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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SIDDHARTHA / Hermann Hesse
SIDDHARTHA / Hermann Hesse

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SIDDHARTHA

 

Nascido na Índia, no século VI a.C., filho de um brâmane, Siddhartha passa a infância e a juventude isolado das misérias do mundo, gozando uma existência calma e contemplativa. A certa altura, porém, abdica da vida luxuosa, protegida, e parte em peregrinação pelo país, onde a pobreza e o sofrimento eram regra. Na sua longa viagem existencial, Siddhartha experimenta de tudo usufruindo tanto as maravilhas do sexo, qanto o jejum absoluto. Entre os intensos prazeres e as privações extremas, termina por descobrir «o caminho do meio», libertando-s dos apelos dos sentidos e encontrado o sentido da paz interior.Em páginas de rara beleza, Siddhartha descreve sensações e impressões como raramente como raramente se consegue. Lê-lo é deixar-se fluir como o rio onde Siddharthha aprende que o importante é saber escutar com perfeição.

Este romance de Hermann Hesse tornou-se a obra mais famosa deste prémio Nobel da literatura e um dos livros mais vendidos de sempre. Nunca perdendo a actualidade, continua a fascinar o público jovem sendo leitura de cabeceira há já várias gerações.

Em Siddhartha, Hermann Hesse procurou entender-se através dos sinais e símbolos que constituem a floresta onde nos perdemos diariamente. A obra é atravessada por páginas de rara beleza...

 

 

O FILHO DO BRÂMANE

Na penumbra da casa, ao sol nas margens do rio, junto aos barcos, à sombra do bosque, à sombra das figuei­ras, cresceu Siddhartha, o belo filho do brâmane, o jovem falcão, na companhia de Govinda, o seu amigo, o filho do brâmane. O sol queimava os seus ombros claros nas margens do rio, durante o banho, durante as abluções sagradas, durante os sacrifícios sagrados. As sombras do mangal corriam pelos seus olhos negros durante as brincadeiras infantis, durante as canções de sua mãe, durante os sacrifícios sagrados, durante os ensinamen­tos de seu pai, o erudito, durante o discurso dos sábios. Havia já muito tempo que Siddhartha participava nas conversas com os sábios, que treinava com Govinda a retórica, que treinava com Govinda a arte da contem­plação, a prática da meditação. Já sabia pronunciar silen­ciosamente o Om, a palavra das palavras; deixava-o penetrar silenciosamente em si com a inspiração, exa­lava-o silenciosamente com a expiração, com a totali­dade da sua alma, a fronte envolta no brilho do espírito lúcido. Já reconhecia Atman no fundo do seu ser, impe­recível, uno com o universo.

O coração do seu pai alegrava-se com o filho, inteli­gente e sedento de sabedoria; via crescer nele um grande sábio e sacerdote, um príncipe entre os brâmanes.

O peito de sua mãe sofria ao olhar para ele, ao vê-lo caminhar, sentar-se perto dela e levantar-se; Siddhartha, o forte, o belo, aquele que caminha com pernas elegan­tes, aquele que a saúda com delicadeza.

O coração das jovens filhas dos brâmanes agitava-se de amor quando Siddhartha passava pelas ruas da cidade, com a sua fronte luminosa, com o seu olhar real, com a sua anca delgada.

Mais do que todos eles, no entanto, amava-o Govinda, o seu amigo, o filho do brâmane. Amava o olhar de Siddhartha e a sua voz gentil, amava o seu andar e a per­feita graciosidade dos seus movimentos, amava tudo o que Siddhartha dizia e fazia e, acima de tudo, amava o seu espírito, os seus pensamentos elevados e ardentes, os seus desejos impetuosos, a sua vocação nobre. Govinda sabia: este não viria a ser um brâmane vulgar, um preguiçoso funcionário encarregue dos sacrifícios, um ganancioso comerciante de encantamentos, um orador vaidoso e vazio, um sacerdote maldoso e pérfido, tal como não viria a ser uma ovelha boa e tola no rebanho da multidão. Não, e tam­bém ele, Govinda, não queria tornar-se um tal brâmane, como outros mil que existiam. Queria seguir Siddhartha, o bem-amado, o magnífico. E quando Siddhartha, enfim, se tornasse um deus e entrasse no reino resplandecente, Govinda queria segui-lo, como seu amigo, como seu com­panheiro, como seu servidor, seu pajem, sua sombra.

Assim Siddhartha era amado por todos. A todos ale­grava, a todos tornava felizes.

Mas ele, Siddhartha, não se alegrava, não era feliz. Passeando pelos caminhos floridos do pomar, sentando­-se debaixo das sombras azuladas do bosque da contem­plação, banhando os seus membros durante o banho diário de purificação, oferecendo sacrifícios na profunda penum­bra do bosque de mangueiras, perfeitamente gracioso no seu porte, amado por todos, sendo a alegria de todos, não tinha qualquer alegria no seu coração. Sonhos e pensa­mentos perturbadores vinham até ele, flutuando nas águas do rio, cintilando nas estrelas da noite, fundidos nos raios do sol; sonhos e inquietude de alma vinham até ele, diluí­dos no fumo dos sacrifícios, suspirados nos versos do Rig- Veda, escorrendo dos ensinamentos dos velhos brâ­manes.

Siddhartha começara a alimentar em si a infelicidade. Começara a sentir que o amor de seu pai, o amor de sua mãe e o amor do seu amigo, Govinda, não o poderiam tornar feliz para todo o sempre, não poderiam apaziguá­-lo, saciá-lo, satisfazê-lo. Começara a pressentir que o seu honrado pai e os seus outros mestres já haviam partilhado com ele a maior e melhor parte da sua sabedoria, deitado tudo o que tinham para dentro do recipiente ansioso que ele era, e o recipiente não estava cheio, o espírito não estava satisfeito, a alma não estava aquietada, o coração não estava pacificado. As abluções eram boas, mas eram água, não lavavam os pecados, não saciavam a sede do espí­rito, não acabavam com os temores do coração. Os sacri­fícios e a invocação dos deuses eram excelentes - mas isso seria tudo? Os sacrifícios trariam a felicidade? E como seriam os deuses? Foi realmente Prajapati quem criou o mundo? Não teria sido Atman, Ele, o Uno, o Único? Não seriam os deuses criaturas, formados como tu e eu, súb­ditos do tempo, efémeros? Seria bom, por isso, oferecer sacrifícios aos deuses? Seria correcto, seria sensato, seria um gesto nobre? A quem fazer sacrifícios, a quem vene­rar, senão a Ele, ao Único, a Atman? E onde encontrar Atman, onde vive Ele, onde bate o Seu coração, senão no próprio Eu, nas profundezas imperecíveis que existem em todos nós? Mas onde, onde se encontra este Eu, esta Interioridade, esta Finalidade? Não é de carne e osso, não é o pensamento ou a consciência, assim ensinavam os mais sábios. Onde, onde era então? Penetrar no Eu, na Interioridade, em Atman - existiria outro caminho que valesse a pena ser procurado? Mas, ai, ninguém lhe mos­trava esse caminho, ninguém o conhecia, nem o pai, nem os professores e sábios, nem os cânticos sagrados dos sacrifícios! Tudo eles conheciam, os brâmanes e os livros sagrados, tudo conheciam, tudo tinham estudado e mais do que o tudo, a criação do Mundo, a origem do discurso, os alimentos, a inspiração, a expiração, a ordem dos sen­tidos, os feitos dos deuses - eram infindáveis os seus conhecimentos -, mas valeria a pena saber tudo isso, se não se conhecia o Uno e Único, o mais importante, a única coisa importante?

É certo que muitos versos dos livros sagrados, versos magníficos, principalmente nas Upanishads do Samaveda, falavam desta interioridade e Finalidade. «A tua alma é o mundo inteiro», aí estava escrito, tal como estava escrito que os homens, durante o sono mais profundo, penetra­vam na sua interioridade e viviam em Atman. Estes versos continham uma sabedoria maravilhosa, todo o conhe­cimento dos mais sábios estava aí reunido em palavras mágicas, puras como o mel das abelhas. Não, nada menos­prezar era a mais extraordinária decisão que aí estava, reu­nida e conservada por incontáveis gerações sucessivas de sábios brâmanes. Mas onde estavam os brâmanes, os sacer­dotes, os sábios ou penitentes, que conseguiram não ape­nas possuir este conhecimento, mas vivê-lo? Onde estavam os homens versados nestas coisas, que conseguiram trans­portar a sua comunhão com Atman do sono para a vigí­lia, para a vida, em todos os momentos, nas suas palavras e acções? Siddhartha conhecia muitos brâmanes venerá­veis, o seu pai antes de todos os outros, puro, sábio, o mais venerável. O seu pai era digno de admiração, o seu com­portamento era sereno e honrado, a sua vida era pura, a sua palavra era sábia, pensamentos bons e nobres ocupa­vam a sua fronte - mas também ele, que tanto sabia, vivia ele na bem-aventurança, tinha paz, não seria tam­bém ele apenas mais um homem sedento, à procura? Não necessitava ele, sedento, de beber repetidamente das fon­tes santas, nos sacrifícios, nos livros, nos diálogos dos brâmanes? Porque necessitava ele, o irrepreensível, de lavar todos os dias os seus pecados, ocupar-se diariamente da sua purificação e todos os dias recomeçar? Não estava nele Atman, a Fonte Primordial não brotava no seu cora­ção? É necessário encontrar a Fonte Primordial no fundo do Eu, possuí-la em nós mesmos! Tudo o resto era demanda, era desvio, era erro.

            Estes eram os pensamentos de Siddhartha, esta era a sua sede, esta a sua dor.

Muitas vezes repetia para si mesmo as palavras de uma Chandogya-Upanishad: «Realmente, o nome do Braman é Satyam - na verdade, quem isto sabe, ascende diaria­mente ao mundo celestial».

Muitas vezes o mundo celes­tial parecera-lhe perto, mas nunca o conseguira alcançar, nem conseguira saciar a sua derradeira sede. E entre todos os sábios que ele conhecia e de cujos conhecimentos des­frutara, entre eles não existia um único que tivesse com­pletamente alcançado o mundo celestial, que tivesse completamente saciado a sede eterna.

- Govinda - disse Siddhartha ao seu amigo -, Govinda, vem comigo para debaixo da figueira-de-ben­gala, vamos meditar.

Foram para junto da figueira-de-bengala, sentaram-se no chão, aqui Siddhartha, Govinda afastado vinte passos. Enquanto se sentava, pronto a pronunciar o Om, Siddhartha murmurava os versos:

 

«Om é o arco, a flecha é a alma,

O Braman é o alvo da flecha,

O alvo que devemos atingir».

 

Quando o tempo habitual da meditação se esgotou, Govinda ergueu-se. A noite chegava, era hora de realizar as abluções da tarde. Chamou o nome de Siddhartha. Siddhartha não respondeu. Siddhartha permanecia sentado e absorto, os seus olhos estavam fixos num alvo muito distante, a língua espreitava um pouco por entre os den­tes, parecia nem respirar. Assim permanecia, mergulhado na meditação, pensando no Om, a sua alma como uma flecha dirigi da ao Braman.

Certa vez, passaram pela cidade de Siddhartha alguns samanas, peregrinos ascetas, três homens secos e esque­cidos, nem novos nem velhos, com ombros cobertos de pó e de sangue, praticamente nus, crestados pelo sol, envol­tos em solidão, estranhos ao mundo e seus inimigos, magros chacais forasteiros no reino dos homens. Seguia-os o cheiro quente da paixão tranquila, do serviço avassalador, da abnegação sem compaixão.

            À noite, depois da hora da contemplação, Siddhartha disse a Govinda:

            - Amanhã cedo, meu amigo, Siddhartha irá ter com os samanas. Siddhartha tornar-se-á um samana.

Govinda empalideceu, ao ouvir estas palavras, e no rosto imóvel do seu amigo leu a determinação, impossí­vel de desviar do seu curso como a flecha lançada por um arco. Govinda percebeu imediatamente: começou, agora Siddhartha seguirá o seu caminho, agora o seu destino começa a concretizar-se, e o meu com o dele. E ficou lívido, como a casca seca de uma banana.

- Siddhartha - exclamou -, irá o teu pai permitir-te tal?            Siddhartha olhou para cima como alguém que desperta. Rapidamente, leu a alma de Govinda, leu nela o medo, leu a resignação.

- Govinda - disse ele em voz baixa -, não desperdi­cemos as nossas palavras. Amanhã, ao romper do dia, come­çarei a viver a vida dos samanas. Não falemos mais disso.

Siddhartha entrou na câmara onde estava o seu pai, sen­tado sobre uma esteira de ráfia; colocou-se atrás de seu pai e ficou de pé, até este sentir que alguém estava atrás dele. Falou o brâmane:

- És tu, Siddhartha? Diz, então, aquilo que tens para dizer. Disse Siddhartha:

- Com a tua permissão, meu pai. Vim para te dizer que é meu desejo deixar a tua casa, amanhã, e juntar-me aos ascetas. Tornar-me um samana, esse é o meu desejo. Espero que o meu pai não se oponha.

O brâmane ficou silencioso, permaneceu silencioso por tanto tempo que na pequena janela as estrelas se deslo­caram e a sua configuração se alterou, antes que o silên­cio na câmara chegasse ao fim. O filho permaneceu de pé, com os braços cruzados, mudo e imóvel, o pai per­maneceu sentado sobre a esteira, mudo e imóvel, e as estrelas cruzaram o céu. Então o pai falou:

- A um brâmane não fica bem proferir palavras bruscas e coléricas. Mas a indignação move o meu cora­ção. Não quero ouvir tal pedido uma segunda vez da tua boca.

Lentamente, o brâmane ergueu-se; Siddhartha conti­nuava silencioso e de braços cruzados. .

- Por que esperas? - perguntou o pai.

Disse Siddhartha:

- Tu o sabes.

Indignado, o pai saiu da câmara. Indignado, dirigiu-se ao seu leito e deitou-se.

Uma hora mais tarde, porque o sono não vinha aos seus olhos, o brâmane levantou-se, caminhou para trás e para diante, saiu da casa. Olhando através da pequena janela da câmara viu Siddhartha, de pé, com os braços cruzados, imóvel. O seu trajo claro resplandecia de brancura. Com o coração inquieto, o pai voltou para o seu leito.

Uma hora mais tarde, porque o sono não vinha aos seus olhos, o brâmane voltou a levantar-se, caminhou para trás e para diante, saiu para a frente da casa, viu a lua a nas­cer. Olhando através da janela da câmara viu Siddhartha, imóvel, com os braços cruzados, a luz da lua reflectida, nas suas canelas nuas. Com o coração apreensivo, o pai regressou ao seu leito.

E voltou uma hora mais tarde, e voltou duas horas mais tarde, olhou através da pequena janela, viu Siddhartha de pé, à lua, sob as estrelas, nas trevas. E voltou a cada hora que passou, silencioso, olhou para a câmara, viu o homem de pé, imóvel, encheu o seu coração de ira, encheu o seu coração de inquietação, encheu o seu coração de medo, encheu-o de dor.

E na última hora da noite, antes do início do dia, vol­tou, entrou na câmara, viu o jovem em pé, que lhe pare­ceu grande e distante.

- Siddhartha - disse ele -, porque esperas?

- Tu o sabes.

- Quererás tu esperar em pé, até chegar o dia, a tarde, a noite?

- Esperarei, de pé.

- Ficarás cansado, Siddhartha.

- Ficarei cansado.

- Adormecerás, Siddhartha.

- Não adormecerei.

- Morrerás, Siddhartha.

- Morrerei.

- E preferes morrer, a obedecer a teu pai?

- Siddhartha obedeceu sempre a seu pai.

- Estarás disposto a renunciar ao teu propósito?

- Siddhartha fará o que o seu pai lhe disser.

O primeiro brilho do dia caiu na câmara. O brâmane viu que os joelhos de Siddhartha tremiam ligeiramente. Mas no rosto de Siddhartha não viu qualquer tremor; ao longe brilhavam os seus olhos. Então o pai compreendeu que Siddhartha já não se encontrava junto a ele, na sua terra, que já o tinha deixado.

O pai tocou o ombro de Siddhartha.

            - Tu queres - disse ele -, ir para a floresta e ser um samana. Se encontrares a bem-aventurança na floresta, volta e ensina-me a bem-aventurança. Se encontrares a desilusão, então volta e voltaremos a oferecer sacrifícios aos deuses, juntos. Agora vai beijar tua mãe, diz-lhe para onde vais. Para mim está na hora de ir ao rio fazer as pri­meiras abluções.

Retirou a mão do ombro do seu filho e saiu. Siddhartha cambaleou, ao tentar andar. Dominou os seus membros, fez uma vénia a seu pai e foi ter com a sua mãe, para fazer o que o pai lhe dissera.

Ao deixar a cidade ainda adormecida, à primeira luz da manhã, com as pernas entorpecidas, ergueu-se da última cabana uma sombra, que ali estava acocorada, e aproxi­mou-se do peregrino - Govinda.

- Vieste - disse Siddhartha, sorrindo.

- Vim - disse Govinda.

 

COM OS SAMANAS

Na tarde desse dia foram recebidos pelos ascetas, pelos severos samanas, e ofereceram-lhes a sua companhia e obediência. Foram aceites.

Siddhartha ofereceu o seu trajo a um brâmane pobre que encontrou na estrada. Agora vestia apenas a tanga e a capa simples cor de terra. Comia apenas uma vez por dia e nada que fosse cozinhado. Jejuou durante quinze dias. Jejuou durante vinte e oito dias. A carne desapare­ceu das suas pernas e do rosto. Sonhos ardentes tremelu­ziam nos seus olhos enormes, nos seus dedos secos as unhas tornaram-se compridas e no seu queixo cresceu uma barba áspera e hirsuta. O seu olhar era gelado, quando observava as mulheres; a sua boca enchia-se de desdém, quando atravessava uma cidade cheia de pessoas bem ves­tidas. Via mercadores a negociar, príncipes a caminho das caçadas, pessoas enlutadas chorando os seus mortos, prostitutas que se ofereciam a ele, médicos ocupados com os seus doentes, sacerdotes a determinarem o dia para as semen­teiras, amantes a amarem, mães a embalarem os seus filhos - e tudo isto nada valia a seus olhos, tudo mentia, tudo cheirava mal, tudo cheirava a mentiras, tudo fingia sentido e sorte e beleza, tudo era uma oculta podridão. O mundo tinha um sabor amargo. A vida era sofrimento.

Siddhartha tinha um único objectivo: ficar vazio, vazio de sede, vazio de desejo, vazio de sonho, vazio de alegria e de tristeza. Deixar-se morrer, não ser mais Eu, encon­trar a paz de um coração vazio, descobrir o milagre do pensamento puro, era o seu objectivo. Quando a totali­dade do Eu estiver dominado e morto, quando todos os vícios e inclinações desaparecerem do coração, então des­pertará o mais profundo do Ser, aquilo que já não é o Eu, o grande segredo.

Siddhartha permaneceu em pé, silencioso sob o sol ardente, ardendo em dores, ardendo com sede, e perma­neceu em pé até não sentir mais dor ou sede. Permaneceu silencioso durante o tempo da chuva, a água escorrendo do seu cabelo para os seus ombros enregelados, para as suas ancas e pernas enregeladas, e o penitente permane­ceu de pé até que os ombros e as pernas não sentiram mais o frio, até que se calaram, até que serenaram. Silenciosamente, agachou-se entre fileiras de espinhos, da pele ferida pingava o sangue, as chagas enchiam-se de pus, e Siddhartha continuou impassível, imóvel, até o sangue parar de correr, até o ardor desaparecer.

Siddhartha sentou-se direito e aprendeu a controlar a sua respiração, aprendeu a necessitar de menos ar, aprendeu a esquecer a respiração. Aprendeu, começando com a respi­ração, a acalmar o bater do seu coração, a reduzir os seus batimentos, até estes se tornarem escassos e quase nulos.

Ensinado pelo mais velho dos samanas, Siddhartha pra­ticou a anulação de si mesmo, praticou a meditação, de acordo com as novas regras dos samanas. Uma garça voava por cima do bosque de bambu - e Siddhartha acolhia a garça na sua alma, voava sobre o bosque e sobre os mon­tes, era uma garça, comia peixes, sofria a fome das gar­ças, falava a língua das garças, morria a morte das garças. Um chacal morto jazia na areia da margem e a alma de Siddhartha penetrava na sua carcaça, era um chacal morto, jazia na praia, inchava, fedia, apodrecia, era despeda­çado pelas hienas, era esfolado pelos abutres, tornava-se esqueleto, tornava-se poeira, espalhava-se pelos campos. E a alma de Siddhartha regressava, morria, apodrecia, desfazia-se em pó, experimentava a embriaguez tumul­tuosa deste ciclo, esperava, com renovada sede, como um caçador no seu buraco, a maneira de escapar ao ciclo, o final das origens, o início da eternidade indolor. Matava os seus sentidos, matava as suas recordações, afastava-se do seu Eu sob mil formas diversas, era animal, era cadá­ver, era pedra, era madeira, era água, e acordava de todas as vezes, brilhavam o solou a lua, era novamente Eu, mis­turava-se com o ciclo, sentia sede, vencia a sede, sentia sede de novo.

Siddhartha aprendeu muito com os samanas, aprendeu a percorrer muitos caminhos que o afastavam do Eu. Percorreu o caminho da autonegação através da dor, atra­vés do sofrimento voluntário e da derrota da dor, da fome, da sede, do cansaço. Percorreu o caminho da autonega­ção através da meditação, através do esvaziar do espírito de todas as ideias. Aprendeu a percorrer estes e outros caminhos, mil vezes abandonou o seu Eu, durante horas e dias perseverou na negação do Eu. Mas se esses cami­nhos o afastavam do Eu, no final acabavam igualmente por conduzi-lo de regresso a si mesmo. Embora Siddhartha tenha escapado ao Eu mil vezes, detendo-se no nada, detendo-se num animal, numa pedra, o regresso era ine­vitável, não havia fuga possível à hora em que ele se reen­contrava, sob o brilho do solou sob o brilho da lua, à sombra ou à chuva, e era novamente Eu e Siddhartha, e sentia novamente o sofrimento do ciclo da vida que lhe era imposto.

A seu lado vivia Govinda, a sua sombra, percorrendo os mesmos caminhos, submetendo-se aos mesmos esforços.

Raramente trocavam palavras entre si, senão aquelas que o serviço e os exercícios exigiam. Às vezes atravessavam juntos as aldeias, pedindo alimentos para si e para os seus mestres.

- O que pensas, Govinda - disse Siddhartha numa dessas viagens -, parece-te que progredimos? Alcançámos alguns objectivos?

Govinda respondeu:

- Aprendemos e continuamos a aprender. Tu virás a ser um grande samana, Siddhartha. Aprendeste rapida­mente todos os exercícios, os samanas mais velhos fica­ram muitas vezes surpreendidos contigo. Tornar-te-ás um santo, Siddhartha.

Disse Siddhartha:

- Não sou da mesma opinião, meu amigo. Aquilo que até hoje aprendi com os samanas, Govinda, poderia ter aprendido mais depressa e mais facilmente. Poderia tê-lo aprendido em qualquer taverna do bairro das prostitutas, meu amigo, entre os carregadores e os jogadores de dados.

Disse Govinda:

- Siddhartha brinca comigo. Como poderias ter apren­dido a meditar, a suspender a respiração, a ser insensível à fome e à dor junto desses desgraçados?

E Siddhartha disse baixo, como se falasse sozinho: - O que significa a meditação? O que significa deixar o corpo? O que significa jejuar? O que significa suspender a respiração? É escapar ao Eu, é uma breve fuga ao sofrimento do ser, é um breve alheamento da dor e da falta de sentido da vida. Esta fuga, este breve alheamento, encontra-o o boieiro nos albergues, quando bebe algumas taças de vinho de arroz ou de leite de coco fermentado. Nessa altura já não sente o seu Eu, já não sente o sofrimento da vida, encontra um breve alheamento. Encontra, entorpecido pelas suas taças de vinho de arroz, o mesmo que Siddhartha e Govinda encontram, quando se afastam do seu corpo através de exercícios demorados, quando se detêm na negação do            Eu. É isto, Govinda.

Disse Govinda:

- Tu o dizes, meu amigo, e no entanto sabes que Siddhartha não é um boieiro nem um samana é um bêbedo. Aquele que bebe encontra o alheamento, encontra a fuga e o sossego, mas regressa da sua ilusão e encontra tudo na mesma, não ficou mais sábio, não aumentou o seu entendimento, não subiu um degrau.

E Siddhartha disse, rindo:

- Isso não sei, nunca fui um bebedor. Mas que eu, Siddhartha, em todos os meus exercícios e meditações, apenas consigo um breve alheamento, e que ainda assim continuo tão longe da sabedoria e da salvação como uma criança no ventre da sua mãe, isso sei-o, Govinda, isso sei-o.

E ainda uma outra vez em que Siddhartha deixou a flo­resta com Govinda, para mendigarem na aldeia algum ali­mento para os seus irmãos e mestres, começou a falar e disse:

- Então, Govinda, estamos realmente no caminho certo? Aproximamo-nos do conhecimento? Aproximamo­-nos da salvação? Ou não estaremos a andar em círculos - nós, que pensávamos escapar ao ciclo da vida?

Disse Govinda:

            - Aprendemos muitas coisas, Siddhartha, resta-nos aprender muitas outras coisas. Não andamos em círculos, subimos, o círculo é uma espiral, da qual já subimos vários degraus.

Respondeu Siddhartha:

- Que idade pensas que terá o nosso samana mais velho, o nosso mestre mais venerável?

Disse Govinda:

- O mais velho terá talvez sessenta anos.

E Siddhartha:

            - Atingiu os sessenta anos, mas não alcançou o Nirvana. Vai atingir os setenta e os oitenta e também tu e eu nos tornaremos assim velhos, faremos exercícios, jejuaremos e meditaremos. Mas não alcançaremos o Nirvana, nem ele, nem nós. Acredito, Govinda, que de todos os samanas que existem, talvez nenhum, nem um alcançará o Nirvana. Descobrimos consolações, descobri­mos formas de nos alhearmos, aprendemos habilidades com as quais nos enganamos. O essencial, contudo, o caminho dos caminhos, não o encontramos.

- Quisera eu - disse Govinda - que não pronun­ciasses palavras tão terríveis, Siddhartha! Será possível que entre tantos homens sábios, entre tantos brâmanes, entre tantos samanas severos e veneráveis, entre tantos que se esforçam a procurar no seu íntimo, tantos homens santos, nenhum encontre o caminho dos caminhos?

