Encarregaram ao inspetor Cet que reabra um espinhoso caso fechado há três anos atrás. Trata-se da morte, em estranhas circunstâncias de um homem que trabalhava. para o Ministério de Assuntos Exteriores, cuja viúva pretende casar-se agora com um colega de seu finado marido. O que o inspetor e sua sagaz esposa Charlote ignoram é que atrás de todo esse turvo assunto há um labirinto de vergonhosas relações sexuais e inclusive um caso de espionagem internacional.
É um daqueles policiais que, quando chega à metade mais ou menos,a gente quer ir lá para o fim e ao mesmo tempo ler devagar para conhecer todo o processo de resolução. E dá uma vontade enorme de acabar com o chefe de Pitt. Pitt é encarregado de investigar o roubo, seguido de morte,de um alto funcionário dogoverno, cometido há três anos. Não tem nenhuma pista. Mas fica sabendo, por uma criada, da existência de uma misteriosa mulher (linda e de classe) sempre vestida de tons cereja. No entanto, a criada sofre um estranho acidente. Charlotte e Emily resolvem colaborar. Emily, com grande risco, infiltra-se na casa onde a criada e o alto funcionário foram mortos. A situação complica-se quando Pitt é acusado e preso pela morte da mulher "Cereja". Cabe à Charlotte, ajudada por Emily, tia Vespasia e Jack (pretendente de Emily) desvendar o caso. E muita sujeira vem à baila...
—A delegacia de polícia, senhor! -disse o cocheiro em voz alta, antes inclusive de que se detivessem os cascos do cavalo. Sua voz expressava desagrado; não gostava daquele tipo de lugares. O fato de que aquele em concreto estivesse situado em meio da elegância aristocrática do Mayfair não era compensação alguma.
Pitt desceu, pagou-lhe e subiu os degraus de pedra, para entrar a seguir.
—Sim, senhor? -disse o sargento sentado à mesa de recepção.
—Sou o inspetor Pitt, do Bow Street - disse este com tom cortante - Queria ver o oficial superior de guarda.
O sargento respirou fundo enquanto o observava com olho crítico. Pitt não correspondia com a ideia que o sargento tinha de um oficial de graduação superior: tinha um aspecto descuidado. De fato vestia com franco desalinho, com a roupa má ajustada e os bolsos cheios de porcarias. Era desencorajador vê-lo. Parecia como se nunca tivesse se entendido com as tesouras de um barbeiro -quando muito com umas de podar. Contudo, o sargento tinha ouvido o nome do Pitt e respondeu com certo respeito.
—Sim, senhor. Terá que ser com o inspetor Mowbray. Informarei-lhe que está
aqui. Pode me dizer o motivo de sua visita, senhor?
Pitt esboçou um sorriso.
—Sinto muito. trata-se de um assunto confidencial.
—Muito bem, senhor. -O sargento se voltou impassível e saiu, enquanto Pitt permanecia de pé. Retornou uns minutos mais tarde.
—Se entrar por aquela porta, a segunda à esquerda, senhor, o inspetor Mowbray o receberá.
Mowbray era um homem moreno, parcialmente calvo e de rosto inteligente.
Parecia sentir curiosidade quando Pitt entrou e fechou a porta.
—Sou Pitt -se apresentou este, enquanto estendia a mão.
—Ouvi falar de você. -Mowbray lhe deu a mão com firmeza, o que lhe ofereço?
—Preciso ver os informes de sua investigação do roubo cometido em uma casa de Hanover Close, faz uns três anos, em 17 de outubro de 1884, para ser exato.
O rosto do Mowbray expressou surpresa compungida.
—Mal assunto. Não é habitual que o roubo em uma casa acabe em assassinato, não nessa zona. Mau, muito mau. Não podemos descobrir nada, arqueou as sobrancelhas.
—Tem você algo? achou-se por fim algum dos objetos de valor?
—Não, não se trata disso. Sinto muito-desculpou-se Pitt. Sentia-se culpado por meter-se no caso do outro inspetor e ao mesmo tempo zangado porque aquela indagação era uma manobra, não seu objetivo real, além de que provavelmente ia ser inútil.
Pitt detestava o modo como o tinham metido naquele caso. Mowbray deveria ser quem faria aquilo, mas, como o assunto implicava a delicada questão da reputação de uma mulher, uma vítima distinta de uma poderosa família e, sobre tudo, como tinha levantado o leve rumor da possibilidade de uma traição, o Foreign Office tinha usado sua influência para transpassar a investigação ao Ballarat, pois deste modo pensavam exercer algum controle sobre a mesma.
O superintendente Ballarat era um homem com uma aguda sensibilidade para captar o que desejavam seus superiores e com uma bem nutrida ambição para ascender o suficiente em sua profissão para ser socialmente aceitável, quase se podia considerá-lo um gentleman, feito a si mesmo. Não se dava conta de que aqueles a quem mais desejava impressionar era capaz em todo tempo de distinguir as origens de um homem simplesmente pela forma como se desembaraçava , ou pela maneira de pronunciar uma vogal em uma palavra determinada.
Pitt era filho de um guarda-florestal e se criou em uma grande propriedade campestre.
Tinham-no educado com o filho da casa e se desembaraçava de uma forma bastante aceitável com gente de alta sociedade. Além disso, casara-se com uma mulher de classe social superior à sua, o que havia lhe valido poder relacionar-se com um mundo proibido para a maioria dos policiais. Ballarat não gostava de Pitt, cujas maneiras considerava insolente, mas tinha que admitir que era sem dúvida o homem idôneo para aquela investigação. E o admitia, embora a contra gosto.
Mowbray o olhou com um leve sentimento de decepção que desapareceu com rapidez. Ao que parecia não imaginava nada.
—Ah, já. Bem, será melhor que fale primeiro com o agente Lowther, que foi quem achou o cadáver. Naturalmente pode ler os informes que se redigiram na época. Não é muito. -Sacudiu a cabeça. - Tentamos seriamente, mas não havia testemunhas, nem jamais se achou nenhum dos objetos de valor roubados.
Pensamos na possibilidade de que tivesse sido alguém de dentro... Interrogamos todo o pessoal, mas não conseguimos nada.
—Acredito que começarei por fazer isso mesmo -disse Pitt a modo de elogio indireto.
—Aceita uma xícara de chá enquanto mando chamar o Lowther?-ofereceu-lhe
Mowbray-. Faz um dia de cão. Não estranharia que nevasse antes do Natal.
—Obrigado -aceitou Pitt.
Dez minutos mais tarde, estava sentado em outra pequena e gélida sala com um vacilante lampião de gás na parede, por cima de uma mesa muito gasta. Um fino dossiê de papéis descansava sobre a mesma, enquanto em frente do Pitt acabava de apresentar-se solícito um agente com ar tímido e rígido, de botões reluzentes.
Pitt lhe disse que se sentasse.
—Sim, senhor -obedeceu Lowther nervoso. Recordo o crime de Hanover
Close com bastante clareza, senhor. O que lhe interessa saber?
—Tudo, -pegou o bule e encheu uma xícara sem perguntar nada. Passou-a ao
Lowther, que abriu os olhos surpreso.
—Obrigado, senhor. -Deu um gole agradecido, recuperou a compostura e começou em voz baixa-: Eram três e cinco da madrugada de 17 de outubro de faz agora três anos. Eu estava de serviço noturno e fazia a ronda por Hanover Close...
—Cada quanto tempo? -interrompeu-lhe Pitt.
—Cada vinte minutos, senhor. A intervalos regulares.
Pitt esboçou um leve sorriso.
—Já sei que a norma é essa. Mas tem certeza de que naquela noite não o reteve nada em algum outro lugar? -Deu deliberadamente a oportunidade ao Lowther de fugir da culpa se fosse necessário sem necessidade de faltar à verdade-. Não se achou com nenhum problema em nenhum outro lugar?
-Não, senhor. -Lowther o olhava com uns olhos azuis totalmente inocentes.
- Ás vezes surge algum incidente que me atrasa, mas naquela noite não. Levava a ronda quase com toda exatidão, minuto acima, minuto abaixo. Por isso me chamou a atenção à janela quebrada do número dois, porque sabia que não estava quebrada vinte minutos antes. Além disso era uma janela dianteira, o que não deixava de ser curioso. Os ladrões costumam agir pela parte detrás, vão com um menino bastante magricelo para passar entre os barrotes e lhes abrir a porta.
Pitt assentiu.
—De modo que cheguei até a porta do número dois e bati –prosseguiu Lowther-. Armei um follón de mil demônios... -ruborizou-se-. Desculpe, senhor, o caso é, que tive que bater com muita insistência para que descessem para abrir. Um criado abriu ao fim de uns cinco minutos. Estava meio adormecido e levava um casaco por cima da camisola. Perguntei-lhe pela janela quebrada e ele se sobressaltou, e levou-me ao aposento da frente, que era a biblioteca. -O agente respirou fundo, mas sustentava o olhar do Pitt sem pestanejar-. Em seguida vi que tinha acontecido algo: duas pesadas poltronas estavam tombadas de lado, havia meia dúzia de livros atirados pelo chão, voltados ao contrário, e um vaso derrubado e quebrado em cima de uma mesa, e o chão cheio de vidros que refletiam a luz.
—A luz? -perguntou Pitt.
—O criado tinha acendido os lampiões de gás -explicou Lowther-. Estava assustado, poderia jurar.
—Que mais?
—Entrei até o centro da sala. -Seu rosto se escureceu ante a aguda lembrança da mortalidade humana. - Vi o corpo de um homem no chão, senhor.
Via a metade de seu rosto e as pernas estavam um pouco dobradas, como se lhe tivessem surpreendido pelas costas. O cabelo estava emaranhado de sangue -acariciou a têmpora direita- e sobre uma mesinha havia um cavalo de bronze grosso, de uns vinte e cinco centímetros de altura, situado a menos de meio metro do homem. Estava vestido com um roupão por cima de uma camisola de dormir de seda, e chinelos nos pés.
“Aproximei-me para comprovar se havia algo que pudesse fazer por ele, embora”.
Desde o primeiro momento supus que estava morto. -A expressão da compaixão que sente um adulto para um menino cruzou por seu rosto-. O criado não passaria dos vinte anos, se é que os tinha, e teve que sentar porque se sentiu mal de repente. Disse: "O, Meu deus! É o senhor Robert! Pobre senhora York!"
—E o homem estava morto? -disse Pitt.
—Sim, senhor. Mas ainda estava quente. E certamente a janela não estava quebrada
quando eu passei vinte minutos antes.
—O que fez você então?
—Bom, era evidente que se tratava de um assassinato, e tudo parecia indicar que quem o tinha cometido tinha forçado a janela do exterior: os vidros estavam dentro e o trinco não estava fechado. Escureceu-lhe - Escureceu-lhe o rosto de novo-. Mas era um trabalho sujo: nem cortador de vidro nem nada, e grande desordem!
Pitt não precisava perguntar o que era um cortador de vidro. Muitos ladrões peritos usavam o sistema de grudar papel sobre o vidro para que não se esparramassem os fragmentos de vidro enquanto cortavam, um limpo e silencioso círculo que podia ser desprendido para fora para poder passar a mão e abrir o fecho. Um ladrão profissional podia fazer o trabalho em quinze segundos.
—Perguntei ao criado se tinham um desses aparelhos telefônicos –continuou Lowther.
—Disse que sim, assim saí da biblioteca e lhe disse que ficasse junto à porta. fui procurar o telefone, chamei à delegacia de polícia e dei parte do crime. Depois desceu o mordomo. Deve ter ouvido meus golpes ao bater e ao ver que não voltava o criado desceu para ver o que acontecia. Identificou oficialmente o homem morto como Robert York, filho do honorável Piers York, o dono da casa. Mas este estava fora por assunto de negócios, de modo que não havia mais remédio senão avisar à senhora York, mãe da vítima. O mordomo foi procurar à criada da dama, se por acaso esta se impressionasse ante a notícia. Mas quando desceu e dissemos, a senhora reagiu com muita calma, com uma atitude muito digna.
—Suspirou com admiração. Essas coisas fazem ver o que é a autêntica nobreza.
Estava branca como um fantasma e parecia à morta, pobre senhora, mas em nenhum momento chorou diante de nós, somente pediu a sua criada que a ajudasse a sustentar-se um pouco.
Pitt conhecia muitas mulheres distintas que tinham sido criadas para suportar a dor física, a solidão ou a aflição mostrando ao mundo sempre um rosto sereno e derramando as lágrimas escondido. Eram o tipo de mulheres que tinham enviado seus maridos e filhos aos campos de batalha do Waterloo e Balaklava, ou a explorar o Hindu Kush, ou em busca das fontes do Nilo Azul, e depois a colonizar e administrar o Império. Muitas delas tinham ido também a terras desconhecidas e tinham resistido a privações terríveis e a perda de toda imagem e som familiar. Em sua mente, a senhora York era uma mulher como essas. Lowther seguia falando com calma enquanto rememorava a sombria casa e a dor que albergava.
—Perguntei-lhes se sentiam falta de algo. Era duro ter que interrogar a uma dama em um momento como aquele, mas tínhamos que saber os detalhes. Percorreu com toda calma e meticulosidade a sala e nos disse que, segundo o que nos podia dizer então, faltavam dois retratos emoldurados em prata e datados de 1773, um peso de papel de cristal gravado com figuras de volutas e de flores, uma jarrinha de prata que usavam para pôr flores (coisa que não era difícil comprovar, já que as flores). Estavam espalhadas pelo chão e a água vertida sobre o tapete e uma primeira edição de uma obra do Jonathan Swift. Disse-nos que não via que faltasse nada mais.
—De onde faltava o livro?
-Da estante. Estava com outros livros, senhor Pitt, o que quer dizer que o ladrão sabia que estava ali! Perguntei-lhe e me disse que não tinha nada especial na lombada se estava junto com outros livros comuns.
—Ah. -Pitt suspirou com lentidão. Mudou de assunto. - Era casado o falecido?-Perguntou.
—Oh, sim. Mas não quis incomodar a sua esposa, pobre criatura. Não tinha despertado e não vi o que podia obter tirando-a do sono no meio da noite. Melhor era deixar que sua família se encarregasse do assunto.
Pitt não conseguia culpá-lo por isso. Ter que dar as más notícias aos seres queridos da vítima era uma das tarefas mais duras em um caso de assassinato. Só havia uma coisa mais difícil, era ver os rostos das pessoas que amam ao culpado quando por fim compreendem a verdade.
—Provas materiais? -disse.
Lowther meneou a cabeça.
—Nada, senhor. Pelo menos nada que signifique muito. Não havia nada na casa que não fosse daquele lugar, nada que fizesse supor que o intruso tivesse penetrado em outras dependências além da biblioteca. Nada de rastros, nem de cabelos, nem pedaços de roupa, nada tangível. No dia seguinte perguntamos a todos os criados da casa, mas nenhum ouviu nada. Ninguém tinha ouvido a ruptura da janela. Claro que os criados dormem no mais alto da casa, nos apartamentos de cobertura, assim talvez não ouvissem nada.
—Não acharam nada no exterior? -insistiu Pitt.
Lowther sacudiu de novo a cabeça.
—Nada, senhor. Não havia rastros nas imediações da janela, embora tinha geado aquela noite, fazia um tempo infernal, e o chão estava duro como o aço. Eu mesmo não deixei rastros e peso quase noventa quilos.
—E o chão estava tão seco para não deixar sequer rastros no tapete? -perguntou Pitt.
—Nenhum, senhor, já pensei nisso.
—Nenhuma testemunha?
—Não, senhor Pitt. Eu também não vi ninguém, nem encontrei ninguém que me dissesse que tivesse visto alguém. Verá, Hanover Close é uma passagem muito discreta, não é uma rua de passagem, de modo que ninguém que não viva ali entraria nela, e menos ainda em uma fria noite de inverno como aquela. E tampouco é precisamente zona de prostitutas.
Aquilo era mais ou menos o que Pitt tinha esperado escutar, claro que sempre devia tentar. Experimentou com o último caminho evidente.
—O que me diz dos objetos roubados?
Lowther fez um gesto expressivo.
—Nada. E tentamos seriamente, pois sua subtração tinha levado a um assassinato.
— Ocorre-lhe alguma outra coisa?
—Não, senhor. Mowbray se ocupou de falar com a família. Talvez ele possa lhe dizer algo mais.
—Perguntarei. Obrigado.
Lowther parecia perplexo e só ligeiramente aliviado.
—Obrigado, senhor.
Pitt voltou para o escritório de Mowbray.
—Conseguiu o que queria? -perguntou Mowbray, enquanto seu moreno rosto se franzia em uma expressão de curiosidade e resignação. - Lowther é um bom agente: se tivesse havido algo, teria encontrado.
Pitt se sentou perto do fogo. Mowbray se deslocou um pouco para lhe fazer lugar, levantou o bule e lhe ofereceu mais chá arqueando as sobrancelhas. Pitt assentiu com a cabeça. Estava marrom escuro, passado, mas ainda quente.
—Foi você no dia seguinte? -insistiu Pitt com seu tema. Mowbray franziu o sobrecenho.
—Tão cedo como o permite o decoro. Odeio ter que fazer essas coisas, ir falar com a pessoa nos momentos de maior aflição, sem lhes haver deixado sobrepor-se sequer à primeira impressão. Mas é preciso fazê-lo. Uma lástima. York não estava na casa, só a mãe e a viúva...
—Me fale delas -lhe interrompeu Pitt-. Não se limite aos fatos, que impressão causaram-lhe? Mowbray respirou fundo e exalou devagar.
—A velha senhora York me pareceu uma mulher notável. Deve ter sido uma beleza em sua juventude, acredito, e ainda tinha uma presença agradável, muito...
Pitt não o ajudou, queria escutar as próprias palavras do Mowbray.
—Muito feminina. -Mowbray não se sentia satisfeito com aquela descrição. Enrugou a frente e piscou várias vezes-. Suave como... como essas flores dos jardins botânicos... -Seu rosto se distendeu ao dar com a imagem-. Camélias. Cores pálidas e uma forma perfeita. Toda ordem, nada do caos das flores silvestres ou das rosas tardias que caem completamente abertas. Pitt gostava das rosas tardias : eram magníficas, exuberantes. Claro que tudo era questão de gostos. Talvez Mowbray as achasse um pouco vulgares.
—O que me diz da viúva? -Pitt mantinha o tom equilibrado para não delatar nenhum interesse particular.
Mas Mowbray era muito receptivo. A boca se curvou com um ligeiro sorriso e cravou os olhos no Pitt.
—Estava tão afetada pela impressão que ficou branca como um cadáver, posso assegurar-lhe. Vi um montão de mulheres aflitas, é uma das facetas mais repugnantes deste trabalho. As que tentam exagerar, costumam chorar e desmaiar e falar sem parar sobre como se sentem. A senhora York mal articulou palavra e parecia ausente. Não olhou nos olhos, como fazem os mentirosos. De fato não acredito que lhe importasse o que pensássemos nós. Pitt sorriu contra sua vontade.
—Não era uma camélia?
Um humor tétrico brilhou nos olhos do Mowbray.
—Era um tipo de mulher completamente diferente, muito mais...
— Uma vez mais, Pitt esperou.
—Mais delicada, mais fácil de ferir. Em parte suponho que porque era mais jovem, mas me dá a impressão de que não tinha a mesma fortaleza interior. Mas por mais afetada que estivesse, era uma das mulheres mais formosas que jamais vi , alta e muito magra, como uma flor primaveril. Frágil, poderia-se dizer. Um desses rostos que não se esquecem, diferente ao da maioria. Alta face, finos ossos.
— Sacudiu ligeiramente a cabeça-. Um rosto cheio de sentimento.Pitt guardou silêncio enquanto tratava de formar uma imagem da mulher. O que temia em realidade o Foreign Office, o assassinato, a traição ou o mero escândalo? Qual era o verdadeiro motivo pelo qual tinham pedido ao Ballarat que reabrisse aquele caso? tratava-se tão somente de assegurar-se de que não havia nada sórdido que pudesse vir à superfície mais tarde e arruinar a corrida de um embaixador? Até em tão breve entrevista Pitt formou uma opinião receosa do Mowbray. Era um polícia profissional bom. Se Mowbray achava que Veronica York estava comocionada pela impressão, o mais provável era que Pitt assim o teria julgado também.
—O que disse a família? -perguntou.
—As duas damas tinham saído àquela noite para jantar com uns amigos. Tinham voltado para casa por volta das onze e foram diretamente à cama. Os criados confirmaram este ponto. Robert York tinha tido que sair para resolver certo assunto. Trabalhava no Foreign Office e era frequente que tivesse assuntos para resolver de noite. Voltou para casa depois das senhoras, embora não soubessem a que hora. Tampouco os criados sabiam. O próprio York lhes havia dito que não o esperassem levantados.
“Tudo parece indicar que estava ainda acordado quando irrompeu o ladrão”. Deve ter descido as escadas, surpreendido o intruso na biblioteca e foi assassinado por este.
—Mowbray fez uma careta-. Mas por quê? Quero dizer por que o ladrão não se escondeu, ou melhor ainda, por que não se conformou voltando a sair pela janela? O fecho não estava fechado. Era desnecessário. Tudo é muito pouco profissional.
—Qual é então sua conclusão?
—Mowbray arqueou as sobrancelhas.
—Caso sem resolver -disse, e vacilou hesitando uns segundos, como se sopesasse a possibilidade de seguir ou não adiante. Pitt bebeu o chá e deixou a xícara vazia sobre a lareira.
—Um caso estranho-disse-. O tipo sabia com exatidão quando podia introduzir-se na casa sem que o agente de polícia Lowther o visse ir e vir, embora este passasse a cada vinte minutos. E em lugar de rodear a casa até a parte detrás, longe da rua, e utilizar um comparsa que caiba entre os barrotes da cozinha, ou em vez de usar uma lingueta e um pinhão para afrouxá-los, o que faz é quebrar uma janela dianteira, e sem incomodar-se em servir-se de um cortador de vidros para evitar o ruído e dissimular o buraco. Mas sim sabe o suficiente para achar uma primeira edição do Swift, que não era coisa fácil de reconhecer Lowther me havia dito, que estava nas estantes junto com outros livros , embora em troca é tão torpe que chama a atenção do Robert York, que desce do andar de cima e o surpreende. E quando ouve York vir, em lugar de esconder-se ou fugir, o intruso o ataca com tanta fúria que o mata.
—E não vende nada do butim -concluiu Mowbray.-Sim, já sei.
—Estranho, muito estranho. Cheguei a me perguntar se não haveria algum cavalheiro do círculo de amizades do senhor York que tivesse dado para roubar de seus amigos. Comecei a investigar por essa via, com muita discrição. Até abordei ao acaso a alguma de suas amizades e os que mandam me disseram com suma elegância e frieza que melhor seria se me mantivesse em meu lugar e não piorasse a desgraça de quem sofria já bastante aflição.Ninguém me disse em realidade que o caso ia ficar sem resolver.Não falam de um modo tão direto. Bastava uma expressão de simpatia para a família e um olhar gélido para mim. Tampouco necessito que me expliquem as coisas mastigadas.
Era o que Pitt esperava. Ele também tinha vivido aquela inexpressível mas inconfundível experiência. Não é que ninguém o acredite culpado de nada, é só o respeito pela educação, pelo dinheiro e o vasto e indefinível poder que trazem consigo.
—Suponho que o melhor será que tente outra via. -Pitt ficou em pé a contra gosto. Lá fora chovia. Podia ver os largos sulcos de umidade deslizarem pela janela e apagar as sombras dos telhados e fachadas do exterior.
—Obrigado por sua colaboração, e pelo chá.
—Não o invejo. -disse Mowbray com tom irônico.
Pitt lhe devolveu um sorriso. Gostava de Mowbray e lamentava ter que retroceder os passos dados por aquele homem como se fosse pouco menos que incompetente. Condenados Ballarat e Foreign Office!
Fora, Pitt levantou a gola do casaco, ajustou o cachecol e abaixou a cabeça para enfrentar à chuva. Caminhou um pequeno trecho, com os pés chapinhando nos atoleiros, o cabelo caindo enganchado à frente e meditando sobre o que acabava de conhecer. O que procurava o Foreign Office? Uma resolução digna para um caso no qual estava envolvido um de seus homens, de modo que não pudesse converter-se em um assunto embaraçoso no futuro, como havia dito Ballarat? A viúva do Robert York se comprometera de forma não oficial com um certo Julian Danver. Se este estivesse destinado a um cargo de embaixador, ou a um posto superior, não devia haver nenhuma sombra sobre os membros de sua família, especialmente de sua mulher. Ou se produziu algum descobrimento novo em relação com o assassinato do Robert York que apontasse à traição, por isso tinham decidido recorrer ao Pitt para desentranhá-lo? Sobre ele cairia a culpa da tragédia e escândalo que teriam que acontecer de forma inevitável, com a conseguinte ruína de carreiras e reputações.
Era um trabalho muito feio, e tudo que Mowbray lhe havia dito o tornava mais feio ainda. Quem seria o outro visitante da biblioteca? E por quê? Ao chegar a Piccadilly.Pitt desceu pelo St. James, cruzou 'or Mall e desceu junto ao HorseGuards'Parade pelas árvores sem folhas e a erva açoitada pelo vento do parque, subiu pelo Downing Street até chegar ao Whitehall e ao Foreign Office. Levou um quarto de hora para persuadir os severos oficiais para que lhe permitissem acessar o departamento em que tinha trabalhado Robert York até o momento de sua morte.
Recebeu-lhe um homem diferente que aparentava uns quarenta anos, com o cabelo negro e uns olhos que num primeiro momento pareciam também escuros, mas que ao voltar-se para a luz se convertiam em uns olhos de uma chamativa e luminosa tonalidade cinza. apresentou-se com o nome do Felix Asherson e se ofereceu para prestar toda a ajuda que estivesse em suas mãos. Pitt tomou o oferecimento em sua justa e limitada medida.
—Obrigado, senhor. Apresentou-nos a ocasião de revisar o caso da trágica morte de Robert York, há três anos.
O rosto de Asherson mostrou preocupação, mas no Foreign Office as maneiras impecáveis faziam parte do negócio.
—Apanharam alguém? Pitt abordou o tema de forma indireta.
—Não, receio que não, mas o certo é que junto com o crime se produziu o roubo de vários objetos. Parece muito possível que o ladrão não fosse um ladrão qualquer, mas uma pessoa com educação, alguém que talvez procurasse algo em particular. Asherson esperava paciente.
—Seriamente? E não sabiam isso quando aconteceu?
—Sim sabíamos, senhor. Mas algumas pessoas de status -Pitt esperava que a aprendizagem da discrição no Whitehall fora suficiente para que Asherson se abstivera de perguntar quem- me pediram que reate as investigações.
—Oh! -O rosto de Asherson se retesou quase imperceptivelmente, um ligeiro movimento de músculos ao redor da mandíbula, um engrossamento do pescoço
—No que podemos ajudá-lo?
Interessante o uso do plural, pelo que exigia, um representante da secretaria, fugia envolver-se pessoalmente. Pitt escolheu as palavras com cuidado.
—Como o ladrão escolheu a biblioteca, em lugar de uma estadia mais lógica, como a sala de jantar por exemplo, onde estavam os objetos de prata, devemos considerar que o que procurava eram documentos, talvez algo no qual o senhor York estivesse trabalhando naquela época. Asherson não desejava comprometer-se.
—Seriamente? Pitt esperou. Asherson respirou fundo.
—Suponho que é possível... quero dizer que o ladrão talvez esperasse achar algo. Mas isso serve de algo agora? Além de tudo, passaram três anos.
—Nunca abandonamos por completo um caso de assassinato -replicou Pitt com suavidade. Embora aquele caso tivessem enterrado depois de seis infrutíferos meses. por que o teriam reaberto agora?
—Claro, claro... é claro -acatou Asherson-. O que pode fazer o Foreign Office para ajudá-lo?
Pitt decidiu falar sem disfarces. Sorriu ligeiramente enquanto aguentava o olhar do Asherson.
—Desapareceu alguma informação desta secretaria desde que o senhor York entrou para trabalhar aqui? Não pretendo que possa saber quando foi subtraída, somente quando se descobriu à subtração. Asherson hesitou .
—Faz-nos parecer notavelmente incompetentes, inspetor. Nós não extraviamos a informação, é muito importante.
—Então, se a informação chegar a canais não autorizados, é porque se fez chegar deliberadamente? -perguntou Pitt com inocência. Asherson deixou escapar o ar lentamente, enquanto dava tempo para pensar. A confusão se manifestou por um momento em seu rosto. Não sabia aonde queria ir parar Pitt, nem por quê.
—Houve informações que... -disse Pitt com tato, a modo de prova, metade pergunta metade asseveração. Asherson fingiu ignorância.
—Ah, sim? Então talvez fosse por isso que o pobre Robert foi assassinado. Se foi levado documentos para casa e o fato chegou ao ladrão, possivelmente...
—Deixou a frase sem concluir.
—Mas nesse caso, teria disposto de várias ocasiões para levar os papéis - insistiu Pitt-Ou sugere você talvez que só pôde fazê-lo uma vez e que por uma extraordinária coincidência o ladrão escolheu a noite precisa? Aquilo era absurdo, e ambos sabiam.
—Não, claro que não. -Asherson esboçou um sorriso imperceptível. Tinha caído, mas se sentia rancor por isso o escondia de forma admirável.
—Eu não sei o que aconteceu, mas se ele foi indiscreto, ou se tinha amigos que não mereciam sua confiança, isso mal importa agora. O pobre homem está morto, e a informação não pode ter chegado às mãos de nossos inimigos, pois a estas alturas já teríamos sofrido as consequências. E não foi assim. Isso posso dizer-lhe com certeza. Se de verdade houve uma tentativa neste sentido, fracassou. Não podem deixar em paz a sua memória... para não mencionar a sua família? Pitt se levantou do assento.
—Obrigado, senhor Asherson. foi muito franco. bom dia, senhor.
E deixou o aparentemente indeciso Asherson de pé sobre o brilhante tapete turco vermelho e azul no meio da sala.
De volta ao Bow Street no gélido entardecer, Pitt subiu as escadas até o escritório do Ballarat e bateu na porta. Ao receber a permissão, entrou. Ballarat estava de pé frente ao fogo, ao qual obstruía. Sua sala era muito diferente aos funcionais alojamentos de quartel para os policiais de serviço de graduação inferior situados no andar de baixo. A ampla escrivaninha tinha incrustações de couro verde e a poltrona era acolchoada e se movia para maior comodidade sobre um suporte giratório. No cinzeiro de pedra havia uma bituca de charuto.
Ballarat era um homem de estatura média, corpulento e um pouco curto de pernas. Mas levava as abundantes costeletas recortadas com esmero e cheirava a colônia. Vestia uma roupa impecavelmente engomada, desde as reluzentes botas granada escura até a gravata marrom presa ao redor do rígido pescoço branco. Era a antítese do desgrenhado Pitt, onde cada uma de suas roupas não combinavam com o resto e cujos bolsos caíam pelo peso dos inumeráveis objetos que albergavam. Nesse momento, uma parte de corda pendia de um deles, enquanto o cachecol confeccionado à mão lhe tampava só pela metade o pescoço macio da camisa.
—E então? -exigiu Ballarat de mau humor-. Feche a porta, homem! Não quero que se inteire a metade da delegacia de polícia. trata-se de um assunto confidencial, já o disse. Bom, o que descobriu?
—Muito pouco -replicou Pitt-. Eram muito cuidadosos naquela época.
—Isso já sei, maldição! Tenho lido o que se escreveu sobre o caso! –Ballarat afundou ainda mais seus curtos dedos nos bolsos, com os punhos fechados, enquanto se balançava muito ligeiramente para trás e adiante sobre os calcanhares. Foi um roubo fortuito? Algum aficionado apanhado com as mãos na massa que, preso do pânico, assassinou ao jovem York em vez de escapar como um profissional? Tenho certeza de que qualquer relação com o Foreign Office é acidental. fui informado pela mais alta autoridade. -E repetiu as últimas palavras com uma pronúncia bem marcada- pela mais alta autoridade, de que nossos inimigos não tinham conhecimento do trabalho no qual York estava imerso.
—O mais provável é que fosse algum amigo dos York que tinha uma dívida e que decidiu recorrer ao roubo para sair do apuro -respondeu Pitt, enquanto observava o olhar de desagrado do Ballarat-. Sabia onde estava a primeira edição do Swift.
—Contaria com ajuda de alguém da casa -aduziu Ballarat-. Subornaria a uma criada.
—É possível. Caso houvesse uma criada capaz de reconhecer uma primeira edição do Swift ao vê-la. Não acredito que o honorável Piers York falasse desse tipo de coisas com os serviçais. Ballarat abriu a boca para lhe dizer que não gastasse sarcasmos com ele, mas mudou de ideia.
—Bem, se o fez alguém pertencente ao círculo de suas amizades, melhor que tenha muito cuidado com suas perguntas. -Pitt! Esta é uma investigação muito delicada. Uma palavra de mais e poderia arruinar algumas reputações, para não falar de sua própria carreira. Parecia cada vez mais desconfortável, com o rosto ruborizado. Tudo o que o Foreign Office quer que demonstremos é que não houve nada... de reprovável, nada de impróprio na conduta do senhor York. Manchar o nome de um falecido não faz parte de seu trabalho, e menos ainda quando se trata de um homem honorável que se distinguiu ao serviço de sua rainha e de seu país.
—Bom, desapareceu informação do Foreign Office -disse Pitt com tom de frustração-, e o roubo na casa dos York necessita de uma explicação.
—Pois adiante, homem! -replicou Ballarat-. Encontre que amigo foi que o fez, ou melhor ainda, demonstre que não era um amigo! Elimine o menor traço de suspeita sobre a pessoa de Veronica York e todos lhe estaremos muito agradecidos. Pitt abriu a boca para replicar, mas percebeu a inutilidade do intento. Engoliu sua irritação.
—Sim, senhor.
Saiu à rua com a mente em ebulição. O ar frio, misturado com a chuva, aguilhoou-lhe o rosto enquanto os transeuntes o empurravam. As carruagens passavam tilintando junto a ele, as lojas tinham as vitrines iluminadas e os lampiões de gás estavam acesos. Notou o aroma das castanhas que se assavam em um braseiro. Alguém entoava uma canção natalina e Pitt se viu assaltado por outros pensamentos. Imaginou os rostos de seus filhos na manhã de Natal. Eram suficientemente maiores para sentirem-se impacientes.
Daniel perguntava cada noite se no dia seguinte já era Natal e Jemima, com sua superioridade de irmã maior de seis anos, dizia-lhe que tinha que esperar. Pitt sorriu. Tinha construído ao Daniel um trem de madeira, com uma máquina e seis vagões. Para a Jemima tinha comprado uma boneca, enquanto Charlotte tecia vestidos, saias e um bonito gorro para ela. Ultimamente tinha se dado conta que quando chegava a casa em uma hora inesperada, ela escondia o trabalho feito um molho debaixo de uma almofada e o olhava com exagerada inocência. Seu sorriso se alargou. Sabia que ela estava tecendo algo para ele. Por sua parte, estava satisfeito com o que tinha encontrado para ela: um vaso de alabastro rosa de uns vinte e cinco centímetros de altura, simples e perfeito.
Tinha demorado sete semanas para economizar o suficiente. O único problema era Emily, a irmã viúva de Charlotte, casara-se por amor, embora seu marido possuísse título e riquezas. Depois da comoção da terrível perda no verão anterior, era natural que ela e seu filho Edward de cinco anos fossem passar as festas natalinas com sua irmã. Mas que presente para Emily, podia achar Pitt que ela gostasse? Continuava sem achar solução ao problema quando chegou à porta principal de sua casa. Ao entrar, desprendeu-se do casaco molhado e o pendurou no cabide, tirou as botas empapadas e se encaminhou à cozinha de meias. Jemima lhe saiu ao encontro no meio do corredor, com as faces coradas e os olhos faiscantes.
—Papai, é verdade que já é Natal? Verdade que já é Véspera de Natal?
—Ainda não. -Levantou-a no ar e a abraçou.
—Tem certeza?
—Sim, querida, tenho certeza. -Levou-a a cozinha e a deixou no chão. Gracie, a criada, estava no piso de cima com o Daniel. Charlotte estava sozinha, dando os últimos retoques ao bolo de Natal, com uma mecha de cabelo cacheado caindo sobre a sobrancelha. - Sorriu-lhe.
—Algum caso interessante?
—Não. Um velho assunto que não conduzirá a nada. -Deu-lhe um beijo, para logo voltar a beijá-la com maior efusão.
—Nada, então? -insistiu ela.
—Nada. Meras formalidades.
A princípio Charlotte aceitou o lacônico comentário com que Pitt tinha despachado seu novo caso, pois estava muito ocupada com os preparativos do Natal. Havia tantas coisas a fazer na cozinha: envolver com cuidado as moedas de três pennies e colocá-las dentro do pudim, preparar os doces, fazer a geleia para os bolos e cortar a fruta em pedacinhos para os docinhos. E devia acabar de arrumar ainda alguns presentes e envolvê-los em papel de cores. Mas o mais importante era que tudo permanecesse em segredo para que fosse a surpresa do dia. Em qualquer outro momento teria sido mais inquisitiva e muito mais insistente.
No passado Charlotte se envolvera em alguns dos casos mais complexos e trágicos em um sentido pessoal do Thomas, atraída por uma deliberada curiosidade ou pelo lutuoso de algum dos fatos. O assassinato do marido de sua irmã Emily tinha tido lugar apenas uns meses atrás, no verão anterior, e aquele caso se prolongara de forma interminável. A própria Emily tinha sido a principal suspeita. George tinha tido um breve mas intenso romance com Sybilla March, e Emily era a única que sabia que a relação tinha acabado a noite anterior a que ele morrera. Quem ia estar disposto a acreditar nela quando todos os indícios indicavam o contrário? Emily, em seus esforços por recuperar a atenção do George, tinha sido tão indiscreta com Jack Radley que tinha dado a todo mundo a impressão, de forma deliberada, de que ela também estava envolvida em um assunto amoroso. Charlotte nunca tinha tido tanto medo como naqueles dias, nem havia sentido a tragédia pessoal tão de perto.
A morte de Sarah, a irmã mais velha de ambas, tinha sido uma grande perda, repentina e dura, mas imposta do exterior, um acontecimento fortuito que podia ter tocado a qualquer um. Mas a morte do George era diferente. Tinha suposto uma quebra interior. Todos seus orçamentos sobre a segurança e o amor se viram sacudidos por um fato simples que tinha encontrado eco em sua sensibilidade, que tinha removido tudo e que tudo o tinha tingido de dúvida. O que tinha faltado a Emily, e a confiança que tinha ela acreditado ser tão profunda, ter levado George a procurar por outra mulher com aquela paixão? A reconciliação posterior tinha sido tão breve, tão delicada e privada, que não tinha tido tempo de amadurecer e ninguém mais tinha sabido dela. E na manhã seguinte George estava morto.
Não tinha havido demonstrações de condolência nem atenções por parte de amigos afligidos como quando Sarah tinha morrido. Tinha havido mais receio, ódio inclusive. Vieram à tona velhas rixas e enganos, que se acrescentaram ao medo de que a culpa se estendesse e salpicasse a todos e que os segredos e debilidades de outras pessoas ficassem descoberto , como de fato assim aconteceu.
Haviam passado seis meses e Emily se recompôs do golpe. Tinha recuperado a aceitação social. Em realidade, as pessoas se esforçaram por aliviar seu sentimento de culpa por terem sido receosos e pela covardia ante o julgamento de outros que tinham demonstrado na ocasião. De qualquer modo, a boa sociedade continuava exigindo que as viúvas levassem o luto bem visível, especialmente as que pertenciam a famílias tão antigas e distinguidas com títulos de nobreza como os Ashworth. O fato de que Emily ainda não tivesse completado os trinta não a desculpava da obrigação de ficar em casa, receber mais que visitas de parentes e levar o luto mais rigoroso. Não devia prestar-se a acontecimento social algum que pudesse parecer frívolo ou divertido, e devia manter em todo tempo uma atitude grave.
Ela começava a achar isso quase insuportável. Para começar, tão logo descobriu o assassino do George e o caso ficou fechado, Emily tinha levado consigo Edward ao campo, para estar sozinha e ter tempo de ajudá-lo a entender a morte de seu pai e a nova posição em que ele se achava. Com a chegada do outono tinha voltado para a cidade, mas todas as festas, óperas, bailes e recepções lhe estavam vedados. Os amigos que se aproximavam de visita mostravam se sérios até a exasperação e nenhum se atrevia a contar intrigas ou falar de modas ou da última representação teatral, ou de quem flertava com quem, pois consideravam tais temas muito banais, para importunar com eles seu luto.
O tempo passado por Emily sentada em casa escrevendo cartas, tocando piano ou
bordando intermináveis trabalhos de costura, tinha sido vivido como um persistente
arranhão na pele, com a força de um descontentamento irritante. Naturalmente Charlotte tinha convidado Emily para que levasse Edward para passar o Natal com eles, já que para ele a companhia de outras crianças seria o melhor presente. Mas e depois do Natal? Emily teria que retornar à casa dos Ashworth na cidade, só e aborrecida até não poder mais! E para falar a verdade, por muito que amasse seu lar e a seus filhos, seis meses ininterruptos de reclusão caseira começavam a pesar também a Charlotte. Tinha perguntado a Pitt a respeito de seu novo caso por algo mais que mero interesse de esposa: na pergunta havia também um desejo de aventura.
Na noite seguinte, Charlotte preparou o terreno com mais atenção. Esperou até depois do jantar, quando estavam sentados diante do fogo do salão. As crianças já estavam a um tempo na cama e ela costurava com todo cuidado adornos de laço para pendurá-los na árvore de Natal.
—Thomas -começou com tom ligeiro-, se esse caso não for nada de importância, se forem meras formalidades, como disse, acha que poderá deixá-lo para depois do Natal?
—Falava sem levantar a vista do fio e da delicada malha de gaze que estava costurando.
—Pois... -hesitou. - Acredito que vai ser um pouco mais complicado do que tinha suposto.
Charlotte custava dominar a curiosidade.
—Oh, querido, como é isso?
—Trata-se de um roubo difícil de explicar.
—Oh. - Desta vez não precisava fingir indiferença. Os roubos eram impessoais, a perda de posses não costumava ter interesse algum para ela-. E o que roubaram?
—Duas miniaturas, um vaso, um peso de papel e um livro que era uma primeira edição -respondeu ele.
—E que dificuldade há em explicar isso? -Levantou a vista e viu que ele sorria.
— Thomas? -Imediatamente soube que havia algo mais, um elemento de mistério ou de emoção dissimulada.
—O filho da casa foi assassinado ao surpreender o ladrão. -Seus olhos não se afastavam dos dela, escrutinadores. Divertia-lhe a curiosidade de sua mulher e seus esforços por dissimulá-la, embora também sentisse grande respeito por sua capacidade de percepção.-E nunca se recuperou nenhum dos artigos roubados -concluiu.
—De verdade? -Sem dar-se conta deixou cair o trabalho-. Thomas!
Ele se reclinou na poltrona, cruzou as pernas procurando maior comodidade e contou-lhe o que sabia, sem esquecer a advertência do Ballarat a respeito da discrição e as reputações que estavam em jogo, nem a informação extraviada pelo Foreign Office.
—Extraviada? -repetiu com cepticismo-. Quereis dizer roubada...
—Não sei. E suponho que nunca saberei. Levaram-se informação, deveriam copiá-la antes, não acredito que a sustaram. Se Robert York tinha documentos em sua casa, talvez isso fosse o que procurava o ladrão, o que quereria dizer que teria levado os outros objetos para encobrir o fato principal. O mais provável é que não tivessem nada que ver com o motivo do roubo.
Ela recolheu o trabalho do chão e o deixou sobre a mesinha que tinha ao lado para não perder a agulha.
—Mas, em nome de Deus, o que o Foreign Office espera de você? -insistiu.
— Se trata de um espião, não é absolutamente primordial que o apanhem, além de ter matado ao pobre Robert York?
—Não me surpreenderia que já o tivessem apanhado -disse ele pesaroso-. E que o Foreign Office guardasse silêncio sobre isso. O que querem em realidade de nós é que verifiquemos seu bom fazer, que certifiquemos que a informação extraviada está enterrada para sempre. Não seria bom para nossa reputação mundial que este tipo de coisas viesse à luz pública. Mas também é possível que nunca chegasse a extraviar-se nada.
—Você acredita? -desafiou-lhe ela.
—Não. Mas pôde haver negligência mais que engano.
—O que vai fazer com o assassinato do Robert York? Alguém o matou.
—Seguir a investigação do roubo tão longe quanto puder - disse ele com um ligeiro encolhimento de ombros.
—Como está a viúva? -Charlotte insistia. Podia haver algo interessante para contar a Emily.
—Não sei. Não encontrei ainda nenhuma desculpa para ir vê-la sem levantar suspeitas, que é a última coisa que deseja o Foreign Office. Isso levantaria imediatamente todo tipo de perguntas desagradáveis. Ultimamente não ouço falar de Jack Radley. Ainda mantém Emily a relação com ele?
Aquilo era um tema mais próximo ao coração do Charlotte, por isso estava disposta a trocá-lo por aquele mistério tão pouco prometedor. Jack Radley tinha começado como uma diversão, alguém com quem Emily tinha flertado para demonstrar ao George que ela podia ser tão encantadora, segura de si mesma e graciosa como sua rival. À medida que tinham precipitado os acontecimentos, ele converteu-se em um dos principais suspeitos do caso. Mas Jack demonstrara ser um amigo generoso, menos superficial e egoísta do que sua reputação tinha levado Emily a acreditar. Não tinha dinheiro nem um grande futuro. Era inevitável pensar, por pouco elegante que pudesse parecer, que flertava com Emily pela fortuna que esta tinha herdado com a morte do George. Seu êxito com as mulheres era de sobra conhecido. Sua vaidade podia lhe haver levado a matar ao George, para cortejar logo Emily e casar-se com ela. Depois, demonstrou-se sua absoluta inocência de qualquer crime, mas continuava estar longe do que à boa sociedade teria desejado para Emily, chegado o momento oportuno. A mãe das duas irmãs se horrorizara, não cabia dúvida!
Nada disto preocupava muito Charlotte: algo que pensasse as pessoas , com certeza não seria pior do que tinham pensado de Charlotte por ter se casado com um policial! Jack Radley era um homem sem dinheiro, mas era um cavalheiro dos pés à cabeça. Os policiais, em troca, mal estavam acima dos oficiais e exterminadores de ratos. Mas era Jack Radley capaz de amar? Imaginar que todo mundo o é se tropeça com o companheiro adequado é um engano muito romântico no qual é muito fácil cair. Mas nem por isso deixa de ser um engano. Muita gente não deseja mais que o convencional: compartilhar um lar, alcançar uma posição social, ter crianças e uma família extensa. Não querem compartilhar seus pensamentos nem seu tempo livre, e sobre tudo não desejam revelar seu eu interior, onde se guardam os sonhos, onde os poderiam conhecer e portanto ferir. Não gostam de assumir riscos. No fundo não há generosidade de alma, só segurança. Não querem aventurar-se a dar, se isso pode conduzir a um alto custo. Apesar de seu encanto ou de seu engenho, de sua afabilidade e suas maneiras amistosas, se Jack Radley era uma dessas pessoas, ao final só traria a Emily, dor. E Charlotte estava disposta a fazer tudo o que estivesse em suas mãos para acautelar tal coisa.
—Charlotte? -Pitt interrompeu seus pensamentos de forma um tanto brusca. A resposta que esperava a sua pergunta também incumbia a ele. Sentia um grande afeto por Emily e compreendia muito bem o dano que podia sofrer se os medos inexpressíveis de Charlotte eram justificados.
—Acredito que sim -disse ela-. Não falamos muito dele ultimamente, estivemos muito ocupadas com os preparativos do Natal. vai trazer um ganso e pudins. Ele se afundou um pouco mais na poltrona e esticou os pés para o fogo.
—Acho que se quiser brincar de detetive -a olhou entrecerrando os olhos-, seria muito melhor que amadurecesse sua opinião sobre Jack Radley, em lugar de pensar tanto na senhora York.
Ela não replicou. O que havia dito seu marido era sem dúvida verdade, e embora a tivesse pronunciado com amabilidade, a frase tinha algo de exortativo. Atrás de sua postura confortável e de sua ligeireza ao falar, Pitt estava preocupado. Não obstante, Charlotte estava disposta a reunir as duas coisas. Não lhe ocorria uma maneira mais eficaz de passar com o Emily o tempo suficiente para amadurecer uma opinião, como Thomas havia dito, que a animando jogar de detetive em um novo caso. Em época natalina, qualquer esforço de conversa ou de estabelecer julgamentos era pouco menos que impossível, mas depois, se Charlotte ia visitar Emily em sua casa, onde poderia ver o Jack Radley, acharia-se em uma posição da qual lhe seria possível formar uma opinião mais válida sobre ele sem mostrar muito às claras suas intenções.
Estava preparada, e o plano preparado, quando Emily chegou na manhã seguinte um pouco depois das onze. Entrou direto na cozinha em um torvelinho de roupa negra orlada com pele de raposa negra até o queixo e com o formoso cabelo recolhido sob um majestoso chapéu negro. Por um momento Charlotte sentiu inveja, aquele caro casaco lhe dava um aspecto tão indescritivelmente elegante. Mas em seguida recordou a razão pela qual sua irmã se vestia de negro e se envergonhou. Emily estava pálida, além das marcas coloridas que o gélido vento lhe tinha feito sair nas faces, e sob os olhos tinham aparecido manchas cinza que lhe davam à pele um aspecto sem brilho. Charlotte não necessitava que alguém lhe dissesse que sua irmã estava necessitada de descanso e de sono. O aborrecimento não é de modo algum a pior das aflições, mas também tem sua forma própria de consumir a pessoa. O Natal passaria logo, e o que ia fazer depois Emily?
—Tome uma xícara de chá -lhe ofereceu Charlotte, enquanto se voltava para a grande cozinha econômica sem esperar resposta.
—Esteve alguma vez em Hanover Close?
Emily tirou o casaco e se sentou à mesa da cozinha, com os cotovelos apoiados na desgastada madeira. O vestido que levava debaixo do casaco era igualmente elegante, embora houvesse zonas que não estavam preenchidas como antes.
—Não, mas sei onde é, por quê? -A resposta e a pergunta eram de mera cortesia. Charlotte foi direta à medula.
—Houve um assassinato.
—Em Hanover Close? - Desta vez captou por completo a atenção de Emily. - Santo céu. Esse lugar é terrivelmente exclusivista. Isso é para a gente de melhor gosto... e de mais dinheiro.
—Quem é o morto?
—Robert York. Trabalhava para o Foreign Office... até que morreu, quero dizer.
—Como o mataram? Não li nada desse assunto. - Em regra geral, uma mulher da posição social de Emily não lia nenhum tipo de jornais, à parte, por exemplo das páginas de sociedade e do Boletim da Corte. Mas a diferença do pai delas, George tinha sido muito indulgente quando se tratava daquele tipo de assuntos, e sua indulgência chegava até onde podia falar do assunto sem ofender ninguém. Como era natural, desde a morte do George ela fazia o que desejava.
Charlotte verteu a água da chaleira no bule, depois o deixou sobre a mesa junto com uma jarrinha de nata de leite e duas de suas melhores xícaras.
—Faz três anos que aconteceu - disse com a maior indiferença possível-. Acabam de pedir a Thomas que reabra o caso, porque a viúva vai casar-se de novo com alguém que também pertence ao Foreign Office. Emily se sentia muito melhor.
—Está comprometida? Também não li nada sobre isso, e sempre leio as páginas de sociedade. É a única maneira pela qual posso me inteirar de algo. Já que ninguém me conta nada, é como se o assunto das relações homem-mulher fosse algo que ninguém devesse recordar. -Apertou o punho.
Charlotte se deu conta do gesto. -Trata-se disso! -disse-. Pediram ao Thomas que investigue, para comprovar se ela é a pessoa adequada para casar-se com alguém tão importante como será o senhor Danver quando for promovido.
—Pode não sê-lo? -perguntou Emily-. Por favor, serve o chá, estou mais seca que o deserto do Sahara, e já teve tempo suficiente de repousar. Tem má reputação? Eu gostaria de poder ouvir mais coisas, mas estou mais isolada do que se fosse uma leprosa! A metade das pessoas com quem me costumava relacionar estão constrangidas quando me veem, e a outra metade passam todo o tempo sentados a meu redor e falando com solenidade em sussurros, como se eu também estivesse morrendo. -Aspirou com brusquidão, enquanto procurava um lenço na bolsa. O que tinha provocado tal necessidade não era tanto um sentimento de auto compaixão como o repentino calor da cozinha, depois do frio ar da carruagem. Charlotte sacudiu a cabeça.
—Não, ao menos pelo que ouvi, mas o crime parece não ter explicação. –Serviu o chá e empurrou a xícara de Emily para esta, junto com um pedaço de bolo de gengibre recém feito, que foi aceito de boa vontade-. É um caso bastante estranho.
—E contou a Emily tudo o que Pitt tinha explicado a ela.
—É muito estranho -concordou Emily por fim-. Pergunto-me se teria um amante, o que poderia ter motivado uma briga. Suponho que é isso em realidade o que quer o Foreign Office quer que descubra Thomas, mas têm medo de dizê-lo se por acaso possa chegar aos ouvidos do Danver, que ficaria furioso. Além de que o prejudicaria terrivelmente, certamente; sua paz mental se veria sacudida por culpa de uma calúnia como essa.
—Ela nunca o faria! -disse Charlotte com veemência-. Se por acaso não fosse verdade, poderia supor a injustiça mais espantosa. O que não sei, é como fará Thomas para levar a cabo os interrogatórios. É difícil imaginar um policial fazendo perguntas aos integrantes de seu círculo social. Emily sorriu.
-Minha querida Charlotte, não é necessário que insista tanto sobre isso. Mostra- se muito pouco sutil, inclusive para você! É claro que o averiguaremos. Nos últimos seis meses não temos feito outra coisa que preparar bolos, costurar e bordar, e estou a ponto de me pôr a gritar. Provaremos a impecável reputação da Verônica York ou a arruinaremos por completo. Por onde começamos?
Charlotte tinha previsto as dificuldades. Emily não era capaz de desembaraçar-se em sociedade como o fazia quando George vivia; e Charlotte, como mulher de policial, não tinha dinheiro para vestir-se adequadamente nem amigos a quem visitar. Só contavam com a tia avó do George, Vespasia, que compreenderia e ajudaria-as, mas tinha mais de oitenta anos e desde a morte do George tinha tomado parte menos ativa que antes nos assuntos mundanos. Estava consagrada à defesa de um bom número de causas e achava que a batalha contra a pobreza e a injustiça podia empreender-se por meio da reforma das leis. Naquele momento estava comprometida em uma luta pela melhoria das condições de trabalho nas fábricas que empregavam crianças, especialmente aquelas que tinham menos de dez anos. Charlotte se serviu de mais chá.
—Vê ainda ao Jack Radley? -perguntou, tratando de que a voz soasse neutra, como se a questão tivesse que ver unicamente com o problema da Veronica York. Emily aproximou o bolo de gengibre.
—Vem me visitar de vez em quando. Acha que pode estar comprometido ele também?
—Cortou um pedaço de bolo e lhe deu uma ávida mordida.
—Talvez pudesse nos ajudar A... a combinar um encontro sugeriu Charlotte.
—Nos ajudar, não. -Emily fez uma careta de recriminação-. Ajudá-la. -serviu- se de mais chá, que derramou, por isso soltou uma imprecação, uma palavra que tinha ouvido George dizer nas cavalariças. Charlotte sabia que aquela reação não tinha nada que ver com o líquido derramado no pires. Emily estava frustrada pela prisão que o luto sujeitava e, sobre tudo, pela solidão.
—Já sei que desta vez terei que fazê-lo eu. Mas você terá que me instruir. Reunirei toda a informação que possa e juntas desentranharemos seu significado.
Não era como estar presente ela mesma e poder captar os matizes de cada tom de voz, a expressão que cruza de modo fugidio um rosto, olhar entre as conversas, mas Emily sabia que a ideia de Charlotte era o melhor que podia esperar, e se sentia agradecida por isso. Teria sido mais próprio de uma dama esperar que Jack Radley viesse por si mesmo visitá-la. Não imaginava o pouco que tivesse tido que esperar. Tinha-lhe confessado a admiração que despertava nele fazia já seis meses e, até o momento presente, tinha-a visitado em muitas ocasiões. Ela não duvidava da profundidade da estima daquele homem, mas sim da qualidade da mesma. Cortejava-a por ela mesma, ou porque era a viúva do George, com a posição social do George e com o dinheiro do George? Ela desfrutava de sua companhia tanto como tinha desfrutado sempre de qualquer um, o que era uma concessão bastante surpreendente, considerando seus receios. Mas qual é a distância entre gostar e amar?
Quando se casara com George, este era o partido desejado da temporada. Emily tinha plena consciência das faltas dele; tinha considerado-as parte do contrato e tinha aceitado graciosamente. Ele por sua parte tinha demonstrado ser tudo o que ela tinha esperado e nunca tinha criticado nenhuma das imperfeições de sua mulher. O que tinha começado como um entendimento perfeito, foi-se convertendo em algo mais quente. A primeira impressão que ela tinha tido dele tinha sido a de que este era o bonito e impulsivo lorde George Ashworth, o marido ideal. Seus sentimentos por George tinham amadurecido em um amor solícito e leal, à medida que tinha começado a ver nele a realidade de um homem de ampla experiência no esporte e nas finanças, encantador em sociedade e de um natural sincero, sem a menor suspicaz. Ela sempre tinha demonstrado a sabedoria suficiente para ocultar o fato de ser provavelmente mais inteligente que ele e também mais valorosa. Embora também ela tivesse sido menos tolerante e generosa em seus julgamentos.
Ele tinha o gênio vivo, mas lhe passava como uma rajada de vento; tinha passado por cima das manias de sua própria classe e ignorado as debilidades das outras. Ela não era capaz disto. A injustiça a enfurecia, agora mais que quando era jovem. À medida que passava o tempo, cada vez se parecia mais à Charlotte, que sempre tinha sido teimosa, pronta a irritar-se e uma lutadora, frente a tudo o que ela considerava equivocado, até no caso em que tal consideração fosse apressada e muito franca. Emily tinha sido mais sensível... ao menos até agora.
Agora estava sentada escrevendo uma carta a Jack Radley em que o convidava a visitá-la tão logo pudesse e, quando a acabou, despachou um criado com ela. A resposta dele foi satisfatoriamente rápida. Jack Radley chegou a primeiras horas do anoitecer, no momento em que, durante tempos mais felizes, ela se vestia para um jantar de gala, ou para ir ao baile, ou ao teatro. Naquele momento estava sentada junto ao fogo lendo O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, publicado no ano anterior. Quase se alegrou de que a interrompessem; a história era mais tétrica e muito mais horripilante do que tinha imaginado, e podia ver já os elementos da tragédia. Tinha-lhe posto uma capa de papel marrom, se por acaso os criados se escandalizassem. Jack Radley entrou a seguir à criada lhe ter anunciado. Vinha vestido de maneira informal, mas não havia dúvida de que seu alfaiate era seu principal credor. O corte das calças era imaculado, a jaqueta lhe caía à perfeição. Não obstante, no que ela se fixou foi em seu sorriso e naqueles singulares olhos, cheios de preocupação.
—Emily, está bem? -perguntou-. Sua nota parecia urgente. Aconteceu algo? Ela se sentiu um pouco ridícula.
—Sinto muito. Não se trata de nenhuma emergência e me encontro perfeitamente, obrigada. Mas, além de que me aborreço bastante, Charlotte descobriu um mistério. -Não havia lugar para a mentira: ele se parecia muito a ela para enganá-lo.
Seu rosto se relaxou em um sorriso e se sentou na cadeira frente a ela.
—Um mistério?
Ela tratou de fingir indiferença, pois se tinha dado conta de que ele podia imaginar que ela tinha inventado uma desculpa para fazê-lo vir.
—Um antigo assassinato -se apressou a continuar que pode esconder um escândalo, em cujo caso uma mulher inocente poderia encontrar ruína e não se poderia casar com o homem a quem ama. Ele parecia perplexo.
—Mas o que pode fazer você? E como posso eu ajudar?
—Pelo que se refere aos fatos, à polícia pode descobrir muitas coisas, certamente. Mas eles não podem emitir o tipo de julgamentos que nós podemos, mas tudo tem que levar-se na maior discrição. -sentia-se emocionada ao ver que tinha conseguido interessar a seu interlocutor-. Além disso, ninguém falaria diante da polícia como o faria conosco, nem tampouco a polícia entenderia os significados ocultos se lhes falassem com frases ambíguas.
—Mas como o faremos para nos situar em uma posição de onde observar a essas pessoas? -disse ele com gravidade.-Ainda não me disse quem são...
Mas, além disso, você não pode voltar a se introduzir em sociedade até dentro de um tempo. Seu rosto ficou tenso e, por um desagradável momento, ela temeu ver pena em seus olhos. Podia aceitar a pena de qualquer outra pessoa, mas vindo de Jack ardia de maneira assombrosa, como uma abrasão na pele.
—Já sei que não posso! -disse ela, e se arrependeu da aspereza de sua voz, embora já fosse tarde para voltar atrás. -Mas Charlotte pode, e depois podemos discutir juntos. Quer dizer, poderá se você estiver disposto a ajudá-la.
Ele sorriu com certa tristeza.
—Sou muito bom destroçando amizades. Quem são?
Ela ergueu a vista até seu rosto, tratando de interpretá-lo. As pestanas continuavam escurecendo-lhe as faces do modo que ela recordava. Quantas mulheres teriam pensado exatamente o mesmo? Na verdade aquilo era muito ridículo.
Charlotte tinha razão: precisava ocupar a mente com algo antes que se atrofiasse!
—O homem assassinado era Robert York -disse precipitadamente-. A viúva é a senhora Veronica York, de Hanover Close. -Guardou silêncio com um amplo sorriso.
—Não há a menor dificuldade -disse ele com tom confidencial-. Conheço-a por ter-me relacionado com ela. De fato... -Vacilou, como se não estivesse certo de quão indiscreto podia ser.
Sentiu uma pontada de ciúmes totalmente inapropriado. Sabia que aquilo era uma soberana estupidez. Ela era muito consciente da reputação daquele homem. E de qualquer modo, ela era uma mulher que nunca tinha abrigado ilusões vãs . Sabia muito bem que os homens se sentem obrigados a normas muito diferentes das que esperam achar nas mulheres. A única coisa que devia fazer era não atuar nunca de um modo tão flagrante que outros não pudessem fingir ignorância; as suspeitas que pudessem ter outros eram irrelevantes. Todas as pessoas realistas sabem. Uma cegueira sensata é o único modo de preservar a paz mental. Mas haviauma norma ante a qual Emily sentia uma crescente impaciência, por muito que soubesse que seus sentimentos fossem uma estupidez, além de totalmente impraticáveis.
—Ficou suficientemente bem com ela para reatar o relacionamento? -disse Emily com tom seco.
O rosto dele se escureceu.
—Certamente! Ela baixou o olhar, pois não desejava que ele adivinhasse emoção alguma em seu rosto, e menos nada tão pouco atraente como a verdade.
—Então o fará? Com Charlotte? Como você disse, seria impossível para mim.
—É claro -disse com lentidão, e ela soube que a estava olhando. Mas Pitt o aprovará? Além disso, é difícil que possa apresentá-la como a mulher de um policial. Teremos que pensar algo melhor.
—Thomas não tem por que saber. Ela pode vir aqui, pôr um de meus vestidos e apresentar-se como... -procurou em sua imaginação- como tua prima do campo. Uma prima próxima, de modo que não pareça absolutamente impróprio que vá com ela sem acompanhante feminina.
—E ela estará de acordo? -Em sua voz se apreciava já certo interesse, e não a incredulidade que teria sentido ante outra pessoa. Talvez se lembrasse do Cardington Crescent.
—Oh, sim -disse Emily com impetuosa determinação. - Com certeza estará de acordo.
Dois dias depois, elegantemente vestida com um dos vestidos de inverno de Emily adaptado da temporada anterior -pois aquele inverno só tinha comprado roupa negra- Charlotte se achava em uma diferente carruagem que avançava veloz por Park Lane em direção a Hanover Close, com Jack Radley sentado a seu lado. Tinham deixado Emily, Jack tinha passado pela casa dos York, onde tinha deixado seu cartão e tinha perguntado se podia lhes apresentar a sua prima
Elisabeth Barnaby, que tinha chegado do campo depois de ter cuidado de sua tia durante a longa e penosa enfermidade desta, da qual por fim se recuperara por misericórdia. Agora a senhorita Barnaby necessitava um pouco de distração e por esta razão Jack tinha pensado em uma velha amizade com a esperança de apresentá-la em sociedade.
A resposta tinha sido breve, mas perfeitamente educada, o suficiente para dar margem a uma visita. Charlotte se ateu mais a manta de viagem ao redor dos joelhos. O veículo era muito frio e fora aumentava a chuva. As rajadas de água se precipitavam sobre o meio-fio, corria sob as rodas e saía atirada para as sarjetas. A tapeçaria de couro da carruagem estava úmida ao tato, até a madeira dos batentes das janelas estavam molhados. O vestido do Emily era magnífico, pois sua criada lhe tinha alongado o peitilho e tinha alongado os punhos um par de centímetros, tudo isso muito adequado para uma jovem que acaba de chegar do campo: embora ninguém diria que era de segunda mão, tampouco parecia que fora da última moda, que era mais próprio de alguém que não precisasse ser introduzido em sociedade. Mas Charlotte continuava tendo frio.
A carruagem se deteve. Jogou um rápido olhar ao Jack Radley e engoliu em seco, enquanto sentia uma súbita apreensão. O que estava fazendo era uma verdadeira imprudência. Pitt ficaria furioso se soubesse e a possibilidade de que a descobrissem era inegável. Era muito fácil cometer uma tolice ou incorrer em um deslize ao falar. Podia ter a desgraça de achar-se com alguém que a conhecesse de antes de seu matrimônio, quando ainda frequentava aqueles ambientes. abriu-se a portinhola e Jack lhe ofereceu a mão para ajudá-la a descer. Ela saiu com um estremecimento ao receber as frias rajadas de chuva. Não se sentia precisamente aliviada pela iminência da visita, mas dificilmente podia ficar na carruagem e dizer que tinha mudado de opinião. Contrapôs seu sentido da prudência e a previsível irritação do Thomas com a emoção que havia sentido enquanto discutia o plano com Emily. Ainda não sabia a que ater-se quando a criada abriu a porta principal e Jack entregou um cartão de visita gravado com seu nome, debaixo do qual tinha sido acrescentado à mão: "e a senhorita Elisabeth Barnaby".
Assim já era tarde; a sorte estava lançada. Charlotte compôs seu sorriso mais encantador e entrou na casa. A criada tinha uma tez esbranquiçada e o cabelo escuro. Era muito descarada , com os olhos grandes e a cintura de vespa. Mas costumavam escolher às criadas por seu aspecto. Uma bela criada era distintivo de alto status e bom gosto.
Charlotte mal teve tempo de examinar o vestíbulo, salvo para ver que era espaçoso. A escadaria era ampla e elegante, com os corrimões belamente esculpidos e um lustre iluminado que reluzia naquela escura tarde de inverno.
Foram conduzidos ao salão. Não tiveram tempo de olhar o mobiliário ou as pinturas. A atenção de Charlotte era monopolizada pelas duas mulheres sentadas uma frente à outra nos acolchoados e macios sofás. A mais jovem, que devia ser Veronica York, era alta e talvez um pouco magra para a moda em uso, embora apreciava-se uma intensa feminilidade nas delicadas linhas dos ombros e pescoço. Levava o negro cabelo liso recolhido, mostrando traços finos e uma testa adorável, faces ligeiramente afundadas e uma boca que chamava a atenção por sua sensualidade.
A mulher mais velha tinha o cabelo castanho claro, espesso e cacheado. Os cachos eram tão apertados que não havia utensílio de barbearia no mundo que tivesse poder em criá-los, tão somente a natureza. Parecia de talhe muito mais baixo que a outra mulher. Embora fosse de constituição mais forte, continuava parecendo extremamente gentil com seu vestido bordado à última moda. Suas feições eram regulares e bem se via que tinha sido uma beleza no melhor de sua idade. E essa época não estava tão longínqua, pois as rugas delatoras em sua pele branca e rosada eram poucas e se concentravam ao redor da boca, mais que nas comissuras dos olhos. Era um rosto que irradiava fortaleza. Aquela era sem dúvida Loretta York, a mãe do homem assassinado, de quem Thomas havia dito que se comportara com tanta dignidade na noite em que aconteceu a tragédia.
Deu-lhes as boas-vindas como senhora da casa, inclinando a cabeça para Jack e oferecendo-lhe a mão.
—Boa tarde, senhor Radley, que amável de sua parte vir nos ver, em companhia, além disso, de sua prima. -voltou-se para Charlotte com olhos escrutinadores.
—Senhorita Barnaby?
Charlotte adotou a expressão mais inocente e fez uma reverência. supunha-se que devia ser tímida e mostrar constante agradecimento, pois tratava de integrar-se na boa sociedade de Londres e, como mulher solteira em idade crítica, achar um marido.
—Como está , senhora York? É muito gentil ao nos receber.
—Espero que se encontre tão bem como denota seu aspecto, senhora. A galanteria saía de Jack de forma automática. Era a moeda de mudança habitual, grande parte de sua vida adulta tinha vivido à custa de seu encanto. vendo-a esquece que é inverno e que passaram vários anos desde a última vez que vimos-nos.
—Vejo que suas maneiras não mudaram -disse ela com uma ligeira aspereza, embora se apreciasse um rubor de prazer em suas faces. Podia protestar, podia rechaçar o elogio como um convencionalismo, mas de fato continuava gostando dele.
—É claro já conhece minha nora -disse, enquanto indicava a jovem mulher por meio de um simples olhar em direção a ela.
Jack se inclinou de novo, de forma muito discreta mas com a cortesia necessária.
—Certamente. Senti-me muito penalizado ao me inteirar de sua perda. Espero que o futuro lhe proporcione alguma alegria.
—Obrigada. -Um imperceptível sorriso alterou os lábios da Veronica York.
Charlotte se deu conta de que havia uma antiga simpatia entre ambos que havia tornado a despertar sem nenhum esforço. Por um instante foi a sua mente a imagem de Emily, mas a rechaçou na hora. Isso era outro problema que devia tratar em seu devido tempo.
Veronica tinha deixado de olhar ao Jack e examinava Charlotte; assim como Loretta, avaliava o corte de seu vestido, o antiquado do mesmo, o preço. A Charlotte satisfazia o fato de que fosse fiel reflexo de seu novo status: era o vestido de uma mulher do campo afastada da boa sociedade pelo cumprimento de obrigações piedosas, mas de boa família e meios mais que suficientes.
—Espero que Londres seja de seu agrado, senhorita Barnaby –disse Veronica com cortesia. -Encontrará muitas coisas com que divertir-se, mas terá que tomar cuidado, é claro, porque aqui há também companhias que não são de desejar, e é bastante fácil ver-se em lugares desagradáveis se não for sensata na escolha.
Charlotte aproveitou a ocasião. Sorriu com acanhamento.
—É muito amável de sua parte, senhora York. Sentirei-me segura seguindo seus conselhos. A reputação de uma mulher pode arruinar-se tão facilmente.
—Assim é -concordou Loretta-. Sente-se, rogo, senhorita Barnaby.
Charlotte lhe agradeceu e se sentou com cautela em uma cadeira de espaldar rígido, ao mesmo tempo em que compunha a saia. Por um momento recordou com desagradável clareza a época anterior a seu matrimônio em que tão frequentemente se via em situações como aquela. Sua mãe a acompanhava aos espetáculos indicados, onde a mostrava sob seu aspecto mais favorável com a esperança de atrair um bom partido e combinar um casamento vantajoso. Sempre acabava expressando com muita veemência uma opinião sobre algo, ou rindo de forma inapropriada, ou mostrando-se ao mesmo tempo muito desejosa de agradar mas sem êxito (muitas vezes de propósito). Depois se tinha acreditado apaixonada pelo marido de sua irmã maior e a ideia de casar-se com outro lhe tinha parecido inimaginável.
Que longínquo e infantil lhe parecia tudo aquilo! Não obstante tinha muito presente a lembrança das boas e implacáveis maneiras, do seguimento da moda, e tudo isso dirigido à consecução de marido.
—Tinha estado alguma vez em Londres, Miss Barnaby? -estava-lhe perguntando a senhora York mãe, enquanto seus frios olhos cinza avaliavam a bela figura de Charlotte e se fixavam nos diminutos buracos das agulhas por onde sua blusa tinha sido alongada. Por uma vez Charlotte não se importou. Aquilo formava parte do papel que estava representando. E não podia esquecer-se de observar tudo com detalhe para ter algo para informar a Emily.
—Oh sim, mas sempre muito pouco tempo, pois devia atender a minha tia doente. Felizmente se recuperou e agora estou livre para voltar a empreender minha vida. Embora tenha o sentimento de que perdi muito tempo. Imagino que devem ter acontecido muitas coisas enquanto eu estive fora.
—Sem dúvida -disse a senhora York com um leve sorriso-. Embora ano após ano se repetem mais ou menos os mesmos acontecimentos. A única coisa que muda são os nomes das pessoas.
—Oh, eu penso que as pessoas são também muito diferentes –indicou Veronica-. E o teatro o é, sem dúvida. A senhora York lhe lançou um olhar que Charlotte percebeu com interesse: crítica mas muda; não havia cortesia nenhuma nela.
—Entende muito pouco de teatro -indicou-. Mal tinha ido até este ano.
—Voltou-se para Charlotte-. Minha nora enviuvou recentemente. Como é natural, esteve de luto até muito recentemente.
Charlotte tinha decidido já fingir uma completa ignorância sobre o assunto de Hanover Close e tudo o que tivesse algo que ver com ele. Adotou uma expressão instantânea de simpatia.
—Quanto o lamento. Rogo-lhe que aceite meu mais profundo pesar. Não teria vindo importuná-la se tivesse sabido. -voltou-se para o Jack, que desviou o olhar com estudado pudor.
—Foi há três anos -disse Veronica em meio de um incômodo silêncio. Não olhava o rosto de sua sogra, mas para baixo, para o rico brocado vinho de sua própria saia. Ergue a vista para Charlotte-. Nós também estamos empreendendo de novo nossas vidas.
—Você a empreende de novo. -O tom da senhora York era inequívoco e dava a entender que aquela distinção era uma questão delicada. Estava carregada de emoção, mas, por muito que o tentasse, Charlotte não pôde defini-la. Estava- recordando a jovem mulher que a perda de um filho era algo insubstituível, algo mais profundo que a perda de um marido, pois Veronica planejava voltar a casar-se? Em seu rosto não parecia que houvesse tão somente o reconhecimento da dor de sua nora; talvez houvesse inveja, ou talvez algo tão vulnerável como a auto compaixão. A brancura de suas pequenas e fortes mãos destacava em seu regaço e seus olhos eram brilhantes e escrutinadores. Se uma tal ideia não estivesse tão deslocada, raiando o ridículo, Charlotte poderia pensar em algum tipo de advertência. Mas isso só era uma errônea observação sem fundamento.
Os carnudos lábios da Veronica se curvaram em um leve sorriso. Era evidente que tinha entendido o significado da réplica.
—A verdade, senhor Radley, é que deve me felicitar -disse olhando a ele-. vou voltar a me casar.
Charlotte disse que Veronica York e Jack Radley tinham tido uma relação mais que de simples amizade, ao menos por parte dela.
Jack sorriu como se aquela notícia fosse uma agradável surpresa para ele.
—Espero que tenha muita sorte e que se veja coberta de bençãos.
—Assim o desejo eu também -acrescentou Charlotte-. Espero que a tristeza fique completamente relegada ao passado.
—Tem você algo de romântica, senhorita Barnaby - observou à senhora York com as sobrancelhas arqueadas. Disse-o quase sorridente, mas havia nela uma frieza evidente, algo muito duro em seu profundo interior que estava por resolver. Talvez fosse uma velha ferida que não tinha nada que ver com aquele assunto. Nunca se sabe quais são as penas ou as desilusões que se aninham nas vidas das demais pessoas, quais são suas esperanças perdidas.
Charlotte devia pôr seu empenho em conhecer honorável Piers York, pois tal encontro poderia explicar muitas coisas que agora só podia supor. Dedicou-lhe seu mais radiante sorriso.
—Oh, certamente. Até a realidade nem sempre é como a gente desejaria, eu espero o melhor.
—Era este o tipo de ingenuidade adequada, ou estava exagerando o papel? Não podia ficar ali sentada há escassa meia hora que era socialmente aceita e depois ir-se sem ter se informado de nada interessante. Passaria algum tempo antes que pudesse voltar de visita.
—Eu também -a tranquilizou Veronica-. E é muito amável de sua parte. O senhor Danver é um homem excelente e tenho certeza de que serei muito feliz.
—Pinta, senhorita Barnaby? -perguntou a anfitriã, mudando com brusquidão de assunto e sem olhar desta vez a Veronica.
—Talvez o senhor Radley a acompanhe para ver a exposição de inverno na Royal Academy. Eu diria que poderia lhe interessar.
— Não me dou muito bem com a pintura. -Deixou que tomassem como uma amostra de modéstia ou como a verdade, a escolher. Em realidade, como todas as senhoritas de boa família, tinham-lhe ensinado a pintar, mas o pincel nunca tinha estado à altura de sua imaginação. Desde que tinha se casado com o Pitt e tinha tido duas crianças, sua única afeição era misturar-se nos casos de seu marido e jogar de detetives. Para isso estava dotada, como o próprio Pitt admitia, mas dificilmente podia naquele momento confessar sua afeição!
—Não pretendia que ficasse a pintar, senhorita Barnaby, simplesmente que observasse -replicou à senhora York com um leve gesto da mão, uma irônica desautorização de estupidez que feriu a Charlotte. Mas em seu papel de senhorita Barnaby não lhe era possível desforrar-se-. Não se requer talento algum, salvo mostrar-se elegante e falar com modéstia. Estou segura de que você pode fazer ambas as coisas sem o menor esforço.
—É muito amável -disse Charlotte entre dentes.
Veronica se inclinou. Era uma mulher muito formosa; em seu rosto se harmonizava a fragilidade dos ossos com a força da boca e dos olhos. comportava-se de forma tão amistosa como se levasse tempo tratando com todos os pressentes.
Charlotte se deu conta de que desejava que Pitt a achasse suficientemente livre de culpa para satisfazer às pessoas do Foreign Office. Ao pensar em como deviam considerá-la-se acendeu uma faísca de ira em seu interior.
—Talvez gostasse de vir comigo -se ofereceu Veronica-. Estaria encantada de contar com sua companhia. Poderíamos fazer todas as observações que quiséssemos e falar com toda franqueza do que nós gostamos e do que não.
—Não olhou para sua sogra, mas levantou seu fino ombro a modo de gesto mínimo de exclusão.
—Estarei encantada -aceitou Charlotte-. Será um grande prazer. Percebeu que Jack pigarreava em sua cadeira junto a ela e que levava um lenço à rosto para dissimular seu sorriso.
—Então já está combinado - disse Veronica com firmeza. Não é uma das saídas preferidas de mamãe, assim tenho certeza de que estará agradecida de economizá-la este ano.
—Acompanhei a tantos lugares que não eram especialmente de meu gosto! –disse a senhora York com seus frios olhos cravados na Veronica. E voltarei a fazê-lo, não tenha dúvida. As responsabilidades familiares não são algo que caia em desuso com o tempo, além de que não se pode escapar a elas. Tenho certeza de que estará de acordo comigo, senhorita Barnaby.-Havia dito a Charlotte, mas era sobre Veronica a quem tinha incidido em primeiro lugar seu olhar, para depois voltar-se com uma mudança de expressão tão ligeira que mal era definível. Charlotte teve o pressentimento repentino e intenso de que aquelas duas mulheres tinham certa antipatia, e talvez algo mais inclusive.
Veronica se ergueu no sofá, enquanto a tensão subia por seu pescoço, a longa linha da garganta e sua apaixonada boca. Não disse nada. Charlotte supôs que falavam de algo alheio por completo, e pela tensão e a violência soterrada que se criara entre ambas, via-se que se entendiam à perfeição.
—Certamente -murmurou Charlotte. Além de tudo, supunha-se que tinha passado os dois últimos anos cuidando de uma parente doente. Que maior sacrifício ao dever podia imaginar-se para uma mulher solteira.-
—A família está ligada pelos vínculos tanto do amor como da obrigação. Quase era hora de que partissem. Tinha que fazer um último esforço para inteirar-se de algo mais substancioso que a azeda impressão de infelicidade que levava. Lançou um rápido e discreto olhar em torno da sala, sem mover a cabeça. Reparou em um relógio de cobre. Se tinha que mentir, por que não fazê-lo até o final?
—Oh, que relógio lindo - disse com admiração. Meu primo tinha um muito parecido, só que um pouco menor, parece-me, e uma das figuras estava vestida diferente. -estremeceu para dar veracidade. Desgraçadamente o roubaram. Foi uma experiência horrorosa. -Ignorou a cara de espanto do Jack e prosseguiu-. Tão doloroso como a perda de pertences é a horrível sensação de que alguém entrou pela força em sua casa e talvez esteve apenas a uns metros de seu quarto enquanto você continuava dormindo! Demoraremos anos em poder ir outra vez à cama com a sensação de tranqüilidade de espírito. -Escrutinava os rostos das duas mulheres pela extremidade do olho.
Obteve sua recompensa em forma de uma exclamação abafada por parte da Veronica e uma rigidez repentina no corpo da senhora York debaixo as dobras de suas suntuosas sedas-. Chamamos à polícia, claro está, mas não apanharam ao ladrão. E nós nunca recuperamos nenhum de nossos apreciados objetos. Veronica, sentada em completo silêncio, abriu a boca e em seguida a fechou sem dizer nada.
—Que infortúnio o seu. -A anfitriã falava em voz bastante baixa, mas com um matiz estranho, e suas palavras soavam muito destacadas, coisa nada habitual nela, como se seu controle sobre as mesmas fosse precário.
—Temo que tudo isso faz parte da vida de hoje em dia. Poucas vezes a gente está tão a salvo como imagina-se. Agradeça, senhorita Barnaby, de que só fossem pertences o que lhes roubaram.
Charlotte conservava sua fachada de inocência, embora sua consciência começava a ressentir se. Devolveu o olhar à perplexa senhora York. Jack tinha simulado a sua ignorância do assunto, de modo que não podia ajudá-la. Charlotte viu como se alterava o rosto da Veronica. De novo pareceu a ponto de falar e pensar melhor antes de fazê-lo. Ergueu os olhos a sua sogra, mas antes que seus olhares se encontrassem, afastou-os outra vez. Por fim, a velha dama foi quem rompeu o pesado silêncio.
—Meu filho morreu assassinado por um ladrão que entrou nesta casa, senhorita Barnaby. É algo sobre o qual ainda nos causa uma grande confusão falar. Por isso lhe dizia que são afortunados por ter perdido somente bens materiais.
—Oh, quanto o lamento! -disse Charlotte-. Por favor, devem me perdoar por ter-lhes trazido à memória algo tão doloroso. Como pude ser tão torpe.
—Notava-se um sentimento de culpa que a consumia por dentro. Nem tudo pode justificar-se pela necessidade de descobrir um mistério, por muito intrigante ou aconselhável para a saúde do Emily que seja.
—Você não podia sabê-lo, se apressou a dizer Veronica-. Por favor, não se sinta mau. Prometo que não o temos em conta.
—Estou certa de que seu bom senso a preservará de voltar a nomear o assunto -disse a senhora York com voz serena, enquanto Charlotte notava como lhe acendiam as faces. Veronica se deu conta de seu apuro e se apressou em aliviá-lo.
—Não era preciso dizer isso, mamãe! -reprovou-a, e apareceu de novo aquele matiz de antipatia que soava tétrico e doloroso naquela sala tão opulenta e confortável. Não era um arrebatamento de ira, mas algo mais amargo e longínquo que vinha de repente à superfície.
—Parece que a senhorita Barnaby não deve sentir-se culpada por ter mencionado seu próprio infortúnio. Como podia saber algo de nossas... nossas tragédias? A gente não pode deixar de participar das conversas pelo fato de que talvez pudesse despertar uma lembrança dolorosa em outra pessoa.
—Acredito que essa era a essência de minha observação. A senhora York olhava fixamente a sua nora com seus brilhantes olhos quase hipnóticos pela concentração-. Se a senhorita Barnaby for à pessoa de sensibilidade pela que eu a tomei, ao ter descoberto nossa perda não quererá mencionar nenhum assunto próximo a isso enquanto estiver em nossa companhia. Acredito que está suficientemente claro.
Veronica se voltou para Charlotte e lhe estendeu a mão.
—Espero que nos visite de novo, senhorita Barnaby, e que venha à Academia comigo. Meu convite é sincero, não é um mero cumprimento.
—Estarei encantada -disse Charlotte, enquanto estreitava com calor a mão que ofereciam-lhe-. Será um grande prazer, já estou desejando isso,ficou de pé. Era hora de partir; tal como tinha ido a conversa, não ficava alternativa. Jack levantou-se também e juntos expressaram sua gratidão e seus bons desejos, e cinco minutos depois estavam na gélida carruagem, que avançava sob a chuva deixando atrás de si o repicar dos cascos do cavalo e o ruído das rodas.
Charlotte se embrulhou na manta de viagem, mas não havia nada que pudesse evitar as gélidas rajadas de ar. Na próxima vez que usasse um vestido de Emily, pegaria também um cachecol de peles!
—Devo entender que irá à Academia com a Veronica? -disse Jack passados uns minutos.
—É claro! Não lhe parece também que há um grande segredo entre Veronica e a senhora York que a polícia jamais poderia descobrir? Acredito que as duas sabem algo a respeito da noite do roubo... embora não me atreveria a dizer o que poderemos desvendar nós.
Pitt não tinha nem idéia de que Charlotte tivesse ido a Hanover Close. Ele sabia de sua preocupação por Emily e a compreendia, e esperava que ela utilizasse todos seus poderes de observação e dedução para averiguar os sentimentos de Emily por Jack Radley e para verificar a valia de este ser de verdade interesse de Emily. E se resultasse que aquele homem não era satisfatório, seria uma provocação dissuadir Emily de levar o assunto mais longe, ou desalentar ao próprio Radley.
Pitt suspeitava que seria necessário todo o talento de Charlotte para que a questão se concluísse do modo menos doloroso possível para Emily. Por isso não voltou a mencionar à Charlotte o roubo em casa dos York nem a morte do Robert York, nem a mantinha tampouco à corrente de suas próprias indagações.
Ballarat se mostrava evasivo quando se tratava de dar uma explicação a reabertura do caso. Não estava claro se o que esperavam era descobrir quem tinha matado Robert York depois de tanto tempo, ou se o verdadeiro propósito da investigação era averiguar o móvel. Talvez o que queriam era eliminar toda dúvida da versão mais imediata, segundo a qual não se teria tratado mais que de um simples roubo que tinha acabado com um ato violento não previsto, e deste modo dar fim, de uma vez por todas, aos rumores de traição. Ou inquietava-os, de verdade, que Veronica York pudesse estar de algum modo implicada, que tivesse atuado possivelmente como catalisador inconsciente de um crime passional grosseiramente encoberto para que parecesse um roubo? Ou acaso sabiam a verdade, e somente queriam assegurar-se por partida dupla de que ficaria enterrado com êxito para sempre por meio da certificação policial, e se não chegava a desvelar-se podiam descansar tranquilos e seguros de que estava a salvo da memória de quem fosse?
Pitt considerou desagradável a última conjetura, e provavelmente não fazia justiça a seus superiores ao lhe dar entrada em seu pensamento, mas estava decidido a esgotar todas as possibilidades até poder apresentar-se ante o Ballarat com uma resposta incontestável e irredutível.
