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SKAGBOYS / Irvine Welsh
SKAGBOYS / Irvine Welsh

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Nem a rigidez de tábua deste canapé duro e velho pode impedir meu corpo de ir se libertando aos poucos. Isso me faz pensar nas residências universitárias em Aberdeen; ficar deitado no escuro, em êxtase, finalmente livre do medo que se aglutinava no meu peito como o catarro grosso no dele. Porque não importa o que eu escute lá fora, carros cantando pneus nas ruas estreitas do conjunto habitacional, às vezes varrendo esse quarto bolorento com os fachos dos faróis, bêbados desafiando ou enaltecendo o mundo, ou os gritos lacerantes de gatos entregues a seus prazeres torturantes, pelo menos sei que não vou ouvir aquele barulho.
Nem sinal de tosse.
Nem sinal de gritos.
Nem sinal de pancadas: duf duf duf...
Nem sinal daqueles sussurros urgentes e aflitos que, dependendo do nível de pânico, permitem que você calcule a quantidade de sono que vai perder aquela noite.
Somente a escuridão entorpecida e relativamente silenciosa, e este canapé.
Nem sinal. Daquela porra. Daquela tosse.
Porque sempre começa com uma tosse. Uma só. Logo em seguida, enquanto você torce para que ele sossegue, a pulsação acelerada informa que o seu subconsciente já havia antecipado o primeiro latido. Depois vem o segundo - o pior momento - quando a raiva é transferida da origem da tosse para as pessoas que irão ajudá-lo.
Deixa pra lá, seus filhos da puta.

 


 


Mas é claro, você ouve a agitação pelas paredes finas como papel; um suspiro cansado, o clique agudo do interruptor de luz, os passos nervosos. Depois as vozes de consolo e apoio, e então começa o procedimento horrível: a drenagem postural.

Duf... duf... duf...

... duf... duf... duf...

O ritmo infernal das mãos grandes do meu pai golpeando aquelas costas magricelas e encurvadas com insistência ou mesmo violência. Um som e uma batida bem diferentes dos tapinhas medrosos da minha mãe. Seus murmúrios exasperados de incentivo.

Queria que o deixassem no hospital. Que o mantivessem longe daqui. Não volto para aquela casa até que se livrem dele. É maravilhoso poder esquecer de tudo aquilo nesse refúgio, apenas deixar a mente e o corpo se dissolverem no sono.

“Vamos, filho! Levanta! Anda logo!”

Acordo enrijecido e dolorido, ouvindo a voz arranhada do meu pai. Está em pé ao meu lado, com as sobrancelhas grossas enrugadas, despido da cintura para cima com uma floresta de pelos loiro-acinzentados cobrindo o peito, brandindo uma escova de dentes. Levo um total de três segundos, cada um deles medido com um piscar de olhos, para lembrar que estou deitado no sofá da casa da minha vó em Cardonald. Só consegui pegar no sono poucas horas atrás e a escuridão ainda seria total, não fosse pelo pequeno abajur da mesinha que ele ligou e agora está espalhando um brilho verde-mar pela sala. Mas ele tem razão, precisamos ir: não podemos perder o ônibus em St. Enoch’s Square.

Sei que me sentirei melhor assim que começar a me movimentar, embora ainda esteja um pouco desalinhado TÔ FAZENDO A MESMA MERDA DE NOVO!!

Eu tô ligado que vou me sentir bem assim que mexer a bunda, mas ainda tô todo amassado, então pego emprestado o ferro de passar da vó; é só pra tirar um pouco das dobras da minha Fred Perry azul-marinho antes de meter ela por cima do meu corpo branco, magricela e arrepiado. Mas o pai não quer nem saber. “Esquece”, ele me diz brandindo a escova de dentes, e depois vai andando pelo corredor até o banheiro, acendendo a luz do teto no caminho. “Não é um desfile de moda! Vamo!”

Nem preciso desse incentivo todo; a adrenalina já entrou com tudo e eu tô a mil. Não vou perder essa de jeito nenhum. A vó Renton se levantou pra se despedir da gente; pequena, cabelo branco, de camisola forrada, mas robusta e sempre alerta, conferindo a gente por cima dos óculos, com uma mochila de pano na mão. Ela me olha de boca aberta por um segundo, faz um gesto de algum tipo e depois vai incomodar meu pai no corredor. Escuto a voz dela, macia e ritmada. “Que hora sai o ônibus... de onde sai... que hora vocês chegam...?”

“Volta... pra sua... cama... mãe”, meu pai resmunga com a boca cheia de baba e pasta de dentes, e eu aproveito a oportunidade pra me vestir rápido; camisa, jeans, meias, tênis e jaqueta. Olho as fotos emolduradas do vô Renton no consolo da lareira. A vó botou ali as quatro medalhas que ele recebeu na guerra, incluindo a Cruz da Vitória, que ele ganhou na Normandia, acho. Ele não gostaria de ver as medalhas em exposição desse jeito; guardava elas numa lata velha de tabaco e só mostrava depois que a gente pedia muito. Pra ser honesto, ele disse desde o começo, pra mim e pro meu irmão Billy, que era tudo uma palhaçada. Que alguns homens valentes nunca ganharam medalha nenhuma por seu heroísmo, enquanto um monte de abobados ganhou medalha a troco de nada. Lembro que uma vez a gente tava de férias na hospedaria em Blackpool e eu fiquei pressionando ele, “Mas cê foi um dos valentes, né, vô, cê deve ter sido bem valente quando atacou aquela praia.”

“Eu tava com medo, filho”, disse-me ele com a cara bem séria. “Mas acima de tudo eu tava com raiva; raiva por estar ali. Muita raiva. Eu queria descontar em alguém e depois ir pra casa.”

“Mas aquele homem precisava ser impedido, pai”, insistiu meu pai, “cê mesmo disse isso!”

“Eu sei. Eu tava com raiva porque deixaram ele começar tudo aquilo, pra início de conversa.”

As duas fotos do vô R apresentam um contraste sutil. Numa delas, ele é um rapazinho invocado que fica todo imponente de uniforme, pronto pra encarar uma aventura com os parcero. Na segunda, mais recente, ele tá com um sorriso enorme, mas bem diferente daquela outra risadinha presunçosa. Não é exatamente falso, mas parece fixo e conquistado a duras penas.

Minha vó aparece e me pega olhando as fotos. Talvez ela tenha visto alguma coisa em mim, de perfil; um indício do passado, porque ela chega perto devagarinho, bota o braço em volta da minha cintura e sussurra, “Cai matando em cima daqueles desgraçados, filho”. A vó tem um cheiro perfumado mas envelhecido, como se ela usasse um sabonete que ninguém mais usa. Quando meu pai aparece e estamos prontos pra sair, ela acrescenta, “Mas toma cuidado, e cuida bem do meu garoto”, se referindo a ele. É estranho ela ainda pensar nele desse jeito, porque ele é velho pra caramba, tem quase cinquenta!

“Vamos, rapaz, o táxi chegou”, talvez um pouco envergonhado com a conversa dela, olhando a rua por uma fresta da cortina antes de se virar e dar um beijo na testa dela. Em seguida ela pega a minha mão. “Você é o melhor, filho, o melhor de todos”, ela sussurra com uma firmeza confiante. Ela diz isso toda vez que me vê, desde que eu era pirralho. Eu costumava me sentir bem com isso, até descobrir que ela dizia a mesma coisa pra todos os netos e pros filhos dos vizinhos! Mas tenho certeza de que na hora ela fala com convicção.

O melhor de todos.

Ela me solta e entrega a mochila de pano pro pai. “Não vai perder a garrafa térmica que tá nessa mochila, David Renton”, ela salienta.

“Sim, mãe, eu já disse que vou ficar de olho nela”, diz ele meio encabulado, como se fosse um adolescente emburrado de novo. Quando ele faz menção de partir, ela o impede. “Tá esquecendo uma coisa”, ela diz, e então caminha até o aparador, pega três copinhos e enche de uísque. Meu pai revira os olhos. “Mãe...”

Ela não dá ouvidos. Levanta um copo e nos força a fazer a mesma coisa, embora eu odeie uísque e não faça a menor questão de beber isso a essa hora da manhã. “Um brinde a nós, e a quem é dos nossos - poucos e bons, e estão todos mortos!”, ela diz com a voz rasgada.

O pai vira o copinho de um só gole. O da vó já ficou vazio por alguma espécie de osmose, porque eu nem vi ela botar o copo na boca. Eu preciso dar dois goles, e eles trancam na garganta. “Vamos, filho, cê é um Renton”, ela desaprova.

Aí o pai me faz um sinal com a cabeça e a gente sai. “Que mulher terrível”, ela diz afetuosamente enquanto embarcamos no táxi preto e eu sinto meu estômago queimando. Dou um último aceno para a pequena figura parada na porta, de frente para a rua escura, torcendo pra que a velha coroca volte logo pra dentro da casa aquecida.

Glasgow. A gente aprendeu a soletrar assim na escola: Granny Likes A Small Glass Of Whisky.[1]

Ainda tá um breu enquanto o táxi ronca e range na direção do centro da Weedgielândia,[2] que fica sinistra às quatro da manhã de segunda-feira. Tá um nojo aqui dentro; um filhadaputa relaxado vomitou aqui ontem à noite e ainda dá pra sentir o cheiro. “Jesus Cristo”, o meu velho abana com a mão na frente do focinho. Meu pai é daqueles caras grandões com ombros largos, enquanto eu puxei mais a minha mãe no aspecto físico: magrão e espichado. O cabelo dele pode ser chamado de loiro verdadeiro (embora já teja um pouco grisalho), diferente do meu, que, por mais que eu tente disfarçar, é basicamente ruivo. Ele tá vestindo uma jaqueta marrom de veludo cotelê que é bem bacana, devo admitir, apesar de estar arruinada pelo emblema do Glasgow Rangers FC na lapela, pregado bem ao lado do emblema do Sindicato Unificado dos Engenheiros, e ele tá cheirando um pouco a colônia Blue Stratos.

O ônibus tá esperando a gente na praça vazia atrás da Argyle Street. Alguns grevistas tão sendo abordados por um mendigo bebum que pede trocados e fica sumindo na noite e voltando, repetindo a mesma rotina. Subo no ônibus de uma vez pra fugir da praga. Esse merda me dá asco; ele não tem nenhum orgulho, nenhuma política. Fica revirando os olhos dementes e espremendo os lábios borrachudos no meio da cara roxa. Apanhou do sistema até virar geleia, e tudo que resta ao parasita é tentar achacar as pessoas que têm peito pra revidar. “Bostalhão”, deixo escapar entre os dentes.

“Não julgue antes da hora, filho.” O sotaque do pai é mais parecido com o de Glasgow; descer do trem de Edimburgo na Queen Street dá nisso. “Cê não sabe qual é a história do cara.”

Não digo nada, mas não quero saber qual é a história desse traste. No ônibus, sento do lado do pai e de alguns de seus velhos amigos dos estaleiros de Govan. É bom, porque fazia tempo que eu não me sentia tão próximo dele. Parece que faz milênios que a gente não faz alguma coisa juntos, só nós dois. Mas ele tá bem quieto e pensativo, provavelmente preocupado porque meu irmão menor, o nosso Davie, teve que voltar pro hospital.

Tem um monte de cerveja no ônibus, mas a gente tá proibido de tocar nela antes da volta, quando chegar a hora de comemorar vitória contra os caminhões dos fura-greves! Mas tem pilhas de rango; vó Renton preparou toneladas de sanduíches com pão Sunblast, branco e esponjoso: queijo com tomate e presunto com tomate, como se a gente tivesse indo prum enterro!

O lance é que dentro do ônibus parece mais que tamo indo prum jogo de futebol do que prum enterro ou manifestação; é um clima de final de campeonato, com as faixas penduradas na janelas. Metade do pessoal no nosso ônibus é de mineiros em greve das minas de Ayrshire, Lanarkshire, Lothians e Fife; a outra metade é de sindicalistas como o meu velho e viajantes sortidos como eu. Fiquei felizão quando o pai disse que tinha me conseguido um lugar; o pessoal da política na faculdade ia ficar louco de inveja quando soubesse que eu tava num dos ônibus oficiais da União Nacional dos Mineradores!

O ônibus ainda não se afastou muito de Glasgow quando a noite começa a dar lugar a um lindo céu de verão com uma alvorada azul-esverdeada. Embora seja cedo, já tem uns carros na estrada e alguns tocam a buzina em apoio à greve.

Pelo menos tô conseguindo conversar um pouco com o Andy, que é o melhor amigo do meu velho. É um weedgie muito gente boa, magro e forte, um ex-soldador e membro do Partido Comunista desde que nasceu. O rosto ossudo dele é coberto por uma pele amarelo-nicotina e quase translúcida. “Então quer dizer que cê vai voltar pra universidade em setembro, Mark?”

“É, mas uma turma vai viajar de InterRail pela Europa mês que vem, tá ligado? Tô dando duro de novo no meu antigo emprego na lojinha de peixe com fritas, tentando juntar uns shekels.”

“Pois é, a vida é boa pra quem é jovem. Aproveita enquanto cê pode, é o meu conselho. Cê tem namorada nessa universidade?”

Antes que eu consiga responder, as orelhas do meu pai se levantam. “Melhor que não tenha, senão a pobrezinha da Hazel vai subir pelas paredes. Uma mocinha adorável”, diz ele pro Andy, e depois se vira pra mim e pergunta “Com o que ela trabalha mesmo, Mark?”

“Vitrines. Na Binns do West End, a loja de departamentos, tá ligado”, explico pro Andy.

Um sorrisão de crocodilo satisfeito se espalha na cara do meu pai. Se o viado soubesse como é a minha relação com a Hazel, não se daria ao trabalho de ficar falando dela o tempo todo. É terrível Mas isso é outra história. O velho só fica animadão de me ver com uma mina, depois de passar anos com medo que eu fosse um boiola por causa do meu gosto musical. Tive uma fase glam-rock bem intensa na puberdade e depois fui um adolescente punk. Depois teve aquela vez que o Billy me pegou batendo uma

Outra história.

Tá todo mundo numa boa e o clima continua animado quando cruzamos a fronteira da Inglaterra, mas ao chegarmos em Yorkshire e pegarmos as estradas menores, a coisa começa a ficar meio esquisita. Tem polícia pra tudo que é lado. Só que em vez de parar o nosso ônibus a cada poucos metros sem motivo algum, como era de esperar, eles só fazem sinal pra gente ir em frente. Chegam a dar orientações corretas pra gente chegar na cidadezinha. “Mas que porra é essa?”, grita um rapaz. “Cadê as barreiras e a aporrinhação de sempre?”

“Polícia comunitária”, um outro cara ri.

Meu pai olha para a fileira de policiais risonhos lá fora e um deles acena para nós com um sorriso de orelha a orelha. “Não estou gostando disso. Tem algo errado.”

“Tanto faz, desde que não nos impeçam de mandar embora os fura-greves”, digo.

“Não vai me perder a cabeça”, ele me avisa com um grunhido grave, e depois ergue as sobrancelhas. “Quem é mesmo esse amigo que cê vai encontrar?”

“É só um dos carinhas de Londres com quem eu dividia o squat em Shepherd’s Bush. Nicksy. Gente boa.”

“Outro desses punk rockers tapados, aposto.”

“Não sei que tipo de música ele anda ouvindo agora”, repondo um pouco irritado. Às vezes ele consegue ser um velho trouxa de merda.

“Punk rock”, ele ri pros amigos, “outra modinha que ele deixou pra trás. Qual é a última, esse negócio de soul que dura a noite inteira? Eles vão no Bolton Casino beber Coca-Cola!”

“É Wigan Casino!”

“Mesma coisa. Que noites devem ser! Latinhas de suco!”

Andy e uns outros caras entram na onda e eu fico ali apanhando sem reagir, porque é inútil discutir música com essa velharada de merda. Minha vontade é dizer pra eles que Presley e Lennon são comida pros vermes e que já tá na hora de superar essa bosta, mas não, o clima dentro do ônibus tá excelente, e é como eu disse, é ínútil discutir.

Por fim, com a ajuda da polícia, entramos na cidadezinha e estacionamos o ônibus na rua principal, em fila com todos os outros. É estranho porque ainda é muito cedo, e o sol está começando a esquentar enquanto as pessoas se reúnem. O meu velho desce pra usar um orelhão e pela lata dele dá pra saber qual é o tom da conversa, e não é nada bom.

“Tudo certo?”

“Sim...”, diz ele, e depois balança a cabeça. “Sua mãe tava me contando que o pequeno teve uma noite horrível. Tiveram que dar oxigênio pra ele, a coisa toda.”

“Ah... tá. Aposto que não vai demorar pra ele vai ficar bem”, digo, “eles sabem o que fazer.”

Porra. Até quando eu tô aqui esse merdinha tem que estragar tudo...

O pai começa a dizer que não deveria ter deixado nosso pequeno Davie sozinho porque a mãe não sabe fazer a drenagem postural direito, e as enfermeiras no hospital devem tá ocupadas demais pra dedicar tempo a isso. Ele balança a cabeça, e a cara dele se enche de dor. “Eles não podem deixar aquele fluido se acumular no pulmão dele...”

Não tô a fim de escutar a mesma merda de sempre. Estamos em Yorkshire e a atmosfera continua excelente, mas é como se o clima de final de campeonato tivesse se transformado numa vibração meio que de festival de música. Tá todo mundo pilhado, marchando pro descampado onde os grevistas tão se reunindo. Até meu pai se anima e começa a bater papo com um rapaz de Yorkshire, depois troca o emblema do Sindicato Unificado dos Engenheiros pelo da União Nacional dos Mineradores que o rapaz tá usando, e os dois pregam os bótons no peito com orgulho, como se fossem medalhas.

De onde estamos, podemos ver os policiais se agrupando do outro lado das barreiras que eles colocaram. Tem uma caralhada deles. Dou uma olhada naqueles viados da Polícia Metropolitana, de camisa branca; um cara no ônibus disse que eles não queriam usar muita polícia de Yorkshire na linha de frente, pra evitar conflitos de lealdade. No nosso lado tem faixas de todos os sindicatos e grupos políticos que eu já ouvi falar chegando pra engrossar a manifestação. Mas tô começando a ficar meio nervoso: a polícia tá em maior número. Parece que pra cada time de grevistas que aparece pra reforçar nosso lado a polícia aumenta na mesma proporção e um pouco mais. Andy dá voz ao sentimento de trepidação cada vez maior que permeia o ar. “Eles tão se preparando pra isso há anos, desde que os mineradores acabaram com a raça do Heath.”

Não tem como não ver a fábrica que a gente quer bloquear; as duas imensas chaminés fálicas ficam em destaque no meio de uma série de prédios industriais vitorianos. É sinistro, mas a polícia nos arrebanhou no grande campo ao norte da fábrica. O ar vai parando à medida que os cantos vão rareando; olho para a fábrica e me sinto em Auschwitz, e por um instante tenho a estranha sensação de que seremos encurralados dentro dela, como se tivesse cheio de forno a gás lá dentro, porque a polícia não apenas está presente em maior número, como nos cercou por três lados, com uma ferrovia fechando o perímetro no quarto lado. “Esses desgraçados sabem exatamente o que tão fazendo”, Andy balança a cabeça com pesar. “Nos trouxeram direitinho pra cá. Tem alguma coisa acontecendo!”

Tenho a impressão de que ele tá certo, porque mais adiante tem uns cinquenta policiais montados e mais um monte com cachorros. Dá pra ver que eles não tão pra brincadeira, porque não tem nenhuma policial à vista. “Fica perto de mim”, o pai me diz, de olho num grupo de fortões com sotaque de Yorkshire que parecem dispostos a comprar briga.

De repente Arthur Scargill aparece e o povo reunido dá um aplauso ensurdecedor, uma recepção digna de astro do rock, e começa a cantar “Vitória para os Mineradores”. Aquele cabelo dele penteado por cima da careca fica ondulando no vento e ele coloca um boné de beisebol americano.

“Dizem que tem um monte de gente do MI5 infiltrada aqui”, um cara do nosso ônibus, Cammy, fala pro Andy enquanto tentamos avançar pra ter uma visão melhor do Scargill.

Eu não gostava daquele tipo de conversa porque preferia pensar que os viados do Serviço Secreto Britânico eram mais como o Sean Connery, usando smokings em Monte Carlo, e não uns putos desgraçados metendo o nariz nos vilarejos carvoeiros de Yorkshire, fingindo que eram mineradores e dedurando toda a rapaziada. Scargill tá com o megafone e agora ele começa um daqueles discursos que são a marca registrada dele e me dão arrepio na nuca. Ele fala sobre os direitos dos trabalhadores, resultado de anos de luta, e que, se negarem nosso direito de fazer greve e se organizar, não seremos nada além de escravos. As palavras dele são como uma droga, cê sente ela agindo nos corpos em volta; olhos marejados, espinhas eretas e corações fortificados. Quando ele conclui a fala, com o punho erguido, o canto da “Vitória dos Mineradores” atinge o ápice.

Os líderes dos mineradores, incluindo Scargill, tão batendo boca com o alto escalão de policiais, dizendo que a gente não tá onde precisa ficar pra conseguir fazer a porra do piquete, mas sim presos nesse descampado que fica longe demais da fábrica. “Ia dar na mesma se a gente tivesse na porra do Leeds”, um grandalhão num casaco de operário grita prum policial de costeletas usando equipamento antichoque completo. “Cês não têm vergonha, porra?”

O viado fica ali parado, impassivo, olhando pra frente, como se fosse um guarda do Palácio de Buckingham. Mas o clima se altera de novo e a tensão começa a se dissipar um pouco quando uma bola de futebol é chutada no meio da galera e uns caras começam a jogar, usando capacetes de mineração pra marcar as goleiras. Um surto de euforia toma conta de mim quando enxergo o viado do Nicksy, aquele cockney metido; ele tá em cima da bola, mandando ver nos chutes, xingando alto, e aí eu vou correndo e meto um carrinho destruidor com as duas pernas nele. “Toma, inglês de merda!”, grito enquanto ele voa pro chão, e em seguida ele levanta e vem gritando pra cima de mim: “Cê é da porra do MI5 ou quê, seu escocês filhadaputa?”

Os caras em volta param de jogar e ficam olhando, como se esperassem uma pancadaria, mas a gente só começa a rir.

“Como é que tá, Mark?”, pergunta Nicksy. Ele é um carinha agitado e de olhar nervoso, com uma franja caída e um nariz curvado, que se movimenta como um boxeador peso-leve, sempre saltando e se esquivando. O cara tem uma puta energia.

“Na paz, parcero”, eu digo enquanto olho pra fileira de policiais. “O negócio tá meio pesado aqui hoje, hein?”

“Pode crer. Eu vim pra Manchester de trem no sábado, consegui chegar aqui de carona hoje cedo. Já tava tudo cheio de porco.” Ela acena com a cabeça na direção das fileiras de policiais. “Alguns desses panacas foram treinados em táticas antichoque novas depois de Toxteth e Brixton. Tão loucos pra dar porrada.” A cabeça dele gira rápido na minha direção. “Com quem cê veio?”

“Com o meu velho. Junto com os ônibus da UNM”, explico enquanto a bola voa por cima das nossas cabeças, e em seguida a gente faz uma tentativa fracassada de tentar voltar pro jogo. Mas, como o número de gente começa a crescer dos dois lados, a tensão volta a aumentar. O pessoal para de correr atrás da bola quando alguém anuncia que os caminhões dos fura-greves tão quase chegando, e a gente tá longe demais da rua pra conseguir impedir eles. Uns caras se reúnem e começam a jogar pedras na polícia, que responde fazendo avançar uma barreira de policiais com escudos compridos na frente dos policiais normais. O pessoal vibra quando um policial leva um pedaço de tijolo bem no meio da fuça. Sinto um enjoo na boca do estômago, mas uma eletricidade toma conta de mim e passa por cima do enjoo quando começam a soar gritos de que os fura-greves tão chegando pra coletar o coque armazenado na fábrica!

Todo mundo força caminho pra tentar atravessar a barreira da polícia e eu sou arrastado junto com a coisa toda, um minuto inteiro de pavor com os braços presos ao lado do corpo, e eu me perco do Nicksy e fico em pânico, pensando onde é que tá o meu pai, lembrando do que vó Renton tinha falado. Consigo entrar num espaço que acaba de se abrir e então a polícia montada vem pra cima da gente e os filhadaputa começam tudo a recuar. É como uma briga de futebol, só que fica um espaço pros caminhões passarem, e isso vai deixando todo mundo pirado. Começo a gritar na cara dum policial bem novo, um cara da minha idade, “QUE PORRA CÊ TÁ FAZENDO, SEU VIADO NAZISTA DE MERDA?”

Vem outra onda de avanço, mas dessa vez, quando a polícia montada ataca, todas as fileiras de policiais vêm junto atrás. Um monte de pedras começa a voar na direção dos viados e um porco grita no megafone que se a gente não recuar cem metros eles vão entrar com o batalhão de choque. Dá pra ver eles se preparando lá adiante, com os capacetes, escudos e cassetetes.

“Isso é um absurdo”, diz um dos mineradores de Yorkshire, com os olhos acesos de raiva, “nunca usaram batalhões de choque contra um protesto nesse país!”

“Esses escudos pequenos de merda”, grita um outro cara, “são pra agredir, não pra se defender!”

O rapaz tem razão, porque a gente mantém a posição, e os desgraçados vêm pra cima, e aí começa a demência. A maioria das pessoas tá usando roupa normal, algumas tão de casaco grosso de operário, mas ninguém tem arma nenhuma pra se proteger, e, quando a polícia ataca com os cassetetes, os mineradores entram em pânico coletivo e a coisa sai de controle. Me batem nas costas e depois no braço, me provocando uma náusea, e depois me acertam na têmpora. A sensação das porradas é diferente de levar um soco ou chute, cê sente o estrago por baixo da pele, mas a adrenalina é o melhor anestésico e eu parto pra cima e enfio o pé num escudo...

NÃO ADIANTA PORRA NENHUMA.

Não é justo, porra... isso não tá certo... cadê meu escudo?... cadê meu cassetete, seus covardes de merda?... não tá certo...

Começo a dar soco e chute na porra do acrílico, tentando quebrar, mas não rola. Que se foda; dou a volta, abro distância e dou um chutão num policial por trás, um viado que passou voando pela gente, correndo atrás dum grevista. Ele tropeça e dá impressão de que vai cair, mas consegue manter o equilíbrio e continua correndo atrás do cara, me ignorando completamente. Tem um carinha no chão sendo moído na porrada por três policiais. Eles tão dobrados por cima dele, dando com os cassetetes. Uma garota mais ou menos da minha idade, de cabelo preto e comprido, tá do lado deles suplicando aos gritos: “O que cês tão fazendo!”

Um dos policiais chama ela de putinha de minerador e dá um empurrão na mina. Ela tropeça, cai de costas e é afastada por um cara mais velho que leva uma cacetada no ombro por tentar ajudar. Tá todo mundo gritando e berrando e eu fico ali parado em pé, paralisado entre o pensamento e a ação, simplesmente travado, e um policial mais velho me vê, dá uma olhada na direção dos policiais mais jovens e berra bem na minha cara, “SAI DAQUI AGORA PORRA OU CÊ VAI MORRER!”

O consideração dele me assusta mais que a ameaça; acabo me afastando, abrindo caminho à força no meio da multidão confusa e aos berros, tentando encontrar meu pai ou Andy, ou até mesmo o Nicksy. Pra todos os lados que se olha é só demência; um cara gigantesco e musculoso com cabelo comprido e roupas de couro de motoqueiro tá cobrindo um policial de porrada; o porco tem um escudinho e um cassetete, mas o grandalhão consegue ganhar na força e esmaga o babaca com os punhos de marreta. Tem um cara cambaleando com sangue jorrando da cabeça, como se não conseguisse enxergar nada. Sinto uma pancada massacrante nas costas e meu estômago se convulsiona, mas eu consigo segurar e quando me viro dou de cara com um policial de cara apavorada e escudo e cassetete na mão, andando pra trás, como se eu fosse uma ameaça pra ele. Tudo tá em câmera lenta e eu tô latejando de ansiedade por causa do meu velho, mas ao mesmo tempo tô curtindo o barato, pilhado pra caralho. Felizmente a polícia recua, os manifestantes agredidos se reúnem de novo em grupos e continuamos a avançar, recolhendo pedras nas bordas do descampado. Acabo pegando uma pedra também, depois de concluir que esses facínoras não tão de brincadeira e que é melhor levar alguma espécie de arma. Mas o que eu realmente quero agora é encontrar o meu pai.

Mas que porra...

De repente uns uivos de raiva começam a atravessar o ar, e a agonia das pessoas parece tão grande que por um instante eu penso que a polícia largou spray de amônia ou algo assim nos olhos da rapaziada; mas são os caminhões dos fura-greves; eles tão começando a sair da fábrica, carregados de coque. A gente empurra de novo mas é repelido pela polícia, e Scargill fica na frente das fileiras de policias e começa a gritar no megafone, mas não dá pra entender nada, é como os anúncios da British Rail na estação. Os fura-greves vão sumindo na distância, ao som de deboches e xingamentos, enquanto o espírito de luta abandona todo mundo. Sinto uma coisa dura e horrível congelando no meu peito, penso que agora já era, e continuo procurando o meu pai.

Por favor permita esteja tudo bem com ele deus protestante deus do papa deus muçulmano deus judeu deus budista qualquer deus permita que esteja tudo bem com ele...

Alguns manifestantes cruzam o descampado na direção do vilarejo, levando os camaradas feridos, mas outros se contentam em ficar deitados no sol de um jeito tão descontraído que cê não acreditaria que eles tinham acabado de participar de uma pancadaria em massa. Eu não tô como eles; meus dentes tão trincados e eu tô tremendo como se tivesse um motor ligado por dentro. Pela primeira vez, começo a sentir os golpes que levei e sinto um latejamento forte na cabeça, nas costas e no braço que tá dependurado ao lado do corpo, amortecido.

PORRA...

Eu me sinto bem como meu pai se parece: alguém que se preocupa em excesso. Como ele se parece agora, não nas fotos em que tá mais jovem. Uma vez eu perguntei isso pra ele, por que ele sempre parece tão preocupado hoje em dia.

“Filhos”, respondeu ele.

QUE ESTEJA TUDO BEM COM ELE!

Tô pronto pra voltar pro vilarejo pra encontrar o ônibus; presumi que o velho e o Andy teriam ido pra lá; mas quando me dou conta o batalhão de choque tá vindo na nossa direção, batendo com os cassetetes nos escudinhos. Não dá pra acreditar, porque já terminou, os caminhões dos fura-greves já foram embora! Mas eles vêm mesmo pra cima da gente, caralho, e a gente tá desarmado e numa desvantagem numérica absurda, e eu penso: esses viados querem realmente matar a gente, e a única coisa que dá pra fazer é correr como um filho da puta e descer pelo aterro até a ferrovia. Cada passo arrebenta as minhas costas. Minha jaqueta engancha numa cerca e ouço ela rasgar. Ao meu lado nos trilhos tem um cara mais velho, gorducho e de cara vermelha, que tá mancando e dizendo com um sotaque do norte da Inglaterra, aos engasgos: “Isso... isso... eles tão tentando assassinar a gente, porra!”

Cadê a porra do meu pai?

A gente cruza a ferrovia e eu ajudo o cara mais velho a subir na outra margem. A perna dele tá fudida, mas as minhas costas tão dando uma de cigano pra cima de mim e o meu braço tá completamente fudido, o que não ajuda muito. O cara fica tagarelando no meu ouvido, em choque. Achei que o sotaque dele era do norte, mas o nome dele é Ben e na verdade ele é um mineiro de Notts em greve. Levou uma paulada e tanto no joelho.

Minha dor foi substituída por um enjoo que vem lá do fundo da barriga. Isso porque a gente tá sendo testemunha da carnificina terrível que tá acontecendo do outro lado dos trilhos; os manifestantes que sobraram tão levando cacete como se fossem focas e detidos pela polícia, e alguns ainda tão botando pra fuder e reagindo, apesar de tudo. Um carinha de camisa vermelha de lenhador tá ajoelhado no chão, cuidando de um amigo desacordado, quando um policial de choque chega por trás e acerta uma cacetada bem no meio da cabeça dele, fazendo ele cair por cima do amigo. É como uma execução. Na ponte acima, alguns manifestantes pegaram entulho do pátio e tão jogando em cima da polícia. Uns caras arrastaram um carro do pátio, tacaram fogo e jogaram ele rua abaixo. Isso não é policiamento nem contenção de manifestantes, é uma guerra contra cidadãos.

Guerra.

Vencedores. Derrotados. Perdas.

Me despeço do tal de Ben, volto pra rua e sinto um grande alívio quando avisto o meu pai. Ele tá parado junto com um rapaz que tem algo estranho. É como se ele tivesse vestido o capuz do Batman. Quando chego mais perto, percebo que é sangue vermelho-escuro cobrindo toda a cara dele, dá pra ver só os dentes e o branco dos olhos. Fico chocado quando cai a ficha que é o Andy; racharam a cabeça dele pra valer. A polícia continua avançando e eles meio que perseguem e arrebanham a gente na direção do vilarejo. Subimos no ônibus e vários caras tão detonados. Meu pai cortou a mão. Ele disse que foi de uma garrafa quebrada que um manifestante arremessou jogou sem força suficiente. Andy tá mal pra caralho e precisa de atendimento, mas um policial na escolta diz que quem parar no hospital pode ser preso e que é melhor a gente ir direto pra casa. Rostos arrogantes, cheios de ódio: bem diferentes daquela lata sorridente com que fomos recebidos.

Os viados armaram pra cima da gente.

Não tem razão nenhuma pra não levar o policial a sério, mas eu quero descer e ver se o Nicksy tá bem. “Meu amigo”, falo pro meu velho, mas ele balança a cabeça e diz, “De jeito nenhum. O motorista fechou a porta e ele? não vai abrir por nada desse mundo.”

O ônibus começa a andar e o Andy amarra a camiseta dum cara em volta da cabeça pra tentar estancar o sangramento. Meu pai fica sentado com o braço em volta dele, com um curativo improvisado na mão, enquanto o Andy murmura, “Nunca vi nada parecido, Davie... não dá pra acreditar...”

Fico ali sentado com a lombar doendo contra o assento, pensando o quão alto isso vai; o Chefe de Polícia, o Secretário do Interior, Thatcher... não importa se deram ou não as ordens, eles são cúmplices. Leis antissindicato e aumentos de salário enormes pra polícia enquanto a grana e as condições de todo o resto do setor público sofrem um corte atrás do outro... os viados causaram essa situação...

O ônibus vai serpenteando até a estrada e parece um necrotério aqui dentro. Uma hora a cerveja que foi distribuída e consumida com raiva começa a bater e os cantos desafiadores de “Vitória dos Mineradores” ganham força e convicção. Mas pra mim não tem nada de glorioso nisso. Parece que fomos trapaceados, como se estivéssemos voltando de Hampden e o juiz tivesse dado um pênalti furado de último minuto pro Celtic ou pro Rangers. Tá quente pra caramba na rua, mas o ônibus tá com o ar frio ligado e a temperatura dentro tá congelante. Tô sentado com a cabeça apoiada na janela, vendo meu bafo condensar no vidro. Tá doendo pra burro agora, principalmente o braço, e cada respiração é como um soco na porra da espinha.

Uns caras no fundo do ônibus começam a bater com os pés e a cantar umas canções de provocação da República da Irlanda, e depois um par de cantos pró-IRA entra na seleção. Em pouco tempo eles tão vociferando exclusivamente canções da República da Irlanda.

Meu velho fica de pé num salto e aponta o dedo reprovador na direção deles, com a mão sangrando pelo trapo que tá amarrado em volta. “PAREM DE CANTAR ESSA MERDA, BANDO DE TERRORISTAS FIADAPUTA DO IRA! ISSO NÃO É UMA CANÇÃO SOCIALISTA E NÃO É UMA CANÇÃO SINDICALISTA, SEUS FENIANOS DE MERDA!”

Um carinha magricela levanta e começa a gritar com ele, “VAI SE FUDER SEU UNIONISTA TÓRI HUNO DESGRAÇADO!”

“NÃO SOU TÓRI PORRA NENHUMA... seu filho da...”

Meu velho sai como um touro descontrolado na direção do fundo do ônibus, mas eu vou atrás e consigo segurar ele com o meu braço bom. Temos a mesma altura, mas eu sou bem mais miúdo, e ainda bem que o Cammy veio me ajudar a impedir o velho brigão. Meu pai tá batendo boca com os viados no fundão, mas tem gente mandando eles se acalmarem e eu e Cammy começamos a puxar o pai de volta, e quando o ônibus escorrega na estrada molhada eu sinto um espasmo de dor paralisante nas costas que me arranca lágrimas.

Weedjies filhos da puta, não conseguem fazer nada sem trazer à tona essa merda toda de Irlanda e futebol...

A gente faz o velho sentar e, numa boa, um dos arruaceiros vem imediatamente pedir desculpas. É o magricela, ele praticamente não tem queixo e os dentes são grandes e tortos. “Desculpa aí, campeão, cê tem razão, canção errada na hora errada...”

Meu pai aceita com um aceno de cabeça e o maluco oferece uma garrafa de Grouse pra ele. O velho bebe um gole conciliador e em seguida, depois que o Castor faz um sinal com o rosto, passa a garrafa pra mim, mas eu dispenso com um gesto. Nem fudendo que eu vou tomar um gole de qualquer coisa oferecida por esses viados, ainda mais dessa merda de uísque.

“Tudo bem, os nervos tão um pouco à flor da pele”, meu pai diz apontando com a cabeça pro Andy, que parece meio fora de órbita, como se estivesse em estado de choque.

Aí eles começam a conversar sobre os acontecimentos do dia e em pouco tempo os dois tão se abraçando pelos ombros como se fossem amigos de infância. Me dá vontade de vomitar. Se tem uma coisa ainda mais nojenta que esses extremistas se atracando no pescoço uns dos outros é quando eles começam a ficar amiguinhos. Não consigo ficar aqui sentado com a porra das costas doendo desse jeito. Vejo uma placa de estrada lá fora indicando Manchester e, sem saber muito bem que porra eu tô fazendo, acho que meio que pensando no Nicsky, eu me levanto. “Vou descer aqui, pai.”

Meu velho fica pasmo. “Como é que é? Cê vem pra casa comigo...”

“Não é uma boa ideia descer do ônibus aqui, amigo”, o novo amigão dele com a fuça de esquilo faz o favor de se intrometer, mas ignoro esse viado de merda escancaradamente.

“Não”, digo pro meu pai, “é que eu disse que ia encontrar uns parceros no Wigan Casino”, minto. É meio-dia da porra de uma segunda-feira, e o Wigan Casino fechou uns anos atrás, mas é a única coisa que me ocorre.

“Mas a vó tá esperando te ver de volta em Cardonald... a gente vai pegar o trem pra Edimburgo mais tarde... seu irmão tá no hospital, Mark, sua mãe vai morrer de preocupação...” meu pai começa a implorar.

“Vou nessa”, digo pra ele, e salto pra frente do ônibus e peço pro motorista parar no acostamento. Ele me olha como se eu fosse um marginal, mas os freios a ar chiam e em seguida eu desço, sentindo um espasmo de dor nas costas. Viro a cabeça e me deparo com o olhar magoado e perplexo do meu pai, indo embora junto com o ônibus pro fluxo do tráfego. Me dou conta de que não faço a menor ideia do que tô fazendo aqui, caminhando na beira dessa estrada. Mas as costas doem menos quando me mexo: só preciso sair dessa porra desse lugar.

O sol tá lancinante e continua quente pra cacete, um dia de verão realmente lindo. Os carros passam a mil indo pro norte enquanto arranco da jaqueta de brim o adesivo que diz “VIVA O CARVÃO, CARIDADE NÃO”. O rasgo na manga não é muito grande; vai dar pra remendar numa boa. Levanto o braço e estico ele, enfrentando a dor incômoda no ombro. Subo pela margem da estrada até um viaduto, me debruço na grade e fico olhando os carros e caminhões rasgando a estrada lá embaixo. Fico pensando que a gente perdeu, e que tempos sombrios nos aguardam, e me pergunto: que porra que eu vou fazer com o resto da minha vida?

1. Vovó Gosta De Um Copinho De Uísque. (N. dos T.)

2. Weedgie é um termo muitas vezes pejorativo para moradores de Glasgow.


Eu fiz o que eu fiz

Oito cartões de aniversário chegaram hoje de manhã: todos de gatinhas, e nem tô contando minha mãe e minhas irmãs. Que coisa mais meiga pra caralho. Um veio da Marianne, com uma súplica triste de “me liga” depois da avalanche desesperada de bilhetinhos de amor e beijos sensuais. Provavelmente se dando conta do fato de estar virando uma chata sem remédio com toda essa conversa de “vem pro casamento da minha irmã”. Por acaso eu pareço candidato a Consorte em Casamento de Pobre? De qualquer modo ela está de volta ao cenário, e portanto acabará severamente levando ferro sem dó mais cedo ou mais tarde.

Claro que o clima de animação acaba arruinado por um envelope marrom cagado do governo, me convidando pra uma entrevista de trabalho relativa a um invejável cargo de atendente de estacionamento em Canonmills. É empolgante que tenham lembrado de Simone, mas será preciso recusar de forma respeitosa e ter uma conversinha com meu parcero Gav Temperley no escritório do auxílio-desemprego sobre esta intromissão nada bem-vinda. Esses caras que trabalham não compreendem a mente dos homens dedicados ao ócio. Estou desempregado por escolha própria, seus cretinos de merda; por favor, não me confundam com algum desses zumbis miseráveis que vagam em transe pela cidade em busca de um emprego que não existe.

Atendente de estacionamento. Mas nem fodendo, Milksnatcher e Bike Boy. Se aparecer uma vaga de Playboy Bilionário nessa porra de escritório, aí talvez eu me interesse!

Mas o melhor presente chega na forma de um telefonema. Feliz aniversário de vintidois anos, Simon David Williamson; aquele escroto enfim deixou o recinto! Recebo a notícia, transmitida por minha irmã Louisa, com uma elocução solitária e ofegante e um soco triunfante no ar. Dou uma olhadinha no dicionário, hoje é um dia M, e decido que minha nova palavra é:

MIOPIA. Substantivo feminino. 1. Vista curta. 2. Falta de imaginação, perspicácia ou discernimento intelectual.

Depois tô indo direto pros Banana!

Mas que beleza!

Quando chego no largo da Walk, começa a chover pra cacete; uns pingos gelados que chegam a arder na pele, mas abro um sorriso e estico meus braços descobertos, tô usando camiseta, e levanto a cabeça pro céu nesse dia lindo deixando a dádiva bondosa do Senhor resfriar minha pele.

Direto ao assunto; chego na coelheira dos Williamson no segundo andar desses cortiços construídos pelo sistema e que dominam o velho porto, não a merda ao sul da Junction e da Duke Street, que eu me recuso a considerar como Leith genuíno. – Simon... filho... – minha mãe implora, mas ignoro ela, Louisa e Carlotta e entro direto no budoar parental pra conferir se o babaca vaidoso e cheio de pose esvaziou o guarda-roupa de casacos e camisas. Seria um sinal certeiro de que ele realmente abandonou o barco em vez de tudo isso ser mais uma engrenagem de mecanismos futuros de manipulação. Meu coração quase sai pela boca enquanto abro a porta barulhenta. Sim! Não tem mais nada! MAS QUE BELEZA!

Nossa, depois de tudo que ele fez ela passar, qualquer um acharia que ela estaria bem feliz, mas Mama tá sentada no sofá, chorando e xingando a vagabunda que conquistou aquele coração de lata. – Aquela vadia fez lavagem cerebral nele!

Non capisco!

Ela devia estar agradecendo àquela vaca demente por ter levado pra longe aquele parasita imundo. Mas não: Louisa, minha irmã mais velha, também tá chorando no sofá, e a caçula, Carlotta, tá sentada aos pés dela que nem uma retardada. Parece uma família judia de Amsterdã que acabou de descobrir que o homem da casa foi levado pros campos!

Aquele porra só se mandou com uma piranha!

Fico de joelhos ao lado delas, segurando a mão gorducha da minha mãe, ainda com os anéis vagabundos dele, usando minha outra mão pra acariciar os cachos longos e escuros da Carlotta. – Ele não pode mais sacanear a gente, Mama. Vai ser melhor pra todo mundo. Não dá pra ser míope.

Ela assoa o nariz num lenço, mostrando as raízes grisalhas no cabelo tingido e duro de laquê. – Num acredito. Tá, eu sempre soube que ele era safado – ela diz com seu sotaque de pobre –, mas nunca pensei mesmo que ele ia aprontar uma dessa...

Eu tinha vindo pra cá pra dar apoio, inclusive prático se isso se fizesse necessário, porra, eu tava até pronto pra ajudar o babaca a fazer as malas, mas ele tinha maravilhosamente desaparecido. Se eu soubesse que ia ser tudo tão fácil, teria até quebrado o porquinho e comprado um Moët Chandon! Eu tava ultra a fim de comemorar. Vintidois! Mas chego aqui e só encontro tristeza, desespero e caras de cu.

Mas vai se foder. Eu me levanto, deixo elas abrindo o berreiro e saio pra fumar um cigarro. Chega a dar vontade de admirar o escroto pelo domínio que tem sobre elas. Meu pai: David Kenneth Williamson. Vi as fotos da minha velha quando era jovem: uma gata quente latina e morena, antes do macarrão fazer efeito e ela inchar até ficar do tamanho de um caminhão. Como é que ela foi cair na conversa de um vagabundo espertalhão daqueles?

A chuva parou e o sol voltou com tudo, removendo qualquer indício da existência da água exceto por uma ou duas poças no meio do calçamento irregular da Blocolândia lá embaixo. É bem isso que eu devia fazer, passar um pente-fino na casa inteira pra remover qualquer rastro daquele viado. Ao invés disso, dou uma tragada profunda e gostosa no Marlboro.

Olhando de cima prum Leith ensolarado como nunca, pego no flagra Coke Anderson saindo de um carro com a mulher e os pirralhos. A esposa, Janey, é sem dúvida um caco velho, mas devia ser uma delícia no auge e até que ainda rendia um caldo. Tá discutindo com o Coke, que vem se arrastando atrás dela, bêbado como sempre. O bicho burro não teve sequer um dia de sobriedade desde que foi aposentado por invalidez em mil novecentos e sei lá quando. Tenho pena do garotinho, Grant, que tem uns 8 ou 9 anos, porque sei como é horrível ter um pai que se recusa a tomar vergonha na cara; mas no meu caso a fonte dos problemas não era a bebida, mas as mulheres. Mas ô-lá... transalerta, transalerta... a filha virou uma bela duma gostosinha! Provavelmente vai inchar e virar uma pata antes dos 18, mas eu certamente não me incomodaria de dar uma provada nesse melzinho doce antes que estrague!

Escuto a discussão continuando enquanto sobem as escadas, o lamento anasalado e cheio de desculpas de Coke: – Mas Ja-ney... só me encontrei com o pessoal, Ja-ney... não me leva a mal, tá?

Como é mesmo o nome da filha... vem pro Simon...

– Vira o disco, pelamordedeus – resmunga Janey, trocando o lance de escadas e dando uma olhadinha pra mim antes de virar a cabeça de volta pro Coke – Fica longe de casa, Colin! Não incomoda!

Recebo o rostinho cor de beterraba do pequeno Grant com um sorriso compreensivo. Entendo sua dor, meu garoto. E a filha vem depois, fazendo beiço com os lábios de adolescente como se fosse uma modelo que acaba de saber que vai ter que trocar de roupa mais uma vez e dar outra volta na passarela antes de ter a chance de se entregar àquela muito bem-vinda carreira de pó e um vodca-martíni.

– Simon – Janey diz bruscamente ao passar por mim, mas a gostosinha, que se chama Maria, me dá uma esnobada. Bem loira e bronzeada, me faz pensar que devem ter voltado há pouco de férias em família em Majorca (onde Coke inevitavelmente se arruinou), o tom da pele tornado mais vivo pela saia preta apertada e o top amarelo-claro.

E de repente aquele nome...

Aquelas seriam as últimas férias em família daquela coisinha. De agora em diante vai ser Fodelança Ilimitada com um bando de viados ou algum vizinho sortudo e vigoroso. E Simon David Williamson talvez se candidate pra essa vaga aí. Louisa cuidava dela quando era pequena, e eu devia ter participado mais dessa história pensando na chance de ela virar uma gostosa. Mas quem poderia imaginar que aquela gorduchinha sem sal ia se transformar numa delícia cremosa num intervalo de seis meses?

Coke vem se arrastando atrás dos outros e enfim chega ofegando na sacada, com a cara estropiada toda suplicante, mãos viradas pra cima. – Mas, poxa, Ja-ney...

A mulher e os filhos entram no pardieiro do governo e Coke passa tropeçando por mim, mais parecendo um espantalho quando a porta bate bem na cara dele. Fica ali parado por uns dois segundos antes de se virar pra mim todo perplexo.

– Coke.

– Simon...

Não tô a fim de voltar pra dentro e ficar ouvindo Mama e mie sorelle choramingando sem parar sobre o fiadaputa que foi embora, e Coke parece oficialmente barrado da própria casa. Só faz um ano que saí daqui, mas a transformação pela qual a pequena Maria passou nesse tempo é um negócio transtornante. Preciso de informações mais detalhadas pros arquivos. – Quer tomar umas? É meu aniversário!

A perspectiva de beber mais deixa Coke um pouco animado. – Tô meio sem grana...

Penso nisso por um segundo. O que eu tenho a ganhar? Um possível convite paterno para adentrar a propriedade da família, e a oportunidade de cortejar a encantadora Maria. É um investimento, e o Velho Baxter vai ter que esperar mais um tempinho pela grana do aluguel. Além disso, meu amiguinho trabalhador de cabeça vermelha vem morar comigo, cansado das brigas de família em Chez Renton. Então tá, esse mês o aluguel é com o Rents. – Eu pago, amigão. Hoje é por conta do aniversariante!


Blackpool

Meio-dia de sábado

O rádio tá estourando enquanto eu, Dave Mitch, Les e Young Bobby da gangue cantamos junto com Nik Kershaw a plenos pulmões: – WOO-DINT IT BE GOOOOD TO BE IN YOUR SHOES, EE-VIN IF IT WAS FOR JUST ONE DAHY...[3] enquanto Ralphy Gillsland, que tá aplainando uma tábua, torce a cara.

Eu tô meio agitado depois de ter tomado umas cervas a mais no Leith ontem à noite e a minha postura tá tão ruim por causa das minhas costas fudidas que eu quase arranquei fora a ponta do dedo tentando cortar o buraco da tranca nessa porta. Achei que o sangue não ia mais parar, mas estanquei com um curativo de algodão e gaze.

Caralho, dá pra sentir o gostinho do fim de semana, porque é uma manhã de sábado e a gente tá excluído, mas não por muito tempo! Fora essa hora extra, que é uma coisa boa porque a gente tá na cidade, fora da oficina, reformando esse bar em Tollcross, a semana até que foi boa. Perdi o concurso de cagalhão na segunda porque tava em Yorkshire na manifestação, e por causa disso Sandy Turner, o motorista, me derrubou do pódio com um premiadão de quase quarenta centímetros que tá esticado em cima de uma página emporcalhada do Daily Record, lá em cima do telhado da garagem nos fundos da fábrica, como o Les já me mostrou duas vezes. Mas as gaivotas escrotas já começaram a chamar a atenção. Os caras do escritório de aluguel de van que fica do outro lado da rua percebem elas gritando e voando em cima do telhado pra comer, e nos dias quentes o fedor sobe e entra de volta no banheiro. É questão de tempo pra chefia descobrir.

Claro que o Ralphy não tá nem um pouquinho feliz, porque ele quer que a gente fique trabalhando depois do expediente nessas mesas de bar. Por mais que eu teja gostando de trabalhar com marcenaria de verdade de novo, é hora do almoço de sábado, então simplesmente não vai rolar.

O Ralphy deve ter a cara mais grotescamente desastrosa de todo o universo. Ele tem umas papadas gigantescas que parecem lábios vaginais e um narigão aquilino que o Les descreve como um “clitóris avantajado”. Pra piorar, a boca dele é vertical em vez de horizontal. Uma vez o Les apelidou ele de “cara de buceta”. É verdade; é isso que ele parece! Ele é meio vermelho, como se tivesse acabado de levar uns tapas, e a imagem fica completa com o cabelinho ralo e mal cortado em cima, que fica parecendo uma depilação à brasileira. Ele tá resmungando pra caralho através do nariz de clitóris, mas eu só consigo pensar na noite de Northern Soul no Blackpool. – Cê tem que acabar de cortar os contornos, Mark, eles precisam estar prontos à noite pro Terry e o Ken poderem instalar amanhã cedo. Vai ter que ser.

Arrã, pode crer.

Eu só tô fazendo trabalho temporário, mas o Ralphy tá botando tudo nas minhas costas. Como se eu desse a mínima pro que ele acha que “vai ter que ser”. O que “tem que ser” é que ele é um careta ranzinza, o tipo de pequeno empresário que a Thatcher adora; um viado mesquinho, acomodado e espiritualmente morto que vive se gabando de “trabalhar duro pra sustentar a família”. A inferência é que todo mundo tem que sair da frente e deixar que caguem na sua cabeça em nome desse bem mais nobre. O que o viado esquece é que cê conheceu a família dele; uma esposa gordalhona, sovina, asquerosa e com um vácuo no lugar da alma, e uma prole mutante e execrável. Aí cê pensa: que se foda a sua família, seu saco de merda com cara de buceta; a sua família é uma praga que devia ser exterminada antes de transmitir seu legado e transformar essa porra desse mundo num lugar ainda mais intoleravelmente chato e maligno do que já é. Então junta a sua merda e vai pra puta que pariu, seu filho da puta ganancioso.

Pretendo explorar ao máximo a posição agradável em que me encontro nesse trampo de verão com meu antigo empregador, antes de voltar pra academia. – Tô indo nessa, Ralphy.

– Eu também – diz Davie Mitchell, aproveitando a deixa. – Tenho uns lances pra resolver, tá ligado?

Bom, isso basta pra fazer balançar aquelas dobras faciais. Os olhos do Ralphy queimam de tanta dor. É como se ele tivesse nos flagrado roubando as batatinhas de forno McCain do prato de seus kinder.

– O cara merece uma cervejinha no sábado. – Les vem dar apoio. Les é um gordo mais ou menos da idade do meu pai, com um cabelo loiro ralo e uma cara vermelha de bebum. Vive tirando sarro de tudo. – Até o nosso jovem Bobby aqui tem um filminho pra ver com a namorada, né, Bobby?

Bobby tá com um sorriso estampado na cara de pudim e os olhos escuros e femininos brilham de más intenções quando aparecem por baixo da franja comprida. – Pode crer. Vou passar o salame numa mina aí – diz ele antes de largar aquela risada dele, um zurro estremecedor que sempre faz a gente cair no riso junto com ele, mas que deixa o Ralphy totalmente escandalizado. Dá pra reparar quando ele confere as unhas imundas do Bobby, imaginando que tão rasgando o hímen da filha adolescente dele na última fileira de um pulgueiro qualquer.

– Ah, vamos, rapazes – ele choraminga, ficando todo amigão e conciliador no instante em que se escuta aquele som final das ferramentas sendo largadas. – Cês podiam ficar pelo menos mais uma hora!

Fica todo mundo olhando pro chão, guardando as ferramentas. Les fica cantando em estilo Sinatra: – ... to walk away from someone who means everything in life to you...[4]

Ralphy fica parado com as mãos na cintura. – Mark – ele roga –, cê não costumava me deixar na mão, parcero...

Eu sempre deixava o viado na mão, mas minha ausência de um ano em Aberdeen fez o coração dele amolecer. Mas esse apelo patético e de transparente teor manipulativo fracassa miseravelmente. Ele tá esquecendo que quando pedi a folga na segunda pra participar da manifestação ele disse: “Bem sua cara. Vai lá apoiar uns vagabundos que não querem trabalhar enquanto tem trabalho de sobra aqui.”

Bom, então que se foda, seu grelo ambulante, completei minhas horas e vou cair fora. – Nada feito – digo com ar pesaroso, então arreganho os dentes, arregalo os olhos e imito a voz de George Formby cantando: – Ah ave ter be in luv-er-lee little Lan-ca-sheeeerrrr...[5]

Les e Bobby se unem a mim com seus ukuleles imaginários e fazemos uma rápida jam session, mas nem fudendo a gente fica mais uma hora aqui. Abandonamos o viado choramingão alegremente e vamos pro bar em Port Hamilton. Tomo umas cervejas rapidinho e vou logo pra casa pra me trocar e encontrar os outros.

E então Tommy, Keezbo, Segundo Lugar e eu tamo indo pra festa do Blackpool no carro do Tam. Preparei uma fita e o Otis Blackwell tá quebrando tudo com “It’s All Over Me”. Nada supera um pouco de Northern Soul, e o Wigan Casino da nossa adolescência faz muita falta. Mas essa promete ser uma boa noite, a festa foi organizada por um dos caras originais do Blackpool Mecca. Tam fica o tempo todo na direção com aquele penteado escandaloso de jogador de futebol dos anos setenta; eu tô atrás com o Keezbo, sentando todo torto por causa da porra da dor nas costas, tentando manter o peso na bunda esquerda. Não é exatamente a posição mais cobiçada, porque esse gordão ocupa todo o espaço, com as mãos descansando em cima da barriga como um Buda ruivo. Segundo Lugar, que tá com a cabeça raspada com máquina um, o que ressalta suas feições rígidas e os ângulos salientes do crânio e faz ele parecer mais barra-pesada do que realmente é, tá no banco do passageiro. Ele e o Keezbo tão bebendo, sendo que ele tá bebendo pesado, e eu tô só fingindo e colocando a língua na boca da garrafa de vodca quando ela passa por mim. Não sou muito fã de vodca pura e quero ficar inteiro pra aproveitar a dança e o barato da maconha.

O pescoço gordo e massudo do Keezbo, cheio de sardas, parece inchar em cima dos ombros dele como o capacete do Darth Vader. Mas ele tem um cabelo ruivo legal, daquele tipo grosso que nem esponja de banho, que nunca vai rarear ou cair, ao contrário do meu, que é bem ralo. Ele tá usando uma daquelas calças cáqui com a cintura alta, o que é uma má ideia pra qualquer pessoa e um verdadeiro desastre prum viado balofo como ele. O Tommy já fez um pequeno comentário sobre a “moda de Newcastle”. Como era de esperar, a gente mal saiu de Edimburgo e o Keezbo já quer parar pra comprar umas batatas fritas. – Tô faminto, sr. Tommy...

– De jeito nenhum, não até a gente chegar no Blackpool. Quero pegar o futebol na TV.

Keezbo segura dois pneus de banha com as mãos. – Não vai sobrar nada de mim. Diz pra eles, Mark – ele suplica elevando as sobrancelhas ruivas acima do aro grosso e preto dos óculos.

– O Keezbo tá parecendo seriamente desnutrido, Tam. Cê contribuiu pro visual Biafra – digo, e então imito a voz da minha antiga vizinha racista do Fort, a sra. Curran. – Precisamos cuidar primeiro dos nossos!

– Tá bom, mas só no posto Kendal – diz Tommy passando a mão naquela maçaroca estilo Rod Stewart que ele tem em cima da cabeça. – O que aconteceu com o dedo? – pergunta ele.

– Cinzel. O viado nos faz desaprender tudo de tanto nos obrigar a ficar só encaixando painel, aí perco a mão quando volto a fazer trabalho de verdade – respondo enquanto o Keezbo fica resmungando, contrariado. – Cê acha que aguenta, parcero? – pergunto pra ele.

– Tô queimando gordura pra caralho, sr. Mark. Vai ser só uma paradinha. Se o sr. Rab passar a vodca de novo, talvez me ajude a pensar em outra coisa...

– Mmmgh... – o Segundo Lugar dá um grunhido contrariado e a mão atarracada do Keezbo recebe a garrafa de Smirnoff.

Apesar de parecer um coco deitado de lado e virado do avesso, o Keezbo disputa com Tommy o posto de nosso melhor dançarino. Eu costumo ficar ali parado nas beiradas como um panaca, lamentando não saber dançar, até que a anfetamina comece a funcionar. Depois disso eu só lamento não conseguir parar. Uma vez eu me passei no Casino e fudi as costas tentando dar um mortal. Claro que aquele policial encontrou o lugar certinho com o cassetete! O viado deve tá em casa numa caixa de fósforo de um conjunto residencial Barratt, vendo TV com a mulher frígida e os filhos ingratos, não dando a mínima bola pro fato de que arruinou a dança pro garoto Renton. Ainda bem que existe a porra do paracetamol. Mas o Keezbo é outra história, considerando o balão que ele é. Deve ser o ritmo de baterista. É socado demais pra dar um mortal, claro, mas ele cai na pista como uma máquina de sexo gorda e ruiva.

A gente chega em Blackpool e larga o carro. O cheiro de fritura, diesel e maresia me faz lembrar de finais de semana de setembro que ficaram pra trás. Lembro de vir pra cá com a mãe, o pai, o Billy, o Pequeno Davie, o vô e a vó Renton. Eu ali todo envergonhado e desengonçado, passeando em cima de um jumento, enquanto o Davie era empurrado do meu lado pelo vô Renton e todo mundo gritava, “ELE TÁ ULTRAPASSANDO VOCÊ, MARK!”

E eu querendo meter o calcanhar nas costelas daquele bicho inerte; empurrar o filho da puta pra dentro do Mar da Irlanda, só pra me livrar do constrangimento. Lembro que fiquei tão mortificado que escapuli seis vezes pra ir sozinho no cinema local ver Oliver!. “Não acredito que cê quer ver isso de novo, filho. A gente tava indo pra Pleasure Beach!”, a minha mãe resmungava. “Ah, dá o dinheiro e deixa ele ir, ele vai passar o dia todo com essa cara”, o pai balançava a cabeça. E eu pegava o dinheiro com sofreguidão, antecipando a linda solidão do cinema escuro e o gosto do sorvete desfrutado à vontade, longe do olhar de águia de Billy, com a expressão tchauzinho, trouxas reverberando deliciosamente na cabeça.

... nunca antes um menino quis tanto...

A gente chega na Golden Mile e entra naquele bar grande e maluco que tem embaixo da Torre. Tá lotado, mas a gente consegue pegar umas bebidas a tempo de ver o Platini fazer o gol da vitória contra Portugal.

– Esse cara joga, hein, Rab – digo pro Segundo Lugar, que tá segurando um pint e uma vodca dupla e começando a se soltar, mas ele não quer falar de futebol.

– Northern Soul? – pergunta ele, soando como o meu pai. – Mas o que é isso, Mark? Qualé que é a dessa porra?

– Cê vai ver, parcero – diz o Tommy e dá risada enquanto um gordinho do nosso lado abre uma garrafa de Beck’s e toma um banho de cerveja enquanto os amigos dele ficam rindo. Eu vi quando eles sacudiram a garrafa enquanto ele não tava olhando. – Seus viado fiadaputa – diz ele com sotaque de West Midlands.

– Que azar, amigo. – Tommy sorri dando uns tapinhas nas costas do cara.

– Olha, não vai dar força presses viado – reclama o gordinho. Todo grupo tem o amigo gordo; em alguns tem vários. É o Tower Bar em Blackpool, e se cê tiver no estado de espírito e na companhia adequada, é um dos melhores lugares do Planeta Terra.

Meu melhor amigo provavelmente é o Tommy. Se preocupa com as coisas, com as pessoas; só que talvez passe um pouco do ponto, levando em conta o tipo de mundo em que a gente é obrigado a viver. Apesar de ser um dos caras mais fortes e bonitões que eu conheço, com um porte sólido de boxeador meio-pesado, o Tommy é no geral um sujeito bem humilde.

A gente começa a conversa sobre o que a gente prefere nas minas e eu menciono que prefiro mina com peito pequeno, o que é um sacrilégio presses viados. Depois que me chamam de tudo, de bichona até pedófilo, o Keezbo balança a cabeça e diz: – Não, sr. Mark, eu gosto que a mina tenha dois melões bem grandes.

– Gosta tanto que deixou crescer dois – digo pegando nas peitolas de cerveja dele.

Mas esse breve diálogo nos informa que, por mais que a Torre teja perfeita no momento, o momento vai acabar rapidinho. O futebol e a conversa de homem precisam ceder o lugar pra dança e pras minas, então a gente termina de beber e parte pra boate. Caminhando pelo calçadão, de repente minha memória cobriu com água morna momentos congelados do passado. Escutei minha mãe lendo pra gente, sentada numa cadeira entre a minha cama e a do Billy, com sua voz peluda de tabaco aumentando e diminuindo de volume conforme ela virava a cabeça pra mim e pra ele. Livros sobre cachorro, urso e cavalo. Todo mundo gostando da história e ao mesmo tempo tenso, esperando que o próximo grito do Pequeno Davie baixasse a cortina sobre o tempo precioso que tínhamos ganhado.

A boate fica no salão de festas de um grande hotel um pouco mais adiante no calçadão. A gente entra e tá alucinante. Tá tocando um disco que eu não conheço, mas não quero dar pro Keezbo a satisfação de me dizer qual é. Então começo a cantar junto, praticando a sincronização labial da letra enquanto atravessamos a multidão. O Segundo Lugar olha pra gente, depois pro bar e pras Pepsis, em estado de pânico. Ele percebe que o bar não tem licença pra vender bebida. – Não tem... não tem trago, caralho...

– É... – Tam abre um sorrisinho.

O Segundo Lugar explode e a cara dele fica roxa como se ele tivesse entrando em convulsão. – O que tá acontecendo aqui? CÊS ME TRAZEM ATÉ A PUTA QUE PARIU E NÃO TEM TRAGO PRA TOMAR NESSA MERDA SEUS VIADO!

Pensei que ele ia partir pra cima de um de nós, porque tá hiperventilando, mas ele só dá meia-volta e sai correndo da boate.

– Puta merda... que coisa séria... vou atrás dele – diz Tommy.

– Deixa o cara – digo. – Que coisa mais ridícula.

– É que ele gosta de uma bebidinha, sr. Mark – diz Keezbo.

– Todo mundo gosta, mas imagina não conseguir ficar algumas horas sem trago – digo rindo. – É pior do que ser uma porra dum viciado! Ele podia ter fumado um com a gente!

A gente dá uma olhada em volta e fica feliz em ver a quantidade de buceta de qualidade presente. Adoro Northern Soul, mas algumas festas do gênero costumam ficar cheias de cueca. De repente escuto aquele toque de piano que introduz o clássico dos Volcanoes, “(It’s Against) The Laws of Love”, e vou direto pra pista, com ou sem dor nas costas. Grito pro Tommy: – Vamolá, Tam, “Laws of Love”! – Mas depois me distraio ao reparar num cara com a cabeça enfaixada no meio da pista. É o Nicksy.

Estou repensando, a si-tu-a-ção...

Fico um tempo olhando o viado tentando se exibir, a dancinha dele é aterradora, e vou entrando no groove enquanto me aproximo dele. Tommy e Keezbo ainda tão só de bico nos cantos da pista. Tô quase chegando pra dizer oi pro Nicksy, mas começa a tocar “Skiing in the Snow” e eu caio fora imediatamente porque é a versão do Wigan’s Ovation em vez da original do Invitations. Aí aquele gordalhão jambo[6] punheteiro do Keezbo mostra que não entende de porra nenhuma, vai lá pro meio e começa a castigar a pista.

No bar, enquanto damos uma olhada nas garotas, todas vestidas de acordo, seja com vestidos sem mangas (magia!), tops diminutos e saias curtas (puta merda!) ou calças justas e blusas (maneiro!), Tommy me pergunta a respeito dessa viagem de InterRail pela Europa. – Cê vai com um parcero e duas mina, é isso? Massa.

– É.

– Cê tá comendo alguma?

– Não – respondo, e na mesma hora penso em Fiona Conyers, uma das garotas, em como ela é massa, uma mina simplesmente brilhante. Ela é de Whitley Bay. Socialista engajada. Um cabelo longo, liso e preto como tinta, um sorrisão cheio de dentes e peitos que sequestram a atenção do cara. Um ajuntamento esquisito de espinhazinhas na testa, um foco de oleosidade que nenhum produto antiacne consegue combater. Sinto de repente uma vontade de dar uns pegas nela. Mas deve ser só a anfetamina começando a bater.

O Keezbo não tá brincando, tá dançando no chão pra delírio da galera. Todo mundo curte ver um gordão mandando ver, sacudindo as banhas do rabo. O cara pensa que se ele consegue, todo mundo consegue, e ele deve deixar um monte de viado emputecido quando vai embora com uma gostosa no fim da noite e eles voltam pra casa e deitam na cama com a barriga cheia de cerveja e os dedos em volta do melhor amigo que eles deixaram na mão mais uma vez. E sei disso porque já fui um deles uma porção de vezes. Mas não posso tentar prejudicar outro ruivo, ainda mais o Keezbo, que toca bateria na mesma banda em que eu toco baixo. Só que é difícil acompanhar o ritmo do fiadaputa.

Tommy tá usando a camisa Fred Perry amarela, tentando parecer na dele, ganhando tempo até que cheguem mais minas. Tá todo mundo meio desesperado pra comer alguém, afinal de contas é fim de semana, mas acho que a situação do Tam é a mais crítica; acho que ele não dá um bago desde que se separou da Ailise no Natal.

Chego por trás do Nicksy, que tá meio que dançando com umas minas de Manchester e ao mesmo tempo farejando a pista toda como um cachorro da polícia num depósito em Amsterdã. Agarro os ombros dele com força e digo: – Você está preso, Brian Nixon, por agredir o cassetete de um agente da lei...

– MARK RENTON! – Ele me beija na testa. Tá doidão, mas uns viados que tão por perto me olham como se eu fosse alguma celebridade, porque o Nicksy é uma figura conhecida na cena de Northern.

– E essa cabeça?

– Algum viado de merda me acertou uma porrada. Não dava pra ir pro hospital, eles tavam prendendo geral. Foi louco pra caralho aquilo, hein?

– Foi, total. Os viados me arrebentaram as costas. Tô sofrendo aqui na pista.

– Não me vem com desculpa. – Ele ri, e depois aponta pra cabeça. – Pois é, seis pontos, mas aquela porra de carrinho de Graeme Souness que cê me deu tá doendo muito mais, seu viado. – Ele se inclina pra esfregar o tornozelo, depois olha na direção da saída. – Com quem cê veio?

– Três parceros. Quer dizer, agora são dois. Um dos viados foi embora de maneira um tanto brusca quando ficou sabendo que não tinha trago. Acredite ou não, é o Rab, o cara sobre o qual te falei, que tava na lista do Manchester United uma época. Agora ele não consegue ficar dez minutos sem dar um gole.

– O Matty veio? – pergunta ele, todo excitado.

Tenho vontade de dizer pro Nicksy que o Matty já não é exatamente o mesmo cara que ele conheceu naquele albergue de Shepherd’s Bush em ‘79, mas não é legal avacalhar um amigo pro outro. – Não, ele não tá podendo sair até tarde. Shirley, o nenê, coisa e tal.

– Que pena, faz anos que não vejo aquele viado.

– Mas tem uns outros malucos pra cê conhecer aí. E aqui tem um amiguinho... – Tiro duas pílulas azuis do bolso da calça jeans e passo uma pro Nicksy. Cada um engole a sua e a gente fica num papo animado. Brian Nixon, meu primeiro amigo naquele squat onde eu e o Matty fizemos festa e moramos. Segunda, terça, dias felizes. Lembro do Nicksy dizendo que detestava o nome de verdade dele por causa da associação com Richard Nixon. Eu gosto do meu nome verdadeiro: queria que os viados usassem mais, em vez de ficar com essa merda de Rent Boy. Então a gente fica contando história um pro outro, lembrando dos velhos tempos, falando da greve e da guerra de classes. Essa anfetamina é boa pra caralho...

A gente tá trincando os dentes quando apresento o Nicksy pro Tommy e pro Keezbo. Eles vieram correndo pra perto dele quando notaram que tinha mulher em volta, duas minas de Manchester chamadas Angie e Bobbi. O Nicksy é conhecido por aqui porque é raro encontrar alguém que vem de Londres pras províncias, e também é preciso reconhecer que o filho da puta manda bem na pista de dança. Mas ele me diz que não tá interessado em nenhuma das duas minas. – Tô amando, tá ligado?

– Massa. Ela tá aqui?

– Não, ela não gosta de sair de Londres. E vou te dizer, sinto falta dela pra caralho. Mas ela não se importa que eu dê umas voltas, porque não dá pra dizer que a gente nunca se vê, saca? Ela mora no mesmo prédio, uns andares acima.

– O cara não pode cagar no mesmo lugar que come.

– Ce tá folgado, hein seu viado – diz ele. – Mas não, cara, essa é especial. É a mãe dos meus filhos.

– Cê diz isso de todas, seu pervertido – respondo, repetindo uma velha conversa. – Lembra daquela mina do squat em Shepherd’s Bush? Lorraine. De Leicester. Ela destruiu teu coração. Cê se apaixona demais, parcero, teu problema é esse.

– O cenário agora é completamente outro – ele sorri –, e uma mina no apê vale duas voando, não te ensinaram isso na escola, cara?

É ótimo ver esse viado de novo e colocar a conversa propriamente em dia. Ele me diz que aquela Chris Armitage de Salford, outro ex-amigo punk de Londres, provavelmente aparecerá por aqui. Tá prometendo. Sendo assim, aproveito que o Nicksy começa a falar merda pro Tommy e começo a dar em cima dessa tal de Bobbi.

Um sujeito pode ser um vilão a vida toda?

Ela é uma lindinha de cabelos castanho-escuros e ar sereno, o nome é apelido de Roberta, mas o Tommy começa a azucrinar dizendo: – A Hazel sabe que cê vai pra Europa com duas minas?

– Eu e a Hazel não tamo mais junto, Tommy.

– Sim, por dez minutos, depois começa tudo de novo.

– Dessa vez não – digo torcendo pra que a Roberta entenda o recado. Decido usar Roberta em vez Bobbi, porque não quero pensar numa mina que tem nome igual ao Young Bobby do trampo.

Vou pra pista com ela quando começa a tocar “What Shall I Do”, do Frankie and the Classicals. A Roberta é mais cheinha do que eu pensava e do que costuma se encaixar no meu gosto, quer dizer, ela não é exatamente cheia, mas tem um pouco mais de carne na bunda e nas coxas do que levam a crer o rosto, os ombros e os peitinhos espremidos na blusinha apertada vermelha e branca. O cabelo comprido e moreno dela é massa, e ela tem um rosto bem bonito. Ou seja, em resumo, optei pela tática de ficar grudado nela em vez de demarcar uma zona. Tento conquistar ela recitando o refrão da música: – Hein, baby, que tá rolando aí? Nada? Ah, que pena. Ei, só passei aqui pra ver o que tava rolando aí, pra ver se tinha alguma festa nova. Ah, vamos, cê pode fazer melhor que isso, hein...

– Cê é louco, só pode ser – diz ela cheia de risadinhas encorajadoras, do tipo que faz cócegas na barriga como champanhe. Aí ela repara na minha mão e pergunta: – O que aconteceu com o seu dedo?

– Acidente industrial. – Dou uma piscadinha pra ela.

O evento termina em euforia total quando o DJ coloca aquela faixa clássica do velho Wigan Casino, “I’m On My Way”, do Dean Parish. E infelizmente, assim como o título da música, a gente também vai embora em seguida. A gente fica parado fora da boate perdendo tempo demais e tomando frio porque o Tommy ainda tá preocupado com o Segundo Lugar, e pra ser honesto eu meio que também tô. Nicksy e Roberta sugerem uma festa em Manchester, num lugar chamado Eccles, e eu tô muito a fim, mas tento não me afobar. – E o Rab?

– Ele deve ter voltado pro carro, sr. Mark – diz Keezbo. – A essa hora ele já não encontra bebida em nenhum lugar.

Me dou conta de que na verdade é uma noite calma e quente de verão que é a anfetamina que tá me dando calafrios. Percebo os dentes da Roberta tremendo e ela me lança um sorriso atrevido, jogando o cabelo pra trás. Não tem sinal do Segundo Lugar no carro. – Ele deve ter ido pra Manchester – digo sem muita convicção. – Ele ainda tem uns parceros do tempo do futebol lá.

– Pode crer, sr. Mark – responde Keezbo, que tá dando em cima da Angie, uma mina alta com cabelo escuro e comprido, e não quer que a noite acabe cedo. É, prum Gordo Ruivo e Sardento, o Keezbo tem um talento fantástico pra encontrar um lugar pra enfiar o cacete. Ele faz as minas rirem e faz papel de ursinho de pelúcia alegre e carinhoso que não representa uma ameaça sexual. Algumas devem ter se perguntado, num instante de lucidez, “O que eu tô aqui fazendo com um obeso jorrando suor em cima de mim e socando essa piroca ruiva na minha buceta?”

Então a gente se espreme dentro dos carros; eu vou no carro do Nicksy, uma lata enfurrada cheia de jornal velho, embalagem de comida pra levar e lata de cerveja vazia, dividindo o banco de trás com a Roberta e uma outra mina, não a Angie, e não tô com pressa nenhuma de chegar no nosso destino porque o Nicksy colocou pra tocar uma boa fita de Northern Soul e os Tomangoes tão quebrando tudo com “I Really Love You”, e eu, a Roberta e a outra mina, acho que o nome dela é Hannah, vamo cantando junto e balançando os ombros no mesmo ritmo. Na frente, do lado do Nicksy, tá sentada uma mina de cabelo loiro na altura do ombro. Chegamos no tal do Eccles e o lugar tá lotado de pessoas que tavam na festa de Blackpool. Do nada, sou atropelado pela consciência de que é muito bom ser quem eu sou; um jovem inteligente de classe trabalhadora que mora nessas ilhas maravilhosas. Como um ser humano poderia ser mais abençoado que isso?

Eu e a Roberta sentamos num sofá todo estragado e ficamos conversando sobre viajar. Acho que depois da Europa vou tentar aproveitar o verão seguinte pra ir pros Estados Unidos, me inscrever naquele lance de BUNAC pra conseguir o visto, ensinar futebol pros moleques americanos e depois mandar se fuder e viajar sem planos até a grana acabar. O restante do pessoal tá na cozinha e se esparramando no pequeno jardim dos fundos pra dançar ao som dos discos de Northern Soul, só bolacha legítima, como o “I Love My Baby”, do International GTO, e a gente fica aqui sentado dividindo a sala com uns viados de aspecto sujo que tão fumando heroína num papel alumínio. Fico olhando pra eles até que um dos caras, que tá com o cabelo escorrido e olheiras enormes, me encara com um sorriso sinistro e um olhar frio. – Querem um pouco disso? – balbucia ele com um sotaque de Liverpool.

Bando de viado asqueroso fumando essa merda numa festa de Northern...

– Não... valeu, cara – falo dispensando o cachimbo e o papel alumínio com um gesto de mão. A Roberta parece um pouco irritada e faz a mesma coisa. O sujeito asqueroso ergue os ombros, dá uma risadinha e passa pro amigo, que acende um isqueiro embaixo do alumínio e puxa a fumaça pelo cachimbo pra dentro dos pulmões, até que o lance pega e ele fica todo atordoado e com os olhos pesados.

Mas que viado imbecil, se transformando num zumbi com esse lixo enquanto tá todo mundo se divertindo em volta...

– Quero sair daqui – diz Roberta. – Vamos encontrar os outros.

Levanto com ela e vamos juntos até a cozinha pra ver se o Salford Chris apareceu. Tô começando a sair pro jardim quando a Roberta me intercepta e diz: – Eu tava aqui pensando que talvez a gente pudesse ir pra minha casa.

– Legal – digo controlando a alegria, mandando um aceno de cabeça pro Keezbo enquanto os do-do-do-do-do-dos anunciam o início do clássico do Invitations, “What’s Wrong With Me Baby?”. E aí eu penso que é melhor essa Roberta ser uma boa foda pra me tirar desse jeito da festa, e ao mesmo tempo grito instruções de reencontro pro meu parcero: – No Swinging Sporran lá na cidade, Sackville Street com Arndale, amanhã às 12 badaladas.

O Keezbo tá com aquela mina, Angie, e ele aponta com a cabeça pro Tommy, que tá conversando sobre briga de futebol com uns sujeitos de Manchester. – Dois a zero pra Seção Rítmica Fortaleza Ruiva, sr. Mark. – E ele abre um sorriso comprido e oleoso como o rio Forth.

– Ninguém segura a Seção. – Mostro o polegar pra ele. – Os esquiadores reis do pedaço!

Quando saímos, o sol está nascendo por cima dos prédios de tijolo vermelho de Manchester, mas continuamos sentindo frio por causa da anfetamina e a Roberta agarra meu braço. Decido colocar o braço em volta dos ombros dela, que se aninha ao meu lado, satisfeita. – Aquilo arruína sua vida – ela diz, falando sobre aqueles viados junkies viciados em heroína enquanto caminhamos até a casa dela. – Cê fica viciado depois de tipo, experimentar uma vez. Que bom que cê tem mais bom senso que eles.

– Pode crer – digo me sentindo todo virtuoso e elevado, mas o que eu tô pensando mesmo é que eu preciso experimentar essa merda qualquer hora dessas. Na verdade, fico lamentando minha covardia e a pretensão fajuta de que agi daquele jeito levado por algum tipo de frieza, inteligência ou experiência.

Arreguei como qualquer estudantezinho maconheiro afrescalhado, e aqueles caras perceberam e sabem muito bem disso, porra. É isso que eu tô me tornando? Um estudantezinho arrogante e convencional?

Mas eu nunca consigo cultivar nenhum pensamento negativo por muito tempo quando tô louco de anfetamina, e logo desembesto a falar sobre a genialidade do disco Sons and Fascination, do Minds, sobre como é vastamente superior ao New Gold Dream (o que não quer dizer que o NGD é um disco ruim), e só consigo pensar em tirar a roupa da Roberta, e as minhas também, é claro, e que o mundo é um lugar bem OK pra caralho.

Manhã de segunda

Minha cabeça tá doendo depois desse fim de semana, e a porra das costas tá me matando... Pelo menos aquela mina, a Roberta, superou as expectativas; nunca tinham me chupado daquele jeito e ela não parecia nem aí pros meus pentelhos ruivos. A gente deu umas boas risadas. Ela disse: “Não costumo ir pra cama com alguém que acabei de conhecer, sabe.” “Nem eu”, respondi, “ninguém me deixa.” Ela pareceu ter fricado braba por um instante, depois riu e me bateu com o travesseiro. Manchester é do caralho! Passamos a maior parte da tarde de domingo no pub; primeiro no Sporran, depois no Cyprus Tavern com a Roberta, uma amiga dela, Celia, o Keezbo, Angie, Nicksy, Chris Armitage (que finalmente apareceu), até que o Tommy também pintou lá com uns caras da Man City Kool Kats[7] e lançou um ultimato para a Seção Rítmica Fortaleza Ruiva: carona pra casa agora ou se virem pra voltar sozinhos. Sendo assim, abandonei com relutância meus novos e velhos amigos, torcendo pra ver eles de novo em breve. A gente saiu bêbado e chapado do pub, andando torto, e tava indo procurar o carro quando passamos por um grupo de mineradores desempregados entregando folhetos em Picadilly. Não consegui olhar pra eles; desviei dos viados dando algum pretexto de merda.

Eu e a Roberta trocamos nossos números. Se a gente nunca vai se ver de novo ou começar um namoro destinado ao fracasso, isso é totalmente irrelevante. O que importa é que passamos um ótimo tempo juntos e nenhum dos dois se arrependeu de um minuto sequer.

Mas o arrependimento foi feito pras manhãs de segunda, e aqui tô eu debaixo dessa luz forte das lâmpadas fluorescentes da oficina, suando como uma lésbica cega numa peixaria. Nossa insubordinação do último sábado naquela moleza da reforma do pub resultou em punição, e fomos transferidos daquele trabalho de volta pra arapuca: a monotonia do trabalho na fábrica. Agora é juntar painéis de madeira e pregar os suportes neles pra que possam construir novas futuras favelas nos últimos descampados infectos entre Edimburgo e Glasgow.

PKOU, fazem as pistolas de pregos que ficam ligadas por tubos compridos num circuito que fornece ar comprimido constante, enfiando pregos de 15 centímetros na madeira como se fossem balas de espingarda.

PKOU.

PKOU.

Manhã de segunda; maldita, degradante, filha da puta, ordinária manhã de segunda. Cerca de trinta funcionários trabalhando e não posso conversar com nenhum desses cornos. Nenhum. Gillsland é o único cara se dando bem na recessão, migrando de um negócio de construção de lojas de alto nível com seis empregados pra construção de casas pré-fabricadas de baixo nível com trinta empregados. Os custos de mão de obra que o viado tem são praticamente os mesmos, tá ligado?

Contas bancárias não dão em árvore, cê tem que afanar uns bolsos...

PKOU.

PKOU.

Mas não me importava que o emprego fosse monótono ou subqualificado, eu só queria manter a cabeça baixa, me afundar numa tarefa repetitiva, construir uns painéis, suar as toxinas da bebida e da anfetamina do fim de semana e trabalhar esquecendo dessa vértebra esmagada e da depressão abissal até a hora do intervalo.

No intervalo silencioso, mato três copos de café puro. Vejo o Les olhando pra mim. Dá pra saber o que vem em seguida. – Muito bem, rapazes...

Eu dispensaria participar da atividade no banheiro e na verdade nunca esperei me tornar um campeão. Mas era um ritual do Les e, fazendo justiça ao viado, aquilo realmente dava um gás pro início da semana.

Nos reunimos os seis: Eu, Davie Mitch, Sean Harrigan, Barry McKechnie, Russ Wood e Seb (é o apelido do Johnny Jackson – uma época ele saía com uma mina chamada Sonia, então a gente chama ele de Sonia’s Ex Boyfriend, porque namorar com ela foi a única coisa que o viado fez a vida toda). Vamos pro banheiro e cada um entra num compartimento de alumínio. Les distribui edições do Daily Records da semana passada, de segunda a sexta, e um Sunday Mail do dia anterior pra fechar o número. Isso é o que o Les sabe fazer melhor. Comediante frustrado, ele é mestre de cerimônias no Tartan Club e no Dockers’ Club. É obviamente uma fachada pro que ele realmente gostaria de estar fazendo; a mulher abandonou ele uns anos atrás e a filha, que ele nunca vê, mora na Inglaterra. A vida tem lá suas frustrações, mas o Les arranca um pouco de diversão doentia dela sempre que pode. Ele também é um sujeito torturado pelas hemorroidas a ponto de besuntar o rabo antes de sair pra beber.

Todo mundo espalha seu jornal no chão na frente da privada; dá pra escutar o barulho de papel nos outros compartimentos. Aí eu baixo as calças e a cueca e me agacho em cima do jornal.

Fica relaxado...

A manha é conseguir fazer a merda sair num pedaço só, sem quebrar. Isso quer dizer que cê tem que chegar bem perto do chão e tomar o cuidado de se mover pra frente pra que ela não se enrole num montinho, mas saia esticada em linha reta em cima do jornal.

Deixa escorrer macio...

Tô indo bem, dá pra sentir saindo num ritmo constante, deslizando sólido, e assim que ela toca o chão eu começo a escorregar pra frente num avanço lento e cuidadoso, sem interromper a excreção... a porra das costas... me fodendo a vida... não pare...

Mas que beleza...

Splaft... ouço a merda cair no jornal como um macaco pulando duma árvore. Daí me estico de novo até o vaso, aliviado por tirar o peso de cima da lombar, cago os restos que sobraram e limpo a bunda. Essa é a parte mais complicada da operação da cagada, expelir a placenta, como diz o Les. Como o cara geralmente come antes de tomar o trago, a placenta costuma vir mais molenga e envenenada de álcool e drogas, e sai queimando mais que o bebê marrom, mas a missão tá cumprida, então me limpo e me viro pra admirar minha obra. O toletão tá ali fumegando no chão, uma belezura; sólido, marrom, inteiriço, com aquele belo acabamento lisinho indicando que saiu sem nenhum atrito. Esse camarada tá no páreo. O verdadeiro escocês caga em busca do Recorde.

Saio e lavo as mãos, depois tomo mais dois paracetamóis. Sean Harrigan, um weedgie que se exilou em Liverpool, já saiu, o que significa que ele certamente deu conta do recado. Barry McKechnie é o próximo, seguido por Mitch. Depois vem o Seb; só posso imaginar o dele saindo todo quebrado. Finalmente, Russ Wood aparece balançando a cabeça com tristeza.

Em seguida, deslizamos os frutos de nosso trabalho pelo chão até o exterior dos compartimentos e montamos uma fila bem retinha enquanto Les prepara a fita métrica. Enquanto julga os cagalhões, vai fazendo comentários: – Barry McKechnie: um mau resultado, filho. Que fim de semana foi esse? Ficou em casa, deitado na frente da TV?

– Às vezes se ganha, às vezes se perde – diz Barry encolhendo os ombros. Ele é novo, não trabalhava aqui quando eu era empregado em turno integral, mas parece um cara bem maneiro até.

– Seb: nada mal, parcero. Mas tá meio enrolado – observa Les. O pobre Seb está destinado a ser a eterna dama de honra; é meio gordo demais pra conseguir se equilibrar direito e aplicar a técnica apropriada. Requer um certo atletismo. – Davie Mitchell: excelente.

– Pois é, mandei um curry no sábado e bebi o dia inteiro depois do jogo do Hibs em Falkirk.

Livvy Sean puxa seu jornal. Em cima daquele Daily Mail tem uma tartaruga grande, feia, fumegante, preta com estrias cor de argila. – Sean Harrigan: que formosura! – declara Les. – Pretinho que nem o primeiro bastardo da Princesa Real. Aquele sobre o qual ninguém fala.

– Peguei pesado na Guinness no Baird’s, em Gallowgate.

– Não se deixe dominar por orangistas filhos da puta, meu amigo sebento[8] – responde Les com um sorriso. – Funcionou muito bem com você, Sean. Russ Wood... – Encara fixamente a produção minguada de Russ.

– ... Ora, Russ ... isso deixou muito a desejar.

– Culpa da minha mulher, com essa idiotice de dieta e comida vegetariana. Tô cagando que nem um condenado. Tive que largar um barro mais cedo, saiu um biscoitão.

– Sei, sei – diz Sean.

– Tô falando sério, Sean – protesta Russ. – É essa dieta rica em fibras. Assim que acordo, a primeira coisa que preciso fazer é largar uma tora do tamanho das coxas da Morag lá da cantina.

– Cê tem que mudar a dieta se quiser competir seriamente com os grandes, Russ. – Les encerra o assunto. – Muito bem, Marky. – Ele olha pra mim e depois pro meu concorrente, que tá fumegando em cima de uma foto do Gordon Strachan, o jogador do Aberdeen. – Excelente resultado, 36 centímetros que tornam você o campeão indiscutível. Nenhum defeito digno de nota, formoso e compacto, esticado numa linha bem reta.

– Aquele seu namoradinho tá batendo a massa bem forte de novo, Rents? – Sean dá risada, com os olhos maldosos e apertados cheios de inveja.

Dou uma piscadinha pra ele. – Sou sempre o carteiro, nunca a caixa de correio, Sean, cê devia saber disso melhor que todo mundo.

Sean está prestes a retrucar, mas Les chega antes dele. – É melhor o cara ter uma camisinha por perto antes de chegar perto do buraco infecto de um weedgie!

– Tem que ter um escafandro, isso sim, seu viado!

– Quietos – sussurra Young Bobby com o corpo desengonçado esticado pra fora da porta. – Gillsland e o Bannerman vêm vindo aí!

A gente recolhe os jornais, abre a janela e arremessa as bombas em cima do telhado enquanto Barry sai com Bobby pra atrasar a chefia. Não conseguem segurar eles por muito tempo, pois acabamos de fechar a janela e estamos começando a lavar as mãos quando ouvimos aquele choramingo nasal. – O que está acontecendo aqui? – geme Gillsland. – Vocês têm serviço pra fazer! O que cês tão fazendo aqui juntos que nem um bando de bichas?

– A gente tava te esperando chegar pra nos ensinar a chupar uma rola direito, Ralphy. – Les empurra a bochecha com a língua, fazendo um movimento de felação. – Cê chupou toda a Jubilee Gang nos fundos da loja de peixe com fritas de Granton numa noite, hein, Ralph? Engoliu todas as vezes, segundo me contaram. Foi pra casa e deu uma lambidinha na patroa pra provar que corta pros dois lados, mas acabou vomitando tudo em cima da xoxota dela. Nove meses depois ela teve um pirralho que tinha a cara de todo mundo em Granton, hein, Ralphy?

– Do que cê tá falando? – diz Gillsland em tom indignado, e depois retruca: – Só um viado reconhece outro!

– Ah, aquelas noites loucas de verão nas ruas de Granton, minha nossa, minha nossa, minha nossa, me conta mais... – Les cantarola enquanto a gente começa a voltar pro nosso trabalho tedioso ignorando Ralphy e Bannerman, que abana com a mão na frente ao nariz ao registrar o fedor paralisante.

PKOU.

PKOU.

PKOU.

Sean e Mitch perguntam como foi o meu fim de semana. – Blackpool. Noite de Nothern Soul. Legal, mas nunca será como o Wigan.

PKOU.

WHIIIISSSSHHH...

TCHOC.

Veio sem aviso nenhum, passou assobiando perto da cabeça do Sean com a velocidade de uma bala e entrou uns bons cinco centímetros na prancha de madeira que tava atrás dele. Meu sangue gelou por um longo segundo, e acho que o do Sean também, antes que ele pulasse pra trás de uma pilha de molduras empilhadas em cima de um estrado. Não demorei muito pra fazer a mesma coisa; ouvimos mais um assobio e um TCHOC, e outro prego de 15 centímetros se cravou na madeira na nossa frente.

– SEU DOENTE FIADAPUTA! CÊ QUASE MATOU A GENTE! – berra Sean pro Bobby, que tá disparando pra tudo que é lado com a pistola de ar comprimido de alto desempenho.

– Vô furar o miolo de vocês, seus corno. – Bobby faz uma careta e manda mais uns pregos nos estrados de madeira que tão na nossa frente.

– PARA COM ESSA MERDA, SEU VIADINHO RETARDADO! – grita Les pra ele. O merdinha perdeu completamente a cabeça e vai acabar matando alguém. Ele ama aquela pistola e tá ali parado com aquele sorriso idiota no meio da cara. Mas agora ele parou, porque não é normal o Les mandar alguém parar com uma brincadeira.

– Ei, Bobby – digo me levantando –, vamos, cara, aciona essa porra dessa trava de segurança aí! Se o Gillsland aparecer, a gente tá ferrado. Vamos, parcero, te controla aí, tá?

O Bobby olha na minha direção e eu acho que vejo ele acionar discretamente a trava, mas o medo devora minha coluna vertebral quando vejo ele apontar a pistola pra mim e disparar...

Puta que me pariu...

Nada acontece, claro, fora que eu quase cago de novo, apesar de estar com as pregas vazias. – Porra, Bobby, cê tá completamente maluco. Bora, parcero, bora pregar as portas que faltam.

Daí o Bobby começa a disparar nas emendas das portas, usando a pistola de ar pro que ela serve de verdade, mas o Sean não tá nem um pouco feliz. – Esse viadinho perdeu totalmente a noção – diz aparafusando o dedo no lado da cabeça. – Tô dizendo, Mark, esse cara não existe, porra. Se o viado fizer isso de novo, o Gillsland vai ficar sabendo!

– Vou ter uma conversa com ele. Não diz nada.

– Não sou dedo-duro, Mark, não quero que viado nenhum vá pro olho da rua, mas ele não é certo da cabeça. Não devia tá trabalhando num emprego desses!

Era verdade. Bobby era a figurinha boca-aberta, songamonga, babona e inconsequente da equipe; um jovem desmiolado que tinha se infiltrado em nosso humilde grupo por intermédio de algum esquema de reabilitação cuja natureza era objeto de especulações cada vez mais bizarras à medida que suas atitudes malucas iam se acumulando. A gente realmente adorava o garoto, ele dava um pouco de brilho pra monotonia massacrante da fábrica, mas a gente sabia que ele podia nos fuder completamente a qualquer momento, nos arrastando pro abismo do desemprego ou causando um sério acidente industrial por causa de uma maluquice qualquer. Nessas ocasiões, eu agradecia a existência da saída de escape da universidade; isso ia terminar em lágrimas.

Como o relógio diz que tá na hora, dou um tapa nas costas do Young Bobby e a gente larga as ferramentas e desce pra cantina. – Eu sabia o que eu tava fazendo, Mark – protesta ele. – Eu tipo, não ia acertar ninguém.

– Tá certo, Bobby, mas cê tem que tomar mais cuidado, parcero.

Bobby concorda com a cabeça, com um ar de arrependimento. Ele gosta de mim; todos os psicopatas gostam, aparentemente. Eu já tinha aceitado o mundo como um lugar hostil, avacalhado e imperfeito, então eu nunca julgava, pelo menos em público, e quase sempre tolerava a instabilidade defeituosa dos encrenqueiros. Eles tornavam a vida mais interessante. A gente atravessa o pátio de acesso até a cantina ao lado do armazém, que atende várias empresas do complexo industrial. Sean ainda está um pouco abalado, mantendo uma distância cautelosa do Bobby, como se o viado ainda estivesse empunhando algum tipo de arma.

A cantina é bem básica. Começaram a servir tortas e enroladinhos de salsicha com feijão e fritas ou salgados recheados, mas a maioria dos caras continuava trazendo rango de casa. Big Mel, uma mina que mais parece um petroleiro, tava ali sozinha hoje, sem sua colega Morag.

– Oi, Mel. Tudo em cima, boneca?

– Olá, lindão.

– A Mozzer não veio hoje, Mel? – pergunto enquanto entro na fila com Sean, Les, Bobby e Mitch.

– Não, Mark, ela tirou o dia de folga... tá doente. – Ela baixa a voz ao perceber que Gillsland tá entrando com Bannerman e o baixinho Baxy. A gente odiava esses viados, o Cara de Buceta, o Bannerman, que era o supervisor e tinha uma voz rouca, e o Baxy, seu auxiliar puxa-saco.

– O pedido do Steel já tá pronto? – Bannerman, esse viado de corpo e cabeça quadrados, que mais parece uma caixa ambulante, pergunta pra mim.

Quase sempre evito falar com o Bannerman, principalmente quando tô na porra do meu intervalo. – Foi pra van hoje cedo – informo pra ele com grande satisfação. Isso foi em grande parte graças ao Young Bobby. Por mais demente que seja, essa cria perturbada de Niddrie Mains sabe como usar uma pistola de pregos.

– Bom – resmunga Bannerman com mau humor.

Nem me viro pra olhar esse viado desgraçado. Ralphy, apesar da antipatia que sinto por ele, parece ter uma afeição perversa por mim, mas o Bannerman se tornou meu inimigo desde o primeiro dia. O viado me despreza ainda mais desde que saí pra estudar na universidade. Eu me viro pra Mel. – Ainda tá saindo com aquele carinha, Mel? – Ela tá dando prum caipira grandalhão de West Calder.

– Aquele cara? De jeito nenhum – responde ela soprando ar pelo canto da boca com a mesma força da pistola de ar do Bobby.

– Mas o cara era grandão, Mel – comenta Les, cheio de insinuações.

– Com um pauzinho desse tamanho – desdenha ela. – Aquilo não me serve pra nada.

Fico pensando um pouco naquilo. – Tá bom, Mel, cê tem que ir atrás de um desses anões. Esses viados têm um cacete enorme... ou pelo menos é o que dizem.

– Ah, então quer dizer que cê gosta de dar cu pra anão, fiadaputa – intromete-se Les. Bobby abre um sorriso cheio de dentes e solta uma daquelas risadas chiadas, sacudindo os ombros.

– Já tive o pau chupado por alguns, um tempo atrás – digo projetando os quadris. – Eles têm a altura ideal, não precisam se ajoelhar, mas nunca dei nada pra nenhum deles. Cê vai ter que fornecer os detalhes sobre isso, Lesbo.

– Sei, cê pode ir tomar no rabo, seu viado – responde Les. Não é lá uma resposta muito boa, mas esse é o Les. Carinha massa, mas, apesar das pretensões de comediante, não tem nada de Oscar Wilde, não só em termos de sexualidade, mas sobretudo de inteligência.

Young Bobby começa a babar de novo olhando pros peitos da Melanie. Ela percebe e lança um olhar carrancudo. – Bobby, para com isso. – Dou um tapa de brincadeira na cabeça dele e ele me dirige um daqueles sorrisos borbulhantes de criancinha. Embora seja só cinco anos mais novo que eu, Young Bobby definitivamente me desperta alguma espécie de instinto paternal, o que me deixa meio desconfortável. – Olha só, Mel, o Bobby aqui é o carinha que cê tá procurando.

– Essa criança magricela? Tem mais carne nessa torta aqui.

Por uma fração de segundo, penso que Young Bobby vai ficar encabulado. Mas ele pisca e dobra o lábio inferior pra baixo. – Quando quiser, onde quiser, querida.

Melanie solta uma risada de cavalo e larga uma colherada de purê de batata num prato pro Mitch. – É o que dizem dos magrinhos. Quanto mais costela, mais pica – intromete-se Les. – Frank Sinatra pesava só sessenta quilos, mas a Ava Gardner disse que “cinquenta quilos é só o caralho”. – Mel faz um esforço hilário de parecer séria, mas percebo que ela dá uma olhada no Bobby como um bêbado de fim de noite olha um prato de peixe frito. Balanço o dedo pra ela, porque fui o único viado que se deu conta disso, e ela faz uma careta pra mim.

Mel serve torta, feijão e purê pra mim e depois faz a mesma coisa pro Young Bobby, que pega a garrafa de plástico e cobre cada centímetro quadrado de torta e batata com o molho marrom, até o último restinho sair espremido com um barulho de peido. Não sobrou nada pro próximo cliente, que é o Bannerman! – Gastou toda a merda do molho – ele grunhe enfurecido, de olho no prato do Bobby, empunhando a garrafa vazia. – Não é possível que alguém queira tanto molho assim!

Bobby pensa um pouco no assunto e então anuncia: – É que minha vida tava precisando de um pouco de... – ele tira os cabelos de cima da testa enrugada – ... molho! Depois disso ele vai dançando até a mesa e Les, Mitch e eu não conseguimos mais prender o riso. Até Sean fica animado. Essas coisas pequenas parecem triviais, mas era o tipo de minivitória gloriosa que o Bobby tinha como especialidade e realizava sem esforço. Fazia valer a pena ser alvo de uma pistola de pregos.

Depois do almoço, encontro o Sick Boy no Largo da Walk, parado num ponto de ônibus, conferindo com olhos enormes uma mina que tá ali esperando a condução, esfregando a barba por fazer no queixo, em estado de contemplação. Noto quando a expressão dele muda numa fração de segundo de sinistra, como um filhote submisso, para cruel e arrogante. Ele acabou de decidir que está pronto para avançar. O cabelo preto dele, cortado na altura do pescoço, como tá na moda, tem um brilho lustroso, e ele tá usando uma camisa branca de gola V pra ressaltar o tom de pele mediterrâneo herdado da mãe italiana. A calça de tecido marrom veste as pernas que parecem um pouco longas demais pro resto do corpo, e ele tá usando uns tênis decentes, pra variar – ele costuma usar sapatos italianos caros, sempre imitação. O Sick Boy tá sempre caçando, e eu perturbo o viado bem na hora em que ele vai dar o bote. – Rents... – diz ele com irritação, apontando com a cabeça pra mina – ... eu tava trabalhando...

– Faz uma pausa e vamo tomar uma cerveja – digo pra ele, porque preciso conversar sobre a nossa mudança pro apê da Montgomery Street.

– Se cê pagar, tudo bem. Tá cheio de pata nesse canto da cidade, mesmo – resmunga ele. Pata é como ele chama as minas que têm filho: Pirralho A Tiracolo, Abortar.

A gente entra no Central e começa a botar o papo em dia. Ele desaba num banco do balcão e eu opto por ficar em pé. O Sick Boy tá fazendo o de sempre: falando mal do Leith, dizendo que ele nasceu pra coisa melhor. – Sei que as coisas são difíceis, mas o Leith tá cheio desses pusilânimes totalmente fudidos.

– Quê?

– Pusilânimes. Significa não ter vontade ou coragem de melhorar. Quem fica reclamando. Choramingando.

Um velho de boina e sem dentes que tá parado no balcão do nosso lado se intromete. – Muita gente não ia gostar de ouvir cê dizendo isso – adverte ele com fogo nos olhos.

– Já ouviu falar da expressão conversa particular?

– Já ouviu falar da expressão casa pública?

Sick Boy ergue as sobrancelhas, parece refletir um pouco sobre o assunto, e então diz: – Tá bom, caralho. Cê me pegou de jeito nessa. – E então ele pede mais uma rodada, incluindo o velho, que puxa um banco ao lado do balcão e fica irradiando superioridade. Só que o velho aproveita a oportunidade pra contar toda a história da vida dele, o que é a nossa deixa pra beber às pressas e bater em retirada.

Quando emergimos na luz cálida do entardecer de verão, aquela velha escrota e intrometida do Fort, Margaret Curran, tá vindo pela rua com uma sacola cheia de roupa pra lavar. Ela faz uma careta indignada quando vê uma família de paquistaneses, ou mais provavelmente de bengaleses, esperando o ônibus no ponto.

– Porque aquela bruaca peçonhenta tá sempre carregando uma sacola cheia de roupa suja pra lá e pra cá? – pergunta Sick Boy quando ela se aproxima.

– Ela vai na lavanderia o tempo todo pra poder ter assunto com os amigos depois – digo imitando a voz dela: – Sempre levo no Bendix, filho.

– Que safadinha! – diz o Sick Boy.

A sra. Curran passa pela gente e eu não resisto e pergunto: – Levando o dhobi no Bendix[9] de novo, sra. Curran?

– Sim, Mark, todos os dias. É um fardo que não termina, mesmo com a Susan saindo de casa pra se casar. Os meus filhos, Olly e Duncan, sujam muita roupa.

– Deve doer – diz o sacana filho da puta do Sick Boy. – Quer dizer, levar uma coisa enorme no Bendix todo santo dia.

A expressão dela fica hostil e confusa, a boca se curva pra baixo e a cabeça cai pra trás como se tivesse presa numa corrente invisível ou como se ela tivesse virado uma dose.

– Quer dizer, deve doer o braço e a mão, coisa e tal – especifica ele.

Curran relaxa. – Não, filho, eu dou uma caminhadinha até lá em cima, converso com os amigos e pego o ônibus de volta pro Fort – ela explica, e depois me lança um olhar hostil. – E aí, como vai a casa nova?

– Não é tão nova. Faz quatro anos que a gente tá morando lá.

– Tá bom demais pra alguns – ela diz num tom azedo. – Colocaram aqueles ali no Piso D agora. – Ela olha pros asiáticos que tão subindo no ônibus da linha 16. – Uma família inteira, na antiga casa dos Johnstones. – Ela torce a cara de nojo. – O cheiro da comida deles dá vontade de vomitar. Dá vontade de vomitar as tripas, e o fedor vai pro pátio do varal também. É por isso que levo tanto no Bendix.

– Qualquer pretexto serve – dou corda, mas percebo que o Sick Boy perdeu interesse na brincadeira e tá dando uma conferida numa mina que tá passando; a cara, os peitos, a bunda, as pernas, mas acima de tudo a bolsa.

– Não é pretexto, esse país já não é mais dos brancos que construíram ele. – A sra. Curran balança a cabeça, se vira e continua subindo a Walk a passo de ganso.

Sick Boy também segue o rumo dele. – Escuta, Mark, tenho que ir, a gente se vê depois – diz ele, saindo atrás da mina. Fico um tempo olhando e logo ele se apresenta e começa a conversar com ela. Viado. Se eu tentasse fazer isso com uma mina, ela chamava a polícia na mesma hora. Ninguém pode acusar ele de ser um pusi-foda-se-sei-lá-o-quê.

Fico sozinho, mas por mim tá ótimo. O sol aparece e eu testo as minhas costas segurando o teto do ponto de ônibus e fazendo umas flexões antes de seguir andando pela rua.

3. “Que bom seria estar na sua pele, mesmo que por um só dia.” (N. dos T.)

4. Afastar-se de alguém que significa tudo na sua vida...” (N. dos T.)

5. “Preciso estar na adorável e pequena Lancaster...” (N. dos T.)

6. Termo pejorativo usado pela torcida do Hibernian Football Club, tradicionalmente católica, para se referir aos torcedores do Heart of Midlothian Football Club (HMFC), equipe de futebol de Edimburgo com origem protestante. (N. dos T.)

7. Grupo de hooligans composto por torcedores negros do Manchester City. (N. dos T.)

8. No original, soapdodger, outro termo pejorativo que os escoceses de Edimburgo usam para se referir aos moradores de Glasgow. (N. dos T.)

9. “Bendix” é uma cadeia escocesa de lavanderias automáticas. “Dhobi” é uma casta indiana e paquistanesa especializada em lavar roupas. O termo é usado de maneira pejorativa na Escócia para se referir às atividades de lavanderia. Nesse trecho, Renton e Sick Boy estão fazendo um trocadilho para rir às custas da sra. Curran, insinuando ela que ela “leva no traseiro”. (N. dos T.)


Notas sobre uma epidemia 1

No referendo nacional de 1º de março de 1979, a maioria do povo escocês votou pela reinstituição do parlamento. Isso traria de volta um certo grau de soberania ao país depois de quase trezentos anos de união com a Inglaterra, imposta de maneira antidemocrática. George Cunningham, um escocês do Partido trabalhista e membro do parlamento sediado em Londres, propôs uma emenda ao Ato da Escócia que alterou as regras, de modo que o parlamento não foi automaticamente oferecido aos cidadãos escoceses.

O Partido Conservador, liderado por Margaret Thatcher, ganhou o poder em maio de 1979. Como a porcentagem de votos escoceses foi ínfima, argumentou-se que o mandato não era democrático, mas eles se opuseram firmemente e vetaram a instituição de um parlamento escocês.


Too Shy

– Essa é a porra da tragédia da Escócia. – Frank “Franco” Begbie, parrudo, de cabelo raspado com máquina dois, tatuagens das mãos e do pescoço se esticando pra fora em busca de luz, faz essa declaração no banco de bar de um albergue modesto na Leith Walk, destinado a nunca aparecer em nenhum guia turístico de pubs escoceses. Pra enfatizar, dá um soco no bíceps mirrado do Spud Murphy e o golpe de marreta casual quase derruba o amigo do assento. – Não se classificar de novo pra porra do Campeonato Europeu!

Como prova, Franco aponta pra TV instalada em cima do jukebox no canto do pub, cujas luzes radiantes e coloridas exibem dois times de jogadores de futebol continentais entrando em campo. Tommy Lawrence retesa o corpo rígido e musculoso, projetando o pescoço na direção da tela, e até mesmo Mark Renton vira os olhos sonolentos naquela direção, porque Platini entrará em cena de novo. Eles analisam a fileira de jogadores alertas em plano médio à medida que a câmera faz um travelling pelos times, procurando pistas do que poderá acontecer na partida. Do bar decadente onde se encontram – paredes manchadas de nicotina, lajotas rachadas e mobília gasta – imaginam como é estar ali, com o peito inflado, mentalmente focados, a noventa minutos de pelo menos alguma espécie de imortalidade.

Spud, com o cabelo castanho-claro empinado em tufos, faz uma careta e esfrega a lesão, tentando dissipar aquele latejamento insistente que Renton e Tommy conhecem tão bem. Vendo sua expressão à beira das lágrimas, Renton pensa afetuosamente que se Oor Wullie tivesse se criado em Kirkgate, vestisse camisas Fred Perry desbotadas, roubasse em lojas e consumisse toneladas de anfetaminas, ele e Spud seriam um a cara do outro. Além do sorrisão igual aos dos desenhos de Dudley D. Watkins, Spud tem duas outras expressões: totalmente-perdido-em-relação-a-que-porra-tá-acontecendo e essa que ele tá fazendo agora, de constantemente-prestes-a-chorar. Tomado de arrependimento e pena de si mesmo por ter cometido a besteira de sentar ao lado do Begbie, ele dá uma olhada em volta. – É... isso é tipo, bem ruim – concorda ele enquanto procura uma maneira de se deslocar para outro assento. O problema é que Tommy e principalmente Renton, que está com o braço e as costas lesionados, estão determinados a manter Spud no meio do caminho entre eles e a exaltação de Franco. Ao olhar para o cilindro luminoso do Regal King Size de Frank Begbie, a ponta reluzindo como um terceiro olho enquanto a inalação esvazia as bochechas do fumante, Renton é acometido por uma sensação acachapante de “que porra eu tô fazendo aqui?”

Enquanto isso Tommy admira o pescoço de touro e a constituição sólida de Franco. Ele não é tão alto, tem quase a mesma altura do Renton, um pouco menos de um e oitenta, portanto um pouco mais baixo que o próprio Tommy, mas músculos ele tem de sobra, e seu corpo denso parece agregar a massa dos outros frequentadores do bar. Está vestindo uma jaqueta de couro e Tommy percebe que é praticamente idêntica à do Renton, mas Franco insiste em ser elogiado por ela. – É... que jaqueta foda pra caralho essa aqui, hein... fina pra cacete – ele anuncia outra vez ao pendurá-la com cuidado no encosto do banco.

Spud contempla os cabos retesados que surgem de baixo da camiseta Adidas branca nos bíceps e antebraços de Frank Begbie, dotados de uma força prodigiosa em comparação aos membros finos e leitosos de Renton. Tommy lança um olhar frio na direção das costelas de Begbie e calcula o gancho curvo de direita que penetraria sua guarda e o derrubaria no chão. A execução desse golpe está dentro das capacidades de Tommy, e a ligação de um chute na cabeça também faz parte de seu léxico emocional e marcial. Mas não adiantaria nada, porque no caso do Begbie, seria a partir daí que começaria o problema. Além disso, ele era um parcero.

Begbie dirige um aceno de cabeça beligerante a Mickey Aitken do outro lado do bar e o velho imediatamente se põe em movimento como um navio cargueiro de suéter, pega o controle remoto e ataca a TV, aumentando o volume da “Marselhesa”. Platini, com o brilho dos predestinados no olhar, está quebrando tudo quando o corpanzil de Keezbo entra gingando no pub. Tommy, Spud e Renton compartilham, sem saber, o mesmo pensamento solitário: Talvez esse gordo jambo filho da puta possa sentar do lado do Begbie e absorver as porradas. No boteco quase vazio, Keezbo identifica imediatamente os amigos e depois a garçonete Leslie, que acaba de surgir do escritório para começar seu turno. Esqueçam o Platini, ela é a verdadeira atração aqui, com sua beleza decadente, cabelos na altura do pescoço e decote considerável, embora o que chame a atenção de Renton seja a calça jeans apertada e a barriga exposta.

Keezbo faz uma vistoria mais completa da garçonete antes de perguntar: – Como vai a luz da minha vida?

Lesley retribui o olhar avaliador, mas limita o foco aos olhos azuis estranhamente hipnóticos de Keezbo, emoldurados pelos óculos pretos. Enquanto tenta decidir em que posição ele se encontra no espectro piada/cantada, ela mantém um tom de voz agradável e neutro. – Nada mau, Keith. E você?

– Tô tinindo, agora que posso me refestelar com a sua beleza, srta. Lesley.

O sorriso de Lesley contém aquela pitada de acanhamento que Keezbo consegue incitar com frequência até mesmo nas garotas mais habituadas da cidade.

– Sai fora, saco de banha – diz Begbie. – Ela é minha, né, Lesley?

– Só nos seus sonhos – diz Lesley, recuperando o gênio e o orgulho depois de ser pega no contrapé por Keezbo.

– Que são bem molhadinho e tal. – Begbie ri, agitando a cabeça que parece ser dura como a bola de um guindaste de demolição.

Keezbo manda baixar uma rodada de Lagers. Para ter um visão melhor da tela, eles migram para assentos mais próximos do canto, num compartimento em forma de lua crescente com assentos de couro rasgados espalhando as entranhas de espuma em torno de uma mesinha de fórmica. Renton encontra um velho papelote de anfetamina no bolso e começa a passar o pó adiante; todo mundo cheira um pouco, exceto Begbie, que continua com os olhos cravados em Lesley. – De tímida essa aí não tem nada – observa ele em nome de todos. Keezbo retorna com os pints numa bandeja e um sorriso enorme no rosto, a expressão de alegria antecipada de um homem obcecado em compartilhar. Depois de colocar as bebidas na mesa, ele cheira sua dose de anfetamina umedecida com cuspe fraternal. Depois torcer um pouco o rosto com o forte gosto salgado, ele faz a droga descer com um gole de cerveja. – Sr. Mark, sr. Frank, sr. Tommy, sr. Danny, que tal essa: Leo Sayer contra Gilbert O’Sullivan?

Begbie encara Renton com expectativa; na realocação, de alguma forma eles acabaram se tornando vizinhos de porta. Renton começa a dizer algo mas pensa duas vezes. Em vez disso, olha para Tommy enquanto bebe um gole de uma Lager que parece ainda mais choca por causa dos resquícios de sulfato presos no fundo da garganta.

– Essa é boa – reconhece Tommy. Keezbo tem a mania de inventar brigas hipotéticas com participantes improváveis. Dessa vez a dupla parece ser parelha.

– Gilbert O’Sullivan compôs aquela porra daquela música pedófila sobre comer bunda de criancinha – explode Begbie de repente. – Esse viado merece morrer. Lembra daquilo? Daquela merda daquele vídeo?

– Ah sim, “Clair”, mas eu não interpretei desse jeito, Franco – arrisca dizer Spud. – Era, tipo, só uma música sobre cuidar de uma garotinha que ele conhecia.

Begbie o rechaça com um olhar que arranca a tinta das paredes, uma de suas marcas registradas. Spud se encolhe imediatamente. – Quer dizer que agora cê é o crítico musical fodão, seu fiadaputa? Vai me dizer que é natural um homem crescido escrever uma porra duma música sobre uma menininha que não é nem filha dele, caralho? Hein? Vê se consegue me responder isso, porra!

Ao longo dos anos, Renton aprendeu que a pior coisa que se pode fazer é deixar Frank Begbie se sentir isolado, portanto defende politicamente o lado dele. – Cê tem que admitir, Spud, essa porra aí é pelo menos um pouco suspeita.

Spud parece ficar um pouco desapontado, mas Renton detecta o fantasma de gratidão em seu olhar por ter sido livrado de mais essa. – Pensando bem, acho que é mesmo...

– Claro que é, porra – diz Begbie com desprezo. – Escuta o que esse ruivo viado tá dizendo. – Ele aponta para Renton. – Esse viado entende mais de música que qualquer outro viado sentado nessa mesa, ele e o Keezbo. Os viado tocaram numa banda com o Stevie Hutchison – ele argumenta, olhando em volta para verificar se alguém discorda. Ninguém se apresenta.

– Mas o que cês acham, rapazes? – pergunta Keezbo de novo, levando a conversa adiante. – Leo Sayer ou Gilbert O’Sullivan?

– Se fosse obrigado a responder, eu escolheria Sayer – opina Renton. – Os dois são uns carinhas leves, mas Sayer é dançarino, então é rápido nas pernas, enquanto o Sullivan em geral só fica sentada atrás dum piano.

Eles refletem sobre o argumento por alguns segundos. Tommy lembra dos tempos em que frequentou o Clube de Boxe Leith Victoria com Begbie e Renton, como aquilo não tinha bastado para um e exigido demais do outro, mas se encaixado perfeitamente nas necessidades dele. Ele havia recorrido ao “canto da sereia” para derrubar Begbie, então com 15 anos, no meio do ringue; deixou o oponente apoplético, forçando-o a perseguir sua presa em águas cada vez mais profundas, deixando-o num estado de impotente frustração à medida que tentava em vão atravessar os jabs precisos para atingir Tommy. Begbie acabou perdendo todo o gás e foi abatido, um lutador de rua recebendo uma bela lição científica de um boxeador. Na época, Tommy achou que pagaria caro por aquela vitória, mas ao invés disso ganhou o respeito de Begbie, embora o oponente tenha aproveitado a oportunidade para enfatizar que qualquer embate fora do ringue teria um resultado bastante diverso.

E Tommy, que se arrependera um pouco de ter escolhido o futebol em vez do boxe, não tinha razão nenhuma para duvidar disso. Ele já tinha admitido que Begbie era mais talentoso como guerreiro das ruas. Tommy conseguia focar em um único oponente no ringue, mas entrava em pânico no tumulto da pancadaria urbana, onde era preciso ter uma boa visão periférica para ler uma situação envolvendo múltiplos oponentes. Frank Begbie triunfava se impondo nesse tipo de caos. – É bem como essa porra que o Rents tá dizendo – decreta ele – é uma briga de peso-pena, e nesse caso o que decide é a agilidade. Sayer ia demolir aquele pedófilo em três assalto. Tam?

– Isso aí mesmo.

– Sayer. – Eles brindam erguendo os copos, e Spud acrescenta: – O show precisa continuar.

– Bom, se a merda do show precisa continuar, levanta essa bunda e baixa uma porra duma rodada, seu judeu viado – diz Begbie, matando o caneco em um só gole e forçando os outros a acompanharem seu ritmo.

Spud faz uma cara triste e contrariada, mas obedece. Ele continua trabalhando como entregador de móveis, embora seu patrão tenha vendido um dos caminhões e siga falando da necessidade de fazer novos cortes. Porém, ele se consola com o fato de que trabalha no mesmo lugar desde que terminou o colégio: é um funcionário eficiente e confiável. Não está correndo risco algum, com certeza. Keezbo não teve a mesma sorte; ele conta que foi dispensado da construtora para a qual trabalhava como pedreiro. – Ainda faço uns serviços aqui e ali pra ele, mas o cara não tem condição de me mandar pro Telford College pra eu terminar a escola técnica.

– Cadê a porra do Segundo Lugar? – pergunta Begbie. – Ouvi dizer que encheram o viado de porrada. Me falaram que ele não quer dizer quem foi.

– Ele não vai lembrar, ele entrou na boate chumbado depois de passar o fim de semana inteiro na birita. O Dunfermline mandou ele embora, deu liberdade pro viado. Ele entrou no trago e não saiu até agora – Tommy explica, olhando para Keezbo e Renton. – A gente não devia ter deixado ele em Blackpool.

– Ele que deixou a gente, se lembro bem – diz Renton.

– O Mark tem razão, Tommy. – Keezbo tira os óculos e esfrega o olho. – Não dá pra ficar sendo babá do cara.

– Esse viado tá virando alcoólatra, porra – diz Begbie com desprezo.

– Pior que é, sr. Frank – concorda Keezbo com a cabeça, regendo o ar com os óculos para salientar seu ponto.

A conversa começa a convergir para talentos desperdiçados, e nesse momento Renton aproveita para se mexer. Quase para sua decepção, a anfetamina está começando a fazer efeito, e está todo mundo batendo papo sem prestar atenção nenhuma na partida. Por isso, ele pede para Mickey baixar o som um pouco, o que ele faz, mas somente depois de olhar para Begbie em busca de aprovação. As cabeças de alguns clientes descontentes giram silenciosamente para a tela que fica no outro canto do bar, perto da entrada. Então Renton vai até a jukebox e coloca para tocar “Too Shy”, do Kajagoogoo. Pensando no verso Modern medicine falls short of your complaint,[10] ele se diverte imaginando Frank Begbie com um penteado igual ao do Limahl. Quando entra o refrão, ele treme os cílios como uma corista dos anos vinte por trás da cabeça oval de Begbie, arrancando expressões nervosas e aflitas dos demais.

O radar psicopata de Begbie parece captar algo e ele se vira de repente, quase pegando Renton no ato. – Cê tem visto o Sick Boy?

– Sim, cruzei com ele na Walk dia desses. Tomamos uma cerveja rápida no Cenny voltando do trabalho – responde Renton com toda a calma. – A gente tá indo morar junto na Montgomery Street.

– E o jogo? – reclama Keezbo.

– A gente pode continuar vendo, bota a narração de volta pro segundo tempo. É que eu tava a fim de escutar um som – Renton se vê forçado a explicar, notando que Tommy também não está muito contente.

Begbie não aceitará que o desviem do assunto Sick Boy até que ele consiga dizer o que pretende. – Esse viado vive dizendo que não nasceu pra morar nos Banana, mas me disseram que ele tá sempre na casa da mãe dele.

– É porque o velho dele foi embora com uma mina mais nova – diz Renton.

Keezbo tirou os óculos mais uma vez e está limpando as lentes em sua camiseta do Combat Rock do Clash. É tamanho GGG, mas fica apertada em volta da barriga. – Isso mesmo, sr. Mark. Eu vi ele no centro da cidade com ela. Tem 25 anos ou algo assim. Ouvi dizer que tem um filho.

Renton vira o rosto para a tela. Nem fudendo, comer uma mina que tem filho. Já era ruim o bastante pensar que o pau de outro cara entrou na mina que cê tá comendo, mas pensar no filho sendo puxado pela buceta dela... nem fudendo, ele pensa, espantando o mal-estar com um calafrio.

– Ela é gostosa? – pergunta Tommy.

– Até que é – admite Keezbo. – Eu fazia.

– Velho safado e sortudo.

– Cê precisa arranjar logo um buraco pra meter, Tam – diz Begbie, voltando-se em seguida para o restante da mesa. – Vi ele tentando dar em cima daquela Lizzie McIntosh lá no Largo da Walk esses dias.

– Tava só dando oi. – Tommy encolhe os ombros.

– Aquela ali não é da sua categoria, sr. T. – Keezbo ri.

Tommy responde com um sorriso calculado enquanto Spud atiça a memória. – Falei com ela uma vez. Ela tava pintando, tipo com um cavalete, lá na praia. Uma pintura bonita e tal. Foi o que eu disse pra ela: que pintura bonita. Ela tá estudando arte na universidade, né, Tam?

– É.

– Bucetinha de nariz empinado – diz Begbie. – Lembro dela no colégio. Não vai render nada ali, Tam. Cê tinha que vir comigo no Spiral, conheci uma mina lá semana passada. Aquela não economiza na safadeza!

Renton range os dentes lembrando de um incidente no colégio envolvendo Begbie e pensa em contar a história, mas decide que é melhor evitar. Em vez disso, lembra de Lizzie na aula de artes dos exames-padrão. Gostosa e mais um pouco, mas aquela turma estava cheia dessas, ele pondera: elas ainda representam metade de seu estoque de punhetas.

– Mas a Lizzie não tem muito nariz empinado, na verdade. Ela fala palavrão que nem um pedreiro – diz Tommy. À medida que as palavras saem de sua boca, sente-se envergonhado por sua covardia e pela de todos em redor da mesa. Todos eles haviam experimentado um encontro ao acaso com uma garota que era como um sol desaparecido há muito tempo, daquelas que te convidam a sair de um lugar escuro, te desarmam e te deixam impotente como uma flor se abrindo.

– Cê tá mandando muito bem com essa gatinha da McIntosh. – Renton sorri, apertando discretamente o osso e a cartilagem do joelho de Tommy. – Ela tem aquele ar distante que é comum em várias minas gostosas, mas é só um mecanismo de defesa pra evitar que os manés se aproximem. Quando cê começa a bater um papo, descobre que elas são legais.

Todos parecem aceitar esse ponto de vista; todos exceto Begbie. – É, essas putinha esnobe falam uns palavrão pra se exibir, mas nunca é natural, do jeito normal que um cara fala.

Por alguma razão que lhe escapa, Renton tem o coração invadido de repente por um amor enorme por Franco, e pisca para ele com ar de camaradagem. – Nisso cê tá certo, parcero.

Begbie se eriça vaidoso e se encosta mais no assento, quase ronronando de satisfação. Em seguida seu rosto passa por uma transformação radical e a paranoia toma conta de Renton, que pensa: Interpretei mal o que tá acontecendo na cabeça desse viado imprevisível!

Então ele se dá conta de que Begbie está focando em algo que está atrás dele, se vira sobre o assento e dá de cara com uma garota magrinha e de membros angulosos, com cerca de 18 anos e cabelos loiros espetados de camundongo, raspados nos lados. Ela ignora Lesley no bar, avança na direção deles e para a um metro ou dois de distância, com os braços cruzados na frente do peito frágil. Um por um, todos vão registrando sua presença, enquanto Begbie continua esparramado no assento com uma expressão hostil no rosto. – Que porra cê tá querendo, caralho?

– Falar com você – diz ela.

Renton pensa na mesma hora que a garota parece interessante. Na verdade, ela faz mais meu tipo que o do Franco. Em geral, ele prefere um pouco mais de carne nos ossos, nos ossos, nos ossos secos.

– Pode falar aí. – Begbie faz pouco caso. – O país é livre, porra!

– Aqui não – diz ela, distribuindo um olhar de censura para o restante da mesa, e todo mundo volta a encarar a tela, exceto Tommy, que abre um sorrido anêmico para a garota e dirige um aceno de cabeça esperançoso para Begbie, e depois para a porta. Franco pensa um pouco no assunto, se levanta e vai para uma mesa próxima, levando o pint e convidando a garota a acompanhá-lo. Os outros reparam que ele não oferece uma bebida para ela.

– Isso não tá parecendo coisa boa – pondera Tommy, ao mesmo tempo que a segunda música escolhida por Renton, a “White Lines” do Grandmaster Flash com Melle Mell, começa a tocar no jukebox.

– Porque eu sei que é seu! – Eles escutam ela berrar por cima da música em um tom agudo e adenoidal, ao mesmo tempo que Platini chuta por cima da trave na TV silenciosa.

– Isso é o que cê tá dizendo, porra – responde Begbie recostado na cadeira, mantendo o controle, obviamente gostando da situação a essa altura. O mesmo vale para os outros; eles são só ouvidos.

– Só pode ter sido você!

Begbie pensa no sedoso obstáculo das roupas da garota naquela noite, na delicadeza com que ela tirou os sapatos. Em como essas lembranças se mantiveram soberanas em sua memória acima de qualquer imagem de sua nudez. Ele gostava de ver ela vestida. Embora ainda fosse verão, estava frio lá fora. Ela não devia ter saído de casa sem um casaco. Podia ficar bem frio na área do porto. – Escuta, se cê sai de casa sem uma porra duma jaqueta quando tá nevando na rua, cê pode acabar gripada, é ou não é, caralho?

Ela o encara, exasperada, e então faz irromper um guincho impressionante. – De que porra cê tá falando? Casaco? Neve?

Na TV, Dominique Rocheteau defende um tiro livre que passa perto da trave. Renton fica olhando alternadamente para a tela e para Begbie e a garota.

A música pede Get Higher Baby, e a voz de Begbie se eleva. – Se cê sai de casa sem uma merda duma pílula quando tá chovendo porra, cê pode ficar embuchada, caralho!

Lesley ergue uma sobrancelha para Renton enquanto finge limpar a lente dos óculos. Mickey Aitken encara um par de clientes curiosos, que se viram de volta para a outra TV.

A garota estuda Begbie em silêncio por algum tempo, mordendo o lábio inferior. De repente ela cobra dele: – E aí?

– Dá um jeito nisso, porra. A porra do problema é seu, não meu. – Franco Begbie balança a cabeça, bebe um longo gole e descansa o copo com cuidado sobre a mesa. Repara que as manchinhas da fórmica são iguais às da casca de um ovo que ele encontrou em um ninho quando era pequeno. – Eu falei pra você: “Me dá a buceta.” Nunca falei: “Me dá um pirralho.” Por quê? Porque eu gosto de buceta, não de pirralho!

A garota se levanta, gritando e apontando para ele: – ESSA PORRA NÃO VAI TERMINAR AQUI, CARA! – Ela dá a volta e atravessa o pub em direção à saída no mesmo instante em que o juiz apita o final do primeiro tempo e os jogadores começam a sair do campo. Até o momento os espanhóis jogaram bem, mas quem chegou mais perto de marcar foi a França.

– EI! – Begbie, em pé, urra na direção dela. – CÊ TÁ ESQUECENDO QUE OS OUTROS CARA TAVAM TUDO LÁ E TAL! Ele faz um gesto abrangendo a nossa mesa. – AQUELA FILA DE CARAS PRA QUEM CÊ DEU!

A garota para abruptamente. Ela se vira e encara todos eles horrorizada, depois grita para Lesley, se defendendo: – ELE TÁ FALANDO MERDA! – Lesley olha para Mickey e ergue os ombros, enquanto a garota volta a se dirigir a Begbie: – CÊ VAI TER O QUE MERECE, CARA!

– CÊ JÁ ME DEU O QUE EU MERECIA! – grita ele em resposta a ela, cruzando os braços. – E FOI UMA MERDA, SE CÊ QUER MESMO SABER!

Renton observa a garota se encolher humilhada e sair pelas portas de vaivém do bar com os ombros mais expostos que ele já viu, como se precisassem somente da noite como xale. Ele imagina um outro mundo em que ela não foi fecundada pela semente de Begbie, um mundo no qual ele poderia sair atrás dela, caminhar a seu lado, talvez usar a própria jaqueta para proteger suas costas flexíveis e delicadas.

Frank Begbie bebe o resto de seu pint, grita pedindo outra rodada e se une novamente aos amigos. – Se essa aí me levar pra porra do tribunal, cês podem testemunhar pra mim e dizer que cês tavam lá também e coisa e tal. Todo viado sabe muito bem que a gente divide as mina o tempo todo lá na porra do porto, caralho!

– Eles podem fazer teste de sangue, Franco – diz Tommy.

Renton tem vontade de mencionar o que leu na Biblioteca Central sobre um novo teste de DNA, na Scientific American, mas então lembra que não está no grêmio estudantil de Aberdeen e sim num pub da Walk, onde as suposições de um espertinho correm risco de não ser bem recebidas.

Os lábios de Begbie se retraem por cima dos dentes. – Eu sei disso tudo, Tam, mas puta que pariu – diz ele com raiva, e em seguida sua expressão se acalma – essa vagabunda vai ficar longe do tribunal se souber que metade do Leith vai dizer que tava ali socando a pica naquela xereca esporrada depois do Franco, seu viado!

Por trás das risadas, todos os outros começam a sentir pena da garota. Principalmente Spud. Um Bacardi com Coca a mais, um pouquinho de tesão, uma rapidinha e pronto, cê tem que criar um Begbie pelo resto da vida. Não importa se a mina é uma tapada, ninguém merece isso.

O segundo tempo começa e Platini, com uma aura de inevitabilidade, coloca os franceses na frente. O pub comemora, ou pelo menos a turma do outro canto comemora, e Begbie fica visivelmente irritado com a comoção, distribuindo olhares silenciosos no bar estreito. Tommy pergunta a si mesmo se será capaz de defender Begbie outra vez na vida e tenta imaginar circunstâncias em que se veria forçado a fazer isso.

A tarde passa com mais algumas rodadas de bebida. Na tela, Platini atingiu o pináculo esportivo e ergue em triunfo a taça do Campeonato Europeu. Renton e Keezbo ficam surpresos com o dois a zero; não tinham notado o segundo gol. A anfetamina, a adrenalina e seus dramas pessoais ficaram na frente.

– Nem sei a porra do nome dela – diz Begbie, tentando fazer as palavras soarem abrasivas e desmerecedoras, mas de alguma forma, para a sua surpresa e a dos outros, o que sai é algo entre uma acusação e um lamento. Por alguns instantes, ele pensa naquele ovo cheio de manchinhas: não consegue lembrar se o esmagou ou se o deixou em paz no ninho.

10. A medicina moderna não resolve sua queixa. (N. dos T.)


Primeiro pico: é só dizer “Sim”

A perversidade e a obstinação são parte integrante do caráter escocês. Desde que eu disse “não” praqueles viados em Manchester, fiquei obcecado com a heroína. Às vezes me dá vontade de ter dito “sim”, quem sabe assim eu ficasse mais inclinado a deixar isso em paz. Além disso, dizem que é um bom analgésico, e as minhas costas ainda doem, principalmente de noite. O médico acha que eu tô me picando, e o paracetamol não serve pra porra nenhuma.

É um segredo conhecido no nosso círculo que o Matty, que arranja a maior parte da nossa anfetamina, tá na heroína há uma caralhada. Fiquei sabendo através dele que o Johnny Swan, um velho parcero de futebol meu, consegue bagulho bom. Na real, eu não vejo o Johnny há milênios, desde que a gente jogava juntos no Porty Thistle. Ele jogava bem. Eu era uma merda, mas me esforçava pra caralho pra não ter que ir lutar boxe no clube com o Begbie e o Tommy.

Chegou a hora de restabelecer essa amizade.

No apê da Monty Street, toco no assunto com o Sick Boy e ele se pilha. – Isso me soa bem pra caralho. Eu ia curtir experimentar um pouco dessa merda, sempre gostei da ideia. – Ele começa a cantarolar o clássico do Velvet Underground que fala em enfiar a agulha na minha veia... – Venha pra Simone, diz ele, projetando a mandíbula pra frente e largando o dicionário em que tava fuçando.

– Mas só um pouquinho, pra experimentar, porque a gente tem que encontrar o Franco hoje à noite na cidade, não esquece.

Sick Boy dá com a palma da mão na cabeça. – Essa coisa desse viado ficar marcando compromisso sem me consultar tá me fudendo as bola. Não preciso disso. Ter que ficar a noite toda ouvindo sobre quem vai morrer e quem levou uma facada...

– É, mas um pouco de heroína vai ajudar a acalmar, e depois a gente vai encontrar ele no Mathers.

Ele encolhe os ombros, se levanta, arranca as almofadas do sofá em busca de moedas e enfia o mísero butim no bolso. – Eu devia receber um salário maior do estado – resmunga. – Cansei de tirar dinheiro de mulher pra complementar a renda.

A gente sai e entra num 16 rumo ao apê do Johnny em Tollcross. O dia tá escaldante, então a gente senta embaixo e no fundo pra ter uma visão melhor do desfile de buceta. Fundo do andar de cima com o Begbie, pra intimidar os valentões, fundo do andar de baixo com o Sick Boy pra encarar as minas. São os códigos simples da vida.

– Isso vai ser bem divertido – diz Sick Boy, esfregando as mãos. – Drogas são sempre divertidas. Cê acredita em forças cósmicas, destino e essas merdas?

– Não.

– Nem eu, mas guarda isso na mente: hoje foi um dia “T”.

– O quê...? – pergunto, mas então me dou conta. – Esse lance do dicionário.

– Tudo será revelado. – Ele acena com a cabeça, e então começa a falar sobre heroína.

Heroína é a única coisa que nunca provei, não cheguei nem a fumar ou cheirar. E devo confessar que tô cagado de medo. Fui criado pra acreditar que um cigarro de haxixe me mataria. E era balela, é claro. Depois uma carreirinha de pó. Depois um quadradinho de ácido; era tudo mentira espalhada por gente condenada pelo inferno ao autoextermínio do trago e do cigarro.

Mas heroína.

É ir longe demais.

Mas como o cara aquele disse, tudo pelo menos uma vez. Como o Sick Boy não parece preocupado, finjo que também não estou, pra manter a moral. – É, tô louco pra saber como é injetar herô.

– O quê? – Sick Boy me olha horrorizado enquanto o ônibus ronca na subida. – De que porra cê tá falando, Renton? Herô? Não fala isso na frente do trafi, parcero, senão ele vai rir na sua cara. Chama de pico, em nome do papa João Paulo – diz ele indignado, e em seguida encara uma mina de saia curta na rua que tá passeando pela Lothian Road com um ar todo sedutor. – Que deusa... não deve ser pata, a pose e a expressão tão soltinhas demais...

– É mesmo... – respondo sem convicção.

Chegamos na casa do Johnny Swan e, embora a porta da escada tenha um interfone, ela tá aberta como a boca de um retardado. Subimos pela escada, sabendo por instinto que será no último andar. É o único apê sem nome nenhum na porta preta e descascada. Johnny nos recebe com um sorriso, mas ele e Sick Boy trocam um olhar estranho. – Sr. Renton! Quanto tempo... entre...

– É, faz uns dois anos, pelo menos – reconheço. Lembro que eu tava numa festa aqui, com o Matty. Depois que a gente voltou de Londres. Swanney ainda tem os cabelos claros, mas agora eles tão mais compridos e bagunçados, e também continua com os mesmos olhos azuis penetrantes, mas os dentes dele são uma maçaroca verde e marrom. Com esse olhar de surpresa permanente e uma aparência de que tá sempre à beira de um ataque, ele me lembra o Ron Moody, que fez o papel de Fagin em Oliver!. Tem um cheiro azedo de suor velho no ar, que não dá pra dizer se vem da moradia ou do morador, e que vai ficando mais forte à medida que a gente entra mais no apê. Sick Boy, que eu acabei de apresentar ao Johnny, capta o aroma e não faz nenhum esforço pra disfarçar o incômodo.

Uma das janelas tá coberta de tábuas, escurecendo a sala de entrada. As outras tão cheias de plantas altas, parecidas com trepadeiras e cheias de tomates, absorvendo a maior parte da luz restante. A porra do linóleo continua no chão, apesar de estar coberto com um tapete esfarrapado. Na parede, em cima da lareira, tem um pôster massa da Siouxsie Sioux pelada da cintura pra cima.

A gente se atira no sofá de couro. Um periquito lamentável cheio de penas gosmentas fica se debatendo em cima do poleiro dentro de uma gaiola, parecendo o Ricardo III. Depois de um pouco de conversa sobre os velhos tempos, Johnny vai direto ao assunto. – Matty Connell me contou que cê continua nessa onda de Northern Soul. Imagino que queira um pouco de anfetamina.

Dou uma olhada no Sick Boy e depois no Johnny, tentando parecer à vontade. – Na verdade, nos disseram que cê tem uma heroína boa.

Swanney arqueia as sobrancelhas e torce a boca. – É o que todo mundo quer agora. – Ele abre um sorrisinho. – Já usaram heroína alguma vez? – pergunta ele, arregaçando a manga da camisa. Dá pra ver as marcas vermelhas e saltadas como espinhas ferozes. – Quer dizer, já se picaram?

– Sim – minto sem olhar pro Sick Boy. – Em Aberdeen.

Swanney leva a resposta ao pé da letra, mas parece estar pouco se fudendo. Ele tira uma caixa de madeira de baixo de uma mesinha de vidro sobre a qual descansam um vaso azul e dourado muito massa, uma caneca da Escócia na Copa de 82, uma vela derretida até a metade em cima de um daqueles pratos de borda azul e branca que tudo que é viado tem em casa e um cinzeiro de lata cheio de bitucas de cigarro. – Cê quer um pico?

– Sim.

Ele abre a caixa, coloca um pouco do pó branco tirado de dentro de um saquinho de plástico numa colher e enche uma seringa hipodérmica com água da caneca. Depois esguicha o conteúdo da seringa na colher e a aquece na chama da vela, mexendo a mistura com a agulha enquanto ela se dissolve. Ao perceber que o Sick Boy tá de olho grudado, ele dá um sorrisinho por cima do ombro e espreme uma daquelas embalagens de suco de limão Jif na água da caneca. Ainda mexendo com a ponta da agulha, ele puxa a mistura de volta pra dentro da seringa.

Eu me encosto no sofá, hipnotizado pelos preparativos. Não sou o único: Sick Boy parece um estudante nerd de ciência observando seu mentor. Johnny me vê ali sentado como uma pica de reserva numa convenção de putas. Ele saca o que tá rolando. – Quer que eu faça pra você?

– Arrã. – Faço que sim com a cabeça. Viado gente boa, o Swanney, me poupando do constrangimento.

Ele puxa meu braço com força na direção dele, como um tubo de Natal, e o apoia em cima da perna. Sinto o contato da calça jeans imunda e grudenta do Johnny no meu pulso, como se ele tivesse derramado mel ou melado na perna. Ele amarra uma tira de couro em volta do meu bíceps e começa a bater nas minhas veias. Um calafrio me percorre e minhas costas latejam com um golpe-fantasma de cacetete.

Eu sei que tô indo longe demais.

Meu coração dispara. Quer dizer, dispara pra valer. A gente tem que encontrar o Franco pra tomar uma cerva e tal, pra assistir os jogos de futebol da Euro 84, e ele odeia ficar esperando!

Diga não.

Johnny dando tapinhas no meu braço enquanto me distraio olhando os flocos de pele seca no couro cabeludo dele, ali onde o cabelo termina.

Begbie. Tenho que encontrar o Begbie às nove!

Penso em gritar “para”, mas sei que não conseguiria voltar atrás a essa altura. Se heroína é tão viciante quanto dizem, já não posso ser mais junky do que isso.

Diga não.

Penso na universidade; nos meus estudos, no módulo de filosofia e no livre-arbítrio versus determinismo...

Diga não.

Fico pensando na Fiona Conyers das aulas de história, jogando os cabelos pretos e compridos pro lado, os olhos azul-claros grandes e os dentes brancos sorrindo pra mim...

Diga não.

Johnny continua dando batidinhas como um velho garimpeiro procurando ouro. Ele me olha e abre um sorriso demente. – Cê tem umas veias de merda.

Não é tarde demais! Não é tarde demais pra dar alguma desculpa, ele acabou de te fornecer uma, diga não, não, não...

– É, eu nem posso doar sangue.

Diga mais alguma coisa... diga não, porra...

NÃO, NÃO, NÃO...

– Talvez seja melhor assim – ele sorri e enfia a agulha no meu braço. Olho pra ele contrariado, afetado pela dor aguda, pela intrusão. Ele mostra os dentes estragados e puxa um pouco do meu sangue pra dentro da seringa. A palavra “espera” se forma em meus lábios por um instante, mas ele empurra o êmbolo e esvazia o conteúdo do tambor em mim. Fico olhando pra seringa vazia. Não acredito que ele acabou de enfiar aquela merda dentro de mim.

O medo sobe pela minha espinha como mercúrio aquecido no termômetro. E então some. Sorrio pro Johnny. Bem quando surge o pensamento: então é só isso? sinto um estremecimento e um calor, e em seguida o meu corpo e a minha mente parecem uma pastilha de frutas derretendo dentro de uma boca gigante. De repente todos os medos e dúvidas que tavam cozinhando na minha cabeça simplesmente se dissolvem e posso sentir eles se afastando e sumindo na distância...

Sim, Sim, Sim, Sim, SIM, SIM.

Na minha imaginação, vejo uma imagem do meu irmão Billy quando a gente tava caminhando pelo calçadão de Blackpool, atravessando a rua e entrando numa viela entre pensões de tijolos vermelhos. É um dia quente de verão e eu tô comendo um sorvete de casquinha.

Johnny diz algo parecido com – Bagulho foda, hein?

– É...

É...

Sou dominado pela sensação de que tudo está, estava e estará absolutamente bem. Um estado foda de êxtase puro e eufórico me atravessa como um raio de sol na sombra, fazendo com que tudo pareça estar não apenas certo, mas do jeito certo.

Sim...

Uma náusea brota repentinamente no meu estômago e sinto um líquido se acumulando na garganta. Swanney percebe os espasmos e me alcança uma folha de jornal. – Essa merda é potente, esqueci que cê era novato, respira fundo... – diz ele.

Ah sim, mas não tem mais nenhum medo agora, Swanolito, caralho eu tô voando...

Engulo tudo à força, me controlo e me sinto ótimo, me apoiando no encosto do sofá. Não sei o que eu esperava, talvez alucinações tipo ácido, mas não surge nada daquele tipo, tudo tá como sempre foi, mas não apenas parece como dá a sensação de ser maravilhoso, acolhedor e simplesmente bom pra cacete, como se todas as arestas afiadas do mundo tivessem sido alisadas e polidas. Minha coluna endurecida e desencaixada tá parecendo uma peça maleável de borracha. Se um policial batesse nela agora, o cacetete rebateria e acertaria o viado no meio dos dentes...

Ah sim.

– Bom, hein, parcero? – diz Swanney.

– Cê fez uma coisa... bem... interessante, John. – Sinto as palavras escorregando devagar e a gente começa a rir junto, baixinho.

Chega a vez do Sick Boy, que tá me olhando espantado. Logo o torniquete tá no braço dele e a agulha do Johnny entra numa veia grande e escura.

– Nada é melhor que isso – digo enquanto vejo começar a fazer efeito nele, e então sinto ele tombando por cima de mim, macio e quentinho como um grande boneco de pelúcia.

– Ah... coisa linda, puta que pariu... – ele geme, e então vomita em cima do jornal. Quando volta a sentar, me encara com um olhar chapado. – A palavra... a palavra com “T”... meu dicionário... era torniquete... pelas... pelas bolas doces e dependuradas do Santo Papa... isso é cósmico, cacete...

– Cósmico... – repito como um papagaio, rindo baixinho. A gente não sai do lugar, compramos uma grama do Swanney, que foi pro bolso do Sick Boy, e ficamos aqui sentados um pouco mais no silêncio profundo e sonolento da tarde modorrenta, que é quebrado somente pelo grito de uma criança ou por um carro buzinando na rua. Swanney bota um disco do Doors pra tocar. Nunca gostei dessa merda antes, mas agora tô meio que sacando. Acima de tudo, eu tô apreciando o fluxo lerdo da conversa, a sabedoria e a babaquice, os argumentos e réplicas, e me deliciando com o rastro hipnótico de “Riders on the Storm” ao mesmo tempo que já saboreio a faixa do lado um que ele colocou pra tocar de novo. A escuridão nos envolve com força e me sinto ótimo com isso. Foda-se ir pra cidade, praquelas ruazinhas sórdidas em que os clientes de boate mais metidos batem boca com bêbados enfezados e brigões, incentivados por aquelas minas de roupa curta com a pele toda arrepiada que soltam gritinhos estridentes como gaivotas. Não sinto nada além de um desprezo esmaecido por tudo isso. Não me importa é Mickey Platini ou Franco Begbie, todo mundo vai ter que esperar.


Planejamento familiar

Belle Frenchard ouviu os sons de alguém vomitando no banheiro enquanto subia as escadas com um copo de chá com leite para sua filha. Instantaneamente, rezou para que não fosse Samantha fazendo aqueles barulhos. Por favor, que seja o Ronnie, o Alec ou o George, todos eles saíram na noite passada. Mas não a Samantha.

Quando sua filha, frágil e pálida, saiu para encará-la, elas trocaram um olhar sombrio e demorado, e Belle simplesmente soube. As palavras saíram tropeçando de sua boca mole: – Cê engravidou...

Samantha nem tentou negar. Ela sentiu sua coragem aumentando enquanto olhava para a figura bovina da mãe. Pensou na vida crescendo dentro dela e ficou chocada com a verdade absurda de que ela própria havia saído de dentro da carcaça molenga e suada de Belle.

Aquele filhadaputinha do Sean... A primeira suspeita de Belle desmoronou rápido. – Mas o Sean tá na merda do exército há seis meses, porra... – ela pensou em voz alta, antes de perguntar: – De quem é?

Samantha encarou de volta os olhos dementes de Belle, querendo proclamar de forma truculenta, “É meu.” Mas tudo que saiu dela foi um murcho: – O quê cê tá querendo dizer?

– Que porra cê acha que eu tô querendo dizer? – Belle ficou parada, mãos nos quadris, veias saltando no pescoço. – QUEM É O PAI, PORRA?

Nesse ponto, Ronnie, que vinha se arrastando lentamente escada acima, curtindo uma ressaca brutal, mudou de ânimo. Vivia malhando na academia e raramente bebia, e ficou feliz quando o jorro de adrenalina suplantou a letargia da bebedeira que ainda debilitava seu organismo. Com os olhos frios e muito focados, perguntou num tom grave e ameaçador: – Que porra é essa?

– Fala pra ele – insistiu Belle, cruzando seus antebraços carnudos. – Fala pra gente quem é a porra do pai!

– Não interessa!

– Ah, não? Se vai morar debaixo desse teto, porra, me interessa muito! – berrou Belle, estridente. – Não tem grana nenhuma entrando na merda dessa casa! George é um desocupado; ele é um desocupado. – Ela apontou para Ronnie, que sentiu a raiva queimar por dentro. Ele odiava o jeito que sua mãe usava essa palavra para se referir à sua situação de desemprego. – O Alec é um desocupado!

E agora George, magrinho, com os mesmos olhos penetrantes do irmão mais velho, e Alec, mais pesado, lento e suave, estavam subindo as escadas, fazendo uma fila atrás da mãe, a juíza, e do irmão, o xerife do grupo que já havia decidido formar um pelotão de linchamento. Samantha sentiu o oxigênio sendo retirado. – Cês não conhecem. Ele é do Leith.

– Se a gente não conhece, a gente vai conhecer esse merda rapidinho, nem esquenta – disse Ronnie, com a voz carregada e ameaçadora, retesando os músculos dos braços e das costas, animado pela força que sentia correr pelo corpo.

– Ele vai assumir a responsabilidade, quem quer que seja – disse Belle com rispidez, sacudindo a cabeça e apertando o corrimão, até que lhe ocorreu de repente um pensamento inacreditável. – Que merda, como é que cê conseguiu ficar grávida na época em que a gente vive?

Samantha mordeu o lábio inferior e engoliu com dificuldade. – Eu tava bebendo com a Wilma e a Kate e esqueci da pílula... com o Sean longe daqui... – Ela se encolheu só de pensar. – Aí conheci esse carinha. A gente tomou todas e...

– O Sean vai ficar puto – disse George com prazer malicioso, saboreando a ideia como um conhecedor bebendo um gole de um bom vinho, e então acrescentou: – Mas cê sabe disso, né?

Samantha encarou a parede. Pensar em Sean não era agradável.

– Qual é o nome dele? – perguntou Ronnie.

A mandíbula delicada de Samantha se projetou desafiadoramente. – Ele tem uma mina e não quer nem pensar em ficar comigo, e não tá nem aí pro bebê – disse ela num impulso de honestidade, sentindo a força e o impacto daquelas informações. – E disse que se eu tentar dizer que é dele, ele vai juntar os parcero e dizer pro juiz que eu tinha dado pra todo mundo – desabafou, e então começou a chorar.

– Mas cê não... – Belle não conseguiu se conter.

– CLARO QUE NÃO! – berrou Samantha para a mãe. – Tá achando que eu sou o quê?

– Bom, esse carinha vai ter que assumir – murmurou Belle, um pouco culpada.

– Mas ele não vai! Ele me disse!

– A gente vai ver se não vai – disse Ronnie, com uma fúria suave e contida.

A raiva de Belle diminuiu e ela pôs o braço em volta da garota, sabendo perfeitamente, o tempo todo, que a filha a estava manipulando. – Tá, tá, querida... a gente vai passar por essa.

Ronnie, entretanto, com seus enormes músculos injetados de sangue, bem na frente dela, era um super-herói em transformação. O jeito que aquele cretino do Franco tinha tratado ela era um insulto para ambos. Ele tinha esfregado a cara dela no chão naquele pub, e agora ia se foder. – Não vou perguntar de novo – disse Ronnie, bufando. – Qual é o nome dele?

– Francis – respondeu ela baixinho. – Francis Begbie.

Os irmãos se entreolharam. – Não conheço. – Ronnie virou-se para George, imaginando que o irmão mais novo tinha mais chances de conhecer o rapaz que tinha desgraçado sua irmã.

– Ele é um valentão – reconheceu George a contragosto, temendo que Ronnie lhe delegasse a missão de se vingar. Ele olhou nos olhos assassinos do irmão mais velho e ficou pensando na crescente reputação daquele rapaz, Francis Begbie. Imaginou o aperto que seria ficar preso entre essas duas forças.

Alec, o silencioso irmão mais novo de George, que, devido ao seu cabelo prematuramente ralo, era geralmente tomado como o mais velho da dupla, resolveu falar. – Esse viado tá morto se não fizer o que é direito com a nossa Sam.

– É isso aí, porra – Ronnie exaltou-se. – Cês dois vão fazer uma visitinha a esse tal de Francis Begbie. Deem a real pra ele. Cubram de porrada. E digam que ele não vai querer me forçar a ir atrás dele!

Com o braço da mãe em volta do corpo esbelto, Samantha libertou outra catarata de soluços, muito embora um sorriso também tenha se aberto, oculto e enterrado naqueles peitos carnudos.


Voo do dragão

Hoje à tarde a gente se cagou todo, eu e o Rent Boy. A gente tava no apartamento, eu todo esparramado em cima dos meus dois pufes pretos e o Renton estirado no sofá, debatendo a experiência sensacional com a heroína na outra noite; queimando fumo e assistindo a cena de luta emocionante entre Bruce Lee e Chuck Norris em O voo do dragão. A heroína que arranjei com o Swanney tá pegando fogo no meu bolso, mas o Rents quer dar um tempo e a gente fez um pacto de só usar juntos. Tô quase voltando a esse assunto quando começam a esmurrar a porta. Daí uma voz explode na caixa de correio no fim do corredor. – Seus viado! Abram essa merda!

A gente olha um pro outro e daí é que nem telepatia: É o Begbie! A gente esqueceu do viado!

Nenhum de nós fica com pressa de se mexer. Por mim, o Renton que atenda a porta e leve a porrada na cara. Mas ele tá pensando a mesma coisa. – Vamos ignorar – cochicho.

Rents fica de olhos esbugalhados. – Acho que ele deve ter ouvido a TV.

– Porra! Certo. A gente vai juntos. Você fala... não, eu falo... não, você fala!

– O que vai ser, porra?

– Você fala!

A gente se levanta e chega perto da porta, inventando desculpas na cabeça, e eu abro e Begbie passa todo esbaforido pela gente e entra no apartamento. Tá carregando seis latas de cerveja. – Foi mal ter deixado cês na mão naquela noite, pessoal, tô trazendo um presentinho pra tipo fazer as pazes – diz ele enquanto a gente volta pra sala com ele trocando um olhar de surpresa e alívio entre nós. Franco afunda no sofá. – Bruce Lee... do caralho! Olha só, conheci uma gatinha, saca? Tão ligado aquela June, June Chisholm, de Leith? Antes nem era grande coisa mas cês tem que ver os peitão que ela tem agora, seus viado! Essa daí não economiza na safadeza, vou te contar...

– Ah, só – diz Rents, chegando mais perto dele com cuidado e abrindo uma latinha. Passa uma pra mim e eu abro, mesmo que seja uma Tennent aguada que eu não consigo beber porque minha boca fica com gosto de lata. Capoto de novo nos pufes.

– Tava com essa daí na mira fazia um tempão, seus viado. – Franco dá uma esfregada nas bolas por cima das calças e dá uma bombada com o quadril. – Encontrei ela na porra do Spiral sexta de noite e daí, porra, cheguei junto e mandei bala! Daí passei o fim de semana todo botando pra dentro. Meti atrás, fiz de tudo. No começo, não queria nem me chupar. Daí eu disse “vamo ver se cê não vai acabar me chupando”. A timidez acabou rápido pra caralho depois que eu comecei a trabalhar! – Aí ele bombou o quadril de novo e levantou a lata dele pra gente brindar. Eu me estico todo pra bater minha latinha. Lembro dessa Crisholm: uma pata-em-progresso. Nosso Francis é sem dúvida o homem ideal pra ajudar essa piranha a alcançar seu destino sórdido.

– Cê tá com tudo agora, Franco – diz o Rents.

– É isso aí. Cês dois devem ter acabado enchendo a cara e partido mais uma vez pro cinco contra um – ele faz um gesto no ar –, enquanto eu passei o fim de semana todo estraçalhando a buceta da June. – Ele dá socos repetidos na palma da mão. – Se cês andar comigo é certo que cês vão conseguir um buraco, seus viado inútil!

Eu me forço a tomar outro gole do que parece alumínio líquido e rançoso. – Seu sucesso é inspirador, Frank. – Abro um sorriso, me levantando e escondendo a lata e seu conteúdo repugnante no parapeito da janela por trás das cortinas. – Tô com umas coisas em mente e vou deixar vocês por aqui enquanto cuido disso. Não me espera, Mark.

Pobre Rent Boy. Não só teve de ficar com o Begbie como teve o filme arruinado no clímax. Porra, assistir filmes de kung fu com o Franco é a coisa mais perigosa que existe, porque ele tenta demonstrar suas versões dos golpes e, em geral, escolhe quem tá ao lado dele. Como Renton se mudou pro apartamento, pode dividir também os encargos de entretenimento como anfitrião.

Saio pra ver mama mia e, claro, nossos bons vizinhos Coke e Janey. Tenho passado um bom tempo nos Bananas, e não faço isso por causa da comida caseira da minha mãe. Sim, a vida no meu antigo lar é bem melhor sans aquele corno, e minha mãe recebeu a excelente notícia de que enfim conseguiu uma casa naqueles blocos novos do South Side, como queria faz anos. Imagina a cara dele!

Trotando entusiasmado pela Walk a caminho da minha antiga base, escolho driblar o domicílio de minha Mama em prol da idêntica morada dos meus vizinhos. Janey, vestindo um top azul que cai muito bem e uma legging preta apertada, me recebe e me manda sentar numa poltrona. Outra saga sonífera de Coronation Street, a droga idiotizante eternamente preferida dos britânicos, penetra as paredes de magnólia do lar dos Anderson.

Mas Simone tá achando bem difícil manter a calma com Maria sentada no sofá bem em frente. Minha perna batuca um ritmo insistente enquanto dou umas espiadas nela; cabelo loiro preso no alto, mas com a franja descendo em cascatas por cima dos olhões azuis. Com as pálpebras pesadas, os cílios longos e o cabelo por cima de tudo, têm um aspecto sonolento que grita “cama”. A apetitosa carne cor de mel se revela graças ao vestido marrom decotado e peça única que exibe o pescoço esguio e os membros fortes, cobertos por uma penugem loira muito delicada. O vestido termina logo acima do joelho, mostrando as pernas longas e torneadas que terminam em pés com unhas pintadas e chinelos dourados. De repente ela começa a brincar de briga com o pequeno Grant; ela baixa e recupera a revista, e na manobra expõe por um breve momento uma frestinha de calcinha branca, tão berrante contra aquelas coxas com bronzeado de Majorca que eu quase gozo ali mesmo.

Pare de incomodar! Deirdre fala na TV.

Aqueles lábios grossos...

Para minha sorte, para meu azar, Coke vira a cara feia pra mim, se mordendo todo. – Tô achando que é hora de tomar umas. Cê vem pro pub, Janey?

Mas eu nunca, bufa Ivy Tilsley, enquanto Janey, enroscada como uma gata na poltrona maior, diz: – Não, vou ficar e assistir minhas novela. Se cê sair mesmo, me traz um peixe com fritas.

– Torta de carne pra mim – guincha entusiasmado o pequeno Grant.

Olho para Maria, mergulhada na revista e ignorando todo mundo.

– Cê não quer nada pra comer mais tarde, meu amor? – pergunta Janey a ela.

Ela ergue os olhos da revista. O doce desprezo naquele beicinho: meu Deus, nunca estive tão perto de amar. – Não.

Coke ergue as sobrancelhas, o sinal que usa pra eu me levantar. E aí partimos. – Adolescentes – resmunga ele quando chegamos nas escadas.

– É, deve ser mesmo difícil, tipo, criar filhos. Eu não vou ter, tô certo disso. Mas é o sonho da minha mãe; eu, Carlotta e Louisa com um bando de pirralho pra ela ficar mimando.

– Isso, melhor cê ficar livre e solteiro enquanto conseguir – aconselha Coke. – Não que eu me arrependa de nada – completa meio esganiçado, embora eu saiba que vá escutar um porrilhão de arrependimentos no pub depois que a bebida começar a rolar –, porque a Maria é uma menina muito boa, nunca deu incomodação nenhuma pra gente. E o homenzinho é um garoto de ouro e tal.

Você tem noção de como a sua filha é um fenômeno de gostosura?

Saímos da escadaria cinzenta para um sol ofuscante e caminhamos até o Bay Horse na Henderson Street. Como não podia deixar de ser, o Coke começa a tagarelar assim que o álcool entra no organismo. Ele tem dois estados de espírito: sóbrio, taciturno e quieto, ou bêbado, falastrão e barulhento. – Ouvi falar que aquele moleque que joga futebol, parcero seu, se deu mal no Grapes.

Aquele viado do Dickson de novo, aposto. Mas deve ser a única vez que não dava pra evitar. – Rab McLaughlin. A gente chama ele de Segundo Lugar, por causa do número de surras que levou. Sempre quer brigar quando tá bêbado. Tenho certeza que não só pediu pra apanhar, como implorou – informo ao Coke, pensando que é só uma questão de tempo até ele e o Segundo Lugar se encontrarem e virarem melhores amigos. Consigo enxergar os dois no albergue trocando histórias tristes.

Tô ficando meio inquieto. Devia ter dado uma passada na minha mãe, e tô pensando em usar um pouco do negócio que peguei com o Johnny Swan. Rents me convenceu que era melhor a gente esperar uns dias e se picar juntos, mas agora ele deve estar bêbado com o Begbie e a caminho dos pubs da High Street na companhia daquele psicótico. Agora tô querendo me livrar do Coke, mas sem fazer ele se sentir mal, porque preciso manter as portas da casa abertas pra mim. Mariazinha é jogo duro e já entendi que vou precisar de algo especial pra baixar aquela calcinha. Um caso de patinho feio que vira cisne da noite pro dia e começa a entender o poder que tem. Vejo uma segunda versão em progresso de Kathleen Richardson ou Lizzie McIntosh; ela precisa ter uma provinha da carne de SDW antes que desenvolva a mesma mania de provocar sem liberar. O medo de ter perdido o barco toma conta de repente e me faz pensar em como passar de nível.

Aí vamos trocando de pub, indo na direção do rio e depois andando em círculos, e acabamos parando na merda do Grapes. Vai contra meu bom senso, mas tô quase me mijando e isso vem em primeiro lugar. Nessa altura, Coke já está podre de bêbado, se agarrando no balcão e protestando contra vários tipos de injustiça. Vou pro banheiro, agora definitivamente tentado a me picar com o negócio que peguei com o Johnny Swan. O corpo de barril daquele infeliz do Dickson fecha o caminho. – Tira ele daqui, tá?

– Não tá incomodando ninguém.

– Tá me incomodando. Tira ele daqui, porra!

– Tá bom, eu tiro, dá um minutinho. – Me viro e sigo pro banheiro.

Esse viado é folgado pra caralho, e resolvo usar um pouco dessa heroína magnífica no seu estabelecimento. Preciso pegar o jeito desse negócio de preparar o pico, porque não dá pra ter a menor dúvida que o Renton vai ficar todo obsessivo com isso. Aquele viado a essa altura já deve ter lido tudo a respeito de heroína e começado a falar como se tivesse inventado o negócio. Aí eu me sento na privada, tranco a porta e começo o ritual: isqueiro, colher, bolas de algodão, Jif, água num frasquinho com tampa rosca, seringa, agulha e, acima de tudo, heroína. Não injeto demais antes de soltar o cinto, me picando do jeito que aquele bizarro do Swanney ensinou. Deslizar a agulha para dentro, como um avião pousando, ao invés de enfiar, como um helicóptero. Acho uma veia sem dificuldade, porque tenho uns canos de oleoduto nos braços ao invés de veinhas de moça como as do Rent Boy.

Ele vai com tudo... u-rru-rru... tem uma coisa me lavando por dentro, mas deve ser só a adrenalina...

