhor desta vez. Outros homens o seguiram, alguns com êxito, outros não. Depois foi Mariko quem tentou.

Blackthorne viu os pequenos seios firmes e a minúscula cintura, o estômago chato e as pernas curvilíneas. Um lampejo de dor passou-lhe pelo rosto quando ergueu os braços acima da cabeça. Mas retesou-se como uma seta e se atirou bravamente. Varou a água como uma lança, habilmente. Quase ninguém além dele notou.

- Foi um excelente mergulho. Realmente excelente - disse ele, dando-lhe a mão para erguê-la da água até a escada de embarque. - A senhora devia parar agora. Poderia abrir de novo o corte do braço.

- Sim, obrigada, Anjin-san. - Ela se erguia ao lado dele, mal lhe atingindo o ombro, muito contente consigo mesma. - Foi uma sensação rara, a queda para a frente e o fato de ter que permanecer rígida, e mais que tudo ter que dominar o medo. Sim, foi realmente uma sensação muito rara. - Ela caminhou pelo passadiço e vestiu o quimono que a criada segurava. Depois, secando o rosto delicadamente, desceu para o convés inferior.

Jesus Cristo, isso é mulher demais, pensou ele.

 

Ao pôr-do-sol, Toranaga mandou chamar Blackthorne. Estava sentado no convés de popa sobre futons limpos, perto de um pequeno braseiro de carvão, em cima do qual fumegavam alguns pedaços de madeira aromática. Eram usados para perfumar o ar o manter a distância os insetos e mosquitos do crepúsculo. Seu quimono estava passado e asseado, e os imensos ombros em forma de asa do manto engomado davam-lhe uma presença formidável. Yabu, também, estava vestido formalmente, e Mariko.

Fujiko também se encontrava lá. Vinte samurais, sentados, mantinham-se silenciosamente em guarda. Havia archotes colocados em suportes e a galera oscilava calmamente ancorada na baía.

- Saquê, Anjin-san?

- Domo, Toranaga-sama. - Blackthorne curvou-se e aceitou o pequeno cálice estendido por Fujiko, ergueu-o em brinde a Toranaga e esvaziou-o. O cálice foi imediatamente enchido de novo. Blackthorne estava usando um quimono marrom da guarda e sentia-se mais à vontade e livre do que nas suas próprias roupas.

- O Senhor Toranaga diz que vamos ficar aqui esta noite. Amanhã chegaremos a Anjiro. Ele gostaria de ouvir mais a respeito do seu país e do mundo exterior.

- Claro. O que ele gostaria de saber? Está uma noite adorável, não? - Blackthorne instalou-se confortavelmente, consciente da feminilidade de Mariko. Consciente demais. Estranho, estou mais consciente dela agora que está vestida do que quando não estava usando nada.

- Sim, muito. Logo estará úmido, Anjin-san. O verão não é uma boa época. - Transmitiu a Toranaga o que dissera. - Meu amo falou que eu lhe dissesse que Yedo é pantanosa. Os mosquitos são péssimos no verão, mas a primavera e o outono são lindos ... sim, realmente as estações de nascimento e morte do ano são lindas.

- A Inglaterra tem clima temperado. O inverno é mau mais ou menos a cada sete anos. E o verão também. A carestia ocorre uma vez a cada seis anos, embora às vezes tenhamos dois anos ruins de enfiada.

- Também temos carestias. Toda carestia e ruim. Como é no seu país agora?

- Tivemos más colheitas três vezes nos últimos dez anos e não tivemos sol para amadurecer o trigo. Mas isso foi a mão do Todo-Poderoso. Agora a Inglaterra está muito forte. Somos prósperos. Nosso povo trabalha arduamente. Fazemos o nosso próprio tecido, todas as armas, a maior parte dos tecidos de lã da Europa. Vem alguma seda da França mas a qualidade não é boa e se destina apenas aos muito ricos.

Blackthorne resolveu não contar sobre praga, motins ou insurreições causadas pela tomada das terras da comunidade, nem sobre o êxodo dos camponeses para as cidades. Em vez disso, contou-lhes sobre os bons reis e rainhas, líderes idôneos e sábios parlamentares e guerras vitoriosas.

- O Senhor Toranaga quer que tudo fique bem claro. O senhor afirma que apenas o poder marítimo os protege da Espanha e Portugal?

- Sim. Apenas isso. O controle dos nossos mares é que nos mantém livres. Vocês são uma nação insular também, exatamente como nós. Sem o controle dos seus mares, também não ficam indefesos contra um inimigo externo?

- Meu amo concorda com o senhor.

- Ah, também foram invadidos? - Blackthorne viu um leve franzir de sobrolho quando ela se virou para Toranaga, e lembrou-se que devia se limitar a responder e não a fazer perguntas.

Quando ela lhe falou de novo, foi mais séria.

- O Senhor Toranaga diz que devo responder à sua pergunta, Anjin-san. Sim, fomos invadidos duas vezes. Há mais de trezentos anos atrás - seria 1274, pelas suas contas -, os mongóis de Kublai-Cã, que acabava de conquistar a China e a Coréia, vieram contra nós quando nos recusamos a nos submeter à autoridade dele. Alguns milhares de homens desembarcaram em Kyushu, mas nossos samurais conseguiram contê-los, e pouco depois o inimigo se retirou. Mas sete anos mais tarde eles voltaram. Dessa vez a invasão consistiu de quase mil navios chineses e coreanos, com duzentos mil homens - mongóis, chineses e coreanos -, na maior parte homens de cavalaria. Em toda a história chinesa, essa foi a maior força de invasão jamais reunida. Ficamos indefesos ante uma força tão vasta, Anjin-san. Novamente começaram a desembarcar na baía de Hakata, em Kyushu, mas antes que pudessem desdobrar todos os seus exércitos, um grande vento, um tai-fun, veio do sul e destruiu a esquadra e tudo que continha. Os que ficaram em terra foram rapidamente mortos. Foi um camicase, um vento divino, Anjin-san - disse ela, com fé absoluta -, um camicase enviado pelos deuses para proteger esta Terra dos Deuses do invasor estrangeiro. Os mongóis nunca mais voltaram e, após oitenta anos mais ou menos, a dinastia deles, a Chin, foi extirpada da China. - Mariko acrescentou com grande satisfação: - Os deuses protegeram-nos contra eles. Os deuses sempre nos protegerão contra invasões. Afinal, esta é a terra deles, neh?

Blackthorne pensou na imensa quantidade de navios e homens da invasão; fazia a armada espanhola contra a Inglaterra parecer insignificante.

- Também fomos ajudados por uma tempestade, senhora - disse ele, com igual seriedade. - Muitos acreditam que também foi enviada por Deus - certamente foi um milagre -, e quem sabe, talvez tenha sido mesmo. - Ele olhou para o braseiro quando uma brasa crepitou e as chamas dançaram. Depois disse: - Os mongóis quase nos engoliram na Europa, também. - Contou a ela como as hordas de GengisCa, neto de Kublai-Cã, chegaram quase aos portões de Viena antes que seu ataque desenfreado fosse detido, e depois deram meia-volta, deixando montanhas de cadáveres no seu rastro. - As pessoas daqueles tempos acreditaram que Gengis-Cã e seus soldados tivessem sido enviados por Deus para punir o mundo de seus pecados.

- O Senhor Toranaga diz que ele foi apenas um bárbaro, imensamente bom na guerra.

- Sim. Ainda assim na Inglaterra bendizemos a nossa sorte por estarmos numa ilha. Agradecemos a Deus por isso e pelo canal. E pela nossa marinha. Com a China tão perto e tão poderosa - e com vocês e a China em guerra -, surpreende-me que não tenham uma grande marinha. Não têm medo de outro ataque? - Mariko não respondeu, mas traduziu para Toranaga o que fora dito. Quando terminou, Toranaga falou com Yabu, que assentiu e respondeu, igualmente sério. Os dois homens trocaram idéias algum tempo. Mariko respondeu a outra pergunta de Toranaga, depois falou mais uma vez a Blackthorne.

- Para controlar os seus mares, Anjin-san, de quantos navios precisam?

- Não sei exatamente, mas agora a rainha deve ter uns cento e cinqüenta navios de linha. São navios construidos apenas para combate.

- Meu amo pergunta quantos navios a sua rainha constrói por ano.

- De vinte a trinta belonaves, as melhores e as mais velozes do mundo. Mas os navios geralmente são construidos por grupos particulares de mercadores e depois vendidos à coroa.

- Por lucro?

Blackthorne lembrou-se da opinião samurai sobre o lucro e o dinheiro.

- A rainha generosamente dá mais do que o custo real a fim de estimular a pesquisa e os novos estilos de construção. Sem o favor real, isso dificilmente seria possível. Por exemplo, o Erasmus, o meu navio, é de um novo tipo, um projeto inglês construido sob licença da Holanda.

- O senhor poderia construir um navio assim aqui?

- Sim. Se eu tivesse carpinteiros, intérpretes, e todo o material e tempo. Primeiro eu teria que construir um pequeno vaso. Nunca construí um inteiramente sozinho, portanto teria que experimentar... Naturalmente - acrescentou, tentanto conter a própria excitação à medida que a idéia se desenvolvia -, naturalmente, se o Senhor Toranaga desejasse um navio, ou navios, talvez se pudesse combinar um comércio. Talvez pudéssemos encomendar um número de belonaves, a serem construídas na Inglaterra. Poderíamos trazê-las até aqui para ele - mastreadas como ele quisesse e armadas como ele quisesse.

Mariko traduziu. O interesse de Toranaga se intensificou. Assim como o de Yabu.

- Ele pergunta se os nossos marinheiros podem ser treinados para tripular navios assim.

- Certamente, dando-se tempo a eles. Poderíamos nos encarregar de que os mestres de navegação - ou um deles - ficassem em suas águas por um ano. Então ele poderia criar um programa de treinamento para vocês. Uma marinha moderna. Sem igual.

Mariko falou durante algum tempo. Toranaga interrogou-a de novo, incisivo, e o mesmo fez Yabu.

- Yabu-san pergunta: "Sem igual?"

- Sim. Melhor do que qualquer coisa que os espanhóis pudessem ter. Ou os portugueses.

Fez-se silêncio. Toranaga estava evidentemente dominado pela idéia, embora tentasse dissimular.

- Meu amo pergunta se o senhor tem certeza de que isso poderia ser acertado.

- Sim.

- Quanto tempo levaria?

- Dois anos até que eu chegasse em casa. Dois anos para construir o navio ou os navios. Mais dois para voltar para cá. Metade do custo teria que ser pago antecipadamente, o restante contra entrega.

Toranaga pensativamente se inclinou para a frente e pôs mais lenha aromática no braseiro. Todos o observaram e esperaram. Depois ele falou longamente com Yabu. Mariko não traduziu o que estava sendo dito e Blackthorne sabia que não devia perguntar, embora tivesse gostado muito de tomar parte na conversa. Estudou a todos eles, até a garota Fujiko, que também ouvia atentamente, mas não conseguiu captar nada de nenhum deles. Sabia que a idéia fora brilhante, que poderia gerar um lucro imenso e garantir a sua passagem de volta em segurança para a Inglaterra.

- Anjin-san, quantos navios o senhor poderia conduzir?

- Uma pequena frota de cinco navios de cada vez seria o melhor. Poder-se-la esperar perder no mínimo um navio devido a tempestades, temporais, ou interferência luso-espanhola - tenho certeza de que eles tentariam impedi-los a qualquer preço de ter navios de guerra. Em dez anos o Senhor Toranaga poderia ter uma marinha de quinze a vinte navios. - Deixou-a traduzir, depois continuou, lentamente. - A primeira frota poderia trazer os mestres carpinteiros, construtores navais, atiradores, marujos e mestres. No prazo de dez a quinze anos a Inglaterra poderia fornecer ao Senhor Toranaga trinta modernos vasos de guerra, mais do que o suficiente para dominar as suas águas domésticas. E, nessa altura, se ele quisesse, possivelmente poderia estar construindo seus próprios navios aqui. Nós... - Ele ia dizer "venderemos", mas mudou a palavra. - Minha rainha ficaria honrada em ajudá-lo a formar sua própria marinha, e se ele desejar, nós treinaremos o pessoal e o forneceremos.

Oh, sim, pensou ele, exultante, quando o embelezamento final do plano se encaixou no lugar. Nós comandaremos e providenciaremos para que o almirante e a rainha lhe ofereçam uma aliança de compromisso - boa para você e boa para nós -, que será parte do negócio, e então, juntos, amigo Toranaga, escorraçamos o cão espanhol e português para fora destes mares e seremos senhores deles para sempre. Esse poderia ser o maior acordo isolado de comércio jamais realizado por qualquer nação, pensou ele alegremente. E com uma frota anglo-japonesa limpando estes mares, nós, ingleses, dominaremos o comércio de seda entre o Japão e a China. Então serão milhões todos os anos!

Se eu conseguir isso, mudarei o rumo da história. Terei riquezas e honrarias para além dos meus sonhos. Tornar-me-ei um ancestral. E tornar-se um ancestral é praticamente a melhor coisa que um homem pode tentar fazer, ainda que falhe na tentativa.

- Meu amo diz que é uma pena que o senhor não fale a nossa língua.

- Sim, mas tenho certeza de que a senhora está traduzindo perfeitamente.

- Ele não disse isso como crítica a mim, Anjin-san, mas como observação. É verdade. Seria muito melhor para o meu senhor conversar diretamente, assim como eu converso.

- Há dicionários aqui, Mariko-san? E gramáticas, gramáticas de português-japonês ou latim-japonês? Se o Senhor Toranaga pudesse me ajudar com livros e professores, eu tentaria aprender a sua língua.

- Não temos livros assim.

- Mas os jesuítas têm. A senhora mesma disse isso.

- Ah! - Ela falou com Toranaga e Blackthorne viu os olhos dos dois, de Toranaga e de Yabu, iluminar-se, e sorrisos alargar-lhes o rosto.

- Meu amo diz que o senhor será ajudado, Anjin-san.

Por ordem de Toranaga, Fujiko serviu mais saquê a Blackthorne e a Yabu. Toranaga bebia apenas chá, assim como Mariko.

Incapaz de se conter, Blackthorne disse:

- O que ele diz da minha sugestão? Qual é a resposta?

- Anjin-san, seria melhor ter paciência. Ele responderá no momento devido.

- Por favor, perguntê-lhe agora.

Relutantemente Mariko voltou-se para Toranaga.

- Por favor, desculpe-me, senhor, mas o Anjin-san pergunta com grande deferência o que o senhor pensa do plano dele. Com toda a humildade e polidez ele solicita uma resposta.

- Ele terá a minha resposta oportunamente.

Mariko disse a Blackthorne:

- Meu amo diz que vai considerar o seu plano e pensar cuidadosamente no que o senhor disse. Pedê-lhe que seja paciente.

- Domo, Toranaga-sama.

- Vou me deitar agora. Partiremos ao amanhecer. - Toranaga levantou-se. Todos o seguiram lá para baixo, menos Blackthorne. Blackthorne foi deixado com a noite.

 

À primeira promessa de amanhecer, Toranaga soltou quatro dos pombos-correio que tinham sido mandados para o navio com a bagagem principal, quando o navio fora preparado. Os pássaros descreveram dois círculos no ar, depois partiram, dois retornando ao lar em Osaka, dois para Yedo. A mensagem cifrada para Kiritsubo era uma ordem a ser passada para Hiromatsu: deviam todos tentar partir pacificamente de imediato. Se fossem impedidos, deviam se trancar. No momento em que a porta fosse forçada deveriam atear fogo àquela parte do castelo e cometer seppuku.

A mensagem a seu filho Sudara, em Yedo, dizia que ele escapara, estava em segurança, e ordenava-lhe que desse seguimento aos preparativos secretos para a guerra.

- Ponha-se ao mar, capitão.

- Sim, senhor.

Pelo meio-dia haviam cruzado a angra entre Totomi e Izu, e estavam ao largo do cabo Ito, o ponto extremo-meridional da península de Izu. O vento estava excelente, e a vela mestra, sozinha, ajudava o impulso dos remos.

Então, bem junto à praia, num profundo canal entre a terra firme e algumas ilhotas rochosas, quando haviam virado para norte, houve um ronco agourento.

Todos os remos pararam.

- O que, em nome de Cristo... - Os olhos de Blackthorne estavam arregalados na direção da praia.

Repentinamente uma fenda imensa serpeou penhascos acima e um milhão de toneladas de rochas despencaram no mar em avalanche. As águas pareceram ferver por um momento. Uma pequena onda veio em direção à galera, e passou de lado. A avalanche cessou. O ronco se repetiu, mais profundo agora, mas remoto. Rochas rolaram dos penhascos. Todos escutaram atentamente e esperaram, olhando a face do penhasco. Sons de gaivotas, de arrebentação e de vento. Então Toranaga fez sinal ao mestre do tambor, que reiniciou a batida.

Os remos começaram. A vida no navio voltou à normalidade.

- O que foi isso? - perguntou Blackthorne.

- Apenas um terremoto. - Mariko estava perplexa. - O senhor não tem terremotos no seu país?

- Não. Nunca. Eu nunca tinha visto um.

- Oh, temo-los com freqüência, Anjin-san. Esse não foi nada, só um terremoto pequeno. O principal centro de choque deve ter sido em algum outro lugar, talvez até em alto-mar. Ou talvez tenha sido apenas um terremoto pequeno, só aqui. O senhor tem muita sorte de testemunhar apenas um terremoto pequeno.

- Foi como se a terra toda estivesse tremendo. Eu teria jurado que vi ... Ouvi falar de tremores. Na Terra Santa e na terra dos otomanos, acontecem às vezes. Jesus! - Ele desabafou, o coração ainda batendo violentamente. - Eu poderia jurar que vi aquele penhasco inteiro sacudir.

- Oh, mas sacudiu, Anjin-san. Quando se está em terra, é a sensação mais terrível do mundo. Não há aviso, Anjin-san. Os tremores vêm em ondas, às vezes de lado, às vezes de cima para baixo, às vezes três ou quatro abalos rápidos, às vezes um pequeno, seguido de um maior no dia seguinte. Não há padrão. O pior que já vivi foi há seis anos, perto de Osaka, no terceiro dia do mês das Folhas Mortas. Nossa casa desabou em cima de nós, Anjin-san. Não ficamos feridos, meu filho e eu. Arrastamo-nos para fora por entre os escombros. Os abalos continuaram por uma semana ou mais, alguns intensos, outros muito intensos. O grande castelo novo do taicum em Fujimi foi totalmente destruído. Centenas de milhares de pessoas se perderam naquele terremoto e nos incêndios que se seguiram. Esse é o maior perigo, Anjin-san, os incêndios que sempre se seguem. Nossas cidades e aldeias morrem com muita facilidade. Algumas vezes ocorre um terremoto violento em alto-mar e a lenda diz que é isso que causa o nascimento das Grandes Ondas. Têm dez ou vinte pés de altura. Não há nunca como antecipá-las e elas não têm época. Uma Grande Onda simplesmente avança do mar sobre as nossas praias e varre o interior.

Cidades podem desaparecer. Yedo foi parcialmente destruída há alguns anos por uma onda assim.

- É normal para vocês? Todos os anos?

- Oh, sim. Todos os anos, nesta Terra dos Deuses, temos abalos de terra. E incêndio, inundação, Grandes Ondas, e as tempestades monstruosas - os tai-funs. A natureza é muito severa conosco. - Lágrimas surgiram nos cantos dos olhos de Mariko.

- Talvez seja por isso que amemos tanto a vida, Anjin-san. O senhor vê, temos que amá-la. A morte faz parte do nosso ar, do nosso mar e da nossa terra. O senhor deve saber, Anjin-san, que nesta Terra dos Deuses a morte é o nosso legado.

 

- Tem certeza de que está tudo pronto, Mura?

- Sim, Omi-san, sim, acho que sim. Seguimos exatamente as suas ordens, e as de Igurashi-san.

- É melhor que nada saia errado ou haverá outro chefe de aldeia ao pôr-do-sol - disse-lhe Igurashi, primeiro lugar-tenente de Yabu, com grande acrimônia, seu único olho congestionado pela falta de sono, Chegara de Yedo na véspera, com o primeiro contingente de samurais e instruções específicas.

Mura não respondeu, apenas assentiu respeitosamente e manteve os olhos dirigidos para o chão.

Encontravam-se na praia, perto do molhe, diante das fileiras de aldeães ajoelhados, intimidados e igualmente exaustos - cada homem, mulher e criança da aldeia, com exceção dos acamados -, à espera da chegada da galera. Todos usavam as melhores roupas. Os rostos estavam esfregados, a aldeia inteira varrida e reluzente como se se tratasse da véspera do Ano Novo, quando, por um antigo costume, todo o império era limpo. Os barcos de pesca estavam meticulosamente dispostos em linha, cobertos, cordas enroladas. Até a praia ao longo da baía fora revolvida com ancinho.

- Nada sairá errado, Igurashi-san - disse Omi. Dormira muito pouco naquela semana, desde que as ordens de Yabu chegaram de Osaka através de um dos pombos-correio de Toranaga. Imediatamente ele mobilizara a aldeia e cada homem válido num raio de vinte ris a fim de preparar Anjiro para a chegada dos samurais e de Yabu. E agora que Igurashi sussurrara o segredo muito confidencial, apenas aos seus ouvidos, de que o grande Daimio Toranaga estava acompanhando o seu tio e que tivera êxito na sua tentativa de fuga da armadilha de Ishido, ele se sentia mais que satisfeito de haver gastado tanto dinheiro. – Não há por que se preocupar, Igurashi-san. Este é o meu feudo e a responsabilidade é minha.

- Concordo. Sim, é. - Igurashi dispensou Mura com um gesto desdenhoso. E acrescentou em voz baixa: - O senhor é responsável. Mas, sem a intenção de ofender, digo-lhe que o senhor nunca viu o nosso amo quando alguma coisa sai errada. Se tivermos esquecido alguma coisa, ou esses comedores de excremento não tiverem feito tudo o que deviam, nosso amo transformará o seu feudo inteiro e os que ficam ao norte e ao sul em montes de esterco antes que o sol se ponha amanhã. - Dirigiu-se a passos largos para a frente dos seus homens.

Naquela manhã as últimas companhias de samurais haviam chegado de Mishima, a capital de Yabu que ficava ao norte. Agora também se encontravam, com todos os outros, alinhados em formação militar na praia, na praça, e no flanco da colina, as bandeiras tremulando à leve brisa, lanças eretas cintilando ao sol. Três mil samurais, a elite do exército de Yabu. Quinhentos cavaleiros.

Omi não estava com medo. Fizera tudo o que fora possível, e examinara pessoalmente tudo o que pudera ser examinado. Se alguma coisa saísse errado, seria apenas karma. Mas nada vai sair errado, pensou ele, animado. Quinhentos kokus tinham sido gastos ou estavam destinados aos preparativos - mais do que toda a sua renda anual antes de Yabu ter-lhe aumentado o feudo. Ele ficara atordoado com a soma, mas Midori, sua esposa, dissera que deviam gastar prodigamente, que o custo era minúsculo comparado à honra que o Senhor Yabu lhe concedia.

- E com o Senhor Toranaga aqui, quem pode dizer que oportunidades você não terá? - sussurrara ela.

Ela tem toda a razão, pensou Omi orgulhosamente.

Examinou novamente a aldeia e a praça. Tudo parecia perfeito. Midori e sua mãe esperavam sob o toldo que fora preparado para receber Yabu e seu hóspede Toranaga. Omi notou que a língua da mãe estava em movimento, e desejou que Midori pudesse ser poupadá do seu ataque constante. Alisou uma dobra no seu quimono já impecável, ajustou as espadas e olhou na direção do mar.

- Ouça, Mura-san - sussurrou cautelosamente Uo, o pescador. Era um dos cinco anciãos da aldeia, todos ajoelhados com Mura. - Sabe, estou tão atemorizado. Se eu urinasse, urinaria pó.

- Então não urine, amigo velho. - Mura conteve o sorriso.

Uo era um homem de ombros largos, uma rocha de mãos enormes e nariz quebrado, e exibia uma expressão atormentada.

- Não vou urinar. Mas acho que vou peidar. - Uo era famoso pelo seu humor e coragem, e pela quantidade dos seus gases. No ano anterior, quando houvera a competição de flatulência com a aldeia do norte, ele fora campeão dos campeões e trouxera a grande honra para Anjiro.

- Iiiiih, talvez fosse melhor não fazer isso - casquinou Haru, um pescador baixinho e mirrado. - Um dos cabeças de merda poderia ficar com ciúmes.

- Vocês receberam ordens de não tratar os samurais assim enquanto houver ao menos um perto da aldeia - sibilou Mura. Oh ko, estava ele pensando, espero que não nos tenhamos esquecido de nada. Deu uma olhada no flanco da montanha, na paliçada de bambu que circundava a fortaleza provisória que haviam construido com muita pressa e suor. Trezentos homens, escavando, construindo e carregando. A outra casa nova fora mais fácil. Ficava no outeiro, logo abaixo da casa de Omi, e ele podia vê-la, menor do que a de Omi, mas com um teto de telhas, um jardim provisório, e uma pequena casa de banho. Suponho que Omi se mude para lá e ceda a sua ao Senhor Yabu, pensou Mura.

Olhou para trás, para o promontório onde a galera apareceria a qualquer momento agora. Logo Yabu desceria a terra firme e então estariam todos nas mãos dos deuses, dos kamis, de Deus Pai, seu Filho abençoado, e a Virgem abençoada, oh ko!

Virgem abençoada, proteja-nos! Seria demais pedir-lhe que olhasse por esta aldeia especial de Anjiro? Só nos próximos dias? Precisamos de favor especial para nos proteger do nosso amo e senhor, oh, sim! Acenderei cinqüenta velas e meus filhos serão definitivamente trazidos para a verdadeira fé, prometeu Mura.

Naquele dia Mura se sentia muito contente por ser cristão: podia interceder junto ao Deus único e isso era uma proteção a mais para a sua aldeia. Tornara-se cristão na juventude porque seu suserano se convertera e ordenara imediatamente que todos os seus seguidores o imitassem. E quando, vinte anos atrás, esse senhor fora morto lutando por Toranaga contra o taicum, Mura continuara cristão para honrar-lhe a memória. Um bom soldado não tem mais que um amo, pensou. Um amo verdadeiro.

Ninjin, um homem de rosto redondo e dentes muito salientes, estava especialmente agitado com a presença de tantos samurais.

- Mura-san, desculpe, mas o que o senhor fez foi perigoso, terrível, neh? O pequeno terremoto desta manhã foi um sinal dos deuses, um presságio. O senhor cometeu um terrível engano, Mura-san.

- O que está feito está feito, Ninjin. Esqueça isso.

- Como? Foi no meu celeiro e...

- Parte da coisa está no seu celeiro. Eu tenho grande quantidade no meu - disse Uo, já sem sorrir.

- Nada está em parte alguma. Nada, velhos amigos - disse Mura, cautelosamente. - Não existe nada. - Por ordens suas, trinta kokus de arroz tinham sido roubados nos últimos dias do depósito dos samurais e se encontravam agora escondidos pela aldeia, junto com outras provisões e equipamento - e armas.

- Armas não - protestara Uo. - Arroz sim, mas armas não!

- A guerra se aproxima.

- E contra a lei ter armas - lamuriara-se Ninjin.

- Essa é uma lei nova, com quase doze anos de idade - bufou Mura. - Antes podíamos ter quaisquer armas que quiséssemos e não éramos confinados à aldeia. Podíamos ir aonde quiséssemos, ser o que quiséssemos. Podíamos ser camponeses-soldados, pescadores, mercadores, até samurais - alguns podiam, vocês sabem que é verdade.

- Sim, mas agora é diferente, Mura-san, diferente. O táicum ordenou que fosse diferente!

- Logo as coisas serão como eram antes. Estaremos combatendo novamente.

- Então vamos esperar - suplicara Ninjin. - Por favor. Agora é contra a lei. Se a lei mudar, será karma. O taicum fez a lei: nada de armas. Nenhuma. Sob pena de morte instantânea.

- Abram os olhos, todos vocês! O taicum morreu! E eu lhes digo que logo Omi-san necessitará de homens treinados e a maioria de nós já guerreou, neh? Pescamos e combatemos, tudo em sua época. Não é verdade?

- Sim, Mura-san - concordara Uo, por entre o seu medo.

- Antes do taicum não estávamos confinados.

- Eles nos pegarão, terão que nos pegar - choramingara Ninjin. - Não terão piedade. Vão nos cozinhar como fizeram com o bárbaro.

- Não fale sobre o bárbaro!

- Ouçam, amigos - dissera Mura. - Nunca teremos uma chance como esta de novo. Foi enviada por Deus. Ou pelos deuses. Precisamos pegar cada faca, seta, lança, espada, mosquete, escudo, arco que pudermos. Os samurais pensarão que outros samurais os roubaram - os cabeças de merda não vieram de toda Izu? E que samurai realmente confia no outro? Precisamos reaver nosso direito de guerrear, neh? Meu pai foi morto em combate - assim como o pai dele e o pai do pai dele! Ninjin, em quantas batalhas você esteve? Dúzias delas, neh? Uo, e você? Vinte? Trinta?

- Mais. Eu não servi com o taicum, maldita seja sua memória? Ah, antes de se tornar taicum ele era um homem. Essa é a verdade! Depois alguma coisa o transformou, neh? Ninjin, não se esqueça de que Mura-san é o chefe da aldeia! E não devemos nos esquecer de que o pai dele também foi chefe! Se o chefe fala em armas, então serão armas.

Agora, ajoelhado ao sol, Mura estava convencido de ter agido corretamente, de que essa nova guerra duraria para sempre, e que o mundo deles seria novamente como sempre fora. A aldeia continuaria ali, e os barcos e alguns aldeões. Porque todos os homens - camponeses, daimios, samurais, até os etas - tinham que comer e o peixe esperava no mar. Então os soldados-aldeães deixariam a guerra de vez em quando, como sempre, e largariam com seus botes ...

- Olhem! - disse Uo, e apontou involuntariamente em meio ao silêncio repentino.

A galera estava contornando o promontório.

 

Fujiko estava abjetamente ajoelhada diante de Toranaga na cabina principal que ele usara durante a viagem. Estavam os dois a sós.

- Imploro-lhe, senhor - suplicava ela. - Tire essa sentença de sobre a minha cabeça.

- Não é uma sentença, é uma ordem.

- Obedecerei, naturalmente, mas não posso fazer...

- Não pode? - enfureceu-se Toranaga. - Como se atreve a discutir? Digo-lhe que vai ser a consorte do piloto e você tem a impertinência de discutir?

- Peço desculpas, senhor, de todo o coração - disse rapidamente Fujiko, as palavras se derramando. - Não tive a intenção de contradizê-lo. Só quis dizer que não posso fazer isso do modo como o senhor gostaria. Imploro que compreenda. Perdoe-me, senhor, mas não é possível ser feliz - ou fingir ser feliz. - Ela inclinou a cabeça até o futon. - Humildemente lhe suplico que me permita cometer seppuku.

- Eu já disse que não aprovo mortes sem sentido. Tenho uma finalidade para você.

- Por favor, senhor, quero morrer. Humildemente lhe rogo. Quero me unir ao meu marido e ao meu filho.

A voz de Toranaga açoitou-a, abafando os sons da galera:

- Já lhe recusei essa honra. Você não a merece, ainda. E é só por causa do seu avô, porque o Senhor Hiromatsu é o meu mais velho amigo, que ouvi pacientemente os seus resmungos mal-educados até agora. Basta desse absurdo, mulher. Pare de se comportar como uma camponesa imbecil!

- Humildemente lhe peço permissão para cortar o cabelo e me tornar monja. Buda.. .

- Não. Dei-lhe uma ordem. Obedeça!

- Obedecer? - disse ela, sem levantar os olhos, o rosto rígido. Depois, meio para si mesma: - Pensei que tivesse recebido ordem de ir para Yedo.

- Você recebeu ordem de vir para este navio! Você esqueceu a sua posição, a sua herança, esqueceu o seu dever. Você esqueceu o seu dever! Estou enojado com você. Vá e prepare-se!

- Quero morrer, por favor. deixe-me juntar-me a ele, senhor.

- Seu marido nasceu samurai por engano. Era de conformação defeituosa, portanto sua prole seria igualmente malformada. Aquele imbecil quase me arruinou! Juntar-se a eles? Que absurdo! Você está proibida de cometer seppuku! Agora, saia daqui!

Mas ela não se moveu.

- Talvez fosse melhor que eu a mandasse para os etas. Para uma das casas deles. Talvez isso a fizesse se lembrar da sua educação e do seu dever.

Um estremecimento fustigou-a, mas ela sibilou, desafiadora:

- Pelo menos seriam japoneses!

- Sou o seu suserano. Você-fará-o-que-eu-mandar!

Fujiko hesitou. Depois deu de ombros.

- Sim, senhor. Peço desculpas pelos meus modos. - Estendeu as mãos no chão e curvou profundamente a cabeça, a voz arrependida. Mas no íntimo não estava convencida, e tanto ele quanto ela sabiam o que ela planejava fazer. - Senhor, sinceramente peço desculpas por perturbá-lo, por destruir a sua wa, a sua harmonia, e pelos meus maus modos. O senhor tem razão. Eu estava errada. – Levantou-se e dirigiu-se calmamente para a porta da cabina.

- Se eu lhe conceder o que deseja - disse Toranaga -, você em troca fará o que eu quero, com toda a dedicação?

Lentamente ela se voltou.

- Por quanto tempo, senhor? Peço licença para lhe perguntar por quanto tempo devo ser consorte do bárbaro.

- Um ano.

Ela lhe deu as costas e estendeu a mão para a maçaneta da porta.

- Meio ano - disse Toranaga.

A mão de Fujiko parou. Tremendo, ela apoiou a cabeça contra a porta.

- Sim. Obrigada, senhor. Obrigada.

Toranaga se pôs de pé e foi até a porta. Ela a abriu para ele, curvou-se enquanto ele a cruzava, e fechou-a atrás dele. Depois as lágrimas vieram silenciosamente.

Ela era samurai.

 

Toranaga subiu ao convés sentindo-se muito contente consigo mesmo. Alcançara o que queria com um mínimo de dificuldade. Se a garota tivesse sido pressionada demais, teria desobedecido e tirado a própria vida sem permissão. Mas agora se esforçaria por agradar e era importante que se tornasse consorte do piloto alegremente, pelo menos na aparência, e seis meses seria tempo mais que suficiente. Mulheres são muito mais fáceis de lidar do que homens, pensou ele satisfeito. Muito mais fáceis, em certas coisas.

Então viu os samurais de Yabu concentrados em torno da baía e sua sensação de bem-estar desvaneceu-se.

- Bem-vindo a Izu. Senhor Toranaga - disse Yabu. - Ordenei que alguns homens viessem lhe servir de escolta.

- Ótimo.

A galera ainda estava a duzentas jardas do atracadouro, aproximando-se habilmente. e eles podiam ver Omi, Igurashi. os futons e o toldo.

- Foi tudo feito conforme discutimos em Osaka – disse Yabu. - Mas por que não ficar comigo alguns dias? Eu ficaria honrado e isso se comprovaria muito útil. O senhor poderia aprovar a escolha dos duzentos e cinqüenta homens para o Regimento de Mosquetes, e conhecer o comandante.

- Nada me agradaria mais do que isso, mas preciso estar em Yedo tão rápido quanto possível, Yabu-san.

- Dois ou três dias? Por favor. Alguns dias sem preocupações fariam bem ao senhor, neh? Sua saúde é importante para mim... para todos os seus aliados. Um pouco de descanso, boa comida e caça.

Toranaga procurava desesperadamentc uma solução. Ficar ali com apenas cinquenta guardas era impensável. Estaria totalmente em poder de Yabu, e isso seria pior do que a sua situação em Osaka. Pelo menos íshido era previsível e sofreado por certas regras. Mas Yabu? Yabu é tão traiçoeiro quanto um tubarão, e você não tenta tubarões, disse ele a si mesmo. E jamais nas águas em que eles moram. E jamais com a sua própria vida. Ele sabia que o acordo que fizera com Yabu em Osaka tinha tanta substân¬cia quanto o peso da urina deles ao atingir o solo, já que Yabu acreditava poder conseguir melhores concessões de íshido. E se Yabu apresentasse a cabeça de Toranaga a Íshido numa salva de madeira, conseguiria imediatamente muito mais do que Toranaga estava preparado para oferecer.

Matá-lo ou desembarcar? Eram essas as opções.

- O senhor é muito gentil - disse ele. - Mas preciso chegar a Yedo. - Nunca pensei que Yabu teria tempo para reunir tantos homens aqui. Será que decifrou o nosso código?

- Por favor, permita-me insistir, Toranaga-sama. A caça é excelente na redondeza. Tenho falcões com meus homens. Uma pequena caçada depois de ter estado confinado em Osaka seria bom, neh?

- Sim, seria bom caçar hoje. Lamento ter perdido meus falcões lá.

- Mas não estão perdidos. Certamente Hiro-matsu os trará consigo para Yedo.

- Ordenei-lhe que os soltasse assim que tivéssemos partido. Na altura em que alcançarem Yedo. estarão destreinados c corrompidos. É uma das minhas poucas regras; fazer voar apenas os falcões que eu tenha treinado, e não cedê-los a nenhum outro amo. Desse modo eles cometem apenas os meus erros.

- É uma boa regra. Gostaria de ouvir as outras. Talvez durante a refeição, esta noite?

Preciso deste tubarão, pensou Toranaga amargamente. Matá-lo agora é prematuro.

Duas cordas foram atiradas a terra para serem agarradas e atadas. As cordas se retesaram e estalaram sob a tensão, e a galera girou para o lado habilmente. Os remos foram travados. A escada de embarque deslizou para o lugar c Yabu se postou ao topo dela.

Imediatamente os samurais reunidos entoaram seu grilo de batalha em uníssono:

- Kasigi! Kasigi! - e o estrondo que causaram fez as gaivotas ganharem altura grasnando e crocitando. Como se fossem um único homem, os samurais se curvaram.

Yabu retribuiu a reverência, depois se voltou para Toranaga e acenou-lhe expansivo.

- Vamos desembarcar.

Toranaga olhou por sobre os samurais concentrados, os aldeões prostrados no pó, e perguntou a si mesmo: será que é aqui que morrerei pela espada, conforme predisse o astrólogo? Certa¬mente a primeira parte aconteceu: meu nome agora está escrito nos muros de Osaka.

Afastou o pensamento. No topo da escada, chamou alio e imperioso os seus cinquenta samurais, que agora usavam o uniforme marrom como ele.

- Vocês todos! Fiquem aqui! Você, capitão, prepare-se para a partida imediatamente! Mariko-san, você ficará em Anjíro por três dias. Leve o piloto e Fujiko-san a terra imediatamente e espere por mim na praça. - Depois encarou a praia e para espanto de Yabu aumentou a força da voz: - Agora, Yabu-san, inspecionarei os seus regimentos! - Imediatamente passou ao lado dele e iniciou a descida pela prancha com toda a arrogância confiante do general combativo que era.

Nenhum general jamais vencera mais batalhas do que ele e nenhum era mais ardiloso, com exceção do táicum, e este estava morto. Nenhum general combatera em mais batalhas, ou era sequer mais paciente ou perdera tão poucos homens. E ele nunca fora derrotado.

Um zunzum de assombro percorreu velozmente a praia toda quando ele foi reconhecido. Aquela inspeçáo era completamente inesperada. Seu nome foi passado de boca em boca e a força do sussurro, a admiração que gerava, eram-lhe gratificantes. Sentiu que Yabu o seguia, mas não olhou para trás.

- Ah, Igurashi-san - disse ele com uma cordialidade que não sentia -, é bom vê-lo de novo. Venha, vamos inspecionar juntos os seus homens.

- Sim, senhor.

- E você deve ser Kasigi Omi-san. Seu pai é um velho companheiro de armas meu. Acompanhe-nos, também.

- Sim, senhor - retrucou Omi, sentindo-se crescer com a honra que lhe era feita. - Obrigado.

Toranaga estabeleceu um passo célere. Levara-os consigo para impedi-los de conversar em particular com Yabu por enquanto, sabendo que a sua vida dependia de conservar a iniciativa.

- Você não lutou conosco em Odawara, Igurashi-san? - perguntou ele, já sabendo que fora lá que o samurai perdera o olho.

- Sim, senhor. Tive a honra. Eu estava com o Senhor Yabu e          servimos na ala direita do taicum.

- Então ocupou o lugar de honra, onde a luta foi mais árdua. Tenho muito que lhe agradecer, e ao seu amo.

- Esmagamos o inimigo, senhor. Estávamos apenas cumprindo o nosso dever. - Embora detestasse Toranaga, Igurashi estava orgulhoso da ação ser lembrada e de estar recebendo agradecimento.

Haviam chegado à frente do primeiro regimento. A voz de Toranaga alteou-se.

- Sim, você e os homens de Izu nos ajudaram grandemente. Talvez, não fossem vocês eu não teria obtido o Kwanto! Hein, Yabu-sama? - acrescentou ele, parando repentinamente, dando publicamente a Yabu o título superior e, em conseqüência, a honra superior.

Novamente Yabu ficou perturbado com a lisonja. Sabia que não era mais do que lhe era devido, mas não a esperara de Toranaga, e nunca fora sua intenção permitir uma inspeção formal.

- Talvez, mas duvido. O taicum ordenou que o clã Beppu fosse arrasado. Portanto foi arrasado.

Isso acontecera dez anos antes, quando apenas o enormemente poderoso e antigo clã Beppu, liderado por Beppu Genzaemon, se opunha às forças combinadas do General Nakamura, o futuro taicum, e de Toranaga - o último grande obstáculo ao domínio completo do império por Nakamura. Durante séculos os Beppu tinham sido senhores das Oito Províncias, o Kwanto. Cento e cinqüenta mil homens cercaram o seu castelo-cidade de Odawara, que guardava a passagem que cortava as montanhas, levando às planícies de arroz inacreditavelmente ricas. O cerco durou onze meses. A nova consorte de Nakamura, a patrícia Senhora Ochiba, radiante e mal e mal com dezoito anos, viera para a casa do seu senhor do lado de fora das ameias, o filho recém-nascido nos braços, Nakamura perdido de amores pelo primeiro filho. E com a Senhora Ochiba viera a irmã mais nova, Genjiko, que Nakamura propusera dar em casamento a Toranaga.

- Senhor - dissera Toranaga -, eu certamente ficaria honrado em unir as nossas casas, mas ao invés de eu me casar com a Senhora Genjiko, como sugere, deixe-a casar-se com meu filho o herdeiro, Sudara.

Toranaga levara muitos dias para persuadir Nakamura, que acabara concordando. Então, quando a decisão fora anunciada à Senhora Ochiba, ela respondera imediatamente:

- Com toda a humildade, senhor, oponho-me ao casamento.

Nakamura rira.

- Eu também! Sudara tem apenas dez anos e Genjiko treze. Ainda assim, agora estão prometidos um ao outro o no décimo quinto aniversário dele os dois se casarão.

- Mas, senhor, o Senhor Toranaga já é seu cunhado, neh? Com certeza isso é suficiente como ligação. O senhor precisa de elos mais íntimos com os Fujimoto e os Takashima, e mesmo com a corte imperial.

- Eles são uns cabeças de bosta lá na corte, e todos fantoches - dissera Nakamura na sua áspera voz de camponês.

- Ouça, O-chan: Toranaga tem setenta mil samurais. Quando tivermos esmagado os Beppu ele terá o Kwanto e mais homens. Meu filho precisará de líderes como Yoshi Toranaga, assim como eu preciso deles. Sim, e um dia meu filho precisará de Yoshi Sudara. É melhor que Sudara seja tio do meu filho. Sua irmã está prometida a Sudara, mas ele viverá conosco alguns anos, neh?

- Naturalmente, senhor - concordara Toranaga de imediato, entregando seu filho e herdeiro como refém.

- Ótimo. Mas ouça, primeiro você e Sudara jurarão lealdade eterna ao meu filho.

E assim acontecera. Então, durante o décimo mês de cerco, o primeiro filho de Nakamura morrera, de febre, mau sangue ou kami malévolo.

- Que todos os deuses amaldiçoem Odawara e Toranaga - enfurecera-se Ochiba. - É por culpa de Toranaga que estamos aqui. Ele quer o Kwanto. Foi por culpa dele que o nosso filho morreu. É ele o seu verdadeiro inimigo. Quer que o senhor morra, e eu também! Condene-o à morte - ou ponha-o ao trabalho. Deixe-o comandar o ataque, deixe-o pagar com a vida pela vida do nosso filho! Exijo vingança...

Então Toranaga comandara o ataque. Tomara o Castelo de Odawara minando os muros e por ataque frontal. Depois o pesaroso Nakamura reduzira a cidade a pó. Com a sua queda e a caça a todos os Beppu, o império foi dominado e Nakamura se tornou primeiro kwampaku, depois taicum. Mas muitos morreram em Odawara.

Gente demais, pensou Toranaga, ali na praia de Anjiro. Olhou Yabu.

- É uma pena que o taicum tenha morrido, neh?

- Sim.

- Meu cunhado era um grande comandante. E um grande professor, também. Como ele, nunca me esqueço de um amigo. Ou de um inimigo.

- Logo o Senhor Yaemon atingirá a maioridade. O espírito dele é o espírito do taicum. Senhor Toran... - Mas antes que Yabu pudesse deter a inspeção, Toranaga já a havia reiniciado e havia pouca coisa que Yabu pudesse fazer além de acompanhá-lo.

Toranaga caminhou ao longo das fileiras, esvaindo-se em amabilidades, escolhendo um homem aqui, outro ali, reconhecendo alguns, os olhos sempre em movimento enquanto rebuscava na memória à procura de rostos e nomes. Ele tinha aquela qualidade muito rara dos generais especiais que inspecionam de um modo tal, que cada homem sente, pelo menos durante um instante, que o general olhou apenas para ele, talvez até tenha conversado só com ele, dentre todos os seus camaradas. Toranaga estava fazendo aquilo para o que nascera, e que fizera milhares de vezes: controlando homens com a força da vontade.

Quando o último samurai foi revisto, Yabu, Igurashi e Omi estavam exaustos. Mas Toranaga não, e novamente, antes que Yabu pudesse detê-lo, dirigiu-se rapidamente para um ponto mais elevado e parou lá, no alto e sozinho.

- Samurais de Izu, vassalos do meu amigo e aliado, Kasigi Yabu-sama! - começou ele naquela voz sonora e potente. - Estou honrado por me encontrar aqui. Estou honrado em ver parte da força de Izu, parte das forças do meu grande aliado. Ouçam, samurais, nuvens escuras estão se reunindo sobre o império e ameaçam a paz do taicum. Devemos preservar as dádivas do taicum contra a traição em altos postos! Que cada samurai esteja preparado! Que cada arma esteja afiada! Juntos defenderemos a vontade dele! E levaremos a melhor! Que os deuses do Japão, grandes e pequenos, prestem atenção! Que eles destruam sem piedade todos aqueles que se opuserem às ordens do taicum! - Levantou os braços, proferiu o grito de batalha deles, "Kasigi", e, inacreditavelmente, curvou-se para as legiões e manteve-se curvado.

Todos o fitavam de olhos arregalados. Então "Toranaga!" veio ribombando até ele dos regimentos, sempre e sempre. E os samurais retribuíram a reverência.

Até Yabu se curvou, dominado pela força do momento.

Antes que Yabu pudesse se endireitar, Toranaga já descera a colina, mais uma vez a passo acelerado.

- Vá com ele, Omi-san - ordenou Yabu. Teria sido inadequado que ele próprio corresse atrás de Toranaga.

- Sim, senhor.

Quando Omi se afastou, Yabu perguntou a Igurashi:

- Quais são as notícias de Yedo?

- A Senhora Yuriko, sua esposa, mandou lhe dizer primeiro que está acontecendo uma tremenda mobilização pelo Kwanto inteiro. Nada na superfície, mas por baixo está tudo fervendo. Ela acredita que Toranaga está se preparando para a guerra - um ataque repentino, talvez até contra Osaka.

- E Ishido?

- Nada até o momento em que partimos. Isso foi há cinco dias. Nada, também, sobre a fuga de Toranaga. Só fiquei a par disso ontem, quando a sua senhora mandou um pombo-correio de Yedo.

- Ah, Zukimoto já criou aquele serviço de pombos-correio?

- Sim, senhor.

- Ótimo.

- A mensagem dela foi esta: "Toranaga escapou com êxito de Osaka, com o nosso amo numa galera. Façam os preparativos para recebê-los em Anjiro". Pensei que seria melhor manter isso em segredo, exceto de Omi-san, mas estamos todos preparados.

- Como?

- Ordenei um "exercício" de guerra, senhor, por toda Izu. Dentro de três dias cada estrada e passagem para Izu estará bloqueada, se for isso o que o senhor quiser. Há uma frota pirata simulada ao norte, que poderia arrasar qualquer navio sem escolta, de dia ou de noite, se for isso o que o senhor quiser. E há acomodações aqui para o senhor e um hóspede, por mais importante que seja, se for isso o que o senhor quiser.

- Ótimo. Mais alguma coisa? Outras notícias?

Igurashi relutava em transmitir notícias cujas implicações ele não compreendia.

- Estamos preparados para qualquer coisa aqui. Mas esta manhã chegou uma mensagem de Osaka: "Toranaga renunciou ao conselho de regentes".

- Impossível! Por que ele faria isso?

- Não sei. Não consigo formar uma opinião. Mas deve ser verdade. Nunca recebemos informação errada dessa fonte antes.

- A Senhora Sazuko? - perguntou Yabu cautelosamente, citando o nome da consorte mais jovem de Toranaga, cuja criada era uma espiã a seu serviço.

Igurashi assentiu.

- Sim. Mas não compreendi em absoluto. Agora os regentes o impedirão, não? Ordenarão a morte dele. Foi loucura renunciar, neh?

- Ishido deve tê-lo forçado a fazer isso. Mas como? Não houve nem um sopro de rumor. Toranaga nunca renunciaria espontaneamente! Você tem razão, seria o ato de um louco. Ele está perdido se tiver renunciado. Deve ser falso.

Transtornado, Yabu desceu a colina e viu Toranaga cruzar a praça na direção de Mariko e do bárbaro, com Fujiko ao lado. Depois Mariko andando ao lado de Toranaga, os outros esperando na praça. Toranaga falava rápida e urgentemente. Então Yabu viu-o dar a ela um pequeno rolo de pergaminho e perguntou a si mesmo o que conteria e o que estava sendo dito. Que nova traição estará Toranaga planejando? perguntou-se, desejando ter a esposa Yuriko ali para ajudá-lo com seus sábios conselhos.

Ao atingir o embarcadouro, Toranaga parou. Não se dirigiu para o navio e a proteção dos seus homens. Sabia que seria na praia que se tomaria a última decisão. Ele não podia escapar. Nada estava resolvido ainda. Observou Yabu e Igurashi se aproximando. A aparente impassibilidade de Yabu dissê-lhe muito.

- Então, Yabu-san?

- O senhor ficará alguns dias, Senhor Toranaga?

- Seria melhor que eu partisse imediatamente.

Yabu ordenou que todos se afastassem. Num instante os dois homens ficaram sozinhos na praia.

- Recebi notícias inquietantes de Osaka. O senhor renunciou ao conselho de regentes?

- Sim. Renunciei.

- Então o senhor matou a si mesmo, destruiu a sua causa, todos os seus vassalos, todos os seus aliados, todos os seus amigos! Enterrou Izu e me assassinou!

- Certamente o conselho de regentes pode tirar-lhe o feudo, e a vida se quiser. Sim.

- Por todos os deuses, viver e morrer e ainda ter nascido... - Yabu lutou para se dominar. - Peçe desculpas pelos meus maus modos, mas a sua... a sua incrível atitude... sim, peço desculpas. - Não havia nenhum propósito real a ser atingido com uma demonstração de emoção, que todos sabiam inconveniente e indigna. - Sim, é melhor que fique aqui, então, Senhor Toranaga.

- Creio que prefiro partir imediatamente.

- Aqui ou Yedo, qual é a diferença? A ordem dos regentes virá em seguida. Imagino que o senhor quererá cometer seppuku imediatamente. Com dignidade. Em paz. Eu ficaria honrado em atuar como seu assistente.

- Obrigado. Mas ainda não chegou nenhuma ordem legal, portanto a minha cabeça continuará onde está.

- Que importância tem um dia ou dois? É inevitável que a ordem chegue. Farei todos os preparativos, sim, e eles serão perfeitos. O senhor pode contar comigo.

- Obrigado. Sim, posso compreender por que você quereria a minha cabeça.

- A minha própria cabeça também está perdida. Se eu mandasse a sua para Ishido, ou a tirasse e lhe pedisse perdão, isso talvez o convencesse, mas duvido, neh?

- Se eu estivesse na sua posição, talvez pedisse a sua cabeça. Infelizmente a minha não o ajudará em absoluto.

- Sou inclinado a concordar. Mas vale a pena tentar. - Yabu cuspiu no chão. — Mereço morrer por ser tão estúpido e por me colocar em poder de um cabeça de bosta.

- Ishido nunca hesitará em lhe tomar a cabeça. Mas primeiro tomará Izu. Oh, sim, Izu está perdida com ele no poder.

- Não tente me iludir! Eu sei que isso vai acontecer!

- Não o estou iludindo, meu amigo - disse Toranaga, saboreando a perda de dignidade de Yabu. - Simplesmente disse que, com Ishido no poder, você estará perdido e Izu estará perdida, porque o parente dele, Ikawa Jikkyu, cobiça Izu, neh? Mas, Yabu-san, Ishido não tem o poder. Ainda. - E, de amigo para amigo, contou a Yabu por que renunciara.

- O conselho está paralisado! - Yabu não podia acreditar.