Siddhartha, contudo, falou com uma voz que continha tanta tristeza como escárnio, com uma voz ainda mais triste e ainda mais cheia de escárnio:

- Em breve, Govinda, o teu amigo deixará o caminho dos samanas, que percorreu durante tanto tempo. Tenho sede, Govinda, e ao longo deste extenso caminho a minha sede não se tornou menor. Sempre ansiei por conhecimento, sempre estive cheio de perguntas. Interroguei os brâmanes, ano após ano, interroguei os Vedas sagrados, ano após ano, interroguei os piedosos samanas, ano após ano. Talvez, Govinda, fosse igualmente bom, fosse igualmente inteli­gente e santo ter interrogado as aves da floresta ou o chimpanzé. Há muito que comecei e ainda não terminei de aprender isto, Govinda: que nada podemos aprender! Acredito que não existe realmente aquela coisa a que chamamos «aprender». Existe, meu amigo, apenas uma sabedoria, que está em toda a parte, que é Atman, que se encontra em mim e em ti e em todos os seres. E começo a acreditar que esta sabedoria não tem pior inimigo do que o desejo de sabedoria, que o desejo de aprender.

Govinda ficou parado no meio do caminho, ergueu as mãos e disse:

- Não assustes o teu amigo com tais palavras, Siddhartha! Na realidade, elas despertaram o medo no meu coração. E pensa, apenas: onde estaria a santidade das ora­ções, onde estaria o aspecto venerável dos brâmanes, a santidade dos samanas, se tu tivesses razão, se nada pudés­semos aprender?! O que seria, Siddhartha, de tudo aquilo que na Terra é santo, valioso, venerável?!

E Govinda murmurou um verso de uma Upanishad:

 

«Aquele cujo puro espírito reflexivo mergulha em Atman,

Inexprimível por palavras é a bem-aventurança do seu coração».

 

Siddhartha, contudo, ficou silencioso. Reflectiu sobre as palavras de Govinda, pensou nelas durante muito tempo.

Sim, pensou ele, erguendo a cabeça, o que resta de tudo o que nos parece sagrado? O que permanece? O que se confirma? E abanou a cabeça.

Certa vez, quando os dois jovens viviam com os sama­nas e partilhavam os seus exercícios havia quase três anos, chegou até eles, de diversas formas e por diversas vias, uma notícia, um rumor, uma lenda: surgira alguém chamado Gotama, o sublime, o Buda, que tinha vencido em si a mágoa do mundo e feito parar a roda da reencarna­ção. Deslocava-se pelo país a ensinar, rodeado de jovens, sem bens, sem lar, sem esposa, usando o manto amarelo de um asceta, mas com uma fronte serena, um santo, e brâmanes e príncipes curvavam-se perante ele e tornavam­-se seus discípulos.

Esta lenda, este rumor, esta história maravilhosa fazia­-se ouvir, surgia aqui e ali, nas cidades os brâmanes dis­cutiam-na, na floresta os samanas, repetidamente o nome de Gotama, o Buda, chegava até aos ouvidos dos jovens, bom e mau, louvado e injuriado.

Tal como quando um país é dominado pela peste e se espalha a notícia que em tal sítio surgiu um homem, um sábio, um erudito, cuja palavra e sopro chegam para curar todos os atingidos pela epidemia, e quando esta notícia atravessa o país e todos falam dela, muitos acre­ditam, muitos duvidam, muitos outros fazem-se ao caminho para irem procurar essa ajuda, assim esta lenda atravessou o país, a lenda perfumada de Gotama, o Buda, o sábio da família dos Sakya. Possuía, segundo os cren­tes, grande sabedoria, recordava as suas vidas anterio­res, alcançara o Nirvana e não retornaria ao ciclo da vida, nunca mais voltaria a mergulhar na torrente turva das formas. Contavam-se muitas coisas fantásticas e incríveis sobre ele, que tinha operado maravilhas, que tinha derrotado o demónio, que tinha falado com os deuses. Os seus inimigos e os cépticos, no entanto, diziam que Gotama era um vão sedutor, que passava os seus dias no prazer, ignorava os sacrifícios, não possuía qualquer doutrina e não conhecia nem exercícios nem a mortificação.

A lenda do Buda era doce, estes relatos cheiravam a fascínio. O mundo estava realmente doente, a vida era difícil de suportar - mas vejam, aqui parecia nascer uma fonte, uma mensagem parecia fazer-se ouvir, de confiança, doce, cheia de promessas nobres. A toda a parte, onde chegava o rumor do Buda, em toda a Índia os jovens prestavam atenção, sentiam uma nostalgia, sentiam esperança, e entre os filhos dos brâmanes das cidades e aldeias todos os peregrinos e estranhos eram bem-vindos, quando traziam notícias dele, o sublime, o Sakyamuni.

A lenda também chegou aos samanas da floresta, a Siddhartha, a Govinda, devagar, gota a gota, cada gota cheia de esperança, cada gota cheia de dúvidas. Falavam pouco sobre o assunto, porque ao mais velho dos sama­nas não agradava esta lenda. Tinha ouvido dizer que aquele pretenso Buda fora um asceta e que vivera na floresta, mas que regressara ao conforto e ao prazer mundano, e não tinha grande opinião desse Gotama.

- Siddhartha - disse um dia Govinda ao seu amigo. - Estive hoje na aldeia e um brâmane convidou-me a entrar em sua casa, e em sua casa estava o filho de um brâmane de Magadha, que viu o Buda com os seus pró­prios olhos e o ouviu a ensinar. Confesso que nesse momento a respiração me pesou no peito e pensei: espero que também eu, também nós, Siddhartha e eu, possa­mos viver o momento em que receberemos os ensina­mentos da boca do Perfeito! Fala, amigo, não iremos também nós ter com ele e ouvir os ensinamentos da boca do Buda?

Siddhartha disse:

- Sempre pensei, Govinda, que ficarias com os sama­ nas, que esse era o teu objectivo, ter sessenta e setenta anos e continuar a praticar a arte e os exercícios que os samanas exibem. Mas vejo que conhecia mal Govinda, que pouco sabia do que se passava no seu coração. E agora queres, meu caro, desbravar um novo caminho e segui-lo, até ao local onde o Buda proclama a sua doutrina?

Disse Govinda:

            - Tu gostas de troçar. Bem podes continuar a troçar, Siddhartha! Não tens também em ti um desejo, uma ânsia de escutares estes ensinamentos? E não me disseste um dia que não continuarias por muito tempo a seguir o caminho dos samanas?

Siddhartha riu à sua maneira; mas o tom da sua voz adquiriu uma sombra de tristeza e uma sombra de escár­nio, ao responder:

- Falaste bem, Govinda, e relembras correctamente. Talvez te lembres também das outras coisas que de mim ouviste, que estou desconfiado e cansado de ensinamen­tos e de aprendizagens, que pouco creio nas palavras que provêm dos mestres. Mas continuo pronto, meu caro, a escutar essa doutrina _ embora acredite de todo o cora­ção que já provámos o seu melhor fruto.

Disse Govinda:

- A tua disposição alegra o meu coração. Mas diz­-me, como seria isso possível? Como poderia a doutrina de Gotama, ainda antes de a recebermos, já nos ter dado            os seus melhores frutos?

Disse Siddhartha:

- Deixa-nos aproveitar este fruto e esperar pelo resto,

Govinda! Mas este fruto, que devemos a Gotama, trata de nos afastar dos samanas! Se ainda tem algo de diferente e de melhor para nos dar, iremos recebê-lo de coração tranquilo.

Nesse mesmo dia Siddhartha deu a conhecer ao mais velho dos samanas a sua decisão de os deixar. Deu-lhe a conhecer com o respeito e a discrição que convêm a jovens e a discípulos. Mas o samana irritou-se por os jovens o quererem deixar e falou-lhes alto e com pala­vras duras.

            Govinda assustou-se e ficou embaraçado, mas Siddhartha aproximou a boca do ouvido de Govinda e sussurrou-lhe:

            - Agora vou mostrar ao velho que aprendi alguma coisa com ele.

Ao mesmo tempo que se colocou perto do samana, com a alma concentrada, prendeu no seu olhar o olhar do velho, encantou-o, deixou-o mudo, deixou-o dominado, a sua von­tade submergiu-o, obrigou-o silenciosamente a fazer o que ele desejava. O ancião emudeceu, os seus olhos ficaram muito abertos, a sua vontade paralisada, os seus braços pendentes, impotente perante o encantamento de Siddhartha. Os pensamentos de Siddhartha venceram os do samana, que teve de fazer o que lhe foi ordenado. Assim, o velho incli­nou-se diversas vezes, fez um gesto de bênção, balbuciou uma oração de viagem. Os jovens responderam agradecidos às vénias, responderam aos votos, agradeceram e partiram. Já a caminho disse Govinda:

            - Siddhartha, tu aprendeste com os samanas mais do que eu supunha. É difícil, é muito difícil, encantar um velho samana. Creio que se tivesses ficado com eles, em breve terias aprendido a caminhar sobre a água.

            - Não ambiciono caminhar sobre a água – disse Siddhartha. - Deixa que os velhos samanas se conten­tem com tais habilidades!

 

GOTAMA

Na cidade de Savathi todas as crianças conheciam o nome do sublime Buda e todas as casas estavam prontas para encherem o prato das esmolas dos silenciosos discí­pulos de Gotama. Perto da cidade ficava o local preferido de Gotama, o bosque de Jetavana, que o rico mercador Anathapindika, um devoto seguidor do Sublime, a ele e aos seus oferecera.

Todas as histórias e respostas conduziram os dois jovens ascetas que procuravam Gotama para este local. E ao che­garem a Savathi foram-lhes oferecidos alimentos na pri­meira casa, a cuja porta pararam em atitude de súplica; tomaram os alimentos e Siddhartha perguntou à mulher que lhe dera os alimentos:

- Gostaríamos, caridosa senhora, de saber onde se encontra o Buda, o Venerável, porque somos dois sama­nas da floresta e viemos para o vermos, o Perfeito, e para recebermos os ensinamentos da sua boca.

Disse a mulher:

- Vieram de facto ter ao sítio certo, samanas da flo­resta. Saibam que em Jetavana, no jardim de Anathapindika, se encontra o Sublime. Lá, peregrinos, poderão passar a noite, porque há lá espaço suficiente para os incontáveis que vieram para escutar os ensinamentos da sua boca.             Govinda alegrou-se com estas palavras e disse, cheio de alegria:

- Então, assim alcançámos o nosso objectivo e chegá­mos ao fim do nosso caminho! Mas diz-nos, mãe dos pere­grinos, conheces o Buda, já o viste com os teus olhos?

            Disse a mulher:

- Vi-o muitas vezes, ao Sublime. Vi-o em muitos dias, quando caminhava pelas ruas, silencioso, no seu manto amarelo, estendendo silenciosamente o seu prato das esmo­las para a porta das casas e recolhendo depois o prato cheio.

Govinda escutava com deleite e queria ainda fazer mui­tas perguntas e obter muitas respostas. Mas Siddhartha pretendia prosseguir. Agradeceram e seguiram e quase não precisaram de perguntar o caminho, pois bastantes pere­grinos e monges da comunidade de Gotama estavam a caminho de Jetavana. E chegaram lá de noite, no meio de tantas pessoas que fazia pensar na confusão de um alber­gue. Os dois samanas, acostumados à vida na floresta, encontraram rapidamente e sem alarido um abrigo onde descansaram até de manhã.

Ao nascer do sol viram com espanto a grande multi­dão de crentes e de curiosos que ali havia pernoitado. Por todos os carreiros do belo bosque caminhavam monges vestidos de amarelo, sentavam-se sob as árvores aqui e acolá, os jardins umbrosos pareciam uma cidade, cheios de pessoas que se agitavam como uma colmeia. A maio­ria dos monges partiram com os seus pratos das esmolas, para obterem na cidade alimentos para o seu almoço, a única refeição do dia. Também o próprio Buda, o ilumi­nado, partia a pedir esmola todas as manhãs.

Siddhartha viu-o e reconheceu-o imediatamente, como se um deus lho tivesse apontado. Viu-o, um homem sim­ples com um hábito amarelo, com o prato das esmolas na mão, calmamente a caminho.

- Olha! - segredou Siddhartha a Govinda. - Este é o Buda.

Govinda olhou com atenção para o monge de hábito amarelo, que em nada parecia distinguir-se de centenas de outros monges. E em breve também Govinda o reconhe­ceu: era este. E seguiram-no e observaram-no.

O Buda seguiu discretamente o seu caminho, mergu­lhado nos seus pensamentos, o seu rosto calmo não era alegre nem triste, parecia rir para si mesmo, baixinho. O Buda caminhava com um riso oculto, calmo, sereno, não muito diferente de uma criança saudável, vestia-se e colocava os seus pés como todos os seus monges, com passos seguros. Mas o seu rosto e o seu passo, o seu olhar calmo e absorto, a sua mão calma e pendente, e ainda cada um dos dedos da sua mão calma e pendente falavam de paz, falavam de perfeição, nada procurava, nada imitava, respirava delicadamente numa serenidade infinita, numa luz infinita, numa paz intocável.

Assim caminhava Gotama em direcção à cidade, para pedir esmola, e os dois samanas reconheceram-no pela perfeição da sua serenidade, pela calma da sua figura, na qual não havia ânsias, desejos, imitação, esforço, apenas luz e paz.

- Hoje receberemos a doutrina da sua boca - disse Govinda.

Siddhartha não respondeu. Não tinha muita curiosidade em relação à doutrina, não acreditava que lhe poderia ensi­nar algo de novo, já tinha, exactamente como Govinda, recebido o conteúdo da doutrina deste Buda, mesmo que apenas em relatos em segunda e terceira mão. Mas olhava atentamente para a pele de Gotama, para os seus ombros, para os seus pés, para a sua mão calma e pendente, e pare­cia-lhe que cada parte dos dedos daquela mão continha um ensinamento, falava, respirava, resplandecia com a verdade. Este homem, este Buda, era verdadeiro até nos gestos dos seus dedos mais pequenos. Este homem era santo. Siddhartha nunca tinha venerado tanto um homem, nunca tinha amado tanto um homem como este.

Os dois seguiram o Buda até à cidade e regressaram em silêncio, porque tinham decidido abster-se de comer nesse dia. Viram Gotama regressar, viram-no tomar a refei­ção no círculo dos seus discípulos - o que ele comeu não satisfaria uma ave - e viram-no retirar-se para a som­bra de uma mangueira.

Mais tarde, quando o calor diminuiu e tudo no acampa­mento ganhou vida e se reuniu, ouviram o Buda a ensinar. Escutaram a sua voz e também ela era perfeita, tinha uma perfeita serenidade, estava cheia de paz. Gotama ensinava a doutrina do sofrimento, da origem do sofrimento, do cami­nho para a anulação do sofrimento. O seu discurso calmo fluía, sereno e claro. A vida era sofrimento, o mundo estava cheio de dor, mas a libertação da dor já fora encontrada: quem seguia o caminho do Buda encontrava a libertação.             O Sublime falou com voz suave mas firme, ensinou os quatro princípios, ensinou o Caminho em oito vias, seguiu pacientemente a forma habitual de ensinar, com exemplos, com repetições, a sua voz pairou clara e serena sobre quem o escutava, como uma luz, como um céu estrelado.

Quando o Buda terminou o seu discurso - era já noite -, vários peregrinos avançaram e pediram para serem aceites na comunidade, aderiram à doutrina. E Gotama recebeu-os, dizendo-lhes:

- Receberam bem a doutrina, a doutrina foi bem pro­clamada. Venham e caminhem na santidade, coloquem um fim à dor.

Então Govinda, o tímido, avançou e disse:

            - Também eu tomo o meu abrigo junto do Sublime e da sua doutrina -, e pediu para ser recebido junto dos outros jovens e foi aceite.

De seguida, quando o Buda se recolheu para o sossego da noite, Govinda dirigiu-se a Siddhartha e falou com fervor:

- Siddhartha, não me compete repreender-te. Ambos escutámos o Sublime, ambos recebemos a sua doutrina. Govinda escutou a doutrina e abrigou-se junto dela. Mas tu, honrado amigo, não queres seguir o caminho da sal­vação? Hesitas, queres ainda esperar?

Siddhartha despertou como de um sono ao ouvir as palavras de Govinda. Olhou muito tempo para o rosto de Govinda. Depois falou baixo, com uma voz sem desdém:

- Govinda, meu amigo, acabas de dar o passo, aca­bas de escolher o caminho. Foste sempre, Govinda, meu amigo, andaste sempre um passo atrás de mim. Muitas vezes pensei: Govinda nunca dará um passo sozinho, sem mim, por impulso da sua alma? Vês, agora tornaste-te um homem e escolheste o teu próprio caminho. Que o possas seguir até ao fim, meu amigo! Que possas encontrar a salvação!

Govinda, que não tinha ainda compreendido comple­tamente, repetiu a sua pergunta com um tom de incredu­lidade:

- Fala, peço-te, querido amigo! Diz-me, como certa­mente o farás, que também tu, meu sábio amigo, irás abrigar-te junto do sublime Buda!

            Siddhartha colocou a sua mão sobre o ombro de

Govinda:

- Não escutaste a minha bênção, Govinda. Eu repito: que tu possas seguir este caminho até ao fim! Que pos­sas encontrar a .salvação!

Govinda compreendeu nesse instante que o seu amigo o tinha deixado e começou a chorar.

- Siddhartha! - exclamou.

Siddhartha falou-lhe com amizade:

            - Não te esqueças, Govinda, que agora pertences aos samanas do Buda! Renunciaste ao teu lar e aos teus pais, renunciaste à tua origem e aos teus bens, renunciaste à tua própria vontade, renunciaste à amizade. Assim o quer a doutrina, assim o quer o Sublime. Tu próprio assim o quiseste. Amanhã, Govinda, deixar-te-ei.

Os amigos passearam ainda durante bastante tempo pelo bosque, estiveram deitados bastante tempo e não con­seguiram dormir. E repetidamente Govinda insistiu com o seu amigo, para que lhe dissesse porque não queria ade­rir à doutrina de Gotama, que erro tinha encontrado nessa doutrina. Mas Siddhartha repeliu-o sempre e disse:

- Dá-te por contente, Govinda! A doutrina do Sublime é muito boa, como poderia eu encontrar erros nela?

De manhã bem cedo um seguidor do Buda, um dos seus monges mais velhos, atravessou o jardim e chamou para junto de si todos aqueles que tinham recentemente aderido à doutrina, para lhes vestir a túnica amarela e os instruir nos primeiros ensinamentos e deveres da sua con­dição. Então Govinda separou-se, abraçou mais uma vez        o amigo da sua juventude e juntou-se ao grupo dos noviços.

Siddhartha, por seu lado, vagueou pensativo pelo bosque. Aí encontrou Gotama, o Sublime, e ao cumprimentá­-lo respeitosamente, vendo o seu olhar cheio de bondade e de serenidade, o jovem reuniu coragem e pediu-lhe auto­rização para falar com ele. Silenciosamente, o Sublime deu-lhe a sua aprovação.

Disse Siddhartha:

- Ontem, ó Sublime, foi-me permitido escutar a tua maravilhosa doutrina. Eu e o meu amigo viemos de longe para escutar essa doutrina. E agora o meu amigo vai ficar com os teus, tomou abrigo junto de ti. Mas eu retomo o meu peregnnar.

- Como preferires - disse delicadamente o Venerável.

- O meu discurso é demasiado temerário - conti­nuou Siddhartha -, mas não queria deixar o Sublime sem partilhar sinceramente com ele os meus pensamentos. Quererá o Venerável ouvir-me ainda um instante?

Silenciosamente, o Buda deu-lhe a sua aprovação.

Disse Siddhartha:

- Uma coisa, ó Venerável, apreciei acima de todas as outras na tua doutrina. Tudo nos teus ensinamentos é per­feitamente claro e demonstrado; como uma cadeia per­feita, ininterrupta, mostras o mundo como uma cadeia eterna, composta de causas e de efeitos. Nunca foi isso visível de forma tão clara, nunca apresentado de forma tão irrefutável; o coração dos brâmanes certamente baterá mais depressa quando, através dos teus ensinamentos, virem o mundo como uma continuidade perfeita, sem falhas, clara como o cristal, não dependente do acaso, não dependenté dos deuses. Se isso é bom ou mau, se a vida é dor ou alegria, são questões que podem continuar em aberto, talvez não sejam importantes - mas a unidade do mundo, a continuidade de todos os acontecimentos, a coe­xistência de todas as coisas grandes e pequenas na mesma torrente, na mesma lei das causas, da mudança e da morte, isso fica claro na tua sublime doutrina, ó Ser Perfeito. Mas então, segundo os teus próprios ensinamentos, esta uni­dade e esta continuidade de todas as coisas são quebra­das num ponto, através de uma pequena falha corre para este mundo da unidade algo de estranho, algo novo, algo que não existia anteriormente e que não pode ser visto ou demonstrado: é a tua doutrina da derrota do mundo, da libertação. Mas com esta pequena falha, com esta pequena fractura, todas as leis eternas e unas do mundo são tam­bém destruídas e abolidas. Perdoa-me por fazer estes reparos.

Gotama ouviu-o silenciosamente, quieto. Com a sua voz bondosa, delicada e clara o Perfeito disse:

- Tu ouviste a doutrina, ó filho de brâmane, e ainda bem que tão profundamente reflectiste sobre ela. Encontraste nela uma falha, um erro. Que possas conti­nuar a reflectir sobre ela. Deixa-me, contudo, avisar-te, a ti que és ávido de saber, acerca do problema das opiniões e das disputas sobre palavras. Nada se encontra nas opi­niões, podem ser belas ou feias, inteligentes ou impru­dentes, qualquer um pode aceitá-las ou refutá-las. Mas a doutrina que de mim ouviste não é uma opinião e o seu objectivo não é explicar o mundo aos que são ávidos de saber. O seu objectivo é outro; o seu objectivo é a liber­tação do sofrimento. É isto que Gotama ensina, nada mais.

- Não fiques zangado comigo, ó Sublime - disse o jovem. - Não te falei nestes termos para procurar uma disputa contigo, uma disputa sobre palavras. Tens de facto razão, pouco se encontra nas opiniões. Mas permite que eu diga ainda isto: nem por um instante duvidei de ti. Nem por um instante duvidei que tu és o Buda, que alcançaste o Objectivo, o mais elevado, aquele que tantos milhares de brâmanes e de filhos de brâmanes perseguem. Encontraste a libertação da morte. Conseguiste-o pela tua própria procura, pelo teu próprio pé, através da reflexão, da meditação, do conhecimento, da revelação. Nada con­seguiste através de doutrinas! E - é isto o que eu penso, ó Sublime - ninguém conseguirá a libertação através de doutrinas! Com ninguém, ó Venerável, conseguirás parti­lhar e dizer o que te aconteceu na hora da tua ilumina­ção! Os ensinamentos do Buda iluminado contêm muitas coisas, ensinam muitas coisas, a viver com honradez e a evitar o mal. Mas uma coisa esses ensinamentos tão cla­ros, tão veneráveis, não contêm: não contêm o segredo daquilo que o Sublime viveu, ele, o único entre centenas de milhares. Foi isto que eu pensei e compreendi ao es­cutar a tua doutrina. Esta é a razão pela qual prossigo a minha peregrinação - não para procurar uma doutrina diferente e melhor, pois sei que tal não existe, mas para abandonar todas as doutrinas e todos os mestres, para alcançar sozinho o meu objectivo ou para morrer. Mas muitas vezes recordarei este dia, ó Sublime, e esta hora, em que os meus olhos viram um santo.

Os olhos do Buda olharam calmamente para o chão, o seu rosto imperscrutável irradiando perfeita serenidade

- Que os teus pensamentos - disse o Venerávellen­tamente - não estejam enganados! Que tu possas alcan­çar o teu objectivo! Mas diz-me: viste os meus samanas, os meus muitos irmãos que aderiram à doutrina? E crês tu, samana distante, crês que seria melhor para todos eles abandonarem a doutrina e regressarem à vida do mundo e dos desejos?

- Tal pensamento nunca me ocorreu - exclamou Siddhartha. - Que todos eles possam permanecer na dou­trina, que todos possam alcançar o objectivo! Não me compete opinar sobre uma outra vida! Somente sobre mim, apenas para mim devo julgar, devo escolher, devo rejei­tar algo! Nós, samanas, procuramos a libertação do Eu, óSublime. Se eu continuasse a ser um dos teus discípulos, ó Venerável, receio que apenas na aparência, apenas fal­samente o meu Eu se aquietaria e se libertaria, mas que na realidade sobreviveria e cresceria, pois eu teria unido ao meu Eu a tua doutrina, a minha fidelidade, o meu amor por ti, a comunidade dos monges!

Com meio sorriso, com uma luminosidade e cordiali­dade não abalada, Gotama fitou o estranho e despediu-o com um gesto quase imperceptível.

- És inteligente, samana - disse o Venerável. - Falas com inteligência, meu amigo. Acautela-te contra o excesso de inteligência!

O Buda afastou-se, e o seu olhar e meio sorriso ficaram para sempre gravados na memória de Siddhartha. «Nunca vi um homem olhar e sorrir, sentar-se e caminhar desta maneira - pensou -, quem me dera poder também olhar e sorrir assim, sentar-me e caminhar assim, tão livre, tão venerável, tão secreto, tão aberto, tão ingénuo e cheio de segredos. Na verdade, só o homem que penetrou nas pro­fundezas de si mesmo consegue olhar e caminhar assim. Mas também eu tentarei penetrar nas profundezas de mim mesmo».

«Vi um homem - pensou Siddhartha -, um único, perante quem tive de baixar os meus olhos. Não voltarei a baixar os meus olhos perante nenhum outro, nunca mais. Nenhuma outra doutrina me seduzirá, uma vez que a dou­trina deste homem não o conseguiu».

«O Buda roubou-me - pensou Siddhartha -, roubou­-me e deu-me ainda mais. Roubou-me o meu amigo, que em mim cria e que agora apenas nele crê, que era a minha sombra e que agora é a sombra de Gotama. Mas deu-me Siddhartha, eu próprio».

 

DESPERTAR

Quando Siddhartha deixou o bosque, onde ficou o Buda, o Perfeito, onde ficou Govinda, sentiu que nesse bosque também a sua vida passada ficava e se separava dele. Seguiu lentamente, reflectindo sobre esta sensação que o encheu por completo. Reflectiu profundamente, como se se deixasse mergulhar até ao fundo dessa sensação, até ao local onde repousam as causas, pois reconhecer causas, assim lhe parecia, é realmente pensar, e somente assim as sensações se transformam em conhecimento e não se perdem, ganham vida e começam a irradiar aquilo que contêm.

Siddhartha reflectia, caminhando lentamente. Compreen­deu que já não era um jovem, mas um homem. Compreen­deu que algo o tinha abandonado, da mesma maneira que a cobra abandona a sua pele velha, que já não estava nele algo que o tinha acompanhado durante toda a sua juven­tude e que lhe tinha pertencido: o desejo de ter mestres e de escutar doutrinas. O último mestre que tinha surgido no seu caminho, também a ele, o maior e mais sábio dos mestres, o mais santo, o Buda, tinha-o deixado, fora obri­gado a separar-se dele, não pudera aceitar os seus ensi­namentos.