Porra...

Adrenalina o caralho... tô me assando por dentro... subindo até a glória, a glória...

Puta merda, o negócio é forte e tô derretido! Sinto as gotas de suor surgindo na minha testa e o pulso acelerando. Preciso dar um tempinho aqui nessa privada. Um mutante bate na porta. De novo. Mas que se foda; isso aqui é bom demais. Que eles se caguem nas calças; esses viados deviam ter defecado antes de saírem de casa, porra.

Foguetes no ar... uh ah!

Ainda que eu pudesse ficar sentado aqui bem feliz o dia todo, me forço a levantar.

Quando saio, não tem nem sinal de Coke, aí me sento num canto, em paz com esse mundo adorável, embora em parte esteja me dando conta que chamar a atenção pra mim mesmo estando chapado de heroína no bar de um ex-policial com um monte de droga no bolso talvez não seja uma ideia muito boa, especialmente sem um copo de bebida na minha frente.

Aí eu me levanto e dou uma planada até o balcão, onde há dois mutantes. Um deles tem um sorriso estranho, daqueles que não dá pra dizer se o viado é um amor de pessoa ou um psicopata.

– Dickson levou seu parcero pros fundo pra ter uma daquelas conversinha especial.

Pelas bolas perfumadas do Santo Padre, acho que chegou minha hora de ir. Não tenho muito a ganhar impedindo Coke de receber o mesmo tratamento que Segundo Lugar, especialmente nesse estadinho e com droga nas veias e uma boa quantidade no bolso. Mas Dickson volta pra dentro de repente e parece abalado pra caralho. A máscara de homão caiu de vez, o que me faz pensar: será que o Coke baixou o sarrafo nele? O ex-porco corpulento vem até mim com uma expressão assustada no rosto, como se estivesse pedindo desculpas. – Seu parcero... tá ali atrás. Nem encostei nele, a gente só tava discutindo e ele tropeçou num barril e bateu a cabeça. – O rosto de Dickson fica vermelho e os beiços tremem. – Parece bem feio. – Ele sacode a cabeça e morde o lábio inferior. Todas as expressões grotescas que passam pelo rosto dele parecem em câmera lenta, é como estar num zoológico, mas num tipo de zoo onde a gente observa o comportamento da nossa própria espécie nos mínimos detalhes. Aí a voz dele se ergue numa súplica ao pub inteiro. – Eu nem encostei a mão nele!

Vou pros fundos com um viado grandão chamado Chris Moncur e topamos com Coke todo fodido e esticado no chão. Eu me ajoelho ao lado dele e sacudo. Parece um peso morto, não tem reação nenhuma. – Coke... Coke!

Coke... ah não...

A cara dele tá inchada, a boca bem aberta. – Achei que ele tinha tropeçado num barril – diz Moncur, se ajoelhando ao nosso lado e olhando pro Dickson com um ar acusatório. – Ele caiu de cara?

– Chris... para com isso... ele se esborrachou, tava bêbado – responde Dickson, agora se cagando todo.

– Pra mim, parece que não foi só bebedeira – diz outro viado com jeito de folgado e mãos nas cintura. Dickson cometeu a burrice de achar que esses vagabundos eram parceros dele, mas ninguém gosta de ex-polícia, e tá bem claro que só tavam esperando a hora certa de se voltarem contra ele.

Mas Coke...

Ele já era. Tô bem perto dele, encarando aquela boca falastrona que parece feita de borracha. Olho pra cima e vejo a cara assustada do Dickson, de perfil. – Ele se foi – digo, me levantando.

Outro cara com uma jaqueta de nylon vermelha se agacha ao lado de Coke. – Que nada, ele ainda tem pulso, tá respirando...

Puta que pariu, obrigado...

Volto pro bar: vou é cair fora dessa merda. Uns caras me seguem e um deles disca 999 no telefone público, chamando a polícia e uma ambulância. Dickson veio atrás da gente e ainda tá se cagando todinho. – O cara tava bêbado, totalmente transtornado. Mandei ele embora!

Tô de saída, mas o Moncur me enxerga escapulindo e grita. – Oi! Simon! Nem pensa em ir embora!

– Severamente – resmungo, e não tem nada que eu possa fazer, chapado de heroína e com um grama no bolso, enquanto chegam a ambulância e a polícia. Os paramédicos tentam reanimar Coke enquanto a polícia registra depoimentos. Um policial mais jovem, com todo jeito de caipirão, me olha de boca aberta e pergunta se andei fumando “cigarrinho de artista”.

– Que nada, só tô meio bêbado, passei o dia na rua – respondo. Ele segue adiante e vai falar com outros caras, enquanto um policial mais velho dá uma prensa no Dickson. Os paramédicos carregaram o Coke com máscara de oxigênio até a ambulância. Sinto a heroína queimando, dentro do organismo e no meu bolso, e então dou o fora daquele drama sórdido, tomando o caminho da Junction Street onde pego um táxi até o Infirmary. Tô sentado na emergência, esperando pelo Coke, mas dou uma apagada e quando fico esperto de novo o relógio na parede me informa que se passaram quarenta minutos, e minha boca tá seca e viscosa. Demoro um século, mas consigo descobrir a enfermaria onde Coke foi internado. Quando chego lá, encontro Janey, Maria e Grant sentados numa salinha de espera. – O que aconteceu? – pergunta Janey ofegante, se levantando.

Por um segundo perverso penso no peixe com fritas que o Coke não chegou a levar pra casa. – Não sei, eu tava no banheiro e quando voltei ele tinha sumido. Daí me disseram que ele tinha ido pros fundos com o Dickson. Já tava desmaiado quando a gente chegou. Ligamos pra polícia e pra ambulância. O que os médicos falaram?

– Lesão na cabeça; tão fazendo uns exame. Mas ele não acorda, Simon! Ainda não acordou! – Sinto as formas encorpadas e maduras de Janey pressionadas contra o meu corpo, vejo o pequeno Grant parecendo bem perturbado e as lágrimas se condensando nos olhos de Maria, lágrimas que eu quero enxugar com a língua, e digo a todos eles: – Tá tudo bem... ele vai ficar bom... eles sabem o que tão fazendo... ele vai ficar bom.

E eu sei que não é o caso, mas tô abraçando a Janey e pensando no quanto uma vida pode mudar no tempo que se leva pra preparar um pico.


De fora

A visita à casa dos pais foi um erro. Depois de sumir, o melhor é continuar assim; voltar é se rematerializar na loucura alheia. A mãe e o pai ficam tagarelando sem parar sobre o Pequeno Davie no hospital, me pressionando pra fazer uma visita. Eu não suporto essa fantasia da minha mãe de que ele “pede pra me ver” quando a verdade é que o pobre desgraçado mal faz ideia do que tá acontecendo em volta dele. Dava vontade de gritar: tentem dizer isso pra algum outro viado que não esteja pouco se fudendo.

– Cê sabe como ele faz, filho, como ele diz: Maaarrryyyk... – E ela fazia uma imitação obscena daquele berro assustador que ele dá no início da noite.

O Pequeno Davie recebe toda a atenção especializada que precisa no sistema público de saúde. Ele não apenas tem fibrose cística aguda, como também foi diagnosticado com distrofia muscular e autismo extremo. A chance de todas essas doenças se manifestarem na mesma pessoa foi calculada em uma para quatro bilhões por um perito médico veterano da Universidade de Edimburgo, para quem meu irmãozinho é uma espécie de celebridade.

Quando eu achava que a discussão regada a cerveja em torno da mesa da cozinha não podia piorar, ela piorou e piorou pra caralho, porque minha mãe e meu pai, sucumbindo à leve embriaguez, começaram com uma conversa ridícula sobre Emma Aitken, uma mina da minha escola primária. – É, ele sempre gostou daquela menina, a Emma. Levou ela pro baile da formatura – provocou o pai.

– O que cê conseguiu fazer com ela? – perguntou Billy, cheio de maldade.

– Vai se fuder – respondi praquele palhaço lamentável.

– Aposto que ele foi um perfeito cavalheiro. – Minha mãe passou os dedos pelos meus cabelos, me forçando a recuar, e então se virou pro Billy. – Ao contrário de alguns aqui.

– Não vai me dizer que não tentou nem botar a mão no peitinho. – Billy riu e depois deu umas goladas na lata de Export.

– Vai tomar no cu, otário.

O indicador do meu velho aponta pra mim e pro Billy, oscilando como o pêndulo de um relógio. – Chega, vocês dois. Isso daí é conversa pra ter no pub, não em casa. Mostrem algum respeito pela sua mãe.

Então foi ótimo chispar de volta pra Montgomery Street. Apesar do aluguel estar no nome dele (ou talvez por causa disso), o Sick Boy quase nunca aparece aqui. O apê tem uma localização perfeita: no ponta da rua que fica mais perto da Walk, bem na divisão entre o Leith e Edimburgo. Mas tá precisando de mobília nova. Tem um sofá velho na sala, uns pufes e duas velhas cadeiras de madeira ao lado de uma mesa toda desconjuntada. No quarto tem um divã detonado e um guarda-roupa deixado por algum velho podre. Tem um quartinho de depósito e tal, mas tá lotado das roupas do Sick Boy. A cozinha tem uma outra mesinha com duas cadeiras bambas em cima de lajotas quebradas que fazem o cara tropeçar no escuro, um forno que cê não consegue ver dentro porque tá tapado de gordura e uma geladeira que fica fazendo aqueles rangidos assustadores. O banheiro... melhor parar por aqui.

Alguém bate na porta e é o proprietário, Baxter. Um velho com cara de caxumba, mas, quando cê menciona Gordon Smith, Lawrie Reilly ou qualquer outra antiga estrela do Hibs, o rosto dele se ilumina. – Dizem que o Smith foi o melhor de todos os tempos – digo enquanto ele tira do bolso um caderninho gasto de aluguéis, respirando com aquele chiado enfisematoso que lembra um velho trem a diesel se arrastando pela Waverley Station.

Só um dos olhos do Baxter funciona. A lâmpada operante emite uma luminosidade imponente. A outra parece uma xereca depilada da Penthouse, com uma crosta de ricota de buceta em volta. – Matthews, Finney... – diz ele com a voz rouca, saudoso, se acomodando numa das cadeiras bambas da mesa da cozinha, lambendo o polegar pra virar as folhas do caderninho – nenhum deles tava no mesmo nível que o Gordon. Pergunta pro Matt Busby quem foi o maior jogador que ele já viu!

Segundo Lugar?

Não tem como responder uma coisa dessas, então eu abro um sorriso vazio pro viado decrépito e continuo engolindo as reminiscências dele.

Uma hora o velho Baxter vai embora, matraqueando sobre Bobby Johnstone. Quando chegar no Largo da Walk, ele já vai estar no Willie Ormond. Com o apê todinho pra mim, considero socar uma bronha, mas tô completamente fudido depois do turno de trabalho com o Gillsland. Pelo menos a gente saiu da oficina hoje, foi fazer marcenaria de verdade reformando um outro pub, dessa vez na William Street. Mal posso esperar pra voltar pra universidade. Curto ficar jogando conversa fora com a rapaziada, mas cê mostra um livro e os viados cagam na sua cabeça, menos o Mitch, mas ele tá largando fora, então logo não vai ter mais ninguém pra ter uma conversa decente. De todo modo, antes disso vai ter a viagem de InterRail com o Bisto, a Joanne e a Fiona. Quer dizer, isso se as minas realmente aparecerem e não for só papo-furado delas.

Tô assistindo um episódio do programa World in Action sobre os asiáticos ugandenses que vivem na Grã-Bretanha quando o Sick Boy entra em casa com os olhos vermelhos e o rosto lívido, como se tivesse visto um fantasma. No fim das contas, a verdade não tá muito longe disso. – É o Coke. Ele morreu.

– Coke Anderson? Do seu prédio? Cê tá brincando!

Mas o jeito todo sério que ele balança a cabeça me informa que não é brincadeira. – Ele tava em coma e desligaram os aparelhos hoje de manhã.

Pelo que entendi, o Dickson do Grapes encheu o Coke de porrada e quebrou a cabeça dele. Aquele cara é um viado; foi expulso da polícia por bater nos presos dentro da cela. Todo policial faz isso e, pra ser justo, a maioria dos bêbados brigões que passam uma noite na delegacia prefere levar uns sopapos de um fascista indecente e ser chutado pra rua de manhã do que gastar tempo e dinheiro indo pro tribunal. Mas o Dickson começou a caprichar demais e foi convidado a se retirar ou pelo menos é a história que rola. Dizem que foi o Dickson que bateu no Segundo Lugar quando ele caiu na bebedeira depois de ser demitido pelo Dunfermline: mas pode ter sido um outro viado qualquer. Mas coitado do Coke; Sick Boy conta que ele apagou e não voltou mais. O relatório do legista sai semana que vem. Brutal é pouco pra essa merda.

Sick Boy fica passando a mão no cabelo e balançando a cabeça. De vez em quando ele deixa escapar um “porra” entre os dentes. – A Janey e os filhos tão arrasados – diz ele, olhando ao redor do apê como se tivesse colocado os pés nele pela primeira vez e não conhecesse nada daquilo. – Vou dar uma passada lá... Cables Wynd House... dar um pouco de apoio moral.

Sei que ele tá em estado de choque, porque nunca tinha ouvido ele chamar os Bananas de “Cables Wynd House”, a não ser que estivesse tentando impressionar alguma dessas riquinhas de fora da cidade que vêm pro festival.

– O lance é que... – ele desvia o olhar, depois me encara pesaroso – ... eu tava meio doido de heroína quando a coisa toda aconteceu...

– O quê?

– Me piquei no banheiro do Grapes com o bagulho que a gente comprou do Swanney. Quando saí, a primeira coisa que fiquei sabendo foi que aquele porco viado tinha enchido o Coke de porrada.

Mas que porra...

– Tá certo... – digo sem conseguir esconder a decepção, porque a gente tinha feito um pacto de injetar o resto juntos aqui em casa. Preciso admitir que fiquei tentado depois de passar a noite com o Franco. O viado ficou falando sem parar sobre como a tal da June é uma boa foda, isso quando não tava me contando sua versão própria do Prêmio Duque de Edimburgo; quem ia ser esfaqueado e quais os coitados que não podiam esperar nada além de uns dentes quebrados.

Sick Boy esquece a história do Coke por um segundo e se vira pra mim com uma expressão ansiosa. – Cê andou se picando?

– Todo o resto ficou com você! Como é que eu podia ter me picado?

– Cê podia ter ido no Johnny sem eu saber.

Me dou conta de que se o Begbie não tivesse me arrastado com ele e me enchido de cerveja, eu provavelmente teria feito isso. – Não – digo pra ele. – Cê tem que tomar cuidado com esse negócio... – E então me dá um pânico. – Cê ainda tem um pouco, né? Ou usou tudo?

– Claro que não, só usei um pouquinho. Ainda tem quase um grama inteiro sobrando – diz ele erguendo o saquinho de plástico e me mostrando que a bolinha tá quase intacta e que a maioria das migalhas continuam ali. – Tipo, cê tá querendo injetar um pouco?

– Não... tô pegando leve.

– É, senti um pouco de abstinência – admite Sick Boy. – É meio foda quando o lance sai do organismo, então vou parar por um tempo. Cê tem que respeitar essa merda; vou ficar na anfetamina agora – declara, apagando um cigarro no cinzeiro feito de uma lata de McEwan’s Export em cima da mesa bamba, tirando um papelote do bolso e dando um teco. – Quer um pouco?

– Não, só quero ficar um tempo aqui vendo TV.

– Beleza, a gente se vê. – Ele se levanta.

– Paguei o aluguel. O Baxter passou aqui.

– Bondade sua, te pago mais tarde. Até logo mais – diz o viado e sai pela porta.

Não adianta tentar arrancar dinheiro dele depois de toda a merda com que ele teve de lidar, e além disso é bom poder ficar sozinho. Decido socar aquela bronha no fim das contas, mentalizando uma mina magrinha e dentuça que trabalha numa padaria em Aberdeen. Depois de gozar em cima do sofá marrom surrado, me sinto meio lerdo e percebo que tô pensando na heroína. Eu devia ter pego o bagulho que tava com o Sick Boy. Viado. Foi massa, aquela noite lá.

Ligo pro Johnny, mas o telefone só toca, então visto a jaqueta e vou pra casa do Matty. Ele atende a porta com uma cara de pastel e o cabelo preto todo empinado e virado pro lado com o secador pra esconder umas entradas precoces nas têmporas. Ele me olha enviesado e seu ar de suspeita só diminui um pouco quando percebe que eu tô sozinho. Tá com uma trilha de ranho saindo da narina e atravessando a bochecha que nem uma cicatriz de duelo. Pelo jeito tava deitado no sofá, meio dormindo. Matty tem a atitude de um homem destinado a saquear os restos do banquete de outro homem. Ele me convida a entrar com um aceno de cabeça e logo em seguida desaparece na cozinha, me deixando sozinho na pequena sala de estar. Uma TV obscenamente gigantesca domina o ambiente, a maior que já vi.

A namorada do Matty, Shirley, entra na sala, uma mina bonita, com um rosto ovalado, olhos que parecem piscinas enormes e as formas meio arruinadas desde que teve a filha, Lisa, que tá nos braços dela, vestida num macacãozinho. É um pouco como se a Shirley ainda tivesse parindo. Sento no sofá e a Lisa sobe por cima de mim. – Olá, mocinha... com dois anos elas ficam danadas, hein? – digo pra Shirley, enquanto a pirralha agarra um tufo de cabelos ruivos.

– Nem me fala. Mas e aí, como vai essa vida de universitário? – pergunta Shirley. Apesar dos quilinhos a mais, alguma coisa nela continua bem sensual. Devem ser esses grandes olhos castanhos, sempre transbordando pathos.

– O primeiro ano foi ótimo, Shirl, tô ansioso pra voltar – digo, tentando me esquivar da Lisa, que tá com um biscoito na mão e parece determinada a enfiar ele no meio da minha cara. – Obrigado, mocinha, mas eu já comi... – Depois volto a falar com a Shirley. – Tô curtindo trabalhar de novo com o Gillsland nas férias, bater papo com a turma e tal.

Não posso deixar de registrar que a porra do apê tá uma imundície, e não é só por causa do bebê com as fraldas e tal. É como se o Matty tivesse reduzido a Shirley ao nível dele; ela não era largada assim na escola. Sei que o Matty é um parcero e o pai dele era alcoólatra, mas não dá pra ignorar que o viado é, sempre foi e sempre vai ser uma porra dum vagabundo.

– Ainda tá saindo com a Hazel? – pergunta Shirley naquele tom faceiro e ao mesmo tempo interrogativo que as minas têm.

– Não, na verdade não, só como amigos. Conheci uma mina em Manchester semana passada, fiquei de ir ver ela. Mas tô trabalhando demais, tentando juntar grana pra essa viagem pela Europa.

– Que legal. Queria poder ir pra Europa. Sem chance, nesse momento. – Ela olha com uma afeição tristonha pra pirralha que tá pulando pra cima e pra baixo em cima do meu colo. – Talvez quando ela estiver maiorzinha – diz, e em seguida pergunta: – Como tá o seu irmão?

– Bem... – respondo, sem saber direito se ela tá falando do Pequeno Davie ou do Billy.

– Alguma novidade sobre ele voltar pra casa?

Pequeno Davie. – Não.

– Moço engraçado! – grita Lisa na minha cara.

– Isso mesmo, mocinha. Bom julgamento de caráter – digo sorrindo pra Shirl, erguendo a pirralha no ar e fazendo uns barulhos de peido na barriguinha dela até ela se encolher.

Enquanto essa estranha ceninha doméstica se desenrola, ou pelo menos estranha pra mim (me assusta pensar que tem um monte de viado que vive desse jeito), avisto caixas de produtos falsificados empilhadas no canto da sala, atrás da poltrona. Conhecendo o Matty, deve ser merda da mais barata, e dá pra ter uma ideia olhando o topo de uma caixa que já foi aberta; tem uma jaqueta de algo que parece náilon dentro de uma embalagem plástica com jeito de ter mais qualidade que a própria mercadoria. Em comparação, os trapos que cê compra na Junction Street são alta-costura. Shirley solta uns risinhos enquanto a Lisa reinicia seu ataque com o biscoito pra cima de mim, mas eu já atingi o meu limite pra essa merda.

Tira essa pirralha da porra da minha cara agora mesmo.

Matty aparece na porta da cozinha e faz uma cara pra Shirley, que se levanta e vai pra lá, me deixando com a Lisa. Escuto sussurros exaltados por trás da porta e a Shirley não parece nada satisfeita. Até que enfim o Matty aparece, bem na hora de evitar que a Lisa babe mais um pedaço de biscoito em cima de mim, e anuncia: – Vamo nessa, viado.

Shirley pega a menina no colo e não tá nada contente. Não digo nada, e ela fica evitando olhar pra mim.

Apesar da aparência de duende senil e de estar fungando como se estivesse resfriado, o Matty desce pulando as escadas como um possuído, a ponto de ficar difícil acompanhar ele. Ele sempre foi um viado bom de corrida na escola e na vizinhança do Fort. Não tinha habilidade no futebol, mas tinha fôlego. – Que porra de muamba apavorante cê tem dentro daquelas caixas, Connell?

– A merda de sempre – ele me informa todo faceiro. – Não tem lugar no quarto, e o Franco fica reclamando que a gente bota coisa demais no depósito. Ô viado, cê tem troco aí pra pagar o táxi?

– Não – minto. Cobri a porra do aluguel do Sick Boy e tenho que pagar essa viagem pela Europa, aí preciso ser mão de vaca às vezes.

– Porra, então vai ter que ser de ônibus.

– Pra onde a gente vai?

– Muirhouse.

– Te falei que vi o Nicksy esses tempos, né?

– Sim... Londres?

– Não, Manchester. Ele perguntou por você.

– Ah.

A gente sobe num 32 na Junction Street. Matty fica quieto como um cadáver enquanto o ônibus segue caminho. Como se tivesse se desligado de tudo.

– Tudo em paz? – pergunto.

Ele apenas sorri, mostrando uma fileira de dentes amarelos. Mas que viado porco, só leva cinco minutos por dia pra escovar os dentes. – Mulheres. – Ele revira os olhos. – A gente finalmente recebeu uma oferta de uma casa do governo.

– É uma boa. O apê é meio pequeno pra vocês e todos aqueles caminhões de tranqueira falsificada.

– É, mas eles nos ofereceram uma em Wester Hailes. Não vou pra lá nem fudendo.

Wester Hailes é o mais longe que se pode ficar do Leith sem sair de Edimburgo. Um bloco residencial sem alma e infestado de jambos. – A Shirley não tá muito feliz com isso, pelo que entendi.

– Não... bom, pra dizer a verdade, é essa merda dessa heroína. Mas cê sabe como ela é meio careta, hein, viado? Bom, ela tem que cuidar do bebê e tal...

– Faz uma diferença, hein?

– É, faz – diz ele limpando um pouco de ranho na manga da camisa. – É um barato muito bom, mas pra conseguir é dureza... Swanney não tá nem aí, o viado some da face da terra quando dá na telha. Tá ligado que eu fui no apê dele em Tollcross ontem à noite e a luz tava acesa, dava pra ver da rua, era óbvio que tinha um viado lá dentro, mas ele não atendeu a porra do interfone. A porta da escada tava trancada, então toquei num vizinho e entrei. Saca só, seu viado, eu olhei pelo buraco de carta dele e vi o canalha lá dentro; tava ali caminhando na porra do corredor, indo da cozinha pra sala – Matty diz com os olhos esbugalhados e incrédulos. As sardas dele parecem ter sido pintadas no rosto branco. – Daí eu comecei a esmurrar a porta e gritar pelo buraco de carta. E adivinha só? O viado continuou fingindo que não tava em casa!

Faço força pra olhar pra ele com o que acredito ser uma expressão solidária, mas na verdade tô achando isso bem engraçado.

O Matty não. Ele fica agitado como um títere controlado por um epilético; as mãos tremem tanto que se ele tentasse bater uma punheta ia acabar retalhando o prepúcio. – Aí eu liguei pro fiadaputa hoje de manhã e ele continua tendo a cara dura de me dizer que tava fora de casa. Eu disse pra ele, “Para com essa merda, seu mongol, eu vi você em casa, Johnny!” O viado se vira e diz: “Cê não me viu, seu marginal, acho que cê tava alucinando”, mas a voz dele era como... – Matty faz uma pausa e depois me olha com intensidade. – Sabe quando o viado tá simplesmente rindo da porra da sua cara?

Faço um leve protesto a favor do Johnny, mas Matty me corta.

– Sei que ele é parcero antigo seu, mas ele que se foda! A gente vai encontrar o Goagsie e o Raymie na casa do Mikey Forrester. Saca só, viado, ele faz um festival da picada lá, a gente se junta e manda ver com umas seringas grandes de vinte mililitros. Como irmão de sangue. – Matty sorri de repente, feliz com a ideia. – Cê conhece o Forrester?

– De nome.

– Era da Lorne Street. Um viado até que legal, manda ver na ladroagem, meio metido a fodão às vezes.

– O Begbie não desceu o cacete nele esses tempos?

– Sim, na Lothian Road, mas faz uma cara, isso – ele acrescenta meio constrangido.

A história do Begbie (que fui forçado a ouvir várias vezes) é que ele e o Matty tavam na Lothian Road e encontraram o Gypo, um babaca de Oxgangs, que tava junto com esse tal de Mikey Forrester, e começaram uma discussão de bêbado qualquer. O Matty fugiu da briga, mas o Begbie acabou dando um pau nos dois. Ele não ficou muito feliz com o Matty por não ter ajudado. De todo modo, a menção ao caso faz o Matty voltar ao modo silencioso. Depois de um tempo, ele quebra o sossego e pergunta: – Tem visto aquela baleia do Keezbo?

– Sim, a gente saiu junto uma noite dessas.

Matty não vai muito com a cara do Keezbo porque ele saiu com a Shirley uma vez. Foi muito antes do Matty, mas tem uns viados que nunca esquecem desse tipo de coisa. Além disso, o Keezbo sabe tocar bateria de verdade, enquanto o Matty é uma bosta na guitarra. Não é bom o suficiente nem pra tocar com a gente, e no fundo a questão é essa.

– Jambo de merda – diz ele entre os dentes.

Eu fico quieto, porque eu e o Keezbo somos amigões como eu e o Matty éramos na época que a gente era punk e ia pra Londres.

Descemos em Muirhouse, cortando caminho pelo shopping center deserto e passando por lojas que só exibem pichações nas portas de aço fechadas, e vamos até um conjunto habitacional de cinco andares atrás do prédio pré-fabricado da biblioteca. Em blocos como esse, Wester Hailes ou Niddrie, tudo que cê vê em volta é mais bloco. Talvez tenha uma partezinha com umas lojas fuleiras vendendo comida enlatada e verdura podre acima do preço, e um boteco que mais parece uma casamata mortífera. No Leith, pelo menos, quem mora num bloco tá cercado de pubs, livrarias, cafés, lojas e uma porrada de coisa pra fazer.

Matty me conta que desde que os filhos da puta fecharam o posto de troca de agulhas na Bread Street, uns anos atrás, os apetrechos pra injetar começaram a ficar difíceis de achar, mas ele tá dizendo que esse tal de Forrester consegue seringas grandes com um contato dele dentro do hospital. O Sick Boy já arrumou os apetrechos dele com uma enfermeira que ele conhece, porque ele não curte a ideia de compartilhar agulha, mas eu não me importo. Mesmo assim, ele disse que vai arrumar pra mim também.

A gente sobe uns lances de escada, bate na borta e aparece uma figura atrás do vidro aramado. A porta abre e surge um cara alto, mas de rosto rechonchudo, com um cabelo loiro e ralo. Ele olha pra gente com uma cara suspeita, mas então reconhece o Matty. – Matthew... entra aí, parceria.

Sigo o Matty e entro numa sala com uns tapetes gastos e desbotados por cima de lajotas pretas como óleo. Fora os pôsteres, não tem nada nas paredes. Tem um legal do Led Zeppelin com os quatro símbolos e outro gigantesco do Setting Sons do The Jam, muito massa, mas o resto é de umas bandas bosta que nem vale a pena mencionar. Um sofá rasgado, duas mesinhas de centro de teca, idênticas, uma poltrona vandalizada e dois colchões encardidos completam a mobília do recinto. O lugar parece ser usado unicamente para o consumo de drogas, com a possível exceção de surubas ocasionais.

A melhor parte é tá cheio de conhecido. O Goagsie do Leith tá ali, e também o Raymie, comparsa do Swanney, e quando esses dois garantem que somos gente boa o Forrester relaxa um pouco. Tô surpreso de encontrar aqui a LA Woman (como o Spud chama), Alison Lozinska, que estudava no mesmo colégio que eu, e que saiu com o meu irmão Billy por um breve período (uma escorregada de mau gosto da parte dela). A loirinha Lesley do bar tá marcando presença junto com uma outra mina chamada Sylvia; alta, magra, com cabelos castanhos na altura dos ombros. Me apresentam dois caras; um sujeito chamado ET (que depois fico sabendo que são as iniciais de Eric Thewlis) e um cara mais velho, American Andy, que tá esquentando o pó numa colher grande de metal num fogareiro a gás, ou seja, ninguém vai ganhar prêmio nenhum pra adivinhar quem começa se picando. Ninguém nos apresenta dois outros caras. Um deles parece bem desconfiado, um sujeito de rosto hostil e cabelo grisalho, com uma cicatriz feia no meio da cara, que me encara até que eu vire o rosto. O outro cara é baixinho e tem uma cabeça grande pra caralho, do tipo que não é anão, mas parece um anão. O Forrester parece ser legal, um pouco hostil no começo, provavelmente porque sou novo aqui, mas abre um sorrisinho quando eu tiro a grana do bolso, indicando que não vim aqui tentar filar droga ou passar na frente dos outros pra me picar.

Sento no colchão ao lado da Alison. Ela dá oi e me beija platonicamente na bochecha.

Tem uma dose sendo preparada dentro de uma seringa enorme que tá vindo pra mim. Fico tentando fazer a veia saltar com o cinto em volta do braço, do jeito que o Johnny fez comigo, mas porra nenhuma tá acontecendo. A seringa passa do tal de American Andy pro ET, depois pro Mikey e pro Goagsie, e eles vão caindo como peças de dominó, até que chega a minha vez, mas eu continuo batucando na veia e nada. Vejo o Raymie preparar e injetar a dose separado dos outros, com os apetrechos dele, enquanto a Ali, a Lesley e a Sylvia ficam só olhando, enrolando baseados e recusando todas as ofertas de heroína. Não tô olhando pro Matty, mas escuto ele perder a paciência comigo: – Bora, viado, a gente não tem o dia todo, porra!

Não me resta nada a não ser passar a bola praquele viado chorão. Desisto, pego um cachimbo de papel alumínio que tá em cima de uma das mesas e começo a queimar um pouco de heroína de um jeito totalmente amador, pra desprezo dos outros. – Desperdiçando um bagulho bom desses – resmunga o Forrester, passando a mão no cabelo ralo.

– Puta merda, Renton. – A boca do Goagsie se escancara como um cesto de lixo com pedal.

– É, otário, para com isso – diz Matty com uma voz macia e cheia de desdém, enquanto o Forrester, completamente lesado, e que mais parece que tá fazendo aquela brincadeira de espetar o rabo no burro às cegas, finalmente consegue injetar nele.

– Cês não vão me deixar de fora, porra! Paguei a merda do meu bagulho –protesto. – O Swanney conseguiu injetar em mim, ele sabe fazer uma porra duma veia saltar...

– Cala a boca, mongol... – esguicha Matty seu desprezo peçonhento antes de desmoronar e cair no encosto do sofá.

BANDO DE VIADO.

– Calma, Mark. Vem aqui – diz Alison, me chamando mais pra perto dela, da Lesley e dessa tal de Sylvia, que tão dividindo um cachimbo de papel alumínio. – Cê tá fazendo papel de idiota, pra dizer pouco, ela me repreende.

– Não sabia que cê tava envolvida nisso aqui, Ali – digo pra ela.

– Todo mundo tá, querido. – Ela masca um chiclete. – Mas só inalando, eu não chego nem perto de agulha!

Ela bota a chama embaixo da folha de papel alumínio, a heroína começa a queimar e eu boto a fumaça pra dentro.

Caralho...

Puxo duas vezes bem pra dentro do pulmão. Odeio fumar qualquer coisa, e tenho que lutar pra não ter uma crise de tosse, mas fico me contraindo e retorcendo a cara, e meus olhos tão jorrando como um hidrante quebrado...

Seu viado, seu...

Sinto alguém retirar gentilmente o papel alumínio e o cachimbo das minhas mãos...

– Fumando com as moças... – diz Matty em tom de deboche, imitando um sotaque jamaicano, com o rosto pálido como urze-branca. Forrester emenda alguma coisa sobre as garotas serem bonitinhas e o Goagsie dá umas risadas e tal. Eu me viro e digo: – Ô seus viado, se cês... – Não consigo terminar a frase, porque a heroína me atinge como um martelo de marshmallow. Tô lesado demais pra me importar com a merda que eles tão dizendo, e além disso prefiro ficar isolado aqui com as minas do que no meio desses abobados...

Bando de retardado punheteiro fiadaputa...

A Alison tá meio detonada, com a boca frouxa e as pálpebras caídas, mas mesmo assim ela fica tagarelando sobre um emprego novo que começa amanhã de manhã, que tem a ver com salvar a porra das árvores. Depois ela começa a tentar me contar sobre um grupo de poesia que ela frequenta. Até acredito, porque ela sempre foi inteligente na escola, usava um blazer perfeito enfeitado com fímbrias...

– Emily Dickinson – inclino-me na direção dela – ... essa mina escrevia uns poemas foda...

– Sabe, Mark... – Ali contrai as feições até conseguir abrir um sorriso largo, – a gente devia conversar de verdade uma hora dessas... tipo, quando a gente estiver sóbrio e tal...

– A gente fez isso... milênios atrás. Zeppelin versus The Doors... no Windsor, aquela vez. Lembra?

– É mesmo... mas eu tinha tomado cogumelo aquela vez...

– Pois é... é possível que eu estivesse viajando de ácido... – lembro melhor, mas agora eu volto minha atenção pro Forrester, que tá tirando a seringa grande do braço fininho do Matty, e percebo pela primeira vez que ele tá com rastros de feridas purulentas. Que viado asqueroso: ele sempre foi assim. Ele me pega olhando pra ele. – Ninguém tava te deixando de fora, Mark... cê tava se deixando fora sozinho, seu viado... – diz ele, agora com um sorriso satisfeito. – Troca esse encanamento aí, cara... – E então capota de novo. Me arrasto um pouco, faço força pra me erguer e sento do lado dele no sofá. – Desculpa, cara... – resmunga ele, e a gente dá um sorrisinho e segura a mão do outro como se a gente fosse sair junto.

A seringa grande chega nos dois filhos da puta mal-encarados, Sargento Grisalho e seu Boneco de Ventríloquo, e em pouco tempo os viados se desintegram. Me ocorre que talvez seja hora de sair de perto deles, mas as minas vêm pra perto de mim e a Ali se apoia nas minhas pernas e descansa as costas em cima das minhas canelas. Os cachos dela são tão pretos e brilhosos que tenho uma vontade imensa de encostar neles, mas me controlo e abro um sorriso pra tal da Sylvia, que tem um rosto branco de traços marcantes e intensos. O Sargento Grisalho tá todo esparramado e o Goagsie tá em cima dele, falando que o Motörhead na verdade é uma banda punk, e não de metal, e as pessoas começam a conversar com elas mesmas à medida que o sol desce e sombras escuras se estendem pela sala.

Caio no sono por alguns momentos, até que sinto minha garganta apertando e acordo assustado com aquela sensação de estar caindo, como o tranco de um carro numa freada brusca. O Matty tá consciente do meu lado; os olhos do viado tão abertos e olhando bem pra frente. Ele tá suando, com os punhos cerrados, cravando as unhas na palma da mão, como se tivesse se entupido de heroína a ponto de já querer mais. Mas que otário, eu nunca me arruinaria desse jeito com uma droga chinfrim dessas.

O Forrester chega mais perto, se agacha do meu lado e começa a bater papo com as minas, mas de um jeito escroto. Ainda bem que os dois filhos da puta sinistros ali se detonaram além da conta; o Sargento Grisalho tá quase dormindo. A cabeça daquele pau no cu que parece um anão fica meio pendurada prum lado e pro outro, como se fosse cair do pescoço. – Não, mas tipo assim, quanto tempo...? – balbucia Forrester pras garotas.

– Quanto tempo o quê? – diz Ali com uma indiferença, meio zonza.

– Quanto tempo um cara e uma mina precisam sair junto antes de ir pra cama?

Ali ignora a pergunta e se vira pra Lesley, dizendo algo que não consigo pescar, mas que soa como: – Derrubar tudo antes que passem a doença adiante. – Forrester ergue a cabeça pra mim como um bebê bochechudo pra registrar a minha reação. Tento manter uma expressão neutra. Provavelmente se dando conta de que não tem chance nenhuma de baixar as calcinhas da Ali ou da Lesley, ele continua insistindo com a tal da Sylvia. – Não, mas quanto tempo?

– Com você, eu diria que por uma eternidade.

– O quê?

– Nem num lugar como esse aqui, Mikey, alguém seria capaz de trepar com você – diz ela antes de soprar um pouco de fumaça de cigarro bem na cara dele. – Nem. Numa porra. De lugar. Como esse.

– Não tenha tanta certeza – diz Raymie, e então ele fica em pé, tira pra fora um pau grande e branquela, chega perto e balança a merda na frente da cara do Mikey. – Agasalha esse patê aqui, boiola, vamo!

– Vai se fudê! – grita Mikey de cócoras, empurrando ele pra longe, e todo mundo começa a rir.

O Raymie obedece, ainda bem, se joga em cima dum colchão e começa a nos contar sobre o tempo em que era ginasta amador e praticou obsessivamente até conseguir praticar a autofelação. – Ainda consigo abocanhar a chapeleta, e se for um dia bom eu meto junto uma parte da tora, mas não rola mais aquele boquete de verdade, até o fundo da goela.

– Que tragédia – diz Lesley.

– Concordo. Sendo assim, se alguma mocinha bonita aí quiser ajudar...

Ninguém se oferece, mas a tal da Sylvia levanta e se esmaga do meu lado no sofá, me forçando a ir mais pra cima do Matty, que resmunga alguma coisa vagamente hostil. A Sylvia tá ruminando, mas não consigo lembrar se ela fumou heroína junto comigo, a Ali e a Les. O toca-fitas cagado toca uma música do John Lennon, mas eu tô cantarolando aquela do Grandmaster Flash na cabeça...

– Se eu conseguisse fazer isso, nunca mais ia sair de casa... – diz Goagsie pro Raymie.

– Cê nunca sai mesmo, Gordon. Cê é uma velha rabugenta que fica presa em casa chupando piroca com esses dente de hamster...

Todo mundo solta um risinho quando ouve isso, porque o viado do Goagsie tem mesmo uma cara meio redonda.

– Ô viado. – Matty ri, e ele soa mais parecido como era antigamente. – Depois de umas duas semanas eu ia começar a dizer pra mim mesmo que eu tô com dor de cabeça!

– Cê é uma cara nova por aqui – diz a tal da Sylvia pra mim – e uma cara boa, por sinal.

Sei que ela só tá dando em cima de mim pra pilhar o Forrester, que tá prestando atenção em tudo, mas entro na dela. Depois de um pouco de conversinha furada a gente se gruda. Minha boca tá meio amortecida, mas a proximidade dela é confortante e nunca me senti tão relaxado beijando uma mina. Minha língua explora cada reentrância, percorrendo os dentes e as gengivas, mas, apesar da intimidade, a sensação é mais de distanciamento do que de algo sexual. Pra quem olha de fora a impressão obviamente é outra, porque de repente a gente ouve um grito: – Cê é uma cuzona, Sylvia, uma tremenda duma cuzona!

A gente se desgruda e vê o Forrester parado em cima da gente, parecendo bem emputecido, passando a mão nos poucos cabelos que ele tem.

– Isso não é jeito de falar com uma garota – intrometo-me. E não é mesmo, cê pode chamar um cara de cuzão, mas não é muito adequado chamar uma mina assim.

– Não te mete nisso, porra.

Porra...

Tento me levantar, mas eu tô espremido entre o Matty e a Sylvia, e com a heroína no organismo eu mal consigo me mexer. Faço força pra cima, mas minhas mãos tão no legging preto e fininho da Sylvia e na calça jeans imunda do Matty, e ele se retorce e me xinga como se eu tivesse tentando molestar ele.

– Cê não presta, Sylvia. Sempre a mesma vadia de sempre. Nunca prestou mesmo. Pra nada. Não é? – insulta Forrester com uma voz grave e sinistra.

– É isso aí – diz ela.

Aperto a coxa dela e grito pra ele: – Baixa a bola, ô babaca!

– É, se acalmem, vocês, tá bom? – diz Ali.

– Que porra cê pensa que é? – me desafia Forrester, ignorando ela.

Aperto a coxa da Sylvia de novo. – Bruce Wayne – respondo, e isso arranca umas risadas da rapaziada. Frustrado, Forrester chuta a sola do meu tênis, então eu me levanto em câmera lenta e encaro o viado, e de repente a gente tá com a cara grudada.

– Meninas, por favor. Sem chilique – chia Raymie. – Eu imploro.

– Nenhum de vocês sabe brigar muito. E cês tão os dois chapados de heroína – Goagsie faz o favor de nos lembrar.

Tanto eu quanto o Forrester temos o bom senso de ficarmos constrangidos e compartilhamos o mesmo tremor ao nos darmos conta da situação. Por fim, nosso anfitrião lança um olhar de desprezo pra Sylvia. – Pode trepar com quem cê quiser, sua puta idiota – diz ele pra ela, e então se vira e sai do apê, batendo a porta. Me encostando de novo no sofá, escuto os passos dele descendo a escada.

– Muito obrigado – grita ela atrás dele, e depois se dirige a todos os presentes em busca de apoio. – Como se eu precisasse da porra da permissão dele? Se bem me lembro, ele não é meu pai e não aceitei me casar com ele!

– Nunca me dou ao trabalho de perguntar pro meu pai com quem eu posso trepar – comento com preguiça.

– Nem eu... – resmunga o Matty – ... a não ser que seja a minha mãe.

– Isso é só uma questão de educação – digo encolhendo os ombros.

Raymie olha pro tal do Eric Thewlis, faz uma cara séria e diz: – Cê precisa mesmo ligar pra sua mãe, e depois de um silêncio de incompreensão todos sacam e começam a rir. Todo mundo começa a falar merda sem parar, mas o esforço todo me derrubou e eu fico quase dormindo de novo. Posso ouvir vagamente o Goagsie discutindo com os dois palermas no canto sobre umas pessoas que eu não conheço e sobre um cara chamado Seeker, cujo nome tem aparecido um monte por aí ultimamente. Quando me dou conta, eu tô na rua, piscando os olhos no frio e pegando um táxi com o Matty, o Goagsie, a Lesley e essa Sylvia, voltando pro Leith.

– Cês sabiam que a mãe da Ali tá morrendo? – pergunta Lesley.

– É? Puta merda...

A mão da Sylvia na minha coxa.

– Ela tá com o temido C.

– Câncer? – pergunto.

– É... – Lesley se encolhe toda, como se ouvir a palavra aumentasse o risco dela ter a doença. – Foi nos seios. Fez uma dupla mastectomia, mas não adiantou nada. É terminal.

– Dupla mastectomia... caralho, viado, isso é quando cortam fora os dois peitos, né? – diz Matty, e eu não posso evitar de dar uma olhada no decote farto da Lesley. A Lesley estremece e faz que sim com a cabeça. – Que dureza – acrescenta Matty –, ainda mais porque não funcionou. Pensa nisso, viado, como seria ter os dois peitos cortados fora e depois ficar sabendo que mesmo assim cê vai morrer? – ele especula com uma animosidade asquerosa. – Ô viado, e a mãe daquele gordão do Keezbo, Moira Yule, ela também teve isso, né Rents?

– Sim, mas ela ficou bem, operaram ela a tempo – digo enquanto a Sylvia sussurra pra mim que eu tenho uma bunda gostosa.

– Mas ela ficou meio sonsa. Aquele monte de periquito. – Ri Matty.

Lanço um olhar severo pra ele, mandando ele calar a boca, e então afago a coxa da Sylvia. A mãe do Keezbo ficou mesmo um pouco maluca e meteu aquele aviário dentro de casa, mas cê não pode começar a falar da família dum parcero desse jeito. Mas pelo menos o viadinho não insiste no assunto. – Onde que tá a Ali, por sinal? – pergunto, pois me dou conta de que ela não tá com a gente e fico meio preocupado.

– Ô viado, ela foi com o Raymie pra casa do Johnny – diz Matty.

O Goagsie tá derretido contra a janela e solta alguma espécie de grunhido. – Tentando falar pra mim do Seeker... – ele balbucia. – Conheço a porra do Seeker...

Sinto os beliscões de uma semiereção dentro da calça. – Tá pra jogo? – sussurro no ouvido da Sylvia, sentindo cheiro de cigarro e perfume barato.

– Se cê trouxe a bola. – Ela sorri de um jeito meio desaforado.

Os outros desembarcam no Largo da Walk e eu e Sylvia continuamos até a Duke Street e subimos no apê dela em Lochend. Ela diz que é “Restalrig”, mas óbvio que é Lochend. E eu odeio Lochend. É mais do que barra-pesada. O lugar tá coalhado de assassino psicopata querendo quebrar a sua cara. Normalmente eu taria me escondendo pelos cantos a essa hora da noite, encolhido de pavor, principalmente porque eu tô prestes a comer uma mina deles, mas, quando o táxi vai embora e um grupo de encrenqueiros que vinha andando sem rumo começa a se aproximar da gente, eu estranhamente não sinto nenhum medo.

O líder da gangue abre um sorriso gélido pra Sylvia, fazendo ela franzir o rosto de receio, e em seguida me dedica o mesmo tratamento. – Cê é parcero do Begbie, né? Irmão do Billy Renton?

Nunca vi esse viado na vida, mas como ele faz parte das obsessões do Franco sei exatamente quem é. – Sr. Charles Morrison.

– O quê? – Ele me encara com a boca mole e aberta, encolhendo os lábios e arregalando os olhos.

– Muito prazer. Conheço sua reputação.

Morrison fica desconcertado. Sua expressão fica pesada e aflita, como se farejando uma conspiração. Um capanga fortão ergue a voz: – Quem é esse viado?

Não vou nem olhar pros outros, muito menos conversar. Só o Cha importa e eu não desgrudo os olhos dele nem por um segundo. O rosto dele é gredoso, mas dotado de uma estranha dignidade e uma beleza feroz sob a luz alaranjada do poste de rua. As linhas de seu rosto se enrugam, ele dá uma risada gutural e eu começo a me preocupar pela primeira vez, até que ele anuncia: – Gostei do jeito que esse viado fala!

E parece que gostou mesmo. Fico um tempo ali falando merda com aquela turminha da pesada, até que sinto a Sylvia puxar a minha manga, e Cha repara. – Melhor cê seguir em frente, parcero. Dever a cumprir, hein? – diz ele com um risinho cúmplice. – A gente se vê.

Depois que Cha nos dispensa, subimos pela escada do prédio da Sylvia e alcançamos o refúgio do apartamento. Já impressionei ela hoje peitando o Forrester (que na real não oferecia nenhum grande perigo) e depois encarando Cha Morrison (uma atitude de alto risco, em qualquer circunstância). – Cê não tem medo de nada – diz ela com admiração.

– Não, eu tenho medo de tudo – digo pra ela, o que dá praticamente na mesma, se a gente pensa bem. Mesmo assim, alguma coisa eu fiz direito, porque ela não perde tempo com merda e vai me puxando direto pro quarto. Nunca vi tanta roupa; no chão, pendurada nos gaveteiros, caindo pra fora de malas e sacolas. Mas ela tira tudo de cima da cama, subo em cima dela e começamos a nos beijar de novo, tirando a roupa. A Sylvia segura uma camisola amarela por um instante, como se estivesse pensando em vestir, mas em seguida tem o bom senso de abandonar essa ideia. Mas não tem timidez nenhuma ali; ela segura o meu pau e fica olhando, fascinada, enquanto ele endurece na mão dela. Então ela puxa o prepúcio e minha glande agradecida sai do esconderijo. Passo os dedos naquela penugem maravilhosa e vou abrindo a fenda escura e molhada, e assim que ela solta o meu pau, ele substitui a minha mão e vai abrindo caminho até escorregar pra dentro com aquele espasmo conclusivo que faz meu coração disparar

E aí a gente começa a fuder com força. No caso dela, o efeito da heroína parece ter passado, mas eu tô meio amortecido e não consigo ser muito criativo, fico só tentando pegar um ritmo, metendo e suando a droga pra fora do organismo. É massa, porque as minhas costas não doem. Pode ser a heroína, mas embora eu consiga manter a ereção, não consigo gozar de jeito nenhum, nem quando ela tá “se desfazendo toda”, como diz o Sick Boy.

A moça estava se desfazendo toda.

Uma hora eu acabo fazendo uma coisa que nunca pensei que ia fazer e finjo um orgasmo, gemendo e depois retesando o corpo. Ela provavelmente vai perceber que não tem nada dentro dela, porque a gente nem pensou em botar camisinha. De repente me dá um calafrio, porque eu lembro do Begbie e daquela maluca gritando lá no pub. Mesmo que eu não tenha gozado, podem rolar uns traços de esperma que o cara não consegue detectar e “só precisa um”, como dizia o nosso velho professor de ciências, o sr. Willoughby. – Cê tá... hã... tomando... – pergunto – ... tipo assim, a pílula e tal?

– Sim, cara, mas tá meio tarde pra fazer essa pergunta.

– Desculpa, devia ter tocado antes no assunto. Foi o calor da hora e tal.

Ela revira os olhos, acende um cigarro e me oferece outro. Eu recuso e ela me lança um olhar breve de incompreensão. O isqueiro ilumina seu rosto aflito e intenso. Rostos como o dela me fazem lembrar de gente velha. Ela sempre vai ter a mesma aparência. – Às vezes aquele Mikey fica com ciúme quando converso com outras pessoas. Ele é obcecado. É sinistro. Não gosto dele, e já deixei isso bem claro, porra.

O Forrester é um cuzão, mas ninguém gosta de minas que provocam e depois negam fogo, e pra mim tá claro que ela tá cozinhando o otário faz tempo. Não tem graça nenhuma ficar ouvindo alguém tagarelar sobre a fixação por uma pessoa pra quem ela nem tá dando, então eu junto minhas roupas e saio no meio da noite, dando a desculpa do trabalho amanhã cedo.

Quando chego de volta no apê, o Sick Boy ainda não apareceu. Tiro a roupa de novo e olho pro meu corpo no espelho alto. Vou aplicando torniquetes sistemáticos e batendo nas veias, tentando ver onde tão as melhores. Tem algumas nas pernas, um boa na dobra do braço e uma no pulso que talvez dê pra usar em último caso. Não vou ficar de fora outra vez, nem fudendo.

Alguém bate na porta altas horas da noite, acho que são duas da madrugada, e atendo de cueca, achando que o Sick Boy perdeu as chaves. Mas é o Spud; com um pacote de cerveja. Tá meio bebum e diz que foi demitido da firma de entregas onde trabalha desde que saiu do colégio. – Tá a fim de uma cerva, ou quem sabe ir no Hoochie pra tipo, uma saideira?

Odeio ter que dizer isso, mas meio que já enchi o saco do Hoochie. É um mau sinal: o Hooch e o Easter Road são os únicos templos de iluminação espiritual que ainda restam nessa cidade. Digo pra ele que tô meio chapado de heroína, e além disso a noite já vai ter terminado quando a gente chegar lá.

Ele acompanha o meu olhar até o meu material de injetar, que tá em cima da mesa. Ele balança a cabeça e solta um sopro longo de ar entre os lábios. – Já fiz de tudo, cara, mas tipo, eu paro antes de chegar na heroína e tal.

– Mas eu só inalo – informo pra ele. – Assim cê não vicia. É massa, cara, não tem sensação igual na face da terra. Cê simplesmente fica cagando e andando pra tudo; tudo fica bom pra caralho e pronto.

– Quero muito ver como é.

Não dá pra dizer que foi difícil convencer o Spud. Então eu pego a heroína e um cachimbo de papel alumínio (fiz uma porrada deles pra praticar) e a gente manda ver. Cê sente as partículas de alumínio com a fumaça suja grudando no pulmão, mas a cabeça vai ficando pesada e uma euforia vai invadindo a alma aos poucos, se espalhando dentro de mim como o sol dentro de um quarto escuro. Spud, com um sorriso torto e os olhos pesados, parece ser um reflexo meu, e a gente compartilha o mesmo pensamento solitário: Todo o resto pode ir se fuder. Me esparramo no sofá e digo pra ele: – Tá ligado, Spud, isso é só uma grande aventura que vou largar antes de ir pra Europa e voltar pra universidade.

– Uma aventura... – diz ele raspando a garganta, segurando a vontade de vomitar, até que se dá por vencido e um vômito amarelo e grosso jorra no chão, em cima do pacote de cervejas intocado.


Grafiose

Estava atrasada, e sabia que essa não era a maneira de causar a impressão desejada no primeiro dia no novo emprego. Sair na noite anterior tinha sido uma má ideia, mas depois daquela visita aos pais Alison queria esquecer de tudo. O momento terrível em que sua mãe tossiu aquele sangue viscoso no lenço. O jeito que eles interpretaram aquilo; sua mãe, seu pai e ela, olhando petrificados para a mancha vermelha escura na mão de sua mãe. Mas o verdadeiro horror estava na máscara de culpa no rosto de Susan Lozinska. Ela tinha pedido desculpas, dizendo de maneira chorosa para a filha mais velha e o marido, Derrick: – Acho que voltou.

Era a tarde de folga de Alison, uma pausa depois de encerrar o trabalho na piscina, antes de começar no novo emprego. Tinha dado um pulo na casa dos pais para expiar a culpa por nunca visitar os velhos com a frequência que provavelmente deveria, desde que tinha saído de lá fazia uns anos. Seus irmãos mais novos, Mhairi e Calum, não estavam por lá, e ela ficou feliz com isso. O rosto do pai ficou branco e tenso quando ele tentou imprimir um tom de desafio à própria voz: – A gente vai fazer os exames e, se for isso mesmo, só estou dizendo que, se for isso mesmo, a gente vai superar, Susan. A gente vai superar isso juntos!

Alison sentiu como se a sala estivesse rodando e o mundo escorrendo por ela, como num ralo. Ficou mais um tempo, respondendo gentil às vozes fracas que pareciam abafadas, como se estivessem vindo de uma outra sala. Sua mãe, agora parecendo muito devastada e abalada, e seu pai, um homem magro e bigodudo, que tinha mantido uma imagem elegante e charmosa na meia-idade, esmaecendo visivelmente em solidariedade à esposa perante aquela notícia terrível. Voltou. Depois Alison foi embora caminhando até o apartamento em Pilrig. Incapaz de sossegar, saiu rapidamente no começo da noite. Na casa de Lesley e Sylvia, encontrou duas garotas que não conhecia muito bem. Foram a alguma festa cheia de drogas em Muirhouse e depois ela acabou indo parar em Tollcross, no sofá de Johnny Swan.

Johnny tinha a mão boba, e tentou umas bolinadas. Em meio à embriaguez narcótica e à confusão emocional, ela tinha ficado exaltada e mandado ele se foder; ela não estava tão chumbada assim. Então ele começou a implorar muito para que ela fizesse sexo com ele, a ponto de Alison quase sentir que era ela quem estava passando dos limites ao se negar a trepar com ele. Por um segundo ela quase cedeu, só para que ele calasse a boca, mas de repente lhe ocorreu exatamente o quanto isso seria horrível em todos os sentidos. Por fim ele acabou desistindo dela e voltou resmungando para o quarto.

Saindo cedo na manhã seguinte, ela voltou para o apartamento em Pilrig, tomou uma ducha e depois foi cambaleando até o novo emprego e a conferência na Câmara Municipal.

Durante a longa doença da mãe, Alison tinha se acostumado a ocupar a vida com distrações. O Grupo Feminino de Poesia de Edimburgo era uma das boas. Tinha a vantagem adicional de ser uma zona livre de homens. Ela frequentava o GFPE com a Kelly até que o namorado dela, Des, se sentiu ameaçado e só de sacanagem pôs um fim ao envolvimento da amiga. Ela ficava maluca de ver que a Kelly, uma pessoa tão alegre e expansiva, desenvolvia um exoesqueleto quebradiço quando estava na companhia de Des. Era o refúgio para o qual ela habitualmente corria, dentro do qual era capaz de suportar cada palavra inconsequente que saía da boca dele. Ainda assim, era uma escolha dela, e Alison seguiu frequentando o grupo de poesia.

Não gostava de todas as garotas de lá. Muitas tinham objetivos claramente sexuais, enquanto umas poucas realmente odiavam os homens, generalizando a partir de experiências ruins e pessoais. Mas Alison podia ver que algumas não tinham aprendido a lição e estavam, portanto, destinadas a encontrar o seu equivalente mais próximo, o misógino semialcoólatra que reclamava amargamente sentado no banquinho do bar sobre a última vagabunda que tinha acabado com ele. Havia um Des para cada uma daquelas garotas; era realmente uma pena que ele estivesse com a Kelly. Depois havia aquelas que Alison considerava os piores membros do grupo: aquelas que realmente se achavam poetas decentes.

Da maioria das mulheres, entretanto, Alison gostava. Tinha sido um período experimental na sua vida. Aprendeu um pouco sobre a estrutura de versos e haicais e, depois de ir pra cama com uma garota chamada Nora, soube que jamais poderia ser lésbica. Quando Nora começou a chupá-la, foi agradável por um tempinho, mas depois Alison começou a pensar, Beleza, legal, mas quando é que ela vai me enfiar o cacete, porra? Mas isso obviamente não ia acontecer, e ela começou a ficar irritada e tensa, como se estivesse perdendo seu tempo. Pelo menos Nora não era egoísta, porque entendeu o recado, erguendo a cabeça da relva e admitindo: “Na real, não tá rolando pra você, tá?” Alison teve de confirmar que não estava. E ela se sentiu mal por não estar a fim de retribuir: o odor meio pesado e almiscarado de Nora a fazia pensar na própria menstruação.

Mas Nora era persistente, e na semana seguinte informou a Alison que tinha “uma solução para o nosso problema.” Colocado nesses termos já era constrangedor o suficiente, mas Nora tinha trazido um consolo montado em um cinto. Certamente era formidável, mas, quando ela o vestiu, Alison explodiu imediatamente numa gargalhada. Então ela foi invadida pela ideia de que, se um consolo pudesse brochar, pela expressão de Nora isso teria acabado de acontecer. Mesmo assim ela tentou, e Alison pôde dizer, de coração, que não tinha sequer um ossinho sáfico em todo o corpo.

À medida que entrava na Câmara com seus painéis de carvalho, massacrada pelo calor que fazia no lado de fora, Alison ficou intimidada com a presença de todas aquelas pessoas ocupadas e importantes e com o cheiro terrível que sentiu subindo de suas axilas, apesar de ter tomado banho e aplicado desodorante. Blé. Nhaca de álcool e drogas. Você pode lavar, mas ela sempre volta.

Foi até os fundos do salão, que estava com dois terços ocupados, e se sentou. Seu novo chefe, Alexander Birch, estava indo em direção ao púlpito, para se posicionar atrás do leitoril. Alison se percebeu constrangedoramente impressionada pelo novo chefe, com seu terno cinza claro e seu cabelo cuidadosamente penteado. Cuidava da aparência como se fosse gay, mas tinha o toque levemente combativo de um heterossexual exibido.

– Meu nome é Alexander Birch, e me interessei por trabalhar com árvores por algum motivo que agora me escapa – ele começa, provocando inevitáveis risadas por educação. Há muito tempo ele havia aprendido a usar a coincidência potencialmente constrangedora entre sua profissão e seu sobrenome, que significa bétula, como uma ferramenta de trabalho. Deixa que as risadas diminuam e então recomeça, com o olhar gelado e o rosto sem expressão. – Não quero soar melodramático – olha ao seu redor para os grupos de pessoas se acomodando e aquietando –, mas estou aqui para falar sobre uma praga terrível que ameaça transformar nossa bela cidade até deixá-la irreconhecível.

O burburinho para abruptamente, e ele captura a atenção de todos, até mesmo de Alison, que estava pensando se ele não estava se arriscando um pouco demais com tanta ironia.

Sua visão mudou rapidamente quando o rosto macambúzio de Alexander permaneceu seriamente concentrado enquanto ele mexia em um projetor de slides. Apertou um botão que fez surgir a imagem frontal de um inseto escuro. Com as pernas compridas, parecia estar desafiando a sala inteira para uma briga. – Este é o besouro da casca do olmo, ou Scolytus multistriatus. Esta criatura espalha uma doença fúngica fatal para todos os tipos de olmos. Numa tentativa de deter a disseminação desse fungo, a árvore responde bloqueando o próprio tecido com resina, o que impede que a água e outros nutrientes cheguem até o topo, até que ela começa a definhar e morre.

Ele não tá de brincadeira!

O carretel gira novamente, mandando um segundo slide para a tela. Mostra uma árvore amarelando de cima para baixo. – Os primeiros sintomas da infecção são galhos superiores começando a definhar e perder folhas em pleno verão, dando à árvore doente um tom de outono fora de época – Alexander explica, solene. – Isso se espalha para baixo, finalmente atingindo as raízes da árvore, que consequentemente se atrofiam.

Alison tinha se acomodado no assento no fundo da Câmara. De pernas cruzadas, se distraía com pensamentos carnais que vinham com facilidade em meio àquela ressaca miserável e, na verdade, era a única maneira de extrair algum tipo de prazer daquilo.

Para baixo. Nas raízes.

Então, de repente, em meio a um arrepio involuntário, ficou pensando o que poderiam fazer com sua mãe. Os exames. Mais quimio. Será que funcionaria dessa vez? Provavelmente não. Será que a levariam para uma unidade de pacientes terminais ou será que ela morreria em casa ou num hospital?

Mãe...

Ficou sem ar. Em pânico, inspirou de maneira irregular o ar vencido e quente do salão. Uma sequência de slides era exibida, algumas imagens panorâmicas de Edimburgo, indo dos conhecidos Princes Street Gardens e do Jardim Botânico até os recantos mais escondidos da cidade. – Edimburgo é uma cidade de árvores e bosques; da magnificência de nossas áreas verdes naturais em Corstorphine Hill ou Cammo à imensa variedade de espécimes esplêndidas em nossos parques e ruas – argumentou Alexander, com um floreio agradável em meio à retórica. – As árvores e os bosques têm uma importância crucial para a biodiversidade, ao mesmo tempo que oferecem oportunidades de uso recreativo e na educação ambiental. Nosso objetivo é obter um panorama arbóreo com uma extensa gama de espécies que equilibrem as necessidades físicas, econômicas, sociais e espirituais da cidade. Edimburgo tem mais de 25 mil olmos: são parte integral do panorama arbóreo de nossa cidade.

Enquanto Alexander olhava para a floresta de rostos na plateia, Alison visualizou o novo chefe como um garotinho hesitante com medo de entrar no bosque. Mas não havia nenhum traço de hesitação em sua figura enquanto ele continuava: – O fracasso não é uma opção. Estamos vivendo este pesadelo desde que foi detectado em 1976. Já perdemos 7,5% de nossos olmos. Agora temos de intensificar os esforços de cortes preventivos, mesmo que isso signifique que estejamos caminhando rumo a uma Edimburgo sem olmo.

Era isso que sua mãe estava sentindo. Fracasso. Atacada por aquela doença horrível e culpando a si mesma. Sente como se estivesse nos abandonando, como se houvesse fracassado.

O slide seguinte mostrava um grupo de operários vestindo macacões e empunhando serras elétricas, engajados em derrubar árvores. Para Alison, Alexander parecia sombrio, como se estivesse enlutado pela morte de um velho amigo. Outra foto, esta mostrando algumas árvores empilhadas em chamas, um cone negro de fumaça densa serpenteando pelo ar sobre um céu azul e branco. Alison pensou no último funeral ao qual havia comparecido. Tinha sido o de Gary McVie, do colégio, que havia morrido na Newhaven Road, voltando pra casa dirigindo bêbado um carro roubado. Como era um garoto jovem, popular e bonito, muita gente apareceu. Agora ela imaginava seu corpo estraçalhado reduzido a lascas de ossos e pó naquela fornalha dentro da qual eles desciam o caixão. Matty, que havia trabalhado por pouco tempo no Crematório de Seafield, tinha contado animadamente a ela que o incinerador não reduzia totalmente os corpos a cinzas e que os assistentes precisavam passá-los por uma espécie de triturador para esmigalhar os maiores e mais teimosos ossos do esqueleto: a pélvis e o crânio.

Mãe... ah, mãe...

O olhar messiânico de Alexander se deitou sobre os vereadores, funcionários públicos, servidores e jornalistas, e depois subiu para a diminuta plateia de cidadãos preocupados na tribuna aberta ao público. – A intensificação do controle da grafiose através de um plano de ação sanitária que envolve a derrubada e queima de olmos é absolutamente vital para manter essa praga num nível controlável e nos permitir a substituição gradual dos olmos por outras espécies.

Alison agora pensava na mãe brincando com seus netos, os filhos que, supostamente, ela, Mhairi e até Calum teriam algum dia, enquanto Alexander exibia um slide mostrando árvores sendo plantadas. De repente tinha voltado a ficar otimista. Será que ele tinha filhos? Alison pensou tê-lo ouvido dizer algo assim de passagem. Depois da entrevista, quando ela havia sido contratada e foi ao seu encontro, tomaram um café e tiveram uma conversa informal.

– Esse plano de ação de cortar impiedosamente as árvores infectadas e propor uma renovação através do plantio é a única maneira de preservar nosso panorama arbóreo e, assim, o panorama de nossa própria cidade – argumentou, encerrando a apresentação num tom positivo e agradecendo graciosamente à plateia. Tudo parecia ter corrido bem, ainda que tivesse sido pensado mais como uma apresentação no estilo “Hearts and Minds”, como ele a havia descrito mais cedo a ela. A comissão de recreação já tinha aprovado o plano, que passaria pela formalidade de ser submetido à câmara na semana seguinte, já que recursos adicionais precisariam ser solicitados ao governo escocês. Enquanto ele descia da plataforma, Alison ficou analisando o sorriso de Alexander; contido e metódico, caloroso e inclusivo, ainda que um pouco carente de frivolidade, aceitando com facilidade a admiração pela maneira com que ele havia formulado aquele plano de ação e agora se preparava para executá-lo.

Quando ela finalmente conseguiu chamar sua atenção, Alexander estava na companhia de um homem de idade. Tinha um rosto implausível de tão vermelho, como se tivesse sido pintado com spray, um efeito chocante intensificado pelo cabelo prateado e por uma camisa amarela. – Alison... – Alexander sorriu quando ela veio na direção deles. – Este é o vereador Markland, presidente da comissão de recreação. – Ele então se virou na direção do homem-semáforo.

– Stuart, a Alison é a nossa nova assistente administrativa. Ela foi emprestada pela RCP.

– Como estão as coisas na Commie hoje em dia? – quis saber o vereador Markland.

– Tudo ótimo. – Alison abriu um sorriso caloroso para o vereador por ele ter usado a forma coloquial pela qual as pessoas se referem à Royal Commonwealth Pool, em vez do jargão de gabinete usado por Alexander. – Comecei hoje a trabalhar com o Alexander, estou emprestada por um ano.

– Vem almoçar com a gente – convidou Alexander. – Depois eu te levo pra dar uma voltinha pelos principais focos de grafiose da cidade.

Deixaram a Câmara e partiram em direção a um bar de vinhos atravessando a Royal Mile em meio a uma bruma de calor. Era o último dia do festival, e a rua estreita estava tomada pela multidão assistindo os artistas fazendo seus números no calçamento. Quando conseguiu atravessar a multidão, Alison segurava panfletos de oito espetáculos diferentes. Alexander tinha pegado alguns, mas Stuart Markland espantou todos os jovens estudantes que se aproximaram com um rosnado grosso e rude, adotando a postura intimidatória de um homem que já viu de tudo. Mas ele se iluminou quando entraram na taverna, literalmente esfregando as mãos de alegria quando foram conduzidos até uma mesa num canto.

Ainda que estivesse muito mais interessada no vinho do que na comida – seu estômago parecia ter encolhido –, Alison mesmo assim se obrigou a comer, ciente de que havia se alimentado muito pouco nos últimos dois dias. Stuart Markland parecia estar aproveitando as duas coisas. Sorria como um lobo enquanto enfiava um frango à Kiev goela abaixo e depois limpava a boca com um guardanapo.

Alexander, segurando um cálice de tinto, fez uma observação severa. – Eu não gosto do jeito que algumas pessoas estão falando de “árvores moribundas” nas correspondências da câmara. Expus este ponto a Bill Lockhart. Se os jornais ficarem sabendo disso e começarem a adotar o termo, vai dar uma impressão macabra e derrotista. Precisamos evitar os gols contra, Stuart – disse, obrigando o vereador a prestar atenção no que falava.

– Com certeza – respondeu Markland.

– O termo “grafiose” parece mais robusto. – Alexander golpeou o ar com seu garfo. – A imprensa vai ser uma parte importante dessa campanha, então vamos nos assegurar de que estamos seguindo a mesma partitura o mais rápido possível. Alison, talvez você deva monitorar a correspondência que diz respeito à unidade, e à grafiose em geral, e talvez enviar diplomaticamente uma notinha às partes interessadas a esse respeito.

– Certo – disse Alison.

De que porra ele tá falando?

Markland parecia estar pensando em alguma coisa, contraindo a testa ocupada. Por alguns segundos, Alison pensou que ele estava saboreando o vinho, até que ele perguntou: – Então, quando é que esse plano de ação de derrubada e plantio começa a ser executado?

– Tenho uma equipe na rua neste exato momento. Estão nas profundezas da West Granton, perto do gasômetro. Começaram ontem – disse Alexander, evitando ser presunçoso em sua convicção vaidosa. Sabia que tinha burlado as regras e posto o carro na frente dos bois ao enviá-los para as ruas antes que o plano de ação fosse assinado, mas estava ansioso por parecer dinâmico.

Ficou estudando o rosto de Markland, aniquilado pela bebida, em busca de alguma reação, e sentiu um alívio palpável quando ele se contorceu para formar um sorriso. – Cê não deixa a grama crescer debaixo do pé – disse o vereador, acrescentando em seguida: – Sem trocadilho. – Para a felicidade de Alison e óbvio constrangimento de Alexander, acenou em seguida para o bar, pedindo uma segunda garrafa de vinho.

Quando a garrafa chegou, Alexander pôs a mão sobre o cálice e olhou para o garçom. – Estou dirigindo.

Marksland lembrou Alison de uma ilustração do gato de Cheshire em um livro que tinha quando criança, quando ele se voltou para ela. – Beleza, sobra mais pra gente! À nova unidade – propôs um brinde.

Alison no País das Maravilhas, mamãe costumava dizer.

Quando saiu do bar com Alexander, Alison estava mais do que agradavelmente grogue, a ponto de ter de tomar cuidado quando tentava sentar no banco de carona do Volvo. Imaginou que não fazia sentido tentar esconder seu estado. – Uau... Não estou acostumada a beber à tarde – confessou. – Preciso admitir que estou meio bebinha, e isso pra dizer o mínimo!

– Bem, obrigado por fazer isso pela equipe – assentiu Alexander com a cabeça, dando a partida no carro, parecendo genuinamente feliz por ela ter bebido a maior parte da garrafa de vinho.

Massa pra caralho esse trampo...

Com os excessos da noite passada, a falta de sono e o efeito do final de tarde, ela estava mesmo sentindo o abraço. – Tudo certo...

– Não me entenda mal, Stuart Markland é um grande cara – disse Alexander, pegando a South Bridge. – Mas ele é muito antiquado.

Alison estava prestes a dizer que não tinha nada contra aquilo, mas sufocou o instinto de tagarela. Você está trabalhando, ficava lembrando a si mesma. Mas não parecia que estava fazendo isso sentada naquele carro estofado, com as janelas abertas, o sol queimando. Alexander era meio babaca, mas ficava bem naquele terno, e ela sentiu vontade de flertar com ele. Esticou as pernas, o olhar percorrendo as tíbias até os dedos do pé pintados de vermelho, sobressaindo-se na sandália de verão com tirinhas. A impressão de que os olhos de Alexander haviam feito a mesma jornada a invadiu, mas, quando se virou de repente, viu que ele olhava fixamente para a estrada.

– Esta é uma visão muito, muito triste. – Ele franziu o cenho enquanto passavam pela West Granton Road. Pararam na frente da grande torre azul do gasômetro e, quando saíam do carro, Alison viu a equipe usando equipamentos para cortar uma árvore, como uma versão em movimento do slide que Alexander havia mostrado mais cedo.

– Esta aqui estava dando sinais de infestação – disse ele, apertando os olhos por causa do sol, apontando para outra árvore abalada, que os homens se esforçavam para arrancar do chão. Então seu braço fez um movimento em direção a uma minifloresta atrás da torre do gasômetro. – Aquelas ali ainda estão saudáveis. Bem, por enquanto. Aqui é mesmo a linha de frente.

Quero você em cima de mim, pensou Alison, inicialmente na forma de um impulso embriagado subversivo e vagamente malicioso. Depois a semente da luxúria floresceu, aparentemente alimentada quando ela se permitiu aquele pensamento, ficando ao mesmo tempo surpresa e excitada, enquanto saíam do asfalto para pisar na grama.

Naquela faixa de aterro reivindicada do rio, duas árvores cortadas estavam sendo levadas para se juntarem a outras em uma pilha. Ainda que estivesse quente, o solo estava ficando cada vez mais úmido e Alison se sentia pisando em algo molhado e meio mole. Chegaram perto de um homem que usava as duas mãos para jogar gasolina de um recipiente grande e retangular de metal sobre as árvores derrubadas. Estava prestes a atear fogo quando Alexander gritou: – Espera!

O homem olhou para ele com a testa franzida de forma hostil. Um segundo homem, com pinta de autoridade, atarracado e com o cabelo escuro cortado bem rente, se meteu de forma ameaçadora e rosnou: – Jocky, taca fogo nessas merda. – E encarou Alexander desafiador, com o queixo apontado em sua direção.

Alexander agitou o que esperava ser uma bandeira branca. – Você deve ser Jimmy Knox. Conversamos pelo telefone. Alexander Birch, Unidade de Controle da Grafiose.

– Ah... sim – respondeu Jimmy Knox sem um pingo de respeito, apenas aceitando o pedido de paz com alguma relutância. – Bom, a gente tem que queimar essas fiadaputa antes que as porra desses besouro saiam voando por aí. Daí a gente tá fudido. – E ele olhou para Alison, que tinha levantado sua mão para proteger os olhos do som, acrescentando: – Pardon, bonequinha.

– Claro, Jimmy, eu só queria mostrar à sra. Lozinska... à Alison, aqui... – Alexander puxou Alison mais para perto, e ela foi pisando cuidadosamente, mesmo assim incapaz de evitar de enfiar o pé em outro pedaço molhado do gramado. – Alison, Jimmy Knox. Ele e sua equipe estão fazendo um excelente trabalho por aqui, pegando no pesado, e não quero atrapalhar – ele sacudiu a cabeça, demonstrando empatia –, mas preciso mostrar a você a copa dessa árvore. Por favor, nos aguente por um segundo – pediu ao perplexo capataz. – Olha pra essa casca. – Ele se inclinou e pegou um punhado amarelado da árvore. – Podre. Chega mais perto – pediu a Alison. – Olha. Tudo podre – declarou mais uma vez, com os olhos enevoados.

Alison não estava muito a fim de chegar mais perto, mas sentiu que era seu dever. Quando afundou o pé direito no meio da lama, tropeçou e quase caiu. Conseguiu se equilibrar, mas chutou o recipiente de gasolina. Jimmy soltou um palavrão quase inaudível, e Alexander deu um pulo para a frente quando a gasolina atingiu a parte de trás de uma de suas pernas. – Tá tudo bem – murmurou ele, enquanto um dos homens levantava o recipiente e o colocava firmemente de pé sobre o solo empapado. Atendendo prontamente ao chamado de Alexander, Alison mergulhou a mão com relutância na casca esponjosa, experimentando a mesma sensação dos pés no gramado encharcado.

Eles se afastaram para deixar que o homem queimasse as árvores. Não parecia haver muita umidade nelas, uma vez que os galhos se consumiram rapidamente e a casca se incendiou, soltando uma coluna sinuosa de fumaça negra pelo céu. Alison ficou hipnotizada pelas chamas e pelo crepitar do fogo. Estava ciente da presença de Alexander, parado perto dela enquanto as ondas de calor atingiam o seu rosto. Ela poderia ficar ali para sempre, ainda que os pés estivessem gelados e submergindo cada vez mais naquele solo empapado.

Ouviu Alexander pigarrear, quebrando o encanto do fogo, e eles então se despediram da equipe. Enquanto se viravam para ir embora, Alison escutou risadas sarcásticas de Jimmy Knox e alguns de seus homens. Olhou para Alexander, mas, se ele havia percebido, estava claro que não se importava. Ela achou estranho ter ficado chateada por causa dele e também um pouco irritada.

– Esses caras estão bem putos – observou Alexander enquanto eles se aproximavam do carro. – Todos foram tirados de um longo tempo de desemprego pelo Programa de Iniciativa Comunitária da Comissão de Serviços de Mão de Obra. Agora o governo está mudando as regras e transformando todas essas vagas em meio período, com o argumento de que isso torna possível tirar o dobro de pessoas do desemprego com os mesmos custos. – Olhou para os grupos de operários. – Mas isso não muda o fato de que não tem trabalho suficiente. Então agora esses caras ou aceitam um salário de meio período ou voltam para o seguro-desemprego.

Alison assentiu com a cabeça, pensando numa notícia que tinha lido no jornal, dizendo que a Lothian Health Board tinha sido obrigada a aumentar o tempo de espera entre os testes para pacientes de câncer em processo de remissão devido aos cortes nas verbas do governo central. Aquilo tinha prendido sua atenção, uma matéria que em outros tempos ela teria encarado como uma baboseira qualquer, colocada ali para encher linguiça num jornaleco local.

– Fico me perguntando onde é que isso vai parar. – Seu chefe sacudiu a cabeça enquanto entravam no Volvo. Alexander enfiou a chave na ignição, mas, em vez de dar a partida, pareceu estar pensando em outra coisa. Ele se virou de repente para ela, fazendo um contato visual intenso. – Escuta, o que você vai fazer agora? Digo, mais tarde?

– Nada... por quê? – Ela se ouviu dispensando o grupo feminino de poesia. Para quê? Por quê? Ela não queria ir para casa, para lidar com as mensagens sombrias que estariam atulhando a secretária eletrônica. Era importante ficar na rua.

– Tem um churrasco na casa da minha mãe em Corstorphine. Ela está fazendo 60 anos. Vai ser a coisa mais chata do mundo, mas a gente não precisa ficar, só dar uma passada. Eu adoraria largar o carro e tomar uma cerveja. Não me envergonho de admitir que estava com um pouco de inveja de você e do Stuart com aquele vino – sorriu, os olhos brilhando.

– Claro, por que não? – respondeu ela, numa empolgação forçada, preferindo, na verdade, escutar Alexander falando mais um pouco sobre árvores. E o tempo todo estava ciente de que aquele dia, o que quer que ele tivesse sido, havia agora se transformado em alguma outra coisa.

Foram em direção à cidade e, quando passaram por Tollcross, Alison pensou em Johnny. Como os olhos dele estavam fixos nela, e a boca que encolheu até virar só uma frestinha quando ela repeliu seus avanços. Como se ele tivesse saído do próprio corpo e ela tivesse de gritar para que ele voltasse para dentro. Na Dalry Road, Alexander freou de repente e estacionou. – Aquele é o meu irmão – disse, e ela olhou e viu uma versão menor dele, também vestindo terno, entrando animado no que parecia um pub em péssimo estado. – Com certeza ele está querendo ver como é uma pocilga dessas por dentro. – Alexander leu a mente dela. – Vamos entrar e dar um oi. Posso deixar o carro aqui e a gente pega um táxi até Corstorphine com ele.

O pub da Dalry Road era um boteco tradicional de trabalhadores, similar aos muitos que se empilhavam na Leith Walk. Alison se sentiu despida com os olhos dezenas de vezes na curta caminhada entre a porta e o balcão. Alexander, balançando-se desconfortavelmente dentro do terno, enxergou um cubículo nos fundos do pub, onde seu irmão, Russell, estava sentado com um homem vestindo um macacão.

Michael Taylor estava parado e quieto enquanto olhava para Russell Birch. Seu olhar era duro. Para Alison, parecia que os dois homens tinham discutido.

– Oi. Vocês se importariam se a gente sentasse aqui? – sondou Alexander, sentindo o clima.

Os olhos de Russell se arregalaram, primeiro registrando o choque de ver o irmão, depois encarando Alison de forma penetrante. – Mike... hã, meu irmão. – Olhou de relance para o rosto perplexo do companheiro de trago e depois se virou para Alexander. – Fica à vontade – disse, puxando uma cadeira. – Como é que vai o negócio de florestas?

– Saí da Comissão do Conselho Distrital – respondeu Alexander, sentando e empurrando outro banquinho para Alison.

– Fiquei sabendo. Como é que tá lá? – perguntou Russell. Alison estava ciente de que ele estava olhando para as suas pernas, e sentou-se com cuidado, puxando a saia por cima das coxas.

– O trabalho é legal, mas essa catástrofe da grafiose está nos matando. E o negócio farmacêutico?

– Bombando. Todo mundo quer alguma coisa para aplacar a dor. – Sorri Russell, virando-se para o homem ao seu lado. – Este é o Michael, ele... – hesita Russell, a palavra “colega” parece dançar sobre seus lábios antes de ele olhar para o macacão. – Ele trabalha comigo.

– Mesma coisa a Alison, aqui – respondeu Alexander. – Você vai lá na casa da mamãe?

– Sim. Já vou indo. – Ergueu o pint.

– Vai dirigindo?

– Não.

– Vamos tomar mais uma e pegar um táxi – disse Alexander, apontando para o copo de Michael. – Lager?

Michael sacudiu a cabeça. – Pra mim não, valeu. Eu tenho que ir. – Ele se levantou, deixando cerca de um quarto do pint. – Russell, a gente se vê depois.

Alexander ficou vendo o irmão ir embora, levemente confuso, e depois se levantou para pegar uma rodada de bebidas.

– Então, como é trabalhar com o meu irmão? – perguntou Russell a Alison quando seu chefe estava fora do alcance.

– É... é legal – disse ela, meio desajeitada. – Mas hoje ainda é o meu primeiro dia.

Quando Alexander voltou, os irmãos começaram a conversar e Alison se sentiu deslocada. Ficou observando um cara magro, jovem e com o cabelo vermelho entrando no bar. Por uma fração de segundo pensou que fosse Mark Renton, mas era apenas um outro produto daquela fábrica de ruivos branquelos que fica em algum lugar da Escócia.

Nunca soube muito bem o que pensar do Mark. Ele vinha sendo legal agora, mas tinha sido um filho da puta muito cruel na escola primária. Lembrou do apelido que ele deu casualmente a ela: judia, o que a fazia ter vergonha do próprio nariz. Era estranho imaginá-lo agora na faculdade, e a Kelly provavelmente também estava indo pra lá. Alison olhou para os bem-sucedidos irmãos Birch, tentando entender o que eles tinham que ela não tinha. Sempre tinha ido bem na escola, apesar de ter se dado mal nos exames finais. Isso aconteceu quando sua mãe foi diagnosticada pela primeira vez. Mas ela podia refazer aquela prova. Se ao menos conseguisse se concentrar. Parecia que seu dom de grande concentração tinha sido tirado dela: uma perda debilitadora da sua resistência cerebral. A vida agora parecia ser uma busca constante pela próxima distração fugaz. Ficou se perguntando se algum dia teria seu foco de volta.

As minigarrafas de vinho azedo para cozinhar que aquele pub nojento vendia eram praticamente intragáveis depois da bebida de qualidade do almoço no bar de vinhos, e Alison ficou aliviada ao entrar no banco traseiro do táxi com os irmãos Birch. Percebeu que estava com dois homens que praticamente não conhecia e, mesmo assim, indo à festa de aniversário da mãe deles. Pareciam muito competitivos entre si. – Você está fedendo – disse Russell, de forma deselegante, para Alexander.

– Derrubei gasolina na perna no trabalho. Vou limpar direito na casa da mamãe.

Chegaram a um extraordinário casarão de arenito vermelho em Corstorphine. A enorme entrada de cascalho já estava tomada de carros, e mais alguns estavam estacionados na rua. Quando chegaram ao quintal dos fundos, um espaço amplo cercado por um muro de pedras e diversos arbustos, árvores e floreiras, as pessoas estavam bizarramente reunidas no pátio e no gramado em pequenos grupos. O pai de Russell e Alexander, um homem de olhos cansados com o cabelo grisalho e pelancas penduradas em todo o rosto e pescoço, estava assando linguiças, hambúrgueres, pedaços de frango e bifes.

Enquanto Russell circulava por entre os grupos de vizinhos, parentes e amigos, Alexander apresentou Alison ao pai, Bertie, que respondeu só por educação. Deixando o pai cuidar de seus afazeres, Alexander explicou que ele era 15 anos mais velho que sua mãe. Alison imaginou um homem isolado, com os contatos de trabalho desgastados e uma mulher do Rotary-Club-e-cafés-da-manhã envolvida em suas próprias atividades, crianças preocupadas chegando ao egoísmo febril da meia-idade, com seus parceros idosos de golfe todos mortos ou morrendo. Seus olhos, evasivos e frios, pareciam indicar um espírito que procurava uma maneira de fugir das pesadas ruínas de seu corpo.

Entediada pelas pessoas, Alison ficou observando as crianças correndo em volta de uma piscina infantil e ficando cada vez mais selvagens apenas por estarem umas com as outras. Dentre os adultos agrupados, um casal se destacava. Uma mulher bocuda com o cabelo mal pintado de loiro jogando a cabeça para trás numa gargalhada rouca quando alguma coisa era dita pelo acompanhante: um homem grande, musculoso, com a cabeça raspada, enfiado num terno que lhe caía muito mal. Em seguida, seu rosto se congelava em silêncio, até que ela dava um soco bem no meio do peito dele, antes de soltar uma outra gargalhada histérica.

Ao trazer uma taça de vinho, Alexander percebeu para onde Alison estava olhando e a apresentou para a loira, que era sua irmã, Kristen. – Prazer. – Ela abriu um sorriso. – Este é o Skuzzy – anunciou Kristen, virando-se para Alexander. – Cê não conhece o Skuzzy, né?

– Não. – Alexander apertou cautelosamente a mão do homem.

– O nosso Alexander trabalha com horticultura – disse ela, fazendo uma careta.

– Bem, não exatamente...

– Cê pode levar uma vagabunda pra cultura, mas não pode obrigar ela a ler um livro – disse Alison, acrescentando: – Isso quem disse foi a Dorothy Parker.

Kristen a olhou confusa por um segundo, e depois soltou um cacarejo, virando-se para Alexander: – Gostei dela! Bom te ver com uma mina com senso de humor, pra variar!

– Alison trabalha com... – começou ele a responder, mas Kristen já estava falando mal da esposa ausente quando sua mãe apareceu, balançando a cabeça e olhando secamente para Alison, com um bico nos lábios, enquanto empurrava Alexander para o lado.

Em Rena Birch, Alison viu uma mulher com feições de gavião e olhos protuberantes, fortemente concentrados em seu filho mais velho. – Você traz uma garotinha para a minha festa de aniversário enquanto sua esposa está em casa, com os seus filhos e o coração partido? Que tipo de homem você é?! Eu estava falando com a Tanya no telefone, e as crianças, implorando para que o papai voltasse pra casa, e você me traz uma – seus olhos correm para Alison – mocinha bêbada para a minha festa...

– Eu não estou – começou a protestar Alison, mas na mesma hora teve de colocar a mão na boca para conter um soluço.

– ... em vez dos meus netos – latia Rena para seu filho. – O que os outros vão pensar, Alexander?

Alexander respondeu com um desprezo sacana. – Não tô nem aí pro que eles vão pensar. – Olhou para Alison, que se deu conta de que tinha dado um passo para trás na direção de Kristen, gesticulando para demonstrar irritação e dar algum tipo de explicação. – Em primeiro lugar, Alison é minha colega de trabalho. Em segundo, foi a Tanya quem me botou pra fora de casa. Foi ideia dela que eu fosse embora, para que ela pudesse – e Alison se contorceu quando Alexander fez aspas com seus dedos – dar um tempo e pensar nas coisas. E foi isso que eu fiz. Agora eu tenho que ficar correndo atrás dela e ligando? Nem pensar. Ela me disse um monte de coisas dolorosas sobre me querer fora da vida dela. Bem, melhor ela tomar cuidado com o que deseja, porque é exatamente onde estou agora. E agora eu vou te dizer uma coisa e, se você quiser, pode dizer pra ela: não tenho a menor pressa de voltar pra lá, porque estou me divertindo pra caralho!

– Você tem filhos! – grasnou Rena.

Alison, de braços cruzados, segurando uma taça, estava começando a se divertir. Sorria enquanto Kristen falava sem parar com ela, embora estivesse espichando a orelha para escutar seu chefe confrontando a reprimenda da mãe.

– Sabe o que ele me disse? – Kristen estava perguntando a Alison, enquanto lançava um olhar maldoso na direção de um parente com pinta de rabugento. Talvez fosse irmão da sua mãe. – Ele disse “O que você faz?” Me deu vontade de dizer “Quê? Como assim, o que eu faço? Eu transo. Eu vejo TV. Eu saio pra beber.” Por que sempre que as as pessoas fazem essa pergunta elas partem do princípio de que estão falando de uma carreira?

Alison desviou o olhar para o churrasco e ficou olhando as chamas subirem e lamberem a gordura em volta das linguiças, que chiavam. Ficou observando a testa de Bertie franzida de concentração enquanto ele colocava peitos de frango na grelha com uma pinça. Apesar de estar com os sentidos prazerosamente amortecidos, também estava ciente de que Alexander tinha levantado a voz, reconhecendo o tom firme que ele adotava no seu trabalho. – E você acha que é melhor que os meus filhos vivam em uma casa com duas pessoas que se odeiam ou em duas casas normais, com pessoas sãs?

Quando Bertie Birch virou as linguiças, as chamas deslizando por entre a carne que chiava e respingava, Alison sentiu que ele estava saboreando silenciosamente a discussão pública entre sua esposa e seu filho mais velho. Para ele, os pretendentes vagabundos e a implacável decadência de Kristen, o comportamento tolo, porém dolorido de Russell e a arrogância ecológica de Alexander provavelmente vieram a incorporar qualidades místicas e exóticas.

Até mesmo Kristen tinha ficado em silêncio, agora também interessada pela discussão crescente, aproximando-se aos pouquinhos, incentivando Alison a fazer o mesmo, quando Rena levantou a voz de forma estridente: – Então isso na verdade é sobre mim e o seu pai, não é? Bem, pelo menos tenha a coragem de dizer! Coitadinho de você; as mensalidades da Stewart Melville que a gente quase não conseguia pagar, os acampamentos de verão na Bavária e no Oregon pra ficar observando suas preciosas árvores...

De repente, Alexander deu um berro agudo. Todos ficaram alarmados. Parecia fora de contexto, mesmo com o aumento da turbulência na sua discussão com Rena. Para Alison, pareceu que ele estava tendo algum tipo de ataque; suas mãos começaram a tremular selvagemente pelo ar e ele saiu correndo, atropelando seu pai e a churrasqueira. Quando ela percebeu que Alexander tinha sido picado ou pelo menos estava sendo perseguido por uma abelha ou vespa, a próxima coisa que Alison viu foi uma língua de fogo subindo e queimando a parte de trás das pernas do seu chefe.

As pessoas ficaram horrorizadas, paralisadas e boquiabertas, sem conseguir acreditar enquanto Alexander batia sem efeito em sua calça em chamas. Russell foi o primeiro a reagir, arrastando o irmão até a piscina infantil, dentro da qual Alexander caiu agradecido, rolando de uma maneira que fez Alison pensar numa criança na praia. Ficou sentado na água, arfando, com uma listra negra carbonizada nas costas do paletó. Como se tivesse percebido de repente onde estava, se levantou de repente e saiu da piscina de plástico, mais mortificado do que em choque. Recusou todas as ofertas de chamar uma ambulância. – Eu estou bem – repetia, e embora o terno estivesse arruinado, ele milagrosamente parecia não ter sofrido nenhuma queimadura significativa.

– Vou pra casa mudar de roupa – anunciou, se livrando da multidão em rebuliço à sua volta. Deixou isso claro ao sair marchando com as pernas rígidas e o rabo carbonizado e molhado para fora dali. Sua mãe agora discutia com Kristen, e Alison pôde ouvir Skuzzy dizendo repetidamente, num loop demente: – Deixa pra lá, isso só dá pano pra manga. – Ao sair atrás de Alexander, ela o viu descendo a rua. Teve de correr para alcançá-lo, gritando seu nome à medida que ia chegando mais perto. Ele parou, evidentemente envergonhado ao vê-la se aproximando.

– Sinto muito, a culpa foi minha – disse ela. – Foi a gasolina e tal.

– Tá tudo bem, foi um acidente. No fim, a culpa foi do meu ataque de pânico desastrado... a vespa... um acidente duplo. – Começou a rir, de repente, e ela acabou fazendo o mesmo.

Quando este momento passou, ele disse melancólico: – Lamento ter exposto você àquele fiasco.

Alison pensou imediatamente na própria família, onde tinha se deixado de dizer tanta coisa desde o começo da doença de sua mãe. Geralmente a tensão era insuportável. Aqui, pelo menos, tudo parecia estar às claras. – Foi meio emocionante – confessou ela, e depois, ciente de que ele estava chateado, levou a mão à boca.

Alexander balançou a cabeça. – Não gosto de abelhas e vespas. Era por isso que eu estava tentando ficar atrás do churrasco, por causa da fumaça. Fui picado quando era criança e quase morri, sabe?

Alison não entendia como é que alguém podia quase morrer por causa de uma picada de abelha, mas se sentiu na obrigação de reagir adequadamente, com um sobressalto.

– Sim, no fim das contas eu tive uma reação alérgica severa e sofri um choque anafilático – ele explicou, e, em resposta ao olhar perplexo, acrescentou: – Desmaiei e eles me enfiaram numa ambulância. Minha pressão sanguínea havia caído perigosamente, e fiquei em coma por alguns dias.

– Deus! Não é de se estranhar que cê tenha se apavorado.

– Sim, me senti um banana fazendo um fiasco daqueles por causa de um inseto, mas eu prefiro me queimar do que...

– Shhh – fez Alison, dando um passo para frente e beijando aquele homem que ainda ardia naquela rua suburbana.


Queda


InterRail

Conheci Fiona Conyers no seminário de história da economia. Uma sala de aula comum; pequena, com um conjunto de mesas dispostas em U e um quadro branco numa das paredes. As canetas nunca funcionavam direito; era uma das coisas que torravam o saco do professor, Noel, um cara normalmente apático, trajando eternamente a mesma jaqueta surrada de couro preto. Éramos uma turma de aproximadamente uma dúzia de alunos. Só quatro gostavam de falar: eu, Fiona, um cara mais alto e mais velho de Serra Leoa, chamado Adu, e uma iraniana de rosto rechonchudo e amigável, Roya. Os oito restantes eram mais do que mudos: socialmente retardados a ponto de ficarem aterrorizados diante de qualquer pergunta.

Fiona gostava de confrontar Noel e investia contra todas as ortodoxias, mas com uma postura calma, sem aquele estridência comum às pessoas interessadas em política. Tinha um sotaque de nativo bem-educado de Newcastle que foi se intensificando à medida que nos tornamos mais íntimos. Como também deve ter acontecido com o meu sotaque de Edimburgo, suponho. Me senti atraído por ela instantaneamente. Além de linda, ela tinha uma voz. A maioria das minas que eu tinha conhecido antes de vir pra cá eram caladas, dissimuladas e amorfas, justamente, eu percebia agora, porque eu também agia exatamente assim com elas. Mas não rolou nada comigo e com a Fiona – sempre fui péssimo em saber quando uma mina tá a fim de mim. Eu achava que a amiga dela, Joanne Dunsmuir, da minha aula de literatura inglesa no ano passado, tava pra jogo; mas eu não tinha interesse nela. Era uma weedgie intrometida, não exatamente de Glasgow, mas de algum lugar próximo. Ao contrário de vários caras de Edimburgo que dispensam todas como se fossem umas vagabundas, eu não tenho nada contra as sebentas, porque meu pai também é de lá. Mas Joanne tinha um ar presunçoso e dominador que me desagradava. O tipo de mina que ia pra universidade pra achar um cara e mandar na vida dele pra sempre.

Em casa eu era um vadio; fútil e fudido, sempre procurando alguma aventura. Enchendo a cara, arrombando casas, tentando arrombar minas. Aqui eu era o oposto. Por que não? Fazia todo o sentido pra mim. Pra que ir embora de casa só pra fazer a mesma merda que eu fazia lá? Ser a mesmíssima pessoa? Meu raciocínio era: eu sou jovem; quero aprender, quero acrescentar algo à minha vida. Na universidade, eu levo tudo muito a sério e, acima de tudo, trabalho duro e sou disciplinado. Não porque eu quisesse “entrar”. Até onde eu sabia, eu já tava dentro. Sentado na biblioteca bem iluminada, cercado de livros, em silêncio completo, aquilo era o meu zênite pessoal. Nada no mundo fazia eu me sentir melhor. Então eu estudava com dedicação: eu não tinha vindo a Aberdeen pra fazer amigos. No primeiro ano, durante os finais de semana, eu quase sempre voltava pra Edimburgo pra ver os jogos de futebol ou ir nos shows e boates com meus parceros ou minha namorada ocasional, Hazel. Mas fiz um bom amigo, Paul Bisset, um cara de Aberdeen. “Bisto” era um rapaz de classe trabalhadora do distrito de Torry, baixinho, mas forte, com cabelos quase brancos de tão loiros, e que parecia ter passado a vida trabalhando numa fazenda, embora fosse um cara da cidade. Convivia com a bandidagem de Aberdeen, morava em casa com a mãe e, assim como eu, sabia se dedicar as estudos. Outra ligação é que a gente tinha trabalhado em emprego de verdade (ele era funcionário de uma gráfica) e sabia como aquilo era uma merda, por isso a gente valorizava a oportunidade de estar numa universidade, muito mais que a rapaziada que chegava direto do sexto ano do colégio ou de alguma faculdade metida a besta.

Eu tinha planejado com o Bisto uma viagem pra Istambul. Sempre quis viajar. Só tinha saído do país duas vezes, uma pra Amsterdã com a turma, pra fazer merda de adolescente, e antes disso pra Espanha, pra passar um feriado em família. Foi massa; só eu, a mãe, o pai e o Billy, porque minha tia Alice ficou cuidando do lesado do Pequeno Davie. O pai tava contente, mas a mãe ficou preocupada com o Davie e gastou uma fortuna telefonando pra casa. Eu aproveitei, foi o melhor feriado que a gente teve, sem nenhuma aberração por perto pra deixar eu e o Billy com vergonha.

Quando Fiona e Joanne ficaram sabendo da nossa intenção de viajar, elas meio que se convidaram pra ir junto. No começo, era uma piada, depois foi ficando sério. Mesmo quando trocamos números de telefone e fizemos planos concretos, eu e o Bisto continuávamos pensando: tá bom, a gente vai acreditar quando elas aparecerem.

Depois da última aula do último dia do período letivo, Fiona, Janne e Bisto queriam encher a cara no diretório estudantil. Topei, mas primeiro eu precisava falar com o cara do curso de literatura inglesa, Parker. O viado me deu 68% no ensaio sobre F. Scott Fitzgerald. Não me ajudava porra nenhuma: era a primeira vez que eu ficava abaixo de 70% numa tarefa com conceito, e eu não tava satisfeito. Lembro da Joanne dizer: – Cê tá doido, Mark, 68% é booooom!

Foda-se o bom; eu tinha botado a alma no troço e estabelecido padrões pra mim mesmo. Queria um diploma com honras em História e Literatura; bem, em história, depois de ter desistido da literatura esse ano. Analisar um romance significava destruir sua alma, e isso tava arruinando o prazer que eles me davam. Eu não podia me submeter a um treinamento pra pensar daquela maneira. Eu precisava me recusar a estudar literatura pra conseguir preservar minha paixão por ela. Eu também tava pensando em trocar minha especialidade de história para economia. Mas em geral eu era o melhor em todas as matérias, e só perdia em algumas pro africano Adu, ele e a Lu Chen, uma chinesa tão concentrada que chegava a dar medo. Então lá fui eu, pronto pra batalha com o Parker, uma ratazana esnobe de gravata-borboleta e terno tweed que agia como se fosse um velho professor de Oxford ou algo assim. Nas anotações do verso da página, ele insistiu que esse era o meio pior ensaio até agora, que eu tinha entendido mal a vida e a obra do F. Scott e o personagem do Dick Diver em Suave é a noite.

Quando cheguei lá, o viado tava recostado na poltrona acolchoada. O escritório pequeno é atulhado de livros e papeis. Tinha prateleiras que iam até o teto e duas escadinhas pra alcançar os volumes mais antigos e empoeirados que ficavam no alto. Aquele monte de livros enfiados naquele buraquinho escondido e aconchegante. E ele tinha um daqueles fichários Rolodex pra organizar todos os contatos dele, um negócio que eu finjo detestar, mas que na verdade acho massa pra caralho. Invejei o filho da puta por ter um espaço como aquele; um lugar onde dá pra se trancar, ler e refletir. A súbita noção de que eu conhecia esse viado e ao mesmo tempo tipos como Frank Begbie, Matty Connell e Spud Murphy me deixou chocado. Parker exibia quase sempre um ar desligado e vagamente superior, com seus óculos de aros dourados descansando no topo do nariz, e quando ele se prestou a me focar, foi daquele jeito meio interrogativo de um policial, como se cê tivesse feito algo errado. Então eu apresentei a minha queixa, mas ele se manteve inflexível. – Você está deixando de ver um aspecto crucial, Mark – disse ele –, o que, devo confessar, muito me surpreende.

– Que aspecto? – perguntei, mirando o que aparentava ser um exemplar muito antigo de Jane Eyre na prateleira ao lado da janela.

– Leia de novo o livro, os ensaios críticos e também a biografia suplementar de F. Scott – ele sugeriu, se levantando pra atender algum viado que tava batendo na porta. – E agora, se me dá licença...

Quando ele me deu as costas e foi investigar a porta, aproveitei a chance, afanei o exemplar de Jane Eyre e meti na minha mochila. Ele convidou alguma toupeira da pós-graduação pra entrar e me dispensou com o mesmo gesto de braço. Saí do escritório furioso e ao mesmo tempo excitado por ter cobrado o imposto de burguês em cima dos bens de antiguidade dele. Quando cheguei no bar, contei pra Fiona, Joanne e Bisto sobre a conversa, mas omiti minha retaliação virtual perpetrada através de uma “relocação de recursos”, como diz o Sick Boy quando está se referindo a um furto, com receio de ser mal interpretado. – Quer que eu leia tudo de novo, o filho da puta – protestei antes de tomar um gole da minha cerveja sem vida.

– Cê vai poder ler nos trens da Europa – disse Fiona com um sorriso tranquilizante, dando uma tragada de parar o coração no Marlboro, ao mesmo tempo que Joanne soltava uns risinhos, o que me convenceu ainda mais de que elas só tavam tirando onda. Quando voltei pra Edimburgo, porém, Bisto ligou pra me dizer que elas viriam com toda a certeza e já tinham comprado os bilhetes de InterRail. Eu disse que só acreditava vendo.

E caralho, quando chegou o dia eu precisei olhar duas vezes quando avistei a Joanne na Waverley Station, sentada no grande saguão. Ela tava lendo Vida e época de Michel K, do J. M. Coetzee, obviamente porque o livro tinha recebido algum prêmio metido a besta e gente como ela, apesar da afetação de livre-pensadora, sempre vai precisar que alguém diga o que ela deve ler. A gente embarcou no belo trem InterCity com uma sensação desconfortável de antipatia mútua; assim como eu, ela devia estar pensando como caralho ela ia fazer pra aguentar ficar perto de mim por mais quatro semanas. Ainda bem que o Bisto já tinha embarcado em Aberdeen e tava nos esperando no trem com um pack de cervejas. Cada um bebeu uma ou duas cervas no trajeto até Newcastle, e eu, que fiquei o caminho todo eletrizado com a expectativa de encontrar a Fiona, fingi pouco caso quando ela apareceu na plataforma e subiu no trem. Joanne gritou de repente com aquela voz de weedgie: – Fiona, cê tá aqui-iii!

A Fiona tava deslumbrante e concentrada, esfregando a língua contra os dentes da frente pequenos e alinhados enquanto encaixava a sacola no bagageiro e vinha em nossa direção. A presença e a sequência de movimentos dela me arrasaram por dentro. – Oi – disse ela diretamente pra mim, e tenho certeza que minha pele ficou vermelha que nem a porcaria do meu cabelo ou a faixa de futebol do Aberdeen que o Bisto tava usando, com as riscas brancas e o brasão da Recopa Europeia de 1983. Só consegui erguer discretamente a minha lata, encenando um brinde, apesar de sentir que minhas entranhas tinham virado um picadinho de fígado. Ela tava usando uma jaqueta de couro preta com a gola levantada, mas logo jogou o cabelo pra trás e a removeu pra revelar uma camiseta do Gang of Four. Eu nunca tinha me sentido tão atraído por alguém na vida.

A gente tava na estrada: Londres-Paris-Berlim-Istambul.

Paris, onde mais? Estávamos ali sentados num café de calçada no Quartier Latin, bebendo Pernod com gelo. Era agradável e inebriante e a gente tava ficando bebum rapidinho. Tava rolando um clima provocativo e sensual. Sei lá como aquela porra começou, mas de repente a gente tava fazendo um daqueles jogos envolvendo bebida, que consistia em passar cubos de gelo de boca em boca. Isso acabou levando a uma exibição de beijos acalorados; primeiro Joanne e Fiona, enquanto eu e o Bisto olhávamos de queixo caído, depois eu e Joanne, e Bisto e Fiona, o que me fez chorar por dentro, depois eu e o Bisto (a gente aproximou nossos lábios duros e fechados e resolvemos a questão o mais rápido possível), pra delírio das meninas, até que enfim rolou uma pequena dança das cadeiras e meu coração disparou quando eu e a Fiona nos olhamos e, num instante de suspensão, assinamos um contrato: eu te pertenço, você me pertence, antes de nos agarrarmos. Uma hora nos demos conta, quando os gritos de incentivo viraram resmungos de impaciência, que o gelo já tinha derretido, e que ele não era o único. Nossos rostos continuaram colados e ignoramos os comentários nervosos e debochados do Bisto e os protestos estridentes da Joanne e suas tendências controladoras. Pronto, a gente tinha conseguido cortar o barato dela. Ela queria conhecer carinhas de outros países, se esbaldar em picas continentais antes de se enganchar pelo resto da vida com algum babaca espinhento da universidade. Mais tarde, Fiona me disse que chegou a comentar: – Não era pra ser assim! – Apaixonado como a gente tava, eu e a Fiona éramos um constrangimento pro Bisto e pra Joanne. Eles não tavam interessados um no outro, mas a gente tava esfregando na cara deles, mesmo que não fosse a nossa intenção.

E até parece que não era.

Eu tava adorando esfregar! Era óbvio que a gente ia pra cama juntos assim que voltasse pro hotel, perto da Gare du Nord. Era um pulgueiro algeriano, mas pra mim era a última palavra em sofisticação. Era como morar junto com uma mina, só que na Europa, e na real era isso mesmo. Como cresci com dois irmãos, a simples proximidade doméstica de uma mina já me fascinava. Ficava admirando ela ali na beira da cama, vestindo o roupão de toalha surpreendentemente sofisticado que eles forneciam no hotel, sentada em cima da colcha de cordão surrada. Tirando o roupão, entrando na banheira e raspando as pernas. Não apenas escovando os dentes, mas usando algo chamado fio dental, um barbante pra passar entre os dentes. Sentada na mesa em frente ao espelho, se maquiando ou lixando as unhas, com os cabelos molhados enrolados numa toalha.

Até segui o conselho do Parker e reli Suave é a noite, fantasiando com Mark Philip Renton e Fiona Jillian Conyers como modernos Dick e Nicole Diver, um casal boêmio viajando pela Europa, vivendo aventuras interessantes e tecendo refinadas observações sobre o mundo como um todo. Era um grande passo adiante pra mim. Minha vida sexual até então era composta de uma série de cópulas tristes, dissimuladas e excepcionalmente breves em escadarias, quartos de família ou debaixo de edredons encardidos em squats barulhentos. Agora era decadência pura, e isso significava que os pobres Bisto e Joanne dividiriam o quarto ao lado, com duas camas de solteiro.

Depois veio Berlim e mais do mesmo. Gostei pra caralho de Berlim. Tinha essa parte massa na Linha 6, indo pra Friedrichstrasse, em que o trem U-Bahn passava por baixo do Muro, correndo a mil por umas estações abandonadas e sinistras no lado comunista, fechadas após a divisão, e então ressurgia no setor ocidental. Eu e a Fiona nos desgarramos dos outros (a gente fez muito disso) e entramos na Berlim Oriental propriamente dita, que eu tava desesperado pra conhecer. Era muito melhor que a Ocidental: sem placas de publicidade desfigurando os lindos prédios antigos. Um almoço gigantesco, com três pratos diferentes, por trinta centavos. Um boquete no parque; toque de clandestinidade intensificado pela proximidade de guardas armados. E quase perdemos o toque de recolher, porque a gente tinha atravessado a Friedrichstrasse e tentado voltar pelo Checkpoint Charlie, sem saber que era necessário retornar pelo mesmo ponto de entrada.

Mais tarde sentamos num café, pedimos café e ouvimos os sons da cidade – trens elétricos, buzinas de automóveis, pessoas – dançando ao nosso redor e criando uma atmosfera esquisita, mas bela, de relaxamento excitado. Os olhos da Fiona cintilavam e ela exalava deslumbramento. – Quando a gente tava na aula do Noel, lembra como a sala era branca?

– Sim, ela sempre pegava luz, e a cortina tava detonada.

– Lembro de uma vez que foi desnorteante, a luz tava nos teus olhos e cê tava com a mão na frente do rosto, discutindo com o Noel sobre a formação do capital na Europa mercantilista.

– Hm... é...

– Fiquei com tanta vontade de transar com você...

Fiquei ao mesmo tempo lisonjeado e desesperado com essa revelação. – Foi seis meses atrás... a gente podia estar fazendo isso há seis meses...

Mas seguimos pro leste cheios de vontade, embalados por vinho barato e pelo entusiasmo do grupo. Meu coração ia tomado por uma agitação perpétua e turbulenta, e com Fiona era a mesma coisa. A gente construiu um universo inefável e vertiginoso de celebração à nossa volta, tragando pra dentro dele tudo e todo mundo que aparecia no nosso caminho; cantando aquela canção de Istambul e Constantinopla com sotaque americano forçado nos trens que nos carregavam pela Europa.

Why did Constantinople get the works?

That’s nobody’s business but the Turks[11]

À noite, voltando pro hotel, derrubados pela tremenda intensidade do fato de estarmos juntos, caímos agradecidos nos braços um do outro, chegando com vitalidade explosiva ao final sublime de mais um dia. Ela fazia massagens suntuosas na minha lombar, apalpando a vértebra maltratada com dedos amorosos, dissolvendo aos poucos a dor infligida pelo estado. Inventamos apelidos um pro outro; ela me chamava de Lindo Limpinho do Leith, porque eu adorava entrar na banheira. Quando estávamos chegando na Turquia, Bosto e Joanne acabaram cedendo, se pegando. Foi uma coisa meio paredão de fuzilamento; eles não tavam muito a fim, mas foram forçados pelas circunstâncias.

Istambul era massa, cheia de gangues ameaçadoras de malandros vadiando pra lá e pra cá como se nunca tivessem visto uma mina antes; era igualzinho ao Leith. Mantive Fiona sempre ao alcance do braço. Pedimos umas coisas muito doidas num restaurante. O espírito de Aberdeen baixou no Bisto quando colocaram na nossa frente um prato de koc yumurtasi, ou testículo de carneiro; o viado não sabia se engolia ou fazia carinho.

O momento mais inesquecível foi quando pegamos um barco e atravessamos pro outro lado da cidade pelo estreito de Bósforo até o píer de Besiktas. O sol fustigante do início da tarde assumiu o centro do palco, oprimindo e saturando tudo em meio a uma neblina de nuvens esfumadas. Minha camisa Fred Perry grudou em mim como uma segunda pele. Na volta, decidimos tomar um ácido que eu tinha conseguido com um cara numa boate na noite anterior, basicamente pra não ter que comprar a heroína que ele me ofereceu e que tinha sido uma tentação do caralho. A viagem bateu em todos nós como uma carga de tijolos no convés do barco. Me dei conta de que estávamos cruzando continentes, saindo da Ásia e indo pra Europa. Assim que surgiu a consciência desse fato, as dimensões estreitas do barco se expandiram para além do alcance da minha vista, que continha apenas a Joanne. Eu não podia ver o Bisto nem a Fiona, mas ela tava grudada em mim, eu podia sentir, a gente era como um animal de duas cabeças. A respiração e o sangue dela corriam dentro de mim como se a gente compartilhasse as mesmas veias, pulmões e coração. A minha vida, passado, presente e futuro, parecia se espalhar por todo o panorama espacial acima do convés expandido; meu quarto de dormir no Fort se ligava ao quarto do apê no Conjunto Habitacional ao lado do rio, que por sua vez remetia ao estreito de Bósforo, e ao me virar entrei no East Terracing na Easter Road, e então na sala do nosso apezinho na Montgomery Street, que se abriu para novas paisagens e ruas sem nome pelas quais eu sabia, excitado, que um dia andaria...

– Andarei ou já andei numa vida passada – sussurrei pra Fiona, que tava rindo alto e dizendo repetidas vezes: – Fleegle, Bingo, Drooper e Snork.

Lembrei que eu tinha dito pra ela que minha mãe nos chamava assim, eu, o pai, o Billy e o Pequeno Davie, com os nomes dos Banana Splits na TV. Fazen-do um monte de confusão, pensamos em uníssono enquanto víamos pelo canto do olho que Joanne tava tendo uma bad trip, suplicando sem parar: – Tô cansada disso, quando é que vai parar? Quando é que vai parar?

Meu único, repentino e devastador insight me atingiu como um taco de beisebol: Parker tinha razão, e eu vi uma porção de livros voando diante dos meus olhos, as páginas batendo como asas, como um trompe l’oeil debochado dando a vitória pra ele: – Agora entendi tudo – assumi pra mim mesmo, com o braço em volta da Fiona, ao mesmo tempo que Bisto confortava a Joanne repetindo “cê tá bem?”, e o mar ganhava a cor e a textura de uma faixa gigante do Hibs tremulando no vento. – Entendi por que tá tudo errado.

Fiona riu de novo, um som estranhamente mecânico, como uma máquina travando, e eu puxei o cabelo dela pro lado e sussurrei no ouvido dela: – Suave é a noite. – Colei meus lábios amortecidos nos dela. O ácido só aumentava o meu amor; irreprimido, alado, solto, desfazendo as barreiras estreitas da minha mente.

– Quando é que vai parar? – Joanne continuava gemendo. – Não tô mais gostando disso. Quero que pare. Quando é que vai parar?

Um cara com um cabelo fantástico, tingido de preto e com pontas loiras reluzentes, espetado como uma anêmona exótica da Barreira de Corais, se aproximou da gente. Ele tava usando óculos com lentes espelhadas que refletiram um monstro Fiona-e-Mark. Tinha duas cabeças burlescas com línguas dependuradas, saindo de um só corpo. O carinha apontou pro píer que tinha se materializado de repente ao lado do convés já vazio. – Vocês não vão descer do barco, amigos?

Com a trepidação de piratas condenados a andar na prancha, cambaleamos com as pernas elásticas pelo portaló até a terra firme. – Porra... porra... que viagem foda, cara... – Bisto me disse com a voz engasgada.

– Boa mesmo – concordei.

– “Um montão de diversão”... – ronronou Fiona.

– Quando é que vai para-aaar...? – ganiu Joanne.

A resposta era, como tudo que é bom: antes do que deveria. Tava na hora de voltar; nossa doce tristeza ricocheteou pelos vagões das ferrovias europeias a caminho de Londres, embalada por canções. “Istanbul and Constantinople”, “The Northern Lights of Old Aberdeen”, “I Belong to Glasgow”.[12] (Interpretada com um empenho desinibido e surpreendente e uma boa dose de alma por Joanne, que explicou depois que não havia uma canção sobre Paisley.) Queria que tivesse alguma sobre o Leith, e até Edimburgo ia servir. Mas o melhor de tudo foi a versão alegre de Fiona pra “Blaydon Races”.

O desânimo nauseante enquanto o trem se aproximava de casa; Fiona nos meus braços, o bombardeio de lágrimas escorrendo pelo rosto dela na estação de Newcastle. Um beijo naquela testa pequena e oleosa. Um sentimento de total desespero quando ela desceu do trem e uma vontade de trazer ela pra casa comigo. Mas não pra um apê com o Sick Boy dentro, e nunca pra casa dos meus pais. Em vez disso, dizer, no momento em que o viado com a cara vermelha assoprou o apito: – Só faltam duas semanas pra universidade! Vou te ver em Newcastle no próximo fim de semana!

A gente disse “Eu te amo” um pro outro como dois peixinhos dourados pelo vidro enquanto o trem nos apartava com um ruído de fechamento das portas e depois me afastava irremediavelmente dela, nos separando em nossos respectivos países.

– Ah, o sonho do amor nascendo. – O lábio inferior de Joanne se retorceu com sua típica amargura passivo-agressiva quando já éramos um trio desfalcado rumando pro norte. Então eu e Joanne aterrissamos em Edimburgo e deixamos Bisto seguir sozinho pra Terra das Ovelhas. Tava quase dando um adeus cabisbaixo pra ela em Waverley, mas ela fez uma cara ansiosa e disse: – Não quero todo mundo dizendo que eu e o Paul tamo saindo!

Fui embora com um sorriso esquivo e minha mochila cheia de roupas imundas. Na verdade não... não aconteceu bem assim, mas isso é outra história.

É mesmo? Seja honesto, porra.

Seja...

Chega.

Em vez de andar até Montgomery Street, comprei uma NME na banca. Essa revista sempre me faz pensar, com um pouco de culpa, na Hazel. Então entrei num ônibus da linha 22 pra visitar a velha e largar uma roupa suja pra lavar. A gente não tinha uma lavadora na Monty Street, e ao contrário da sra. Curran, eu não tinha nenhuma vontade de levar no Bendix.

Quando cheguei em casa, eu tava tão submerso nos meus próprios pensamentos que levei um tempo pra perceber que minha mãe tava chorando. Ela sentou no sofá e afundou a cabeça entre as mãos. Os ombros magros dela se sacudiam com os soluços. Eu soube. Na mesma hora. Mas tinha que perguntar. – O que foi, mãe? O que aconteceu?

Olhei pro Billy, que tava sentado ao lado da mesa. Ele me lançou um olhar abatido. – O Pequeno Davie morreu no hospital. Na noite retrasada.

Senti um golpe violento e debilitante ao receber aquela notícia cabal. O mantra acabou ficou ecoando na minha mente. Um montão de diversão. Tem bastante pra todo mundo. O Snorky foi embora dos Banana Splits da minha mãe, o quietinho. Fleegle, o Huno, Billy Bingo e eu, o querido, querido Drooper, o leão bacana, mas socialmente inepto, continuamos aqui. Entrei num estado de paralisia emocional enquanto o tempo se arrastava. Uma dormência difusa começou a se instalar, como a anestesia de um dentista, se espalhando por todo o meu corpo. Então meu pai surgiu da cozinha: eu, minha mãe e o Billy olhamos todos ao mesmo tempo naquela direção, como se um professor tivesse nos flagrado fazendo uma coisa errada. O pai e a mãe olharam pra mim, depois pro Billy, depois pra mim de novo. E eu, em contrapartida, só fiquei ali balançando a cabeça pra eles, sem conseguir dizer nada pra eles. Nunca, nunca ser capaz de dizer nada pra eles.

11. “Por que Constantinopla levou a pior? / Isso é problema dos turcos”. (N. dos T.)

12. “Istambul e Constantinopla”, “Aurora Boreal na Velha Aberdeen”, “Eu Pertenço a Glasgow”. (N. dos T.)


Desgraça pouca é sacanagem

Ando ajudando minha mãe e minhas irmãs a se mudarem pra casa nova no South Side, que fica na Rankellior Street, e na ausência do ousado Marco Polo (e apesar de todos os seus defeitos consideráveis, ele é o único viado por aqui que funciona na mesma vibração que eu) dando o ar da graça na casa da Janey, esperando pela chance de dar um pouco de apoio a ela e aos filhos. E também evitando Marianne, cada vez mais grudenta. Ela me disse que uma amiga dela chamada April e um tal de Jim agora tavam “namorando firme”, me encarando com olhos carentes e cheios de esperança ao me transmitir essa informação completamente supérflua. Namorando firme. Uma frase escrota que certamente manda qualquer um correr pras colinas!

Então, num fim de tarde tedioso e morto deste suposto final de verão, combinei de levar Janey para se encontrar com meu tio Benny no Dockers’ Club. Encontro ela zonza como sempre, enchendo a cara com um copo vagabundo de vinho tinto barato. É quase como se desse jeito ela se sentisse mais perto do Coke. O rosto dela parece exausto debaixo de um corte em camadas que anda precisando dos retoques de um cabeleireiro atencioso, e os olhos dela tão apagados e distantes. Ela veste calça de abrigo cinza desbotada e uma camiseta amarela com números ao redor de um slogan ousado em letras emborrachadas: Ganhei no bingo em Caister Sands.

Janey tem todos os motivos pra estar arrasada. As autoridades se esmeraram em sua especialidade tradicional na Grã-Bretanha: foder com as castas inferiores. Capricharam pra caralho; a família queria ver o Dickson condenado por homicídio doloso, mas essa hipótese foi desconsiderada rapidinho e agora nem culposo ele vai levar! O relatório do legista registrou graves lesões cranianas causadas por uma queda como provável causa da morte. Eles desconsideraram as feridas no rosto do Coke, se concentrando ao invés disso no nível de embriaguez. Por causa disso, o Dickhead vai ser julgado por lesão corporal, cuja pena máxima é de dois anos (saindo em 12 meses), se ele for considerado culpado.

Tragando sem pressa o cigarro, Janey solta uma bomba em cima de mim, contando que Maria foi com Grant pra casa do irmão dela em Nottingham. – As criança não tão nada bem. Grant parece zonzo o tempo todo e Maria ficou maluca! Só fica falando em matar Dickson. Eu tinha que tirar ela daqui.

Aquela belezinha tava na mira de Simone e agora essa megera cagada estragou tudo...

– Dá pra entender o ponto de vista dela – digo, lamentando a ausência da Maria com tanta intensidade que é como se tivesse uma porra de uma ferida escancarada no peito.

– Cê vem comigo pro tribunal semana que vem? – implora Janey com olhos arregalados e ansiosos.

Protesto! A defesa está fazendo chantagem emocional com a testemunha!

Negado.

– Claro que vou.

A maior preocupação dela é perder a pensão de Coke. Marquei uma conversa com Benny, irmão mais velho e mais decente do meu pai, veterano do movimento sindical. Janey desaparece dentro do quarto e volta transformada; com traços realçados pela maquiagem e usando um vestido dourado e negro na altura do joelho, com algo de nylon preto por baixo, que acho que é meia-calça, mas vou fazer de conta que são meias de cinta-liga. Em termos de impacto, é bem devastador. Não acredito que tô ficando com tesão por uma pata velha! É como se a gente estivesse saindo pra um encontro enquanto avançamos pela bagunça arquitetônica de prédios vitorianos e construções pré-fabricadas dos anos 70 que formam o Docker’s Club do Leith, um prédio que sintetiza perfeitamente a região.

Enquanto meu pai exala uma safadeza repelente por todos os poros, Benny é o oposto. Parece 15 anos mais jovem e não bebe nada mais forte que água da torneira. Ele transformou ajudar os outros em missão de vida e leva esse papel muito a sério. – Meus pêsames, querida – diz ele. Então, diante de pints de Tennent’s Lager pra nós e H20 pra ele, Benny expõe a situação. Aparentemente, as regras da Autoridade Portuária do Forth estipulam que quaisquer pensões pagas são reavaliadas quando do falecimento da parte pertinente, em vez de serem automaticamente repassadas ao parente mais próximo ou aos dependentes. Isso tinha sido uma mudança recente; todos os cornos tão pulando no trem thatcherista de cortes de gastos, especialmente quando o objetivo é sacanear os proletários. Isso significa que a Janey ainda vai receber alguma coisa, mas o valor será reduzido a quase nada.

Ela absorve o golpe dessa última derrota e agradece educadamente a um Benny melancólico. Levo ela de volta ao apartamento e logo voltamos a beber, ela no sofá, onde tira os sapatos, e eu na poltrona em frente. Quando o vinho vagabundo chegou ao fim, começamos a beber uísque Grouse puro. Uma atmosfera pesada e sufocante toma conta da sala enquanto a escuridão cai ao nosso redor.

O silêncio da Janey é meio perturbador, mas tô curtindo a embriaguez lhana do uísque e a queimação que ele deixa na minha garganta e no meu peito. – Não conte que ele se foi – sugiro a ela, basicamente para introduzir algum som naquele vácuo sinistro. – Meu conselho é esse, eles não vão ficar sabendo se ninguém contar.

– Mas isso é fraude – responde ela, inquieta de repente, os olhos se arregalando de leve. Estica a mão e acende um pequeno abajur de mesa.

– O que é fraude, afinal? – pergunto, empolgado com a animação dela no interior do casulo de luz marrom-dourada, enquanto vou esquentando o assunto. – Vamos esquecer o controle estatal e falar de moralidade aqui, porra. Olha o que viados como o Dickson conseguem fazer sem que nada aconteça com eles. Isso sim é fraude, caralho. Assassinou um homem e ainda tá ali servindo pints como se nada tivesse acontecido!

– Tem razão. Eles que se fodam – responde ela com ar desafiador, levando o copo até a boca e tomando um golinho. – E qual a pior coisa que podem fazer comigo, no fim das conta? – ela volta a se lamentar. – Não tô dizendo que o Colin era santo, Simon, não tô mesmo. Ele bem que podia ter sido um marido melhor, um pai melhor... – E cruza as pernas, alisando o vestido que se colou ao nylon por eletricidade estática.

– Ele era bem melhor que o meu velho.

Essa notícia claramente inédita parece deixar ela surpresa. – Mas seu pai sempre pareceu um homem tão bom.

– Ah, claro – escarneço –, com você ele seria ótimo. Com mulheres bonitas ele sempre era muito, muito bom – explico, enquanto vejo ela corar. – Mas não dá pra dizer que ele era bom com a própria família.

– Como assim?

Lembrando que desgraça pouca é sacanagem, olho pra ela com uma expressão de sofrimento. – Quando eu era pirralho, ele me levava pra sair e me deixava dentro do carro com uma lata de coca e salgadinhos, e daí saía pra se encontrar com as mulheres dele. Nosso segredinho, ele costumava dizer. Logo que eu entendi o que acontecia ele parou de sair comigo. Na verdade, perdeu todo o interesse em mim.

– Mas não pode... quer dizer, ele não ia fazer isso com um garotinho...

– Tá certo. Cê não sabe nem a metade. Vou contar uma historinha que resume tudo sobre ele e a nossa relação. Meu pai é um babaca tão grande que uma vez levou de volta pra loja um relógio que eu tinha comprado pra dar de presente pra ele no Dia dos Pais. Era um relógio vagabundo, claro, mas isso não importa. Valia a intenção. Mas não, o corno voltou pra Samuel’s no St. James’s Centre com a nota fiscal que eu tinha guardado por causa da garantia, se alguma coisa desse errado.

– Nunca imaginei que ele podia fazer uma coisa dessas...

– Pois é, o viado foi pra lá e se recusou até a aceitar alguma coisa em troca, ficou insistindo que queria o dinheiro – explico, satisfeito com a reação confusa mas hostil de Janey. Ela encosta o copo de uísque na boca e coça o joelho, erguendo o vestido num dos lados e mostrando uma coxa que permanece agradavelmente esbelta. Sinto aquela pontada súbita e familiar que anuncia o começo de uma ereção enquanto tomo outro gole de scotch. – E isso não é nem a metade da história. Ficou se gabando disso pra mim – aí me inclino pra frente, enterrando o polegar no peito –, e eu tinha 15 anos na época, 15, porra – grito com olhos traumatizados, encarando ela diretamente – ... ficou se gabando que depois disso foi até a Danube Street atrás de uma puta bonita e depois disso se mandou pra Shore pra comer um curry e tomar umas cervejas. Contou que no fim das contas ainda sobrou pra uma chupetinha de uma puta infecta mais tarde. “Sempre fico com fome depois de foder e com tesão depois de comer”, ele me disse rindo e dando tapinhas na barriga mole. O viado tava tentando deixar a gente mais íntimo – sacudo a cabeça enquanto me lembro. – Penso na mulher santa com quem ele se casou e no que qualquer um de nós fez pra merecer ele!

– Mas cê não tem nada a ver com ele – diz Janey com ar de esperança enquanto cruza as pernas de novo e cada vez mais enxergo a filha nela, me fazendo pensar: Caralho, como foi que o Coke conseguiu? – Cê é mais parecido com a sua mãe. É uma mulher tão boa. Que nem suas irmã.

– E agradeço a Deus por cada dia da minha vida – digo, dando uma olhada no relógio com moldura de carvalho no aparador. – Tá bom, eu preciso mesmo ir embora.

Isso parece deixar a Janey em pânico, porque ela se abraça e dá uma olhada no apartamento que mais parece uma tumba gelada e vazia. Os olhos dela ficam maiores e a boca se crispa suplicante. – Não vai – ela quase sussurra.

– Preciso ir – me pego insistindo com o mesmo tom de voz.

– Não posso ficar sozinha, Simon. Não agora.

Ergo as sobrancelhas, me levanto com esforço da poltrona e chego mais perto da Janey. Olhando bem no fundo daqueles olhos atormentados e pego a mão dela, que se levanta e logo tá entrando comigo no quarto. Paro na frente da cama e sussurro: – Tem certeza que tudo bem?

– Sim – responde ela em voz baixa, me dando um beijo com hálito de destilado e tabaco. Aí se afasta de mim, mas só pra pedir com uma voz rouca: – Tira.

Acompanho o zíper cedendo enquanto puxo e divido ao meio o vestido dourado e negro. Janey deixa que ele caia no chão, se afasta e senta na cama, arqueando o corpo pra tirar a meia-calça e a calcinha, me dando um vislumbre de uma floresta de pentelhos antes de se meter debaixo dos lençóis.

Tiro a roupa e vou pra cama com ela. Deslizo sem esforço nos seus braços. O corpo dela é quente e bem mais firme do que eu imaginava pra uma mulher que deve ter no mínimo 35 anos. Ela tá tremendo e batendo os dentes, mas tô duro pra cacete e sei que vou meter nela a noite toda e que Coke e arrependimentos serão deixados de lado até a manhã chegar.


Pira funerária

O espelho de pub roubado reflete a cozinha atrás da gente em toda a sua imundície. Eu adoraria quebrar um copo na cara do Cavaleiro da McEwan’s Lager que tá colado no vidro. Dá pra entender por que ele fica brindando e sorrindo; faz as pessoas gastarem grana pra beber aquele mijo insosso e venenoso. Mais um desses cuzões de gravatinha preta: arranco ela fora como já fiz umas dez vezes. – Lixo!

Sick Boy chega junto e presta auxílio. Ele consegue arrancar a gravata de primeira. – Pronto – diz em tom condescendente, fazendo eu me sentir um panaca sem coordenação motora. – Cê devia tomar um café da manhã.

Comer alguma coisa nessa lixeira? Nem morto. – Vou comer alguma coisa na casa da minha mãe. Não tem nada aqui.

– Fiz uma lasanha. – Ele aponta pro forno.

– Tá uma merda, provei um pouco ontem à noite. – E tinha mesmo provado, depois que um traguinho rápido com uns caras da oficina do Gillsland se transformou numa bebedeira sem fim.

Sick Boy bota as mãos no quadril. – É uma receita da minha mãe, seu viado de merda – ele dá um pseudogrito, aliviando um pouco o meu lado.

– Já provei a lasanha da sua mãe, e aquela merda ali dentro – indico o forno com a cabeça – não tem nada a ver. Cê obviamente não seguiu a receita dela; pra começo de conversa, no recheio da lasanha não vai pedaços de atum.

– Recorri às provisões disponíveis. Primeiro cê vai na cooperativa de vez em quando e depois cê começa a criticar os dotes culinários dos outros.

Mas que fiadaputa folgado. Duas palavras tão grudadas no meu melão: aluguel e dinheiro. Mas nem fudendo que eu vou ter saco de discutir com esse viado agora. – Tá bom, tô largando fora. – Pego a jaqueta dependurada num prego atrás da porta.

– OK, vejo você no crematório às duas da tarde – diz ele, e então, sem aviso, dá um passo adiante e me abraça. – Cê tá bem?

– Claro que tô, otário – digo.

Ele se afasta um pouco, mas mantém as mãos nos meus ombros. – Uma hora vai bater, sabe, o luto – diz ele, deixando cair uma das mãos. – Mas pode fazer o papel de escocês estoico pelo tempo que cê quiser. Só dou um aviso: o melhor estilo de guardar luto é o dos italianos. Bota pra fora. Sente aquilo queimando por dentro. Deixa sair. – Ele espalma a outra mão e dá uns tapinhas afetivos de leve na minha cara.

– Tá certo – digo, e então saio pela porta.

Confiro a hora e aperto o passo na direção da Walk. O sol tá brincando na rua até os lados de Pilrig, onde aparecem umas nuvens grandes e sujas pra expulsar ele à força do enquadramento. Chego na Junction Street, escapando por pouco de uma chuva de verão que despenca.

A mãe e o pai tão parecendo dois zumbis. Literalmente. Tão de olho vidrado, se batendo nas coisas. Não consigo acreditar que eles ainda tão em estado de choque por causa de alguém cuja morte tava anunciada desde o dia que nasceu, e por todos os especialistas médicos do Reino Unido. Será que eles não conseguiam entender a expressão “curta expectativa de vida”? Será que acreditavam que, batendo nas costas do Pequeno Davie pra tirar o fluido, iam preservar ele pra sempre?

Agora eles não precisam mais enfrentar aquela tensão de ficar escutando ele respirar, o duf-duf-duf e o caf-caf-caf das sessões de drenagem postural que faziam o Pequeno Davie desfalecer exausto e dormir, enquando o pulmão rangia, se enchendo de ar. Enquanto isso a gente aguardava, em constante estado de ansiedade, a hora em que ia começar tudo de novo. Tudo isso terminou. Por que eles não sentem nenhum tipo de alívio?

Acabou pra sempre.

Vou embora deixando eles com os punhos espremidos em cima do balcão da cozinha entulhada e sombria na qual parecem ter ficado presos pra sempre. A luz da sala revela uma atmosfera densa de fumaça de cigarro. Billy e a mina dele tão fumando um atrás do outro; sem o Pequeno Davie, não precisa mais ficar sentado do lado da janela do quarto, soprando a fumaça. Agora todo mundo pode estragar o pulmão. Os meus olhos ardem e lacrimejam. Demora uns segundos até que eles consigam enxergar o Billy me dirigindo aquele olhar de “vai se fuder, aberração” dele, que me faz pensar em cada passo que eu dou. Tenho a impressão de que a gente regrediu mais ou menos uma década.

Você tem vantagem sobre mim, Garoto Tabaco.

A Sharon é gostosa, no sentido de que essas minas meio largadas que trabalham em butique barata de cosmético podem ser gostosas. Tem peito, bunda, cabelo loiro cortado em cunha e uma cintura fina que aperta uns botões certos nos homens, tudo menos as pernas, que são meio curtas e grossas. Uma esperteza investigativa nos olhos permite especular que pode valer a pena bater um papo com ela longe da presença estupidificante do Billy. Ela tá matraqueando a respeito de uma mina chamada Elspeth, e me dá vontade de ficar escutando porque é provavelmente a irmã bonitinha do Begbie (tem a sorte de não ser nem um pouco parecida com ele), mas fumaça e as vibrações hostis do Billy exercem um efeito sufocante, sugando o oxigênio valioso. Uma citação daquele carinha, o Schopenhauer, vem ao caso: quase todo o nosso sofrimento brota da nossa relação com as outras pessoas.

Você não reparou, Menino Tabaco, na efeito prejudicial da sua fumaça maligna, por mais disfarçada que fosse, nos pulmões debilitados do seu irmão caçula?

Pego a edição da NME que deixei na mesinha aquele dia. O sorriso irônico de Mark E me faz lembrar da fita do The Fall que tá no meu quarto, gravada pra Hazel, que vai aparecer com certeza no enterro. Decido levar ela comigo, e tô prestes a bater em retirada praquele buraco fedorento de música e masturbação quando o telefone dispara aquela campainha estridente e todo mundo sente os nervos tensos como cordas de piano arrebentando. A campainha é insistente, mas ninguém move um dedo.

Mein bruder Wilhelm, mestre do olhar incriminador: – Algum viado vai atender a porra do telefone?

Entendo seu dilema, Garoto Tabaco. Atender o telefone significaria falar no fone, o que privaria você de alguns segundos preciosos de inalação da nicotina da qual você tão desesperadamente precisa!

– Tenho certeza de que vai acontecer – respondo, abrindo um sorrisinho sarcástico pra Sharon. – Quer dizer, algum dia e tal. – E sou agraciado com o mais tênue dos sorrisos.

– Nem começa a bancar o fodão, porra – ameaça Billy. – Não hoje!

O babaca tá bem nervosinho, e acho que ele tá lembrando daquela vez que ele me pegou batendo uma pro Pequeno Davie. Não foi mole explicar pra todos eles que só fiz aquilo pra ajudar o pobre coitado; eu não tirei nenhum prazer do ato. Cê age com a mais pura das motivações, mas alguns filhos da puta sempre vão distorcer tudo em benefício da sua própria visão doentia. Meu entendo esse ânimo do Bilbo agora, e pra ser sincero me dá um pouco de medo. – Não vai ser pra mim – protesto.

A gente escuta alguém atendendo o telefone, minha mãe diz algumas palavras e depois se junta a nós, engrossando ainda mais a fumaça com seus B&H. Mesmo que a gente ficasse presa aqui nessa salinha apertada, ia dar pra brincar de esconde-esconde. – Mark, é pra você.

Billy estreita os olhos: irritação e vingança ao mesmo tempo. A segunda vence e, depois de se encarar por um segundo, a gente começa a rir: um riso abafado porém alto, aliviando a tensão. Não gosto desse viado topetudo, nunca gostei; mas pra minha extrema incompreensão às vezes me vejo obrigado a lembrar que amo ele, de um certo jeito. Todavia, aqui é Chez Renton; assim que um viado faz as pazes com outro, um terceiro se sente alienado. – Qual é a graça, hein, merda? – grita a mãe. – Não achei nada engraçado!

Esse linguajar vai te levar pro inferno, Mater. Algum pedófilo de bata vai ganhar mais um punhado de ave-marias mais tarde!

Ergo as palmas das mãos, em postura de rendição. – Vou atender o telefone – digo, e me dirijo ao corredor eternamente frio onde o aparelho fica preso na parede. – Alô?

– Mark, é você?

– Sim. Fi?

– Como cê tá, gatinho?

– Bem, até; mas melhorou muito agora que ouvi sua voz.

– Escuta, Mark. Tô na estação de Waverley. Quero ir com você no enterro do seu irmão.

Primeira emoção: êxtase. Segunda: desconforto diante da pletora de possíveis constrangimentos sociais que se anunciam. Hazel e a fita do Mark E. Pois bem. – Ótimo, ahn... obrigado, vai ser muito bom – digo remexendo a gaveta da estante frágil de madeira que fica debaixo do telefone. Encontro o estojo vazio que minha mãe usa pra guardar os velhos óculos de leitura. Vai servir pra guardar os apetrechos que o Sick Boy me arranjou. Enfio ele no bolso da jaqueta.

– Tô pegando um táxi agora, gatinho. Onde te encontro?

– Pede pro motorista te levar pra um pub do Leith chamado Tommy Younger’s.

– Tá bem. Te vejo em dez minutos.

Minha mãe ficou monitorando, obviamente, e aparece no corredor em posição de pistoleira. O corpo fino dela estremece e ela remexe o cigarro na mão. – Cê não vai encontrar ninguém no pub! O carro já foi contratado! A gente vai sair daqui de casa! A gente vai em família!

– Vou encontrar a minha, hum, minha namorada da universidade.

– Namorada? – Ela engole em seco, bem na hora que o pai aparece por trás dela. – Cê nunca me disse nada sobre namorada nenhuma – acusa ela, e então aperta os olhos. – Mas cê nunca ia dizer mesmo, porque tudo tem que ser segredo!

– Cathy... – meu pai tenta acalmá-la botando a mão no ombro.

Ela dá um giro violento com a cabeça e engole ele com os olhos. – Mas é assim, Davie! Lembra daquela menina que a gente escutou chorando na escada? Ele não queria deixar ela entrar em casa!

Aquilo foi um pesadelo... uma mina carente e feia pra caralho que me seguiu até em casa depois que eu comi ela no pátio da ferrovia... mandaram ela entrar e fizeram um escarcéu, insistindo pra que eu sentasse e tomasse café com ela na cozinha, enquanto eu só queria morrer morrer morrer... ou que eles morressem morressem morressem morressem, os desgraçados...

Sinto meu pescoço e minhas orelhas pegarem fogo só de lembrar, e nesse momento Billy também aparece, todo interessado de repente. – Quem era?

– Não é da sua conta – diz o meu pai, e eu fico calado enquanto Billy abre um sorrisão cínico como um golpe de machado na cara.

– Traz ela pra cá – suplica a mãe, limpando um pouco de cinza de cigarro da manga do cardigã amarelado como icterícia. – Vai sobrar lugar nos carros.

– Não, hum, eu encontro vocês lá. Pode ser meio pesado demais pra ela, participar do cortejo, porque ela ainda não conhece ninguém e tal – explico, bem no momento em que Sharon aparece junto com o Billy, erguendo a sobrancelha delineada.

– Vai ser pesado pra você, é isso que cê quer dizer! – ataca minha mãe. – Ele ainda tem vergonha da gente, da própria família dele! – Ela olha pros outros em busca de apoio. – Bom, agora ele não tá mais aqui, ele não pode mais te causar vergonha... aquela alma que nunca machucou uma mosca... aquele anjinho... e ela cai no choro de novo.

– Cathy... – diz meu velho pra ela, ainda em modo conciliador. – Deixa ele ir.

– Não – diz ela, de novo com os olhos assustadoramente protuberantes, como os de um peixe. – Como é que ele não vai trazer a menina aqui? Essa menina que ninguém conhece! Ele nem mencionou a existência dela! Todo cheio de segredos, como sempre. Ele tem vergonha! – ela me censura. – Tem vergonha da própria família!

Billy Boy sopra fumaça como um dragão e me lança um olhar feculento. – O sentimento é mútuo, se cê quer saber.

Sua capacidade de inalar fumaça é impressionante, Garoto Tabaco. Bem mais que seus comentários esquivos.

A mãe olha pro teto. – Ai, meu pai... o que foi que eu fiz...?

– Não começa com isso, não hoje – o pai ao mesmo tempo pede e ameaça. – Vamos logo, todos. Vamos sossegar os ânimos. Mostrem mais respeito pelo nosso pequeno. Mark, vai atrás dessa garota... – ele segura a palavra na boca como se fosse um naco de comida exótica que ainda não decidiu se quer engolir – ...namorada, mas não chega atrasado no cemitério. E você vai ficar no banco da frente com ela, junto comigo, a sua mãe, o seu irmão e a Sharon. Entendeu?

Toda essa porra de drama e choramingo por causa da merda de lugar onde um viado vai sentar...

Dou um leve aceno de cabeça, e na mesma hora já sei que essa resposta será minimalista demais pra ele.

– Eu disse entendeu?

Suspeita confirmada. – Sim, não te preocupa – digo pra ele, e então percorro o corredor, saindo daquele miasma arcaico e fedorento, ao encontro do alívio da escadaria e da rua, e vou até a Junction Strasse. Um táxi vago vem roncando pela rua, eu faço sinal e a gente sai rasgando pela Walk em direção ao Tommy Younger’s.

Dentro da grande caverna do pub, sou recebido com acenos de cabeça por Willie Farrell e Kenny Thomson, um par de caras mais velhos que eu mal conheço. É assustadora a maneira como eles representam o típico cara do Leith; cê pula de bar em bar até resolver ficar num deles, e então simplesmente envelhece ali. Cê vai saber onde achar esses caras daqui a dez ou vinte anos. Ainda bem que a Fiona chega só uns minutinhos depois de mim, e a aparição dela me carrega pro paraíso. – Mark... como é bom te ver, amado – diz ela, e então acaricia os dentes de cima perolados com a língua. Caralho, ela é encantadora.

Estação Newcastle... Waverley... que se foda o resto...

Nos abraçamos, eu não olho pro Willie e o Kenny, e a Fiona credita minha frieza à dor do luto. A gente senta num cantinho mais sossegado com dois copos de lager. Conto pra ela como a situação tá complicada pra minha família. Ela diz que vai ser um período difícil pra todo mundo. Concordo. O que eu decido fazer é simplesmente esquecer toda a merda ruim, a imbecilidade, a fraqueza. Fingir que nada dessa porra aconteceu. Porque agora somos eu e ela, vai ser assim, e o resto não passa de um monte de lixo irrelevante.

A gente termina nossos pints e eu peço mais um. Agora é permitido de novo. Meus sentidos se esbaldam nela; toques, olhares, beijos, abraços, mas quando tento falar sinto a língua presa e saem só clichês. – Tudo bem, Mark – diz ela, e quando ela me abraça eu sinto uma bola sufocante de refluxo estomacal subindo pela garganta, mas consigo segurar. Sinto meu gogó se remexendo enquanto envolvo o rosto dela com as mãos frias.

– É tão bom pra caralho te ver de novo.

– Ah, Sorvete de Baunilha – diz ela quando nos levantamos, e fico meio paranoico imaginando se um desses viados no balcão escutou o apelido carinhoso que ela me deu (porque pareço um sorvete de baunilha com cobertura de framboesa), até sairmos pra Leith Walk. Chamo o primeiro táxi que se aproxima e seguimos caminho até o crematório.

As pessoas tão entrando na capela, a gente não tá atrasado, só chegamos um pouco depois do carro fúnebre, então eles abrem caminho pra gente. Tem uma gente sinistra que adora essa parte do ritual, mas a maioria fica se remexendo desconfortavelmente em seus trajes pretos que não servem muito bem, aguardando com ansiedade o trago que se avizinha. Minha mãe e meu pai ficam grotescamente aliviados em me ver, e nos dirigimos aos nossos assentos reservados na frente dos parentes de Glasgow e Midlothian, bem como de outros diversos amigos e vizinhos. Um retardado que vive babando não faz muitos amiguinhos sencientes, mas ninguém gosta de ver um jovem bater as botas, e muita gente compareceu. Enxergo meus parceros: Begbie, Matty, Spud, Sick Boy, Tommy, Keezbo, Segundo Lugar, Sully, Gav, Dawsy, Stevie, Mony, Moysie, Saybo e Nelly, e também o Davie Mitchell. Young Bobby e Les lá da oficina do Gillsland. Nada do Swanney. Vejo a Hazel, ela tá junto com a Alison, a Lesley, a Nicky Hanlon e a Julie Mathieson, outra velha amiga com quem eu trocava fitas, e que teve um filho com um carinha e agora tá parecendo dois olhos espetados num graveto. Tem avós, tios e tias e também uns parentes mais velhos dos quais não consigo lembrar muito bem, todos assolados por uma senilidade amorfa e deprimente. Às vezes um par de olhos brilhantes no meio de uma cabeça murcha ou inchada e coberta de cabelos brancos oferece uma pista da identidade pregressa de uma pessoa real; mas Schopenhauer tinha razão: o sentido da vida só pode ser a desilusão; uma queda inexorável rumo a tudo que tá totalmente fudido.

A cerimônia é a mesma linha de montagem cretina de sempre; um salafrário que gosta de enfiar Deus na goela dos outros fala sem muita convicção alguma merda sobre os desígnios misteriosos, e flagro ele olhando pro relógio duas vezes. Quando me dou conta, meus olhos tão grudados no caixão fechado; mesmo com a atenção dos médicos e com o esforço dedicado da mãe e do pai, o Pequeno Davie teve convulsões tão fortes que precisaram quebrar os braços e a coluna dele em alguns pontos pra ficar numa posição que coubesse ali dentro. Não é de espantar que o velho tenha descartado a possibilidade da cerimônia papista com caixão aberto que a velha tanto queria.

Mas acontecem coisas estranhas. Saindo da capela, andando na direção dos carros debaixo da chuva fina, depois fazer contato com a carne fria e ossuda dos enlutados, meu pai me dá um beijo no rosto. É a primeira vez que ele faz isso desde que eu saí da escola primária. A fragrância da loção pós-barba e o toque do queixo grande e áspero na minha pele têm um efeito infantilizante. Depois, quando a gente entra no carro pra pegar a Ferry Road até a recepção no Ken Buchanan Hotel, minha mãe esmaga a minha mão e diz, cega por trás da máscara de lágrimas: – Cê é meu bebezinho agora. Eu boto isso na conta da dor do luto, mas uma parte de mim pensa: Essa mulher é completamente louca, ao mesmo tempo que o ressentimento e a ternura travam uma batalha em mim.

No hotel, quanto eu tô bebendo um uísque e comendo um enroladinho de salsicha corrosivo, Hazel se aproxima de mim e Fiona. Rola alguma coisa entre as duas, mas dessa vez eu tô me sentindo esvaziado demais pra ficar constrangido. – Oi, Hazel. – Dou um beijo pudico no rosto dela. – Obrigado por ter vindo. Ahn, essa é a Fiona. – E em seguida acrescento com uma formalidade estúpida e forçada: – Fiona Conyers, Hazel McLeod.

Hazel aperta a mão de Fiona. – Sou amiga do Mark – diz ela. O que rola entre as duas, seja o que for, é nobre e quase comovente, e por um instante algo se solta dentro de mim. Tomo um gole grande do uísque abrasivo pra conter a emoção.

Fiona disse o que as pessoas sempre dizem nessas circunstâncias: é um prazer te conhecer, mas uma pena que tenha sido nessas circunstâncias. Circunstâncias. Tô com a fita do The Fall da Hazel no bolso, uma coletânea das minhas faixas favoritas de Slates, Hex Enduction Hour e Room to Live, e, sim, eu tava planejando entregar pra ela. Mas não parece correto fazer isso na frente da Fiona. Schopenhauer disse que as relações masculinas são definidas por uma indiferença natural, mas as femininas são caracterizadas pelo antagonismo. Por outro lado, ele era um viado cínico pra caralho.

As fitas da Hazel.

Eu e a Hazel somos amigos da escola. Desde o segundo ano. A gente escutava música junto; Velvet, Bowie, T. Rex, Roxy, Iggy and the Stooges, Pistols, Clash, Stranglers, Jam, Bunnymen, Joy Division, Gang of Four, Simple Minds, Marvin Gaye, Sister Sledge, Wire, Virgin Prunes, Smokey Robinson, Aretha Franklin, Dusty Springfield e não Beatles, Stones, Slade, Springsteen, U2, OMD, Flock of Seagulls, Hall and Oats, juntos, nos nossos respectivos quartos. Eu gostava dela, mas era a fim de outras garotas; as mais putinhas, acho. Garotas que riam de um jeito alto e estridente e diziam “cai fora, cara” ou “não enche o saco” que cê fazia uma abordagem. Que te sacavam com um olhar calculado e diziam “talvez” quando cê dizia “eu e você, vamos?”, como se cê tivesse chamando elas pra brigar. Mas embora fosse a coisa óbvia a se fazer, eu nunca quis simplesmente enfiar o pau numa mina. Eu tava sempre procurando uma coisa mais complicada; drama, talvez, ou mesmo amor, vai saber.

Meus parceros se recusavam a acreditar que eu não tava trepando com a Hazel. Ela é bonita, de um jeito meio depressivo. Uma gótica em espírito, mas uma gótica vestida em roupas típicas de garota de discoteca; aqueles tons pastéis dissonantes e claros demais da Top Shop durante os dias de semana, roupinhas da Etam no fim de semana. Aí uma vez eu tava mostrando pra ela um álbum do Stranglers, Black and White, e a gente começou a se beijar. Acho que fui eu que comecei, talvez eu tivesse incomodado com o que os outros viados tavam pensando ou pode ser que minha mente tivesse sacaneando comigo, como acontece muito. Talvez as letras dos Stranglers tenham me dado uma sensação de merecimento. Não sei quem começou, só sei que parou assim que tentei avançar mais um pouco. Ela teve o que só posso descrever como um ataque de pânico, e a ferocidade daquilo me perturbou. Ela começou a ter umas convulsões, não conseguiu respirar por um tempo e depois começou a ficar vermelha. Era como um daqueles ataques de asma que Spud costumava ter ou o Pequeno Davie tendo um ataque...

Drenagem postural... duf-duf-duf, como ficar dando socos desgastantes nos sacos de areia do ginásio Leith Victoria.

Com o passar daqueles meses adolescentes, fiz mais algumas tentativas e, o que é mais estranho, sempre instigado por ela. Mas a mesma coisa acontecia. Ela simplesmente congelava e depois tinha uma reação violenta; era como se ela tivesse uma alergia física ao sexo. Não me dava nem uma chupada, embora às vezes me batesse uma punheta, focada no meu pau como uma cientista conduzindo um experimento. Uma vez, quando gozei, a porra entrou no ouvido dela e pegou no cabelo e na bochecha. Quando tocou naquela geleca filamentosa, ela disse: – Isso é horrível, que nojeira... – E começou a ter mais espasmos convulsivos, até que foi no banheiro lavar o rosto. Quando voltou, tava com o cabelo molhado, ela tinha se dado ao trabalho de lavar. Lembro de ter desejado ela com força naquele momento, tava louco pra comer ela, só de ver ela ali parada com o cabelo molhado. E eu tinha acabado de me aliviar.

Mas não tinha como.

Quando a gente finalmente transou, foi tenebroso, mas essa é uma outra história. Hoje em dia a gente fica milênios sem se ver, e então acaba se reencontrando, sempre sob o pretexto de ir num show ou escutar algum som novo, e pra fazer sexo ruim. Sexo horrível. A gente pensa “nunca mais”, até que um dos dois, em geral ela, pega o telefone.

Stevie Hutchison e a mina dele tão conversando com os meus pais. Ele vem até mim com aqueles passos meio gingados, deslocando o peso de uma perna pra outra, e bota o braço ao redor do meu ombro. – Como cê tá, mano?

– Tô bem, Hutchy, o cara tem que ir em frente, né? E você?

– Precisando duma porra dum pico – diz ele com os olhos queimando. – Acertaram as contas comigo no Ferranti’s. Me inscrevi no Marconi, em Essex. Não tem porra nenhuma pra fazer aqui. De qualquer forma, curto a ideia de ver qualé a de Londres. Me envolver com uma banda por lá, talvez. Ele dá uma olhada na direção de uma mina, Chip Sandra, que tá batendo um papo com o Keezbo. Ela é uma ordinária, não tá à altura do Stevie nem fudendo, e eu meio que culpo ela pelo fim da nossa antiga banda, a Shaved Nun. – Mas ela não tá a fim de ir pra lá – acrescenta ele com um sorriso enrugado. – Acho que tá na hora do pé na bunda. – Ele me dá uma piscadinha.

Retribuo o sorriso. Já tava mais do que na hora e tal.

– Tão falando do quê, Stephen? – diz Chip Sandra, sentindo o clima.

– De música, cê conhece a gente. – Stevie pisca de novo pra mim e se vira pra ela. – Vamos ali pegar uma cerva – diz ele, e em seguida a conduz até o bar e faz um sinal escroto nas costas dela, pra eu ver.

Chip Sandra ganhou esse apelido porque ficou comendo um saquinho de batata chips enquanto o Matty comia ela em pé no Goods Yard. Faz milênios que isso aconteceu. Pegou mal pro Matty, essa coisa da mina ficar comendo batata chips escondido dele, ao mesmo tempo que ele tava metendo nela contra a parede. Ficou pior ainda quando a turma toda passou e viu. Só pra azucrinar, pedi uma batata pra Sandra e ela me ofereceu o saquinho, e eu peguei uma. O Matty ficou gritando: – Vai se fudê, Renton! – eu não sabia que todos eles, Begbie, Nelly, Saybo, Dawsy, Gav e uns outros, tinham feito uma fila pra pegar batata enquanto o coitado do Matty continuava bombando como se não houvesse amanhã, com a bunda branca se projetando na sombra. Lembro que quando a gente voltou pra Walk o Saybo me disse, lambendo o molho de carne dos beiços: – Nunca valeu tanto a pena fazer fila pra essa vaca, hein, viado!

O Franco veio com aquela tal de June Chisholm que ele tá comendo, e ela tá conversando com a Hazel. O Beggars me crava os ossinhos da mão pesada nas costelas; um gesto de intenção afetuosa que vai deixar um roxo amanhã. – Toma essa merda. – Ele me entrega uma dose grande de uísque. – Cê tá aguentando firme, parcero?

– Sim – respondo, dando um gole no uísque.

Meu velho me lança um olhar como se quisesse dizer, “Péssima companhia, esses dois aí, hein, garoto”. A censura vem temperada com um pouco de alívio, pois dá pra ver que, aos olhos deles, acabei de ser promovido de possível boiola a bandido deflorador.

Franco olha pra Fiona e depois pra mim. – Me apresenta ela, seu viado mal-educado.

– Fiona, esse é o meu parcero Frank Begbie. O nosso Franco.

Ou Beggars. Ou Beggar Boy. Ou Generalissimo. Ou Valentão Psicótico Filho da Puta. Eu era o saco de ossos que era desmontado pelos socos dele no ginásio de Leith Vic. Duf-duf-duf...

– Olá, Frank. – Ela se inclina pra dar um aperto de mão, mas recebe um beijinho sofisticado na bochecha. Vez que outra esse viado aparece com uma surpresa bem-vinda (não violenta). Mandou bem, Beggars. – Mark fala muito de você.

O brilho da loucura paranoide aparece no olhar do Begbie. – Ah é, quer dizer que ele fala agora? – Ele me encara direto na alma ou no que sobrou dela.

– Em termos muito elogiosos, devo acrescentar – diz Fiona com uma leveza graciosa.

O rosto do Begbie se suaviza e humaniza com um sorriso brando. Caralho, ela conseguiu encantar esse viado. Ele bota o braço no meu ombro. – Mas então, a gente é melhor amigo um do outro, né Mark? Conheço ele desde a porra do primário. Cinco anos de idade.

Sorrio com força, dou uma boa golada no uísque e sinto ele queimando. – Um dos melhores, esse homem. – E, no calor do momento, acredito totalmente nisso. Tomando uma certa liberdade, dou um soco amistoso, mas relativamente forte, no peito dele.

O Begbie nem repara; tá muito à vontade e se vira particularmente bem em enterros, como tende a ser o caso de muitos psicopatas. Imagino que quando alguém dedica a vida a provocar a morte e o desespero, estar numa situação dessas deve trazer um sentimento de resultado; o trabalho já foi feito e cê pode se acomodar e relaxar. Ele me aperta com mais força e prensa o rosto contra o meu com afeto de psicopata, violentando meus sentidos com sua essência ardente, fumosa e sombria. – Cê nunca me procura pra gente tomar uma porra duma cerva, só nós dois, como era antigamente, hein ô filho da puta.

Porque cê sempre acaba espancando algum viado. – Eu passo a maior parte do tempo em Aberdeen, Frank.

– Mas não o tempo inteiro, caralho. Aposto que é porque a gente sempre acaba espancando algum viado.

Que cê quer dizer com “a gente”, seu pirado?

– Não... a gente sempre, tipo, dá umas boas risadas quando sai junto.

– É isso mesmo que a gente faz, porra – diz ele pra Fiona, e então faz um gesto com o braço abrangendo todo o recinto, ao mesmo tempo que me segura com ainda mais força no outro braço. – Nenhum outro viado entende o nosso senso de humor, né Rents? Cê não consegue explicar essa porra pra maioria desses viado, com o perdão da palavra – ele se desculpa, e em seguida inicia realmente uma tentativa de elucidar pra ela o tal estilo inimitável de absurdidade jocosa que eu e ele compartilhamos.

A Hazel já ouviu tudo isso antes e vem falar comigo. – Te gravei uma fita daquele disco ao vivo do Joy Division.

– Still?

– É.

– Legal, valeu. Me disseram que tem uma versão ótima de “Sister Ray” – digo com um sorriso agradecido. Tenho o disco desde que saiu, mas não vou dizer pra ela. Quando o assunto é fitas caseiras, apesar do Sick Boy dizer que é um ato de agressividade disfarçada e de controle mental egoísta, o que importa é a gentileza da compilação. Consigo imaginar, escrito na lombada do cartão da fita cassete, com a letra de mão bonita da Hazel:

Joy Division: Still

A gente fica constrangido por um momento, e então eu mato o uísque e a Hazel pisca os olhos, baixa a cabeça de um jeito acanhado e se afasta na direção da mesa do bufê. Cruzo o olhar com Fiona e a gente sai pra dar uma circulada, e depois de pegar mais um bebida eu paro pra falar com os pais do Keezbo, com a Moira e o Jimmy, e por fim com uns parentes da mãe, o povo de Bonnyrigg-Penicuik, que tão ali dando apoio pra ela.

Vejo a Alison indo pra mesa do bufê e intercepto ela. – Ali... lamento muito pela sua mãe. É muito grave?

– Vim aqui pra ir pegando um pouco de prática. – Ela abre um sorriso que lembra um estilete. – Não demora muito mais, eu acho. Mas obrigada por perguntar – diz ela e sai em direção ao bar, onde tão as outras minas. No meio do caminho, ela lembra de alguma coisa e se vira. – A Kelly mandou seus sentimentos, ela lamenta não poder vir, mas tem provas na semana que vem.

– Valeu – digo, e em seguida ela vai embora, abrindo caminho na direção do Matty e do Gav. Vejo a Fiona falando com o Tommy e o Geoff, então vou sentar junto com a minha mãe. Ela tá usando um chapéu idiota porque faz tempo que não tinge as raízes marrom-cinzentas dos cabelos. Ela dá uma tragada no cigarro com as mechas de cabelo suadas e oxigenadas grudadas na testa e a maquiagem borrada pelas lágrimas. A dor do luto e fumo inveterado deixaram ela com uma voz rouca de estivador. – Às vezes eu penso que esse é o jeito que Deus achou pra me castigar – diz ela.

– Por que motivo?

– Contrariei a minha fé me casando com o seu pai.

Um jato de fumaça escapa por seus lábios contraídos. As faces afundadas e o olhar desvairado fazem pensar em algum transtorno mental. – Cê realmente acredita que Deus tá te punindo porque cê é católica e casou com alguém de fora de religião?

– Sim. Sim, acredito – ela repete enfaticamente, as pupilas enchendo os olhos. Ela tá chateada porque não fizemos a cerimônia na St. Mary’s Star of the Sea. Ela levava o Pequeno Davie lá, quando ele era menor e mais fácil de carregar pra lá e pra cá.

– Mas e o pai? O velho tá lá com o Andie e sua família Weedgie, a vó Renton e os irmãos dele, Charlie e Dougie. – Meu uísque já acabou e eu largo o copo vazio na mesa. – Ele é protestante e o Pequeno Davie é filho dele também e tal. No mínimo, isso quer dizer que Deus é imparcial: ele odeia vocês dois.

– Cê não pode dizer isso, Mark, não diz isso...

– Ou talvez, só talvez, ele esteja pouco se fudendo pra vocês dois. Já pensou nessa possibilidade?

– Não! – grita ela, e eu fico pensando em como seria massa um Deus assim: um que odeia cristãos, muçulmanos, judeus e qualquer outro viado que resolva incomodar Ele. Inclusive, e até especialmente, esses viados que justificam um sistema de castas: os merdas dos budistas. Mas o meu breve rompante chamou a atenção e, sem querer, acabei despertando uma demonstração de união cristã. – Vamos, Mark, para com isso, garoto – diz Kenny, e meu pai e os irmãos dele já vêm chegando junto com o Billy. O Dougie até que é legal, mas o Charlie é um fanático vazio e virulento; foi ele que fez o Billy se envolver com essas merdas de Orange, e meu pai sabe muito bem disso. Ele me olha como se eu fosse a escória do Hades; tenho certeza que o Billy contou pra ele a história da punheta que bati pro Davie. Eles começam a voar em volta como abutres. Procuro o Franco, mas ele tá com a June perto do bar. De repente a Fiona aparece do meu lado, pedindo licença e encantando todo mundo com a maior facilidade. – Ele tá chateado. Calma, amado...

Chateado é meu cu peludo. O que me deixa chateado é essa merda. Protestantes e católicos; o refugo da ralé de perdedores, destilado do rebotalho das duas tribos brancas mais sanguinárias da cristandade europeia. Vermes desprezíveis e raivosos que sabem intuitivamente que tão no fundo da pilha de lixo da ponta mais sarnenta desse amontoado de rochas geladas no Mar do Norte. A única coisa que sabem fazer é ficar pensando em quem vai ser o bode expiatório da sina lamentável deles, e quando aquela monstruosidade que era meu irmão apareceu, foi uma oportunidade enviada pelo Deus cristão deles. O que eles não conseguiam entender é que o Pequeno Davie era provavelmente um nadir que só poderia ter sido produzido por retardados sectários como eles, porque não importa a cor de cocô de pombo que eles botem em cima dos ombros ou as baladas escrotas de lealdade e revolta que eles cantem, eles são todos feitos da mesma argila imunda de idiotice nociva.

A mãe deixando eu e o Billy ajudar ela a fazer um bolo de chocolate, naquela cozinha do segundo andar no apartamento do Fort. Todo mundo se divertindo. Aí começam os gritos do Pequeno Davie; agressivos, exigentes, afrontosos. Eu e Billy olhando pra ela como se a gente quisesse dizer “deixa ele”, mas primeiro ela, e depois a gente, sendo incapaz de evitar de lembrar quem a gente era. O fluxo lento da nossa respiração inspirando em uníssono enquanto ela descia correndo. Nossos dedos na mistura de chocolate, o amargo consolo.