- Não existe conselho algum! Não existirá até que haja cinco membros de novo. - Toranaga sorriu. - Pense nisso, Yabu-san. Agora estou mais forte do que nunca, neh? Ishido está neutralizado, assim como Jikkyu. Agora você tem todo o tempo de que precisa para treinar os seus atiradores. Agora é dono de Suruga e Totomi. Agora tem a cabeça de Jikkyu. Dentro de poucos meses você lhe verá a cabeça num chuço, a cabeça de todos os parentes dele, e entrará com toda a pompa em seus novos domínios. - Abruptamente deu meia-volta e gritou: - Igurashi-san! - e quinhentos homens ouviram a voz de comando.

Igurashi veio correndo, mas antes que o samurai tivesse dado três passos, Toranaga berrou:

- Traga uma guarda de honra. Cinqüenta homens! Imediatamente! — Ele não ousou dar a Yabu um intervalo de um momento sequer para detectar a enorme falha no seu argumento: que se Ishido estava paralisado agora e não tinha poder, então a cabeça de Toranaga numa salva de madeira seria de enorme valor para Ishido, e assim para Yabu. Ou, melhor ainda, Toranaga amarrado como um marginal comum e entregue vivo aos portões do Castelo de Osaka daria a Yabu a imortalidade e as chaves do Kwanto.

Enquanto a guarda de honra se formava à sua frente, Toranaga disse alto:

- Em honra desta ocasião, Yabu-sama, talvez o senhor aceitasse isto como símbolo de amizade. - E puxou a longa espada, segurou-a deitada sobre as duas mãos, e ofereceu-a.

Yabu pegou a espada como se estivesse sonhando. Era inestimável. Era uma herança Minowara, famosa por todo o reino.

Toranaga possuía aquela espada há quinze anos. Fora-lhe presenteada por Nakamura diante da majestade reunida de todos os daimios importantes do império, exceto Beppu Genzaemon, como pagamento parcial por um acordo secreto.

Isso acontecera pouco depois da batalha de Nagakudé, muito antes da Senhora Ochiba. Toranaga acabara de derrotar o General Nakamura, o futuro taicum, quando Nakamura ainda era apenas um arrivista, sem mandato nem poder ou título formal, e a sua ânsia pelo poder absoluto ainda encontrava obstáculo. Ao invés de reunir um exército esmagador e arrasar Toranaga, o que era a sua política habitual, Nakamura resolveu ser conciliador. Oferecera a Toranaga um tratado de amizade e uma aliança de compromisso, e, para cimentá-los, sua meia irmã como esposa. O fato de a mulher já ser casada e de meia-ldade não incomodou nem a Nakamura nem a Toranaga em absoluto. Toranaga concordou com o pacto. Imediatamente o marido da mulher, um dos vassalos de Nakamura - agradecendo aos deuses que o convite ao divórcio não tivesse vindo acompanhado de um convite a cometer seppuku - mandara-a, agradecido, de volta ao meio irmão. Imediatamente Toranaga se casou com ela com toda a pompa e cerimônia ao seu alcance, e no mesmo dia concluiu um pacto secreto de amizade com o imensamente poderoso clã Beppu, os inimigos declarados de Nakamura, que, naquela época, ainda se encastelavam desdenhosamente no Kwanto, na porta dos fundos, muito desprotegida, de Toranaga.

Então Toranaga ficara caçando com seus falcões e à espera do inevitável ataque de Nakamura. Mas nada acontecera. Em vez de atacar, surpreendentemente, Nakamura mandara sua venerada e amada mãe para o acampamento de Toranaga como refém, ostensivamente para visitar a enteada, a nova esposa de Toranaga, mas sempre um refém, e em troca convidara Toranaga para a reunião de todos os daimios que ele organizara em Osaka. Toranaga pensara muito e longamente. Depois aceitara o convite, sugerindo ao seu aliado Beppu Genzaemon que seria imprudência irem ambos. Depois, secretamente, pusera sessenta mil samurais em movimento para Osaka, contra a esperada traição de Nakamura, e deixara seu filho mais velho, Noboru, encarregado da sua nova esposa e da sogra. Noboru imediatamente empilhara gravetos secos e facilmente inflamáveis nos beirais do telhado da residência delas e dissera-lhes asperamente que atearia fogo se qualquer coisa acontecesse ao pai.

Toranaga sorriu, lembrando-se. Na noite que precedera a sua chegada a Osaka, Nakamura, sem cerimônia como sempre, fizeralhe uma visita secreta, sozinho e desarmado.

- Salve, Tora-san.

- Salve, Senhor Nakamura.

- Ouça: combatemos juntos em muitas batalhas, conhecemos muitos segredos, cagamos muitas vezes no mesmo pote para querer mijar em nossos próprios pés ou um nos pés do outro.

- Concordo - dissera Toranaga precavidamente.

- Ouça, então. Estou a um passo de dominar o reino. Para conseguir o poder total, necessito do respeito dos clãs antigos, os senhores dos feudos hereditários, os herdeiros atuais dos Fujimoto, Takashima e Minowara. Assim que eu tiver o poder, qualquer daimio ou três juntos podem mijar sangue que não me faz a mínima diferença.

- O senhor tem o meu respeito ... sempre teve.O homenzinho com cara de macaco rira fartamente. - Você venceu justamente em Nagakudé. É o melhor general que jamais conheci, o maior daimio do reino. Mas agora vamos parar de jogar, você e eu. Ouça. Amanhã quero que você se curve para mim, diante de todos os daimios, como meu vassalo. Quero você, Yoshi Toranaga-noh-Minowara, como um vassalo aquiescente. Publicamente. Não para me lamber o rabo, mas polido, humilde e respeitoso. Com você como meu vassalo, o resto vai até peidar de tanta urgência em pôr a cabeça no pó e o rabo ao ar. E os poucos que não fizerem isso... bem, que se cuidem.

- Isso o fará senhor de todo o Japão. Neh?

- Sim. O primeiro da história. E você me terá dado isso. Admito que não posso fazê-lo sem você. Mas, ouça, se fizer isso por mim, terá o primeiro lugar depois de mim. Todas as honras que desejar. Qualquer coisa. Há bastante para nós dois.

- Há?

- Sim. Primeiro tomo o Japão. Depois a Coréia. Em seguida a China. Eu disse a Goroda que queria isso e é o que terei. Então você poderá ficar com o Japão - uma província da minha China!

- Mas agora, Senhor Nakamura? Agora tenho que me submeter, neh? Estou em seu poder, neh? O senhor está com uma força esmagadora à minha frente, e os Beppu me ameaçam os fundos.

- Cuidarei deles muito em breve - dissera o guerreiro camponês. - Aqueles cadáveres zombadores recusaram meu convite para vir aqui amanhã. Mandaram o meu pergaminho de volta coberto de merda de passarinho. Você quer a terra deles? O Kwanto todo?

- Não quero nada deles nem de ninguém.

- Mentiroso — disse Nakamura cordialmente. - Ouça-me, Tora-san, tenho quase cinqüenta anos. Nenhuma das minhas mulheres jamais concebeu. Tenho sumo em abundância, sempre tive, e em toda a minha vida devo ter me deitado com uma centena de mulheres, duas centenas, de todos os tipos, de todas as idades, de todos os jeitos, mas nenhuma jamais concebeu uma criança, sequer natimorta. Tenho tudo, mas não tenho filhos e nunca terei. É o meu karma. Você tem quatro filhos vivos e sabe-se lá quantas filhas. Tem quarenta e três anos, portanto pode fazer mais uma dúzia, e isso com tanta facilidade como os cavalos cagam, e esse é o seu karma. Além disso é Minowara e isso é karma. Que diz de eu adotar um dos seus filhos e torná-lo meu herdeiro?

- Agora?

- Em breve. Digamos dentro de três anos. Nunca foi importante ter um herdeiro antes, mas agora as coisas são diferentes. Nosso falecido amo Goroda teve a estupidez de se deixar assassinar. Agora a terra é minha... poderia ser minha. Bem?

- O senhor tornará os acordos formais, publicamente formais, dentro de dois anos?

- Sim. Dentro de dois anos. Pode confiar em mim. Nossos interesses são os mesmos. Ouça: dentro de dois anos, em público e combinamos, você e eu, que filho será. Desse modo partilhamos tudo, hein? Nossa dinastia conjunta fica assentada para o futuro, portanto não há problemas nisso e é bom para mim. Os lucros serão imensos. Primeiro o Kwanto. Hein?

- Talvez Beppu Genzaemon se submeta... seu eu me submeter.

- Não posso permitir que eles façam isso, Tora-san. Você cobiça a terra deles.

- Não cobiço nada.

A risada de Nakamura fora jovial.

- Sim. Mas devia. O Kwanto é digno de você. É seguro por trás de paredes de montanhas, fácil de defender. Com o delta você controlará os campos de arroz mais ricos do império. Terá as costas para o mar e uma renda de dois milhões de kokus. Mas não faça de Kamakura a sua capital. Nem de Odawara.

- Kamakura sempre foi a capital do Kwanto.

- Por que você não cobiçaria Kamakura, Tora-san? Não faz seiscentos anos que ela encerra o santuário sagrado do kami guardião da sua família? Hachiman, o kami da guerra, não é a divindade Minowara? Seu ancestral foi sábio em escolher o kami da guerra para venerar.

- Não cobiço nada, não venero nada. Um santuário é apenas um santuário, e nunca constou que o kami da guerra ficasse em qualquer santuário.

- Fico contente por você não cobiçar nada, Tora-san, pois assim nada o desapontará. Nisso você é como eu. Mas Kamakura não é capital para você. Há sete passagens levando até ela, coisa demais para defender. E não dá para o mar. Não, eu não aconselharia Kamakura. Ouça, seria melhor e mais seguro que você avançasse para além das montanhas. Você precisa de um porto marítimo. Há um que vi uma vez, Yedo, atualmente uma aldeia de pescadores, mas você a transformará numa grande cidade. Fácil de defender, perfeita para o comércio. Você é a favor do comércio. Eu também. Ótimo. Portanto você precisa ter um porto marítimo. Quanto a Odawara, vamos arrasá-la, como lição para todos os outros.

- Isso será muito difícil.

- Sim. Mas seria uma boa lição para todos os outros daimios, neh?

- Tomar essa cidade de assalto seria dispendioso.

Novamente a risada sarcástica.

- Poderia ser, para você, se não se juntasse a mim. Tenho que atravessar as suas terras atuais para chegar lá. Você sabia que é a linha de frente dos Beppu? A garantia dos Beppu? Juntos, você e eles poderiam me manter a distância um ano ou dois, até três. Mas eu chegaria lá afinal. Oh, sim. lh, por que desperdiçar mais tempo com eles? Estão todos mortos, com exceção do seu genro, se você quiser, ah, eu sei que você tem uma aliança com eles, mas isso não vale uma tigela de bosta de cavalo. Então, qual é a sua resposta? Os lucros vão ser imensos. Primeiro o Kwanto - isso é seu -, depois terei o Japão todo. Depois a Coréia, fácil. Em seguida a China - difícil, mas não impossível. Sei que um camponês não pode se tornar shogun, mas o "nosso" filho será shogun, e também poderia se aboletar no Trono do Dragão da China, ou o filho dele. Agora chega de conversa. Qual é a sua resposta, Yoshi Toranaga-noh-Minowara, vassalo ou não? Nada mais tem valor para mim.

- Vamos urinar sobre o acordo - dissera Toranaga, tendo ganhado tudo o que desejara e por que planejara. E no dia seguinte, ante a desnorteada majestade dos daimios truculentos, ele humildemente oferecera sua espada e suas terras, sua honra e sua herança ao camponês arrivista senhor da guerra. Implorara pela permissão de servir a Nakamura e à sua casa para sempre. E ele, Yoshi Toranaga-noh-Minowara, abjetamente encostara a cabeça no pó. O futuro taicum, então, fora magnânimo: tomara-lhe as terras e imediatamente lhe presenteara o Kwanto como feudo assim que fosse conquistado, ordenando guerra total contra os Beppu pelos seus insultos ao imperador. E também dera a Toranaga a espada que adquirira recentemente de uma das tesourarias imperiais. A espada fora feita pelo mestre espadeiro Miyoshi-Go séculos atrás, e pertencera um dia ao guerreiro mais famoso da história, Minowara Yoshitomo, o primeiro shogun Minowara. Toranaga lembrou-se daquele dia. E de outros quando, poucos anos depois, a Senhora Ochiba dera à luz um menino e outro quando, inacreditavelmente, depois de o primeiro filho do taicum ter convenientemente morrido, nascera Yaemon, o segundo filho.

O que arruinara o plano todo. Karma.

Ele viu Yabu segurando a espada do seu ancestral com reverência.

- É tão afiada quanto dizem? - perguntou Yabu.

- Sim.

- O senhor me concede uma grande honra. Guardarei o seu presente como um tesouro. - Yabu curvou-se, cônscio de que, devido ao presente, seria o primeiro na terra, depois de Toranaga.

Toranaga retribuiu a mesura e depois, desarmado, encaminhou-se para a escada de embarque. Precisou de toda a sua força de vontade para disfarçar a raiva e não deixar os pés vacilarem, e rezou para que a avidez de Yabu o mantivesse hipnotizado só por mais uns momentos.

- Zarpar! - ordenou, subindo ao convés, e voltou-se para a praia e acenou alegremente.

Alguém rompeu o silêncio e gritou o seu nome, depois outros se uniram ao grito. Houve um troar geral de aprovação pela honra feita ao senhor deles. Mãos prestimosas empurraram o navio para o largo. Os remadores puxaram com rapidez. A galera avançou.

- Capitão, para Yedo, rapidamente!

- Sim, senhor.

Toranaga olhou para trás, seus olhos explorando a praia, esperando perigo a qualquer momento. Yabu erguia-se junto ao molhe, ainda inebriado pela espada, Mariko e Fujiko esperavam ao lado do toldo com as outras mulheres. O Anjin-san estava na extremidade da praça, onde lhe disseram que esperasse - rígido, sobranceiro, e inconfundivelmente furioso. Seus olhos se encontraram. Toranaga sorriu e acenou.

O aceno foi correspondido, mas friamente, e isso divertiu muitíssimo Toranaga.

 

Blackthorne subiu desconsoladamente até o molhe.

- Quando é que ele volta, Mariko-san?

- Não sei, Anjin-san.

- Como é que iremos para Yedo?

- Vamos ficar aqui. Eu, pelo menos, fico três dias. Depois devo seguir para lá.

- Por mar?

- Por terra.

- E eu?

- O senhor deve ficar aqui.

- Por quê?

- O senhor manifestou interesse por aprender a nossa língua. E há trabalho para o senhor aqui.

- Que trabalho?

- Não sei, sinto muito. O Senhor Yabu lhe dirá. Meu amo deixou-me aqui para traduzir, por três dias.

Blackthorne estava cheio de pressentimentos. Tinha as pistolas na cintura, mas não tinha facas, nem pólvora nem munição. Ficara tudo na cabina a bordo da galera.

- Por que a senhora não me disse que íamos ficar aqui? - perguntou. - Só disse que vínhamos a terra.

- Eu não sabia que o senhor também ficaria aqui - retrucou ela. - O Senhor Toranaga me disse há apenas um momento, na praça.

- Por que não disse a mim, então? A mim mesmo?

- Não sei.

- Eu deveria estar indo para Yedo. É lá que se encontra a minha tripulação. É lá que está o meu navio. Como é que fica?

- Ele só disse que o senhor devia permanecer aqui.

- Por quanto tempo?

- Ele não me disse, Anjin-san. Talvez o Senhor Yabu saiba. Por favor, tenha paciência.

Blackthorne podia ver Toranaga em pé no tombadilho, olhando para a praia. - Acho que ele sabia o tempo todo que eu devia ficar aqui, não sabia?

Ela não respondeu. Como é infantil falar em voz alta o que se pensa, disse ela a si mesma. E como Toranaga foi extraordinariamente inteligente para escapar desta armadilha.

Fujiko e as duas criadas encontravam-se ao lado dela, esperando pacientemente à sombra, com a mãe e a esposa de Omi, a qual Mariko conhecera rapidamente. Mariko olhou para além delas, para a galera. Estava ganhando velocidade agora. Mas ainda se encontrava facilmente no raio de uma seta. A qualquer momento agora ela sabia que devia começar. Oh, minha Nossa Senhora, faça-me forte, orou, toda a sua atenção centrada em Yabu.

- É verdade? É verdade? - dizia Blackthorne.

- O quê? Oh, desculpe, eu não sei, Anjin-san. Só posso dizer-lhe que o Senhor Toranaga é muito sábio. O mais sábio dos homens. Quaisquer que tenham sido os seus motivos, foram bons. - Ela estudou os olhos azuis e o rosto duro, sabendo que Blackthorne não compreendera nada do que ocorrera ali. - Por favor, seja paciente, Anjin-san. Não há nada a temer. O senhor é o vassalo favorito dele e está sob...

- Não estou com medo, Mariko-san. Só estou cansado de ser atirado de um lado para outro como um fantoche. E não sou vassalo de ninguém.

- "Contratado" é melhor? Ou como o senhor descreveria um homem que trabalha para outro ou é contratado por outro para específico... - Nisso ela viu o sangue subir ao rosto de Yabu.

- As armas... as armas ainda estão na galera! - gritou ele.

Mariko sabia que chegara o momento. Apressou-se na direção dele quando ele se voltou para gritar ordens para Igurashi.

- Com o seu perdão, Senhor Yabu - disse ela, dominando-o -, não há por que se preocupar em relação às armas. O Senhor Toranaga disse que lhe pedisse perdão pela pressa, mas tem coisas urgentes a fazer pelos seus interesses conjuntos em Yedo. Disse que mandará a galera de volta imediatamente. Com as armas. E com pólvora extra. E também com os duzentos e cinqüenta homens que o senhor lhe solicitou. Estarão aqui dentro de cinco ou seis dias.

- O quê?

Paciente e polidamente Mariko explicou de novo, conforme Toranaga lhe dissera que fizesse. Depois, quando Yabu compreendeu, ela tirou o rolo de pergaminho da manga.

- Meu amo pedê-lhe que leia isto. Refere-se ao Anjin-san. - Formalmente ela lhe estendeu o rolo.

Mas Yabu não pegou. Seus olhos se dirigiram para a galera. Estava bem longe agora, indo muito depressa. Fora do alcance. Mas o que importa? pensou satisfeito, dominando agora a ansiedade. Logo terei as armas de volta e agora estou fora da armadilha de Ishido e tenho a mais famosa espada de Toranaga e logo todos os daimios da terra estarão informados da minha nova posição nos exércitos do leste - o primeiro depois de Toranaga! Yabu ainda podia ver Toranaga, acenou e foi correspondido. Depois Toranaga desapareceu do tombadilho.

Yabu pegou o rolo de pergaminho e voltou a atenção para o presente. E para o Anjin-san.

Blackthorne observava a trinta passos de distância e sentiu os pêlos se arrepiarem sob o olhar perscrutador de Yabu. Ouviu Mariko falando na sua voz musical, mas isso não o tranqüilizou. Sua mão apertou dissimuladamente a coronha da pistola.

- Anjin-san! - chamou Mariko. - Venha até aqui, por favor!

Quando Blackthorne se aproximou, Yabu levantou os olhos do pergaminho e fez um gesto de cabeça amistoso. Ao terminar a leitura, Yabu devolveu o papel a Mariko e falou brevemente, parcialmente com ela, parcialmente com ele. Respeitosamente Mariko estendeu o papel para Blackthorne.

Ele o pegou e examinou os caracteres incompreensíveis.

- O Senhor Yabu diz que o senhor é bem-vindo nesta aldeia. Este documento está sob o selo do Senhor Toranaga, Anjin-san. Deve guardá-lo. Ele lhe concedeu uma honra rara. Fez do senhor um hatamoto. Essa é a posição de um assistente especial do estado-maior pessoal dele. O senhor tem a sua proteção absoluta. Mais tarde lhe explicarei os privilégios, mas o Senhor Toranaga também lhe deu um salário de vinte kokus por mês. Isso equivale a ...

Yabu interrompeu-a, gesticulando expansivamente para Blackthorne, depois para a aldeia, e falou longamente. Mariko traduziu:

- O Senhor Yabu repete que o senhor é bem-vindo aqui. Espera que o senhor fique satisfeito. Tudo será feito para tornar a sua estada confortável. Será providenciada uma casa para o senhor. E professores. O senhor, por favor, aprenderá japonês o mais rápido possível, diz ele. Esta noite ele lhe fará algumas perguntas e lhe falará sobre um trabalho especial.

- Por favor, pergunte a ele que trabalho.

- Permita-me aconselhar-lhe só um pouco mais de paciência, Anjin-san. Este não é o momento, sinceramente.

- Está bem.

- Wakarimasu ka, Anjin-san - disse Yabu. Compreendeu?

- Hai, Yabu-san. Domo.

Yabu deu ordens a Igurashi para dispensar o regimento, depois avançou em direção aos aldeões, que continuavam prostrados na areia.

Deteve-se diante deles, na excelente tarde quente de primavera, com a espada de Toranaga ainda na mão. Suas palavras atingiram-nos como um açoite. Yabu apontou a espada para Blackthorne, perorou alguns momentos, determinou abruptamente. Um tremor percorreu os aldeões. Mura curvou-se e disse "hai" várias vezes. Voltou-se, fez uma pergunta aos aldeões e todos os olhares se fixaram em Blackthorne.

- Wakarimasu ka? - perguntou Mura, e todos responderam: - Hai -, suas vozes misturando-se ao suspirar das ondas quebrando na praia.

- O que está acontecendo? - perguntou Blackthorne a Mariko, mas Mura gritou:

- Keirei! - e os aldeões se curvaram profundamente de novo, uma vez para Yabu, uma vez para Blackthorne. Yabu se afastou a passos largos, sem olhar para trás.

- O que está acontecendo, Mariko-san?

- Ele... o Senhor Yabu dissê-lhes que o senhor é hóspede de honra aqui. Que o senhor também é um vas ... assistente muito honrado do Senhor Toranaga. Que está aqui principalmente para aprender a nossa língua. Que ele dá à aldeia a honra e a responsabilidade de ensiná-lo. A aldeia é responsável, Anjin-san. Cada um aqui deve ajudá-lo. Disse que se o senhor não tiver aprendido satisfatoriamente dentro de seis meses, a aldeia será queimada, mas antes disso cada homem, mulher e criança serão crucificados.

 

O dia estava morrendo agora, as sombras alongadas, o mar vermelho, e um vento suave soprando.

Blackthorne vinha subindo o caminho da aldeia, em direção à casa que Mariko lhe indicara e que dissera seria sua. Ela esperara escoltá-lo até lá, mas ele agradecera, recusara, e caminhara por entre os aldeões ajoelhados rumo ao promontório, para ficar sozinho e pensar.

Achara o esforço de pensar grande demais. Nada parecia se encaixar. Molhara a cabeça com água salgada para tentar aclarar as idéias, mas não ajudara. Finalmente desistira e retornara à toa pela praia, passara ao lado do molhe, cruzara a praça e atravessara a aldeia, até a casa onde devia viver agora e onde, lembrou-se ele, não havia uma residência antes. Lá em cima, dominando a ladeira oposta, havia outra moradia, maior, parte de sapé, parte de telhas, por trás de uma alta paliçada, com muitos guardas junto ao portão fortificado.

Samurais pavoneavam-se pela aldeia ou paravam em grupos, conversando. A maior parte já marchara atrás dos respectivos oficiais, seguindo em grupos disciplinados pelas veredas e por sobre a colina, rumo ao acampamento. Os samurais que Blackthorne encontrou, saudou-os distraidamente e foi correspondido. Não viu aldeões. Blackthorne parou do lado de fora do portão encaixado na cerca. Havia mais daqueles caracteres peculiares pintados no batente, e a porta era escavada em desenhos habilidosos, planejados para esconder e ao mesmo tempo revelar o jardim lá atrás.

Antes que pudesse abrir a porta, ela girou para dentro e um velho atemorizado curvou-se para ele.

- Konbanwa, Anjin-san. - A voz dele tremulava de modo

deplorável.

- Konbanwa. Ouça, meu velho, er... o namae ka?

- Namae watashi wa, Anjin-san? Ah, watashi Ueki-ya... Ueki-ya. - O velho estava quase cantando de alívio.

Blackthorne disse o nome várias vezes para ajudar a lembrar, e acrescentou "san". O velho sacudiu a cabeça violentamente:

- Iyé, gomen nasai! Iyé "san", Anjin-sama. Ueki-ya! Ueki-ya!

- Está bem, Ueki-ya. - Mas, pensou Blackthorne, por que não "san", como todos os demais?

Blackthorne dispensou-o com um gesto. O velho afastou-se coxeando, rápido.

- Terei que ser mais cuidadoso. Tenho que ajudá-los - disse em voz alta.

Uma criada apreensiva apareceu na varanda, atravessando uma shoji, e curvou-se profundamente.

- Konbanwa, Anjin-san.

- Konbanwa - respondeu ele, reconhecendo-a vagamente do navio. Também a afastou com um gesto.

Um roçar de seda. Fujiko surgiu de dentro da casa. Mariko veio com ela.

- Seu passeio foi agradável, Anjin-san?

- Sim, agradável, Mariko-san. - Mal a notou, assim como a Fujiko, a casa ou o jardim.

- Gostaria de tomar um pouco de chá? Ou saquê, talvez? Ou talvez um banho? A água está quente. - Mariko riu nervosa, perturbada pela expressão dos olhos dele. - A casa de banho não está completamente acabada, mas esperamos que seja adequada.

- Saquê, por favor. Sim, saquê primeiro, Mariko-san.

Mariko falou com Fujiko, que desapareceu mais uma vez dentro da casa. Uma criada trouxe silenciosamente três almofadas e se afastou. Mariko sentou-se graciosamente sobre uma delas.

- Sente-se, Anjin-san, deve estar cansado.

- Obrigado.

Sentou-se nos degraus da varanda e não tirou as sandálias.

Fujiko trouxe dois frascos de saquê e uma xícara de chá, conforme Mariko lhe dissera, e não os minúsculos cálices de porcelana que deviam ser usados.

- É melhor lhe dar muito saquê rapidamente - dissera Mariko. - O melhor seria deixá-lo logo bêbado, mas o Senhor Yabu precisa dele esta noite. Um banho e saquê talvez o reconfortem.

Blackthorne bebeu a xícara de vinho aquecido que lhe foi oferecida sem saboreá-lo. Depois uma segunda. E uma terceira. As duas haviam-no observado a subir a colina, através da fenda de shojis ligeiramente entreabertas.

- O que há com ele? - perguntara Fujiko, alarmada.

- Está angustiado com o que o Senhor Yabu disse, o compromisso da aldeia.

- Por que isso deveria incomodá-lo? Ele não está ameaçado. Não foi a vida dele que foi ameaçada.

- Os bárbaros são diferentes de nós, Fujiko-san. Por exemplo, o Anjin-san acredita que os aldeões são pessoas como outras pessoas, como samurais, alguns até melhores do que samurais.

Fujiko rira nervosamente.

- Que absurdo, neh? Como é que camponeses podem ser iguais a samurais?

Mariko não respondera. Simplesmente continuara a observar o Anjin-san.

- Coitado.

- Coitada da aldeia! - O curto lábio superior de Fujiko se contraiu desdenhosamente. - Um estúpido desperdício de camponeses e pescadores! Kasigi Yabu é um imbecil! Como é que um bárbaro pode aprender a nossa língua em meio ano? Quanto tempo levou o bárbaro Tsukku-san? Mais de vinte anos, neh? E ele não é o único bárbaro que jamais foi capaz de falar japonês, mesmo passavelmente?

- Não, não o único, embora seja o melhor que eu já conheci. Sim, é difícil para eles. Mas o Anjin-san é um homem inteligente e o Senhor Toranaga disse que, em meio ano, isolado dos bárbaros, comendo a nossa comida, vivendo como nós, tomando chá, tomando banho todos os dias, o Anjin-san logo será como um de nós.

O rosto de Fujiko enrijecera.

- Olhe para ele, Marikosan... tão feio. Tão monstruoso e estranho. Curioso pensar que apesar do muito que detesto os bárbaros, assim que ele atravessar o portão estou comprometida e ele se torna meu senhor e amo.

- Ele é corajoso, muito corajoso, Fujiko. Salvou a vida do Senhor Toranaga e é muito valioso para ele.

- Sim, eu sei, e isso deveria fazer com que eu desgostasse menos dele, mas sinto muito, não faz. Ainda assim, tentarei com todas as minhas forças transformá-lo num de nós. Rezo para que Buda me ajude.

Mariko quisera perguntar à sobrinha o motivo da súbita mudança. Por que estava tão preparada para servir o Anjin-san e obedecer ao Senhor Toranaga tão absolutamente, quando naquela manhã mesma se recusou a obedecer-lhe, jurou matar-se sem permissão ou matar o bárbaro no momento em que ele adormecesse? O que foi que o Senhor Toranaga disse para mudála, Fujiko?

Mas Mariko sabia que não devia perguntar, Toranaga não lhe confidenciara o motivo. Fujiko não lhe contaria. A garota fora bem educada pela mãe, irmã de Buntaro, que fora educada pelo pai, Hiromatsu.

Pergunto a mim mesma se o Senhor Hiromatsu escapará do Castelo de Osaka, pensou Mariko, que gostava muito do velho general, seu sogro. E Kiri-san e a Senhora Sazuko? Onde estará Buntaro, meu marido? Onde terá sido capturado? Ou será que teve tempo para morrer?

Mariko observou Fujiko servir a última dose de saquê. Essa xícara também foi consumida como as outras, sem expressão.

- Dozo. Saquê - disse Blackthorne. Mais saquê foi trazido. E terminado. - Dozo, saquê.

- Mariko-san - disse Fujiko -, o amo não devia beber mais, neh? Vai ficar bêbado. Por favor, perguntê-lhe se gostaria de tomar banho agora. Mandarei buscar Suwo.

Mariko perguntou.

- Desculpe, ele disse que tomará banho mais tarde.

Pacientemente Fujiko mandou servir mais saquê e Mariko acrescentou, dirigindo-se à criada:

- Traga um pouco de peixe grelhado.

O novo frasco foi esvaziado com a mesma determinação silenciosa. A comida não o tentou, mas ele pegou um pedaço, ante a graciosa persuasão de Mariko. Não comeu. Trouxeram mais vinho, e mais dois frascos foram consumidos.

- Por favor, peça desculpas ao Anjin-san - disse Fujiko.

- Sinto muito, mas não há mais saquê na casa dele. Diga-lhe que peço desculpas por essa falta. Mandei a criada buscar mais na aldeia.

- Ótimo. Ele já bebeu mais que o suficiente, embora não pareça ter sido afetado em absoluto. Por que não nos deixa agora, Fujiko? Seria um bom momento para fazer o oferecimento formal em seu nome.

Fujiko curvou-se para Blackthorne e saiu, contente com o costume que decretava que os assuntos importantes deviam sempre ser tratados por uma terceira pessoa, em particular. Assim a dignidade podia sempre ser preservada, por ambas as partes.

Mariko explicou a Blackthorne sobre o vinho.

- Quanto tempo vai levar para trazerem mais?

- Não muito. Talvez o senhor gostasse de tomar um banho agora. Providenciarei para que o saquê lhe seja enviado assim que chegar.

- Toranaga disse alguma coisa sobre o meu plano antes de partir? Sobre a marinha?

- Não. Sinto muito, ele não disse nada sobre isso. - Mariko estivera atenta aos sinais reveladores de embriaguez, mas para sua surpresa, nenhum aparecera, nem um leve rubor, ou palavras se enrolando. Com aquela quantidade de vinho, consumida tão depressa, qualquer japonês estaria bêbado. - O vinho não é do seu agrado, Anjin-san?

- Não, de fato. É fraco demais. Não me dá nada.

- Procura esquecimento?

- Não... uma solução.

- Qualquer coisa que possa ser feita para ajudá-lo será feita.

- Preciso de livros, papel e penas.

- Amanhã começarei a reuni-los para o senhor.

- Não, esta noite, Mariko-san. Preciso começar agora.

- O Senhor Toranaga disse que lhe mandaria um livro... como foi que o senhor chamou?... livros de gramática e livros de palavras dos santos padres.

- Quanto tempo isso vai levar?

- Não sei. Mas estou aqui por três dias. Talvez isso possa servir-lhe de auxílio. E Fujiko-san também está aqui para ajudar. - Ela sorriu, feliz por ele. - Estou honrada em lhe dizer que ela foi dada ao senhor como consorte e...

- O quê?

- O Senhor Toranaga perguntou a ela se seria sua consorte, ela disse que ficaria honrada e concordou. Ela...

- Mas eu não concordei.

- Por favor? Desculpe, não compreendo.

- Não a quero. Nem como consorte nem à minha volta. Acho-a feia.

Mariko olhou-o embasbacada.

- Mas o que isso tem a ver com consorte?

- Diga-lhe que vá embora.

- Mas, Anjin-san, não pode recusá-la! Isso seria um terrível insulto ao Senhor Toranaga, a ela, a todo mundo! Que mal ela lhe fez? Nenhum absolutamente! Usagi Fujiko é...

- Escute aqui! - As palavras de Blackthorne ricochetearam em torno da varanda e da casa. - Diga a ela que vá embora!

Mariko disse imediatamente:

- Sinto muito, Anjin-san. sim, o senhor tem razão de estar zangado. Mas...

- Não estou zangado - disse Blackthorne friamente. - Será que vocês... será que vocês não conseguem enfiar na cabeça que estou cansado de ser um fantoche? Não quero essa mulher por perto, quero o meu navio de volta, a minha tripulação, e isso é tudo! Não vou ficar aqui seis meses e detesto os seus costumes. É absolutamente terrível que um homem possa ameaçar arrasar uma aldeia inteira, só para que me ensinem japonês, e quanto a consortes, isso é pior do que escravidão, e é um maldito insulto arranjar isso sem me consultar antes!

Qual é o problema agora? estava se perguntando Mariko, desesperada. O que a feiúra tem a ver com consorte? E de qualquer modo Fujiko não é feia. Como é que ele pode ser tão incompreensivo? Então se lembrou da advertência de Toranaga:

- Mariko-san, você é pessoalmente responsável, primeiro por que Yabu-san não interfira na minha partida depois de eu lhe dar a minha espada, e, segundo, é totalmente responsável por que o Anjin-san se instale docilmente em Anjiro.

- Farei o melhor possível, senhor. Mas receio que o Anjin-san me desconcerte.

- Trate-o como a um gavião. É essa a chave. Eu amanso um gavião em dois dias. Você tem três.

Ela desviou os olhos de Blackthorne e pôs o cérebro a funcionar. Ele realmente parece um gavião quando está furioso, pensou ela. Tem o mesmo guincho, a mesma ferocidade irracional, e quando não está furioso, o mesmo olhar fixo, altivo, o mesmo egoísmo total, com uma malignidade explosiva nunca muito distante.

- Concordo. O senhor tem toda a razão. Agiram de modo terrível com o senhor, fazendo-lhe uma imposição, e tem toda a razão de estar zangado - disse ela, apaziguadora. - Sim, e certamente o Senhor Toranaga deveria ter-lhe perguntado, ainda que não compreenda os seus costumes. Mas nunca ocorreu a ele que o senhor faria objeções. Só tentou honrá-lo como faria com seu samurai favorito. Ele o fez hatamoto, o que é quase como um parente, Anjin-san. Há apenas cerca de mil hatamotos em todo o Kwanto. E quanto à Senhora Fujiko, ele só estava tentando aju¬dá-lo. A Senhora Usagi Fujiko seria considerada... entre nós, Anjin-san, isso seria considerado uma grande honra.

- Por quê?

- Porque a linhagem dela é antiga e ela é muito educada. Seu pai e seu avô são daimios. Claro que é uma samurai, e claro - acrescentou Mariko delicadamente - que o senhor a honraria aceitando-a. E ela precisa de fato de um lar e de uma nova vida.

- Por quê?

- Enviuvou recentemente. Tem apenas dezenove anos, Anjin-san, pobre garota, mas perdeu o marido e o filho, e está cheia de remorso. Ser sua consorte formal daria a ela uma nova vida.

- O que aconteceu ao marido e ao filho?

Mariko hesitou, importunada pela descortês objetividade de Blackthorne. Mas já conhecia o bastante sobre ele para compreender que isso era costume dele e não significava falta de educação.

- Foram condenados à morte, Anjin-san. Enquanto o senhor estiver aqui, necessitará de alguém que cuide da sua casa. A Senhora Fujiko será...

- Por que os condenaram à morte?

- O marido dela quase causou a morte do Senhor Toranaga. Por favor...

- Toranaga ordenou a morte deles?

- Sim. Mas agiu corretamente. Pergunte a ela, ela concordará, Anjin-san.

- Que idade tinha a criança?

- Alguns meses, Anjin-san.

- Toranaga condenou um recém-nascido à morte, por alguma coisa que o pai fez?

- Sim.   É o nosso costume.   Por favor,   tenha   paciência conosco. Em algumas coisas não somos livres. Nossos costumes são diferentes dos seus. Veja, por lei pertencemos ao nosso suserano. Por lei um pai é senhor da vida dos filhos, da esposa, das consortes e dos criados. Por lei a vida dele pertence ao seu suserano. É o nosso costume.

- Então um pai pode matar qualquer um na sua casa?

- Sim.

- Então vocês são uma nação de assassinos.

- Não.

- Mas o seu costume desculpa o assassínio. Pensei que a senhora fosse cristã.

- Eu sou, Anjin-san.

- E os dez mandamentos?

- Não consigo explicar, realmente. Mas sou cristã, samurai e japonesa, e não são coisas contrárias umas às outras. Para mim não são. Por favor, seja paciente comigo e conosco. Por favor.

- A senhora mataria seus filhos se Toranaga ordenasse?

- Sim. Tenho apenas um filho, mas sim, creio que o faria. Certamente seria meu dever fazer isso. Essa é a lei... se o meu marido concordasse.

- Espero que Deus possa perdoar-lhe. A todos vocês.

- Deus compreende, Anjin-san. Oh, ele compreenderá. Talvez ele lhe abra a mente, de modo que o senhor possa compreender. Sinto muito, não sei explicar muito bem, neh? Peço desculpas pela minha falha. - Ela o observou em meio ao silêncio, confusa.

- Também não o compreendo, Anjin-san. O senhor me desconcerta. Seus costumes me desconcertam. Talvez se fôssemos ambos pacientes, poderíamos ambos aprender. A Senhora Fujiko, por exemplo. Como consorte, cuidará da sua casa e dos seus criados. E das suas necessidades - qualquer uma das suas necessidades. O senhor precisa ter alguém que faça isso. Ela providenciará o andamento da casa, tudo. O senhor não precisa "travesseirar" com ela, se isso o preocupa... se não a considerar atraente. Não precisa nem ser polido com ela, embora ela mereça polidez. Ela o servirá, como o senhor quiser, do modo que quiser.

- Posso tratá-la do modo que quiser?

- Sim.

- Posso "travesseirar" com ela ou não?

- Naturalmente. Ela encontrará alguém que o agrade, para satisfazer as suas necessidades físicas, se o senhor quiser, ou não interferirá.

- Posso tratá-la como a uma criada? Uma escrava?

- Sim. Mas ela merece coisa melhor do que isso.

- Posso mandá-la embora? Ordenar-lhe que se vá?

- Se ela o ofender, sim.

- O que aconteceria a ela?

- Normalmente retornaria à casa dos pais em desgraça, os quais poderiam ou não aceitá-la de volta. Alguém como a Senhora Fujiko preferiria matar-se a suportar essa vergonha. Mas ela... o senhor deve saber que os verdadeiros samurais não têm autorização para se matar sem a permissão do seu senhor. Alguns o fazem, claro, mas falham no seu dever e não são dignos de ser considerados samurais. Eu não me mataria, fosse qual fosse a vergonha, não sem a permissão do Senhor Toranaga, ou do meu marido. O Senhor Toranaga proibiu-a de pôr fim à vida. Se o senhor a mandar embora, ela se tornará uma pária.

- Por quê? Por que a família não a aceitaria de volta?

Mariko suspirou.

- Desculpe, Anjin-san, mas se o senhor a mandar embora, sua desgraça será tamanha, que ninguém a aceitará.

- Por estar contaminada? Por ter estado perto de um bárbaro?

- Oh, não, Anjin-san, só porque ela terá falhado no seu dever para com o senhor - disse Mariko imediatamente. - Ela é sua consorte agora... o Senhor Toranaga ordenou e ela concordou. O senhor é o amo da casa agora.

- Sou?

- Oh, sim, acredite-me, Anjin-san, o senhor tem privilégios. E na condição de hatamoto está abençoado. E bem de vida. O senhor Toranaga concedeu-lhe um salário de vinte kokus por mês. Por essa quantia, um samurai normalmente teria que se pôr à disposição do seu senhor, e fornecer-lhe mais dois samurais, armados, alimentados e montados o ano todo, e naturalmente pagar pela família deles também. Mas o senhor não tem que fazer isso. Rogo-lhe, considere Fujiko como uma pessoa, Anjin-san. Imploro-lhe que tenha caridade cristã. Ela é uma boa mulher. Perdoe-lhe a feiúra. Ela será uma consorte digna.

- Ela não tem lar?

- Sim. Este é o seu lar. - Mariko se conteve. – Imploro-lhe que a aceite formalmente. Ela pode ajudá-lo enormemente, ensinar-lhe; se o senhor precisar aprender. Se preferir, pense nela como em nada - como nesta coluna de madeira, ou a tela shoji, ou como numa pedra do seu jardim - o que quiser, mas permita-lhe que fique. Se não a quiser como consorte, seja piedoso. Aceite-a e depois, como cabeça da casa, de acordo com a nossa lei, mate-a.

- É a única resposta que a senhora tem, não? Matar!

- Não, Anjin-san. Mas a vida e a morte são a mesma coisa. Quem sabe, talvez o senhor preste à Senhora Fujiko um serviço muito maior tirando-lhe a vida. É um direito seu, agora, diante de todas as leis. Um direito seu. Se preferir torná-la uma pária, isso também é direito seu.

- Portanto estou novamente em uma armadilha – disse Blackthorne. - De um modo ou de outro ela morre. Se eu não aprender a sua língua, uma aldeia inteira será massacrada. Para qualquer coisa que vocês desejem que eu faça, um inocente é sempre morto. Não há como escapar disso.

- Há uma solução muito fácil, Anjin-san. Morra. O senhor não tem que suportar o insuportável.

- Suicídio é loucura ... e pecado mortal. Pensei que a senhora fosse cristã.

- Eu disse que sou. Mas para o senhor, Anjin-san, há muitos meios de morrer honrosamente sem se suicidar. Zombou do meu marido por não querer morrer lutando, neh? Não é um costume nosso, mas aparentemente é um costume seu. Então, por que não faz isso? O senhor tem uma pistola. Mate o Senhor Yabu. O senhor o considera um monstro, neh? Tente pelo menos matá-lo o     ainda hoje estará no paraíso ou no inferno.

Ele a olhou, detestando os seus modos serenos, vendo-lhe a amabilidade através do seu ódio.

- É sinal de fraqueza morrer assim, por nenhuma razão. Estupidez é uma palavra melhor.

- O senhor diz que é cristão. Portanto acredita no Jesus menino - em Deus - e no paraíso. A morte não deveria assustá-lo. E quanto a "nenhuma razão", depende do senhor julgar o valor ou o não-valor. O senhor pode ter motivos suficientes para morrer.

- Estou em seu poder. A senhora sabe disso. E eu também.

Mariko inclinou-se e tocou-o, compadecida.

- Anjin-san, esqueça a aldeia. Um milhão de coisas podem acontecer antes que os seis meses se passem. Um macaréu, um terremoto, ou o senhor recuperar o seu navio e partir, ou a morte de Yabu, ou a morte de todos nós, ou quem sabe? Deixe os problemas de Deus a Deus, o karma ao karma. Hoje o senhor está aqui e nada que faça mudará isso. Hoje está vivo, aqui, honrado, e abençoado pela boa fortuna. Olhe esse pôr-do-sol, é lindo, neh? Esse pôr-do-sol existe. O amanhã não existe. Só existe o agora. Por favor, olhe. É tão lindo e nunca mais vai acontecer de novo, nunca, não este pôrdo-sol, nunca, em toda a infinidade. Perca-se nele, faça-se um com a natureza e não se preocupe com karma, o seu, o meu, ou o da aldeia.

Ele se percebeu seduzido pela serenidade dela, e pelas palavras. Olhou para oeste. Grandes manchas de vermelho-púrpura e preto se espalhavam pelo céu. Apreciou o sol até que desaparecesse.

- Gostaria que a senhora pudesse ser consorte - disse ele.

- Pertenço ao Senhor Buntaro e até que ele morra não posso pensar nem dizer o que poderia ser pensado ou dito.

Karma, pensou Blackthorne.

Você aceita o karma? O meu? O dela? O deles?

A noite está linda.

Ela também, e pertence a outro.

Sim, ela é linda. E muito sábia. Deixe os problemas de Deus a Deus e karma ao karma. Você veio até aqui sem ser convidado. Está aqui. Está em poder deles.

Mas qual é a resposta?

A resposta virá, disse-se ele. Porque existe um Deus no paraíso, um Deus em algum lugar.

Ouviu o ruído de passos. Alguns archotes aproximavam-se colina acima. Vinte samurais, Omi à frente deles.

 

- Desculpe, Anjin-san, mas Omi-san ordena que o senhor lhe entregue as pistolas.

- Diga-lhe que vá para o inferno!

- Não posso, Anjin-san. Não me atrevo.

Blackthorne mantinha uma mão frouxamente sobre a coronha da pistola, de olhos em Omi. Deliberadamente permanecera nos degraus da varanda. Havia dez samurais no jardim, atrás de Omi, e os demais perto do palanquim à espera. Logo que Omi entrara sem ser convidado, Fujiko saíra do interior da casa e agora se erguia ali na varanda, pálida, atrás de Blackthorne.

- O Senhor Toranaga nunca se opôs e estive armado durante dias, perto dele e de Yabu-san.

- Sim, Anjin-san - disse Mariko, nervosamente -, mas por favor compreenda, o que Omi-san diz é verdade. É costume nosso não se ir à presença de um daimio com armas. Não há nada que te... nada com que se preocupar. Yabu-san é seu amigo. O senhor é hóspede dele aqui.

- Diga a Omi-san que não lhe darei as minhas armas. - Depois, permanecendo ela em silêncio, Blackthorne perdeu a calma e balançou a cabeça. - Iyé, Omi-san! Wakarimasu ka? Iyé!

O rosto de Omi se contraiu. Rispidamente, deu uma ordem.

Dois samurais avançaram. Blackthorne sacou as armas. Os samurais pararam. As duas pistolas apontavam diretamente para o rosto de Omi.

- Iyé! - disse Blackthorne. Depois, a Mariko: - Diga-lhe que os mande recuar ou eu aperto os gatilhos.

Ela fez isso. Ninguém se moveu. Lentamente Blackthorne se levantou, as pistolas sempre apontadas para o alvo. Omi estava absolutamente calmo, sem medo, os olhos seguindo os movimentos felinos de Blackthorne.

- Por favor, Anjin-san. Isso é muito perigoso. O senhor tem que ver o Senhor Yabu. Não pode ir com as pistolas. É um hatamoto, está protegido e também é um hóspede do Senhor Yabu.

- Diga a Omi-san que se ele ou qualquer um dos seus homens vier até dez passos de mim, estouro-lhe a cabeça.

- Omi-san disse polidamente: "Pela última vez, ordeno-lhe que entregue as armas. Agora".

- Iyé.

- Por que não deixá-las aqui, Anjin-san? Não há nada que temer. Ninguém tocará...

- Acha que eu sou algum imbecil?

- Então entregue-as a Fujiko-san!

- O que ela pode fazer? Ele as tirará dela, qualquer um as tirará, depois estou indefeso.

A voz de Mariko se aguçou.

- Por que não ouve, Anjin-san? Fujiko-san é sua consorte. Se o senhor lhe ordenar, ela protegerá as armas com a própria vida. É dever dela. Não vou lhe repetir isto nunca mais, mas Toda-noh-Usagi Fujiko é samurai.

Mariko traduziu isso. Omi ouviu sem expressão, depois respondeu brevemente, olhando para o cano das armas firmemente apontadas.

- Ele disse: "Eu, Kasigi Omi, lhe pediria que entregasse as pistolas e lhe pediria que viesse comigo porque Kasigi Yabu-sama ordena que o senhor se apresente a ele. Mas Kasigi Yabu-sama ordena-me que lhe ordene que entregue as armas. Sinto muito, Anjin-san, pela última vez ordeno-lhe que as entregue".

Blackthorne sentia o peito oprimido. Sabia que seria atacado e estava furioso com a própria estupidez. Mas chega um momento em que não se agüenta mais, daí se saca uma pistola ou uma faca, e então corre sangue devido a um orgulho estúpido. Na maioria das vezes estúpido. Se tenho que morrer, Omi morrerá primeiro, por Deus!

Sentia-se muito forte, embora um tanto tolo. Então o que Mariko dissera começou a ressoar-lhe nos ouvidos: "Fujiko é samurai, é sua consorte!" E o cérebro começou a funcionar.

- Um instante! Mariko-san, por favor diga a Fujiko-san exatamente isto: "Vou lhe entregar as minhas pistolas. Você deve guardá-las. Ninguém além de mim deve tocá-las".

Mariko fez o que ele lhe pediu e, pelas costas, ele ouviu Fujiko dizer:

- Hai.

- Wakarimasu ka, Fujiko-san? — perguntou ele.

- Wakarimasu, Anjin-san - respondeu ela, numa voz fina e nervosa.

- Mariko-san, por favor, diga a Omi-san que irei com ele agora. Sinto muito que tenha havido um mal-entendido. Sim, sinto muito que tenha havido um mal-entendido.

Blackthorne recuou e voltou-se. Fujiko aceitou as armas, a testa úmida de suor. Ele encarou Omi e rezou para estar certo.

- Vamos agora?

Omi falou a Fujiko e estendeu a mão. Ela meneou a cabeça.

Ele deu uma ordem curta. Os dois samurais começaram a avançar. Imediatamente ela empurrou uma pistola para dentro do sash, segurou a outra com as duas mãos, esticou o braço e mirou Omi.

O gatilho recuou ligeiramente e a alavanca da agulha moveu-se.

- Ugoku na! - disse ela. - Dozo!

Os samurais obedeceram. Pararam.

Omi falou rápida e furiosamente, ela ouviu e quando respondeu sua voz soou suave e polida, mas a pistola continuou mirando-lhe o rosto, parcialmente engatilhada agora, e concluiu:

- Iyé, gomen nasai, Omi-san! Não, sinto muito, Omi-san.

Blackthorne esperava.

Um samurai moveu-se uma fração. O gatilho recuou perigosamente, quase até a extremidade do arco. O braço permanecia firme.

- Ugoku na! - ordenou ela.

Ninguém duvidava de que ela puxaria o gatilho. Nem Blackthorne. Omi disse bruscamente alguma coisa a ela e aos seus homens. Eles recuaram. Ela baixou a pistola, mas conservou-a preparada.

- O que ele disse? - perguntou Blackthorne.

- Apenas que relataria o incidente a Yabu-san.

- Ótimo. Diga-lhe que farei o mesmo. - Blackthorne voltou-se para ela. - Domo, Fujiko-san. - Depois, lembrando-se do modo como Toranaga e Yabu conversavam com mulheres, grunhiu imperiosamente para Mariko. - Vamos, Mariko-san... ikamasho! - Começou a se dirigir para o portão.

- Anjin-san! - chamou Fujiko.

- Hai? - Blackthorne parou. Fujiko curvou-se e falou rapidamente com Mariko.

Os olhos de Mariko arregalaram-se, depois ela assentiu e respondeu, e falou com Omi, que assentiu também, visivelmente furioso, mas contendo-se.

- O que está acontecendo?

- Por favor, tenha paciência, Anjin-san.

Fujiko chamou e houve uma resposta do interior da casa. Uma criada surgiu na varanda. Nas mãos trazia duas espadas. Espadas de samurai.

Fujiko pegou-as reverentemente, ofereceu-as a Blackthorne com uma curvatura, falando suavemente.

- Sua consorte assinala - disse Mariko - que um hatamoto, naturalmente, é obrigado a usar as duas espadas dos samurais. Mais que isso, é seu dever fazer isso. Ela acredita que não seria correto que o senhor comparecesse à presença do Senhor Yabu sem espadas - que isso seria impolido. Pela nossa lei, é um dever portar as espadas. Ela pergunta se o senhor levaria em conta a possibilidade de usar estas, embora sejam indignas, até comprar as suas.

Blackthorne olhou para ela, depois para Fujiko, e novamente para Mariko.

- Isso significa que sou samurai? Que o Senhor Toranaga me fez samurai?

- Não sei, Anjin-san. Mas nunca houve um hatamoto que não fosse samurai. Nunca. - Mariko voltou-se e interrogou Omi.

Impaciente, este meneou a cabeça e respondeu.

- Omi-san também não sabe. Mas com certeza é privilégio especial de um hatamoto usar espadas o tempo todo, mesmo na presença do Senhor Toranaga. É dever dele porque é um guarda-costas absolutamente digno de confiança. Além disso, um hatamoto também tem o direito de audiência imediata com um senhor.

Blackthorne pegou a espada curta é enfiou-a no cinto, depois a outra, a comprida, a espada mortífera, exatamente conforme Omi a estava usando. Armado, sentiu-se melhor.

- Arigato goziemashita, Fujiko-san - disse calmamente.

Ela baixou os olhos e respondeu com suavidade. Mariko traduziu.

- Fujiko-san diz, com a sua permissão, já que o senhor deve aprender a nossa língua correta e rapidamente, ela humildemente chama a sua atenção para o fato de que, para um homem, "domo" é mais que suficiente. "Arigato", com ou sem "goziemashita", é uma polidez desnecessária, uma expressão que apenas as mulheres usam.

- Hai. Domo. Wakarimasu, Fujiko-san. – Blackthorne olhou para ela diretamente pela primeira vez. Viu-lhe a transpiração na testa e o brilho nas mãos. Os olhos estreitos, o rosto quadrado e os dentes pontudos. - Por favor, diga à minha consorte que neste caso não considero "arigato goziemashita" uma polidez desnecessária.

