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Terceiro Livro
Capítulo 1
Gaston Tilmant disse:
- Tudo o que acontece tem uma razão de ser bem determinada. Para nós muitas vezes é difícil, se não impossível, descobrir essa razão e então descambamos para a cólera e para a tristeza... exatamente como os senhores estão fazendo agora. Mas os senhores não devem proceder assim. Eu não vim aqui para consolá-los nem iludi-los com um discurso barato. Foi-me incumbida uma missão que a cada momento ameaça invadir meu espírito com tristeza e raiva. Todavia, devo desincumbir-me dessa missão, sejam quais forem os percalços, pois ela também tem sua razão de ser; o seu sentido determinado. Em minha imaginação, visualizo que cada folha de um livro... inclusive o livro da vida... tem dois lados. Num dos lados escrevemos nós, os homens, que estamos cheios de planos, convicções, esperanças, desejos e intentos. Mas no outro lado escreve o destino, isto é, o sentido oculto que fica atrás de tudo isso. E o que esse sentido dispõe raramente corresponde aos nossos planos. Todavia, não deixa de corresponder ao escopo ou finalidade da própria justiça.
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Com ar acabrunhado, ele passou a mão pelos cabelos louros. Era um homem corpulento e cheio de vigor. Vestia-se com elegância, tal qual um fino diplomata (e ele o era de fato). Tinha o rosto redondo, com as faces rosadas. Seu semblante parecia irradiar infinita bondade. Com os olhos meigos e amáveis, olhava através das lentes de um par de óculos. Gaston Tilmant era um dos mais altos funcionários o Ministério das Relações Exteriores da França. Fora enviado a Cannes com instruções especiais e expressamente determinadas. Exatamente nesse momento, punha-nos a par de quais eram tais instruções. Estávamos sentados em torno de uma grande mesa no salão de conferências do chefe de polícia.
Ali reunidos, nos encontrávamos eu, o chefe de polícia, Lacrosse, Roussel, cerca de meia dúzia de dirigentes policiais e Kessler.
Gaston Tilmant, depois de um pigarro, acrescentou:
- Essa finalidade distanciada, de natureza teleológica por assim dizer, sempre convergirá para a justiça, embora muitas vezes nos pareça que ela não vá alcançá-la. A justiça, por fim, sairá sempre vitoriosa.
O pequeno Louis Lacrosse, com grande amargura na voz, obtemperou:
- Sim, a justiça vencerá por fim, Monsieur Tilmant. Mas quando? Daqui a cem anos? Daqui a mil anos? O senhor diz que leva muito tempo até que ela vença porque seu objetivo acha-se distanciado. E durante todo o tempo que medeia até que o objetivo seja atingido, quem é que vence? A justiça? Monsieur, eu abomino a injustiça. Todos nós sabemos que no caso de que nos ocupamos houve injustiça. Sabemos que houve crimes e que mais crimes talvez sejam perpetrados. Que tenho eu a ver com uma distanciada vitória da justiça se não puder vê-la concretizada? Como poderei levar em consideração essa tão longínqua vitória se durante o tempo da minha vida triunfa a injustiça e os criminosos permanecem impunes? Quando tomei posse do meu cargo, prestei o juramento de combater a injustiça com todas as minhas forças. Devo agora esquecer meu juramento? Será que já não tem qualquer valor na época atual, só porque cidadãos de elevada categoria em Paris conversaram com cidadãos de elevada categoria de qualquer outra parte e chegaram a um acordo?
Gaston Tilmant passou a responder calmamente:
- Já lhes declarei de início, meus senhores, em que estado de espírito aceitei esta missão. Eu o compreendi perfeitamente, Monsieur Lacrosse. Uma coisa, entretanto, posso garantir-lhe: aqueles que me enviaram não agiram leviana nem inconsideradamente. Quando alguém se defronta com um poder muito forte e quer combatê-lo, sempre deve agir com muita inteligência.
Estávamos no dia 9 de junho de 1972, uma sexta-feira. Passava um pouco das dez boras.
Gaston Tilmant chegara bem cedo a Cannes em um avião especial da Air France e se hospedara no Carlton. Sua vinda já havia sido anunciada no dia anterior. Portanto, já híamos de antemão que Gaston Tilmant nos iria falar às ve e meia no gabinete do chefe de polícia. Com aquela maneira afável e concisa, ele nos fez compreender qual era o objetivo da sua missão. Depois de minuciosas consultas dirigidas a categorizados elementos com influência nos mais elevados planos internacionais, chegou-se à conclusão de que seria imprescindível mudar de tática. Só por outros meios se procurariam esclarecer os acontecimentos de Cannes a explosão do iate e as mortes de pessoas envolvidas no caso. Eliminar-se-ia, tanto quanto possível, a publicidade e ter-se-ia o máximo cuidado no tratamento a ser dispensado ao grupo de magnatas que sabidamente mantinha relações com Hellmann. Agindo abertamente contra esse grupo, paira o perigo de que a ação policial possa produzir um, curto-circuito e isso teria o efeito de uma verdadeira avalancha, principalmente se incutisse medo em qualquer um dos seus membros ou se os levasse a agir em represália uns contra os outros. Tratando-se dos poderosos das organizações multinacionais, com os quais agora temos que lidar, o efeito de um curto-circuito poderá ocasionar um alarme de âmbito internacional, mormente se o público vier a saber algo sobre as monstruosas negociatas envolvendo operações com divisas estrangeiras e sua manipulação financeira. Qual seria, então, a reação de outras empresas, dos bancos e dos especuladores, bem como da Bolsa? Enorme seria o perigo de uma nova sexta-feira negra, de um gigantesco crash da Bolsa, se esse sindicato de criminosos, ao qual pertence também a Kood, viesse a quebrar. Por tais razões, tudo o que aconteceu ou está por acontecer deve ser tratado ou publicado exclusivamente como sendo decorrência de uma misteriosa sucessão de acidentes e de crimes. Para tanto, ficou combinado nos mais altos escalões de dirigentes que ficasse a testa dos trabalhos de averiguações e sindicâncias do caso, um homem ao qual incumbiria em caráter exclusivo prestar informações à imprensa, ao rádio, à televisão, bem como aos repórteres franceses e estrangeiros que se encontram em Cannes desde a morte de Kilwood. Também ficaria adstrito ao âmbito da sua incumbência impedir, com elevado tato diplomático, que qualquer membro das organizações dos super-ricos se melindre tanto a ponto de julgar-se violentamente atacado e tenha motivos de queixa. Tudo isso nos íntormou Gaston Tilmant. Sobre a maneira como, em tais circunstâncias, se poderiam levar avante ordenadamente as investigações dos crimes, ele próprio não fazia a mínima idéia e confessava isso abertamente. Disse ele:
- Devemos todos juntos agir da melhor forma possível nesse caso terrível.
Tive pena de Gaston Tilmant. Achei-o simpático. Realmente sua missão não era das mais fáceis. Roussel disse cinicamente:
- Está tudo muito claro. Podemos e devemos fazer tudo; exceto uma coisa: não devemos, de modo grosseiro, indagar desses multimilionários a origem das suas fortunas nem procurar saber quantas injustiças e sofrimentos eles praticaram para adquiri-las. Seria uma grande indelicadeza!
- O senhor está exagerando, Monsieur Roussel - disse Tilmant, enquanto alisava de novo os cabelos. - Comprove o senhor a culpabilidade de um desses homens e... - ele interrompeu a frase de modo a dar às suas palavras um efeito assustador.
- Sim, e aí, que poderá me acontecer? - insistiu Roussel.
- ... e teremos motivos para chamá-lo à responsabilidade - concluiu Tilmant e atirou a cabeça para trás.
- Mas os senhores fariam isso sem alarmar o povo? - interrogou Roussel.
- Sim, sem alarmar o povo - afirmou Tilmant.
- Monsieur Tilmant - disse Kessler, que até então permanecera calado, mas que agora se dirigia ao seu interlocutor de maneira tão agressiva que todos os olhares convergiram para ele -, nós todos fazemos parte do povo. Será que já não é exata a noção de que perante a lei todos os homens são iguais, de que perante a lei todos os homens possuem o mesmo direito à justiça e à informação?
- Essa noção continua exata, Monsieur Kessler - retrucou Tilmant.
O homem era dotado de uma paciência sem limite. Foi por isso sem dúvida que o escolheram para tal missão.
- A irmã-enfermeira Anna Galina também possuía esse direito - prosseguiu Kessler, e sua voz, agora, parecia cansada. - O Capitão-Tenente Viale também o possuía. Anna Galina tem parente em Milão. Viale deixou como sobrevivente sua velha mãe. Quer dizer, então, que na hipótese de descobrirmos os criminosos só poderemos prestar aos entes queridos dos mortos informações filtradas e distorcidas com relação à morte deles, não é verdade?
Eu já disse, Monsieur Kessler, que nos lançaram ma empresa odiosa - ponderou Gaston Tilmant, ajeitando os óculos, - mas os homens que nos compeliram a isso não são estúpidos nem crápulas. Em tais circunstâncias, é melhor lamentavelmente... que umas poucas pessoas diretamente interessadas no caso não venham a saber a verdade do que assustar e levar a um completo descontrole todo mundo com a propalação da realidade dos fatos. Também na sua pátria essa nossa opinião foi endossada, conforme certificou-me o Sr. Friese, respondendo à nossa consulta.
- Eu já sei - respondeu Kessler, irado. - Recebi um telefonema. do Sr. Friese. Estamos diante de um enorme escândalo e não pretendo desculpar-me pelo que possa acontecer. Aqui estamos nós, homens amadurecidos, sentados em torno desta mesa, sabendo o que aconteceu e como se desenrolaram os fatos. Além disso, temos noção dos motivos por que isso teve que acontecer e das razões por que os fatos se desenrolaram dessa maneira. Culpados e inocentes perderam a vida, mas isso pouco importa. Eles morreram e outras catástrofes poderão se dar. E nós?... Nós agora temos a incumbência de comunicar a Monsieur Tilmant (nada tenho a dizer contra o senhor pessoalmente; sei que o senhor cumpre a missão que lhe foi imposta) todo e qualquer informe que obtivermos para que o senhor nos diga como devemos proceder, o que devemos fazer ou deixar de fazer.
Nunca antes eu vira Kessler tão exaltado assim. Ele me fitou dizendo:
- Diga algo também, criatura! Passei então a falar:
- Estou aguardando um telegrama da minha companhia. Ela me dará as instruções que julgar convenientes, Monsieur Tilmant. Sou obrigado a fazer o que ela me ordenar.
- Mas a Global é uma empresa privada - exclamou Roussel em voz alta. - Será que o Estado pode pressionar uma organização desse tipo a influir no estabelecimento das suas diretivas? E como?
- Propriamente falando, ele não pode, mas é evidente que encontrará um meio para exercer tais pressões - disse Eacrosse antes que eu desse a minha resposta. - Entretanto, no seu caso, você teria a possibilidade de falar, de revelar a realidade dos acontecimentos. Por que não fala, Sr. Lucas?
- Porque eu, como Monsieur Tilmant, estou convencido de que por fim a justiça sairá vencedora... embora às vezes demore muito tempo. Ela sempre vence no fim. E não quero deixar de dizer que também contribuí para isso quando ela surgir vitoriosa.
O que eu disse não passava de uma deslavada mentira. A verdade verdadeira era o seguinte: se me recusasse a trabalhar sob a tutela de Tilmant, Gustav Brandenburg forçosamente teria que me retirar de Cannes para me dar qualquer incumbência. E, nessa hipótese, que seria de mim e de Angela? Eu me encontrava num estado de espírito tão confuso, que não era capaz de reconhecer que havia apenas encontrado uma solução temporária para o meu caso. Eu só pensava no dia de hoje. Não cogitava em outra coisa senão permanecer junto dela enquanto fosse possível.
Para minha surpresa, o chefe de polícia disse-me:
- Agradeço-lhe pelas suas palavras, Monsieur Lucas! Meus senhores, doravante estamos todos subordinados a Monsieur Tilmant...
- ... o qual jamais abusará arbitrariamente dos poderes que lhe foram conferidos - disse Tilmant em voz baixa, enquanto Lacrosse, com ar de desdém, bufava pelo nariz.
- Os senhores prosseguirão nas suas investigações como vinham fazendo até agora - continuou o chefe de polícia. - Só que agora elas deverão ser coordenadas por Monsieur Tilmant.
- Tenho ainda uma pergunta a fazer a Monsieur Tilmant - disse Kessler -, e suponho que todos os aqui presentes queiram fazê-la.
- Qual é especificamente a sua pergunta, monsieur? - interrogou Tilmant.
- Trata-se de algo que até agora nenhum de nós pôde esclarecer, pois todos os indícios desapareceram: o Sr. Hell-mann, conforme se comenta, foi à Córsega a fim de encontrar-se, em Ajaccio, com amigos com os quais mantinha relações de negócios. - Percebi que a boca de Tilmant tremia. - Nenhum de nós sabe quais são esses seus amigos. Eles deviam ter estado em Ajaccio, partindo imediatamente após a visita de Hellmann. Quem eram eles, Monsieur Tilmant?
- Industriais franceses - respondeu simplesmente o alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores.
- Mas que tipo de industriais? Como se chamavam? Onde se encontram eles agora?
- Não posso dizer, Monsieur Kessler - respondeu Tilmant, baixando o tom da voz.
- Por que não? - perguntou Roussel, perplexo.
__ Porque o ministério me proibiu. Pelo menos por
ncmanto. Apenas posso assegurar a todos os senhores aqui presentes que esses industriais nada têm a ver com a série de crimes que foram perpetrados ou com quaisquer outros delitos relacionados com o caso que estamos investigando.
__ Eles também devem ser protegidos - comentou
Lacrosse.
- Sim, monsieur - confirmou Tilmant.
- No interesse do nosso país?
- No interesse de todos os países - respondeu Tilmant em tom incisivo, e olhou em redor. - Sinto muito pelo fato de o nosso trabalho ter que começar assim, mas nada posso modificar. Algum dos senhores tem ainda alguma pergunta a fazer?
Ninguém mais tinha perguntas a formular. Deu-se por encerrada a conferência. Todos os homens começaram a sair do enorme salão. Inesperadamente encontrei-me ao lado de Tilmant. Ele me segredou baixinho:
- Agradeço-lhe, monsieur, pelas palavras que o senhor pronunciou em meu apoio, nas quais nem mesmo o senhor acredita.
Fomos caminhando juntos um bom percurso.
- Quais palavras? - indaguei.
- Sobre a justiça. Que a justiça por fim sempre vence. O senhor acredita realmente nisso?
- Não. E o senhor, monsieur?
- Eu também não - respondeu-me Gaston Tilmant, e seu semblante tornou-se bruscamente abatido.
Capítulo 2
Uma menina com um vestido vermelho estava sentada na cadeirinha do estúdio de Angela quando entrei. Angela beijou-me. Ela usava um avental manchado com tintas de diversas cores e calçava chinelos. Em torno dos cabelos havia enrolado uma fita bem larga e os óculos pendiam de uma correntinha sobre o peito.
- Olhe bem! - disse-me Angela, ainda na sala de espera, apresentando-me a mão esquerda com a aliança de brilhantes. - É a mais preciosa jóia que eu jamais possuí na minha vida.
- E olhe agora aqui - disse-me ela, apresentando a sua mão direita.
As costas da mão estavam completamente bronzeadas pelo sol e daquela manchinha branca não havia nem vestígio.
- É um milagre! - exclamou ela. - E foi você quem fez esse milagre. Você é o maior milagre da minha vida!
Depois disso nos dirigimos ao seu estúdio. A menina levantou-se, fez uma pequena inclinação e deu-me boa-tarde, apertando-me a mão.
- Esta é Geórgia - disse Angela em inglês. - O pai de Geórgia, em Hollywood, faz grandes filmes. Ele é um famoso produtor. Atualmente ele e Geórgia estão de férias aqui.
- Só daddy e eu - acrescentou a menina. - Meus pais são divorciados.
- Sinto muito - disse.
- Eu também - prosseguiu Geórgia -, mas, por outro lado, é também divertido. Fico seis meses com daddy e seis meses com mommy. Não é mesmo divertido?
- Muito divertido - respondi, passando para o lado de Angela, que prosseguia no seu trabalho de pintura. O retrato já se encontrava em fase bem adiantada. Sentei-me num banquinho, acendi um cigarro e fiquei observando Angela pintar. De repente surgiu aquela dorzinha indefinível, que parecia doce e suave, perpassando por todo o corpo.
- Hoje à tarde vou de carro a Juan-les-Pins - disse Angela. - Comprei alguns vestidos, que mandei ajustar, e devo experimentá-los mais uma vez. Você tem algum trabalho hoje?
- Não. Disponho de tempo. Falávamos, agora, em alemão.