A morte do Pequeno Davie não me chateia. Quando penso nele, o que me vem à mente é o monstruoso e o grotesco. O negócio é que ele se parecia comigo; cabelo ruivo alaranjado, pele branca como leite, olhos azuis berrantes. Uma época eu achava que as pessoas só diziam isso pra tirar sarro, mas era verdade. Pra vergonha dos orangistas do Billy, era ele que parecia o garoto atarracado, moreno e de sobrancelha única tirado de uma fazenda de Connemara e trazido até as minas de carvão de Midlothian, como todos os homens católicos do lado da minha mãe.

Quando eu era pequeno, implorava pra ser trazido pra piscina descoberta de Porty com o Pequeno Davie, o Billy e o pai. Porty era sempre frio pra caralho, eu odiava o lugar, e as agressões do Billy pareciam atingir níveis ainda mais psicóticos lá, mas preferia aquilo mil vezes do que a humilhação de ser visto ao lado deles nas piscinas do Leith Victoria.

A mãe começa a gritar com a Margareth “Bendix” Curran, nossa rancorosa ex-vizinha, que acha que a gente usou o Davie pra conseguir nosso apartamento do governo pela porta da frente, e depois jogamos ele numa clínica residencial pra deficientes. – Só tô dizendo que tinha outras pessoas naquela lista na frente de vocês, Cathy...

– A gente nunca botou ele numa clínica! Ele morreu no hospital, na enfermaria!

– Mas agora que ele não tá mais aqui, cê devia abrir mão da casa, é só isso que eu tô dizendo. – E nesse momento ela avista o meu parcero Norrie, que trabalha no Departamento de Habitação. – Olha só, o que ele tá fazendo aqui? Não importa o que cê merece, e sim quem cê conhece, não é assim?

– Sai da minha frente! – grita minha mãe, e então o meu velho e Olly Curran, o magrinho racista que mais parece um coveiro, entram em cena e participam da gritaria, e eu aproveito pra ir até o bar, onde o Spud entra na fila pra me comprar um pint de cerva. Sempre tento evitar os conflitos sociais dos outros; prefiro arranjar meus próprios problemas. Enquanto observo o Spud tentando atrair a atenção do garçom, sinto braços me envolvendo por trás. Primeiro penso que é a Fiona, mas tô vendo ela lá na frente, conversando com uns parentes, e então imagino que as circunstâncias suspenderam temporariamente a aversão da Hazel ao toque. Me viro e dou de cara com Nicola Hanlon. – Só queria te dar um abraço rápido – diz ela apertando minha bochecha.

Eu penso mas que porra, o viadinho do Davie não podia ter batido as botas ano passado? Agora que eu tô comprometido, as buceta tão fazendo fila! – Obrigado, Nicky, que bom te ver aqui.

Spud chega me trazendo um pint; ele tá correndo atrás da Nicky como se fosse um cachorrinho que ela salvou e levou pra casa em Seafield.

– Valeu, amigo.

– Dureza, Mark: aguenta firme, bichano.

Pisco o olho pra ele, sinto alguém apertando minha bunda e penso se isso vai continuar melhorando. Mas é só o Sick Boy tirando onda. – A Nicky tá louquinha pra dar pra você – sussurra ele, bem no momento em que avisto o Billy e a Sharon intervindo na briga dos meus pais com os Curran. – Eu comeria ela, nem que fosse só pra incomodar o Spud – comenta ele, e então notamos que nosso amigo já retornou à sua perseguição infrutífera.

Ignoro o Sicko e desvio meu olhar pro perfil da Fiona. Ela é linda e eu só quero ficar sozinho com ela. Mas o viado insiste, então falo pra ele: – É, acho que fui o mais votado pra trepada solidária do dia.

– Solidariedade por causa do irmão deficiente falecido é só uma parte da história. O elemento crucial é que cê já tem uma mina.

– Do que cê tá falando?

– Do fator incumbência. As minas veem você com a Fiona, que por sinal é uma gostosa, Rent Boy, um pouco acima do seu nível – diz ele, vendo ela acalmando meus pais enquanto os Curran vão embora. – Sim, elas são testemunha de que cê é um pretendente gentil e atencioso e se sentem atraídas porque lembram do crápula negligente com quem saíram na última vez.

Não acredito que esse viado tá realmente me elogiando. – Quer dizer que é porque elas me enxergam como um bom namorado?

– Da forma mais traiçoeira possível, mas elas não se dão conta de que é o período da lua de mel. Logo cê vai se tornar o crápula negligente; todos nos tornamos. Portanto, ataque enquanto o ferro tá quente; quando cê arranja uma mina nova por quem cê é realmente louco, é exatamente a hora de comer todas que aparecem pela frente.

Alguma coisa bate no meu peito. Escuto minha voz saindo fininha. – Mas eu não quero, só quero a Fiona.

– Claro – diz ele com um ar superior, pegando um minienroladinho de salsicha que tava apodrecendo no prato de papel, mas mudando de ideia e devolvendo em seguida. – É um paradoxo. Cê só consegue lutar contra esse sentimento usando força e determinação, e confiando no pau duro, que deve ser obedecido sempre. Permita que ele se sobreponha a todas as suas aflições, jovem Skywalker. Porra – acrescenta ele com um súbito ar de reconhecimento –, eu devia estar sendo pago pra fornecer esses conselhos, não devia liberar assim de graça pra outro cara. Felizmente, cê vai ficar bêbado demais pra lembrar disso amanhã cedo.

Me dou conta de que esse viado tá realmente a anos-luz de todos nós. A gente é tudo uns pirralho burro. – Como é que cê sabe dessas porras todas?

– Sou apenas um estudioso atento do jogo. Experiência e observação. Eu olho e escuto, e tô pronto pra me submeter a todo o espectro de emoções – declara ele, virando o resto da bebida e caindo fora. Penso que hoje deve ser um dia “G” pra ele, ao mesmo tempo que Norrie Moyes se aproxima e começa a falar sobre os Curran. Parece que ele odeia aqueles viados tanto quanto eu, pois eles vivem aparecendo no Departamento de Habitação pra botar pressão nele. A gente bola um plano de vingança e começa a rir alto, imaginando os desdobramentos.

Então percebo que o Billy, com um olhar abominável, tá chegando mais perto. Ele tava conversando com a parte Weedgie da família e acompanhando Margaret e Olly Curran pra saída. Norrie também repara no olhar e se manda.

– Como é que tá, mano? – gracejo.

O Billy tá fedendo a uísque. – Agora cê vai ter que arranjar outro namorado, né.

Uma raiva controlada ferve dentro de mim. Reviro os olhos. – Tá querendo chamar a atenção agora? Isso é assunto pra manter em família!

A gente percebe que a Fiona e o asqueroso do Geoff de Bonnyrigg tão se aproximando. Se aquele viado tá dando em cima dela...

– Seu viadinho pervertido de merda...

– Cê é fantástico – digo pra ele.

– O que cê tá dizendo? Hein! – grita ele.

Todo mundo escutou e começa a se juntar em volta. – Nada – respondo com indiferença. – Só tô dizendo que cê o máximo.

– Mark... – implora Fiona, segurando meu braço.

A Sharon pede pro Billy: – O que foi, Billy, por que cê tá gritando com o Mark? É o velório do Pequeno Davie, Billy!

– Não sei por que ele ficou tão nervosinho – protesto minha inocência com olhos esbugalhados.

Begbie se aproxima; a eletricidade estática dele tem o poder de fixar a frouxidão dos bêbados num estado temporário de sobriedade e razão. Um olhar feio de censura silencia o Billy. Charlie e Dougie levam o primogênico embora, e o Dougie olha pra trás e balança a cabeça daquele jeito triste e lamentador. Me dá vontade de rir bem naquela cara idiota dele. Em vez disso, dou uma piscadinha pro Begbie e sua cara feia (se eu amo esse cara? Sim, eu amo!), pego uma esferográfica no bar, subo em cima da cadeira e bato com a caneta no copo. – Posso ter a atenção de vocês, por favor?!

Olhos giram pros dois lados, conferindo se os antagonistas estão de acordo, e depois estacionam em mim, em silêncio, formando uma plateia atenta. – Eu e o Pequeno Davie... – olho pros meus pais confusos e pro meu irmão perturbado – apesar da deficiência grave que ele sofria, tínhamos uma relação especial. – Por um instante, dirijo meu sorriso pro meu irmão exasperado. – Meu pai e minha mãe deram pra ele a melhor vida que ele poderia ter, e eles nunca, nunca deixaram de amar ele, sempre cuidando dele e esperando o melhor pra ele, apesar de tudo. E ele nunca deixou de trazer alegria e beleza pras nossas vidas. Ele vai fazer muita falta. – Nesse momento, faço uma pausa pra observar os rostos sérios e a vergonha escorrendo em pingos grossos pelo rosto do Billy. E de repente me sinto tonto lá em cima. A bebida. Então inspiro fundo, levanto o copo e declaro: – Um brinde ao Pequeno Davie!

Os rostos ali presentes se contraem de tristeza por um momento e bebem um gole antes de se galvanizarem num coro que diz: – Ao Pequeno Davie!

Com alívio, desço da cadeira pros braços da Fiona, e, caralho, tenho que fazer força pra segurar as lágrimas explosivas ao ver o orgulho e o amor irradiando dos olhos abatidos da minha mãe e do meu pai.


Notas sobre uma epidemia 2

No governo trabalhista de James Callaghan (1976-79), a inflação e o desemprego começaram a chegar perto dos recordes do período pós-guerra.

No espírito do momento, o Partido Conservador criou um cartaz eleitoreiro que mostrava pessoas semidesanimadas aguardando numa fila da Previdência Social com o slogan “A POLÍTICA TRABALHISTA NÃO FUNCIONA”.

Após a eleição de Margareth Thatcher, na primavera de 1979, os níveis de desemprego triplicaram de 1,2 milhão para 3,6 milhões em 1982, e permaneceriam acima da marca dos 3 milhões até 1986.

No mesmo período, a quantidade de desempregados de longo prazo cresceu para mais de 1 milhão.

Estimativas indicavam que 35 pessoas disputavam cada vaga de emprego.

Nesse intervalo também ocorreu a substituição do emprego de jornada integral para a meia jornada e os cursos superiores (em muitos casos, de meia jornada), supostamente visando uma “reciclagem profissional” para atender às demandas da nova ordem econômica.

Durante esse período, as estatísticas governamentais ficaram mais politizadas que nunca; 29 alterações no modo como os dados sobre o desemprego eram calculados acabaram tornando impossível determinar o total verdadeiro. Centenas de milhares de pessoas foram removidas dos registros de desemprego porque foi ficando cada vez mais difícil obter os benefícios, e a contagem de desempregados passou a incluir somente as pessoas atendidas, sem contar os inscritos.

Em todas as disputas políticas dessa época, um fator permaneceu incontestável: centenas de milhares de jovens da classe trabalhadora do Reino Unido tinham muito menos dinheiro no bolso e muito mais tempo livre à disposição.


Felinos do amor

Entediado pra caramba, cara. Tanto tempo andando pelas ruas ao som da mesma canção, conheço cada rachadura nas calçadas de Pilrig... A vida tá uma merda desde que me mandaram embora das entregas, eu tava lá desde que tinha saído da escola. Pensei que a vida de homem livre ia ser sensacional, mas eu sinto saudade; do pessoal, das viagem, de entrar em todas aquelas casas enormes cheias de móveis, ver todas aquelas vidas diferentes... Agora tudo isso já era.

E não foi justo, não foi certo. Nem acreditei quando o Eric Brogan me disse: – Desculpa, Danny, mas cê vai ser liberado.

Tudo que eu falei foi: – Tá... tá bom... – E daí peguei minhas coisa.

Eu devia ter perguntado: por que eu? Donny e Curtis tavam lá fazia o mesmo tempo. Saquei que tinha a ver com aquela Eleanor; foi o marido dela que me dedou. Me botou na frente da fila das demissões. E eu só tentei dar uma ajuda pra ela, ser um cara legal, quando vi ela sofrendo e tal. Porque ela tava bem triste quando falou pra mim do filho dela. Quando apareci naquela casona em Ravelston com a nota, saca?

– Sente-se e beba alguma coisa comigo, Danny – pediu ela com os olho cheio de lágrima.

– Não, sra. Simpson, eu não posso...

– Por favor! – Ela chegou a suplicar, até; uma mulher inteligente, arrumada e chique, ela tipo tava me implorando mesmo, saca? Daí o que eu podia fazer? – Pode me chamar de Eleanor – disse ela. – Por favor, Danny. Só uma taça. Quer um sanduíche?

O que eu podia dizer? Resolvi dar uma força e fiquei ouvindo ela falar as coisa dela. Tava tipo só sendo educado e tal. Ela abriu uma garrafa de vinho e do lado já tinha outra que tava vazia, mas ela não parecia bêbada, só tipo, triste mesmo.

E a gente só conversou. Bem, na verdade quem falou foi ela e eu fiquei só ouvindo, como disse. Falou do filho que se matou, tinha só 17 anos, e como ninguém desconfiou que ele ia fazer isso.

Aí o marido dela apareceu. Começou a gritar com ela, depois comigo, e ela começou a chorar. Aí eu disse: – Tipo, acho melhor eu ir...

Ele olhou pra mim e disse: – Sim, acho melhor fazer isso.

E fiquei com vergonha demais pra tentar explicar pro Eric. Mas claro que saquei que o tal de Simpson abriu a boca, deu pra ver pelo jeito que o Eric ficou comigo depois daquilo. E agora eu tô na rua. Caminhando por aí. Subin-do e descendo a Walk. Indo pra biblioteca do Leith e depois direto pra cidade. Quilômetros todo dia. Fui pra central de empregos, mas nunca tem nada por lá. Mas ainda vou todo dia mesmo assim. Gav Temperley prometeu que ia reservar pra mim qualquer coisa boa que aparecesse, mas só consegui um curso de computador.

Vejo o Sick Boy na parada de ônibus. Taí um cara que nunca trabalhou nem um diazinho, mas parece que sempre tá com os bolso cheio de grana, saca? Pode apostar que deve sair da bolsa de alguma mina e tal. Acompanho a linha de visão dele até um cartaz grandão do outro lado da rua, um dos cartazes que o governo botou pra convencer as pessoas a dedar os outros, tipo na Alemanha Nazista, onde eles davam força pros moleques entregarem até a mãe e o pai:

LIGUE PARA NÓS, SOMOS DISCRETOS...

E VAMOS ACABAR COM
AS FRAUDES NAS PENSÕES!

E tem um número de telefone pras pessoas ligarem. Sick Boy tá chutando de leve um painel da parada de ônibus cinza. Quando ele me vê chegando diz: – Spud.

– E aí, Si – respondo, porque dá pra chamar ele de “Sick Boy” no meio de um monte de gente, mas quando cê tá sozinho com ele é tipo meio que falta de educação, saca. – Beleza?

– Como sempre. Problemas com mulher.

– Eu também, cara. Mas tá tudo bem desde que ela não morda, saca.

Ele dá uma risada de boca bem aberta. É um daqueles risos que faz cê entender por que as minas gostam tanto desse gatuno demente. Com esse sorriso na frente cê fica tipo achando que é um dos escolhido. – Não dá pra viver com elas, não dá pra viver sem elas. Eu devia ter levado a sério o projeto quando era coroinha na St Mary, e virado padre. A essa altura eu já seria o braço direito do Santo Papa. Uma vida inteira de contemplação e serenidade jogada fora por causa de minas que não valorizam o cara. E como cê tá? Algum sinal de trabalho?

– Quem dera – respondo. – Tô totalmente sem grana. Me mandaram pra um negócio de treinamento de computador e tal, mas fiquei cagado de quebrar os computadores se tipo apertasse os botões errados, saca.

– Não é pra mim. – Ele sacode a cabeça.

– É, nem pra mim. É meio que uma modinha, cara, não acredito que esse negócio aí vai pegar não... sei lá, os gatunos curtem o toque humano. Saca?

– É – diz ele, mas dá pra ver que não tá muito convencido disso.

Olho de novo pro cartaz. Parece que tá dizendo: a gente pode te transformar em alguém ruim. – Que horror, né. – Aponto pro outro lado da rua. – Estimulando pessoas que não têm quase nada a ficar dedando as outras. É tipo 1984 – digo, aí me dou conta. – Quer dizer, tô ligado que a gente tá em 1984, mas tipo, tô falando do livro e não do ano.

– Eu tinha entendido – responde ele, olhando pra rua enquanto o ônibus avança pela Walk. Daí tira uma nota de cinco do bolso. – Taí meu ônibus, a gente se fala – diz, e pra minha surpresa enfia a grana na minha mão.

– Eu não tava pedindo dinheiro – protesto, porque nem tava mesmo, mas tudo bem, o cara tava sendo legal.

– Tudo bem, parcero – ele fala, piscando o olho, daí sobe no ônibus.

– Devolvo semana que vem! – grito enquanto o ônibus vai saindo. Um cara gente boa, o Sick Boy, um dos melhores e tal.

Aí volto pra Walk com um passo mais apressado, agora que o gesto do Sick Boy reacendeu minha fé na espécie de duas patas. Entro na loja pra pegar jornal e uns cigarros com a sra. Rylance e ela me olha com um sorrisão quando coloco o troco na caixa de plástico amarelo onde tá escrito LIGA DE PROTEÇÃO FELINA. – Você é um cavalheiro, Danny – diz ela, botando a dentadura podre pra fora.

– Bem, cê tem que cuidar dos amigos gatos, sra. R. Quatro pernas é bom, mas talvez duas pernas também não seja nada mau, saca?

– Isso mesmo, meu filho. Sabe, os animais não têm como falar nada quando estão com algum problema. Quanto mais velha eu fico, mais prefiro animais a pessoas.

Taí uma gatuna veterana sem limites. – Meio que entendo bem, sra. R, porque nunca começaram guerra nenhuma, tipo aquele fiasco das Falklands. – E bem quando tô quase saindo do recinto, olá, olá, aparece outra gatucha, a LA Woman, Los Angeles, Alison Lozinska, usando boina e uma jaqueta de brim branco, uma gatinha totalmente sensual. – Oi, Ali.

– Oi, Danny, e aí?

– Tô vagando pelas ruas do Leith. Tipo, nenhuma mudança no modus operandi desse gatuno aqui. Que cê anda fazendo?

– Vou me encontrar com a Kelly e as meninas lá no Percy – responde ela, comprando uns cigarro da boa e velha sra. R. – Preciso levar isso aqui – diz. – Minha mãe...

– Como é que ela tá? Ouvi meio por cima o Mark e o Si comentando.

– Não podem fazer nada, é questão de tempo. – Ali meio que funga. Levanto a mão até as costa dela sem encostar e ela enxerga, sorri e toca no meu pulso. – Você é um amor – diz ela, e daí se recompõe. – É, vou encontrar as meninas no pub e depois vamos pra cidade. Sally tá de aniversário. Não quer vir também?

Sally deve ser a Squiggly. Garantia de problemos pro nosso Murphy. Não me dou muito bem com a Squiggly, mas ser convidado pra Central das Gatas Quentes não é uma coisa que acontece todo dia, cara, aí não dá pra recusar, saca? Daí meto o Evening News no bolso de dentro da jaqueta de brim enquanto a gente desce a Puke Street e conto pra ela do Mark em Aberdeen e ela diz: – Nunca imaginei que ele ia conseguir. Sei que ele se acha meio intelectual, mas tomei um susto quando aceitaram ele na universidade. Sempre foi mau aluno.

Dou uma pensada nisso. – Todo mundo era.

– Fale por você, eu não era.

– Sim, mas pras meninas é tipo, diferente. Tô falando dos garotos – digo. Consigo lembrar da Ali usando aquele blazer de monitora. Rapaz. – Vou dizer uma coisa, tem uns negócios que deviam ser proibidos. É pura sacanagem.

Ali dá risada e tapa a boca com a mão. Tá usando uma daquelas luvas de renda bonitinhas, mais pra bonito que pra se esquentar, saca? – Danny, você nunca passava tempo suficiente na escola pra saber se era bom ou ruim. E foi expulso de duas!

– Pois é – concordo, e quando passamos por Leithy, uma das minhas alma mater com Augies e Craigy, continuo. – Mas talvez a escola não seja o melhor ambiente pra alguns gatunos aprenderem. Sei lá, a maioria dos animais aprende brincando – dou uma piscadinha –, e a gente faz muito disso nas ruazinhas sujas desse velho porto!

Isso era eu meio que tentando flertar, mas isso quica no peito da gata que nem balas no peito do Super-Homem, saca? Mas acho que essa gatinha tem outras preocupações na cabeça. Só que talvez esteja saindo pra parar um pouco de pensar nelas. E alguém disse que ela tava saindo com um cara; parece que o sortudo é um cara mais velho lá do trabalho dela. Vai saber.

Chegamos no Percy e tem meninas por todo lado; Kelly, Squiggly, Claire McWhirter, Lorraine McAllister, a supersensual Lizzie McIntosh da antiga escola, Esther McLaren e rapaz, a pequena Nicola Hanlon (a gatinha sensual mais quente de todas, cara, tipo, não tô de brincadeira mesmo) e muitas outras que eu não conheço, porque o aniversário de 21 da Squiggly e de uma menina chamada Anna, daí todas as Gatas do Leith resolveram sair pra botar pra quebrar na velha Edina.

Squiggly parece ficar meio azeda com a minha chegada, porque fui eu que dei esse apelido pra ela anos atrás: Sally Quigly = Squiggly Diddly, uma lula lelé de um desenho que passava na TV quando a gente era pequeno. Nunca fiquei sabendo o que aconteceu com esse personagem, que era da mesma turma da Hanna-Barbera que o Manda-Chuva, o Zé Colmeia e o Dom Pixote, mas o bicho nunca ficou na cabeça do público que nem eles, saca. É, a Squiggers não gostou nem um pouquinho, mesmo que tenha sido só uma vingança por ela ter começado com aquela porcaria de “Scruffy Murphy”, me chamando de sebento. Fiquei brabo porque acho que eu era mesmo meio sebento na época da escola, porque naquele tempo o dinheiro era meio curto em Chez Murphy, saca.

Fora isso as vibrações tão excelentes, e eu fico só pensando: esquece os caras, esquece ouvir todas aquelas besteiras sobre futebol e música e quem brigou com quem, e quem anda cagando fora do penico. É, não tem nada melhor que ficar bem sentado numa poltrona, tipo eu aqui bem sentado e cercado de beleza e totalmente entregue aos sentidos, cara:

– ... e o que você acha, Danny?

Acho que cê é a melhor, gatinha. – Bem, Nicky, não acho que tenha mesmo um lugar melhor que o Hoochie. Todos os outros lugares em Edimburgo mais parecem um açougue, saca.

– Mas e se a gente estiver a fim de uma carne, hein? – responde ela, bem safadinha, e me dói o coração porque sei que gente tipo o Sick Boy ou o Tommy ou até mesmo o Rents ou o Begbie ia dizer algo como “Bem, nesse caso então fica comigo, meu amor”. Mas esse não é o tipo de conversa que costuma sair da minha boca, daí fico só rindo pra ela, pensando na crueldade do mundo, em toda essa beleza sendo desperdiçada com alguém que não se importa, que só enxerga uma pombinha dessas como mais um gol no placar. Só fico com vontade de dizer “Quer sair pra jantar um dia desses? Abriu um chinês bem legal em Elm Row”, mas não sou um homem de negócios, e uma menina que trabalha na Companhia de Gás nunca ia aceitar sair com um cara que vive de seguro-desemprego. E aposto que esse cara mais velho, esse sortudo safado do trabalho da Ali que tá saindo com ela, eu meio que escuto ela mencionar o nome de um cara pra Squiggers, toda encabulada, aposto que esse cara tem toneladas de dinheiro. Tudo é tão injusto, cara, é injusto mesmo.

Daí elas tão terminando as bebidas a pedido da Squiggly, pra seguirem adiante, e a Nicky olha meio triste pra mim e diz: – Acho sacanagem a gente deixar você aqui Danny...

– Para com isso, Nicky! – grita Squiggly.

– Tá tudo bem, vou me encontrar com o pessoal na Walk, devem tá no Cenny ou no Spey ou no Volley ou por ali, passo a passo a caminho da cidade e do esquecimento, cara. O circuito tradicional, saca.

Ela sorri e se despede junto com a Ali. Daí todas vão embora, despedaçando meu coração em um milhão de caquinhos. É uma merda quando as minas gostam de você, mas como amigo. Acontece comigo toda hora; sempre acabo no papel do cara legal com quem elas não querem transar. Eu adoraria interpretar o filho da puta com quem elas fodem até desmaiar, mas gente como o Sick Boy já tomou conta desse mercado aqui na região, saca.

Aí tô descendo a Gordon Strasse pra cortar pela Easter Road e chegar na Walk, e quando tô cruzando a grandiosa avenida enxergo dois caras saindo do Volley e subindo a rua meio rapidinho. De repente vejo que Begbie apareceu do lado de fora e tá indo atrás deles, gritando: – Cês querem uma foto, seus viado?

Ah não... cachorrinhos, gatinhos e coelhinhos... cachorrinhos, gatinhos e coelhinhos...

Os caras se viram e dão uma boa olhada no Beggar Boy. Um deles tá meio assustado, é um gorducho, bem novo e meio testudo. O outro cara parece mais perigoso, com um olhar assassino por baixo da franja castanho-clara. Esse carinha não é uma bicha escondida no armário, tá dando a cara a bater; e tem uma coisa ruim nos olhos dele. – Cê tava se metendo com a minha irmã...

Assuntos domésticos, cara. Atravessei a rua e tô ao lado do Begbie. Preciso dar ao menos tipo, um apoio moral. Beggar Boy é meu parcero; além disso eu preciso ver ele todo dia, ao contrário desses outros que nem conheço. Tanto o gato selvagem quanto o gato doméstico gordo ficam olhando pra gente, e os dois parecem decidir que no fim das contas eu talvez não faça muita diferença. Meio que não dá pra negar isso daí e tal.

Não que o Beggar Boy teja agindo como se precisasse de ajuda. – Já mexi com um bando de irmã por aí. – Ele dá risada. Depois se vira pra mim e fala: – Se abrirem eu vou meter, né? – E depois se vira de novo pro cara. – Cê tem algum problema com isso, caralho?

Bem, dá pra ver que esse gatuno odeia mesmo a irmã nesse momento, cara, tá pensando que seria melhor a irmã ter cedido o buraco pra qualquer um que não fosse o Franco ou ter tomado a pílula junto com o café completo naquela manhã fatídica, saca. Dá pra entender o cara, que dá um passo pra frente e diz: – Acho que cê não sabe com quem tá mexendo, porra!

Ah não, cara, sinto meus olhos se enchendo de água como se tivesse entrado poeira. Fico pensando: cadê o resto do pessoal?

Mas o Franco nem se mexe, na verdade dá pra sacar que ele tá animado pra cacete, porque esse gatuno adora uma boa briga e esses caras meio que acabaram caindo nas garras dele. – Tá vendo como tem viado que é ciumento, Spud? Eu só tava completando o serviço com a vadia da sua irmã, porra!

Não precisa mais nada: o cara fica doido e avança pra cima do Franco, acertando ele no ombro. Begbie encaixa um gancho no flanco do cara, que pensa que foi um soco, mas eu enxergo o brilho. O próximo golpe acerta o infeliz direto na barriga e faz ele parar na hora. A cara dele se congela de horror quando ele olha pro sangue encharcando a camisa azul. Begbie já botou a faca no bolso, mas continua parado ali, analisando friamente seu trabalho, como um capataz de obra conferindo a qualidade do serviço. O gorducho chega mais perto e eu me mexo devagar na direção dele, mas com as mãos levantadas porque era uma briga mano a mano e a gente nem precisava se meter...

Ah não...

Mas daí o Tommy e mais uns caras saíram e o Tommy avança no gordo e acerta ele com tudo na boca. – Toma seu rumo que cê não presta – diz ele, e enquanto o cara se afasta cambaleando com a mão na boca estourada o Tommy olha pro outro que tá sangrando e na mesma hora faz sinal pra um táxi na Walk.

O táxi para e o Tommy tá meio que escoltando o maluco esfaqueado pra dentro do carro, dizendo: – Cuida disso agora mesmo, na barriga não é tão ruim, mas essa aí do lado pode ter acertado algum órgão. – Daí eu fico preocupado, e agora que vejo o medo nos olhos do cara ele nem parece tão maluco, só um moleque assustado, e o Tam fecha a porta do táxi que sai acelerando.

O cara gordo e testudo tá cambaleando pela Walk, olhando pra trás com a mão na cara. A gente fica rindo e depois entra no pub. Mas dá pra sacar que o Tommy tá puto da vida com o Begbie. Uma hora ele acaba dizendo: – Que ideia de merda foi essa de tirar uma faca na Walk, porra? Não precisava. Eles entraram aqui, se meteram com a gente mas não tinham a menor chance.

– Eu não ia sair me agarrando com o viado pelo meio da Walk, né? – Franco faz uma careta. – Daí meti a faca no corno umas duas vez pra ele ter no que pensar no caminho de volta pra casa, saca.

O maluco faz isso parecer uma coisa tão razoável.

Tommy tá mordendo o lábio inferior. – Bem, a gente vai ter que dar o fora e cê vai ter que se livrar dessa faca pro caso da polícia aparecer.

– Porra, mas é uma faca boa pra caralho – protesta Franco –, a melhor que cai na minha mão faz muito tempo – daí ele se vira prum velho que tá saindo –, Jack, leva isso aqui pra sua casa, amanhã cedo eu passo lá pra pegar.

– Combinado, meu filho – responde o velho, colocando a faca no bolso e cambaleando pra fora do pub.

– Tudo resolvido. – Sorri Begbie. – Tem até que comemorar. – Ele se vira pro balcão. – Les, dose de Grouse pra todo mundo, meu amor! E uma pra você também, princesa!

Lesley começa a servir as doses e o Tommy balança a cabeça. – Que loucura, porra – diz.

Nelly não quer nem saber. – Franco tem razão, porra. É uma história entre ele e a mina, esses viado não tinham que se meter. Grandes merda que o cara é da família. Os dois são adulto, caralho. Se os viado começam a achar que também é problema deles, daí pra gente vira nosso problema.

– É isso aí, caralho – diz Franco. – Do jeito que as coisa anda, cê não pode se descuidar. Os viado monta em cima de quem faz isso.

Tommy percebe que não adianta debater mais o assunto. – A cara do viado quando entrou no táxi tava demais, isso eu admito.

Franco dá um tapa nas costas dele enquanto Lesley coloca as doses na mesa. Não tô a fim de uísque, rum seria legal, meu lance é mais ser marujo aqui no porto, mas o Generalissimo não vai gostar nadinha se eu não beber. – Mas cê teve uma boa ideia, Tam – diz ele. – Botando aquele cuzão no táxi. Não queria ver ele subindo e descendo a Walk sangrando daquele jeito, atraindo a polícia.

– Foi isso que eu pensei: melhor tirar o viado daqui.

– Tá na hora – diz Nelly, passando os copos. – Saúde.

Todo mundo brinda ao Franco e aquele uísque horrível queima que nem brasa quando desce, mas deixa uma sensação bem boa e quentinha. Dá pra sentir quando a gente sai.

Daí a gente vai pro Tommy Younger a caminho de Edimburgo, bem bêbados, e é a mesma empolgação que eu sentia quando acordava pra trabalhar nas entregas de móveis, quando ficava me perguntando se a carga ia ser grande e se a gente ia pra longe, talvez pra Perth ou até mesmo Inverness ou algum lugar assim, ou se ia ser só uma entrega local, e pensava em todas as risadas que eu ia dar com os caras. Agora não tem mais nada disso, não tem trabalho nenhum pra caras sem instrução profissional que nem eu. Mas isso aqui também é bom, não meter faca nos outros, Tam tem razão, o Franco se passou, mas fazer parte de uma equipe, ter alguma coisa pra conversar, uma história pra contar. Porque todo mundo precisa disso; todo mundo precisa de alguma coisa pra fazer e de uma história pra contar.


Liberdade

Dizem que a liberdade nunca veio de graça. Minha bolsa logo vai ser abolida e transformada num empréstimo, e daí acabou. Mas nem fudendo que eu vou pegar um dinheiro que nunca vou poder pagar de volta. Melhor passar a vida toda com uma bola de ferro presa no tornozelo. Quando pessoas como Joanne e Bisto se casarem e pegarem emprego de funcionário público ou professor, vão passar o resto da vida correndo atrás de uma dívida interminável; empréstimos estudantis, hipotecas, prestações do carro. Depois vão olhar pra trás e perceber que foram sacaneados.

Por que o futuro deveria importar? Tenho um lugar pra morar e uma mina com lugar pra morar, mesmo que a gente viva dormindo um na casa do outro. A gente senta junto na biblioteca da faculdade, debatendo, discutindo nossos trabalhos, procurando textos um pro outro, e depois volta pro quartinho cheio de livros dela, ou pro meu. A gente cozinha um pro outro; ela me converteu ao vegetarianismo, uma coisa que já me atraía o interesse fazia um tempo. Gosto de carne, mas a não ser que cê possa pagar por um produto realmente muito bom, é uma porra dum veneno. Chega de comer toda aquela merda processada que eles botam nas tortas e no fast-food.

E o mais importante de tudo, a gente trepa pelo menos duas vezes por dia. Sexo de verdade, relaxado e sem pressa, não feito às escondidas. A sublime luxúria de tirar toda a roupa e não ter hora pra vestir de novo. É incrível pensar que, embora eu tenha comido 18 minas, a Fiona é a única que teve tempo de me ver pelado. Mesmo hoje, tenho o impressão de que um viado vai aparecer a qualquer momento. Preciso ficar repetindo pra mim mesmo: esquece de tudo e aproveita.

Mas depois, quando tô nos braços dela, como agora, tenho a sensação de que fui fisgado por um vício. Tenho vontade de levantar e sair pra dar um passeio. – Cê é muito inquieto, Mark – diz ela. – Por que cê não consegue relaxar nunca?

– Gosto de dar uma caminhadinha.

– Mas tá congelando lá fora.

– Mesmo assim. Talvez eu passe no mercado. Vou comprar umas coisas pra fazer um refogado.

– Então vai – diz ela sonhadora, soltando o abraço e se virando pra tentar dormir de novo.

Aí eu enfio as roupas e escapo pela porta. Como explicar pra alguém que cê ama que cê precisa de ainda mais? Como se faz isso? Dizem que o amor deveria fornecer todas as resposta, nos dar tudo. All you need is love. Mas é pura merda: preciso de alguma coisa, mas não é amor.

O telefone coletivo no corredor da moradia parece me atrair. Geralmente tem uma grega maluca falando nele o tempo todo, tagarelando por horas a fio. Mas agora tá livre, portanto ligo pro Sick Boy na Monty Street. Ele teve que ir no tribunal, dia desses, pra testemunhar. Ele atende todo cuidadoso: – Quem é?

– Mark. Me liga de volta, os bipes vão terminar. – E grito o número duas vezes antes que a ligação caia.

É claro que a grega aparece bem nessa hora, avançando pelo corredor institucional branco como um fantasma. Tá com a cara mais tensa que um prato no casamento da irmã dela. – Você vai usar o telefone?

– Sim, uma pessoa já vai retornar minha ligação.

Ela solta um ruído alto de irritação, a puta monopolista folgada, mas senta numa das fileiras de três cadeiras e tira um livro.

Um minuto depois, o telefone toca. – Pronto, Rents. Ficou sem moeda, seu viado pão-duro?

– Fiquei... esses telefones engolem uma atrás da outra. Como foi lá no tribunal?

– Pior, impossível. Um pesadelo de merda. Assim que entrei e vi a cara do juiz, pensei: isso aqui não vai dar certo. Eu, o grande Chris Moncur e um outro cara chamado Alan Royce dissemos mais ou menos a mesma coisa. Mas na hora de saber o que realmente aconteceu, era a palavra do Dickson contra a de um homem morto. Engoliram toda a merda dele; uma discussão, uma troca de socos, Coke caiu, bateu a cabeça e morreu. Uma sentença de agressão comum com uma fiança fajuta de quinhentos paus. Cadeia que é bom nada, e ele não vai nem perder a licença do bar.

– Cê tá brincando...

– Quem me dera. A Janey tá em estado de choque, e a pequena Maria tava chorando e começou a gritar com eles no tribunal, e teve que ser levada embora pela tia. O juiz ficou o tempo todo ali sentado com uma cara dura e arrogante. Depois começou a dizer que a bebida foi a causa principal desse trágico incidente, que os proprietários sofrem agressões constantes dos bêbados e que o Coke era um bebum notório... A família tá arrasada, Mark. Tô dizendo, foi o dia mais deprimente da minha vida...

Sick Boy não para de falar, e embora eu nunca tenha conhecido o Coke muito bem lembro que ele sempre era um bêbado feliz e cantador; incomodava um pouco às vezes, mas nunca era violento ou agressivo. – Jogo de cartas marcadas – falo pra ele, dando uma espiada na grega, que tá me olhando feio por cima do livro.

Fico me sentindo desanimado depois do telefonema e saio pra andar um pouco na rua. A chuva forte deu lugar a uma garoa perolada que encobre a cidade. Ando sem rumo por um tempão, com o frio pinicando o rosto, e então volto pra encontrar a Fiona, que tá acordada e vestida, e conto a história do Coke. Ela diz que a gente deveria iniciar uma campanha, uma campanha por justiça em defesa de um alcoólatra desempregado e contra um taberneiro e ex-policial maçom e um juiz do supremo tribunal.

Fico ouvindo o que ela diz, deixando ela falar, mas pensando o tempo inteiro: Não é assim que funciona. E aí chega a hora dela sair. Ficou combinado que eu vou pra casa dela à noite. Depois de vestir seu casaco marrom e comprido, a Fiona passa as unhas carinhosas na minha nuca. Os olhos dela são tão serenos que cê podia se perder ali pra sempre. – Que horas cê quer ir lá em casa?

Enquanto procuro uma resposta pra essa simples pergunta, ela começa a se expandir até rachar meus pensamentos ao meio. Que horas?


Notas sobre uma epidemia 3

Em 1827, Thomas Smith, um aluno formado pela renomada faculdade de medicina da Universidade de Edimburgo, assumiu a farmácia de seu irmão William. Eles começaram a fabricar produtos de química fina e medicamentos de origem botânica. Dez anos depois, se dedicariam aos alcaloides, em particular à morfina, que começaram a extrair do ópio.

John Fletcher Macfarlan, um cirurgião de Edimburgo, tinha assumido a posse de uma loja farmacêutica em 1815 e estabelecido um comércio vigoroso de láudano. Mais tarde passou a preparar morfina, que teve uma demanda crescente após a invenção da agulha hipodérmica. Isso aumentava a eficácia da droga, permitindo sua injeção direta na corrente sanguínea. O negócio de Macfarland prosperou e ele também começou a preparar anestésicos (éter e clorofórmio) e curativos cirúrgicos. Em 1840, ele abriu uma fábrica, e nos primeiros anos do século XX a J.F. Macfarlan & Co. havia se tornado um dos maiores fornecedores de alcaloides do país.

Os dois negócios continuaram se expandindo por meio de incorporações e aquisições, e em 1960 eles se fundiram e deram origem à Macfarlan Smith Ltda. A empresa foi adquirida pelo grupo Glaxo em 1963. Ela ainda emprega mais de duzentos trabalhadores em sua fábrica na Wheatfield Road, no distrito urbano de Gorgie.

Muita gente acredita que a heroína que se alastrou pelas ruas de Edimburgo no início dos anos 80 provinha de produtos à base de ópio produzidos na fábrica, através de um esquema que se aproveitava de brechas de segurança. Quando essas falhas de segurança foram corrigidas, a gigantesca demanda local de heroína passou a ser saciada pelo produto paquistanês de baixa qualidade, que a essa altura já tinha se alastrado pelo restante do Reino Unido. Adeptos de teorias da conspiração apontam que esse aumento brusco da importação de heroína ocorreu pouco tempo depois dos tumultos que eclodiram em 1981 em diversas regiões mais pobres da Grã-Bretanha e que receberam atenção especial da mídia em Brixton e Toxteth.


Nunca chove...

Janey não pode dizer que faltou aviso; você teria que ter passado um tempo em Marte para não perceber que os Conservadores não estavam dando trégua pras fraudes de pensões. Aí o tribunal deu uma punição exemplar. Depois de anunciar a sentença de seis meses, o juiz se declarou “levado a demonstrar clemência somente” pelas circunstâncias trágicas da situação. Não é o mesmo que deixou o assassino do marido dela se safar pagando apenas uma multa.

E a expressão de pânico quando levaram ela embora! Parecia uma vaca indo pro abate. Ficou implorando, suplicando que aqueles rostos de pedra tivessem misericórdia. O defensor público bonzinho e vegetariano que colocaram no caso da Janey parece tão traumatizado quanto ela, e provavelmente já deve estar pensando em mudar de carreira e trabalhar em alguma empresa. Maria, ao meu lado, mais uma vez derrama lágrimas incrédulas. – Não podem... não podem – repete, aturdida. Elaine, tia dela e cunhada de Janey, uma mulher magra e pálida que mais parece uma faca de cozinha, seca os olhos da sobrinha com um lenço. Grant, ainda bem, é mantido distante do tribunal como no julgamento de Dickson, abrigado em Nottingham com Murray, irmão de Janey.

Nunca imaginei que ia acabar assim. Eu mesmo tô tremendo enquanto acompanho uma Maria catatônica e Elaine até o Deacon Brodie’s Tavern na Royal Mile. Esse pub é quase um anexo do tribunal, com várias portas de entrada, cheio de criminosos e ocasionalmente um advogado, além de um punhado de turistas se perguntando como foram parar naquele lugar bizarro.

Pego dois uísques, um pra mim e outro pra Elaine, e uma coca pra Maria, que, pra nossa surpresa, toma um dos uísques bem rapidinho.

– O que cê tá fazendo? Cê nem devia tá aqui – digo a ela, dando uma olhada ao meu redor, analisando o recinto, enquanto Elaine diz alguma coisa com seu sotaque insípido das East Midlands.

Maria se encosta na cadeira de assento alto, queimando de ódio. – Não vou voltar pra Nottingham! Vou ficar aqui!

– Maria... meu amoor... vá pra Nottingham – implora Elaine.

– Já falei que vou ficar, porra! – E então agarra o copo vazio, os dedos embranquecendo enquanto ela tenta esmagar o vidro com a mão.

– Deixa ela ficar uns dias aqui, na casa da minha mãe – peço à confusa tia Elaine, e então cochicho. – Aí eu convenço ela a pegar o trem. Quando estiver um pouquinho mais calma.

Dá pra ver uma fagulha se acendendo nos olhinhos sem vida da cunhada. – Se não for problema...

Não é como se eu tivesse aparecido de surpresa pra cobrar uma dívida num bloco. Imagino que Maria não esteja sendo uma hóspede muito amável. De qualquer modo tá na hora de sair daqui. Enquanto descemos o Mound até a Princes Street, Maria tá um caco; xingando Dickson em meio às lágrimas, chamando a atenção dos passantes. Acompanhamos a insubstancial e anêmica Elaine até a rodoviária e a vemos subir agradecida no ônibus da National Express. Maria fica parada enquanto o ônibus se afasta, braços cruzados sobre os seios, olhando pra mim como quem diz “e agora?”

Não vou levar ela pra casa da minha mãe. Acabaram de se mudar, ia ser muito incômodo. Entramos num táxi e voltamos pra casa da família dela, agora sem família. Sei muito bem que a melhor maneira de convencer Maria a fazer alguma coisa é simplesmente sugerir o oposto. – Cê precisa voltar pra Nottingham, Maria. São só uns meses, até sua mãe sair.

– Não vou voltar! Preciso ver minha mãe! Não vou pra lugar nenhum até pegar aquele merda do Dickson!

– Bem, minha sugestão é passar na sua casa pra pegar umas coisas e depois ir pra minha mãe.

– Vou ficar na minha própria casa! Sei cuidar de mim mesma!

– Cê vai fazer alguma burrice. Com o Dickson.

– Vou matar ele! Foi ele que fez isso tudo com a gente. Ele!

O motorista dá uma espiada na gente pelo espelho, mas fico olhando fixamente pra ele, e o viado intrometido logo vira os olhos de periquito triste pra rua esburacada, de onde nunca deviam ter saído.

O táxi chega no Cables Wynd House e eu pago a corrida, relutante. Maria sai rapidinho e eu preciso correr pra alcançar. Por alguns segundos de ansiedade fico pensando que ela trancou a porta me deixando de fora, mas ela tá me esperando na escada com um beicinho de desafio. Subimos até nosso andar e ela abre a porta. – Deixa o Dickson comigo – insisto com delicadeza, enquanto adentramos o apartamento frio.

Ela desaba no sofá com as mãos na cabeça e a boca aberta. O corpo treme de leve, e começa mais choro. Ligo o aquecedor e me sento com cuidado ao lado dela. – É natural querer se vingar, é claro que eu entendo muito bem – digo com uma voz tranquila e gentil. – Mas o Coke era meu parcero e a Janey é minha amiga, então eu vou cuidar pra que o Dickson pague pelo que fez, e não quero você metida nisso!

Maria se vira pra mim, cega de tanto catarro, tão repulsiva quanto a mina de O Exorcista, e grita. – Mas eu tô metida nisso! Meu pai tá morto! Minha mãe tá na cadeia, porra! E ele tá ali – ela aponta pra janela – caminhando livre pelas ruas, servindo pints como se nada tivesse acontecido!

De repente ela se levanta e vai saindo pela porta. Vou atrás na mesma hora. Mas ela tá descendo as escadas totalmente transtornada. – Aonde cê vai, Maria?!

– VOU TER UMA CONVERSA COM ELE, PORRA!

Chegando ao pé da escada, ela cruza o pátio, desce a rua lateral e chega na frente do pub, comigo bem atrás. – Para com isso, Maria! – Agarro seu ombro magro.

Mas ela se desvencilha de mim, abre a porta com tudo e corre até o meio do pub, comigo atrás. Todo mundo olha pra gente. Dickson, pra minha grande surpresa, realmente voltou a trabalhar atrás do balcão. Tá conversando com um amigo e fazendo cruzadinhas. Levanta a cabeça em resposta ao silêncio ensurdecedor que toma conta do recinto. Mas não dura muito. – ASSASSINO! – grita Maria, apontando pra ele. – CÊ MATOU MEU PAI, SEU FILHO DA PUTA! ASSA... – Ela começa a se engasgar quando o surto de frustração acaba com as forças dela, e eu a agarro por baixo dos braços e a vou levando pra fora enquanto escuto a resposta convencida mas débil de Dickson: – Não é o que diz o tribunal...

Levei a Maria pra fora, mas o ar fresco parece fazer ela reviver. – ME SOLTA! – berra ela, o rosto deformado de ódio e dor. Tô fazendo força pra caralho porque o corpo esguio dela tá fortalecido por histeria e raiva, e chego a sentir vontade de dar um tapa na cara dela como fazem nos filmes, mas então passa e ela começa a chorar e gemer nos meus braços e eu a levo pela rua e atravessamos o estacionamento e voltamos a subir as escadas, enquanto eu penso que era assim que tava escrito que ia ser.

E depois que a coloco de volta no apartamento e no sofá é quase como se a gritaria com Dickson tivesse sido apenas um pesadelo, porque ela tá nos meus braços e eu tô fazendo cafuné e dizendo pra ela que tudo vai ficar bem. Dizendo que vou ficar aqui com ela pelo tempo que ela quiser e que vamos pegar aquele viado do Dickson juntos, ela e eu...

– Vamos mesmo? – pergunta ela com uma ânsia demente, hiperventilando. – Eu e você?

– Pode apostar, princesa. Pode. Apostar. Aquele vagabundo de merda mandou o Coke pro cemitério e a Janey pra cadeia. – Aí olho pra ela com uma expressão furiosa e vingativa. – Ele. Vai. Tomar. No. Cu.

– A gente vai matar aquele corno!

– Você e eu. Pode acreditar!

– Tá falando sério? – implora ela.

Olho bem pra dentro daqueles olhos desolados. – Juro pelas vidas da minha mãe e das minhas irmãs.

Ela assente com a cabeça, bem devagar. Sinto o corpo tenso dela relaxar um pouquinho.

– Mas... a gente vai ter que ser esperto. Se a gente não tomar cuidado, vai acabar que nem a Janey. Entendeu?

Ela faz que sim com a cabeça, lenta e sem expressão alguma no rosto.

– Pensa bem – insisto. – Se a gente simplesmente entrar lá e acabar com a raça dele, vamos passar o resto da vida na cadeia. A gente precisa continuar livre pra saborear a vingança, pra curtir o fato de que tamos fazendo o que a gente quiser enquanto aquele filho da puta tá babando todo cagado numa cadeira de rodas ou enterrado numa cova rasa!

A respiração dela fica mais lenta. Tô segurando as mãos dela.

– A gente tem que pensar bem. E quando a gente atacar, nosso coração tem que tá frio que nem gelo. Frio que nem aquele viado lá embaixo – aponto pra janela –, senão ele vence. Ele tem a polícia e o tribunal do lado dele. Isso quer dizer que a gente precisa esperar, fingir que nada tá acontecendo, e descobrir os pontos fracos dele antes de atacar. Porque, se a gente fizer isso de qualquer jeito ou se deixar levar pela emoção, ele vence de novo. E a gente não pode deixar ele vencer de novo. Cê tá sacando?

– Minha cabeça... que pesadelo... não sei o que fazer...

– Me ouve. A gente vai pegar ele – repito, e ela faz que sim com a cabeça e relaxa o corpo no sofá, com a mão na testa.

Eu me sinto calmo o bastante pra pegar os lances e preparar um pico.

A chama do isqueiro faz Maria virar a cabeça pra mim. – O que cê tá fazendo...? – Os olhos dela se arregalam.

– Desculpa, a casa é sua, eu devia ter perguntado. Tô preparando um pico de heroína pra mim.

– Hein? O que é isso? Isso é.... isso é heroína?

– Sim. Olha, isso fica entre nós dois. Não me orgulho disso, mas tenho feito bastante. Vou parar um dia, mas bem, nesse momento eu meio que preciso disso. Desde que o seu pai... – sinto minha cabeça balançando enquanto olho pro rosto vermelho e contorcido dela – ... eu me sinto tão mal, tão impotente...

O rosto de Maria tá impassível que nem porcelana. Os olhos dela tão cravados no líquido borbulhante se dissolvendo na colher. – Essa é a única coisa que leva a dor embora... – digo pra ela. – Vou dar só um pico, pra não começar a tremer. Afinal de contas, ninguém quer ficar viciado, mas foi um dia bem estressante pra caralho.

Aí sugo a solução pela bola de algodão e perfuro minha carne com a ponta da agulha. Quando deixo um pouco de sangue voltar pro tambor da seringa, os olhos de Maria se escurecem, como se algum fluido grosso como tinta estivesse tomando conta deles também. Meu sangue volta pra dentro bem devagar, mas não sinto pressão nenhuma da minha mão no êmbolo, como se minhas veias estivessem chupando o conteúdo da seringa...

SUA COISA... SUA COISA LINDA... SOU IMORTAL, SOU INVENCÍVEL...

– Quero um pouco – escuto Maria pedir num suspiro de carência.

– De jeito nenhum... isso não presta – respondo, voltando suado pro sofá, gorgolejando como uma criança em êxtase enquanto minhas engrenagens interiores começam a se desemaranhar como numa canção infantil. Daí sinto aquela náusea bem dentro de mim, que parece mel... Inspiro decidido, deixando que minha respiração volte ao normal lentamente.

– Então por que cê tá usando?

– Ando me sentindo mal... às vezes cê se sente tão mal... que só isso ajuda...

Tão maaal...

– Mas eu tô me sentindo mal! E eu? – insiste ela, comprimindo o rosto e por um instante perturbador consigo enxergar tanto Janey quanto Coke ali.

– Cê disse que ia me ajudar!

Olho triste pra ela e pego na sua mão trêmula. – Cê é uma menina linda, e não quero que use drogas... – Meu Deus, ela é um anjo despedaçado que caiu neste pardieiro sombrio e desprezível. – ... É que, é que eu preciso cuidar de você... e não piorar as coisas. – Balanço a cabeça e sinto o sangue avançando devagar por dentro dela. – De jeito nenhum...

– Não tem como piorar! – grita ela, daí parece se dar conta da situação. – Mas... mas... só um pouquinho, como cê disse – implora mais uma vez – só pra fazer as coisas parecerem melhores...

Sinto meu fôlego escapando do peito, a mesma resistência firme do êmbolo de uma seringa ao ser puxado, aquela sensação adorável de sucção... – Tá bom, mas vai ser só essa vez... isso aqui é uma bosta... e não me parece uma boa ideia de jeito nenhum... só um pouquinho, tá, pra cê relaxar. – Acaricio o rosto dela bem devagar. – Daí a gente pensa em como pegar o Dickson...

– Obrigada, Simon...

– Cê deve tá sentindo que o mundo inteiro tá acabando – digo enquanto preparo uma seringa pra ela. – Isso vai ajudar, meu amor; isso vai levar a dor embora.

O rosto dela parece flácido e confuso enquanto prendo a tira de couro ao redor daquele braço fino e branco e dou tapinhas em busca da veia. Que bons vasos ela tem. Essa pequena precisa se abandonar, anseia por isso, e a única atitude decente é fazer esse favor a uma donzela em perigo...

Dou o pico nela de uma vez só, vendo ela gemer baixinho e se derreter no sofá. – Isso é bom... é gostoso... é maravilhoso...

Aí faço ela se deitar, apoiando a cabeça no braço do sofá, preparando o outro pico. – Mas agora cê é a mulher da casa, e precisa se manter forte pro Grant. A gente precisa entrar na linha, nós dois. Pela sua mãe e pela memória do seu pai. Em breve a gente visita ela – digo, afastando sua franja da frente dos olhos. – Certo, querida?

– Tá... – diz ela, me olhando, olhos brilhando como moedas de prata.

– Tá se sentindo melhor?

– Sim... é gostoso... nunca achei que ia me sentir tão bem de novo...

– A gente vai pegar o Dickson; ele é nosso. Você e eu. Vamos fazer aquele filho da puta pagar por tudo que fez – sussurro. Tô ajoelhado no chão diante daquele corpo magnífico estendido no sofá. Deslizo uma das mãos por baixo da cabeça dela, erguendo para colocar uma almofada sob a nuca. – Mas agora cê tem que relaxar. Passou por momentos difíceis. Quer que eu deite com você... e te abrace?

Maria faz que sim com a cabeça, bem devagar. – Cê é muito legal comigo... – E a mão dela se ergue a acaricia meu rosto. Eu me inclino pra chegar mais perto daqueles lábios grossos.

– Claro que sou. É legal ser legal com você. Agora me dá um beijinho.

Ela olha pra mim com um sorriso triste e me dá um beijo na bochecha.

– Não, meu amor, não, não. Assim não. Tipo um beijo de verdade, de mulher.

E aqueles lábios se encostam nos meus e aquela língua entra na minha boca, e por um tempo só ela trabalha. Fecho os olhos, pensando por um breve instante na coitada da Janey passando os próximos meses fabricando bichos de pelúcia em Corton Vale. Como afirmou o juiz, é preciso fazer de exemplo os indivíduos que usarem táticas fraudulentas para tentar se aproveitar de quem realmente passa necessidade. Acho que eram literalmente as palavras do cara do governo. Mas vai ser um período educativo pra Janey, ela vai lamber mais xoxota que um funcionário do correio lambe selos. Mas neste momento tô mais preocupado é com a educação da filha dela, porque as coisas tão ficando cada vez melhores com esses beijos molhados e intermináveis. Tão mesmo; não tô sentindo dor alguma. Porque agora ela é minha. Eu me desvencilho e digo aos olhos tristes, sensuais e chapados de Maria: – Nunca vou te abandonar como os outros. Agora tudo vai ficar bem.

Um sorriso fúnebre mancha o rosto dela. – Cê tá falando sério, Simon?

– Tô – respondo, e nunca fui tão sincero sobre alguma coisa nessa minha vida de merda. – Tô mesmo, severamente.


Mais uma

Tô saindo do número 1 no começo da Easter Road bem na frente do pub Persevere quando enxergo Lizzie McIntosh correndo atrás do ônibus, tentando manter o controle da enorme pasta da faculdade de artes que tá sendo castigada pela ventania. Ela tá mais que maravilhosa; botas pretas sensuais sobre meias de lã, uma saia listrada e curta vermelha, preta e amarela, ou talvez seja um vestido, não dá pra saber por causa do casaco marrom que é enorme, cachecol e luvas. O cabelo comprido castanho é só um pouco mais escuro que o casaco. – Peraí, parcero – digo pro motorista, que tá quase saindo. Coloco minha sacola na escada pro caso dele tentar fechar a porta e ganho em troca uma cara feia.

Mas vale a pena, porque ela parece ainda melhor de perto; quase nenhuma maquiagem, só um pouquinho de lápis no olho e batom cor de cereja. – Obrigada... Tommy... – Ela ofega enquanto passa pelo Destemido Tommy Gun e sobe no ônibus, enfiando o dinheiro no lugar. – Tô atrasada pruma coisa... – Ela sorri pra mim. Que beleza!

Como coração covarde nunca conquistou mulher gostosa, eu digo: – Cê me deve uma bebida por essa – arrisco, cê precisa arriscar, enquanto vejo as portas se fechando e o motorista ranzinza fazendo algum comentário antes de dar partida no ônibus e sair.

Tá frio; ainda é outubro mas hoje de manhã tava tudo coberto de geada e os campos devem tá congelados. Pior ainda, dum ponto de vista futebolístico, é esse vento de merda. Mas Rents veio de Aberdeen pra passar o fim de semana, e hoje à noite a gente vai sair e daí amanhã cedo vamos ver o jogo no Easter Road. Aí vou pra casa da minha irmã Paula pra largar a sacola e bater um rango. Ela me convida pro chá, mas não sei bem qualé a do marido dela, um viado com cara de dor que veio de Coventry e parece totalmente deprimido. Todo mundo fica assim às vezes, mas não dá pra se deixar vencer e ficar acabado. O cara tem que ficar de pau duro o tempo todo.

Mas aquela Lizzie... que delícia...

Aí eu encho a barriga, deixo a sacola por lá e vou pro Volley, achando que vou ser o primeiro a chegar. Que nada! Tem um pessoal sentado num canto, com Begbie em destaque, e ele parece ficar bem feliz quando me vê. – Tommy Boy! Olha só esse viado!

– Beleza, pessoal? – Dou oi pro Rents, que tá usando um suéter com listras vermelhas e pretas do Dennis, o Pimentinha, e depois pro Nelly, que tá com outra tatuagem na cara, um âncora bem na bochecha! Como é tosco esse viado. – Que chave de cadeia, porra! – brinco, apontando pra ele, e então dou um olá mais desconfiado praquele Larry, um babaca doente pra quem não tenho muita paciência, e pro Davie Mitchell, um velho parcero de futebol que trabalhou com o Mark no Gillsland.

A gente toma umas cervejas e ri bastante. – Cê foi nalgum jogo do Aberdeen por lá, Mark?

– Não... – diz Rents. Parece que tá chapado de haxixe o tempo todo. Fica sentado com um sorrisão na cara. Antes vivia falando mal de maconheiros e adorava tomar anfetamina. Virou um típico estudante cuzão! – Nunca me deu vontade – continuou, mexendo num estojo de óculos.

– Cê tá usando óculos, viado? Deixa eu ver!

– Não – responde ele, e coloca o estojo no bolso interno da jaqueta de brim. Coitado, deve tá com vergonha. Entrou pro mesmo clube de quatro-olhos e ruivo do qual o Keezbo faz parte!

Sorte dele que o Begbie tá conversando sobre tatuagem com Nelly e Larry e não viram nada. Decido dar uma folga pro ceguinho. Acho o Mark bem gente boa, mas prum ruivo até que esse viado às vezes meio que se acha especial demais.

Begbie começou a prestar atenção. – E aquela mina de Newcastle que cê anda pegando? Fiona? – Ele se vira pra gente e aponta pro Rents. – Tem uns viado que come quieto mesmo! É isso aí, porra! Esse daí não perde tempo!

– Maravilha, cara, ela é totalmente sensacional. – Mark sorri com carinho. – Ela foi pra Newcastle visitar a irmã dela. Tá de aniversário... quer dizer, tipo, a irmã dela tá de aniversário, saca?

– Se essa irmã daí for só um pouquinho parecida com a Fiona, fala bem de mim pra ela, seu viado – diz Franco.

– Deixa comigo – responde Rents com aquele sorriso fácil de chapado, mas dá pra ver que ele nem cogitou essa ideia. Ele se vira pro Davie. – Como tá o pessoal do Gillsland?

– Tudo certo. Les tava perguntando de você. O Bobby tá o viadinho de sempre, e o Ralphy continua babaca. – Mitch dá risada.

– Esse cara... – resmunga Renton, aí se endireita – ... esse filho da puta define o que é babaquice.

– É – diz Begbie, num tom mais sombrio, e dá pra ver que ele tá pensando noutra coisa. – Tem um monte de babaca por aí.

– Beleza? – aquele otário do Larry diz pro Franco. Uma vez me indispus com esse viado lá no Leithy. Ele tava se prevalecendo pra cima do Phillip Hogan. Folgado de merda. Essas coisas cê não esquece.

A voz do Franco fica com aquele som assustador, quando dá pra ouvir o que ele diz ainda mais claramente do que no tom normal. – Não paro de ouvir falar daquele viado de Pilton; o irmão da vadia – diz ele. – Achei que ia ficar bem quietinho depois que os outros dois irmão vieram pra cá e tomaram uma ruim.

– É – concordo, pensando naquele coitado sangrando dentro do táxi. Aquilo foi exagero, porra.

– Pois é, esse viado desse irmão mais velho anda falando que vai fazer isso, que vai fazer aquilo. Parece que o viado tem fama lá em Pilton – zomba Franco.

– E daí? Pra mim parece só conversa – digo, e Nelly concorda com a cabeça.

Essa ideia deixa Begbie animado. – Pois é, se todo viado que já me ameaçou de morte tivesse mesmo me matado, eu ia precisar de umas 99 vidas, porra!

Tô quase mudando de assunto quando o Larry comenta, todo irônico: – Parece que ele faz caratê. Da escola do George Kerr. Dizem que é faixa-preta.

– Pau no cu dele. – Ri Begbie. – Se um cara der um chutão nas suas bola, não tem caratê que resolva. Ou cê ganha umas bola de aço quando bota aquele pijama? – pergunta ao Larry.

– Não... – Ele tá escapando. – Eu só tô dizendo que...

– Pois é, acho melhor cê não dizer porra nenhuma – corta Begbie.

Não sei como isso vai terminar. Era pra ser só umas cervas e amanhã ir pro jogão. O clima fica diferente no fim de semana que tem um jogo desses; é tipo quando tem lua cheia. – Acho que cê deu um recado bem claro, Franco – digo, e faço um gesto de esfaquear que faz ele dar um risinho. – Isso aí é tudo conversa. Esses viado não devem tá com pressa de voltar aqui depois daquilo.

– É, o irmão desse viado tá parecendo uma peneira agora! – Ri Nelly.

Olho pro Begbie de novo e vejo que o rosto dele ficou de novo parecendo feito de pedra. Eu conheço essa cara. – É, mas tem uns viado que nunca entende o recado. Ainda tô ouvindo essas merda saindo da boca desse irmão mais velho, porra. As coisa tão assim hoje em dia, cê precisa é matar alguém pra ser levado a sério. – Ele dá uma olhada em volta da mesa e declara: – A gente vai pra lá ter uma conversinha com esse viado que tá procurando kungfusão!

Eu me sinto tentando engolir alguma coisa que não tá na minha garganta. – Tipo, quando?

– Não tem hora melhor que agora. – Franco faz um bico. – Fazer uma visitinha presse corno. Ter uma conversinha com o viado.

Dou uma olhada no pessoal. Todo mundo tá a fim. Até o Mark, que só veio passar o fim de semana, sorri e diz: – Por que não?

– Cê não vai – responde Franco.

Mark olha pra ele, todo magoado. – Como não?

– Cê tá na porra da faculdade. Não pode cagar isso daí. Isso não é assunto seu. Cê tá com seu parcero. – Aponta pro Mitch.

Rents sacode a cabeça. – A gente é parcero, Franco. Então também é assunto meu – insiste ele, mas tá distraído, olhando pra porta do pub atrás do Begbie. Toda vez que ela abre ele dá uma olhada.

Begbie traz Mark mais pra perto, com o braço no ombro dele. Tá olhando direto dentro daqueles olhos chapados. – Porra nenhuma. Seu assunto é fazer bonito naquela porra de faculdade e cair fora daqui. E cê tá todo emaconhado, porra. Baita ajuda que ia dar!

Olho pro Mitch. É um dos meus melhores amigos, mas faz tempo que não o vejo. Digo pra ele pro Mark:

– Esperem aqui. Volto em uma hora.

Mitch faz que sim com a cabeça e o Mark mexe a dele como quem vai protestar, mas aí dá de ombros. Enquanto a gente termina a cerveja, ele parece meio que aliviado e triste ao mesmo tempo por ter que ficar. Rents não é um cara violento, mas teve seus momentos. Furou Eck Wilson na escola e quebrou uma garrafa na cabeça de um cara naquela semifinal no Hampden. Essas coisas chamaram a atenção porque em geral ele não é assim. Diz que só fica violento quanto tá muito assustado. Mitch é muito útil na hora da porrada, mas é um cara de Tollcross, essa briga não é dele.

Nelly e Franco são uns doentes, e esse viado do Larry é só um valentão. A gente sai e se empilha dentro do carro do Nelly, nós dois na parte de trás. A gente pega o caminho de Pilton e o Begbie fica todo animado, dando instruções no banco do carona. – Cês ficam no carro e ninguém sai até eu gritar! Prestenção! É pra esperar eu dar um grito!

– Cê tem certeza do que tá fazendo? – pergunto, porque a coisa tá ficando séria e pra ser sincero não tô me sentindo muito Destemido Tommy Gun. Mas às vezes é isso mesmo, cê precisa ficar com um pouco de medo pra começar os trabalhos.

– Como eu tava falando – berra Franco –, vou dar um grito se precisar de ajuda, porra!

Não digo mais nada, porque ele deu o recado. Mas durante o trajeto inteiro fico olhando pra cabeça do Franco e pensando quantos socos ela ia levar antes que ele caísse. A combinação que ia acabar com ele; jab, jab, direto de direita, gancho de esquerda, uppercut de direita, direto de esquerda, gancho de direita, gancho de esquerda. E esse merda do Larry... era só encaixar um gancho de direita pra estilhaçar aquele queixinho de vidro...

Chegando nos bloco a gente vê uns garotinhos jogando futebol num terreno baldio. Nelly abre a janela. – Onde é que moram os Frenchard, parcero?

Os carinhas se olham e um deles aponta pra uns prédios velhos e marrons no fim de uma rua. Tão sendo reformados e pintados de branco. – Ali em cima na Rise. Número 12.

E eu conheço a Rise; é uma rua estreita num morrinho, com uma igreja no alto e um comércio vagabundo lá embaixo. A gente para na frente do prédio, perto de uma caçamba quase cheia de entulho. Franco sai do carro e aponta pro apartamento da direita no térreo. – É esse daí – diz ele, todo concentrado.

Daí ele fica zanzando pela rua e depois chega perto da caçamba e começa a remexer. Arregala os olhos quando encontra uma barra meio solta numa cerca de ferro toda amassada; como se tivesse sido atingida por um carro. Franco solta a barra e a segura nas duas mãos, sacudindo como se fosse um porrete. Daí vai até o prédio, deixando a barra encostada na cerca viva antes do portão. Sim, eles moram no térreo, dá pra ver eles assistindo tevê na sala, e quase não acredito quando o Franco pega um tijolo na caçamba e simplesmente atira o negócio pela janela! O vidro quebra com um estouro e aí começam uns gritos. Olho pro Nelly e a gente se prepara pra agarrar aquele viado burro e dar o fora dali.

– AVON CHAMA! TEM ALGUM VIADO EM CASA? – grita Franco da rua. Achei que o mundo inteiro ia aparecer pra ver o que tava acontecendo, mas fora uns movimentos numas cortinas não tem sinal nenhum de vida. A maioria dos prédios tá vazio, abandonado ou em reforma.

Menos a casa dos Frenchard. Um cara enorme é o primeiro a sair pela porta, e a mulher dele aparece na janela, aponta pro Franco e grita: – É ele! FOI VOCÊ! FOI VOCÊ! CÊ TENTOU MATAR MEU MENINO!

– Eu furei ele. – Franco dá uma risada de desprezo. – Se eu tivesse tentado matar o viado, agora ele ia tá morto!

O cara enorme tá furioso pra caralho e vem com tudo na direção do Franco. Franco fica esperando e aí dá um passo pra trás, pega a barra e acerta com tudo o queixo do infeliz, tudo num único movimento. O cara enorme desaba que nem um saco de batatas, é uma coisa triste de ver, o jeito que o cara cai, aí o Franco segura a barra com as duas mãos e enfia o lado pontudo com todo o peso do corpo bem nas bolas do coitado. Daí acerta uns golpes bem feios na cabeça dele. – VÊ SE NÃO PISA MAIS NO LEITH!

O cara não tá se mexendo e tem sangue na calçada inteira. Ah, cara. Que vontade de vomitar. Por algum motivo eu saio do carro e fico ao lado do Franco, que só me dá uma olhada rápida de canto de olho, totalmente maluco, e daí eu olho pro cara. A coisa tá feia. Cabeça totalmente aberta. Dentes espalhados na calçada que nem dominós em cima de uma mesa de pub. Puta merda.

A mulher tá gritando pros outros filhos. – PEGA ELE! – A menina tá roendo as unhas atrás da mão, mas a velha tá pulando mais que uma peixeira de Bowtow que encontrou merda na soleira da porta. – FALEI PRA CÊS PEGAREM ELE!

– PODEM VIR! – grita Begbie pros outros dois irmãos. O cara enorme, coitado, ainda tá gemendo no chão aos pés dele. Os irmãos ficam parados, cagados de medo, como se tivessem em choque.

Não são os únicos. – Puta que o pariu... – diz Larry, botando a cabeça pela janela do carro e com os olhos mais saltados que as bolas de um galgo reprodutor.

A mãe ainda tá gritando pros filhos. – PEGA ELE, SEUS MERDA INÚTIL!

Begbie dá uma olhada pra eles com um sorriso satisfeito. – Esses porra não vão fazer nada. – E daí olha pro viado musculoso esparramado no chão. – E esse aqui também não vai fazer porra nenhuma! – Ele dá risada olhando pra mina. – Se for menino, me avisa, mas se for menina não quero nem saber!

Ele atira a barra no chão, se vira pra gente, mexe a cabeça e entra no carro, ele na frente e eu atrás. Nelly liga o carro e a gente vai abandonando a cena. A mãe ainda tá gritando com os filhos, enquanto eles tentam, com ajuda da irmã, tirar o outro coitado da calçada.

Franco vira a cabeça pra mim e pro Larry. – É isso que acontece com quem se mete com Gangue do Leith. – E enquanto a gente passa por um círculo de casas dilapidadas com um comércio vagabundo ele mete a cabeça pela janela. – BANDO DE VAGABUNDO, NÃO QUERO VER NINGUÉM DE PILTON NA NOSSA ÁREA, SEUS PIOLHENTO DE MERDA!

Fico preocupado com a polícia, não que esses viados vão dedar alguém, e duvido que se prestem a interromper a hora do chá na Drylaw Station por causa de uma coisa dessas, mas algum velho pode ter feito um telefonema.

Mas o Franco tá em chamas, sentado com um sorrisão no meio da cara. – Quanta bobagem por causa de uma vadia que embuchou. Da próxima vez que eu comer ela vou é botar no cu, pra depois ninguém ficar me acusando de nada.

– O romance não morreu, né, Franco? – Nelly sorri no volante, saindo dos bloco e entrando na West Granton Road.

– Parece que não, mas esses viado de Pilton tão morto. Ainda não acabei o serviço com esses merda. Na verdade – o rosto dele se retorce de fúria – ainda nem comecei, porra!

Preciso admitir que tô me cagando de medo, e meu coração não volta a bater normalmente até que a gente estaciona o carro no esconderijo de Newhaven, que é meio do Nelly, mas Bebgie e Matty também parecem ter a chave, e daí a gente começa a se separar. Tô fazendo o caminho de volta pra Walk, pra me reencontrar com Mitch e Rents lá no pub. Quando eu chego, Mitch tá sozinho e não tem nem sinal do Rent Boy. – Cadê o Mark?

Mitch meio que dá de ombros. – Deu uma saída com um carinha que apareceu, aquele Matty. Disse que tinha um assunto pra tratar com ele e que voltava logo – explica Davie, e daí pergunta: – Tá tudo bem com ele? Achei o Mark meio estranho, quer dizer, mais estranho que de costume, e olha que trabalhei um tempão com esse viado.

– É... – Rio. – Bem, acho que tá tudo certo.

– Tem certeza?

– Deve tá fumando muito haxixe. E também acho que esse viado tá amando; aquela mina lá em Aberdeen. Deve ter ido pegar mais maconha ou anfetamina, se conheço bem esse viado – digo. E preciso dizer que tenho inveja do Rents, tudo tá dando certo pra ele; uma mina bonita, uma boa educação, e dá pra saber que depois de se formar ele vai se mudar pra algum outro lugar, não vai ficar por aqui. Admiro isso, porque eu sou apegado demais à minha área. Mas eu ia gostar de sair daqui. Seria ótimo.

– Certo – diz Davie, pegando o copo de cerveja e tomando até a última gota. Sacode o copo vazio e eu entendo o recado.

– Mais uma?

– Pode apostar.


Frio


Union Street

Mais um dia de perambulação estoica pela cidade, percorrendo a Union Street e sendo açoitado pelas rajadas de vento. Edimburgo podia ser um lugar desolador, mas Aberdeen realmente levou a pior. Dá pra desperdiçar uma vida inteira esperando o céu trocar de cinza pra azul. Mas tô passando a maior parte do meu tempo aqui agora e indo menos pra casa.

Na última vez que voltei, me entupi de heroína com o Matty, o Spud e o Keezbo no Swanney.

Não lembro como cheguei no apê do Swanney depois de sair de uma noite de drogas na moradia do junky veterano Dennis Ross naquela nojeira de Abbeyhill, embora eu lembre vagamente de vasculhar os bolsos por uma eternidade, procurando grana pra pagar o viado do táxi que não parava de cornetear na minha orelha, mas retornei ao mundo consciente em Tollcross. Lembro do sol nascendo e derramando na sala do Johnny uma luz devastadora que jogou de volta em cima da gente toda a nossa decadência e fraqueza humana. Levantei e fui com o Matty e o Spud encontrar o resto da turma no Roseburn Bar, que abriu cedo antes do clássico entre Hearts e Hibs, e depois eu e mais uns outros continuamos bebendo em Haymarket. As duas torcidas tavam se ameaçando pela rua e aquela merda toda, mas a fileira de policiais se mantinha firme entre elas. A partida foi um empate suado e sem gols. Como eu tava lesado, quase todo o jogo passou batido por mim, mas lembro que o Hibs quase meteu uma bola no finalzinho; McBride driblando um Jambo e passando pro Jukebox, que deixou outro marrom pra trás e passou pro Steve Cowan, que deu um petardo de direita que passou raspando e derrubou o goleiro. Sick Boy, o papa-feto, também tava entupido de heroína, mas continuava totalmente maluco, arrastando aquela pobrezinha da Maria atrás dele. Ela é meio novinha pra ele, e parecia totalmente perdida no meio do oceano revolto de malucos.

Depois do jogo, rolaram várias sandices com o Begbie. Ele, o Saybo e uns outros desceram a porrada nuns otários em Fountainbridge. Esse viado vai acabar preso em Saughton se continuar com essa merda, tenho certeza. Mas o caos de Edimburgo me fez lembrar do quanto aprendi a gostar do ritual da minha vida em Aberdeen. Me fez perceber que minha pretensão de ser um espírito livre era besteira. Na verdade, eu saturava a minha vida de rotina até ficar tão irritado que precisava subverter tudo com um rompante dramático. Mergulhar na heroína ajudava. Aqui, porém, eu tinha Fiona, meus estudos e minhas caminhadas. E minha necessidade de visitar Edimburgo tinha diminuído: eu tinha encontrado um fornecedor de heroína.

Caminhei pra caramba; investigando as ruas por horas sem fim, não importava o clima. Parecia que era sem rumo, mas eu era atraído invariavelmente pra área da estação de trem, na direção das docas. Eu parava e ficava olhando os barcos grandes saindo pra Orkney, Shetland e vai saber pra onde. As gaivotas gritavam em círculos no céu; às vezes eu caminhava pela Regent Quay e era como se elas tivessem dando risada da minha cara, como se soubessem o que eu pretendia, mesmo que eu próprio não soubesse.

Aqueles pubs náuticos: o Crown and Anchor Bar, a Regent Bridge Tavern (um barzinho ótimo) e o Cutter Wharf. E o Peep Peeps, bem mais sórdido, que fica na ruazinha lateral e onde eu sempre acabava parando; ficava ali sentado com minha cerveja, mas eu tava querendo outra coisa. Esperando chegar. Quase farejando. Sentado sempre no mesmo lugar, convencido de que ia aparecer, se eu esperasse o suficiente.

Foi lá que avistei ele; um viado sentado sozinho do lado do jukebox, lendo o Financial Times, com uma Pepsi na frente. Intocada. Um cabelo comprido, ensebado, preto e começando a ficar grisalho, no alto do corpo magro e cadavérico e com uma tonalidade azul translúcida. Uma barba rala e irregular brotando do ninho de espinhas amarelo-mostarda no queixo. Os dentes grandes e amarelados pareciam que iam sair voando se o viado espirrasse. Em outras palavras, ele transpirava heroína. Eu não. Eu era um estudante arrumadinho com uma namorada bonita. Eu não tinha como dar sinal, não com meus olhos brilhantes, pele lisa e dentes brancos. A Fiona tinha até me ensinado a usar fio dental. Mesmo assim, quando ele me viu, como se soubesse na hora. E eu também. Sentei do lado dele.

– Tudo em paz? – perguntou ele.

Não fazia sentido enrolar. – Não muito. Tô meio mal.

– Tremelique?

Vai saber que porra isso queria dizer, mas soou correto, e ao reconhecer o meu estado foi como se eu tivesse me dado permissão pra me sentir uma bosta. Antes, o mal-estar era um sentimento vago de sintomas como os de uma gripe; membros pesados, cabeça boiando, dores difusas. Agora havia a sensação de alguma coisa urgente escondida por trás desse abatimento.

– Tá precisando de um remédio, então?

– Sim.

Don me lançou um olhar baço como uma vela bruxuleante, similar ao de outros viciados mais velhos que conheci pelo caminho. – Sai e dá uma voltinha no quarteirão – disse-me ele com uma voz metálica e anasalada – e eu te encontro no portão das docas daqui a dez minutos – concluiu antes de voltar ao seu Financial Times.

Tive de esperar 17 minutos até o Don se dignar a sair do bar e vir na minha direção, parecendo tão detonado quanto eu. Eu não podia estar fisicamente viciado, não logo depois de um fim de semana me injetando, mas minha mente e meu corpo tavam se contorcendo de antecipação por uma dose. Fiz força pra esconder a excitação e a ansiedade quase massacrantes no caminho até o apê imundo dele, onde fechamos a compra.

A casa do Don podia ser a do Swanney, Dennis Ross, Mikey Forrester ou mesmo a nossa na Montgomery Street. Os mesmos cartazes meio descolados no papel de parede horrendo com padrões opressores colocado ali por uns viados que já tinham morrido ou tavam tão velhos que dava na mesma. Os cestos de lixo transbordando, uma pilha caótica de pratos numa pia que lembrava uma cidade mediterrânea atingida por um terremoto, e os obrigatórios montes de roupa suja pelo chão: os selos de garantia dos fracassados crônicos e desleixados em toda parte.

Don preparou a dose pra nós dois. Dei tapas no braço direito, fazendo a minha melhor veia no pulso saltar com obediência, e dei a picada. O produto era bom e o barato foi excelente. Percorreu meu corpo inteiro e o impacto me fez desabrochar irresistivelmente como a florescência da primavera. De repente alguma coisa frutosa e azeda começou a subir do meu estômago. Fiz menção de vomitar e Don meteu uma edição antiga do Financial Times embaixo do meu rosto, mas eu empurrei de volta. Aquele momento tinha passado e agora eu era invencível.

Embora eu não precisasse de mais nada, a não ser me deitar e curtir o efeito (incrível como a heroína torna possível ouvir até esses lixos imundos como a fita do Grateful Dead que o Don botou pra tocar), ele insistiu em puxar papo, mesmo depois de se picar. O viado aplicou uma tremenda duma dose e não pareceu se afetar quase nada. Fiquei imaginando a quantidade que ele andava injetando. – Mas então... cê é de Edimburgo, é? Tem heroína boa de sobra por lá.

– Sim... – falei. Tive vontade de explicar que no Leith a gente se considerava separado de Edimburgo, mas do jeito que eu tava agora, derretido e curtindo a onda, aquilo parecia uma questão trivial.

– É de lá que vem tudo. – Ergueu um saquinho plástico cheio de pó branco contra a luz de uma lâmpada descoberta. – É lá que fabricam: no belo centro de Gorgie. Cê conhece o Seeker?

Sei lá que caralho é esse papo de Gorgie, eu cresci no Leith, mas que sera. – Só pela reputação.

– Pois é, ele é barra-pesada, cara. Melhor ficar longe desse maluco.

Sorria diante da doce futilidade de tudo aquilo. Era inevitável que eu e esse tal de Seeker nos tornássemos no mínimo sócios de alguma espécie. A única coisa surpreendente era que isso ainda não tinha acontecido. Então fiquei ali sentado, ouvindo a ladainha monótona do Don e vendo a sala se enchendo de escuridão. Eu não tava nem um pouco interessado em nada que ele tava dizendo; o viado podia estar falando do cachorrinho que deu de presente pra sobrinha ou nos cadáveres que tavam debaixo do assoalho, mas a voz ritmada dele tinha um efeito calmante e confortante.

Quando consegui me mexer de novo, fui embora e voltei pro meu quarto na moradia estudantil. A Fiona tinha deixado um bilhete por baixo da porta.

M

Passei aqui e não encontrei nenhum lindo limpinho do Leith. Buá.

Te vejo amanhã na aula de Renascimento ou passo aqui de noite pra tomar um chá... e bolinhos?

Com amor

F xxxx

O bilhete tremia na minha mão. Eu amava essa garota, amava mesmo. Senti um espasmo terrível por dentro ao perceber, ali e naquele instante, que em breve ela ia ser menos importante pra mim do que um vagabundo que eu tinha acabado de conhecer e com quem não ia muito com a cara. Mas foi só um sussurro passageiro, logo abafado pelo discursinho da heroína, que cantarolava: “Cê tá bem, tá tudo bem.”

Mas não fui atrás dela. Fiquei deitado na minha cama, encarando as espirais do reboco do teto. Depois de cair num sono sofrido e anêmico, acordei com contrações de fome na luz fraca do início do dia. Percebi que não tinha comido nada no dia anterior. Minhas roupas tavam no chão, do lado da cama; de algum jeito eu tinha me livrado delas durante a noite. Tinha uma mancha amarela na dobra do meu braço. Naquela manhã, decidi não ir na aula sobre Renascimento.

Em vez disso, fui caminhar. Tava frio. Durante cerca de um minuto, o céu cinzento se abriu com ferocidade e a luz do sol conseguiu passar, se derramando por cima da cidade e refletindo no granito cintilante. O sangue pulsou na minha cabeça, me dando vontade de estar em outro lugar. Em seguida o sol sumiu e o manto cinzento nos encobriu de novo. Eu preferia assim; gosto do jeito que minha mente se desacelera ao caminhar debaixo de um céu desses, até eu ficar amortecido e vazio de pensamentos, livre do peso opressor das infinitas escolhas mundanas.

Eu só tinha que trocar uma sepultura por outra, mais acima no litoral. Mas tudo bem; Aberdeen me servia. Gostava da cidade e gostava das pessoas em geral. Eram calmas e tranquilas; diferentes da maioria dos cretinos presunçosos e autorreferentes das Terras Baixas, que vivem se gabando, acreditando que cê achava que eles eram grande coisa, enquanto na verdade são todos um pé no saco. Em vez da vida estudantil, em preferia beber com os velhos que me contavam histórias de pesca de arrastão e do cotidiano das docas. Coroas jogadores de bola que falavam de partidas e brigas do passado; eles raramente sentiam necessidade de enfeitar as histórias em favor próprio, era tudo muito casual. Eu sempre era o único aluno nesses lugares.

Mesmo assim, isso tudo ficava muito perto de Marischal College, o prédio da Universidade de Aberdeen, que parecia um projeto desenhado em papel quadriculado. Só de vez em quando eu me aventurava a entrar no bar do diretório estudantil com o Bisto e alguns outros, ou com a Fiona. Mas eu evitava ao máximo. Uma vez fui arrastado até lá pra comemorar o aniversário da Joanne. Ela ficou meio bêbada e falou comigo de um jeito agressivo e condenatório: – O que cê vive fazendo, Mark, onde cê vai?

Alguma outra pessoa disse algo sobre “o misterioso Mark Renton” e percebi que a Fiona me encarava com um olhar de incentivo. Tava todo mundo prestando atenção em mim, e eu só ri e disse alguma coisa sobre gostar de andar por aí. Na verdade, eu tava passando uma boa parte do meu tempo livre frequentando os bares da área das docas, esperando o Don.

Fiona apareceu de novo numa manhã de sábado. Ela não era nem um pouco boba, mas, embora a gente tivesse um relacionamento, cada um também tinha uma vida independente. Edimburgo ficava perto o bastante pra que eu pudesse dizer pra ela que ia passar a noite em casa por um motivo qualquer, em geral pra ficar de olho na minha família fragilizada. Mas eu ia pro sofá do Don, que ficava numa parte de Aberdeen em que poucos alunos ou professores apareciam. Dessa vez, porém, meu estado geral parecia confirmar a impressão que minha ausência das aulas durante a semana já tinha causado, ou seja, a de que algo tava errado. – Mark... onde cê tem andado... tá tudo bem?

– Acho que peguei uma gripe daquelas de derrubar.

– Cê tá com uma cara horrível... vou descer e comprar um antigripal, amado.

– Cê pode me fazer uma cópia das suas anotações do Renascimento?

– Claro que posso. Cê devia ter me falado que tava mal desse jeito, bobalhão – disse ela, me dando um beijo na testa suada e saindo. Voltou cerca de meia hora depois com os remédios. Depois me deixou ali e foi pro trabalho que ela fazia no sábado. Esperei um pouco e então, ansioso pra sair do cheiro rançoso e químico daquele quarto, o meu cheiro (como ela podia não sentir o meu cheiro, se eu próprio sentia?), fiz a mesma coisa que ela e fui pra rua.

Fiona fazia trabalho voluntário nos sábados com crianças carentes; uns pivetinhos briguentos que adoravam ela. Psicopatas embrionários com orelhas de abano ficavam vermelhos de vergonha quando ela os cumprimentava; garotinhas de olhar fulminante, mascando chiclete, começavam a implorar atenção de uma hora pra outra. Algumas semanas atrás, num dos meus passeios sem rumo, vi ela encontrando uma turma deles em frente ao teatro Lemon Tree. Parecia feliz; era careta. Andava falando sobre a gente procurar um apê pra morar junto ano que vem. Depois formatura, emprego das nove às cinco e outro apê com financiamento. Depois noivado. Depois casamento. Financiamento maior ainda pra comprar uma casa. Filhos. Despesas. Depois os quatro Ds: desencanto, divórcio, doença e decesso. Apesar dela fazer questão de dizer o contrário, ela era assim. Era isso que ela esperava. Mas eu amava ela, e por isso lutava pra esconder os sentimentos ruins que ela despertava em mim. Ali parado na rua, vendo ela conduzir a garotada como um bando de gatos pra dentro do teatro, eu sabia que nunca ia conseguir ser daquele jeito. Nunca ia poder ter ela: ter ela de verdade, no sentido de me entregar pra ela. Ou talvez eu só estivesse agindo como um babaca. Tinha mais que uma migalha de aceitação pra mim no mundo dela. As aspirações dos meus pais eram dignas. Eu odiava essa merda dessa palavra. Me dava calafrios.

Mas eles se importavam.

Dentro da livraria, fiquei numa posição de onde podia espiar, escutando o que diziam na cafeteria ao lado. Tinha um quatro-olhos desajeitado e entusiasmado junto com Fi e as crianças. – Ei, meninada, podem largar o papel e caneta agora mesmo e me acompanhar?

Ela acabaria ficando com um cara como ele. Talvez uma versão mais descolada, que comia alguém de vez em quando, talvez um viado um pouco mais arrogante, que cedo ou tarde acabaria sacaneando ela; mas essencialmente a mesma coisa. Dá pra fazer o cara vestir um anoraque ou meter óculos de fundo de garrafa bele, ou botar uma camisa de rúgbi e um monte de músculos; não faria diferença alguma, um janotinha é sempre um janotinha.

Vou pra casa. Quando Fiona chega, tô sentado esperando. Não tomei nada além de dois antigripais. O cabelo dela tá molhado de chuva. Ela tira uma toalha da mochila e se seca. A chaleira aquece e eu preparo um pouco de chocolate quente.

Sabendo da minha queda por cabelos molhados, Fiona lança um olhar na direção da cama, mas então percebe que o grau da minha doença elimina a possibilidade de que eu a agarre e jogue no colchão. – Cê tá tremendo, amor. Devia ir no médico...

– Posso te contar uma coisa?

Assim que as pupilas dela se dilatam e ela diz “É claro, Mark, o que foi?”, sei que não vou ser capaz de dizer o que pretendo, mas pra esconder isso tenho que contar alguma outra coisa igualmente profunda e importante.

– Meu irmão menor – me pego dizendo, quase chocado com minha própria voz, como se uma outra pessoa no recinto tivesse me dedurado. – Nunca contei isso pra ninguém...

Ela assente com a cabeça, enrola os cabelos com a toalha e pega a caneca fumegante. Parece aquela mina que toma um pé na bunda no comercial de Nescafé.

Limpo a garganta enquanto ela senta na poltrona em posição de lótus. – O Pequeno Davie, eu percebi uma vez, tinha uma queda pela Mary Marquis, que apresentava o noticiário na TV. Cê deve ter visto, ela tem um visual... italiano, digamos; cabelo preto, um monte de maquiagem, com atenção especial aos olhos, e batom vermelho brilhante.

– Acho que sei quem é, amor. A do jornal da noite?

– Sim, ela mesma. Bom, eu meio que percebi que o Pequeno Davie ficava agitado quando ela falava pra câmera. A respiração dele ficava mais intensa. E não dava pra não reparar no que acontecia ali na calça de moletom...

Fiona dá um aceno de cabeça compreensivo. Tem uma mancha vermelha no joelho da calça jeans dela, eu não tinha visto antes. Deve ser tinta de alguma oficina com a crianças.

– Eu costumava ficar cuidando dele na hora do chá, nas sextas. Quando começava o noticiário local, eu via o Davie encarando a tela com o pau visivelmente ereto, e aí comecei a pensar, caralho, ele tem 15 anos, porra, coitado do pirralho... entende o que eu tô dizendo?

– Sim – diz Fiona com um tom pesaroso, mas analítico. – Tipo, ele tem uma sexualidade, mas nenhuma válvula de escape.

– Exatamente – expiro, aliviado porque finalmente alguém é capaz de entender essa porra. – Então... decidi que ia bater uma punheta pra ele.

Os olhos da Fiona se cravam no chão por um momento e depois procuram os meus. Seus lábios se comprimem. Ela não tá me estimulando a prosseguir nem me pedindo pra parar.

Respiro fundo. – E foi o que eu fiz. Ele pareceu ficar aliviado.

– Ai, Mark...

– Eu sei, eu sei... ele é meu irmão e é um ato sexual, então não foi uma atitude muito sensata. Hoje eu percebo isso. Só que na época eu só tava pensando em aliviar o tormento dele, igual a bater nas costas dele pra ajudar a drenar o fluido do peito. Então eu fiz. O pobrezinho ficou maluco e esporrou no que pareceu ser uma fração de segundo. Depois ele caiu no sono, todo feliz. Nunca tinha visto ele tão em paz. Limpei ele, e então ele tirou a melhor soneca da vida. De modo que eu pensei: tá tudo bem.

– O que aconteceu? – Ela relaxa a posição e larga a caneca no piso, sem tirar os olhos de mim nem por um instante.

– Ele começou a ficar na expectativa. Crianças autistas são programadas pra aderir a uma rotina. Como um relógio. Refeições sempre na mesma hora, sono sempre na mesma hora. Aquilo virou uma espécie de presentinho de sexta-feira pra ele; não fossem os outros problemas físicos, ele continuaria fazendo sozinho, dia e noite. Mas nos outros dias em que a TV ficava ligada ele olhava pra tela, depois pra mim e gritava – e aí eu imito aquele guincho horrível – MAY-HAY! MAY-HAY!... e é claro que eu não podia mais ajudar, com todo mundo em casa.

Agora a expressão da Fiona é de aversão. Ela senta bem reto na poltrona, de pernas cruzadas.

– Todo mundo pensava que ele tava gritando “Marky” e achava bonitinho. Só eu e ele sabíamos que ele tava gritando “Mary” – explico, e agora a Fiona tá tão imóvel que começo a ficar nervoso. – Cê acha que eu fiz errado?

– Não... – diz ela, hesitante – claro que não, amor... é só que... é só que... cê não podia contar pra eles do que aconteceu com o Davie?

– A gente não tem esse tipo de relação. São os meus pais.

Fiona acena com a cabeça pensativamente, pega a caneca e acaricia entre as mãos.

– Bom, continuei batendo punheta pra ele, toda sexta, diante da imagem da Mary na tevê. Não era fácil; foi ficando cada vez mais complicado. Ela tava lendo as notícias no estúdio e ele tava quase gozando, mas aí cortavam pra uma tomada externa e ele se encolhia todo, gritava e às vezes tinha um acesso de tosse. A coisa continuou nesse rumo. Chegou a um ponto em que eu tinha que caprichar muito pra conseguir fazer ele gozar. Bem, aí teve o dia em que esqueci que o Billy tinha folga em Belfast e tava vindo pra casa. Não ouvi ele chegando de mansinho, como ele costumava entrar pra fazer surpresa pra mãe. Ele chegou por trás da gente no sofá... bem na hora que a Mary apareceu de novo na tela...

Os olhos da Fiona ficam arregalados. – Então... então... ele te pegou fazendo aquilo no Davie? Seu irmão, o Billy?

– Pior. A caceta do Pequeno Davie entrou em erupção, o jorro saiu voando no ar e a porra acertou o Billy em cheio como uma serpentina, no rosto e na frente do uniforme do exército.

Fiona leva as mãos à boca. – Ai meu Deus... ai, Mark... o que aconteceu?

– Ele me arrancou pra longe do Davie, me afastou do sofá e me acertou um chute nas costelas. Levantei e até que consegui acertar uns socos, mas tomei uma surra. O Pequeno Davie só gritava. Os vizinhos escutaram a briga e a sra. McGoldrick começou a bater na porta ameaçando chamar a polícia, o que provavelmente me livrou de uma sova muito maior. A gente acabou se acalmando, mas quando o pai e a mãe chegaram perceberam na hora que a gente tinha brigado. Fomos interrogados e cada um contou seu lado da história.

Começou a chover. Escuto os pingos batendo no vidro.

– O que eles disseram?

– Eles mais ou menos ficaram do lado dele. Disseram que eu era um merdinha doente e depravado. Eu mal tinha acabado o colégio; não conseguia articular o que pretendia ao fazer aquilo com ele. O direito dos deficientes físicos à sexualidade! – Bato no peito, como se ela tivesse me questionado, mas ela se mantém tesa, concordando com a cabeça numa tentativa de mostrar empatia. Diante do silêncio dela, porém, me dou conta da impressão que tô passando. Sei que se Fiona tivesse uma irmã deficiente, a última coisa que passaria pela cabeça dela seria tocar uma siririca pra mina diante da imagem de, digamos, o David Hunter de Crossroads. Pela primeira vez, sou obrigado a reconhecer que talvez eu seja, em algum nível, um pervertido, ou pelo menos um cara equivocado. Meu tom de voz se reduz a um apelo angustiado: – Ele tava sofrendo, e eu só tava tentando dar algum alívio pro pobre desgraçado. Não dá pra dizer que eu gostei de fazer aquilo!

Por um momento, no meio da luz que se esvai, Fiona me observa com um olhar quase vazio, mas seu rosto mantém a compostura de uma pessoa perfeitamente em paz. – Você não pode dizer isso pra eles agora? Pros seus pais?

– Já tentei algumas vezes, mas o momento certo nunca chega. Além disso, acho que já decidiram o que pensam de mim.

Ela assopra entre os lábios apertados. – Por que não escreve uma carta pra eles? Coloca tudo ali, preto no branco.

– Não sei, Fi... ia parecer que eu tava dando mais importância que o devido... – digo, me sentindo cansado e enjoado de repente. Me encosto na poltrona, mas em seguida me inclino de novo pra frente e cruzo os braços em volta do corpo.

– Mas é óbvio que isso significa alguma coisa pra eles, Mark. E pra você também, do contrário cê não estaria contando isso pra mim.

– Eu sei. – Olho pra ela com ar derrotado. – Vou pensar nisso. Obrigado por escutar.

– É claro, amor... – Fiona abre um sorriso tristonho, percebendo como estou suando e me contorcendo. – Vou sair agora, querido, e te deixar descansando um pouco – ela sussurra, e então põe a mão e dá um beijo na minha testa suada. O abraço dela parece duro e pesado, e fico aliviado quando ela sai.

Assim que passa um bom par de minutos, desço até o telefone público e ligo pro Sick Boy na Montgomery Street. Começo a falar descontroladamente, conto a respeito de Don e pergunto como ele anda fazendo pra descolar heroína. Ele me diz: – Cê não se interessa por nada além de um pico.

Protestos parecem inapropriados e fúteis, e pela primeira vez me dou conta de que essa afirmação é basicamente verdadeira. O que me faz pensar: tá realmente na hora de parar. Não ouço mais nada que ele diz até as moedas acabarem.

Cê precisa parar com isso agora mesmo ou vai arruinar tudo.

O que eu fiz, então, foi sair e atravessar a pé a cidade fria e tempestuosa até a Union Street.


Baltic Street

O gosto metálico de sangue na boca fez Maria Anderson se dar conta de que estava sem goma de mascar. Ela cuspiu na pedra cinza molhada, puxou uma mecha do cabelo de trás da orelha, enrolou numa espiral curta em volta do dedo e continuou repetindo com outras mechas. Eles ainda não tinham pegado Dickson, mas a fissura não podia comprometer o imperativo de descolar um bagulho. Depois que tudo acabasse, ela e Simon iriam embora juntos para Londres ou algo assim. Ele tinha grandes planos.

Sick Boy a vigiava da soleira de uma porta. Observando seu comportamento compulsivo, ele lembrava daquele cachorro que os Renton tinham, que dava três voltas em torno de si mesmo antes de sossegar. As coisas tinham degringolado rápido depois de um início muito promissor. Sick Boy havia experimentado a amarga dor da decepção ao descobrir que não tinha sido o primeiro homem de Maria. Algum menino da escola e um espanhol oportunista tinham chegado no ouro primeiro. Para compensar, ele expandiu os horizontes dela e alguns de seus próprios também. Ela atingia sua melhor forma quando começava a sentir falta da droga; aquela fase breve, antes da debilitação total, em que você imagina que pode expulsar a fissura que se alastra pelo organismo com uma trepada. Sob efeito da heroína, ela era bastante obediente, mas fazê-la assumir as posições com algum entusiasmo era um problema.

Surge o ruído de um motor e um carro sacolejando nos paralelepípedos molhados da rua, refletindo a luz laranja dos postes. O Volvo estaciona perto de Maria; a janela abre e um homem pequeno fica passando os olhos nela, depois se dirige a Sick Boy, que se aproxima movendo a cabeça como um falcão se livrando do capuz de treinamento. – A amiga quer uma carona?

– Arrã – diz ele, olhando para o rosto vazio e os olhos vidrados, abandonados, de Maria. Ele conversa com o homem por um tempo e depois a empurra. – Vai, Maria, entra aí, pode confiar no rapaz. Ele vai te levar pra casa dele e depois te deixar aqui. Te encontro no apê.

Ela estremece de nervosismo. – Não dá pra levar ele lá em casa?

– Cê não vai querer que todo mundo, nossos vizinhos e tal, fique sabendo. Aquela sra. Dobson tava xeretando outro dia. – Seus olhos grandes rastreiam a rua. – Vai! Te vejo de noite, gatinha.

– Não quero... – ela protesta.

Este será seu terceiro cliente. Dessie Spencer, do bar, repetiu a dose, e depois foi Jimmy Caldwell. Ele odiava ter que dividi-la, mas era apenas sexo em troca de dinheiro e não significava nada. – Você vai entrar? – choramingou o almofadinha no carro.

Sick Boy sente cheiro de porco de folga, mas eles também levam carteira no bolso e, em todo caso, ele está fissurado demais para se importar. Na verdade, ser detido e encarcerado agora parece menos uma desvantagem e mais uma boa oportunidade para ficar limpo. Tudo está dando errado. Todo mundo está usando heroína, tirando Tommy, Begbie, Segundo Lugar e Gav, mas praticamente todos os outros. Maria era mais ávida do que ele imaginava, não apenas sexualmente, era também um verdadeiro cão farejador de heroína. Estar com ela ajudou a deixar o seu próprio vício totalmente fora de controle. Ela fica toda dura e tensa, relutando a entrar no carro do almofadinha. Sick Boy tenta forçá-la.– Vai duma vez!

Ela literalmente fincou os calcanhares nos paralelepípedos. – Mas eu não quero, Simon...

– Não posso ficar esperando – gemeu o almofadinha. – Você vem ou não? Que se foda! – E ele liga o carro e pisa fundo.

Sick Boy dá um tapa na testa e vê um saquinho de plástico contendo uma pelotinha e alguns farelos preciosos de heroína voando para longe. Ele se vira para Maria e, frustrado, enuncia o que o almofadinha estava pensando: – Isso não foi profissional, caralho!

– Desculpa, é que eu não quero fazer isso... – geme ela, fraquejando as pernas, fissurada e angustiada, segurando a lapela da jaqueta espinha de peixe prateada de Sick Boy. – Só queria ficar com você, Simon...

Sick Boy fica chocado com o desprezo abrasivo que sente por esta garota que há tão pouco tempo era um objeto de desejo incontrolável. Incrível como ela se rendeu às drogas com facilidade. Genes de cheiradora, ele presume, afastando as mãos dela da jaqueta e cantarolando a música do News at Ten. – Dih-dih-dih, di-di-dih-dih! Estamos na fissura. Ding! Precisamos de heroína ou vamos ficar ainda mais na fissura. Ding! Custa uma grana! Ding! – Os lábios de Maria se dobram para fora e ela se desvencilha dele. Ele contempla seu aspecto de mendiga e sente uma dor na consciência em meio à síndrome de abstinência; ela não está legal para andar nas ruas. – Tá bem, tá bem, gata, cê volta pra casa. Vou trazer alguém pra uma festinha.

– Cê ainda me ama? – choraminga ela.

– Claro que sim. – Ele a toma nos braços e fica feliz ao sentir o pau endurecendo. Ele a deseja, acredita que a ama. Se eles fossem diferentes, se ele fosse diferente... – Volta logo pra dentro e me espera.

Maria vai embora se arrastando. Sick Boy a observa. Tem alguma coisa no modo como ela caminha, mais atrevida e segura à medida que se afasta, que quase desperta nele uma suspeita de que está sendo enganado. Será que ela realmente acredita que ele vai matar um ex-policial junto com ela? O maior problema de oferecê-la a outros caras é que ela estava começando a compreender o poder que tinha sobre eles. Hipnotizou o gordo Caldwell na hora, aquela noite. Um otário viciado como aquele pode ser convencido a fazer qualquer coisa em troca de buceta novinha. Poderá ficar difícil mantê-la sob controle.

Ele caminha sem rumo por algum tempo, enquanto seu cérebro é consumido pelo desejo de fugir em debandada. Na Woolworths do largo da Walk, um cartaz tosco feito à mão com purpurina colada nas bordas anuncia que faltam apenas 21 dias de compras até o Natal. Avista alguém de moletom de capuz azul-escuro da Wrangler tremendo na garoa encardida, debaixo do toldo do shopping center de Kirkgate, e sabe que é Spud Murphy.

– Cê tem algo? – eles perguntam um ao outro ao mesmo tempo.

– Não – diz Spud, e Sick Boy sacode a cabeça.

– Te vi mais cedo com aquela miudinha, a Maria. – Spud arrisca puxar assunto mostrando um rosto pálido, tristonho e rabugento como o de um velho monge embaixo do capuz.

– Nem me fala dela. Essa putinha idiota acha que pode nos sustentar fazendo chupetinha por cinco contos. Muito sem noção. Tá cheio de buceta mais apertada, de cu mais apertado por aí. Ela até podia se ajeitar, mas ela tem que aprender. Sou muito bonzinho, essa é a porra do meu problema.

Esquece a Maria, Spud é o verdadeiro inocente aqui, pensa Sick Boy, sabendo que o amigo provavelmente está colocando seu discurso mal-humorado na conta dos delírios de drogado, reajustando-o rápido na mente para obter algo mais aceitável. Pode quase ouvir o mantra interno de Spud, cheio de cãezinhos, gatinhos e coelhinhos peludos, abafando o discurso asqueroso que saiu de sua boca. Por uma fração de segundo, deseja ser como ele, mas em questão de instantes algo surge em seu íntimo para desbancar essa ideia.

Os amigos caminham por um tempo, mas a chuva se intensifica até ultrapassar o nível da mera aporrinhação e os obriga a parar na frente da loja de tapetes debaixo da ponte na Walk. – Eles vão botar abaixo esse troço – diz Spud, olhando para cima. – A ponte. É da linha antiga pra Estação Central do Leith.

– Então tá confirmado: não tem mais como fugir dessa ratoeira de merda.

Uma carranca toma conta do rosto de Spud. Sick Boy sabe que ele odeia ouvir alguém falando mal do Leith e considera imperdoável quando a crítica vem de um nativo. Mas Spud está desesperado, com frio e sem um tostão no bolso, portanto informa ao amigo: – Me expulsaram de casa.

– Que merda.

A carência escorre dos olhos de Spud, que ficam grandes, luminosos e sinistros como os de um personagem patético da Disney. – Eu tava pensando... será que eu podia ficar no teu apê? Só uns dias, tipo assim, cara, pra eu começar a ajeitar a vida...

Sick Boy lhe entrega as chaves com toda a boa vontade, para visível espanto de Spud. – Claro que pode, parcero, sempre que precisar, cê tá ligado. Sobe lá, acende o fogo e eu te encontro lá daqui a pouco. Tenho que dar um pulo no South Side pra ver a minha mãe – diz, enquanto Spud prende as chaves na mão encardida com receio de que sejam cruelmente puxadas de volta.

– Falô, gatuno... cê é parcero mesmo – diz ele com um suspiro de alívio.

O cara precisa ajudar os parceros, pensa Sick Boy, sentindo a comichão agradável da virtude, e então sai caminhando pela Walk, refazendo sua estratégia. O plano agora era tirar uma grana da mãe e das irmãs, ir até o Johnny Swan, comprar heroína, voltar ao porto, entrar num bar e procurar um cliente para Maria. Ele se vira e enxerga o agradecido Spud cambaleando em direção à Constitution Street, provavelmente indo para a St. Mary’s Star of the Sea para acender uma vela e rezar pedindo perdão para o amigo e um pouco de heroína a Deus. Sem dúvida, pensa Sick Boy, encontrará Cathy Renton distraída, mergulhando caramelos na fonte de água benta.

Sick Boy tem a quantidade exata de moedas para pegar o ônibus até. Mas assim que entra na nova casa da mãe, sente alguma coisa morrer dentro de si. Seu pai está ali, sentado na velha poltrona, como se nunca tivesse saído; impassível, hipnotizado pelo programa policial na TV. E sua mãe está ao lado, com um sorriso largo e satisfeito.

– Que belo chiqueiro, hein? – Davy Williamson abre um sorrisinho irônico para o filho.

– Cê deixou ele voltar pra casa... – suspira Sick Boy, olhando para a mãe. – Não dá pra acreditar. – Ele concentra nela todas as forças acusatórias de filho único e mimado. – Cê deixou ele voltar pra casa de novo. Por quê? Por que ce fez isso?

Ela não consegue falar. O pai toca um violino invisível e faz cara de sofrimento. – É assim e pronto. Para de choramingar, menino.

– Filho, eu e o seu pai... – Tentando protestar, a mãe começa a encontrar palavras, mas é suavemente interrompida pelo marido.

– Shh, shh, querida. – Davy Williamsom põe o dedo nos lábios. Depois de silenciar a esposa, o pai se volta para o filho e fala com firmeza: – Não se mete. – Toca o próprio nariz, uma quilha impressionante, cheia de veias rompidas. – Não mete a porra do nariz nisso!

Sick Boy se retesa e fecha os punhos. – Seu merda...

Com um gesto de desdém grandiloquente, Davy Williamson estica lentamente o braço e mostra a palma da mão. – Não me meto na sua vida amorosa, então espero que também não se meta na minha. – Sorri, inclinando a cabeça com uma expressão debochada. A mãe parece atônita, e um suspiro involuntário escapa do peito de Sick Boy. Esse viado sabe de tudo. – Cê não ia gostar disso, né? – O pai confirma com um sorriso. – Bom, então lembra de não meter o nariz na minha vida.

– Do que cês tão falando...? – pergunta sua mãe.

Davy Williamson declara num tom ao mesmo tempo formal e gozador: – De coisa nenhuma, meu bem, tá tudo sob controle de novo. – Ele abre um sorrisinho cúmplice para Sick Boy. – Não é verdade, meu bambino?

– Vai se fuder! – grita Sick Boy, mas quem está indo embora é ele, ouvindo como trilha sonora os apelos da mãe e a risada sarcástica do pai enquanto desaparece na South Clerk Street.

Em total estado de confusão, ele caminha a passos largos por Bridges; ainda está duro e não sabe se para em Montgomery Street para ver Spud ou se vai direto ao Leith para ver Maria. É isso. Irá até lá e a levará para a cama, e então a abraçará, protegerá e amará; como era para ser, como deveria ter feito desde sempre. Nada de vasculhar os pubs atrás de uns vagabundos imundos para levar até ela; ficariam os dois deitados na cama por dias, deixando aquela merda toda sair do organismo pelo suor, se abraçando, cuidando um do outro, até que o pesadelo acabasse e eles finalmente despertassem para uma nova era de ouro.

É o único jeito de seguir em frente...

Então a buzina de um carro toca e um Datsun arruinado estaciona. O carro transporta a figura corpulenta de Jimmy Caldwell, que abaixa a janela. – Que festa aquela noite, hein? Aquela sua namoradinha. Eu tava falando dela pro Clint. – Ele aponta com a cabeça para o comparsa no banco do carona, um sujeito meio desfigurado que abre um sorriso lascivo. Um dente de ouro solitário brilha como uma mansão erguida numa pilha de destroços.

– Tá na pilha de outra festa agora? – pergunta Sick Boy, se inclinando sobre a janela com o raciocínio paralisado pelo curto-circuito instantâneo da abstinência.

– Entra aí atrás. – Caldwell abre um sorriso amistoso. – A gente tem os pila, mostra as lira e as mina pira, hein Si?

– Arrã – responde Sick Boy meio sem pensar enquanto se enfia no espaço exíguo, sentindo os ossos doloridos protestarem contra o assento duro de couro. – Le cose si fanno per soldi...


Dançarino celestial

Tô sentado no bar do hotel, esperando a Fiona. Pensando naquele sorriso de derreter o coração e naquela expressão sensual e séria que ela faz quando estuda livros e os comentários feitos pelos professores. Sempre que ela entra no mesmo recinto que eu, meu espírito vai às alturas. O que eu sinto é deleite puro e simples. Nossa vida é feita de beijos apaixonados e embalos de riso alegre. Adoro observar ela durante as aulas; mesmo que a gente esteja transando, ainda é muito bom simplesmente olhar pra ela.

A gente tá junto há quase quatro meses. Sem contar o relacionamento estranho que tenho com Hazel, é o maior tempo que já passei com uma mina. Mas eu ainda não aprendi praticamente porra nenhuma; porque esta noite acaba. Hoje, nesse bar de hotel, vou dar um fora na melhor namorada que já tive; a mina mais bonita e inteligente que já conheci. Tá, a concorrência não é lá essas coisas, mas continua sendo verdade.

Estou num barzinho de um hotel pequeno, e dá pra dizer também que fica num país pequeno, mas a Escócia sempre pareceu grande pra mim, porque no fundo só conheci o meu próprio cantinho dentro dele. Esse hotel parece um lugar frequentado por representantes de vendas. Um carpete azul brilhante cobrindo o chão com uma espessura humilde; fileiras de cadeiras fixas nas paredes, com mesas de cobre castigadas e banquinhos em volta; em cima da lareira tem um quadro assinado do Martin Buchan com o uniforme do Aberdeen.

O garçom tá passando o pano em copos de vinho. A porta abre e enxergo o que parece ser uma silhueta feminina hesitando um instante por trás do vidro estriado. Num primeiro momento penso que é a Fiona, mas é uma mulher mais velha. Deve ter a idade da minha mãe; quarenta e alguma coisa, de saia preta justa e uma blusa branca.

Fiona Conyers. A coragem de ser cruel. De dizer adeus. Os pensamentos na minha cabeça são impossíveis de compartilhar. O pint de lager tá intocado na minha frente. Não é isso que eu quero. O que eu quero tá ali nas docas, no apê do Don. Ou em Edimburgo. Com o Johnny Swan.

Onde ela tá? Olho pro relógio na parede; anda rápido, como os relógios de todos os bares, tenho certeza disso. Pode ser que ela tenha me dado o fora primeiro. Seria uma boa. Problema resolvido.

A Fiona não vai ficar disponível muito tempo no mercado. Ela é uma beldade; além disso, é uma estudante com uma buceta entre as pernas, morando longe de casa. Vai encontrar alguém que seja produto digno de namoro, como diria aquele traste da Joanne. Mark era legal, mas não era exatamente PDN.

A mina no bar tá batendo papo com um carinha... Não, cara. Passei tempo demais na Terra da Ovelha. Agora entendi; ela é uma piranha, uma meretriz, uma tremenda duma puta. Olha só pra isso, viado, não tô acreditando! Adoro o jeito que ela segura o cigarro, o sorriso fabricado, a risada rouca e profunda, direto de um filme noir de Hollywood, onde as mulheres são umas vadias com a bunda dura e a boca suja e afiada.

Acabo de decidir que essa mulher é a filha da puta mais cool da face da terra. Uma prostituta de meia-idade em Aberdeen, dentro de um hotel cheio de representantes de vendas que precisam brigar com a empresa por causa de cada sanduíche que aparece no relatório de gastos. Vocês aceitam cupons de almoço? Olha pra esse cara. Como eu e a Fiona daqui a anos. Que se foda, nunca vou ser desse jeito. Nunca, jamais.

A piranha dá mais uma risada alta e orgulhosa. Adoro as pessoas que têm essa risada enorme que manda todo mundo se fuder. Principalmente as minas. Eu e a Fiona dávamos muita risada junto. Ela continua dando. Rindo pelos dois.

Sempre do meu lado. No velório do Pequeno Davie e tudo.

O sexo com a Fiona podia não ser muito aventureiro, mas em termos emocionais foi o mais intenso que conheci na vida. Ela me ajudou a superar aquela coisa meio reprimida que sempre tive em relação ao sexo. Na verdade, só de sair de casa já melhorou, porque eu sempre associava sexo com maluquice retardada. Meus pais dando banho no Pequeno Davie e fazendo piada com a ereção dele. O pau do meu irmãozinho doente mental tinha que ser grotescamente avantajado, é claro, mais uma piada cruel pra cima da gente, um troço que ele nunca ia poder usar, tirando a ajudinha que dei com a Mary, mas que era bem maior que o meu ou o do Billy.

A vergonha. O constrangimento. O horror.

A drenagem postural.

Duf.

Duf.

Duf.

Limpar os pulmões. Pintar a Forth Road Bridge. Remendar o casco do navio.

Tá pronto.

Faça de novo.

Acabou. Nunca mais vou ter que ouvir aquelas pancadas, chiados, tosses e engasgos horríveis de novo.

Nunca, mas nunca mesmo, levei uma mina pra minha casa: só os meus amigos mais próximos sabiam da situação. Sick Boy, surpreendentemente, tratava bem o Pequeno Davie e sabia encantar os meus pais. Tommy sabia lidar com o assunto também, interagia com o merdinha, brincava e dava risada. Keezbo também. Matty parecia ficar constrangido, mas aguentava o Pequeno Davie babando e soltando ranho em cima dele. Spud atribuía poderes místicos ao Davie, crendo que ele via bem mais do que podia expressar. Begbie era honesto; se limitava a sentar na cozinha com o Billy, fumando cigarros, soprando a fumaça pela janela, ignorando que o viadinho tava ali se contorcendo e balbuciando enquanto a minha mãe não parava de bater nas costas dele pra impedir o acúmulo de fluidos nos brônquios.

Como eu me sentia a respeito dele...?

E aqui tô eu sentado nesse bar de hotel, ciente de que é tudo babaquice. Traçar uma linha do Pequeno Davie até essa situação toda; o vício em heroína, a solteirice iminente que estará valendo a partir do momento em que Fiona cruzar a porta. Porque o Sick Boy, o Matty, o Spud, eles nunca tiveram um Pequeno Davie. Nunca precisaram de um pra se viciar. Meu irmão mais velho, Billy, teve, mas nem ao menos fumou um baseado. Os viados que tentam usar psicanálise em cima de gente fudida esquecem do ponto principal: às vezes cê faz porque tá ali à disposição e cê é assim. Vi meus pais se trucidarem e arrancar pela raiz a árvore genealógica da família um do outro pra tentar determinar de onde vieram os genes defeituosos do Pequeno Davie. Mas no fim eles acabaram aceitando que não importa. Simplesmente é assim.

E aí vem a Fiona. Blusa verde-escura com capuz. Calça de lona preta e justa. Luvas pretas. Batom roxo. Me dando vontade de chorar com o sorriso largo e acolhedor. – Desculpa, Mark, meu pai me ligou – ela para abruptamente. – O que foi, amado? Alguma coisa errada?

– Senta aí.

Não diga...

Ela senta. O rosto dela. Não vou conseguir. Preciso conseguir. Porque de alguma forma sinto que vai ser a última coisa generosa que eu vou ser capaz de fazer. Não posso parar. Vou magoar ela agora, mas é pro bem dela. Um medo parecido com o que a maconha me causa toma conta de mim. – Tava pensando que é melhor a gente se separar, Fi.

Caralho... eu realmente acabei de dizer isso?

– Hein? – Ela tenta rir na minha cara. Uma risada amarga, como se eu tivesse fazendo uma brincadeira doentia. – Do que cê tá falando? Que cê quer dizer, Mark? Qual o problema?

É uma piada. Dê risada. Diga que é uma piada. Diga: na verdade, eu tava pensando que a gente devia arranjar um lugar pra morar junto...

– Você e eu. Acho que a gente devia se separar. – Uma pausa. – Quero me separar. Quero que a gente pare de se ver.

– Mas por quê... – Ela literalmente bota a mão no peito, no coração, e o meu quase se parte ao mesmo tempo. – Cê tá com outra. Em Edimburgo, aquela mina, a Hazel...

– Não, não tô com mais ninguém. Juro. Só acho que a gente devia partir pra outra. Não quero ficar amarrado. Tô pensando em largar, sabe, a faculdade e tal.

Diga que anda deprimido. Você não sabe o que está dizendo. FALA PRA ELA...

Fiona fica de queixo caído. Parece mais estúpida e humilhada do que eu jamais poderia conceber. A culpa é minha. Fui eu. Tudo isso vem de mim. Essa merda. – E gente tava fazendo planos, Mark! A gente ia viajar!

– Sim, mas eu preciso ir embora sozinho – digo, sentindo que estou entrando num ritmo de apatia cruel. Encontrando a filhadaputice necessária pra levar adiante uma coisa dessas.

– Mas por quê? Tem alguma coisa errada com você, cê anda muito estranho. Cê tá sempre passando mal de gripe, ficou o inverno todo desse jeito. Seu irmão...

– Sim... sim... é isso. Diga que é por causa dele. Diga ALGUMA COISA PRA ELA...

– Não tem nada a ver com meu irmão menor – enfatizo. Mais uma pausa. Chegou a hora da confissão. – Ando usando heroína.

– Ai, Mark... – Dá pra ver que ela tá absorvendo a informação. As marcas no meu pulso e na dobra do braço. Nariz sempre fungando. A febre. A letargia. O fedor. A diminuição e a recusa do sexo. Os segredos. Fica quase aliviada. – Desde quando?

Parece que é desde sempre, embora não seja. – Verão passado.

Alguma coisa faísca nos olhos dela, e então ela dá sua investida. – É a doença do Davie... e a morte dele. Cê tá deprimido, é só isso. Cê pode parar! A gente pode superar isso, amado. – E a mão dela salta por cima da mesa e segura a minha. A dela é quente, a minha é como uma truta no gelo da peixaria.

Ela não tá captando todo o quadro. – Mas eu não quero parar. – Balanço a cabeça e recolho a mão. – Eu meio que gosto, na verdade – confesso –, e não consigo manter um relacionamento ao mesmo tempo. Preciso ficar sozinho.

Os olhos dela saltam pra fora, horrorizados. Sua pele se tinge de rosa. Nunca vi ela desse jeito; é como uma versão extrema de quando a gente tá na cama trepando e ela começa a gozar. Ela finalmente explode. – Tá me dando um fora? Você tá me dando um fora?

Confiro a reação do garçom por cima do ombro. Ele imediatamente vira a cara, incomodado. Um olhar de total escárnio, do tipo que nunca imaginei que ela fosse capaz, desfigura o rosto de Fiona. Não demorou muito pra uma certa arrogância vir à tona. Mas é bom que esteja acontecendo. – Sou só eu – digo pra ela. – Não tem outra pessoa. É só a heroína.

– Cê... cê tá me dando um pé na bunda porque quer ter mais tempo pra porra da heroína?

Olho pra ela. É isso, bem isso. Não tem como negar. Me fudi. – Sim.

– Cê tá fugindo, porque é um covarde de merda – diz ela com ódio, alto o bastante pra que algumas pessoas virem a cabeça. – Vai lá então, seu babaca de merda – acrescenta ela enquanto se levanta. – Acaba com isso, acaba comigo, acaba com a gente, acaba com a faculdade! Cê é só isso, sempre vai ser só isso. UM COVARDE E UM FRACASSADO DE MERDA!

E então ela sai, batendo a porta de vidro temperado. Por um instante ela se vira, como se quisesse olhar pra dentro. E então some. A puta, o Zé Mané otário e o garçom chupador de rola dão uma olhadinha em volta enquando ela vai embora. Aquela raiva toda me mostrou um lado diferente daquela garota delicada e amorosa, e embora isso me choque é bom saber que existe.

Acho que correu tudo bem.


Economia pelo lado da oferta

Russell Birch, vestindo um jaleco branco de laboratório, prancheta na mão, passou andando por Michel Taylor, que estava enfiado em seu macacão marrom de sempre, a caminho do maior laboratório de processamento da fábrica. Os dois homens se ignoraram, como estavam acostumados a fazer. Tinham combinado que seria melhor se todos os colegas de trabalho na fábrica nunca soubessem que eles tinham qualquer espécie de relação.

Enquanto digitava a senha no novo sistema de segurança, Birch pensou, satisfeito, que a partir de agora Taylor seria incapaz de acessar aquela área.

Ao abrir a porta e entrar na sala de um branco ofuscante, lembrou da ocasião em que pegou seu parcero no flagra bem ali, prestes a encher um saco plástico. Taylor, que era estoquista, não deveria estar ali em hipótese alguma, mas, como Russell Birch também estava escondendo um saco plástico na calça naquele momento, os dois ficaram se olhando de queixo caído, compartilhando a culpa por alguns segundos de estupefação. Em seguida, olharam rapidamente para os lados, e quando se encararam novamente já haviam firmado um pacto instantãneo. Foi Taylor quem tomou as rédeas da situação e falou primeiro. – Precisamos conversar – disse. – Me encontra no Dickens, na Dalry Road, depois do trampo.

A situação toda não pareceria estranha no palco, numa comédia do West End. No pub, à medida que os pints iam sendo ansiosamente consumidos, fizeram até piadas sobre o assunto antes de chegarem ao acordo segundo o qual Birch entregaria a Taylor os sacos do setor de processamento, para que fossem contrabandeados para fora da fábrica dentro das marmitas da cantina.

Os instrumentos no painel piscavam e se moviam lentamente, com um zumbido maçante, debaixo das lâmpadas fluorescentes do teto. Às vezes a sala parecia tão pura e branca quanto o pó sintético que era produzido nesta parte mais nova e lucrativa da fábrica. Mas Russell olhava com mais reverência para o precioso pó branco que corria num fluxo constante e abundante do tubo para dentro das embalagens de acrílico na linha de produção automatizada e quase silenciosa. Seus olhos trilharam a sala até a grande tigela cheia de filtros de pano, depois passaram pelo tanque de cloreto de amônio, onde a solução era resfriada, e então voltaram até outro conjunto de filtros e o gigantesco tonel de aço de cem galões. Dentro do tonel, a cada hora, entravam sessenta galões de água fervente, aos quais eram acrescentados trinta quilos de ópio em estado bruto. As impurezas subiriam à superfície e seriam filtradas. Então a solução seria passada para um tanque adjacente menor, onde cal hidratada – hidróxido de cálcio – seria acrescentada para converter a morfina insolúvel em água em morfinato de cálcio solúvel em água.

Após alguma secagem, tintura e esmagamento, o produto final escorreria, num branco imaculado, para dentro dos recipientes de plástico. E o trabalho de Russell consistia em testar a pureza de cada carga. Sendo assim, era muito fácil para ele desviar um punhado da mercadoria para dentro de um saco plástico e enfiá-lo na calça.

Russell Birch apalpou a bucha satisfatoriamente alojada na virilha. Estava ansioso para sair e dar aquela passada no banheiro, seguro de que a responsabilidade e o risco seriam inteiramente de Taylor a partir dali. Mas ele se demorou algum tempo, colhendo amostras e fazendo testes. O que as pessoas faziam em troca daquilo era inacreditável. Quando se virou para sair, a porta abriu. Donald Hutchinson, o chefe da segurança, estava parando à sua frente, acompanhado de dois guardas. Russell leu o constrangimento em seu rosto comprido e repuxado, mas em seguida presenciou a frieza nos olhos daquele homem.

– Donald... como é que... qual é... – Russell Birch sentiu-se definhando aos poucos, como uma vitrola tirada da tomada.

– Passa o produto pra cá. – Donald estendeu a mão.

– O quê? Do que você está falando, Donald?

– Podemos fazer do jeito difícil se você quiser, Russell. Mas eu preferiria te poupar disso – falou Donald Hutchinson, apontando por cima do ombro de Russell Birch para uma câmera preta pendurada na parede. Ela estava olhando bem para eles, com um ponto vermelho piscando ao lado da lente.

Russell se virou e perdeu o fôlego. Sentiu-se desmascarado, não como um ladrão, mas pior, como um idiota. A câmera não era mais indiscreta que qualquer outro aparelho trivial da fábrica, e ele não tinha sequer percebido que ela havia sido instalada. Russell ficou parado, boquiaberto e sem forças, enquanto imaginava o que os homens que acompanhavam pelo monitor do outro lado viam em seu rosto. Humilhação, medo, desprezo por si mesmo, mas, principalmente, supôs ele, derrota. Virou-se de volta, enfiou a mão na frente da calça e tirou o grande saco plástico cheio de pó branco. Entregou o pacote e acompanhou os homens uniformizados, sabendo que, acontecesse o que acontecesse, estava saindo do laboratório de processamento pela última vez.

No trajeto humilhante pelo corredor, ladeado por sua escolta inescrutável, ele viu Michael Taylor trazendo um carrinho de marmitas de metal do setor de carga para a cantina. Dessa vez, Taylor fez contato visual. Sua expressão parecia implorar misericórdia, mas Russell Birch teve a certeza de que seu parcero estava encarando de volta apenas um vazio completo.


Estudante maduro

Eu tava evitando todo mundo e eles retribuíam, até mesmo o Bisto; ele e a Joanne continuavam firmes. Eu era uma figura tipo Quasímodo, o corcunda fedorento que se arrastava por aí, excluído do clube das pessoas decentes, e eu tava adorando essa merda. Parei de ligar pra casa todo domingo. Os soluços e lágrimas intermináveis da minha mãe, que iam do carinho à ira, eram perturbadores demais pra aguentar. Billy tinha sido preso; acusado de agredir um cara num bar. Enquanto minha velha me contava a história, imaginei ele com um filete de porra do irmão retardado escorrendo pela cara. Escorrimento, choque, humilhação, acusação, quebra-pau. – Mas você tá bem, né filho? – rogava a mãe. – Tá tudo bem com você?

– Sim, é claro que tá tudo bem – dizia, tentando manter um grau aceitável de foco e concentração.

Mas as paredes tavam se fechando e tudo em volta de mim tava ficando uma merda. Sick Boy ficava pressionando pra eu ir pra Londres com ele, pra gente ficar um tempo com os “amigos ingliotas” dele. A ideia ficava mais tentadora a cada dia. Mesmo com o vício cada vez maior em heroína, porém, eu tava agitado demais pra não seguir atrás de pistas. Eu lia com uma voracidade desesperada. Lia tudo, exceto o que precisava ler pro curso. Nas aulas, ficava esparramado lá atrás, cochilando, e depois pedia pra algum colega esforçado me fazer uma xerox das anotações. Nos seminários, muitas vezes eu me apressava em tomar a dianteira e manobrava o debate pro lado das minhas obsessões pessoais com a mente tateando às cegas em falas longas, tortuosas e entorpecidas, tentando coçar aquela coceira-fantasma que tava no meu cérebro. Meu peito acumulava o catarro que escorria dos seios nasais, que nem o Pequeno Davie. Minha respiração tava totalmente fudida. Chegava a notar uma mudança na minha voz; era como se fosse mais fácil forçar o som a sair pelo nariz, produzindo um ruído fininho e choroso que eu odiava, mas não conseguia impedir. Um professor me olhou com tristeza e disse: – Você tem certeza de que deveria estar aqui?

– Não – respondi –, mas não sei mais pra onde ir.

Era verdade. Pelo menos eu tinha alguma espécie de motivo pra estar lá, mesmo que já não entregasse mais nenhum trabalho: agora eu sabia que nunca ia chegar nem perto da minha meta de 70% da nota. Parei de conferir o meu escaninho. Muitas pessoas davam a impressão de acreditar que eu já tinha ido embora e ficavam surpresas nas ocasiões em que eu aparecia. E eu tinha ido embora, em certo sentido; elas só tavam vendo o fantasma que tinha ficado pra trás.

Nas raras vezes que ia nos bares de estudantes, eu tirava onda das pessoas e de seus projetos babacas, bandas, planos de viajar de InterRail, atividades esportivas, só porque eu sabia que já não tinha condições de participar. Comecei a odiar a música do Bob Marley; eu adorava quando era punk em Londres, mas abominava a maneira como os estudantes brancos de classe média tinham se apropriado dela. Uma noite, voltando pra moradia, vi uns otários de escola pública, bêbados e emocionados, cantando sobre morar num conjunto residencial do governo em Trenchtown. Tavam cantando sobre morar num bloco em Kingston, na Jamaica. Disparei um olhar furioso na direção deles, e na mesma hora eles mudaram de atitude e ficaram sóbrios e culpados. Era patético. Eu era patético. As pessoas se desviavam de mim. De um cético afetuoso, espirituoso e divertido, passei a ser visto como um cínico babaca: frio, cáustico. Mas, quanto mais eu conseguia alienar as pessoas de mim, mais forte me sentia. Me alimentava da rejeição. Não havia nada bom, normal e correto no mundo que eu não fosse capaz de menosprezar. Era um crítico de todas as coisas, do pior tipo, daqueles para quem cada gota de bile é gerada pelo seu próprio senso de fracasso e inadequação, formando uma nuvem ao redor, como vapor de mijo de bêbado.

E comecei a feder que nem um mendigo nas aulas. Antes eu chegava a ser meio compulsivo com higiene pessoal, aparência e arrumação; agora sentia um lodaçal permanente de fogo e chorume em volta do meu oboé de carne, meu cu e meu sovaco. Era como se eu fosse entrar em combustão. Uma vez encontrei a Fiona nos corredores. A gente não conseguiu evitar o contato visual. – Cê ainda tá aqui – disse ela em tom desafiador.

Mas deu pra perceber que ela ainda se importava, ou talvez não, pois eu podia estar apenas me enganando. Só consegui dizer: – Oi, hã, a gente se fala outra hora... – E saí de perto.

Depois desse incidente, praticamente parei de ir na universidade. Meu plano básico, se é que se pode chamar assim, era não sair da moradia estudantil. Eu me picava com o Don e, de vez em quando, metia a pica na Donna, que era, ironicamente, a prostituta que vi no bar quando despachei a Fiona. Comecei a ir pra lá com frequência, reunindo coragem pra chegar nela. Ela me levou prum apartamento funcional com reproduções de girassóis do Van Gogh, obviamente usado apenas para receber clientes. Passei a maior parte do tempo chupando a buceta dela. Queria ganhar experiência naquilo. Pro meu constrangimento, ela teve que me dizer que aquilo se chamava cunilíngua. Sick Boy nunca teria cometido esse erro. Eu continuava até que a grana ou a libido se esgotassem, ou era formalmente expulso, o que viesse primeiro.

E eu continuava vagando pela cidade como um fantasma. A qualquer hora. Até que um dia Don sumiu. Ninguém tinha visto ele nos pubs da região das docas. Sobravam teorias a respeito do lugar onde o filho da puta tinha se enfiado, a maior parte delas baseada no falatório do viado; Copenhague, Nova York, Londres, Hamburgo, Peterhead. Minha aposta era essa última. Era bem possível que Don estivesse morto de overdose no sofá do apê, mas eu nunca cometeria a cagada de ir lá conferir. E um dia vi Donna na rua, e uma menina com síndrome de Down veio correndo pros braços dela. Apressei o passo e segui meu rumo, sabendo que nunca mais visitaria ela.

Aberdeen me pareceu tomada de repente por um silêncio onipresente; uma imobilidade e um rumor e pós-apocalípticos que davam a sensação de que o céu tava te enclausurando, como o vidro daqueles brinquedinhos de fazer nevar. Tudo estava acabado pra mim nesse lugar, e passei a viagem de volta pra Edimburgo suando e tremendo dentro do ônibus. Uma sacola cheia de roupas imundas, a outra cheia de livros. E a minha primeira escala foi em Tollcross, no albergue de Johnny Swan.

Tô lá fazia uns dez minutos quando a porta abre e entram Spud e Sick Boy, que parecem estar tão fudidos quanto eu, mas também felizes por terem chegado no templo da cura da dor. Ficamos como monstros, literalmente babando, de olhos esbugalhados, tendões do pescoço saltados e pele arrepiada, enquanto Swanney prepara o pico sem pressa alguma. Ele tá em excelente forma, despejando as obsessões doentias em cima da gente. – Não tenho nada contra os pretos em si, mas acho que tem demais por aqui agora. Paquistaneses também. Esse tipo de cruza sem controle dilui a força de uma raça. A moral vai por água abaixo. Se os alemães invadissem hoje, a gente não teria a menor chance. Sabe do que eu tô falando?

– Arrã – digo, mas me sinto tão alienado dos amigos quanto dos estudantes certinhos em Aberdeen. Babaca. Babaca nazista de merda. Mas não me importo. Me passa a seringa. – Vai preparar esse pico ou não vai?

É como se ele não tivesse escutado. – Eu não acredito em mandar eles todos de volta; as minas podem ficar, principalmente as asiáticas meio ocidentalizadas... nossa... – Ele abre um sorrisinho sacana, mostrando os dentes podres. Sick Boy vira o rosto, enojado.

– A sorte é que a maioria deles não viria pra Escócia, é frio demais pra pele escura.

Cala essa boca de merda e esquenta essa colher, caralho...

– Não acho que isso tá certo, tipo assim – diz Spud. – É mais porque não emprego aqui, tá ligado? E o computador não conta, porque eu não acredito no computador, cara.

Mas agora, graças aos céus, Swanney começa a dar atenção ao que interessa; a heroína foi colocada na colher com a água, e o isqueiro tá queimando embaixo. – Os empregos não importam. É um fato conhecido que os negros só vêm pra cá pra mamar na teta do Estado. É tipo uma revanche por causa dos anos de escravidão com o império britânico e tal. Pós-colonialismo ou uma merda dessas, é a porra do termo científico. Fala pra eles, Rents. – Ele faz sinal pra que eu coloque a heroína na minha seringa, muito obrigado, Swanney, pelo bom Deus obrigado, vou marchar até a cabine de votação e votar pela Frente Nacional Britânica se cê quiser... – Psicologia – diz ele, dando tapinhas na cabeça.

– É isso aí mesmo – concordo. O que me preocupa mais agora é a fisiologia, com essa minha veia que não colabora; amarrei bem a filhadaputa e tô com medo de perder a desgraçada, ela é instável como um pau duro depois de uma garrafa de uísque. Mas eu espeto a pele, enfio e injeto... – Te peguei de novo – digo com um riso engasgado, sorrindo pros outros. – Sou mais rápido que essas desgraçadas...

Fugir pro esquecimento, onde ninguém me pega...

Depois volto pro apê com Sick Boy e Spud, que se mudou pro quarto, me obrigando a dormir no sofá. Injetamos mais um pouco de heroína, apesar de eu ainda estar viajando um pouco da última dose. Esses caras obviamente não se seguraram na minha ausência. – Cê devia ter ficado na universidade – diz-me Sick Boy como quem não quer nada enquanto prepara o pico, antes de aplicar um torniquete hábil com uma gravata do colégio Leith Academy, azul escura, com aquele brasão do barco e a palavra “Persevere” escrita. As veias dele saltam triunfantes pra luz do dia como um exército ganhando uma colina. – Cê era o único viado da nossa turma que podia ter estudado.

– Cê também podia. Ouvi dizer que cê era um viadinho bem estudioso no ensino básico.

– No ensino básico, sim – admite ele.

– Vi sua carreira acadêmica explodir numa chuva de hormônios no dia em que Elaine Erskine entrou na escola pro segundo ano, usando aquela minissaia vermelha.

– Para de enrolar e começa a tocar, cara – resmunga Spud, aguardando a vez dele com impaciência enquanto assiste ao noticiário escocês na TV. Mary Marquis tá apresentando, e lembro do pau gigantesco do Pequeno Davie na minha mão enquanto ele gargarejava com aquela respiração retardada.

– É – recorda Sick Boy, os olhos castanhos bem abertos. – Quando mandaram ela voltar pra casa pra trocar de roupa, saí na rua atrás dela. Disse pra Munro, de Geografia, que eu tava passando mal e ia chamar o Hugo. Alcancei a Elaine no Links, ofereci um ombro amigo pra ela dar uma choradinha e fiquei elogiando o gosto arrojado que ela tinha pra moda. Mina gostosa tinha que usar só minissaia...

– Vamo, Si... espeta isso aí! – implora Spud.

– Aqueles peitinhos lindos que espremeram todo o bom senso que eu ainda tinha, nos transformando em dois zumbis sensuais, estarrecidos com a carne um do outro. E eu ficava fazendo planos e artimanhas pra desviar ela dos viados mais velhos e descolados que cobiçavam aquela bucetinha...

– Simon, vamo logo, parcero, por favor, tô meio que sofrendo pra caralho aqui – geme Spud.

– ... e não demorou uma semana pra eu estourar o cabaço como o último fogo de artifício em cima da porra do Castelo na festa de Ano-Novo.

– SI! BORA!

– Paciência, meu amigo Danny, uma sombrinha antes do sol nascer. – Sorri Sick Boy, puxando um pouco de heroína na seringa e passando a colher pro Spud, que fica todo agradecido. – Pois é... o que eu tava dizendo é que aquilo me botou no meu caminho, Rents, e não é necessariamente o caminho que eu teria escolhido – pondera ele, agarrando a gravata entre os dentes e fazendo saltar aquelas veias maravilhosas do braço, tanta opção que fica difícil decidir. – Não é necessariamente o que eu teria escolhido... – ele repete, espetando e introduzindo a agulha, puxando sangue pro tambor da seringa, e finalmente despejando a poção no devido lugar.

É uma manhã fria, mas ensolarada, com o chão coberto de neve, as casas revestidas de uma densa filigrana de gelo e o sol despontando acima das torres de nuvens. Depois de uma dormidinha ridícula, me levantei, passei por cima do Spud desabado no chão do corredor estreito, me vesti e voltei pra oficina do Gillsland me sentindo vazio e metálico como um tubo de espuma de barbear jogado no lixo. Eles tinham incorporado o imóvel vizinho, e o Gillsland tinha se afastado ainda mais da marcenaria artesanal e dos móveis comerciais finos pra constuir mais painéis de casas pré-fabricadas que iriam profanar o centro da Escócia como fileiras de caixotes.

Les continuava obcecado com os campeonatos de cocô das manhãs de segunda, mas agora eu me peidava todo pra conseguir soltar umas bolotinhas. – O que aconteceu, Mark? – perguntou-me Les, todo magoado. – Que tipo de dieta se andou seguindo em Aberdeen?

A dieta da heroína. Logo será a dieta favorita de toda dona de casa suburbana e gorducha.

Mas o trabalho me fazia bem. Enquanto os outros caras reclamavam que tavam ficando defasados de tanto trabalhar roboticamente com pistolas de pressão, botar prego nas vigas e aparafusar suportes de alumínio tava de bom tamanho pra mim. Eu podia ficar ali parado, sofrendo de abstinência, e pregar dez painéis em uma hora sem trocar nenhuma palavra com nenhum viado.


Convidados de honra

Totalmente sem grana, cara, e tá chegando a gastança de Natal e Ano-Novo. A coisa vai ficar feia. Mas olha, todo mundo tá no mesmo barco. Begbie aparece na minha casa e pode apostar que nunca vi um cara tão arruinado, saca? – Spud – diz ele, me empurrando pra dentro do apartamento e procurando Rents e Sick Boy. – Cadê esses dois viado?

– Não sei, cara, por aqui os gatunos vêm e vão, saca? – respondo. Tô me sentindo meio mal, tentando ficar em casa pra entrar na linha, saca? Meio que tipo fazendo um esforço pra melhorar.

O Mendigo não tá nada satisfeito, mas quem tá levando a culpa é o Cha Morrison, de Lochend. Vai pro tribunal mês que vem por ter furado o Larry Wylie, e todo mundo menos o Franco tá feliz com isso, cara. Dois sacanas tirados de circulação de uma vez só, saca, é tipo o melhor resultado possível. Todo gatuno acha isso, exceto Francis James Begbie, que tá encarando o ataque a Larry como algo pessoal. Franny Jim não anda muito feliz, daí quando ele aparece falando em roubar uma casa eu me preocupo, Natal chegando ou não.

Porque mais uma vez o problema foi minha boca grande! O lance é que ele tipo, tá falando da mesma casa que mencionei pra ele um tempão atrás, porque tinha informações privilegiadas depois de entregar um aparador ano passado. Achei que ia entrar por um ouvido e sair pelo outro. Mas o Beggar Boy é que nem elefante; meio que nunca esquece, saca? – Essa casa não, Franco! É certo que a polícia vai conferir a lista de todo mundo que teve lá ano passado, e adivinha quem eles vão prender, cara? O ex-entregador que foi demitido e tá querendo vingança!

– Porra nenhuma. – Begbie sacode a cabeça daquele jeito desdenhoso. – A gente tá falando da polícia de Lothian & Borders. Esses retardado não serve pra nada, só pra multar carro que estaciona no lugar errado. Nem vão lembrar de ver quem teve lá, seu viado. Tá tudo bem. – Daí ele abre a cortina e olha pra rua.

– Mas o cara é advogado, Franco. Conrad Donaldson, apontado pela rainha!

Mas saca quando alguém nem ouve o que cê fala? O Franco é assim. Quando é alguma coisa que o gatuno não quer saber, ele mexe as orelhas pontudas pro outro lado e o som desaparece no espaço. – Tem bebida nessa casa?

– Hã, tem... – As orelhas voltam pra posição original e ele vai pra cozinha e pega uma garrafa na geladeira, uma das Peroni que o Sick Boy comprou naquele lugar chique. Abre a garrafa e toma um golão, daí faz uma careta, segura a cerveja na frente do rosto e fica olhando pro rótulo. – Itália, porra? Cerveja? Italiano faz vinho, caralho. O merda do Sick Boy devia saber muito bem disso. Vou ter uma conversa com esse viado! Cerveja italiana, vai se fuder!

– Mas Conrad Donaldson, apontado pela rainha – repito, enquanto Franco continua bebendo a cerveja italiana.

– Sim, mas isso daí é melhor ainda, porque o viado é defensor público – diz Franco, apontando a garrafa pra mim. – Defende uns vagabundo tipo o Morrison, e daí a polícia odeia ele. Não vão fazer porra nenhuma pra ajudar o filho da puta – continua, lendo de novo o rótulo da Peroni.

– Mas Frank...

– Não tem perigo nenhum! O Lexo tava me falando que esse viado aí... que porra é essa de apontado pela rainha? Ela meteu o dedo no cu dele? Que bichona! – Franco dá um soco no meu braço e dói. Queria que esse gatuno parasse com isso, cara; mesmo que na cabeça dele seja um sinal de afeto, ainda é um jeito de intimidar, saca, ainda é tipo dizer “eu sou o cara grande e durão e cê é o magrelo fracote”. Tipo isso. – Sim, essa bichona da rainha tava defendendo o Morrison, e agora foi tirar seis semanas de férias nos Estados Unidos. Dei uma olhada na casa, é grande pra caralho e toda chique. Não tem ninguém por lá, daí a gente pode entrar de noite. E fim de papo, caralho. – Ele olha pra fora de novo. – Cê deve ter uma ideia de onde Rents e Sick Boy se enfiaram. Eles devem ter dito pra onde iam! Cerveja italiana, puta que o pariu... Mas não faz sentido cortar o pau fora pra sacanear as bola. – Ele seca a garrafa e abre outra.

– Hã, acho que vou comprar uma ratoeiras. A gente tipo, tá com um problema de ratos.

Franco ergue as sobrancelhas peludas e dá uma olhada na cozinha. – Achei que esse buraco era podre demais pra qualquer rato com amor-próprio!

Bem, daí eu não disse nada, porque eu briguei feio com Rents e Sick Boy por causa desse assunto, porque eu não queria matar os ratos. Deve ter um jeito mais humano de espantar os bichinhos sem tipo, machucar eles. Minha ideia era conseguir um gato, só pra deixar eles com medo. Uns dois ratos iam acabar morrendo, mas o resto ia entender o recado e mudar de endereço. Mas o Rents começou com uma conversa de alergia.

Eu e o Franco decidimos sair atrás deles, daí vamos descendo até a Walk. A gente chega no Cenny e encontra o Tommy; e também o Segundo Lugar, podre de bêbado, com umas marcas na calça que parece mijo, mas é tipo como se já tivesse secado, saca? Mas nem sinal de Rents ou Sick Boy.

– Eles devem tá comprando ratoeira – digo.

– Vai nessa. – Tommy levanta as sobrancelhas. – É essa a desculpa que tão dando agora?

Begbie se dá conta de alguma coisa e parece não gostar nem um pouco. – Devem tá andando com o Matty e o Swan, aquele viciado de merda! Outro viado que saiu da minha lista de cartão de Natal.

– Não sabia que cê tipo, tinha uma lista, Franco – digo, olhando pro Segundo Lugar, que tá meio que resmungando sozinho e pegando no sono num canto, as pálpebras se fechando que nem grades de metal. Fim do expediente, saca?

Mas não pro Franco; o gatuno olha pra mim todo caçador das selvas, com pelo baixo e tudo. – Todo mundo tem uma lista, porra. – Ele dá um tapinha na cabeça. – Uma lista de cartão de Natal, e esse viado saiu fora da minha!

Com esse gatuno desse jeito cê precisa mesmo... qual é a palavra?... aquie... aquie... entrar na dele. Aí a gente vai pro clube de sinuca, deixando o Segundo Lugar tirando a soneca dele. – Esse viado é um peso morto do caralho – diz Franco. Depois de atravessar a Duke Street a gente chega no balcão do clube e Begbie fala com dois malandros de cabeça raspada com correntes de ouro e anéis de moeda. Avisto Keezbo numa das mesas, jogando uma partida com um carinha de canguru vermelho que meio que tem jeito de mulher, mas não de mulher bonita, saca? Daí eu vejo que Rents, Sick Boy e Matty tão sentados num canto bem no fundo, assistindo o jogo. Matty vem falar comigo e diz que precisa ir embora, voltar pra Shirley. Dá pra ver que o Franco olha feio pra ele, como se tivesse botando uma maldição no cara, saca?

– Cês tipo, resolveram o lance dos ratos? – pergunto pro Sick Boy e pro Rents.

– Hã, sim – responde Sick Boy, olhando pro Rents. Aí ele diz: – Hã... um cara vai cuidar disso pra gente. E tipo, de um jeito humano. Eles colocam umas bolinhas e o rato não sente nada.

– Legal, cara. Era muito ruim ficar imaginando aquelas ratoeiras quase decapitando um amiguinho peludo, não dá pra fazer essas coisas com alguém de sangue quente, saca?

– Para de falar dessas porra de ratoeira! – grita Franco, chegando com uma garrafa de Beck’s na mão, e daí começa a falar do roubo.

Bem, não dá pra dizer precisou de muita coisa pra convencer eles. Esses caras tão pensando num tipo diferente de Natal Branco. – Parece bem fácil – diz Rents, mas não dá pra sacar se ele tá mesmo concordando ou se é só uma tática pra distrair o Generalíssimo e manobrar ele pra outro lugar. Rents é um dos poucos gatunos pra quem o Franco às vezes dá ouvido, e ele sabe como dar uma manipuladinha.

Sick Boy levanta só uma das sobrancelhas, tipo Connery entrando num cassino. – Isso pode ser interessante. Uma mansão dessas deve tá cheia de coisas valiosas.

– É, seu viado, mas nenhuma é pro seu bico – responde Begbie, e isso faz Sick Boy baixar as mangas do suéter por cima das marcas nos braços e depois se virar todo magoado, bem incomodado por Franco ter quebrado sua onda.

Begbie olha pra ele e depois pra mim e pro Rents com aquele olhar “é, eu conheço bem vocês, seus viado”, bem frio. – Isso daqui é coisa séria. Melhor ninguém estragar tudo. A gente precisa dum monte de gente porque vamos fazer uma limpa completa na casa e guardar lá no esconderijo. Não é brincadeira pra viciado, seus filho da puta. Enfiando essas merda nas veia... ainda bem que aquele viadinho do Matty caiu fora...

– Tô muito a fim de ir – insiste Rents. Acho que o Rent Boy tá mesmo com vontade de fazer isso. Em geral é o Mark que desconversa, mas agora ele parece o cara que tá estimulando a bandidagem. Apareceu com uma mala cheia de livro dia desses. Mas beleza, ele sempre lê todinhos antes de vencer. Ainda é um cara estudioso, mesmo com a heroína. E acho que ele sempre curtiu roubar casas.

– Pois é, mas isso daqui é muito sério pra caralho. – Franco dá uma boa olhada nele. Rents faz que sim com a cabeça. – Tommy pode dirigir – diz Begbie. – Eu posso dirigir e o Sick Boy também. Pego um carro emprestado com Denny Ross, outro com meu irmão Joe e outro com aquele puxa-saco da Madeira Street, como é mesmo o nome do cara, aquele com topete? Cê e o Keezbo tocavam naquela banda de merda com ele, Rents!

Keezbo para a tacada de repente e dá uma olhada na nossa direção, meio irritado. Mas parece que ele tá com o carinha com cara de mulher na mão.

– HP – diz Rents. – Hamish Proctor: Heterossexual Perobo.

– Esse mesmo – confirma Franco.

– Mas de jeito nenhum que aquele viado é hétero – comenta Sick Boy sarcástico enquanto Keezbo encaçapa uma sequência de vermelha, preta, vermelha e rosa. O gordinho tá arrasando. – É o disfarce mais clássico. As minas com quem ele anda são todas virgens profissionais ou essas mulheres que só andam com bicha. Aquela boneca não oferece risco algum. Ele foi com a Alison pra Reading e depois pra França. Ficaram uma semana inteira fora e ele não encostou nem um dedo nela, porra! Ela mesmo contou pra mim... mediante um gentil interrogatório.

Rents sorri e olha pro franco. – Cê contou pra eles pra que vai usar os carros? Pro HP, pro Joe, pro Dennis e tal?

– Mas claro que não, caralho. Se o olho não vê e o ouvido não ouve, a porra do coração também não sente. E acho bom todo mundo aqui ficar de bico bem calado, tá certo? – Ele olha pra gente, um por um. É meio ridículo, porque tipo, metade do pessoal que tá jogando sinuca consegue ouvir o que o gatuno tá falando, mas ninguém avisa isso pra ele. É difícil não dar risada disso, cara.

– Não precisa nem dizer – responde Rents na maior cara de pau.

– Pois é, mas eu tô dizendo mesmo assim, caralho – Franco censura Rents, e dá pra ver que o problema dele é mesmo com a heroína. O gatuno não entende mesmo o lance, cara. – Cê tá usando?

– Claro que não, porra. – Sorri Rents, mas tá com a mandíbula travada e o Sick Boy parece meio inchado por retenção de líquidos, e os dois tão piscando sem parar e tendo espasmos. No way, Jose.

Tô ligado que a heroína tem uma fama ruim, mas eu acho sensacional. É fácil criticar alguma coisa de fora, mas cê precisa experimentar de tudo na vida, saca? Pensa em como as coisas seriam mais sem graça pra todo mundo se o Jim Morrison nunca tivesse tomado ácido. Ele não teria atravessado pro outro lado e todas aquelas músicas sensacionais iam ser uma merda sem tamanho. Mas a heroína é perigosa, então meio que não vou usar de novo. Goagsie tava comentando como deixa ele enjoado. Mas é bom; a loucura do Begbie, os trambiques do Sick Boy, as reclamações do Tommy e as piadas ruins do Keezbo e, acima de tudo, a minha mina enchendo o saco pra eu parar de ser sustentado por ela e arranjar trabalho, nada disso desaparece quando cê dá um pico; só que para de incomodar.

Mas daí a gente sai; dá pra ver direitinho que o Tommy não tá muito empolgado, mas ele vem junto. A gente pega os carro e vai até o prédio industrial em Newhaven pra se encontrar. Daí a gente segue até a mansão, estaciona os carro na ruazinha do lado da casa e pula o muro dos fundos, o que é bem fácil pra todo mundo menos pro Keezbo, que empacou.

– Anda, grandão – pede Rents, soprando as mãos mesmo que nem esteja frio. A gente precisa empurrar o Keezbo, comigo e o Tam metendo a mão naquela bunda imensa, pra que ele meio que capote por cima do muro e desabe no chão do outro lado. Não dá pra acreditar que uns gatunos conseguem levar tanto peso de um lado pro outro, cara. A gente avança pelo jardim na ponta dos pés e arromba a porta, que se escancara com uma das ombradas do Begbie. Todo mundo fica pronto pra lidar com o alarme, mas ele não funciona! Maravilha! Tamo dentro!

A gente entra numa cozinha enorme com piso de pedra e uma ilha enorme bem no meio, tipo aquelas de Beverly Hills; tipo nos filmes e tal, saca? Keezbo olha pro Renton e diz: – Vamos ter uma casa dessas, sr. Mark, quando a banda estourar, mas em Los Angeles ou Miami, e com piscina no quintal.

– Claro – zomba Rents. – A única coisa que a gente tem em comum com rockstars é usar heroína.

– Mesmo assim, não atrapalha em nada quem cuida do ritmo, sr. Mark, a gente ainda consegue fazer nosso trabalho – explica Keezbo enquanto remexe os armários e daí coloca pão na torradeira. – Pensa nos jazzistas, olha como relaxam e entram no groove. Especialmente o batera. Quer dizer, olha o Topper Headon por exemplo. – E aponta pra camiseta Clash City Rockers, apertada mesmo no tamanho GGG.

– Botaram ele pra fora da banda por causa da heroína. – Rents sacode a cabeça pro gordão. Cara, como ele consegue comer numa hora dessas?

– Sim, não acharam legal que ele usasse heroína – responde Keezbo, procurando um vidro de Marmite. – Mas chamaram ele de volta quando se deram conta que não prejudicava o desempenho dele na bateria. Mesmo com a heroína ele ainda era melhor batera que o Terry Chimes.

Esses gatunos discutem rock’n’roll o dia inteiro se cê deixar, cara. Begbie parece com nojo do Keezbo, mas pega uns cigarros e tá quase acendendo quando digo: – Não faz isso, Franco! Vai ligar os detectores de fumaça!

– Sim, cê vai ter que fumar isso lá fora, sr. Frank – diz Keezbo.

Begbie não fica nada feliz com isso. – Tá frio pra caralho lá fora!

– Mas Franco...

– Eu preciso fumar, certo? – Daí olha pro Keezbo e diz: – Todo mundo tá fazendo o que quer! Algum viado vai ter que subir ali e desligar esses detector de merda!

A gente fica se olhando até que todos os olhos se viram pra mim. História da minha vida, cara. Amaldiçoado desde o berço com esse talento de escalar que nem um macaco. Começou quando eu ainda era pirralho, entrando em casas para ajudar tias velhas que tinham esquecido de sair com a chave e tavam trancadas pra fora de casa. Daí teve a vez que meu velho falou que um parcero dele tava trancado pra fora, apontando prum prédio nos fundos da Burlington Street. “Sobe ali, Danny, naquela janela, o coitado do Freddy perdeu as chave”, meu pai disse, olhando pra cara triste do parcero dele. Aí eu escalei o cano, entrei pela janela, atravessei a casa e abri a porta da frente pra eles entrarem, e fiz isso tão rápido que nem tinha dado tempo pros dois subirem as escadas. O Freedy me deu umas moedas e meu velho me mandou voltar pra casa. Mas fiquei escondido do lado de fora do prédio, atrás de um carro estacionado, vendo eles tirarem as coisas de dentro da casa e botarem tudinho num carro.

Daí que, como dizem os locutores esportivos, tem tipo “uma certa inevitabilidade” nisso tudo. Admito a derrota e dou uma olhada pra onde deve ficar a área de serviço. – Tem umas escada ali – digo e trago uma escada grande de alumínio. – Deve servir.

– Rápido, viado! – diz Franco. – Tô ficando sem ar aqui!

Aí eu subo a escada a caminho da luz vermelha que tá piscando sem parar naquele disco branco. Keezbo e Rents ainda tão discutindo, mas agora mudaram de assunto pra futebol: – Robertson devia ser titular na seleção escocesa, sr. Mark, as estatísticas falam por si.

– Mas Jukebox é artilheiro e armador. Quem faz gol e cria jogadas sempre vai ser melhor pra um time do que um desses caras que vivem de dar bicuda na entrada da área. Esses aí nunca tão em falta.

Pra mim o Rents tá sendo injusto com o Robbo. Originalmente do Hibernian, antes de ser corrompido pelo lado negro, e eu tô quase falando alguma coisa mas não tô muito tranquilo porque a escada tá se sacudindo toda nesse piso irregular de pedra, mas minha mão tá quase no detector e tô quase desligando quando sinto uma coisa deslizar e as minhas solas se separando do metal e eu saio voando pelo ar, e quando me dou conta tô deitado no chão de pedra... tipo só deitado ali mesmo, olhando pra cima, praquela luz vermelha piscando...

– Ai caralho, Spud... – Dá pra ouvir o pânico na voz do Tommy.

– Puta merda! Danny! Cê tá bem? – pergunta Sick Boy.

– Não se mexe – manda Rents. – Não tenta levantar. Só tenta mexer os dedos dos pés. Depois os pés.

Eu mexo, e tá tudo bem, daí tento me sentar, mas sinto uma dor esquisita no braço, cara. – Ai meu braço, me fodi...

– Mas é um viado inútil mesmo – diz Begbie, e sai pra fumar. – Tá frio pra caralho aqui fora!

Tô de pé mas meu braço tá muito, mas muito fodido, cara, não consigo mexer, ele só fica ali dependurado. Quando tento levantar o braço, tudo que sinto é uma sensação muito, muito, muito ruim saindo das minhas tripas. Os caras me levam pra sala e me colocam no sofá. – Fica aí, Danny, não se mexe – diz Rents. – A gente leva você pro hospital depois de esvaziar a casa.

Keezbo tá devorando a torrada com Marmite, e meu braço fica pulsando, pulsando, pulsando.

Begbie entra e vê o Rents pixando a parede com um pincel atômico, escrevendo com letras grandes e bem pretas:

CHA MORRISON É INOCENTE

– Agora o Donaldson não vai se esforçar muito pra defender esse viado. – Sorri.

Franco começa a gargalhar e grita: – Tam! Keezbo! Olha só o que o Rents fez! Isso vai dar uma lição nesses viado! – Aí dá um soco no braço do Rents. – Esse ruivo viado – dá um tapa nas costas dele – é esperto pra caralho!

Tô me sentindo uma merda, mas quero dar uma olhada no material, aí enfio o pulso dentro da jaqueta, abotoando pra fazer tipo uma tipoia, saca, e vou ajudar os caras a vasculhar tudo. A gente fuça em cada canto e fresta e tudo parece sensacional, especialmente umas joias dentro de uma caixa na penteadeira do boudoir conjugal. Tô ligado que não é certo, mas com o braço desse jeito sei que talvez eu não tenha direito à melhor parte do roubo, daí enfio uns anéis, braceletes, broches e colares no bolso antes de anunciar a descoberta pro pessoal.

De repente o Tommy aparece de um quarto, branco que nem um fantasma. – Tem uma mina naquela cama – sussurra ele em pânico. – Bem ali.

– Hein...? – Os músculos do pescoço do Franco ficam tensos.

– Puta merda – diz Rents.

– Mas ela tá meio dormindo... é tipo... é tipo como se tivesse morta! – Os olhos do Tam tão enormes, parecem buracos de mijo de elefante na neve. Se elefantes soubessem o que é neve, e tal. – Tem uns comprimidos também... e vodca... a menina se matou, cara!

Aí eu me cago de medo e tal. – Rapaz... a gente precisa dar o fora daqui...

Sick Boy aparece na escada, com os olhos esbugalhados. – Morta? Uma mina? Onde?

Franco sacode a cabeça. – No meu ponto do vista – diz ele – se a vadia tá morta, a gente tem que continuar o que tamos fazendo, porra. Tá bem claro que ninguém sabe nem se importa.

– De jeito nenhum – protesta Tommy pro Begbie. – Eu me importo, e vou cair fora daqui!

– Peraí – diz Rents, entrando no quarto com cuidado. A gente vai atás dele. É verdade, tem uma mina deitada na cama. Parece meio estrangeira. Que coisa sinistra, cara. E eu tô bem arrasado, porque é ruim quando uma gata jovem faz uma coisa dessas, tipo aquela Eleanor Simpson. É tão triste, cara: uma menina rica com tanta coisa pela frente e tal. O cara imagina que é uns merda sem esperança tipo eu que deviam fazer isso, saca? Mas do jeito que eu sou sortudo, se eu fizesse uma coisa dessas, é certo que no enterro uma delicinha como Nicky Hanlon ia falar tipo “Que estranho, eu tava quase ligando pro Danny pra ver se ele queria aparecer na minha casa pra trepar e tal”. Conhecendo a minha sorte, ia ser bem isso mesmo, saca?

Na mesinha ao lado da mina tem um monte de comprimido e uma garrafa de vodca quase vazia. Pego uns comprimidos que sobraram, pra dor no ombro, e engulo com o resto da vodca.

– Mas cê é burro pra caralho mesmo – chia Franco. – Agora a garrafa tá cheia da sua saliva!

– Cara, se cê é tão ligado assim em perícia criminal, porque nem falou nada quando o Keezbo tava fazendo torrada? – pergunto, bem incomodado.

– PORQUE EU NÃO SABIA QUE TINHA UMA PORRA DUM CADÁVER NA CAMA, SEU BICHO BURRO! – grita ele bem na minha cara, e então baixa o tom. – Se ela tá morta mesmo, cê vai acabar indo pra cadeia como cúmplice, seu viado!

Faço que sim com a cabeça, porque nem tem como dizer nada a não ser: – Verdade... bem pensado, Franco.

– Alguém precisa pensar nesta merda!

Rents se inclina em cima da mina e sacode o ombro dela. – Moça... acorda... cê precisa acordar... – Mas a mina tá apagada. Rents pega o pulso dela e tenta ver os batimentos. – Ela tá com um pulso bem fraco – diz ele, e aí dá uns tapas na cara dela. – CÊ PRECISA ACORDAR! – E se vira pro Tommy. – Me ajuda a botar ela de pé!

Tommy e Rents começam a tirar a mina da cama; é uma mina bem bonita, ou seria se não estivesse com uma aparência tão ruim, mas é meio corpulenta. Tá usando uma camisola comprida, mas tipo, não dá pra enxergar nada do que tem por baixo. Não que eu fosse ficar olhando nessa circunstância, mas sei lá.

– Mas que porra é essa de primeiros socorros? – reclama Begbie.

Mas Tommy e Rents nem tão ouvindo; pegaram a mina, que tá gemendo e com umas gosma saindo do nariz, e tão levando ela pro banheiro. – Keezbo – diz Rents –, vai na cozinha e pega uma chaleira com água quente. Mas não é pra deixar ferver. Mistura bastante sal. Vai logo!

– Certo, sr. Mark...

Botaram a mina sentada na beira da banheira. Rents tá com a mão no queixo dela, levantando a cabeça pra cima e olhando pros olhos dela, mas ela tá fora de órbita. – Quantos comprimidos cê tomou?

Daí ela começa a resmungar umas coisas meio que numa língua estrangeira. – Parece italiano – diz Tommy, e se vira pro Sick Boy. – O que ela tá falando?

– Não é italiano.

– Parece italiano, porra!

Begbie olha pro Tommy. – Esquece esse viado. Esse viado não sabe nada de italiano, porra!

– Sei sim, mas isso daí meio que parece espanhol... – Sick Boy chega mais perto da mina.

Begbie para na frente dele. Bloqueando o caminho. – Fica longe dela, caralho.

– Hein? Só tô tentando ajudar!

– Rents e Tam já cuidaram disso. A mina não precisa da sua ajuda, porra. Já ouvi falar do tipo de ajuda que cê tem dado pras mina – Begbie diz, e Sick Boy não gosta nem um pouco, mas nem fala nada. – Vê se toma cuidado com o que cê faz – aconselha o Beggar Boy. – Cê tá ficando com fama.