 

Yabu relanceou os olhos para as espadas novamente. Blackthorne estava sentado de pernas cruzadas sobre uma almofada à sua frente, no lugar de honra, com Mariko ao lado dele e Igurashi ao seu.

Encontravam-se na sala principal da fortaleza.

Omi acabou de falar. Yabu deu de ombros.

- Você lidou pessimamente com a situação, sobrinho. Claro que é dever da consorte proteger o Anjin-san e a propriedade dele. Claro que ele tem o direito de usar espadas agora. Sim, você agiu muito mal. Deixei claro que o Anjin-san é meu hóspede honrado aqui. Peça-lhe desculpas.

Imediatamente Omi se levantou, ajoelhou-se diante de Blackthorne e curvou-se.

- Peço desculpas pelo meu erro, Anjin-san. - Ouviu Mariko dizer que o bárbaro aceitava as desculpas. Curvou-se de novo, calmamente dirigiu-se para o seu lugar e sentou-se. Mas por dentro não estava calmo. Sentia-se agora totalmente consumido por uma idéia: matar Yabu.

Resolvera fazer o impensável: matar seu suserano e cabeça do seu clã.

Mas não porque fora obrigado a pedir desculpas publicamente ao bárbaro. Nisso Yabu tivera razão. Omi sabia que fora desnecessariamente inepto, pois embora Yabu tivesse estupidamente lhe ordenado que tomasse as pistolas naquela noite, sabia que devia ter dado um jeito de deixá-las na casa, para serem roubadas ou quebradas mais tarde.

E o Anjin-san agira com toda a correção ao dar as pistolas à consorte, disse ele a si mesmo, assim como ela fora correta ao fazer o que fizera. E ela com certeza teria puxado o gatilho. Não era segredo que Usagi Fujiko buscava a morte, nem por que a buscava. Omi sabia, também, que se não fosse pela decisão que tomara aquela manhã, de matar Yabu, teria avançado para a morte e depois seus homens teriam arrancado as pistolas a ela. Ele teria morrido nobremente, assim como ela, e homens e mulheres relatariam o trágico episódio durante gerações. Canções, poemas, e até uma peça no, todas muito inspiradas, trágicas, magníficas, sobre eles três: a fiel consorte e o fiel samurai que morreram pelo dever, por causa do inacreditável bárbaro que viera do mar oriental.

Não, a decisão de Omi não tinha nada que ver com aquele pedido de desculpas em público, embora a injustiça se juntasse ao ódio que agora o obcecava. A razão principal era que naquele dia Yabu insultara publicamente a mãe e a esposa de Omi diante de camponeses, mantendo-as à espera durante horas ao sol, como camponesas, e depois as dispensara sem agradecer-lhes, como camponesas.

- Não tem importância, meu filho - dissera a mãe. - É privilégio dele.

- Ele é o nosso suserano - dissera Midori, a esposa, as lágrimas de vergonha escorrendo-lhe pelas faces. - Por favor, desculpe-o.

- E ele não convidou nenhuma de vocês duas para saudá-lo, e aos oficiais, na fortaleza - continuara Omi. - Depois de toda a comida que vocês prepararam! Só a comida e o saquê custaram um koku!

- É nosso dever, meu filho. É nosso dever fazer qualquer coisa que o Senhor Yabu deseje.

- E a ordem relativa ao Pai?

- Ainda não é uma ordem. É um rumor.

- A mensagem que o Pai enviou diz que ele ouviu dizer que Yabu vai mandá-lo raspar a cabeça e tornar-se sacerdote, ou rasgar o ventre. A esposa de Yabu está se vangloriando disso!

- Isso foi sussurrado a seu pai por um espião. Não se pode confiar sempre nos espiões. Sinto muito, meu filho, mas seu pai nem sempre é sábio.

- O que acontece à senhora, Mãe, se isso não for um rumor?

- Qualquer coisa que aconteça é karma. Você deve aceitar o karma.

- Não, estes insultos são insuportáveis.

- Por favor, meu filho, aceite-os.

- Dei a Yabu a chave para o navio, a chave para o Anjin-san e os novos bárbaros, e o modo de escapar à armadilha de Toranaga. Meu auxílio trouxe-lhe imenso prestígio. Com o presente simbólico da espada, ele agora é o primeiro depois de Toranaga nos exércitos do leste. E o que recebemos em troca? Insultos imundos.

- Aceite o seu karma.

- Você deve, marido, imploro-lhe, ouvir a senhora sua mãe.

- Não posso viver com essa vergonha. Tomarei vingança e depois me matarei, e essas humilhações serão apagadas.

- Pela última vez, meu filho, aceite o seu karma, rogo-lhe.

- Meu karma é destruir Yabu.

A velha dama suspirara.

- Muito bem. Você é um homem. Tem o direito de decidir. O que tem que ser, será. Mas a morte de Yabu em si mesma não é nada. Devemos planejar. O filho dele também deve ser eliminado, assim como Igurashi. Particularmente Igurashi. Depois o seu pai comandará o clã, como direito dele.

- Como fazemos isso, Mãe?

- Vamos planejar, você e eu. E seja paciente, neh? Depois devemos consultar o seu pai. Midori, até você pode dar conselhos, mas tente não ser inepta, neh?

- E o Senhor Toranaga? Deu a espada a Yabu.

- Acho que o Senhor Toranaga só quer Izu forte e um Estado vassalo. Não como aliado. Ele não deseja aliados mais do que o táicurn desejava. Yabu pensa que é aliado. Eu penso que Toranaga detesta aliados. Nosso clã prosperará se formos vassalos de Toranaga. Ou vassalos de Ishido! A quem escolheremos, hein? E como matá-los?

Orni lembrava-se da onda de alegria que o invadira no momento em que se tomara a decisão final.

Sentiu-a de novo agora. Mas seu rosto não demonstrou absolutamente nada enquanto chá e vinho eram servidos por criadas cuidadosamente selecionadas, trazidas de Mishima para Yabu. Ele observou Yabu, o Anjin-san, Mariko e Igurashi. Estavam todos à espera de que Yabu começasse.

A sala era ampla e arejada, grande o suficiente para que trinta oficiais jantassem, tomassem vinho e conversassem. Havia muitas outras salas e cozinhas para os guarda-costas e criados, e um jardim ladeando toda a construção, embora fosse tudo provisório. Fora construído do melhor modo possível, considerando o tempo de que dispunham, e era tudo facilmente defendível. O fato de o custo ser coberto pelo feudo aumentado de Omi não o incomodava em absoluto. Fora dever dele.

Olhou para a shoji aberta. Muitas sentinelas no adro. Um estábulo. A fortaleza era protegida por um fosso. A paliçada era construída de bambus gigantes, amarrados compactamente. Grandes pilares centrais suportavam o telhado de telhas. As paredes eram leves telas shojis corrediças, algumas vazadas como janelas, a maioria coberta de papel oleado, conforme o hábito. O soalho,de pranchas de madeira, estava fixado em estacaria erguida sobre terra batida, coberto com tatamis.

Por ordem de Yabu, Omi investigara quatro aldeias à procura de material para construir aquela e a outra casa, e Igurashi trouxera tatamis de qualidade, futons e coisas impossíveis de obter na aldeia.

Omi estava orgulhoso com o seu trabalho e com o acampamento para três mil samurais que fora aprontado no platô sobre a colina que guardava as estradas que levavam à aldeia e à praia. Agora a aldeia estava fechada e segura por terra. Por mar haveria sempre alarma em profusão para que um suserano pudesse escapar.

Mas não tenho suserano. A quem servirei agora? perguntava-se Omi. A Ikawa Jikkyu? Ou a Toranaga diretamente? Toranaga me daria o que quero em troca? Ou a Ishido? Ishido é tão difícil de atingir, neh? Mas tenho muito para contar a ele agora...

Naquela tarde Yabu convocara Igurashi, Omi e os quatro capitães, e pusera em andamento seu plano clandestino de treinamento para os quinhentos samurais atiradores. Igurashi devia ser o comandante. Omi lideraria uma das centenas. Combinaram como introduzir os homens de Toranaga nas unidades quando eles chegassem, e como esses forasteiros deveriam ser neutralizados se se comprovassem traiçoeiros.

Omi sugerira que outro quadro altamente secreto de mais três unidades, de cem samurais cada uma, fosse treinado no outro lado da península, como substitutos, como uma reserva, e como uma precaução contra uma manobra traiçoeira de Toranaga.

- Quem comandará os homens de Toranaga? Quem ele enviará como segundo em comando? - perguntara Igurashi.

- Não faz diferença - respondera Yabu. - Designarei os cinco oficiais assistentes dele, a quem será dada a responsabilidade de lhe rasgar a garganta, caso seja necessário. O código para matá-lo e a todos os forasteiros será "Ameixeira". Amanhã, Igurashi-san, você escolherá os homens. Aprovarei pessoalmente cada um deles e nenhum deve saber, ainda, toda a minha estratégia para o Regimento de Mosquetes.

Agora, enquanto olhava Yabu, Omi saboreava o recém-descoberto êxtase da vingança. Matar Yabu seria fácil, mas sua morte devia ser coordenada. Só então seu pai, ou seu irmão mais velho, seria capaz de assumir o controle do clã, e de Izu.

Yabu chegou ao ponto.

- Mariko-san, por favor, diga ao Anjin-san que quero que ele, amanhã, começe a ensinar os meus homens a atirar como bárbaros, e quero aprender tudo que há para saber sobre o modo como os bárbaros guerreiam.

- Mas, desculpe, as armas não chegarão antes de seis dias, Yabu-san - lembrou-lhe Mariko.

- Tenho quantidade suficiente entre meus homens para começar - replicou Yabu. - Quero que comece amanhã.

Mariko falou a Blackthorne.

- O que ele quer saber sobre a guerra? - perguntou este.

- Disse que tudo.

- O quê, em particular?

Mariko perguntou a Yabu.

- Yabu-san perguntou se o senhor já tomou parte em combates terrestres.

- Sim. Na Neerlândia. Um na França.

- Yabu-san disse que isso é excelente. Ele quer conhecer a estratégia européia. Quer saber como as batalhas são travadas nas suas terras. Em detalhes.

Blackthorne pensou um instante. Depois disse:

- Diga a Yabu-san que posso treinar qualquer quantidade de homens para ele e sei exatamente o que ele quer saber. - Ele aprendera muito com Frei Domingo sobre o modo como os japoneses guerreavam. O frade era um perito e tinha um interesse vital por eles. - Afinal, señor - dissera o velho -, esse conhecimento é essencial, não é, saber como os pagãos guerreiam? Todo padre tem que proteger o seu rebanho. E os nossos gloriosos conquistadores não são a abençoada ponta de lança da Madre Igreja? E não estive com eles na frente de combate no Novo Mundo e nas Filipinas, e não os estudo há mais de vinte anos? Conheço a guerra, señor, conheço a guerra. Foi o meu dever, a vontade de Deus, conhecer a guerra. Talvez Deus o tenha enviado a mim para que eu o ensine, no caso de eu morrer. Ouça, o meu rebanho aqui nesta cela foram os meus professores sobre a arte bélica japonesa, señor. Portanto agora sei como os exércitos deles lutam e como vencelos. Como poderiam vencer-nos. Lembre-se, señor, de que lhe revelo um segredo pela sua alma: nunca junte a ferocidade japonesa às armas modernas e aos métodos modernos. Ou, em terra, eles nos destruirão.

Blackthorne encomendou-se a Deus. E começou.

- Diga ao Senhor Yabu que posso auxiliá-lo muitíssimo. E ao Senhor Toranaga. Posso tornar os seus exércitos imbatíveis.

- O Senhor Yabu diz que se a sua informação se comprovar útil, Anjin-san, ele aumentará o salário que o Senhor Toranaga lhe concedeu de duzentos e quarenta kokus para quinhentos kokus após um mês.

- Agradeça-lhe. Mas diga que, se faço tudo isso por ele, solicito um favor em troca: quero que ele revogue a sentença que pesa sobre a aldeia, e quero meu navio e minha tripulação de volta em cinco meses.

- Anjin-san - disse Mariko -, não pode negociar com ele, como um mercador.

- Por favor, peça-lhe. Como um humilde favor. De um hóspede de honra e agradecido futuro vassalo.

Yabu franziu o cenho e respondeu longamente.

- Yabu-san diz que a aldeia não tem importância. Os aldeões precisam de um fogo sob o traseiro para que façam qualquer coisa. O senhor não deve se preocupar com eles. Quanto ao navio, trata-se de um assunto do Senhor Toranaga. Ele tem certeza de que o senhor o recuperará muito em breve. Pediu-me que fizesse a sua solicitação ao Senhor Toranaga assim que eu chegar a Yedo. Farei isso, Anjin-san.

- Por favor, peça desculpas ao Senhor Yabu, mas preciso pedir a ele que revogue a sentença. Esta noite.

- Ele já disse que não, Anjin-san. Não seria bem-educado.

- Sim, compreendo. Mas por favor, peça-lhe de novo. É muito importante para mim... uma súplica.

- Ele diz que o senhor deve ter paciência. Não se preocupe com aldeões.

Blackthorne assentiu. Depois decidiu-se.

- Obrigado. Compreendo. Sim. Por favor agradeça ao Senhor Yabu, mas diga-lhe que não posso viver com essa vergonha.

Mariko empalideceu.

- O quê?

- Não posso viver com a vergonha de ter a aldeia na minha consciência. Estou desonrado. Não posso suportar isso. É contra a minha crença cristã. Terei que cometer suicídio imediatamente.

- Suicídio?

- Sim. Foi isso o que resolvi fazer.

Yabu interrompeu.

- Nan ja, Mariko-san?

Hesitante ela traduziu o que Blackthorne dissera. Yabu interrogou-a e ela respondeu. Depois Yabu disse:

- Não fosse pela sua reação, isto seria uma piada, Mariko-san. Por que está tão preocupada? Por que acha que ele fala a sério?

- Não sei, senhor. Ele parece... Não sei. . . - A voz dela foi sumindo aos poucos.

- Omi-san?

- O suicídio é contra todas as crenças cristãs, senhor. Eles nunca se suicidam como nós. Como um samurai faria.

- Mariko-san, você é cristã. Isso é verdade?

- Sim, senhor. Suicídio é pecado mortal, contra a palavra de Deus.

- Igurashi-san? O que pensa?

- É um blefe. Ele não é cristão. Lembra-se do primeiro dia? Lembra-se do que ele fez ao padre? E o que permitiu que Omi-san lhe fizesse para salvar o rapaz?

Yabu sorriu, recordando aquele dia e a noite que o seguira.

- Sim. Concordo. Ele não é cristão, Mariko-san.

- Desculpe, mas não entendo, senhor. O que houve com o padre?

Yabu contou-lhe o que acontecera no primeiro dia, entre Blackthorne e o padre.

- Ele profanou uma cruz? - disse ela, visivelmente chocada.

- E atirou os pedaços ao pó - acrescentou Igurashi. - É um blefe, senhor. Se essa história com a aldeia o desonra, como é que pode ficar aqui quando Omi o desonrou tanto, urinando-lhe em cima?

- O quê? Desculpe, senhor - disse Mariko -, mas não compreendo de novo.

Yabu disse a Omi:

- Explique a ela.

Omi obedeceu. Ela ficou enojada com o que ouviu, mas não demonstrou.

- Depois, o Anjin-san ficou completamente amedrontado, Mariko-san - concluiu Omi. - Sem armas ele ficará sempre amedrontado.

Yabu tomou um gole de saquê.

- Diga isto a ele, Marikosan: suicídio não é um costume bárbaro. É contra o Deus cristão dele. Portanto como é que ele pode se suicidar?

Mariko traduziu. Yabu observou atentamente quando Blackthorne respondeu.

- O Anjin-san pede desculpas com grande humildade, mas diz que, seja costume ou não, Deus ou não, essa vergonha da aldeia é grande demais para suportar. Diz que... que está no Japão, é hatamoto e tem o direito de viver de acordo com as nossas leis. - As mãos dela tremiam. - Foi isso o que ele disse, Yabu-san. O direito de viver conforme os nossos costumes... a nossa lei.

- Bárbaros não têm direitos.

- O Senhor Toranaga o fez hatamoto - disse ela. - Isso lhe dá o direito, neh?

Uma brisa tocou as shojis, chocalhando-as.

- Como poderia ele cometer suicídio? Hein? Pergunte-lhe.

Blackthorne sacou a espada afiada, a ponta aguda como agulha, e pousou-a suavemente sobre o tatami, a ponta voltada para ele.

- É um blefe! - disse Igurashi. - Quem já ouviu falar de um bárbaro que agisse como pessoa civilizada?

Yabu franziu o cenho, o coração diminuindo a velocidade.

- Ele é um bravo homem, Igurashi-san. Não há dúvida sobre isso. E estranho. Mas isto? - Yabu queria assistir ao ato, testemunhar a fibra do bárbaro, ver como ele se encaminharia para a morte, experimentar com ele o êxtase da ida. Com um esforço, deteve a maré ascendente do seu próprio prazer. - O que aconselha, Omi-san? - perguntou guturalmente.

- O senhor disse à aldeia: "Se o Anjin-san não aprender satisfatoriamente". Aconselho-o a fazer uma leve concessão. Diga-lhe que tudo o que tiver aprendido dentro de cinco meses será "satisfatório", mas em troca ele deve jurar pelo seu Deus não revelar isso à aldeia.

- Mas ele não é cristão. Como esse juramento o comprometerá?

- Acredito que ele seja um tipo de cristão, senhor. É contra os Hábitos Negros e é isso o que importa. Acredito que um juramento pelo seu próprio Deus será um compromisso. E também deve jurar, em nome desse Deus, que se empenhará em aprender e se colocará totalmente ao seu serviço. Como é inteligente, aprenderá muitíssimo em cinco meses. Assim a sua honra ficará poupada e a dele - exista ou não - também. O senhor não perde nada, ganha tudo. É muito importante que o senhor lhe ganhe a dedicação por livre vontade dele.

- Acredita que ele se matará?

- Sim.

- Mariko-san?

- Não sei, Yabu-san. Desculpe, não posso aconselhá-lo. Algumas horas atrás eu teria dito que não, ele não se suicidará. Agora não sei. Ele... desde que Omi-san foi buscá-lo, ele ficou... diferente.

- Igurashi-san?

- Se o senhor ceder agora e isso for um blefe, ele usará o mesmo truque o tempo todo. Ele é astucioso como um kami raposa, todos vimos quão astucioso, neh? O senhor terá que dizer não um dia. Aconselho-o a dizer agora. É um blefe.

Omi inclinou-se para a frente e meneou a cabeça.

- Senhor, por favor, desculpe-me, mas devo repetir que se disser "não" arrisca-se a uma grande perda. Se for um blefe - e pode muito bem ser -, então, como homem orgulhoso que é, ele ficará cheio de ódio com a humilhação posterior e não o ajudará até o limite de suas forças, coisa de que o senhor necessita. Ele pediu uma coisa na qualidade de hatamoto, o que tem o direito de fazer, diz que quer viver de acordo com os nossos hábitos, de livre vontade. Isso não é um enorme passo à frente, senhor? É maravilhoso para o senhor, e para ele. Aconselho cautela. Use-o para proveito seu.

- É o que pretendo - disse Yabu, com a voz abafada.

- Sim, ele é valioso - disse Igurashi -, e sim, quero o conhecimento dele. Mas ele tem que ser controlado. Você disse isso muitas vezes, Omi-san. Ele é bárbaro. É tudo o que é. Oh, sei que é hatamoto agora, e que pode usar as duas espadas a partir de hoje. Mas isso não o torna samurai. Ele não é samurai e nunca será.

Mariko sabia que, de todos eles, era ela quem devia ser capaz de ler com mais clareza o Anjin-san. Mas não conseguia. Num momento o compreendia, no momento seguinte ele se tornava incompreensível de novo. Num momento gostava dele, no momento seguinte odiava-o. Por quê?

Os olhos de Blackthorne fitavam o vazio. Mas agora havia gotas de suor na sua testa. Será que isso é medo? pensou Yabu. Medo de que eu pague para ver o blefe? Estará blefando?

- Mariko-san?

- Sim, senhor?

- Diga-lhe... - Repentinamente a boca de Yabu ficou seca, o peito doía. - Diga ao Anjin-san que a sentença permanece.

- Senhor, por favor, desculpe-me, mas recomendo-lhe aceitar o conselho de Omi-san.

Yabu não olhou para ela, apenas para Blackthorne. A veia na sua testa latejava.

- O Anjin-san diz que está decidido. Que seja. Vejamos se ele é bárbaro, ou hatamoto.

A voz de Mariko soou quase imperceptível.

- Anjin-san, Yabu-san diz que a sentença permanece. Sinto muito.

Blackthorne ouviu as palavras, mas elas não o perturbaram. Sentia-se mais forte e mais em paz do que jamais se sentira, com uma maior consciência da vida do que jamais tivera.

- O Senhor Toranaga o fez hatamoto - disse ela - Isso lhe dá o direito, neh?

Enquanto esperara, não os ouvira nem os olhara. O comprmisso fora feito. O resto ele deixara a Deus. Estivera fechado na própria cabeça, ouvindo as mesmas palavras vezes sem conta, a mesmas que lhe haviam dado a pista para a vida ali, as palavras que com certeza tinham sido enviadas por Deus, por intermédio de Mariko: "Há uma solução fácil. Morra. Para sobreviver aqui o senhor deve viver de acordo com os nossos costumes".

- ... a sentença permanece.

Então, agora, devo morrer.

Eu devia estar com medo. Mas não estou.

Por quê?

Não sei. Só sei que uma vez tendo realmente decidido que o único modo de viver aqui como homem é fazendo isso de acordo com os costumes deles, arriscando-me a morrer, morrendo - talvez morrendo -, repentinamente o medo da morte se foi. "A vida e a morte são a mesma coisa... Deixe o karma ao."

Não estou com medo de morrer.

Além da shoji, uma chuva suave começara a cair. Ele baixou os olhos para a faca.

Tive uma boa vida, pensou ele.

Seus olhos voltaram-se para Yabu.

- Wakarimasu - disse claramente, e embora soubesse que seus lábios tinham formado a palavra, foi como se outra pessoa tivesse falado.

Ninguém se moveu.

Ele viu sua mão direita pegar a faca. Depois a mão esquerda também agarrou o cabo, a lâmina pronta e apontando para o coração. Agora havia apenas o som da sua vida, crescendo e crescendo, elevando-se cada vez mais forte até que ele não conseguia mais ouvir. Sua alma ansiava pelo silêncio eterno.

O grito desencadeou-lhe os reflexos. Suas mãos impeliram a faca inexoravelmente rumo ao alvo.

Omi estivera pronto para detê-lo, mas não estava preparado para a rapidez e a ferocidade do ímpeto de Blackthorne, e quando a mão esquerda de Omi agarrou a lâmina, e a direita o cabo, a dor o aferroou e o sangue esguichou da mão esquerda. Lutou com todas as forças. Estava perdendo. Igurashi veio ajudar. Juntos detiveram o golpe. A faca foi tomada. Um delgado gotejar de sangue escorria da pele sobre o coração de Blackthorne, onde a ponta da faca entrara.

Mariko e Yabu não tinham se movido.

- Diga-lhe, diga-lhe que qualquer coisa que aprenda será suficiente - disse Yabu. - Ordene-lhe, Mariko-san, não, peça-lhe, peça que Anjin-san que jure, conforme disse Omi. Tudo conforme Omi-san disse.

 

Blackthorne voltou da morte lentamente. Fitou-os e à faca de uma imensa distância, sem compreender. Depois a torrente de vida voltou aos borbotões, mas ele não conseguiu apreender, acreditando-se morto e não vivo.

- Anjin-san? Anjin-san?

Viu os lábios dela movendo-se e ouviu-lhe as palavras, mas todos os seus sentidos estavam concentrados na chuva e na brisa.

- Sim? - Sua própria voz estava ainda muito distante, mas ele sentia o cheiro da chuva e ouvia os pingos e sentia o gosto de al no ar. Estou vivo, disse-se ele maravilhado. Estou vivo e isso é chuva de verdade lá fora, o vento é de verdade e vem do norte. Há um braseiro real com brasas reais, e se eu pegar o cálice, encontrarei líquido real nele e o líquido terá sabor. Não estou morto. Estou vivo!

Os outros permaneciam sentados em silêncio, esperando pacientemente, amáveis com ele para honrar-lhe a bravura. Nenhum homem no Japão tinha jamais visto o que eles viram. Cada um se perguntava em silêncio: o que o Anjin-san vai fazer agora? Será capaz de se erguer por si mesmo e caminhar, ou seu próprio espírito o deixará? Como agiria eu, se fosse ele? Silenciosamente uma criada trouxe uma bandagem e enfaixou a mão de Omi onde a lâmina cortara profundamente, estancando o fluxo de sangue. Estava tudo muito silencioso. De vez em quando Mariko dizia o seu nome baixinho enquanto eles sorviam chá ou vinho, mas muito frugalmente, saboreando a espera, o que tinham presenciado e a lembrança.

Para Blackthorne aquela não-vida parecia durar para sempre. Então seus olhos viram. Seus ouvidos ouviram.

- Anjin-san?

- Hai? - respondeu ele, através do maior cansaço que jamais conhecera.

Mariko repetiu o que Omi dissera, como se viesse de Yabu. Teve que dizê-lo várias vezes, antes de ter certeza de que ele compreendera claramente.

Blackthorne reuniu o remanescente de suas forças, sentindo a vitória doce.

- Minha palavra é suficiente, assim como a dele o é. Ainda assim, jurarei por Deus, como ele quer. Sim. Como Yabu-san jurará pelo deus dele, para cumprir a parte dele no acordo.

- O Senhor Yabu diz que sim, que jura pelo Senhor Buda.

Então Blackthorne jurou, conforme Yabu desejava que ele jurasse. Aceitou um pouco de chá. Nunca tivera um gosto tão bom. A xícara pareceu-lhe muito pesada e ele não conseguiu segurá-la muito tempo.

- A chuva é agradável, não é? - disse ele, observando os pingos de chuva que surgiam e sumiam, atônito com a inusitada limpidez da sua visão.

- Sim - disse ela brandamente, sabendo que os sentidos dele se encontravam num plano nunca alcançado por ninguém que não tivesse livremente ido ao encontro da morte e, por obra de um karma desconhecido, miraculosamente regressado à vida. - Por que não descansar agora, Anjin-san? O Senhor Yabu lhe agradece e diz que conversará mais com o senhor amanhã. Deve descansar agora.

- Sim. Obrigado. Isso seria ótimo.

- Acha que pode se levantar?

- Sim. Acho que sim.

- Yabu-san pergunta se o senhor gostaria de um palanquim.

Blackthorne pensou sobre isso. Finalmente decidiu que um samurai caminharia - tentaria caminhar.

- Não, obrigado - disse ele, apesar do muito que teria gostado de se reclinar, de ser carregado, de fechar os olhos e dormir imediatamente. Ao mesmo tempo sabia que teria medo de dormir ainda, caso aquele fosse o sonho de pós-morte e a faca não estivesse lá, sobre o futon, mas ainda enterrada no seu verdadeiro eu, e aquilo fosse o inferno, ou o começo do inferno.

Lentamente pegou a faca e estudou-a, comprazendo-se com a percepção real. Depois colocou-a na bainha, tudo levando muito tempo.

- Desculpe por ser tão lento - murmurou ele.

- Não precisa se desculpar, Anjin-san. Esta noite o senhor renasceu. Esta é outra vida, uma nova vida - disse Mariko orgulhosamente, sentindo muita honra por ele. - O regresso é concedido a poucos. Não se desculpe. Sabemos que requer grande coragem. Muitos homens não têm força suficiente, depois, sequer para se levantar. Posso ajudá-lo?

- Não. Não, obrigado.

- Não é desonra ser ajudado. Eu ficaria honrada em ser autorizada a ajudá-lo.

- Obrigado. Mas eu ... eu quero tentar. Primeiro.

Mas ele não conseguiu se levantar imediatamente. Teve que usar as mãos para se pôr de joelhos e fazer uma pausa para reunir mais força. Tomou impulso, pôs-se de pé e quase caiu. Cambaleou, mas não caiu.

Yabu curvou-se. E Mariko, Omi e Igurashi.

Blackthorne caminhou como um bêbado os primeiros dez passos. Agarrou-se a um pilar e apoiou-se um instante. Depois recomeçou. Vacilava, mas estava andando, sozinho. Como um homem. Mantinha uma mão sobre a espada comprida à cintura e a cabeça erguida.

 

Yabu respirou e bebeu avidamente do saquê. Quando conseguiu falar, disse a Mariko:

- Por favor, siga-o. Veja que ele chegue em casa em segurança.

- Sim, senhor.

Quando ela saiu, Yabu voltou-se para Igurashi:

- Seu imbecil, monte de esterco!

Imediatamente Igurashi baixou a cabeça até tocar a esteira, em penitência.

- Blefe, você disse, neh? Sua estupidez quase me custou um tesouro inestimável.

- Sim, senhor, tem razão. Rogo-lhe que me permita pôr fim à vida imediatamente.

- Isso seria bom demais para você! Vá viver nos estábulos até que eu mande chamá-lo! Durma com os estúpidos cavalos. Você é um imbecil com cabeça de cavalo!

- Sim, senhor. Peço desculpas, senhor.

- Saia! Omi-san comandará os atiradores agora. Saia!

As velas tremulavam e crepitavam. Uma das criadas derramou uma minúscula gota de saquê sobre a pequena mesa laqueada diante de Yabu e ele a cobriu de imprecações. Os outros pediram desculpas imediatamente. Ele se permitiu ser aplacado, e aceitou mais vinho.

- Blefe? Blefe, ele disse. Imbecil! Por que tenho imbecis à minha volta?

Omi não disse nada, rebentando de riso por dentro.

- Mas você não é imbecil, Omi-san. Seu conselho é valioso. A partir de hoje seu feudo fica dobrado. Seis mil kokus. Para o próximo ano. Tome trinta ris em torno de Anjiro como feudo seu.

Omi curvou-se até o futon. Yabu merece morrer, pensou com desprezo, é tão fácil de manipular.

Não mereço nada, senhor. Só estava cumprindo o meu dever.

- Sim. Mas um suserano recompensa a lealdade e o dever.

- Yabu estava usando a espada Yoshitomo aquela noite. Dava-lhe grande prazer tocá-la. - Suzu - chamou ele uma das criadas -, mande Zukimoto aqui!

- Dentro de quanto tempo a guerra começará? - perguntou Omi.

- Começará este ano. Você talvez tenha seis meses, talvez não. Por quê?

- Talvez a Senhora Mariko devesse ficar mais que três dias. A fim de proteger o senhor.

- Hein? Por quê?

- Ela é a boca do Anjin-san. Em meio mês, com ela aqui, ele pode treinar vinte homens, os quais podem treinar uma centena, que pode treinar o resto. Depois, se ele viver ou morrer não terá importância.

- Por que ele morreria?

- O senhor vai duvidar do Anjin-san novamente, no próximo desafio ou no seguinte. O resultado pode ser diferente da próxima vez, quem é que sabe? O senhor pode desejar que ele morra. - Ambos sabiam, assim como Mariko e Igurashi, que para Yabu o fato de jurar por qualquer deus não tinha significado algum e, naturalmente, que ele não tinha intenção alguma de manter qualquer promessa. - O senhor pode querer pressioná-lo. Uma vez que disponha da informação, para que servirá a carcaça?

- Para nada.

- O senhor precisa aprender a estratégia de guerra bárbara, mas deve fazê-lo rapidamente. O Senhor Toranaga pode mandar buscá-lo, portanto o senhor precisa ter a mulher o mais que puder. Meio mês seria suficiente para espremer-lhe da cabeça tudo o que ele sabe, agora que o senhor tem a sua completa dedicação. O senhor terá que experimentar, que adaptar os métodos dele aos nossos meios. Sim, levaria no mínimo meio mês. Neh?

- E Toranaga-san?

- Ele concordará, se a coisa lhe for apresentada corretamente, senhor. Tem que concordar. As armas são dele assim como suas. E a presença dela aqui é útil de outros modos.

- Sim - disse Yabu com satisfação, pois o pensamento de retê-la como refém também lhe entrara na cabeça no navio, quando planejara oferecer Toranaga como sacrifício a Ishido. – Toda Mariko deve ser protegida, certamente. Seria muito mal que ela tombasse em mãos malignas.

- Sim. E talvez ela pudesse ser o meio de controlar Hiromatsu, Buntaro, e todo o clã, até Toranaga.

- Redija você a mensagem sobre ela.

De supetão, Omi disse:

- Minha mãe recebeu notícias de Yedo hoje, senhor. Pediu-me que lhe dissesse que a Senhora Genjiko presenteou Toranaga com o primeiro neto.

Imediatamente Yabu se pôs atento. O neto de Toranaga!

Toranaga poderia ser controlado através da criança? O neto assegura a dinastia de Toranaga, neh? Como posso ficar com o recém-nascido como refém?

- E Ochiba, a Senhora Ochiba? - perguntou ele.

- Partiu de Yedo com todo o seu séquito. Há três dias. Nesta altura encontra-se a salvo em território de Ishido.

Yabu pensou em Ochiba e na irmã, Genjiko. Tão diferentes! Ochiba, vital, bela, astuciosa, incansável, a mulher mais desejável do império e mãe do herdeiro. Genjiko, a irmã mais nova, calma, meditativa, lisa e franca, com uma crueldade que se tornara lendária, herdada da mãe, uma das irmãs de Goroda. As duas irmãs se amavam, mas Ochiba odiava Toranaga e a sua estirpe, assim como Genjiko detestava o taicum e Yaemon, filho dele. Será que foi realmente o taicum quem gerou o filho de Ochiba? perguntou-se Yabu novamente, como todos os daimios o faziam secretamente há anos. O que eu não daria para conhecer a resposta a isso! O que eu não daria para possuir aquela mulher!

- Agora que a Senhora Ochiba não é mais refém em Yedo... isso poderia ser bom e mau - disse Yabu, apalpando terreno. - Neh?

- Bem, apenas bom. Agora Ishido e Toranaga têm que começar muito em breve. - Omi deliberadamente omitiu o "sama" dos dois nomes. - A Senhora Mariko devia ficar, pela sua proteção.

- Providencie. Redija a mensagem a enviar a Toranaga.

Suzu, a criada, bateu discretamente e abriu a porta. Zukimoto entrou na sala.

- Senhor?

- Onde estão todos os presentes que mandei vir de Mishima para Omi-san?

- Estão todos no depósito, senhor. Aqui está a lista. Os dois cavalos podem ser escolhidos nos estábulos. Deseja que eu faça isso agora?

- Não. Omi-san escolherá amanhã. - Yabu deu uma olhada na lista cuidadosamente escrita: "Vinte quimonos (segunda qualidade); duas espadas; uma armadura (consertada, mas em bom estado); dois cavalos; armas para cem samurais; uma espada, elmo, peitoral, arco, vinte setas e uma lança para cada homem (da melhor qualidade). Valor total: quatrocentos e vinte e seis kokus. Também a pedra chamada A Pedra da Espera - valor: inestimável".

- Ah, sim - disse ele, num melhor estado de humor, lembrando-se daquela noite. - A pedra que encontrei em Kyushu. Você ia mudar o nome para O Bárbaro à Espera, não ia?

- Sim, senhor, se lhe agradar - disse Omi. - Mas o senhor me honraria amanhã, decidindo onde colocá-la no jardim? Não creio que haja um lugar suficientemente bom.

- Amanhã decidirei. Sim. - Yabu deixou a mente devanear sobre a pedra e sobre aqueles dias distantes com seu venerado amo, o taicum, e depois sobre a Noite dos Gritos. A melancolia infiltrou-se nele. A vida é tão curta, triste e cruel, pensou. Olhou para Suzu. A criada sorriu, hesitante, o seu rosto oval, delgado, e muito delicada como as outras duas. As três tinham sido trazidas de palanquim da casa dele em Mishima. Naquela noite estavam todas descalças, usando quimonos da melhor seda, a pele muito branca. É curioso que os meninos possam ser tão graciosos, pensou ele, em muitos sentidos mais sensuais e femininos do que as garotas. Depois notou Zukimoto. - O que está esperando? Hein? Saia!

- Sim, senhor. O senhor me pediu que o lembrasse das taxas, senhor. - Zukimoto ergueu a sua massa transpirante e saiu às pressas da sala.

- Omi-san, você dobrará todos os impostos imediatamente - disse Yabu.

- Sim, senhor.

- Camponeses imundos! Não trabalham o suficiente. São preguiçosos, todos eles! Mantenho as estradas a salvo de bandidos, os mares seguros, dou-lhes bom governo, e o que eles fazem? Passam os dias tomando chá e saquê, e comendo arroz. Já é tempo que os meus camponeses assumam as suas responsabilidades!

- Sim, senhor - disse Omi.

Depois Yabu se voltou para o outro assunto que lhe dominava a mente.

- O Anjin-san surpreendeu-me esta noite. A você não?

- Oh, sim, senhor. Mais do que ao senhor. Mas o senhor foi sábio em fazê-lo se comprometer.

- Está dizendo que Igurashi tinha razão?

- Simplesmente admirei a sua sabedoria, senhor. O senhor teria que lhe dizer não em algum momento. Acho que foi muito sábio em dizê-lo agora, esta noite.

- Pensei que ele ia se matar. Sim. Fico contente por você ter estado preparado. Contei com que você estivesse preparado. O Anjin-san é um homem extraordinário, para um bárbaro, neh? Pena que seja bárbaro e tão ingênuo.

- Sim.

Yabu bocejou. Aceitou saquê de Suzu.

- Meio mês, você diz? Mariko-san deve ficar no mínimo esse prazo, Omi-san. Depois decidirei a respeito dela, e a respeito dele. Ele terá que aprender outra lição muito em breve. - Ele riu, mostrando os dentes estragados. - Se o Anjin-san nos ensinar, devemos ensiná-lo, neh? Devemos ensinar-lhe como cometer seppuku corretamente. Seria uma coisa e tanto de se presenciar, neh? Providencie! Sim, concordo que os dias do bárbaro estão contados.

 

Doze dias depois, à tarde, chegou o mensageiro de Osaka. Uma escolta de dez samurais vinha com ele. Os cavalos estavam cobertos de suor e quase mortos. As bandeiras à ponta das lanças exibiam o símbolo do todo-poderoso conselho de regentes. O dia estava quente, nublado e úmido.

O mensageiro era um samurai magro, rijo, de grau superior, um dos lugar-tenentes de Ishido. Chamava-se Nebara Jozen e era conhecido pela sua inclemência. Seu quimono cinzento estava rasgado e salpicado de lama, os olhos vermelhos de fadiga. Recusou comida e bebida e impolidamente solicitou uma audiência imediata com Yabu.

- Perdoe a minha aparência, Yabu-san, mas o meu assunto é urgente - disse. - Sim, peço-lhe perdão. Meu amo pergunta: por que o senhor treina os soldados de Toranaga junto com os seus, e por que eles se exercitam com tantas armas?

Yabu corou ante a grosseria do outro, mas conservou a calma, sabendo que Jozen devia ter recebido instruções específicas e aquela falta de educação prenunciava uma perigosa posição de poder. Além disso, sentia-se enormemente inquieto de que tivesse havido outra brecha na sua segurança.

- É muito bem-vindo, Jozen-san. Pode garantir ao seu amo que tenho sempre os interesses dele no coração - disse ele com uma cortesia que não enganou a nenhum dos presentes.

Encontravam-se na varanda da fortaleza. Omi estava sentado logo atrás de Yabu. Igurashi, que fora perdoado poucos dias antes, estava mais perto de Jozen e, em torno deles, guardas mais íntimos.

- O que mais seu amo manda dizer?

- Meu amo ficará contente de saber que os interesses dele são os seus - respondeu Jozen. - Agora, quanto às armas e ao treinamento: meu amo gostaria de saber por que o filho de Toranaga, Naga, é segundo em comando. Segundo em comando de quê? O que é tão importante para que o filho de Toranaga se encontre aqui? pergunta o General Ishido polidamente. Isso é do interesse dele. Sim. Tudo o que os seus aliados fazem lhe interessa. Por que, por exemplo, o bárbaro parece estar encarregado de treinamento? Treinamento do quê? Sim, Yabu-sama, isso também é muito interessante. - Jozen mudou as espadas para uma posição mais confortável, contente por ter as costas protegidas pelos seus próprios homens. - Depois: o conselho de regentes reúne-se novamente no primeiro dia da lua nova. Dentro de vinte dias. O senhor é formalmente convidado a comparecer a Osaka, a fim de renovar seu juramento de fidelidade.

O estômago de Yabu contorceu-se.

- Tomei conhecimento de que o Senhor Toranaga renunciou.

- Sim, Yabu-san, realmente renunciou. Mas o Senhor Ito Teruzumi vai tomar-lhe o lugar. Meu amo será o novo presidente dos regentes.

Yabu foi dominado pelo pânico. Toranaga dissera que os quatro regentes nunca conseguiriam se pôr de acordo quanto a um quinto. Ito Teruzumi era um daimio menor da província de Negato, na Honshu ocidental, mas sua família era antiga, descendia da linhagem Fujimoto, portanto ele seria aceitável como regente, embora fosse um homem ineficaz, afeminado e um fantoche.

- Eu ficaria honrado em receber o convite deles - disse Yabu defensivamente, tentando ganhar tempo para pensar.

- Meu amo pensou que o senhor talvez quisesse partir imediatamente. Então estaria em Osaka para a reunião formal. Ordenou-me que lhe dissesse que todos os daimios estão recebendo o mesmo convite. Agora. Assim todos terão oportunidade de estar lá a tempo, no vigésimo primeiro dia. Sua Alteza Imperial, o Imperador Go-Nijo, autorizou uma cerimônia da contemplação da flor, a fim de honrar a ocasião. - Jozen estendeu um pergaminho oficial.

- Isto não tem o selo do conselho de regentes.

- Meu amo emitiu o convite agora, sabendo que, na qualidade de leal vassalo do falecido taicum, na qualidade de fiel vassalo de Yaemon, seu filho e herdeiro e governante legítimo do império quando atingir a idade, o senhor compreenderá que o novo conselho naturalmente aprovará o ato dele. Neh?

- Certamente seria um privilégio testemunhar o encontro formal. - Yabu lutava para controlar o próprio rosto.

- Ótimo - disse Jozen. Puxou outro pergaminho, abriu-o o estendeu-o a Yabu. - Isto é uma cópia da carta de nomeação do Senhor Ito, aceita, assinada e autorizada pelos outros regentes, os senhores Ishido, Kiyama, Onoshi e Sugiyama. - Jozen não se deu ao trabalho de dissimular um olhar de triunfo, sabendo que aquilo fechava totalmente a armadilha sobre Toranaga e qualquer um dos seus aliados, e que além disso o pergaminho tornava a ele o aos seus homens invulneráveis.

Yabu pegou o pergaminho. Seus dedos tremiam. Não havia dúvida quanto à sua autenticidade. Fora rubricado pela Senhora Yodoko, a esposa do taicum, que afirmava que o documento era verdadeiro, assinado em sua presença, uma das seis cópias que estavam sendo enviadas por todo o império, e que aquela cópia em particular se destinava aos senhores de Iwari, Mikawa, Totomi, Suruga, Izu e do Kwanto. Estava datado de onze dias antes.

- Os senhores de Iwari, Mikawa, Suruga e Totomi já aceitaram. Aqui estão os selos deles. O senhor é o penúltimo na minha lista. O último é o Senhor Toranaga.

- Por favor, agradeça ao seu amo e diga-lhe que espero com ansiedade pelo momento de saudá-lo e congratular-me com ele - disse Yabu.

- Ótimo. Solicitaria que o senhor respondesse por escrito. Seria satisfatório que fosse agora.

- Esta noite, Jozen-san. Depois da refeição noturna.

- Muito bem. E agora podemos ir ver o treinamento.

- Não há treinamento hoje. Todos os meus homens estão realizando marchas forçadas - disse Yabu.

No momento em que Jozen e seus homens entraram em Izu, Yabu recebera um aviso urgente e imediatamente ordenara aos seus homens que cessassem o tiroteio e continuassem apenas o treinamento com armas silenciosas, bem longe de Anjiro.

- Amanhã o senhor poderá vir comigo... ao meio-dia, se desejar.

Jozen olhou para o céu. A tarde estava findando agora.

- Ótimo. Eu poderia dormir um pouco. Mas voltarei ao crepúsculo, com a sua permissão. Então o senhor, o seu comandante, Omi-san, e o segundo em comando, Naga-san, me falarão, no interesse do meu amo, sobre o treinamento, as armas e tudo. E sobre o bárbaro.

- Ele está... sim. Naturalmente. - Yabu fez um gesto a Igurashi. - Providencie alojamento para o nosso honrado hóspede e seus homens.

- Obrigado, mas isso não é necessário - disse Jozen imediatamente. - O chão é futon suficiente para um samurai, e a minha sela basta como travesseiro. Apenas um banho, por favor... esta umidade, neh? Acamparei no cume da montanha... naturalmente, com a sua permissão.

- Como quiser.

Jozen curvou-se rigidamente e se afastou, rodeado pelos seus homens. Estavam todos pesadamente armados. Dois arqueiros tinham sido deixados segurando os cavalos.

Assim que todos se afastaram, o rosto de Yabu contorceu-se de cólera.

- Quem me traiu? Quem? Onde está o espião?

Igualmente pálido, Igurashi fez sinal aos guardas para que se afastassem até onde não pudessem ouvir.

- Yedo, senhor disse ele. - Tem que ser. A segurança é perfeita aqui.

- Oh, ko! - disse Yabu, quase rasgando a roupa. - Fui traído. Estamos isolados. Izu e o Kwanto estão isolados. Ishido venceu. Ele venceu.

Omi disse calmamente:

- Não antes de vinte dias, senhor. Mande imediatamente uma mensagem ao Senhor Toranaga. Informe-o de que...

- Imbecil! - sibilou Yabu. - É claro que Toranaga já sabe! Onde eu tenho um espião ele tem cinqüenta. Ele me deixou sozinho na armadilha.

- Não penso assim, senhor - disse Omi, sem medo. - Iwari, Totomi e Sugura são hostis a ele, neh? E a qualquer um que seja aliado dele. Eles nunca o preveniriam, portanto ele talvez ainda não saiba. Informe-o e sugira...

- Você não ouviu? - gritou Yabu. - Os quatro regentes concordaram com a designação de Ito, portanto o conselho é legal novamente e vai se reunir dentro de vinte dias!

- A resposta a isso é simples, senhor. Sugira a Toranaga que mande assassinar imediatamente Ito Teruzumi ou um dos outros regentes.

A boca de Yabu se escancarou.

- O quê?

- Se o senhor não quiser fazer isso, envie-me, deixe-me tentar. Ou Igurashi-san. Com o Senhor Ito morto, Ishido está indefeso de novo.

- Não sei se você ficou louco ou o quê - disse Yabu. - Você entende o que acabou de dizer?

- Senhor, rogo-lhe, por favor, seja paciente comigo. O Anjin-san deu-lhe seu inestimável conhecimento, neh? Mais do que jamais sonhamos possível. Agora Toranaga também sabe disso, através dos seus relatórios, e provavelmente por intermédio dos relatórios particulares de Naga-san. Se pudermos conseguir tempo suficiente, nossos quinhentos atiradores e os outros trezentos lhe darão um poder de combate absoluto, mas apenas uma vez. Quando o inimigo, seja quem for, vir o modo como o senhor usa os homens e a potência de tiro, aprenderá rapidamente. Mas terá perdido a primeira batalha. Uma batalha - se for a batalha certa - dará a Toranaga a vitória total.

- Ishido não precisa de batalha alguma. Dentro de vinte dias terá o mandato do imperador.

- Ishido é um camponês. É filho de um camponês, um mentiroso, e abandona os companheiros em batalha.

Yabu encarou Omi, o rosto rubro.

- Você... você sabe o que está dizendo?

- Foi o que ele fez na Coréia. Eu estava lá. Eu vi, meu pai viu. Ishido realmente abandonou Buntaro-san e a nós, e deixou que nos virássemos sozinhos. Ele é apenas um camponês traiçoeiro, o cão do taicum, certamente. Não se pode confiar em camponeses. Mas Toranaga é Minowara. O senhor pode confiar nele. Aconselho-o a considerar apenas os interesses de Toranaga.

Yabu sacudiu a cabeça, incrédulo.

- Você é surdo? Não ouviu Nebara Jozen? Ishido venceu. O conselho estará em vigor dentro de vinte dias.

- Pode estar em vigor.

- Mesmo se Ito... Como é que você poderia? Não é possível.

- Certamente eu poderia tentar, mas eu nunca conseguiria fazê-lo a tempo. Nenhum de nós, não em vinte dias. Mas Toranaga poderia. - Omi sabia que se colocara entre as mandíbulas do dragão. - Imploro-lhe que considere a idéia.

Yabu enxugou o rosto e as mãos.

- Depois desta convocação, se o conselho se reunir e eu não me encontrar presente, eu e todo o meu clã estaremos mortos, você inclusive. Preciso de dois meses, no mínimo, para treinar o regimento. Mesmo que o tivéssemos treinado agora, Toranaga e eu nunca conseguiríamos vencer contra todos os outros. Não, você está errado, tenho que apoiar Ishido.

- O senhor não precisa partir para Osaka antes de dez dias... catorze, se for em marcha forçada - disse Omi. - Fale a Toranaga sobre Nebara Jozen imediatamente. O senhor salvará Izu e a casa de Kasigi. Imploro-lhe, Ishido vai traí-lo e devorálo. Ikawa Jikkyu é parente dele, neh?

- Mas e Jozen? - exclamou Igurashi. - Hein? E os atiradores? A estratégia maravilhosa? Ele quer saber sobre tudo esta noite.

- Conte-lhe. Em detalhes. Ele não é mais que um lacaio - disse Omi, começando a manobrá-los. Sabia que estava arriscando tudo, mas tinha que tentar proteger Yabu de se alinhar com Ishido, e assim arruinar a chance que tinham. - Abra os seus planos a ele.

Igurashi discordou exaltadamente.

- Assim que Jozen souber o que estamos fazendo, mandará uma mensagem ao Senhor Ishido. É importante demais para que ele não faça isso. Ishido roubará os planos, depois estaremos liquidados.

- Nós seguimos o mensageiro e o matamos à nossa conveniência.

Yabu se inflamou.

- Aquele pergaminho foi assinado pela mais alta autoridade do país! Todos eles viajam sob a proteção dos regentes! Você deve estar louco para sugerir uma coisa assim! Isso me tornaria um marginal!

Omi balançou a cabeça, mantendo um ar confiante.

- Acredito que Yodoko-sama e os outros foram ludibriados, assim como Sua Alteza Imperial, pelo traidor Ishido. Devemos proteger os atiradores, senhor. Devemos deter qualquer mensageiro...

- Silêncio! Seu conselho é loucura!

Omi curvou-se ante a chicotada verbal. Mas levantou os olhos e disse calmamente:

- Então, por favor, permita-me cometer seppuku, senhor. Mas primeiro, por favor, deixe-me concluir. Eu falharia no meu dever se não tentasse protegê-lo. Imploro esse último favor como vassalo fiel.

- Conclua!

- Não há conselho de regentes agora, portanto não há proteção legal para esse Jozen e seus homens insultantes e de modos abomináveis, a menos que o senhor honre um documento ilegal devido a... - Omi ia dizer "fraqueza", mas mudou a palavra e manteve a voz tranqüilamente autoritária - devido a ser ludibriado como os outros, senhor. Não há conselho. Eles não podem lhe "ordenar" a fazer coisa alguma, nem a ninguém. Uma vez que estejam reunidos, sim, podem, e então o senhor terá que obedecer. Mas agora, quantos daimios obedecerão antes que ordens legais possam ser emitidas? Apenas os aliados de Ishido, neh? Iwari, Mikawa, Totomi e Suruga não são governadas por parentes dele, todos abertamente aliados a ele? Aquele documento significa a guerra, sim, mas rogo-lhe que a empreenda nos seus termos, não nos de Ishido. Trate essa ameaça com o desprezo que merece! Toranaga nunca foi vencido em combate. Ishido sim. Toranaga evitou tomar parte no catastrófico ataque do taicum à Coréia. Ishido não. Toranaga é a favor dos navios e do comércio. Ishido não é. Toranaga desejará a marinha do bárbaro - o senhor não advogou essa idéia junto a ele? Ishido não. Ishido fechará o império. Toranaga o manterá aberto. Ishido dará a Ikawa Jikkyu o seu feudo hereditário de Izu, se vencer. Toranaga lhe dará toda a província de Jikkyu. O senhor é o principal aliado de Toranaga. Ele não lhe deu a sua espada? Não lhe deu o controle dos atiradores? Os atiradores não garantem uma vitória, usados de surpresa? O que o camponês Ishido dá em troca? Manda um samurai ronin sem educação, com ordens deliberadas de envergonhá-lo em sua própria província! Digo que Toranaga Minowara é a nossa única chance. O senhor deve ir com ele. - Curvou-se e esperou em silêncio.

Yabu deu uma olhada em Igurashi.       

- Bem?

- Concordo com Omi-san, senhor. - O rosto de Igurashi refletia a sua preocupação. - Quanto a matar o mensageiro, isso seria perigoso, não haveria caminho de volta, senhor. Jozen certamente enviará um ou dois amanhã. Talvez eles pudessem desaparecer, mortos por bandidos... - Ele se deteve no meio da frase. - Pombos-correio! Havia dois cestos nos cavalos de carga de Jozen!

- Teremos que envenená-los esta noite - disse Omi.

- Como? Eles serão vigiados.

- Não sei. Mas têm que ser eliminados antes do amanhecer.

- Igurashi - disse Yabu -, mande homens para vigiar Jozen imediatamente. Veja se ele envia um dos pombos agora, hoje.

- Sugiro que o senhor mande todos os seus falcões e falcoeiros para o leste, também imediatamente - acrescentou rapidamente Omi.

- Ele suspeitará de traição se vir seus pássaros abatidos ou se perceber que mexeram neles - disse Igurashi.