- Então quer ir comigo?
- Naturalmente.
Ela virou-se para a tela e continuou pintando.
No dia anterior, já noite adiantada, bem como nesse mesmo dia bem cedo, haviam chegado diversos telegramas de Gustav Brandenburg. Dois deles se referiam ao Procurador-Geral Seeberg, que se encontrava efetivamente em Frankfurt, e que havia comprado passagem para regressar a Nice no dia seguinte. Gustav mencionou o nome da companhia de aviação, bem como a hora da chegada do avião a Nice.
No tocante ao assassinato da irmã-enfermeira Anna Galina, Gustav, nos seus primeiros telegramas cifrados, avisava-me da vinda de Gaston Tilmant. Explicou-me que os diretores da companhia, obedecendo a determinações superiores, haviam dado instruções especiais segundo as quais todo e qualquer informe obtido nas minhas investigações fosse doravante também comunicado a Monsieur Tilmant e não somente a ele, Gustav. Adiantou-me que, adotando tal procedimento evidentemente eu não deveria permitir que dificultassem meu trabalho. Apenas eu não tomaria nenhuma decisão importante sem ouvir a opinião de Tilmant, submetendo tudo ao seu prévio exame.
Lindo! Já na conferência realizada de manhã, sem saber de nada, eu me havia dobrado docilmente a tais ordens. Malditos multimilionários!
Depois de passadas umas duas horas, um chofer particular veio buscar Geórgia. Enquanto nos despedíamos da menina, Angela ficou agarradinha a mim.
Logo que sua cliente foi embora, ela começou a desabotoar a minha camisa e eu, ao mesmo tempo, me apressei em desabotoar seu avental, que caiu no chão. Por baixo, ela estava só de calcinha. Não fomos para o quarto. Fizemos amor ali mesmo, sobre o tapete do soalho. Só muito tempo depois de ter permanecido de cócoras perto de Angela, que estava completamente estirada no chão, foi que compreendi o que ela dizia:
- ...foi. O que é, meu querido? Eu disse que com nenhum homem neste mundo gozei como gozo com você...
- E eu com nenhuma outra mulher.
- Que é que você tem? Está sentindo alguma dor?
- Absolutamente nada. Que é que a levou a fazer essa pergunta?
- Você não ouvia o que eu dizia?
- Eu não podia ouvir.
- Por quê?
- Porque estava contemplando sua boquinha... e isso me impedia de ouvir o que você falava.
Capítulo 3
O carro rodava pela estrada que beirava o mar em direção a Juan-les-Pins. A pequena cidade já se encontrava repleta de turistas em férias.
Eu via muitos carros com placas da Alemanha. Inúmeras pessoas passavam por nós falando alemão. Juan-les-Pins dava-me a impressão de ser um gigantesco e desordenado parque de diversões. Passávamos de um local para outro, de uma casa comercial para outra, e víamos em toda parte um movimento febril e ruidoso.
- No inverno é triste aqui - disse-me Angela - e no verão é quase insuportável. Mas descobri nesta localidade uma loja que é uma das mais chiques de Cannes e por isso venho sempre aqui.
Pessoas se aglomeravam e a grande quantidade de carros dificultava o escoamento normal do tráfego. Tudo isso me fazia pensar em Las Vegas, Sankt Pauli e numa pequena cidade americana do oeste na época da corrida do ouro. Depois de estacionar o carro, fomos à Old England, uma casa de modas. Madame Gregoire, a proprietária e costureira, cumprimentou Angela, que me apresentou como seu futuro marido.
A Old England não era uma das maiores casas de moda, mas notei logo que Angela havia escolhido a melhor. Enquanto Angela foi experimentar os vestidos no pavimento superior, fiquei ali sentado no meio de peças confeccionadas e de tecidos. Uma moça serviu-me um copo de uísque. Estava ali sentado com o copo na mão quando uma aprendiz de costureira, parada no meio da escada, disse-me:
- Monsieur, pode, por favor, subir também? Madame quer ouvir sua opinião sobre os vestidos.
Dirigi-me, então, ao pavimento superior. Lá estava Angela só de calcinha. Sua pele sedosa, de um moreno bronzeado, parecia brilhar refletindo a luz.
- Eu comprei três vestidos. Quero que você veja todos eles, pois só quero usar vestidos que sejam do seu agrado - disse-me Angela.
Ela estava ali completamente desinibida na sua nudez quase total e as mulheres da loja não viam nada de estranho no fato de um homem estar sentado no meio delas, segurando um copo de uísque na mão.
Através de uma janela que havia atrás de Angela, divisei as árvores antigas e frondosas que ficavam em frente ao cassino e vi seu Mercedes estacionado lá fora.
O primeiro vestido que Angela experimentou era de um tecido de musselina verde todo fechado, com mangas brancas compridas.
- Agrada-lhe? - perguntou-me Angela.
- Muito. O verde assenta maravilhosamente em você.
As moças ficavam ali em redor fincando alfinetes em diversos lugares e sempre achavam algo para ajeitar. Eu tomava meu uísque e contemplava Angela.
Depois que ela tirou o vestido, ficou novamente com o corpo quase nu. Ao vê-la assim, sentia-me excitado.
O segundo vestido era de seda preta, comprido até os joelhos, de gola alta e de mangas compridas.
Olhando para fora, observei que um homem trajando uma roupa caqui aproximou-se do Mercedes de Angela e agachou-se em frente da roda esquerda da frente. Levantei-me fui até a janela e passei a olhar com mais atenção lá para baixo. O homem era jovem ainda e sua fisionomia me era desconhecida. Depois, ele começou a mexer na roda. Eu estava a ponto de soltar um grito para que ele percebesse que eu o estava observando, quando ele, com a rapidez de um raio, em dois pulos sumiu entre os troncos das árvores.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou-me Angela, que se achava de costas para a janela.
- Não há nada - respondi-lhe, mas continuei postado de pé no mesmo lugar a fim de ver se o sujeito voltava.
O terceiro vestido era comprido e feito de um tecido de musselina cor de limão, com volants em forma de campânulas, que se abriam facilmente, sobrepostos uns aos outros.
- Este é o que mais me agrada - disse.
- Mas o mais lindo de todos é o curtinho preto - disse Angela. - No dia 13 de junho será o nosso aniversário, Robert.
Angela tirou o vestido que estava experimentando e vestiu o que vinha usando nessa tarde. Era um vestido de seda pura que apresentava motivos heráldicos, com as cores lilás e dourada, num fundo branco. Os que ela comprara deviam ainda ser ajustados e modificados um pouquinho.
Depois de prontos, eles seriam enviados para a residência de Angela. Exigi que me fosse apresentada a conta, enquanto efetuava o pagamento, passaram por mim cambaleando três indivíduos com as faces bem vermelhas, camisas de cores berrantes e bermudas de linho. Estavam embriagados e apoiavam-se uns nos ombros dos outros. Eles cantavam bem alto, como se estivessem berrando: "Por que lá no Reno é tão lindo?" ("Warum ist es am Rhein so schön").
Capítulo 4
Começava a escurecer.
Nas proximidades do Voom-Voom, a famosa casa noturna, procuramos um recantozinho e fomos nos sentar à mesa de um desses assim chamados cafés de calçada. Bebíamos champanha enquanto observávamos as pessoas e os carros que passavam por nós. Eu continuamente lançava meus olhos na direção do Mercedes de Angela, embora o indivíduo que antes estivera mexendo na roda da frente não mais tivesse aparecido. Aí notei que Angela colocara na minha mão umas notas de dinheiro.
- Que é isso?
- A quantia que você pagou pelos vestidos.
- Sou eu quem paga os vestidos!
- Nunca! Não permito! Quem os encomendou fui eu. Deixei que você os pagasse lá na casa de modas porque você é meu marido. Mas agora faço questão de devolver-lhe a importância.
- Não aceito!
- Mas eu insisto.
Essa nossa discussão durou um tempinho, mas por fim Angela venceu e tive que enfiar o dinheiro no bolso. De repente, Angela tornou-se muito alegre. Eu a observei demoradamente e depois perguntei:
- Em que é que você está pensando?
- No Natal - respondeu ela prontamente. Encarei-a com o olhar fixo:
- O quê?!
- Em qualquer época, penso no Natal, Robert. - Sorriu. - Você bem sabe que eu às vezes sou meio louca.
- Louvado seja Deus! - exclamei. - O que há com o Natal?
- Estive pensando que você estará aqui no próximo Natal. E estará mesmo junto comigo, não é verdade?
Sua voz inopinadamente tornou-se trêmula e ela me fitou com uma expressão cheia de angústia.
- Naturalmente - respondi, convencido de fato de que passaríamos o Natal juntos.
Acontecesse o que acontecesse, eu tinha o firme propósito de passar o Natal com Angela.
- Será o mais belo Natal da minha vida! - disse Angela. - Eu sempre tive medo desse dia.
- Eu acho que nem sempre - retruquei.
- Uma vez ou outra eu tinha um pretendente no Natal que depois desaparecia como fumaça. Na época do Natal ainda faz um calorzinho aqui, de modo que a gente pode sentar lá fora no terraço para apanhar um pouco de sol. Lembro-me de que, há dois anos, na época do Natal nevou um pouquinho.
Ela pegou minha mão e prosseguiu: - No Natal faremos a troca de presentes, não é? Simplesmente alguns presentinhos. E eu... eu armarei uma arvorezinha bem enfeitada no nosso terraço. Você não está de acordo? Não acha que fica bem?
- Isso prova que você tem bom gosto.
- Vamos nos vestir bem nesse dia, não é? Depois trocaremos os nossos presentes. Não cantaremos nenhuma canção de Natal, não tenha medo. Iremos ambos ao Ambassadeur, o restaurante do Municipal, não é?
- Sim, Angela - respondi, mas não podia deixar de pensar que estávamos apenas no mês de junho.
- Devo fazer previamente a reserva de uma mesa com Mario, o chefe do restaurante. Uma mesa para duas pessoas. Une table pour les amoureux. Para as duas criaturas mais enamoradas deste mundo. Você sabe que na França o Natal é uma das festas mais alegres? A gente dança, ri e joga confete.
- Faremos tudo o que você quiser.
- E para festejar a entrada do ano-novo, iremos ao Ambassadeur. À meia-noite eles apagam todas as luzes para que as pessoas se beijem. Oh, como nos beijaremos, Robert! Depois, num verdadeiro festival pirotécnico, soltam fogos de artifício das janelas. É uma cena de beleza indescritível. A gente tem a impressão de encontrar-se no meio de um vulcão. Nestas festas de entrada do ano-novo, se estou acompanhada de um homem que não amo, sempre choro, choro também quando estou simplesmente acompanhada de pessoas amigas. Ultimamente tenho vindo em companhia dos Trabaud. Sempre tinha que achar um pretexto para as minhas lágrimas: a luz intensa dos fogos de artigo, a forte iluminação do salão ou coisa semelhante. A passagem de ano sempre foi um momento difícil para mim. Você me compreende, não é? Mas no próximo ano não terei mais dificuldades. Estaremos juntos. E o próximo ano será o nosso ano, não é?
- Sem dúvida!
- Mas no princípio certamente vou chorar um pouquinho...
Dois indivíduos com as roupas esfarrapadas estavam perto da nossa mesa. Cada um deles tinha um cartaz nos ombros. Num dos cartazes estava escrito: "Todas as terças-feiras haverá corridas de cavalos no hipódromo de Cagnessur-Mer". No outro lia-se: "Arrependei-vos, pecadores! Está próximo o fim do mundo".
Esses dois homens se conheciam. Apertaram-se as mãos e começaram a conversar animadamente. Pude observar como riam com gosto.
Capítulo 5
Nessa noite o mar estava agitado, embora o vento estivesse calmo. Entramos no Tetou, onde nos sentamos e ficamos comendo bouillabaisse (uma sopa de peixe, típica do sul da França), pois Angela, quando saímos de Juan-les-Pins, me dissera que estava com fome.
- Você gosta de bouillabaisse?
- Gosto muito. Espere, então é melhor irmos ao...
- Ao Tetou - disse rapidamente, pois me ocorrera que no dia da minha chegada pela primeira vez a Nice o chofer do táxi que me transportou a Cannes havia recomendado esse restaurante. - No Tetou é onde se prepara a melhor bouillabaisse de toda a costa.
Angela fitou-me surpresa.
- Como é que você sabe?
- Qualquer pessoa culta sabe disso - respondi, e ambos rimos.
A barraca de madeira na qual fora instalado o Restaurante Tetou, construída bem à beira da praia, ao lado da estrada, estendia-se até quase dentro da água. Era simplesmente um casarão de madeira, muito limpo no seu interior e pintado de branco. Mas não passava de uma barraca. Angela disse que seus proprietários eram rudes e estúpidos no atendimento da freguesia. Todas as mesas estavam colocadas num enorme salão e estava muito quente no seu interior. O sol batia no madeiramento durante todo o dia. Contígua a esse salão, havia uma varandinha com janelas de vidro. Por estar muito próxima da água, ela fora construída sobre estacas.
Nessa varandinha estava mais fresco e foi ali que encontramos lugar. Angela estacionara o carro no outro lado da rua, num parque livre, coberto por esteiras amarradas em sarrafos fincados no chão, que evitavam que o sol batesse nos carros durante o dia.
Uma vidraça da varanda estava aberta. Ouvíamos uns fortes ruídos semelhantes a resmungos. Eles eram ocasionados pelas ondas que, avançando sobre a areia, vinham bater bem debaixo do lugar onde estávamos sentados. Um pouco antes, lá dentro do mar, eram gigantescos vagalhões com a crista coberta de espumas. Fiquei admirado em ver como a ressaca produzia verdadeiros estampidos. O luar projetava-se sobre o mar revolto. Devido à agitação das ondas, os reflexos luminosos dançavam com grande rapidez sobre a água escura.
- Por que hoje a ressaca produz esses estrondos tão fortes? - perguntei.
- Ela os produz sempre - respondeu-me Angela.
- Não foi bem isso o que perguntei. Refiro-me a essas pequenas ondas que se estendem até aqui, vindo morrer debaixo dos nossos pés.
- Essas pequenas ondas de que você fala parece que não são perigosas. Entretanto, avançam com tanta velocidade e com tanta força que seriam capazes de derrubá-lo e arrastá-lo se você se envolvesse nelas. Mas não é lindo aqui?
- Sim. Mas devo dizer que quando você está perto de mim qualquer lugar é lindo.
Demorou um bocado de tempo até que nos servissem a sopa de peixe. Enquanto a esperávamos, ficamos comendo fatias de pão branco com manteiga e bebendo cerveja gelada.
Como já era do meu hábito, sentei-me ao lado de Angela e fiquei alisando as costas da sua mão direita, da qual havia desaparecido aquela manchinha.
- Aqui está um grande mistério da minha vida - disse ela. - Telefonei para um médico que conheço há muitos anos e ele me disse que não pode acreditar que a mancha tenha desaparecido. Ele não tem nenhuma explicação para isso.
- Mas nós temos uma, não é verdade?
- Sim.
Angela fitou-me e nos seus grandes olhos castanhos brilharam aqueles dois pontinhos dourados. Beijei a mão ela. Ela, levantando o copo, brindou:
- Le chaim!
- Le chaim! - correspondi.
Bebemos a nossa cerveja, que, de tão gelada, fazia doer os dentes.
Então, dando prosseguimento à nossa conversa, Angela passou a refletir que fora ótimo termos nos conhecido só agora, depois de contarmos com uma boa experiência da vida. Talvez, se tivéssemos nos encontrado antes, não fôssemos tão felizes assim.
Tínhamos que falar bem alto, pois as ondas faziam um ruído ensurdecedor.
Por fim ela me perguntou:
- Como vai seu pé?
- Perfeitamente bem.
E estava realmente bem, pois já fazia bastante tempo que não doía.
Capítulo 6
Por volta das dez horas entramos no carro para voltar para casa. Girando o volante, Angela dirigiu o veículo para a estrada, na qual o tráfego era ainda bem intenso. Os faróis dos carros que vinham em sentido contrário ofuscavam nossas vistas. À nossa frente seguia um Citroen a baixa velocidade, parecendo estar sendo dirigido com muita cautela.
- Esse sujeito me deixa doida! - exclamou Angela, procurando sempre ultrapassar o carro, mas em vão. - Sem dúvida ele deve estar bêbado e por isso dirige com tanto cuidado... Espere... parece que agora vai dar...
Quando nos encontrávamos quase emparelhados com o Citroen, este bruscamente acelerou a marcha. Um outro carro, vindo em sentido contrário, acendeu os faróis.
- Desgraçado! - bradou ela.
