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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SILÊNCIO / Leonid Andreyev
SILÊNCIO / Leonid Andreyev

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

S I L Ê N C I O

 

Numa noite de Maio em que havia luar e os rouxinóis cantavam, a mulher do Padre Inácio entrou no escritório; trazia no rosto sinais de sofrimento e o pequeno candeeiro tremia-lhe nas mãos; veio junto do marido, tocou-lhe no ombro e disse, entre soluços:

-        Vamos ter com a Verinha.

Sem voltar a cara, o Padre Inácio olhou a mulher por cima dos óculos, de sobrolho franzido: olhou-a por muito tempo, com muita atenção, até que ela, fazendo um gesto de súplica com a mão que tinha livre, se deixou cair num sofá baixo.

-        Nem tu nem ela tendes piedade - disse devagar e marcando bastante a última palavra; a face boa, cheia, tinha uma expressão de dor e desespero que parecia dar a entender como eram cruéis o marido e a filha.

O Padre Inácio sorriu e levantou-se: fechou o livro, tirou os óculos, pô-los na caixa e ficou de pé, a reflectir; a barba comprida e negra, raiada aqui e além de fios brancos, descia numa curva graciosa sobre o peito e levemente se erguia e baixava, ao ritmo da sua funda respiração.

-        Bem, vamos lá!

Olga Stepanovna levantou-se rapidamente e, com uma voz carinhosa e tímida, suplicou-lhe:

-        Não era melhor... Bem sabes como ela é...

O quarto de Vera era no sótão e a estreita escada de madeira vergava e gemia sob os passos pesados do Padre Inácio. Era alto e forte e tinha de curvar a cabeça para não bater no soalho de cima; carregava o sobrolho, com enfado, quando o casaco branco da mulher lhe batia de leve no rosto. Bem sabia que a conversa com Vera não daria resultado nenhum.

-        Que é? - perguntou Vera, levantando até os olhos um dos braços nus. O outro ficou sobre a colcha branca e mal se distlnguia, tão branco era, tão transparente e tão frio.

-        Verinha - começou a mãe; depois teve um soluço e parou.

-        Vera - disse o pai, tentando abrandar a voz áspera e alta -, diz-nos, Vera, que tens tu?

Vera ficou silenciosa.

-        Vera, não temos eu e tua mãe merecido a tua confiança? Não é verdade que gostamos tanto de ti? Há alguém que esteja mais perto de ti do que nós? Diz-nos o que te faz sofrer; acredita em mim, que sou já velho e experimentado; verás como te alivias, a ti e a nós. Olha como tua mãe sofre...

-Verinha!...

-        E por mim - e a voz áspera tremeu como se alguma coisa lhe tivesse faltado - e por mim... Julgas que é fácil? Não vejo eu que algum desgosto te consome? Que desgosto é esse? Eu não o sei, eu que sou teu pai. Não devia ser assim...

Vera ficou silenciosa.

O Padre Inácio passou a mão pela barba, devagar, como se receasse que involuntariamente os dedos a arrancassem, e continuou:

-        Foi contra a minha vontade que partiste para Petersburgo... Mas acaso te amaldiçoei? Não te dei dinheiro? És capaz de dizer que te não tratei com afecto. Pois é! Ficas calada. Aí tens o que deu Petersburgo.

O Padre Inácio parou de falar; parecia que via diante dele uma grande massa granítica, aterradora, cheia de perigos desconhecidos, de gente estranha e indiferente. Era ali que tinha estado a sua Vera, sempre tão isolada, sempre tão delicada, e ali se tinha arruinado. Um ódio feroz pela cidade terrível e incompreensiva levantou-se no peito do Padre Inácio; e também uma irritação contra a filha que continuava silenciosa, obstinadamente silenciosa.

-        Petersburgo não teve nada com isto - disse Vera sombriamente e fechou os olhos. - Não tenho nada. Era melhor irem para a cama; já é tarde.

-        Verinha - suspirou a mãe -, minha filha, abre-te comigo...

-        O mãe - interrompeu Vera com impaciência.

O Padre Inácio sentou-se numa cadeira e pôs-se a rir.

- Com que então não é nada?! - observou irónico.