Omi deu de ombros.

- Os pássaros têm que ser detidos.

Igurashi olhou para Yabu. Yabu assentiu, resignado.

- Faça isso.

Quando Igurashi voltou, disse:

- Omi-san, ocorreu-me uma coisa. Muito do que disse estava certo, sobre Jikkyu e o Senhor Ishido. Mas se aconselha fazer os mensageiros "desaparecerem", por que brincar com Jozen? Por que dizer alguma coisa a ele? Por que não matá-lo imediatamente?

- Por que não, realmente? A menos que isso pudesse divertir a Yabu-sama. Concordo que seu plano é melhor, Igurashi-san - disse Omi.

Os dois olharam para Yabu.

- Como posso conservar os atiradores em segredo? - perguntou-lhes este.

- Mate Jozen e os seus homens - retrucou Omi.

- Não há outro meio?

Omi balançou a cabeça. Igurashi balançou a cabeça.

- Talvez eu pudesse negociar com Ishido - disse Yabu, abalado, tentando pensar num modo de sair da armadilha. - Você tem razão sobre o tempo. Tenho dez dias, catorze no máximo. Como lidar com Jozen e ainda deixar tempo para manobrar?

- Seria prudente fingir que o senhor vai a Osaka - disse Omi. - Mas não há mal em informar Toranaga imediatamente, neh? Um dos nossos pombos poderia chegar a Yedo antes do pôr-do-sol. Talvez. Não há mal algum nisso.

- O senhor poderia falar ao Senhor Toranaga sobre a chegada de Jozen - disse Igurashi -, e sobre a reunião do conselho dentro de vinte dias, sim. Mas quanto ao assassinato do Senhor Ito, isso é perigoso demais para pôr por escrito, mesmo se... Perigoso demais, neh?

- Concordo. Nada sobre Ito. Toranaga deve pensar nisso por si mesmo. E óbvio, neh?

- Sim, senhor. Impensável, mas óbvio.

Omi esperou em silêncio, a mente procurando uma solução freneticamente. Yabu estava de olhos nele, mas Omi não sentiu medo. Seu conselho fora razoável e oferecido apenas para a proteçãd do clã, da família e de Yabu, o atual líder do clã. O fato de Omi haver decidido eliminar Yabu e mudar a liderança não o impediu de aconselhá-lo sagazmente. E estava preparado para morrer agora. Se Yabu fosse tão estúpido a ponto de não aceitar a verdade evidente das suas idéias, então logo não haveria clã algum para liderar. Karma.

Yabu inclinou-se para a frente, ainda irresoluto.

- Existe algum modo de eliminar Jozen e seus homens sem perigo para mim, e permanecer descomprometido por dez dias?

- Naga. Tente de algum modo aprontar uma armadilha com Naga - disse simplesmente.

 

Ao crepúsculo, Blackthorne e Mariko atingiram o portão da casa dele, seguidos de batedores. Estavam ambos cansados. Ela cavalgava como um homem, usando calças folgadas e, sobre elas, um manto afivelado. Usava também um chapéu de aba larga e luvas para se proteger do sol. Até as camponesas tentavam proteger o rosto e as mãos dos raios de sol. Desde tempos imemoriais, quanto mais escura fosse a pele, mais comum era a pessoa; quanto mais branca, mais apreciada.

Criados pegaram as rédeas e levaram embora os cavalos. Blackthorne dispensou os batedores num japonês tolerável e saudou Fujiko, que esperava sempre.

- Posso servir-lhes o chá, Anjin-san? - disse ela cerimoniosamente, como sempre.

- Não - disse ele, como sempre. - Primeiro vou tomar banho. Depois saquê e um pouco de comida.

E, como sempre, retribuiu-lhe a reverência e seguiu pelo corredor até os fundos da casa, saiu para o jardim e tomou o caminho circundante que levava à casa de banho, de taipa. Uma criada tirou-lhe a roupa, ele entrou e se sentou, nu. Outra criada o esfregou, ensaboou-o e verteu-lhe água em cima para lavar a espuma e a sujeira. Depois, completamente limpo, gradualmente - porque a água estava muito quente - entrou na imensa banheira de ferro e deitou-se.

- Jesus Cristo, isto é formidável - exultou ele, e deixou orgulhosamente na varanda, como que o calor se infiltrasse nos músculos, os olhos fechados, o suor escorrendo pela testa.

Ouviu a porta se abrir, a voz de Suwo e "Boa noite, amo" seguido de muitas palavras em japonês que não compreendeu. Mas naquela noite estava cansado demais para tentar conversar com Suwo. E o banho, conforme Mariko explicara muitas vezes, "não é meramente para limpar a pele. O banho é um presente que Deus ou os deuses nos deram, um prazer conferido por Deus, para ser apreciado e tratado como tal".

- Sem conversa, Suwo - disse ele. - Esta noite quero penso.

- Sim, amo. Perdão, mas o senhor devia dizer: "Esta noite quero pensar".

- Esta noite quero pensar - repetiu Blackthorne, tentando pôr os sons quase incompreensíveis na cabeça, contente por ser corrigido, mas exausto disso.

- Onde está o dicionário-gramática? - fora a primeira coisa que perguntara a Mariko naquela manhã. - Yabu-sama mandou outra solicitação?

- Sim. Por favor, seja paciente, Anjin-san. Chegará logo.

- Foi prometido com a galera e as tropas. Não chegou. As tropas e as armas sim, mas os livros não. Tenho sorte de a senhora estar aqui. Seria impossível sem a senhora.

- Difícil, mas não impossível, Anjin-san.

- Como digo: "Não, vocês estão fazendo errado! Devem correr todos como um grupo, parar como um grupo, apontar e atirar como um grupo"?

- Com quem está falando, Anjin-san? - perguntara ela.

E então, novamente, ele sentira a frustração se avolumar.

- É tudo muito difícil, Mariko-san.

- Oh, não. O japonês é muito fácil de falar, comparado com outras línguas. Não há artigos, não há "o", "a", "um", "uma". Não há conjugações de verbos nem infinitivos. Todos os verbos são regulares, terminando em "masu", e pode-se dizer quase tudo usando apenas o presente, se se quiser. Se é uma pergunta, acrescenta-se "ka" depois do verbo. Se é uma negativa, troca-se "masu" por "masen". O que poderia ser mais fácil? "Yukimasu" quer dizer "eu vou", mas quer dizer igualmente "você vai", "ele", "ela", "nós", "eles", ou "irá", ou até "poderia ter ido". Até o plural e o singular são iguais. "Tsuma" significa "esposa" ou "esposas". Muito simples.

- Bem, como se faz a diferença entre "eu vou", "yukimasu", e "eles foram", "yukimasu"?

- Pela inflexão, Anjin-san, e o tom. Ouça: "yukimasu"... "yukimasu".

- Mas o som é exatamente o mesmo!

- Ah, Anjin-san, isso é porque o senhor está pensando na sua língua. Para compreender japonês o senhor tem que pensar em japonês. Não se esqueça de que a nossa língua é a língua do infinito. É tudo muito simples, Anjin-san. Apenas mude o seu conceito do mundo. Aprender japonês é apenas aprender uma nova arte, separada do mundo ... É tudo muito simples.

- É tudo uma bosta, isso sim - resmungou ele em inglês, e sentiu-se melhor.

- O quê? Que foi que disse?

- Nada. Mas o que a senhora diz não faz sentido.

- Aprenda os caracteres escritos - dissera Mariko.

- Não posso. Vai levar tempo demais. Eles não têm sentido algum.

- Olhe, na realidade são simples quadros, Anjin-san. Os chineses são muito inteligentes. Emprestamos a escrita deles há mil anos atrás. Olhe, pegue este caráter, ou símbolo, que representa um porco.

- Não se parece com um porco.

- Mas já pareceu, Anjin-san. Deixe-me mostrar-lhe. Olhe. Junte o símbolo de telhado sobre o símbolo do porco e o que é que tem?

- Um porco e um telhado.

- Mas o que isso significa? O novo caráter?

- Não sei.

- Casa. Antigamente os chineses achavam que um porco sob um telhado era o lar. Eles não são budistas, são comedores de carne, portanto um porco, para eles, para camponeses, representa a riqueza, portanto uma boa casa. Daí o caráter.

- Mas como se diz?

- Depende de ser chinês ou japonês.

- Oh, ko!

- Oh, ko de fato - rira ela. - Eis outro caráter. Um símbolo de telhado com dois porcos embaixo significa contentamento. Um telhado com duas mulheres embaixo é igual a discórdia. Neh?

- Absolutamente!

- Claro, os chineses são muito estúpidos em muitas coisas e as mulheres deles não são educadas como as daqui. Não há discórdia na sua casa, há?

Blackthorne pensou nisso agora, no décimo segundo dia do seu renascimento. Não. Não havia discórdia. Mas tampouco era um lar. Fujiko era apenas como uma governanta digna de confiança e naquela noite, quando ele fosse para a cama, para dormir, os futons estariam desdobrados e ela estaria ajoelhada ao lado, pacientemente, inexpressivamente. Estaria vestida com o quimono de dormir, semelhante ao quimono do dia, mais macio e com apenas um sash frouxo em vez do obi rígido à cintura.

- Obrigado, senhora - ele diria. - Boa noite.

Ela se curvaria e iria silenciosamente para o quarto do outro lado do corredor, ao lado do quarto onde Mariko dormia. Depois ele se poria embaixo do mosquiteiro de seda de excelente qualidade. Ele nunca vira mosquiteiros assim antes. Depois se deitaria prazerosamente e no meio da noite, ouvindo os poucos insetos zumbindo lá fora, se ateria ao Navio Negro, à importância do Navio Negro para o Japão.

Sem os portugueses, nada de comércio com a China. E nada de sedas para roupas ou mosquiteiros. Mesmo agora, com a umidade do clima apenas começando, ele já podia perceber o valor da seda.

Se ele se mexesse durante a noite, uma criada abriria a porta quase imediatamente, para lhe perguntar se desejava alguma coisa. Uma vez ele não compreendera. Fez sinal à criada que se fosse e dirigiu-se ao jardim, sentando-se nos degraus e olhando a lua. Dentro de poucos minutos Fujiko, desalinhada e sonolenta, veio e se sentou em silêncio atrás dele.

- Posso servir-lhe alguma coisa, senhor?

- Não, obrigado. Por favor, vá para a cama.

Ela dissera alguma coisa que ele não entendera. Novamente ele lhe fez sinal que fosse embora, então ela falara asperamente com a criada, que esperava como uma sombra. Logo apareceu Mariko.

- Está bem, Anjin-san?

- Sim. Não sei por que vocês ficaram perturbadas, Jesus Cristo... só estou olhando a lua. Não conseguia dormir. Só queria tomar um pouco de ar.

Fujiko falou com ela hesitante, constrangida, magoada com a irritação na voz dele.

- Ela diz que o senhor a mandou ir dormir de novo. Ela só queria que o senhor soubesse que não é nosso costume que uma esposa ou consorte durma enquanto o amo está acordado, era só isso, Anjin-san.

- Diga a ela que terá que mudar o costume. Levanto-me com freqüência à noite. É um hábito que adquiri ao mar. Tenho o sono muito leve em terra.

- Sim, Anjin-san.

Mariko explicara e as duas mulheres se afastaram. Mas Blackthorne sabia que Fujiko não tinha ido dormir e não o faria até que ele mesmo dormisse. Ela estava sempre em pé e à espera, fosse qual fosse a hora em que ele voltasse para casa. Algumas noites caminhava pela praia sozinho. Embora insistisse em ficar só, sabia que era seguido e observado. Não porque tivessem medo de que ele tentasse escapar. Apenas porque era o costume deles que as pessoas importantes fossem sempre escoltadas. Em Anjiro ele era importante.

Com o tempo, acabara aceitando a presença dela. Fora como Mariko dissera: "Pense nela como numa rocha, numa shoji ou numa parede. É dever dela servi-lo".

Com Mariko era diferente.

Sentia-se contente de que ela tivesse ficado. Sem a sua presença, nunca teria começado o treinamento, para não mencionar a tradução dos meandros da estratégia. Abençoava a ela, a Frei Domingo, a Alban Caradoc e aos seus outros professores.

Nunca pensei que as batalhas serviriam jamais a algum bom uso, pensou ele novamente. Uma vez, quando seu navio transportava uma carga de lãs inglesas para Antuérpia, uma frota espanhola caíra em cima da cidade e todos os homens foram para as barricadas e os diques. O ataque de surpresa fora rechaçado e a infantaria espanhola batida. Essa foi a primeira vez em que ele viu Guilherme, duque de Orange, usando regimentos como peças de xadrez. A inçando, retirando em pânico simulado para se reagruparem, investindo de novo, as armas espocando em salvas combinadas, rasgando as entranhas, martelando os ouvidos, irrompendo por entre os Invencíveis para deixá-los moribundos ou gritando, o mau cheiro de sangue e pólvora, urina e cavalos e excremento invadindo a gente, e uma alegria selvagem e frenética com a matança dominando-o, e a força de vinte homens nos seus braços.

- Jesus Cristo, é formidável ser vitorioso - disse ele em voz alta, na banheira.

- Amo? - disse Suwo.

- Nada - retrucou ele em japonês. - Eu falando... estava só pensar... estava só pensando alto.

- Compreendo, amo. Sim. Seu perdão.

Blackthorne deixou-se devanear novamente.

Mariko. Sim, ela tem sido inestimável.

Após aquela primeira noite do seu quase-suicídio, nada mais fora dito. O que havia para dizer?

Fico contente de haver tanta coisa para fazer, pensou ele. Nenhum tempo para pensar, exceto aqui no banho, nestes poucos minutos. Nunca há tempo suficiente para fazer tudo. Ordenaram-me que me concentrasse em treinamento e ensino, e não em aprender, mas quero aprender, tento aprender, preciso aprender para cumprir a promessa a Yabu. Não há horas suficientes. Sempre exausto, esgotado, na hora de dormir, dormindo imediatamente, para estar em pé ao amanhecer e sair a galope para o planalto. Treinando a manhã toda, depois uma refeição frugal, nunca satisfatória e sempre sem carne. Depois, toda tarde, até o pôr-do-sol - às vezes até mais tarde -, com Yabu e Omi e Igurashi e Naga e Zukimoto e alguns outros oficiais, falando sobre guerra, respondendo a perguntas sobre guerra. Como travar combate. Como os bárbaros guerreiam e como os japoneses guerreiam. Em terra e no mar. Escribas sempre tomando notas. Muitas, muitas notas.

Às vezes apenas com Yabu.

Mas sempre com Mariko, uma parte dele, falando por ele. E por Yabu. Mariko agora diferente em relação a ele, ele não mais um estranho.

Outros dias os escribas relendo as notas, sempre verificando, sendo meticulosos, revisando e verificando de novo até, doze dias e cem horas mais ou menos de explanações detalhadas e exaustivas depois, terem formado um manual de guerra. Exato. E letal. Letal a quê? Não a nós, ingleses ou holandeses, que viremos aqui pacificamente e apenas como comerciantes. Letal aos inimigos de Yabu e aos inimigos de Toranaga, e aos nossos inimigos portugueses e espanhóis quando tentarem conquistar o Japão. Como fizeram por toda parte. Em cada território recentemente descoberto. Primeiro chegam os padres. Depois os conquistadores.

Mas aqui não, pensou ele com grande contentamento. Aqui nunca - agora. O manual é letal e à prova disso. Com alguns anos para que o conhecimento se difunda, não vai haver conquista alguma aqui.

- Anjin-san?

- Hai, Mariko-san?

Ela estava se curvando para ele.

- Yabu-ko wa kiden no goshusseki o kon-ya wa hitsuyo to senu to oserareru, Anjin-san.

Lentamente as palavras se formaram ria cabeça dele: "O Senhor Yabu não solicita a sua presença esta noite".

- Ichi-ban - disse ele, feliz. - Domo.

- Gomen nasai, Anjin-san. Anata wa...

- Sim, Mariko-san - interrompeu-a ele, o calor da água consumindo-lhe a energia. - Sei que devia ter dito de modo diferente, mas não quero mais falar japonês agora. Não esta noite. Agora me sinto como um menino de escola que pode faltar à aula por causa dos feriados de Natal. A senhora percebe que estas serão as primeiras horas livres que terei, desde a minha chegada?

- Sim, sim, percebo. - Ela sorriu obliquamente. - E o senhor percebe, Senhor Capitão-Piloto B'rack'fon, que estas serão as primeiras horas livres que terei desde a minha chegada?

Ele riu. Ela estava usando um pesado roupão de banho de algodão, amarrado frouxamente, e uma toalha em torno da cabeça para proteger o cabelo. Toda noite, assim que a massagem dele começava, ela vinha tomar banho, às vezes sozinha, às" vezes com Fujiko.

- Pronto, sua vez agora - disse ele, começando a se levantar.

- Oh, por favor, não. Não desejo perturbá-lo.

- Então vamos compartilhar o banho. Está magnífico.

- Obrigada. Mal posso esperar para lavar o suor e o pó.

- Ela tirou o roupão e sentou-se no minúsculo assento. Uma criada começou a ensaboá-la, enquanto Suwo esperava pacientemente, junto da mesa de massagem.

- E exatamente como um feriado de escola - disse ela, igualmente feliz.

A primeira vez que Blackthorne a vira nua no dia em que nadaram, sentira-se grandemente afetado. Agora a sua nudez, em si mesma, não o tocava fisicamente. Vivendo juntos em estilo japonês, numa casa japonesa, onde as paredes eram de papel e as salas serviam a múltiplas finalidades, ele a vira despida e parcialmente vestida muitas vezes. Chegara até a vê-la satisfazendo necessidades fisiológicas.

- O que é mais normal, Anjin-san? Os corpos são normais, e as diferenças entre homens e mulheres são normais, neh?

- Sim, mas é, hum, é que fomos educados de modo diferente.

- Mas agora o senhor está aqui e os nossos costumes são os seus costumes, e o que é normal é normal. Neh?

Normal era urinar ou defecar ao ar livre se não houvesse latrinas ou baldes, simplesmente erguendo o quimono ou abrindo-o, agachando-se ou ficando em, pé, todos os demais polidamente esperando sem olhar, raramente havendo divisórias para a privacidade. Por que se deveria exigir privacidade? E logo um dos camponeses vinha coletar as fezes e as misturava com água para fertilizar as plantações. O excremento humano e a urina eram a única fonte substancial de fertilizante do império. Havia poucos cavalos e bovinos, e nenhum outro recurso animal em absoluto. Portanto cada partícula humana era guardada e vendida aos fazendeiros de todo o país.

E depois de se ter visto os bem-nascidos e os humildes abrindo ou levantando o quimono, e ficando em pé ou agachando-se, não há muito com que se sentir embaraçado.

- Há, Anjin-san?

- Não.

- Ótimo - dissera ela, muito satisfeita. - Logo o senhor gostará de peixe cru, algas frescas, e então será realmente um hatamoto.

A criada derramou água em cima dela. Depois, limpa, Mariko avançou para a banheira e deitou-se em frente a ele, com um profundo suspiro de êxtase, o pequeno crucifixo oscilando entre os seios.

- Como é que a senhora faz isso? - disse ele.

- Isso o quê?

- Entrar na água tão depressa. É tão quente.

- Não sei, Anjin-san, mas pedi que pusessem mais lenha no fogo e aquecessem a água. Para o senhor, Fujiko sempre se certifica de que a água fique... podemos chamar de tépida.

- Se isso é tépido, então sou o tio de um holandês!

- O quê?

- Nada.

O calor da água tornou-os sonolentos e eles se refestelaram um instante, sem dizer palavra. Mais tarde ela disse:

- O que gostaria de fazer esta noite, Anjin-san?

- Se estivéssemos em Londres, nós... - Blackthorne parou. Não vou pensar neles, disse ele a si mesmo. Ou em Londres. Isso se foi. Isso não existe. Só aqui existe.

- Se? - Ela o estava observando, cônscia da mudança.

- Iríamos a um teatro e assistiríamos a uma peça - disse ele, dominando-se. - Vocês têm peças aqui?

- Oh, sim, Anjin-san. As peças são muito populares entre nós. O taicum gostava de representar para divertir os convidados. O Senhor Toranaga também gosta. E naturalmente há muitas companhias ambulantes para o povo comum. Mas as nossas peças não são como as suas, creio eu. Aqui os atores e atrizes usam máscaras. Chamamos as peças de no. São parte música, parte dança, e na maioria muito tristes, muito trágicas, peças históricas. Algumas são comédias. Nós veríamos uma comédia ou talvez uma peça religiosa?

- Não, iríamos ao Teatro Globe e veríamos alguma coisa de um escritor chamado Shakespeare. Gosto mais dele do que de Ben Jonson ou Marlowe. Talvez víssemos A megera domada ou Sonho de uma noite de verão ou Romeu e Julieta. Levei minha esposa para ver Romeu e Julieta e ela gostou muito. - Explicou os enredos para ela.

Na maior parte Mariko os considerou incompreensíveis.

- Seria impensável, aqui, que uma garota desobedecesse ao pai assim. Mas é muito triste, neh? Triste para a jovem e triste para o rapaz. Ela tinha apenas treze anos? Todas as suas senhoras se casam tão novas assim?

- Não. O comum é casarem com quinze ou dezesseis anos. Minha esposa tinha dezessete anos quando nos casamos. Que idade tinha a senhora?

- Apenas quinze, Anjin-san. - Uma sombra cruzou-lhe o cenho, mas ele não notou. - E após a peça, o que faríamos?

- Eu a levaria para comer. Iríamos à Stone's Chop House, em Fetter Lane, ou à Cheshire Cheese, na Fleet Street. São estalagens onde a comida é especial.

- O que comeríamos?

- Prefiro não lembrar - disse ele com um sorriso preguiçoso, voltando a mente ao presente. - Não posso me lembrar. É aqui que estamos e é aqui que comeremos, e eu gosto de peixe cru e karma é karma. - Afundou mais na banheira. - Uma grande palavra, "karma". E uma grande idéia. Seu auxílio tem sido enorme para mim, Mariko-san.

- Ser de algum valor para o senhor é um prazer meu. - Mariko descontraiu-se no calor. - Fujiko tem um prato especial para o senhor esta noite.

- Oh?

- Comprou um ... acho que o senhor chama de faisão. É um pássaro grande. Um dos falcoeiros apanhou-o para ela.

- Um faisão? É mesmo? Honto?

- Honto - retrucou ela. - Fujiko pediu-lhes que o caçassem para o senhor. Pediu-me que lhe dissesse.

- Como está sendo cozido?

- Um dos soldados viu os portugueses preparando faisões e contou a Fujiko-san. Ela lhe pede que seja paciente, caso não esteja cozido adequadamente.

- Mas como é que ela ... como é que as cozinheiras estão fazendo? - Ele se corrigiu, pois apenas os criados cozinhavam e limpavam.

- Ela me disse que primeiro alguém arranca todas as penas, depois... depois tira as entranhas. - Mariko controlou o próprio enjôo. - Depois o pássaro é cortado em pedacinhos e frito em óleo, ou cozido com sal e temperos. - O nariz dela franziu-se.

- Às vezes eles o cobrem com lama e o colocam no meio de brasas e o assam. Não temos fornos, Anjin-san. Portanto será frito. Espero que esteja bom.

- Tenho certeza de que estará perfeito - disse ele, certo de que estaria intragável.

Ela riu.

- O senhor é transparente às vezes, Anjin-san.

- A senhora não compreende como a comida é importante! - Apesar de si mesmo, ele sorriu. - Tem razão. Eu não devia ser tão interessado por comida. Mas não consigo controlar a fome.

- Logo conseguirá. Aprenderá até a tomar chá numa xícara vazia.

- O quê?

- Este não é lugar para explicar isso, Anjin-san, nem o momento. Pois é preciso que se esteja desperto e muito alerta. É necessário um pôr-do-sol tranqüilo, ou um amanhecer. Um dia lhe mostrarei como se faz, por causa do que o senhor fez. Oh, é tão bom estar aqui, não? Um banho é realmente um dom de Deus.

Ele ouviu os criados lá fora, alimentando o fogo. Agüentou o calor que se intensificava o mais que pôde, depois saiu da água, meio auxiliado por Suwo, e deitou-se ofegante, sobre a espessa toalha. O velho afundou os dedos. Blackthorne poderia ter gritado de prazer.

- Isto é muito bom.

- O senhor mudou muito nos últimos dias, Anjin-san.

- Mudei?

- Oh, sim, desde o seu renascimento... sim, muito.

Ele tentou se recordar da primeira noite, mas lembrava-se de pouca coisa. De algum modo conseguira voltar para casa sobre as próprias pernas. Fujiko e as criadas o ajudaram a se deitar. Após um sono sem sonhos, despertou ao amanhecer e foi nadar. Depois, secando ao sol, agradecera a Deus a força e a pista que Mariko lhe dera. Mais tarde, caminhando para casa, saudou os aldeões, sabendo secretamente que eles estavam libertos da maldição de Yabu, assim como ele estava.

Depois, quando Mariko chegou, ele mandou buscar Mura.

- Mariko-san, por favor, diga isto a Mura: temos um problema, você e eu. Vamos resolvê-lo juntos. Quero freqüentar a escola da aldeia. Aprender a falar com as crianças.

- Elas não têm escola, Anjin-san.

- Nenhuma?

- Não. Mura diz que há um mosteiro a algumas ris a oeste e os monges poderiam ensiná-lo a ler e escrever, se o senhor quisesse. Mas isto é uma aldeia, Anjin-san. As crianças aqui precisam aprender a pescar, a conhecer o mar, a fazer redes, a plantar e cultivar o arroz e as plantações. Há pouco tempo para qualquer outra coisa, quanto mais para ler e escrever. Além disso, os pais e os avós ensinam as suas crianças, como sempre.

- Então como poderei aprender quando a senhora tiver partido?

- O Senhor Toranaga enviará os livros.

- Precisarei de mais do que de livros.

- Será tudo satisfatório, Anjin-san.

- Sim. Talvez. Mas diga ao chefe da aldeia que sempre que eu cometer um erro, qualquer um - qualquer um, até uma criança - deve me corrigir. Imediatamente. Eu lhe ordeno.

- Ele lhe agradece, Anjin-san.

- Alguém aqui fala português?

- Ele diz que não.

- Alguém nos arredores?

- Iyé, Anjin-san.

- Mariko-san, preciso ter alguém para quando a senhora partir.

- Direi isso a Yabu-san.

- Mura-san, você...

- Ele diz que o senhor não deve usar "san" com ele nem com nenhum aldeão. Eles estão abaixo do senhor. Não é correto que o senhor diga "san" a eles ou a qualquer um inferior ao senhor.

Fujiko também se havia curvado até o chão naquele primeiro dia.

- Fujiko-san lhe dá as boas-vindas a casa, Anjin-san. Ela diz que o senhor lhe concedeu uma grande honra e roga o seu perdão pela rudeza no navio. Sente-se honrada em ser sua consorte e cabeça da sua casa. Pergunta se o senhor conservará as espadas, coisa que lhe agradará imensamente. Pertenceram ao pai dela, que já morreu. Ela não as deu ao marido porque ele tinha suas próprias espadas.

- Agradeça-lhe e diga que fico honrado com que ela seja consorte - dissera ele.

Mariko curvara-se também. Formalmente.

- O senhor está numa nova vida agora, Anjin-san. Olhamo-lo com novos olhos. É costume nosso ser formais às vezes, com grande seriedade. O senhor abriu-me os olhos. Muitíssimo. Antes o senhor era apenas um bárbaro para mim. Por favor, desculpe a minha estupidez. O que fez prova que é samurai. Agora é samurai. Por favor, perdoe a minha falta de educação de antes.

Ele se sentira muito alto naquele dia. Mas a sua quase-morte autoinfligida o alterara mais do que ele mesmo percebia, e o marcara para sempre, mais do que a soma de todas as suas outras quase-mortes. Na realidade você não estava contando com Omi? perguntava-se ele. Omi apararia o golpe? Você não lhe deu sinais de alarma em profusão? Não sei. Só sei que estou contente porque ele estava preparado, respondeu Blackthorne a si mesmo. Lá se foi mais uma vida!

- Esta é a minha nona vida. A última! - disse alto.

Os dedos de Suwo pararam no mesmo instante.

- O quê? - perguntou Mariko. - O que disse, Anjin-san?

- Nada. Não foi nada - retrucou ele, constrangido.

- Machuquei-o, amo? - disse Suwo.

- Não.

Suwo disse mais alguma coisa que ele não compreendeu.

- Dozo?

- Ele quer lhe massagear as costas agora - disse Mariko, distante.

Blackthorne pôs-se de bruços, repetiu as palavras em japonês e esqueceu imediatamente. Podia vê-la através do vapor. Ela respirava profundamente, a cabeça ligeiramente inclinada para trás, a pele rosada.

Como é que agüenta o calor? perguntou-se ele. Treinamento, acho eu, desde a infância.

Os dedos de Suwo lhe causavam grande prazer, e ele cochilou momentaneamente.

No que é que eu estava pensando?

Estava pensando na sua nona vida, sua última vida, e estava com medo, lembrando-se da superstição. Mas é tolice, aqui na Terra dos Deuses, ser supersticioso. As coisas aqui são diferentes e isso vale para sempre. Hoje é para sempre.

Amanhã muitas coisas podem acontecer.

Hoje vou me adaptar às regras deles.

Vou, sim.

 

A criada trouxe o prato coberto. Segurava-o alto, acima da cabeça, conforme o costume, a fim de que sua respiração não maculasse o alimento. Ansiosamente ela se ajoelhou e colocou-o com cuidado sobre a mesa-bandeja diante de Blackthorne. Sobre cada mesinha havia tigelas e pauzinhos, cálices de saquê e guardanapos, e um minúsculo arranjo de flores. Fujiko e Mariko estavam sentadas em frente a ele. Usavam flores e pentes de prata no cabelo. O quimono de Fujiko era estampado com peixes verdeclaros sobre um fundo branco, o obi dourado. Mariko usava um preto e vermelho, com uma fina capa prateada e com crisântemos e um obi vermelho e prata. Estavam ambas perfumadas, como sempre. O incenso ardia a fim de manter a distância os insetos noturnos.

Blackthorne se preparara há muito tempo. Sabia que qualquer desagrado seu destruiria a noite delas. Se havia como apanhar faisões, então haveria mais caça, pensou ele. Tinha uni cavalo e armas, e podia caçar por si mesmo, desde que arrumasse tempo para isso.

Fujiko inclinou-se para a frente e tirou a tampa de sobre o prato. Os pedacinhos de carne frita estavam dourados e pareciam perfeitos. Ele começou a salivar com o aroma.

Lentamente pegou um pedaço com os pauzinhos, desejando que não caísse, e mastigou. Estava duro e seco, mas ele não comia carne há tanto tempo que achou delicioso. Outro pedaço. Ele suspirou de prazer.

- Ichi-ban, ichi-ban, por Deus!

Fujiko corou e serviu-lhe o saquê para ocultar o rosto. Mariko abanou-se, seu leque carmesim uma libélula. Blackthorne bebeu o vinho a grandes goles, outro pedaço, tomou mais vinho e ritualisticamente ofereceu a Fujiko o cálice cheio até a borda. Ela recusou, conforme o costume, mas naquela noite ele insistiu, e ela esvaziou o cálice, engasgando ligeiramente. Mariko também recusou e também foi instada a beber. Depois ele atacou o faisão tentando não demonstrar muito o prazer que sentia. As mulheres mal tocaram nas pequenas porções de verduras e peixe. Isso não o incomodou, porque era um costume feminino comer antes ou depois, de modo que todas as atenções delas pudessem se devotar ao amo.

Ele comeu o faisão todo, três tigelas de arroz e sorveu ruidosamente o saquê, o que era sinal de boas maneiras. Sentiu-se saciado pela primeira vez em meses. No decorrer da refeição, esvaziou seis frascos de vinho quente, Mariko e Fujiko dois entre si. Agora estavam coradas, dando risadinhas e no estágio da tolice.

Mariko casquinou e pôs a mão diante da boca.

- Gostaria de poder tomar saquê como o senhor, Anjin-san. Bebe melhor do que qualquer homem que eu jamais tenha conhecido. Aposto como o senhor seria o melhor em Izu! Eu poderia ganhar muito dinheiro com o senhor!

- Pensei que os samurais desaprovassem o jogo.

- Oh, desaprovam, desaprovam totalmente, eles não são mercadores ou camponeses. Mas nem todos os samurais são tão fortes quanto os outros e muitos... como se diz... muitos apostam como os bárbaros ... como os portugueses.

- As mulheres jogam?

- Oh, sim. Muito. Mas apenas com outras damas e em quantias cuidadosas, e sempre de modo a que os maridos não descubram! - Alegremente traduziu para Fujiko, que estava mais corada do que ela. - Sua consorte pergunta se os ingleses jogam. O senhor gosta de apostas?

- É o nosso passatempo nacional. - E contou-lhe sobre as corridas de cavalos, boliche, touradas, corridas, corridas de cães, falcoaria, ações de companhias novas, cartas de corso, tiro, dardos, loterias, boxe, cartas, luta romana, dados, xadrez, dominó, e sobre a época das feiras, quando se colocavam ceitis sobre números e se apostava na roleta.

- Fujiko pergunta como encontram tempo para viver, para guerrear e para "travesseirar" - disse Mariko.

- Para isso há sempre tempo. - Seus olhos se encontraram um instante mas ele não conseguiu ler nada nos dela, apenas felicidade e, talvez, excesso de vinho.

Mariko pediu-lhe que cantasse a canção hornpipe para Fujiko, e ele o fez. Elas o cumprimentaram e disseram que era a melhor que já tinham ouvido.

- Tomem mais saquê!

- Oh, o senhor não deve servir, Anjin-san, isso é dever de mulher. Eu não lhe disse?

- Sim. Tome mais um pouco, dozo!

- É melhor não. Acho que vou desabar. - Mariko abanou o leque furiosamente e o ar agitou os fios de cabelo que haviam escapado do seu penteado impecável.

- A senhora tem belas orelhas - disse ele.

- O senhor também. Nós, Fujiko-san e eu, achamos que o seu nariz é perfeito também, digno de um daimio.

Ele sorriu e curvou-se elaboradamente para elas. Elas retribuíram a reverência. As dobras do quimono de Mariko afastaram-se ligeiramente do pescoço, revelando a extremidade do seu quimono interior escarlate e a protuberância dos seios, e isso o excitou consideravelmente.

- Saquê, Anjin-san?

Ele estendeu o cálice, os dedos firmes. Ela verteu, olhando o cálice, a ponta da língua tocando os lábios enquanto se concentrava.

Relutantemente Fujiko também aceitou um pouco, embora dissesse que já não podia sentir as pernas. Sua serena melancolia parecia ter desaparecido naquela noite e ela parecia jovem de novo. Blackthorne notou que ela não era tão feia quanto ele pensara uma vez.

 

Jozen tinha a cabeça zunindo. Não por causa de saquê, mas devido à incrível estratégia de guerra que Yabu, Omi e Igurashi lhe descreveram tão abertamente. Apenas Naga, o segundo em comando, filho do arquiinimigo, não dissera nada, e permanecera a noite toda frio, arrogante, de costas rijas, com o narigão característico de Toranaga num rosto tenso.

- Surpreendente, Yabu-sama - disse Jozen. - Agora posso compreender a razão do sigilo. Meu amo também compreenderá. Sábio, muito sábio. E o senhor, Nagan-san, esteve em silêncio a noite toda. Gostaria de ouvir a sua opinião. O que acha desta nova mobilidade, desta nova estratégia?

- Meu pai acredita que todas as possibilidades bélicas devem ser consideradas, Jozen-san - replicou o jovem.

- Mas e o senhor, a sua opinião?

- Fui mandado para cá apenas para obedecer, observar, ouvir, aprender e testar. Não para dar opiniões.

- Naturalmente. Mas como segundo em comando, devo dizer, como um ilustre segundo em comando, considera a experiência um sucesso?

- Yabu-sama ou Omi-san devem responder a isso. Ou meu pai.

- Mas Yabu-sama disse que todos esta noite conversaríamos livremente. O que há para ocultar? Somos todos amigos, neh? O filho tão famoso de um pai tão famoso deve ter uma opinião. Neh?

Os olhos de Naga estreitaram-se ante o sarcasmo, mas ele não respondeu.

- Todos podem falar livremente, Naga-san - disse Yabu.

- O que pensa?

- Penso que, tendo a surpresa como aliada, esta idéia venceria uma escaramuça ou possivelmente uma batalha. De surpresa, sim. Mas e depois? - A voz de Naga fluiu gelidamente. - Depois todos os lados usariam o mesmo plano e uma vasta quantidade de homens morreria desnecessariamente, assassinados sem honra por um atacante que não vai saber nem a quem matou. Duvido que meu pai realmente autorize o uso disso numa autêntica batalha.

- Ele disse isso? - Yabu fez a pergunta incisivamente, sem se preocupar com Jozen.

- Não, Yabu-sama. Estou dando a minha opinião. Naturalmente.

- Mas o Regimento de Mosquetes, não o aprova? Ele lhe causa repugnância? - perguntou Yabu sobriamente.

Naga olhou-o com olhos inexpressivos, de réptil.

- Com grande respeito, já que o senhor pede a minha opinião, sim, considero-o repugnante. Nossos antepassados sempre souberam a quem mataram ou quem os derrotava. Isso é bushido, o nosso caminho, o Caminho do Guerreiro, o caminho de um verdadeiro samurai. O melhor homem é o vencedor, neh? Mas agora, isto? Como um homem prova ao seu senhor o próprio valor? Como pode recompensar a coragem? Atirar balas é corajoso, mas também é estúpido. Onde está o valor disso? As armas são contra o nosso código samurai. Os bárbaros lutam desse modo, os camponeses lutam desse modo. O senhor percebe que mercadores e camponeses imundos, até elas, poderiam lutar desse modo? - Jozen riu e Naga continuou, mais ameaçador até. - Alguns camponeses fanáticos poderiam matar qualquer quantidade de samurais, dispondo de armas suficientes! Sim, camponeses poderiam matar qualquer um de nós, até o Senhor Ishido, que quer se sentar no lugar do meu pai.

Jozen empertigou-se.

- O Senhor Ishido não cobiça as terras de seu pai. Visa apenas a proteger o império para o seu herdeiro legítimo.

- Meu pai não é ameaça ao Senhor Yaemon, nem ao reino.

- Naturalmente, mas o senhor estava falando de camponeses. O taicum foi camponês um dia. Meu senhor Ishido foi camponês. Eu fui camponês. E ronin!

Naga não queria discutir. Sabia que não era páreo para Jozen, cuja destreza com a espada e o machado era renomada.

- Não estava tentando insultar o seu amo, o senhor ou a quem quer que seja, Jozen-san. Estava meramente dizendo que nós, samurais, devemos todos nos certificar bem de que os camponeses nunca terão armas, ou nenhum de nós estará seguro.

- Mercadores e camponeses nunca nos preocuparão - disse Jozen.

- Concordo - acrescentou Yabu -, e, Naga-san, concordo com parte do que você disse. Sim. Mas as armas são modernas. Logo todas as batalhas serão travadas com armas de fogo. Concordo em que é desagradável. Mas é o rumo da guerra moderna. E depois as coisas serão como sempre foram: os samurais mais bravos sempre conquistarão.

- Não, desculpe, mas está enganado, Yabu-sama! O que foi que esse bárbaro nos contou - a essência da estratégia de guerra deles? Ele voluntariamente admite que todos os exércitos são recrutados e mercenários. Neh? Mercenários! Nenhum senso de dever para com o senhor. Os soldados apenas lutam por paga e saquê, para violar e fartar-se. Ele não disse que os exércitos deles são exércitos de camponeses? Foi isso o que as armas levaram ao mundo dele, e é isso o que trarão ao nosso. Se eu tivesse poder, tomaria a cabeça desse bárbaro esta noite e tornaria ilegais todas as armas permanentemente.

- É isso o que pensa o seu pai? - perguntou Jozen rapidamente.

- Meu pai não diz a mim nem a ninguém o que pensa, conforme o senhor certamente sabe. Não falo por meu pai, ninguém fala por ele - replicou Naga, furioso por ter-se permitido cair na armadilha e acabar falando. - Fui mandado para cá a fim de obedecer, ouvir e não falar. Não teria falado se não tivesse sido solicitado. Se o ofendi, ou ao senhor, Yabu-sama, ou ao senhor, Omi-san, peço desculpas.

- Não há necessidade de se desculpar. Eu pedi sua opinião - disse Yabu. - Por que alguém ficaria ofendido? Isto é uma discussão, neh? Entre líderes. Você tornariá ilegais as armas?

- Sim. Acho que o senhor seria prudente mantendo um controle muito rígido de cada arma de fogo no seu domínio.

- Todos os camponeses estão proibidos de usar armas de qualquer espécie. Meus camponeses e meu povo são muito bem controlados.

Jozen sorriu malicioso para o jovem delgado, sentindo aversão por ele.

- Tem idéias interessantes, Naga-san. Mas está enganado quanto aos camponeses. Para os samurais eles não são nada além de provedores. Não representam mais ameaça do que um monte de esterco!

- No momento! - disse Naga, deixando-se comandar pelo orgulho. - É por isso que eu baniria as armas agora. Tem razão, Yabu-sama, ao afirmar que uma nova era exige novos métodos. Mas por causa do que disse esse Anjin-san, esse único bárbaro, eu iria muito além das nossas leis atuais. Eu divulgaria editos no sentido de que toda pessoa que não os samurais encontrada com uma arma de fogo ou apanhada comerciando com armas imediatamente perderia a vida, assim como cada membro da sua família de todas as gerações. Mais, eu proibiria a fabricação e a importação de armas de fogo. Proibiria os bárbaros de usá-las e de trazê-las às nossas praias. Sim, se eu tivesse poder - a que não viso e jamais visarei -, manteria os bárbaros totalmente fora do nosso país, exceto por alguns padres e um porto para o comércio, que eu cercaria com uma cerca alta e guerreiros merecedores de confiança. Por último, eu mandaria matar imediatamente esse bárbaro de mente repugnante, o Anjin-san, a fim de que o seu imundo conhecimento não se difundisse. Ele é uma doença.

- Ah, Naga-san - disse Jozen -, deve ser bom ser tão jovem. O senhor sabe, meu amo concorda com muita coisa do que disse sobre os bárbaros. Ouvi-o dizer muitas vezes: "Mantenha-os fora daqui... chute-os para fora... dê-lhes um pontapé no traseiro de volta a Nagasaki e mantenha-os lá!" O senhor mataria o Anjin-san, hein? Interessante. O meu amo também não gosta dele. Mas para ele... - Ele parou. - Ah, sim, o senhor tem um bom pensamento sobre as armas de fogo. Posso ver isso claramente. Posso dizer isso ao meu amo? A sua idéia sobre as novas leis?

- Naturalmente. - Naga estava abrandado, e mais calmo agora que tinha falado o que trazia atravessado desde o primeiro dia.

- Você deu a sua opinião ao Senhor Toranaga? - perguntou Yabu.

- O Senhor Toranaga não me perguntou a minha opinião. Espero que um dia ele me honre perguntando, como o senhor o fez - respondeu Naga de imediato, com sinceridade, e ficou surpreso de que ninguém detectasse a mentira.

- Como isto é uma discussão livre, senhor - disse Omi -, digo que esse bárbaro é um tesouro. Acredito que devemos aprender com ele. Temos que saber sobre armas e navios de combate, porque eles sabem sobre isso. Temos que saber tudo o que sabem assim que ficarem sabendo, e mesmo agora, alguns de nós devem começar a aprender a pensar como eles, de modo que logo possamos ultrapassá-los.

Naga disse, confiantemente:

- O que eles poderiam saber, Omi-san? Sim, armas e navios. Mas o que mais? Como poderiam nos destruir? Não há um samurai entre eles. Esse Anjin não admite abertamente que até os reis deles são assassinos e fanáticos religiosos? Somos milhões, eles são um punhado. Poderíamos esmagá-los apenas com as mãos.

- Esse Anjin-san abriu-me os olhos, Naga-san. Descobri que a nossa terra e a China não são o mundo todo, são apenas uma parte muito pequena. Primeiro pensei que o bárbaro fosse só uma curiosidade. Agora, não. Agradeço aos deuses por ele. Acho que nos salvou e sei que podemos aprender com ele. Já nos deu poder sobre os bárbaros meridionais ... e sobre a China.

- O quê?

- O taicum falhou porque os efetivos deles são grandes demais para nós, homem a homem, seta a seta, neh? Com armas e a habilidade bárbara, poderíamos tomar Pequim.

- Com traição bárbara, Omi-san!

- Com conhecimento bárbaro, Naga-san, poderíamos tomar Pequim. Quem quer que tome Pequim acaba controlando a China. E quem quer que controle a China pode controlar o mundo. Devemos aprender a não nos envergonhar de adquirir conhecimento, venha de onde vier.

- Digo que não precisamos de nada lá de fora.

- Sem ofensa, Naga-san, digo que devemos proteger esta Terra dos Deuses de qualquer jeito. É o nosso dever primordial proteger a única e divina posição que temos na terra. Apenas esta é a Terra dos Deuses, neh? Apenas o nosso imperador é divino. Concordo com que esse bárbaro deva ser silenciado. Mas não pela morte. Por isolamento permanente aqui em Anjiro, até que tenhamos aprendido tudo o que sabe.

Jozen coçou-se pensativamente.

- Meu amo será informado das suas idéias. Concordo em que o bárbaro deve ser isolado. E também que o treinamento deve cessar imediatamente.

Yabu puxou um pergaminho da manga.

- Aqui está um relatório completo sobre a experiência para o Senhor Ishido. Quando ele desejar que o treinamento cesse, naturalmente o treinamento cessará.

Jozen aceitou o pergaminho.

- E o Senhor Toranaga? E quanto a ele? - Seus olhos pousaram em Naga. Este não disse nada, apenas fitou o rolo de pergaminho.

- O senhor terá condição de pedir-lhe a opinião diretamente - disse Yabu. - Ele tem um relatório semelhante. Presumo que o senhor partirá para Yedo amanhã, não? Ou gostaria de presenciar o treinamento? Não preciso lhe dizer que os homens ainda não estão perfeitos.

- Gostaria de assistir a um "ataque".

- Omi-san, providencie. Você comanda.

- Sim, senhor.

Jozen voltou-se para o seu segundo em comando e deu-lhe o pergaminho.

- Masumoto, leve isto ao Senhor Ishido. Parta imediatamente.

- Sim, Jozen-san.

- Providenciê-lhe guias até a fronteira - disse Yabu a Igurashi -, e cavalos descansados.

Igurashi partiu com o samurai no mesmo instante. Jozen espreguiçou-se e bocejou.

- Por favor, desculpe-me - disse -, mas é toda a cavalgada dos últimos dias. Devo agradecer-lhe por uma noite extraordinária, Yabu-sama. Suas idéias têm longo alcance. E as suas, Omi-san. E as suas, Naga-san. Elogiá-lo-ei ao Senhor Toranaga e ao meu amo. Agora, se me desculparem, estou muito cansado e Osaka fica a um longo caminho.

- Naturalmente - disse Yabu. - Como estava Osaka?

- Muito bem. Lembra-se daqueles bandidos, os que os atacaram por terra e por mar?

- Naturalmente.

- Tomamos quatrocentas e cinqüenta cabeças naquela noite. Muitos usavam uniformes de Toranaga.

- Os ronins não têm honra. Nenhum deles.

- Alguns ronins têm - disse Jozen, aguilhoado com o insulto. Ele vivia sempre com a vergonha de um dia ter sido ronin.

- Alguns usavam até seus novos uniformes cinzentos. Nenhum escapou. Morreram todos.

- E Buntaro-san?

- Não. Ele... - Jozen parou. O "não" escapara, mas agora que o tinha dito, não se importou. - Não. Não sabemos com certeza. Ninguém encontrou a cabeça dele. O senhor não ouviu nada sobre ele?

- Não - disse Naga.

- Talvez tenha sido capturado. Talvez simplesmente o tenham esquartejado e dispersado os pedaços. Meu amo gostaria de saber, quando o senhor tiver notícias. Agora está tudo muito bem em Osaka. Os preparativos para o encontro estão em andamento. Haverá pródigos entretenimentos para celebrar a nova era, e naturalmente, para honrar todos os daimios.

- E o Senhor Toda Hiromatsu? - perguntou Naga polidamente.

- O velho Punho de Aço está mais forte e grosseiro do que nunca.

- Ainda está lá?

- Não. Partiu com todos os homens de seu pai alguns dias antes de mim.

- E a família de meu pai?

- Ouvi dizer que a Senhora Kiritsubo e a Senhora Sazuko pediram para ficar com o meu amo. Um médico aconselhou a senhora a descansar por um mês - questão de saúde, o senhor sabe. Ele achou que a jornada não seria boa para a criança. - A Yabu acrescentou: - Ela levou um tombo na noite em que o senhor partiu, não foi?

- Sim.

- Não é nada sério, espero - disse Naga, muito preocupado.

- Não, Naga-san, nada sério - disse Jozen, depois novamente para Yabu: - O senhor informou o Senhor Toranaga da minha chegada?

- Naturalmente.

- ótimo.

- As notícias que o senhor nos trouxe vão interessá-lo grandemente.

- Sim. Vi um pombo-correio fazer um círculo e voar para o norte.

- Disponho desse serviço agora. - Yabu não acrescentou que um pombo de Jozen também fora observado, nem que falcões o haviam interceptado perto das montanhas, nem que a mensagem fora decifrada: "Em Anjiro. Tudo verdade conforme relatado. Yabu, Naga, Omi e bárbaro aqui".

- Partirei amanhã, com a sua permissão, depois do "ataque". O senhor me dará cavalos descansados? Não devo fazer o Senhor Toranaga esperar. Estou ansioso por vê-lo. Meu amo também. Em Osaka. Espero que me acompanhe, Naga-san.

- Recebi ordens de vir para cá, ficarei aqui. - Naga manteve os olhos baixos, mas estava ardendo de cólera contida.

Jozen partiu e caminhou com os guardas colina acima, em direção ao seu acampamento. Substituiu as sentinelas, ordenou aos homens que dormissem, e entrou na sua pequena tenda de arbustos que haviam construído contra a chuva que se aproximava. À luz de vela, sob o mosquiteiro, reescreveu a mensagem anterior num delgado pedaço de papel de arroz, e acrescentou: "Os quinhentos canhões são letais. Planejados ataques de surpresa em massa - relatório completo já enviado através de Masumoto".

Depois datou e apagou a vela. Na escuridão, deslizou para fora do mosquiteiro, retirou um dos pombos dos cestos e colocou a mensagem no minúsculo recipiente no pé da ave. Depois, furtivamente dirigiu-se a um dos homens e estendeu-lhe o pombo.

- Leve-o para fora do mato - sussurrou ele. - Esconda-o em algum lugar onde possa pernoitar em segurança até o amanhecer. Tão longe quanto possível. Mas seja cuidadoso, há olhos por toda parte. Se for interceptado, diga que eu o mandei patrulhar, mas esconda o pombo primeiro. - O homem se afastou tão silenciosamente quanto uma barata.

Satisfeito consigo mesmo, Jozen olhou na direção da aldeia, lá embaixo. Havia luzes na fortaleza e na vertente oposta, na casa que ele sabia ser de Omi. Havia também algumas na casa logo abaixo, a casa atualmente ocupada pelo bárbaro.

Aquele rapazola, Naga, tem razão, pensou Jozen, afastando um mosquito com a mão. O bárbaro é uma praga imunda.

 

- Boa noite, Fujiko-san.

- Boa noite, Anjin-san.

A shoji fechou-se atrás dela. Blackthorne tirou o quimono, a tanga, e vestiu o quimono de dormir, mais leve. Enfiou-se sob o mosquiteiro e deitou-se.

Soprou a vela. Uma profunda escuridão o envolveu. A casa estava silenciosa agora. As pequenas janelas estavam fechadas e ele podia ouvir o mar quebrando na praia. Nuvens obscureciam a lua.

O vinho e o riso o haviam deixado sonolento e eufórico. Ouvia a arrebentação e se sentia à deriva com ela, a mente enevoada. Ocasionalmente um cão latia na aldeia lá embaixo. Eu devia arrumar um cachorro, pensou ele, lembrando-se do bull terrier em casa. Será que ainda está vivo? O nome era Grog, mas Tudor, seu filho, sempre chamava o animal de "Og-Og".

Ah, Tudor, rapazinho. Faz tanto tempo.

Gostaria de poder vê-los todos - ou até escrever uma carta o           mandar para casa. Vejamos, pensou, como começaria?

"Meus queridos: esta é a primeira carta que pude mandar para casa desde que desembarcamos no Japão. As coisas vão bem, agora que sei como viver de acordo com os modos deles. A comida é terrível, mas esta noite comi um faisão e logo terei o meu navio de volta. Por onde começar a minha história? Hoje sou como um senhor feudal nesta terra estranha. Tenho uma casa, um cavalo, oito criados, uma governanta, meu próprio banheiro, o minha própria intérprete. Estou limpo e barbeado agora, e me barbeio todos os dias. As lâminas de aço que eles têm aqui certamente são as melhores do mundo. Meu salário é altíssimo - o suficiente para alimentar duzentos e cinqüenta famílias do Japão, por um ano. Na Inglaterra isso seria o equivalente a quase mil guinéus de ouro por ano! Dez vezes o meu salário na companhia holandesa...”

A shoji começou a se abrir. A mão dele procurou a pistola sob o travesseiro e ele se preparou, soerguendo-se. Depois captou o farfalhar de seda quase imperceptível e um bafejo de perfume.

- Anjin-san? - Um fio de sussurro, cheio de promessa.

- Hai? - perguntou ele de modo igualmente suave, perscrutando a escuridão, incapaz de enxergar com clareza.

Os passos se aproximaram. Houve o som dela ajoelhando-se, o mosquiteiro sendo puxado para o lado, e ela se juntou a ele sob a rede. Ela lhe tomou a mão e levou-a ao peito, depois aos lábios.

- Mariko-san?