Começou pelos objetos roubados, e o fato curioso de não ter sido encontrado nenhum deles nos lugares onde podia esperar-se achá-los, apesar da busca da polícia, que tinha concentrado a atenção durante todo o ano seguinte. Todos os peritos, prestamistas e colecionadores de objetos de arte menos fastidiosas conhecidas tinham sido interrogados com regularidade de forma sistemática, e em todas as ocasiões os objetos dos York estavam na lista de bens mencionados. Mas Pitt estava na Polícia Metropolitana há quase vinte anos e conhecia gente da qual Ballarat não tinha ouvido falar jamais, gente à sombra, e perigosa, que o admitiam por favores passados e futuros. E a essas pessoas foi ver Pitt enquanto Charlotte dispunha sua visita aos salões de Hanover Close.
Saiu do Bow Street e caminhou a bom passo para o leste, em direção ao Tâmisa, até desaparecer em um dos extensos subúrbios ribeirinhos. Passou junto aos edifícios abarrotados e disformes, escuros sob o encapotado céu e cheios do fedor acre da névoa que avançava no próprio nível do chão procedente das lentas águas cinza e escuras do rio. Não havia ali carruagens com lanternas nem lacaios esperando, tão somente alguns lúgubres reboques carregados com volumes e os carrinhos de mão com algumas poucas verduras murchas para a venda. Um funileiro fazia tilintar suas caçarolas deambulando sobre os irregulares paralelepípedos, enquanto um comerciante de brechó gritava "Roupa velha" Roupa velha!”com uma voz lastimosa e penetrante". Os cascos de seu cavalo não emitiam eco algum em meio daquela envolvente penumbra.
Pitt caminhava depressa, com a cabeça e os ombros encurvados. Usava umas botas velhas e uma jaqueta suja e rasgada pelas costas que reservava para aquele tipo de visitas. Tinha levantado a fina gola até tampar as orelhas, mas a chuva continuava penetrando pela nuca, como um gélido dedo escorregadio que o fez estremecer. Ninguém lhe prestava atenção, salvo os olhares ocasionais de algum camelô ou um mascate que talvez chegava a pensar que podia comprar algo. Mas não tinha aspecto de homem com dinheiro e, tendo saudades do calor que tinha deixado em sua casa, apressou-se a deixar-se engolir pelas ruelas e passagens daquele labirinto.
Por fim achou a porta que procurava, com a madeira enegrecida pelo tempo e a sujeira, os pregos de metal arredondados pelo incontável número de mãos que os tinham roçado. Bateu com dois golpes secos, e depois insistiu com dois golpes mais. Passados uns segundos se abriu uma pequena fresta, até onde o permitia a cadeia que tinham jogado. Embora fosse no meio da manhã, a luz do dia mal penetrava naquelas ruelas, cujos pisos superiores quase se tocavam no alto e cujos beirais gotejavam perpetuamente com uma cadência incessante e irregular. Um rato chiou e escapou a toda velocidade. Alguém tropeçou com um montão de lixo e soltou uma blasfêmia. ao longe se ouviu uma vez mais como um lamento: "Roupa velha!", enquanto do rio chegava o lastimoso som de uma sereia. O cheiro de podridão enchia a garganta do Pitt.
-Pinhom -disse com calma, venho por um assunto de negócios. Produziu-se um momentâneo silêncio e logo apareceu na penumbra à chama de uma vela. Pouco podia ver além da mesma salvo o perfil de um nariz grande e afiado e as negras órbitas de dois olhos que o olhavam. Mas ele sabia que sempre abria a porta o próprio Pinhom, temeroso de que seus aprendizes pudessem fechar o trato sem contar com ele e o privassem de uns poucos pennies.
—É você -disse com azedume ao reconhecê-lo. - O que quer? Não tenho nada para lhe dizer!
—Quero informação, Pinhom, e também lhe fazer uma advertência.
Pinhom emitiu um som gutural como se estivesse a ponto de cuspir, que depois trocou por uma espécie de latido com o que expressava seu desprezo.
—Roubar é uma coisa, e assassinar outra muito diferente -disse Pitt com tato, mas sem alterar-se. Fazia mais de dez anos que conhecia o Pinhom e aquele recebimento era exatamente o que esperava-. Mas a traição é algo muito mais sério. fez-se de novo o silêncio. Pitt sabia o que se levava entre mãos.
Pinhom vendia objetos roubados desde há quarenta anos; conhecia muito bem os perigos de seu negócio, do contrário não estaria ainda vivo e prisioneiro tão somente de sua própria pobreza, ignorância e cobiça. Teria acabado em uma das prisões de Sua Majestade, como a do Coldbath Fields, onde o duro trabalho teria até com seu forte e robusto corpo.
A corrente tilintou ao tirá-la do fecho, enquanto a porta se abria sem ruído ao virar sobre suas engraxadas dobradiças.
—Entre, Pitt.
Fechou a porta atrás dele e lhe conduziu através de um corredor repleto de móveis velhos que cheirava a húmus. Dobraram uma esquina e entraram em uma sala quente. O fogo de uma lareira esparramava uma luz trêmula sobre as manchadas paredes. Diante da lareira e entre duas poltronas felpudas, estendia-se um grosso tapete vermelho, produto sem dúvida de algum roubo.
Além daquele lugar espaçoso, o resto da sala estava abarrotada de objetos mal distinguíveis no meio a penumbra da estadia: cadeiras gravadas, quadros, caixas, relógios, jarros com bicos, pilhas de pratos. Torcido em um ângulo impossível, um espelho devolvia o resplendor do fogo e piscava seu olho avermelhado.
—O que quer, Pitt? -voltou a perguntar Pinhom, olhando-o através da estreita
fresta de seus olhos. Era um homem muito corpulento, com um tórax que era um tonel e a cabeça como um globo, com um corte de cabelo de terrier como o que levam os prisioneiros, embora ele nunca tivesse sido encarcerado, nem sequer processado. Em sua juventude tinha desfrutado da duvidosa reputação de ser um grande lutador com punhos nus, e ainda era capaz de derrubar um homem e deixá-lo sem sentido quando perdia a calma, coisa que acontecia de forma violenta e repentina de vez em quando.
—Viu um par de retratos em miniatura? Século XVII, um homem e uma mulher. E um vaso de prata, ou um peso de papel de cristal gravado com adornos florais, ou uma primeira edição das viagens do Gulliver do Jonathan Swift? -Pinhom parecia surpreso.
—Isso é tudo? incomodou-se em vir aqui para me perguntar por essas coisas? Todas juntas não devem valer muito.
—Não as quero para nada. Só quero saber se ouviu falar delas. Faz uns três anos, certamente. -Pinhom arqueou as sobrancelhas com incredulidade.
—Faz três anos! Maldito seja! Por acaso acredita que me lembro dessa classe de coisas ao cabo de três anos?
—É capaz de recordar algo que tenha comprado ou vendido, Pinhom -disse Pitt com calma-. Seu negócio depende disso. É o melhor intermediário deste lado dorio e sabe o preço de tudo e pennies. Não esqueceria uma raridade como uma primeira edição do Swift.
—De acordo, por minhas mãos não passou nenhuma.
—Quem a tem? Não quero o livro, só quero saber.
Pinhom entreabriu seus diminutos olhos negros e enrugou seu visível nariz com suspicaz. ficou olhando Pitt.
—Você não seria capaz de mentir-me, Pitt? Seria pouco inteligente de sua parte, já que não poderia voltar a ajudá-lo mais. -Inclinou a cabeça.
—Não quererá ter que abandonar estas suas incursões a lugares onde os polis não são precisamente o mais habitual... Sítios como este, por exemplo.
—Perde tempo, Pinhom -replicou Pitt com um sorriso-. Não me importo que minta.
ouviu falar do livro do Swift?
—O que disse antes a respeito de assassinatos e traições? Isso são palavras maiores.
—São palavras pelas quais penduram a uma pessoa , Pinhom. O do assassinato é certo; o da traição, só possível. ouviu alguém falar do exemplar do Swift, quem quer que fosse? Deste lado do rio se ouvem muitas coisas.
—Não, não ouvi ninguém! Se alguém roubasse uma coisa como essa a venderia fora de Londres, ou a um comprador privado a quem se soubesse que a queria. Por que alguém ia querer roubá-lo? não sei. Tampouco deve ser tão valiosa. Disse primeira edição, nada de manuscrito, não?
—Isso, isso. Uma primeira edição impressa.
—Não posso ajudá-lo.
Pitt acreditou nele. Não era tão ingênuo para acreditar que a gratidão pelos pequenos favores do passado pudesse ter algum peso, mas sabia que Pinhom desejava tê-lo de seu lado no futuro. Pinhom era muito poderoso para não ter nenhum medo de seus rivais e não tinha o menor sentido da lealdade. Sabia-se algo cuja confissão que a Pitt pudesse reportar algum interesse, sem dúvida o teria dito.
—Se me inteirar de algo o direi -acrescentou Pinhom-. Está em dívida comigo, Pitt.
—Sei, Pinhom -disse Pitt com tom cortante .- Mas não tanto como supõe. –E voltou-se para empreender o caminho de volta para a grande porta de madeira e a ruela gotejante.
Conhecia outros muitos comerciantes de objetos roubados. Havia as lojas de bonecas, que albergavam aos mais pobres dos prestamistas, quem deixava uns poucos pennies a pessoas suficientemente desesperadas para desfazer-se até de seus potes e panelas, ou dos utensílios de seu próprio ofício, com a finalidade de comprar comida. Odiava aquele tipo de lugar. Sentia uma pena tão intensa como se lhe dessem um pontapé no estômago. Sentia-se tão impotente que ficou furioso por não chorar. Tinha vontade de gritar aos ricos, ao Parlamento, a quem quer que levasse uma vida cômoda, ou que permanecesse na ignorância daquelas dezenas de milhares de pessoas que se pegavam à vida por um fio tão frágil e perigoso e que não tinham sido criados senão para conhecer o lado mais cru da moralidade.
Desta vez podia evitar aquele tipo de estabelecimentos, assim como as cozinhas de ladrões, onde uma série de instrutores dirigiam escolas onde treinavam crianças para que roubassem e lhes contribuíssem os benefícios. De igual modo, tampouco precisaria recorrer ao comércio mais baixo: o de quem comercializava com roupa velha, recortes e sapatos usados, que recolhiam e convertiam em artigos novos para os pobres que não podiam aspirar à outra coisa. Até os piores farrapos se descosturavam muitas vezes com meticulosa laboriosidade para voltar a tecer a fibra para fazer deles uma espécie de pano reciclado: o único para cobrir a aqueles que, de outro modo, iriam nus.
Os objetos roubados na casa dos York tinham sido subtraídos por um ladrão que tinha não só bom gosto, mas também certa cultura, por isso teria escolhido um caminho de acordo com estas características para vendê-los. Eram luxos que não podiam ser convertidos em nada útil pelos patrões das lojas de bonecas.
Voltou caminhando através do labirinto de ruelas que, partindo do rio, conduziam ao Mayfair e Hanover Close. Os ladrões estavam acostumados a operar em seu ambiente mais familiar. Como não podia seguir a pista dos objetos subtraídos, o melhor lugar por onde começar era entre aqueles que conheciam o gênero. Tinha-se sido um deles, a notícia do assassinato teria chegado provavelmente aos mais velhos ouvidos. Se tinha sido um estranho, também teria chegado a saber alguém. Na época, a polícia tinha realizado suas investigações, de modo que não era um segredo. O mundo da vadiagem teria sua própria informação.
Uma vez no Mayfair, custou-lhe meia hora dar com o indivíduo a quem procurava, um homenzinho chupado e de pernas curtas, de idade indeterminável, chamado William Winsell mas conhecido como o Arminho. Encontrou-o no canto mais escuro de uma taverna de reputação especialmente má, com seu turvo olhar perdido na pouca cerveja que continha uma suja jarra. Pitt deslizou sobre o assento vazio que havia a seu lado. O Arminho se voltou para ele com olhar hostil.
—O que está fazendo aqui, maldito policial! Quem vai confiar em mim se me virem com tipos como você? -Lançou uma olhada às desalinhadas roupas de Pitt.
— Acredita que não o conhecemos, só porque vem vestido assim? Continua tendo as mesmas pintas de policial, com essas mãos tão limpas que não trabalharam nunca e essas botas -não se incomodou em lhe olhar os pés- como dois condenados barcos.
—Minha ruína, isso é o que quer!
—Não vou ficar -disse Pitt com calma.
—Vou comer no Cão e o Pato, a uma milha daqui. Tinha pensado que talvez gostasse de vir comer comigo, -digamos... dentro de meia hora? Comerei bife e bolo de rins, bem quentinho. A senhora Billows o prepara de monte. E dourado , feito com manteiga e com montões de passas, e nata. E talvez um par de copos de cidra do oeste.
O Arminho engoliu saliva.
—É um tipo cruel, Pitt. Já deve andar atrás da cabeça de algum pobre bastardo! -Fez um expressivo gesto com a mão à altura do pescoço, como se puxasse um nó corrediço por debaixo da orelha.
—É possível, quando tudo acabe. por agora só procuro informação sobre certo roubo. O Cão e o Pato, dentro de meia hora. Mais vale que esteja ali, Arminho, do contrário terei que vir atrás de você e nos acharemos em um lugar menos agradável... e menos privado. -ficou de pé, sem voltar-se para olhar atrás, com a cabeça abaixada, abriu passagem entre os bebedores e saiu à rua.
Trinta e cinco minutos mais tarde se achava na sala mais arrumada do Cão e o Pato, com uma jarra de cidra diante de si, clara e luminosa, quando o Arminho, muito nervoso, entrou no local, passou os dedos ao redor da imunda gola da jaqueta, para separar de sua garganta, e deslizou na cadeira em frente à Pitt.
Lançou uns olhares em torno do lugar que ocupavam, mas só viu clientes indiferentes e pequenos comerciantes, ninguém a quem ele conhecesse.
—Bife e bolo de rins? -propôs Pitt desnecessariamente.
—Primeiro, o que quer de mim? -disse o Arminho com suspicaz, embora lhe tivessem aberto as narinas, que sorviam o delicioso aroma dos afrescos e doces mantimentos. Era quase como se aqueles eflúvios lhe servissem já de alimento.-A quem está procurando?
—A alguém que cometeu há três anos um roubo em uma casa de Hanover Close - replicou Pitt, enquanto assentia ao dono do local por cima da cabeça do Arminho.
Este olhou furioso ao redor, com a fronte franzida pela raiva.
—A quem fez esse sinal? -grunhiu.-Quem está aí?
—O patrão do local. -Arqueou as sobrancelhas-. Não quer comer?
O Arminho se acalmou, com um ligeiro rubor em sua pele cinzenta.
—Um roubo cometido faz três anos em Hanover Close -repetiu Pitt.
O Arminho fez uma careta desdenhosa.
—Três anos? um pouco tarde, não acha? Hoje em dia o que não corre, voa. O que levaram?
Pitt descreveu os artigos de maneira detalhada. Os lábios do Arminho se retorceram em um sorriso.
—Não é isso o que busca! Você procura quem o carregou, e o tipo que descobriu enquanto roubava essas coisas!
—Isso também poderia me interessar. Mas o que mais me interessa é demonstrar a inocência de uma pessoa.
—Pois que sorte tem! -disse o Arminho com sarcasmo-. É amigo seu?
—Não tem fome? -sorriu Pitt.
O dono apareceu com dois pratos fumegantes que continham uma montanha de carne com molho envolvido em uma casca de manteiga muito fina e decorada com um punhado de verduras. junto a ele, uma criada segurava na mão uma jarra de louça com uma cidra tão doce como as maçãs amadurecidas.
A Arminho lhe brilhavam os olhos.
—O assassinato não é aconselhável para os negócios -disse Pitt com calma.-Dá ao roubo muito má fama.
—Mas também realce! -soltou o homenzinho, e umedeceu os lábios e sorriu.-Tem razão... foi algo muito torpe e desnecessário. -Olhou extasiado o
prato que acabavam de lhe servir, enquanto inalava os delicados vapores e a boca enchia-se de água ao ver a cidra transbordar pelos bordos de sua jarra.
—O que sabe do assunto, Arminho? -perguntou Pitt antes que pudesse tomar o primeiro bocado.
Arminho abriu os olhos desmesuradamente. Eram de um cinza claro: o traço redentor de um rosto chupado. Tinham que ser formosos alguma vez. encheu a boca de comida e mastigou devagar, enquanto lhe dava voltas com a língua.
—Nada -disse por fim-. Mas é que além disso não há nada, se sabe o que quero dizer.
—Geralmente ouve-se uma palavra, quando não uma conversa direta, ao cabo de um mês ou dois. Ou, se o tipo tiver estado de molho porque o caso se tinha posto feio, depois de um ano possivelmente. Mas deste não há nem rastro!
—Se estivesse de molho em algum buraco dos subúrbios , você saberia? -insistiu Pitt. "De molho" significava em algum lugar oculto para a polícia, mas Arminho lhe dava a entender que aquele ladrão se evaporara.
Encheu a boca de novo e falou com dificuldade enquanto mastigava.
—Claro que saberia! -disse com desdém-. Conheço todos os lugares de comer, ratoeiras, buracos, depósitos e pocilgas em milhas ao redor.
Pitt o entendeu muito bem. referia-se a hospedarias, esconderijos, posadas baratas, pub's de criminosos e chiqueiros.
—E lhe direi uma coisa -continuou depois de beber um gole de cidra.-Isso não foi obra de um profissional. Pelo que sei, atuou sem graça, e sem enguia, e quem se não um louco ia se pôr a forçar uma janela dianteira em um lugar como Hanover Close. Todo mundo sabe que os polis de ronda passam a cada vinte minutos!
Uma enguia era um menino muito magro ou desnutrido capaz de penetrar por entre os barrotes de uma janela e, uma vez dentro, abrir a porta ao verdadeiro ladrão. Uma garça era um vigia, com frequência uma mulher, que avisava quando se aproximava a polícia ou um estranho. Pitt já sabia que não tinha sido um profissional da conversa com o agente Lowther, mas não deixava de ser interessante que o Arminho também soubesse.
—De modo que o fez um aficionado -disse Pitt-. Fez algo mais, tornou a agir depois?
Arminho meneou a cabeça, pois tinha a boca cheia, até que engoliu por fim.
—Já o disse... nem rastro. -Não tinha atuado nunca antes, nem atuou depois. Não é dos nossos, Pitt. Nunca ouvi nenhuma palavra dos objetos roubados, nem de ninguém que tivesse que estar de molho por esse assunto... e o teria necessitado. Não se trata de uma condenação no Coldbath, nem de cumprir a pena na armada, como antes se fazia: trata-se de um assassinato, não há passeio nem açoite que valham; o que espera o assassino é Newgate, e um salto no vazio uma manhã cedo com uma corda atada ao pescoço. E debaixo o demônio lhe esperando.
Com "passeio" o Arminho se referia à fita sem fim, um artefato utilizado nas prisões com o que se obrigava ao réu a permanecer em perpétuo movimento; "açoite" era a condenação a receber certo número de chicotadas. -Reclinou-se na cadeira e deu uns tapinhas no ventre.
—Não esteve mal o lanche, Pitt -disse enquanto contemplava o prato vazio,ajudaria-lhe se pudesse. o melhor que posso lhe aconselhar é que tente achar algum pimpolho que acreditasse que roubar era fácil e descobrisse muito tarde que não o é. -aproximou o prato do Pitt com o pudim dourado, cheio de fruta, e afundou nele a colher, mas então levantou a vista com uma ideia repentina.
—Ou talvez a senhora da casa tinha um amante, e este se encarregou do marido e acontece que não se tratava para nada de um roubo.-Tinha pensado nisto, senhor Pitt? O que é certo é que não foi ninguém dos nossos.
—Sim, Arminho, já o tinha pensado -disse Pitt enquanto lhe aproximava seu prato de nata.
Arminho sorriu, deixando ver uns dentes afiados e dispersos e serviu-se do creme com generosidade.
—Não é nada idiota, para um poli, ah que não! -disse com respeito a seu pesar.
Pitt tinha acreditado em Arminho, mas mesmo assim se sentia obrigado a seguir até o final todos os contatos que tinha previsto até a Véspera de natal. Não achou nada mais que uma completa ignorância e uma total ausência de medo, que era em si algo assim como uma prova. Percorreu milhas através de escuras ruelas que corriam por detrás das fachadas das ruas principais. Perguntou a rufiões, receptadores, assaltantes e administradores de casas de encontros , mas ninguém lhe disse nada de nenhum ladrão que tivesse irrompido em Hanover Close e tentado vender ou dispor dos objetos desaparecidos, nem de ninguém que estivesse escondendo-se por uma culpa de assassinato. Os moradores dos subúrbios respondiam a suas perguntas com um rosto sujo e cúmplice, mas completamente inocente.
Apresentava-se uma noite perfeitamente rude. Depois de um breve entardecer de uma tonalidade pálida e esverdeada, às quatro e meia já tinha escurecido. Os lampiões de gás ardiam com chama muito amarela, as carruagens iam daqui para lá sobre o brilhante filme de gelo que cobria os paralelepípedos. As pessoas se saudavam com vozes, os cocheiros lançavam impropérios e os vendedores ambulantes proclamavam suas mercadorias: castanhas quentes, fósforos, cordões, lavanda seca, bolos recém feitos, flautins de metal, soldadinhos de chumbo. Aqui e lá havia carriolas de jovens cantando canções natalinas; suas vozes soavam finas e penetrantes no ar gélido.
Pitt se sentia cada vez mais limpo à medida que se livrava do aroma de desespero e o tom cinza que o rodeava ia se iluminando com brilhos de cor. A alegria que reinava agora a seu redor tirava-o de seu e até conseguia eliminar os sentimentos de pena e de culpa que costumavam invadi-lo sempre que abandonava os subúrbios para voltar para seu confortável lar. Naquele dia, em troca, expulsou tais sentimentos como quem desprende-se de um casaco sujo e se sentiu cheio de gratidão.
Abriu a porta principal e gritou:
—Olá! Produziu-se um instante de silêncio, e então ouviu Jemima saltar de um tamborete e o matraquear de seus sapatinhos sobre o linóleo enquanto corria pelo vestíbulo para recebê-lo.
—Papai! Papai, já é Véspera de natal? Já é Véspera de natal, não é?
Ele a levantou no ar.
—Sim, tesouro, já é Véspera de natal. Já estamos no Natal!
Deu-lhe um beijo e a sentou no braço, enquanto se dirigia à cozinha. Ardiam todas as luzes. Charlotte e Emily estavam sentadas à mesa, dando os últimos retoques à camada de caramelo de um grande bolo, enquanto Gracie preenchia o ganso. Emily tinha chegado fazia uma hora, com um criado carregado de papel, caixas e fitas de cores. Edward, Daniel e Jemima se apinharam a seu redor, mudos pela excitação, Edward saltando sobre um e outro pé, com sua loira cabeleira saltitando sobre a cabeça como se fosse uma coberta chapada em ouro e prata. Daniel se tinha posto a dar voltas e voltas até cair sobre o piso.
Pitt deixou Jemima no chão, beijou a Charlotte, deu as boas-vindas a Emily e saudou com um gesto a presença de Gracie. tirou as botas e as deixou frente à cozinha, enquanto esquentava os pés e as pernas e observava com satisfação como Gracie colocava sobre a superfície quente uma panela com água e pegava da despensa o bule e sua xícara grande do café da manhã. Depois do jantar mal podia esperar que os meninos fossem para a cama para tirar seus presentes, escondidos com tanto cuidado, e começar a envolvê-los.
Ele, Emily e Charlotte se sentaram ao redor da mesa recém esfregada, cheia agora de tesouras, papel brilhante e pedaços de fita e corda. De vez em quando, e a intervalos frequentes, alguém desaparecia no salão, depois de pedir que não se movesse ninguém da cozinha, e voltava com um sorriso satisfeito e os olhos reluzentes.
Foram para a cama pouco antes da meia-noite. Pitt ouviu levantar Charlotte na escuridão quando, em uma ocasião, uma vozinha perguntou do patamar das escadas:
—Ainda não é de dia?
Despertou a prudente hora das sete para achar-se na porta com Daniel com a camisola de dormir posta e Charlotte na janela, completamente vestida.
—Acredito que está nevando -disse ela com doçura-. Ainda está muito escuro, mas há como uma espécie de resplendor no ar. -voltou-se e viu Daniel-.
—Feliz Natal -lhe disse enquanto se inclinava para lhe dar um beijo.
O menino permanecia em silêncio; tinha quase cinco anos e não tinha certeza de que tivessem que continuar lhe dando beijinhos, ao menos não diante de outras pessoas.
—Já é Natal? -sussurrou por entre o suave cabelo que lhe caía pelas faces.
—Sim, já é Natal! Levante-se,
—Thomas, já é Natal. -Deu- a mão ao Daniel-. Quer ver se há algo ao pé da árvore do salão antes de se vestir?
Ele assentiu sem afastar seus olhos, totalmente abertos, do rosto de sua mãe.
—Pois vamos! -E puxou-o, deixando a porta aberta e chamando o Edward e Jemima para que os seguissem.
Pitt se levantou, vestiu-se com maior desalinho do que o habitual e, depois de refrescar o rosto com a água do cântaro que havia sobre a cômoda, desceu as escadas. Charlotte, Emily e os meninos estavam de pé no salão com os olhos cravados na árvore e na pilha de pacotes brilhantes sob o mesmo. Ninguém falava.
—Primeiro tomar o café da manhã e depois a missa. Depois já veremos o que há aí -disse Pitt, rompendo o encantamento. Não queria que Emily se voltasse e visse seu rosto, e que este recordasse ao George.
Jemima abriu a boca para protestar, mas pensou duas vezes.
—Onde está Gracie? -perguntou Pitt.
—Ontem à noite lhe disse que podia ir para casa -respondeu Charlotte. -Nós duas podemos arrumar isso muito bem.
—E não teria preferido ficar aqui, conosco? -Pitt pensava na diferença entre a casa de Gracie e aquela casa cheia de calor, alegria, e com um ganso no forno.
—Talvez sim -concordou sua esposa, que abria a marcha para a cozinha-. Mas sua mãe certamente não. Emily lhe deu de presente um frango -acrescentou em voz baixa, e depois disse com animação:
—O café da manhã dentro de trinta minutos.
Todo mundo a vestir-se, vamos! -Deu umas palmadas e Emily levou os meninos ao piso de cima enquanto ela ficava para preparar papa de aveia, bacon, ovos, torradas, geleia, mel e chá. Pitt foi também acima para barbear-se.
Fora se via um fino polvilho de neve e farrapos de nuvens cinza pérola que cruzavam o azul invernal do céu entre os telhados das casas. Caminharam juntos até a igreja uma meia milha. Por toda parte repicavam os sinos, cujo som enchia o frio ar.
O serviço foi breve, e durante o mesmo estiveram apertados sentados nos estreitos bancos enquanto o vigário explicava a familiar história e o órgão fazia ressoar os familiares hinos. Todos cantaram - Oh, fiéis, venham e Deus lhes acolha felizes, até que o som pareceu envolvê-los como um manto.
Caminharam de volta em meio à neve que caía, em cuja brancura imaculada deixaram impressas seus rastros, e lançaram outro olhar à pilha de pacotes sob a árvore. Depois de dar rédea solta a sua excitação por breves momentos na cozinha, sentaram-se todos a comer o ganso assado com seu saboroso recheio e as rangentes batatas e chirivias assadas que o adornavam, junto com um excelente vinho francês e um pudim de ameixa flambado com brandi, para deleite dos meninos, e coberto com creme. Charlotte o tinha preparado e talhado com supremo cuidado de modo que a todos tocasse uma moeda de três peniques. Mas os presentes não podiam esperar mais. Exultantes de emoção, foram todos em turba ao salão para reparti-los e contemplar como três meninos rasgavam os pacotes, esparramavam-nos pelo chão e se entregavam a uma bebedeira de felicidade sem limite.
Para o Daniel eram a máquina e os vagões que Pitt fazia para ele e uma caixa surpresa que havia lhe trazido Emily; para o Edward, uma caixa de figuras de todas as cores, formas e tamanhos que Pitt tinha esculpido e pintado, e um jogo de soldadinhos de chumbo da parte de Emily; e para a Jemima, uma boneca para quem Charlotte tinha confeccionado três conjuntos de roupa diferentes, e de parte de Emily um caleidoscópio que ao movê-lo e olhar por um buraco oferecia um mundo mágico e cambiante de desenhos luminosos.
A mãe de Charlotte tinha enviado livros para todos: Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, para a Jemima; Os meninos da água, do Charles Kingsley, para o Daniel; e A ilha do tesouro, do Robert Louis Stevenson, para o Edward.
Charlotte ficou muito contente com o vaso de alabastro rosa e o broche granada que deu-lhe de presente Emily; e esta ficou encantada com a gola de renda do Pitt e Charlotte. Pitt estava feliz com as camisas que Charlotte lhe tinha confeccionado e com as lustrosas botas Wellington de couro que Emily havia lhe trazido. Estava-lhe sinceramente agradecido, não só pelo obséquio, mas também pelo tato que demonstrava ao não lhe fazer um presente muito ostentoso. Ela sabia muito bem que em sua época de agente de polícia ganhava pouco mais ou menos o mesmo que um limpador de chaminé, e que inclusive agora que era inspetor todo seu salário mensal era inferior ao que ela se atribuía cada mês para roupa.
Emily estava por sua vez muito agradecida pelo quente afeto e o sentimento de família que tinha recebido deles, e, através do prazer que expressava, tinha sabido demonstrar-lhe e agradecer da forma mais delicada. Quando a inundação de presentes e demonstração de gratidão chegou ao fim, sentaram-se frente ao fogo, sem fechar a grade da lareira para que suas chamas vermelhas e amarelas ardessem vividas. Emily e Charlotte falavam, enquanto Pitt dormitava com os pés sobre a grelha. De noite, quando as crianças foram para a cama exaustos, apertando contra si os presentes, Charlotte, Pitt e Emily tiraram um quebra-cabeças gigante que representava a coroação da rainha Vitória. Estiveram sentados em torno dele até meia-noite, quando Emily colocou por fim a última peça com um grito de triunfo.
Dois dias depois, em meio de um cortante vento invernal que congelava o lamaçal do meio-fio formando escorregadias e quebradiças cristas e que espalhava o gelo dos bueiros como se fossem cristais quebrados, Pitt voltou para trabalho. Uma vez deixadas às instruções pertinentes em relação aos outros roubos a seu cargo, saiu do Bow Street em direção a Hanover Close. Sentia uma curiosidade cada vez maior por conhecer os York, e lhe ocorreu uma idéia.
Um cocheiro até certo ponto surpreso levou-o até a tranquila e elegante rua com suas fachadas georgianas e as complicadas filigranas que formavam as negras árvores sem folhas ao recortar-se contra um céu nitidamente branco. Perguntou ao Pitt se tinha certeza que era ali onde queria ir, mas ao ver a expressão de seu rosto o deixou correr. O cocheiro pegou o dinheiro e fez estalar as rédeas sobre a garupa do cavalo, da qual se desprendia um ligeiro bafo. Pitt se encaminhou à porta principal, preparou-se para a displicência do criado, que lhe diria ser um policial, que chegasse jamais a dar o caso de receber tal visita, devia entrar pela porta de serviço. Estava acostumado aquele tratamento, mas mesmo assim não podia evitar uma tensão à altura dos ombros.
A porta se abriu quase imediatamente e apareceu um criado que rondaria aos trinta anos e que não pôde evitar mostrar em seu rosto uma ligeira surpresa.
—Meu nome é Thomas Pitt. -Preferiu não mencionar no momento sua classe. –É possível que tenha certa informação em relação com um assunto que poderia ser de interesse para o senhor York. Estaria-lhe muito agradecido se lhe perguntasse se posso vê-lo.
O criado não se atreveu a rechaçar um requerimento como aquele sem consultar seu amo, coisa com a qual Pitt tinha contado.
—Pode esperar no salão, senhor. irei perguntar. -O criado se afastou e abriu de todo a porta para convidá-lo a entrar. Levava uma bandeja na mão, mas Pitt não tinha cartão de visita algum para depositar nela. Talvez devesse considerá-lo: poderia fazer um muito simples, com seu nome e nada mais.
O salão era espaçoso e confortável, uma estadia varonil, com os móveis de cor verde claro e imagens esportivas nas paredes. Havia livros com capas de couro em dois armários com portas de vidro e um globo terrestre bastante elegante sobre uma mesa junto à janela, com todas as nações do império assinaladas em vermelho e um grosso risco circular ao redor do Canadá, Austrália, Índia, a maior parte da África até o Egito e diversos número de ilhas de todos os continentes. Um meridiano de latão encostado abraçava o globo por inteiro. O criado permanecia imóvel.
—Posso dizer ao senhor York com o que está relacionado esse assunto do qual você quer falar com ele? -disse com toda seriedade.
—Com a morte do senhor Robert York -respondeu Pitt com uma verdade pela metade.
O criado não achou resposta para aquilo, por isso fez uma cumprida reverência e saiu fechando a porta atrás de si. Pitt sabia que não teria que esperar muito e que não valia a pena examinar os livros da sala com a esperança de deduzir a partir deles as personalidades dos donos da casa. Os livros caros se adquirem muitas vezes por seu aspecto exterior mais que por seu conteúdo. Em lugar disso, repassou mentalmente o que devia dizer, para preparar-se para mentir a um homem pelo qual sentia uma profunda piedade e pelo que muito bem podia desenvolver um sentimento de afeto.
O honorável Piers York fez sua aparição ao cabo de cinco minutos. Era alto, tinha a constituição do homem que foi esbelto em seus melhores anos. Próximo aos setenta, mantinha-se erguido, apesar de ser já um pouco carregado de ombros, enquanto que seu rosto enxuto transbordava um senso de humor irônico e muito pessoal que estava profundamente enraizado sob a atual pátina que tinham criado a aflição e os muitos anos de auto repressão.
—Senhor Pitt? -perguntou, enquanto fechava a porta e assinalava uma das poltronas a modo de convite tácito.
—John me havia dito que tinha você algo a me dizer em relação com a morte de meu filho. É assim?
Pitt se sentia mais envergonhado do que tinha suposto, mas já era muito tarde para partir sem expor sua mentira completa.
—Sim, senhor. -Engoliu em seco. - É possível que se descobriu algum dos artigos roubados. Se pudesse você me facilitar uma descrição mais detalhada do vaso e do peso de papel...
Os olhos dos York mostravam perplexidade. Neles se apreciava o rastro da perda, mas também um brilho de algo que podia ser ironia ou certo humor ao reparar nas reluzentes e impecáveis botas de Pitt.
—É você policial? -perguntou. Ao Pitt ardia o rosto.
—Sim, senhor.
York tomou assento com um movimento elegante apesar da leve rigidez de suas costas.
—O que acharam?
Pitt tinha uma história preparada. sentou-se em frente e evitou o olhar nos olhos do York ao responder.
—Achamos muito recentemente uma grande partida de gênero roubado, entre a qual se contam diversos objetos de prata e de cristal.
—Já vejo. -Sorriu sombrio-. Não acredito que agora isso tenha muita importância. Não eram objetos de um grande valor. Tão somente se tratava de um pequeno vaso, que eu mesmo já quase nem lembro como era... O peso de pape estava gravado, com desenhos de flores ou algo pelo estilo, parece-me. Não quero que ninguém se incomode em perder o tempo por essas coisas, senhor Pitt. Com certeza você tem assuntos mais importantes que atender. Não ficava mais alternativa que mencioná-lo.
—Poderia ser que esses objetos nos pusessem atrás da pista do ladrão, e portanto do homem que matou a seu filho -explicou com gravidade.
York sorriu, cortês mas abatido. Tinha conseguido separar aquele assunto de suas emoções.
—Depois de três anos, senhor Pitt? Certamente depois disso mudaram de mãos muitas vezes. -Aquilo era uma observação, não uma pergunta.
—Não acredito, senhor. Temos muitos contatos com os traficantes de gênero roubado.
—Suponho que isto é necessário -suspirou York.-Pode figurar-se você o que importa-me esse vaso, ou a minha esposa. Robert era nosso único filho. Parece-lhe que nós...? -Suas palavras ficaram afogadas antes de sair.
Era aquilo necessário? De verdade toda aquela farsa que tinha planejado podia proporcionar-lhe alguma informação sobre o assassino do Robert York? Podia chegar a lançar alguma luz sobre a presumida participação de sua viúva? Não serviria mais que para infligir mais dor a uma família que já tinha sido duramente golpeada? Mas havia neste crime algo diferente. Não se tratava de um roubo em uma casa qualquer. Acreditava em Pinhom e em todos os outros que como ele haviam dito que o golpe não se gerara nos subúrbios . Possivelmente algum conhecido do círculo dos York se tornou um criminoso e, quando Robert tinha o reconhecido, o ladrão o tinha matado, preso pelo pânico de que o denunciasse. Ou talvez inclusive fosse antes de um assassinato, só circunstancialmente um roubo: Robert York poderia ter surpreendido sua mulher com um amante e este poderia ter tirado os objetos em questão para encobrir o verdadeiro crime. Ou pior ainda, possivelmente se tratasse de uma ação premeditada.
Também havia , é claro, a possibilidade temida pelo Foreign Office: que o autêntico roubo incluísse documentos que Robert York levou para casa e que, portanto, não só constituíra um crime de assassinato mas também de traição.
—Sim, receio que é necessário -disse Pitt com firmeza-. Sinto muito, senhor, mas tenho certeza de que inclusive em sua aflição, a senhora York não desejará que um assassino ande solto quando pudermos apanhá-lo.
—York lhe olhou com serenidade e depois se levantou lentamente.
—Suponho que sabe você o que faz, senhor Pitt. -Não havia em sua voz intenção alguma de ofender. Falava de cavalheiro a cavalheiro. Puxou a corda da campainha junto à porta e quando respondeu o criado, lhe mandou em busca da senhora York.
Demorou vários minutos em descer, mas nenhum dos dois falou até que apareceu ela. Pitt ficou em pé imediatamente e a observou com interesse. Aquela era a mulher cuja compostura tanto tinha impressionado ao Lowther na noite da morte de seu filho, e a Mowbray no dia seguinte. Mal superava a meia idade, sua esbelta figura era um pouco robustecida à altura da cintura, trazia os ombros cobertos por completo e o branco pescoço envolvido por um bordado, não um bordado de senhora velha, mas de um caro e denso bordado francês, do estilo de que poderia ter escolhido a tia avó Vespasia. Inclusive a uma distância de mais de dois metros, Pitt pôde cheirar o suave aroma de um perfume tão leve e doce como o da gardênia. Tinha traços suaves e arredondados, um nariz quase grego, e lábios ainda bem definidos. Sua cútis era impecável e o cabelo, embora tivesse perdido um pouco de cor, conservava toda sua rica textura e consistência, e um ondulado natural. Devia ser uma beleza, em seu estilo. Olhava ao inspetor com fria surpresa.
—O senhor Pitt é da polícia -explicou York-. É possível que tenha encontrado alguns dos pertences que nos roubaram. Poderia lhe descrever o vaso de prata? Receio que eu não poderia reconhecê-lo embora o visse.
A dama arqueou as sobrancelhas.
—Depois de três anos, agora dizem que me vão devolver um jarro de prata?
—Compreenderá que não me sinta impressionada, senhor Pitt.
A crítica era legítima e ele sabia. A voz do Pitt soou mais áspera do que pretendia.
—Com frequência a justiça é lenta, senhora, e às vezes o inocente sofre por isso.-Sinto muito.
A dama se obrigou a sorrir, o que fez que ele sentisse respeito por ela.
—Teria umas nove polegadas de altura, era de base redonda mas corpo quadrangular e terminava em uma boca acanalada. Era de prata maciça e cabiam cinco ou seis caules. Costumava pôr rosas nele.
Era uma descrição muito precisa, sem nenhum elemento vago ou contraditório. Olhou-a com atenção. Era uma mulher inteligente, tinha um completo domínio de si mesma, embora em seu rosto houvesse emoção. De fato ao Pitt não era difícil imaginar uma grande paixão atrás dele. Baixou a vista para as pequenas e fortes mãos de ambos os lados da silhueta e comprovou que estavam tensas, mas não fechadas.
—Obrigado, senhora. E o peso de papel?
—Esférico, com duas rosas da casa Tudor gravadas; e também algo mais, umafita ou uma espiral. Tinha três ou quatro polegadas de altura e era pesado, certamente. -Franziu o cenho-. Descobriu o ladrão? -Havia agora um ligeiro estremecimento em sua voz e um diminuto músculo tremeu por debaixo da pálida pele das têmporas.
—Não, senhora -ao fim era toda a verdade-, tão somente os artigos subtraídos, através de um traficante de coisas roubadas. Mas talvez ele nos leve ao ladrão.
York estava de pé a alguns metros dela. Por um momento Pitt acreditou que ia estender os braços para a mulher em um gesto de consolo, ou de mera condolência, mas mudou de intenção, a não ser que Pitt tinha interpretado mal o leve movimento percebido. O que havia atrás do desdenhoso e patrício rosto do homem e de a beleza regular e cuidadosamente preservada da dama? Suspeitavam que sua nora pudesse ter tido um amante? Ou que seu filho tivesse sido assassinado por causa de um segredo de estado? Ou que alguém próximo, um amigo da família talvez, tivesse contraído grandes dívidas e tivesse recorrido em seu desespero ao roubo, em lugar de confrontar a desgraça e inclusive, talvez, o cárcere, consequência da ruína econômica? Não ia tirar nada em olhá-los. Sua educação no seio da fria e obediente infância da aristocracia lhes tinha inculcado o autodomínio e a consciência do dever para a dignidade e para sua classe. Se algum medo ou aflição se escondiam no interior, nenhum policial, nenhum filho de guarda-florestal ia descobrir através de uma voz ou de uma mão trêmula. Pitt quase desejava que Charlotte tivesse podido vê-los. Ela talvez tivesse sido capaz de ler um pouco mais através de suas maneiras.
Não podia prolongar aquela situação por mais tempo, nem lhe ocorria nenhuma desculpa apropriada que lhe permitisse conhecer a viúva. agradeceu-lhes e deixou que o criado o acompanhasse à porta e à cinza e gélida rua.
Demorou três dias para achar um vaso que encaixasse com a descrição da senhora York, e mesmo assim era uma polegada e meia mais curto e tinha cinco faces em vez de quatro, mas seria suficiente. Com o peso de papel não houve forma: os butins de gênero roubado não ofereciam nada que lhe parecesse remotamente, e o engano se faria muito notório se levasse consigo um que diferisse em excesso da descrição que lhe tinham dado.
Era a véspera de Ano Novo e nevava copiosamente. Depois de rodar por ruas silenciosas nas quais as rodas da carruagem mal produziam som algum ao deslocar-se sobre o branco manto, apeou-se frente ao número 2 de Hanover Close pouco depois das três. Tinha perguntado ao agente de ronda e se informou que aquele era o melhor momento para achar a jovem senhora York em casa, enquanto a senhora York mãe se achava fora em visita.
Esta vez abriu a porta uma criada bastante jovem com um avental rígido de renda e uma touca sobre sua negra cabeleira. Olhou para Pitt de cima abaixo com receio, do cabelo despenteado que aparecia por debaixo de seu chapéu alto e o casaco elegante mas usado cujos bolsos transbordavam de todo tipo de objetos que tinha pensado que poderiam lhe ser de alguma utilidade, até as bonitas botas de Emily.
—Sim, senhor?
Sorriu-lhe.
—Devo ver à senhora York. Espera minha visita para um destes dias. Ela atendeu mais a seu sorriso que à informação que lhe dava, que considerava difícil de acreditar.
—A senhora York está com outra visita neste momento, senhor, mas se quiser passe a saleta e direi que está aqui.
—Obrigado. -Entrou e lhe entregou um dos cartões que fizera desde sua última visita. Talvez fosse um pouco presunçoso para um policial ter cartão, mas gostava, e algum dia possivelmente pudesse justificar o gasto. Não o havia dito a Charlotte por temor a que esta lhe considerasse um idiota. A saleta estava igual à outra vez, com um abarrotado fogo consumindo-se pouco a pouco na lareira. Desta vez Pitt abriu deliberadamente a porta do vestíbulo uma vez que a criada se foi e ficou junto à passagem para poder ouvir qualquer conversa sem ser visto. O mais provável é que os visitantes fossem irrelevantes, mas sentia curiosidade. Não tinha visto nenhuma carruagem fora, assim fosse quem fosse, devia ter intenção de permanecer o suficiente tempo para considerar que valia mais enviar a carruagem de volta aos estábulos; aquilo supunha mais da meia hora habitual para uma visita de meia tarde.
O mal-entendido desejado se produziu. Era a jovem senhora York a quem a criada tinha informado e, depois de uns dez minutos, foi ela que acudiu, acompanhada por um homem com o cabelo muito bem cuidado de uns quarenta anos, com um rosto não muito belo, mas de feições inteligentes e atraentes, tratavam-se de um modo muito cortês embora em extremo circunspeto.
Veronica York era uma mulher na verdade muito formosa, muito esbelta, com uns ombros e um peito muito delicados, e se movia com uma graça pouco usual. Seu rosto era mais sensível que o de sua sogra, com ângulos mais suaves, que atraiu a Pitt de forma instintiva. Naquele rosto havia algo obsessivo, e teve a impressão de que debaixo daquela calma se escondia uma intensa paixão a ponto de irromper ao exterior.
—Senhor Pitt? -disse com manifesta estranheza-. Espero que não lhe importe que o senhor Danver me acompanhe. Lamento reconhecer que não recordo que nos conheçamos.
Danver a rodeou apenas com o braço, como se tivesse que proteger a de algum ataque ou de alguma descortesia. Mas não se apreciava hostilidade em seu rosto, mas somente precaução e a consciência da vulnerabilidade da mulher.
—Sinto muito -se desculpou Pitt. - É a senhora Piers York quem espera minha visita. Devia ser mais explícito. Mas talvez, se não houver inconveniente, você mesma possa me ajudar. -tirou o jarro de prata do bolso do casaco e o mostrou.
—É possível que seja este o vaso que lhes roubaram faz agora três anos. Se for assim, teria a amabilidade de assegurar se você mesma assim me confirmar? Seu rosto ficou lívido e arregalou os olhos como se aquele objeto fosse espantoso e incompreensível.
Danver aumentou a pressão do braço com que a rodeava como se temesse que fosse desmaiar. Então se voltou para o Pitt com fúria.
—Pelo amor de Deus, senhor, não tem nenhuma piedade? introduz- se nesta casa sem a menor advertência e sustenta ante nós um vaso que foi roubado na mesma noite em que assassinaram grosseiramente ao marido da senhora York! -Olhou para Veronica York e ergueu a voz ao ver como crescia a ansiedade desta.
—Queixarei-me a seus superiores de sua grande falta de sensibilidade! Podia ao menos ter pedido pelo senhor York!
Pitt sentia compaixão pela mulher, mas muitas vezes lhe tinha acontecido tê-lo sentido por um culpado a quem tinha julgado inocente. Para o Julian Danver era diferente: ou era um ator soberbo, ou nunca achou que a verdade fosse outra coisa que o que todo mundo tinha suposto.
—Sinto-o -se desculpou Pitt-. O senhor York me disse em uma visita prévia que não seria capaz de reconhecer o vaso. Foi à senhora Piers York quem me descreveu isso. Posso perguntar a um criado, se o preferirem. Com sua permissão, claro está. Veronica lutava por dominar-se.
—Não seja injusto, Julian -disse. Engoliu saliva com esforço e recuperou a respiração. Continuava muito pálida.
—O senhor Pitt só está cumprindo com seu dever. Não seria mais agradável para mamãe. -Levantou a vista até achar-se com a do Pitt, que se sentiu de novo surpreso pela emoção que desprendiam seus olhos. Não era um simples rosto bonito no seio da vida social, mas uma mulher que seria única e atraente em todas partes-. Receio que não posso lhe dizer com certeza se trata ou não de nosso vaso -disse em um esforço para não perder o controle da voz-, nunca reparei muito nele. Estava na biblioteca, que é uma estadia que não frequento muito. Se quiser perguntar a um dos criados, melhor que incomodar a minha sogra com uma imagem que pode lhe ser muito desagradável...
—É claro. -Pitt esperava achar uma desculpa para falar com o serviço e aquela era a ideal-. Se tiver a amabilidade de notificar ao mordomo ou à governanta que contam com sua permissão, dirigiria às dependências do serviço e talvez poderia achar à criada que realizava a limpeza da biblioteca naquele tempo.
—Sim -concordou ela, incapaz de dissimular seu alívio-. Sim, parece-me uma ideia excelente.
—Eu me encarregarei -se ofereceu Danver-. Quer ir um momento a seu quarto, querida? Eu a desculparei ante Harriet e papai. Ela se voltou com rapidez.
—Por favor, não lhes diga nada.
—Claro que não - tranquilizou-a-. Só lhes diria que estava um pouco enjoada e foi deitar-se meia hora e que iria com eles mais tarde. Quer que chame a sua criada ou a sua sogra?
—Não! - Desta vez havia certa ferocidade em sua voz e a mão com que lhe pegava pelo braço apertou-se como uma garra.-Não... Por favor, não o faça! Estou perfeita. Não incomode a ninguém mais.-Vou lá em cima pôr um pouco de colônia e volto para salão reservado. Se for amável de chamar Redditch e explicar-lhe a presença do senhor Pitt e o do vaso...
Ele aceitou com certa reticência, enquanto a incerteza pairava ainda em seu rosto.
—Boa tarde, senhor Pitt -disse ela com cortesia, enquanto se voltava e partia. Danver lhe abriu a porta e a mulher desapareceu no vestíbulo. -Danver chamou o mordomo, um homem aprazível de meia idade e expressão ligeiramente preocupada que conservava algo da inocência pasmada da primeiríssima juventude. Tudo isso era uma combinação bem curiosa com a dignidade e responsabilidade de sua posição. Depois de explicar a presença do Pitt, Danver se desculpou e o mordomo conduziu Pitt pelo vestíbulo, através da porta estofada de verde, até o salão da governanta, que naquele momento estava desocupado.
—Não tenho certeza de quem era à criada do andar térreo naquela época, senhor -disse o mordomo com hesitação. - A maior parte do pessoal de serviço mudou desde o assassinato do senhor Robert. Eu sou novo também, assim como a governanta. Mas a criada já estava aqui então. Ela deve se recordar.
—Se tiver a bondade -aceitou Pitt.
Enquanto ficou só, esperando sentado por espaço de uns vinte minutos, dava voltas em sua cabeça a pensamentos que lhe levavam uma e outra vez a Veronica York, até que por fim entrou uma moça de presença agradável que mal ultrapassava os vinte anos. Levava um vestido azul e avental e touca de reduzido tamanho. Era evidente que não era a criada; seu aspecto era bonito e amável e não tinha as mãos avermelhadas pelo contínuo contato com a água. Fazia muito que aquela moça não esfregava um chão. Veio acompanhada pelo mordomo, que provavelmente queria assegurar-se de que ela era discreta em suas respostas.
—Eu sou Dulcie, senhor -disse com uma leve inclinação. Os policiais não mereciam uma reverência completa; eram quase como os criados-. Eu era aqui aprendiz quando o senhor Robert foi assassinado. além de mim, só fica Mary, a camareira. O senhor Redditch me disse que talvez pudesse ajudá-lo, senhor. Era uma lástima que o mordomo ficou, mas Pitt devia ter suposto, qualquer criado veterano de sua posição o teria feito.
—Sim, se for amável. -Pitt extraiu de novo o jarro e o segurou ante ela.- Observe-o com atenção, Dulcie, e me diga se este era o vaso que havia na biblioteca na época da morte do Robert York.
—Oh! -A moça olhava com assombro. Aparentemente Redditch tinha atuado com grande sensatez e só lhe havia dito que queriam falar com ela porque tinha sido uma criada mais de três anos. Ela abriu os olhos desmesuradamente e não os afastava do vaso que segurava a mão do Pitt. Não o tocou.
—E então, Dulcie? -insistiu Redditch-. É o vaso, moça? Deve ter lhe tirado o pó algumas vezes. -Parece-se muito, senhor, mas acredito que não é este. Tal como o recordo, tinha quatro faces . Mas posso me equivocar.
Era a melhor resposta que podia ter dado. Aquilo permitia ao Pitt insistir no tema.
—Não importa -disse com um sorriso-. Só tem que pensar no que costumava fazer três anos atrás. Recorda, por exemplo, a semana em que aconteceu?
—Oh, sim -disse ela em um sussurro.
—Me conte algo daqueles dias. Teve em casa muitas visitas?
—Oh, sim. -A lembrança fez que aparecesse em seu rosto um momentâneo sorriso-. Então vinham montões de gente. -A luz se desvaneceu-. Como é natural, depois da morte do senhor Robert tudo aquilo se acabou, as pessoas só deviam dar o pêsames.
—Muitas visitas de senhoritas pelas tardes -sugeriu Pitt.
—Sim, durou muitos dias, deviam ver tanto à senhora Piers como à senhora Robert. Sempre costumava haver uma delas em casa e a outra rendendo visita por sua vez em outras casas.
—Jantares?
—Não muito frequentemente. Mas eram elas quem jantavam fora ou iam ao teatro.
—Mas alguma vez deviam jantar aqui?
—Sim, claro!
—O senhor Danver?
—O senhor Julian Danver e seu pai o senhor Garrard, e a senhorita Harriet - respondeu-. E os senhores Asherson. -Mencionou meia dúzia mais de nomes que Pitt anotou sob o desaprovador olhar do mordomo.
—Tente agora recordar um dia em concreto -prosseguiu Pitt-, e repasse mentalmente suas tarefas domésticas uma por uma.
—Sim, senhor. -Desceu a vista para suas mãos cruzadas e recitou com lentidão:
—Levantava às cinco e meia e descia as escadas para limpar todos as lareiras, e recolhia as cinzas e as levava para parte de trás. Mary costumava-me preparar uma xícara de chá, depois me assegurava de que todas as lareiras estivessem limpas com os atiçadores e as demais coisas negras e sem cinza, como deve ser: as chapas de metal, os cavaletes para lenha, tudo bem polido. Depois acendia as luzes e os fogos para que quando os membros da família descessem encontrassem os aposentos quentes. Certificava-me de que o criado havia trazido o carvão e que as carvoeiras estavam cheias. Às vezes tem que se estar atrás deles continuamente. depois de tomar o café da manhã começava a limpar e a tirar o pó...
—Limpava você a biblioteca? -Tinha que insistir no assunto da identificação para justificar sua presença.
—Sim, senhor. Mas... Agora o recordo: parece-se muito ao vaso que tínhamos, mas não o é!
—Tem certeza? -interveio o mordomo de forma abrupta.
—Sim, senhor Redditch. Este não é nosso vaso. Poderia jurá-lo.
—Obrigado. -A Pitt não ocorria que mais podia perguntar. Ao menos contava com alguns nomes e podia começar a procurar um ladrão aficionado. Levantou-se e agradeceu.
Mas Redditch se abrandou.
—Gostaria de vir à cozinha tomar uma xícara de chá, senhor Pitt? Pitt aceitou imediatamente. Tinha sede e queria uma xícara de chá quente. Não lhe agradava menos a ideia de poder observar ao maior número de criados possível. Meia hora mais tarde, depois de três xícaras de chá e duas porções de bolo Madeira, voltou para o vestíbulo principal e abriu a porta da biblioteca. Era uma estadia muito elegante, com armários de livros alinhados a ambos os lados, enquanto que a parede de frente estava ocupada por janelas que iam do chão até o teto, cobertos com cortinas de veludo de cor granada. Na quarta parede havia uma grande lareira de mármore ladeada por mesas semicirculares feitas com madeiras exóticas. Também havia uma escrivaninha de carvalho maciço e couro verde próxima às janelas e três amplas poltronas estofadas de couro.
Pitt entrou até o centro do aposento. Imaginava a cena que teve lugar à noite em que Robert York foi assassinado. Ouviu um ligeiro ruído atrás dele e se voltou para encontrar-se com a criada, Dulcie, junto à porta. logo que ele a viu, a moça entrou na estadia. Tinha o cenho franzido e os olhos brilhantes.
—Recordou alguma outra coisa? -perguntou-lhe com urgência, certo de que
assim era.
—Sim, senhor. Antes perguntou a respeito dos convidados, da gente que vinha de visita...
—Sim...
—Pois bem, aquela semana foi à última vez que a vi ou a algo que lhe pertencesse. -deteve-se, mordendo o lábio, hesitando se devia ou não ser tão indiscreta.
—Que viu quem, Dulcie? -Tinha que ser amável, não podia dar muita importância para não assustá-la.-A quem viu?
—Não sei como se chamava. Uma mulher que usava vestidos de cor cereja, sempre levava algo desse tom. Não era nenhuma convidada... ou pelo menos nunca entrava pela porta principal com outros, e nunca lhe vi o rosto exceto uma vez no patamar das escadas, à luz do lampião de gás. Foi só um momento, durou apenas um segundo. Mas sempre levava algo de cor cereja, o vestido, ou as luvas, ou uma flor, ou qualquer outra coisa. Conheço os objetos da senhorita Veronica e ela não tem nada dessa cor. Mas um dia encontrei uma luva nesta sala que aparecia debaixo de uma almofada. -Acenou para a cadeira mais afastada-. E uma vez ali havia um pedaço de fita.
—Tem certeza de que não pertenciam à senhora York mãe?
—Oh, sim, senhor. Conhecia as criadas de então da senhora e costumávamos falar de suas roupas. É uma cor muita extremada. Sei muito bem que nenhuma delas o punha. Era da mulher que se vestia de cor cereja, senhor, mas posso jurar-lhe que não sei quem era. Só sei que ia e vinha como uma sombra, como se ninguém devesse vê-la, e não tornei a ver desde aquela semana, senhor. Desejo que possa agarrar a quem fez aquilo. Não é pela prata: o senhor Piers diz que sempre se pode recuperar o dinheiro do seguro, como fez quando a senhora Loretta perdeu suas pérolas com o alfinete e safira. -mordeu o lábio e calou de repente.
—Obrigado, Dulcie. -Pitt olhava seu rosto de preocupação-. Fez muito bem em me dizer isso. Não direi nada ao senhor Redditch a não ser que seja imprescindível. Agora me acompanhe à porta e ninguém se dará conta de que esteve aqui.
—Sim, senhor. Obrigada, senhor. Eu... -hesitou, como se fosse dizer algo mais, mas mudou de ideia e esboçou uma breve reverencia antes de conduzi-lo através do amplo vestíbulo e abrir a porta da entrada principal.
Ao cabo de um momento se achava na rua silenciosa, com o gelo rangendo sob suas botas. Quem seria aquela mulher que vestia se de cor cereja, que aparentemente nunca tinha voltado a visitar a casa depois do assassinato do Robert York, e por que ninguém mais lhe tinha falado dela?
Talvez não fosse importante. Podia ser uma amiga da Veronica, uma amizade que tinha um comportamento excêntrico ou socialmente inaceitável. Ou também podia ser aquilo que o Foreign Office não desejava que ele indagasse: uma espiã. Teria que falar com Dulcie de novo um pouco mais.
Emily retornou a sua casa no dia seguinte de São Estevão, dia dos presentes natalinos. A casa na cidade dos Ashworth era grande e extremamente elegante. George fizera decorar de novo grande parte dela para satisfazer o gosto do Emily durante o ano seguinte ao de suas bodas e, de acordo com seu caráter, tinha sido muito generoso. Nada que pudesse acrescentar encanto ou personalidade tinha sido negado, e mesmo assim o efeito final de conjunto não tinha sido ostentoso. Não se tinham empregado elementos ornamentais franceses, não se viam volutas nem capas douradas; o mobiliário era de estilos Regência e Rei Jorge, em consonância com a própria arquitetura da casa. Naquela época Emily tinha falado com o George da afeição dos pais pelas borlas e franjas e tinha relegado a maioria dos insossos retratos de família aos aposentos dos convidados que não costumavam a usar-se. O resultado tinha surpreendido e agradado ao George, quem o tinha admirado em comparação com as ostentosas casas de seus amigos.
Agora, enquanto Emily permanecia no meio do vestíbulo e observava como os criados obedeciam as suas instruções levando baús e preparando algo de comer para Edward e ela mesma, sentiu-se rodeada por um vazio de solidão, como se aquela casa fosse estranha. Respirou fundo e quis lhes dizer que parassem, que voltava de uma a casa, muito menor , a de Charlotte. Não havia comparação possível entre ambas: a casa de sua irmã estava mobiliada com móveis de segunda mão e situada em uma rua estreita e nada elegante. Mas Emily tinha sido feliz nela. Durante uns dias se esqueceu por completo de seu recém adquirido estado de viuvez. As diferenças materiais tinham carecido de relevância, tinham convivido todos juntos e, embora é verdade que despertava uma ou duas vezes de noite, só na cama, pensando que Charlotte estava do outro lado da parede em uma cama quente com o Thomas, tinha sido por breves momentos, rechaçados logo por um recuperado sono.
Agora o contraste era cortante como uma faca afiada: fazia que o espaçoso ar daquela casa, da que ela era única senhora, fosse frio, como se a água fria lhe roçasse a pele. Que ridicularia! Os criados tinham acendido o fogo de todas as lareiras e se ouvia em qualquer parte o ruído dos passos rápidos e ocupados, o tinido da prata na sala de jantar e o bate-papo das criadas no patamar. A porta estofada de veludo verde se abriu com um golpe surdo e entrou um criado.
Ela subiu com rapidez os degraus enquanto tirava o casaco. Sua criada pessoal se aproximou e o pegou, junto com o chapéu. Desfaria as malas, separaria o que precisava lavar e penduraria os vestidos. A babá faria o mesmo com Edward.
Ao voltar para o andar térreo, o cozinheiro bateu na porta do toucador e lhe pediu instruções para o jantar e perguntou sobre as comidas dos dias imediatos. Emily só tinha que tomar decisões sobre as questões mais peremptórias, mas esse era o problema. Ante ela se estendia uma sucessão indefinida de dias vazios de qualquer ocupação necessária ou interessante: teria que encher os tristes dias de janeiro fazendo alguma tarefa doméstica, escrevendo cartas, tocando o piano em uma sala vazia ou indo daqui para lá com seus pincéis e pinturas para tentar e não conseguir criar o que desejava. Seja o que fosse fazer, não queria fazê-lo sozinha.
Mas a maioria das pessoas que conhecia só eram meros conhecidos, considerá-los amigos teria sido desvalorizar o termo. Sua companhia romperia o silêncio sem proporcionar-lhe um sentimento de compreensão mútua, e ainda não estava tão desesperada para implorar companhia, qualquer que esta fosse, à margem de sua qualidade. Na parte sensível de sua mente radicava o convencimento de que qualquer companhia valiosa significava relacionar-se, e Emily não sabia para que tipo de relação estava preparada, além da familiar. Embora sua mãe também tivesse enviuvado recentemente, Emily sentia que tinha pouco em comum com ela.
Caroline Ellison tinha estado casada durante muito tempo, e havia se sentido sem dúvida agradecida com as comodidades materiais do matrimônio. Mas com a viuvez tinha descoberto uma solidão não isenta de sentimentos vivificadores. Pela primeira vez em sua vida não tinha que dar contas a ninguém, nem a seu autocrático pai, nem a sua ambiciosa mãe, nem a seu agradável mas inflexível marido. Até sua sogra tinha deixado de ser a velha matriarca ditatorial que tinha sido em vida de seu filho. Caroline, por fim, era livre para expressar suas ideias. Em mais de uma ocasião tinha provocado na velha dama um paroxismo de raiva ao lhe dizer que se ocupasse de seus próprios assuntos, coisa que jamais se atreveu a fazer em vida do pai de Emily. Simplesmente, não valeria a pena passar pelo conseguinte desgosto, nem haveria possibilidade de explicação.
Mas o pai de Emily tinha morrido em paz depois de uma breve enfermidade aos sessenta e cinco anos. George tinha sido assassinado em sua juventude, e Emily nunca tinha sentido falta em realidade da liberdade para fazer as coisas que talvez em outras circunstâncias tivesse desejado. As únicas restrições que pesavam sobre ela eram as que impunha a vida social, e se sentia mais atada por elas agora que George tinha morrido do que estaria se ainda vivesse. Aquele profundo sentimento de solidão a espantava. E aquilo só podia piorar, por isso se sentia impulsionada a encher sua vida com atividades concretas e conversas banais.
A alternativa parecia atraente: aprofundar-se na amizade com o Jack Radley. No momento não tinha o sentimento de que tivesse que ser muito difícil expulsar de sua mente o tipo de questões que o lado mais racional de se expor: cabia pedir aquele homem algo mais além de ser encantador com ela, mostrar seu senso de humor, ter a facilidade para fazer com que até os mais simples passatempos parecessem divertidos e ser tão compreensivo que raramente fosse necessária uma explicação e nunca uma justificação? Para ser amigos é importante gostar de outros, claro está. Mas Emily sabia que para casar-se com um homem tem que haver também confiança, o conhecimento de que os valores importantes se compartilham, de que se ela cair doente ou se sentir desgraçada, se for difamada por alguém, vai contar com o apoio dele. E que se ele chegasse a lhe ser infiel -aquele pensamento lhe produzia quase uma dor física, pois as feridas que George lhe tinha causado não estavam cicatrizadas por completo, se o fosse infiel alguma vez, não teria maior importância e seria suficientemente discreto para que nem ela nem seus amigos nunca soubessem. E tinha que haver respeito. O que podia chegar a compartilhar com alguém que não possuísse a coragem necessária para lutar pelo que acredita, ou a grandeza de coração suficiente para sentir compaixão? Muito em breve deixaria de sentir avaliação por um homem cuja imaginação não fosse além de suas próprias preocupações.
Surpreendeu-se com o indício de um sentimento de horror e vergonha. Mas o que estava pensando? Casar-se? Devia estar louca! Jack precisava casar-se pelo dinheiro. Sabia desde que frequentava Cardington Crescent. Essa era a razão pela qual tio Eustace o tinha convidado a princípio: como possível marido adequado para a Tassie, já que ele contribuiria com as relações familiares e ela com o dinheiro. Embora Emily fosse muito mais rica que Tassie March, agora que tinha herdado a fortuna de George. Mas tinha que esquecer este horrível pensamento.
Era uma viúva rica. Os caçadores de fortuna começariam a acudir e a dar voltas em torno dela como à carniça, à espera da ocasião: não muito cedo, se não quisessem parecer pouco decorosos e esbanjar suas possibilidades, nem muito tarde, se não quisessem ver como outro levava a presa.
Aquele pensamento era tão repugnante que lhe dava náuseas. Na primeira vez que se lançara no mercado matrimonial, Emily tinha desfrutado do jogo. Tinha tudo para ganhar e tinha ganhado. Tinha merecido, tinha jogado de forma soberba. Possuía toda a inocência e a arrogância da inexperiência. Agora se sentia muito menos segura de si mesma. Tinha provado a amargura de uma relação malograda, além disso muito recentemente, e tinha tudo a perder. Estava Veronica York na mesma posição? Tinha refletido aqueles mesmos pensamentos? Seu marido tinha sido assassinado também e presumivelmente lhe tinha deixado em herança a fortuna dos York, fosse o que fosse. Observaria agora aos admiradores com receio, submeteria-lhes em sua mente a provas imaginárias para ver se seu amor era de verdade para ela e não para seus bens?
Que arrogância! Jack Radley jamais tinha mencionado o matrimônio, nem tinha mostrado a Emily o menor indício que lhe fizesse supor que tal era sua intenção ou seu desejo. Tinha que aprender a dominar seus pensamentos, ou acabaria por dizer alguma estupidez em voz alta diante dele que a traísse por completo e que provocasse uma situação insustentável! Se ao menos houvesse algum crime urgente com o que Charlotte e ela pudessem enfrentar cara a cara, algo real e inegavelmente importante que expulsasse de sua mente todas aquelas especulações e devaneios ridículos!
Como podia uma mulher minimamente inteligente ocupar a totalidade de seus pensamentos dando ordens aos criados, que em qualquer caso sabiam muito bem o que tinham que fazer? A criada podia ter organizado facilmente as tarefas de uma casa que só iriam ocupar uma mulher e um menino pequeno!
Assim foi com um amontoado de emoções mescladas e algo turbulentas que Emily saudou ao mordomo na manhã seguinte quando este entrou na sala de estar para anunciar que Jack Radley apresentava seus respeitos. Estava na saleta de espera e desejava saber se Lady Ashworth acharia por bem recebê-lo.
Ela engoliu em seco e se sentou em silêncio um momento, enquanto compunha seu aspecto; tampouco queria que o mordomo percebesse sua confusão.
—Que hora tão estranha para fazer uma visita -disse como sem importância.
Há um assunto do qual lhe pedi que se ocupasse por mim, talvez tem alguma notícia.
—Sim, Wainwright, diga que entre.
—Sim, Milady. -Se Wainwright tinha notado algo, não o demonstrava em seu tranquilo rosto. Voltou-se com lentidão e saiu da sala, como se estivesse em uma procissão. Estava com os Ashworth desde que era um menino, e seu pai antes dele, como jardineiro chefe. Emily ainda se sentia incômoda ante o Wainwright.
Jack entrou ao cabo de um momento, sem pressa, tal como requeriam as normas de correção, mas em seus passos se percebia certa urgência e no rosto impaciência. Estava, como sempre, vestido com elegância e na moda, mas levava a roupa com tal desenvoltura que aquela elegância parecia uma feliz casualidade mais que algo premeditado. Tinha conseguido uma imagem pela qual muitos homens teriam pagado uma fortuna.Vacilou no momento de dizer a ela que tinha um aspecto magnífico, e ao final descartou aquela mentira em favor de um sorriso fugaz e da verdade.
—Parece tão aborrecida como eu, Emily. Detesto o mês de janeiro, e já o temos quase em cima. -Temos que fazer algo interessante para conseguir que passe rápido.
Ela não pôde evitar um sorriso.
—Seriamente? E o que sugere? Por favor, sente-se.
Ele obedeceu com elegância e olhou-a com um sorriso franco.
—Deveríamos prosseguir nosso trabalho detetivesco -replicou- Com certeza
—Charlotte voltará para casa dos York, não lhe parece? Tenho a indubitável impressão de que estava tão entusiasmada como nós.
—De fato, não foi ideia dela? Essa era a desculpa ideal, e Emily se pegou a ela sem pensar.
—Sim, foi! Estou certa de que adoraria que lhe apresentasse uma ocasião para repetir a visita. Não precisava acrescentar que isso requereria a colaboração do Jack, ambos sabiam. Nenhuma mulher solteira na situação pela qual Charlotte tinha pretendido fazer-se passar insistiria por ela mesma em forçar uma amizade como aquela. Por outra parte, Charlotte não dispunha dos meios econômicos necessários nem sequer para deslocar-se em uma carruagem, nem digamos para vestir convenientemente. Emily podia contribuir com todas essas coisas, mas não sua companhia. Agora tinham que esporear a Charlotte, se por acaso tinha esquecido dos York com o agitação e a festa de Natal.
—Enviarei-lhe uma nota -acrescentou em voz alta-. Além disso, sempre cabe a possibilidade de que Pitt descubra algo novo, assim deveríamos estar a par também de suas pesquisas.
Jack parecia pensativo, com o olhar perdido no chão.
—Por minha parte tentei, com extrema discrição, sondar algumas amizades a respeito dos Danver, mas não averiguei quase nada. O pai, Garrard Danver, é um dos membros mais antigos do Foreign Office, através do qual deve ter conhecido os York com tanta intimidade. Embora a sociedade do "grande mundo" é surpreendentemente pequena. Todos se conhecem entre si, ao menos de vista ou de ouvir falar. Embora, claro está, isso não é o mesmo que visitar alguém com regularidade. Havia dois filhos: a um o mataram na Índia faz algum tempo, o outro é Julian Danver, que para saber se casará ou não se casará com a Veronica York confiamos nas indagações do Pitt.
Emily deu um pequeno pulo de irritação. Estava desenvolvendo uma empatia com a Veronica York que convertia em irritante tudo o que podia supor uma sombra a
sua reputação.
—Pergunto-me se alguém se incomodou em pensar se ele é suficientemente bom para ela! -disse com aspereza Emily, mas se arrependeu de ter pronunciado aquelas palavras. Melhor se tivesse mordido a língua, antes de dizer algo que traía tão claramente suas aborrecidas suspicaz. Queria Deus que Jack não estabelecesse a associação! Abriu a boca para apressar-se a cobrir o deslize com a conversa, mas teve medo de que ele se desse conta. Em lugar disso adotou uma atitude arrogante. Jack a olhava um tanto perplexo.
—Refere-se à reputação do Danver?
Agora ela ficou sem resposta. Esperar que a reputação de um homem fosse tão imaculada como a de uma mulher era absurdo, delataria-se como uma idiota excêntrica se sugerisse tal coisa.
Mas a alternativa era a verdade, o que era pior ainda. Como podia então voltar atrás na discussão sem ser pega em mentira? Sentia o calor do sangue que subia às faces. Tinha que dizer algo! Aquele silêncio a aguilhoava.
—Bom, devem estar preocupados com que seja um homem de honra, tal como aparenta -disse, apressando-se a acrescentar algo que soasse melhor, mais concreto - Há homens com os hábitos mais vergonhosos. Talvez você não saiba, mas depois de ter colaborado na investigação de um ou dois crimes, inteirei-me de coisas terríveis que eram totalmente desconhecidas aos familiares desses indivíduos. -obrigou-se a olhar para Jack, consciente de que estava falando em excesso.
—O que diz tem algo que ver com o assassinato do Robert York? -perguntou ele. Seus olhos não revelavam nada absolutamente.
—Não -disse ela com parcimônia-. A menos que o matasse, claro.
—Julian Danver?
—Por que não?
—Refere-se a que podia ser já então o amante de Veronica? -deixou-se levar pela hipótese-. Sim, é possível. -Havia-o dito com firmeza. Não parecia achar a ideia inverossímil.
Para Veronica não era permitido o divórcio, nem sequer com provas fundadas de um eventual adultério, então nem digamos já sem fundamento nenhum! Emily sabia muito bem. Só os homens podiam divorciar-se por infidelidade, e até em tal caso isso era causa de ruína para a mulher. O que se esperava desta era que ou fosse capaz de acautelar esse gênero de infortúnios, ou, e dado o caso, aguentasse-o com elegância. Se Veronica, portanto, tivesse sido repudiada por adúltera, Julian Danver teria, em tal caso, perdido qualquer expectativa de carreira pública se casasse com ela; de fato, nem sequer teriam sido recebido em sociedade. Teriam deixado de existir para todos os efeitos.
-Pensa que podia estar tão louco por ela que perdesse a cabeça e o sentido da moral até o ponto de fazer uma coisa assim? -perguntou Emily, não por que acreditasse que Jack pudesse sabê-lo, mas para comprovar sua opinião a respeito de Veronica. Via-a como uma mulher capaz de inspirar uma paixão tão temerária? A resposta foi a que temia.
—Não conheço o Danver. Mas se fosse capaz de tal coisa, Veronica seria a mulher indicada para despertar um sentimento como esse.
—Oh -disse Emily-. Então deveríamos ter prosseguido com esse assunto sem demora, embora só fosse por respeito à justiça. -Soou muito formal-. Escreverei à Charlotte para que chegue até o final sobre o convite para ver a exposição de inverno, e você deveria fazer o possível para que a convidem a conhecer todas as pessoas que possam estar envolvidas. -Sua frustração se exacerbou de repente apesar de suas intenções-. Desejaria não estar aqui encerrada como uma ermitã! É detestável! Poderia fazer tantas coisas, só que devia ser livre para me relacionar...-Oh, demônios!
Ele ficou perplexo, mas seus olhos sorriam.
-Não acredito que esteja preparada ainda para o salão de visitas da honorável senhora Piers York, Emily -disse com ironia.
—Justamente o contrário -saltou ela, com o rosto corado. -Estou mais que preparada!
Mas não podia fazer nada, de modo que sua única opção era decidir entre aceitar o de bom aspecto ou não, depois de uns minutos de bate-papo sobre questões mais gerais, Jack se despediu com o encargo de imaginar como obter o convite pertinente. Emily voltava a ficar só para dar voltas e mais voltas na cabeça a tudo o que ela mesma havia dito, trocando uma palavra aqui e lá, uma inflexão ao dizer isto ou aquilo, para fazer seu discurso mais encantador e menos revelador.
Teria desejado voltar atrás e reconduzir de novo a entrevista inteira, e ser desta vez mais superficial, dizer inclusive em alguma ocasião algo engenhoso. Os homens gostavam das mulheres capazes de diverti-los, desde que não fossem muito espertas ou muito maledicentes.
Podia ser que estivesse apaixonada pelo Jack? Isso seria indecoroso, com a morte do George tão próxima no tempo. Ou se tratava simplesmente de que gostava dele, e ela estava tão aborrecida, tão abrumadoramente sozinha?
Foi seis dias mais tarde, passado o Ano Novo e já em pleno mês de janeiro, com todo seu lúgubre e desesperador frio, com a neve cobrindo as ruas e a gélida névoa arrastando-se como um branco presságio de morte, arrancando às gargantas, devoradora da luz, distorcendo os sons e isolando de todas as pessoas que se aventuravam a sair ao exterior, que a carruagem de Emily passou para pegar Charlotte à última hora da tarde. Conduziu a casa de Emily, onde se trocou e colocou um vestido de gala de seda de um azul majestoso, enquanto Emily e sua criada a arrumavam com cuidado. Depois, agasalhada em lãs e peles, foi na carruagem do Jack até a casa do Garrard Danver e sua família no Mayfair, no outro extremo de Hanover Close.
A carruagem se deslocava com lentidão através dos redemoinhos de névoa e Charlotte mal podia ver a esfumada luminosidade das luzes de gás, um momento de um amarelo limpo e em seguida envoltas e cegadas por brancos e poeirentos farrapos de vapor.
Estava contente quando se detiveram e voltava a ser o momento de converter-se de novo a Elisabeth Barnaby. Era mais fácil sumir-se na atividade que sentar-se cabisbaixa na escuridão dando voltas à mente e preocupando-se com todas as coisas que podiam sair mal. Se a descobrissem, que explicação daria? Seria espantoso: ficaria em evidência, apanhada e debatendo-se como uma mariposa cravada em um alfinete, enquanto todos a olhariam pensando que estúpida e desagradável era. Teria que admitir que tinha perdido o juízo, não haveria mais desculpa possível. Mas inclusive se conseguisse enganá-los com êxito, quem lhe diria que fosse descobrir algo que lançasse alguma luz sobre a morte de Roubert York? Talvez toda aquela montagem não tivesse nada que ver com o Robert nem com a Veronica York, mas era uma idiota e mera farsa para distrair a mente de Emily do aborrecimento e uma oportunidade para que Charlotte pudesse emitir um julgamento sobre o Jack Radley, com o que o êxito seria muito passageiro!
A portinhola da carruagem estava aberta e o criado esperava com a mão estendida para ajudá-la a descer. Ela se apeou, contente por um momento de sentir o contato de sua mão, enquanto o frio e cortante ar lhe golpeava o rosto como musselina úmida. Então subiu firme as escadas e entrou no amplo e quente vestíbulo.
Não havia tempo para contemplar o mobiliário ou os quadros junto ao lance de escadas que levava ao patamar do primeiro piso. O mordomo levou seu casaco e o cachecol e uma criada segurava aberta a porta que conduzia ao salão de convidados. Charlotte pegou o braço do Jack e tratou de cruzar a soleira confiante, com o queixo alto e sua blusa de seda ondeando a seus passos -ou, para ser mais exato, a camisa de seda de Emily.
Jack lhe deu uma leve cotovelada para dar a entender que estava exagerando a atuação. Supunham-na modesta e agradecida pela ajuda recebida. Baixou a vista com um sentimento de irritação. Estava cansada de ser agradecida. Tinham sido os últimos a chegar, que era o procedente, por quanto eram os únicos a quem o restante não conheciam intimamente. As seis pessoas que se achavam na estadia se voltaram para olhá-los com diversos grau de interesse.
A primeira em falar foi uma moça próxima aos trinta com um rosto de grande personalidade que quase era belo; a ponta de seu nariz se inclinava de um modo muito afastado dos cânones e havia uma franqueza em seus escuros olhos que parecia deslocado em uma mulher solteira. Sua figura não era suficientemente arredondada, de acordo com os gostos da moda, embora seu negro cabelo fosse bastante denso e reluzente para agradar a qualquer um, adiantou-se para saudar Charlotte com um sorriso carregado de boas maneiras.
—Tudo bem, senhorita Barnaby. Eu sou Harriet Danver. Estou muito contente de que tenha vindo. Acha Londres de seu agrado, à margem deste condenado tempo?
—Como está você, senhora Danver -replicou Charlotte com cortesia.
—Oh, sim, obrigado por seu interesse. Inclusive com esta névoa é uma mudança muito agradável, como campo, e as pessoas são tão amáveis.
Um alto e curvado cavalheiro, com um rosto aquilino de aspecto elevadamente ascético, aproximou-se do lugar onde tinha estado meio sentado no espaldar de uma grande poltrona. Charlotte calculou sua idade em torno dos quarenta e cinco anos, até que passou bem debaixo do lustre do teto e viu que o tom cinzento das têmporas alcançava também ao resto da cabeça; as linhas do rosto eram mais finas e numerosas do que as sombras tinham revelado.
—Eu sou Garrard Danver. -Sua voz soou com um timbre refinado.-Estou encantado de conhecê-la, senhorita Barnaby. -Não lhe pegou a mão, mas sim sorriu ao Jack, ante o que se inclinou também a modo de boas-vindas, e os apresentou ao resto de pessoas da sala.
De entre estas, a mais interessante era Julian Danver. Era a razão principal pela qual Charlotte se mostrou tão desejosa de ir. Era mais ou menos do mesmo talhe que seu pai, com uma constituição mais atlética, mas foi o rosto o que chamou sua atenção. Devia ter herdado os traços de sua mãe, já que Charlotte não pôde apreciar semelhança familiar alguma com Garrard, enquanto que em Harriet era fartamente reconhecível, sobre tudo nos olhos. Julian era bonito, tinha os olhos cinza ou azuis -não podia dizê-lo sob a luz do lustre- e o cabelo castanho com uma linda mecha que lhe cruzava a fronte. Os traços do rosto eram marcados e em seu porte havia inteligência e autodomínio. Podia imaginar muito bem que Veronica York o achasse muito atraente.
O último membro da família Danver era a irmã solteirona do Garrard, a senhorita Adeline Danver. Era de grande magreza, embora levada com elegância, e seu vestido verde escuro não conseguia dissimular as proeminências ósseas de seus ombros. Seus traços faciais eram um exagero das imperfeições do rosto de Harriet -o queixo era menor, o nariz mais proeminente-, mas tinha os mesmos olhos escuros e o mesmo esplêndido cabelo, algo mais apagado mas ainda espesso.
—Tia Adeline é dura de ouvido. -sussurrou Harriet a Charlotte com suavidade.
— Se fizer algum comentário surpreendente, por favor sorri e não faça conta. Acontece muitas vezes que interpreta mal o que se diz.
—Naturalmente -murmurou ela com educação.
Os únicos convidados que restavam eram Felix Asherson e sua esposa. Homem de aspecto imponente, de cabelo negro e olhos cinza vivazes, trabalhava no Foreign Office com Julian Danver. Mas foi sua boca o que chamou a atenção de Charlotte. Não conseguiu formar uma opinião certa sobre ela: era forte e sensual, ou era aquele lábio tão grosso um sinal de moderação? Sua esposa Sonia era uma formosa mulher de suaves e regulares feições, vazia de expressão, o tipo de rosto que gostam os profissionais da moda porque ao menos é capaz de levar um chapéu sem que a atenção se desvie para a modelo. Tinha uma figura bem proporcionada trazia para a ocasião um vestido de uma tonalidade rosa coralina mais acertada que deixava ver ombros gordinhos de uma cor branca leitosa.
Depois do intercâmbio formal de saudações, começou a habitual e convencional conversa. Como todos os outros se conheciam muito bem, esta se centrou em Charlotte e Jack Radley, e esta se esforçou por dar respostas objetivas que tivessem sentido e se acomodassem com a personagem que interpretava. supunha-se que era uma moça de recursos modestos e boa educação, e que se dedicava, como era natural, a procurar marido. O desempenho daquele papel requeria toda sua atenção, por isso até não estarem sentados para o jantar em torno de uma mesa que brilhava com toda sua prata e seus cristais, compartilhando uma sopa bem salgada, não foi possível tomar o tempo necessário para observar ao resto dos reunidos.
A conversa continuava por roteiros muito gerais: comentários a respeito da inclemência do tempo, de questões menores sobre as últimas novidades -nada que tivesse que ver com a política ou que pudesse ser remotamente conflitivo, e observações em torno de uma representação teatral a que a maioria deles tinha assistido. Charlotte intervinha só quando as boas maneiras o requeriam, o que lhe proporcionava tempo para pensar. Talvez não voltasse a apresentar-se aquela oportunidade, de modo que devia aproveitá-la ao máximo.
Poucas coisas esperava descobrir, mas podia acrescentá-las às que sabia pelo Pitt. Quanto tempo faria que Julian Danver e Veronica se conheciam? Era seu amor anterior à morte de Roubem York, e tinha sido portanto sua causa? Era Julian Danver um homem ambicioso, tanto profissional como socialmente? produziu- se uma diferença apreciável na situação financeira de ambos, tanto que o dinheiro pudesse ser um motivo para a Veronica ou para ele?
Charlotte tinha crescido em um lar no qual se admirava a qualidade, inclusive naquelas ocasiões em que não se podia pagar. Fazia parte dos atributos de uma senhorita de boa educação que fosse capaz de distinguir o excelente do bom sem mais, e naturalmente que soubesse também valorizar seu custo. Tinha visto o vestíbulo e o salão de visitas da casa dos York e estava em condições de poder estimar que possuíam dinheiro desde o tempo suficiente para sentir-se cômodos com ele. Não se apreciava a tendência à ostentação que tantas vezes acompanha ao enriquecimento recente. Não sentiam a necessidade de prover-se de um mobiliário ou uma decoração nova, ou de colocar objetos de arte em lugares proeminentes.
É claro, era perfeitamente consciente de que as circunstâncias das pessoas mudam. Havia visto muitas casa com salões muito elegantes para receberconvidados, enquanto o resto do edifício carecia até de tapete e as lareiras não se acendiam senão no Natal. E alguns preferiam manter uma equipe completa de criados, enquanto eles mesmos não comiam mais que para continuar vivos, antes que ser vistos com uma pobre criadagem. Mas Charlotte observou os vestidos das mulheres. Eram de corte recente e não tinham costurado nos punhos ou nos cotovelos; não se tinha retocado nada para que servissem para uma temporada mais, nem lhes tinham dado a volta para dissimular remendos. E muito tinha tido que fazer ela esse tipo de coisas para saber onde devia olhar exatamente para descobrir os detalhes reveladores ou a mínima diferença na tonalidade da malha.
Agora, enquanto simulava seguir a conversa que se desenvolvia na mesa, inspecionava discretamente a sala de jantar e seu mobiliário. O efeito geral que se recebia era o das cores prata e azul, pálido no imaculado papel pintado das paredes, e escuro azul marinho nas cortinas, que pareciam carecer das habituais marca descoloradas que o sol produz tão rapidamente nos azuis, o que indicava que não tinham mais de uma temporada de uso. Apontava aquele dado para uma tendência ao esbanjamento? Na parede da frente havia um quadro que representava uma cena veneziana, mas Charlotte não distinguia se era excelente ou simplesmente bonito. A mesa em que jantavam era de mogno, ou ao menos os pés, por quanto a superfície estava coberta por uma grossa toalha de damasco de deliciosa qualidade. As cadeiras e dois aparadores eram de estilo Roubem Adam, talvez autênticos. Depois de comprovar que ninguém a observava, lançou uma rápida olhada ao contraste impresso no reverso de sua colher de prata. Possivelmente a sopa salgada tinha sido um mero infortúnio; até as pessoas mais distintas podiam ter um acidente culinário. Talvez inclusive gostassem assim.