Avançou reflectindo, cada vez mais devagar, e per­guntou a si mesmo: «Mas o que era isso que querias apren­der com doutrinas e com mestres e que eles, que tanto te ensinaram, não te podiam ensinar?» E compreendeu: «Era o Eu, cujo sentido e natureza eu queria conhecer. Era o Eu, de que eu queria libertar-me, que eu queria vencer. Mas não fui capaz de o vencer, apenas de o enganar, de fugir dele, esconder-me dele. Na verdade, nada no mundo ocupou tanto os meus pensamentos como este Eu, este enigma, o facto de eu estar vivo, de existir separado e iso­lado dos outros, de ser Siddhartha! E sobre nada no mundo sei tão pouco como sobre mim próprio, sobre Siddhartha!»

O homem pensativo que avançava devagar parou, presa destas ideias, e imediatamente uma outra ideia surgiu delas, uma ideia nova, que o fez exclamar: «O facto de nada saber acerca de mim, de Siddhartha continuar a ser tão estranho e desconhecido de mim mesmo, tem uma causa, uma única: eu tinha medo de mim, estava a fugir de mim! Procurava Atman, procurava Braman, estava disposto a fragmentar o meu Eu para descobrir nas suas profunde­zas desconhecidas o cerne de todas as coisas, Atman, a vida, o divino, o último. Mas, desta maneira, perdi-me de mim mesmo».

Siddhartha abriu os olhos e olhou em redor, um sor­riso iluminou o seu rosto e um profundo sentimento de despertar de um longo sonho percorreu todo o seu corpo. E recomeçou imediatamente a andar, a andar com ligei­reza, como um homem que sabe o que tem a fazer.

«Ah - pensou ele, respirando fundo -, não quero que Siddhartha me volte a escapar! Não quero voltar a iniciar os meus pensamentos e a minha vida com Atman e com o sofrimento do mundo. Não quero voltar a matar-me e a fragmentar-me, para encontrar um segredo escondido por entre os destroços. Não quero aprender mais Yoga- Veda, ou Atharva- Veda, ou os ascetas, ou qualquer outra dou­trina. Quero aprender comigo mesmo, quero ser o meu aluno, quero conhecer-me, conhecer esse segredo chamado Siddhartha».

Olhou em redor, como se visse o mundo pela primeira vez. O mundo era belo, o mundo era colorido, o mundo era estranho e misterioso! Isto era azul, isto era amarelo, isto era verde, corria o céu e o rio, a floresta e a monta­nha erguiam-se, tudo belo, tudo enigmático e mágico, e no seu meio ele, Siddhartha, o Despertado, a caminho de si mesmo. Tudo isto, todo este amarelo e azul, rio e flo­resta, entrava pela primeira vez nos olhos de Siddhartha, já não era a magia de Mara, já não era o véu de Maja, já não era a multiplicidade absurda e acidental do mundo das aparências, desprezível aos olhos dos profundos pen­sadores brâmanes, que rejeitam a multiplicidade e pro­curam a unidade. O azul era azul, o rio era rio, e quando o uno e divino em Siddhartha viviam ocultos no azul e no rio, essa era justamente a forma e o espírito divino de ser aqui amarelo, aqui azul, além céu, além floresta e aqui Siddhartha. O espírito e o ser não estavam algures por detrás das coisas, estavam nelas, em todas elas.

«Como fui cego e tolo!» - pensou o andarilho apres­sado. «Quando alguém quer determinar o sentido de algo que lê, não despreza os sinais e letras chamando-lhes engano, acaso e casca inútil, mas lê, estuda e ama-o, letra por letra. Mas eu, que queria ler o Livro do Mundo e o Livro do meu próprio ser, desprezei as letras e os sinais devido a um sentido preconcebido, chamei engano ao mundo das aparências, chamei aparência casual e inútil aos meus olhos e à minha língua. Não, isso já é passado, eu despertei, na verdade despertei e nasci hoje pela pri­meira vez».

Enquanto pensava estas coisas, Siddhartha estancou novamente, subitamente, como se uma cobra se tivesse atravessado no seu caminho.

Subitamente também isto se tornou claro para ele: ele, que na realidade era como um homem acabado de des­pertar ou de nascer, devia recomeçar a sua vida. Ao dei­xar, nessa mesma manhã, o bosque de Jetavana, o bosque daquele ser sublime, já despertado, já a caminho de si mesmo, era seu objectivo natural regressar ao seu lar para junto de seu pai, depois de anos de ascetismo. Mas só agora, neste momento em que estancou como se uma cobra se tivesse atravessado no seu caminho, havia despertado para esta ideia: «Já não sou o mesmo que era, já não sou asceta, já não sou sacerdote, já não sou brâmane. O que vou eu fazer na casa de meu pai? Estudar? Fazer sacrifí­cios? Meditar? Tudo isso já é passado, tudo isso não está já no meu caminho».

Siddhartha permaneceu de pé; durante um instante, durante um suspiro, o seu coração gelou, sentiu-o gelar no seu peito como um pequeno animal, um pássaro ou uma lebre, ao ver quão sozinho estava. Durante anos não tivera lar e não o sentira. Só agora o sentia. Sempre, mesmo durante a meditação mais distante, fora filho de seu pai, fora brâmane, de alta condição, um erudito. Agora era apenas Siddhartha, o despertado, e nada mais. Respirou fundo, e por um instante sentiu frio e arrepiou-se. Ninguém estava tão sozinho como ele. Não era um nobre que per­tencia à nobreza ou um artesão que pertencia a um grupo de artesãos e entre eles encontrava abrigo, partilhava a sua vida, falava a sua língua. Não era um brâmane, que se contava entre os brâmanes e com eles vivia, não era um asceta que encontrava abrigo na condição dos sama­nas, nem o mais isolado dos eremitas era único e solitá­rio, também ele pertencia a uma condição, que era a sua pátria. Govinda tornara-se monge e milhares de outros monges eram seus irmãos, vestiam-se como ele, tinham as mesmas crenças, falavam a sua língua. Mas ele, Siddhartha, onde pertencia? Que vida poderia partilhar? Que língua poderia falar?

A partir desse instante, em que o mundo em seu redor se desvaneceu, em que ele se erguia solitário como uma estrela no céu, a partir desse momento uma frieza e um desalento cobriu Siddhartha, deixou-o mais Eu do que antes, mais concentrado. Sentiu: este fora o último espasmo do seu despertar, a última convulsão do nascimento. E ime­diatamente retomou o seu caminho, começou a caminhar rapidamente e com impaciência, já não em direcção a casa, já não para junto de seu pai, já não de regresso.

 

KAMALA

Siddhartha aprendeu coisas novas a cada passo do seu caminho, pois o mundo estava transformado e o seu cora­ção estava enfeitiçado. Viu o sol nascer para lá das mon­tanhas da floresta e pôr-se para lá de praias distantes, orladas de palmeiras. Viu à noite as constelações no céu e o crescente da lua, semelhante a um barco navegando no azul. Viu árvores, estrelas, animais, nuvens, arco-Íris, penhascos, erva, flores, ribeiros e rios, o orvalho nos arbus­tos pela manhã, grandes montanhas distantes azuis e bran­cas, aves a cantar e abelhas, o sopro de prata do vento pelos arrozais. Tudo isto, diverso e colorido, estivera sem­pre presente, o sol e a lua brilharam sempre, os rios sem­pre rumorejaram e as abelhas sempre zumbiram, mas anteriormente tudo isto não passava de um véu leve e enganador em frente dos olhos de Siddhartha, olhado com desconfiança, destinado a ser ignorado e negado pelo pen­samento, considerado como não sendo a essência das coi­sas, considerando a essência das coisas muito longe do mundo visível. Mas agora os seus olhos libertos demora­vam-se sobre todas estas coisas, via e reconhecia o mundo visível, procurava um lar nesse mundo, não procurava a essência, não apontava a alvos distantes. O mundo era belo quando visto desta maneira, tão sem desejos, tão sim­ples, tão inocente. A lua e as constelações eram belas, o regato e a sua margem, a floresta e o rochedo, a cabra e o escaravelho dourado, a flor e a borboleta eram belos. Era belo e agradável andar assim pelo mundo, tão ino­cente, tão desperto, tão aberto ao que nos rodeia, tão sem desconfianças. O sol queimava a pele de modo diferente, as sombras da floresta refrescavam de forma diferente, o regato e a cisterna, a abóbora e a banana tinham um sabor diferente. Os dias e noites eram curtos, cada hora afas­tava-se rapidamente como uma vela sobre o mar, sob a vela um navio cheio de tesouros, cheio de alegria. Siddhartha viu uma nuvem de macacos a passar na grande abóbada da floresta, no alto da ramagem, e ouviu a sua canção selvagem. Siddhartha viu um carneiro perseguir uma ovelha e cobri-la. Viu um lúcio caçando o seu jantar por entre os juncos, com cardumes de peixes jovens, bri­lhantes e assustados, fugindo em revoada pelo lago. Os re­moinhos breves provocados pelo impetuoso caçador transmitiam força e paixão.

Tudo isto existira sempre e ele nunca o vira; ele não estivera presente. Agora estava presente, pertencia ali. Através dos seus olhos corriam a luz e a sombra, através do seu coração corriam as estrelas e a lua.

Pelo caminho, Siddhartha recordava-se de tudo o que tinha vivido no jardim de Jetavana, a doutrina que lá escutara, o divino Buda, a despedida de Govinda, o diá­logo com o Sublime. Lembrava-se das palavras, de cada uma das palavras, que tinha dirigido ao Sublime e espan­tava-se por ter dito coisas que naquela altura ele próprio não sabia.

O que tinha dito a Gotama: o seu, do Buda, tesouro e segredo não era a doutrina, mas algo de inex­primível e intransmissível que ele tinha vivido no momento da sua iluminação - era justamente o que ele agora tentava encontrar, o que ele agora começava a viver. Era preciso que fosse ele mesmo a vivê-lo. Há muito que sabia que Atman era o seu próprio Eu, parti­lhando da essência eterna de Braman. Mas nunca tinha realmente descoberto este Eu, porque quisera apanhá-lo com a rede do pensamento. O Eu não era certamente o corpo ou o jogo dos sentidos, mas também não era o pensamento, o entendimento, a sabedoria aprendida, a arte de tirar conclusões e de formular novas ideias a par­tir de pensamentos antigos. Não, este mundo do pensa­mento estava ainda deste lado, e matar o Eu casual dos sentidos, alimentando no entanto o Eu casual dos pen­samentos e da erudição não conduzia a nada. Ambos, os pensamentos e os sentidos, eram coisas bonitas, atrás das quais se esconde o sentido supremo, era preciso escutar ambos, brincar com ambos, não ignorar nenhum deles nem sobrevalorizá-los, escutar em ambos a voz secreta da interioridade. Não queria desejar nada, excepto aquilo que a voz lhe mandasse desejar, em lado algum queria demorar-se, excepto onde a voz o aconselhasse. Porque se sentara Gotama certa vez, naquela hora suprema, debaixo de uma figueira-dos-pagodes, onde veio a encon­trar a iluminação? Porque ouvira uma voz, uma voz vinda do seu coração, que lhe ordenou que descansasse sob essa árvore, e ele não dera preferência a mortificações, sacrifícios, abluções ou preces, a comida ou bebida, ao sono ou a sonhos, ele obedeceu à voz. Por isso, não obe­decer a ordens vindas do exterior

mas apenas à voz, estar pronto para tal, era bom, era necessário, era a única coisa necessária.

De noite, enquanto dormia na cabana de palha de um barqueiro, à beira do rio, Siddhartha teve um sonho: Govinda estava de pé em frente dele, no seu traje ama­relo de asceta. Govinda parecia triste, e foi com voz triste que perguntou: «Porque me deixaste?» Nessa altura ele abraçou Govinda, rodeou-o com os seus braços, e ao beijá­-lo no peito viu que já não era Govinda, mas uma mulher, e que do manto da mulher emergia um seio. Siddhartha bebeu, o leite desse peito era doce e forte, sabia a mulher e a homem, a sol e a floresta, a animal e a flor, a todos os frutos, a todos os prazeres. Embriagava e entorpecia. Quando Siddhartha acordou, o rio pálido cintilava através da porta da cabana e na floresta ressoava, profundo e sonoro, o grito escuro de uma coruja.

Quando o dia começou, Siddhartha pediu ao seu anfi­trião, o barqueiro, que o levasse ao outro lado do rio. O barqueiro levou-o na sua jangada de bambu. A água imensa cintilava na luz da manhã com um brilho aver­melhado.

- É um belo rio - disse ele ao seu companheiro.

            - Sim - disse o barqueiro -, um rio muito belo,

amo-o acima de todas as coisas. Muitas vezes o escutei, muitas vezes olhei para os seus olhos e sempre aprendi com ele. Podemos aprender muito com um rio.

- Agradeço-te, meu benfeitor - disse Siddhartha, ao subir para a outra margem. - Nada tenho para te ofere­cer, amigo, e nada com que te pagar. Sou um apátrida, filho de um brâmane e samana.

- Bem o vi - disse o barqueiro -, e não esperava de ti nenhum pagamento ou oferta. Dar-me-ás o presente numa outra ocasião.

- Acreditas que sim? - perguntou Siddhartha, divertido.

- De certeza. Também isso aprendi com o rio: tudo regressa! Também tu, samana, regressarás. Agora adeus! Que a tua amizade seja o meu pagamento. Recorda-te de mim quando ofereceres sacrifícios aos deuses.

Afastaram-se entre sorrisos. Siddhartha alegrou-se com a amizade e a amabilidade do barqueiro. «Ele é como Govinda - pensou sorrindo -, todos os que encontro no meu caminho são como Govinda. Todos estão agradeci­dos, embora eles próprios tivessem direito a agradeci­mentos. Todos são servis, todos gostariam de ser meus amigos, gostariam de obedecer, pensar pouco. Os homens são crianças».

Perto da hora do almoço chegou a uma aldeia. Em frente das cabanas de argila, na estrada, crianças brincavam com pevides de abóbora e conchas, gritavam e brigavam, mas fugiram com medo do forasteiro. No final da aldeia o caminho conduzia a um regato; à beira do regato estava uma jovem ajoelhada, a lavar roupa. Quando Siddhartha a saudou, ela levantou a cabeça e olhou para ele com um sorriso, de tal modo que ele viu brilhar o branco dos seus olhos. Lançou-lhe uma bênção, como é costume entre os viajantes, e perguntou a que distância estava ainda da grande cidade. Ela ergueu-se e dirigiu-se a ele; a sua boca húmida cintilava no rosto jovem. Trocou com ele algu­mas palavras descontraídas e perguntou-lhe se já tinha comido e se era verdade que os samanas pernoitavam sozi­nhos na floresta e que não podiam ter mulheres com eles. Nesse momento colocou o seu pé esquerdo sobre o pé direito dele e fez o movimento que fazem as mulheres quando querem convidar um homem para aquele tipo de amor a que as escrituras chamam «a subida à árvore». Siddhartha sentiu o seu sangue a aquecer e, recordando nesse momento o seu sonho, inclinou-se um pouco para a mulher e beijou com os lábios a coroa castanha do seu seio. Ao erguer os olhos viu o seu sorriso ansioso e os olhos pequenos implorando. de desejo.

Também Siddhartha sentiu desejo e a agitação do seu sexo mas, porque nunca tinha tocado numa mulher, hesi­tou um momento, embora as suas mãos já estivessem pron­tas para a agarrar. E nesse instante ouviu a sua voz interior, uma voz que dizia não. Então o rosto sorridente da jovem perdeu todo o encanto, ele viu apenas o olhar húmido de uma fêmea ardente. Afagou-lhe delicadamente a face, afas­tou-se da mulher desiludida e desapareceu ligeiro num canavial.

Antes do anoitecer desse mesmo dia chegou a uma grande cidade e sentiu-se contente, pois tinha vontade de ver pessoas. Havia muito que vivia na floresta e a cabana de palha do barqueiro, onde dormira nessa noite, fora o primeiro tecto que em muito tempo teve por cima de si.

À entrada da cidade, junto a um belo bosque vedado, o viajante encontrou um pequeno grupo de serviçais car­regados com cestos. No meio deles, numa liteira orna­mentada e carregada por quatro homens, estava uma mulher, a ama, sentada em almofadas vermelhas, sob um pára-sol colorido. Siddhartha parou à entrada do bosque a obser­var o cortejo, os criados, as aias, os cestos, a observar a liteira e a dama que nela ia. Sob o cabelo negro, penteado para cima, ele viu o seu rosto muito branco, muito deli­cado, muito inteligente, a boca vermelha como um figo maduro, as sobrancelhas cuidadas e desenhadas num arco, os olhos escuros inteligentes e atentos, o pescoço branco emergindo do vestido verde e dourado, as claras mãos tranquilas, longas e estreitas, com largas pulseiras de ouro nos pulsos.

Siddhartha viu quão bela ela era e o seu coração sor­riu. Fez uma vénia profunda quando a liteira se aproxi­mou e ao erguer-se novamente olhou para o amável rosto branco, leu um instante nos olhos inteligentes e muito redondos, respirou um ar que não conhecia. A bela mulher sorriu, por um instante, e desapareceu no bosque, seguida pelos serviçais.

«Assim entro nesta cidade - pensou Siddhartha -, sob sinais auspiciosos». Teve vontade de entrar imediata­mente no bosque mas, reflectindo, apercebeu-se pela pri­meira vez de como os criados e aias o tinham observado, com desdém, com desprezo, com inimizade.

«Sou ainda um samana - pensou -, continuo a ser um asceta e um mendigo. Não posso continuar a sê-lo, não posso entrar assim no bosque». E riu.

Interrogou a próxima pessoa que surgiu na estrada acerca do bosque e do nome daquela mulher, e descobriu que aquele era o bosque de Kamala, a conhecida cortesã, e que para além do bosque tinha uma casa na cidade.

Depois entrou na cidade. Tinha agora um objectivo. Perseguindo o seu objectivo, deixou-se engolir pela

cidade, misturou-se com a multidão nas ruas, parou em alguns lugares, descansou nos degraus de pedra à beira do rio. Ao anoitecer fez amizade com um ajudante de bar­beiro, que vira trabalhar à sombra de uma abóbada, que voltou a encontrar a orar num templo de Vishnu, a quem contou histórias de Vishnu e Lakschmi. Passou a noite junto dos barcos do rio e, de madrugada, antes de chega­rem os primeiros clientes, pediu ao ajudante de barbeiro que lhe cortasse a barba e aparasse o cabelo, que lhe pen­teasse o cabelo e o ungisse com óleos finos. Depois foi banhar-se no rio.

Quando, de tarde, a bela Kamala se dirigiu ao seu bos­que de liteira, Siddhartha estava à entrada, fez uma vénia e recebeu a saudação da cortesã. Depois fez um sinal ao serviçal que fechava o cortejo e pediu-lhe que comuni­casse à sua ama que um jovem brâmane lhe queria falar. O criado voltou um pouco mais tarde, pediu-lhe que o seguisse e conduziu-o em silêncio a um pavilhão, onde Kamala o esperava deitada num canapé.

            - Não estavas ontem lá fora e não me saudaste? ­

            perguntou Kamala.

            - Realmente já ontem te vi e te saudei.

            - Mas ontem não tinhas barba, cabelo comprido e poeira no cabelo?

- Observaste bem, viste tudo. Viste Siddhartha, o filho do brâmane, que deixou a sua terra natal para se tornar samana e que o foi durante três anos. Mas agora abando­nei esse caminho e vim a esta cidade; e a primeira mulher que encontrei, ainda antes de entrar na cidade, foste tu. Foi para dizer-te isto que aqui vim, Kamala! És a primeira mulher com a qual Siddhartha fala sem baixar os olhos. Nunca mais baixarei os meus olhos quando encontrar uma mulher bonita.

            Kamala riu-se, enquanto brincava com o seu leque de penas de pavão. E perguntou:

            - E foi apenas para me dizer isso que Siddhartha me procurou?

- Para te dizer isto e para te agradecer por seres tão bela. E se tal não te desagradar, Kamala, queria pedir-te que fosses minha amiga e minha professora, pois nada sei daquela arte em que tu és mestra.

Kamala riu-se alto.

- Nunca tal me acontecera, meu amigo, um samana sair da floresta, procurar-me e querer aprender comigo! Nunca tal me acontecera, um samana com o cabelo comprido e tanga velha rasgada procurar-me. Há muitos jovens que me procuram, e também filhos de brâmanes, mas vêm bem ves­tidos, com bons sapatos, com o cabelo perfumado e dinheiro nas bolsas. É assim, samana, que os jovens me procuram.

Disse Siddhartha:

- Já começo a aprender contigo. Já ontem aprendi. Já eliminei a minha barba, penteei o cabelo, pus óleo no cabelo. Pouco me falta ainda: boas roupas, bons sapatos, dinheiro na bolsa. Siddhartha já empreendeu tarefas mais difíceis do que tais insignificâncias e sempre foi bem sucedido. Porque não conseguirei o que ontem empreendi: ser teu amigo e aprender contigo as alegrias do amor? Terás em mim um bom aluno, Kamala, já aprendi coisas mais difí­ceis do que aquilo que me deves ensinar. Portanto, Siddhartha não te chega assim como está, com óleo no cabelo mas sem roupas, sem sapatos, sem dinheiro?

Kamala disse, rindo:

- Não, meu caro, ainda não chega. Precisas de rou­pas, roupas bonitas, e de sapatos, sapatos bonitos, e muito dinheiro na bolsa e de presentes para Kamala. Tu sabe­-lo, samana da floresta? Compreendeste agora?

- Compreendi perfeitamente - exclamou Siddhartha. - Como poderia não compreender o que sai de tal boca! A tua boca é como um figo maduro, Kamala. Também a minha boca é vermelha e fresca, há-de servir à tua boca, verás. Mas diz-me, bela Kamala, não tens medo algum do samana da floresta, que veio para aprender o que é o amor?

- Porque deveria ter medo de um samana, um tolo samana da floresta, que veio do meio dos chacais e ainda não sabe o que são as mulheres?

- Ah, o samana é forte e nada teme. Ele podia for­çar-te, bela jovem. Podia roubar-te. Podia magoar-te.

- Não, samana, não tenho medo. Alguma vez um samana ou um brâmane receou que alguém o atacasse e lhe roubasse a sua sabedoria, a sua religiosidade e o seu pensamento? Não, porque essas coisas só a ele lhe per­tencem e ele só as partilha quando quer e com quem quer. Assim é, e também assim é com Kamala e com as ale­grias do amor. A boca de Kamala é bela e vermelha, mas se tentares beijá-la contra a vontade de Kamala não receberás uma gota sequer de toda a doçura que ela contém! Tu és um aluno aplicado, Siddhartha, por isso aprende isto: podemos mendigar amor, comprá-lo, recebê-lo de oferta, encontrá-lo na rua, mas nunca roubá-lo. Imaginaste um caminho errado e seria uma pena se um belo jovem como tu tão mal o compreendesse.

Siddhartha sorriu e inclinou-se.

            - Seria de facto uma pena, Kamala, como tu tens

razão! Seria uma grande pena. Não, a tua boca não per­derá comigo nem uma gota de doçura, nem a minha boca contigo! Assim será: Siddhartha voltará quando tiver aquilo que ainda lhe falta - roupas, sapatos, dinheiro. Mas fala, doce Kamala, podes dar-me ainda um pequeno conselho?

- Um conselho? Porque não? Quem poderia negar um conselho a um pobre samana ignorante, que veio dos chacais da floresta?

- Querida Kamala, aconselha-me: para onde devo ir, para o mais depressa possível encontrar essas três coisas?

- Amigo, muitos gostariam de sabê-lo. Deves fazer aquilo que aprendeste, fazendo com que por isso te dêem dinheiro e roupas e sapatos. Não há outra forma de um pobre ganhar dinheiro. O que sabes fazer?

- Sei pensar. Sei esperar. Sei jejuar.

- Nada mais?

- Nada. Não, também sei fazer poemas. Quererás dar­-me um beijo em troca de um poema?

- Fá-lo-ei, se o teu poema me agradar. Como se chama?

Siddhartha disse, depois de ter reflectido por um momento, estes versos:

 

«No seu bosque umbroso entrou a bela Kamala,

Na entrada do bosque estava o escuro samana.

Este inclinou-se, ao ver a flor do lótus,

E Kamala agradeceu-lhe com um sorriso.

Mais belo, pensou o jovem, do que adorar os deuses, Mais belo é adorar a bela Kamala».

 

            Kamala bateu palmas com força, fazendo soar as pul­seiras de ouro.

            - Os teus versos são belos, escuro samana, e na ver­dade nada perco se te der um beijo em troca deles.

Ela chamou-o com o olhar, ele inclinou o rosto para o dela e encostou a sua boca àquela boca que parecia um figo maduro. Kamala beijou-o longamente e Siddhartha compreendeu, com espanto, o quanto ela lhe ensinava, como era sábia, como o dominava, o repelia e o atraía, e como por trás deste primeiro beijo o esperava uma longa série de beijos experientes, todos diferentes. Ficou parado, respirando profundamente, e nesse momento era como uma criança, espantada com a imensidão de sabedoria e conhecimentos que se revelavam perante os seus olhos.

- Os teus versos são muito belos - exclamou Kamala -, se eu fosse rica, dar-te-ia peças de ouro por eles. Mas terás dificuldade em ganhar com versos todo o dinheiro de que precisas. Porque precisas de muito dinheiro         se queres ser amigo de Kamala.

- Como sabes beijar, Kamala - balbuciou Siddhartha. - Sim, isso sei fazer, por isso não me faltam roupas, sapatos, pulseiras e muitas coisas bonitas. Mas o que será de ti? Não sabes mais do que pensar, jejuar e fazer poemas?

- Conheço também os cânticos dos sacrifícios ­disse Siddhartha -, mas nunca mais os entoarei. Conheço ainda encantamentos, mas nunca mais os direi. Li as escrituras. . .

            - Alto - Kamala interrompeu-o. - Sabes ler? E es­crever?

            - É claro que sei. Há muitas pessoas que o sabemfazer.

- A maior parte não sabe. Também eu não o sei fazer. É muito bom que saibas ler e escrever, muito bom. E tam­bém podes vir a precisar dos encantamentos.

            Nesse momento uma criada entrou a correr e segredou uma mensagem ao ouvido da sua ama.

- Tenho visitas - exclamou Kamala. - Apressa-te e desaparece, Siddhartha, ninguém deve ver-te aqui, tem atenção. Amanhã voltarei a ver-te.

No entanto ordenou à aia que desse um manto branco ao piedoso brâmane. Sem saber como, Siddhartha foi arras­tado pela criada, levado por atalhos até uma casinha no jardim, recebeu um manto, foi conduzido ao matagal e instado a deixar imediatamente o bosque sem ser visto.