Imediatamente os dedos dela se estenderam na escuridão e tocaram-lhe os lábios, pedindo silêncio. Ele assentiu, compreendendo o risco terrível que corriam. Ele segurou-lhe o pulso minúsculo e roçou-o com os lábios. Em meio à escuridão de breu, a outra mão dele procurou e acariciou o rosto dela. Ela beijou-lhe os dedos um por um. Seu cabelo estava solto e comprido até a cintura agora. As mãos dele percorreram-lhe o corpo. A adorável sensação da seda, nada embaixo.

O gosto dela era doce. A língua dele tocou-lhe os dentes, depois contornou-lhe as orelhas, descobrindo-a. Ela afrouxou o quimono dele e deixou o seu cair para o lado, a respiração mais langorosa agora. Ela se achegou mais, aninhando-se a ele, e puxou a coberta por cima da cabeça deles. Depois começou a amá-lo, com as mãos e os lábios. Com mais ternura e empenho e conhecimento do que ele jamais conhecera.

 

Blackthorne despertou ao amanhecer. Sozinho. Ao primeiro momento teve a certeza de haver sonhado, mas o perfume dela ainda pairava, e ele soube que não fora um sonho.

Uma batida discreta.

- Hai?

- Ohayo, Anjin-san, gomen nasai. - Uma criada abriu a porta para Fujiko, depois trouxe a bandeja com chá, uma tigela de papa de arroz e bolos doces de arroz.

- Ohayo, Fujiko-san, domo - disse ele, agradecendo-lhe. Ela sempre vinha pessoalmente com a primeira refeição, abria o mosquiteiro e esperava enquanto ele comia, e a criada estendia um quimono limpo, tabis e uma tanga.

Ele sorveu o chá, perguntando-se se Fujiko sabia sobre o ocorrido à noite. O rosto dela não traía nada.

- Ikaga desu ka? Como está? - perguntou Blackthorne.

- Okagesama de genki desu, Anjin-san, Anata wa? Muito bem, obrigada. E o senhor?

A criada tirou a roupa limpa dele do armário fechado que se fundia com perfeição ao resto do aposento de gelosia de papel, depois deixou-os a sós.

- Anata wa yoku nemutta ka? Dormiu bem?

- Hai, Anjin-san, arigato gozie,nashita! - Ela sorriu, pôs a mão na cabeça simulando dor, estar bêbada e dormir como uma pedra. - Anata wa?

- Watashi wa yoku nemuru. Eu dormi muito bem.

Ela o corrigiu:

- Watashi wa yoku nemutta.

- Domo. Watashi wa yoku nemutta.

- Yoi! Talhenyoi! Bom. Muito bom.

Então, do corredor, ele ouviu Mariko chamar:

- Fujiko-san?

- Hai, Mariko-san? - Fujiko foi à shoji e abriu uma fresta. Ele não pôde ver Mariko. E não entendeu o que elas diziam. Espero que ninguém saiba, pensou. Rezo para que seja secreto, apenas entre nós. Talvez fosse melhor se tivesse sido um sonho.

Começou a se vestir. Fujiko voltou e se ajoelhou para lhe calçar os tabis.

- Mariko-san? Nan ja?

- Nani-mo, Anjin-san - replicou ela. Não era nada de importante. Foi até o takonoma, a alcova com os pergaminhos pendurados e o arranjo de flores, onde as espadas eram sempre deixadas. Entregou-as a ele. Ele as prendeu no cinto. As espadas já não lhe pareciam ridículas, embora tivesse vontade de conseguir usá-las com menos consciência de si mesmo.

Ela lhe contara que as espadas tinham sido conferidas ao seu pai, por bravura, após uma batalha particularmente sangrenta no extremo-norte da Coréia, sete anos atrás, durante a primeira invasão. Os exércitos japoneses haviam irrompido através do reino, vitoriosos, retalhando a região norte. Depois, quando estavam perto do rio Yalu, as hordas chinesas abruptamente brotaram do outro lado da fronteira para enfrentar os exércitos japoneses e, devido ao peso das suas tropas inacreditáveis, haviam-nos desbaratado. O pai de Fujiko fazia parte da retaguarda que cobria a retirada para as montanhas ao norte de Seul, onde se voltaram e travaram batalha visando a um empate. Essa campanha e a segunda tinham sido a expedição militar mais dispendiosa jamais empreendida. Quando o taicum morrera, no ano anterior, Toranaga, em nome do conselho de regentes, imediatamente ordenara aos remanescentes dos exércitos que regressassem, para grande alívio da maioria dos daimios, que detestavam a campanha coreana.

Blackthorne saiu para a varanda. Calçou as sandálias e fez um aceno de cabeça aos criados, que tinham sido reunidos em linha para saudá-lo, como de costume.

Fazia um dia encoberto. O céu estava nublado e um vento quente e úmido vinha do mar. As alpondras que estavam fixadas no cascalho do caminho estavam molhadas da chuva que caíra durante a noite. Além do portão estavam os cavalos e seus dez samurais batedores. E Mariko.

Já estava montada e usava um manto amarelo-claro sobre as calças de seda verde-clara, um chapéu de aba larga e um véu, preso por fitas amarelas, e luvas. Preso à sela, um guarda-chuva.

- Ohayo - disse ele formalmente. - Ohayo, Mariko-san.

- Ohayo, Anjin-san. Ikaga desu ka?

- Okagesama de genki desu. Anata wa?

Ela sorriu.

- Yoi, arigato goziemashita.

Não deu o menor indício de haver qualquer diferença entre eles. Mas ele esperava por isso, em público, sabendo como a situação era perigosa. Seu perfume chegou até ele, que teria gostado de beijá-la ali, diante de todos...

- Ikimasho! - disse ele, e saltou para a sela, acenando para os samurais para que se pusessem em marcha à frente. Conduziu o cavalo vagarosamente e Mariko se pôs ao seu lado. Quando ficaram sozinhos, ele se descontraiu.

- Mariko.

- Hai?

Então ele disse, em latim:

- Você é linda e eu a amo.

- Agradeço-lhe, mas todo aquele vinho da noite passada faz a minha cabeça não se sentir nem um pouco bela hoje, não de verdade, e "amor" é uma palavra cristã.

- Você é linda e cristã, e o vinho não poderia afetá-la.

- Obrigada pela mentira, Anjin-san, sim, agradeço-lhe.

- Não. Eu é que devo agradecer.

- Oh? Por quê?

- Nunca "por quê?", nada de "por quê?" Agradeço-lhe sinceramente.

- Se o vinho e a carne o deixam tão cordial, agradável e galante - disse ela -, preciso dizer à sua consorte que mova céus e terra para obtê-los para o senhor todas as noites.

- Sim. Eu repetiria tudo, sempre.

- O senhor está feliz hoje - disse ela. - Ótimo, muito bom. Mas por quê? Por quê, realmente?

- Por sua causa. Você sabe por quê?

- Não sei nada, Anjin-san.

- Nada? - arreliou ele.

- Nada.

Ele ficou perplexo. Estavam os dois sozinhos e em segurança.

- Por que "nada" tira a alma do seu sorriso? - perguntou ela.

- Estupidez! Absoluta estupidez! Esqueci que é mais prudente ser cauteloso. Foi só porque estamos sozinhos e eu queria falar a respeito. E, na verdade, dizer mais.

- O senhor fala por enigmas. Não o entendo.

Ele ficou confuso de novo.

- Não quer falar a respeito? Em absoluto?

- A respeito de quê, Anjin-san?

- O que aconteceu a noite passada, então?

- Passei pela sua porta esta noite, quando a minha criada, Koi, estava com o senhor.

- O quê!

- Nós, sua consorte e eu, achamos que ela seria um presente agradável para o senhor. Ela lhe agradou, não?

Blackthorne estava tentando se recompor. A criada de Mariko era do tamanho dela, mas mais jovem e nunca tão encantadora e nunca tão linda, mas sim, estava escuro como piche, e sim, ele tinha a cabeça enevoada por causa do vinho, mas não, não era a criada.

- Isso não é possível - disse ele em português.

- O que não é possível, senhor? - perguntou ela, na mesma língua.

Ele voltou ao latim, já que os batedores não se encontravam muito afastados, o vento soprando na sua direção.

- Por favor, não brinque comigo. Ninguém pode ouvir. Conheço uma presença e um perfume.

- Pensou que fosse eu? Oh, não era, Anjin-san. Eu ficaria honrada, mas eu nunca poderia... apesar do muito que pudesse desejar - oh, não, Anjin-san. Não era eu, mas Koi, a minha criada. Eu ficaria honrada, mas pertenço a outro até que ele esteja morto.

- Sim, mas não era a sua criada. - Ele engoliu a raiva. - Mas deixe estar como a senhora prefere.

- Era a minha criada, Anjin-san - disse ela, apaziguadora. - Nós a friccionamos com o meu perfume e instruímo-la: nada de palavras, apenas toque. Não pensamos um momento sequer que o senhor acharia que era eu! Isso não foi para ludibriá-lo, mas para o seu conforto, sabendo que as repugnantes coisas relativas a "travesseiro" o embaraçam. - Ela o fitava com olhos enormes, inocentes. - Ela lhe agradou, Anjin-san? O senhor agradou a ela.

- Uma brincadeira envolvendo coisas de grande importância às vezes não tem graça.

- Coisas de grande importância serão sempre tratadas com grande importância. Mas uma criada, na noite, com um homem, não tem importância.

- Não a considero sem importância.

- Agradeço-lhe. Digo o mesmo. Mas uma criada, à noite, com um homem, é assunto privado e sem importância. É um presente dela a ele e, algumas vezes, dele a ela. Nada mais.

- Nunca?

- Às vezes. Mas este assunto de "travesseiro" em particular não tem a vasta seriedade que o senhor lhe atribui.

- Nunca?

- Apenas quando a mulher e o homem se unem contra a lei. Neste país.

Ele se conteve, finalmente compreendendo a razão por que ela negava.

- Peço desculpas. Sim, a senhora tem razão e eu estou muito enganado. Nunca deveria ter falado. Desculpe-me.

- Por que se desculpar? Por quê? Diga-me, Anjin-san, essa garota usava um crucifixo?

- Não.

- Eu sempre uso. Sempre.

- Um crucifixo pode ser tirado - disse ele automaticamente em português. - Isso não prova nada. Podia ser emprestado, como um perfume.

- Diga-me uma última verdade: o senhor realmente viu a garota? Realmente a viu?

- Naturalmente. Por favor, vamos esquecer que...

- A noite estava muito escura, a lua nublada. Por favor, a verdade, Anjin-san. Pense! O senhor realmente viu a garota?

Claro que a vi, pensou ele indignado.

Maldição, pense direito. Você não a viu. A sua cabeça estava enevoada. Podia ter sido a criada, mas você achou que era Mariko porque desejava Mariko e na sua cabeça viu apenas Mariko, acreditando que Mariko o desejaria igualmente. Você é um imbecil. Um maldito imbecil.

- Na verdade, não. Na verdade eu devo realmente pedir desculpas - disse ele. - Como me desculpar?

- Não há necessidade de se desculpar, Anjin-san - retrucou ela, calmamente. - Já lhe disse muitas vezes que um homem nunca se desculpa, mesmo quando está errado. - Os olhos dela o arreliavam agora. - Minha criada não necessita de desculpas.

- Obrigado - disse ele, rindo. - A senhora me fez sentir como um tolo.

- Os anos desaparecem do senhor, quando ri. O tão sério Anjin-san torna-se um menino de novo.

- Meu pai dizia que eu nasci velho.

- É mesmo?

- Ele achava que sim.

- Como é ele?

- Era um excelente homem. Um armador, um capitão. Os espanhóis o mataram num lugar chamado Antuérpia, quando passaram essa cidade pela espada. Queimaram-lhe o navio. Eu tinha seis anos, mas lembro dele como um homem grande, alto, de boa índole, com cabelo dourado. Meu irmão mais velho, Arthur, tinha só oito anos... Tivemos maus momentos, Mariko-san.

- Por quê? Por favor, conte-me. Por favor!

- É tudo muito banal. Cada centavo estava empatado no navio, que se perdeu ... e, bem, não muito tempo depois disso, minha irmã morreu. Morreu de fome, realmente. Houve carestia em 71, e praga, novamente.

- Temos praga às vezes. Varíola. Vocês eram muitos na sua família?

- Três - disse ele, contente por conversar para afastar a outra mágoa. - Willia, minha irmã, tinha nove anos quando morreu. Arthur foi o próximo. Queria ser artista, escultor, mas teve que se tornar aprendiz de pedreiro para ajudar a nos sustentar. Foi morto na armada. Tinha vinte e cinco anos, o coitado, acabara de se engajar num navio, sem treinamento, que desperdício. Sou o último dos Blackthorne. A mulher e a filha de Arthur vivem com a minha mulher e filhos agora. Minha mãe ainda vive, assim como a minha avó Jacoba - tem setenta e cinco anos e é resistente como um pedaço de carvalho inglês, embora seja irlandesa. Pelo menos estavam vivas quando eu parti, há mais de dois anos.

A dor estava voltando. Pensarei neles quando partir para casa, prometeu ele a si mesmo, mas não antes disso.

- Vai cair uma tempestade amanhã - disse, olhando o mar. - E forte, Mariko-san. Depois, em três dias, teremos tempo bom.

- Esta é a estação dos temporais. O céu fica nublado a maior parte do tempo e carregado de chuva. Quando as chuvas cessam, fica muito úmido. Aí começam os taifuns.

Gostaria de estar ao mar agora, pensava ele. Será que estive ao mar alguma vez? O navio era real? O que é a realidade? Mariko ou a criada?

- O senhor não ri muito, não é, Anjin-san?

- Estive navegando muito tempo. Os marujos são sempre sérios. Aprendemos a observar o mar. Estamos sempre observando e esperando alguma catástrofe. Tire os olhos do mar um segundo e ele agarra o seu navio e o transforma em palitos de fósforo.

- Tenho medo do mar - disse ela.

- Eu também. Um velho pescador me disse um dia: " O homem que não tem medo do mar logo se afogará, porque se porá ao largo num dia em que não deveria. Mas nós temos medo do mar, portanto só naufragamos de vez em quando". - Ele olhou para ela. - Mariko-san ...

- Sim?

- Poucos minutos atrás a senhora me convenceu de que... bem, digamos que fui convencido. Agora não estou. Qual é verdade? A honro. Eu tenho que saber.

- Os ouvidos servem para ouvir. Claro que foi a criada.

- Essa criada. Posso tê-la sempre que quiser?

- Naturalmente. Mas um homem sábio não o faria.

- Porque eu poderia ficar desapontado? Da próxima vez?

- Possivelmente.

- Acho difícil possuir uma criada e perder uma criada, difícil não dizer nada...

- "Travesseiro" é um prazer. Do corpo. Não há nada a ser dito.

- Mas como dizer a uma criada que ela é linda? Que eu a amo? Que ela me encheu de êxtase?

- Não é apropriado "amar" uma criada desse modo. Não aqui, Anjin-san. Essa paixão não é nem para uma esposa ou uma consorte. - Os olhos dela se franziram repentinamente. - Mas apenas para alguém como Kiku-san, cortesã, que é muito bela e merece isso.

- Onde posso encontrar essa garota?

- Na aldeia. Eu ficaria honrada em servir de intermediária.

- Por Cristo, acho que fala a sério.

- Naturalmente. Um homem precisa de paixões de todos os tipos. Essa dárna é digna de romance... se o senhor puder pagar por ela.

- O que quer dizer isso?

- Ela seria muito dispendiosa.

- Não se compra amor. Esse tipo não vale nada. "Amor" não tem preço.

Ela sorriu.

- "Travesseirar" sempre tem preço. Sempre. Não necessariamente dinheiro, Anjin-san. Mas um homem paga, sempre, para "travesseirar", de um modo ou de outro. Ao verdadeiro amor nós chamamos dever, é de alma para alma e não necessita dessa expressão, da expressão física, exceto, talvez, a dádiva da morte.

- Está enganada. Gostaria de poder mostrar-lhe o mundo como ele é.

- Conheço o mundo como é, e como será para sempre. Deseja aquela criada desprezível de novo?

- Sim. A senhora sabe que sim...

Mariko riu alegremente.

- Então ela lhe será enviada. Ao pôr-do-sol. Nós a escoltaremos, Fujiko e eu!

- Maldição! Acho que a senhora faria isso, mesmo! - Ele riu com ela.

- Ah, Anjin-san, é bom vê-lo rir. Desde que voltou para Anjiro, o senhor passou por uma grande mudança. Uma mudança muito grande.

- Não. Não tanto. Mas a noite passada tive um sonho. Esse sonho foi a perfeição.

- Deus é a perfeição. E às vezes o pôr-do-sol, ou o nascer da lua, ou o primeiro açafrão do ano.

- Não a compreendo em absoluto.

Ela passou o véu por sobre o chapéu e olhou diretamente para ele.

- Uma vez outro homem me disse: "Não a compreendo em absoluto", e o meu marido disse: "Perdão, senhor, mas nenhum homem consegue compreendê-la. O pai não a compreende, nem os deuses, nem o Deus bárbaro dela, nem a mãe a compreende".

- Foi Toranaga? O Senhor Toranaga?

- Oh, não, Anjin-san. Foi o taicum. O Senhor Toranaga me compreende. Ele compreende tudo.

- Até a mim?

- Muitíssimo ao senhor.

- Tem certeza disso, não?

- Sim, muita.

- Ele vencerá a guerra?

- Sim.

- Sou o vassalo favorito dele?

- Sim.

- Ele vai aceitar a minha marinha?

- Sim.

- Quando vou reaver o meu navio?

- Não vai.

- Por quê?

A gravidade dela desvaneceu-se.

- Porque o senhor terá a sua "criada" em Anjiro e estará "travesseirando" tanto, que não terá energia para partir, nem de quatro, quando ela lhe implorar que suba a bordo do seu navio, e quando o Senhor Toranaga lhe pedir que suba a bordo e nos deixe a todos!

- Lá vai a senhora de novo! Num momento tão séria, no outro não!

- Isso foi só para responder-lhe, Anjin-san, e para pôr certas coisas nos devidos lugares. Ah, mas antes que o senhor nos deixe, devia ver a Senhora Kiku. Ela é digna de uma grande paixão. É tão linda e talentosa! Para ela o senhor teria que ser extraordinário!

- Estou tentado a aceitar esse desafio.

- Não desafio ninguém. Mas se o senhor estivesse preparado para ser samurai e não... não fosse estrangeiro... se estivesse preparado para tratar o "travesseiro" pelo que é, então eu ficaria honrada em agir como sua intermediária.

- O que significa isso?

- Quando o senhor estiver de bom humor, quando estiver pronto para diversão muito especial, peça à sua consorte que fale comigo.

- Por que Fujiko-san?

- Porque é dever da sua consorte providenciar para que o senhor seja satisfeito. É costume nosso tornar a vida simples. Admiramos a simplicidade, por isso homens e mulheres podem ver o "travesseiro" pelo que é: uma parte importante da vida, certamente, mas entre um homem e uma mulher há coisas mais essenciais. Humildade, por exemplo. Respeito. Dever. Até esse seu "amor". Fujiko o "ama".

- Não, não ama!

- Ela dará a vida pelo senhor. O que mais há para dar?

Finalmente ele desviou dela os olhos e fitou o mar. As ondas

encapelavam-se na praia à medida que o vento ganhava forças.

Voltou-se para ela. — Então não há nada a dizer? — perguntou.

- Entre nós?

- Nada. Isso é prudente.

- E se eu não concordar?

- O senhor tem que concordar. Está aqui. Este é o seu lar.

 

Os quinhentos atacantes galoparam através do flanco da colina num grupo desorganizado, desceram para o vale salpicado de pedras, onde os dois mil "defensores" estavam alinhados numa formação de batalha. Cada cavaleiro trazia um mosquete passado às costas e um cinto com cartucheiras para balas, pederneiras e um chifre de pólvora. Como as da maioria dos samurais, suas roupas eram uma heterogênea reunião de quimonos e trapos, mas as armas sempre as melhores que podiam pagar. Apenas Toranaga e Ishido, copiando o primeiro, insistiam em que seus homens se uniformizassem e fossem meticulosos no trajar. Todos os outros consideravam essa extravagância material como um tolo esbanjamento de dinheiro, uma inovação desnecessária. Até Blackthorne concordava com isso. Os exércitos na Europa nunca usavam uniformes - que rei podia se permitir isso, exceto para uma guarda pessoal?

Blackthorne estava em pé numa elevação com Yabu e seus ajudantes, Jozen e todos os seus homens, e Mariko. Aquele era o primeiro ensaio de ataque em larga escala. Ele aguardava inquieto. Yabu estava excepcionalmente tenso, e Omi e Naga estavam suscetíveis quase ao ponto de beligerância. Particularmente Naga.

- O que está acontecendo com todo mundo? - perguntara a Mariko.

- Talvez desejem fazer bonito na frente do seu senhor e do hóspede.

- Ele também é um daimio?

- Não. Mas é importante, é um dos generais do Senhor Ishido. Seria bom se tudo saísse perfeito hoje.

- Gostaria de que me tivessem prevenido de que haveria um ensaio.

- De que teria servido isso? Tudo o que podia fazer, o senhor fez.

Sim, pensou Blackthorne, enquanto olhava os quinhentos. Mas eles ainda estão longe de estarem prontos. Certamente Yabu sabe disso, todo mundo sabe. Portanto, se houver um desastre, bem, será karma, disse ele a si mesmo com mais confiança, e encontrou consolo nesse pensamento.

Os atacantes ganhavam velocidade e os defensores se mantinham à espera sob as bandeiras de seus capitães, escarnecendo do "inimigo' como fariam normalmente, enfileirados numa formação ampla, com uma profundidade de três ou quatro homens. Logo os atacantes desmontariam fora do alcance de uma seta. Depois os guerreiros mais valentes de ambos os lados truculentamente avançariam, arrogantes, para lançar o desafio, proclamando a própria linhagem e superioridade com os insultos óbvios. Teriam início conflitos armados isolados, o número de participantes gradualmente iria aumentando, até que um comandante ordenasse um ataque geral e aí era cada um por si. Normalmente o grupo maior derrotava o menor, depois as reservas eram trazidas e a confusão se repetia até que o moral de um lado arrefecia, e aos poucos covardes que se retiravam logo se unia a maioria, sucedendo-se uma debandada. A traição não era habitual. Algumas vezes regimentos inteiros, seguindo as ordens do amo, trocavam de lado, para serem bem-vindos como aliados - sempre bem-vindos, mas nunca merecedores de confiança. Algumas vezes os comandantes derrotados corriam para se reagruparem a fim de lutar de novo. Algumas vezes ficavam e lutavam até a morte, algumas vezes cometiam seppuku com cerimônia. Raramente eram capturados. Alguns ofereciam seus serviços aos vitoriosos. Algumas vezes isso era aceito, mas na maioria era recusado. A morte era o quinhão dos derrotados, rápida para os bravos e vergonhosa para os covardes. E esse era o padrão histórico de todas as escaramuças no país, mesmo nas grandes batalhas. Os soldados ali eram o mesmo que em qualquer outro lugar, com a diferença de que eram ferozes e havia muitos, muitos mais preparados para morrer pelos respectivos amos do que em qualquer outro lugar na terra.

O tropel dos cascos ecoou no vale.

- Onde está o comandante do ataque? Onde está Omi-san? - perguntou Jozen.

- No meio dos homens, tenha paciência - respondeu Yabu.

- Mas onde está o estandarte dele? E por que não está usando armadura e plumas de combate? Onde está o estandarte do comandante? São exatamente como um bando de bandidos imundos!

- Seja paciente! Todos os oficiais têm ordens de permanecer indistinguíveis. Eu lhe disse. E por favor, não se esqueça de que estamos simulando uma batalha no auge, que isto é parte de uma grande batalha, com reservas e ar...

Jozen explodiu:

- Onde estão as espadas deles? Nenhum está usando espadas! Samurais sem espadas? Seriam massacrados!

- Seja paciente!

Agora os atacantes estavam desmontando. Os primeiros guerreiros avançaram das posições de defesa para mostrar o seu valor. E um número igual de defensores começou a imitá-los. Então, de repente, a canhestra massa de atacantes precipitou-se em cinco falanges cerradas e disciplinadas, cada uma com quatro fileiras de vinte e cinco homens, três falanges à frente e duas na reserva, quarenta passos atrás. Como um todo, investiram contra o inimigo. Atingindo o raio de tiro, detiveram-se com um estremecimento e as fileiras da frente dispararam, em uníssono, uma salva de rebentar os ouvidos. Gritos e homens morrendo. Jozen e seus homens abaixaram-se reflexamente, depois olharam atônitos quando as fileiras da frente se ajoelharam e começaram a recarregar, enquanto as segundas fileiras faziam fogo por cima delas, com as terceiras e quartas fileiras seguindo o mesmo esquema. A cada salva mais defensores caíam, e o vale se encheu de tiros, gritos e confusão.

- O senhor está matando seus próprios homens! - gritou Jozen por sobre o tumulto.

- É munição vazia, não é real. Estão todos representando, mas imagine que se trata de um ataque real, com balas de verdade! Olhe!

Os defensores "recuperaram-se" do choque inicial. Reagruparam-se e fizeram meia-volta para um ataque frontal. Mas a essa altura as fileiras da frente já haviam recarregado e, a uma ordem, dispararam outra salva de uma posição ajoelhada, depois a segunda fila atirou de pé, imediatamente se ajoelhando para recarregar, depois a terceira e a quarta, como antes, e embora muitos mosqueteiros fossem lentos e as fileiras se desordenassem, foi fácil imaginar a terrível dizimação que homens treinados causariam. O contra-ataque falhou, depois se dissolveu, e os defensores se retiraram numa confusão simulada, até a elevação, parando logo abaixo dos observadores. Muitos "mortos" jaziam pelo chão.

Jozen e seus homens estavam abalados.

- Essas armas romperiam qualquer linha!

- Espere. A batalha não terminou!

Novamente os defensores se formaram e agora seus comandantes os exortaram à vitória, convocaram as reservas, e ordenaram o ataque geral final. Os samurais correram colina abaixo, emitindo seus terríveis gritos de batalha, para cair em cima do inimigo.

- Agora serão esmagados - disse Jozen, envolvido como todos os outros pelo realismo da batalha simulada.

E estava certo. As falanges não resistiram. Romperam-se e dispararam na corrida, sob os gritos de batalha dos samurais autênticos, com espadas e lanças, e Jozen e seus homens uniram seus gritos de escárnio ao alarido quando os regimentos se arremessaram para a matança. Os mosqueteiros corriam como os comedores de alho, cem passos, duzentos passos, trezentos, então, de repente, a uma ordem, as falanges se reagruparam, desta vez numa formação em V. Novamente as salvas ensurdecedoras começaram. O ataque vacilou. Depois parou. Mas os tiros continuaram. Depois também pararam. O jogo terminara. Mas todos na elevação sabiam que em condições reais os dois mil teriam sido massacrados.

Agora, em silêncio, defensores e atacantes começaram a se separar. Os "corpos" se levantaram, armas foram coletadas. Houve risos e gemidos. Muitos homens mancavam e alguns estavam com ferimentos mais graves.

- Cumprimento-o, Yabu-sama! - disse Jozen com grande sinceridade. - Agora compreendo tudo o que o senhor queria dizer!

- O tiroteio estava disperso - disse Yabu, inteiramente encantado. - Vai levar meses para treiná-los.

Jozen balançou a cabeça.

- Eu não gostaria de atacá-los agora. Não se tivessem munição verdadeira. Nenhum exército poderia resistir àquele murro, nenhum alinhamento. As fileiras nunca conseguiriam permanecer fechadas. E então se lançariam tropas comuns e cavalaria através da brecha e se enrolariam os lados como se fosse um velho pergaminho. — Ele agradecia a todos os kamis por ter tido o bom senso de assistir a um ataque. - Foi terrível de assistir. Por um instante pensei que a batalha fosse real.

- Eles receberam ordens de fazer parecer real. E agora o senhor pode revistar os meus mosqueteiros, se desejar.

- Obrigado. Isso seria uma honra.

Os defensores estavam afluindo para os seus acampamentos que se erguiam no flanco da colina oposta. Os quinhentos mosqueteiros esperavam embaixo, perto do caminho que subia pela elevação e descia para a aldeia. Estavam se formando nas suas companhias. Omi e Naga à frente deles, ambos usando espadas de novo.

- Yabu-sama?

- Sim, Anjin-san?

- Bom, não?

- Sim, bom.

- Obrigado, Yabu-sama. Eu satisfaço.

Mariko corrigiu-o automaticamente:

- "Fico satisfeito."

- Ah, desculpe. Fico satisfeito.

Jozen chamou Yabu de lado. - Isso saiu tudo da cabeça do Anjin-san?

- Não - mentiu Yabu. - Mas é o modo como os bárbaros lutam. Ele está só treinando os homens a carregar e atirar.

- Por que não fazer o que Naga-san aconselhou? O senhor tem o conhecimento do bárbaro agora. Por que correr o risco de que isso se espalhe? Ele é uma praga. Muito perigoso, Yabu-sama. Naga-san tinha razão. É verdade: os camponeses poderiam combater deste modo. Facilmente. Livre-se do bárbaro já.

- Se o Senhor Ishido quiser a cabeça dele, só terá que pedir.

- Eu peço. Agora. - Novamente a truculência. - Falo com a voz dele.

- Considerarei isso, Jozen-san.

- E também, em nome dele, peço que se retirem todas as armas daqueles homens imediatamente.

Yabu franziu o cenho, depois voltou a atenção para as companhias. Estavam se aproximando do topo da colina, as fileiras em ordem, disciplinadas, levemente ridículas como sempre, só porque aquela formação não era habitual. A cinqüenta passos de distância, pararam. Omi e Naga avançaram sozinhos e saudaram.

- Estava bem para um primeiro exercício - disse Yabu.

- Obrigado, senhor - respondeu Omi. Coxeava levemente e tinha o rosto sujo, escoriado, marcado de pólvora.

- Suas tropas teriam que portar espadas numa batalha real, Yabu-sama, neh? - disse Jozen. - Um samurai tem que portar espadas. Eventualmente ficariam sem munição, neh?

- As espadas terão o seu papel, no ataque e na retirada. Oh, eles as usarão como sempre para manter a surpresa, mas, logo depois da primeira carga, livram-se delas.

- Samurais sempre precisarão de espadas. Numa batalha real. Ainda assim, estou contente porque não teremos nunca que usar esta força de ataque, ou... - Jozen ia acrescentar "ou esse imundo e traiçoeiro método de guerra". Mas disse: - ...ou teremos todos que abandonar nossas espadas.

- Talvez tenhamos, Jozen-san, quando formos à guerra.

- O senhor renunciaria à sua lâmina Murasama? Ou mesmo ao presente de Toranaga?

- Para vencer uma batalha, sim. De outro modo não.

- Então o senhor talvez tivesse que correr bem depressa para salvar as frutas quando o seu mosquete emperrasse ou a pólvora molhasse. - Jozen riu com o próprio gracejo. Yabu não.

- Omi-san! Mostrê-lhe! - ordenou.

Imediatamente Omi deu uma ordem. Seus homens puxaram a pequena baioneta embainhada que pendia quase despercebida nas costas do cinto de cada um e a enfiaram na cavidade da boca dos mosquetes.

- Atacar!

Imediatamente os samurais investiram com o seu grito de batalha:

- Kasigiiiiii!

A floresta de aço nu parou a um passo deles. Jozen e seus homens riram nervosamente devido à repentina e insuspeita ferocidade.

- Bom, muito bom - disse Jozen. Estendeu a mão e tocou uma baioneta. Era extremamente afiada. - Talvez tenha razão, Yabu-sama. Esperemos que isto não tenha que ser testado.

- Omi-san! - chamou Yabu. - Forme-os. Jozen-san vai revistá-los. Depois voltem para o acampamento. Mariko-san, Anjin-san, sigam-me! - Desceu a passos largos da elevação, por entre as fileiras, seguido dos auxiliares, de Blackthorne e Mariko.

- Formar no caminho. Substituir baionetas!

Metade dos homens obedeceram no mesmo instante, deram meia-volta e desceram a vertente de novo. Naga e seus duzentos e cinqüenta samurais continuaram onde estavam, as baionetas ainda ameaçando.

Jozen indignou-se.

- O que está havendo?

- Considero seus insultos intoleráveis - disse Naga malignamente.

- Isso é absurdo. Não o insultei, nem a ninguém! As suas baionetas é que insultam a minha posição! Yabu-sama!

Yabu voltou-se. Estava agora do outro lado do contingente Toranaga.

- Naga-san - chamou friamente -, o que significa isso?

- Não posso perdoar a esse homem os insultos a meu pai, ou a mim.

- Ele está protegido. Você não pode tocá-lo! Está sob o emblema dos regentes!

- Seu perdão, Yabu-sama, mas isto é entre mim e Jozen-san.

- Não. Você está sob as minhas ordens. Ordeno-lhe que diga aos seus homens que regressem ao acampamento.

Nem um homem se moveu. A chuva começou.

- Seu perdão, Yabu-san, por favor, perdoe-me, mas isto é entre mim e ele, e aconteça o que acontecer, isento-o de toda responsabilidade pelo meu ato e o dos meus homens.

Atrás de Naga, um dos homens de Jozen sacou a espada e avançou para as costas desprotegidas de Naga. Uma saraivada de vinte mosquetes estourou-lhe a cabeça imediatamente. Esses vinte homens se ajoelharam e começaram a recarregar. A segunda fileira preparou-se.

- Quem ordenou munição real? - perguntou Yabu.

- Eu. Eu, Yoshi-noh-Toranaga!

- Naga-san! Ordeno-lhe que deixe Nebara Jozen e seus homens irem-se livremente. Ordeno-lhe que se retire para o seu alojamento até que eu possa consultar o Senhor Toranaga sobre a sua insubordinação!

- Naturalmente o senhor informará o Senhor Toranaga, e karma é karma. Mas lamento, Senhor Yabu, que antes este homem precise morrer. Todos devem morrer. Hoje!

Jozen estremeceu.

- Estou protegido pelos regentes! Você não ganhará nada me matando.

- Recupero minha honra, neh? - disse Naga. – Retribuo-lhe as zombarias a meu pai e seus insultos a mim. Mas o senhor teria que morrer de qualquer maneira, neh? Eu não poderia ter sido mais claro a noite passada. Agora o senhor assistiu a um ataque. Não posso correr o risco de que Ishido tome conhecimento de todo este... - sua mão apontou para o campo de batalha - ... este horror!

- Ele já sabe! - deixou escapar Jozen, abençoando a própria antevisão da noite precedente. - Ele já sabe! Mandei uma mensagem por pombo secretamente ao amanhecer! Não ganha nada me matando, Naga-san!

Naga fez sinal a um dos seus homens, um velho samurai, que avançou e atirou o pombo estrangulado aos pés de Jozen. Depois a cabeça decepada de um homem também foi atirada ao chão - a cabeça do samurai, Masumoto, enviado na véspera por Jozen com o pergaminho. Os olhos ainda estavam abertos, os lábios repuxados numa careta de ódio. A cabeça começou a rolar. Foi aos trambolhões por entre as fileiras até pousar contra uma rocha.

Um gemido irrompeu dos lábios de Jozen. Naga e todos os seus homens riram. Até Yabu sorriu. Outro dos samurais de Jozen saltou para Naga. Vinte mosquetes espocaram e o homem atrás dele, que não tinha se movido, também caiu em agonia, mortalmente ferido.

O riso cessou.

- Devo ordenar aos meus homens que ataquem, senhor? - perguntou Omi. Fora tão fácil manobrar Naga.

Yabu enxugou a chuva do rosto.

- Não, isso não serviria para nada. Jozen-san e seus homens já estão mortos, não importa o que eu faça. É o karma dele, assim como Naga tem o seu. Naga-san! - bradou ele. - Pela última vez, ordeno-lhe que os deixe partir!

- Por favor, desculpe-me, mas tenho que recusar.

- Muito bem. Quando estiver acabado, apresente-se a mim.

- Sim. Deve haver uma testemunha oficial, Yabu-sama. Para o Senhor Toranaga e para o Senhor Ishido.

- Omi-san, você fica. Assinará o certificado de morte e fará o relatório. Naga-san e eu o rubricaremos.

Naga apontou para Blackthorne.

- Deixe-o ficar também. Igualmente como testemunha. Ele é responsável pela morte deles. Devia testemunhar.

- Anjin-san, suba até aqui! Junto de Naga-san! Compreendeu?

- Sim, Yabu-san. Compreendi, mas por quê, por favor?

- Para ser uma testemunha.

- Desculpe, não compreendi.

- Mariko-san, explique "testemunha" a ele, que ele deve testemunhar o que vai acontecer, depois acompanhe-me. - Ocultando a sua imensa satisfação, Yabu voltou-se e se afastou.

Jozen estremeceu.

- Yabu-san! Por favor! Yabuuuuuusamaaaa!

 

Blackthorne assentiu. Quando terminou, voltou para casa. Havia silêncio na casa e uma mortalha sobre a aldeia. Um banho não o fez sentir-se limpo. O saquê não lhe tirou o gosto da boca. O incenso não lhe desobstruiu o mau cheiro das narinas.

Mais tarde Yabu mandou buscá-lo. O ataque foi dissecado, momento a momento. Omi e Naga estavam lá, com Mariko - Naga como sempre, frio, ouvindo, raramente comentando, ainda segundo em comando. Nenhum deles parecia tocado pelo que ocorrera.

Trabalharam até depois do pôr-do-sol. Yabu ordenou que o ritmo do treinamento fosse acelerado. Um segundo grupo de quinhentos devia ser formado imediatamente. Dentro de uma semana, outro.

Blackthorne caminhou para casa sozinho, comeu sozinho, acossado pela sua assombrosa descoberta: que eles não tinham sentido de pecado, eram todos sem consciência - até Mariko.

Naquela noite não conseguiu dormir. Saiu de casa, o vento lutando contra ele. Rajadas faziam espumar as ondas. Uma lufada mais forte lançou entulho com estrépito contra uma cabana da aldeia. Cães uivavam para o céu, andando à cata de alimento. Os telhados de palha de arroz moviam-se como coisas vivas. Venezianas batiam com violência e homens e mulheres, espectros silenciosos, esforçavam-se por fechá-las e fixá-las com traves. A maré subia lentamente. Todos os botes de pesca tinham sido puxados para a segurança da praia, muito mais longe do que o habitual. Tudo fora fixado com sarrafos. Ele caminhou pela praia, depois voltou para casa, vergado pela pressão do vento. Não encontrara ninguém. A chuva começou a cair em rajadas e ele logo ficou encharcado.

Fujiko o esperava na varanda, o vento açoitando-a, fazendo pingar a lâmpada de óleo protegida por um anteparo. Estavam todos acordados. Criados carregavam valores para o depósito de pedra no fundo do jardim.

A ventania ainda não era ameaçadora.

Uma telha virou, solta, quando o vento penetrou sob uma aba do telhado, que estremeceu todo. A telha caiu e se espatifou sonoramente. Criados se alvoroçavam ao redor, alguns preparando baldes de água, outros tentando consertar o telhado. O velho jardineiro, Ueki-ya, ajudado por crianças, amarrava os arbustos e as árvores tenros a estacas de bambu.

Outra rajada balançou a casa.

- Vai desabar, Mariko-san.

Ela não disse nada, o vento ferindo-a e a Fujiko, provocando-lhes lágrimas nos cantos dos olhos. Ele olhou para a aldeia. Os detritos estavam sendo atirados por toda parte. Então o vento se introduziu por um rasgão na shoji de papel de uma construção e a parede inteira sumiu, deixando apenas um esqueleto entrelaçado. A parede oposta esfacelou-se e o telhado ruiu.

Blackthorne voltou-se, indefeso, quando uma shoji do seu quarto veio abaixo. Aquela parede desapareceu, e o mesmo aconteceu com a oposta. Logo todas as paredes estavam em tiras. Ele podia ver através da casa toda. Mas os suportes do telhado agüentaram e o telhado não se deslocou. Leitos, lanternas e esteiras estavam sendo arrastados, criados atrás deles.

A tempestade demoliu as paredes de todas as casas da aldeia. E algumas foram-completamente arrasadas. Ninguém se feriu gravemente. Ao amanhecer o vento acalmou e homens e mulheres começaram a reconstruir seus lares.

Pelo meio-dia as paredes da casa de Blackthorne tinham sido refeitas e metade da aldeia estava de volta ao normal. As paredes de treliça leve requeriam pouco trabalho para serem erguidas mais uma vez, apenas cavilhas de madeira e amarras para conexões que eram sempre encaixadas e carpintejadas com grande habilidade. Os telhados de telhas e sapé eram mais difíceis, mas ele viu que as pessoas se ajudavam mutuamente, sorridentes, rápidas e com muita prática. Mura corria pela aldeia, aconselhando, orientando e supervisionando. Subiu a colina para inspecionar os progressos.

- Mura, você fez - Blackthorne procurou as palavras -, você faz a coisa parecer fácil.

- Ah, obrigado, Anjin-san. Sim, obrigado, mas fomos felizes de não ter havido incêndios.

- Vocês incêndios com freqüências?

- Desculpe: "Vocês têm incêndios com freqüência?"

- Vocês têm incêndios com freqüência? - repetiu Blackthorne.

- Sim. Mas eu havia dado ordens para que a aldeia se

preparasse. "Preparasse", o senhor compreende?

- Sim.

- Quando essas tempestades começam... - Mura se retesou e olhou por sobre o ombro de Blackthorne. Sua mesura foi profunda.

Omi estava se aproximando no seu passo gingado, os olhos amistosos apenas em Blackthorne, como se Mura não existisse.

- Bom dia, Anjin-san.

- Bom dia, Omi-san. Sua casa está bem?

- Sim. Obrigado. - Omi olhou para Mura e disse bruscamente: - Os homens deviam estar pescando, ou trabalhando os campos. As mulheres também. Yabu-san quer seus impostos. Estão tentando me envergonhar na frente dele com a sua preguiça?

- Não, Omi-san. Por favor, desculpe-me. Providenciarei imediatamente.

- Não devia ser necessário dizer-lhe. Não lhe direi na próxima vez.

- Peço desculpas pela minha estupidez. - Mura afastou-se às pressas.

- O senhor está bem hoje - disse Omi a Blackthorne.

- Nenhum problema à noite?

- Bem hoje, obrigado. E o senhor?

Omi falou longamente. Blackthorne não assimilou tudo, assim como não compreendera tudo o que Omi dissera a Mura, só algumas palavras aqui, outras ali.

- Desculpe. Não compreendo.

- Gostou? Gostou de ontem? Do ataque? Da batalha simulada?

- Ah, compreendo. Sim, acho bom.

- E o testemunho?

- Por favor?

- Testemunho! O ronin Nebara Jozen e seus homens? - Omi imitou a estocada de baioneta com uma risada. - O senhor testemunhou a morte deles. Morte! Compreende?

- Ah, sim. A verdade, Omi-san, não gostar matanças.

-. Karma, Anjin-san.

- Karma. Hoje treinamento?

- Sim. Mas Yabu-sama quer conversar apenas. Mais tarde. Compreendeu, Anjin-san? Apenas conversar, mais tarde – Omi repetia pacientemente.

- Conversar apenas. Compreender.

- Está começando a falar a nossa língua muito bem. Sim. Muito bem.

- Obrigado. Difícil. Pequeno tempo.

- Sim. Mas o senhor é um bom homem e tenta arduamente. Isso é importante. Nós lhe daremos tempo, Anjin-san, não se preocupe. Eu o ajudarei. - Omi podia ver que a maior parte do que dizia se perdia, mas não importava, desde que Anjin-san captasse o essencial. - Quero ser seu amigo - disse, e repetiu com toda a clareza. - Compreende?

- Amigo? Eu compreendo "amigo".

Omi apontou para si mesmo, depois para Blackthorne. Quero ser seu amigo.

- Ah! Obrigado. Honrado.

Omi sorriu de novo e curvou-se, de igual para igual, e se afastou.

- Amigo dele? - resmungou Blackthorne. - Será que ele esqueceu? Eu não.

- Ah, Anjin-san - disse Fujiko, correndo na sua direção.

- Gostaria de comer? Yabu-sama vai mandar buscá-lo dentro em breve

- Sim, obrigado. Muitos quebras? - perguntou ele, apontando para a casa.

- Desculpe-me, sinto muito, mas o senhor deve dizer: "Houve muitos danos?"

- Houve muitos danos?

- Nenhum dano real, Anjin-san.

- Ótimo. Não ferimentos?

- Desculpe-me, sinto muito, o senhor deve dizer: "Ninguém se feriu.”

- Obrigado. Ninguém se feriu?

- Não, Anjin-san. Ninguém se feriu.

De repente Blackthorne se cansou de ser continuamente corrigido, então encerrou a conversa com uma ordem.

- Estou fome! Comida!

- Sim, imediatamente. Desculpe, mas o senhor deve dizer: "Estou com fome". Uma pessoa tem fome, mas está com fome, ou faminta. - Esperou até que ele dissesse corretamente, depois se afastou.

Ele se sentou na varanda e observou Ueki-ya, o velho jardineiro, limpando o estrago e as folhas dispersas. Podia ver mulheres e crianças consertando a aldeia, e barcos saindo para o mar encapelado. Gostaria de saber que impostos eles têm que pagar, disse a si mesmo. Eu odiaria ser um camponês aqui. Não só aqui - em qualquer lugar.

À primeira luz ele ficara desolado com a aparente devastação da aldeia.

- Essa tempestade mal tocaria uma casa inglesa - dissera a Mariko. - Oh, foi uma ventania, está certo, mas não foi séria. Por que vocês não constroem com pedra ou tijolos?

- Por causa dos terremotos, Anjin-san. Qualquer construção de pedra naturalmente racharia e desabaria, e provavelmente feriria ou mataria os moradores. Com o nosso estilo de construção, o dano é pequeno. O senhor verá como tudo será rapidamente reconstruído.

- Sim, mas vocês têm riscos de incêndio. E o que acontece quando chegam os Grandes Ventos? Os taifuns?

- Aí é muito mau.

Ela explicara sobre os taifuns e as estações deles - de junho a setembro, às vezes mais cedo, às vezes mais tarde. E sobre as outras catástrofes naturais.

Poucos dias antes tinha havido outro tremor. Fora leve. Uma chaleira caíra do braseiro e o derrubara. Felizmente as brasas tinham sido apagadas. Uma casa na aldeia pegara fogo, mas o incêndio não se alastrara. Blackthorne nunca vira um combate ao fogo tão eficiente. Além disso, ninguém na aldeia prestara muita atenção. Simplesmente riram e continuaram com a vida de todo dia.

- Por que as pessoas riem?

- Consideramos muito vergonhoso e descortês demonstrar sentimentos fortes, particularmente o medo, então ocultamo-los com uma risada ou um sorriso. Claro que ficamos todos com medo, embora não devamos demonstrá-lo.

Alguns de vocês demonstram, pensou Blackthorne.

Nebara Jozen demonstrara. Morrera pessimamente, soluçando de medo, implorando clemência, uma morte lenta e cruel. Deram-lhe permissão para correr, depois fora baionetado cuidadosamente por entre risadas, depois forçado a correr de novo, e novamente paralisado. Em seguida deixaram-no rastejar, depois estriparam-no lentamente, enquanto urrava, o sangue gotejando, e abandonaram-no para morrer.

Em seguida Naga voltara a atenção para os outros samurais. Imediatamente três dos homens de Jozen se ajoelharam, despiram o ventre e sacaram as adagas para cometer o seppuku ritual. Três dos seus companheiros postaram-se atrás deles como assistentes, as espadas compridas desembainhadas e levantadas, nenhum deles molestado por Naga ou seus homens. Quando os samurais ajoelhados estenderam a mão para a faca, os assistentes esticaram-lhes o pescoço e as três espadas faiscaram e os decapitaram com um único golpe. As cabeças rolaram, chocalhando dentes, depois ficaram imóveis. Moscas enxamearam.

Depois dois samurais se ajoelharam, o último homem em pé, pronto para agir como auxiliar. O primeiro ajoelhado foi decapitado à maneira dos companheiros quando se lançou para a faca. O outro disse:

- Não, eu, Hirasaki Kenko, sei como morrer... como um samurai deve morrer.

Kenko era um jovem suave, perfumado e quase bonito, de pele pálida, o cabelo bem oleado e muito arrumado. Pegou a faca reverentemente e envolveu parcialmente a lâmina com o sash para segurá-la melhor.

- Protesto contra a morte de Nebara Jozen-san e destes homens - disse com firmeza, curvando-se para Naga. Deu uma última olhada para o céu e ao auxiliar um último sorriso tranqüilizador. - Sayonara, Tadeo. - Depois enterrou a faca no lado esquerdo do estômago. Com as duas mãos, rasgou de lado a lado, tirou a faca e mergulhou-a mais fundo ainda, bem acima da virilha, e arrancou-a em silêncio. Seus intestinos dilacerados derramaram-se sobre o colo e enquanto seu rosto horrivelmente contorcido, torturado, se lançava para a frente, seu auxiliar desceu a espada num único arco fustigante.

Naga pessoalmente pegou-lhe a cabeça pelo cabelo, limpou a sujeira e fechou-lhe os olhos. Depois disse a seus homens que providenciassem para que a cabeça fosse lavada, embrulhada e enviada a Ishido com honras totais, com um relato completo da bravura de Hirasaki Kenko.

O último samurai se ajoelhou. Não sobrara ninguém para assisti-lo. Também ele era jovem. Seus dedos tremiam e o medo o consumia. Por duas vezes cumprira o seu dever para com os companheiros, por duas vezes cortara imaculadamente, honrosamente, poupando-os da aflição da dor e da vergonha do medo.

E esperara que seu amigo mais caro morresse como um samurai devia morrer, auto-lmolado num silêncio orgulhoso, depois cortara imaculadamente de novo, com perfeita habilidade. Ele nunca matara antes.

Seus olhos focalizaram a sua própria faca. Despiu o estômago e rezou para ter a coragem do amante. Lágrimas afloraram, mas ele pela força de vontade transformou o rosto numa máscara gelada, sorridente. Desatou o sash e envolveu parcialmente a lâmina. Depois, porque o jovem cumprira bem o seu dever, Naga fez um gesto ao seu lugar-tenente.

Esse samurai avançou e se curvou, apresentando-se formalmente.

- Osaragi Nampo, capitão da Nona Legião do Senhor Toranaga. Eu ficaria honrado em agir como seu auxiliar.

- Ikomo Tadeo, primeiro oficial, vassalo do Senhor Ishido - retrucou o jovem. - Obrigado. Eu ficaria honrado em aceitá-lo como meu auxiliar.

Sua morte foi rápida, indolor e honrosa.

As cabeças foram reunidas. Mais tarde Jozen voltou à vida com um estremecimento. Suas mãos frenéticas tentaram em vão fechar o ventre.

Abandonaram-no aos cães que tinham subido da aldeia.

 

À hora do Cavalo, onze horas da manhã, dez dias após a morte de Jozen e de todos os seus homens, um comboio de três galeras contornou o promontório de Anjiro. Estavam apinhadas de soldados. Toranaga desembarcou. A seu lado vinha Buntaro.

- Primeiro quero assistir a um exercício de ataque, Yabu-san, com os quinhentos originais - disse Toranaga. - Imediatamente.

- Poderia ser amanhã? Isso me daria tempo para preparar disse Yabu afavelmente, mas interiormente furioso com o imprevisto da chegada de Toranaga e enraivecido com os seus espiões por não o terem prevenido. Mal tivera tempo de acorrer à praia com uma guarda de honra. - O senhor deve estar cansado...

- Não estou cansado, obrigado - disse Toranaga, intencionalmente brusco. - Não preciso de "defensores" nem de um ambiente elaborado, nem de gritos ou mortes simuladas. Esquece-se, velho amigo, de que encenei peças nó suficientes e representei o suficiente para ser capaz de usar a minha imaginação. Não sou um ronin camponês! Por favor, ordene que seja organizado imediatamente.

Encontravam-se na praia ao lado do desembarcadouro. Toranaga estava rodeado pelos guardas de elite, e havia outros desembarcando da galera atracada. Mais mil samurais, pesadamente armados, amontoavam-se nas duas galeras que esperavam a pouca distância da praia. Fazia um dia quente, o céu estava sem nuvens, com uma leve arrebentação, e um nevoeiro de calor no horizonte.

- Igurashi, providencie! - Yabu dominou a própria raiva.

Desde a primeira mensagem que enviara, referente à chegada de Jozen onze dias antes, houvera simplesmente um escoar de relatórios inexpressivos de Yedo, mandados pela sua própria rede de espionagem, e nada além de esporádicas e enfurecedoramente inconclusivas respostas de Toranaga aos seus sinais cada vez mais urgentes: "Sua mensagem recebida e sendo seriamente estudada".

"Chocado com as notícias sobre o meu filho. Por favor, espere instruções posteriores". Depois, há quatro dias: "Os responsáveis pela morte de Jozen serão punidos. Devem permanecer em seus postos, mas continuar sob prisão até que eu possa me consultar com o Senhor Ishido". E na véspera, a surpresa de estarrecer: "Hoje recebi o convite formal do novo conselho de regentes para ir a Osaka, à cerimônia de contemplação da flor. Quando o senhor pretende partir? Comunique imediatamente".

- Com certeza isto não significa que Toranaga vai de fato? - perguntara Yabu, aturdido.

- Ele está forçando o senhor a se comprometer - respondera Igurashi. - Qualquer coisa que o senhor diga vai colocá-lo numa armadilha.

- Concordo - dissera Omi.

- Por que não estamos recebendo notícias de Yedo? O que aconteceu aos nossos espiões?

- É quase como se Toranaga tivesse posto uma capa por sobre o Kwanto inteiro - dissera Omi. - Talvez ele saiba quem são os seus espiões!

- Este é o décimo dia, senhor - lembrara Igurashi. - Tudo está pronto para aw sua partida para Osaka. Deseja partir ou não?