Angela pisou fortemente no freio. Então aconteceu o que tinha que acontecer. O Mercedes começou a derrapar, raspando de leve no Citroen, e descambou para a esquerda, em direção ao mar. Eu não pude dizer nenhuma palavra. Angela tampouco. Desesperada, ela girou o volante para um lado e depois para o outro. Mas não adiantou nada. O Mercedes continuou derrapando. Estava em alta velocidade. O carro que vinha em sentido contrário cortou a nossa frente, entrando na contramão, na direção do Citroen.
O Citroen, por sua vez, fazendo uma curva fechada, tomou a pista interior, ficando também na contramão. Os dois carros passaram um pelo outro com as buzinas estridulando. Nesse instante o carro que vinha em sentido oposto ao nosso aproximou-se tanto do Mercedes que pude ver os três rostos apavorados dos seus ocupantes. Foi por um triz que não chocamos violentamente. O Mercedes projetou-se para a beira da estrada, de onde caiu na areia, ficando ao alcance das ondas agitadas. O carro, sobre aquela areia que parecia desmoronar, foi ainda impelido fortemente para a frente. Então notei que a água ameaçava arrastar-nos. Angela desligou o motor. O carro era constantemente impelido para a frente e para trás. As ondas o atingiam a meia altura. Jatos de água batiam nos vidros das janelas.
- Saia! - gritei.
- Não consigo abrir a porta - respondeu-me Angela, estranhamente calma.
Eu também não conseguia abrir a porta do meu lado. A pressão da água estava muito forte. Então apliquei toda a força do meu corpo de encontro à porta. Meu coração parecia saltar pela boca de tanto esforço que fazia. Abriu-se uma fenda na porta e a água começou a penetrar no carro. Mas pelo menos isso possibilitou abrir a porta.
Depois de ter saído do carro, agarrei Angela e tentei arrastá-la para fora, mas de repente ela caiu sentada completamente encurvada. As ondas atingiam a altura do meu abdome e conseguiram derrubar-me. Engoli uma boa porção de água salgada, mas pus-me novamente de pé. Onde estava Angela? Lá estava ela com a cabeça pendente para fora do carro, toda inundada pelas ondas. Perdera os sentidos. Tentei puxá-la e arrastá-la, mas não consegui, pois ela era muito pesada para as minhas forças. Com o embate das ondas eu caía continuamente. Segurava a cabeça de Angela bem levantada, mas comecei a notar que as forças iam me faltando. Lá na estrada frearam dois carros. Os homens, correndo e lutando contra as ondas, aproximaram-se do lugar onde estávamos. Juntos, felizmente conseguimos tirar Angela do carro e arrastá-la, através daquele chão em declive, até a beira da estrada. O homem de um dos carros que pararam para nos socorrer disse:
- Vou avisar a polícia no posto mais próximo - e saiu imediatamente.
Colocamos Angela no acostamento, deitada num cobertor que o homem que nos socorrera trouxe do carro. Não demorou muito e ela recobrou os sentidos.
- Robert! - exclamou com o semblante horrivelmente assustado. - Que foi que aconteceu? Eu pisei firme no freio e não entendo como pôde ter acontecido isso. Sou uma pessoa que sempre dirige com muita segurança. Até hoje nunca...
- Sim, Angela, eu sei... mas acalme-se... Tudo está bem agora!...
- Mas, Robert, se tivesse acontecido alguma desgraça? Eu poderia ter ocasionado a nossa morte!
Ela começou a tremer. Dobrei o cobertor em torno dela e fiquei alisando seus cabelos e sua face.
- Tudo já está bem agora - disse.
E tive que repetir essas palavras por diversas vezes.
Nesse meio tempo alguns carros pararam e muitos curiosos se aglomeraram em nosso redor. Levou mais ou menos dez minutos até que o carro da polícia de Cannes chegasse. Três policiais uniformizados saltaram.
- Como foi que aconteceu isso? - perguntou-me o primeiro deles.
O segundo policial permanecia de pé ao lado dele, enquanto o terceiro obrigava os curiosos a seguirem o seu percurso, pois a estrada era estreita.
Contei-lhe tudo o que sucedera.
- O senhor está bêbado?
- Não.
Então, entregando-me um tubinho de vidro ao qual estava adaptado um saquinho de plástico, disse-me:
- O senhor quer soprar ou acha que podemos fazer uma prova de sangue?
- Por mim eu sopraria, mas não era eu quem estava ao volante.
- Era esta senhora quem dirigia o carro? - perguntou.
- Sim - respondeu Angela prontamente.
O policial nos mandou soprar nos saquinhos. Depois colocou os tubinhos de vidro dentro dos quais havia cristais sob a luz de uma lâmpada de bolso.
- Uma leve coloração esverdeada em ambos os casos - disse o primeiro policial.
- Havíamos bebido cerveja no jantar - expliquei.
- Eu mesmo posso declarar que os senhores não estão embriagados. Mas como foi que aconteceu esse acidente?
- No carro - respondeu Angela -, no carro deve haver algo errado. Tudo estava em ordem até chegarmos ao Tetou. Depois, então...
Neste exato momento lembrei-me de algo e exclamei:
- O homem!
- Que homem?
Passei então, a contar-lhe sobre o homem que vira mexendo na roda esquerda da frente do carro. Devia ter mexido no Mercedes enquanto almoçávamos; mas quem seria? A água escorria da minha cabeça.
- Mas por que ele faria uma coisa dessas? - perguntou-me o primeiro policial.
- Eu me chamo Robert Lucas.
- Sim, e daí?
- Será que o senhor pode avisar pelo rádio o Comissário Roussel do que se passou conosco?
- Roussel? O senhor, porventura, também está trabalhando nesse caso que...
- Sim.
- Caramba!
O policial dirigiu-se apressadamente ao seu carro e começou a falar ao microfone do seu transmissor. Depois de feita a comunicação aproximou-se de mim e disse:
- O comissário se encontrava ainda no Comissariado Central. Ele virá imediatamente.
Passados alguns minutos, chegou o carro-reboque. Dois mecânicos prenderam um cabo de aço ao eixo traseiro do Mercedes, que se achava profundamente imerso na água. Depois entraram no seu carro, no qual estava amarrado o cabo de aço, e puxaram o Mercedes para fora da água, arrastando-o até a estrada. Nesse meio tempo Angela refez-se completamente do choque e recobrou ânimo.
Embrulhada no cobertor, ela permanecia de pé ao meu lado. Exatamente no momento em que os mecânicos iam começar a examinar o Mercedes (os policiais também os ajudavam) parou no local um Peugeot preto que vinha de Cannes. Roussel, Lacrosse e Tilmant, o homem do Ministério das Relações Exteriores da França, saltaram do veículo, apresentei Angela a Tilmant e a Roussel. Lacrosse já a conhecia.
Eu ainda me encontrava com Roussel quando chegou a comunicação do acidente - disse Lacrosse. - Telefonamos imediatamente a Monsieur Tilmant, que estava no seu hotel, e ele resolveu nos acompanhar.
- Não é um acidente muito comum - disse-lhes, e passei a contar mais uma vez a história do homem que eu havia observado em Juan-les-Pins.
Mal havia acabado de fazer meu relato quando um dos policiais, que juntamente com os mecânicos examinava o carro, aproximou-se de nós dizendo:
- Já descobrimos o defeito. Está na mangueira de óleo do freio dianteiro.
- Que houve com ela? - interrogou Roussel.
- Foi afrouxada com um alicate. Ela está pendurada. Qualquer indivíduo poderia fazer isso e com rapidez. A gente sai com o carro e não nota nada, pois não cai nem uma gotinha de óleo enquanto não se aciona o freio. Mas quando se pisa no freio todo o jato do esguicho vai para o ar e nem uma gota atinge a sapata da roda. O carro não pode ser freado e derrapa. Quem fez isso queria liquidar com os que estavam dentro do carro ou, pelo menos, provocar um terrível acidente.
Houve uma pausa um tanto prolongada.
Lacrosse e Roussel foram eles próprios examinar a mangueira de óleo do freio. Depois chamaram-me para mostrar-me o defeito. Então voltamos para junto de Angela e do calmo Gaston Tilmant.
- Bonito! - exclamou Lacrosse com uma voz de indivíduo decepcionado. - Tentativa de assassinato. Finalmente, mais uma bela novidade!
Durante alguns segundos a fisionomia de Tilmant apresentou uma expressão de tormento.
- Tentativa de assassinato... - Angela fitou-me. - Mas por quê, Robert? Por quê? O que foi que fizemos?
- Você, nada. Eu, muita coisa - respondi-lhe.
- Mas não digam uma palavra em público, compreenderam? - Lacrosse procurava atingir principalmente Tilmant com a sua pergunta. - Acidente de tráfego. Falhas técnicas. Felizmente não aconteceu nada de maior importância. Uma noticiazinha de três palavras no Nice-Matin e... caso encerrado!
- Caso encerrado, não - retrucou Tilmant. - Com a divulgação do fato, sua situação se tornaria ainda pior, Monsieur Lucas.
- Oh, pare com isso! - Lacrosse parecia estar fora de si. - Bem sabemos por que tudo o que acontece deve ser relatado com suavidade romântica. Como o senhor disse, vai indo tudo muito bem, Monsieur Tilmant! Se o senhor acha essa é a maneira mais acertada, se acha que pode responsabilizar-se ...
- Cale-se, Louis! - bradou Roussel. - Monsieur Tilmant, como você bem pode ver, não tem nenhum prazer com isso. Ele recebeu instruções para proceder assim.
- Não estou compreendendo nada - disse Angela.
- Que significa toda essa conversa, Monsieur Tilmant?
Os policiais haviam mandado os últimos curiosos retirarem-se. Os carros passavam por nós ao longo das pistas. Ficamos só nós parados no local, formando um pequeno grupo.
- Monsieur Lucas lhe esclarecerá depois, madame - respondeu Tilmant. - Ele bem sabe que não posso agir de outra maneira. Seu carro será rebocado até a oficina Mercedes, em Cannes, e lhe será entregue, depois, em perfeito estado. A senhora tem certeza de que se encontra bem?
- Sim, sem dúvida. Só que estou começando a sentir frio.
- Agora um carro da polícia vai levá-la para casa. Espero contar com sua discrição sobre esse caso, madame, depois que Monsieur Lucas lhe der todos os esclarecimentos. Todos os que aqui se encontram presentes ficarão calados, não é verdade, meus senhores?
Ninguém respondeu. Eu perguntei:
- Não é verdade que todos ficarão calados? Pouco a pouco, mas com lentidão, os homens foram
respondendo afirmativamente. Um após o outro e por último Lacrosse.
- Obrigado! - disse Tilmant. Conduziram-nos ao carro da polícia. Ajudei Angela a
subir e sentei-me ao seu lado. Depois que o carro arrancou, virei a cabeça e, através da janelinha traseira, vi Gaston Tilmant: ele se achava de pé... um pouco distanciado dos outros... sozinho. Ficou olhando nosso carro, que partia. Estava com os ombros caídos. Parecia a imagem viva da tristeza e da impotência.
Capítulo 7
- Eu compreendo Tilmant - disse-me Angela, que se achava estendida na cama. Eu estava nu, sentado perto dela. Logo que chegamos a casa tiramos nossas roupas molhadas. - Ele foi forçado a aceitar essa missão. Seus olhos têm uma expressão de bondade. Certamente ele é um homem bom, mas tem que se desincumbir dos seus encargos.
- É verdade - respondi. - Você já se esquentou de novo? Está sentindo frio ainda?
- Estou maravilhosamente bem, Robert... Tenho medo que lhe aconteça algo, Robert...
- Bobagem!
- Não, não se trata de nenhuma bobagem. Eles querem ver você morto. Oh, meu Deus! Se acontecer algo a você, que farei?
- Não me acontecerá nada! - disse, pensando: "Tomara que nada me aconteça mesmo!... Contudo, esta noite pouco faltou para que acontecesse..."
Repentinamente Angela sentou-se na cama e me abraçou.
- Eu tenho medo! Um medo horrível! Venha para bem juntinho de mim, Robert! Venha logo! Eu quero sentir o seu contato.
Atirei-me então sobre o corpo de Angela e fizemos amor com uma fúria selvagem. Por fim, separei meu corpo do dela e desliguei a lâmpada da mesa-de-cabeceira. Fiquei deitado no escuro com os olhos abertos. Eu ouvia o barulho dos trens que rodavam lá embaixo, perto do mar.
Peguei no sono e foi Angela quem me despertou. Ela apertou meu braço e me chamou pelo nome. Não foi sem dificuldade que consegui despertar.
- O que... o que é que há?
- Perdoe-me, meu amor, por ter despertado você. Mas tenho que lhe mostrar algo.
Ela estava de pé, nua, à beira da cama, e curvou-se sobre mim.
- Que horas são?
- Cinco e meia. Não pude mais dormir. Fiquei de pé caminhando no terraço. Foi então que vi uma coisa.
- O quê?
- Venha! Vou mostrar-lhe.
Pulei da cama e segui-a até o terraço, onde se via um mar de flores inundado pela fulgurante luz do sol, que já havia despontado. Lancei, então, meu olhar na direção da cidade e passei a contemplar, lá embaixo, aquelas casas brancas e o mar calmo.
- Não é lá para baixo que você deve olhar. Olhe ali cima, naquela encosta - apontou com a mão -, perto dos ciprestes.
Sobre a íngreme encosta que ficava atrás do edifício vi eme ela me mostrava: uma amendoeira coberta de flores vermelho-rosadas. A luz matinal dava-lhe um aspecto misterioso e encantador.
- Faz anos que observo essa árvore. Nunca a vi florescer no mês de junho. Mas agora ela se acha cheia de flores! Lembra-se dos monges que visitamos e da lenda da amendoeira de Saint-Honorat?
- Sim, lembro-me.
Ela correu para o quarto e voltou de lá trazendo uma máquina fotográfica.
- Tenho que fotografar essa árvore. Ela floriu para nós, Robert. Quero organizar um álbum contendo as fotografias das coisas que só para nós têm significação. E essa será a primeira fotografia.
Bateu a chapa e depois disse-me sorrindo:
- Agora volte para a cama... Bem ligeiro! Você sabe por quê...
A piscina vazia, sob a intensa luz do sol, parecia resplandecer na sua brancura.
Como eu, também Paul Seeberg estava de calça e camisa. Cada dia que passava, o calor ia aumentando mais. Caminhávamos de um lado para o outro sob um teto de folhagem, passando entre cedros, oliveiras e palmeiras. Era uma hora da tarde e reinava profundo silêncio no parque.
Praticamente surpreendi Seeberg com meu pedido para uma entrevista, logo após o seu regresso da Alemanha. Eu lhe telefonara com o espírito preparado: ele poderia recusar receber-me ou, talvez, só marcasse o, nosso encontro para alguns dias mais tarde. Entretanto, respondeu-me que teria prazer em receber-me imediatamente para responder as minhas perguntas. Por isso tomei logo um táxi e dirigi-me àquela mansão.
Relatei-lhe o que me havia contado Fred Molitor, autorizado, ao que parecia, pelo próprio Seeberg. Não disse nada com relação às visitas que fiz a diversos banqueiros e nem que eu ficara sabendo do congresso de banqueiros realizado no Frankfurter-Hof.
Seeberg respondeu-me:
- Fred Molitor disse-lhe a verdade.
O procurador-geral do banco de Hellmann, mesmo trajando só calça e camisa, conservava o aspecto imponente de um banqueiro supercorreto que trata de todo e qualquer assunto com a máxima seriedade. Prosseguiu:
- Molitor telefonou-me contando o que presenciara e sugeri que ele relatasse tudo ao senhor. Foi de algum proveito para as suas investigações o que Molitor lhe contou?
- Ainda não posso dizer nada. Achei melhor falar com o senhor primeiro.
- Procurarei ser-lhe útil no que me for possível. Ele continuava recendendo a Grès pour Homme. Tinha
uma aparência jovial. Seus trabalhos em Frankfurt, as viagens de avião, a mudança de clima, ao que parecia não lhe ocasionaram o mínimo transtorno. Ele continuou:
- Não é preciso dizer-lhe o quanto me consternou a declaração de Molitor.
- Eu bem posso imaginar! Deve ter sido chocante para o senhor saber que o seu chefe revolvera as gavetas da sua mesa, o cofre, o seu armário de documentos, vasculhando a seção em que o senhor trabalha, como se o senhor fosse um criminoso.
Falei assim com o intuito de provocá-lo e ele, de fato, reagiu com veemência:
- Criminoso?! Por quê?! Não, não, eu absolutamente não penso assim.
- Permita-me...
- Não. Nada de "permita-me". Já imagino o que o senhor está presumindo. Peço apenas que atente bem para o que vou dizer: o caso não é bem assim como o senhor pensa. O Sr. Hellmann não tinha necessidade de esquadrinhar a minha seção para o fim que o senhor imagina, isto é, procurar documentos que eu, tal qual um criminoso, houvesse escondido por terem sido preparados sem o seu consentimento e dolosamente assinados. Em suma, ele não tinha necessidade de procurar nenhum tipo de papel relacionado com operações bancárias.