Voltou a observar de soslaio os vestidos das mulheres para avaliar também o caráter de suas proprietárias que podia deduzir-se deles. Presumivelmente, tanto Harriet como tia Adeline, como mulheres solteiras que eram, dependiam para sua manutenção da contribuição do Garrard. O vestido de Adeline não tinha o garbo da alta confecção, mas, por outra parte, nada do que pudesse levar teria tido. Não era desse tipo de pessoas, e Charlotte adivinhava que nunca o tinha sido. De qualquer modo, o vestido tinha bom corte e era de um tecido excelente. Virtualmente o mesmo podia dizer-se do de Harriet. A não ser que existisse um fator oculto, alguma herança ou algo pelo estilo, não parecia que o dinheiro interviesse naquela união.
—Você não, senhorita Barnaby?
Percebeu com um ligeiro sobressalto que Felix Asherson falava com ela, mas que diabo haveria dito?
—Acho as óperas do Wagner um pouco longas e recarregadas, e me sinto cansado antes de chegar ao final -repetiu ele com um leve sorriso.-Prefiro algo mais próximo à vida, você não? Não me interessam todos esses fatos mágicos.
—Não me surpreende -interveio tia Adeline de improviso, antes que Charlotte achasse uma resposta-. Já temos muitos na vida real de que não podemos nos desprender.
Todos ficaram olhando-a. Charlotte estava totalmente confundida, com o comentário não parecia ter o menor sentido.
—Disse "fatos mágicos", tia Addie -disse Harriet com calma. -Não "trágicos".
Ela guardou a compostura.
—Ah, sim? Tampouco me interessam muito os fatos mágicos. Já você, senhorita Barnaby?
Charlotte engoliu em seco.
-Não sei, senhorita Danver. Não estou muito certa que alguma vez tenha presenciado algum.
Jack tossiu com discrição em seu guardanapo e Charlotte percebeu que estava rindo.
Julian sorriu e lhe ofereceu mais vinho. Um criado e duas criadas serviram o peixe.
—O amor não correspondido é o tema de muitas grandes óperas e peças de teatro -disse Charlotte para romper o silêncio-. De fato, é quase um requisito.
—Suponho que é algo que cabe na imaginação da maioria de nós, até em caso de que tenhamos sido afortunados e não o tenhamos padecido –respondeu Julian.
—Pensa que essas histórias acontecem na vida real? -perguntou Charlotte com gentileza, e observou se seu rosto expressava simpatia ou desdém. Ele teve a cortesia de lhe brindar uma resposta séria.
—Talvez não nos pormenores. A peça teatral tem que estar condensada ou se não, como diz Felix, torna-se muito aborrecida. Nossa capacidade de atenção tem seus limites. Mas as emoções são reais, ao menos para cada um de nós... -de repente tinha calado e baixado a vista para a superfície da mesa, e em seguida levantou outra vez os olhos para ela. Naquele momento ela se deu conta de que lhe tinha simpatia. Havia dito algo sem pensar, mas ela estava segura de que o embaraço que sentia não era por ele mesmo -não se apreciava nele zanga nem ressentimento algum, mas sim por outra pessoa da mesa.
—Meu querido Julian -disse Garrard irritado-. Vai muito longe. Não acredito que a senhorita Barnaby pretendesse dizer nada tão sério.
—Não, claro que não -concordou em seguida Julian-. Sinto muito. Charlotte teve a certeza de que estavam falando a respeito de algo real e conhecido por ambos. Tinha que tratar-se de Adeline ou de Harret. Harret tinha passado da idade em que alguém pudesse fixar-se para casar-se com uma mulher de bom parecer e boa educação e com boas perspectivas financeiras. por que não lhe teriam procurado um parceiro adequado para ela?
Charlotte esboçou um encantador sorriso, de uma calidez sentida quase com autenticidade.
—A verdade é que só pensava, como você, em que, quando em uma obra há muitos fatos mágicos ou muitas coincidências danificam a credibilidade da história, e portanto nossa identificação emotiva com os personagens. Só era uma observação banal. -Decidiu ir mais longe-. A senhora York teve a amabilidade de convidar-me a acompanhá-la à exposição de inverno na Royal Academy. Algum de vocês a viu já?
—Eu fui -disse Sonia Asherson com suavidade-. Mas não posso dizer que conserve na memória nada em particular.
—Havia retratos? -interessou-se tia Adeline-. eu adoro os rostos.
—Eu também -concordou Charlotte-. Sobre tudo se não estão idealizados até o ponto de eliminar todas as imperfeições. Muitas vezes penso que a autêntica natureza da pessoa se acha nessas linhas e proporções que se separam dos cânones clássicos... e que é onde se revela a individualidade e o selo da experiência.
—Que sensível por sua parte -disse tia Adeline com súbito prazer, e pela primeira vez a olhou com verdadeiro interesse.
Charlotte intuiu a vivaz criatura que havia no interior daquela vulnerável e bem pitoresca fachada. Que superficial era julgar a partir de aspectos tão anódinos e convencionais como o da Sonia Asherson. De forma instintiva seus olhos se orientaram para Felix. Que banalidade de sua parte ter preferido a uma criatura tão insubstancial como Sonia em lugar de alguém tão pouco convencional mas cheio de sentimento como Harriet.
Embora talvez não o preferisse. Não tinha direito a supor que aquele homem fosse feliz. Debaixo das educadas maneiras e o esquivo rosto de Felix podia esconder-se algo.
Em qualquer caso, aquela era outra questão, disse a Charlotte, que não tinha nada que ver com a Veronica York nem com a morte de Roubert.
—A senhora York foi muito amável ao me convidar para que a acompanhasse - repetiu Charlotte de forma um tanto abrupta. Não devia desviar a conversa do assunto.
—Sabem vocês pintar? Também gosto dos retratos, mas o que mais eu gosto são essas aquarelas que pintam alguns viajantes, tão claras e com tanta sensibilidade que alguém se imagina estar ali. Lembro de algumas maravilhosas aquarelas da África, quase podia sentir o calor das pedras, de tão bem pintadas.
Todos a olharam. Sonia Asherson estava surpreendida daquela repentina loquacidade, enquanto que Felix parecia divertido. Harriet olhava mas não escutava, seus pensamentos estavam em alguma outra parte. Garrard olhava a Charlotte com educação. Só tia Adeline tinha um brilho nos olhos concordando com seu sentimento. Jack permanecia silencioso, contra seu costume. Parecia como se lhe deixasse o campo livre. Foi Julian quem respondeu.
—Não, que eu não saiba pintar. Ao menos nunca falamos sobre isso.
—Faz muito que a conhece? -perguntou Charlotte, tratando de mostrar-se natural, embora sem poder evitar perguntar se teria sido muito direta.-Suponho que no serviço diplomático terá tido que viajar muito.
—Mas não a África -disse ele com um sorriso-. Embora certamente eu gostaria.
—Muito calor! -respondeu Felix com uma careta.
—Posso entender que você não goste da ideia -disse tia Adeline lhe dirigindo um penetrante olhar-, mas mesmo assim deve ser uma experiência fantástica. Harriet continha a respiração. Agarrava o pé de sua taça de vinho com tanta força, que os nós dos dedos haviam ficado brancos. Naquele instante se amontoaram na mente de Charlotte uma dúzia de lembranças referentes à como se sentira antes de conhecer Thomas, quando ainda estava apaixonada pelo Dominic, o marido de sua irmã maior. Recordou o medo mortal, o desespero de não ser tida em conta, os loucos momentos de imaginada intimidade, um olhar, um toque casual, o coração alegre quando ele parecia lhe dispensar uma atenção especial enquanto lhe falava, a ternura que ela achava ver nele e, por baixo de tudo isso, a fria e sensata renúncia. Mas então não tinha sonhado casar-se com nenhum outro homem, por muitos esforços que fizesse sua mãe. Não era aquilo mesmo o que via agora nos olhos baixados, os lábios pálidos e as faces acesas de Harriet?
—Ele não disse que nunca iria, tia Addie -corrigiu Julian-. Só disse que faz muito calor.
—Suponho que pensava em Veronica, se por acaso ela me acompanharia. Tia Adeline rechaçou a ideia com desdém.
—Tolices! Há uma inglesa, esqueci seu nome, que foi ao Congo sozinha. Eu adoraria fazer isso também!
—Que ideia tão estupenda -disse Garrard mordaz-. E quando iria! -no inverno ou no verão? Olhou-o com olhos radiantes de desprezo.
—Isso está no Equador, querido, assim não importa. Não lhes ensinam nada no Foreign Office?
—Certamente nada como remontar o Congo em canoa -replicou ele-. Não nos parece muito útil. Isso deixamos para as damas solteironas aficionadas a tais esportes.
—Ah! -saltou ela-. Pois podia nos haver deixado algo melhor!
Jack foi ao resgate. voltou-se para o Julian:
—Conheci a senhora York faz uns anos, antes de seu matrimônio com o Robert, mas não recordo se lhe interessavam as viagens, e além disso à pessoa muda de interesses.
Eu me atreveria a dizer que casar-se com alguém do Foreign Office deve ampliar seu campo de conhecimentos, e talvez suas ambições. Charlotte abençoou-o em silêncio, enquanto recompunha sua expressão para afetar um grande interesse.
—E o senhor York? Era viajante? -produziu-se um silêncio. Ouviu-se o som de uma faca em um prato. No vestíbulo ressoaram os passos de um criado.
—Não -respondeu Julian-. Acredito que não o era, embora não cheguei a conhecê-lo bem. Eu entrei no departamento do Foreign Office só alguns meses antes de sua morte. Felix o conhecia melhor.
—Gostava de Paris -disse Sonia Asherson de improviso-. Recordo tê-lo ouvido dizer. Não me surpreendia absolutamente, era um homem encantador, elegante e engenhoso. Tinha que gostar de Paris por força. -Olhou a seu marido-. Gostaria que pudéssemos sair às vezes para estrangeiro, a algum lugar sofisticado como Paris. África deve ser um lugar espantoso, e a Índia não muito melhor.
Charlotte olhou para Harriet, desta vez quase certa que sua hipótese era acertada.
A escura e tétrica expressão de seus olhos, a aura de irresolução que a envolvia era exatamente o que a própria Charlotte tinha sentido em uma ocasião, quando Sarah e Dominic tinham mencionado um tanto à ligeira possibilidade de ir viver em outro lugar. Sim, Harriet estava apaixonada pelo Felix Asherson. Saberia ele? Dominic jamais tinha tido a menor ideia do torvelinho que causava na cabeça de sua irmã por afinidade, nem da agonia, da confusão ou dos tolos sonhos. Olhou ao Felix Asherson, mas este tinha a vista posta na branca toalha de damasco.
—Eu não prometo nada -respondeu ele irritado-. Não posso imaginar nenhuma circunstância pela qual pudessem me enviar a algum lugar da Europa, à exceção possivelmente da Alemanha. Todo o interesse de meu departamento se concentra no Império, sobre tudo na África e em quem coloniza o que. E se alguma vez tivesse que ir ali seria por assunto de negócios. Estaria de volta em questão de semanas e a maior parte do tempo a teria empregado nas viagens.
Harriet continuava ainda muito absorta tratando de ocultar seus sentimentos a outros para dizer nada. Garrard se recostava para trás em sua cadeira, admirando a transparência do vinho em sua taça ao ser atravessado pela luz do lustre. É de uma elegância um tanto tímida, decidiu Charlotte, embora pressentia que detrás daquele rosto tão reservado havia muito mais emoções do que tinha imaginado a princípio -umas linhas mais profundas em torno da boca, uma curvatura mais pronunciada dos lábios, uns gestos que delatavam um contínuo autodomínio e uma inquietação interior. Não era tão diferente de Adeline como lhe tinha parecido a princípio.
—Pedirei à senhora York que me fale de Paris -disse com um sorriso esplendoroso dirigido a ninguém em particula.
—Eu não viajei, e quase poderia dizer que não acredito que nunca tenha ocasião, mas eu adoro escutar as experiências de outras pessoas.
—Deve referir-se a experiências a respeito de comidas infames e encanamentos que não funcionam. -Garrard a olhava com ironia.
—Uma afeição muito superestimada, senhorita Barnaby, o asseguro. Passaria muito frio ou muito calor, alguém lhe extraviaria a bagagem, a travessia do Canal a poria doente e uma vez chegada a Calais não entenderia nenhuma palavra do que ouvisse.
Charlotte esteve a ponto de lhe replicar com aspereza que falava francês, mas se deu conta de que estavam zombando dela, para diversão dele, não dela.
—Seriamente? -arqueou as sobrancelhas-. Todas elas experiências que estou habituada na Inglaterra, salvo a travessia do Canal. E , saiu de Londres ultimamente, senhor Danver?
—Bravo! -exclamou tia Adeline-. Impregnou-te à primeira, querido. Esboçou um leve sorriso.
—Sim -disse, mais como pergunta como confirmação.
—Não deveria desbaratar os sonhos da gente, papai. -Julian seguiu mastigando com lentidão-. Além disso, pode ser que a senhorita Barnaby descobrisse que as coisas são muito diferentes se começar a viajar. Lembro que à mãe do Robert gostava muito de viagens. Costumava falar sobre tudo de Bruxelas.
-Faz muito tempo isso? -perguntou Charlotte com impaciência. - Talvez as coisas melhoraram muito desde que esteve lá, senhor Danver. Seu rosto se endureceu. A luz fazia brilhar a firme e desgastada pele de suas faces e Charlotte sentiu como crescia uma intensa cólera naquele homem.
Como podia lhe afetar uma coisa tão corriqueira? Ninguém tinha demonstrado que estivesse em um engano, só lhe tinha expressado uma diferença de opinião. Tão instável era seu temperamento?
—Talvez nunca possa realizar meus sonhos -acrescentou ela com calma, mas é agradável tê-los.
—Deus nos libere das mulheres que sonham! -disse Garrard erguendo os olhos ao teto, com um tom de voz pelo que em circunstâncias normais Charlotte lhe teria pedido explicações.
—Muitas vezes é a única forma em que podemos obter algo -disse tia Adeline, enquanto erguia sua taça e apreciava o aroma do Chablis. -Naturalmente, você nunca o compreenderia.
Todo mundo ficou perplexo. Felix olhou para Julian. O rosto de Sonia, com suas regulares feições e sua pele impecável, expressava o que Charlotte considerava estupidez, embora não fosse justo julgá-la de maneira tão implacável. Estava se situando de forma muito pouco imparcial do lado de Harriet e sabia.
—Rogo-lhe nos desculpe, senhorita Danver -disse Jack com cenho.
—Não é sua culpa -respondeu ela condescendente-. Além disso, eu diria que está em uma situação similar.
Jack se voltou para o Charlotte, confundido.
—Do que está falando, tia Addie? -perguntou-lhe Harriet com amabilidade.
—Das mulheres que enganam. -Tia Adeline arqueou as sobrancelhas por cima de seus brilhantes olhos, muito redondos para ser belos.
—Não está escutando, querida?
—Henderson! -chamou Garrard-. Pelo amor de Deus, traz o pudim, seja do que for!
—“Mulheres que sonham", tia Addie -disse Julian com paciência-. Papai disse "das mulheres que sonham", não "que enganam".
—Oh, de verdade? -voltou-se para o Jack e lhe sorriu incongruentemente
—Sinto muito, senhor Radley, tem você que me perdoar.
—Não há nada que perdoar - tranquilizou-a. - Uma coisa pode facilmente levar a outra, não lhe parece? A gente começa por sonhar e, se não contar com o freio da moralidade, não acontece com muita frequência que acaba por idealizar meios não de todo claros para obter aquilo que quer?
Charlotte passeou o olhar por todos os rostos, um após o outro, sem atrever-se a detê-lo no Julian. Teriam suspeitas por que estava ela ali? Era talvez muito mais transparente do que supunha e aquelas pessoas não faziam senão brincar com ela?
—Superestima você a moralidade das pessoas. -O sorriso do Garrard continuava curvando as comissuras de seus lábios, mas havia nele mais ironia que prazer.
—A maioria das vezes o que você chama moralidade não é mais que uma percepção do que é prático e o que não o é -embora, Deus nos livre, algumas vezes se produzem exceções espantosas. Obrigado, Henderson... vamos, homem, sirva-o! -Deixou que servisse-lhe o fumegante pudim de caramelo, a calda de açúcar e o xarope de brandy.
—Senhorita Barnaby, falemos de coisas menos sórdidas. Tinha pensado ir ao teatro? Agora há um montão de obras divertidas em poster. Não há por que limitar-se ao senhor Wagner.
A conversa mudava assim de assunto e se deu conta que não poderia voltar mais adiante para o mesmo sem recorrer ao emprego de muito maus modos. E embora o fizesse, já não seria de nenhum proveito, poderia delatar-se e arruinar planos futuros.
—Oh, na verdade eu gostaria -disse com impaciência-. Recomenda-me algo em especial? Seria encantador ir ao teatro, não é verdade, Jack?
E assim concluiu o jantar, sem que se dissesse nada mais que tivesse que ver com a vida ou a morte do Robert York, ou com a relação entre as famílias Danver e York.
As senhoras se levantaram da mesa antes que servissem o Porto e voltaram para o salão de convidados. Charlotte tinha imaginado que a conversa seria artificiosa, uma vez que tinha percebido quais eram os sentimentos de Harriet por Felix. Fosse ou não Sonia consciente deles, era muito possível que as duas mulheres não se sentissem cômodas uma em presença da outra. Quanto ao próprio Felix, Charlotte ainda não tinha certeza se era sabedor do amor de Harriet, nem correspondia-se a ele , em tal caso, com que grau de sinceridade ou de honestidade. Não parecia provável que a afiada língua e o rombo ouvido de tia Adeline pudessem contribuir para facilitar as coisas.
Charlotte estava disposta a pôr tudo de sua parte para suavizar a violência da situação com uma conversa calma, mas descobriu que tinha cometido um engano de apreciação. Pelo que parecia, fazia suficiente tempo que se conheciam todos para ter encontrado cada um uma posição cômoda com respeito a outros. Fosse por raciocínio ou por instinto, sabiam perfeitamente que inócuos comentários fazer sobre moda, que intrigas trocar a respeito de amizades comuns ou que artigos da London Illustrated News teriam lido todos.
Charlotte não tinha tempo nem dinheiro para dedicar a tal revista, nem tinha ouvido falar dela por seus amigos. Permaneceu sentada com um sorriso educado de interesse que se ia fazendo mais estático e menos natural à medida que passavam os minutos. Uma ou duas vezes captou na expressão de tia Adeline um brilho de diversão e afastou o olhar. Por fim, tia Adeline se levantou.
—Senhorita Barnaby, anteriormente manifestou um interesse pela arte, talvez gostasse de contemplar uma paisagem que está pendurada no toucador. Era a estadia preferida de minha cunhada, que era além disso bastante aficionada às viagens. Desejava visitar tantos lugares...
—E não pôde fazê-lo? -perguntou Charlotte, enquanto ficava também em pé.
Adeline abria a marcha.
—Não. Morreu jovem. Tinha vinte e seis anos. Harriet não andava ainda e Julian tinha sete ou oito anos.
Charlotte sentiu uma repentina pontada de compaixão pela mulher cuja vida se truncou quando se achava no começo de tantas coisas: um marido e crianças, um deles ainda bebê. Como se sentiria ela se tivesse que deixar a Daniel, Jemima, e Thomas, para que se arrumassem sozinhos?
—Quanto o sinto -disse.
—Faz muito tempo -replicou tia Adelina por cima do ombro enquanto atravessava o vestíbulo e percorria um amplo corredor, ao final do qual abriu a porta que se comunicava com uma sala de estar feminina, o toucador, se costuma conhecer como boudoir. Estava decorado em cor creme e em uma tonalidade apagada da cor da terra seca, com matizes de verde líquido frio e um toque de coral pálido que dava uma única cadeira. Era não habitual em conjunto e por completo diferente do caráter do resto da casa. Aquilo provocou em Charlotte a repentina ideia de que talvez a jovem senhora Danver não se sentiu em sua casa naquela mansão. Tinha convertido possivelmente aquela estadia em um refúgio particular que tinha feito que contrastasse com as demais dependências da casa tanto como o tinha permitido seu atrevimento?
Na parede situada em frente à lareira havia um quadro do Bósforo, visto do alto do palácio Topkapi no Corno de Ouro. Frotas de pequenas embarcações sulcavam as águas verde azuladas e, na distância, imprecisa pela bruma e a reverberação do sol, vislumbrava-se a costa da Ásia. Um homem forte podia cruzar o estreito a nado, como Leandro fazia por Firo. Escolheria-o a senhora Danver pensando nesta lenda?
—Não diz nada -observou tia Adeline.
Charlotte estava enfastiada de sua personagem corriqueira. Tinha vontade de despachar à senhorita Barnaby maniatada pelos convencionalismos e ser ela mesma, especialmente com aquela mulher pela qual sentia uma simpatia cada vez maior.
—O que poderia dizer capaz de expressar o encanto desta pintura ou todas as ideias e sonhos que alguém pode extrair dela? –perguntou
—Não quero acrescentar mais tópicos à noite.
—Oh, minha querida menina, está condenada ao desastre! -disse Adeline com franqueza.-Porá umas asas como Ícaro e, como Ícaro, cairá no mar. A sociedade não permite às mulheres voar, como sem dúvida descobrirá por si mesma.
Pelo amor de Deus, não se case por conveniência, seria como meter-se na água fria,
centímetro a centímetro, até que lhe cobrisse a cabeça. Charlotte teve um impulso de dizer à Adeline que já estava casada, que seu matrimônio não era precisamente de conveniência e que era muito feliz. Mas reteve a língua no último instante.
—Devo procurar um marido pouco conveniente, se puder? -perguntou com um sorriso não de todo aberto. Aquela pergunta era sarcástica e, como ela mesma via, um pouco desagradável.
—Não acredito que sua família o permitisse -objetou tia Adeline-. A minha não, ao menos.
Charlotte respirou fundo para pedir desculpas de novo, mas se deu conta de que soaria muito condescendente. Adeline não era do tipo de pessoa pelas quais alguém pudesse sentir a menor fibra de compaixão sem que fosse acompanhada de um sentimento de afeto. Não achava que Adeline Danver retrocedesse por covardia ante nenhum tipo de decisão. Mas até se o fizesse, Charlotte não tinha direito, nem era seu desejo tampouco, a pô-la em tecido de julgamento naquele momento.
Em vez disso, o que fez foi contribuir um pouco de sinceridade, recordando o que tinha acontecido a ela realmente.
—Minha avó é a que armaria mais alvoroço -disse.
Adeline sorriu sombria, mas seus olhos não demonstravam auto compaixão. sentou-se de flanco no braço de uma das grandes poltronas de cor areia. -Minha mãe desfrutava de uma saúde pobre. Exagerava-o para obter disso toda a obediência e atenção que podia. Mas quando eu era jovem, todos acreditávamos que podia morrer de um de seus "ataques". Até que um dia foi Garrard quem a descobriu, motivo pelo que sempre sentirei respeito por ele. Mas então já era muito tarde para mim. -Respirou fundo-. Certamente que se eu tivesse sido uma beleza poderia ter vivido uma vida de fascinantes pecados. Mas como nunca ninguém me propôs isso, estou obrigada a fingir que jamais o teria aceitado. -Os castanhos olhos lhe brilhavam-. Percebeu alguma vez como uma pessoa julga com muito mais puritanismo o que nunca teve a oportunidade de fazer?
—Sim -concordou Charlotte com um sorriso-. claro que sim. A isso lhe pode aplicar a frase "fazer da necessidade virtude". É uma das hipocrisias que mais me irritam.
—Pois achará isso em qualquer parte. Fará bem se esconder seus sentimentos e aprender a conversar com você mesma.
—Receio que tem razão.
—Tenho certeza de tê-la. -Adeline guardou silêncio. Era na verdade uma mulher muito fraca, mas havia nela uma fortaleza vital que a convertia na pessoa mais interessante da casa. Olhou de novo a pintura-. Sabia que houve uma cortesã chamada Teodora que chegou a imperatriz do Bizancio? -disse com desenvoltura.
—Me pergunto se vestiria com cores chamativas. eu adoro o azul subido e o verde brilhante e o escarlate e o amarelo açafrão, só dos nomes já gosto, mas eu não me atreveria a levá-los. Garrard não me deixaria em paz nem um momento. Certamente tiraria-me a atribuição para vestuário. -Continuava olhando fixamente o quadro como se pudesse ver além dele.
—Sabe? Lembro-me de uma mulher que visitou esta casa faz um tempo, uma ou duas vezes, sempre de noite, muito formosa, como um cisne negro. Levava vestidos de uma cor cereja brilhante, mas não de um tom aceso, não como o amarelo fogo, mas orlado de azul. Uma cor horrenda em qualquer outra pessoa, me assentaria como um tiro. -voltou-se com fingido assombro-. A ela em troca assentava maravilhosamente. Não me ocorre o o que devia fazer aqui, a não ser ver Julian, possivelmente, mas certamente deveria ter sido mais discreta. Garrard ficaria furioso. E a verdade, quando ele começou a cortejar Veronica York, pelo que sei, tinha estado a salvo de críticas. Mas isso é o que, razoavelmente, alguém pode esperar no caso de um homem. O passado de um homem é assunto dele e só dele. Eu gostaria que assim fosse também no caso de uma mulher, mas não sou tão ingênua para acreditar que alguma vez vá ser assim.
A cabeça de Charlotte era um torvelinho. Adeline havia dito tanto em tão pouco tempo, que necessitava tempo para desembaraçar isso.
—Tenho uma tia com quem faria bons relacionamentos disse, ao mesmo tempo em que percebia como se tornou ousada. - Lady Cumming-Gould. Tem quase oitenta anos, mas é maravilhosa. Acredita no voto feminino para as escolhas ao Parlamento e está se preparando para lutar por ele.
—Que altruísta de sua parte. -Os olhos de Adeline brilhavam, embora neles havia tanto entusiasmo como brincadeira.
—Não viverá para vê-lo.
—De verdade pensa assim? Se todas pressionarmos com todas nossas forças, não chegará o dia em que os homens vejam a injustiça da situação e...? -A expressão de Adeline fez que Charlotte se sentisse ingênua e sua voz se apagasse.
—Querida -disse Adeline meneando a cabeça-. É claro, se todas uníssemos nossas vozes poderíamos persuadir aos homens, ou inclusive obrigá-los... Mas nunca unimos nossas vozes. Quantas vezes viu a meia dúzia de mulheres ficar de acordo e associar-se para a defesa de uma causa, e não digamos já a meio milhão de nós? -Seus finos dedos acariciavam o veludo negro da cadeira.
-Vivemos todas nossas vidas por separado, metidas em nossas próprias cozinhas se formos pobres, ou em nossos salões de receber se formos de classe abastada. E não cooperamos em nada, mas sim nos vemos umas a outras como rivais na consecução dos poucos homens economicamente prósperos disponíveis. Os homens, em troca, trabalham juntos com aceitável honestidade e se imaginam a si mesmos como protetores e provedores da nação, obrigados a fazer tudo o que podem para preservar a situação precisamente tal e como está (ou seja, sob seu controle), na suposta presunção de que eles sabem melhor o que é conveniente para nós e que devem tentar que o façamos, contra vento e maré. -Fez um brusco movimento com a cabeça.
—E ainda por cima há um montão de mulheres felizes de poder ajudá-los, por quanto a situação estabelecida lhes convém também : são invariavelmente as pessoas que detêm o poder.
—Senhorita Danver! Acredito que é uma revolucionaria! -disse Charlotte encantada-. Tem que conhecer minha tia avó Vespasia, entenderão-se maravilhosamente.
Antes que Adeline pudesse responder ouviram passos no corredor e Harriet apareceu pela porta, com o rosto pálido e os olhos pesados, como se estivesse necessitada de sono.
—Os cavalheiros vieram nos buscar. Não vem, tia Addie? -Então recordou suas boas maneiras-. E você, senhorita Barnaby?
Pelo rosto de Adeline cruzou uma expressão de compaixão que se desvaneceu com tanta rapidez que Charlotte duvidou se realmente a tinha visto; talvez só tivesse imaginado um eco de sua própria compreensão.
—Certamente. -Adeline se dirigiu para a porta-. Estávamos admirando o quadro de sua mãe do Bósforo. Venha, senhorita Barnaby, o refúgio fecha por esta noite. Temos que deixar Teodora e Bizancio e retornar ao mundo e aos prementes problemas do presente, como o de se a senhorita Weatherly se comprometerá com o capitão Marriott este mesmo mês ou no próximo, ou se possivelmente lhe seguirá dando evasivas -encolheu seus magros ombros- e se fará ao mar sobre uma peneira.
Harriet estava perplexa e olhava hesitante à Charlotte.
—Edward Lear -aventurou Charlotte uma explicação-. "Suas cabeças eram azuis e suas mãos verdes“, ou ao reverso, e se fizeram ao mar sobre uma peneira... -parece-me. Mas foi também um artista excelente. Seus quadros da Grécia são muito belos.
—Oh. -Harriet pareceu aliviada, mas não mais sábia.
—E então? -perguntou-lhe Jack tão logo estiveram sós na carruagem, apertados contra o frio cortante e exalando um ar branco como o vapor.
Fora o vento gemia e açoitava o veículo e as sarjetas estavam cheias de lama congelada, negra pela terra e esterco petrificado, por uma vez inodoro. Os cascos dos cavalos golpeavam pesadamente sobre o gelo.
—De tudo um pouco -respondeu com um tagarelar de dentes. Decidiu não lhe dizer que Harriet estava apaixonada pelo Felix Asherson, já que isso era uma pena privada da senhorita Danver e se ele não o tinha percebido, assim devia permanecer-. Parece que têm no mínimo tanto dinheiro como os York, assim não parece este um motivo. E se diria que as duas famílias se conhecem faz tempo que, assim Julian e Veronica poderiam haver-se apaixonado antes que Robert morresse.
Por outra parte, e isto é muito mais interessante, tia Addie...
—Que a encantou...
—Que me encantou -admitiu-a-. Mas não tanto para me tampar os olhos.
—Claro que não.
—Pois não! Tia Adeline me disse que ao menos duas vezes viu uma estranha e bela mulher na casa, de noite, faz mais de três anos, e que não a tornou a ver depois! E diz que sempre levava posto alguma objeto de cor cereja.
—“Sempre" quererá dizer nas duas vezes...
—Muito bem, nas duas vezes. Mas quem seria? Talvez fosse a espiã que ia atrás dos segredos de Julian sobre o Foreign Office. Talvez lhe enrolasse.
—E então, por que não a tornou a ver mais?
—Talvez depois da morte do Robert York fugisse, ou se ocultasse. Ou pode ser que fosse este quem possuísse os segredos, e ao morrer ela já não teria nada que fazer. Ou possivelmente Julian Danver não se rendesse a seus encantos... por quanto estava apaixonado pela Veronica. Não sei!
—Vai contar o ao Thomas?
Aspirou profundamente e exalou o ar pouco a pouco. As mãos, apesar de estarem
dentro do regalo de Emily, estavam trançadas pelo frio. Fizera-se tão tarde que teria que passar a noite com Emily e voltar para casa na manhã seguinte, o que não agradaria ao Pitt. Poderia lhe dizer que Emily se achara mal e por isso ficou com ela, o que era verdade de certo modo. Mas no fundo era mentira, e ela odiava lhe mentir.
A alternativa era lhe contar a verdade, junto com os motivos para misturar-se naquele caso.
—Sim -disse com lentidão.-Acredito que sim.
—Acha que é aconselhável? -perguntou ele em tom hesitante.
—Sou muito má mentirosa, Jack.
—É assombroso! -disse este com voz zombadora, nunca o teria dito!
—Como? -respondeu ela com tom cortante.
—Eu diria que esta noite fui testemunha de uma representação prodigiosa.
—Oh... isso é diferente. Isso não conta.
Ele pôs-se a rir e, embora estivesse furiosa, gostou daquilo. Talvez Emily não andasse desencaminhada.
Na manhã seguinte, Charlotte se levantou antes da alvorada e as sete estava na cozinha de sua casa fritando bacon de primeira e ovos frescos, proposta de pacificação sugerida por Emily.
—Emily está doente? -Pitt parecia preocupado, mas ela sabia que estava sem disposição de zangar-se se sua resposta não fosse satisfatória. Dava-se conta além disso que tinha um aspecto muito animado, que parecia muito orgulhosa de si mesmo para
ter passado toda a noite acordada junto ao leito de uma doente.
—Thomas... -Tinha pensado naquele momento longo momento, ao menos uma hora durante a noite.
—Sim? -A voz do Pitt soou cautelosa.
—Emily não está doente, mas está muito sozinha, e estar de luto é muito triste.
—Sei, querida. -Agora havia compaixão em sua voz, o que a fez sentir-se culpada.
—De modo que pensei que devíamos empreender algo juntas -disse com precipitação. Removeu o bacon, que soltou um chiaste e agradável som, junto com um aroma delicioso.
—Empreender algo? -insistiu Pitt com rígido cepticismo. Conhecia-a muito bem
para que aquilo pudesse ter êxito.
—Sim, algo que a absorvesse por completo... um mistério, por exemplo. Assim começamos a considerar a morte do Robert York, da qual você me tinha falado.
Pegou um ovo e o esvaziou na frigideira, e logo outro.
—Jack Radley... e isso era outro motivo: de verdade que quero chegar a conhecê-lo muito melhor, se por acaso se desse o caso -disse a toda pressa, e respirou fundo- de que Emily considerasse a possibilidade de casar-se com ele. Alguém tem que velar por seus interesses...
—Charlotte!
—Bom, tinha duas razões -insistiu, antes de continuar com urgência.
—O caso é que fui tomar o chá com a Veronica York e sua sogra. Emily planejou tudo para que Jack Radley me acompanhasse... de modo que eu pudesse observar também a ele enquanto fazia alguns descobrimentos sobre os York. -Podia sentir a presença do Pitt detrás dela enquanto dava a volta aos ovos com suavidade, tirava- os da frigideira e os colocava no prato de seu marido junto com o bacon.
—Aqui tem! -disse com um doce sorriso.-Ontem à noite jantei com os Danver. Conheci-os todos, e são muito interessantes. Por certo, os York e os Danver aparentam desfrutar do mesmo nível econômico, assim nem Veronica nem Julian Danver se casariam um com o outro por dinheiro. -Enquanto falava... preparou o chá e o deixou sobre a mesa, sem cruzar em nenhum momento o olhar com o Pitt. E tia Adeline me disse o mais estranho de tudo: viu uma formosa e atraente mulher na casa que levava um belo vestido de cor cereja. Acha que pudesse tratar-se de uma espiã? -Por fim olhou a seu marido e se sentiu aliviada ao ver assombro em seu rosto. Tinha os olhos totalmente abertos e tinha detido o garfo a meio caminho da boca.
—Uma mulher vestida de cor cereja? -disse ele depois de um momentâneo silêncio-. Disse de cor cereja?
—Sim. por quê? Tinha ouvido falar dela? É uma espiã? Thomas!
—Não sei. Mas a criada dos York também a viu.
Ela se deixou cair na cadeira em frente dele e se inclinou para diante, esquecendo-se de seu próprio bacon.
—O que lhe contou a criada? Quando viu ela? Sabe quem é?
—Não. Mas voltarei e falarei outra vez com essa criada, acho, e lhe pedirei que me faça uma descrição mais detalhada, e que me diga quando viu exatamente essa mulher. Tenho que averiguar quem é, se puder.
Mas antes de voltar para Hanover Close passou pela delegacia de polícia do Bow Street para ocupar-se de outras investigações, em especial de um roubo cometido no Strand. Tinha lido a metade dos informes quando entrou um agente com uma xícara de chá na mão. Deixou-a sobre a escrivaninha do Pitt.
-Obrigado -disse Pitt sem reparar nele.
-Pensei que gostaria de saber, senhor -disse o agente fungando com força enquanto pegava um grande lenço de algodão, com o que às soou ruidosamente,-que ontem se produziu um acidente, senhor, em Hanover Close.-Algo muito lamentável. Uma das criadas caiu por uma janela do piso superior, pobre moça. Deve ter se debruçado muito para olhar algo, ou talvez para chamar a alguém. Em qualquer caso, a pobre garota está morta, senhor.
—Morta? -Pitt levantou os olhos, paralisado de assombro-. Como se chamava?
O agente olhou o papel que levava na mão.
—Dulcie Mabbutt, senhor. Dama de companhia.
Quando Charlotte partiu para sua casa Emily estava completamente acordada. Tinha ante si todo um longo dia sem nada planejado que fazer. Tratou de dormir um pouco mais -seis menos um quarto era uma hora muito cedo, mas sua mente estava inquieta.
A primeira coisa que fez foi refletir a respeito da noite de Charlotte com os Danver. Quem seria aquela misteriosa mulher com um vestido de cor cereja? Provavelmente algum antigo amor de Julian ao que este tinha tido a indiscrição de cortejar sob o teto da casa paterna.
Não, não podia ser. Nenhum homem com dois dedos de testa faria uma coisa assim e, pelo que dizia Charlotte, Julian Danver não era nenhum mentecapto. referiu-se a ele em termos bastante admirativos havia dito que podia entender muito bem que Veronica York quisesse casar-se com ele. E Charlotte nunca suportaria a um homem estúpido, por muito que pudesse considerá-la uma mulher indulgente. Havia outra resposta possível: que Julian ou Garrard fossem traidores e a mulher misteriosa fosse a espiã que tivesse pervertido a lealdade de um dos dois. Seria assim mera coincidência o fato de que não a tivesse visto desde a morte do Robert York. tornara-se mais precavida, isso era tudo.
Não, isso também era uma solução tola. Se a mulher em questão não tinha tido relação com a morte do Robert York, por que incomodar-se em pensar nela? Em tal caso seria o que parecia ser: uma amante indiscreta. Talvez Julian se cansara dela, ou Garrard, atiçara sua imaginação- e esta tinha enlouquecido até o ponto de segui-lo até sua casa.
Ou outra coisa, talvez Harriet levasse uma vida dupla -possivelmente até se entendia com o Felix- e se vestia com uma roupa tão chamativa, e tão diferente de sua vestimenta habitual, que tia Adeline não a tinha reconhecido. Em meio da noite, uma hora a que tia Adeline devia haver despertado de um sonho, isso parecia mais que verossímil. Parecia uma velha dama bastante original, no melhor dos casos. Tornaria-se ela mesma uma velha dama original e solitária, e estaria tão aborrecida que visitaria as amizades com tanta assiduidade que acabaria por viver as vidas das outras pessoas, e interpretaria mal a todo mundo e veria coisas que não existiam em nenhuma parte?
Ante aquele sombrio pensamento Emily decidiu levantar-se, embora só fossem sete e cinco. Se os criados estranhassem, dane-se eles. Assim daria exemplo.
Chamou a sua criada e teve que esperar uns minutos. Depois se banhou e se vestiu com cuidado, como se tivesse que ver alguma pessoa muito importante –o que lhe dava moral,-e desceu ao andar térreo. Naturalmente, sua criada tinha despertado o resto da casa, de modo que não pegou ninguém de surpresa.
Pensassem o que pensassem, o certo é que seus rostos não expressavam senão a mansa saudação de bom dia. Ao lhe servir os ovos quentes, Wainwright parecia um coroinha com o pires da coleta, que depositou diante dela com similar reverencia. Como gostaria de deixá-lo tão pasmado que o fizesse cair o prato!
Quando acabou o café da manhã e tomou três xícaras de chá, dirigiu-se à cozinha, onde irritou o cozinheiro ao intrometer-se nos menus da semana, para em seguida pôr à prova a paciência de sua criada ao lhe repassar os cerzidos e o engomado de seus vestidos. Quando por fim se deu conta do pouco tato com que estava comportando-se, foi ao toucador, fechou a porta e começou uma carta a tia avó Vespasia, simplesmente porque teria gostado de falar com ela naquele momento. Ia pela quarta folha da carta, quando chamou um criado, entrou e lhe disse que sua mãe, a senhora Ellison, estava na saleta.
—Oh, faça-a entrar aqui -pediu Emily-. Há mais luz. -Cobriu a carta e se preparou para receber a sua mãe com uma mescla de sentimentos.
Ao cabo de um momento entrou Caroline, vestida com uma roupa na moda de cor vinho, orlada de pele negra e com um atrevido chapéu que lhe dava um aspecto mais elegante do que Emily era capaz de recordar. Trazia as faces ruborizadas, sem dúvida pelo tempo frio, e um humor muito animado.
—Como está, querida? -Beijou a Emily com delicadeza e se sentou em uma das cadeiras mais cômodas. - Parece um pouco pálida -observou com sinceridade de mãe-. Espero que esteja comendo bem. Tem que velar por sua saúde, tanto pelo bem do Edward como por si mesma. É claro que o primeiro ano é o mais difícil, bem sei, mas seis meses mais e já terá passado. Deve se preparar para o futuro. A metade do verão que vem já estará bem visto que comece a participar de algum evento social, sempre que for apropriado.
Deu um tombo o coração de Emily. "Apropriado" soava como uma condenação. Podia imaginar-se muito bem essas reuniões: reuniões de viúvas vestidas de negro e sentadas em círculo como gralhas pousadas em uma cerca, fazendo comentários piedosos sem sentido e gesticulando com desaprovação sobre as últimas frivolidades sociais, criticando até não poder mais porque é o único modo em que podem participar da vida social.
—Acredito que me dedicarei às obras de beneficência -disse.
—Muito recomendável -assentiu Caroline com um leve gesto-. Sempre que o faça com moderação. Pode falar com seu pároco sobre o assunto, ou se preferir, eu falarei com o meu. Tenho certeza de que haverá comissões de damas que verão com bons olhos que contribua dedicando parte de seu tempo, quando chegar o momento apropriado de começar a sair de casa para assistir a esse tipo de reuniões.
Sentar-se em meio das comissões de damas era a última coisa que tinha Emily na mente. Ela pensava no tipo de coisas que fazia Vespasia: visitar centros de acolhida e organizar campanhas em favor da melhora de suas condições, promover mudanças na legislação trabalhista para as crianças, tentar incrementar o número e a cobertura das escolas para crianças pobres, e talvez até lutar em favor do voto feminino. Agora que tinha dinheiro, podia haver muitas coisas para fazer, pensava Emily.
—Não tem aspecto de ir vestida para as obras de beneficência -disse com sentido crítico-. A verdade é que nunca a tinha visto com um aspecto tão bom. Caroline estava perplexa.
—Não há por que ir desalinhada ou parecer mal arrumada para fazer boas obras, mily. Sei que isto foi trágico para você, mas não deve se tornar uma excêntrica, querida. Emily podia sentir como crescia a irritação em seu interior, mesclada com frustração e impotência. Parecia como se a seu redor se levantassem paredes que a aprisionassem. Era como se alguém tivesse jogado o cadeado da porta e ela pudesse ouvir a voz de sua mãe, uma voz razoável que soava como a queda de um pano de fundo que a separasse de tudo o que tinha de espontâneo, luminoso e divertido.
—Por que não? -perguntou-. por que não posso me tornar uma excêntrica?
—Não seja louca, Emily. -O tom de Caroline continuava amável, mas sobre tudo paciente, como se estivesse falando com uma menina doente que não queria comer o pudim de arroz-. No devido tempo quererá voltar a casar-se. É muito jovem para pensar em ficar viúva para sempre, e além disso é muito bom partido. Se comportar-se com prudência durante os dois ou três próximos anos, depois será fácil se casar tão bem como já o fez uma vez, e viver melhor e mais feliz. Mas os próximos meses são cruciais. Podem malograr tudo.
Emily arqueou as sobrancelhas.
—Refere-se que se fizer algo imprudente ou inapropriado nenhum duque quererá saber nada de mim, e se fizer algo que me faça parecer excêntrica não poderei ficar nem sequer com um barão?
—Está de um humor difícil esta manhã -disse Caroline, esforçando-se por seguir mostrando-se paciente-. Conhece as normas que regem a boa sociedade tão bem como eu. De verdade, Emily, sempre tinha sido a mais sensata das três, mas cada vez se parece mais com Charlotte. Talvez deveria aconselhá-la a não passar o Natal com ela, mas pensei que estaria bem para o Edward que tivesse outras crianças com quem brincar. E para ser de todo franca, sei que Charlotte deve haver-se sentido muito agradecida por toda a ajuda econômica que terá sido capaz de lhe proporcionar... com discrição.
—Charlotte é uma mulher feliz! -disse Emily com mais ênfase de que pretendia. Estava sendo descortês e sabia, embora fosse incapaz de conter-se-. E eu desfrutei do Natal que passei com ela e Thomas... eu adoro ter estado com eles.
O rosto do Caroline se suavizou em um sorriso e pôs sua mão sobre a de Emily.
—Isso não o duvido, querida. Seu afeto por outros é uma das coisas mais formosas de minha vida.
Emily notou uma ardência nos olhos e se sentiu furiosa consigo mesma. Não queria desgostar a sua mãe, mas embora com a melhor intenção do mundo Caroline vislumbrasse um futuro que ela não sabia agradecer, o certo é que o via como algo insuportável.
—Mamãe, nego-me a me integrar em qualquer comitê paroquial e certamente a proíbo que fale deste assunto com meu pároco nem com o seu. A única coisa que faria seria ficar você mal, porque eu não vou mudar de parecer. Se entregar a uma boa causa, quero que seja algo real, possivelmente em colaboração com tia avó Vespasia. Mas não vou sentar-me em círculo para pontificar a respeito da moral de outras pessoas nem vou me pôr acima de outros distribuindo gravuras piedosas ou caldo feito em casa! Caroline suspirou, apertando os dentes.
—Emily, às vezes é muito infantil. Não pode pensar em se comportar como lady Cumming-Gould. Ela fez um nome na boa sociedade. As pessoas a toleram porque é muito velha e porque ainda conservam certo respeito por seu último marido.
Na sua idade não importa já muito que faça, sempre a podem desculpar aduzindo sua senilidade.
—Em toda minha vida nunca conheci ninguém menos senil que tia avó Vespasia! -defendeu-a Emily com raiva, não só pelo afeto que sentia pela Vespasia, mas também pelo bom juízo e a caridade que representava.-Tem muito mais sensatez na hora de avaliar o que é realmente importante com suas pequenas luzes que a maioria do resto da boa sociedade mesmo se unissem suas fátuas cabeças!
-Mas ninguém se casaria com ela, querida! -disse sua mãe exasperada.
—Tem quase oitenta anos, pelo amor de Deus! Não iriam evitar Caroline com raciocínios.
—Isso é justamente o que digo. Você mal tem trinta. Considera sua posição com um mínimo de bom senso. É uma mulher bonita, embora não uma grande beleza, como foi Vespasia. Nem nasceu no seio de uma grande família. Não tem influências que oferecer, nem conexões com o poder. -Olhava-a com seriedade
—Mas tem em troca uma quantidade de dinheiro considerável. Se casar-se com alguém inferior a sua posição, ficará exposta aos caçadores de fortunas e aos homens de duvidosa índole, que lhe farão a corte com a cobiça e o desejo de conseguir entrar na boa sociedade através de suas passadas conexões com os Ashworth. É triste ter que dizê-lo, mas já não é uma menina. Sabe tão bem como eu.
—Claro que sei! -voltou-se de costas.
A sua mente foi com toda vivacidade ao rosto do Jack Radley. Era um homem encantador, e parecia tão sincero, com aqueles maravilhosos olhos rodeados de longas pestanas. Era também ele um mentiroso consumado, capaz de manter um engano tão hábil? Todo seu futuro podia depender de tal habilidade: se depois de cortejá-la conseguisse-a, podia deixar de preocupar-se com o dinheiro para o resto de sua vida. Pela primeira vez desde sua infância poderia sentir-se seguro, vestir-se como o desejasse, comprar cavalos e carruagens, jogar, ir às corridas, convidar gente para jantar em lugar de ir sempre atrás de um convite para poder jantar bem. Não teria que voltar a ir por aí pedindo favores, por fim poderia permitir-se gostar ou não conforme o desejasse. Aquele pensamento era espantoso e doía muito mais do que tinha acreditado umas semanas atrás. Emily fez uma profunda e trêmula inspiração-. Claro que sei! -repetiu-. Mas não tenho intenção de me casar com um homem aborrecido só para estar segura de que seus motivos não são econômicos.
—Não seja ridícula. -A paciência de Caroline fraquejava-. Acomodará-se ao mais razoável, como todas temos feito.
—Charlotte não!
—Acredito que quanto menos falemos de Charlotte melhor! -respondeu Caroline com exasperação-. E se imagina que pode se casar com alguém como um policial, ou com um vulgar lojista ou com algum artista, e ser feliz, então de verdade perdeu o juízo! Charlotte teve muita sorte de que a situação não tenha ido pior do que já é. Oh claro, Thomas é um homem bastante agradável, é claro, e a trata quão bem quanto pode, mas sua irmã não tem nenhuma segurança. Se algo ocorresse a ele amanhã, ela ficaria sem nada absolutamente, salvo dois meninos que criar sem ajuda de ninguém. -Suspirou-. Não, querida, não se engane pensando que Charlotte tenha tudo como gosta. Pode ser que não lhe parecesse tão bonito se tivesse que arrumar os vestidos do ano passado para poder usá-los neste, e cozinhar você mesma o que vai comer e que tivesse que estirar a comida do domingo para que lhe chegasse até na quinta-feira seguinte. E não esqueça que você não teria a nenhuma irmã rica que a ajudasse, como ela tem! Tenha todos os sonhos que queira, mas não esqueça que só são isso, sonhos. E quando despertar deles, se comporte como uma viúva que tem encanto e dignidade, e uma considerável fortuna e uma posição social que convém manter a salvo de comportamentos excêntricos. Não dê às línguas ocasião para murmurar.
Emily estava muito abatida para discutir.
—Sim, mamãe -assentiu arrastando as palavras. Todo seu reino de respostas e explicações estava emaranhado em sua mente e afastado do de Caroline, e até ela mesma o compreendia muito pouco para tratar de pô-lo em ordem.
—Bem. -Sua mãe lhe sorriu-. E agora é melhor me oferecer uma xícara de chá. Lá fora faz um frio espantoso. dentro de uns meses falarei com o pároco. Há diversas comissões encarregadas de diferentes assuntos que podem ser um lugar muito apropriado para que possa se reintegrar à vida social.
—Sim, mamãe -disse Emily enquanto pegava a corda da campainha.
O resto do dia transcorreu de forma monótona. Fora, o vento lançava o neve em rajadas contra as janelas e estava tão escuro que todos os lampiões de gás permaneceram acesos inclusive ao meio-dia. Emily acabou de escrever a carta a tia avó Vespasia, para depois rompê-la em pedaços. Estava muito carregada de auto compaixão e não queria que tia Vespasia descobrisse aquela faceta dela, que talvez fosse compreensível, mas nada atraente, e lhe importava muito que Vespasia pudesse pensar dela.
Quando Edward concluiu suas lições tomaram juntos o chá da tarde. Depois entraram em um longo serão que acabou cedo na cama.
O dia seguinte foi por completo diferente. Começou com o correio da manhã, que trazia uma carta de Charlotte enviada a última hora da tarde anterior e que levava o selo de "Muito urgente". Leu-a:
Querida Emily:
Aconteceu uma coisa muito triste que, se estivermos certas, é também perversa e perigosa. Acredito que a mulher que levava roupa de cor cereja é a chave de tudo. Thomas também tinha tido notícia dela, de parte da criada dos York. Como é natural, não me havia dito nada a respeito dela na ocasião, pois então não sabia que nós tivéssemos tanto interesse. A moça viu a cereja -chamá-la-ei assim a partir de agora- em casa dos York a altas horas da noite. Pode imaginar a reação do Thomas quando lhe disse o que me tinha contado tia Addie! Mas o fato terrível é que quando foi à delegacia de polícia do Bow Street antes de voltar para Hanover Close para interrogar de novo à criada, disseram-lhe que esta tinha sido assassinada no dia anterior! Aparentemente tinha caído de uma janela do primeiro andar. Thomas está muito inquieto. Certamente, pode tratar-se de um acidente e não ter nada que ver com sua investigação nem com o fato de que a moça lhe falasse de Cereja, mas, se não for assim, talvez alguém a ouvisse. E isso é o mais interessante: todos os Danver estavam na casa quando Thomas esteve ali, assim qualquer deles pôde ter estado no vestíbulo no momento em que ela e Thomas estavam falando na biblioteca.
O que temos que averiguar é quem estava ali quando a garota caiu. Thomas não pode encarregar-se disso porque não há motivo aparente para suspeitar de que não trata-se de um acidente doméstico. Estas coisas acontecem às vezes, que uma pessoa caia de uma janela, e não se pode ir por aí arrojando suspeitas sobre uma família como os York. E se além disso como resultado tivesse que sair à luz toda a investigação em torno de Veronica, então haveria o mais espantoso escândalo, e só Deus sabe quem poderia ser prejudicado. Poderia ser a ruína do Julian Danver, provavelmente, e com toda certeza a da Veronica.
Tem que dizer ao Jack assim que vá visitá-la.
Se produzir alguma novidade, comunicarei-lhe isso imediatamente.
Sua irmã que a quer, CHARLOTTE
Formigavam os dedos de Emily enquanto segurava o papel. Tinha as mãos como intumescidas, mas a mente lhe funcionava a toda velocidade. A mulher vestida de cor cereja! E a criada que a tinha visto em casa dos York a altas horas da noite estava agora morta. Mas não podiam aprofundar além da sossegada e em extremo disciplinada superfície da fachada dos York, que consistia em ir tomar o chá da tarde, ou passear pela Exposição de Inverno e trocar algumas pontuais confidências sobre moda ou sobre as fofocas. Pitt tinha removido algo que ia além de um antigo roubo, ou da questão a respeito da conveniência da Veronica de converter-se na esposa do Julian Danver. escondia-se aí algo carregado de tanta paixão e tanto horror que inclusive depois de três anos podia irromper de improviso com toda sua violência e acabar, ou ao menos assim parecia, em assassinato.
Tinham que aproximar-se mais, muito mais... De fato, tinham que introduzir-se na casa dos York. Mas como?
Ocorreu-lhe uma ideia, mas era tão absurda! Aquilo não podia funcionar. Para começar, ela não seria capaz de fazê-lo, descobririam-na imediatamente. dariam-se conta. Mas como iriam perceber? Seria difícil, teria que trocar por completo sua forma de comportar-se, modificar a aparência, o rosto, o cabelo, até as mãos e a voz. pode-se identificar a educação de uma mulher inglesa pela voz no momento em que fala; nenhuma criada pronuncia as vogais arredondando-as tanto, nem as consoantes com tanta precisão, até se a gramática a imitou com meticulosidade.
Mas Veronica York necessitaria de uma nova criada, alguém que estivesse em casa todo o tempo, nos momentos de descuido, alguém que o visse tudo, como só podem fazê-lo aqueles que são invisíveis. E os criados domésticos são invisíveis. Até sabendo que aquilo era absurdo, Emily seguiu planejando como poderia fazer-se. Ela tinha tido criada durante toda a vida -primeiro a de sua mãe, depois a sua própria-, e conhecia de cor as tarefas que lhes são próprias. Não cabia dúvida que para alguns destes encargos não seria muito boa, nunca se tinha posto a engomar, mas certamente podia aprender, não? Sabia pentear bastante bem; ela e Charlotte tinham brincado de pentear-se uma à outra antes que as deixassem fazer-se penteados de mais velhas. Também sabia dirigir a agulha; e não podia haver tanta diferença entre bordar e cerzir.
A principal dificuldade e o maior perigo estaria em modificar suas maneiras para poder passar por uma criada. O que de pior podia acontecer se a descobrissem?
Despediriam-na, é claro, mas isso o que importava. Pensariam que era uma garota de boa família que tinha sofrido alguma desgraça que a tinha levado a necessidade de servir. O mais provável era que supor que tinha tido um filho ilegítimo, já que esse era o tipo de desgraça em que caíam as mulheres. Seria uma humilhação para ela, mas duraria muito pouco. Se jamais a conhecessem depois como lady Ashworth, não era provável que a reconhecessem, pois nunca lhes ocorreria pensar que se tratava da mesma pessoa. E se lhes ocorresse, ela sempre podia reagir com ousadia. Podia olhá-los com o maior desprezo e sugerir que tinham perdido o juízo por chegar a acreditar numa coisa tão ofensiva e de tão mau gosto.
Em qualidade de criada pessoal, nunca teria que conhecer os convidados da casa, não lhe pediriam que atendesse a mesa ou que abrisse a porta. Possivelmente a ideia não fosse tão absurda, depois de tudo. Se continuassem como até então, jamais descobririam quem tinha matado ao Robert York. O que faziam era dar voltas em torno do objetivo, roçar a superfície. Sabiam que atrás da fachada de convencionalismos se escondiam terríveis paixões, mas não podiam senão elaborar hipóteses a respeito de qual era a questão e quem tinha impulsionado o assassinato. Introduzida na casa dos York poderia saber imensamente mais. Estremeceu ao pensar nos perigos. Se a despedissem por considerá-la uma mulher desencaminhada, não aconteceria nada, teria que suportar uma momentânea situação de apuro. Mas se por algum horrível infortúnio a reconhecessem como Emily Ashworth, dariam por sentado que tinha perdido o juízo, que a morte do George a tinha transtornado. O escândalo seria espantoso! Mas não havia razão para que tivesse que acontecer tal coisa.
Não, o perigo real estava na pessoa que tinha assassinado Robert York, e possivelmente Dulcie, a quem tinha matado pelo simples fato de ter visto ou ouvido algo. Emily deveria conduzir-se com extremo cuidado! Teria que fazer-se passar por estúpida e inocente e não fazer nunca uso da língua. Nunca!
A alternativa era abandonar, continuar ali sentada vestida de negro, fosse só ou falando de coisas estúpidas com toda educação com as poucas pessoas que fossem visitá-la, até que Caroline lhe buscasse alguma condenada comissão para seguir sendo virtuosa. Não obteria nada salvo a informação de segunda mão de Charlotte. Por ela mesma não poderia contribuir em nada absolutamente. Logo até Jack se aborreceria dela.
Quando Jack chegou no meio da amanhã, já tinha tomado uma decisão. Graças a Deus não tinha enviado aquela lamentável carta a Vespasia. ia necessitar de sua ajuda. Naquela mesma tarde iria visitá-la.
—Vou à casa dos York -declarou logo que Jack entrou.
—Não acredito que seja permitido fazê-lo, Emily -respondeu ele com o cenho.
—Oh, não refiro a uma visita social! -Fez um gesto de rechaço para desprezar a idéia.
—A criada dos York também viu a mulher vestida de cor cereja da que falou tia Addie na casa dos York a altas horas da noite. Assim o disse ao Thomas... e agora está morta!
—A criada?
—Sim, claro, a criada! -disse Emily com impaciência-. A mulher vestida de cor cereja se esfumou, e deve haver algo a ver com o assunto da traição, e quase com toda segurança com o assassinato do Robert York. Temos que averiguar tudo o que possamos, e não vamos conseguir com nossas esporádicas visitas para tomar chá.
—E que outra coisa podemos fazer? Dificilmente podemos nos colocar nessa casa e começar a interrogar a todo mundo.
—E embora pudéssemos, isso não conduziria a nada. -Emily estava embargada de emoção. Dissesse o que dissesse Jack, não poderia tirá-la daquele estado. Pela primeira vez desde a morte do George se dispunha a fazer algo realmente atrevido, que ele sem dúvida não lhe teria permitido, e se sentia feliz de não ter a ninguém a quem dever obediência-. Temos que atuar com sutileza -continuou-. É preciso observá-los quando eles não tenham a menor ideia de que são observados, e assim pouco a pouco se delatarão eles mesmos.
Ele estava longe de entender e ela deixou cair à bomba com sumo deleite.
—Vou apresentar-me para o posto de criada! Levarei uma carta de boas
referências escrita por mim mesma, e tia avó Vespasia me proporcionará outra.
Ele ficou atônito.
—Santo Deus! Não pode fazer isso! Emily, não pode se apresentar nessa casa como uma criada!
—Por que não?
Nos olhos do Jack brilhava uma faísca de furor.
—Para começar, não saberia como fazê-lo -disse.
—Claro que saberia! -Levantou o queixo, sabendo de que devia parecer ridícula-. Pelo amor de Deus, Jack, durante anos tive uma criada excelente. Sei perfeitamente qual é seu trabalho e eu seria capaz de fazê-lo se fosse necessário. Tive que aprendê-lo desde jovem.
Jack pôs-se a rir. Em qualquer outro momento lhe teria parecido um som delicioso, cheio de alegria e vitalidade. Agora percebia brincadeira naquela risada, coisa extremamente irritante.
—Não estou dizendo que seja fácil! -disse com azedume.-Não estou acostumada a que as pessoas me ordenem o que tenho que fazer, nem eu gosto de ter que estar à disposição de outra pessoa, mas posso fazê-lo! Ao menos trocarei um pouco, em lugar de estar aqui sentada o dia todo de braços cruzados!
—Emily, se descobririam você! -Sua risada se apagou quando se deu conta de que ela falava a sério.
—Ah, não, claro que não! Serei um modelo de bom comportamento.
O rosto do Jack era a imagem do ceticismo.
—Charlotte ficou impune em seu papel de senhorita Barnaby -prosseguiu com determinação-. E eu minto muito melhor que ela. Tenho que ir esta mesma tarde, do contrário poderia perder a ocasião. Escrevi para mim uma carta de recomendação excelente, e tia Vespasia me fará outra. Já a telefonei... Não lhe tinha contado que instalei um telefone? É algo maravilhoso, não sei por que não tinha posto isso antes... Tia Vespasia me espera esta tarde. Escreverá-me uma carta de apresentação se o pedir. -Não estava do todo segura que Vespasia estivesse disposta a fazer algo do gênero, mas fazer-ia o que fosse para persuadi-la.
Agora ele a olhava com preocupação.
—Mas Emily, pensa no risco que correria. Se o que você supuser for certo, significaria que alguém matou a criada. Se chegassem a suspeitar de você, poderia terminar do mesmo modo! Deixa-o em mãos do Thomas.
Deu uns passos ao redor dele.
—E o que sugere que poderia fazer ele? Apresentar-se como lacaio? Não teria a menor ideia de suas tarefas, além de que eles já o conhecem e que é polícia. Pelo que diz Charlotte, seus superiores não estão interessados na morte do Robert York. A única coisa que querem é assegurar-se de que Veronica é a pessoa apropriada para casar-se com Julian Danver!
—Oh, vamos! -Jack se mexeu na cadeira. - Isso é o que eles dizem, mas é evidente que não é mais que uma desculpa. Não lhes interessa o mínimo o que possa fazer Veronica, desde que ela seja discreta em seus assuntos. E se ela não o fosse, eles saberiam sem necessidade que alguém o averiguasse por eles. Têm suas suspeitas em torno da morte dos York e se Veronica tivesse ou não um amante, e se este ou inclusive a própria Veronica pudessem ter assassinado Robert. São muito obscuros para acreditar que se expressaram com franqueza. - olhou-a.
—Sim? E o que me diz do assunto da traição? E da mulher que viu de cor cereja? Ele refletiu um momento.
—Bem, poderia tratar-se da própria Veronica, que voltava de uma entrevista com o Julian Danver se já então fossem amantes.
—Nesse caso, foi Julian quem matou ao Robert York?
—É provável. O fato de que seja um tipo simpático é irrelevante. Alguns dos maiores canalhas que conheci eram indivíduos encantadores, e como tais se comportavam enquanto não se interpusessem em seu caminho. Também poderia tratar-se de Harriet, que levaria uma vida dupla com o Felix Asherson. É evidente que está apaixonada por ele.
—Isso não lhe disse Charlotte! -Minha querida amiga, não preciso! Ou pensam que sou idiota de arremate? Vi muitos flertes para não saber quando uma mulher está apaixonada. Ela se mostrava educada, fingia ser uma mera amiga e não ter nenhum interesse romântico. Fugia os olhos dele e o olhava em troca quando ele estava voltado para outro lugar. Punha tanto cuidado em dissimular que devia lhe importar muito.
Emily não tinha a menor ideia de que Jack fosse tão observador. Era uma surpresa que sacudia a confiança que lhe tinha.
—Seriamente? -disse com frieza-. E naturalmente nunca se equivoca, é capaz de ler no coração das mulheres assim fácil! -Estalou os dedos, mas em lugar de produzir o agudo som desejado, só produziu um ruído surdo-. Demônios! - resmungou-. Bom, dá na mesma, vou à casa dos York. Essa casa esconde algo horrível e sórdido e penso descobrir do que se trata.
—Emily, por favor. Se a descobrirem, embora seja por um detalhe mínimo, podem dar-se conta da razão pela que está ali! Se já jogaram uma criada pela janela não vacilarão em desfazer-se também de você!
—Não podem jogar duas criadas pela janela -arguiu ela com frieza.-As pessoas olhariam para eles com desconfiança, inclusive ao honorável Piers York!
—Não tem por que repetir-se o da janela -replicou ele, cada vez mais zangado.
—Poderia ter um acidente ao descer as escadas, ou ao subir por uma escada de mão. Poderiam empurrá-la sob as rodas de uma carruagem, ou pôr algo na comida. Ou poderia simplesmente desaparecer, junto com dois objetos de prata da família. Emily, por amor de Deus, usa a cabeça!
—Estou cansada de que me digam que use a cabeça! -voltou-se com ferocidade e olhou-o nos olhos-. levei luto, não vi ninguém e fui sensata durante seis meses, e já começo a me sentir como se o luto se fizesse por mim! Vou a casa dos York para ser sua criada e descobrir quem assassinou ao Robert York, e por quê. E agora, se quer ver tia avó Vespasia comigo, será bem recebido. Se não for assim, rogo-lhe que tenha a bondade de me desculpar, porque tenho coisas que fazer. Direi à criadagem que vou passar uns dias em casa de minha irmã. É claro, à Charlotte direi a verdade. Se quiser colaborar, será muito gentil de sua parte. Se não, se prefere te desentender, entenderei-o perfeitamente. Nem todo mundo serve para fazer-se de detetive -concluiu com condescendência.
—Se não colaborar deixarei Charlotte em maus lençóis -indicou ele com um leve sorriso.
Ela tinha passado isso por alto, assim a seu pesar se viu obrigada a voltar atrás.
—Então espero que se sinta capaz de continuar -disse sem olhá-lo. –Temos que seguir em contato com os Danver. Eles estão metidos nisto.
—Sabe algo Charlotte deste... teu plano?
—Ainda não.
Aspirou disposto a replicar, mas soltou um suspiro. Uma coisa era ver conduzir- se aos homens como insensatos, mas outra muito distinta ver esta mesma conduta nas mulheres. Aquilo o obrigava a reorganizar todo seu pensamento, mas Jack se adaptava com facilidade e seus preconceitos eram notavelmente escassos.
—Encontrarei um modo de nos manter em contato com você -disse depois de um momento de reflexão-. Não esqueça que à maioria das casas não gosta que as criadas tenham homens revoando a seu redor. Farão-lhe perguntas a respeito das cartas que receba, e até as lerão se suspeitarem que são de algum admirador. Guardou silêncio. Ela não tinha pensado em tudo isso, mas já era muito tarde para voltar atrás.
—Tomarei cuidado -concedeu-. Direi que são de minha mãe, ou algo assim.
—E como explicará que sua mãe viva no Bloomsbury? -perguntou-lhe ele.
—Pois... - No final teve que olhá-lo nos olhos.
—Não o tinha pensado.
Naquele momento abençoou-o por não tratá-la com paternalismo. Teria sido muito penoso se lhe tivesse falado com condescendência. Recordou seus dias de aspirações sociais, sua luta constante por estar à altura, por dizer a frase pertinente, por gostar das pessoas adequadas. Quem desde nascidos são aceitos não podem entender esse sentimento. Essa era uma das coisas que Jack e ela compartilhavam, a sensação de estar fora, de ser aceitos durante o tempo que dura seu encanto e ter sempre que divertirem a outros, mas não por direito. Havia sentido o aguilhoada da superioridade inconsciente com muita frequência para praticá-la ela mesma.
Jack estava esperando o ataque de ira de Emily, mas em troca esta ficou meditando a respeito do muito que gostava de seu amigo, quem não lhe havia dito nada sobre o perigo em que podia pôr sua situação social.
—Não -concedeu-a com um ligeiro sorriso e bastante calma-. Estaria muito agradecida se você me ajudasse com esse tipo de detalhes. Se me perguntarem, poderia lhes dizer que tenho uma irmã servindo. Bloomsbury está cheio de criadas residentes.
—Então terá que usar o mesmo sobrenome que você. Com que nome pensou se apresentar?
—Ehm... Amelia.
—Amelia o que.
—Algo. Não posso usar o sobrenome Pitt, poderiam relacioná-lo com o Thomas. Uma vez tive uma criada chamada Gibson. Usarei este sobrenome.
—Então terá que lembrar-se de escrever à Charlotte também como senhorita Gibson. Eu o direi.
—Obrigado, Jack. Estou de verdade muito agradecida.
Ele sorriu.
—Isso espero!
—Diz que vai fazer o que?
As sobrancelhas prateadas da tia avó Vespasia se arquearam por cima de seus olhos afundados. Estava sentada em seu elegante salão para convidados, vestida de seda lavanda com um lenço rosa no pescoço, preso por uma estrela de pérolas. Tinha um aspecto mais frágil que antigamente, parecia mais magra desde a morte de George. Mas seu olhar tinha recuperado algo do antigo fogo e suas costas erguia-se tão retas como sempre.
—Vou entrar na casa dos York em qualidade de criada -repetiu Emily. Engoliu saliva com dificuldade e enfrentou os olhos de sua tia.
E Vespasia lhe devolveu o olhar sem alterar-se.
—Seriamente? Não vai gostar, querida. As tarefas serão o peso mais leve de sua carga. Nem sequer a obediência te será tão molesta como a obrigação de adotar uma atitude de mansidão e respeito para o tipo de pessoas com as quais está acostumada a tratar como iguais, sejam quais sejam seus pensamentos particulares. E recorda que isto vale também para a governanta e o mordomo, não só para a senhora.
Emily não se atrevia nem a pensar nisso, a risco de perder os nervos. Uma tímida vozinha lhe sussurrava em seu interior que tia Vespasia lhe viria com alguma razão incontestável pela qual não poderia realizar seu projeto. Ela sabia que não tinha sido de todo limpa com Jack. Este se tinha mostrado preocupado por ela, isso era tudo. Ela teria se sentido ofendida se ele não tivesse se oposto ao plano.
—Já sei -admitiu-. Não espero que vá ser fácil. Nem sequer poderei permanecer ali muito tempo, mas é uma forma de me inteirar de coisas a respeito dos York que não poderia saber por muitos anos que fosse visitá-los. A gente não tem em conta à criadagem, para eles são móveis. Sei muito bem. Eu mesma me comporto desse modo.
—Sim -concedeu Vespasia com secura-. Eu diria que, se alguma vez se sentir presunçosa, poderia ser muito saudável conhecer a opinião que tenha de você sua própria criada. Ninguém conhece as debilidades nem a vaidade de uma pessoa como sua criada. Mas recorda, querida, que precisamente por essa razão uma pessoa confia em sua criada. Se faltar a essa confiança, não espere que a perdoem. Não posso imaginar Loretta York como uma mulher que perdoe facilmente.
—Conhece-a?
—Só da maneira em que todo mundo conhece todo mundo na sociedade. Não é de minha geração. Bem, necessitará alguns vestidos simples de pano, toucas e aventais, anaguas sem adornos de renda, uma camisola de dormir e um par de botas negras comuns. Acredito que uma de minhas criadas deve ser quase de seu manequim . E um baú simples para levar tudo isso. Se é que te decide a fazer uma coisa tão estrambótica, será melhor que a faça o melhor possível.
—Sim, tia Vespasia -disse Emily com o coração encolhido.-Obrigada.
A última hora daquela mesma tarde, sem ter se perfumado nem se dado o mais ligeiro ruge na pálida pele de seu rosto, e trazendo um vulgar vestido e um chapéu marrons, Emily desembarcou do ônibus público carregada com um baú emprestado e desgastado pelo uso. Caminhou até o número dois de Hanover Close para apresentar-se na entrada do serviço. Levava na bolsa de malha, também emprestada, duas cartas de recomendação, uma dela mesma e a outra da Vespasia.
Sua chegada tinha sido anunciada através de uma chamada pelo telefone novo, que tia Vespasia adorava. Ao fim e ao cabo, não cabia aspirar aquele posto se já estava ocupado. Vespasia se inteirou de que ainda não estava ocupado, embora tivessem algumas aspirantes em mente. A senhora York mãe era uma mulher muito escrupulosa, até se a nova criada entrava em serviço de sua nora. Além disso, ela era a senhora da casa, e portanto quem tinha que dizer quem ia trabalhar ali e quem não.
Tia Vespasia se interessou pela saúde da senhora York, para segui-la lhe expressar sua condolência pelo infortúnio e a contrariedade que supunha perder uma criada em circunstâncias como aquelas. Tinha pensado que sua própria criada, Amelia Gibson, que a tinha servido com inteira satisfação, agora que se achava ela em seus anos de decadência e em um semi retiro da sociedade, estava acima de suas possibilidades, e procurava como era natural um novo posto. Procedia de uma família de confiança, desde há tempos conhecida por tia Vespasia, e já tinha estado ao serviço de sua sobrinha neta, lady Ashworth, cujo testemunho escrito anexo atestaria o dito. Vespasia esperava que a senhora York encontrasse na Amélia aptidões e uma disposição satisfatórias, e respondia de seu bom caráter.
A senhora York lhe tinha agradecido à cortesia e tinha aceitado receber a Amelia apresentou-se sem demora.
Emily tinha pegado a bolsa de malha com as cartas e três libras e quinze xelins em moedas de prata e cobre (as criadas não podiam ter soberanos e guinéus de ouro) e puxou com dificuldade o desacostumado peso de um baú que continha um vestido de troca, aventais, toucas e roupa interior, uma bíblia e papel para escrever, pena e tinta, enquanto descia as escadas com o coração lhe golpeando as costelas e a boca seca. Tratou de ensaiar mentalmente o que devia dizer. Ainda tinha tempo para mudar de ideia. Podia dar meia volta e ir-se sem mais, e depois escrever uma carta com alguma desculpa: que tinha caído doente, que sua mãe tinha morrido... algo!
Mas seus pés tinham continuado caminhando, e justo quando estava a ponto de repensar no último momento a respeito daquela lunática empreitada, abriu-se a porta traseira. Apareceu uma criada que parecia ter uns quatorze anos e saiu com um recipiente cheio de cascas para atirá-las no balde de lixo.
—Vem pelo posto da pobre Dulcie? -disse com desenvoltura olhando o puído casaco de Emily e o baú que arrastava.-Venha, entre, vai congelar aí no pátio.
Tome uma taça de chá antes de ir ver a senhora, sentirá-se melhor. Parece meio morta aí na intempérie. Vamos, dá esse baú ao Albert, para que ele o leve, se é que fica.
Emily se sentiu agradecida, e aterrorizada agora que não podia voltar atrás. Quis agradecer à moça, mas sua voz recusou obedecer. Seguiu em silencio à criada escada acima até a parte traseira da cozinha, deixaram atrás as verduras, os corpos pendurados de dois frangos e um molho de aves de caça com todas suas penas, e entraram no corpo principal da cozinha. Emily tinha as mãos intumescidas no interior de suas luvas de algodão e se sentiu engolida pelo repentino calor do lugar. Seus olhos se encheram de lágrimas e ela fungou, uma vez passado o intenso frio sofrido durante o passeio desde a parada do ônibus.
—Senhora Melrose, esta é uma candidata ao posto de criada, e está morta de frio, a pobre.
A cozinheira, uma mulher de ombros estreitos e largos quadris, com rosto de pão de quilo, levantou a vista da massa que estava enrolando e olhou a Emily com uma simpatia profissional.
—Vamos, entre, garota, deixa esse baú naquele canto, fora da passagem, não queremos que ninguém tropece e caia. Se ficar, teremos tempo de subi-lo. Como chama-te? Não fique aí como uma tonta, garota! Não tem língua?
—Polvilhou de farinha a massa com as mãos nuas, deu-lhe a volta sobre a superfície da mesa e começou a amassá-la de novo com o pau de macarrão, sem deixar de olhar a Emily.
—Amelia Gibson, senhora -disse Emily com voz entrecortada ao dar-se conta que ignorava o tratamento que uma criada devia dispensar à cozinheira. Uma coisa que tinha esquecido de perguntar.
—Hás pessoas chamam as criadas pessoais pelo sobrenome -indicou a cozinheira,-mas nesta casa não o fazemos assim. Além disso, você é muito jovem.
—Eu sou a senhora Melrose, a cozinheira. Esta é Prim, a criada, a que a acompanhou até aqui, e essa é Mary, a ajudante de cozinha. -Assinalou com um dedo cheio de farinha a uma moça com um vestido de pano e touca que estava batendo ovos em um recipiente-. Já conhecerá o resto do pessoal da casa se o necessitar. Sente-se à mesa e Mary preparará uma xícara de chá para você enquanto dizemos à senhora que está aqui. Continue com seu trabalho, Prim, não perca mais tempo por aí, jovem! Albert! -chamou com voz aguda.-Onde está esse moço?
—Albert!
Ao cabo de um momento apareceu um jovem de uns quinze anos, olhos redondos e o cabelo penteado para trás da frente até a nuca, onde formava um cacho de cabelo para cima que dava a aparência de uma cacatua.
—Sim, senhora Melrose? -disse enquanto engolia com rapidez. Era evidente que tinha estado comendo às escondidas.
A cozinheira soprou.
—Vá para cima e diga a senhora Redditch que está aqui à garota nova que vem pelo posto de Dulcie. Vamos, mova-se! E se volto a pilhá-lo comendo os bolos, bato-lhe com a vassoura!
—Sim, senhora Melrose -disse, e desapareceu com prontidão.
Emily aceitou de bom grado a xícara de chá, da qual bebeu em golpinhos, o que lhe deu soluço e se sentiu ridícula enquanto Mary ria dela e a cozinheira franzia o cenho. Tratou de aguentar a respiração e mal acabava de consegui-lo quando entrou a jovem e bonita criada para lhe dizer que a senhora York a esperava no toucador. Emily a seguiu.
Enquanto percorria o corredor e cruzava diante da despensa do mordomo, através da porta estofada de verde que conduzia ao corpo da moradia, continuava repetindo-se mentalmente o que tinha que dizer e o modo em que devia comportar-se. Olhar com franqueza mas com modéstia, falar só quando o pedissem, não interromper em nenhum momento, não contrariar, não expressar a opinião particular. Ninguém se interessava nem desejava conhecer a opinião das criadas, isso era improcedente. Não pedir nunca a ninguém que fizesse nada por você, a não ser fazê-lo você mesma. Tratar ao mordomo de senhor, ou chamá-lo pelo sobrenome. Dirigir-se à governanta e à cozinheira pelo sobrenome. E não esquecer-se de falar com o sotaque adequado! Estar sempre disponível, noite e dia. Não ter nunca dor de cabeça nem dor de estômago: estava ali para fazer um trabalho , a não ser por uma enfermidade séria, não havia desculpas. Os vapores eram para as senhoras, não para as criadas.
Nora, a criada, bateu na porta, abriu-a e anunciou:
—A garota que veio vê-la pelo posto de criada da senhorita Veronica, senhora.
O toucador estava revestido de tons marfim e rosa claros, com toques de um rosa mais escuro, tudo isso na verdade muito feminino. Não era aquele momento para observar o material ou a qualidade.
A senhora Loretta York estava sentada em uma poltrona. Era uma mulher pequena, com os ombros um pouco gordinhos e uns centímetros mais grossa de cintura do que ela provavelmente desejava, embora tivesse sabido preservar sua beleza de juventude. Emily se deu conta imediatamente de que se escondia uma mulher de ferro atrás daquela doçura feminina e daquela pele branca, e que apesar de todos os lenços de renda, a rajada de perfume e o cabelo espesso e sedoso, em seus olhos não havia nem um remoto ápice de ambiguidade.
—Senhora -balbuciou Emily.
—De onde é você, Amelia? -inquiriu Loretta.
Emily tinha decidido que o mais seguro era fazer como próprio à bagagem cultural
de sua própria criada, deste modo saberia que não incorria em contradições.
—Do King “s Langley, senhora, no Hertfordshire.
—Já vejo. A que se dedica seu pai?
—É torneiro, senhora. Faz barris e coisas assim. Minha mãe tinha sido leiteira de lorde Ashworth, que era o antigo senhor antes de nos deixar. -Sabia que não devia dizer morrer, pois era uma palavra muito direta para que a usasse uma criada ao falar de um tema tão delicado. A morte era algo sobre o que não devia falar.
—E você trabalhou para lady Ashworth e lady Cumming-Gould. Traz referências?
—Sim, senhora. -Tirou-as da bolsa de malha, com os dedos duros pelos nervos, e entregou-as. ficou olhando ao chão enquanto Loretta lia-as primeiro e depois voltava a introduzi-las no envelope e devolvia-as. Ambas as cartas estavam escritas em papel timbrado, tinha tido bom cuidado de não esquecer aquele detalhe.
—Bem, parecem satisfatórias -observou Loretta-. por que abandonou o serviço de lady Ashworth?
Já tinha pensado naquilo.
—Minha mamãe nos deixou -disse, e engoliu com dificuldade. Queria o céu que não voltasse a lhe dar o ataque de soluço! Podia ser desastroso se Loretta achasse que lhe tinham estado dando o xerez da cozinha.
—Tive que voltar para casa para cuidar de minhas irmãs pequenas até que pudemos as colocar. E como é natural lady Ashworth, por fazer parte da vida de sociedade, teve que procurar a alguém para ocupar meu lugar: mas disse que falaria bem de mim. E logo me contratou lady Cumming-Gould.
—Já vejo. -Seus frios olhos a olhavam inexpressivamente.
Era estranho ser olhada como se fosse uma propriedade que se pode adquirir ou transpassar, sem consideração das formas ou os sentimentos. Não era algo peculiar da Loretta York, qualquer outra pessoa em sua situação teria agido do mesmo modo. E em troca ia empregá-la para o cuidado dos aspectos mais íntimos de sua senhora: pentear seu cabelo, lavar sua roupa, engomar e cerzir os trajes, até os mais íntimos, despertá-la pela manhã, vesti-la para jantares e bailes, atendê-la quando estivesse doente. Ninguém conhecia uma mulher de forma tão íntima como sua criada. Certamente, nem sequer seu marido.
—Bem, Amelia, suponho que sabe costurar e engomar e cuidar do guarda-roupa, do contrário lady Ashworth não a teria recomendado. Tem reputação de estar à última em questões de moda sem cair na vulgaridade, embora não recordo que me tenham apresentado isso.
Subiu o sangue às faces de Emily, para experimentar a seguir um calafrio paralisante. Tinha passado pelo transe de que a reconhecessem muito antes do previsto. O perigo se apresentou e esfumado em um breve instante de horror, e assim que passou abriu a boca para agradecer o elogio a Loretta, mas se deu conta com um sobressalto de que uma resposta àquelas palavras poderia precipita- lá a escolha que acabava de salvar. Em sua nova situação não se esperava dela comentário algum.
-Pode começar agora mesmo -continuou Loretta-. Se desempenhar seu trabalho de maneira satisfatória durante um mês, ficará conosco de forma permanente.-Estará ao serviço de minha nora. Pagarão-lhe dezoito libras ao ano e disporá de uma tarde livre cada duas semanas, se for conveniente, mas voltará para casa antes das nove. As garotas desta casa não saem de noite. Cada três meses poderá passar um dia fora para ir ver sua família.
Emily a olhou.
—Obrigada, senhora -disse com precipitação. Tinham-lhe dado o posto, estava decidido, sentia-se assustada e vitoriosa ao mesmo tempo.
—Bem, Amelia, isso é tudo. Pode retirar-se. -A voz da Loretta a devolveu à realidade.
—Obrigada, senhora -repetiu, deixando aparecer em seu rosto o alívio que sentia. Além de tudo queria realmente aquele posto! Esboçou uma breve reverencia e se voltou para partir, com um entristecedor sentimento de liberdade assim que saiu da sala e viu superado o primeiro obstáculo.
—E então? -A cozinheira levantou a vista do bolo de maçã que estava ultimando com camadas de folhado cuidadosamente cortadas.
Emily lhe sorriu muito mais abertamente do que deveria.
—Tenho-o!
—Então te ocupe de sua bagagem -disse a cozinheira com amabilidade.-Não fique rondando por aqui, moça. Aqui não é de utilidade! A sala de estar das governantas é a segunda porta à esquerda. A senhora Crawford costuma estar ali a estas horas. vá vê-la. Ela lhe dirá onde vai dormir -no quarto de Dulcie, suponho- e dirá ao Joan, a lavadeira, que lhe mostre onde está sua prancha e o resto. Suponho que apresentarão ao Edith, a criada da senhora Piers York. Você será da senhorita Veronica.
—Sim, senhora Melrose. -Emily fez um movimento para o canto para recolher seu baú.
—Não se preocupe com isso! Albert o subirá. Carregar e levar coisas não é seu trabalho, a menos que lhe digam isso. Vamos, mova-se!
—Sim, senhora Melrose.
Foi à sala de estar da governanta e bateu na porta. Uma voz lhe disse com aspereza que entrasse.
A estadia era pequena, lotada de móveis escuros, e o aroma da cera se mesclava com o espesso aroma da estufa de um lírio plantado em uma jardineira em um canto. Havia toalhas bordadas sobre os espaldares das poltronas e aparadores, repletos de fotografias. Das paredes pendiam dois trabalhos à mão emoldurados na madeira. Emily se sentiu oprimida antes inclusive de entrar.
A governanta, a senhora Crawford, era magra e de baixa estatura e tinha rosto de pardal irritado. De seu coque recolhido na nuca, grandemente passado de moda e coroado por rendas brancas como a espuma, escapavam mechas de cabelos cinza.
—Sim? -disse com secura-. Quem é você?
Emily se ergueu.
—A nova criada, senhora Crawford. A senhora Melrose me há dito que me diria onde vou dormir.
—Dormir! Às quatro da tarde, jovem? Direi-te onde pode deixar sua bagagem! E a levarei a lavanderia, onde Joan lhe dará sua prancha e sua tábua de engomar.-Parece-me que Edith está ali sentada, há uns dias anda indisposta. Terá que conhecer Nora, a copeira, e há também Libby, a criada do piso superior, e Bertha, a criada do andar térreo, e Fanny! E o senhor Redditch, claro está, o mordomo, mas pouco terá você que ver com ele, nem com o John, o lacaio, que acompanha o senhor York, nem com o Albert, o moço.
—Sim, senhora Crawford.
—E conhecerá também a Mary, a ajudante de cozinha, e a Prim, a criada. Bem, isso é tudo. O pessoal de exterior, cavalariços e coisas assim, não são de sua incumbência. E não tem por que tratar com ninguém de fora da casa a menos que a senhora York envie um recado. Os domingos pela manhã poderá sair para ir a missa. Comerá no salão da criadagem, com o resto de nós.-Espero que lhe sirva esse vestido. -Olhou-o sem agrado.-Terá toucas e aventais, suponho? Dou-o por sentado. Se a senhorita Veronica quiser que troque isso, ela lhe dirá. Espero não ter que recordar-lhe que não quero pretendentes, nem cavalheiros que lhe rondem, a não ser que tenha pai ou irmãos, em cujo caso, com a devida permissão, suponho que lhes permitirá que venham vê-la, há horas convenientes.
—Obrigada, senhora. -Emily podia sentir como se estreitavam as paredes a seu redor como se fosse uma prisioneira. Nem visitantes, nem admiradores, tão somente meia jornada livre cada quinze dias! Como ia manter se em contato com o Charlotte e Jack?
—Bom, não fique aí, moça! -A mulher ficou de pé e alisou o avental com brusquidão, no meio do ruído ao entre chocar se das chaves que tinha penduradas na cintura. Precedeu-a fora da estadia, deslocando-se como um pequeno roedor com passos ativos e impulsivos. Na lavanderia o tocou e retocou tudo, mostrou a Emily as caldeiras para escaldar a roupa branca, os baldes do sabão, o amido, as pranchas de engomar, e os varais para estender a roupa, sem deixar um momento de estalar a língua para queixar-se pela ausência de Joan.