-        Pai - disse Vera duramente e sentando-se na cama -, bem sabes que gosto de ti e da mãe, mas... Bem, estou um pouco triste. Já passa. Realmente, era melhor irem para a cama; apetece-me dormir. Falamos amanhã ou um dia destes.

O Padre Inácio levantou-se tão de súbito que a cadeira bateu na parede, e, pegando na mão da mulher, disse-lhe:

- Vamos embora!

-        Verinha!

-        Vamos embora, já te disse! - gritou o Padre Inácio. - Se ela se esqueceu de Deus, que temos nós a esperar? Que somos nós para ela?

Quase à força, fez sair do quarto Olga Stepanovna; na escada, a mulher foi mais devagar e disse num murmúrio raivoso:

-        Foste tu, um padre, quem a pôs naquele estado; foi de ti que ela aprendeu aqueles modos; hás-de ter que dar contas de tudo. Oh, que infeliz eu sou!

Começou a chorar e tinha os olhos tão enevoados que nem via o caminho; descia como se houvesse ao fundo um abismo a que quisesse atirar-se.

Desde esse dia, deixou o Padre Inácio de falar à filha, mas ela nem pareceu dar por tal; ficou como dantes, deitada no seu quarto, ou então passeava, limpando de quando em quando os olhos com a palma da mão, como se os tivesse empoeirados. A mulher do padre, que gostava de graças e de se rir, andava como que zangada entre estas duas pessoas, sempre silenciosas; tornou-se tímida e como que perdida, sem saber que diria ou faria.

Algumas vezes, Vera saía a passear. Uma semana depois da conversa, saiu como de costume. Nunca mais a viram viva, porque naquela mesma noite atirou-se para debaixo de um comboio e o comboio trucidou-a.

O Padre Inácio leu o ofício dos mortos; a mulher não estava na igreja, porque tivera uma congestão ao saber da morte da filha. Não movia os braços nem as pernas e não falava; estava deitada, sem o menor movimento, num quarto meio escuro, a escutar os sinos que dobravam no campanário ao lado; ouviu as pessoas saírem da igreja, ouviu os coristas cantarem diante da casa e quis levantar a mão para se benzer, mas o braço não lhe obedeceu; quis dizer: «Adeus, Vera!» mas a língua, na boca, ficou pesada e mole. Estava, no entanto, com tão grande ar de repouso que todos a podiam julgar ou em descanso ou adormecida; os olhos, porém, tinha-os abertos.

Muita gente veio à igreja para assistir ao funeral - amigos do Padre Inácio e desconhecidos -, e todos tinham muita pena de Vera, que tinha morrido de morte tão terrível; e todos procuravam surpreender sinais de desgosto nos movimentos ou na voz do Padre Inácio. Não gostavam dele porque tinha maneiras ásperas e orgulhosas; odiava os pecadores e não lhes perdoava, mas ao mesmo tempo era invejoso e insaciável e não perdia oportunidade de tirar dos fregueses mais do que era devido. Todos o queriam ver a sofrer, abatido, confessando que era duplamente culpado da morte da filha: como pai severo e como mau padre, que não fora capaz de salvar do pecado uma filha única. Todos lhe dirigiam olhares inquiridores, e o padre, sentindo cravados nele os olhos de todos, esforçava-se por endireitar as costas largas e fortes, e não pensava na filha morta, mas somente na maneira de manter a sua dignidade.

-        Um padre bem endurecido - disse o marceneiro Kargenov, acenando com a cabeça para o Padre Inácio, que lhe não tinha pago um caixilho que encomendara.

Sempre firme e direito, foi o Padre Inácio até o cemitério e voltou para casa; foi só à porta do quarto da mulher que se curvou um pouco, mas talvez apenas porque as portas eram baixas de mais para a sua estatura. Como vinha de fora, foi com dificuldade que pôde distinguir a cara da mulher: quando finalmente a pôde examinar, ficou surpreendido por a ver tão calma, sem lágrimas nos olhos, sem raiva nem tristeza naqueles olhos: mudos, silenciosos, com um pesado, obstinado silêncio, como todo o corpo, o corpo sem poder, enterrado na cama de penas.