- Por que ele não tinha necessidade de fazer isso?
- O senhor não conhece o funcionamento de um banco, Sr. Lucas. Ele não tinha necessidade de remexer nos papéis em meu poder porque nada no banco podia ser feito sem que o Sr. Hellmann automaticamente tomasse conhecimento prévio. A ele é que cabia aprovar, ordenar, executar eraçÕes.
Eu sou, na verdade, um procurador munido de amplos poderes, mas não possuo um banco dentro do banco. A seção de câmbio pertence à casa como as demais seções.
- Assim sendo, o Sr. Hellmann não podia esperar encontrar algo dentro da minha seção que ele desconhecesse.
Seeberg permanecia de pé perto de uma coluna encimada por uma estátua de Jano, o deus bifronte, que com uma face contemplava o passado e com a outra o futuro.
- Mas não poderia desconfiar de que não iria encontrar nada? Explico-me: considerando que o vigia Fred Molitor me declarou que ele se achava excessivamente nervoso, não estaria ele suspeitando ou temendo que qualquer documento tivesse desaparecido?
__ Contemplando o passado... contemplando o futuro... É o que estou fazendo no momento - respondeu-me Seeberg, olhando, como que absorto, o busto bifronte de Jano, - Certamente o Sr. Hellmann poderia ter temores dessa espécie. Mas que tipo de documento seria esse? Na hipótese de tratar-se de papéis relativos a transações, acho até absurdo dar sumiço a documentos de que os clientes, como partes interessadas, dispõem de cópias. Isso parece-me óbvio.
- Sim. Mas admitamos, apenas para argumentar, que o senhor fosse um dirigente mal-intencionado que tivesse efetuado, em conluio com outros elementos, operações ilícitas sem o conhecimento do banco ou de Hellmann. Então...
- Mas essa é uma suposição ridícula - redargüiu Seeberg, interrompendo-me. - Além do mais, se eu tivesse algum documento para esconder, não o teria deixado no banco, mas o teria levado quando viajei ao Chile.
- Ah, é verdade, o senhor esteve no Chile.
- A fim de participar da Conferência Mundial de Comércio. O congresso começou no dia 13 de abril. Mas no dia 29 de março eu já havia tomado o avião para lá.
- Então o senhor só ficou sabendo dessa busca noturna de Hellmann na sua seção através do telefonema de Molitor?
- Exato. Assim que recebi a comunicação da morte de Hellmann no acidente com o seu iate, tomei imediatamente o avião para Nice a fim de dirigir-me a Cannes e prestar assistência à Sra. Hellmann.
- Por que, então, o senhor ficou tão chocado... conforme o senhor próprio declarou... com as informações de Molitor?
- Santo Deus! - exclamou Seeberg, sentando-se num banco de pedra próximo à coluna encimada pela estátua de Jano. - O senhor me pergunta isso? Até o momento de receber esse telefonema, eu só admitia a hipótese de acidente ou de assassinato, aliás, como supunham todos aqui, inclusive a Sra. Hellmann.
- Mas eles continuam ainda acreditando que houve assassinato - ponderei.
Ele não ouviu minhas palavras e começou a falar rapidamente:
- Depois do telefonema cheguei à conclusão de que só poderia haver uma explicação: o Sr. Hellmann não estava lá à procura de quaisquer papéis, mas sim para dar sumiço a alguns papéis.
- O senhor mesmo afirmou há pouco que são tiradas diversas cópias de todos os papéis relacionados com operações bancárias.
- Pode ser que ele estivesse tentando apanhar tais papéis para levá-los consigo a fim de encobrir algum caso. Talvez ele nada tenha conseguido. Talvez a tragédia se tenha verificado precisamente por isso.
- Quer dizer, então, que o senhor não acredita mais em assassinato nem em acidente?
- Exato, Sr. Lucas.
- Em que é que o senhor acredita agora? Explique-se, por favor!
- Em suicídio! - respondeu-me o procurador-geral do banco de Hellmann. - Suicídio por causa de uma situação irremediável e irreparável.
Capítulo 9
Seeberg disse-me:
- Não comuniquei nada à Sra. Hellmann por causa do seu estado. Mas, ao senhor, contarei toda a verdade. A verdade de tudo o que pude verificar em Frankfurt juntamente com o Sr. Grosser, o primeiro-procurador que ficará à testa dos negócios do banco até que eu possa voltar definitivamente para Frankfurt. E essa verdade não é muito bonita. Mesmo assim não me esquivarei de relatá-la ao senhor. Durante a minha ausência, o Sr. Hellmann e John Kilwood efetuaram compras de libras esterlinas e concederam créditos nessa moeda. Essas operações, efetuadas antes da desvalorização da libra, equivaliam a quinhentos milhões de marcos.
- É realmente uma revelação muito bonita. Kessler, o caçaador de sonegadores de impostos, também descobriu isso.
- Então o senhor já tinha conhecimento desse fato?
- Sim.
- E o senhor ficou sabendo também que o Sr. Hellmann comprara as libras por ordem de Kilwood?
- Sim.
- E que ele, Hellmann, cometeu a inconcebível loucura de não transferir imediatamente as libras adquiridas ao Banco Central, sofrendo, por isso, um prejuízo de quarenta milhões de marcos com a desvalorização dessa moeda?
- Essa ocorrência também me foi revelada - respondi.
A essa altura do diálogo comecei a conjeturar que Seeberg talvez se mostrasse com tão boa disposição para prestar informações por ter chegado à conclusão de que não lhe restava outra alternativa.
- O banco, por causa disso, não irá sofrer qualquer abalo de monta. Para evitar qualquer descalabro, nesse meio tempo já tomei as devidas providências. Os negócios continuarão. Mas o senhor pode conceber a razão por que essas libras não-transferidas ao Banco Central estão em poder do banco? E o motivo da concessão de crédito em libras antes da desvalorização dessa moeda? Qual teria sido a intenção do Sr. Hellmann?
- Não sei. E na verdade sei menos do que o senhor.
- Oh! - exclamou ele. - Então o senhor quer dizer que eu sabia de algo antes? Mas o que o senhor pensa não está certo. Realmente eu nada sabia e nada sei... Ninguém sabe nada. Pelo menos ninguém entre as pessoas possuidoras de conhecimentos especializados sobre o processamento de tais modalidades de operação pode compreender isso.
- As pessoas possuidoras de tais conhecimentos especializados são o senhor, esse tal Primeiro-Procurador Grosser, Sargantana, Fabiani, Thorwell e Tenedos, não é verdade? Enfim, para resumir nossa conversa, Sr. Seeberg: eu também estou a par de que todos esses senhores, inclusive Kilwood, faziam parte de uma organização multinacional - a Kood, essa gigantesca empresa que se dedica ao ramo da eletrônica, a qual tem o banco de Hellmann como seu principal banco e converge para ele todas as suas operações.
- E que tinha John Kilwood como procurador munido dos mais amplos poderes - emendou ele.
- Exato! - disse, passando a observar a cabeça de Jano. Há quantos séculos ele existiu? Na verdade eu teria muito mais satisfação em contemplar o passado e o futuro do que em estar ali discutindo sobre as atividades do banco de Hellmann.
- Eu não estou lhe ocultando nada. Nem mesmo deixo de declarar que o nosso banco, por ordem de Kilwood, na sua qualidade de representante do grupo, com muita freqüência fazia transações específicas em divisas, tais como a aquisição de moedas fracas antes da sua desvalorização. Entretanto, o Sr. Hellmann sempre transferia imediatamente essas moedas ao Banco Central, evitando, desse modo, prejuízos que poderiam decorrer da sua oscilação.
- Diga-me conscientemente, Sr. Seeberg: do ponto de vista moral, o senhor acha lícitas tais transações?
- Trata-se de operações legais. E isso é o que importa. Um banqueiro não deve fazer o que não seja legal. O dinheiro tem a sua própria moral, garanto-lhe. Minhas palavras parecem cínicas, embora eu não seja nenhum cínico. E também não sou hipócrita.
- Ao contrário do Sr. Hellmann - acrescentei.
- Que é que o senhor está insinuando? Essa é boa! - Ele mordeu os lábios. - Porventura o senhor ficou sabendo do discurso que o Sr. Hellmann pronunciou no Frankfurter-Hof exatamente naquela noite em que, como o senhor disse, ele vasculhou a minha seção lá no banco? O senhor sabe o que ele afirmou acerca da ética dos banqueiros e das suas responsabilidades perante a sociedade, ou coisa semelhante?
- Sei, Sr. Seeberg.
Ele calou-se. Esperei algum tempo, depois prossegui:
- O senhor não quer fazer nenhum julgamento com relação ao seu chefe, não é verdade?
- Nunca se deve falar mal dos mortos.
- Parece evidente que ele não deixava de agir com uma boa dose de hipocrisia quando fazia tais transações. O senhor mesmo me afirmou que o dinheiro tem a sua própria moral. Eu acho que as pessoas que fazem o dinheiro girar nos seus negócios se esquecem completamente de que o destino de milhões depende desse dinheiro. Para eles o dinheiro é uma coisa qualquer e uma coisa não tem moral alguma. No exercício das suas atividades eles automaticamente se tornam amorais.
Afora esse aspecto, isto é, a sua faina em girar o dinheiro, eles podem ser bons ou maus... exatamente como são, falando de um modo geral, todas as pessoas E muitas vezes até procuram compensar o desagrado que provocam no seio da coletividade humana. Fazendo tais citações, não posso deixar de pensar em Rockefeller, em Carnegie, bem como nos hospitais, nas escolas e nas coleções de obras de arte que eles presentearam ao povo, agindo como verdadeiros mecenas e sentindo a necessidade de praticar
algum bem. Mas só fora das suas atividades profissionais.
- Fale com calma e diga tudo o que o senhor pensa. É bem possível que o senhor esteja com a razão.
- Claro que estou! - respondi, dando ênfase às minhas palavras. - Qual é a hipótese que o senhor tem para explicar o comportamento do Sr. Hellmann após o seu discurso em Frankfurt, Sr. Seeberg?
- Posso fazer apenas uma vaga conjetura.
- Qual especificamente?
- Talvez ele tenha se sentido profundamente afetado por causa dessas vultosas transações com Kilwood, passando a temer pela sua boa reputação.
- Boa reputação! - repeti. - Entretanto não é lá muito decente fazer o que o seu banco e o Sr. Hellmann faziam.
- Mas era legal.
- Isso é o que o senhor diz. O senhor, pessoalmente, acha isso decente. Mas, diga-me, orgulha-se desse procedimento?
- Não.
- Que é que o senhor está dizendo?! Estará agora se revelando como pessoa dotada de sentimentos morais?! Sr. Seeberg, até o presente momento eram muito convincentes as suas palavras.
- Eu sei. Agora elas deixaram de ser - respondeu ele simplesmente.
- Por que o senhor tenta impedir que se façam acusações contra o seu falecido chefe?
Ele sacudiu os ombros. Prossegui:
- Também com Kilwood deve ter-se passado algo, do contrario não teria se decidido a fazer auto-acusações num relato que lhe custou a vida, só porque alguém queria impedir... tinha forçosamente que impedir... que ele fizesse outras declarações dessa natureza. Quem, na sua opinião, poderia ser essa pessoa, Sr. Seeberg?
- Isso eu não sei, Sr. Lucas. Além do mais, fui solicitado a manter uma conversação hoje à tarde com Monsieur Tilmant, o representante do governo francês. E posso garantir-lhe que também a ele declararei as mesmas coisas que acabo de declarar ao senhor.
- Mas isso não será comprometedor?
- Pelo contrário, Sr. Lucas! Monsieur Tilmant foi enviado para cá com uma incumbência determinada, como o senhor bem sabe. Agora tenho apenas de pensar em manter o alto conceito do nosso banco. Precisamente por isso estou decidido a prestar todos os informes de que disponho a esse homem a quem o governo francês incumbiu a importante missão de evitar... com relação a este caso... todo e qualquer ato capaz de alarmar o público. Que poderei fazer de mais sensato?
- O senhor tem razão - disse.
Ficamos nos fitando durante um certo tempo e então ambos passamos a olhar a cabeça de Jano. Seeberg contemplava a face que perscrutava o futuro e eu a outra, que projetava o seu olhar para o passado...
Capítulo 10
Nessa mesma tarde encontrei-me com Roussel, Lacrosse e Kessler, relatando-lhes toda a conversa que mantivera com Seeberg. Estávamos sentados no gabinete de Lacrosse, no antigo porto. Os ventiladores giravam furiosamente, mas mesmo assim o suor escorria pelas nossas frontes. Depois que terminei o meu relato, Roussel disse:
- Pobre Tilmant! Deram ao homem uma incumbência que é uma verdadeira merda. E esse tal Seeberg é uma raposa muito ladina. Praticamente ele tem força suficiente para obrigar o governo francês... e com isso também o governo alemão, bem como os de outros países... a proteger com blindagem o banco de Hellmann. Não há dúvida de que ele fará isso.
- Você descobriu muitas coisas, mas não tudo - disse eu a Kessler.
Ele reagiu de maneira agressiva:
- Eu havia falado com Kilwood! Ele confiou em mim. Espremi-o o quanto pude. Que posso fazer se ele não me contou tudo ou se, em parte, mentiu? Em resumo, em Düsseldorf eu já havia revelado a você, na sua essência, quase a mesma coisa que você acabou de dizer agora.
- Você não sabia nada acerca da empresa multinacional a qual se acha envolvida toda aquela turma, com exceção de Trabaud? - perguntei-lhe.
- Está certo! - Ele foi postar-se um pouco mais atrás. - Mas agora já sabemos de tudo. Portanto, todos eles são suspeitos.
- Sim todos - confirmei. - Como vai sua filhinha, Monsieur Lacrosse?
- Oh, felizmente a fase pior da doença já passou! - respondeu-me, com uma expressão de amabilidade no rosto e meneando a cabeça. Depois ficou sério e prosseguiu: - Temos aqui uma cabale. Sim, uma verdadeira cabale!
Tive dificuldade em captar o significado dessa palavra francesa, visto não existir em alemão um vocábulo correspondente. Cabale, naquele idioma, tem uma acepção de tal amplitude que poderíamos defini-la melhor como: uma súcia de indivíduos misteriosos, cheios de segredos, obrigados por juramento a se manterem estritamente solidários em todas e quaisquer circunstâncias.
Lá pelas seis horas dirigi-me, de táxi, ao apartamento de Angela. Eu lhe telefonei, mas ninguém atendeu, muito embora ela me tivesse dito que permaneceria em casa trabalhando durante toda a tarde. Tive um mau pressentimento. Que poderia ter-lhe acontecido? Quando ela me abriu a porta, minha inquietação aumentou. Ela cumprimentou-me amavelmente, mas com frieza. Tentei dar-lhe um beijo na boca, mas ela virou o rosto. Fugiu de mim indo para o terraço. Segui-a. Ela sentou-se na cadeira de balanço. Fiquei de pé diante dela encarando-a, mas ela não pronunciou uma palavra sequer. Suas mãos, enquanto acendia um cigarro, tremiam um pouco.
- Que é que há com você, Angela?
- Hoje tive uma visita. Faz mais ou menos uma hora.
- Quem esteve aqui?
- A Sra. Inge Dreyer.
- Quem?!
- Você me entendeu bem. A amiga de sua mulher. Ela veio de Juan-les-Pins de carro, conforme me disse. Encontrou meu endereço na lista telefônica. Naquele nosso encontro no Chèvre d'Or, eu lhe havia pronunciado meu nome bem alto e com clareza, ao contrário do que você fez.
- Que você quer dizer com isso?
- Que você citou meu nome de maneira inaudível, falando entre dentes.
- Eu queria evitar possíveis incômodos a você.
- Sim, evidentemente. Foi isso mesmo o que pensei.
- Angela, por que está falando assim comigo? Tentei abraçá-la, mas ela se esquivou, dizendo-me:
- Deixe-me, por favor!
- Realmente, não estou entendendo nada! Que queria essa mulher com você?
- Essa mulher - sua voz de repente adquiriu um timbre de tristeza, mas ela passou a falar sem raiva - telefonou à sua esposa logo depois do nosso encontro em Eze. Imaginei que ela iria fazer exatamente isso.
- Eu também. E o que tem isso a ver conosco? Para nós pouco importa...
- Sim?! - interrompeu-me Angela, com a voz quase sumida. - Para você pouco importa, não é verdade, Robert?
- Que é que você está dizendo, Angela? Por favor, Angela, o que foi que aconteceu?