No piso superior lhe mostrou o dormitório de Veronica York. Era de cor verde clara e branca com toques de amarelo, como o campo na primavera, e no toucador tinha armários cheios de roupa, toda ela muito elegante e de alta qualidade -embora nada de tonalidade rosada, muito menos de cor cereja. Mais acima, no piso dos criados, conduziu-a até um pequeno aposento que ocuparia uma quinta parte do tamanho da que tinha em sua própria casa, sem mobiliário algum, salvo um armação de cama com um colchão de algodão, mantas cinza e um travesseiro; uma pequena despensa e uma mesa com uma bacia em cima, sem jarro. debaixo da cama havia um urinol de porcelana branca comum. O teto tinha tal inclinação que só podia estar completamente erguida na metade do quarto, e a janela da água-furtada tinha cortinas lisas de cor marrom. O linóleo do chão era frio ao tato como o gelo e junto à cama havia uma pequena esteira puída. Sentiu que lhe dava um tombo o coração. Tudo estava limpo e frio e era imensamente triste comparado com sua casa. Quantas moças teriam permanecido de pé em portas similares, com lágrimas nos olhos, sabendo que não havia escapatória e que aquilo era o melhor que podiam esperar?
—Obrigada, senhora Crawford -disse com voz rouca.
—Albert lhe deixou aí o baú, desfaça-o e quando chamar a senhorita Veronica - disse apontando para a campainha que Emily não tinha percebido até então,-desça e a veste para o jantar. Agora está fora de casa, senão eu a teria apresentado ante ela.
—Sim, senhora Crawford.
E ao cabo de um segundo ficou sozinha. Aquilo era horrível. Tudo o que tinha era um baú de roupa, uma estreita cama mais dura que um banco de pedra, três mantas para esquentar-se, e não havia nem fogo na lareira, nem mais água que a que ela mesma pudesse trazer naquela bacia, nem mais luz que a que podia lhe dar uma vela que havia em um descascado candelabro de esmalte. E estava à disposição de uma mulher a que nem sequer conhecia. Jack tinha razão: devia ter perdido o juízo! Se ao menos ele o tivesse proibido, se tia Vespasia lhe tivesse rogado que não o fizesse! Mas a Jack não preocupava a solidão que ela pudesse sentir, nem o chão nu, nem o urinol, nem o asseio integral em uma bacia com água, nem a obediência a uma campainha. Sentia-se temor era porque alguém tinha cometido um assassinato -se não dois e Emily era uma intrusa que tinha vindo para averiguar quem era o assassino e apanhá-lo.
Sentou-se na cama com as pernas tremendo. As molas rangeram. Tinha frio e lhe doía o pescoço pelo esforço para não chorar. Estou aqui para descobrir a um assassino, disse-se. Robert York foi assassinado... À Dulcie jogaram por uma janela porque viu uma mulher vestida de cor cereja e o disse ao Thomas. Esta casa esconde algo terrível e eu vou averiguar do que se trata. Milhares, dezenas de milhares de garotas em todo o país vivem como eu agora. Se elas podem suportar, eu também. Não sou nenhuma covarde. Não vou sair correndo só porque as coisas tenham um aspecto ameaçador, e muito menos porque sejam desagradáveis. Não vão derrotar-me antes sequer de começar!
Às cinco e meia soou a campainha e, depois de ajustar a touca diante do pedaço de espelho que havia na cornija da lareira e de segurar o avental, Emily desceu ao piso de baixo para conhecer a Veronica York, com a vela na mão. No patamar do primeiro piso bateu na porta do dormitório e uma voz lhe disse que entrasse. Ao fazê-lo não olhou o quarto, já o tinha visto antes e não queria parecer curiosa. Além disso, seu verdadeiro interesse radicava na própria Veronica.
—Sim, senhora?
Veronica estava sentada na cadeira do toucador, com um robe branco atado pela cintura, com sua negra cabeleira caindo solta costas abaixo como tiras de cetim. Tinha a tez pálida mas os ossos do rosto configuravam formosas feições, com os olhos grandes e escuros como água de turfa. Naquele momento sua delicada cútis parecia azulada em torno do magro nariz e através das maçãs do rosto, e, definitivamente, era muito magra para a moda em uso. Necessitaria anquinhas para avultar um pouco aqueles estreitos quadris, e algo de cheio para que aquele peito parecesse mais formado. Mas Emily teve que admitir que era uma mulher bela, com as qualidades de delicadeza e caráter que fazem que sua imagem permaneça na mente muito mais tempo que a mera regularidade na disposição dos traços.
Havia paixão naquele rosto, e inteligência.
—Eu sou Amelia, senhora. A senhora York me deu o emprego esta tarde.
Veronica sorriu de repente e recuperou toda sua cor. Era como se um quarto cinza se iluminasse.
—Sim, sei. Espero que goste de estar aqui, Amelia. Está a gosto?
—Sim, obrigada, senhora. -Emily mentiu com coragem. O que lhe tinha proporcionado era tudo o que uma criada podia esperar-. ira vestir se para o jantar, senhora?
—Sim, por favor. O vestido azul, acho que Edith o guardou no primeiro armário.
—Sim, senhora. -Emily cruzou o quarto e voltou com um vestido de veludo e tafetá azul marinho, com o corte baixo e as mangas sanfonadas. Levou-lhe alguns momentos para achar as anáguas adequadas e levá-las a sua proprietária.
—Sim, isso, obrigada.
—Quer que lhe arrume o cabelo antes de lhe pôr o vestido, senhora? Assim era ao menos como se vestia Emily: era tão fácil que caísse sobre o vestido um cabelo ou um alfinete, uma mancha de pós ou uma gota de perfume.
—Sim. -Continuou sentada enquanto Emily pegava a escova e abrilhantava logo o longo e fino cabelo com um lenço de seda. Era adorável: espesso e escuro como um mar sem lua. Teria olhado Jack com similar admiração? Afastou aquela ideia de sua mente. Não era o momento de atormentar-se com o ciúmes.
—Talvez ache que o trabalho está um pouco atrasado -disse Veronica, interrompendo seus pensamentos. Emily viu como esticava os ombros e se marcavam seus músculos na nuca. - Receio que minha anterior criada sofreu um... terrível acidente.
Emily ficou com o braço imóvel no ar, com o pente na mão.
—Oh. -Fingiu ignorância. Nenhum dos criados o havia dito, e o tipo de pessoa que pretendia ser jamais teria lido algo sobre o "acidente”.-Sinto muito, senhora. Deve lhe ter sido uma contrariedade - fez-se muito dano?
A resposta foi pronunciada com bastante tranquilidade.
—Receio que a mataram, caiu por uma janela. Não se preocupe, não foi do quarto em que está você.
Emily viu no espelho os olhos de Veronica posados nela. Pôs uma expressão de surpresa e simpatia, consciente de que devia ter bom cuidado em não exagerar.
—Oh, isso é terrível, senhora! Pobre criatura. Bom, terei muito cuidado. De qualquer forma eu não gosto das alturas, nunca gostei. -ficou a enrolar o cabelo de Veronica e a prendê-lo com grampos, retirando o das têmporas. Em qualquer outro momento teria gostado da tarefa, mas agora estava nervosa. Devia parecer muito perita, outros tinham que acreditar que aquela era sua profissão.
—Como aconteceu, senhora? -Perguntar era o mais natural.
Veronica estremeceu.
—Não sei. Ninguém sabe. Ninguém viu como aconteceu.
—Ocorreu de noite?
—Não; de tarde. Estávamos jantando.
—Que espantoso para vocês -disse Emily, esperando soar mais a compaixão que a curiosidade.
—Espero que não tivessem convidados, senhora.
—Sim os tínhamos, mas por fortuna se foram antes.
Emily não se arriscou a ir mais à frente. Seria-lhe possível averiguar por algum dos outros criados quem eram aqueles convidados, embora estivesse disposta a apostar a que um deles era Julian Danver.
—Que momento tão terrível passaram. -Enrolou a última mecha de cabelo e o prendeu com alfinetes.-Se sente confortável, senhora?
Veronica voltou à cabeça frente ao espelho para um lado e logo para o outro.
—Fez isso muito bem, Amelia. Não é como costumo levá-lo, mas acredito que assim está melhor.
Emily sentiu um grande alívio.
—Oh, obrigado, senhora.
Veronica ficou de pé e Emily a ajudou a vestir as anáguas e o vestido. Verônica tinha na verdade um aspecto magnífico, mas Emily não estava de todo segura se um elogio seria considerado uma familiaridade. Decidiu guardar silêncio. Além de tudo, a opinião de uma criada pouco importava.
Ouviu-se um golpe seco na porta e, antes que Veronica pudesse dizer "entre", entrou Loretta York, elegante com seu vestido de seda lavanda com bordados negros e prateados, olhando de cima abaixo a Veronica com ar crítico. Não pareceu sequer ver Emily.
—Está pálida. Por amor de Deus, tem que se sobrepor, querida. Temos um dever que cumprir. A família merece o melhor de nossa cortesia, assim como os convidados. Seu sogro conta conosco. Ninguém deseja que pense que nos desmoronamos por culpa de uma tragédia doméstica. Já tem bastante com suas próprias preocupações. O que acontece dentro de casa é nosso assunto, e devemos protegê-lo de toda perturbação. Um homem tem direito a um lar tranquilo e em ordem. -Olhou o cabelo da Veronica com atenção.-A gente morre! A morte é o fim inevitável da vida, e você não é uma insignificante burguesa que se entregue aos desmaios à primeira aflição. Agora põe um pouco de ruge no rosto e venha para baixo comigo.
O corpo de Veronica ficou rígido, enquanto esticava sua azulada tez e a linha da mandíbula se endurecia e se fazia mais angulosa.
—Pus o mesmo ruge de sempre, mamãe. Não quero parecer com febre.
O rosto da Loretta se retesou.
—Só penso em seu bem-estar, Veronica -disse com frieza.-Na cabeça não tenho mais que o bem para si, como você mesma perceberá se lançar à vista atrás.
As palavras estavam cheias de sensatez, até de amabilidade, mas a voz era cortante como a folha de uma navalha.
Veronica ficou mais pálida ainda e disse com dificuldade:
—Sou consciente disso, mamãe.
Emily tinha ficado de pedra. A emoção era tão intensa que podia sentir a flor da pele. E em troca o assunto de conversa era tão leve!
—Às vezes me pergunto o que vai pela cabeça. Quero que seu futuro seja de felicidade e segurança, querida. Nunca o esqueça.
Veronica estremeceu, engolindo saliva com dificuldade.
—Nunca esquecerei o que você faz por mim -sussurrou.
—Eu sempre estarei aqui, querida -prometeu Loretta; ou era mais uma ameaça velada, em meio da imobilidade sufocante daquele quarto. -Sempre. -E então, ao ver pela extremidade do olho a paralisada silhueta de Emily:-E você o que está olhando, mocinha? -perguntou. Sua voz caiu como uma bofetada inesperada. -Coloque-se em seus assuntos!
Emily se sobressaltou e o robe de Veronica lhe caiu das mãos ao chão. agachou-se e o recolheu com estupidez, com os dedos duros.
—Sim, senhora!
Saiu do quarto virtualmente correndo, com o rosto ardendo de rubor pela frustração e vergonha de ter sido surpreendida escutando. As palavras utilizadas tinham sido muito comuns, qualquer mãe e nora poderiam tê-las trocado, mas não tinham sido pronunciadas em uma atmosfera de leveza e desenvoltura, mas sim foram carregadas de múltiplo sentido. E Emily sentiu com uma descarga elétrica que a percorria sob a pele que, por debaixo de tudo aquilo, havia um ódio imenso.
Emily comeu pela primeira vez em Hanover Close no refeitório da criadagem, sentada a uma grande mesa presidida pelo Redditch, o mordomo. Tinha quarenta e tantos anos e era um pouco pomposo, mas seu rosto tinha um ar de ligeira surpresa tão inofensivo que não pôde desgostá-la.
Era servido tarde o jantar no salão refeitório, tinham-na achado satisfatória e se recolheu à mesa. A pia estava cheia de pratos sujos. Em um extremo da mesa se sentava à cozinheira, sempre solícita; mas isso era porque Emily era uma recém chegada, e não havia dúvida de que os cuidados maternais se converteriam com rapidez em disciplina maternal no momento a que Emily falasse quando não lhe correspondia ou faltasse a seu dever. A senhora Crawford, a governanta, ia vestida de vestido negro com uma imaculada touca de renda, mais elaborada que a que tinha usado aquela mesma tarde e que lhe dava uma maior dignidade. Era evidente que se considerava superior em qualquer outro lugar da casa e que só aqui tolerava a supremacia da cozinheira pelo fato de que a senhora Melrose estava imediatamente implicada na preparação da comida. Ao longo da conversa a senhora Crawford se limitou a fazer pequenas intervenções que serviam para recordar sua classe.
Edith, a outra criada pessoal, sentia-se aparentemente suficientemente recuperada para sentar-se à mesa com outros. Teria entre trinta e quarenta anos, era gordinha e áspera. Seu cabelo conservava ainda o brilho mas sua compleição camponesa se via empobrecida pelas duas décadas da fuligem e a névoa de Londres e pela falta de ar sadio. Qualquer que fosse a natureza de sua indisposição, e embora não parecesse muito contente com a comida, conseguiu comer tudo e repetir o pão, queijo e embutidos, que era tudo o que a mesa oferecia, já que o prato principal acabara na comida do meio-dia. Emily teve a aguda suspeita de que Edith era mais preguiçosa que fraca de saúde, por isso se propôs averiguar por que a autoritária senhora York o permitia.
Passou o que restava da noite no salão da criadagem, escutando fragmentos de conversas e inteirando-se de tudo o que pôde, que foi bastante pouco já que todos falavam sobre tudo de seus próprios assuntos, de questões domésticas, dos homens de negócios e seus enganos e da decadência geral do caráter nacional de que davam mostras os criados de outros e dos modelos de vida doméstica em geral.
Edith tinha se sentado junto ao fogo e costurava uma camisa. O mistério de que estivesse ali empregada ficou solucionado: era uma costureira excelente. Podia ser folgazona e ter pouca graça, mas tinha talento em suas mãos. A agulha aparecia e desaparecia, conduzindo a brilhante seda em suas idas e vindas, enquanto as flores tomavam forma sob sua mão, delicada como a malha de gaze e perfeitamente proporcionadas. Emily, que observava seu trabalho, comprovou que o avesso era virtualmente indistinguível do direito . Por seu aspecto, bem podia esperar-se de Edith que a tivessem destinado aos trabalhos mais humildes, e tivesse tido que fazê-los sem pigarrear, do contrário a teriam substituído por outra. Garotas que se prestassem a fazer-se de mensageiras havia aos montões da mecanização e o consequente desaparecimento de centenas de ofícios domésticos. As ocupações tradicionais das mulheres tinham deixado de existir. Dezenas de milhares delas abandonavam o campo para somar-se ao serviço doméstico, a maioria sem nada que oferecer mais que sua boa vontade e a necessidade de subsistência. As garotas que sabiam costurar como Edith valiam seu peso em ouro.Era uma lição a ter em conta.
À Fanny, a aprendiz, que só tinha doze anos, mandaram-na à cama as nove e meia, para que pudesse levantar-se as cinco para limpar as lareiras e polir os metais. Foi com uma recriminação pouco convincente, expressa mais por costume que com a esperança de um indulto, e Prim, a criada, seguiu há quinze minutos mais tarde, por razões similares e com similar recriminação.
—Vamos! -disse a governanta com aspereza-. Depressa! Para cima a dormir, jovem, se não levantará tarde amanhã.
—Sim, senhora Crawford. boa noite. boa noite, senhor Redditch.
—Boa noite -se escutou a automática resposta.
—Ouvi que amanhã há jantar de gala... Virão muitos convidados? -perguntou Emily com toda a indiferença de que foi capaz.
—Vinte -respondeu Nora-. Não se costumam fazer muitas festas aqui, mas costuma vir gente importante. -Soou um pouco na defensiva. Olhava a Emily com frieza, disposta a responder a qualquer comentário que lhe fizesse.
—Antes se faziam mais festas -disse Mary, levantando a vista do cerzido que estava fazendo-. antes que matassem ao senhor Robert.
—Já está bem, Mary! -apressou-se a dizer a cozinheira-. Aqui ninguém gosta de falar dessas coisas. vai conseguir que as garotas voltem a ter pesadelos! Emily, deliberadamente, não interpretou bem aquele diálogo.
—Eu adoro as festas. eu adoro ver as damas tão bem vestidas.
—Basta já de festas! -disse a governanta, mal-humorada.-E basta de falar da morte. Você não podia saber, Amelia, mas o senhor Robert morreu em terríveis circunstâncias. Recomendo-lhe que mantenha a boca fechada sobre esse assunto. Se for por aí com intrigas e inquietando as pessoas, não achará lugar nesta casa nem levará boa reputação daqui! Agora sobe ao piso de cima e prepara as coisas da senhorita Veronica para a noite, e se assegure de que tem tudo preparado para amanhã. Às nove e meia pode descer outra vez para tomar chocolate.
Emily permanecia sentada sem mover-se, enquanto notava como ficava de mau gênio. Cruzou um olhar com a governanta e viu aparecer à surpresa nos olhos desta. As criadas não questionavam suas ordens, e menos as criadas recém chegadas. Tinha cometido seu primeiro engano.
—Sim, senhora Crawford -disse com gravidade, com uma voz rouca de ira, tanto por ela mesma como por ter sido chamada à obediência.
—Uma presunçosa -disse a senhora Crawford enquanto Emily saía pela porta.
—Recorde minhas palavras, senhora Melrose: uma presunçosa! Vi-o em seus olhos, e na forma de caminhar que tem, com esses ares. Desta não vai sair nada bom...-Tenho certeza!
A primeira noite de Emily em Hanover Close foi espantosa. A cama era dura e as mantas finas. Ela estava acostumada a um fogo e um edredom de penas, e a grossas cortinas de veludo nas janelas. Aquelas cortinas eram de pano comum e podia ouvir a chuva açoitando o vidro enquanto na tenebrosa escuridão do exterior não se solidificava e se convertia em neve. Então tudo era silêncio, em meio de um frio denso, estranho e penetrante. juntou os joelhos mas não pôde reunir o calor suficiente para conciliar o sono. Levantou-se por fim, a atmosfera era tão rude que o contato do vestido na pele a fez estremecer. Moveu os braços com brusquidão, mas os tinha muito tensos para esquentar-se com eles, assim pôs sua toalha sobre a cama e a esteira do chão em cima da mesma, e voltou a esticar-se.
Desta vez dormiu, mas lhe pareceu que tinha passado apenas um instante até que ouviu uma batida seca na porta e apareceu o pequeno rosto pálido da aprendiz.
—É hora de levantar-se, senhorita Amelia.
Por um momento Emily não entendeu onde demônios se achava. Fazia frio o quarto era sério. Viu a armação da cama de ferro e um montão de lençóis cinzas e um tapete cobrindo seu corpo. As cortinas estavam ainda fechadas. Então, com uma pontada de tristeza recordou tudo, aquela absurda situação em que se colocara ela própria. Fanny não deixava de olhá-la.
—Tem frio, senhorita Amelia?
—Estou congelada -reconheceu Emily.
—Direi a Joan. Conseguirá-lhe outra manta. Agora é melhor que se levante. São quase sete e tem que arrumar-se você primeiro e depois fazer o chá à senhorita Veronica e levar-lhe e preparar o banho dela. Normalmente gosta de levantar-se às oito. E se por acaso ninguém o disse, Edith certamente dormirá até tarde e terá você que preparar também o chá de senhora York e talvez o banho. Emily afastou as mantas e se levantou com decisão, enquanto lhe tremia todo o corpo. O chão sem o tapete parecia o puro gelo.
—Edith costuma escapulir-se frequentemente? -perguntou enquanto tocavam-lhe castanholas os dentes. Abriu as cortinas para deixar entrar a luz do dia.
—Oh, sim -respondeu Fanny com despreocupação.-Dulcie sempre tinha que fazer parte de seu trabalho, como suponho que você fará também, se é que fica. É melhor assim. Além disso, se a senhorita Veronica estiver contente com você, o mais certo é que a leve com ela quando se casar com o senhor Danver, e então estará bem. -Sorriu e dirigiu os olhos para o alto para olhar o céu cinza através da janela. -Talvez conheça você alguém encantador, bonito e amável, com sua loja própria, talvez, e se apaixona por ele... -Deixou o pensamento pendendo, belo e brilhante como uma bola de sabão, muito precioso para tocá-lo.
Os olhos de Emily se umedeceram de lágrimas. deu a volta, mas tinha muito frio para deixar de vestir-se e ficar a falar, além de que o tempo urgia.
—A senhorita Veronica vai se casar? Que emocionante. Como é esse senhor Danver? Suponho que será bom partido.
Fanny deixou voar o sonho e voltou para a realidade.
—Céus, senhorita Amelia, não sei! Nora diz que o é, mas o que vai dizer ela! -Tem bom olho para os cavalheiros, isso sim. Mamãe costumava dizer que todas as criadas o têm. Imagina a todas igual.
—Como era o senhor Robert? -Emily vestiu o avental e pegou uma escova para desembaraçar o cabelo e recolhê-lo.
—Não sei, senhorita. Morreu antes que eu entrasse aqui.
—Claro... Só tinha doze anos, assim devia ter nove quando Robert York foi assassinado. Pergunta estúpida.
Fanny não se desalentava com facilidade. -Mary diz que tinha muito boa aparência e que era um autêntico cavalheiro. Nunca tratou de enrolá-la, como fazem alguns cavalheiros, e falava como os anjos. Gostava das coisas finas, vestia-se com gosto, mas não era grosseiro. A verdade é que ela diz que era o melhor cavalheiro que jamais viu. Tinha-o em um pedestal. Claro que suponho que ouviria tudo dos criados da parte dianteira, porque ela então era a criada. Estava entregue a Veronica, e ela a ele. -Suspirou e olhou para baixo do seu vestido cinza de simples pano-. Que coisa tão triste, morrer assassinado daquela maneira, lhe rompeu o coração. Chorou o inexprimível, pobrezinha. -Eu acredito que deveriam ter prendido quem o fez, mas ninguém o pegou.
—Aspirou com força.-Eu gostaria de achar alguém que me amasse assim -disse, e voltou a aspirar. Era uma criatura realista e em seu foro interno sabia que isso seria sempre uma fantasia, mas uma fantasia preciosa.
Ocupada todo o santo dia pelos aspectos mais práticos, precisava abandonar-se por um momento e deixar voar o pensamento. Até a mais remota possibilidade era imensamente apreciada. Emily pensou no George com uma vives que fazia meses tinha aprendido a desprezar. Um ano atrás sua vida parecia tão segura, e agora em troca estava ali, tiritando de frio em um apartamento de cobertura às sete da manhã, vestida de áspero pano azul e escutando os sonhos de uma aprendiz de doze anos.
—Sim! -disse com franqueza, isso seria o mais bonito que se pode imaginar. Mas não renuncie a isso pensando que isso só acontece com as senhoras. Algumas delas também choram por seus sonhos, você não sabe tudo o que acontece. E há pessoas que você jamais o diria e que encontra a felicidade. Não se renda, Fanny. Não deve te render.
Fanny enxugou o nariz com um trapo que tirou do bolso do avental.
—Você é diferente, senhorita. É melhor que a senhora Crawford não a ouça
dizer essas coisas. Não gosta das garotas que têm ideias próprias. Diz que é mau para elas: que só são causa de inquietações e problemas. Diz que a felicidade provém de saber qual é seu lugar e não sair dele. -Tenho certeza que o diz -disse Emily. jogou-se água fria da bacia no rosto e pegou a toalha da cama para secar-se. Raspou-lhe na pele, mas ao menos o toque ativou-lhe a circulação sanguínea.
—Tenho que ir -disse Fanny voltando-se para a porta. Não fiz mais que a metade das lareiras, e Bertha quererá que a ajude com as folhas de chá.
—As folhas de chá? -Emily não entendia o que era que queria dizer.
—No tapete! -Fanny a olhava fixamente. As folhas de chá que terá que limpar do tapete antes que desçam o senhor e a senhora! Terei-me isso com a senhora Crawford se não o fizer! -E com uma nota de autêntico medo na voz se escapou.
Emily ouviu seus rápidos pés correr pelo corredor sem carpete e descer as escadas.
O dia foi uma sucessão de tarefas. Emily o começou cortando finas fatias de pão e manteiga e levando-as em uma bandeja a Veronica, retirando as cortinas e perguntando como queria sua senhora o banho e que roupa queria usar. Depois, ao fazer o mesmo para a Loretta, havia-se sentido de repente estupidamente nervosa. Tinham-lhe tremido os dedos e quase derrama o chá. A xícara tinha titubeado e por um momento pensou que a derrubaria. A cortina se enganchara e teve que puxá-la com força enquanto lhe dava um tombo o coração e se formavam em sua mente a imagem da galeria caindo a cima. Havia sentido os olhos de Loretta lhe perfurando as costas. Mas ao voltar-se, Loretta se ocupava em passar manteiga no pão, sem demonstrar o menor interesse no que pudesse estar fazendo ela.
—Quer que lhe prepare o banho, senhora? -perguntou.
—Certamente. -Loretta não levantou a vista.-Edith me tirou já o vestido para a manhã. Pode voltar dentro de vinte minutos.
—Sim, senhora -disse, e se retirou assim que pôde.
Quando ambas as damas se banharam e estiveram vestidas, Edith se dignou fazer ato de presença, de modo que Emily só teve que pentear a Veronica, depois do que lhe permitiu que descesse a toda pressa à cozinha para tomar seu intermitente café da manhã. Depois lhe pediram que voltasse acima para ajudar a Libby, a criada do piso superior, a limpar os quartos. Devia ventilá-las, mas antes deveria deitar os espelhos para que a corrente de ar não pudesse derrubá-los e quebrá-los. Depois, no meio do gélido vento que entrava através das janelas abertas, foram dando a volta aos colchões, cavaram-nos pelo centro e se ajoelharam diante dos que eram de penas para sacudi-los com o punho fechado até deixá-los mais esponjosos que um suflê. Finalmente fizeram as camas. Os tapetes deviam ser enrolados e levados para baixo para sacudi-los só uma vez cada quinze dias, e graças a Deus não tocava aquele dia. Desta vez se limitaram a varrê-los, tirar o pó de todas as superfícies, esvaziar e lavar todas as bacias e urinóis e a limpar os banhos a fundo e trocar as toalhas.
Quando acabaram Emily se sentia cansada e suja; o cabelo lhe tinha ido soltando dos grampos. A senhora Crawford a parou nas escadas e lhe disse que parecia uma calamidade e que valia mais que se arrumasse um pouco melhor se quisesse continuar ali. Emily estava a ponto de replicar que se ela estivesse a dar golpes também estaria agora um pouco desalinhada, quando viu no piso de baixo Veronica. Pálida e tensa de rosto, afastava-se a passo rápido de Loretta e do mordomo com os jornais da manhã recém entregues, e cruzava o vestíbulo em direção à sala de refeições.
—Sim, senhora Crawford -disse Emily com docilidade, recordando por que estava ali.
Estava tão sedenta que notava a boca seca, e tinha as costas dolorida de tanto agachar-se e levantar-se. Mas não ia permitir que nenhuma governanta a derrotasse! Aquele era o único lugar onde podia descobrir quem tinha assassinado ao Robert York e por que, e quem tinha empurrado a pobre Dulcie pela janela e a tinha matado. Tinha aprendido já muito mais coisas a respeito de como eram aquelas duas mulheres do que teria podido saber em um mês de visitas sociais. Era Loretta, e não Veronica, quem dormia entre lençóis lisos de cor rosa nacarada com as capas dos travesseiros bordados de sedas de cores. Ou Veronica estava contente com o linho, ou não lhe tinham dado outra possibilidade. Era Loretta que usava cremes caros e perfumes intensos engarrafados em frascos de cristal e do Lalique com rolhas de filigrana de prata. Veronica tinha uma maior beleza natural, com sua pequena estatura e sua graça e aqueles olhos perturbadores. Mas era Loretta a que mostrava-se mais feminina e elegante. preocupava-se com os detalhes do cuidado pessoal: o perfume nos lenços e as anáguas para deixar um aroma no ar a sua passagem, ou o tafetá para fazer um ruído sussurrante ao caminhar, o grande número de pares de botas e sapatilhas para poder combiná-las adequadamente com cada vestido e mostrá-las fugazmente por debaixo da saia. Não pensava Veronica nessa classe de coisas, ou evitava-as com sutileza? Havia alguma razão que explicasse uma diferença que Emily ainda não compreendia?
Era evidente que havia um forte vínculo emocional entre as duas mulheres, embora a Emily escapasse ainda qual era sua natureza exata. Loretta aparentava ser uma mulher protetora que custodiava à outra mulher, mais jovem e aparentemente mais frágil, dos rigores da viuvez, embora ao mesmo tempo tinha muito pouca paciência e era altamente crítica. E Veronica guardava algum tipo de ressentimento por sua sogra, embora parecesse ao mesmo tempo depender dela em grande medida.
Quando se trocaram para o almoço depois do passeio matutino, Emily estava ocupada com os casacos úmidos e as saias sujas, levava-as no ombro daqui para lá para secá-las, escová-las, arejá-las e dobrá-las; e tinha que encarregar-se da roupa das duas mulheres, por quanto Edith havia tornado a desaparecer. Ouviu uma abrupta conversa entre Veronica e Loretta, durante a qual a voz daquela subiu de tom e a segunda guardou um tranquilo e frio silêncio a modo do que parecia ser uma advertência. Emily tratou de continuar escutando, mas justo quando estava a ponto de agachar-se para o olho da fechadura, chegou à criada do piso superior e se viu obrigada a continuar com seus afazeres.
No almoço no salão dos criados onde servia a refeição, Emily, a que pilharam em falta ao chamá-la com a palavra equivocada, recebeu um curioso olhar da cozinheira.
—Você se considera do piso superior, não é, senhorita? -disse-lhe a governanta com aspereza.
—Bom, pois aqui embaixo não tem por que se dar esses ares, e será melhor que o recorde! É exatamente igual ao resto das criadas. De fato nem sequer é tão boa como elas então não o demonstre.
—Oh! talvez algum cavalheiro conhecido da senhorita Veronica se apaixona por ela e a converta em duquesa! -disse Nora com cara de desprezo.Só que precisaria ser copeira para conhecer algum duque, e lhe falta formosura para isso. Para começar, não é bastante alta. Nem tem tampouco muito boa cor.
—Está bem pálida!
—Tampouco acredito que haja em circulação duques para todas –replicou Emily, assim até as criadas terão que esperar que todas as damas estejam servidas!
—Bom, mas tenho mais oportunidades que você! -respondeu Nora, ao menos eu conheço meu trabalho, não preciso ter uma aprendiz que me ensine como fazê-lo!
—Duquesa! -exclamou Edith com um risinho-. Esse nome vai que nem pintado, passeia-se por aí movendo a cabeça como se levasse uma tiara e tivesse medo de que lhe caísse no nariz. -Fez uma zombadora inclinação-. Não sacuda tanto a cabeça, sua alteza!
—Já está bem! -disse o mordomo com desaprovação.Esta manhã tem feito a maior parte de seu trabalho. Deveriam lhe estar agradecidas! Isso não foi muito bonito de sua parte.
—Edith estava atarefada cerzindo, e não se encontra muito bem. A governanta olhou a Redditch com irritação, de um modo que teria feito calar a qualquer um que não tivesse sido um mordomo.
—Não tem por que censurá-la. -Edith é uma ociosa, e não continuaria aqui se não fosse a melhor costureira da cidade -respondeu Redditch com rapidez, mas aquela réplica perdeu parte de sua mordacidade pelo ar de cautela que adotou ao artigo seguido.
—Agradecerei-lhe que se ocupe de suas próprias responsabilidades, senhor Redditch. As criadas são minha coisa e me ocuparei delas a minha maneira, que se ajusta bastante bem com a da senhora York.
—Muito bem, senhora Crawford, certamente comigo não vai ver como as garotas rebaixam-se mutuamente e riem umas das outras, e se voltar a ouvir algo parecido alguma levará uma séria advertência.
Aquilo pareceu resolver a questão de forma momentânea, mas Emily soube ao contemplar seus rostos que traçaram as linhas para a batalha e que nenhum deles esqueceria o que se havia dito, declararam-se suas inimizades tanto Edith como Nora, e de agora em diante faria muito feliz à governanta se deixasse que a surpreendesse em alguma falha. Se quiser sobreviver, teria que cultivar a avaliação do mordomo até que a mesma posição dela se convertesse para ele também em uma questão de orgulho.
A tarde foi calamitosa. Emily tinha fiscalizado o trabalho de sua própria criada muitas vezes e imaginou que conhecia suas obrigações, mas vigiar como outra dirigia a prancha com as roupas de renda enrugadas era uma empreitada muito diferente de fazê-lo ela mesma, e era mais difícil do que acreditava. A única boa noticia foi que não chamuscou nada, assim foi possível que Joan viesse resgatá-la, o que teve como resultado ficar em dívida com Joan. Emily não tinha parado em toda à tarde, nem sequer para tomar uma xícara de chá, e por fim subiu ao piso de cima às cinco e meia, exausta, com a cabeça a ponto de estalar, as costas doloridas e os pés com arranhões pelo uso de umas botas que não eram as suas, e com o tempo justo para ajudar Veronica a trocar-se para o jantar de gala.
Depois de ter recebido várias visitas para tomar o chá, Veronica parecia também cansada e mais nervosa do que previsível. Ela não era a anfitriã, a responsabilidade no êxito do jantar recaía em sua sogra, de modo que ela só tinha que mostrar-se encantadora. Entretanto, trocou de parecer três vezes na hora de escolher vestido, mostrou-se insatisfeita com seu penteado e quando Emily o tinha desfeito de tudo e voltado a fazer, continuava sem estar segura, ficou diante do espelho e franziu o sobrecenho ante sua imagem refletida.
Emily estava exausta, com a mente cheia de pensamentos referentes à quão egoísta era aquela mulher. Em todo o dia não tinha feito nada mais que receber visitas, comer e conversar, enquanto que Emily tinha trabalhado como uma escrava, sem poder parar sequer para tomar o chá da tarde, e a tinham criticado e zombado dela, e depois disso tudo o que Veronica era capaz de pensar era em lhe dizer que desfizesse-lhe uma vez mais o penteado e o refizesse pela terceira vez.
—Ficava muito bem a primeira vez, senhora.-Emily mal podia controlar seu tom de voz.
Veronica pegou o frasco de perfume e o escorreu entre os dedos, derramando o perfume na dianteira da saia.
Emily se poria a chorar. Agora deveria lhe trocar tudo, não havia mais alternativa. E para cúmulo não sabia como tirar a mancha e teria que perguntar à Edith, que se gabaria de sua ignorância, o diria quase com toda segurança à senhora Crawford e com grande probabilidade ao resto do pessoal. Não se atreveu a dizer nada. Só quando estava no quarto roupeiro escolhendo um quarto vestido se deu conta de que ela tampouco estava acostumada prestar mais atenção aos sentimentos de sua própria criada do que o fazia Veronica agora.
De volta ao dormitório com o vestido novo, viu Veronica sentada na cama, com anáguas e camisa, com a cabeça encurvada e o cabelo caindo para frente. Parecia muito frágil, com os ombros quase infantis, e dolorosamente vulnerável. Era um momento muito íntimo. Tinha visto alguma vez alguém naquela situação, sem seu encanto pessoal nem sua confiança em si mesmo? Emily teve vontade de rodeá-la com os braços, de tão amargamente só como parecia. Ela também vivia uma viuvez com a sombra do assassinato. Mas sabia que aquilo era impossível. estendia-se um abismo entre elas, ao menos do lado de Veronica.
—Não se encontra você bem, senhora? -disse com amabilidade-. Posso lhe trazer uma infusão, se quiser. Adorável como é, ninguém se importará que se atrase um ou dois minutos. Desça depois das outras damas e arme um pouco de revoo!
Veronica levantou a vista e Emily ficou surpreendida ao ver gratidão em seu rosto. Esboçou um ligeiro sorriso.
—Obrigado, Amelia. Sim, fará-me bem uma infusão. Tomarei enquanto me penteia.
Emily demorou cinco minutos em identificar os ingredientes disponíveis e selecionar um sedativo camomila, e esperou outros três a que fervesse a água, operação depois da qual tinha que subir de novo as ervas ao primeiro piso. No vestíbulo se encontrou com a governanta.
—O que está fazendo aqui embaixo, Amelia?
—Cumpro um encargo da senhora York -respondeu com aspereza, enquanto recolhia a saia para passar junto ao poste das escadas, que começou a subir sem olhar atrás.
A senhora Crawford soprou e lhe advertiu com voz apagada:
—Já nos encarregaremos de você, senhorita! -Mas agora não tinha tempo a perder com aquilo.
Veronica a recebeu com gosto e sorveu da infusão como se de verdade fosse um restaurador de vida. Não pôs reparos quando Emily a penteou como a primeira vez e a ajudou com a quarta escolha de vestido, um de tafetá negro com miçangas. Era muito exagerado, e em uma mulher não tão bela como Veronica teria sido excessivo.
—Tem um aspecto maravilhoso, senhora -disse Emily com sinceridade-.
Nenhum homem na sala terá olhos para ninguém mais.
Veronica se ruborizou, era a primeira vez em todo o dia que Emily via cor em suas faces.
—Obrigada, Amelia. Não me adule ou fará que peque de imodéstia.
—Uma pequena confidência não faz nenhum dano. Emily recolheu o vestido manchado para levá-lo. O melhor seria tratar da mancha imediatamente. Talvez Joan poderia ajudá-la.
Acabava de cruzar a porta do quarto roupeiro e se voltava para fechá-la quando ouviu que se abria a porta do dormitório e viu entrar Loretta. Levava um vestido cor cinza pena de pomba e prata e tinha um aspecto muito feminino.
—Deus bendito! Arqueou as sobrancelhas ao ver Veronica-. De verdade acha que isso é o mais adequado? É muito importante que ofereça uma impressão favorável ao embaixador francês, querida, e sobre tudo em presença dos Danver. Veronica aspirou profundamente e deixou escapar o ar pouco a pouco. Emily podia ver sua mão segurar com força à prega da saia.
—Sim, acredito que é perfeitamente adequado -disse com escassa firmeza. Garrard Danver é um grande admirador da roupa elegante, não lhe interessa o comum.
O rosto da Loretta avermelhou brevemente.
—Como quiser. -Sua voz soou tensa-. Mas não entendo por que está atrasando-se tanto. Subiu com tempo de sobra. Não é boa a nova criada?
—Sim é boa... a verdade é que é excelente, troquei que ideia várias vezes sobre o que ia pôr me. Não foi culpa da Amelia.
—Lástima. Certamente lhe tinham aconselhado melhor a primeira vez. Vamos, é já muito tarde. Isso é uma taça de infusão?
—Sim.
Houve um silêncio. Logo a voz da Loretta se apaziguou, conservava um certo matiz de tensão, mas a manteve perfeitamente controlada. deslocou-se ligeiramente, de forma que Emily não podia continuar lhe vendo o rosto.
—Veronica! Não comece a te deixar dominar pelos nervos. É um luxo que não se pode permitir. Se sentir mal, chamaremos o médico. Se não, deve te impor uma pequena auto-disciplina, pôr um sorriso no rosto e vir abaixo. Você já está a ponto de chegar tarde.
—Mas eu não!
Fez-se de novo o silêncio. Emily abriu a porta uns centímetros, mas não se atreveu a abri-la mais para não chamar a atenção da Loretta.
—Estou preparada -disse Veronica por fim.
—Não, não o está! Estar preparada é algo mais que pôr um vestido e pentear-se, Veronica. -Tinha baixado o timbre de voz, que soava agora com certo apresso.
—Também tem que ter a mente preparada. vai casar se com Julian Danver. Não dê motivo a ninguém para duvidar de sua felicidade, e menos ao próprio Julian.
—Sorri. Ninguém gosta de uma mulher nervosa ou de mau humor... De uma mulher se espera que contribua ao bem-estar e prazer de um homem, que seja uma companheira agradável, não um motivo de tensão! E ninguém se casa por vontade própria com uma mulher sem uma saúde robusta. Devemos ocultar nossas pequenas queixas. O que se espera de nós é valor e dignidade... De fato nos exige.
—Há vezes que te odeio -disse Veronica , mas com uma paixão que arrepiou Emily.
—Isso -respondeu Loretta com frieza glacial- é outro luxo que tampouco pode se permitir, querida, não mais que eu mesma.
—Talvez valesse mais que sim! -disse Veronica entre dentes.
—Oh, repense, querida, repense -replicou Loretta com suavidade. Então, sua voz mudou subitamente e se fez áspera, sufocada pelo furor-. Sobrepõe de uma vez e deixa já essas choramingações débeis e estúpidas! Eu só posso levá-la até um limite, a partir daí tem que se valer por si mesma! Fiz por ti tudo o que pude, e não foi para mim tão fácil como às vezes você parece pensar.
Produziu-se um frufrú de saias e logo a porta exterior se abriu e Emily escutou uma voz totalmente nova, uma voz de homem, inteligente e pessoal.
—Está preparada, querida? É hora de ir saudar nossos convidados. Aquele tinha que ser Piers York, a única pessoa da casa a que Emily não conhecia.
—Veronica, está arrebatadora.
—Obrigado, papai. -A voz de Veronica se quebrou inclusive ao pronunciar aquelas breves palavras.
—Sei muito bem a hora que é, Piers -disse Loretta de forma enérgica, sem rastro da anterior emoção, que tinha transformado em uma ligeira irritação ao ter sido repreendida-. Estava esperando Veronica. Tem uma criada nova, e com as criadas novas sempre se demora um pouco mais.
—Ah, já a tem? -disse ele com suavidade.
—Acredito que não a vi ainda.
—Não havia razão para que a visse -respondeu Loretta-. Já tem suficiente trabalho organizando aos criados.
Veronica estava disposta a discutir.
—Não foi culpa da Amelia, mas minha, troquei de ideia várias vezes.
—Uma coisa que é cara. -Havia um tom de advertência na educada observação da Loretta, e só Piers pareceu passá-la por alto.
—Tolices, querida. Privilégios de uma dama. Desta vez Loretta não discutiu. Uma vez mais mudou de tom de voz, que se fez mais amável e familiar.
--Oh! Veronica e eu nos conhecemos muito bem, compartilhamos muita dor, pelo que posso assegurar, querido, que não pode haver mal-entendidos entre nós. Ela sabe exatamente o que eu quero dizer. Venha, faz tempo que deveríamos estar lá embaixo. É um dever para com nossos convidados, e os Hollingsworth ao menos nunca chegam tarde. Estão muito aborrecidos.
—Eu acho que todos eles são bastante aborrecidos -disse ele com franqueza-. Não sei por que continuamos recebendo-os. Não vejo a necessidade.
O resto da noite foi muito triste. A cozinha era um autêntico caos, com a cozinheira fiscalizando e ultimando o serviço de uma dúzia de pratos diferentes. Mary estava frenética com as massas, os molhos, os sucos e os pudins. Redditch se ocupava da adega e da sala de jantar, onde estava John, enquanto que Albert ia parar de um a outro. Nora passeava por toda parte, polida, com as saias ondulando e o avental tão branco e recarregado de bordados que parecia um espumoso mar de ondas , sem deixar de dar ordens às criadas com grande autoritarismo.
Prim tinha os braços metidos na pia até os cotovelos, tentando dar um bom empurrão a seu trabalho, ao menos com as panelas, mas logo que acabava com uma pilha lhe baixavam outra da sala de jantar. Todo mundo com os nervos a flor de pele e, quando houve ocasião, Emily não pôde provar um pedaço, já que só ficava bolo de caça frio, a última coisa que gostava de comer. Embora não entrasse em suas obrigações, Emily ajudou limpando, esfregando e abrilhantando os cristais e afastando a prata e as bandejas. Não podia ir-se tranquilamente à cama deixando a Mary, Prim e Albert com aquela monstruosa pilha, além de que necessitava de todos aliados que pudesse conseguir. A senhora Crawford era agora uma inimizade implacável, desde o momento que o mordomo tinha expressado desgraçadamente com clareza sua postura. Nora estava ciumenta e continuava referindo-se a Emily como "a duquesa", e Edith não dissimulava o mínimo seu desprezo.
Era quatro horas, o vento gemia no exterior e procurava qualquer fenda nas janelas e qualquer porta aberta para enviar suas afiadas rajadas. A chuva batia nos vidros quando Emily subiu o último lance nu das escadas do apartamento de cobertura e se arrastou até sua pequena e gélida habitação. Só havia uma vela para acender e a cama estava tão fria que parecia úmida ao tato. Vestiu a camisola de dormir em cima da roupa interior e logo deslizou na cama. Estava tão fria que ficou a tiritar e as lágrimas apareceram em seus olhos apesar de toda sua determinação, ficou de barriga para baixo e afundou o rosto no travesseiro congelado. Chorou até dormir.
Por uma vez Charlotte conseguiu conter tanto seu assombro como sua ansiedade ao ouvir pela boca de Jack Radley a extraordinária decisão de Emily de disfarçar-se e oferecer-se como criada na casa dos York. Por fortuna Jack tinha ido vê-la a primeira hora da tarde, de forma que dispôs de todo o tempo necessário para repor- se antes que Pitt voltasse para casa pouco depois das seis. Por conseguinte ele não sabia ainda nada do assunto e presumia com feliz ignorância que Emily residia em sua casa, onde a sociedade completa, até mesmo o próprio Pitt, esperavam que estivesse.
A morte de Dulcie, a camareira, tinha-lhe causado uma profunda impressão, não só porque lhe tivesse simpatia, mas sim por culpado que se sentia. Aquilo não tinha sentido, havia-se dito a si mesmo. A moça muito bem podia ter caído da janela de forma acidental e o caso não ser senão uma das numerosas tragédias domésticas que acontecem todo ano. Entretanto, não conseguia sacudir a apreensão que lhe produzia pensar que se não lhe tivesse falado a respeito da estranha mulher que tinha visto na casa e das joias desaparecidas, e se ele não tivesse sido tão pouco cuidadoso de escutá-la com a porta da biblioteca aberta, ela continuaria viva.
A princípio não mencionou aquela morte ao Ballarat, convencido de que este a atribuiria ao infortúnio dos York e que descartaria qualquer tipo de relação com o Pitt. Além disso, não queria correr o risco de que Ballarat lhe proibisse prosseguir com a investigação. Mas quanto mais pensava na mulher vestida de cor cereja e mais se convencia Pitt de que devia rastrear sua identidade antes de dar uma resposta definitiva ao Foreign Office a respeito da reputação de Veronica York e de sua idoneidade para casar-se com um diplomata em alta, sua determinação de guardar silêncio fraquejou. Quando Ballarat mandou chamá-lo dois dias mais tarde, ainda não tinha conseguido sair do lodaçal.
—Bem, Pitt, não parece ter feito grandes progressos no caso York –começou Ballarat com tom crítico. Estava de pé junto ao fogo, esquentando-a parte traseira das pernas. No cinzeiro de pedra sobre sua escrivaninha se consumia um fedorento charuto, junto a este havia um pequeno leão de bronze que se erguia, inclinado, um palmo no ar.
—Estúpido pretensioso!, pensou Pitt. Não o estava fazendo tão mal até que minha testemunha principal foi assassinada -disse, e imediatamente se deu conta da pouca sensatez de sua resposta.
O rosto do Ballarat se escureceu e o sangue avermelhou suas faces. Começou a balançar-se ligeiramente sobre os pés, com as mãos às costas. Dificultava a distribuição do calor a maior parte da sala; com as botas e as pernas das calças umedecidas, Pitt teria agradecido um pouco daquele calor.
—Testemunha do que, pelo amor do céu? -perguntou Ballarat com irritação.
—Está tratando de me dizer que descobriu algum escândalo em torno dos York e que o homem que pudesse traí-los morreu?
—Não, não digo isso! Estou falando de assassinato. Não é assunto da polícia se todos eles tinham amantes, isso é coisa sua. Mas Robert York morreu vítima de um assassinato, e era nossa responsabilidade esclarecê-lo, coisa que não temos feito ainda.
—Por amor de Deus, homem! -interrompeu-lhe Ballarat. Isso se passou há três anos, e fizemos o melhor que pudemos. Um ladrão irrompeu na casa e o pobre York o surpreendeu. O malfeitor deve ter desaparecido nos subúrbios de onde saiu. Pode ser que agora mesmo já esteja morto ele também. Seu problema é que não é o bastante homem para admitir um fracasso nem sequer quando é claro para todos outros. Olhava para Pitt fixamente, desafiando-o a discutir.
Pitt mordeu o anzol.
—E se foi alguém de dentro? -aventurou com temeridade.
—Um amigo que se havia aficionado a roubar, ou alguém da casa que tinha dívidas e necessitava de dinheiro. Não seria a primeira vez. E se Veronica York tinha um amante e foi este quem matou a seu marido? Quer saber mais a respeito disto ou, dando por encerrado mesmo que se trate de Julian Danver, o Foreign Office preferirá que o encubramos?
Uma série de expressões se cinzelaram no rosto do Ballarat, primeiro do mais puro espanto, logo depois de ira e de confusão, e por fim de medo ao compreender todas as implicações da última possibilidade. Estava pilhado entre dois superiores: o Foreign Office, que tinha ordenado à investigação; e o Home Office, que exercia a responsabilidade sobre a polícia e a justiça. Qualquer dos dois podia lhe arruinar a carreira com facilidade. Estava furioso com Pitt como o instigador daquele dilema.
Pitt se dispôs daquilo tão rapidamente como Ballarat e extraiu uma satisfação nítida e profunda, embora se desse conta de que Ballarat o converteria em alvo de sua impotente ira.
—Maldito seja, Pitt! É você idiota, um incompetente, um intrometido, um... Procurou a palavra adequada mas, ao não encontrá-la, começou de novo:
—Um idiota! Isso é uma hipótese totalmente... totalmente irresponsável, e os York, por não dizer já os Danver, demandar-lhe-ão por difamação se atrever a pronunciar uma só palavra disto a alguém mais!
—Renunciamos ao caso? -ironizou Pitt.
—Não seja insolente! -gritou Ballarat, mas o dever para o Home Office lhe fez controlar seu temperamento com esforço-. Que concebíveis fundamentos tem para lançar uma hipótese tão espantosa?
Desta vez Pitt não estava tão preparado, e Ballarat viu aquele segundo de duvida com um brilho de vitória nos olhos. Seu corpo se relaxou um pouco, achou-se mais a gosto e reatou o balanço sobre a planta de seus pés. Continuava dificultando a distribuição do calor e olhou com satisfação as úmidas calças do Pitt. Pitt tratou de pôr ordem em seus pensamentos. Tinha que procurar uma resposta irrebatível.
—Não há receptador em Londres que tenha visto ou comercializado com nenhum dos objetos subtraídos -começou-. Nenhum ladrão da zona ouviu falar deles nem sabe de arrivistas que tenham trabalhado na mesma. Ninguém viu a ninguém esconder-se ou fugir de um assassinato. -Viu como o rosto do Ballarat ia da credulidade à incredulidade. Aquele homem era um arrivista, um buscador de favores, e fazia muito tempo que não se via envolvido pessoalmente na investigação de um crime. Mas não era nem ignorante nem estúpido, e por muito que Pitt o desgostasse, que deplorasse seus modos e suas avaliações sociais, respeitava sua validez profissional.
—O ladrão sabia onde achar uma primeira edição, da qual ao que parece ainda não se desprendeu, entre o resto de livros da biblioteca e não tocou nenhum dos objetos de prata da sala de jantar-continuou Pitt.
—Comecei a procurar alguém em seu círculo social que tenha contraído dívidas. Percebeu com satisfação o alarme do Ballarat.
— Com discrição. E há umas pessoas que indagaram para mim entre os assuntos privados dos York –acrescentou malicioso. Mas a circunstância mais estranha que estava investigando era a presença a altas horas da madrugada de uma atraente e furtiva mulher usando um vestido de cor cereja, ao menos duas vezes na casa dos York, antes da morte do Robert York, e também na casa dos Danver, igualmente há horas inoportunas e vestindo também com um extremado tom cereja, sem que aparentemente queria ser vista. A criada que me ofereceu sua descrição na casa dos York morreu ao cair de uma janela no dia seguinte de ter falado comigo.
Ballarat tinha deixado de balançar-se e permanecia imóvel, com seus pequenos e redondos olhos cravados no Pitt.
—Veronica York? -disse pausadamente.
— Não a teria reconhecido essa criada?
—Eu também o penso -aceitou Pitt. Era sua criada pessoal. Mas a gente vê aquilo que se espera ver, e aconteceu em um breve instante, à luz de um lampião de gás, e a mulher ia vestida de forma totalmente diferente. Pela superficial descrição que fez, bem poderia tratar-se de Veronica: mesma altura e constituição, mesma cor de pele.
—Maldito seja! -exclamou Ballarat com fúria-. E por que não podia ser a amante do Robert York, e que a senhora York não soubesse nada dela?
—Poderia ser. Mas que fazia então na casa dos Danver?
—Está claro: era a irmã do Danver!
—A irmã do Danver? Tem aparência assim? -Pitt arqueou as sobrancelhas.
—Quem se lançaria à perseguição de diplomatas casados, primeiro Robert York, agora Felix Asherson? Ballarat franziu o sobrecenho.
—O que acontece com Felix Asherson? O que tem ele que ver com isto?
Pitt suspirou.
—Harriet Danver está apaixonada por ele. Não me pergunte como, mas sei. E acredito além disso que é muito pouco provável que seja a mulher do vestido cereja, mas se o fosse, então o Foreign Office saberia.
—Maldito seja, Pitt! Talvez essa mulher do vestido cereja não é mais que uma parenta um pouco idiota que gosta de usar modelitos e dar um passeio por aí. Há montões de famílias que têm um membro de que envergonhar-se, alguém que lhes causa perturbações, mas não um verdadeiro prejuízo.
—É claro. Poderia tratar-se de uma louca íntima. Ou também poderia ser uma prostituta cara que prestasse seus serviços ao Robert York ou, por que não, a seu pai -viu como se escurecia o rosto do Ballarat, mas não se deteve-, ou a Julian Danver, ou ao Garrard Danver. E talvez a queda de Dulcie Mabbutt não fosse além de tudo mais que um acidente doméstico curiosamente inoportuno, sustentou o olhar do Ballarat-. Ou talvez a mulher do vestido cereja era uma alcoviteira, ou uma traidora, ou uma chantagista, ou uma amante, e acossava ao Robert York antes de matá-lo ela mesma ou de que algum de seus comparsas o fizesse.
—Santo Deus... está dizendo que o jovem Danver ia atrás dela? –explodiu Ballarat.
—Não! -Por uma vez Pitt pôde responder negativamente com sinceridade.
—Não vejo a necessidade, não está também ele no Foreign Office?
—Outro traidor? -Ballarat apertou as mandíbulas. Seu charuto continuava desfazendo-se em pequenos anéis de cinza.
—Por que não?
—Está bem! Está bem! -A voz do Ballarat subiu com intensidade.-Averigue quem era essa mulher! Pode estar em jogo à segurança do Império. Mas se quer conservar seu emprego, Pitt, seja discreto. Se cometer uma estupidez não poderei protegê-lo, e não o farei.-Entendeu-me?
—Sim, obrigado, senhor -disse Pitt com sarcasmo. Era a primeira vez em anos que o chamava "senhor"; sempre tinha conseguido evitá-lo sem cair em uma aberta rudeza.
—De nada, Pitt -replicou ele mostrando os dentes.-De nada!
Pitt saiu da delegacia de polícia do Bow Street e se introduziu na espessa névoa com um sentimento de arrojo e determinação. Sempre podia contar com Charlotte, em cujo critério podia confiar. Tinha que admitir que se alegrava de que ela tivesse aceito forjar um convite com os York e os Danver. Ao menos podia lhe dar assim uma opinião informada sobre o temperamento de Veronica York, e se esta tinha ficado destroçada pela morte de seu marido ou se pelo contrário se viu liberada por ela para casar-se com o Julian Danver. Se este último era certo, aquela mulher tinha então um controle notável para ter esperado três anos inteiros e haver-se comportado durante todo o tempo com um aparente decoro tão perfeito. Ou Julian tinha insistido nisso, com vistas a preservar sua carreira? Em qualquer caso, era admirável que não produzira-se em todo aquele tempo nenhuma indiscrição, nenhum passo em falso.Especialmente se era Veronica a mulher que com tanto efeito se vestira para suas entrevistas com aqueles tons cereja. Ou possivelmente ainda o fazia, o que tinha feito a espera mais suportável.
A névoa era tão espessa no Strand que não podia ver o que havia do outro lado da rua. Pendia estancada, em sua densidade cinza amarelada, alimentada pelos vapores de milhares de lareiras fumegantes, enquanto a imundície suspensa em suas diminutas gotas se erguia das amplas curvas do rio, que serpenteava entre os subúrbios, além da Chelsea, as casas do Parlamento, o Embarcadouro, Wapping e Limehouse e descia para o Pool of London, Greenwich, o Arsenal e, finalmente, o estuário. Se Cereja, quem quer que fosse, vestiu-se de forma tão chamativa como dizia Dulcie, era certo que não o tinha feito para revoar pelas escadas da casa em plena noite. Tinha saído e o tinha feito em público. Seria um disfarce, um alter ego de alguma mulher conhecida em sociedade; ou se trataria de uma cortesã com quem nem os York nem os Danver desejavam ser vistos por seus amigos. Mas onde se encontrava com seus amantes?
Pitt estava parado na calçada, enquanto as carruagens, caleches e carretas passavam junto a ele com lentidão em meio da névoa amarelada, surgindo de repente e desaparecendo, engolidas, depois de ver-se apenas a escura silhueta dos cavalos e escutar um som apagado. A rua estava viscosa e mais salpicada de excrementos que de costume. Fazia o tipo de mau tempo em que os varredores são atropelados nos cruzamentos. Havia um varredor no Piccadilly a quem faltava um membro que o tinha perdido deste modo.
Pitt sabia que havia hotéis, restaurantes e teatros onde manter aquele tipo de encontros, lugares em que se um cavalheiro se encontrava com um conhecido, ambos os homens teriam o tato suficiente para dissimular o encontro e não falar dele. Aqueles lugares estavam distribuídos no perímetro da Londres elegante, no Haymarket, Leicester Square, Piccadilly. Sabia onde encontrá-los e a que confidentes e porteiros perguntar.
—Cocheiro! -gritou na rua, aguentando o fôlego para que a névoa não o afogasse e o fizesse tossir.
—Cocheiro!
Uma caleche diminuiu o passo e se deteve, com os arreios gotejando, a cabeça do cavalo encurvada, a voz do condutor imaterial na penumbra.
—Haymarket -ordenou Pitt, e montou.
Foi antes do dia seguinte, com a névoa ainda agarrada ferreamente à cidade, acre à garganta, penetrante ao nariz, que obteve seu primeiro êxito. Estava em um hotel privado um pouco metido no Jermyn Street, junto ao Piccadilly. O porteiro era um bigodudo ex-soldado, com ideias liberais sobre moralidade e uma ferida da segunda guerra ashanti que o impedia de desenvolver todo trabalho físico. Era além disso analfabeto, o que o excluía de qualquer trabalho de escritório. Era o bastante amigável para responder, prévio pagamento, às perguntas do Pitt. Ballarat tinha sido de muito pouca ajuda para fazer a contribuição de informação ou de influência, mas tinha dado a Pitt todo o suporte financeiro que pudesse.
—Isso que me conta é de há muito tempo, chefe -disse o porteiro com desenvoltura-. Mas claro que me lembro. - Era muito bonita, e sempre levava vestidos de cores chamativas. À maioria parecia perversa, mas desprendia algo maravilhoso. Tinha o cabelo negro e os olhos escuros, e era elegante como um cisne. Bastante alta para ser mulher, não é que tivesse um tipo imponente, mas tinha algo.
—O que era isso que tinha? -disse Pitt com curiosidade. Queria saber no que estava pensando aquele tipo, no que se apoiava para avaliá-la, pois até com seu limitado vocabulário, sua opinião teria um grande valor. Conhecia as mulheres da rua, via-as todas as noites, e também a seus clientes. Podia vê-las trabalhar sem chegar a fazer parte de seu ambiente. Assim não haveria muitas que lhe impressionassem. O tipo torceu o gesto enquanto pensava.
—Classe -disse ao fim-. Era uma mulher com classe. Não atuava como uma dessas, nunca a vi nervosa. Sempre eram eles os que iam atrás. Não dizia palavrões. -Sacudiu a cabeça-. Mas havia algo mais. Era... era como se o fizesse para divertir-se. Sim, isso... divertia-se! Não é que risse, nunca ria em voz alta, tinha muita classe para isso. Mas era como se por dentro risse.
—Falou com ela alguma vez? -insistiu Pitt.
—Eu? -Pareceu surpreso-. Não, nunca. Não falava muito, e sempre o fazia em voz baixa.-Eu só a vi, talvez... ehm... cinco ou seis vezes.
—Pode recordar quem a acompanhava?
—Tipos diferentes cada vez. Elegantes... gostava dos tipos elegantes de verdade, não o primeiro engordurado. E com dinheiro, claro, mas isso todos têm. Ninguém que não tenha dinheiro vem aqui. Soltou um breve risinho.
—Poderia descrever a algum deles?
—Não tanto para que você os reconhecesse... -Sorriu.
—Tente- insistiu Pitt.
—Você não tem tanto dinheiro para me pagar esse serviço, chefe. Acaso poderia proporcionar-me outro trabalho, quando eles me expulsarem deste e me difamarem? Pitt suspirou. antes de começar já sabia que descrever aquela mulher era uma coisa muito diferente de ser indiscreto com respeito a seus clientes. Os clientes têm dinheiro, posição, esperam discrição e para se assegurarem-se compram esta com um generoso preço. Se vendesse os segredos de um, perderia a confiança de todos.
—De acordo -concedeu-. Fale em termos gerais, me diga se eram jovens ou velhos, morenos, loiros ou grisalhos, se eram altos ou baixos, qual era sua constituição física.
—Vai revistar toda Londres, chefe?
—Posso eliminar alguns. O porteiro deu de ombros.
—Como quiser. Bom, dos que me lembro eram mais velhos, de mais de quarenta anos. Não acredito que fosse com eles pelo dinheiro. Não sei por que, mas tenho o sentimento de que podia permitir-se o luxo de procurar e escolher.
—Tinham o cabelo grisalho?
—Nenhum que eu recorde. Nem tampouco eram robustos... todos eram magros. -aproximou-se um pouco de Pitt-. Olhe, chefe, tampouco tenho certeza, podia haver sempre o mesmo senhor. Não me pagam por me fixar em seus rostos! Vêm aqui procurando discrição... por isso me pagam! Como já lhe havia dito, ela podia permitir-se escolher. Sempre me deu a impressão de que o fazia para divertir-se.
—Sempre ia vestida com a mesma cor?
—Sim, com diferentes tons. Era como seu... marca de distinção. Mas de qualquer forma, por que está tão interessado em saber dela? Não a vi por aqui há... dois ou três anos.
—Quanto exatamente? Dois ou três?
—Bom, para ser mais exato, chefe, eu diria três.
—E não a viu nem ouviu falar dela depois?
—Agora que penso nisso, não. -Seu rosto relaxou em um sorriso.-Talvez fez um bom casamento. Às vezes o conseguem. Pode ser que neste momento seja duquesa e esteja sentada em uma grande casa, dando ordens a tipos como você e como eu.
Pitt fez uma careta. Aquela possibilidade não era muito acreditável e os dois sabiam. Era muito mais provável que tivesse perdido seus encantos em conseqüência de uma enfermidade, ou de uma agressão, em uma briga com outra prostituta ou com um fanfarrão que se houvesse sentido burlado, ou com um amante cujas solicitudes se fizeram muito perversas ou possessivas; ou pode ser que simplesmente tivesse descido de categoria e tivesse caído de um hotel como aquele a um simples bordel. Pitt não mencionou a possibilidade da traição ou o assassinato. Isso teria complicado a questão sem necessidade. O porteiro olhou-o com atenção.
—Por que a busca, chefe? Está-fazendo chantagem a alguém?
—É uma possibilidade -concedeu Pitt. Tirou um de seus cartões e o deu. –Se voltar a vê-la, diga-me isso na Delegacia de polícia do Bow Street. Não tem mais que dizer que tornou a ver cereja.
—Esse é seu nome? Valerá a pena para mim?
—Valerá a pena, e ainda vale mais contar com minha boa vontade, que é muito melhor que contar com minha má vontade, acredite me.
—Não pode me fazer nada só porque não tenha visto alguém! Não posso vê-la se não vier aqui! E não quererá que lhe diga uma mentira, não?
Pitt não se deu ao trabalho de responder.
—Que teatros e music halls frequentam seus clientes?
—Por Cristo!
Pitt esperou.
O tipo mordeu o lábio.
—Bom, se busca a essa Cereja, ouvi dizer que ia pela zona do Lyceum, e suponho que trabalharia nos music halls, mas não me pergunte quais, porque não sei.
Pitt arqueou as sobrancelhas.
—O Lyceum? Uma mulher com coragem exercia seu negócio ali.
—Já disse, tinha classe.
—Sim, já me havia dito isso. Obrigado.
O homem deu uns golpe zinhos no chapéu com um pouco de ironia.
—Graças a você, chefe!
Pitt o deixou e voltou a sair à rua. A névoa lhe agasalhava como uma fria musselina úmida que lhe grudava na pele. De modo que Cereja tinha estilo além de coragem. Sem dúvida não se tratava de Veronica York se amarrar com Julian Danver! Se for Veronica, então levava uma vida dupla de um gênero que escandalizava ao Foreign Office até o mais profundo de sua alma coletiva. Para um diplomata, ter uma mulher que exercesse a prostituição, fosse pelo preço que fosse e tivesse o grau de exigência em sua escolha , era algo de qualquer ponto impossível. Seria expulso imediatamente, e sua vida ficaria arruinada. Nem tampouco podia tratar-se de que Harriet Danver tivesse um namorico com Felix Asherson, embora esta possibilidade nem sequer tinha pensado a sério.
Charlotte havia dito que Harriet estava apaixonada, mas que ignorava se Asherson tinha correspondido a seus sentimentos. Em qualquer caso, a resposta não ofereceria uma explicação sobre o que fazia Cereja na casa dos York. Não, mais parecia o que tinha pensado a princípio, uma mulher que usava sua beleza e distinção para apanhar e logo chantagear a seus amantes do Foreign Office em troca de segredos de seu trabalho. Robert York se negara, fosse imediatamente ou passado algum tempo, e como resultado, ou ela mesma ou possivelmente seus cúmplices tinham tido que matá-lo para evitar que os desmascarassem.
Estava escurecendo e a névoa começava a sentir-se gélida, enquanto o ar se enchia de diminutos cristais de gelo que lhe produziam calafrios ao penetrar entre as dobras do cachecol e entrar em contato com a pele. ficou a caminhar com energia em direção ao norte, pelo Regent Street, até dobrar à esquerda para Oxford Circus. Ali havia mais gente a quem podia interrogar: prostitutas de luxo que conheciam o mercado e poderiam lhe dizer algo mais a respeito de Cereja, onde costumava exercer sua ocupação, que tipo de clientes escolhia, se só se ia com homens dos quais podia tirar um benefício, e se era uma autêntica ameaça para as demais ao entremeter-se no negócio.
Uma hora mais tarde, depois de algum ou outro argumento persuasivo e do intercâmbio de um pouco mais de dinheiro, achava-se sentado em um pequeno aposento sufocante de calor e abarrotado de móveis junto a New Bond Street. A mulher que ocupava a cadeira de cor rosa em frente a ele tinha passado longe de seus melhores anos. O peito lhe sobrava por cima dos justos espartilhos e a carne solta visível sob o queixo tinha perdido toda sua elasticidade, embora continuasse sendo mais bela do que jamais muitas mulheres seriam, comportava-se com grande desenvoltura, fruto dos muitos anos de haver-se sentido desejada, embora a brilhante amargura de seus olhos refletia o conhecimento subjacente de não ter sido amada. Pegou um fruto confeitado de uma caixinha forrada de tecido.
—E então? -disse com circunspeção-. O que lhe oferece, céu? Não é meu estilo contar histórias.
—Não quero que me conte nenhuma história. -Pitt não perdeu o tempo nem a ofendeu com falsas adulações-. Procuro uma mulher que quase com certeza se dedicou à chantagem. Isso é mau para seu negócio, a vocês não convém esse tipo de colegas.
Ela fez uma careta e pegou outra guloseima, mordiscando-a pelos lados antes de metê-la inteira na boca. Se tivesse nascido em outro tipo de ambiente que a tivesse levado a vestir de outro modo, a pintar-se menos, que tivesse eliminado a dureza da luta pela sobrevivência em seus olhos e os pequenos sulcos que se formavam agora com clareza nas comissuras dos lábios, poderia ter sido uma das grandes belezas de sua geração. Este pensamento cruzou pela mente do Pitt tingido de ironia e tristeza ao vê-la comer.
—Adiante! -lhe insistiu ela.Não preciso lhe dizer a que me dedico. Se eu não fosse a melhor, não estaria você aqui me pedindo meus favores. Não necessito seu dinheiro. Ganho em um dia mais do que você ganha em um mês.
Pitt não se incomodou em lhe responder que os perigos de sua profissão eram maiores e o tempo de exercício mais curto. Ela já sabia.
—Uma mulher que usava sempre algo de cor puxando a cereja, um pouco mais escuro, um pouco mais claro, algo entre cor ameixa e magenta, sempre usava um vestido desse tom. Era alta e esbelta, não muito entrada em carnes, mas tinha muito estilo, os olhos escuros e o cabelo negro.-Viu-a alguma vez, ou ouviu mencioná-la a alguma de suas garotas?
—Não soa como se tivesse muito que oferecer. Magra? Com o cabelo negro?
—Oh, mas tinha algo -disse Pitt com firmeza e, apesar de si mesmo, a sua mente acudiu o rosto de Veronica York, com suas pronunciadas maçãs do rosto e seus olhos obsessivos. Podia ser ela Cereja, e ter matado ao Robert ao descobri-la ele? Olhou a exuberante e feminina mulher que tinha sentada em frente, na cadeira rosa, com seu reluzente cabelo que parecia pintado por um Ticiano e sua pele com a textura de uma flor de macieira-. Tinha paixão, e estilo -concluiu. A mulher abriu os olhos com exagero.
—Conhece há você muito bem, né?
Pitt sorriu.
—Nunca a vi. Essa é a impressão que causou em outras pessoas. Ela soltou um risinho, em parte de brincadeira, em parte por genuíno senso de humor.
—Vá, pois se fazia chantagem às pessoas estava louca! Essa é uma forma segura de acabar com o negócio. Em longo prazo é um suicídio. Não ouvi falar dela. Sinto muito, céu.
Pitt não sabia se se alegrava ou decepcionava-se. Tinha que achar a Cereja, mas não queria que fosse Veronica York.
— Tem certeza? -disse ele-. É possível que faça três anos.
—Três anos! por que não o havia dito antes? -Alcançou outra porção de fruta e a mordeu. Tinha uns dentes muito bonitos, brancos e parecidos. Pensava que falava de agora! Havia uma como a que você diz faz uns três ou quatro anos. Vestia sempre de uma cor horrível, mas ela sabia levá-la. O cabelo e os olhos negros, Lisa como uma tábua, necessitava de quilos de crina de cavalo para fazer-se cheia. Mas tinha fogo, esse tipo de fogo que sai de dentro, que não o pode guardar em um pote nem verter em uma taça. Nem todo o champanha de Londres poderia apagá-lo. Estava sempre radiante como se desfrutasse de cada minuto, como se consumisse sua vida, como se adorasse viver à beira do perigo. Olhe, era uma beleza de verdade, não uma dessas que vão pintadas e empoeiradas. Era das que destroçam-lhe o coração.
Pitt se sentiu de repente sufocado naquela recarregada habitação, mas ao mesmo tempo sentia frieza.
—Continue me falando dela -disse com tranquilidade.Via-a ou costumava ouvir falar dela frequentemente? Onde? Com quem ia? Tem ideia do que pôde lhe acontecer?
A mulher hesitou uns instantes. Havia cautela em seus olhos.
—Serei muito desagradável se forçar a isso -disse Pitt sem alterar-se.
—Estamos falando de assassinato. Estou disposto a pôr este local patas acima e armar tal escândalo que nenhum de seus clientes se atreverá a voltar.
—Está bem! -replicou ela com irritação. Mas não havia violência em sua atitude, pois isso teria requerido um elemento surpresa, e conhecia os perigos desde há muito tempo e os tinha pressentido muito frequentemente para surpreender-se por nada. -Está bem! Faz três anos que não a vejo nem ouço falar dela, e só o tinha feito umas poucas vezes. Não vinha com regularidade. A verdade é que, se de algo vale minha opinião, não acredito sequer que fosse uma profissional, por isso nunca me preocupei de averiguar mais coisas dela. Não era uma rival. Não atuava como as demais, limitava-se a passear por aí, a deixar-se ver e para buscar-se um ou dois contatos. Ao fim e ao cabo para nós era benéfica, porque chamava a atenção, estimulava os apetites e logo se ia. Mais para nós.
—Viu-a com alguém a quem recorda?-É importante.
Ficou pensativa uns momentos e Pitt não a instigou.
—Uma vez a vi com um senhor elegante dos de verdade, de muito boa aparência. Uma das garotas disse que já a tinha visto antes com ele, porque ela também tinha querido levá-lo mas ele não tinha olhos senão para Cereja e ninguém mais.
—Ouviu alguma vez seu nome?
—Não.
—Algo sobre ela?
—Não. Nada além do que lhe disse.
—Muito bem, você conhece o ambiente e o negócio.-trate de supor. -Que classe?-O que lhe aconteceu?
A mulher pôs-se a rir de forma abrupta, até que a amargura se suavizou em um sentimento de pena, por ela mesma e pelas que compartilhavam sua sorte, embora fosse de forma tangencial.
—Não sei -disse-. Pode estar morta, o que sei eu, ou ter caído em desgraça. A vida neste negócio pode ser breve. Como demônios vou saber eu o que lhe aconteceu, pobre prostituta?
—Era diferente, você o disse, e também outros que a conheceram. De onde diria você que procedia? -Vamos, Alice, preciso saber mais, e você é a melhor oportunidade que tenho.
Ela suspirou.
—Eu diria que era uma bem nascida que gostava de visitar o submundo, Deus saberá por quê. Talvez tinha baixas inclinações. A algumas acontece. Mas por que uma mulher que tem um teto que a cobre e a comida assegurada para o resto de sua vida quereria correr esses riscos é algo que me escapa. Claro que suponho que a loucura também pode afetar às pessoas bem, assim como ao resto de nós. Bem, pois isto é tudo, não tenho nada que acrescentar ao que já disse. Você terá suas ocupações e eu tenho coisas que fazer. Já fui mais que amável... espero que não o esqueça.
Pitt ficou em pé.
—Não o farei -prometeu-. Pelo que a mim respeita, você dirige uma casa de hóspedes. Bom dia.
Passou dois dias mais indo de um lugar a outro, visitando as guaridas das prostitutas, os teatros e restaurantes onde costumavam exercer seu ofício, e ouviu menções ocasionais de Cereja ou de alguém que podia ser ela ou não sê-lo, mas ninguém lhe disse nada que acrescentasse algo novo ao que já sabia. Nenhuma daquelas mulheres recordava quem costumava acompanhá-la, se a tinham visto com vários homens ou com uns poucos, embora fosse certo que todas a tinham visto com mais de um. Ninguém sabia seu nome nem de onde vinha. Era bem aceita porque aparecia muito de vez em quando e não lhes roubava muitos clientes.
Aquele era um mundo duro e estavam feitas à ideia da competição. Se um homem preferia a uma mulher antes que a outra, não havia nada que fazer salvo em casos muito extremos. Em geral era muito melhor encarar a derrota com esportividade, em lugar de montar cenas que violentassem à clientela. Era impossível dizer se algum dos homens que a tinham acompanhado era Robert York. Cereja costumava frequentar lugares onde era verossímil tê-lo encontrado, mas o mesmo podia dizer-se de meia sociedade londrina, ao menos da masculina. As descrições de seus acompanhantes podiam corresponder em geral com ele, ou com o Julian Danver, ou com o Garrard Danver, e até com o Felix Asherson, mas também com qualquer outro homem de posição distinta e com dinheiro.
Ao entardecer do segundo dia, um pouco depois das seis, quando a névoa por fim se levantava e se atrasava tão somente nos cantos mais escuros, Pitt tomou uma caleche em direção a Hanover Close, não para ir esta vez a casa dos York, mas um pouco mais longe, aonde vivia Felix Asherson. Pitt tinha decidido ir a sua casa com o fim de fazer uma ideia mais completa daquele homem e formar um julgamento a partir de suas circunstâncias e possivelmente de seu caráter. Fora da atmosfera convencional e bem intimidadora do Foreign Office talvez estivesse mais disposto a baixar a guarda. Em sua própria casa poderia sentir-se a salvo e podia garantir-se que não interromperia-os nenhum de seus colegas, se algum deles suspeitava que podia estar facilitando alguma revelação à polícia. Além disso, vendo sua casa Pitt podia formar uma ideia mais precisa de sua situação econômica.
Continuava existindo a possibilidade de que Robert York tivesse surpreendido a um amigo roubando em sua casa e que ao reconhecê-lo tivesse provocado seu próprio assassinato. Pitt não tinha descartado esta possibilidade. Bateu na porta principal e esperou até que abriu um lacaio.
—Sim, senhor?
Pitt tirou um cartão.
—Thomas Pitt. Preciso falar com o senhor Asherson de um assunto de certa importância, se não estiver ocupado. É em relação a um de seus colegas do Foreign Office. -Aquilo era literalmente certo, embora não exatamente a verdade.
—Sim, senhor. Se tiver a bondade de entrar, informarei ao senhor Asherson de que você está aqui. -Olhou a Pitt com receio. Não levava postas as botas novas, pois eram muito boas para as caminhadas que tinha dado ultimamente, e não tinha querido gastá-las tão cedo. A jaqueta que levava era utilizável e nada mais; só o chapéu era de boa qualidade. Assim não alcançava a categoria de visitante apropriado para a biblioteca; a saleta de espera era o que lhe correspondia.
—Se tiver a bondade de me acompanhar senhor.
O fogo, consumido, fizera-se rescaldo, mas a estadia continuava quente , ao menos comparada com a caleche que Pitt acabava de deixar. Era uma sala bastante acolhedora, modesta em comparação com a dos York, mas com um mobiliário agradável e com um quadro bom no mínimo, na parede. Se Asherson tivesse ido mal de dinheiro, poderia vendê-lo por muito para ter mantido a uma criada durante vários anos. De sobra para uma dívida.
A porta se abriu e entrou Asherson, com suas escuras sobrancelhas franzidas. Era um rosto belo, embora muito volátil. Havia nele uma certa insegurança. Pitt não queria ter de confiar naquele homem em uma crise.
—Boa tarde, senhor Asherson -disse com amabilidade. -Sinto lhe incomodar em sua casa, mas se trata de um assunto delicado, por isso pensei que seria mais discreto vir vê-lo aqui que no Foreign Office.
—Ah, Por Deus! -Asherson fechou a porta com brusquidão. -Continua você investigando em torno do assassino do pobre York? Já lhe disse que não sabia nada que pudesse ser remotamente útil. E continuo sem saber nada.
—Tenho certeza de que conscientemente não sabe nada -aceitou Pitt.
—O que quer dizer? -Asherson parecia vexado-. Eu não estava ali aquela noite, e ninguém me contou nada.
—Agora sei mais coisas do que sabia a primeira vez que falei com você, senhor -disse Pitt, escrutinando seu rosto. Os lampiões de gás jogavam sombras na sala e exageravam sua expressão, enquanto um brilho amarelo ressaltava os traços de suas faces e seu nariz e criava uma zona de escuridão que a luz do sol teria eliminado-. Há uma mulher que parece ter desempenhado certo papel em todo este assunto.
Asherson abriu mais os olhos.
—Na morte dos York? Não me estará dizendo que foi uma ladra? Não sabia que existissem. -Em seu rosto não se lia mais que surpresa.
—O roubo pôde ter sido incidental, senhor Asherson. É possível que até o assassinato o fosse. Pode ser que o importante fosse a traição. Asherson ficou completamente imóvel. Era uma quietude antinatural, um silêncio que durava muito. Pitt podia ouvir o sussurro do gás nos lampiões da parede e o ligeiro crepitar do carvão empilhado na lareira.
—Traição? -disse Asherson por fim.
Pitt não sabia até que ponto era conveniente revelar a verdade. Decidiu evitar uma resposta.
—No que trabalhava Robert York antes de ser assassinado? -perguntou.
Asherson hesitou de novo. Se dissesse que não sabia, Pitt teria que acreditar nele.
—Em assuntos da África -respondeu por fim.-No, né... -mordeu ligeiramente o lábio inferior.-Na partilha da África entre a Alemanha e Grã-Bretanha. Ou possivelmente seria mais acertado chama-lo-á divisão das esferas de influência.
Pitt sorriu.
—Compreendo. Um assunto confidencial? Secreto?
—Muito secreto! -Houve uma sombra de humor em seu alarme, talvez a custa da ignorância do Pitt-. Santo céu, se todos os termos de um tratado que fôssemos aceitar os conhecessem os alemães de antemão, seria a ruína de nossa posição nas negociações, mas pior que isso, muito pior, seria a impressão que causaria uma coisa assim no resto do mundo, particularmente na França. Se os franceses fossem fazer públicas nossas deliberações, o resto da Europa se negaria a nos incluir no acordo.
—Negociações que já duram três anos -insistiu Pitt sem deixar de escrutinar o rosto do Asherson.
—Oh sim, não se deve cometer imprudências. Estas coisas não se conseguem em uns poucos meses, sabe?
Em seu rosto se viu certa vacilação, uma sombra de dúvida... Ou era de astúcia? Em algum lado tinha escondida uma mentira, um engano nas implicações do dito, se não nas palavras pronunciadas.
Pitt fez uma hipótese, que soou mais a afirmação que a pergunta, como se já soubesse:
—E parte dessa informação foi filtrada. Essas negociações não estiveram isentas de dificuldades.
—Com efeito -disse Asherson pausadamente-. Tão somente alguns fios soltos... mas que poderiam converter-se em conjeturas se chegavam a atar-se. Não são tolos.
Pitt se dava conta do que estava fazendo Asherson: estava abrindo vias de escape... Mas para quem? Robert York estava morto. Estava Asherson utilizando-o como chamariz para alguém que ainda estava vivo? Cereja? Veronica? Um dos Danver?
—Qual era a última instância que ao passar por ela, essa informação pôde ter sido subtraída e facilitada aos alemães? -perguntou Pitt-. Presumo que podemos ter certeza de que não foi entregue aos franceses...
—Oh... -Asherson estava confundido-. Sim, certamente não foi entregue aos franceses mas aos alemães, eu não sei. É impossível assegurar isso. Essa classe de informação pode não utilizar-se durante algum tempo depois de haver-se recebido.
Aquilo era certo, mas para Pitt continuava soando a evasiva. comportava-se Asherson daquele modo pelo receio natural de confiar-se a um estranho alheio a seu departamento, ou continuava protegendo alguém? Pitt tratou de abordar de outro ponto de vista.
—Tem suposto tudo isso dificuldades sérias para suas negociações?
—Não -concedeu Asherson com rapidez-. Como lhe dizia, pôde dever-se ao talento natural dos alemães. Não foram os franceses, disso temos certeza. -Mas então custa acreditar que valesse a pena assassinar por isso.
—Como diz?
—Não valia a pena assassinar para encobri-lo -repetiu Pitt com cautela.
Asherson não disse nada. Apertou os lábios e virou a cabeça olhando através da estadia iluminada pelos lampiões de gás. Pitt esperou.
—Não -disse Asherson por fim.-Acredito que está você em um engano. Foi um roubo o que constituiu o equívoco.-Pitt sacudiu a cabeça.
-Não, senhor Asherson, isso é precisamente o que não foi. Tratava-se de um caso de traição, então esta levou ao assassinato, pessoal e deliberado, do Robert York por parte de alguém que o conhecia.
Asherson guardou de novo silêncio, até que seu rosto relaxou. Pitt pôde determinar o momento exato em que a ideia foi a sua mente.
—Quer dizer que o roubo na casa dos York foi cometido por alguém que conhecia o Robert, por uma amizade que tinha estado na casa e sabia onde procurar os objetos de valor?
—Não. O que levaram não valeria mais que umas cem libras, ou menos se remontarmos-nos à época em que deveriam colocá-lo... coisa que não se fez.
—Colocá-lo?
—Revendê-lo a um intermediário de objetos roubados.
—E não o revenderam? -disse com cautela-. Vocês podem saber isso?
—Sim, senhor Asherson.
—Oh. -Baixou a vista ao chão, com o rosto grave e concentrado. A luz de gás captou o estranho cinza de seus olhos e o negro das pestanas. Pitt ficou imóvel, deixando que se instalasse de novo o silêncio.
Do outro lado da porta, em algum lugar do vestíbulo, ouviram-se os enérgicos passos de uma criada sobre o tapete do chão. O som se foi extinguindo ao longo de um corredor até que uma porta se fechou com um ruído surdo. Asherson tomou por fim uma decisão. Olhou o rosto de Pitt.
—Há mais informação que desapareceu -disse pausadamente.-Uma informação mais importante. Mas nossos inimigos não chegaram a utilizá-la, que nós saibamos. Só Deus sabe por quê.
Pitt não se surpreendeu, embora tampouco lhe reportou satisfação alguma. Ainda achava que podia haver-se equivocado, que podia surgir alguma outra explicação. Era aquilo já toda a verdade, ou só uma parte? Observou a expressão sombria e triste do Asherson e acreditou que aquele homem era sincero, ao menos até onde podia sê-lo.
—E você saberia? -perguntou Pitt.
—Sim. -Desta vez Asherson não titubeou. -Sim. Tudo gira em torno de uns documentos que desapareceram de forma temporária e foram suplantados por uma cópia do original. Não continue me perguntando, não posso lhe dizer mais.
—Não há dúvida de que os utilizarão quando estiverem preparados -disse Pitt sem rodeios-. Talvez se os utilizassem agora vocês conheceriam através de quem os tinham obtido e eles pensam protegê-lo enquanto continue lhes sendo útil. Asherson se deixou cair sobre o braço de uma das poltronas e ficou sentado em uma incômoda postura.
—É terrível. Eu esperava que só se tratasse de um descuido do Robert, mas se de verdade foi assassinado em consequência disso... Isso não parece razoável. Deus santo, que tragédia!
—E não desapareceu nada desde sua morte?
Asherson moveu a cabeça de um lado a outro.
—Viu alguma vez a uma formosa mulher, alta e esbelta, com o cabelo escuro, vestida com uma roupa pouco habitual de tonalidade cereja?
Asherson o olhou com incredulidade.
—O que?
—Uma espécie de cor púrpura intensa, como o magenta ou o ciclamino.
—Já sei qual é a cor da cereja! -Fechou de repente os olhos-. Maldito seja! Sinto muito. Não, não a vi nunca. Que diabos tem que ver em todo este assunto?
—Parece provável que fosse essa mulher que levou os York a trair a sua pátria -replicou Pitt-. É possível que tivesse uma aventura com ela. Asherson pareceu surpreso.
—Robert? Nunca o vi prestar atenção a nenhuma mulher que não fosse Veronica. Ele... bom, não era um mulherengo. Era muito seletivo, um tipo de homem muito tranquilo com um gosto excelente. E Veronica o adorava.
—Parece como se fosse dois homens em um -disse Pitt com pesar. Não queria dizer ao Asherson que a mulher dos vestidos cereja podia ter sido a própria Veronica. Se ao Asherson não lhe tinha ocorrido, dizer-lhe não contribuiria nada. E caso fosse Asherson o traidor, não havia necessidade de acautelá-lo do longe que tinha chegado Pitt.
—Bom, agora está morto. -Asherson se endireitou. -O deixemos descansar em paz. Não achará a sua mulher misteriosa a Hanover Close. Sinto não poder ajudá-lo.
—Já o fez, senhor Asherson -disse Pitt com um sorriso desiludido.