-        Então, como vai isso? - perguntou o Padre Inácio. Mas os lábios ficaram mudos, os olhos ficaram silenciosos. O Padre Inácio pôs-lhe a mão na testa; estava fria e húmida e Olga Stepanovna não mostrou de modo algum que tinha sentido o toque. Quando o Padre Inácio retirou a mão, dois olhos cinzentos, profundos, olharam-no sem pestanejar; as pupilas dilatadas tornavam-nos quase negros e não se podia ver neles nem tristeza nem raiva.

-        Bem, vou para o quarto - disse o Padre Inácio, que sentia frio e medo.

Passou à sala, onde tudo estava limpo e em ordem como de costume; os grandes cadeirões metidos nas coberturas pareciam corpos envolvidos em mortalhas. Numa janela, estava pendurada uma gaiola de arame: mas estava vazia e tinha a porta aberta.

-        Anastácia! - gritou o Padre Inácio, e pareceu-lhe que a sua voz era áspera; parecia estranho gritar tão alto, naquelas salas sossegadas, logo depois do funeral da filha. - Anastácia! - gritou ele, já menos alto - onde está o canário?

A cozinheira tinha chorado tanto que o nariz, inchado e vermelho, parecia uma beterraba; e respondeu rudemente:

-        Onde está? Fugiu, naturalmente.

-        Porque é que o deixaste fugir? - ralhou o Padre Inácio, com severidade.

Anastácia começara a chorar alto e limpava os olhos com o lenço que tinha pela cabeça, enquanto dizia por entre lágrimas:

-        Coitadinho! Era a alma da menina... como é que a gente havia de ficar com ele?

Pareceu ao Padre Inácio que o alegre canário amarelo, que sempre cantava com a cabeça um pouco deitada de lado, era realmente a alma de Vera e que se não tivesse voado não se podia dizer que Vera tinha de facto morrido. Ficou mais furioso com a cozinheira e gritou-lhe:

-        Vai-te embora! - E, quando viu que Anastácia não dava com a porta, disse ainda: - Idiota!

 

Desde o dia do funeral, desceu o silêncio sobre a pequena casa. Não era só o sossego, porque o sossego é apenas uma ausência de som; era o silêncio. Era um silêncio semelhante ao das pessoas que poderiam falar e não querem falar. Eis o que pensava o Padre Inácio quando entrava no quarto da mulher e encontrava o obstinado olhar, um olhar tão pesado que parecia transformar o ar em chumbo e vir-lhe todo sobre a cabeça e as costas; e pensava-o também quando folheava as músicas da filha onde parecia ter ficado impressa a sua voz, ou olhava para os livros ou para o retrato. Era um retrato grande, pintado a óleo, e tinha-o ela trazido de Petersburgo; quando o examinava, seguia o Padre Inácio sempre uma certa ordem: primeiro, contemplava-lhe a face, que tinha no retrato uma cor viva, e imaginava-a com uma ferida que vira no rosto da morta e de que não percebia a causa; de todas as vezes, tentava encontrar uma causa e não o conseguia; se tivesse sido o comboio, toda a cabeça teria ficado esmagada; e a cabeça da sua Vera estava ilesa. Talvez tivesse sido arranhada pelo pé de alguém quando tinham levantado o corpo, ou pela unha, talvez.

Era horroroso pensar muito nos pormenores da morte de Vera e por isso o Padre Inácio passava aos olhos do retrato. Eram pretos e lindos, com longas pestanas que faziam uma sombra funda, tornavam os brancos mais claros, davam aos olhos a aparência de estarem rodeados de uma tarja de luto. O pintor, desconhecido, mas talentoso, tinha-lhes dado uma expressão estranha: era como se houvesse entre os olhos e o objecto contemplado uma película fina e transparente. Era como o dorso negro de um piano sobre que caiu uma delgada, quase imperceptível camada de poeira de Verão, que suavizou o brilho da madeira envernizada. Fosse qual fosse o sítio em que o Padre Inácio colocava o retrato, sempre os olhos o seguiam, mas sem falar: estavam silenciosos, e este silêncio era tão evidente que era como se ele o pudesse ouvir. A pouco e pouco, foi o Padre Inácio pensando que ouvia o silêncio.