Fez de boa vontade o que lhe fora ordenado. Acostumado à floresta, atravessou silenciosamente o bosque e saltou a vedação. Regressou, feliz, à cidade, levando debaixo do braço a vestimenta enrolada. Num albergue onde os via­jantes se alojavam, colocou-se à porta, mendigou silencio­samente a sua refeição, comeu silenciosamente um pedaço de bolo de arroz. Talvez amanhã, pensou, já não precise de pedir comida a ninguém.

Subitamente, o orgulho inflamou-o. Já não era um samana, já não lhe competia pedir esmola. Deu o bolo de arroz a um cão e ficou sem comer.

- A vida que se vive aqui é simples - pensou Siddhartha. - Não tem nenhuma dificuldade. Tudo era difícil, tudo era esforço e por fim desespero quando eu era samana. Agora tudo é fácil, fácil como a lição de beijar que Kamala me dá. Preciso apenas de roupas e de dinheiro, nada mais, estes são pequenos objectivos ao meu alcance, não são suficientes para me tirarem o sono.

Havia muito que averiguara onde era a casa de Kamala na cidade e no dia seguinte apresentou-se lá.

- Tudo corre bem - exclamou ela. - Kamaswami espera-te, é o mercador mais rico desta cidade. Se tu lhe agradares, tomar-te-á ao seu serviço. Sê esperto, escuro samana. Através de outras pessoas, falei-lhe de ti. Torna­-te seu amigo, ele é muito poderoso. Mas não sejas dema­siado modesto! Não quero que sejas criado dele, quero que sejas seu igual, apenas isso me agradará. Kamaswami começa a tornar-se velho e indolente. Se lhe agradares, confiar-te-á muitas coisas.

Siddhartha agradeceu-lhe e sorriu. Como ela se aper­cebeu que ele não tinha comido nada ontem ou hoje, trouxe­-lhe pão e fruta e serviu-o.

- Tiveste sorte - disse ela à despedida -, diversas portas abrem-se para ti. Como aconteceu isso? Tens algum encantamento?

Siddhartha disse:

- Ontem disse-te que sabia pensar, esperar e jejuar,

mas tu pensaste que isso era inútil. É, no entanto, muito útil, como tu verás, Kamala. Verás que os tolos samanas aprendem na floresta muitas coisas belas que tu não conhe­ces. Anteontem eu era ainda um mendigo desgrenhado, mas ontem já beijei Kamala e em breve serei um merca­dor e terei dinheiro e todas as coisas a que tu dás valor.

- Pois sim - admitiu. - Mas como terias passado sem mim? O que seria de ti se Kamala não te tivesse ajudado?

- Querida Kamala - disse Siddhartha, endireitando­-se -, quando te procurei no teu bosque, dei o primeiro passo. Era minha intenção aprender o amor com a mais bela das mulheres. A partir do momento em que formu­lei essa intenção, sabia também que a iria concretizar.

Sabia que tu me ajudarias, a partir do teu primeiro olhar na entrada do bosque que já o sabia.

- E se eu não o quisesse?

            - Tu quiseste. Vê, Kamala: quando atiras uma pedra à água, ela procura o caminho mais rápido para o fundo. Assim é quando Siddhartha tem um objectivo, uma inten­ção. Siddhartha nada faz, espera, pensa, jejua, mas passa pelas coisas do mundo como a pedra passa pela água, sem fazer nada, sem se mexer; ele é atraído e deixa-se cair. O seu objectivo arrasta-o, pois ele não admite na sua alma nada que pudesse interpor-se entre ele e o seu objectivo. Foi isto que Siddhartha aprendeu com os samanas. É a isto que os ingénuos chamam encantamento, pensando que é obra de demónios. Os demónios nada fazem, não exis­tem demónios. Todos podem dominar estes encantamen­tos, todos podem alcançar a sua alma, desde que saibam pensar, esperar e Jejuar.

Kamala ouviu-o até ao fim. Ela amava a voz dele, amava o brilho dos seus olhos.

- Talvez aconteça - disse ela baixinho - como tu dizes, meu amigo. Mas talvez aconteça que Siddhartha é um homem belo, que o seu olhar agrada às mulheres, que por isso a sorte vai ao seu encontro.

Siddhartha despediu-se com um beijo.

- Que assim seja, minha professora. Que o meu olhar te agrade sempre, que a sorte parta sempre de ti para vir ao meu encontro!

 

ENTRE O POVO DE CRIANÇAS

Siddhartha dirigiu-se ao mercador Kamaswami e foi convidado a entrar numa casa rica. Servos conduziram­-no por entre tapetes luxuosos até um aposento, onde o dono da casa o esperava.

Kamaswami apresentou-se. Era um homem rápido e ágil, com o cabelo a tornar-se rapidamente grisalho, olhos inteligentes e atentos, com uma boca ávida. O anfitrião e o seu convidado saudaram-se amistosamente.

- Disseram-me - começou o mercador - que és um brâmane, um homem culto, mas que procuras trabalho junto de um mercador. Passas assim tais dificuldades, brâ­mane, que sejas obrigado a procurar trabalho?

- Não - disse Siddhartha -, não passo dificuldades e nunca as passei. Vim de entre os samanas, com quem vivi muito tempo.

- Se vens de entre os samanas, como poderias não ter passado dificuldades? Não são os samanas completamente desprovidos de bens?

- Não tenho qualquer bem - disse Siddhartha -, se é isso que queres dizer. É certo que sou pobre. Mas sou-o por opção. E porque o sou por opção, não passo dificuldades.

- Mas do que queres viver, se não tens bens alguns? - Nunca, até este momento, tinha pensado nisso, senhor. Há mais de três anos que sou pobre e nunca pensei naquilo        de que quero viver.

- Tens, portanto, vivido dos bens de outras pessoas. - É possível que assim seja. Também o mercador vive

das posses das outras pessoas.

            - Bem dito. Mas o mercador não fica gratuitamente com as suas coisas; dá-lhes os seus artigos em troca.

            - Parece de facto ser assim. Todos tiram, todos dão, assim é a vida.

            - Mas vê: se não tens quaisquer bens, o que darás em troca?

- Cada um dá o que tem. O guerreiro dá a sua força, o mercador dá os seus artigos, o mestre a sua sabedoria, o camponês o arroz, o pescador os peixes.

            - Muito bem. E o que tens tu para dar? O que apren­deste, o que sabes fazer?

- Sei pensar. Sei esperar. Sei jejuar.

- Isso é tudo?

- Penso que é tudo!

- E para que serve isso? O jejuar, por exemplo, para que serve?

- É muito útil, senhor. Quando um homem nada tem para comer, jejuar é a coisa mais inteligente a fazer. Se, por exemplo, Siddhartha não tivesse aprendido a jejuar, teria hoje de aceitar qualquer serviço, em tua casa ou nou­tro lugar, porque a fome a isso o obrigaria. Mas assim Siddhartha pode esperar, não conhece a impaciência, não passa dificuldades, pode enfrentar a fome durante muito tempo e rir-se dela. Por isso, senhor, o jejuar é útil.

- Tens razão, samana. Espera um momento. Kamaswami saiu, voltando depois com um pergami­

nho, que estendeu ao seu convidado, perguntando-lhe: - Podes ler isto?

Siddhartha observou o pergaminho, onde estava escrito um contrato comercial, e começou a ler em voz alta o seu conteúdo.

            - Excelente - disse Kamaswami. - E quererás escre­ver algo nesta folha?

            Deu-lhe uma folha e uma pena; Siddhartha escreveu e devolveu a folha.

            Kamaswami leu: «Escrever é bom, pensar é melhor.

Inteligência é bom, paciência é melhor».

- Sabes escrever optimamente -, elogiou o merca­dor. - Teremos ainda muito que dizer um ao outro. Por hoje, peço-te que sejas meu hóspede e te alojes nesta casa.

Siddhartha agradeceu e aceitou, passando a viver na casa do comerciante. Trouxeram-lhe roupas e sapatos, e um criado preparava-lhe diariamente o banho. Duas vezes

por dia era-lhe servida uma farta refeição, mas Siddhartha apenas comia uma vez por dia, não consumindo carne ou vinho. Kamaswami falou-lhe dos seus negócios, mostrou­-lhe artigos e armazéns, mostrou-lhe as suas contas. Siddhartha viu muitas coisas novas, ouviu muito e falou pouco. E, recordando as palavras de Kamala, nunca se colocou numa posição subalterna em relação ao merca­dor, obrigava-o a tratá-lo como seu igual, até como mais do que seu igual. Kamaswami dedicava-se aos seus negó­cios com cuidado e muitas vezes com paixão, mas Siddhartha encarava tudo aquilo como um jogo, cujas regras ele se esforçava por aprender mas a que o seu cora­ção não se afeiçoava.

Pouco tempo depois de estar em casa de Kamaswami já tomava parte nos negócios do senhor da casa. Mas diaria­mente, à hora que ela lhe indicava, visitava a bela Kamala, com roupas bonitas, com bons sapatos, e em breve lhe levava também presentes. A sua boca vermelha e experiente ensi­nou-lhe muito. A sua mão terna e insinuante ensinou-lhe muito. Ele, que no amor era ainda uma criança, com ten­dência para se atirar cega e sofregamente para o prazer como para um abismo, aprendeu que não se pode receber prazer sem dar prazer e que cada gesto, cada carícia, cada con­tacto, cada olhar, todos os ínfimos recantos do corpo têm o seu segredo, que podem dar a felicidade àquele que o sabe despertar. Ela ensinou-lhe que os amantes não se devem separar, depois do festim do amor, sem se admirarem mutua­mente, sem serem conquistados ou conquistarem, para que nenhum deles sinta tédio ou solidão e para evitar a desa­gradável sensação de terem maltratado ou de terem sido maltratados. Passou horas maravilhosas com a bela e expe­riente artista, tomou-se seu aluno, seu amante, seu amigo. Era Kamala quem dava valor e sentido à sua vida presente, não os negócios de Kamaswami.

O mercador confiou-lhe a escrita de importantes car­tas e contratos e acostumou-se a ouvir o seu conselho a propósito de todos os assuntos importantes. Ele aperce­beu-se que Siddhartha pouco percebia de arroz e de lã, de embarques e de negócios, mas que tinha sorte e que Siddhartha ultrapassava o mercador em calma e sereni­dade, bem como na arte de escutar e conquistar a con­fiança de estranhos.

 

- Este brâmane - disse ele a um amigo - não é um verdadeiro mercador e nunca o será, a sua alma nunca sente paixão pelos negócios. Mas possui o segredo daque­las pessoas que atraem o sucesso; talvez seja uma boa estrela que o acompanha, talvez um encantamento, talvez algo que ele aprendeu com os samanas. Parece estar sem­pre a brincar com os negócios, estes nunca o absorvem completamente, nunca o dominam; ele nunca tem medo     do fracasso e nunca receia os prejuízos.

O amigo aconselhou o comerciante:

- Dá-lhe um terço dos lucros dos negócios que ele resolver em teu nome, mas faz com que tenha a mesma participação nos prejuízos, quando surgirem prejuízos. Assim se tornará mais zeloso.

Kamaswami seguiu o conselho. Mas Siddhartha pouco se preocupava com isso. Se tinha lucros, recebia-os com           indiferença; se tinha prejuízo, ria-se e dizia:

- Bem, isto parece ter corrido mal!

Parecia realmente que os negócios lhe eram indiferen­

tes. Certa vez deslocou-se a uma aldeia, para aí comprar uma grande colheita de arroz. Quando chegou, no entanto, o arroz já tinha sido vendido a outro mercador. Siddhartha, apesar disso, ficou vários dias na aldeia, acolheu os cam­poneses, deu moedas de cobre aos seus filhos, participou nos festejos de um casamento e regressou da viagem muito feliz. Kamaswami repreendeu-o por não ter regressado imediatamente, por ter desperdiçado tempo e dinheiro. Siddhartha respondeu:

- Acaba com a repreensão, querido amigo! Repreensões nunca conseguiram nada. Houve prejuízo, deixa-me então cobrir o prejuízo. Estou muito feliz com esta viagem.

Conheci muitas pessoas, tornei-me amigo de um brâmane, crianças brincaram nos meus joelhos, camponeses mos­traram-me os seus campos, ninguém me tomou por um mercador.

- Tudo isso é muito bonito - exclamou Kamaswami de mau humor -, mas devo dizer-te que tu és, na reali­dade, um mercador! Ou viajaste apenas para teu prazer?

- É claro - riu Siddhartha - que viajei para meu prazer. Para quê, senão para isso? Conheci pessoas e locais, experimentei a amabilidade e a confiança, encontrei a ami­zade. Vês, meu amigo, se eu fosse como Kamaswami teria regressado imediatamente, irado e cheio de pressa, quando a minha compra fracassou, e o tempo e o dinheiro teriam sido realmente desperdiçados. Mas assim tive uns belos dias, aprendi, vivi alegremente, não me prejudiquei nem prejudiquei outras pessoas devido à ira ou à pressa. E se alguma vez lá voltar, talvez para comprar uma próxima colheita, ou seja com que objectivo for, pessoas amigá­veis receber-me-ão com amabilidade e boa disposição e eu darei os parabéns a mim mesmo por não ter mostrado pressa ou mau humor desta vez. Por isso, amigo, fica em paz e não te incomodes com repreensões! Quando chegar o dia em que vejas que Siddhartha te prejudica, terás ape­nas de dizer uma palavra e Siddhartha seguirá o seu cami­nho. Mas até lá deixa que sejamos bons amigos.

Também vãs eram as tentativas de persuadir Siddhartha de que ele comia o pão de Kamaswami. Siddhartha comia o seu próprio pão, ou antes, ambos comiam o pão de outrem, o pão de todos. Siddhartha nunca escutava as preocupações de Kamaswami, e Kamaswami tinha mui­tas preocupações. Se um negócio em curso ameaçava fra­cassar, se um carregamento parecia ter-se perdido, se um devedor parecia não poder pagar, Kamaswami nunca con­seguia persuadir o seu sócio de que serviam para alguma coisa as palavras de preocupação ou de ira, as rugas na testa ou as noites mal dormidas. Quando, certa vez, Kamaswami lhe afirmou que Siddhartha tinha aprendido com ele tudo o que sabia, este responde:

- Não me queiras enganar com tais gracejos! Contigo aprendi quanto custa um cesto cheio de peixes e que juros podemos exigir por dinheiro emprestado. É esta a tua sabe­doria. Mas não aprendi a pensar contigo, meu caro Kamaswami, procura tu antes aprendê-lo comigo.

A sua alma não estava, de facto, no comércio. Os ne­gócios serviam para lhe dar dinheiro para Kamala, e ele ganhava muito mais do que precisava. Para além disso, a participação de Siddhartha e a sua curiosidade dirigiam-se apenas às pessoas, cujos negócios, ofícios, preocupações, divertimentos e insensatez lhe pareciam, antes, tão distantes como a lua. Era-lhe tão fácil falar com todos, viver com todos, aprender com todos, e no entanto tinha a consciência que algo o mantinha afas­tado, e que esse algo era a sua vida de samana. Via os homens a vi verem como crianças ou como animais e, por causa dessa vida, amava-os e desprezava-os ao mesmo tempo. Vi-a o seu esforço, o seu sofrimento, a sua tristeza por causa de coisas que lhe pareciam insig­nificantes, por dinheiro, por pequenos prazeres, por pequenas honrarias. Via-os a repreenderem-se e insul­tarem-se mutuamente, a lamentarem-se por causa de dores que fazem rir um samana e a sofrerem por pri­vações que um samana não sente.

Estava receptivo a tudo o que estas pessoas lhe traziam. Acolhia o comerciante que lhe oferecia um tecido de linho, acolhia o devedor que procurava um empréstimo, acolhia o mendigo que durante uma hora lhe contava a história da sua miséria e que não era tão pobre como qualquer samana. Tratava os ricos mercadores vindos do estran­geiro da mesma maneira que tratava o criado que lhe fazia a barba ou o vendedor de rua que ele permitia que o enga­nasse em algumas moedas quando lhe comprava bananas. Quando Kamaswami se dirigia a ele para se queixar das suas preocupações ou para o censurar por causa de um negócio, escutava-o com curiosidade e boa disposição, espantava-se com ele, procurava compreendê-lo, permi­tia-lhe ter alguma razão mesmo quando parecia não a ter e afastava-se dele para escutar a próxima pessoa que o procurava. E muitos o procuravam, muitos que queriam negociar com ele, muitos que o queriam enganar, muitos que o queriam sondar a propósito de algo, muitos que que­riam a sua compaixão, muitos que queriam escutar os seus conselhos. Dava conselhos, tinha compaixão, oferecia, dei­xava que o enganassem um pouco, e todo este jogo e a paixão com que todas as pessoas o jogavam ocupavam os seus pensamentos, tanto quanto os deuses e Braman os tinham em tempos ocupado.

Por vezes, sentia no fundo do seu peito uma voz quase inaudível, que o admoestava baixinho, que se lamentava baixinho, de tal maneira que ele quase não a ouvia. Então, tomava consciência momentânea da vida estranha que levava, daquelas coisas que não passavam de um jogo, da sua boa disposição e alegria enquanto a verdadeira vida passava ao seu lado sem lhe tocar. Assim como um joga­dor que joga com as suas bolas, ele jogava com os seus negócios, com as pessoas que o rodeavam, observava-as, divertia-se à custa delas; não estava com o seu coração, com a fonte do seu ser. A fonte corria noutro lugar, tão longe dele, corria invisível, não tinha já nada a ver com a sua vida. E por vezes estes pensamentos assustavam-no e ele desejava poder também participar com paixão nos afazeres infantis do quotidiano, participar de todo o cora­ção, vivê-los verdadeiramente e não apenas ficar à mar­gem como um espectador.

Regressava sempre, contudo, para junto da bela Kamala, aprendia a arte do amor, praticava o culto do prazer, onde, mais do que em qualquer outra coisa, o dar e o receber eram uma mesma coisa, conversava com ela, aconselhava-a, era aconselhado. Ela compreendia-o melhor do que até Govinda o havia compreendido, ela sua igual.

Ele disse-lhe certa vez:

            - Tu és como eu, és diferente da maioria das pessoas. Tu és Kamala e não outra, e no fundo de ti há uma sere­nidade e um refúgio a que tu recorres sempre e onde podes ser tu mesma, tal como eu posso. Poucas pessoas o têm e, no entanto, todos o podiam ter.

- Nem todas as pessoas são inteligentes - disse Kamala.

- Não - disse Siddhartha -, não se trata disso. Kamaswami é tão inteligente como eu, mas não possui esse refúgio dentro de si. Há outros que o possuem e que no intelecto são apenas como crianças. A maior parte das pessoas, Kamala, são como uma folha que cai, que flutua ao vento, que hesita e que cai no chão. Mas há outros, poucos, que são como estrelas, que seguem um rumo firme, nenhum vento os afecta, têm dentro de si as suas leis e o seu rumo. Entre os muitos sábios e samanas que eu conheci, encontrei um assim, um Ser Perfeito, a quem nunca pode­rei esquecer. Chama-se Gotama, o Sublime, o arauto da doutrina. Milhares de jovens escutam diariamente a sua doutrina, seguem continuamente os seus preceitos, mas todos eles são como folhas secas que caem, não possuem dentro de si a doutrina e a lei.

Kamala olhou-o, sorrindo.

- Estás outra vez a falar dele - disse ela -, tens

outra vez os pensamentos de um samana.

Siddhartha calou-se e ambos jogaram o jogo do amor, um dos trinta ou quarenta jogos diferentes que Kamala conhecia. O seu corpo era flexível como o corpo de um

jaguar ou o arco de um caçador; quem com ela apren­dia o amor, ficava versado em muitos prazeres e mui­tos segredos. Jogou com Siddhartha durante muito tempo, seduziu-o, repeliu-o, dominou-o, abraçou-o, rejubilou com a sua mestria, até ele jazer vencido e exausto a seu lado.

A cortesã inclinou-se sobre ele, olhou muito tempo para o seu rosto, para os seus olhos cansados.

- És o melhor amante - disse-lhe pensativa – que já conheci. És mais forte do que os outros, mais flexível, mais dócil. Aprendeste bem a minha arte, Siddhartha. Um dia, quando for mais velha, quero ter um filho teu. Mas apesar disso, meu querido, continuas a ser um samana, continuas a não me amar, continuas a não amar ninguém. Não é assim?

- Assim pode ser - disse Siddhartha, cansado. ­Sou como tu. Também tu não amas - como poderias, de outra maneira, praticar o amor como uma arte? Talvez as pessoas como nós não possam amar. O povo de crian­ças pode fazê-lo; é esse o seu segredo.


SANSARA

Siddhartha viveu durante muito tempo a vida do mundo e dos prazeres, mas sem lhes pertencer. Os seus sentidos, mortos durante os duros anos com os samanas, desperta­ram outra vez; experimentou a riqueza, experimentou a volúpia, experimentou o poder, mas todo esse tempo, no seu coração, continuara a ser um samana, conforme Kamala, a sábia, tinha correctamente compreendido. Continuavam a ser as artes de pensar, de esperar e de jejuar que diri­giam a sua vida; as pessoas, o povo de crianças, continua­vam a ser estranhas aos olhos dele, tal como ele era estranho aos olhos delas.

Os anos passaram. Imerso na prosperidade, Siddhartha quase não sentia a sua passagem. Tinha-se tornado rico, tinha já uma casa própria e um grupo de criados, bem como um jardim fora da cidade, perto do rio. As pessoas gostavam dele, procuravam-no quando precisavam de dinheiro ou de um conselho, mas ninguém lhe era pró­ximo, excepto Kamala.

No auge da sua juventude, nos dias que se seguiram ao discurso de Gotama, à separação de Govinda, dias de espera tensa, de orgulhosa solidão sem doutrinas ou mes­tres, de branda prontidão para escutar a voz divina no seu coração, nesses dias sentira-se absolutamente desperto, mas esses dias eram já quase uma recordação, pertenciam ao passado; a fonte sagrada, que em tempos tão perto esti­vera, que em tempos murmurara no seu íntimo, murmu­rava agora longínqua e tímida. Na realidade, conservou durante bastante tempo muitas das coisas que aprendera com os samanas, com Gotama, com o seu pai, o brâmane: vida regrada, prazer em pensar, horas de meditação, secreto conhecimento do Eu, do eterno Eu que não é o corpo ou a consciência. Muitas dessas coisas permaneciam nele, mas algumas delas desapareceram e cobriram-se de poeira. Tal como a roda do oleiro que, quando impulsionada, gira ainda muito tempo e apenas lentamente perde o seu movi­mento, assim na alma de Siddhartha a roda da ascese, a roda do pensamento, a roda da diferença continuou a girar, continuava ainda a girar, mas girava lenta, hesitante, e estava perto de parar. Lentamente, como a humidade que invade o tronco morto de uma árvore, o enche e o faz apodrecer, o mundo e a indolência invadiam a alma de Siddhartha, enchiam lentamente a sua alma, tornavam-na pesada, cansavam-na, adormeciam-na. Os seus sentidos, em contrapartida, tornaram-se mais vivos, aprenderam muitas coisas, experimentaram muitas coisas.

Siddhartha aprendera a fazer negócios, a exercer o seu poder sobre as pessoas, a divertir-se com mulheres, apren­dera a vestir roupas bonitas, a dar ordens aos criados, a banhar-se em águas perfumadas. Aprendera a comer pra­tos delicados e cuidadosamente preparados, incluindo peixe, carne e aves, especiarias e doces, e a beber vinho, que provoca a preguiça e faz esquecer. Aprendera a jogar dados e xadrez, a admirar as bailarinas, a deixar-se trans­portar numa liteira, a dormir numa cama macia. Mas con­tinuava a sentir-se diferente dos outros e acima deles, continuava a observá-los com ironia, com desdém um pouco irónico, exactamente com aquele desdém que um samana sente sempre pelas pessoas mundanas. Quando Kamaswami estava adoentado, quando estava zangado, quando se sentia injuriado, quando era atormentado pelas suas preocupações de comerciante, Siddhartha observa­va-o sempre com ironia. Só lenta e imperceptivelmente, com o passar das estações das colheitas e das estações da chuva, a sua ironia decresceu, a sua superioridade acal­mou-se. Lentamente, por entre a sua riqueza crescente, o próprio Siddhartha adquiriu alguns traços das pessoas vul­gares, algo da sua ingenuidade e da sua ansiedade. E no entanto invejava-as, invejava-as tanto mais quanto mais se parecia com elas. Invejava a única coisa que lhe fal­tava e que elas tinham, a importância que atribuíam às suas vidas, a intensidade das suas alegrias e medos, a angustiada mas doce ventura de sua eterna capacidade para amar. Estas pessoas estavam sempre apaixonadas, por si mesmas, por mulheres, pelos seus filhos, pela honra ou pelo dinheiro, por planos ou por esperanças. Mas fora isto que ele não aprendera com elas, exactamente isto, esta alegria infantil, esta loucura infantil; aprendera com elas apenas as coisas desagradáveis que ele próprio des­prezava. Acontecia cada vez com mais frequência ele, depois de uma noite de convívio, passar a manhã na cama e sentir-se cansado e apático. Tornava-se irritável e impa­ciente, quando Kamaswami o incomodava com as suas queixas. Ria demasiado alto quando perdia aos dados.

O seu rosto era ainda mais inteligente e espiritual do que os outros, mas sorria com pouca frequência e ganhava aqueles traços tão vulgares no rosto dos ricos, os traços da infelicidade, da doença, do desânimo, da preguiça, da insensibilidade. Lentamente, a doença de alma dos ricos dominava-o.

Semelhante a um véu, a um nevoeiro fino, o cansaço caiu sobre Siddhartha, devagar, cada dia um pouco mais espesso, cada mês um pouco mais opaco, cada ano um pouco mais pesado. Assim como uma roupa nova se toma velha e perde as suas belas cores com o tempo, ganha nódoas e vincos, rasga-se a bainha e, aqui e ali, surgem zonas desgastadas, assim a nova vida de Siddhartha, ini­ciada após a sua separação de Govinda, se tinha tornado velha, perdeu com o passar dos anos as cores e o brilho, assim se cobriu de nódoas e de vincos; secretamente, mos­trando aqui e além a sua negra face, a desilusão e a náu­sea esperavam-no. Siddhartha não o notava. Notava apenas que a voz clara e segura do seu íntimo, que em tempos estivera bem desperta e no seu período dourado o condu­ziu, se tornara inaudível.