—Obrigado por sua franqueza, senhor. Boa tarde!
Asherson não respondeu, mas sim deu um passo atrás para deixar que Pitt saísse pela porta. No vestíbulo apareceu de entre as sombras um lacaio que o acompanhou até os degraus da entrada principal que davam à escura rua.
Fora os últimos bancos de névoa tinham sido dissipados pelo vento do norte, gélido como uma rajada de ar polar, e as estrelas brilhavam no céu mal cobertas por alguma mancha ocasional de fumaça. O gelo rangia sob os pés ao passar por atoleiros e correntes de água congelados. Pitt caminhava com passo amplo eenérgico; se fosse um homem mais polido quase poderia se dizer que desfilava. Subiu os imaculados degraus do alpendre do número dois e puxou a campainha de metal. Quando o criado abriu a porta sabia já exatamente o que ia dizer, e a quem.
—Boa tarde. Posso ver o senhor York, por favor? Desejo lhe pedir permissão para falar com a criadagem a respeito de um membro que pode ter tido notícia de um crime. É muito urgente.
—Né.... sim, senhor.-Suponho que sim. -O jovem parecia desconcertado.-Será melhor que entre, a lareira da biblioteca está ainda acesa, senhor. Pode esperar ali.
Passaram uns minutos até que entrou Piers York, com seu benévolo rosto ligeiramente zombador escurecido por um não habitual levantar de sobrancelhas.
—Do que se trata esta vez, Pitt? Com certeza não será desses condenados objetos de prata.
—Não, senhor. -Guardou silêncio, com a esperança de que York não insistisse nisso. Mas ficou olhando ao Pitt, com as sobrancelhas arqueadas e uns olhos pequenos, cinzas e inteligentes. Não estava disposto a ficar sem uma resposta.
—Se trata de traição e de assassinato, senhor.
—Que estupidez! -exclamou York-. Duvido que os criados saibam sequer o que é a traição, além de que nunca saem da casa salvo quando têm sua meia jornada livre, coisa que acontece só duas vezes ao mês. -Arqueou as sobrancelhas ainda mais-. Ou está insinuando que essa traição teve lugar aqui?
Pitt sabia que pisava em um terreno muito perigoso. As admoestações do Ballarat ressoavam em seus ouvidos.
—Não, senhor. Penso que o portador da traição pôde ter visitado sua casa sem que soubesse. Sua criada Dulcie Mabbutt a viu, assim talvez outros puderam vê-la.
—Vê-la? -As sobrancelhas dos York alcançaram sua altura máxima.-Santo Deus! Está dizendo que é uma mulher? Bem, Dulcie já não pode ajudá-lo, pobre menina. Caiu de uma das janelas do piso superior e se matou. Sinto muito. -Tinha o rosto pálido e triste.
Pitt não podia acreditar que não estivesse genuinamente afetado. O mais provável é que não soubesse nada de nenhum deles (de Cereja ou da morte do Robert e de Dulcie). Ele era banqueiro, era o único dos homens implicados no caso que não tinha nada que ver com o Foreign Office, e Pitt não podia imaginar um espião esbanjando suas energias naquele sarcástico embora mas bem encantador homem bem entrado nos sessenta. E ele tinha um humor inato muito grande para abrigar a vaidade necessária para ser tão ridículo.
—Já sei que Dulcie está morta -admitiu Pitt.-Mas pode ter confiado a outras criadas. As mulheres falam entre elas.
—Onde e quando viu Dulcie, a essa mulher que você diz?
—No patamar do primeiro piso -respondeu Pitt.-Em plena noite.
—Céu santo! Que demônios fazia Dulcie fora de seu quarto em plena noite?
—Tem certeza de que não o sonhou?
—Essa mulher foi vista em outro lugar, senhor, e a descrição de Dulcie era muito boa.
—Está bem, adiante, continue!
—Alta e esbelta, com o cabelo escuro, muito bonita, e usava um vestido de um chamativo tom de cereja.
—Bem, pois certamente eu não a vi.
—Poderia falar com alguma das moças que tivesse especial amizade com Dulcie, e depois possivelmente com a senhora York, sua nora? Soube que Dulcie era sua criada.
—Suponho que sim... se é que é necessário.
—Obrigado, senhor.
Falou com a criada do piso superior, com a do andar térreo, com a lavadeira, com a outra criada pessoal, com a ajudante de cozinha, com a criada e finalmente com a garota aprendiz, mas pelo visto Dulcie tinha sido notavelmente discreta e mantido uma total reserva em todo o referente aos assuntos domésticos de sua senhora. Pitt desejaria que aquela moça não tivesse sido tão honesta, embora nem por isso deixava de sentir uma espécie de satisfação rancorosa. A virtude, do gênero que fosse, sempre preservava um aspecto de doçura em meio de quaisquer circunstâncias. Reservou para Veronica as perguntas referentes à morte de Dulcie. Se for inocente, sabia que era algo cruel, mas naquele momento não podia permitir-se atender a questões de amabilidade. Sua sogra tinha saído, primeiro golpe de boa sorte que tinha Pitt em muito tempo, e Veronica o recebeu no toucador.
—Não sei como posso lhe ajudar, senhor Pitt -disse com gravidade. Vestia-se de um verde bosque profundo que realçava sua natureza ligeiramente etérea. Estava pálida, tinha sombras nos olhos como se tivesse adormecido mal e permaneceu em todo tempo a certa distância dele, sem olhá-lo no rosto, mas com a vista fixa em um quadro com moldura dourada que pendia da parede e representava uma marinha-. Não compreendo a finalidade de voltar uma e outra vez sobre as tragédias do passado. Nada poderá me devolver a meu marido, e nos têm sem cuidado os objetos de prata e o livro roubados. Nós gostaríamos muito mais que não estivessem-nos recordando isso todo o tempo.
Ele se aborrecia por ter que fazer aquilo, mas não conhecia outro caminho. Se houvesse resolvido à primeira vez, se tivesse insistido mais e tivesse sido mais esperto, Dulcie ainda continuaria com vida.
—Vim vê-la em relação à Dulcie Mabbutt, senhora York.
Ela se voltou com rapidez.
—Dulcie?
—Sim. Enquanto esteve nesta casa viu algo de suma importância. Como morreu, senhora York?
Seus olhos não se moveram, e de qualquer forma estava tão pálida que Pitt não pôde detectar mudança alguma nela além da confusão que tivesse podido ver virtualmente em qualquer um.
—Debruçou-se muito por uma janela e perdeu o equilíbrio -respondeu.
—Viu como ocorreu?
—Não... Aconteceu tarde, depois de anoitecer. Possivelmente se tivesse sido de dia... talvez tivesse visto o que estava fazendo e não teria acontecido nada.
—Por que motivo se debruçaria tanto por essa janela?
—Não sei. Talvez visse algo, ou a alguém.
—Em meio da escuridão?
Ela mordeu o lábio.
—Talvez tivesse caído algo.
Pitt não insistiu, a inverossimilhança já era bastante óbvia.
—Quem havia na casa aquela noite, senhora York?
—Toda a criadagem, claro, meus sogros e alguns convidados... pode ser que Dulcie aparecesse para falar com algum dos lacaios ou dos cocheiros dos convidados.
—Nesse caso teriam dado o alarme quando ela caiu.
—Oh. -Veronica se voltou, ruborizada pelo sentimento de haver dito uma tolice-. Naturalmente.
—Quem eram seus convidados? -Sabia a resposta antes que ela respondesse.
—Os senhores Asherson, Garrard Danver e Julian Danver com sua irmã, sir Reginald e lady Arbuthnott, e os senhores Gerald Adair.
—Levava alguma dama um vestido de uma brilhante cor cereja ou magenta, senhora?
—O que? -Sua voz foi apenas um sussurro e desta vez seu rosto adquiriu uma tonalidade tão cinzenta que parecia cera.
—Uma cor cereja ou magenta brilhante -repetiu ele-. É um tom púrpura muito forte, como o das primaveras quando florescem. Ela engoliu em seco e formou com os lábios a palavra não, mas sua garganta não emitiu som algum.
—Dulcie viu nesta casa a uma mulher com um vestido dessa cor, senhora York, acima no primeiro piso... -antes de concluir a frase, ela sufocou um grito e caiu de bruços ao chão, com as mãos estendidas para proteger-se e dando com a cadeira ao cair. Ele se lançou muito tarde para sustentá-la e, depois de tropeçar ele também com a cadeira, ajoelhou-se a seu lado. Ela estava inconsciente e seu rosto à luz do lampião de gás tinha adquirido um tom marfim. Desdobrou-lhe os membros e a levantou-nos braços. Era uma tarefa difícil , porque era um peso morto, mas ao mesmo tempo era tão leve que mal sentia sua entidade corpórea. Deixou-a deitada sobre o sofá, recompôs-lhe as saias até os pés e fez soar a campainha com um puxão tão forte que quase arranca a corda da parede.
Assim que apareceu o lacaio, Pitt lhe ordenou que fosse procurar à criada e que trouxesse sais de cheiro. Sua voz soou arruda e um pouco assustada. Tinha queserenar-se. Notava uma violenta emoção em seu interior, devia ter sido muito torpe e ter provocado esse escândalo pelo qual Ballarat teria pagado qualquer preço por evitar. sentia-se furioso por ter que deixar vítimas a seu passo, furioso e arrependido, como se fosse ele o traidor, porque tinha desejado que não tivesse sido Veronica. Embora por outro lado, com certeza a alegre e atrevida Cereja não teria caído desvanecida ante as primeiras suspeitas de um policial.
A porta se abriu e entrou a criada, uma bonita e ligeira criatura com o cabelo loiro e...
-Deus todo-poderoso! -vaiou, e Pitt também notou que a sala começava a dar voltas-. Emily!
—Oh! -levou a mão à boca e deixou cair o frasco de sais. - Thomas.
—Mas... como? -Por um momento se fez um silenciou de total incredulidade. Logo sua fúria apareceu. -Muito bem! -Explique-se! -grunhiu entre dentes.
—Não faça uma estupidez! -sussurrou ela. -Não levante a voz! -O que aconteceu a Veronica? -ajoelhou-se, pegou os sais, desentupiu-as e as passou com suavidade sob o nariz de Veronica.
—Desmaiou, a você o que parece? Perguntei-lhe por Cereja. Emily, tem que sair daqui. Deve estar louca! A Dulcie a assassinaram e você pode ser a seguinte!
—Já sei que a assassinaram... mas eu não vou. -Seu rosto expressava determinação enquanto olhava a ele desafiante.
—Claro que vai! -pegou-a pelo braço.
Ela se desprendeu dele.
—Não, não irei daqui! Veronica não é Cereja. Conheço-a muito melhor que você! -Emily... -Mas era muito tarde, Veronica começava a mover-se. Abriu os olhos, negros e horrorizados. Em seguida, enquanto recuperava a memória e reconhecia Pitt e Emily, voltou fazer má cara.
—Peço-lhe desculpas, senhor Pitt -disse pausadamente-. Receio que não encontro-me muito bem. Eu... nunca vi à pessoa de quem me falava. Não posso ajudá-lo.
—Nesse caso não a incomodarei mais. Deixo a sua... criada. -Pitt se obrigava a ser educado, amável inclusive-. Lhe rogo me perdoe por havê-la incomodado. Emily fez soar a campainha para chamar o lacaio e logo lhe deu as instruções pertinentes.
—John, por favor, acompanha ao senhor Pitt à porta principal e depois peça a Mary que traga uma infusão para a senhora York.
Pitt a olhou e Emily levantou o queixo olhando-o por sua vez.
—Obrigado -lhe disse, e seguiu ao criado até a rua.
Tomou uma caleche de volta a casa e ao chegar se dirigiu rapidamente à cozinha.
—Charlotte!-Charlotte!
Esta se voltou com inocente surpresa ao perceber a irada voz de seu marido e olhou-o no rosto.
—Você sabia! -disse ele furioso-. Você sabia que Emily estava nessa casa como criada! Deus todo-poderoso, -Perdeu o juízo?
Aquela era a forma equivocada de abordar a sua mulher, e sabia até no momento de recriminá-la, mas estava muito furioso para controlar-se. Por um momento lhe sustentou o olhar, mas em seguida trocou de atitude e baixou os olhos totalmente.
—Sinto muito, Thomas. Não soube até que já era muito tarde, juro-o, e além disso pensei que não havia necessidade de lhe dizer. Não poderia fazer nada. -Levantou a vista com um débil sorriso-. E ali dentro se inteirará de coisas das quais nós não poderíamos nos inteirar.
Deu-se por vencido, desafogando-se com longas e brutais maldições entre dentes antes de trocar a um vocabulário que pudesse usar diante de Charlotte e aceitar a xícara de chá que esta lhe servia.
— Não me importa o que possa inteirar-se! -disse com ferocidade.-pensou em algum momento ao fazer seus estúpidos planos no perigo no qual se colocou? Pelo amor de Deus, Charlotte, nessa casa foram assassinadas duas pessoas! E se a descobrem? O que poderá fazer para ajudá-la? Nada! Nada absolutamente! -Levantou o braço.-Agora está completamente indefesa. Eu não posso chegar a ela. Como pode ter sido tão completamente estúpida?
—Não sou nenhuma estúpida! -replicou ela com veemência, enquanto a indignação lhe corava as faces e os olhos.-Eu não sabia nada de todo isso... já lhe disse! Inteirei-me mais tarde.
-Não trate de me enganar! Você colocou Emily nisto. Ela nunca teria escutado nada de todo este assunto se você não tivesse feito que se intrometesse.-Tira-a dali!-Sente-se e lhe escreva dizendo que vá para casa, que é onde deve estar... agora mesmo!
O rosto dela permanecia inflexível.
—Não há nada a fazer, não se irá.
—Faça-o! -rugiu Pitt.- Não discuta comigo e faça-o!
Nos olhos de sua mulher havia lágrimas, mas nem rastro de obediência ou submissão.
—Não me escutará! -disse furiosa-. Já sei que é perigoso! Acha que não sou capaz de ver os perigos? E também sei que você também está em perigo! Quando se atrasar me sento a esperá-lo aqui em casa me perguntando onde estará, se estará a salvo... ou se estará sangrando no chão de algum beco.
—Isso é um golpe baixo! E não tem nada que ver com Emily -respondeu mais
calmo.-Tira-a dali, Charlotte!
—Não posso.
Ele não insistiu. Estava muito zangado... e muito assustado.
Emily ficou horrorizada ao entrar na biblioteca a pedido de Albert e ver Pitt ali. Por sorte, as circunstâncias lhe tinham dado pouco tempo para expressar seu assombro ou insistir em que ela abandonasse a casa. Quando Verônica recuperou a consciência, Pitt se viu obrigado a guardar silêncio, ou melhor, a não expressar mais que umas breves palavras de desculpa, e a deixar sozinha com sua senhora, recostada nas almofadas, com aspecto de moribunda. Emily sentiu uma pena tão intensa por ela que era como uma ferida, embora se dava conta de que provavelmente não voltaria a apresentar-se uma oportunidade melhor que aquela, com Veronica comocionada e desconcertada, para lhe surrupiar alguma palavra indiscreta a respeito do que a tinha assustado tanto. Agachou-se a seu lado e lhe tocou a mão.
—Senhora, tem mal aspecto -disse com amabilidade-. O que lhe disse esse homem? Não devia permitir-lhe Olhou com tanta intensidade o abatido rosto da Veronica que esta não pôde evitar dar uma resposta.
—Eu... acho que desmaiei-sussurrou por fim. Mentalmente Emily pediu perdão ao Pitt pela injustiça que se dispunha a cometer com ele. Então, com todos os recursos pessoais que era capaz de entesourar, deixou que seus olhos se inundassem de sincera compaixão.
—Ameaçou-a, senhora? O que lhe disse? Não tem nenhum direito! Deveria denunciá-lo: A que veio?
—Não me ameaçou... -apressou-se a dizer Veronica, mas mordeu o lábio, debatendo-se entre a verdade e a mentira-. Não... ele... em realidade se comportou com toda correção. Eu... -Seus olhos se cruzaram com os do Emily e esteve a ponto de continuar falando. O impulso de confiar-se era quase evidente. Emily continha a respiração. Mas o momento passou. Veronica se voltou e escorregaram grossas lágrimas através de suas faces. ergueu-se de costas e fechou os olhos.
Emily desejava rodeá-la com o braço e lhe dizer que a compreendia, que ela também sabia o que era perder ao marido de forma repentina e violenta, sob as horríveis circunstâncias de um assassinato, com o conhecimento de que alguém devia sentir um ódio tão intenso por ele que só a morte tivesse como enchê-lo. E que ela conhecia igualmente essa sensação de medo que cresce dia a dia, medo à confusão, a um mundo que se faz incompreensível e se povoa de segredos, alguns deles abomináveis; e o medo a que a verdade exceda o limite do que é capaz de suportar. E também há o medo a que, por obra do conhecimento, você possa também se converter em uma vítima: e atrás de cada medo, o temor a que tivesse que incorrer em alguma estupidez, em alguma negligência que tenha contribuído a chegar-se à situação presente, uma contínua e crescente sensação de culpa! Quanto a Emily, sentiu deste modo o medo de que a polícia pudesse suspeitar dela. Frente a outros os motivos que teria deviam lhes parecer tão evidentes! Era algo assim talvez o que agora temia Veronica? Sentira-se acossada pelo Pitt? Era terror próprio o que tinha feito que desmaiasse? Ou tinha medo possivelmente por alguém a quem estava protegendo... por alguém como Julián Danver? Era algo muito próprio do Pitt, não tomar o caminho direto, e apontar para o elo mais fraco na cadeia dos fatos: não para o assassino mesmo, mas para a pessoa que parecesse mais suscetível de sucumbir à pressão. Ou o que assustava Veronica, assim como tinha assustado a Emily, eram as pessoas da família de seu marido que acreditavam, na verdade, culpada, ou que queriam que o fosse: e não só por enganos de discernimento, ou produto de um ocasional ato de egoísmo, mas acreditavam ou a queriam literalmente, fisicamente culpada de assassinato?
Aquele era o violento sentimento que dominava a relação entre Loretta e Veronica: que Loretta acreditava sua nora culpada de ter assassinado a seu filho? Estava tomando longa e lenta revanche a seu modo: dia após dia, estreitando o cerco pouco a pouco, caçando as palavras uma a uma até que tivesse a prova completa? Aquilo era uma tortura muito mais sutil que a simples e plana corda do verdugo, com a diferença além disso de que Loretta podia administrá-la por si mesma... e observar.
Ou era a Cereja a quem temia? Ou à margem do medo que agora pudesse sentir, Cereja era ela, e era de seus protetores dos que tinha pavor, agora que a rede parecia fechar-se? Qualquer que fosse a verdade, não era momento de desmascará-la. O momento em que Veronica podia ter falado já tinha passado, e Emily sabia que seria uma insensatez deixar-se levar pela curiosidade. sentia-se um pouco enjoada. Não queria estar na pele da Veronica. Não podia evitar um sentimento de simpatia por ela, inclusive sentia algo assim como identificação. Mas também se sentia zangada consigo mesma, por sua pouca habilidade de julgamento. Suas emoções eram intensas, ela queria proteger às vítimas inocentes e perseguir os culpados de todo gênero, fossem culpados de assassinato, fossem simplesmente de baixeza de sentimentos ou de ódio a seus semelhantes; mas não era capaz de discernir quem eram esses culpados.
—Não quer que a acompanhe para cima, senhora? -ofereceu-se, talvez com menos tato requerido-. antes que venha alguém e... -percebeu do muito que estava se comprometendo e guardou silêncio. Mas Veronica tinha compreendido. Desceu as pernas do sofá e se levantou pouco a pouco, ainda um pouco enjoada.
—Sim... sim, será melhor. -Não havia necessidade de pronunciar o nome de Loretta. Todas as implicações estavam suspensas no ar, no espaço que havia entre ambas, perfeitamente subentendidas. Não havia por que pronunciá-las em voz alta. Lentamente saíram da biblioteca, uma ao lado da outra, atravessaram o vestíbulo e subiram pela escada.
Naquela noite Edith sofreu outro de seus "ataques" e Emily foi requerida para que preparasse os vestidos para o jantar tanto de Veronica como de Loretta.
—Pobre Edith. Deveria ver a um médico -disse com enjoativa doçura-. Eu poderia pedir à senhora York que me deixasse avisar. Tenho certeza de que pareceria-lhe bem, tem em Edith tanta consideração!
Fanny soltou um risinho, que cortou em seco quando se deu conta de que a olhava a governanta.
—Não necessitamos que nos diga o que devemos e o que não devemos fazer, senhorita! -replicou a governanta a Emily-. Nós avisaremos ao médico se for necessário! É algo pródiga em dar conselhos!
Emily afetou inocência e adotou uma leve atitude de ofendida.
—Eu somente desejava ajudar, senhora Crawford, como em tudo o que tenha que ver com o dever para a senhora York. E assim evitar que você tenha que atender algo fora de suas competências habituais.
—Atenderei o que me agrade, senhorita, e nada que seja assunto seu!
—A garota só tratava de ajudar -disse o mordomo, conciliador-. E talvez não seria de mais que viesse o médico ver Edith. Ultimamente tem mais ataques que um velho gotoso!
Libby teve um acesso de risada que quase cai da cadeira.
—Oh, tem você umas coisas, senhor Redditch -disse Bertha com certa admiração.
Nora soprou. Tinha observado as simpatias entre a Bertha e Redditch e, havendo ela mesma tentado em seu momento aquela mesma aproximação e fracassado, olhava-o agora com desdém. Em qualquer caso, toda sua vontade apontava mais alto que um simples mordomo... assim Bertha podia ficar ! Não ia passar o resto de seus dias vivendo em casa alheia! Ela teria uma de sua propriedade, com roupa de casa fina e uma bonita baixela, e uma criada para tudo. Redditch esboçou um ligeiro sorriso de auto complacência: sentir a admiração de alguém era algo muito agradável.
—Controle-se, Libby -disse sentencioso-. Não há para tanto. Sim, senhora Crawford, acredito que Amelia deveria mencioná-lo à senhora York.
—Sim, Amelia -acrescentou Nora aspirando com força. - por que não o faz? Joan abriu a boca para dizer algo, mas mudou de ideia. Entretanto, ficou olhando Emily e meneando a cabeça tão ligeiramente que se poderia pensar queera um efeito ilusório da luz de gás, a não ser pela expressão de advertência de seus olhos.
—Não queimou nenhuma anáguas hoje? -perguntou Nora com sarcasmo.
Emily lhe devolveu o sorriso.
—Não, obrigada. E você? Não derramou a sopa?
—Eu nunca derramo a sopa! Conheço meu trabalho!
—Pois costumava fazê-lo -disse Albert com satisfação. Em sua opinião, Nora se tinha situado um degrau por cima do que lhe correspondia. Ele tinha tratado de mostrar-se amigável com ela, mas esta se considerava a si mesma muito boa para um lacaio ajudante. Tinha lhe repreendido além disso diante da aprendiz-. Recordo quando lhe caiu uma batata nas pernas do embaixador francês.
—Eu também me lembro muito bem de uns quantos enganos teus! -disse Nora com ferocidade-. Quer que os enumere?
—Faça o que deseja muito, estou certo de que o vai fazer -disse Albert lhe tirando importância, embora com o rosto escarnado.
—É claro que sim! O que me diz do dia que pisou na cauda do vestido de lady Wortley? Ainda ouço rasgar o tafetá!
Redditch decidiu assumir o controle.
—Já está bem! -O mordomo se ergueu na cadeira e os olhou com severidade-. Não quero mais desqualificações nem intromissões no trabalho de outras pessoas. Nora, o que disse está deslocado!
Nora fez uma careta de brincadeira a suas costas. Emily se levantou da mesa.
—Se lhe dou uma rajada de ar ficará assim! -disse por todo comentário, o que delatou a outros o que Nora fazia-. De qualquer forma, é hora de que vá para cima.
—Já passou um pouco da hora -acrescentou a governanta.- Considerando que tem duas damas para se ocupar, deveria ter ido faz uns quinze minutos.
—Eu não sabia que Edith ia sofrer outra de suas indisposições -replicou Emily.
—Embora suponha que devia adivinhar isso, a julgar pela frequência que são.
—Não estou disposta a tolerar suas rabugices! -replicou a governanta-.Vigie essa língua, senhorita, se não quiser ver-se na rua e sem uma só recomendação!
—E na rua só há um ofício ao que poder dedicar-se -acrescentou Nora com rancor-. Todos sabemos o que foi de Daisy. E não acredito que você fosse muito melhor fazendo isso. É muito fraca, e tampouco tem boa cor.
—Eu em troca penso que você o faria maravilhosamente! -respondeu-lhe Emily-. Tem a pinta perfeita. Deve se sentir desperdiçada, aqui... e suponho que o está, no fim das contas.
—Oh! -Nora ficou vermelha escarlate-. Nunca me tinham insultado deste modo! -levantou-se e abandonou irritada a sala, batendo a porta ao sair.Albert se pôs a rir entre dentes e Libby escapuliu de novo sob a mesa, afundando o rosto no avental. Só Fanny olhava horrorizada; compreendia o poder do ciúmes por instinto, e tinha visto o bastante para sentir-se assustada ante aquilo.
Emily saiu da sala no mais alto de sua vitória, mas mal tinha chegado à porta quando ouviu como se reproduziam os murmúrios a suas costas.
—Vá alguém ter cuidado! -disse a governanta com brutalidade-. Terá que partir! Recordem minhas palavras. Grandes ares... e com essa voz que põe de senhorita!
—Tolices! -exclamou o mordomo com vivaz. Tem um pouco de caráter, isso é tudo. Nora leva pavoneando-se por aqui muito tempo, já era hora de que alguém fizesse-lhe sombra. O que acontece é que não está acostumada a que haja outra garota tão bonita como Amelia.
—Bonita! Amelia? -A governanta deu um pulo-. Magra como um coelho raquítico, e com esse cabelo tão deslustrado, e tem a pele como um balde de esfregar. Se quiser saber minha opinião, parece-me que não transborda saúde!
—Pois ao menos tem algo mais que Edith! -disse Redditch com satisfação.
Emily fechou a porta sobre a exclamação afogada de raiva da senhora Crawford, percorreu o corredor que levava a porta estofada de verde e subiu a escada principal. Quando Emily dispôs a roupa de Veronica e entrou no quarto de Loretta, esta já a estava esperando. Durante uns minutos a dama se limitou a lhe dar instruções, de forma quase maquinal, até que no final pareceu como se tivesse querido ordenar suas ideias antes de falar:
—Amelia?
—Sim, senhora? -Emily captou a mudança de tom; agora havia um matiz peremptório. Ou só estava nervosa?
—encontra-se indisposta a senhorita Veronica esta noite?
Emily meditou a resposta. Se ao menos soubesse algo mais a respeito de Loretta e da relação que tinha tido com seu filho. Tinha sido um matrimônio arrumado? Tinha escolhido Loretta a Veronica? Ou tinham apaixonado esta e Robert, contra os desejos de Loretta? Talvez tinha sido uma dessas mães possessivas para as quais nenhuma mulher tivesse sido suficientemente boa para casar-se com seu filho.
—Sim, senhora, acredito que sim. - Devia tomar cuidado. Se Veronica a contra dissesse, Emily criaria um conflito ao traí-la ante sua sogra e ao mesmo tempo destruiria a confiança que ela mesma precisava ganhar se queria inteirar-se de algo-. Eu não gosto de lhe perguntar, para não parecer intrometida.
Loretta estava sentada em uma cadeira em frente do móvel toucador. Seu rosto era grave, os azuis olhos dilatados. Seu profundo e ondulado cabelo caía em cascata e emoldurava a perfeita pele rosa e branca de seu rosto.
—Amelia, tenho que confiar em si. -Olhou a Emily nos olhos através do espelho-. Veronica não é muito forte, sua saúde necessita de cuidados, às vezes talvez mais do que ela pensa. Espero que me ajude a protegê-la. Quero que compreenda que sua felicidade é muito importante para mim. Não é somente por que tenha sido a esposa de meu filho, mas sim, dado o tempo que leva vivendo aqui, estamos muito unidas.
Emily punha toda sua atenção. Por um momento ficou como hipnotizada pelo firme e fixo olhar do espelho.
—Sim, senhora -referendou hesitante aquela mentira... Ou não o era? Podia aquela violenta emoção existente entre as duas mulheres ser uma forma de amor, de dependência e ressentimento? Como podia ela achar a resposta? Tinha que comportar-se como uma criada, sem por isso perder ocasião de conhecer. teria se informado já Loretta da visita do Pitt? Emily sabia que não podiam pegá-la em mentira, do contrário a expulsariam e teria fracassado por completo.
—É claro eu farei tudo o que possa -respondeu com um sorriso nervoso-. A pobre senhora parece tão... -Qual era a palavra adequada? Assustada? Aterrorizada era a verdade.
—Mas do que? Loretta a olhava com expectativa.
—Delicada -concluiu Emily com desespero.
—Parece-lhe isso? -Arqueou suas perfeitas sobrancelhas-. O que a faz dizer isso, Amelia?
Emily se sentiu ridícula. Parecia-lhe que não podia responder com a verdade; só podia recorrer a respostas tolas. Estavam pondo a prova sua lealdade, para ver se explicava sobre o desmaio de Veronica daquela tarde, que Albert tinha presenciado e podia ter contado? Não havia tempo para especulações. Respondeu por instinto.
—Sofreu um desmaio esta tarde, senhora. Passou-lhe logo e depois parecia achar-se bem de novo. -Aquilo podia não ter muita importância. As damas sofrem desmaios; os espartilhos apertados, os talhes estreitos não muito mais de um palmo a põem a uma muitas vezes doente.
Loretta deixou de brincar com os grampos na bandeja de prata do toucador.
—Seriamente? Não sabia. Obrigado por me dizer isso Amelia. Fez o que devia. No futuro me dirá algo que tenha que ver com a saúde da senhorita Veronica e me informará se está aflita ou se a vir nervosa, para que eu possa lhe dispensar toda a atenção que necessita. Está passando por um momento muito importante em sua vida. Breve vai comprometer se em matrimônio com um homem muito diferente. Estou muito preocupada com tudo aquilo que possa pôr em perigo sua felicidade.
—Compreende o que quero dizer, Amelia?
—Oh, sim, senhora -disse Emily com um sorriso forçado-. Farei tudo o que esteja em minha mão para ajudar.
—Bom. Agora pode me pentear, e será melhor que se apresse, porque tem que fazê-lo também em Veronica.
—Sim, senhora. vê-se que Edith se encontra mal outra vez.
Emily a olhou pelo espelho e viu em seus olhos uma expressão séria, que a alarmou por inesperada: delatavam uma acuidade de percepção desconcertante.
—Amanhã estará muito melhor -disse Loretta com convicção-. Prometo-lhe isso.
Com efeito, Edith se levantou na manhã seguinte com as galinhas, embora estivesse com um humor terrível. Fosse o que fosse que lhe tivessem dito, o certo é que culpou Emily por isso e supôs um motivo de rancor por ela. Seguia a Emily a todas partes, fiscalizando seu trabalho -em especial a prancha, que sabia que era seu ponto mais fraco - , criticando o menor engano, até que Emily perdeu a paciência e disse-lhe que era uma gorda, folgazona e suja criada, e que se pusesse nem que fosse só a metade de esforço em fazer seu trabalho do que punha em intrometer-se no de outros, ninguém teria necessidade de cobrir seu serviço.
Edith lhe verteu um balde de água fria por cima. A primeira reação de Emily foi desforrar-se e sacudir Edith com todas suas forças em seu estúpido rosto. Mas isso teria feito que a despedissem, sem dúvida, e então não poderia descobrir nada. De modo que tomou o caminho oposto e se plantou em meio da lavanderia, tiritando e gotejando. Joan, que tinha ouvido Edith gritar furiosa, apareceu pela porta e viu Edith com o balde vazio na mão e Emily em seu patético estado.
Emily se perguntou que aspecto devia ter, furiosa pelo quão absurda era toda aquela situação, e se horrorizou ante a ideia de ficar a rir sem aparente razão. Para suavizar a ligeira histeria que sentia crescer em seu interior, levou o avental ao rosto e afogou a risada entre suas amplas dobras. Joan desapareceu e ao cabo de dois minutos acudiu o mordomo, com o rosto encarnado e as costeletas arrepiadas.
—Edith! Que demônios lhe passa, menina? Será melhor que fique aqui até que a senhora York necessite de você e ponha a engomar todos os lençóis que restam.
—Esse não é meu trabalho! -protestou Edith.
—Feche a boca e fixe o que lhe dizem! E hoje fica sem comer, e talvez também amanhã, se voltar a me dizer uma rabugice! -voltou-se para ela e a rodeou com o braço, sustentando-a com mais firmeza do que o necessário-. Vamos, tire essa roupa molhada e agora Mary lhe levará uma xícara de chá. Não lhe fez nada, logo estará bem. Vamos, vamos. Deixa de chorar, ou vais adoecer de verdade.
Emily não sabia se poderia; sua risada se parecia muito ao pranto para reprimi-la com facilidade. depois da solidão passada, do frio, da tensão e do estranhamento, era um alívio deixar-se ir e dar rédea solta aos sentimentos. Sentia a seu redor o braço do Redditch, quente, surpreendentemente forte. Era agradável senti-lo e se abandonou a ele, mas então foi a sua mente o horrível pensamento de que Redditch pudesse interpretar mal aquele abandono. Tinha notado que parecia gostar dela de verdade, e de fato a tinha defendido mais de uma vez. Só lhe faltaria isso para perder por completo o controle da situação! Fundou com força, impôs-se a si mesmo moderação, deixou cair o avental e se ergueu.
—Obrigada, senhor Redditch. Tem razão, não foi mais que a impressão porque a água estava fria. -Não devia esquecer que se supunha que era uma criada. Não podia permitir-se a menor arrogância, nem a classe de distância que uma dama podia afetar-. Obrigado. É muito amável.
Ele afastou o braço a contra gosto.
—Tem certeza?
—Oh, sim... sim, obrigada! -desprendeu-se pouco a pouco, desviando o olhar. Aquilo era ridículo! Estava pensando nele como homem, não como mordomo! Embora, pensando melhor, ele era um homem! Todos os homens são homens! Não seria antes a sociedade que era ridícula?
—Obrigada, senhor Redditch -repetiu-. Sim, irei trocar me. Estou gelada, irá muito bem uma xícara de chá bem quente. -voltou-se e saiu disparada da estadia em direção ao corredor e as escadas. Quando voltou a descer à cozinha todos se inteiraram do incidente e foi recebida com olhares de assombro, murmúrios e algum outro risinho dissimulado.
—Ignora-os! -disse Mary em voz baixa, enquanto lhe trazia uma xícara fumegante e se sentava junto a ela. Baixou a voz ainda mais até que se fez quase inaudível-. De verdade lhe disse todas essas coisas? Como a chamou?
Emily tomava o chá com cuidado, com as mãos ainda lhe tremendo.
—Disse-lhe que era uma gorda, porca e preguiçosa -respondeu em um sussurro.
—Mas não o diga a ninguém: A senhora Crawford me expulsaria! Suponho que Edith leva aqui anos e que a senhora Crawford já a conhece.
—Não, nem tanto. -Mary se aproximou um pouco mais-. Só leva aqui dois anos, e a senhora Crawford três.
—Parece como se todo mundo fosse novo -disse Emily com naturalidade-. Como é isso? É um bom lugar: uma casa agradável, bom salário, e a senhorita Veronica não é uma pessoa difícil.
—Não sei. Suponho que deve ser por causa do assassinato. Nunca ouvi ninguém dizer que fosse partir, mas todos o fizeram.
—Que tolice. -Emily mantinha o tom de voz normal, mas era presa de uma viva emoção. Parecia-lhe que podia estar perto de um descobrimento real-. É que pensavam que o assassino ia matar a alguém mais...? Oh! -Fingiu assombro e espanto, enquanto girava sobre sua cadeira de madeira para olhar a Mary-. Você não acha que Dulcie foi assassinada, verdade?
Os olhos de Mary, azuis como a porcelana da cozinha, olhavam-na com incredulidade. E então, pouco a pouco, a possibilidade foi cobrando forma e Emily teve medo de ter ido muito longe. Uma segunda criada presa de histeria em um mesmo dia seria motivo suficiente para pô-la na rua sem nenhuma desculpa. Nem sequer Redditch poderia salvá-la. Deveria morder a língua antes de ser tão imprudente.
—Quer dizer se a empurraram pela janela? -A voz de Mary era quase inaudível.
Mas era feita de madeira mais robusta que a do Edith; não caía tão facilmente em histerismo, que costumavam irritar as pessoas e que os homens odiavam. Tinha além disso uma mente bastante acordada; sabia ler e guardava um bom monte de novelas sob o travesseiro de seu quarto no piso de cima. Sabia tudo sobre o crime- Bom, Dulcie estava aqui quando o pobre senhor Robert foi assassinado -disse com um imperceptível movimento afirmativo-. Talvez visse algo.
—Você também estava aqui, não? -Emily tomou um agradecido gole de chá-. Bom, será melhor que tome cuidado. Não fale com ninguém de nada do que aconteceu então! Viu algo?
Mary era aparentemente inconsciente do contraditório das instruções de Emily.
—Não, eu nunca vejo nada -disse com pesar-. A gente importante não entra nunca na cozinha, e eu mal saio dela. Eu então não era mais que a criada.
—Tampouco viu alguma vez alguém estranho rondar pelos pisos superiores? Gente que não deveria estar ali...
—Não, nunca.
—Como era o senhor Robert? Outros deviam falar dele.
O sobrecenho da Mary se franziu pensativo.
—Pois, Dulcie dizia que era muito exigente, gostava de ordem, mas sempre educado... bom, educado como todas as pessoas de sua classe. Mas, por exemplo, o senhor York pai também é sempre educado, mas terrivelmente desordenado. Deixa as coisas por qualquer lugar e é espantosamente esquecido. Sei que estava acostumado a sair muito. James, que era o lacaio de então, sempre estava dizendo que o senhor Robert estava fora outra vez, mas era pelo trabalho do senhor Robert. Era algo muito importante no serviço de Exteriores.
—O que foi feito de James?
—A senhora York se desprendeu dele. Disse que, como o senhor Robert tinha morrido, já não era necessário. Mandou-o embora no dia seguinte, aproveitando que não sei que lorde procurava um criado, e ela o ofereceu.
—A senhora Loretta?
—Oh, sim, é claro que sim. A pobre senhorita Veronica não estava em condições de fazer nada. Tinha uma pena terrível, estava em um estado espantoso, pobrezinha.
O senhor Robert era tudo para ela. Adorava-o. Não é que a senhora Loretta não estivesse afetada, claro. Branca como um fantasma, dizia Dulcie que ficou-. Mary inclinava-se tanto que seu cabelo roçava a face do Emily-. Dulcie me disse que a tinha ouvido chorar dando gritos espantosos durante a noite, mas que não se atreveu a entrar, porque não podia fazer nada. As pessoas precisam chorar, é algo natural.
—É claro que sim. -Emily se sentiu de repente como uma intrusa. Que demônios estava fazendo ali, na casa de uma desgraçada mulher, enganando a todo mundo fazendo-se passar por uma criada? Não era de estranhar que Pitt estava furioso! Certamente ele também a repudiaria.
—Vamos -interrompeu a senhora Melrose suas reflexões-. Tome o chá, Amelia. Mary tem coisas que fazer, embora você não tenha! E eu em seu lugar vigiaria minha língua, amiga minha. Não banque a esperta! Edith é uma folgazona respondona, e desta vez você saiu bem livre... Mas procurou inimigos! E agora, venha, beba isso e mova-se!
Era um conselho excelente e Emily lhe agradeceu com doçura e a obedeceu com tal prontidão que surpreendeu a ambas.
Os seguintes dois dias foram de intranquilidade. Edith respirava um ressentimento ao qual não se atrevia dar saída, mas por isso mesmo era mais amargo e Emily sabia que a jovem não fazia senão esperar sua oportunidade. A governanta se sentia de algum modo derrotada e achava constantemente faltas insignificantes para criticar Emily, o que provocava repreensões para a governanta até que todo mundo acabava verdadeiramente alterado. A lavanderia se converteu em seu único santuário, desde o momento em que Edith tinha arquitetado para livrar-se uma vez mais de engomar. machucou o pulso e a prancha era muito pesada para ela. A senhora Crawford tinha conseguido tirara-la daquilo, embora não tivesse conseguido impor-se sobre o Redditch no assunto da comida, de modo que duas deliciosas comidas tinham corrido durante dois meio-dias sem a presença de Edith. A senhora Melrose parecia ter realizado um esforço especial. Como era costume, a criadagem compartilhava o bom vinho da adega familiar. De noite, depois do jantar, bebiam todos chocolate quente e jogavam a jogos nos quais Edith não participava.
O único problema imediato de Emily era achar o modo de manter a distância a amizade de Redditch sem machucar seus sentimentos e perder seu amparo. Nunca tinha tido que ser tão diplomática em toda sua vida, e tal coisa supunha além disso uma fonte de tensão considerável. Procurou refúgio em uma atenção em excesso diligente e pouco natural por Veronica. Assim é que se viu no toucador da dama no meio da tarde no momento em que Nora anunciou a visita do senhor Radley, que perguntava se a senhorita Veronica desejaria vê-lo.
Emily se ruborizou. O livro que tinha estado lendo em voz alta lhe escapou do regaço e caiu ao chão. Tudo aquilo tinha começado como uma aventura, mas não tinha certeza se desejava de verdade que Jack a visse como uma criada.
Levava o cabelo penteado para trás, em um estilo muito menos adulador que de costume, e não trazia ruge no rosto -como criada não lhe estava permitido, salvo se a cor fosse por natureza, claro está-, e como não saía de casa em nenhum momento, e dormia naquela fria cama, e se levantava tão cedo, tinha sombras sob os olhos e tinha certeza de que tinha emagrecido. Talvez até parecesse na verdade um coelho raquítico! Veronica era magra, mas em suas magníficas roupas não parecia senão delicada.
—Oh, sim, por favor -disse Veronica com um sorriso-. Que amável de sua parte. Vem à senhorita Barnaby com ele?
—Não, senhora. Faço que entre aqui? -Nora lançou um fugaz olhar para Emily para insinuar que saísse.
—Sim, faça-o. E que a senhora Melrose prepare um pouco de chá e sanduíches, e uns docinhos.
—Sim, senhora. -Nora saiu agitando as saias em torno da porta antes de fecha-lá. Em sua opinião, as criadas não tinham por que estar presente durante as visitas dos cavalheiros. Conhecer estes era privilégio das copeiras.
Jack entrou ao cabo de um momento, com um amplo sorriso, desenvolto e cheio de vida. Nem sequer olhou a Emily, mas seu rosto se iluminou ao ver a Veronica, e esta lhe ofereceu a mão. Emily sentiu um vivo rechaço, quase como se tivessem-lhe dado um golpe. Era uma estupidez. Se tivesse falado primeiro a ela, teria estragado tudo, e ela se enfureceu com ele. E entretanto se sentia doída pelo fato de que ele tivesse desempenhado seu papel à perfeição. Tinha-a tratado como a uma criada, não como a uma mulher.
—Que amável é você ao me receber -disse com calor, como se não fosse uma mera convenção social-. Deveria ter enviado um cartão, mas é que vim em um impulso. Como se encontra? ouvi que aconteceu na casa um fato desgraçado-. Espero que já tenha começado a superá-lo.
Veronica lhe pegou a mão.
—Oh, Jack, foi algo espantoso. A pobre Dulcie caiu por uma janela e se precipitou contra o chão. Não compreendo como pôde acontecer algo assim-. Ninguém viu nada!
Jack! Tinha-lhe chamado por seu nome de batismo com tanta naturalidade que por força devia ser o modo em que pensava nele, inclusive depois de todo o tempo que tinha passado. por que não se casou com ele quando se conheceram pela primeira vez? Pelo dinheiro? Pelos pais dela? Sem dúvida deviam rechaçar a alguém como Jack, sem expectativas. Deveriam escolher em seu lugar ao Robert York, um filho único que tinha ambas as coisas, dinheiro e ambições. Pior, e ela? Teria preferido ela ao Jack? E o que era imensamente mais importante: teria preferido ele a ela?
Falavam como se Emily não estivesse ali; Poderia ser uma almofada a mais da poltrona. Veronica tinha a vista levantada para o Jack, com as faces acesas, e parecia mais feliz do que jamais Emily a tinha visto. A luz se refletia em seu cabelo como sobre seda negra, e tinha as pupilas dilatadas. Em seu rosto havia algo mais que beleza... Havia personalidade e paixão. Emily foi presa de um torvelinho de sentimentos que lhe amontoavam na garganta de tal modo que acreditou por um momento que ia afogar se. Como Amelia, gostava de Veronica, a quem compadecia porque se dava conta de que havia algo que a fazia desesperadamente infeliz. Enquanto permanecia sentada como uma idiota observando a Jack, se revelou com toda clareza que Veronica tinha uma velha ferida interior que supurava cada dia.
Estava ainda aflita pelo Robert? Ou era medo? Tinha medo porque sabia algo -ou porque não sabia-, e seu sentimento de insegurança deformava tudo? E ao mesmo tempo Emily se sentia consumida pelo ciúmes. E o ciúmes lhe devolviam a agonia de ver como George se engraçava por Sybilla, de saber que o homem a quem amava preferia, adorava a outra. Era uma dor como não havia outra, e o fato de que George tivesse renunciado a sua aventura antes de morrer não apagava de seu espírito o saber que era sentir-se rejeitada. Não tinha passado o tempo suficiente para que se curasse de todo a ferida.
Emily não podia evitar ver a Veronica como uma rival. Jack tinha começado sendo uma diversão, um passatempo gracioso e encantador com o que entreter- e; depois se tinha convertido em um amigo com o que era muito mais agradável estar que com qualquer outra pessoa, à exceção de Charlotte. Mas agora era já uma parte de sua vida que não podia perder sem um profundo sentimento de abandono. Agora aí estava, rindo e conversando com Veronica, e Emily sem poder sequer falar nem lutar por obter sua atenção. Era um tipo de dor que nunca havia sentido antes. Em outras circunstâncias teria pensado no que devia supor ser sempre uma criada, condenada a olhar e nada mais. Mas naquele momento estava cheia de sua própria ira e de sua própria dor e não tinha tempo para ninguém mais.
O melhor seria escapulir-se dali. As criadas não têm por que ficar na sala como se fossem convidadas. Nem sequer teve que desculpar-se; isso também era desnecessário, uma interrupção. Limitou-se a levantar-se e sair nas pontas dos pés. Jack nem sequer voltou à cabeça. Da porta lhe olhou por cima do ombro, mas ele continuava sorrindo para Veronica, Emily podia não ter existido.
Charlotte se assustou quando Pitt lhe descreveu o perigo que corria Emily, mas não estava em suas mãos salvar a sua irmã. Embora Charlotte fosse a casa dos York tão frequentemente como pudesse, não poderia resgatar a Emily de entre as xícaras de chá e os canapés de pepino. O único consolo era que não acreditava em realidade que Veronica fosse Cereja. Pelo que dizia Pitt, não tinha têmpera para ser uma espiã.
Charlotte voltou a falar do assunto no dia seguinte, com a esperança de aliviar a desavença surtida entre eles.
—Se essa mulher for uma espiã, não deveríamos delatá-la, pelo bem do país?
—Não, não deveríamos -disse ele com ênfase-. Eu deverei.
—Mas nós podemos ajudar! Ninguém de Hanover Close quererá falar com você, porque é polícia, enquanto que nós não chamamos a atenção. Não consideram que tenhamos cérebro suficiente para que precise nos mentir!
Pitt resmungou e arqueou as sobrancelhas. Olhou-a com intensidade e ela decidiu ignorá-lo. Seria melhor deixar o assunto, não fosse que lhe proibisse ir a casa dos York: a verdade era que não queria ter que lhe desobedecer. Preferia evitar outra briga. Possivelmente ela não ia permitir que Emily enfrentasse a nenhum perigo ali sozinha, mas nada do que pudesse dizer acreditaria Pitt. Se agora se mostrava muito mal, faria que ele suspeitasse, assim se limitou a reatar o jantar e falar de outro assunto.
Na manhã seguinte, tão logo Pitt saiu de casa, escreveu uma carta ao Jack Radley e mandou a Gracie que a pusesse no correio das dez. Enquanto engomava as camisas de Pitt, Charlotte fazia planos.
Foi no sábado, dois dias mais tarde, quando os levou a prática, depois que Jack fora vê-la e lhe contasse os pormenores de sua visita a Veronica York. Emily estava na sala de sua rival, mas tinha partido ao cabo de pouco. Ele tinha temido encontrá-la pálida e com aspecto desventurado, embora não se atreveu mais que lhe lançar algum fugaz olhar. As notícias em torno de Emily não eram boas, mas Charlotte se alegrava de o ver tão preocupado por ela. Ao olhar a seu rosto, que em geral não revelava outra coisa que o encanto e o superficial prazer que a sociedade esperava, viu algo do homem por debaixo da máscara, e o que viu gostou. Possivelmente ver Emily em perigo era justamente o que necessitava, para demonstrar que encerrava em seu interior a profundidade de sentimentos que Charlotte desejava para sua irmã.
Em consequência, naquela tarde saiu sozinha da casa de Emily com o coração alegre e certo sentimento de diversão, vestida com um dos vestidos velhos de sua irmã, alongado prudentemente aqui e ali, pois ela era uns centímetros mais alta e mais generosa de busto que Emily. Era um vestido dourado escuro, da cor do xerez antigo, que assentava extraordinariamente bem a sua tez cálida e às tonalidades castanho avermelhadas de seu cabelo. Escolheu um chapéu adornado com peles negro e regalos a jogo. Em poucas vezes, em toda sua vida tinha levado um conjunto invernal que a favorecesse tanto.
Tinha enviado uma carta a Veronica e tinha recebido resposta, de modo que sabia que a esperavam. Usou a carruagem de Emily, com a esperança de que ninguém se desse conta. E se lhe perguntassem, explicaria que o tinha emprestado por comodidade, pois lady Ashworth estava fora da cidade.
Veronica a esperava na sala das visitas e o rosto se iluminou de prazer quando viu aparecer Charlotte. ficou de pé imediatamente.
—Que agradável voltar a vê-la. Estou muito contente de que tenha vindo. Sente- se. Teria preferido que não fizesse um frio tão terrível, mas penso de todo modo que deveríamos ir dar um passeio de caleche, embora só seja por sair das mesmas paisagens de sempre. A menos que goste de ver outra vez a exposição de inverno...
Charlotte viu em seus olhos a ansiedade com que esperava uma resposta.
—Não, claro que não... um passeio de caleche me parece uma ideia excelente - respondeu com um sorriso. Não era aquilo o que tinha planejado, mas talvez servisse também, e de resto tinha que facilitar a amizade com Veronica. A sós juntas em uma carruagem, a salvo de interrupções, podia ser uma boa situação para surrupiar alguma confidência-. eu adoraria -disse além disso.
Veronica se distendeu, afrouxando a rigidez de seu esbelto corpo. Sorriu:
—Que bom. Eu gostaria que me chamasse de Veronica, se me permitir que a chame Elisabeth.
Por um instante Charlotte se viu surpreendida: quase tinha esquecido seu pseudônimo.
—Certamente! -disse depois de uma hesitação, acrescentou se por acaso Veronica pensava que o desaprovava-: É muito amável. Aonde quer ir?
—Pois eu... -Suas pálidas faces adquiriram uma ligeira cor e Charlotte compreendeu imediatamente; ainda não estava preparada para entregar-se a ta confiança.
—Por que não nos deixamos levar pela intuição? -sugeriu Charlotte com tato-. Com certeza nos acontece algo bonito uma vez que nos tenhamos posto em marcha. Veronica se sentiu aliviada.
—Que compreensiva é. -O mau momento tinha passado sem necessidade de explicações, por isso se sentia agradecida-. Passou bem desde o dia quefomos visitar a exposição?
Charlotte teve que improvisar sobre a marcha.
—Se quiser que lhe seja sincera, não tenho feito nada que valha a pena contar.O sorriso de Veronica expressou compreensão. Ela tinha aguentado anos como viúva modelo, esposa correta e, antes de tudo isso, jovem recatada em busca de um matrimônio conveniente. Tinha um conhecimento íntimo do aborrecimento.
Charlotte estava a ponto de mudar de assunto quando entrou Loretta, em cujo rosto desenhou-se uma educada surpresa.
—Boa tarde, senhorita Barnaby -disse-. Que amável de sua parte vir a nos visitar. Espero que se encontre bem, e que esteja desfrutando de sua estadia em Londres.
Antes que pudesse achar uma resposta apropriada, Veronica lhe deu uma mão anunciando seus planos.
—Vamos sair em passeio de caleche.
Loretta arqueou as sobrancelhas.
—Com este tempo? Mas, querida, faz um frio terrível e parece que nevará outra vez.
—O frio é tonificante -disse Veronica-. E morro por tomar um pouco de ar fresco.
As comissuras dos cheios lábios de Loretta esboçaram um leve sorriso.
—Vai visitar alguém?
Desta vez Veronica não se apressou tanto, e seus olhos se desviaram dos de sua sogra.
—Eu... pois...
—Não o decidimos -a interrompeu Charlotte, sem deixar de sorrir a Loretta-. Tínhamos pensado nos deixar levar a nosso desejo.
—Perdão, como disse?
—Não o decidimos -repetiu Veronica, caçando ao voo a evasiva-. Pegaremos a carruagem para passear por prazer. Ultimamente saí muito pouco. Estou certa de que me assentará bem um pouco de ar fresco. Sinto-me um pouco fraca.
—Mas e a senhorita Barnaby? -Inquiriu Loretta-. Ela não está fraca absolutamente, mas parece gozar de uma saúde robusta.
Charlotte sabia que ela não encaixava com os rostos pálidos e lânguidos tão na moda, mas não se preocupava.
—Eu adorarei dar um passeio em carruagem -insistiu-. Talvez podemos ver lugares bonitos.
—É muito amável -disse Loretta com frieza-. Eu pensava que talvez tinha-lhes ocorrido ir visitar Harriet Danver.
As três sabiam que queria dizer Julian, mas mantiveram a ficção. Com o apoio moral de Charlotte, Veronica se sentia mais valente. Desta vez aguentou o olhar de Loretta.
—Não -disse com suavidade-. Só dissemos que seria agradável dar um passeio em carruagem. pensei que poderia mostrar à Elisabeth alguns dos lugares elegantes de Londres que ainda não viu.
—Com este tempo? -insistiu Loretta-. Não faz sol e as quatro terá escurecido-. De verdade, querida, o que diz não tem nenhum sentido prático.
—Então será melhor que nos apressemos. -Veronica não estava disposta a que a dissuadissem. Seu caráter se estava fortalecendo. Charlotte o via no porte de sua cabeça e na crescente rapidez de suas respostas.
Loretta sorriu com doçura, para em seguida pegá-las de surpresa:
—Nesse caso irei com vocês. Assim se decide ir ver os Danver não estará sozinha, que seria do mais improcedente. Ao fim e ao cabo é sábado e o senhor Danver pode ser que esteja em casa-. Não devem pensar mal de nós.
De repente Veronica pareceu presa de pânico, como se sentisse apanhada em uma rede e cada gesto para livrar-se não conseguisse senão apertá-la com mais força. Charlotte podia ver como lhe subia e baixava o peito em seu esforço por respirar, e como se pegava com as mãos aos lados do vestido como se fosse puxar a saia.
—Mas se Elisabeth estará comigo! -levantou a voz com aspereza, perdendo quase o controle-. Conheço muito bem as normas! Eu...
Loretta a olhava fixamente com olhos atentos, quase admoestadores, e com um sorriso tenso nos lábios.
—Minha querida menina...
—Que generoso de sua parte. -Charlotte se arrependeu imediatamente de ter intervindo: teria sido talvez mais rentável para ela deixar que a cena se desenvolvesse por si mesma. Deveria ter pensado mais como investigadora e menos como amiga. Mas já era muito tarde-. Estou certa de que desfrutaremos de sua companhia, especialmente se dermos um passeio pelo parque -disse pensando no rude vento que açoita a erva a campo aberto e que emite seus gemidos por entre os ramos nus das úmidas árvores. Mas Loretta não se desalentava tão facilmente.
—Senhorita Barnaby, acredito que quando sair fora mudará de ideia, mas se isso é o que deseja, então eu a esperarei no interior da carruagem.
—Vai congelar! -disse Veronica com desespero.
—Sou muito mais forte do que pensa, querida -respondeu Loretta sem alterar a voz.
Quando Veronica se voltou, Charlotte se surpreendeu ao ver lágrimas em seus olhos. De que natureza era essa emoção tão intensa que havia entre aquelas duas mulheres? Veronica tinha medo. Charlotte tinha visto o medo suficiente número de vezes para reconhecê-lo. Entretanto Veronica não era de caráter submisso, e agora que Robert estava morto não tinha por que atender a seus sentimentos na hora de tratar com sua mãe. Não tinha preocupações econômicas e no que parecia menos interessada era em voltar a casar-se, por que tinha tanto medo? Tudo o que fizesse Loretta, ao menos na aparência, não podia redundar a não ser em seu interesse.
Se ao menos Charlotte tivesse sabido o tipo de matrimônio que tinha feito, como tinha começado. Adorava Loretta a seu único filho e tinha sido muito exigente com sua nora?Misturou-se no casal, tinha-os criticado ou expresso abertamente seu desencanto por não ter nenhum neto? Podia haver um bom número de paixões ou de penas detrás da emoção principal que atava aquelas duas mulheres.
O tenso silêncio se rompeu quando a porta se abriu e entrou Piers York. Charlotte não o tinha visto nunca, mas reconheceu-o imediatamente pela descrição de Pitt: elegante, um pouco sobre carregado de ombros, rosto malicioso que expressava bom humor e autocrítica.
—Ah! -disse com comedida surpresa ao ver Charlotte.
Veronica se esforçou por sorrir: uma alegria irreal, uma paródia.
—Papai, esta é a senhorita Barnaby, uma nova amiga que teve a bondade de vir visitar-me, íamos dar um curto passeio de caleche.
—Que ideia tão excelente -acordou ele-. Faz bastante frio, mas será melhor que estar sentada dentro de casa todo o dia. É um prazer conhecê-la, senhorita Barnaby.
—Encantada, senhor York. -Era o tipo de homem que gostava sem necessidade de reparar nisso-. Agrada-me que nos dê sua aprovação. A senhora York -olhou a Loretta- temia que não pudéssemos desfrutar do passeio pelo frio que faz fora, mas eu penso do mesmo modo, que faça o tempo que fizer sempre é bom sair um pouco, embora só seja para apreciar melhor o fogo da lareira quando a gente volta.
—Que jovem tão sensível -sorriu ele-. Não compreendo por que a moda admira tanto a essas jovens criaturas lânguidas que mintam dizendo que todo lhes aborrece. Elas sim, não têm nem ideia de quão tediosas são. Compadeço-me do homem que é o bastante ingênuo para casar-se com uma delas. Isso sim que é dar gato por lebre!
—Piers! -exclamou Loretta com azedume-. Por favor, guarde essa lamentável linguagem para suas reuniões no clube! Aqui não tem lugar, vai ofender a senhorita Barnaby.
Ele parecia surpreso.
—Oh, sinto muito. Ofendi-a? Asseguro-lhe que eu só queria dizer que alguém pode ter muito pouca ideia a respeito da autêntica natureza de uma pessoa se a julgar pelo tipo insubstancial de sociedade que são único a uma pessoa é permitido dizer antes de casar-se.
Charlotte esboçou um aberto sorriso.
—Não me ofendeu absolutamente. Sei muito bem o que quer dizer. E logo é claro, quando a pessoa descobre, já é muito tarde. A senhora York estava nos dizendo que se íamos à casa dos Danver, Veronica tinha que ir acompanhada. Mas eu gostaria de lhes assegurar que não faremos nada que possa dar motivo de falatórios, dou-lhes minha palavra.
—Estou segura de que suas intenções são boas, senhorita Barnaby, mas isso não basta em sociedade -disse Loretta com firmeza.
—Tolices -lhe contradisse Piers-. Tudo é perfeitamente correto. De qualquer modo, quem vai inteirar se? Harriet certamente não dirá nada.
—Será igualmente correto se eu for com vocês -insistiu ela, dando um passo para a porta-. O momento é muito delicado.
—Pelo amor de Deus, deixa de preocupar-se com tolices, Loretta! -disse ele com uma brutalidade incomum. - Leva muito longe seus cuidados por Veronica. Danver é um tipo muito decente, e nada chapado à antiga. A senhorita Barnaby é uma acompanhante perfeita, e teve a bondade de oferecer-se ela.
—Piers, não o entende. -A voz de Loretta enrouqueceu pela veemência de sua emoção-. Eu gostaria que aceitasse meu parecer. Há muito mais coisas do que você vê.
—Por um passeio de caleche? -Sua incredulidade estava cheia de aborrecimento.
Loretta tinha empalidecido.
—Há coisas delicadas, coisas que...
—Ah, sim? Quais, por exemplo?
Ela estava furiosa, mas não tinha uma resposta preparada para ele. Charlotte olhou Veronica e se perguntou se aquela breve escapada valeria os inconvenientes que traria.
—Vamos, Elisabeth -disse Veronica sem olhar Loretta-. Não demoraremos, mas será melhor que saiamos já.
Charlotte expressou uma desculpa e a seguiu ao corredor. Esperou uns minutos enquanto o lacaio ia procurar a capa e o regalo de Veronica e esta ia trocar de botas.
A porta da saleta de convidados tinha ficado entreaberta.
—Não sabe nada dessa jovem! -ouviu-se a voz irada de Loretta-. É uma inconveniência e uma imprudência. É muito incauto!
—Me pareceu muito agradável -replicou Piers-. De fato, até atraente.
—Santo céu, Piers! Só porque tem um rosto bonito. De verdade, às vezes é muito ingênuo.
—E você, querida, vê complicações onde não as há.
—Antecipo-me a elas, o que não é o mesmo.
—Com frequência é exatamente a mesma coisa.
A chegada de Veronica impediu que Charlotte pudesse ouvir mais. Emily desceu também a escada, com uma capa no braço. A primeira vista Charlotte não a reconheceu; tinha um aspecto tão diferente com o cabelo recolhido sob a touca, vestida com um uniforme de fazenda azul sem anquinhas e com um simples avental por cima. Parecia mais magra, embora o mais provável era que fosse aquela roupa, e terrivelmente pálida. Seus olhos se cruzaram tão somente um instante, os de Emily dilatados e muito azuis, em seguida Veronica vestiu a capa. Emily a alisou pelos ombros e Charlotte e Veronica saíram pela porta principal enquanto Albert a segurava aberta.
O veículo era muito frio, até com mantas sobre os joelhos, mas era divertido percorrer Londres a bom passo e ver passar através das janelas as ruas elegantes, as longas avenidas e as praças. Em certo ponto Veronica se voltou para Charlotte.
Seus olhos eram quase negros no interior da carruagem e tinha os lábios separados, mas Charlotte sabia onde queria ir Veronica antes que ela o pedisse.
—Claro que sim -se apressou a dizer.
Veronica lhe apertou a mão dentro do regalos.
—Obrigada.
Na casa dos Danver não se surpreenderam de sua visita, e ao chegar as acompanharam a saleta dos convidados. Como Charlotte tinha escrito a Veronica dois dias antes, era possível que Veronica tivesse escrito a Julian e que portanto as esperassem. O próprio Julian Danver recebeu-as e saudou-as, agarrando as mãos de Veronica com calor durante uns segundos antes de voltar-se para Charlotte.
—Estou encantado de vê-la de novo, senhorita Barnaby -lhe sorriu. Seu olhar era franco e fez recordar à Charlotte o muito que tinha gostado dele-. Com certeza recordará a minha tia, a senhorita Danver. E a minha irmã Harriet.
—Certamente -se apressou a dizer, dirigindo sua atenção em primeiro lugar para tia Adeline, cujo fino e inteligente rosto olhava-a com interesse, e depois para
Harriet. Naquela tarde parecia mais pálida que na ocasião anterior; havia uma profunda sombra de infelicidade atrás de seu olhar de saudação-. Espero que se encontrem bem.
—Muito bem, obrigado. E você?
Trocaram todas as fórmulas habituais de cortesia e se abordou por cima os educados e insubstanciais assuntos de conversa em uso. Era o tipo de rituais que Charlotte tanto tinha empregado quando jovem e que tinha conseguido desprezar depois de seu matrimônio. Em realidade, com sua espetacular queda no escalão socia tinha sido privada da oportunidade de cultivá-los, uma perda pela que se sentia agradecida. Nunca tinha se dado muito bem, pois suas opiniões pessoais sempre acabavam por abrir passagem e sair ao exterior. E ninguém as apreciava: era algo impróprio de uma mulher fazer demonstração de uma opinião formada, pois precisamente grande parte do encanto feminino consistia em escutar e admirar, e em fazer talvez uma observação ocasional em favor do otimismo e o bom gosto.
Naturalmente, quase sempre se aceitava a risada de uma mulher, sempre que fosse agradável e não muito alta, já que jamais seria bem recebida uma aberta gargalhada de alguém que mostrasse afinidade pelo absurdo ou o cômico. Charlotte tinha perdido a fineza que tinha cultivado durante a época em que sua mãe tanto se esforçara por lhe conseguir um matrimônio bem-sucedido. Agora estava sentada com recato na borda da cadeira, com as mãos enlaçadas sobre o regaço, e se limitava a observar, e a intervir só quando as normas o exigissem.
Veronica levava tanto tempo praticando os encantos da feminilidade, que se tinha convertido em uma segunda natureza nela a capacidade para achar as palavras idôneas para não dizer nada com absoluta cortesia. Mas ao observar seu rosto, que na superfície parecia tão frágil até que alguém se fixava no equilíbrio dos ossos e na força da paixão em sua boca, Charlotte pôde ver que tinha a mente ocupada em assuntos mais preocupantes. Seu sorriso era quebradiço, e embora ela parecesse estar escutando a pessoa que falava, seus olhos se desviavam com frequência para os de Julian Danver. mais de uma vez Charlotte teve o sentimento de que Veronica estava insegura da atenção que lhe prestava aquele homem. Parecia uma tolice perguntar-se se uma mulher tão adorável, com experiência matrimonial, foco de simpatias por causa de seu luto mas nunca objeto da compaixão reservada às solteironas como Harriet ou tia Adeline, pudesse sentir-se insegura de si mesma. As intenções de Julian Danver estavam à vista; todas suas ações, o modo em que se comportava ante outros, tornavam-nas óbvias. Nenhum homem se conduziria daquele modo se não se comprometera em matrimônio. Voltar atrás sem o mais drástico dosmotivos lhe suporia a ruína. Romper aquele tipo de promessa, uma vez expressa, não era perdoável.
Assim, por que Veronica retorcia os dedos sobre o regaço sem deixar de lançar fugazes olhares, primeiro a Julian e depois à Charlotte? por que se mostrava muito loquaz e com um ligeiro, quase imperceptível sotaque na voz, cortava Charlotte em meio de uma observação, para em seguida lhe sorrir de forma tão franca que só podia ser uma desculpa? Charlotte pensou que entendia perfeitamente a dor de Harriet. Era muito fácil de explicar: se de verdade estava apaixonada pelo Felix Asherson, tanto se este a correspondesse como se não, não havia nada que ela pudesse fazer a respeito, nem o haveria jamais, a menos que Sonia Asherson morresse. Mas por que ia morrer? Sonia era uma moça de uma saúde quase insultante, robusta e aprazível como uma vaca leiteira. Levava o caminho de ser nonagenária. Era tão experiente nas artes da sobrevivência, para não dizer quão feliz devia estar com sua sorte, que parecia impossível que perdesse o juízo e desse ao Felix um motivo para divorciar-se dela, e mais impossível ainda parecia que ela se divorciasse dele, mesmo se descobrisse que ele amava Harriet. Sim, o rosto abatido de Harriet e sua apagada voz não deixavam muita margem à imaginação, e Charlotte se entristeceu por ela sem ser capaz de fazer nada. Até a compaixão não seria senão jogar sal na ferida, pois a teria privado do único consolo de supor que sua pena era privada.
Charlotte afinal não pôde suportar a tensão por mais tempo. Recordou que quando os tinham conduzido até ali tinha visto a entrada à estufa e se voltou para Julian.
—Pareceu-me ver uma estufa enquanto cruzávamos o vestíbulo. Adoro estufas. Seria você amável de me mostrá-la? Seria como passar em um segundo do inverno de Londres a uma terra estrangeira cheia de flores.
Veronica inspirou com um som rouco.
—Que bem o há descrito. Não fez senão aumentar meu prazer –disse Julian-. eu adorarei acompanhá-la. Temos uns lírios preciosos... pelo menos me parece que são lírios. Os nomes das flores não são meu forte, mas posso lhe mostrar as mais formosas e as de mais intenso perfume. -ficou em pé enquanto falava.
Charlotte se levantou também. Veronica dava as costas ao Julian, de modo que este não podia lhe ver o rosto. Charlotte lhe sorriu com franqueza, sem alterar-se ao receber seu furioso olhar, cheia de ira e de uma amargura escura e rasgada. Charlotte lhe ofereceu a mão, com a palma para cima a modo de convite. Por fim, e de forma repentina, Veronica captou sua intenção, apressou-se a levantar-se com o rosto pálido, que em seguida adquiriu um aceso tom rosado.
—Oh... Oh, sim -disse perturbada. - Sim.
—Terão a amabilidade de nos desculpar? -perguntou Charlotte à tia Adeline e Harriet.
—Seria preciso mais -falaram pelos cotovelos-. Sim, como não.
A manobra teve um êxito instantâneo. A estufa era bastante grande, e havia elegantes samambaias e parreiras que o dividiam em becos e ocultavam estes um do outro, e um pequeno lago verde com lótus impecáveis que Charlotte se deteve admirar sem necessidade de fingir prazer. Julian indicou os flagrantes lírios que tinha mencionado, depois de todos fazerem os devidos comentários, Charlotte pôde por fim atrair a atenção de Veronica e, com um imperceptível sorriso, deu meia volta e retrocedeu para o lago dos lótus. Passado um tempo prudente, saiu nas pontas dos pés ao vestíbulo. Não podia voltar para a saleta de estar ou estragaria o estratagema. Não se tratava de enganar a ninguém, mas tampouco de que pensassem que havia algo mais do que era, sentia-se como uma idiota naquele vestíbulo, sem fazer nada.
Aproximou-se de um grande quadro que representava uma paisagem com vacas e se deteve em frente como se o estudasse com suma atenção. Era na verdade muito agradável, da escola holandesa, mas tinha a mente muito ocupada com os assuntos de Veronica e dos Danver.
Permaneceu um momento com os olhos fixos na aprazível cena. Quase podia ouvir mentalmente as vacas ruminando e ver o pausado ritmo de suas mandíbulas. Eram umas criaturas formosas, estranhamente angulosas mas cheias de graça. Deteve-se ao cruzar de novo a porta da estufa para observar um bote, como se este tivesse merecido seu interesse. Depois penetrou com sigilo um pouco mais, enquanto levava a vista dos lírios do chão às parras que cresciam por cima de sua cabeça, e vice versa. Tinha percorrido vários metros ao longo de um dos becos e quase se deu contra uma palma plantada em um vaso, quando viu Veronica e Julian Danver enlaçados em um abraço tão apaixonado que se ruborizou por havê-los visto. Aquilo era uma intromissão que em qualquer outra circunstância teria sido imperdoável e que possivelmente não poderia explicar sem comprometer-se a si mesma e tudo o que esperava levar a bom termo, e inclusive sem pôr Emily em uma situação muito delicada que podia culminar na ruína social. Deu um passo atrás para ocultar-se com rapidez entre os nós de uma parra e quase desmaiou de horror a primeira e instintiva impressão de que aquele insidioso tato era humano. Afogou um grito ao comprovar a verdade e fez um esforço por sobrepor-se e sair da estufa com passo resoluto, para achar-se cara a cara com tia Adeline. Amaldiçoou para si mesma, pois se sentia idiota ao saber que levava o cabelo despenteado e tinha as faces acesas.
—Encontra-se bem, senhorita Barnaby? -Adeline arqueou as sobrancelhas-. Parece um pouco alterada.
Charlotte respirou fundo. Só lhe servia uma mentira boa de verdade.
—Que idiota me sinto -começou com o que considerou um sorriso irresistível-.Estava tentando ver uma flor situada em um lugar mais alto que eu perdi o equilíbrio. Rogo-lhe que me desculpe. -levou a mão às enfraquecidas mechas de cabelo-. E logo fiquei enganchada em uma parra. Mas não danifiquei a planta.
—Querida, pois claro que não. -Adeline esboçou um apagado sorriso. Seus olhos pareciam de veludo, como dois botões marrons, e Charlotte era incapaz de decifrar se aquela mulher acreditou em uma só palavra do que lhe havia dito-. Acredito que é o momento de tomar um pouco de chá. irei procurar ao Julian e Veronica, ou prefere ir você?
—Eu, pois... -Charlotte deu um passo para lhe dificultar o passo-. Estou certa de que virão em seguida.
O olhar do Adeline era firme e cético.
—Pergunto-me se era uma buganvília -disse Charlotte de improviso-. Tinha um tom cereja maravilhoso. Não é essa a cor com a qual disse você que vestia-se Veronica uma noite?
Adeline pareceu assombrada.
—Não era Veronica. -Por uma vez abandonou sua habitual voz clara e fina, Talvez seu traço mais atraente. - Tenho certeza disso.
—Oh, devo ter entendido mau. Dava por sentado que... -Suas palavras se desvaneceram; não sabia como acabar a frase. Tinha tratado de surrupiar algo de Adeline de surpresa, enquanto evitava que entrasse na estufa e visse aquele imoderado abraço. E não o fazia só pela Veronica, mas sim pela própria Adeline. Possivelmente nunca tinha abraçado ninguém daquele modo, ou não o faria agora.
—Oh, não -disse Adeline com um leve movimento da cabeça-. Sua forma de caminhar era muito diferente a de Veronica. A forma de caminhar de uma mulher diz muito dela, e aquela mulher caminhava de uma forma única. Havia graça em seus movimentos, certo atrevimento. Era uma mulher que tinha poder e sabia... embora acredito que tinha muitos motivos para ter medo. Se é que podia permitir-se ter medo.
—Oh, titubeou Charlotte-. Então... quem...?
O rosto do Adeline refletia experiência, dor e nem a mais ligeira sombra de humor.
—Não sei, senhorita Barnaby, nem o perguntei. Há muitos amores velhos, e ódios velhos, dos quais é melhor não falar.
—Surpreende-me! -As palavras de Charlotte eram de repente diretas, quase acusatórias-. Pensava que você era mais cândida.
A reta e sensível boca de Adeline se distendeu.
—A época da inocência já passou. Não tem nem ideia da dor que pode haver por debaixo desse tipo de coisas. Um pequeno esforço para ignorá-las pode servir de alívio, enquanto que falar obriga a dar respostas. - Pôs a cabeça no interior da estufa. -E agora já fez a boa ação do dia, senhorita Barnaby, assim ou vai você procurar Veronica ou vou eu.
—Eu irei -disse Charlotte obediente, com a mente feita um torvelinho. Tinha sido Cereja uma amante de Julian? Sabia Veronica, ou o adivinhava ao menos? Era esse o fantasma contra o que lutava, uma antiga amante? Era essa a razão pela que se permitia tanta liberalidade antes sequer de anunciar o compromisso, e muito menos o matrimônio? Se for assim, quem e por que tinha assassinado então Robert York?
De novo a sombra da traição. Podia caber a possibilidade de que a própria Veronica estivesse tratando de apanhar ao assassino de seu marido? Podia ser Julian quem tivesse matado ao Robert, e era possível que ela soubesse? Era o pânico o que a consumia, e o que havia entre ela e Loretta?
—Veronica! -disse Charlotte em voz alta-. Diz a senhorita Danver que o chá vai se servir em uns minutos.
—Veronica!
Pitt escolheu ir ao Mayfair a pé. Não fazia um bom dia. Um céu monótono e plúmbeo se abatia sobre a cidade como uma imensa concha e o vento, que varria o parque como uma foice, lhe penetrava nas orelhas com uma dolorosa sensação de frio que o fazia contrair o corpo. Ao longo de Park Lane via passar as carruagens, mas nenhum pedestre. Fazia muito frio para passear, e os vendedores ambulantes sabiam que aquele não era lugar para fazer negócios, um bairro cujos residentes podiam permitir-se ter carruagem própria.
Ele se encaminhava a casa dos Danver e desejava demorar sua chegada tanto quanto pudesse. Dulcie estava morta, assim não ficava ninguém a quem perguntar a respeito de Cereja mais que Adeline Danver. Parte da sensação de frio interior que experimentava provinha de um sentimento de culpa: o rosto luminoso e aberto de Dulcie lhe aparecia no pensamento com excessiva facilidade. Se só tivesse tomado a precaução de fechar a porta da biblioteca antes de deixar que falasse! E ainda não sabia qual de suas duas observações a tinha conduzido a morte, se a menção de Cereja ou o colar desaparecido. Entretanto, a investigação em torno dos assuntos do Piers York tinha demonstrado que este, economicamente, era algo mais que solvente e, apesar da observação de Dulcie, ele não tinha reclamado aquela joia.
Toda outra indagação referente a amigos de Robert York que pudessem tercontraído dívidas e haver-se inclinado ao roubo tinha resultado até o momentoigualmente infrutífera. Não maior êxito tinha tido Pitt ao tentar seguir a pista de vários criados que tinham estado empregados em Hanover Close por aquela época e tinham sido despedidos pouco depois. O mordomo tinha encontrado uma colocação no campo, o valete partira ao estrangeiro, enquanto que as criadas tinham desaparecido entre a enorme massa trabalhista feminina de Londres e seus arredores.
Deteve-se; tinha chegado à casa dos Danver. O ar era úmido, com o aroma azedo das lareiras que cuspiam sua fumaça ao céu cinza. Não podia ficar ali rondando como um vagabundo. Alguém segurava um fio que cedo ou tarde se desembaraçar-se-ia até deixar descoberto o assassinato. Se ele o pegasse e o desenredasse, talvez achasse que um dos cabos pendia de Adeline Danver. Esta lhe recebeu com cortesia mas com surpresa. Ele tinha formado uma imagem muito nítida dela a partir da descrição de Charlotte; contudo não esperava a aguda inteligência que se desprendia daqueles olhos quase redondos que se abriam sob umas finas sobrancelhas. Seu físico era mais ordinário do que Charlotte lhe tinha dado a entender: tinha o nariz um pouco torcido e estreito, o queixo muito afundado. Só quando falou com uma voz de timbre e dicção notáveis pôde ele apreciar sua beleza.
—Boa tarde, inspetor. Não me ocorre no que posso lhe ajudar, mas certamente tentarei. Por favor, sente-se. Acredito que nunca tinha conhecido a um policia-l. Olhava-o com curiosidade, como se fosse um exótico espécime importado para seu entretenimento.
Pela primeira vez em anos Pitt se sentiu coibido: não sabia o que fazer com as mãos e os pés. sentou-se com cautela, uma vez que tratava de aparentar elegância, sem êxito.
—Obrigado, senhora.
—Não há de que. -Seus olhos não se afastavam de seu rosto-. Suponho que sua visita se deve à morte do pobre Robert York. É o único crime com o que tive jamais uma remota relação... e me acredite, é muito remota. Mas o conhecia, é claro, embora haja muitas outras pessoas que o conheciam melhor que eu. –Esboçou um ligeiro sorriso-. Suponho que eu tenho a vantagem de ser uma observadora da vida, mais que uma atriz, por isso posso ter visto algo que possivelmente outros tenham passado por cima.
Pitt se sentia como se ela pudesse ver através dele e o julgasse culpado de insensibilidade.
—Não se trata disso, senhorita Danver, absolutamente. -Esboçou um débil sorriso-. Dirigi a você porque tenho na cabeça um assunto muito concreto e você é a pessoa da casa que parece menos envolvida nesse fato e por isso mesmo a menos perturbada pelo mesmo, ou a menos afetada.
—Esmera-se você em falar com tato -disse ela com um ligeiro gesto aprovador. - Agradeço-lhe que não tenha insultado minha inteligência com uma vã cortesia. Qual é esse fato do qual você imagina que eu posso saber algo? Admito que não me ocorre o que possa ser.
—Viu nesta casa alguma vez (e não falo de uma convidada habitual) uma mulher de aspecto bastante impressionante, alta, esbelta e morena, trajada com um vestido de uma chamativa tonalidade magenta ou cereja?
Adeline permanecia imóvel. Diria-se que não respirava, a não ser pelo muito ligeiro movimento do lenço de seda que lhe cobria seu magro peito quase sem seios.
Pitt esperava, lhe devolvendo o olhar de seus brilhantes olhos castanhos. Agora não havia possibilidade de escapatória. Ou lhe mentia aberta e descaradamente, ou dizia-lhe a verdade.
Fora no vestíbulo um relógio deu as onze. Os repiques pareciam não ter fim, até que o último se foi apagando até extinguir-se.
—Sim, senhor Pitt -disse ela-. Vi uma mulher com essas características. Masnão adianta que me pergunte quem era, porque não sei. Vi-a duas vezes nesta casa mas, que eu recorde, em nenhuma outra parte, nem antes nem depois.
—Obrigado. Levava a mesma roupa em ambas as ocasiões?
—Não, mas os dois vestidos eram de uma tonalidade muito similar, um mais escuro que o outro, por isso lembro. Mas era de noite, e a luz de gás pode levar a confusão.
—Poderia descrevê-la, com todos os detalhes que recorde?
—Quem é essa mulher, inspetor?
O uso de sua profissão para dirigir-se a ele pôs de novo distancia entre ambos e supunha uma advertência para que não a subestimasse.
—Não sei, senhorita Danver. Mas é a única pista que tenho sobre o assassino do Robert York.
—Uma mulher? -Arqueou as sobrancelhas-. Devo entender que sugere que se trata de algo acidentado. -Era uma afirmação.
Ele esboçou um amplo sorriso.
—Não necessariamente. O que acredito é que deve ter havido um roubo, não denunciado porque só o senhor York tinha noticia do mesmo, e que é possível que essa mulher fosse a ladra, ou talvez que presenciasse o assassinato.
—É você um poço de surpresas -admitiu Adeline Danver com uma doçura que refletia-se em seu ligeiro sorriso-. E não pode achar a essa mulher?
—Até o momento não, sofri uma série de reversos bastante incomuns. Poderia descrevê-la?
—Estou fascinada. -Inclinou ligeiramente a cabeça-. E como sabe que existe?
—Há outra pessoa que também a viu na casa dos York, e também com luz de gás.
—E sua descrição não é válida? Ou receia que tratam de confundi-lo deliberadamente?
Estaria-a assustando? O confiante rosto de Dulcie foi a sua mente de forma tão vivida como se só fizesse um dia que tinha saído pela porta da biblioteca.
—Fez-me uma descrição muito direta. Mas não posso voltar a interrogá-la por que no dia seguinte de ter falado comigo caiu de uma janela do piso superior e se matou. As finas faces do Adeline ficaram lívidas. Estava inteirada da tragédia. Tinha mais de cinquenta anos e tinha vivido muitas mortes, mas nenhuma lhe tinha deixado indiferente. Grande parte de sua vida estava integrada pelos triunfos e as tristezas das demais; não podia ser de outro modo.
—Sinto muito - disse com calma-. Refere-se à criada de Veronica York, suponho.
—Sim. -Não queria parecer melodramático, ou tonto. - Senhorita Danver...
—Sim, inspetor?
—Por favor, não fale com ninguém desta conversa, nem sequer com os membros de sua família. Poderiam repeti-lo logo depois de forma inadvertida, sem pretender fazer mal.
Arqueou as sobrancelhas e se segurou aos braços da poltrona com suas finas mãos.
—Entendi-lhe bem? -Sua voz era apenas um sussurro, mas perfeitamente controlada e modulada com harmonia.
—Acredito que ela continua por aqui, em algum lugar... às vezes muito perto -.replicou Pitt-. Alguém entre seus familiares, ou entre seus conhecidos, sabe onde está e quem é... e é provável que saiba também o que aconteceu em realidade em Hanover Close aquela noite há três anos.
—Não eu, senhor Pitt.
Este sorriu com severidade.
—Se eu tivesse acreditado que sim, senhorita Danver, não teria perdido o tempo interrogando-a.
—Mas você pensa que algum de nós, certamente alguém pelo que eu sinto afeto, sabe algo sobre esse assunto tão terrível?
—Uma pessoa pode ter muitas razões para guardar um segredo –respondeu Pitt-. A maioria das vezes por medo, ou para proteger a alguém a quem quer. O escândalo pode estalar por um deslize insignificante... mas que avive a imaginação. E um escândalo pode ser para algumas pessoas um castigo pior que a prisão ou a quebra econômica. A admiração de nossos semelhantes é um prêmio muito maior do que alguns pensam: para consegui-la derramou muito mais sangue do que parece, e se gerou muita dor. Há mulheres que se casam com homens a quem não amam para que ninguém pense que não as amam. A gente se comporta todo o tempo de modo que outros imaginem que são felizes. Todos necessitamos uma máscara, nossa pequena ilusão; muito poucos de nós são capazes de aparecer nus ante os olhos do mundo. E há pessoas dispostas a matar para conservar a vestimenta.
Olhava-o fixamente.
—É uma pessoa muito curiosa. por que decidiu fazer-se polícia?
Ele desceu o olhar para o tapete. Em nenhum momento pensou em evitar a pergunta, muito menos em mentir.
—A princípio porque meu pai foi condenado por algo que não cometeu. A verdade tem suas vantagens, senhorita Danver, e por dolorosa que possa ser, no final é pior mentir. Bem é verdade que às vezes chego a odiar meu trabalho, quando tenho que me inteirar de coisas que preferiria não saber nunca. Mas isso é covardia, já que tememos a dor da compaixão.
—E espera que desta vez a verdade seja dolorosa, senhor Pitt? –perguntou ela, com os olhos cravados em seu rosto e enquanto acariciava suavemente com seus finos dedos a renda de sua saia.
—Não -disse ele com sinceridade-. Não mais do que já o foi o assassinato. Que aspecto tinha essa mulher? Teria a bondade de descrevê-la?
Ela hesitou um instante enquanto procurava na memória.
—Era alta -disse com lentidão-. Sim, acredito que sua estatura era superior à média; tinha um tipo de graça que as mulheres baixinhas não podem possuir. E era esbelta, não... -Piscou, enquanto tratava de apanhar a palavra que lhe escapava-. Por um lado não era voluptuosa, e por outro... não. Sua voluptuosidade não estava em sua figura mas no modo em que se movia. Tinha paixão, estilo, uma espécie de atrevimento, como se estivesse dançando sobre o fio de uma navalha. Sinto muito... -pareço-lhe ridícula?
—Não. -Meneou a cabeça sem afastar seus olhos da dama-. Não, se minhas hipóteses forem corretas, essa analogia é muito acertada. Continue.
—Tinha o cabelo escuro, visto com luz de gás parecia negro. Só captei uma fugaz visão de seu rosto, mas lembro que era muito formosa.
—Como descreveria esse rosto? -insistiu Pitt-. Há muitos tipos de beleza.
—Incomum -disse ela; Pitt compreendeu que tratava de reviver o momento, com a luz de gás no patamar, o chamativo vestido, o giro da cabeça que lhe tinha permitido ver seus traços. - Havia um equilíbrio perfeito entre as sobrancelhas e o nariz, as faces e a curva do pescoço; tudo era efeito dos ossos do rosto e de um contorno muito expressivo. Não se tratava de detalhes vulgares, como umas sobrancelhas arqueadas, uma boca melodramática ou umas covinhas na rosto. Recordava-me vagamente a alguém, mas ao mesmo tempo tenho certeza de que nunca a tinha visto antes.
—Completamente certa?
—Sim. Pode me acreditar ou não, mas essa é a verdade. Não era Veronica, que imagino que é em quem você está pensando, nem tampouco certamente minha sobrinha Harriet.
—A quem se parecia? Por favor, tente recordar.