Todas as manhãs, depois do serviço, ia o padre para a sala de visitas e, depois de lançar um olhar para a gaiola vazia e para todas as coisas que já conhecia tão bem, sentava-se numa cadeira de braços, fechava os olhos e escutava o silêncio da casa. Estranha coisa, este silêncio! A gaiola estava quieta, ternamente silenciosa, e podiam ouvir-se, neste silêncio, mágoas, choros e um riso distante, um riso já morto. O silêncio da mulher, atenuado pelas paredes, era obstinado, pesado como chumbo, terrível, tão terrível que, mesmo no dia mais quente, o Padre Inácio sentia frio. O silêncio da filha era um silêncio retraído, frio como um túmulo, enigmático como a morte. Parecia que este silêncio se fazia sofrer a si próprio, que apaixonadamente desejava falar e que alguma coisa de forte e de brutal, como uma máquina, o conservava imóvel, retesado como um arame. Ao longe, muito longe, num ponto indefinido, o arame começava a vibrar, a soar brandamente, tímido e patético, e o Padre Inácio, cheio de medo e deleite, esforçava-se por não perder os sons que despertavam; pousando as mãos nos braços da cadeira, inclinava a cabeça para a frente e esperava que o som se aproximasse; mas, de repente, tudo parava e se desvanecia.

-        Que tolice! - dizia o Padre Inácio, com um tom de zanga; e levantava-se da cadeira, ainda alto e direito. Pela janela, podia ver o largo calçado a gogos redondos e lisos e banhado de sol e, em frente, a parede, sem janelas, dum celeiro. Á esquina, um cocheiro estava de pé, como um boneco de barro, e o padre não percebia por que motivo ele estava ali, visto que, durante horas a fio, não passava ninguém.

 

O Padre Inácio, quando não estava em casa, tinha de falar muito, com o clero e com os fregueses, quando oficiava na igreja, e algumas vezes com os amigos, se jogava com eles; mas, quando regressava a casa, tinha sempre a ideia de que estivera em silêncio todo o dia; a razão estava em que não havia ninguém com quem o Padre Inácio pudesse falar acerca do principal e, para ele, da mais importante questão que lhe ocupava todas as noites o pensamento: porque morrera Vera?

Não queria o Padre Inácio acreditar que era agora impossível descobri-lo e pensava que a empresa ainda tinha probabilidades de êxito. Todas as noites - e todas elas tinham passado a ser noites de insónia - rememorava o momento em que ele e a mulher tinham estado junto da cama de Vera, no silêncio da noite, e ele lhe tinha dito: «Diz-nos...». Quando a sua memória chegava a estas palavras, era como se o resto não tivesse existido; os olhos fechados, que na escuridão retinham a viva imagem daquela noite, viam como Vera estava sentada na sua cama, sorria e dizia - mas que dizia ela? A palavra que Vera não pronunciava e que tudo explicaria parecia estar tão perto que bastaria apurar mais os ouvidos, fazer parar as pancadas do coração, para que logo se pudesse ouvir; mas, ao mesmo tempo, estava tão longe, a uma distância tão ilimitada e tão sem esperança... O Padre Inácio levantava-se e estendia as mãos enclavinhadas e trémulas, com um ar suplicante:

- Vera!

Mas a resposta que recebia era sempre o silêncio.

Uma noite, veio o Padre Inácio ao quarto de Olga Stepanovna, Onde já não entrava havia uma semana, sentou-se junto do travesseiro e, desviando o seu olhar do olhar obstinado e rígido, disse:

- Mulher! Quero falar contigo a respeito da Vera! Tu ouves-me?

Os olhos ficaram silenciosos e o Padre Inácio, elevando a voz, começou a falar severamente, autoritariamente, como falava com os que vinham à confissão.

- Bem sei que tu julgas que fui eu a causa da morte de Vera. Mas vê bem: não é verdade que eu gostava dela tanto como tu? A tua maneira de raciocinar é bastante estranha. Fui severo, mas acaso a impedi de fazer o que quis? Esqueci a minha dignidade de pai. Humildemente baixei a cabeça quando ela não teve receio da minha maldição e foi - para lá. E tu, não choraste tanto, não lhe pediste tanto que ficasse connosco, até que ela te mandou estar calada? Tenho eu alguma culpa de ela ter saído de alma tão dura? Não lhe falei sempre de Deus, de humildade, do amor?

O Padre Inácio olhou vivamente para os olhos da mulher - e desviou os seus.