O mundo tinha-o apanhado, o prazer, a ambição, a indo­lência e, por fim, também o defeito que ele, por impru­dência, sempre mais desprezara e escarnecera: a cobiça. Também a propriedade, o património e a riqueza o tinham, finalmente, apanhado, já não era um jogo e uma futili­dade, tornara-se uma prisão e um peso. Siddhartha foi arrastado para esta desprezível dependência por um cami­nho estranho e ardiloso: o jogo de dados. Desde o momento em que, no seu coração, deixara de ser um samana, Siddhartha começara a jogar com dinheiro e objectos valiosos, com uma fúria e paixão crescentes, quando até aí o fizera descontraidamente, por entre sorrisos, partici­pando apenas num costume do povo de crianças. Era um jogador temível, poucos se arriscavam contra ele, tão ele­vadas e ousadas eram as suas apostas. Entregava-se ao jogo movido pela necessidade no seu coração; dissipar ao jogo aquele dinheiro desprezível dava-lhe uma alegria des­controlada, de nenhuma outra forma poderia ele mostrar, tão clara e ironicamente, o seu desdém pela riqueza, a falsa divindade dos mercadores. Por isso apostava impie­dosamente, odiando-se a si mesmo, escarnecendo de si mesmo, ganhava milhares, deitava fora milhares, apostava dinheiro, apostava jóias, apostava uma casa no campo, voltava a ganhar, voltava a apostar. Enquanto atirava os dados, enquanto se angustiava, sentia medo, um medo ter­rível e sufocante mas que ele amava e que procurava reno­var sempre, aumentar sempre, provocar sempre mais, porque apenas nesse sentimento ele experimentava algo que se assemelhava ao acaso, a uma excitação, a uma ace­leração na sua vida aborrecida, tépida, insípida. E de cada vez que perdia muito dinheiro pensava em novas rique­zas, entregava-se aos negócios com fervor, pressionava ainda mais os seus devedores para que lhe pagassem as suas dívidas, porque queria continuar a jogar, queria con­tinuar a dissipar fortunas, continuar a mostrar o seu des­prezo pela riqueza. Siddhartha perdeu a serenidade com que encarava os prejuízos, perdeu a paciência para men­digos maltrapilhos, perdeu o prazer em oferecer ou empres­tar dinheiro a quem lho pedia. Ele, que apostava dezenas de milhares num dado e que se ria disso, tornou-se cada vez mais duro e mesquinho nos negócios, sonhando noites inteiras com dinheiro! E sempre que despertava deste hor­rível encantamento, sempre que via o seu rosto reflectido no espelho da parede do seu quarto, alterado e mais feio, sempre que a vergonha e a repugnância o dominavam, voltava a esconder-se, escondia-se em mais um jogo de azar, escondia-se na vertigem da luxúria, do vinho, e daí novamente no impulso da acumulação e do ganho. Esgotava-se neste ciclo absurdo, envelhecia, adoecia.

Então, um dia, foi advertido por um sonho. Passara as primeiras horas da noite com Kamala, no seu belo jar­dim dos prazeres. Estavam sentados sob uma árvore, con­versando, e Kamala falava com palavras pensativas, atrás das quais se escondia tristeza e cansaço. Pediu-lhe que lhe falasse de Gotama e não se cansava de ouvir Siddhartha falar de como os seus olhos eram límpidos, a sua boca serena e bela, o seu riso bondoso, o seu andar cheio de paz. Ele foi obrigado a falar-lhe sobre o Sublime durante muito tempo; Kamala suspirou e disse:

- Um dia, talvez em breve, também eu seguirei este Buda. Entregar-lhe-ei o meu jardim dos prazeres e abri­gar-me-ei na sua doutrina.

Mas depois provocou-o e, no jogo do amor, abraçou-o com doloroso fervor, mordeu-o banhada em lágrimas, como se quisesse extrair desse prazer puro e efémero as últimas e doces gotas. Nunca Siddhartha tinha visto, com tão estra­nha clareza, o estreito parentesco que existe entre a luxú­ria e a morte. Depois deitou-se a seu lado, a face de Kamala perto da sua, e sob os seus olhos e perto do canto da boca, clara como nunca até então, leu uma mensagem angus­tiada, uma mensagem escrita com linhas finas, com sul­cos leves, uma mensagem que lhe lembrava o Outono e a idade. O próprio Siddhartha, que ainda não chegara aos cinquenta anos, já tinha descoberto alguns cabelos bran­cos entre os cabelos negros. O cansaço estava escrito no rosto belo de Kamala, o cansaço de percorrer um longo caminho sem um objectivo alegre, o cansaço e o início da velhice e uma angústia dissimulada, ainda não expressa, talvez ainda não consciente: medo da idade, medo do Outono, medo da inevitabilidade da morte. Despediu-se dela com suspiros, a alma cheia de desagrado e de uma secreta angústia.

Siddhartha passou depois a noite em sua casa, com dançarinas e vinho, fingindo superioridade em relação aos seus companheiros, o que já não acontecia, bebeu muito vinho e deitou-se muito tarde, cansado mas exci­tado pelo vinho e pelo desespero. Procurou durante muito tempo o sono, em vão, o coração cheio de uma desdita que ele não acreditava poder ainda suportar, cheio de uma aversão que penetrava nele como o gosto tépido e repug­nante do vinho, da música demasiado doce e monótona, do riso demasiado terno das dançarinas, do aroma dema­siado doce dos seus cabelos e seios. Mas, mais do que tudo, sentia aversão por si mesmo, pelos seus cabelos perfumados, pelo hálito a vinho da sua boca, pelo can­saço flácido e desagradável da sua pele. Assim como alguém que, tendo comido e bebido demasiado, vomita penosamente mas se sente aliviado, também este homem desperto queria, numa torrente monstruosa, libertar-se daqueles prazeres, daqueles hábitos, daquela vida sem qualquer sentido e da sua própria vida. Só ao romper do dia adormeceu, quando despertavam os primeiros ven­dedores na rua em frente da sua casa citadina; meio entor­pecido, teve durante alguns momentos a hipótese de dor­mitar. Durante esses momentos teve um sonho.

Kamala tinha uma pequena ave canora, de uma espé­cie rara, dentro de uma gaiola dourada. Ele sonhou com essa ave. Sonhou que a ave, que até então cantava todas as manhãs, ficara silenciosa. Ao aperceber-se disso, diri­giu-se à gaiola e olhou para dentro dela. A ave estava morta, caída no chão. Retirou-a da gaiola, sentiu o seu peso na mão por um momento e depois deitou-a para a rua; no mesmo instante sentiu-se terrivelmente assustado e o coração doeu-lhe, como se, juntamente com aquela ave morta, tivesse deitado fora tudo o que era valioso e bom dentro de si.

Acordando sobressaltado deste sonho, sentiu-se cer­cado por uma profunda tristeza. Sentia que tinha desper­diçado inutilmente a sua vida; não lhe restava nada de vivo, nada que tivesse valor ou que valesse a pena con­servar. Estava sozinho e vazio, como um náufrago na praia.

Siddhartha dirigiu-se, melancólico, para um jardim que lhe pertencia, fechou o portão, sentou-se à sombra de uma mangueira, sentia a morte no coração e o horror no peito, sentou-se e sentiu-se morrer, sentiu-se definhar, sentiu o fim aproximar-se. Gradualmente, recompôs-se e percorreu em espírito toda a sua vida, desde os pri­meiros dias de que conseguia recordar-se. Quando havia ele sentido alegria, um enlevo verdadeiro? Sim, sentira-o muitas vezes. Na sua meninice, agradara-lhe conquistar os louvores dos brâmanes quando se destacara dos rapa­zes da sua idade, quando recitava os versos sagrados, quando argumentava com os sábios, quando ajudava nos sacrifícios. Então, sentira no seu coração: «Está à tua frente um caminho, para o qual estás destinado; os deu­ses esperam por ti». E outra vez na sua juventude, quando o seu objectivo cada vez mais elevado o destacava da multidão que procurava o mesmo que ele, quando lutava dolorosamente pelo sentido de Braman, quando cada conhecimento conquistado apenas despertava nele uma sede renovada, também nessa altura, no meio da sede, no meio das dores, sentira o mesmo: «Continua! Continua! É o teu destino!» Escutara esta voz quando deixou o seu lar e escolheu a vida dos samanas, e novamente quando deixou os samanas e se dirigiu para junto do Perfeito, a quem voltou a trocar pela incerteza. Há quanto tempo que não escutava esta voz, há quanto tempo que não alcançava nada de elevado, quão simples e monótono fora o seu caminho, tantos anos sem objectivos eleva­dos, sem sede, sem exaltação, contente com pequenos prazeres e, no entanto, nunca se sentindo satisfeito! Durante todos esses anos esforçara-se e ansiara, mesmo sem o saber, por se tornar um homem como os outros, como aquelas crianças, e por isso a sua vida fora muito mais desgraçada e pobre do que as deles, porque os objec­tivos e os problemas deles não eram os seus; este mundo de pessoas como Kamaswami era para ele apenas um jogo, uma dança a que se assiste, uma comédia. Apenas Kamala lhe fora querida, apenas ela tivera valor para ele - mas tinha-o ainda? Precisariam ainda um do outro? Não estariam a jogar um jogo sem fim? Seria necessá­rio viver para tal? Não, não era necessário! Este jogo chamava-se Sansara, um jogo para crianças, talvez um jogo agradável de ser jogado, uma vez, duas vezes, dez vezes - mas para todo o sempre?

Nesse momento Siddhartha soube que o jogo tinha aca­bado, que não podia continuar a jogá-lo. Um arrepio per­correu-lhe o corpo; no seu íntimo, ele sentia-o, algo tinha morrido.

Durante todo esse dia permaneceu sentado debaixo da mangueira, pensando no seu pai, pensando em Govinda, pensando em Gotama. Tivera de deixar estes, para vir a tornar-se um Kamaswami? Continuava sentado quando a noite caiu. Quando, ao erguer os olhos, viu as estrelas pen­sou: «Aqui estou eu, sentado debaixo da minha mangueira, no meu jardim». Riu um pouco - seria necessário, esta­ria correcto, não seria um jogo insensato, o facto de ele possuir uma mangueira ou um jardim?

Também isso terminou, também isso morreu nele. Ergueu-se, despediu-se da mangueira e do jardim. Porque tinha passado o dia inteiro sem comer, sentiu uma fome intensa e pensou na sua casa na cidade, nos seus apo­sentos e na sua cama, na mesa com os alimentos. Sorriu, cansado, sacudiu o corpo e despediu-se de todas essas coisas.

Nessa mesma noite deixou o jardim, deixou a cidade e nunca mais voltou. Kamaswami procurou-o durante muito tempo, receando-o prisioneiro de ladrões. Kamala não o procurou. Quando soube que Siddhartha tinha desaparecido não se surpreendeu. Não o esperara sem­pre? Não era ele um samana, um vagabundo, um pere­grino? E tinha-o sentido, mais do que nunca, na última vez que estiveram juntos; alegrava-se, no meio da sua dor, por terem estado tão unidos nessa última vez, por se ter sentido tão completamente possuída e dominada por ele.

 

Quando recebeu as primeiras notícias do desapareci­mento de Siddhartha foi à janela, onde, dentro de uma gaiola dourada, tinha uma ave canora de uma espécie rara. Abriu a porta da gaiola, tirou a ave e deixou-a voar. Observou-a durante muito tempo. A partir desse dia não recebeu mais visitantes e manteve a sua casa fechada. Passado pouco tempo, contudo, apercebeu-se que depois do seu último encontro com Siddhartha ficara grávida.


À BEIRA DO RIO

Siddhartha passeou pela floresta, já longe da cidade, sabendo apenas que nunca poderia regressar, que a vida que ele levara durante tantos anos terminara, esgotara-se até à náusea. A ave canora com que ele sonhara estava morta. A ave estava morta no seu coração. Estava pro­fundamente envolvido no Sansara, absorvia a aversão e a morte de todos os lados, assim como uma esponja absorve água até estar cheia. Estava cheio de tédio, cheio de tris­teza, cheio de morte, nada restava no mundo que o pudesse seduzir, alegrar, consolar.

não ansiava conhecer-se, ansiava pela paz, pela morte. Venha um raio para o fulminar! Venha um tigre para o devorar! Quisera que existisse um vinho, um veneno que o adormecesse, que lhe trouxesse o esquecimento e o sono e não mais o deixasse despertar! Haveria alguma imundí­cie com que não se tivesse conspurcado, um pecado ou uma loucura que não tivesse cometido, alguma doença da alma que não tivesse infligido a si mesmo? Seria ainda possível viver? Seria possível continuar a respirar, a sen­tir fome, a comer, a dormir, a deitar-se junto de uma mulher? Este ciclo não estaria já, para ele, esgotado e terminado?

Siddhartha chegou ao grande rio da floresta, o mesmo rio que um dia, quando ainda era um jovem, um barqueiro o ajudara a atravessar, vindo da cidade de Gotama. Parou junto à margem do rio e ficou de pé, hesitante. O cansaço e a fome tinham-no enfraquecido; e para quê continuar, em que direcção, com que objectivo? Não, já não tinha objectivos, restava-lhe apenas o profundo e doloroso desejo de deitar fora este sonho desordenado, de vomitar esse vinho insípido, de pôr fim a esta vida miserável e infame.

Havia um coqueiro na margem, debruçado sobre o rio. Siddhartha encostou-se ao seu tronco, cingiu o tronco com o braço e olhou na direcção da água esverdeada que cor­ria junto dele, olhou e sentiu-se invadido pelo desejo de desistir e de se perder nas águas do rio. O horrível vazio da água reflectia o terrível vazio da sua alma. Sim, estava perto do fim. Nada mais lhe restava, senão apagar-se, senão destruir a obra fracassada que fora a sua vida, deitá-la fora, desprezado pelos deuses. Essa era a grande liberta­ção, pela qual ele ansiava: a morte, a destruição da forma que ele odiava! Que os peixes devorem este cão chamado Siddhartha, este louco, este corpo corrupto e apodrecido, esta alma frouxa e profanada! Que os peixes e os croco­dilos o devorem, que os demónios o despedacem!

Olhou para a água com o rosto desfigurado, viu o seu reflexo e cuspiu-lhe. Profundamente cansado, largou a árvore e virou-se um pouco, para poder mergulhar e final­mente desaparecer. Inclinou-se, de olhos fechados, em direcção à morte.

Então ouviu, vindo de regiões distantes da sua alma, do passado da sua vida cansada, um som. Era uma pala­vra, uma sílaba que ele próprio murmurara, inconsciente­mente, a antiga palavra que iniciava e terminava todas as orações bramânicas, o «Om» sagrado, que tanto podia sig­nificar «Completo» como «Perfeito». Subitamente, no momento em que o som «Om» chegou ao ouvido de Siddhartha, o seu espírito entorpecido despertou e com­preendeu a loucura daquilo que se preparava para fazer.

Siddhartha ficou profundamente horrorizado. Tal era a sua condição, estava tão perdido, tão enganado e tão aban­donado por toda a sabedoria, que procurara a morte, que este desejo, este desejo infantil, pudera crescer nele: encon­trar a paz, libertando-se do seu corpo! O que o sofrimento dos últimos tempos não conseguira, toda a dissipação, todo o desespero, aconteceu no instante em que o Om soou na sua consciência: Siddhartha reconheceu toda a desgraça e toda a sua loucura.

- Om! - disse para si mesmo. - Om! - E tomou consciência de Braman, tomou consciência da indestruti­bilidade da vida, tomou consciência de tudo o que era divino, de tudo o que tinha esquecido.

Isto, no entanto, foi apenas um instante, um lampejo. Siddhartha deixou-se cair junto ao coqueiro, derrubado pela fadiga; murmurando o Om, encostou a cabeça às raí­zes da árvore e adormeceu profundamente.

Dormiu um sono profundo e sem sonhos, como havia já muito tempo que não conseguia dormir. Quando acor­dou, depois de várias horas, parecia-lhe que tinham pas­sado dez anos, ouvia o murmúrio suave da água, não sabia onde estava e quem o trouxera para aquele lugar; abriu os olhos, surpreendeu-se ao ver árvores e o céu por cima de si e lembrou-se onde estava e como ali chegara. Mas dei­xou-se ficar muito tempo e o passado parecia-lhe coberto por um véu, infinitamente distante, infinitamente longe de si, infinitamente insignificante. Sabia apenas que aban­donara a sua vida anterior (vida que, nos primeiros momen­tos depois de retomar a consciência, lhe parecera uma encarnação remota, como uma vida anterior do seu Eu presente), sabia que, miserável e enojado, quisera acabar com a sua vida anterior, mas que se tinha recomposto à beira do rio, debaixo de um coqueiro, com a palavra sagrada Om nos lábios, e que adormecera; agora despertara e olhava o mundo como um homem novo. Repetiu baixinho a pala­vra Om, com a qual adormecera, e pareceu-lhe que o seu longo sono fora apenas uma repetição interminável do Om, dizendo-o, pensado nele, uma total imersão e fusão com o Om, com o inominável, com a perfeição.

Fora um sono maravilhoso! Nunca um sono o refres­cara tanto, o renovara tanto, o rejuvenescera tanto! Teria talvez morri do, desaparecido e renascido com uma nova aparência? Mas não, ele conhecia-se, conhecia a sua mão e os seus pés, conhecia o lugar onde se encontrava, conhe­cia o Eu dentro do seu peito, este Siddhartha, decidido e único, mas este Siddhartha tinha-se, entretanto, transfor­mado, renovado, estava incrivelmente acordado, desperto, feliz e curioso.

Siddhartha ergueu-se e viu uma pessoa à sua frente, um estranho, um monge com um manto amarelo e a cabeça rapada, sentado com ar pensativo. Olhou para o homem, que não tinha cabelo ou barba, e em breve reconheceu nesse monge Govinda, o amigo da sua juventude, Govinda, que se tinha juntado ao sublime Buda. Também Govinda estava diferente, mas o seu rosto mantinha os mesmos tra­ços, que falavam de fervor, de confiança, de busca, de receio. Mas quando Govinda, sentindo o seu olhar, abriu os olhos e o viu, Siddhartha viu que este não o reconhe­cera. Govinda alegrou-se por Siddhartha estar já acordado, era evidente que estivera muito tempo ali sentado à espera que despertasse, embora não o conhecesse.

- Estive a dormir - disse Siddhartha. - Como che­gaste aqui?

- Estiveste a dormir - respondeu Govinda. - Não é bom dormir num tal lugar, onde muitas vezes há ser­pentes e por onde os animais da floresta caminham. Eu, senhor, sou um dos discípulos do sublime Gotama, o Buda, o Sakyamuni, e seguia por este caminho com um grupo dos meus irmãos quando te vi deitado, a dormir num local onde é perigoso dormir. Tentei, por isso, acordar-te, mas vi que o teu sono era demasiado profundo; afastei-me dos meus e sentei-me junto a ti. E depois, ao que parece, tam­bém eu adormeci, eu que queria vigiar o teu sono. Cumpri mal o meu dever, o cansaço subjugou-me. Mas agora, que já estás acordado, deixa-me ir, para que me possa juntar aos meus irmãos.

- Agradeço-te, samana, por teres protegido o meu sono - disse Siddhartha. - Os discípulos do Sublime são muito bondosos. Agora podes ir.

- Vou-me embora, senhor. Espero que fiques bem. - Agradeço-te, samana.

Govinda saudou-o com um gesto e disse:

- Adeus.

- Adeus, Govinda - disse Siddhartha.

O monge estancou.

- Perdoa-me, mas como sabes o meu nome? Siddhartha riu.

- Conheço-te, Govinda, da casa de teu pai e da escola dos brâmanes, dos sacrifícios e da nossa ida para junto dos samanas, e daquela hora no bosque de Jetavana, em que tu tomaste abrigo junto do Sublime.

- Tu és Siddhartha! - exclamou Govinda bem alto. ­Reconheço-te agora, e não compreendo como não te reco­nheci imediatamente. Sê bem-vindo, Siddhartha, grande é a minha alegria por voltar a ver-te.

- Também eu me alegro por ver-te novamente. Foste o guardião do meu sono e novamente te agradeço por isso, embora não tivesse necessidade de um guardião. Para onde vais, amigo?

- Para lado nenhum. Nós, monges, estamos sempre em marcha, desde que não estejamos na estação das chu­vas, mudamos sempre de um lugar para outro, vivemos de acordo com as regras, espalhamos a doutrina, pedimos esmola, mudamos outra vez. Mas tu, Siddhartha, para onde vais?

Disse Siddhartha:

- Também eu estou na mesma situação que tu, meu amigo. Não vou para lado nenhum. Estou apenas a cami­nho. Sou um peregrino.

Govinda disse:

- Dizes que és um peregrino e eu acredito em ti. Mas

desculpa-me, Siddhartha, mas não pareces um peregrino. Usas as roupas dos ricos, calças os sapatos de um nobre e o teu cabelo, que cheira a água perfumada, não é o cabelo de um peregrino, não é o cabelo de um samana.

- É verdade, meu caro, viste bem, o teu olho apurado vê tudo. Mas eu não te disse que era um samana. Eu disse: sou um peregrino. E assim é: sou um peregrino.

- És um peregrino - disse Govinda. - Mas poucos peregrinos usam tais roupas, poucos calçam tais sapatos, poucos têm tal cabelo. Nunca encontrei um tal peregrino, embora seja peregrino há muitos anos.

- Acredito, Govinda. Mas agora, hoje, encontraste um tal peregrino, com estes sapatos, com estas vestes. Lembra-te, meu caro: o mundo das formas é efémero, as nossas vestes são efémeras, muito efémeras, assim como o aspecto do nosso cabelo, até mesmo o nosso cabelo e o nosso corpo. Uso as roupas de um homem rico, viste-o. bem. Uso-as porque fui um homem rico; tenho o cabelo como as pessoas mundanas e lascivas porque fui uma     delas.

- E agora, Siddhartha, o que és agora?

- Não sei, sei tão pouco como tu. Estou a caminho. Fui um homem rico e agora já não sou; e aquilo que serei

            amanhã, não sei.

- Perdeste a tua riqueza?

- Perdi-a, ou ela perdeu-me a mim. Extraviou-se.

A roda das formas gira velozmente, Govinda. Onde está o brâmane Siddhartha? Onde está o samana Siddhartha? Onde está o rico Siddhartha? O que é efémero muda depressa, Govinda, tu sabe-lo.

Govinda olhou muito tempo para o amigo da sua juven­tude, os olhos cheios de dúvidas. Depois saudou-o, como se faz a um nobre, e seguiu o seu caminho.

Siddhartha observou-o com um sorriso; ainda o amava, amava a sua lealdade, os seus receios. E como poderia ele, nesse momento, nessa hora maravilhosa depois do seu excelente sono, dominado pelo Om, não amar qualquer pessoa ou qualquer coisa! Era justamente esse o encantamento que o atingira durante o sono, graças ao Om, o facto de amar tudo, de estar cheio de um grande amor por tudo o que via. E fora justamente essa a sua anterior doença, via-o agora, o facto de não conseguir amar nada nem ninguém.

Sorrindo, Siddhartha acompanhou com o olhar o monge que se afastava. O sono renovara as suas forças mas a fome ainda o afectava, porque havia dois dias que não comia e há muito que deixara de ser insensível à fome. Com mágoa, mas também com um sorriso, pensou nesses tempos. Nessa altura, lembrava-se bem, gabara-se perante Kamala de conhecer três artes nobres e inultrapassáveis: jejuar - esperar - pensar. Esta era a sua riqueza, o seu poder e a sua força, o seu bordão seguro; aprendera estas três artes nos anos dedicados e esforçados da sua juven­tude, nada mais. E agora tinha-as abandonado, já nenhuma delas lhe pertencia, o jejuar, o esperar ou o pensar. E tro­cara-as pelo maior infortúnio, pelo mais efémero, pelos prazeres sensuais, pelo conforto, pela riqueza! Que estra­nhas coisas lhe tinham sucedido. E agora, segundo lhe parecia, tornara-se realmente um membro do povo de cnanças.

Siddhartha reflectiu sobre a sua situação. Pensar custou­-lhe bastante, no fundo não sentia prazer nisso, mas obri­gou-se a fazê-lo.

Agora, pensou, que todas estas coisas efémeras me esca­param, aqui estou eu de novo sob o sol como quando era criança, nada me pertence, nada conheço, nada sei fazer, nada aprendi. É assombroso! Agora, que já não sou um jovem, que os meus cabelos começam a ficar grisalhos, que as forças me abandonam, agora recomeço tudo de novo, como se fora uma criança! Riu novamente. Sim, estranho era o seu destino! Fazia-o recuar, e agora encon­trava-se outra vez vazio e nu e ignorante no mundo. Mas não sentia mágoa por causa disso, não, sentia apenas um forte impulso para rir de si mesmo, para rir deste mundo estranho e louco.

- Estou a recuar! - disse para si mesmo, rindo, e ao dizê-lo o seu olhar caiu sobre o rio, e também o rio recuava, corria continuamente para trás, cantando alegremente. Sentiu-se contente e sorriu ao rio, com amizade. Não fora este o rio em que se quisera afogar, noutros tempos, há cem anos, ou teria apenas sonhado?

A minha vida foi realmente assombrosa, pensou, tomou caminhos assombrosos. Quando criança apenas me preo­cupei com deuses e sacrifícios. Quando jovem apenas me preocupei com a ascese, com o pensar e a meditação, pro­curava Braman, adorava a eternidade de Atman. Quando jovem adulto voltei-me para a penitência, vivi na floresta, passei calor e frio, aprendi a passar fome, ensinei o meu corpo a morrer. Foi então que conheci a maravilhosa dou­trina do Buda, senti o conhecimento da unidade do mundo correr dentro de mim como o meu próprio sangue. Mas também do Buda e da grande sabedoria tive de me afas­tar. Fui aprender com Kamala o prazer do amor, aprendi com Kamaswami os negócios, acumulei dinheiro, dissi­pei dinheiro, aprendi a amar a boa comida, aprendi a agra­dar aos meus sentidos. Foram precisos muitos anos para perder o espírito, para esquecer como se pensa, para esque­cer a unidade. Não será assim, não me terei transformado, através de muitos atalhos, de homem em criança, de pen­sador em membro do povo de crianças? E no entanto este caminho foi muito bom, e no entanto a ave que habita no meu peito não morreu. Mas que caminho foi este! Fui obrigado a cometer tantos erros, tantos pecados, tantas loucuras, a enfrentar tanta miséria e desilusão e sofrimento, para voltar a ser uma criança e poder recomeçar. Mas foi o caminho certo, o meu coração concorda, os meus olhos sorriem-lhe. Tive de sobreviver ao desespero, tive de des­cer ao pensamento mais insensato, à ideia de suicídio, para poder experimentar a misericórdia, para aceitar novamente o Om, para poder voltar a dormir bem e a acordar bem. Tive de ser um louco para redescobrir Atman em mim. Tive de pecar para poder voltar a viver. Para onde me con­duzirá ainda o meu caminho? É um caminho louco, anda às curvas, anda talvez em círculos. Que vá por onde qui­ser, eu segui-lo-ei.