- Sua mulher, pelo telefone, contou uma porção de coisas a seu respeito. Depois escreveu a ela uma carta bem explicativa. Expressa, via aérea. A carta chegou hoje. A Sra. Dreyer simpatizou muito comigo e por isso julgou do seu dever mostrar-me essa carta. Aliás, pode-se dizer que ela foi incumbida de fazer isso.
Angela enfiou a mão num dos bolsos do casaco.
- Aqui está a carta! - disse ela, entregando-me um envelope.
Reconheci logo a letra de Karin.
- Leia! - ordenou-me Angela com uma voz tão fraca, que mal soava.
Comecei a ler:
"Minha querida Inge!
Foi uma grande delicadeza da sua parte telefonar-me para me dizer que encontrou Robert em companhia de uma mulher e que ambos se beijavam e se abraçavam como um lindo e despreocupado par amoroso. Pelo telefone, só em rápidas palavras pude dizer-lhe o que se deve pensar de tudo isso e qual é minha opinião a esse respeito. Agora escrevo-lhe com mais detalhes para que você não se preocupe...
Muito diferente do que você e seu marido pensaram e forçosamente tinham que pensar assim ao ver Robert com tal comportamento - é a realidade do fato. Você compreenderá facilmente essa realidade depois de ter lido o que ora lhe escrevo.
Nós acompanhamos os tempos modernos e temos uma vida conjugal bastante feliz. Para tanto, nós há muito tempo combinamos que cada um seguisse livremente o seu próprio sistema de vida, mas que permaneceríamos sempre juntos, amando-nos mutuamente com um amor enraizado nas profundezas de nossas almas. Note bem, querida Inge: você e seu marido levam a vida habitual de um casal feliz, sempre em harmonia. Conosco é um pouco diferente. Quanto mais ficamos dependentes um do outro no plano espiritual (nada, nada e nada jamais seria capaz de nos separar e jamais eu trocaria Robert por outro, nem ele jamais me trocaria por outra), tanto mais ficamos - que já contamos dez anos de casados - acostumados um ao outro no que diz respeito às práticas sensuais e eróticas. Continuamente procuramos novos meios para satisfazer nossos ardentes desejos. Precisamos constantemente experimentar coisas novas. Talvez você me condene pelo fato de eu estar lhe dizendo esta verdade acerca da nossa vida íntima e falando a respeito de nossas experiências eróticas constantemente renovadas e da nossa permanente necessidade de experimentar coisas novas e estranhas, mas devo dizer-lhe que tudo isso não tem a mínima influência negativa no nosso casamento. Pelo contrário, ficamos cada vez mais unidos um ao outro. Que pensa você? Você nem imagina como ficam ligadas duas criaturas quando, de comum acordo, se permitem tanta liberdade assim! Todos os homens que possuí não podem de forma alguma desbancar Robert e ele continuamente me diz que a mesma coisa acontece com ele com relação as mulheres ou moças que ele consegue. Quando ele regressa das suas viagens, conta-me suas aventuras, descrevendo nos seus mínimos detalhes até as mais íntimas situações na cama, com aquele seu humor que você bem conhece, minha amiga. Ele faz troça daquelas vacas bobalhonas, pobres buchos de rabo sujo, às quais ele, em todas as partes do mundo, sempre confessa o seu maior amor. Depois ele descreve para mim, com a força interpretativa de um grande ator, todas as cenas íntimas vividas no contato com essas coitadas. E você nem pode imaginar como, para mim, é tão xcitante tudo o que ele me conta. Que prazer indizível sinto com isso!
Eu também lhe descrevo minuciosamente todas as minhas experiências nos meus casinhos com homens. E isso nos deixa a ambos completamente loucos!"
Deixei o papel cair no chão e fitei Angela, que desviou de mim o olhar e passou a observar lá embaixo a cidade e o mar.
- Angela: Mas isso é o cúmulo! É uma carta cheia de mentiras, maquinada com a finalidade única de me atingir em cheio... Ela foi escrita para ser entregue a você, propositadamente - exclamei em altos brados. - Esta carta não tem uma única palavra verdadeira! Ela é a manifestação do ódio irreprimível de uma esposa abandonada. Angela, eu lhe peço...
- Continue lendo!
Continuei:
"Que pensa você então que se passa conosco, Inge, depois de fazermos todos esses comentários sobre os nossos experimentos? Poderão chamar a isso de perversidade. Muito bem! Mas eu lhe digo que para mim é a melhor coisa do mundo, pois passamos todo o dia na cama bem agarrados. Nós nos lançamos um contra o outro como dois animais que não podem conter o impulso dos seus instintos. Ah, minha cara Inge, bem sei que você tem um bravo marido, cheio de pujança máscula, e que você também é uma mulher sólida, capaz de satisfazer os desejos dele, mas acho que vocês não poderão compreender-nos. Entretanto, o que fazemos não passa da simples aplicação do método que resolvemos adotar desde o princípio para conservar intacta, como no primeiro dia, a nossa felicidade conjugal.
É claro que Robert já me disse que havia encontrado em Cannes essa tal Angela Delpierre e que tinha a intenção de repetir com ela um dos seus grandes shows - que é como chamamos tais encenações. Ele esteve aqui numa rápida visita, depois regressou a Cannes. Certamente ele já declarou a essa pobre mulher, a qual talvez seja linda e amável, que ela é seu único amor neste mundo!..."
Neste ponto, sem poder conter-me, bradei:
- Mas isso é uma infâmia! Uma grande infâmia!... Prossegui a leitura da carta:
"Certamente ele já lhe disse que não poderá mais viver sem ela e que seu casamento há muitos anos está praticamente desfeito. Enfim, é bem provável que ele já lhe tenha " tudo o que se faz necessário para uma boa encenação, você me compreende, não? Quando você me disse ao telefone que a mulher lhe causou uma boa impressão, inicialmente nem quis dar-lhe ouvidos, pois já sabia há muito tempo como se passam as coisas. Entretanto, mais tarde, refletindo melhor, tive um certo escrúpulo. Esse tipo de representação combinada, como sempre fazemos eu e Robert, deve ter um limite! E esse limite situa-se exatamente no ponto em que outras criaturas começam a se tornar infelizes Antes eu nunca havia pensado nisso. Já tentei telefonar a Robert pedindo que ele acabe com essa comédia, mas você sabe como ele é. Ele me surpreendeu com uma daquelas suas anedotas cheias de espírito e bem apimentadas, e eu quase me rebentei de tanto rir. Por isso escrevo-lhe agora e peço que mostre esta carta à mulher com a qual Robert agora está representando uma das suas costumeiras comédias. Peço a ela que perdoe Robert como também a mim, pois não sou melhor do que ele. Não devo esperar que ela tenha compreensão por tudo o que Robert fez e está fazendo com ela, pobre coitada! Tenho pena dela e pela primeira vez sinto-me envergonhada com o que eu e Robert há muitos anos vimos fazendo. Mas temos que acabar com isso. Assim não pode continuar. Telefone-me, querida Inge, e transmita meus cordiais cumprimentos ao seu marido.
Desejo que tenham ainda uma boa estada por aí, gozando suas férias. Deve ser um passeio encantador, pelo que você me escreveu.
Abraça-a sua antiga amiga Karin."
- Angela - disse -, você não acreditou em uma só palavra desta carta, não é verdade?
Ela não me respondeu e continuou contemplando o mar.
- Angela, por favor!
- Essa Inge Dreyer deu-me a impressão de estar sinceramente angustiada com minha situação. Eu mesma conheço diversos casais que procedem assim.
- Mas eu não faria uma coisa dessas!
- Por que você está gritando?
- Eu tenho que gritar! Essa carta é um absurdo! Eu mo você, Angela. Somente você! Você é a razão de ser da minha vida. Será que não percebeu isso ainda? Será que você não tem sentimento? Não lhe tenho dado provas do meu amor? Já abandonei Karin e me retirei para um hotel...
- Sim... - disse ela, procurando pôr um tom de ironia na voz. - Quantas vezes você já fez isso em sua vida? Ou você já não se lembra mais?
- Você... você não pode acreditar naquela mentirosa - disse, cheio de pasmo. - Nem é possível que dê crédito a essas palavras. Angela, por favor! Será que depois dessa nossa convivência você ainda acha que deve acreditar em tais mentiras?
- Ah, já sei... Tudo isso faz parte das suas encenações, não é verdade? Depois, quando você estiver em sua casa, vai descrever à sua mulher todas as cenas que se passaram conosco... O que fizemos e dissemos na cama... Como nos comportamos...
- Jamais voltarei para junto dela!
- Você está gritando de novo! - advertiu-me Angela. - Por favor, não grite. Eu também sou uma criatura humana.
- Angela, juro-lhe pelo nosso amor que se trata de uma mentira infame!
- Você sempre jura pelo seu amor, não é verdade?
- Eu só tenho um amor: você!
- Não é sempre assim que você diz?
Comecei a ficar furioso.
- Você, Angela, é uma mulher inteligente. Como é que acredita nas infâmias desta carta? Como pode duvidar de mim?
- Não sei.
- Mas você duvidou, não é verdade? Ela não me respondeu.
- E você ainda duvida de mim, não é?
- Você bem sabe as dolorosas experiências que eu já tive com os homens. Depois de sofrer o que sofri, a gente duvida facilmente de qualquer um e fica sempre com medo. Ou a gente forçosamente terá que se tornar mais realista. Você não está fazendo uma das suas brincadeiras comigo, Robert?
- Angela - disse, já sentindo que o sangue me subia à cabeça. - Desse jeito não dá para conversarmos!
- Não?! Por quê? Você é tão sensível assim? Mas... um homem que tantas vezes já representou papéis dessa natureza, como pode ter tamanha sensibilidade? Ah, eu havia esquecido, isso naturalmente faz parte das suas encenações. Desta vez quando chegar a casa, você terá uma porção de coisas para contar.
Fiquei muito aborrecido, mas não suportava mais ouvir Angela falando desse jeito.
- Angela, eu lhe suplico, seja sensata!
- Eu sou bem sensata - retrucou ela. - Não tenha medo Robert, não vou atirar você lá para baixo. Deve ser na realidade bem excitante o seu sistema de vida com Karin.
- Se você disser isso mais uma vez, irei embora - disse, alteando a voz. - Você perdeu o juízo! Ou você me declara logo que notou que tudo isso é mentira e infâmia ou...
- Ou o quê?
- Ou irei embora realmente. Por você tenho feito tudo o que me foi possível. Não posso e não quero permitir que suspeitem de mim, que me tratem desse jeito.
- Fim do segundo ato!
Avancei rapidamente contra ela e dei-lhe um tapa no rosto.
- Sinto muito! - bradei no mesmo instante, desesperado. - Perdoe-me, Angela! Perdoe-me! Tentei colocar minhas mãos sobre seus ombros, mas ela me repeliu com um empurrão.
- Agora você pode ir embora - disse ela.
- E vou mesmo - respondi-lhe com lágrimas nos olhos.
- Então saia imediatamente!
Ao retirar-me, tropecei num vaso em que estavam plantados gladíolos. As flores se espalharam pelo chão. No elevador desabafei-me chorando e meu corpo começou a tremer. O elevador chegou ao andar térreo, mas não me animei a sair dele. Encostei-me a um canto. As lágrimas banhavam-me o rosto. Minhas pernas quase não me suportavam mais. Com o corpo todo contraído, agachei-me e comecei a bater na parede do elevador com os punhos. Eu só praguejava e dizia palavras obscenas. Sentia-me tão enfraquecido que não conseguia levantar-me, quanto mais caminhar.
Capítulo 11
Em seguida perdi completamente a noção de tempo. Não sei se fiquei ali agachado durante dois minutos ou se durante duas horas. Só sei que finalmente a porta se abriu. Uma senhora idosa, de aparência distinta, entrou. Ao ver-me daquele jeito, ela se assustou e deu um gritinho. Saiu para avisar o zelador do edifício, deixando a porta aberta. Pensei comigo mesmo: "Tenho que sair... E bem depressa". Levantei-me oscilando. Minhas pernas tremiam, mas consegui ficar de pé. Notei que podia andar. Saí imediatamente. Já começava a escurecer e a fresca brisa da tarde, a essa hora, amenizava um pouco o calor. Mal dei o primeiro passo sobre o saibro da esplanada, meu pé esquerdo começou a doer fortemente. Parei com falta de ar. Com um lenço enxuguei o rosto e saí andando... Não! Saí coxeando, claudicando, pois aquela dor ia recrudescendo cada vez mais. Eis que sentia de novo meu pé pesar como chumbo. Tinha a sensação de que o pé não pertencia ao meu corpo. Sem tomar um táxi, de forma alguma conseguiria chegar ao Majestic. Com os dentes batendo como matraca, saí cambaleando em direção à estrada, onde fiquei parado. Muitos carros passavam por mim, mas nenhum táxi. Passaram-se cinco minutos... dez minutos... meia hora e nada de táxi. Estava muito nervoso e quase não conseguia compreender o que havia se passado comigo. Tinha batido em Angela. Angela! Até então eu nunca havia batido numa mulher em minha vida... E agora bater logo em Angela!...
A dor no meu pé esquerdo já estava insuportável. Lembrei-me de que foi com o pé esquerdo que eu havia batido naquele vaso de flores quando tropecei ao sair do apartamento de Angela. Talvez tenha sido por isso que a dor começou. Eu me comportara como um louco. Como um verdadeiro culpado. Que outra impressão poderia ela ter de mim?
Mas também é preciso que se diga que a carta de Karin estava cheia de infâmias e que Angela, na sua vida, tivera dolorosas experiências com homens. Maldita Karin! Carros e mais carros iam passando. Nenhum táxi. Nunca mais chegarei ao Majestic. Eu estava pensando em tantas coisas quando finalmente um táxi apontou entre os carros. Fiz sinal, ele parou e tomei lugar no banco traseiro.
- Ao Majestic, por favor!
Logo que o carro arrancou, passei a sentir, também, aquela dor no lado esquerdo do peito. Aquela dor que eu bem conhecia... fraca no início, mas que ia aumentando gradativamente. Tirei do bolso os comprimidos de Nitrosteron, que sempre trazia comigo, engoli um rapidamente e comecei a mastigar o outro. Que deveria eu fazer depois de chegar ao hotel? Telefonar para Ângela? Implorar, pedir, suplicar que ela acreditasse em mim? Não. Nada adiantaria.
Mas que poderia eu fazer na vida sem Angela? A dor no pé estava horrível. E aquela sensação de aperto no peito também ia se tornando cada vez mais forte. Até o braço esquerdo começou a doer.
Angela! Angela! Eu não devia pensar nela para não enlouquecer. Mas como poderia deixar de pensar nela? Nessa manhã ela me mostrara a amendoeira florida. Nessa manhã ela....
Só então percebi que o motorista estava falando comigo e me observava. Ele já havia parado o carro na frente do Majestic... não sei quanto tempo fazia... - O senhor está passando mal, monsieur?
- Está tudo em ordem comigo - respondi-lhe enquanto pagava a corrida. Não foi sem dificuldade que consegui saltar do carro, pois quase não podia mover o pé esquerdo. O táxi foi embora.
Já estava quase completamente escuro. Devo ter permanecido muito tempo agachado naquele elevador. O engraçado é que ninguém antes daquela senhora idosa que saíra para chamar o zelador se utilizara do elevador. Depois de ter descido do carro engoli mais dois comprimidos de Nitrosteron. Claudicando, entrei no saguão do hotel. Poucas pessoas encontravam-se ali. Algumas começaram a me olhar, surpresas. Meu quarto... Eu queria ir para o meu quarto. Queria esconder-me como um bicho doente na sua toca. Já não tinha mais forças. Só dores e medo. E, além do mais, o desespero que, como a própria dor, aumentava de minuto em minuto.
- Sr. Lucas?! Virei-me.
Amável como sempre, ali estava Gaston Tilmant. Seus olhos bondosos fitaram-me atentamente através dos óculos.
- Oh, boa noite, Monsieur Tilmant!
- Boa noite! Eu telefonei a Madame Delpierre. Ela me disse que o senhor já havia saído e que provavelmente se encontraria no hotel. Mas não tinha certeza. Por isso vim de lá do Carlton e fiquei aqui esperando o senhor.
- Por quê?
- O senhor hoje falou com Seeberg. Eu também falei com ele. Poderia agora também conversar com o senhor? Mas que tem o senhor? Não quer conversar comigo?
Refleti: "Se eu ficar sozinho, minhas dores e meu desespero poderão ficar mais fortes. Seria muito melhor não permanecer só, especialmente no caso de me acontecer algo de grave". Tilmant não pareceu ter notado o meu estado. Também, eu me contive o quanto pude.
- Mas é claro que tenho muito prazer em conversar com o senhor, Monsieur Tilmant. Aqui no bar? Ou ali no terraço?