– O que cê quer dizer com isso? – Sick Boy empina o queixo.

– Cê sabe muito bem.

Sick Boy se remexe em silêncio.

– Como cê chama? – Rents tá gritando pra mina. – Quantos comprimidos cê tomou?

A cabeça da menina tá se sacudindo e caindo prum lado. Rents segura de novo e olha bem nos olhos dela. – COMO. CÊ. CHAMA?

– Carmelita... – consegue ela dizer, ofegando.

Meu braço tá doendo mesmo, aí eu me distraio lendo uma placa na parede que tem um versinho:

Please remember, don’t forget,

Never leave the bathroom wet,

Nor leave the soap still in the water,

That’s the thing you never ought’er...[13]

A gente bem que devia ter uma igualzinha em casa, porque depois que minha irmãzinha Erin entra no banheiro parece que uma bomba explodiu ali dentro. Mas não dá pra falar nada. O apartamento com Rents e Sick Boy, bem, aí vai além de qualquer princípio básico de higiene, cara. Tem uma aranha bem legal no nosso banheiro, o nome do bichinho é Boris. Ele fica entrando na banheiro toda hora. Tô sempre pegando ele e colocando no parapeito da janela. Mas sempre que eu volto tá ali o Boris na banheira, tentando escalar a parte inclinada e escorregando. Parece que o carinha não aprende mesmo, saca?

Keezbo volta com uma chaleira. – Tá cheia de água quente e salgada.

– Uma porra duma chaleira. Tá bom – ridiculariza Begbie, se afastando.

– Tá bom, Carmelita. Sei lá o que você tomou, mas agora vai sair tudo. – Rents puxa a cabeça da mina pra trás e prende as narinas dela com os dedos em pinça, enquanto Keezbo coloca o bico na boca da coitada e começa a virar a chaleira. Tommy ainda tá segurando ela bem direitinho, equilibrada na beira da banheira.

Ela engole um pouco e aí logo se engasga toda, mandando água pra todo lado. Daí de repente ela cai pra frente e começa a vomitar na banheira; cara, dá pra ver direitinho um monte de comprimido não digerido ali no meio, parecendo uns pedaços de giz, uma quantidade enorme. Quando ela para de vomitar, Rents encosta a chaleira na boca dela de novo. – Não... não... não... – Tenta ela afastar.

– Talvez ela já tenha engolido o suficiente – sugere Tommy.

– A gente precisa esvaziar o estômago dela de tudo – insiste Rents, e força a mina a engolir mais. Claro, ela vomita de novo e sai um monte de coisas, e depois de novo, até o estômago ficar totalmente limpo. Tommy e Rents seguram ela no lugar até não sair mais nada. Não é uma coisa nada legal de dizer, mas o jeito que eles tão segurando o cabelo dela me lembra direitinho um filme pornô que vi uma vez e tinha uma mina chupando dois caras ao mesmo tempo!

Eu e o Sick Boy vamos pro corredor, onde o Begbie tá esperando. – Agora esses idiotas reanimaram uma porra duma testemunha que pode dedar a gente por ter arrombado a casa de um advogado. Que maravilha – reclama Si.

– Calaboca – diz Franco. – Começa a levar as coisa pra baixo.

– Que coisas?

– Coisas tipo esses tapete nas parede, pra começar. Um viado que bota uma porra dum tapete na parede tá pedindo pra ser roubado, caralho!

Volto pros quartos. Cara, meu braço tá me matando e a culpa é do Begbie, daí tudo bem eu ficar com as joias.

– Não deixa a mina sair daí! – grita Begbie pro Tommy e pro Rents. – Se ela enxergar minha cara, vai ter que engolir bem mais que vodca e uns comprimido de merda!

Eles sabem que ele não tá brincando, daí o negócio é bem tipo “a gente ouve e obedece, ó mestre”.

No outro quarto, que parece de uma mina adolescente, tem umas coisinhas bem legais, e tô enfiando tudo dentro dos meus bolsos. Mas com um braço só fica complicado, e daí o Sick Boy aparece e me pega com a boca na botija, mas não diz nada porque tá furioso. – Cê ouviu aquele psicopata de merda? Logo ele – a voz do Sick Boy fica mais baixa, quase um sussurro – julgando os outros? E o Tommy, o Senhor Certinho, desesperado por fazer parte das Pessoas Perfeitas.

– Que cê tá tipo, querendo dizer?

– Cê sabe, Spud. As Pessoas Perfeitas. Nunca usam drogas, fora haxixe ou álcool, que não contam. Sempre dizem as coisas certas. Nunca saem da linha. Ele tá morrendo de vontade de virar uma delas.

– Mas ele só tá tentando ajudar a mina, Si.

– E aquele viadinho puxa-saco do Hamish e esse carro vagabundo... quem esse merda pensa que...

Bem, não dá pra falar numa boa com um gatuno nesse estado. Daí fico aliviado quando a gente escuta a voz do Begbie ecoando pela escada. – SICK BOY! MEXE ESSE RABO E VEM AQUI, CARALHO! CÊ TAMBÉM, SPUD!

– Vai se foder – diz Sick Boy, mas começa a descer assim mesmo e eu vou logo atrás dele.

Daí a gente começa a pegar as coisas, eu cuidando das miudezas, e depois de um tempo o Rents desce pra ajudar. Ninguém percebe que peguei uns troços pra mim, mas tão fazendo barulho nos meus bolsos. Aí eu vou de fininho pro banheiro e libero o Tommy, que tava cuidando da mina. Ela tá sentada na privada, tomando fôlego. – Tam, tipo, tão meio que precisando de alguém forte – falo pra ele, apontando pro meu braço.

– Certo... Fica de olho nela – diz Tommy. – Quando tiver com força pra se levantar, leva ela de volta pro quarto pra ficar deitada.

A mina me olha chorando baixinho, agarrada no roupão que alguém trouxe pra ela se enrolar, tomando uns goles de um copo d’água. Tem alguma coisa no rosto dela, redondo, gentil, com olhos grandes e escuros; ela não vai dedurar a gente. Dá pra ver. A gente começa a conversar e ela diz que tava se sentindo deprimida morando aqui, longe da família.

Depois de um tempo eu ajudo ela a se levantar com o braço que não tá doendo, levo ela de volta pro quarto, peço pra ficar deitada e daí saio pra falar com o pessoal. A gente decide que o Tommy vai embora comigo e com ela, e a gente vai pegar um táxi pro hospital. Assim dá pra dizer que ela tava lá quando a casa foi roubada, e daí tudo vai ficar bem explicado. Quando voltar do hospital, ela meio que vai descobrir o arrombamento e chamar a polícia. A mina tá numa boa com isso: dá pra ver que não morre de amores pelo patrão.

– Ela falou que não vai dedar a gente, mas quem sabe o que a vaca vai dizer em espanhol lá na porra do hospital? – diz Franco.

– Ela só viu a cara de nós três, eu, Tommy e Spud, só a gente tá correndo risco – diz Rents. – Porra, a gente salvou a vida dela. Pra mim tudo bem confiar que ela vai ficar quietinha.

– Beleza, mas quem vai pra cadeia é você – responde Begbie mas parece satisfeito em concordar, e eles voltam a levar as coisas pros carros.

Depois de um tempo eu, o Tam e a Carmelita, vestida com calças de brim, tênis, blusa de malha e um casacão preto, saímos da casa. Tá bem escuro debaixo da luz laranja dos postes da rua e ficou bem mais frio. A gente caminha bem devagar pra rua principal, daí o Tam faz sinal prum táxi.

– Machuquei o braço – explico pra Carmelita, falando bem devagar.

– Cê tá bem? – pergunta Tommy pra ela.

Carmelita faz que sim com a cabeça, meio envergonhada e deixando o cabelo cair na frente da cara enquanto o Tommy abre a porta do táxi. – Cês vão ficar bem? – pergunta Tam.

– Sim, Tommy, vai dar tudo certo.

Daí eu e Carmelita sentamos na emergência do hospital. Tá cheia dos caras de sempre, quase todos felinos loucões de gataria que chegaram na vasilha de ração ao mesmo tempo, começaram a brigar e se arranharam. – Cê deve ter saudade de casa, tipo, da Espanha – digo pra ela. – Parece sensacional, a Espanha.

– Sim. Esse inverno foi tão frio, bem mais frio que em Sevilha.

A mina é bem legal; sim, é triste pensar numa menina tão jovem tentando se matar. Serve pra mostrar que ninguém sabe mesmo o que acontece na cabeça do outro. Cê precisa perguntar, conversar, saca? – Cê não gosta de trabalhar aqui?

Ela tava olhando pra frente, mas daí se vira pra mim. – Minha mãe ficou doente na Espanha, meu namorado... morreu, acidente de moto. A família aqui não me trata direito. Bebi tanto e me senti muito, muito mal... ainda bem que Deus mandou você e seus amigos para me salvar.

– Ah, sim, certo – digo. Era mais o caso da gente ter sido trazido pelo Begbie pro roubo, ou, no caso do Rents e do Sick Boy, mandados pela heroína pra salvar ela. Acho mesmo que o cara lá de cima age de um jeito misterioso, e bem que a gente tipo pode mesmo ter sido agentes Dele. Ele como o Bernard Lee, a gente como Bond e a Carmelita como a espiã estrangeira exótica que acaba sendo salva. Mandados pela heroína pra salvar ela. Do jeito que esse braço tá doendo, bem que não seria ruim um pouquinho de heroína agora, saca?

Rapaz, uma delícia de enfermeira loira com olhos arregalados, cabelo preso num coque e franja sensual chega perto da agente. Taí uma gatinha com quem eu dividiria o cesto sem problemas. – Carmelita Montez?

Carmelita olha pra mim com os olhões cheios de lágrimas e tenta apertar minha mão. Meio sem jeito, seguro a mão dela com a mão do braço que tá bom. – Obrigada, Dáni... – ela soluça, daí a enfermeira ultragostosa leva ela pruma sala de tratamento.

Que mina legal, e não vai mesmo dedar a gente, eu tenho certeza. Sei que é errado ter escondido as joias dos caras, mas eles também têm bastante coisa pra dividir, saca? Só quero que deem logo um jeito nesse meu braço, porque eu tô me sentindo mal, mal, mal, cara. Saca? Será que os gatunos dão morfina pra quem estourou o braço? Se não derem, é certo que vou direto atrás do Johnny Swan com todos esses anéis, colares e pulseiras no bolso.

13. Em tradução literal: “Lembre-se, por favor, nunca esqueça, / Nunca deixe o banheiro molhado, / Nem deixe o sabonete dentro d’água, / Isso você nunca deve fazer.” (N. dos T.)


Operação Hoochie

Alexander é sensacional na cama. Quando a gente transa, ele parece querer que eu também aproveite, não como se eu só estivesse ali pra ser usada por ele, como uns caras que conheço. Mas me incomoda quando ele começa a dizer que eu sou linda e que ele quer me ver mais. Ele é meu chefe, a gente se vê todo dia. Falo isso pra ele. Não é disso que estou falando, ele responde.

Linda. Papai vivia dizendo: na primeira vez que vi sua mãe no Alhambra, não o pub, mas o salão de baile, ele sempre explicava, eu nunca tinha visto uma coisa tão linda.

Sei que não sou feia e que consigo me produzir muito bem, mas quando um cara diz que você é linda, o que ele quer dizer com isso? É uma coisa que incomoda, pra dizer o mínimo.

Quero explicar pra ele que é tudo uma distração passageira, nada mais. O problema é que ele é meu chefe. Juro por Deus, eu capricho em dificultar as coisas pra mim. Ele passou um fim de semana na minha casa. Não foi uma boa ideia. Deixou uma sacola no banheiro, com o material de barbear; navalha, espuma e pincel. Fico pensando em levar de volta pra ele, mas por algum motivo eu não consigo. Talvez porque seria meio cafona levar aquilo pro escritório. Mas, enfim, não é por causa dele! É, ele é apenas uma distração.

Enfim, depois da sessão desta noite eu vou pro Hoochie pra me encontrar com o Hamish. Ele é louco por poesia e gosta das minhas coisas. Sei que parece pretensioso, mas a gente se encontra, toma café, se chapa um pouco e fica lendo o que o outro escreveu. Hamish e eu nunca fodemos; não sei se ele é bicha, se é tímido com as garotas ou se só me vê como amiga, porque ele é um cara estranho, difícil de entender, mas gosto dele. “Odeio quando amigos brigam, e odeio quando amigos fodem”, disse ele uma vez, mas meio que parecia um discurso ensaiado. Antes eu perguntava se ele era gay, mas ele afirmava que não tinha interesse nenhum em sexo com outros homens. Hamish não é muito meu tipo, mas eu provavelmente daria pra ele; tem um certo carisma, e isso é um negócio importante. Uns anos atrás a gente viajou pra Reading pro festival e depois passamos uns dias em Paris. Foi esquisito dormir com um cara na mesma cama e não transar, mesmo que uma vez eu tenha acordado com a mão dele no meu peito.

Isso me faz pensar na minha mãe, sentada em casa, sem peitos, ambos removidos pelo bisturi do cirurgião. Andrógina e esquelética; juro por Deus que ela parece o Bowie na capa de David Live. Eu devia estar passando algum tempo com ela, mas não consigo nem olhar. Agora sei que faço qualquer coisa: caralho, drogas, poemas, filmes ou apenas trabalho, só pra não ter que pensar nela.

Em Paris em Paris em Paris...

... Conheci um francês numa discoteca e fiquei com muito tesão, o que pareceu deixar o Hamish irritado, mas não o suficiente pra ele tentar me comer. Ele é um carinha magricelinha (como Simon descreveu uma vez), com olhos pequenos e femininos que se enchem de lágrimas quando ele lê seus poemas, e ele fica inteiro meio rosado como se estivesse tendo um orgasmo. É o tipo de cara que faria bastante sucesso na prisão, pra dizer o mínimo.

Fiquei puta da cara quando Mark Renton e Keith Yule entraram na banda do Hamish, porque eles começaram a frequentar o Hoochie e eu meio que encarava aquele lugar como minha área, não queria um bando de toscos do Leith zanzando por lá e baixando o nível. (Exceto o Simon, claro!) O pessoal do Leith despreza todas as outras partes de Edimburgo; acham que se você não nasceu no Leith não vale nada. Posso ter sido criada no Leith, mas na verdade nasci em Marchmont, o que me faz totalmente edimburguesa. Outra coisa é que eu meio que saí por um tempo com o Billy, irmão do Mark, mas eu ainda estava na escola. Mas juro por Deus que nunca deixei ele me comer, ainda que todo mundo pense que eu tenha deixado, ou imagine que tenha acontecido. Mas os caras e, suponho, as minas do Leith são assim mesmo.

Enfim, chego no Hoochie, aquele espaço apertado em cima do Clouds onde você sempre ouve os melhores sons e encontra gente interessante, e os primeiros rostos que enxergo são Mark (buu!), com aquele jeito meio malandro, e Simon (nham!) com o cabelo preso, conversando no balcão com aquela vagabunda da Esther, uma vaca arrogante que pensa cagar rosas.

Por favor não esteja comendo ela, por favor não esteja comendo ela...

Juro por Deus que nunca fico com muito ciúme das minas que o Simon fode, porque a gente vive nossas vidas sem fazer cobranças, mesmo que desde o Leith eu fosse a fim dele. Bem, talvez às vezes eu fique, porque tem umas vadias que não dá pra aguentar e essa Esther faz parte da categoria. Vejo que o Hamish está com o Mark, conversando com duas minas que só conheço de vista. Acho que uma delas é aquela que chupou o Colin Dugan, mas posso estar enganada. Mas tanto faz, essas vacas não têm a menor chance de durar muito tempo naquela companhia!

Quando chego mais perto deles, escuto Hamish mentindo deslavadamente. – Wendy, Lynsey, este é meu grande amigo Mark. Um baixista muito talentoso.

Muito talentoso o caralho: Hamish expulsou Mark de duas bandas por causa da incompetência dele com o instrumento!

Mark, todo afetado e presunçoso, pergunta: – Como anda sua música, H?

– Parei, Mark. – Hamish sacode a cabeça, todo pomposo, enquanto uma das minas, a loira de cabelo curto com olhos muito bem maquiados, parece arrasada com a triste notícia. – Agora só escrevo poemas. Música é uma forma grosseira, vulgar e comercial de arte. Espiritualmente falida.

A loira (Lyndsey, se não me engano) pisca os olhos incrédula, enquanto Wendy, a possível especialista em boquete, permanece neutra. Hamish me enxerga ao seu lado e me dá um beijo no rosto. – Oi... Alison. Tudo bem?

– Tudo certo. – Sorrio.

Mark está jogando conversa em cima das minas, as merdas de sempre. – Eu e uns amigos de Londres estamos com um projeto de art rock industrial – mente e me dá uma piscadinha. – É meio que uma mistura de Einstürzende Neubauten com o início da carreira dos Meteors, mais “In Heaven” que “Wreckin Crew”, mas com uma batida disco quatro por quatro e muita influência de ska, com uma vocalista bem Marianne Faithfull. Pensem num Kraftwerk que transou muito na adolescência e frequentou pubs de cerveja artesanal na Escócia e em Newcastle ouvindo Labi Siffre e Ken Boothe na jukebox, sonhando com um emprego bem-pago na fábrica da Volkswagen em Hanôver.

– Parece legal! – diz a loira que talvez se chame Lynsey. – Qual é o nome da banda?

– Fortification.

É a deixa pra um Hamish meio desajeitado fazer o assunto voltar aos seus poemas “influenciados por Baudelaire, Rimbaud e Verlaine”, e pra uma das minas falar alguma coisa sobre Marquee Moon. E pra eu dar uma cotovelada de leve no Mark pra chamar a atenção dele. – Que safado, baixando o nível!

Mark me olha de cima a baixo. Mesmo visivelmente chapado, me encara de um jeito que eu nunca tinha visto antes. – Uau, Ali. Cê tá bonita demais.

Não é o tipo de elogio que espero dele, mas é o suficiente pro Hamish virar a cabeça na nossa direção. – E você está... Mark demais.

Ele ri disso e faz um gesto pra eu me afastar um pouco com ele, enquanto Hamish tagarela pras minas sobre uma vez em que ele e Mark tocaram no Triangle Club, em Pilton. – E aí?

– Tudo bem. E você?

– Joia. Mas os seguranças não deixaram o Spud entrar porque ele tá com uma tipoia no braço.

– Coitado do Danny!

– É, teve que voltar pra casa. Mas vi a Kelly aqui mais cedo. Com Des.

– Certo.

Ele baixa o tom da voz e chega mais perto de mim. Mark é um cara mais alto do que parece à primeira vista. – Tá rolando alguma coisa?

– Você está querendo dizer o que eu imagino que esteja?

– Sim, acho que tô.

– Não, liguei mais cedo pro Johnny, mas ele não estava em casa ou não atendeu.

– É, eu também – diz ele. Depois de um silêncio, pergunta: – E como anda a sua mãe?

– Uma situação de merda, pra dizer o mínimo – respondo, sem vontade nenhuma de tocar no assunto, mas acho legal ele ter perguntado.

– Certo... que pena. Hã. Se cê ouvir alguma coisa do Johnny, do Matty ou algo assim, me dá um toque – pede.

– Valeu, claro, aviso – digo.

Hamish abandona Wendy e Lynsey e me entrega um livrinho de poemas. – Mudou minha vida – declara, enfático, enquanto Mark revira os olhos.

– Certo... valeu... – digo, mas minha atenção está toda no Simon, que continua conversando com aquela Esther horrorosa no balcão. Lynsey pergunta a Hamish sobre o livro, e ele começa a falar sobre a obra de Charles Simic. – Dá pra acreditar que uma época ele não falava nem uma palavra de inglês?

Eu me viro pro Mark. – Uma época nenhum de nós falava nem uma palavra de inglês. – E ele devolve o sorriso enquanto indico Esther com a cabeça. – Você acha ela bonita? Aquela loira platinada com quem o Simon está conversando?

Mark dá uma olhada, quase babando.

– Marianne? Sim, ela é torta de gostosa.

– Não é Marianne, é Esther.

– Ah, é? Elas são iguais.

– Pode acreditar: totalmente intercambiáveis. Vamos dar oi – sugiro, enfiando o livrinho do poemas do Hamish na bolsa. Assim que os olhos do Simon encontram os meus, ele vem ao meu encontro e nos abraçamos e ele enterra a cabeça no meu pescoço. – Oi, linda – sussurra ele. – Não diz nada, deixa só eu te abraçar.

Eu deixo, mas não consigo resistir a dar um sorriso por sobre o ombro dele pra Esther, pra quem sobrou o feioso do Mark! Rá! Juro por Deus que ela parece arrasada com nosso beijo, e escuto Mark tagarelando sem parar, primeiro sobre o disco New Gold Dream do Simple Minds, depois sobre o projeto fictício de rock industrial, adicionando novos elementos de improviso. Enquanto a língua e o cheiro do Simon preenchem minha cabeça, escuto a voz abatida de Esther comentar que deve ser difícil encaixar tantos elementos diferentes. Simon e eu paramos pra tomar fôlego e assistir o show. Mark está concordando com ela: – É justamente o principal desafio que estamos encarando, mas é também o que torna a tarefa tão intrinsecamente gratificante...

Quando ela pergunta o nome da banda, ele responde, mas com a mandíbula travada pela anfetamina as palavras saem meio erradas da boca do Mark e o nome sai parecido com “Fornication”. Esther acha que ele está passando dos limites e olha pra gente pedindo socorro! Mark dá de ombros e a deixa sozinha assim que uma mina oriental bonitinha, mas com um sotaque de quem cresceu nos blocos, aparece declarando: – Tô fritando de tanta anfetamina!

– Eu também – responde Mark, entusiasmado, e Esther se dá conta que até ele a esnobou!

Ela chega mais perto pra dizer alguma coisa pro Simon, mas ele dá um corte: – Aguarde o próximo capítulo. – E me puxa pelo pulso até um cantinho pra termos uma conversa íntima! Dou uma olhada na Esther: engole essa, sua vagabunda rica de merda! O melhor do Leith tem que permanecer no Leith!

Como a música está bem mais alta do que o normal no Hooch e a caixa de som fica perto de onde estamos sentados, Simon e eu meio que precisamos gritar no ouvido um do outro. Enquanto puxo o cinto pra garantir que não estou pagando cofrinho, comento sobre o Spud ter sido barrado só porque estava com o braço numa tipoia.

– Nessa eu tô do lado da portaria – diz ele. – Uma falta grave de estilo. Também não deve ter colaborado ele se vestir que nem um mendigo.

Então a gente começa a conversar sobre a pequena Maria Anderson, porque meu irmão e os amigos dele andam com ela e seus colegas de escola. Andam dizendo por aí que o Simon está namorando com ela. Não dá pra acreditar, porque ela é bem novinha, e por que ele faria isso quando tem tantas namoradas?

Ele me encara com um olhar triste, dizendo que se meteu num pesadelo. – Que confusão – reclama ele enquanto Prince manda todo mundo enlouquecer. – Sou vizinho da Maria, e depois que o pai dela morreu e a mãe foi pra cadeia eu meio que me senti responsável porque ela não quer de jeito nenhum ir pra casa do tio em Nottingham. – Ele respira fundo e olha pro teto. – O problema é que ela se apegou demais a mim e, pior, à heroína. Tô tentando manter ela longe da droga, mas ela só pensa nisso.

– Mas o que isso tem a ver com você? Não é justo ter que carregar esse peso!

– A culpa é minha. Cometi a burrice de... ah, que merda – resmunga ele –, a gente acabou na cama... eu dormi com ela. Tava tentando consolar a menina, e ela tava toda carente e desesperada, e uma coisa levou à outra. Foi um grande erro.

– Puta merda, Simon – digo pra ele, tentando incomodar sem parecer ciumenta, porque estou sentindo um pouco de ciúme. Mas não dá mesmo pra culpar a menina por estar fora de controle depois de tudo que aconteceu com ela.

– Ela é jovem e perturbada demais, e agora vejo que fui idiota e fraco e tirei vantagem de alguém que estava numa situação ruim. Agora ela acha que a gente tá namorando. Semana que vem vou com ela na prisão visitar a mãe, e espero que a gente consiga convencer ela a ir pra casa do tio e entrar na linha. Essa confusão... tomou conta da minha vida! Eu só queria fazer a coisa certa, mas tudo acabou saindo pela culatra. – Ele respira fundo, olhando pra pista de dança sem focar a visão. – O negócio é que mesmo agora fico louco de preocupação ao pensar nela sozinha no apartamento; cê não tem como saber o que uma mina tão nova pode fazer naquele estado. Ela já foi pra cima do cara que matou o pai dela, aquele Dickson do Grapes. Meu medo é que ela acabe que nem a mãe ou o pai: na cadeia ou comendo grama pela raiz. Ela tá andando com uns caras que não valem nada; tô tentando manter ela longe deles, mas não tenho como passar todos os minutos do dia ao lado dela, é doente... é errado... – ele sacode a cabeça – e não posso ficar dormindo com ela e levando heroína, mas só isso deixa ela calma... ela tinha que estar fazendo exames pra ir pro ensino médio. – Ele suspira, angustiado, e me olha nos olhos. – Nossa, eu aqui falando sem parar das minhas coisas enquanto a sua mãe... – Ele agarra minha mão e aperta.

Sinto as lágrimas escorrendo dos meus olhos. – Desculpa, Simon, eu... – E não consigo mais falar, enquanto a música e as pessoas rodopiam ao nosso redor. Até que me escuto pensar em voz alta: – Por que a vida é essa confusão fodida?

– Não pergunta pra mim – responde ele, apertando mais a minha mão e com os próprios olhos ficando úmidos. Então olha ao redor com uma expressão de desgosto quando “You’re the Best Thing” do Style Council começa a tocar.

– Você não gosta dessa música?

– Gosto até demais. É boa demais pros posers e otários deste lugar horrendo. – Ele cospe no chão. – Odeio que essa gente tenha permissão pra ouvir esse tipo de música.

– Entendo o que você quer dizer – concordo, perplexa; olhando pra Esther, meio que faz sentido. Ela está fugindo da conversa animada entre Mark e a oriental baixinha, que pelo que lembro se chama Nadia.

– Olha, tenho uma sugestão. Por que a gente não vai pro Swanney, pega uma coisinha e daí volta pra minha ou pra sua casa pra fazer um pouco do que a gente gosta e conversar? Tem muita coisa ruim acontecendo nas nossas vidas e esse pessoal daqui tá começando a me encher o saco. Mark tá começando a exagerar demais na heroína e na anfetamina; não sou nenhum anjo, mas porra, ele tá ficando míope...

Ficamos olhando Mark falando sem parar com a maluquinha da Nadia, os dois totalmente transtornados de anfetamina.

– Taí um casamento feito de pó. – Simon ri, e continua: – Prefiro comprar antes que ele apareça no Johnny, porque daí a gente nunca vai se livrar do filho da puta.

Nem precisa me convencer. A noite de café e poesia com Hamish vai ter de esperar. E Alexander deixou uma mensagem dizendo que queria me ver, mas agora isso está fora de cogitação pra agenda desta noite. – Claro. Vamos.

Saímos pra noite gelada. Alguma coisa impossível de nomear se remexe por trás dos meus olhos. O toque da mão do Simon é morno e seu hálito quente é como o sussurro de anjos no meu ouvido.

A porta da escada do Johnny está aberta; alguém mexeu na tranca e no interfone – um espaguete de fiação escorre de um buraco negro onde ficava o painel de alumínio. Dá pra ouvir ele discutindo com alguém no primeiro andar, e essa pessoa grita com uma voz que eu meio que reconheço: – Cê não faz ideia, parcero!

Simon me puxa pras sombras ao pé das escadas.

– Seu parcero foi preso, Michael – ouvimos a voz baixa de Johnny –, não você, cê continua no jogo. Arranja outro jeito de conseguir, porra!

– Tô dizendo: aquele viado vai dedar a gente. Presta bem atenção – o cara quase sussurra, se virando, e então ouvimos ele descendo as escadas. Ele para, vira o pescoço e grita pra cima: – Acabou a brincadeira! – E então se vira e quase esbarra em nós dois, passando pelo meio da gente com uma cara de poucos amigos, mas parando de repente quando me enxerga. Johnny desceu as escadas atrás dele, até dar a primeira volta. Parece um pouco surpreso ao ver a gente ali, então se despede do cara com um aceno teatral, sem receber resposta. O negócio é que eu sei de onde conheço o cara: vi ele com o irmão do Alexander num pub da Dalry Road.

– Problemas de empresário. – Johnny dá de ombros, mas parece bem tenso e perturbado. – Essa casa tá virando a porra da Waverley Station. Não sei como a polícia ainda não bateu aqui.

– Estamos em Edimburgo. – Simon dá risada. – A polícia dessa cidade não tem nenhum interesse especial em manter a lei e a ordem.

Subimos até o apartamento e fechamos o negócio. Johnny quer usar com a gente naquela mesma hora, mas estamos loucos pra sair dali. Então alguém bate na porta e é o Matty. Johnny deixa ele entrar, desanimado, e volta pela sala. Matty vem atrás dele como um cachorrinho ansioso. – Ali. Si.

– Matteo – diz Simon. – Tudo bem? Cê tá meio pálido, camarada.

– Tô legal – desconversa ele, e parece mesmo em mau estado, com os olhos vermelhos e o rosto sujo de terra. Quase nem toma conhecimento da gente enquanto fala com o Johnny. – Tô precisando comprar, viado, pra mim e pro Mikey Forrester.

– Primeiro deixa eu ver essa grana – responde Johnny com frieza.

Simon me dá uma olhada como quem diz “chega disso”, e então saímos. Enquanto vamos embora, Johnny e Matty começam a discutir e a coisa parece ficar cada vez mais séria enquanto vamos descendo as escadas, onde damos de cara com Mark, subindo com tudo na nossa direção com olhos de polvo demente. Ouvimos a porta de Johnny bater. Fico pensando se Matty estava pra dentro ou pra fora. – Marco... – diz Simon erguendo uma sobrancelha e apontando pro horroroso blusão de lã verde que Mark está usando. – Exatamente o que os homens bem-vestidos da cidade não estão vestindo... Pelo jeito não teve sorte com as garotas?

– Pronde cês vão?

– Pruma festa. Pra dois. E isso significa que você não tá convidado – Simon diz, enfático. Então faz um sinal pra cabeça na direção do andar de cima, completando: – Se cê quer comprar, acho bom andar logo. O jovem Matteo acaba de chegar com um tijolo de dinheiro, mencionando o nome do Forrester como se fosse um bilhete premiado. Acho que ele quer comprar o estoque inteiro.

É estímulo suficiente pro Mark, que passa pela gente e sobe as escadas correndo. Ouvimos ele esmurrando a porta do Johnny, segurando o riso enquanto saímos pra rua.

Caminhamos um pouco, avançando passo a passo pela calçada negra debaixo da chuva incessante. Estamos ensopados quando conseguimos pegar um táxi pra minha casa em Pilrig. Ligo o aquecedor e vou pro banheiro pra pegar toalhas. A sacola do Alexander continua em cima da cisterna. Coloco dentro do armário de toalhas, pro Simon não ver. Volto pra sala com uma toalha enrolada na cabeça, dou uma pro Simon e coloco pra tocar as mensagens da secretária eletrônica.

– É o papai, princesa. Só pra você saber que ontem mamãe teve uma noite excelente. Muito tranquila. Estava um pouquinho agitada e confusa por causa das coisas que estão fazendo ela tomar...

Simon agarra minha mão. Um amor.

– ... mas ela manda dizer que ama você e está com saudades. Então tchau, querida... eu te amo.

Simon aperta minha mão com mais força e me beija no rosto.

– Oi... sou eu...

Alexander.

– ... tinha pensado que você podia estar aí... mas parece que não. Tudo bem. A gente se fala na segunda.

Simon larga minha mão. Uma das sobrancelhas se ergue, acompanhada por um sorriso zombeteiro, mas ele não fala nada. Em seguida vem um recado da Kelly, toda estridente e empolgada.

– Pra onde cê foi? Vi o Mark no Hooch. Meio que briguei com o Des! Muita loucura! Liga quando ouvir esse recado!

Simon olha pra mim, mas nós dois sabemos que não existe a menor chance de eu telefonar pra Kelly ou pra qualquer outra pessoa agora. – Então ela ainda tá com o Des?

– Sim, mas adivinha? Ela me falou que curte o Mark!

– Hummm – diz Simon –, as palavras “frigideira” e “fogo” acabam de me vir à cabeça.

Concordo enquanto vou até a geladeira e sirvo vodca pura sobre cubos de gelo, tão frios que fazem um som que parece com ossos se quebrando. Dou uma olhada no pó branco dentro do saquinho de plástico que Johnny nos deu.

– Cê tá desesperada? – pergunta Simon.

– Tô bem – respondo na hora. Gosto de usar heroína de vez em quando, mas não sou uma viciada de merda como Johnny, Mark ou Matty.

– Acho que seria ótimo ir pra cama primeiro – diz ele. – Transar.

Não perco tempo. Vamos direto pro quarto e vou tirando as roupas molhadas, brigando com a parte de cima que ficou grudada em mim com a água. Enfim consigo tirar e fico olhando Simon tirar a roupa bem devagar, dobrando cada peça com cuidado, e pensando em como, fora ele, o melhor sexo que fiz foi com Alexander, que tem uns 34 anos ou algo assim. Caras mais velhos são melhores porque sabem muito bem o que fazer com um corpo de mulher, mas demorei um tempão pra conseguir que ele me comesse. Ele me deixava chupar, mas era como se pensasse que um boquete não valesse como traição. Aí ele me chupou, o que foi ótimo, mas aí pensei “Puta merda, é a Nora, tudo de novo”. Só que nossa primeira foda foi sensacional (considerando que era uma primeira vez). Então ele meio que arruinou tudo falando da ex-mulher de novo, e comentei na hora que se ele quisesse repetir a dose não era pra me falar mais nada sobre aquela merda. Não sei se é porque ele não esteve com muitas mulheres ou se era porque fazia muito tempo, mas é como se ele achasse que eu espero que ele se case comigo! Ele está viajando na maionese, pra dizer o mínimo. Mas é uma boa trepada. Só que Simon fode como um cara mais velho, como se tivesse todo o tempo do mundo, e gasta bastante a língua antes de meter. Como ele começa fazendo amor e passa a foder e daí volta, a gente nunca sabe o que esperar. Passar uma noite com ele sempre vale a pena. E você nem pensa em mais nada por um tempo, e é disso que eu preciso: não pensar em mais nada.

A gente começa a se agarrar: beijos molhados e safados, e sinto uma coisa vermelha e inviolada crescer dentro de mim. Ele cochicha no meu ouvido: – Alguém já botou no seu rabo? Eu adoro fazer isso.

Sinto meu tesão ser cortado imediatamente, porque isso não me atrai nem um pouco, pra dizer o mínimo. Na verdade, só de pensar no pau grande e gordo do Simon dentro no meu cu eu começo a me sentir mal. Mas daí o consolo que a Nora deixou pra trás surge como uma inspiração na minha cabeça. – Deixo você comer meu cu se eu comer o seu antes!

– Hein... Deixa de... mas como você...?

Pulo da cama, vou até o guarda-roupa e pego o consolo na prateleira mais alta, prendendo na cinta como a Nora fazia, posicionando a base sobre meu osso púbico.

As pupilas negras de Simon se expandem e reluzem. – Mas puta que caralho, onde cê arranjou isso daí?

– Não importa! Primeiro quero comer seu rabo – digo pra ele. Rebolo e fico olhando meu cacetão de plástico se sacudindo de um lado pro outro.

Simon ergue uma sobrancelha, em dúvida. – Sim, pode crer. Cê não vai meter esse troço no meu cu!

– Tem o mesmo tamanho do seu pau – digo, mas acho que o consolo é um pouco maior. Mas esse elogio parece deixar ele mais calmo, e a boca se retorce um pouco, e vejo uma fagulha de ponderação brotar nos olhos dele. Então começo a implorar: – Deixa, vai ser divertido. Depois você come o meu.

– Hã... não sei não, hein...

– Deixa, Simon, vai ser uma experiência nova. Você vai gostar bem mais do que eu.

– Ah, claro – diz ele. – Por que cê diz isso?

– Porque ao contrário de mim você tem uma próstata a ser estimulada. A próstata é um glândula muito sensível. Minha amiga Rachael é enfermeira, me contou tudo sobre o assunto. Você pode sentir muito mais prazer com isso do que eu. Olha só os gays; eles gozam tanto comendo quanto dando, você sabe muito bem.

Ele pensa no assunto. – Sério?

– Sério – confirmo, e começo a espalhar vaselina no consolo. – Não vou te machucar.

Ele trava a mandíbula, rindo como se isso fosse impossível. – Tudo bem, eu topo, vamos nessa. Experimento de tudo pelo menos uma vez... mas nunca faria com um cara, claro!

– Você vai adorar.

– Tá bom – responde ele sem acreditar muito.

Então Simon fica de quatro na cama, as pernas separadas, e a bunda empinada dele parece uma bunda de mulher, exceto por ser mais musculosa e cabeluda. Não que eu tenha experiência com bundas de mulher, mas a dele é mais cabeluda do que eu imagino que sejam as bundas de mulheres. Encosto a ponta do consolo e faço força pra enfiar. O cu dele parece ceder um pouco pra permitir a entrada da cabeça, e logo depois se aperta ao redor do consolo.

– Ah... puta merda...

– Tudo bem?

– Claro que sim – responde ele, ríspido.

Enfio um pouco mais. Aí volto um pouco, enfio de novo...

– Ah... ai... dói um pouco...

Enfio fundo e ele se deixa cair lentamente sobre o colchão, e eu fico em cima dele, metendo e tirando, fodendo ele bem devagar, e uma parte cada vez maior do consolo vai desaparecendo pra dentro do cu enquanto o corpo dele se tensiona e relaxa, e então fica tenso de novo. Ele geme sem parar, usando as duas mãos para agarrar os lençóis com força, mas ele não é o único que está gostando. – Bom pra caralho, hein; tô comendo seu cu, te fodendo como a putinha dos Banana que você é – digo, adorando aquilo, transtornada de tesão, pingando, mexendo no grelo com uma mão e usando a outra pra agarrar o ombro dele.

Usando os dedos e a base do consolo pra me esfregar, tô quase gozando enquanto como ele, um cara, e juro por Deus que isso é bom demais, ser capaz de controlar totalmente o ritmo, de penetrar...

É agora, é agora, é agora...

– AUUHHHGGGGGG! – Simon se contorce de repente, se enrijece e então desaba relaxado. Gemidos suaves escapam dele, como se estivessem meio presos na garganta.

Estou esfregando o grelo sem parar, mandando ver, E TÔ QUASE EXPLODINDO, PORRA! – QUE COISA LINDA... OPA... opa... opa... ahhh.... IIIGGGH...

Desabo em cima do Simon. A gente parece uma pilha de árvores caídas, prontas pra serem incineradas. Fico deitada em cima dele por um tempo, sentindo os ossos e os músculos das costas dele nos meus peitos esmagados e na minha barriga. Então me levanto, sem exatamente tirar o consolo da bunda dele, mas observando Simon ejetar aquilo como se fosse um tolete, esparramado sobre os lençóis. Tiro a cinta e coloco mais perto da luz. Está brilhando de vaselina, mas não tem sinal algum de merda. – Tudo bem? Você gostou?

– Foi... meio medicinal... – ele meio que resmunga com a boca no colchão.

Atiro o consolo no chão e viro Simon até ele ficar de barriga pra cima. Ele rola obediente, mas os olhos permanecem semicerrados. Então vejo poças grudentas de porra no lençol e no corpo dele, na barriga e no peito. – Você gozou!

– Foi...? – Os olhos dele se abrem de repente e ele se senta, todo agitado. – Nem me dei conta... – Ele olha pra porra e depois pra mim, esbugalhando os olhos. – Escuta, Ali, cê não conta isso pra ninguém, tá?

– Claro que não vou contar, não sou fofoqueira, isso fica entre nós!

– Certo... certo... – diz ele, e a gente entra embaixo da colcha e se deita. – Foi meio intenso, mas porque era você – acrescenta ele, me puxando pra mais perto. Adoro o cheiro dele; tem uns caras que fedem, mas Simon tem um cheiro doce de pinho que imagino ser o cheiro de um perfume caro.

– Também foi intenso pra mim porque era você – digo a ele. – Não conseguia parar de me esfregar... – Agarro o pau dele, que começa a endurecer na minha mão, separando meus dedos. – Me fode – cochicho no ouvido dele –, fode minha buceta bem forte e diz que me ama...

O rosto do Simon se retorce de um jeito estúpido e cruel, e ele me olha como se fosse relembrar o pacto que fizemos, mas ao invés disso ele vem pra cima de mim e entra devagar na minha xoxota e todas as células do meu corpo imploram por mais enquanto ele me come bem gostoso daquele jeito dele, primeiro devagar, depois bem forte, e ele diz “eu te amo”, que eu sei que não é verdade, e então umas coisas em italiano, e eu começo a nadar por meio das brumas e estou tendo tantos orgasmos e fico tão acabada que chega a ser um alívio quando ele finalmente goza e grita: – Avanti!

Enquanto a gente se agarra num abraço suado, ele parece ter esquecido completamente meu cu, ainda bem, mas suspeito que isso só tenha acontecido porque ele está pensando no próprio rabo ou, talvez, na heroína.


Skaggirl

Na direção dos Trossachs, travesseiros de neve, como nuvens caídas, aderem confortáveis aos picos das montanhas e aos telhados dos bons lares. Algumas janelas já estão iluminadas pelas luzes das árvores de Natal. De sua cela na prisão feminina, Janey Anderson observa os grandes flocos despencando do céu, e sente vontade de conseguir enxergar ainda mais. A neve nunca tinha sido sua inimiga. Mas que tipo de Natal seria aquele?

Janey foi ficando mais animada à medida que deixou a cela e percorreu um corredor numa fila de mulheres, guiada por uma uniformizada solitária, que abre uma série de portas trancadas. Por fim chegam à sala de visitas, onde cada prisioneira senta numa das mesas, dispostas em fileiras bem-alinhadas. Após alguns minutos os visitantes começam a chegar, e ali está Maria caminhando em sua direção, cumprimentando-a com um sorriso forçado.

A experiência limitada de Janey Anderson já havia mostrado como a prisão feminina podia ser tanto um refúgio quanto um lugar de encarceramento. Maria parecia ameaçada e precisando de proteção. Olheiras escuras circundavam seus olhos como hematomas. Seu cabelo parece emaranhado em algumas partes, liso e ensebado noutras, e duas manchinhas vermelhas chamam a atenção no seu queixo. Não parecia sua filha, era mais uma espécie de versão bizarra; uma refugiada daquele mundo paralelo nos quadrinhos da DC Comics que seu irmão Murray costumava colecionar. Maria permanece em pé, de modo que Janey instintivamente se levanta e estende os braços na sua direção. – Querida...

Uma carcereira forçuda com o cabelo cortado rente à cabeça, que parecia não gostar dela, talvez por terem idades similares, se intromete para alertar Janey sobre o contato físico. Espichando o pescoço de tronco, vocifera: – Chega! Não vou falar de novo!

Desmoronando de volta na cadeira, Janey não consegue acreditar nos próprios olhos quando o enxerga de pé ao lado de Maria, com um ar de superioridade que a revoltava até os ossos. Agora que o Coke tinha morrido e ela estava presa aqui, aquele usurpador estava com o braço em volta dos ombros frágeis de sua filha, sua Maria, que devia estar em segurança na casa de Murray e Elaine em Nothingham! A carta que ele mandou pra ela! – O que cê tá fazendo aqui? – Ela olha para o antigo vizinho, o amigo do seu falecido marido, que por um tempo curto e vergonhoso tinha sido seu amante.

– Você vai passar alguns meses aqui, Janey – diz ele, puxando uma cadeira e olhando para Maria como se estivesse dando permissão para que ela fizesse o mesmo. – Alguém precisa ficar de olho na Maria – suspira, num tom de vítima.

– Sei bem o que cê quer dizer com ficar de olho! – grita Janey, sem acreditar naquilo. – Ela é só uma garotinha!

Simon, ou Sick Boy, como ela tinha ouvido falar que era seu apelido, senta na cadeira dura, faz uma careta de desconforto e depois se acomoda. Olha em volta, para as filas de visitantes nas cadeiras, com o que Janey interpreta como aversão nervosa, mas a sensação logo desaparece quando o vê preenchendo o salão com sua presença, se ajeitando na cadeira e se espreguiçando. Dessa vez quem protesta é Maria: – Tenho quase 16 anos, mãe.

Uma descarga de vergonha perpassa Janey. Simon ainda era um garotinho quando Coke e ela se mudaram para o apartamento ao lado dos Williamsons tanto tempo atrás. Quando era uma jovem mãe, flertava abertamente com o pai dele. Uma vez, num Ano-Novo...

Ai, meu Deus...

Depois ela dormiu com o filho. E agora ele está com a filha dela, com a sua garotinha. – Mas olha pra você, olha só pro seu estado! Cê devia estar em Nothingham com o Murray e a Elaine!

Maria concentra seu ódio de repente. Janey sente calafrios com o olhar da filha. – Eu não vou a lugar nenhum enquanto não pegar esse cara! Esse Dickson! Foi ele quem arruinou tudo! E deve ter sido ele quem dedou a história do dinheiro do papai!

– Isso faz sentido, Janey – concordou Simon Williamson.

– Cala essa boca, seu merda – estourou Janey. Carcereira Machorra abandona brevemente seu romance de Ken Follett e dá uma encarada com olhos azul-claros enterrados bem fundo em carne gorda rosada. Janey abaixa a voz e se inclina para a frente, encarando Simon com seriedade. – Você... com a minha garotinha! Que tipo de pessoa cê é?

– Tô tentando cuidar da Maria – responde Sick Boy com um olhar extremamente ofendido. – Cê quer que ela fique sozinha, enquanto cê tá dando um tempo aqui nesse clubinho feminino? Porque ela já disse pra nós dois que não vai voltar pra Nothingham, apesar de eu ter perdido o fôlego de tanto dizer pra ela que seria o melhor lugar pra estar. Então beleza. Vou largar ela de mão. – Ele agita a mão no ar à moda italiana, fazendo com que Carcereira Machorra abaixe o Follett até a coxa carnuda como uma forma de aviso.

– Não faz isso, Simon... – implora Maria.

– Eu não te abandonaria numa hora dessas, gata, não esquenta. – Ele sacode a cabeça, enlaçando Maria com o braço e a beijando no rosto, o tempo todo sem parar de olhar de forma acusadora para Janey. – Você precisa de alguém aqui do seu lado!

Arrasada, Janey só consegue balir do outro lado da mesa: – Mas... mas ela é só uma criança...

– Ela tem quase 16. E eu só tenho 21 – declara Simon Williamson de forma pomposa, muito embora tenha parecido se encolher levemente ao se dar conta de que Janey sabia que ele havia recentemente celebrado o 22º aniversário. – Eu sei a impressão que dá, e não tô de forma alguma orgulhoso do fato de termos embarcado num relacionamento, mas aconteceu. Então trate de lidar com isso – ordena, sentando-se mais para frente, inclinando-se na direção dela, e depois se contorcendo de dor por causa da cadeira dura.

Janey sente seu âmago se esfacelando ainda mais diante do olhar resoluto dele. Ela abaixa a cabeça e a ergue de repente para encarar a filha bem dentro dos olhos cansados e confusos. Um pensamento terrível tomou conta dela: era o olhar de uma velha.

– Não sou papa-feto, Janey. – Sick Boy mantém seu olhar frio concentrado nela. – Como imagino que cê saiba, em geral eu prefiro mulheres mais maduras. – E ela sente como estivesse se afogando no próprio silêncio constrangido.

O alvo da raiva silenciosa de Janey foi mudando lentamente: com uma claridade impiedosa, percebe mais uma vez que o alcoolismo de Coke tinha trazido infelicidade a todos eles. Tinha destruído a ele, feito ela ir para a prisão, mandado o filho deles à Inglaterra para ficar com parentes que ele mal conhecia, e tinha entregue a filha deles nos braços daquele vizinho suspeito. Cada copo que seus olhos estúpidos e embriagados haviam visto e erguido até os imensos beiços borrachudos tinha servido para levar a todos para mais perto daquele destino horrível. Os sentimentos dela em relação ao falecido marido, no passado envoltos em todo tipo de ambivalência, haviam se cristalizado num ódio ardente.

Então Sick Boy dá mais um aperto em Maria, desta vez numa das coxas, deixando clara para Janey uma intimidade possessiva. – Por mais esquisito que seja, eu amo essa mina, e vou fazer tudo que for preciso por ela enquanto você estiver aqui dentro – declara ele.

Janey o encara mais uma vez, e depois volta a admoestar a filha. – Mas olha pra você! Cê tá horrível!

Por cima da blusa, Maria coça a pele dos braços. – A gente pegou uma gripe...

– A gente passou umas noites em claro – intromete-se Sick Boy. – Mas a gente tá bem, né, gata?

– Sim. É sério, mãe – garante Maria.

Ainda que não esteja nem um pouco convencida, Janey não vê nenhuma vantagem em aumentar a distância entre ela e a filha ou minar o que infelizmente parece ser sua única fonte de proteção. E então Carcereira Machorra se aproximou. Sua nêmesis havia deixado de lado O buraco da agulha, de Follett, e agora vinha requebrando lentamente pelas fileiras de mesas, fazendo todo mundo baixar o volume como se fosse um botão num aparelho de som, antes de parar na frente da porta, cruzando os braços sobre os peitos e a barriga enormes embalados numa espécie de paletó.

A última fase da excruciante visita foi uma conversa mecânica sobre frivolidades, enquanto Janey sofria pela ausência de um telefone para falar com o irmão que mora em Nottingham tanto quanto Sick Boy e Maria sofriam com a ausência da droga. Todas as partes ficam aliviadas quando o horário de visita chega ao fim.

– A gente tem que ir nessa, e sem perder tempo – diz Sick Boy a Maria enquanto eles se esgueiram por entre os portões da prisão e a garoa que cai sobre o centro de Stirling, em direção à estação ferroviária, e embarcam num trem que vai para Waverley.

Um ônibus os leva até o começo da Easter Road, onde atravessam o Links enfrentando o forte vento que os faz tremer e os castiga com camadas aguilhoantes de chuva. Apesar do desconforto, Maria olha tudo à sua volta numa admiração que o deixa atordoado, como se esta caminhada trôpega e encharcada evocasse o fim do ano letivo, trazendo consigo a memória dos verões inocentes de uma garotinha; rolando na grama, a cabeça latejando de calor, as ruas vazias e letárgicas das tardes sem vento, as fofocas no rádio dos carros que passavam, o cheiro magnífico do diesel, a embriaguez melancólica do pai, a voz rouca da mãe, suspensa na varanda em meio a um crepúsculo empoeirado com um sol se pondo tão lentamente que você se sentia enganado quando a luz ia embora. Tudo isso tinha acabado com o surgimento dos peitos e dos quadris, anunciando jogos novos e mais perigosos e o emprego de expressões de desprezo e posturas de indiferença, estas insignificantes defesas contra as ininterruptas investidas selvagens dos garotos. Ele se arrepende do seu papel na recente sequência de tragédias da vida dela, mas logo releva ao concluir que, se não fosse ele, algum outro predador bem menos gentil teria prazer em aceitar a missão.

È la via del mondo.

Sabotado por uma emoção entre a euforia e o pânico, Sick Boy usa os dedos para explorar os bolsos da calça. Não tinha sido um sonho! Aquelas notas de 10 libras que tinha conseguido com a Marianne outro dia ainda estavam ali, novinhas ao toque. Ela tinha aberto a porta, com os olhos arregalados, e ele tinha ido direto pra cima dela, calando-a com um beijo. Enquanto ela retribuía, os olhos dele detectaram o quarto, onde a bolsa dela estava sobre a cama. Ele a deitou ali e deslizou a mão por dentro da saia, os dedos acariciando as coxas dela, trabalhando dentro da calcinha. Quase comemorou em voz alta quando descobriu que ela estava molhada, arfando quando o indicador dele fez pressão sobre o clitóris intumescido. Enquanto abria os lábios dela, seu outro braço, que passava por trás da nuca de Marianne, ia em direção à bolsa. A mão serpenteava em busca de uma entrada, os dedos contornando hábeis os lábios de bronze da bolsa, subindo até encontrar o fecho. Abrindo lentamente aqueles lábios lustrosos, enfiou seus dedos dentro dela: estava cheia de cédulas novinhas em folha. Pegou apenas duas de um bolo firmemente dobrado, prestando atenção para seguir trabalhando lentamente nos outros lábios com a mão direita, a boca na dela, mantendo Marianne pregada na cama. Com as duas mãos trabalhando em dois conjuntos de lábios, a direita começa a pegar leve, adiando o clímax até ele fechar a tranca de bronze e se afastar da bolsa, puxando o zíper de volta, bem devagar. Então puxou o braço que estava atrás do pescoço dela e, aumentando a pressão sobre os lábios vaginais, olhou-a nos olhos e declarou de forma rude: – Depois disso a gente vai foder. – E esperou que ela gritasse: – Oh, Simon, oh meu Deussss!... – Sabendo que teria de cumprir aquela promessa quando só conseguia pensar nas notas que estava enfiando no bolso de trás e em como as gastaria.

Agora, acariciando aquelas notas, não havia dúvida sobre como seriam desembolsadas. Maria vê as duas notas de dez libras sendo pornograficamente esfregadas entre o indicador e o polegar de Sick Boy e olha nos olhos dele, que está prestes a explicar quando uma voz irrompe no seu ouvido: – Isso vai dar certinho – e ele se vira para descobrir que a figura corpulenta e de cabelos ensebados do Jovem Baxter tinha emergido de uma parada de ônibus e parado bem na frente deles.

Que porra é essa? – Graham...

– Eu fico com isso – diz o Jovem Baxter, estendendo a mão coberta por uma luva de couro. – E vou querer o resto até o final do mês, ou você vai acabar com todas as suas coisas na rua e a fechadura trocada.

– Beleza... – Sick Boy engole com dificuldade, espia os olhos glaciais do Jovem Baxter e em seguida entrega as notas, os lábios tremendo. – Não tenho visto seu pai, ouvi dizer que ele não anda bem... é por isso que eu tô um pouco atrasado com o aluguel. Só um probleminha de comunicação entre mim e o cara que divide o apartamento comigo...

– Tô pouco me lixando presse papo furado – diz o Jovem Baxter. – Pode ser que cê consiga dar uma volta no meu velho, mas comigo a história é outra.

– Eu nunca...

– Sem aluguel não tem apartamento – o Jovem Baxter sacode a cabeçorra –, e eu vou estar lá, tirando de você tudo o que você tiver, e se isso não for o suficiente pra me reembolsar, eu ainda vou te botar no pequenas causas.

Sick Boy fica sem palavras, completamente arrasado, enquanto Baxter entra no carro e vai embora.

– Quem é esse? – pergunta Maria. – Por que cê deu o dinheiro pra ele?

– A porra do filho do proprietário do apê... ele anda me seguindo! Puta que pariu!

– Mas a gente ainda tem grana pro bagulho, né, Simon?

Ela parece um pássaro enlouquecido em um ninho, berrando freneticamente por comida. – Sim, a gente vai descolar. Fica fria – garante, ainda que ele próprio estivesse muito longe desse estado de espírito.

Quando voltam para a casa dos Anderson, Sick Boy toma um gole da água fria da torneira, mas uma dor de cabeça de rachar o crânio se instaura. Pensando com rancor no Jovem Baxter, abre a agenda e imediatamente enxerga o nome: Marianne Carr. Culpado e deixando a letra C para trás, ouve Maria no banheiro e fica se perguntando por que ela não pode ser mais como Marianne, com um trabalho e dinheiro. Caçar para dois é cansativo. Liga para Johnny Swan, mas é imediatamente dispensado. – Sem grana, sem heroína. Não posso fazer nada, amigão, especialmente com essa seca que tá rolando.

Então voltou para a letra C, mas dessa vez para Matty Connell. Aparentemente Matty estava de novo com a Shirley, mas Sick Boy acabou ouvindo a mesma ladarinha. – Tô zerado, parcero. O cara deixou a gente na mão – diz Matty. – Aquele viado foi preso, um contato do Swanney.

Para os ouvidos calejados de Sick Boy, aquela voz era pura enganação. – Saquei – responde. – Falo contigo depois. – Coloca o telefone no gancho sem nem esperar pela resposta.

Então tinha rolado algum tipo de batida, e agora estavam passando uma seca. Mas Swanney devia ter um estoque pessoal para atravessar os tempos difíceis. Viciado como era, precisava ter. Sick Boy liga novamente para ele.

– Foi mal, parcero – diz Swanney, e Sick Boy consegue ver o sorrisinho sarcástico do outro lado da linha, como se ele estivesse sentado numa cadeira na sua frente. – Quando falei que não podia te ajudar, eu tava falando sério. Odeio ficar me repetindo. Porra. Odeio ficar me repetindo. Porra... – E escuta a gargalhada de hiena de Raymie, aguda e ridícula, ressonando no fundo.

– Escuta. – Sick Boy baixa o tom de voz. – Tô com uma garotinha aqui no Leith, gostosa pra caralho e muito a fim, mas eu tô precisando demais de heroína e não vou conseguir foder. Ela tá com muito tesão, louca por uma trepada.

Escuta Maria batendo a porta do banheiro e indo para o quarto.

– Ah é? – A voz de Johnny soa cínica, e ele responde parodiando o tom dos personagens de Crown Court, algo que tinha se tornado onipresente toda vez que eles conversavam. – Aposto que isto não passa de uma coleção de mentiras, cuidadosamente arquitetadas para que o senhor use heroína de graça!

Mas Sick Boy sente que ele mordeu a isca, ainda que saiba que terá de jogar esse jogo. – Protesto, Meritíssimo! Gostaria de requisitar humildemente que esta audiência fosse suspensa por uma hora e retomada em Tollcross, onde a Prova Número Um poderá ser apresentada ao júri.

Um silêncio. Então: – Eu sinceramente espero, para o seu próprio bem, sr. Williamson, que a dita prova seja aceitável. Esta corte leva, de fato, muito a sério o seu tempo para que ele seja desperdiçado.

– Se liga, Johnny. É uma raver muito safadinha. – Sick Boy baixa a voz quando ouve Maria remexendo nos armários, vasculhando e praguejando.

– Você está convidado a dar uma metida nessa bucetinha. Em troca de uma pequena dose, é claro.

A linha fica muda mais uma vez, por dois segundos horríveis, nos quais Sick Boy morre mil mortes. – Ah, é? Ela é mesmo gostosa?

– Johnny, estamos falando de uma anjinha ballissimo. Era pura como a neve antes que tipo, eu mesmo tirasse o cabacinho – mente ele. – Andei ensinando umas coisas pra ela – continua, agora curtindo a própria conversa, combatendo sua fissura avassaladora tentando criar uma ainda maior no adversário. Volta a falar como um personagem de Crown Court, dessa vez adotando um tom agressivo de acusação: – Aposto que você ficará tão encantado por esta jovem safada quanto eu mesmo fiquei. – E então acrescenta: – Ela só pensa em trepar.

– Bem, é o que todos nós queremos. Então chega mais – pede Johnny, efusivo, antes de estalar como uma armadilha que se fecha: – Mas só vocês dois, hein?

– Não esquenta, eu falei de você pra ela, ficou louca pra te conhecer. – Sick Boy luta contra um engasgo quando vê Maria aparecer, como um fantasma, no vão da porta. Ele fala para ela, mas com o telefone: – Fechado então, Maria?

Mas o único que responde é Johnny. – Beleza, então, a gente se vê.

– Te vejo em uma hora, no máximo. – Sick Boy coloca o telefone sobre o gancho. – Tá na mão!

Maria comemora a notícia com um sorriso ulceroso. Sick Boy entra no quarto e descobre que ela pegou tudo que estava dentro das gavetas e do guarda-roupa e jogou no chão. Ela vem logo atrás dele. – Não tenho nada pra usar!

Ele consegue encontrar uma blusa laranja e branca no cesto de roupa que não estava muito suja e a convence a vestir aquilo.

Logo voltam para a rua e ficam tremendo numa parada de ônibus na Junction Street. Pegam o ônibus que vai pela Lothian Road. Um céu âmbar serve de fundo para colunas de nuvens esfumaçadas azul-cinzentas. – Agora falta pouco – Sick Boy diz para a janela, batendo os pés no assoalho do ônibus, observando as garotas através do vidro emporcalhado, imaginando todas sem roupa, aliviado por sentir uma pontada dentro da calça. Decide que nunca deixará que o bagulho controle a sua libido.

O ônibus pega a Lothian Road e, quando chega em Tollcross, Sick Boy está destroçado. Maria está pior, tremendo tanto que chegou a se dobrar e botar as mãos sobre os joelhos. Saindo do veículo, ele finge indiferença. – Maria, se liga, fica fria. Flerta um pouco com ele, seja sexy. Não pensa no bagulho nem diz nada até o Johnny falar. Cê, hã... tomou a pílula hoje de manhã?

– Claro que tomei!

– Eu vou ficar na sala ao lado, então não esquenta. O Johnny é legal – diz ele sem muita convicção, enquanto eles sobem as escadas do prédio de apartamentos.

Maria começa a tagarelar, roer as unhas, mas, à medida que se aproximam da porta escura, Sick Boy levanta a mão espalmada para que ela se aquiete. Tenta olhar pela fresta das cartas antes de bater, mas ela não se move quando a empurra com os dedos. Bate na porta e a pessoa que abre grita: – Entra aí! – Depois volta imediatamente para dentro do apartamento, e eles a acompanham. Sick Boy olha para trás e vê que um pedaço de compensado havia sido pregado na fresta.

Na sala de estar, junto com um sofá e uma cadeira, uma mesa de café com um vaso quebrado, uma gaiola vazia sobre um velho guarda-louça, um calendário do advento com todos os dias já abertos e todos os chocolates retirados, e o que parecia ser uma mancha de sangue no assoalho castigado, Maria registra a presença de dois homens e olha nervosa para Sick Boy antes que ele os apresente. – Maria, este é o meu bom amigo, o sr. Raymond Airline, e este é o nosso anfitrião, o sr. Johnny Swan. Esta é a Maria. – Ele a empurra para a frente, com as duas mãos nos ombros dela.

– Cês tem um bagulho aí? – implora Maria.

Puta merda, pensa Sick Boy.

Sentado na poltrona perto da lareira vazia, Johnny ri ruidosamente. – Tudo a seu tempo, gracinha. As regras da casa são: se você for legal com o Cisne Branco, o Cisne Branco vai ser legal com você. Tenho certeza de que o Simon te passou o básico.

Maria caminha na direção dele e o desconcerta imediatamente ao sentar sobre seus joelhos. Estica a mão e acaricia seu queixo áspero. – Bora pro quarto.

– Assim é muito, mas muito melhor – diz Swanney, rugindo baixinho, e então tira Maria de cima de si para se levantar, piscando para Sick Boy, que se retorce quando eles deixam a sala juntos.

– O florescer do romance – diz Raymie, carregado de desdém, mas Sick Boy percebe, glória, glória, que ele está preparando um pico.

– Você é um príncipe, Raymie.

– Príncipe Rancabaço. – Ele ri apontando a porta com a cabeça, e depois cantando: – This may not be downtown Lee-heeth, but we promised you a fix...

Vinte minutos depois, Sick Boy emerge do torpor ouvindo gritos. É Maria. – Prepara essa merda! – berra ela, vindo logo atrás de Johnny quando ele entra na sala. Sua blusa está ao contrário, mostrando costuras alaranjadas trançadas e grossas descendo pelos braços.

– A impaciência da juventude. Deixa o Cisne Branco ter seu momentinho pós-coito – protesta Johnny, enrolado num quimono vermelho de seda, com estampa de dragões dourados. Ele se vira para Sick Boy. – Essas coisa que cê andou ensinando pra ela... isso é o melhor que cê pode fazer?

– Dá logo o pico na mina – responde Sick Boy dando levemente de ombros.

– Tá legal – diz Johnny, ficando constrangido por um segundo, e começando em seguida a preparar o pico de forma lenta e cuidadosa.

Ele insiste em aplicar nela, aparentemente curtindo ainda mais esta penetração. Quando Maria suspira de gratidão e cai em seus braços, ele puxa o cabelo dela de uma forma ao mesmo tempo carinhosa e possessiva que deixa Sick Boy incomodado.

Então ele se aproxima, agradecendo ao Johnny; implorando, argumentando e suplicando por “uma coisinha” pra levar. Johnny não mexe uma palha em resposta, depois larga um sermão todo presunçoso sobre as leis básicas de oferta e procura, mas no fim acaba sucumbindo e balança um saquinho na frente de Sick Boy, que suspira agradecido.

O sorriso em seu rosto disfarça a violência do seu gesto quando ele derruba Maria aos seus pés. Apesar dos leves protestos de um Johnny chapado de heroína, a dupla se vai, pegando o ônibus de volta pro Leith, Sick Boy com o braço em volta de sua garota. – Sinto muito muito mesmo por cê ter precisado fazer isso, gata.

– Pra mim não tem problema porque eu faço por você – responde ela, e então se corrige: – Por nós, por mim e por você. Agora tá ótimo. Cê tá sendo bem legal comigo, Simon – ela diz, embora ele saiba que ela sabe que ele não está sendo, porém espera, de alguma maneira, constrangê-lo até que ele se transforme na versão de si mesmo que ela gostaria que ele fosse. – Nunca me abandone...

– Sem perigo, gata, tamo junto. Vamos voltar pro seu apê. Eu sei de uns carinhas que estão a fim de uma festinha, vai ser divertido.

Na janela do ônibus, Sick Boy fica olhando para o reflexo de Maria, surpreso com o quanto ela parece jovem; pálida, atônita. Ele se vira, olhando desconfiado para os outros passageiros. De volta ao Leith, sobem ansiosos as escadas da Cables Wynd House, onde Maria imediatamente se recolhe ao quarto para se deitar.

Sick Boy volta a sair, retornando uma hora depois do pub Grapes of Wrath com Chris Moncour. Chris tem 1,88 metro e é uma parede de músculos, o primeiro da família em pelo menos três gerações a não trabalhar nas docas, agora praticamente extintas. Sick Boy fica pensando se todo o corpo dele é proporcional. – Pega leve com ela – diz, tomado por uma aflição súbita.

Chris balança a cabeça, concordando, mas fica ofendido. Se ela não aguenta uma bela surra de caralho, que porra ela tá fazendo nesse negócio?

Ele volta vinte minutos mais tarde para acertar as contas com Sick Boy. Nenhum dos dois suporta olhar o outro nos olhos enquanto as notas trocam de mãos. Então Chris diz, um tanto triste, apontando o polegar para o quarto: – Acho que ela mijou na cama. E eu daria um banho nela e trocaria os lençóis se fosse você. Não dá pra fazer muita coisa ali.

Logo depois disso, Maria sai. – Tô toda doída, Simon.

Ele estava preparando o pico; era como se ela pudesse sentir o cheiro da heroína cozinhando, e os dois tomam um novo pico. Maria se deita no sofá e sussurra, em satisfação fragmentada. – Tô me sentindo melhor, Simon... desculpa o lençól... mas agora eu tô ótima...

– Não esquenta. – Ele se levanta de forma lenta mas empolgada, pega a roupa de cama antiga, embola tudo e arrasta até a máquina de lavar. Olha para fora enquanto uma lua redonda emana magnésio num céu violáceo, sobre as janelas congeladas dos apartamentos com suas luzes amarelas gritantes. Voltando ao quarto, fica praguejando enquanto seus braços arruinados lutam para virar o colchão. Encontra alguns lençóis limpos e faz a cama do melhor jeito que consegue.

Quando Maria vê sua obra, volta na mesma hora para a cama. Quer cochilar e quer que ele faça isso com ela. Sick Boy desliza para baixo das cobertas e sente uma fisgada de pavor. – Ele era grande?

Ela assente com a cabeça.

– Maior que eu?

– Aquele pico... foi maravilhoso...

– Sim, mas como ele se compara a mim, tipo, no lance do tamanho?

– Você é maior – diz Maria, enquanto Sick Boy entende, com gratidão e arrependimento, que ela está aprendendo as regras do jogo. – Mas ele não é tão gentil quanto você. E ele não me fez gozar como cê faz.

É a resposta certa, ele conclui, numa admiração sombria.

Sick Boy se levanta rapidamente e veste as roupas, na expectativa, enfiando uma fita cassete do álbum Meddle, do Pink Floyd, no walkman. Está um pouco mais lento do que o normal, porque as pilhas estão começando a acabar. O próximo convidado é pontual, e Sick Boy o deixa entrar com um olhar vazio, garante o pagamento antecipado e fica observando ele entrar no quarto onde Maria está cochilando na cama. O cliente puxa o edredom e fica admirando a nudez da garota. Então olha de forma penetrante para Sick Boy, que se afasta da porta, mas a mantém entreaberta para enxergar por uma fresta o homem tirando a roupa em alguns poucos movimentos rápidos. Porra, ainda bem que o pau dele é pequeno. Sick Boy sente um alívio e, num salto violento repentino e numa série de estocadas, ele está em cima e dentro dela.

Maria acaba se dando conta de que aquela massa é mais pesada que seu cobertor de sono e drogas. Sick Boy não consegue ver seu rosto, mas ela quase diz o seu nome: – Si... – Mas ela percebe que o peso, as dimensões, o cheiro, o toque, está tudo errado. Seu corpo congela e ela abre os olhos despertando para um pesadelo.

– Desculpa pelo seu papai, querida – diz ele com um sorriso indolente, enquanto a penetra.

– Não... me deixa... ME DEIXA! – grita Maria, tentando empurrá-lo para longe com os braços magros e cansados, enquanto Sick Boy se retorce do lado de fora, desviando o olhar, aumentando o volume da faixa épica “Echoes”, do Pink Floyd, no walkman vagabundo.

– Mas deixa isso pra lá, meu amor, agora seu papai sou eu – continua Dickson, enquanto as pilhas morrem e o riff de guitarra vai desaparecendo. Sick Boy o visualiza colocando a mão sobre a boca de Maria, simultaneamente virando sua cabeça para que ela seja forçada a olhar nos olhos dele.

É a chance de Sick Boy, que corre até o armário de casacos e pega o martelo na caixa de ferramentas de Coke. Fica olhando o rabo branco e pelancudo da fera subindo e descendo, as ceroulas pretas de flanela abaixadas até os tornozelos. O crânio do ex-policial está prestes a ser arrebentado por esta intervenção heroica, enquanto a bela princesa vira a cabeça pro lado e grita alto o suficiente para ser ouvida em todos os apartamentos dos Bananas, para então voltar a ser sufocada pela mão do senhorio.

Eu podia apagar esse viado agora... seria estupro...

Mas sua mão fraqueja e ele deixa o martelo cair no chão enquanto fica se balançando lentamente, assistindo os procedimentos cruéis através da fresta na porta.

Dickson parece levar um século até finalmente se retorcer em espasmos e corcoveios e desabar para um descanso agradecido em cima da garota aprisionada. Ele remove a mão, e o choramingo incrédulo de Maria aumenta de volume até virar um bramido de gelar o sangue.

– Não... não... não... Simon... SI-MON! SI-MO-HO-HON!

Enquanto observa Dickson rolar para sair de cima da garota, Sick Boy percebe que ele hesita por um segundo, então pega as roupas e sai rápido do quarto. – Cê é mesmo um escroto – diz ele, olhando admirado para a porta, depois dá um tapa no ombro do anfitrião e cai fora.

Maria está chorando baixinho com o rosto enfiado no travesseiro, e Sick Boy está em cima dela, com o martelo na mão, sufocando a menina como se ele fosse um cobertor e ela estivesse pegando fogo, segurando enquanto ela se debate e se retorce, transformada em catarro, lágrimas, gritos e marcas muito, muito profundas. – VOCÊ DEIXOU ELE ME ESTUPRAR... VAI SE FODER... FICA LONGE DE MIM... EU QUERO A MINHA MÃE... EU QUERO MEU PA-PA-AAI...

– EU TAVA COM O MARTELO! EU IA APAGAR ELE! MAS NÃO AQUI, ISSO SERIA UMA CAGADA!

– CÊ DEIXOU ELE ME ESTUPRAR...

– EU PENSEI QUE A GENTE TINHA PEGADO ELE! DAÍ EU ME LIGUEI QUE A GENTE NÃO PODIA APAGAR ELE AQUI OU A GENTE TAVA FUDIDO!

– EU QUERO A MINHA MÃE... MÃ...NHÊ... – Maria chora convulsivamente, e Sick Boy sabe que ele só tem que ficar segurando ela até que a fúria seja consumida e a fissura corroa suas células privadas de bagulho até que implorem por mais uma dose.

E é o que ele faz. Os uivos de banshee vão sendo relegados a um segundo plano à medida que a mente dele se concentra em golpes e esquemas e Maria vai parecendo quente e macia mais uma vez, como se todo aquele barulho estivesse vindo de outra pessoa.

Então ela dorme. Só quando o telefone toca Sick Boy se sente impelido a soltá-la. O telefone não para de tocar.

Sick Boy atende, e é o tio Murray, ligando de um Little Chef de beira de estrada. Ele tinha falado com a Janey e estava a caminho para pegar a Maria e, porra, era melhor que o Sick Boy estivesse bem longe quando ele chegasse lá. Apesar de ficar repetindo pro tio cada vez mais irritado que “Você entendeu tudo errado, Murray” e “Esse não é o meu estilo, Murray” e “A gente precisa sentar e conversar sobre isso, Murray”, quando o telefone é batido na sua cara, Sick Boy pensa de repente que talvez não seja uma ideia tão ruim abandonar o recinto. Abandona a garota nos braços do cochilo da heroína e vai até a Junction Street, e depois pega a Walk. Pensa em subir direto a avenida até a Montgomery Street, onde Spud e Renton estariam esperando, ou talvez dar um pulo no Hoochie Coochie Club em Tollcross, onde haveria garotas que dariam muito menos trabalho.


Notas sobre uma epidemia 4

O Posto de Troca de Agulhas na Bread Street, em Tollcross, foi desativado no início dos anos 1980 pela polícia, depois que debates na imprensa local deram voz a uma crescente controvérsia.

Isso significou que a comunidade cada vez maior de usuários de drogas injetáveis em Edimburgo deixou de ter acesso fácil a utensílios esterilizados. Em consequência disso, as pessoas começaram a compartilhar mais seringas e agulhas, desinformadas a respeito do risco de transmissão do vírus HIV (ainda tratado quase exclusivamente como uma doença gay) através do contato direto com o sangue alheio.

Usuários começaram a ficar doentes numa proporção jamais vista, e em pouco tempo alguns setores da imprensa já estavam descrevendo Edimburgo como “a capital da Aids na Europa”.


A luz feria seus olhos

Ao entrar na sala escura, sua mão procurou o interruptor por instinto, mas parou abruptamente. Ao perceber a silhueta grandalhona do ex-cunhado e sócio sentado na cadeira, lembrou que a luz feria seus olhos.

Após a entrevista demissional no departamento de recursos humanos, onde foi submetido alternadamente à humilhação e ao terrorismo, Russell Birch passou a maior parte da tarde tentando ficar bêbado. Visitou vários bares da zona oeste de Edimburgo e alimentou aos poucos a raiva contra o homem que o envolvera nesse pesadelo e que estava ali escondido, em silêncio, na cadeira de palha trançada, tão imóvel que seu corpanzil não produzia nenhum rangido. Russell pensou que a missão missão tinha sido bem-sucedida, mas, de repente, sentiu-se sóbrio demais.

A consciência de que estava agora diante de uma ignomínia diferente, ainda mais séria e menos contornável que a provação enfrentada pela manhã naquele escritório decadente, abalou tanto Russell que ele começou a amaldiçoar em pensamento aquela vadia burra da sua irmã, que tinha chegado a ponto de se casar com este animal numa cerimônia cafona de motoqueiros em Perthsire. Roeu-se por dentro com a lembrança daquele casamento, uma procissão de aberrações humanas tatuadas e musculosas, em trajes de couro. Mas Kristen também não era assim tão burra e rompeu a relação em pouco tempo. Russell não podia dizer o mesmo.

Ele tinha vindo com a intenção de acusar, mas agora percebia a demência inerente àquela atitude. Seu papel era o de explicar. E foi isso que tentou fazer, com um fio de voz minguado e choroso que ofendia até seus próprios ouvidos. – Me levaram pro escritório porque me flagraram numa dessas câmeras novas que andam instalando em toda parte. Disseram pra eu limpar minha mesa – Russell estremeceu lembrando por um instante da expressão glacial no rosto de Marjory Crooks, a gerente de RH. Ele conhecia bem aquela mulher, tinham sido colegas. Oito anos de trabalho indo por água abaixo, só por causa de alguns milhares de libras numa conta bancária.

Mesmo assim, ele se viu repetindo as palavras da sra. Crooks, quase à risca, para o brutamontes sentado na cadeira em meio à penumbra. – Eles disseram que só não decidiram abrir um processo criminal por causa dos meus excelentes serviços prestados no passado e a publicidade negativa que a empresa teria.

Seguranças de cara amarrada (homens que ele conhecia!) estavam esperando para escoltar Russell na breve caminhada entre o escritório e a rua. No momento em que se preparavam para iniciar a marcha humilhante, um dos diretores perguntou a ele: – Alguém mais está envolvido?

– Michael Taylor – disse ele imediatamente, ansioso para cooperar, puxar o saco de alguém a seu favor. Essa era sua fraqueza; um desejo voraz de aceitação.

– É um estoquista do setor de cargas – Crooks disse para o diretor, que acenou com a cabeça duas vezes, a primeira depois de registrar lentamente a informação, a segunda para autorizar que seguranças continuassem acompanhando Russell Birch até a rua e o frio que fazia lá fora.

Ele forneceu algo a eles, entregou Michael, mas não recebeu nada em troca. E agora Michael ia querer se vingar. Lembrou da vez em que foi ameaçado por seu agora ex-sócio. Russell tinha ficado frio e contra-atacado, declarando que ele poderia muito bem ir conversar com seu cunhado. Michael ficou quieto, mostrando-se disposto a manter aquilo entre eles. Isso ocorreu quando seu irmão yuppie e ecologista tinha entrado justo no Dickens, de todos os bares da Dalry Road, com aquela gatinha que havia trazido ao aniversário da mãe deles. Alexander fez papel de bobo aquela noite, mas ele foi para casa com aquela putinha bêbada e gostosa. Mas Alexander sempre dava um jeito de cair de pé. A injustiça de tudo devorava Russell por dentro.

E agora ele estava com aquela presença taciturna sentada à sua frente. E pensar que tinha se envolvido como favor pessoal, para ajudá-lo. Ele dizia que vinha sentindo dores desde o acidente; Russell precisava ajudá-lo. Depois de ajudar uma vez, o ex-cunhado pressionou para que continuasse ajudando. Ele o incluiu no esquema, é claro, mas era Russell quem corria todos os riscos. Com pacotes de risco enfiados na cueca, caminhava até o banheiro como um pato, como se tivesse sofrido um pequeno acidente não industrial.

Agora a merda tinha fedido, como sua mãe gostava de dizer. Ele estava desempregado, e muito provavelmente não obteria referências para qualquer outro trabalho especializado. O diploma de quatro anos de faculdade de Química Industrial (com honras) na Universidade de Strathclyde era agora um papel emoldurado que não servia para nada.

E enquanto ele contava a história ao ex-cunhado, destacando os perigos da revista de segurança com o novo sistema de monitoramento, sobre a qual já tinha alertado anteriormente, , uma voz desincorporada rasgou a escuridão e o calou: – O que cê tá querendo dizer, então, é que cê fudeu com tudo, pra você e pra todo mundo.

– Mas eu perdi meu emprego tentando te ajudar!

Mais silêncio. Agora Russell conseguia enxergar melhor o homem sentado na cadeira. Ele estava usando óculos escuros. Sua dor devia ter piorado hoje; o tempo tinha esfriado. – Sabe o que cê faz agora?

– O quê?

– Cala essa merda dessa boca.

– Mas eu tentei te ajudar... – implorou ele. – Craig...

A vulto se ergueu da cadeira. Ele tinha esquecido da massa gigantesca que era o ex-cunhado. Quase dois metros, como se esculpido em mármore. Lembrou de um filme a que assistira recentemente, estrelado por um fisiculturista que tinha se tornado ator; era como o Exterminador do Futuro saindo do meio da névoa. – Acho que cê não entendeu. – Ele balançou a cabeça para Russell como um pai decepcionado.

Tudo que Russell Birch conseguiu fazer foi bancar o covarde, o papel infantil que lhe fora reservado. Seus braços se estenderam, a cabeça virou para o lado e a boca tremeu, implorando: – Craiiig...

Um murro no estômago arrancou todo o ar de seu corpo. A dor era devastadora; não podia ser combatida, ignorada ou contornada. Ele dobrou o corpo e manteve um braço esticado num gesto patético de súplica. A subjugação de seu corpo não o surpreendeu, ele não tinha experiência nenhuma com a violência, mas o que o derrubou foi perceber o quanto ele era frágil: o pulso disparado, como os batimentos frenéticos de um pequeno animal encurralado.

O ex-cunhado o olhou com desprezo. – Tem uma coisa que não dá pra questionar que aconteceu. Só uma. Cê me fez perder dinheiro por causa da sua idiotice.

Ele tinha preparado um plano de emergência para aquela situação. Era evidente para ele, há algum tempo, que a fábrica fatalmente acabaria descobrindo o esquema. Mas mudança de estratégia, apesar de mantê-lo no jogo, também acarretaria um rebaixamento inevitável. Agora ele não era mais O Cara. Todo mundo para quem tinha fornecido aquele produto de qualidade, desde Glasgow até a Inglaterra, que precisava lidar com aquele lixo marrom inútil vindo do Paquistão, coisa que os usuários daqui recusariam ou nem saberiam o que porra era, agora ele trabalhava para eles. E quem sobrava trabalhando para ele? Só esse desgraçado inútil, o palhaço cuja irmã vagabunda ele tinha comido um tempo atrás. Ele tinha uma dívida a pagar e precisava ser lembrado disso. – Cê ainda trabalha pra mim. Cê vai dirigir. Pra onde eu disser. Londres. Liverpool. Manchester. Hull. Cê busca as coisas. Cê traz de volta. Sacou?

Russell Birch olhou para o ex-cunhado, mirando os óculos escuros impenetráveis. Tudo que conseguiu dizer foi: – Ok, Craig...

– Porra, se cê me chamar disso mais uma vez, eu arranco fora a merda da sua cabeça. Meu nome é Seeker. Repete!

E era. Como ele pôde ser tão estúpido? Era Seeker. Sempre Seeker. – Desculpa... desculpa, Seeker. – Ele tossiu, sentindo o estômago rasgado ao meio.

– Beleza, agora sai da minha frente, porra.

Russell Birch tateou em busca da maçaneta na penumbra vertiginosa. O medo começava a vencer a dor, e ele precisava sair dali. Sair, sair, sair.


DEGELO


Sétimo andar

Não me importo que o Mark more aqui, ele é um cara legal, mas não sei o que pensar do outro que veio com ele. Esse parece que se acha dono do lugar, isso quando tá aqui, o que felizmente é meio raro. Sei lá que porra ele fica fazendo por aí.

Isso deixa as coisas meio tensas logo de manhãzinha, especialmente porque eu não tenho dormido muito bem. O grande problema desse apartamento é que a gente fica bem do lado do coletor de lixo. Garrafas e todo tipo de coisas passam pela minha cabeça fazendo um barulhão, descendo por aquela porcaria de conduto até a lixeira, e isso o dia inteiro.

Esta manhã não é uma exceção ao clima tenso; acordo e encontro o outro viado, Sick Boy de nome e natureza, sentado na janela com um prato de torradas. – Bom-dia, Nicksy – dispara, e então, dando uma olhada no apartamento com aquela cara arrogante: – Hackney não é exatamente uma boa região da cidade, né? – diz, como se achasse que ia morar em Buck House ou alguma merda do tipo.

– Se quiser encontrar outro apartamento, vai fundo – respondo pro viado.

Aí ele se vira pra mim, todo metido: – Pode apostar que tô cuidando disso.

Que folgado. E ouvi falar que andou incomodando gente por aí. Não tenho muita paciência pra caras que se acham melhores que todo mundo, como se fossem as únicas pessoas cheias de grandes ideias e picaretagens. E não é como se ele estivesse me hospedando no buraco onde morava na Escócia, então seria bom ter mais um pouco de respeito.

E o lugar nem é tão ruim. Tem muitos condomínios piores que a Beatrice Webb House por aqui. Mesmo no sétimo andar a vista é decente; dá pra ver toda Queensbridge Road até London Fields. E os elevadores quase sempre funcionam; pelo menos ontem funcionaram. O apê não é maravilhoso, mas já morei em lugares bem piores. Herdei uma geladeira/freezer gigante em estilo americano que ocupa metade da cozinha, não que tenha alguma coisa dentro dela. Tenho meu próprio quarto e tem colchões no quarto extra pros caras dormirem.

Pelo menos esse viado desse Sick Boy acorda. Não tô pegando no pé do Mark, mas ele enrola muito; acaba de aparecer, esfregando os olhos entreabertos, e são quase uma da tarde. Pega uma caixa de fita de vídeo de cima da tevê e diz: – Acho Chuck Norris melhor que Van Damme.

Sick Boy olha pro viado como se tivesse levado uma porrada. – Aposto que acha mesmo, Renton. Tenho certeza absoluta que acha – diz, agora sentado na mesa da cozinha, escrevendo num monte de cartões com uma letra muito bonita e caprichada. Como está de costas, não dá pra ler nada. Não que interesse o que esse viado anda aprontando. Mark desaba no sofá e pega o livro do Orwell que está lendo: A filha do reverendo. Foi o primeiro livro de verdade que li na escola, depois que diagnosticaram a dislexia e comecei a receber ajuda. Nem me importei que fosse umas cinco vezes mais longo que os livros dos outros e que tenham enchido meu saco por eu ter um problema. Amei o livro. Orwell mata a pau. Pra mim nunca ninguém chegou nem perto.

– Parece que anda rolando uma seca em termos de heroína – comenta Sick Boy com um ar distraído. – Liguei pro Matty um dia desses. Parecia um panda tremendo todo num restaurante chinês.

Matty: taí um cara que é boa gente. Queria que o Rents tivesse trazido ele pra cá. Aí seria como nos velhos tempos lá em Shepherd’s Bush. Aquilo foi legal. Rents dá uma viradinha pra conferir o perfil aquilino do Sick Boy e daí volta a ler.

Aí eu tenho me virado: aguentando uns escoceses malas e pensando na Marsha no andar de cima.

Escuto o pinga-pinga terrível vindo da cozinha. O apê está fedendo que nem uma caverna de urso, e isso deve ser um insulto à raça ursina, que no fim das contas até parece ser uma turma bem limpinha. Mark vomitou por lá, o viado anda usando heroína demais, e não limpou. Está discutindo sobre isso com Sick Boy. – Vou limpar – diz ele, mas não parece estar com nenhuma pressa de fazer isso. Ficou cheio de frescuras quando viu a droga marrom pela primeira vez, disse que não tinha como ser heroína decente; aí falou que na Escócia é sempre branca. Agora o viado não consegue parar.

Enchi o saco; abandono meus hóspedes escoceses imundos e saio para um dia frio, fresco e revigorante, enchendo os pulmões de ar e me sentindo melhor imediatamente. A caminho do mercado, encontro a irmã de Marsha, Yvette, uma gordona que não tem nada a ver com ela, do lado de fora da estação da Kingsland Road. – Tudo bem?

– Sim, beleza.

– E a Marsha?

– Tá descansando, né. Andou passando mal. – Yvette troca a perna de apoio e uma das tetonas imensas parece que vai explodir pra fora da blusa.

– Coitada, que pena...

Yvette fala com um sotaque meio jamaicano. – Ela não contou? – pergunta, enquanto ajusta a blusa e fecha o casaco.

– Contou o quê?

– Nada... não é nada. Coisa de mulher.

– Ela não tá falando comigo. Preciso me encontrar com ela. Só quero saber o que eu fiz de errado. Só isso.

Yvette sacode a cabeça. – Deixa, Nicksy. Se ela não quer papo, ela não quer papo. Cê não vai mudar isso – diz ela, então dá uma risadinha meio que pra si mesma e repete: – Não, mon, cê não vai mudar isso.

Dou de ombros e me afasto da gordona, pensando que eu nem quero mudar ninguém. Em geral sou um cara que vive e deixa viver. Afinal de contas ainda sou jovem, e ela também é. Tem 17. Mais velha de alguns jeitos, mas ainda mais jovem de outros. Com um filhinho de 2 anos, o Leon. Bichinho adorável.

Não conheci o pai do moleque, e talvez ele tenha voltado a entrar em cena; não sei se ele tem alguma intenção com ela. Tudo que ela dizia quando toquei no assunto foi: – Não, cara, tá tudo bem.

Porque eu sei como são as coisas; certamente não sou trouxa o bastante de me meter no território de algum negrão. Faz tempo que o homem branco se mandou pros Shires; tirando algumas áreas isoladas, como Bermondsey (e os viados de Millwall não contam), Inner London está meio que dominada pelo negro e pelo yuppie. Às vezes parece que a gente é estranho na nossa própria cidade, porra. O cara tem que se comportar, e além disso nunca vale a pena brigar por rabo de saia.

Mas eu achava mesmo que tinha alguma coisa especial rolando entre a gente. Depois me dei conta que muita gente, negros e brancos, não gosta da ideia de ver um cara branco e uma mina negra se engraçando. Algum dia isso não vai mais fazer diferença; todo mundo vai ser cor de café com leite com um toque de amarelo. Até lá a gente vai sofrer bastante pra seguir em frente.


Má circulação

Graças a deus que aquela garotinha Marie tá bem segura na casa do tio Murray em Nottingham. Encontrei ela faz umas semanas, toda errada, mendigando nas pontes, quando eu tava voltando do trabalho, aí levei ela comigo pra casa do Johnny. Mas ela deu um chilique quando a gente chegou na escada; disse que já tinha ido ali e que tava com muito medo de entrar. Aí eu subi e peguei uma coisa pra ela comer, depois pedi o telefone do tio dela e liguei pra ele. Levei ela pra minha casa – fiquei com medo que ela roubasse a gente no meio da noite quando deixei ela no sofá – e no dia seguinte fui com ela pra rodoviária da St Andrew’s Square. Comprei uma passagem pra Nottingham, coloquei ela dentro do ônibus da National Express e não arredei o pé até ele ir embora. No dia seguinte liguei pro tio Murray pra ter certeza que ela tinha chegado, e ele me falou que tava atrás de um tratamento pra ela. O Murray tava metendo o pau no Simon, dizendo que a Maria ter se metido com heroína era culpa dele, mas eu nem quis entrar nesse assunto. Às vezes as famílias têm isso de projetar as merdas em cima dos outros. Mas o tio Murray é boa gente, até me mandou um cheque pra pagar pela passagem.

A última coisa que eu queria era sair à noite depois do trabalho. O Alexander passou o dia inteiro esquisito, provavelmente porque a gente não anda se encontrando fora do escritório tanto quanto ele gostaria. Às vezes eu pego ele me olhando, me espiando da salinha com olhos tristes e sonhadores, parece um cachorro com uma guia na boca. Gosto dele mas agora tá demais, pra dizer o mínimo. A cidade tá fria e feia: rolou um degelo, e a neve e o gelo derretidos deixaram a cidade parecida com um cinzeiro gigante cheio de bitucas de cigarro, brita e merda desenterrada. Até pensei em não ir visitar minha mãe de noite, mas meu pai deixou um recado na secretária dizendo que era pra eu ir pro hospital assim que pudesse, falando que tinha chamado também Mhairi e Calum e tal. Não gostei do tom de voz dele. Eu me visto bem rápido, toda nervosa, e saio.

Quando chego na enfermaria, parece que minha mãe tá afundando na cama. Por causa das ataduras, ela mais parece os restos mumificados de si mesma, como se devesse estar dentro de uma tumba egípcia. Tô quase abrindo a boca pra falar quando percebo horrorizada que aquela não é minha mãe. Percebo que tô no quarto errado e avanço entorpecida até o seguinte, onde minha mãe tá quase idêntica à coitada da vizinha de porta. É como se estivesse vazando no colchão, como um balão se esvaziando. Meu pai tá ao lado dela, os ombros magros tremendo, lutando pra controlar a respiração. Tá muito branco, e o bigode fininho foi quase todo raspado de um lado, como se ele tivesse feito uma cagada ao aparar. Cumprimento ele com a cabeça e me inclino sobre mamãe. Os olhos dela, mortos e vítreos, como os olhos do meu velho ursinho de pelúcia, encaram sem foco o teto. Isso que ainda resta dela tá tão cheio de morfina que duvido que ela perceba quando me inclino pra beijar aquela bochecha fina como papel e sinto o cheiro do hálito fétido. Ela tá apodrecendo por dentro.

A freira da enfermaria chega perto do meu pai e coloca a mão no ombro dele. – Ela está indo, Derrick – diz em voz baixa e calma.

Ele aperta as duas mãos ao redor das garras rugosas da minha mãe e implora: – Não... não... Susan... não... Susiezinha... não, minha Susie... não era pra ser assim...

Aí lembro que às vezes ele cantava pra ela aquela música “Wake Up Little Susie”, geralmente quando levava o café na cama pra ela aos domingos. Fico agachada ao lado dela, dizendo: – Eu te amo, mãe – repetindo isso sem parar pra aquele saco de pele, osso e tumor envolto em bandagens na altura do peito que o cirurgião deixou liso que nem tábua; rezando com a esperança de que um Deus sobre quem nunca pensei muito adentrasse de repente aquelas feridas.

Meu pai encosta a cabeça na barriga da mamãe e eu passo os dedos pelos cabelos pretos dele, ainda abundantes e espetados, mas com umas mechas brancas que parecem fantasmas caminhando em meio aos vivos. – Tá tudo bem, papai – digo, bem idiota. – Tá tudo bem. – Aí me dou conta que não chamava ele assim desde que tinha uns 10 anos de idade.

Em certo momento minha mãe tem convulsões leves e então para de respirar. Não vi seu último suspiro, ainda bem. Ficamos ali esperando em silêncio por algum tempo, meu pai soltando uns grunhidos como se fosse um pequeno animal ferido, eu me sentindo culpada pelas ondas de alívio que tomam conta de mim. Não era mais a mamãe, ela mal reconhecia a gente por causa dos remédios que tavam dando pra ela. Agora ela se foi e nada mais pode machucar ela. Mas nunca mais ver minha mãe é uma coisa grande demais pra entrar na minha cabeça.

Tenho 21 anos e acabo de assistir à morte da minha mãe.

Meu irmão menor, Calum, e minha irmã menor, Mhairi, entram, ambos destruídos. Tão com um olhar condenatório, como se achassem que eu roubei alguma coisa, enquanto papai se levanta, mais parecendo um homem escapando da sepultura, e abraça Mhairi e a mim ao mesmo tempo. Depois chega perto do Calum e tenta fazer a mesma coisa, mas Cal o empurra e olha pra cama. – Então é isso? – pergunta ele. – Mamãe já era?

– Agora ela tá em paz, ela não sofreu... ela não sofreu... – meu pai fica repetindo.

Meu irmão sacode a cabeça como se dissesse “ela passou quatro anos com câncer, fez uma mastectomia dupla e quimioterapia, é claro que ela sofreu pra caralho, porra”.

Agarro as barras de metal frio aos pés da cama. Olho pra saída de oxigênio na parede. A jarra de plástico no armário. Os dois cartões de Natal idiotas na prateleira ao lado da janela. Eu me concentro em tudo menos naquele cadáver. Penso na morfina da minha mãe, que peguei na casa dela e agora tá na minha mesinha de cabeceira. Pra quando eu precisar. Se os hospitais acham que vão ter isso de volta, vão se foder; devem pelo menos isso pra gente.

Saio pra fumar com a Mhairi. – A gente não devia tá fazendo isso – digo pra ela. – Olha o que aconteceu com a mamãe.

– Vai acontecer de qualquer modo – responde Mhairi enquanto lágrimas silenciosas arruínam seus olhos pintados, o rosto contorcido de sofrimento. – Ela cortou fora os peito e morreu desse jeito, que nem uma aberração! De que adianta?

– Cê não sabe se vai acontecer com a gente também!

– Passa de mãe pra filho!

– Cê não tem como saber! Vem cá, sua boba – respondo, e aí dou um abraço nela. – A gente tem que cuidar daqueles carinhas lá dentro, nós duas, certo? É o que a mamãe ia querer. Cê sabe como eles são inúteis. Viu o bigode do papai? Deus do céu! – explode ela numa gargalhada dolorosa, mas logo o rosto se contorce todo de novo e ela volta a chorar. Dá pra sentir o Coco Chanel, aquele que sumiu antes de eu me mudar, que ladrazinha, mas agora não é bem a hora de dizer nada.

Cal e papai aparecem, mas quero ir embora, encontrar o Alexander ou talvez ir pra casa do Johnny pra pegar alguma coisa. Um pouco de haxixe ou talvez até bem pouquinho de heroína; qualquer coisa pra tirar isso da cabeça. A gente fica um tempão ali fora, conversando sobre a mamãe, aí eu faço sinal prum táxi e coloco eles dentro, mas não entro no carro. Papai abre a janela.

– Cê não vai passar a noite com a gente? – pergunta, quase implorando.

Ele tá sofrendo tanto que eu quase mudo de ideia, mas não, de jeito nenhum. – Não, vou pra casa dormir e amanhã bem cedinho vou aparecer pra cuidar das burocracias todas e tal. Registrar o óbito, essas coisas.

Alexander ou Johnny... pau ou heroína...

Os braços do meu pai se estendem pra fora do táxi, as mãos dele seguram as minhas. – Cê é uma boa menina, Alison... – diz ele, e começa a soluçar. Nunca na vida tinha visto ele chorar. Mhairi o consola e Calum vira a cabeça na direção da outra janela pra escapar dali.

– Boa-noite... – escuto minha voz fraca dizendo enquanto a mão dele desliza, úmida como um peixe, da minha, e o táxi começa a se mexer. Fico olhando ele se afastar e de repente sinto vontade de que pare.

Ao invés disso me viro e caminho na direção da Tollcross.

Pau ou heroína...

Quando chego na casa do Johnny, encontro Matty, imundo e selvagem, zanzando no lado de fora do prédio. Chego por trás. – Que cê tá fazendo?

Ele quase troca de pele, como a cobrinha que é. – Hã... Ali... hã... nada... só vou visitar o Johnny.

– Então bora – digo pra ele, apontando pro interfone detonado e a porta aberta. – Não precisa ficar enrolando!

– Tá – diz ele, todo desconfiado, e a gente sobe as escadas. Aí o Matty me faz ficar parada na frente do olho mágico enquanto ele toca a campainha. – Porra, não vão me deixar entrar – ele cochicha baixinho.

– Bem, eu não sou seu Cavalo de Troia – respondo, bem incomodada, quando Raymie abre a porta. Tá usando uma camiseta com a inscrição I Was Born Under a Wandering Star, mas daquele jeito bem vagabundo feito em casa, letras de plástico azuis e arredondadas em fundo branco.

– Mas olha só... – diz ele – pode entrar. – E então enxerga o Matty. – Que safado, Matthew, safado, safado, bem safadinho – diz com a voz daquela tia que treina os cachorros na TV.

– Dá uma folga pro homem branco, Raymie.

Raymie dá de ombros e deixa a gente entrar. Vou pra sala e vejo o Johnny sentado com um cara que não me é estranho. É o amigo do irmão do Alexander, o cara que eu e o Simon pegamos discutindo com o Johnny na escada. Dessa vez parece careta, vestido com roupas comuns e com o cabelo mais curto. Contorce o rosto quando me vê, e Johnny levanta da poltrona. – A adorável srta. Lozinska! É sempre um prazer, queri...

Ele congela quando enxerga o Matty atrás de mim.

– Mas que caralho cê tá fazendo aqui? Cê foi avisado!

Matty meio que só faz uma cara de coitado e encolhe os ombros, mas a presença dele, ou talvez a minha, deixou inquieto o cara na poltrona. – O que tá rolando, Johnny?

Johnny tá disposto a acalmar o sujeito. – São gente boa... – diz, se virando pra me dar um sorriso. – Mas seria melhor se a Ali tivesse trazido alguma das amigas dela...

– Pra você não tirar os olho e as mão de cima delas – respondo meio brincando, mas não tô com vontade de rir, é mais como se estivesse sufocando...

AH MEU DEUS...

– Ei! O Cisne Branco é sempre um cavalheiro... – E então ele para, porque enxerga as lágrimas que eu sinto escorrerem de repente pelo meu rosto. – Ei! Ali! O que houve, querida?

Conto tudo pra eles; explico de onde acabo de vir e o Johnny reage sendo muito legal.

– Puta merda, Alison, meus pêsames. – Sacode a cabeça. – Que doença horrível. Meu pai teve. Foi de cortar o coração: ele lutou o tempo todo. No fim, eu ficava implorando pra ele desistir, deixar rolar, mas que nada. Foi terrível. É a pior coisa do mundo, porra – diz ele, me abraçando, e depois me despenteia como se eu fosse uma pirralha. Entra na cozinha e põe a chaleira no fogo, seguido por mim e pelo Matty.

– Hã... eu tava pensando em descolar alguma coisa, Johnny – diz Matty.

– A mãe dela acaba de morrer, seu viadinho escroto! – grita ele, apontando pra mim. – Tenha mais respeito, porra!

– Tá bom... hã... desculpa, Ali – diz Matty, e aperta minha mão meio sem jeito. Parece inacreditável que uns anos atrás a gente era um casal e dormia junto.

O outro cara, o amigo do irmão do Alexander, se levantou e entrou na cozinha, aí cochichou alguma coisa no ouvido do Johnny, que faz que sim com a cabeça. Daí ele diz: – Então vou indo nessa. – Mas de um jeito bem pensado pra gente escutar.

– Certo, meu camaradinha – responde Johnny forçando a animação.

Enquanto o cara vai saindo, Matty dá um passo na direção dele e pergunta: – Desculpa, parcero, não lembro do seu nome.

– Porque eu nunca disse pra você qual é – responde o cara, seco, e então se vira pra mim. – Meus sinceros pêsames, querida. Mas diga pro seu namorado que o irmão dele é um dedo-duro de merda e que ele vai acabar tomando uma ruim!

– Ei, cara, para com isso, a mãe dela acaba de falecer. – Johnny se mete, mas fica me olhando meio perplexo.

– Não gosto dessas suas companhias, Johnny, não gosto nem um pouquinho – o cara diz, e vai embora parecendo bem irritado. Johnny também, e vai atrás dele. Dá pra ouvir os dois trocando cochichos perto da escada. Corro pra lá e grito pro carinha: – Não sabia de nada sobre seu irmão ou as porras que você anda fazendo, só tô dando prum cara formado em botânica com um bom emprego público! Certo?!

O carinha olha pra mim e diz: – Foi mal, querida, talvez não tenha nada a ver com você... foi mal.

Johnny concorda com a cabeça e eu respondo: – Então beleza. – E volto pra dentro.

Eles ouviram tudo, e Matty tenta parecer indiferente.

Johnny volta com tudo pra cozinha. – Desculpa aquilo tudo, boneca – diz, e daí encara o Matty, furioso, os punhos fechados. – Hoje cê tá forçando a barra!

Matty se intimida e quase chora, a voz se transformando num sussurro agudo e patético. É a defesa-garotinho que ele costuma usar, já vi isso outras vezes, e cansa bem rápido. – Como assim, cara?

– Toda essa porra de ‘não lembro do seu nome’. Já saquei qual é a sua, Matty; não mete o nariz nos meus negócios. Combinado?!

– Combinado. – Matty encolhe os ombros, agora um adolescente rabugento como nosso Calum, fazendo de conta que não sabe sobre o que o Johnny tá falando.

E o Johnny começa a lembrar da vez que o Simon trouxe aquela Mariazinha pra cá. Espero mesmo que não tenha se metido com a garotinha como o Johnny tá insinuando e como o Murray garante que aconteceu, mas sei que o Simon não ia fazer isso, só tava mesmo tentando dar uma ajuda pra ela. Meio que sinto vontade de que ele tivesse por aqui. Será que tá pensando em mim agora?


Clássicos do Northern Soul

O cabelo lustroso de Lucinda se ergue na brisa enquanto emergimos da estação Piccadilly Circus do metrô para o caos do West End. Sim! Esta é a verdadeira Londres: Soho, aquele quilômetro quadrado de diversão e libertinagem. É um começo de noite friozinho, mas todos estão fora de casa, tomando conta daquelas ruas estreiras; publicitários, caras que trabalham em gravadoras, vendedoras de lojas, cafetões, traficantes e putas, vigaristas e turistas. O ar está com um clima natalino animado, e festas de escritório regadas a álcool tropeçam pela rua a meio caminho entre restaurantes e bares. O botão transalerta está piscando tanto que virou praticamente um pulso constante. Observo com admiração cheia de inveja enquanto um sujeito baixinho com cara de jornalista zé-ninguém entra todo exibido numa boate particular, sem dúvida para ser recebido com honras e ter o pau chupado por uma hostess servil.

Eu quero isso que você tem e eu vou conseguir.

Sim, aqui é Londres mesmo, não uma versão cheia de patas do sul de Leith com vagabundos e marginais sem nenhuma perspectiva além de ficar no gueto e cuidar de apostas, beber e acabar na cadeia. E minha passagem para essa ilha paradisíaca urbana bem que pode ser a Lucinda. Estamos caminhando de braços dados, cansados de um dia inteiro de fodelança na casa dela em Notting Hill. Porra e suco de buceta por todo lado, jogos mentais e ginástica corporal, meu pau disparando como um AK-47 nas mãos de um epilético. O massacre teve início quando comecei o procedimento de cochichar frases em italiano no ouvido dela. As minas lá de casa adoram isso, mas ela começou a implorar que eu falasse com minha voz escocesa. Bem, eu sempre tinha suspeitado que minas ricas eram safadas pra caralho, e isso certamente confirmou.

Lucinda tem a arrogância proporcionada pela riqueza; que irônico, então, que ela fosse apenas uma das destinatárias dos cartões que entreguei ao acaso. Ah, que coisa maravilhosa! Escrevi mais uma leva de cinquenta no fim de semana passado:

Linda mulher, até hoje eu não acreditava em amor à primeira vista.

Ligue para mim, por favor. Simon X 01 254 5831

Cinquenta pedacinhos de mistério; a julgar por experiências anteriores, devem me render uns cinco ou seis telefonemas garantidos. Quem consegue resistir à perspectiva de amor e romance? Só se precisa de cartões e de certa equanimidade, a palava escolhida para este dia “E”.

Isso nunca funcionaria na provinciana Edimburgo ou, a propósito, em qualquer outro centro urbano do Reino Unido, exceto aqui. Esses cartões são feitos para uma metrópole alienada, espaçosa, desconectada, sem volta. Quinze dias atrás distribuí a primeira leva em Knightsbridge (tirando a sorte grande em Cinders), onde ficam os melhores consumidores. Na semana passada abati alvos selecionados em Kensington, St John’s Wood, Notting Hill, Primrose Hill, Canonbury e, apostando alto, Mayfair. O problema aqui é que você arranja um monte de gatinhas que ganham salário, quando o que eu quero são herdeiras. Outra maldição é o telefone do Nicksy, com seu constrangedor código 254, mas só as mais ligadas relacionam esses dígitos com o venenoso distrito postal E8.

A regra do uma-em-dez costuma funcionar, e é autosseletiva. Quando contei pro Rents ele começou a tagarelar sobre estatística: correlação e regressão, curva em sino. Eu só tava interessado era na curva do badalo dentro da minha calça. Esse sistema é um ímã tanto para idiotas românticas com expectativas de vida bem irreais quanto para as mais curiosas e ousadas. E isso em geral significa que uma trepada é o mínimo que você consegue com o esquema.

Lucinda foi meu maior acerto até agora; não é exatamente uma inglesoide de sangue azul, mas com St Martin’s College of Art e Roedean Girls’ School no currículo, mais um belo apartamento em Notting Hill vai quebrar o galho até que a oportunidade de subida de nível se apresente.

No outro lado da rua, um camarada bem moreno surge da entrada de uma loja vagabunda com uma loira de farmácia, bem branquela. Fica claro que o filho da puta sabe o que tá fazendo. Observe e aprenda, Simon. Sim, eu fiz merda com aquela mina de ouro lá na Escócia; fiquei ganancioso, fraquejei com a heroína, me envolvi emocionalmente e pisei na bola, mesmo que o Dickson tenha feito uma boa oferta. Não foi muito esperto, mas visitei o padre Greg e agora tudo se tornou só mais um pecado do qual me arrependi alegremente. Com o dom da fé, avançamos.

Sinto vontade de seguir esse viado que parece árabe e seu par abatido, e tô quase reproduzindo os movimentos dele, meu braço enlaçando a cintura elegante de Lucinda e a conduzindo para dentro do Blue Posts. – Já cuidamos do sexo, talvez tenha chegado a hora do álcool – cochicho como um estereótipo de bad boy, com um sorriso clandestino, e a expressão maliciosa no rosto dela me informa que é isso mesmo. Tô um passo atrás do cara, e enquanto ele faz o pedido e manobra sua vítima rendida até um assento, eu também deposito Lucinda no lugar bem ao lado deles, sob um ninho de enfeites e bolinhas cintilantes.

Gosto dos movimentos desse cara; mantendo um contato visual severo, está com a mina sob seu domínio e não vai largar. Ninguém precisa usar a força, o negócio é ser delicado. Ao invés de punho de aço, luva de veludo. Estilo é tudo. Confirmo que o cara é um especialista quando escuto ele dizendo: – Claro que gosto de você, meu amor, mas você está tentando usar psicologia reversa comigo e isso não vai dar certo.

– Não estou, Andreas... não estou... – implora ela, sacudindo a cabeça. É bem gostosa, de um jeito depravado e demente. Não consigo discernir se os tiques são coisa de cocaína ou heroína, mas posso dizer que o cérebro está ligado à pele de forma incorreta, tornando as funções motoras meio problemáticas. – Só quero saber que você gosta de mim.... – continua.

Acaricio o cabelo de Lucinda e cochicho no ouvido dela. – Será que um dia você vai dizer que gosta de mim...

– Eu gosto – responde Árabe Andreas sincero à sua consorte entorpecida. Dá pra ver que o primeiro malandro que comeu ela em casa, num daqueles blocos inglesoides que eles chamam de “condomínios”, sem a menor noção, encheu ela de marcas de caralho e mão, como se fossem alvos pros vagabundos seguintes. Basta falar uns minutinhos com uns caras desses pra se dar conta: a maioria dos predadores é burro pra caralho. Daí, pro sistema funcionar, a vítima tem que ser muito, mas muito tapada, desesperada e carente além da conta.

– Por favor, diga apenas que vai me amar loucamente e eu estarei ali – digo e dou uma beijoca na bochecha dela, que sorri. Preciso ouvir com atenção enquanto ela tagarela sobre o trabalho e a chatice das relações no escritório que parecem tão atraentes para quem está envolvido nelas, mas torram sem dó o saco de qualquer outra pessoa. Por sobre o ombro dela, enquanto a mina detonada vai ao banheiro, dou uma piscadinha pro moreno Andreas. Por dois terríveis segundos dignos de Begbie ele me encara com um olhar glacial, e fico pensando que entendi tudo errado. Então ele absorve e processa uma imagem mental, daí um sorriso sincero como o sol nascente divide a cara dele ao meio. Lucinda fica um pouco incomodada quando começo uma conversa amistosa sem sair do lugar. O cara não é árabe, veio de Atenas.

Lucinda se mete para dizer que visitou a cidade dele uma vez, resmungando alguma coisa sobre a Acrópole. Andreas dá um sorrisão enquanto os olhos em chamas, cheios de safadeza, conferem sutilmente as curvas dela.

– A Edimburgo do Sul. – Rio, enquanto Detonada volta, sorri pra Lucinda e depois me olha com certa reprovação. – Oi, sou o Simon – cumprimento.

– E daí – relincha a égua drogada, mas Andreas corta a onda dela com um gesto.

– Como uma marionete... pup, pup, pup – murmuro para Lucinda enquanto Andreas, o campeão grego, fala por cima de Detonada, com uma expressão leve de desdém. Ela fica quietinha, como uma colegial desobediente que levou uma dura do professor por quem é perdidamente apaixonada. – Você acha mesmo? – pergunta ele. – Edimburgo e Atenas? Existe uma conexão?

– Sem dúvida. Acho que são cidades irmãs.

Andreas parece pensar um pouco nisso e coça a barba por fazer. – Preciso dar um pulo lá, mas só pra visitar. Eu amo Londres. Para onde alguém iria depois de Londres?

Eu me viro para Lucinda e sorrio; é um sorriso alegre, mas grato, com um bônus de sinceridade. – Devo dizer – ergo uma das sobrancelhas – que as coisas têm sido boas para mim até agora. Você conhece o ditado: o amor é um carrossel, divertido como um parque...

– É isso que dizem na Escócia? – Andreas se recosta no assento e já estamos funcionando na mesma batida, como a cozinha de um grupo de jazz, como Keezbo e Rents tentam fazer, mas nunca conseguem. – Se você já conheceu uma garota tão bonita, então devo dizer que está mesmo navegando muito bem por nossa cidade!

– C’è di che essere contenti – admito, animado.

– Ah... italiano? – pergunta Andreas.

– Ooh... italiano. – Minaloide detonada tenta voltar para conversa, mas como ela se tornou claramente a mais baixa na hierarquia nem me incomodo de ignorar sua presença.

– Sim. Pelo lado da minha mãe – explico a Andreas.

Nossa conversa de playboys mediterrâneos deixa Lucinda corada, e batemos um papo educado, mas cheio de flerte. Assisto à mina rica de perfil, animada com nossa atenção, brilhando, totalmente alheia ao fato de ser apenas mais uma estatística aleatória num jogo de minha criação. Eu me sinto refinado, sofisticado e acima de tudo a quilômetros de distância daquela merda de Edimburgo, onde algum vagabundo de Leith sempre aparece cambaleando num wine bar sofisticado pra tomar mais uma, me encontra seduzindo uma gatinha de fora da cidade e logo arruína meu disfarce, geralmente com um berro de gelar o sangue, no estilo “SICK BOY, SEU VIADO, QUE PORRA CÊ TÁ FAZENDO POR AQUI?!”

Aí passamos boa parte da noite ficando agradavelmente bêbados com Andreas e Hailey (o nome da Detonada, não sei se de batismo ou se é o pseudônimo de stripper), e então voltamos pela Victoria Line até o hotel da família dele em Finsbury Park. É bem ao lado do parque que dá nome ao distrito, e atende vendedores com ternos puídos. Discretamente, Andreas me informa que fornece a eles os serviços que cavalheiros distantes de casa tanto precisam. Hailey, enquanto isso, embarca num monólogo choroso e anasalado de desastres de pobre, englobando a litania usual de pagamentos suspensos de assistência social, despejos e filhos entregues aos cuidados do Estado. Para minha sorte a destinatária da maior parte dessa conversa fiada é Lucinda, que Hailey, tristemente, declara ser sua nova melhor amiga.

Adentramos um dos quartos e fico impressionado quando Andreas exibe um pouco da heroína marrom de Londres. Lucinda me olha, tensa mas empolgada. – Eu nunca... você vai...

– Já cuidamos do sexo e do álcool – sussurro no ouvido dela, enquanto Andreas prepara o pico e Hailey o encara boquiaberta e desesperada, concentrando o olhar naquela coisa marrom se dissolvendo na colher. – Agora chegou a vez dos opiáceos.

– Uau... sério mesmo?

– Estamos sendo muito, muito malcriados – digo a ela enquanto enrolo a manga da camisa –, mas às vezes é legal ser malcriado, desde que se mantenham a perspectiva e um senso de equanimidade. – E rimos juntos e sei que, ainda que ela seja virgem de heroína, teria que decepar seus membros pra impedir ela de seguir em frente agora. Às vezes, como diz o Renton, sua hora chegou mesmo.

Sei que é uma fraqueza, e tenho me mantido careta desde que chegamos em Londres, exceto por umas bobagens e umas anfetaminas, mas vamos com tudo. Nossa, juro que consigo sentir a agulha se recurvar e ficar com forma de anzol dentro do braço de Lucinda, pronta pra arrastar a menina até um longo pesadelo que vai custar ao papai muito dinheiro e tempo precioso até que ela fique livre. Como uma verdadeira debutante, ela desaba na cama assim que a heroína bate. Não tá totalmente apagada, mas uma gosma escorre do canto da sua boca. Como ela não faz nenhuma menção de se mexer, eu me cago por alguns segundos e pergunto com insistência: – Tudo bem, meu amor?

– Mmmm... – murmura ela em êxtase, agarrando minha mão e acariciando meu pulso. Ainda bem que é essa merda marrom: se fosse a droga branca do Swanney, ela estaria navegando ao norte da Islândia ou ao sul das Falklands.

Andreas sorri e se prepara pra deixar o quarto, forçando Hailey, acabada, a se levantar. – Descansem, amigos. – Sorri. – Ou, se acharem melhor, brinquem um pouco.

– Foi um prazer... – diz Hailey, ignóbil, enquanto eles desaparecem, e ajudo Lucinda a tirar a roupa e deitar direito na cama. Aproveito o calor do seu corpo macio contra o meu e o edredom confortável, e ficamos conversando bobagens, indo e voltando de um quase sono até ela enfiar a mão dentro da minha calça e agarrar meu pau. Mesmo chapado de heroína o corpo dela se move com a masculinidade vigorosa e cheia de tesão que já percebi ser típica de minas ricas. Meu cacete fica duro e fodemos bem devagar, e quando ela goza mais parece um bocejo interminável, e de repente foi só isso mesmo.

De manhã, tomamos café com Andreas, com croissants meio passados. Estamos todos meio de ressaca e tremendo de leve, mas brincando sobre o dia anterior, todos menos a infeliz da Hailey, que fuma um cigarro atrás do outro, bem quieta. Com a mão trêmula, ela fica batendo a xícara de porcelana no pires com tanta insistência que dá até pra imaginar que tá fazendo isso de propósito. Basta um olhar severo de Andreas e ela se endurece toda, tentando controlar os tremores.

Um viado obeso e coberto de suor, com um terno apertado, entra e nos cumprimenta com a cabeça enquanto pega um croissant e se serve de suco de laranja e café. Andreas se levanta para cumprimentar o cara e os dois cochicham alguma piada. Esse viado grego mais parece um vilão dos filmes de James Bond ou pelo menos algum dos aliados esquisitos que ele arranja em países estrangeiros, o que acaba me tornando o próprio 007.

– Ah, nossa – diz Lucinda de repente, conferindo o relógio. – Preciso ir.

E assim ela parte para voltar a Notting Hill e trocar de roupa para ir ao trabalho. Esses inglesoides ricos e preguiçosos, vou te contar: se alguém aparecesse àquela hora num trabalho de verdade lá na Escócia, não ia demorar pra ser demitido. Andreas e eu fazemos planos de nos encontrar mais tarde – ele quer nos levar a uma boate. Depois de manifestar minha gratidão pela hospitalidade, vou embora e caminho até a estação Finsbury Park do metrô. Uma parada na direção sul me leva a Highbury & Islington, mas ao invés de me apressar para embarcar na merda do trem de superfície que vai até Dalston Junction decido usar meu cartão válido para todas as zonas e passear um pouco pela rede subterrânea.

No Green Park, meu trem da linha Piccadilly em direção oeste, no que em geral é um território de primeira para caçar xoxota, registro uma nítida ausência de gostosas. Desembarco em Knighstbridge e entro no vagão seguinte. Alerta instantâneo de gostosa, uma belezinha serena concentrada na leitura de um romance bem do tipo que Renton leria. Sento ao lado dela. – Eu estava no vagão da frente. Enxerguei você pelo vidro. Só tive tempo de escrever esse bilhete.

Entrego o cartão pra ela e me levanto de repente. Ela pega o bilhete com uma expressão desconfiada e confusa no rosto. Vejo ela dando uma olhada ao redor pra ver se mais alguém viu aquela conversa. Daí saio do vagão, as portas se fecham e agora que ela tem o poder, capricho ao fazer a cara; sincera e suplicante, mas com um jeito autodepreciativo e uma contorção honesta das sobrancelhas que, espero, diz “eu tentei”. E enquanto o trem se afasta, tenho certeza que consigo ver calor emanando do rosto dela, ainda que possa ser apenas minha imaginação.

Por mim está bom. Hora de ir para “casa”. Que piada sem graça essa porra de leste de Islington; o South Leith londrino. Não tem nem metrô nesse buraco de merda!

Volto pro gulag da Holy Street, na Beatrice Webb House, e entro no elevador detonado que, ainda bem, tá funcionando. O único outro ocupante é uma donzela jovem de pele escura que parece bem pegável e tá me encarando firme. Talvez seja uma pata, mas se for é um espécime incrivelmente jovem, o que em geral significa que a cria fica a cargo da avó. Faz o pau tremer em cima das bolas, sempre um bom sinal. Só peguei uma negra na vida, uma aluna da NYU, como ela se apresentava, eu sem saber ou me importar com o que era, mas passando uma agradável semana inteira enterrado dentro dela até as bolas no festival do ano passado.

Essa daí me encara com um olhar severo de retorcer as entranhas. – Você mora com o Brian, né?

– É temporário – garanto a ela. Agora me dou conta que foi essa garotinha que dispensou o Nicksy naquela noite de Northern Soul no Twat’s Palace logo que chegamos na bela Londinium. A noite em que acabei comendo aquela Shauna, fazendo a gente usar um montão de nitrato de amila pra eu conseguir botar no cu dela. – E aí, alguma festividade à vista?

– Sim, vai ter uma festança de Ano-Novo.

– Tem vaga prum vizinho solitário?

– Sim... aparece quando quiser, pra conversar e tal. O número é 14-5. Meu nome é Marsha.

– Adorei seu estilo – digo, pegando a mão dela e dando um beijo, o que rende uma risadinha cheia de dentes enquanto saio pro sétimo andar. Outra forte possibilidade, ainda que meio próxima demais de casa, com todas as vantagens e desvantagens decorrentes.

Às vezes eu penso que devia amputar uma das pernas, algo assim. Só pra dar alguma chance pros outros...


Dirty Dicks

Meu punho esmaga e silencia o despertador filho da puta. Sick Boy tá deitado do meu lado no colchão, de gorro na cabeça, totalmente apagado; nem ouviu o alarme. Nem se eu tivesse chupado o cu desse desgraçado a noite inteira eu acordaria com um gosto tão ruim na boca. Levanto, descubro que o apê mais parece uma porra duma geladeira e visto um blusão, calça de moletom e meias. Olho pro London Fields a leste; o sol fraco tá subindo e dá quase pra enxergar a piscina aberta. Tinha que ser verão, isso não é justo. Depois de amanhã é Natal, mas eu tô aqui, me guardando pro Ano-Novo. Vou na cozinha ligar o aquecedor e a água.

Pensando na entrevista da tarde, fico surpreso ao encontrar o Nicksy sentado diante da mesa no escuro, fumando heroína. Ele tá com uma folha de alumínio cheia de anfetamina aberta na frente dele também e além disso ferveu água e preparou o café. – A gente não tem aquela entrevista hoje à tarde?

– Pois é... mas tem tempo, não consegui dormir – explica ele, me oferecendo o cachimbo e esfregando um pouco de anfetamina na gengiva.

Olho pro pó cor de cacau espalhado no papel alumínio e penso que recusar seria meio viadagem. Ponho o isqueiro embaixo do alumínio e acendo a chama. Encosto o cachimbo torto nos meus lábios rachados, puxo o ar e sinto o pulmão queimando com a fumaça e as partículas metálicas, enquanto a cabeça vai ficando leve e a tensão vai embora do corpo.

Either up your nose or through your vein,

With nothing to gain except killing your brain[14]

Sweet home Leith Alhambra... Me apoio de costas na parede. Me dá vontade de voltar a dormir. Ao invés disso, esfrego uma pitada de anfetamina salgada na boca. E mais outra. Depois de uns dez minutos me animo um pouco, mas me sinto como um boneco ensopado de heroína sendo sacudido por um titereiro maluco. Cravo as unhas na fórmica da borda da mesa. – Quer dizer que esse... nos conseguiu um trampo... nas balsas, é isso?

– Tony nos arranjou a entrevista – diz Nicksy. – A gente tem que fazer bonito pra conseguir o emprego propriamente dito. Se der certo, a gente vai poder começar a trazer heroína pra cá. Eles têm um procedimento de alfândega diferente pros funcionários, e alguns dos fiscais fazem parte do esquema.

– Parece bom demais – reconheço.

– Mas a gente tem que se manter na linha, senão fode tudo.

– Falar é fácil. – Aponto com a cabeça pro papel alumínio e pego mais uma dose de anfetamina. – Eca... hora do café.

– É, precisa de muita iniciativa pra se manter na linha agora. – Nicksy tá alucinado, golpeando o ar. – A gente tá sob pressão. O lance é não ficar parado no mesmo lugar. Não dá pra entrar na lista, senão cê tá fudido. Tudo é temporário. Não espere arranjar emprego pra vida toda. Uma casa pra vida toda. Uma mina pra vida toda.

– Tava dizendo isso pro Sick Boy dia desses. Explorar o governo é um ato de nobreza nessas circunstâncias. Porra, é óbvio, cê só precisa de metade do cérebro pra entender. – Concentro o olhar no Nicksy. – Porque, enfim, a gente só quer esse emprego hoje de tarde porque vai dar pra roubar muita coisa, né?

Ele solta uma gargalhada rouca e borbulhante. – Curto explorar o governo tanto quanto qualquer um, mas vocês escoceses são de outro nível; pra vocês, é como se fosse um direito de sangue.

Mas que viado bem folgado; descolo mais grana de seguro-desemprego e auxílio-moradia aqui do que na Escócia. É mais fácil, já que os distritos ficam tão perto um do outro. Mas não tô reclamando, fico feliz de poder me ligar ao sindicato do Tony.

O telefone toca e eu atendo, mesmo sabendo que vai ser alguma mina correndo atrás do Sick Boy. A agenda tá cheia de nome de mina, todas procurando o “Simon”. – Alô?

– E aí? Como é que tá, Rent Boy?

Porra.

Begbie.

– Franco! O grande e único – consigo responder. Ele começa a tagarelar, todo empolgado, contando que foi morar com a June.

– ... aí eu perguntei pra ela, embaixo do enfeite de Natal na porta da casa da mãe dela, cê topa? E ela “Claro que topo”, daquele jeito todo dengoso, com uma porra dum sorrisão enorme na cara. A vadia idiota pensou que eu queria dar um beijo nela embaixo do enfeite de Natal. Tá bom, vai nessa.

Me beije sob enfeite de Natal, do, do, do... Eu e Franco no primário, cantando essa música com os outros meninos e meninas. As meninas se encolhendo de timidez, os meninos ficando de pau duro. Será que ele lembra disso? Qual seu nome, qual seu país...

– Aí ela fecha a porra dos olhos e faz um daqueles biquinho retardado, esperando um selinho, mas daí eu seguro a cabeça dela e digo “Eu quero é uma chupeta, sua vaca”, já abrindo o cinto e dizendo “Vamolá, não tem ninguém em casa! Cai de boca!” ... Cê ainda tá aí?

– Sim...

A gente também cantava aquela música sobre o naufrágio do Titanic: “Foi triste quando o grande navio afundou... maridos e esposas, criancinhas que morreram, foi tri-iiste quando o gra-aande navio afundou.”

A educação escocesa... será que ele lembra disso?

– Porque pra mim isso deixa mais excitante, saca? Bom, ela não ficou muito feliz com a ideia, mas já sabe como as coisa funcionam, então botei ela de joelho na sala da casa da mãe dela, embaixo da porra do enfeite de Natal. Aí eu começo a meter e vou mantendo aquele embalo gostoso, segurando o cabelo dela em volta da mão pra regular a porra do ritmo, e aí começo a bombar com tudo, socando lá no fundo mesmo, sabe, quando cê revira os olho e aperta bem a boca?

– Hã... tá...

– Bom, eu tô ali com os olho meio fechado, daí meio que enxergo um corno e me dou conta de que é a porra do velho dela! O viado simplesmente apareceu na sala, porra. Ela tá de costa pra ele, não tinha como ver o cara entrando. Pelo jeito ele tava no jardim, provavelmente batendo uma punhetinha naquela casinha escrota, que velho safado, daí ele pergunta: “Que diabo tá acontecendo aqui?”

– É?

– Não tô dizendo, ô viado? Aí eu só me viro e falo pro filho da puta, “O que cê acha, safado? Some daqui, porra”, e o viado se manda na hora, resmungando um monte de merda pelo caminho. Senti que ela entrou em pânico, começou a se engasgar e tentar me empurrar pra longe, mas continuei segurando bem firme porque antes de eu gozar ela não vai pra lugar nenhum, caralho, e ela sabe muito bem disso. E aí eu fiz que nem em filme pornô, tá ligado, quando cê tira o pau e esporra em toda a cara da mina? Ela ficou se borrando de medo, com uns olhão arregalado, até levar um jato de porra no meio da cara! E foi como se eu tivesse dois cano em vez de um, seu viado. A cara dela ficou parecendo um bolo com cobertura de chantili!

– O que ela disse sobre o pai dela?

– Tô chegando lá, viado ruivo de merda, deixa de ser impaciente – explode Franco, o que me faz agradecer com carinho especial os seiscentos quilômetros que nos separam. – Aí ela começa a tirar aquele monte de porra do rosto, toda chiliquenta, dizendo: “Quem foi que apareceu, era o meu pai?”

“Baita pervertido escroto, espionando os outro desse jeito”, disse eu.

Aí ela gelou, ficou toda frígida e ressentida, mas ela que se foda, o cara precisa de um pouquinho de romance no Natal. Aí ela foi pra rua e eu fiquei escutando eles berrarem um com o outro, depois ela voltou dizendo que tinha sido expulsa de casa. Então eu disse: “Beleza, bora pra casa da minha mãe.” “Obrigado, Frank...”, disse ela, e já foi fazer as mala, toda alegrinha de uma hora pra outra, saca? Bom, eu é que não ia deixar ela naquela casa com aquela porra daquele velho pervertido, né?

– Certo...

– Aí, bem quando ela terminou de juntar os treco dela, aquele pai intrometido chupador de rola do caralho voltou e começou a encher o saco de novo. Falou “você é uma vergonha” e ficou ali parado balançando a cabeça que nem um débil mental. “Vergonha é você, parcero”, respondi pro viado, “espionando os outro que nem um velho pervertido, porra!” “O quê...”, ele tentou dizer alguma coisa, daí olhou pra mim e depois pra ela e disse “Vocês dois se merecem. Você se perdeu, June Chisholm, se transformou numa putinha...”. “Mas papai...”, ela começou a choramingar. “Some daqui”, o corno falou, “vocês dois, saiam logo da minha casa!” Daí eu disse “vamo” e levei ela pra fora. Depois voltei e encarei o viado. “Se ela é uma putinha, a culpa é toda sua: quem educou a vadia foi você, porra”, falei. “E nem pensa em gritar na minha cara, seu velho podre, senão enfio a mão na sua boca! Cê pode ser pai dela, mas não é meu pai!” E daí o viado se cagou todo! Aquele corno nojento tava se achando grande coisa. “É isso mesmo, melhor nem dizer nada”, falei. Que cara metido, né?

– É mesmo, cê devia ter dado no meio da cara desse filhadaputa intrometido – sugiro, encorajando o demente a tocar o terror, agora que tô a centenas de quilômetros de distância e não preciso lidar com as consequências!

Londres, eu te amo!

– Foi isso mesmo que eu falei pro Tommy, porra – diz ele com uma convicção firme e orgulhosa. – Mas deixei isso pra lá, né, não quero me envolver nessas merda de família, só que acho melhor aquele viado cuidar por onde anda. De qualquer modo foi uma gemeção e uma choradeira, daí levei ela pra casa e aí ela se animou toda e começou a falar em morar junto. Pensei comigo mesmo que ela não ia dormir comigo porra nenhuma, não na cama de solteiro, ela que ficasse na porra do sofá. Trouxe ela pra cama pra dar um bago e depois mandei de volta pras almofada. Que se foda, preciso dormir bem pra manter a beleza! Acordei de pau duro mais tarde e trouxe ela de volta pra mais uma sessão de fodelança. Mas de manhã tava todo mundo fazendo aquela cara; ela, minha mãe e a minha irmã Elspeth, todas com olhar de mingau docinho.

– Rolou uma pressão, então?

– Sim, a merda de sempre, mas daí pensei que tava mesmo na hora de eu arranjar um lugar pra mim, e ela até que fode bem, e não faz sentido cortar o pau fora pra sacanear as bola. Cê tá me ouvindo, porra?

– Sim. Não faz sentido cortar o pau fora se for só pra sacanear as bolas – repito na linha. Ele sempre diz isso.

– Claro que não faz, porra. Daí liguei pro Monny e a gente vai se mudar praquele lugar na Buchanan Street semana que vem. Espero que a vadia saiba cozinhar tão bem quanto trepa! Disse pra ela fazer que nem minha mãe; na cozinha, não na cama, porra! Mas é isso, caralho, arranjei meu próprio apê e uma foda toda noite. Agora é só conseguir fazer ela calar a merda da boca e tudo vai ficar massa pra caralho.

– Legal...

– Tá, preciso ir. Não tenho tempo pra ficar aqui batendo papo o dia todo, seu corno! A conta de telefone vai ficar gigante, ô panaca!

– Desculpa te prender, Frank.

– É bom pedir desculpa mesmo, porra. Agora sou um homem de negócios. Quando é que cê volta, ô corno?

– No Ano-Novo...

– Massa. Vai ser clássico. A gente se vê, amigo.

– É isso aí, Franco. A gente se vê, parcero.

Depois dessa curra psicológica, preciso de mais um pouco de heroína. Sick Boy aparece, esfregando o sono dos olhos. – Cês tão se drogando agora, seus degenerados? E a entrevista da balsa?

Olha o estado desse viado. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Eu e Nicksy nos encaramos com um sorrisinho chapado. – Dose medicinal... tive que conversar com o Begbie no telefone, tá ligado? – Ofereço o cachimbo pro Sick Boy.

Ele recusa. – O fato dele ser um psicopata retardado não significa que vocês não são dois viados irresponsáveis, porra – diz ele enquanto dá um teco na anfetamina. Seu olhar se acalma. – Esqueci de contar, a mãe da Alison morreu semana passada. Acho que o enterro foi ontem.

– Porra... que bosta, cara. Por que cê não contou antes, Simon? Queria ter ido!

O Begbie nem disse nada. Viado.

– Tá bom, sei. – Ele me lança um olhar duvidoso e lembro que tô com o cachimbo na mão. Talvez eu estivesse sendo um pouco otimista. – Se alguém devia ter ido, era eu. Somos íntimos – diz ele com um ar grave.

– Ela foi no velório do meu irmão menor e tudo – falo. Quanta merda: o jeito que a vida pode deixar de ser uma constelação de possibilidades pra se tornar uma trilha esburacada de chão batido.

– Sim. Ela foi dar apoio a você e ao Billy. Mas ela vai entender, estamos em Londres e tudo mais, e vamos nos ver daqui a duas semanas, depois do Ano-Novo – diz ele e olha pro Nicksy, que tá encarando a parede compenetrado, perdido no estado contemplativo da heroína. – Ia fazer bem pro Nicksy se a gente levasse ele junto – ele observa, e então se vira abruptamente pra mim. – Escuta só, Marco, preciso de um favorzinho amigo. Quero consertar o estrago com a Lucinda... disse que ia me encontrar com ela ao meio-dia no pub Dirty Dick, em frente à estação Liverpool Street.

Ele me dá os detalhes e isso não me agrada nem um pouco, mas ele é meu parcero e tenho que ajudar.

Demora milênios pra gente tomar banho, se vestir e descer até a estação Hackney Downs, mas pegamos um metrô até Liverpool Street e entramos no bar do outro lado da rua. O Dirty Dick tá lotado de trabalhadores do centro da cidade em horário de almoço, e, mesmo usando roupas que deveriam ser apropriadas para a entrevista, nós dois parecemos terrivelmente deslocados, não que a gente dê a mínima bola. Eu e Sick Boy fizemos o possível, usando nossos ternos de velório de programa assistencial do Leith, mas o Nicksy tá com o cabelo tingido de rosa em estilo moicano, um blusão felpudo de listras rosas e brancas, que felizmente encobre a camiseta com a frase A Rainha É Uma Tremanda Boqueteira, calça Sta-Press preta até que bem aceitáveis e botas Doc Martens de cano longo vermelhas que meio que chamam a atenção. Engraçado como ele trocou de pele, soltando o visual de soul boy e voltando a ser punk ultrapassado. Enquanto ele se acomoda num banco do bar, Sick Boy espia a tal de Lucinda, que tá numa mesa do canto, e me leva até lá. Depois de uma breve apresentação, os dois entabulam uma conversa intensa, ao longo da qual ele vai inflando o peito como um pombo acasalando e ela vai desmoronando aos poucos. – É evidente que você está chateada – diz ele em tom condescendente, tamborilando com os dedos na mesa. – Não adianta a gente conversar com você nesse estado. Quer dizer, é como se você estivesse me ouvindo sem me escutar, se é que entende.

A pobre moça de pele clara anglo-saxã tá sentada em cima das mãos, com a mandíbula travada. Fervilhando quase até implodir, daquela maneira assustadoramente contida e reprimida da classe média inglesa. Me sinto desconfortável de estar preso ali e tenho vontade de ir embora.

– É uma perda de tempo pra você e uma perda de tempo pra mim – diz Sick mantendo a expressão imperturbável e carregando na postura áspera e formal, e então me olha casualmente. – Rents, busque as bebidas.

Agradeço a chance de me afastar deles e encontrar o Nicksy no bar. Não estou com a menor pressa pra pedir as bebidas. Mas o Nicksy tá completamente detonado; é como se o peso dos cinco distritos mais infectos de Londres pesasse sobre os ombros estreitos dele. Com o tom espalhafatoso daquele moicano de caricatura de punk, ele parece o mané que aparece nos cartões-postais que vendem em Piccadilly Circus. Me faz pensar no que Les Dawson disse a respeito dos punks: “Cabelos azuis e alfinetes: parece a minha sogra.” Mas Nicksy me contou que os turistas ainda fazem fila pra tirar foto com ele no West End, e às vezes acaba valendo uma cerveja ou um trocado, ou mesmo uma trepada.

Apesar da trambicagem constante, ele vive sem um tostão. Londres é um vício que custa caro, e meio que perde o sentido quando cê não tem grana; se o cara mora num lugar como Dalston, Stokie, Tottenham ou East End, é como estar em Middlesbrough ou Nottingham. A economia do presídio do código postal torna a diversão do West End igualmente inacessível. Nenhum viado do nosso bar local vai beber no West End, só a gente.

Pago pra ele um pint de lager, e ele bebe um golinho e depois encara a TV em cima do bar, sem me olhar. Essa tal de Marsha realmente fudeu com a vida dele. Nunca vi um cara tão pra baixo depois de levar um fora. Deve ser uma tremenda foda. Ele espia o Sick Boy e a Lucinda conversando. – Mas que corno, hein? Pega todas. Tá metendo uma patricinha, agora.

Se tem algo que Londres oferece, mesmo na periferia, é esperança aos predadores aspirantes. – Nem me fala, porra – concordo. Em seguida dou outra conferida no traje do Nicksy; um pouco exagerado pro nosso objetivo. – Cê podia ter maneirado no modelito. A gente tá indo pra uma entrevista!

– Eu sou isso, não sou? – Ele encolhe os ombros, e então vejo Sick Boy me chamando. Entrego o pint dele e o gim de Lucinda. Ele me dá uma olhada rápida, anunciando o golpe, mas continua falando com ela. – Se me permite dizer, Lucinda, estou muito decepcionado. Juro por Deus que disse toda a verdade, mas você não parece disposta a acreditar. Tudo bem. Se esse é o tipo de confiança que vamos ter entre nós, então não vejo mais sentido em prosseguir.

Lucinda se apruma no assento e encara Sick Boy. Ela tá com os olhos vermelhos. – Mas você está esquecendo que eu vi você com ela. Não consegue entender isso? Eu vi vocês na cama com os meus próprios olhos!

Soltando um longo suspiro, Sick Boy declara: – Expliquei até não aguentar mais. Aquela mina era a namorada do Mark, Penelope. – Ele olha pra mim.

Lucinda faz o mesmo, e dá pra ver ela pensando: esse favelado escocês ruivo e magrela não é o tipo de cara que come uma mina chamada Penelope. Um peso cai sobre mim e por um instante brinco com a ideia de que se trata da minha consciência, mas o senso de trapaça dissolve tudo isso com seu efeito estimulante. – Eu estava paralítico de tão bêbado – Sick Boy arregala os olhos – e acabei deitando na primeira cama que vi. Não fazia a menor ideia de que ela estava ali até que você entrou e começou a berrar feito uma louca.

– Ah, para com isso! É claro que você sabia!

Sick Boy balança a cabeça bem devagar. – Mark aceitou isso como a verdade, porque me conhece. E confia em mim. Sabe que eu nunca faria uma coisa dessas com a namorada dele. Ele é meu melhor amigo, desde a primeira série. – Ele se engasga e fica com os olhos úmidos. – Mark! Diga a ela!

O olhar severo de Lucinda se mantém fixo no meu. Ela é uma boa garota. Não merece um mentiroso do Leith na vida dela, e muito menos dois. Seus grandes globos oculares estão bem abertos e suplicantes, e tenho a impressão de que ela realmente deseja ser convencida. Então dou a eles o que precisam. – Fiquei incomodado, Lucinda. Na verdade, fiquei escandalizado. Você sabe melhor do que eu a impressão que aquilo deve ter passado. – Uma faísca de concordância cintila no rosto dela e eu olho pro Sick Boy. – Se esse viado tivesse transado com a minha Penny, bem, eu teria esmagado uma porra dum copo na cara dele!

– Vai se fuder, Mark, olha só o cara! – Ele olha pra Lucinda e depois de novo pra mim. – Agora parece que você também não acredita em mim!

– Não tô dizendo isso, Simon, só tô dizendo que foi isso que pareceu!

Lucinda concorda com a cabeça e então diz a ele: – E o que mais podia parecer, Simon? Tente ver a cena do ponto de vista de outra pessoa. – Ela se vira de novo pra mim, implorando uma aliança com o olhar.

– Porra, é exatamente o que eu tô dizendo – digo, reforçando o time dela.

Sick Boy suspira. No silêncio doloroso que se segue, ouço em minha cabeça: Williamson, um a zero. Tenho a sensação de que vou explodir em gargalhadas se olhar pra ele. Olho mesmo assim, e de algum jeito consigo manter a compostura enquanto ele balança a cabeça com tristeza. – Tô vendo como são as coisas, então – diz ele em tom de censura, com uma expressão carregada de mágoa.

Não tive escolha, a não ser respirar fundo e seguir o roteiro. – Desculpa, amigo, acredito em você. É só que eu e a Penny não estamos muito bem ultimamente, e acho que fiquei meio paranoico pra caralho.

Sick Boy dá um tapa na cabeça e olha pro lado indignado antes de me encarar novamente. – Sim, certamente ficou. – Ele me censura com o rosto transido de amargura. Ele arrancou pra dianteira moral e só uma atrocidade faria ele perder essa posição. – Um pequeno conselho, Mark: não fica acordado a noite inteira tomando anfetamina se não é capaz de lidar com as consequências – o filhadaputa descarado me repreende. Em seguida ele olha pra Lucinda, que já está um pouco desarmada, com uma expressão cheia de nuance. – E acho que talvez eu mereça um pedido de desculpas por causa daquela histeria toda. – Ele cruza os braços e olha pro outro lado.

– Tá bom, tá bom... Simon... eu... me desculpe... mas você pode imaginar a impressão que aquilo deu... – Lucinda tenta colocar o braço ao redor dele.

Ele a afasta com um gesto ligeiro, endireita as costas na cadeira como se pretendesse se dirigir ao pub inteiro, e alguns engravatados de cara avermelhada de fato prestam atenção quando ele fala: – Uma palavrinha que pode não significar absolutamente nada aqui na metrópole, mas que ainda vale alguma coisa por aí: confiança. – Lucinda faz menção de falar, mas ele a interrompe erguendo a mão e soletra: – C – O – N – F – I – A – N – Ç – A.

Depois de se fazer um pouco de difícil, ele permite que ela o abrace, em seguida eles já tão trocando beijos profundos e molhados. É a minha deixa pra voltar pro bar, imaginando a aparência dessa tal de Penelope. Se fosse qualquer outro, eu arriscaria dizer que ela era uma deusa, pra fazer alguém se arriscar a perder uma mina como Lucinda, mas estamos falando do Sick Boy. Ele é mesmo um filhadaputa em relação às garotas.

Mas chegou a hora do assunto sério. Vamos tentar entrar no duplo universo do emprego moderno: um trabalho legítimo nas balsas e tráfico de drogas através de um contato do Nicksy. Consulto o relógio, faço sinal pros outros, terminamos as bebidas e atravessamos na estação Liverpool Street do outro lado da rua. Sick Boy dá um último beijo longo em Lucinda na plataforma antes de entrar comigo e com Nicksy no trem pra Harwich.

– Inacreditável – diz ele, balançando a cabeça com uma mistura de repulsa e tristeza, com mil possibilidades rodopiando na mente. – Mas o esforço me deu sede. – Ele batuca com os dedos na mesinha. – Tem um vagão-restaurante nessa merda de trem? Só vou dizer uma coisa, é melhor esse viado ser de confiança, Nicksy, porque posso descolar meu bagulho com o Andreas em Fonsbury Park a qualquer momento, porra.

Essa coisa repetitiva de Andreas tá me torrando as bolas, mas, se eu disser alguma coisa, ele vai dizer que é ciúme. É um pentelho filhadaputa mesmo.

Mas Nicksy segue quieto, encolhido contra a janela. – Cê tá bem? – pergunto pro viado, imaginando que ele pode estar com abstinência por causa daquelas cachimbadas hoje cedo. Minha garganta e meus pulmões ainda tão com aquele resíduo de alumínio.

– Sim – diz ele. – O lance, Mark, é que...

– Olá, marinheiros! – A porta da cabine se abriu e um carinha esfarrapado com uma pele horrível tá parado na nossa frente. Deve ter trinta e tantos anos. Nicksy o apresenta como Paul Marriott, um junky velho conhecido dele e do Tony, e que trabalha temporadas nos barcos da Sealink há milênios. Marriott avança por cima da gente com uma perna manca e desaba no assento vazio ao lado do Sick Boy. – Tudo em cima, rapaziada? – pergunta ele fazendo a voz daquele gato viado cor-de-rosa que era parcero do Roobard, o cachorro verde. Nicksy havia explicado que ele era basicamente o testa de ferro dos verdadeiros bandidos que ficavam mais acima, o bode expiatório que apodreceria na cadeia se a merda caísse no ventilador. Pra ser justo, ele não parece iludido a respeito de sua verdadeira função; por causa do vício pesado, ele não leva tão a sério o risco de transportar uma quantidade razoável de droga de qualidade. Dito isso, é claro que prefere evitar ir pra cadeia, de modo que analisa cada um de nós atentamente. Ele enruga a testa ao notar a vestimenta punk do Nicksy. – Vamos ter que alisar esse topete antes de entrar pra falar com o Benson.

Nicksy resmunga entre os dentes alguma coisa a respeito de não ser um topete. Marriott não escuta ou decide não responder, e então lança um olhar um pouco mais aprovador pro Sick Boy, que tá com o cabelo puxado pra trás e preso num rabo de cavalo. O pobre do Nicksy tá com um aspecto suado e abatido, com a disposição física de uma aranha tentando sair de uma banheira.

– Afinal, qual é a história desse tal de Benson? – pergunta Sick Boy com sua tendência a assumir o controle da situação.

Marriott dirige um olhar cansado pro viado. Parece sacar logo de primeira que o Sick Boy vai ser uma ferramenta extraordinária ou completo estranho no ninho; não vai haver meio-termo. – Ele é o cara por quem você precisa passar na entrevista pra ter uma chance de entrar. Não esqueçam, ele está procurando mão de obra barata e temporária – diz Marriott com sua entonação afeminada e chapada de heroína. – O grande lema dele é “cooperação pró-ativa”. É o que ele quer, em resumo.

– E quem não? – Sick Boy abre um sorrisinho malicioso.

Marriott ignora e segue em frente. – As balsas foram um setor sindicalizado por anos, mas a turma de Thatcher fodeu todo mundo com novos contratos depois dessa festa de privatizações e da divisão da British Rail. Então nem tem papinho de militância industrial, direitos dos trabalhadores e toda aquela pataquada de “não faz parte do meu trabalho”. O que o Benson quer é flexibilidade. Quer que vocês digam que estão dispostos a trabalhar em qualquer lugar... cozinha, cabines, deque dos automóveis... e que estão dispostos a fazer qualquer coisa... limpar vômito, desentupir latrina. Que trabalharão em turno extra se necessário e que farão isso com uma porra dum sorrisão na cara.

Pra mim tava ótimo. Consigo prender a língua e baixar a cabeça se for recompensado de acordo.

– E a heroína? – indaga Sick Boy.

– Primeiro você arranja o emprego, depois a gente discute isso – responde Marriott irritado e olha pro Nicksy, que se afunda de novo na vidraça.

O trem serpenteia pra dentro do porto na Harwich International Starion em Parkeston Quay. Desembarcamos e saímos da plataforma praticamente direto pra dentro de um aglomerado de prédios comerciais pré-fabricados, nos misturando a outros corpos ansiosos que são arrebanhados pra dentro de uma sala sem vida. Apesar de estar começando a ficar eriçado pra cacete, dou uma olhada no grupo. Somos cerca de uma dúzia, todo mundo com aparência de rebotalho, tirando uma mina bonitinha com um cabelão. Temos que preencher um formulário e depois fazer uma entrevista individual com o Benson. Ele se revela um sujeito hostil, um boneco de neve com brasas no lugar de hemorroidas. Está guarnecido por uma funcionária gorda de meia-idade.

Me dou conta de que não tenho a menor chance de levar o emprego, então vou respondendo as perguntas idiotas meio sem vontade, até que Benson diz: – Bem, como você já tem alguma experiência com culinária rápida, provavelmente colocaremos você na cozinha para começar. Apenas funções genéricas de camareiro, e dali veremos como progride.

Porra! Fico totalmente embasbacado. Tem uns seis milhões de viados no seguro-desemprego, e eles não apenas me deram o emprego como já deixaram implícita a possibilidade de uma promoção! Fico satisfeito comigo mesmo por um instante, até sair e perceber que cada um dos filhos da puta que arrastaram a bunda sarnenta até aqui foi contratado. Aparentemente, esse fiasco não passava de um processo de seleção pra separar os vagabundos extremos que já tinham sido chutados longe, mas tinham a cara de pau de tentar se inscrever de novo com outro nome. Sei lá que caralho o Marriott faz pra conseguir furar a rede toda vez. Fico me perguntando: que porra de emprego é esse? Os outros candidatos eram inacreditáveis. Não quero ser pau no cu, mas alguns daqueles cornos não pareciam capazes nem de preencher a porra do formulário sozinhos.

Pedem que a gente fique esperando enquanto eles terminam de fazer as entrevistas. É só meia hora, mas parece uma eternidade. Chega um ponto em que eu só quero abrir um rombo nas paredes de gesso e sair. Então Benson aparece pra falar com a gente, investigando um a um, procurando um pequeno vestígio de alma torturada. É como se o fichário dentro da cabeça dele mostrasse numa cadência constante: junkies, traficantes, bichinhas... junkies, traficantes, bichinhas... Eu e Nicksy tentamos forçar um pouco na bichice, como se fôssemos um produto à venda, um verdadeiro casal homossexual em vez de rapazes festeiros e fúteis cujo vício indiscriminado poderá reduzir a banheira velha a um antro de infecção.

Suspeitamos que até mesmo ali os junkies não tinham vez, eram totalmente persona non grata. Pobre Nicksy: eu sabia como ele se sentia, queria ir embora pra me picar o quanto antes. Uma coceirinha filhadaputa e horrível tava começando a aparecer.

Focando o olhar na janelinha atrás do Benson, enxerguei a The Freedom of Choice ancorada no cais, uma embarcação onde se entra e sai de carro, ou “porta-carros”, como Benson se refere a ela. Sua verdadeira missão, porém, é nos transmitir o discurso do partido: – Não é nem preciso dizer que qualquer pessoa flagrada sob efeito ou em posse de substâncias de uso controlado será não apenas demitida, mas submetida aos ditames da lei.

Admiro a expressão indignada de Sick Boy. A reação parece tão legítima que Benson é obrigado a recuar alguns passos em penitência.

– Não que eu esteja insinuando qualquer coisa a respeito dos senhores e senhoritas. É que Amsterdã não fica muito longe do porto em Hoek van Holland e... bem, o que cada um faz quando não está trabalhando é problema seu, desde que não afete a segurança e a qualidade dos serviços oferecidos na embarcação...

Ele segue com essa embromação e eu tento me desligar do resto da merda me concentrando na bunda daquela garotinha com um cabelão estilo Robert Plant. Os olhos do Sick Boy, como era de se prever, tão cravados no mesmíssimo lugar, e o Nicksy tá encarando o espaço, parecendo fora de órbita. Escuto Benson dizer: – Parabéns. Agora vocês fazem parte oficialmente da família Sealink. Nos vemos no início do ano que vem!

Assim, estávamos empregados. Três, quatro ou cinco milhões de desempregados, ninguém sabia direito por que os métodos de cálculo eram trocados que nem cueca, e o maior bando de maltrapilhos que já se viu, um saco de junkies, bichas e sabe lá mais o quê, dispõe de emprego remunerado pro início da temporada de primavera na Sealink. Mal posso esperar pra transmitir a Mater e Pater a notícia de que o filho ruivo do meio finalmente entrou na linha!

Pegamos o trem de volta pra Londres em clima de celebração, estourando umas latinhas de cerva, enquanto Marriott nos dá os detalhes da operação em tom de grande seriedade, se achando o tio Colhudo. O que vamos fazer é ir até Amsterdã, comprar a droga com um cara lá e trazer de volta pro barco. – Aquele sujeito no balcão, o homem que apontei – Marriot explica, embora eu não tenha reparado em porra nenhuma –, ele é o cara. Ele bebe no pub Grove em Dovencourt. Quando a gente começar, vou levar vocês lá pra pagar umas cervejinhas pra ele, pra que ele conheça o rosto de vocês. Tratem o filho da puta com carinho, e vão passar pelo posto de fiscalização toda vez com um aceno de cabeça. Ele me vaza os detalhes da escala de serviço, porque é crucial saber quais viados da Alfândega estão trabalhando, e principalmente se um corno chamado Ron Curtis está na supervisão. Ninguém consegue chegar nesse viado. Se ele se meter, a gente joga tudo pro alto e aguenta o tranco, mesmo que esteja matando por um pico.

Tô achando difícil escutar o papinho desse viado, e os outros também. Essa anfetamina é boa demais; cheirei duas linhas bem gordas, e toda vez que as rodas de ferro passam nos pontos de eletricidade, a descarga atravessa o trem e sobe pela minha espinha.

Yee-hah! Roll along covered wagon, roll along...

O clima festivo se multiplica por dez quando um grupo de minas bêbadas usando gorro de Papai Noel sobe em Shenfield. Uma loira aparece com uns biscoitos de Natal e o Sick Boy imediatamente vai pedir um e depois veste o gorro de pano vermelho. – Adoro um biscoitinho de Natal – ele provoca com malícia, e, enquanto as amigas da mina gritam, ele sussurra alguma coisa no ouvido dela. Ela dá um soquinho maroto no braço dele, mas um minuto depois os dois tão atracados aos beijos.

Eu tô alucinado e com vontade de tocar o terror, então não consigo resistir a pegar o isqueiro e botar fogo no gorro do Sick Boy.

Uma das minas cobre a boca com a mão quando as chamas aparecem e se espalham instantaneamente pro cabelo dele, soltando uns estalinhos. A loira que ele tá beijando dá um empurrão nele e berra.

– Mas que porra é essa? – grita ele, batendo desesperado na própria cabeça, enquanto pedacinhos queimados do gorro se desprendem e flutuam pelo interior do vagão.

– Fi-re... deh-reh-reh... ah take it you’ll burn... – canto.

– QUE PORRA CÊ FEZ, CARALHO?! VIADO PSICOPATA! FILHO DA PUTA IMBECIL! PORRA! – Ele dá um salto e me acerta um soco no meio das bolas. – ISSO FOI PERIGOSO, PORRA, SEU VIADO DE MERDA!

Eu me dobro como uma navalha sendo fechada, tonto de dor, mas rindo ao mesmo tempo. – Filhadaputa... Crazy World of Arthur Broo-ooh-oown... – protesto.

– Cê vai pagar o cabeleireiro pra consertar meu penteado, porra! Viado idiota... – resmunga Sick Boy, se ajeitando no reflexo da janela de vidro, mas logo em seguida ele volta a dar atenção pra mina, me dispensando com um gesto de mão. – Fica aí no seu canto. Criança de merda.

– Assim fica difícil, porra – grunhe Marriot entre os dentes. Uma das minas de Shenfield, com os olhos dementes e arregalados, abre a boca e grita: – I AM THE GOD OF HELLFIRE AND I BRING YOU...

Eu e Nicksy seguimos a deixa e começamos a cantar: – FI-RE... DEH-REH-REH, I take it you’ll burn...

Sick Boy continua me dando facadas com o olhar, mas a loira é o maior alvo de sua atenção. Começo a bater papo com a mina que cantou. Ela tá bêbada, mas é massa pra caralho. – Por que eles dois precisam se divertir sozinhos, né?

– São amadores – digo pra ela. – Vou dar um beijo que vai arrancar a sua cara!

– Tá esperando o quê?

Eu não pretendia esperar, e, sem dar a menor bola pros meus lábios rachados e pro nariz ranhento, enfio a língua na garganta dela. Mas vejo que o Sick Boy já tá um passo à frente, como sempre; o viado tá levando a loira pros banheiros. Quando paramos um pouco pra recobrar o fôlego, Marriott tá puto por estar sendo ignorado, mas Nicksy diz que ainda temos tempo de sobra pra repassar os detalhes. O viado sabe disso, e tal; tá só querendo se mostrar. Cantamos mais uma vez o refrão de “Fire”, dessa vez discutindo a letra da música, enquanto as latinhas continuam aparecendo na mesa e sendo bebidas uma atrás da outra. Nos preparamos pra descer em West End com as minas de Shenfield, e com isso a porra do Natal começa em grande estilo!

14. “Pelo nariz ou dentro das veias / Sem ganhar nada além da morte do cérebro.” Da canção “White Lines”, do Duran Duran. (N. dos T.)


Hogmanay

Tiro os olhos das páginas cor de mijo do romance em edição de bolso que tô lendo e vejo a meia-lua cintilante por trás dos postes, riscando sombras nítidas nas margens de concreto da estrada. São os últimos restinhos de dezembro, e tá frio o bastante pra congelar as últimas gotinhas que pingam do pau, mas o aquecimento do ônibus finalmente começou a funcionar e gotículas de suor e condensação escorrem pela janela que ampara a minha cabeça.

Iluminados por nossas lampadinhas pessoais de teto, eu e o Nicksy tentamos ignorar a presença um do outro à medida que os peidos, grunhidos, roncos e risadas dos bêbados no interior rançoso do ônibus espocam na semiescuridão como os ruídos de animais selvagens na floresta. Mas o nosso silêncio é confortável; a gente se conhece há tanto tempo que não precisa dizer nada só pra preencher o vazio. Cada um prefere ficar na sua, principalmente quando a gente tá meio detonado.

Sick Boy curte a ideia da gente levar o Nicksy pro nosso apê, lembrando que ele vive falando que quer encontrar o Matty e argumentando que isso era o mínimo que a gente podia fazer, já que ele tinha nos incluído no esquema. Explica que decidiu passar o Ano-Novo em Londres pra ir nas festas com Andrea e Lucinda, já que a “histrionice” de Edimburgo não interessava muito a ele. Diz que ainda tá um pouco cabreiro com as “difamações” do Begbie pra cima dele e que não pretende conviver com ele antes de receber um pedido de desculpas de alguma espécie. Falei pra ele esperar sentado. Me sinto bem quando nos separamos e ele vai cuidar da vida dele; nem fudendo, passar o Hogmanay na Inglaterra.

Assim que o ônibus chega na St. Andrew’s Square, vamos direto pra Montgomery Street, pegando uma caixa de cerva no caminho. Tivemos uma hora de atraso por causa do trânsito na entrada da cidade, todos esses viados chegando pro Ano-Novo, e já é quase dez quando entramos no apê da Monty Street, que foi meio que herdado pelo Spud e pelo Keezbo. Tá rolando uma festa animada e a gente chega na empolgação. A atmosfera tá ótima, tirando o fato de que Nicksy vou puxar papo com o Matty e o baixinho mal troca um palavra com ele, fingindo que tá conversando com um estranho, em vez do cara que nos acolheu e nos mostrou Londres inteira no ápice do movimento punk. Fico puto da cara com aquele otário. Pelo menos o Begbie tá todo amigão. – Quer dizer que cê é de Londres, parcero? – pergunta ele pro Nicksy. – Uma vez eu passei o salame numa londrina lá em Benidorm. Lembra disso, Nelly? Benidorm? Aquelas duas londrina?

Nelly parece ficar meio em dúvida, mas faz que sim com a cabeça.

Os instrumentos tão ligados e a gente começa a tocar meio de brincadeira. Logo tá rolando uma pequena jam session, com Nicksy dedilhando o violão do Matty com competência superior à do dono e Franco cantando sobre beber vinho e se sentir bem pra caralho com isso, com uma voz potente e marcante, cheia de evocação.

Eu e o Keezbo cuidamos da cozinha, tentando manter o ritmo e dar algum apoio pro Franco e pro Nicksy. A voz do Franco é uma coisa linda de ouvir, é como se por causa do Hogmanay ele tivesse absorvido a quantidade certinha de álcool e boas vibrações e as duas coisas tivessem se cruzado num vetor milagroso, capaz de transformar ele momentaneamente noutra coisa, um prodígio de alma e sentimento.

Olho pros rostos iluminados por velas ao meu redor; Nicksy, Keezbo, Tommy, Spud (já sem a tipoia), Alison, Kelly, Franco, June, Matty, Shirley, Nelly e uma mina inquieta com cabelos longos, pretos e lustrosos que o Nelly trouxe, mas não se deu ao trabalho de apresentar pra ninguém. Tem o tato social de uma tropa de assalto, esse viado. Acendemos uma grande fogueira de carvão; a prefeitura que enfie essa merda de zona livre de fumaça no rabo. Tá todo mundo visivelmente emocionado com a cantoria do Franco. Todo mundo canta com ele no refrão e nos fundimos numa coisa só, compartilhando o mesmo sonho desmoronado...

Begbie tá tão envolvido na performance que quase sussurra, com os olhos meio fechados, sobre a hora em que todos temos que ir dormir...

O pobre Spud, viado sentimental que é, derrama lágrimas enquanto Franco canta do fundo do peito. Matty continua borocoxô, apesar da Shirley ficar sorrindo e sacudindo o ombro dele, e vejo Kelly e Alison olhando pra June, que tá babando pelo Franco como se ele fosse um astro do rock, e hoje ele meio que é. É, Franco tem jeito pra coisa, e Nicksy tá tocando violão totalmente concentrado. Keezbo mantém uma batida suave que me convida a acompanhar com um ritmo simples e contido no baixo Shergold sem trastes e sinto falta de tocar o Fender, porque é difícil enxergar as bolinhas de marcação à luz fraca das velas, e Franco enche o pulmão pro grande clímax, o último refrão da música, que parece que foi feito pra ele.

A gente explode em gritos e aplausos e o Franco finge não ser com ele. Dou só uma piscadinha pro viado, e sei que ele prefere bem mais essa aprovação discreta. Meu mindinho fracote tá morto e paralisado de tanto tentar segurar as oitavas.

Os olhos do Spud tão vermelhos e lacrimejantes. – Franco, cara... isso foi tipo... maravilhoso – diz ele, e os comentários fazem todo mundo olhar pro cantor.

– É – diz Begbie, mas fica evidente que o Spud incomodou ele com essa frescura toda –, não tem nada melhor que um Rod Stewart na porra do Ano-Novo. – E daí ele enche o copo do Spud com uísque, pra desviar a atenção de todos.

Mas o pobre do Spud tá bebum demais pra captar o clima e insiste: – Não, sério, foi maravilhoso, e se eu conseguisse cantar desse jeito, Franco...

– Cala essa boca, porra – diz Begbie com leve tom de ameaça. Nicksy me espia com a testa enrugada de preocupação.

– Mas eu só tava dizendo... – Spud começa a se explicar.

– Eu disse pra calar essa merda dessa boca! Agora!

Spud cai num silêncio profundo junto com todos na sala. Todos nós entendemos no mesmo instante como o Begbie se sente depois de ter exposto um pequeno fragmento de beleza da sua alma, e como, apesar do ego e dos elogios que recebeu, ele enxerga isso como uma fraqueza potencial, algo que poderá se voltar contra ele algum dia.

– Era só uma música, cacete.

Nicksy guarda o violão de Matty dentro do estojo com zíper. Olho pro relógio em cima da lareira de modo ostensivo e digo: – Então tá, é melhor a gente sair logo se quiser chegar na casa do Sully a tempo da virada.

Todo mundo fica aliviado com a troca de ambiente. Vamos todos pra rua, de encontro ao ar gelado e parado. A cidade tá trancada no gelo; como um peso de papel com árvores, paredes e neve. Todos os outros tão subindo a Walk em direção ao centro pro toque dos sinos na torre da Tron Kirk. Mas a gente vai descendo, as solas dos sapatos escorregando e trincando o gelo do pavimento, em direção ao Leith. Kelly e Alison engancharam os braços em mim, uma em cada lado, só pra se sentirem mais seguras nesse piso traiçoeiro, mas a sensação é boa de todo jeito. A cabeça da Kelly gira pros lados como a de um lêmure, batendo uma foto minha com o olhar antes de se virar pra Ali. Sinto pulsando dentro de mim a cicatriz de magnésio deixada pelo sorriso dela. – Sinto muito pela sua mãe – sussurro no ouvido de Ali – e por não ter ido no velório. Só fiquei sabendo depois que aconteceu.

– Tudo bem. Pra ser sincera, é um alívio, porque ela sofreu demais no final. Sei que soa terrível, mas eu dizia pra ela em pensamento: se entrega de uma vez.

– Bem, eu lamento muito a sua perda e tudo por que teve de passar e tal.

– O Mark é um doce – diz Kelly, olhando pra mim e me fazendo sentir mais um beliscão na boca do estômago, e se virando em seguida pra Ali.