Sentia no seu peito o maravilhoso palpitar da alegria.           De onde, perguntou ao seu coração, te vem esta feli­cidade? Virá deste bom e longo sono que tanto me ali­viou? Ou da palavra que eu pronunciei, Om? Ou de eu estar enfim vazio, da minha fuga ter terminado, de eu ser novamente livre, como uma criança debaixo do céu? Ah, como é bela esta fuga, esta libertação! Como o ar deste lugar é puro e belo, como é bom respirar! Lá, de onde eu fugi, tudo cheirava a unguentos, a especiarias, a vinho, a excesso, a preguiça. Como eu odiava este mundo dos ricos, de glutões, de jogadores! Como eu me odiava, por ter per­manecido tanto tempo nesse mundo terrível! Quanto eu me odiei, quanto roubei a mim mesmo, quanto me enve­nenei, atormentei, quão velho e mau me tornei! Não, nunca voltarei a imaginar, como fiz tantas vezes no passado, que Siddhartha é um sábio! Mas isto fiz bem, algo que me agrada e que devo elogiar: acabei com aquele ódio con­tra mim mesmo, acabei com aquela vida insensata e vazia! Saúdo-te, Siddhartha, após tantos anos de loucura tiveste mais uma vez uma boa ideia, fizeste algo, ouviste cantar a ave que se abriga no teu peito e seguiste-a!

Assim Siddhartha se congratulou, assim se alegrou con­sigo mesmo, ouviu com curiosidade o queixume de fome do seu estômago. Sentia que, nos últimos dias, saboreara intensamente e expulsara de si muita dor e infortúnio, devorara-os até ao desespero e à morte. Assim estava bem. Poderia ter permanecido muito mais tempo junto de Kamaswami, ganhando dinheiro, dissipando dinheiro, engordando o corpo e deixando a alma ter sede, poderia ter continuado a viver nesse delicado inferno almofadado, se não tivesse chegado aquele momento de completa afli­ção e desespero, aquele instante extremo em que se encon­trava à beira da água, disposto a destruir-se. Por ter sentido esse desespero, essa profunda aversão, e não se ter dei­xado abater, porque a ave, aquela fonte e. voz feliz, ainda estava viva dentro de si, por tudo isso é que sentia esta alegria, por isso sorria, por isso o seu rosto brilhava sob os cabelos brancos.

«É bom termos a experiência de tudo o que queremos saber» - pensou. «Aprendi, quando criança, que os pra­zeres do mundo e a riqueza não são bons. Há muito que o sabia, mas só agora o vivi. E agora sei-o, não apenas com a memória mas também com os meus olhos, com o meu coração, com o meu estômago. E ainda bem que o sei!»

Reflectiu muito tempo sobre a sua metamorfose, escutou a ave quando esta cantou de alegria. Não estava esta ave morta dentro de si, não havia sentido a sua morte? Não, outra coisa morrera dentro de si, algo que há muito que ansiava por morrer. Não seria aquilo que, nos seus arre­batados anos de penitência, quisera matar? Não seria o seu Eu, pequeno, inquieto e orgulhoso, contra o qual lutara tantos anos mas que sempre o derrotara, que regressava depois de cada morte, impedindo-lhe a alegria e causando­-lhe medo? Não seria aquilo que hoje morrera, nesta flo­resta à beira deste adorado rio? Não seria por causa dessa morte que ele era agora como uma criança, tão cheio de confiança, tão sem medo, tão feliz?

Também agora Siddhartha pressentia a razão porque, quando brâmane e quando penitente, lutara em vão con­tra esse Eu. Fora detido por demasiados conhecimentos, demasiados versos sagrados, demasiadas regras para os sacrifícios, demasiadas mortificações, demasiados esfor­ços e aspirações! Fora demasiado arrogante, sempre o mais inteligente, sempre o mais dedicado, sempre um passo à frente dos outros, sempre o erudito ou o mais espiritual, sempre o sacerdote ou. o sábio. O seu Eu escondera-se nesse sacerdócio, nessa arrogância, nessa espiritualidade, mas ficou protegido e cresceu, enquanto Siddhartha o ten­tava matar com jejuns e penitências. Compreendia agora, e compreendia que a voz oculta tinha razão, que nenhum mestre o poderia ter libertado dela. Por isso foi obrigado a conhecer o mundo, a perder-se no prazer e no poder, nas mulheres e no dinheiro, foi obrigado a tornar-se um negociante, um jogador de dados, um bêbedo e um avaro, para que o sacerdote e o samana dentro dele morressem. Por isso tivera que suportar esses anos terríveis, suportar a aversão, o vazio, o absurdo de uma vida vazia e des­perdiçada, até ao fim, até ao amargo desespero, até que o Siddhartha lascivo, o Siddhartha ganancioso, pudesse enfim morrer. Ele morrera, um novo Siddhartha despertara do sono. Também ele envelheceria, também ele precisaria um dia de morrer, Siddhartha era efémero, todas as formas eram efémeras. Mas hoje era jovem, era uma criança, era o novo Siddhartha, e era feliz.

Estes pensamentos ocorreram-lhe enquanto escutava o seu estômago, enquanto ouvia, pensativo, o zumbido de uma abelha. Olhou satisfeito para o rio, nunca a água lhe agradara tanto como esta, nunca compreendera tão clara e profundamente a voz e o significado alegórico da água que corre. Parecia-lhe que o rio tinha algo especial para lhe dizer, algo que ele ainda não sabia, que ainda o aguar­dava. Siddhartha quisera afogar-se neste rio, o Siddhartha velho, cansado e desesperado afogara-se hoje nele. O novo Siddhartha, pelo contrário, sentia um amor profundo pela água corrente e decidiu não a deixar tão cedo.

 

O BARQUEIRO

Quero ficar junto a este rio, pensou Siddhartha, é o mesmo que eu atravessei um dia, a caminho do povo de crianças; um barqueiro amável transportou-me nesse dia, irei para junto dele. O meu caminho afastou-me um dia da sua cabana, em direcção a uma vida nova que agora se tornou velha e morreu - que o meu caminho actual, a minha nova vida, possa iniciar-se lá!

Olhou afectuosamente para a água, para o seu verde translúcido, para as linhas cristalinas dos seus contor­nos cheios de segredos. Viu pérolas cintilantes emergi­rem do fundo, bolhas de ar flutuando serenamente no espelho de água, reflectindo o azul do céu. O rio olhava para ele com mil olhos, verdes, brancos, cristalinos, azuis celestes. Como ele amava esta água, como ela o fascinava, quão agradecido lhe estava! Ouvia a voz falar­-lhe no seu coração, desperta outra vez, dizendo-lhe: Ama esta água! Fica junto a ela! Aprende com ela! Sim, ele queria aprender com ela, queria escutá-la. Parecia­-lhe que quem compreendesse esta água e os seus segre­dos compreenderia muitas outras coisas, muitos segredos, todos os segredos.

Mas hoje, dos segredos do rio ele via apenas um, um segredo que enchia a sua alma: aquela água corria conti­nuamente, corria sempre mas estava sempre ali, para todo o sempre a mesma e, no entanto, a cada momento nova! Ah, quem isto compreendesse! Ele não o compreendia, sentia apenas agitar-se um pressentimento, uma recorda­ção distante, vozes divinas.

Siddhartha ergueu-se. A dor da fome tornava-se insu­portável. Resignado, seguiu um carreiro junto à margem, subindo o rio, escutando a corrente, escutando o som da fome no seu corpo.

Quando chegou ao molhe o barco estava pronto, e o mesmo barqueiro que um dia transportara o jovem samana

estava no barco. Siddhartha reconheceu-o, embora tam­bém ele estivesse muito diferente.

- Levas-me para a outra margem? - perguntou. O barqueiro, surpreendido por ver um homem tão dis­tinto sozinho e a pé, fê-lo subir para o barco e partiu.

            - Escolheste uma bela vida - disse o forasteiro. – Deve ser belo viver todos os dias junto a esta água e navegar nela.

            O remador baloiçou o corpo, sorrindo:

            - É belo, senhor, é como dizes. Mas não são belas todas as vidas, todos os trabalhos?

            - Pode ser. Mas eu invejo a tua.

            - Ah, em breve deixaria de te agradar. Não é vida para pessoas com roupas finas.

            Siddhartha sorriu.

- Já hoje me olharam com desconfiança por causa das minhas roupas. Não quererás, barqueiro, aceitar estas rou­pas que me são tão pesadas? É preciso que saibas que não tenho dinheiro para te pagar a viagem.

- O senhor está a brincar - riu o barqueiro.

- Não estou a brincar, meu amigo. Sabes, já uma vez me transportaste no teu barco, pela graça dos deuses.

            Fá-lo mais uma vez e aceita a minha roupa.

- E o senhor seguirá viagem sem roupas?

- Ah, preferia não seguir viagem. Gostaria mais, bar­queiro, se me desses uma tanga velha e me deixasses ficar como teu ajudante, ou melhor, como teu aprendiz, pois devo primeiro aprender a dirigir o barco.

O barqueiro olhou muito tempo para o forasteiro, estu­dando-o.

- Reconheço-te agora - disse por fim. - Dormiste um dia na minha cabana, há muito tempo, talvez há mais de vinte anos, e eu transportei-te para o outro lado do rio e despedimo-nos como bons amigos. Não eras um samana? Não consigo recordar o teu nome.

- Chamo-me Siddhartha e era um samana quando tu me viste pela última vez.

- Sê então bem-vindo, Siddhartha. Eu chamo-me Vasudeva. Espero que sejas meu hóspede novamente e que durmas na minha cabana. Poderás contar-me de onde vens e porque as tuas belas roupas te são tão desagradáveis.

Tinham chegado ao meio do rio e Vasudeva começou a remar com mais força, para vencer a corrente. Trabalhava com serenidade, olhando para a ponta do barco, com bra­ços fortes. Siddhartha estava sentado, observando-o, e lem­brou-se como já uma vez, naquele último dia da sua vida de samana, sentira no seu coração amor por aquele homem. Aceitou com gratidão o convite de Vasudeva. Ao chega­rem à margem, ajudou-o a amarrar o barco a uma estaca; o barqueiro convidou-o a entrar na cabana, ofereceu-lhe pão e água e Siddhartha comeu com prazer, comendo com igual prazer a manga que Vasudeva lhe trouxe. Depois sentaram-se, perto da hora do pôr do Sol, num tronco junto à margem do rio, e Siddhartha contou ao barqueiro a sua origem e a sua vida, tal como a vira hoje perante os seus olhos, naquela hora de desespero. A sua história prolon­gou-se pela noite dentro.

Vasudeva escutou-o com muita atenção. Escutou tudo, a origem e a infância, toda a aprendizagem, toda a sua demanda, todas as alegrias, todas as necessidades. Esta era uma das maiores virtudes do barqueiro: sabia escutar como poucos. Siddhartha sentia como, sem dizer uma pala­vra, Vasudeva recebia as suas palavras, sereno, aberto, receptivo, como ele não perdia nada, nada esperava com impaciência, não elogiava nem censurava, apenas escutava. Siddhartha sentia que era uma sorte ter um ouvinte assim, capaz de sentir no seu coração a vida do outro, a sua demanda, a sua dor.

Perto do final da história de Siddhartha, contudo, quando ele lhe falou da árvore à beira do rio e da sua grande queda, do Om sagrado, e de como, após o seu sono, tinha sentido um profundo amor pelo rio, o barqueiro escutou-o com redobrada atenção, totalmente entregue, de olhos fechados.

Quando Siddhartha acabou de falar seguiu-se um longo silêncio e Vasudeva disse:

- É como eu pensava. O rio falou contigo. É também teu amigo, também fala contigo. Isso é bom, é muito bom. Fica comigo, Siddhartha, meu amigo. Tive em tempos uma esposa, o seu leito ficava junto ao meu, mas ela morreu há muito, há muito que vivo sozinho. Vive tu agora comigo, há espaço e alimento bastante para os dois.

- Agradeço-te - disse Siddhartha -, agradeço-te e aceito. E também te agradeço, Vasudeva, por me teres escutado tão bem! Poucas são as pessoas que sabem escutar e nunca conheci nenhuma que o fizesse como tu. Também isso aprenderei contigo.

- Aprenderás - disse Vasudeva -, mas não comigo. Foi o rio que me ensinou a escutar, aprendê-lo-ás com ele. O rio sabe tudo, podemos aprender tudo com ele. Vês, também isso já aprendeste com a água, que é bom esfor­çarmo-nos por chegar ao fundo, mergulhar, procurar o fundo. O rico e distinto Siddhartha tornar-se-á um humilde remador, o erudito brâmane Siddhartha tomar-se-á bar­queiro: também isto o rio o disse. Aprenderás ainda com ele outra coisa.

Siddhartha disse, depois de uma longa pausa:

- Que outra coisa, Vasudeva?

Vasudeva ergueu-se.

            - Já é tarde - disse -, vamos dormir. Não posso dizer-te «a outra coisa», amigo. Tu aprendê-lo-ás, talvez o saibas já. Sabes, eu não sou um erudito, não sei falar bem, não sei sequer pensar bem. Sei apenas escutar e ser piedoso, nada mais aprendi. Se o conseguisse dizer e ensi­nar seria talvez um sábio, mas sou apenas um barqueiro e a minha tarefa é esta, transportar pessoas para o outro lado do rio. Transportei muitas pessoas, milhares, e para todas elas o meu rio não foi senão um obstáculo à sua via­gem. Viajavam por dinheiro e por negócio, para casa­mentos e para romarias, o rio estava no seu caminho e o barqueiro estava lá para os ajudar a ultrapassar depressa esse obstáculo. Alguns desses milhares, no entanto, pou­cos, quatro ou cinco, para quem o rio deixara de ser fim obstáculo, esses escutaram a voz do rio e este tornou-se sagrado para eles, tal como para mim. Agora vamos des­cansar, Siddhartha.

Siddhartha ficou com o barqueiro e aprendeu a mano­brar o barco; quando não havia nada para fazer no molhe, trabalhava com Vasudeva nos arrozais, recolhia lenha, apa­nhava os frutos da bananeira. Aprendeu a fazer um leme e a reparar o barco, a entrançar cestos, sentia-se feliz com tudo o que aprendia e os dias e meses passavam depressa. Mais do que Vasudeva lhe podia ensinar, contudo, ensi­nava-lhe o rio. Aprendia ininterruptamente com ele. Antes de mais, aprendeu a escutar, a ouvir com o coração sereno, com a alma receptiva e aberta, sem paixão, sem desejos, sem julgar, sem formular opiniões.

Vivia feliz com Vasudeva e, ocasionalmente, trocavam algumas palavras, poucas e muito ponderadas. Vasudeva não gostava de falar, Siddhartha raramente conseguia obrigá-lo a tal.

            - Também tu - perguntou-lhe um dia - aprendeste

            com o rio este segredo: que o tempo não existe?

            Um sorriso luminoso cobriu o rosto de Vasudeva.

            - Sim, Siddhartha - disse. - É isto que queres dizer, que o rio é igual em toda a parte, na fonte e na foz, na queda de água, no molhe, nos rápidos, no lago, na mon­tanha, igual em toda a parte, e que para ele apenas existe o presente, nem as sombras do passado, nem as sombras do futuro?

- É isso - disse Siddhartha. - E quando aprendi isso, olhei para a minha vida, que era também um rio, e apenas sombras separavam a criança Siddhartha do adulto Siddhartha e do velho Siddhartha, nada real os separava.

 

Também as vidas anteriores de Siddhartha não pertenciam ao passado, nem a sua morte e regresso a Braman per­tencia ao futuro. Nada foi, nada será; tudo é, tudo tem realidade e presente.

Siddhartha falou com enlevo, esta revelação deixara-o muito feliz. Ah, então o tempo não era apenas sofrimento, dor e receio? Não se vencia tudo o que era difícil e desa­gradável no mundo, logo que se vencia o tempo, logo que se podia esquecer o tempo? Falara com enlevo, mas Vasudeva apenas sorriu e acenou afirmativamente, silen­ciosamente, colocou a mão no ombro de Siddhartha e vol­tou ao trabalho.

E uma outra vez, quando o rio transbordara por causa das chuvas e corria com força, disse Siddhartha:

- Não é verdade, amigo, que o rio tem muitas vozes, inúmeras vozes? Tem a voz de um rei, de um guerreiro, de um touro, de uma ave nocturna, de uma mulher a dar à luz, de um suspiro, e ainda milhares de outras vozes. Assim é - concordou Vasudeva -, a sua voz con­

tém as vozes de todas as criaturas.

- E sabes - continuou Siddhartha - qual a palavra que ele diz, quando consegues escutar todas as suas deze­nas de milhar de vozes ao mesmo tempo?

            O rosto de Vasudeva sorriu, feliz; inclinou-se para Siddhartha e segredou-lhe o Om sagrado ao ouvido. E fora justamente isso que também Siddhartha ouvira.

O seu sorriso era cada vez mais parecido com o do bar­queiro, era quase tão brilhante, quase tão cheio de felici­dade, tão radioso entre mil pequenas rugas, tão ingénuo, tão velho. Muitos viajantes, quando viam os dois bar­queiros, tomavam-nos por irmãos. Muitas vezes, ao fim da tarde, sentavam-se juntos no tronco à beira do rio, silen­ciosos, e escutavam a água, que para eles não era água, mas sim a voz da vida, a voz de tudo que existia, a voz daquilo que perpetuamente se transformava. E por vezes acontecia que ambos, escutando o rio, pensavam na mesma coisa, numa conversa de dois dias atrás, num viajante cuja aparência e destino os ocupava, na morte, na sua infân­cia, e também acontecia que ambos, no mesmo instante, quando o rio lhes dizia algo de bom, olhavam um para o outro, pensando na mesma coisa, felizes 'com a mesma resposta à mesma pergunta.

O molhe e os dois barqueiros tinham algo que muitos dos viajantes sentiam. Acontecia, por vezes, que um via­jante, depois de olhar para o rosto de um dos barqueiros, começava a contar a sua vida, a sua dor, confessava erros, pedia consolo e conselhos. Acontecia, por vezes, alguém pedir autorização para ficar uma noite com eles, para escutar o rio. Acontecia também que vinham curiosos, a quem tinham falado de um molhe onde viviam dois sábios ou feiticeiros ou santos. Os curiosos colocavam muitas perguntas mas não obtinham respostas, não encontravam feiticeiros ou sábios, encontravam apenas dois homenzi­nhos amigáveis, que pareciam ser mudos e um pouco estra­nhos e patetas. E os curiosos riam e comentavam como eram loucas e crédulas as pessoas que espalhavam tais boatos vazios.

Os anos passaram e ninguém os contou. Um dia sur­giram alguns monges peregrinos, seguidores de Gotama, o Buda, que lhes pediram que os ajudassem a atravessar o rio; os barqueiros souberam que regressavam à pressa para junto do seu mestre, pois espalhara-se a notícia que o Sublime estava mortalmente doente e em breve morre­ria a sua última morte terrena, atingindo a libertação. Pouco depois, chegou um outro grupo de monges peregrinos, e ainda outro, e tanto os monges como os restantes viajan­tes não falavam de outra coisa senão de Gotama e da sua morte iminente. E, como para uma batalha ou para a coroa­ção de um rei, as pessoas acorriam de toda a parte e jun­tavam-se como formigas em grandes grupos, acorriam como se atraídas por magia para o local onde o grande Buda aguardava a morte, onde se daria o extraordinário acontecimento e de onde o homem mais perfeito de uma era partiria para a Eternidade.

Siddhartha pensou muito, nessa altura, acerca do sábio moribundo, acerca do grande mestre cuja voz aconselhara povos inteiros e despertara centenas de milhar de pessoas, cuja voz também ele escutara, cujo rosto santo também ele um dia venerara. Pensou nele com amizade, viu perante os seus olhos o seu caminho em direcção à salvação e sor­riu ao lembrar-se das palavras que, quando jovem, diri­gira ao Sublime. Foram, parecia-lhe, palavras orgulhosas e precoces, relembrava-as com um sorriso. Havia muito que nada sabia de Gotama, cuja doutrina não pudera acei­tar. Não, quem procura com sinceridade não pode aceitar nenhuma doutrina, se quer sinceramente encontrar algo. Mas aquele que o encontrou, esse poderia confirmar todas as doutrinas, todos os caminhos, todos os objectivos, nada o separava já daqueles milhares que viviam na eternidade, que respiravam o divino.

Num desses dias, em que tantos peregrinos se dirigiam para junto do Buda moribundo, também Kamala, em tem­pos a mais bela de todas as cortesãs, se juntou à peregri­nação.

Havia muito que abandonara a sua antiga vida, ofertara o seu jardim aos monges de Gotama, tomara abrigo junto da doutrina, pertencia às amigas e benfeitoras dos peregrinos. Juntamente com o pequeno Siddhartha, seu filho, recebera a notícia da morte iminente de Gotama e pusera-se a caminho, com roupas simples, a pé. Dirigiu­-se com o seu filho para o rio, mas a criança em breve estava cansada, desejava repousar, desejava comer, estava obstinada e chorosa. Kamala teve de parar várias vezes, pois o seu filho estava acostumado a impor a sua vontade, ela teve de o alimentar, teve de o consolar, teve de o repreender. Ele não compreendia porque tinha de fazer essa peregrinação cansativa e triste com a sua mãe, em direcção a um lugar desconhecido, em direcção a um homem desconhecido que era santo e que estava mori­bundo. Se ele queria morrer, o que interessava isso àcriança?

Os peregrinos não estavam já longe do molhe de Vasudeva quando o pequeno Siddhartha quis mais uma vez descansar. Também ela, Kamala, estava cansada e, enquanto a criança mordiscava uma banana, agachou-se, fechou um pouco os olhos e adormeceu. Subitamente, gri­tou de dor; a criança olhou para ela, assustada, viu o seu rosto pálido de terror. Do seu vestido saiu uma pequena cobra preta, que tinha mordido Kamala.

Caminharam apressados pelo carreiro, procurando outras pessoas, e chegaram perto do molhe, onde Kamala caiu e não foi capaz de continuar. A criança começou a gritar, enquanto beijava e abraçava sua mãe; a voz dela juntou­-se aos seus gritos de socorro, até que o barulho chegou aos ouvidos de Vasudeva, que estava junto ao molhe. Este acorreu rapidamente, tomou a mulher nos seus braços, levou-a para o barco, com a criança correndo atrás de si, e em breve chegaram à cabana. Siddhartha estava junto à lareira e acabava de acender o lume. Olhou e viu primeiro o rosto da criança, que estranhamente lhe recordou algo esquecido. Depois viu Kamala e reconheceu-a imediata­mente, embora estivesse inconsciente nos braços do bar­queiro, e soube que a criança, cujo rosto tanto lhe recordava, era o seu próprio filho e sentiu o seu coração comover-se.

Lavaram a ferida de Kamala, que já estava negra e com o corpo inchado, e deram-lhe uma poção a beber. Recuperou os sentidos, deitada na cama de Siddhartha na cabana, com Siddhartha inclinado sobre si, Siddhartha, a quem tanto amara. Parecia-lhe um sonho, olhou para o rosto do seu amigo com um sorriso, lentamente reconheceu onde estava, recordou a mordida, chamou ansiosamente pela criança.          - Ele está junto a ti, não te preocupes – disse Siddhartha.

            Kamala olhou-o nos olhos. Falou com dificuldade, a língua pesada do veneno.

- Estás velho, meu querido - disse -, os teus cabe­los tornaram-se brancos. Mas pareces-te com o jovem samana que um dia, sem roupas e com os pés cobertos de pó, se dirigiu a mim no meu jardim. Pareces-te mais com ele agora do que quando nos deixaste, a mim e a Kamaswami. Os teus olhos parecem-se com os dele, Siddhartha. Ah, também eu fiquei velha, velha - ainda          me reconhecias?

Siddhartha sorriu:

- Reconheci-te imediatamente, Kamala, minha que­rida.

Kamala apontou para a criança e disse: - Também o reconheceste? É o teu filho.

Os seus olhos ficaram enevoados e fecharam-se. A criança chorou, Siddhartha sentou-a nos seus joelhos e deixou-a chorar, afagou-lhe o cabelo, e ao olhar para o rosto da criança recordou-se de uma oração bramânica que aprendera em tempos, quando também ele era uma criança. Devagar, com uma voz cantante, começou a recitá-la, as palavras acorriam-lhe vindas do passado e da sua infância. As suas palavras acalmaram a criança, que soluçou ainda um pouco e depois adormeceu. Siddhartha deitou-a na cama de Vasudeva, que estava junto à lareira a cozer arroz. Siddhartha lançou-lhe um olhar, a que ele respondeu com um sorriso.

- Ela morrerá - disse Siddhartha em voz baixa. Vasudeva fez um gesto de concordância, o brilho do lume da lareira reflectido no seu rosto amigável.

Kamala recuperou mais uma vez os sentidos. A dor deformava-lhe as feições, o olhar de Siddhartha leu o sofri­mento na sua boca, nas suas faces ardentes. Leu-o com serenidade, com atenção, esperando, imerso na sua dor. Kamala sentiu-o, o seu olhar procurou os olhos dele.

Olhando para ele, disse:

- Vejo agora que também os teus olhos se modifica­ram. Estão muito diferentes. Como consigo ainda reco­nhecer-te, Siddhartha? És tu, e não és.

            Siddhartha não disse nada. Os seus olhos fitavam-na serenamente.

            - Conseguiste? - perguntou ela. - Encontraste a paz?

            Ele sorriu e colocou a sua mão sobre a mão dela.

            - Eu vejo-o - disse ela -, eu vejo-o. Também eu encontrarei a paz.

            - Já a encontraste - disse Siddhartha, num murmúrio.

            Kamala fitou-o fixamente. Pensou que quisera ir para junto de Gotama para poder ver o rosto de um ser per­feito, para respirar a sua paz, e que encontrara apenas Siddhartha, mas que isso era bom, tão bom como se ela o tivesse visto. Queria dizê-lo, mas a sua língua já não lhe obedecia. Olhou para ele em silêncio, e ele viu a vida a apagar-se nos seus olhos. Quando a dor derradeira encheu os seus olhos e os apagou, quando o último estremeci­mento percorreu os seus membros, Siddhartha fechou-lhe as pálpebras com os dedos.

Ficou sentado muito tempo, olhando para o seu rosto adormecido. Observou durante muito tempo a sua boca velha e cansada, de lábios mirrados, e recordou que um dia, na Primavera da sua vida, comparara essa boca a um figo maduro. Ficou sentado muito tempo, leu no rosto pálido, nas rugas cansadas, encheu-se com essa visão, viu o seu próprio rosto assim jazendo, assim tão bran'co, assim tão apagado, e viu ao mesmo tempo os rostos jovens de ambos, com os lábios vermelhos, com os olhos ardentes; o sentimento do presente e da simultaneidade invadiu-o, o sentimento da eternidade. Nesse momento sentiu pro­fundamente, mais profundamente do que nunca, a impe­recibilidade de todas as vidas, a eternidade de todos os momentos.