-        Que havia eu de fazer se ela não queria dizer o que tinha? Ordenar? Pois ordenei. Suplicar? Pois supliquei. Que querias tu que eu fizesse? Havia de me pôr de joelhos diante de uma criança e de chorar como uma velha? No espírito dela - sei lá o que havia no espírito dela! Cruel, desalmada!...

O Padre Inácio bateu com o punho no joelho.

- Não tinha amor - eis o que é! É inútil falar de mim, claro está, sou um tirano, mas gostava de ti, de ti que choravas e te humilhavas?

O Padre Inácio riu com um riso sem som.

- Gostava de ti! Pois é: e para te consolar escolheu essa morte - morte cruel, morte vergonhosa! Morreu no chão, na porcaria, como um cão que apanha pontapés no focinho.

A voz do Padre Inácio era fraca e áspera.

-        Tenho vergonha - vergonha de ir à rua, vergonha de subir ao altar. Tenho vergonha diante de Deus! Foi uma filha sem coração, uma filha indigna! Devias ser maldita no teu coração...

Quando o Padre Inácio tornou a olhar para a mulher viu que ela tinha perdido os sentidos; só os recobrou horas depois. Mas os olhos ficaram silenciosos e era impossível saber se se lembrava ou não do que lhe tinha dito o Padre Inácio.

Naquela mesma noite - era uma noite de Julho, cheia de luar, e sossegada, quente, silenciosa - o Padre Inácio subiu as escadas em bicos de pés, de modo que não o ouvissem a mulher e a enfermeira, e entrou no quarto de Vera. A janela do sótão não se tinha aberto desde a morte de Vera e o ar estava quente e seco, com um leve cheiro a queimado proveniente de o zinco do telhado ter sido aquecido durante o dia pelo sol. O quarto, de que já há tanto tempo estavam ausentes seres humanos, tinha um ar de infelicidade, de deserto, e as paredes de madeira, a mobília, tudo o resto do que continha exalava um leve odor de gradual decadência. O luar entrava pela janela, fazia no chão uma faixa brilhante e reflectido pelo soalho bem esfregado lançava até os cantos uma claridade de crepúsculo e fazia da cama, branca e limpa, com as suas duas almofadas, uma grande e outra pequena, uma aparição fantástica e aérea. O Padre Inácio abriu a janela e uma corrente de ar fresco entrou no quarto e trouxe um cheiro de poeira, do rio distante, dos limoeiros em flor. Trouxe também os vagos sons de um coro longínquo: provavelmente andavam a remar no rio e a cantar. Movendo sem barulho os pés descalços e com a aparência de um fantasma branco, o Padre Inácio dirigiu-se à cama vazia, pôs-se de joelhos e, enterrando a cabeça nas almofadas, beijou-as no lugar em que teria estado a cabeça de Vera. Assim esteve muito tempo; a canção soou mais alto, depois morreu ao longe, e ele ficou ali, com os seus compridos cabelos negros espalhados pelos ombros e por cima das almofadas.

A Lua avançou, e já estava o quarto mais escuro, quando o Padre Inácio levantou a cabeça e começou a murmurar, fazendo passar na voz toda a força de amor que sempre reprimira, que nunca deixara confessar-se; e escutava as suas próprias palavras como se fosse Vera e não ele que as ouvisse.

- Minha filha! Vera! Percebes bem o que quer dizer esta palavra - filha? Filhinha querida! ó minha alma, ó meu sangue, ó minha vida! O teu pai já velho, muito velho, todo branco, e tão fraco...

Tremeram os ombros do Padre Inácio e oscilou todo o seu corpo pesado. Tentando reprimir o tremor, o Padre Inácio murmurava ternamente, como se falasse a uma criança:

- O pobre do teu pai vem pedir-te, não, Vera, vem implorar-te... Está a chorar, ele que nunca chorou! Ah! minha filhinha, os teus sofrimentos, as tuas mágoas, também eu os tenho agora, vê tu, e como os tenho bem fundo!

O Padre Inácio sacudiu a cabeça.

- Fundo, Verinha! Que é a morte para mim, que já sou velho? Mas para ti - se tu soubesses como és delicada e fraca e tímida! Lembras-te quando picaste o dedo e veio sangue - como choraste? Filhinha, tu gostas de mim, gostas muito de mim, bem o sei; todas as manhãs me beijas a mão. Diz-me, vá, diz-me o que te aflige e eu, com estas mãos, aniquilo a tua dor! Olha que estas mãos são ainda fortes, Vera!