– Ele tem seus momentos. – Ali reconhece com severidade, mas dá uma apertada no meu braço. Um sorriso enorme ilumina o rosto da Kelly e por um segundo eu cogito que ela tá a fim de chupar umas bolas ruivas, mas é uma ideia ridícula; ela sai com aquele tal de Des Feeney, um carinha que é parente de algum tipo do Spud.

Em seus rents, Garoto Sonho.

As garotas ficam etereamente lindas em quase-perfil, conversando comigo no meio, enquanto as lâmpadas de sódio cintilam nos olhos respectivamente assanhados e desamparados da Kelly e da Ali. Enobrecido por minha condição de consorte, sinto a alma invadida por um estado de graça meio debilitado que se insinua através do calor amortecido do uísque. A noite está gelada, mas sem vento, e quando viro a cabeça vejo Nicksy reunido com Spud e Tommy, dando risada com vontade, enquanto Franco, June e Keezbo avançam à nossa frente. – Ele tá completamente alterado, e isso é dizer pouco – Ali sussurra, apontando com a cabeça pro Begbie. – Danny só estava tentando elogiar!

Estou prestes e dizer algo, mas mudo de ideia, porque o Begbie estaca de repente e arremessa June com violência contra uma porta. Passamos por eles e escuto ela dizer numa risada alta e assustada: – Não, Frank, aqui não...

O filhadaputa imprestável vai prensar ela e comer ali mesmo.

– Um cavalheiro romântico ao luar – arrisco comentar depois de abrir distância suficiente deles. Alison revira os olhos com desprezo e Kelly inclina a cabeça pro lado, sorrindo daquele jeito bonitinho e sexy dela. Ela é uma garota muito bonita, com o rosto coberto de sardas, cabelos espetados curtos e castanho-claros, exalando aquela confiança peculiar de quem se tornou aquilo que desejava ser. É o que o meu velho diz às vezes, e só fui entender agora. Ela me pergunta a respeito de Aberdeen, diz que começou a fazer um curso de admissão pra Universidade de Edimburgo. Explico que resolvi trancar aquela merda por um ano e que penso em ir pra Glasgow ou mais pro sul.

Os outros pararam pra nos esperar, mas não há sinal de Franco, que provavelmente tá comendo a June com violência extrema naquela escadaria podre.

A gente segue em direção a Easter Road, porque a casa do Sully fica naquela ponta da Iona Street. O clássico de futebol é pela manhã, então tá garantido. – Esses viados não ganham da gente no Ano-Novo desde 1966 – declara Matty, brandindo uma garrafa de uísque e lançando um olhar de desafio pro Keezbo.

– Esse recorde vai evaporar amanhã de manhã – diz Keezbo.

– Para com isso, mongol, vai evaporar porra nenhuma – diz Matty com raiva, e então arremata entre os dentes: – Gordão de merda.

Foi meio feio e desnecessário, isso aí, mas Keezbo deixa passar. Shirley faz biquinho e olha fixo pra calçada. O Matty vive pegando no pé do Keezbo. Uma hora dessas o grandão vai se virar e meter a mão na cara desse baixinho ranzinza. E não posso dizer que vou derramar uma lágrima quando isso acontecer.

A gente vê Begbie e June aparecendo de trás da escada. Eles vêm na nossa direção, Franco com um sorrisão indecente na fuça, June toda constrangida e encabulada. A gente fica esperando por eles em silêncio. Franco percebeu o clima. Embora não pense duas vezes antes de causar tumulto, às vezes ele fica sensível pra caramba quando um outro filho da puta provoca uma cena. Talvez o Sick Boy tenha tomado uma decisão sábia quanto ao local das festividades, no fim das contas. – Por que tá todo mundo com essa cara, seu viado?

Matty rompe o silêncio e aponta pro Keezbo. – Eu só tava dizendo pra esse jambo gordo filho da puta que o time dele é um cu!

– Não vou discutir futebol com você antes da virada do ano, Matty – retruca Keezbo.

– É isso aí – diz Franco pro Matty –, por que cê tá pegando no pé do Keezbo, seu corno fiadaputa?

– Porque ele é um gordo viado torcedor do Hearts.

O braço do Franco faz um movimento de chicote e acerta Matty na cabeça. Deve ter doído, e também foi uma humilhação, porque aconteceu na frente da Shirley. – Cala essa boca, caralho! Hoje todo mundo é parcero, com futebol ou sem futebol! – Ele aponta um olhar predatório pro Keezbo. – Se eu ver esse gordo ruivo amanhã de manhã, vou fazer ele engolir os próprio dente. – Depois se vira de novo pro Matty. – Mas hoje à noite todo mundo é parcero desde que nasceu, porra, tá entendido?

Na ausência de argumentos contrários, seguimos nosso caminho até Iona Street e subimos as escadas num pátio quase em frente ao Iona Bar. Mal posso esperar pra entrar num lugar quietinho. Sully cumprimenta todo mundo; um anfitrião grande, afável e brusco com um rosto barbado e um corte rockabilly lambido pra trás que eu sempre penso que ficaria melhor num cara mais velho. Vou pra cozinha e encontro Lesley, Anne-Marie Crombe, uma morena magrinha de cabelos curtos que obviamente trabalha como cabeleireira e em quem dei uns amassos anos atrás no Goods Yard, os dois bebaços de vodca, e Stu Hogan, um sujeito loiro e robusto que tem mania de ficar pregando peça nos outros e me recebe servindo uma dose de uísque. Prefiro bem mais vodca, mas alguém comenta algo sobre ser Ano-Novo e tá tudo mundo pegando uma dose. Não tô tocando na heroína agora, nem em anfetamina. Dando um tempinho. Stu faz perguntas sobre Londres, me dizendo que Stevie Hutchison andava por lá, e me passa um número que tá anotado numa agenda velha e caindo aos pedaços. É uma boa notícia; Stevie é um cara legal, com vocalista e tal, ou pelo menos era, na época em que a gente tocava junto na Shaved Nun. Como toda pessoa talentosa, ele nos ultrapassou. – Ele está em Forest Hill – me informa Stu. – Fica perto de onde você mora?

– Sim, bem perto – respondo. Mas na real não é tão perto assim. Bom, é perto e não é, como tudo em Londres. – Ele continua namorando aquela vadia tapada?

– Sandra?

– Sim, ela mesma, Chip Sandra, é como o pessoal chamava ela. A única coisa que ela adorava mais que batatinha frita era pau.

– Não... eles se separaram antes dele ir embora para Londres.

– Ótimo, ela é uma porra duma vagabunda de cara azeda. Já contei a história da... – começo a dizer, mas o rosto de Stu fica todo sério e hesito.

– Na verdade, eu tô namorando a Sandra agora – ele me corta. – Ela tá vindo pra cá. Na verdade, antes que cê comece a fazer mais comentários depreciativos sobre os outros, talvez seja melhor eu informar que a gente é noivo desde semana passada.

Porra.

– Ah... pois é... na verdade eu nunca conheci muito bem a San...

O rosto de Stu brilha e uma erupção de riso brota do fundo do peito do viado. – Te peguei – diz ele com um sorrisinho sacana, e então me dá um tapa no ombro e sai fora.

– Seu merda! Vou lembrar dessa, Hogan!

Ele me pegou de jeito, mas quem se importa, a festa tá animadíssima. Tommy vira meio pint de cerveja e completa com uma dose generosa de uísque. – Cadê o Segundo Lugar?

– Sei lá, não vi ele. Deve estar jogado em alguma sarjeta.

Tommy esboça um sorriso de compreensão e completa o meu copo, mas não tô gostando de beber isso. Me dá uma queimação. Lesley percebe que torço o nariz, e quando Tam sai pra procurar Nicksy, ela se aproxima de mim. – Tem heroína?

– Não.

– Quer um pico?

– Sim – digo. Andava tentando evitar a heroína escocesa e as reuniões de gente se picando, porque essa merda é realmente letal e sá pra sentir ela te agarrando pelo pescoço. A heróina marrom é mais suave; parece fuder o cara bem menos. Mas que se foda, tô meio que de férias... de férias em casa...

A gente vai pra um dos quartos, senta de pernas cruzadas em cima do cobertor de tartã da cama, e Lesley começa a preparar o pico. Fico meio chocado, porque pensava que ela só inalava, mas ela tem todos os apetrechos necessários e sabe usar com muita competência. Ela acende uma vela, gruda ela em cima de uma lata de tabaco e desliga a lâmpada principal. Cada um injeta com sua seringa, e eu vou primeiro. Minha veia chupa aquela merda com vontade, é como se eu mal precisasse fazer pressão no êmbolo.

Ahhh... PUTA MERDA...

Filha da puta... caramba, cara... aaah... que bom, que bom, que bom...

Esqueci a força dessa merda. Lesley nem botou uma quantidade grande, mas eu desabo em cima do cobertor Royal Stuart...

– Encontrei isso faz uns dias no bolso da calça jeans – ela explica, puxando o cabelo loiro pra trás das orelhas e batendo na veia com paciência antes de se injetar, enquanto continuo ali deitado e derretido. – Tinha esquecido ali semanas atrás. Levei a calça pro Bendix e quase botei pra lavar, e que bom que vi a tempo, porque tá rolando uma secura... Do que cê tá rindo?

... ah que maravilha, caralho...

Tento contar a história da piada do Bendix, mas não consigo nem falar direito, e de qualquer modo ela também se picou e em questão de instantes tá no mesmo estado.

Nossa Senhora do Bendix, deuses da lavanderia, agradeço pela heroína dos deuses; obrigado por lavar mais branco que o branco...

A vela se apaga, ficamos deitados juntos na cama, e começamos a nos abraçar com sofreguidão, mas de um jeito até que inocente. Lesley tá usando uma blusinha azul de tecido escorregadio que parece seda, mas não é. Depois a gente meio que apaga, minha cabeça apoiada na barriga dela, com a blusa levantada, e fico ouvindo os barulhinhos dentro dela. – Borbulhas e chiados, borbulhas e chiados – digo.

– Tô acabada...

– Eu também. Tá frio... – Chuto meus tênis pra longe, tiro a calça e entro embaixo do cobertor. Ela faz o mesmo, se aninhando ao meu lado e me dando um selinho. Depois ela coloca o indicador por baixo do meu suéter e sente o contorno das minhas costelas. – Cê é tão magrinho, Mark.

– Perdi um pouco de peso. Metabolismo acelerado, acho. – Me apoio sobre os cotovelos pra olhar melhor pra ela.

Lesley abre um sorriso sinistro na semiescuridão. Um pouco de luz entra por baixo da porta e o poste da rua vaza pelas cortinas. – Metabolismo da heroína, é mais provável. Cê é um cara bem estranho – diz ela, ainda sentindo minhas costelas.

– Em que sentido? – pergunto, interessado em saber se ela me acha estranho no sentido intrigante ou no patético e idiota. Não que eu me importe, porque tô me sentindo bem pra caralho.

– Bem, é que a maioria dos caras, cê consegue saber quando eles gostam de você ou não. – As pupilas da Lesley ficam estreitas e felinas nessa penumbra. – Mas com você não consigo saber...

– Claro que gosto. Todo mundo gosta. Você é bonita – digo, encaixando o cabelo dela atrás da orelha como ela própria fez ao preparar a nossa dose. Ela é bonita. Um pouco.

– Tá bom, sei – ela diz sem convicção, mas fica um pouquinho envaidecida. E aí a mão dela entra na minha calça e agarra um pedaço de massinha de modelar. – Então por que a gente tá deitado junto e cê não tá de pau duro?

– Tô lesado demais. Leva tempo pra conseguir levantar depois de um pico desses... inalando um pouquinho da marrom, não tem problema, fico firme como uma sequoia, mas injetar essa heroína aí...

Lesley não faz muito o meu tipo, com um busto grande, mas é claro que eu comeria ela, se não tivesse tão detonado. A gente tira a parte de cima e se abraça e beija por um tempo, mas ela tá tão detonada quanto eu, de modo que a gente fica balbuciando umas merdas e depois mergulha em alguma coisa parecida com o sono, com a mão dela ali estacionada no meu pau flácido.

Sinto a passagem do tempo, até que Alison e Kelly, caindo de bêbadas, entram no quarto seguidas pelo Spud, trazendo a luz pontiaguda da manhã. – Oops – alguém diz, e em seguida a porta é fechada. Eles abrem uma fresta logo depois pra gritar: – Feliz Ano-Novo!

Tento murmurar alguma coisa em resposta. Eu e Lesley estamos só de cueca e calcinha, e o cobertor foi empurrado pra longe com o efeito do aquecedor ao longo da noite. Puxo ele de volta por cima dos seios pesados, sólidos e brancos.

– Puta merda... – ela diz ao acordar, no instante em que os outros, rindo como criancinhas, fecham de novo a porta.

– Mmmm... – eu meio que concordo, enjoado e com um gosto metálico na boca.

– Que horas são? – Lesley se põe sentada, segurando o cobertor por cima dos peitos. Boceja e se vira pra mim.

– Sei lá... – resmungo, mas parece que a festa continua a toda. Escuto “Cum On Feel the Noize” do Slade e deduzo que Begbie continua pilotando os pratos. À medida que vamos recuperando a consciência, eu e Lesley ficamos bastante constrangidos com os utensílios deixados em cima do criado-mudo e também com a situação como um todo. A gente passou a virada do ano dormindo e nem chegou a trepar. Alguém vem até a porta de novo e dá uma série de batidinhas. Ela não abre, mas escuto a voz de Spud ali atrás: – Futebol, gatuno, futebol. Pub. O clássico. O Repolho.

– Só um minuto, leva o Nicksy com você pro Clan e a gente se vê daqui a pouco.

Eu e Lesley escutamos a apartamente se esvaziando. Cê come uma mina quando os dois tão loucos e morrendo de tesão, e de manhã é comum elas acordarem com uma cara destruída. Com ela é oposto, ela é lindíssima, e eu meio que só tô reparando agora. Tô com uma ereção descomunal e ela tá com uma aparência sensual e pra lá de safada, mas o momento passou e agora ela já levantou e começou a se vestir, só me deixando a opção de fazer o mesmo.

– Então tá, a gente se vê – diz ela.

Que babaca que cê é, Renton, que babaca débil mental.

– Não vai com a gente no pub tomar uma?

– Não. Vou pra casa da minha mãe em Clerie pra uma festa de Ano-Novo.

Saímos de encontro ao frio e tomamos rumos separados. Não demora pra eu começar a pensar que devia ter ido pra Clerie com ela, mesmo sem ter sido convidado. O pub tá um caos, todo mundo cantando hinos do Hibs. Um cara de meia-idade com óculos de lente grossa tirou a roupa e tá dançando no palquinho que as dançarinas usam. Ele tá com um PADDY STANTON com dois olhos tatuado na bunda com nanquim e um ELVIS no pau, que uma coroa fica tentando esconder com uma peça de tricô enquanto ele rodopia.

– É a mãe dele – esclarece alguém.

Nicksy tá se divertindo, aparentemente a mudança de cenário fez bem pra ele. Mas eu tô lutando pra conseguir beber. Fico enjoado; a Rainha Heroína é uma vadia ciumenta, parece que não gosta que outras drogas tentem invadir a mesma carne que ela, em especial a Princesa do Trago. Ali e Kelly dão a impressão de estarem tramando uma grande conspiração, Nicksy tá contando uma história sobre o Sick Boy pro Tommy e pro Spud, e me vejo forçado a assumir o assento da dor ao lado do Begbie, que dá sua típica cotovelada nas minhas costelas. – Aí sortudo, mandou ver com a Lesley, seu viado safado! Esse aí não tem a menor vergonha! Eu pegava essa e comia sem pensar duas vezes! Fez um banquete completo, seu viado ruivo?

– Não, só uns beijinhos e amassos – respondo. – Gentilezas de Ano-Novo. – Olho pro Tommy, que parece totalmente acabado. Ele balança a cabeça, lamentando o próprio estado.

– Ah tá, seu fiadaputa ruivo sacana! Cê ficou dando no couro dela a noite toda, seu viado rabudo – diz ele fazendo aquela troca com uma só mão entre cigarro e uísque, que tem algo de estranhamente impressionante. – Tava de olho naquela ali faz milênios, porra! É um sem-vergonha, esse viado – ele anuncia pra mesa toda.

Os outros engrossam o coro sem acreditar nas minhas honoráveis negações. A melhor coisa que eu podia ter feito era dizer que comi a Lesley de todos os jeitos possíveis, que ela era insaciável. Aí eles pensariam “Tá certo, claro.” Como disse a simples verdade, agora eles acreditam que invadi todos os orifícios dela. Deve ser uma merda ser uma mina. Vou até a jukebox e boto pra tocar “Lido Shuffle” do Boz Scaggs, pensando que meu novo apelido deveria ser “Baws Skagged”, bolas chapadas de heroína.

Quando volto pro meu lugar, a Kelly tá meio que escutando Nicksy e Ali tendo uma conversa séria sobre problemas de relacionamento, ele ainda matraqueando sobre aquela tal de Marsha que mora em cima da gente no apê de Dalston, ela falando de um colega de trabalho casado com quem ela anda saindo. De repente ela olha com intensidade pro Nicksy e pergunta: – O que o Simon tá fazendo no Ano-Novo?

– Não sei. – Nicksy ergue os ombros.

– Adoro o Simon!

– É – diz Nicksy com um ar sofrido –, ele é um cara legal.

Franco vem pra perto de mim, baixa a voz e entra em modo confidencial. – Escuta o que eu vou dizer, parcero, porque cê é o único viado em quem eu posso confiar nessa porra aqui...

– Tá...

– Fat Tyrone, tá ligado quem é?

– Já ouvi falar – respondo. Rolavam várias histórias sobre esse Fat Tyrone, também conhecido como Davie Power. Ou ele controlava a cidade com mão de ferro, ou era um verme gordalhão e um dedo-duro covarde, dependendo de quem tava contando. Nunca me interessou muito, esse mundo dos gângsteres.

– Tô fazendo uns trabalhinho presse viado.

– Certo.

– Mas tô meio em dúvida sobre a coisa toda.

– Qual é o trabalho?

– Ajudando ele a instalar os caça-níquel. Não passa pela contabilidade, então é massa pra caralho. Dinheiro fácil e tal. Eu, o Nelly e um corno grandão, o Skuzzy, a gente aparece nos pub e entrega uma cópia do catálogo das máquina. Em geral os viado entendem o recado e escolhem a máquina que o Power vai instalar – diz ele olhando pro Nelly, que tem jeito pra esse trabalho, pois vive na frente dos caça-níqueis, ignorando a mina dele enquanto gasta as moedinhas, com uma cara de pura concentração.

– Bom, se cê tá em dúvida, cai fora.

– É – continua ele –, mas o Nelly tá fazendo os lance pra ele e tudo, e não quero que esse fiadaputa fique se mostrando por aí como se tivesse o cacete do tamanho do Scott Monumento, porra. Não faz sentido cortar o pau fora pra sacanear as bola, saca?

Agora fazia sentido; se o Nelly tava trabalhando pra um gângster fodão, o Begbie não podia deixar isso fora do próprio currículo. Esses viados alegavam ser grandes amigos, mas competiam um com o outro desde a época do colégio.

– Tem esse aspecto, acho – digo tentando soar como se desse a mínima bola pra isso e conseguindo por pouco.

– No começo eu só pensei que, porra, o Nelly tirou uma provinha do negócio e tá chamando uma porra dum parcero pra participar um pouco. Agora já tô vendo essa merda de um jeito diferente. É como se ele tivesse dizendo que não me respeita, que eu vou acabar cagando tudo, e é por isso que ele tá me incluindo nessa porra, pra me ver caindo de cara no chão que nem um babaca – diz Franco me encarando. Esse encrenqueiro tá começando a ficar esquentadinho, dá pra ver.

Só posso concordar com a cabeça. De repente o Tommy salta em pé, com o rosto amassado como uma luminária chinesa, e todo mundo olha em volta meio em pânico quando ele tapa a boca com a mão. O vômito começa a espirrar entre os dedos dele e ele sai correndo desesperado pro banheiro, sob os aplausos de toda a mesa.

Com exceção do Franco.

Tô pouco me fudendo pra esses dois viados e pras mutretas deles, e menos ainda pra guerrinha que resolveram travar, mas não quero que isso estoure aqui.

– Não, acho que o Nelly tá sendo legal, Franco. Tenho a impressão de que ele te respeita, e ele ganha pontos com o Power se apresentar pra ele um cara como você, que é obviamente capaz de resolver as coisas.

Franco fica um tempo pensando nisso. Olha pro Nelly e depois pra mim. Parece concordar. – É, pode ser que eu esteja pegando meio pesado com o cara. O Nelly é gente boa, sempre foi – diz ele no momento em que Nelly olha em nossa direção. – Então tá, Nelly, seu corno! Baixa a rodada! Lager e uísque pra mim, lager e vodca pra esse fiadaputa ruivo safado! E pros rapaz aqui e pras mina e tudo! Vamolá, Tam, seu fracote de merda – ruge ele pro Tommy, que retorna do banheiro parecendo um fantasma. Ele retorce o rosto de dor quando alguém põe uma bebida na mão dele.

Nelly faz uma saudação estranhamente cativante e sai da frente do caça-níqueis pra pedir uma rodada. Começamos a cantar “Somos Todos Hibernian FC”, as outras mesas se juntam a nós, depois entornamos as bebidas e saímos pro jogo.


Notas sobre uma epidemia 5

Era conhecido como Andy. A maioria das pessoas dizia que era americano por causa do sotaque, mas o passaporte era britânico. Era um indivíduo um tanto prudente, mas ninguém se preocupava muito com isso. Estranhos apareciam, iam e vinham, podiam permanecer calados, contar histórias fajutas ou experimentar novas identidades antes de sumirem para sempre como fantasmas. Se você tinha droga ou dinheiro, não eram feitas muitas perguntas investigativas.

Uma das versões mais frequentes de sua história conta que os pais de Andy emigraram da Escócia para o Canadá quando ele tinha quatro anos. Adentrando a juventude, ele se afastou da família e vagou até chegar na América, onde se alistou nos Fuzileiros Navais para obter cidadania norte-americana. Serviu no Vietnã. Talvez tenha retornado com um estresse pós-traumático nunca diagnosticado ou quem sabe nunca tenha se adaptado à vida fora das estruturas disciplinares do exército. Perambulou por várias cidades dos Estados Unidos até ir parar no Tenderloin District de San Francisco. Tornou-se ativista político no movimento dos Veteranos do Vietnã. Complicou-se com as autoridades. Encontraram o passaporte britânico e, fazendo vista grossa aos serviços prestados pelos Estados Unidos, enviaram-no de volta a um lar do qual ele pouco recordava.

A gênese podia ter sido no Vietnã, ou em Tenderloin, podia ter acontecido por causa do compartilhamento de agulhas, transfusões de sangue ou sexo sem proteção, mas o fato é que Andy contraiu uma doença. Em Edimburgo, ele se envolveu com um grupo de facínoras mais ou menos confederados que o adotaram. Eles tinham acesso aos remédios que ele necessitava. Havia Swanney em Tollcross, Mikey em Muirhouse, o velho hippie Dennis Ross. O imprevisível Alan Venters de Sighthill, um pivete do Leith chamado Matty e um motoqueiro sinistro conhecido como Seeker. Eram apenas alguns membros mais proeminentes de uma comunidade difusa, às vezes fragmentada, que crescia exponencialmente com o fechamento de cada fábrica, armazém, escritório e loja. Foi nessa cena, sem o conhecimento dele próprio ou de qualquer outra pessoa, ao compartilhar aquelas grandes seringas hospitalares nas galerias de usuários de heroína em Edimburgo, que Andy se tornou o Johnny Appleseed da Aids.


A arte da conversa

Falei antes praquela June cagada, falei bem assim: ainda bem que essa porra de janeiro tá quase acabando. Que mês de merda. Frio pra caralho e todo mundo ficando o tempo todo dentro de casa, Renton fugindo pra bosta de Londres com aquele viadinho daqui. O filho da puta até que era gente fina, mas o cara tem que ficar onde nasceu, porra, é o que eu sempre digo. Pelo menos o Rents voltou; aquele bosta do Sick Boy nunca mais apareceu.

Aquele viado do Cha Morrison de Lochend foi preso depois de pegar o Larry. Ainda continua falando demais e tal, ou pelo menos foi o que me contaram. Por que nunca prendem o Begbie? Esse viado deve ser dedo-duro da polícia. Cheio dessas fofoca. Vou mostrar presse viado o que é um dedo bem duro. Esse corno vai morrer: chega de espalhar fofoca. O viado tá irritadinho porque é comigo que uns cara tipo o Davie Power tão a fim de fazer negócio. Não com um vagabundo dos bloco que nem aquele merda. Mas aquele metido a Bruce Lee, aquele viado de Pilton que tomou uma ruim quando se meteu comigo depois que emprenhei a vadia da irmã dele, taí um viado que me decepcionou pra caralho. Não veio nem um pio desse viado, mas acho que ele deve tá de saco cheio de ficar usando canudo pra comer. Mas tudo bem, vai servir de companhia pro pirralho quando ele nascer; foi isso que falei pro merda do Nelly dia desse: o pirralho vai tá comendo comida sólida bem antes daquele viado!

Não tem conversa com a June, essa daí só serve mesmo pra meter a pica. Agora que tá barriguda, só quer saber de ficar sentada pela casa assistindo a TV, tomando Babycham e fumando. Daí me animo a sair de casa e marcar presença na assistência social e depois me mandar pra cidade atrás de trampo. Gav Temperley é boa gente, sabe que não gosto que me encham o saco me mandando pressas merda de entrevista, porque contei pro viado por baixo dos pano que tô trabalhando um pouco pro Fat Tyrone Power.

Aí dou meu autógrafo pro governo, entro no carro com Nelly e vamos direto pra George Street, pro escritório. Subo pra falar com Fat Power e ele tá bem ali com o grandão do Skuzzy. Fico olhando prum mapa grande pra caralho de Edimburgo na parede, tá todo espetado com aqueles negocinho de plástico colorido, tudo mostrando onde ficam as máquina de caça-níquel do Power. Todos os pino são verde, menos uns que são branco. Power aponta prum deles com um dedo gordo que nem linguiça de açougue. – Esse lugarzinho, um bar bem vagabundo. Um velho linguarudo tomou conta. Não quer nenhum caça-níquel por lá. Sua missão, cavalheiros, se a aceitarem – aí o viado ri da própria piada de estilo “Missão Impossível”, mas eu fico com a cara paradinha porque não tô aqui pra rir das piada de nenhum viado e, se esse viado acha isso ruim, azar o dele, caralho –, é convencer este senhor dos benefícios consideráveis que obterá caso decida reconsiderar sua posição.

Nelly tá rindo que nem uma garotinha e até o merda do Skuzzy tá com um sorrisão na cara. Mas vai se foder, eu não vou ficar brincando de capanga de vilão de quinta categoria; se esse viado quer um cartão do sindicato dos ator, é só dar uma passada lá e dizer que vai trabalhar na porra da peça de Natal. Daí eu e o Nelly deixamos Skuzzy e o gordão pra trás e vamos direto pro bar pra dar uma olhada no tal velho.

Quando a gente tá chegando, eu me dou conta que aquele lugar tá fazendo tocar uns alarme. Tem alguma coisa errada nisso daí.

– Deixa essa comigo – digo pro Nelly. – Cê fica aí.

O viado me olha como se tivesse pensando em dizer alguma coisa, mas daí fica quietinho enquanto eu saio do carro e entro no bar.

Seus viado, claro que eu tava certo sobre esse lugar. Tenho sexto sentido, porra. Acredito mesmo que uns cara tem isso; eu tenho, de verdade, e essa porra sempre me ajuda. Claro que eu conheço esse lugar, mas fico ainda mais surpreso quando vejo quem é o velho que tá trabalhando ali. É o tio Dickie, Dickie Ellis, quer dizer, na verdade ele não é meu tio, é parcero do meu tio Gus, que era irmão da minha mãe, mas pra mim ele sempre foi tipo um tio e tal, e o viado fica todo feliz quando me enxerga. – Frankie, meu garoto! Há quanto tempo. Como estão as coisas? E a sua mãe?

– Tudo certo, Dickie, ela tá bem... – respondo. – Quando cê pegou esse bar?

O lugar é todo forrado com uns painel de mogno e uísque de todo tipo. Tem um piso de oleado bem limpo e tudo tá bem polido, dá pra sentir o cheiro. É um lugar velho e arrumado, mais ou menos como o Dickie, que tem cabelo branco mas é tão pouco que dá pra enxergar umas parte do crânio, barba e bigode bem aparado e uns óculos de armação fininha e dourada. A cara dele se torce que nem um acordeão velho. – Consegui a licença faz uns três meses.

Dou uma boa olhada no lugar. – Não vai ter TV pras corrida de cavalo, então?

– Sem TV, sem jukebox e sem caça-níquel – diz ele. – O pessoal vem aqui pra beber e conversar, Frank. É assim que um pub deve ser!

– Certo – digo. Sim, um monte de estudante comunista vem pra cá, e todos os velho. Tudo falando de política. Que nem o Dickie. Fico pensando que não posso fazer nada como esse velho, mas ao mesmo tempo não posso decepcionar o Power, porra. Se eu fizer isso, vai acontecer o seguinte: eu não ganho dinheiro nenhum e aquele viado do Nelly ou o Skuzzy vão vir pra cá e lidar com o velho. Daí o Power chama outro viado pra fazer meu trabalho, tipo o Cha Morrison! Consigo ouvir a voz daquele corno dentro da minha cabeça: o Begbie não conseguiu, é sentimental demais...

Que beco sem saída, porra.

O velho Dickie parece ter se ligado em alguma coisa, porque diz: – Os marginais do Power chegaram pra mim falando daquelas merdas de caça-níqueis. – Ele parece bem furioso. O que esse velho não sabe é que ainda não viu os marginal de verdade. – Mas mandei eles tomarem no cu. O que eles vão fazer comigo? Me bater? Grande coisa. Não tenho medo do Power, conheço esse viado desde que ele se cagava nas fraldas – fala com um sorrisão.

Power não é o único viado que ele conhece faz um tempão. – Cê conhecia bem meu tio Gus, né Dickie?

Os olho do veterano ficam tudo molhado. – Frank, o Gus era como se fosse meu irmão. Conheci a família inteira do lado da sua mãe, os McGilvary. Boa gente. – O velho agarra a manga da minha camisa. – Eu e o Gus, que Deus o tenha, não éramos como irmãos, a gente era irmão! Sua mãe, a Val, então. Ela e minha Maisie foram melhores amigas por muitos anos!

Fico olhando pra ele, que larga minha camisa e parece preocupado.

– Olha – digo –, como a gente se conhece faz muito tempo, não vou enganar ninguém. Tô trabalhando pro Power. Ele mandou a gente aqui pra dar uma lição em você.

Fico olhando a cara do velho desabando, parece até que vai bater com tudo no piso. – Ah... – diz ele.

– Mas pra mim cê e o Gus sempre foram irmãos. Aí cê é meio que meu tio. Lembra que eu te chamava de tio Dickie?

– Lembro muito bem, Frank.

– Porque cê era que nem um tio pra mim. E nada mudou. Lembra que cê levava a gente pra ver filme?

O rosto gasto do velho se ilumina. – Sim. As matinês da manhã de sábado. Você e o Joe. No State, no Salon. Como anda o Joe, por sinal?

– A gente não tá se falando – respondo.

– Ah... que pena.

– Bem, a culpa é daquele viado – digo, daí mudo de assunto porque não quero falar sobre o merda do meu irmão. – Sim, cê levou a gente pra Easter Road e tudo.

– Sim... estávamos lá na noite em que o Jimmy O’Rourke fez três gols no Sporting de Lisboa, lembra disso?

– Sim... – respondo, lembrando muito bem de tudo, que baita jogo foi aquele – Jimmy O’Rourke... taí um carinha que jogava por amor à camisa, bem que podia ter uns outro que nem ele hoje em dia!

O viado levou a gente pra Hampden, pra Dens Park e tudo mais. O legal do Gus e do Dickie é que quando eles iam pra um jogo fora de casa e depois passavam no bar deixavam a gente ficar dentro do carro com fritas e Coca-Cola. Não eram que nem meu velho que trancava aquele furgão fudido e dizia pra gente brincar do lado de fora do pub, geralmente em alguma favela weedgie. Vai ser bom pra cê virar homem, o viado dizia. Incrível a gente não ter sido raptado por umas bicha. Nenhum filho meu vai ser tratado desse jeito.

Mas o velho Dickie só fica rindo todo triste como se fosse começar a chorar. – Qualquer parente do Gussie sempre vai ser da minha família, Frank.

– Sim. E como eu tava dizendo, cê era tipo meu tipo, e merda nenhuma mudou – digo. Porque lembro que foi mesmo isso daí. Esse viado basicamente tomou conta depois que o coitado do Gus caiu da ponte. Daí eu tomo minha decisão. – E é essa história que vou contar pro Power.

Dickie sacode a cabeça. – Olha, Frankie, meu filho, eu aceito a máquina. Por respeito à sua situação. – Aquela cabeça branca e velha se balança toda triste. – Não quero que você se prejudique com o Power, se está trabalhando pra ele.

– Nada disso – digo. – Cê não vai aceitar máquina nenhuma se não quiser, não tô nem aí pro que o Power ou qualquer outro viado diga. Se esse corno quiser fazer drama, vou mandar ele se maquiar todo e subir num palco.

– Não seja bobo! Eu aceito a máquina, Frank. – O velho tá quase implorando.

– Eu aceito a máquina. Não é um problema tão grande assim.

– Nada disso, vou cuidar desse assunto – repito, saindo. – A gente se fala.

Daí eu entro no carro e o Nelly pergunta: – E aí, resolveu?

– Vou resolver – respondo. – Me leva pro escritório do Power.

Nelly dá de ombro e acende um cigarro sem oferecer pra ninguém, o que é uma baita falta de educação, e sai com o carro. A gente volta pra cidade, eu desembarco e vou pro escritório. O viado continua no carro com aquela cara de caxumbento.

No escritório do Power, fico olhando pra recepcionista bem jovem que antes não tava ali e sinto meu coração fazendo bum-bum-bum. Mas aí eu penso, que porra ele vai fazer? Vai ter que me matar se quiser me impedir. Tô pouco me fudendo se for o Power, o Skuzzy ou qualquer outro desses viado; eles precisam ficar ligado nisso. Mas vou ficar frio. Afinal de conta, o corno tem sido legal comigo.

Quando entro, o Skuzzy não tá ali e o Power tá reclinado na poltrona. – Frank, tome um assento. Como foi?

– Olha, Davie – começo, sentando na cadeira do outro lado da mesa –, lembra que, quando comecei, cê disse que sempre que eu precisasse de um favor era só dizer?

– Sim... lembro, Frank – diz Power, parecendo desconfiado de repente. Esses viado não curtem quando cê responde uma pergunta com outra.

– É o Dickie Ellis. Eu não sabia que o dono do bar era ele. O cara é meio que meu parente. Meu tio. Sei que cê tem sido legal comigo...

– Você tem sido legal comigo, Frank. – Power apaga um charuto. – Gosto do seu jeito de resolver as coisas.

– ... mas não quero que nada de mal aconteça com o velho. Daí eu gostaria muito se cê pudesse, como um favor pra mim, deixar de lado o negócio de botar caça-níquel nesse bar. Se fosse qualquer outro corno, eu tava pouco me fodendo, mas não o velho Dickie.

Power afunda ainda mais naquela poltronona acolchoada e de repente se inclina pra frente, apoiando os cotovelo na mesa e segurando a cabeçona raspada nas mão. Ele me olha bem nos olho. – Entendi.

Devolvo a encarada, olhando bem fixo nos olho do viado. – Tô pedindo isso como um favor, uma coisa entre a gente. Não tem pegadinha. Caso cê diga não, que cê não tem como fazer isso, eu volto agora mesmo pra lá e o caça-níquel entra. Não importa o que eu tenha que fazer – digo, pro corno entender bem direitinho de que porra eu tô falando.

Power pega uma caneta e dá uma batucada na mesa. Não para de me encarar nem por um segundo. – Você é um cara leal, Frank, e eu gosto disso. Entendo que essa história tenha deixado você numa situação difícil. Mas agora me diz uma coisa – o viado dá uma batucada nos dente da frente com a caneta, depois aponta ela pra mim – por que cê acha que te mandei pra lá?

– Pra botar a porra da máquina no bar – respondo.

Power sacode a cabeça. – Tô pouco me fudendo pra máquina. Cê não gerencia um negócio usando força e ameaças contra todo mundo. Na maior parte das vezes eles se ligam no que é certo, e quando isso não acontece a gente segue adiante e respeita a decisão deles; isso se o filho da puta tem noção e fica quieto. – Ele ergue as sobrancelha pra garantir que eu tô entendendo o que ele quer dizer. Aí continua: – Mas o velho Dickie é um linguarudo, Frank. Pra mim tudo bem ele não querer nossas máquinas no pub dele, mas esse corno é tão boca-grande que ele enxerga essa caridade como fraqueza. Pra resumir, o velho acha que eu – aí ele aponta pra si mesmo com a caneta – e, por extensão, você – e agora o viado aponta a caneta pra mim – somos um casal de bichonas.

Eu me sinto ficando tenso. Tô pensando naquele velho no bar. O viado tá me tirando pra otário!

Fat Tyrone Power percebe que eu não tô nada feliz com isso. – Minha sugestão, Franco, é que você volte pra lá e tenha uma conversinha com seu tio Dickie. Ele pode manter a máquina longe do bar, faço esse favor pra você. – Power sorri como um gato enorme que acaba de engolir uma porra dum papagaio. – Mas você precisa garantir que ele vai entender que isso só vai ser possível por causa da ligação que ele tem com você, pelo respeito que tenho por você como colega e – o viado sorri ainda mais – por causa do meu excelente temperamento.

– Certo... até – digo, e me levanto pra sair.

Mas aí o corno diz: – Uma boa ação merece outra. Eu preciso de um favorzinho.

– Beleza. – Aí eu me sento de novo.

– Essa merda de heroína tá tomando conta da cidade. Todo mundo tá usando.

– Nem me fala. Esses viado são burro pra caralho – respondo.

– Pode crer, é mesmo coisa de otário; mas dá pra ganhar dinheiro com isso, muito dinheiro. A cidade tá inundada dessa merda, e algum viado que não sou eu tá com o cu cheio de grana. Eu ia adorar saber quem tá vendendo esse negócio, e onde eles conseguem. Se cê conseguir ficar de olho nisso, fico muito agradecido.

– Beleza – digo. – Vou fazer isso. – E aí penso no Rents, no Sick Boy, no Spud, no Matty e em todos os babaca que se meteram com essa merda. Dá pra ver direitinho o que a heroína tá fazendo com esses merda, especialmente com o ruivo, e se eu descobrir de onde isso tá saindo nem vou entregar nada pro Power, vou é jogar tudo no Forth e afogar os corno que tão vendendo!

Daí eu volto direto pro carro. Nelly tá lendo o Record e comendo um sanduíche de bacon. O viado nem disse que ia comprar sanduíche, porra. Todo mundo gosta de ficar sentado lendo jornal e comendo sanduíche de bacon, caralho! Que folgado. Daí falo pra ele que a gente vai voltar pro bar. O corno me olha todo sarcástico e diz: – O Power te falou que a máquina tem que ir pra lá?

– O Power não me falou porra nenhuma – respondo, e o viado cala a boca.

Nelly mexe a cabeça bem devagar do jeito que ele sempre faz quando tá impressionado mas não quer admitir. Dá uma mordida no sanduíche. O viado entende que isso significa que eu é que sou a porra do cara número um do Power no Leith, e não ele, ainda que essa merda não signifique nada pra mim. Quando a gente volta pro pub, mando ele não desligar o carro.

Entro e levo o Dickie pro escritório dele. – Tá tudo certo, não vai ter caça-nível nenhum aqui.

– Obrigado, meu filho, mas cê nem precisava ter se preocupado – diz ele com a voz toda apertadinha, e começa a falar do meu tio, da minha mãe e da minha avó até que minha cabeça dando com tudo na cara dele faz o velho ficar quieto. Os óculos saem voando e caem no chão, daí boto as mãos naquele pescoço enrugado de velho, aperto bem e, sem soltar, empurro ele por cima da mesa. – Ahh... ah... Frank... eu aceito... eu aceito o caça-ní...

– NÃO QUERO QUE CÊ ACEITE O CAÇA-NÍQUEL! – daí eu começo a sussurrar. – Já te falei que tá tudo certo.

– Aaaarrghh... Francis... aaarrghh... eu... não...

– Mas caso cê abra essa merda de boca pra falar do Power de novo – daí forço ele a se abaixar e dou um chutão bem nas costela – essa porra de caça-níquel vai ser a menor das suas preocupação! Certo?!

– Ce-certo... – O velho tá quase sem ar.

Dou outro chute no filho da puta, daí ele dá um gemido bem alto e começa a vomitar. Não tem graça nenhuma bater num velho, mas eu odeio esse escroto por ter me colocado nessa situação, daí ele leva uma boa surra.

Depois de um tempo eu me dou conta que é só meu velho tio Dickie, o cara que nos levava pra ver filme no Salon e pro futebol no Easter Road, enquanto meu velho tava pouco se fodendo pra gente e nunca se prestava a sair do pub. Daí eu ajudo ele a se levantar e achar os óculos, coloco de volta na cara dele e levo o velho de volta pro bar. – Desculpa, Frank.... desculpa te colocar nessa situação... – Ele tá ofegando.

Sinto aquele cheiro e me dou conta que o velho se mijou todo. Que nem uma porra dum mendigo! Velho fedido do caralho! Uma mancha bem grande e escura bem em cima das bola e das coxa. A mulher no balcão parece que vai se cagar toda. – Tudo bem com o senhor?

– Sim... tudo certo, Sonia... fica cuidando do bar...

– Por acaso ele parece bem, porra? – grito pra vadia sem noção. – Ele caiu feio. Tô levando pro hospital.

Daí levo o velho gemendo pro banheiro e digo pra ele se limpar o melhor que conseguir antes da gente sair pela porta lateral e entrar no banco de trás do carro. Nelly olha pra ele. – O velho Dickie se assustou e se mijou todo – explico. Nelly não diz nada, mas pelo jeito que ele olha pro Dickie dá pra ver que ele também não tá nada impressionado. Tá certo. Que decepção de merda, esse velho.


Pele e osso

Na mesa da cozinha, Cathy Renton olhava em silêncio para o nada, embasbacada, fumando seu cigarro, e de vez em quando fingia ler o Radio Times. Seu marido Davie podia ouvir a própria respiração carregada de cansaço e estresse por cima do borbulhar da panela cozinhando batatas e cebolas no fogão. O tempo parecia hesitar, frágil e fatigado como aqueles dois; por seu ar insidioso e circunspecto, Davie considerava o peso do silêncio da esposa ainda mais desolador que os soluços e solilóquios torturados. Parado diante da porta, arrancando a tinta do marco com os dedos, ele pensou no quanto a família toda interagia por causa do Pequeno Davie. Agora ele havia partido, e Billy, desocupado e sem encontrar lugar na vida civil desde que fora dispensado do exército, vinha arrumando problemas com a polícia. Quanto a Mark, bem, era melhor nem pensar com que tipo de coisa ele andava metido lá em Londres.

O filho do meio tinha se tornado um estranho para ele. Quando garoto, parecia que Mark, estudioso, prestativo e dotado de uma serenidade impassível, era quem tinha incorporado as qualidades preeminentes dele próprio e de Cathy. Mas uma tendência contrária sempre esteve presente. Embora ele não manifestasse a agressividade evidente de Billy, um lado frio aparecia com frequência em Mark. Ele ficava estranho perto do Pequeno Davie, como se sentisse rejeição e fascínio na mesma medida. Com a chegada da adolescência, sua natureza reservada adquiriu contornos clandestinos e calculistas. Davie Renton tinha a crença otimista de que todos atingimos um ponto na vida em que nos esforçamos para sermos a melhor versão possível de nós mesmos. Nenhum dos filhos ainda vivos tinha chegado nessa encruzilhada. Esperava que, quando isso ocorresse, eles não tivessem se aventurado demais no caminho errado e fossem capazes de voltar. Não que não compreendesse os ódios específicos de Billy e Mark. O problema é que compreendia bem demais. Era o amor de Cathy, pensou enquanto observava a fumaça azul se erguendo da ponta do cigarro, que o tinha mantido longe da cadeia.

Aflito com a visão da pilha de pratos imundos submersos na água fria e parada da pia, Davie foi até lá e deu um jeito na situação, usando a esponja de aço para raspar a sujeira teimosa incrustada na porcelana e no alumínio. Então sentiu algo que não sentia há muito tempo: os braços de sua mulher envolveram sua cintura dilatada. – Desculpa. – Ela expirou suavemente em seu ombro. – Vou melhorar.

– Essas coisas levam tempo, Cathy. Sei disso – disse ele passando os dedos numa veia no dorso da mão dela fazendo uma leve pressão, como se quisesse incitá-la a continuar falando.

– É só que... – hesitou ela – com o Billy se metendo em confusão e o Mark lá longe, em Londres...

Davie se virou e saiu dos braços de Cathy, mas apenas para tomá-la nos seus. Olhou no fundo de seus olhos grandes e assombrados. A luz que entrava pela janela revelava novas rugas em seu rosto e mostrava que as antigas estavam um pouco mais fundas. Trouxe a cabeça dela contra o seu peito, não somente para confortá-la, mas também porque não podia suportar esse confronto súbito com a mortalidade. – Qual é o problema, amor?

– Quando eu tava na igreja, outro dia, acendendo uma vela pro Pequeno Davie...

David Renton, o pai, fez força para não revirar os olhos nem soltar um suspiro exasperado, sua reação habitual ao saber que a mulher tinha ido à igreja de St. Mary.

Cathy ergueu a cabeça e enfiou o queixo pontudo em sua clavícula. Seu corpo parecia muito frágil junto ao dele. – Vi aquele rapazinho lá, o Murphy. – Ela tossiu e depois retorceu o corpo, saiu do abraço e foi até o cinzeiro sobre a mesa para esmagar a ponta do cigarro. Hesitou por um instante e acendeu outro, dando de ombros, quase se desculpando. – Cê tinha que ver o estado dele, Davie, ele tava horrível, era só pele e osso. Ele anda usando essa tal de heroína. Foi a Colleen que me contou, quando a gente se encontrou no Canasta. Ela botou ele pra fora de casa, Davie, ele tava roubando dela. O dinheiro do aluguel, do fundo assistencial do clube...

– Que horrível – disse Davie com pesar, pensando na própria mãe que vivia sozinha naquela casa em Cardonald e depois em Mark, esparramado num sofá na atmosfera decadente de um prédio invadido de uma cidade distante, uma cena com ares de ameaça, e que sua imaginação logo converteu num apartamento chique e repleto de profissionais modernosos e cosmopolitas. – Ainda bem que o Mark tá em Londres com o Simon, longe desse vagabundo!

– Mas... mas... – o rosto de Cathy se contorceu até virar uma caricatura perturbadora – ... Colleen disse que o Mark tá indo pro mesmo caminho!

– De jeito nenhum! Ele não seria tão burro!

Os olhos e a boca de Cathy se esticaram, tensionando a pele do seu rosto. – Mas isso explica muita coisa, Davie.

Davie Renton não seria capaz de suportar aquilo. Não podia ser verdade. – Não. – Ele balançou a cabeça de maneira taxativa. – Não o nosso Mark. Colleen ficou chateada com o que aconteceu com o Spud e agora quer fazer do Mark um bode expiatório!

A tampa rosnou, chiou e tremeu sobre a panela. Cathy foi até o fogão, baixou o fogo e deu uma mexida nas batatas. – Foi o que eu pensei, Davie, mas ainda assim... quer dizer, cê sabe como ele é reservado. – Ela olhou para ele. – Mark levou um tempão pra nos contar que tava indo pra faculdade... e depois teve aquela menina com quem ele tava saindo...

Davie se apoiou no peitoril da janela. Ao se inclinar para a frente, sentiu a pressão nos ombros tensos enquanto olhava melancolicamente para a rua. – Sabe – ele disse, encarando seu reflexo fantasmagórico –, eu pensava que, se ele fosse envergonhar essa casa, seria engravidando uma mocinha ou algo assim. Nunca pensei que seria com droga.

– Eu sei, eu sei... às vezes parece estranho demais... às vezes... – Cathy liberou um pouco de fumaça dos pulmões. – ... Quer dizer, aquele lance com o Pequeno Davie... aquilo foi doente. Sei que é uma coisa horrível de dizer sobre alguém do próprio sangue. Amo ele demais, fiquei orgulhosa quando foi pra faculdade... mas...

Davie encostou a testa no vidro gelado da janela. Lembrou da última conversa com Mark, seu tom alterado e sofrido, dizendo ao seu filho que eles planejavam fechar as portas para a classe operária nas faculdades. Que seria a última chance para alguém como ele obter um diploma sem ficar devendo pros bancos pelo resto da vida.

Mark só ficou repetindo “arrã... arrã... arrã...” enquanto enfiava as roupas de qualquer jeito na sua sacola de viagem, e depois começou a falar aquela baboseira de sempre sobre montar uma banda em Londres, como da última vez em que esteve lá. – A culpa é daquela merda de punk rock, aquele lixo que virou a cabeça dele – ponderou Davie Renton, se afastando da janela e repetindo o que havia dito ao filho. – Botar tudo abaixo; então tá, beleza, mas vão colocar o quê no lugar?

– As drogas! – gritou Cathy. – É isso que vão botar no lugar!

Davie balançou a cabeça. – Acho que não, Cath. Ele tá em Londres com o Simon. Os dois logo vão começar a trabalhar nos barcos. Não aceitam viciados nos barcos, Cath. Cê vai querer alguém alucinando de heroína, injetando esse LSD, ou sei lá como chamam, falando com elefante cor-de-rosa o dia todo, quando precisa cuidar da navegação de um barco? De jeito nenhum. É o mar. Eles não toleram esse tipo de coisa no mar, Cathy. Fazem testes pra esse tipo de coisa. Não, é só aquela porcaria do haxixe. Deixa ele doidão. Bagunça a cabeça e tal.

– Cê acha?

– Sim, claro que acho. Ele não seria tão burro!

– Porque eu não aguentaria, Davie – arfou Cathy, apagando um cigarro e acendendo outro. – Não depois do Pequeno Davie. Não com o nosso Billy na justiça!

– O Simon tá lá, vai manter ele na linha, e tem o Stephen Hutchison também, daquela banda, ele é um cara legal, eles não vão se meter em nada errado...

O toque estridente do telefone no corredor interrompeu Davie. Cathy foi correndo atendê-lo. Era sua irmã. As duas iriam conversar por séculos, pensou Davie, comparando suas desgraças. Sentindo-se redundante, ele saiu de casa para caminhar pelas docas.

O porto, envolto numa garoa onipresente, tinha se tornado um lar longe do lar e fazia Davie lembrar de sua cidade natal, Govan. Recordou de como veio para o leste para ficar com Cathy, anos atrás, mudando de quitinete em quitinete, de estaleiro em estaleiro, pegando trabalhos na Henry Robb. O velho porto estava deserto agora; havia sido desativado uns anos atrás, dando fim a mais de seiscentos anos de construção naval no Leith. Ele foi um dos últimos homens a serem demitidos.

Perambulando pelo complexo labirinto de ruas do antigo Leith e chutando os restos do degelo, Davie se maravilhou com os edifícios díspares construídos pelos negociantes que trouxeram a riqueza para a cidade de Edimburgo quando ela ainda devia seu bom momento ao comércio marítimo. Proliferavam grandes construções de pedra com cúpulas douradas e templos pseudoatenienses cheios de pilares. Um dia foram igrejas ou terminais ferroviários como a Citadel Station, pela qual Davie passou caminhando pesadamente, mas agora eram lojas temporárias ou centros comunitários cobertos de cartazes de cores fluorescentes, cafonas e discrepantes, anunciando descontos ou eventos. Muitos estavam rasgados, sucumbindo ao vandalismo e ao abandono que aumentavam devido à expansão dos conjuntos habitacionais; projetos utilitários deprimentes dos anos 60. Em consequência disso, não havia outro lugar no mundo parecido com o Leith. Mas o lugar era uma cidade fantasma. Davie avistou um conjunto de velhos trilhos de trem que conduziam às extintas docas e lembrou das multidões que iam e voltavam dos estaleiros, docas e fábricas. Agora uma garota grávida embalando um carrinho de bebê numa esquina discutia com um moleque de cabelo escovinha e abrigo esportivo. Uma padaria solitária em meio a uma epidemia de pontos comerciais com placas de ALUGA-SE tinha uma janela quebrada e lacrada com tábuas. Uma mulher vestindo macacão marrom e com o cabelo duro de tanto laquê o observava fixamente, como se ele fosse o responsável. Um vira-latas preto foi cheirar umas embalagens descartadas e espantou duas gaivotas que se esganiçaram em protesto voando sobre ele. Para onde as pessoas tinham ido, ele se perguntou. Estavam dentro de casa, ou se escondendo, ou tinham descido para Inglaterra.

Como a gravidade urbana do centro da Escócia parecia ditar, Davie Renton foi parar num pub. Não era um dos que ele frequentava. Um odor vago, incômodo e persistente impregnava o lugar, presente na névoa de fumaça de cigarro. Porém, era um lugar bem arrumado nos demais aspectos, com bar e mesas reluzindo com o polimento. A garçonete era uma moça bem jovem cuja postura tímida e desconfortável sugeria que sua aparência era uma aquisição recente, para a qual ela ainda não estava inteiramente pronta. Teve pena dela, trabalhando num pub como aquele, e forçou uma cara animada ao pedir um pint de Special e um uísque, surpreendendo a si mesmo com tal atitude, já que raramente bebia com prazer nos últimos tempos. Aquilo era um jogo para gente jovem, melhor aproveitado quando se está livre de pensamentos incômodos sobre a própria mortalidade. Mas ele terminou rápido, repetiu o pedido e permaneceu no conforto do bar. Era bom. Davie se sentiu aquecido e anestesiado. Estava descendo bem.

Quando a garçonete reabasteceu suas bebidas, viu seu filho mais velho, Billy, num canto com os parceros Lenny, Granty e Peasbo. Billy fez sinal com a cabeça e eles o convidaram à mesa com um gesto, mas recusou com um aceno e preferiu deixá-los com seus assuntos enquanto pegava um exemplar descartado do Evening News que estava no balcão. Os jovens emanavam poder e confiança, mas o desemprego havia resumido seus horizontes à cidade natal, o que os deixava ao mesmo tempo furiosos e inquietos. A cabeça vazia é mesmo a oficina do diabo, como sua avó de Lewis, que pertencia à Igreja Livre da Escócia, gostava de dizer.

Um homem saiu do escritório para assumir o comando do balcão. Com o canto do olho, Davie percebeu que ele o encarava. Ergui a vista para encarar o ex-policial que administrava o pub. – Mineiro, é? – Ele sorriu sem simpatia nenhuma para Davie, apontando a insígnia da União Nacional dos Mineradores em sua lapela, a mesma que recebera em Oregreave. – Maggie deu uma bela surra naqueles filhos-da-puta preguiçosos!

As palavras alfinetaram em cheio a alma de Davie Renton. Sentiu outra versão de si mesmo, abandonada há muito tempo, oitenta quilômetros atrás, na rodovia M8, subindo à superfície. Suas feições se contraíram e foram se abrutalhando. Presenciou uma ligeira apreensão no rosto de Dickson, que explodiu em raiva quando Davie mencionou com frieza um incidente no qual um policial foi espancado até a morte num tumulto em Londres. – Fiquei sabendo que um dos seus rapazes perdeu a cabeça lá no sul.

Dickson ficou hiperventilando, imóvel no mesmo lugar, por dois segundos. – Vou te mostrar quem é que vai perder a cabeça, weedgie filho da puta. Cai fora daqui, porra!

– Sem problema. – Davie abriu um sorriso contido. – Esse lugar fede a porco que bate em trabalhador, mesmo. – Deu uma encarada em Dickson antes de terminar lentamente a bebida, depois se virou e saiu dali, deixando o proprietário ardendo de raiva.

Caminhando de volta para o estaleiro deserto, Davie Renton era atormentado pela angústia e quase chorava pensando no policial decapitado, em sua família e na viúva. Como era possível que, num momento de raiva, ele tivesse usado vergonhosamente a morte tenebrosa daquele homem nas mãos de uma multidão abominável e demente apenas para contra-atacar aquele babaca no pub? O que tinha acontecido com aquele país? Pensou na geração do seu pai, em que homens de todas as classes tinham se unido contra a maior tirania já testemunhada pela raça humana. (Embora uma das classes, como sempre, tivesse arcado com um número desproporcional de mortes.) O esprit de corps engendrado por duas guerras mundiais e um império em expansão agora parecia muito distante. Estávamos nos desunindo aos poucos, mas de forma inapelável.

Quando os garotos sentados ao canto viram Davie entrar no pub, Lenny passou a mão vaidosamente pelos cabelos curtos e cor de areia. Virou o rosto corado, tingido por uma altíssima pressão sanguínea, na direção de Billy. – Teu velho não vai sentar com a gente?

– Nah, acho que ele só veio aqui pra sair um pouco de casa – disse Billy num tom meio chateado, pois adorava a companhia do pai no pub. O velho nunca era uma imposição; longe disso, era a vida e a alma do lugar, sempre com uma boa história para contar, mas nunca se colocando em cima dos outros, um excelente ouvinte, cheio de bom humor. Era angustiante pensar que seu pai pudesse ter receio de entediar os mais jovens. – A velha anda meio pirada desde que o Pequeno Davie morreu, e não ajudou muito quando o Mark se mandou pra Londres.

– Como é que ele tá por lá? – Peasbo perguntou com seu rosto anguloso e seus olhos desumanos, lançando um olhar desconfiado na direção da porta, enquanto um aposentado usando boné de tecido entrava e se arrastava lentamente até o bar.

– Sei lá, porra.

– Vi aquele parcero dele, Begbie, no Tam O’Shanter outro dia, falando duns viados de Drylaw que tinham dado um cacete no seu tio Dickie. – Lenny sorriu com malícia, concentrando o olhar em Billy. – Jambos, parece – acusou meio de brincadeira. – Cuspiram na foto de Joe Baker, então o Dickie ficou puto e foi pra cima deles. Os rapazes arrebentaram com o infeliz. Em plena luz do dia e tal.

Mesmo percebendo que estava sendo manipulado, Billy reagiu. – Vou dar uma conferida nisso semana que vem no Merchy Herts Club, antes do jogo. Vou ver se descolo uns nomes pro Franco. Odeio aqueles filhos da puta dos Hibbies – retrucou com um gracejo –, mas não é certo fazer isso com um sujeito de idade, especialmente se é da família...

Lenny concordou com a cabeça, juntou as mãos, estalou os punhos e exibiu os músculos fibrosos como cordas nos braços compridos. – Bom, e Franco Begbie não é o tipo de viado que alguém quer ter como inimigo, né?

Eles concordaram naquele ponto e tomaram um gole de suas bebidas. Billy tinha olhado de novo para o pai, pensando mais uma vez em tentar atrair o viado teimoso para se juntar a eles. Mas não conseguiu chamar a atenção de Davie, que estava absorto lendo o jornal. Quando Billy Renton viu o pai de novo, ele já estava saindo do bar. Distraído e furioso, nem sequer registrou a presença deles enquanto saía. Tinha acontecido algum tipo de discussão com Dickson, o proprietário, que Billy percebeu de longe e classificou como uma provocação normal de pub. Talvez não, pensou, enquanto olhava para as portas do bar que ainda balançavam.

Billy voltou os olhos para o bar. Conhecia o Dickson do Lodge. Sempre tinha se dado bem com ele, mas era um viado engraçadinho, conhecido por tomar certas liberdades. Billy levantou da cadeira e atravessou o salão com passos apressados em direção ao balcão. Notando sua movimentação abrupta, os amigos se entreolharam para confirmar que o clima tinha ficado nebuloso.

– O que rolou com aquele cara, Dicko? – perguntou Billy, apontando com a cabeça para a porta.

– Só um bêbado escroto. Um weedgie comunista filho da puta. Disse pra ele cair fora daqui.

– Beleza. – Billy balançou a cabeça afirmativamente, pensativo, e então foi ao banheiro. Deu uma longa mijada, olhando o rosto no espelho sobre a latrina. Havia tido uma tremenda briga com Sharon na noite anterior, por causa de dinheiro. Ela não queria que ele voltasse ao exército, mas não tinha porra nenhuma para ele aqui. Ela queria uma casa. Um anel. Um bebê. Billy também queria mudar de fase na vida, tanto quanto ela. Não aguentava mais as coisas do jeito que estavam; beber, falar merda, bater nuns nervosinhos, ver o tamanho das calças aumentando de 32 pra 34 e ainda ficarem apertadas. Uma casa e uma criança seriam uma boa. Mas custava dinheiro. Ela não parecia se dar conta disso. A menos que você quisesse viver como a porra de um mendigo, às custas do governo, sem respeito próprio, tudo custava dinheiro. E quando você não tem dinheiro, todo mundo, todos esses viados, parecem estar tirando sarro de você, caralho. Sharon, Mark, aquela vadia de boca grande no Elm, e agora essa porra desse ex-policial babaca no bar.

Billy terminou, fechou o zíper, lavou as mãos e voltou ao bar. Abriu um sorriso de corretor de seguros para o proprietário. – Ei, Dicko, cê nem imagina que aquele velho bebum que cê expulsou tá ali nos fundos, sentado num barril de cerveja, acabado. E acho que ele se mijou todo.

Dickson entrou em estado de alerta. – O cara tá lá? – Ele se inflou de expectativa. – Vou mostrar pra esse viado! Ele nem sabe que tá bem onde eu queria encontrar ele! – Dickson saiu correndo pela porta lateral em direção ao pátio, e foi seguido por Billy.

No pátio pequeno e pavimentado, Dickson olhou confuso para todos os lados. Procurou atrás da pilha de barris vazios. O local estava totalmente deserto. Seus olhos registraram que a porta marrom dos fundos, que dava acesso à rua lateral, tinha sido trancada por dentro. Onde estava aquele velho viado? Voltou-se para Billy Renton. – Cadê aquele traste filho da puta?

– Foi embora – disse Billy com a voz calma –, mas o filho dele tá aqui.

– Ah... – Dickson deixou cair o queixo – ... não sabia que ele era teu pai, Billy, foi um mal-entendido...

– Foi mesmo – Billy Renton observou, enquanto dava um chute com toda a força no saco de Dickson. O dono do bar ficou vermelho e se engasgou, segurando os testículos e caindo de joelhos no piso gelado de pedra. O segundo chute de Billy arrancou os dois dentes da frente de Dickson e afrouxou mais alguns.

Lenny e Peasbo tinham acompanhado Billy até a rua e, depois de avaliarem rapidamente a situação, deram uns pontapés com vontade na figura encolhida de bruços para demonstrar solidariedade ao amigo. O grandalhão Chris Moncur saiu para investigar e ficou só olhando com um sorrisinho nos lábios. Alec Knox, um velho pinguço que tinha experimentado a mão pesada de Dickson em diversas ocasiões, se vingou friamente com dois chutes demolidores na cabeça do proprietário, que já estava inanimado e esparramado no chão.

Peasbo voltou correndo para dentro do bar, fez um aceno de cabeça para Granty e, depois de empurrar para o lado a garçonete que praticamente não resistiu, abriu a caixa registradora para pegar as notas e moedas, enquanto Lenny, que chegou logo em seguida, pegava uma garrafa de uísque do suporte e a arremessava contra a TV pendurada na parede. Três caras mais velhos que jogavam dominó ali perto estremeceram e averiguaram a origem do impacto, mas logo voltaram a cuidar da sua vida, pois Granty os fulminou com um olhar incendiário. O grupo de agressores partiu rapidamente, deixando instruções aos funcionários e aos clientes habituais sobre o que dizer à polícia. O consenso era de que três jambos de Drylaw haviam causado os estragos ao proprietário e ao seu estabelecimento.


O coletor

As manhãs mais claras não deixam este lugar nem um pouquinho melhor, e tudo fede mais que suporte atlético de lutador. Todo mundo só fica jogando o lixo num canto; tem uma cestinha de plástico em algum lugar debaixo daquela pilha de porcaria, e tem rolado uma guerra bem cansativa pra ver quem vai ceder primeiro e arrumar tudo. E ainda tem aquele monte de garrafas.

O telefone toca. Atendo.

– O Simon está? – Outra voz de mina rica.

– No momento não. Quer deixar um recado?

– Pode dizer que a Emily Johnson, da estação South Ken, tentou falar com ele? – Daí ele me diz um número de telefone, que anoto no caderninho ao lado dos outros.

Entro na cozinha e não consigo aguentar mais. Pego uns sacos de lixo e começo a encher tudo.

– Conseguiu a grana de Hackney, Nicksy? – pergunta o idiota do Rents, zanzando pela casa de camiseta e cueca, mostrando as pernas finas e mais parecendo um refugiado de Biafra escocês, ruivo e branco que nem leite.

– Nah, ainda não chegou nada – respondo enquanto vou levando o lixo pro coletor, porque esses merdas não tiram a bunda do sofá ou do colchão. Esses viados só querem saber de heroína; parece que os imbecis acham que fumar a droga não conta, e segunda-feira a gente precisa começar a trabalhar. Tô colocando o meu na reta com o velho do Marriott. Se eles fizerem merda...

– Quem era no telefone?

– Outra riquinha querendo falar com o Sick Boy, claro – respondo, saindo do apartamento. Ainda está um pouco frio, mas a primavera está definitivamente no ar.

De repente escuto um gemido muito agudo, e quando chego na escadaria vejo dois pirralhos com um cachorrinho, uma coisinha preta bem pequena. Estão colocando o bicho na porra do coletor de lixo! É um labradorzinho, um amor! – Ei! Seus porras!

Corro na direção deles, mas o filho da puta larga o bicho ali dentro e ele dá um ganido quando eles fecham a portinha. Quando abro, o bichinho sumiu, que nem um coelho numa cartola de mágico. Dá pra ouvir um guincho descendo até o térreo. – Filho da puta! – grito pro escrotinho, totalmente furioso.

– Minha mãe disse que eu precisava me livrar dele, tá bom – diz o pivete.

– Leva de volta pra loja de animais, idiota!

– Tá fechada, tá bom. Minha mãe disse que se eu voltasse pra casa com o bicho ela ia me matar!

– Retardado... – Entro no elevador com os sacos, não vou jogar nada ali dentro pra cair em cima do cachorrinho. Vou até a sala da lixeira. Está trancada, e só vão recolher na segunda-feira. Será que o cachorrinho sobreviveu à queda? Se bem que a maior parte do lixo é macia. Preciso conferir. Largo os sacos de lixo na frente da porta. Está frio aqui. Não consigo pensar. Volto pra escada. Porra! Enxergo ela saindo do elevador. Sozinha. Jaqueta azul. Cigarro na mão. Marsha.

Está com uma aparência de merda. Olhos bem inchados. – Marsha, para. Espera.

– O que você quer? – pergunta ela, dando as costas pra mim como se eu não fosse ninguém.

Fico ali olhando pra ela. – Quero conversar. Sobre... o bebê.

Ele se vira de repente e me olha nos olhos. – Não tem bebê nenhum, certo? Não tem mais. – E então puxa a camiseta amarela pra baixo.

– Como assim? O que houve?

Com um sorriso de escárnio, ela diz:

– Eu me livrei dele, claro.

– Você fez o quê?

– Minha mãe disse que tem muito bebê tendo bebê por aqui.

– Era meio tarde pra isso, não?

– Tudo que você precisa saber é que não tem mais bebê.

– Mas como? O que você quer dizer com isso?

– Não quero conversar com você sobre porra nenhuma! – grita ela, explodindo de repente. – Sai da minha frente, porra!

– Mas a gente precisa conversar sobre... a gente estava...

– O que a gente tem pra conversar, porra? – ela diz, mas agora trocando o sotaque jamaicano pelo londrino de classe baixa. – A gente tava saindo, agora não tá mais. Eu ia ter um bebê, agora não vou ter mais.

– Alguém forçou você a fazer isso! Esse filho era meu, será que eu não tinha nenhum direito a uma opinião nesse assunto?

– Não, você não tinha porra nenhuma de direito! – grita ela, com uma expressão de ódio puro no rosto.

Esse filho era meu...

Sinto minha pulsação se acelerando pelo corpo inteiro enquanto vejo ela se afastar e sair pela porta da escadaria desfilando, aquela bundinha perfeita se movendo lentamente dentro do jeans, que nem uma modelo na passarela, como se ela estivesse tirando uma com a minha cara. – Volta, babe, por favor – me escuto dizendo enquanto saio atrás dela.

Não sei se ela me escuta, mas não olha pra trás e não para de andar pelo caminho entre os prédios Fabian e Ruskin.

Aí escuto um barulho de respiração, olho pra baixo e vejo um pastor alemão farejando minhas bolas. Um skinhead parrudo olha pra mim. – Hatchet! Chega!

A cadela se vira e corre na direção dela, e penso de novo no cachorrinho preso no lixo. Subo às pressas pro apartamento, onde Mark e Sick Boy estão sentados no sofá, fumando heroína com papel laminado. Puta merda, a essa hora do dia. – Celebrando... a vida de trabalhador – diz Mark, acabado. – Uma festinha, Nicksy.

Eu não queria ter filho nenhum, ela fez a coisa certa. Eu só queria ajudar, só isso. Continuar no cenário...

Sick Boy está falando sozinho, daquele jeito confuso de quem está chapado de heroína. – Aquela Lucinda é foda, quanto mais eu trato ela mal, mais ela me quer; 100% submissa. Podia virar cafetão dela. Como alguns dos carinhas por aqui, hein, Nicksy... só que essa daí ia valer uma grana... uma grana, seu viado...

Rents coloca o cachimbo de papel alumínio na mesinha. Aí se levanta e começa a tagarelar. – Precisei dar conselhos profissionais sobre criminalidade pro Begbie no Ano-Novo. Eu! Meu problema é esse: sou fresco demais pra ser um maluco do Leith e marginal demais pra ser estudante de arte. Minha vida inteira é essa mistura, nem uma coisa nem outra... – Aí desaba no sofá de novo.

Paro na frente dos dois. – Olha só – interrompo. – Preciso que vocês montem guarda em dois andares. Décimo quinto e décimo quarto. Não deixem ninguém colocar lixo no coletor.

Mark, é claro, começa a protestar. – Mas daqui a pouco vai começar Crown Court!

– Crown Court que se foda! Tem um cachorrinho preso no lixo lá no térreo! Seus viciados inúteis de merda!

Enquanto saio, ainda escuto Mark dizendo: – Psicose de anfetamina. Sintomas clássicos.

Folgado de merda; esses escoceses filhos da puta estão fodendo com a minha cabeça! Desço de novo, rapidinho. Faz tempo que nenhum zelador aparece por aqui, por causa dos cortes na prefeitura, mas falo com uma negrona nas escadas e ela me diz que uma tal de sra. Morton no segundo andar tem as chaves da sala do lixo. – É uma daquelas grandonas em forma de T.

Preciso andar logo, senão o cachorro, e isso se o coitadinho sobreviveu à queda, vai acabar enterrado debaixo de mais lixo ou esmagado por garrafas vazias. Chego no segundo andar e na porta do apartamento 2/1 tem um nome – MORTON. Dou uma batida e logo uma senhora gorducha aparece.

– Sra. Morton?

– Isso...

– Preciso das chaves da sala do lixo. Uns moleques largaram um cachorrinho no coletor de lixo. Ele ficou preso lá dentro.

– Não posso te ajudar – diz a sra. Morton. – Você precisa falar com a prefeitura.

– Mas hoje é sábado!

– Eles trabalham no sábado. Quer dizer, alguns deles.

Tento discutir, mas a velha não cede. Pelo menos me deixa usar o telefone. Falo com os viados da prefeitura e logo meu sangue começa a ferver, porque, quando estou tentando explicar a seriedade da situação, eles mandam a ligação pro Departamento de Limpeza, que me manda pro Departamento de Habitação, que me transfere pra Saúde Ambiental, que me coloca em contato com o escritório central, que me manda visitar o escritório regional, que então informa que eu preciso falar com a sociedade protetora dos animais! E durante esse tempo todo a sra. Morton fica me encarando e olhando pro relógio na parede.

Fico suando que nem um estuprador enquanto penso naquele pobre cachorrinho, e telefono pro meu parcero Davo que trabalha na prefeitura; ainda bem que hoje ele está fazendo hora extra. – Não sei como você vai fazer isso, parcero, mas preciso muito das chaves da sala de lixo do prédio Beatrice Webb House, no meu condomínio, na Holy Street. Tipo pra ontem.

Que beleza o Davo, ele nem faz perguntas. – Vou tentar. Segura a onda por aí, daqui a pouco ligo pra esse mesmo telefone. Qual é o número?

Digo o número e daí fico discutindo com a tia velha naquele corredor frio, tentando convencer ela a não me botar pra fora. – Não falei que você podia dar meu número – reclama ela. – Não gosto de dar meu número pra estranhos.

– Não são estranhos, é a prefeitura.

– Eles aparecem tão pouco por aqui que são estranho, sim!

– Não vou discordar – respondo, e ela começa a falar sobre como tem sido maltratada por eles ao longo dos anos, o que deve ser verdade, mas só consigo pensar na Marsha e naquele pobre cachorrinho.

Quinze minutos mais tarde o telefone toca e é Davo, que Deus abençoe aquele fanho de Liverpool, e é claro que ele resolveu a parada. – A chave está a caminho, mandei por táxi. Você vai ter que pagar a corrida, mas o carro saiu do Escritório de Habitação do seu bairro, então vai ser só umas duas libras. Preciso estar com essa chave às cinco da tarde de hoje.

– Te devo essa, parcero.

– Pode apostar.

Desligo o telefone, coloco umas moedas ao lado do aparelho e saio da casa da tia velha, voltando correndo pro térreo. Tá frio pra caralho de novo, e aboto-o casaco até em cima. Não fico esperando muito tempo até um velho turco aparecer de táxi e mostrar a chave, um negócio imenso que enfio no bolso sem perder tempo e pago a corrida.

Abro a porta de madeira escura, grande e pesada, e puta que me pariu, como esse lugar fede. Encontro um interruptor, aperto e uma luz mortiça e amarelada ilumina o cômodo. Dou uma olhada na imensa caçamba sobre rodas. Tem mais de dois metros de altura. Como é que eu vou subir ali?

Aí enxergo um monte de móveis quebrados empilhados perto das paredes. Tranco a porta pra evitar que apareçam uns moleques pra me incomodar. O fedor é impressionante e passo um tempo com vontade de vomitar, até de certo modo ficar um pouco acostumado. Puxo um aparador velho, subo em cima e dou uma olhada na caçamba. Tá cheia de merda até quase em cima. Tem um monte de moscas, umas imensas, zumbindo ao meu redor e quicando na minha cara, como se eu fosse uma daquelas crianças na África. Mas não enxergo cachorro nenhum. Dou uma assobiada pra chamar o bichinho.

Não escuto nada. Entro na caçamba e meus pés afundam na porcaria comprimida. Minhas tripas têm espasmos, começo a tremer de náusea; é como se estivesse com febre. Apoio a mão no final do conduto pra me equilibrar e o negócio está coberto por algum tipo de excremento podre. Quase vomito de novo, daí tento limpar o que dá. Que negócio mais horrível; tem de tudo aqui; fraldas, lixo de casa, absorventes, camisinhas usadas, garrafas, guimbas de cigarro e cascas de batata por todo lado. Tem de tudo, menos a porra do cachorrinho.

De repente escuto um estrondo vindo de cima e preciso me agachar apoiado num dos lados da caçamba enquanto um monte de garrafas desce voando até se quebrarem. Esses viados podiam ter me matado! Deve ter vindo dos andares que pedi pra aqueles escoceses inúteis vigiarem! O fedor é horrendo; queima minhas narinas, e uma imundície voa até meus olhos, me deixando cego.

Nem uma porra de um pitbull de armadura conseguiria sobreviver aqui. O coitado seria esmagado e enterrado debaixo de toda essa merda. Respiro fundo e a nuvem de poeira velha e cinza de cigarro que escapou do conduto entra nos meus pulmões, aí começo a tossir e vomito. Só consigo enxergar com um dos olhos, e mal. Esse negócio está me deixando doente, e estou quase desistindo quando de repente escuto um gemido baixinho. Escavo um pouco mais, tiro uns jornais molhados e ali está o cachorrinho, deitado em cima de cascas de ovo, saquinhos de chá e cascas de batata. Ele me encara com seus olhos enormes. Mas tem alguma coisa na boca dele.

Sinto o conteúdo do meu estômago subindo de novo e piso no freio porque o cachorrinho tá com uma boneca mole na boca. Tem uns trinta centímetros, um cabeção e membros fininhos que parecem feitos de borracha. É como se fosse um alienígena coberto de molho de tomate, sujeira e todo tipo de gosma. O cachorro está com a perna na boca. Não estou gostando nada disso. Meu sangue fica todinho gelado e sinto ele batendo dentro da cabeça. O jeito que a perna dessa coisa coisa fica pendendo das mandíbulas do cachorro... os olhos estão fechados, mas as pálpebras azuis estão meio que inchadas. O cabelo é preto e emaranhado. Tem um ferimento no lado da cabeça, um buracão de onde um troço espesso ainda escorre. Isso não é uma boneca. Isso parece...

Ele está comigo na boca...

Pela perna...

Meu rostinho...

O rostinho dela...

Não consigo me mexer. Fico ali sentado no meio do lixo, olhando pro cachorrinho e pra aquela coisa vermelho-sangue, café com leite e azul que ele está mastigando. O cachorro larga a coisa e chega perto de mim. Pego o bicho e dou um abraço. Ele é quentinho e dá uns ganidos baixos, e enxergo a respiração quente escapando das narinas pro ar frio.

Continuo olhando pra coisa largada sobre o lixo. Está com os olhos fechados, como se estivesse em paz, dormindo.

Eu não sei o que...

Não é um bebê. Não sou assim tão burro. O cara precisaria ser muito doente pra chamar essa coisa de bebê; está muito, muito longe disso. Mas também não é o caso de se faltar totalmente ao respeito. Não parece certo deixar aquilo ali no meio do lixo, como só uma vadia imunda faria.

Ah, meu Deus, o que foi que ela fez?

Não sei o que fazer, mas sei que preciso sair quando outra leva de merda desce com tudo e estoura nas minhas costas. O cachorrinho está lambendo minha mão. Coloco ele debaixo do braço e saio da caçamba e da sala, trancando a porta depois de sair.

Estou fedendo a lixo e caminho sem parar com o cachorro dentro do casaco. O sol se põe e o frio está congelante quando chego na altura do canal. O cachorro parou de ganir, devia ser o frio. Acho que pegou no sono. Só consigo pensar naquela coisa dentro da caçamba. Primeiro o porquê, depois como e depois disso, quando. Datas. Horários. O Escritório de Habitação não fica longe, e deixo a chave na recepção. A garota na portaria me olha como se eu fosse um escroto, como se estivesse prestes a me botar pra fora, mas não faz isso. Acho que não estou mesmo com uma aparência muito boa; tô fedendo, coberto de tudo que é tipo de merda, usando um casaco velho com um cachorrinho botando a cabeça pra fora. Saio logo dali; volto pro canal.

O que eu posso fazer... o que ela estava pensando...? Isso foi demais, é certamente contra a lei...

Sigo caminhando ao longo do canal, por baixo das pontes, e começa a escurecer. O cachorrinho começa a chorar, com ganidos longos e patéticos que vão ficando cada vez mais altos. Deixo o canal e paro num Spar pra comprar comida de cachorro. Dei toda a volta até chegar em casa, e subo pelo elevador. Entro em casa, coloco o cachorrinho no chão e vou até a cozinha pra servir um pouco de comida pro coitadinho...

– Sua grana não chegou, Nicky? Porque tá na hora, tô precisando comer, cara... – diz o Renton, e então enxerga o cachorro farejando a sala. – A gente tem um cachorro! Que excelente – acrescenta ele, com olheiras imensas, e então continua: – Cê tá fedendo, a propósito.

– Caralho, verdade, Nicksy, tá fedendo mesmo – concorda Sick Boy.

Não tenho como discutir. O cachorro lambe a mão de Rents, e os dois brincam com ele sem muita vontade. – Vamos chamar ele de Giro... – sugere Renton. Quando sirvo a comida do cachorro num prato de sopa, vejo que estão fumando mais heroína.

– Curto o cachimbo – diz Rents. – Minhas veias são uma bosta. É por isso que não consigo doar sangue, eles levam um tempão pra encontrar as veias.

– É um baita desperdício de heroína – protesta Sick Boy. – Boa parte da droga se desmancha no ar. Mas eu posso largar a heroína quando quiser. Só tô usando agora porque segunda-feira é nosso primeiro dia de trabalho.

– Cês não podem fazer alguma coisa na casa, porra? Hein?

– Dá um tempo. – Sick Boy aponta pra cozinha. – Aquelas garrafas de cerveja que estavam ali fazia meses não estão mais – ele aponta pra si mesmo, todo orgulhoso –, pois adivinha quem jogou tudo fora?

– Você fez o quê?

Esse viado podia ter me matado!

Fico ali parado com os punhos se fechando de tanto ódio, mas eles nem percebem. Tiro o casaco. Dou uma tragada no cachimbo de papel alumínio, enchendo meus pulmões e minha cabeça com aquela merda, e de repente tudo fica melhor. Nem me incomodo quando o Sick Boy telefona pra merda da Escócia, aumentando ainda mais a conta. – É claro que estou comendo direito, Mama, estou comendo por dois. Não, não tem gravidez nenhuma. No bambinos. – Ele tapa o bocal do telefone com a mão. – Pelas bolas suadas de Jesus! Quem aguenta mães italianas?

Vou pro quarto, levando o casaco. Sento com as mãos na cabeça, tentando pensar. Não consigo ouvir nada por causa da barulheira que eles estão fazendo. É o disco dos Pogues. Vou pra sala e peço pra baixarem o volume.

– Mas é Red Roses for Me, Nicksy. Coloquei por causa dessa música, “Sea Shanty”, porque a gente vai ser lobos do mar! – diz Mark, conferindo meus compactos de Northern Soul pela milésima vez. – Isso aqui é mesmo muito bom, Nicksy.

Dou um sorrisinho pra mim mesmo quando o Mark me passa o cachimbo; dessa vez estou a fim de me detonar. Primeiro meus pulmões, e então minha cabeça se enche com aquela merda. Afundo na poltrona, aproveitando a sensação de estar com os membros pesados e a cabeça leve.

– Tô pouco me fodendo. Música. Grande coisa. É uma perda de tempo, só serve pra fazer você acreditar que as coisas são menos fodidas do que realmente são. É como usar aspirina pra tratar leucemia, porra – digo pra ele.

– Excelente demais – diz ele. Não está me ouvindo. Não que eu me importe.

Porque ninguém ouve ninguém por aqui. E que negócio é esse de “excelente”? Como a gente nunca ouve nenhum escocês na TV falando isso? Fico pensando essas coisas enquanto a heroína flui dentro de mim, me acalmando. O cachorrinho mija num canto e começo a gargalhar. Mark sacode a cabeça e diz: – Esse negócio é mesmo muito bom, Nicksy.

– Pode ficar com todos, parcero – digo pra ele, de coração. Pra que eu quero esses discos?

– Não fala uma coisa dessas ou eles vão acabar parando nas lojas da Berwick Street antes que você pisque os olhos. – Mark ri, e então parece se assustar com o que acaba de dizer. – Não sou tão escroto assim – diz ele, e baixa o tom de voz –, mas fica de olho no Sick Boy – cochicha, enquanto o parcero dele desliga o telefone.

Sick Boy pega o cachimbo de papel alumínio. – Vou ali cuidar da beleza. – Então começa a fazer movimentos pélvicos muito fortes, imitando um parcero deles lá da Escócia, um cara totalmente maluco que conheci no Ano-Novo. – Essa noite tenho uma missão, e essa missão é foda. Não dá pra perder tempo!

As orelhas do pobre Frankie devem estar fervendo lá na Escocialândia, porque eles passam o tempo inteiro tirando sarro da cara dele. Mas aquele não é o tipo de cara que deixaria uma coisa dessas ser feita na frente dele.

– Vai levar um tempo – diz Rents. – Não a foda, porque isso daí vai terminar em poucos segundos. Estou falando da parte de ficar bonito.

Sick Boy estende a mão mandando ele se foder e sai da sala.

– Tudo bem se eu der um pouquinho prum parcero lá de Edimburgo? Eu tipo, te dou o dinheiro – pede Renton com um sorriso chapado e colocando um punho cerrado ao lado do rosto.

– Vai fundo, bobalhão – respondo, porque não estou mesmo nem aí.

– Então vou mesmo. – Sorri com os dentes amarelos. – Assim que der mais um pega nesse cachimbo... essa coisa marrom... como relaxa... – diz, chamando o cachorro. – Giro... vem aqui, cara... que nome excelente prum cachorro... puta merda, combinei de me encontrar com o Stevie em West End e agora tô fodidaço... o viado é careta... certo que vai perceber... mas só mais um peguinha pra ficar na boa...

E eu me dou conta de que também quero mais um, que na verdade eu me sinto um camponês russo faminto dentro de uma pâtisserie francesa cheinha de coisas, porque a gente precisa começar a trabalhar na manhã de segunda.


Águas de Leith

A luz voltou. Sempre voltava. Lizzie lembrava dele do colégio, o jogador de futebol. Sempre pareceu um cara legal, e era bonito. Mas ela era aspirante a artista e tinha continuado os estudos após os 16 anos obrigatórios e convivido em círculos diferentes. Desde muito jovens, uma membrana invisível de aspirações tinha se cristalizado entre eles.

De volta ao College of Art com as resoluções de Ano-Novo ainda intactas, Lizzie McIntosh teve de lidar com um duro golpe. Ao levar o portfólio ao gabinete do tutor, tinha ouvido Cliff Hammond conversando com outro professor. Prestes a bater na porta entreaberta, congelou assim que mencionaram seu nome e ficou parada, ouvindo ambos destrincharem sua vida. – ...é lindíssima, mas não tem absolutamente nenhum talento. Acho que de tão mimada acabou acreditando que tem habilidade técnica e alguma coisa pra mostrar, quando, pra ser bem honesto, não existe nada ali... – disse Hammond naquele tom de desdém exausto que ela o tinha ouvido usando para se referir a outros, sem jamais imaginar que o ouviria falando assim sobre ela.

De repente, o chão de vidro que Lizzie tinha construído estava se rachando sob seus pés, e ela se sentiu desabar. Com o sangue pulsando na cabeça e um torpor impregnando as pernas, braços e rosto, puxou o cabelo para trás num rabo de cavalo e o segurou com o punho fechado. Então se virou, sem saber se teria forças para atravessar o corredor. Deixou o portfólio encostado na parede, desceu as escadas de volta e saiu do prédio da faculdade. Estava frio, mas Lizzie mal registrou isso ao sentar num banco no parque Meadows, olhando para a lama no couro lustroso das botas. Ergueu a cabeça e ficou olhando para o brilho opaco da lua que esperava sem muita paciência por sua hora de substituir o laranja da luz do sol de fim de tarde, que então lançava os últimos raios em meio a um céu que escurecia. Como conseguiria continuar se considerando uma artista? Tanta vaidade mimada e sonhadora!

Quase nem percebeu o jogo de futebol se encerrando a poucos metros de distância. Mas ele a tinha percebido, perdida em si mesma, e rezado para que sua distração durasse até que o juiz apitasse e ele pudesse se arrumar rapidamente e deixar o vestiário. Tommy Lawrence sentia que aquela era a sua chance, e que o destino estava ao seu lado; tomou uma ducha de qualquer jeito, negou apressado os convites para beber e atravessou o parque correndo em direção àquela figura solitária. Então ficou parado em pé na frente dela com uma expressão sincera e simpática no rosto, logo abaixo de um tufo molhado de cabelo castanho-claro.

Lizzie nem disse nada quando ele comentou que ela parecia aborrecida. Foram tomar um café, e ele a escutou. Ele percebeu que na entonação dela não havia raiva; ela contou sua história com elegância imparcial ou talvez fosse só o choque. Tommy sabia instintivamente que precisava ajudar Lizzie a reencontrar sua arrogância, sua raiva. – É só a opinião de uma única pessoa – disse a ela. – Achei esse cara meio nojento. Aposto que está a fim de você.

A ficha começou a cair. Era Cliff Hammond. Em mais de uma ocasião ele a tinha convidado para beber alguma coisa ou para tomar um café. Ele tinha certa fama. Tudo fazia sentido. Ela havia repelido aquele almofadinha egocêntrico, aquele predador enrugado, e agora ele estava contra-atacando de sua maneira amarga e patética.

– Bem, ele não está sendo exatamente imparcial, né? Esse cara é um verme – declarou Tommy. – Cê não pode deixar um cuzão desses botar você pra baixo!

– Não posso mesmo – disse Lizzie. – Mas não mesmo, porra. – Repentinamente se dando conta de que tinha sido reanimada e recuperada por aquele cara.

– A gente devia ir lá pegar o portfólio.

– Porra, pode crer. – Lizzie se levantou. Tudo parecia importante de novo. Graças a Tommy Lawrence, de Leith.

O portfólio estava no corredor, no mesmíssimo lugar. Lizzie o pegou bem quando Cliff Hammond emergiu do gabinete. – Oh... Liz... aí está você. Não tínhamos um encontro marcado há mais de uma hora?

– Sim. E eu fui. Mas ouvi sua conversa com Bob Smurfit.

– Ah... – Percebendo que Lizzie estava acompanhada, o rosto de Hammond ficou ainda mais branco.

Então Tommy chegou bem perto e Hammond ficou nervoso, dando um passo involuntário para trás. – Pode crer, a gente ouviu um monte de coisa sobre você – acusou Tommy, apertando os olhos.

– Eu... eu acho... que houve... um enga... – Cliff Hammond começou a se engasgar com a palavra “engano”, que ficou presa em sua garganta.

– É muita grosseria falar das pessoas pelas costas. Especialmente esse tipo de merda. Não quer repetir o que vocês estavam dizendo?

Para um homem que exaltava o poder visceral da arte e amava a nova geração de jovens pintores surgindo de Glasgow, Cliff Hammond ficou devastado ao se confrontar com a própria fraqueza diante daquele ato justo de indignação. Se Lizzie tivesse vindo sozinha, ele teria tentado explicar, dado um jeito, mas agora se sentia pequeno e frágil diante daquele jovem alto e aparentemente forte cujas atitudes e sotaque o faziam pensar nos lugares horríveis que antes daquilo Hammond encarava apenas como nomes nas beiradas dos mapas da cidade, o fim da linha dos ônibus marrons ou servido de cenário para alguma matéria de jornal sobre pobreza; lugares aos quais ele nunca teria a menor intenção de ir. Espasmos começaram a retorcer metade do seu rosto.

Foi esse reflexo incontrolável que salvou Hammond da violência física. O desprezo de Tommy pela covardia do carrasco de Lizzie logo se transformou em sentimento de culpa por sua própria agressividade. Os dois homens seguiram paralisados até Lizzie dizer: – Vamos, Tommy. – Puxando a manga dele, e os dois foram embora da faculdade e seguiram até um bar ali perto.

Foi assim que Tommy tinha entrado em sua vida, duas semanas antes, e andavam inseparáveis. Mas toda a rapidez de Tommy Lawrence se limitava ao campo de futebol. Assim, na noite anterior, Lizzie tomou as rédeas da situação, sugerindo que saíssem para beber e depois o arrastando até a sua casa e sua cama. Como foi bem resolver de uma vez a situação.

Agora a luz do fim da manhã entra por entre as cortinas, se espalhando sobre os dois. Lizzie olha para Tommy, adormecido com um sorriso vidrado de satisfação. Assim como os livros nas estantes e os pôsteres nas paredes, ele prometia algum tipo de paraíso. Mas ela não tinha ouvido coisas boas sobre ele, sem sombra de dúvida; conhecia a fama de algumas das pessoas com quem ele andava. Bondade não era a primeira característica que vinha à cabeça de Lizzie ao pensar nessa gente. Pode ter sido a situação pós-coital, mas será que alguém conseguiria parecer mau enquanto dormia? Mesmo uns filhos da puta infernais como Frank Begbie provavelmente assumiam uma inocência angelical quando estavam foram de combate. Não que ela tivesse a menor intenção de confirmar isso com os próprios olhos. É difícil imaginar Tommy, um cara tão legal, sendo amigo de um maníaco como Begbie. Lizze não conseguia entender como ele podia se relacionar com gente assim.

Um pombo arrulha ruidoso no peitoril da janela e os olhos de Tommy se abrem de repente. Ele os preenche agradavelmente com Lizzie, sentada ao seu lado, lendo Matadouro Cinco. Ela está com os óculos de leitura; Tommy nunca a tinha visto com eles até então. O cabelo castanho-escuro cacheado está preso para trás. Está de camiseta, e Tommy fica imaginando quanto tempo faz que ela está acordada e se teria vestido de novo a calcinha azul. – Oiê.

– Oiê. – Lizzie olha para ele e abre um sorriso.

Tommy se apoia nos cotovelos para se aproveitar melhor no quarto arejado e perfumado.

– Quer tomar café? – quer saber Lizzie.

– Sim... – ele hesita. – Hã... vamos comer o quê?

– Acho que tenho uns ovos na geladeira. Ovos mexidos e torradas?

– Boa.

Então alguém esmurra a porta com truculência. – Porra, mas quem será? – Lizzie pensa em voz alta, irritada, mas se levanta sem perder tempo e veste um roupão. Olha para Tommy e o surpreende olhando para ela. Lizzie está com a calcinha azul, e, só de olhar para ela, Tommy fica excitado.

– Deixa pra lá – ele implora.

Ela considera essa opção. Mas as batidas recomeçam, insistentes como as de um policial. – Parece importante.

Por um instante Lizzie fica imaginando se Gwen, a menina que mora com ela, vai atender a porta, mas então se lembra de que ela não estava passando o fim de semana em casa. Foi por isso que Lizzie tinha levado Tommy até lá. Encontra as pantufas com cara de gato e atravessa o corredor enquanto as batidas na porta recomeçam, acompanhando o ritmo do vinho tinto da noite anterior em sua cabeça. – Tá bom! Já tô indo!

Abre a porta e fica abismada ao ver Francis Begbie na sua frente.

– O Tommy tá aí?

Por um instante Lizzie fica sem palavras. Levou o Tommy para casa e agora esse maníaco sabe onde ela mora!

– Desculpa incomodar. – Begbie abre um sorriso fingido, claramente nem um pouco preocupado por estar incomodando.

– Espera aí – diz ela, e se vira.

Begbie enfia o pé no vão da porta, para que não se feche em sua cara. Lizzie sente os olhos dele acompanhando seus passos enquanto ela anda pelo corredor. Entra no quarto e Tommy está se vestindo. Ele acha que ouviu a voz de Franco; claro que não. Mas a carranca de Lizzie informa: claro que sim. – É pra você.

Assim que Tommy sai, Lizzie começa a ferver, repensando tudo.

– Caralho, meu garoto! Que vitória! – Franco urra enquanto Tommy se aproxima pelo corredor. Aquilo desarma totalmente a raiva de Tommy, e ele precisa controlar a vontade de sorrir.

– Mas o que cê tá fazendo aqui?

– Imaginei que cê ia tá aqui, viado! Minha prima Avril vive nessa escada: cê tá ligado que tudo que rola no Leith acaba chegando nos ouvido do Franco, caralho. Serviço completo noite passada então, hein? Com calcinha miúda e tudo! Porra, o Sick Boy vai ficar malucão com essa!

Tommy sorri, dando uma olhada no corredor. O frio gela seus braços expostos pela camiseta. Begbie, apesar de estar usando uma camiseta da Adidas e um casaco fino, não parece nem um pouco incomodado. – O que cê quer, Franco?

– Que porra cê acha que eu quero? Que merda eu fiquei repetindo a semana inteira, seu corno surdo? Cê tá pensando demais em xoxota, assim não dá! Aberdeen! É hoje. Easter Road. O Young Leith Team vai mostrar pressas bicha arrumadinha desses “casual” como é que se faz. Você, eu, o Saybo, o Nelly, o Dexy, o Sully, o Lenny, o Ricky Monaghan, o Dode Sutherland, o Jim Sutherland, o Chancy McLean e mais um monte de cara. O Larry saiu do hospital! A galera toda! A velha guarda de volta pro tumulto! Não consegui encontrar aquela bicha do Spud, mas ele é que nem o Renton e o Sick Boy lá em Londres: não faz falta. Esses corno só atrapalham na hora da porrada.

Tommy fica perplexo, ouvindo a lenga-lenga de Franco sem conseguir acreditar.

– Pode crer, tá todo mundo lá no Cenny agora. Até o Segundo Lugar! Mas ele não tá bebendo e tal. Tá querendo ficar sem bebida; como se fosse conseguir! Odeia uma birita, aquele viado. Vai ser demais, ele e aquela porra daquele viado de Aberdeen que parece o Bobby Charlton, rolando na porra da sarjeta! Lembra daquele viado careca pra caralho, da 22?

– Scargill – diz Tommy, lembrando do cara roliço com o cabelo crespo penteado por cima da careca liderando uma emboscada em Aberdeen na King Street, saindo do Pittodrie Bar. – A gente se encontra lá embaixo mais tarde – acrescenta a Begbie com o máximo de entusiasmo que consegue expressar.

– Porra, mas pinta lá mesmo. – Franco lança um olhar acusatório. – Eles vieram com um monte de cabeça, e a gente vai precisar da ajuda de todo mundo. Não tem essa de ficar cantando de galo aqui no Leith, porra, mas de jeito nenhum. Um bando de comedor de ovelha com aquela bichice de Recopa Europeia vindo aqui, bebendo no nosso pub, passando conversa nas nossa... – Franco hesita, e olha para Tommy.

Tommy não consegue resistir. – Ovelhas?

Franco se desliga por alguns segundos. Fica parado e quieto, e o oxigênio parece se extinguir nas escadas. Então um sorriso tímido dança sobre os lábios dele. Gargalha ruidosamente, permitindo a Tommy soltar o ar que não tinha percebido que estava segurando. – Essa foi boa, seu viado! Beleza, mas aparece lá – diz Begbie, se virando abruptamente e saltando degraus para descer a escada. Olha para Tommy de uma curva da escada e acrescenta num rugido grave: – Se liga, não vai deixar a gente esperando.

Tommy fecha a porta e tenta organizar os pensamentos. A rápida aparição de Lizze com as mãos nos quadris e aquela expressão no rosto que diz e aí? fazem com que seu estado de espírito mude do desânimo para o desespero. – Franco... eu esqueci que tinha combinado de ir ao jogo com os caras...

– Não curto que esses psicopatas de merda venham bater na minha porta de manhã, Tommy.

– O Franco é legal... – Tommy protesta, sem muito entusiasmo. – A prima dele mora no andar de baixo. A Avril.

– Pode crer, eu sei quem é. Três filhos, cada um de um pai diferente... – começa, num tom de reprovação, mas a expressão miserável e caricata de arrependimento debaixo do chumaço de cabelo castanho de Tommy a amolece. – A gente tá sem leite.

– Vou comprar – ele se oferece.

Tommy veste o blusão antes de se aventurar na rua. Desce animado as escadas de Lizzie. Um pensamento se incendeia dentro dele: eu e a Lizzie. Nem mesmo Franco poderia estragar isso. É mesmo uma vitória.

As ruas voltando à vida aos poucos à medida que os festeiros remelentos que ficaram acordados a noite toda vão se misturando aos que começam a aproveitar o fim de semana. Ao passar por uma cabine telefônica, Tommy tem um surto de inspiração quando as palavras de Franco, grosseiras, mas plenamente justificáveis, ricocheteiam dentro de sua cabeça a mil. Serviço completo noite passada então, hein? Com calcinha miúda e tudo! Porra, o Sick Boy vai ficar malucão com essa!

Tommy dá meia-volta para fazer um telefonema para Londres. Uma voz distante atende enquanto ele vai colocando moedas. – Alô, alô, é bom estar de volta...

É o Renton. Parece chapado. – Mark.

– Tommy... cê não vai acreditar, eu tava ligando pra você... não falei isso agorinha mesmo, Nicksy?

Uma voz cockney, que Tommy reconhece; o baixinho que a gente conheceu em Blackpool, aquele que veio pro Ano-Novo. Nicksy. – Beleza, Tommy? Parceiro, cê não quer descer aqui pra buscar esses caras e levar de volta pra Escocialândia? Tem um esquema rolando amanhã mas, esses viados não fazem porra nenhuma...

– Ah, não, parcero. Agora é com você. Ninguém aqui quer esses marginais de volta!

– Mais uma cruz preu carregar, poxa... beleza, cara, a gente se fala...

– Pode crer, maluco...

E então Rents de volta – Como vai a bela Escócia, Tam?

– Tudo igual. O Begbie tá em clima de guerra de novo.

– Sei... o cara só precisa de um pouco de carinho...

– Tá querendo brigar no jogo contra o Aberdeen. Já foi ruim pra caralho com o pessoal de Lochend e tal, e agora ele quer que a gente vá brigar com uns caras que a gente nem conhece! Que porra eu tenho a ver se esses moleques de Aberdeen cagaram a pau um maluco de Granton ou sei lá de onde? O Begbie tá puto da cara por causa desses merdas. E ele é uns seis ou sete anos mais velho que esses “casuais”. É patético.

– Cê sabe como é o Generalissimo. Qualquer coisinha e ele já quer sair no braço. É o jeito dele... – Renton se desmonta numa gargalhada estranha que Tommy nunca tinha ouvido antes. – Rué... rué...

– O que foi isso?

– O Sick Boy tá dizendo que o Franco precisa trepar.

– Não faz a menor diferença. Aquela vagabunda da Samantha Frenchard lá de Pilton teve um pirralho com ele e agora o cara embuchou aquela June Chinsholm.

– Pode crer, mas pra começo de conversa elas já deviam ser meio ruins da cabeça pra dar pro Franco. E você, hein? Tá rolando alguma coisa séria com alguma mina? Ou ainda tá só na droga?

Uma pausa. Então Renton diz: – Arrá! Adivinha quem anda trepando e telefonou só pra esfregar isso na nossa cara?

– Bom, pois é, conheci alguém semana retrasada. E tá tudo bom demais, pra falar a verdade.

– Tava mesmo na hora de cê descolar uma xereca. É alguém que eu conheço?

– Lizzie. Lizzie McIntosh.

– Não brinca!

– Não tô brincando. A gente tá namorando.

– Mas que corno sortudo! Aquela gostosa cheia da grana, toda metida a besta, que mora no outro lado do Links...

– O quêêê... – Tommy ouve Sick Boy dizer. – O Tommy tá comendo a Lizzie Mac?

– Sim, que doideira – diz Rents, e depois volta a falar ao telefone. – Bati muita punheta pensando nela... Já contei da vez que peguei o Begbie socando pra ela na aula de educação física... não socando alguém por causa dela, mas socando uma pensando nela...

– Falei que a gente tá namorando, Mark! – protesta Tommy, lembrando que Rents e Sick Boy juntos formam uma combinação devastadora em sua crueldade. Ao mesmo tempo que fazem de tudo para tirar o outro do sério, ficam se atiçando o tempo todo como gêmeos perversos com fixação pelo sofrimento alheio.

Depois disso vem um hiato desconfortável na linha, ao qual Renton acaba dando um fim. – Tá bom... é, foi mal, Tam, a gente devia ser mais, hã, maduro... boa. Que vitória. Eu não tô comendo ninguém, mas o Sick Boy... bem, o Sick Boy é o Sick Boy, né?

– Uma chuva de buceta inglesoide! – grita Sick Boy desafiador no bocal do telefone.

– Mas pelo menos eu tenho um cachorro – continua Renton. – O Nicksy queria chamar ele de Clyde, por causa do Clyde Best, porque ele é um labrador preto, mas eu e o Sick Boy começamos a chamar ele de Giro e agora ele atende...

Começa a soar o aviso de moedas terminando. – Beleza. A gente se fala, Mark.

– Beleza... Fala pro Swanney... – Rents começa a divagar e Tommy fica curtindo a ligação cair antes de colocar o telefone no gancho.

No mercado, Tommy compra leite e um jornal. Normalmente compraria o Record, mas acha que talvez o Scotsman impressione mais a Lizzie. Pega o jornal e está quase dando ao caixa quando resolve trocar pelo Herald após uma reflexão de última hora sobre sexismo. Não sabe se Lizzie é feminista, e nesse comecinho de relação vale a pena não correr riscos.

Lizzie versus Begbie. Seria possível existir alguma decisão mais fácil? Aos 22 anos, Tommy está velho demais para brigar com garotos de Aberdeen ou mesmo de Lochend. Não faz sentido algum. As pessoas crescem e deixa essa merda pra trás. Aquele Kevin McKinlay de Lochen é gente boa. Tommy o tinha encontrado recentemente, no futebol. Já tinham se estranhado uma vez, e, quando o viu nos vestiários do Gyle, Tommy se preparou para um confronto ou, pelo menos, uma encarada cheia de ódio e uns xingamentos. Mas o tal do McKinlay só acenou com a cabeça e sorriu para ele, como se estivesse dizendo: São águas passadas. Bobagem de moleque. Acabou.

Com marginais é diferente. As águas nunca passam. Não tem nem água. Eles vão chegar na meia-idade ainda se chamando de Young Team, lutando as mesmas batalhas da juventude. Mas não Tommy. Agora, pela primeira vez, ele está vendo que existe mesmo uma maneira de deixar tudo isso para trás, e é muito simples. Você não precisa fugir. Precisa apenas conhecer alguém especial e dar um passo na direção desse universo paralelo. Tommy nunca tinha se apaixonado antes. Queria que tivesse acontecido com as outras namoradas, mas nunca tinha sentido aquilo. Agora a sensação espremia seu corpo inteiro; era algo lindo, bobo e obsessivo, e consumia todo o seu tempo e os seus pensamentos. Está louco para voltar para Lizzie, com uma ansiedade que chega a ser perturbadora.

Alison, colocando uma bandeja de chá com torradas sobre a mesa de café de vidro, agora via a casa da família como uma mistura de mobiliário de diferentes épocas. Na pequena sala de estar, uma lareira de teca dos anos 70 disputa espaço com uma cômoda vitoriana de mogno e um conjunto de sofás contemporâneos com moldura de carvalho, enquanto as bolhas de uma lava lamp dos anos 60 engordavam até serem lançadas para cima. Seu pai, Derrick, nunca tinha sido capaz de se desfazer de uma peça antiga de mobília, e simplesmente ficava trocando todas elas de lugar dentro da casa. A cabeça dele parecia entulhada pela mesma tralha desconexa enquanto Alison o observava tentando interrogar seu irmão, Calum. – Cê acha que eu não sei o que cê tá tramando? Tá pensando que eu nasci ontem?

O olhar de menosprezo de Calum parecia dizer: Se cê tivesse nascido ontem, seria um pirralho com cara de choro. Pois é, meio que faz sentido mesmo.

– Hein? Me responde!

Calum permaneceu calado, mal tendo trocado duas palavras com qualquer um desde a morte de mãe. Alison sabia que isso não era bom. Mesmo assim, simpatizava com o irmão e odiava quando o pai ficava desse jeito. Sempre o tinha considerado um homem inteligente, mas a dor e a raiva o transformaram num idiota. Será que tinha alguma ideia do quanto parecia um imbecil com aquele bigode retardado, agachado de ressaca na frente do aquecedor com aquele roupão de tartã cobrindo os ombros magros?

Derrick não conseguiu evitar mais uma frase feita. – Só não quero que cê cometa os mesmos erros que eu.

– É natural – interviu Alison para dar uma força. – Cal, o papai não seria humano se não se preocupasse com você... certo, papai?

Derrick Lozinska optou por ignorar a filha mais velha, permanecendo concentrado no filho. Os olhos de Calum estavam fixos na TV muda, na qual Patolino sacaneava silenciosamente um perplexo Gaguinho. – Cê sabe muito bem quem é essa galera. Encrenca. Da grossa. Eu sei. Cê sabe que eu vi!

Isso não podia ser contestado. O pai costumava entediar Alison com certa regularidade contando com tristeza ter visto a Baby Crew em ação. A emboscada na Crawford Brigde, na Bothwell Street; gangue contra gangue, e depois uma perseguição a um grupo de torcedores do Rangers que saiu correndo. Calum estava na linha de frente, segurando firme uma lasca de pedra. Quando Alison pediu ao irmão que contasse sua própria versão do acontecido, ele não negou nada, se limitando a responder de forma sarcástica que Derrick e seu amigo não tinham nada que estar ali, já que ninguém foi para aqueles lados, exceto a torcida visitante e gente querendo confusão.

Calum usou o controle remoto para mudar de canal. Alison olhou para a tela. A velha cheia de maquiagem na cara apresentando o jornal do almoço. Que estranho, geralmente ela apresenta o noturno.

– Com um tijolo na mão! Pronto pra jogar nas pessoas! – Derrick recorreu a Alison mais uma vez. Ela balançou a cabeça, reprovando, ainda que se divertisse de alguma forma inexplicável com a imagem do irmão segurando um tijolo no meio da rua.

Quando Calum olhou para o pai, Alison quase enxergou a zombaria silenciosa: era uma lasca de pedra, seu débil mental, não um tijolo!

Derrick deu de ombros, sacudindo a cabeça cansada. – Ele vai acabar no reformatório.

– Agora chamam de colégio interno. O nome é Polmont – informou Calum.

– Não banca o espertinho! Não me interessa o nome dessa merda, cê não vai se meter com esses “casuais” nesse jogo ou em nenhum outro!

– Não tô me metendo com ninguém. Tô tentando ouvir as notícias...

A atenção de Calum estava focada na imagem de um lugar que Alison reconheceu. Era o pub Grapes of Wrath, perto dos Bananas, onde Simon tinha se criado. Ela ouviu Mary Marquis falando ao fundo: – ... encabeçando uma nova campanha para evitar que os proprietários dos bares locais se tornem vítimas da violência.

Em seguida, apareceu a imagem de um velho, o dono do pub, sentado todo torto numa cadeira de rodas, babando por um canto da boca, falando que nem um asmático sobre como uns marginais tinham baixado a porrada nele e arrebentado com o boteco. Alison lembrava daquilo: correu o boato de que tinham sido três caras de Drylaw, mas nunca foram encontrados.

Corte para um policial carrancudo, Robert Toal, da Polícia de Lothian e Fronteiras. – Este é apenas um dos muitos casos preocupantes que vieram à tona recentemente, nos quais um membro respeitável da comunidade é brutalmente agredido e roubado em sua propriedade, em plena luz do dia. Neste caso, os ferimentos da vítima a deixaram inválida e incapaz de continuar trabalhando em seu negócio honesto. É triste que pessoas que prestam serviços à comunidade não estejam mais seguras nos próprios estabelecimentos. Infelizmente, negócios baseados em dinheiro vivo são extremamente vulneráveis a este tipo de ataque.

Corte de volta para o abatido e arrasado Dickson, declarando com pesar: – Eu só queria fazer o meu serviço...

Corte para uma tomada externa do rio Water of Leith, o sol cintilando na superfície proporcionando uma cena tranquila antes da câmera se erguer aos poucos na direção de uma fábrica sombria e abandonada numa das margens, evocando uma atmosfera ameaçadora em meio às ruínas e, por fim, voltando para Mary no estúdio. – Realmente, uma história triste – declara, solidária. – Mas agora vamos aos esportes, já que temos uma rodada do Campeonato Escocês nesta noite. Tom?

– Isso mesmo, Mary – disse um cara jovem e elegante usando terno –, e é o Hibernian de John Blackey que tem a tarefa nada invejável de tentar descarrilhar o vagão todo-poderoso do Aberdeen de Alex Ferguson. Mas se o comandante dos Hibs está ansioso disfarça muito bem...

Corte para Sloop, o cabelo ruivo que é sua marca registrada ficando levemente grisalho nas têmporas. Alison lembrou da vez em que ele foi ao colégio dela para entregar alguns prêmios numa olimpíada escolar. Ficou feliz com a matéria sobre os Hibs; assim pai e filho teriam uma trégua temporária.

Alison não conseguia entender esse negócio de “casuais”. Gastar dinheiro em roupas boas para depois rolar na sarjeta brigando parecia contraditório e soava perverso e autodestrutivo. O pai deles, após aprovar de início a elegância no jeito do filho se vestir, logo ficou zangado. Confessou que sempre que via os olhos de Calum piscando como os de uma garotinha atrás daquela franja idiota, aquilo o deixava puto. Dava vontade de pegar uma tesoura e cortar aquele cabelo. Aquilo tinha algo de insolente, segundo ele.

Mesmo assim, Calum e Mhairi passavam por uma espécie de inferno. Eram jovens e estavam furiosos e assustados. Não estou muito melhor, pensou Alison, pegando uma revista.

Quando a matéria sobre os Hibs chegou ao fim, Alison viu Derrick respirando fundo até chiar, sabendo que teria de voltar à tarefa desagradável de brigar com o filho. – Você não vai em jogo nenhum e fim de papo. Não quero que você se meta com esses... – escarrou a palavra – “casuais”.

– Mas só vou pro futebol com os meus parceros!

– Sim, como naquele dia em que peguei você com a pedra na mão. Sem chance. Você só tem 15 anos e ainda mora debaixo desse teto. Nossa, se sua mãe ainda estivesse aqui... – Derrick congelou, sentindo na mesma hora vontade de desdizer aquilo.

– Só que ela não tá! – Calum se levantou às pressas e saiu porta afora, subindo as escadas até o quarto.

Derrick gemeu baixinho o nome do filho, que se dissolveu num suspiro. Então se virou para Alison e encolheu os ombros, perplexo. – Não sei o que fazer com ele, Alison. Não sei mesmo.

– Vai ficar tudo bem. Só vai levar um tempo.

– Graças a Deus que você está bem – disse Derrick. – Você sempre foi uma menina madura e sensata – comentou ele, cheio de orgulho.

Você nem me conhece, porra, ela pensou, enquanto se ouvia protestar timidamente. – Papai...

– Sempre foi a inteligente. Sim, você assume o controle. Não corre da raia. Diferente do Calum e da Mhairi, que sempre acham tudo difícil. Eu tenho medo – Derrick sacudiu a cabeça – de que esse menino saia dos trilhos.

– Mas ele não tá fazendo as mesmas coisas que você fazia na idade dele? São novas roupas, novas gírias, uma música diferente, mas é tudo pose. No meio deles deve ter um psicopata destinado a se dar mal, mas pra cada um desses você encontra uma dúzia de rapazes normais que vão passar por tudo isso e sair do outro lado com algumas boas histórias pra contar, e nada mais.

Derrick sorriu para a filha, agradecido. – Você tem razão. Pareceu reconhecer a sabedoria nas palavras dela, mas em seguida sacudiu a cabeça. – Mas esse negócio não faz sentido; ele precisa ouvir isso de mim. Odeio admitir, mas ele não é tão forte quanto você ou eu. Ele tem alguma coisa de vítima.

Alison só conseguiu ficar olhando para o pai, sentado ali com seu roupão.

– O que estou querendo dizer – prosseguiu Derrick, frustrado e ajustando a roupa – é que isso faz dele uma presa fácil para os tipos menos escrupulosos; aqueles que sabem que quando a merda desanda é cada um por si.

– Você só está sendo paranoico.

– Não, porque sei muito bem quem vai ser o cara no meio de quinhentos outros que vai acabar preso no meio do tumulto e indo parar na cadeia por um tempo, ou que vai tropeçar, cair e ser pisoteado até se tornar um vegetal. Alguém precisa endireitar esse moleque!

Alison ficou se perguntando como o pai pretendia fazer aquilo, sentado ali com suas pantufas puídas e o roupão. Por que não tomava um banho e se vestia como antes, ao invés de passar todas as manhãs atirado no sofá daquele jeito?

A porta da frente se abriu e Mhairi entrou. Alison levou a irmã para a cozinha, ansiosa para fazer uma aliança e discutir o que devia ser feito a respeito dos homens da família. Para disfarçar, ligou o rádio que ficava na mesa da cozinha.

Enquanto Duran Duran tocava “The Reflex” e Alison contava sobre a discussão entre o pai e o irmão, percebeu que Mhairi não estava prestando atenção. Então a irmã pôs a mão sobre a boca e Alison se virou para ver Calum dependurado no cano que passava pelo lado de fora da cozinha, e em seguida dando um salto para cair no quintal dos fundos.

– Calum! – gritou, partindo em direção à porta dos fundos e vendo a silhueta do irmão diminuindo de tamanho e desaparecendo por trás das roupas penduradas no varal.

– O que foi? – perguntou Derrick aos gritos, aparecendo na porta.

– O Cal saiu de fininho e deu no pé – respondeu Mhairi com um sorriso no rosto.

– Hein...? Porra, eu avisei! – Derrick correu até a porta, mas quando se deu conta de que estava só de roupão parou abruptamente.

– Eu encontro ele – Alison interveio num tom mais condenatório do que pretendia, pegou a bolsa e saiu. Procurou o irmão em todos os quintais idênticos. Não havia nada além de roupas penduradas nos varais.

Calum devia ter escalado o muro do jardim e cruzado o matagal ao lado das casas. Como era um pouco cedo para ir até a Easter Road, Alison imaginou que o irmão deveria estar pelo Largo da Walk.

Avistou Calum logo em frente, conversando com Lizzie e Tommy Lawrence. Quando chegou mais perto, ele não fez nenhuma menção de se mexer.

– Oi, Ali – disse Lizzie, e em seguida Tommy.

– Opa.

– Cês vão no jogo? – perguntou Calum ao casal, ignorando a irmã. Lizzie olhou para ele e depois para Alison, como se Calum fosse retardado.

– Não. Hoje aquilo lá vai estar uma loucura. Cheio de marginais – disse Tommy, fazendo parecer que aquilo não era importante. – Melhor ficar bem longe daquele lugar por hoje, meu amigo.

– Foi o que papai disse. – Alison olhou para Calum.

– Não vou voltar pra casa – disse o irmão.

– Faz o que você quiser. Não sou sua carcereira – disse Alison, torcendo para que aquela manobra o fizesse criar juízo. Depois olhou para Tommy e Lizzie e indicou com a cabeça o café do outro lado da rua. – Tão a fim de tomar um café?

– Boa – disse Tommy. Alison não sabia se Calum iria com eles, mas ele foi. Entraram no café Up the Junction. Estava cheio, mas uma mesa estava livre e se espremeram ao redor dela.

Alison perguntava a Lizzie sobre o curso, enquanto Lizzie perguntava a ela sobre o trabalho. Ficou o tempo todo tentando ouvir a conversa entre Tommy e Calum para descobrir os planos do irmão. Será que estava mesmo envolvido com aquela gangue de hooligans?

– O Aberdeen está mesmo com um grande time – disse Tommy. – Leighton, McKimmie, Miller, McLeish, Simpson, Cooper, Strachan, Archibald, McGhee, Weir. É incrível o que eles conquistaram sob o comando do Alex Ferguson.

– Sim – concordou Calum, olhando meio acanhado para Lizzie. Ficou claro para Alison que o irmão tinha uma paixão devastadora por ela. – É uma bosta que eles estejam tão melhores que os Hibs.

– Mas não dá pra odiar os caras do mesmo jeito que a gente odeia o Rangers e o Celtic – Tommy argumentou –, porque eles chegaram lá honestamente, sem apelar pra retardados com toda aquela merda sectária, enfiando religião e política no meio da história.

– Sim – concordou Callum, assumindo por um momento um tom agudo constrangedor até ele tossir violentamente para se livrar do pigarro. – Eles fizeram bonito contra os dois times e conquistaram a Europa. Enquanto isso, o Hibs e o Hearts ficam indo e vindo de uma divisão pra outra que nem um ioiô!

– Vocês só sabem falar disso? – Alison olhou para Lizzie e sacudiu a cabeça. – Futebol?

– Tem outros motivos pra ir nos jogos, não é só futebol – respondeu Calum.

Alison quase disse alguma coisa, mas se segurou.

– Pelo menos as coisas estão melhorando lá na arquibancada. – Ele sorriu, parecendo jovem novamente, um garotinho bochechudo.

Tommy assentiu com a cabeça, concordando. – O rebaixamento faz bem para a moral de uma gangue. Man U, Chelsea, West Ham, Spurs, todas essas torcidas foram forjadas em meio à adversidade, por gente se defendendo de agressões dos outros. Isso fez bem pros Hearts; O Keezbo contou de viagens malucas pruns lugares tipo Dumfries. Tinha helicóptero da polícia circulando o Palmerston Park, a coisa toda.

– Sim, a queda ajudou a firmar a gangue de “casuais” do Hibs.

Alison sabia que Tommy só estava agradando seu irmão. Ele era sensível demais para se associar com essa gente, ou mesmo ao velhos parceros da YLT. Dava para perceber que estava vislumbrando um futuro com Lizzie. Ela estava conversando com a mina atrás do balcão, que Alison reconheceu como ex-aluna da Leith Academy. Tommy se levantou e tomou o rumo do banheiro. Alison aproveitou a oportunidade. Olhou para Calum, implorando. – Vamos pra casa. A gente aluga um vídeo. Você, eu e a Mhairi. Vamos dar risada e falar merda.

– Não tenho nenhum motivo pra rir, e ficar falando toda a merda do mundo não vai mudar nada – retrucou Calum, se recostando na cadeira. Quando ele flexionou o corpo magro e rijo, Alison percebeu que o irmão tinha ficado bem mais forte do que ela. Agora meu irmãozinho poderia me dar uma surra, reconheceu. Quando isso tinha acontecido? – O papai não quer que você...

– Ele não vai fazer nada, e você também não – desafiou Calum com uma expressão de desdém, e depois se levantou e sacudiu a cabeça com um sorriso amargo nos lábios.

Tommy voltou do banheiro e trocou algumas palavras com o garoto, já de saída. Alison viu Calum disparando porta afora e correndo pela rua como se tivesse acabado de receber um bastão de revezamento de Tommy Lawrence.

Lizzie voltou a se juntar a eles na mesa. – Tudo bem com ele?

– Ele tem andado meio doido, pra dizer o mínimo, desde que minha mãe faleceu – disse Alison.

– Ele vai ficar bem – respondeu Tommy, confiante. – O Calum é gente boa.

– É, sim – suspirou Alison. – E vocês, o que vão fazer?

– Vamos ver Indiana Jones e o Templo da Perdição – disse Lizzie.

– Foi ela que escolheu. – Tommy não perdeu tempo em afirmar. Alison concluiu que ele fez isso porque mais de uma pessoa havia mencionado que ele era meio parecido com Harrison Ford. Sentiu inveja do casal, sentados juntos num cinema quentinho, o amor germinando naquela estufa escura. Um sorriso aqui, um beijo ali, uma mão dada e os dedos se entrelaçando quando Harrison estalava o chicote na tela. Pensou em ligar para Alexander e depois sentiu vontade que Simon estivesse ali. Queria perguntar a Tommy se tinha alguma notícia dele, mas alguma coisa a impediu. Sua relação com Simon era aberta e praticamente clandestina. De uma hora para a outra parecia uma bobagem se comparada com o que Tommy e Lizzie tinham. As mãos dadas. O jeito que olhavam um para o outro...

Indisposta a continuar segurando vela, Alison se despediu do casal, caminhou até o rio e se sentou num banco. O sol começava a se pôr atrás dos armazéns à sua frente e às vezes alguém passava com um cachorro pelo calçadão. Alison estava com o livro de poesia na bolsa e o tirou de lá para dar uma folheada.

O livro parecia não ter mais sentido. Não se podia reduzir a vida real à palavra escrita, e mesmo a palavra falada e nossas interações com os outros pareciam apenas uma espécie de encenação para nos distrair. Largou o livro e deitou o olhar sobre o rio escuro e tranquilo. Aquilo era a vida real, estar sozinha com os próprios pensamentos, perdida nas próprias lembranças.

Mal o tinha percebido se aproximando. Quando o notou, primeiro ele se mostrou hesitante para logo se revelar mais destemido ao sentar com tudo no banco, quase colado nela. – É bom esse livro?

Alison estava distraída demais para se levantar e ir embora imediatamente. Ao invés disso, olhou para ele. Era jovem; muito mais jovem do que ela, apenas um garoto. Tinha um rosto abusado, com olhos espertos que a observavam sob uma enorme franja. – Mais ou menos.

– Cê é a irmã mais velha do Calum, né?

– Sim. Cê conhece meu irmão?

– Sim. Tipo, meus pêsames pela sua mãe.

– Valeu.

– É uma bosta, né? Minha mãe morreu dois anos atrás. Agora eu moro com a minha tia.

– Meus pêsames... – disse Alison, e então concordou: – Cê tem razão. É uma bosta. – Ia acrescentar que isso era pra dizer o mínimo, mas a Kelly tinha chamado a atenção dela, meio brincando, porque ela falava isso demais. Percebeu que ele estava mascando alguma coisa, e ele percebeu que ela tinha notado e ofereceu um chiclete, que ela aceitou. Inclinada a retribuir de alguma forma, deu um cigarro a ele.

– Eu tava indo pra Easter Road, mas perdi a vontade. Tava mais a fim de dar uma caminhadinha – explicou ele, se inclinando para que ela acendesse o cigarro. – Qual é o seu nome?

– Alison.

Ele estendeu a mão e Alison devolveu o gesto sem pensar. – Bobby. – Ele meneou a cabeça, se levantou e soltou a fumaça de um jeito meio esquisito. – Cê é uma mina excelente, Alison – disse ele de um jeito meio triste. – Queria ter uma irmã que nem você. – E então deu um breve aceno e saiu pelo calçadão. Segurava o cigarro de um jeito estranho, como se não fosse fumante. Alison ficou assistindo ele se afastar, o tempo todo se perguntando como aquele garotinho idiota a tinha abandonado num banco às margens do rio, com o coração em ruínas.

Tinha esfriado perto da água, mas Alison ficou sentada ali por séculos, até começar a ser importunada por bêbados e pervertidos atrás de dinheiro e sexo. Um homem bem idoso e delicado passou por ela de andador, avançando muito lento, e perguntou sem hesitar: – Que buceta a gente precisa lamber pra arranjar um boquete por aqui?

Estava na hora de ir.

Ao cruzar a Constitution Street, Alison chegou na esquina do Largo da Walk. Ela o viu logo de cara, sentado no banco aos pés da estátua da Rainha Vitória, imóvel e quieto. Era como se estivesse esperando a hora do fechamento pra encher de porrada o primeiro corno metido a besta que aparecesse na sua frente. – Frank. E aí?

Ele ficou olhando enquanto Alison sentava ao seu lado, apertando os olhos para enxergar melhor. Dava para sentir o cheiro de bebida, mas seus movimentos e pensamentos pareciam premeditados, tudo executado de forma deliberada; estava se agarrando a uma espécie de sobriedade através do exercício da força de vontade. Precisou de alguns segundos para responder: – Tudo bem. Meus pêsame pela sua mãe e tal.

– Valeu. – Alison esticou as pernas, olhando para as peles no acabamento das botas. Depois olhou para cima. O halo da lua cheia cintilava sobre eles, abrindo as camadas do céu pesado e enevoado e criando sombras curiosas. A Rainha Vitória assomava sobre os dois, oferecendo proteção parcial da luz de um poste. – Onde cê tava?

– No Dockers’ Club. Ainda tem um pessoal por lá. – Frank Begbie olhou de relance para a Constitution Street. – Só fui embora porque tinha uns corno torrando a porra do meu saco. Um monte de gente foi pra lá depois do jogo e se afundou no trago. Eu queria subir pra cidade, mas eles ficaram tudo ali sentado. Tudo bancando os grã-fino da bandidagem, se achando especial demais pra sair na porrada com uns folgado! Ainda mais o Nelly com aquela porra de Davie Power isso, Davie Power aquilo!

Alison conseguia imaginar todos eles sentados numa mesa redonda no bar; os movimentos calculados, a conversinha de malandro. Não era de se admirar que Tommy não estivesse mais naquela. Não era de se admirar que Simon e Mark tivessem se mudado para Londres. Sob a luz amarelada do poste, pensou mais uma vez em Calum: viu o que o seu irmão mais novo, cabeça de vento e desengonçado, poderia vir a se tornar. Queria perguntar a Franco sobre o jogo, saber se tinha havido alguma confusão.

– Quase arrebentei um copo na cara daquele viado – rosnou Francis Begbie –, mas vim um pouco aqui fora pra tomar um ar e clarear as ideia, né? É, tá tudo mudado. Porra, nunca mais vi o Rents ou o Sick Boy. Nem sei onde tá o Spud. Todo mundo se meteu com essa merda de heroína. O Tommy nem apareceu no jogo, porra.

Enquanto Franco vomitava sua amarga ladainha de queixumes o ar parecia ficar aos poucos mais pesado, como uma queda barométrica antes de uma tempestade. Alison sentiu suas entranhas se retorcerem.

– Foi Londres que arruinou com esses cara, tipo o Rents e o Sick Boy – declarou Begbie. – Esses dois tavam bem até irem pro sul; não tinham frescura. Aquele viadinho que eles trouxeram pra cá é legal, não tenho nada contra ele, mas foi Londres que fodeu com a cabeça desses cara.

Era uma besteirada sem limites, mas Alison não estava com vontade de discutir. Malucos. Como conseguem ficar nessa? Manter os níveis de energia necessários para alimentar tanta raiva e indignação? Será que nunca ficam cansados?

– Dava pro cara se divertir com o Rents e o Sick Boy e tal. O Nelly e o Saybo e esses corno não entendem meu senso de humor – prosseguiu Begbie, tristonho. Então lançou um olhar grave para Alison. – A June perdeu o pirralho.

– Oh... eu sinto muito, Franco. Coitada da June... eu nem sabia que ela... faz quanto tempo... ela tá legal?

– Sim, claro que tá. – Franco encarou Alison como se ela fosse louca, e explicou: – Quem não tá bem é o pirralho, ela tá bem pra caralho. – Acendeu um cigarro e depois, pensando melhor, ofereceu um para Alison. Ela hesitou por um segundo, pegou o cigarro e se inclinou para que Begbie o acendesse. Franco deu uma tragada, encheu os pulmões de fumaça e se recostou no banco. – Tudo que ela tinha que fazer era segurar o negócio dentro dela, mas nem isso conseguiu fazer! É uma imprestável de merda. Pra mim essa porra aí é assassinato, ou pelo menos como se fosse um assassinato; morreu de tanta bebida, de tanto cigarro! Falei isso pra ela, que fez uma cara de choro e me mostrou aquela coisa meio marrom meio vermelha na porra da calcinha. Peguei aquela merda e esfreguei nas fuça dela. Falei que ela era a culpada: que era uma assassina fiadaputa!

Alison ficou olhando para Bebgie sem acreditar.

– É, peguei ela fumando um cigarro semana passada. Quem garante que não foi isso que fez ele sair antes da hora, caralho?

Alison sentiu um suspiro incrédulo escapar. – Não é assim que funciona, Frank. Isso é uma coisa terrível pruma menina. Ninguém sabe por que acontece.

– Eu sei! Pode apostar que eu sei; acontece por causa do cigarro! Acontece por causa da bebida! – ele gemeu, os dedos amarelos e marrons apontando com o cigarro para a Walk. De repente Begbie sacudiu a cabeça com um vigor implausível, lembrando a Alison um cachorro emergindo de dentro do mar. – Talvez essa porra tenha sido o melhor que podia ter acontecido, porque, se ela tá fudida desse jeito agora, que tipo de mãe de merda ela ia ser quando o pirralho nascesse? Hein?

– Não é culpa dela, Frank. A June deve estar em frangalhos. Cê devia ir pra casa e consolar ela.

– Não sou bom nessas merda. – Ele sacudiu a cabeça.

– Vai lá e fica com ela, Frank, ela vai gostar.

Por um segundo, Alison quase se pegou imaginando que o reflexo borrado da lâmpada de sódio fosse uma lágrima no olho de Franco. Mas quem chorava era ela. Então ele disse, frio e convicto: – Não. Isso é problema dela. Ela tem as amiga e as irmã dela pra lidar com essas merda. Alison se levantou. Com o tempo, tinha passado a acreditar que sofrimento gerava apenas mais sofrimento. Só restava o consolo, a única coisa que podíamos oferecer uns aos outros. Ainda assim a mão dela, pairando sobre o ombro forte de Franco, não chegou a pousar. Alison percebeu que os dois estavam destinados às próprias dores e sentiu alívio por ter reconhecido isso. – Beleza, Frank. Se cuida, a gente se vê.

– É, a gente se vê.

E Alison saiu marchando pela Walk, anestesiada demais para sentir o frio queimando. Conseguia ver as luzes e ouvir seus pés esmagando o gelo da primavera enquanto procurava pelo ônibus noturno que a levaria até Tollcross e à casa de Johnny Swan. Mais perto ainda estavam Pilrig e a morfina de sua mãe morta. Havia se apropriado dela por instinto, sem perder tempo, dizendo ao pai que levaria a droga de volta ao hospital e que a amiga Rachel, enfermeira, saberia o que fazer com aquilo. Para a mente agradecida e confusa de Derrick tinha sido apenas mais uma das tarefas realizada pela filha, assim como registrar o óbito, agendar o crematório, reservar o Dockers’ Club, organizar o bufê, publicar o aviso de falecimento e o anúncio do funeral no Evening News, entregar as roupas da mãe para a instituição beneficente.

A Walk se enchia de bêbados cantando e uivando ao sair dos pubs. Então, de alguma distância às suas costas, Alison ouviu vidro se estilhaçando e uma gritaria, seguidos por uma terrível calmaria no ar, quebrada drasticamente por gritos que mais pareciam animalescos do que humanos. Alison seguiu em frente, sabendo quem deveria ser o responsável. Ainda assim, a cada passo de sua jornada para casa sentiu a opressão do espírito atormentado e malévolo de Begbie. Em sua psicose pessoal de perda, a voz do diabo era a dele, e permeava todos os outros sons; os carros rangendo pela rua, as árvores sem folhas sendo agitadas pelo vento, as gargalhadas das garotas bêbadas, os gritos dos homens entrando e saindo dos bares. O cérebro de Alison estava embotado pelo remorso, grudado como pó de anfetamina sujo e úmido num papelote. Pensou na dor de June, na caveira da mãe e nas mulheres do grupo de poesia, aquelas meninas que pareciam ter se formado numa escola de etiqueta para moças de algum planeta distante. Transar com Simon, com Alexander, e depois com aquele cara que conheceu uma noite no Bandwagon. Andy? Não, Adam. Por um segundo teve a impressão de que bastaria fechar os olhos para que algo como um padrão, algum esboço de ordem, talvez se insinuasse, mas estava assustada demais para tentar.

Emergindo da escuridão, um carro da polícia com a sirene ligada, seguindo pelo irmão maior, uma ambulância, passou por ela a toda velocidade.


OCEANO


Lobos do mar

1. Inspeção alfandegária

Sick Boy, de mochila nas costas, percebe que o amigo Renton é mesmo um viciado esquelético; que até mesmo Spud ou Matty agora parecem mais apresentáveis. Cruzando com pressa o recinto muito iluminado da alfândega, todas as moléculas do corpo de Sick Boy gritam: não conheço esse cara. O ar está abafado de tanto suor azedo, que é ampliado ao invés de disfarçado pelo cheiro de desodorantes baratos e insalubres. O funcionário atarracado, com uma teia de aranha tatuada em uma das mãos, dá uma tragada no cigarro, fingindo desinteresse, mas Sick Boy percebeu que está de olho neles. Será preciso cruzar esse portão todos os dias, e, se Marriott levar a melhor, às vezes fazer isso com um pacote considerável de drogas pertencentes à Categoria A, considerada a mais perigosa de todas pelo governo, suando dentro da cueca.

Nicksy, carregando uma sacola de viagem de courino, espelha o declínio de Sick Boy. Está conversando com Marriot, mas com o olhar fixo no filete de saliva que escorre da boca deste último e desce pelo queixo. Nicksy está petrificado pelo horror desse dilema particular; se tiver que passar por aquilo por mais um segundo, sente que a morte sem dúvida virá em seguida, mas caso se afaste nunca mais trabalhará nesta cidade, por pior que ela seja.

Na ocasião, Renton, com duas sacolas plásticas de supermercado, é o único a ser parado e revistado. Abre um sorriso bobo e nervoso enquanto os funcionários da alfândega, com cara de poucos amigos, dispõem cuecas e camisetas desbotadas sobre uma mesa de inspeção. Enquanto isso, seu estoque particular de heroína pega fogo no interior dos tênis. Na última hora, teve a sorte de resolver deixar a seringa e o resto do material em casa, e agradece com um meneio de cabeça sem jeito quando o funcionário faz um gesto para que ele siga em frente. Nicksy está bem adiante, e não olha para trás.

Saem da área da alfândega, passando por portas de vidro que os levam até o cais, onde são açoitados com violência por uma intensa ventania. Nuvens inchadas e cor de ardósia absorvem toda a luz do céu enquanto eles sobem a prancha para embarcar no navio branco rebatizado como The Freedom of Choice após a privatização, abandonando o antigo nome, The Arms Across the Sea.

Embora imponente o bastante pelo lado de fora, o interior da embarcação parece um aglomerado sem graça de conveses, cabines e escadas pintados de verde e branco. Manobrando através de uma série de portas de vaivém, chegam enfim a uma escadaria apavorante, descendo cada vez mais fundo na direção dos alojamentos.

Renton inspeciona o caixão estreito na cabine que terá de dividir com Nicksy (garantindo que o amigo londrino fique na cama debaixo do beliche, pois notou em sua persona algo de quem urina na cama) e fica louco para dormir. Mas todos são imediatamente levados de volta pela mesma escadaria até um convés – suando, pulmões lutando em busca de ar, panturrilhas em chamas – para uma admissão potencialmente torturante. Ali recebem sacolas de viagem azuis, razoavelmente elegantes, com o logotipo da Sealink. Cada uma delas contém um colete vermelho e, dependendo do gênero do “agente”, uma gravata ou lenço, ambos de seda, e duas camisas ou duas blusas. (Na era pós-privatização e sem sindicato, todos são “agentes” ao invés de “comissários”. Agentes recebem menos.) O supervisor, um homem baixo e magro de óculos e cerca de 30 anos de idade, com um corte de cabelo impecável em estilo Beatle e camisa creme resplandecente, informa ao grupo de uma dúzia de novos recrutas que a responsabilidade pela lavagem do uniforme recebido é inteiramente deles e que devem atentar para que estejam sempre usando uma muda limpa. – A importância disso é absoluta – sibila o supervisor que foi instantaneamente batizado de Camisa Creme, encarando Sick Boy, postado nos fundos do agrupamento com Renton e Nicksy. – Fui claro?

– Afirmativo – responde Sick Boy em voz alta, fazendo os outros recrutas virarem a cabeça para trás. – Um navio precisa de águas limpas para navegar.

Camisa Creme olha para Sick Boy como se estivesse se sentindo ridicularizado, então pensa que talvez não seja o caso e deixa por isso mesmo, acompanhando o grupo por um tour da embarcação. Renton e Sick Boy reconhecem ao mesmo tempo a garota com o cabelão da entrevista. – A única mina mais ou menos decente à disposição – comenta Sick Boy com Renton, desenhoso. – Aquelas gordas que parecem a Pauline Quirke sorriram pra mim – continua, e indica duas mulheres caminhando reservadas bem perto deles –, mas sinto muito, garotas, o destino de vocês é suar na cozinha, e não na cama!

Renton dá uma olhada rápida e pensa que uma delas até parece interessante, e então devolve os olhos à posição original. – Tá sentindo um cheiro de pata?

– Deixa de ser imaturo e sexista. Só porque uma mina teve filhos, não quer dizer que não sirva mais pra nada – zomba Sick Boy.

Renton decide ignorar o comentário. – Aquela doçurinha – lambe os lábios, olhando mais uma vez para a garota de cabelão, girando os olhos de um jeito malicioso que Sick Boy quase chega a apreciar – é maravilhosa – sussurra, enquanto sobem outro lance estreito de escadas.

– É aceitável, Renton, não maravilhosa. – Sick Boy enche o peito de ar mais uma vez, torcendo para que alguma coisa chegue às suas pernas.

– Vai se foder. Olha esse cabelo de Robert Plant – diz Renton, enquanto os novatos se espalham no convés seguinte. Avista Nicksy coçando uma das orelhas, que está muito vermelha, mas não consegue enxergar Marriott em lugar nenhum.

– Você é um jovem bastante perturbado, sr. Renton. Ao invés de Robert Plant, eu preferiria pensar em Farrah Fawcett-Majors – comenta Sick Boy, enquanto Camisa Creme, segurando uma prancheta, dá uma olhada na direção deles. Está começando seu discurso e, por conta da concorrência que vem dos fundos, aumenta a voz em um decibel, marcando ambos como encrenqueiros em potencial. – Então, quando soar o alarme, todos temos de agir inteiramente de acordo com nossos deveres de evacuação.

– Sim – Renton cutuca Sick Boy –, mas de qualquer jeito é um cabelo sensacional. Além disso, Farrah Fawcett-Majors que se foda: Kate Jackson é a Pantera mais gostosa. Aquela voz rouca...

Sick Boy olha para Camisa Creme, que continua soprando ar quente comprimido pelos lábios finos e apertadinhos que devem fazer dele um sucesso na veadolândia, agora choramingando sobre o que fazer se o navio afundar. Que se foda essa merda, se acontecer um negócio desses, cê corre pro barco salva-vidas mais próximo dando cotoveladas em todos os cornos que aparecerem pela frente. Chega mais perto de Renton. – Estamos falando de mulher, Rents. Uma mulher sensual. Podemos debater Fawcett-Majors versus Jackson, ou Plant versus Page, mas a analogia que você usou nesse contexto foi perturbadoramente homossexual. Você está ficando curioso por estar neste barco, Rent Boy? – pergunta, enquanto Camisa Creme fica rígido e mais uma vez aumenta o volume. – ... para saber exatamente onde cada central de evacuação está situada...

– Vai tomar no cu, seu pau seria o último que eu chuparia – diz Renton, e a Garota do Cabelão escuta e coloca a mão na frente da boca para abafar uma risadinha.

– Pode ser o último, mas ainda assim percebo que você não desconsiderou a ideia. E isso meio que me dá razão, não acha?

– Foi modo de dizer, seu filho da puta – sussurra Renton. – Pode apostar que desconsidero essa ideia, 100%.

A Garota do Cabelão volta a olhar para trás, agora dando uma conferida nos dois, forçando Camisa Creme a erguer a voz mais uma vez... – ... pelo Decreto de Saúde e Segurança no Trabalho de 1974...

– Folgo em saber – responde Sick Boy a Renton.

– Pelo tom parece até que ficou magoado.

– Ah, meu Deus – diz Sick Boy, sarcástico. – Entenda o meu lado. Eu sempre quis olhar pro seu cabelo mal pintado com raízes ruivas enquanto seus dentes podres raspam nas minhas bolas. É uma fantasia que tenho desde molequinho. Agora sei que isso nunca vai acontecer. Buá! Que tristeza.

O tom de indignação fica mais intenso nessa última resposta, arrancando gargalhadas de mais novatos, e Camisa Creme perde de vez a paciência. – Talvez... – ele olha para Sick Boy de um jeito que este último teme ser quase policialesco, e então volta a olhar para a lista – Simon... não se importe de compartilhar a piadinha conosco? Visto que pelo jeito é mais importante que nossa saúde e nossa segurança neste navio!

– Não era uma piada, hã... Martin – o pretenso homem renascentista escoto-italiano subitamente se recorda do nome informado pelo supervisor ao se apresentar –, eu só estava comentando com meu amigo que, na qualidade de filho de uma comunidade dedicada à navegação, cuja família se lançou ao oceano ao longo de gerações em atividades baleeiras, pesqueiras e mercantis, fico imensamente satisfeito em ter recebido essa oportunidade da Sealink.

A expressão de Camisa Creme indica que, mais uma vez, ele suspeita estar sendo alvo de zombaria. Sick Boy, contudo, permanece tão impassível que o supervisor acaba se comovendo. – Obrigado, Simon... pode não ser o melhor emprego do mundo – declara, emocionado –, mas também não é o pior. Mas esta parte da apresentação é especialmente importante. Então insisto que todos devem dedicar a ela o máximo de atenção.

– Entendo, Martin, deixei me levar pelo entusiasmo. – Sorri, meigo. – Por favor, aceite minhas humildes desculpas.

Camisa Creme abre um breve sorriso desinibido que revira as entranhas de Sick Boy, que em seguida absorve a admiração sussurrada de Renton. – Essa foi clássica, especialmente o uso de “mercantil” no lugar de “mercante”. Vou anotar!

Nicksy se aproxima de Renton querendo saber o sentido da vida. – Qual a moral disso tudo, hein, Mark?

Uma boa pergunta, pensa Renton, enquanto Camisa Creme segue tagarelando. – ... o decreto foi pensado como um dispositivo de habilitação. Sua meta é colocar a responsabilidade pela saúde e segurança no trabalho sobre cada um dos empregados. Assim, todos nós somos de algum modo funcionários de saúde e segurança, com a responsabilidade de...

Todo mundo precisa se responsabilizar, ele lembrou de seu pai falando a respeito do Pequeno Davie. O baque da intransigência da morte ressoa no peito de Renton: ele sabe que nunca mais vai ver ou ouvir o irmão. Engole uma bola que não está em sua garganta: você já estava morto fazia tempo, como diz o velho ditado.

Lembrar do Pequeno Davie o faz pensar no Giro. O cachorro começou a latir durante a noite; um som agudo, de ritmo estranho, que traz à memória a tosse do Pequeno Davie. Um barulho que assumiu o lugar do outro como fonte de algo além de qualquer tortura para Renton, uma espécie de certificação peculiar. Agora ele é o único que sai da cama no escuro para botar comida na tigela do cachorrinho. Uma noite se deu conta que Giro andava comendo os papelotes de anfetamina na mesinha de centro. – Morar com a gente não faz bem pra você, carinha – disse, triste, lamentando estar ficando tão apegado ao animal. Renton admirava o modo como Giro conseguia simplesmente acordar; nada de lavar o rosto, escovar os dentes, se vestir. Num instante, estava pronto para sair e ir até o parque. E amava a atenção que recebia das garotas de London Fields por causa do cachorro. Ai que amoooor!

Vou acabar comendo alguém por causa desse cachorro, mesmo eu sendo quem sou.

Mas Nicksy continua incomodando. – Qual é a moral de estar aqui, Mark? Assim... sério mesmo?

Mas que porra esse corno sabe sobre o sentido da vida?, pensa Renton, agora enxergando Marriott, que está imóvel com as mãos sobrepostas na frente do corpo.

– ... então a primeira coisa de que precisamos – Camisa Creme segue dizendo, desesperado para obter a atenção de uma dúzia de pares de olhos – são dois voluntários para serem os responsáveis oficiais pela saúde e segurança... com base no fato de que um voluntário vale por dois homens forçados... ou mulheres, é claro – ele passa os olhos pelos rostos sem expressão – ... então, por favor, peço a quem estiver interessado que levante a mão...

Todas as mãos permanecem decididamente abaixadas, e a maioria das cabeças se abaixa para contemplar o verde da pintura do piso metálico do convés. – Vamos – implora Camisa Creme, consternado. – É saúde e segurança! Interessa a todos nós!

Mesmo assim, ninguém se apresenta: exceto uma série de olhares de soslaio. De cara feia e sacudindo a cabeça com amargura, Camisa Creme consulta a prancheta e volta a analisar o grupo.

Renton agora aceita que está bem nervoso. Precisa de alguma coisa.

Felizmente, Camisa Creme escolheu arbitrariamente para os cargos de saúde e segurança um rapaz com olhos que não param de piscar e cicatrizes de espinhas que mais parecem crateras lunares e uma das coxudas saidinhas de Sick Boy, encerrando a conversa para alívio de todos. Um outro supervisor se aproxima devagarinho de Camisa Creme e dá uma risadinha aguda e estapafúrdia. – Agora, se fizerem o favor de se dirigirem às cabines e vestirem os uniformes, nos reuniremos na cantina em vinte minutos, e todos serão destinados aos seus locais de trabalho.

Saem dali, e Renton se demora por alguns segundos para tentar conversar com a Garota do Cabelão, mas como a atenção dela foi capturada pelo outro supervisor, que ele batizou de Blusa Bege, acaba descendo para os aposentos da tripulação nas entranhas do navio. Quando chega na cabine, Nicksy já está ali, com a sacola da Sealink aos seus pés, vestindo o uniforme. – Tudo bem, cara?

– Na verdade não, parcero – responde Nicksy, e veste o corpo franzino com a camisa creme, abotoando até em cima e ajustando o elástico da gravata-borboleta para ficar mais confortável, e em seguida põe o colete, que é grande demais e fica meio comprido. – A gente se vê na cantina.

– Certo.... – Renton decide pegar pesado. Deixa a heroína para trás, comprimida no interior dos tênis, e pega um pouco de anfetamina de uma embalagem no bolsinho do jeans. É a única maneira de vencer aquele turno. Assim que começa a fazer efeito, Renton toma o rumo da cantina para se encontrar com os outros. Está se sentindo péssimo, como se estivesse tentando tapar o sol com a peneira, a anfetamina de certo modo tornando mais agudas as dores da abstinência de heroína, mas ao mesmo tempo com a mente distraída pela energia frenética.

A agressividade da anfetamina faz com que ele avance insolente por uma série de portas de vaivém até chegar na área do refeitório reservada à tripulação. A sorte de fato favorece os corajosos, pois fica claro que as indicações na lista deram a Camisa Creme a impressão de que Renton está na equipe de Blusa Bege, enquanto Blusa Bege parece convencido do contrário. Sem nenhuma intenção de corrigir qualquer ano, tanto dos supervisores quanto da lista, Renton opta por permanecer não listado, decidindo que vai caminhar pelo navio como um fantasma.

Uma fila se formou para pegar comida. Renton não está com fome, mas a sopa de lentilha oferecida parece comestível e ele sente que deve tentar comer alguma coisa. Implica com o chef, todo orgulhoso e rígido como um soldado dentro do uniforme branco com chapéu de cozinheiro. – Beleza, menino das panelas? – saúda, jogando para a torcida, a energia tóxica da anfetamina ampliada ainda mais pelos gritinhos efusivos das bichas, a risada incentivadora dos malandros e um delicioso sorriso da Garota do Cabelão.

Chef permanece impassível: óculos grossos, de armação preta, e manchas de pele no pescoço, um vulcão ardendo lentamente no interior de linho branco engomado. Renton percebe de repente, mesmo em meio à arrogância despertada pela droga, que essa insolência pode ser um erro. Isso se confirma quando um comissário de bordo inglês, homossexual e veterano no navio, cicia: – Não fode com o Chef, parcero, ele não brinca em serviço.

É uma construção que Renton nunca tinha ouvido; não fode com o Chef.

Nicksy sumiu e Renton não consegue encontrar Sick Boy, e como a bela garotinha Fawcett-Plant está conversando com uma das coxudas ele decide deixar a sopa para lá e dar início à perambulação para sair do alcance do olhar frio e perigoso de Chef. Enquanto vai saindo, escuta ele vociferando para um auxiliar de cozinha: – Quem é aquele escocesinho folgado?

Enquanto sobe uma escadaria, Nicksy sente o peso da própria respiração dentro dos pulmões. Chegando no alto, olha para o mar através das vigias das portas de vaivém. A tripulação está nos conveses, aguardando o embarque de veículos e passageiros a pé. Nicksy espia a figura arruinada e cadavérica de Marriott apoiado no parapeito, fumando um cigarro, fitando a cena com olhos chamejantes. Sua linha de visão revela Sick Boy conversando com a mina do cabelão loiro. Analisando os peitos pequenos, as formas esbeltas mas curvilíneas e todo aquele cabelo esvoaçante, Nicksy pensa: gostosa, mas sem o menor sinal de luxúria descontrolada.

– Tem haxixe? – pergunta Sick Boy a ela.

– Um pouquinho – responde ela, enquanto os primeiros carros passam pela rampa e passageiros a pé avançam ansiosos pelo passadiço torcendo inutilmente para que o bar já esteja aberto.

Sick Boy entreouve Camisa Creme dizendo a um capanga lânguido: – É isso que sempre me pega de jeito. – E então mostra a cena com um gesto amplo enquanto observa os passageiros surgirem. – É isso que faz eu me dar conta de porque estou aqui.

Sick Boy encara os passageiros e decide que já odeia todos eles. Então uma cantoria se faz ouvir – “Man-ches-ter, na na na” – enquanto uma gangue de jovens branquelos e empertigados mais ou menos da mesma idade que ele surge no convés. Sick Boy se vira para a garota do cabelo. – Nesse caso vou ter de passar na sua cabine mais tarde. Não consigo dormir sem fumar um.

– Tudo bem – diz ela, virando a cabeça de leve para demonstrar que tinha ouvido a cantoria. – Meu nome é Charlene.

– Simon – diz Sick Boy, meneando a cabeça.

Camisa Creme guincha instruções para a equipe de recepção enquanto o público de viajantes ingleses vai tomando conta do navio. Nicksy se afasta, subindo mais um lance de degraus metálicos até o convés superior. Depois de um tempo, soa uma sirene que mais parece um peido, acompanhada logo em seguida por um rugido e um sacolejo quando o motor do navio dá a partida. O barco deixa o porto devagar, ganhando velocidade e sendo seguido por gaivotadas empolgadas quando chega ao mar aberto. Então Nicksy percebe os passos às suas costas, seguidos de um grito: – Nicksy, seu viado!

Quando se vira, enxerga a franja sacolejante de Billy Gilbert, velho parcero de West Ham, vestido com uma jaqueta Adidas marrom e creme. Ele se destaca num grupo de rapazes que marcham pelo convés em sua direção. Todos têm o mesmo olhar alerta e vigilante, como galgos dentro de gaiolas esperando que as portas se abram de repente e o coelho mecânico saia zunindo pelos trilhos. Billy confere o uniforme de Nicksy. – Bela roupa, parcero. Dá até pra chamar de alta-costura.

Risadas por todo lado enquanto Nicksy enxerga outro amigo de Ilford, Paul Smort, e mais alguns rostos conhecidos. Não sabe o que está acontecendo. – Que porra é essa?

– Caramba, Nicks, você está nervoso. Não está sendo bem tratado aqui no Titanic?

Nicksy enche os pulmões de ar e força um sorriso. – Pois é, Bill, desculpa, até que não é nada mal; é um trabalho até decente.

– Depois você vai pro jogo?

– Tava pensando em ir – Nicksy mente. Ainda que tivesse lido uma matéria no Standard a respeito da partida, acho que o primeiro jogo pela Copa da UEFA seria no Upton Park. – Se eu conseguir sair a tempo depois desse turno de trabalho.

– Legal, então a gente se vê no Bulldog – responde Billy, e então dá uma boa olhada ao redor, como se estivesse esperando por uma emboscada. – Ouvi falar que tem muitos torcedores do Man U nessa merda de barco.

– Não tô sabendo de nada. Você tá pensando em mandar todo mundo de volta pra Surrey, é isso?

– Agora você me deu uma boa ideia. – Billy dá risada.

Um garoto de rosto muito branco e franjinha, vestido com uma camisa de Sergio Tacchini, aparece correndo na direção deles, bem ansioso, e guincha: – Tem um monte de torcedores do Man U no bar, lá embaixo!

E daí a gangue se afasta, descendo os degraus e passando apressados por Sick Boy, Camisa Creme e outros membros da tripulação que vêm subindo, enquanto Nicksy não perde tempo e toma outro rumo.

– Esses podem causar problemas – diz Camisa Creme. – Simon, será que você e seus amigos.... – Dá uma olhada na prancheta. – Mark e Brian podiam vir comigo? Onde eles estão?

Sick Boy se dá conta que tanto Rents quanto Nicksy, assim como os responsáveis oficiais por saúde e segurança designados por Camisa Creme, sumiram. – Não tenho certeza.

– A primeira viagem da temporada e o lugar já está cheio de hooligans. – Camisa Creme está injuriado. – Vamos ficar de olho neles e manter todos bem calminhos.

– Hã, tá bom... – responde Sick Boy, relutante. Está bem claro que Camisa Creme ficou encantado por ele. Sick Boy ainda não sabe ao certo como se aproveitar disso, mas está muito intrigado com a chance de poder fazer isso.

No convés, Nicksy topa com uma mulher de braços carnudos vestida com uma jaqueta de retalhos sem mangas. Parece aflita, e diz a ele que se perdeu da filha. – Vem comigo, minha querida, vamos encontrá-la – diz ele, e a tira dali.

2. Atribuições razoáveis

Admito que gosto um pouquinho demais de heroína pro meu próprio bem, mas alguma coisa aconteceu dentro da cabeça laranja do Renton. Ele é constrangedor com aquele nariz sempre escorrendo e a voz metálica e anasalada que parece ter adotado; ele sugaria o mijo da virilha de um mendigo bêbado se achasse que conseguiria ficar chapado com isso. Tá se escondendo; dá pra sacar direitinho. Do quê? Do que mais seria, senão dos próprios medos? Do seu maior medo? Que o gene retardado que produziu seu pobre fratello esteja à vista. Temor procedente, Rent Boy. Procedente.

De início eu não tava me sentindo tão mal; consegui uma trepada pros meus turnos. Tenho saudade da Lucinda e não admito dormir sem alguém pra esquentar a cama. Aquela Charlene parece uma safadinha, uma artista da foda, que não faz perguntas nem exigências. A gente fica matando tempo, olhando os passageiros, que são mesmo a escória desse planeta, subindo no barco que nem gado. Mas pra minha alegria tem umas minas com cara de devassa no meio deles. Depois a gente sai. Basicamente, nós, a equipe das cabines, ou “agentes”, somos apenas uma presença designada para monitorar os “clientes”, como agora os passageiros são chamados.

Daí me dei conta que tava começando a ficar tenso, querendo saber onde o viado do Renton tinha se metido. Deve ter encontrado um cantinho escuro e fechado para se enterrar, não tenho a menor dúvida. As palavras escondendo o ouro ressoam no meu cérebro quando sou afastado de Charlene e forçado a acompanhar Camisa Creme em sua perseguição a uma gangue de londrinos que passam por nós em direção ao bar. Escuto a cantoria turbulenta que vinha daquela direção cessar de repente com um barulho de estilhaços que só pode ser vidro quebrado. Daí começa uma gritaria e Camisa Creme passa correndo pelas portas do bar, sacudindo os braços no alto, enquanto os passageiros entram em pânico e começam a debandar.

Entro com ele, passando pelo meio dos viajantes em retirada. Uma briga coletiva teve início do outro lado do bar. Acho que é West Ham versus Manchester United, mas não sei ao certo e tô pouco me fodendo. Violência às vezes pode ser uma ferramenta útil, mas seu uso recreativo é o vício de perdedores como Begbie, que segundo ouvi falar vai passar um ano na cadeia depois de ferir um babaca de Lochend. Mas esse negócio tá ficando meio sério; uns idiotas ficam meio de fora, só no mata-cobra sem muita eficiência, e um número ainda maior parece estar apenas gesticulando e nada mais, só que o grosso da briga é como um tornado, com mais ou menos uma dúzia de corpos no centro se enchendo de porrada. Passageiros entram em pânico e correm pra fora, mulheres e crianças começam a berrar e uns caras mais sérios ficam protestando injuriados contra os “animais”. Crème de la Chemise sacoleja meu ombro, implorando: – Temos que acabar com isso! Estão destruindo tudo!

– Acho que vou ter de passar essa adiante, Martin, e deixar tudo nas mãos da segurança – informo, enquanto vidro se estilhaça no balcão às nossas costas. – Ou quem sabe a polícia? Gente que recebe um bom dinheiro, sabe, pra arriscar a própria pele em situações como essa?

– A descrição do seu trabalho diz “quaisquer outras atribuições razoáveis que a gerência julgue apropriadas”.

– Certo! – respondo com alarde e me afasto do tumulto na mesma hora. – Tem algum representante sindical nesta banheira enferrujada?

Cremutcho me dá uma olhada breve fazendo um beicinho decepcionado, mas sem sacanagem, ele certamente vai concorrer a um prêmio da rainha, porque marcha direto pro coração da baderna. Vou atrás, tomando cuidado, e o pau tá comendo solto enquanto os últimos passageiros desinteressados na situação, uns caras de despedida de solteiro que estavam quase entrando na briga mas acabaram decidindo que o negócio tava pesado demais pra eles, passam pela gente meio empilhados pra escapar da balbúrdia. Mais barulho de vidro estilhaçado e convites esgoelados pra briga tomam conta do ar. Eu devia cair fora daqui, mas preciso ver isso, porque Camisa Creme tá fazendo beicinho, ciciando e se peidando todo bem no meio do tumulto, gritando: – PAREM! PAREM COM ISSO!

Pra minha grande surpresa, alguns dos hooligans param por algum tempo, constrangidos com a ideia de serem vistos brigando com aquela bicha minúscula de salto cubano. Tá bem claro que todos estão ou querem estar no alto da hierarquia de seus grupos e percebem rápido que trocar sopapos com uma boneca anã só pode ter efeitos desastrosos em sua posição. Um moleque de baixo escalão, vestido de forma até elegante, acaba surgindo e acertando Cremutcho com um belo gancho de direita, fazendo ele cair de bunda no chão com o nariz arrebentado. A gangue do norte entende que essa é a deixa pra sua retirada, gritando ameaças enquanto avançam lentamente na direção da saída. Tudo parou de repente como se por milagre.

– Cê também quer tomar uma ruim, seu viado? – pergunta-me o moleque.

Com aquele som terrível de punho acertando osso ainda ressoando nos ouvidos, decido que posso me abster dessa opção, muito obrigado. Gesticulo na direção de uns caras mais velhos, que pro meu alívio mandam o impaciente jovem Jedi se acalmar e apontam na direção dos nortistas em debandada. Os poucos passageiros restantes continuam sentados, paralisados de medo, mas os carinhas do West Ham, com a possível exceção do jovem Skywalker, parecem uma gangue disciplinada demais pra demonstrar qualquer interesse em atormentar civis.

– Peço desculpas por termos interrompido sua altercação, rapazes – digo, agradecido, mas eles se afastam na direção dos nortistas. Ajudo Camisa Creme a se levantar e sair do bar, tomando cuidado pra não encostar naquela groselha certamente infectada escorrendo do nariz arrebentado por sobre toda a sacra indumentária que deu origem ao seu apelido.

– Ainda não... – protesta ele, colocando a mão no nariz detonado enquanto o acompanho pelas portas de vaivém. – Eles estão destruindo o barco...

– Não se preocupe, colega – insisto, deslizando a mão pra dentro do paletó dele e removendo uma carteira que enfio com destreza no bolso da minha calça. A briga vai levar a culpa. – Logo esses rapazes vão cansar de trocar socos. Vamos pra enfermaria.

Levo o tobeiro machucado pra baixo e o deixo no ambulatório, onde uma enfermeira gorda que parece a Hattie Jacques tá enrolando gaze na cabeça de um maluco. Os parceros dele montam guarda, encabulados, trocando risinhos enquanto o rapaz ferido geme com sotaque de Manchester. – Num vim pra cá brigar com o West Ham... vim pra sair no pau com o Anderlecht...

– Espere aqui, Martin. Vou ver se consigo acalmar as coisas – digo ao deixar Cremutcho pra trás, e meu plano é ir direto pra cabine e dormir. Não tô ganhando o suficiente pra tentar apartar debiloides loucos pra se destruírem na base da porrada. Eu nunca ganharia o suficiente pra fazer isso.

Durante o trajeto, passeio pelo convés contabilizando o tesouro saqueado; 42 libras, um cartão bancário e uma foto de um sobrinho gay de olhos ridiculamente radiantes e um topete loiro se espiralando em direção ao firmamento, como o sorvete numa casquinha italiana. Enfio o dinheiro no bolso e atiro o resto no oceano cruel. É uma sensação ótima saber que executei o crime perfeito. A carteira jamais será encontrada, e é provável que todos os torcedores do West Ham e do Man U passem por revistas completas de todos os orifícios, realizadas pela polícia holandesa na chegada depois que a bicha vingativa der um telefonema.

Voltando pra cabine, uso um pouco da marrom e me largo num quase sono. Percebo que alguém bate na porta, mas sem chance, não vou abrir pra ninguém. Sei que o Renton tá escondendo o ouro de mim por um simples motivo: se eu não falei pra ele que tinha alguma coisa em cima, ele certamente também ia fazer o mesmo.

Levanto só quando me dá vontade, decidido a encontrar o velho Bolas de Fogo, e fico surpreso ao perceber que o navio já atracou em Hoek e que os carros estão desembarcando. O bar foi destruído; dois caras e uma gorducha estão varrendo o chão enquanto Blusa Bege fotografa os danos, imagino que pra fins de seguro. Enxergo um grupo de policiais holandeses no píer, mas não parecem interessados em prender nem sequer uma única pessoa, porque a horda cockney abandona o barco cantando “somos os desgraçados de vinho e azul”. Em choque, um funcionário todo afetado me conta que um rapaz foi levado pro hospital com a garganta cortada; o ar marinho deve ter feito algum vagabundo se entusiasmar demais.

Iô-hô-hô, marujos!

Volto pro escritório e encontro Camisa Creme com um enorme curativo no focinho, conversando via rádio com alguém, certamente a polícia ou a segurança portuária. Ele larga o fone e parece disposto a me punir pelo sumiço.

– Como você está? – tomo a dianteira, cheio de falsa preocupação.

– Estou bem... obrigado pela ajuda... mas onde você andava?

– Procurando pelo Mark e tentando acalmar alguns dos nossos passageiros mais irados. Uma senhora idosa ficou muito perturbada com a violência. Achei prudente me sentar com ela por algum tempo.

– Sim... Bem pensado... Nossa, a cobra vai fumar quando o sr. Benson ficar sabendo. – Ele faz uma careta. – Encontro você no bar.

– Certo – digo batendo continência. No lado de fora, no convés forrado de cacos de vidro, um retardado boca-aberta usa uma vassoura com o entusiasmo de um bicho-preguiça aleijado sob efeito de calmantes. Puta merda, tem tanto doente mental trabalhando nesse navio que qualquer pessoa remotamente normal se torna imediatamente indispensável, querendo ou não.

Daí volto pro bar destruído e encontro Nicksy sem gravata-borboleta e com o colete aberto, bebericando um scotch no balcão. O barman, que se apresenta como Wesley de Norwich, tá pouco se fodendo, feliz por estar intacto, daí me sirvo de um malte que não pretendo tomar e finjo um brinde a Nicksy.

– Slàinte.

Nem sinal da Charlene, e cadê aquele corno do Renton?

3. Convés dos carros

Adoro essa ideia de ter o que os comentaristas de futebol chamam de “posicionamento livre”: meio que não ficar preso numa única função. Daí meio que me disponho a ficar andando pela embarcação, conversando com as pessoas no caminho, me assegurando de que tudo está em perfeita ordem. Schopenhauer disse que um homem só pode ser quem realmente é quando está sozinho, enquanto para Nietzsche todas as ideias genuinamente grandiosas são concebidas ao se caminhar. Consigo me ver como uma espécie de capitão popular do navio; dando uma passeada, conferindo o pessoal, talvez convidando uma ou duas belas moças pra jantar na mesa do capitão enquanto as distraio com histórias animadas da vida náutica no porto de Leith.