Agora, ali na praia, Yabu abençoava seu kami guardião que o persuadira a aceitar o conselho de Omi para ficar até o último dia possível, três dias a contar daquele.

- Em relação à sua mensagem final, Toranaga-sama, a que chegou ontem - disse ele -, o senhor certamente não vai a Osaka.

- O senhor vai?

- Reconheço-o como líder. Naturalmente estou à espera da sua decisão.

- A minha decisão é fácil, Yabu-sama. Mas a sua é difícil. Se for, os regentes certamente o retalharão por ter destruído Jozen e seus homens. E Ishido está muito furioso mesmo - e com razão. Neh?

- Eu não fiz isso, Senhor Toranaga. A destruição de Jozen, embora merecida, foi contra as minhas ordens.

- Foi muito bom que Naga-san o tenha feito, neh? De outro modo o senhor certamente teria tido que fazê-lo por si mesmo. Discutirei sobre Naga-san mais tarde, mas venha, conversaremos enquanto caminhamos para o local de treinamento. Não há necessidade de desperdiçar tempo. - Toranaga pôs-se em marcha no seu passo célere, seguido de perto pelos seus guardas. - Sim, o senhor está realmente num dilema, amigo velho. Se for, perde a cabeça, perde Izu e, naturalmente, toda a sua família Kasigi vai para o pátio de execução. Se ficar, o conselho ordenará a mesma coisa. - Olhou-o de soslaio. - Talvez o senhor devesse fazer o que sugeriu que eu fizesse na última vez em que estive em Anjiro. Ficarei feliz em ser o seu auxiliar. Talvez a sua cabeça abrande o mau humor de Ishido quando eu o encontrar.

- Minha cabeça não tem valor para Ishido.

- Não concordo.

Buntaro interceptou-os.

- Desculpe-me, senhor. Onde quer que os homens sejam aquartelados?

- No planalto. Faça o seu acampamento permanente lá. Duzentos guardas ficarão comigo na fortaleza. Quando tiver completado os arranjos, junte-se a mim. Quero que você assista ao exercício de treinamento. - Buntaro saiu apressado.

- Acampamento permanente? O senhor vai ficar aqui? - perguntou Yabu.

- Não, apenas os meus homens. Se o ataque é tão bom quanto ouvi dizer formaremos nove batalhões de assalto de quinhentos samurais cada um.

- O quê?

- Sim. Trouxe mais mil samurais selecionados para o senhor agora. O senhor providenciará os outros mil.

- Mas não há armas suficientes e o treina...

- Sinto muito, o senhor está enganado. Trouxe mil mosquetes comigo, muita pólvora e munição. O resto chegará dentro de uma semana, com mais mil homens.

- Teremos nove batalhões de assalto?

- Sim. Formarão um regimento. Buntaro comandará.

- Talvez fosse melhor que eu fizesse isso. Ele...

- Oh, mas o senhor se esquece de que o conselho se reúne dentro de poucos dias. Como pode comandar um regimento se está indo para Osaka? O senhor não se preparou para partir?

Yabu parou.

- Somos aliados. Combinamos que o senhor seria o líder e urinamos sobre o trato. Mantive o trato e estou mantendo. Agora pergunto: qual é o seu plano? Guerreamos ou não?

- Ninguém declarou guerra contra mim. Ainda.

Yabu ansiou por desembainhar a lâmina Yoshimoto e fazer esguichar o sangue de Toranaga no pó, de uma vez por todas, custasse o que custasse. Podia sentir a respiração dos guardas de Toranaga à sua volta, mas não estava se preocupando agora.

- O conselho também não é o seu dobre de morte? O senhor mesmo disse isso. Uma vez que se reúnam, o senhor terá que obedecer. Neh?

- Naturalmente. - Toranaga fez sinal aos guardas que se afastassem e se apoiou calmamente na espada, as sólidas pernas separadas e firmes.

- Então qual é a sua decisão? O que propõe?

- Primeiro assistir a um ataque.

- Depois?

- Depois ir caçar.

- Vai a Osaka?

- Naturalmente.

- Quando?

- Quando me aprouver.

- Quer dizer, não quando aprouver a Ishido.

- Quero dizer quando me aprouver.

- Ficaremos isolados - disse Yabu. - Não podemos lutar contra todo o Japão, mesmo com um regimento de assalto, e possivelmente não poderemos treinar um em dez dias.

- Sim.

- Então qual é o plano?

- O que aconteceu exatamente com Jozen e Naga-san?

Yabu contou-lhe sinceramente, omitindo apenas o fato de que Naga fora manipulado por Omi.

- E o meu bárbaro? Como está se comportando o Anjin-san?

- Bem. Muito bem. - Yabu contou-lhe sobre a tentativa de seppuku na primeira noite, e como habilmente dobrara o Anjin-san para proveito deles ambos.

- Isso foi inteligente - disse Toranaga lentamente. - Nunca imaginei que ele tentaria seppuku. Interessante.

- Foi muito oportuno que eu dissesse a Omi que estivesse preparado.

- Sim.

Impaciente, Yabu esperava mais, mas Toranaga permaneceu em silêncio.

- A notícia que mandei sobre o Senhor Ito tornando-se regente - disse Yabu afinal. - O senhor já sabia antes de receber a minha mensagem?

Toranaga não respondeu de imediato.

- Tinha ouvido alguns rumores. O Senhor Ito é uma escolha perfeita para Ishido. O pobre imbecil sempre gostou de uma boa vara enquanto tem o nariz metido no ânus de outro homem. Serão bons amigos, os dois.

- O voto dele destruirá o senhor, ainda assim.

- Desde que haja um conselho.

- Ah, então o senhor tem um plano?

- Sempre tenho um plano - ou planos -, o senhor não sabia? Mas o senhor, qual é o seu aliado? Se desejar partir, parta. Se quiser ficar, fique. Escolha! - Pôs-se em movimento.

 

Mariko estendeu a Toranaga um pergaminho de caracteres escritos muito juntos.

- Isso é tudo? - perguntou ele.

- Sim, senhor - respondeu ela, não gostando do abafamento da cabina nem de estar a bordo da galera de novo, ainda que atracada ao cais. - Muito do que está no Manual de Guerra será repetido, mas tomei notas todas as noites e escrevi tudo conforme aconteceu - ou tentei fazer isso. É quase como um diário do que foi dito e aconteceu desde que o senhor partiu.

- Ótimo. Alguém mais o leu?

- Não que eu saiba. - Ela usou o leque para se refrescar. - A consorte e os criados do Anjin-san me viram escrevendo, mas mantive o pergaminho fechado a chave.

- Quais são as suas conclusões?

Mariko hesitou. Deu uma olhada na cabina e na vigia fechada.

- Apenas os meus homens estão a bordo - disse Toranaga -, e nenhum nos conveses inferiores. Apenas nós.

- Sim, senhor. Só me lembrei que o Anjin-san disse que não há segredos a bordo de um navio. Desculpe. - Pensou um instante, depois disse confiante: - O Regimento de Mosquetes vencerá uma batalha. Os bárbaros poderiam nos destruir se desembarcassem com armas e canhões. O senhor precisa ter uma marinha bárbara. Nessa medida o conhecimento do Anjin-san foi enormemente valioso para o senhor, razão pela qual devia ser mantido secreto, apenas para os seus ouvidos. Nas mãos erradas esse conhecimento seria mortífero para o senhor.

- Quem compartilha esse conhecimento agora?

- Yabu-san sabe muita coisa, mas Omi-san sabe mais, é ele o mais intuitivo. Igurashi-san, Naga-san, e as tropas. As tropas, naturalmente, compreendem a estratégia, não os detalhes mais sutis, e nada sobre o conhecimento político e genérico do Anjinsan. Eu, mais do que todos. Escrevi tudo o que ele disse, perguntou ou comentou. Da melhor maneira que pude. Claro que ele só nos falou a respeito de certas coisas, mas o alcance dessas coisas é vasto, e a memória, quase perfeita. Com paciência ele pode fornecer-lhe um quadro acurado do mundo, seus costumes e perigos. Se estiver dizendo a verdade.

- Está?

- Acredito que sim.

- Qual é a sua opinião sobre Yabu?

- Yabu-san é um homem violento, totalmente sem escrúpulos. Não honra nada além dos próprios interesses. Dever, lealdade, tradição não significam nada para ele. Sua mente tem repentes de grande astúcia, até brilho. É igualmente perigoso como aliado ou inimigo.

- Tudo isso são virtudes louváveis. O que há para ser dito contra ele?

- É um mau administrador. Seus camponeses se revoltariam se dispusessem de armas.

- Por quê?

- Taxas extorsivas, Taxas ilegais. Ele fica com setenta e cinco partes de cada cem partes de arroz, peixe e toda a produção. Introduziu um imposto por cabeça, imposto pela terra, imposto pelo barco. Cada venda, cada barril de saquê, tudo é taxado em Izu.

- Talvez eu devesse empregá-lo, ou ao seu mestre quarteleiro, para o Kwanto. O que ele faz aqui é problema dele. Seus camponeses nunca obterão armas, portanto não temos nada com que nos preocupar. Eu ainda poderia usar isto como base se fosse necessário.

- Mas, senhor, sessenta partes é o limite legal.

- Era o limite legal. O taicum tornou legal, mas está morto. O que mais sobre Yabu?

- Come pouco, parece ter boa saúde, mas Suwo, o massagista, acha que ele tem problemas de rins. Tem alguns hábitos curiosos.

- Quais?

Ela lhe contou sobre a Noite dos Gritos.

- Quem lhe falou sobre isso?

- Suwo. E a esposa e a mãe de Omi-san.

- O pai de Yabu também costumava cozinhar os inimigos. Perda de tempo. Mas posso compreender essa sua necessidade de fazer isso ocasionalmente. O sobrinho, Omi?

- Muito sagaz. Muito sábio. Totalmente leal ao tio. Um vassalo muito capaz, impressivo.

- A família de Omi?

- A mãe dele é... é adequadamente firme com Midori, a esposa. A esposa é samurai, gentil, forte, e muito boa. São todos vassalos leais de Yabu-san. Atualmente Omi-san não tem consortes, embora Kiku, a mais famosa cortesã de Izu, seja quase como uma consorte. Se ele pudesse comprar o contrato dela, acho que a levaria para a sua casa.

- Ele me ajudaria contra Yabu, se eu quisesse que fizesse isso?

Ela ponderou ,a respeito. Depois meneou a cabeça.

- Não, senhor. Acho que não. Acho que ele é vassalo de seu tio.

- Naga?

- Um samurai tão bom quanto um homem pode ser. Viu imediatamente o perigo de Jozen-san e seus homens contra o senhor, e enfrentou a situação até que o senhor pudesse ser consultado. Embora deteste o Batalhão de Mosquetes, treina arduamente as companhias a fim de torná-las perfeitas.

- Acho que ele foi muito estúpido sendo fantoche de Yabu.

Ela arrumou uma dobra do quimono, sem dizer nada.

Toranaga abanou-se.

- Agora, o Anjin-san?

Ela estivera esperando por essa pergunta e, agora que fora feita, todas as observações inteligentes que ia fazer desapareceram-lhe da cabeça.

- Bem?

- Deve julgar pelo pergaminho, senhor. Em certos aspectos ele é impossível de explicar. Claro, sua educação e herança não têm nada em comum com as nossas. É muito complexo e está além da nossa... além da minha compreensão. Costumava ser muito aberto. Mas, desde que tentou seppuku, mudou. Está mais fechado. - Ela lhe contou o que Omi dissera e fizera naquela primeira noite. E a promessa de Yabu.

- Ah, foi Omi que o deteve, não Yabu-san?

- Sim.

- E Yabu seguiu o conselho de Omi?

- Exatamente, senhor.

- Então Omi é o conselheiro. Interessante. Mas com certeza o Anjin-san não espera que Yabu cumpra a promessa, espera?

- Sim, totalmente.

Toranaga riu.

- Que infantilidade!

- A "consciência" cristã é muito profunda nele, sinto muito. Ele não pode evitar o seu karma, parte do qual é ser ele totalmente governado por esse ódio da morte, ou das mortes, do que ele chama de "inocentes". Até a morte de Jozen afetou-o profundamente. Durante muitas noites seu sono foi perturbado e durante dias mal conversou com pessoa alguma.

- Essa "consciência" se aplicaria a todos os bárbaros?

- Não, embora devesse, a todos os bárbaros cristãos.

- Ele perderá essa "consciência"?

- Penso que não. Mas é tão indefeso quanto uma boneca até que a perca.

- A consorte dele?

Ela lhe contou tudo.

- Ótimo. - Ele ficou satisfeito pela escolha de Fujiko e pelo fato de o seu plano ter funcionado tão bem. - Muito bom.

- Ela agiu muito bem no caso das armas. Que tal os hábitos dele?

- Na maior parte, normais, exceto por um surpreendente constrangimento em relação a assuntos de "travesseiro" e uma curiosa relutância em discutir as funções mais normais. - Ela também descreveu a sua inusitada necessidade de solidão, e seu gosto abominável em se tratando de comida. - Na maioria das outras coisas ele é cortês, razoável, arguto, um aluno competente, e muito curioso a respeito de nós e dos nossos costumes. Consta tudo do meu relatório, mas, numa palavra, expliquei alguma coisa sobre o nosso modo de vida, um pouco sobre nós e a nossa história, sobre o taicum e os problemas que afligem o nosso reino agora.

- Ah, sobre o herdeiro?

- Sim, senhor. Fiz mal?

- Não. Eu lhe disse que o educasse. Como está o japonês dele?

- Muito bom, considerando. Com o tempo ele falará a nossa língua razoavelmente bem. É muito bom aluno, senhor.

- "Travesseiro"?

- Uma das criadas - disse ela imediatamente.

- Ele a escolheu?

- Sua consorte a mandou a ele.

- E?

- Foi mutuamente satisfatório, informaram-me.

- Ah! Então ela não teve dificuldade.

- Não, senhor.

- Mas ele é proporcional?

- A garota disse: "Oh, sim, muito'. "Pródigo' foi a palavra que ela usou.

- Excelente. Pelo menos nisso o karma dele é bom. Esse é o problema com muitos homens. Yabu, por exemplo, e Kiyama. Lanças pequenas. Uma infelicidade nascer com uma lança pequena. Muita. Sim. - Deu uma olhada no pergaminho, depois fechou o leque com um estalido. - E você, Mariko-san? Como está?

- Bem, obrigada, senhor. Estou muito contente de vê-lo com tão boa aparência. Posso oferecer-lhe meus cumprimentos pelo nascimento de seu neto?

- Sim, obrigado. Sim, estou muito satisfeito. O menino é bem formado e parece saudável.

- E a Senhora Genjiko?

Toranaga grunhiu.

- Forte como sempre. Sim. - Franziu os lábios, meditando um instante. - Talvez você pudesse recomendar uma mãe adotiva para a criança. - Era costume que os filhos de samurais importantes tivessem mães adotivas, a fim de que a mãe natural pudesse atender ao marido e ao funcionamento da casa dele, deixando à mãe adotiva a preocupação com a criação da criança, tornando-a forte e uma honra para os pais. - Receio que não seja fácil encontrar a pessoa certa. A Senhora Genjiko não é a ama mais fácil para quem se trabalhar, neh?

- Estou certa de que o senhor encontrará a pessoa perfeita, senhor. Mas certamente pensarei no assunto - replicou Mariko, sabendo que oferecer tal conselho seria tolice, pois nenhuma mulher nascida poderia satisfazer Toranaga e a nora.

- Obrigado. Mas e você, Mariko-san, como está?

- Bem, senhor, obrigada.

- E a sua consciência cristã?

- Não há conflito, senhor. Nenhum. Fiz tudo o que o senhor desejou. Realmente.

- Algum padre esteve aqui?

- Não, senhor.

- Tem necessidade de um?

- Seria bom me confessar, receber o sacramento e ser abençoada. Sim, sinceramente, eu gostaria disso... confessar as coisas permitidas e ser abençoada.

Toranaga estudou-a atentamente. Os olhos dela eram honestos.

- Agiu bem, Mariko-san. Por favor, continue assim.

- Sim, senhor, obrigada. Uma coisa... o Anjin-san precisa muito de uma gramática e um dicionário.

- Mandei pedir ao Tsukku-san. - Notou o franzir de cenho dela. - Acha que ele não os enviará?

- Ele obedeceria, claro. Talvez não com a velocidade que o senhor gostaria.

- Logo saberei disso - acrescentou Toranaga agourentamente. - Só lhe restam treze dias.

Mariko se espantou.

- Senhor? - perguntou, sem compreender.

- Treze? Ah - disse Toranaga com indiferença, dissimulando o seu lapso momentâneo -, quando estávamos a bordo do navio português, ele pediu permissão para visitar Yedo. Concordei, desde que fosse dentro de quarenta dias. Restam treze. Não foi de quarenta dias o tempo que aquele bonzo, aquele profeta, Moisés, passou na montanha, reunindo os mandamentos do "Deus" que foram gravados em pedra?

- Sim, senhor.

- Você acredita que isso aconteceu?

- Sim. Mas não compreendo como nem por quê.

- É uma perda de tempo discutir coisas de Deus. Neh?

- Se se visa a fatos, sim, senhor.

- Enquanto esperava por esse dicionário, você tentou fazer um?

- Sim, Toranaga-sama. Receio que não seja muito bom. Infelizmente parece haver muito pouco tempo, e muitos problemas. Aqui ... por toda parte - acrescentou ela, intencionalmente.

Ele assentiu, concordando, sabendo que ela gostaria ardentemente de perguntar muitas coisas: sobre o novo conselho, a designação do Senhor Ito, a sentença de Naga, e se a guerra seria imediata.

- Somos afortunados em ter o seu marido de volta, neh?

O leque dela parou.

- Nunca pensei que ele escaparia vivo. Disse uma prece e queimei incenso em memória dele todos os dias. - Buntaro lhe contara naquela manhã como outro contingente de samurais de Toranaga cobrira a sua retirada da praia e como ele atingira os arredores de Osaka sem dificuldade. Depois, com cinqüenta homens escolhidos e cavalos de reserva, disfarçados de bandidos, ele rumara às pressas para as colinas e caminhos secundários numa arremetida impetuosa para Yedo. Por duas vezes seus perseguidores o alcançaram, mas o inimigo não estava em número suficiente para contê-lo e ele conseguiu escapar. Adiante sofreu uma emboscada e perdeu todos os homens, menos quatro, e escapou novamente, aprofundando-se mais na floresta, viajando à noite, dormindo durante o dia. Frutas e água de nascentes, um pouco de arroz apanhado em casas de fazendas solitárias, depois a galope de novo, sempre com caçadores nos calcanhares. Levara vinte dias para chegar a Yedo. Dois homens sobreviveram com ele. - Foi quase um milagre - disse ela. - Pensei estar possuída por um kami quando o vi ao seu lado na praia.

- Ele é inteligente. Muito forte e muito inteligente.

- Posso pedir-lhe notícias do Senhor Hiromatsu, senhor? E de Osaka? A Senhora Kiritsubo e a Senhora Sazuko?

Sem omitir opinião, Toranaga informou que Hiromatsu chegara a Yedo um dia antes de ele partir para Anjiro, embora as duas damas tivessem decidido ficar em Osaka, sendo a saúde da Senhora Sazuko a razão para esse adiamento. Não havia necessidade de elaborar. Tanto ele quanto Mariko sabiam que isso era meramente uma fórmula para poupar a dignidade e que o General Ishido nunca permitiria que duas reféns tão valiosas partissem, agora que Toranaga estava fora do seu alcance.

- Shigata ga nai - disse ele. - Karma, neh? Não há nada que se possa fazer. É karma, não é?

- Sim. - Ele pegou o pergaminho. - Agora devo ler isto. Obrigado, Mariko-san. Agiu muito bem. Por favor, traga o Anjin-san à fortaleza ao amanhecer.

- Senhor, agora que o meu amo está aqui, terei...

- Seu marido já concordou que enquanto eu estiver aqui, você permanece onde está e atua como intérprete. Seu dever primordial é para com o Anjin-san pelos próximos dias.

- Mas, senhor, preciso instalar casa para o meu senhor. Ele necessitará de criados e de uma casa.

- Isso seria um desperdício de dinheiro, tempo e esforço, no momento. Ele ficará com os soldados, ou na casa do Anjin-san, onde lhe apraza. - Notou um lampejo de irritação. - Nan ja?

- Meu lugar deve ser com o meu amo. Para servi-lo.

- O seu lugar é onde eu quero que seja. Neh?

- Sim, por favor, desculpe-me. Naturalmente.

- Naturalmente.

Ela se foi.

Ele leu o pergaminho cuidadosamente. E o Manual de Guerra. Depois releu partes do pergaminho. Guardou-os ambos em segurança, postou guardas à porta da cabina, e subiu ao convés.

Estava amanhecendo. O dia prometia calor e nebulosidade. Ele cancelou o encontro com o Anjin-san, conforme pretendia, e cavalgou para o planalto com cem guardas. Ali reuniu seus falcoeiros e três falcões, e caçou na extensão de vinte ris. Pelo meiodia havia ensacado três faisões, duas grandes galinholas, uma lebre e um par de codornizes. Mandou um faisão e a lebre para o Anjin-san, o resto para a fortaleza. Alguns dos seus samurais não eram budistas e ele lhes tolerava os hábitos alimentares. Quanto a si mesmo, comeu um pouco de arroz frio com uma pasta de peixe, um pouco de alga marinha em conserva com fatias de gengibre. Depois se enrodilhou no chão e dormiu.

 

A tarde findava e Blackthorne encontrava-se na cozinha, assobiando alegremente. Em torno dele estavam o cozinheiro-chefe, o cozinheiro assistente, o preparador de verduras, o preparador de peixe, e seus assistentes, todos sorridentes, mas interiormente mortificados pelo fato de o amo estar ali na cozinha deles, com a ama, e também porque ela lhes dissera que ele ia honrá-los mostrando-lhes como preparar e cozer ao seu estilo. E por último por causa da lebre.

Ele já havia pendurado o faisão às vigas de um telheiro externo com a cuidadosa instrução de que ninguém, ninguém devia tocá-lo senão ele.

- Eles compreendem, Fujiko-san? Não tocar senão eu? - perguntou ele com uma seriedade zombeteira.

- Oh, sim, Anjin-san. Todos compreenderam. Desculpe-me, mas o senhor deve dizer: "Ninguém deve tocá-lo senão eu".

- Agora - estava ele dizendo, a ninguém em particular -, a delicada arte de cozinhar. Lição número um.

- Dozo gomen nasai? - perguntou Fujiko.

- Miru! Observe.

Sentindo-se jovem de novo - pois um dos seus primeiros biscates fora limpar caça, ele e o irmão, roubada com um risco enorme nas propriedades nos arredores de Chatham -, escolheu uma faca comprida e curva. O sushi-chefe empalideceu. Aquela era a sua faca favorita, com uma ponta especialmente afiada para garantir que as fatias de peixe cru fossem sempre cortadas com perfeição. A equipe toda sabia disso, e todos contiveram o fôlego, sorrindo mais ainda para dissimular o embaraço por ele, enquanto ele aumentava o tamanho do sorriso, para ocultar a própria vergonha.

Blackthorne abriu a barriga da lebre e destramente tirou a bolsa do estômago e as entranhas. Uma das criadas mais jovens teve náuseas e escapou silenciosamente. Fujiko resolveu multá-la com o salário de um mês, desejando ao mesmo tempo também poder ser uma camponesa e sumir com honra.

Eles olharam petrificados quando ele cortou as patas, depois empurrou as pernas dianteiras para dentro, a fim de soltar a pele. Fez o mesmo com as pernas traseiras e cortou a pele em círculo para puxá-las pela abertura do ventre; depois, com um puxão hábil, abriu o couro acima da cabeça como se fosse um casaco de inverno sendo tirado. Estendeu o animal quase pelado sobre o cepo, e decapitou-o deixando a cabeça com os olhos fixos, patéticos, ainda ligada ao couro. Virou a pele do lado certo de novo e colocou-a de lado. Um suspiro percorreu a cozinha. Ele não o ouviu, concentrado em cortar as pernas nas juntas e retalhar a carcaça. Outra criada sumiu despercebida.

- Agora quero uma panela - disse Blackthorne, com um sorriso amável.

Ninguém lhe respondeu. Simplesmente olhavam com os mesmos sorrisos fixos. Ele viu um grande caldeirão de ferro, imaculado. Pegou-o com as mãos ensangüentadas e encheu-o de água num recipiente de madeira, depois pendurou-o sobre o braseiro, armado no chão de terra, num poço cercado de pedras. Acrescentou os pedaços de carne.

- Agora alguns vegetais e especiarias - disse ele.

- Dozo? - perguntou Fujiko, guturalmente.

Ele não sabia as palavras japonesas, por isso olhou em torno. Havia algumas cenouras e algumas raizes que pareciam nabos num cesto de madeira. Limpou-as, cortou-as em fatias e juntou-as à sopa com sal e um pouco do escuro molho de soja.

- Devíamos ter algumas cebolas, alho e vinho do Porto.

- Dozo? - perguntou Fujiko de novo, infeliz.

- Kotaba shirimasen. Não sei as palavras.

Ela não o corrigiu, simplesmente pegou uma colher e ofereceu-lhe. Ele balançou a cabeça.

- Saquê - ordenou. O cozinheiro assistente voltou à vida num sobressalto e deu-lhe o pequeno barril de madeira.

- Domo. - Blackthorne verteu um cálice no caldeirão, depois mais um, para uma boa medida. Ele teria bebido um pouco do barril, mas sabia que seria falta de educação bebê-lo frio e sem cerimônia, e certamente ali na cozinha.

- Jesus Cristo, eu adoraria uma cerveja - disse ele.

- Dozo gozientashita, Anjin-san?

- Kotaba shirimasen, mas este cozido vai ficar excelente. Ichi-ban, neh? - Apontou para o caldeirão que chiava.

- Hai - disse ela, sem convicção.

- Okuru tsukai arigato Toranaga-sama - disse Blackthorne.

- Mande um mensageiro para agradecer ao Senhor Toranaga. - Ninguém lhe corrigiu o mau japonês.

- Hai.

Uma vez fora da cozinha, Fujiko correu para a latrina, a pequena cabana que se erguia em esplendor solitário perto da porta principal, no jardim. Estava muito enjoada.

- Está se sentindo bem, ama? - perguntou a criada, Nigatsu. Era de meia-ldade, rechonchuda, e cuidara de Fujiko a vida toda.

- Vá embora! Mas antes traga um pouco de chá. Não. Você teria que entrar na cozinha... oh, oh, oh!

- Tenho chá aqui, ama. Pensamos que a senhora precisaria de um pouco de chá, então fervemos a água em outro braseiro. Aqui está!

- Oh, você é tão inteligente! - Fujiko beliscou afetuosamente a bochecha redonda de Nigatsu, enquanto outra criada vinha abaná-la. Enxugou a boca na toalha de papel e sentou-se, agradecida, sobre almofadas na varanda. - Oh, assim é melhor!

- E era melhor ao ar livre, à sombra, o bom sol da tarde lançando sombras escuras, borboletas alimentando-se, o mar lá embaixo, calmo e iridescente.

- O que está acontecendo, ama? Não ousamos nem espiar.

- Não tem importância. O amo... o amo... nao importa. Os costumes dele são esquisitos, mas esse é o nosso karma.

Desviou o olhar quando viu o seu cozinheiro-chefe, que vinha untuosamente pelo jardim, e sentiu o coração afundar mais um pouco.

Ele se curvou formalmente, um homenzinho teso, magro, de pés grandes e dentes muito salientes. Antes que pudesse proferir uma palavra, Fujiko disse com um sorriso insípido:

- Encomende facas novas na aldeia. Um novo caldeirão de cozinhar arroz. Um cepo novo, novos recipientes de água - todos os utensílios que achar necessários. Esses que o amo usou devem ser conservados para sua finalidade particular. Você reservará uma área especial, construirá outra cozinha se quiser, onde o amo possa cozinhar, se desejar - até que você seja eficiente.

- Obrigado, Fujiko-sama - disse o cozinheiro. - Desculpe-me por interrompê-la, mas, sinto muito, por favor, desculpeme, conheço um excelente cozinheiro na aldeia vizinha. Não é budista e até esteve na Coréia com o Exército, por isso aprendeu tudo sobre o... como... cozinhar para o amo muito melhor do que eu.

- Quando eu quiser outro cozinheiro, eu lhe direi. Quando o considerar inapto ou fingindo-se de doente, eu lhe direi. Até lá você será o cozinheiro-chefe aqui. Aceitou o posto por seis meses - disse ela.

- Sim, ama - disse o cozinheiro com dignidade exterior, mas tremendo por dentro, pois Fujiko-noh-Anjin não era ama para brincadeira. - Por favor, desculpe-me, mas fui contratado para cozinhar. Tenho orgulho em cozinhar. Mas nunca aceitei ser... ser açougueiro. Os etas são açougueiros. Claro que não podemos ter um eta aqui, mas esse outro cozinheiro não é budista como eu, como meu pai, o pai dele, e o pai do pai dele, ama, e eles nunca, nunca... Por favor, esse novo cozinheiro...

- Você cozinhará aqui como sempre fez. Acho a sua comida excelente, digna de um mestre-cuca de Yedo. Até mandei uma das suas receitas para a Senhora Kiritsubo, em Osaka.

- Oh? Obrigado. Faz-me muita honra. Qual, ama?

- A das enguias frescas, minúsculas, e medusa e ostras em fatias, com apenas o toque exato de soja, que você faz tão bem. Excelente! A melhor que já comi.

- Oh, obrigado, ama - rebaixou-se ele.

- Claro que as suas sopas deixam muito a desejar.

- Oh, sinto muito!

- Discutirei isso com você mais tarde. Obrigada, cozinheiro - disse ela, ensaiando uma dispensa.

O homenzinho permaneceu no lugar resolutamente.

- Por favor, desculpe-me, ama, mas oh ko, com completa humildade, se o amo... quando o amo ...

- Quando o amo lhe disser que cozinhe ou abata animais ou seja o que for, você fará isso correndo. Imediatamente. Como qualquer criado leal faria. Mas como pode levar muito tempo para você se tornar eficiente, então, talvez, seja melhor que você faça acertos provisórios com esse outro cozinheiro, para que o visite nos raros dias em que o amo possa querer comer à sua própria maneira.

A honra satisfeita, o cozinheiro sorriu e curvou-se.

- Obrigado. Por favor, desculpe-me por pedir esclarecimento.

- Naturalmente você pagará ao cozinheiro substituto do seu próprio salário.

Quando ficaram sozinhas de novo, Nigatsu casquinou por trás da mão: - Oh, Ama-chan, posso cumprimentá-la pela sua vitória total e pela sua sabedoria? O cozinheiro-chefe quase soltou gases quando a senhora disse que ele também teria que pagar!

- Obrigada, Nanny-san. - Fujiko podia sentir o aroma da lebre começando a cozinhar. E se ele me pedir que coma com ele? estava pensando ela, e quase perdeu as forças. Mesmo que não peça, terei que servir. Como posso evitar de ficar nauseada? Você não vai ficar com náuseas, ordenou-se ela. É o seu karma. Você deve ter sido absolutamente terrível na sua vida anterior. Sim. Mas lembre-se de que tudo está excelente agora. Só mais cinco meses e seis dias. Não pense nisso, pense apenas no seu amo, que é um homem bravo e forte, embora tenha horríveis hábitos alimentares...

Cavalos subiram com estrépito até o portão. Buntaro desmontou e afastou o resto dos seus homens com um gesto. Depois, acompanhado apenas do seu guarda pessoal, avançou a passos largos pelo jardim, empoeirado e sujo de suor. Carregava o seu arco imenso e, às costas, a aljava. Fujiko e a criada curvaram-se cordialmente, detestando-o. O tio era famoso pelas fúrias selvagens, incontroláveis, que o faziam investir violentamente sem prevenir ou provocar disputas com praticamente qualquer pessoa. A maior parte do tempo apenas os seus criados sofriam, ou as suas mulheres.

- Por favor, entre, Tio. Que gentileza de sua parte visitar-nos tão cedo - disse Fujiko.

- Ah, Fujiko-san. Você... Que fedor é esse?

- Meu amo está cozinhando a caça que o Senhor Toranaga lhe enviou... está mostrando aos meus miseráveis criados como cozinhar.

- Se ele quer cozinhar, suponho que possa, embora... - Buntaro franziu o nariz com desagrado. - Sim, um amo pode fazer qualquer coisa na sua própria casa, dentro da lei, desde que não perturbe os vizinhos.

Legalmente um cheiro como aquele poderia ser causa de reclamação, e seria péssimo incomodar os vizinhos. Os inferiores nunca faziam nada que pudesse perturbar os superiores. Senão cabeças rolavam. Era por isso que, em todo o país, os samurais cautelosa e cortesmente viviam perto de samurais, do mesmo nível se possível, camponeses ao lado de camponeses, mercadores nas suas ruas, e etas isolados fora. Omi era o vizinho imediato deles. Ele é superior, pensou ela.

- Espero sinceramente que ninguém seja perturbado - disse ela a Buntaro, inquieta, perguntando-se que nova maldade estaria ele tramando. - O senhor queria ver o meu amo? - Começou a se levantar, mas ele a deteve.

- Não, por favor, não se incomode, esperarei - disse ele formalmente, e o coração dela quase parou. Buntaro não era conhecido pela boa educação, e polidez vinda dele era coisa muito perigosa. - Peço desculpas por chegar assim, sem enviar antes um mensageiro para solicitar uma entrevista - estava ele dizendo -, mas o Senhor Toranaga me disse que eu poderia, talvez, ser autorizado a usar o banho e me alojar aqui. De vez em quando. Você perguntaria ao Anjin-san, mais tarde, se ele daria permissão?

- Naturalmente - disse ela, dando continuidade ao padrão usual de etiqueta, embora a idéia de ter Buntaro na sua casa lhe repugnasse. - Estou certa que ele ficará honrado, Tio. Posso oferecer-lhe chá ou saquê, enquanto espera?

- Saquê, obrigado.

Nigatsu rapidamente colocou uma almofada na varanda e disparou em busca do saquê, por mais vontade de ficar que tivesse.

Buntaro estendeu o arco e a aljava ao guarda, descalçou as sandálias empoeiradas, e subiu à varanda pisando duro. Tirou a espada mortífera do sash, sentou-se de pernas cruzadas, e pousou a espada sobre os joelhos.

- Onde está minha esposa? Com o Anjin-san?

- Não, Buntaro-sama, sinto muito, ela recebeu ordem de ir à fortaleza, onde ...

- Ordem? De quem? De Kasigi Yabu?

- Oh, não, do Senhor Toranaga, senhor, quando ele voltou da caçada esta tarde.

- Oh, o Senhor Toranaga? - Buntaro acalmou-se e contemplou carrancudo a fortaleza do outro lado da baía. O estandarte de Toranaga tremulava ao lado do de Yabu.

- Gostaria que eu mandasse alguém buscá-la?

Ele balançou a cabeça.

- Há bastante tempo para ela. - Suspirou, olhou de viés para a sobrinha, filha da sua irmã mais nova. - Sou feliz por ter uma esposa tão completa, neh?

- Sim, senhor. É sim. Ela foi enormemente valiosa para interpretar o conhecimento do Anjin-san.

Buntaro olhou fixamente para a fortaleza, depois farejou o vento quando o cheiro do cozido chegou numa nova lufada.

- É como estar em Nagasaki, ou de volta à Coréia. Preparam carne o tempo todo, cozida ou assada. Fede... você nunca cheirou nada parecido. Os coreanos são animais, como canibais. O fedor do alho entra até na roupa e no cabelo da gente.

- Deve ter sido terrível.

- A guerra foi boa. Poderíamos ter vencido facilmente. E assolado a China. E civilizado ambos os países. - Buntaro avermelhou-se e sua voz soou estridente. - Mas não vencemos. Fracassamos e tivemos que regressar com a nossa vergonha porque fomos traídos. Traídos por traidores imundos, altamente colocados.

- Sim, isso é muito triste, mas o senhor tem razão. Toda a razão, Buntaro-sama - disse ela apaziguadora, dizendo facilmente a mentira, sabendo que nenhuma nação do mundo poderia conquistar a China, e ninguém poderia civilizar a China, que estava civilizada desde tempos imemoriais.

A veia da testa de Buntaro latejava e ele falava quase que para si mesmo.

- Eles pagarão. Todos eles. Os traidores. É apenas uma questão de esperar junto a um rio o tempo suficiente para que os corpos dos seus inimigos passem boiando, neh? Esperarei e cuspirei na cabeça deles em breve, muito em breve. Prometi isso a mim mesmo. - Olhou para ela. - Odeio traidores e adúlteros. E todos os mentirosos!

- Sim, concordo. O senhor tem toda a razão, Buntaro-sama - disse ela, com um calafrio, sabendo que não havia limite para a ferocidade dele. Quando Buntaro tinha dezesseis anos, executara a própria mãe, uma das consortes inferiores de Hiromatsu, pela sua suposta infidelidade enquanto o pai, Hiromatsu, estava na guerra, lutando pelo ditador, o Senhor Goroda. Depois, anos mais tarde, matara o filho mais velho, tido com a primeira esposa, por supostos insultos, e mandara a esposa de volta para a família, onde ela morrera pela própria mão, incapaz de suportar a vergonha. Ele fizera coisas terríveis às consortes e a Mariko. E discutira violentamente com o pai de Fujiko e o acusara de covardia na Coréia, desacreditando-o junto ao taicum, que imediatamente lhe ordenara que raspasse a cabeça e se tornasse monge, para morrer em devassidão, logo depois, consumido pela própria vergonha.

Fujiko precisou de toda a força de vontade para aparentar tranqüilidade.

- Ficamos muito orgulhosos de ouvir que o senhor havia escapado ao inimigo.

O saquê chegou. Buntaro começou a beber pesadamente.

Depois de passado o tempo correto de espera, Fujiko levantou-se.

- Por favor, desculpe-me um instante. - Dirigiu-se a cozinha para prevenir Blackthorne, pedir-lhe permissão para que Buntaro se alojasse na casa, e dizer a ele e aos criados o que devia ser feito.

- Por que aqui? - perguntou Blackthorne irritado. - Por que ficar aqui? É necessário?

Fujiko desculpou-se e tentou explicar que, naturalmente, Buntaro não podia ser recusado. Blackthorne voltou taciturno ao seu cozido e ela retornou à varanda, a Buntaro, com o peito doendo.

- Meu amo diz que fica honrado em tê-lo aqui. A casa dele é a sua casa.

- Como é ser consorte de um bárbaro?

- Eu imaginei que seria horrível. Mas do Anjin-san, que é hatamoto e portanto samurai? Suponho que seja como com outros homens. Esta é a primeira vez que sou consorte. Prefiro ser esposa. O Anjin-san é como os outros homens, embora, sim, alguns dos seus modos sejam muito estranhos.

- Quem teria pensado que uma mulher da nossa casa seria consorte de um bárbaro, mesmo hatamoto?

- Não tive escolha. Simplesmente obedeci ao Senhor Toranaga, e ao avô, o líder do nosso clã. É a posição da mulher, obedecer.

- Sim. - Buntaro esvaziou o cálice de saquê e ela tornou a enchê-lo. - Obediência é importante numa mulher. Mariko-san é obediente, não é?

- Sim, senhor. - Ela olhou-lhe o rosto feio, de gorila. - Ela só lhe trouxe honra, senhor. Sem a senhora sua esposa, o Senhor Toranaga nunca poderia ter obtido o conhecimento do Anjin-san.

Ele sorriu falsamente.

- Ouvi dizer que você apontou as pistolas na cara de Omi-san.

- Eu estava apenas cumprindo o meu dever, senhor.

- Onde aprendeu a usar armas?

- Eu nunca havia empunhado uma arma até então. Não sabia se as pistolas estavam carregadas. Mas teria puxado os gatilhos.

Buntaro riu.

- Omi-san também achou isso.

Ela tornou a encher o cálice.

- Nunca compreendi por que Omi-san não tentou tomá-las de mim. O seu senhor ordenara que as tirasse, mas ele não o fez.

- Eu teria feito.

- Sim, Tio, eu sei. Por favor, desculpe-me, mas ainda assim eu teria puxado os gatilhos.

- Sim. Mas teria errado!

- Sim, provavelmente. Depois daquilo aprendi a atirar.

- Ele a ensinou?

- Não. Foi um dos oficiais do Senhor Naga.

- Por quê?

- Meu pai nunca permitiu que suas filhas aprendessem a manejar espada e lança. Achava, sabiamente, acredito, que devíamos dedicar o nosso tempo a aprender coisas mais delicadas. Mas às vezes uma mulher precisa proteger seu amo e sua casa. A pistola é uma boa arma para uma mulher, muito boa. Não requer força nem muita prática. Então, agora, eu talvez possa ser um pouco mais de utilidade para o meu amo, pois eu certamente estourarei a cabeça de qualquer homem para protegê-lo, e pela honra da nossa casa.

Buntaro esvaziou o cálice.

- Fiquei orgulhoso quando ouvi que você enfrentou Omi-san. Agiu corretamente. O Senhor Hiromatsu ficará igualmente orgulhoso.

- Obrigada, Tio. Mas eu apenas cumpri um dever comum. - Curvou-se formalmente. - Meu amo pergunta se o senhor lhe concederia a honra de conversar agora, se lhe aprouver.

Ele continuou com o ritual.

- Por favor, agradeça-lhe, mas primeiro posso me banhar? Se aprouver a ele, vê-lo-ei quando a minha esposa voltar.

 

Blackthorne esperava no jardim. Agora usava o quimono marrom que Toranaga lhe dera, com espadas ao sash e uma pistola carregada, escondida também sob o sash. Através das apressadas explicações de Fujiko e subseqüentemente pelos criados, aprendera que tinha que receber Buntaro formalmente, porque o samurai era um importante general e hatamoto, e era o primeiro hóspede na sua casa. De modo que tomara um banho e trocara de roupa rapidamente e se dirigira ao local que fora preparado.

Vira brevemente Buntaro na véspera, quando ele chegou. Buntaro estivera ocupado com Toranaga e Yabu o resto do dia, junto com Mariko, e Blackthorne fora deixado sozinho para organizar às pressas a demonstração de ataque com Omi e Naga. O ataque fora satisfatório.

Mariko voltara para casa muito tarde. Contara-lhe rapidamente sobre a escapada de Buntaro, os dias que passara sendo caçado pelos homens de Ishido, esquivando-se, e finalmente atravessando as províncias hostis para atingir o Kwanto.

- Foi muito difícil, mas talvez não demais, Anjin-san. Meu marido é muito forte e muito corajoso.

- O que vai acontecer agora? A senhora vai partir?

- O Senhor Toranaga ordenou que tudo permaneça como estava. Nada deve ser mudado.

- A senhora mudou, Mariko. Perdeu uma centelha.

- Não. Isso é imaginação sua, Anjin-san. É apenas o meu alívio por ele estar vivo, quando eu estava certa de que ele morrera.

- Sim. Mas fez uma diferença, não fez?

- Claro. Agradeço a Deus por meu arpo não ter sido capturado, por ter vivido para obedecer ao Senhor Toranaga. O senhor me desculpará, Anjin-san, estou cansada agora. Sinto muito, estou muito, muito cansada.

- Há alguma coisa que eu possa fazer?

- O que deveria fazer, Anjin-san? Além de estar feliz por mim e por ele? Nada mudou, realmente. Nada terminou porque nada começou. Tudo está como estava. Meu marido está vivo.

Você não gostaria que ele estivesse morto? perguntou-se Blackthorne ali no jardim. Não.

Então por que a pistola escondida? Você está com sensação de culpa?

Não. Nada começou.

Não mesmo?

Não.

Você pensou que estava com ela. Não é o mesmo que ter estado de fato com ela?

Viu Mariko sair da casa e dirigir-se para o jardim. Parecia uma miniatura de porcelana seguindo meio passo atrás de Buntaro, cuja corpulência parecia ainda maior em comparação. Fujiko vinha com ela, assim como as criadas. Ele se curvou.

- Yokoso oide kudasareta, Buntaro-san. Bem-vindo à minha casa.

Todos se curvaram. Buntaro e Mariko se sentaram sobre as almofadas à sua frente, Fujiko atrás. Nigatsu e a criada, Koi, começaram a servir chá e saquê. Buntaro tomou saquê. Blackthorne fez o mesmo.

- Domo, Anjin-san. lkaga desu ka?

- li. Ikaga desu ka?

- li. Kowa jozuni shabereru yoni natta na. Ótimo. O senhor está começando a falar japonês muito bem.

Logo Blackthorne se perdeu na conversa, pois Buntaro engolia as palavras, falando rápida e descuidadamente.

- Desculpe, Mariko-san, não compreendi isso.

- Meu marido deseja agradecer-lhe por ter tentado salvá-lo. Com o remo. Lembra-se? Quando estávamos escapando de Osaka.

- Ah, so desu! Domo. Por favor, diga-lhe que ainda acho que devíamos ter voltado à praia. Havia tempo suficiente. A criada afogou-se desnecessariamente.

- Ele diz que foi karma.

- Foi uma morte desperdiçada - replicou Blackthorne, e lamentou a rudeza. Notou que ela não traduziu.

- Meu marido diz que a estratégia de ataque é muito boa, muito boa mesmo.

- Domo. Diga-lhe que estou contente por ele ter escapado ileso. E que seja ele quem vai comandar o regimento. E, naturalmente, que ele é bem-vindo se quiser ficar aqui.

- Domo, Anjin-san. Buntaro diz que o plano de assalto é muito bom. Mas quanto a ele, sempre carregará seu arco e espadas. Pode matar a uma distância muito maior, com grande precisão, e mais rápido do que um mosquete.

- Amanhã atiraremos juntos e veremos, se ele quiser.

- O senhor perderá, Anjin-san, sinto muito. Posso preveni-lo para não fazer isso? - disse ela.

Blackthorne viu os olhos de Buntaro esvoaçarem de Mariko para ele e voltar para ela.

- Obrigado, Mariko-san. Diga-lhe que eu gostaria de vê-lo atirar.

- Ele pergunta se o senhor sabe usar um arco.

- Sim, mas não como um arqueiro adequado. Os arcos estão completamente fora de uso entre nós. Exceto a besta. Fui treinado para o mar. Lá usamos apenas canhões, mosquetes, ou alfanjes. Algumas vezes usamos setas incendiárias, mas apenas contra as velas do inimigo, e bem de perto.

- Ele pergunta como são usadas, como são feitas, essas setas incendiárias. São diferentes das nossas, como as que foram usadas contra a galera, em Osaka?

Blackthorne começou a explicar e houve as fatigantes interrupções habituais e novas perguntas mais minuciosas. A esta altura estava acostumado à mente incrivelmente inquisitiva deles cor: relação a qualquer aspecto da guerra, mas achava exaustivo conversar por meio de um intérprete. Ainda que Mariko fosse excelente, o que ela realmente dizia raramente era exato. Uma longa réplica era sempre encurtada, alguma coisa do que era dito era, naturalmente, ligeiramente alterada, e ocorriam mal-entendidos. Então as explicações tinham que ser repetidas desnecessariamente.

Mas sem Mariko ele sabia que jamais poderia ter-se tornado tão valioso. É apenas o conhecimento que me mantém longe do abismo, lembrou-se ele. Mas isso não é problema, pois ainda há muito a contar e uma batalha a vencer. Uma autêntica batalha a vencer. Você estará seguro até lá. Você tem uma marinha para planejar. E depois, para casa. Ileso.

Viu as espadas de Buntaro, as espadas do guarda, sentiu as suas e o calor da pistola, e soube, verdadeiramente, que nunca estaria seguro naquela terra. Nem ele nem qualquer outra pessoa, nem mesmo Toranaga.

- Anjin-san, Buntaro-sama pergunta se, mandando-lhe alguns homens amanhã, o senhor poderia mostrar-lhes como fazer essas setas.

- Onde podemos conseguir alcatrão?

- Não sei. - Mariko interrogou-o sobre onde era geralmente encontrado, qual era a aparência, o cheiro, e possíveis alternativas. Depois falou a Buntaro longamente. Fujiko estivera silenciosa o tempo todo, os olhos e os ouvidos treinados, não perdendo nada. As criadas, bem comandadas por um leve movimento do seu leque em direção a um cálice vazio, constantemente enchiam de novo os frascos de saquê.

- Meu marido diz que discutirá isso com o Senhor Toranaga. Talvez exista alcatrão em algum lugar no Kwanto. Nunca ouvimos falar nisso antes. Se não for alcatrão, temos óleo de baleia, que talvez substitua. Ele pergunta se no seu país usam rojões de combate, como os chineses.

- Sim. Mas não são considerados de muito valor, exceto em cercos. Os turcos usaram-nos quando atacaram os cavaleiros de São João, em Malta. Os rojões são usados, na maior parte, para causar incêndios e pânico.

- Ele pede, por favor, que o senhor dê detalhes sobre essa batalha.

- Foi há quarenta anos, na maior... - Blackthorne parou, a mente disparando. Fora o assédio mais vital da Europa. Sessenta mil turcos islâmicos, a nata do Império Otomano, atacaram seiscentos cavaleiros, apoiados por uns poucos milhares de auxiliares malteses, encurralados no seu vasto castelo em St. Elmo, na minúscula ilha de Malta, no Mediterrâneo. Os cavaleiros haviam resistido com êxito aos seis meses de cerco e, inacreditavelmente, forçaram o inimigo a se retirar humilhado. Essa vitória salvara toda a costa mediterrânea, e 'assim a cristandade, de ser devastada pelas hordas infiéis.

Blackthorne repentinamente percebera que essa batalha lhe dava uma das chaves para o Castelo de Osaka: como atacá-lo, como acossá-lo, como atravessar os portões, e como conquistá-lo.

- Estava dizendo, senhor?

- Foi há quarenta anos, no maior mar intercontinental que temos na Europa, Mariko-san. O Mediterrâneo. Foi apenas um cerco, como qualquer outro, que não merece que se fale a respeito - mentiu ele. Esse conhecimento era inestimável, certamente não para ser cedido levianamente e não agora, em absoluto. Mariko explicara muitas vezes que o Castelo de Osaka se erguia inexoravelmente entre Toranaga e a vitória. Blackthorne estava certo de que a solução para Osaka poderia muito bem ser o seu passaporte para fora do império, com todas as riquezas de que ele poderia precisar na vida.

Notou que Mariko parecia perturbada.

- Senhora?

- Nada, senhor. - Começou a traduzir o que ele dissera. Mas ele sabia que ela sabia que ele estava ocultando alguma coisa. O cheiro do guisado distraiu-o.

- Fujiko-san!

- Hai, Anjin-san?

- Shokuji wa madaka? Kyaku wa... sazo kufuku de oro, neh? Quando é o jantar? Os convidados podem estar com fome.

- Ah, gomen nasai, hi ga kurete kara ni itashimasu.

Blackthorne viu-a apontar para o sol e entendeu que dissera:

"Depois do pôr-do-sol". Assentiu e grunhiu, o que passava no Japão por um polido "Obrigado, compreendi".

Mariko voltou-se novamente para Blackthorne.

- Meu marido gostaria que o senhor lhe contasse sobre uma batalha em que tenha estado.

- Estão todas no Manual de Guerra, Mariko-san.

- Ele diz que o leu com grande interesse, mas contém apenas breves detalhes. Nos próximos dias ele deseja aprender tudo sobre as suas batalhas. Uma agora, se lhe agradar.

- Estão todas no Manual de Guerra. Talvez amanhã, Mariko-san. - Ele queria tempo para examinar o seu deslumbrante novo pensamento sobre o Castelo de Osaka e aquela batalha, e estava cansado de conversar, cansado de ser interrogado, mas acima de tudo queria comer.

- Por favor, Anjin-san, o senhor contaria novamente, só uma vez, ao meu marido?

Ele ouviu a súplica cuidadosa sob o tom dela, e cedeu.

- Claro. De qual a senhora acha que ele gostaria?

- A batalha da Neerlândia. "Neerlândia", é assim que se pronuncia?

- Sim - disse ele.

Então ele começou a contar a história dessa batalha que era como quase todas as outras batalhas onde morriam homens, na maior parte das vezes por causa dos erros e da estupidez dos oficiais no comando.

- Meu marido diz que aqui não é assim, Anjin-san. Aqui os oficiais no comando têm que ser muito bons, ou morrem rapidamente.

- Naturalmente a minha crítica se aplicava apenas aos líderes ingleses.

- Buntaro-sama diz que lhe falará sobre as nossas guerras e os nossos líderes, particularmente do taicum, nos próximos dias. Uma troca justa pelas suas informações - disse ela, impassível.

- Domo. - Blackthorne curvou-se ligeiramente, sentindo os olhos de Buntaro cravados nele.

O que é que você realmente quer de mim, seu filho da puta?

 

O jantar foi uma calamidade. Para todos.

Mesmo antes de deixarem o jardim para irem comer na varanda, o dia já se tornara de mau agouro.

- Desculpe-me, Anjin-san, mas o que é aquilo? - apontou Mariko. - Ali. Meu marido pergunta o que é aquilo.

- Onde? Oh, lá! É um faisão - disse Blackthorne. - O Senhor Toranaga enviou-o para mim, junto com uma lebre. É o que teremos no jantar, em estilo inglês... pelo menos é o que eu terei, embora haja o suficiente para todos.

- Obrigada, mas... nós, meu marido e eu, não comemos carne. Mas por que o faisão está pendurado lá? Com este calor, não deveria ser descido e preparado?

- É assim que se prepara um faisão. A gente o pendura para amadurecer a carne.

- O quê? Assim? Desculpe-me, Anjin-san - disse ela, desconcertada -, sinto muito, mas vai apodrecer rapidamente. Ainda está com as penas e não foi ... limpo.

- A carne do faisão é seca, Mariko-san, por isso ele deve ser pendurado durante alguns dias, talvez umas duas semanas, dependendo do tempo. Depois é depenado, limpo e cozido.

- O senhor... o senhor o deixa ao ar? Para apodrecer? Como...

- Nan ja? - perguntou Buntaro impaciente.