—Já o tentei, senhor Pitt. Só me ocorre que talvez seja alguém a quem vi em um quadro. As impressões dos artistas podem induzir muitas vezes a engano. Dependem tanto da moda da época, tinha-o advertido? Retratam-lhe como eles acreditam que você gostaria de ser. Embora os fotógrafos conseguem uma similitude destacável. Sinto muito, mas não tenho a menor ideia de quem pudesse ser, assim não tem sentido que você continue insistindo. Se alguma vez me ocorresse algo, não duvide que o diria. Prometo.
—Me prometa então também, senhorita Danver, que não falará disto com ninguém mais, nem confiará a ninguém informação alguma... a ninguém absolutamente. Sei muito bem o que estou dizendo. -inclinou-se para frente.
Embora pudesse assustá-la, sempre seria um preço muito pequeno em troca de salvar sua vida-. Robert York está morto, e também Dulcie, e ambos na mesma casa onde viviam, onde pensavam que estavam a salvo, me dê sua palavra, senhorita Danver.
—Muito bem, senhor Pitt -aceitou a mulher-, se de verdade o considera um assunto tão sério. Não falarei disto com ninguém. Pode deixar de preocupar-se com isso. -Olhou-lhe com equanimidade. Seus redondos e inteligentes olhos adotaram uma expressão grave-, A Deus obrigado, senhor Pitt... sua preocupação é um tanto desconcertante!
De novo na rua cinza, encaminhou-se para o sul. Tinha que achar à mulher que vestia de cor cereja. Tinha esgotado já as vias mais fáceis, os hotéis e teatros que pareciam mais suscetíveis para ela de achar clientes. Tinha interrogado a porteiros, a prostitutas que podiam ter sido rivais dela, e a alcoviteiras e alcoviteiros. Ninguém a conhecia, ou ao menos isso diziam. Todo isso confirmava o que ele tinha imaginado desde o princípio, que se tratava de uma espiã, não de uma mulher que obtinha seu sustento da prostituição. Não lhe interessava qualquer tipo de cliente, mas só certo tipo de homens em particular. E tinha tido bom cuidado em não deixar rastro.
Encontrar a Cereja ia ser uma questão de um laborioso e minucioso trabalho policial. Ao menos conhecia um lugar ao que ela tinha recorrido em várias ocasiões e agora dispunha de uma descrição bastante aproximada e incomum. Não parecia que dentro do negócio dos intercâmbios sexuais remunerados houvesse alguém que pudesse contribuir alguma informação mais; todos os intermediários masculinos obtinham seus benefícios ao amparo do silêncio. Mas em uma rua de Londres sempre havia gente quase invisível, gente que podia recordar, gente cujo sustento dependia dos transeuntes, cujos olhos famintos esquadrinhavam em cada um destes o menor sinal que delatasse sua vontade de comprar.
Subiu ao meio-fio da calçada e levantou o braço, ao mesmo tempo em que chamava um caleche que atravessava a passo cadencioso a névoa ao longo de Park Lane. O ar levava diminutos flocos de neve. Subiu à carruagem de aluguel e deu ao cocheiro o endereço do hotel em que tinha encontrado o porteiro que recordava Cereja, para em seguida recostar-se e preparar-se para o frio e lento percurso. Não era o melhor momento de iniciar uma pesquisa -os vendedores ambulantes que podiam lhe interessar eram os que trabalhavam de noite-, mas não tinha outra pista para seguir, e sentia além disso certa ansiedade em seu interior.
Fez parar a carruagem pouco antes do hotel e desceu em uma esquina em frente de um posto em que um homem vestido com um avental branco e um chapéu negro com uma fita ao redor vendia enguias quentes. A seu lado, uma moça servia uma espessa sopa de ervilhas a meio penny a tigela.
O aroma se difundia pelo ar úmido e Pitt levou a mão ao bolso. Nunca tinha pegado a afeição dos londrinos pelas enguias, mas era partidário da sopa de ervilhas. Tinha em frente da fila uma mulher de rosto encarnado e assim que a serviram tirou o meio penny do bolso e tomou com agradecimento a tigela quente. O líquido era espesso e um com grumos, mas o aroma era intenso e sentiu como lhe repunha seu calor ao atravessar seu corpo e lhe fortalecia o coração.
—Costuma estar aqui de noite? -perguntou com afetada indiferença.
—Às vezes, no verão, com as enguias -respondeu o tipo-. Nesta época do ano, quem tem casa fica nela! E os que não, não costumam ter muito dinheiro.
—E quem vem por aqui de tarde?
O homem seguia repartindo enguias.
—A que hora? Se for mais cedo, até as oito ou as nove, vão a ela-. Apontou em direção a uma garota muito jovem, a uns cinquenta metros rua acima, que estava de pé, tremendo de frio, com uma caixa de doces violetas junto a seus pés nus. Devia ter dez ou onze anos.
—Tomarei outra taça de sopa. -Pitt lhe deu outro meio penique e pegou a tigela que lhe oferecia a moça-. Obrigado. -voltou-se disposto a partir.
—Ué! Tem que me devolver à taça! -gritou o homem a suas costas.
—A devolverei -disse Pitt-, quando estiver vazia. -aproximou-se da meninaflorista. Era só uns anos maior que Jemima, tinha o rosto chupado e levava muito pouca roupa debaixo de seu simples vestido escuro e do descolorado xale. Tinha os pés vermelhos e azuis como as águas do mármore por efeito do intenso frio.
Pitt deixou a tigela de sopa sobre a calçada e procurou no bolso outros dois pennies.
–Quero dois Ramos de flores para minha mulher -disse, enquanto lhe oferecia as moedas.
—Obrigada, senhor. -Agarrou os pennies, olhou-lhe com uns olhos azul céu e depois não pôde dissimular um fugaz olhar para a sopa fumegante.
Pitt a recolheu do chão e tomou um gole, e logo voltou a deixá-la na calçada.
—Não quero mais sopa disse. Acabe isso se quiser.
A menina hesitou uns segundos. Em sua vida nunca tinha obtido nada sem dar nada em troca.
—Eu não quero mais -repetiu Pitt.
A menina pegou a tigela com suma cautela, sem deixar de olhá-lo.
—Faz muito que vem a esta rua? -perguntou, ao mesmo tempo em que se dava conta que aquela menina era muito jovem para poder ajudá-lo. Mas ele tinha comprado a sopa sem pensar em Cereja.
—Dois anos -respondeu ela, tomando um sonoro gole de sopa e lambendo-os lábios.
—Há muita gente quando anoitece?
—Bastante.
—Há mais vendedores por aqui?
—Alguns. Dois ou três.
—Quais? O que vendem?
—Há uma mulher que vende pentes, mas parte logo. Às vezes há uma garota que vende fósforos. E também há esse que vende pudim de ameixa quente; vem todas as noites. E às vezes há enganadores. Vão e vêm, sobre tudo além do Seven Dials, porque é onde estão as imprensas.
Não precisava lhe perguntar quem eram, sabia de sobra a que tipo de enganadores ambulantes se referia: uns tipos de cor prodigiosa e habitualmente agudo senso de humor, que vendiam notícias de última hora, em geral relacionadas com o crime e a sedução. E se no que tinha acontecido na realidade não havia nada bastante excitante, não o pensavam duas vezes na hora de inventar o que fosse, que enfeitavam com detalhes e muitas vezes com imagens que eles mesmos mostravam.
—Obrigado -disse Pitt com cortesia, enquanto recolhia a tigela vazia-. Voltarei mais tarde, de noite.
Foi para casa para jantar e deu a Charlotte, para sua surpresa e deleite, os dois ramalhetes de violetas. Logo, por volta das dez, obrigou a si mesmo a sair de novo à gélida névoa.
Fazia uma noite rude, e não havia ninguém na rua fora do hotel, salvo um gordo e pálido moço que vendia pudim de ameixa quente, uma espécie de massa cozida cheia de passas e conservada a uma temperatura aceitável graças a umas quantas camadas de panos fumegantes. O jovem tinha uma boa clientela nos cavalheiros que saíam do hotel, mas depois de meia hora de estar de pé e dar golpes com os pés na calçada para ativar a circulação sanguínea, e de um par de enérgicas voltas ao redor da maçã, Pitt não tinha visto nenhuma das mulheres que utilizavam os quartos do hotel para seu comércio.
Interrogou ao vendedor de pudim, de quem não obteve nada absolutamente. O moço dizia levar ali uns cinco anos, mais ou menos, e não recordava ter visto nenhuma mulher com um vestido de cor cereja.
Pitt voltou na noite seguinte, mas não teve mais êxito, e à outra noite decidiu ir ao Lyceum Theatre. Falou com um vendedor de infusão de hortelã que sim tinha visto alguém vestida de intensa cor rosa, mas não recordava seu talhe, e achava que a mulher que tinha visto era ruiva.
Passada a meia-noite, zangado pela futilidade de todas aquelas pesquisas, com os pés insensíveis em meio da neve acumulada e a gola do casaco levantada lhe tampando as orelhas, avançou entre o alvoroço de vozes, risadas e gritos ocasionais à saída do teatro. Viu um moço que vendia sanduíches de presunto e decidiu comprar um. Não tinha fome, mas gostava do presunto. abriu-passagem entre a multidão, empurrado por numerosos cotovelos e de infladas anquinhas, assaltado pelo aroma de perfume de mulher, o suor e o fôlego a cerveja, até que alcançou ao vendedor de sanduíches situado mais adiante. Tinha uma moeda de três pennies no bolso, mas tinha os dedos trançados pelo frio e lhe custava agarrá-la.
O moço o olhava com expectativa. Era magro e os círculos rosados das faces davam-lhe um aspecto febril. A sua vida era de cão e Pitt sabia, sempre na rua fizesse o tempo que fizesse, muitas vezes até bem entrada a noite; e para ganhar o suficiente para sobreviver tinha que comprar a carne sem desossar e cozê-la ele mesmo, e depois cortar os pãezinhos. Ficaria menos de meio pennie de benefício por cada sanduíche vendido, e Pitt sabia também que algo que lhe roubassem ou perdesse podia lhe custar os ganhos de todo um dia.
—Me ponha dois, por favor. -Apanhou por fim a moeda de três pennies e a extraiu do bolso. O moço lhe deu dois sanduíches e o penny de troco.
—Obrigado. -Pitt mordeu o primeiro pãozinho e o achou saboroso-. Faz muito que está aqui?
—Umas oito horas -respondeu o moço-. Mas estão como recém feitos, chefe, preparei-os eu mesmo! -Parecia nervoso.
—Estão excelentes -concordou Pitt com o maior dos entusiasmos que podia sentir naquele momento. - Queria dizer que se faz muito que vem a este lugar, não sei, três, quatro anos?
—Ah, sim. Venho aqui desde que tinha quatorze anos.
—Recorda se viu alguma vez a uma mulher muito bonita com um vestido cor cereja, escuro mas muito chamativo, faz uns três anos? Uma mulher espantosa, alta, com o cabelo escuro. Por favor, pensa-o atentamente, é muito importante.
—Que classe de mulher, chefe? refere-se a uma dessas? -Inclinou a cabeça levemente para uma mulher de formas exuberantes com uma formosa cabeleira solta e ruge nas faces carnudas.
—Sim, mas mais cara, com mais classe.
—Uma vez sim, vi uma como a que você diz, que vestia com uma cor assim, embora me parecesse como uma dama... Agora o cavalheiro que ia com ela nunca poderia ser seu marido.
Pitt reprimiu sua emoção.
—Como sabe?
—Asseguro! -O moço fez expressão de incredulidade-. Não se afastava dela.
Seus olhos eram como dois mariscos. E ela simulava total decência, comportava-se com bom gosto, mas eu vi muitas dessas para não me dar conta. Há tipos com classe e tipos sem ela, mas no fundo todas são iguais. Ela era uma autêntica beleza.
—Tinha boas curvas? -Pitt desenhou no ar com as mãos o contorno de um relógio de areia, manobra em que quase lhe cai o sanduíche.
—Não. -O moço arqueou as sobrancelhas com expressão de assombro-. Não, não. Era verão e levava um vestido muito aberto, e estava muito fraca! Mas era muito elegante!
—Alta ou baixa? -Pitt não pôde evitar elevar a voz.
—Alta. Como eu em altura, pelo menos, por quê? Conhece-a? Não a tornei a ver depois. Não posso ajudá-lo. Deve ter ido à parte alta da cidade, ou se casaria... -embora não acredito, se tiver que lhe ser justo. Mais fácil é que tenha terminado mau. Pegaria alguma enfermidade, ou lhe dariam punhaladas. Talvez pegou à sífilis, ou o cólera.
—Talvez. Poderia descrever ao homem que a acompanhava? Como partiu ela? Que direção tomou?
—É você muito esperto! Não me fixei no tipo que ia com ela, embora ia tão elegante como ela. Parecia de mais nível que a maioria dos que andam poraqui. Não era um empregado de escritório ou um comerciante que tivesse saído uma noite, via-se a légua que era um cavalheiro que vinha se aventurar nos subúrbios.
Há uns quantos assim, que vêm quando querem um pouco de relaxamento sem suas senhoras. Aqui ninguém os conhece nem dará com a língua nos dentes.
—Para onde foram?Partiram juntos?
O moço olhou a Pitt com desdém.
—Pois claro que se foram juntos! Nenhum senhor convida a uma fulana a uma noite no teatro para lhe dar boa noite à saída e já está!
—Em uma carruagem de aluguel ou em carruagem própria?
—Em carruagem de aluguel, é claro! Ninguém leva sua própria carruagem se quer passar despercebido! Use o bom senso, chefe!
—Está bem. Onde cai a parada de carruagens mais próxima?
—Virando por essa esquina e descendo a rua uns cem metros.
—Obrigado. -E antes que o moço pudesse expressar objeção alguma, Pitt tinha desaparecido no meio do torvelinho que formava a neve ao cair fora do amparo do toldo do teatro.
—Ah, um louco -disse o moço com desenvoltura, enquanto apertava entre os dedos os pennies que levava no bolso-. Sanduíches de presunto! Sanduíches de presunto recém feitos! A um pennie nada mais!
Durante os dois dias seguintes Pitt continuou movendo-se penosamente através da neve, com os pés gelados e as pernas molhadas, enquanto tossia no meio da fumaça e da névoa apanhada sobre os telhados da cidade por um céu de gelo. Interrogou também a dois varredores que tinham trabalhado na zona durante a época em questão. Um deles tinha subido em suas ambições e estava interessado em instalar um posto de café quente, e o outro tinha encontrado uma esquina melhor.
Nenhum dos dois foi capaz de fazer outra coisa que descrever a Cereja e dizer que tinha chegado ao hotel e ao teatro em uma carruagem e se foi em outra. Só um cocheiro recordava onde a tinha levado, e tinha sido a Hanover Close.
Pitt voltou para casa tão resfriado que se sentia verdadeiramente doente. Doíam- lhe as mãos e os pés, e se sentia tão encurralado pela derrota como pela fechada e rude noite que o envolvia.
Era muito mais tarde que a meia-noite e a casa estava em silêncio. Só estava acesa a luz do saguão. Colocou a chave na fechadura, depois de encontrar a fechadura com as gemas de seus dedos trançados, e abriu depois de alguns segundos. Dentro estava quente. Charlotte tinha deixado o fogo bem alimentado e havia uma nota presa na porta do salão em um lugar em que não pudesse lhe passar por alto.
Querido Thomas:
O fogo da cozinha está aceso, o bule está cheio e tem sopa quente na panela se quiser. Justo antes de fazer-se de noite se apresentou um homem muito estranho que deixou uma carta para você. Disse que tem uma informação a respeito da mulher de rosa... suponho que se refere à Cereja. Diz que é um "enganador", embora não sei o que quis dizer com isso. Deixei-lhe a carta sobre o aparador da lareira do salão.
—Desperta-me se puder ajudar.
—Quer a você Charlotte.
Empurrou a porta do salão, procurou com o tato o interruptor da luz de gás e o acionou. Achou a carta e a abriu, desdobrou o papel e o estendeu ante seus olhos.
Estimado senhor Pitt:
Inteirei-me que esteve perguntando por aí a respeito dessa mulher que vai vestida com uma exagerada cor rosa, e que está muito desejoso de encontrá-la. Eu sei onde está, e se quer tomar em consideração o que lhe digo levarei-o até ela. Se lhe interessar o assunto, nos encontraremos amanhã no pub Triplo Plea, no Seven Dials, às seis.
Pitt sorriu, e guardou a carta em um bolso. Atravessou a casa nas pontas dos pés até a cozinha. No dia seguinte, ao entardecer, caminhava lentamente sob a fina e gélida garoa, com o cachecol de lã embutido por cima das orelhas, ao longo de uma ruela cinza no distrito do Seven Dials. Compreendia por que aquele tipo tinha escolhido aquela parte da cidade; ali era, como havia dito a florista, o lugar em que se imprimiam os jornais com as notícias mais recentes, e portanto o quartel geral natural dos enganadores profissionais. ganhavam à vida vendendo notícias ou cantando acontecimentos pelos arredores, em constante movimento enquanto proclamavam os dramas e os fatos sensacionalistas contidos em suas páginas. A maioria tomavam como base o último crime havido... melhor quanto mais horripilante. Às vezes se tratava de cartas de amor da maior indiscrição, sempre que fossem de uma pessoa famosa, uma beleza internacional, ou o que era mais tentador, de uma não mencionada "dama da vizinhança “dirigida” a um cavalheiro que se acha a menos de cem quilômetros“. E se na verdade se apresentasse frequentemente com poucos estímulos, então tinham o engenho e a imaginação suficientes para rememorar alguma das histórias favoritas do público: mulheres malvadas que mataram a seus amantes infiéis, ou os pobres meninos nascidos de sua união, histórias que, bem contadas, arrancavam lágrimas dos olhos de muitos ouvintes. Aqueles enganadores estavam acostumados a ser homens de certo impulso e um agudo sentido da observação da natureza humana; ao Pitt não surpreendeu que um deles tivesse percebido e recordado a Cereja. A ocupação daquele tipo era contar uma e outra vez histórias de paixão, crimes e mulheres formosas.
Fazia um frio terrível e as estreitas ruelas eram como funis pelos quais soprava o vento. As difusas figuras que passavam junto a Pitt iam encurvadas, com a cabeça afundada entre os ombros. Nos suportes se amontoavam os adormecidos como sacos, procurando o calor de seus corpos. Os cascos de uma garrafa de genebra rota refletiam brilhos de luz de um lampião de gás.
Pitt achou o Triplo Plea depois de ter dado somente uma volta sem êxito. Depois de abrir passagem entre os vociferantes bebedores do pub, chegou até a barra. O patrão, com um avental de percal manchado de cerveja, e as mangas da camisa arregaçadas até a metade do braço, olhou com receio aquele rosto que não lhe era familiar.
—Sim?
—Perguntou alguém por mim? Meu nome é Pitt.
—E como quer que saiba? Não sou um serviço público!
—Oh, sim que o é. -Pitt se esforçou em adotar uma expressão cortês. Rebuscou em seu bolso e tirou uma moeda de seis pennies. - E os serviços devem ser pagos, quando valem algo. Se alguém perguntar por mim, diga-me Enquanto isso tomarei uma cidra.
O tipo olhou a moeda com expressão pouco aduladora, encheu uma jarra de cidra de barril e a deixou sobre o balcão.
—Aqui tem. Seu nome é Black Sam, está naquele lugar, o da camisa azul e casaco marrom... E a cidra vai à parte.
—Muito bem -aceitou Pitt, e deixou outros dois pennies. Agarrou a jarra e deu um gole com cautela. Era na verdade áspera mas doce, estava surpreendentemente boa. Bebeu um longo trago e abriu caminho pouco a pouco para o lugar mostrado, enquanto seus olhos errantes procuravam o enganador.
Era provável que mais de um dos ali congregados compartilhassem aquela ocupação; não estavam longe das imprensas, e tinham os rostos expressivos, os olhos rápidos e a constituição magra dos indivíduos que estão em constante movimento.
Viu um homem com uma incomum tez escura e uma camisa azul sentado ante uma jarra de cerveja negra. Seus olhares se cruzaram quase imediatamente e Pitt soube que se tratava do S. Smith; havia nele uma atitude de espera, enquanto seus olhos escrutinavam os rostos sem descanso. Pitt fez um último esforço por abrir passagem e se deteve diante da exígua mesa.
—Senhor Smith?
—Com efeito.
—Pitt. Dizia você que poderia me ajudar em troca de um pouco de dinheiro.
—E é verdade. Acabe a cidra. Depois, quando for, me siga fora ao cabo de um ou dois minutos. Não quero dar às pessoas motivos para pensar, pensar não é bom para eles. Eu estarei fora na calçada de frente. Espero que haja trazido algo com o que possa mostrar-se generoso. Não dou crédito. As notícias são as notícias, e eu vivo delas.
—Das autênticas ou das falsas? -disse Pitt com frieza-. Já tive ocasião de ouvir algumas boas historias dessas que vocês contam. -Eram histórias muito melodramáticas e inventadas que se usavam quando as notícias autênticas eram muito frouxas. Havia algumas que se fizeram muito famosas.
Black Sam sorriu, mostrando uma afiada dentadura que estava surpreendentemente limpa.
—Claro que sim, mas essas histórias são para entreter as damas que têm a lágrima fácil, e não se faz mal a ninguém porque a história tenha sido... adornada um pouco. É arte.
—Sem dúvida. Em qualquer caso, o que quero é a realidade ao natural, do contrário não há trato.
—Terá-a, não se preocupe. -levantou-se, inclinou a jarra e a bebeu até a última gota, deixou-a sobre o banco e partiu. Ao cabo de um instante tinha desaparecido.
Pitt acabou a cidra sem pressa e depois voltou a abrir caminho para a noite exterior. Tinha cessado a fina garoa e estava começando a gelar. Não havia estrelas por causa da camada de fumaça que cobria a cidade e que se formava de suas dezenas de milhares de lareiras. Distinguiu no outro lado da rua a difusa silhueta do Black Sam. Cruzou e se aproximou até ele.
—Quanto? -disse Sam com voz agradável e sem mover-se.
—Se achar que a mulher com o vestido rosa é a que procuro, meia coroa.
—E o que lhe vai impedir de dizer que não é a que busca?
Pitt já tinha pensado nisso.
—Minha reputação. Se o enganar a respeito do que lhe corresponde em justiça pelos serviços prestados, no futuro ninguém irá querer me facilitar informação, e então não poderei continuar fazendo meu trabalho.
Sam meditou, mas não demorou em decidir-se. As palavras se propagam com grande rapidez entre a gente que vive no limite entre a sobrevivência e o desespero, e ele tinha seu próprio método para julgar às pessoas.
—De acordo -aceitou-, me siga.
E por fim se pôs em marcha, com um enganoso passo, que era mais rápido do que parecia. Pitt os via e desejava lhe seguir o passo, pois embora estivesse acostumado a caminhar todo o dia pela rua, o fazia com passo moderado, mais lento inclusive quando era agente. Agora ia muitas vezes em carruagem de aluguel e a velocidade do enganador o deixava sem fôlego.
Ao cabo de dez minutos estavam quase no extremo mais afastado do Seven Dials, em um bairro mais salubre, embora as ruas continuavam sendo estreitas e um olho acostumado podia reconhecer as pensões baratas, algumas das quais eram utilizadas quase com toda segurança como bordéis. Se Cereja vivia aqui, então tinha caído em desgraça, desde os dias do Lyceum Theatre e o hotel cujo porteiro ainda se lembrava dela.
O enganador se deteve e ficou imóvel e silencioso sobre a imunda calçada. -Suba por esta escada -disse Black Sam com suavidade. Podia haver-se tratado de um de seus habituais passeios noturnos, salvo pela diferença de que aquela corrida lhe traria um benefício-. Bata na porta que achará acima e pergunte pelo Fred. Lhe dirá onde está sua amiga. Eu esperarei aqui, e se for, confio em que você volte para descer e me dê a meia coroa. Não posso ser mais honesto. Se não o for, então teremos dado um bonito passeio em balde.
Pitt hesitou, mas pensou que não valia a pena discutir. Sem dizer uma palavra cruzou a soleira indicada e começou a subir as escadas muito devagar, fazendo o menor ruído possível. A porta de cima era maciça e estava fechada. Bateu com força, até machucar os dedos. Ao cabo de um momento a porta se abriu e apareceu um homem jovem e magro com uma cicatriz de arma branca na face, que o olhava sem interesse.
—Quero ver o Fred -disse Pitt, a uma prudente distância.
—Para que? Não o conheço de nada!
—Negócios. Vá buscá-lo.
—Fred! Aqui há um velho que quer vê-lo...-Diz que é por negócios! -gritou o jovem.
Pitt esperou em silêncio vários minutos até que Fred apareceu. Era bastante robusto, vermelho de rosto e surpreendentemente agradável. Esboçou um sorriso sem dentes.
—Sim?
—Procuro uma mulher com um vestido rosa, um rosa escuro mas muito intenso e brilhante. Black Sam me há dito que você sabia onde posso encontrá-la.
—Sim, é certo. Tem meu quarto alugado.
—Aqui?
—Sim, aqui, claro! O que acontece com ela? Acha que sou surdo?
—Está aqui, nesse seu quarto?
—Sim. Mas não deixo que entre qualquer um. Talvez ela queira vê-lo, talvez não.
Ou pode ser que esteja acompanhada.
—Entendo. Não espero receber nada em troca de nada. Que aspecto tem essa mulher que diz que viu de rosa?
—Que aspecto tem? -Arqueou as grisalhas sobrancelhas-. Vá, vá! Eu diria que isso não é assunto seu. Deveria ter muito mais dinheiro de que parece ter para que chegasse a ser assunto seu!
—O caso é que é meu assunto -disse Pitt entre dentes-. É o tipo de coisa que me interessa. -Lhe ocorreu uma oportuna mentira-. Sou pintor.
—Está bem, está bem. -encolheu os ombros afável-. Isso é outra coisa. Mas não entendo por que quer pintá-la, está mais fraca que uma vassoura, não tem tetas nem quadris. Embora tenha um rosto bonito, isso reconheço. Tem um rosto bonito e o cabelo negro. E agora dê a sua cabecinha e não fique aí parado na porta como um idiota. Se você pode perder o tempo, eu tenho coisas que fazer!
—Quero vê-la -disse Pitt-, mas antes tenho uma conta pendente com o Black Sam. me deixe descer para lhe pagar, depois voltarei a subir para lhe dar algo pelo trabalho.
—Pois adiante, vamos! -insistiu Fred-. Tenho coisas a fazer.
Ao cabo de dez minutos, uma vez saldadas as dívidas, Pitt avançava ao longo de um corredor atapetado de vermelho com sujos e esfumadas rastros de calçadono centro e um lampião de gás na parede soltando um débil fio. Bateu na porta situada ao final do corredor. Não aconteceu nada. Voltou a bater , um pouco mais forte. Fred lhe tinha assegurado que ela estava ali, e sua descrição era muito boa para renunciar a saber quem era. Tinha-lhe nomeado alguns traços que Pitt nem sequer tinha mencionado.
Uma porta se abriu a suas costas e saiu uma mulherona com uma cabeleira loira em cascata e sua algo mais que bojuda figura envolta em um xale, com os ombros macios e nus, ondulantes pelo creme que cobriam.
—Deixe já de armar tanto escândalo, cavalheiro! -disse com brusquidão-. Se quer entrar aí, entre! As portas não estão fechadas. Não fique aí incomodando a todo mundo! Tenho clientes. Parece que deva fazer uma jogada a rede, não me espante às pessoas!
—Sim, senhora. -Assim Cereja estava ali dentro de verdade. Em questão de um segundo a veria, e talvez conheceria o segredo da morte do Robert York. Deu as costas à loira, que se voltava já com seu cliente, e moveu o trinco. A mulher tinha razão, não estava fechada. A porta cedeu ao impulso de sua mão e ele entrou na dependência.
O quarto era mais ou menos como esperava: confortável embora desordenado, um pouco lotado de mobiliário, com aroma de perfume, poeirenta e com os lençóis velhos. Havia muitas almofadas e superabundava a cor vermelha. A cama era grande e enrugada, e tinha duas colchas jogadas por cima de forma descuidada, de modo que não podia distinguir a primeira vista se havia alguém deitado debaixo ou não.
Fechou a porta ao entrar.
Ao aproximar-se da cama reconheceu a silhueta de uma forma humana sob as rugas dos edredons e viu uma imagem fugaz de uma roupa acetinada de cor magenta e uma mecha de cabelo negro que parecia uma fita solta de seda. A mulher tinha o rosto voltado do outro lado.
Quando estava a ponto de dirigir-se a ela, deu-se conta de que não sabia como se chamava. Sempre tinha pensado nela como Cereja. A informação que tinha obtido haviam-na descrito como uma mulher na crista da onda. Em três anos tinha caído até aquilo. Mal devia ser a mesma pessoa. O sentimento de emoção que tinha experimentado pela proximidade do descobrimento se permutou de repente em comoção. Pelo fato de ter sido tão lançada e temerária, mais profundo era o contraste com aquela intimidade vergonhosa. Devia ser um instrumento de traição, como assassina ou como cúmplice de assassinato. Pitt continuava sentindo-se um intruso.
—Senhora -disse inapropriadamente.
Ela não se moveu. Devia estar profundamente adormecida, talvez ébria. Ele se inclinou, tocou-lhe o ombro por debaixo da colcha e a sacudiu com suavidade. Mas continuava sem mover-se. Puxou-a até voltar de rosto e pôr ao descoberto a blusa de seda de uma intensa cor magenta com a ampla gola e uma tira de cor cereja. Devia ter bebido tanto que estava inconsciente. Pitt se agachou um pouco mais, pegou-a pelos ombros e a sacudiu. O cabelo caiu para um lado do rosto e a colcha deslizou sobre a cama.
A princípio não pôde acreditar. A cabeça pendia um pouco de lado de uma forma antinatural, não com a despreocupação do sono mas com a irreparável flacidez da morte. Tinham-lhe quebrado o pescoço. Tinha que ter sido de um só golpe e com grande violência. Era uma mulher magra, podia naquele momento apreciar a fragilidade de seus ossos. Era difícil afirmar se tinha sido formosa. Desprovido de vitalidade, em seu rosto só ficava a antiga graça de uma harmonia perdida.
—Meu Deus!
Por um momento acreditou ter falado ele mesmo, mas então se deu conta de que havia alguém mais no quarto.
—Maldito idiota! por que lhe fez isso? Que dano pôde lhe fazer essa pobre desgraçada?
Pitt se ergueu com lentidão e se voltou para o Fred, que, lívido, obstruía a porta.
—-Eu não a matei. Já estava morta quando entrei, o melhor que pode fazer é ir procurar a um agente de polícia. Quem entrou neste quarto antes de mim?
—Oh, claro que mandarei que tragam um poli... disso pode ter certeza! - respondeu Fred furioso-. Mas não vou deixá-lo aqui. Só Deus sabe a quem mais acharia morto ao voltar!
—Eu não a matei! -repetiu Pitt entre dentes, sem logo conter-se-. Encontrei-a morta. Vá procurar à polícia!
Fred permanecia imóvel.
—Claro que sim, e você ficará aqui quietinho a esperar que eu retorne com os polis. Tomou-me por um imbecil?
Pitt se levantou e foi para ele. Fred ficou tenso e levantou os punhos. Pela primeira vez Pitt se deu conta de que, apesar de toda sua aparente cortesia, Fred estava disposto a detê-lo e a usar a violência se fosse necessário, e seu físico lhe permitia confrontar com garantias essa empreitada.
—Sou polícia -disse Pitt com brusquidão. - Procurávamos a esta mulher por sua relação com um assassinato, e talvez com um delito de alta traição.
—Ah, sim? E eu sou o duque do Wellington! -Fred obstruía a porta com todo seu volume e com os braços alerta se por acaso Pitt tentasse um ataque repentino-. Rosie! -gritou sem afastar os olhos-. Rosie! Veem aqui! Depressa!
Pitt tratou de insistir. -Sou...
—Você cale-se! Rosie! Veem aqui agora mesmo se não quiser que vá buscá-la! Apareceu por fim a enorme loira, envolta em um grande lençol rosa e com o rosto vermelho de irritação.
—Olhe, Fred, pago-te meu bom aluguel em troca de ter aqui meu negócio! Eu não gosto que me grite por algo cada vez que... -interrompeu-se ao pressentir que acontecia algo sério-. O que acontece? O que aconteceu?
—Este tio, que procurava à garota que leva essas coisas horríveis de cor rosa. Estrangulou-a, ao que parece.
—Pobre criatura. -Rosie sacudiu a cabeça-. Não havia necessidade de lhe fazer isso.
—Bom, vá procurar aos polis de uma vez, velha gorda! -disse Fred colérico-. Não fique aí! Isto é um assassinato!
—Não comece a me insultar como sempre, Fred Bunn! -respondeu ela com aspereza- E eu não vou procurar nenhum policial. Direi ao Jack que desça. –E agarrando o lençol para envolver-se com ele com toda a dignidade de que era capaz, deu meia volta e se dirigiu para as escadas.
Pitt se sentou na beira da cama. Era inútil discutir com Fred, imóvel em sua convicção. Quando viesse a polícia se esclareceria tudo.
Fred se apoiou contra o dintel da porta.
—Por que teve que vir aqui e fazer isto? -disse com pesar-. Não tinha por que matá-la.
—E não o fiz. Necessitava-a viva! Precisava interrogá-la a respeito de algumas questões muito importantes.
—Ah, sim, é verdade. Alta traição! -Fred aspirou forte. - É você bastante original, reconheço-o. Pobre criatura!
—Quanto tempo esteve aqui? -perguntou Pitt. Não havia motivo para não aproveitar o tempo.
—Não sei. Um par de dias.
—Só um par de dias? Onde tinha estado antes?
—Como diabos quer que saiba? Pagou o aluguel do quarto, isso é o único motivo que me importa.
Pitt se sentia muito cansado. Era tudo tão patético. Cereja, qualquer que fosse seu verdadeiro nome, tinha vivido uma infância em algum lugar, depois tinha seguido uma breve carreira de cortesã, luminosa de noite, talvez perigosa já inclusive então, oculta de dia. Depois a fortuna tinha mudado, seus encantos se apagaram e tinha perdido um lugar entre as que estavam em voga, ficando reduzida ao status de uma vulgar prostituta. E finalmente lhe tinham partido o pescoço em alguma absurda briga daquele imundo quarto de aluguel.
Aquela era a mulher que tinha detido um poder tão grande, e tão breve, sobre Robert York e possivelmente até sobre o Julian Danver ou Garrard; tão grande que se introduziu em suas casas, passando por cima qualquer tipo de convenções e correndo riscos desesperados. O que teria passado se a tivesse visto Veronica, Loretta ou Piers York inclusive? Loretta não se limitara a olhar para outro lado, como tinha feito Adeline; era de uma natureza muito mais implacável. Teria pego Robert e lhe diria onde podiam lhe conduzir exatamente aqueles namoricos. Desceu a vista e contemplou a magra figura que tinha ante si sobre a cama. A pele era escura, quase azeitonada, e suave, e de um tom sépia sobre os ombros. Mas por cima da fita magenta brilhante que lhe rodeava o pescoço, aquela pele estava já um pouco rugosa, e no rosto tinha finos sulcos e sombras purpúreas sob os olhos. Tinha os ossos delicados, a boca contornada por uns lábios cheios, mas era difícil dizer se antigamente tinha sido uma beleza. Mas a vida faz prodígios.
Talvez tivesse acuidade, ou esse estranho sorriso que ilumina um rosto, ou o dom de saber escutar com o tipo de atenção que faz que o interlocutor se sinta cômodo. Caras bonitas havia as dúzias, mas o encanto era algo mais que um rosto bonito.
—Pobre Cereja.
Pitt despertou de seus pensamentos ao ouvir passos no corredor que se abria atrás da figura imóvel do Fred. Ouviu a voz de Rosie, gritando indignada, e o lamento de um homem em um lugar indeterminável.
Então apareceu o agente, com a capa azul molhada pela fina chuva, a lanterna pendurada no cinto e o porrete preparado na mão.
—E então? -perguntou-. Onde está essa mulher?
—Aqui -respondeu Fred mal-humorado. Não gostava dos policiais, e só a contra gosto podia aceitar os serviços de um-. E este é o tipo que a matou... Sabe Deus que razão teria. Mas fui eu mesmo quem o deixou entrar, faz um quarto de hora, porque pedia vê-la com insistência. Depois subi a este piso por outra coisa e encontrei-a morta como um passarinho, pobre menina. Assim que disse a Rosie que mandasse ao Jack para lhe buscar.
O agente entrou no quarto, com um gesto carrancudo em seu redondo rosto, em que se lia abatimento e desagrado. Olhou a Pitt e suspirou.
—Vamos ver, por que fez uma coisa como esta? Era sua mulher, ou algo pelo estilo?
—Não, claro que não! -respondeu Pitt irado. De repente toda aquela farsa lhe parecia ridícula-. Sou o inspetor Pitt da delegacia de polícia do Bow Street. Levávamos semanas atrás da pista desta mulher. Inteirei-me por fim de que este era seu paradeiro, mas cheguei muito tarde para evitar que fosse assassinada. Era uma testemunha muito importante.
O agente olhou a Pitt de cima abaixo, observando o cachecol de ponto, o velho casaco, as bem amorfas calças e as desgastadas botas. A incredulidade era patente em seu rosto.
—Vá ao Bow Street para comprovar o que digo! -exclamou Pitt-. Fale com o superintendente Ballarat!
—Levarei-o a Seven Dials, já enviarão eles alguém ao Bow Street -disse o agente sem alterar-se-. Não trate de resistir e ninguém sairá machucado. Do contrário terei que ser um pouco rude com você. -voltou-se para o Fred-. Quem mais subiu aqui desde a última vez que a viu -fez um gesto para a mulher que jazia morta sobre a cama- Viva?
—Raios! Um tipo fraco com uns comparsas do Newgate que foram ver Clarrie - disse, acompanhando suas palavras com um gesto dos dedos que tratava de descrever os cachos nas faces da aludida-. Mas os acompanhou até abaixo quando se foram. E um indivíduo calvo, de uns quarenta anos, que vinha por Rosie, mas eu mesmo o acompanhei até aqui em cima e o vi entrar no quarto de Rosie. Além disso é um cliente habitual.
—Ninguém mais subiu à exceção deste?
—As garotas -concluiu Fred-. Pergunte a elas.
—Farei-o, pode ter certeza. E será melhor que todos estejam aqui se por acaso necessitarmos, do contrário os seguiremos e prenderemos por ocultar provas em um caso de assassinato... e podem acabar no Coldbath Fields ou no Newgate. -Olhou a Pitt-. E você me acompanhe pelas boas ou terei que utiliza métodos mais desagradáveis. Junte as mãos.
—O que? -Pitt estava atônito.
—As mãos, cavalheiro! Toma por um idiota? Não pretenderá que o leve de passeio pelas ruas em meio da escuridão sem lhe pôr as algemas.
Pitt abriu a boca para protestar, mas compreendeu a inutilidade disso e estendeu as mãos obediente.
Duas horas mais tarde, sentado na delegacia de polícia do Seven Dials, ainda algemado, começou a sentir medo. Depois da mensagem enviada ao Bow Street, recebeu-se uma pontual resposta por escrito. Sim, ali conheciam o Thomas Pitt, quem se ajustava com precisão à descrição facilitada, mas não podiam confirmar que o tivessem enviado aquele lugar para prender alguém. Não sabiam nada de nenhuma prostituta com um vestido rosa, e até onde chegavam suas competências não podiam dizer que houvesse nada disso relacionado com o caso em que Pitt estava trabalhando. Estava-lhe encomendada a missão de revisar com mais parada as circunstâncias do roubo no lar do Piers York, em Hanover Close, que tinha tido lugar fazia três anos, e do assassinato de seu filho, Robert York, perpetrado por um intruso. Até onde sabia o superintendente Ballarat, Pitt tinha fracassado em seu intento de descobrir detalhes de interesse. O oficial a cargo deste desafortunado assassinato devia levar as investigações com todo o sentido de justiça e o zelo de que fora capaz. Como é natural, o superintendente Ballarat desejava que o mantivesse informado dos acontecimentos conforme se fossem produzindo, com a esperança de que Thomas Pitt não fosse culpado de outra coisa estúpida, e talvez da classe de imoralidade em que incorrem os homens de vez em quando. Não obstante se devia fazer justiça. Não podia haver exceções.
Quando Fred o tinha surpreendido naquele quarto, Pitt só tinha sido capaz de pensar em Cereja, na futilidade de havê-la encontrado quando já era muito tarde, na penosa realidade da morte. Que lhe tivessem confundido com o assassino lhe tinha parecido uma coisa grotesca. Mas agora era cada vez mais espantosamente claro que não acreditavam nele , e todos seus protestos, em lugar de mostrar a verdade da maneira mais evidente, pareciam inúteis, como as desculpas de qualquer outro criminoso pego com as mãos na massa. E Ballarat não tinha a menor intenção de intervir ante a indignação da boa sociedade e o desagrado de seus superiores dando um passo à frente para defender a Pitt e seus métodos. Não queria que aquele assunto desembocasse em um caso de alta traição, nem tampouco ter que investigar os York ou os Danver, ou a Felix Asherson, de modo que só podia sentir-se feliz se de repente se livrasse do único homem que lhe pressionava para fazê-lo. Se Pitt fosse sentenciado de assassinato, seu silencio seria mais efetivo que se tivesse morrido.
O suor de Pitt se ia esfriando e lhe produzia calafrios, sentia-se doente. O que aconteceria à Charlotte? Emily a ajudaria no econômico, graças a Deus! Mas o quedizer de sua desgraça e da vergonha pública? Os policiais têm poucos amigos, mas um policial pendurado por ter matado uma prostituta não teria nenhum absolutamente. Charlotte teria que ver como todo mundo lhe dava as costas: os vizinhos e os velhos amigos a repudiariam; e o mundo da marginalidade, que tão bem ou tão mal costuma cuidar de si mesmo e que tivesse conseguido algo para uma viúva qualquer de um homem enforcado, não teria piedade para com a família de um policial. E Daniel e Jemima cresceriam com a sombra do patíbulo em seus corações, deveriam acostumar-se a ocultar quem eram, ou a tratar de defender a ele, e sem chegar a saber nunca de verdade se... Pitt deteve a corrente de pensamentos: eram insuportáveis.
—Vamos! -A voz arrancou-o de suas preocupações e lhe devolveu ao urgente presente-. Próxima parada no Coldbath Fields, não pode estar sentado aqui toda a noite. Vamos ver o que fazemos com você!
Viu os frios e aquosos olhos azuis de um agente que lhe observava com o tipo de aversão que a polícia reserva para aqueles de sua própria estirpe que traíram todo aquilo para cuja defesa trabalham.
—De pé! Melhor que aprenda logo a fazer o que lhe dizem!
Charlotte tinha suposto que Pitt chegaria tarde em casa aquela noite, de modo que tinha ido para cama pouco antes das onze, com certo pesar pelo fato de que as coisas entre eles continuassem sem resolver. Pela manhã levou um sobressalto ao despertar, pois tinha intuído até antes de abrir os olhos que algo não andava bem. Havia uma frieza no ambiente, um silêncio estranho. Endireitou-se e se sentou na cama. A metade do leito de Pitt estava tão lisa e intacta como quando ela tinha posto lençóis limpos no dia anterior, levantou-se a toda pressa em busca de seu robe sem ter uma ideia precisa do que ia fazer. Talvez houvesse uma nota no piso de baixo. Era possível que ele houvesse retornado e tivesse precisado partir de novo sem tempo de dormir? De momento não se atrevia a pensar em outra possibilidade. Não se tinha incomodado em calçar as sapatilhas e retrocedeu assim que tocou o frio chão do corredor com os pés nus.
Olhou primeiro na cozinha, mas ali não havia nada; a panela continuava onde ela a tinha deixado e as xícaras estavam sem usar. Foi ao salão, mas também ali não achou nada. Tratou de acalmar-se com boas razões que pudessem explicar a ausência do Pitt, para não deixar-se invadir pelo medo: teria estado seguindo alguma pista difícil; teria efetuado alguma prisão e estava ainda na delegacia de polícia; produziu-se outro assassinato e estava tão ocupado que não pudesse voltar para casa, e não tinha enviado um emissário durante a noite porque não queria despertá-la... Mas seu bom senso se detinha neste ponto. Sempre havia o recurso da caixa de correio, seria muito simples deixar uma nota na mesma para avisá-la.
Bom, em qualquer momento viria alguém, talvez o próprio Pitt. Seria melhor que se vestisse. Estava tremendo de frio e tinha os pés intumescidos. Não tinha sentido ficar ali parada. Gracie se levantaria em seguida e as crianças teriam que tomar o café da manhã, voltou-se e subiu depressa ao dormitório estranhamente vazio, tirou o robe e a camisola, sem deixar de tremer nem um segundo, e vestiu a regata, as anáguas, as meias e um velho vestido azul escuro. Notava-se os dedos duros àquela manhã e não pôde incomodar-se em fazer algo com o cabelo salvo recolhê-lo em um coque solto e prendê-lo com grampos, lavaria o rosto abaixo na cozinha, onde havia água quente. Com certeza quando tivesse terminado teria chegado alguma mensagem.
Acabava de pegar uma toalha seca e áspera e notava sua limpa abrasão na pele quando soou a campainha da porta. Foi correndo pelo corredor até a porta principal e a abriu. Ante ela havia um agente de rosto corado, com uma expressão tão pesarosa que lhe deu medo. Conteve a respiração.
—Senhora Pitt? -perguntou.
Olhava-o sem fala.
—Sinto muito, senhora, mas é meu dever lhe comunicar que o inspetor Pitt foi detido como possível autor do assassinato de uma mulher no Seven Dials. Ele diz que ela já tinha o pescoço quebrado quando a encontrou...- e certamente é verdade. Ele nunca cometeu uma coisa assim. Mas de momento ingressou na penitenciária do Coldbath Fields. Seu marido está bem, senhora. Não há motivo para...- para inquietar- se. -Parecia incapaz de oferecer o consolo necessário. Não sabia que referências podia ter ela daquela prisão, mas era desnecessário mentir: logo o averiguaria.
Por algo o nome que lhe tinham dado a princípio à Prisão fortificada tinha derivado no The Steel.1 Charlotte ficou petrificada. O primeiro que sentiu foi alívio: ao menos não estava morto. Esse era o medo que não se atreveu a reconhecer. Depois sentiu trevas que a rodeavam como se estivesse anoitecendo em lugar de amanhecendo.
—Detido! Na prisão?
Tinha ouvido falar mais do que Pitt imaginava dos centros penitenciários como Coldbath Fields. Foram planejados para reter os detentos durante curtos períodos de tempo, enquanto não se realizava o julgamento ou para o cumprimento de condenações breves. Ali ninguém podia sobreviver mais de um ano; estavam lotados e eram brutais e imundos. Uma das empreitadas de tia Vespasia tinha sido a de atenuar a febre carcerária endêmica. Mas era certo que Pitt não permaneceria ali mais de umas horas -um dia no máximo-, até que se dessem conta de seu engano.
—Senhora? -disse nervoso o agente, com o sobrecenho franzido sobre seus olhos azuis e o rosto muito sério-. Possivelmente seria aconselhável que se sentasse, senhora, e tomasse uma xícara de chá.
Charlotte o olhou surpreendida. Tinha esquecido que ele continuava ali.
—Não, não. -Sua própria voz lhe soou distante-. Eu... não, não preciso me sentar. Onde disse que está... Disse Coldbath Fields?
—Sim, senhora. -Queria dizer algo mais, mas não achava as palavras.
Estava acostumado ao horror e as penalidades, mas nunca tinha tido que dizer à esposa de um inspetor que seu marido fora acusado de assassinato... de uma prostituta! Sentia compaixão por ela.
—Então irei procurar algumas de suas coisas. -Tratava de achar uma idéia coerente, algo prático de fazer-. Camisas. Muda limpa. Darão-lhe ali de comer?
—Sim, senhora. Mas não lhe virá mal alguma comida extra, desde que seja algo simples. Mas não tem um irmão, alguém que possa ir por você? Não é lugar para uma dama.
—Não, não tenho. Irei eu mesma. Agora tenho que me assegurar de que a criada está levantada para deixá-la a cargo dos meninos. Obrigada, agente. Em seguida volto.
—Tem certeza, senhora? Se posso fazer algo...
—Sim, tenho certeza. -Deixou-o no degrau da entrada ao fechar a porta com suavidade e se dirigiu à cozinha, cambaleante. Chocou-se contra o batente da porta, mas tinha a mente tão confusa que só ao cabo de uns segundos sentiu a dor do golpe. Sairia-lhe um bom hematoma, mas só podia pensar naquele momento em Pitt, morto de frio, faminto, e na clemência dos guardiões do The Steel.
Passou manteiga nas fatias e trinchou os frios que deviam ter servido para o consumo da casa durante os dois dias seguintes. Envolveu os sanduíches e os pôs em uma cesta. Depois foi ao piso de cima e tirou a roupa interior recém lavada de seu marido e uma boa camisa, mas em seguida se deu conta de que isso era uma tolice e procurou as camisas mais velhas. Continuava rebuscando no patamar quando desceu Gracie de seu quarto e parou no último degrau.
—Necessita algo, senhora?
Charlotte fechou as portas dos roupeiros e se voltou.
—Não, Gracie. Já o tenho, obrigada. Tenho que ir. Não sei a que hora voltarei, pode ser que tarde. Peguei a comida que havia para o senhor Pitt. Terá que comprar alguma outra coisa para nós. Gracie piscou, embrulhando o xale.
—Senhora, está muito pálida. Aconteceu algo? -Seu pequeno rosto expressava consternação.
Não havia por que mentir. Charlotte teria que dizer-lhe de todo modo.
—Sim. prenderam o senhor Pitt. Dizem que matou uma mulher no Seven Dials. vou levar... vou levar lhe algumas coisas. Eu... -Estava a ponto de chorar, a garganta se fechava e não lhe saía à voz.
—Sempre pensei que esses policiais são uns estúpidos! -disse Gracie com desprezo-. Mas desta vez passaram dos limites. Quem quer que tenha cometido um engano como esse, deveria passar o resto de seus dias a pão e água! Deveriam encerrá-los a eles! foi ver o chefe de polícia, senhora? Certamente nem sequer sabem a quem prenderam! Pois vá, não há em toda Londres ninguém que haja resolvido mais mortes que o senhor Pitt. Às vezes penso que alguns deles não seriam capazes de ver um buraco no chão nem que caíssem dentro!
Charlotte sorriu com pesar. Olhou o rosto simples e indignado de Gracie e se sentiu mais segura.
—Sim, isso vou fazer -disse com firmeza-. vou levar primeiro estas coisas ao senhor Pitt e depois irei ao Bow Street para ver o senhor Ballarat.
—Faça-o, senhora -a animou Gracie-. Eu me ocuparei de tudo da casa.
—Obrigada. Agradeço isso, Gracie. -E se voltou com rapidez e se precipitou escada abaixo antes que se visse de novo dominada pela emoção. Melhor não falar. Atuar era mais fácil e imensamente mais útil.
Mas quando chegou ante as portas da maciça torre cinza da penitenciária e pediu para entrar, não lhe permitiram ver Pitt. Um carcereiro com o nariz vermelho e um perpétuo resfriado ficou com a cesta de comida e a roupa limpa, com a pouco aduladora promessa de que tentaria fazer que chegasse ao prisioneiro. Mas não houve forma de que a deixasse passar, não era hora de visitas e não podia fazer exceção alguma nem atender a sua solicitude. Sentia-o, mas as normas eram asnormas.
Não cabia argumento algum contra tão sombria negativa, e ao comprovar o inominável desinteresse em seus frágeis olhos ela se voltou e partiu pelo caminho molhado, com o vento lhe açoitando o rosto e tratando de pensar no que ia dizer a Ballarat. A irritação, a fúria ante a estupidez e a injustiça cometidas, tinha passado depressa e agora pensava com sentido prático. Qual seria a melhor maneira de fazer com que Ballarat agisse imediatamente? Sem dúvida uma raciocinada e tranqüila exposição dos fatos. Não podia saber o que tinha acontecido, do contrário teria feito já algo, teria se posto em contato com a delegacia de polícia que tinha cometido um engano tão banal e lhe teriam garantido a liberação de Pitt à recepção imediata da ordem apropriada.
Subiu ao primeiro ônibus, que ia repleto de mulheres e crianças. Pagou o bilhete e deslizou entre uma gorda mulher com um vestido de bombagi negro e um bustocomo um almofadão, e um menino pequeno com um traje de marinheiro. Para ter a mente ocupada, olhava os passageiros - a velha dama com o rosto murcho e a defasada capa de renda; a garota com a saia e raias que não deixava de sorrir ao jovem das costeletas-, mas todos seus pensamentos acabavam por confluir em Pitt e no terrível sentimento de estar isolada dele, de estar desamparada ante a onda de pânico que a ameaçava.
Enquanto descia em Strand e subia Bow Street para a delegacia de polícia, o coração lhe palpitava e sentia as pernas inseguras. Inspirou profundamente e exalou pouco a pouco, mas não foi suficiente para sentir-se mais segura. Subiu os degraus e tropeçou no superior, pois parecia ter perdido a coordenação dos pés. Abriu a porta e entrou no edifício, enquanto reparava que nunca tinha estado ali antes. Pitt ia todo dia, e falava disso tão frequentemente que tinha dado por feito que lhe seria familiar, mas era mais escuro e frio do que esperava. Não tinha imaginado aquele cheiro de linóleo e cera, o cobre desgastado dos pomos das portas, o deslustrado banco, onde se tinham sentado incontáveis pessoas para esperar.
O agente de serviço levantou a vista do livro maior, no que estava escrevendo com aplicada caligrafia.
—O que posso fazer por você? -deu-se conta imediatamente de que se achava ante uma pessoa respeitável-. perdeu algo, não é assim?
—Não. -Engoliu em seco. - Obrigada. Sou a esposa do inspetor Pitt. Desejaria ver o senhor Ballarat, por favor. trata-se de algo muito urgente.
O agente se ruborizou e desviou o olhar.
—Sim, senhora. Se puder... se puder esperar um momento, irei ver. - Fechou o livro, guardou-o debaixo do mostrador e desapareceu pelo corredor, através da porta com painel de vidro.
Charlotte pôde ouvir como falava apressadamente com outra pessoa do outro lado da porta. Permaneceu esperando de pé no meio do desgastado chão de linóleo.
Compreendeu que deviam sentir-se perturbados em sua presença, pois não saberiam o que dizer. Aquela ideia a assustou. Tinha esperado enfrentar à ira, a uma atitude defensiva, à reiteração de asseverações de que tinha que tratar-se de um engano e que se emendaria imediatamente. Aquela ocultação só podia significar que ou eles mesmo duvidavam de Pitt, ou que não se atreviam a expressar seus sentimentos. Entre aqueles homens não existia nenhum tipo de lealdade, de confiança, até depois de todos os anos que o conheciam? Sentia-se presa de pânico. Começou a retroceder sem dar-se conta, desesperada-se e temerosa de fazer ruído, de ficar a gritar.
Abriu-se a porta de repente e se sobressaltou. Desta vez o mesmo agente de alguns minutos a olhou nos olhos.
—Se tiver a bondade de vir por aqui, senhora. -Seguia sem usar seu nome, como se estivesse envergonhado e pretendesse simular que falava com outra pessoa. Olhou-o com frieza.
—Sou a senhora Pitt -lhe disse.
—Sim, senhora... senhora Pitt -repetiu ele, ruborizado. Seguiu-o pelo corredor e subiu umas escadas até o espaçoso e quente escritório de Ballarat. O fogo da lareira estava aceso e ante ele estava Ballarat, de pé, com os pés ligeiramente separados e as botas reluzentes.
—Entre, senhora Pitt -disse com voz afável-. Entre e tome assento. - Indicou-lhe a confortável poltrona de pele, mas não se afastou para lhe oferecer o calor do fogo.
Ela se sentou na borda da poltrona, muito erguida. O agente fechou a porta e se foi.
—Lamento ter tido que lhe enviar uma mensagem como a desta manhã - começou ele antes que ela pudesse falar-. Deve lhe haver causado uma desagradável impressão.
—Certamente. Mas isso é o que menos importa. O que está acontecendo com Thomas? Não sabem quem é? Não foi ao Coldbath Fields para falar com eles? Talvez não confiem em uma carta.
—Claro que sabem quem é, senhora Pitt. -Assentiu várias vezes com a cabeça-. Naturalmente, eu mesmo me assegurei que fosse assim-. Mas temo que as provas são bastante irrefutáveis. Não desejo afligi-la com uma explicação detalhada. De verdade penso, querida senhora Pitt, que o melhor seria que voltasse para casa, ou possivelmente a casa de sua família, e...
—Não penso fazer algo tão inútil como ir à casa de minha família! -Quis engolir a ira, mas a voz não podia tirar a sua emoção-. E sou perfeitamente capaz de escutar essas supostas provas, sejam as que forem!
O superintendente parecia incômodo, e seu rosto já por si corado adquiriu uma tonalidade mais intensa.
—Bem. - limpou a garganta para dar-se tempo de ordenar seus pensamentos-. Deve me permitir que antes conheça melhor o caso, a senhora diz isso porque não sabe do que se trata. Asseguro, será muito melhor se deixar que eu cuide de seus interesses e agora vá para casa e...
—O que vai fazer para demonstrar sua inocência? -interrompeu-lhe com ferocidade-. Sabe que não o fez! Tem que achar a prova que o demonstre.
—Querida senhora Pitt -levantou suas gordinhas mãos bem cuidadas, e o resplendor da lareira arrancou um brilho de seu anel de ouro-, minha obrigação é respeitar a lei, como todo mundo. É claro -disse com uma cautela e uma paciência tão evidentes que ela podia senti-las no ambiente-, é claro que meu desejo é acreditar que o resultado seja mais vantajoso para ele. -Voltou a assentir com a cabeça-. Pitt foi durante anos um bom oficial de polícia. serviu à comunidade em muitos sentidos.
Charlotte abriu a boca para replicar a tanta condescendência, mas ele não estava disposto que lhe interrompesse.
—Mas não posso passar por cima da lei! Se queremos defender a justiça, devemos respeitar os leitos regulamentares, como qualquer outra pessoa. –Agora estava lançado. - Não podemos nos pôr por cima.
—Abriu os olhos desmesuradamente-. É claro que não achei nem por um momento que Pitt pudesse fazer uma coisa como essa. Mas, com toda a boa vontade do mundo, não posso nem devo dizer que sei com ciência certa. -Esboçou um leve sorriso que expressava a superioridade da razão masculina sobre o sentimentalismo-. Não somos infalíveis, e meu critério como homem não é suficiente para desculpá-lo ante a lei... nem deve sê-lo.
Charlotte se levantou, olhando-o com uma raiva tensa e fria.
—Ninguém lhe está pedindo que seja juiz, senhor Ballarat-. Olhava-o fixamente. O que tinha esperado era que fosse suficientemente leal para defender a um de seus próprios homens, que sabe muito bem que não é capaz de ter cometido um crime assim. Embora não o tivesse conhecido, eu sempre tinha dado como assentado que lhe teria considerado inocente e teria feito todo o necessário para verificar as supostas provas uma e outra vez até achar à falha.
—De verdade, querida senhora Pitt -disse com doçura, enquanto tentava darum passo à frente e se detinha a ver seus olhos-. Tem que aceitar que não sabe como funcionam as coisas! Isto é um assunto da polícia, nós somos peritos em... -Você é um covarde -disse com desprezo.
Ele pareceu surpreso, até que recuperou a compostura e a olhou com olhos mansos e frágeis.
—Compreendo que esteja alterada. É natural. Mas me entenderá, quando tiver descansado e pensado um pouco sobre isso... Não seria mais prudente talvez deixar o assunto em mãos de seu pai?- Ou de um irmão, se o tiver, ou de um cunhado?
Ela engoliu em seco.
—Meu pai está morto, também meu cunhado. E não tenho irmãos.
—Oh. -Parecia confundido, uma via de escape se fechara de forma inesperada. Era uma pena que não houvesse nenhum homem para fazer-se encarregado dela... pelo bem de todos-. Bom... -disse indeciso.
—Então? -insistiu- ela, olhando-o furiosa.
Ele desviou o olhar.
—Estou certo de que se fará tudo o que se possa, senhora Pitt. Mas também estou certo de que não desejará você que eu interfira no curso da lei, embora fosse capaz.
—Estava satisfeito daquela conclusão; seu tom de voz se fez mais firme-. Deve tranquilizar-se e confiar em nós.
—Estou tranquila -disse afogando-se, e deixou inexpressável de propósito a segunda parte da resposta-. Obrigado por me haver dedicado seu tempo. -E sem esperar que ele pudesse reunir as educadas palavras de despedida, nem lhe oferecer a mão, virou-se sobre seus calcanhares e se dirigiu para a porta. Abriu-a e saiu, deixando-o balançando-se ante o fogo.
Mas de breve consolo lhe serviu deixar-se levar pela ira. Esta se extinguiu assim que saiu à rua gélida, onde os transeuntes a roçavam ao passar, indiferentes, e uma carruagem a salpicou ao aproximar-se do meio-fio. Pouco a pouco, à medida que caminhava com o passar do Strand em direção à parada de ônibus, ia formando em sua mente uma ideia aproximada do que significava tudo aquilo: Ballarat não estava disposto a fazer nada. Ela tinha esperado achar-se um homem só um pouco menos indignado que ela mesma -depois de tudo, Pitt era um de seus homens, provavelmente um dos melhores-. Tinha imaginado ele gesticulando, fazendo todo o possível para esclarecer o terrível engano. Em troca, não tinha feito senão desdizer-se, andar com ambiguidades, procurar desculpas para não agir.
Possivelmente até era para ele um alívio ver Pitt reduzido ao silêncio. E que forma mais efetiva para obter que Pitt deixasse de fazer perguntas comprometedoras ou desenterrar algo que implicasse aos York, os Danver ou os superiores de Ballarat no Home Office e nos departamentos da diplomacia onde havia indícios de alta traição? Deteve-se em seco e um homem que levava uma bandeja de bolos tropeçou com ela e soltou uma imprecação.
—Sinto muito –murmurou.
Charlotte. ficou ancorada no pavimento cinza enquanto as pessoas empurravam-na e resmungavam ao passar. Era isso possível? Era concebível que o próprio Ballarat...? Não, certamente que não. Não era mais que um homem fraco e ambicioso. Mas quem tinha matado Cereja? O que tinha chegado saber aquela mulher que fosse tão perigoso para que alguém a tivesse seguido até um quarto do Seven Dials para lhe quebrar o pescoço? Alguém a quem ainda podia trair... isso era evidente. E quem quer que o tivesse feito, tinha medo de que Pitt estivesse perto. Se o fato de que tivesse sido assassinada justo quando ele a tinha encontrado era uma mera coincidência, então Ballarat faria todo o possível por descobrir a verdade.
Pôs-se a andar de novo, desta vez depressa. convenceu-se de um fato definitivo: Ballarat fazia parte da conspiração, fosse porque estava comprometido ou por mera fraqueza. Achava mais este último. Emily e ela tinham que fazer algo a respeito, tinha que haver alguma forma...
O frio a fazia perder o fôlego. Como podia chegar até Emily? Agora era uma criada na casa dos York; era tal como estar na França! Charlotte não podia estar certa sequer de que uma carta pudesse lhe chegar com prontidão.
—Extra! Extra! -A aguda e penetrante voz do vendedor de diários irrompeu em seus pensamentos-. Extra! Um policial assassinou a mulher de rosa! Extra! - deteve-se junto a ela-. Quer o diário, senhora?
Thomas Pitt, um famoso poli, matou a uma... -depois de olhá-la retificou o que ia dizer-: matou a uma mulher da vida.
Não lhe saiu a voz.
—Não, obrigada.
O menino se voltou para gritar de novo. Ela compreendeu então que era uma tolice fugir a realidade. Se queria ser de alguma ajuda, precisava estar à corrente de tudo.
—Sim, por favor! Sim, compro-lhe um - chamou-o enquanto procurava na bolsa de malha uma moeda.
—Aqui tem, senhora. Obrigado. -Devolveu-lhe um penny de troco e continuou seu caminho-. Extra! Um poli comete um terrível assassinato no Seven Dials!
Colocou-o sob o braço. Preferia folheá-lo sozinha. O ônibus estava a ponto de passar.
Quando chegou, subiu a ele, pagou o trajeto ao condutor e se sentou, sem fixar-se desta vez em outros passageiros. Quando desceu, chovia com intensidade e ao chegar à porta de sua casa e entrar estava empapada. Gracie foi recebê-la com os olhos avermelhados e o avental sujo. Charlotte tirou o casaco molhado e o pendurou sem preocupar-se pela água que gotejava ao chão.
—O que acontece, Gracie? -disse.
—Oh, senhora... sinto-o muitíssimo. -A garota estava outra vez à beiradas lágrimas, com a voz abafada pela vontade de chorar.
—O que?
—A senhora Biggs partiu. Nem sequer limpou o chão. foi dizendo que não queria trabalhar para gente que matava mulheres. Sinto-o muito, senhora... –Engoliu em seco, enquanto as lágrimas lhe desciam pelas faces-. E o açougueiro não quis confiar. Disse-me que fôssemos comprar a carne em outro lugar!
Charlotte estava atônita. Nem sequer lhe tinha ocorrido pensar em algo assim, mas aqui estavam os resultados, apresentaram-se com toda rapidez. Sentiu que lhe faltava o ar, estava um pouco enjoada.
—Senhora... -Gracie inspirou com força mas não pôde conter o pranto.
Charlotte a rodeou com os braços e ambas deixaram fluir lágrimas de desdita. Passaram uns minutos até que Charlotte foi capaz de sobrepor-se, soar o nariz e ir à cozinha. refrescou o rosto com água fria e se secou com a toalha com tanta força que apenas se notavam os olhos avermelhados. Dar instruções ao Gracie foi um alívio, e cortar a verdura com fúria a ajudou a acalmar-se enquanto tratava de pensar.
Não disse nada ao Daniel e Jemima, e fez o que pôde por comportar-se com normalidade. Daniel estava muito faminto para ser observador, mas Jemima notou
algo e perguntou se acontecia algo.
-Estou resfriada -disse Charlotte, fazendo um esforço por sorrir-. Não se preocupe por nada. -Mas pensou que aquele podia ser o momento para lhe daruma primeira informação. Assustavam-lhe as mentiras, mas quanto antes o dissesse, menos horrível seria-. Papai não virá para casa durante uns dias. Está fora fazendo um trabalho muito especial.
—Por isso está triste? -disse Jemima.
Quanto mais pudesse aproximar-se de algo que se parecesse com a verdade, melhor.
—Sim. Mas não se preocupe... entre todos nos faremos companhia. –Tentou sorrir, mas lhe saiu uma careta lastimosa.
Jemima sorriu por sua vez e começou a lhe tremer o lábio. Sempre tinha tido o dom de captar o estado de ânimo de sua mãe, pudesse ou não compreendê-lo: a pequena era como um espelhinho que refletia os gestos, as expressões e os tons de voz de sua mãe. Por isso sabia que algo andava mau.
—Sim, vou sentir falta de papai -repetiu Charlotte-. E também de tia Emily, desde que veio passar as férias de Natal. Mas não importa, estarei muito ocupada e assim o tempo passará mais depressa. E agora tome a sopa ou ficará fria. Inclinou-se para seu prato e fez um esforço para engolir o guisado com purê de batatas, cujo sabor mal percebia. Doía-lhe a garganta e tinha o estômago encolhido, duro como uma pedra.
Mal tinha acabado quando soou a campainha da porta. Tanto ela como Gracie ficaram imóveis, atendidas pelo medo. Quem podia ser? Por um momento Charlotte pensou que possivelmente tinham soltado o Pitt e que este tinha perdido a chave; mas em seguida se deu conta de que era mais provável que fosse algum vizinho que queria confirmar seus temores, cheio de curiosidade e transbordante de falsa piedade, ou ainda, outro vendedor como o açougueiro. A campainha soou de novo, com maior insistência. Olhou a Gracie.
—Deixe a mim, senhora! -disse a garota de forma premente-. Não sei quem pode ser. -levantou-se com receio-. Deixe a mim e lhe dou minha palavra que fecho a porta no nariz se for algum indesejável. E não lhe prometo que vá ser educada com ele!
—Conta com minha permissão -a animou Charlotte-. Abre com a corrente fechada.
—Sim, senhora. -E, alisando o avental e apertando os dentes, Gracie desapareceu pelo corredor.
Jemima e Daniel tinham deixado de comer e permaneciam sentados com os ouvidos alertas, enquanto os saltos de Gracie ressoavam sobre o linóleo. produziu-se um momento de silêncio, logo se ouviu correr a corrente no fecho da porta, um murmúrio de vozes muito confuso para distinguir as palavras e de novo o som da corrente ao passar o fecho e o ruído de passos que voltavam. Charlotte se levantou.
—Fique aqui -ordenou.
—Quem é, mamãe? -sussurrou Jemima. Daniel a olhava com ansiedade, assustado.
—Não sei. Fique aqui.
Charlotte saiu ao corredor no momento em que entrava Jack Radley, com o rosto pálido, precedendo a Gracie. Estendeu os braços e Charlotte avançou para eles. Ele a abraçou com firmeza, sem dizer nada, e Gracie passou junto a eles com um pequeno suspiro de alívio. Tinha a Charlotte em grande conceito, e sempre era bom ter um homem ao lado para resolver certo tipo de problemas. Graças a Deus que acabava de chegar um.
Charlotte se afastou a seu pesar. Não podia abandonar-se e pretender que outro solucionasse tudo.
—Venha a cozinha -disse. Não estava aceso o fogo do salão, Gracie nem sequer tinha reparado nisso, e o tempo era muito rude para convidar alguém a um aposento sem esquentar-. Gracie, será melhor que leve as crianças para cima e os prepare para deitar.
—Ainda não comi o pudim! -disse Daniel clamando justiça.
Charlotte esteve a ponto de lhe dizer que teria que passar sem ele, mas ao olhar sua carinha viu um medo cego, que era o único que sabia que ela também estava assustada e que seu pequeno mundo corria sério perigo. Fez um esforço supremo e conseguiu controlar seus próprios sentimentos.
—Tem razão, esqueci de fazê-lo. Sinto muito, querido. Conformará-se com um pedaço de bolo se lhe levar ao quarto?
O pequeno a olhou com ar digno.
—Está bem -concedeu, e desceu da cadeira.
—Obrigado.
Quando partiram, olhou para Jack.
—Li nos jornais - disse este com rapidez-. Pelo amor de Deus, o que aconteceu?
—Não sei. Esta manhã veio um agente e me disse que tinham detido a Thomas pelo assassinato de uma prostituta no Seven Dials. Devia ser Cereja. Eu também comprei o diário, mas não tive tempo ainda de lê-lo. Não me atrevi a pegá-lo...
Jemima já sabe ler. Pensava lê-lo esta noite e depois jogá-lo na estufa.
—Eu o jogarei por ti agora mesmo -disse ele, mordendo o lábio-. Não vai gostar de ler o que está. Thomas foi ao Seven Dials em busca da mulher do vestido cereja. Diz que lhe disse onde encontrá-la um enganador ambulante (um desses tipos que vendem notícias frescas), e que quando entrou na casa o conduziram ao piso de cima até seu quarto. Diz que a achou morta, com o pescoço quebrado, mas a gente dessa casa assegura que ela estava bem à última vez que a viram e que ninguém mais tinha subido ao piso de cima salvo alguns clientes habituais de toda confiança.
—Não pode ser verdade!
—Claro que não! Mentem, e me atrevo a dizer que devem lhes haver pagado um bom dinheiro em troca. E não acredito que vão mudar seu testemunho por agora. Nos vai dar trabalho... mas o conseguiremos. Só que desta vez não teremos ao Pitt para nos ajudar. Ela voltou a sentar-se em uma cadeira da cozinha e ele o fez na de Gracie.
—Jack, não sei por onde começar, fui ver Ballarat. Estava convencida de que estaria movendo céu e terra para desentranhar a verdade, mas o única coisa que fez foi me falar como se fosse uma menina e me dizer que fosse para minha casa e deixasse tudo em suas mãos. Não sei, mas poderia jurar que esse homem não fará nada absolutamente. Jack... -Hesitou um momento, temendo que o que estava pensando soasse a ele como histerismo, mas que alternativa tinha-. Jack, acredito que esse Ballarat quer que Thomas continue na prisão. Tem medo! -E se apressou a explicar-se-: Tem medo de que Thomas descubra algo embaraçoso para pessoas importantes, os York e os Danver, ou para gente influente do Home Office. Ballarat quer esconder a sujeira sob o tapete, com a esperança de que se calar agora, logo passe e se esqueça de tudo. E prefere que alguém fique impune de cargos como a alta traição e o assassinato, antes que seja ele que tenha que desentupir aquilo que todos odiariam! As pessoas podem ser muito injustas, odiarão à pessoa que os abra os olhos ao que prefeririam não ter visto nunca, a quem derruba seus ídolos e mostre os pés de barro sobre os que estes se seguravam. Acusarão-lhe pela verdade e pela responsabilidade que deixa sobre nossos ombros. Não estamos acostumados a perdoar aqueles que destroem nossas ilusões. Ballarat não quer ser essa pessoa, mas será comprometido se Thomas descobrir o que sabia Cereja. Por isso a mataram... tinham que fazê-lo!
—Certamente -admitiu ele. Pegou-lhe as mãos com afeto. Aquele gesto não era uma familiaridade mas só amizade, e em uma reação instintiva ela se aferrou a sua vez às mãos dele-. Quer que traga Emily?
—Sim... por favor. Eu não poderia ir agora a casa dos York. -Pensou em uma desculpa para tirá-la dali-. Pode dizer que se trata de uma enfermidade de um familiar ou algo assim. O que não sei é como explicará que a conhece, mas pode inventar uma boa mentira antes de ir lá. -A ideia de ver Emily era já um consolo, como se alguém acendesse um fogo em um aposento frio. Talvez até poderia vir e ficar com ela. Poderiam trabalhar juntas, como o tinham feito antigamente em casos menos transcendentes que este.
—O que quer então que faça? Nunca fiz-me de detetive, e este é um assunto muito importante para aficionados. Mas farei algo que esteja em minha mão.
—Não sei por onde começar -disse ela, sentindo-se de novo desolada-. Cereja está morta. Além do assassino, pode ser que fosse a única pessoa que sabia a verdade.
—Bom, ao menos agora sabemos que ela não era a assassina. Alguém a matou, e seria muito presumir que se trate de uma coincidência, justo quando Thomas a tinha encontrado. E temos que supor que alguém, quase com toda segurança a mesma pessoa, matou a pobre Dulcie. Lhe olhava fixamente.
—Isso significa que foi alguém da casa dos York, ou dos Danver, ou Felix ou Sonia Asherson.
—Exato.
—Mas o que podiam estar fazendo qualquer deles em um lugar como Seven Dials?
—Assassinar Cereja para obter seu silêncio -respondeu ele com calma; seu rosto estava mais sombrio que nunca. Havia zanga em seu interior, uma gravidade que ela desconhecia nele-. Em minha opinião, isso significa que em todo tempo souberam onde estava -continuou-. Se não, dificilmente podiam ter dado com ela por acaso.
—Alguém dos York, dos Danver ou dos Asherson -insistiu ela-. Emily... - interrompeu-se. Emily estava sozinha na casa dos York, incapaz de defender-se mais que com seu disfarce de ignorância, e Pitt estava encarcerado no Coldbath Fields à espera de um julgamento por assassinato. Ambos podiam morrer. Mas Emily era livre, ela ao menos podia lutar por ela mesma! Embora a justiça, sem dúvida... A verdade? Ballarat faria que...
Tinha que deixar de comportar-se como uma menina, enganando a si mesma para consolar-se, procurando desculpas para disfarçar a gravidade da situação. Ballarat não faria nada.
—Mudei de ideia -disse com calma-. Não peça a Emily que venha para casa. O único modo de ajudar a Thomas é que fique onde está. Quem quer seja o assassino de Cereja, Robert York e Dulcie se encontra em Hanover Close, e a única maneira de poder descobri-lo é vigiando-os a todos tão de perto que vejamos que emoções experimentam, quem tem medo, quem mente.
Ele guardou silêncio. Por um momento ela temeu que ele se opunha, que esgrimisse os perigos que corria Emily, até que lhe enumerasse os acidentes que podiam lhe acontecer; mas não disse nada.
—Você e eu podemos continuar indo ali tão frequentemente como podemos - prosseguiu-. Mas nunca poderemos vê-los nos momentos em que baixem a guarda, e isso é o que poderá fazer Emily. Tem ideia do muito que uma mulher confia em sua criada?
Pela primeira vez ele sorriu.
—Imagino que mais ou menos o que um homem confia em seu criado - respondeu-. Ou possivelmente um pouco mais: as mulheres passam mais tempo em casa, e em geral prestam mais atenção ao aspecto exterior.
Charlotte reparou em que havia outro ponto a tratar.
—Jack, certamente Emily não lerá os diários. As criadas não têm acesso a eles, sobre tudo se as notícias são truculentas. O mordomo costuma retirá- los em tais casos. -Viu como a surpresa se desenhava em seu rosto-. Você o fará! Não irá querer que as criadas passem o dia comentando as histórias de horror pelos corredores e as noites tendo pesadelos.
Pelo rosto de Jack era evidente que nunca tinha reparado nisso, e pensou com sombra de compaixão que aquele homem tinha muito poucas raízes. Era um eterno convidado em toda parte, nunca era o anfitrião; não era pobre porque era de bom berço, mas tampouco tinha os meios para subir ao nível de seus iguais. Mas não era o momento de pensar nesse tipo de coisas. Percebeu que lhe tinha ido uma de suas próprias criadas, e que se a situação de Pitt não se esclarece logo, Gracie ia sentir se muito pressionada. Sua mãe trataria de persuadi-la de que procurasse outro lugar melhor. E se tinha que avaliar tudo, Charlotte não tinha dinheiro, por isso de qualquer modo não poderia reter a Gracie, nem a nenhuma outra. A atribuição que recebia de sua herança lhe daria para comer, ao menos durante umas semanas... O medo espreitava de novo. Não só lhe dava medo a ideia do isolamento e de carecer dos meios suficientes, mas o pior de tudo, a ideia da vida sem Pitt.
Não devia pensar nisso. Aspirou profundamente, até que os pulmões lhe doeram como se o ar fosse agudo. Tinha que lutar contra quem fosse, contra todos se fosse necessário.
—Por favor, peça a Emily que fique onde está -insistiu.
—Farei-o. -Jack titubeou, pela primeira vez parecia assustado, seus olhos evitaram os dela e procuraram à superfície da mesa e a fila de pratos debruados de azul na prateleira-. Charlotte... tem dinheiro?
Ela engoliu em seco.
—Para um tempo.
—Vai ser duro.
—Sei.
Ele se ruborizou ligeiramente.
—Eu posso lhe dar um pouco.
Sacudiu a cabeça.
—Não. Obrigado, Jack.
Este procurava as palavras adequadas.
—Não se ... não se deixe levar pelo orgulho...
—Não é por orgulho -lhe assegurou-. De momento estou bem. E quando não o estiver... -Se Deus quisesse, então já teriam descoberto ao assassino e Pitt estaria livre!-. Quando não o estiver, Emily me ajudará.
—Irei vê-la e o direi. Direi que ficou doente um parente... assim me deixarão entrar. Nem sequer o mordomo será tão afetado para lhe negar a alguém o direito a inteirar-se desse tipo de notícias.
—Mas como vai explicar que a conhece? Terá que dar alguma explicação, do contrário suspeitarão. -Sempre tinha como ideia à necessidade de saber a verdade, antes que qualquer outra coisa-. Não o deixarão a sós com ela, sabe muito bem. Estará diante da governanta da casa, ou a outra criada pessoal, embora só seja por decoro.
Por um momento pareceu desconcertado, mas se animou.
—Escreva uma carta. Direi que é de sua família e que lhe explicam a situação. Assim poderá pedir um dia livre para vir visitá-la em seu leito de dor.
—Meio-dia -lhe corrigiu como uma mola-. Não leva tempo suficiente para poder pedir um dia inteiro, embora eles poderiam ter compaixão. Faça- o, Jack, por favor... vá hoje mesmo. Escreverei-lhe a carta agora mesmo e lhe dire que a queime assim que a tenha lido. Ali não lhes faltam lareiras. -levantou-se já antes de ter concluído a frase e foi a toda pressa ao salão, onde acendeu as luzes, sem dar-se conta do frio que fazia até que tocou com os dedos a gélida superfície da escrivaninha. Pegou papel de uma gaveta, tinta e uma pena e começou a escrever.
Querida Emily:
Aconteceu algo terrível. Thomas achou Cereja, mas já estava morta.
Alguém lhe tinha quebrado o pescoço e prenderam ele pelo assassinato. Levaram- no ao The Steel, no Coldbath Fields, à espera de julgamento. Fui ver o senhor Ballarat, mas não fará nada para tirá-lo dali. Ou decidiram deixá-lo só, ou é um covarde e está em realidade contente de haver-se libertado de Thomas antes que este descobrisse algo comprometedor para alguma pessoa poderosa. Está tudo em nossas mãos, não temos a ninguém mais. Por favor, continue onde está, mas tenha muito, muito cuidado! Lembre-se de Dulcie! Estou dividida: por uma parte te rogaria que voltasse para casa com Jack imediatamente, esta mesma noite, e ficasse a salvo; e por outra, sei que você e eu somos a única esperança de Thomas. Devia andar muito perto da pista de alguém muito poderoso... e perigoso.
Por favor, Emily, tome cuidado.
Amo-a, CHARLOTTE.
Secou a tinta com certa estupidez. Tinha escrito a carta com precipitação e se notava os dedos trançados. Depois, sem relê-la, dobrou-a e a introduziu em um envelope, que selou. Tampou o frasco de tinta e apagou a luz de gás antes de voltar para a cozinha, onde entregou a carta a Jack.
—Voltarei amanhã -lhe prometeu este-. Temos que elaborar um plano.
Ela assentiu, aflita de solidão ao ver que ele partia. Sua presença lhe tinha feito sentir-se menos assustada. Embora contasse com a lealdade de Gracie e com as crianças, estaria sozinha quando ele se fosse. Durante a longa e fria noite que lhe esperava ia ter muito tempo para pensar e nada que fazer. Sentia temor ante o próximo despertar, à manhã seguinte.
-Boa noite. -Provocou o momento da despedida, pois era pior esperar o de forma passiva, e não queria pôr-se a chorar outra vez. Não tinha nenhuma utilidade, e nem sempre é fácil de deter o pranto.
—Boa noite. -Ante o momento de partir, ele também parecia remisso. Estava preocupado por ela, e Charlotte sabia. Pode ser que amasse de verdade a Emily. Que forma mais inesperada de descobri-lo!
Jack vacilou ainda uns segundos, mas ao não achar nada mais que dizer, voltou-se e se dirigiu para a porta. Seguiu-o até que viu-o na rua, onde os paralelepípedos molhados refletiam a débil luz de gás e as luzes estavam suspensas no ar como sinistras luas cujos ralos transpassavam a chuva. Passou com suavidade a mão pela face e caminhou depressa para a rua principal em busca de um caleche.
Estava tão cansada que deveria ter adormecido bem, mas teve sonhos cheios de temores e despertou muitas vezes, sentindo que lhe custava respirar e que lhe doía o corpo pela tensão e tinha a garganta inflamada. As horas de escuridão se fizeram intermináveis e quando chegou por fim o amanhecer cinza, com a chuva golpeando nos vidros da janela, sentiu um grande alívio ao poder levantar-se. Estava tão cansada que mal acertou vestir o robe para descer e procurar um jarro de água quente, embora mudasse de ideia ficou embaixo para lavar-se na cozinha, onde estava melhor, antes de vestir-se decidiu tomar uma xícara de chá, cujo sabor lhe serviria para tirar a sensação pastosa da boca e cujo calor suavizaria a tensão acumulada na garganta.
Estava ainda sentada à mesa da cozinha quando entrou Gracie, também de robe e com o cabelo solto sobre os ombros. Parecia uma menina. Charlotte nunca observara em como era velha sua roupa de cama. Teria que comprar roupa nova... se é que alguma vez podia voltar a permitir-se. Desejou havê-lo feito antes.
Gracie permanecia imóvel, com os olhos totalmente abertos, temerosa de falar por não saber o que dizer. Mas seu olhar era firme e expirava nela a lealdade. Desejava perguntar à Charlotte se estava bem, mas não se atrevia para não parecer impertinente.
—Tome uma xícara de chá antes de nos pôr em marcha -lhe ofereceu Charlotte.
—A água do bule está quase fervendo ainda.
—Obrigada, senhora -aceitou Gracie com certo respeito; nunca em sua vida se sentara na cozinha para tomar chá com a roupa de dormir.
As coisas foram pior com o correr do dia. O vendedor de pão não se deteve ante a porta, mas sim passou rua abaixo. O menino que trazia o peixe, ao contrário, fez soar a campainha, apresentou a conta posta do dia e exigiu seu pagamento imediato, com a advertência de que se a senhora queria comprar peixe no futuro -coisa que parecia duvidar-, todas as transações deveriam ser pagas em metálico e no momento da entrega. Gracie lhe disse que se ocupasse de seus assuntos se não quisesse que lhe desse uma bofetada ali mesmo, mas ao voltar para a cozinha fungava com força e tinha os olhos avermelhados.
Charlotte pensou enviá-la pelo pão, mas disse lhe que era injusto e até pouco prudente; estava claro que sua lealdade era grande e que replicaria a qualquer comentário mal-intencionado que fizessem-lhe, até se só o ouvisse de passagem. Charlotte era mais velha que ela e sem dúvida saberia manter melhor a calma. Não podia defender-se em uma menina.
A experiência foi pior que o imaginado. Com a maioria de seus vizinhos nunca havia mais que uma mera relação de educada cortesia. Eles sabiam por sua forma de falar, suas maneiras, a qualidade de sua roupa -embora fora de uma feitura própria de alguns anos atrás-, inclusive pela presença ocasional da carruagem de Emily, que Charlotte não procedia de baixa extração social. Levianamente eles se mostraram sempre educados, até cordiais de vez em quando, mas subjazia o ressentimento, o medo ao diferente, à inveja do privilegiado; e embora a maioria dessas coisas pertencessem já a um longínquo passado, não estavam esquecidas.
Desceu a rua com o vento lhe açoitando o casaco e a chuva lhe empapando a saia. Ao dobrar a esquina ficou ao abrigo da loja de comestíveis. Assim que cruzou a porta, as poucas mulheres que havia no interior deixaram de falar e ficaram olhando-a. Uma delas tinha um filho que era um delinquente e que cumpria uma pena de seis meses na prisão do Scrubs. A mulher sentia ódio por todos os policiais, e agora se apresentava a ocasião de vingar-se um pouco com total impunidade. Ninguém a culparia por isso, nem defenderia à mulher de um homem que depois de encarcerar a outros homens tinha assassinado a uma prostituta. Olhou para Charlotte, levantou a cesta à altura do quadril e saiu da loja, passando tão perto de Charlotte que quase a fez perder o equilíbrio, deixando-a tão assombrada pelo imprevisto da reação como pela ofensa. As outras mulheres riram com dissimulação.
—Bom dia tenhamos, senhora Pitt! -disse uma delas-. Como estamos hoje?
—Não tão altos nem tão poderosos, verdade? Pedirá o turno como as demais, não?
—Bom dia, senhora Robertson -respondeu Charlotte com frieza-. Estou bem, obrigada. E sua mãe? Encontra-se melhor? Inteirei-me que se resfriou com esta chuva.
—Está mal-disse a mulher, desconcertada de que Charlotte não lhe pagasse na mesma moeda- por que o pergunta?
—Por nada, senhora Robertson, mera cortesia. acabou já?
—Não, não acabei! Espere sua vez! - Endireitou-se de novo ante o mostrador e ficou a examinar as estantes levando de propósito todo o tempo que pôde.
Charlotte não podia fazer outra coisa que aguentar-se e esperar. O lojista se balançava de um pé a outro, enquanto sopesava o que lhe convinha mais, até que optou pelo mais fácil. Ignorou a Charlotte e sorriu à senhora Robertson mostrando-lhe os dentes.