Sou um marinheiro: está no meu sangue. Fico imaginando que o Sick Boy adoraria estar no meu lugar agora, ainda que certamente deva estar aprontando algum trambique.

Vozes alteradas vindas de cima sinalizam tumulto, que significa trabalho, aí eu tomo o rumo oposto, me afastando da confusão descendo a escadaria de metal até as profundezas do navio. Bem debaixo de mim, toneladas e mais toneladas de carros e caminhões estacionados. De um patamar no alto, um carinha de macacão grita que eu não deveria estar ali embaixo. História da minha vida. Sempre em algum lugar onde eu não deveria estar. Tipo o planeta Terra. – Tá bom. Beleza. Tô indo. – Aceno e sigo meu caminho.

Um estrondo metálico vem do alto, mais parecendo um címbalo gigante. Sinto os motores sob meus pés fazendo o navio avançar pelo Mar do Norte. Chego no fundo, nas filas de veículos. Tô viajando muito; essa marrom é da boa. Daí fico sentado no meio de uns carros. O tempo passa, ou não. Quem se importa? Pego as chaves e começo a arranhar sem pressa um carro chique e daí penso que se foda, a luta de classes pode esperar, mas meu sono não pode. Depois de um tempo sou acordado pelo barulho de passos e conversas enquanto as pessoas descem e vão entrando nos carros. Eu me levanto e subo os degraus metálicos até voltar ao convés e entrar no bar, que está totalmente arruinado. – Perdi alguma coisa emocionante? – pergunto rindo a Sick Boy e Nicksey.

O maluco da Camisa Creme está aqui, dando ordens pra equipe que tenta limpar a bagunça. Uma das coxudas está usando o esfregão pra limpar uma trilha de pingos bem grossos de sangue. Camisa Creme tomou uma porrada certeira no nariz. Quando me enxerga, pergunta na hora: – Onde você estava? – Daí chega mais perto e mostra o nariz estourado. – Andou bebendo?

– Tava me sentindo muito mal – falei, todo lento e com os olhos pesados –, acho que é gripe. Precisei ficar um tempo deitado. Tomei um montão daquele xarope Night Nurse. Disseram pra mim que não dava sono – digo, olhando pro Sick Boy em busca de apoio.

Ele reluta mas colabora com: – Só dá sono se você tiver uma resistência de garotinha.

Isso deixa Cremutcho bem perturbado. – Se estava doente, devia ter vindo falar comigo ou com seu supervisor.

– O problema é esse – admito –, meu nome não parece estar em nenhuma das listas, hã... eu não tinha certeza do que eu devia fazer, hã, não... – digo pro viado, forçando o ar de ignorância da tática de defesa aprendida nos blocos, um método sempre eficaz de irritar figuras de autoridade.

– Julian! – Camisa Creme chama Blusa Bege e é batata: os viados não conseguem encontrar meu nome em nenhuma de suas listas defeituosas. – Então tudo bem, vamos colocar você na cozinha trabalhando com o Chef. – O pederasta de Camisa Creme faz um beiço de triunfo mesquinho.

O ódio chegou na cidade...

Notícia nada boa. Mas resolvo isso mais tarde, porque agora vamos ter uma folga e quero dar uma deitada. Sick Boy não quer nem saber, tá pronto pra fazer festa em Amsterdã. – Estamos a meia hora de distância do lugar mais divertido do planeta Terra e você vai ficar deitado numa caixa nas entranhas suadas de um navio atracado, sentindo enjoo e se dedicando a tentativas pouco entusiasmadas de se masturbar? Tudo bem. Sinta-se em casa. Peso-leve!

Eu me sinto meio humilhado porque umas pessoas ficam olhando pra mim, e a pequena Fawcett-Plant é uma delas, com um brilho nos olhos e os lábios crispados.

– Beleza – escuto minha voz concordar. – Mas preciso de anfetamina.

Um a zero, Williamson.

Nicksy não parece muito a fim, mas Sick Boy lidera o ataque com gosto. Fico sabendo que o nome da mina Fawcett-Plant é Charlene, e ela não perde tempo em dizer: – Eu vou.

Aí me dou conta que o desgraçado já deve ter crescido pra cima dela. Acho que era mesmo inevitável.

– Vamolá, seus cornos, não estraguem a festa – insiste Sick Boy. – Vamos pegar anfetamina e analisar a situação.

– Não sei – responde Nicksy. – Talvez o Marriott precise da gente, né... – Olha pra Charlene.

Ela entende o recado e diz: – Certo, vou me trocar. Encontro vocês em 15 minutos?

– Fechado – diz Sick Boy a ela, e daí estoura com o Nicksy. – Marriott que se foda. Não tô levando fé nesse esquema, Nicksy, quero dar uma conferida antes.

– Preciso concordar. – Dou uma assentida com a cabeça. – É nossa primeira noite de folga. Não quero perder meu tempo ouvindo aquela bicha viciada ficar contando historinhas de bandidagem. O cara vai ter que ficar frio por um tempo.

Pensei que o Nicksy podia se ofender, porque tinha armado tudo, mas não parece estar nem aí. – Tudo bem. – Dá de ombros. – Admito que ele tá me torrando o saco – dá uma olhada ao redor –, fica em cima do cara o tempo todo.

Daí a gente se troca, desembarca e pega o trem até Amsterdã. Eu, Sick Boy, Nicksy e a adorável Charlene, toda maquiada, com roupas que parecem bem caras. Ela mais parece uma yuppie a caminho de uma reunião ou algo assim, mas tá levando a sacola da Sealink. Quando ela vai ao banheiro, Sick Boy cochicha pra mim: – Mas que porra é essa? Será que ela é GP?

– Que nada... deixa de ser bobo – respondo.

Ele ergue os olhos e aos poucos uma expressão concentrada toma conta do seu rosto. – Enfim, olha só, tô achando que a gente tá fazendo tudo errado. A gente devia tá vendendo a heroína branca de Edimburgo pra esse pessoal, a droga do Swanney.

Nicksy olha pra ele com uma cara de sofrimento.

– Desculpa, parcero, sem querer ofender, mas cê tá ligado no que eu tô falando. – Sick Boy sorri.

Charlene volta com alguns cafés, o que é muito atencioso da parte dela, porque ajuda a usar a anfetamina. Abro um pacotinho e todo mundo manda ver sem dó, exceto ela, que fica satisfeita com apenas um pouquinho.

Descemos na Estação Central. Como a maior parte dos turistas que saíram do nosso navio, pegamos a esquerda, direto pro distrito da luz vermelha. É demais ficar olhando as minas nas vitrines e um monte de caras vendendo droga abertamente nas ruas perto da praça Nieuwmarkt. A gente entra num bar e eu e o Sick Boy pedimos limonada, enquanto Charlene e Nicksy escolhem uma cerveja que vem num copinho. Ninguém cala a boca, especialmente eu e o Nicksy, que fica relembrando um monte de histórias nossas da época do squat em Shepherd’s Bush com o Matty. Depois de um tempo Charlene parece se distrair e se afasta.

– Ela deve ser prostituta de alguma agência e saiu pra trabalhar em algum hotel – diz Sick Boy, mas acaba perdendo o interesse e rapidamente parte em “missão de espionagem” e deixa instruções pra que a gente se encontra na Estação Central dentro de algumas horas. Deve ter combinado alguma coisa com a Charlene, o safado. Nem precisavam ficar fazendo esse mistério todo. Ninguém se importa.

Nicksy tá enchendo a cara, enfileirando os copinhos que nem soldados e falando sem parar. Parece meio apavorado. Fala de novo daquela Marsha, depois dos pais dele e de como apesar de todas as brigas ele ama demais os dois. Esse garoto é um dos melhores caras que existem. Foi muito legal ele ter recebido a mim e ao Sick Boy na casa dele, mesmo mal conhecendo o Sick Boy e tal. Um dia vou retribuir.

Mas fico inquieto e decido dar uma voltinha, deixando ele com a bebida. Daí saio e fico passeando pelas ruas calçadas com pedras redondas, olhando os bêbados olhando as minas nas vitrines, pensando na loucura que é esse lugar. Vou descendo um canal e acabo parando numa praça enorme que eles chamam de Leidseplein. Daí olho pro relógio e me dou conta que tá na hora de voltar. Um maluco que parece totalmente chapado, com um sotaque que não consigo identificar, começa a falar comigo no meio da rua. Daí me vende um pouco de anfetamina. Experimento e que surpresa, é muito boa. Na verdade, esse negócio tá mais pra combustível de foguete, e eu começo a me sentir menos pesado e a aproveitar melhor a heroína. Amsterdã mata a pau! Vou morar aqui algum dia. O carinha me diz que é sérvio, depois mostra uma ruazinha cheia de lojas e diz que se eu for por ali vou chegar mais rápido na Estação Central.

Mesmo escuro e tarde da noite, todas as lojas continuam abertas. A Grã-Bretanha é um cemitério, comparada com a Europa. Subindo a rua, dou de cara com Charlene, que tá saindo de uma butique de mina. Primeiro enxergo a sacola da Sealink, depois aquele cabelão. – E aí – digo, e ela parece levar um susto. – Cadê o Sick Boy?

– Sei lá eu, nem vi o cara. Ele é seu amigo, não meu – responde ela, mordendo os lábios e olhando ao redor. Acho que deve ter usado mais anfetamina.

– Desculpa, hã, achei que vocês tavam... hã...

– Eu e ele? Mas por favor! Ele pode se achar o máximo, mas nem todo mundo concorda!

É impossível expressar quão doce é a música que essas palavras evocam aos meus ouvidos. – Fazendo compras? – pergunto.

– Mais ou menos.

A gente entra num café de uma rua paralela e ela me pergunta cadê o Nicksy, daí me dou conta que me perdi dele também, além do Sick Boy: vai saber que porra ele tá aprontando. Decido não falar nada sobre os planos de se encontrar na estação e ficamos um tempão tomando café e conversando, e depois pegamos um trem noturno. Tô acabado mas ainda sob efeito da anfetamina enquanto o trem avança pela escuridão. Julgando pelo que a gente viu na chegada, não tamos perdendo muita coisa, a paisagem holandesa é uma merda, bem plana e desinteressante. Sinto uma vontade terrível de passar a mão no cabelo maluco da Charlene. Cabelo de mina é um troço sensacional; fico pensando em estudar pra ser cabeleireiro, mas só de minas. Sick Boy fez isso logo que saiu da escola, foi seu primeiro e último trabalho honesto. O chefe tolerou ele passando a mão nas aprendizes e depois nas clientes, mas cortou o barato quando o Sick Boy começou a passar a mão na registradora.

Charlene, passando a mão na cabeleira, diz: – Tenho uma cabine só pra mim. Não colocaram ninguém pra dormir comigo. Não quer fumar?

– Tá bom.

– Quando digo fumar, quero dizer trepar, claro. – Ela sorri.

– Legal – respondo, curtindo o estilo da mina, mas me dando conta de que esse é outro motivo pelo qual eu uso drogas. Se eu não estivesse chapado, teria aberto um sorrisão ao ouvir o que ela disse. Mas agora tô bem daquele jeito. Meio que pensando se devia abraçar ela e dar um beijo ou algo assim. Não faço nada, vai saber se não entendi errado ou se ela tava só de brincadeira, daí fico frio.

A gente volta pro barco. Tá tudo bem tranquilo e, ainda bem, não vemos o Sick Boy nem ninguém, e quanto entramos na cabine a Charlene tira o casaco na hora. – Então vem cá – diz ela, começando a desabotoar a blusa. Puta merda, não era brincadeira! Vou tirando a roupa, com medo de estar fedendo porque não me lavei muito nos últimos dias e meu bafo deve estar com cheiro de merda. Tô pelado e acho que pareço um canivete retrátil, porque tô com o pau bem duro e isso parece que tá roubando todo o sangue do meu corpo magrelo. É como se meu pau fosse se separar do corpo e sair por aí, um parasita abandonando o hospedeiro cuja vida sugou até o fim, meu corpo ruindo como uma coluna de cinzas.

Charlene se despe metodicamente, pendurando o casaco e a saia chiques. Tira a blusa mas fica de sutiã e calcinha; são lilás bem forte, mas transparente, e dá pra ver os mamilos nos peitinhos e enxergar os pentelhos, e ela parece ser loira natural. O corpo dela é bem miúdo e chega perto de mim raspando no meu pau que nem Jimmy Johnstone escapando da marcação, e daí me abraça. – Você é bem magro – sussurra ela, os braços envolvendo meu pescoço e os olhos pequenos e quase orientais me encarando de baixo pra cima.

Eu me dou conta que devem falar do cabelo dela o tempo inteiro, aí começo a apertar a bunda e levar a gente pra cama. Tiro a calcinha, expondo uma pentelhama dourada e sedosa, e ela diz: – Não quer uns beijos antes?

Meu bafo deve estar um chorume, mas que se foda, o cabelo de Charlene está espalhado no travesseiro e a gente se beija e ela não parece se importar, daí eu falo as palavras mágicas que sempre funcionam, ainda que me excitem mais do que a qualquer mina: – Quero chupar sua buceta...

– Acho melhor não – responde ela, ficando tensa.

– Como assim?

– Não somos amantes. É só uma trepada. Vem logo, Mark, me fode!

– Depois – resmungo, descendo e passando a língua na barriga dela, no umbigo e nos pentelhos muito finos e delicados. – Mark... – Charlene protesta, mas já estou no grelo e sinto ele endurecer em contato com a língua. Ela empurra minha cabeça com as mãos, mas ao mesmo tempo suspira e diz: – Ah, que se foda... faz o que quiser... – E eu sinto ela começando a se soltar e daí ficar tensa de novo, mas daí de um jeito excelente, e agora eu não conseguiria tirar a cabeça dali nem se quisesse, e ela goza uma vez atrás da outra.

Depois ela acaba me afastando e suspira: – Eu tomo pílula... vem, mete...

– Deixa comigo – respondo, e enfio o pau nela. A gente fode por um tempo e ela goza de novo; entrou no circuito depois dos orgasmos clitoridianos. Isso me lembra...

Caralho... quanto tempo isso vai demorar?

Eu me dou conta que as drogas, além de às vezes dificultarem a ereção, têm feito minha porra jorrar uma tarefa impossível. Tiro o pau e ela sobe em cima de mim, depois como ela de quatro, daí ela volta pra cima e é a melhor posição de todas porque curto demais aquela cabeleira em cima de mim, e sinto uma cócega crescente no meio do torpor e finalmente gozo também. Chega a machucar meu pau, mas puta merda, que alívio.

Desabamos suados na cama de solteiro armada no caixote de metal do quarto. Que excelente nós dois sermos tão magros. Imagina sei lá, Keezbo e a Big Mel de Gillsand ou alguma das coxudas da limpeza tentando trepar aqui. Não ia ter como! Deve ser um círculo vicioso pra esse pessoal: dificuldade de comer alguém, daí depressão, comer demais, engordar, dificuldade ainda maior de comer, daí ainda mais depressão...

– Foi fantástico... puta merda, sensacional... – diz ela, e aos meus ouvidos é a sinfonia mais delicada, porque nunca uma mina tinha me dito algo assim, quer dizer, só uma vez, e daí quase tenho a impressão de que ela tá falando com outra pessoa ali na cabine. – Onde você aprendeu a chupar desse jeito?

Não tive coragem de responder “com uma puta de Aberdeen”. – Ah, nem sei.... é uma habilidade natural...

– E que habilidade – ronrona ela, elogiosa, e meu ego começa a inchar bastante ainda que esteja com uma dor terrível na piroca. Queima como se um laser tivesse passado pela uretra, e como ainda tô ligado demais pra conseguir dormir pergunto: – O que você fazia antes de trabalhar aqui?

– Roubava. – Ela sorri, acariciando meu brinco como se estivesse prestes a afaná-lo. – Ainda faço isso – completa, apontando pra sacola da Sealink sobre a mesa.

As roupas, é claro; ela é uma profissional do ramo. Chega a dar vontade de contar pra ela sobre o trambique do Marriott. Mas não, resolvo que é melhor deixar assim, aí caio num sono esquisito e drogado nos braços dela, consciente do fato de que o turno da manhã vai chegar em breve e foder com a gente.

Como previsto, a manhã fria traz consigo uma atmosfera de desconfiança, ódio venenoso e paranoia. Não entre mim e Charlene, o que é excelente, ainda que ela tenha usado os joelhos pra me expulsar da cama e me banir pra minha própria cabine logo que o dia raiou. Nicksy está na cama de baixo do beliche, e subo pra cama de cima onde cochilo por uns quarenta minutos até o alarme obliterar meu sono.

Não, o clima ruim aparece na cantina, na mesa do café da manhã. Parece que o Marriott passou a noite e a manhã inteira batendo na minha porta. Não está nada feliz com isso, como a cara feia deixa bem claro. Coloca sobre a mesa uma bandeja com uma tigela de cereal e uma caneca de café e daí fica atrás da gente e se abaixa como se quisesse falar no meu ouvido. – Eu precisava de vocês por perto ontem à noite – diz, sibilando como uma serpente, para mim, Sick Boy e Nicksy. – E se eu tivesse arranjado alguma mercadoria, porra?

Nós três nos olhamos sem dizer nada.

– Fiquem na porra do navio – ameaça ele, tomando um assento.

– Bem – diz Sick Boy –, um agradável “bom-dia” pra você também!

Tô começando a me sentir sacaneado e perseguido. Como se a gente tivesse sido forçado a entrar nesse esquema. Andei fazendo uns cálculos: quantidade transportada, tempo de prisão caso seja pego e remuneração oferecida, e as coisas não fazem sentido. Esse viado parece achar que é nosso dono. Bem, meu dono ele não é, porra.

– Não era pra ser agradável – diz Marriott, e vejo o ressentimento cozinhando Sick Boy por dentro enquanto o velho viciado o encara pra ver como ele reage. – Fui claro, Simon?

– É com esse cara aqui que você tem de se preocupar. – Sick Boy aponta pra mim, sem dúvida rancoroso por eu ter pego a Charlene. – Mancanza di disciplina.

– Do que ele tá falando? – pergunta Marriot a Nicksy.

– Sei lá, porra.

Esse viado acha que somos junkies como ele. Mas não acho que seja o caso; tem uma grande diferença entre um consumo ocasional, no qual você fuma e às vezes se pica, e ser um viciado em drogas de carreira, a marionete sem alma de algum babaca que tá pouco se fodendo com você.

Marriott começa a tagarelar de novo daquele jeito balbuciante e egocêntrico de viciados em heroína. – Assim que receberem vocês voltam pra cidade e começam a repassar, porque se o Curtis estiver de serviço e ver alguém experimentando, olha, se ele não pegar o sujeito pode apostar que a gente pega – diz, com os olhos esbugalhados, com uma aparência e tom tão intimidantes quanto Larry Grayson de tutu. – Não deem nenhum motivo pra ele revistar vocês, senão vão acabar com a mão enluvada dele enfiada no cu de vocês, puxando fora o jantar de dentro do intestino na frente de metade da polícia de Essex.

Pego Sick Boy revirando os olhos de um jeito teatral, indicando que a ideia não deixa de ter seu apelo. Marriott reage às risadinhas abafadas e fica realmente sombrio; não está mais se esforçando pra tentar assustar a gente. – Daí a coisa fica mesmo feia, porque o pessoal descobre e você acaba preso dentro de um barril de petróleo e atirado ao mar.

Podia estar blefando ou exagerando, mas nenhum de nós parecia disposto a questionar se ele estava falando da boca pra fora. Sinto meu olhar se desviando pro meu colo, e então pro Nicksy.

Marriott se levanta. Mal tocou no cereal, mas apoia as mãos na mesa com tanta força que os nós dos dedos ficam brancos. – Andem na linha ou não vai ganhar nenhum tostão de mim – anuncia e vai embora.

Sick Boy sacode a cabeça. – Quem é esse babaca? No que você enfiou a gente, Nicksy?

– Bem, vocês não deviam ter se comprometido – lamenta Nicksy.

– Não me comprometi com porra nenhuma. O viado fez uma proposta. Parecia boa. Agora não parece mais. Fim. Meu amigo Andreas pode conseguir toneladas da marrom. Se a gente vai ficar passando com droga pela alfândega em troca de centavos...

Sick Boy baixa a voz, mas parece que chegou a hora de Camisa Creme se aproximar da mesa. O barca está prestes a se encher novamente e devemos ficar prontos pra cruzar o alto-mar a caminho da alegre Inglaterra. Camisa Creme pigarreia, segurando a eterna prancheta, aponta pro relógio e então gira os saltos cubanos e se afasta.

– Puta merda – reclama Sick Boy. – O cara não consegue nem respirar nesse navio de merda sem ser acossado por bichas. A economia oficial, a economia subterrânea, não faz diferença; todo mundo quer botar no seu cu – declara. – Enfim, melhor ir andando. Outra manhã imunda nos aguarda. Todos em seus postos!


Na correria

Que horror essa manhã escura e chuvosa, cara, tô tipo indo visitar o Franco na cadeia. Combinei com a June e a mãe e o irmão dele pra eu chegar lá quando não tiver mais ninguém, saca. Ele pegou 12 meses, mas vai sair em seis. Sim, dois carinhas de Lochend tavam no banheiro depois do futebol, e pela lógica do Franco, como o Cha Morrison tinha furado o Larry, ele precisava furar dois caras de Lochend. Mas o cara que ele pegou nem era parcero do Morrison, e no fim das contas era primo do Saybo. Daí isso causou uns problemas com o pessoal, e o Saybo nem foi visitar o Beggar Boy na HMP Saughton. É, Ali viu ele mais cedo naquela noite, disse que tava na cara o clima de guerra.

Aí eu tô bem molhado e com frio quando chego pra visita e vou colocando minhas coisas em caixinhas, as chaves e relógios e tal, não que eu tipo, tenha um relógio, mas cê sabe do que eu tô falando. Daí eles dão um papelzinho pra pegar as coisas depois e o pessoal entra e senta a umas mesas, com os guardas de olho. Quando o Begbie aparece, fico achando que ele até que não fica mal com roupa de prisão. Tá até mais bombado de tanto puxar ferro na cadeia. A única coisa que parece incomodar o gatuno é que o Cha Morrison tá em Perth, e o Begbie tava muito a fim de mostrar as garras pra ele. Como ele mesmo diz, era o único motivo que fazia ele querer ser preso. Ele faz umas perguntas sobre o Leith e tudo mais e daí meio que começa a me encher o saco porque uso heroína.

Bem quando tô começando a pensar que não devia ter ido ele tipo, parece ficar cansado daquilo tudo. – Olha, valeu por aparecer... – diz ele – mas é meio que uma merda receber visita. Não acontece porra nenhuma aqui dentro, daí o cara não quer nem saber do que tá rolando do lado de fora.

– Beleza, cara... – concordo, porque dá pra entender o lado do gatuno. Nunca gostei de receber visitas quando tava no Doc Guthrie, saca?

– Então nem perde tempo me visitando, porra. Comigo não vai ter conversa nenhuma. – Ele dá uma olhada na direção dos guardas. – E nem tem como a gente sair pra fumar. Se aparecer qualquer novidade, cê visita minha mãe e daí ela me conta quando vier pra cá.

Devo ter parecido meio frustrado e meio que, bem, desprezado, cara, porque ele olha pra onde ficava o gesso no meu braço e diz: – Não faz essa cara de choro, porra, não tô mandando cê ir embora; não tô mandando cê ir embora! É legal que cê tenha aparecido. Só tô dizendo o seguinte: não perde tempo achando que a gente vai conversar se cê vier.

– Beleza... tudo bem. Hã... o Hibs jogou bem no sábado.

– Tô sabendo que o Hibs jogou bem, Spud. Porra. Aqui dentro tem jornal e tevê, seu burro. – O gatuno sacode a cabeça.

Eu meio que tento outra abordagem. – Cê viu aquele programa noite passada sobre os macacos de Gibraltar? Que coisa excelente, cara. Nunca tinha pensado em macacos, quer dizer, eu tipo, já tinha pensado neles, porém eu não tinha pensado mesmo sobre eles, tá me entendendo? Mas aquele programa realmente faz o cara pensar, saca? Tinha um macaco que...

Na mesma hora ele levanta a mão pra calar minha boca, que nem um imperador romano ou algo assim. – Não vi nada – diz ele, encerrando a conversa. Daí continua: – E esse braço?

– Tá excelente, cara, novinho em folha, como se nada tivesse acontecido.

– Falei que ia ficar tudo bem! Cê fez uma choradeira fudida por causa dum braço quebrado! Seu viado, cê chorou tanto que eu achei até que tava morrendo!

– Beleza, hã, desculpa, cara – digo, depois conto que o Rents e o Sick Boy mandaram um abraço lá de Londres, o que é meio que mentira porque eles só ficam fazendo piada quando alguém fala no Begbie, mas é só tipo, coisa de parceros e tal. Mesmo assim o Beggar Boy não ia achar muito legal. Mas o negócio é que, no fundo, no fundo, acho que ele tá bem feliz em me ver. É só o jeito do maluco, saca?

Mas ver um cara tipo trancafiado não faz tipo, muito bem pra alma. Daí fico bem feliz quando cruzo os portões da prisão e volto pro mundo real. Não que aqui fora seja muito melhor. Se na cadeia não tem nada pra fazer, aqui fora é meio que a mesma coisa, só não tem os muros. Mas pelo menos na prisão tem três refeições grátis por dia, saca? Tédio, cara. É tipo uma torneirinha dentro da gente, pingando ácido nas tripas. Carcomendo os órgãos. À noite, na cama, fica pior. Tento esticar os braços e as pernas, mas meio que antes mesmo de perceber já tô cheio de câimbras de novo, com as mãos fechadas, falando sozinho um monte de bobagem meio assustadora. Isso não pode fazer bem prum gatuno, cara.

E aqui fora é os gatunos são tipo pura afobação, saca? Nunca que eu ia conseguir passar a vida na correria, mesmo que eu corresse rápido pra caramba na época da escola. Mas com 21 anos e a chave da porta, cê tem mais é que sentar e tipo, ficar bem tranquilo. Esse negócio de não parar quieto tá matando todo mundo, cara. Essa competição toda. Se o cara tem trabalho, fica estressado, se não tem, fica estressado também. Todo mundo pensando só em si, aproveitando qualquer fraqueza pra pisar nos outros. Não existe mais solidariedade, saca? Não tem mais emprego nenhum, tudo sumiu, e ninguém tem mais nada pra fazer.

Hoje minha boca tá bem seca, mas a culpa deve ser daquela heroína marrom esquisita que peguei no Johnny ontem à noite. Achei que o gatuno tava tirando com a minha cara quando apareceu com o negócio, porque mais parecia chocolate em pó, saca? Eu tava quase cantando a musiquinha dos chocolates Cadbury. Mas daí ele disse que só tava conseguindo aquela. Puxo a manga da camisa e arranco a casquinha de uma ferida no meu braço. Dou uma apertada e sai um pus amarelo. Aí baixo a manga bem rápido; ah, cara, não consigo nem olhar pra isso...

Quando saio do ônibus, de volta no Leith, o último maluco que eu esperava encontrar vestido de abrigo e correndo pelos bulevares ventosos do belo porto era o Segundo Lugar. – E aí, Rab – digo quando o gatuno aparece na Bonnington Road.

– Spud... – diz ele e para, mas continua correndo sem sair do lugar enquanto vai contando as novidades entre um fôlego e outro, e fico sabendo que ele parou de beber e tá com uma namorada nova chamada Carol, que é parceira da Alison, e que ele tá entrando em forma de novo e falando com um cara do Falkirk sobre um teste, mas que talvez ligue pro ex-chefe em Dunfy. Daí sai correndo de novo com os Nikes na direção da Junction Strasse.

Bem, que maravilha ver um cara assim na boa. Magro e em forma, cabeça limpa, sensualizando com uma fräulein e com a chance de ganhar uma boa grana jogando futebol. Quando cê para pra pensar, vê que o cara parece que tá com tudo armado, mas acho que nada disso quer dizer coisa alguma se o cara só tem ruindade e desespero fervendo dentro da cabeça. Mesmo assim tô com muita inveja, cara, tô até ficando verde.

Mas como tenho umas coisinhas pra fazer nessa tarde pego a Newhaven Road a caminho de Bowtow. Quando chego no esconderijo o Matty já tá ali. De saída devo dizer que o Matty é um dos poucos caras com quem eu simplesmente não consigo me dar bem. Entre a gente são negócios e nada mais, saca? E eu tô sabendo que só fui chamado pra ajudar porque Rents e Sick Boy tão em Londres, Tommy não quer se meter em nada, outro gatuno enroscado no amor no momento, e Franco agora aproveitando a hospedagem de Sua Majestade.

Antes eu achava que todo o clima hostil tinha a ver com o fato do Matty ser do Fort e eu de Kirkgate, que não é bem do outro lado do mundo, mas que nada, porque o Keezbo é do Fort e o Matty se dá ainda pior com ele. Mas eu meio que ainda acho que é por causa disso. A mentalidade que eles têm por lá é diferente da cabeça do pessoal que vem de outras partes do Leith; tipo eu, de Kirkgate, ou Sick Boy, dos Bananas. Mas esses caras aí, olha, a mentalidade deles é totalmente Fort, se cê tá me entendendo. Daí eu tento conversar sobre isso com o Matty. Eu digo: – Cês do Fort precisam ser gatunos com mentalidade defensiva, porque moram num lugar que se chama Fort, e que parece mesmo um forte, e cês moram cercados de muros, como se tivessem separados do resto do Leith. Olha só, eu e o Sick Boy, por exemplo, a gente cresceu nos blocos também, tinha aquele caderninho da prefeitura e tudo, mas a gente é mais expansivo porque não cresceu cercado de muros que nem vocês. A gente tem o mar aberto bem na nossa frente. Isso daí só pode gerar uma mentalidade diferente, Matty, saca?

Tipo, o Rents, o Sick Boy ou Keezbo iam certamente adorar discutir esse assunto, mas o Matty só diz o seguinte: – Tô pegando as chaves de um apartamento em Wester Hailes, viado. Ela quer, mas eu não tô muito a fim, hã, não.

E pronto, cara. Esse é o nível da conversa. Isso me faz pensar que o Matty nunca ia se dar bem no mundo do rock’n roll; tipo, nem mesmo se ele fosse melhor na guitarra. Porque olha, imagina só esse gatuno no estúdio com Frank Zappa & The Mothers of Invention, eles tão mandando ver na loucuragem e ele só se vira e diz ‘Tô pegando as chaves de um apartamento em Wester Hailes’. Tipo, como é que os gatunos iam tipo, responder a um negócio desses? ‘Excelente, maluco, vamos tomar um ácido’. Tipo, o cara tem que se esforçar nos contextos sociais, saca?

Daí a gente fica carregando e descarregando caixas diferentes de bens delinquentes do furgão pro esconderijo, e não tá nem um pouco quente, mas eu ainda tô suando sem parar. Conto pro Matty da heroína marrom esquisita do Johnny, mas ele só diz ‘Sim, verdade, não tem mais da branca’. Daí começo a falar sobre minha visita ao Franco e descubro que o Matty também foi visitar ele e tal. Finalmente um pouco de conversa! Ele fica falando sobre como o Franco tava ligado sobre o Swanney e esse outro maluco, o Seeker, e também o Davie Power, mas me dou conta que não consigo ouvir direito o que ele tá falando porque tudo ficou bem distorcido e borrado. Fico tonto e preciso me sentar no chão de concreto e fico pensando, será que aquela heroína que eu usei ontem tava misturada com alguma porcaria ou algo assim...? Olho pra ferida cheia de pus no meu braço bem onde me piquei, mas foi com minha própria seringa e o Keezbo também usou e tal...

– Tá tudo certo, viado? – Escuto a voz do Matty, olho pra cima e vejo a luz do sol bem fraca. – Bora, seu mongol, a gente precisa terminar esse negócio!

Não tô aqui. Tem alguma coisa errada. Eu tô fodido. Tô com vontade de vomitar e tipo tudo ao meu redor tá bem escuro e parece a quilômetros de distância.... – Preciso ir pro hospital, Matty, eu tipo meio que vou morrer...

– Qual é o problema, viado?

– Tô longe, cara. – Aí me esforço pra ficar de pé de novo e é tipo um pesadelo, e o Matty tá perguntando como é que ele vai descarregar todas as caixas sozinho, mas eu tô cambaleando que nem um bebum subindo a Ferry Road. Vomito e caio de novo, mas me seguro e uma tia e o pirralho dela me perguntam se eu tô bem, e eu me forço a ficar de pé de novo e caminho um pouco pela rua... daí...


Mar aberto

A primeira semana no Sealink foi seguramente agitada; uma baderna, um pouco de heroína e sexo de qualidade. Não dá pra ficar melhor que isso. Além de tudo, Marriott marcou o primeiro passeio acompanhado pra hoje à noite. Não há a menor chance da gente durar o mês inteiro aqui.

Esse é o lugar mais estranho em que já trabalhei; nem a oficina do Gillsland, com as competições de cagalhão organizadas pelo Lez nas manhãs de segunda, se compara. No que diz respeito à tripulação, o The Freedom of Choice é como o Marie Celeste. Somos especialistas em driblar o trabalho; isso não vale somente pros temporários, mas também pra equipe fixa. Todos receberam novos contratos de emprego, o que significa trabalhar mais horas por um salário menor, então a motivação é inexistente. Sendo assim, os passageiros que precisam de alguma coisa não nos encontram. Nas ocasiões em que estamos visíveis, marchamos pelo navio com uma falsa expressão ocupada no rosto, sempre fugindo do trabalho de verdade. A voz ciciante do Camisa Creme parece estar o tempo inteiro perseguindo fantasmas; um nome antecedido pelo prefixo “Cadê o...?” É claro que ninguém faz a menor ideia.

Recebi o cargo na cozinha como punição, mas no fim das contas foi uma grande vantagem; muito melhor do que as funções de comissário de bordo. Em primeiro lugar, diminui a chance de ter que enfrentar vândalos do futebol ou grupos de homens bêbados. Não tenho a menor disposição pra lidar com essas merdas. E, pra ser honesto, também tô pouco me fodendo pro esquema de tráfico do Marriott. Se puder passar pela alfândega entre cada turno com umas poucas gramas de heroína pro meu estoque pessoal e sem perder o meu emprego, pra mim tá ótimo. Mas carregar dez gramas de heroína marrom e pura na alfândega depois de cada passeio só pra que um viado gordo possa comprar anéis de moeda, dirigir um BMW e ficar sentado numa mansão na Costa del Sol? Aí perde a graça, né. Tem milhões de otários na comédia da Thatcher fazendo fila pra pegar esse trampo. O único probleminha é como dar essa notícia pro Marriott. Mas tô pouco me fodendo; tenho outras coisas pra me preocupar.

Clang, bang, o navio faz espumando pelo Mar do Norte, deixando uma trilha de gaivotas estridentes que se alimentam dos próprios excrementos. Bang, bang, bang, fazemos eu e Charlene quando ela me agarra, me arrasta pra baixo e me cavalga com força em cima do beliche com os cabelos esvoaçantes, ou então lambo e chupo aquela bucetinha peluda encantadora até que ela uive de prazer ou eu fique asfixiado. Aquela boca de bonequinha em volta do meu pau, os olhos desvairados queimando enquanto soco no fundo da garganta. Somos oralmente competitivos; uma corrida pra ver quem faz o outro gozar mais rápido. Em geral eu venço, me forçando a pensar no rosto vaginal de Ralphy Gillsland na hora do clímax, trancando o jato de porra. Minha vontade de sexo ainda não voltou com toda a força que devia, mas pelo menos usar heroína marrom da boa não a dizima por completo, é diferente de usar a branca. Libido juvenil versus vício crônico em heroína talvez seja a batalha suprema entre força irresitível e objeto inamovível. Mas haverá somente um vencedor, então preciso regular o uso da droga. De outros pontos de vista, compensa; em vez de ficar excitadão, simplesmente querendo enfiar meu pau lá dentro, fico mais relaxado e disposto a preliminares. Nunca tinha percebido que dá pra fazer tanta coisa com os dedos, e no que diz respeito à língua, porra, fico parecendo aquele cara do Kiss ou o gordão do Bad Manners que se parece com o Keezbo...

No convés é uma festa permanente, e os clientes bêbados se batem desnorteados com a tripulação de junkies e bichinhas tensas. O antagonismo do Sick Boy para cima de mim e da Charlene, por termos nos enganchado tão cedo, sumiu no instante em que ele percebeu que as garotas de boa família realmente adoram marinheiros, e que ter um quarto só pra si num barco repleto de festinhas do tipo noite-das-mulheres pode ser tremendamente vantajoso. Ele é o único homem a bordo com uma cabine exclusiva, por causa de uma falcatrua. Ele disse pro Camisa Creme: – Meus hábitos de sono são anormais, Martin, e podem acabar sendo embaraçosos se alguém dormir no mesmo quarto. Ficaria muito grato se pudesse poupar a mim e aos outros esse constrangimento, me alocando em uma cabine privada, se possível.

O baitola molengão respondeu com um olhar compreensivo e disse: – Deixa comigo, vou ver o que posso fazer.

No que dizia respeito à heroína, até agora, só tínhamos conseguido passar pela alfândega com pequenas porções de estoque pessoal. Me caguei na calça, mesmo quando avistei o cara aquele, o Frankie, com quem a gente bebeu no pub. Ele era legal. Mas teve uma vez que eu tava pronto pra passar e ele não tava por lá, era um outro sujeito. Desisti e comecei a me afastar do navio, até que vi o Frankie vindo em minha direção. – Só fui largar um barro – disse ele com um sorriso alegre, assumindo o posto do outro cara e me deixando passar só com um aceno de cabeça.

No começo, meu maior problema foi o Chef. Quer dizer, não exatamente, ele era um cara maneiro depois que cê conhecia ele melhor. O problema era o trabalho e, mais especificamente, a porra do calor. Só quem já trabalhou numa cozinha industrial faz ideia de como o calor é constante e opressivo. Mas eu continuava dando conta do trabalho, e Charlene tinha um papel importante nisso. Ela nos descrevia como “amigos que trepam”. Fez questão de me informar que namorava um carinha que tava na cadeia, e que eu era, basicamente, uma foda substituta.

Sendo assim, preciso manter a paixão a distância, e não é fácil. Eu a vejo como uma equivalente inglesa da minha pessoa; uma princesa do estaleiro de Chatham. E não dá pra esquecer do cara atrás das grades. Charlene não quer falar a respeito dele, e por mim tudo bem, mas ela diz que ele foi preso por furto, não por violência, o que já é um alívio. Mas não importa o motivo da prisão, o sujeito não ficaria muito feliz de saber que tem um viado molhando o biscoito na caneca dele. Não dá pra dizer que é a coisa mais romântica do mundo, ficar trepando numa caminha estreita, mas pelo menos ela é tão ávida quanto eu, e depois de cada foda e a gente sobe ao convés vestindo pouca roupa, só o necessário pra manter a decência caso algum viado nos veja, e admiramos o nascer da alvorada lânguida e enfermiça sobre o porto. Rajadas de chuva congelada açoitam os blocos de concreto dos prédios do cais e do estaleiro e assobiam em torno das estruturas da embarcação acima e atrás de nós. Grandes poças se acumulam nas pedras desniveladas do cais. Figuras solitárias lutam contra o vento, amarrando cordas grossas nos cabeços ou simplesmente andando entre os prédios com pranchetas em mãos. A cabeleira vasta de Charlene é sacudida pela ventania, e ficamos ali de camiseta e calça de moletom fazendo um jogo que consiste em esperar o frio ficar intolerável até que um dos dois grite ME RENDO, e então batemos em retirada, descendo como caranguejos as incontáveis escadinhas estreitas para voltar ao nosso ninho sórdido nas entranhas imundas do navio, entrar debaixo das cobertas e mandar ver de novo.

E assim, no período de licença em Amsterdã, depois dos nossos turnos de trabalho, eu e o Sick Boy estamos sentados no Grasshopper enquanto Charlene joga bilhar com duas minas de Liverpool que vieram no barco e ficam soltando risadas roucas. Nicksy entra com uma cara de colegial assustado ao lado de Marriott, que está inquieto e não parece feliz ao reparar na presença das minas com seus olhos esbugalhados. Ele acena com a cabeça na direção da porta.

Olho pro Sick Boy. A gente pede licença pras garotas e vai pra rua com Nicksy e Marriot, depois sentamos num café de calçada que fica do outro lado da praça. A garçonete chega e pedimos nossos cafés.

– Vai ser hoje – diz Marriott. – Cada um de nós vai passar com dez gramas.

Estou prestes a dizer “de jeito nenhum”, mas Sick Boy chega primeiro. – Desculpa aê, marinheiro. Boa proposta, mas nessa ocasião específica me vejo forçado a recusar.

– O quê? Você... como é que é, porra? Cê só pode tá brincando... Tô com a porra do produto aqui. – Ele acena pra sacola da Sealink a seus pés, abre o zíper e mostra cinco pacotinhos.

– Como eu disse, adoraria poder ajudar, mas nessa ocasião específica, me vejo forçado a recusar.

– Mas que caralho... que vocês esperam que eu faça ouvindo essa merda? – Seus olhos de coruja constipada olham de um jeito bizarro pra uma dupla de mochileiros sentados à mesa ao lado. Um deles tem uma bandeira do Canadá com a folha de bordo enfiada na mochila. Temos exportado todos os caras certinhos da Escócia pro Canadá há várias gerações. Resultado? São todos uns filhos da puta chatos pra caralho, e nós somos um submundo de drogados.

– Não é problema meu – retruca Sick Boy com ar esnobe.

Marriott recorre a mim, em pânico total. – Cê não vai me deixar na mão, né?

– Agora que você tocou no assunto: sim – respondo, e vejo o queixo dele cair quase até as pedras da calçada. O viado dá a impressão de estar indecido entre me dar uma bofetada ou cair em pranto. – Desculpa, amigo, não é nada pessoal – minto. – Mas cê tá coagindo a gente a participar do esquema. Andei fazendo uns cálculos na cabeça: gramas, tempo de cadeia, recompensas. A conta não bate.

– Não vai ter porra de tempo de cadeia nenhum – ele geme, frustrado. – Eu falei dos caras da alfândega! É garantido!

– Então cê não deveria ter dificuldade nenhuma pra encontrar interessados à altura, ansiosos em participar dessa oportunidade de negócios irrecusável que cê tá oferecendo – digo, já satisfeito comigo mesmo a essa altura, ao mesmo tempo que espio o sorriso do Sick Boy se alargando.

Marriott começa a hiperventilar e se vira pro Nicksy. – Cê me disse que eles eram confiáveis, seu viado...

Nicksy perde as estribeiras. – Quem cê tá chamando de viado, porra? – Ele se levanta e avança sobre Marriott, que se encolhe na cadeira. – Tenho um monte de merda mais importante pra pensar do que você e esses esquemas furados de tráfico de drogas, seu magrelo punheteiro filho da puta!

Os mochileiros canadenses, dois quatro-olhos branquelas e certinhos, giram sobre as cadeiras e olham assustados na nossa direção. Nicksy dá um pontapé na sacola da Sealink e ela cai de lado, expelindo um dos pacotes de heroína sobre a calçada. Preciso dizer que nunca vi dez gramas de heroína na minha frente, e embora seja do tamanho de uma embalagem de balas, enquanto o pacotinho comum de meia grama tem o tamanho de duas ervilhas, minha vontade é pular e pegar pra mim! É a primeira coisa que Marriott pensa: ele faz um barulho que parece um gargarejo e mergulha no chão, recolhendo o pacotinho dentro da sacola e fechando o zíper na mesma manobra maníaca.

Nós trocamos acenos de cabeça, nos levantamos e começamos a voltar pro Grasshopper. – Isso não vai ficar assim! – grita Marriott no momento em que a garçonete chega com quatro xícaras de café com leite. A gente olha pra trás e ri enquanto o imbecil descontrolado tenta pescar florins no bolso pra pagar a conta.

– Cê botou aquele palerma no lugar dele, parcero. – Sick Boy ergue o braço de Nicksy no ar como se ele fosse um boxeador vitorioso através da praça. – Casca-grossa!

– Tenho a sensação de que vou precisar ativar todos os meus contatos pra tentar nos tirar dessa merda de encrenca – diz ele com pesar –, mas ele tava passando da conta, não tava?

– Sim – concordo –, mas ele é um bostinha. Não vai fazer nada.

– Não é ele que me preocupa. – Nicksy balança a cabeça e depois me dirige um olhar incisivo. – Cê não acha que aquela heroína era dele, acha?

– Saquei... – Percebo a ficha caindo e começo a achar que fui um otário, sentindo um buraco abrindo no estômago.

– Senhores, suspeito que nosso cargo temporário na Sealink pode ter chegado ao fim – Sick Boy anuncia ao abrir a porta e nos dar acesso ao interior do Grasshopper. Eu e o Nicksy concordamos com a cabeça, e ele acrescenta em tom anárquico: – Mas nesse momento há garotas desejando ser entretidas, e temos o dever de entretê-las!


Deserção

No café da manhã seguinte, Marriott cumprimentou os ex-companheiros desertores com uma expressão de ódio que só um homem obrigado a atravessar sozinho a alfândega com cinquenta gramas de heroína seria capaz de exibir. Apesar do sucesso, ele tinha perdido o que pareciam ser vários quilos suando, coisa que seu corpo esquelético mal parecia capaz de suportar. Decidiu que resolveria este problema por sua conta em vez de ligar para o chefe; isso apenas aumentaria a ira de Gal, e ele ainda acabaria tendo de consertar as coisas. Mas um ressentimento sombrio havia tomado conta dele. Assim que tivesse encontrado novos recrutas, pediria alguns favores e aqueles babacas iam pagar caro.

O silêncio sinistro de Marriott dizia a Renton, Sick Boy e Nicksy que ele certamente estava pensando em vingança. Então, quando retornaram para Hackney, eles decidiram que não seria inteligente voltar para a Sealink. O fato de Charlene também ter optado por fazer as malas em alto-mar tornou tudo mais fácil para Renton. Apesar de ele não saber muito sobre ela, além do fato de que ela roubava para viver, tinha vindo de Chatham e “geralmente” morava em Kenning- ton (que ele por algum motivo havia confundido Kensington até que ela o corrigiu), ele gostava dela e queria conhecê-la melhor. Passaram a noite seguinte juntos na Beatrice Webb House, Renton exultante porque Sick Boy não estava lá, tendo provavelmente ido para a casa de Lucinda ou Andrea, onde ele costumava ficar com mais frequência. No colchão do quarto extra, após um pouco de amor matinal aquecer seus corpos, ela diz a ele: – Fiquei feliz que você também não vai voltar praquele barco infecto... Eu sei no que cê tá metido... com aquele maluco do Marriott e coisa e tal. Todo mundo tava falando disso.

– Do quê? – Renton está apavorado, agora ainda mais aliviado por eles terem literalmente pulado fora do barco. Não que eles fossem discretos, ele percebe melancolicamente; a verdade nua e crua é que ninguém se importava. Mas isso mudaria: a empresa iria verificar. Era, afinal de contas, a época dos fura-greves e dos dedos-duros.

– Esquece essa merda – aconselha Charlene, com a cabeça apoiada no braço. Sua figura esguia desenhada pelo sol da manhã que escapava por entre as frestas da cortina de vime deu a Renton uma primeira impressão de que, apesar do seu nariz pontudo e corpinho de duende, talvez ela fosse mais velha do que ele. – Cê vai ficar preso um bom tempo se te pegarem por isso. Caralho, eu sei identificar direitinho quando vejo um negócio suspeito. Cê sabe que o Benson chamou uma empresa de segurança semana passada.

– Mas isso foi só pra revisar os procedimentos pra lidar com tumulto. Por causa da confusão que rolou com os caras no futebol e tal.

Charlene apertou ainda mais os olhos. – Cê acha mesmo que foi só isso, seu idiota?

Ele não achava. Renton sabia o que estava acontecendo na empresa. Mas ele a fez acreditar que era isso, somado ao rancor de Marriott, que havia selado o seu destino. Não queria contar para ela que não tinha a menor chance de ele voltar para a Sealink se ela também não voltasse. Mas o que ela estava planejando fazer a longo prazo? Ele certamente sabia quais eram suas preocupações imediatas, já que mais uma vez eles estavam indo juntos para o West End.

Quando se veste a rigor, a juba loira de Charlene fica presa num rabo de cavalo bem baixo, deixando duas mechas soltas sobre cada uma das orelhas, enroladas em cachos e solidificadas com fixador de cabelo. Ele vestiu, de acordo com as orientações dela, seu único terno azul-escuro para casamentos e funerais da Leith Provi. Enquanto espera sentado na Carnaby Street, ela rouba para ele sapatos pretos de couro e uma camisa de seda azul clara com uma gravata combinando, um gesto que quase o faz chorar de gratidão. Renton está impressionado com seu profissionalismo. Sua sacola da Sealink tinha sido forrada com papel alumínio para evitar que os alarmes de segurança disparassem. Escondido numa rua lateral, ele troca os tênis velhos e a camiseta e reaparece brilhando entre os consumidores. – Agora você está pronto – ela diz, arrumando a gravata dele como se fosse seu primeiro dia na escola. Eles vão até a John Lewis na Oxford Street e se enchem de mercadorias. Renton afana uma camisa Fred Perry masculina. Nos banheiros, inala um pouco da heroína impura que adquiriu recentemente, junto com anfetamina, enquanto confere os objetos que furtou. Fica ali sentado por horas, abrindo a pequena janela para tentar dispersar os diferentes tipos de fumaça. Quando finalmente sai de lá, com o corpo mole, cara de sono e paranoico, pensando que Charlene pode ter fugido ou sido presa, dá de cara com o sorriso malicioso dela e seu rosto se ilumina. Eles entrelaçam os braços e saem da loja, radiantes com seu sucesso.

Ficam se beijando e bolinando o tempo todo no caminho até a Highbury & Islington. Renton engole o catarro do fundo da garganta para poupar o rosto de Charlene. A palma da sua mão repousa sobre a barriga dela, limitada pela cintura da saia, resignando-se em não poder descer ainda mais. A mão dela na coxa dele, esfregando a semiereção provocada pela droga. Enquanto ele faz planos malucos para o futuro, Charlene é oprimida pela lembrança incômoda de que ama outra pessoa e deveria estar se preparando para dispensar seu consorte escocês. Quando saem da Victoria Line para pegar o trem de superfície até Dalston Kingsland, a culpa faz com que ela fique fria e distante, mas Renton está tão chapado e é tão inexperiente do ponto de vista emocional que não percebe nem se preocupa muito com as variações de humor dela. Chegam à Beatrice Webb House, e quando o elevador entra em ação eles deixam escapar um suspiro vitorioso, perplexos com o ritmo sincronizado que conseguiram alcançar.

Dentro do apartamento, Nicksy está sentado na poltrona, fingindo assistir reprises de Crown Court, enquanto contempla as alternativas terríveis à disposição. As coisas tinham ido longe demais para que fossem feitas como a lei mandava. Diziam que era possível raspar se fosse feito a tempo, mas que era necessário usar um fórceps e puxar tudo de uma só vez, ou aos pedaços, se estivesse mais avançado. Aquilo, AQUILO, pelo menos merecia alguma coisa melhor do que a sarjeta.

Ele cumprimenta Renton e Charlene só por obrigação ao vê-los entrar e desabar no sofá, mas eles estão concentrados um no outro e na TV. – Crown Court... massa... – diz Renton, enquanto Nicksy olha para a cozinha.

– Mark.... preciso muito conversar com você... – diz Charlene, se inclinando è frente com ar sério, mas Renton se joga por cima dela e a interrompe com um beijo intenso. Os dois começam uma guerra de cócegas, riem histericamente e trocam amassos. Nicksy percebe que seu amigo escocês e a Gata do Cabelão adotaram aquela conduta arrogante de “olha-só-acabamos-de-inventar-o-sexo” das pessoas que voltam a trepar após um longo hiato. A ceninha de Bonnie e Clyde é uma afronta ao seu celibato, e ele pensa mais uma vez em Marsha, sete andares de concreto armado acima dele, e nos frutos abortados de seu amor, apodrecendo na ponta de algum cateter.

De repente Charlene dá um tapa bem forte em Renton e fica apontando para ele e proferindo intimações: – Tô falando sério. – Mas Renton continua de palhaçada, fingindo que vai morder o dedo dela como se fosse o cãozinho que está deitado a seus pés.

Nicksy não gosta de garotas tímidas, mas acha Charlene muito cheia de si. O jeito que ela sempre passa a mão nos cabelos, atenta à reação dos caras; ela é exibida demais para o seu gosto. Ele também acha que ela não está nem perto de ser tão bonita quanto pensa, embora precise admitir que aquela crina é realmente de outro mundo.

Renton e Charlene trocam sussurros e se transferem para o colchão do quarto extra. Nicksy resolve dar uma conferida no mercado de Dalston. Um parcero de Ilford estava cheio de walkmans contrabandeados e ele conhecia um receptador caribenho que não fazia perguntas.

Do lado de fora, o dia não está muito estimulante. Já choveu mais cedo e nuvens escuras e carregadas ameaçam derramar mais água. Escarrando na sarjeta para tentar se livrar do gosto amargo do ódio que sente de si mesmo, Nicksy pondera sobre o próximo passo em sua vida caótica. Assim como o trabalho na Sealink, o aluguel do apartamento na Beatrice Webb House possivelmente havia chegado ao limite. Talvez ele pegasse o Giro e os singles de Northern Soul e fosse para casa da mãe em Ilford. Ela gosta de cães e ele ficaria feliz por lá, com aquele quintal nos fundos. Perguntaria a ela primeiro; não ia querer que ele se juntasse ao holocausto canino pós-natalino na ronda de Gants Hill.

De volta ao apartamento na Beatrice Webb House, Charlene e Rents brincam com Giro na sala de estar. Ficam jogando uma bolsa de couro de um lado para o outro enquanto o cãozinho tenta prendê-la entre as mandíbulas. Na sétima mordida ele consegue pegá-la com força, e Renton fica segurando a outra ponta.

– Me dá aqui! Porra, vou arrancar teus dentes, Giro – diz Charlene olhando para o cão e depois para Renton, triste por eles terem feiro amor mais uma vez sem que ela fosse capaz de dizer o que queria. Bem, essa foi a última vez.

– Não, cê não pode largar – ele diz.

Aquelas palavras carregam um peso sinistro e ela sente uma fraqueza tomando conta de si. Tenta lutar contra aquilo. – Você o quê?

– Cê não pode largar – ele segura a bolsa com força enquanto Giro rosna baixinho pelas narinas – senão o cachorro vai ficar mal-acostumado. Ele vai pensar que é o macho dominante da matilha.

– Ele não tem muita competição nessa merda desse apartamento, né?

Renton olha para ela e está prestes a dizer “Fode comigo, acho que estou apaixonado por você”, embora não tenha muita certeza se realmente acredita naquilo e, caso acredite, se este seria um bom movimento estratégico a essa altura. Por isso, hesita. Charlene se vira para ele e diz: – A gente precisa parar com isso.

– O quê? – pergunta Renton, sentindo algo se sedimentando lá no fundo. Seus dedos soltam a bolsa e Giro a arranca de sua mão e sai correndo com ar de vitória, levando o prêmio.

O olhar de Charlene está firme e focado. – Você sabe do que estou falando.

– Por mim tudo bem – diz Renton, profundamente devastado. Em seguida começa a resmungar, angustiado: – Mas... mas tá tão massa... a gente junto. E trepando e coisa e tal. Cê mesma tava dizendo...

– Sim, é mesmo – concorda ela –, mas eu te disse desde o começo que a gente não tava ficando pra valer.

– Eu nunca disse que a gente tava. – Ele ouve uma criança na sua voz e, num flashback, vê a si mesmo quando garoto, balançando um pedaço de pau dentro do seu forte. E depois, no calçadão em Blackpool, com o rosto choroso enfiado nos peitos de uma estranha.

– Cê é um cara legal, mas eu te disse que tenho outra pessoa.

– Então tem esse outro carinha. – Renton se sente atingido pelo próprio tom amargo e também pelo fato de que queria dizer “Aposto que o pau dele é maior que o meu”, mas consegue se controlar e comenta: – Deve ser um camarada bonitão, imagino.

– Acho que sim. Você iria gostar dele. Ele é parecido com você.

– Ah, claro – desdenha Renton. – Em que sentido?

– Bom, ele gosta um pouco demais de ficar doidão, pra começar. E ele gosta de Northern Soul e punk. Olha... eu te disse desde o começo que tinha uma outra pessoa. Que isso nunca seria uma coisa permanente.

– Beleza, por mim – diz ele em tom nada convincente, depois balança a cabeça, desolado, e fala praticamente sozinho: – Gozado, tudo que eu queria era uma mina pra tipo, não pra ficar, mas pra ser amigo. Como cê disse, uns amigo que fodem. Que nem aquelas mina que o Sick Boy tem lá na área dele; sem complicação nem nada. E é isso que tava rolando com você...

– Bom, sim, problema resolvido, então.

– Não, é que, tipo, agora eu quero mais. – E ele pensa em suas relações anteriores do último ano; Fiona, depois aquela mina massa de Manchester, Roberta era o nome dela, e mais umas outras de quem ele não queria lembrar.

– Pra mim parece que cê não sabe o que quer.

Renton sente os ombros encolhendo. – Eu gosto mesmo é de ficar doidão e de fazer umas coisas e de ficar de bobeira e de fuder. É do caralho.

– Então não me olha desse jeito!

– De que jeito?

– Tipo uma foquinha órfã presa no gelo prestes a ter a cabeça arrebentada por um porrete!

O sorriso inflexível deixa a boca de Renton e sobe relutante até os olhos. – Não tinha me dado conta... foi mal. É só que cê é uma mina tão massa... – Ele sacode a cabeça com afeição. – Aquele lance do papel alumínio na sacola foi muito do caralho.

Charlene o encara, depois relaxa, se acomoda no sofá e fica pensando em Charlie no hospital. Os dois dentes da frente ausentes, dando a ele aquele sorriso simplório que ela tão perversamente amava. Eles dois: namoradinhos de infância das Medway Towns. Rochester e Chatham. Sim, ela ama Charlie. Mark é melhor de cama, mas isso não vai durar, não com toda aquela heroína que ele fuma. Mas ela gosta dele. – Cê é o primeiro carinha que não fica falando da porra do meu cabelo o tempo todo; isso me dá nos nervos – ela diz de modo pouco convincente.

Os ombros de Renton se erguem num gesto depreciativo. – Ele é sensacional, mas às vezes acho que ficaria melhor se fosse curto. Destacaria esses seus olhos lindos – diz pausadamente, sentindo um latejamento abafado e enjoativo nas profundezas do ser, trazendo a heroína de volta ao pensamento.

Charlene sorri para Renton, achando que ele está de sacanagem. Mas ele parece bem perturbado. Ela ama Charlie, mas sabe que a prisão não tinha feito bem para ele e suspeita que a extensão total dos danos ainda não tenha se revelado. Ela é pragmática o bastante para manter suas opções em aberto. É bom saber que o Mark se importa. Ela fica em pé, rabisca um nome, “Millie”, e um número na agenda ao lado do telefone, arrancando o pedaço de papel. Renton também se levanta; sente que o momento exige isso. Ela enfia o papel no bolso do jeans dele. – Não é meu, é de uma amiga em Brixton. Ela vai saber onde estou, se você quiser me encontrar algum dia. Deixa o seu número com ela que ela passa para mim e daí eu ligo pra você.

Renton fica parado na frente dela, sem fazer menção de deixá-la passar. Charlene pensa por um segundo que ele está bloqueando sua passagem, mas não crê que ele seja do tipo de fazer cena. Na verdade, ao abraçá-lo, ficou chocada com o quanto ele estava distante, aceitando a situação, e como, após um breve ataque de carência, aquilo tinha se tornado tão fácil para ele. Uma onda de arrependimento se abate sobre ela. – Você é um carinha maravilhoso – diz, e o abraça com mais força.

Mas ele se debate como um pirralho teimoso nos braços de uma tia indulgente. – Beleza... cê é massa... ahn, a gente se vê, Charlene – diz ele roboticamente.

Me deixa me deixa me deixa... heroína heroína heroína....

Charlene desfaz o abraço e recua um pouco, segurando suas mãos e olhando para ele, maravilhada com os ângulos do seu rosto magro e com seu sorriso de dentes amarelos. – Cê vai me ligar, não vai? Foi muito bom... na cama e coisa e tal... – diz ela.

Sim, falei que vou ligar – diz Renton, enquanto cada nervo de seu corpo grita VAI, até que, para seu alívio extremo, Charlene vai embora com a sacola da Sealink pendurada no ombro com a alça expandida, o que obstrui a última visão daquele bunda durinha que ele vinha tratando como um altar. Embora a imagem continuasse bem gravada no cérebro, ele teria apreciado um vislumbre de despedida.

A estudante levou um fora, e a ladra um pé na bunda

Vou sobrevirer, hey hey.

Assim que escuta a porta do elevador fechar lá fora, Renton corre em direção ao seu estoque pessoal dentro da geladeira barulhenta e resmungona. A heroína fica resfriada junto com um pouco de alface e aipo podres numa gaveta. Ele pega a caixinha, volta para o sofá, se debruça na mesinha de centro coberta de detritos infectos e começa a preparar o pico. Toma um susto com o barulho da porta, achando que Charlene pode ter voltado. Mas é apenas Nicksy, que observa Renton com desdém e vai até a cozinha, onde bate imediatamente duas carreiras enormes de anfetamina na mesa com pernas bambas e declara, em estilo punk, que a Inglaterra é uma merda. – Tá tudo acabado, parcero.

Renton está aquecendo a heroína, fazendo a chama do isqueiro lamber a colher. Está um pouco preocupado com a impureza da droga, mas ela parece estar se dissolvendo num elixir borbulhante. – Culpa da Escócia e tal – diz olhando para Nicksy e tentando demonstrar empatia. Era verdade; o otimismo pós-guerra com certeza havia acabado. O Estado de bem-estar social, o emprego total, a Lei da Educação de Butler, tudo isso acabou se degenerando a ponto de perder completamente o sentido. Agora era realmente cada um por si. Não estávamos mais nisso juntos. Mas isso não era de todo ruim, ele pensava; pelo menos agora temos uma oferta maior de drogas para escolher.

Nicksy fica em pé num salto e para na porta que liga a cozinha à sala de estar. Aponta para a colher e seu conteúdo, com os nervos em frangalhos, a boca aberta num espasmo e o cabelo escorrido colado ao crânio. – Dá um tempo, Mark. Cê disse que tinha parado de injetar essa merda.

Renton ergue a vista e encara a figura carrancuda do justiceiro obstinado. – Porra, dá um tempo você, Nicksy. Acabei de levar um pé na bunda.

– Ah.... putz. Que merda – Nicky diz, voltando para a cozinha sem saber por quê.. Dá uma pirueta no piso de cerâmica e retorna para a sala de estar. – O cara tem que ser dinâmico – fala para si mesmo.

– Cê passou por essa, amigo – Renton observa, enquanto enrola o cabo do abajur da mesa em volta do bíceps e depois o agarra entre os dentes. – Não é muito bonito, né? – choraminga, ainda perplexo com o som da sua voz. Porra. Eu falo mesmo pelo meu nariz, agora.

– Não, não é.

– Pois é, a Charlene fudeu com tudo. Ela tem esse namorado. Ele tá saindo da cadeia. – Renton bate no pulso para fazer saltar uma veia.

– Bem, isso não vai ajudar.

– Não é pra ajudar, é pra ser. Se ser escocês é ser alguma coisa, essa coisa é ser um fudido – Renton explica ao mesmo tempo que faz a agulha penetrar lentamente na carne. – Pra gente, ficar doidão não é só diversão, nem um direito humano básico. É um estilo de vida, uma filosofia política. O Rabbie Burns que disse: uísque e liberdade andam lado a lado. O que quer que aconteça no futuro com a economia, qualquer governo que esteja no poder, pode ter certeza de que a gente ainda vai estar enchendo os cornos e injetando essa merda – ele anuncia, vibrando de antecipação exultante ao sugar o sangue escuro com a seringa e depois alimentar a veia faminta com a mistura.

Enfim em casa, querida...

Uau... que coisa linda...

Renton se atira para trás no sofá macio com molas ruidosas que sustentam seu peso como os portadores de um caixão e ri com um bocejo insondável: – Fumar essa merda... não vale o custo-beneficio...

Nicksy não tem tempo para ver TV ou escutar as observações dopadas do amigo. Não consegue ficar quieto, a metanfetamina bateu e ele está vibrando na poltrona. Sentindo o cheiro pungente dos seus próprios tênis, fica em pé de súbito. Ergue os olhos para o forro bege e sem graça do teto.

Marsha.

Sai correndo porta afora como se o apartamento estivesse em chamas.


Dilemas da heroína nº 1

Nicksy quase arrancou a porta fora. O viado anda agitado demais ultimamente. O que aconteceu com aquele cockney miúdo bom de esquiva com aquele malandrinho que não se deixava abalar por nada?

Deve ser aquela mina que mora lá em cima, a Marsha. Mulheres. Uma porra dum campo minado. A estudante que cê come um tempo e depois joga fora. A mina que rouba loja também rouba o coração do cara e...

FISGADA FORTE...

Mas que puta merda...

FISGADA FORTE PRA CARALHO...

Opa... levanto e corro pro banheiro. Uma mijada que parece demorar meses. O cachorro veio e botou as patas da frente na beira da privada, tá olhando meu jato de mijo. Ele bota o focinho no mijo, se molha, dá uma ganida e vai embora, me olhando como se eu fosse um viado. – Giro... desculpa aê, compadre...

Essa mijada tá me dando tédio... termina... termina... termina...

TERMINA...

TERMINA...

BAM BAM PUM PUM...

Batida na porta. Sacode a benga. Guarda. Anda. Abre a porta da frente.

É uma negrinha, a Marsha, e ela tá berrando um monte de merda. Sobre o Nicksy, a beirada de alguma coisa... falando sobre bebês mortos...

Mas que maluca... mas aí chega a polícia... meu Deus, é a porra da polícia... uma policial gordona e um policial orelhudo, e tão dizendo pra gente descer pelo elevador...

O elevador desce e ela continua gritando que o Nicksy é doente, que não sabe o que ele quer dela e eu penso...

PUTA MERDA...

Não me deixam voltar pra buscar a heroína...

É A MINHA HEROÍNA, PORRA!


Torres de Londres

Lucinda é minha passagem pra boa vida. Chegou a hora de parar de brincadeira e atacar; botar a aliança no dedo dela, me mudar de vez pro apartamento dela em Notting Hill e depois forçar uma gravidez como apólice de seguro. Nessa altura o velho inglesoide dela vai ter que ceder e reconhecer que o Jovem Williamson não vai embora. Depois vai ser só ficar quietinho por uns anos antes de botar as mãos na fortuna da família. Tenho no bolso a chave do compromisso com C maiúsculo, a aliança que comprei na joalheria semidecente da Oxford Street.

Ela é sem dúvida o tipo de garota que dá pra levar pra casa e apresentar pra mãe, e acho que vou acabar fazendo isso mesmo, já que Rents e eu estamos com saudade da Caledônia. O esquema da grana do governo significa uma viagem quinzenal de National Express pra assinar a papelada no sul, e o Nicksy anda falando em sair do apartamento e voltar a morar com a mãe por um tempinho. Também quero ver como anda o coitado do Spud. Dizem que ele não está nada bem.

E a Lucinda quer brincar de cortiço. Fico impressionado ao ver tantos amigos dela entrando nessa. Ao olhar destreinado talvez pareçam pobres, nas roupas, no jeito de agir, no cheiro e talvez até no modo de falar, mas em algum ponto da estrada de tijolos amarelos, escondida num buraco mais adiante, uma pilha de tesouros imerecidos está à espera deles. Uma pilha que muda tudo. Um monte de dinheiro que me diz: vai se foder, sua fraude vazia sempre que eles começam a falar forçando um sotaque cockney. Agora ela anda fazendo essa merda, por enquanto de forma irônica, mas nós dois sabemos que, se eu der qualquer força nesse sentido, ela vai adotar o sotaque como elemento de estilo, sem vergonha nenhuma. Ela anda me dizendo que eu falo como Sean Connery, ao mesmo tempo que demonstra uma curiosidade preocupante sobre o Leith e os Bananas. Mas, se é vida de bloco que ela quer, eu certamente posso dar, e preciso admitir que a ideia de bombar dentro da Lucinda em cima de um colchão saturado com manchas de porra e suco de buceta de centenas de moradores temporários de um bloco de Hackney tem mesmo certo apelo estético trash. Então, no momento pós-coital, eu apresento a aliança e seguiremos junto para o norte para que ela conheça a Mama. Sinto falta de alguns rostos (pra não falar de algumas xoxotas) lá de casa, e acima de tudo quero ter certeza que o inútil cujo pênis azedo engendrou minha existência não anda incomodando minha mãe.

Desembarcamos da cafonésima linha North London em Dalston Kingsland, que tem a solitária vantagem de ser gratuita, e tomamos o rumo do condomínio da Holy Street. Lucinda, apesar de toda a pose, segura meu braço com mais força, confirmando que ela é mesmo um pouco fresca demais pra este território. Não tema, bela donzela, Simon está aqui.

Aquela garotinha Charlene Fawcett-Majors-Plant que o Rents anda comendo aparece no outro lado da rua. Viramos a cabeça ao mesmo tempo; fingimos não nos conhecer. Tenho coisa melhor engatada no meu braço do que aquela vadiazinha, ainda que a Lucinda esteja torrando o meu saco falando sobre como as coisas são “verdadeiras” por aqui. Se eu quisesse coisas “verdadeiras”, teria ficado no Leith, mas deixa ela se apegar a essas ilusões de mina rica. Só que ela percebeu eu e a Charlene ostensivamente ignorando um ao outro: um negócio mais suspeito do que qualquer cumprimento entusiasmado. – Quem era aquela garota?

– Ah, só uma menina meio raivosa que o Mark anda pegando.

– E aquela Penny? – pergunta ela, desconfiada.

– Pois é – respondo na hora. – Aquele ali tem uma ética de rato de esgosto. Acho que...

Mas puta que me pariu...

– O que houve? – Lucinda me aperta com mais força quando enxergamos uma multidão reunida diante da Beatrice Webb House. Acompanhando a linha de visão, enxergo alguém de pé num dos parapeitos do prédio, do lado de fora da porra da janela! Parece que um dos braços está pra dentro, mantendo a pessoa ainda neste mundo. E puta merda, é o Nicksy. – Caralho! É o cara que mora comigo! Nicksy!

– Simon, que horror... o que ele está fazendo...?

Preciso admitir que meu primeiro instinto é um desejo ardente de que ele se atire; simplesmente para me colocar como elemento central no drama de uma vida curta e trágica. Penso naquela coleção de discos repartida entre Rents e eu. Grana pra mandar um pouco da marrom pro norte. Os viados nem iam saber o que era. Aí me dou conta de que ele não tá pendurado do nosso apartamento, é bem mais no alto. É a casa daquela safada!

Aí dou uma espiada nela na multidão, a maluca da Marsha, cercada por um grupo de jovens negros de olhos arregalados e algumas gordas caribenhas que certamente não estavam no fim da fila quando distribuíram o arroz com feijão. Ela me enxerga e se aproxima, os olhos transtornados pegando fogo. – Ele entrou no meu apartamento e começou a gritar! Depois saiu pela porra da janela!

– Ele é doido – respondo.

Marsha olha pra mim como quem reconhece que eu não tô nem aí, de modo que ela também não precisa fingir que se importa, pelo menos não tanto. Lucinda e ela, duas londrinas de diferentes estratos sociais, a chique e a pobretona, se encaram com cautela e intimidação mútuas. Marsha se vira pra mim e diz: – Cê devia tá de olho nele! Cês moram juntos!

– Que sera, sera – comento enquanto os olhos esbugalhados da maluquinha passam de mim pro décimo quarto andar. Não temos mais nada a dizer um pro outro.

Avisto a cabeça vermelha do Rent Boy e me aproximo de suas costas trêmulas. Quando ele percebe minha presença, ainda dá uma espiadinha nos peitos da Lucinda antes de falar: – A polícia mandou a gente sair. Não deixaram ninguém ficar nas escadas. Mandaram um viado lá pra cima pra conversar com ele! Tem heroína na mesinha da sala!

Agora ele ganhou toda minha atenção; dou um tapa na cabeça, irritado. – Se ele fizer alguma idiotice...

– A porra da polícia vai revirar o apartamento – diz Renton cerrando os dentes amarelos.

Lucinda puxa minha mão. – Está tudo bem, Simon – tenta me acalmar. – A Polícia Metropolitana sabe o que está fazendo. Eles são muito bem treinados para esse tipo de situação.

Muito bem treinados. Brixton. Broadwater Farm. Stoke Newington. David Martin. Blair Peach. Colin Roach. – Sim, os caras sabem muito.

Nicksy continua em pé no parapeito, pendurado na janela. Como o filho da puta conseguiu sair? Tem uma trava de segurança, o cara precisa desatarraxar isso pra abrir a janela a ponto de conseguir sair. A polícia fez um cordão de isolamento na entrada do prédio; ninguém pode entrar. Uma tia velha fica reclamando que precisa entrar porque o gato pode estar com fome. A polícia faz que nem ouve. Mas que porra esse animal tá fazendo, todo esse drama por causa de uma vagabundinha igual a mil outras? Marsha tava pulando sem sair do lugar, e agora tá chorando e sendo consolada pela irmã. Ela é uma boa foda, mas louca a ponto de não ter mais conserto. Ele chertamente perchebe, não acha, Sean? Maish o mor é chégo, Shimon. Eche complecho de chalvador, Sean, porque afeta tanta gente? Shei lá, parchêro.

É difícil saber se o Nicksy quer pular ou se decidiu que não é uma ideia tão boa, mas tá com tanto medo que congelou e não consegue voltar pra dentro. Pego o Rents resmungando alguma coisa que parece: – Esse viado só quer atenção. – E sem dúvida não tenho como discordar disso. Mas daí ele estraga tudo completando com: – Se alguém tinha que fazer isso, era eu. – Daí ele vira a cara branquela e sardenta de drogado pra mim. – Charlene acabou de me dar um pé na bunda!

– Que pena – digo, um pouco inquieto, porque dá pra ver as engrenagens se movendo dentro da Lucinda como se ela estivesse pensando Achei que ele estava namorando com a tal da Penny... Esse ruivo de merda só estava comendo ela há umas duas semanas; não dá pra dizer que eram Romeu e Julieta. – Acho que ele ficou preso. – Aperto a mão da “Cinder”, apontando para o décimo quarto andar numa tentativa de mudar o foco de sua atenção. Os olhos dela se arregalam e a boca assume uma forma oval tensa e trêmula.

Fico pensando que uma queda em linha reta faria Nicksy se estourar no calçamento de concreto, enquanto pular num salto talvez fizesse ele desabar na grama. De qualquer modo ele estaria fodido. Imagino que seria bem mais difícil limpar a porcaria no concreto. Isso se o corpo se abrir. Pensando nisso, sinto calafrios na parte de trás das pernas e nas mãos enquanto meu anel começa a piscar. Começo a ficar louco que ele não pule, que seja salvo, e desejo isso com todas as partículas do meu ser. O cara é gente boa pra caralho. Sinto a caixinha de plástico no bolso, contendo a aliança de ouro cravejada de diamantes, e tudo que eu quero é subir com a Lucinda e foder lindamente com ela, para então, quando ela estiver num transe transtornado, fazer o pedido e colocar essa porra no dedo dela. Tudo armado para a vitória de Williamson, e esse viado egoísta do Nicksy está estragando tudo!

Cinders vai levar gol!

Aí enxergo um policial na janela. Está falando com o Nicksy, que parece muito assustado. Queria ter um binóculo, porque uma negociação claramente está rolando. O policial está imóvel, não dá pra ver os traços dele, mas os movimentos são mínimos. Esse circo se estende por um tempo interminável, ainda que no máximo tenham se passado alguns minutos até que o Nicksy dá uma olhada pra baixo e começa a se mover com cuidado pelo parapeito. O policial pega ele pelo braço, com um sorriso tranquilizador, e o ajuda a voltar pra dentro do apartamento, primeiro uma perna e depois a outra.

Enquanto o Nicksy desaparece pela janela, gritos de vitória são seguidos por aplausos educados, tão contidos que lembram uma partida de críquete. Apesar do fato de não estar mais acontecendo nada, dois retardados com uniforme da polícia – um orelhudo boca-aberta e uma feiosa loira, gorda e com baixa autoestima – se recusam a desfazer o cordão de isolamento. – Precisamos esperar a autorização – diz a gorda, com um walkie-talkie encostado na cabeça.

O débil mental acaba decidindo que não há mais nenhum corpo esperando pra se atirar da janela no prédio, e somos gentilmente permitidos a voltar pra nossas casas.

Obrigado por isso, porco.

Como o elevador está estragado de novo, é preciso encarar uma subida cansativa de sete andares. Pelo menos serve pra fazer a Lucinda suar e aprender como vive a outra metade, enquanto Renton resmunga e tagarela sobre as injustiças da vida, com as que lhe dizem respeito inevitavelmente assumindo o destaque. Reconheço uma risada de desdém nas escadas mais acima, e é aquela Marsha. Ela olha pra gente, com as mãos nos quadris. – Então essa daí é sua namorada rica? É por isso que cê não sobe mais pra me comer, carinha?

Vejo Lucinda e Renton olhando pra trás pra me encarar e sinto o sangue desaparecendo do meu rosto. Lucinda começa a descer as escadas correndo, e vou logo atrás dela. – Cinders! Peraí!

Ela para e se vira de repente pra me encarar. – Me deixa em paz! Vai se foder!

– Ele sobe aqui quase toda noite, né. – Olho pra cima e vejo Marsha apoiada na balaustrada, gargalhando como uma feiticeira vodu do caribe, uma massa imensa de dentes brancos num rosto encarquilhado.

– Ela é maluca, Cinders! É a namorada do Nicksy!

– Ele tem um sinal preto bem grande numa das bolas branquelas! – Marsha berra e gargalha, acompanhada pela irmã.

– Em qual das bolas? – pergunta Renton, como se o filho da puta estivesse mesmo tentando me ajudar. Boto a mão na testa, perturbado, quase furando as têmporas com o indicador e o polegar.

– Me deixa! Me deixa, porra! – grita Lucinda, e então baixa a voz. – E pensar... que você é esse mentiroso escroto... na verdade eu tenho pena de você. – Ela ri, um acompanhamento rouco e grosseiro para o som agudo da zombaria londrino-jamaicana que vem dos andares de cima, reverberando por toda a escadaria.

– Caralho! – Dou outro tapa na testa enquanto as risadas estridentes de cima vão ficando mais baixas enquanto Marsha e a irmã sobem correndo.

– Levar um pé na bunda é uma merda... agora todos nós levamos... – Renton comenta, como um idiota. – Vai atrás dela!

– Nem pensar, porra. Agora tudo está acabado: minha vida realmente terminou – digo pra ele, o empurro e continuo subindo. Aí escuto um: – Porra! – E ele passa correndo por mim, escalando os degraus como um demônio. Quando entro no apartamento, Renton está tirando da mesinha da sala a heroína e todo o material relacionado a ela. – ME AJUDA AQUI, FILHO DA PUTA! – Não posso fazer nada além de obedecer, e assim que terminamos alguém bate na porta. Trouxeram Nicksy de volta; está acompanhado do policial e de uma mulher com cara de reprovação. Renton coloca água pra ferver e prepara um chá. Nervosa, a mulher segura uma caneca lascada do West Ham enquanto ela e o policial colocam Nicksy no sofá. Estou arrasado, e preciso muito me deitar e analisar com cuidado minhas opções cada vez mais escassas. Vou até a janela e vejo Lucinda caminhando decidida pelo gramado na direção de Kingsland Road e da estação que a levará para o oeste e a vida real.

Minha vida acabou. Foi destruída.

– Puta merda, cê tá legal? – Rents aparece atrás de mim.

– Vou sobreviver – respondo.

– Tô falando com o Nicksy. – Ele aponta pra ruína humana no sofá.

– Sim.... – Nicksy geme, mais parecendo um rato de esgoto morrendo afogado.

O policial coloca a mão no ombro daquele vegetal patético. – Brian precisa vir com a gente para ter uma conversa e depois pode voltar para casa. – Então dá uma olhada pra mulher hostil, que imagino ser uma assistente social de merda. Longe de mim querer generalizar toda uma profissão, mas todos os assistentes sociais são filhos da puta. – Não é nada sério – diz ele, percebendo a expressão agressiva de Renton. – Ele só precisa conversar com alguém.

Cinders...

Eu meio que amava ela.

– Ele pode conversar com a gente – responde Rents, desconfiado. – A gente é parcero.

Fale por você, Rent Boy, eu penso. Colecionar gente otária não faz meu estilo (a não ser que tenham vaginas).

Oh, Cinders, volta... porra, eu gastei dinheiro com a aliança!

O policial olha pra gente com um sorriso cansado, e depois balança a cabeça. Nicksy encolhe os ombros num pedido de desculpas submisso, como se estivesse reconhecendo que agiu como um babaca, o que certamente aconteceu. Mudei de ideia de novo. Se o cara vai fazer uma coisa dessas, precisa ao menos ter a hombridade de ir até o fim, ao invés de se cagar de medo, desistir e fazer papel de palhaço. O coitado do Spud está lutando pela vida numa porra de respirador e esse inglesoide maricas não tem colhões de acabar com tudo. Eu fui rejeitado por minha quase noiva e ainda estou aqui, pronto pra tudo. Ainda estou lutando.

Renton acompanha o infeliz até o elevador. Vou junto: só porque não consigo pensar em outra coisa pra fazer. Talvez a Cinders tenha voltado.

Na frente da Beatrice Webb House, Nicksy entra num carro com a assistente social, que o leva pra uma conversa animada e sincera em algum lugar. O policial que tirou ele do parapeito fala com um colega e depois dá uma olhada na pintura cinzenta do prédio em contraste com o azul-claro do céu e comenta: – É uma queda e tanto.

Que poder de observação brilhante, porra! Que privilégio termos um luminar da polícia envolvido neste caso! Ainda assim eu também acabo olhando pra cima, pensando em várias maneiras de me vingar daquela pretinha ninfomaníaca. Se o merda do Nicksy estivesse comendo ela direito, a vadia não ia ter precisado se meter comigo, e agora eu estaria planejando um casamento na alta sociedade!

Renton parece fascinado com o policial que fez o resgate, um mutante alto, magro e moreno, de cabeça raspada. Tem uns olhos risonhos que não combinam com a boca, que mais parece um rasgão. – Como você convenceu ele a voltar pra dentro?

O policial olha pro Renton com certo desprezo, mas logo parece amolecer um pouco. – Só fiquei ouvindo o que ele dizia. Falando e ouvindo.

– O que aconteceu com ele?

– Vocês são amigos. – O porco dá de ombros. – Talvez ele conte pra vocês quando achar que deve fazer isso.

Renton parece ter ficado meio constrangido com isso. Começa a se mexer de um jeito meio desconfortável, e então encara o policial. – Mas o que cê disse pra fazer ele voltar pra dentro?

O policial abre um sorriso sincero. – Só falei que, não importa o quanto as coisas pareçam ruins agora, é apenas um fardo de ser jovem. Que as coisas ficam mais fáceis. Que ele precisa sempre se lembrar disso e não jogar tudo fora. Que a vida é uma dádiva.

Minha vida com Lucinda. Arruinada. Minha grande chance. Perdida. Tudo graças ao Nicksy!

Renton parece refletir sobre isso por algum tempo. Tá com a pose de junky, abraçando a si mesmo mesmo sem que o tempo esteja frio. Viciado de merda, vai atrair mais polícia que o Nicksy, tremendo desse jeito em público e na frente de um policial. – É verdade? Fica mesmo mais fácil? – pergunta, ansioso.

O policial sacode a cabeça. – Porra nenhuma. Fica é muito pior. O que acontece é o seguinte; todas as expectativas que você tem na vida caem por terra. Você só se acostuma com a merda toda.

Renton parece tão perturbado quanto eu estou me sentindo, e trocamos um olhar de quem se dá conta de que o policial não está brincando. Penso no coitado do Spud. Renton encara o porco, muito sério. – E se o cara não se acostumar, e se o cara não consegue se acostumar?

O policial olha pra cima de novo, encolhe os ombros e estende o beiço. – Bem, aquela janela vai continuar ali.


Botulismo de feridas

Tam chega meio apressado na enfermaria, e assim que me enxerga vem na minha direção. Ele tá com uma cara preocupada e eu fico com vontade de gritar: tô respirando, cara, tô respirando mesmo! Não é excelente?! Sim, quero dizer pra ele que os médicos dizem que vai ficar tudo bem, mas não consigo tipo, dizer nada, não tenho como responder com esse tubo enfiado na garganta. Tudo que consigo fazer é respirar. E o Tam entende isso rapidinho e aperta minha mão. Daí começa a falar pelos cotovelos, dizendo que tava no norte fazia uma semana, tipo, subindo uns morros com aquela Lizzie, e que voltou o mais rápido que conseguiu. Fico meio que pensando que com ela eu também ia ser bem rapidinho e tal, mesmo sabendo que não é isso que ele quis dizer, e é bem legal da parte dele ter aparecido. – Ah, Danny, seu burro. O que a gente vai fazer com você?

Fico apontando pro tubo, mas daí a Angie, a enfermeira de plantão, entra. Tommy pede pra ela dizer como estão as coisas.

Dá pra ouvir a Angie contando tudo em detalhes, como teve que fazer com todo mundo que veio pra me visitar. – Ele chegou cambaleante na Emergência com visão dupla, fala arrastada, pálpebras caídas e fraqueza nos músculos extraoculares.

Tommy faz que sim com a cabeça, daí me olha como quem diz tá, e daí? E qual é a novidade?

– O diagnóstico foi confirmado como botulismo de feridas – Angie explica.

– O que é isso?

Angie sacode a cabeça. Gente boa demais, a Angie, mesmo sendo uma jambo de Sighthill! Ou talvez uma jambette, se é assim que a gente chama as mulheres-jambo. Mas não, isso deve ser sexista. – Uma coisa muito feia – ela explica pro Tommy. – Mas felizmente os médicos fizeram o diagnóstico rapidamente, e assim conseguiram oferecer o tratamento adequado, que inclui colocar o Danny neste respirador e ministrar antitoxina para botulinum. O prognóstico é de recuperação completa.

– Foi... a heroína que fez isso? – O Tommy tá fazendo a mesma pergunta que a minha mãe na semana passada, quando eu tava acordando. Todo mundo fica falando ao meu redor, o que me dá nos nervos; só porque eu tô com esse tubo na garganta não quer dizer que eu tipo, não consiga ouvir. Saca?

Angie não dá uma resposta direta, só faz uma cara séria, mas gentil, como faziam as melhores professoras na escola, e diz: – Ele andou fazendo muita bobagem, não foi, Danny?

Eu não teria muito o que dizer em relação a isso, mesmo se tipo, estivesse sem um tubo enfiado na garganta.

– Faz o que eles mandarem e toma jeito depois que sair daqui – diz o Tommy, me encarando com os olhos castanhos como se quisesse me furar com eles, e daí aperta minha mão de novo.

Tento dizer “beleza”, mas consigo sentir os músculos da minha garganta se contraindo ao redor desse caninho duro e me agito um pouco, daí só aperto a mão dele também e mexo a cabeça. Aí o Tommy começa a falar sobre o que ele anda fazendo, aquele negócio das Highlands, saca? Longe de mim querer estragar a festa de um cara apaixonado por uma mina excelente, mas é só “a Lizzie e eu” pra cá, “eu e a Lizzie” pra lá. Tudo bem, a vida é dele, mas o negócio é que ficar ouvindo as aventuras sensuais de outros gatunos é chato demais, especialmente quando o felino ouvinte não está tipo, cruzando com nenhuma gatinha por aí. Aí depois de um tempo ele aperta minha mão até quase quebrar os ossos e diz: – A gente se fala em campo.

Daí ele vai embora, mas em seguida chega aquele médico paquistanês, o sr. Nehru, o cara que de fato me salvou, e tá acompanhado de uma garota. Ela usa óculos e tá usando meio que um terninho, mas não parece assistente social. Tem um cabelo preto e brilhante muito excelente, meio que na altura do pescoço.

– Danny... Danny boy... vamos tirar você desse negócio amanhã! Isso é bom, sim! – diz o sr. Nehru.

Faço um joinha pro gatuno, porque essa maluco é mesmo muito legal e salvou minha vida, cara. Curto o sotaque cantado e o jeito que a cabeça dele se mexe de um lado pro outro quando ele fala. Sim, cara, quando um maluco é tão empolgado eu meio que também fico todo entusiasmado. Saca? É disso que eu preciso, cara, de um motivador do meu lado, tipo me ajudando todos os dias. Pra me deixar empolgado e com coragem, saca. Alguém pra me dizer que eu sou legal, que não fiz bobagem. Alguém tipo o sr. Nehru.

O sr. Nehru se vira pra garota, a armação dos óculos dela é muito legal, toda vermelha, e as lentes são meio escuras mas bem de leve, e ela é bem magrinha, tipo uma aranha de perna fina, e ele explica pra ela: – Danny contraiu botulismo de feridas. É uma doença potencialmente fatal que ocorre quando esporos da bactéria Clostridium botulinum contaminam uma ferida e então vêm a germinar e produzir a neurotoxina do botulismo. Ele é um cara muito sortudo, não é, Danny boy?! – pergunta-me ele daquele jeito cantado e eu respondo piscando o olho. Ele diz pra mina magrinha de óculos que a incidência de botulismo de feridas está aumentando e tem relação direta com a injeção de heroína na pele ou na musculatura.

– Mas por qual motivo? – pergunta a mina, com um sotaque chique.

– Os motivos para o aumento permanecem inconclusivos, mas podem envolver a contaminação de cargas específicas de heroína, bem como mudanças nas práticas de uso de seringas.

– Que perturbador... Posso falar com ele?

– Claro! Ele escuta muito bem. Vou deixar vocês dois sozinhos para se conhecerem melhor.

A garota dá um sorriso forçado pro sr. Nehru, mas quando senta ao meu lado os olhos dela se acendem, toda empolgada. Eu só consigo pensar “o que é que tá acontecendo?”, mas não consigo dizer nada!

– Danny... sei que você passou por coisas horríveis por causa da doença e seus problemas com dependência de heroína. Mas estou aqui para ajudar, para ajudar você a superar tudo isso.

Não consigo dizer nada, mas o sol que vem por trás da garota tá fazendo ela brilhar inteirinha, ficar emoldurada por uma luz luxuriante de ofuscar os olhos, e acho que minhas orações podem ter sido atendidas, cara, porque ela tem uma pureza que é bem tipo, estilo Virgem Maria, saca?

– Quero ajudar você, trabalhar com você em uma unidade que montamos, um lugar novo e inovador. Haverá outras pessoas como você nessa instituição de vanguarda, e trabalharemos com um homem chamado Tom Curzon, um dos melhores do ramo. Ele deve ser o maior especialista do Reino Unido na reabilitação de drogados centrada no cliente. Você quer trabalhar conosco e deixar que o ajudemos a melhorar?

Fico mexendo a cabeça e dizendo sim sim sim por dentro, e faço um joinha pra ela.

– Que ótimo, que ótima notícia. – Ela sorri. – Assim que você estiver se sentindo mais forte, vou providenciar para que seja transferida daqui para o projeto de reabilitação – ela diz, e a menina parece mesmo muito empolgada com isso. – Meu nome é Amelia McKerchar, e estou aqui para ajudar você, Danny. – E daí aperta minha mão suada.

E daí eu sinto como se tivesse mesmo sido salvo, cara, salvo por um anjo de misericórdia! Agora só tem como melhorar!


SECA


Dilemas da heroína nº 2

Esse viado deve tá a um fio de cabelo de bater as botas, de tanto se picar. Levanto do lugar da cozinha onde eu tinha apagado, em cima dos pisos frios, imundos e rachados, saio cambaleando e encosto a orelha no peito dele: um batimento fraquinho, diluído. – Matty, acorda.

E pouco depois já lamento ter me dado ao trabalho, porque o viado ressuscita e é só tormento e desespero. Primeiro ele e depois a Alison, que eu nem tinha reparado que tava deitada no sofá. Os dois ficam choramingando que a falta de heroína tá matando eles, que tudo isso é uma merda e que eles querem largar. Depois a pequena Maria surge tremendo na porta do quarto em que dormiu com o Sick Boy, chorando e chamando a mãe e o pai. Sick Boy vem atrás dela, também tremendo como um gatinho recém-nascido, com um dos olhos tremendo em espasmos, e diz: – Calem essa boca, porra! Mas que bando de derrotados! Será que sou o único viado aqui que sabe fazer festa?

Vou pro banheiro dar uma mijada, morrendo de medo de me ver no espelho. Quando termino, aquela garotinha Jenny, amiga da Maria, sai do quarto. Parece aterrorizada com aqueles olhos grandes e úmidos, e dá a impressão de ter uns 10 anos de idade quando se aproxima de mim. – Eles disseram que cê ia descolar um pouco mais daqulo – ela geme, esfregando a mancha vermelha na dobra do braço. Lesão comercial? Cultural? Um acidente industrial. – Maria me espetou bem ali – ela diz. – Mas não quero mais, quero ir pra casa agora. – Ela me olha como se eu fosse alguma espécie de carcereiro, implorando pra ser libertada. – Que cê acha que eu devo fazer?

– Vai pra casa – digo, balançando forte a cabeça e depois olhando pra porta da sala. – Nem volta ali dentro pra dar tchau pra ninguém. Cê vai se envolver mais ainda. – Abro a porta e indico a escada. – Vou dizer pra eles que cê tava passando mal e teve que ir pra casa. Vai logo – incentivo, ouvindo as vozes elevadas e histéricas vindo da sala e torcendo pra que essa mina dê o fora imediatamente. – Vai pra casa! Rápido...

E ela sai acenando com a cabeça num gesto de gratidão amedrontada. Fecho a porta atrás dela, volto pro corredor frio e fedorento e entro na sala.

Sick Boy, que se largou em cima de um pufe encostado na parede, tá gritando mais que todos os outros. – Vou sair pra caçar. – Ele encara todo mundo com os olhos bem abertos. – Quem mais tá a fim?

Todo mundo continua parado, tremendo e se lamentando. É como um velório em massa de refugiados palestinos dando adeus à última leva de mártires que arremessaram pedras. Maria diz alguma coisa sobre preferir estar morta e Ali sai do sofá e vai confortar ela. – Cê não pode dizer uma coisa dessas, Maria, cê é só uma garotinha...

– Mas é como se eu já tivesse morta... isso aqui é o inferno – ela balbucia com o rosto triturado e crivado de angústia.

– A porra do melodrama não tem fim – diz Sick Boy antes de olhar pra mim e se levantar usando o aquecedor com apoio. – Quem topa sair?

– Eu topo... – digo, e acompanho ele no corredor.

Ele me fita com olhos grandes e arregalados e bota a mão com carinho no meu ombro. – Valeu, Mark – sussurra. – Tinha que sair de perto dessas minas escrotas. Bons tempos em que pra fechar a matraca delas era só encher de porra, agora é só heroína, heroína, heroína.

– É... mas o cara tem que ir em frente, né.

Ele concorda com um aceno firme de cabeça e a gente se acotovela até a porta da frente. – A gente nunca devia ter voltado pra esse lugar – resmunga ele, balançando a cabeça. – Eu podia conseguir um suprimento pra gente com o Andreas... a falcatrua do seguro-habitação com o Tony... a gente tava arranjado lá, cara, tava tudo bem arranjadinho, porra...

Maria começa a gritar: – Cadê a Jenny? Se ela fugiu, vou abrir a buceta dela ao meio!

Escuto Ali tentando dizer alguma coisa pra acalmar no momento em que eu e Sick Boy escapulimos pela porta da frente como ladrões fugindo da cena do crime. A voz de Matty urra atrás da gente, tomada do mais puro terror: – Avisa se conseguirem algo!

A gente não para, não olha pra trás. Quando saímos da escadaria e damos pra rua, alguém grita na janela, mas a gente nem se vira pra ver quem é.


Notas sobre uma epidemia 6

Conselho de Saúde de Lothian

Privado e Confidencial

Ocorrências de Casos de HIV+ em Fevereiro

Gordon Ferrier, 18, Edimburgo Norte, mensageiro motociclista e boxeador amador, uso de drogas intravenosas.

Robert McIntosh, 21, Edimburgo Norte, limpador de janelas, uso de drogas intravenosas.

Julie Mathieson, 22, Edimburgo Norte, estudante de teatro, mãe de um filho, uso de drogas intravenosas.

Philip Miles, 38, Edimburgo Norte, cozinheiro desempregado, pais de três filhos, uso de drogas intravenosas.

Gordon Murieston, 23, Edimburgo Norte, soldador desempregado, uso de drogas intravenosas.

Brian Nicolson, 31, West Lothian, engenheiro civil desempregado, uso de drogas intravenosas.

George Park, 27, Edimburgo Sul, operário desempregado, pai de um filho, uso de drogas intravenosas.

Christopher Thomson, 22, Edimburgo Norte, padeiro desempregado, uso de drogas intravenosas.


Um porto seguro

Minhas mãos vivem frias agora. Como se a circulação tivesse parado. Não eram assim. Mesmo nos dias quentes fico esfregando, juntando, assoprando nelas. Sinto um aperto no peito; um catarro grosso mantém meu sistema respiratório sempre entupido.

Duf duf duf...

Mas causei isso a mim mesmo. Ninguém mais fodeu com a minha vida; não foi Deus nem Thatcher. Fui eu; destruí o estado soberano de Mark Renton antes mesmo que esses viados pudessem chegar perto com o guindaste de demolição.

É estranho estar de novo na casa dos meus pais. Ficou tudo muito quieto depois da morte do Pequeno Davie. Mesmo quando estava no hospital, ele era uma presença forte; meus pais corriam de um lado pro outro sem parar, preparando visitas, comprando coisas pra ele, tagarelando o tempo todo sobre o estado dele pros parentes e vizinhos. Agora os níveis de energia na casa despencaram e o senso de propósito sumiu; os dois já tavam dormindo quando apareci tarde na noite de sexta. Billy ainda tava acordado.

Eu só tinha aparecido pra pegar uns LPs pra vender, mas acabei sentando pra ver o boxe na TV com o Billy e depois desabei na minha própria cama. Meu corpo tá metabolizando a heroína cada vez mais rápido. Eu costumava dar dias entre um pico e outro. Agora são cerca de quatro malditas horas. Fiquei mais letárgico e preguiçoso, com o objetivo principal de conservar energia e não gastar o efeito da droga. Estou sempre irritadiço. Entediado. Desligado. Acima de tudo, apático. Sair do sofá (por qualquer motivo que não seja a heroína) é um esforço monumental.

Eu e Keezbo nos increvemos no tratamento com metadona, seguidos pelo Sick Boy. Alivia um pouco os efeitos da abstinência, mas fora isso é uma bosta, e a gente continua ansioso e sempre em busca da droga. Digo isso pra mina da clínica e ela responde que a gente só precisa “se ajustar” um pouco antes que todos os sintomas desagradáveis da abstinência deixem de ocorrer. Até parece!

Quase todos os dias, quando não tô procurando heroína, leio o Ulysses do Joyce, que fiquei surpreso e contente de encontrar na Biblioteca da McDonald Road. Nunca tinha sacado o livro antes, parecia um monte de baboseira tediosa pra mim, mas agora mergulhei nele e fico viajando com as palavras e as imagens que elas evocam como se tu tivesse tomado um ácido. Pena que não trouxe o livro comigo pra casa da minha mãe.

O programa da metadona exige que você se apresente diariamente na clínica do Leith Hospital. O hospital tá previsto pra fechar ano que vem, mas a gente tem que comparecer lá pra uma avaliação e mais uma dose do xarope com gosto de desinfetante de privada. É como o seguro-desemprego, mas com um entrosamento maior. Cê conhece um monte de viciados ali. Alguns parecem envergonhados e entram de cabeça baixa, furtivamente, enquanto outros tão pouco se fodendo e perguntam na cara dura se cê tem droga. Alguns são uns vagabundos, sem tirar nem pôr. Se não fosse a heroína, seria qualquer outra coisa. Mas a maioria não é, são só uns garotos normais que se drogaram até esquecer quem eram pra não precisarem lidar com a vergonha de não ter nada pra fazer. Foram enlouquecidos pelo tédio. Em geral eles escondem isso dentro deles, mantêm uma máscara de compostura por meio de um discurso agressivo e debochado e de um humor negro. Não podem se dar ao luxo de se importar, e sabem que se cultivarem a apatia por muito tempo serão engolidos por ela. E estão certos.

A metadona é uma merda. Não dá barato nenhum, mas eles insistem que devemos persistir, porque com a “sintonia fina” do meu sistema ela vai acabar tirando o desconforto e será muito melhor que a alternativa. Às vezes, na clínica, te olham como se cê fosse um rato de laboratório e falam num tom sussurrado e reverencial. Fizeram testes de sangue; não só pra HIV, o rapaz fez questão de salientar. Mas pelo menos tão fazendo alguma coisa. Finalmente se deram conta de quem tem uma grande merda rolando lá fora.

Não dá pra dizer que esteja acontecendo muita coisa na casa da minha mãe. Me dei conta de que eu e Billy esquecemos de competir quando os velhos não tão por perto, a gente esquece que se odeia e até que nos damos razoavelmente bem. Vimos um boxeador negro americano destroçar a mais recente esperança branca.

Então Billy disse algo como: – Não tá rolando pra mim, essa porra de vidinha de cidadão.

– Cê acha que vai voltar pra polícia?

– Talvez.

Resisti ao impulso de continuar discutindo o assunto. Eu e Billy estamos a quilômetros de distância um do outro nesse tipo de questão, e embora eu ache que ele é um bicho idiota pra caralho, é a vida dele e não cabe a mim ficar dizendo como ele deve viver. Mas ele continuou falando por um tempo; sobre os oficiais serem uns babacas e só fazerem merda nas patrulhas a pé, mas que ao mesmo tempo cê tem uns parceros do seu lado e sente que pertence a alguma coisa. Ele precisa ir no tribunal semana que vem porque desceu o cacete num viado no bar, então a cabeça dele tá uma confusão.

Billy se mudou pro antigo quarto do Davie, o quarto bom que tem vista pro rio. O fato do melhor quarto da casa ter sido destinado a alguém que ficaria igualmente feliz no sótão ou no porão motivou um certo ressentimento compartilhado entre Billy e eu quando nos mudamos do Fort pra cá, uns anos atrás. Não hesitou em reivindicar o quarto pra ele depois que Davie faleceu, o viado; mas tudo bem, até porque não tenho planos de voltar. Agora a metade do quarto que ele ocupava ficou vazia. Ele levou a foto enquadrada de Donald Ford com o uniforme Jambo dos anos 70, parecido com o do Ajax, e também o rolo de caligrafia que ele fez na aula de arte (a única realização visível em 11 anos de educação estadual) com a letra completa do hino “Hearts, Glorioso Hearts” inscrita em tinta marrom. O King Billy montado num cavalo de plástico que ficava no peitoril da janela, contemplando os blocos residenciais infestados de torcedores do Hibs com um olhar de desaprovação, também foi levado embora, felizmente.

A fita adesiva que ele colocou no chão há milênios continua ali, atravessando o carpete. Puxo ela e exponho uma faixa mais escura contrastando com o azul-claro desbotado. Ele chamava a fita de Muro de Berlim Invisível, dividindo o espaço dele do meu pôster da League Cup de 1972 com Stanton em destaque, uma foto do time do Hibs em 1973 com as duas taças erguidas e uma foto do Alan Gordon com pose de tiro. Tem um pôster recente do Jukebox. Tenho uma foto ótima da igreja de St. Stephen’s Street em cuja parede o Tommy pichou IGGY É DEUS e uma montagem de fotos de adolescentes punks e soul boys, cada um com um corte de cabelo mais vergonhoso que os outros. Eu devia arrastar minha cama pra mais perto da janela, porque o Billy não vai voltar pra cá.

Chegou ao ponto de comprar uma cama de casal pro quarto do Pequeno Davie, pra poder comer a Sharon confortavelmente quando ela dormir aqui. O cantinho da foda de um jambo. Como é que o pervertido consegue armar a barraca com o pai e a mãe dormindo bem ali do lado, caralho? Ele não tem nenhuma porra de dignidade? Eu nunca conseguiria trazer uma mina aqui pra casa da minha mãe.

Aí acordo tarde na manhã de sábado; depois das 11. Não tô com fome, mas meus pais, surpresos em me ver, insistem que eu fique pro picadinho de sábado. É meio que uma tradição ela preparar esse picadinho cedo, em geral ao meio-dia, pra que a gente pudesse ir pra Easter Road ou Tynecastle, ou às vezes, no caso do meu pai, pra Ibrox. Embora hoje o futebol não paire sobre nossas vidas com a mesma força que antigamente, o costume do picadinho ao meio-dia permanece com uma perversa insistência. A toalha de mesa branca aparece, depois a caçarola com o picadinho borbulhando dentro e uma cebola grande boiando no meio. Depois o purê de batata e as ervilhas. Mas no silêncio e rigidez dos gestos da minha mãe dá pra perceber que há outra coisa por trás do cerimonial: eles parecem ter se dado conta de que há algo errado comigo. A velha tá inquieta à mesa e acabaram os cigarros. Ela pede pro Billy, mas ele não dá muita bola e diz que não tem. Lembro dele ter dito alguma coisa sobre reduzir a quantidade ou tentar parar. – Preciso sair pra comprar cigarros – diz ela.

– Você não precisa fumar neste exato momento, Catherine – diz o velho pra ela como se falasse com uma criança. Ele quase nunca usa o primeiro nome dela, e dá pra ver que tem alguma coisa rolando porque eles ficam trocando olhares constrangidos e me espiando. Fico empurrando o picadinho pelo prato. Comi um pouco do purê, mas esse picadinho tá salgado demais, tanto que meus lábios secos e rachados ficam pinicando, e as ervilhas ficaram tanto tempo no forno que mais parecem umas bolinhas de rolamento verdes e enrugadas. A velha não cozinha um ovo, mas, mesmo que ela fosse a Delia Smith, eu não ia conseguir comer porra nenhuma, só consigo ficar ali tremendo e piscando os olhos por causa da luminosidade que entra pela janela grande.

Mas que caralho, só vim dar uma passada pra pegar uns LPs!

Pelo canto do olho, vejo a velha se erguendo pra vasculhar as gavetas do guarda-louça e virar as almofadas do sofá pro caso de um cigarro ter caído e ficado ali. Ela tá me dando nos nervos e tenho vontade de dizer “Por favor, senta nessa merda de cadeira e come”, mas o meu velho me dirige um olhar cortante e fala em tom acusador: – Quero te fazer uma pergunta. Assunto sério. Cê é um deles?

Dessa vez ele quer dizer junky em vez de bicha.

– Diz pra gente que não é verdade, filho, diz! – minha mãe suplica, parada atrás da cadeira que acabou de vagar. Tá agarrada nas costas da cadeira como se esperasse um impacto, as dobras dos dedos esbranquiçadas.

Por algum motivo, não consigo nem me dar o trabalho de mentir. – Mas eu tó fazendo o tratamento com metadona – revelo. – Tô largando o pico.

– Imbecil de merda – diz Billy entre os dentes.

– Bom, então é isso – diz papai com decepção. Em seguida me encara com ar questionador: – É?

Só consigo encolher os ombros.

– Cê é um junky – os olhos dele se espremem –, um junky imundo, infecto e mentiroso. Um viciado em drogas. É isso que cê é, não é mesmo?

Levanto os olhos pra ele. – Quando você me rotula, você me nega.

– O quê?!

– Quem disse isso foi o Kierkegaard.

– Mas quem é esse viado? – pergunta Billy.

– Søren Kierkegaard, filósofo dinamarquês.

Meu pai bate com os punhos na mesa. – Bom, pode parar com essa merda, pra início de conversa! Porque agora isso acabou, todos os seus estudos, todas as suas oportunidades! Não é um maldito filósofo que vai te ajudar agora! Essa não é só mais uma das suas fases idiotas, Mark! Não é algo que você possa levar na brincadeira por um tempo e largar quando encher o saco! Isso é sério! Cê tá jogando a vida fora!

– Ai, Mark... – Minha mãe começa a soluçar. – Eu não acredito. O nosso Mark... a universidade... a gente tava tão orgulhoso, não é, Davie? A gente tava tão orgulhoso!

– Esse negócio aí pode te matar, já li tudo a respeito – meu pai declara. – É como brincar com uma arma carregada! Cê vai acabar no hospital como aquele rapazinho, o Murphy; ele quase morreu, cacete, pelo amor de Deus!

A mãe começa a chorar; soluços cheios de engasgos, pausas, perdas de fôlego. Quero confortar ela, dizer que vai ficar tudo bem, mas não consigo me mexer. Me sinto paralisado em cima da cadeira.

– Mas como é burro – Billy engrossa o coro. – Só vagabundo se mete com essa merda.

A forma costumeira da gente se tratar voltou a valer, tá evidente, então encaro o panaca de cima a baixo com o mais puro desprezo. – Imagino que a alternativa madura, sensata e socialmente benéfica é descer a porrada nos outros em lugares públicos.

Billy parece irritado por um momento, mas deixa o comentário passar com um sorrisinho indulgente na cara.

– Já conversamos sobre isso! – grita meu pai. – Passamos a semana inteira conversando sobre ele e a merda da estupidez dele! – Aponta o Billy com o polegar de maneira desdenhosa, sem olhar pra ele. – Agora temos que conversar sobre você, filho!

– Olha só – digo erguendo as palmas das mãos – não é nada de mais. Tenho feito festa demais, e adquiri um vício. Sei que é um problema e estou tentando resolver. Tô indo na clínica, me inscrevi no programa da metadona, e tô me afastando aos poucos da heroína.

– Tá, mas não é fácil desse jeito! – minha mãe guincha de repente. – Já fiquei sabendo das histórias, Mark! A tal da Aids!

– Cê tem que injetar pra pegar Aids – balanço a cabeça devagar –, e eu tava só fumando. Mas pra mim deu. É coisa de gente burra, como o Billy falou. – Porém, enquanto tento manifestar minha concordância, não resisto e, atestando minha cretinice, desvio o olhar pro meu braço.

Meu velho acompanha o meu olhar e, rápido como um raio, agarra meu braço, arregaça a manga e expõe as trilhas de marcas com casquinhas purulentas. – É mesmo? O que é isso aqui, então?

Recolho o membro degenerado num movimento de reflexo. – É muito, muito raro eu injetar, e nunca compartilho agulhas – alego. – Olha... sei que saiu um pouco de controle, mas tô tentando dar um jeito nisso.

– Ah é? – minha mãe se esgoela, olhando horrizada pro meu braço. – Parece que não tá tentando com muita vontade, né!

– Bem, tô fazendo tudo que posso.

– Ele tá se mutilando, Davie!

– Pelo menos ele admite que tem um problema, Cathy – meu pai contemporiza –, pelo menos já é alguma coisa. – Ele parece ceder um pouco, mas então me encara com olhos ardentes e ávidos. – Foi Londres que causou isso?

Não consigo me segurar quando ele diz isso e começo a rir alto. Tenho muito mais acesso à heroína aqui do que lá.

– Pode rir se quiser – diz ele, se lamentando. Depois acrescenta: – O Simon não tá envolvido, né? Stevie, o pequeno Hutchy, muito menos.

– Não – respondo por algum motivo, evitando envolver Sick Boy nisso. – Eles nunca chegaram perto disso. Sou só eu.

– É, o único burro – diz minha mãe, arrasada.

– Mas por quê, filho? – roga meu pai. – Por quê?

Nunca sei o que responder quando me perguntam isso. – O barato é bom.

Os olhos dele saltam pra fora como se um viado tivesse dado atrás da cabeça dele com um taco de beisebol. – Jesus Cristo, pular dum precipício deve ser o maior barato também, até que cê chega no chão! Para pra pensar, pelo amor de Deus!

– Me sinto dentro dum pesadelo – mamãe geme. – Não dá pra chamar de outra coisa: um maldito pesadelo!

Em seguida vem um silêncio gratificante, dá pra ouvir o clique suave do relógio luxuoso com pêndulo que o velho comprou de um amigo trambiqueiro no Ingliston Market. Então ele dispara. É lento, são 12 batidas metálicas, apesar de já ter passado muito do meio-dia, medindo nossas vidas em pulsações cardíacas... tum... tum... tum...

Tento engolir à força alguns bocados de picadinho, mas meu mecanismo de deglutição tá todo fudido. Sinto a comida descendo pela garganta, mas os músculos não funcionam. É como se o picadinho ficasse acumulado no esôfago e me afogo um pouco mais com cada porção, até que, pro meu alívio, ele finalmente chega no meu estômago apertado, do tamanho de uma bolinha de tênis. Minha mãe, que tava atenta a mim, parece ter uma ideia, se levanta com uma pressa repentina e demente que sobressalta todo mundo, corre até o guarda-louça, pega um envelope e me entrega. – Chegou pra você – diz ela em tom de censura.

O carimbo postal é de Glasgow. Não faço a menor ideia do que seja ou quem tenha enviado. De repente me dou conta de que seis olhos fervorosos estão cravados em mim, dizendo que seria inadequado enfiar o envelope no bolso pra ver depois. Então eu abro. É um convite.

Sr. e sra. Ronald Dunsmuir

humildemente solicitam a presença de

Mark Renton

............

no casamento de sua filha

Joanne April com sr. Paul Richard Bisset

na

St. Columba Church of Scotland,

Duchal Road, Kilmacolm, Renfrewshire, PA13 4AU

no

Sábado, 4 de Maio de 1985, 13h

e posteriormente no

Bowfield Hotel e Country Club,

Bowfield Road, Howwood, próximo ao Aeroporto de Glasgow,

Renfrewshire, PA9 1DB

RSV: 115 Crookston Terrace, Paisley, PA1 3PF

– O que é? – pergunta minha mãe.

– Nada, só um convite de casamento. Um velho amigo da universidade, Bisto – respondo, surpreso por eles estarem casando e espantado com o convite. Joanne deve ter embuchado; é a única coisa que explicaria, já que ainda falta um ano de curso pra eles em Aberdeen. A última vez que vi Joanne foi na Union Street. Eu parecia um mendigo, andando de cabeça baixa pra casa do Don. Ela tava com outra mina; não olhou pra mim, mas grudou o capuz do moletom na cara e atravessou a rua.

A mãe começar a mirar a distância e balança a cabeça enquanto uma lente de lágrimas recobre seus olhos. Em seguida, me fita com uma expressão de angústia. – Podia ser você... com aquela moça encantadora, a Fiona – ela funga. – Ou até mesma a Hazel. – Ela se volta pro meu velho, que concorda com a cabeça e aperta a mão dela.

– É, escapei por pouco – digo.

– Não começa, Mark! Faz o favor de nem começar, droga! Você sabe muito bem do que a sua mãe tá falando! – grita meu pai.

O que eu sei muito bem é que já fiquei tempo demais aqui, e agora que a coisa da heroína foi jogada em cima da mesa não estou mais disposto a ficar ouvindo essas disquisições tediosas sobre onde-foi-que-erramos. Eles erraram, em resumo, quando sucumbiram a seus caprichos egoístas e trouxeram mais vidas pra essa bosta de lugar. Não pedi pra viver e não tenho medo de morrer. A única coisa que vai acontecer é que tudo vai voltar a ser como era antes de eu estar vivo; não devia ser lá grande coisa, mas também não devia ser uma merda total, pois eu teria ficado sabendo. Só passei aqui pra buscar meus discos. O Billy me olha, sabendo muito bem o que tô fazendo, mas não diz nada.

Dou uma passadinha no banheiro pra afanar os Valiums da coroa e me mando pra Walk, sofrendo com o peso dos discos dentro da velha sacola da Sealink. Ainda bem que topo com Matty e Sick Boy na Kirkgate. Parecem tão fudidos quanto eu, e nenhum dos dois fica muito empolgado quando peço pra eles carregarem um pouco a sacola. O Matty assume a bronca um tempo, mas dá pra sacar que é só porque ele quer conferir o que tem ali dentro. Só então me dei conta: Bowie, Iggy, Lou, todos tavam indo embora.

– Viado, vai ser uma tristeza perder esses. – Matty articula meus pensamentos com astúcia.

– Vou passar tudo pra fita – me defendo.

– Viado, até posso te imaginar sentado fazendo isso, pode crer – diz ele. Sick Boy permanece quieto, andando inclinado pra frente com os braços cruzados em cima do peito.

Não vou discutir com esse viado nem fudendo. – Vou pedir pra Hazel gravar as fitas então, ela tem resistência ao tédio.

Matty dá de ombros e a gente sobre pra loja de discos. Sick Boy fica lá fora fumando enquanto eu empilho os LPs no balcão. O carinha dá uma olha neles com uma expressão no rosto que eu conheço bem; eu próprio usei várias vezes no trabalho. – O Bowie eu sempre consigo passar adiante – diz ele –, mas ninguém tá interessado no Iggy com os Stooges e no Lou com os Velvets. Anos 70 demais.

VIADO DE MERDA.

Acabo recebendo um valor irrisório pelos álbuns, e o Matty finge olhar os discos e fitas em exposição enquanto conta mentalmente cada nota e moeda que o carinha bota na minha mão. Ao sairmos, damos de encontro com metido a besta do Olly Curran chegando pela Walk, o filhadaputa enrustido nacionalista. – Tudo em paz, Olly?

– Sssim... – diz ele com aquele chiado ardiloso de víbora dele, baixando o nariz pra olhar pra mim, depois pro Sick Boy, e por último o Matty. Dá pra ver que ele nos considera a escória do planeta: uma tremenda desgraça pra raça branca suprema. – Cê é da família Connell – acrescenta ele pro Matty com leve tom de acusação.

Matty, com um cigarro na mão, gira o brinco na orelha como se quisesse sintonizar melhor o cérebro. – E daí?

– Cê não tá morando no Fort agora. – Olly balança a cabeça.

– Não, Wester Hailes, e tal.

Olly distribui um olhar de guarda de segurança, um olhar grosseiro e estúpido demais até pra um policial, e em seguida há um silêncio. Então eu digo: – Esse colarinho tá engomado que nem o de um militar, Olly.

Ele sorri, os olhos evasivos se enchem de ódio imbecil, depois ele assume um ar todo satisfeito e diz: – Bem, algumas pessoas gostam de manter o padrão.

– Pois é, tá imaculado mesmo, esse colarinho. Ouvi dizer que sua senhora leva o dhobi no Bendix.

– Sssim – ele assobia de leve, desconfiado e ao mesmo tempo orgulhoso –, ela realmente leva.

Sick Boy acena com a cabeça e diz: – Conheci uma mina que era louca por isso. Cê não podia enfiar nada na máquina de lavar. Tinha que levar no Bendix todas as vezes.

– É... às vezes pode até ser uma incomodação – Olly reflete –, porque ela tem uma máquina de lavar em perfeito estado.

– Mas se ela tá acostumada a levar no Bendix... – Sick Boy abre um sorrisinho sacana.

Tô sofrendo pra caralho pra conseguir manter uma cara séria, e a boca de caverna e os olhos de uva esmagada do Matty indicam que o viado tá ciente de que tem uma provocação envolvida nisso tudo, mas não faz ideia do que seja.

– É – Olly afirma –, com a mãe dela era igualzinho.

– Mas duvido que ela não use a máquina de lavar de vez em quando também – insiste Sick Boy.

– É muito raro.

– Mas aposto que cê gosta de meter tudo ali também, não? – diz Sick Boy.

– Ah, eu tento, às vezes, mas com ela é só Bendix, Bendix, Bendix, não tem jeito.

– E você, nunca leva lá? – pergunto.

– Quando eu era mais jovem e solteiro, sim. Mas naquela época eu era marinheiro, e o capricho com a roupa era exigi... espera aí, como é que é, o quê... – Olly começa a dizer, e a gente não consegue mais se conter. – Do que cês tão rindo? Cês tão aprontando alguma, cacete! Conheço vocês! Conheço o joguinho!

– Qual é o joguinho, então? – retruco.

Ele vê o meu pulso, tem pus escorrendo das cascas de ferida por cima da pele branca e arrepiada.

– Acidentes industriais. – Dou uma piscadinha, mas ele se vira, repugnado, e sai andando firme pela Walk.

– Levou no Bendix! – grita Sick Boy. Dói de tanto rir. Sinto pontadas nas costelas. Mas me dou conta de que a piada sou eu, somos nós, à medida que a dor se instala e nos olhamos meio cegos de tanto ranho, nos sentindo leprosos em nosso próprio lugar. Transeuntes nos olhando com horror e asco: dá pra sentir na pele o desprezo. – Vamos dar o fora daqui – diz Sick Boy.

Dor. Dor psíquica.

E vai ter mais ainda quando chegarmos em Tollcross. Matty prefere esperar na rua. – Viado, eu não sou bem-vindo aí, tá ligado – diz ele. Dentro, os pés de tomate perto da janela tão podres e estropiados que nem o Johnny, que tá ali sentado na frente de carreiras de anfetamina. Cometo o grande erro de entregar o dinheiro que devo a ele. Ele embolsa a grana e em seguida se recusa e me dar mais crédito.

– Só um pacotinho, parcero.

– Desculpa aê, mano, negócios são negócios, camaradinha.

– Mas acabei de te entregar uma grana, cê sabe que eu garanto.

– Se não tem os pila, não tem heroína. Não tem muito produto disponível, então o pouco que existe fica com quem tem a grana na mão. Eu traria a bufunfa e ficaria esperto, se fosse você.

– Vamolá, Johnny, a gente é parcero...

– Não tem parcero nesse jogo, mano, agora todo mundo é só conhecido – diz ele. – Atualmente o Swan é só um dente da engrenagem, compadre. – Ele enche os pulmões de sulfato. – Sou um gerente de departamento da Virgin em vez de dono da loja de discos do Bruce. Se é que me entende.

Ele tem razão. Não tem da branca agora, e a marrom chegou com tudo no pedaço. Swanney tá repassando pra outro cara, então ele tá num degrau baixo da escada. Sendo assim, voltei pra primeira casa do tabuleiro. Matty começa a resmungar quando chegamos no térreo. – Nada! Viado, como assim, nada?! – O viado me acusa de estar escondendo dele e a discussão se estende pela rua. – Mongoloide de merda – diz ele.

– Queria que cê parasse com essa coisa de mongoloide, Matty.

– Só porque seu irmão era um – diz ele, fazendo o tabu sair em palavras ácidas por aquela boquinha apertada de viado filhadaputa.

– Não, síndrome de Down era o único problema médico que aquele viadinho deficiente não tinha – retruco, cobrindo ele e eu de vergonha ao mesmo tempo.

– Te disse que a gente tava sem heroína, porra – Sick Boy baixa a bola dele. – E para com essa merda de dizer que a gente tá escondendo. Me diz como é que a gente pode esconder de um viado vagabundo que nunca botou a mão no bolso pra começo de conversa!

Matty cala a boca depois disso e a gente segue caminhando em silêncio. Chegamos no Largo da Walk, os três na merda total, tremendo, e escutamos um berro de gelar o sangue: – SI-MOHN!

Duas mocinhas espevitadas com pinta de menor de idade tão paradas na frente do Central, chamando a gente. É o último lugar em que a gente quer entrar agora, mas elas não aceitam não como resposta. É aquela Maria Anderson e a amiguinha dela, Jenny. Acontece que a Jenny é prima da Shirley, então o Matty não parece muito empolgado. Nem eu. Digo pra ela cair fora, e ela acena com a cabeça como se tivesse concordado, mas continua saracoteando em volta e não parece estar com a menor pressa. Ninguém ia servir elas no Central, então a gente vai pro Dolphin Lounge. Ficamos sentados no canto bebendo Pepsi, que é cheia de açúcar, até que o Nelly vem chegando do Crown Bar, que fica logo ao lado, pede um pint e senta com a gente. Começa a falar um monte de merda sobre Begbie e Saybo, mas não tô interessado e fico tentando me desligar da conversa em volta pra tentar bolar um jeito de descolar heroína. Só que ele insiste em ficar martelando no meu ouvido e pergunta: – Cê acha que eu tomei a decisão errada?

Eu não tava ouvindo o que ele dizia e não faço a menor ideia do que ele tá falando, então digo: – Cê tomou a decisão, Neil – digo encolhendo os ombros e cruzando o olhar com a Jenny, que me encara com timidez e depois desafio. Ela que se foda, essa putinha idiota; elas tão caindo que nem peças de dominó agora e eu não sou agente social dela e muito menos de mim mesmo.

Nelly me olha com uma cara de tartaruga beiçuda. – E?

Outras duas garotas chegam pra engrossar o harém do Sick Boy. – Sealink – uma delas fala, apontando pra sacola já vazia aos meus pés e pronunciando Sealunk, com verdadeiro sotaque do Leith. Normalmente eu tentaria lamber as migalhas que caem da mesa de banquete do Sick Boy, mas agora não dá. Bowie, Iggy e Lou, todos perdidos. Puta merda, dói por dentro. – Look around the world, baby, it cannot be denied – digo pro Nelly.

– É isso aí, porra! – o viado dispara, achando que me importo com os draminhas dele. Acho que foi o nosso amigo Søren que disse que só de pode dar conselhos confortavelmente de um porto seguro, e o mais seguro de todos é o total descaso.

A namoradinha principal do Sick Boy é a pequena Maria, a princesinha com máscara de morte dos Banana Flats. Linda, mas uma tremenda sugadora de heroína. Cochicham por aí que o Sick Boy viciou ela, mas na pressa de apontar o pecador com essa merda de “quem foi o maldito desgraçado que levou meu filho ou filha pras drogas?” as pessoas costumam passar batido pelo que realmente importa. Quando a droga tá acessível, a rapaziada vai experimentar. É fútil e sem sentido como culpar outra criança da escola porque o seu filho pegou um resfriado. Esqueçam a transmissão, é a transição que importa. No fundo, é só arrependimento, porque eles não perceberam o momento em que o filho deles se tornou outra pessoa.

Mas o Sick Boy é mesmo um viado, e certamente não ajuda. – Sweet sixteen, ain’t that peachy keen – diz ele com um esgar sacana, forçando ela a abrir um sorriso constrangido enquanto é acariciada pelas mãos de Judas. – E o colégio foi mandado pro espaço, né. Tá tudo dentro da lei agora, né lindinha? Uma união abençoada pelo estado! – Ele tá usando um chapéu pork pie de delinquente que arranjou de algum lugar, provavelmente com uma das meninas, e que tá evidentemente incomodando pra caralho o Nelly.

Nelly percebe que eu tô olhando pro chapéu. Abre um sorriso que diz “que bela bosta, hein?” Depois ele fala baixinho: – Fiquei sabendo que o Goagsie pegou o víris. O viado foi visto entrando naquela clínica.

– Era só pro tratamento da metadona. Todo mundo tá indo lá.

– Não, o viado apareceu lá no bar depois que detectaram no exame dele. Chorando como uma mulherzinha – Nelly desdenha.

Olho pro Sick Boy, que tá todo enroscado na Maria, mas ainda assim consegue flertar com a Jenny. – Uma bonequinha, essa garota. Se meu coração não pertencesse a você, Maria... – ele ameaça de leve, causando desconforto em Maria e arrancando risinhos da Jenny.

Matty faz sinal pra mim com a cabeça, todo tenso. – Viado, vamos nessa, tô morrendo pra arranjar um pico – diz ele pelo canto da boca embabada.

Chamo o Sick Boy. – Cê vem junto?

– Não... Ricky Monaghan tem um contato. Vou ficar lá plantado, pra ver se ele aparece.

– Viado, o Monny não vai ter nada – Matty diz em tom de desaforo.

– Façam suas apostas, vermelho ou preto, gira a porra da roleta. Eu vou ficar aqui. – Ele aperta mais o braço em torno da Maria, que nos lança um olhar agressivo.

Faço sinal pro Matty. Parece ser importante não ficar parado, e optamos por deixar eles sozinhos.

Em seguida eu e Matty estamos na rua, expostos naquela luz cruel, com um monte de caretas indo pra tudo que é lado, viados que só querem te perseguir e te acusar, e eu tô tremendo como um bombom entrando na boca duma modelo anoréxica.

– Escuta, Mark, desculpa ter falado aquilo... sobre o Davie, e tal. Viajei pra caralho.

– Deixa pra lá – digo.

– Viado, só falei aquilo porque tô enlouquecendo sem um pico e tal.

– Deixa pra lá – repito, nervoso demais pra bater boca com esse viado no momento.

A gente entra na lojinha pra arranjar tabaco pro Matty. A sra. Rylance tá atrás do balcão; uma massa de cabelos brancos como magnésio brotando da cara grande e vermelha. Ela percebe que observo o cofrinho amarelo de doações. – Os animais não têm como nos dizer quando tem algo errado com eles, menino. Pra ser honesta, prefiro eles aos seres humanos. Ou pelo menos alguns seres humanos. – Ela me encara com um olhar de pena. – Como vai aquele menino, o Danny? Que rapaz adorável.

– Parece estar melhor, e tal – digo com rispidez, pensando apenas em ir embora dali o quanto antes, vendo o Matty catando trocados no bolso com toda a lentidão do mundo, irritado em ter que me submeter ao vício inútil e insignificante dos outros. – Ele tá envolvido com um projeto agora.

– Projeto... – a velha coroca repete sem pensar, enquanto pesca cuidadosamente as moedas da pata imunda do Matty, como se fossem pedras preciosas que alguém deixou cair numa privada entupida.

Um grupo de crianças entra e os olhos de gavião que tão atrás das lentes focam naquela direção. Vejo a cara do Matty congelar no momento em que passo a mão no cofrinho amarelo e enfio ligeiro na sacola. Foi a Charlene que me ensinou essa; sempre leve uma sacola pra esconder o furto. A ladroagem envolve tanto oportunismo quanto planejamento. Depois de cometer o ato, fico alternando o olhar entre a cabeça de palha de aço da sra. Rylance, que tá dando sermão nas crianças, e os olhos do Matty, que fazem uma varredura no recinto.

A gente vai pra rua e no momento em que a porta fecha atrás da gente a Sra Rylance solta um berro: – MINHA COLETA! A COLETA DOS MEUS GATOS! QUEM PEGOU A COLETA DOS MEUS GATOS?! – Mas os gritos são dirigidos às pobres criancinhas, e a gente já tá escapando na rua. Depois de conseguir abrir essa bosta, vamos voltar direto pro Swanney. Recuperamos o fôlego na Queen Charlotte Street e sacudimos o cofrinho de plástico. Tem um peso considerável. Tá cheio de moedas novinhas de uma libra.

De repente nos damos conta de que estamos em frente à Delegacia de Polícia do Leith, do outro lado da rua, então a gente desaparece dentro de um ônibus da linha 16 e voltamos pra Tollcross. Johnny saiu, mas felizmente o Raymie tá em casa. – Venham comprar meus brinquedos – ele anuncia com uma voz de Bowie na era Anthony Newley, e então fecha um olho e avalia o Matty. – Sua situação não era sine die, meu garoto Matty? Talvez seja melhor você concluir essa transação antes do Swannie aparecer.

– É...

Aí a gente começa a esmerilar com uma faca, mas não consegue abrir a porcaria do cofrinho! O Matty dá uma estocada, mas a faca escorrega no plástico reforçado e acerta a outra mão dele que tá segurando a caixa, fazendo o sangue vermelho espirrar por cima do cofrinho e do piso todo queimado de cigarro. – FIADAPUTA! – grita ele, sugando o próprio sangue como um vampiro. Assumo a operação, mas não tem a menor chance de abrir essa porra. Dá pra ver que tá cheio de moeda de cinquenta centavos e uma libra, mas a gente não consegue fazer nenhuma sair porque tem uns dentes invertidos bloqueando a fenda.

Mas que puta que pariu viados desgraçados!

Raymie descola um martelo e começa a dar com tudo no cofrinho, mas o negócio simplesmente continua intacto. – Água mole, pedra dura, tanto bate mas não fura – diz ele ao largar a ferramenta. Aqueles comentários despropositados dele, que antes tinham graça, agora me irritam pra cacete. Pego o martelo e também faço minha tentativa de abrir o desgraçado, mas essa resina inquebrável, esse polímero escroto, sintético, cancerígeno e não biodegradável mal chega a arranhar. Nem uma serra de metais ia servir; só um esmeril ia dar um jeito nessa porra. Raymie começa a ficar impaciente. – Cavalheiros, é melhor vocês abandonarem essa humilde residência antes da chegada do Johnny. Os negócios não andam bem no lado da oferta, e não vai acontecer porra nenhuma no departamento da heroína enquanto vocês não conseguirem abrir isso aí.

O Raymie é um cara bizarro, mas ele tá nos fazendo um favor. O Johnny ficou meio esquisito depois que ganhou dinheiro e mais volátil por causa do monte de anfetaminas e depressivos que anda tomando. Se pensar que armamos pra cima dele, vai se negar a nos vender.

Eu e Matty nos entreolhamos e decidimos cair fora pra ver se o contato do Sick Boy, Monny, acabou dando as caras. Voltamos pra área do porto, mas decidimos driblar o Largo da Walk e o Kirkgate e ir pra casa do Keezbo no Fort. Ele mora no piso D do Fort House, a duas portas de distância do lugar em que fui criado. – Vou subir pra visitar o Keith, Matty, cê espera aqui.

– Pra quê?

Abro a sacola, tiro o cofrinho de dentro e balanço na frente da cara dele. Um dos lados do rosto dele parece desmoronar como se ele tivesse sofrendo um derrame. – Porque eu vou jogar esse troço lá de cima pra você pegar. Cê deixa bater no chão e abrir no meio, e depois mete toda a grana dentro da sacola. Tá bom?

Matty fica piscando como se um viado tivesse jogado pimenta nos olhos deles. – Mas... viado, vai espalhar pra tudo que é lado e...

MAS QUE PORRA FOI ESSA?

A gente escuta o eco de uma gritaria vindo lá de cima. Fica ondulando dentro da minha cabeça. Um pânico horroroso fica crepitando na minha nuca. Tô completamente fudido, é essa bosta de metadona... Puxo a manga do casaco do Matty. – Eu e o Keezbo vamos descer pra te ajudar, a gente não tem tempo pra discutir, porra!

Matty puxa um pouco de ranho pra dentro e concorda com a cabeça, tremendo e olhando ao redor. Largo a sacola aos pés dele. Pego a escada e subo correndo até o piso D. Vejo os pais do Keezbo na sacada; Moira, com aquele cabelo castanho encaracolado e os óculos de tartaruga que são a marca registrada dela, e Jimmy, ainda o mesmo gorducho em forma de barril, de camisa branca e calça preta, os dois parados no lado de fora do apartamento. À medida que me aproximo, os gritos vão ficando mais altos; tão vindo de dentro da casa do Keezbo. Jimmy e Moira se entreolham em pânico, recuam pra dentro do apê e tentam fechar a porta na minha cara. – O que tá acontecendo? É o Keith que tá gritando?

– Não queremos você aqui, não queremos nenhum de vocês aqui – diz Moira, botando todo o peso contra a porta, mas consegui encaixar o ombro e o quadril na fresta e não vou arredar pé. O cofrinho tá na minha mão pro lado de dentro e fico com medo que ela pegue, então forço entrada no apê. Os pássaros tão fora do aviário, voando tudo na minha cara! – Não deixa os pássaros fugirem! – Moira grita, até que decide me puxar pra dentro e fechar a porta.

É uma cena demente: um periquito-australiano e um mandarim fazem tumulto em volta da Moira; um tá no ombro dela e o outro pousa no dorso da mão. Ela tá usando um cardigã de angorá sem nada por baixo, sem blusa, só um sutiã, e o cardigã não tá abotoado direito porque consigo ver uma cicatriz vermelha desbotada sumindo atrás do bojo acolchoado e tenho certeza que alguma coisa se mexeu ali dentro, como se fossem as tetas. Ela ajeita o cardigã e prende um par de botões, e nós dois olhamos pro lado, mortificados. Jimmy tá parado com vergonha na frente da escadaria, de boca fechada. Os pássaros gorjeiam ao nosso redor, afoitos e birrentos. – Vamos, Moira... Jimmy... – peço – só quero falar com o Keith...

De repente ouço um grito: – MARK! CHAMA A PORRA DA POLÍCIA!!

O pássaro voa da mão de Moira e Jimmy olha pra cozinha e berra: – CALA A BOCA!

– Jimmy, que porra tá acontecendo...

Puta merda, tá foda de entender isso, mas percebo agora que construíram uma cerca de arame, como uma gaiola gigante, pra dividir a escada do resto da casa. Todo o carpete da escada tá coberto de jornal e uma camada de cocô de passarinho. É como se eles tivessem transformado todo o andar de baixo da casa – a sala, os quartos e a área de serviço – num aviário gigante, deixando pra eles só a cozinha e o corredor no andar de cima! Moira me dirige um olhar corrosivo, o Keezbo segue gritando por ajuda, e então ela abre a gaiola que dá pra escadaria e conduz a passarada lá pra dentro. Eles vão atrás dela como ratos atrás do flautista, até que ela sai sozinha da gaiola com um movimento calculado e tranca eles todos lá dentro.

– Sai – diz-me ela, abrindo a porta da frente.

Keezbo continua gritando, mas é como se os gritos viessem de fora da casa. Só pode ser do antigo aviário que ficava na sacada nos fundos da cozinha! – MARK! ME AJUDA! ELES ME TRANCARAM AQUI FORA!

– Mas que porra é essa? Cê tá na sacada, Keezbo?

Nisso aparece a irmã dele, Pauline, parada em pé no topo da escada, dentro da gaiola, enquanto uma passarada amarela, verde, azul e branca voa em torno dela. – Trancaram ele na sacada. – Ela se vira pros pais. – Cê não pode deixar ele lá fora assim, mãe – diz, começando a chorar.

Moira continua segurando a porta da frente aberta, gritando: – SAI LOGO! – Nisso aquela intrometida da Margaret Curran enfia o nariz pra fora, mostrando aquela fuça de baranga que é o próprio quadro da dor. – A gente não aguenta mais, Moira, vamos ter que chamar a polícia se o barulho não parar. Foi o dia inteiro assim! E os pássaros... nunca me importei com o aviário na sacada, mas não dentro de casa! É insalubre! Até quando?

– Até quando for preciso! É a vida do meu menino!

Elas começam a bater boca, mas me intrometo e pergunto pra Moira: – Que foi que cês fizeram com o Keith, caralho?

– Trancaram ele pra fora da sacada – Pauline choraminga com o rosto angustiado prensado contra o arame da gaiola, envolta numa revoada de pássaros.

Empurro Jimmy e Moira e entro na cozinha. O vidro texturizado que separa o recinto do aviário e da passagem da sacada foi removido e substituído por tábuas. Keezbo tá do lado de fora, esmurrando e berrando: – ME AJUDA, MARK... ME AJUDA, PORRA!

– Ele não vai entrar enquanto esse veneno não sair do organismo dele – diz Moira.

Me viro e falo na cara dela. – Cê é completamente retardada?! Ele tá sofrendo de abstinência – digo, pensando no Nicksy. – Vai acabar pulando ou tentando escalar o prédio! Deixa eu falar com ele!

Me viro de novo e começo a tentar abrir as trancas enormes da porta. Jimmy não tenta me impedir, mas os dedos esqueléticos de Moira agarram meu pulso. – Não... não... a gente tá forçando ele a deixar passar a abstinência...

– Cês tão matando ele, ele precisa de um tratamento adequado! ELE TÁ PASSANDO TÃO MAL QUE PODE ACABAR PULANDO! – grito na cara dela, e então ela se entrega e me solta.

Aquela puta da Curran entrou na casa com a cara imunda dela. Escuto ela reclamando comigo do corredor. – Cê foi embora daqui! Ninguém quer você por perto! Volta pra sua casa perto do rio, pra casa que a gente devia ter recebido!

– A gente não tá mais lá... mudamos pra outro lugar – digo, e fico vendo a cara bovina e idiota dela se desmanchar, confusa e perplexa, ao mesmo tempo que consigo abrir uma das trancas. Dá pra ouvir o Keezbo gemendo do outro lado. – Eles nos deram um lugar melhor perto da margem – minto pra Curran enquanto forço a próxima tranca. – Todas as janelas dão de frente pro rio... e tem uma varanda enorme que pega sol... um lugar adorável...

Ela sufoca de raiva. – Varanda... rio... como é que... como diabos... como é que cês...? – ela gagueja, mas de repente um brilho surge em seus olhos. – E o lugar em que cês moravam antes... deve tá vazio agora, né?

Consigo abrir mais uma tranca. Pelo canto do olho, percebo que um dos periquitos continua grudado no cardigã de angorá da Moira, bem do lado dos peitos de plástico. Jesus amado...

O cardigã abriu de novo e dá pra ver que tem uns filhotinhos de pássaro nos peitos dela, as cabecinhas apontam pra fora, os biquinhos abertos, exigindo alimento. Mas que porra... Olho pra ela e recebo de volta uma encarada fixa e severa que diz “E daí?”

Volto minha atenção pra última tranca... não quero mais ver isso...

– A casa de vocês! – insiste Margaret Curran. – Deve tá vazia agora!

– Não... uma família de paquistaneses se mudou pra lá semana passada. – Consigo abrir a tranca bem no momento em que Jimmy diz algo pra Moira sobre dar um jeito naquela indecência.

– Como foi que eles... como, em nome de Cristo, eles conseguiram...? – Curran perde a cabeça, pronta pra prestar queixa no Departamento de Habitação. A tranca estala e a porta abre.

Keezbo tá ali de pé vestindo um casaco comprido, parecendo um salsichão rosado embalado numa morcilha. – Eles tentaram me matar, porra! Vocês! – Ele aponta pra Jimmy e Moira. – VOCÊS!

O periquito adulto que tá dentro da roupa da Moira sai voando enquanto ela olha horrorizada pro Keezbo, ajeitando o cardigã pra esconder o ninho de passarinho guardado nos peitos. Ela se dá conta de que ele arrancou a tela que eles tinham instalado na sacada. – NÃO DEIXA O CHEEKY SAIR! OS PASSARINHOS DA RUA VÃO MATAR ELE!

– FODAM-SE ESSES PERIQUITOS! CÊ TENTOU ME MATAR!

– A GENTE TAVA TENTANDO SALVAR SUA VIDA, PORRA! – Moira urra na cara dele, e só agora percebo que ela tá sem dentadura. Depois ela apela pro Jimmy: – DIZ PRA ELE, JIMMY!

– Eu tava com frio – resmunga Keezbo, desolado. – Com frio e com fome!

– Fome dessas drogas de merda, drogas, drogas, drogas! – Moira guincha. – FALA PRA ELE, JIMMY! SEJA HOMEM, EM NOME DE CRISTO, FALA PRA ELE QUE ELE TÁ ERRADO!

– Moira... por favor...

– Descolei uma grana, Keith. – Chacoalho o cofrinho. – A gente pode abrir e comprar um bagulho!

– Sei como abrir isso aí, Mark – diz ele com os olhos bem abertos e brilhantes enquanto Moira xinga Jimmy e fecha a porta da sacada com força, atraindo Cheeky de volta pra dentro de seu busto falso.

– O melhor é todo mundo se acalmar agora, Moira... – suplica Jimmy.

– SE ACALMAR, PORRA? VOU TE MOSTRAR O QUE É SE ACALMAR, JIMMY YULE! É SEU FILHO, CARALHO!

– Não temos tempo – digo pro Keezbo, olhando pela sacada e vendo o Matty parado no meio do pátio de concreto. – MATTY! – O vento tá forte aqui em cima e a voz é levada embora. – MAH-TTY!

Depois de muito tempo o viado idiota olha pra cima com uma cara totalmente perdida.

– O que tá acontecendo aqui? – Jimmy entra na sacada e pergunta, deixando Moira falando sozinha sobre onde foi que ela errou. De repente ela ameaça: – Vou botar a polícia em cima de vocês dois! Quero ver o que vão achar disso!

– É isso aí, Moira! – grita Margaret Curran.

– Ah é... bem, se cê... se cê chamar a polícia, porra – gagueja Keezbo –, vou chamar a Sociedade Protetora dos Animais e te denunciar por guardar aves nas tetas! Isso é coisa de gente louca!

– Eles não ficam nas minhas tetas! Eu não tenho mais tetas! E agora não tenho nem mais uma merda de filho, que Deus me ajude!

Enquanto eles quebram o barraco, chacoalho o cofrinho e Matty faz uma saudação de brincadeira. Solto o cofrinho e vejo ele cair até se espatifar no piso com um ruído explosivo, espalhando as moedas numa chuva cintilante por todo o pátio. Porra, não imaginei que elas iam ficar tão esparramadas! Matty tá lá embaixo, mas um bando de crianças começa a aparecer do nada e a disputar nosso dinheiro com ele. – SAIAM DAÍ, CARALHO! SAIAM DAÍ, SEUS VIADINHOS DE MERDA... NÃO DEIXA ELES... PORRA!

Eu e Keezbo disparamos pela cozinha, passamos batido pelos pais dele, por Pauline e pela bruxa da Curran, depois pela porta, pela varanda, e enfim descemos a escada a toda velocidade.

– NÃO DEIXA O CHEEKY SAIR! – Moira berra.

Descemos, saímos pela porta e damos de cara com o Matty tentando pateticamente espantar os pivetes safados aos gritos: – Devolve!

Começamos a catar as moedas de merda, e os viadinhos começam a dar no pé, mas nesse momento a sra. Rylance aparece na esquina, vê os cacos amarelos do cofrinho espatifado, aponta e começa a gritar: – ESSE DINHEIRO É MEU... É O DINHEIRO DOS GATOS!

A sra. Curran volta à cena, berrando da sacada: – LADRÕES! LADRÕES! OS RENTON E OS CONNELL... CIGANADA DESGRAÇADA QUE SÓ GOSTA DE ROUBAR! PEGAM TUDO QUE NÃO É DELES!

A gente faz o que pode pra recolher a bufunfa, mas puta merda, um carro de patrulha encosta e dois policiais saem de dentro, portanto a gente bate em retirada com os bolsos cheios de trocados. Dá pra ouvir eles chamando reforço pelo rádio, e a gente vai pra Madeira Street, corremos pela Ferry Road, depois Largo Place, e descemos a escadaria até o rio com as moedas tilintando. Um dos policiais voltou pro carro, mas o outro vem correndo atrás da gente quando chegamos na passarela de Water of Leith. Mas ele que se foda, até olho pra trás, como se ele pudesse nos alcançar aqui, com aqueles olhinhos de buraco de mijo na neve pregados na cara branquela e bulbosa, ficando cada vez mais vermelho, inflando as bochechas, uma cara de hamster gorducho tão cômica que minhas costelas tremem só de pensar. Mandam um panaca suburbano criado em Gumley com excesso de comida pra correr atrás de três moradores de bloco do Leith? Jovens que foram criados especialmente pra correr da porra da polícia? Esses ratos não fazem a menor ideia!

E pode crer, quando a gente olha pra trás de novo, ele tá parado, bufando, apoiado nos joelhos e com as costas dobradas, enquanto nós estamos passando por baixo da Junction Street Bridge. Ele se levanta como um jogador de futebol incompetente, ofegando, sacudindo a cara gorda e incrédula, como se um juiz fosse apitar pra todo mundo entrar de boa vontade no camburão enquanto um cartão vermelho é mostrado. Se deu mal, baleia! Essa margem de rio arborizada nos ama, essa chaga de armazéns, ruas de paralelepípedo e conjuntos habitacionais adora seus filhos e odeia agentes da lei que só trouxeram dor pra esse lugar desde o começo dos tempos. Até o Keezbo tá tirando sarro dele, respirando um tanto bem, embora esteja com o rosto vermelhão e o suor jorrando. Matty disparou na frente, mas agora olha pra trás, para e deixa a gente alcançar ele. – Viado – diz ele sem fôlego –, os viadinhos chegaram com tudo... eram os pequenos Maxwells do Thomas Fraser... nem deviam tá ali no Fort...

Penso em subir os degraus da West Bowling Green Street e me esconder na casa dos meus pais, mas não é certo cagar na porta de casa, então continuo correndo na direção do Forth, passando pelos patos nadando em frente às fábricas abandonadas e pelos novos apartamentos. Vemos os prédios do Banana despontando por trás das novas construções do outro lado do rio e diminuímos um pouco o ritmo pra tentar recuperar o fôlego e não dar muita bandeira. Keezbo tá ofegando muito, mãos nos quadris, e a cabeça do Matty gira pros lados como a de uma coruja. Me dou conta de que esqueci a sacola da Sealink, mas que se foda.

Tem uma rampa que dá na rua de acesso ao pátio de um novo bloco de apartamentos de yuppies e a gente poderia cortar caminho por ali, mas os moradores não hesitariam em pegar o telefone se avistassem nativos perambulando por sua propriedade. Então continuamos pelo mesmo caminho, andando rápido. Na ponte de Sandport Place, nem chegamos a ver que eles tão à nossa direita, escondidos na rampa de acesso da Coalhill, à nossa espera, não num camburão, mas em dois carros de patrulha.

FODEU...

Nenhum de nós tá em condições de continuar correndo. Nosso combustível é a heroína, e já queimamos o restinho que ainda tava no organismo.

Algemam eu e Matty um no outro e deixam o Keezbo sozinho, com as mãos na frente, e então somos levados pra uma cela de detenção na High Street. Engraçado, mas, embora eu esteja sendo encaminhado à maior crise de abstinência que jamais experimentei, de um certo modo me sinto aliviado, só porque isso acabou. Agora fico na expectativa do próximo grande desafio: desintoxicação. Fico pensando que eles vão me ajudar, claro que vão, porra, não me deixar assim, porque tô detonado e aquela metadona não serve pra merda nenhuma.

O Keezbo tá realmente fodido. Tá quase chorando e fica botando a cara na abertura e socando a porta. – Consegui escapar da sacada – ele geme – e agora tô preso aqui!

Esse gordo viado tá me dando nos nervos, porra.

Matty fica sentado num banco, focado no chão diante dele. Quando dois policiais aparecem com xícaras de chá, ele levanta a cabeça e tira as palavras da minha boca: – A gente tá precisando mesmo ir pro hospital, parcero – diz pra um dos policiais. – A gentá se sentindo, tipo assim, muito mal.

O policial mantém uma expressão neutra. É um viado meio gordo, mas com olhos afiados, um leitão que já demoliu o rango da pocilga, mas tá esperando com voracidade o próximo balde de lavagem. – Eu tava pensando em fazer uma reserva pra vocês no North British Hotel por umas duas semanas. Até que se sintam um pouco melhor. Ou será que preferem uma suíte no Caledonian?

Provando que é um viado burro pra caralho, Matty se vira pra mim e pro Keezbo e diz: – Não sei, o que vocês acham?

– Eu acho que cê tem que aprender a reparar quando tão tirando onda da sua cara, Matty – respondo.

– Ah... tá...

Os policiais tão se matando de rir da cara sofrida e castigada dele. Keezbo fica sentado no banco, de frente pra parede, e por mais que me sinta traindo o Matty não consigo evitar de dar corda na piada, mesmo com toda a dor.


Dilemas da heroína nº 3

O policial fica me olhando com desprezo absoluto. Dá pra entender; tudo que ele vê na frente dele é um viado imundo se revirando e se contorcendo sentado na cadeira dura da sala de interrogatório. – Tô fazendo o programa – digo pra ele. – Pode conferir se quiser. Tô em crise de abstinência porque não me deram metadona suficiente. Disseram que tinha que regular minha dosagem. Confere com a mina da clínica, se não acredita em mim.

– Buá, chuif chuif – responde ele com uma expressão hostil. – Por que será que não estou vertendo lágrimas por você, meu estimado amigo?

Esse corno tem olhos pretos e frios no meio de um rosto bem branco. Se não tivesse um corte de cabelo de tigela de pudim e o nariz fosse maior, seria igual a um dos periquitos da Moira e do Jimmy. O outro policial, um rapaz loiro de aspecto decadente e vagamente afeminado, tá fazendo o papel de bonzinho. – Conta pra gente quem te fornece isso daí, Mark. Vamos, amigo, diga alguns nomes. Você é um bom sujeito, sensato demais pra se envolver com essa bobagem. – Ele balança a cabeça e depois me encara com os lábios contraídos, pensativo. – Universidade de Aberdeen, nada menos que isso.

– Mas se vocês checarem vão ver que tô fazendo o programa... na clínica, e tal.

– Aposto que essas estudantes fodem pra caralho! Nos alojamentos. Devem trepar o tempo inteiro lá, hein, amigo? – diz o Cabeça de Tigela de Pudim.

– Só um nome, Mark. Vamos, amigo – insiste o Capitão Sensato.

– Já disse – falo com toda a sinceridade possível –, pego com um cara na casa de apostas, só conheço ele como Olly. Nem sei se é o nome de verdade. É sério. Os funcionários da clínica podem comprovar que...

– Imagino que a prisão seja como o alojamento de estudantes, com uma diferença – diz o Tigela de Pudim. – O cara não tem muita chance de comer ninguém lá. – Ele dá risada. – Mas quanto a ser comido, bem, aí é outra história!

– Só um telefonema rápido pra clínica – imploro.

– Se eu ouvir a palavra “clínica” sair da sua boca mais uma vez, rapaz...

Eles deixam essa merda rolar por mais algum tempo, até que o defensor público que recebeu o meu caso aparece pra finalmente acabar com o meu tormento. Os policiais saem e o advogado traz a notícia que eu tava querendo ouvir. É uma escolha simples: ou vou pra cadeia (no mínimo uma detenção até o julgamento) ou reabilitação num projeto novo no qual devo permanecer 45 dias pra me livrar da acusação inicial. – Não é a opção mais fácil. Significa que você não vai poder tomar nenhuma droga – ele explica. – Até a metadona será cortada.

– Porra... – engasgo. – Não é certo que a sentença vai me mandar pra prisão, né? Só por roubar um cofrinho metido a besta?

– Nada é garantido hoje em dia. Mas não tem nada de bonito na situação, concorda? Era o dinheiro coletado por uma comerciante idosa para um fundo de caridade de proteção aos animais.

– Do jeito que cê tá dizendo... – Sinto os ombros encolherem ao reconhecer que ele tem razão.

O sujeito tira os óculos. Depois esfrega as marcas que ficaram nas laterais do nariz. – De um lado o governo está encorajando as autoridades a reprimirem com força o uso de drogas, e do outro eles estão reconhecendo que o problema do vício em heroína está cada vez mais grave na comunidade. Sendo assim, há uma chance grande de que você receba uma pena de reclusão, caso não coopere com esse programa de reabilitação. Seus pais estão lá fora e foram informados a respeito da sua situação. O que deseja fazer?

Decisões, decisões.

– Vou me inscrever no programa.


St. Monans (Educação pelos Pares)

Não tô muito feliz com essa coisa de reabilitação, mas parece que era isso ou a cadeia, e não era uma aposta que eu tava disposto a fazer. Sei lá que porra aconteceu com o Matty, mas o Keezbo fez um acordo semelhante. Ele se mudou pro apê da Monty Street comigo, marcando passo no programa da metadona, mas tinha heroína nas ruas e a gente ainda gostava de se detonar juntos. Foi engraçado pra caralho quando levei ele na clínica pela primeira vez e fizeram o teste do vírus nele, aquela Aids e tal. A mina que tava fazendo o questionário sobre transmissão pergunta pra ele: – Cê é sexualmente ativo?

– Normalmente sim – responde Keezbo, não entendendo o que ela quer dizer –, mas às vezes gosto de relaxar e me deitar pra mina ficar por cima, fazendo todo o esforço. O melhor é o cara variar, né?

– Quero saber é se você possui uma parceira sexual no momento.

– Opa! – Keezbo abre um sorrisão. – Cê tá se oferecendo, é isso?

Foi a única parte divertida. Em geral faziam uma porrada de perguntas. Eu fui entrevistado algumas vezes por um cara meio anão que gostava de fuder com a cabeça dos outros, o dr. Forbes, e por uma daquelas inglesas ossudas que, no caso, era psicóloga clínica. Falei tudo que achei que eles queriam ouvir, só pra me livrar deles de uma vez. Keezbo disse que fez a mesma coisa.

No apê a gente tentou tocar umas jams, mas a bateria dele, meu amplificador e depois o Fender foram parar numa loja de instrumentos usados da Walk pra financiar a heroína. Mas não vendi o meu baixo Shergold fretless.

Tinha uns viados que diziam que funcionava, mas eu não tava me dando bem com a metadona e me sentia muito mal com a abstinência. Quando eu não tava completamente detonado e conseguia sair pra rua, a cidade me parecia morta. Sick Boy tinha desaparecido, a mão dele contou que ele foi passar um tempo na casa da tia na Itália. Swanney tinha se dado mal e o Spud seria supostamente transferido do hospital direto pra reabilitação. Begbie tava na cadeira, Tommy e Segundo Lugar tavam amando, os boatos diziam que a Lesley tava grávida e a Ali, que tava saindo com um coroa certinho, nunca atendia o telefone.

Mas o maior mistério era o Matty; nenhum viado tinha ouvido nada a respeito dele. Tinha escolhido a alternativa do presídio e ficou detido, mas os rumores diziam que teve a sentença suspensa e foi liberado, o que foi bem indulgente, porque em tese deveriam ter revistado a casa dele, e nesse caso teriam encontrado os produtos de contrabando. Fico imaginando o que ele contou pra polícia, suando na frente daquelas luzes, sofrendo de abstinência. Quanto ao resto, as principais atrações do Leith – os parceros, as minas, o Hibs – pareciam ter perdido todo o atrativo. Eu só queria saber de heroína.

Depois que fomos tomar nossa dose na clínica no velho Hospital do Leith, entregaram uma carta pro Keezbo e ele partiu pra reabilitação no dia seguinte. Devo ter feito uma cara de quem foi deixado pra trás, porque a enfermeira, uma mina legal chamada Rachael, que era amiga da Ali, me informou: – Cê vai ser o próximo, Mark. Tenta segurar a onda.

Passei a maior parte do tempo no apê, lendo e pensando no Matty. Lembrando que ele não é um delator. As pessoas são assim ou não são. Ou você é dedo-duro e caguete, ou não é. E ele não é. Então foi uma tremenda surpresa quando ele apareceu no apê certa noite com um ar bem mais acanhado do que o jeito espertinho que é típico dele. Perguntou onde andava o Keezbo e eu falei. – Nem fudendo – disse ele. – Não vou me desintoxicar. Não vou cortar a droga assim no seco.

– Mas eles dão uns remédios pra ajudar.

– Que nada! Eles tiram a metadona! Eles que se fodam com os soníferos, analgésicos ou seja lá a merda que dão lá dentro! Não importa como tentam disfarçar, é no seco! Viado, nem fudendo – Matty protesta. – Viado, cê devia ter aceito a sentença. Fiquei só quatro dias lá dentro, recebendo metadona, e saí com uma condicional de seis meses. Viado, cê podia ter ficado só quatro meses detido. Melhor que uma semana de abstinência total e seis semanas de estupro mental naquela merda de centro de reabilitação!

Odeio admitir, mas o viado me deixou cagando na calça. A metadona tá longe de ser perfeita, mas ficar sem ela e sem acesso à heroína era uma perspectiva sombria. Mas por mais que eu tivesse medo da reabilitação não tava preparado pra passar tempo na cadeia, nem que fossem uns poucos dias de detenção.

Matty não ficou muito tempo ali. Eu disse que tava sem heroína, mas tava escondendo totalmente do viado. Ele caiu fora rapidinho com aquela merda de sempre de “me liga”.

Uns dias depois que levaram o Keezbo, meus pais apareceram no apartamento. Tinham descoberto que eu tava ali sozinho, então disseram que iam me levar pra casa até que me alojassem no centro de reabilitação. Não gostei muito disso, mas ficaram insistindo que eu podia ter uma overdose ou algo assim, caso ficasse sozinho. A essa altura a metadona tava fazendo efeito e causando uma passividade combinada com sensação de cansaço e membros pesados, então me deixei levar. Não aconteceu muita coisa na casa dos meus velhos, passei a maior parte do tempo deitado, lendo e vendo TV. Lembro que o Nicksy ligou pra contar que o cão Giro tava morando na casa da mãe dele, mas ele tava entediado e pensando em se mudar pra algum lugar com o Tony. Sei como ele se sentia. No fim, eu tava só há poucos dias em casa, lendo James Joyce no meu quarto, quando meu pai entrou e disse pra eu fazer a mala. Quando ele me disse que eu tinha “conseguido uma vaga” na reabilitação, foi como se ele tivesse se gabando pros outros que eu tinha “conseguido uma vaga” na universidade uns anos atrás. Não conseguia esconder o entusiasmo na voz.

O lado ruim foi que, ao comparecer na clínica, eles tinham sido informados do que tava acontecendo e a minha metadona foi diminuída pra iniciar os preparativos da desintoxicação. Aí botei algumas roupas e livros na mala. Encontrei um rascunho de documento que Norrie Moyes tinha me dado há um tempão e do qual tinha esquecido completamente; a gente tava planejando um golpe de vingança contra os Curran, mas não deu em nada. Enfiei os papéis numa pasta e coloquei na mala.

Chove forte durante a viagem de carro até um cu de mundo em Fife. Vou no banco traseiro enquanto meu pai dirige em silêncio e mamãe fala nervosamente no breve intervalo entre os cigarros. Ao chegarmos, depois de passarmos por uma cidadezinha rica com poucas casas, uma igreja e um pub e estacionarmos na frente de um prédio branco de um só andar, as dores estão fortes e sinto contrações e cólicas, efeitos da redução de metadona. Não consigo nem sair do banco traseiro do carro quando meu velho sai e abre a porta. No momento em que o ar gelado entra, uma pulsação de terror toma conta de mim e me faz começar a suar. – Não quero fazer isso!

Escuto minha mãe falar alguma coisa sobre começar do zero, e em seguida meu pai diz: – Bem, agora não está mais nas suas mãos, meu caro. – Então agarra meu braço e começa a me arrancar de dentro do carro.

Seguro firme no banco traseiro. – O que dá a vocês o direito de me forçar a entrar ali?

Minha mãe me olha, revirando os olhos grandes e desvairados, e desprende minha mão do assento do carro. – A gente se importa com você, filho, é isso que nos dá o direito... Solta! – Meu pai dá outro puxão e eu salto pra fora do carro, cambaleando, e ele precisa me segurar pelo casaco como um boneco de pano pra que eu consiga me manter em pé. – Vamos, filho, faz uma forcinha – diz ele com uma firmeza carinhosa e encorajadora.

Quando consigo me endireitar sobre as pernas trêmulas, percebo que meus olhos irritados tão jorrando lágrimas e passo a manga no rosto até que ela fique toda manchada de choro e ranho. Mamãe desce do carro, balança a cabeça e resmunga: – Não sei por que isso tinha que acontecer com a gente...

– Talvez seja Deus te testando outra vez – sugiro, ao mesmo tempo que meu pai me solta.

Ela olha pra mim e vem pra cima, gritando com meu pai: – Cê ouviu o que ele disse, Davie? Ele é mau! – Aponta pra mim. – Escuta o que cê tá dizendo, seu pirralho ingrato.

– É a droga que faz ele dizer essas coisas, Cathy, a abstinência – papai afirma com um tom sombrio de autoridade, me encarando com olhos espremidos. Agora que a velha começou a dar patadas, ele pode fazer o papel de policial bonzinho. O velho é severo, mas demora pra perder as estribeiras. A velha em geral leva na boa, então minha tática costuma ser forçar ela a assumir o papel de malvada, o que quase sempre desarma a ira do velho, por estranho que pareça. Mas agora eu tô mal pra caralho e meu tempo tá se esgotando. Minha garganta arde e sinto vontade de coçar os olhos com força. Espirro duas vezes, convulsões sísmicas que sacodem todo o meu corpo, e o meu velho me observa, preocupado.

Olho em redor mas não vejo lugar nenhum pra onde fugir. – Vamos – papai ordena com um toque de impaciência na voz. Andamos pelo acesso de cascalho até a porta de entrada do prédio branco e entramos. O local tem aquele clima onipresente de controle estatal: paredes de magnólia, tapetes marrons, luz fluorescente forte no teto.

Somos recebidos pela diretora do centro, uma mulher magra de cabelos escuros encaracolados e puxados pra trás, óculos de armação vermelha e traços finos e delicados. Ela me ignora, preferindo primeiro trocar um aperto de mão com meus pais. Um viado grandão, com franja loira e cara de saudável, sorri pra mim. – Sou o Len. – Ele pega minha sacola. – Vou levar isso até o seu quarto.

O velho gira a cabeça, vistoriando o local. – Mas não parece um mau lugar, filho.

Aperta a minha não. Os olhos dele estão marejados. – Lute até o fim, meu querido – sussurra ele. – Acreditamos em você.

A magrinha de óculos tá tagarelando na frente da minha mãe, que a observa com um olhar ressabiado. – A essência de St. Monans é um esforço colaborativo entre dois conselhos de saúde e três departamentos de serviço social. Consiste em desintoxicação seguida de terapia individualizada para cada cliente e sessões de orientação psicológica grupal.

– Sim... isso é bom...

– O grupo é crucial na nossa filosofia. Nós o vemos como uma forma de combater as estruturas de pares do mundo lá fora que dão suporte ao comportamento de dependência química do cliente.

– Sim... é aconchegante – diz mamãe olhando pras cortinas e esfregando o tecido entre o indicador e o polegar.

– Bem, ele não vai incomodar muito vocês – meu pai diz, se virando pra mim. – Cê vai encarar isso a sério. Não é?

– É – respondo, olhando pra escala de horário que tá afixada na parede atrás dele. Diz DESPERTAR 7:00. Mas nem fodendo.

Vou encarar a sério a primeira oportunidade de escapar daqui.

– Temos que fazer tudo que for preciso pra te tirar das ruas, pra longe daqueles fracassados e vagabundos como o tal de Spud. E aquele Matty. Uma turminha sem ambição nenhuma. – Sacode a cabeça.

– A remoção do ambiente que apoia o comportamento do consumidor de drogas é um dos elementos-chave do nosso programa. Trabalhamos com um modelo disciplinado e estruturado e damos ao cliente dependente de substâncias uma oportunidade de reconsiderar sua situação – declara a Magrinha de Óculos.

– Vão te rebaixar ao nível deles, filho. Já vi isso acontecer – minha mãe avisa, me encarando de um jeito sinistro.

– São meus amigos. Tenho o direito de passar o tempo na companhia de quem eu quiser – respondo, e então uma porta é batida em algum lugar distante, seguida por uma ameaça em voz alta.

– São viciados – diz ela com asco.

– E daí? Eles não tão fazendo mal pra ninguém – retruco, reparando no olhar aflito da Magrinha de Óculos; a compreensão de que ela acaba de se envolver numa briga de família, mas ciente da prerrogativa de que isso tá acontecendo no centro de reabilitação dela. Ninguém mais parece escutar a perturbação que tá ocorrendo em algum recinto afastado, os passos correndo por um corredor.