Ela falou com ele, desculpando-se, ele ouviu incrédulo, depois se levantou, aproximou-se, examinou a ave e cutucou-a. Algumas moscas zumbiram, depois pousaram de novo. Hesitantemente Fujiko falou a Buntaro, que corou.

- Sua consorte disse que o senhor ordenou que ninguém além do senhor deveria tocá-lo - disse Mariko.

- Sim. Não se pendura caça aqui? Nem todos são budistas.

- Não, Anjin-san. Acho que não.

- Algumas pessoas acreditam que se deve pendurar um faisão pelas penas da cauda até que caia, mas isso é história de velhas - disse Blackthorne. - O jeito certo é pelo pescoço, assim os sumos ficam onde devem ficar. Algumas pessoas deixam-no pendurado até que se separe do pescoço, mas eu pessoalmente não gosto de carne decomposta assim. Costumávamos... - Parou pois ela adquirira uma leve tonalidade esverdeada.

- Nan desu ka, Mariko-san? - perguntou Fujiko rapidamente.

Mariko explicou. Todos riram nervosamente e Mariko levantou-se debilmente, dando tapinhas no brilho da testa.

- Desculpe, Anjin-san, quer me dar licença um instante...

A comida de vocês também é estranha, queria ele dizer. Que tal a de ontem, lula crua - mascar a carne branca, viscosa, quase sem gosto, com nada além de um pouco de molho de soja para ajudar a descer? Ou os tentáculos picados de polvo, novamente crus, com arroz frio e alga marinha? E a água-viva fresca com tofu - feijões fermentados - ensopado, amarelo-amarronzado, que parecia uma tigela de vômito de cão? Oh, sim, servido lindamente numa frágil e atraente tigela, mas sempre se parecendo com vômito! Sim, por Deus, é o bastante para deixar um homem doente!

Acabaram indo todos para a varanda e, depois das mesuras habituais e intermináveis, da conversa amena, do chá e do saquê, a comida começou a chegar. Pequenas bandejas de uma transparente sopa de peixe, arroz, peixe cru, como sempre. E depois o cozido dele.

Ele ergueu a tampa do caldeirão. O vapor subiu e os dourados glóbulos de gordura dançaram na superfície fumegante. A sopa-molho rica, de dar água na boca, estava densa com os sumos da carne e tenros nacos. Orgulhosamente ele ofereceu, mas todos menearam a cabeça e pediram-lhe que comesse.

- Domo - disse ele.

Era sinal de boas maneiras tomar a sopa diretamente das tigelinhas laqueadas e comer qualquer coisa sólida contida na sopa com os pauzinhos. Havia uma concha na bandeja. Quase incapaz de conter a fome, ele encheu a tigela e começou a comer. Então viu os olhos deles.

Observavam-no com uma fascinação nauseada que, em vão, tentavam ocultar. Seu apetite começou a se desvanecer. Tentou ignorá-los, mas não conseguiu, o estômago roncando. Dissimulando a própria irritação, pousou a tigela, recolocou a tampa e disse-lhes asperamente que não estava ao seu gosto. Ordenou a Nigatsu que levasse embora.

- Fujiko-san pergunta se deve ser jogado fora – disse Mariko esperançosa.

- Sim.

Fujiko e Buntaro descontraíram-se.

- Gostaria de um pouco mais de arroz? – perguntou Fujiko.

- Não, obrigado.

Mariko abanou o leque, sorriu encorajadoramente, e tornou a encher-lhe o cálice de saquê. Mas Blackthorne não se sentia mais calmo e resolveu que no futuro cozinharia nas colinas, isolado, comeria isolado, e caçaria abertamente.

Ao inferno com eles, pensou. Se Toranaga pode caçar, eu também posso. Quando é que vou vê-lo? Quanto tempo tenho que esperar?

- Sífilis na espera e sífilis em Toranaga! - disse alto em inglês, e sentiu-se melhor.

- O quê, Anjin-san? - perguntou Mariko em português.

- Nada - retrucou ele. - Só estava me perguntando quando verei o Senhor Toranaga.

- Ele não me disse. Muito em breve, imagino.

Buntaro sorvia o saquê e a sopa sonoramente, conforme o costume. Isso começou a aborrecer Blackthorne. Mariko falava animadamente com o marido, que grunhia, mal lhe prestando atenção. Ela não estava comendo, e Blackthorne ficou ainda mais aborrecido de que tanto ela quanto Fujiko estivessem quase bajulando Buntaro, e também que ele próprio tivesse que acolher aquele hóspede indesejado.

- Diga a Buntaro-sama que no meu país o anfitrião brinda ao convidado de honra. - Ergueu o cálice com um sorriso rígido.

- Longa vida e felicidade! - Bebeu.

Buntaro ouviu a explicação de Mariko. Assentiu, ergueu o cálice, sorriu por entre os dentes, e esvaziou-o.

- Saúde! - brindou Blackthorne de novo.

E de novo.

E de novo.

- Saúde!

Desta vez Buntaro não bebeu. Puxou o cálice cheio e fitou Blackthorne com seus olhos pequenos. Então chamou alguém lá fora. A shoji deslizou imediatamente. Seu guarda, sempre presente, curvou-se e estendeu-lhe o imenso arco e a aljava. Buntaro pegou-o e falou veemente e rapidamente a Blackthorne.

- Meu marido... meu marido diz que o senhor queria vê-lo atirar, Anjin-san. Ele acha que amanhã está longe demais. Agora é um bom momento. O portão da sua casa, Anjin-san. Ele pergunta que batente o senhor escolhe.

- Não compreendo - disse Blackthorne. O portão principal estava a uns quarenta passos de distância, em algum ponto do outro lado do jardim, mas agora completamente oculto pela shoji fechada à sua direita.

- O batente da esquerda ou o da direita? Por favor, escolha. - A polidez dela traía urgência.

Prevenido, ele olhou para Buntaro. O homem parecia à parte, esquecido deles, um boneco atarracado e feio, sentado e olhando a distância.

- Esquerda - disse ele, fascinado.

- Hidari! - disse ela.

Imediatamente Buntaro puxou uma seta da aljava e, ainda sentado, assestou o arco, levantou-o, retesou a corda ao nível dos olhos e soltou a flecha com uma fluidez selvagem, quase poética. A seta disparou na direção do rosto de Mariko, tocou-lhe um fio de cabelo de passagem, e desapareceu através da parede shoji. Outra seta foi atirada quase antes de a primeira ter sumido, depois outra, cada uma passando a uma polegada de Mariko. Ela permanecia calma e imóvel, ajoelhada como estivera o tempo todo.

Uma quarta flecha e depois a última. O silêncio encheu-se om o eco da corda do arco vibrando. Buntaro suspirou e voltou lentamente. Pôs o arco atravessado sobre os joelhos. Mariko e Fujiko sorriram, curvaram-se e cumprimentaram Buntaro, que assentiu e curvou-se ligeiramente. Olharam para Blackthorne. Ele sabia que o que testemunhara fora quase mágico. Todas as setas haviam passado pelo mesmo furo na shoji.

Buntaro estendeu o arco de volta ao guarda e pegou o minúsculo cálice. Contemplou-o um momento, depois ergueu-o para Blackthorne, esvaziou-o e falou rudemente, seu ego bestial de novo.

- Ele... meu marido pede, polidamente, por favor, vá e olhe.

Blackthorne pensou um momento, tentando acalmar o coração.

- Não há necessidade. Claro que ele atingiu o alvo.

- Ele diz que gostaria de que o senhor tivesse certeza.

- Eu tenho certeza.

- Por favor, Anjin-san. O senhor o honraria.

- Não preciso honrá-lo.

- Sim. Mas posso, por favor, juntar ao dele o meu pedido?

Novamente a súplica nos olhos dela.

- Como se diz: "Foi maravilhoso assistir a isso"?

Ela lhe disse. Ele disse as palavras e se curvou. Buntaro curvou-se perfunctoriamente em retribuição.

- Peça-lhe, por favor, que venha comigo ver as setas.

- Ele diz que gostaria que o senhor fosse sozinho. Ele não deseja ir, Anjin-san.

- Por quê?

- Se ele foi exato, Anjin-san, o senhor deve ver isso sozinho. Se não foi, deve ver isso sozinho também. Assim nem o senhor nem ele ficam embaraçados.

- E se ele tiver errado?

- Não errou. Mas pelo nosso costume a precisão, nestas circunstâncias impossíveis, não tem importância comparada à graça demonstrada pelo arqueiro, a nobreza do movimento, a força de atirar sentado, ou o desprendimento quanto a ter vencido ou perdido.

As setas estavam a uma polegada uma da outra, no meio do batente esquerdo. Blackthorne olhou para trás, para a casa, e viu, a quarenta e poucos passos, o furinho nítido na parede de papel que era uma centelha de luz na escuridão.

É quase impossível ter tanta pontaria, pensou. Do lugar onde Buntaro estava sentado, não podia ver nem o jardim nem o portão, e a noite estava escura aqui fora. Blackthorne voltou-se para o batente e ergueu um pouco mais a lanterna. Com uma mão tentou arrancar uma seta. A cabeça de aço estava enterrada fundo demais. Ele poderia ter quebrado o cabo de madeira, mas não quis fazer isso.

O guarda observava.

Blackthorne hesitou. O guarda aproximou-se para ajudar, mas ele meneou a cabeça.

- Iyé, domo - e voltou para dentro.

- Mariko-san, por favor, diga à minha consorte que eu gostaria que as setas ficassem no batente para sempre. Todas elas. Para me lembrar de um arqueiro magistral. Eu nunca tinha visto pontaria assim. - Curvou-se para Buntaro.

- Obrigada, Anjin-san. - Traduziu e Buntaro curvou-se e agradeceu o elogio.

- Saquê! - ordenou Blackthorne.

Beberam mais. Muito mais. Buntaro bebia a grandes goles agora, descuidado, o vinho tomando conta dele. Blackthorne observou-o dissimuladamente, depois deixou a atenção vagar, perguntando-se como o homem conseguira alinhar e atirar as setas com uma precisão tão incrível. É impossível, pensou, ainda que eu tenha visto. Gostaria de saber o que Vinck, Baccus e os demais estão fazendo agora. Toranaga lhe dissera que a tripulação estava instalada em Yedo, perto do Erasmus. Jesus Cristo, gostaria de vê-los e voltar a bordo.

Olhou de soslaio para Mariko, que dizia alguma coisa ao marido. Buntaro ouviu, depois, para surpresa de Blackthorne, o rosto do samurai contorceu-se de repugnância. Antes que pudesse desviar os olhos, Buntaro o olhou.

- Nan desu ka? - As palavras de Buntaro soaram quase como uma acusação.

- Nani-mo, Buntaro-san. Nada. - Blackthorne ofereceu saquê a todos, esperando disfarçar o seu lapso. Novamente as mulheres aceitaram, mas tomaram apenas um pequeno gole de vinho. Buntaro acabou o seu imediatamente, com um humor péssimo. Depois falou com Mariko.

Apesar de si mesmo, Blackthorne falou:

- O que há com ele? O que está dizendo?

- Oh, desculpe, Anjin-san. Meu marido estava perguntando sobre o senhor, sobre a sua esposa e consortes. E sobre seus filhos. E sobre o que aconteceu desde que partimos de Osaka. Ele... - Parou, mudando de idéia, e acrescentou numa voz indiferente: - Ele está muito interessado no senhor e nas suas idéias.

- Estou interessado nele e nas idéias dele, Mariko-san. Como se conheceram, a senhora e ele? Quando se casaram? Ele... - Buntaro irrompeu com um jorro de japonês impaciente.

Imediatamente Mariko traduziu o que fora dito. Buntaro estendeu a mão e encheu duas xícaras de chá com saquê, ofereceu uma a Blackthorne e acenou às mulheres que levassem os cálices.

- Ele ... meu marido diz que às vezes os cálices de saquê são pequenos demais. - Mariko encheu os cálices. Sorveu um, Fujiko o outro. Houve outra arenga, mais belicosa, e o sorriso de Mariko congelou-sê-lhe no rosto. O de Fujiko também.

- Iyé, dozo gomen nasai, Buntaro-sama - começou Mariko.

- Ima! - ordenou Buntaro.

Nervosamente Fujiko começou a falar, mas Buntaro calou-a com um olhar.

- Gomen nasai — sussurrou Fujiko, desculpando-se. - Dozo, gomen nasai.

- O que ele disse, Mariko-san? - Ela não pareceu ter ouvido Blackthorne. - Dozo gomen nasai, Buntaro-sama, watashi...

O rosto do marido avermelhou-se.

- IMA!

- Desculpe, Anjin-san, mas meu marido me ordena que lhe conte... que responda às suas perguntas... que lhe conte a meu respeito. Eu lhe disse que não achava que esses assuntos de família devessem ser discutidos tão tarde da noite, mas ele ordena. Por favor, seja paciente. - Ela tornou um grande gole de saquê. Depois outro. Os fios de cabelo que lhe estavam soltos sobre as orelhas oscilaram à leve corrente produzida pelo leque de Fujiko. Ela esvaziou o cálice e pousou-o. - Meu nome de solteira é Akechi. Sou a filha do Senhor General Akechi Jinsai, o assassino. Meu pai traiçoeiramente assassinou o seu suserano, o Senhor Ditador Goroda.

- Deus do paraíso! Por que fez isso?

- Seja qual for a razão, Anjin-san, é insuficiente. Meu pai cometeu o pior crime do nosso mundo. Meu sangue está maculado, assim como o sangue do meu filho.

- Então por que... - Ele parou.

- Sim, Anjin-san?

- Eu só ia dizer que compreendo o que isso quer dizer... matar um suserano. Estou surpreso de que a tenham deixado viva.

- Meu marido honrou-me...

Novamente Buntaro a interrompeu com malignidade e ela se desculpou e explicou o que Blackthorne perguntara. Desdenhosamente, Buntaro fez-lhe um gesto para continuar.

- Meu marido honrou-me mandando-me embora - continuou ela, do mesmo modo meigo. - Implorei que me autorizasse a cometer seppuku, mas ele me negou esse privilégio. Era... Devo explicar que seppuku é um privilégio concedido por ele ou pelo Senhor Toranaga. Eu ainda lhe peço humildemente uma vez por ano, no aniversário do dia da traição. Mas na sua sabedoria, meu marido sempre recusou. - O sorriso dela era adorável. - Meu marido me honra todos os dias, todos os momentos, Anjin-san. Se eu fosse ele, não seria capaz sequer de conversar com uma pessoa tão... conspurcada.

- É por isso que ... é por isso que a senhora é a última da sua linhagem? - perguntou ele, lembrando-se do que ela dissera sobre uma catástrofe, durante a marcha do Castelo de Osaka. Mariko traduziu a pergunta para Buntaro, e depois voltou-se novamente.

- Hai, Anjin-san. Mas não foi uma catástrofe, não para eles. Foram apanhados nas colinas, meu pai e sua família, por Nakamura, o general que se tornou taicum. Foi Nakamura quem comandou os exércitos de vingança e dizimou todas as forças do meu pai, vinte mil homens, um por um. Meu pai e sua família foram acuados, mas meu pai teve tempo de ajudá-los a todos, meus quatro irmãos e três irmãs, minha... minha mãe e as duas consortes. Depois cometeu seppuku. Nisso ele foi samurai, e eles eram samurais. Ajoelharam-se bravamente diante dele, um por um, e ele os matou um por um. Morreram honrosamente. E ele morreu honrosamente. Os dois irmãos do meu pai, e um tio, se haviam aliado a ele na traição contra o suserano. Também foram perseguidos. E morreram com honra igual. Nenhum Akechi foi deixado com vida para enfrentar o ódio e o escárnio do inimigo, exceto eu... não, desculpe-me, por favor, Anjin-san, estou errada... meu pai e seus irmãos e tio eram o verdadeiro inimigo. Do inimigo, apenas eu permaneci viva, uma testemunha viva da imunda traição. Eu, Akechi Mariko, fui deixada viva porque era casada e portanto pertencia à família do meu marido. Morávamos em Kyoto então. Eu estava em Kyoto quando o meu pai morreu. Sua traição e rebelião duraram apenas treze dias, Anjin-san. Mas enquanto viver um homem nestas ilhas, o nome Akechi será vergonhoso.

- Há quanto tempo estava casada quando isso aconteceu?

- Há dois meses e três dias, Anjin-san.

- E tinha quinze anos?

- Sim. Meu marido honrou-me não se divorciando de mim nem me expulsando como deveria ter feito. Fui mandada embora. Para uma aldeia ao norte. Fazia frio lá, Anjin-san, na província de Shonai. Muito frio.

- Quanto tempo ficou lá?

- Oito anos. O Senhor Goroda tinha quarenta e cinco anos quando cometeu seppuku para impedir a própria captura. Isso foi há quase dezesseis anos, Anjin-san, e a maioria dos seus descend...

Buntaro interrompeu de novo, sua língua um açoite.

- Por favor, desculpe-me, Anjin-san - disse Mariko. - Meu marido corretamente assinala que teria sido suficiente que eu dissesse que sou filha de um traidor, que longas explicações são desnecessárias. Claro que algumas explicações eram necessárias - acrescentou ela cuidadosamente. - Por favor, desculpe os maus modos do meu marido e rogo-lhe que se lembre do que eu disse sobre ouvidos para ouvir e sobre a Cerca Óctupla. Perdoe-me, Anjin-san, recebi ordem de ir embora. O senhor não deve sair antes que ele saia, nem beber mais do que ele. Não interfira. - Ela se curvou para Fujiko. - Dozo gomen nasai.

- Do itashimashité.

Mariko inclinou a cabeça para Buntaro e partiu. Seu perfume demorou-se no ar.

- Saquê! - disse Buntaro, e sorriu malignamente.

Fujiko encheu a xícara de chá.

- Saúde - disse Blackthorne, confuso.

Por mais de uma hora ele brindou a Buntaro, até sentir a própria cabeça girando. Então Buntaro tomou a última xícara e caiu deitado por entre xícaras despedaçadas. A shoji abriu-se instantaneamente. O guarda entrou com Mariko. Levantaram Buntaro, ajudados por criados que pareciam ter surgido do nada, e carregaram-no para o aposento oposto. O quarto de Mariko. Ajudada por Koi, a criada, ela começou a despi-lo. O guarda cerrou a shoji e sentou do lado de fora, a mão no punho da espada solta.

Fujiko esperava, olhando Blackthorne. Vieram criadas e arrumaram a desordem. Exausto, Blackthorne correu as mãos pelo longo cabelo e amarrou de novo a fita que prendia a cauda. Depois levantou-se oscilante e saiu para a varanda, seguido da consorte.

O ar cheirava bem e limpou-o. Mas não o suficiente. Ele se sentou pesadamente na varanda e sorveu a noite.

Fujiko ajoelhou-se atrás dele e inclinou-se para a frente.

- Gomen nasai, Anjin-san - sussurrou, movendo a cabeça na direção da casa. - Wakarimasu ka?

- Wakarimasu, shigata ga na!. - Depois, vendo-lhe o medo aparente, afagou-lhe o cabelo.

- Arigato, arigato, Anjin-sama.

- Anata wa suimin ima, Fujiko-san - disse ele, encontrando as palavras com dificuldade. Você dormir agora.

- Dozo gomen nasai, Anjin-san, suimin, neh? - disse ela, gesticulando na direção do quarto dele, os olhos suplicando.

- Iyé. Watashi oyogu ima. Não, vou nadar.

- Hai, Anjin-sama. - Obedientemente ela se voltou e chamou. Dois criados vieram correndo. Eram ambos jovens da aldeia, fortes e conhecidos como bons nadadores.

Blackthorne não fez objeção. Naquela noite sabia que as suas objeções seriam sem sentido.

- Bem, de qualquer jeito - disse alto, enquanto seguia oscilante colina abaixo, os homens atrás, o cérebro entorpecido pela bebida, - consegui pô-lo para dormir. Não pode machucá-la agora.

 

Blackthorne nadou durante uma hora e sentiu-se melhor. Quando voltou, Fujiko o esperava na varanda com um bule de chá. Ele aceitou um pouco, depois foi para a cama e pegou no sono imediatamente.

O som da voz de Buntaro, transbordante de maldade, despertou-o. Sua mão direita automaticamente agarrou a coronha da pistola que mantinha sempre embaixo do futon, o coração ribombando no peito devido ao inesperado despertar.

A voz de Buntaro cessou. Mariko começou a falar. Blackthorne só conseguia apreender algumas palavras, mas podia sentir os argumentos razoáveis e a súplica, não abjeta, lamentosa ou mesmo perto das lágrimas, apenas a firme serenidade habitual dela. Novamente Buntaro explodiu.

Blackthorne tentou não ouvir.

- Não interfira - dissera-lhe ela, e ela era prudente. Ele não tinha direitos, mas Buntaro tinha muitos. - Rogo-lhe que seja cuidadoso, Anjin-san. Lembre-se do que eu lhe disse de ouvidos para ouvir e a Cerca Óctupla.

Obedientemente deitou-se, a pele gelada de suor, e forçou-se a pensar no que ela dissera.

- Veja, Anjin-san - dissera-lhe naquela noite muito especial, quando terminavam a última de muitas últimas garrafas de saquê e ele brincara sobre a falta de privacidade por toda parte: gente sempre por perto, paredes de papel, ouvidos e olhos sempre espreitando -, aqui o senhor tem que aprender a criar a sua própria privacidade. Somos ensinados desde a infância a desaparecer dentro de nós mesmos, a erguer paredes impenetráveis, por trás das quais vivemos. Se não pudéssemos fazer isso, com certeza ficaríamos todos loucos e mataríamos uns aos outros e a nós mesmos.

- Que paredes?

- Oh, temos um labirinto ilimitado onde nos esconder, Anjin-san. Rituais e costumes, tabus de toda espécie, oh, sim. Até a nossa língua tem nuanças que a sua não tem, as quais nos permitem evitar, polidamente, uma pergunta se não queremos responder.

- Mas como cerrar os ouvidos, Mariko-san? Isso é impossível.

- Oh, muito fácil, com treinamento. Claro, o treinamento começa assim que a criança aprende a falar, portanto isso bem cedo se torna uma segunda natureza para nós. De que outro modo poderíamos sobreviver? Primeiro se começa purificando a mente de gente, colocando-se num plano diferente. A observação do pôrdo-sol é uma grande ajuda, ou a escuta da chuva. Anjin-san, já notou os diferentes sons da chuva? Se o senhor realmente ouvir, então o presente desaparece, neh? Ouvir flores caindo e rochas crescendo são exercícios excepcionalmente bons. Claro que não se espera que o senhor veja as coisas, elas são apenas sinais, mensagens ao seu hara, o seu centro, para lembrá-lo da transitoriedade da vida, para ajudá-lo a atingir a wa, a harmonia, Anjin-san, a harmonia perfeita, que é a qualidade mais visada em toda a vida do Japão, toda a arte, toda... - Ela rira. - Pronto, veja o que o excesso de saquê faz comigo. - A ponta da língua tocara-lhe os lábios sedutoramente. - Vou lhe cochichar um segredo: não se deixe enganar pelos nossos sorrisos e gentilezas, nosso cerimonial, nossas mesuras, delicadezas e atenções. Por trás disso tudo, podemos estar a um milhão de ris de distância, seguros e sozinhos. Pois é isso o que procuramos: esquecimento. Um dos nossos primeiros poemas jamais escritos - está no Kojiko, nosso primeiro livro de história, que foi escrito há cerca de mil anos - talvez explique o que estou dizendo:

 

“Oito cúmulos se erguem

Para os amantes se esconderem

A Cerca óctupla da província de Izumo

Encerra aquelas nuvens óctuplas Oh, que maravilhosa, essa Cerca Óctupla!"

 

- Nós certamente enlouqueceríamos se não tivéssemos uma Cerca Óctupla, oh, sim!

Lembre-se da Cerca Óctupla, disse ele a si mesmo, enquanto a fúria sibilante de Buntaro continuava. Não sei nada sobre ela. Nem sobre ele, na realidade. Pense no Regimento de Mosquetes, ou na sua casa, em Felicity, ou em como recuperar o navio, em Baccus, em Toranaga ou em Omi-san. Que tal Omi? Preciso de vingança? Ele quer ser meu amigo e tem sido bom e gentil desde o caso das pistolas e...

O som da pancada feriu-o dentro da cabeça. Depois a voz de Mariko começou de novo, e houve uma segunda pancada e Blackthorne se pôs de pé num instante e escancarou a shoji. O guarda erguia-se no corredor, junto à porta de Mariko, encarando-o maldosamente, a espada pronta.

Blackthorne estava se preparando para se atirar contra o samurai quando a porta na extremidade do corredor se abriu. Fujiko, o cabelo solto e flutuando sobre o quimono de dormir, aproximou-se, o som do pano rasgando e outro golpe aparentemente não a afetando em absoluto. Ela se curvou polidamente para o guarda e se postou entre eles, depois se curvou meigamente para Blackthorne e pegou-lhe o braço, guiando-o de volta ao quarto. Ele viu a tensa prontidão do samurai. Tinha apenas uma pistola e uma bala no momento, por isso recuou. Fujiko seguiu-o e fechou a shoji atrás de si. Depois, muito assustada, balançou a cabeça advertindo-o, pôs um dedo sobre os lábios, e balançou a cabeça de novo, os olhos suplicando.

- Gomen nasai, wakarimasu ka? - sussurrou ela.

Mas ele estava concentrado na parede do quarto contíguo, que poderia ser despedaçada com muita facilidade.

Fujiko também olhou para a parede, depois se colocou entre ele e a parede, e sentou-se, fazendo-lhe sinal que a imitasse.

Mas ele não podia. Continuou de pé, preparando-se para o ataque que os destruiria a todos, aguilhoado por um soluço que seguiu outra pancada.

- Iyé! - Fujiko estremeceu aterrorizada.

Ele fez-lhe sinal para sair do caminho.

- Iyé, iyé - implorou ela novamente.

- IMA!

Imediatamente Fujiko se levantou e fez-lhe sinal que esperasse enquanto corria sem ruído algum para as espadas que jaziam diante do takonoma, a pequena alcova de honra. Pegou a espada comprida, de mãos trêmulas, tirou-a da bainha, e preparou-se para segui-lo através da parede. Nesse instante houve um tapa final e uma exaltada torrente de fúria. A outra shoji abriu-se com estrondo e Buntaro se afastou com passos pesados, seguido pelo guarda.

Houve silêncio na casa por um momento, depois o som do portão

do jardim batendo.

Blackthorne dirigiu-se para a porta. Fujiko arremessou-se à sua frente, mas ele a empurrou para o lado e a escancarou.

Mariko ainda estava ajoelhada no canto do quarto ao lado, um vergão lívido no rosto, o cabelo desgrenhado, o quimono em farrapos, contusões graves nas coxas e na base das costas.

Ele se precipitou para levantá-la, mas ela gritou:

- Vá embora, por favor, vá embora, Anjin-san!

Ele viu o fio de sangue no canto da boca.

- Jesus, como a senhora está mal...

- Eu lhe disse que não interferisse. Por favor, vá embora - disse ela na mesma voz calma que a violência em seus olhos desmentia. Depois viu Fujiko, que ficara à soleira da porta. Falou com ela. Fujiko obedientemente pegou o braço de Blackthorne para levá-lo embora, mas ele se soltou com um repelão.

- Não! Iyé!

- Sua presença aqui me tira a dignidade, não me dá paz nem conforto e me envergonha - disse Mariko. - Vá embora!

- Quero ajudar. Não compreende?

- O senhor não compreende? Não tem direitos nisto. Foi uma discussão particular entre marido e mulher.

- Isso não é desculpa para bater...

- Por que não ouve, Anjin-san? Ele pode me espancar até a morte se quiser. Tem o direito e eu gostaria de que... até isso! Então eu não teria que suportar a vergonha. Acha que é fácil viver com a minha vergonha? Não ouviu o que eu disse? Sou filha de Akechi Jinsai!

- Não é culpa sua. A senhora não fez nada!

- É minha culpa e sou filha de meu pai. - Mariko teria parado aí. Mas, vendo a compaixão dele, o interesse, e o amor, e sabendo como ele prezava a verdade, permitiu que alguns dos seus véus tombassem. - Esta noite a culpa foi minha, Anjin-san - disse. - Se eu tivesse chorado como ele quer, implorado perdão como ele quer, bajulado e ficado petrificada e lisonjeado como ele quer, aberto os olhos em terror fingido como ele quer, fizesse todas as coisas próprias de mulher que o meu dever exige, ele seria como uma criança nas minhas mãos. Mas eu não farei.

- Por quê?

- Porque essa é a minha vingança. Para retribuir por me deixar viva depois da traição. Para retribuir por ter me mandado embora por oito anos e ter me deixado viva todo esse tempo. E para retribuir por me ordenar que voltasse à vida e continuasse vivendo. - Ela se sentou penosamente e arrumou o quimono esfarrapado mais junto ao corpo. - Nunca me darei a ele de novo. Uma vez eu fiz isso, voluntariamente, embora o tenha detestado desde o primeiro momento em que o vi.

- Então por que se casou? A senhora disse que as mulheres aqui têm o direito de recusar, que não têm que se casar contra a vontade.

- Casei-me com ele para agradar ao Senhor Goroda, e para agradar a meu pai. Eu era muito jovem e não sabia sobre Goroda então, mas se quer a verdade Goroda era o homem mais cruel e repugnante que jamais nasceu. Ele levou meu pai à traição. É a verdade! Goroda! - Ela cuspiu o nome. - Não fosse ele, estaríamos todos vivos e honrados. Rezo a Deus para que Goroda esteja condenado ao inferno por toda a eternidade! - Moveu-se cuidadosamente, tentando abrandar o sofrimento no flanco. - só existe ódio entre mim e meu marido, esse é o nosso karma. Seria tão fácil para ele permitir-me ascender à morte.

- Por que ele não a deixa ir embora? Não se divorcia da senhora? Ou lhe concede o que a senhora deseja?

- Porque ele é um homem. - Um retesar de dor percorreu-a e ela fez uma careta. Blackthorne estava de joelhos ao seu lado, amparando-a. Ela o empurrou, lutou por recobrar o domínio de si. Fujiko, à soleira, observava estoicamente. - Estou bem, Anjin-san. Por favor, deixe-me sozinha. O senhor deve ser cuidadoso.

- Não tenho medo dele.

Debilmente Mariko afastou o cabelo dos olhos e o encarou inquisitiva. Por que não deixar o Anjin-san ir ao encontro do seu karma, perguntou a si mesma. Ele não é do nosso mundo. Buntaro o matará com toda a facilidade. Apenas a proteção pessoal de Toranaga o protegeu até agora. Yabu, Omi, Naga, Buntaro - qualquer um deles poderia ser facilmente provocado para matá-lo. Ele só causou problemas desde que chegou, neh? Assim como o seu conhecimento. Naga tem razão: o Anjin-san pode destruir o nosso mundo, a menos que seja contido.

E se Buntaro soubesse a verdade? Ou Toranaga? Sobre o "travesseiro"...

- Ficou louca? - dissera Fujiko naquela noite.

- Não.

- Então por que vai tomar o lugar da criada?

- Por causa do saquê e por diversão, Fujiko-san, e por curiosidade - mentira ela, ocultando a verdadeira razão: ele a excitava, ela o desejava, nunca tivera um amante. Se não fosse naquela noite, não seria nunca, e tinha que ser o Anjin-san e apenas o Anjin-san.

Então fora a ele, sentira-se enlevada e depois, quando a galera chegara, Fujiko dissera em particular:

- A senhora teria ido se soubesse que o seu marido estava vivo?

- Não. Claro que não - mentiu ela.

- Mas agora vai contar a Buntaro-sama, neh? Que "travesseirou" com o Anjin-san?

- Por que deveria fazer isso?

- Pensei que talvez fosse o seu plano. Se contar a Buntaro-sama no momento certo, a fúria dele lhe explodirá em cima e a senhora estará agradecidamente morta antes que ele saiba o que fez.

- Não, Fujiko-san, ele nunca me matará. Ele me mandaria para os etas, se tivesse desculpa suficiente, se conseguisse obter a aprovação do Senhor Toranaga, mas nunca me matará.

- Adultério com o Anjin-san... isso seria suficiente?

- Oh, sim.

- O que aconteceria ao seu filho?

- Herdaria a minha desgraça, se eu ficasse desgraçada, neh?

- Por favor, se achar que Buntaro-sama desconfia do que aconteceu, diga-me. Enquanto consorte, é meu dever proteger o Anjin-san.

Sim, é, Fujiko, pensara Mariko então. E isso lhe daria a desculpa para se vingar abertamente do acusador de seu pai, coisa pela qual você anseia. Mas o seu pai era um covarde, sinto muito, pobre Fujiko. Hiromatsu estava lá, do contrário seu pai estaria vivo agora e Buntaro morto, pois Buntaro é muito mais odiado do que seu pai era desprezado. Mesmo as espadas que você tanto preza, nunca lhe foram dadas como uma honra de batalha, foram compradas de um samurai ferido. Sinto muito, mas nunca serei eu quem vai lhe dizer, mesmo que a verdade seja essa.

- Não tenho medo dele - estava dizendo Blackthorne de novo.

- Eu sei - disse ela, a dor dominando-a. - Mas, por favor, imploro-lhe, tenha medo dele por mim.

Blackthorne dirigiu-se para a porta.

 

Buntaro o esperava a cem passos, no meio do caminho que levava para a aldeia lá embaixo - atarracado, imenso e mortífero. O guarda erguia-se ao seu lado. O amanhecer estava nublado.

Barcos de pesca já estavam contornando os bancos de areia, o mar calmo.

Blackthorne viu o arco frouxo nas mãos de Buntaro, e as espadas, e as espadas do guarda. Buntaro oscilava ligeiramente e isso lhe deu esperança de que a pontaria do homem falhasse, o que lhe daria tempo para se aproximar o suficiente. Não havia cobertura aos lados do caminho. Ele engatilhou as duas pistolas e avançou na direção dos dois homens.

Ao inferno com cobertura, pensou por entre o nevoeiro da sua ânsia por sangue, sabendo ao mesmo tempo que o que estava fazendo era loucura, que não tinha chance contra os dois samurais ou o arco de longo alcance, que não tinha qualquer direito de interferir. E então, enquanto ainda se encontrava fora do alcance da pistola, Buntaro curvou-se profundamente, e o mesmo fez o guarda. Blackthorne parou, pressentindo uma armadilha.

Olhou em torno mas não havia ninguém por perto. Como num sonho, viu Buntaro desabar pesadamente sobre os joelhos, pôr o arco de lado, as mãos estendidas no chão, e curvar-se para ele como um camponês se curvaria diante do seu senhor. O guarda o imitou.

Blackthorne contemplou-os, pasmado. Quando teve certeza de que seus olhos não o estavam enganando, avançou lentamente, a pistola pronta mas não apontada, esperando traição. Atingindo um fácil raio de tiro, parou. Buntaro não se movera. O costume ditava que ele devia se ajoelhar e retribuir a saudação, porque eles eram iguais, ou quase iguais, mas ele não conseguia compreender por que devesse haver aquela inacreditável cerimônia de deferência numa situação como aquela, em que ia jorrar sangue.

- Levante-se, seu filho da puta! - Blackthorne preparou os dois gatilhos.

Buntaro não disse nada, não fez nada. Manteve a cabeça baixa, as mãos estendidas. As costas do seu quimono estavam ensopadas de suor.

- Nan ja? - Deliberadamente Blackthorne usou o modo mais insultante de perguntar, "O que e?", esperando induzir Buntaro a se levantar, a começar, sabendo que não podia alvejá-lo daquele jeito, com a cabeça baixa e quase no pó.

Então, consciente de que era rude permanecer em pé enquanto eles estavam ajoelhados, e que o "nan ja" era um insulto intolerável e certamente desnecessário, Blackthorne se ajoelhou e, agarrado às pistolas, pousou as duas mãos no chão e retribuiu a reverência.

Sentou-se sobre os calcanhares.

- Hai? - perguntou, com uma polidez forçada.

Imediatamente Buntaro começou a resmungar. Abjetamente. Desculpando-se. De quê e exatamente por quê, Blackthorne não sabia. Só conseguia apreender uma palavra aqui outra ali, e "saquê" muitas vezes, mas tratava-se de um pedido de desculpas e uma humilde súplica por perdão. Buntaro continuava interminavelmente. Depois parou e encostou a cabeça no chão novamente.

Nessa altura a cólera ofuscante de Blackthorne já desaparecera.

- Shigata ga nai - disse ele, rouco, o que significava "não se pode evitar", ou "não há nada a ser feito", ou "o que o senhor podia fazer?", sem saber ainda se o pedido de desculpas era meramente ritual, precedendo o ataque. - Shigata ga nai. Hakkiri wakaranu ga shinpai surukotowanai. Não pode ser evitado. Não compreendo exatamente, mas não se preocupe.

Buntaro levantou os olhos e sentou-se.

- Arigato ... arigato, Anjin-sama. Domo gomen nasai.

- Shigata ga nai - repetiu Blackthorne e, agora que ficara claro que o pedido de desculpas era genuíno, agradeceu a Deus por lhe dar aquela miraculosa oportunidade de cancelar o duelo.

Ele sabia que não tinha direitos, que agira como um louco, e que o único meio de resolver a crise com Buntaro era de acordo com as regras. E isso queria dizer Toranaga.

Mas por que as desculpas? perguntava-se ele freneticamente.

Pense! Você tem que aprender a pensar como eles.

Então a solução precipitou-sê-lhe no cérebro. Deve ser porque sou hatamoto e Buntaro, meu hóspede, perturbou a wa, a harmonia da minha casa. Tendo uma violenta discussão com a esposa na minha casa, insultou-me, portanto ele está totalmente errado e tem que se desculpar, com sinceridade ou não. Desculpas obrigatórias de um samurai a outro, de um hóspede ao anfit...

Espere! Não se esqueça de que, pelo costume deles, todos, os homens podem se embebedar, espera-se que se embebedem às vezes, e quando bêbados não são, legitimamente, responsáveis pelos próprios atos. Não se esqueça de que não há perda de dignidade se se fica fedendo de bêbado. Lembre-se de como Mariko e Toranaga nem se preocuparam no navio, quando você ficou totalmente entorpecido. Acharam engraçado e não repugnante, como nós acharíamos.

E você tem realmente alguma coisa a censurar? Não foi você quem começou a rodada de bebida? O desafio não foi seu?

- Sim - disse alto.

- Nan desu ka, Anjin-san? - perguntou Buntaro, os olhos injetados.

- Nani-mo. Watashi no kashitsu desu. Nada. A culpa foi minha.

Buntaro levantou a cabeça e disse que não, que a culpa era só dele, e curvou-se e desculpou-se de novo.

- Saquê - disse Blackthorne com determinação, e encolheu os ombros. - Shigata ga nai. Saquê!

Buntaro curvou-se e agradeceu-lhe de novo. Blackthorne retribuiu e levantou-se. Buntaro imitou-o, e o guarda. Ambos se curvaram mais uma vez. E mais uma vez foram correspondidos.

Finalmente Buntaro deu-lhe as costas e se afastou cambaleante. Blackthorne esperou até estar fora do alcance da seta, perguntando-se se o homem estava tão bêbado quanto aparentava. Depois voltou para dentro da casa.

Fujiko encontrava-se na varanda, novamente dentro do seu escudo polido e sorridente. O que é que você está realmente pensando? perguntou-se Blackthorne ao saudá-la e ser correspondido.

A porta de Mariko estava fechada. Sua criada encontrava-se em pé do lado de fora.

- Mariko-san?

- Sim, Anjin-san?

Ele esperou mas a porta continuou fechada.

- Está bem?

- Sim, obrigada. - Ele a ouviu pigarrear, depois a voz débil continuou: - Fujiko mandou avisar a Yabu-san e ao Senhor Toranaga que estou indisposta hoje e não poderei interpretar.

- Seria melhor que a senhora visse um médico.

- Oh, obrigada, mas Suwo será excelente. Mandei chamá-lo. Eu... só torci o lado. Estou bem, realmente. Não há necessidade de o senhor se preocupar.

- Olhe, conheço alguma coisa sobre cuidados médicos. Não está tossindo sangue, está?

- Oh, não. Quando escorreguei só bati com o rosto. Verdade. Estou absolutamente bem.

Após uma pausa, ele disse:

- Buntaro desculpou-se.

- Sim. Fujiko observou do portão. Agradeço-lhe humildemente por ter aceitado o pedido de desculpas. Obrigada, Anjin-san, sinto muito que tenha sido perturbado... é imperdoável que a sua harmonia... por favor, aceite minhas desculpas também. Eu nunca deveria ter perdido o controle sobre a minha boca. Foi muito descortês. Por favor, perdoe-me também. A culpa da discussão foi minha. Por favor, aceite minhas desculpas.

- Por ter sido espancada?

- Por ter falhado em obedecer ao meu marido, por ter falhado em ajudá-lo a dormir satisfeito, por ter falhado a ele e ao meu anfitrião. E também pelo que eu disse.

- Tem certeza de que não há nada que eu possa fazer?

- Não... não, obrigada, Anjin-san. É só por hoje.

Mas Blackthorne não a viu durante oito dias.

 

- Convidei-o para caçar, Naga-san, não para repetir opiniões que já ouvi - disse Toranaga.

- Imploro-lhe, Pai, pela última vez: pare o treinamento, proscreva as armas, destrua o bárbaro, declare a experiência um fracasso e ponha um fim a essa obscenidade.

- Não. Pela última vez. - O falcão encapuzado sobre a mão enluvada de Toranaga agitou-se, inquieto com a ameaça inabitual na voz do amo, e sibilou, irritado. Estavam no bosque, com batedores e guardas bem longe do raio de audição, o dia mormacento, úmido e nublado.

- Muito bem. Mas ainda é meu dever lembrá-lo de que está em perigo aqui, e solicitar-lhe novamente, com a devida polidez, agora pela última vez, que deixe Anjiro hoje.

- Não. Também pela última vez.

- Então tome a minha cabeça!

- Já tenho a sua cabeça!

- Então torne-a hoje, agora, ou deixe-me pôr fim à vida, já que o senhor não aceitará bons conselhos.

- Aprenda a ser paciente, jovenzinho enfatuado!

- Como posso ser paciente quando o vejo se destruindo? É meu dever chamar-lhe a atenção para isso. O senhor fica aqui caçando e desperdiçando tempo, enquanto os seus inimigos fazem o mundo inteiro desabar em cima do senhor. Os regentes reúnem-se amanhã. Quatro quintos de todos os daimios do Japão já se encontram em Osaka ou estão a caminho de lá. O senhor foi o único daimio importante a recusar. Agora será impedido. Depois nada poderá salvá-lo. Pelo menos devia estar em casa, em Yedo, rodeado pelas suas legiões. Aqui está desprotegido. Não podemos protegê-lo. Mal e mal temos mil homens, e Yabu não mobilizou Izu inteira? Tem mais de oito mil homens no raio de vinte ris, mais seis fechando as fronteiras. O senhor sabe que os espiões dizem que ele tem uma esquadra esperando ao norte para pô-lo a pique se o senhor tentar escapar de galera! É prisioneiro dele novamente, não vê? Um pombo-correio de Ishido a Yabu pode destruí-lo, no momento que quiser. Como sabe que ele não está planejando traição com Ishido?

- Tenho certeza de que ele está considerando isso. Eu estaria se fosse ele. Você não?

- Não, não estaria.

- Então você logo estaria morto, o que seria absolutamente merecido, mas o mesmo aconteceria com toda a sua família, todo o seu clã e todos os seus vassalos, o que seria absolutamente imperdoável. Você é um imbecil, estúpido e truculento! Nunca vai usar a mente, ouvir, aprender, nunca vai frear a língua ou o temperamento! Deixou-se manipular do modo mais infantil e acredita que tudo pode ser resolvido com a ponta da sua espada. A única razão por que não lhe tiro essa cabeça estúpida nem o deixo pôr fim à sua vida atual sem valor é que você é jovem, e eu costumava pensar que você tinha algumas possibilidades, seus erros não são maliciosos, não há astúcia em você e a sua lealdade é inquestionável. Mas se não aprender rapidamente paciência e autodisciplina, suprimo-lhe o status de samurai e o rebaixo, junto com todas as suas gerações, para a classe camponesa! - O punho direito de Toranaga chocou-se contra a sela e o falcão soltou um guincho penetrante, nervoso. - Compreendeu?

Naga estava em choque. Em toda a vida, nunca vira o pai gritar de raiva nem perder a calma, ou sequer ouvira falar que ele tivesse feito isso. Muitas vezes sentira a ferroada da língua dele, mas com justificação. Naga sabia que cometia muitos erros, mas o pai sempre dava um jeito de que o que ele fizera deixasse de parecer tão estúpido quanto parecera de imediato. Por exemplo, quando Toranaga mostrara como ele caíra na armadilha de Orni - ou de Yabu - com relação a Jozen, ele tivera que ser fisicamente impedido de atacar e assassinar os dois. Toranaga ordenara aos seus guardas particulares que jogassem água fria em Naga até que este voltasse à razão, e calmamente explicara que ele, Naga, o ajudara incomensuravelmente eliminando a ameaça de Jozen.

- Mas teria sido melhor se você soubesse que estava sendo manipulado para agir. Seja paciente, meu filho, tudo vem com a paciência - aconselhara Toranaga. - Logo você será capaz de manipulá-los. O que você fez foi muito bom. Mas deve aprender a raciocinar sobre o que está na mente de um homem se pretende ser de valia para si mesmo, ou para o seu senhor. Preciso de líderes. Tenho fanáticos suficientes.

O pai sempre fora razoável e pronto a perdoar, mas hoje...

Naga pulou do cavalo e ajoelhou-se abjetamente:

- Por favor, perdoe-me, Pai. Nunca pretendi deixá-lo zangado... é só porque estou desesperado de preocupação pela sua segurança. Por favor, desculpe-me por perturbar-lhe a harmonia...

- Cale a boca! - vociferou Toranaga, assustando o cavalo.

Furiosamente Toranaga firmou-se com os joelhos e puxou os freios com a mão direita, o cavalo escorregando. Desequilibrado, o falcão começou a se debater - saltando do punho, as asas adejando descontroladamente, guinchando o seu hic-lc-lc-lc-lc de rebentar os tímpanos - enfurecido pela agitação inabitual e inconveniente ao seu redor.

- Pronto, minha belezinha, pronto... - Desesperadamente Toranaga tentava fazê-lo pousar e recuperar o controle sobre a montaria, quando Naga saltou para a cabeça do cavalo. Agarrou a rédea e conseguiu impedir o animal de disparar. O falcão guinchava furiosamente. Afinal, relutante, pousou de novo sobre a luva de Toranaga, presa firmemente pelos pioses. Mas as asas pulsavam nervosamente, os sinos nos seus pés soando estridentemente.

- Hic-lc-lc-lc-lc-liiiiicc! - guinchou a ave uma última vez.

- Pronto, pronto, minha belezinha. Pronto, está tudo bem - disse Toranaga, apaziguador, o rosto ainda avermelhado de cólera, depois voltou-se para Naga, tentando não deixar a animosidade transparecer na voz por causa do falcão. - Se você tiver arruinado o estado dele hoje, eu... eu...

Nesse instante um dos batedores chamou. Imediatamente Toranaga tirou o capuz do falcão com a mão direita, deu-lhe um momento para se adaptar aos seus arredores, e soltou-o.

Era um falcão de asas longas, um peregrinus. Seu nome era Tetsuko - Senhora de Aço. A ave disparou para o céu, circulando seiscentos pés acima de Toranaga, esperando que a presa fosse afugentada, esquecida do nervosismo. Então, viu os cães atiçados contra o bando de faisões, que dispersaram numa confusão frenética de batidas de asas. Marcou a presa, girou sobre si mesma e se atirou - fechou as asas e mergulhou implacável -, as garras prontas para dilacerar.

Desceu zunindo, mas o velho faisão, com duas vezes o tamanho do falcão, derrapou e, em pânico, arremeteu como uma flecha para a segurança de um conjunto de árvores, a duzentos passos de distância. Tetsu-ko retomou a posição inicial, abriu as asas, investindo de cabeça atrás da caça. Ganhou altitude, colocouse mais uma vez verticalmente acima do faisão, novamente investiu, e novamente falhou. Toranaga excitadamente gritava encorajamentos, prevenindo do perigo à frente, esquecido de Naga.

Com um frenético bater de asas, o faisão movia-se velozmente para a proteção das árvores. O peregrinos, novamente girando bem acima, mergulhou e veio cortando o ar. Mas era tarde demais. O manhoso faisão desapareceu. Sem se preocupar com a própria segurança, o falcão colidiu com folhas e galhos, ferozmente procurando a vítima, depois retomou posição e disparou para o vazio mais uma vez, guinchando de raiva, impelindo-se para bem acima do matagal.

Nesse momento um bando de perdizes foi localizado e espantado, pondo-se alvoroçadas à procura de segurança, lançando-se de um lado para o outro, astuciosamente seguindo os contornos da terra. Tetsu-ko marcou uma, dobrou as asas, e caiu como uma pedra. Desta vez não errou. Um golpe malévolo de suas garras posteriores quebrou o pescoço da perdiz. O pássaro estatelou-se no chão numa nuvem de penas. Mas ao invés de seguir a presa até o solo e pousar com ela, o falcão ganhou altura guinchando, subindo mais e mais.

Ansiosamente Toranaga sacou a isca, um pequeno pássaro morto amarrado a uma cordinha, e fê-la zunir em torno da cabeça. Mas Tetsu-ko não ficou tentado a voltar. Agora era uma minúscula mancha no firmamento, e Toranaga teve certeza de que o perdera, de que a ave resolvera deixá-lo, voltar às matas, matar conforme o próprio capricho e não conforme o capricho dele, comer quando quisesse e não quando ele decidisse, e voar para onde os ventos ou a fantasia a levassem, sem amo e livre para sempre.

Toranaga observou-o, não triste, mas só um pouco solitário. Tratava-se de uma criatura selvagem e Toranaga, como todos os falcoeiros, sabia que era um dono terrestre apenas temporário. Sozinho subira ao ninho do falcão nas montanhas Hakoné, tirara-o do ninho filhote, treinara-o, criara-o e dera-lhe a primeira matança. Agora mal conseguia vê-lo circulando lá em cima, cavalgando as nuvens gloriosamente, e desejou, ansiosamente, também poder flutuar no empíreo, longe das iniqüidades da terra.

Então o velho faisão casualmente surgiu de sob as árvores para se alimentar mais uma vez. No mesmo momento Tetsuko mergulhou, atirando-se dos céus, uma minúscula arma mortífera, as garras prontas para o coup de grâce.

O faisão morreu instantaneamente, o impacto causando uma explosão de penas, mas o falcão continuou, as asas cortando o ar, para frear violentamente no último segundo. Então fechou as asas e pousou sobre a presa.

Segurou-o nas garras e começou a depená-lo com o bico antes de comer. Mas antes que pudesse comer, Toranaga se aproximou a cavalo. A ave parou, distraída. Seus inclementes olhos castanhos, contornados de amarelo, observaram quando ele desmontou, seus ouvidos escutando o elogio murmurado suavemente pela sua habilidade e bravura, e depois, porque estava com fome e era ele quem dava comida e também porque foi paciente e não fez movimento súbito, mas ajoelhou-se suavemente, o falcão permitiulhe chegar mais perto.

Toranaga elogiou-o docemente. Puxou a faca de caça e cortou a cabeça do faisão, para permitir a Tetsuko alimentar-se com o cérebro da presa. Quando a ave começou a se regalar com o petisco, ele decepou a cabeça e ela veio facilmente para o seu punho, onde estava acostumada a se alimentar.

O tempo todo Toranaga a elogiou e, quando ela terminou o bocado, acariciou-a gentilmente e cumprimentou-a prodigamente. A ave balançou-se e sibilou o seu contentamento, alegre por estar de volta em segurança ao punho mais uma vez, onde podia comer, pois, naturalmente, desde que fora tirada do ninho, o punho era o único lugar onde jamais fora autorizada a comer, e a comida fora sempre dada por Toranaga pessoalmente. Começou a se alisar com o bico, pronta para outra morte.

Como Tetsuko voara tão bem, Toranaga resolveu não a deixar empanturrar-se nem voar mais naquele dia. Deu-lhe um pequeno pássaro que já havia depenado e aberto para ela. Quando sua refeição ia a meio caminho, ele lhe enfiou o capuz. A ave continuou a se alimentar satisfeita, através do capuz. Quando terminou de comer e começou a se alisar de novo, ele pegou o faisão, enfiou-o na sacola e chamou seu falcoeiro, que esperara com os batedores. Joviais, comentaram a glória da matança e contaram o conteúdo da sacola. Havia uma lebre, um par de codornizes e o faisão. Toranaga dispensou o falcoeiro e os batedores, mandou-os de volta ao acampamento com todos os falcões. Seus guardas esperavam.

Então voltou a atenção para Naga.

- E então?

Naga ajoelhou-se ao lado do cavalo dele, curvou-se.

- O senhor está completamente correto... no que disse a meu respeito. Peço desculpas por tê-lo ofendido.

- Mas não por me dar mau conselho?

- Eu... eu lhe imploro que me ponha com alguém que possa me ensinar, de modo que eu nunca faça isso. Não quero nunca dar-lhe mau conselho, nunca.

- Ótimo. Você passará uma parte do dia, todos os dias, com o Anjin-san, aprendendo o que ele sabe. Ele pode ser um dos seus professores.

- Ele?

- Sim. Isso pode ensinar-lhe um pouco de disciplina. E se conseguir enfiá-la nessa rocha que tem entre as orelhas para ouvir, certamente aprenderá coisas de valor para si mesmo. Poderia até aprender alguma coisa de valor para mim.

Naga fitava o chão sombriamente.

- Quero que você saiba tudo o que ele sabe sobre armas, canhões e a arte da guerra. Você se tornará o meu especialista. Sim. E quero que seja um bom especialista.

Naga não disse nada.

- E quero que se torne amigo dele.

- Como posso fazer isso, senhor?

- Por que você não pensa num modo? Por que não usa a sua cabeça?

- Tentarei. Juro que tentarei.