—Quero meia libra de açúcar -disse esta com satisfação, saboreando o poder como se tivesse um caramelo na boca-. Com sua permissão, senhor Wilson. O lojista foi tirando o açúcar do saco até completar pouco a pouco a meia libra no pires da balança, que em seguida esvaziou em um saco de papel e a deu à mulher.
—Pensei melhor. -Olhou a Charlotte com malícia e logo se voltou para o lojista-. Me sinto rica esta manhã, me ponha a libra inteira.
—Sim, senhora Robertson, não falta mais. - O lojista pesou meia libra mais e a deu.
Abriu-se a porta e soou a campainha. Outra mulher ficou atrás de Charlotte.
—E quero também um pouco de sabão Pears -acrescentou à senhora Robertson-. Para a cútis. É muito bom, não é, senhora Pitt? É o que usa você? Embora agora talvez já não possa permitir-se. Terá que ser mais modesta em suas pretensões, não?
—É possível. Mas se necessita algo mais que uma barra de sabão para ser bela, senhora Robertson -respondeu Charlotte com frieza-. apareceu já seu guarda-chuva?
—Não, ainda não! Há muita gente por aqui que não é tão honrada como parece. Suponho que alguém deve haver me roubado isso!
Charlotte arqueou as sobrancelhas.
—Pois avise a um policial -disse com um sorriso.
A mulher a olhou fixamente, e desta vez foi à mulher que acabava de entrar a que riu com dissimulação. Mas a vitória dialética foi breve e não lhe reportou prazer algum.
Na padaria foi pior ainda, não houve indiretas, tão somente silencio até que se dispunha a partir, quando se produziu um rumor de cochichos atrás de mãos que cobriam a boca e cabeças que assentiam. Pediram-lhe que pagasse em dinheiro e ao dar as moedas contaram-nas antes de guardá-las na gaveta e fechá-la de repente. Se as coisas pioravam, ninguém confiaria, isso o via sem necessidade de perguntar: nem descontos, nem provavelmente entrega a domicílio. O verdureiro se desculpou-se que andava curto de ajudantes, apesar de que havia um menino ocioso sentado sobre um saco de batatas e que obviamente esperava que lhe mandassem fazer algo, e Charlotte se viu obrigada a carregar as pesadas bolsas até casa. Um menino de uns nove ou dez anos passou a seu lado correndo e lhe gritou:
—O poli está no xadrez! O poli está no xadrez e o vão pendurar! Iremos ver como salta com a corda no pescoço! -E deu um pequeno salto da calçada ao meio- fio.
Ela não fez conta, mas aquelas palavras a encheram de um terror profundo. Ao chegar em casa, molhada até os ossos, com os braços doloridos e os ombros cansados pelo peso da compra, sentia-se à beira do desespero. Mal tinha entrado e acabado de tirar as botas molhadas e posto elas junto à estufa da cozinha, quando soou a campainha da porta. Gracie a olhou e foi abrir sem esperar que o pedissem. Voltou ao cabo de um momento, depois de percorrer o corredor com presteza e aparecer à porta da cozinha com um voo da saia.
—Senhora! Senhora, é sua mamãe, a senhora Ellison. Posso trazê-la aqui? No salão faz um frio terrível. Prepararei-lhes uma xícara de chá e depois subirei para arrumar os quartos.
À Charlotte não importava o comentário de Gracie, embora não estivesse tão segura do que diria Caroline. Levantou-se.
—Sim... sim, será melhor. -Não havia alternativa: não podia pedir a ninguém que se acomodasse no gélido salão, nem sequer era suportável para ela mesma. Tinha os pés ainda trançados e as bainhas da saia fumegantes ao calor da estufa da cozinha-. Já farei eu o chá -acrescentou. Assim teria algo que fazer, e lhe permitiria além disso de dar as costas a sua mãe.
—Sim, senhora. -Gracie desapareceu, andando quase nas pontas dos pés sobre o linóleo.
Caroline entrou, depois de haver-se despojado do casaco; como tinha vindo de carruagem coberta, só tinha molhadas as solas de suas belas botas altas com botões.
—Oh, querida! -Abriu os braços.
Charlotte respondeu ao abraço, posto que não havia outra coisa que fazer, embora superficialmente, e se afastou dela em seguida.
—Prepararei uma xícara de chá para as duas -disse com precipitação-. Acabo de voltar da rua e estou desfalecida e empapada.
—Charlotte, querida, tem que vir para casa. -Caroline se sentou com certo reparo em uma cadeira da cozinha.
—Não, obrigada -disse sua filha. Pegou o bule, encheu-o de água e o pôs sobre o queimador.
—Mas não pode ficar aqui! -recriminou-lhe Caroline-. Os jornais não falam de outra coisa! Acredito que não se dá conta de...
—Dou-me perfeita conta! Embora não me tivesse informado antes de ir comprar, asseguro-lhe que agora sei muito bem o que está acontecendo. E não penso fugir.
—Querida, não se trata de fugir! -Caroline ficou de pé e deu um passo para ela para abraçá-la de novo, mas notou o receio de sua filha-. Tem que confrontar a realidade, Charlotte, cometeu um engano que acabou de forma trágica para você. Se agora voltar para casa e recuperar seu sobrenome de solteira, eu poderia...
Charlotte estremeceu.
—Não penso fazer isso! Como pode me propor uma coisa assim? Fala como se acreditasse que Thomas é culpado! -voltou-se devagar, com as xícaras e os pires nas mãos-. Pelo bem das crianças pode levar a eles, se quiser. E se não, ficarão aqui comigo, como teriam que fazê-lo os de qualquer outro homem comum-. Não estou envergonhada de Thomas... Envergonho-me de você por me dizer que fuja e renegue ele em lugar de lutar! Estou disposta a averiguar quem assassinou a essa mulher, e a prová-lo, do mesmo modo que fiz por Emily quando todos pensavam que tinha matado a George... embora não lhe tivessem faltado razões para fazê-lo!
Caroline suspirou com paciência, o que piorou as coisas.
—Querida, isso era diferente -começou.
—Ah, sim? por quê? Porque ela é "uma dos nossos" e Thomas não?-O rosto de Caroline se retesou.
—Se insiste em dizer desse modo... pois é.
— Ah, pois você ficou bem contente quando viu que ele era "um dos nossos" quando necessitou dele! -Charlotte se dava conta de que estava a ponto de perder o controle, o que a punha mais furiosa, tanto consigo mesma como com Caroline.
—Tem que ser realista -começou Caroline de novo. -Quer dizer que tenho que abandoná-lo agora mesmo, para que a gente se dê conta de que não tenho nada que ver com ele? -perguntou Charlotte-. Que alto sentido da honra, mamãe! E que valente é!
—Charlotte, a única coisa que faço é pensar em você!
—De verdade? -A dúvida expressa por Charlotte chiava um pouco, já que ela pensava que Caroline provavelmente falava com sinceridade. O que dizia sua mãe era o mesmo que pensaria o resto das pessoas, o qual a enchia de espanto. Naquele momento não lhe importava se era injusta, só queria fazer mal - Está segura de que não pensa mais nos vizinhos, e no que podem dizer de você seus amigos? - continuou, arremedando suas vozes com rancor-. "Sabe, a encantadora senhora Ellison? Não vai acreditar, mas sua filha se casou com um policial (não é espantoso?), e agora acontece que ele cometeu um assassinato! Sempre disse que não pode sair nada bom se casar com alguém inferior a você."
—Charlotte! Eu não disse isso.
—Mas o pensava!
—É injusta! E o bule está fervendo. Está enchendo a cozinha de vapor e vai queimar o bule. Pelo amor de Deus, acaba de fazer o chá e tomemos uma xícara.
Talvez assim é capaz de pensar com maior clareza. Está muito essa fidelidade por Thomas, mas é muito cômodo, aconteceu o que aconteceu, e agora tem que ser prática e pensar nas crianças.
Tinha razão ao menos em que a cozinha se estava enchendo de vapor. Charlotte pôs o chá e queimou a mão com o bule, embora se negou a admiti-lo. Pôs o bule de servir sobre a mesa e manuseou furiosa na despensa em busca de bolachas. Quando as achou, jogou-as em um prato e as deixou na mesa, serviu o chá e o ofereceu a sua mãe. Por fim se sentou, apenas um pouco mais tranquila.
—Agradeceria-lhe que levasse as crianças - disse com cautela-. Assim estariam a salvo de... do pior, pelo menos... -Guardou silêncio. Tinha estado a ponto de dizer: "pelo que tem que vir", mas até isso lhe pareceu uma traição.
—Certamente -disse Caroline-. E assim que você queira vir também, já sabe que sempre haverá um lugar para você.
—Eu não vou com você -disse Charlotte marcando cada palavra.
—Pois então vá com Emily ao campo -insistiu Caroline-. Thomas o entenderá, não esperará que fique. O que vai fazer aqui? Demonstrar que tem coragem e fazer saber a todo mundo que acredita em sua inocência? Querida, assim só conseguirá ferir a você mesma, e ao final não terá servido de nada. Deixa-o nas mãos da polícia.
Charlotte notava como as lágrimas lhe caíam pelas faces. Assuou o nariz com um lenço, e depois bebeu um gole de chá antes de responder. Como ia dizer a sua mãe que Emily já não estava no campo e lhe explicar onde estava agora.
—A polícia está encantada em deixar as coisas como estão -disse com frieza- Thomas fez um descobrimento que eles prefeririam não saber. E eu não tenho vontade de ir com Emily. Tenho-lhe escrito, claro. Mas já basta eu para fazer de detetive, descobrirei quem matou a Robert York, que será a mesma pessoa que matou essa mulher de rosa.
-Querida, nunca poderá averiguar o que aconteceu, nem que fazia Thomas no Seven Dials com essa... essa mulher de rosa. -Caroline estava lívida-. A verdade é que não conhecemos nossos maridos tanto como nós gostamos de imaginar às vezes.
A despeito de sua própria pena, Charlotte se sentia deliberadamente cruel.
—Quer dizer tanto como você conhecia papai? Caroline titubeou e a resposta se extinguiu antes de chegar a seus lábios.
Charlotte se arrependeu de havê-lo dito, mas era muito tarde.
—Mas ele não matou aquelas moças, não? -disse para acabar o que tinha começado.
—Não, e me senti muito agradecida com a polícia por havê-lo provado - reconheceu Caroline-. Mas não posso, embora quisesse, apagar de minha cabeça as coisas que sei que fez, nem deixar de me perguntar até que ponto era um desconhecido para mim, nem quantas coisas de que eu pensava dele eram certas-. Não persiga a verdade, Charlotte. Seria mais sensato deixá-lo em mãos da polícia e esperar que eles lhe digam só aquilo que tem que saber.
—Se isso for o melhor que pode me oferecer, será melhor que não discutamos mais. -Charlotte se levantou da cadeira, deixando o chá sem acabar- vou fazer a bagagem dos meninos para que os possa levar agora. Assim será mais fácil que se esperarmos longas despedidas. Além disso, não tem sentido que agora vá para que tenha que voltar outra vez por eles. Estou-lhe muito agradecida. -E sem esperar uma resposta saiu da cozinha e subiu as escadas, deixando a sua mãe sentada à mesa com o bule e as bolachas.
Uma vez que Caroline partiu, levando Daniel e Jemima pela mão como quando ela e Emily eram pequenas, Charlotte se sentiu envergonhada. Tinha sido injusta. Tinha pretendido que sua mãe entendesse coisas que estavam por completo fora de sua escala de valores. Sua mãe não tinha vivido as mesmas experiências que ela, por isso era tão injusto como estúpido supor que podia pensar como ela. Não tinha passado tanto tempo desde que Pitt tinha tido que ser muito paciente com ela e desculpar seus preconceitos e pressupostos. E o que era pior, tinha recordado à Caroline a dor e a desilusão que ainda impregnavam fundo, ao empanar as velhas lembranças que, agora que Edward tinha morrido, eram a única que tinha. Charlotte se tinha dado conta do que estava fazendo, e o tinha feito de todo modo.
Quando tudo tivesse acabado, diria algo a sua mãe; agora estava muito assustada, muito preocupada para achar as palavras adequadas, ou para confiar em si mesma na hora de dizê-las.
Começou por ser prática. Quanto dinheiro tinha e no que deveria empregá-lo? Se tiver que escolher entre mantimentos e carvão, como deveria distribuir os recursos? O melhor seria inspecionar a despensa. Mais adiante, aumentaria as reservas de batatas e de pão, e diminuiria as de carne. Teria que perguntar a Gracie quais eram os lugares mais baratos para fazer as compras.
Jack chegou um pouco antes das três. O céu estava nublado e a luz tinha começado já a minguar. Gracie o fez entrar e ele se dirigiu direto à cozinha.
—Vi Emily -disse-. Contei ao mordomo uma mentira maravilhosa sobre sua irmã estar doente e que eu tinha me informado por lady Ashworth, para quem Emily (perdão), para quem Amelia tinha trabalhado antes dali. Ele engoliu tudo.
—Levantou as abas da jaqueta com elegância e se sentou à mesa. Olhou para Charlotte com sobriedade-. Está de acordo em ficar ali. Em realidade, ela é quem insistiu. Peço a Deus que siga bem. Espremi-me o cérebro pensando na forma de protegê-la, mas não me ocorre nada, no sábado terá meio-dia livre, e diz que se encontrará com você no Hyde Park, no primeiro banco conforme se chega de Hanover Close, às duas da tarde, faça o tempo que fizer. Até então, o que posso fazer eu?
—Não sei. Eu fui à prisão ontem, mas não me deixaram ver Thomas. Só sei o que leio nos jornais. -Comprei-os todos. -Não podia superar a ansiedade-. Dizem que tinha estado perguntando por toda a cidade onde achar a Cereja. Há vários vendedores guias de ruas dispostos a jurá-lo. Parece que o enganador que levou Pitt ao Seven Dials só ficou ali até vê-lo entrar, e que não chegou a entrar no imóvel. Era uma espécie de bordel, e o proprietário diz que Pitt lhe pediu que lhe descrevesse com todo detalhe à mulher em questão, e que só queria vê-la para saber se era ela a que procurava. O proprietário lhe disse que fosse acima. Não entrou ninguém mais, e quando o tipo subiu ao cabo de uns minutos, achou Pitt inclinado sobre ela e com as mãos ao redor de seu pescoço. -Jack estava muito pálido-. Sinto muito.
Escrutinou-lhe o rosto, mas o olhar dele não vacilou.
—Então é inútil ir ao Seven Dials -disse Charlotte com toda a calma de que era capaz-, embora nunca achei que pudéssemos achar nada ali. A resposta está em Hanover Close.Tenho que ir ver outra vez Veronica York. Levará-me?
—Certamente. E a acompanharei também ao Coldbath Fields. Não deve ir sozinha.
—Obrigado. -Tratou de achar algo mais que dizer, sem consegui-lo.
Desta vez a deixaram entrar na prisão, um edifício enorme e frio cujas maciças paredes eram como a desgraça mesma feita pedra e onde a condensação fazia que até nos corredores interiores se notasse um frio áspero. Por toda parte se percebia o mesmo aroma de suor humano e ar viciado. O guarda lhe falou sem olhá-la e a conduziu até um pequeno habitat com uma mesa de madeira cheia de sinais e duas cadeiras de espaldar alto. Aquele privilégio se devia tão somente ao fato de que Pitt era tecnicamente ainda um homem inocente.
Teve que lançar mão de toda a fortaleza que ainda tinha para não romper a chorar quando o viu. As roupas que vestia estavam muito sujas, a camisa limpa que lhe tinha levado estava já rasgada e tinha o rosto cheio de machucados. Não se atrevia a imaginar como devia ter o corpo. Nem aos guardas nem aos prisioneiros despertava afeto algum um policial que se tornara assassino. O guarda ordenou à Charlotte e a Pitt que se sentassem um de cada lado da mesa, enquanto ele permanecia de pé em um canto vigiando-os como um sentinela.
Ela ficou olhando-o sem dizer nada. Parecia-lhe ridículo lhe perguntar como estava. Ele já via quão preocupada estava, isso era a única coisa que importava e não havia nada que ela pudesse fazer para alterar as coisas. Mas ao cabo a emoção foimuito forte e ela falou para romper a tensão.
—Mamãe levou as crianças com ela. Será mais fácil para eles e para mim.
—Gracie é maravilhosa! Escrevi uma carta a Emily e Jack Radley a levou.
—Pedi-lhe que fique onde está... Não discuta comigo. É o único modo que temos para nos inteirar de algo.
—Charlotte, tome cuidado! -inclinou-se, mas ao ver que o carcereiro se aproximava se deu conta da inutilidade daquele gesto-. Têm que tirar Emily dali... é muito perigoso! -disse com tom peremptório-. Alguém matou já três vezes paramanter em silencio o que aconteceu aquela noite em Hanover Close. Não deve voltar ali. Envia uma carta dizendo que está doente, ou que retorna ao campo. É o melhor. prometa-me isso. Deixa-o em mãos de Ballarat, ele se encarregará. Não me disseram quem me substituiu no caso, mas seja quem for, terá que vir para ver-me e lhe contarei tudo o que sei. Devíamos estar muito perto deles para que tenham matado a Cereja. prometa-me isso Charlotte!
Sua vacilação foi só momentânea. Defenderia-o como fosse necessário e por todos os meios que pudesse achar. Não ia parar para pensar, nem refletir no que poderiam dizer, não mais do que teria feito se visse Daniel ou a Jemima em meio da rua diante de um cavalo acelerado. Era algo tão instintivo como lutar por respirar quando te afunda e a água te cobre a cabeça.
—Sim, Thomas, claro que sim -mentiu sem pestanejar-. Emily virá comigo durante um tempo, ou eu irei com ela. Não se preocupe por nós, estamos perfeitamente. Além disso, estou certa de que Ballarat não demorará para descobrir a verdade. Ele deve saber muito bem que você não pode ter matado a Cereja. Que motivo podia ter?
Parte do medo que se traduzia em seu rosto se suavizou e tratou de sorrir.
—Bom -disse com calma-. Ao menos sei que está bem. Obrigado por me prometer isso.
Não era o momento de sentir culpa; o verdugo esperava. Devolveu-lhe o sorriso.
—Claro que sim -disse engolindo em seco. - Não se preocupe por nós.
Emily observava desfazer-se em cinzas a carta de Charlotte na lareira da sala de visitas com incredulidade. Era impossível. Thomas detido por assassinato e encarcerado... Aquilo era absurdo! Em qualquer momento a realidade se imporia.
Não deveria ter queimado a carta: certamente a tinha lido mal. Olhou o pequeno vazio entre as partes de carvão em que se penetrou o papel. Só ficavam algumas dobras incandescentes, que enquanto ela olhava tremiam pela ligeira corrente de ar e se desfaziam em pedacinhos até consumir-se. Abriu-se a porta a suas costas e entrou o mordomo.
—Está bem, Amelia? -disse com cortesia. Sua voz denotava sincero interesse, inclusive algo que se aproximava bastante à ternura. Céu santo! Só lhe faltava isso neste momento!
—Sim, senhor Redditch. Obrigado. Minha irmã ficou doente.
—Sim, isso disse o senhor Radley. foi muito amável de sua parte ao notificá-la Lady Ashworth. Deve tê-la em muito bom conceito. O que acontece com sua irmã?
Nem sequer tinha pensado nisso.
—Não sei -respondeu indecisa-. Os médicos tampouco sabem... por isso é preocupante. Obrigada por me deixar livre a tarde de sábado, comporta-se muito bem comigo.
—Absolutamente, minha querida menina. Edith pode substituí-la uma tarde-. Sabe Deus que muitas vezes você cobre ela! Agora vá à cozinha sentar-se um pouco. Tome uma xícara de chá para se repor. -Tocou-lhe o braço com gentileza e notou que suas mãos eram cálidas.
—Obrigado, senhor Redditch -disse ela com rapidez. O mordomo deu um passo atrás, relutante em deixá-la. -Se houver algo que possa fazer, por favor, não duvide em pedir me acrescentou.
Ela quis lhe agradecer, sorrir e lhe olhar nos olhos, lhe fazer saber que sua amabilidade não passava inadvertida, mas não se atreveu. Ao final só serviria para fazer mais dano.
—Assim o farei, senhor -disse baixando os olhos e olhando o avental-. Irei tomar uma xícara de chá, como disse. Obrigada. -E se apressou a passar junto a ele e sair ao vestíbulo, cruzar a porta verde e entrar na cozinha, sentou-se com uma xícara de chá entre as mãos, enquanto tinha a mente feita um torvelinho e tratava de decidir o que devia fazer. O primeiro impulso que lhe vinha era o de correr ao encontro de Charlotte para protegê-la e para lhe fazer companhia nas longas noites em que não tivesse nada com que conjurar o medo.
Mas Charlotte tinha razão. A dor era algo incidental, tinha que superá-lo só se era necessário, porque não era momento de pensar no interesse próprio. Não podiam permitir-se o luxo de buscar-se para dar-se mútuo calor com o fim de mitigar a dor de hoje, a custa de uma tragédia que se produzisse e escureceria todas as manhãs. A resposta estava na verdade, e esta residia ali, no Hanover Close. Fazendo-se passar pela Amelia, Emily era a única que contava com alguma probabilidade de descobri-la. Não podia continuar permitindo que as coisas corressem ao passo que iam. Era claro que tudo aquilo tinha que ver com a mulher do vestido cereja, e com o que tinha acontecido naquela casa três anos atrás. Talvez fosse algo que tinha acontecido entre ela e Robert York; ou pode ser que tivesse havido uma terceira pessoa. Mas Emily estava convencida de que uma das mulheres que continuava vivendo na casa sabia ou ao menos suspeitava a verdade, e estava disposta a obtê-la de uma forma ou outra.
O que fazia com que uma pessoa se desmoronasse? Uma forte comoção, o pânico, o excesso de confiança? A tensão se ia incrementando pouco a pouco até que se fazia insuportável... Sim, isso era. Não podia esperar que se produzisse um engano. Tinham passado três anos sem nenhum resultado, e Loretta não era na verdade do tipo de pessoas que se deixam apanhar em um descuido; suas defesas eram impenetráveis. Não havia mais que ver seu dormitório, com suas gavetas ordenadas, cada coisa em seu lugar, com todos seus vestidos juntados com suas botas de cano longo e luvas a jogo. Sua roupa interior era extremamente cara, mas toda ela encaixava-se com o resto do vestuário, não havia nada que desafinasse ou fruto de um capricho impulsivo. Seus vestidos de noite eram pessoais, muito femininos, mas não deixavam lugar aos experimentos, não havia nenhum dos enganos de apreciação que Emily tinha em seu próprio guarda-roupa, motivados por alguma tentativa de imitar a elegância de outra pessoa que não tinha resultado, formas atrevidas que depois não lhe tinham favorecido. Não havia nada em toda a casa que não harmonizasse com Loretta, nem entre seus objetos pessoais, nem no mobiliário em geral. Loretta não cometia enganos.
Veronica era diferente, pertencia a uma geração mais jovem e era muito mais formosa por seu caráter. Tinha mais dotes, mais brio. Às vezes ordenava coisas seguindo um impulso que resultavam naquele maravilhoso vestido negro com a blusa com incrustações azeviche que era soberbo, melhor que o que Loretta pudesse usar alguma vez... mas aquele outro de seda cinza era um desastre. Loretta teria previsto este último e jamais teria deslocado o risco. Veronica às vezes duvidava, era presa da insegurança, e isso a fazia imprudente: provava coisas muito extremas. Emily tinha ficado surpreendida a princípio com o modo como às vezes trocava de ideia sobre o que queria usar ou sobre como desejava que a penteassem. Sim, Veronica era suscetível de ceder à pressão, se esta fosse bastante intensa e estivesse submetida o tempo suficiente.
Era um pensamento cruel, e se lhe tivesse ocorrido uma hora antes, Emily não demoraria nele, mas há uma hora não sabia que Thomas estava na prisão à espera de um julgamento no qual ia a vida. Lamentava sua decisão, mas não podia considerar outra.
Bebeu a taça de chá, agradeceu à cozinheira com um dócil sorriso e subiu ao piso de cima disposta a começar. O primeiro que fez foi procurar um par de botas de cano longo de Veronica que precisassem de solas novas para ter uma desculpa para sair, um pouco de ar fresco e um passeio seriam como um sopro de liberdade, além de estar desejando estar a sós, poder mover-se sem as travas que supunha estar encerrada entre quatro paredes. Nunca antes tinha reparado no pouco tempo durante o qual uma criada está sem ser observada ou fiscalizada por alguém, e mesmo que fizesse um tempo como aquele, não tinha ocasião de sair fora nem ver mais céu que o que se via através das minúsculas porções delimitadas pelo marco de uma janela. A claustrofobia que supunha a estar disponível todo o tempo, de ter as horas de solidão ou de companhia predeterminadas por outra pessoa, era algo cada vez mais difícil de aguentar, embora houvesse um certo prazer no fato de compartilhar as noites, o humor simples e às vezes os momentos de diversão. Mas o principal propósito era o de ser capaz ao voltar de justificar as notícias que já sabia.
Naquele dia ninguém lhe pediu explicações quando saiu com as botas de cano longo sob o braço. As cinco, Emily estava de volta, preparando uma muda limpa no quarto de Veronica, quando entrou esta.
—Sinto muito sobre sua irmã, Amelia -disse ao vê-la- Pode tomar livre à tarde de sábado para ir vê-la. Se agravar, diga-me por favor.
—Sim, senhora -disse Emily com ar solene-. Muito obrigada. Espero que se recupere logo. Há gente com problemas mais graves. Acabo de levar suas botas de cano longo negras ao sapateiro e estavam dizendo às pessoas que aquele polícia que veio aqui outro dia perguntando pelos objetos de prata roubados foi acusado de matar a uma mulher que levava um vestido cor rosa magenta e que tinha que ver com não sei que investigação... -ficou olhando Veronica, cujo rosto mudou de repente de todo vestígio de cor. Aquilo era justo o que esperava, e embora fosse muito capaz de sentir piedade, não se arredou ante a continuação que tinha previsto.
—Devia ser o mesmo homem que tanto a alterou, senhora. Não estranho! Eu acredito que temos que agradecer que não perdesse o controle quando estava consigo-. Pelo amor do céu, podia ter acabado como essa pobre mulher. Só que não me imagino usando um vestido de uma cor tão pouco favorecedora. Pelo que diziam, era de muito mal gosto.
—Basta! -A voz de Veronica soou quase como um grito-. Basta já! Que importa de que cor era seu vestido? -Empalideceu, com os olhos reluzentes-. Está falando de um ser humano a quem assassinaram! A quem... arrebataram a vida...
Emily levou as mãos ao rosto.
—Oh, senhora! Senhora, quanto sinto! Tinha-me esquecido por completo do senhor York! Oh, perdão... por favor, tem que me perdoar. Faria o que fosse por... - Fingiu estar muito alterada para prosseguir, ficou olhando Veronica através dos dedos. Sua terrível palidez era reflexo da lembrança da morte de Robert, ou era um sinal de culpa? O que era certo era haver pânico em sua expressão.
Tinha conhecido Veronica Cereja e sabia agora quem a tinha matado? Durante uns segundos permaneceram sem dizer nada, olhando-se uma à outra, Veronica muda pela comoção e Emily estudando-a com olhos escrutinadores, simulando humilde contrição. No final foi Veronica quem rompeu o silêncio, sentou-se na beira da cama e Emily ficou de forma mecânica a lhe desatar as botas de cano longo.
—Eu... não sabia nada de tudo isso -disse com calma-. Não leio os jornais, e papai não o mencionou. Descreveram como era essa mulher... - Engoliu saliva- vestida de rosa?
—Oh, sim, senhora. -Emily tratou de recordar todos os detalhes das descrições de Cereja-. Era alta, mas bem magra, nada cheia, especialmente sendo uma... uma mulher da vida, mas tinha um rosto muito formoso. -Levantou os olhos das botas, com um atuador na mão, e viu os horrorizados olhos de Veronica. A perna que lhe oferecia estava rígida, e os dedos que apareciam pela beira da cama, brancos.
—E naturalmente levava um vestido dessa peculiar cor rosa magenta muito forte - concluiu Emily-. Acredito que o nome mais adequado para esse tom é "cor cereja".
Veronica emitiu um pequeno som como se tivesse estado a ponto de soltar um grito, mas a tensão afogou a exclamação na garganta.
—Parece muito afetada, senhora -disse Emily sem piedade-. Dizem que era uma mulher da rua, assim talvez não saiu perdendo tanto. Isso é mais rápido que uma enfermidade.
—Amelia! Parece como se...
—Oh, não, senhora! -protestou Emily-. Ninguém gosta de morrer assim. Só queria dizer que sua vida era espantosa. Conheço garotas que perderam seu posto, que foram despedidas sem nenhuma recomendação e tiveram que ficar a trabalhar na rua como essa. Em geral morrem jovens, ou por trabalhar vinte horas ao dia, ou pela sífilis, ou por que alguém as mata. -Veronica estava profundamente aflita; tinha uma ferida que continuava sangrando. Prosseguiu- O policial diz que a estava interrogando a respeito de um crime. Talvez ela soubesse quem entrou aqui e matou ao pobre senhor York.
—Não. -A resposta foi sussurrada, apenas um suspiro.
Emily esperou.
—Não. -Veronica parecia reunir forças-. Os policiais sempre levam mais de um caso ao mesmo tempo. Como uma mulher como essa ia saber algo que tivesse relação com... com esta casa?
—Pode ser que conhecesse o ladrão, senhora. Talvez fosse seu amante.
Por alguma razão Veronica sorriu, mas foi um sorriso de desgosto, como um ricto, e em seus olhos havia a sombra de um humor amargo.
—Talvez -disse com suavidade.
Emily percebeu através de uma sutil mudança no ar, uma relaxação na tensão do corpo, que a debilidade do primeiro momento tinha passado. Não ia obter já nada de Veronica. Acabou com as botas, tirou-as e se endireitou.
—Quer que lhe prepare um banho antes de jantar, senhora, ou prefere estirar-se e tomar possivelmente uma infusão quente?
—Não quero me banhar. -levantou-se e foi para a janela. Falava com maior firmeza.Vá fazer me uma infusão, e traga da cozinha uma fatia de pão com manteiga. Ou melhor, duas.
Emily teve a impressão de que mais que o pão, o que queria Veronica era uma desculpa para desfazer-se dela, mas não tinha mais remédio do que obedecer. Quase correu pelo corredor e escada abaixo, o que lhe valeu uma desanimadora recriminação por parte da governanta por sua conduta imprópria.
—Sim, senhora Crawford. Sinto muito, senhora Crawford. -Reduziu a corrida a um passo mais digno até que esteve fora do campo visual desta ao cruzar a porta estofada de verde, e então reatou a corrida. Pediu permissão à cozinheira por mero formalismo, pôs um bule no fogo e partiu o pão em fatias e passou manteiga com tanta rapidez que destroçou a primeira fatia. Era muito fina e se desmanchou toda.
—Deixe! -disse Mary com amabilidade-. Hoje tem mãos de chaleira! Já lhe faço isso -E cortou duas fatias muito finas depois de ter passado primeiro a barra, um truque que Emily desconhecia.
—Obrigada, é um anjo! -disse Emily com sincera gratidão. Depois ficou a balançar-se sobre ambos os pés enquanto esperava que fervesse o bule, mas tinha aprendido a lição e não o derrubou.
—Muito bem -disse Mary-. Dê-me espaço que tenho pressa.
Emily lhe dedicou um sorriso, pegou a bandeja e voltou a subir as escadas tão depressa como o permitia a saia longa, incapaz de recolhê-la por quanto tinha as mãos ocupadas, deteve-se diante da porta do dormitório ao escutar um rumor de vozes, mas apesar de permanecer imóvel com a face junto à porta, não podia distinguir as palavras. Se agora interrompesse a pessoa que estava dentro, perderia-se aquela conversa que estava desejando escutar!
—O toucador!
Depositou a bandeja no chão e com suavidade acionou o fecho da porta do toucador, assegurando-se de que o fecho não soasse. Abriu a porta, recolheu a bandeja e a colocou sobre a cômoda, depois fechou a porta sem fazer ruído. A porta que dava ao dormitório estava fechada, ela mesma a tinha fechado como sempre fazia por costume. Agora tinha que abri-la tão pouco que nenhuma das pessoas que estavam no quarto pudesse ver o movimento, embora estivessem olhando. É claro, se viam mover-se a maçaneta, tudo teria acabado, surpreender-na-iam espiando sem a menor justificação possível. Inclinou-se à altura do olho da fechadura e olhou através da mesma, mas só pôde ver um canto da cama e uma pequena porção de uma saia azul sobre uma cadeira. Era o vestido preparado para a noite. Mas dali podia ouvir as vozes com muito mais clareza. A solução era óbvia: não tinha mais que ajoelhar-se com a orelha junto ao olho da fechadura. desprendeu com cuidado um grampo do cabelo e o deixou no chão para ter uma desculpa se a pilhassem. Depois se ajoelhou e escutou.
—Mas quem era? -A voz de Veronica soava desesperada, modulada por um sentimento próximo ao pânico.
Seguiu a resposta de Loretta, tão amável e tranquilizadora:
—Querida, nem sequer posso imaginar! Mas não tem nada que ver conosco-. Como ia ter?
—Mas e o vestido? -exclamou Veronica-. A cor! -As palavras pareciam lhe causar uma dor física-. O vestido era cor magenta!
—Acalme-se! -resmungou Loretta-. Está se comportando como uma insensata!
Fez-se um silêncio e Emily se perguntou se Loretta lhe teria dado uma bofetada, como se faz com as histéricas. Mas não se ouvia nenhum ofegar, nem sufoco, nem o inconfundível som da carne ao golpear a carne. Ouviu a entrecortada voz de Veronica, cujas seguintes palavras abriam passagem através dos soluços.
—Quem... era... essa... mulher?
—Uma fulana -respondeu Loretta com frio desprezo-. Nem mais nem menos que o que parecia, imagino. Embora saiba Deus por que esse estúpido policial lhe romperia o pescoço!
A seguinte pergunta de Veronica foi pronunciada com voz tão fraca que Emily teve que fazer um esforço para ouvi-la, com os ombros encurvados para seguir com a orelha na fechadura.
—Foi ele, mamãe? Foi ele quem o fez?
Emily não notava sequer a cãibra nos joelhos nem a dor nos músculos do pescoço. Nada tão longe de sua mente como o chá que se esfriava sobre a cômoda. No quarto não se ouvia nem um ruído, nem sequer o roçar da seda.
—Suponho que sim! -respondeu Loretta depois de uma pausa de uns segundos, embora lhe parecesse um século-. Ao que parece lhe surpreenderam com as mãos virtualmente ao redor de seu pescoço, portanto deve-se supor que foi assim. Não parece haver outra explicação.
—Mas por quê?
—Querida, como quer que saiba? Possivelmente estava tão obcecado obtendo informação que tentou surrupiar-lhe fosse como fosse e perdeu o controle. A nós o que importa.
—Mas está morta! -A violenta emoção de Veronica lhe amontoava na garganta. Loretta começava a impacientar-se.
—Isso não é nosso assunto! -replicou-. O que significa uma mulher da rua mais ou menos? Levava um vestido rosa... como tantas mulheres, sobre tudo as que se dedicam a isso. -Sua voz se fez mais imperiosa e áspera-. Domine-se, Veronica! Tem muito a ganhar e tudo a perder... tudo! Recorde-se. Robert está morto. Esqueça-se dele, deixa-o em sua tumba, e faça um futuro decente com o Julian Danver. Fiz tudo o que pude para ajudá-la, Deus sabe, mas se deixa-se leva por histerismo e por suscetibilidades cada vez que acontece uma tragédia em alguma parte, então nem sequer eu vou poder te sustentar. Compreende o que estou dizendo?
Produziu-se um silêncio. Emily pôde ouvir os batimentos de seu próprio coração.
—Compreende o que estou lhe dizendo? -A voz de Loretta soava baixa e rouca, isenta de paciência e de piedade. Se Emily não tivesse distinguido as palavras com tanta clareza, teriam-lhe parecido como uma ameaça. Loretta tinha consolado e sustentado Veronica durante bastante tempo, e sua fortaleza, para não falar de sua paciência, estava começando a fraquejar. Ela também tinha sofrido uma perda, Veronica estava a ponto de unir-se a um novo marido, mas Loretta não ia achar outro filho. Não era estranho que pensasse que já era hora de que Veronica se comportasse de um modo menos auto compassivo .
—Sim. -A voz de Veronica soou desafiante, embora com certa falta de convicção-. Sim, compreendo-o. -E pôs-se a chorar.
—Está bem. -Loretta estava satisfeita, ouviu-se o ranger do tafetá ao sentar- se. Não parecia demonstrar nenhum interesse pelas lágrimas de Veronica. Talvez as tivesse visto muitas vezes.
Emily ouviu uma insistente batida na porta e deu um salto para trás, pisou na saia e caiu no chão. Desta vez sim se desfez de verdade o penteado; o grampo que tirara antes devia ser a chave, ficou de pé freneticamente e alisou a saia e o avental para arrumar seu aspecto. Agarrou a bandeja, mas então se deu conta de que a chamada era na porta exterior do quarto, não na do toucador. Sentiu um grande alívio. Teve tempo de voltar a deixar a bandeja, recolher um pouco melhor o cabelo, pegar uma vez mais a bandeja, sair ao patamar e bater por sua vez na porta do quarto.
Quando entrou, Veronica estava sentada na grande cama com aspecto cansado e umas intensas manchas nas faces. A compostura de Loretta era impecável, ao menos na aparência. Piers York estava de pé em meio da habitação com ar desconcertado e um ligeiro cenho de incompreensão em seu rosto habitualmente bonachão. Devia ser por causa do ângulo de incidência da luz, mas pela primeira vez Emily viu também uma profunda tristeza em seus olhos, uma expressão que revelava paciência e desilusão. Então começou a falar e o efeito se esfumou.
—O que traz aí? -Olhou a Emily com curiosidade.
—Chá e pão com manteiga?
—Deixa-o em cima do toucador. -Sim, senhor. -Ela obedeceu, afastando as escovas com cabo de prata e o espelho de mão. Não se ofereceu para servir o chá nas xícaras, se o deixasse ali um momento, pensariam que estava frio por culpa deles mesmos.
—Amelia! -disse Loretta.
—Sim, senhora? -Emily tratava de parecer moderada quando um grampo frouxo se desprendeu do cabelo e foi cair sobre o toucador com um tinido, enquanto se soltava uma mecha de cabelo sobre a face.
—Pelo amor de Deus, menina! -explodiu Loretta-. Parece uma... pingo!
Emily sabia o que queria dizer com isso: uma prostituta barata que se pode comprar em qualquer lugar por uns poucos pennies. Traía-lhe o sangue que subia às faces, mas não podia lhe dar a resposta inocente e insolente que tinha na ponta da língua. Nem podia permitir-se responder nos mesmos termos, ou perderia o emprego... e a vida de Pitt podia depender disso. Sufocada pela injustiça, desceu os olhos para que Loretta não pudesse ver a afronta que brilhava neles.
—Sinto muito, senhora -murmurou com esforço-. tropecei e rocei com a cortina. Deve ter me saído um grampo.
—Seriamente? -disse Loretta-. Isso não diz muito a favor de sua habilidade de cabeleireira! Está bem, quando tiver que escrever suas referências não mencionarei o assunto, embora suas maneiras nem sempre foram como eu teria desejado. Ter contado à senhorita Veronica esse vulgar crime do Seven Dials é algo indesculpável. Nesta casa não temos criados que atendam a esse tipo de coisas, não digamos já que delas falem. A próxima coisa que propague teremos a todas as criadas histéricas e todas as tarefas da casa paralisadas. Lamento que tenha demonstrado não ser a pessoa indicada para esta casa, mas não duvido que achará outro emprego. Pode ficar o resto da semana, até que encontremos alguém para substituí-la. Certamente Edith não poderia fazer o trabalho de duas pessoas, e a necessito para outros misteres. Agora pode continuar com suas coisas-. Deixa aí a bandeja.
Veronica saltou como uma mola.
—É minha criada! -exclamou olhando Loretta-. E estou muito satisfeita com ela... E mais, eu gosto dela! E ficarei com ela... para sempre se quiser! E ouviu falar desse assassinato enquanto trazia um recado para mim; contou-me isso porque sabia que me encontrei mal quando esse polícia veio para ver-me. Agora já não poderá voltar, e por uma vez estou encantada.
Piers meneou a cabeça.
—Lástima -disse com pesar-. Não consigo imaginar o que pôde levá-lo a cometer uma coisa assim, me pareceu um tipo bastante civilizado. Suponho que deve haver alguma explicação.
—Tolices! -apressou-se a intervir Loretta-. De verdade, Piers, às vezes me pergunto como conseguiu sair em frente neste mundo. A maneira que tem de julgar às pessoas é... infantil!
A mudança operada em sua expressão era tão sutil que não se modificou uma só de suas feições, mas Emily se deu conta imediatamente que passara dos limites, embora ela mesma não parecia ter percebido isso. -Acredito que a palavra que tinha que ter empregado era "compreensivo" -disse ele com calma.
—Também adota um ponto de vista "compreensivo" com uma criada que entra aqui com aspecto de acabar de levantar-se da cama? -perguntou Loretta com desagrado.
Piers se voltou e olhou para Emily. Não havia o menor indício de humor em seus olhos.
—Esteve tonteando com algum dos criados, Amelia?
Sustentou-lhe o olhar com firmeza. -Não, senhor, nem agora nem em nenhum outro momento. -Obrigado -disse ele com tom grave-. Assunto arrumado-. Acho que é hora de que nos troquemos para o jantar. -meteu as mãos nos bolsos e caminhou para a porta.
-Quero ficar com minha criada. -Veronica olhava fixamente Loretta-. Se se for será porque eu não a quero, não porque você não a queira!
—Tome o chá -respondeu Loretta com rosto inexpressivo, embora Emily fosse consciente, pelo poder do frio que denotava o gesto de sua boca, que sua derrota era só passageira. Não passaria muito tempo.
Pitt dispunha de pouco tempo.
Loretta saiu do quarto e fechou a porta com estrépito. Veronica não provou o chá e comeu o pão com manteiga.
—Troquei de ideia -disse olhando-se no espelho- Porei o vestido carmesim.
Os dias passavam inexoráveis. Emily se esforçava por ser a criada perfeita, de modo que nem sequer Edith pudesse lhe reprovar falta alguma. Muitas roupas engomava até três e quatro vezes; umedecia-as e alisava uma e outra vez com a prancha até que ficavam impecáveis. Por muito que lhe doessem às costas e os braços, não ia deixar se derrotar por uma ruga em uma peça de algodão. Não tinha tempo para sentar-se e contar intrigas nem a escutá-las, que era o que teria gostado, pois também havia a possibilidade que houvesse alguém mais entre o pessoal que soubesse algo. Pendia sempre a ameaça de que a determinação de Veronica perdesse força ou que sua coragem fraquejasse e que voltassem a lhe expor a demissão. Teve que morder a língua mais de uma vez e se esforçou por atuar de forma total e por caminhar com a cabeça menos erguida e sem o ligeiro roçar da saia que era quase inato nela.
Por outra parte acabou de congraçar-se com a senhora Melrose, a cozinheira, que resultou ser uma aliada de primeira, pois já antes também não gostava da senhora Crawford. Emily agiu segundo o conhecido princípio: "Os inimigos de meu inimigo som meus amigos.”Também valia para o mordomo. Era uma tática que em circunstâncias normais não teria utilizado, mas tinha que sobreviver naquele lugar se quisesse ser de alguma ajuda para Charlotte e Thomas, assim não era o momento de deter-se em sutis insignificâncias de ordem moral.
A aprendiz e a criada eram as formas de vida inferior dentro das tarefas domésticas, mas a criada em particular era uma menina observadora e não isenta de inteligência, e Emily tinha aprendido, com um pouco de amabilidade, a obter dela uma informação nada desprezível. Naturalmente, a moça não sabia nada a respeito de Robert York, e muito pouco da família em geral, mas tinha opiniões muito definidas sobre o resto dos criados. Nela não havia lugar para os matizes.
No sábado Emily tomou a tarde livre e se encontrou com Charlotte no parque sob uma chuva fina e persistente. Fazia um frio intenso e se apertaram uma contra outra, com a gola dos casacos levantada e as mãos nos regalos, mas ao menos com aquele tempo era improvável que alguém as visse. Quem, se não os delinquentes ou quem tivesse a imperiosa necessidade de deslocar-se a toda pressa a algum lugar, ia sair em um dia como aquele? Até os mendigos sem lar preferiam, em comparação, o abrigo das ruas aos espaços abertos do parque, onde o vento soprava em liberdade através do extenso campo de grama cinza do inverno; e os amantes clandestinos não tinham olhos mais que para eles mesmos.
Trocaram à informação que tinham, o que contribuiu para ambas algumas revelações, embora nada que pudesse contribuir com conclusões ao que já sabiam: o assassino estava em Hanover Close e uma das duas, Loretta ou Veronica, sabia, se não quem era, ao menos por que tinha cometido o crime. Mas como romper seu silêncio continuava sendo um mistério.
Charlotte estava assustada. Hesitava em rogar a Emily que abandonasse a casa dos York. Três vezes começou a dizê-lo, mas em todas elas, o medo quase paralisante que sentia ao pensar em Pitt abafou qualquer outra coisa e as palavras se extinguiram em sua garganta. Tampouco teria modificado muito as coisas: Emilynão tinha a menor intenção de etirar-se da luta e cruzar os braços enquanto julgavam Pitt e o penduravam.
O que não queria dizer que Emily não estivesse também assustada. Depois de despedir-se de Charlotte com um abraço, enxugou-se as lágrimas e retornou através das portas do parque, percorreu o pavimento molhado pela chuva, deixou atrás as carruagens nas ruas, entrou pela grade de ferro forjado e desceu os degraus até a cozinha. Tinha tanto frio que tremia toda ela. Deixou em um monte o casaco empapado e as botas na lavanderia para que se secassem, jantou em silencio na mesa da cozinha e subiu a seu quarto, estirou-se sobre a cama com um calafrio e ficou pensando em como podia apanhar o homem ou a mulher que tinha assassinado três vezes e tinha ocultado tão bem seus crimes que o único suspeito detido era Pitt.
Despertou em meio da escuridão com um grito abafado na garganta e o corpo gélido de terror ao ouvir, procedente do corredor exterior, o nítido som de um passo, deslizou fora da cama sem fazer ruído, enquanto o frio ar lhe cortava a pele através da fina camisola como um cutelo. Mal iluminada pela claridade da tênue luz que se filtrava através das gastas cortinas, pegou a única cadeira de madeira do quarto e encaixou-a sob a maçaneta da porta. Depois voltou a encarapitar-se à cama, dobrou os joelhos à altura do estômago e tratou de fazer provisão do calor suficiente para dormir outra vez com o fim de ser de alguma utilidade pela manhã, fosse para trabalhar, fosse para se ver com um assassino, apanhá-lo e sobreviver além disso para mostrar a prova.
Levantou-se com o frio e o cinza do amanhecer, bem a tempo de tirar a cadeira para que quando Fanny, a criada, viesse despertá-la não tivesse que lhe dar explicações. O dia se apresentou carregado de tediosas tarefas domésticas e Emily não se inteirou de nada importante. Aquilo não tinha sentido! Podia continuar assim durante meses! Tinha que forçar o desenlace.
A última hora da tarde se introduziu na despensa, meteu nos bolsos meia dúzia de bolachas recobertas com chocolate e preparou duas xícaras de chocolate. Levou-as acima, bateu na porta da criada e, quando esta lhe abriu, sussurrou-lhe seu convite. Cinco minutos mais tarde estavam sentadas com as pernas cruzadas sobre a cama de Emily, compartilhando as bolachas e tomando o chocolate quente. Emily ficou a mexericar.
Levou-lhe dez minutos poder trazer à tona o assunto da morte de Dulcie.
—O que podia estar fazendo para ter que se debruçar tanto pela janela? –disse enquanto comia a última bolacha-. Você acha que estaria chamando a alguém?
—Não! -disse Fanny com incredulidade-. Se tivesse havido alguém abaixoteria dito logo, não? Ou seja não a viu cair ninguém. Além disso, não era dessas.
—O que quer dizer? -Emily simulou inocência.
—Por que... -deu de ombros-, não era das que gostam de flertar. Era... decente. Sim, muito decente.
—E não a viu ninguém, então?
—Estava escuro! Já tinha anoitecido quando caiu. Estávamos todos dentro da casa.
Emily a olhou nos olhos.
—Como sabe? Como sabe onde estava cada um? Fanny enrugou a fronte.
—Bom, tínhamos que estar dentro, não? Em que outro lugar pode estar à gente em uma noite úmida em pleno inverno?
—Ah. -Emily se recostou no fino almofadão-. Eu pensava que dizia que sabia onde estava cada um: jantando na cozinha, ou na sala de estar da criadagem.
—Ninguém sabe a que hora caiu -explicou Fanny com tom paciente-. A única coisa certa é que esteve jantando conosco.
—Quer dizer...? -Emily arqueou as sobrancelhas-. Quer dizer então que caiu durante a noite? Quando foi a última vez que a viu alguém?
—Edith lhe deu boa noite por volta das nove e meia -respondeu Fanny, fazendo um esforço por pensar- Prim e eu estávamos jogando cartas. Dulcie não teve vontade, assim deve ter sido depois, não?
—Mas não tem nenhum sentido! -insistiu Emily-. Que fazia debruçando-se por uma janela em plena noite? Não acha...? -Aspirou profundamente-. Não acha que estaria esperando alguém que subia pela parede?
—Oh, não! -O impulso de Fanny era sincero e profundo-. Dulcie não! Refere- se A... um noivo? Nunca! Ela não, não era assim... -Seu pequeno rosto adotou um ar realista-. Além disso, se quiser colocar um noivo na casa, não o vai fazer subir o pobre pelo tubo de calha até a janela do apartamento de cobertura. Será você quem desce às escondidas e o faça pela porta da copa, não? Dulcie não era tola! Mas tampouco era dessas. - Bebeu a xícara de chocolate e olhou para Emily por cima da borda da taça; então afastou com um gesto mecânico o cabelo dos olhos-. Sabe o que acredito, Amelia?
Emily estava ofegante, inclinada para a moça para apressá-la a que continuasse.
—O que?
A voz de Fanny se transformou em um rouco sussurro.
—Eu acredito que Dulcie viu algo na noite em que o senhor Robert foi assassinado, e que alguém voltou para matá-la se por acaso lhe ocorresse contar algo a esse policial que esteve aqui fazendo perguntas.
Emily deixou escapar o ar em silencio com um suspiro de assombro.
—Oh, Fanny! Pode ser que tenha razão! Acha que entrou alguém de fora?
Fanny sacudiu a cabeça de forma enérgica.
—Não, não pode ser... Teríamos nos informado. O senhor Redditch é muito meticuloso, sobre tudo depois da terrível noite do roubo em que o senhor Robert foi assassinado. Ele se encarrega pessoalmente de revisar as portas e janelas antes de ir dormir. E a que não o faz ele, faz Albert.
—Bom, mas não pôde ter entrado ninguém antes que as revisassem? - perguntou Emily com impaciência.
—Não! -Fanny sorriu ante sua ingenuidade-. Como? Só há a porta principal, e ninguém pode entrar por ela a menos que lhe abram, porque pela porta de trás teria que ter passado pela cozinha, e sempre há gente nela, a cozinheira e Mary no mínimo, e em uma noite com convidados quase todos nós.
—Quem eram os convidados daquela noite? Sabe?
—Os dois cavalheiros Danver e as senhoras, a senhorita Harriet e sua tia, a senhorita Danver, e os senhores Asherson. O senhor Asherson sempre tão bonito, com seu ar um pouco melancólico. Eu sei que Nora sempre está revoando a seu redor, parece-me que até se faz ilusões! -Fungou, imitando inconscientemente o tom da governanta. - Pobre idiota! O que acredita que vai tirar, além de sentir-se mais miserável?
—Então deve ter se infiltrado antes alguém na casa -sussurrou Emily, esquecendo seu acento, embora Fanny não pareceu reparar nisso-. Ou alguém da casa deve ter introduzido outra pessoa...
—Quem, por exemplo? -Fanny estava indignada-. Nenhum dos criados fariam uma coisa assim! Além disso, nenhum de nós estávamos aqui quando o senhor Robert foi assassinado, à exceção de Mary e da própria Dulcie. E Mary estava na cozinha, e ninguém entrou por ali, se não o tínhamos visto todos. Quanto à outra porta, Albert estava no vestíbulo.
—Então foi alguém daqui -acordou Emily-. A única alternativa seria que Dulcie teria descido às escondidas durante a noite para deixar entrar alguém... ou que o fizesse Mary, suponho. -Tinha acrescentado este último só para corresponder à estrita lógica; nem por um momento achava que nenhuma das garotas tivesse cometido uma coisa assim. Mas já tinha a informação que queria, o fato tinha acontecido depois do jantar, talvez antes que se fossem os convidados, mas o que era certo é que ninguém tinha forçado a entrada- Fanny, acredito que tem razão! -inclinou-se e pegou o magro braço de Fanny-. Será melhor que não diga nada a ninguém... a não ser que queira você também cair por uma janela! prometa-me isso.
Fanny meneou a cabeça, com a gravidade marcada em seus olhos.
—Não penso fazê-lo, me acredite, não o farei. Não quero acabar esmagada contra o chão como ela, pobrezinha. E também lhe convém manter a boca fechada.
—Juro-o! -disse Emily com convicção-. E penso por uma cadeira contra a porta.
—Melhor assim. Eu também! -Estirou as pernas e pôs os pés no chão, enquanto se embrulhava na camisola, estremecida de frio uma vez acabado o chocolate quente-Boa noite, Amelia.
Mas até com a cadeira encaixada sob a maçaneta Emily não pôde dormir bem. Despertou várias vezes sobressaltada, com a incerta sensação de ter ouvido passos no corredor que se detiveram ao chegar a sua porta. Tinha tratado alguém de virar a maçaneta? O vento moveu o batente corrediço solto da janela e estremeceu de terror, à espera de que voltasse a produzir o ruído para poder estar segura do que era. As suspeitas se agitavam em sua mente e invadiam seus sonhos. Com a luz do dia recuperou a coragem, mas continuava nervosa. Teve que encher-se de toda sua força de concentração para não cometer enganos. Enquanto ia de tarefa em tarefa, não deixava de ter consciência do resto das pessoas, de seus movimentos, das sombras.
Ao chegar à noite estava tão cansada que teria sido capaz de chorar de esgotamento, sentia-se prisioneira naquela casa, impelida de um lugar a outro sem tempo nunca para estar sozinha, mas levando sua solidão como um peso em seu interior. E o tempo era o inimigo permanente. De certo modo era uma bênção ter afazeres que a mantiveram ocupada.
Charlotte não podia fazer outra coisa que imaginar o que estaria acontecendo a Emily uma vez que se separaram sob a chuva e saíram pela porta do parque. Era inúti dar mais voltas, ela não podia fazer nada. E devia continuar mentindo ao Pitt se não quisesse que este soubesse que estava fazendo indagações para averiguar a verdade, porque então se daria conta de que se ela agia assim era porque Ballarat não estava fazendo nada, e se não o fizesse ela, não o faria ninguém. A solidão que sentia ao ter que lhe mentir daquele modo era um dos sentimentos mais dolorosos que havia sentido. O luxo de não ocultar nada, de não ter que aguentar sozinha verdade alguma, era algo ao que estava tão habituada que tinha esquecido seu valor. Agora só podia pensar de um modo egoísta, e era melhor que não o expusesse.
Não obstante, a aflição a pegou de surpresa. Recebeu entretanto pequenos gestos de gentileza e surgiram amizades ali onde nunca teria imaginado achá-las. Um estranho homenzinho vestido com um casaco e uma capa de mascate lhe trouxe uma bolsa de arenques e se negou que os pagasse, ao mesmo tempo em que se apressava a fugir sob a chuva sem olhar atrás, como se sentisse sobressaltado porque lhe agradecessem. Uma manhã achou um feixe de lenha miúda na escada posterior, e dois dias mais tarde apareceu outro mais. Nunca soube quem os deixou. O verdureiro se tornou lacônico com ela até extremos de uma franca rudeza, mas o carvoeiro continuava lhe servindo, e lhe parecia que seus sacos, se em algo tinham variado, era para estar um pouco mais cheios.Sua mãe não voltou, mas lhe escrevia todos os dias para lhe contar que Daniel e Jemima estavam bem e lhe dizer que podia contar com ela para algo em que pudesse ajudar.
A carta que mais a emocionou lhe chegou de parte de tia avó Vespasia, que tinha bronquite e estava confinada a guardar cama. Não tinha o menor gênero de dúvida de que Pitt era inocente, e logo que o tempo fosse mais apropriado, se é que algumavez chegava a fazer bom tempo no passo que iam, daria a seu advogado as instruções pertinentes para que atuasse em sua ajuda. No envelope incluía dez guinéus, pelas quais esperava que Charlotte não fosse tão idiota para ofender-se. Não se podia lutar com o estômago vazio... e era bastante claro que ia ter que lutar de verdade.
A escritura era trêmula e as linhas um pouco torcidas, por isso para Charlotte foi um duro golpe tomar consciência de que Vespasia era velha e que os anos a tornavam cada vez mais frágil.
Estava de pé no meio da cozinha a primeira hora da manhã com o papel debruado de azul na mão. Parecia como se todas as coisas boas e seguras do mundo estivessem chateando-se com rapidez; sentia que lhe roçava a pele um frio tão intenso que nenhum fogo era capaz de dissipar.
Foi de novo visitar Pitt. Esperou sob a gélida chuva, junto com outras silenciosas e melancólicas mulheres cujos pais, maridos ou filhos murchavam no The Steel. Algumas eram violentas, outras avaras, ou brutais, bem por natureza ou pelas circunstâncias, muitas tão somente eram seres não adaptados para a luta pela vida que se desenvolvia nas hostis e sobre saturadas cale onde só resistiam os mais fortes.
Charlotte teve tempo para a piedade, e para fazer-se toda classe de perguntas e pensar naquelas mulheres... Era mais fácil lamentar a dor alheia que se aprofundar nas realidades da própria aflição. Era mais fácil além disso confrontar o rosto de Pitt e lhe mentir, sorrir como se estivesse plenamente confiante e dissimular o medo, se a tormenta de emoções que se desenvolvia em seu interior estava ocupada com alguma outra coisa.
Quando lhe permitiram por fim a entrada, não lhe deixaram tocá-lo, só sentar-se do outro lado da mesa e lhe olhar o rosto, onde podia ver a sujeira e os machucados, as sombras ao redor dos olhos que delatavam a penúria de sua situação apesar de seu sorriso forçado. Nunca em sua vida lhe tinha sido tão difícil manter uma mentira, nem tinha tido que acreditar nela até o final. Ele a conhecia tão bem, e ela nunca tinha conseguido enganá-lo antes. Agora sustentava seu olhar e lhe mentia com tanta desenvoltura como se tratasse de um menino, alguém a quem devia proteger e consolar com histórias enquanto ela suportava a verdade.
—Sim, estamos todos muito bem -se apressou a dizer-. Mas sentimos sua falta, claro! Não nos falta nada, assim não tive que pedir ajuda a mamãe nem a Emily, embora nos daríamos isso se fosse necessário. Não, não voltei para casa dos York. Deixei-os nas mãos de Ballarat, como você disse... Bom, se não mandou ninguém para que viesse vê-lo será porque não o necessita. - Conduzia ela a conversa, sem dar lugar a interrupções ou a perguntas que não pudesse responder.
"Onde está Emily? Em casa. Não a teriam deixado entrar aqui, não é família... ou pelo menos não o suficientemente próxima. As cunhadas não contam. Sim, Jack Radley está nos ajudando muito...
Emily estava na lavanderia ocupada na tarefa que mais lhe desgostava: engomar as pontas dos aventais de algodão, uma meia dúzia. Edith tinha conseguido enrolar em um descuido Emily para que lhe fizesse também a parte que correspondia a ela. Levantou o olhar surpreendido quando apareceu Mary na porta, olhou a seu redor, entrou e fechou a porta com um dedo nos lábios.
—O que acontece? -sussurrou Emily.
—Um homem! -disse Mary com voz quase inaudível-. Tem um pretendente!
—Não tenho nenhum! -negou Emily com veemência. Certamente o que menos precisava era esse tipo de problemas. E era injusto: não tinha dado motivos a ninguém. De fato, até havia dado no vendedor do açougue, uma criatura impudica, uma bofetada por lhe sorrir.
—Sim o tem! -insistiu Mary-. É um pouco desalinhado, parece como se acabasse de sair de uma lareira! Mas fala como os anjos e é muito educado, eu acredito que se lavasse um pouco seria encantador.
—Bom, pois eu não o conheço! -respondeu Emily-. Diga que se vá!
—Por que não vem vê-lo...?
—Não! Quer que perca o emprego?
—É muito atento.
—Vão me mandar embora! -explodiu Emily.
—Pois ele diz que a conhece! -insistiu Mary-. Vamos, Amelia, pode ser que seja você... Bom, é quer ser uma criada toda sua vida?
—É melhor isso que ficar na rua sem emprego!
—Bom, se estiver tão certa. chama-se Jack não sei o que.
Emily ficou petrificada.
—Como?
—Chama-se Jack não sei o que -repetiu Mary.
Emily deixou a prancha.
—Quero vê-lo! Onde está? Viu-o alguém mais?
—Ah, que maneira de trocar de ideia! -disse Mary com regozijo-. Mas será melhor que vá com cuidado! Pode lhe causar problemas se pilhar a cozinheira.
—Está na porta da copa. Apresse-se!
Emily se precipitou fora da lavanderia, percorreu o corredor, cruzou a cozinha e a copa e chegou à porta de trás, com a Mary perto dela, olho atento se por acaso voltava a cozinheira.
Emily mal podia dar crédito a seus olhos. O homem que esperava sob a chuva na escada posterior junto ao contêiner de carvão e os baldes de lixo levava um escuro e puído casaco que lhe chegava mais abaixo dos joelhos, e seu rosto estava todo meio oculto por um chapéu de aba longa e uma mecha de cabelo sujo de fuligem que lhe caía entre as sobrancelhas. Tinha a pele muito suja, como se de verdade saísse de uma lareira.
—Jack? -disse ela com incredulidade.
Ao sorrir mostrou uma fila de dentes brancos naquele rosto imundo. Emily estava tão contente de vê-lo que sentiu vontade de rir, mas se o fizesse aquela risada bem podia acabar em pranto. Todos aqueles sentimentos passaram por ela em forma de uma corrente tão impetuosa que não pôde dizer nada.
—Está bem? -perguntou ele-. Tem um aspecto horrível.
Ela pôs-se a rir de forma um pouco histérica, mas se conteve por temor que Mary a ouvisse. Fez um esforço por controlar-se.
—Sim, estou muito bem. Ontem à noite tranquei a porta de meu quarto com uma cadeira. Mas preciso lhe falar. Como está Charlotte?
—É muito duro para ela, e não estamos conseguindo nada.
Ouviu-se um grito de advertência procedente do interior e Emily compreendeu que chegava alguém que podia delatá-la, se não a cozinheira, Nora.
—Vá embora! -disse ela com precipitação-. dentro de uma meia hora sairei para ir ao sapateiro... me espere ao dobrar a esquina-. Por favor!
Jack assentiu. Quando o rosto bisbilhoteiro de Nora apareceu pela porta exterior, ele já tinha subido os degraus e desaparecido.
—O que faz aqui fora? -disse Nora com azedume. - Me pareceu ouvir você falar com alguém!
—Bom, pois a você o que importa! -soltou-lhe Emily, mas se arrependeu imediatamente, não porque sentisse nenhum tipo de pesar pela Nora, mas sim porque não era prudente inimizar-se com ela. Mas já era muito tarde para voltar atrás, pois podia levantar nela suspeita- Por certo, o que está fazendo você aqui fora?
—Em... -Era evidente que Nora tinha saído para surpreender Emily, por isso agora estava confusa. Levantou o queixo-. Pensei que se havia alguém aqui fora podia estar incomodando você. Vim em sua ajuda!
—Muito amável -respondeu Emily com ironia-. Como pode ver, aqui não há ninguém mais. Saí para comprovar o frio que fazia, vou sair para levar um recado, acho que necessitarei de um casaco grosso.
—Pois claro! -disse Nora com mordacidade-. Estamos em janeiro, Que outra coisa podia esperar?
—Que chovesse -replicou Emily cada vez mais segura de si mesma.
—Está chovendo! Não podia vê-lo pela janela?
—Mas não. Estava na lavanderia. -Olhou fixamente os formosos e descarados olhos de Nora, desafiando-a para que lançasse uma acusação aberta.
—Está bem. Deu de ombros com afetação; tinha uns ombros muito elegantes e sabia- disso. Então será melhor que vá onde tenha que ir, e passe meia tarde levando um recado!
Emily voltou para a lavanderia para acabar de engomar o último avental. Dobrou- o e guardou a prancha, pegou o chapéu e o casaco e, depois de dizer a Mary aonde ia, subiu os degraus e percorreu Hanover Close em direção à rua principal, com a esperança a cada passo de ver Jack, ou de ouvir sua voz atrás dela. Quase tropeça com ele ao dobrar a primeira esquina. Continuava parecendo uma pessoa ridícula e nem sequer tocou Emily, mas sim pôs-se a caminhar com todo respeito a seu lado como se ambos fossem exatamente aquilo que pareciam, uma criada que trazia um recado e um limpador de chaminés que tomava um breve descanso.
Enquanto caminhavam lhe contou a extraordinária conversa que tinha ouvido entre a Veronica e Loretta, e a única conclusão possível a que tinha chegado atrás de seu bate-papo com a criada.
Ele por sua vez transmitiu as poucas novidades que tinha a respeito de Charlotte. Quando tinham trocado tais informações, ela já tinha as botas da Veronica e caminhava de retorno a Hanover Close. Chovia com intensidade e tinha os pés e a saia molhados, enquanto que a fuligem com a qual Jack sujara o rosto estava começando a lhe deixar negros sulcos no rosto.
—Tem um aspecto horrendo! -disse Emily com um sorriso bem triste.
Caminhava cada vez menos depressa, sentia-se renitente a voltar para casa, não só porque aquele era um momento de liberação das tarefas domésticas e do medo mas sim porque, o que lhe era de repente surpreendente, ia sentir falta de Jack.
—Nem sequer sua mãe o reconheceria!
Ele pôs-se a rir, a princípio com comedimento e logo com franqueza ao observar o reto e lamacento casaco marrom de Emily, seu chapéu simplório e suas botas empapadas. Ela começou também a rir, e ao cabo de um momento estavam os dois parados no meio da rua, jorrando chuva e rindo à beira das lágrimas. Ele tirou as mãos dos bolsos e pegou as suas, segurando-as com doçura. Por um instante ela acreditou que ia pedir lhe que se casasse com ele, mas fosse o que fosse o que estivesse a ponto de lhe dizer, ele se conteve e guardou silêncio. Ela tinha todo o dinheiro dos Ashworth, as casas, a posição; ele não tinha nada. O amor não era dote suficiente.
—Jack -disse Emily sem dar-se tempo para ponderar ou para julgar, - Jack...
pensou na possibilidade de se casar comigo?
A chuva limpava a fuligem de seu rosto em forma de negras gotas.
—Sim, se você quisesse. Eu gostaria de me casar com você... eu gostaria muito. -Então pode me beijar -disse ela com um tímido sorriso.
Ele assim o fez, devagar, com afeto e cavalheirismo. E em meio daquela sujeira e da chuva fria, foi um beijo esquisito e doce.
A vida na prisão não se parecia em nada ao que Pitt tinha imaginado. No primeiro momento, durante a comoção da detenção e de ser arrojado de forma repentina ao outro lado da lei, seus sentimentos ficaram como entorpecidos, como se lhe tivessem despojado de tudo o que não fosse as reações mais primárias. Inclusive quando o tinham transladado da cela da delegacia de polícia à penitenciária do Coldbath Fields, Tinha recebido a realidade num nível puramente sensitivo. Tinha visto as paredes maciças e tinha ouvido fechar a porta com um estrondo de metal contra a pedra, e lhe tinha assaltado aquele estranho cheiro acre que se tinha agarrado à garganta. Tinha notado seu sabor na língua, mas nem sequer aquilo tinha sido capaz de despertar suas emoções.
Na manhã seguinte, com os músculos intumescidos pelo frio, sua memória pôs-se a correr para trás e tudo lhe pareceu absurdo. Em qualquer momento se apresentaria alguém desfazendo-se em desculpas e lhe tirariam dali para lhe oferecer um bom almoço quente, provavelmente purê com bacon, e litros de chá fumegante.
Mas o único que vinha era o carcereiro, quem, com um prato metálico de papa na mão, ordenava-lhe que ficasse de pé e se preparasse para a nova jornada. Pitt protestava de forma impulsiva e o vigilante lhe dizia com brutalidade que se limitasse a obedecer às ordens se não quisesse ver-se na cela de castigo.
Os outros prisioneiros olhavam-no com curiosidade e ódio. Para eles era o inimigo. Se não fosse pela polícia, nenhum deles estaria ali sofrendo aquela prolongada tortura, amontoados nas estreitas celas sem fim, onde lhes obrigavam a caminhar sem repouso sobre tabuletas de madeira que retrocediam inexoravelmente sob seus pés enquanto lutavam para não perder o passo da lenta roda giratória. Nenhum homem podia aguentar mais de quinze minutos no interior de uma daquelas celas que mais pareciam um galinheiro, com todo aquele ar quente que sufocava os pulmões; passado este tempo o prisioneiro devia ser retirado antes de que desabasse.
Se a pessoa não tinha o suficiente com isso, sempre havia outros castigos a ponto. Por rebeldia manifesta um homem podia ser espancado ou açoitado; por ofensas menores, como a insolência ou a negativa a obedecer às ordens, um homem podia ser levado a passeio do peso. Três dias atrás Pitt tinha sido castigado com tal pena, por resposta a uma ordem, vadiagem e provocação de uma briga. Os homens eram alinhados formando o contorno de um grande quadrado vazio, fora no pátio de exercícios a mercê do frio. Cada detento se situava a uns três metros do vizinho e lhe dava uma bala de canhão de ferro de dez quilogramas de peso que devia colocar a seus pés. Ao escutar a voz de mando devia carregar com a bola e levá-la até o lugar ocupado por seu vizinho, depositá-la no chão e voltar para seu lugar, onde achava a nova bola que lhe tinha deixado o companheiro do outro lado. A este exercício sem sentido podia se resistir uma hora, até que nos ombros se notavam pontadas de dor, os músculos estavam quebrados e as costas destroçadas.
A falta do Pitt tinha sido uma briga estúpida provocada por outro detento impulsionado pelo desejo de fanfarronar diante de seus companheiros. Se Pitt tivesse prestado mais atenção a quanto lhe rodeava, teria percebido que aquele tipo era de gênio pronto e se fixara em sua presunçosa forma de caminhar e suas mãos crispadas. Pitt teria compreendido o significado do brilho nos olhos daquele indivíduo enquanto os movia a um lado e a outro para comprovar quem o estava olhando, e quem havia para lhe admirar com a peculiar mescla de medo e respeito que os fracos sentem ante a violência. Teria reconhecido seu exagerado sorriso como o do fanfarrão jactancioso.
Mas sua mente estava no bordel e no cadáver de Cereja sobre aquela cama vulgar, e tratava de recordar os breves momentos em que tinha contemplado seu rosto. Realmente tinha sido tão bela, em outro tempo, ou havia possuído tanto encanto e engenho para que Robert York gostasse muito dela até o ponto de trair a seu país? Uma relação com uma mulher como aquela punha em perigo não só o amor de sua esposa, que podia ter em maior ou menor valor, a não ser sua posição no Foreign Office e na sociedade, coisas que governavam por completo seu estilo de vida. Se o assunto se descobrira, o melhor que poderia esperar seria encobri-lo, por bem de sua família, e evitar um escândalo que o governo de modo algum desejava; e no pior dos casos teria acabado ali mesmo, onde Pitt estava agora, no Coldbath Fields, ou em algum lugar similar, à espera de julgamento e muito provavelmente da corda do verdugo.
Este pensamento bastava para afligir a Pitt com tal ira e tal medo que perdia a noção do perigo imediato. Assim foi incapaz de perceber os gestos fanfarrões, o rápido brilho dos olhos daquele tipo, como foi também de reconhecer o desafio que lhe lançava. O indivíduo estava marcando seu território. Quando falou, Pitt respondeu com aspereza a primeira resposta que lhe veio à cabeça, e antes que se desse conta tinha posto o fanfarrão em uma posição em que se via forçado a defender-se da afronta. Foi uma idiotice, uma briga estúpida que acabou com os dois no passeio do peso e com o Pitt agachando-se, levantando-se, carregando a bola, voltando a deixá-la, retornando a seu lugar, até que acreditou haver-se quebrado as costas e o suor lhe empapava a roupa. Quando o castigo cessou ao fim, tinha uma sensação de frio pegajoso, e a dor de seus torturados músculos era tão aguda que durante quatro dias não pôde mover-se sem que todo lhe fizesse mal, nem sequer enquanto dormia.
Passaram os dias e Pitt acabou por acostumar-se à rotina, à comida abominável, ao frio permanente, salvo quando o esforço físico o fazia suar para logo sentir uma sensação de frio muito pior. Odiava estar sempre sujo e aborrecia a falta total de intimidade até para as necessidades mais essenciais, sentia-se mais só que nunca; embora nunca pudesse estar só. A solidão física real seria uma bênção, uma ocasião para relaxar a tensão, a consciência da hostilidade, e para estudar os pensamentos que se amontoavam em sua mente sem aqueles olhos bisbilhoteiros e cruéis que o escrutinavam a todas as horas à busca de uma debilidade por onde atacar e satisfazer sua agressividade.
A primeira vez que Charlotte foi vê-lo foi a pior experiência. Vê-la, falar com ela, mas com um vigilante à escuta, sem poder tocá-la, tendo que lutar por transmitir através de palavras uma comunicação que era muito íntima, muito instintiva para ser mantida em um meio público e quantitativo. Seus próprios pensamentos eram caóticos. O que podia dizer a sua mulher? Que era inocente de tudo salvo possivelmente de ter pecado de ingenuidade em determinado momento? Talvez não fosse outra coisa que grande estupidez. Continuava sem ter ideia de quem era o espião, nem de quem tinha matado Robert York. Se de algo era culpado era de ter falhado!
Também a Charlotte e aos meninos tinha falhado. O que ia ser deles? O que estava sendo deles agora? Ela devia estar sofrendo todo o medo, a vergonha de ser considerada a mulher de um assassino. E dentro de não muito tempo lhes tocaria viver a pobreza, a não ser que a família dela os ajudasse. Mas a miséria e a humilhação de uma dependência por toda vida dificilmente era uma solução aceitável.
Como podia em tais circunstâncias lhe dizer que a queria, com um carcereiro depreciativo escutando? E também tinha querido afastar para sempre a breve cólera que tinha deixado que lhe amargurasse os últimos dias, antes que o voltassem a levar.
Tinha encontrado ela pálida. Apesar de ter tentado com todas suas forças, não tinha conseguido eliminar a comoção de seu rosto. Depois não tinha podido recordar o que haviam dito... Algumas coisas e nada, só vozes. O silêncio tinha sido mais importante, e a ternura brilhando em seus olhos.
A segunda vez tinha ido melhor. Ao menos ela parecia ignorar a realidade da prisão, e estava confiante que Ballarat fazia tudo o que podia para liberá-lo... mais confiante que Pitt, Ballarat não se aproximara sequer de Coldbath Fields, nem tinha enviado alguém, exceto um agente com ar morto de calor que se limitou a lhe formular as perguntas mais óbvias e carentes de sentido.
—O que estava fazendo no Seven Dials, senhor Pitt? -Aquele tratamento de respeito era algo tão habitual que não tinha podido evitá-lo nem sequer em um lugar como aquele. Brincava nervoso com a pena e afastava os olhos dos de Pitt.
—Um enganador profissional me disse que a mulher a que queria interrogar estava naquele lugar -lhe tinha respondido Pitt irritado-. Já o disse a eles!
—Então estava procurando a essa mulher?
—Isso também disse já!
—Por que a buscava, senhor Pitt?
—Porque era uma testemunha no caso do assassinato do Robert York.
—Refere-se ao senhor York de Hanover Close, que foi assassinado por um ladrão faz três anos?
—Sim, claro que refiro a ele!
—E como chegou a essa hipótese, senhor Pitt?
—Tinha sido vista na casa.
—Ah, sim? Quem a tinha visto?
—Dulcie Mabbutt, a criada.
—Poderia me soletrar o sobrenome, senhor?
—Não se preocupe, está morta. Caiu por uma janela. O agente arregalou os olhos e pela primeira vez olhou Pitt no rosto.
—Como aconteceu esse acidente, senhor? Valia a pena dizer-lhe E se aquele agente era a única pessoa que viria vê-lo, como uma mera formalidade para poder preencher o expediente? Aquela podia ser a única oportunidade. Tinha que tentar.
—Acredito que alguém a ouviu no dia que me contou sobre a mulher do vestido cereja. -Olhou para o rosto do agente-. A porta da biblioteca estava aberta.
—Quer dizer que a empurraram ao vazio?
—Sim, assim é.
O agente realizava esforços por concentrar-se.
—Mas essa mulher do vestido cereja era uma prostituta, senhor Pitt, por que alguém ia preocupar se tanto por sua causa? Os cavalheiros têm suas pequenas debilidades, como todos sabemos. Se aquele em concreto era um pouco descuidado, isso é um assunto doméstico, não lhe parece?
—Não era uma prostituta qualquer -respondeu Pitt com tom grave, contendo a ira porque não tinha mais remédio. O que tinha que fazer para persuadir aquele agente de rosto arredondado de que aquela vulgar e bem sórdida tragédia escondia uma trama de conspiração e traições.
—Não, senhor? -inquiriu o agente entreabrindo os olhos.
—Desapareceram documentos secretos do Foreign Office, do departamento onde trabalhava Robert York antes que o assassinassem.
O agente piscou.
—Está dizendo que ele os tirou dali, senhor Pitt?
—Não sei. Felix Asherson e Garrard Danver também trabalham ali, e muitas outras pessoas. Mas sim sei que o vaso de prata e a primeira edição do livro, objetos roubados a noite em que foi assassinado, nunca apareceram, e que não há nenhum traficante nem receptador de Londres, nem nenhum delinquente comum em toda a cidade que saibam algo desses objetos nem do assassinato.
—Tem certeza disso, senhor?
—Sim, tenho! Que diabos acredita que tinha estado fazendo as últimas semanas?
—Já vejo. -O agente umedeceu a pena nos lábios, mas não lhe ocorreu nada que anotar.
—Não, não vê nada! Nem eu tampouco. Salvo que Robert York foi assassinado, que Dulcie caiu de uma janela e que à mulher do vestido cereja, que tinha sido vista em Hanover Close, tinham lhe quebrado o pescoço em um bordel do Seven Dials... pouco antes que eu a encontrasse.
—E sustenta que não foi você quem o fez? - Desta vez não havia ceticismo em sua voz; mas parecia procurar uma confirmação.
—Sim.
O agente não tinha insistido sobre o assunto e partiu com um semblante de profunda concentração.
Os dias passaram em uma longa e tenebrosa sequência sem contornos definidos. Sempre parecia que faltava luz no The Steel. Até o pátio de exercícios era estreito e tinha as paredes tão altas e retas que a quebradiça luz invernal se perdia nele. Inclinado sobre a bala quebradora de costas, ou vulgar entre o resto de prisioneiros miseráveis e suarentos, Pitt sentia a escuridão introduzir-se em seu cérebro como um mofo. O mundo exterior se converteu em algo remoto, um conto em um livro para crianças.
Depois, pouco a pouco e contra sua vontade, viu-se impelido a reparar em seus companheiros, Iremonger, um indivíduo de meia idade, acusado de praticar abortos. Proclamava sua inocência com resignação, sem esperar que lhe acreditassem. Tinha alguns conhecimentos de medicina e mostrava certo tipo de solidariedade. Sabia como tratar as pequenas feridas causadas pela manivela, o pior castigo de todos, no qual um homem dava voltas a um eixo conectado com um recipiente cheio de areia; o peso que devia erguer lutando contra a resistência que opunha a inércia morta deixava os músculos mais destroçados ainda que a bala de canhão. Iremonger também dispensava conselhos e uma simpatia particularmente íntima para com aqueles que sofriam os rigores da fita sem fim.
Havia também Haskins, o fanfarrão que brigara com Pitt, um pobre diabo muito triste que tinha obtido as poucas vitórias de sua vida mediante a violência; Respeitavam-no quando estava em frente, mas zombavam dele assim que dava as costas. Também havia Ross, um homem bonito e genial que vivia do dinheiro que ganhavam as prostitutas e que estava ali em consequência de certo roubo estúpido. Ross não via nada mau em nenhuma daquelas ocupações: se uma cobria uma necessidade, a outra se limitava a aproveitar a ocasião. Quando o soltassem voltaria a fazer exatamente o mesmo. O conceito do bom e o mau em outra coisa que não fosse a lealdade pessoal era algo desconhecido para ele. Até a seu pesar, ao Pitt não desagradava aquele tipo.
Pitt tinha observado também o Goodman, pequeno e extremamente avaro, um excelente narrador de histórias embora provavelmente fossem todas mentira. Estava ali por desfalque a seu sogro, e como a maioria dos outros, proclamava sua inocência, se não quanto ao fato em si, ao menos com respeito a qualquer falta moral no assunto. Sua cara de doninha transbordava indignação. Mas por outro lado, sua fértil imaginação, assim como sua boa educação, faziam que sua companhia fosse, nas poucas ocasiões em que lhes permitia falar, um alívio ao desesperador aborrecimento. E havia também Wilson, um homem com arranques de cólera tão furiosos que quando os tinha recebia todo mundo, Wood, ignorante e rancoroso com um mundo que não tinha encontrado utilidade nem lugar nenhum para ele; o gordo Molloy, que tinha passado a maior parte de sua vida na prisão e a quem dava medo o mundo exterior, apesar de suas ânsias por voltar para ele; e o pobre e pequeno Raeburn, com as pálpebras e os lábios pendentes, que roubava simplesmente porque tinha fome e era incapaz de ganhar a vida.
A princípio Pitt os odiava a todos porque formavam parte do The Steel e de tudo que o tinha apanhado e mantinha-o ali dentro, de toda a ruindade daquele lugar.
Mais tarde, através de pequenos fatos, de visões fugazes de sua dor, foi ganho por eles. A princípio aqueles incidentes pareciam algo corriqueiro; um toque da superfície de sua mente, mais uma irritação, já que não ficava outra emoção mais que uma empatia real.
Depois uma estúpida e absurda tragédia relacionada com o Raeburn arrancou Pitt de sua auto compaixão. Raeburn era um homenzinho de mente simples e sem ambições que parecia incapaz de enfrentar o mundo. Mas havia uma coisa da qual estava orgulhoso, embora fosse imoral e roubava, não dizia mentiras, nem seque para escapar de um castigo. Era algo do que alardeava em todo momento e que todos se acostumaram a escutar; ninguém lhe fazia caso, era aborrecido ouvi-lo e todo mundo dava por assentado que era um tipo inofensivo que não invadia o território de ninguém. Existia o acordo tácito de que ninguém devia abusar do Raeburn. Cumpria o papel de mascote doméstico.
Na referida ocasião, em que Pitt se sentia fundo em sua própria miséria, no frio incessante, na fome e na solidão emocional e nos medos que a cada dia que passava se via mais obrigado a confrontar, um carcereiro sentiu falta de seu relógio e, por algum desafortunado engano, acusou-se Raeburn de havê-lo furtado. Ele jurou que não o tinha feito, mas o carcereiro, que não o conhecia, não aceitou sua inocência.
Raeburn foi confinado a uma cela solitária. Estar só lhe aterrorizava, não tinha pensamentos próprios com que encher o silêncio que ameaçava aniquilá-lo. Quando vieram para levá-lo se rebelou a golpes, pelo que sim era inegavelmente culpado. A acusação de roubo deixou de ter importância; agora tinha atacado a um guarda. Levaram-no a uma cela de isolamento e ele continuava sem compreender nada e jurando que não havia roubado o relógio.
De noite de seu catre, tremendo de frio na escuridão, Pitt podia ouvir Raeburn gritar, às vezes em voz alta:
—Eu não o fiz! Digam-lhes que não fui eu!
Outras vezes não era mais que um confuso balbuciar que se perdia no silêncio. Era um homenzinho fraco a quem tinham arrebatado a única coisa valiosa que possuía. Seu único orgulho era que todo mundo sabia que nunca mentia, mas agora havia alguém que não acreditava nele. Sua solidão era vasta, como a própria aniquilação, e não tinha nada a que agarrar-se. Nem sequer queria, ou não podia, comer.
Ao cabo de uma semana o levaram para o manicômio do Bedlam, onde em pouco tempo morreu. O efeito que teve o episódio sobre outros prisioneiros foi profundo. Tinham tolerado ao Raeburn com frio desdém, mas se tinha dado a compreensão tácita de que sua honradez era uma pequena luz na escuridão de sua solidão e sua estupidez, era seu gesto de identidade em um mar sem nome. Não tinha tido mais força que aquela, nem sequer ele tinha sido consciente de possuir nenhuma outra virtude. Suas fraquezas o tinham feito fracassar com tanta frequência que todos as conheciam a perfeição.
Quando o levaram se estendeu entre outros uma espécie de ira que por uma vez não obedecia a nada que tivesse que ver com o egoísmo. O destino de Raeburn os tinha aproximado da piedade tudo quanto eram capazes de fazê-lo.
O incidente marcou a Pitt profundamente. Tratou de esquecê-lo, mas os gritos de Raeburn se repetiam em sua cabeça, enquanto sua imaginação completava a imagem daquele homem de caráter débil, pálpebras cansadas e um rosto gasto pelo pranto, a quem o medo fazia estúpido. Sua própria auto compaixão se transformou em ira. Enquanto que até aquele momento tinha odiado ao resto de reclusos, agora se surpreendia a si mesmo tratando de esquecer, às vezes durante horas, o mundo que o afastava deles, para sentir tão só a pena que lhes unia.
De noite, deitado a mercê do frio, refletia todas as possibilidades. Embora não pudesse falar com ninguém a respeito de seu caso, tampouco podiam lhe impedir que pensasse. Certamente a chave radicava na traição. Quem era o espião? A princípio tinha pensado que Robert York, seduzido por Cereja, talvez tivesse um agente espião que a protegia na sombra. Mas desde a morte de Dulcie, também assassinada, a lista de suspeitos se reduziu a alguma outra pessoa da casa dos York ou a um dos convidados daquela noite, os Danver e os Asherson, que também tinham acesso ao Foreign Office.
E agora a própria Cereja tinha sido assassinada... Por quem? O agente espião desconhecido, por medo de que quando Pitt a encontrasse pudesse traí-lo? Cada vez estava mais confuso. Nada tinha sentido. Se existia uma figura como a que imaginava, um espião na sombra, desconhecido, então essa pessoa não podia ter intervindo no assassinato de Dulcie. Tinha que ser alguém a quem Pitt conhecia, alguém a quem já tinha visto e com quem tinha falado. Dulcie tinha sido assassinada porque tinha visto Cereja, não podia haver outra explicação. Corroborava-o o fato de que a própria Cereja tivesse sido assassinada quando era já inevitável que Pitt a encontrasse.
Mas por que Robert York tinha sido assassinado? Era por causa de algo que sabia, algo que tinha visto ou ouvido? Era por algo que tinha feito e que portanto podia revelar? Talvez houvesse um ladrão de verdade, alguém a quem Robert York pôde ter reconhecido ao irromper na casa e a quem ele surpreendeu. Talvez Cereja não tinha tido êxito em seus intentos de sedução e tinha enviado um ladrão em seu lugar. Mas então quem era o ladrão? Alguém a quem Robert York conhecia, alguém suficientemente forte e hábil -e com o suficiente sangue frio para matar de um só golpe a um homem que devia estar alerta e presumivelmente na guarda. Ao fim e ao cabo, se uma pessoa perturba um ladrão em sua própria casa no meio da noite, e reconhece-o além disso e conhece suas intenções, será compreensível que não queira deixar a pessoa com vida para que possa delatá-lo.