Pode ser que tenha muita diversão e alegria aqui, pode crer.

– Não tão fazendo mal pra ninguém? – geme meu pai de sofrimento. – Cê foi pego em flagrante, filho, saindo da loja com aquele cofrinho! Uma mulher idosa, filho. Uma aposentada tentando ganhar a vida e fazendo a parte dela em prol dos animais doentes. Cê sabe como isso é errado, tenho certeza, filho – diz ele buscando apoio no olhar da Magrinha de Óculos, que guarda um ar intenso porém neutro, e em seguida se dirigindo novamente a mim. – Cê sabe que imagem isso passa pros outros, não é?

Uma velha imunda que vai morrer muito logo... bruaca decrépita, delatora...

– Cê nunca devia ter se afastado do Tommy, do Begbie e do Robert, filho – minha mãe ressalta. – Do futebol e tudo mais. Cê sempre gostou do futebol!

Uma descarga de pânico me atinge e só consigo pensar em me encolher no chão, sentindo calafrio e tontura. Em vez disso, me viro pra minha nova anfitriã. – Se eu me sentir muito mal aqui dentro, ainda vou receber metadona?

O olhar da Magrinha de Óculos é calculado e imperturbável. É como se ela estivesse me vendo pela primeira vez. Ela balança a cabeça pros lados bem devagar. – Esse projeto visa ao abandono das drogas. Você será retirado do controle com metadona. Será parte de um grupo aqui em St. Monans, de uma sociedade que trabalha, descansa e se diverte junta, e não se engane, será difícil – diz ela olhando pros meus pais. – E agora, sr. e sra. Renton, se não se importam, gostaríamos de acomodar o Mark.

Mas que porra!

Minha mãe me dá um abraço de esmagar os ossos. Meu pai, reparando no meu óbvio desconforto, se contenta com um aceno de cabeça circunspecto. Precisa levar mamãe pra longe, porque ela começa a arrebentar os olhos de tanto chorar. – Mas ele é o meu bebê, Davie, ele sempre vai ser o meu bebê...

– Ora, vamos, Cathy...

– Vou sair dessa aqui, mamãe, cê vai ver. – Tento abrir um sorriso.

Vai embora, caralho! Agora!

Quero me deitar. Não quero fazer parte do grupinho idiota da Magrinha de Óculos, da merda de sociedade dela. De qualquer forma, enquanto meus pais se arrastam pra fora, já fantasio me apaixonar por ela; eu e a Magrinha de Óculos numa ilha caribenha com um estoque infinito de heroína, fornecida pelos empregadores dela no Serviço Nacional de Saúde. Ela parece uma bibliotecária sexy que seria comível pra caralho depois de soltar o cabelo e tirar os óculos.

Então o Len me acompanha até o quarto. Apesar da aparência amável e limpinha, ele é um viado grandalhão, como um segurança de festa amistoso, e não seria uma boa ideia tentar passar por ele. Ele acende a lâmpada fluorescente, que pisca como uma luz estroboscópica de boate e então se estabiliza, tostando o quarto com um brilho doentio acompanhado por um zumbido de inseto. Deito na cama e absorvo aos poucos o ambiente do quarto. É um híbrido trivial das residências de Aberdeen com a cabine do The Freedom of Choice. Tem a mesma cadeira e o pequeno móvel embutido com escrivaninha e prateleiras do quarto da universidade, e um guarda-roupa e gaveteiro de design semelhante. Mas Len da Franjinha avisa que não devo me acomodar demais. Vai ter uma sessão introdutória na sala de encontros, aparentemente só pra apresentar a minha humilde pessoa aos demais. Fico imaginando se Spud ou Keezbo vão estar presentes, ou se foram enviados pra outro lugar. – Quantas pessoas são?

– No momento temos nove clientes.

Mas primeiro ele me entrega uma escala de horários, a mesma que vi pregada na parede da área de recepção. – Só quero repassar isto rapidamente com você...

Conselho de Saúde de Lothian / Região de Lothian

Departamento de Serviço Social

Grupo de Tratamento a Dependentes St. Monans

Escala de Horários Diária

7:00 DESPERTAR
8:30 CAFÉ DA MANHÃ
9:30 MEDICAMENTOS
10:00 MEDITAÇÃO
11:30 GRUPO DE ACOMPANHAMENTO DO PROCESSO
13:00 ALMOÇO
14:30 ORIENTAÇÃO INDIVIDUAL
16:00 TRABALHO DE GRUPO – DEPENDÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS
18:00 JANTAR
19:30 RECREAÇÃO/EXERCÍCIOS
20:30 CEIA
23:00 APAGAR DE LUZES
– Acordar às sete da manhã? Isso só pode ser piada.

– Pois é, no começo é dureza – reconhece Len. – Mas todo mundo se acostuma bem rápido. O objetivo é colocar um pouco de ordem em tantos estilos de vida caóticos. Nos reunimos no café da manhã, ao qual todos são obrigados a comparecer, mesmo que estejam em fase de desintoxicação, e depois disso vocês recebem os medicamentos apropriados a cada caso.

– Sete da manhã é ridículo – resmungo. A última vez que acordei tão cedo foi quando trabalhava pro Gillsland. – E meditação? Pra que isso? Não vou rezar, entoar cânticos nem nada parecido!

Len dá risada e balança a cabeça. – Não tem a ver com religião, a gente não segue o modelo dos Narcóticos e Alcoólicos Anônimos. Não exigimos que se submetam a Deus ou qualquer ser superior, exceto se você tiver essa inclinação, e nesse caso não nos opomos. A meditação vem se mostrando muito eficaz e popular com clientes dependentes de substâncias.

O único ser superior a quem eu me submeteria seria Paddy Stanton ou Iggy Pop.

– E que negócio é esse de dependentes de substâncias?

– Preferimos esse termo do que viciado.

– Tá bom. – Encolho os ombros.

O dedo grosso de Len dá batidinhas no lençol, atraindo minha atenção novamente pra escala de horários. – O grupo de revisão do processo nos dá oportunidade de acompanhar nosso funcionamento como membros dessa comunidade e levantar qualquer questão relacionada a isso. Como deve imaginar, elas podem ficar bastante agitadas. Depois do almoço temos as nossas sessões individuais, nas quais você trabalhará com Tom ou Amelia. Depois fazemos uma sessão em grupo para ver as questões da dependência de substâncias. Após o jantar, o tempo é livre, e temos uma TV, uma mesa de bilhar e também alguns equipamentos de música e de ginástica. Nada de mais, somente alguns pesos livres e um violão, mas esperamos receber outras coisas em breve. Há uma ceia leve opcional, geralmente apenas um chocolate quente ou leite maltado com biscoitos. Apagamos as luzes em todas as áreas de uso comum e desligamos a TV às 11 horas. Durante os 45 dias do programa, você não tem direito a fazer nenhum telefonema, a não ser em casos de doença ou família, e com autorização prévia de um chefe da equipe. Você tem direito a trocar cartas, mas toda a correspondência recebida será aberta e examinada antes de ser entregue a você. Nenhuma droga, nem mesmo álcool, é permitida nos limites da instituição. Abrimos uma exceção relutante para nicotina e cafeína. – Ele abre um sorriso amarelo. – Você não tem permissão de sair do prédio no período do tratamento, a não ser em excursões do projeto e com supervisão de um funcionário.

– Isso aqui é igual à cadeia, porra!

Len balança a cabeça em negação. – Na cadeia, simplesmente trancam você e depois mandam embora. Queremos que você saia daqui melhor. – Ele se levanta. – Muito bem, temos uma pequena reunião introdutória, feita especialmente pra você, mas primeiro vou te mostrar o lugar.

Ele me oferece um tour das “instalações”, como eles chamam. Explica que estamos ao lado do vilarejo de St. Monans, no East Neuk of Fife, perto de Anstruther, uma cidadezinha de cartão-postal que já foi uma vila de pescadores e agora estava dominada pelo turismo. Mas como nunca vamos sair pra conhecer o lugar, é como se estivesse a um porrilhão de quilômetros. O vilarejo e este projeto foram batizados em homenagem a St. Monans, um santo sobre qual nenhum viado sabe nada. O Santo Patrono de Porra Nenhuma, ou seja, perfeito pra esse lugar. O centro consiste num prédio em forma de U com um jardim murado nos fundos. Tem dez dormitórios, uma cozinha, uma sala de estar e uma sala de recreação com mesa de bilhar e TV. Em frente à sala de recreação fica uma pequena estufa que dá acesso a um pátio e ao jardim, margeado por árvores grandes.

– E esta é a sala de encontros – diz Len abrindo uma porta, mas a primeira coisa que ouço ao entrar é: – RENTON, SEU VIADO. – Depois todo mundo ri e bate palmas. Não posso crer nessa merda. Eles tão todos aqui, porra!

– Caralho! Seu bando de viado! – grito em êxtase. É como dar de cara com uma festa-surpresa de aniversário!

– A coleção tá completa agora, rapazes. – Ri Johnny Swan, que tá de camisa e gravata.

Ali tá o Keezbo, meio capotado, com o cotovelo no braço da cadeira e a cabeça grande apoiada na mão rechonchuda, e Spud, que tá tremendo em cima do assento com os braços enrolados no corpo, naquela postura clássica de junky. – E aí gatuno – diz ele.

E o Sick Boy tá jogado numa cadeira do canto. Aceno com a cabeça e sento do lado dele. – Bem legal, a casa da sua tia.

Ele esboça um sorriso cansado. – Precisava ser feito.

Spud pergunta pro Len se pode tomar alguma coisa pra aliviar as cólicas enquanto Sick Boy e Swanney me apresentam pra um cara de Niddrie chamado Greg Castle e que inevitavelmente é chamado pelos outros de Roy, por causa do Roy Castle. Tem um viadinho de aspecto nervoso, Ted, de Bathgate, e um Weedgie com olhos pretos e um nariz comprido, curvo e fraturado que é conhecido como Skreel. Chegou ontem mesmo e tá bem mal na foto. Tem só uma mina, Molly, com cabelo de espanador encaracolado, que me encara com hostilidade franca no rosto espremido. As marcas de agulha nos pulsos finos e brancos estão feias o bastante, mas são eclipsadas pelas lacerações de precisão cirúrgica e variada profundidade. O mais assustador de tudo, porém, é um motoqueiro grandão chamado Seeker, que não conheço pessoalmente, apenas de reputação. Os olhos vítreos dele se fixam nos meus por um curto instante com a potência de raios X, e logo em seguida ele vira o rosto, entediado, como se já tivesse visto tudo.

Swanney me lança uma piscadinha sutil e mostra discretamente uma lâmina de barbear. Vejo ele cortar o interior da boca, deixar o sangue pingar nas mãos e então olhar pro Len, que se borra todo. – Meus pontos romperam...

– A enfermeira não está...

– Vou levar ele pra se limpar – me ofereço rapidamente.

– Tá bom...

Pego Sick Boy, Keezbo e Spud disparando olhares fulminantes enquanto eu e Swanney escapamos pro corredor, na direção dos banheiros. Ele tá com utensílios escondidos na bota e prepara um pico rapidinho. – O último restinho de néctar, camarada. Aproveita, porque a gente tem uma viagem dura pela frente...

Ele tira a gravata e faz um torniquete no meu braço. Tô dando uns tecos num papelote de anfetamina que cai da minha mão quando ele injeta e a heroína entra no meu cérebro, matando todas as dores do mundo.

Bom pra caralho, viado...

Fico sentado na privada, em êxtase, enquanto Swanney se injeta e me explica que tava guardando esse restinho, a última dose. Ele recolhe o papelote de anfetamina e a gente termina o pozinho, embora seja a última coisa que eu queira. – Usa a anfetamina – ele ordena enquanto briga pra ajustar a gravata. – Se eles notarem que cê tá dopado, vai ser o fim. – Ele revira os olhos. – Mas esse lugar é legal, uma ótima rede de contatos.

– Valeu, Johnny – digo com um gemido. – Cê foi legal, cara.

– Sem problema – diz ele.

Quando voltamos, Len da Franjinha e a Magrinha de Óculos já iniciaram o discurso, mas nenhum viado presta atenção, tá todo mundo recostado na cadeira, e a gente senta com eles. Vai ficar tudo bem aqui. Essa é minha turma: a gangue de St. Monans.


À beira

Para Alison, o tempo havia se tornado uma série fragmentada de impulsos biológicos.

Bill e Carole, os outros colegas de trabalho em sua equipe, sabiam tudo sobre a sua relação mas eram discretos, até mesmo apoiadores, de uma maneira discreta e protetora. Mas assim como Alexander, percebiam o estado em que Alison vinha trabalhar, isso quando ela aparecia. Aquilo não podia continuar. Lá estava ela mais uma vez, andando como um fantasma às dez e meia. Alexander armou uma cena ao levá-la diretamente para o seu escritório, com os olhos em chamas, com uma forca entre os dentes. – Olha, pode não significar nada para você – ele começou –, mas estamos à beira de uma epidemia nessa cidade. Não posso dar a impressão de que estou favorecendo você. Pô, Ali – ele suplicou de repente, deixando a voz suave do amante assumir o lugar da voz do chefe, – cê tá de sacanagem aqui!

– Desculpa... é que... – ela piscou por causa da luz prateada que atravessava as persianas da grande janela atrás dele – esses ônibus são uma bagunça...

– Eu acho que a gente deveria mesmo pensar em transferir você, talvez de volta para a RCP. A culpa é minha, eu não deveria ter te envolvido...

Um brilho alienígena surgiu nos olhos de Alison. Sua boca se retorceu numa carranca arrogante. – Se a culpa é sua, por que eu preciso ser transferida?

Alexander a via apenas como uma garotinha e, pela primeira vez, teve a sensação vagamente esnobe de que ela era uma pessoa comum: uma moradora dos blocos. E ele ficou envergonhado de pensar daquela forma. Não podia dizer nada em resposta. Não era justo; ele sabia disso. Sim, podia mencionar seu status e papel crucial no combate a esta praga, mas ele achou que não era isso que ela desejava ouvir. Tinha chegado a hora de ser honesto, brutalmente franco, como ela tinha sido com ele quando contou que estava saindo com outras pessoas. – Tanya e eu... a gente decidiu tentar mais uma vez pelas crianças.

Alison se sentiu corroída pela notícia. Ela não sabia por quê; não queria nem lembrava de ter manifestado a intenção de ter qualquer relação duradoura com Alexander. Talvez fosse apenas o choque da rejeição ou talvez estar com ele tivesse significado mais do que ela percebia. – Que bom pra você – respondeu ela com toda a elegância que pôde. O olhar tristonho que recebeu em troca dizia que ela não tinha se saído tão mal. – Eu tô feliz, e não tô dizendo isso só por dizer – declarou Alison, embora fosse mentira, pelo menos em alguma medida. – As crianças precisam que seus pais fiquem juntos – continuou, querendo soar convicta. – Nunca quis me casar com você, Alexander, a gente só tava trepando. Se liga.

Aquela expressão levemente sacana e meio misteriosa no rosto dela o atingiu em cheio. Ele a amava e estava muito chateado com a natureza irreparável da situação. – Eu realmente não sei se é apropriado que continuemos trabalhando juntos.

– Ah, vai se fuder, cê tá começando a me assustar de verdade agora, e isso pra dizer o mínimo. – Ela debochou dele com um riso vazio e amargo. – Eu tava metida nuns lances, cê tava metido em outros lances, a gente não devia ter ido pra cama, mas a gente foi. Mas passou e eu não tenho nenhum interesse em divulgar isso pro mundo todo.

– Tá... – respondeu ele com hesitação, se sentindo pequeno e fraco como um garotinho.

Sua passividade despertou algo dentro dela. Alison pensou na mãe, que estava morrendo, e ainda assim era incapaz de se enfurecer contra a sua situação. Os versos daquele poema clássico de Dylan Thomas reverberavam dentro dela. Ela havia ficado pasma diante daquele corpo murcho, tão arruinado e deteriorado que era praticamente um cadáver muito antes do derradeiro batimento cardíaco. Com isso veio a consciência de que ela mesma estava tocando a vida adiante, ao mesmo tempo que suas expectativas e ideais tinham sido profundamente estremecidos. O que era aquilo, toda aquela história de conselho, aquela baboseira sobre aquelas merdas daquelas árvores? Era um monte de merda sem sentido, que servia apenas para que cretinos pomposos ficassem ainda mais preocupados com os seus próprios umbigos. – Quer saber? Vou facilitar pra você – disse ela de repente com a voz grave e rouca. – Eu me demito. Do conselho. Isso aqui já encheu o saco!

– Não seja boba, você não pode perder seu emprego, Alison, não vou deixar você fazer isso – disse Alexander, sentindo que as palavras estavam simplesmente caindo sem nenhum efeito no abismo imenso que havia entre eles.

– Que se foda tudo que tem a ver com você – disse ela, e então saiu do escritório, atravessou a sala aberta sem olhar para Bill e Carole e bateu a porta com força. Depois de passar pelos corredores de piso de madeira e atravessar o mármore do saguão, chegou à praça com pilares em frente à Câmara Municipal. Cruzou a Royal Mile na direção oposta de sua casa, pensando que há muito tempo não se sentia tão bem, ao mesmo tempo ciente de que aquela sensação não duraria.

Ele era um fraco, ela pensou com desprezo. Ela também tinha sido fraca, mas tinha se portado assim diante de um homem essencialmente frágil. Talvez fosse uma bênção. Não dava pra saber.

Cê não tem como saber de coisa nenhuma.

A cidade era linda. Era perfeita. Sim, os conjuntos habitacionais eram horríveis e não tinha nada de mais neles, mas no centro havia tudo. Alison continuou caminhando, se deixando impressionar com o quanto sua cidade natal era maravilhosa. A luz se derramando sobre o castelo, deixando as ruas da Old Town prateadas. Era o lugar mais lindo do mundo. Nada se comparava. As árvores eram lindas também. Não dava para deixar eles derrubarem as árvores.

Alison passava por baixo de um andaime quando quatro garotas bêbadas de braços dados passaram por ela de nariz empinado, cantando como se estivessem numa despedida de solteiro, embora ainda fosse manhã. Ela se virou com inveja para vê-las desfilando rua acima, louca para saber o motivo de sua misteriosa alegria. Aquilo a inspirou a agir por impulso, o que a fez entrar num bar que estava aberto à sombra do castelo. Era cedo e o lugar ainda estava desprovido de clientes. Uma garota corpulenta e mal-humorada, com um olhar julgador, lhe serviu uma taça de vinho branco. Ela sentou perto da janela e pegou uma edição do Scotsman que alguém havia deixado por ali. Divertiu-se com um pensamento: peguei um velho escocês arruinado num boteco imundo. De novo.

Ficou acariciando a haste comprida da taça entre o polegar e o indicador, observando o líquido cor de urina que repousava ali dentro. O primeiro gole da substância avinagrada quase a fez vomitar. O segundo foi melhor, e o terceiro parecia ter recomposto suas papilas gustativas a contento. Ela folheou o jornal e um editorial chamou sua atenção:

O Governo Escocês e o Conselho Distrital de Edimburgo merecem elogios pela sua pronta resposta no combate à epidemia mais séria já enfrentada pela capital da Escócia. O ataque desmedido às nossas árvores, portanto também à nossa história e patrimônio, que a terrível ameaça da grafiose representa é motivo de preocupação para todos nós. Esta doença já causou estragos, mas as perdas teriam sido muito maiores se a estratégia atual de derrubar e queimar as árvores infectadas não tivesse sido executada de forma tão ágil e decisiva.

Os olhos de Alison foram descendo até as cartas dos leitores. Uma delas tinha sido enviada por um clínico geral que atuava num dos maiores conjuntos habitacionais de Edimburgo. Chamava atenção para o fato de que testes aleatórios haviam revelado um alto e inesperado índice de infecção pelo vírus da Aids. Ela examinou uma ferida deixada pela seringa no seu pulso fino.

Uma ideia corroeu seus pensamentos; árvores apodrecendo de um lado da West Granton Road, enquanto pessoas dentro de apartamentos varicosos, assim chamados por causa do revestimento cheio de remendos, também estavam em decomposição. Toda aquela morte. Toda aquela praga. De onde ela tinha vindo? O que isso significava?

O que vai acontecer?

Ela saiu do bar e foi pensando no assunto a caminho de casa. Um vento forte começou a soprar, circulando por cantos e recantos, balançando a cidade como se ela fosse um set de filmagens. Estranho que um lugar construído ao redor de um castelo de pedra pudesse parecer tão raquítico, mas aquelas pedras estavam agora cobertas de andaimes para tentar evitar que ele ruísse. Cortando pela Lothian Road, ela caminhou rumo à zona leste, atravessando o Princes Street Gardens. Depois de descer pela Leith Street, percorrer a Leith Walk e chegar no seu apartamento em Pilrig, ela pendurou o casaco. Foi se olhar no espelho do banheiro. Pensou na mãe, em como ela adorava encontrá-la para tomar um café, para mostrar uma blusa ou sapato que havia comprado, fofocar sobre os vizinhos ou os parentes ou falar sobre o que tinham assistido na TV. Enquanto ensaboava e enxaguava as mãos, lembrou que tinha posto as toalhas no cesto de roupa suja. Foi até a tábua de passar pegar toalhas limpas. Algo que estava abandonado no fundo do armário chamou sua atenção; o estojo de barbear que Alexander havia deixado ali. Ela abriu o zíper e examinou o conteúdo: pincel, navalha e creme de barbear. Pegou o pincel e encostou no queixo para ver como ela ficava de cavanhaque. Depois o guardou de volta no estojo e pegou a navalha com cabo de osso. Ela abriu a navalha. Parecia leve e letal na sua mão. Alison arregaçou a manga acima do bíceps para cortar as veias e artérias. Sangue morno espirrou no piso de cerâmica.

Mamãe...

Era uma sensação boa, como se a dor estivesse indo embora junto com o sangue, como se uma pressão terrível estivesse sendo removida. Era tranquilizador. Ela deslizou encostada na parede.

Mamãe...

Mas, enquanto estava ali, as coisas mudaram rapidamente; era sangue demais. Primeiro ela foi tomada por uma náusea horripilante, depois um medo desesperador cresceu dentro dela. Seus pensamentos começaram a ficar turvos e ela sentiu que ia desmaiar.

Papai Mhairi Calum...

Ela puxou a toalha do aparador e amarrou com firmeza em volta do ferimento, aplicando o máximo de pressão. Se ergueu com dificuldade, cambaleou até a sala de estar e tropegou até o telefone. Sua pulsação golpeava o crânio enquanto ela ligava para o 999 e pedia, aos grunhidos, uma ambulância. – Fiz uma bobagem – arfou repetidas vezes. – Por favor, venham logo.

E isso pra dizer o mínimo...

A toalha já estava encharcada de sangue. De joelhos, engatinhando, ela se obrigou a ir até a porta da frente e a abriu. Ficou esperando na porta, sentindo os olhos cada vez mais pesados.

... o mínimo...

Ao despertar para algum nível de consciência no hospital, ela foi acossada por uma procissão de rostos solenes que explicaram que eles tinham chegado a tempo, que tinha sido por pouco, enfatizando a sorte que ela teve. – Por favor, não contem pro meu pai – ela implorou várias vezes quando pediram informações de contato e dados sobre parentes próximos.

– Precisamos informar alguém – explicou uma enfermeira baixinha de meia-idade.

Tudo que ela conseguiu pensar foi fornecer o número de Alexander.

Eles a suturaram e lhe deram um pint e meio de sangue. Alexander apareceu mais tarde e a levou para casa, para o seu apartamento de Pilrig, no dia seguinte. Ele comprou comida chinesa para ela e passou a noite no sofá. Ainda estava dormindo de manhã quando ele deu uma conferida nela antes de ir para o trabalho. Quando estava saindo, ele olhou para a foto dos filhos que levava na carteira. Ele e Tanya precisavam ficar do lado deles. Mas ele voltou para ver como Alison estava à noite, dizendo que tinha autorizado duas semanas de folga para ela e comunicando, com um sorriso irônico, que havia ignorado seu pedido de demissão. – Não recebi um pedido formal.

Eles se sentaram, ela no sofá, ele na poltrona, e começaram a falar sobre suas próprias experiências de perda. Alexander tinha consciência de que as suas eram mais limitadas que as dela. – O pai de Tanya morreu há três anos. Infarto fulminante. Ela tem andado bem irritada desde então; especialmente comigo, ao que parece. Mas o que posso fazer? Eu não o matei. Não é minha culpa.

– Nem dela.

Alexander ficou pensando naquilo. – Não, não é – concordou –, e também não é sua culpa que sua mãe tenha morrido. Então você não devia ficar se punindo como se fosse.

Foi aí que ela olhou pra ele e, em meio a uma crise de aflição, se permitiu chorar na frente dele pela primeira vez. Diante daquilo, ele não se sentiu como esperava: grande, másculo e protetor. O rosto dela ficou horrivelmente distorcido e ele sentiu a mesma dor miserável que ela estava sentindo, e também a mesma impotência, por ser incapaz de fazê-la desaparecer. – Eu não queria morrer – disse Alison, soando verdadeiramente apavorada, e depois fechou os olhos com força, como se estivesse confrontando aquela possibilidade. – Nem por um segundo... O médico me disse que se eu tivesse cortado a artéria só mais um milímetro eu teria sangrado até morrer em minutos. Eu só queria aliviar a pressão...

– Não tem como se livrar da pressão. Ninguém consegue. É horrível, mas tudo que podemos fazer é tentar aprender a carregar este peso.

Ela o fitou com uma dor imensa ao ouvir isso. Sentia-se grata por ele estar a seu lado, mas ficou aliviada quando ele se preparou para ir embora. Torcia para que ele não voltasse mais. Ele pareceu entender. – Eu quero muito o seu bem, Alison – disse a ela.

Quando ele se foi, ela ficou feliz de poder deitar no sofá no escuro, ainda sentindo o cheiro de sua loção pós-barba na sala e um calor suave no dorso da mão, bem onde ele a havia tocado com carinho. Então Alison mergulhou num sono abrasivo, ignorando as ligações que se acumulavam na secretária eletrônica. Em determinado momento ela se levantou, conseguiu se arrastar até o quarto e dormiu debaixo do edredom. Adormeceu envolta em algum tipo de paz até o meio-dia, quando acordou sentindo-se mais forte. Então esquentou uma lata de sopa, comeu, vestiu um casaco de lã comprido e partiu rumo à Leith Walk para visitar o pai.


Diários da reabilitação

Dia 1

Dopado que nem uma lesma depois do pico oferecido pelo Johnny. Eu sabia que seria o último por um bom tempo e a droga começou a sair do organismo quando no mesmo instante em que me dei conta de como eu tava me sentindo bem. Poucas horas depois eu tava me contorcendo com o mal-estar. Deitado a maior parte do dia na cama pequena, tentando recuperar o fôlego, suando como uma puta em fim de expediente, à medida que o elixir evaporava do meu sangue.

As janelas estreitas que não dá pra abrir tão cercadas de árvores altas e hostis que se elevam acima do jardim murado nos fundos, bloqueando a maior parte da luz. O ar dentro do prédio parece ficar parado; a única coisa que se ouve são os gemidos de um filhadaputa desgraçado no quarto ao lado. Fica claro que não sou o único viado passando por uma desintoxicação.

A partir do momento em que o crepúsculo chumbado toma conta, os morcegos começam a dançar no lado de fora, dentro de um recanto iluminado que as árvores não alcançam. Fico indo e vindo da cama pra janela, dando voltas como um louco, assustado demais pra sair do quarto.

Dia 2

QUE TODOS ELES SE FODAM.

Dia 5

Deixaram um caderno de espiral pra servir de diário em cima da escrivaninha, mas eu tava fudido demais pra conseguir escrever qualquer coisa nos últimos dias. Teve momentos em que desejei morrer de verdade, de tão intensos e incessantes que eram a dor e o sofrimento da porra da abstinência. Me deram uns analgésicos que devem ser só uns placebos inúteis de merda. Cê fica com a impressão de que eles querem que cê sinta na pele todo o tormento.

Se eu tivesse os meios e a energia de me matar ontem, teria ficado seriamente tentado. Nos últimos dias, tenho a sensação de que poderia me afogar no meu próprio suor. Meus ossos, caralho... é como se eu estivesse dentro de um carro que foi esmagado no pátio do ferro-velho. É uma porra que simplesmente não dá trégua. E fico pensando no Nicksy e no Keezbo, e em como eu teria assumido o lugar deles se estivesse me sentindo assim. Por que suportar essa bosta?

PRECISO DE UM PICO, PORRA.

Preciso mesmo.

Só saio do quarto pra ir no banheiro ou pro café da manhã, a única ocasião em que os clientes que tão se desintoxicando são obrigados a se reunir com os demais. Tomo meu chá com cinco pedras de açúcar, junto com cereal achocolatado com leite, engolindo tudo o mais rápido que consigo. É tudo que consigo comer aqui; em geral, como a mesma coisa no almoço e no jantar, recolhido no meu quarto.

Noite passada, ou na anterior, levantei pra dar uma mijada. Tem duas luzes noturnas bem fraquinhas no corredor, na altura do rodapé, e quase me caguei quando um monstro todo suado e iluminado de baixo pra cima veio se arrastando na minha direção. Uma parte do meu cérebro me mandou continuar andando, e o monstro me olhou rapidamente e balbuciou alguma coisa quando nos cruzamos. Falei “E aí?” e segui em frente. Quando saí do banheiro, aquela coisa tinha felizmente desaparecido. Não sei se foi um sonho ou uma alucinação.

Dia 6

Sou despertado de um sono estremecido e cheio de pesadelos por uma tempestade agressiva de cantos de pássaros. Me forço a levantar. Mal consigo me olhar no espelho. Andei me sentindo desconfortável demais pra arriscar fazer a barba, então deixei crescer uma penugem ruiva que parece mais vermelha e mais grossa do que realmente é por causa das espinhas que me apareceram na cara. As amarelas são repulsivas o suficiente, mas o que incomoda mesmo são as duas usinas nucleares filhas da puta na testa e na bochecha. Elas latejam por baixo da superfície da pele como uma linha de baixo do Peter Hook, doendo toda vez que eu mexo a cara. Mas o maior choque está nos meus olhos; parecem afundados no fundo das órbitas e têm um aspecto mórbido e derrotado.

O “monstro” da noite passada era aquele motoqueiro grandalhão, Seeker. O viado não parece ter melhorado muito na luz do dia.

O Sick Boy anda paquerando aquela mina enfezada, a Molly. “O amor é a mais perigosa das drogas”, ele declarou solenemente, com olhar de seriedade. É claro que ela tá se encantando com esse lixo, fica concordando com a cabeça. Eu tava fudido demais pra me divertir com essa merda e o Spud ficava tagarelando no meu ouvido sobre como a desintoxicação não era tão ruim assim. “Só fico pensando que é legal saber que alguém se importa com a gente, Mark.”

Quando saí da mesa, ouvi um viado engraçadinho, provavelmente Swanney ou Sick Boy, me chamando de Catweazle, por causa daquel mendigo maluco do programa de TV. Com esse cabelo e barba desgrenhados e meu andar curvado, acho que me pareço exatamente com ele. Fico feliz e aliviado de poder voltar pro meu quarto.

Sou avaliado mais uma vez por aquele dr. Forbes, que vem do posto comunitários de atendimento a drogados. Ele basicamente fez as mesmas perguntas cretinas da outra vez. Eu não conseguia parar de olhar pra cabeça dele; é grande demais pro corpo, como aqueles bonecos dos programas do Gerry Anderson.

Mais cereal achocolatado na janta, e então me retiro aos meus aposentos. Dias felizes. Len aparece pra conversar um pouco, principalmente sobre música. Temos uma discussão meia-boca sobre Captain Beefheart, a respeito dos méritos de Clear Spot (eu - um disco foda) versus Trout Mask Replica (ele - um álbum de merda). Ele me fala outra vez sobre o violão que tá na sala de recreação.

Dia 8

Comi um pouco de mingau no café da manhã. Com sal. A Magrela de Óculos comentou alguma coisa sobre botar sal no mingau (ela botou açúcar no dela) e a gente tirou sarro dos hábitos ingleses dela. Ela insistiu que é escocesa, mas Ted e Skreel disseram que, pra todos os efeitos, uma escocesa metida a besta é a mesma coisa que uma inglesa. Mencionei que há gente de classe trabalhadora na Inglaterra, e a classe social suplantou a nacionalidade como parâmetro de debate. (Puta merda - olha o viado estudande de faculdade falando!)

O tal de Tom ficou escutando bem atento, assim como Seeker e uma mina nova, de cabelo escuro, olhos azuis e queixo pontudo, que a Magrinha de Óculos apresentou como “Audrey, de Glenrothes”, como se ela fosse uma competidora no Generation Game.

QUE BOM VER VOCÊS, VER VOCÊS, QUE BOM!

Audrey substituiu Greg “Roy” Castle, que foi o primeiro a largar o programa de reabilitação. Aparentemente, ele não aguentou e preferiu uma hospedagem patrocinada por Sua Majestade no presídio de Saughton. Audrey nos cumprimentou com um aceno de cabeça esquivo e ficou sentada em silêncio, roendo as unhas. Me coloquei no lugar dela, que tinha acabado de emergir do casulo de desintoxicação de seu quarto pra se unir a um grupo onde tinha só uma outra mina. Ela parecia estar ainda pior que eu, tremendo como um chocalho de bebê.

“Tenho certeza de que será muito feliz aqui, Audrey”, disse Swanney com sarcasmo escorrendo pela língua, e depois ele acrescentou: “Você não precisa ser viciada em drogas pesadas pra ficar aqui, mas certamente ajuda!”

Dia 9

Enfrento mais uma manhã banal e apavorante. Lá fora se veem o branco das margaridas no gramado coberto de orvalho e o açafrão amarelo, branco e roxo se estendendo como uma onda pela base do muro de pedra. Nada mau.

Fico aqui sentado escrevendo essa merda e me perguntando por quê - porque não tem mais porra nenhuma pra fazer, provavelmente. Os folhetos que nos deram têm suas seções; um diário com uma página pra cada um dos 45 dias do programa e apêndices onde se encontra o que eles chamam de “cadernos”. A Magrinha de Óculos explicou que os cadernos são pra “desenvolver os temas do diário que a gente tenha vontade de explorar em mais detalhe”. Pelo que entendi, os diários são privados, podemos colocar qualquer coisa neles. Os cadernos podem ser lidos, se quisermos, nas sessões de grupo que se aproximam. Mas ninguém vai escrever porra nenhuma (pelo menos nada importante); não tem tranca nas portas aqui, e nada tá protegido. Os filhos da puta que administram essa instituição não fazem a menor ideia do tipo de viado com que tão lidando. Manter um diário íntimo quando Sick Boy e Swanney tão de olho? Ah, tá bom!

Tudo que consigo pensar: por que diabo a gente tá aqui? Como é que vim parar aqui, caralho?

Dia 12

MAS QUE PORRA ESSES CORNOS QUEREM?

Dia 13

“Honestidade”, a Magrinha de Óculos diz quando toco no assunto no café da manhã. Um ovo mole com palitos de pão torrado. “Você compreenderá melhor quando começar a participar do grupo de acompanhamento de processo.”

Bem, perguntou, agora aguenta. Devo ter feito cara feia, pois em seguida ela acrescenta: “É pra isso que servem os diários e cadernos.”

Mas assim que volto pro meu quarto, começo a escrever. Se os outros filhos da puta não tão escrevendo nada (como parece ser o consenso), vou anotar tudo.

A Magrinha de Óculos aparece e diz que gostaria que eu participasse do grupo de meditação. Aceito, com o objetivo principal de passar mais tempo perto dela. Sentamos de pernas cruzadas no chão, ela bota uma fita pra tocar e se posiciona na nossa frente. Fico olhando os peitinhos dela por trás da blusinha preta de malha justa e elástica, maravilhado com o jeito felino dela se alongar, arqueando as costas antes de assumir a posição. Ela nos passa exercícios de respiração e instruções pra flexionar e relaxar vários grupos musculares do corpo. Devíamos fechar os olhos, mas fico olhando pra ela até perceber que Johnny tá atento na mesma direção. Ele me dá uma piscadinha conspiratória de tarado, então fecho os meus olhos e respiiiiirooo...

Depois da sessão, fico um tempo conversando com ela. Aprendendo a relaxar os músculos, ela me diz, adquirimos posteriormente a capacidade de reduzir os níveis de ansiedade. Não acredito em nenhuma teoria que inverte causa e efeito e demonstro pouco entusiasmo pelo que ela tá me dizendo, mas quando volto pro quarto experimento fazer os exercícios outra vez.

Keezbo foi embora. Foi o Spud que me contou, depois do almoço, quando eu tava sentado lendo Joyce perto da janela. Nosso Gorducho do Fort tava quase terminando a fase de desintoxicação, mas levaram ele pro hospital por causa de uma suposta “complicação com os medicamentos”, seja lá o que signifique essa porra. Dizem que ele vai voltar logo. Aquele gordo jambo viado já deve tá sentado no Village Inn com um pint gelado de lager, agora que se livrou dos químicos.

“Esse livro aí é legal, Mark?”, pergunta Spud, como se estivesse formulando algo numa das câmaras mais intrigantes daquele labirinto que ele tem dentro do crânio.

“Sim.”

Daí ele cai fora e eu volto pra escrivaninha. Escrever sobre quê? Nossos sentimentos, diz a Magrinha de Óculos. Como me sinto? Bem, tô sentindo tesão pra caralho. Dá pra saber que tô me desintoxicando, não só porque a depressão e o sofrimento se alternam com a ansiedade e a excitação, mas porque o único alívio é a minha crescente obsessão carnal. Penso na Lesley na cama da casa do Sully no Ano-Novo, me arrependendo por não ter chupado ela, esfregado meu pau no meio daqueles peitões ou até mesmo descolado uma chupada. Agora parece uma oportunidade desperdiçada e fico me torturando, me sentindo idiota e fraco - mais uma chance que deixei passar. SEU VIADO SEU VIADO SEU VIADO SEU VIADO SEU VIADO.

Mais pro fim da tarde me masturbei pensando em Joanne Dunsmuir.

Fora o Joyce e a masturbada, fico na minha, me desintoxicando, passando o tempo.

Dia 14

Lendo tudo que já escrevi, percebo que, ao repetir os diálogos que escutei, a leitura lembra mais um romance ou série de contos do que um diário. E isso me agrada. Eu não teria o menor interesse em escrever um diário convencional.

Fui ao meu primeiro grupo de acompanhamento de processo. Foi uma demência! As pessoas foram pra cima umas das outras, ninguém economizou socos; teve uma discussão em pé e aos berros entre Johnny e aquela mina, Molly, o que exigiu uma intervenção do Tom e da Magrinha de Óculos. Foi um pouco demais pra mim, no estado em que me encontro, então escolhi almoçar na privacidade do meu quarto, um peixe no vapor totalmente sem gosto, que eu nem deveria ter comido porque sou vegetariano.

Hoje à noite, fui trôpego à sala de recreação e me reuni com todos os outros. A mesa de bilhar tá com a bola amarela listrada faltando. Suspeito que Johnny Swan, que passou a mão aprovadora em cima da minha cabeça recém-raspada, jogou a bola meticulosamente por cima do muro do jardim, porque ele é o único que não joga bilhar. Sick Boy e Swanney tavam tramando alguma conspiração, falando sobre a Alison. Sick Boy dizia: “Lozinska, a grande feminista. Em que sentido chupar um pau em troca de heroína serve à causa da liberação das mulheres? Me explica, por favor. Foi só porque eu tava comendo outra mina ao mesmo tempo que comia ela; tudo que a vadia rancorosa queria fazer era me manter afastado da xotinha mais apertada que já encontrei na vida. Prende como um vício.”

“Bucetinha de qualidade”, Johnny concordou.

Vai saber a respeito de quem eles tavam falando, mas ela deve ser especial mesmo, pra eles estarem concordando. Todavia, reparei que o Spud ficou escutando e depois se encolheu todo e virou as costas, murchando como um hamster no micro-ondas.

Voltei pro meu quarto com o plano de bater mais uma pra Joanne Dunsmuir.

Joanne Dunsmuir.

De onde vem o fascínio? Ela nem é particularmente bonita, e com certeza não tem uma personalidade acolhedora, mas bato mais punheta pra ela do que pra qualquer outra.

Começo a montar o cenário e o pau vai começando a ficar duro. Na minha imaginação, Joanne tá deitada de bruços e eu vou levantando a saia xadrez marrom e preta e depois baixando a calcinha preta e reluzente até expor a bunda durinha e redonda.

Só cheguei até aí, porque Spud bateu na porta e depois entrou sem aviso. Ele tava transtornado, tanto que nem percebeu que as minhas mãos tavam dentro da calça de moletom. Sentou na pequena cadeira de cesto e ficou ali todo nervoso, mordendo o lábio inferior. “As pessoas ficam dizendo umas coisas... esse lugar é um pesadelo total... me sinto uma merda, Mark, pura merda, e as pessoas ficam dizendo besteira.”

Disse pra ele não se preocupar, que era só o Sick Boy e o Swanney tentando se exibir. Que era tudo papo furado.

“Mas por que ele precisa ficar falando essas coisas da Alison? Ela é uma mina tão legal!”

“Porque ele é um filho da puta doente, amigo. Todos nós somos. Mas a gente vai melhorar, espero. Esquece toda essa merda sexista, eles só tão fazendo pose um pro outro. Esses espertinhos podem falar entre si como se fossem estupradores, mas vão todos virar uns maridinhos acovardados que se preocupam com as filhas. É só pose.”

Ele me encarou com um ar acusador e melancólico, como uma criança que acaba de ouvir que Papai Noel não existe. Ficou olhando alternadamente pro chão e pra mim, como se estivesse se preparando pra dizer alguma coisa, e então disparou: “Cê e o Matty... vocês cês roubaram aquele dinheiro da Liga de Proteção aos Gatos! Da sra. Rylance! Da sua loja loja dela!”

FODA-SE.

“Roubamos mesmo. Foi desse modo que nós viemos parar aqui, por causa de um dinheiro sem importância. E pensar na dificuldade que tivemos para abri-lo. “Roubamos mesmo. Assim que a gente veio parar aqui, por causa de uns trocados de merda dentro de uma bosta de cofrinho. E o trabalho que deu pra abrir... é isso que nos levou pra porra da cadeia! Um escroto querendo usar uns drogados como exemplo! Por causa de uma bosta de cofrinho!”

“Bem, cê não devia ter feito isso, Mark”, desabafou Spud, “não devia ter feito isso com a velha sra. Rylance, com os gatos... porque não é a mesma coisa que, tipo, roubar das lojas, era uma caixinha de caridade, tipo assim, uma mulher idosa que tá fazendo tudo que pode pra ajudar os animais abandonados. Caridade animal, tipo assim.”

“Já entendi, amigo, já entendi”, enfatizei abanando com a mão. “Quando ficar rico, escrevo um cheque polpudo pra Liga de Proteção aos Animais e pro Centro de Resgate Felino de Lothian.”

“Um cheque...”, ele repetiu com um olhar perdido, parecendo se acalmar com a ideia, mas na verdade nossos amigos felinos serão os últimos viados a ver a cor de qualquer dinheiro que um dia eu receba VER A COR DE QUALQUER DINHEIRO QUE ME CAIA NA MÃO UM DIA. (É assim que minha voz soa dentro da minha própria cabeça. Às vezes. Mais assim. Às vezes. Por que tentar soar diferente? Por que tentar ser igual a qualquer outro viado, caralho? Quer dizer, a quem isto serve, hein porra?)

Entãi digo pro Spud: “Olha, minha ideia é ficar limpo e depois manter o vício sob controle. Nunca passar de, digamos, duas ou três gramas por semana. Tornar isso uma regra inescapável. Ficar naquele ponto em que cê tem o barato, mas se a droga ficar em falta não rola abstinência forte e cê consegue aguentar com analgésicos e Valiums, até tudo voltar ao normal. É uma ciência, Danny. Ou matemática. Tudo tem um nível ideal. Eu só me descontrolei e passei do meu.”

“Aquela mina nova que apareceu, a Audrey; ela parece uma mina legal, tá ligado? Veio e sentou do meu lado no café”, disse ele naquele tom tímido de escola primária que às vezes ele usa quando uma buceta entra na conversa. “Ela não fala muito, tá ligado, então eu tipo olhei pra ela disse, ‘Cê não precisa falar nada, mas se quiser conversar, tipo assim em particular, tô à disposição, tá ligado.’ Ela só fez que sim com a cabeça.”

“Foi muito atencioso da sua parte, Spud. Cai matando ali, parcero. Eu comia ela fácil. Não ia nem piscar antes.”

“Não, não foi assim”, ele protestou acanhado, “ela é uma mina legal e eu só tava tentando ajudar de alguma forma, tá ligado.”

“Mesmo assim, logo cê vai sair daqui, Spud, e vai estar livre pra impressionar as lindas virgens do porto com suas histórias de experiências de quase morte e reabilitação.”

“Nada disso, não quero voltar pro Leith. Não tem nada pra fazer lá.” Ele balançou a cabeça. “Eu não tô pronto, cara...”

Aí ele colocou a cabeça entre as mãos e eu me transformei, me senti virando pedra porque ele começou a chorar. Chorar de verdade pra valer, alto, fungando, com uns gemidinhos de bebê. “Estraguei tudo completamente... com a minha mãe...”

Botei o braço nos ombros dele; foi como abraçar a furadeira pneumática de um operário. “Opa, que é isso, Danny, pega leve, parcero...”

Ele me encarou com o rosto vermelho e o nariz escorrendo. “... se pelo menos eu conseguisse um emprego, Mark... e uma namorada... alguém que eu precisasse cuidar...”

Bem nesse momento, Sick Boy abriu a porta. Ele revirou os olhos dramaticamente enquanto Spud esfregava seus próprios olhos vermelhos e injetados. “Estou interrompendo alguma coisa?”

Spud ficou em pé num salto. “Vê se para de falar mal da Alison! Cala a boca e para de falar dela, tá bom? O jeito que cê fala das mina... É FEIO, TÁ LIGADO? FEIO PRA CARALHO!”

“Daniel...”, disse Sick Boy, erguendo as palmas, “... qual o problema?”

“VOCÊ! PESSOAS COMO VOCÊ!”

Eles foram um pra cima do outro, gritando, rostos a centímetros de distância. “Cê precisa comer alguém urgentemente!”, Sick Boy debochou.

“E cê precisa aprender a tratar as pessoas com respeito!”

“Me poupe dos axiomas batidos.”

“Não pensa que pode se safar usando palavras complicadas”, berrou Spud com o rosto ruborizado e os olhos lacrimejantes. “Eu disse que cê tem que aprender a tratar as pessoas com respeito!”

“É, parece que isso te fez muito bem!”

“CÊ TÁ NUMA CLÍNICA DE REABILITAÇÃO, CARA!”

“PELO MENOS EU PRECISO DE MAIS QUE UMA DAS MÃOS PRA CONTAR AS FODAS QUE JÁ DEI!”

“HORA DESSAS ALGUÉM VAI TE FORÇAR A CALAR ESSA BOCA!”

“E POR ACASO VAI SER VOCÊ, É?”

O bate-boca se propagou através das paredes de bolacha do centro e Len e a Magrinha de Óculos chegaram pra tentar acalmar a situação. Eu não ia me meter na briga deles nem fudendo: eles que troquem porrada até cansar. Embora seja uma alma delicada, Spud sabe bater quando a causa é justa, e eu apostaria nele contra o Sick Boy. Teria sido um bom esporte, ver uma pancadaria entre os dois.

“Isso não é maneira de lidar com um conflito, gritando e fazendo ameaças. Não é, Simon? Não é, Danny?”, a Magrinha de Óculos salientou retoricamente no seu estilo de diretora de colégio.

“Ele começou!”, uivou Spud.

“Nem fudendo! Vim aqui falar com o Mark e cê começou a gritar em cima de mim!”

“Porque cê tava...”, Spud hesitou, “... porque cê tava falando mal das outras pessoas!”

“Cê realmente tá precisando comer alguém.”

Quando Spud deu a volta e saiu, arrisquei: “Acho que todos nós precisamos, é um axioma geral.” Roubei o último termo que Sick Boy obviamente encontrou em seu estimado dicionário na esperança fútil de que a Magrinha de Óculos entrasse no clima ou pelo menos fizesse graça comigo, mas ela ignorou solenemente o comentário. O coitado do Spud tava borbulhando, mas ele vai passar os dez próximos anos pedindo desculpas pro Sick Boy, assim que a culpa católica começar a agir. Se cê vai se desculpar de um jeito ou de outro, melhor dar porrada no outro cara e fazer valer a pena; foi um erro de julgamento da parte dele. Len o seguiu e a Magrinha de Óculos olhou pra mim e pro Sick Boy como se a gente fosse expor o problema.

Ficamos encarando ela de volta. “É uma briga doméstica, Amelia.” Sorri. “No Leith é assim.”

“Bem, deixem para fazer essas coisas no Leith”, ela alfinetou.

“Não é fácil, já que metade do Leith tá aqui dentro”, observou Sick Boy, e então a Magrinha de Óculos fez uma cara indignada e saiu atrás do Len.

Sick Boy esticou a cabeça no corredor e ficou vendo ela se afastar. “Amelia, Amelia, assim você me mata”, diz ele pra ninguém ouvir, erguendo as sobrancelhas e apalpando a virilha. “Acho que ela toparia... se as condições fossem favoráveis.”

Dia 15

Os pássaros que fazem a gritaria são pegas de cor preta, branca e azul que fazem ninho à vontade na árvore em frente à minha janela. Estou aqui há pouco mais de duas semanas, mas parecem dois anos.

Meus sentidos quase me derrubam. Esses odores do passado: o aroma denso e encorpado do bolo de chocolate da mamãe, o cheiro forte de amônia do mijo do Pequeno Davie que fazia a gente lacrimejar sentado na frente da TV.

O Sick Boy acaba comigo, com essa mania que o viado tem de ficar trocando de roupa. Ele se veste com elegância de noite, como se estivesse indo pra uma boate, e fica soltando um cheiro de loção pós-barba. De dia ele veste calça de abrigo e camiseta. A gente tá sempre na máquina de lavar, por causa do suor. Encontrei a Molly lá depois do café, botando umas calcinhas pra lavar. Não vou com a cara dela, mas a cena me motivou a voltar pro quarto e dar uma masturbada. O carpete tá parecendo uma pista de patinação no gelo de tanta porra seca.

Molly tá no grupo de meditação, assim como Sick Boy, que não para de mirar nos pontos fracos dela. “Depois do Brandon, não tenho mais interesse por nenhum cara”, escuto ela dizer. Ele responde com: “Você não tem o direito de dizer uma coisa dessas. Você tem coração e alma, e uma vida emocional. Você é uma linda garota com muita coisa pra dar. Um dia o cara certo vai aparecer.” Mantendo aquele olhar profundo de integridade. Isso força ela a passar a mão no cabelo e sussurrar: “Cê acha mesmo?”

“Tenho certeza”, ele afirma em tom elevado.

É o grupo de acompanhamento de processo que me lembra o que me faz gostar das drogas. O objetivo é analisarmos a maneira como nos relacionamos aqui no centro, mas em geral a coisa desanda pra bate-bocas e xingamentos que se “resolvem” invariavelmente com abraços desonestos instigados por Tom ou Amelia. Mesmo assim, o clima é parecido com o Cenny, o Vine ou o Volley na hora do fechamento. Os relativos positivos que somos incentivados a dar uns aos outros parecem se resumir a pensamentos fantasiosos ou maledicências salpicadas de elogios. Por exemplo, a melhor coisa que Molly encontra pra dizer sobre Johnny numa dessas reconciliações encenadas é que ela gosta do suéter listrado de azul-marinho e branco que ele tá usando. O maior ponto de discórdia entre eles é o tráfico, que rende disparos de tudo que é lado pra cima do Johnny. Uma hora ele se levanta e anuncia: “Foda-se. Não vou me submeter a essa merda. Vou embora.”

“Quero ir embora significa quero consumir a droga”, Tom faz um apelo à figura que se afasta. “Não faça isso, Johnny. Não fuja. Fique conosco.”

“É, tá bom”, diz ele saindo e batendo a porta.

“Quando começamos a nos afastar, recorrendo a um comportamento de isolamento, é bem aí que corremos o risco de uma reincidência”, Tom explica. A reunião termina com confusão e desordem. Tom acha que “fizemos progressos” e diz que é “saudável” que esses conflitos estejam vindo à tona.

Tomando emprestadas as palavras imortais do White Swan: é, tá bom.

A gente tinha recebido permissão pra gravar nossas próprias fitas de música pra escutar na sala de recreação. Swanney, que encontramos sentado lá sozinho após sua saída comedida, trouxe uma fita de 45 minutos contendo “Heroin” dos Velvets, “Cocaine” do Clapton, “Confortably Numb” do Floyd, “Sister Morphine” dos Stones, “The Needle and the Damage Done” do Neil Young e algumas outras canções populares. O lado dois tem “Suicide is Painless” (tema sonoro de MASH), “Seasons in the Sun” do Terry Jack, “Ode to Billie Joe” do Bobbie Gentry, “Honey” do Bobby Goldsboro e “The End” do Doors, entre outras. A Magrinha de Óculos imediatamente confisca a fita, alegando que é “inapropriada”.

Agora tenho passado a maior parte das manhãs no pátio dos fundos. No canto tem um suporte com halteres de pesos variados. O motoqueiro grandão, Seeker, é o único viado que usa, então me junto a ele. Está tá fazendo frio, mas depois de um certo tempo cê nem sente mais, porque o exercício esquenta e faz o cara suar.

Galinha assada no almoço. Consigo comer.

Punheta e livro a tarde toda. Tô me preparando pra dormir quando Swanney entra no meu quarto com os olhos acesos como se tivesse chapado, senta na cama e começa a reclamar. Fico sabendo que Raymie tá em Liverpool (ou seria Newcastle?) e a Alison “encaretou e se vendeu”.

“A polícia veio e revistou o apê. Sorte que a droga tava em falta no mercado, e tudo que eles conseguiram pra incriminar o White Swan foi um estoque pessoal de maconha e um pouquinho de anfetamina. Me ofereceram um acordo de merda. É uma arma apontada pra cabeça, Rent Boy”, diz ele. “Não consigo ficar limpo. Odeio. Fico estressado demais com toda a merda o dia inteiro se não uso heroína. Eu preciso dela!”

“Sei do que cê tá falando.”

“Mas algum viado definitivamente me caguetou. Essa invasão policial tinha todos os sinais de uma delação típica, tenho certeza. Mas quem, pensei? Bom, não é meu hábito apontar nomes, não é assim que o White Swan trabalha, ele prefere deslizar graciosamente pelo rio do amor e da boa vontade; mas quem é o único viado que foi preso recentemente e não foi pro xadrez nem internado aqui?”

Entendi na mesma hora o que ele queria dizer, mas preferi me fazer de bobo.

“Aquele vermezinho do Connell, é ele. Sei que o Matty é seu parcero, Mark, lealdade antiga do Fort e tudo mais, só que ele vive borboleteando e fazendo perguntas como se quisesse saber de onde vêm o meu produto e essa merda toda.”

Lembro de uma fotografia antiga minha e do Matty, parados na frente dos muros do Fort com uniformes do Hibs. A gente devia ter uns 8 anos. “Ele é um ladrãozinho. Só queria fazer parte do seu esquema, Johnny. Ele não entregaria informação pra polícia.”

Estou sendo honesto. Como quase todo mundo, estranhei que o Matty tenha se safado só com uma condicional e uns diazinhos de detenção, em vez de ser mandado pra cadeira ou pra desintoxicação, mas não consido imaginar ele caguetando.

Dia 16

Tive minha primeira sessão individual de orientação psicológica com Tom Curzon, a “superestrela da reabilitação”, de acordo com a Magrinha de Óculos. Ela definitivamente quer dar pra ele.

Tom deu a impressão de esperar que eu falasse tudo sozinho. De jeito nenhum: fiquei de bico fechado. Deve ter sido como tentar arrancar um drinque da mão de um bêbado de Aberdeen. Foi uma sessão bem difícil: uma disputa de posições numa corrida de intenções disfarçadas.

Dia 17

Acordei com o canto dos pássaros de novo. Dei um passeio no jardim, embora esteja chovendo. Uma imagem perturbadora debaixo de um arbusto no muro dos fundos: um corvo rebolante enfia o bico repetidas vezes no peito de um pombo morto até localizar um miolo de tripas, arranca fora um pedaço gosmento e devora. A cena me deixa vidrado e fico me perguntando se o pombo ainda estava vivo, apenas moribundo, quando o corvo deu as primeiras estocadas no seu peito.

Fico pensando nisso durante o café da manhã e me sinto enjoado e distraído.

Keezbo retorna, mas se afunda no quarto, não sai nunca. Me recuso a bater na porta, é melhor dar um pouco de espaço pro gorducho, é disso que ele evidentemente precisa. Ted, o cara de Bathgate, me contou que ouviu falar que o Begbie demoliu um viado em Saughton, mas aparentemente não era Cha Morrison.

Um carinha de quem me aproximei é o weedgie, o Skreel. Foi preso por tentar assaltar um táxi. Tava morando em vários albergues de caridade aqui e em Glasgow e ainda tá com machucados pretos e amarelos por causa das brigas. Quando chegou aqui, o cabelo comprido dele teve que ser raspado, porque ele tava infestado de piolhos - a gente disse pra ele que não esperava menos de um weedgie. Ele tem a maior quantidade de abscessos que já vi nas mãos, pés, braços e pernas e mostra como se fossem medalhas de honra. Manca um pouco por causa de uma queda grave de moto e porque, depois de gastar todas as veias usáveis dos membros, começou a injetar nas artérias. Ele se gabou que ano passado tava injetando 750 mg de heroína por dia, e eu não duvido. Os dentes dele tão podres e causam dor constante; ele bota a culpa nos barbitúricos, que ele ama tanto quanto a heroína. Cê tem que respeitar um cara como Skreel, ele não brinca em serviço. Posso dizer isso a favor dos weedgies: eles mergulham até a cabeça.

“Vou morrer logo, amigão”, ele me informa todo alegre durante o almoço quase intragável de salada de queijo pra mim e torta de carne, fritas e feijão pros outros. (Com mais de um metro e oitenta, Skreel tem uns três centímetros a mais que eu.) “Só quero sumir da frente de mim mesmo até isso acontecer, entende o que eu tô dizendo?”

Dia 18

Acordei e vi um sol dourado cintilando no céu azul. No pátio, me delicio com o calor nos meus braços descobertos e escutos as pegas em alvoroço nos ninhos do plátano soando como hinos de torcida dos anos 50. Tenho vontade de ultrapassar aquele grande muro de pedras escuras e a folhagem densa; aquele horizonte talhado pela luz.

Gostando cada vez mais dos halteres. Eu e Seeker costumamos fazer algumas séries juntos todas as manhãs e tardes, depois do café e do almoço. Gosto da disciplina, de empurrar pra cima, do sangue correndo no corpo e na cabeça, de sentir o fluxo e refluxo de forças eternas e misteriosas dentro de mim. Seeker levanta pesos muito maiores que eu e começou a ficar realmente musculoso, ele tem aquele tipo de físico, mas também percebo pequenos amontoados de músculos começando a surgir nos meus braços e ombros. Seria legal ficar com aquele visual esguio e felino do Iggiy Pop; musculoso e definido, mas ao mesmo tempo magro e flexível. Seeker me ensina a ser sistemático: séries, repetições, essas coisas. Antes disso, eu só teria levantado os pesos até perder a força ou me entediar. Essa interação não é pouca coisa, porque o Seeker não compensa um pouco todo o resto. Ele usa óculos escuros em ambientes fechados.

Sessão espinhenta com Tom; ele pergunta a respeito das minhas discussões com o palerma do dr. Forbes lá da clínica. “Você está deprimido, Mark?”

“Eu tô em reabilitação por vício em heroína”, digo. Depois emendo, em tom de brincadeira mas nem tanto: “Em Fife.”

“Mas antes disso. Sei irmão faleceu ano passado. Você sofreu?”

Tenho vontade de perguntar: “Por que, em nome do maldito caralho, eu sofreria com o encerramento de uma humilhação e de um constrangimento incessantes? Se você fosse um jovem desengonçado, sensível e ao mesmo tempo extremamente egoísta crescendo num lugar como o Leith, você não ficaria contente caso uma das fontes do seu tormento fosse removida?” Em vez disso, digo: “É óbvio. Foi uma perda muito triste.”

Dia 19

Eu me precipitei! O Seeker sabe falar! Contou que sofreu um acidente de moto bem grave uns anos atrás. Colocaram uma placa de metal na cabeça dele e um pino na perna. A dor era suportável no verão. No inverno, porém, só a heroína dava conta, e ele acabou se viciando. Também fiquei sabendo que ele usa os óculos escuros porque tem sensibilidade à luz desde o acidente. Tem que dar o braço a torcer pro viado; as lâmpadas fluorescentes do teto aqui são fortíssimas, e em geral tô com uma dor de cabeça que lateja quase como uma enxaqueca quando chega a hora de dormir. Descobrimos que nós dois acordamos cedo, então combinamos de fazer uma série maior de exercícios antes do café da manhã.

Agora sei como Tom se sente com relação a todos nós. É como se eu tivesse feito um grande avanço.

Dia 22

Essa merda de diário tá ficando viciante que nem a heroína. Também é perigoso do mesmo jeito; esse monte de merda íntima que o cara se sente meio obrigado a colocar. Tive que arrancar a página do diário de ontem e algumas páginas do caderno, fiz um bolinho e joguei na lixeira. E se algum viado tivesse lido aquilo? Dizem que é confidencial, mas o que isso significa nesse lugar?

Len me viu puxando ferro com o Seeker, então me considerou pronto pras sessões em grupo sobre vícios - DESCULPA! - dependência de substâncias.

O grupo de acompanhamento de processo analisa em nosso comportamento geral, enquanto esse outro foca somente na questão do vício em drogas e assuntos diretamente relacionados. Sentamos em semicírculo e senti os ossinhos da minha bunda magrela pressionando a lâmina de compensado curva e escorregadia do assento da cadeira. Os únicos outros utensílios eram uma prancheta com folhas e algumas canetas. Tom sentou e prendeu um joelho com seus longos dedos entrelaçados, também visivelmente desconfortável, e a tração e postura do seu corpo espichado contrastavam com o ar descompromissado que ele tentava exibir. O viado tava usando tênis sem cadarço, ignorando o fato de que 80% do recinto automaticamente pensam que ele é um fracassado por causa disso.

Eu tava com algum receio porque já tinha rolado muita gritaria no grupo de acompanhamento de processo naquela manhã; aquele Ted é um bostinha agressivo, e ele, Sick Boy e Swanney partiram com tudo um pra cima do outro. Só pararam quando o Seeker disse de repente: “Abaixem a porra do volume. Minha cabeça tá estourando.” Eles obedeceram, porque todos têm medo do Seeker.

Tom me apresentou, embora eu já conhecesse a corja toda. “Quero que o grupo dê boas-vindas ao Mark. Mark, poderia nos dizer o que espera dessas sessões?”

“Continuar limpo e me desintoxicar, e ajudar os outros a fazer o mesmo”, ouvi uma vozinha esganiçada de Boy’s Brigade escorrer de algum lugar entre meu nariz e minha boca. Swanney deu um risinho sarcástico e Sick Boy contraiu os lábios.

Mas isso deu o pontapé inicial; todo mundo começou a dar palpite, mas o grupo consistia em discussões atabalhoadas que não iam pra lugar nenhum.

Depois que terminou, decidi ir falar com o Keezbo, que tinha voltado correndo direto pro quarto.

Quando entrei, ele tava sentado na cama, olhando um álbum de fotos. Pelo menos as fotos antigas me ajudaram a puxar conversa com o viado. Tinha várias da nossa infância no Fort. Sou um dos mais altos e o meu cabelo tinha uma cor ruiva ainda mais extrema naquela época.

Uma foto me chamou a atenção pelo simples fato de que eu nunca tinha visto ela. Um bando de crianças da nossa turma tá parado no terreno cheio de lixo no lado de fora do Fort. Era uma foto em grupo com uniforme dos Wolves que a gente tinha combinado de fazer pro Natal. A gente devia ter uns nove anos.

Mas, enfim, me apeguei aos Wolves porque eles tinham patrolado o Hearts na Texaco Cup em Tynecastle, mesmo depois de deixar os panacas vencerem o jogo de ida em Molineux! Nessa foto estamos eu, Keezbo, Tommy, Segundo Lugar, Franco Begbie e Deek Low em pé atrás, e agachados na nossa frente estão Gav Temperley, o “inglês” George Stavely (que se mudou de volta pra Darlington), Johnny Crooks, Gary McVie (que morreu por direção imprudente uns anos atrás), o semicasto Alan “Cara de Chocolate” Duke (cria de algum antilhano que tinha vindo parar aqui no porto) e Matty Connell.

“Nunca vi essa foto”, falei pro Keezbo. Me dei conta de que naquelas fotos antigas o Matty já tava desbotando, um borrão fantasmagórico, ou, como no caso dessa, saindo de fininho; o rosto seccionado ao meio pela margem branca das ampliações Instamatic, com apenas um olho furtivo aparecendo.

“Deve ter visto”, disse Keezbo, me olhando de verdade pela primeira vez. “Sabe quem tirou?”

“Não. Seu pai?”

“Não: seu pai.”

“Mas então como é que a foto tá com você?”

“Eu que mandei revelar os negativos. Sua mãe me deu os negativos porque tinha umas fotos daquela festa de Ano-Novo na nossa casa.” Ele virou a página do álbum e me mostrou algumas fotos dos nossos pais enchendo a cara com alguns outros amigos e vizinhos. Aquele viado fascista do Olly Curran tava lá, com a mesma cara sacana de sempre, só que de cabelo preto em vez de grisalho. Mas é uma outra foto que realmente me pega de jeito. Meu coração dá um pulo quando aparece a moldura do papel brilhoso da Kodak preenchida pelo sorriso resplandecente e despreocupado do Pequeno Davie, em cima daquele corpo em forma de acordeão. Meu pai tá olhando pra ele com uma mistura de amor e tristeza. É uma foto que sempre me pareceu cativante e repulsiva na mesma medida. Eu queria dizer alguma coisa pro Keezbom, mas o que saiu foi: “Engraçado eu nunca ter visto aquela foto antes.”

O jantar foi miúdos de cordeiro, purê de nabo e batatas. Tentei não comer o cordeiro, mas era isso ou um ovo frito, que teria ficado uma bosta com purê de nabo e batatas, então fui obrigado.

Na orientação psicológica desta tarde, Tom me perguntou sobre o diário. “Você tem escrito nele?”

“Sim. Todo dia.”

“Que bom. E o caderno?”

Aquela seção no fim. O meu tá cheio de punheta (literalmente), mas Tom me olhou de um jeito tão sério e cheio de expectativa que resolvi mentir. “Escrevi num estilo mais parecido com um romance, ou ensaios. Acho que tô experimentando, tentando coisas variadas.”

“Que tipo de coisas?”

“Um ensaio que não consegui terminar na universidade”, comecei a enrolar, desenvolvendo o tema, “ou melhor, eu entreguei, mas não fiquei com a sensação de ter realmente terminado. Era sobre F. Scott Fitzgerald. Conhece a obra dele?”

“Confesso que nunca li. Nem O Grande Gatsby.” Ele fez uma simulação passável de arrependimento.

“Mas eu prefiro Suave é a Noite”, e ao dizer isso senti um tremor no peito que só poderia ser descrito como suave, pois me veio à mente a imagem de Fiona na balsa do estreito de Bósforo, banhada em luz tremeluzente, afastando os cabelos do rosto. Até chapada ela tinha uma postura digna e orgulhosa. Eu amava eu amava eu amava ela e queria me diluir nos ossos dela. Era uma ausência que agora me dava a sensação de ter sido devorado por dentro. Eu não conseguia entender como saí do lado dela no alojamento estudantil de Aberdeen para estar aqui nessa sala com o Tom. Uma breve procissão de rostos passou pela minha mente - Joanne, Bisto, Don, Donna, Charlene - e engoli em seco quando uma memória sombria fez um rasante como um avião abatido. O que o lápis fala pode ser apagado, ao contrário do que dizem nossas bocas sujas e boquirrotas, que defumam nossa vida com colunas ondulantes de vapores tóxicos, indissolúveis e pretos como carvão. Lá fora, uma pancada de chuva repentina e furiosa bateu na janela como se quisesse entrar. Enquanto eu olhava, Tom me encarava com impaciência, esperando que eu continuasse.

“Era sobre esse romance que eu tava escrevendo”, enfeitei a mentira pra desviar a atenção dele da minha ansiedade. “Só de estar aqui, percebi que passei batido pelo verdadeiro significado do livro, um pouco como o próprio F. Scott, talvez.”

“Em que sentido?”

E enquanto tava ali sentado inventando tudo isso, fui atingido por uma epifania brutal: uma reprise de algo que tinha me ocorrido pela primeira vez quando tava alucinando naquele barco em Istambul, a merda que eu devia ter escrito. “Fitzgerald pensou que tava escrevendo sobre a doença mental da mulher dele. Na verdade, ele tava escrevendo sobre a própria queda no abismo do alcoolismo. A segunda parte do livro é só um riquinho se entregando pra bebida.”

COMO É QUE PUDE DEIXAR DE VER ALGO TÃO BÁSICO E ÓBVIO?

“Interessante”, disse Tom, me analisando com o olhar. “Mas será que a doença mental da mulher não era um dos motivos para ele abusar da bebida?”

Pude ver direitinho onde o viado queria chegar com isso. No lugar de mulher doente mental, insira irmão deficiente falecido. Nem fudendo, pensei. Hora da cortina de fumaça. “Existe uma tese que diz que F. Scott foi meio intimidado pelo Hemingway, uma figura mais dinâmica, de quem ele esperava aprovação. Mas continua errado. É como sugerir que o declínio de E. M . Forster foi desencadeado pela atenção que a crítica deu a D. H. Lawrence, que era mais desinibido. Mas foi o alcoolismo do Fitzgerald e o medo que o Forster tinha das consequências de expor sua sexualidade - ele era uma bichinha presa no armário” - (Tom fez cara de desentendido) - “homossexual - que causaram isso. Isso não quer dizer que Hemingway e o velho D. H. não eram filhos da puta capazes de farejar uma fraqueza em seus colegas mais frágeis. Afinal de contas, rivalidades literárias são iguais a qualquer outra.”

“Vou conferir esses livros com grande interesse. Cheguei a ler Lady Chatterley na universidade...”

“Filhos e Amantes é melhor.”

“Lerei”, Tom afirmou, e pra entrar no espírito me entregou um exemplar do Tornar-se Pessoa do Carl Rogers. Vou começar depois do James Joyce.

Mais tarde, Sick Boy veio no meu quarto e contei pra ele como foi minha sessão. “Eles acham que tudo tem a ver com sexo.” Ele fez um gesto de pouco caso com a mão. “E é, mas não do jeito que eles imaginam. Não me dei bem com esse viado do Tom, por isso pedi pra ser transferido pra Amelia. Na primeira sessão, ele me disse que esperava franqueza. Então falei que tenho vontade de comer praticamente todas as mulheres que encontro. Não apenas isso, mas tenho vontade de ver cada uma delas implorando. Ele falou que eu era um aproveitador e que tinha uma disfunção sexual. Aí eu disse: ‘Nada a ver, parcero, o nome disso é sexualidade masculina. O resto é só negação. ‘Ele não gostou! Não gostou de ter um pouco de realidade se infiltrando naquele mundinho cuidadosamente construído de leitor do Guardian dele, cheio de baboseira afrescalhada de classe média.”

“Bom pra você...” bocejei, cansado e esperando que ele fosse embora logo pra que eu pudesse dormir um pouco, “... me surpreende saber que a Amelia te aceitou, depois daquilo.”

“Pois é... ou ela me encara como um desafio, ou tá a fim de mim. Precisa ser uma coisa ou outra. As duas situações podem ser exploradas a meu favor.”

Olhei pra ele com ar de dúvida, mas ele não tava brincando.

“Escuta, falando em sexo...” A voz dele ficou bem baixinha. “Queria sua opinião a respeito de uma coisa. Ouvi uma historinha sobre um cara... um sujeito que deixou a mina comer o cu dele...”

“De que porra cê tá falando? Uma mina que comeu o cu de um cara? A tal da mina era um traveco ou o quê?”

“Não... era uma mina de verdade. Eles foram pra casa dela, aí ela prendeu um pau de borracha enorme na cintura e comeu o cu dele...”

“Putz...” Meu esfíncter se contraiu involuntariamente.

“... e ele gostou... ou pelo menos foi o que ela disse.”

“Parece improvável, pra mim!”

“É...”, disse ele, e depois deu a impressão de mudar de opinião. “... Bem, o cara alegou que não tinha interesse de levar um cacete de homem na bunda, que só deixaria uma mina fazer isso com ele.”

“Tá certo...”

“Mas e aí, o cara é hétero ou gay?”

“Eu conheço esse cara?”

Ele apertou os lábios. “Sim. Não conta pra ninguém...” Ele fez uma pausa, como se estivesse reorganizando a mobília de uma sala dentro da cabeça.

“... mas quem me contou isso foi a Alison.”

“Espera... a Alison é a mina que comeu o cu do cara com o borrachudo?”

“Sim... ela disse que o cara só aceitou ir pra cama com ela se ela fizesse isso. Não é difícil adivinhar de quem a gente tá falando!”

O rosto do meu ex-colega de banda, suado e retorcido, do jeito que ele desfilou pelo palco do Triangle Club em Pilton, pipocou na minha consciência. “Hamish? HP?”

Sick Boy abriu um sorriso sombrio. “Heterossexual Perobo já tava no nome, mas parece que é da natureza mesmo. Alison jurou de pé junto que ele nunca fazia isso com homens. Pessoalmente...”, ele balançou a cabeça, “tenho minhas dúvidas. O que cê acha: bicha incorrigível ou hétero aberto a experiências?”

“Ele não comeu a Alison depois que ela arrombou o cu dele?”

Sick Boy hesitou um segundo. “Não...” Depois disse enfaticamente: “Não, ele não comeu ela, de jeito nenhum.”

“Se ele tivesse comido ela em seguida, em diria que é aberto a experiências. Como não comeu, me parece mais uma bichona do que um hétero.”

“Meu modo de ver, inteiramente!”, disse Sick Boy, triunfante, dando a impressão de que esse era o ponto crucial. “Não é o fato dele ter experimentado algo novo com ela e fagocitado um pau de borracha no rabo que faz dele um baitola - Hamish, no caso -, mas sim o fato de que ele não comeu ela em seguida! Correu da racha como se fosse um buraco negro no espaço, a bonequinha! E essa informação veio direto da fonte. Mas é óbvio que não sou um fofoqueiro, então conto com sua discrição.”

“Fica tranquilo”, menti.

Uma historinha interessante, pode crer, mas depois disso ele continuou ali por uma eternidade. Falou sobre garotas, a família dele, o Hibs, o Leith, Begbie e depois garotas de novo, “... uma das desvantagens de ter um pau tão imenso é que às vezes cê machuca elas...”, e tudo que pudesse me manter acordado. Adormeci e quando acordei algumas horas depois, com a luz ainda acesa, pensei que ia dar de cara com ele de novo, sentado na minha cama e falando merda sem parar, mas ele tinha ido embora.

Anotação do caderno: Alan Duke

Sempre me senti mal por causa do jeito que eu tratava Alan “Cara de Chocolate” Duke quando a gente era pequeno. Naquela época, o pai do Matty, Duke, me chamava carinhosamente de “Cabeça de Fósforo”. As outras crianças do Fort adotaram, mas de um jeito quase sempre pejorativo. Um dia a gente tava na escadaria do lado de fora da Biblioteca do Leith e tavam pegando no meu pé, portanto me virei pro Dukey e disse: “Cai fora, Cara de Chocolate.” Isso imediatamente causou um surto de riso e fez dele o novo alvo.

Vi ele sofrer à medida que crescia. Transformaram ele em bode expiarório. Matty, um pivete desnutrido e esfarrapado que só usava roupa de segunda mão, Begbie, que tinha um pai alcoólatra e ex-presidiário, Keezbo, com seus problemas de peso e uma mãe obcecada com periquitos num aviário dentro de casa, e sim, eu, que tinha um irmão deficiente, todos nós podíamos descarregar em cima do Dukey quando o ataque vinha pra cima gente. Tempos depois, gente como os Curran praticou ainda mais abusos escancarados e odiosos pra cima dele.

Embora qualquer viado pudesse ter chutado primeiro essa bola do “Cara de Chocolate”, o criminoso fui eu. Sempre me senti mal pra cacete por causa disso.

Dia 23

Recebi correspondência! É uma fita com coletânea de músicas da Hazel. (Entre as bandas estão Psychedelic Furs, Magazine, Siouxsie, Gang of Four - Hazel sempre teve um ótimo gosto musical.) Eles entregam com um dia de atraso, depois de abrir e conferir se não tem drogas escondidas. Se conhecessem a Hazel, nem se dariam ao trabalho; a única droga que consumimos juntos foi vodca. É bom receber correspondência. O viado que recebe mais que todo mundo, tudo enviado por mulheres minas, claro, é o Sick Boy.

De volta ao quarto, enquanto escuto Bowie cantando sobre se acidentar sempre no mesmo carro, leio o bilhete:

Querido Mark,

Espero que a reabilitação esteja indo bem e que você encontre a força necessária para persistir. Vi sua mãe na Junction Street dia desses. Ela me contou que estava indo à igreja pra acender uma vela e rezar por você. Sei que você vai rir, mas isso mostra o quanto ela se preocupa com você, assim como toda a sua família. E eu também.

Ainda estou em Binns e planejo ir a Majorca com Geraldine Clunie e Morag Henderson. A Geri trabalha comigo, e acho que você lembra da Morag dos tempos de colégio.

Vi o Roxy Music no Playhouse! Sério, Mark, que show. Tinha uns conhecidos no pub Mathers da Broughton Street depois, Kev Stewart, Gwen Davidson, Laura McEwan, Carl Ewart, todos perguntando sobre você e dizendo, como eu, que sentiam a sua falta. POR FAVOR, podemos ter o nosso velho Mark de volta?

Cuide-se.

Com amor,

Hazel xxxx

Enquanto lia, senti alguma coisa afundando no vazio do meu peito. Amassei o bilhete, joguei a bolinha no cesto de lixo vazio (a arrumadeira levou embora minhas páginas de diário descartadas e os lenços de papel sujos) e no instante seguinte a peguei de volta, alisei o papel e enfiei no bolso traseiro.

O velho Mark? Quem é essa pessoa, porra?

Me recomponho e vou praticar um pouco de meditação com o Spud e o Seeker. Depois de um intervalo e do café da manhã, durante o qual Seeker fica falando das motos que já teve, a Magrinha de Óculos nos informa que a sessão de acompanhamento de processo está prestes a começar e vamos todos nos arrastando como zumbis enfastiados até a sala de reuniões. A sessão é melosa, com um clima meio repelente de toque e carinho; muitos abraços e afeto fingido. Mas isso só serve pra deslocar a agressividade pro grupo de debate sobre vício no fim da tarde.

Os olhos do Tom parecem um pouco ocupados demais. Sua camisa de lenhador vermelha e preta tá com a frente coberta de migalhas dos biscoitos amanteigados que fazem sucesso nessas sessões. “Gostaria de lhes apresentar a Audrey, que participará do nosso grupo pela primeira vez. Olá, Audrey.”

“Se divirta na re-a-bi-li-ta-ção”, Swanney balbucia com um arremedo de sotaque jamaicano. Agora entende de onde o Matty tira essa mania irritante. Matty alega odiar o Johnny, mas gostaria ser como ele.

Molly, ao lado de quem Audrey foi sentar, começou a ir com a cara do Tom e ao mesmo tempo, parece, a detestar todos os outros, exceto o Sick Boy. “Bem”, ela diz em tom de grandeza, “vim aqui pra me recuperar e tô pronta pra ficar com a mente aberta e dar ao Tom uma chance de fazer o trabalho dele. E tenho certeza de que a Audrey também.”

A atenção de todos se volta para a silenciosa Audrey, que fica roendo as unhas com os olhos azuis bem abertos e atemorizados.

“Obrigado... Molly”, diz Tom, enquanto o resto da sala reage com um desabamento de suspiros e alguns risinhos debochados. Tom fica olhando direto pra mim, como se me encorajasse a falar, mas sinto muito, colega marujo, ajustei as velas rumo ao Porto do Silêncio. Seeker alonga as pernas, estica os braços pra trás, dá um bocejo gigante e depois ajeita sua cabeleira de motoqueiro. Parece um leão que acaba de comer um pitbull.

Não consigo parar de dar umas espiadas na Audrey. Tá meio acabada, mas todo mundo fica assim depois da desintoxicação. Já foi apelidada de “Tawdry Odd”, cafona e esquisita, pelo Sick Boy, já que o nome dela é Audrey Todd. Não surpreende que ela passe a maior parte do tempo enfiada no quarto. Tá usando jeans desbotados e dá pra ver que as pernas dela devem ser lindas pra caralho, se o cara tiver a chance de olhar direito. Tom olha pros outros e depois me encara de novo. “... Mark?”

A intrusão irrita ainda mais porque ele me pegou no meio de pensamentos lascivos. Isso não é legal de fazer. Chegou a hora de fazer uma rápida manobra evasiva: “Cê não vai me endireitar, parcero. Não tem como.”

“Eu te endireitava agora mesmo”, Swanney aproveita a deixa, “se tivesse um pouco de heroína aqui comigo agora.”

Ele consegue arrancar algumas risadas mórbidas.

“Eu não disse que era capaz de te endireitar.” Tom balança a cabeça. “Só você pode fazer isso.”

Concordo com a cabeça, aceitando a verdade óbvia da colocação. “O que nos leva à pergunta: o que cê tá fazendo aqui?”

Escuto Molly fazer ruídos de desaprovação.

“Estou aqui para ajudar”, diz Tom.

“Peraí, então”, digo sem pensar. “Cê não pode me endireitar, mas pode ajudar que eu me ajude. Possibilitar. Facilitar. O acordo é esse?”

“É esse.”

“Mas por que você faria uma coisa dessas?”

“Entendo. Você está questionando a minha motivação?”

“Não”, sorrio, “só esclarecendo.”

Essa é uma das armas do arsenal interpessoal de Tom. Ele alfineta até que você faça uma objeção e então diz: “Estou apenas esclarecendo.” Não gosta que isso seja usado contra ele. Ao soltar o ar pelo nariz, suas narinas tremem. “Mark, vivemos travando essas discussões circulares e não chegamos a lugar nenhum. Vamos evitar falar disso no grupo e deixar esse tipo de coisa para as sessões individuais, como havíamos combinado.”

“Como você combinou.”

“Tanto faz, apenas vamos evitar falar disso no grupo.”

Nesse momento, Molly se intromete. “Ha! Eu não confiaria nisso. Porque o único assunto que importa é o Mark, esse é o problema!”

Não tenho problema nenhum em bater boca com essa putinha escrota. “Uau. Junky demonstra comportamento egoísta. É manchete de capa!”

“Pelo menos tem gente aqui tentando. Cê só quer se mostrar pros amigos”, ela diz olhando com desprezo para o semicírculo de pessoas. Audrey dá mais uma dentada nas unhas de novo.

Na verdade, Molly acertou em cheio. Eu pensava que a educação dela se resumia a fazer boquete em bicicletários, mas agora vejo que estava errado; ela tem um bom discernimento. O único sentido dessas sessões, pra mim, é poder dar risada junto com os amigos. Mas não me ajuda em nada se o Tom ficar sabendo disso, então acabo dizendo com todo o envolvimento possível: “Olha, só tô achando meio difícil lidar com essa situação toda”, dou uma olhada em volta, “e tô tentando entender qual é a posição de cada um aqui, só isso.”

Mas justiça seja feita com o Tom; ele só ergue as sobrancelhas, um pouco aflito, e dá uma olhada no grupo inteiro. “O assunto que eu gostaria de tratar hoje são os gatilhos. Que gatilhos fazem vocês terem vontade de usar drogas?”

“Um dia que tenha a letra ‘y’ no meio”, diz Spud, e o comentário consegue engatilhar risadinhas pela sala. Tom ignora Spud (embora ele esteja falando muito sério) porque não é essa a resposta que procura. Ele precisa de algo que possa desenvolver.

“Botar o pé fora de casa”, Keezbo diz com a mesma seriedade. Tô meio preocupado com o balofo. Ele perdeu toda a capacidade de se divertir, o que não é pouco no caso dele.

Dessa vez, porém, Tom reconhece a intervenção. “Obrigado... Keith.”

“Andar junto com esses viados”, Sick Boy diz olhando pra mim, Spud e Swanney.

“Bem, agora estamos chegando em algum lugar”, afirma Tom, se aprumando na cadeira. “Keith falou em sair de casa. Onde vivemos. Nosso ambiente. Simon mencionou relacionamentos pessoais, amizades. A pressão dos pares que incentiva um comportamento inapropriado e autodestrutivo.”

Não consigo evitar o riso de desprezo que sai como uma rajada da minha boca ao ouvir isso. “Olha que boa ideia, porra, juntar esses viados todos na mesma residência!”

“Rents tem razão”, diz Skreel. “Conheci gente legal aqui, não me entendam mal”, ele olha em volta pra conferir que ninguém de fato de ofendeu, “só que nenhuma dessas pessoas vai me ajudar a largar a heroína.”

Apesar disso, Tom permanece calmo. Talvez a Magrinha de Óculos não estivesse brincando ao falar que ele era considerado “um dos melhores em sua área”. “Existem limitações óbvias em qualquer modelo de prestação de serviço. Mas - e estou apenas jogando a ideia na discussão - será que os grupos de educação pelos pares também não podem ser usados para reforçar um comportamento positivo?”

“Como o quê? Abstenção? Sobriedade?”, questiono. Até parece que tem algum viado aqui dentro interessado em ficar sóbrio.

“Mas vocês querem se livrar da dependência?”

Há um silêncio longo e fúnebre durante o qual ficamos nos olhando com A Grande Mentira preenchendo os espaços que nos separam. Ela está nos lábios de todos. A Grande Mentira que tornou possível esse joguinho de reabilitação; que serve de base pra todo esse culto ridículo e idiota. O que dizer? Swanney dá a impressão de perceber a importância do que tá em jogo e toma a iniciativa de desviar a atenção. Ele tá com um sorriso na cara, mas ao mesmo tempo fala totalmente sério. “Fodi com a vida de tanta gente que, se abrir mão da heroína, vou morrer por causa da porra da culpa e do remorso. Simplesmente não compensa.”

“Ele levantou uma boa questão”, digo me precipitando de novo e me odiando por isso. Mas acredito no que tô dizendo e sei que Johnny também acredita. Quantas pedras de arrependimento ele teria que carregar nas entranhas ao longo da vida? Cê precisa aprender a ser uma pessoa melhor e lidar com o que fez ou então simplesmente aprender a não dar a mínima.

“Bem... sim...”, diz Tom, “mas lembrem que esse projeto é experimental. Se ele não der resultados, será cancelado.”

Sick Boy crava o olhar em Tom, talvez um pouco irritado por eu ter corrido na frente com os olhares de desprezo cínicos. “Então a gente tem que se unir pelo bem do projeto! Isso é absolutamente sensacional!”

Mas não é nada fácil tirar Tom dos eixos. “Você sabe qual é a alternativa... Simon. Todo mundo aqui tá em liberdade condicional para valer, de facto.”

Isso sempre força nossa mente a se concentrar. Por mais que esse lugar seja uma bosta, é um hotelzinho se comparado a qualquer cadeia, até as mais chiques. Uma coisa que sei, apesar de só ter passado uma noite e outra bêbado numa cela, é que não fui feito pra prisão. Prometi a mim mesmo antes e mantenho a promessa: JAMAIS SEREI ENCARCERADO POR CAUSA DA HEROÍNA. Se o sistema me oferecer qualquer reabilitação furada, prefiro assinar na linha pontilhada a passar um mísero minuto atrás das grades.

Tom se dirige a Skreel. “Martin...”

“Me chama de Skreel.”

“Perdão, Skreel. O que espera obter desse grupo?”

“Só quero conseguir parar de me drogar pra ficar bom de novo”, ele mente.

Tom faz sinal positivo com a cabeça, bem devagar, e mantém o olhar por um segundo antes de se voltar pro Johnny.

Swanney é um viado de marca maior, que Deus o tenha. Ele realmente sabe como infernizar todo mundo. “Claro que é difícil”, ele ergue os ombros, “porque todo mundo sabe como é bom, como é maravilhoso se picar com heroína, principalmente quando cê tá em abstinência”. A língua atravessa os lábios e um sorriso malicioso estampa seu rosto, fazendo ele parecer um lagarto que acaba de capturar uma mosca no ar. Skreel começa a se remexer e o rosto pálido de Molly endurece. Audrey dá uma trégua pras unhas e começa a mascar as pontas dos cabelos, enquanto Spud fica sentado com a cabeça afundada entre as mãos, gemendo baixinho, à medida que Johnny prossegue. “... você sente aquele alívio incrível e delicioso quando ela se espalha na corrente sanguínea e chega no cérebro, e uma euforia indescritível, ao mesmo tempo que os problemas do mundo, toda essa merda viram pó ao redor de você. A dor some por completo. E foi só um pico, só um picozinho...”, ele pondera pornograficamente enquanto Molly, Audrey, Spud, Ted e Skreel se contorcem nas cadeiras.

“Já chega, por favor, Johnny”, diz Tom.

“Só tô querendo dizer”, ele abre um sorriso forjado, “que nem tudo é ruim, porque se fosse, ninguém usaria.”

“Ou ganharia dinheiro com isso”, diz Molly com desdém, tentando reavivar uma batalha antiga.

Tom faz um gesto para acalmá-la. “Sei do que você está falando, Molly, mas agora quero focar nas perdas. Gostaria que vocês mentalizassem o que perderam por causa do vício em heroína.” Ele se levanta, caminha até a lousa de papel e pega uma caneta.

“A bufunfa”, grita Sick Boy.

Tom se vira com cara de quem não entendeu. “Uma namorada?”

“A melhor que já tive.” Sick Boy abre um risinho sacana enquanto todo mundo ri. O pobre Tom fica ali parado e duro como um vibrador sem pilha.

“Tipo assim, grana”, Spud faz o favor de ajudar.

Uma tentativa válida de poupar a vergonha, mas o pescoço de Tom tá um pouco mais vermelho que o usual quando ele escreve “DINHEIRO” bem retinho em caixa alta.

“Parceros”, diz Ted.

O marcador preto de Tom anota “AMIGOS”.

“Não sei os outros”, diz Keezbo enquanto olha com tristeza pro Sick Boy, “mas o que cê disse sobre as namoradas, sr. Simon” - ele olha pra Audrey e Molly - “ou namorados, pra não ser sexista... mas a vontade de transar vai pro espaço.”

É a deixa pra que alguns risinhos nervosos ecoem na sala.

“Não necessariamente”, Swanney se manifesta. “O melhor sexo que fiz na vida foi sob efeito da heroína, lá no começo, e tal.”

“É, no começo”, Sick Boy desdenha. “Deve ter sido a única vez na vida que cê comeu alguém sem ter que pagar.”

Swanney faz um sinal de V com os dedos na direção dele. “Não foi na mesma vez que cê tava batendo na minha porta, desesperado atrás de um pico?”

Sick Boy se encolhe na cadeira e fica quieto. Tudo fica quieto. É como se todo mundo tivesse sentindo uma movimentação no meio das pernas, aquele monte de pica fora de uso implorando por alguma ação. No caso de Molly e Audrey, bucetas fora de uso, ou provavelmente usadas com frequência, mas sem sentir nada.

Então a gente fica um tempo discutindo o assunto, a merda de sempre. Só que todo mundo cansa rápido e os bocejos coletivos chamam o intervalo do cafezinho: o elixir mais pegajoso e lamacento que se pode imaginar, tão saturado de cafeína que tem o efeito da anfetamina pura. Como acompanhamento, biscoitos amanteigados doces e, acima de tudo, cigarros. Praticamente todo viado aqui é um viciado extremo em nicotina, até o Tom. Eles me tratam com suspeita, porque odeio cigarro.

Mas esses intervalos são demais. Todo mundo acaba contando pra todos os outros pelo menos a versão resumida de sua história pessoal. A única exceção é a Audrey, e admiro sua circunspecção, levando em conta o entorno. Sick Boy e Maria Anderson tinham se metido numa situação bem sórdida, e a mãe dela, logo que saiu da cadeia, levou Maria de volta pra casa do irmão em Nottingham. Sick Boy finge ter ficado injuriado. “Me acusaram de ser o cafetão dela”, diz ele pro Seeker, bufando de indignação. “A histeria antidrogas leva certas pessoas a desenvolverem uma imaginação muito, muito fantástica.”

“Mas é o melhor jeito de manter uma putinha sob controle”, diz Seeker, que realmente é um viado dos mais perturbadores, “viciar ela em heroína. Assim o cara consegue montar seu próprio harém particular. Cê puxa elas com a linha invisível”, ele imita um gesto de pescaria, “e quando encher o saco joga elas de volta na água.”

Sick Boy simula desaprovação, mas dá pra ver que ele gosta da ladainha misógina do Seeker. Molly fica enlouquecida e Tom tem a nobreza de puxar conversa pra tentar distrair ela do assunto. Mas ela não se entrega e vai peitar o Seeker: “Cê é a escória da escória!”

“Ah é? Me estranha ouvir isso de uma puta.” Ele sorri, e continua dando corda: “Mas sei que era assim que funcionava entre você e o seu namoradinho.”

“Cê não sabe nada sobre a gente!”

Seeker a encara com semblante impassível. “Sei que era você que tava ali deitada tendo a bucetinha arregaçada por picas de todas as cores e tamanhos, e era ele que se picava primeiro quando pintava a heroína.”

“O Brandon tava mal! O que mais a gente podia fazer?”

“Mas ele fez um com trabalho com você, aquele cara”, Seeker comenta com ar de aprovação. “Cê continua na palma da mão dele.”

Molly aperta os punhos contra o peito, como se tentasse arrancar uma lança ensanguentada. Ela irrompe em lágrimas, dá meia volta e vai embora pro quarto. “Isso não ajuda”, diz Tom pro Seeker, fazendo menção de ir atrás dela, mas ele é impedido pelo Sick Boy, que detecta a oportunidade. “Tudo bem”, sussurra ele pro Tom, “vou lá conversar com ela.”

O restante termina de tomar café e volta pra discussão em grupo. Depois de alguns minutos, Sick Boy e Molly reaparecem. Fico decepcionado, pois tava realmente achando que ele ia baixar a calcinha dela. Começamos a discutir que tipo de sensação a heroína nos provoca e alguém fala em “anestésico”. Tom imediatamente se agarra ao termo. “Se a heroína é um anestésico, contra que precisamos nos anestesiar?”

Desde quando vocês e eu se transformou em nós, Cara-Pálida?

Então o viado nos divide em dois grupos e nos entrega marcadores e folhas grandes de papel pra gente anotar nossas respostas através de brainstorm e livre-associação. O Grupo Um é composto por Spud, Audrey, Molly, Ted e Keezbo. O Grupo Dois reúne as princesinhas mais revoltadas: eu, Seeker, Sick Boy, Swanney e Skreel.

Os grupos retornam com seus resultados e as folhas são presas com fita na parede.

GRUPO UM GRUPO DOIS
SOCIEDADE HUMANOS
DIFICULDADES E OBSTÁCULOS DA VIDA MENTIROSOS
INCOMODAÇÃO DOS OUTROS AMBIÇÃO
EXTINÇÃO DOS ANIMAIS
(GANÂNCIA DO HOMEM) DINHEIRO
CARROS
CONTAS NO VERMELHO COMPUTADORES
BUROCRACIA E PROBLEMAS COM SEGURO-DESEMPREGO TELEFONES
TELEVISÃO
POLÍTICOS DENTISTA
TÉDIO TEMPO
TIME DE FUTEBOL PERDENDO ESPAÇO
JORNALISTAS INGLESES MÚSICA
JORNALISMO TENDENCIOSO SEXO
NAMORADAS/NAMORADOS HISTÓRIA
PROBLEMAS DE FAMÍLIA JAMBOS
RÚGBI
BARBA
SAPATOS SEM CADARÇO
REABILITAÇÃO
Tom avalia as listas com uma expressão atormentada, esfregando aquele queixo dele como se fosse um clitóris. “Alguém do Grupo Um se candidata para nos explicar o que vocês pensam a respeito dessas questões...?”

Apontado como porta-voz, Spud se levanta e começa a falar sobre os animais. “Fico totalmente deprimido quando vejo eles sofrerem, cara. Não consigo evitar, tipo assim. Sabe, a ideia de que os animais possam ficar extintos só por causa da ganância do homem.”

Soam algumas risadas, mas Spud é incentivado a prosseguir. Tudo parece terminar em “incomodação”. “Eu acho, então”, ele resume, “que o problema é, tipo assim, a incomodação em geral.”

Quando chega a vez do nosso grupo, ninguém tá disposto a levantar e apresentar a lista. Mantemos silêncio no rádio. Tom pede a cada um, mas só ouve recusas. Até que Spud, tentando ajudar, aponta pras contribuições do nosso grupo e diz: “Concordo com os computadores, eles podem ser uma incomodação enorme; tipo quando a assistência social te obriga a fazer um daqueles cursos.”

Tem início uma discussão enorme, desorganizada e aparentemente interminável sobre a assistência social e os programas de treinamento.

O relógio na parede tá precisando de pilha nova, porque parou nas quatro e meia. De repente Tom, com um aspecto visivelmente cansado, interrompe a atividade e todo mundo se arrasta pra sua próxima linha sem sentido da tabela de horários.

Funcionou.

Sick Boy desaparece na mesma hora com Molly. Eu nunca devia ter duvidado desse viado safado.

“Puxei ele pra baixo pra perto de mim pra ele poder sentir os meus peitos só perfume sim e o coração dele batia que nem louco e sim eu disse sim eu quero Sim.”

De volta no meu quarto, ponho pra tocar Kill City do Iggy Pop e James Williamson no meu toca-fitas barato com fones de ouvido. Tenho uma obsessão particular com a canção “Johanna”, que me lembra de Joanne Dunsmuir.

Quase arranco fora a cabeça do pau me masturbando pra ela.

Vandalizo o banheiro com um logo


só pra desencadear uma discussão sobre o grafitti.

Dia 25

O tempo continua sombrio hoje de manhã, mas pelo menos a chuva deu trégua. Como sempre, Seeker é a única outra pessoa acordada e a gente cumpre nossa rotina de exercícios em silêncio.

Passo o resto da manhã escrevendo, escrevendo, escrevendo. Sinto prazer o tempo todo sentindo a ponta afiada e macia da caneta puxando minha mão por cima da página. Comecei a acreditar que tudo que a gente escreve, não importa quão tosco e banal, possui algum tipo de significado. Quando escrevi a entrada de diário ontem, lembrei que o Natal em que ganhamos os uniformes do Wolves foi logo antes daquele em que os Hibs ganharam dos Hearts por 7 a 0 em Tynecastle.

A gente tinha descido pra rua pra fazer aquela foto do time: só uma, porque tava fazendo um frio de rachar. Depois do Ano-Novo, foi o Billy que recebeu a missão de ir na Boots de Kirkgate pra revelar o rolo com as fotos festivas. Mas eu nunca tive chance de botar os olhos naquela foto do time dos Wolves. Lembro do Begbie me pedindo pra ver na escola, e quando eu disse pra ele que as fotos tinham sumido ele torceu meu pulso. Pensou que eu tava escondendo dele.

Aquele viado do Billy deve ter destruído as fotos por causa do meu massacre de provocações por causa do resultado do clássico.

Mistério resolvido. Que filho da puta de merda.

Mas o tapado esqueceu dos negativos, que minha mãe tinha passado pra Moira Yule. Assim, mais de uma década depois, vejo a foto no álbum do Keezbo.

Glória aos seguidores do Hibs! Golaço do Steve Cowan depois de um passe do Jukebox Dury em Fir Park.

Todo lugar tem uma figura dominante, e Seeker é o chefe da matilha aqui, o que evidentemente não agrada muito ao Swanney. Parece óbvio que os dois competiam por acesso ao mesmo fornecedor de heroína, e eles se tratam com muita frieza.

Todo mundo foi pra sala de recreação na tarde de sábado pra ver os jogos de futebol, exceto o Sick Boy, que tava comendo a Molly, mas depois ele veio se gabar pro Seeker da experiência calamitosa que tivemos nos barcos em Essex, embora tenha tomado o cuidado de não mencionar o nome do Marriott nem do Nicksy. Mas deu pra ver que tanto Seeker quanto Swanney ficaram interessados. Skreel começou a falar de Glasgow e dos conhecidos dele em Possil. Ted, embora seja de Bathgate, passou algum tempo em Dundee e reconhece que tem uma cena rolando lá. Mencionei o Don, lá de Aberdeen, e isso pareceu impressionar Seeker. “Que figura, esse aí.”

“Sabe por onde ele anda?”

“Não sei de porra nenhuma.” Um visor de gelo desceu por cima da cara dele.

Na hora do chá, o fígado com cheiro de mijo e cebola determinou meu retorno obstinado ao vegetarianismo. Pra dizer a verdade, uma boa parte dos carnívoros tá torcendo o nariz pra comida e olhando com inveja pro meu prato apenas ligeiramente mais comestível de flã de ovo seco como xereca de freira caduca.

Apesar da agudeza dos meus sentidos atingir de vez em quando níveis esmagadores, fico feliz em ter me livrado da metadona: era como ter uma camisinha gigante por cima de toda a pele. Meus nervos se acalmaram, mas ainda tenho altos e baixos. Num instante a vida parece não fazer sentido, e no outro estou cheio de otimismo, pensando no futuro. Keezbo tem feito pouco caso dos planos de prosseguir com a banda; normalmente, ele não fala de outra coisa. Eu queria conversar sobre música e sobre a minha composição “Cigarettes R Us”, mas Keezbo disse: “Shhh, sr. Mark, tô assistindo Only Fools and Horses!” Então voltei pro quarto e li mais um pouco do Ulysses.

Pouco tempo depois, Seeker bateu na minha porta e sentou na cadeira pequena, preenchendo o quarto com seu grande porte. Larguei o livro e ele pegou pra ver. “Já leu aquele Hell’s Angels?”

“Hunter S. Thompson? Sim, adorei.”

“Aquele corno é um embusteiro. Inventou a maior parte daquilo tudo. Eu conheço uns caras de Oakland.”

“É?”

“É”, disse Seeker, e em seguida afirmou enfaticamente que tava largando pra sempre a heroína; de agora em diante, ia só traficar. “Caso contrário, é verdade aquilo que dizer: cê fica se chapando com o próprio estoque. E essa droga é uma merda, de qualquer jeito. A primeira vez é a melhor. Depois cê só fica tentando sentir aquilo de novo.”

Era estranho como eu concordava totalmente com tudo que ele tava dizendo, mas ao mesmo tempo faria quase tudo pra me picar agora mesmo. Tem alguma coisa formigando debaixo da minha pele, informação bioquímica rastejando pelo meu corpo. A fisicalidade crua; é como aquilo que os boxeadores chamam de “memória muscular”.

Seeker ficou olhando a capa do Ulysses com uma intensidade apavorante, como se tentasse sugar o conteúdo do livro para o interior da cabeça pra dentro da cachola. Depois levantou a cabeça, puxou os cabelos pra trás e disse: “Acho que aquela merda de Fools and Horses que tava dando na TV já terminou.”

Lembro que hoje, depois do café da manhã, fiz um cagalhão gigantesco, um legítimo premiadão. Tá tudo realmente voltando a funcionar como devia. Ainda me sinto inquieto, mas bem, até certo ponto. Eufórico seria exagero, mas com certeza predisposto. Me sinto tão bem que dá vontade de sair e me detonar!

E aí reside o problema!

Dia 26

Nosso isolamento e a chuva constante lá fora me fazem imaginar que o mundo está inundado e somos os únicos sobreviventes. O futuro da raça humana está seguro em nossas mãos! Os ruídos sinistros e hesitantes da obra-prima do Bowie, Low, se misturam com o barulho das pancadas de chuva lá fora.

Dissemos adeus a Spud. No café da manhã, entregamos pra ele uma cartinha dizendo por que a gente ia sentir falta dele. Foi outro exercício inventado pelo Chefão da Reabilitação, Tom, no qual cê tinha que preencher a frase no cartão:

Vou sentir falta do Danny porque...

Eu tinha colocado:

... ele é meu melhor amigo.

Spud leu e olhou pra gente, trancando o choro, dedicando atenção especial a Audrey e Molly. Molly tava destacando um cupom de uma revista qualquer e Audrey tava modendo a dobra do polegar direito. Ele continuou olhando pra uma e pra outra. Na hora de trocar abraços, ele ficou segurando Audrey e depois Molly por um período dolorosamente longo, a ponto delas ficarem assustadas, e depois tratou a Magrinha de Óculos da mesma forma. Chorava e aparentava estar confuso ao ser levado embora, e se virou pra olhar fixo pras minas com uma expressão comovida. Sick Boy ficou no canto com a mandíbula travada, mas eu conhecia aquele olhar e sabia que o filhadaputa tinha armado alguma!

Um táxi tinha chegado e a mãe de Spud, Colleen, entrou no prédio pra levar ele pra casa. Quando fui acenar pra ele da escada, percebi o olhar incriminador dela e não pude evitar um embrulho no estômago. Quando o táxi se afastava pela estradinha de cascalho, com Spud ainda de cabeça virada pra trás e com um olhar de triste confusão, Sick Boy me puxou até o quarto dele. Ele tava todo dobrado, com o rosto contorcido, e mal conseguia falar de tanto rir. “Cê... cê viu a cara dele? Chegou a reparar na... ai meu Deus... cê viu quando ele... ficou olhando pras minas? Aqueles olhões de cachorrinho pidão? Abraçando elas como se não houvesse amanhã?” Ele explodiu numa gargalhada violenta. Aos poucos, fui entendendo.

“Escrevi no cartão dele: ‘Vou sentir falta do Danny porque... ele é o garoto mais doce que já conheci e acho que estou apaixonada por ele.’ Eu sabia que ele ia pensar que era uma das minas! Funcionou! Cê chegou de fato a ver a cara do otário infeliz?”

Fui obrigado a rir junto. Pobre Spud. “Seu filho da puta maldoso... o viadinho vai enlouquecer, coitado...”

“Mas é afirmação positiva, é pra isso que o grupo serve”, ele bradou.

“Sim, mas tem que ser baseado na honestidade.”

“Só tava lubrificando um pouquinho as engrenagens sociais.”

Daí a gente voltou pra sala de recreação, rindo como duas crianças idiotas, e Tom comentou como era bom nos ver tão animados.

Conversamos a respeito dos diários na reunião de acompanhamento de processo, e Tom incentivou a gente a compartilhar o que tinha escrito. Claro que fui o único viado que escreveu alguma coisa, ou então os outros só tavam mantendo segredinho. Eu também mantive. Comecei a cultivar a ideia perversa, mas plausível, de que cada desgraçado ali presente tinha um Guerra e Paz de viciado escondido no quarto.

Foi mais um momento de decepção pro Tom (em que ramo de trabalho de merda esse cara se meteu), e a reunião terminou com todo mundo se encolhendo como sempre, mordendo as unhas e dizendo piadas ruins e platitudes virtuosas.

Eu e Sick Boy tivemos uma pequena ideia, e fui perguntar pro Tom se a gente podia usar a máquina de escrever elétrica do escritório. “Tô pronto pra começar a escrever, mas a minha letra de mão é péssima e preciso usar a máquina de escrever.”

“Claro”, disse ele, certamente com os mamilos durinhos só de imaginar uma pequena orgia de confissões. “Sinta-se livre. Vou tomar providências para que você não seja incomodado.”

Sinta-se livre.

Pobre Tom, o caderno e o diário nunca virão à luz, mas convenci o viado a acreditar que alguma espécie de reviravolta estava prestes a acontecer. A verdade é que, incentivado pelo Sick Boy, decidi dar o troco pros Curran, meus antigos vizinhos no Fort, por terem provocado aquele tumulto no velório do Pequeno Davie e por viverem difamando o clã dos Renton. Peguei os documentos do Departamento Municipal de Habitação que eu tinha surrupiado da Norrie Moyes. Pedi pro Sick Boy me ajudar a compor a carta, ele e seu fiel dicionário Collins.

Distrito Municipal de Edimburgo

Departamento de Habitação

Waterloo Place, Edimburgo

Tel.: 031 225 2468

Diretor: J. M. Gibson

Sr. e sra. Oliver Curran

D 104 Fort House

Leith

Edimburgo EH6 4HR

25 de março de 1985

Prezados sr. e sra. Curran,

PROGRAMA DE INTEGRAÇÃO
COMPARTILHADA EM ACOMODAÇÕES

Como vocês já devem estar cientes, a política do governo central de promover a venda de habitações municipais acarretou uma redução nas reservas de habitações do Distrito Municipal de Edimburgo, sobretudo no caso das propriedades de maior nível de comodidade. Isso evidentemente afeta de maneira negativa nossa capacidade de distribuir as acomodações entre todos os cidadãos necessitados.

Em resposta a essa demanda, e de acordo com o nosso compromisso de manter oportunidades iguais e promover uma Edimburgo multicultural, o conselho desenvolveu um programa inovador conhecido como Programa de Integração Compartilhada em Acomodações (P.I.C.A.). Esse programa pretende integrar famílias desalojadas nas instalações residenciais existentes atualmente (com pontos especiais para famílias de minorias étnicas) e segue um inventário abrangente da nossa estrutura habitacional atual, baseado em um conjunto de necessidades.

Veio à nossa atenção recentemente que a sua filha se casou e se mudou do apartamento de três dormitórios em que vocês estão alojados no endereço supracitado.

Por favor, estejam informados de que a partir da segunda-feira, dia 15 de abril de 1985, esse quarto será designado ao sr. e sra. Ranjeet Patel.

Em um primeiro momento, a cozinha e a sala de estar continuarão sendo de seu uso pessoal, uma vez que serão instalados equipamentos de cozinha e refrigeração no quarto designado à nova família. Mas tenham em mente, por favor, que esse arranjo poderá estar sujeito a alterações. Espera-se, naturalmente, que vocês dividam o banheiro com o sr. e sra. Patel, bem como seus filhos e pais idosos.

Para garantir uma transição tranquila e eficaz para o P.I.C.A., o conselho, em parceria com o Departamento de Educação de Lothian, está ministrando um curso em um centro próximo de sua residência, cobrindo as bases do idioma e da cultura bengalesa, e espera-se que vocês compareçam às aulas em conformidade com o contrato de alojamento. Esse é um oferecimento do Programa de Unificação Cultural para Novos Moradores. Vocês serão notificados em breve a respeito das datas e do local das aulas.

Vocês têm três dias úteis para apelar dessa decisão. Para isso, por favor entrem em contato com o sr. Matthew Higgins no número acima, no ramal 2065, citando o código de referência: D104FORT/CURRAN/CUZÕES.

Agradecemos desde já pela sua cooperação, e espero continuar trabalhando ao lado de vocês e de outros moradores dessa área para garantir o sucesso desse programa vibrante e inovador.

Sinceramente,

J. M. Gibson

J.M. Gibson

Diretor de Habitação

O contato mencionado na carta, Higgins, era um supervisor de outra seção. Norrie detesta ele, então já estávamos fazendo um outro favor. Terminamos e ficamos rindo até chorar. Atraídos por nossa frivolidade ruidosa, Tom e a Magrinha de Óculos vieram dar uma conferida e ele perguntou: “O que está acontecendo?”

“A gente tá fazendo os diários, como cê tinha pedido.”

“Nunca imaginei que seria tão engraçado...”

“Tem uns trechos de alívio cômico”, disse Sick Boy, erguendo uma sobrancelha à la Roger Moore pra Magrinha de Óculos.

“Ótimo, vai ser bom ter alguns momentos de leveza no encontro do grupo”, disse Tom em tom lhano e urbano, o que arrancou da Magrinha de Óculos um daqueles olhares de vou-chupar-teu-pau-agora, como uma admiradora fanática.

Dia 27

Minha travessura com o Sick Boy teve o efeito indesejado de me forçar a arregaçar as mangas e produzir alguma coisa pra mostrar pro Tom. Então passei a noite passada acordado e escrevendo, contemplando o luar que invadia o jardim murado, filtrado pelas árvores delgadas. O velho muro de pedras indica que este lugar deve ter sido uma residência muito antiga, provavelmente uma grande mansão, que foi demolida para dar espaço a essa construção horrorosa e utilitária.

Mas numa me senti tão focado e vivo como agora, com essa caneta e esse caderno em branco. Cheguei perto disso quando escrevia meus ensaios pra universidade, mas agora é diferente. Diferente de acumular fatos pra desenvolver, questionar e finalmente propor uma hipótese, escrever coisas subjetivas com estilo livre no diário me dá a sensação de estar me aproximando de alguma espécie de autenticidade. Escrevendo, dá pra usar a própria experiência desvinculando ela da nossa pessoa. Cê consegue isolar algumas verdades. Ao mesmo tempo, cê inventa outras. Os episódios que cê inventa conseguem esclarecer e explicar tanto quanto os episódios que aconteceram de fato, e às vezes até mais.

E aí eu volto pro Ulysses. Se eu conseguir terminar essa merda, o crédito vai todo pro Jimmy J; é maravilhoso mergulhar na Dublin dele. Uma dia quero viajar pra lá e ver com meus próprios olhos.

Uma hora acabei caindo no sono, mas o Sick Boy veio me acordar - parece que esse viado nunca dorme - só pra contar que ele foi chutado das conversas individuais com a Magrinha de Óculos e agora precisa trabalhar de novo com o Tom. Dizer que ele tá chateado seria pouco. “Ela disse que eu tava tendo um comportamento inadequado. É claro que ela só tá com medo de perder a fachada de virgem frígida. Foi só porque eu disse pra ela sem rodeios: ‘Preciso ser sincero, Amelia. Temos um problema. Desenvolvi um sentimento forte em relação a você.’ Óbvio que ela reagiu imediatamente com: ‘Isso é inadequado.’ Porra, ela parece um Dalek. I-NA-DE-QUA-DO... I-NA-DE-QUA-DO...”

“Mas que porra, Williamson, eu tô destruído aqui. Acabei de conseguir pregar o olho. Não dá pra gente falar disso amanhã?”

Era como se eu tivesse falando sozinho.

“Então eu disse pra ela: ‘Você não pode me dizer pra expressar meus sentimentos e depois ficar se escondendo atrás de papéis rígidos. Eu não posso erguer barreiras, mas então você impõe limites quando isso te favorece; pra mim, isso cheira a hipocrisia. É fundamentalmente desonesto.’ Bom, dá pra imaginar que isso fodeu com a cabeça dela.”

Apesar da minha exaustão, comecei a me interessar. “E o que ela disse?”

“Ah, a merda de sempre: ficou falando de que o papel dela era auxiliar na minha reabilitação, e que era eu quem tava sendo desonesto e manipulador - cê sabe muito bem como elas gostam de distorcer tudo. Disse que eu devia investigar o motivo de não conseguir me relacionar com as mulheres a não ser pelo viés sexual.”

Tentei manter uma expressão séria. “O que cê disse?”

“Eu disse: quem mencionou sexo? Disse que não tava tentando fazer nenhum jogo de sedução cínico pra cima dela e que, francamente, essa insinuação me ofendia. Concordei que seria totalmente inadequado que a gente estabelecesse qualquer outra relação que não fosse a de cliente/profissional aqui dentro; que isso colocaria em risco não somente a minha reabilitação, mas também a posição dela nessa instituição, e que eu respeitava ela demais pra causar uma coisa dessas. Que eu tava só mencionando esses sentimentos e tentando trazer mais transparência pra uma situação que podia ser complicada. Isso colocou ela na defensiva.”

“Genial. Cê é um viado totalmente doente, mas uma porra de um gênio também. O que ela disse? Como ela reagiu?”

Deu pra ver que ele sufocou um pouco de indignação antes de decidir aceitar o elogio. “Ela ficou aturdida, então entrei rasgando. ‘Eu realmente gostaria de encontrar lá fora, depois que tudo isso aqui terminar’, falei. ‘Entendo que você deve ter um parcero, talvez até uma relação de compromisso com alguém...’ Ela permaneceu imperturbável, mas deu pra perceber que ninguém tá dando no couro ali. ‘... estou falando de um encontro como amigo, pra tomar um café e conversar um pouco. É tudo que posso pedir por enquanto.’

“Aí ela me olhou daquele jeito enigmático e disse: ‘Você é um rapaz muito jovem, Simon...’

“‘E você é uma mulher jovem’, devolvi.

“Nessa altura tive a impressão de que ela tava fazendo força pra não ficar corada como uma menininha, mas ela tentou manter um tom de cortesia e disse: ‘Acho que sou bem mais velha do que você imagina.’

“‘Engraçado... imaginei que a gente tivesse mais ou menos a mesma idade’, falei. ‘Claro que, com as suas qualificações, você deve ser um ou dois anos mais velha que eu... mas isso é completamente irrelevante.’

“‘Sim’, a vadia frígida partiu pro contra-ataque, ‘com certeza. O que é realmente relevante é que a nossa relação de trabalho ficou comprometida. Vou tomar providências para que você volte a ter sessões de orientação individual com o Tom.’

“Puta merda, me senti em pânico total e tentei fazer ela mudar de ideia. ‘Não me identifico com ele da mesma forma que você, só isso.’ Sabe o que ela disse?”

“Não. O quê?”

“‘É o jeito que você está se identificando que é o problema.’ E daí ela se recusou a continuar discutindo.”

E mais uma vez ele ficou ali sentado a maior parte da noite, falando num monólogo incessante composto quase inteiramente de tentativas idiotas de se justificar. Depois de um tempo eu não conseguia mais pegar nenhuma palavra do que ele tava dizendo, mas o esquisito é que não tive vontade de mandar ele embora, porque a voz dele era estranhamente relaxante e tava me ajudando a cair no sono. Só que o filho da puta estalou os dedos na minha cara algumas vezes, então mandei o viado ir pra casa do caralho. Mas assim que ele saiu, perdi o sono de novo.

Dia 28

Por quanto tempo precisa continuar caindo essa chuva de merda lá fora? Parece que tá chovendo canivete sem parar desde que eu cheguei aqui. Por quanto tempo é possível encher os olhos com os braços magricelas das árvores, ficar vendo os pássaros caírem do céu? Ficar espreitando por cima da saliência escura, se repreendendo por ter estragado a vida?

Deprimido pra caralho. Me sentindo o Neil Armstrong andando por aí com aquele traje espacial pesado, com uma camada de vidro embaçado me separando do resto do universo. Na Lua eu seria mais feliz. Armstrong, Aldrin - e aquele terceiro coitado que ninguém nunca lembra, aquele que viajou até lá e não teve oportunidade de sair do módulo de comando - não dá pra entender por que eles se deram o trabalho de voltar.

Dia 30

Café da manhã: mingau, torrada, chá.

Meditação: uma punheta tremida, mal-arquitetada e frustrante no meu quarto.

Grupo de processo: Molly ficou sendo passivo-agressiva pra cima da Audrey, causando desconforto de propósito com tentativas de forçar ela a se abrir. “Fico triste quando cê fica aí sentada sem dizer nada, Audrey, porque sinto que cê tem muita coisa pra compartilhar com o grupo e a gente não tá recebendo isso de você. E também me sinto isolada, porque sou a única menina que tá dialogando com o grupo.”

Audrey fica ali mordiscando a pele em volta das unhas. Nenhum comentário.

Tom balança a cabeça pra cima e pra baixo devagarinho e depois olha pra Audrey. “Audrey, como você se sente ouvindo isso?”

Audrey se vira pra ele e diz com uma voz controlada: “Vou falar quando me der vontade de falar, não quando for conveniente pros outros.” Em seguida ela fura a Molly com os olhos. Molly fica tão chocada quanto nós e recua de maneira visível, se encolhendo toda na cadeira. Que coisa maravilhosa de se ver!

AUDREY É A MAIOR!

Sessão em grupo sobre dependência de substâncias: Depois de levar uma surra psicológica da Audrey, Molly Bloom voltou apontando todas as armas contra o patriarcado. Quem tá na mira são seus velhos adversários, Seeker e Swanney. “Como eles podem fazer parte desse grupo se são traficantes? Se eles ganham a vida apoiando o vício das pessoas, lamento”, diz ela olhando pro Tom, “mas dependência de substâncias? Não entendo. Simplesmente não entendo.”

Eles ficam encostados na cadeira, impassíveis, se deleitando com a raiva dela. Mas eu fico meio magoado com essas críticas constantes aos nossos camaradas responsáveis pelo fornecimento. Onde a gente estaria sem eles? Tá aí uma ideia assustadora! Heroína, heroína, heroína, como a gente amava; aquela porcaria bem branquinha que a gente se contentava em usar lá no Johnny. Ele chamava de Branca da China, mas aquela merda nunca tinha passado pelo Oriente e o fato de que vinha de um lugar muito mais perto de casa era um segredo aberto. Pra mim foi amor no primeiro pico, casamento na primeira fungada. Isso mesmo, amo a heroína. A vida tinha que ser como cê fica quando injeta uma dose. “Talvez a questão seja que todo mundo apoia o vício à sua maneira”, arrisco dizer, supreso por estar dizendo algo que podia ter saído da boca do Tom.

O homem em pessoa especula: “Não seria essa mesma a natureza da doença?”

“Não é uma doença.”

“Muito bem, do problema”, diz ele fazendo aquela coisa de aspas com os dedos, “se isso deixa vocês mais confortáveis.” Ele dá uma olhada no oceano de gestos desdenhosos e caras de pode-chamar-da-merda-que-cê-quiser. “Não trabalhamos com um modelo estritamente médico de ví... dependência de substâncias”, Tom reconhece, e não consigo conter um esgar de triunfo enquanto a torcida grita ooooh diante dessa gafe.

Esse rapaz, Curzon, é um grande profissional, Brian, e creio que ficará tão aborrecido quanto nós por causa desse erro forçado.

Orientação individual: Me senti uma merda e não disse nada “significativo”. Então Tom me perguntou sobre os meus relacionamentos. Eu tava desconfortável demais pra tratar da minha família, ou da Fiona e da Hazel, então fiquei falando sobre a Charlene, descrevendo ela como “o amor da minha vida”. Ele pareceu ficar só um pouquinho perturbado quando mencionei que ela era uma ladra profissional.

“O que você adorava tanto nela?”

“O cabelo. Era incrível, um verdadeiro fenômeno da natureza. E ela tinha uma bela bunda também.”

“Que aspectos da personalidade dela te agradavam?”

“Gostava do profissionalismo dela. Ela conseguia identificar o fiscal da loja sem dificuldade alguma. Em geral eram homens entre 35 e 45 anos, e em termos de linguagem corporal pareciam ladrões amadores. Enquanto fingiam avaliar produtos, lançavam olhares pros clientes; julgavam suas roupas e depois analisavam o rosto e ficavam atentos às mãos. Era só se vestir bem pra sair do radar de 80% deles. Eles ficavam de olho em quem tava usando abrigo de náilon ou roupa de marca usada por morador de bloco. Um logo da Adidas na roupa sempre fazia soar os alarmes. A Charlene costumava levar na sacola uma raquete de badmington meio pendurada pra fora, pra passar uma imagem de esportista honesta. Caprichava na maquiagem quando saía de casa pra roubar; fazia ela disparar na escala social de representando do Estuário do Tâmisa pra Jovem Conservadora. Mas ela não ficou muito impressionada com os meus trajes. ‘Cê parece um junky ladrão de loja, Mark’, ela dizia.”

A musculatura do rosto de Tom perdeu o vigor aos poucos, até despencar.

Anotação do caderno: lampejo sobre a minha condição

Aceito que de alguma forma, e por algum motivo obscuro e difuso, estou metido nessa coisa de heroína por vontade própria. Não me alinho com toda essa merda de babaca derrotada que diz que é uma doença.

DOENÇA PORRA NENHUMA.

Fiz isso por vontade própria. Eu podia estar prestes a me formar na univerisade ou talvez sendo o noivo de uma linda garota. Sim, eu podia ficar falando do vício enquanto moléstia, me deixar absorver pelo modelo médico, mas, agora que passei pela desintoxicação, tô oficialmente livre do vício em heroína. Mesmo assim, nesse momento eu tenho mais vontade que nunca de usar heroína; toda a coisa social; trepar, preparar a dose, se injetar e conviver com outros fantasmas arruinados. Percorrer a noite como um vampiro, procurando apartamentos infectos em partes deterioradas da cidade pra falar merda com gente fracassada, maluca e instável. Como em sã consciência posso preferir esse tipo de atividade em vez de passar meu tempo - fazer amor com - uma garota carinhosa, ir ver um filme ou um show, ou tomar umas cervejas e ir ver o futebol O JOGO O JOGO A PORRA DO JOGO com meus parceros? Mas prefiro. A dependência psicológica tá maior que nunca. Tá destroçando a minha vida, mas eu preciso dela.

Não tô pronto pra parar.

Mas se eu disser isso com toda a honestidade pro Tom e pra Amelia, a porra da brincadeira acaba.

Dia 31

Swanney vai embora; acabou o tempo dele aqui. A maioria do pessoal fica aliviada, porque ele andava sendo meio filho da puta com vários aqui. Acho que no caso dele foi um mecanismo de defesa. Ele tem medo de alguma coisa: tá enterrado bem fundo, mas cê consegue perceber. Em geral, ele é legal comigo, como na vez que a gente se conheceu no futebol jogando bola. Quando vem no meu quarto se despedir, ele fala sobre juntar uma grana e ir pra Tailândia. Ele começa a falar merda sobre as orientais, tipo que a racha da buceta delas vai de leste a oeste em vez de norte a sul, e quando me dou conta já parei de escutar. É dificíl ficar ouvindo as fantasias libidinosas dos outros quando as suas próprias são tão nítidas e cruas.

Eu mataria alguém por uma foda agora.

Anotação do Caderno: Sobre invadir casas

Tenho que ser honesto e admitir: adoro invadir casas! A principal motivação não é o ganho financeiro nem a política de luta de classes (embora eu só tenha depenado casas grandes de gente abonada e pretenda seguir assim). Não, o mais importante é o meu interesse em saber como vivem as outras pessoas. Costumo tratar os lugares que invado com todo o respeito e encorajo meus cúmplices a agirem da mesma forma. Numa das casas, a julgar pelos retratos pendurados nas paredes e na geladeira, a família em férias parecia ser muito bacana, então deixei um bilhete me desculpando pelo incômodo e pelo trauma provocado pela invasão. Enfatizei que não era nada pessoal e que a gente precisava do dinheiro, expliquei como conseguimos entrar e até ofereci algumas dicas sobre segurança residencial.

O comportamento na última casa em que entrei, a do advogado apontado pela rainha, quando escrevi na parede sobre o Cha (a intenção era acalmar o Begbie, que me deu a impressão de estar perigosamente fora de controle), foi uma coisa bem fora do normal.

Sei que nunca é o caso, mas sempre me vi mais como um convidado do que um ladrão.

Dia 32

Sentindo falta do Spud e do Swanney (em relação a este, sou provavelmente o único). Keezbo tá com depressão profunda. Fica repetindo as mesmas merdas sem parar. Sempre parece que ele quer me dizer algo profundo, então sento com ele, ofereço um ouvido amigo, e aí ele volta sempre com a mesma história sobre ter sido aprisionado pela Moira e pelo Jimmy na sacada do Fort. Adoro esse gordo, mas ele tá começando a trincar minhas bolas e comecei a evitar contato com ele sempre que posso.

Desenvolvi uma certa empatia por Tom e pela Magrinha de Óculos; eles devem se sentir desse jeito o tempo todo. Mas eles que se fodam, tão recebendo pra isso.

Anotação do Caderno: Sobre minha mãe e a mãe dela

Minha mãe tava me levando no dentista. Era umas dez horas. O dia tava quente, então a gente parou no Princes Street Gardens e pediu um chá pra ela e um suco pra mim. Um grupo de turistas nos pediu orientações em inglês enrolado, e ela começou a falar em francês perfeito e entabulou uma longa conversa com eles.

Quando eles foram embora, ela foi tomada por um ar de culpa. Tava com vergonha de ter feito aquilo na minha frente. Fiquei perguntando como ela sabia falar francês tão bem; não desistia do assunto. Ela acabou me confessando que tinha recebido uma bolsa pra estudar no Colégio de Moças James Gillepsie, mas a vadia da mãe dela, a vó Fitzpatrick, não deixou ela ir. Disse que era “longe demais” de Penicuik, tinha que pegar “dois ônibus”. O pior de tudo é que me lembro de mamãe ter dito: “No fim das contas, veio pra bem.”

Já naquele momento pensei: veio pra bem um caralho.

Dia 33

Depois do café chegam dois novatos na unidade. Um baixinho que arrasta os pés e mostra uma certa inclinação a ficar babando e uma mina assustadoramente gorda, maior ainda que o Keezbo. Nenhuma chance dela ser viciada em heroína, isso é certo. Mas os aspectos políticos da situação não me interessam em nada, pois eu tô na expectativa da minha própria liberação, decidido a aguentar firme.

Estranhamente, porém, sinto um certo despeito por esses dois, essa dupla que parece tão isolada, tão assustada. É patético e errado sentir isso, mas pra mim esses viados são estranhos, intrusos no nosso mundinho.

Dia 34

Algum filho da puta sempre pisou no calo de algum viado no dia anterior, portanto o café da manhã costuma ser o cenário trepidante dos acertos de contas. O mingau tá bom hoje, grosso como deve ser, em vez de aguado ou pedaçudo.

O fato da Molly estar abrindo as pernas regularmente pro Sick Boy tem irritado o Seeker, que, no papel de macho alfa, obviamente se acha no direito de pegar primeiro qualquer xereca disposta a jogo. Pro azar dele, na sociedade humana a dominância é sempre um pouco mais complexa que no mundo animal. O viado mais forte nem sempre vai ser o maior colecionador de buceta; na verdade, quase nunca é. Às vezes eles são deixados pra trás pelo cara bonitinho ou pelo comedor extrovertido e bom de papo, ou mesmo pelo esportista, pelo comediante ou pelo intelectual. Não surpreende que possam ficar tão irritadinhos.

Eu e Seeker continuamos fazendo musculação. É esse ritual, muito mais que as sessões de grupo ou as conversas individuais com Tom, que tá me ajudando e enfrentar esse surto de depressão horrendo e debilitante. Dia desses, tentei dizer pra ele que não ia conseguir treinar, mas o viado fez que não ouviu. “Vamolá. Cê vai treinar sim.” Como conheço bem o Begbie, sei o suficiente sobre psicopatas pra perceber quando eles não tão dispostos a aceitar discussão, então me levantei e fui encarar minhas séries de exercícios. E sim, depois de me forçar a treinar, de sentir a queimação, de botar o sangue em circulação, meu ânimo começou a apontar pro norte.

Ou seja, fui salvo pelo maior traficante de drogas da cidade!

Penso nele ali em cima de mim, mamãe-coruja por trás das lentes escuras e frias dos óculos, pronto pra segurar os pesos com as mãos enormes caso eu perca as forças. Ironicamente, essa atividade tá fazendo aparecerem veias mais grossas nos meus braços, saltando na superfície da pele. Será que essa é a motivação real?

Encontrei uma corda numa gaveta semana passada e comecei a praticar pulando três minutos e descansando um, como fazem os boxeadores, chegando a enfileirar seis repetições depois da musculação, e também sigo fazendo flexões e agachamentos. A título de retribuição, incentivo o Seeker a pular corda, apesar da resistência inicial dele. É uma cena bem estranha ver ele pulando corda no pátio dos fundos, sem camisa, com o cabelo amarrado e os óculos escuros na cara.

Comecei a escrever mais coisa no diário. Tentando refletir sobre o que me colocou nessa situação deprimente. Tudo que veio foi a ida com meu pai à manifestação de Orgreave.

Dia 35

Me sentindo bem pra caralho de novo! Aquela corda é o canal. Não consigo fechar a matraca na orientação individual com o Tom. Mesmo sabendo que amanhã devo mudar de opinião, decidi agora que ele é um sujeito excelente. Ele realmente leu o Suave É a Noite e é ótimo ter alguém aqui dentro pra conversar sobre livros, filmes e política. Temos uma longa discussão sobre Scorsese e De Niro, na qual ele insiste que a melhor colaboração deles foi em Taxi Driver e eu defendo Touro Indomável. “Taxi Driver é um filme do Schrader”, ressalto, “ele é o gênio por trás.”

Fico sentado no jardim depois do jantar, quanto todos vão direto assistir a TV. A noite envolve as árvores altas em penumbra, e os pardais descem para comer nossas migalhas. Mal consigo ouvir a discussão acalorada dos junkies por trás da voz retumbante do apresentador de telejornal.

Anotação do Caderno: A facada em Eric “Eck” Wilson no colégio

Era o segundo ano no colégio, aula de Desenho Técnico, e o professor tinha saído pra resolver alguma coisa. Dois tapas atrás da minha cabeça e todo mundo se dobrando de rir em seguida. Não era a primeira vez que isso acontecia e eu soube na mesma hora quem era o culpado. Me virei e puxei institivamente o canivete.

TOMA! Uma espetada na mão do Eck Wilson. Horror! A cara que ele fez foi inesquecível. TOMA! No peito. TOMA! Na barriga. O golpe mais maldoso e calculado, dessa vez cheio de vontade de machucar o Eck, que tava ali paralisado.

Os cortes não foram muito graves, mas saiu sangue e Eck entrou em estado de choque. Eu também. Um dos que testemunharam isso foi o delinquente automobilístico Gary McVie (RIP), que tirou a lâmina da minha mão. “Me dá isso, Mark”, disse ao colocar o canivete no bolso. Gritou pra todo mundo sentar e calar a boca, e todos obedeceram, com a exceção de dois vermes que fecharam o bico quando o professor, sr. Bruce, voltou. Temi que Brice fosse ver o sangue, e depois chamariam a polícia e eu seria mandado pra cadeia. Mas o sinal tocou e Eck saiu da sala, meio encurvado. Ele não me dedurou e, depois de fazer ameaças iradas de que me mataria lá fora, foi embora cuidar dos machucados.

Encontrei ele de novo uns dois dias depois na aula de geografia. Eu já não tinha mais o canivete e tava apavorado, com um nó no estômago de medo. Previ uma briga de mãos limpas e tinha certeza de que Eck ia me demolir. Mas não foi assim: ele sentou do meu lado e começou a ficar todo amiguinho, me ofereceu doces - umas balas de limão, se lembro bem - e ficou dizendo “a gente sempre foi parcero...”, o que era papo furado, óbvio.

Fiquei sentado em silêncio, satisfeito, extraindo poder do medo desesperado e da vontade de agradar que eu via nos olhos dele, e do gosto da bala presa no céu da boca, que se dissolvia lentamente como sorvete de frutas numa explosão de sabor.

Dia 36

Sick Boy vai embora depois de jogar seus pertences na mala, sem esquecer do famigerado dicionário Collins caindo aos pedaços. O que nas mãos da maioria das pessoas é uma ferramenta de iluminação, nas dele se torna uma arma mais letal que um revólver engatilhado. A irmã, Carlotta, veio buscar ele de Datsun. Ela é gostosa... vou bater quarenta punhetas pra ela hoje à noite! Não vai sobrar nada! Ele ficou meio perturbado quando percebeu que eu tava dando em cima dela com força. Chegou num ponto que esfreguei minhas mãos nos braços expostos dela, inspirando o aroma daqueles cabelos pretos e brilhosos. Tô tentando reunir a maior quantidade de informação sensorial possível pra usar depois. Ela começou a dar uns risinhos e o Sick Boy, que tava confortando o coração arrasado da Molly, rompeu o enlace com ela e veio me dar um chute na canela que era ao mesmo tempo sério e de brincadeira.

“Cuida bem do meu amigo aqui”, digo pra Carlotta, ao mesmo tempo que dou um abraço camarada nele e me divirto com suas tentativas desconfortáveis e inúteis de se livrar dos meus braços fortalecidos.

Eu só fiz amizade com esse viado pra começo de conversa porque queria ter a chance de ficar por perto olhando as irmãs dele, e a mãe também, antes dela engordar. Cê só podia entrar na casa se o pai filho da puta e enfezado dele tinha saído. Quando ele atendia a porta, dizia “Então cê é o rapazinho do Fort, é?” com um tom esnobe, como se morar nos Bananas fosse a mesma coisa que morar em Barnton ou alguma porra assim! Ele fazia cê esperar na rua até que o Sick Boy se aprontasse, e lá fora cê sempre acabava sendo vítima dos valentões locais que sabiam que cê morava do outro lado da Junction Street.

“Comporte-se”, diz Sick Boy com os olhos bem focados, “e a gente se vê daqui a algumas semanas.”

“Saio semana que vem”, lembro a ele.

“Vou passar um tempo na Itália: mas dessa vez é pra valer. Vai me fazer bem sair desse pântano de pictos selvagens”, diz ele olhando com desdém pras árvores e pro céu cinzento e enfumaçado, e então volta a atenção pra ansiosa Molly.

“Me liga assim que cê voltar!” Ela põe os braços magrinhos em volta dele.

Vejo o rosto dele por cima do ombro da Molly. Ele pisca pra mim e arregala os olhos antes de sussurrar no ouvido dela: “Quero ver cê me impedir, linda. Quero só ver cê me impedir.” Em seguida ele rompe o abraço abruptamente e anda até o carro.

A gente fica vendo ele ir embora. Molly sai correndo e entra no prédio. Tom pousa a mão com leveza no meu ombro. “Você perdeu Danny, Johnny e agora Simon. Mas não desanime, você será o próximo a sair.”

Na sala de recreação, Molly tá devastada, mas sendo consolada pelo Keezbo, o que tira o gordo jambo viado do meu caminho.

Volto pro quarto e fico lendo.

Sou interrompido pela Magrinha de Óculos, que me informa que tenho uma sessão com Molly. Me pergunto de que porra ela tá falando, até que ela se dá conta e me diz: “Desculpa, a outra Molly.”

A outra Molly é uma senhora inglesa de costas bem retas e feições equinas chamada Molly Greaves, uma psicóloga clínica visitante. Nada poderia ser mais diferente que a nossa adorada Molly. Tivemos nosso primeiro contato na clínica, onde respondi as perguntas intrometidas e insistentes dela com uma complacência meio desligada. Dessa vez fico mais impaciente e resistente ao tom meio abusivo dela e a sessão não corre bem.

À noite, fico sentado na varanda dos fundos com o violão, dedilhando as cordas debaixo do céu preto como tinta, mas uma das cordas arrebenta e não tem outra pra substituir, então a festa acaba.

Dia 38

Tom tá começando a me dar nos nervos. Devo ser liberado semana que vem, mas além de me agendar outra sessão inútil com a psicóloga clínica ele mudou a tática de chegar de mansinho nos nossos encontros individuais. Hoje ele me olhou bem no olho e disse com um distanciamento gelado: “Não minta para si mesmo, Mark.”

“O quê?” Ele me pegou no contrapé, e eu pensei outra vez na Grande Mentira. Fiquei pensando se ele tentar atacar por esse lado.

“Colabora comigo.”

“O que cê quer dizer?”

“Cê é um cara inteligente. Mas não é tão inteligente assim. Pois ainda que tenha lido e estudado muito não consegue desvendar o motivo de estar fazendo isso consigo mesmo.”

“Cê acha mesmo?”, desafiei, mas eu sabia muito bem que o viado tinha toda a razão.

“Você não sabe por que é viciado e isso te deixa puto da vida. Ofende sua vaidade intelectual e a imagem que tem de si mesmo.”

Foi como levar um murro no estômago. Porque era verdade. Fiquei perplexo, ou mais que isso, me senti sacudido ao mesmo tempo pela abordagem mais agressiva que ele adotou e pelo conteúdo do que tava dizendo.

VIADO.

Eu mal podia escutar o que eu dizia por trás do barulho do sangue borbulhando no meu cérebro, então comecei a reclamar. Saiu algo do tipo: “Não consigo dar valor pra esse tipo de mundo. Ele não serve pra mim, essa latrina que a gente criou e não consegue melhorar. É isso que me ofende. Tô escolhendo não comprar a briga, pular do trem, se prefere usar esse termo hippie de merda!”

E isso é uma tentativa de fazer soar um pouco mais articulado do que foi na realidade.

“Esse não é um discurso normal para um cara jovem”, respondeu Tom. “Você está simplesmente deprimido. O que está deprimindo você, Mark?”

Não consegui pensar em nada pra dizer. “O mundo.”

“Não é o mundo.” Ele balançou a cabeça enfaticamente. “Sim, o mundo é ruim, mas pessoas como você deveriam estar tentando melhorar ele. Além disso, você é sabido o bastante para se virar e prosperar em qualquer tipo de sociedade. Qual o problema?”

“Heroína dá barato”, falei. Qualquer coisa que servisse pra estourar a bolha, pra evitar bater de frente com a Grande Mentira. “Sempre gostei de coisas que dão barato.”

“Então você está na idade em que se descobre que o mundo tá fodido e que não é fácil consertar. Lide com isso, então. Vê se cresce, porra.” Tinha um fogo novo nos olhos dele. “Toca a vida para frente. E daí?”

“Daí isso.” Arregacei a manga e mostrei as cicatrizes das agulhadas pra ele.

A Grande Mentira.

Tava todo mundo jogando uma merda de jogo: o jogo da reabilitação. A gente tinha que conspirar com os funcionários pra preservar o mito de que pretendia parar de usar heroína. Poucos ali davam a mínima pra isso, se é que alguém dava. O que a gente queria era dar uma limpada pra poder voltar a usar doses mais baixas. Mas a gente não queria parar, nem fodendo! A ideia era recomeçar do zero, pra conseguir se drogar de novo sem deixar a coisa fugir ao controle. O sucesso naquele jogo dependia da nossa capacidade de enganar os funcionários e da capacidade deles de enganarem a si mesmos, de engolir esse mito de que a gente realmente se interessava por essa besteira de uma vida sem drogas.

PRA FAZER O QUÊ?

Só o Seeker tava interessado em outra coisa: encontrar um lugar pra morar na Ilhas Canárias pra evitar que o inverno paralisante afetasse o metal do corpo dele.

Fiz mais umas anotações sobre aquela viagem pra Yorkshire com papai. A escrita é o meu refúgio; a minha vida aqui seria insuportável sem isso. A título de experimentação, tentei moldar a história no formato de um conto, escrevendo sobre como os acontecimentos realmente me afetaram.

Anotação do Caderno: Sobre Orgreave

Nem a rigidez de tábua deste canapé duro e velho pode impedir meu corpo de ir se libertando aos poucos. Isso me faz pensar nas residências universitárias em Aberdeen; ficar deitado no escuro, em êxtase, finalmente livre do medo que se aglutinava no meu peito como o catarro grosso no dele. Porque não importa o que eu escute lá fora, carros cantando pneu nas ruas estreitas do conjunto habitacional, às vezes varrendo esse quarto bolorento com os fachos dos faróis, bêbados desafiando ou enaltecendo o mundo, ou os gritos lacerantes de gatos entregues a seus prazeres torturantes, pelo menos sei que não vou ouvir aquele barulho.

Nada de tosse.

Nada de gritos.

Dia 39

Drama total, porque descobriram que o Skreel tinha saído sem permissão ontem, tarde da noite. Ele voltou hoje cedo, se arrastando com um sorriso chapado no rosto e um pouco de sangue escorrendo do nariz grande e inchado, respondendo aos interrogatórios com gestos de pouco caso. Parece que ele conseguiu encontrar heroína em Kirkcaldy. Na minha opinião, o viado merece uma medalha pela força de vontade. Ele só é mantido ali por cerca de meia hora, talvez pra servir de exemplo negativo pra todos nós, antes que a polícia chegue pra levar ele pra prisão.

Uma reunião emergencial de acompanhamento de processo é convocada, como era de prever, pra discutir “como nos sentimos” em relação ao incidente. Os ânimos se exaltam e Ted, que tinha se aproximado do Skreel, começa a bater boca aos berros com Len, Tom e Amelia, até sair esbravejando da sala, chamando eles de “delatores filhos da puta”. Molly fica repetindo com voz esganiçada que Skreel “decepcionou todo mundo”. Bem, o viado com certeza me decepcionou, porque não me contou que ia dar uma escapadinha e que tinha um contato local. Eu teria pulado o muro logo atrás dele. Como sou do contrário por natureza, não falei absolutamente porra nenhuma, exceto pela seguinte tirada filosófica: “Ele foi levado embora. Não vejo motivo nenhum pra fazer inquéritos e recriminações. Vamos seguir em frente e pronto.”

A gorda - Gina, é o nome dela - acaba de sair da desintoxicação, mas continua detonada pra caralho e resmunga o tempo todo “Não tô conseguindo aguentar isso...”, balançando na cadeira, sentada em cima das mãos e com os braços roliços colados no corpo. O carinha que veio com ela se chama Lachlan, ou Lachy, ele nos informa. Lacaio do Estado, é assim que vou pensar nele, já que ele tá aos cuidados de uma instituição estatal.

Molly e a Magrinha de Óculos Amelia se tornaram melhores amigas agora, e a srta. Bloom se tornou quase um clone; roubou descaradamente as poses e gestos da irmã mais refinada. À noite, ela começa a matraquear sobre “relacionamentos destrutivos que acionam comportamentos negativos” e sobre como ela “nunca se envolveria de novo com caras como o Brandon ou mesmo o Simon... ele só fica tentando te enrolar com as palavras”.

Como elas esquecem fácil! Sim, eu abri um sorrisinho sacana ao ouvir aquilo, pois sabia muito bem que, no momento em que o Sick Boy aparecesse na porta, a calcinha dela ia cair até o tornozelo em questão de segundos.

“Que bom que cê aprendeu a lição”, diz Seeker, me direcionando um sorriso maligno e cheio de intriga. Enquanto isso, Keezbo fuça e morde a pele ressecada em volta das unhas sangrentas.

“Sim, aprendi!”, ela diz em tom combativo, antes de nos olhar com desdém e sair pisando firme.

Dia 40

Hoje, no mercado de transferência de viciados: FORA: Seeker, DENTRO: Dennis Ross, o hippie velho e fedorento do Leith, e um vagabundo com cara de rato, vindo de Sighthill, que atende pelo nome de Alan Venters.

Vou sentir falta do Seeker com certeza (estou de novo num clube de um homem só), e o principal motivo é que vai ficar mais difícil me motivar pra fazer exercícios todas as tardes e manhãs.

Dia 41

A manhã está bonita e eu levanto cedo pra fazer musculação e pular corda. Pra minha surpresa, a Audrey aparece e dá batidinhas no porta de acesso ao pátio. Olho pra ela e vejo a menininha do Bowie com olhos cinza, diga alguma coisa, diga alguma coisa... ela se aproxima de mim no silêncio de sempre e começa a levantar pesos e pular um pouco de corda. Depois a gente senta juntos e conversa no jardim. Audrey não diz isso explicitamente, mas é evidente que ela não gostava do Seeker. Acho que é compreensível. Passado um certo tempo, vamos juntos pro café da manhã enquanto os outros começam a acordar numa cacofonia de gemidos e bocejos.

No cardápio: ovos mexidos e umas salsichas vegetarianas surpreendentemente boas, nadando em molho marrom HP. O lado ruim: aquele tal de Venters sentado sozinho, tremendo, mas exalando um ar de maldade. Audrey e Molly sentem um asco visível com a presença dele. Esse viado só pode significar encrenca. Mas não é problema meu.

Depois de terminar o Joyce, parti pro Carl Rogers. Mais interessante do que eu pensava: quero ver se termino antes de ir embora, em consideração ao Tom.

Dia 42

Chove forte em períodos de meia hora, entre os quais a chuva parece se esconder de novo no céu prateado de nuvens sujas e mal-encaradas.

Audrey substituiu Seeker e agora é minha parceira de ginástica. Depois de uma sessão de exercícios, a gente senta juntos e conversa sobre música e a vida em geral. Ela me conta que trabalhava como enfermeira, cuidando de pacientes terminais, mas entrou em depressão profunda e começou a roubar a morfina do armário de drogas de uso controlado.

E assim ela virou minha amiga e teve que ser riscada imediatamente da lista da punheta. Não dá pra bater punheta pra parcero, mesmo que tenham tetas e buceta: pra mim simplesmente não funciona.

Molly e Ted vão embora. Acabou o tempo deles. Ted vem até mim e fala: “Eu não gostava de você no começo porque achava que cê era todo metido a superior, sempre ficando de canto, sem se misturar com os outros. Depois me dei conta de que cê só queria um pouco de paz e a chance de enfrentar a situação da sua maneira.” Trocamos um abraço inesperadamente caloroso. Fico ainda mais chocado quando a Molly me abraça e me dá um beijo na bochecha, dizendo: “Vou sentir falta de discutir com você, seu chato.” Retribuo o beijo e desejo o melhor pra ela. Ted e Molly são os dois que menos me agradavam do grupo original, mas vou sentir falta deles, até porque o novo carregamento não é lá essas coisas. Graças ao caralho eu já vou embora na quinta. Mal posso esperar.

Sento a bunda e fico alternando a leitura do Rogers com a escrita do meu relato sobre Orgreave.

Dia 43

Keezbo se forma com louvor no nosso projeto de usuários de drogas/abuso de substâncias, mas não parece muito contente com isso. “Levanta o queixo, amigo”, eu digo pra ele. “A Seção Rítmica do Fort vai retornar em cena logo. Os esquiadores reis do pedaço.”

“Esquiadores reis do pedaço...”, ele responde com ar triste.

O que tá acontecendo com esse gordo jambo viado? Olha a cara de merda que ele tá fazendo! Tá quebrando meu coração! Antes dele sair ele me abraça, o que é a mesma coisa que ser atacado por um urso depilado e todo suado. “Vou sentir sua falta”, diz ele como se a gente nunca mais fosse se ver! E aí o gordo viado me dá um envelope. Abro depois que ele foi embora; é a foto de todos nós de uniforme dos Wolves, formando um time.

Dia 44

Brian Clough ficou 44 dias no Leeds United. Queria ser ele agora. Não é muito tempo pra recuperar um time. Não é muito tempo pra recuperar uma vida.

Lembro daquela música excelente do John Cooper Clarke, “Beasley Street”, e a letra: “Calor no colarinho, o inspetor telefona...” Apareceram três deles aqui hoje, do Serviço Nacional de Saúde, do Departamento de Trabalho Social e do Governo Escocês. O Daily Press fez uma matéria sobre a fuga do Skreel e um artigo sobre o “hotel cinco estrelas para viciados”, com um editorial bem conveniente dizendo que o lugar deveria ser fechado. Len me disse que um sujeito asqueroso com cara de pedófilo e uma credencial de imprensa tava mosqueando lá fora, pressionando os funcionários em busca de declarações.

É incrível como esses escrotos nojentos (a imprensa) são capazes de escrever qualquer merda e fazer uns retardados dementes (o público) pegar em armas de uma hora pra outra, pra que em seguida a escória oportunista (os políticos) possa pegar carona. É a vida inglesa. Sendo assim, agora tão realizando uma “inspeção abrangente das instalações”.

Isso acaba unindo a gente. Nos sentimos como celebridades e ficamos elogiando bastante a unidade. No papel de veterano, falo mais que os outros, mas a Audrey também dá seus pitacos e Dennis Ross, que é o membro mais velho, maduro e articulado da nova leva de clientes, faz uma bela contribuição. (No jardim dos eunucos, até o carinho com um pingolim de cinco centímetros se faz de bonzão.) A gente fica enfatizando pros burocratas de semblante solene que a estrada a percorrer é dura. Que isso aqui não é um passeio.

Tom, Amelia, Len e o resto da equipe tão obviamente nervosos. A unidade pode ser fechada. Me recuso a comparecer na “reunião geral de emergência” porque volto pra casa amanhã cedo, e em vez disso fico assistindo o noticiário. Teve uma grande apreensão de heroína, e a polícia e os políticos tão fazendo fila pra chupar o pau e lamber a buceta uns dos outros, enchendo a boca pra dizer que tão vencendo a “guerra contra as drogas”.

Arrã, tá bom. Claro que tão. Bando de viado burro.

Dia 45

E o próximo participante do Jogo da Reabilitação é: ninguém menos que me velho chapa Mikey Forrester! Mais uma vez, ele vai ficar rangendo e suando no quarto dele por uma semana, se mantendo longe do caminho de todo mundo, com medo da própria sombra.

Percebi a ansiedade e a confusão no olhar dele e contemplei sua forma esquelética. Tinha que acontecer logo com o cara mais legal de todos, pensei.

Quando ele me viu, seus olhos brilharam, ele veio todo desengonçado até mim e disse: “Mark... tudo em cima, parcero?” Olhou ao redor, desconfiado e preocupado. “Qual é o esquema aqui?”

Me dei conta de que eu tava com a mesma aparência que ele até poucas semanas atrás e também me assustei. Levei ele pro meu quarto, deixei ele sentar ali, tremendo e com a pele eriçada como uma galinha depenada, e passei pro viado um resumo honesto da situação. Aparentemente o paspalho tentou invadir um laboratório químico em Liberton. “Eu tinha visto aquele filme da Cristiane F., tá ligado?”

O animal continuou falando e eu tentei ouvir, mas tava na expectativa da chegada de Mater e Pater de carro pra me levar embora disso aqui. Como esperado, Len apareceu, Mikey soltou um gemido quando passei adiante o bastão da reabilitação psicológica, e assim o abobado foi conduzido pro quarto dele e pros dias longos de desintoxicação que o aguardavam.

Quanto a mim, era hora de dar o fora, e fui guardar o resto das minhas porcarias na mala. O último item que guardei foi meu diário e caderno de notas. A companhia deles me fez bem, mas duvido que a gente vá se ver de novo. A vi- da só pode ser entendida olhando pra trás, mas precisa ser vivida pra frente.

Dei tchau pra Audrey, que ainda tem uma semana pela frente, e falei que a estratégia dela de não dizer porra nenhuma e ficar de cabeça baixa é a melhor de todas. Beijinho, abraço e troca de números, e lá vou eu pro escritório pra ser dispensado.

Pós-escrito – Dia 45 (tarde)

O que dizem é verdade: nunca, nunca escute por trás da parede, ou cê pode acabar ouvindo algo sobre si mesmo que preferiria não ter ouvido. Eu tinha feito as malas, tava esperando meus pais, e decidi devolver o livro do Carl Rogers pro Tom. A porta da sala dele tava aberta e escutei a voz da Amelia e uma menção ao nome do Sick Boy. Quer dizer, não foi exatamente o nome dele, mas tava na cara de quem ela tava falando. – ... muito manipulador. Acho que ele quase acredita na própria propaganda.

Me aproximei mais, condenado a sofrer como uma mariposa perto da chama de uma vela. Escutei quando ela trocou o disco de repente: – ... Mas isso é o Simon. Depois tem o Mark, que tá indo embora hoje.

Congelei.

– Não me preocupo muito com ele no longo prazo – disse a voz macia e fininha do Tom. – Se ele conseguir chegar aos 26, 27, o senso de mortalidade vai bater com tudo, e partir daí vai deixar para trás essa raiva existencial e ficar bem. Se conseguir evitar uma overdose e o HIV até lá, vai superar naturalmente o vício em heroína. Ele é inteligente e competente demais; vai acabar se entediando dessa coisa de fingir que é um fracassado.

Nesse momento eu os surpreendi, batendo na porta e entrando ao mesmo tempo. – Mark... – A Magrinha de Óculos ficou vermelha e se encolheu. As pupilas do Tom dilataram visivelmente. Os dois pareciam constrangidos pra cacete. Será que foi por terem sido pegos falando a meu respeito, por terem usado o termo “vício”, ou por causa do uso pejorativo e pouco profissional da palavra “fracassado”? Não importa, eu me esbaldei na cena e esfreguei o Tornar-se pessoa na cara do Tom. – Livro interessante. Cê devia ler uma hora dessas.

Dei a volta e me mandei pra sala de recreação pra me despedir apressadamente dos outros viados pra quem eu não dava a mínima; só a Audrey me importava, e dei um adieu apropriado pra ela. Tom continuou na sala dele, obviamente constrangido demais pra dar o tchauzinho dele.

Levo minhas coisas pra fora e fico esperando meus pais. Nuvens cor de milk-shake de baunilha se esparramam no céu azul-claro e um grande carvalho tapa o sol.

Os passos de alguém fazem barulho no cascalho atrás de mim e vejo Tom se aproximando sorrateiramente com uma expressão magoada e confusa no rosto. Tá na cara que ele quer beijar e fazer amor. – Mark. Olha, desculpa...

Ele que se foda e pegue as platitudes cafonas e abraços falsos dele e enfie dentro daquele cu manipulador e fingido. – Cê não entende a raiva aqui dentro. Nunca vai entender – digo pra ele, pensando em Orgreave e logo em seguida, por algum motivo, no Begbie. – Eu me machuco, me destruo, pra não precisar machucar quem não merece. E isso porque não posso descontar em cima de gente como você, porque a lei tá do seu lado. – Sinto a bile fervendo dentro de mim. – Se eu foder realmente com o seu mundo estivesse ao meu alcance, eu não perderia tempo estragando a minha própria vida!

Naquele exato momento, um ronco de motor conhecido se aproxima pela estradinha e os rostos animados dos meus pais anulam uma boa parte do que eu acabo de dizer. A dor que causei a eles debocha da minha própria vaidade e prepotência: a ideia de que possa haver alguma nobreza intrínseca na minha atitude. Mas que se foda. Dou as costas pro Tom e pro centro de reabilitação e começo a caminhar na direção do carro.

– Boa sorte, Mark – diz Tom. – Espero isso de verdade.

Tô com raiva de mim mesmo, mas enfurecido com esse viado. Burocrata de merda, mentiroso, piegas, covarde. – Cê tá muito fora de sintonia com o que cê espera. Se é que espera mesmo alguma coisa, pra começo de conversa – digo enquanto meu pai vai saindo do carro. – Se quiser fazer alguma coisa útil, fica de olho nesse viado do Venters que chegou aí. – Faço um gesto de desprezo com a mão. Meu velho faz cara feia, mas eles tão felizes de me ver, e ao entrar no carro eu também me sinto feliz de ver eles.

– Meu menino, meu menino, meu menino... – diz minha mãe, entrando no banco traseiro comigo, me abraçando e disparando uma rajada de perguntas pra cima de mim enquanto meu pai conversa com Tom e assina uns papéis. Não faço a menor ideia de que documentação seja essa. Formulários de liberação?

Depois de um tempo, papai volta pro carro e senta no banco do motorista. – O que tava acontecendo ali? Entre você e o sr. Curzon?

– Nada. Uma discussão besta. Às vezes a coisa esquenta um pouco aí dentro.

– Engraçado, ele disse exatamente a mesma coisa. – Meu pai sorri e balança a cabeça, enquanto sinto uma coisa afundando no peito.

– Ai, meu filho, meu filho, meu filho – diz minha mãe com lágrimas escorrendo pelo rosto até o sorriso largo. Isso faz ela parecer anos mais nova, e me dou conta de que fazia muito tempo que eu não via ela sorrir. – Cê tá parecendo tão bem! Não é, Davie?

– Tá mesmo – diz o velho, girando o corpo e me dando um apertão no ombro musculoso, me admirando como um fazendeiro diante de um touro premiado na Royal Highland Show.

– Graças a Deus, esse maldito pesadelo acabou!

Meu coração pula quando o motor não dá a partida, mas papai força até pegar e a gente começa a se afastar da unidade, pro meu alívio. Algumas pessoas se reuniram na escadaria, mas não olho pra trás. Minha mãe segura minha mão em cima do colo dela nos intervalos entre um cigarro e outro, ainda prisioneira do fumo. A gente tá atravessando a ponte em direção a Edimburgo quando uma música do Duran Duran começa a tocar no rádio, falando de modo tão tentador sobre pegar a estrada da linha branca.

Eles nem reparam, tão ocupados demais falando sobre como o dia tá lindo e a gente pode começar a olhar pra frente de novo, todos juntos. Mas meu corpo e minha mente, pilares imaculados do templo da abstinência durante seis semanas, batem em uníssono como uma bateria eletrônica na direção do primeiro pacotinho de heroína. Só de pensar, um suor gelado de excitação começa a brotar dos meus poros. Porra, eu mal posso esperar. O velho tá pisando fundo por algum motivo, e minha mãezinha amada e eu nos prensamos um contra o outro a cada cantada de pneu nas curvas.

Junho de 1969, em Blackpool. A lua ainda feita de queijo fresco, mas a ser embalada e rotulada em breve por astronautas ianques antes de ser jogada no refrigerador. Um passeio pela Golden Mile. A distância da respiração áspera e cansada do vô Renton e da última vez que caminhamos juntos pela calçada já passa muito de um ano. Lembrando daquela vez que olhamos as medalhas dele na lata. Ele comentou com sarcasmo: “Eles só querem espetar esses pedaços de metal no seu peito pra cobrir as cicatrizes do metal que eles enfiaram lá dentro.” Lembro de pensar na ocasião: não, não, vovô, foram os alemães que fizeram isso. Os ingleses te deram medalhas!

Agora vejo que o pobre velho tinha sacado tudo.

A gente cruza a cidade na direção do porto do Leith. Não é tão tarde; os lojistas da Walk tão baixando as grades com vontade. Quando a gente chega em casa, pressinto que tem algo acontecendo. De repente, as luzes da sala se acendem e vejo um mar de rostos: Hazel, Tommy, Lizzie, Segundo Lugar (parecendo em forma e com uma loira bonitinha do lado), Billy, Sharon, Gav Temperley, a sra. McGolsdrick que mora ao lado, os amigos do meu irmão Lenny e Granty, todos sorrindo e brindando minha chegada com taças de champanhe; todos menos o Segundo Lugar, que tá com um suco de laranja. Em cima da mesa da cozinha, que tá coberta de bolos, sanduíches e cachorrinhos-quentes que são servidos em casamentos e enterros, tem uma faixa feita em casa com letras verdes sobre fundo branco proclamando:

MANDOU BEM, MARK, E BEM-VINDO DE VOLTA!

Não é exatamente a cerimônia de formatura que eles esperavam pra mim, mas tudo bem. Meu velho me entrega uma taça de champanhe. – Bebe isso aí. Mas vai com calma, hein.

Vai com calma.

Olhando o brilho laranja pálido rodopiando na lenha de plástico da lareira, bebo um gole da bebida e sinto ela descendo pela garganta até o estômago, o fígado, os rins, entrando na corrente sanguínea, e por fim atingindo o cérebro. As bolhas fazem cócegas na minha cabeça enquanto Hazel apalpa meus braços e esboça um sorrisinho nos cantos da boca. – Isso aqui são músculos?

– Mais ou menos – admito, e vou logo servir mais uma taça, plenamente consciente de que não vou saciar, mas sim agravar uma necessidade que sinto me invadir aos poucos. Tô voltando pra perto dela quando o Tommy me intercepta e me agarra num abraço amistoso. – Deixa aquela merda pra trás, Mark – diz ele resfolegando.

– Pode crer, Tam: aprendi a lição. – Não é exatamente uma mentira, porque aprendi uma lição. Só não era a lição que eles esperavam. – Como tá o Spud?

– Melhor nem perguntar. Pior que nunca. Imagina, passar por toda essa merda de reabilitação a troco de nada.

– É mesmo – digo com o rabo entre as pernas, mas por dentro tô comemorando. É isso aí, esse Murphy sabe das coisas! – E Matty?

– Tá mal que nem o Spud, só que em Wester Hailes.

Entendo o que Tommy quer dizer. Quer dizer que a coisa não tem mais como piorar pro nosso sr. Connell. Percebo que Hazel tá conversando com o Segundo Lugar e a mina dele, então pego minha mochila, vou pro meu antigo quarto e guardo o diário embaixo de uma cômoda cheia de livros e outras velharias.

Quando volto pra sala, minha mãe tá discutindo com o Billy e mostrando um cartão que ela quer que ele assine. – De jeito nenhum. – Ele balança a cabeça. – Eu não vou assinar nada a favor dos Curran. Lembra de como eles se comportaram no velório do Pequeno Davie?

– Mas eles eram nossos vizinhos, filho... – Ela me lança um olhar de súplica. – Cê vai assinar o cartão desejando melhoras pro velho Olly, não vai?

– Não sabia que ele tava... o que aconteceu com ele?

– Ah, cê não tinha como ficar sabendo... ele teve um ataque do coração dos mas violentos – mamãe me conta com tristeza. – Diz que recebeu uma carta pavorosa do governo. Pois é, ele ficou tão enfurecido que jogou a carta direto no fogo. Depois ele foi até lá e começou a protestar aos berros contra as pessoas de cor e essas coisas, cê sabe como eles são...

– Canalhas – diz Billy.

– ... e aí ele se indignou porque o governo negou conhecimento de qualquer quarta. Mas ele tava tendo um acesso de fúria e tentou agarrar o funcionário que tava atrás do guichê, aí chamaram a polícia. Bom, depois disso ele foi embora, mas ele teve um treco no meio da rua em Waterloo Place e levaram ele direto pro pronto-socorro.

Sinto um calafrio na espinha e sei que meu rosto tá empalidecendo. A mãe enfia o cartão e a caneta na minha mãe. Billy olha pra mim. – Cê não vai assinar isso aí, vai? Cê detestava aquele filho da puta!

– Com a vida não se brinca. É só um cartão, e eu não desejaria algo assim pra ninguém – digo pra ele. Dou uma olhada no cartão, que tem o desenho de um menino abatido na cama do hospital, com um termômetro na boca, e a inscrição VOCÊ ESTÁ DOENTINHO, QUE DÓ. Abro o cartão e dentro tem o mesmo menino, só que agora todo animado, com um copo de champanhe na mão, dando uma piscadinha pra enfermeira gostosa que tá passando a mão na cabeça dele. A mensagem é: UM BRINDE À SUA RÁPIDA RECUPERAÇÃO!

Apoio o cartão no guarda-louças e escrevo: Desejo melhoras, Olly. Mark.

– Esse é o meu garoto. – Mamãe abre um sorriso bondoso, sussurrando no meu ouvido logo em seguida: – Esse é você de verdade, filho. É a sua bondade aflorando, depois que as drogas horríveis te deixaram estranho e malvado. – Ela dá um beijo na minha bochecha de verdade.

Pisco os olhos pra ela e me viro pro Billy. – Lembra daquele time dos Wolves que ganhou dos Hearts na final da Texaco Cup? Cês ganharam de um a zero na ida mas levaram três a um em Tyney. Cê lembra do nome de quantos jogadores daquele time?

– Porra... – diz ele, franzindo a testa – mal consigo lembrar dos jogadores que tavam no Hearts! Deixa eu ver, tinha o Derek Dougan, claro, Frank Munro... tinha o Billy Hibbitt?... ou era Kenny Hibbitt... e falando nos Curran... esse era o nome do moleque que marcou dois gols, um escocês e tal... Hugh Curran! E quem mais? – Billy recorre ao meu pai, que bate-papo com Tommy e Lizzie. – Pai – grita ele de longe –, aquele time dos Wolves que ganharam do Hearts, na Texaco Cup...