- Aqui há muita gente. Alguém poderia nos espreitar. E não quero correr o mínimo risco. Aluguei um carro. Ele está estacionado em frente ao Carlton. Vamos caminhando até lá e depois sairemos pára dar algumas voltas de carro. Só assim poderemos ter a certeza de que ninguém nos espreitará.
Ir caminhando até lá!... Santo Deus! Era só o que faltava agora, andar a pé até o Carlton. A distância era irrisória, mas um homem no meu estado não poderia fazer isso. Eu não devia deixar-me dominar pela dor nem pelo desespero. Nunca! Respondi-lhe:
- Ok, vamos.
E fomos.
Nem sei como consegui caminhar até o Carlton. Meu pé doía muito mais que antes. A dor que havia começado no lado esquerdo do peito se alastrara pelo braço e já havia atingido a ponta dos dedos da minha mão. Eu sentia falta de ar. Muitas pessoas alegres passavam pela pista da Croisette. As vitrinas das lojas estavam fortemente iluminadas. Com a visão como que ofuscada pela luz das lâmpadas, eu quase não podia enxergar direito. Não conseguia sequer compreender o que Tilmant dizia. Tenho a impressão de que me falou de uma criação de trutas que possuía. Carros e mais carros passavam por nós... Pessoas e mais pessoas se movimentavam. Eu dava encontrões nelas. Elas me insultavam. Meu pé. Meu coração. Cada vez pior. Eu devia ter ficado no hotel. Foi uma loucura ter vindo em companhia de Tilmant. Nesse dia só fazia loucuras. Batera em Angela. Não, não devo pensar em Angela. Os malditos comprimidos não faziam nenhum efeito. Já não podia mais andar. Nem mais um passo. Mas andei. Consegui chegar até o Carlton... até o carro de Tilmant, um Chrysler preto e grande.
Ele fez o carro arrancar logo. Havia tantas filas de carros na Croisette que só conseguíamos avançar aos poucos. Continuamente Tilmant tinha que parar o carro.
E a dor, tanto no pé como no peito, cada vez mais forte. Mas eu preferia ser um condenado a ter que dizer que estava sentindo dores. Quem sabe se Tilmant, assustado com meu estado, não me conduziria a um hospital? Ali, então, ele poderia ficar sabendo tudo acerca da minha saúde e fazer uma comunicação a Gustav Brandenburg, que me chamaria de volta. Mas, também, para que tanta preocupação agora?
Com Angela estava tudo terminado.
Terminado?! Nunca!
- ...parece que é muito razoável...
Tilmant estava falando. Eu tinha que prestar atenção. Não ouvira o início da frase.
- Por favor, desculpe-me, monsieur, mas não ouvi bem.
Ele fitou-me durante alguns segundos, depois prosseguiu:
- Eu dizia que o que Seeberg me declarou a respeito do seu chefe Hellmann parece ser bem razoável. O senhor também não acha?
- Sim... Não!
Lá vinha aquele aperto danado no meu peito. Parecia que um torno estava me comprimindo. Santo Deus, não permita isso agora!
- Sim... não - repetiu Tilmant, balançando a cabeça. - É exatamente essa a resposta que me parece mais acertada. Hellmann pode ter feito coisas suscetíveis de destruir aquela imagem de um banqueiro perfeito e inatacável, se forem reveladas. E, ao que parece, elas já foram reveladas. Pelo menos, sabe-se que Hellmann, depois do seu discurso no Frankfurter-Hof, correu apressadamente ao seu banco e começou a vasculhar a seção de Seeberg.
- É verdade...
Nem mais uma palavra pude dizer. Parecia que o torno agora comprimia meu peito com mais força. Eu me esticava sobre o assento do carro e estava ofegante. Abri um pouco a janela... Ar!
- Mas também tudo pode ser muito diferente. Seeberg é ladino. Não se deve dar-lhe muito crédito. O melhor mesmo é não acreditar em ninguém.
- Exato...
Meu Deus, ajude-me! Eis que começou a me invadir uma sensação de aniquilamento. Parecia que eu estava sendo triturado. Sentia medo. Um medo terrível e louco. Minhas mãos seguravam com força o couro do assento do carro. Tilmant, sentado ao volante, tinha que prestar muita atenção na estrada e não em mim. Felizmente!
- Devemos aceitar como provável a suposição de que Hellmann realmente procurava salvar sua reputação. Ele veio para cá a fim de falar com toda essa gente e compeli-la a prestar-lhe auxílio financeiro para cobrir os prejuízos sofridos com aquelas operações em libras. Mas não lhe seria tão fácil conseguir isso... Note bem quais eram os poderosos que estavam envolvidos no negócio e reflita um pouco sobre o rigor da fiscalização do Banco Central da Alemanha. Hellmann tinha que salvaguardar sua reputação e tentar recuperar os prejuízos. Isso seria possível se todos o tivessem ajudado, o senhor não acha?
- Sim...
As luzes vermelhas dos carros pareciam executar diante dos meus olhos uma dança louca e desordenada. O torno! Eu vou morrer! Vou cair morto aqui ao lado desse homem tão amável que nada percebe do que está se passando comigo. Estou morrendo. Sim, sim, estou morrendo! O torno não pára de me apertar. Que medo horrível! Que dor insuportável! Não posso mais falar. Não consigo mais raciocinar. Morte. Morrer em Cannes! Na Croisette. Num Chrysler. As luzes vermelhas. Elas agora estão girando. Tudo roda. Eu me virei no assento com a mão no peito. Era muito difícil dirigir a essa hora. Tilmant, ao volante, tinha que prestar muita atenção. Do contrário, poderia acontecer um acidente. A Croisette ia ficando cada vez mais congestionada.
- ...inicialmente com Kilwood. Este lhe disse que não o ajudaria. Depois, com os outros, os quais também lhe negaram apoio. Sem dúvida, eles tinham suas razões para proceder assim. Mas a gente já pode imaginar quais eram essas razões. Ou quem sabe o caso se passou de maneira diferente...
Ele, agora, continuava falando sem esperar pela minha resposta. Minha boca se enchia de saliva continuamente e eu não podia parar de engoli-la. O suor, escorrendo pela testa, entrava nos meus olhos. Estou morrendo! Eu amo Angela!
- ... assim sendo, é possível que Hellmann tivesse resolvido praticar o suicídio. Pelo menos, pode-se argumentar que quem lhe conseguiu a dinamite foi a irmã-enfermeira que trabalhava na mansão de Hellmann. Talvez ela fosse sua confidente. Ela foi assassinada. Viale foi assassinado. Kilwood foi assassinado. O senhor mesmo já foi derrubado a pancadas. E ontem tentaram sabotar o carro de Madame Delpierre para que o senhor sofresse um acidente fatal. Entretanto, tudo isso parece comprovar que não se trata de suicídio, mas sim de assassinato. Assassinato que alguém procura encobrir. É horrível! Nem sei o que dizer...
Vermelho... Tudo vermelho diante dos meus olhos! E Angela? E se Tilmant se der conta do meu estado? Não, não! Eu não devia tê-lo acompanhado!
- Veja o senhor, eu fui o homem escolhido para evitar um escândalo que poderia ser de proporções internacionais...
- Ahhh!...
- O senhor bem pode imaginar como me sinto.
Ele não percebia que eu estava me contorcendo. Meu coração batia aceleradamente. Eu sentia fortes palpitações.
- O senhor não é um criminalista. Os assassinatos e os ataques muitas vezes podem ter outros motivos. Como o senhor bem sabe, estou incumbido de uma missão. Tenho, portanto, uma pergunta a lhe fazer: o senhor não poderia... Mas não deixe de me ouvir, por favor, monsieur... senhor não poderia defender junto à sua companhia de seguros a versão de suicídio como única hipótese plausível?
Eu estava piorando cada vez mais. Piorando. Quase não conseguia respirar.
- Errr...
- Por favor, espere que eu conclua a minha argumentação. Faço esta proposta no interesse de todos nós. Nós dois sabemos, monsieur, que contra esse grupo nada se consegue. Quero que o senhor compreenda que estou fazendo essa proposta no interesse de todos nós. Se quisermos evitar mais mortes e mais desgraças, teremos que procurar acalmar a situação... E eu não vejo outra maneira... Com a versão de suicídio a sua companhia de seguros não será obrigada a pagar coisa alguma... Madame Hellmann não receberá o dinheiro do seguro do iate. E o senhor me prestará uma grande ajuda se conseguir convencer Kessler a também admitir a versão de suicídio. É da minha opinião que a teoria do suicídio nos dará a oportunidade de... Monsieur Lucas! Monsieur Lucas! O que o senhor tem? Não está se sentindo bem?
Capítulo 12
Branco. Tudo branco. Muita claridade. Procurei respirar lentamente. Eu estava cheio de medo. Percebi que respirava sem dificuldade. Já não sentia nenhuma dor. Meus olhos, que comecei a abrir cautelosamente, foram aos poucos se acostumando com a intensa claridade. Eu me achava estendido sobre uma cama, vestido, mas sem sapatos. Um homem corpulento de rosto largo e cabelos pretos ondulados estava sentado na beira da cama e me observava. Deveria ter uns cinqüenta anos.
- Então? - perguntou-me.
- Quem é o senhor?
- Eu sou o Dr. Joubert. O senhor se encontra no Hôpital des Broussailles.
- Um hospital?
- Sim, Monsieur Lucas.
- Quem foi que lhe disse meu nome?
- O cidadão que o trouxe aqui.
- Monsieur Tilmant?
- Exatamente esse. Ele esperou um pouquinho, mas depois teve que sair por ter um encontro marcado. Depois disso já telefonou de novo. Foi no carro dele que o senhor...
- Sim, já sei. - Fitei Joubert. - Que horas são?
- Nove horas da noite, monsieur. O senhor permaneceu por muito tempo longe... longe... Tive que lhe dar uma injeção... para evitar o... o colapso. Mas tudo isso já passou, não é verdade?
- Sim.
- O senhor acha que pode se levantar?
- Não sei.
- Experimente.
Experimentei. Era como se eu nunca tivesse tido uma dor no pé... Como se eu nunca tivesse tido a ameaça de um ataque cardíaco. O Dr. Joubert observava-me sorridente.
- Maravilhoso!
- Realmente maravilhoso - repeti.
- Monsieur Lucas, esta não é a primeira vez que lhe acontece isso, não é verdade?
Notando que eu hesitava em responder-lhe, acrescentou:
- Não tenha medo. Eu tenho a obrigação de guardar segredo.
Esse médico captou logo a minha confiança.
- Realmente, não é a primeira vez - respondi-lhe. Então passei a relatar-lhe como se deram os ataques que eu sofrera anteriormente. Disse-lhe que o Dr. Betz, médico em Düsseldorf, diagnosticara a minha doença como sendo claudicatio intermitens.
- Está certo - confirmou o Dr. Joubert. - E o senhor tem também um coração doente. Eu vi o medicamento que lhe foi prescrito. Encontrava-se no seu bolso. O senhor hoje teve um ataque bem feio.
- Realmente este foi o pior que eu tive até hoje, doutor.
Pensei comigo mesmo: "Que devo fazer agora? Será que minha doença se agravou muito?"
- O senhor teve muitas excitações nos últimos dias?
- Sim. Muitas. Também tenho fumado muito. Trabalhei excessivamente. E não posso interromper meu trabalho. Doutor... Por favor, ninguém deverá saber o que está se passando comigo! Ninguém! Nem mesmo Monsieur Tilmant, que me trouxe aqui.
- Eu já lhe disse que tenho a obrigação de guardar segredo. Sem a sua expressa aquiescência, não direi uma palavra a quem quer que seja.
Respirei aliviado.
- Então posso fazer-lhe um pedido?
- Sem dúvida.
- O senhor poderia examinar agora mesmo meu pé e meu coração a fim de dizer-me como eles estão?
- Era exatamente essa a proposta que eu tinha em mente fazer-lhe.
- Mas o senhor precisa dizer-me a verdade sobre o meu estado, Dr. Joubert. O senhor garante que vai dizer-me toda a verdade sem ocultar nada? Acompanhe-me.
Fui conduzido através do hospital até uma sala onde havia um aparelho de eletrocardiograma. Uma série de exames foi feita ali. O próprio Dr. Joubert examinou detidamente meu coração e meu pé. Auscultou com cuidado minha pulsação. Dali fomos para seu gabinete, onde, além da mesa de trabalho e de uma estante cheia de livros, só se viam duas cadeiras.
Mandou-me sentar.
- Que acha, doutor?
- O senhor quer mesmo saber a verdade, Monsieur Lucas?
- É claro!
- Toda a verdade?
- Toda a verdade!
- Mas será que o senhor pode suportar toda a verdade sobre o seu estado?
- Claro que sim. O que não posso mais suportar é a incerteza, a dúvida.
- Então... já que o senhor quer assim...
Ele fitou-me com aqueles olhos que inspiravam confiança. Depois, com uma expressão de seriedade no semblante, começou:
- O senhor está doente, Monsieur Lucas. Muito doente. Eu não estou me referindo absolutamente ao seu coração, muito embora tenha notado um processo de angina pectoris já em desenvolvimento. Mas este mal pode ser mantido nos limites em que está com o Nitrosteron, ou, caso seja necessário, com outros medicamentos. Realmente o que mais me assusta é a sua perna esquerda.
- Meu pé esquerdo?
- Não. Lamentavelmente a doença abrange toda a perna. Até a coxa. A irrigação sangüínea da sua coxa esquerda (e do seu pé esquerdo também) é tão deficiente que mete medo. Daqui por diante nem mais um cigarrinho!
- Sim, sim... Prossiga, doutor!
- Prosseguir... - Ele não parava de me encarar, como se quisesse verificar minha reação. - Prosseguir... Então devo dizer-lhe que sua perna esquerda está perdida...
- Que significa a expressão: "está perdida"? Eu ouvia suas explicações completamente calmo.
- Essa expressão significa que não há outra alternativa senão amputar a sua perna esquerda... E essa operação terá que ser feita, o mais tardar, dentro de seis meses. Ou quem sabe até antes.
- Amputar?!
- O senhor me garantiu que suportaria toda a verdade.
- E eu a suportarei... Mas amputar... Será que não existe outro meio?
- Não, Monsieur Lucas. Mesmo se daqui por diante o senhor não fumar nem um cigarro. Mesmo se, tomando uma decisão bem sensata, fizer todo o esforço possível para evitar excitações... a dor no seu pé virá de novo. E cada vez com maior intensidade. O senhor chegará ao ponto em que não poderá mais suportá-la.
- Mas, quem sabe... talvez eu possa suportar...
- Não!
- Com medicamentos. Em doses bem fortes.
- Isso não teria cabimento. Sua perna terá que ser amputada. Não há outro jeito, monsieur.
- Mas por que será necessário fazer isso se eu conseguir suportar as dores com... o uso de medicamentos?
- Porque, nesse caso, sua perna irá definhar, apodrecer. Se ela não for amputada, o senhor morrerá por causa do seu apodrecimento, Monsieur Lucas.
Calei-me. Ficamos nos fitando mutuamente.
- É horrível, é brutal! - exclamou ele.
- Sem dúvida. Mas mesmo assim eu lhe agradeço, Dr. Joubert.
- O senhor me afirmou que poderia suportar toda a verdade, monsieur. Voilà! Eis a verdade!
- E o senhor me promete que não dirá nada a ninguém?
- Prometo-lhe.
Capítulo 13
O porteiro do Majestic tinha um recado para mim:
- Monsieur Tilmant pede que o senhor faça a gentileza de telefonar-lhe imediatamente.
- Obrigado.
Subi ao meu quarto. Também nessa noite fazia calor. Sentei-me perto do telefone e liguei para o Carlton. Tilmant atendeu logo. O timbre da sua voz traía o nervosismo que o dominava.
- Tive que sair urgentemente do hospital, pois havia marcado encontro com o chefe de polícia. Lá no hospital disseram-me que o seu caso poderia exigir bastante tempo. Mas, Santo Deus, que foi que aconteceu com o senhor?
Eu soltei uma risada.
- Nada. Absolutamente nada! Foi por causa do calor, disse-me o médico. Eu ainda não estou bem acostumado com o clima daqui. Um pequeno problema circulatório.
- Realmente é essa a verdade?
- Que está pensando? Claro que esta é a verdade! O Dr. Joubert examinou-me da cabeça aos pés. Deu-me um remédio e recomendou-me que evitasse apanhar muito sol. A não ser esse pequeno distúrbio, a minha saúde é perfeita.
- Só isso?
- Então o senhor não acredita em mim? Juro-lhe.
- Graças a Deus! Em todo caso, agora me sinto mais aliviado. Mas o senhor me deu um tremendo susto.
- Agora o senhor pode ficar sossegado.