Quando se ergueu, Vasudeva tinha arroz preparado para ele. Mas Siddhartha não comeu. No estábulo, onde estava uma cabra, os dois velhos prepararam uma cama de palha e Vasudeva deitou-se para dormir. Siddhartha, no entanto, saiu e passou a noite sentado junto à porta, escutando o rio, banhando-se no passado, simultaneamente comovido e cercado por todos os momentos da sua vida. De vez em quando, contudo, erguia-se, chegava-se à porta da cabana e escutava se a criança estava a dormir.

            De manhã cedo, antes do nascer do Sol, Vasudeva saiu do estábulo e juntou-se ao seu amigo.

            - Não dormiste - disse ele.

- Não, Vasudeva. Fiquei aqui sentado a ouvir o rio. Este disse-me muito, encheu-me profundamente de pen­samentos proveitosos, pensamentos de unidade.

            - Sentiste dor, Siddhartha, mas vejo que o teu cora­ção não se encheu de tristeza.

- Não, meu caro, como poderia ficar triste? Eu, que fui rico e feliz, sou agora ainda mais rico e mais feliz. O meu filho foi-me entregue.

- O teu filho é bem-vindo. Mas agora, Siddhartha, vamos trabalhar, temos muito a fazer. Kamala morreu na mesma cama em que outrora morreu a minha esposa. Ergueremos a pira funerária de Kamala na mesma colina em que outrora ergui a pira funerária da minha esposa.

Os dois ergueram a pira funerária enquanto o rapaz ainda dormia.

 

O FILHO

O rapaz, envergonhado e choroso, acompanhou a ceri­mónia fúnebre da sua mãe, escutou triste e receosamente Siddhartha, que o saudou como seu filho e lhe deu as boas­-vindas à cabana de Vasudeva. Ficava sentado dias inteiros na colina dos mortos, pálido, sem comer, de olhos fechados, de coração fechado, enfrentando e resistindo ao seu destino.

Siddhartha tratava-o com delicadeza e deixava-o sozi­nho, pois respeitava a sua tristeza. Siddhartha compreen­dia que o seu filho não o conhecia, que não o podia amar como a um pai. Lentamente, apercebeu-se igualmente que o rapaz, então com onze anos, era uma criança mimada. Fora criado no meio da riqueza, acostumado a comidas delicadas, acostumado a uma cama macia, a dar ordens aos criados. Siddhartha compreendia que quem é triste e mimado não pode tornar-se amigo de quem lhe é estra­nho e pobre, de um momento para o outro. Não o forçava, fazia por ele tudo o que podia, procurava para ele os melho­res bocados. Tinha esperança de, lentamente, com ami­gável paciência, o conquistar.

Considerara-se rico e feliz quando o rapaz surgiu na sua vida. Mas o tempo passou e o rapaz continuou triste e distante, mostrava um coração orgulhoso e obstinado, não queria trabalhar, não respeitava os idosos, roubava os frutos das árvores de Vasudeva, e Siddhartha percebeu que o seu filho não lhe trouxera felicidade e paz, mas sim preocupações e dor. Mas amava-o e preferia amá-lo com preocupações e dor, mais do que viver feliz e em paz mas sem o rapaz.

Desde que o jovem Siddhartha estava na cabana, os dois velhos dividiam as tarefas. Vasudeva retomou sozi­nho o posto de barqueiro e Siddhartha, para ficar junto do seu filho, ocupava-se do trabalho na cabana e no campo.

Siddhartha esperou muito tempo, muitos meses, que o seu filho o compreendesse, que aceitasse o seu amor e lho retribuísse. Vasudeva esperou muitos meses em silêncio, observando e aguardando. Um dia o jovem Siddhartha atormentou o pai com os seus caprichos e exigências e partiu as duas gamelas do arroz; nessa noite, Vasudeva chamou o seu amigo à parte e falou com ele.

- Desculpa-me - disse ele -, falo contigo por ami­zade. Vejo que te afliges, vejo que estás preocupado. O teu filho, meu caro, preocupa-te e preocupa-me. A jovem ave está acostumada a uma outra vida, a um outro ninho. Ele, ao contrário de ti, não abandonou a riqueza e a cidade por aversão e tédio, foi obrigado a deixar tudo isso contra a sua vontade. Interroguei o rio, meu amigo, interroguei-o muitas vezes. Mas o rio riu-se, riu-se de mim, riu-se de mim e de ti, censurando a nossa loucura. A água quer estar com a água, a juventude quer estar com a juventude, o teu filho não está no lugar onde pode progredir. Interroga também tu o rio, escuta-o!

 

Siddhartha olhou, preocupado, para o rosto amigável, em cujas rugas residia muita firme serenidade.

- Devo então separar-me dele? - perguntou baixi­nho, envergonhado. - Dá-me mais alguns tempos, amigo! Eu luto por ele, cortejo o seu coração, conquistá-lo-ei com amor e com benévola paciência. Também com ele o rio falará um dia, também ele receberá o chamamento.

O sorriso de Vasudeva tornou-se mais caloroso.

- Sim, também ele receberá o chamamento, também ele

pertencerá à vida eterna. Mas saberemos nós, tu e eu, para o que será ele chamado, para que caminhos, para que acções, para que sofrimentos? O seu sofrimento não será pequeno, pois o seu coração é duro e orgulhoso e tais corações têm que sofrer muito, errar muito, praticar muitas más acções, pecar muito. Diz-me, meu amigo: instruis o teu filho? Força­ -lo a fazer o que não quer? Bates-lhe? Castiga-lo?

- Não, Vasudeva, não faço nenhuma dessas coisas. - Já o sabia. Não o forças a nada, não lhe bates, não lhe dás ordens, porque sabes que a brandura pode mais do que a força, que a água é mais forte do que a rocha, que o amor é mais forte do que a violência. Muito bem, louvo-te por isso. Mas não será um erro da tua parte não o forçares, não o castigares? Não o acorrentas com o teu amor? Não o humilhas diariamente, não lhe tornas tudo mais difícil com a tua bondade e a tua paciência? Não obrigas este rapaz orgulhoso e mimado a viver numa cabana com dois velhos comedores de bananas, para quem até o arroz é já um requintado acepipe, cujos pensamentos ele nunca poderia compartilhar, cujos corações são velhos e calmos e têm um ritmo diferente do seu? Não será tudo isto, para ele, uma obrigação, um castigo?

 

Siddhartha olhou confusamente para o chão. Em voz baixa perguntou:

- O que pensas que devo fazer?

Vasudeva disse:

- Leva-o para a cidade, leva-o para a casa de sua mãe, ainda estarão lá alguns dos seus criados. E se já lá não estiverem nenhuns leva-o a um mestre, não por causa da doutrina mas para que ele possa estar com outros rapazes e raparigas, para que possa estar no seu mundo. Nunca pensaste nestas coisas?

- Tu vês dentro do meu coração - disse Siddhartha com tristeza. - Pensei muitas vezes em todas essas coi­sas. Mas como poderei entregá-lo ao mundo sem um cora­ção mais delicado? Não se tornará luxurioso, não se perderáno prazer e no poder, não irá repetir todos os erros de seu pai, não se perderá total e completamente no Sansara?

O sorriso do barqueiro iluminou-se; tocou delicada­mente no braço de Siddhartha e disse:

- Pergunta ao rio, meu amigo! Ouve-o rir-se disso! Acreditas realmente que caíste na tua loucura para pou­pares o teu filho a ela? E poderás proteger o teu filho do Sansara? Mas como? Através de ensinamentos, através de orações, através de advertências? Meu amigo, terás esque­cido completamente aquela história tão rica em ensina­mentos, a história do filho de brâmane Siddhartha, que um dia neste local me contaste? Quem defendeu o samana Siddhartha do Sansara, do pecado, da ganância, da lou­cura? A santidade de seu pai, as advertências do seu mes­tre, os seus próprios conhecimentos, a sua própria demanda, conseguiram defendê-lo do Sansara? Que pai, que mes­tre, poderia impedi-lo de viver a vida, de sujar-se com a vida, de carregar as suas próprias culpas, de beber a mais amarga bebida, de encontrar o seu próprio caminho? Acreditas realmente que alguém é poupado a este cami­nho? Talvez o teu filhinho, apenas porque tu o amas e o querias poupar ao sofrimento, à dor e à desilusão? Mas mesmo que morresses por ele dez vezes, nem assim con­seguirias aliviá-lo da mais pequena porção do seu destino.

Nunca Vasudeva falara tanto. Siddhartha agradeceu-lhe com amizade, entrou preocupado na cabana, não conse­guiu adormecer durante muito tempo. Vasudeva nada lhe dissera que ele próprio não tivesse já pensado ou que não soubesse já. Mas era algo que ele não podia fazer, o seu amor pelo rapaz era mais forte do que essa sabedoria, eram mais fortes o seu carinho, o seu medo de o perder. Alguma vez entregara tão completamente o seu coração, alguma vez amara tanto alguém, tão cegamente, tão dolorosa­mente, tão inutilmente, mas com tanta felicidade?

Siddhartha não conseguiu seguir o conselho do seu amigo, não foi capaz de abdicar do seu filho. Deixou que o rapaz lhe desse ordens, deixou que ele o menosprezasse. Manteve-se em silêncio, à espera, recomeçava diariamente a luta muda da amizade, a guerra silenciosa da paciência. Também Vasudeva se manteve em silêncio, à espera, ami­gável, sábio, paciente. Ambos eram mestres da paciência.

Um dia, quando o rosto do rapaz lhe recordou muito o de Kamala, Siddhartha relembrou subitamente as palavras que há muito tempo, nos dias da sua juventude, Kamala lhe dirigira. «Tu não consegues amar», disse-lhe ela; ele dera-lhe razão e comparara-a a uma estrela, enquanto que considerava o povo de crianças como folhas secas que caem. Apesar disso, sentira naquelas palavras uma cen­sura.

 

Na verdade, nunca antes conseguira entregar-se com­pletamente a uma pessoa, esquecer-se de si mesmo, sofrer a loucura do amor por alguém; nunca o experimentara e essa fora, segundo então lhe parecia, a grande diferença que o distinguia do povo de crianças. Mas agora, desde que o seu filho estava com ele, também ele, Siddhartha, se tornara um desse povo, sofrendo por causa de uma pes­soa, amando uma pessoa, perdido por amor, um louco por causa desse amor. Finalmente sentia também, pela pri­meira vez na vida, esta forte e estranha paixão, sofria por ela, sofria miseravelmente mas sentia-se feliz, sentia-se renovado, mais rico.

Sentia claramente que este amor cego para com o seu filho era uma paixão muito humana, era Sansara, uma fonte turva de águas negras. Ao mesmo tempo, porém, sentia que essa paixão não era inútil, que era necessária, que tinha ori­gem no seu próprio ser. Tinha ainda que expiar este pra­zer, tinha ainda que sofrer esta dor, que cometer esta loucura.

O filho, entretanto, deixava-o cometer esta loucura, dei­xava-o esforçar-se por conquistá-lo, desmoralizava-o todos os dias com as suas birras. Este pai nada tinha que o sedu­zisse e nada que ele pudesse recear. Era um homem bon­doso, este pai, um homem bondoso, indulgente e delicado, talvez um homem piedoso, talvez um santo - mas nada disto eram características que pudessem conquistar o rapaz. Aborrecia-o este pai que o mantinha preso naquela cabana miserável; quando respondia às suas travessuras com um sorriso, aos seus insultos com amizade, a cada maldade com bondade, tudo isso lhe parecia a mais odiosa manha de um velho hipócrita. O rapaz teria preferido ser amea­çado por ele, ser maltratado por ele.

 

Um dia o jovem Siddhartha explodiu e atacou aberta­mente o seu pai. Este dera-lhe uma tarefa, pedira-lhe que fosse recolher lenha miúda. O rapaz, no entanto, não saiu da cabana, ficou de pé, obstinado e furioso, bateu o pé, cerrou os punhos, e gritou violentamente contra o seu pai, atirando-lhe à cara palavras de ódio e de desprezo.

- Vai tu mesmo buscar a lenha! - exclamou, enrai­vecido. - Eu não sou teu criado. Bem sei que não me bates porque não te atreves; bem sei que me queres cas­tigar com a tua santidade e a tua indulgência. Queres que eu seja como tu, santo, delicado, sábio! Mas eu, escuta­-me, prefiro ser um salteador e um assassino, prefiro ir para o Inferno, a ser como tu! Odeio-te, tu não és o meu pai, mesmo que tenhas sido dez vezes amante de minha mãe!

A mágoa e a cólera percorriam-no, explodiam em mil palavras brutais e cruéis contra o pai. Depois o rapaz fugiu e só regressou de noite.

Na manhã seguinte, contudo, desapareceu. Com ele desapareceu também um cestinho de ráfia de duas cores entrançada, onde os barqueiros guardavam todas as moe­das de cobre e de prata que recebiam como pagamento pelas travessias. Também o barco desaparecera e Siddhartha viu-o na margem oposta. O rapaz tinha fugido.

            - Tenho que segui-lo - disse Siddhartha, que sofria

por causa dos insultos do dia anterior. - Uma criança não é capaz de atravessar a floresta. Morrerá. Temos que cons­truir uma jangada, Vasudeva, para atravessarmos o rio.

- Construiremos uma jangada - disse Vasudeva­para irmos buscar o nosso barco, que o jovem levou. Mas deves deixá-lo ir, amigo, ele já não é uma criança, sabe tomar conta de si. Ele procura o caminho da cidade e tem razão, não o esqueças. Ele faz aquilo que tu negligen­ciaste. Ele toma conta de si, segue o seu caminho. Ah, Siddhartha, vejo que sofres, mas sofres por males que nos fazem rir, males que em breve te farão rir também.

Siddhartha não respondeu. Empunhava já o machado e começara a construir uma jangada de bambu; Vasudeva ajudou-o a unir os troncos com uma corda feita de erva. Depois lançaram-se ao rio, foram arrastados para longe mas conseguiram chegar com a jangada à outra margem. - Porque trouxeste o machado?- perguntou Siddhartha. Vasudeva disse:

- O remo do nosso barco pode ter-se perdido.

            Siddhartha, no entanto, sabia o que o seu amigo estava

a pensar. Ele pensava que o rapaz poderia deitar fora o remo ou parti-lo, por vingança ou para os atrasar. E na realidade o remo não estava no barco. Vasudeva apontou para o fundo do barco e olhou para o amigo com um sor­riso, como se dissesse: «Não vês o que o teu filho te quer dizer? Não vês que ele não quer que tu o sigas?» Mas não o disse com palavras. Começou a fazer um novo remo. Siddhartha, porém, despediu-se e partiu à procura do fugi­tivo. Vasudeva não o impediu.

Quando Siddhartha já estava há muito na floresta, ocor­reu-lhe que a sua busca era inútil. Pensou que o rapaz tinha uma grande vantagem e já teria chegado à cidade, ou então que estaria ainda a caminho e que se esconderia dele, seu perseguidor. Continuou a pensar e compreendeu que ele próprio não estava preocupado com o seu filho, que no seu íntimo sabia que ele não estava morto ou ameaçado por qualquer perigo na floresta. Não obstante, prosseguiu sem descanso, já não para o salvar, apenas por saudade, talvez para o voltar a ver. E continuou até à cidade.

Ao chegar à estrada larga junto à cidade estancou, junto à entrada do bonito jardim que em tempos pertencera a Kamala, no mesmo local onde a vira pela primeira vez na sua liteira. O passado ressuscitou na sua alma, voltou a ver­-se ali parado, jovem, um samana nu, de barba comprida, o cabelo cheio de pó. Siddhartha ficou ali muito tempo, olhando através do portão aberto para o jardim, vendo os monges de hábitos amarelos que caminhavam sob as belas árvores.

Esteve ali muito tempo, pensativo, vendo imagens, es­cutando a história da sua vida. Esteve ali muito tempo, observou os monges, viu em vez deles o jovem Siddhartha, viu a jovem Kamala caminhando sob as altas árvores. Viu claramente a si mesmo, sendo acolhido por Kamala, rece­bendo o seu primeiro beijo, viu como olhava com arro­gância e desprezo para o seu passado de brâmane, como iniciou, orgulhoso e ansioso, a sua vida mundana. Viu Kamaswami, viu os criados, os festins, os jogadores de dados, os músicos, viu a ave de Kamala na sua gaiola, viveu tudo isso mais uma vez, respirou o Sansara, ficou outra vez velho e cansado, sentiu outra vez aversão, sen­tiu outra vez o desejo de se libertar, saboreou outra vez o Om sagrado.

Depois de ter permanecido muito tempo junto ao por­tão do jardim, Siddhartha compreendeu que o seu desejo era uma loucura, que este o havia arrastado até à cidade, que não poderia ajudar o seu filho, que não deveria ter­-se afeiçoado demasiado a ele. Sentiu profundamente no seu coração o amor pelo fugitivo, como uma ferida, e sen­tiu ao mesmo tempo que não deveria remexer nessa ferida, caso contrário esta certamente iria infectar e aumentar.

O facto de a ferida ainda não ter infectado, ainda não ter aumentado, deixava-o triste. Em vez do objectivo dese­jado, que o arrastara até aqui atrás do filho fugitivo, estava agora o vazio. Sentou-se tristemente, sentiu alguma coisa morrer no seu coração, sentiu o vazio, já não via nenhuma alegria, nenhum objectivo. Sentou-se absorto e esperou. Isto aprendera ele com o rio, apenas isto: a esperar, a ter paciência, a escutar. E ele sentou-se e escutou o pó da estrada, escutou o seu coração, o seu cansaço e a sua tris­teza, esperou por uma voz. Esteve agachado muitas horas, escutando, já não via nenhuma imagem, afundou-se no vazio, deixou-se afundar sem ver um caminho. E quando sentiu queimar a ferida pronunciou silenciosamente o Om, encheu-se com o Om. Os monges do jardim viram-no e, porque ele estava agachado há muitas horas e o pó se acumulara nos seus cabelos brancos, um deles veio junto de Siddhartha e colocou duas bananas à sua frente. O velho não o viu.

Uma mão despertou-o deste entorpecimento, tocando­-lhe no ombro. Reconheceu imediatamente esse toque, delicado e tímido, e reanimou-se. Ergueu-se e saudou Vasudeva, que o tinha seguido. E ao olhar para o rosto amigável de Vasudeva, para as pequenas rugas que pare­ciam cheias de um grande sorriso, para os olhos alegres, também ele sorriu. Só então viu as bananas à sua frente, recolheu-as, deu uma delas ao barqueiro e comeu a outra. Depois disso voltou silenciosamente com Vasudeva para a floresta, regressou ao molhe. Nenhum deles falou sobre os acontecimentos do dia, nenhum deles mencionou o nome do rapaz, nenhum deles falou da sua fuga, nenhum deles falou da ferida. Na cabana, Siddhartha deitou-se na sua cama e algum tempo depois, quando Vasudeva se diri­giu a ele para lhe oferecer uma tigela com leite de coco, encontrou-o a dormir.

 

OM

A ferida queimou-o ainda durante muito tempo. Siddhartha teve de transportar muitos viajantes que tinham consigo um filho ou uma filha e não conseguiu olhar para nenhum deles sem os invejar, sem que pensasse: «Tantos, tantos milhares que possuem esta suprema sorte - por­que não eu? Até os homens maus, até os ladrões e saltea­dores têm filhos, amam-nos e são amados por eles, só eu não». Pensava agora com esta simplicidade, com tão pouco entendimento; era agora muito parecido com o povo de cnanças.

Via agora as pessoas de forma diferente, menos inteli­gente, menos orgulhoso, mais caloroso, mais curioso, mais interessado. Quando transportava os viajantes da forma habitual, comerciantes, guerreiros, mulheres, essas pes­soas pareciam-lhe menos distantes do que outrora: ele compreendia-as, não compreendia nem partilhava os seus pensamentos e opiniões, mas apenas as suas vidas con­duzidas pelos impulsos e desejos, sentia-se como elas. Embora estivesse mais perto da perfeição e suportasse a sua última ferida, parecia-lhe que os membros deste povo de crianças eram seus irmãos; a sua vaidade, a sua avi­dez e as suas características ridículas deixaram de lhe pare­cer risíveis, tornaram-se inteligíveis, tornaram-se válidas, tornaram-se respeitáveis. O amor cego de uma mãe pelo seu filho, o orgulho cego e tolo de um pai vaidoso em relação ao seu filho único, a ambição cega e louca de uma jovem vaidosa de ter jóias e de impressionar os olhos dos homens, todos estes impulsos, estas infantilidades, estes impulsos e desejos simples, loucos, mas muitíssimo for­tes, muito vivos, muito influentes, já não eram para Siddhartha apenas infantilidades, via as pessoas viverem por elas, via-as a fazer inúmeras coisas por elas, a viaja­rem, a combaterem, a sofrerem mil tormentos, a suporta­rem mil tormentos, e ele conseguia amá-las por isso, ele via a vida, o imperecível, Braman, em todas as suas pai­xões, todos os seus actos. Estas pessoas eram dignas de serem amadas e admiradas, pela sua sinceridade, pela sua força cega e tenacidade. Nada lhes faltava, o sábio e o pensador apenas as superavam numa pequena coisa, ínfima: a consciência, a ideia consciente da unidade de toda a vida. E Siddhartha duvidava por vezes se esta sabedoria, esta ideia, seria assim tão valiosa, se não seria talvez uma infantilidade dos pensadores, do povo de crianças-pensa­doras. Em tudo o mais as pessoas do mundo tinham os mesmos direitos de nascença que os sábios, superavam­-nos muitas vezes, exactamente como os animais que, nas suas acções tenazes e determinadas em caso de necessi­dade, parecem superar os homens em muitos momentos. Lentamente, floresceu e amadureceu em Siddhartha a

compreensão, o conhecimento do que era a verdadeira sabedoria, de qual era o objectivo da sua longa demanda. Não era senão uma prontidão da alma, uma capacidade, a arte oculta de ter, em todos os instantes da vida, o pen­samento da unidade, de sentir essa unidade e de a conse­guir respirar. Esta compreensão floresceu nele lentamente, reflectindo-se no rosto velho e infantil de Vasudeva: har­monia, conhecimento da eterna perfeição do mundo, sor­riso, unidade.

A ferida, no entanto, queimava-o ainda; Siddhartha pen­sava com saudade e amargura no seu filho, acarinhava o seu amor e a sua ternura no seu coração, deixava a dor devorá-lo, cometeu todas as loucuras do amor. A chama não se extinguia sozinha.

Até que um dia, quando a ferida o queimava com vio­lência, Siddhartha atravessou o rio, perseguido pela sau­dade, e saiu do barco decidido a ir para a cidade e a procurar o seu filho. O rio corria lenta e suavemente, era a estação seca, mas a sua voz soava maravilhosa: ele ria! Ria claramente. O rio ria, ria-se alegremente do velho bar­queiro. Siddhartha estancou, inclinou-se para a água para ouvir melhor, e na água que passava devagar viu o seu rosto reflectido; nesse rosto reflectido havia algo que lhe recordou coisas esquecidas. Reflectindo, compreendeu: esse rosto parecia-se com outro que ele em tempos conhe­cera, amara e também receara. Parecia-se com o rosto de seu pai, o brâmane. E ele recordou como em tempos, um aprendiz ainda, obrigara o seu pai a deixá-lo juntar-se aos penitentes, como se despedira dele, como partira e nunca regressara. Não teria o seu pai sentido a mesma dor que ele agora sentia por causa do seu filho? Não teria ele mor­rido há muito, sozinho, sem ter tornado a ver o seu filho? Esta repetição, esta corrida num círculo funesto, não seria apenas uma comédia, uma coisa estranha e tola?

O rio ria-se. Sim, assim era, tudo o que não era supor­tado até ao fim e resolvido regressava, enfrentava-se sem­pre o mesmo sofrimento. Siddhartha voltou para o barco e regressou à cabana, pensando no seu pai, pensando no seu filho, escarnecido pelo rio, lutando consigo mesmo, duvidando e sentindo vontade de rir também, rir-se de si mesmo e do mundo inteiro. Ah, a ferida ainda não flo­rescera, o seu coração continuava a lutar com o destino, o seu sofrimento ainda não irradiava serenidade e vitória. Mas tinha esperança e, ao regressar à cabana, sentiu um desejo irreprimível de se abrir perante Vasudeva, de lhe mostrar tudo, de contar tudo a ele, mestre na arte de escutar.

Vasudeva estava sentado na cabana, entrançando um cesto. Já não conduzia o barco, os seus olhos começavam a tornar-se fracos, e não apenas os seus olhos, também os braços e mãos. Apenas a alegria e a serena benevolência do seu rosto permaneciam inalteradas, florescentes.

Siddhartha sentou-se junto do ancião e, lentamente, começou a falar. Falou de tudo o que nunca falara antes, da sua ida para a cidade, daquela vez, da ferida ardente, da sua inveja ao ver os pais felizes, de como sabia que tais desejos eram loucos, da sua luta vã contra eles. Relatou tudo, podia dizer tudo, até o mais difícil, disse tudo, mos­trou tudo, podia contar tudo. Expôs-lhe a sua ferida, rela­tou-lhe a sua fuga desse dia, como atravessara o rio, fugitivo infantil, a sua intenção de caminhar até à cidade, o riso do rio.

Enquanto falava, enquanto Vasudeva o escutava, Siddhartha sentiu a atenção de Vasudeva mais forte do que nunca até então, sentiu como a sua dor, a sua angús­tia, fluía em direcção a ele, sentiu como a sua secreta esperança fluía em direcção a ele e regressava. Mostrar a sua ferida a este ouvinte era o mesmo que banhá-la no rio, até ela arrefecer e ficar una com o rio. Enquanto continuava a falar e a confessar-se, Siddhartha sentia cada vez mais que este não era já Vasudeva, não era já uma pessoa que o escutava, que este que escutava, impassível, e absorvia a sua confissão como uma árvore absorve a chuva era um deus, era a própria eternidade. E enquanto Siddhartha dei­xava de pensar em si mesmo e na sua ferida, esta com­preensão da alteração em Vasudeva tomou conta de si, e quanto mais ele a sentia e nela se embrenhava, menos incrível lhe parecia, mais via que tudo era natural e estava em ordem, que Vasudeva havia muito que estava assim, fora assim quase desde sempre, que apenas ele não o reco­nhecera completamente, que mesmo ele pouco diferente era de Vasudeva. Sentiu que ele via agora o velho Vasudeva da mesma maneira que o povo via os deuses e que isso não poderia durar; começou, no seu coração, a despedir­-se de Vasudeva. Mas entretanto continuava a falar.

Quando acabou de falar, Vasudeva voltou para ele o seu olhar amigável, algo enfraquecido, nada disse, irra­diou silenciosamente amor e serenidade em direcção a ele, compreensão e sabedoria. Tomou a mão de Siddhartha,

conduziu-o para junto da margem, sentou-se a seu lado e sorrm ao no.