– Que time, aquele – diz meu pai, limpando o naril com um guardanapo. – Lembra que todos vocês ganharam uniformes dos Wolves naquele Natal? Tive que mandar alguém comprar o de vocês.

– Sim. Fort Wanderers. Cê tirou aquela foto do time no Natal. A foto não saiu – declaro, olhando pro Billy. – Que pena, né? Mas não importa; ainda tenho a memória nítida. Da esquerda pra direita, na fila de trás: eu, Keezbo – aceno com a cabeça pros dois que tão acompanhados, Tommy e Rab, e depois olho de volta pro Billy –, Franco e Deek Low e tal. Na frente, agachados, novamente da esquerda pra direita; Gav, English George, Johnny Crooks, Gary McVie, lembram do pobrezinho do Gazbo? Dukey Cara de Chocolate e Matty com camisa de goleiro.

Billy fica um pouco desnorteado e meu pai diz em tom alegre: – Bom, pelo menos essas porcarias que cê andava usando não acabaram com a sua memória!

Não, não acabaram. Porque uma coisa que eu lembro claramente é de um certo endereço na Albert Street e os sete dígitos de um número de telefone que o Seeker me deu. Me aproximo da Hazel e coloco o braço em volta da cintura fina dela. Ela sorri pra mim, imaculada de vestido amarelo e meia-calça e um perfume delicioso, parecendo uma daquelas garotas americanas suburbanas dos anos 50 no cinema. Alguma coisa se agita dentro da minha cueca. Fico pensando se devo levar ela pro apartamento da Monty Street pra fazer sexo ruim ou descobrir onde andam Johnny, Spud, Matty, Keezbo e o resto da turma, ou fazer uma visitinha pro meu amigo e personal trainer, Seeker.


Avanti

Quando eu digo que a melhor parte do lugar é a estação de trem, dá pra começar a ter uma ideia do que estou falando. Claro, nunca vou deixar o pessoal do Leith ficar sabendo que a cidade natal da minha mãe é uma pocilga, bem diferente das paisagens toscanas banhadas por uma luz de tirar o fôlego, de onde convenci aqueles simplórios que os Mazzola se originavam. No país que é provavelmente o mais estonteante visualmente em toda esta terra criada por Deus, esta cidade é um espinho entre rosas. Mesmo na região mais ordinária da Itália outros buracos desprezam este lugar. Dá até pra entender por que a família da minha mãe se mudou pra Escócia.

Quando eu era pequeno, não parecia tão ruim. O fato de que uma boa parte da cidade ainda estava soterrada por um deslizamento de terra desde os anos 60 nunca me escapou, mas na época eu enxergava apenas um lugar cheio de mistério, era uma criança imaginando uma cidade subterrânea, ao invés de encarar a realidade: o município é um antro pestilento de corrupção e complacência. Ainda que dificilmente pudesse servir de inspiração pra algum artista, a velha granja da família me parecia romântica ao invés de um barraco rural todo esburacado, e mesmo o imenso ferro-velho cheio de Fiats enferrujados que ainda domina o vilarejo empoeirado me parecia um parque de diversões ao invés de uma mancha sinistra na paisagem. E eu não percebi que as terras ao redor do lugar eram improdutivas e que os habitantes tinham uma aparência repulsiva e deprimida que não faria feio em Gorgie Road.

Os únicos lugares nos quais penso com afeto são este café/bar na estação, onde estou sentado tomando um fantástico café italiano, e o velho celeiro onde meu primo Antonio fez a gentileza de deixar uma pilha de genuflexórios da igreja antes de se casar e ir morar em Nápoles, onde se tornou um funcionário público de segunda linha. Seguindo a tradição familiar, foi ali que enfim transei com a Massima. Antes de receber permissão pra romper o lacre, tive que aguentar duas semanas de beijos frustrantes, bolinação e boquetes católicos, que eu já tinha conhecido de perto na Escócia (ainda bem que estudei numa escola laica, taí a única coisa que devo ao merda do meu pai), seguidos por uma imensa quantidade de súplicas, persuasão, ameaças e, por fim, menções desesperadas a amor e casamento. E Massima tem quase 20 anos! Minha prima Carla deu um aviso bem claro, depois de praticamente me atirar para cima dela com seu jeito de aprendiz de matriarca italiana: Massima tem namorado. Aí ficamos nos escondendo como fugitivos, da estação até o celeiro.

Mas perseverança é meu nome do meio, e agora saboreio meu café, nem um pouco irritado com o atraso de quase trinta minutos no trem de Massima, que vem de outra aldeia a duas estações de distância. Onde está o Duce quando você mais precisa dele? Não importa; não consigo imaginar nenhum outro local melhor para esperar do que neste lugarzinho com porta de vidro, observando os velhos gordos jogando cartas na mesa ao lado. Bebericando meu café enquanto sou confortado pelo chiado da máquina de espresso reluzente, que evoca as antigas locomotivas a vapor. Pensando em como, para os pobres coitados deste lugar, as coisas nem parecem ter mudado tanto desde então: ainda é preciso se comprometer pela vida inteira em troca de uma trepada! É um dia “C”, e a palavra é:

CONTRATEMPO, substantivo masculino: circunstância ou incidente inesperado; contrariedade, aborrecimento, desgosto; obstáculo, estorvo, empecilho.

O coice do café vence o efeito sonolento do sol vespertino que chega em cascatas pela janela. A caixa registradora se fecha com um ruído metálico. Um gato ruivo e gordo que me lembra o Keezbo se espreguiça no piso num canto iluminado pelo sol, olhando para cima com indolência quando obriga os fregueses e desviarem ou passarem por cima dele.

No lado de fora, através da janela meio transparente, meio fosca, dois moleques que até pouco tempo estavam jogando fliperama trocam uns sopapos amistosos. Um deles está vestido com uma camisa do Juventus, o time para o qual Antonio torce. Parece que muita gente é torcedora do Juve por aqui, ainda que isso deva ter mudado depois que o Napoli contratou o Maradona. Pobres coitados; prevejo um grande acúmulo de frustração sexual nos dias vindouros, fratellos. É esquisito como esses carinhas andam de mãos dadas por aqui, como as garotinhas da mesma idade às vezes fazem lá na Escócia. E continuam fazendo isso na adolescência! Imagina caminhar até a Walk de mãos dadas com Renton, Spud, Tommy ou Franco! Mas acho que o Franco até ia gostar, e fico me divertindo pensando nele vestido de camareiro, cuidando de um trem todo afrescalhado. Penso em casa e acabo lembrando do Mark e do tratamento, e então tiro as páginas dobradas da carteira. São as mesmas que afanei do cestinho de lixo no quarto dele, páginas de diário. Ele fez por merecer, é um pagamento pela grosseria de ir embora quando eu estava a fim de debater conceitos importantes. Esse tipo de descuido sempre gera alguma nota fiscal; no mundo moderno o cara precisa tomar cuidado, senão acaba sendo punido.

Dia 21

Despertei pela manhã no meio de um sonho com a Fiona, quase na hora de acordar. E tava bolinando ela contra uma parede, mas ela escorregava das minhas mãos e assumia formas demoníacas e horrendas. Embora ela tivesse se transformando num monstro, ainda parecia importante comer ela antes de acordar... mas naquela forma ectoplasmática, era como tentar pregar uma água-viva na parede... acordo com o pau murcho na mão, com a alvorada estridente de passarinhos lá fora.

Depois do café (mingau, torrada e chá) vem o já costumeiro ritual de musculação no pátio com o Seeker. Volto pro quarto cheio de adrenalina, mas cansado, o que em geral são condições ideais pra leitura, mas não consigo me aquietar nem me concentrar. Sou dominado por uma sensação terrível de dor e perda, forte a ponto de me fazer estremecer. Logo minha respiração também sai do controle. O quarto parece girar e tenho consciência de que tô sofrendo alguma espécie de ataque de pânico ou ansiedade, então me deito e tento controlar a respiração até passar. Passa rápido e tudo volta a ser como era, tirando o fato de que agora tô me sentindo uma merda.

Na minha sessão do dia com o Tom, fico irritado com qualquer merda. Ele enxerga alguma coisa por trás disso e fica querendo saber o que está me incomodando. Digo que tô me sentindo mal porque agi como um filho da puta com uma pessoa que amava, mas não posso falar mais sobre isso. Ele sugere que eu escreva a respeito no caderno. Quase tenho outro ataque, dessa vez de riso mordaz, e a sessão é encerrada.

Fico inquieto; sinto alguma coisa me devorando por dentro. Minha respiração fica irregular de novo, embora meus pulmões estejam melhor que nunca. Desde que comecei a levanter pesos e me exercitar, o ar tem entrado neles como heroína entrando pela agulha. Não agora. Tento aguentar até passar, lembrando do Kierkegaard, que disse que “a ansiedade é a vertigem da liberdade”. Mas talvez a liberdade não seja pra mim.

Passo horas dentro da minha cabeça, com pensamentos borbulhando com tal intensidade que imagino meu crânio se rompendo. Tom tem razão: parece ser minha única saída. As palavras precisam ser expulsas antes que arrebentem tudo e saiam sozinhas. Viro até as páginas do caderno e escrevo.

Anotação do caderno: quando traí Fiona com a Joanne Dunsmuir

Fui eu que instiguei; no Talisman Bar, na estação Waverley. Eu e Joanne estávamos bebendo com o Bisto e a Fiona no trem que vinha de Londres. Foi como se a gente não conseguisse terminar, pôr um fim àquela aventura incrível que a gente tinha acabado de viver. Descemos na Waverley e deixamos o Bisto sozinho rumo a Aberdeen. Eles se despediram com um beijo casto que constrastava radicalmente com a intensidade do momento em que me separei da Fiona em Newscastle.

Fomos juntos ao bar da estação e bebemos mais um pouco. Joanne ficou alterada, dizendo que não gostaria que ninguém soubesse que ela e o Bisto tavam saindo. A conversa atingiu aquele tipo de ferocidade e profundidade que frequentemente atiça emoções entre pessoas de gêneros diferentes. Movido por algum impulso maluco, perguntei se podia beijar ela, e instantes depois a gente tava se agarrando. Perdemos as estribeiras.

“O que cê quer fazer?”, ela perguntou com os olhos cheios de vontade.

Sussurrei no ouvido dela: “Eu realmente acho que a gente deveria trepar...” Eu tava quase gozando na calça de tão excitado.

A gente saiu do bar e começou a andar com a bagagem, ela uma mochila, eu uma sacola esfarrapada, saindo pelo acesso de trás da estação, depois subindo a ladeira até a entrada do parque Carlton Hill, pra onde os boiolas vão à noite. Mas não era noite, ainda era fim de tarde e tinha luz.

Eu tinha acabado de me despedir da Fiona, uma garota por quem eu tinha me apaixonado. Mas agora ia ser só sexo. Eu e Fiona não tínhamos chegado a colocar as coisas no papel, não tínhamos negociado os termos de como proceder nesses casos. Não chegamos a determinar que era proibido sair com outras pessoas. Não éramos burgueses patéticos. (Me contorço de vergonha ao escrever essa expressão; só estudante abobado diz isso, mas é assim que eu me sentia.)

Então eu e Joanne subimos as escadas em silêncio com os pilares redondos e ornados do Monumento a Dugald Stewart se erguendo à nossa esquerda. Um viado de pouca idade com uma boina de velho passou pela gente no momento em que avistamos o grande e fálico Monumento a Nelson à frente; isso me fez lembrar do motivo de estarmos subindo aquela ladeira. Fiquei enjoado e tonto mas a gente continuou andando, carregando nossa bagagem desengonçada, com os passos sincronizados. Olhei pros Doc Martens vermelhos da Joanne, pras meias pretas, pra saia curta grudada no corpo, jaqueta jeans, o cabelo balançando no lado da cabeça, o perfil bem desenhado, a mochila que parecia estar tentando montar em cima dela. Era tudo irreal e onírico, e quase pensei em sair correndo como um pirralho. Mas embora houvesse algo muito frio e distante naquilo tudo, eu nunca tinha sentido tanto tesão em toda a minha vida. Os grunhidos do tráfego lá embaixo começaram a desaparecer. O próximo símbolo dos meus sentimentos, o canhão português, surgiu como uma acusação quando alcançamos o Monumento a Nelson.

Aquele viado precisava mesmo de outro monumento aqui? Fica bem em cima do lugar onde as pessoas mantêm uma vigília ininterrupta pela democracia, no local do Parlamento Escocês. E, sim, eles chegam ao ponto de ter a frase escrita numa placa do lado de fora:

A INGLATERRA ESPERA QUE CADA HOMEM CUMPRA SEU DEVER

A gente para e dá uma olhada, os dois embasbacados com a capacidade da Escócia de ser um lugar totalmente e irremediavelmente fudido. Joanne disse com nojo: “Eu odeio isso! É como se a gente não fosse nada! Aqui, no nosso país! Eles conseguem tudo!”

Fui soterrado por uma raiva contra tudo; eu, ela, o mundo. O momento da trepada já parecia ter ficado pra trás. Então Joanne olhou pra mim e me beijou com força nos lábios. Fiquei excitado de novo, na mesma hora, e a gente começou a se agarrar. Joanne beijava bem. “Vamos”, falei com firmeza. Por algum motivo, achei que ela ia se virar e ir embora, mas ela veio do meu lado no caminho de trás do parque, com vista pros penhascos de Salisbury.

Vimos a parede espessa de samambaias à direita e soubemos que era o lugar ideal. Tinha uma clareira na mata densa de samambaias, árvores e arbustos. Um oásis pro sexo ao ar livre. Largamos nossa bagagem e deitamos na grama como um casal fazendo piquenique. Joanne chegou a alisar a saia com um gesto estranhamente recatado. Ela tinha uma cicatriz fina em cima do olho, eu nunca tinha percebido. Puxei ela pra perto de mim e a beijei. Lambi a cicatriz e babei toda a cara dela, como um cachorro. Ela me beijou e mordeu meu lábio superior. Minha mão subiu por dentro da camiseta dela, que ela logo tirou para em seguida abrir a presilha do sutiã e me deixar acariciar seus peitinhos firmes ao mesmo tempo em que abria o fecho da minha calça, tirava meu pau pra fora e dizia: “A gente tem que trepar agora... tem que ser agora...” Ela fez uma pausa pra desamarrar rapidamente os Docs, e aproveitei pra tirar meus tênis.

Perguntei se algum cara já tinha chupado a buceta dela, e ela disse “Não, por quê, cê vai fazer?”, e eu disse “Sim;, sim, vou fazer isso...” e na mesma hora arranquei de uma só vez a meia-calça e a calcinha e me afundei no tufinho doce e aveludado. Minha língua abriu caminho pela vulva e achou o ponto. Eu não tava pronto pra ferocidade da reação dela, que imediatamente produziu uma sequência de gemidos engasgados e começou a rosnar: “Eu vou chupar esse pau... vou chupar essa porra desse pau até ele sangrar...”, e então ela se curvou e veio avançando aos poucos, afundando os cotovelos na grama, até que senti a língua lambendo minhas bolas e depois a boca engolindo meu pau. A gente ficou se chupando ao mesmo tempo e fiquei passeando os olhos pelos arbustos na tentativa de me distrair da pressão forte que ia se acumulando dentro de mim. De repente ela empurrou meu quadril, tirou meu pau de dentro da boca e cravou as unhas na minha bunda. Me dei conta de que ela tava gozando em espasmos rápidos e violentos, então me virei e comecei a comer ela bem devagarinho, depois com força, e ela gozou diversas vezes. O Trono de Arthur e os penhascos de Salisbury se erguiam à nossa frente e a gente tava cagando e andando pros eventuais transeuntes e corredores que passavam no caminho embaixo da encosta protegida. Estávamos crentes de que os plátanos e as samambaias eram capazes de nos esconder enquanto transávamos vendo os prédios no horizonte de Edimburgo. Tentávamos não fazer barulho, mas ela gemia como uma epilética, tanto que cheguei a perguntar se tava tudo bem com ela, mas ela só ficou vermelha como um pimentão e em seguida explodiu outra vez. “Ah, mas que porra...”, disse ela, quase odiando seu último clímax, mas disposta a continuar até espremer as últimas gotas de enlevo. Fiquei transfigurado, preso no momento; eu nunca tinha comido uma mina tão fora de si, ainda mais daquele jeito, até ela quase perder os sentidos. Mas eu ainda não tinha gozado, então tirei o pau, virei de lado aquele corpo exaurido e desconjuntado, abri bem as nádegas dela, cuspi no buraco apertado e enfiei o dedo até a primeira dobra, depois até a segunda. Ela ficou em silêncio enquanto o esfíncter apertava meu dedo, mas no geral ela seguia bem relaxada, o que era fantástico, porque sempre que tentei dedar o rabo de uma mina ou vice-versa a coisa ficou bem tensa. Falei pra ela o que eu pretendia fazer e comecei a enfiar o pau naquele cu. Levou tempo pra entrar, mas entrou. Mordi a orelha e o pescoço dela, cuspindo tufos de cabelo que entravam na minha boca, enquanto ela gritava “Vem, goza, goza!”, e mesmo sem conseguir meter com muita força por causa do aperto fiquei ensandecido de prazer e enchi a bunda dela de porra.

Meu pau amolecido escorregou pra fora e a gente ficou deitado lado a lado como vítimas de um acidente de trem até que um véu espesso de pânico e repulsa nos encobriu. Aquilo me imobilizou; Joanne levantou primeiro. Naquela altura eu já tava pensando unicamente na Fiona, depois no Bisto, que nem teve tempo de ir muito longe no trem rumo a Aberdeen. Fui consumido pelo medo e pelo autodesprezo à medida que contemplava as consequências do que eu tinha acabado de fazer. Joanne ficou um tempo ali sentada, abraçando os joelhos, e então vestiu o sutiã, a calcinha e a camiseta. Depois botou a meia-calça e começou a amarrar os Doc Martens. Atordoado, eu tava decidindo que ia abandonar a universidade pra nunca mais voltar, pensando só em heroína, heroína, heroína; eu precisava dela mais do que nunca. Comecei a recolher minhas roupas e a me vestir. Joanne mal olhou pra mim, ela só se levantou e disse: “Tô indo nessa.” Saiu andando sem olhar pra trás. E eu afundei ainda mais na desordem da minha alma, até perceber que ela não tava agindo assim por vergonha; me dei conta de que ela já tinha obtido de mim tudo que pretendia.

FIONA...

Tentei me firmar.

FIONA...

Eu arrancaria meu coração e fatiaria que nem um pão, depois atiraria tudo pros patos comerem no lago, só pra poder estar com ela de novo.

TÔ MORRENDO ENQUANTO ESCREVO ESSA MERDA.

Foi só sexo. Eu e Fiona nunca colocamos nada no papel, nunca estabelecemos tipo de relação que gostaríamos de manter.

Por que, então, eu me sentia tão abjeto?

Por que tinha a sensação de ter agido de modo terrível, arruinado uma coisa incrivelmente preciosa, a troco de nada?

E assim, assombrado pelo olhar abrasivo de Joanne, pela sua boca torcida e desolada, desci a encosta cambaleando de encontro ao Leith e a uma morte na família.

E a gente ainda acha que conhece as pessoas. O leal Mark Renton, que se manteve ao lado da namoradinha da escola, aquela vadia da Hazel, com uma cara de cu capaz de arruinar uma festa apenas fazendo beicinho. Depois torrou o saco de todo mundo falando sobre com amava aquela tal de Fiona. Todas aquelas cansativas pretensões masculinas e não sexistas, e no fim das contas o cara é um predador escroto como todos nós. O negócio é que esses pequenos contratempos são corriqueiros pra maioria dos caras, mas ele vai passar anos sofrendo com isso como a bichona que é. E o viado não menciona meu nome nem uma vez! Eu, o guru sexual dele! Mark nunca teria ganhado confiança pra meter o pau em alguém se não andasse comigo! Naquela vez no parque, com a vagabunda da Tina Haig, eu praticamente tive de tirar o pau dele da calça e enfiar dentro da buceta dela! Como se estivesse limpando uma privada com uma escovinha ruiva. Quase fico triste; quase, porque o piuí está chegando na estação.

Controlo o impulso de me levantar e ir ao encontro da Massima, ainda que a enxergue saindo do trem, parando na plataforma com muita elegância, dando uma olhada, percebendo minha presença e dando um sorriso forçado, sem mostrar os dentes, num claro sinal de que algo de errado aconteceu. Espero que a culpa católica não tenha entrado em cena a ponto de eu ter de me esforçar pra ganhar o buraco. Agora o lacre foi rompido, já era. O negócio agora é cair na farra sem limites e sem arrependimentos; que eu saiba, o supermercado do pecado não tem um caixa expresso pra quem leva poucos itens! Os olhos da Massima são quase bizarros de tão grandes, o cabelo é preto como nanquim e as sobrancelhas são grandes e arqueadas. Hoje em dia me parece que prefiro traços fortes e beleza exótica. Loiras de beleza convencional, como Marianne e Esther, mais parecem bonecas sem graça com rostos inteiramente definidos pelos cosméticos que passam horas aplicando. Quando começam o processo tedioso de tirar a maquiagem antes de irem pra cama, parece até que vou comer um fantasma.

Massima surge pelas portas de vaivém usando um vestido curto azul-escuro, de algodão muito fino e lustroso, que me fez lembrar uma Ben Sherman que tive um tempão atrás; com as pernas de fora, me deixa tão duro que se eu fosse uma estrela-do-mar ganharia uma carapaça instantânea. – Simon. – Ela me cumprimenta, com a pronúncia gutural quase mecânica de tantas minas italianas, mas dá pra ver que tem alguma coisa errada ali. Ela senta com uma postura rígida, e dá pra ver que os olhos estão apreensivos. – Ando com tanto medo... – ela confessa, e então diz alguma coisa em italiano, mas não consigo entender. Como nota pela minha expressão que eu não entendi nada, volta a falar em inglês porco. – Eu... passei do tempo da regra.

Contratempo! Forças cósmicas, mais uma vez!

– Atrasada, é isso? – Engulo em seco. – Sua menstruação está atrasada?

– Si... – Ela me encara com seus olhos de holofote.

O segredo é não se desmontar. Manter a cabeça fria. Você já ouviu isso antes, provavelmente vai ouvir de novo... você tem pernas e existem trens. Você nunca vai ser o tipo de cara que aceita passivamente quando o destino prega peças...

Aí pego a mão dela e digo: – Não tire conclusões precipitadas, linda. Vamos fazer um testezinho... um teste, para saber a verdade. Seja qual for a resposta, vamos passar juntos por este pequeno contratempo. Agora – dou uma olhada ao meu redor – vamos cair fora daqui.

E vamos embora do café e da estação, pegando a estradinha de pedra que vai da cidade até a velha granja, fazendo planos no caminho. Quando enfim chegamos no celeiro nos fundos da casa, onde bodes sarnentos pastam na grama rala, já deixei ela mais tranquila. Tanto que as alças do vestido deslizam sem resistência dos ombros magros, e abro a cortina escura do cabelo dela para expor aquele pescoço fabuloso, feito sob medida para ser beijado com ânsia de vampiro.

– Você vai me mostrar Edinburgo, Simon. – Ela geme ao receber minha mordida.

Suspiro no ouvido dela enquanto uso as mãos com habilidade para desenganchar o sutiã branco, fascinado com a morenice daqueles peitos. – Pode apostar, linda, pode apostar – digo pra ela, mas quer saber? Não estou pensando em igreja, em bambinos e em ficar assistindo ela inchar e se tornar uma especialista na cozinha e se conformar com a bombada na manhã de sábado que me permitirá usar o resto do tempo para flertar com as gracinhas da cidade; não, não, não, ela está confundindo Simone com outra pessoa. Minha preocupação ostensiva pode ser a curva magnífica e quase impossível da cintura dela quando se encontra com o quadril, mas pulsando no plano de fundo está uma imagem minha embarcando no trem que vai dali pra Nápoles e depois seguindo viagem para Turim, Paris, Londres e Edimburgo. – Sozinho, querida, sempre sozinho – murmuro com voz grave enquanto deslizo as mãos por sua cintura e enfio dentro da calcinha. – Se há vida dentro de você, princesa católica, vá correndo pro norte onde algum médico nazista de sangue frio pode raspar ela daí ou pague o preço de viver num fim de mundo papista... – ela responde com um gemido, sem entender porra nenhuma do que estou falando, ainda bem, porque depois que isso daqui acabar eu tô indo direto pra casa; essa aí foi um osso duro de roer, mas estas são as minhas montanhas e este é o meu vale. Salve, Caledônia!


Num aperto

Tô meio que ficando frio porque ainda tô nervoso depois da internação e daquele tempo no hospital. Tava suando muito uma noite dessas e entrei em pânico: fiquei com medo de tá com o bichinho que todo mundo anda pegando. Uma hora eu não conseguia respirar; era como se eu tivesse esquecido como fazer isso. Tô ligado que fiz o teste e eles disseram que tipo, tá tudo bem comigo, mas tem alguma coisa errada. Antes diziam que era só bicha que pegava, e não tô dizendo que tipo, bicha mereça ficar doente, mas tô preocupado com esse negócio de poder pegar usando a mesma seringa. Daí fiquei acordado quase a noite toda, tentando respirar e ouvindo os gatos de rua lá fora, brigando e transando. Que alívio quando chegou a luz da manhã; daí finalmente consegui dormir.

Hoje em dia tá todo mundo se metendo com heroína. Antes era uma coisa só do pessoal mais velho, tipo Denny Ross e sambuca Agnes, depois os carinhas que queriam ser descolados, tipo o Rents, o Sick Boy e moi, que talvez tenham tipo se enroscado demais na cultura “que se foda” do rock’n’roll, saca? Exagerado na tentativa de chocar a sociedade e coisa e tal, cara. Como se esses gatunos se importassem com o que o pessoal dos blocos faz, desde que não incomode ninguém. Agora o negócio atingiu os bastiões periféricos de concreto da bela Edina (nas palavras do Sick Boy) de um jeito impressionante, e todos os caras que uns seis meses atrás ficavam bebendo cerveja e rindo da nossa cara tão indo atrás de heroína, porque não têm nada melhor pra fazer. O Johnny Swan tá ganhando uma bela grana, mas tá totalmente paranoico achando que a polícia vai acabar batendo na casa dele com aquele monte de malucos entrando e saindo o tempo todo.

Daí tenho ficado em casa. Pelo menos as coisas andam melhores com a minha mãe, aí isso é tipo, uma coisa boa. Ela quer que eu volte a morar com ela, mas eu meio que curto bastante ficar aqui em Monty Strasse. É legal ter o próprio espaço por um tempo, uma coisa sofisticada, meio homem à solta na cidade grande, saca? O Rents ainda tá internado, mas vai sair a qualquer momento, e o Sick Boy está na pátria-mãe. Ou melhor, na pátria-mãe da mãe dele. Esse apê é bom pra duas pessoas, talvez pequeno demais pra três, mas pra uma pessoa sozinha é um exagero, então devo voltar pra casa quando os gatunos ressurgirem. Mas agora tá uma beleza ficar aqui sentado assistindo esse filme do Stallone, mas eu meio que não consigo entrar na história. Tem violência demais, cara, o que é bem brochante pour moi. Gatunos tipo o Begbie, que tá preso, fazem coisas ruins na vida real, e esses atores tipo o Stallone só ficam de brincadeira e ganham uma grana danada com isso. Pra fingir que são transtornados tipo o Franco ou o Nelly! Daí um maluco tipo o Franco não tem incentivo nenhum pra melhorar, já que todo gatuno rico de Hollywood quer fazer de conta que tipo, é igual a ele.

É verdade, né?

Daí eu tiro a fita e coloco O mágico de Oz. Tô ligado que devo ser meio velho e que não sou bicha, mas eu podia ficar assistindo esse filme o dia inteiro, todo dia, saca? Daí eu começo a ficar com uma ideia idiota de que assistir o filme pode dar azar, porque as bichas tão tudo pegando o vírus e gostam de assistir O mágico de Oz. Mas não, cara, que ideia idiota; o cara não pode ser assim tão supersticioso. E é bem legal assistir o filme sozinho, em paz, sem ficarem tipo tirando sarro da minha cara. Saca?

Tô com minha caneca de chá, que na verdade é uma cumbuca (mas tem tipo uma alça, não sou tão grosso assim!) com a inscrição Souper Hibernian, e meio pacote de biscoitos integrais de chocolate da McVitie’s. Tô no paraíso! Mas fiquei meio empolgado molhando um biscoito e ele acabou quebrando e indo pro fundo do mar. Tudo bem, vou recuperar os destroços assim que drenar esse oceano de chá quente e doce. Tô completamente envolvido, pensando naqueles munchkinzinhos, em como o estúdio de cinema tratava eles como cidadãos de segunda classe, mais ou menos tipo, a Thatcher trata a gente que depende do dinheiro do governo, quando escuto a chave girando na tranca e alguém entrando pela porta...

Ah, cara...

Deve ser o Rents, não tem como ser o Baxter, o senhorio, porque o Gav Temperley me disse que o coitado do velho foi encontrado todo podre no apartamento da London Road. Bem que o Sick Boy tinha falado pra eu ficar de olho no filho dele, que parece ser um cara bem desgraçado, mas não farejei nada, saca? Mas ah, cara, que pecado, um velho com tantas casas e inquilinos morrendo sozinho e ficando um tempão apodrecendo sem ninguém aparecer. Dá vontade de chamar o velho gatuno de Eleanor Baxter... olha toda essa gente solitária, é isso aí.

Daí me levanto pra investigar e encontro o Sick Boy na entrada, com as sacolas dele e um Evening News debaixo do braço. – Spud.

– Sic... Simon. Beleza, cara?

– Danny boy... perdeu peso, hein – diz ele, daí continua: – Tudo bem certinho?

– Sim, tudo – respondo na hora, porque é bem assim que os gatunos andam perguntando quando querem saber se o cara tá com Aids. Certinho, bichinho, saca? – O que cê tá fazendo aqui? Achei que cê tava tipo, na Itália.

El Sickerino fica com uma cara meio envergonhada e diz: – Hã... política interna de vilarejo. Lá cê não pode se comportar como se comporta aqui, Danny – ele dá um tapinha nas bolas –, cê precisa tomar cuidado onde mete isso daqui; o Santo Papa fica de olho em tudo que acontece por lá, ao contrário deste fim de mundo pagão. Tive uns probleminhas e achei mais prudente executar uma saída pela esquerda. – Daí atira o News em cima da mesa. – Olha isso, hoje à noite tem Claudia Rosenberg no Venue. Vou arranjar uns ingressos pra gente. – Ele abre caminho pra chegar na sala. – Cadê o telefone? – Então enxerga o que o videocassete está tocando. – Rapaz, até que a Judy Garland fica bem comível nessa saia fininha... foi mal, parcero, por acaso atrapalhei um momento de exploração íntima?

– Não... eu só estava tipo, assistindo o filme mesmo – respondo, enquanto Sick Boy pega o telefone e começa a discar.

– Alô... posso falar com Conor? ... diz pra ele que é Simon David Williamson, ele tá ligado... – Sick Boy tapa o bocal do telefone com a mão. – Que babaca. “Posso saber quem está falando?” – Revira os olhos. – Alô? Con!... Excelente!... Nada mal, parcero, nada mal mesmo. E você? ... Excellento! Olha só, meu velho, tô correndo contra o tempo, então vou ter que cometer a grosseria indesculpável de ir direto ao assunto. Qual a chance de eu conseguir uns dois ingressos na faixa pra assistir uma certa cantora holandesa hoje à noite?... Mas que maravilha! Cara, você é um gênio, porra!

E pronto, ele conseguiu os ingressos. Não fico tão empolgado, porque nem ando muito a fim de encarar multidões, é uma situação de pura claustrofobia, saca? Mas El Sickerino parece feliz demais, e é sacanagem demais acabar com a festa de um gatuno nesse estado, saca? Além disso estamos falando de Claudia, a cantora holandesa, e ela é uma lenda!

Sick Boy anda até uma das sacolas e abre o zíper, tirando uma garrafa de vinho tinto. – Lava uns copos, Danny, tá na hora do chianti! Que vitória pros garotos do Leith, vamos até ir pra festa nos bastidores depois do show! Bora, compadre, ânimo!

Daí vou pra cozinha mas tipo, só sobrou um copo. Pode ficar com ele. Lavo a tigela Souper Hibernian com o biscoito dissolvido pra eu usar. A gente senta no sofá, tomas uns goles e assiste um pouco de O mágico de Oz. Daí saímos pro show, parando no caminho pra tomar uma cerveja no Joe Pearce. Tô me sentindo excelente, e nem me incomodo com a multidão quando a gente entra no Venue. A melhor coisa do Sick Boy é o jeito que ele domina as coisas, o cara tem um senso de... não tanto de autoridade, mas de merecimento, ser o bambino italiano e crescer com a Mama e aquelas irmãs deixou o cara mimado, pelo menos é o que o Rents diz e ele tem toda a razão, porque dá muito na vista. Dá uma de feiticeiro malvado com as minas, mas pra ele isso parece funcionar. Às vezes eu fico pensando que, se eu começasse a tratar mal as garotas, talvez elas gostassem mais de mim, mas nunca consigo fazer isso.

Tá lotado aqui, e o problema é passar daqueles pilares irritantes. Sick Boy tá empurrando a multidão como se fosse dono do lugar, mas eu tô indo direto no rastro dele. Uma ou duas pessoas assobiam ou ficam encarando, mas ele tá com aquele sorrisão de cessar-fogo e a gente chega na frente bem rapidinho. Daí logo depois uma banda com quatro integrantes – guitarra, baixo, bateria e teclado – sobe no palco e começa a tocar uma instrumental. Uma mina descolada parada ao meu lado fica gritando: – CLAUDIA! CLAUDIA! A GENTE TE AMA! – E sem demora A Mulher aparece, toda vestida de preto gótico, e todo mundo aplaude.

Tô ligado que não é legal falar uma coisa dessas, mas fico meio decepcionado, porque sempre penso na Claudia Rosenberg como aquela supermodelo gatinha cacheada na capa de Street Sirens, mas acho que isso faz séculos, saca? Essa daí mais parece a mãe de alguém. Bem, acho que ela é mesmo a mãe de alguém, mas saca, tô falando de uma tia velha do Leith, dessas que jogam bingo. Tá toda inchada e destruída, e fuma um cigarro atrás do outro em cima do palco. A mina do meu lado grita de novo: – A GENTE TE AMA, CLAUDIA! – E quando a Claudia escuta isso dá uma olhada congelante pra multidão e começa “They never stay’. Mas a voz dela tá excelente e sinistra como sempre, e o pessoal da banda toca demais, daí todo mundo fica maluco.

Mas o Sick Boy não consegue deixar de ser um gatuno travesso, e me diz: – Dá uma olhada nesse pescoço nazista pelancudo. Nem parece que ela era uma delícia nas antigas!

– Tá passada mesmo, cara, mas ela não é nazista, ela é judia! – grito.

– É holandesa, e eles são só um bando de alemães marítimos – responde. – Pau no cu do norte da Europa, viva o sul! – grita e sorri pra gatinha ao meu lado.

– Mas ela não é novinha, não dá pra esperar que tenha a mesma aparência do auge – insisto.

– Isso aí é tudo ruga de heroína. – Ele aponta pro palco. – Não é envelhecimento normal. A gente saiu do carrossel na hora certa, Danny Boy.

– Pode crer – respondo. – Não quero dizer mais nada, porque não é como se eu tivesse me livrado, na verdade. Só tô tentando tipo, não me viciar de novo. Ouvi falar que heroína faz a pessoa parecer mais nova, mas nem me animo a discutir com o Sick Boy porque tô curtindo muito esse show. Gosto demais dessa música, “My Soul has Died Again”. É sobre se sentir uma merda, e eu meio que me identifico com isso. Ela passa pelo melhor de todo o repertório e o bis é excelente, com “A Child to Bury” e uma versão sublime demais de “The Nightwatchman’s Cold Touch”.

Depois do show o Sick Boy diz: – Bora pros bastidores. O Renton vai morrer de inveja!

Fico pensando: verdade, que triste o Rent Boy ter tipo, perdido essa.

A coisa tá bem maluca nos bastidores e os leões de chácara tão mandando quase todo mundo voltar, mas Sick Boy encontra um carinha e daí a gente vai direto pruma sala cheia de comida e bebida. Tem também umas minas lindas, e o Sick Boy vai direto pra elas. Eu queria demais ter tanta confiança com as garotas; mas não rola, cara, não rola mesmo. Depois de um tempo a banda aparece e de repente eu me dou conta que a Claudia tá sentada bem do meu lado! Tá com um copo de plástico na mão, com algum destilado.

Quero dizer “que show excelente” mas fico todo tímido e só fico tipo, rindo bem nervoso. Daí é ela que fala comigo: – Qual o zeu nome? – Com aquela voz rouca e melodiosa. O bafo dela fede muito a cigarro. Quer dizer, acho que tipo, fede como o bafo de todo mundo, menos o Rents, porque ele não fuma, ou o Tommy, porque fuma bem raramente, mas tô falando de gente normal e tal. Mas o bafo dela é praticamente uma fumaceira de chaminé.

– Hã... Danny...

– Goztei de fozêêêê... – diz ela, sorrindo, e dá pra ver que os dentes dela tão destruídos, cara, tudo amarelo, e tem uns quebrados também. Meio que tipo os meus, acho. – O que zê faz da fida, Dá-ni?

– Tô meio que tipo, desempregado, pego grana do governo.

Ela me dá um cotovelaço nas costelas; cara, ela é louca que nem o Begbie! – Zei do que fozê tá falando. Fozê é um dos milhões da Maggie, não é izzo?

– É isso aí, cara. Tipo, jogado no lixo pelo thatcherismo.

Ela dá uma olhada na sala e fala bem perto do meu ouvido. – Acho que eu defia levar fozê comigo pro hotel, onde tem um brandy dezente. – Ela ergue o copo de plástico contra a luz e faz uma careta. – Brandy de ferdade. O que acha da ideia, Dá-ni?

– É, hã... excelente! – respondo. – Só vou, hã, avisar meu parcero que a gente tá saindo.

Ela faz uma cara feia e olha pro Sick Boy, que tá que nem um peixe dentro d’água com as duas minas, ele e o cara que toca guitarra na banda. Vejo ela meio que bufar e é excelente notar que ela não se impressiona com ele, mas comigo sim! Daí eu chego perto do Sick Boy e pego ele de canto. – Hã, tá rolando uma coisa, gatuno. A Claudia quer que eu vá pro hotel com ela. Mas não sei muito bem o que fazer.

Ele olha pra ela, que tá conversando com uma garota, e depois volta a olhar pra mim. – É uma bruxa velha, mas você precisa botar pra dentro! Pensa no folclore! Imagina a inveja do Renton! Puta merda, o Iggy teve ali! Lennon também. E Jagger. E o Jim Morrison. Você vai poder meter o pau no mesmo lugar que o Iggy!

Eu ainda não tinha pensado desse jeito, mas seria mesmo tipo uma medalha no peito e tal. – Pode crer, gatuno. Por essa perspectiva não dá mesmo pra perder a oportunidade, né.

– Não dá mesmo, porra – diz Sick Boy, daí faz uma cara séria e fala mais baixo. – Falando em meter o pau, um conselho: vai direto atrás!

– Hã?

– Come o rabo dela. Mete o seu negócio até o talo naquele buraco de expelir merda.

Não me parece um comentário muito respeitoso, aí eu digo: – Hã... eu tipo, não tô muito nessa onda aí...

Os olhos do Sick Boy tão em chamas. Ele usou algum negócio, deve ter sido cocaína. Aquele guitarrista tava certamente com tipo, alguma coisa em cima. – Presta atenção. – Ele puxa minha camisa. – Essa xereca velha deve estar mais larga que o Grand Canyon. Aquela música “Rich Bitch” no Metallic KO do Iggy Pop é sobre ela. Tá ligado quando ele canta que a buceta da mina é tão grande que daria pra entrar com um caminhão? Bem, todo mundo diz que é sobre ela. E isso daí é o Iggy, que tem uma pica de jumento, e aconteceu nos anos 70, antes de ela ter um monte de filhos que abandonou depois, um prolapso uterino e uma histerectomia. A menos que você tenha a torre Eiffel dentro da cueca, acho melhor nem chegar perto desse buraco. Melhor engraxar bem esse cacete e enfiar direto no anel de couro – ele meio que ordena, enfiando uma coisa no bolso da minha jaqueta.

– Mas... eu tenho camisinhas – digo pra ele. Com esse negócio de Aids, cara, meio que faz sentido andar com esses negócios no bolso. Nunca se sabe o que pode acontecer, né.

– Lubrificante. Mela bem o cacete, bota as pernas dela pra cima em papai e mamãe, mira baixo e entra gostoso. Tenha perseverança. Ela vai adorar. Minas europeias curtem esse tipo de coisa. Na Itália a gente faz isso pra evitar bambinos e pra ficar em paz com o Santo Papa em Roma. Você é irlandês, deve tá por dentro de como se faz! Invade a rabiola com esse shillelagh e rapidinho você não vai conseguir saber se ela tá falando holandês ou coisas sem sentido, seu viado!

– Beleza...

Daí eu volto pra Claudia, que tá se levantando da cadeira e depois sacode o cabelo e sai da sala. Vou atrás dela, e enquanto tô saindo olho pra trás e vejo o Sick Boy me dando um joinha e o guitarrista fazendo um gesto de cortar a garganta. Aí me viro. Tem um carinha com a Claudia e fico meio preocupado que talvez vá rolar um negócio a três, sabe como esses holandeses são liberais, tudo bem permissivo e tal, mas aí me dou conta que é só o motorista. A gente sai e ele entra no carro e senta no banco da frente, e eu e a Claudia ficamos atrás. A mina gatinha que tava do meu lado no show tá esperando no lado de fora, e quando enxerga a Claudia dá um grito: – A GENTE TE AMA!

Eu não ia me incomodar nem um pouquinho se a gente levasse ela junto pro hotel, mas a Claudia só diz: – Vai ze foder, retardada. – Enquanto o carro vai saindo. Nosso destino é o Caley Hotel. Cara, tô nervoso pra caralho, aí começo a falar sem parar, comentando o show e dizendo que adorei a nova versão de “The Nightwatchman” com o arranjo de guitarra de Darren Foster, daí ela coloca a mão em cima da minha boca e diz: – Shhh. Não gozto quando fozê fala tanto.

Daí eu não digo mais nada e a gente logo chega no Caley, o porteiro abre a porta do carro e a gente sai e entra no hotel. Nós dois mais parecemos uns mendigos, mas os felinos do hotel ficam na boa porque sabem quem ela é. Tô bem ligado que eu nunca ia ter conseguido entrar sozinho nesse saguão luxuoso. Uns candelabros de vidro enormes, colunas, veludo e um carpete bem grosso... a gente passa por uma baita alcova até chegar no elevador... ah, cara...

Daí a gente entra no elevador e depois no quarto. É muito matador; cabe tipo, dois apartamentos de Kirkgate aqui dentro e tal. Tem um banheiro gigantesco. A Claudia deita na cama com dossel e dá uns tapinhas no espaço ao lado dela. Tô cagado de medo, porque sempre fico assim com minas, e eu nunca diria isso pros caras, mas só transei com três até hoje. Ficar frio é o segredo, cara, mas depois que a adrenalina toma conta, aquela tensão forte, de fazer tremer, daí não tem mais jeito, cara, porque começo a sentir meus nervos se enroscando. Sempre fico duro de timidez com as garotas de quem tô a fim, é tipo meu ponto fraco, saca? E pra ser sincero nem tô muito a fim da Claudia, porque ela tá tirando a calça e tem umas coxas molengas enormes, daí fico olhando pra papada na cara dela e lembro de novo da capa de Street Sirens e me pergunto: será que essa daí é mesmo a Claudia Rosenberg?

Agora ela pegou uns negócios, e cara, ela tá fumando heroína com um cachimbo de papel alumínio. Enche os pulmões de fumaça e fica toda mole. Daí me oferece o cachimbo, e tô ligado que ando tentando ficar meio careta, mas tô tão nervoso que dou uma tragadinha, daí começo a tossir e ela dá umas gargalhadas, mas nem me importo porque tô ficando todo macio e pesado, e isso acabou de vez com o medo, cara.

Excelente.

Nenhum nervosismo mesmo.

Daí começo a tirar a roupa e vou pro lado dela na cama. Ela vira a cara gorda de tia velha pra me encarar. – Fozê é um bom menino – diz ela, passando a mão nos meus mamilos como se quem tivesse as tetas fosse eu e tal.

– Eu... sempre... meio... que... admirei o seu...

– Shh... – Mais uma vez o dedo em cima da minha boca, e a outra mão ela enfia dentro da parte da frente das minhas calças, que não tirei. Cara, faz tanto tempo que não rola nada que mesmo com esse pouquinho de heroína eu fico duro pra caralho. – Fozê tem um lindo pêniz comprido. Muito comprido. Não é tão grozzo, mas é muito, muito comprido!

Não é tão grosso...

Claro que fico pensando no que o Sick Boy disse, daí coloco a camisinha e abro o lubrificante e passo bastante na cabeça do pau. Ela tirou a calcinha e veio um cheiro meio azedo, bem forte, mas nem digo nada. Tipo, dá pra ver que ela capricha na heroína e daí meio que não se preocupa um pouco com a higiene pessoal, saca? Eu era igualzinho antes da internação. Mas daí eu fico pensando na Janis Joplin e na Billie Holiday, em como será que elas eram nesse assunto de xexeca, saca?

Daí a Claudia começa a gritar. – Enfia! Enfia!

– Beleza... – Daí subo em cima dela, fico na posição e empurro aquelas pernas gordas pra trás e pra cima, encosto o pau no cu dela e começo a forçar...

Ela arregala os olhos e endurece o corpo inteiro. – O QUE FOZÊ TÁ FAZENDO?

– Tô... meio que tentando... tipo... botar na sua bunda – respondo.

Bem, cara, na mesma hora ela me empurra de cima dela e me agarra pelo cabelo. – FICA LONGE DE MIM! CAI FORA!

Tento escapar, mas meu couro cabeludo tá queimando e ela ficou maluca, cara, me perseguindo em câmera lenta ao redor da cama, porque nós dois estamos chapados de heroína, eu todo pelado, ela nua da cintura pra baixo, mas ainda vestida com uma camiseta preta, e eu tento pegar minha calça, mas não consigo, daí digo: – Desculpa... desculpa... fica calma!

– Fozê acha que porque agora eztou velha fozê pode me uzar como privada?

– Não é isso... só achei que...

Ela vem com tudo pra cima de mim e me dá um soco bem em cima do olho. – CAI FORA! – berra de novo, e respondo que já tô indo, só preciso pegar minhas roupas, mas ela fica dando socos e chutes e eu vou andando pelo quarto, e não posso bater de volta porque ela é mulher, daí resolvo me trancar no banheiro enorme pra esperar ela ficar mais calma. – Fuma mais um pouco... – digo. Mas ela continua gritando pra eu cair fora, daí abro a porta, mas com tantos gritos eu me atrapalho e abro a porta errada, que dá pro corredor do hotel, e ela me empurra e bate a porta atrás de mim!

Ahhh, caaaaaara...

Fico olhando pro corredor vazio, implorando, batendo na porta, implorando pra ela pelo menos jogar minhas roupas pra fora, daí escuto ela gritando do outro lado: – Ezzaz roupaz de merda eu fou é chogar pela chanela!

– NÃO! NÃO FAZ ISSO! – grito, esmurrando a porta, mas um cara do quarto ao lado aparece no corredor e olha pra mim, daí eu digo: – Cê precisa me ajudar, preciso emprestar umas...

O maluco volta pro quarto e bate a porta. Dou outra olhada no corredor e tudo que me vem na cabeça é pegar as tampas de metal das bandejas de serviço de quarto de alguém e colocar uma na frente das minhas bolas e outra cobrindo a bunda. Vou andando pelo corredor até que o elevador se abre e um casal sai e começa a rir. Entro no elevador, mas ele para no andar seguinte e uma mulher com um filho pequeno começa a entrar e então param. – O homem está sem roupa – diz o moleque, e a mãe chique pega ele e se afasta. Aperto o botão, e o elevador desce até o saguão lotado.

Tô completamente perdido, cara, o que eu vou dizer pra polícia? Que uma velha cantora holandesa atirou minhas roupas pela janela porque eu tentei enfiar o pau no cu dela? Certo que vou pra cadeia! Daí eu mando ver, cara, ando bem rapidinho pela recepção sem olhar pra ninguém, segurando bem as tampas de metal, e fico escutando os suspiros de pavor enquanto vou chegando perto da porta.

O porteiro de cartola me diz: – Essas tampas são propriedade do hotel!

Mas eu saio e vejo minha jaqueta na calçada molhada ao lado do ponto de táxi e minha camisa Fred Perry na sarjeta... mas cadê meu jeans? ... Ah, cara; olho pra cima e a calça ficou pendurada no pau da bandeira, mas vai cair a qualquer momento... Escuto umas minas dando gargalhadas no pub do outro lado da rua... tô na Rutland, cara... o pior lugar em que poderia estar... mas aí vem a calça... como tem só um dos tênis eu deixo ele ali, solto as tampas e pego as roupas todas. O porteiro, que tava gritando que ia chamar a polícia, vem na minha direção e pega as tampas, daí saio correndo de bunda de fora até a ruazinha lateral, com as roupas amontoadas na minha frente. Um taxista, que tava assistindo tudo e rindo sem parar, grita umas palavras de incentivo enquanto corro pela Rutland Street e desço um lance de escadas até a entrada de um porão sujo. Não tô nem aí; enfio a calça, os pés frios e molhados no chão ensopado pela chuva que não para de cair e visto a camisa e a jaqueta. Quando volto pro nível da rua, não tenho coragem de passar pelo Caley ou pelo pub com as minas pra chegar na parada de ônibus, aí sigo andando até a Rutland Square. Tô com os pés descalços congelando quando passo por todos os prédios georgianos cheios de advogados esnobes e escritórios chiques até chegar na praça com as colunas enormes, e fico aliviado por já ser tarde e não ter ninguém por lá. Minhas patas tão pretas de sujeira, geladas e doendo, e tô vendo que vou acabar pegando uma pneumonia e tendo que voltar pro hospital, não tem erro. Fico olhando pras rachaduras na calçada, resmungando aquela velha canção infantil:

Stand oan a line n brek yir spine

Stand oan a crack n brek yir back.

Nunca saquei a diferença entre as duas porque de qualquer jeito cê se deu mal, mas talvez seja isso mesmo; é tipo a vida na Escócia e tal. Chego na esquina de Shandwick Place e atravesso a rua na altura do Quaich Bar e fico na parada de ônibus na frente daquela igrejona, St Dodes, enquanto as pessoas ficam olhando pros meus pés descalços como se eu fosse o maluco da vizinhança. Um ônibus 12 chega e, graças a Deus, tenho moedas suficientes no bolso, não caiu nada quando ela atirou a calça pela janela. O ônibus para e coloco o dinheiro na ranhura. – Noite ruim?

– Sim.

E sentado no ônibus começo a pensar que talvez seja meio que tipo, carma. Talvez Deus não queira que o cu das garotas sejam usados pra esse tipo de coisa. In Through the Out Door, como diria o Led Zeppelin. Daí eu volto pra Monty Strasse, subo as escadas e entro em casa. Sick Boy, as gatinhas dos bastidores do show e o guitarrista tão todos ali, usando heroína. Rents também tá ali; parece bem chapado e acena de leve pra mim. Tá com a Hazel, que não tá nem chegando perto da heroína e não parece muito feliz.

Sick Boy tá colocando mais heroína no cachimbo. – Voltou cedo, garanhão. Mas dá pra entender você não ter vontade de passar a noite lá! Agora conta os detalhes sórdidos, viado – ele ordena.

– Ouvi falar que cê fez um gol... – diz Mark enrolando a língua e rindo baixinho.

– Oi, cara... como foi a internação?

– Cê sabe como é. – Ele encolhe os ombros, olhando meio constrangido pra Hazel, que vira o rosto.

– Então vai dar uma de come-quieto, hein? Admiro isso. É coisa de homens com classe – diz Sick Boy, chegando mais perto com o cachimbo de papel alumínio. – Fuma um pouco, cara. Cadê seus tênis, maluco?

– Longa história, cara – respondo, pegando o cachimbo, porque não tô mais no clima de recusar coisa nenhuma, saca?


Negócios

Tinha sido uma viagem inquietante, com a visão prejudicada pela chuva que açoitava o para-brisa. Agora a fadiga se impôs de maneira rápida e súbita; a consciência de que os baques e passadas dos limpadores de borracha estavam produzindo um efeito tranquilizante e deixando os olhos pesados só veio à tona quando veio uma série de bocejos. Ele sacudiu a cabeça, piscou rapidamente e apertou as mãos no volante. Uma placa na estrada, refletindo a luz dos faróis com um verde luminoso, informou que ele estava perto do destino.

Russell Birch nunca estivera em Southend e tinha ouvido que as coisas podiam ficar animadas, mas à medida que entrava na cidade litorânea de Essex ia ficando evidente que o mau tempo tinha estragado as festividades do fim de semana. Ao sair da A13, ele deixou para trás a estação de trem e desceu pela Western Esplanade. O maior píer do mundo ainda exibia suas atrações, mas estava quase deserto. Dava a impressão de que a maioria das pessoas já tinha feito o que pretendia, e agora estava entocada nos pubs ou nas boates de sua preferência. Só uns poucos foliões corajosos, de trajes escassos, eram açoitados pela chuva e corriam pelas ruas procurando estoicamente o próximo porto seguro.

Russell dirigia devagar pela esplanada, procurando sua saída e parando em alguns semáforos, quando duas garotas que mais pareciam saquinhos de chá ensopados sendo erguidos de um bule brotaram repentinamente da escuridão úmida, bem na sua frente, e o forçaram a frear. – Dá uma carona! – gritou uma delas, com o cabelo oxigenado escorrendo pelo rosto em cachos encharcados. Ele quase ficou tentado: se não estivesse com pressa nem portando aquela carga incômoda, provavelmente teria parado. Em vez disso seguiu em frente e as obrigou a saírem da frente com seus sapatos de salto. – Seu viado! – ouviu uma delas gritar em meio à noite cruel, enquanto se afastava em alta velocidade.

Levou um certo tempo até conseguir localizar o ponto de encontro. Ficava um pouco fora da cidade, uma cervejaria meio afetada, com as pretensões rústicas que caracterizam muitos lugares desse tipo nos subúrbios da Inglaterra. Parou num pequeno estacionamento nos fundos do pub, cercado por grades trançadas que lutavam para conter a cerca viva e as árvores dos jardins dos terrenos vizinhos. Umas poucas luzes cortavam a escuridão quase total e revelavam apenas um outro carro, uma BMW preta. Russell estacionou a uma distância discreta. Aquele carro só poderia ser o deles, e eles tinham de estar lá dentro. Abriu a porta e saiu na chuva, ciente de que suas mãos tremiam.

Será que os homens que ele estava prestes a encontrar eram bandidos durões ou, mais provável, apenas uns fodidos que nem ele, oprimidos por alguém terrível que estava por trás de tudo e os obrigava a fazerem aquilo da mesma forma que ele estava sendo obrigado pelo ex-cunhado?

Ele entrou no pub pela porta dos fundos, atravessou uma estufa e chegou a ao recinto amplo, de teto baixo, onde ficava o bar. Embora tivesse uma altura confortável de menos de 1,80m, Russell precisou se abaixar para desviar de alguns lustres. O pub estava praticamente vazio. Mesmo com a inclemência monstruosa do clima, parecia inconcebível que um bar pudesse sobreviver com um movimento tão fraco numa noite de fim de semana. As únicas pessoas que podia ver eram dois homens parados perto de uma lareira crepitante e um barman absorto na TV pendurada na parede e que, de perfil, parecia ser sósia do ator que interpretou Arthur no seriado On the Buses.

Russell decidiu não abordar nem registrar a presença dos homens perto da grande lareira de pedra logo de cara. Talvez não fosse de bom-tom, se é que existia alguma etiqueta neste tipo de coisa. Ele supôs que sim; se em todo o resto havia códigos, por que neste negócio seria diferente?

Quando o barman se virou na sua direção para perguntar o pedido, sua semelhança com Arthur diminuiu, mas não desapareceu completamente. Russell pediu um pint de London Pride e ficou decepcionado ao ouvir na voz do homem o sotaque do norte da Inglaterra, em vez do cockney grosseiro de Arthur. Tentou lembrar do nome do ator: nada veio à mente.

Os dois homens estavam olhando para ele. Um deles, magro e com um corte de cabelo que parecia um rabo de pato, se aproximou dele aos solavancos. O infeliz com jeito de fantoche parecia ter sido enviado pelo outro homem, uma figura corpulenta e ameaçadora que sorria na sua direção com uma cordialidade alegremente psicótica. Por um instante, Russell suspeitou conhecê-lo de algum lugar, mas se deu conta de que era apenas por causa do sorriso. Era o sorriso de todos os bandidos e valentões que já tinha conhecido.

Nenhum dos dois parecia estar carregando coisa alguma, de modo que a escolha de deixar o seu próprio pacote no porta-malas do carro se revelava oportuna. Seria mais sensato fazer a transação do lado de fora, no estacionamento escuro e isolado. Começou a se sentir um pouco mais seguro e foi ganhando confiança à medida que o primeiro homem se movia na sua direção.

– E aí, tudo bem – disse o homem com a língua presa e uma voz suave, porém metálica. Seu sotaque era levemente caipira, e a fraqueza enfermiça que emanava dele elevou ainda mais o moral de Russell.

– Nada mal. E você?

– Não posso reclamar. Cê vem de longe?

– Edimburgo.

O rosto do homem se contorceu de leve ao registrar a informação. Estava evidente que era algum tipo de teste, por mais tosco que fosse. O homem se apresentou como Marriott, e Russell pensou imediatamente em Steve Marriott, da Small Faces, uma banda da qual sempre gostou. – Venha beber conosco.

Ele não conseguia ver um bom motivo, depois daquela viagem, para não fazê-lo. O fogo estava convidativo, mas o outro homem deu sinais confusos quando Russell se aproximou. Não esticou a mão, apenas cumprimentou Russel com um sorriso perverso, e então se deslocou até o bar. Retornou com três doses grandes de uísque. – Scotch. Scotch para um escocês – observou, parecendo satisfeito consigo mesmo enquanto os depositava sobre o apoio da lareira.

Russell teria preferido um brandy, mas ao bebericar o fluido âmbar averiguou que era feito de um malte decente cujo aroma defumado e turfoso sugerindo uma proveniência de Islay. O uísque o aqueceu como o fogo que tostava suas pernas. Seu pint ficou no bar; não estava preocupado com ele. – Saúde.

O homem atarracado finalmente se apresentou como Gal. – Alguns dizem que não é profissional, essa coisa de ficar socializando, mas eu discordo. É bom dar um rosto a um nome. Cê tem que saber com quem cê tá lidando. Nesse ramo cê precisa de confiança. – Uma ameaça oculta fervia por baixo de seu tom de voz. Sua língua animada não combinava com seus olhos profundos, puxados na extremidade das sobrancelhas, fazendo pensar no fruto de um relacionamento consanguíneo. Só o fato de estar na presença daquele homem fazia com que Russell amaldiçoasse silenciosamente o ex-cunhado, a irmã estúpida e as próprias fraquezas que o haviam colocado de novo naquela situação. Ele sabia que agora seus pais o viam como um perdedor, igual a Kristen, em vez de alguém que faz e acontece, como Alexander. Contudo, e Russell buscou refúgio nessa ideia, eles não sabiam o que ele fazia. Semana passada, estava dirigindo pela Leith Walk e viu a garotinha que seu irmão estava comendo indo em direção à cidade. Ela parecia diferente; maltrapilha, arruinada, obviamente uma viciada, que nem esse Marriott. Talvez fosse esta a maldição da sua família: ser fatalmente arrastado para a marginalidade.

Depois da acolhida relativamente efusiva, agora Marriott parecia ignorá-lo, como se tivesse concluído que Russell não era importante o suficiente para que valesse a pena ficar numa boa com ele. De repente ele anunciou: – Não gosto muito do povo de Edimburgo. Uma vez tive uma experiência ruim com um pessoal de lá.

Russell olhou para ele sem saber como responder, mas quem mandava ali era definitivamente Gal, e ele encarou Marriott com frieza. – A gente tá falando do Seeker. Ele é meu amigo.

Marriott caiu em silêncio.

Gal manteve o olhar cravado nele por alguns segundos antes de se voltar para Russell com o rosto novamente estampado com aquele sorriso cordial e ameaçador. – Então você conhece O Cara?

– Ele é meu cunhado – disse Russell. Pareceu sensato omitir o “ex”.

Gal o espiou de cima abaixo e pareceu decepcionado com Russell e talvez também com Seeker. – Lamento por você.

Russell manteve uma expressão neutra, intuindo que tanto um sorriso conspiratório quanto uma testa franzida em desaprovação poderiam ser interpretados de forma errada.

– Mas enfim – Gal prosseguiu, impaciente – não podemos ficar aqui de papinho a noite toda. Vamos acabar logo com isso. – Ele matou seu uísque de uma só vez, o que coagia os demais a fazerem o mesmo. Russell notou que Marriott estava tendo dificuldades, suas mãos tremiam, mas o olhar rapino e oblíquo de Gal não o deixaria em paz até que ele terminasse a dose. – Esse é um bom scotch – disse ele em tom acusatório para o comparsa que tentava a todo custo conter uma ânsia de vômito.

Caminhar até o carro estacionado no lado de fora foi uma tortura. Russell foi tomado pela sensação pavorosa de que o próximo acontecimento seria uma pancada na nuca que racharia seu crânio, prelúdio para ser jogado dentro do porta-malas da BMW como um saco de carvão. Ele ficaria algum tempo deitado ao lado do pacote embrulhado em papel de presente (um detalhe que ele quase teve vontade de comentar com Seeker, mas se conteve) dentro da bolsa de viagem, a caminho do terreno baldio remoto no qual descansaria para sempre. Ou quem sabe o dinheiro de Seeker pudesse ser tomado dele à força, e ele teria que se virar para explicar tudo. Cada passo nervoso na escuridão do estacionamento desabitado parecia parte da procissão de um condenado rumo à sepultura.

Mas Gal foi casualmente até seu carro, voltou com uma caixa embrulhada em papel de presente idêntico e fez a troca. Russell não ia abrir para conferir o que tinha dentro; podia haver qualquer coisa dentro de qualquer um dos pacotes. Ambas as partes envolvidas na transação tinham altíssimo grau de confiança pela outra.

– Dirija com cuidado agora, mas não economize gasolina. Fiquei sabendo que cê tem um monte de cliente esperando lá em Edimburgo. – Gal sorriu outra vez e fez Russell pensar num daqueles vendedores bonachões que vão de porta em porta. – E diz pro Seeker que o velho Gal mandou um abraço. – Em seguida, ele se voltou para o pobre Marriott. Era devastador, para Russell, pensar no quanto ele havia se identificado com esta figura arrasada, só mais um panaca que havia passado dos limites. – Tá bom, seu viado, vamos cair fora dessa merda.

Russell caminhou todo encolhido até o carro e colocou o pacote sobre o banco do passageiro. Observou a BMW arrancar e sair do estacionamento. Suas mãos estavam molhadas e tremiam no volante, mas o júbilo tomou conta dele. Tinha acabado. Ele conseguiu. Foi um sucesso. Agora, com certeza, era o Seeker quem tinha uma dívida ele. Ele pegaria sua parte e tudo estaria certo.

Deu a partida no carro e deixou o estacionamento, saindo da cidade pelo norte em direção a Cambridgeshire. Parou numa velha cabine telefônica em frente a uma garagem de construção mais recente. Pôs o pacote no porta-malas para diminuir a tentação de abri-lo e examinar o conteúdo.

On the Buses.

A estrela era obviamente Reg Varney, que fazia o Stan. Quem fazia seu parcero Jack? Blakey, aquele cobrador de ônibus, o nome do ator era Stephen alguma coisa, disso ele tinha certeza. E Olive, a esposa de Arthur, era interpretada por Anna Karen. Isso tinha ficado em sua memória, já que era raro ter dois nomes próprios femininos. Ele discou um número no telefone velho de baquelite, um aparelho de uma era passada, insistindo em desempenhar sua insignificante função. Seu ex-cunhado atendeu. – Alô?

– Sou eu. Deu tudo certo. Quer dizer, não abri a caixa pra conferir o que tinha dentro, só peguei o pacote como cê mandou.

Fez-se um silêncio desconcertante do outro lado da linha.

– Ah, e o Gal mandou um abraço.

– O Gal que se foda. Traz esse bagulho pra cá agora mesmo.

Isso foi dito como se Russell estivesse do outro lado da rua, não a seiscentos quilômetros de distância. Ele estava exausto; precisava descansar. Era perigoso, tinha certeza de que atrairia a atenção da polícia naquelas condições... – Olha, eu tô demolido. Se eu for parado pela polícia ou me envolver num acidente, não vai ser bom pra nenhum de nós dois – ele protestou.

– Volta pra cá agora mesmo, caralho, ou vai rolar um acidente com toda a certeza. Não me faz repetir de novo.

Com o álcool queimando no estômago e no cérebro, Russell teve vontade de gritar “Vai se fuder! Vai se fuder, seu saco de merda imbecil!”. Mas o que acabou saindo foi: – Tá bom, vou chegar o mais rápido que puder. – E então a linha ficou muda. Chorando de raiva, Russell Birch pensou na viagem exaustiva de volta a Edimburgo. Quando colocou o fone de volta no gancho, o nome do ator que fazia Arthur em On the Buses pipocou zombeteiro na sua cabeça.


Dilemas da heroína nº 4

Sei que eu sou o cara. Posso dominar essas circunstâncias e transcendê-las. Sei disso porque não apenas sou capaz de conceitualizar tudo, mas também de sentir na minha fibra, emocionalmente. Inteligência racional e emocional: eu manjo essa merda. Não sou uma porra de um junky, só tô brincando de ser um. Junkies de verdade são otários como Swanney ou Dennis Ross, ou mesmo aquele escrotinho do Matty Connell. Uns vagabundos que curtem essa merda desde o ano zero. Tom tem razão, é uma fase, e eu sou só um cara jovem fazendo merda. Vou crescer e superar isso.

Vou ficar bem.

Sou arguto demais, esperto demais pra cair numa armadilha dessas. Soa arrogante, eu sei, mas é verdade, porra. Sei que um certo tipo de mulher vai com a minha cara e que sou capaz – se escolher fazer esse esforço – de despertar o interesse de vários outros tipos.

Essa merda não é nada pra mim. Sei que todo mundo diz isso; faz parte do fascínio, sim, mas no meu caso é verdade, porque aqui ninguém tá brincando. Consigo lidar com essa merda e consigo lidar fácil. Posso terminar tudo isso a qualquer momento, porra, é só recorrer à pura e simples força de vontade.

Terminar de uma vez por todas.

Mas não agora.


Cela de isolamento

O viado tentou me convencer que tava preso só por causa de uma bosta de infração de trânsito, mas cê sabe como são esses filho da puta, eles mentem pra caralho o tempo todo porque os bosta não vão sair falando que tão preso porque meteram numa criança, porra. Sabem muito bem o que acontece se alguém fica sabendo. Mas tem sempre vários jeito de descobrir a verdade sobre esses viado, pode apostar que tem. E eu consegui a informação com uma fonte confiável pra caralho, um parcero de verdade. Não era só fofoca de cadeia, não. Eu não dou ouvido pressas merda.

E eu não era o único a achar que aquele viado tava escondendo o ouro; quando contei praquele viado weedgie do Albo que ele tava dividindo a cela com um pedófilo o corno me contou tudo bem rapidinho. É, nem precisava de muita coisa pra alguém se convencer da verdade sobre aquele viado. Pra mim isso daí já mostra de saída que tem alguma coisa errado, porra, não tem erro.

Foi bem fácil. A gente combinou com os guarda que eles iam fazer de conta que não viam nada, porque eles também odeiam pedófilo e tal. Daí entrei de fininho na cela do Albo depois do jantar e vi a Besta bem sentada ali na porra do beliche, lendo um livro; o viado até que parecia bem inocente pra caralho. Mas a mim ele não tava enganando, porra, mas pode apostar que não tava mesmo. E eu sabia de tudo, porque foi o Rents que me falou desse viado, e o Rents não ia inventar uma história dessa, ele não é esse tipo de cara.

Daí eu disse pro viado “então cê tá aqui por causa de um problema de trânsito, é?”. E ele olhou pra mim e falou “Hein? O que cê quer... o que foi?” com aquela cara de quem tava tentando engolir mosca, e daí largou a porra do livro. Deixei ele se levantar e falei “cê andou mexendo com criança, até com a sua filhinha e tal” e aí logo depois já saí dando um soco. E foi uma beleza de soco, porra; deu pra ouvir o osso quebrar e um grito que mais parecia um porco tendo a garganta cortada no matadouro. Olha, eu queria destruir o viado, cortar ele todo e escavar aquela cara de pedófilo, mas sem faca eu só podia ficar pisando sem parar naquela cabeçona escrota, ouvindo o viado gritar, e daí o barulho mudou de repente prum gemido bem baixo e ele desmaiou. Daí mijei em cima do viado, mas fiquei com pena do coitado do Albo, daí quando tava saindo da cela falei pra ele que o corno tinha se mijado todo.

Daí fiquei todo animado; minha boa ação do dia, fazer um corno comedor de criança provar do próprio remédio. Só mais tarde eu descobri que o nome do filho da puta era Albert McLeod, não Arthur McLeod, que era o cara que o Rents tinha mencionado e que diziam ter tomado uma ruim de outro cara mês passado e depois foi enviado pra Peterhead pra ficar seguro.

Daí acho que pois é, caralho, parece que peguei o cara errado, né. Foi um erro normal, McLeod é um sobrenome comum pra cacete e tudo mais. Mas olha, esse maluco que eu peguei parecia muito ser papa-anjo e tal, tava escrito na cara dele. Mas quando eu sair vou contar pro Rents que bati no cara errado. Tudo bem, porra, todo mundo comete erro e eu pelo menos um dia vou poder me sentar com uma cerveja na mão e dar umas risada sobre isso, né.


Notas sobre uma epidemia 7

Conselho de Saúde de Lothian

Privado e Confidencial

Ocorrências de Casos de HIV+ em Fevereiro

Alasdair Baird, 28, Edimburgo Norte, professor de inglês, pai de um filho, uso de drogas intravenosas.

Christopher Ballantyne, 20, Edimburgo Norte, marceneiro desempregado, uso de drogas intravenosas.

Michelle Ballantyne, 18, Edimburgo Norte, aprendiz de cabeleireira, uso de drogas intravenosas.

Sean Ballantyne, 23, Edimburgo Norte, desempregado, ex-soldado do Exército britânico, pai de um filho, uso de drogas intravenosas.

Donald Cameron, 26, East Lothian, barman de meio turno, pai de dois filhos, uso de drogas intravenosas.

Brinsley Collins, 17, Edimburgo Norte, colegial, praticante de rúgbi e atletismo, uso de drogas intravenosas.

Matthew Connell, 22, Edimburgo Norte, desempregado, pai de um filho, uso de drogas intravenosas.

Andrew Cuthbertson, 19, Edimburgo Norte, desempregado, pai de um filho, uso de drogas intravenosas.

Bradley Davidson, 17, Edimburgo Sul, servidor municipal pelo Projeto de Treinamento Profissional para Jovens, uso de drogas intravenosas.

Alex Foulis, 19, Edimburgo Norte, desempregado, hemofílico, transfusão de sangue.

George Frenchard, 20, Edimburgo Norte, desempregado, uso de drogas intravenosas.

Andrew Garner, 23, Edimburgo Sul, desempregado, uso de drogas intravenosas.

Colin Georgeson, 16, Edimburgo Norte, colegial, uso de drogas intravenosas.

David Harrower, 26, Edimburgo Norte, ator, uso de drogas intravenosas.

Douglas Hood, 17, West Lothian, pedreiro pelo Projeto de Treinamento Profissional para Jovens, uso de drogas intravenosas.

John Hoskins, 30, Edimburgo Norte, garçom desempregado, uso de drogas intravenosas.

Derek Hunter, 42, West Lothian, marinheiro mercante desempregado, pai de quatro filhos, uso de drogas intravenosas.

Nigel Jamieson, 18, Edimburgo Sul, desempregado, uso de drogas intravenosas.

Colin Jefferies, 22, Edimburgo Sul, assistente administrativo dos Correios e cantor/guitarrista em banda de rock’n’roll, uso de drogas intravenosas.

David McLean, 20, Edimburgo Norte, desempregado, uso de drogas intravenosas.

Anna McLennan, 23, Midlothian, enfermeira do serviço público, uso de drogas intravenosas.

Lillian McNaughton, 22, Edimburgo Norte, costureira, uso de drogas intravenosas.

Michael McQuail, 28, Edimburgo Norte, operário desempregado, pai de dois filhos, uso de drogas intravenosas.

Lewis Manson, 21, Edimburgo Norte, desempregado, uso de drogas intravenosas.

Deborah Marshall, 25, Edimburgo Norte, professora de escola primária, contato sexual com usuário de drogas intravenosas.

Derek Paisley, 26, Edimburgo Norte, engenheiro desempregado na Ferranti’s Eletrônicos, estudante em curso de programação em meio turno, pai de dois filhos, uso de drogas intravenosas.

Greg Rowe, 18, Edimburgo Norte, aprendiz de carpintaria pelo Programa de Treinamento Profissional para Jovens, uso de drogas intravenosas.

Scott Samuels, 27, Edimburgo Sul, instrutor de caratê, contato sexual desprotegido com usuário de drogas intravenosas.

Brian Scott, 19, Edimburgo Norte, servidor munipal pela Organização de Trabalho Direto do Programa de Treinamento Profissional para Jovens, uso de drogas intravenosas.

Kenneth Stirling, 24, Edimburgo Sul, desempregado, uso de drogas intravenosas.

Michael Summer, 20, Edimburgo Norte, encanador, uso de drogas intravenosas.

George Thake, 22, Edimburgo Sul, estudante de contabilidade na Universidade de Edimburgo e agraciado com o Duke of Ellington Award, uso de drogas intravenosas.

Eric Thewlis, 27, Edimburgo Norte, engenheiro de calefação e ventilação, desempregado, uso de drogas intravenosas.

Angela Towers, 20, Edimburgo Sul, vendedora da British Home Stores, via de transmissão indeterminada.

Andrew Tremenco, 21, Edimburgo Norte, estudante de administração na Heriot-Watt University, uso de drogas intravenosas.

Norman Vincente, 45, Edimburgo Sul, proprietário de bar de vinhos, pai de três filhos, contato sexual desprotegido com usuário de drogas intravenosas.

Susan Woodburn, 20, Edimburgo Norte, empregada da Whisky Bonds, mãe de um filho, contato sexual desprotegido com usuário de drogas intravenosas.

Kylie Woodburn, 6 meses, Edimburgo Norte, anticorpos por via natal.

Keith Yule, 22, Edimburgo Norte, pedreiro desempregado e baterista amador, uso de drogas intravenosas.


Trainspotting na estação Gorgie Central

Mesmo entregue ao sono, Renton sentia a chegada da síndrome de abstinência, aquele ponto em que o corpo entorpecido alertava para um desequilíbrio crítico nas células privadas de heroína. Sentia sua essência emergir de forma irreversível através do cansaço, vinda de algum ponto da espuma do colchão ou talvez de algum lugar ainda mais profundo, das tábuas do assoalho do prédio, do interior da terra morna e macia, subindo, subindo, subindo até as entranhas daquele corpo destruído e esfolado.

Vinha sonhando com a (ou seria pensando na?) heroína. Com um estado de êxtase no qual pudesse ficar olhando para as paredes, os pensamentos deslizando lentos por toda parte como melado escorrendo de um pote virado de cabeça para baixo. A compreensão súbita do grau de desconexão dessas ruminações foi seguido de uma coceirinha incômoda: a pontada isolada num corpo até então relaxado, graciosamente satisfeito com um noite tranquila de sono. Mas coçar apenas faria a coceirinha aumentar, e então a tortura começaria a ficar séria. O cansaço ainda é desesperador e ele não consegue ficar confortável. A pontada dá lugar a uma câimbra forte; primeiro nas pernas, depois nas costas. Quando começam os calafrios, ele tem certeza de que não é imaginação, a droga está deixando seu corpo.

Ele acorda na cama, tremendo, ao lado de outro corpo. É Hazel. – Porra, que horas são...? – A voz dele soa rouca e hesitante.

Seu pensamento seguinte: a gente não trepou. Sem chance. Isso, pelo menos, era impossível. Tinha passado três semanas de dedicação total à droga depois de ficar limpo por cerca de oito horas após ser liberado do St Monans. Em duas ocasiões chegaram a praticar seu tradicional coito tenso e insatisfatório. Mas isso tinha sido há mais de duas semanas. Desde então imperava a rotina do “me bate na veia, me espeta, me faz um meia-nove” que ele e Sick Boy tinham inventado em resposta desaforada àquela camiseta de vadia que andava rolando por aí com os dizeres “me dá um vinho, me leva pra jantar, me faz um meia-nove”..

Mas ela ainda está aqui. Vinha de tempos em tempos, às vezes com comida ou, melhor ainda, com paracetamol. Num momento de espanto fugidio, ele a observa dormir; bela, serena, temporariamente afastada daquilo que a aterrorizava.

Cheira o cabelo dela. A fragrância se mistura a outros odores menos nobres na cama que ele e Sick Boy ou Spud costumam dividir, dormindo de valete. Pensa em como Hazel, de certa forma, o prefere como um junkie assexuado, que não oferece ameaça alguma. Lembra da terrível conversa que tiveram quando ela apareceu na primeira noite em que se detonou depois de sair da reabilitação; de como ela provavelmente não teria dito nada se ele não estivesse naquele estado.

– Sexo não me faz bem. Não é culpa sua, nem dos homens... é que o meu pai... ele costumava...

E ele ouvindo, mas sem querer escutar: a informação chegando de quilômetros de distância, abafada pelas drogas e por silenciadores psíquicos. Repetindo a ela sem parar: – Tá tudo bem. Eu sinto muito...

– A culpa não é sua. Pode ter certeza disso. Eu tentei gostar da coisa, mas não consigo. Só tô dizendo isso porque sei que cê sai com outras minas.

– É... bom, na verdade eu nem saio – disse, contente por ela ter tocado no assunto antes dele. Aquilo o fazia parecer um garanhão do quilate de Sick Boy. Mas ele saía com mais garotas do que, digamos, o coitado do Spud. Pensou em Charlene naquele momento, no rosto ossudo contrastando com a generosidade extravagante dos cachos que o emolduravam. Em Fiona, com aquele pedaço de testa oleoso que ele adorava, e em como ela se livrou daquilo quando se livrou dele. Sentiu muito medo de aceitar o amor que ela ofereceu.

Um covarde e um inútil.

– Mas o que aconteceu com ela em Aberdeen? Vocês pareciam muito próximos.

– Ah, cê sabe... drogas – mentiu. Um covarde e um inútil. – Ela não curtia muito. – Fitou os olhos verde-claros e tristes de Hazel. Podiam se passar por castanhos, ele sempre pensava. Talvez fosse o cabelo, talvez ela tivesse nascido com uma cabeleira castanha. Quase passou mal com aquele pensamento repentino: a mãe de Hazel mostrando o bebê para o pai sorridente, que talvez tivesse comentado “ela tem lindos cabelos castanhos, vamos chamá-la de Hazel”. Renton sentiu a garganta começando a fechar e perguntou sem demora: – Por que cê vem me visitar, quer dizer, por que continua vindo passar o tempo comigo?

Agora vê os raios de luz percorrendo o rosto dela como lasers disparados através das frestas da cortina azul, que nunca se fecha direito. Ela fecha os olhos, os dentinhos um pouco salientes brilhando, e diz: – Eu gosto mesmo de você, Mark.

– Mas como cê pode gostar de mim? – ele questionou, exasperado e confuso.

– Cê é um cara legal. Sempre foi.

Aquilo fez Renton ponderar que, não importa o quanto você odeie a si mesmo, certas pessoas jamais entram no jogo. Naquela noite, disse a ela: – Dorme aqui comigo. Não vou tocar em você.

Hazel sabia que ele estava falando sério.

E desde então tinham passado quase todas as noites deitados juntos, o viciado e a vítima de incesto, dois recrutas alistados, um voluntariamente e o outro à força, no exército das vítimas de disfunções sexuais, um ajudando o outro a dormir. Não sabiam se aquilo era alguma forma de amor. Mas com certeza sabiam que estavam tomados por uma espécie de necessidade.

Renton enche as narinas. Silvikrin, Vosene ou Head & Shoulders? Tomado por uma vergonha atroz, lembra que uma vez tentou incentivá-la a usar heroína. Imaginou que era algo que poderiam compartilhar. Hazel se recusou terminantemente, e na hora ele chegou a ficar meio ofendido. Mas não agora. Agora ele não daria coisa alguma a ninguém. Não havia nada para dar.

Acaricia os cabelos dela carinhosamente, maravilhado com a maciez. Lembra da primeira vez que Hazel o abordou; ela estava no primeiro ano, ele no segundo. Ficava sorrindo para ele nos corredores, no parquinho e na rua. Por meio de um colega de aula, mandou um bilhete

Mark,

Namora comigo.

Beijos,

Hazel

Depois disso, ela e as amigas davam risadinhas conspiratórias nervosas sempre que o viam passar. Os próprios amigos de Renton começaram a rir e a curtir com a cara dele. As pessoas começaram a dizer que eles eram namorados; que estavam “saindo”.

Mark e Hazel, sentados numa árvore, B-E-I-J-A-N-D-O...

Aquilo o deixava mortificado; eles mal tinham se falado. Hazel era uma menina doce e pequenina de óculos que, aos 13 anos, parecia ter uns nove.

– Come logo esse cu – lembrou da ameaça de Sick Boy –, senão quem vai comer sou eu.

Mas a paixonite passou. Não voltou a vê-la com muita frequência até ela terminar o segundo ano. Hazel mudou fisicamente; peitos, maquiagem, óculos mais legais, que deixavam ele com tesão (as lentes de contato viriam depois), agora ela tinha tudo aquilo e as pernas haviam desenvolvido panturrilhas definidas que redirecionavam o fluxo sanguíneo de Renton do cérebro para o pau. Mas ela também tinha perdido alguma coisa. A impertinência não dava mais sinais, e ela não queria mais ter um namorado. Ao invés disso, queria um amigo. E foi isso que eles se tornaram. Gravavam fitas um para o outro, iam a shows, ficavam íntimos enquanto fingiam para o mundo exterior que eram namorados convencionais; festas de aniversário de 18 e 21 anos, casamentos, velórios, iam a tudo sempre juntos, em meio a uma proximidade estranha e um ressentimento desconfortável. Aquele animal desgraçado tinha destruído a própria filha. Renton estava muito feliz de ter dado o toque para Begbie. Aquele rato ia conhecer a verdadeira dor.

Renton se arrasta para fora da cama. Hazel tinha começado a assobiar de leve enquanto roncava. Ele agarra os jeans como um leão de chácara agarraria um garoto criando confusão numa discoteca, imobilizando e interrogando a calça e enfiando as mãos nos bolsos como se estivesse desferindo socos. O primeiro bolso contém algum dinheiro trocado, uma nota de cinco toda amassada e uma lista de jogos do Hibs; o segundo guarda um papelote que eleva o espírito de Renton às alturas, até ele perceber que não apenas está vazio, mas foi lambido até o fim. Olha mais uma vez para Hazel; agora está fissurado demais para ser amigo de alguém. Vai ter de sair atrás de heroína.

Renton se enfia dentro das roupas esparramadas e ao cruzar a sala de estar é confrontado pela presença de Sick Boy tremendo debaixo de um edredom, um lembrete visual instantâneo de sua própria condição. Como prefere misteriosamente fazer quando lhe é negada uma cama, Sick Boy dorme no chão em vez do sofá, em ângulo reto com o pufe rasgado, que espalhou gomos de poliestireno por cima do tapete marrom surrado; parecem vermes que brotaram de dentro dele. Como se fosse necessário sanar alguma dúvida, os olhos de Simon Williamson se abrem instantaneamente em estado de alerta e registram a silhueta de Renton por um segundo antes de pedir: – Liga de novo pro Seeker!

– Vai ser a mesma história da noite passada, porra. – Renton pega o sobretudo pendurado atrás da porta e o joga sobre os ombros indispostos. O aquecedor elétrico, adquirido após o gás ter sido cortado por falta de pagamento, ficou ligado a noite inteira irradiando calor seco dentro da sala bolorenta. Mesmo assim ele está tremendo.

– Liga logo pra ele!

As palavras de Sick Boy são desnecessárias; os nervos de Renton cantarolam a mesma canção, ainda mais alto. Caminhando pela sala como um fantasma, ele pega o telefone de plástico e disca o número com força. Sente um alívio inesperado ao ouvir a voz antipática de Seeker rosnar no seu ouvido: – Sim?

– Seeker. Sou eu. Mark. Nada ainda?

Um longo suspiro do outro lado da linha; Renton quase enxerga o bafo saindo pelos orifícios do telefone e esquentando sua orelha. – Olha, eu falei que ia ligar pra você assim que soubesse. Não tô querendo passar a perna em ninguém, caralho. Esse é o meu sustento. Não tem porra nenhuma na cidade. Sacou?

– Tá... foi mal. Só pensei em dar uma ligadinha...

– Skreel me falou que Glasgow tá na mesma. Liga pra quem cê quiser, não tem jeito. Eu aviso quando tiver alguma novidade. Agora para de encher meu saco, tá bom, Mark?

– Beleza. A gente se fala.

A linha fica muda.

Tá tudo certo praquele viado, Renton pondera; ele realmente seguiu o programa à risca e parou de usar. Com o dinheiro que economizou, estava comprando um apartamento na Gran Canária. Seu plano era ficar por lá de novembro a março, para escapar das dores que o clima provoca em seu corpo. Desde que saiu da reabilitação, Seeker desdenha da heroína dizendo que é uma droga para imbecis e faz tudo que pode para confirmar essa definição, vendendo droga malhada para os caras e negociando trepadas e boquetes com as minas.

Certa noite Renton apareceu tremendo no apartamento da Albert Street para tentar descolar alguma coisa e encontrou Molly, que fazia barulho na cozinha vestida apenas de regata e calcinha surrada enquanto preparava ovos mexidos. A vivacidade provocante tinha desaparecido; se dissipara em lugares escuros e ainda mais remotos que aquelas ruas desoladas e praticamente desertas. Parecia velha e desgastada, com o cabelo encaracolado reduzido a um ondulado murcho mediante a aplicação de algum produto oleoso, e o rosto pálido, porém suado; ela o encarou com olhos sepulcrais antes de abrir um sorriso tímido de reconhecimento. Renton desviou o olhar, ciente de que se você encara um abismo por muito tempo, ele encara de volta. De qualquer forma, o sorriso gélido de Seeker deixou claro que havia um novo xerife na cidade. Para garantir que não havia nenhum mal-entendido, Seeker informou a Renton que tinha “trocado uma palavrinha” com o ex-namorado cafetão/traficante de Molly. Assim que seus malares quebrados se recuperassem, ele começaria a trabalhar para o Seeker.

Seeker era, mais do que nunca, uma montanha esculpida na academia. Apalpou os bíceps inexistentes de Renton e disse que ele deveria largar a heroína e voltar para os halteres. Muito embora Renton fosse um cliente valioso, Seeker conseguia dar a impressão de estar decepcionado de alguma forma por ele ser um junkie, como se fosse bom demais para aquilo. – Mark Renton – ele sorria –, cê é um cara estranho. Nunca consegui te entender direito.

Como tudo que Seeker dizia, aquilo também carregava uma ameaça mal disfarçada e Renton estava ciente disso. Mas em termos de amizade e respeito era o mais próximo a que Seeker poderia chegar. Renton recusou a oferta de trepar com Molly e ficou aliviado ao saber que Hazel havia recusado a droga. Não queria que ela se aproximasse de nenhuma. Suas feridas pareciam ter sido feitas para o bálsamo da heroína, mas acabariam apenas aprofundadas; Renton faria sempre o possível para mantê-la afastada.

Sick Boy fica em pé e se cobre com o edredom como se fosse uma capa. Em seguida desaba no sofá, proferindo uma súplica de desespero angustiado: – O que a gente vai fazer?

– Sei lá, porra. Vou tentar o Swanney de novo... – Renton pega o telefone e disca, mas ouve apenas o mesmo toque sem resposta. Coloca o telefone de volta no gancho.

– Vamos dar um pulo lá!

– Ok... A Hazel tá dormindo...

– Deixa ela – diz Sick Boy. – Ninguém vai incomodar ela aqui. – Lança um olhar severo para Renton. – Cavoli riscaldati, ou repolho requentado, como se diz na Itália. Nunca dá certo.

– Valeu a dica – responde Renton sem entusiasmo, indo em direção ao quarto. Hazel continua dormindo, apesar do ronco delicado ter se desmanchado no silêncio. Ele escreve um bilhete

Hazel,

Tive que dar uma saidinha com o Simon. Não sei quando a gente vai voltar, então te vejo depois.

Valeu por gravar todos aqueles discos pra mim. Foi bem importante. Você está me devolvendo uma coisa preciosa que perdi graças à minha própria estupidez. Eu pensava que gostava de discos como artefatos, por causa das capas dobráveis, da lista de músicas, das notas de produção, ilustrações etc. Mas agora percebo que uma fita cassete com as músicas escritas com a sua letra, com seus desenhos e comentariozinhos, é o que amo acima de qualquer coisa.

Beijos com amor,

Mark xxx

PS: Acho mesmo que você é a pessoa mais linda que eu já conheci.

Deixa o bilhete em cima do travesseiro, ao lado dela, e volta para perto de Sick Boy com o coração destroçado, em frangalhos. Estão embarcando numa jornada que ambos reconhecem ser inútil, mas parece melhor do que não fazer nada. Tomam dois Valium cada e deixam o apartamento em direção ao Leith. É assustador, mas eles entram num passo acabrunhado e emudecido que não é interrompido nem por uma risadinha ou um aceno irônico quando passam em frente à lavanderia Bendix.

Vão até o apartamento da Alison em Pilrig. Ela está horrível; sem maquiagem, usando um roupão azul comprido e com as feições cada vez mais esqueléticas ressaltadas pelo cabelo preso num coque apertado e pelas olheiras, Renton precisa olhar duas vezes para ter certeza que é ela. Alison funga. Não consegue deter o filete de catarro que escorre de uma narina, e se vê obrigada a limpá-lo na manga. – Tô com uma porra dum resfriado – protesta em reação às carrancas cínicas e fissuradas. Pedem a ela que telefone para Spud, que está na casa da mãe, alegando que nenhum dos dois seria bem-vindo caso Colleen Murphy atendesse a porta. – O Danny brigou com ela de novo – Alison conta. – Ele dormiu aqui no sofá noite passada e agora tá na casa do Ricky Monaghan.

Telefonam para Ricky e quem atende é Spud. Antes que Sick Boy consiga falar, Spud pergunta: – Simon, cê tá com alguma coisa em cima? Tô mais na fissura que um rato envenenado, gatuno.

– Não, a gente tá na mesma. Se cê ficar sabendo de alguma coisa, me coloca na jogada. Ligo depois. – Sick Boy põe o telefone no gancho. Durante a conversa, os olhos dele não desgrudaram de Alison. – Tem certeza que não tem nada rolando por aí? – pergunta num tom ao mesmo tempo incisivo e suplicante.

– Tenho. Não tem nada – responde ela com um último gesto entediado de desdém.

– Beleza... – Os lábios de Sick Boy se curvam para baixo e ele e Renton se apressam em partir. Alison fica contente ao vê-los ir embora, inclusive Simon, pois ela estava prestes a mencionar o suprimento de morfina de sua mãe. Que se fodam todos eles: nunca se sabe quanto tempo vai durar a seca, e Alison anseia pela agulha prateada da mãe morta, chega a vislumbrar uma última gota de sangue materno alojada ali, invadindo suas veias famintas. Mamãe ia querer que eu ficasse com ela.

Renton e Sick Boy percorrem outra vez o velho caminho até Tollcross. Sobem a Walk, passam pelas pontes e atravessam o Meadows sem trocar uma única palavra e praticamente sem olhar um para o outro. Seu silêncio é um pacto sério; ainda estão no estágio em que, com um pouco de esforço mental, podem tentar ignorar a pior parte do sofrimento íntimo. Chegam na casa de Swanney e a encontram tão desolada quanto um set de filmagens vazio. – E agora? –Sick Boy quer saber.

– A gente continua andando até topar com alguma coisa ou ter alguma ideia, ou então a gente simplesmente se deita no chão e morre que nem dois cachorros.

Caminhando contra o vento...

Caminhando contra a chuva...

A gente tava entediado de manhã cedo, eu e o Billy, debaixo daquela chuva, passando frio enquanto esperava nosso velho e ofegante vovô. Era ridículo. Ele não conseguia mais andar. Aí, logo depois da torre, ele parou de repente, ficou todo duro e respirou bem fundo. Era como se estivesse tentando puxar pro centro do corpo todos os estilhaços que tavam alojados por ali. Um sorriso estranho apareceu nos lábios dele e foi logo obliterado por uma tosse encatarrada, até que ele tombou meio em câmera lenta na calçada de macadame. – Fica aqui! – Billy ordenou. – Vou buscar ajuda! – Disparou pela calçada, falou com dois adolescentes que pareciam bem perdidos e depois saiu correndo pela rua. Tava só entrando nas lojas pra tentar ligar pra alguém, mas naquela hora pensei que ele tinha fugido, me deixado ali pra lidar sozinho com aquele incômodo.

Mesmo que seus sonhos sejam açoitados...

Daí fiquei vendo meu avô morrer, desviando os olhos pro mar quando ficava insuportável ser testemunha daquele acontecimento grotesco e desconcertante. Porque enquanto ele lutava pra respirar com o rosto rosado em chamas, os olhos anfíbios se revirando e saltando pra fora das órbitas, eu tinha a impressão de que ele tinha saído do oceano, tinha encalhado em terra firme depois da maré baixar. Queria pedir pra alguém levar ele pra água, ainda que isso não fizesse nenhum sentido. Senti a presença da mulher antes que a visse, tinha a mesma idade da minha mãe, talvez um pouco mais jovem, e tava me confortando, oferecendo o peito pra que eu abafasse os soluços que eu nem tinha percebido, enquanto dois homens tentavam ajudar o vovô. Mas ele já tinha ido embora.

Siga em frente...

Billy voltou correndo pela calçada, olhando pra mim como se me acusasse, como se quisesse me bater, como se eu tivesse fracassado em manter o vovô Renton vivo até a chegada da ambulância. Lembro que a mulher pediu que eu fosse com ela, e eu meio que queria porque ela era legal, mas o Billy lançou um olhar sinistro pra ela e me puxou pela mão. Mas quando levaram o vovô embora, o Billy passou o braço em volta do meu ombro e daí comprou uma casquinha de sorvete pra gente comer na silenciosa caminhada de volta até a pousada. Mamãe, papai e vovó Renton tinham saído, mas a tia Alice tava lá pra tomar conta da gente.

No ônibus de volta, enquanto vovó Renton ficava lá sentada em choque, minha mãe e meu pai ficaram me olhando colar figurinhas de futebol no álbum da Shoot. Manchester City: Colin Bell, Francis Lee, Mike Summerbee, Phil Beal, Glyn Pardoe, Alan Oakes. Kilmarnock: Gerry Queen, John Gilmour, Eddie Morrison, Tommy McLean, Jim McSherry. – Por que ele não diz nada, Davie? – lembro que minha mãe perguntou com o Pequeno Davie no colo fazendo uns barulhinhos com a boca. Meu pai tava ali sentado, em transe, e de vez em quando apertava a mão da mãe dele. – É o choque... ele vai ficar bem... – respondeu com um fiapo de voz.

Siga em frente...

Caminham durante o que mais parece um século, tremendo, deixando moedas em cabines telefônicas e se enchendo de expectativas todas as vezes, mas prevalece a mesma mensagem cruel: não tá rolando nada, não tem vagas nesse hotel. Vozes cansadas e massacradas do outro lado da linha: se lamentando como se reconhecessem que a Morte já estava riscando cruzes em suas portas. Mesmo assim eles caminham; caminham por caminhar, sangue e ossos e respiração sem pensamento, despojados de vontade, caminhando por inércia, um embotamento do intelecto, da sensibilidade, da esperança e da consciência. Todos os cálculos são puramente biológicos.

Ao enxergar seu reflexo nas vitrines das lojas que passam, Renton pensa em um orangotango; os braços se balançando como pêndulos, como se ele estivesse usando braceletes de chumbo, tufos de cabelo ruivo ensebado crescendo no meio de um emaranhado de suor e sujeira.

Algum tempo depois eles se dão conta de que estão em Gorgie. Sentem-se intrusos nessa parte da cidade. Ali parecem capazes de farejar quem torce pelo Hibs, pondera Renton; não só os sujeitos saindo das casas de apostas e dos pubs, mas também as jovens mães de abrigo esportivo empurrando carrinhos de bebê e, estranhamente, o pior de tudo, as tias velhas com bocas que parecem um cu de gato e que ficam encarando como se fossem bruxas enquanto se arrastam por aí, doentias e paranoicas.

Quem são essas pessoas, esses alienígenas, em meio aos quais desfilamos nossa tristeza?

Renton acredita que a caminhada não teve rumo nem padrão. Mas fragmentos de informações e suposições se mesclaram em seu cérebro febril, guiando suas pernas cansadas. Sick Boy consegue detectar isso e o segue como um cão faminto persegue um bêbado de rua que mesmo assim poderá providenciar algum tipo de comida. Avançam a passos largos pela Wheatfield Road e encontram uma quietude mortal que para ele significa H-E-R-O-Í-N-A, enquanto Renton fareja a mesma desolação vindo da Albert Street. – O que a gente tá fazendo aqui?

Renton segue andando decidido com Sick Boy no encalço em seu modo cãozinho-psicopata, tendões saltados no pescoço. A grama cresce densa e desordenada entre os paralelepípedos da rua. Ainda assim, os prédios vitorianos parecem conseguir fugir de qualquer nesga de sol à medida que eles passam, olhando para o Tynecastle Stadium atrás do pavilhão de Wheatfield e lembrando das antigas batalhas nos dias de clássico, antes da separação das torcidas. A destilaria fica no final da rua mortalmente silenciosa e há uma viela estreita à esquerda que serpenteia por baixo da ponte ferroviária, difícil de ver, ele pensa, para quem não está ciente de que ela existe.

– É aqui – diz Renton. – É aqui que eles fabricam.

Eles se esgueiram por baixo da ponte ferroviária e uns poucos metros adiante encontram uma segunda, acima deles. Entre as duas pontes, à direita, um prédio vitoriano de três andares de arenito vermelho exibe uma placa: BLANDFIELD WORKS.

Este prédio é a primeira parte da fábrica de produtos farmacêuticos, os escritórios onde os representantes comerciais da empresa são recebidos e as encomendas são negociadas. Os prédios subsequentes, atrás do conjunto seguinte de trilhos de trem, são menos acolhedores, rodeados por cercas altíssimas com arame farpado no topo. Renton detecta imediatamente a profusão de câmeras de segurança apontadas para a rua. Percebe que Sick Boy está fazendo o mesmo, examinando tudo com olhos grandes e salientes e processando a informação no cérebro febril. Há funcionários por toda parte, encerrando e iniciando diferentes turnos.

À medida que caminham, Renton dá voz a seus pensamentos: – Deve ser aqui que gente como o Seeker e o Swanney arranjam seu suprimento de heroína, aquela branquinha fabulosa. O Seeker obviamente tem esquema com algum corno que trabalha aqui.

– Sim! Tudo deve sair daqui. – Sick Boy se contorce. – Vamos ligar pra ele de novo!

Renton desconsidera esse impulso enquanto sua mente tenta ligar os pontos. Seeker e Swanney deviam ter, cada um deles, um coitado infiltrado ali dentro, e faziam esses rapazes correrem grandes riscos para saírem com a droga. Agora não mais: seus contatos estão presos ou foram demitidos, ou coisa pior. A empresa tinha se dado conta do esquema e reforçado a segurança, tornando impossível a qualquer funcionário contrabandear a heroína para fora do complexo. Agora Swanney e Seeker estão na parte inferior da hierarquia da pirâmide nacional que traz a marrom do Afeganistão e do Paquistão, ao invés de serem mandachuvas locais vendendo a droga pura. Com um olhar severo, Renton contempla a fábrica através da grade de arame reforçado. – Tá tudo ali. A melhor e mais pura droga que a gente já usou ou vai usar. Atrás desses portões, grades e paredes.

– O que a gente vai fazer? Pedir praqueles cornos ali nos descolarem um pouco? – Sick Boy debocha.

Renton o ignora novamente e continua a caminhar com vigor em volta do prédio, obrigando Sick Boy a acompanhá-lo. Os olhos atentos desse último acompanham a linha de visão do amigo, abrindo uma janela para os pensamentos que martelam em sua cabeça.

Porra, esse viado não pode estar falando sério...

Mas Renton nunca tinha falado tão sério. A porção lógica do seu cérebro tinha dado passagem à urgência da fissura. Os músculos retesados, os ossos latejantes e os nervos em frangalhos não paravam de gritar: SIM SIM SIM...

A fábrica de ópio. Aqueles trilhos de trem pareciam delimitar o local, um conjunto separando a fábrica da destilaria enquanto o outro a divide ao meio. Os dois passam pelo estacionamento dos funcionários e olham através das cercas para o prédio mais chamativo de um lugar composto de muitos exemplos diferentes da arquitetura industrial: uma enorme caixa prateada repleta de canos reluzentes e tubos brotando de um dos lados, alguns subindo em direção ao céu. – Ali deve rolar algum tipo de processamento químico – diz Renton. – Certo que é ali que fabricam a porra da heroína!

– Sim... mas... não tem como a gente invadir, porra!

A próxima coisa que chama a atenção de Renton é um compartimento de cargas com grandes contêineres de plástico empilhados uns em cima dos outros. – Armazenagem. Que porra será que tem naquelas caixas?

Ficam olhando embasbacados para todos aqueles recipientes empilhados e protegidos por cercas de arame farpado e câmeras de segurança. O conteúdo de apenas um deles lhes bastaria por muito, muito tempo. – Mas a gente não tem como simplesmente... – Sick Boy esboça um tímido protesto.

Enquanto perambulam pelo terreno baldio adjacente, que de acordo com uma placa foi designado para a construção de um novo supermercado, tentam pensar no que fazer.

– Onde eles fabricam e onde eles guardam –Sick Boy rumina e percebe que já se converteu. Estão na fissura, e simplesmente não há alternativa.

– A primeira coisa é descobrir como entrar – diz Renton, meneando a cabeça. – E a segunda é como ter acesso à morfina.

– Essa fábrica deve produzir todo tipo de produto farmacêutico, não só heroína. Pode acabar sendo como procurar alguém com um QI de três dígitos em Tynecastle – resmunga Sick Boy. – Se pelo menos a gente tivesse alguma informação interna!

– Bom, pro Swanney ou pro Seeker é que a gente não vai perguntar – diz Renton.

– De jeito nenhum.

Ainda contornando lentamente o perímetro da fábrica, acabam chegando à movimentada e submersa Western Approach Road, cheia de carros chispando em direção à cidade. A avenida já foi uma antiga linha de trem que levava à já extinta Caledonian Station, no West End da Princes Street. Eu sou uma porra dum trainspotter, Renton pensa ao erguer a cabeça e ver um trem de carga passando acima. As duas linhas que atravessam a fábrica devem fazer parte da antiga linha suburbana de Edimburgo, agora usada apenas para o transporte de carga. Essa parte da linha, porém, não foi transformada em ciclovia nem abrigou novos prédios de apartamento como a maior parte da antiga malha ferroviária de Edimburgo. E os aterros foram protegidos com cercas de segurança. Por que a linha circular suburbana da zona sul permanecia intacta enquanto o resto da malha ferroviária urbana de Edimburgo havia sido brutalmente mutilado pelas reduções de rota dos anos sessenta, os famigerados cortes de Beeching? Só podia ser por causa da fábrica de heroína. Queriam manter as pessoas longe dela.

– Vai ser por ali – Renton anuncia. – A gente vai entrar pela linha do trem.

– É, por aqui ela tá bem protegida, mas eles não têm como bloquear a porra da linha inteira. A gente vai achar uma entrada – responde Sick Boy em tom de desafio, projetando o queixo.

Mas a confiança de Sick Boy imediatamente desperta a dúvida em Renton. – Não vai dar. A gente se cagou pra passar pela alfândega em Essex escondendo a droga nuns saquinhos de merda e agora vai invadir uma fábrica toda fortificada?

– Sim, vamos. – Sick Boy olha para o céu sem nuvens e depois para os trilhos de trem sobre a sua cabeça. – Porque a gente precisa fazer isso!

Enquanto os carros refletem o sol passando em alta velocidade, eles procuram, mas não encontram nenhuma entrada ou saída a partir da Western Approach Road. Atravessando na direção do Murrayfield Stadium, que se levanta imponente em frente ao complexo, eles sobem por um caminho sinuoso às margens do aterro ferroviário. Deste ponto elevado, o prédio dominante na fábrica é uma estrutura vitoriana de tijolos vermelhos e telhado corrugado de costas para a rua, cercado por um muro de pedra com uma enorme cerca de arame farpado no topo; o acesso à linha de trem está bloqueado por uma barreira similar. Um grupo de funcionários da ferrovia usando capacetes de metal, parados do lado de fora de um contêiner-escritório, olha para os dois com desconfiança. – Que se foda, é melhor a gente cair fora – diz Sick Boy.

– Fica frio. Deixa que eu falo – responde Renton enquanto um homem vem na direção deles.

– O que vocês querem?

– Com licença, parcero, mas isso aqui é propriedade privada?

– Sim, é propriedade do sistema ferroviário – explica o homem.

– Que pena – diz Renton, melancólico, olhando para a parte antiga da fábrica que tem os fundos voltados para a Westernt Approach Road. – Sou artista. Tem uns exemplos fascinantes de arquitetura vitoriana ali, uns prédios lindos.

– É mesmo – concorda o homem, parecendo se animar.

– Seria muito legal se eu pudesse fazer uns desenhos. Bom, desculpa aí pela invasão.

– Nem esquenta. Se cê for até a Waverly Station e falar com o pessoal de RP, talvez eles te consigam um passe.

– Ótimo! Acho que vou fazer isso mesmo. Valeu pela ajuda.

Sick Boy está desconfortável demais para poder apreciar a performance de Renton. Um grunhido emerge do seu estômago embrulhado, a carne amortecida implora por heroína, o cérebro incha quando ele aspira o ar e sente o fedor podre e rançoso que emana do seu corpo e das suas roupas. Esfrega as remelas secas incrustadas nos cantos dos olhos.

Sente um alívio indescritível quando a conversa fiada termina e eles descem de volta pelo caminho até a rua e atravessam o terreno baldio para voltar a contornar o perímetro da fábrica. Renton para mais uma vez, apenas para conferir os trilhos entre o prédio de escritórios vitoriano, o aterro e a ponte. Nesse momento repara em algo e aponta para Sick Boy.

É um anexo ordinário, de tijolos vermelhos, aparentemente com uma cobertura de feltro. Há uma pequena porta retangular pintada de verde. Fica ao lado dos destroços de um prédio mais antigo, que agora é uma pilha de algas, tijolos rachados cobertos de musgo e tábuas apodrecidas. Param para espiar através da cerca e recuam rapidamente quando dois almofadinhas saem dos escritórios e caminham em direção ao estacionamento que dá para a rua, imersos num papo corporativo. Mas eles sabem o que vão fazer. De volta à Gorgie Road, andam até a cidade e fazem uma parada na Bauermeister da Ponte George IV para roubar um mapa da Ordinance Survey que cobre este pedaço de cidade antiga na zona oeste de Edimburgo pelo qual estão agora obcecados.

Quando voltam ao apartamento da Montgomery Street, Hazel não está mais lá. Renton não diz nada. Mal terminaram de se acomodar quando alguém bate de leve na porta. Abrem e se deparam com Spud e Keezbo, acompanhados por Hardy e pela chorosa Laurel, todos passando mal e tremendo de abstinência. Na sala de estar, Renton e Sick Boy começam a traçar o plano, mas são interrompidos por outra batida repentina na porta. É Matty, que dá a impressão de estar completamente destruído. Renton percebe que ele nem tomou o cuidado de pentear o topete para o lado para disfarçar os tufos de cabelo faltando ao lado da cabeça. O cheiro lembra o de um cadáver exumado e uma das faces está retorcida num espasmo semipermanente. Seu sofrimento parece maior que o de todos os outros. Eles se entreolham e decidem que não podem deixá-lo fora dessa. Sendo assim, Renton continua a revisar o plano.

– Isso é loucura, cara, nunca vai dar certo, a gente vai ficar um tempão na cadeia, tô falando, a gente vai ficar um tempão na cadeia. Tô falando, cara, não dá, não dá mesmo... – geme Spud.

– A gente chegou à conclusão de que não tem escolha – Renton retruca num tom resignado. – Tentei meus contatos em Glasgow, Londres e Manchester. A polícia e a alfândega andaram fazendo um monte de apreensões grandes e ninguém tem porra nenhuma da marrom. É uma seca fodida. Ou seja, ou a gente arrisca essa, ou vai ter de ficar sem nada e aguentar no osso. Não tem jeito.

– Ando me picando demais pra tentar uma coisa dessas. – Sick Boy sacode a cabeça. O suor escorre de seus poros e o corpo inteiro se revolta só de pensar. – Isso vai acabar matando a gente. E porra, não acho que a Amelia e o Tom em St. Monans vão ficar muito felizes de nos receber de novo na reabilitação. E quanto tempo vai demorar até que um viado tenha culhão de trazer outro carregamento, ou até que a polícia comece a botar a droga de novo em circulação? Tempo demais pra mim, isso é certo!

– Que cês acham? – Renton encara os olhos nervosos nos rostos tensos.

– Parece um bom plano, tô nessa – diz Matty sem hesitar.

– Eu também, sr. Mark e sr. Simon – confirma Keezbo.

Todos se voltam para Spud. – Então tá – diz ele com uma voz derrotada e quase inaudível.

Renton espalha dois diagramas no chão e mostra aos outros. Um deles é o mapa da OS incrementado com seus próprios rabiscos de hidrográfica. O outro é um desenho que os demais julgam sem pé nem cabeça. – E claro, não comentem sobre isso com ninguém, nem com os parceros. – Ele encara um a um. – Graças a Deus o Franco tá preso. Ele ia xingar a gente de tudo que existe e depois insistir em assumir a liderança. E ia mandar a gente descer o cacete nos seguranças em vez de se esconder deles!

Todos forçam uma risada tímida, menos Matty, e Renton percebe que ele já começou a dar uma de pau no cu. Está com uma expressão azeda no rosto e fica soltando suspiros desdenhosos. Mas Renton deixa isso de lado e aponta para as linhas de trem no mapa. – A gente entra na linha do trem na velha Gorgie Station, saindo da Gorgie Road. Depois estaciona o carro, arrasta as tábuas até o aterro da ferrovia e carrega pelos trilhos na direção do estádio de Murrayfield...

– Tábuas? Mas daonde essa merda de tábuas, seu viado? – Matty quer saber.

– Foi mal, esqueci de dizer que a gente vai ter que dar um pulinho na madeireira e arranjar duas tábuas de quatro metros e meio.

– Tô achando que cê é burro como uma tábua, isso sim.

Renton lembra do tempo em que eram melhores amigos. Daquele verão de 1979, quando os dois eram punks adolescentes e foram para Londres. Agora tudo aquilo parecia muito distante. Tenta sufocar a raiva. – Confia em mim, parcero. A linha se divide em duas antes de chegar no Murrayfield. O trilho da direita separa a fábrica da destilaria. A gente pega o da esquerda, que vai direto pra parte dos produtos químicos; tem um ponto em que a cerca fica muito perto do aterro ferroviário. – Aponta para o desenho. – Do outro lado da cerca, a alguns metros de distância, tem esse anexo. A gente pega uma das tábuas, apoia nos trilhos e encosta na cerca...

– Puta que o pariu – resmunga Matty.

– ... daí a gente sobe pela tábua até o topo da cerca. Um de nós fica ali parado e os outros passam a outra tábua de mão em mão. Daí a gente posiciona ela do topo da cerca até o telhado do anexo e passa por cima.

– Que nem a porra do Homem-Aranha, né, seu corno? – Matty alfineta com sarcasmo.

– Tipo, não é muito alto, né? – pergunta Spud com o medo estampado nos olhos.

– Não, vai ser tranquilo. Além do mais cê é o melhor escalador aqui – diz Renton.

Spud exibe a mão trêmula. – Mas não desse jeito, cara...

– Não vamos nos enganar, não vai ser tão moleza; se fosse, alguém já teria feito isso a essa altura. Mas tá longe de ser impossível – insiste Renton, voltando novamente a atenção para o mapa. – No anexo tem um duto de escoamento pelo qual a gente pode descer pra entrar na fábrica. Daí a gente acha a heroína, que deve estar nos contêineres armazenados nesse compartimento de carga – ele aponta para a área no mapa – ou neste prédio aqui, onde é quase certo que ela é produzida.

Matty olha para Renton e depois para os outros. Sacode a cabeça. – Mas que planinho de merda, hein?

– Então me conta o seu, Matty– Renton desafia.

– Não precisa ficar dando uma de espertinho só porque cê estudou numa faculdade metida à besta na Terra da Ovelha, Mark. – Matty passa as costas da mão desdenhosamente sobre o mapa. – Isso não é o Assalto ao Trem Pagador e cê não é nenhum Bruce Reynolds. Tá mais pra Bruce Forsyth, dando uma de boiola com esses mapinhas e desenhos de merda!

Spud e Sick Boy dão uma risadinha e Keezbo não esboça reação. Renton respira fundo e depois diz: – Olha, não tô querendo dar uma de bonzão. Preciso da droga – aponta para a fábrica no mapa –, e ela está aqui.

– Cê tá achando que é um trabalhinho escolar, seu corno! Bom, vai ser como tentar encontrar uma agulha no palheiro. Viado, cê nem sabe onde é que tá a porra da heroína! Eles têm seguranças, provavelmente cachorros... – Matty olha para os outros em busca de apoio.

– No primeiro sinal de encrenca, a gente dá no pé – diz Sick Boy. – Nenhum cachorro ou retardado de uniforme vai correr atrás da gente por cima de uma tábua.

– Continuo achando totalmente insano! Cê acha mesmo que a gente tem alguma chance?

Renton inspira o ar fétido da sala. Matty está fazendo ele perder a cabeça. A abstinência corrói seu cérebro e seus ossos, e nesse estado é crucial concentrar a energia nas partículas certas da conversa. – Beleza. Aguenta no osso, então – diz, com raiva.

É a vez de Sick Boy tentar falar com Matty. – Já ouviu falar em elemento surpresa? Da Carga da Brigada Ligeira? Dos trezentos de Esparta? Bannockburn? A história tá cheia de gente que contrariou todas as previsões só porque teve culhão de atacar quando ninguém tava esperando. Alguém trocou o lema do Leith de “persevere” pra “cague na calça” enquanto eu tava distraído?

Matty afunda num silêncio contagioso que dura alguns segundos até ser rompido pelo toque estridente do telefone, que estraçalha os nervos de todo mundo. Renton e Sick Boy vão correndo atender, mas Renton chega primeiro. Murcha imediatamente ao escutar a voz do pai no outro lado da linha. – Mark?

As sinapses se trombam no seu cérebro. – Pai... o que foi?

– A gente precisa de heroína – ouve Sick Boy dizer para Matty. – Ninguém mais tem, só esses cornos. Fim de papo.

– O que você tá aprontando? Tá ficando longe daquela porcaria? – pergunta seu pai.

– Não tenho escolha. Nem tem onde comprar – responde com frieza, ouvindo o início de uma discussão às suas costas.

– Não gosto do tom decepcionado com que cê tá dizendo isso!

– O que cê quer, pai? A mãe tá enchendo seu saco?

– Não tem nada a ver com a sua mãe! Tô com a Hazel aqui! Ela tá com o coração partido, disse que cê tá metido com essa merda de novo!

Aquela putinha traumatizada dedo-duro frígida de merda...

– Olha, isso não faz sentido. Me diz o que cê quer senão eu desligo.

– Cê não vai desligar na minha cara, filho!

Um surto bem-vindo de adrenalina corre nas veias de Renton, provocando um rápido curto-circuito na dor. – Em dez segundos, a menos que cê me convença do contrário.

– Cê tá arruinando a vida de todo mundo, Mark... sua mãe e eu... depois do Pequeno Davie, não tá sendo...

– Nove...

– ... a gente tá pedindo muita coisa?

– Oito...

– Cê nem se importa, né? Eu achava que tudo pra você era brincadeira...

– Sete...

– ... mas agora tenho certeza, cê simplesmente...

– Seis...

– ... NÃO SE IMPORTA! CÊ NÃO SE IMPORTA!

– Cinco, o que cê quer?

– Quero que você pare! Pare de fazer isso! A Hazel, ela...

– Quatro...

– VOLTA PRA CASA, FILHO! POR FAVOR, VOLTA PRA CASA!

– Três...

– A GENTE TE AMA! Por favor, Mark...

– Dois...

– Não desliga, Mark...

– Um... então, se não tem mais nada...

– MAAARK!

Renton põe o fone suavemente no gancho. Vira-se para encarar os amigos parados olhando para ele com a boca aberta como peixes dourados gordos sendo alimentados no laguinho do jardim botânico. – Meu velho resolveu dar uma de justiceiro pra cima da gente, então talvez seja uma boa cair fora daqui, caso ele resolva aparecer agora. A gente não tem tempo pra essa merda.

O sol se põe e a barriga das nuvens fica cor-de-rosa. Renton reflete sobre o fato de que, por mais cedo que levante ou mais tarde que vá deitar, ninguém nunca vê o instante em que a luz desponta ou o primeiro golpe da escuridão maculando sua pele frágil; a beleza e a sabedoria assustadora e insondável da transição. Eles saem da garagem na van de Matty e fazem uma parada no Canasta Café da Bonnington Road, e, embora pareçam estar atrás de comida, o verdadeiro objetivo é tomar o Valium que Renton surrupiou do armário de remédios da mãe. Engolem os comprimidos com café com leite.

Renton observa Keezbo comer duas rosquinhas e lamber todo o açúcar da terceira e da quarta. O poder da heroína: esse gordo viado tá perdendo peso. O próprio Renton luta para conseguir engolir um pouco de ovos mexidos em cima de uma torrada molenga. Suas tripas ainda doem. Sick Boy está na mesma situação. Spud e Matty só conseguem tomar o café e fumar seis cigarros cada um. O idoso dono do lugar estranha a tremedeira da xícara de Matty em cima da mesa de fórmica. Sick Boy o tranquiliza: – È stanco: influenza.

– Cê tá envolvido com Swanney há tempos – sussurra Renton para Matty. – Deve saber onde ele arruma a heroína.

Os lábios finos de Matty se retorcem, cheios de maldade e ironia: – Ele não ia contar pra um cara como eu, né?

– Cê tem olhos e ouvidos. E cê não é burro, Matty.

Keezbo levanta e vai ao banheiro. Matty fica olhando, encolhe os ombros e se aproxima. – Isso fica entre nós, tá certo, seus viado?

– Tá... tipo assim, na boa – diz Spud.

– Tinha um parcero do Swanney, um cara chamado Mike Taylor, que trabalhava na fábrica. Setor de armazenamento. Cê conhece esse corno – Matty confronta Renton, que balança a cabeça concordando, mas não consegue se lembrar do sujeito. – Um amigo do Mike trabalhava numa empresa que fornecia refeições pra cantina. Saca aquele rango que vem numas bandejas de alumínio?

– Tipo no colégio? – pergunta Spud.

– Exatamente – confirma Matty, apesar de ter ficado evidentemente irritado com a interrupção. – Pois bem, a heroína saía de lá nas bandejas. Mike armou o esquema pro Swanney, e tinha uns outros caras metidos nisso. Mas ele foi desmascarado e, resumindo, botaram o viado no olho da rua sem prestar queixa. Ficaram quietinhos porque seria propaganda ruim pra eles. Agora a segurança pros funcionários é inacreditável; tem câmera pra tudo que é lado, umas revistas aleatórias, a porra toda. Não dá pra sair de lá nem com um peido dentro da cueca.

– E o Seeker? – pergunta Sick Boy.

– Cê não vai querer nem saber. – Matty se arrepia. Faz força para tentar fazer os dentes amarelos e marrons pararem de tremer. – Esse daí faz as próprias leis. Nem caras como o Gordo Tyrone conseguiram levar a melhor em cima daquele viado.

Keezbo volta do banheiro e Matty imediatamente fecha o bico. Pagam a conta saem para a rua. O anúncio do jornal local na banca de revistas declara:

RUAS DA CIDADE “TOMADAS PELA HEROÍNA”

Leem a manchete e reagem com um riso desolado e sarcástico. – Quem dera – Sick Boy diz em tom de chacota.

Vão até a madeireira e solicitam o corte de duas tábuas de quatro metros e meio de comprimento. Vince, um funcionário parrudo com cabelo escuro espetado, percebe que a intenção não é boa, mas conhece Renton, Matty e Keezbo do Fort e não diz nada. O barulho e a força implacável da serra perturbam Spud. Imagina que a madeira são seus membros sendo violentamente decepados. Matty está na pior; fica do lado de fora, tentando acender um cigarro freneticamente, desperdiçando um fósforo atrás do outro. Desiste e pede o isqueiro a Sick Boy. Quando estão colocando as tábuas dentro do carro pela traseira, apoiadas em cima do banco do passageiro, ele assume que está fodido demais para dirigir. O Valium não fez efeito. – Não consigo.

Todos se entreolham e Keezbo estende a mão molenga. Matty hesita, mas, pressionado pelos outros, acaba largando as chaves na palma estendida. Entra na frente com Keezbo enquanto os outros embarcam no banco de trás, amontoados em uma posição desconfortável entre as tábuas atravessadas em diagonal. Não conseguem fechar o porta-malas, e Keezbo precisa sair para amarrá-las. – Porra, a gente vai acabar sendo preso antes de chegar perto do lugar – reclama Matty.

Sick Boy faz um sinal obsceno nas costas dele enquanto Keezbo retorna ao assento, dá a partida na van e sai dirigindo. Renton vê os pingos de suor se acumulando e cobrindo o pescoço e a cabeça raspada de Keezbo como se ele fosse uma garrafa de cerveja gelada. Ao entrarem na Ferry Road, avistam Segundo Lugar fazendo um treino de corrida e quase todos desviam o olhar, movidos por uma espécie de vergonha. Quando Segundo Lugar passa pela van, perdido em seu próprio mundo, Renton repara como ele está em forma.

Saem da Gorgie Road, entram num acesso que passa ao lado de um terreno baldio e estacionam a van perto de um muro. Conseguem ouvir o som do tráfego na rua, mas estão fora do campo de visão quando descem do carro. Renton e Sick Boy saem pela traseira da van com duas sacolas da Sealink. Renton perdeu a sua, mas descobriu que Sick Boy tinha afanado uma boa quantidade delas em sua curta passagem pela empresa. A mais pesada continha um pequeno pé de cabra. Sick Boy dá uma olhada nos pedaços de madeira e opta pelas sacolas. Pega a de Renton e sai na frente, deixando Renton e Matty carregarem, cada um numa ponta, a primeira tábua, enquanto Keezbo e Spud se encarregam da segunda. Têm espasmos, suam e tremem na lenta subida pelo caminho coberto de mato que conduz ao aterro ferroviário.

– Cara, isso não foi uma boa ideia – insiste Matty.

– Então dá uma melhor – responde Renton outra vez, e o grupo segue se esforçando para levar as tábuas até os trilhos protegidos por cercas.

Sick Boy toma a dianteira no talude e descobre um buraco no meio do mosaico de grades de metal, madeira, arbustos e arame farpado. Joga as sacolas da Sealink pelo buraco e passa em seguida. Todos se espremem para passar pelo buraco, mas precisam segurar a cerca enquanto Keezbo rasteja de bruços como um soldado. Matty enfia o braço num amontoado de urtigas e se contorce de dor. Geme olhando em desespero para a mão latejante, coberta de pontinhos brancos provocados pelo veneno. – Puta...

– Cê se queimou na urtiga. – Spud tenta ser prestativo enquanto a misantropia queima as entranhas de Matty como o veneno na mão. Mas surge uma onda de euforia induzida por um pequeno êxito, e Matty não consegue ficar de fora: eles conseguiram chegar no aterro ferroviário. Sentem a expectativa crescendo enquanto observam os trilhos margeados por árvores e arbustos na luz crepuscular.

Escorrem como sangue de um ferimento profundo pelo aterro inclinado e coberto de cascalho. Depois de tropeçar diversas vezes, desistem e tomam o caminho mais fácil por cima dos dormentes. Seguem a curva dos trilhos com passos árduos em direção ao ponto de fuga enevoado.

A beirada do mundo escurece à medida que o sol afunda por trás dos conjuntos habitacionais destroçados e do antigo castelo e o ar gelado recende um pouco a ozônio, mas também amplifica os vapores que a fábrica e a destilaria vomitam sem parar no céu, em colunas indistintas e quase fantasmagóricas. A fábrica está logo adiante. Por que aqui, Renton se pergunta, por que nesta cidade? O Iluminismo Escocês. Dá para traçar uma linha saindo daquele período de grandeza global da cidade até a capital da Aids na Europa, passando por aquela combinação de fábricas de processamento e armazéns atrás das cercas de segurança. Era uma criação típica de Edimburgo, combinando medicina, invenção e economia; um produto das mentes analíticas dos Blacks e dos Cullens, filtrado pelas especulações dos Humes e dos Smiths. Dos pensamentos e atitudes dos filhos mais nobres de Edimburgo no século XVIII até os filhos mais pobres se envenenando de heroína no final do presente século. Sente um tremor no olho.

Nós na Escócia...

Seguem pelos trilhos numa escuridão que só é quebrada pelas luzes ocasionais que emanam dos quartos nos fundos dos prédios residenciais. – A gente tem que se ligar nos trens de carga, eles passam transportando lixo nuclear por essa linha – sussurra Renton.

A caminhada pelos trilhos continua e a sensação de otimismo não dura muito tempo. As tábuas começam a pesar brutalmente nos ombros deles. São obrigados a parar e dar um tempo sentados nos dormentes que se projetam na beira dos trilhos. Sick Boy, que está carregando as sacolas tomando o cuidado de fazê-las parecerem mais pesadas do que realmente são, começa a sofrer pressão para se revezar no transporte das tábuas. – Enfiei uma farpa na mão – ele protesta, chupando um dedo.

– Como é que cê enfiou uma porra duma farpa? Cê nem carregou madeira nenhuma – Renton não deixa passar.

– Antes eu carreguei – choraminga Sick Boy olhando para Renton, que o encara de volta desconfiado e com ar de acusação. – Que foi? Tá bom, eu vou tentar, porra!

Matty estica o corpo, encontra uns ramos de labaça e começa a esfregar as folhas na mão. Seus ombro dói mais do que nunca por causa da tábua. Não vai continuar carregando essa merda, mas nem fodendo. Spud dirige um olhar nervoso para Renton. – Tô me sentindo um lixo, Mark, é a pior coisa que já senti. – Seus olhos apavorados se arregalam. – Cê acha que a gente vai morrer?

– Não, fica calmo, parcero, a gente vai ficar bem. Abstinência dói, mas não mata, não é que nem overdose.

Com os olhos do tamanho de bolas de tênis, Spud limpa uma cascata de catarro pendurada no nariz com a manga do blusão amarelo esfarrapado e pergunta para Sick Boy. – O que cê faria se cê tivesse tipo, só mais umas semanas de vida? Porque sei lá, vai que a gente já pegou o bichinho. Tem tipo, um monte de gente contaminada.

– Que bobagem.

– Mas o que cê faria se tivesse só mais umas semanas de vida? Só pra saber, saca?

Sick Boy responde sem hesitar: – Comprava ingressos pra toda a temporada no Tynecastle.

– Cê tá de sacanagem!

– Não, porque pelo menos eu ia morrer com a satisfação de saber que ia ter um corno desses a menos no mundo.

Spud força um sorriso triste. Keezbo encara Sick Boy por um instante, como se estivesse prestes a dizer alguma coisa, mas em seguida volta a contemplar os trilhos: marrons de ferrugem, com reflexos prateados. As dores da abstinência parecem tê-lo tirado da órbita; está atrapalhado e delirando de insônia. – Essa heroína é nossa por direito. Tá sendo fabricada na nossa cidade...

– É isso aí, Keezbo – explode Sick Boy, transfigurado de raiva. – Os acionistas filhos da puta da Glaxo tão com o cu cheio da grana enquanto a gente fica aqui sofrendo! A gente tá mal pra cacete e precisa dessa porra!

– Mas por direito essa heroína é do pessoal de Gorgie – Spud intervém – porque a fábrica fica na área dos jambos. Tipo quando diziam que o petróleo é da Escócia e tal. Se a gente vivesse numa sociedade socialista mesmo, é assim que ia ser.

– Plantão do Jornal das Dez – cantarola Sick Boy a musiquinha de abertura. – Plim! Mas a gente não vive!

Renton enxerga a expressão desolada de Spud e tenta animá-lo. – O Keezbo é jambo, a gente só tá ajudando o cara a pegar a parte dele. Tenta ver por esse lado.

– Eu não sabia que um cara do Leith era capaz de torcer pro Hearts – diz Matty.

– Bom, eu torço e o irmão dele também. – Keezbo se levanta, olhando para Renton.

– Cara, eles construíram a fábrica de heroína perto do Tyney porque sabiam que ia ter uma oferta infinita de fracassados querendo alguma coisa pra aliviar a dor de viver – Matty provoca Keezbo, que continua arfando com as mãos no quadril.

– Drew Abbot me contou que o Leith era tradicionalmente um território de jambos – explica Spud –, e só foi tipo nas últimas gerações que eles viraram Hibs porque, tipo assim, o estádio ficava mais perto.

– Ah, é? – diz Sick Boy, exasperado.

– Sim, os estivadores sempre foram jambos porque cê tinha que ser maçom pra trabalhar nas docas e nos estaleiros.

– Dá pra gente deixar essa discussão pra outra hora?! – grita Renton sem paciência. – Se eu quisesse ouvir uma porra de palestra sobre história, eu tinha ficado na universidade! Vambora!

– Só tô falando. – Spud arma um beiço.

– Eu sei, Danny – diz Renton, passando o braço em volta do ombro de Spud. Uma lua quase cheia abriu caminho entre as nuvens e banha a todos com sua luz prateada. O tráfego sussurra baixinho lá embaixo. – Mas isso é importante. A gente tem que se concentrar aqui, vai todo mundo se foder. Cê é meu melhor amigo, cara, desculpa ter gritado contigo. – Esfrega as costas de Spud. É tão magra e franzina que ele mal pode acreditar que pertença a um ser humano.

– Desculpa, Mark, é que tipo, minha casa caiu, desmanchou, não sobrou nada, saca? Eu tô tentando tipo, me distrair, porque eu tô cagado de medo, cara.

– Vai dar tudo certo – Renton assegura, e em seguida pega uma tábua e olha para Sick Boy, que resmunga mas acaba erguendo a outra ponta. Spud e Keezbo botam a madeira de novo nos ombros. Saem caminhando devagar pelos trilhos. Dessa vez é Matty quem tira uma folga e leva as sacolas.

Caminha alguns passos atrás de Renton, mas de repente levanta a voz e se dirige ao amigo. – Ô viado, mas cê usava um uniforme do Rangers, Rents. O principal.

– Olha, já falei pra todo mundo umas cem vezes que o meu velho comprou camisas do Rangers pra mim e pro Billy e levou a gente no Ibrox quando a gente era pequeno, tentando nos transformar em hunos – bufa Renton, respondendo em tom didático para a voz fantasmagórica às suas costas. – O Billy queria torcer pra algum time de Edimburgo, daí meu pai levou a gente pro Tynecastle e comprou uns acessórios do Hearts. – Ele se vira e olha primeiro para Matty, depois para Spud, que vem caminhando perto deles, carregando a outra tábua com Keezbo. – Eu odiava ir naquele lugar, odiava aquele marrom avermelhado de merda e o cheiro da destilaria me dava engulhos. Daí pedi pro meu tio Kenny levar a gente pro Easter Road. Quando fiquei mais velho, comecei a ir com vocês – olha para Spud e diretamente atrás para Sick Boy –, todo mundo menos você, Matty, porque cê nunca ia mesmo, seu merda! – grita Renton olhando Matty na cara, com uma voz rancorosa e agressiva. – Porra, eu rejeitei tanto os hunos quanto os jambos fazendo uma porra duma escolha consciente, ou seja, eu sou um Hibby muito mais autêntico que você. Então cala essa merda dessa boca, seu vagabundo!

Matty larga as sacolas e avança. Isso obriga Renton e consequentemente Sick Boy a largarem suas extremidades da tábua. – Quem cê tá chamando de vagabundo? Já tentou se olhar no espelho, porra, cê anda fedendo que nem...

– CHEGA! – grita Spud, e logo ele e Keezbo soltam a tábua e se colocam entre os dois. – Parem com essa merda, vocês dois! Odeio ver amigo brigando!

– É, se controlem aí, seus valentões de merda. – Sick Boy balança a cabeça e aponta a cabeça para os fundos de um prédio que está com as luzes acesas. – Falem baixo ou vão mandar a polícia pra cima da gente! Vamos erguer essa merda de tábua.

– Tá tudo dando errado... – lamenta Spud, mas Matty, embora não tenha parado de resmungar, pega a tábua no lugar de Spud e eles seguem caminho.

– Vai dar tudo certo, sr. Danny – sussurra Keezbo enquanto Spud, tomado por um sentimento de dolorida gratidão, pega as sacolas. – A gente leva um estoque de heroína, separa uma parte pra vender e outra pra ir usando aos poucos, até largar o vício.

– É isso aí! – diz Renton como se tivesse alcançado uma revelação. – A gente se controla pra usar a quantidade certa todo dia, pelo método científico, a cura pela redução. É só saber dosar cientificamente.

– Cientificamente... – ecoa Spud com ar perdido.

Matty caminha encerrado no próprio inferno silencioso. A ripa de madeira fere seu pescoço, mas tirá-la do ombro implica machucar ainda mais a mão envenenada. O céu azul escuro à sua frente está iluminado agora pelo fulgor sinistro da fábrica. Pensa em Shirley, em Lisa e no apartamento em Wester Hailes. Parecia uma prisão, aquele cubículo apertado; mas agora ele daria qualquer coisa para estar ali com elas. De repente começa a tremer violentamente e deixa a tábua cair, fazendo Keezbo soltar sua extremidade por instinto.

Renton e Sick Boy fazem o mesmo logo em seguida. – O que foi?

– Cara, eu não consigo... não consigo mais fazer isso. – Matty se ajoelha e passa a mão na barriga. – Essas cólicas tão me fodendo!

– A gente tem que fazer, é tudo que a gente pode fazer – diz Spud, levantando a ponta da tábua que Matty estava carregando. De repente se dá conta do quanto Matty deve estar se sentindo mal; ele injetou quantidades maiores e por muito mais tempo que qualquer um deles.

Sick Boy ergue a tábua sobre o ombro e dá uma olhada em Matty. – Não vai arregar, hein!

Matty vem andando alguns passos atrás deles, com a mão na barriga. Se dá conta de que esqueceu das sacolas e se arrasta dolorosamente para buscá-las, e depois se junta ao grupo. Não consegue parar de se coçar, e ao mesmo tempo que abre novas feridas arranca a casca das antigas e arranha a carne ardida e infectada com as unhas imundas. Seus olhos estão vermelhos e cansados.

Arrastam os pés como pinguins constipados até o ponto em que o aterro se aproxima da cerca. Conseguem ver o anexo, que para Sick Boy parece maior do que antes. Os olhos de Renton doem; ele leva um tempo até conseguir focar, embora os refletores estejam iluminando bem a fábrica despovoada. Nenhum sinal de vida. Parece um campo de concentração, Renton rumina, e eles são como sobreviventes de Belsen, tentando entrar.

O enorme prédio prateado em forma de caixa fica à vista, com os dutos da tubulação saindo dele como espaguete, a chaminé grande e lustrosa e os outros exaustores apontados para o céu. Em seguida, escuta-se um som baixo, e filetes de vapor escapam de um cano contra o fundo negro. Exceto por algumas poucas nuvens escuras, o céu reluz, cavernoso e transparente, cintilando de novas galáxias, e todo esse milagre está ali bem pertinho dos conjuntos habitacionais sujos e decadentes.

– Nossa, cara... cê acha que rola turno da noite? – pergunta Spud, espantado.

– Não – diz Matty esbaforido –, devem ser as máquinas, tipo uns robôs, que continuam fazendo o processamento e tal. Não podem desligar as máquinas e ligar tudo de novo todo dia. Elas continuam trabalhando noite adentro.

Sick Boy improvisa uma imitação de Begbie: – Se algum desses robô de merda se meter a besta não quero nem saber se é androide ou não, vai levar facada.

Eles riem, apesar do sofrimento, unidos mais uma vez, até que Spud tem um acesso de tosse seca e violenta que chega até as raias da convulsão. Todos ficam preocupados, sabendo que ele esteve doente, mas a crise cessa abruptamente e ele fica com os olhos cheios d’água, puxando ar com dificuldade para dentro dos pulmões debilitados. – Ai, cara... – repete várias vezes, balançando a cabeça.

– Tudo bem, meu velho? – pergunta Renton.

– Sim... tô recuperando o fôlego... ai, cara...

Renton olha para Sick Boy, que assente com a cabeça, e os dois posicionam a tábua no meio do caminho entre o aterro inclinado e a cerca e a deixam cair por cima do grosso emaranhado de arame farpado da barricada. A ponta atinge a cerca com um golpe, produzindo um ruído de choque entre metais até que tudo se acalma e a tábua repousa sobre o arame farpado. Com medo de serem detectados, correm de volta até a linha do trem, se atiram de bruços e ficam espiando a fábrica.

Tudo continua quieto.

Alguns minutos depois, Renton se levanta e desliza pelo aterro até a tábua. Pisa sobre ela para testá-la com seu peso e depois caminha temeroso, escalando o ângulo de 45 graus em direção ao arame farpado que brilha sob a luz das estrelas enquanto o metal afiado penetra aos poucos na madeira e firma a tábua na posição. Com as bochechas infladas, Renton alcança o topo da cerca iluminada por uma lua branca vibrante que some um instante atrás da camada de nuvens sombrias e depois desce de volta correndo até o aterro. – Tá tudo certo – informa aos outros, que já estão de pé e o contemplam maravilhados, como se ele fosse um trapezista. – O segredo é não olhar pra baixo. Pega aí a ponta da outra tábua!

Ele agarra uma extremidade e Matty a outra. Suportando o peso extra de um segundo corpo e de outra tábua, a primeira tábua se curva um pouco. Com cuidado, Renton alcança o topo da cerca e se equilibra precariamente numa postura de boxeador, um pé na frente do outro, enquanto Matty sobe na sua direção e lhe entrega a tábua.

– Deita ela aí... – sussurra Renton, olhando para as expressões de zumbi dos amigos e tentando afastar uma ideia que o desestabiliza: não somos mais humanos. Abandonamos nossas peles como lagartos, deixando para trás não apenas nosso passado, mas também nosso futuro. Somos sombras. Suas mãos tremem. Enxerga Matty por cima da segunda tábua e logo em seguida os dois a carregam, equilibrados sobre a primeira. Por um momento ela quase escapa, mas Matty mantém a pegada firme. Renton, com um equilíbrio e uma força que jamais imaginou ter, segura a extremidade e continua empurrando a tábua adiante. No ponto mais alto, deixa a tábua cair; seu coração para de bater por alguns segundos, pois Renton teme que a madeira erre o alvo no telhado do anexo e caia em uma terra de ninguém, perdida para sempre, o que os forçaria a abortar a missão, mas ela bate contra o teto de lona, produzindo um baque surdo. A euforia vence o medo e ele continua paralisado em seu posto no alto da cerca, esperando alarmes, guardas e cães.

Mas nada acontece, então os outros começam a se reunir perto da base da tábua apoiada no aterro. Ele dispara pela segunda tábua, que vai do topo da cerca até o telhado, inclinada num ângulo menos agudo que a outra; é como se as tábuas fossem os ponteiros de um relógio marcando vinte para as cinco. – Vamos – sussurra Renton para a escuridão.

Matty, apesar das mazelas, se move com a destreza de um felino e se junta a Renton em segundos. Começam a passar as sacolas da Sealink de mão em mão. Somente agora, quando o plano parece ter ao menos uma possibilidade de sucesso, Renton se permite pensar em como foram burros ao trazer sacolas tão identificáveis: seria melhor se trouxessem outras, da Adidas ou da Head. Rezando para que nada aconteça de errado, sente o telhado quebradiço e frágil estalando debaixo das solas finas dos tênis surrados.

É a vez de Spud entrar na fábrica pela tábua; começa devagar, um pé depois do outro, com cuidado, e então vai acelerando à medida que a inclinação aumenta. Quando chega no topo da cerca, parece se desequilibrar por um instante, mas em seguida desce correndo até o telhado e os braços de Renton.

Sick Boy é o próximo e parece contrariado e enojado, como se estivesse atravessando só de meias um campo coberto de merda de cachorro, mas faz uma travessia bem-sucedida e se agacha no telhado, arfando e visivelmente nervoso. Olham para a fábrica inanimada lá embaixo, iluminada pelas luzes escassas da noite. Avistam duas caixas de metal com câmeras, mas não estão apontadas para eles, mas para os portões de entrada e saída dos funcionários. Renton pensa nos homens ocultos dentro de algum cubículo, encarregados de vigiar as imagens granuladas em suas telinhas. O que conseguiriam enxergar depois de alguns dias, além de estática borrada em preto e branco?

– Dá pra alguém mandar esse gordo filho da puta ficar esperando aqui? – Matty rosna olhando para Keezbo, que começa a avançar na primeira tábua. – Porra, ele não vai conseguir! Cara, ele vai quebrar a merda da tábua e deixar todo mundo preso aqui!

Todos se entreolham boquiabertos, em pânico.

– Caralho, ele vai atrasar todo mundo – concorda Sick Boy, buscando o olhar de Renton, mas Keezbo já começou a escalada.

– Vamos, Keith – sussurra Renton para encorajá-lo. – Um dos escolhidos de Wigan!

Sick Boy dá um tapa na testa olhando para Matty enquanto vê a tábua se curvar sob o peso de Keezbo. Mas o baterista aumenta o ritmo e corre como um elefante na corda bamba. – Não para quando chegar no topo, segue correndo até o outro lado! – grita Matty, rígido de tensão, cerrando e soltando os punhos.

– Espírito do Wigan Casino, Keezbo! – Renton continua incentivando.

Keezbo atinge o ponto mais alto. Os outros acompanham o avanço e sentem o coração escapando pela goela ao vê-lo vacilar por dois segundos assustadores antes de trocar de tábua e descer correndo à toda na direção deles, a tábua batendo contra a grade, a boca aberta, os olhos esbugalhados. – Esquiadores reis do pedaço, Keezbo Yule. – Renton dá um beijo estalado na testa suada de Keezbo enquanto ele descansa no telhado rangente. Sick Boy agarra suas nádegas enormes e começa a golpeá-lo com a pélvis, extasiado.

Estão no anexo, uma estrutura genérica de tijolos vermelhos com cerca de cinco metros de altura e seis metros quadrados de área. Procuram indícios de dispositivos de segurança do alto do ponto elevado. Nada. Todas as câmeras estão apontadas para longe. Eles se entreolham com uma espécie de encantamento infantil. São cinco viciados do Leith presos dentro de um complexo com a maior quantidade de morfina pura em todas estas ilhas.

Renton desce pelo duto de escoamento do prédio. É de plástico, e não de metal como havia imaginado. Fica preocupado com o peso de Keezbo, mas não diz nada. Matty vem logo depois, seguido por Spud e então Sick Boy. Mais uma vez, todos olham horrorizados para Keezbo e depois para os prédios principais da fábrica, sentindo que o cano vai se quebrar e eles ficarão presos ali , em crise de abstinência, desamparados dentro daquela planta carnívora, até que o pessoal da manhã apareça para soar o alarme. Todavia Keezbo consegue descer até a metade, vence o resto da altura com um pulo e pousa em pé com um sorriso enorme. – Entramos, sr. Mark, Danny, Simon, Matthew.

Renton limita a comemoração a um soquinho solitário no peito. Os olhos de Sick Boy parecem querer saltar do rosto e ele se agacha por um instante, encostado no anexo, como se estivesse sentindo uma dor forte, e em seguida volta a ficar de pé num pulo. Caminham na direção dos postes de luz com a intenção de chegar ao compartimento de carga na lateral da fábrica de processamento, onde as caixas de plástico estão empilhadas sobre os paletes de madeira. – Não vai ter heroína em nenhuma delas – diz Matty –, só produtos farmacêuticos. A morfina vai estar bem trancada em outro lugar – resmunga.

Reconhecendo haver alguma lógica no que Matty está dizendo, Renton insiste: – Mas essas caixas tão trancadas. – Tira o pé de cabra da sacola da Sealink. – Acho melhor a gente ter certeza antes de começar a invadir esses laboratórios e armazéns...

Keezbo e Spud se agarram pelos pulsos, pulam e rodopiam, perdidos numa dança eufórica e demente. – Lá vamos nós, lá vamos nós, lá vamos nós... – arfam em júbilo até serem silenciados de forma cabal por um alarme estridente, dilacerante e turbinado que começa a se esgoelar no meio da noite. Parece vir do subsolo, fazendo vibrar seus solados de borracha e congelando-os no estado de choque mais paralisante que já experimentaram. Mal conseguem ouvir os gritos dos homens e os latidos dos cães por trás do alarme, e o medo os impele a correrem pelo pátio no meio daquela cacofonia incapacitante, buscando alcançar o anexo.

Nenhum deles olha para trás; Renton chega primeiro, faz uma concha com as mãos e dá um bem-vindo impulso para que Sick Boy e depois Spud trepem no duto de escoamento. Quando chega esbaforido no telhado, consegue ver um esqueleto iluminado pelo luar e deduz que se trata de Daniel Murphy desaparecendo nos céus, um sinal de que Sick Boy já percorreu o caminho de volta até o aterro.

Agora Renton se permite olhar para trás. A quantidade de perseguidores parece grande demais para ser verdade. Correm por todo o pátio escuro: cães e homens latindo incentivos psicóticos e instruções uns aos outros. Ignora os gritos e rosnados atrás de si e se lança sobre a tábua. Ao chegar no topo, olha para trás e grita para que Matty e Keezbo subam no telhado. A luz de uma lanterna o cega e ele desce a tábua, cambaleando e torcendo para cair do lado certo da cerca, mas consegue chegar até a margem inclinada e sente quando Spud pega seu braço e o conduz até os trilhos. Eles se atiram no chão e avistam a silhueta ebúrnea de Sick Boy se esgueirando furtivamente pela linha sul da ferrovia suburbana.

Renton e Spud enxergam Matty subindo no telhado iluminado pelas lanternas dos guardas. Keezbo é o último a escalar pelo cano e os seguranças estão quase chegando nele. Um pastor-alemão salta para morder seus pés e erra por centímetros. Enquanto Matty voa por cima da tábua em direção à cerca, Renton e Spud veem Keezbo içar milagrosamente o corpanzil até o telhado do anexo com os cães rosnando atrás dele. São cerca de oito homens e quatro cães latindo uns para os outros, com os homens berrando em walkie-talkies por trás do alarme que grasna como um pássaro mecânico monstruoso defendendo os ovos. Keezbo chega ao telhado. Mas, quando Matty alcança o topo da cerca e está prestes a iniciar a descida, um movimento de calcanhar faz com que a primeira tábua caia no espaço escuro entre o anexo e a cerca. Keezbo ficou para trás.

Enquanto os cães latem circulando o prédio, Keezbo olha para eles primeiro com aflição e depois com pesar. Seu rosto se contorce numa expressão de profunda dor e traição. De repente a expressão se dissolve em resignação submissa e ele se senta sobre o telhado como um Buda junky e derrotado, cercado por homens gritando e cães rosnando logo abaixo de si.

– Puta merda... Keezbo... – Spud pronuncia com um chiado no instante em que Matty se junta a eles nos trilhos.

Renton se levanta e berra na direção do complexo: – DEIXEM ELE EM PAZ, SEUS CORNOS FASCISTAS DE MERDA! ESSA HEROÍNA É NOSSA, PORRA!! A GENTE PRECISA DELA! A GENTE TEM DIREITO, CARALHO! – Cata algumas pedras no aterro e joga por cima da cerca nos guardas e nos cães. Uma delas acerta um cachorro, que dá um ganido agudo. – VAMOLÁ, SEU BANDO DE SARNENTO!

Matty o agarra e puxa para trás. – Vamos, cara! A gente tem que dar no pé. – Enxergam Spud correndo pelos trilhos e saem atrás dele. Renton olha para trás algumas vezes e depois acelera o passo para alcançar os outros.

– Gordo viado... acho bom ele não... nos entregar – resmunga Matty enquanto correm esbaforidos até as ruínas abandonadas da Gorgie Station, onde fazem uma pausa para se recuperar. Sick Boy está esperando nas sombras. Renton sente a cabeça girando com o esforço estonteante da fuga e luta para encher os pulmões.

– Ninguém vai entregar gatuno nenhum – garante Spud a Matty com voz chorosa, recuperando o fôlego, enquanto o olhar de Sick Boy salta entre um e outro. – O Keezbo é gente fina.

– O que aconteceu com a porra da tábua? – pergunta Renton, arfando. – Por que ele não conseguiu subir?

– Ela simplesmente caiu quando eu tava passando – protesta Matty. Percebe o julgamento no olhar de Renton. – Foi um acidente! Porra, o que cê tá insinuando?

Renton vira as costas e mantém um silêncio eloquente quebrado sem demora por Sick Boy: – Vou dizer o que eu tô insinuando. Um carinha que rouba varal não tem condição nenhuma de chamar alguém de dedo-duro.

– Como é? – Matty se vira pra ele.

– Aquele blusão de lã azul-celeste que eu tinha. – Aponta para Matty e comprime os lábios em acusação. – Cê sabe muito bem, é aquele que cê roubou do varal no quintal dos Bananas.

– Não roubei nenhuma merda de blusão! – Matty recorre a Spud em busca de apoio. – Cara, isso faz séculos, a gente era pirralho, todo mundo roubava roupa de varal naquela época!

– É verdade, mas ninguém usava o que tinha roubado! A gente vendia pra comprar roupa nova. Só um vagabundo filho da puta usa uma roupa que roubou de um varal – Sick Boy declara, acendendo um cigarro e dando uma tragada. – Lembro quando contei pra minha mãe: “Matty Connell roubou aquele blusão que você me deu, e agora tá usando na escola” – diz, abrindo um leve sorriso. – Sabe o que ela falou? Ela disse: “Deixa ele ficar com o blusão, filho. Os Connell são uma família pobre, esse menino precisa mais que você.” Foi isso o que minha mãe disse. Minha mãe tava disposta a dar roupas pra um vagabundo, pra um mendigo piolhento – meneia a cabeça discretamente ao pronunciar cada palavra –, só porque tinha pena dele.

– Então é isso que cê pensa de mim? É? É isso que cê pensou de mim todo esse tempo, porra?!

– Isso mesmo – Sick Boy dá de ombros –, e agora cê pode ficar todo emotivo como sempre. Pobrezinho do Matty. Pobrezinho desse filho da puta desse mendigo!

Matty lança um olhar queixoso para Spud e Renton em busca de solidariedade.

– Sabe o que eu penso sobre isso, Matty? – Renton está curvado com as mãos nos joelhos, mas olha para Matty com firmeza. – Sobre essa porra dessa sua obsessão em botar o Keezbo pra baixo? É porque ele ficou com a Shirley. A gente era uns pirralho quando eles namoraram, puta merda! Ela tá contigo agora! Supera essa merda!

– O quê...? Isso não tem nada a ver com nada – Matty protesta aflito, mas sem muita convicção.

Sick Boy se vira para ele. – Ouvi dizer que rolou de tudo entre ela e o Keezbo.

– Heein...? – Matty respira pesado, sem acreditar. Olha para os amigos como se estivessem distorcidos, como se pertencessem a outro mundo com seus olhos frios e uma palidez de zumbis, e nesse momento preferiria ter ficado à mercê dos cães.

– Só tô repetindo o que ouvi – diz Sick Boy e aperta os lábios.

– Ouviu de quem? – retruca Matty, enfurecido. – DAQUELE GORDO VIADO?

– Quem comenta são as minas e tal.

– Que porra cê tá querendo dizer, Williamson?

Sick Boy crava um olhar calculado em Matty. – Foi a primeira vez dela, na época em que saía com o Keezbo. Um pau grande cheio de pentelho ruivo pra cima dela, enfiado nela, arrebentando a virgindade dela, gotinhas de sangue de virgem escorrendo por aquela piroca; é claro que deve ter sido memorável pra ela. É natural que ela se lembre desse momento toda santa vez que bota os olhos no Keezbo. Imagino que isso deve mexer com a sua cabeça também, parcero, entendo perfeitamente.

Matty continua parado no mesmo lugar, paralisado por um sentimento pavoroso de incredulidade. – Heein...? – repete.

Spud está angustiado e implorando: – Não, rapaziada, que negócio é esse... parem com isso... não tá certo... – Enquanto Renton e Sick Boy se deliciam com o subconsciente de Matty ficando à mostra bem na frente deles.

– Isso. Mexe. Com. A. Cabeça. Do. Cara – diz Sick Boy baixinho.

Matty parece estar cozinhando lentamente por dentro, até entrar em combustão: – VAI SE FODER, SEU CAFETÃO FIADAPUTA. – Então projeta o pescoço cheio de tendões para diante enquanto o nariz expele catarro. Depois olha para as pedras sobre as quais está pisando e se abaixa para recolher uma delas. Renton corre em sua direção e o detém. – Mas nem pensa nisso...

– CARA, EU VOU MATAR ESSE FIADAPUTA! VOU MATAR ESSE FIADAPUTA MENTIROSO DE MERDA. – E tenta avançar para cima de Sick Boy, mas é contido por Renton e Spud.

Sick Boy assume uma postura relaxada e traga o cigarro com uma tranquilidade teatral. – Sei, sei, tá bom.

– CÊ TÁ MORTO, WILLIAMSON! – grita Matty numa mistura de guincho e rugido, e então dá as costas e parte noite adentro enquanto Sick Boy debocha dele, fingindo ter tomado um tiro. A sombra de Matty é perseguida por Spud. – Ei, Matty, espera aí, gatuno...

– Spud... – Renton tenta impedi-lo sem muita convicção.

– Deixa eles. – Sick Boy agarra Renton pelo pulso para contê-lo. – É melhor a gente se separar mesmo. Os quatro juntos iam chamar muita atenção.

Observam Spud correndo pelo aterro atrás de Matty, aos tropeços, saindo de vista pela Gorgie Road e seguindo seus passos não até a van, mas ao longo da rua, passando pelo Stratford’s Bar, sem saber muito bem por que Matty está indo naquela direção e muito menos por que Spud está indo atrás dele.

Pela linha do trem que passa serpenteando acima do pub e do nível da rua, Renton e Sick Boy continuam se afastando da fábrica. A lua escondida por detrás de uma teia de nuvens faz Renton lembrar por um instante do rosto pálido e inconsolável de Spud sumindo de vista.

– Matty, aquele rato infecto filho de uma puta – diz Sick Boy enquanto eles caminham apressados por cima dos trilhos. – Quem deu corda naquele viado? Tá todo mundo fissurado até os ossos, mas o cara pode pelo menos tentar agir que nem homem.

– Esse viadinho sempre foi tenso desse jeito, fissurado ou não – retruca Renton, se arrependendo de não ter dado um soco na cara de Matty lá atrás. – Sempre dando um jeito de cagar tudo. O Gordo Keith vai passar um bom tempo na cadeia por nossa causa e o corno tem que ficar falando mal dele?

A dor se agrava e Renton começa a maldizer a loucura de todo aquele esforço sem sentido que queimou ainda mais reservas de droga no seu organismo. Logo estarão totalmente imobilizados. Precisam voltar ao suprimento de Valium. Apertando os braços em volta de si mesmos, seguem pelos trilhos até chegarem ao viaduto no Union Canal, precedidos pela energia da caveira da morte nesse trecho baldio de terra espectral, que parece se separar das ruas adormecidas da cidade por algo que vai além da altura. Mas quando o canal desce até o nível da rua, as vielas e becos cinzentos e gelados que Renton e Sick Boy encontram parecem igualmente infernais, e eles transpiram e se coçam como dois pintos que acabaram de romper a casca do ovo.

Na Viewforth, deixam o canal, e uma chuva fria começa a cair. Indo em direção a Bruntsfield, avistam os borrões alaranjados das lâmpadas de sódio se derramando sobre as ruas molhadas, e então cortam caminho pelo Meadows e seguem em direção à North Brigde. As calçadas são o porto seguro para os poucos bêbados que vagueiam atrás de táxis, bares que ficam abertos até mais tarde ou festas. A sirene de algum serviço de emergência violentando a noite instaura o pânico e os incentiva a correr como ratos pelos becos mal-iluminados da Royal Mile, descendo agitados em direção à Calton Road. – Não consigo entender esse lance de vida – diz Sick Boy em voz alta, tremendo.

Caminhando pela rua escura e deserta, Renton é assaltado por lembranças do Pequeno Davie. A casa fica vazia e desprovida de alma sem a bagunça dele, e a família está destroçada. Tem coisas que parecem inúteis, ineficazes ou improdutivas até serem eliminadas, e então tudo começa a desmoronar rapidamente e vai ficando uma merda. Renton enfim reage à colocação de Sick Boy no mesmo tom: – É estranho a gente estar aqui num segundo e desaparecer no outro. Daqui a algumas gerações ninguém vai dar a mínima. A gente vai ser só um bando de otário vestindo umas roupas engraçadas em fotografias desbotadas que algum descendente com muito tempo livre vai botar em cima de um aparador pra olhar de vez em quando. Nenhum cara famoso vai se interessar em fazer um filme sobre as nossas vidas, né?

Renton consegue assustar Sick Boy, que estaca no meio da rua vazia. – Você desistiu, parcero. É só isso. Você desistiu.

– Talvez – Renton admite. Será que desistiu mesmo? É claro que, em algum momento, as lágrimas e as desculpas acabam.

– Isso me assusta pra caralho. Porque se você desistir, todo mundo tá fodido – diz ele, retomando o passo. Um carro solitário passa roncando por eles. – Sei que a gente vive se sacaneando, Mark, mas você é o cara que tem a cabeça no lugar. Aquela vez que a gente invadiu aquela casa; você salvou aquela mina, você e o Tommy. O Begbie teria deixado ela morrer, e o Spud, o Keezbo, eu, a gente não tinha a menor ideia do que fazer. Mas você assumiu o controle. Como é que você sabia fazer aquilo?

Pequeno Davie...

Renton sente uma ardência, mas logo em seguida encolhe os ombros como se dissesse: sei lá, porra. Depois olha para o companheiro angustiado. – Mas o cara é você, Si. Você tá quilômetros na frente de todo mundo. Sempre foi assim. Com as minas e tal...

– Mas caralho, Mark, eu fiz tanta coisa ruim! – Sick Boy dá um tapa violento na testa, de repente, quando ambos passam pela entrada dos fundos da estação Waverley. – Fiz um monte de merda!

Renton sente um rasgão de dor por dentro e responde cego de pânico, interrompendo a confissão de Sick Boy. – Eu também! Eu sei do que você tá falando!

– Você tá falando do Olly Curran? A gente combinou...

– Aquele viado que se foda! – Renton corta com desprezo. – Foi ele que pediu, com toda aquela merda raivosa e racista dele. Não tenho pena nenhuma daquele babaca! Tô falando da Fiona. – E então algo se quebra dentro dele, como uma represa desmoronando. – Eu amava ela e fodi com tudo! Quando a gente saiu de férias, consegui enxergar tudo que a gente tinha pela frente – olha para o alto e vê a Calton Hill assomando à sua frente –, eu e ela, pra sempre. E a gente se assustou... a gente se cagou de medo. Quando eu voltei... – os olhos de Renton estão vermelhos e inchados – aquela mina que eu te falei, aquela de Paisley, ela tava saindo com um parcero meu... a gente tava bêbado e começou a trocar uma ideia, e eu levei ela pra lá – aponta para a colina escura e sombria enquanto eles entram no acesso que leva à Leith Street – ou ela me levou pra lá, porque a Fiona deve ter contado pra ela que a gente trepou naquele parque na Berlim Oriental... ela me usou pra sacanear com a amiga e eu fui na dela, e acabei comendo ela no parque... a namorada do meu parcero... eu nem ia com a cara daquela mina...

– Mas aposto que foi uma bela trepada – Sick Boy diz tentando colocar na voz um tom de interrogação, pois conhece a história nos mínimos detalhes. Estava escrita na letra de mão do amigo naquela bola de papel feita com uma página do diário, encontrada e surrupiada da lixeira do quarto de Renton no Centro de Reabilitação de St. Monans, depois que o amigo se deitou para dormir. Tinha se surpreendido com os detalhes e a fluidez da prosa de Renton; como tudo tinha saído daquele jeito em frases sem edição, naquela caligrafia densa e fluida. Tinha guardado a página só de sacanagem, mas entendia que não era um bom momento para tocar no assunto, pois os soluços jorravam do peito ressequido de Renton.

Renton se sente miserável e patético. Como traiu Fiona, precisou terminar com ela. E também havia traído Bisto, para quem nunca mais conseguiu olhar direito. Não havia desculpa. Ele era daquele jeito, podre até os ossos, sofre agora ao pensar... e então reflete sobre as palavras de Tom Curzon: talvez seja apenas uma fase pela qual estou passando...

Olha para Sick Boy, que está de cabeça baixa e parece compreender tudo... – O quê? O que foi que você fez? – Renton para no meio da rua escura e fita o amigo.

Sick Boy sente algo tentando se desvencilhar do seu corpo e escapar pela boca, algo que precisa ser combatido. Consegue realizar uma manobra diversionista. – O Matty...

– Ele que se foda.

Sick Boy se sente aliviado e agradecido diante da intervenção de Renton, que estanca as próprias confissões. Ainda bem que sempre dá pra meter ele na história. – Mas... acho que foi aquele viadinho... que entregou a Janey Anderson no esquema da pensão. Falei pra ele uma vez, foi burrice minha, um comentário besta. – Busca o olhar de Renton para conferir se a mentira colou. – Acho que ele abriu o bico, Mark.

– Não... – Renton balança a cabeça. – Nem ele seria tão baixo.

Sick Boy se curva, afrouxando a força de vontade que ainda mantém seu corpo doente e enjoado preso à alma para se punir com a náusea que o acomete em seguida. – Tô passando mal pra caralho...

– Eu também. Mas a gente tá quase lá, parcero. A gente só precisa aguentar mais um pouco.

Elm Row se aproxima, e depois a Montgomery Street. Na escadinha em frente à porta, eles lutam para se recompor. – Depois que a gente tomar o último Valium – Sick Boy fala com os olhos lacrimosos – é o fim. Acabou, Mark. Nunca mais vou usar heroína.

Diante de uma convicção tão forte e uma certeza tão absoluta, Renton fica visivelmente comovido. Seus olhos ficam úmidos quando a imagem de Keezbo preso numa terra de ninguém começa a chamuscar dentro do seu crânio. – Com certeza – diz tocando o amigo de leve no ombro – a gente para por aqui. – E os dois olham para o céu, incapazes de abrir a porta, completamente esgotados e temerosos diante da perspectiva de subir os numerosos degraus frios até o apartamento no último andar.

A gente para por aqui.

Absorvendo isso, e contemplando a generosidade e o esplendor das estrelas, Renton sente seu ânimo se elevando, como se tivesse sido recompensado com uma espécie de infância eterna; a ideia de que a terra inteira era uma herança a ser partilhada com cada espírito humano. Em breve estaria novamente livre. Lembra que, no fim da vida, Nietzsche se deu conta de que não era possível simplesmente virar as costas para o niilismo; era necessário conviver com ele e, com sorte, sair do outro lado, deixando-o para trás.

Heroína.

Aquela garota no assalto à casa. Como ele soube o que fazer?

Pequeno Davie.

Se não tivesse crescido naquela casa, vendo todo mundo cuidar dele, jamais teria ligado os pontos: ela ingeriu alguma porcaria, a gente precisa fazer ela acordar. Como? Água salgada. Aqueles caminhos neurais cauterizados no cérebro pelos gritos agudos do irmão inquieto, incutindo a capacidade de cuidar de alguém em apuros. Uma estrela faísca no céu como se enviasse uma piscadinha de aprovação. E ele não consegue resistir, não consegue evitar esse pensamento: é O Pequeno..

Sick Boy se enxerga como prisioneiro dos próprios lábios mentirosos. Parado todos os dias em frente ao espelho do banheiro, vê os olhos ficarem cada vez mais frios e impiedosos por conta das exigências da droga e da aspereza brutal do mundo. Mas foram as mentiras que contou a si mesmo e aos outros que lhe permitiram essa extravagância. Sente algo pungente se agitando na alma e dessa vez percebe extasiado que pode ser uma verdade tentando chegar à superfície. Sai trêmula, em meio a uma tosse. – Disso eu sei, Mark, seja lá o que aconteça, seja qual for a besteira que a gente faça, a gente sempre vai estar juntos, dando força um pro outro – afirma, sentindo o tórax inflando e esvaziando devagar. – A gente vai sair dessa juntos. – E então avança em direção às escadas e obriga Renton a segui-lo.

– Sei disso, parcero – Renton fala de maneira quase distraída, sob a luminosidade das estrelas, até que a porta pesada se fecha atrás deles e extingue a luz. – Ficar careta na raça é o que sobrou pra gente, e é isso que a gente vai fazer, nem esquenta. Cheguei no fim da linha. – Sorri no escuro, chutando os degraus de pedra. – Cheguei até onde podia nesse lance da heroína. Foi uma fase legal, mas a droga não pode mais me mostrar nada de novo, a não ser mais sofrimento, e porra, disso eu já tô cheio.

– É isso aí – concorda Sick Boy. – Os melhores esquiadores do pedaço.

Guiados pela luz débil da lâmpada no corredor, os dois chegam ao topo da escalada. Assim que destrancam a porta e entram no apartamento gelado, a campainha explosiva do telefone sacode seus ossos.

Eles se entreolham num instante congelado dentro do qual todo o tempo desmorona.

 

 

                                                    Irvine Welsh         

 

 

 

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