E o Padre Inácio sacudiu a cabeleira.

-        Diz!

O Padre Inácio olhou fito para a parede e abriu os braços.

-        Diz!

Tudo estava em sossego no quarto; de longe vinha o longo, o repetido apito de uma máquina.

O Padre Inácio olhou em volta com os olhos abertos e fixos, como se visse diante dele o espectro terrível do corpo desfigurado; levantou-se devagar e com incerto movimento levou as mãos à cabeça, com os dedos abertos e rígidos. Caminhou para a frente e murmurou em voz entrecortada:

-        Diz!

E a resposta que recebeu foi o silêncio.

 

No dia seguinte, depois de um almoço que comeu cedo e sozinho, o Padre Inácio foi ao cemitério, pela primeira vez depois da morte da filha. Havia calor e o cemitério estava sem gente e sossegado. Parecia ao padre que o dia cheio de sol era apenas uma noite luminosa; no entanto, por hábito, endireitava cuidadosamente as costas, olhava para todos os lados com severidade e julgava que era ainda o mesmo que sempre tinha sido. Não dava pela fraqueza nova e terrível que tinha nas pernas nem por que a barba se tinha tornado completamente branca, como se tivesse passado sobre ela uma forte geada. O caminho para o cemitério era por uma rua comprida e direita que subia gradualmente e terminava no arco branco dos portões que semelhava uma boca negra e sempre aberta bordejada por dentes rebrilhantes.

A cova de Vera era mesmo no extremo do cemitério, para lá do ponto em que os caminhos areados terminavam, e o Padre Inácio foi durante muito tempo por estreitas veredas tortuosas, entre montículos verdes, esquecidos e abandonados por todos. Em alguns lugares passava por monumentos fendidos, que o tempo tornara verdes, por grades quebradas e por grandes, pesadas pedras meio enterradas no chão e que pareciam oprimi-lo com o sombrio despeito da velhice. A campa de Vera ficava junto de uma destas pedras velhas. Estava coberta de relva posta há pouco, mas que já amarelecera, ao passo que à volta tudo estava verde. Perto, crescia uma sorveira ligada a um bordo e uma nogueira, de larga copa, estendia sobre a campa os seus ramos de folhagem áspera e felpuda. O Padre Inácio sentou-se numa campa vizinha, para tomar fôlego e olhar em torno. Relanceou a vastidão do céu, limpa de nuvens, com um Sol esbraseado, redondo e imóvel; só agora dava pelo profundo sossego, a que nada mais se compara, de um cemitério, quando não há vento e não sussurram as folhas caídas. Outra vez pensou o Padre Inácio que se não tratava de sossego, mas de silêncio; um silêncio que ia até aos muros de pedra do cemitério, os transpunha com dificuldade, depois inundava a cidade, e só acabava nos olhos cinzentos, obstinados, silenciosos.

Um arrepio passou pelos ombros frios do Padre Inácio que olhou para a cova de Vera; esteve a olhar por muito tempo para as folhas curtas e amarelas de erva que tinha sido cortada nalgum campo extenso sobre o qual soprava o vento e não tivera tempo de se enraizar no novo solo; e o padre nem podia perceber como é que Vera estava ali enterrada, a metro e meio abaixo da erva. Parecia inconcebível uma tal proximidade e havia na sua alma um confuso, um estranho sobressalto. Estava ali, perto dele, aquela que já se acostumara a considerar desaparecida para sempre nas escuras profundidades do infinito; e era difícil compreender que já não estava ali e nunca mais ali estaria. Parecia ao Padre Inácio que se dissesse certa palavra que quase sentia nos lábios, se fizesse um certo movimento, Vera sairia da campa e seria de novo a rapariga alta e delgada que tinha sido outrora; levantar-se-ia ela, e também os outros corpos, tão terrivelmente palpáveis no seu frio, solene silêncio.

O Padre Inácio tirou o seu chapéu preto, de aba larga, passou a mão pelo cabelo e disse num murmúrio:

- Vera!