- Ouviste-o rir - disse ele. - Mas não ouviste tudo.

Escutemos, tu ouvirás mais.

Escutaram. As muitas vozes do rio cantavam doce­mente. Siddhartha olhou para a água; na água que pas­sava, surgiram-lhe imagens: surgiu o seu pai, sozinho, lamentando o filho; surgiu ele próprio, sozinho, também ele prisioneiro da saudade de um filho distante; surgiu o seu filho, também ele sozinho, um rapaz perseguindo avi­damente os desejos pela estrada ardente da sua juventude, todos eles dirigidos para os seus objectivos, todos eles possuídos pelos objectivos, todos sofrendo. O rio cantava com a voz do sofrimento, cantava com nostalgia, corria em direcção ao seu objectivo, a sua voz soava como um lamento.

            - Ouves? - perguntou o olhar mudo de Vasudeva.

            Siddhartha acenou afirmativamente.

            - Escuta melhor! - segredou-lhe Vasudeva.

Siddhartha esforçou-se por escutar melhor. A imagem de seu pai, a sua própria imagem, a imagem do filho, fluíram em conjunto, também a imagem de Kamala sur­giu e passou, a imagem de Govinda e outras imagens, todas elas passaram juntas, tornaram-se parte do rio, aspi­rando como rio ao seu objectivo, ansiando, cobiçando, sofrendo, e a voz do rio soava cheia de nostalgia, cheia de uma dor ardente, cheia de um desejo inquieto. O rio aspirava ao seu objectivo, Siddhartha via-o apressar-se, via o rio que o incluía a ele e aos seus e a todas as pes­soas que ele já conhecera, todas as ondas e toda a água se apressavam, sofriam, em direcção ao objectivo, a mui­tos objectivos, à queda de água, ao lago, aos rápidos, ao mar, e todos os objectivos eram alcançados e a todos eles se seguia um novo objectivo, a água transformava-se em vapor que subia ao céu, o vapor em chuva que caía do céu tornava-se fonte, tornava-se ribeiro, tornava-se rio, ansiava pelo que era novo, corria em direcção ao que era novo. Mas a voz ansiosa tinha-se transformado. Ouvia­-se ainda, dolorosa, à procura, mas outras vozes acom­panhavam-na, vozes da alegria e do sofrimento, vozes boas e más, sorridentes e lamentosas, centenas de vozes, milhares de vozes.

Siddhartha escutou. Era agora todo atenção, todo mer­gulhado no escutar, totalmente vazio, impregnando-se por completo; sentiu que aprendera agora a escutar até ao fim. Muitas vezes já escutara tudo isto, as muitas vozes do rio, mas hoje elas tinham um som diferente. Já não era capaz de distinguir as muitas vozes, as alegres das chorosas, as infantis das adultas, estavam todas juntas, lamento de sau­dade e sorriso do sábio, grito de ira e gemido do mori­bundo, tudo era uno, tudo estava interligado e combinado, enlaçado de mil maneiras diversas. E tudo junto, todas as vozes, todos os objectivos, toda a nostalgia, todo o sofri­mento, todo o prazer, tudo o que é bom ou mau, tudo junto era o mundo. Tudo junto era o fluxo dos acontecimentos, era a música da vida. E quando Siddhartha escutava com atenção este rio, esta canção a mil vozes, quando não es­cutava apenas o lamento ou o sorriso, quando a sua alma não se prendia a apenas a uma voz e entrava nela com o seu Eu, mas antes de tudo escutava a totalidade, quando acolhia a unidade, então a grande canção a mil vozes con­sistia apenas numa única palavra, chamada Om: a Perfeição.

- Ouves? - perguntou-lhe novamente o olhar de Vasudeva.

O sorriso de Vasudeva cintilou, flutuou luminoso sobre todas as rugas do seu rosto envelhecido, tal como o Om flutuava sobre todas as vozes do rio. O seu sorriso cinti­lou, ao olhar para o seu amigo; no rosto de Siddhartha cintilava agora o mesmo sorriso. A sua ferida florescera, a sua dor irradiava, o seu Eu mergulhara na unidade.

Nesse momento Siddhartha desistiu de lutar com o des­tino, desistiu de sofrer. No seu rosto brilhava a serenidade da sabedoria a que nenhuma vontade se opõe, que conhece a perfeição, que está em sintonia com o fluxo dos acon­tecimentos, com o curso da vida, cheia de compaixão, cheia de simpatia, entregue à corrente, parte da unidade.

Quando Vasudeva se ergueu do seu lugar junto à margem, quando olhou para os olhos de Siddhartha e viu neles a serenidade da sabedoria, tocou-lhe suavemente no ombro com a mão, à sua maneira cautelosa e terna, e disse:

- Esperei por esta hora, meu amigo. Agora que ela chegou, deixa-me partir. Esperei muito tempo por esta hora, fui durante muito tempo o barqueiro Vasudeva. Agora             chega. Adeus, cabana, adeus, rio, adeus, Siddhartha.

Siddhartha respondeu-lhe com uma reverência profunda. - Já sabia - disse devagar. - Irás para a floresta? - Vou para a floresta, vou mergulhar na unidade ­disse Vasudeva, radiante.

Partiu radiante; Siddhartha ficou a vê-lo partir. Olhou-o com profunda alegria, com grande seriedade, viu os seus passos cheios de paz, viu a sua cabeça brilhante, viu a sua forma cheia de luz.

 

GOVINDA

Govinda demorou-se algum tempo, com outros mon­ges, descansando no jardim dos prazeres que a cortesãKamala oferecera aos discípulos de Gotama. Ouviu falar de um velho barqueiro que vivia junto ao rio, a um dia de viagem, e a quem muitos consideravam um sábio. Quando retomou a sua caminhada, decidiu seguir a estrada que o levaria até esse barqueiro, ansioso por vê-lo, pois, embora tivesse vivido toda a sua vida de acordo com as regras, embora fosse respeitado pelos monges mais jovens devido à sua idade e discrição, no seu coração ainda não se apagara a inquietação e a procura.

Chegou ao rio, pediu ao velho que o transportasse e, quando desceram do barco na outra margem, perguntou-lhe:

- Revelaste muita bondade na maneira como nos tra­tas, monges e peregrinos; transportaste já muitos dos nos­sos. Não és tu também, barqueiro, um homem à procura   do caminho certo?

Siddhartha disse, os seus velhos olhos sorrindo:

- Chamas a ti mesmo um homem à procura, ó Venerável, embora sejas já de idade avançada e uses o manto dos monges de Gotama?

- Sou realmente velho - disse Govinda -, mas aindà não desisti de procurar. Nunca desistirei de procurar, tal é a minha decisão. Também tu, pelo que me parece, andaste   à procura. Quererás dizer-me uma palavra, ó Venerado?

Siddhartha disse:

- O que poderia ter eu para te dizer, ó Venerável? Talvez dizer-te que procuras demasiado? Que enquanto       procurares nunca conseguirás encontrar?

- Como assim? - perguntou Govinda.

- Quando alguém procura - respondeu Siddhartha ­pode acontecer que os seus olhos vejam apenas a coisa que ele procura, que não permitam que ele a encontre por­que ele pensa sempre e apenas naquilo que procura, por­que ele tem um objectivo, porque está possuído por esse objectivo. Procurar significa ter um objectivo. Mas encon­trar significa ser livre, manter-se aberto, não ter objecti­vos. Tu, Venerável, és talvez um homem à procura, pois, perseguindo o teu objectivo, muitas vezes não vês aquilo que está perante os teus olhos.

            - Ainda não te compreendo perfeitamente - disse

            Govinda -, o que queres dizer com isso?

            Siddhartha disse:

            - Um dia, ó Venerável, há muitos anos, estiveste já junto deste rio, encontraste um homem que dormia e sen­taste-te junto dele para protegeres o seu sono. Mas tu, Govinda, não reconheceste aquele que dormia.

            Espantado, como que enfeitiçado, o monge olhou para os olhos do barqueiro.

- És tu, Siddhartha? - perguntou com voz receosa. - Mais uma vez não te teria reconhecido! Saúdo-te com todo o meu coração, Siddhartha, sinto-me feliz por voltar a ver-te! Mudaste muito, meu amigo - e agora és um barqueiro ?

Siddhartha sorriu com amizade.

            - Um barqueiro, sim. Muitas pessoas, Govinda, têm que mudar muito, têm que usar vários mantos, e eu sou uma delas. Sê bem-vindo, Govinda, e passa a noite na minha cabana.

Govinda passou a noite na cabana e dormiu na cama que em tempos fora de Vasudeva. Colocou muitas per­guntas ao amigo da sua juventude, Siddhartha foi obri­gado a contar-lhe muitas coisas da sua vida.

Quando, na manhã seguinte, estava na hora de retomar a sua peregrinação, Govinda perguntou, hesitando um pouco:

- Antes de eu retomar o meu caminho, Siddhartha, permite-me ainda uma última pergunta. Tens uma dou­trina? Tens uma crença ou um conhecimento que sigas, que te ajude a viver e a proceder correctamente?

Siddhartha disse:

            - Tu sabes, amigo, que já quando era um jovem, quando vivíamos na floresta com os penitentes, desconfiava de doutrinas e de mestres e virei-lhes as costas. Permaneci fiel a esse caminho. Tive, no entanto, desde esses tempos, muitos mestres. Uma bela cortesã foi durante muito tempo minha mestra e um rico comerciante foi meu mestre, e ainda alguns jogadores de dados. Certa vez, também um dos discípulos errantes do Buda foi meu mestre; sentou­-se junto a mim quando eu adormeci na floresta, durante a sua peregrinação. Também com ele aprendi, também a ele estou agradecido. Mas a maior parte aprendi com este rio e com o meu antecessor, o barqueiro Vasudeva. Era um homem muito simples, Vasudeva não era um pensa­dor, mas sabia o mais importante tão bem quanto Gotama, era um ser perfeito, um santo.

Govinda disse:

            - Parece-me, Siddhartha, que ainda aprecias a troça.

Acredito em ti e sei que não seguiste nenhum mestre. Mas não terás, tu sozinho ou com uma doutrina, encontrado cer­tas ideias, certos conhecimentos, que agora são os teus e que te ajudam a viver? O meu coração alegrar-se-ia, caso pudesses dizer-me algo sobre isso.

Siddhartha disse:

            - Por vezes tive ideias, sim, e conhecimentos. Senti por vezes, por uma hora ou por um dia, sabedoria dentro de mim, tal como sentimos a vida dentro do nosso cora­ção. Foram muitas as ideias, mas seria difícil eu partilhá­-las contigo. Sabes, Govinda, esta é uma das ideias que eu descobri: a sabedoria não pode ser partilhada. A sabe­doria que um sábio tenta partilhar soa sempre a loucura. - Estás a brincar comigo? - perguntou Govinda. - Não estou a brincar. Digo-te aquilo que descobri.

Podemos partilhar conhecimentos, mas não a sabedoria. Podemos encontrá-la, podemos vivê-la, podemos ganhar importância com ela, podemos fazer maravilhas com ela, mas não podemos comunicá-la e ensiná-la. Foi isto que por vezes pressentia, quando ainda era um aprendiz, aquilo que me afastou dos mestres. Descobri uma ideia, Govinda, que tu tomarás por troça ou por loucura, mas que é a minha melhor ideia. É assim: para cada verdade, o contrário é igualmente verdade! Mais concretamente: uma verdade apenas se deixa exprimir e envolver em palavras quando é parcial. Tudo o que pode ser pensado com o pensamento ou dito com palavras é parcial, tudo é parcial, tudo é metade, a tudo falta totalidade, integralidade, unidade. Quando o sublime Gotama ensinava acerca do mundo, era obrigado a dividi-lo em Sansara e Nirvana, em ilusão e verdade, em sofrimento e libertação. Não podia ser de outra forma, não há outro caminho para aqueles que que­rem ensinar. Mas o mundo, aquilo que existe à nossa volta e dentro de nós, nunca é parcial. Uma pessoa ou uma acção nunca são completamente Sansara ou completamente Nirvana, uma pessoa nunca é completamente santa ou completamente pecadora. Parece ser assim, porque esta­mos subjugados pela ilusão de que o tempo é algo real. O tempo não existe, Govinda, vi-o inúmeras vezes. E se o tempo não existe, também não existe a aparente dife­rença entre mundo e eternidade, entre sofrimento e bem­-aventurança, entre mal e bem, é também uma ilusão.

- Como assim? - perguntou Govinda, angustiado.       - Ouve bem, meu amigo, ouve bem! O pecador, que eu e tu somos, é um pecador, mas voltará um dia a ser Brama, alcançará um dia o Nirvana, será Buda - e agora vê: este «um dia» é uma ilusão, é uma metáfora. O peca­dor não está a caminho de se transformar em Buda, não está a evoluir, embora a nossa maneira de pensar não con­siga apresentar a situação de outra forma. Não, o futuro Buda está já, aqui e agora, no pecador, o seu futuro está já todo lá, tens dentro dele, dentro de ti, em todos os que se transformam, um Buda oculto para venerar. O mundo, amigo Govinda, não é imperfeito nem está preso num caminho lento para a perfeição: não, o mundo é perfeito em todos os instantes, a misericórdia já contém em si todos os pecados, todas as criancinhas têm já dentro de si a velhice, todas as crianças de peito têm a morte, todos os moribundos têm a vida eterna. Não é possível a uma pes­soa ver, através de outrem, quanto caminho já percorreu; o Buda aguarda dentro dos salteadores e dos jogadores de dados, o salteador aguarda dentro dos brâmanes. Existe, na meditação profunda, a possibilidade de abolir o tempo, de ver em simultâneo toda a vida que aconteceu, que acon­tece e que irá acontecer, e aí tudo é bom, tudo é perfeito, tudo é Braman. Por isso tudo o que existe me parece bom, a morte e a vida, o pecado e a santidade, a sensatez e a loucura, tudo é necessário dessa maneira, tudo necessita apenas do meu acordo, da minha boa vontade, da minha afectuosa compreensão; assim, tudo é bom para mim, pode apenas encorajar-me, nunca me pode prejudicar. Senti no meu corpo e na minha alma que precisava muito do pecado, precisava da luxúria, da ambição e da vaidade, precisava do desespero mais ultrajante, para aprender a não lhes resistir, para aprender a amar o mundo, para não mais o comparar com qualquer outro mundo por mim desejado ou imaginado, com uma forma de perfeição concebida por mim, mas sim para o deixar ser como é, para amá-lo e sentir-me feliz por lhe pertencer. Isto, Govinda, são algu­mas das ideias que me acorreram ao espírito.

            Siddhartha debruçou-se, apanhou uma pedra do chão e baloiçou-a na mão.

- Isto aqui - disse com ar divertido - é uma pedra e um dia virá talvez a ser terra; a partir da terra virá a ser planta, ou animal ou pessoa. Anteriormente, eu teria dito: «esta pedra é apenas uma pedra, é inútil, pertence ao mundo de Maja; mas porque ela pode, no ciclo das metamorfo­ses, vir a ser também pessoa e espírito, por isso eu tam­bém lhe dou importância». Anteriormente eu teria talvez pensado assim. Mas hoje em dia penso: esta pedra é pedra, mas é também animal, é também deus, é também Buda, não a venero e amo por poder vir a tornar-se nisto ou naquilo, mas porque ela é tudo, há muito tempo e para sempre - e é exactamente isto, o facto de ser pedra, o facto de parecer uma pedra, que faz com que eu a ame, com que eu veja valor e sentido em cada um dos seus veios e cavidades, no amarelo, no cinzento, na dureza, no som que emite quando lhe bato, na secura ou humidade da sua superfície. Existem pedras que parecem azeite ou sabão, outras que parecem folhas, outras que parecem areia, cada uma delas é especial e pronuncia o Om à sua maneira, cada uma delas é Braman, mas ao mesmo tempo é realmente uma pedra, assemelha-se ao azeite ou ao sabão, e é isso que nela me agrada e me parece maravilhoso e digno de adoração. Mas chega de falar disso. As palavras não fazem bem ao sentido oculto, tudo o que é igual torna­-se sempre um pouco diferente quando é dito em voz alta, um pouco falseado, um pouco louco - sim, e também isto é muito bom e me agrada bastante, também com isto estou de acordo, que aquilo que é tesouro e sabedoria para uma pessoa, seja sempre uma loucura para as restantes. Govinda escutara-o em silêncio.

- Porque me falaste da pedra? - perguntou ele, depois de uma pausa, hesitante.

- Foi sem intenção. Ou talvez assim estivesse deter­minado, que eu amasse justamente a pedra, o rio e todas estas coisas que nós vemos e com as quais podemos apren­der. Posso amar uma pedra, Govinda, e também uma árvore ou um pouco de casca. Tudo isto são coisas, coisas que nós podemos amar. Mas não posso amar palavras. É por isso que não aprecio as doutrinas, não têm dureza ou moleza, não têm cores, não têm arestas, não têm cheiro, não têm gosto, nada têm senão palavras. Talvez seja isto que te impede de encontrares a paz, talvez sejam as pala­vras em excesso. Porque também libertação e virtude, tam­bém Sansara e Nirvana são meras palavras, Govinda. Nada existe que seja o Nirvana; apenas existe a palavra Nirvana. Govinda disse:

- Não é apenas uma palavra, amigo, é o Nirvana. É uma ideia.

Siddhartha prosseguiu:

            - Uma ideia, pode ser. Devo confessar-te, meu amigo, que não vejo grande diferença entre ideias e palavras. Para dizê-lo claramente, não tenho grande opinião das ideias. Prefiro as coisas. Aqui neste barco, por exemplo, esteve um homem que foi o meu antecessor e mestre, um homem santo, que durante muitos anos apenas acreditou no rio e em nada mais. Ele apercebeu-se que a voz do rio lhe falava e aprendeu com ela, ela educou-o e ensinou-o, o rio era para ele um deus, durante muitos anos não soube que cada vento, cada nuvem, cada ave, cada escaravelho, eram igual­mente divinos, que sabiam e podiam ensinar-lhe tanto como o rio que ele venerava. Mas quando este santo par­tiu para a floresta sabia tudo, sabia mais do que tu e eu, sem mestres, sem livros, apenas porque acreditara no rio. Govinda disse:

            - Mas isto, a que tu chamas «coisas», é algo de real, algo de concreto? Não será apenas ilusão de Maja, ape­nas ilusão e aparência? A tua pedra, a tua árvore, o teu rio - serão mesmo reais?

 

- Também isso - disse Siddhartha - já não me preo­cupa. Se as coisas forem aparência, também eu sou apa­rência e elas são, assim, iguais a mim. É isso que as toma tão queridas e veneráveis aos meus olhos: elas são iguais a mim. É por isso que as posso amar. E isto é um ensi­namento que te fará rir: o amor, Govinda, parece-me ser o mais importante. Compreender o mundo, explicá-lo, des­prezá-lo, são coisas que poderão agradar aos grandes pen­sadores. Mas eu considero mais importante amar o mundo, não o desprezar, não o odiar nem me odiar, observá-lo, a mim e a todos os seres com amor e admiração e respeito.

- Isso eu compreendo - disse Govinda. - Mas foi exactamente a isso que ele, o Sublime, chamou ilusão. Oferecia benevolência, indulgência, compaixão, abnega­ção, mas não amor; proibia-nos de acorrentarmos o nosso coração ao amor terreno.

- Eu sei - disse Siddhartha. O seu sorriso brilhou como ouro. - Eu sei, Govinda. E aqui estamos nós, per­didos no interior do significado, lutando por causa de pala­vras. Porque tenho que admitir que as minhas palavras acerca do amor estão em oposição, em clara oposição, às palavras de Gotama. Mas justamente por causa disso eu desconfio tanto das palavras, porque sei que esta oposi­ção é uma ilusão. Eu sei que estou unido a Gotama. Como poderia Ele não conhecer o amor? Ele, que reconheceu toda a efemeridade e futilidade da humanidade, e que ape­sar disso amava tanto as pessoas que empregou uma vida longa e cansativa apenas a ajudá-las e ensiná-las! Também nele, também no teu grande mestre, prefiro a coisa à pala­vra, a sua acção e vida são mais importantes que o seu discurso, os gestos das suas mãos mais importantes que as suas ideias. Não vejo a sua grandeza no falar ou no pensar, apenas no agir, no viiver.

            Os dois velhos estiveram muito tempo silenciosos. Depois Govinda falou, quando fez uma vénia à despedida:

- Agradeço-te, Siddhartha, por me teres falado das tuas ideias. São em parte ideias estranhas, nem todas fica­ram imediatamente claras para mim. Seja como for, agra­deço-te e desejo-te muitos dias de paz.

(Secretamente, porém, para si, pensou: Siddhartha é um homem incrível, fala de ideias incríveis, a sua dou­trina parece louca. A doutrina pura do Sublime é dife­rente, mais clara, mais pura, mais inteligível, nada contém de estranho, de louco ou de ridículo. Mas diferentes das ideias de Siddhartha são as suas mãos e pés, os seus olhos, a sua fronte, a sua respiração, o seu sorriso, a sua sauda­ção, o seu andar. Nunca mais, desde que o nosso sublime Gotama alcançou o Nirvana, nunca mais encontrei uma pessoa perante a qual sentisse: aqui está um santo! Apenas Siddhartha me pareceu assim. Embora a sua doutrina seja estranha e as suas palavras pareçam loucas, o seu olhar e a sua mão, a sua pele e o seu cabelo, tudo nele irradia uma pureza, irradia uma paz, irradia uma serenidade e uma doçura e uma santidade como nunca voltei a ver numa pessoa desde a recente morte do nosso sublime mestre).

Enquanto Govinda assim pensava e travava uma luta dentro do seu coração, fez mais uma vénia a Siddhartha, impelido pelo amor. Fez uma profunda vénia perante aquele que estava sentado.

- Siddhartha - disse -, tornámo-nos homens velhos. Dificilmente nos voltaremos a ver nesta forma. Vejo, que­rido amigo, que encontraste a paz. Reconheço que eu não a encontrei. Diz-me, Venerável, uma derradeira palavra, dá-me algo que eu possa compreender! Dá-me algo para o meu caminho. Ele é muitas vezes penoso, muitas vezes obscuro, Siddhartha.

Siddhartha ficou silencioso e olhou-o com o seu sor­riso calmo, sempre igual. Govinda encarou-o fixamente, com medo, com saudade. No seu olhar estavam escritas a dor e uma busca eterna, eternamente em vão.

Siddhartha viu-o e sorriu.

            - Inclina-te para mim! - segredou docemente ao ouvido de Govinda. - Inclina-te para mim! Assim, mais perto! Mais perto! Beija-me na fronte, Govinda!

Enquanto Govinda obedecia às suas palavras, perplexo mas atraído por um amor ainda maior e por um pressen­timento, enquanto se inclinava para perto dele e tocava a sua fronte com os seus lábios, uma coisa maravilhosa acon­teceu. Enquanto o seu pensamento ainda se detinha nas incríveis palavras de Siddhartha, enquanto se esforçava em vão, resistindo, por afastar a ideia do tempo, por ima­ginar o Nirvana e o Sansara como uma unidade, enquanto um certo desprezo pelas palavras do amigo lutava com um imenso amor e respeito, aconteceu o seguinte:

Deixou de ver o rosto do seu amigo Siddhartha, via em vez dele outros rostos, muitos, uma grande quantidade, um fluxo contínuo de rostos, centenas, milhares de rostos que vinham e passavam, mas que pareciam estar ali todos ao mesmo tempo, rostos que se transformavam e renova­vam e que no entanto eram, todos eles, Siddhartha. Viu o rosto de um peixe, uma carpa, com a boca dolorosamente aberta, um peixe moribundo, de olhos abertos. Viu o rosto de um recém-nascido, vermelho e enrugado, deformado pelas lágrimas. Viu o rosto de um assassino, viu-o cravar uma faca no corpo de uma pessoa. Viu, no mesmo segundo, este criminoso a ajoelhar-se, amarrado, e a sua cabeça a ser decepada por um golpe da espada do carrasco. Viu os corpos de homens e mulheres nus, nas posições e disputas de um amor ardente. Viu cadáveres deitados, imóveis, frios, vazios. Viu cabeças de animais, de javalis, de cro­codilos, de elefantes, de búfalos, de aves. Viu deuses, viu Krishna, viu Agni. Viu todas estas formas e rostos rela­cionando-se de mil formas diversas, cada um deles aju­dando os outros, amando-os, odiando-os, negando-os, dando-os novamente à luz, cada um deles ansiava por mor­rer, era uma confissão dolorosa da transitoriedade da vida, mas nenhum morria, apenas se transformava, renascia, recebia um rosto novo sem que houvesse um intervalo de tempo entre um rosto e o outro - e todas estas formas e estes rostos repousavam, fluíam, procriavam, passavam uns pelos outros e estavam cobertos por algo fino, ima­terial mas real, como uma fina cobertura de vidro ou gelo, como se fora uma pele transparente, um véu ou forma ou máscara de água; esta máscara sorria, esta máscara era o rosto sorridente de Siddhartha que ele, Govinda, nesse mesmo instante tocava com os seus lábios. E, assim o viu Govinda, o sorriso da máscara, o sorriso da unidade sobre o fluxo de formas, este sorriso da simultaneidade sobre os milhares de nascimentos e mortes, este sorriso de Siddhartha era exactamente o mesmo, era exactamente igual ao sorriso multiforme de Gotama, o Buda, sereno, fino, impenetrável, talvez bondoso, talvez irónico, sábio, um sorriso que ele próprio observara mil vezes com vene­ração. Govinda sabia que assim sorriam os seres perfeitos.

 

sem saber se o tempo existia, se aquele espectáculo durara um segundo ou cem anos, já sem saber se existia um Siddhartha, um Gotama, Eu e Tu, ferido no seu âmago como se tivesse sido atingido por uma flecha divina que lhe criara uma doce ferida, encantado e desfeito no seu íntimo, Govinda permaneceu de pé ainda um breve momento, inclinado para o rosto sereno de Siddhartha que acabara de beijar, que acabara de ser palco. de todas as formas, tudo o que era presente e futuro. -A face perma­neceu inalterada depois de se terem fechado, sob a sua superfície, as profundezas da multiplicidade. Sorria sere­namente, sorria doce e delicadamente, talvez muito bon­doso, talvez muito irónico, exactamente como ele, o Sublime, sorria.

Govinda fez uma profunda vénia, as lágrimas corriam­-lhe pelo rosto velho sem que ele as sentisse, o sentimento de um amor efusivo, de adoração humilde, queimava como fogo no seu coração. Fez uma profunda vénia, até ao chão, perante aquele que permanecia sentado, impassível, e cujo sorriso lhe recordava tudo o que jamais amara na sua vida, tudo o que na sua vida lhe fora querido e sagrado.

 

                                                                                            Hermann Hesse  

 

                      

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