- Sim?!... Está bem. Realmente agora estou calmo.
Julguei que seria oportuno repisar o assunto que estávamos falando dentro do carro e que interrompemos quando o ataque me acometeu. Disse-lhe então:
- Lá no carro não pude prestar-lhe a devida atenção a fim de manifestar-me sobre a sua proposta, meu caro Monsieur Tilmant. Compreendo perfeitamente a situação difícil em que o senhor se encontra. A gente logo percebe isso...
- Percebe-se mesmo isso em mim? Sua voz parecia resignada.
- Sim. O senhor é uma pessoa decente demais para encontrar prazer no desempenho de uma missão dessa natureza. Sinto muito não poder satisfazer o seu desejo, mas eu também tenho os meus encargos. E, como o senhor, também possuo uma consciência. Não posso fazer o que o senhor me pediu. Julgo que não teria cabimento dirigir-me a Kessler com o propósito de convencê-lo a mudar de idéia. Ele não concordaria.
Seguiu-se um prolongado silêncio.
- Monsieur Tilmant, o senhor ouviu o que eu disse?
- Perfeitamente. O que lhe pedi seria uma tentativa. Na minha situação deve-se tentar tudo. Eu devia ter imaginado que o senhor não... - Tilmant soltou um suspiro. - O pior é que prevejo como a coisa poderá terminar...
- Como?
- Certamente não do modo como eu e o senhor desejaríamos, Monsieur Lucas. - Notava-se na sua voz um timbre de tristeza. - Mas sim como desejam aqueles senhores... Ou, melhor, como desejam certas pessoas. Eu prevejo as conseqüências. É por isso que quero ser bem sucedido no desempenho da minha missão. Quero ter um sucesso que eu próprio abomino. E o senhor, monsieur, o senhor terá... Bem, paremos com isso. Cada qual deve fazer o que acha que tem que fazer. Agradeço-lhe mesmo assim.
- Agradecer-me por quê?
- Pelo seu procedimento.
- Oh, o meu procedimento...
Depois desse telefonema tomei um banho, vesti o roupão e fui sentar-me na sacada da ampla janela. Então comecei a refletir: "Eu ainda posso trabalhar e vou ganhar bastante dinheiro. Ainda possuo as duas pernas. Na minha conta bancária ainda disponho de um bom saldo. E continuarei recebendo meu ordenado".
Ainda...
Mas deve-se considerar que tudo é determinado pelo destino: infelicidade, decadência, abandono, miséria, o fim da existência. Talvez tenha sido melhor mesmo que Angela acreditasse em minha mulher e não em mim e que ela tivesse terminado tudo por não ter confiança em mim. Quanto tempo ainda terei de vida? No máximo seis meses. Realmente não se vislumbra nenhuma solução para o meu caso. Entretanto deve existir um Deus que colocará tudo no seu devido lugar. Na maioria das vezes não compreendemos por que as coisas acontecem. Se Angela continuasse comigo e depois viesse a saber da verdade sobre o meu estado, como sei agora, será que teria coragem para suportar a situação? Talvez ela se comportasse com bravura e procurasse me consolar, prometendo-me que continuaria a devotar-me todo o seu amor, mesmo depois da amputação da minha perna. Isso ela poderia dizer-me, é claro, se ainda me amasse, se não tivesse rompido comigo. Mas por quanto tempo duraria a felicidade, vivendo com um homem que só tem uma perna? E, como é óbvio, nesse caso eu teria que me aposentar. Com Angela está tudo terminado. Já me mudei da minha casa, abandonando minha mulher. Eu preferia morrer a ter que voltar a viver com Karin. Os proventos da minha aposentadoria serão muito inferiores ao meu ordenado atual. E Karin terá que ter sua parte se ela não concordar com o divórcio. Provavelmente não quererá divorciar-se depois que ficar sabendo que a minha perna foi amputada... E ela, do seu ponto de vista, estará agindo muito bem, pois julgará que minha morte está próxima e então será a dona exclusiva de tudo: do apartamento, dos móveis, do seguro de vida. Em hipótese alguma poderei continuar trabalhando na Global.
Já estava ficando muito tarde. Lá embaixo, sob os meus olhos, estendia-se a Croisette... E uma cadeia ininterrupta de pensamentos continuava a invadir meu cérebro... Ainda bem que minha perna não estava doendo... Aparentemente tudo estava em ordem comigo... Mas como era aterrador o pensamento de que dentro de seis meses ela teria que ser irremediavelmente amputada. Será que não haveria a possibilidade de fazer-se alguma prótese?
Como sucedem coisas estranhas nesta vida! Por exemplo, o fato de desmoronar-se da manhã para a noite tudo o que há de mais caro na existência de um homem: o amor, a felicidade e - por que não dizer? - a própria vida considerada na sua essência.
Meditando sobre isso, meu corpo, com a intermitência de alguns poucos segundos, contraía-se convulsivamente, cheio de amor por Angela e desejando ardentemente o seu contato. Mas o Dr. Joubert talvez tivesse errado no diagnóstico... No entanto, um médico importante, quando demonstra tanta certeza ao falar, é porque chegou a conclusões que não são mais passíveis de dúvida. Estou no fim! Qual é mesmo a citação em Ricardo III? Ah, sim, é a seguinte: "Tu te desesperarás e atormentado pelo teu desespero morrerás".
Ainda não estou desesperado. Também a gente não morre só por causa de uma amputação. Na maioria dos casos as pessoas se salvam. Talvez haja a possibilidade de que a operação seja bem sucedida. No meu caso, entretanto, pouco importa. Dinheiro... As duas mulheres... Tantos pensamentos, tantas idéias... Mas eu devia repousar.
Atirei-me sobre a cama. Não consegui pegar no sono... Não podia deixar de pensar na minha situação irremediável. Amaldiçoava minha vida. Eu amaldiçoava Angela...
Capítulo 14
Malcolm Thorwell escolheu com cuidado o taco mais apropriado e passou a caminhar de um lado para outro. Visou a bola com calma enervante, como se todo o tempo do mundo lhe pertencesse, e depois de girar o taco bateu com força na bola. Esta voou, indo cair longe na grama bem-cuidada daquele terreno acidentado.
- Nada mau - disse ele, satisfeito.
Até que ele ficava bem elegante com aquela camisa de seda, a estreita calça de linho cinzento e o lenço colorido amarrado no pescoço. Caminhava balançando os quadris como uma mulher. Sua voz era cantante, melosa. Logo depois que deu a primeira tacada, fomos caminhando até o quarto buraco, perto do qual havia caído a bola. Um caddy seguia-nos empurrando um carrinho dentro do qual havia um saco com os tacos e as bolas de golfe de Thorwell. Esse caddy era um rapaz sardento que tinha, quando muito, catorze anos de idade. Ele só falava francês. Eu e Thorwell falávamos em inglês.
Estávamos numa terça-feira, dia 13. Eram nove e meia da manhã. Nesse dia eu telefonara a Thorwell bem cedo porque sabia que ele gostava de jogar golfe diariamente naquele lindo campo localizado nas proximidades de Mougins. Sabia também que ele, por causa do calor, só jogava antes do meio-dia.
Antes de ir ao campo, ele passou no Majestic para levar-me no seu Bentley. Durante a noite, eu não havia dormido mais do que meia hora. Contudo, sentia-me disposto e jovial. Não pensei em Angela nem na minha perna que deveria ser amputada. Não pensei? Eis que agora mesmo acabo de escrever uma mentira...
- Ele é encantador, não é verdade? - disse Thorwell olhando para o caddy, que, atrás de nós, vinha empurrando o carrinho. Thorwell, fitando o rapaz, sorriu-lhe e ele correspondeu ao seu sorriso com grande satisfação.
- Estou doidamente apaixonado por este rapazinho.
Ele também está apaixonado por mim. Só quer ficar comigo e com mais ninguém. Ele caiu fundo no meu coração. É uma doçura esse garoto. E como são maravilhosas essas sardas que ele tem no rosto, não é?
- É verdade - respondi-lhe sacudindo os ombros. Contei a Thorwell tudo o que Seeberg me declarara, ou seja, a versão dele sobre o comportamento de Hellmann em Frankfurt, bem como as suspeitas que ele tinha com relação aos fatos lá ocorridos e que provavelmente compeliram Hellmann a praticar o suicídio. Terminei perguntando-lhe:
- O senhor acredita na versão dada por Seeberg?
- Qual?... Oh, naturalmente. Não, não acredito. É uma versão absurda, Mr. Lucas. Já fazia muitos anos que Hellmann vinha efetuando tal espécie de negócios conosco... e quando digo conosco quero dizer com Kilwood, que era o nosso representante. Esse tal Hellmann era um indivíduo dotado de um raciocínio frio. Medo de perder o prestígio? Atitude tomada em virtude de um repentino exame de consciência? Não creio. O senhor não sabe como são os banqueiros. Não é tão facilmente que eles se amedrontam. Todos possuem bons nervos.
- Então não acredita que tenha havido suicídio?
- Não. Como eu já havia dito antes, acho que foi assassinato.
Thorwell caminhava balançando os quadris e eu seguia ao seu lado. Meu pé estava bem e aquela dorzinha não se manifestou.
- Mas por que alguém deveria matar Hellmann?
- Não sei. Mas devemos dizer que tudo corrobora a hipótese de assassinato. Refiro-me aos fatos que ocorreram após sua morte. O senhor chega facilmente a essa conclusão considerando que uma pessoa como o pobre beberrão John Kilwood (o qual possivelmente tinha conhecimento da trama e portanto seria capaz de fazer alguma delação), ou pessoas que sabiam de algo, como esse tal Viale ou essa tal irmã-enfermeira, foram todos eliminados. Portanto, deve haver um assassino, não é verdade? E por que não poderia ter sido esse mesmo assassino quem liquidou Hellmann? É evidente que depois, para sua proteção, ele teve que eliminar também as outras pessoas. Ouvi dizer que o senhor mesmo já foi alvo de um atentado.
- É verdade.
Nesse instante aproximávamo-nos da bola. Ela havia caído numa depressão com a forma de gamela, bem perto do buraco. Thorwell examinou cuidadosamente a sua posição e escolheu outro taco. Depois passou a alisar os louros cabelos do caddy e a acariciar as suas bochechas com palma-dinhas leves. Aí, então, visou a bola e deu a tacada. A bola rolou para dentro do buraco.
- Bravo! - exclamei.
O caddy foi buscar a bola e colocou-a novamente na posição exata para ser arremessada. Thorwell não era o único jogador que ali se encontrava. Vi também muitos outros que estavam em pontos distantes. No campo de golfe reinava uma calma profunda.
- Mas quem teria cometido o crime?
- O senhor supõe que fui eu quem assassinou que mandou assassinar essas pessoas. Não é verdade que o senhor pensa assim? - Ele sorriu-me afetuosamente. - O senhor não notou que o garoto tem umas pestanas sedosas? Até parece uma menina. Ele é belo, não é? Bem... Na verdade, eu poderia ter sido o criminoso porque, com a negociata de divisas efetuada por Hellmann por ordem de Kilwood, a principal fornecedora britânica da Kood foi à falência. E essa firma inglesa pertencia quase que totalmente a mim. - Ele sorriu. - Mr. Lucas, naturalmente não é do meu agrado esclarecer-lhe este ponto, mas certamente o senhor já sabe que aquela firma inglesa era apenas uma das muitas que me pertencem.
- Eu já sabia.
- E talvez o senhor não acredite que essa falência não me causou absolutamente nenhum desespero.
- Acredito.
__ Muito bem! - Ele se apoiou levemente num taco.
Além disso, o senhor não deve esquecer que a própria Kood também me pertence... a mim e aos outros que agora encontram aqui em Cannes. E devo dizer-lhe, também, eu sempre concordei com as medidas postas em prática por Kilwood e Hellmann. Por fim, ocasionando essa falência, eles fizeram desaparecer uma grande fábrica fornecedora da Kood. Pior para mim. Mas não posso me queixar de Hellmann, pois indiretamente ele tinha também a minha autorização para proceder como procedeu. A Kood continua existindo. Sou um dos principais acionistas dessa firma. Existem os outros... Sargantana, Tenedos, Fabiani e Kilwood. Este último já está morto, mas tem herdeiros.
- Então o senhor quer dizer que nenhuma dessas pessoas tinha interesse em assassinar Hellmann?
- Exato.
- E mesmo assim o senhor acredita que houve assassinato?
- Mas eu lhe declarei que o assassino deve ser um de nós? Não, não creio que eu lhe tenha feito tal afirmação, Mr. Lucas. De que há um assassino, estou perfeitamente convencido; entretanto, ele não deve ser procurado no nosso círculo de relações. Ele se encontra do lado de fora. Por isso (considere o que aconteceu com Kilwood) todos nós estamos em perigo. Só espero que os senhores, todos os moços que estão investigando o caso, encontrem o bandido antes que ele liquide mais alguém, como liquidou o pobre John.
- John Kilwood inculpava-se do crime, embora de maneira um tanto obscura, dizendo: "Nós todos somos culpados!" O senhor deve lembrar-se perfeitamente disso.
- John era um beberrão incurável. Que Deus se apiede da sua alma!
- Ele falou do argelino de La Bocca com o qual tudo começou. E encontramos esse argelino. Foi ele quem forneceu a dinamite para aquele engenho infernal que fez voar Pelos ares o iate de Hellmann. A irmã-enfermeira da Sra. Wellmann foi quem recebeu a dinamite.
- Isso foi o que o argelino disse...
A irmã-enfermeira foi assassinada antes que pudéssemos inquiri-la.
Thorwell passou a ocupar-se da bola. Trocou duas vezes taco e alisou carinhosamente a mão do caddy, que, andando de um lado para outro em frente da bola, orientava-o indicando-lhe o ponto a ser visado.
- É até possível que a irmã-enfermeira tivesse ligações com o assassino.
- Mas como poderia Kilwood ter sabido da existência do argelino de La Bocca?
- Talvez ele tivesse feito sindicâncias a respeito ou, então, soubesse mais do que nós, os outros.
- Ora, o senhor afirmou que ele era um beberrão incurável.
- Contudo, essa circunstância não o impediria de realizar sindicâncias.
Por fim, Thorwell deu uma tacada fazendo a bola voar longe. Seguimos de novo caminhando sobre o gramado. Ele continuou:
- A polícia não descobriu nada. Os senhores também não chegaram a nenhuma conclusão. E deve-se dizer que são homens experimentados em lidar com casos dessa espécie. E sabe por que os senhores não chegaram a conclusão alguma?
- Por quê?
- Porque os senhores estão dominados pela idéia fixa de que foi um de nós... um da nossa súcia... quem cometeu o crime. Se os senhores não se desvencilharem dessa idéia, nunca descobrirão a verdade, Mr. Lucas. Os senhores estão criando um grande mistério em torno de nós. Nós não formamos nenhuma sociedade secreta de conspiradores. Nem tampouco pertencemos a alguma cabale.
Cabale!... Eis de novo a palavra. Ela existia também em inglês.
Cabale... Foi assim que o baixinho Lacrosse designara essa súcia de multimilionários. Ele era de opinião que eles formavam uma sociedade de conspiradores. Malcolm Thorwell fez troça dessa idéia e, rindo, avançou na direção da bola. Eu e o caddy o seguimos.
Como era encantador esse campo de golfe de Mougins. Eu procurava respirar profundamente aquele ar puro. A essa hora ainda soprava uma brisa suave. As tenras folhas cheias de seiva tremiam na ponta dos galhos daquelas velhas árvores frondosas. Olhando para o céu, notei que o sol já estava bem alto.
Capítulo 15
Cerca de onze horas voltei ao Majestic. Na enorme piscina que havia na frente do hotel alguns hóspedes estavam tomando banho. Outros se encontravam estendidos no chão para apanhar sol. Lançando o olhar para aquele cantinho que era meu e de Angela, vi que Pasquale Trabaud se achava sentada à "nossa" mesa. Acenou-me com gestos expansivos.
Ela trajava calça comprida e blusa de tecido fino, próprio para a estação. Naquele nosso cantinho ainda havia sombra.
- Faz duas horas que estou esperando você - disse-me ela, enquanto nos cumprimentávamos e eu procurava tomar assento ao seu lado.
- Eu não poderia supor que você estivesse aqui - respondi-lhe.
- Claro que você não poderia saber. Mas, se fosse preciso, eu esperaria mais duas horas. Ou até mesmo quatro. Mais cedo ou mais tarde você teria que voltar ao hotel.
Um garçom aproximou-se da nossa mesa.
- O que você quer beber? - perguntei a Pasquale.
- Gim-tônica.
- Eu também. Traga-nos dois gins-tônicas.
- Mas que há de novo, Pasquale?
- Angela!...
- Que aconteceu com Angela?