Julian Danver, Garrard Danver -embora dobrasse aos York em idade- ou Felix Asherson? Pitt não considerava a possibilidade do Piers York; dificilmente era necessitado dar nenhum tipo de explicações por estar na biblioteca de sua própria casa em plena noite. Mas os Danver e Asherson trabalhavam todos no Foreign Office. Não tinha sentido que fossem roubar segredos na casa de Robert York.
Pitt jazia acordado no meio da crua noite, ouvindo os sons agora familiares dos sonhos inquietos, o eco de tosses, gemidos, de alguém que blasfemava e um pouco mais à frente um homem que soluçava com roucas exclamações de desespero. Não havia possibilidade de continuar. As peças não encaixavam. Quem era Cereja? perguntava-se, enquanto sua mente tratava de caçar uma resposta no ar. Tudo gravitava sobre ela.
Pela manhã a imediatas cinza do dia devolveu seus sentidos. Podia fechar os olhos a algumas coisas, até afastar a mente dos sons e fazer-se insensível ao frio cortante, mas nunca poderia desfazer-se daquele aroma acre. Estava em cada respiração, e seu sabor no fundo de sua garganta, enquanto o estômago se revolvia. Não havia a tranquilidade necessária para pensar. Com a escuridão voltou à ilusão de solidão e sua mente voltou a roer a dura questão. Dava-lhe voltas e mais voltas sem que nenhuma resposta parecesse satisfatória. Continuava parecendo mais verossímil que Robert York tivesse surpreendido a um intruso e que lhe tivessem assassinado por saber, assim como a própria Dulcie e, é claro, a Cereja. Mas por saber o que?
O agente voltou para a prisão, mais grave esta vez, e sem sequer lhe mencionar Ballarat.
—De modo que foi a criada, Dulcie, a primeira que lhe falou dessa mulher de rosa, senhor Pitt? -Franziu o sobrecenho, enquanto baixava a vista ao bloco de papel de notas-. Como deu com ela no Seven Dials?
—Depois de um trabalho de dias -replicou Pitt-. Chutei a rua perguntando a vendedores ambulantes, floristas, vendedores de sanduíches, porteiros de teatro, prostitutas.
O agente meneou a cabeça.
—Deve ter lhe levado muito tempo, senhor. Não havia melhor forma de inteirar-se de algo, não havia ninguém que soubesse algo?
—Ninguém que queria falar, à exceção da senhorita Adeline Danver, mas esta só tinha visto a mulher um instante no patamar da escada, à luz do gás.
—Refere-se à tia do senhor Julian Danver?
—Sim. Mas como é natural a senhorita Danver não sabia onde achar à mulher.
O agente enrugou a testa.
—Poderia interrogá-la para comprová-lo, senhor Pitt.
—Muito bem, mas se o fizer, faça-o com tato, pelo amor de Deus! A última pessoa que falou com a polícia a respeito de Cereja caiu de uma janela.
O agente guardou silêncio e logo ficou a mordiscar o lápis.
—Quem opina você que era essa mulher a que chama Cereja, senhor Pitt?
Pitt se inclinou um pouco mais na cadeira de madeira.
—Não sei. Mas era uma mulher formosa. Todos que a viram dizem que tinha classe, era atraente, e que seu rosto era dos que se recordam. Felix Asherson admitiu que tinha desaparecido informação de seu departamento do Foreign Office, que era o mesmo onde trabalhava Robert York.
O agente tirou a extremidade do lápis da boca.
—O senhor Ballarat não acredita assim, esteve fazendo algumas perguntas, de forma muito discreta, em diferentes lugares, e lhe disseram que não se fez uso algum de nada que tivesse saído dali. E perguntou a pessoas que saberiam.
—Não têm por que usá-lo em seguida! -Pitt debatia em terreno lamacento.
Ballarat não queria reconhecer que houvesse delito de alta traição; tinha medo de enfrentar a seus superiores dizendo-lhes algo que estavam tão pouco dispostos a acreditar, algo que produzia temor e que era em si mesmo uma dúvida não só pelo que fazia a sua competência, mas também quanto à honra. Tinha medo de sua ira, de ter que reunir argumentos para persuadi-los de uma coisa como aquela e mostrar que ia ser a eles a quem ia pedir responsabilidades, o que lhe interessava era a aprovação de seus superiores; tinha ambições sociais muito mais profundas que seus sonhos profissionais ou econômicos. Gostava de viver bem e exercer sua pequena autoridade, mas não tinha a coragem necessária para assumir o poder real: os riscos, as invejas e os desconfortos que conduzia eram preços que não tinha garra para pagar. Se tinham confiado nele era para que provasse que não tinha havido delito de alta traição, ou que se o tinha havido, tinha sido encoberto sem danos e que descobri-lo agora só seria sintoma de ter fracassado por completo.
O agente olhava-o fixamente, enquanto voltava a mordiscar o lápis.
—Eu não sei muito deste assunto, senhor. Mas todo me parece inverossímil-. Suspeito de que o que os homens gostam em uma senhorita é diferente ao que gostam em um jantar, mas essa mulher não me pareceu nada extraordinária: cabelo escuro, pele bem escura, um pouco branca no rosto... eu gosto de mais cor. De rosto não estava mau, mas não era nada do outro mundo, e não tinha muitas formas. Não é o que se diria uma beleza.
—Tinha algo, certa graça -disse Pitt em um intento de explicar aquele tipo simples e de ideias preconcebidas a sutileza que Cereja tinha tido na vida- Talento.
E engenho, provavelmente.
—Com perdão, senhor Pitt, me pareceu mais uma criada que depois de perder o emprego se viu levada a fazer a rua.
—Era uma cortesã. -Olhava o rosto sério e desconcertado do agente-. Uma prostituta de classe superior, das que escolhem seus clientes (e só uns poucos) em troca de um preço muito alto.
O agente deu de ombros.
—Se você o diz, senhor Pitt. Mas lhe direi uma coisa: essa tinha esfregado uns quantos chãos. Uma olhada a suas mãos e a seus joelhos o corroboraria. Vi muitas mulheres com esses calos para não identificá-los. Não são por rezar, tenha isso como certo.
Pitt o olhava fixamente.
—Está você em um engano!
—Não, senhor Pitt. Tive ocasião de inspecioná-la com atenção, pobre criatura. É meu trabalho, e sei como fazê-lo. Verá, essa não nos fez famosos -um brilho de piedade cruzou por seu rosto-, bom, ninguém o fez.
Um novo pensamento, agudo e terrível, começava a tomar forma na mente de Pitt: e se não era a verdadeira Cereja a quem tinha encontrado, senão outra mulher, uma vítima indefesa posta ali para enganá-lo? Suponhamos que todo aquele assunto tinha sido arquitetado para desfazer-se dele, para encerrá-lo precisamente onde se achava agora, no The Steel, indefeso, enterrado na vida. Alguém tinha matado a aquela desventurada para inutilizar Pitt. Alguém que o tinha vigiado tinha planejado encerrá-lo exatamente onde estava... enquanto a autêntica Cereja continuava viva! Saberia Ballarat? Estaria protegendo-a deliberadamente, para o qual se desentendia do caso fazendo ver que achava o mais fácil, que Pitt era culpado? Mas então até que esferas chegava à corrupção, a traição?
Não, não podia acreditar que Ballarat o tivesse feito sabendo. Era muito pretensioso e estreito de imaginação. Não tinha a coragem necessária para meter-se em um jogo tão perigoso e de tão altos voos. Era auto complacente, insensível, falto de imaginação, um covarde moral e um arrivista social, mas era inglês até a medula.
Embora fosse a sua teimosa maneira, teria morrido antes que caído em traição à pátria. Se renunciava às honras do estado, que mais ficava? A que outras coisas podia aspirar? Não, utilizaram Ballarat. Mas quem o fazia?
—Encontra-se bem, senhor Pitt? -disse o agente com nervosismo-. Tem mau aspecto... volte a si.
—Tem certeza a respeito desses calos? -disse Pitt lentamente, tratando de limpar sua voz de todo vislumbre de desespero-. O que me diz do rosto? Era formoso? Ao menos, é possível imaginar que devia ter encanto, algo que o fizesse adorável?
O agente moveu a cabeça com parcimônia.
—É difícil dizê-lo, senhor Pitt.
—Os ossos! -inclinou-se com impaciência-. Sei sobre os volumes, a descoloração. Mas seus ossos. Não posso recordar...
—Tenho certeza do que lhe disse dos calos -disse com tato-. E tudo o que eu posso opinar, senhor, é que era mais ou menos comum, não estava mau, não era vulgar, pode ser, mas tampouco tinha algo especial. por que, senhor Pitt? O que está pensando?
—Que não era Cereja, agente. Devia ser uma pobre criatura vestida com suas roupas e assassinada para me culpar. Cereja está viva.
—Céu santo! -O agente soltou um suspiro. Só ficava um resto de ceticismo em sua voz, uma mera sombra de dúvida em seu simples e arredondado rosto-. E o que posso fazer eu agora, senhor Pitt?
—Não sei, agente. Deus nos livre. De momento não tenho a menor ideia.
Os pensamentos de Charlotte corriam paralelos aos do Pitt, embora naquele momento não soubesse. Partiu do suposto de que Pitt dizia toda a verdade. Tinha procurado Cereja sem o menor disfarce, e depois de um tenaz trabalho policial alguém lhe tinha levado a casa do Seven Dials onde tinha chegado no momento preciso para encontrá-la com o pescoço quebrado, com toda a aparência, ao ser surpreendido, de ser culpado do assassinato. Tinha sido uma coincidência, ou tinha planejado o próprio assassino a morte da mulher para que acontecesse tudo daquele modo e conseguir de uma só jogada silenciar a Cereja e eliminar a Pitt? Um golpe de fortuna suprema ou de engenho? O que tinha sabido Cereja que valesse o extraordinário risco de matar Dulcie para afastar Pitt dela? Sem dúvida este tinha sido um assassinato muito mais impulsivo e temerário. Tinha que ser algo inculpável, a verdade sobre a morte de Robert York, ou a identidade do espião... que devia ser o mesmo.
O mais verossímil continuava parecendo que Robert York tivesse sido o amante de Cereja e que esta lhe tivesse enganado ou seduzido para obter dele determinados segredos que ela teria entregado por sua vez a seu superior na sombra. Depois ela e Robert deviam ter brigado e ele tê-la ameaçado de dizer a verdade, o que tinha levado a Cereja ou a seu superior a matar Robert para proteger-se. Mas então por que Cereja tinha sido assassinada? arrependeu-se da morte dos York? Possivelmente o assassinato não entrava em seus planos. Ou é que, a sua maneira, ele tinha chegado a lhe importar? No fim de contas era um homem bonito, elegante e com talento, e seu caráter reservado podia fazê-lo especialmente atraente às mulheres. Não seria simplesmente que Cereja tinha perdido os nervos e se convertera em um perigo para seu superior, em uma carga? Teria se informado essa figura na sombra de que Pitt tinha conhecido a existência de Cereja através de Dulcie e tinha decidido livrar-se de todos os que pudessem relacioná-lo com o assunto?
Experimentou a familiar sensação de afundar-se no desespero. O assassino podia ser qualquer um! Não havia o menor indício que permitisse supor quem tinha quebrado a janela da biblioteca e assassinado Robert York. Qualquer um podia ter ido à casa do Seven Dials se sabiam que Cereja estava ali. Mas só um membro das três famílias de Hanover Close pôde ter empurrado Dulcie pela janela! Charlotte os tinha conhecido a todos, sentara-se com eles e falado educadamente, e um deles estava perpetrando o lento e deliberado assassinato legal de Pitt.
Levantou-se com brusquidão da cadeira junto à estufa da cozinha. Tinha escurecido. Fazia tempo que Gracie tinha subido para deitar-se. Não havia nada mais que pudesse fazer essa noite, tinha dado voltas a todos os fatos ou hipóteses que conhecia e a conclusão era inequívoca: pensando não ia resolver nada.
Até dentro de quatro dias não lhe deixariam ver Pitt outra vez. Era inútil pedir ajuda ao Ballarat, mas talvez pudesse falar com a pessoa que levava agora o caso, o agente que tinha interrogado ao dono do bordel, que tinha que ter visto o corpo de Cereja. E podia voltar para Hanover Close, já que ali era onde devia dar com a resposta, se podia achar a ponta do fio a partir da qual desembaraçaria o novelo. Apesar de estar esgotada pelos nervos e extenuada pelo trabalho mais pesado da casa, continuava sem dormir bem e despertou bastante antes do frio amanhecer. Às sete já estava na cozinha, escolhendo e empilhando a lenha para acender a lareira. Quando Gracie desceu do quarto a achou já acesa e o bule fervendo. Abriu a boca para protestar, mas assim que viu o pálido semblante de Charlotte pensou melhor.
A última hora da manhã Charlotte caminhava com energia sob a gélida luz do sol por entre as nuas árvores nos limites do Green Park, à busca do agente Maybery. O oficial de guarda do Bow Street lhe tinha informado, sem muito entusiasmo, que Maybery era o agente que investigava a morte da mulher de rosa. Não lhe tinha feito nenhuma graça ter que dizer-lhe mas ainda tinha gostado menos da ideia de ter que ver-se com uma mulher histérica na delegacia de polícia. Odiava que lhe que montassem cenas, e a julgar pelo aspecto daquele rosto aceso e aqueles olhos brilhantes, tinha-lhe parecido que aquela mulher estava a ponto de lhe montar uma das boas.
Charlotte viu a figura azul com seu alto chapéu e a capa justa quando aparecia pelo Half Moon Street em direção ao Piccadilly. apressou-se a cruzar a rua, sem olhar as carruagens que passavam e enfurecendo aos cocheiros, e abordou à corrida, da forma mais inapropriada.
—Agente!
Este se deteve.
—Sim? Está bem, senhora?
—Sim. É você o agente Maybery?
Ele pareceu desconcertado, com seu redondo rosto enrugado com receio.
—Sim, senhora.
—Sou a senhora Pitt, a esposa do inspetor Thomas Pitt.
—Oh. -Em seu rosto se produziu um conflito de emoções: embaraço, simpatia e em seguida impaciência por falar-Fui ver o senhor Pitt ontem, senhora. Não tinha mau aspecto, dadas às circunstâncias. -Piscou, embora não houvesse culpa em sua expressão. Charlotte recuperou a coragem. Parecia possível que aquele homem não acreditasse que Pitt fosse culpado. Talvez esse alivio em seu rosto era sinal de que ambos estavam do mesmo lado.
—Agente... está investigando a morte da mulher de rosa? O que sabe dela? Como se chamava? Onde tinha estado antes de ir ao Seven Dials? O policial moveu a cabeça com lentidão, mas seus olhos permaneciam firmes.
—Não sabemos nada dela, senhora. Chegou à casa do Seven Dials só três dias antes que a assassinassem. Deu o nome de Mary Smith, mas não tinham ouvido falar dela. Não disse nada a ninguém, nem ninguém lhe perguntou nada. Embora, claro está, nesse tipo de negócios não se costuma fazer-se perguntas. Mas há uma coisa, senhora, e é que seu marido parece estar muito seguro de que essa mulher era uma... ele a chamou "cortesã", uma mulher muito cara que escolhia seus próprios clientes. Eu vi em troca o corpo da vítima, e perdoe que lhe fale disso, senhora, e o corpo que vi no Seven Dials tinha calos nas mãos e nos joelhos. Não exagerados, é verdade, mas vi os suficientes para reconhecer do que são e saber que não vivia como uma mantida. Acredito que seu marido deve estar em um engano.
—Não é possível! -Estava atônita. Era a última coisa que esperava!-. Era uma beleza! Oh, não uma beleza tradicional, certamente, isso já sabíamos. Mas era uma mulher extraordinária, as pessoas se fixavam nela. Possuía um grande encanto, estilo, talento. Não podia dedicar-se a esfregar chãos!
Ele se manteve firme.
—Equivoca-se, senhora. Pode ser que tivesse personalidade, como não a conheci em vida não o posso dizer, mas seu aspecto era dos mais comuns. A pele não tinha nada de particular, um pouco amarelada. O cabelo bonito, se gostar das morenas, e era muito magra. Fraca, de fato. Não, senhora, e lhe peço outra vez perdão, mas eu a vi e era uma de tantas.
Charlotte ficou em silêncio. Passou uma carruagem a passo veloz e o ar lhe fez inclinar o chapéu. Então essa mulher não era Cereja... tinha que ser outra. Tinham matado a uma mulher qualquer para despistar Pitt, e a todos eles. Talvez não tivesse sido mais que um acidente desafortunado que Pitt a encontrasse naquele preciso momento e lhe tivessem detido pelo assassinato... Ou também isso fazia parte do plano? A verdadeira Cereja devia ser mais importante ainda do que tinham suposto.
Então foi a sua mente uma ideia estremecedora. Era uma loucura, possivelmente, algo que podia considerar-se espantoso e certamente perigoso... mas não divisava outra saída.
—Obrigado, agente Maybery -disse-. Obrigado de verdade. Por favor, diga ao Thomas que o quero, se é que... se é que lhe permitem vê-lo de novo. E o rogo, não lhe fale desta conversa. Só serviria para preocupá-lo.
—Está bem, senhora, fique tranquila.
—Por favor. Obrigado.
Deu meia volta e se apressou até a parada de ônibus mais próxima. A nova idéia era um autêntico torvelinho em sua cabeça. Tinha que haver outra coisa melhor, mais sensata e mais inteligente, mas o que? Não havia tempo a perder. Não ficava ninguém por interrogar, nem cabia esperar que surgisse uma prova física como quem saca um coelho de uma cartola e que obrigasse alguém a confessar o crime. A única possibilidade era assustar alguém com tal violência que o levasse a delatar- se... E para isso não lhe ocorria outro modo de consegui-lo mais que a selvagem ideia que acabava de formar-se na mente.
Não foi para casa, mas ao domicílio de Jack Radley no St. James. Não tinhaestado ali, mas conhecia o endereço por lhe ter escrito. Em regra geral ele passava ali o menor tempo possível, pois preferia atuar como convidado em alguma das elegantes casas da cidade. além de ser mais agradável, era também mais benéfico para suas frugais finanças. Mas tinha prometido estar disponível todo o tempo que durasse aquela crise, e Charlotte não hesitou em ir vê-lo.
A propriedade estava em bom estado e não era um endereço pelo qual alguém tivesse que envergonhar-se. Perguntou ao porteiro no vestíbulo e este lhe disse com amabilidade que os aposentos do senhor Radley estavam no terceiro piso e que acharia as escadas à esquerda.
Ao chegar acima notou cansaço nas pernas e não obteve uma bonita vista que recompensasse o esforço, já que as habitações se achavam na parte de trás. Bateu na porta. Se não estava teria que lhe deixar uma nota. Trocou impaciente o pé de apoio várias vezes nos segundos breves que demorou a porta em abrir-se... a verdade é que tinha estado a ponto de virar a maçaneta.
—Mas se é Charlotte! -Jack não esperava a visita, mas em seguida se dissiparam seus pensamentos de solitário e a convidou a entrar. - Do que se trata? -Aconteceu algo?
Ela não perdeu tempo em dar uma olhada ao redor. Apenas umas semanas atrás a teria comido a curiosidade, o lar diz muito da pessoa que o habita, mas agora não tinha tempo nem vontade. As dúvidas com respeito a Jack se extinguiram sem que ela mesma se desse conta, limitou-se a constatar que os aposentos estavam mobiliados com bom gosto, embora fossem pequenos. Ela estava acostumada a economizar, assim não lhe custava apreciar esse fato em outros.
—E então? -perguntou ele.
—Acabo de me encontrar com o agente que se encarrega da investigação da morte de Cereja. Seu rosto se escureceu. -O que quer dizer?
—Na rua. -Decidiu deixar a um lado os meios e as circunstâncias-. À saída do Half Moon Street. Mas o importante é sua descrição do cadáver. Jack, estou certa de que não é ela. Prepararam tudo para que parecesse ela, mas essa mulher não era mais que uma pobre infeliz com um vestido rosa que...
—Espera um momento! Como sabe?
—Pelas mãos e os joelhos.
Ele a olhava com incredulidade. Parecia a ponto de pôr-se a rir.
—Calos! -exclamou ela-. De esfregar chão. Jack, isso significa que a verdadeira Cereja ainda está viva! E me ocorreu uma ideia. Sei que é arriscada, pode ser que até tola... mas espremi o cérebro e não posso pensar em outra coisa. Necessito de sua ajuda. Temos que voltar para casa dos York, e os Danver têm que estar pressentes também, e quanto antes. O tempo urge. Qualquer vestígio de humor tinha abandonado o rosto de Jack. Ainda não se fixou data para o julgamento,mas não demorariam para fazê-lo e ele nunca tinha querido que se chegasse a isso.
Agora escutava com seriedade.
—Continua -pediu.
—Tenho que saber com dois dias de adiantamento, para poder fazer alguns preparativos.
—Que preparativos?
Ela titubeou, sem saber o que lhe dizer. Era provável que o desaprovasse.
—Não seja tola! -disse ele-. Como quer que a ajude se não souber o que está fazendo? Não é a única que pensa, nem a única que está preocupada.
Por um instante ela se sentiu como se a tivesse esbofeteado. Estava a ponto de lhe replicar, quando a realidade se impôs. De fato, não se sentia aflita, o que não deixava de surpreendê-la, de repente se sentia menos só que nunca desde a detenção do Pitt.
—Os Danver vão com regularidade para jantar na casa dos York... A próxima vez me disfarçarei de Cereja e acordarei uma entrevista com cada um dos homens com quem pôde ter estado -disse abertamente-. Só Piers York, os Danver e Felix Asherson estiveram ali à noite que Dulcie foi assassinada. Começarei pelos Danver, já que tia Adeline viu Cereja em sua casa.
Jack estava atônito. Vacilou durante um longo momento, enquanto tratava de pensar em uma ideia por sua vez. Como não lhe ocorria nada, admitiu sem convencimento:
—Não se parece muito com ela... quer dizer, à descrição dela.
—Reunirei-me com eles na estufa, onde a luz é muito débil, e levarei um vestido da cor apropriada e uma peruca negra. Se posso simular o suficiente para ver neles algum tipo de reação, servirá. -O plano soava desesperado em seus lábios, apenas uma pequena possibilidade, e sentia que suas esperanças, tênues como fantasmas, lhe escorriam entre os dedos-. Se demonstram me conhecer, isso já será uma prova!
Ele percebeu o pânico de sua amiga e a pegou pelo braço com delicadeza.
—Pode ser perigoso -a acautelou.
O perigo podia ser algo maravilhoso, tinha a força e o ardor do vinho e soava quase como a vitória final. Ninguém reagirá a menos que conheça Cereja, e se alguém a ameaçar com a violência, isso só significará que está muito perto da verdade.
—Sei -disse ela com efusiva emoção-. Mas você estará ali, e também Emily. Necessito a colaboração dela. Tenho tudo previsto, colocarei o vestido e a peruca em uma bolsa que darei a Emily de antemão, então, quando estivermos todos ali depois do jantar, simularei que estou indisposta e me desculparei para deixar a sala. Emily me "atenderá", de modo que poderá me introduzir em seu quarto e me trocarei. Logo ela vigiará e me dirá quando posso descer à estufa, diz que os York têm uma muito grande, e ali levarei a cabo minhas entrevistas.
—Deixa grande parte do êxito em mãos do acaso - disse ele com ansiedade.
—Ocorre-lhe algo melhor?
Hesitou uns segundos.
—Não -admitiu-. Farei tudo o que possa para manter a todos ocupados na sala de estar. Proporei um tema de conversa interessante. -Sorriu a desinteressada-. Santo céu, me prometa que gritará ao menor perigo. Suplico-lhe isso, Charlotte.
—Prometo-o. -Soltou um risinho-. Embora será um pouco difícil dar uma explicação, não? O que vou dizer que estava fazendo em sua estufa, com um vestidoinfame e uma peruca negra e dando gritos, quando se suporia que estaria no piso de cima me repondo de um enjoo?
—Terei que dizer que perdeu a cabeça -reconheceu com um sorriso forçado.
—Mas melhor isso que morta... porque seja quem for, matou já três vezes. Ela deixou de rir em seco e sentiu como lhe encolhia a garganta. Seus olhos se encheram de lágrimas.
—Serão quatro, com o Thomas -disse.
Propôs as entrevistas por carta, o mais direto possível e deixando a missiva sem assinar. Ignorava que tipo de letra tinha Cereja, e qual era seu verdadeiro nome. Utilizou um papel caro, escreveu só a hora e o lugar e em lugar de colocar e selar as cartas em um envelope, atou cada uma com uma longa fita de vivo magenta. Tinha-o feito o melhor que podia fazer-se.
Emily escreveu a seu banqueiro para proporcionar dinheiro a Charlotte e que esta pudesse conseguir o vestido e a peruca, que Jack lhe levou a Hanover Close. Desta vez se fez passar por carvoeiro e entrou na cozinha com seu saco de carvão. Charlotte não chegou a saber como tinha conseguido, e estava muito preocupada com seus próprios preparativos para perguntar-lhe.
Naquela noite pôs um simples vestido branco e cinza fumaça de Emily, que a criada desta tinha escolhido com acerto. Não era o que mais favorecia sua tez escura e seu cabelo mogno, a diferença da delicada pele flor de macieira de Emily, mas tinha a virtude que procurava Charlotte naquelas circunstâncias: era muito fácil de tirar e pôr. Penteou-se com o mínimo de complicações para poder usar sob uma peruca sem ter que tirar primeiro um cento de grampos. O resultado não ressaltava precisamente seu atrativo, mas não havia mais remédio. Jack teve o suficiente tato para economizar comentários, embora não pôde evitar que seu rosto expressasse uma leve surpresa, transformada em seguida em um sorriso e uma piscada.
Chegaram a Hanover Close com uns minutos de atraso, tal como era presumível, e lhes ajudaram a descer da carruagem ao frio pavimento. Charlotte subiu os degraus agarrada ao braço de Jack e entrou no iluminado vestíbulo. Quando a porta se fechou atrás deles sentiu um momento de pânico, mas se obrigou a pensar em Pitt e disse de forma convincentemente efusiva:
—Boa noite, senhora York, foi muito amável ao nos convidar.
—Boa noite, senhorita Barnaby -respondeu Loretta com menos entusiasmo-.
Espero que se encontre bem e não lhe esteja afetando o inverno de nossa cidade. Charlotte recordou a tempo que tinha que sentir-se indisposta depois do jantar. Escolheu as palavras.
—A verdade é que é... um pouco diferente. É um prazer caminhar pelas ruas, e a neve se suja tão depressa...
As sobrancelhas de Loretta se arquearam com medida surpresa.
—Seriamente? Não me teria ocorrido sair a caminhar com este tempo.
—É muito saudável. -Charlotte conseguia ser agradável sem chegar a sorrir.
Veronica esperava junto ao fogo da sala de estar, com um vestido branco e negro muito elegante e com aspecto bastante mais sereno do que na última vez que se viram. Deu as boas-vindas a Charlotte com o que lhe pareceu sincera satisfação, especialmente quando viu seu vestido cinza tão pouco diferente de que levava ela.
Passaram-se a seguir as saudações habituais e Charlotte se sentiu aliviada ao comprovar que estavam presentes todas as pessoas que requeria para levar a cabo seu plano; Harriet com seu pálido semblante; tia Adeline com um desafortunado vestido marrom brilhante; Loretta de rosa salmão, com o corpo salpicado de pérolas, um vestido ao mesmo tempo pessoal e muito feminino.
E ainda mais importante, os homens estavam ali; Julian Danver, sorridente com sua franqueza cândida; Garrard Danver, elegante, mais esquivo que seu filho, rápido de reflexos e, pensou ela, talvez mais original. Tampouco faltava Piers York, quem a tinha recebido com essa sinceridade que é uma mescla de uma longa prática e a consciência genuína do privilégio e suas responsabilidades. As boas maneiras eram nele algo tão inato como levantar-se cedo, ou acabar toda a comida do prato. Tinham-nos ensinado durante a infância.
Com a ajuda de Jack, Charlotte se entregou à acostumada conversa corriqueira que precedia ao jantar. Esta foi bastante comum e o bate-papo alternou temas insubstanciais. Era uma reunião desorganizada onde havia quatro mulheres não casadas por só três homens também solteiros, um dos quais era Garrard Danver, quem não podia ter interesses românticos em sua filha ou sua irmã, e presumivelmente tampouco na Veronica, que breve deveria converter-se em sua nora. Dado que era vinte e cinco anos mais velho que Charlotte, não parecia verossímil emparelhá-la a ela com ele, sempre no bem entendido de que o homem tivesse algum desejo de voltar a casar-se. E havia Jack, é claro, a quem se tinha por seu primo irmão, e portanto inconveniente.
Loretta era não obstante uma anfitriã experimentada. Aquela noite parecia estar fazendo demonstração de todo seu considerável encanto e aprumo para conseguir um perfeito equilíbrio entre não perder as rédeas da reunião e fazer que todos se sentissem à vontade. Se esforçava um pouco mais do habitual, ou se sua mão pegava o pé da taça de vinho de forma que os dedos ficassem momentaneamente sem sangue, talvez era porque sua nora lhe tinha dado motivos de nervosismo, coisa que não podia mostrar no rosto se é que, a estas alturas, Veronica tinha seguido dando demonstração de histeria, teimosia ou ciúmes ocultos que tão desagradáveis tom para qualquer homem, e se tudo isso tinha aflorado a seu frágil exterior a última hora na suposta privacidade de seu quarto.
Como o grupo era pequeno e se fizera mais tarde que a hora habitual para o final do jantar, Jack sugeriu com certa audácia não separar-se, a não ser retirar-se juntos à sala de estar. Nem sequer olhou a Charlotte; estava representando seu papel à perfeição.
Tinha chegado o momento de que Charlotte tomasse a substituição. Todos se levantaram para sair da sala de jantar, sobre a mesa ficavam em desordem os pratos meio vazios e os guardanapos amassados. O gás dos lustres produzia um suave assobio ao alimentar as luzes e as flores tomavam debaixo daqueles grandes abajures um tom branco cerúleo, artificial; deviam ser da estufa.
Charlotte teve de repente consciência do ridículo agora que tinha chegado omomento. Tinha que haver outra maneira de fazer as coisas. Aquilo não podia sair bem... Descobririam-na no ato e Jack não teria mais remédio em dizer que estava louca. Cuidar de sua tia doente a tinha transtornado!
—Senhorita Barnaby, encontra-se bem? -Era a voz de Julian Danver que lhe chegava como saída de uma espessa bruma.
—Eu... terão que... me desculpar... -balbuciou.
—Elisabeth, passa-lhe algo? -Veronica voltou para atendê-la, com o rosto cheio de preocupação.
Charlotte teve vontade de rir, tinha criado o efeito desejado quase sem querer. Ouviu como sua própria voz respondia de forma automática:
—Estou um pouco enjoada. Se pudesse subir a um quarto durante uma meia hora, tenho certeza de que passará. Só preciso descansar um pouco. De verdade, não é nada.
—Tem certeza? Quer que a acompanhe? -ofereceu-se Veronica.
—Não, por favor... Sentiria-me culpada se a separasse de seus convidados. Mas talvez sua criada... -Estava sendo muito explícita? Todos a olhavam... sentia como se toda aquela farsa fosse transparente. Era normal de verdade que alguém se comportasse daquele modo?
—Claro que sim -concordou Veronica, cujas palavras supuseram um alívio tão grande que Charlotte sentiu o sangue no rosto e uma sensação de hilaridade quase irreprimível. Já podiam tomá-la todos por uma histérica! Pelo amor do céu, tinha que sair dali e subir ao piso de cima como fosse.
—Chamarei a Amelia -disse Veronica dirigindo-se à campainha-. Tem certeza?
—Oh, sim! -exclamou Charlotte com muita ênfase-. Claro que tenho certeza!
Ao cabo de cinco minutos estava no pequeno e frio quarto de apartamento de cobertura de Emily. Olhou a esta e com uma careta de cumplicidade tirou o vestido branco e cinza. Emily a obsequiou com o chamativo vestido de um tom cereja quase gritante.
—Oh, santo céu! -Charlotte fechou os olhos.
—Vamos -apressou sua irmã- Ponha isso e conseguiu quase acreditar nisso você mesma, não hesite agora.
Charlotte passou os pés dentro do vestido e puxou-o para cima.
—Cereja deve ser uma mulher muito especial para poder usar isto! Abotoe isso - Vamos, antes de dez minutos tenho que estar na estufa. Onde está a peruca?
Emily terminou de lhe abotoar o vestido e lhe estendeu a peruca negra. Demoraram vários minutos em colocá-la devidamente e em ficar carmim. Emily retrocedeu uns passos e a observou com olho crítico.
—Sabe? Não está nada mal -disse com surpresa-. A verdade é que tem um aspecto elegante, se não formos muito exigentes em questões de bom gosto.
—Obrigado -disse Charlotte com ironia, embora não pudesse evitar que lhe tremessem as mãos e a voz.
Emily a estudava com atenção. Não lhe perguntou se ainda queria seguir adiante com aquilo.
—Muito bem -disse Charlotte, um pouco mais segura-. Olhe para ver se o campo está livre. Eu não gostaria de encontrar à criada nas escadas.
Emily abriu a porta e olhou fora, avançou uns passos e retornou.
—Adiante! Depressa. Pode descer por estas escadas, e se ouvirmos que alguém vem nos metemos no quarto de Veronica.
Percorreram o corredor a toda pressa, desceram as escadas e chegaram ao patamar principal, onde Emily se deteve em seco e levantou o dedo em sinal de advertência. Charlotte ficou imóvel.
—Amelia? -Era uma voz de homem-. Amelia? Achava que estava atendendo à senhorita Barnaby.
Emily começou a descer o último lance.
—Sim, faço isso. Desci para lhe buscar uma infusão.
—Não tem ervas acima?
—Falta-me hortelã. por que não vai me buscar um pouco? Eu fico aqui se por acaso me chama... Parece-me que não se encontra bem. Por favor, Albert. Enquanto esperava, no alto do lance de escadas, Charlotte ouviu a risonha voz de sua irmã e fez uma composição da doçura que comunicava a seu rosto. Não lhe surpreendeu que Albert obedecesse sem pigarrear. Ao cabo de um segundo Emily estava outra vez com ela junto ao corrimão, lhe sussurrando que se apressasse.
Charlotte desceu tão depressa que quase cai ao tropeçar no último degrau. Equilibrou-se através do corredor livre e irrompeu pela porta da estufa, onde se achou com a bendita penumbra das dispersas luzes noturnas amarelas. O coração pulsava a um ritmo frenético e se sentia como se todo o corpo fosse a compasso e não houvesse esforço capaz de proporcionar o ar suficiente a seus pulmões.
Ficou sob a palmeira ornamental que havia ao final do caminho de terra, de onde podia ver a porta que dava ao vestíbulo. Se entrasse alguém daria um passo à frente para que a luz lhe desse nos ombros e saia, de modo que ressaltasse a cor do vestido; o rosto ficaria protegido pela sombra do ramo pendente. Mas acudiria alguém? Possivelmente Cereja não dava entrevistas por carta. Ou talvez sua letra ou as palavras que tinha utilizado eram por completo diferentes das dela e os destinatários tinham descoberta à fraude imediatamente. Tinha chamado Julian Danver primeiro. Se é que viria, entraria de um momento a outro. Em realidade se atrasava. Quanto tempo levava já ali?
Ouviu um ligeiro ruído de passos em algum lugar da casa... provavelmente eram de Albert, no vestíbulo. Não se dirigiam para ali. Muito perto dela se ouvia uma regular destilação que caía de uma folha a outra até chegar até a terra úmida que pisava. O aroma de vegetação era embriagador. Tratou de ter a mente ocupada, sem êxito. Todo início de pensamento se dispersava no caos, miserável pela tensão que crescia como se alguém girasse lentamente um torniquete. Tinha as mãos suarentas e notava espetadas como de agulhas. Iria passar ali de pé, debaixo de uma palmeira, o resto da noite? O sussurro a sobressaltou com tanta violência como um grito, embora nem sequer podia precisar de onde tinham vindo àquelas palavras.
Ele estava junto à porta, no interior da estufa, com os olhos totalmente abertos. As luzes amarelas projetavam sombras nas faces que lhe davam um antinatural aspecto com olheiras e cinzelavam seu nariz com maior finura. Charlotte avançou um passo, o suficiente para mostrar sua clara silhueta sobre o fundo verde e para que a luz captasse o chamativo vestido rosa.
Ele se surpreendeu ao ver à cor, a suavidade de seus ombros nus, a esbelta curva de seu pescoço, a peruca negra. Por um instante ficou de manifesto sua dor. Era muito tarde para voltar atrás... Garrard Danver tinha amado a Cereja. E aquele amor tormentoso tinha deixado racho em seu rosto. A seu pesar, avançou para ela.
Charlotte não tinha a menor ideia do que convinha fazer, preparou-se para desmascarar uma conspiração, ou para descobrir um capricho passageiro, mas não uma aflição como aquela. Retrocedeu para a palmeira e a luz se deslocou até seubusto.
Garrard se deteve. Seus olhos eram duas conchas vazias, era como uma caricatura de si mesmo, inquietante e formosa; até em seu desespero havia auto consciência, um brilho de ironia. Então ela compreendeu o que acontecia. Claro! Todos os testemunhos diziam que Cereja era muito magra e que quase não tinha busto, e Charlotte em troca estava bastante bem dotada. Nem sequer com um vestido reto e uma regata pouco
favorecedora podia ela simular a elegante magreza que todos atribuíam a Cereja.
—Quem é você? -disse ele.
—A quem esperava encontrar ao vir? -Tinha esta pergunta preparada desde muito antes.
Esboçou um horrível sorriso:
—Não tinha a menor ideia. Nem por um momento imaginei que fosse você quem pretende ser.
—Então por que veio? -Essa era a provocação.
—Para saber o que quer de mim, é claro! Se tiver pensado na chantagem está louca! Arriscaria sua vida em troca de umas libras.
—Não quero dinheiro! -replicou ela-. Quero... -Tinha-lhe muito perto, tanto que se levantasse a mão podia tocar sua face. Mas ela permanecia tão imóvel nas sombras que não a reconheceu. Havia outra pessoa junto à porta da estufa, uma pessoa imobilizada pelo horror, mas com tal paixão de ciúmes no rosto que parecia estar vendo o inferno na quietude das folhas gotejantes e nas duas figuras que quase se tocavam, e naquele vestido gritante, incandescente, escandaloso.
Loretta York, Garrard se voltou lentamente e a viu. Não pareceu sobressaltado, como Charlotte tinha esperado, nem envergonhado. A crispação de seu rosto era de medo... ou pior que isso, uma espécie de repugnância.
A água escorria pelas folhas e se estrelava contra as pétalas dos lírios com um débil chop. Os três permaneciam imóveis. Por fim, Loretta deu levemente de ombros e saiu da estufa.
Garrard olhou a Charlotte, ou melhor dizendo à penumbra em que se achava ela. Sua voz soou rouca, teve que fazer dois esforços antes de conseguir falar.
—O que... o que quer?
—Nada. Vá-se. Volte para a reunião -sussurrou.
Ele não deixava de olhá-la com olhos semi cerrados, sem saber se acreditava nela ou não, enquanto ela retrocedia até quase tocar a palmeira com as costas.
—Volte para a reunião! -sussurrou furiosa-. Vá-se!
Sua tranquilidade não era completa, mas não esperou mais tempo. A única coisa que queria era escapar. Ao cabo de um momento Charlotte se achou sozinha de novona estufa. Foi nas pontas dos pés até a porta e entrou. Não havia ninguém no vestíbulo, nem sequer Emily. Podia arriscar-se a sair correndo escada acima, ou era melhor esperar o sinal de Emily? Não era suficiente sinal que tudo estivesse deserto? Se esperava que voltasse Albert, podia ser muito tarde.
Estava já ao pé das escadas sem ter tomado uma decisão consciente. Mas era muito tarde para voltar atrás, levantou o tafetá magenta da saia e subiu tão quão depressa quanto pôde. Graças a Deus não havia ninguém no patamar, nem tampouco nas escadas que levavam às dependências da criadagem.
Chegou acima sem fôlego e com o coração palpitante. O estreito corredor estava deserto e vazio, sem nada mais que leva a ambos os lados. Qual era o de Emily? Por todos os diabos! Tinha esquecido! O pânico a invadiu. Se viesse alguém não teria mais remédio que meter-se no quarto mais próximo e rogar que estivesse vazia. Ouviu passos na escada! precipitou-se para a primeira porta e, mal tinha entrado, os passos chegaram ao alto das escadas. Esperou. Se vinham para onde ela estava, estaria perdida. Procurou frenética ao redor algo com que defender- se. Não ia se deixar arrastar escada abaixo como um vulgar ladrão!
—Charlotte! Charlotte, onde está?
O alívio foi tão grande que quase perdeu os sentidos. Sentiu um formigamento e uma sensação de calor e frio ao mesmo tempo. Abriu a porta com mãos trêmulas.
—Estou aqui!
Ao cabo de dez minutos estava de novo abaixo, na sala de estar, com o cabelo um pouco despenteado; não foi difícil explicar que se devia a ter se deitado um momento, e sim, obrigado, achava-se totalmente recuperada. Guardou um silêncio cortês, pois não queria arriscar-se a levar mais longe a assombrosa sorte que tinha tido até esse momento. Ainda lhe tremiam um pouco as mãos e não deixou que sua mente se ocupasse de outra coisa que não fosse a insossa conversa.
A reunião acabou cedo, como por mútuo acordo. Por volta das onze e meia Charlotte estava sentada junto a Jack na carruagem, lhe explicando o encontro com Garrard e Loretta na estufa e as expressões que tinha visto em seus rostos. Depois lhe contou o que se propunha fazer a seguir.
Ballarat aceitou a vê-la com certo reparo.
—Minha querida senhora Pitt, acredite me que sinto que esteja sofrendo todos estes transtornos -se lamentou- Mas não há nada que eu possa fazer por você.
—Balançava-se sobre as plantas dos pés, uma vez mais justo diante do fogo da lareira-. Quisera que não se atormentasse desse modo! Por que não fica com sua família até que... até que... -Guardou silêncio ao dar-se conta que se colocara em um beco sem saída.
—... até que pendurem a meu marido? -concluiu ela sem rodeios.
Ballarat se sentiu terrivelmente incômodo.
—Minha querida senhora, isso é absolutamente...
Cravou-lhe os olhos e ele teve a delicadeza de ruborizar-se. Mas não tinha ido ali para brigar, pois dar rédea solta a seus sentimentos era o mais fácil e estúpido.
—Sinto muito - se desculpou, tragando o ódio que sentia ao comprovar que o medo daquele homem era muito maior que sua lealdade- vim lhe dizer que descobri algo que você deve saber. -Ignorou sua expressão exasperada e continuou- A mulher de rosa que foi assassinada no Seven Dials não era a mesma mulher do vestido cor cereja a quem Dulcie viu na casa dos York e a senhorita Adeline Danver viu na casa dos Danver. Essa mulher continua viva e é a testemunha cuja pista perseguia Thomas.
Por seu rosto cruzou uma rajada de compaixão que se desvaneceu no ato:
—Testemunha do que, senhora Pitt? -perguntou com um esforço de paciência.
—Mesmo se encontrássemos a essa misteriosa mulher, se é que existe, dificilmente poderia ajudar Pitt. As provas que o apontam como autor do assassinato da mulher do Seven Dials, fosse quem fosse esta, continuam sendo as mesmas. -Falava de forma racional, seguro de sua argumentação.
—Já sei! -Charlotte estava levantando a voz, em que se apreciava, contra seu desejo, um agudo matiz de pânico-. Alguém fez que essa mulher usasse um vestido rosa e a matou para proteger à autêntica Cereja e para livrar-se de Thomas ao mesmo tempo. Não o vê? -perguntou com ironia mordaz-. Ou também pensa que foi Thomas quem empurrou à criada pela janela? E quem presumivelmente matou a Robert York... sabe Deus por quê.
Ballarat levantou as mãos como se dispusesse a lhe dar umas palmadas de consolo, mas viu a paixão que avivavam os olhos de Charlotte e retrocedeu.
—Minha querida senhora, está você super excitada. É muito compreensível, em suas circunstâncias, e creio que o sinto no mais fundo. -Tomou ar e se sentiu mais seguro. A razão tinha que impor-se-. Ao Robert York o assassinou um ladrão e a morte da criada foi acidental. -Assentiu com a cabeça- São coisas que por desgraça acontecem às vezes. É muito triste, mas de modo algum há nisso rastro de crime. E de verdade, querida senhora, a senhorita Adeline Danver é uma dama venerável mas muito velha, e não a pode considerar a mais fidedigna testemunha.
Charlotte lhe olhava com uma incredulidade inicial que deu passo a uma compreensão cheia de repugnância. Aquele homem ou estava assustado pelo desgosto, a ira e a culpa de que tudo aquilo pudesse ser certo e houvesse alta traição no Foreign Office, ou ele estava envolvido! Olhava sua carnuda mandíbula, sua tez corada, seus olhos sem pálpebras, redondos como botões. Não podia acreditar que fosse um ator tão brilhante para interpretar tão bem o papel de homem ambicioso enganado que se encontra de repente em águas onde não havia pé. Por um instante, o tempo que demora para passar uma rajada de vento sobre a superfície de um lago, ela teve piedade dele, mas em seguida se lembrou do machucado rosto de Pitt e do medo que tinha visto em seus olhos.
—Advirto-lhe que se sentirá como um completo imbecil quando tudo isto acabar - lhe disse com frieza- Pensei que sentiria suficiente amor por seu país para não permitir a alta traição pelo mero fato de que desmascará-la pode ser desagradável e comprometer a certas pessoas cujo favor deseja conservar.
O rosto de Ballarat corou.
—Está me insultando, senhora! -disse.
—Me alegro! -Olhou-o com um desprezo exacerbado que cortou suas palavras-. Receio que só disse a verdade, prove que me equivoco e ninguém será mais feliz que eu. Enquanto isso não acontece, acredito no que vejo:
—Bom dia, senhor Ballarat. -foi do escritório sem olhar atrás e deixou a porta aberta ao sair.
Ele avançou atrás de seus passos e a fechou.
Já sabia o que tinha que fazer. Ballarat não lhe tinha deixado mais opção. Se lhe tivesse prometido uma investigação, teria deixado em suas mãos, mas agora não restava alternativa. Havia uma crueldade nisso da qual não se acreditou capaz, mas não lhe surpreendeu a facilidade com que se entregou, pois estava lutando para proteger aqueles que amava mais que a ela mesma, por quem sentia uma pena inexprimível. Sua resposta foi visceral e não teve nada que ver com a mente.
Charlotte tinha compreendido o olhar de Loretta, junto à porta da estufa. Estava apaixonada pelo Garrard Danver, total e obsessivamente apaixonada, o que não era difícil de acreditar. Era um homem com um encanto e uma personalidade incomuns. E devia constituir um desafio para a maioria das mulheres, havia nele algo fugidio, a promessa de uma grande paixão sob sua frágil concha e seu humor protetor, só com o qual alguém pudesse achar o segredo de como chegar até a alma que havia dentro. Para a Loretta adorável, aborrecida pelo atento mas reprimido Piers, o vislumbre de algo muito mais visceral devia ser irresistível. E era evidente que Garrard só tinha amado a Cereja. Toda aquela ânsia e aquela corrente de emoções, tudo o que Loretta tinha sonhado despertar por si mesma, tinha visto isso com toda clareza em seu rosto quando por um momento a imagem de Charlotte desenhada a meia luz e o fulgor do vestido lhe tinham estimulado e atormentado a memória.
Tinha que mantê-los a todos juntos e pressionar até que alguém não resistisse. Garrard era o elo mais fraco. Tinha medo, isso também o tinha visto em seu rosto, e sentia rejeição pelo desejo que Loretta experimentava por ele. Charlotte recordava muito bem certa ocasião em que um homem havia sentido tal desejo por ela e Caroline o tinha considerado cegamente como um candidato adequado para marido. Charlotte se tinha posto quase histérica quando os deixaram brevemente a sós. Depois lhe tinha parecido ridículo; Caroline não o compreendeu e se zangou. Tinham passado anos após o episódio e se tinha apagado até que viu o rosto de Garrard à luz dos lampiões; então aquela peculiar mescla de horror, embaraço e repulsão voltou para ela com tal precisão que lhe pôs os cabelos em pé.
Garrard era a pessoa a que devia pressionar com todas suas forças. Mas ela não tinha poder algum para fazer que os York convidassem aos Danver, aos Asherson, a ela e a ninguém mais. Podia não acontecer nunca, e menos probabilidades tinha que acontecesse nos poucos dias que ficavam antes que Pitt fosse processado e levado ante o tribunal. Não havia forma de achar uma justificação para organizar uma reunião assim em casa de Emily, e Jack tampouco tinha meios de fazê-lo, a não ser que Emily quisesse financiar por iniciativa própria o evento. Não, a solução estava em tia Vespasia, com certeza ela estaria disposta.
Charlotte desembarcou do ônibus público e não hesitou em alugar uma carruagem até a casa de tia Vespasia. Depois de pagar ao cocheiro e despedi-lo, subiu a escadaria da porta principal e fez soar a campainha. Tinha estado ali muitas vezes e a criada não mostrou surpresa ao vê-la.
Vespasia a recebeu no toucador, espaçoso e bem iluminado, mobiliado com muitas cores creme e ouro com toques de verde escuro. Contra uma das paredes se erguia uma grande samambaia verde em uma jardineira. Só uma levantada pilha de lenha ardendo na lareira o liberava do frio.
Vespasia tinha um aspecto mais frágil, embora conservava as feições perfeitas que tinham feito dela uma beleza há quarenta e inclusive trinta anos. Tinha traços aquilinos, olhos de grandes pálpebras sob umas bem arqueadas sobrancelhas e o cabelo recolhido em um coque. Levava um vestido cor lavanda escuro com um elegante lenço de renda de Bruxelas no pescoço.
—Como se encontra? -perguntou Charlotte ao vê-la, com um tom que denotava que não era um mero cumprimento. Não havia ninguém fora de sua família, e muito poucos dentro, pelos quais se preocupasse tanto como por tia Vespasia.
A anciã sorriu.
—Bastante respondeu... e provavelmente muito melhor que você, querida. Está pálida e bastante cansada. Sente-se e me conte como vão as coisas. O que posso fazer para ajudá-la? - Afastou a vista de Charlotte em direção à criada, que tinha ficado na porta-. Chá, Jennet, por favor, e nos traga canapés de pepino e alguns docinhos... algo que leve nata batida e açúcar glacê, por favor.
—Sim, senhora. -E Jennet desapareceu depois de fechar a porta com cuidado.
—E então? -requereu Vespasia.
Quando Charlotte partiu, seus planos estavam traçados até o menor detalhe. Sentia-se melhor depois de ter comido e reparou em que não estava comendo como devia, já fosse por esquecimento ou por falta de ânimo. O caráter firme e resoluto de tia Vespasia tinha aliviado em grande medida o tenso desespero que a afogava. Tinha animado a Charlotte com delicadeza que se liberasse do auto controle que mantinha nela aquela rigidez e aqueles olhos secos desde há tantos dias. Charlotte chorou com vontade, com abandono. Exorcizou todos seus medos, em lugar de guardá-los em seu interior até que se convertiam em negros demônios, e com isso desapropriou-os de grande parte de seu horror. Uma vez expressos em voz alta e compartilhados com alguém, já não pareciam tão invencíveis.
Quando dois dias mais tarde recebeu uma carta manuscrita de tia Vespasia em que lhe dizia que o jantar estava arrumado e os convites aceitos, soube que havia chegado o momento de preparar Jack para a última e melhor jogada. Emily também teve a notícia cumprida, não além dos detalhes que Charlotte se atreveu a lhe contar através de uma carta em código levada por Gracie de ônibus.
Jack estava mais nervoso do que Charlotte esperava quando passou a recolhê-la às sete e meia da tarde do jantar. Mas assim que se acomodou na carruagem e teve ocasião de avaliar seus pensamentos, deu-se conta de que possivelmente tinha sido um pouco cega. O fato de que Jack fizesse todo o possível desde o princípio, sem questionar nunca a inocência de Pitt nem o incauto plano de Emily de ir viver na casa dos York não significava que ele não tivesse emoções sob seu aspecto bem despreocupado. No fim de contas, tinha nascido e se criado no seio de uma sociedade para a qual as boas maneiras eram tudo, qualquer um ficava em seguida fora da onda se provocava autêntico amor ou aversão, pois as emoções sinceras só serviam para provocar situações violentas ou embaraçosas , que eram pior que nada. Podiam turvar a paz mental, incomodar, privar de prazer, tudo isso indesculpável. Se Jack dava valor a algo, então era natural que estivesse nervoso. Provavelmente tinha um exército de mariposas revoando no estômago, assim como ela, e o coração lhe palpitava, e se notava as mãos úmidas embora acabasse de enxugá-las pela enésima vez.
Não falaram em todo o trajeto. Já tinham feito todos os planos, assim não era momento de trivialidades. Fazia um frio glacial, uma dessas noites de inverno em que o gelo range no meio-fio e nos bueiros congelados. O vento cortante do mar tinha dissipado a névoa e nem sequer sobre os telhados ficavam restos de fumaça que obscurecesse as estrelas, que pareciam pender quase ao alcance da mão, como se alguém tivesse feito explodir um lustre de luzes no céu.
Vespasia tinha escolhido o vestido de Charlotte para a noite, e o tinha adquirido para ela, sem fazer caso dos protestos desta. Era acetinado, de tom marfim escuro, com toques dourados e o corpo salteado de pérolas. Era a roupa mais favorecedora que jamais tinha levado, decotado e com bonitas anquinhas. Até o Jack, que tinha compartilhado salões e vinhos com as maiores belezas da época, estava surpreso e impressionado.
Foram conduzidos à sala de estar de Vespasia, a quem acharam sentada junto ao fogo em uma poltrona de espaldar alto, como se fosse uma rainha recebendo a sua corte. Levava um vestido cinza metálico com uma gargantilha de pérolas e diamantes, e o cabelo recolhido e cacheado como uma coroa de prata lavrada.
Jack se inclinou ante ela e Charlotte, de forma inconsciente, fez uma reverência. Tia Vespasia sorriu, em um gesto de conspiração. A situação era desesperada, mas nem por isso deixava de sentir a euforia de entrar em combate.
—Inglaterra espera de cada um de seus filhos que cumpram com seu dever - sussurrou a anciã-. Acredito que nossos convidados estão a ponto de chegar. Os primeiros em fazê-lo foram Felix e Sonia Asherson, com uma expressão de agradável surpresa ao ver-se ali. Vespasia Cumming-Gould era uma espécie de lenda viva, inclusive para sua geração, e não conheciam nenhuma razão pela qual se deviam contar entre os poucos convidados a sua casa. O que a Sonia tinha parecido um insuportável e plácido sentimento de vaidade, agora se mostrava simplesmente com a regular disposição de seus traços e uma expressão de boa educação.
Felix mostrava franco interesse. Podia ser extraordinariamente encantador quando queria, sabia como adular sem palavras e seu incomum sorriso era arrasador. Tia Vespasia tinha quase oitenta anos. De menina tinha presenciado as celebrações depois da vitória do Waterloo, recordava os Cem Dias e a queda de Napoleão. Tinha dançado com o duque do Wellington quando este fora primeiro ministro. Tinha conhecido os heróis, as vítimas e os loucos da Crimea, os ferreiros do Império, os estadistas, os enganadores, artistas e gênios do maior dos séculos da história da Inglaterra. Estava encantada de representar aquela comédia com o Felix Asherson e manteve o sorriso em seus lábios, por outro lado impecavelmente ilegíveis.
Os Danver foram introduzidos dez minutos mais tarde. Julian parecia mover-se com naturalidade; não se sentia intimidado nem se via forçado a intervir na conversa. Charlotte pensou que Veronica podia ser uma mulher afortunada. Garrard, pelo contrário, apressou-se a falar, com o rosto lento e movendo as mãos com nervosismo como se a quietude lhe supusesse um esforço insuportável. Charlotte observou a peça de forma instintiva e se sentiu detestável pelo fato de que não se alterasse o mínimo. Mas devia escolher entre Garrard Danver e Pitt, assim não havia escolha possível.
Harriet Danver estava também longe de sentir-se à vontade. Parecia mais frágil do que lhe tinha parecido em ocasiões anteriores, embora também era possível que isso se devesse a usar um vestido lavanda de um tom fumaça que ressaltava ainda mais as sombras de seu pálido rosto e fazia os olhos ainda maiores. Ou estava muito apaixonada e já não podia suportar quase a pena, ou havia outro pensamento ou temor que acossava sua mente.
Tia Adeline levava um vestido topázio e ouro, que lhe sentava muito bem. Aflorava-lhe um ligeiro rubor às faces que eliminava seu habitual tom cítrico. Passaram alguns minutos antes que Charlotte se desse conta de que Adeline se sentia muito honrada por ter sido convidada a casa de tia Vespasia e de que a ocasião a emocionava enormemente. Charlotte sentiu um cruel aguilhoado na consciência. Gostaria de abandonar aquilo, mas já não era possível.
Os últimos a chegar foram os York, Veronica etérea e magnífica de negro e prata, com a cabeça bem alta ao entrar e as faces acesas. Quase se detém em metade da soleira ao ver Charlotte de pé junto ao Julian Danver. A admiração deste por ela era manifesta aquela noite, como manifesto resultou por um instante que Veronica nunca tinha visto em Charlotte a rival potencial que esta podia ser. A pequena senhorita Barnaby vinda do campo também podia ser uma beleza considerável, se o propunha! A saudação de Veronica tinha perdido vários graus de seu calor quando se acharam no centro da sala.
Por uma vez até Loretta parecia menos segura de si mesma, sua firmeza era uma sombra de seu antigo aprumo, como sempre, ia meticulosamente arrumada, vestida de uma cor dourado pêssego de uma feminilidade deliciosa, mas tinha perdido fluidez, como se ainda durasse a ferida que Charlotte tinha visto na estufa. Nem sequer olhou a Garrard Danver. Piers York se mostrava grave, como consciente da tragédia, embora não soubesse a natureza ou a direção da mesma, ou talvez tivesse preferido ignorá-la. O rosto se iluminou ao ver Vespasia e Charlotte levou uma surpresa ao comprovar que se conheciam desde há anos.
Trocaram as saudações de rigor e todos os cumprimentos em uso, mas logo começaram a aflorar e desafinar algumas tensões ocultas. Durante meia hora se falou do tempo, do teatro, das figuras da moda e da política.
Todos pareciam passar bem à exceção de Garrard e Loretta. Se Piers sentia algum receio, era um cavalheiro muito experiente para deixá-lo aparecer. O foco de atenção de Charlotte estava errático. Seu momento ainda não tinha chegado, era melhor esperar até o jantar. Se começasse muito cedo correria o risco de dispersar a mesma tensão que pretendia criar. Primeiro tinham que sentar-se todos, olhar-se no rosto sem outra escapatória que cometer o violento ato de partir em presença da anfitriã. Só uma indisposição podia justificar tal coisa.
Os minutos passavam lentamente, a conversa fútil se debulhava palavra a palavra enquanto ela observava os rostos dos reunidos. Felix estava passando bem, inclusive com Harriet, quem gradualmente perdia sua exagerada palidez e se unia à conversa. Sonia conversava sem parar com Loretta. Veronica flertava Julian, olhando-o nos olhos e ignorando Charlotte. Vespasia sorria e se dirigia por turnos a todos eles, ao mesmo tempo em que expressava pequenos e reveladores comentários, de vez em quando cruzava um olhar com Charlotte acompanhada de um ligeiro assentimento da cabeça.
Por fim se anunciou o jantar e se dirigiram de dois em dois à sala de jantar , onde foram ocupando os lugares meticulosamente dispostos por Vespasia: Harriet junto ao Felix Asherson e em frente do Jack, de modo que este pudesse ver em todo momento a expressão de seus rostos; Julian ao lado de Charlotte; e, o mais importante, Loretta e Garrard juntos sob o lustre de luzes, de forma que Charlotte, sentada em frente, não perdesse o menor tremor de um músculo, nenhuma sombra nos olhos.
A sopa de lagosta foi servida e a conversa decaiu. A seguir veio o pescado picante e depois a entrada da carne, almôndegas de coelho. Quando tinham começado a porção de cordeiro, Vespasia olhou para Julian Danver com um agradável sorriso:
— Soube que é a nova estrela do Foreign Office, senhor Danver, -lhe disse-. Uma posição de uma grande responsabilidade, e não isenta de perigos.
Ele pareceu surpreso.
—Perigos, lady Cumming-Gould? Asseguro-lhe que poucas vezes saio das confortáveis e seguras dependências do Foreign Office. -Lançou um rápido sorriso a Veronica e se voltou de novo para Vespasia-. E embora me destinassem a uma embaixada estrangeira, insistiria em não sair da Europa.
—Seriamente? -Arqueou suas prateadas sobrancelhas-. Nos assuntos de que país está especializado?
—Nos da Alemanha e seus interesses na África.
—Na África? Acredito que o kaiser tem planos colonialistas nesse continente, que devem entrar em inevitável conflito com os nossos. Deve estar envolvido em negociações muito delicadas.
Ele continuava sorrindo. As demais conversas se interromperam e todos os rostos se voltaram para ele.
—Certamente -concordou.
Os lábios de Vespasia se curvaram para cima quase imperceptivelmente.
—E nunca teme cometer uma traição involuntária, ou incorrer em um pequeno engano que pudesse pôr em situação vantajosa a seus rivais, a suas ... nações rivais?
Abriu a boca para replicar e dissipar os temores da dama, mas de repente as palavras se extinguiram em sua garganta e uma sombra cruzou seu rosto. Mas em seguida se recuperou.
—Deve-se ter muito cuidado, naturalmente, mas não se costuma falar dos assuntos de Estado fora do próprio Foreign Office.
—E naturalmente você sabe muito bem em quem confiar. -Charlotte o disse mais como asseveração que como pergunta- Imagino que a traição começa pouco a pouco. Primeiro uma pequena confidência, obtida de alguém que esteja apaixonado, por exemplo. -Olhou Harriet e logo a Felix-. Às vezes as lealdades pessoais podem criar conflitos com a moral -disse com calma, consciente do que ela mesma estava fazendo naquele momento, consciente do sentido da amizade, das leis não escritas da hospitalidade, sobre tudo quando se trata de amor, que passa por cima de tudo. Não é que a pessoa acredite que é correto, ou que o amor o justifique, é simplesmente uma coisa elementar, é algo primário, como quando um animal protege aos seus.
Nas pálida face de Felix apareceram manchas de cor. Sonia tinha deixado de comer e pegava o garfo com tal força que os dedos ressaltavam em sua branca mão. Talvez não fosse tão auto-suficiente como parecia.
—Acredito que o que diz é muito... novelesco, senhorita Barnaby -disse Felix com certo embaraço.
Charlotte olhou-o com ar inocente.
—Não acredita que a força do amor pode nublar o julgamento, senhor Asherson, embora só seja de forma passageira?
—Eu... -sentia-se pilhado. Sorriu para dissimular seu mau transe-. Não queres que seja descortês, senhorita Barnaby. Permite-me lhe dizer que não conheço nenhuma mulher, por encantadora que seja, que esteja disposta a me perguntar coisas às quais não posso responder?
Por um momento Charlotte se sentiu derrotada. Mas não era questão de arredar, se agora, ninguém lhe havia dito que ia ser fácil, do contrário, não teria que chegar tão longe.
—É que não conhece a misteriosa mulher de vestido cereja? -As palavras saíram de sua boca antes de ter tempo de sopesá-las.
Jack arregalou os olhos e tia Vespasia deixou cair o garfo com um pequeno som metálico. Veronica aguentou a respiração, olhando para Charlotte como se esta se desprendesse de uma máscara e revelasse um rosto de réptil. O semblante de Garrard ficou sem uma gota de sangue, com a pele de um cinza amarelado.
Foi Loretta quem rompeu o silêncio, com uma voz que chiou em meio da
imobilidade.
—De verdade, senhorita Barnaby, tem você um gosto pelo melodramático bastante desafortunado. Acredito que deveria deixar-se aconselhar na hora de escolher suas leituras. -Havia uma ligeira hesitação em suas palavras, apenas um tremor. Naturalmente, não sabia que Charlotte tinha visto seu rosto na porta da estufa-. Não deveria ler essas novelas tão baratas - continuou-. Estragam o gosto.
—Acredito que se refere a algo que leu nos jornais -se apressou a dizer Jack.
—Certamente que não! -mentiu Charlotte com um tom de ironia-. O ouvi contar a um enganador profissional! Não pude evitá-lo, apregoava-o aos quatro ventos por toda a rua. Conforme parece, essa mulher, maravilhosamente bela, fez que um pobre diplomata lhe revelasse uns segredos e depois traiu-o. Era uma espiã.
—Tolices! -disse Felix. Olhava fixamente para Charlotte. Talvez tivesse vacilado, ao ter olhado para Garrard, pois o rosto deste estava tão lívido que parecia sofrer uma dor física-. Tolices! -repetiu-. Minha querida senhorita Barnaby, esses enganadores ganham à vida entretendo ao povo. Sabe?De tudo o que contam inventam a metade.
A tensão se suavizou por um momento. Charlotte sentiu que a presa lhe escapava. Não podia perdê-la agora, o assassino estava ali, naquela resplandecente mesa com sua prata e seu cristal e suas flores brancas.
—Mas não o tiram de um nada! -arguiu-. A pessoa perde a cabeça e se apaixona, isso acontece... apaixona-se tão perdidamente que jogam tudo a perder e traem os mais velhos compromissos de lealdade. -Olhou em redondo a todos os rostos como se estivesse interpelando-os.
Veronica estava como alienada, com seus escuros olhos muito abertos, absorta na contemplação de um pesadelo interior... Ou era simplesmente medo? Acaso era ela a verdadeira Cereja, e por isso Garrard tinha sabido na estufa que Charlotte era uma impostora, pois acabava de deixar Veronica na sala de estar? Naquele dia havia dito que tinha ido à entrevista só porque temia que se tratasse de uma chantagem. Mas se isso era assim, por que não se casava com ela, sem mais? Ou era ela quem se cansara dele e tinha escolhido a seu filho em seu lugar? Possivelmente Julian era seu engano, sua debilidade, tinha-o amado por despeito. Ou Julian não era mais que um degrau para subir a uma posição superior? Estava destinado a metas mais altas que seu pai, talvez inclusive a um posto no gabinete. Sabia Loretta, tinha-o adivinhado? Também estava pálida, mas era ao Garrard a quem olhava, não a Veronica. Piers estava desconcertado; não entendia o sentido do que se falara, mas reconhecia o medo e a paixão no ambiente. Parecia um soldado preparando-se para fazer frente ao fogo inimigo.
Harriet oferecia uma imagem lamentável, sobressaltada, e Sonia estava pálida e derrotada.
Tia Adeline falou.
—Senhorita Barnaby -disse com tranquilidade-, estou certa que essas coisas acontecem, de vez em quando. Se as pessoas forem capazes de grandes sentimentos, sejam quais forem, sempre existe a possibilidade de que nos levem a tragédia. Mas serve a um bom fim afundar-se neles? Temos direito de conhecer as penas de outros? Charlotte sentiu que o sangue aflorava às faces. Gostava de Adeline, e duvidava que aquela mulher pudesse chegar a esquecer aquele engano e aquela hipocrisia.
—Não se falarmos de uma tragédia pessoal -admitiu um pouco menos segura-. Não se concernir à outra pessoa. Mas a traição diz respeito a todos. É nosso país, nosso povo, que é traído.
Harriet levou as mãos a seu lívido rosto, horrorizada.
—Não, traição não, não houve traição! -gritou Felix-. Céu santo, qualquer homem pode cometer a imprudência de apaixonar-se!
Harriet afogou um grito que foi audível para todos. Felix se virou totalmente.
—Harriet! Não há nada mais! Juro-lhe isso, nunca cometi traição alguma! Garrard parecia aniquilado. Veronica olhava Felix com a boca aberta.
—Felix, você... e Cereja? -Loretta soltou um risinho, a princípio apenas um gorgolejo, que logo cresceu até converter-se em uma risada quase histérica-. Você... e Cereja! Ouve isso Garrard?- Ouviu isso?
Garrard ficou em pé de um salto, derramando água e vinho sobre a toalha.
—Não! -gritou com desespero-. Não é verdade! Por amor de Deus, basta.
Basta! Felix olhava-o horrorizado. -Sinto muito - murmurou, olhando por cima de sua mulher para Harriet-. Sinto muito, Harriet. Deus sabe que o tentei!
—O que? -perguntou Julian-. De que diabos estão falando todos? Felix! É que teve um romance com essa mulher... com essa Cereja?
Felix tratou de rir, mas a risada se extinguiu na garganta.
—Não! Não, eu não... claro que não. -Em sua voz havia um humor tão amargo que só podia estar dizendo a verdade-. Não. estive tratando de proteger ao Garrard, por Harriet. Não é bastante claro? Sonia... sinto muito.
Ninguém se atrevia a perguntar por quê. A resposta era bastante evidente no rosto de Harriet, e é claro no dele. Aquela tragédia doméstica estava nua ante todos, não ficava mistério a desvelar.
—Papai? -Julian se voltou para Garrard. Pouco a pouco lhe invadia uma certeza, junto com uma aguda dor- Se teve um romance com essa mulher, o que importa? A menos que... matasse-a.
—Não! -O grito saiu de Garrard como o alarido de um animal mortalmente ferido-. Eu amava -sua voz se apagou - a Cereja. -Olhou Loretta com uma aversão nua de toda ironia, com cansaço e desilusão-. Deus a amaldiçoe! –As palavras saíram abafadas. Não havia lágrimas em seu rosto, não era já capaz de chorar, mas a dor palpitava nas resplandecentes luzes e nos brilhantes reflexos.
Produziu-se um denso silêncio. Durante um longo e pesado momento ninguém pareceu compreender. Então Julian empunhou por fim o ferro candente.
—Traiu ao departamento -disse devagar-. Falou com Cereja sobre a partilha anglo-germânica da África. Por isso Felix o encobria! Por Harriet!
Garrard se sentou com lentidão, muito rígido.
—Não. -Sua voz tinha perdido o ardor do ódio, toda paixão tinha desaparecido dele-. Felix não sabia que tinha levado os documentos, só sabia que eu estava apaixonado por Cereja. Mas esses segredos não tinham nada que ver com Cereja.
—Olhou de novo Loretta e toda a paixão do ódio aflorou outra vez-. Roubei-os por sua culpa! -exclamou com voz trêmula- Ela me obrigou mediante chantagem!
—Isso é ridículo -disse Piers com calma-. Por todos os Santos, não o faça pior do que é. Para que ia querer Loretta roubar esse tipo de segredos? Além disso, pelo que sei as negociações vão muito bem, não é assim?
—Sim. -Julian franziu o cenho-. Sim, assim é. Ninguém utilizou essa maldita informação!
—Muito bem. -Piers se reclinou na cadeira, com uma faísca de tristeza nos olhos. Possivelmente seus sonhos com Loretta tinham morrido fazia muito tempo.
—Sua acusação não tem sentido.
Charlotte recordou a expressão de Loretta na porta da estufa e se deu conta de que aquele rosto encerrava a destruidora paixão do desejo e o ódio que dominavam aquela trágica e violenta história.
—Sim que tem -disse- A informação não foi roubada para utilizá-la nas negociações...
—Vá Por Deus! - exclamou Julian com tom de brincadeira. Tinha visto um
vislumbre de esperança e se pegava a ele.
—Mas para algo muito mais poderoso -continuou Charlotte sem lhe fazer caso- Se tiver sucumbido à chantagem uma vez, tem que continuar pagando sempre, está em poder do chantagista. E isso era o que ela queria, poder. Para exercê-lo sempre que necessitasse, para destruir a quem quisesse. Estou certa, senhora York? Ele amava a Cereja, não a você. Ele não a amava, não a desejava Você o repugnava... e isso nunca pôde perdoar-lhe. - Cruzou-se com o olhar de Loretta e soube que tinha trazido à luz a última dor, e que tinha provocado um ódio tão terrível que Loretta a teria matado se pudesse. Em um só instante, enquanto seus olhares se cruzavam, ambas souberam.
—Acreditou que essa desgraçada mulher do Seven Dials era Cereja? - prosseguiu Charlotte sem piedade-. Por isso lhe quebrou o pescoço? Fez o esforço em vão. Não era Cereja, não era mais que uma pobre criada caída em desgraça!
—Você a matou! -acusou Garrard a Loretta com voz alta e rouca-. Acreditou que era Cereja, por isso a assassinou!
—Cale-se! -Loretta estava encurralada, e sabia. Sua alma tinha ficado descoberta, nua diante de todas aquelas pessoas. O rechaço que inspirava tinha sido exposto ante todos. E tinha perdido a Garrard para sempre, nem sequer ficava o poder de feri-lo. Já não sabia como continuar a luta.
Garrard se tinha consumido sob a ameaça todos aqueles anos, tinha temido os encontros com ela, sempre com temor de que um dia Loretta pudesse delatar sua fraqueza , arruinar sua reputação e lhe despojar de sua posição e sua carreira. Agora tudo aquilo tinha acabado e se tomava sua vingança.
—Você a matou -repetiu com firmeza- Obrigou a essa pobre mulher que pusesse esse vestido para acusar a esse desventurado policial! Como a achou? Quem era? Uma criada a que tinha despedido e sabia onde ir procurar? Loretta a olhava em silêncio. Era a verdade, e a jogava no rosto com tanta clareza que não valia a pena negá-la.
—E Dulcie? -prosseguiu Garrard-. Você a empurrou pela janela, por quê? O que ela sabia... ou tinha visto?
—Não sabe? -pôs-se a rir presa de histeria-. Oh, querido, querido Garrard... não sabe? -As lágrimas lhe escorregavam pelas faces, enquanto sua voz se erguia aos poucos.
Jack ficou em pé e foi para ela.
—Asherson! -disse com tom premente.
Felix se levantou aturdido para ajudá-lo. Entre os dois a içaram da cadeira e a tiraram da estadia.
Vespasia se levantou também da mesa, rígida e com o semblante pálido.
—Vou chamar à polícia. Superintendente Ballarat, acredito que é. E ao Secretário de Interior. -Olhou aos presentes em torno da mesa- Peço desculpas por um jantar tão... desafortunado. Mas devem saber que Thomas Pitt é um amigo particular e que não podia ficar sentada a esperar que o pendurassem por um crime que não cometeu. Por favor, me desculpem. -Com a cabeça alta, rígida como um pau, saiu da sala com passo digno para exercer toda sua influência e apelar às velhas amizades para liberar Pitt naquela mesma noite.
No silêncio que deixou atrás dela ninguém se moveu. Mas ainda não tinha acabado tudo. Ficava a autêntica Cereja. E faltava saber quem tinha matado a Robert York, e por quê. Também tinha sido Loretta? Charlotte achava que não.
Com as pernas tremendo, levantou-se para tomar a palavra.
—Senhoras, acredito que deveríamos nos retirar. Não acredito que alguém continue tendo apetite. Eu certamente não.
Apartaram as cadeiras e pouco a pouco foram dirigindo-se ao salão. Adeline e Harriet foram juntas, ligeiramente apoiadas uma na outra, como se a proximidade física pudesse lhes dar forças. Sonia Asherson cruzava os braços com força, com os lábios apertados.
Fechavam à marcha Charlotte agarrada ao cotovelo de Veronica. Ao chegar ao corredor a levou à parte e entraram na biblioteca. Veronica olhou ao redor sobressaltada, como se as estantes de livros alinhados a pusessem nervosa.
Charlotte se apoiou contra a porta, obstruindo a saída.
—Ainda falta Cereja -disse- A verdadeira. A mulher que Garrard amava. É você, não é verdade?
—Eu? -disse Veronica abrindo os olhos-. Eu! Oh, Meu deus! Que enganada está! Mas por quê? Por que se importa tanto? Por que fez tudo isto? - Quem é?
—Charlotte Pitt.
—Charlotte... Pitt? Quer dizer... quer dizer que esse policial é seu...?
—Meu marido. E não vou deixar que o pendurem como autor do assassinato dessa mulher.
—Não o pendurarão -respondeu Veronica com aspereza-. O fez Loretta. Todos ouvimos como o confessava. Não tem que preocupar-se.
—Mas isto não acabou. -Charlotte fez virar a chave na fechadura-. Ainda fica achar à verdadeira Cereja, e à pessoa que matou seu marido. Não acredito que fosse Loretta. Acredito que foi você... e que Loretta sabia. Protegia-a porque ela fazia chantagem a Garrard, embora tivesse matado a seu próprio filho. Por isso se odiavam tanto, porque nenhuma das duas podia delatar à outra!
—Mas como... eu... -Veronica meneava a cabeça lentamente, desconfiada.
—Não tem sentido negá-lo. -Charlotte não podia permitir-se já sentir piedade.
Era Cereja, pode ser que não fosse uma espiã no fim de contas, mas era uma mulher cruel e de fortes paixões, uma assassina-. Fez isso para se casar com o Julian? Cansou-se de Robert e matou-o para se casar com o Julian?
—Não! -Veronica estava tão pálida que Charlotte temia que fosse desmaiar.
Mas continuava sendo Cereja... não tinha perdido seu dom, sua classe, sua coragem.
—Sinto muito, mas não posso acreditar em você.
—Eu não sou Cereja! -Veronica levou as mãos ao rosto e se derrubou no sofá com um soluço-. Oh, Deus! Suponho que será melhor que lhe diga a verdade. Não é absolutamente nada do que pensa!
Charlotte se sentou na beira de uma cadeira, na expectativa.
—Eu queria Robert. Não pode imaginar até que ponto. Quando nos casamos, pensei que tinha tudo que uma mulher pode desejar. Ele era... era tão bonito, tão atencioso e sensível. Parecia compreender tudo. Era um companheiro, mais que qualquer outro homem que tivesse conhecido. Eu... amava-o... -Fechou os olhos, mas as lágrimas afloraram e engoliu-as. Até a seu pesar, Charlotte sentia pena. Ela sabia muito bem o que era isso, amar tanto que todo seu mundo está repleto desse amor. Ela também tinha sofrido a solidão.
—Continue -disse com suavidade-. E Cereja? Veronica fez um esforço por dominar-se, o corpo tremia e a voz soava rouca, como se as palavras a machucassem.
—O carinho de Robert para mim se foi... esfriando. Eu... -Engoliu saliva uma vez mais e a voz se apagou até converter-se em um sussurro-. Tinha perdido interesse em... na cama. A princípio pensei que era por minha causa, que eu não gostava. Fiz tudo o que pude, mas nada... - fez uma pausa para dominar-se e depois fez um esforço por continuar-. Então comecei a pensar que havia outra. -deteve-se, a dor da lembrança era muito forte.
Charlotte esperou. O instinto lhe pedia rodeá-la com os braços e consolá-la, acolher a dor e aliviá-la, tocá-la para que sentisse que não estava sozinha. Mas sabia que não devia fazê-lo, não ainda. Veronica se dominou por fim.
—Pensei que havia outra mulher. Encontrei um lenço na biblioteca, de uma brilhante cor cereja, muito vivo, chamativo. Eu sabia que não era meu nem de Loretta. Depois, ao cabo de uma semana, encontrei uma fita, depois uma rosa de seda... tudo daquela mesma cor espantosa. Robert passava muito tempo fora de casa, eu achava que tinha que ver com sua carreira. Isso podia aceitar, todas temos que fazê-lo. Todas as mulheres, quero dizer.
—E chegou a vê-la? -disse Charlotte. Veronica aspirou profundamente e deixou escapar o ar com um suspiro entrecortado.
—Sim, a... vi-a muito brevemente... em minha própria casa. Tão somente lhe vi as costas quando saía pela porta principal. Era tão... desenvolta! Mais tarde a vi pela segunda vez, em um teatro no qual eu não deveria ter estado. Só pude vê-la a distância, do anfiteatro. Quando cheguei até onde ela estava, foi-se. –Guardou silêncio de novo.
Charlotte acreditava na história, contra si mesma. A ferida era muito real para ser fingida. A lembrança ainda doía em Veronica de forma crua e lacerante.
—Continua insistiu Charlotte com maior doçura- Encontrou-se alguma vez com ela?
—Uma vez encontrei uma meia dela. -A voz de Veronica parecia impostada pela tortura de reviver aquilo- No dormitório de Robert. Foi tão... Passei toda à noite chorando. Nunca me havia sentido tão mal em toda minha vida. -Emitiu um pequeno som abafado, metade risada metade soluço-. Isso foi o que pensei então! Até a noite em que soube que Cereja estava na casa. Algo despertou. Era mais de meia-noite e ouvi passos no patamar da escada. Levantei-me e a vi sair do dormitório de Robert e descer as escadas. Segui-a. Deve ter me ouvido e se meteu na biblioteca. Então eu... -Sua voz se afogou em lágrimas.
—Eu entrei também. Encarei a ela -conseguiu continuar depois de um momento-. Era... muito bonita. Juro que o era. -voltou-se e levantou os olhos para Charlotte, com o rosto apagado por um sentimento de desgraça e derrota-. Era tão... elegante. Acusei-a de ser a amante de Robert. Ela se pôs-se a rir, ficou ali, em meio da biblioteca, em plena noite, rindo em minha cara. Estava tão furiosa que agarrei o cavalo de bronze da escrivaninha e o lancei. Golpeou a um lado da cabeça e caiu ao chão. Fiquei imóvel por um momento e depois me aproximei dela, mas não se movia. Esperei uns segundos, mas continuava imóvel. Busquei-lhe o pulso, tentei escutar sua respiração... mas estava morta. Voltei a inspecioná-la com mais parada. –Veronica estava lívida. Charlotte nunca tinha visto ninguém com um aspecto tão exausto. Falava com um fio de voz-. A agarrei pelo cabelo... e este ficou na mão. Era uma peruca. Até então não me tinha dado conta de quem era. Era o próprio Robert... vestido de mulher! Robert era Cereja! -Fechou os olhos e os cobriu com as mãos-. Por isso Loretta chantageava a Garrard. Estava apaixonado pelo Robert, sabendo quem era. E por isso ela me protegia . Odiava-me por isso, mas não podia suportar a ideia de que todo mundo soubesse que seu amado filho era um travesti-. Ao me dar conta de que estava morto subi a meu quarto. Acredito que estava tão assustada que não podia nem chorar. As lágrimas vieram mais tarde. Fui procurar Loretta e contei, e ela me acompanhou abaixo de novo. Então nem sequer me ocorreu mentir. Permanecemos as duas no estúdio, ela e eu. Olhávamos Robert estendido no chão com aquele horrível vestido e a peruca junto a ele. Tinha carmim no rosto, e maquiagem. Estava bonito, isso era o mais obsceno! -O pranto se apoderou dela.
Desta vez Charlotte se ajoelhou a seu lado e rodeou com o braço seus finos e angustiados ombros.
—E você e Loretta lhe trocaram de roupa, puseram-lhe a camisola de dormir e o roupão e destruíram o vestido cereja e a peruca, e depois quebraram a janela da biblioteca? -concluiu Charlotte. Sabia que aquilo era o que devia ter ocorrido-. Onde estão os objetos supostamente roubados?
Veronica não podia dizer-lhe por causa do pranto. Tinham acabado por fim três anos de medo e dor, e precisava chorar até que lhe esgotassem as forças, e as emoções.
Charlotte a segurava e esperava. O que importava onde pudessem estar aqueles objetos. Provavelmente estivessem no desvão. Não tinham sido vendidos, disso se certificou Pitt.
O resto da casa devia estar ocupada com suas tragédias privadas, Piers com Loretta e a polícia, pobre homem, qualquer que fosse o alcance da desilusão sofrida nos anos transcorridos depois das primeiras vermelhidões do matrimônio, não havia solidão que tivesse como prepará-lo para aquilo, por muito que tivesse fechado as portas de seu coração. Felix devia estar doendo-se da ferida de seu amor por Harriet, novamente aberta. Não havia muitas esperanças; o divórcio não faria senão arruinar tudo o que pudesse haver entre eles, sem que pudessem achar a felicidade por essa via, e agora Sonia se vira obrigada a presenciá-lo, a compreende- lo e saber que outros também o tinham visto. Já não poderia seguir ocultando sua dor em uma pretendida cegueira. Ou possivelmente era verdade e não tinha sabido nada até aquele momento. E tia Adeline estaria sofrendo por todos eles. Julian devia estar muito ocupado com o desespero de sua própria família para interromper Charlotte e Veronica. Não sentiria outra coisa que agradecimento de saber que "a senhorita Barnaby" estava consolando a sua noiva do que se supunha não era mais que uma forte impressão.
Os minutos passavam com lentidão na estadia silenciosa. Charlotte não tinha a menor ideia de quanto tempo teria passado até que Veronica se sentou por fim, exausta, com o rosto mudado de seu encanto.
Charlotte não tinha mais que um exíguo lenço para lhe oferecer.
—Suponho que me pendurarão -disse Veronica já sossegada, com a voz mais firme- Espero que seja rápido.
Para seu próprio assombro, Charlotte respondeu imediatamente e sem a menor vacilação:
—Não vejo por quê. Não me ocorre nenhuma razão pela qual deva sabê-lo alguém. Você só tratou de lhe ferir, foi um infortúnio lastimoso que o golpe lhe desse na têmpora e o matasse.
Veronica a olhou fixamente.
—Não vai denunciar me?
—Não... Não acredito que haja necessidade. Sempre tinha considerado uma pessoa muito civilizada, mas desde que vi a Thomas na prisão, em perigo de ser pendurado, tenho descoberto em mim verdadeiros instintos selvagens que não me deixam pensar quando se trata de lutar pelos que amo... Não sei se é o correto, mas acredito que sei como se sentiu.
—E Julian? Não me odiará de todo modo, ao acreditar que sou Cereja e que levei Garrard A...?
—Então a ele conte a verdade. Veronica baixou a vista. Estava muito esgotada para chorar mais.
—Deixará-me de todas formas. Eu matei Robert, e menti durante três anos para ocultá-lo. Não sabia sobre Loretta e Garrard, mas não acho que vá acreditar em todo o resto.
Charlotte a pegou pelas mãos.
—Se a deixar, então é porque não a ama como você quer ser amada, assim terá que aprender a viver sem ele. Possivelmente com o tempo encontre outra pessoa. Perder Robert não foi sua culpa. A seu amor não faltava nada, nenhuma mulher seria capaz de o reter. Mas Julian é diferente. Se de verdade amá-la, seguirá querendo-a quando souber a verdade, acredite me, todos temos algo pelo que ser perdoados. O amor que exige a perfeição (um passado sem enganos, dor ou lições) é só um desejo egoísta. Ninguém cresce e se faz amadurecido sem fazer coisas das quais se envergonhará depois. Se aceitarmos isto, amamos não só a fortaleza da outra pessoa, mas também suas debilidades, e então é quando se criam laços autênticos entre ambos. Conte-lhe. Se valer o que aparenta, aceitará seu passado... se não imediatamente, ao cabo de certo tempo.
Pela primeira vez Veronica levantou o queixo. Abriu os olhos com confiança e tranquilidade. Sua violência interior se acalmou e seus medos se desvaneceram.
—Farei-o - disse com suavidade- Lhe contarei a verdade.
Ouviram-se uns golpes na porta, uma batida suave que solicitava permissão. Charlotte se levantou e foi abrir.
Era tia Vespasia com um débil sorriso no rosto, fez-se de um lado. Atrás dela estava Emily, ainda vestida de criada, embora sem o avental, e Jack que a rodeava com o braço, junto a eles estava Pitt, sujo, abatido, com olheiras e o rosto cheio de machucados. Mas estava radiante, com um sorriso de felicidade tão intenso que parecia de verdade mais bonito.
1 "O aço", em alusão provável a suas rigorosas condições de frieza e dureza. (N. do T.)
Anne Perry
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