Como seria estranho que alguém o ouvisse! Subido na cova, olhou por cima das cruzes, mas tudo estava deserto; e repetiu mais alto:

- Vera!

Era a antiga voz do Padre Inácio, seca e autoritária, e era de admirar que um pedido feito com tanta força ficasse sem resposta.

- Vera!

Alta e persistente, a voz chamava e quando o som se desvanecia, parecia, por um momento, que uma resposta indistinta vinha de baixo. O Padre Inácio olhou em volta outra vez, depois, afastando o cabelo, colou o ouvido à erva áspera e aguda.

- Vera, diz!

Horrorizado, o Padre Inácio sentiu que alguma coisa fria e tumular lhe penetrava no ouvido e lhe gelava o cérebro, e que Vera falava... mas só falou com o mesmo longo, imperturbado silêncio. Tudo se tornou ainda mais estranho e terrível e quando por fim o Padre Inácio teve força para tirar a cabeça de cima da terra tinha a face pálida como a de um cadáver. Parecia-lhe que todo o ar tremia e ondeava num silêncio que se ouvia, como se uma tempestade tivesse rebentado neste medonho mar. O silêncio sufocava-o; rolava-lhe em vagas geladas sobre a cabeça, movia-lhe o cabelo, e vinha quebrar-se-lhe contra o peito, que gemia aos embates. Com o corpo trémulo, lançando olhares rápidos e agudos, o Padre Inácio levantou-se devagar e fez demorados, dolorosos esforços para endireitar as costas e obrigar o corpo que tremia a retomar o andamento orgulhoso e digno. E conseguiu-o. Com deliberada lentidão, o Padre Inácio sacudiu a erva dos joelhos, pôs o chapéu, benzeu por três vezes a campa e afastou-se com um passo firme, pesado. Mas não reconheceu o cemitério já tão familiar, e perdeu-se.

- Bem, perdi-me - disse o Padre Inácio com um sorriso, parando no lugar em que se cruzavam vários caminhos.

Não se moveu durante um segundo, e, sem pensar, voltou à esquerda porque não ousava parar e esperar. O silêncio impelia-o. Levantava-se das campas verdes, exalava-se das velhas cruzes cinzentas em vagas finas, sufocantes, saía de todos os poros da terra que os cadáveres enchiam. O passo do Padre Inácio tornou-se mais rápido; sentia-se surdo, e andava às voltas, sempre pelos mesmos caminhos. Saltou por cima das covas, chocou com as grades, prendeu as mãos nas agudas grinaldas de metal; já o fato começava a esfarrapar-se. Lançava-se de um lado para o outro e, por fim, alto e estranho, com o casaco esvoaçando, o cabelo ao vento, começou a correr sem ruído. Quem tivesse encontrado este homem a correr, a saltar, a gesticular, quem lhe tivesse visto a face desvairada e contorcida, quem tivesse ouvido o grito sombrio e rouco que lhe saia da boca aberta, teria ficado mais assustado do que se visse erguer-se-lhe diante um cadáver saldo dum túmulo.

Correndo a toda a velocidade, chegou o Padre Inácio ao largo a cujo fundo brilhava, toda branca, a igreja baixa do cemitério. À porta, sentado num banco, um velho cabecoava; de longe, parecia um peregrino, e perto dele duas pedintes, furiosamente, descompunham-se e gritavam.

Já escurecia quando o Padre Inácio chegou a casa; havia luz no quarto de Olga Stepanovna e, exactamente como estava, roto, coberto de poeira, sem tirar o chapéu, entrou correndo no quarto da mulher e caiu de joelhos:

- Mulher! Olga! Tem piedade de mim! - soluçou ele. - Eu endoideço!

Bateu com a cabeça no bordo da mesa e soluçou com uma dolorosa ferocidade, como homem que nunca tinha chorado. E levantou a cabeça, seguro dum milagre, seguro de que a mulher lhe iria falar, seguro de que teria pena dele.

- Querida...!

Aproximou da mulher o seu grande corpo e fitou-lhe os olhos cinzentos. Não havia neles nem piedade nem cólera. Talvez a mulher lhe perdoasse e o lamentasse, mas nos seus olhos não havia nem pena nem perdão. Estavam soturnos e silenciosos.

E era toda silêncio a casa escura e desolada.

 

                                                                                Leonid Andreyev  

 

                      

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