- Quero que faça melhor do que isso. Ordeno-lhe que seja bem sucedido. Use um pouco de "caridade cristã". Deve ter aprendido o suficiente para fazer isso. Neh?

Naga carregou o sobrolho.

- Isso é impossível de aprender, por mais que eu tenha tentado. É verdade! Tudo o que Tsukkusan falou foi dogma e absurdos que fariam qualquer homem vomitar. Cristianismo é para camponeses, não para samurais. Não mate, não tome mais de uma mulher, e cinqüenta outras tolices! Obedeci ao senhor então e obedecerei agora. Eu sempre obedeço! Por que não me deixar fazer as coisas que eu posso, senhor? Torno-me cristão se é isso o que o senhor deseja, mas não posso acreditar nisso... é tudo um monte de... peço desculpas. Vou me tornar amigo do Anjin-san.

- Ótimo. E lembre-se de que ele vale vinte mil vezes o próprio peso em seda crua, e tem mais conhecimento do que você jamais terá em vinte vidas.

Naga se mantinha sob controle e assentiu respeitoso, aquiescendo.

- Ótimo. Você comandará dois batalhões, Omi-san mais dois, e um ficará de reserva, com Buntaro.

- E os outros quatro, senhor?

- Não temos armas suficientes para eles. Foi um estratagema para confundir o faro de Yabu - disse Toranaga, atirando um bocado ao filho.

- Senhor?

- Foi só uma desculpa para trazer mais mil homens para cá. Não vão chegar amanhã? Com dois mil homens, posso defender Anjiro e escapar, se for necessário. Neh?

- Mas Yabu-san ainda pode... - Naga engoliu o comentário, sabendo que mais uma vez ia fazer um julgamento errado.

- Por que é que sou, tão estúpido? - perguntou amargurado.

- Por que não consigo ver as coisas como o senhor? Ou como Sudara-san? Quero ajudar, ser de valor. Não quero provocá-lo o tempo todo.

- Então aprenda paciência, meu filho, e refreie o seu temperamento. O seu tempo virá logo.

- Senhor?

Toranaga ficou subitamente cansado de ser paciente. Olhou para o céu.

- Acho que vou dormir um pouco.

Imediatamente Naga tirou a sela e a manta do cavalo, e estendeu-as no chão como cama de samurai. Toranaga agradeceulhe e observou suas sentinelas. Quando se certificou de que estava tudo correto e seguro, deitou-se e fechou os olhos.

Mas não queria dormir, apenas pensar. Sabia que era um sinal extremamente mau ele ter perdido a calma. Você tem sorte de ter sido apenas diante de Naga, que não entende nada de nada, disse a si mesmo. Se isso tivesse acontecido perto de Omi, ou de Yabu, eles teriam percebido imediatamente que você está quase louco de preocupação. E tal conhecimento poderia facilmente induzi-los à traição. Você teve sorte desta vez. Tetsu-ko ajudou a colocar tudo nas devidas proporções. Não fosse ela, você poderia ter deixado outros presenciarem a sua cólera e isso teria sido insanidade.

Que belo vôo! Aprenda com ela. Naga tem que ser tratado como um falcão. Ele não guincha e se debate como o melhor dos falcões? O único problema de Naga é que está sendo lançado contra a caça errada. Sua caça é o combate e a morte repentina, o   ele terá isso dentro de muito breve.

A ansiedade de Toranaga começou a voltar. O que estará acontecendo em Osaka? Calculei pessimamente o comportamento dos daimios - quem aceitaria e quem rejeitaria a convocação. Por que não fui informado? Estou sendo traído? Tantos perigos ao meu redor...

E o Anjin-san? É um falcão também. Mas ainda não está domado, como alegam Yabu e Mariko. Qual é a presa dele? É o Navio Negro, o anjin Rodrigues, o feio e arrogante capitãozinho-mor que não vai durar muito tempo, todos os padres de hábito preto, todos os padres peludos e fedorentos, todos os portugueses, espanhóis e turcos, sejam estes quem forem, e islamitas, sejam quem forem, não esquecendo Omi, Yabu, Buntaro, Ishido e eu.

Toranaga virou-se para se pôr mais confortável e sorriu consigo mesmo. Mas o Anjin-san não é um falcão de asas longas, um gavião de engodo, que você faz voar acima de você para mergulhar sobre uma presa particular. É mais como um gavião de asas curtas, um gavião de punho, que você faz voar diretamente do punho para matar qualquer coisa que se mova, digamos um milhafre que pegará uma perdiz ou uma lebre com três vezes o próprio peso, ratos, gatos, cães, galinholas, estorninhos, gralhas-calvas, alcançando-os com pequenas arremetidas de uma velocidade fantástica para matar com uma única compressão das garras; o gavião que detesta o capuz e não o aceita; apenas se senta sobre o pulso, arrogante, perigoso, auto-suficiente, impiedoso, de olhos amarelos, um excelente amigo ou de um traiçoeiro mau humor, dependendo do momento.

Sim, o Anjin-san é um asas-curtas. Contra quem eu o lanço?

Omi? Ainda não.

Yabu? Ainda não.

Buntaro?

Por que será, na realidade, que o Anjin-san foi atrás de Buntaro com pistolas? Por causa de Mariko, claro. Mas será que "travesseiraram"? Tiveram muitas oportunidades. Acho que sim. "Pródigo", disse ela naquele dia. Nada de errado no "travesseiro" deles - Buntaro era tido como morto -, desde que seja um segredo perpétuo. Mas o Anjin-san foi estúpido de se arriscar tanto pela mulher de outro homem. Não há sempre mil outras, livres e intocadas, igualmente bonitas, igualmente pequenas ou grandes, excelentes ou raras, ou bem-nascidas ou seja o que for, sem o risco de pertencerem a mais alguém? Agiu como um bárbaro estúpido e ciumento. Lembra-se do anjin Rodrigues? Não duelou e matou outro bárbaro, de acordo com o costume deles, só para tomar a filha de um mercador de classe baixa, com quem depois se casou em Nagasaki? O taicum não deixou esse assassinato impune, contra o meu conselho, porque era apenas a morte de um bárbaro e não de um dos nossos? Estupidez ter duas leis, uma para nós, outra para eles. Devia haver apenas uma. Tem que haver apenas uma lei.

Não, não vou lançar o Anjin-san contra Buntaro. Preciso desse imbecil. Mas tenham aqueles dois "travesseirado" ou não, espero que o pensamento nunca ocorra a Buntaro. Caso ocorresse eu teria que eliminá-lo rapidamente, pois força alguma na terra o impediria de matar o Anjin-san e Mariko-san, e eu preciso deles mais do que de Buntaro. Devo eliminar Buntaro agora?

No momento em que Buntaro ficara sóbrio, Toranaga mandara chamá-lo.

- Como se atreve a colocar o seu interesse diante do meu? Quanto tempo Mariko-san permanecerá incapaz de interpretar?

- O médico disse alguns dias, senhor. Peço desculpas por todo o incômodo!

- Deixei bem claro que precisava dos serviços dela por mais vinte dias. Não se lembra?

- Sim. Sinto muito.

- Se ela lhe desagradou, alguns tapas nas nádegas seriam mais que suficientes. Toda mulher precisa disso de vez em quando, mas mais do que isso é grosseria. Egoisticamente você pos em perigo o treinamento e comportou-se como um camponês bovino.

Sem ela não posso conversar com o Anjin-san.

- Sim. Eu sei, senhor. Desculpe. Foi a primeira vez que bati nela. É só que... às vezes ela me põe louco, tanto que... que parece que não consigo enxergar.

- Por que não se divorcia, então? Ou a manda embora? Ou a mata, ou lhe ordena que corte a garganta quando eu não tiver mais uso para ela?

- Não posso. Não posso, senhor - dissera Buntaro. - Ela é... eu a desejei desde o primeiro instante em que a vi. Quando nos casamos, a primeira vez, ela foi tudo o que um homem poderia desejar. Pensei ter sido abençoado... o senhor se lembra de como cada daimio do reino a queria! Depois... depois mandei-a embora para protegê-la, após o vil assassinato, fingindo estar desgostoso com ela pela sua segurança, e depois, quando o taicum me disse que a trouxesse de volta, anos mais tarde, ela me excitava ainda mais. A verdade é que eu esperava que ela fosse grata, e tornei-a como um homem o faz, sem me importar com essas coisinhas que uma mulher quer, como poemas e flores. Mas ela havia mudado. Estava tão fiel como sempre, mas apenas gelo, sempre pedindo a morte, que eu a matasse. Buntaro estava fora de si. - Não posso matá-la nem permitir-lhe que se mate. Ela maculou o meu filho e me fez detestar outras mulheres, mas não consigo me livrar dela. Eu... eu tentei ser gentil, mas o gelo está sempre lá e isso me enlouquece. Quando voltei da Coréia e fui informado de que ela se convertera a essa absurda religião cristã, achei graça, pois o que importa qualquer religião estúpida? Eu ia arreliá-la sobre isso, mas antes que soubesse o que estava acontecendo eu já estava com a faca na garganta dela e jurando que a cortaria se ela não renunciasse à religião. Claro que ela não renunciaria, que samurai o faria sob tal ameaça, neh? Simplesmente olhou-me com aqueles seus olhos e me disse que prosseguisse. "Por favor, corte-me, senhor", disse ela. "Pronto, deixe-me inclinar a cabeça para trás para o senhor. Rezo a Deus para sangrar até a morte." Não a degolei, senhor. Tomei-a. Mas cortei o cabelo e as orelhas de algumas das damas que a haviam encorajado a tornar-se cristã e expulsei-as do castelo. E fiz o mesmo com a mãe adotiva dela, e também cortei o nariz daquela velha bruxa repulsiva! E depois Mariko disse que, como... como eu havia punido as suas damas, na próxima vez em que fosse à sua cama sem ser convidado ela cometeria seppuku, do modo que pudesse, imediatamente... apesar do dever para com o senhor, apesar do dever para com a família, mesmo apesar do... dos mandamentos do Deus cristão dela! - Lágrimas de cólera escorriam-lhe despercebidas pelas faces. - Não posso matá-la, por mais que deseje. Não posso matar a filha de Akechi Jinsai por mais que ela o mereça...

Toranaga deixara Buntaro falar até ficar esgotado, depois dispensara-o, ordenando-lhe que ficasse totalmente longe de Mariko até que ele considerasse o que devia ser feito. Enviou o seu médico pessoal para examiná-la. O relatório foi favorável: escoriações, mas nenhum dano interno.

Pela sua própria segurança, porque esperava traição e a areia do tempo estava correndo, Toranaga resolveu aumentar a pressão sobre todos eles. Ordenou que Mariko fosse para a casa de Omi, que ficasse dentro dos limites da casa e completamente fora do caminho do Anjin-san. Depois convocara o Anjin-san e fingira irritação, quando era claro que os dois mal podiam conversar, dispensando-o peremptoriamente. O treinamento todo foi intensificado. Pelotões foram enviados em marchas forçadas. Naga recebeu ordem de levar junto o Anjin-san e fazê-lo andar até cair. Mas Naga não conseguiu derrubá-lo.

Então ele mesmo tentou. Comandou um batalhão durante onze horas pelas colinas. O Anjin-san agüentou, não com a fileira da frente, mas agüentou. De volta a Anjiro, o Anjin-san dissera na sua algaravia quase incompreensível, quase incapaz de se manter em pé:

- Toranaga-sama, eu andar posso. Eu armas treinamento posso. Sinto muito, não possível dois ao mesmo tempo, neh?

Toranaga sorria agora, deitado sob o céu nublado, esperando pela chuva, animado pelo jogo de domar Blackthorne. Ele é um asas-curtas. Mariko é igualmente vigorosa, igualmente inteligente, mas mais brilhante, e tem uma falta de piedade que ele nunca terá. Ela é como um peregrinus, como Tetsuko. O melhor. Por que será que a fêmea do falcão é sempre maior, mais veloz e mais forte do que o macho, sempre melhor do que o macho?

São todos gaviões - ela, Buntaro, Yabu, Omi, Ochiba, Naga e todos os meus filhos, filhas, mulheres e vassalos, e todos os meus inimigos -, todos gaviões, ou presa para gaviões.

Preciso pôr Naga em posição bem acima da sua presa e deixá-lo se arremessar. Quem deveria ser? Omi ou Yabu?

O que Naga disse sobre Yabu é verdade.

- Então, Yabu-san, o que decidiu? - perguntara ele no segundo dia.

- Não vou a Osaka até que o senhor vá. Ordenei que Izu inteira se mobilizasse.

- Ishido o impedirá.

- Ele o impedirá primeiro, senhor, e se o Kwanto cair, Izu cai. Fiz um acordo solene com o senhor. Estou do seu lado. Os Kasigi honram os seus acordos.

- Fico igualmente honrado em tê-lo como aliado - mentira ele, satisfeito de que Yabu tivesse feito, mais uma vez, o que ele planejara que fizesse.

No dia seguinte Yabu reunira uma tropa e pedira-lhe que a revistasse e então, diante de todos os seus homens, ajoelhara-se formalmente e se oferecera como vassalo.

- Reconhece-me como seu senhor feudal? - perguntara Toranaga.

- Sim. E todos os homens de Izu. E, senhor, por favor, aceite este presente como um símbolo de dever filial. - Ainda de joelhos, Yabu lhe estendera a espada Murasama. - Esta é a espada que assassinou seu avô.

- Não é possível!

Yabu contara-lhe a história da espada, como viera até ele através dos anos e como, apenas recentemente, ele soubera da sua verdadeira identidade. Toranaga mandara chamar Suwo. O velho contara-lhe o que testemunhara quando não era mais que um menino.

- É verdade, senhor - dissera com orgulho. - Nenhum homem viu o pai de Obata quebrar a espada ou atirá-la no mar. E juro, pela minha esperança de renascer samurai, que servi a seu avô, o Senhor Chikitada. Servi a ele fielmente até o dia em que morreu. Eu estava lá, juro.

Toranaga aceitara a espada. Ela pareceu estremecer com malignidade na sua mão. Ele sempre zombara da lenda de que certas espadas possuíam uma urgência própria de matar, que algumas espadas precisavam saltar da bainha para beber sangue, mas agora Toranaga acreditava nisso.

Estremeceu, lembrando-se daquele dia. Por que as lâminas Murasama nos odeiam? Uma matou meu avô. Outra quase me cortou o braço quando eu tinha seis anos, um acidente inexplicado, ninguém por perto, mas ainda assim o meu braço direito foi atingido e quase até a morte. Uma terceira decapitou meu primeiro filho.

- Senhor - dissera Yabu -, esta lâmina infame não devia poder viver, neh? Deixe-me atirá-la ao mar, a fim de que pelo menos esta não possa nunca ameaçar o senhor ou os seus descendentes.

- Sim ... sim - resmungara ele, grato por Yabu ter feito a sugestão. - Faça isso agora! - E foi só quando a espada afundou, bem profundamente, testemunhada pelos seus próprios homens, que seu coração recomeçara a bater normalmente. Agradecera a Yabu, ordenara que os impostos fossem estabilizados em sessenta partes para os camponeses, quarenta para os seus senhores, e dera-lhe Izu como feudo. Portanto, continuava tudo como antes, exceto que agora o poder todo em Izu pertencia a Toranaga, se ele desejasse torná-lo de volta.

Toranaga virou-se para abrandar a dor no braço da espada e se acomodou mais confortavelmente, saboreando o contato com a terra, ganhando forças dela, como sempre.

Aquela lâmina se foi, para nunca mais voltar. Ótimo, mas lembre-se do que o velho adivinho chinês predisse, pensou ele: que você morreria pela espada. Mas espada de quem, e seria pela minha própria mão ou pela de outro?

Saberei quando souber, disse-se ele, sem medo.

Agora durma. Karma é karma. Seja de Zen. Lembre-se, em tranqüilidade, de que o Absoluto, o Tao, está dentro de você, que nenhum padre, culto, dogma, livro, dito, ensino ou professor se ergue entre você e ele. Saiba que o Bem e o Mal são irrelevantes, e Eu e Você irrelevantes, Dentro e Fora irrelevantes, assim como a Vida e a Morte. Entre na Esfera onde não há medo da morte nem esperança de pós-vida, onde você é livre dos obstáculos da vida ou de necessidades de salvação. Você é, em si mesmo, o Tao. Seja você, agora, uma rocha contra a qual as ondas da vida se lançam em vão...

O grito débil trouxe Toranaga de volta da sua meditação e ele se pôs de pé com um salto. Naga apontava excitadamente para oeste. Todos os olhos seguiram-lhe a indicação.

O pombo-correio voava em linha reta para Anjiro, vindo do oeste. Pousou esvoaçando numa árvore distante para descansar um momento, depois levantou vôo de novo quando a chuva começou a cair.

Longe a oeste, no rastro do pombo, ficava Osaka.

 

O tratador dos pombos segurou o pássaro gentilmente, mas com firmeza, enquanto Toranaga despia as roupas encharcadas. Galopara de volta sob o aguaceiro. Naga e outros samurais ansiosamente se aglomeravam junto à pequena porta, sem se preocupar com a chuva quente que ainda caía torrencialmente, tamborilando sobre o telhado de telhas.

Cuidadosamente Toranaga enxugou as mãos. O homem estendeu o pombo. Dois cilindros minúsculos, de prata, estavam presos a cada uma de suas pernas. O normal teria sido um. Toranaga teve que se esforçar muito para que os dedos não tremessem nervosamente. Desamarrou os cilindros e levou-os à luz da janela, abrindo para examinar os lacres diminutos. Reconheceu o código secreto de Kiri. Naga e os outros observavam tensos. Seu rosto não revelou nada.

Toranaga não rompeu os lacres imediatamente, embora tivesse muita vontade. Pacientemente esperou até que lhe trouxessem um quimono seco. Um criado segurou um grande guarda-chuva de papel oleado para ele, que se dirigiu para os seus aposentos na fortaleza. Havia sopa e chá à sua espera. Tomou-os e ouviu a chuva. Quando se sentiu calmo, postou guardas e se dirigiu para um aposento interno. Sozinho, quebrou os lacres. O papel dos quatro rolos era muito fino, os caracteres minúsculos, a mensagem longa e em código. A decodificação foi laboriosa. Quando ficou completa, ele leu a mensagem e releu-a duas vezes. Depois deixou a mente vagar.

A noite chegou. A chuva parou. Oh, Buda, deixe a colheita ser boa, orou ele. Aquela era a estação em que os campos férteis estavam sendo irrigados e, por todo o país, as mudas verde pálidas de arroz estavam sendo plantadas nos campos livres de ervas daninhas, quase líquidos, para serem colhidas nos meses seguintes, dependendo do tempo. E, por todo o país, o pobre e o rico, eta e imperador, criado e samurai, todos oravam para que houvesse apenas a quantidade certa de chuva, de sol, de umidade, corretamente, na estação. E cada homem, mulher e criada contava os dias que faltavam para a colheita.

Precisaremos de uma grande colheita este ano, pensou Toranaga.

- Naga! Naga-san!

O filho veio correndo.

- Sim, Pai?

- À primeira hora após o amanhecer, leve Yabu-san e seus conselheiros ao planalto. Buntaro também, e nossos três capitães mais velhos. E Mariko-san. Leve-os todos ao amanhecer. Marikosan pode servir chá. Sim. E quero o Anjin-san de prontidão no acampamento. Os guardas devem nos cercar a duzentos passos de distância.

- Sim, Pai. - Naga deu-lhe as costas para obedecer. Incapaz de se conter, falou sem pensar: - É a guerra? É?

Como Toranaga precisava de um arauto de otimismo pela fortaleza, não repreendeu o filho pela impertinência indisciplinada.

- Sim - disse ele. - Sim... mas nos meus termos.

Naga fechou a shoji e saiu em disparada. Toranaga sabia que, embora o rosto e os modos de Naga agora estivessem externamente compostos, nada dissimularia a animação no seu caminhar, nem o fogo por trás dos seus olhos. Então o boato atravessaria Anjiro, para se espalhar rapidamente por toda Izu e além dela, se os fogos fossem adequadamente alimentados.

- Estou comprometido agora - disse alto para as flores que se erguiam serenas no takonoma, as sombras esvoaçando à agradável luz de vela.

Kiri tinha escrito:

 

Senhor, rezo a Buda para que esteja bem e seguro. Este é o nosso último pombo-correio, por isso também rezo a Buda para que o guie até o senhor - traidores mataram todos os outros na noite passada, incendiando o viveiro, e este escapou apenas porque esteve doente e eu vinha cuidando dele separadamente.

Ontem de manhã o Senhor Sugiyama repentinamente renunciou, exatamente conforme o planejado. Mas antes que pudesse completar a sua fuga, foi emboscado nos arredores de Osaka pelos ronins de Ishido. Infelizmente alguns membros da família de Sugiyama também foram apanhados com ele - ouvi dizer que ele foi traído por um dos seus. Corre o boato de que Ishido ofereceu-lhe um compromisso: se o Senhor Sugiyama retardasse a renúncia até depois de o conselho de regentes se reunir (amanhã), de modo que o senhor pudesse ser legalmente impedido, em troca Ishido garantia que o conselho daria formalmente a Sugiyama o Kwanto inteiro e, como mostra de boa fé, Ishido soltaria a ele e à família imediatamente. Sugiyama recusou traí-lo. Imediatamente Ishido ordenou aos etas que o convencessem. Torturaram-lhe os filhos, depois a consorte, na sua frente, mas ele resistiu. Tiveram todos mortes ruins. A dele, a última, foi péssima.

Naturalmente não houve testemunhas dessa traição e é tudo boato, mas eu acredito. Claro que Ishido nega qualquer conhecimento dos assassinatos ou participação nos crimes, jurando que vai dar caça aos “assassinos”. Primeiro Ishido alegou que Sugiyama nunca renunciara realmente, portanto, na sua opinião, o conselho ainda podia se reunir. Mandei cópias da renúncia de Sugiyama aos outros regentes, Kiyama, Ito e Onoshi, e mandei outra, abertamente, a Ishido, e fiz circular mais quatro cópias entre os daimios. (Que inteligente de sua parte, Tora-chan, saber que cópias extras seriam necessárias.) Assim, desde ontem, exatamente como o senhor planejou com Sugiyama, o conselho legalmente não existe mais - nisso o senhor teve êxito completo.

Boas notícias: o Senhor Mogami deixou a cidade em segurança, com toda a família e samurais. Agora é abertamente aliado seu, portanto o seu flanco a extremo-nordeste está seguro. Os senhores Maeda, Kukushima, Asano, Ikeda e Okudiara escaparam todos de Osaka na noite passada, para a segurança - o senhor cristão, Oda, também.

Má notícia é que as famílias de Maeda, Ikeda e Oda, e de uma dúzia de outros daimios importantes não escaparam e agora estão como reféns aqui, assim como cinqüenta ou sessenta senhores menores não comprometidos.

Má notícia é que ontem o seu meio irmão, Zataki, senhor de Shinano, publicamente se declarou pelo herdeiro, Yaemon, contra o senhor, acusando-o de conspirar com Sugiyama para derrubar o conselho de regentes criando o caos, portanto agora a sua fronteira norte-oriental tem uma brecha e Zataki e seus cinqüenta mil fanáticos se oporão ao senhor.

Má notícia é que quase todos os daimios aceitaram o “convite” do imperador.

Má notícia é que não são poucos os seus amigos e aliados aqui que estão enraivecidos de que o senhor não lhes tenha dado conhecimento da sua estratégia de modo que eles pudessem preparar uma linha de retirada. Seu velho amigo, o grande Senhor Shimazu, é um desses. Ouvi esta tarde que ele solicitou abertamente que todos os senhores fossem ordenados pelo imperador a se ajoelhar diante do menino Yaemon, agora.

Má notícia é que a Senhora Ochiba vem tecendo brilhantemente a sua trama, prometendo feudos e títulos e dignidade de corte aos não-comprometidos. Tora-chan, é uma grande lástima que ela não esteja do seu lado, ela é um inimigo de valor. Apenas a Senhora Yodoko advoga prece e calma, mas ninguém a ouve, e a Senhora Ochiba quer precipitar a guerra agora, enquanto sente que o senhor está fraco e isolado. Sinto muito, meu senhor, mas está isolado e, penso eu, foi traído.

Pior de tudo é que agora os regentes cristãos, Kiyama e Onoshi, estão abertamente juntos e violentamente contra o senhor.

Divulgaram uma declaração conjunta esta manhã lamentando a “deserção” de Sugiyama, dizendo que o seu ato colocou o reino em confusão, que “devemos todos ser fortes pela salvação do império. Os regentes têm a responsabilidade suprema. Devemos estar preparados para esmagar, juntos, qualquer senhor ou grupo de senhores que deseje anular o testamento do taicum, ou a sucessão legal”. (Isso significa que eles pretendem se reunir como um conselho de quatro regentes?) Um dos nossos espiões cristãos, na sede dos hábitos negros, sussurrou que o Padre Tsukku-san deixou Osaka secretamente há cinco dias, mas não sabemos se foi para Yedo ou para Nagasaki, onde o Navio Negro é esperado. O senhor sabia que ele virá bem antecipado este ano? Que chegará, talvez, dentro de vinte ou trinta dias?

Senhor: sempre hesitei em dar opiniões rápidas, baseadas em rumores, espiões, ou em intuição de mulher (nisso, veja, Tora-chan, aprendi com o senhor!), mas o tempo é curto e posso não ser capaz de lhe falar novamente. Primeiro, famílias demais estão retidas aqui. Ishido nunca as deixará partir (assim corno nunca deixará a nós). Esses reféns são um imenso perigo para o senhor. Poucos senhores têm o senso de dever ou a firmeza de Sugiyama. Muitos, penso eu, se passarão agora para Ishido, embora relutantemente, por causa desses reféns. Depois, acho que Maeda o trairá, e provavelmente Asano também. Dos duzentos e sessenta e quatro daimios do nosso país, apenas vinte e quatro o seguirão com certeza, e outros cinqüenta possivelmente. Isso não é nem de longe suficiente. Kiyama e Onoshi arrastarão todos os daimios cristãos, ou a maioria deles, e creio que não se aliarão aosenhor agora. O Senhor Mori, o mais rico e o maior de todos, está pessoalmente contra o senhor, como sempre, e trará Asano, Kobayakawa e talvez Oda, para a própria rede. Com seu meio irmão Senhor Zataki contra o senhor, sua posição é terrivelmente precária. Aconselho-o a declarar Céu Carmesim imediatamente e lançar-se contra Kyoto. É a sua única esperança.

Quanto à Senhora Sazuko e a mim, estamos bem e contentes. A criança desenvolve-se lindamente e se o karma dela for nascer, assim acontecerá. Estamos seguras na nossa ala do castelo, a porta pesadamente trancada, os rastrilhos baixados. Nossos samurais estão cheios de devoção ao senhor e à sua causa, e se for nosso karma partir desta vida, então partiremos com serenidade.

A sua senhora sente muita falta sua, muita. Quanto a mim, Tora-chan, anseio por vê-lo, rir com o senhor, e ver o seu sorriso. Minha única queixa quanto à morte é que eu não poderia mais fazer essas coisas, e cuidar do senhor. Se existe uma outra vida e Deus ou Buda ou kami, prometo que de algum modo influenciarei todos a se porem do seu lado ... embora primeiro eu possa rogar-lhes que me façam esbelta, jovem e fértil para o senhor, deixando-me o prazer pela comida. Ah, isso seria o paraíso de fato: poder comer e comer e ainda assim ser perpetuamente jovem e magra!

Mando-lhe meu riso. Possa Buda abençoá-lo e aos seus.

 

Toranaga leu a mensagem para eles, exceto o trecho particular sobre Kiri e a Senhora Sazuko. Quando terminou, olharam-no e uns aos outros incredulamente, não só por causa do que a mensagem dizia, mas também porque ele estava abertamente confiando neles todos.

Estavam sentados sobre esteiras num semicírculo em torno dele, no centro do planalto, sem guardas, a salvo de intrometidos. Buntaro, Yabu, Igurashi, Omi, Naga, os capitães e Mariko. Os guardas estavam postados a duzentos passos de distância.

- Quero alguns conselhos - disse Toranaga. - Meus conselheiros estão em Yedo. Este assunto é urgente e quero que todos vocês ajam no lugar deles. O que vai acontecer e o que devo fazer. Yabu-san?

Yabu estava num turbilhão. Todos os caminhos pareciam levar à catástrofe.

- Primeiro, senhor, o que é exatamente "Céu Carmesim"?

- É o codinome para o meu plano de batalha final, uma única investida violenta sobre Kyoto com todas as minhas legiões, contando com mobilidade e surpresa, a fim de tomar posse da capital, tirando-a das forças malignas que agora a rodeiam, para arrancar a pessoa do imperador ao poder infame daqueles que o enganaram, liderados por Ishido. Uma vez que o Filho do Céu esteja libertado em segurança das garras deles, então solicitar-lhe que revogue o mandato concedido ao conselho atual, que é claramente traidor, ou dominado por traidores, e conceda a mim o seu mandato para formar um novo conselho que colocaria os interesses do reino e do herdeiro à frente da ambição pessoal. Eu comandaria oitenta mil dos cem mil homens, deixando minhas terras desprotegidas, meus flancos desguarnecidos, e uma retirada não garantida. - Toranaga viu-os a fitá-lo pasmados. Não mencionou os quadros de samurais de elite que tinham sido furtivamente introduzidos em muitos dos castelos e províncias importantes ao longo dos anos, e que deviam explodir simultaneamente em revolta a fim de criar o caos essencial ao plano.

- Mas o senhor teria que combater a cada passo do caminho - irrompeu Yabu. - Ikawa Jikkyu estrangula a Tokaido ao longo de cem ris. Depois há mais baluartes de Ishido escarranchados pelo resto da estrada!

- Sim. Mas planejo arremeter para noroeste pela Koshukaido, depois penetrar até Kyoto e permanecer longe das terras costeiras.

Imediatamente muitos menearam a cabeça e começaram a falar, mas Yabu sobrepujou-os:

- Mas, senhor, a mensagem disse que o seu parente Zataki já se passou para o inimigo! Agora o seu caminho ao norte também está bloqueado. A província dele corta a Koshu-kaido. O senhor terá que lutar por toda Shinano - a região é montanhosa e muito difícil, e os homens dele são fanaticamente leais. O senhor será feito em pedaços naquelas montanhas.

- Esse é o único jeito, o único jeito de eu ter uma chance. Concordo em que há inimigos demais na estrada costeira.

Yabu deu uma olhada em Omi, desejando poder consultar-se com ele, abominando a mensagem e toda a confusão em Osaka, detestando ter sido o primeiro a falar, e detestando totalmente o status de vassalo que aceitara por súplica de Omi.

- É a sua única chance, Yabu-sama - instara Omi. - O único meio de evitar a armadilha de Toranaga e conseguir espaço para manobrar...

Igurashi interrompera furiosamente.

- É melhor cair em cima de Toranaga hoje, enquanto ele tem poucos homens aqui! É melhor matá-lo e levar-lhe a cabeça a Ishido enquanto há tempo.

- É melhor esperar, é melhor ser paciente...

- O que acontece se Toranaga ordenar ao nosso amo que entregue Izu? - gritara Igurashi. - De suserano a vassalo, Toranaga tem esse direito!

- Ele nunca fará isso. Precisa do nosso amo mais do que nunca agora. Izu protegê-lhe a porta sudeste. Ele não pode ter lzu hostil! Tem que ter o nosso amo do Ia...

- E se ele ordenar ao Senhor Yabu que saia?

- Revoltamo-nos! Matamos Toranaga, se estiver aqui, ou combatemos com qualquer exército que ele envie contra nós. Mas ele nunca fará isso, não vê? Sendo ele seu vassalo, Toranaga deve proteger...

Yabu deixara-os discutir e depois, finalmente, vira a sabedoria de Omi.

- Muito bem. Concordo! E ofereço-lhe minha lâmina Murasama para firmar a cordialidade do acordo, Omisan - regozijara-se ele, tomado sinceramente pela astúcia do plano. - Sim. Cordialidade. A lâmina Yoshimoto a substitui mais do que bem. E naturalmente, sou mais valioso para Toranaga agora do que nunca. Omi tem razão, Igurashi! Não tenho escolha. Estou comprometido com Toranaga daqui em diante. Um vassalo!

- Até que a guerra chegue - dissera Omi deliberadamente.

- Claro. Claro, só até que a guerra chegue! Aí posso mudar de lado - ou fazer uma dúzia de coisas. Tem razão, Omi-san, novamente!

Omi é o melhor conselheiro que já tive, disse-se ele. Mas o mais perigoso. É inteligente o bastante para tomar Izu se eu morrer. Mas o que importa isso? Estamos todos mortos.

- O senhor está completamente bloqueado - disse ele a Toranaga. - Está isolado.

- Há alguma alternativa? - perguntou Toranaga.

- Desculpe-me, senhor - disse Omi -, mas quanto tempo levaria para preparar esse ataque?

- Está pronto agora.

- Izu também está pronta, senhor - disse Yabu. - Os seus cem mil e os meus dezesseis mil, e o Regimento de Mosquetes. Isso basta?

- Não. Céu Carmesim é um plano de desespero... tudo arriscado num único ataque.

- O senhor tem que arriscar, assim que a chuva cesse e possamos guerrear - insistiu Yabu. - Que escolha o senhor tem?

Ishido formará um novo conselho imediatamente, eles ainda têm o mandato. Então o senhor será impedido, hoje ou amanhã ou no dia seguinte. Por que esperar para ser devorado? Ouça, talvez o regimento pudesse abrir um caminho através das montanhas! Que seja Céu Carmesim! Todos os homens lançados num grande ataque. É o Caminho do Guerreiro, digno de samurai, Toranagasama. Os atiradores, os nossos atiradores vão mandar Zataki pelos ares, para fora do nosso caminho, e, tenha o senhor êxito ou não, que importa? A tentativa viverá para sempre!

- Sim - disse Naga. - Mas nós venceremos... venceremos! - Alguns capitães assentiram em aquiescência, aliviados de que a guerra tivesse chegado. Omi não disse nada.

Toranaga estava olhando para Buntaro.

- Bem?

- Senhor, rogo-lhe que me dispense de lhe dar uma opinião. Meus homens e eu faremos qualquer coisa que o senhor decida. Esse é o meu único dever. A minha opinião não tem valor para o senhor, porque faço o que o senhor decidir sozinho.

- Normalmente eu aceitaria isso, mas hoje não!

- Guerra, então. O que Yabu-san diz está certo. Vamos para Kyoto. Hoje, amanhã, ou quando a chuva parar. Céu Carmesim! Estou cansado de esperar.

- Omi-san? - perguntou Toranaga.

- Yabu-sama está certo, senhor. Ishido contornará a vontade do taicum para designar um novo conselho muito em breve. O novo conselho terá o mandato do imperador. Seus inimigos aplaudirão e muitos dos seus amigos hesitarão e por isso o trairão. O novo conselho o impedirá imediatamente. Então...

- Então é Céu Carmesim? - interrompeu Yabu.

- Se o Senhor Toranaga ordenar, será. Mas não acho que a ordem de impedimento tenha qualquer valor em absoluto. O senhor pode esquecê-la.

- Por quê? - perguntou Toranaga, enquanto todas as atenções se voltavam para Omi.

- Concordo com o senhor. Ishido é mau, neh? Todos os daimios que concordam em servir a ele são igualmente maus. Homens de verdade conhecem Ishido pelo que ele é, e também sabem que o imperador foi novamente logrado. - Prudentemente Omi estava avançando por sobre areias movediças que ele sabia que podiam engoli-lo. - Acho que ele cometeu um engano duradouro assassinando o Senhor Sugiyama. Por causa desses assassinatos abomináveis, acho que agora todos os daimios suspeitarão de traição por parte de Ishido, e muito poucos fora da influência imediata de Ishido se curvarão às ordens do "conselho" dele. O senhor está a salvo. Por um tempo.

- Por quanto tempo?

- As chuvas estão conosco por dois meses, mais ou menos. Quando as chuvas cessarem, Ishido planejará lançar Ikawa Jikkyu e o Senhor Zataki simultaneamente contra o senhor, para pegá-lo numa manobra de torques, e o exército principal de Ishido os apoiará pela estrada Tokaido. Enquanto isso, até que as chuvas cessem, cada daimio que tenha algum rancor contra outro daimio só prestará serviços a Ishido aparentemente até que ele faça o primeiro movimento, então acho que eles o esquecerão e todos tomarão vingança ou se apoderarão de território, conforme o capricho de cada um. O império será dilacerado, como foi antes do taicum. Mas o senhor, juntamente com Yabu-sama, com sorte terá força suficiente para defender as passagens para o Kwanto e para Izu contra a primeira onda e rechaçá-la. Não creio que Ishido poderia organizar outro ataque, não um grande ataque. Quando Ishido e os outros tiverem gastado as energias, o senhor e o Senhor Yabu podem cautelosamente surgir por detrás das nossas montanhas e gradualmente tomar o império nas próprias mãos.

- Quando será isso?

- Quando seu filho nascer, senhor.

- Você está dizendo empreender uma batalha defensiva?

- perguntou Yabu desdenhosamente.

- Penso que, juntos, os senhores estão seguros atrás das montanhas. O senhor espera, Toranaga-sama. Espera até ter mais aliados. Defende as passagens. Isso pode ser feito! O General Ishido é mau, mas não estúpido para empenhar toda a força numa única batalha. Ficará escondido dentro de Osaka. Portanto, por enquanto não devemos usar o nosso regimento. Devemos reforçar a segurança e mantê-lo como uma arma secreta, apontada e sempre preparada, até que o senhor surja por detrás das suas montanhas. Mas agora acho que eu não chegaria sequer a vê-los utilizados. - Omi estava consciente dos olhos que o observavam. Curvou-se para Toranaga. - Por favor, desculpe-me por ter me estendido tanto, senhor.

Toranaga estudou-o, depois deu uma olhada no filho. Viu a excitação contida do jovem e soube que era tempo de lançá-lo contra a presa.

- Naga-san?

- O que Omi-san disse é verdade - disse Naga imediatamente, exultante. - Na maior parte. Mas digo que usemos os dois meses para reunir aliados, para isolar Ishido mais ainda, e quando as chuvas cessarem, atacar sem aviso - Céu Carmesim.

- Discorda da opinião de Omi-san sobre uma guerra prolongada? - perguntou Toranaga.

- Não. Mas isso não é... - Naga parou.

- Continue, Naga-san. Fale abertamente!

Naga calou a boca, o rosto branco.

- Ordeno-lhe que continue!

- Bem, senhor, ocorreu-me que... - Parou de novo, depois disse num jato só: - Essa não é a sua grande oportunidade de se tornar shogun? Se fosse bem sucedido tomando Kyoto e obtivesse o mandato, por que formar um conselho? Por que não requerer ao imperador que o fizesse shogun? Seria melhor para o senhor e melhor para o reino. - Naga tentou não deixar o medo transparecer na voz, pois estava falando em traição contra Yaemon o muitos samurais ali - Yabu, Omi, Igurashi e particularmente Buntaro - eram legalistas confessos. - Digo que o senhor devia ser shogun! - Voltou-se defensivamente para os outros: - Se esta oportunidade for perdida... Omi-san, tem razão quanto a uma longa guerra, mas digo que o Senhor Toranaga deve tomar o poder, dar poder! Uma longa guerra arruinará o império, vai quebrá-lo em mil fragmentos de novo! Quem deseja isso? O Senhor Toranaga deve ser shogun. Para se entregar o império a Yaemon, ao Senhor Yaemon, o reino precisa ser garantido antes! Nunca haverá outra oportunidade... - Suas palavras se arrastaram. Endireitou as costas, assustado porque dissera, mas contente por ter dito em público o que pensara sempre.

Toranaga suspirou.

- Nunca visei a tornar-me shogun. Quantas vezes tenho que dizer? Apóio o meu sobrinho Yaemon e a vontade do taicum. - Olhou para todos, um por um. Por último para Naga. O jovem estremeceu. Mas Toranaga disse gentilmente, chamando-o de volta à isca: - Apenas o seu zelo e a sua juventude desculpam isso. Infelizmente, muitas pessoas, mais velhas e mais sábias do que você, pensam que essa é a minha ambição. Não é. Há apenas um meio de solucionar esse absurdo, que é colocar o Senhor Yaemon no poder. E isso eu pretendo fazer.

- Sim, Pai. Obrigado. Obrigado - retrucou Naga em desespero.

Toranaga desviou os olhos para Igurashi.

- Qual é o seu conselho?

O samurai de um olho só coçou-se.

- Sou apenas um soldado, não um conselheiro, mas não aconselharia Céu Carmesim, não se podemos lutar nos nossos termos, como diz Omi-san. Combati em Shinano anos atrás. É uma região ruim, e naquela época o Senhor Zataki estava conosco. Eu não gostaria de combater em Shinano de novo, e nunca se Zataki fosse hostil. E se o Senhor Maeda é suspeito, bem, como o senhor pode planejar uma batalha se o seu maior aliado pode traí-lo? O Senhor Ishido colocará duzentos, trezentos mil homens contra o senhor e ainda manterá cem mil defendendo Osaka. Mesmo com os atiradores, não temos homens suficientes para atacar. Mas atrás das montanhas, usando as armas, o senhor poderia agüentar para sempre se acontecesse conforme Omi-san diz. Poderíamos defender os desfiladeiros. O senhor tem arroz suficiente - o Kwanto não abastece metade do império? Bem, um terço no mínimo - e poderíamos enviar-lhe todo o peixe de que necessitasse. O senhor estaria a salvo. Deixe o Senhor Íshido e o demônio Jikkyu virem a nós, se é para acontecer como Omi-san disse, que logo o inimigo estará se devorando entre si. Caso contrário, mantenha Céu Carmesim preparado. Um homem pode morrer pelo seu senhor apenas uma vez na vida.

- Alguém tem alguma coisa a acrescentar? - perguntou Toranaga. Ninguém respondeu. - Mariko-san?

- Não cabe a mim falar aqui, senhor - replicou ela. - Estou certa de que tudo o que devia ter sido dito foi dito. Mas posso ser autorizada a perguntar, por todos os conselheiros aqui, o que o senhor pensa que acontecerá?

Toranaga escolheu as palavras deliberadamente.

- Acho que o que Omi-san prognosticou acontecerá. Com uma exceção: o conselho não será impotente. O conselho exercerá influência suficiente para reunir uma invencível força aliada. Quando as chuvas cessarem, essa força será atirada contra o Kwanto, flanqueando Izu. O Kwanto será engolido, depois Izu. Só depois de eu estar morto é que os daimios lutarão entre si.

- Mas por quê, senhor? - arriscou Omi.

- Porque tenho inimigos em excesso, sou dono do Kwanto, combati por mais de quarenta anos e nunca perdi uma batalha. Todos têm medo de mim. Eu sei que primeiro os abutres se reunirão para me destruir. Depois se destruirão mutuamente, mas primeiro se juntarão para me destruir, se puderem. Saibam todos vocês, claramente, que eu sou a única ameaça a Yaemon, embora não seja ameaça em absoluto. Essa é a ironia da história. Todos acreditam que quero ser shogun. Não quero. Esta é outra guerra completamente desnecessária!

Naga rompeu o silêncio.

- Então o que vai fazer, senhor?

- Hein?

- O que vai fazer?

- Obviamente, Céu Carmesim - disse Toranaga.

- Mas o senhor disse que eles nos devorariam.

- Eles fariam isso... se eu lhes desse tempo. Mas não vou lhes dar tempo algum. Vamos à guerra imediatamente!

- Mas as chuvas... e'as chuvas?

- Chegaremos a Kyoto molhados. Acalorados, fedendo e molhados. Surpresa, mobilidade, audácia e tempo vencem guerras, neh? Yabu-san estava certo. Os atiradores abrirão um caminho através das montanhas.

Durante uma hora eles discutiram planos e a exeqüibilidade da guerra em larga escala na estação chuvosa - uma estratégia inaudita. Depois Toranaga mandou-os embora, exceto Mariko, dizendo a Naga que mandasse o Anjin-san para lá. Observou-os se afastando. Tinham ficado aparentemente entusiasmados, depois de anunciada a decisão, particularmente Naga e Buntaro. Apenas Omi ficara reservado, pensativo e não convencido. Toranaga descontou Igurashi pois sabia que o soldado faria apenas o que Yabu ordenasse, e dispensou Yabu como um fantoche, traiçoeiro certamente, mas ainda um fantoche. Omi é o único que vale alguma coisa, pensou. Pergunto a mim mesmo se ele já não adivinhou o que vou realmente fazer.

- Mariko-san. Descubra, com tato, quanto custaria o contrato da cortesã.

Ela piscou.

- Kiku-san, senhor?

- Sim.

- Agora, senhor? Imediatamente?

- Esta noite seria excelente. - Olhou-a, meigo. - O contrato dela não é necessariamente para mim, talvez para um dos meus oficiais.

- Imagino que o preço dependeria de quem, senhor.

- Imagino que sim, também. Mas estabeleça um preço. A garota naturalmente tem o direito de recusar, se quiser, quando o samurai for identificado, mas diga à sua proprietária que não espero que a garota tenha a má educação de desconfiar de minha escolha para ela. Diga também que Kiku é uma dama de primeira classe de Mishima, e não de Yedo ou Osaka ou Kyoto - acrescentou Toranaga cordialmente -, portanto espero pagar um preço de Mishima, e não preços de Yedo, Osaka ou Kyoto.

- Sim, senhor, naturalmente.

Toranaga moveu o ombro para abrandar a dor, mudando as espadas de posição.

- Posso fazer-lhe uma massagem, senhor? Ou mandar buscar Suwo?

- Não, obrigado. Verei Suwo mais tarde. - Toranaga levantou-se e aliviou-se com grande prazer, depois se sentou de novo. Estava usando um quimono de seda leve, azul-estampado, e as sandálias simples, de palha. O leque era azul e decorado com o seu emblema.

O sol estava baixo, nuvens de chuva formando-se pesadamente.

- É ótimo estar vivo - disse ele, feliz. - Quase posso ouvir a chuva esperando para nascer.

- Sim - disse ela.

Toranaga pensou um instante, depois disse um poema:

 

"O céu

Chamuscado pelo sol

Chora

Lágrimas fecundas".

 

Mariko obedientemente pôs a cabeça a funcionar para jogar com ele o jogo dos poemas, muito popular entre a maioria dos samurais, torcendo espontaneamente as palavras do poema que ele fizera, fazendo outro a partir do dele. Depois de um momento, disse:

 

"Mas a floresta

Ferida pelo vento

Chora

Folhas mortas".

 

- Bem dito! Sim, muito bem dito! - Toranaga olhou para ela contente, apreciando o que via. Ela estava vestida com um quimono verde-claro, com estampas de bambu, um obi verde-escuro e uma sombrinha laranja. Havia um reflexo maravilhoso no cabelo preto-azulado, que estava puxado para cima, sob o chapéu de aba larga. Ele se lembrou nostalgicamente de como todos eles - até o próprio ditador Goroda - a haviam desejado quando ela tinha treze anos e o pai, Akechi Jinsai, a apresentara pela primeira vez, a filha mais velha, na corte de Goroda. E como Nakamura, o futuro taicum, implorara ao ditador que a desse a ele, e depois como Goroda rira, e publicamente o chamara de "general macaquinho pernalonga", e lhe dissera: "Aferre-se à luta nas batalhas, camponês, não lute para feriar buracos patrícios!" Akechi Jinsai zombara abertamente de Nakamura, seu rival no favor de Goroda, a principal razão de Nakamura ter-se deliciado em destruí-lo. E a razão também de Nakamura ter-se deliciado de ver Buntaro sofrer durante anos, Buntaro, a quem a garota fora dada para cimentar uma aliança entre Goroda e Toda Hiromatsu. Será, perguntou-se Toranaga por travessura, olhando-a, que se Buntaro estivesse morto ela consentiria em ser uma das minhas consortes? Toranaga sempre preferira mulheres experientes, viúvas ou divorciadas, mas nunca bonitas demais, ou sábias, jovens ou bem-nascidas demais, de modo a nunca causarem problemas demais e serem sempre gratas.

Casquinou consigo mesmo. Eu nunca a pediria porque ela é tudo o que eu não quero numa consorte - com exceção da idade, que é perfeita.

- Senhor? - perguntou ela.

- Estava pensando no seu poema, Mariko-san - disse ele, ainda mais brando. E acrescentou:

 

"Por que tão hibernal?

O verão ainda

Está por vir, e a queda do

Glorioso outono'.

 

Ela respondeu:

 

"Se eu pudesse usar palavras

Como folhas caindo,

Que fogueira

Meus poemas fariam!"

 

Ele riu e se curvou com humildade zombeteira.

- Concedo-lhe a vitória, Mariko-san. Qual será o favor? Um leque? Ou uma faixa para o cabelo?

- Obrigada, senhor - respondeu ela. - Sim, qualquer coisa que lhe agrade.

- Dez mil kokus por ano para o seu filho.

- Oh, senhor, não merecemos um favor assim!

- Você conquistou uma vitória. A vitória,e o dever devem ser recompensados. Que idade tem Saruji agora?

- Quinze ... quase quinze.

- Ah, sim... ele foi prometido a uma das netas do Senhor Kiyama recentemente, não foi?

- Sim, senhor. No décimo primeiro mês do ano passado, o mês da Geada Branca. Atualmente ele está em Osaka com o Senhor Kiyama.

- Bom. Dez mil kokus, a começar imediatamente. Mandarei a autorização com o correio de amanhã. Agora, basta de poemas, por favor dê-me a sua opinião.

- Minha opinião, senhor, é que estamos todos seguros nas suas mãos, assim como a terra está segura nas suas mãos.

- Quero que você fale a sério.

- Oh, mas estou falando sério, senhor. Agradeço-lhe pelo favor ao meu filho. Isso torna tudo perfeito. Acredito que tudo o que o senhor faça será certo. Por Nossa Senhora... sim, por Nossa Senhora, juro que acredito nisso.

- Ótimo. Mas ainda quero a sua opinião.

Imediatamente ela respondeu, sem qualquer receio, falando de igual para igual.

- Primeiro o senhor devia trazer o Senhor Zataki secretamente de volta para o seu lado. Suponho, aliás, que ou o senhor já sabe como fazer isso ou, mais provavelmente, tem um acordo secreto com o seu meio irmão, e sugeriu a misteriosa "deserção" dele para embalar Ishido numa posição falsa. Depois: o            senhor nunca atacará primeiro. Nunca fez isso, sempre aconselhou paciência, e só ataca quando tem certeza de vencer, portanto o fato de estar ordenando Céu Carmesim publicamente é só mais uma manobra diversionista. Depois, tempo! Minha opinião é que o senhor deve fazer o que fará, fingir ordenar Céu Carmesim mas nunca desencadear. Isso lançará Ishido em confusão, porque, obviamente, os espiões aqui e em Yedo relatarão o seu plano, e ele terá que dispersar suas forças como um bando de perdizes, com um tempo péssimo, a fim de se preparar para uma ameaça que nunca se materializará. Enquanto isso o senhor passará os próximos dois meses reunindo aliados, para minar as alianças de Ishido e romper a coalizão dele, coisa que o senhor deve fazer por quaisquer meios. E, naturalmente, deve atrair Ishido para fora do Castelo de Osaka. Se não o fizer, senhor, ele vencerá ou, no mínimo, o senhor perderá o xogunato. O senhor...

- Já deixei minha posição sobre isso bem clara - vociferou Toranaga, já não achando graça. - E você perdeu a cabeça.

Despreocupada e feliz, Mariko continuou:

- Tenho que falar sobre segredos hoje, senhor, por causa dos reféns. O senhor está com uma faca no coração.

- O que pensa sobre eles?

- Seja paciente comigo, por favor, senhor. Pode ser que eu nunca mais seja capaz de falar-lhe no que o Anjin-san chamaria de "em particular num inglês franco", mas o senhor nunca esteve sozinho como estamos agora. Rogo-lhe que perdoe meus maus modos. - Mariko reuniu toda a sua astúcia e, surpreendentemente, continuou a falar de igual para igual. - Minha opinião absoluta é que Naga-san tinha razão. O senhor deve se tornar shogun, ou falhará no seu dever para com o império e para com os Minowara.

- Como se atreve a dizer uma coisa dessas?

Mariko permaneceu absolutamente serena, a cólera declarada dele não a afetando em nada.

- Aconselho-o a se casar com a Senhora Ochiba. Faltam oito anos até que Yaemon tenha idade suficiente para herdar legalmente. Isso é uma eternidade! Quem sabe o que poderia acontecer em oito meses, quanto mais em oito anos?

- Toda a sua família pode ser aniquilada em oito dias!

- Sim, senhor. Mas isso não tem nada a ver com o senhor e o seu dever, nem com o reino. Naga-san tem razão. O senhor deve tomar o poder para conceder poder. - Com uma gravidade zombeteira, acrescentou de modo esbaforido: - E agora a sua fiel conselheira pode cometer seppuku ou devo esperar para fazê-lo mais tarde? - e fingiu desmaiar.

Toranaga olhou apalermado a sua inacreditável insolência, depois explodiu numa gargalhada e martelou com o punho no chão. Quando conseguiu falar, disse:

- Nunca a entenderei, Mariko-san.

- Ah, mas o senhor entende - disse ela, enxugando com tapinhas a transpiração da testa. - O senhor é gentil em deixar esta vassala devotada fazê-lo rir, em ouvir-lhe as solicitações, em dizer o que deve ser dito, tinha que ser dito. Perdoe-me a impertinência, por favor.

- Por que deveria, hein? Por quê? - Toranaga sorriu, cordial de novo.

- Por causa dos reféns, senhor - disse ela simplesmente.

- Ah, eles! - Ele também ficou sério.

- Sim. Preciso ir a Osaka.

- Sim - disse ele. - Eu sei.

 

[1] Dança rápida, geralmente executada por uma só pessoa, que se dançava ao som de um antigo instrumento de sopro, com o mesmo nome. (N. do T.)

[2] Referência ao flautista de Hamelin, de Robert Browning. (N. do T.)

 

 

                                                                                            James Clavell

 

                      

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