- Ontem à noite ela foi à nossa casa. Dormiu lá conosco, pois no estado em que se encontrava não podíamos deixá-la só. Hoje cedo Claude levou-a para o seu apartamento. O carro dela se encontra ainda na oficina.
- O que você quis dizer com "no estado em que ela se encontrava"?
- Ela estava desesperada. Completamente desesperada. Contou-nos tudo o que se passou entre vocês. Refiro-me à carta da sua mulher. Ela me explicou a reação que teve e como você reagiu também. Disse-me que você bateu nela e depois foi embora.
- Perdi o autocontrole. Mas pedi desculpas imediatamente. Senti muito, muito realmente, pelo que fiz.
- Eu sei. E Angela também sabe. Ela agora está muito sentida pela atitude que tomou.
- O quê?!
- Ela está sentida pelo fato de ter-se comportado assim e por ter acreditado na carta da sua mulher e não em você.
Oh, Deus! Exatamente quando já estava procurando conformar-me com a situação que me traçaste voltas a deliberar o contrário! Oh, Deus, que fazes tudo e que permites que os fatos aconteçam, tem piedade de mim! Estou doente e não posso suportar tantas coisas assim.
- Você não diz nada? - interrogou-me Pasquale.
- Que devo dizer?
- A mesma atitude de Angela! Ela também não sabe o que deve dizer a você. Não ousa dizer-lhe nada. Robert, creia-me, nunca vi na minha vida uma criatura tão infeliz. Ela não sabe que vim aqui. Você precisa ir falar com ela, Robert.
- Não... Isso eu não posso fazer...
- Então não a ama mais?
Percebi que meus olhos ardiam. Olhei para a piscina. Nesse exato momento uma jovem se atirou na água, fazendo saltar pingos para todos os lados.
- Eu... eu a amo mais do que nunca. - Minhas palavras pareciam sair estranguladas. - Faça ela o que fizer, nunca deixarei de devotar-lhe o meu amor.
- Ela também o ama, Robert. Mas sente-se envergonhada. Acha que jamais poderá reparar a falta que cometeu. É por isso que você deve procurá-la.
Fiquei calado. Percebi que me voltava de novo aquela sensação de felicidade, mas, por estranho que pareça, essa sensação, que voltava aos poucos, gradativamente, ocasionava-me tristeza. Se nosso amor terminasse agora, certamente eu teria que passar por uma fase dolorosa durante alguns meses... Mas depois me conformaria com a situação... e pronto!... Tudo acabado. Conformar-me-ia de fato? Nem por um segundo. Nem por um centésimo de segundo. Tu, oh Deus, se é que queres assim, permite que eu e Angela nos unamos novamente. Por algum tempinho, pelo menos. Só por um curto lapso de tempo. Em todo caso, não será muito o tempo que vamos ter.
- Robert, responda-me! Peço-lhe que me responda, homem!
Notei que o garçom vinha com a bebida. Nem esperei que ele chegasse até a nossa mesa. Levantei-me sem pronunciar uma palavra sequer e saí correndo pelo terraço. Todos me seguiram com o olhar. Serge, o chefe da garagem, fitou-me, perplexo, com o esbarrão que dei nele.
- Um táxi - disse-lhe. - Por favor, chame um táxi. Ele saiu apressado para atender-me.
Fiquei parado, de pé, sob aquele sol abrasador, e passei a contemplar os enormes canteiros de flores. Minha respiração tornou-se acelerada, ofegante.
Angela. Angela. Oh, Deus do céu, Angela!
Capítulo 16
Parecia desesperada e abatida quando me abriu a porta. Pelo seu semblante via-se que andava tresnoitada. Notavam-se olheiras profundas sob seus olhos castanhos. Ela queria falar, mas da sua boca só saíam sons roucos.
Apertei-a nos braços e dei-lhe um beijinho terno na boca. Então ela começou a chorar.
- Angela, por favor!
Ela sacudiu a cabeça e, pegando-me pela mão, conduziu-me ao terraço, onde surgiu diante dos meus olhos um mar de flores e de brotos sob um sol intenso. Sentamo-nos à beira de uma cama bem larga, posta debaixo de uma espécie de marquise, dessas que, com uma manivela, se podiam enrolar e desenrolar. Durante um longo tempo não pronunciamos uma palavra sequer nem nos fitamos. Eu fiquei contemplando lá embaixo a cidade e o mar. De quando em quando olhava para o céu e observava os aviões. Parecia-me naquele momento estar contemplando todo o universo numa casca de noz, exatamente como dizia o poema: "Eu vejo Jerusalém e Madagascar, a América do Norte e a América do Sul..." A mão de Angela estava agarrada à minha. Não nos soltávamos mais. Ela permanecia continuamente com o olhar voltado para aquele tapume vivo de buganvílias. Mas eu tinha a impressão de que ela, absorta nos seus pensamentos, nada observava.
Por fim, disse-me, soluçando:
- Sinto muito, Robert. Você nem imagina como estou sentida pelo que aconteceu!
- Não falemos mais nisso! Tudo o que houve conosco já passou.
- Sim - repetiu ela, apertando minha mão -, tudo já passou, Robert, e nunca mais nos acontecerá coisa semelhante. Mas sinto-me assustadoramente triste. Como foi que aconteceu isso conosco?
- Não pense mais no que aconteceu!
- Não posso deixar de pensar... Não posso esquecer o que houve conosco. E não quero mesmo esquecer. Amo-o tanto quanto se pode amar neste mundo... E mesmo assim desconfiei de você, expulsando-o do meu apartamento e dando crédito ao que sua mulher escreveu...
- Você deu-lhe crédito simplesmente porque me ama. No mar apareceu uma porção de veleiros. Desta vez, as velas eram das mais variadas cores. Disse a Angela:
- Se eu estivesse no seu lugar, teria procedido da mesma forma.
- Não é verdade. Você seria incapaz de duvidar de mim.
- Pense como quiser, mas eu também teria duvidado de você.
Então passamos a nos fitar novamente e nos seus olhos surgiu o brilho daqueles dois pontinhos dourados.
- O que aconteceu, Angela, foi apenas o começo. Devemos procurar não perder o controle dos nossos nervos. Podemos estar certos de que ainda lançarão sobre nós infâmias e calúnias às toneladas. Mas devíamos saber que coisas assim aconteceriam inevitavelmente. Você não acha? - Ela respondeu afirmativamente com um meneio de cabeça, encarando-me firmemente. - Ontem ambos havíamos perdido o autocontrole. Eu bati em você...
Ela colocou o dedinho nos meus lábios, mas eu o retirei e prossegui falando:
- ...eu bati em você e depois fui embora dominado pela cólera. Abandonei-a. Mas fato semelhante nunca mais haverá de acontecer conosco.
- Nunca mais!
Oh, Deus! Nesse instante pareceu-me ouvir o Dr. Joubert falando: "...dentro de seis meses. Esta é que é a verdade, Monsieur Lucas! O senhor queria saber toda a verdade..."
Pensei novamente: não é pelo fato de sofrer a amputação de uma perna que se morre. Naturalmente a amputação às vezes pode ser fatal... mas nem sempre.
- Fui muito injusta com você - disse Angela.
- Eu também lhe ocasionei um grande tormento.
- Não, você não! O que me aconteceu serviu-me de exemplo e não acontecerá nunca mais.
Depois, fechando os olhos, disse:
- Venha comigo, Robert.
Capítulo 17
Sentei-me no banquinho da cozinha e fiquei observando Angela preparar nosso almoço, já meio atrasado.
Os aparelhos de televisão na cozinha e na sala de estar encontravam-se ligados. Eu ouvia as notícias sem prestar a mínima atenção, pois só pensava em Angela, Angela, Angela. Como ela estava contente e feliz agora! Cada vez que passava por mim ela se curvava e dava-me um beijo.
Perguntou-me:
- A televisão ligada o irrita?
- Absolutamente.
- Oh, você diz isso porque é muito delicado.
- Eu disse a pura verdade, Angela.
- É que a maior parte do tempo, embora nem sempre, eu vivia tão sozinha, que peguei essa mania de televisão. Mas acho que você julga isso mais louvável do que se eu fosse uma notívaga que andasse perambulando por aí afora, não é verdade?
- Não. Eu preferiria que você fosse uma dessas mulheres que saem todas as noites e que vivesse chafurdando na lama do vício - respondi-lhe ironicamente.
Ajudei Angela a preparar a mesa no terraço. Almoçamos calmamente. Depois de termos retirado os pratos e os talheres, continuamos sentados à mesa, bebendo um pouco de conhaque em pequenos copos bojudos. Angela acendeu um cigarro, mas eu não quis fumar. A aliança continuava no seu dedo.
- Robert, hoje é 13 de junho: nosso primeiro aniversário.
- É verdade!
A agitação e a vigília da véspera manifestavam o seu efeito: eu estava me tornando sonolento.
- Angela, gostaria de festejar essa data de maneira especial. Aliás, foi o que nos propusemos fazer sempre, não é verdade?
- Eu também gostaria de comemorar este dia. Acho que devemos ir ao L'Âge d'Or, de Nicolai. É um dos lugares que ainda tenho que mostrar a você.
- Está bem, mas antes tomaremos um aperitivo lá no nosso cantinho no Majestic.
- Naturalmente, meu querido.
- E vamos nos preparar de maneira bem chique. Você se vestirá elegantemente para essa comemoração, não é verdade?
- Sabe, o L'Âge d'Or é um local ótimo e muito afamado, mas os freqüentadores não costumam vestir-se como para um baile de gala. Achariam ridículo...
- Que achem, ora! É nosso aniversário e nós o comemoraremos como bem entendermos. Fiquei encantado com aquele seu vestido preto, curto, que você comprou na Old England. Vista-o hoje. Coloque também aqueles brincos. Use as suas jóias. Eu também vou vestir o meu smoking.
- Mas você realmente quer festejar desse modo?
- Como não! Hoje é um grande dia de festa para nós. E se nossos trajes não são apropriados a Nicolai, podemos ir a qualquer outro lugar.
- Ao restaurante de Nicolai, então! - exclamou ela. - E iremos vestidos com o máximo de elegância, como você quer. Vou procurar ficar mais bela...
- Você não pode ficar mais bela do que é.
- Mas acho que devo me pintar um pouquinho.
- Sim. Peço-lhe que você se pinte um pouco. E nada importa que aquela gente nos considere loucos.
- Realmente, pouco importa. E Nicolai compreenderá facilmente a nossa atitude... Logo que ele nos vir... perceberá o que se passa conosco. Robert?
Por causa da minha sonolência, havia deixado cair a cabeça. - Sim?
- Noto que você está exausto...
- Nem tanto...
- Eu também me sinto um pouco cansada. Ela levantou-se dizendo:
- Vamos deitar aqui. Dormiremos um pouco para, logo mais à noite, estarmos bem-dispostos.
Atiramo-nos sobre a cama, na qual cabíamos ambos perfeitamente. A fresca brisa que soprava parecia acariciar-nos, dando-nos uma sensação de bem-estar. Eu respirava o perfume da pele bronzeada de Angela. Só então pude perceber o quanto estava cansado.
Angela segredou-me:
- Sabe qual é um dos meus maiores desejos, Robert?
- Qual?
- Não para agora. Só mais tarde. Quando tudo estiver correndo bem conosco. Quando você tiver tempo e não estiver atormentado por preocupação de espécie alguma.
- Mas qual é esse seu desejo?
- Como eu gostaria de fazer uma viagem pelo mundo... - Sua voz, nesse instante, parecia-me vir de tão longe! - Viajar num grande navio. Como o France, por exemplo. Você não gostaria, também, de fazer uma viagem assim?
- Huuummm...
- Poderíamos partir daqui indo diretamente à África, a fim de conhecermos Casablanca, Cidade do Cabo, Dar-es-Salam. Depois, então, prosseguiríamos até Bombaim, Madrasta, Calcutá, Cingapura, Bangkok. Tenho visto muitos filmes e fotografias dessas cidades e gostaria de conhecê-las. Mas somente acompanhada de você. É esse o grande desejo que tenho. E mesmo que tais viagens pelo mundo custem caro, creio que poderíamos fazê-la...
- Nós a faremos - disse, já quase pegando no sono - e visitaremos todas essas cidades juntos, pois este é o meu desejo também. Eu já conheço muitas delas e mostrarei a você tudo o que há de interessante nelas.
- Oh, Robert! - Ela achegou-se para bem perto de mim. - Hong Kong, Manila, Taipé, Nagasáki, Yokohama, Tóquio...
Não consegui ouvir as últimas palavras com muita clareza... Estava adormecendo... Sonhando, estava em Dar-es-Salam, na África, pechinchando com um vendedor para que ele baixasse o preço de um colar de pérolas que eu queria comprar para Angela...
Capítulo 18
No banheiro, ela sentou-se junto a uma pequena mesa sobre a qual havia um espelho de três faces. O espelho recebia a luz indiretamente. Angela usava uma calcinha cor da pele e nada mais. Em poucos minutos ela ajeitou o penteado. Depois começou a maquilar-se levemente, pois eu lhe havia pedido que se pintasse para a nossa festa. Antes havíamos tomado banho juntos. Depois do banho, ela friccionou o corpo com um creme especial que deveria ser retirado imediatamente. Explicou-me que precisava passar aquele creme na pele com muita freqüência, pois ficara ao sol durante muito empo e o ar de Cannes era demasiado seco.
Sentada na frente daquele espelho de três faces, ela impava o rosto com uma esponja e um tônico para a pele.
Sentado, permaneci imóvel ao seu lado.
- Acho que essa demora é irritante para a paciência de um homem - disse-me ela. - Saia daqui e procure ler algo ou vá tomar alguma bebida, Robert.
- Não. Quero ficar aqui contemplando-a.
- Mas isso lhe dá prazer?
- Nunca fiz isso antes com outras pessoas, mas, agora, tenho grande prazer em ficar aqui com você.
Fazendo movimentos circulares com a mão, ela começou a passar no rosto um outro tipo de creme, deixando-o atuar sobre a pele. Executava esse trabalho muito concentrada, mas sem deixar de me observar através do espelho. Não parávamos de nos fitar mesmo quando ela me dava as costas. Depois ela pegou um vidro contendo um óleo especial para make-up e começou a passá-lo em camadas uniformes sobre o rosto. Esse óleo era da mesma tonalidade bronzeada da sua pele.
- A cor desse óleo quase não faz contraste com a cor da sua pele, não é?
- É verdade. Tenho vários óleos desse tipo com tonalidades adaptadas ao grau de bronzeamento que o sol provoca na minha pele, conforme você mesmo pode verificar.
Pensei: "Não posso contar a ela que minha perna terá que ser amputada. Entretanto, mais dia menos dia, terei que lhe contar a verdade. E qual será sua reação? Será que ela procurará consolar-me e ajudar-me? Que farei em tal circunstância? Ficar-lhe agradecido pelas palavras de conforto que ela me disser? Agarrar-me a ela como única tábua de salvação? Mas não seria muito egoísmo da minha parte exigir isso dela? Será que eu deveria desaparecer da sua vida precisamente pelo fato de dedicar-lhe um amor tão intenso? Fugir dela cautelosa, silenciosamente?" Meus pensamentos tão inconstantes oscilavam de um extremo ao outro. Tornei-me subitamente otimista e cheio de esperança novamente. Passei então a refletir que tal atitude não seria absolutamente egoísmo da minha parte, porque só assim não precisaria abandonar Angela. Muito pelo contrário, com tal procedimento eu poderia permanecer com ela. Eu... eu tinha a obrigação...
Nesse instante, Angela pintava as sobrancelhas com um lápis. Ela estava completamente absorvida no seu trabalho. Procurava tornar-se mais bela do que era só para me agradar, para atender ao meu pedido.
Não havia dúvida, portanto, de que por mim ela faria outras coisas mais. Faria tudo o que eu pedisse. Ela me presia seu auxílio até que, depois de feita a prótese, eu conseguisse caminhar sozinho.
Contrastando com os pensamentos pessimistas da noite nterior, passei agora a falar comigo mesmo dessa maneira: "Meu velho, foi uma grande felicidade você ter encontrado Angela na sua vida. Com ela você resistirá quando lhe arrancarem a perna. Mas será que depois disso você continuará ser um homem capacitado e perfeito? Será que tudo vai correr bem depois? Continuará sendo, para uma mulher, um homem de verdade?"
Angela pegou um frasquinho, no qual mergulhou um pequeno pincel, e começou a pintar cuidadosamente o som-breado das pálpebras, dando-lhe uma tonalidade turquesa. "Escolheu essa tonalidade por causa do vestido preto", pensei. "Com outros vestidos, evidentemente ela emprega cores diferentes."
Bem, mas voltando aos meus pensamentos, é claro que, mesmo com uma perna só, continuarei um homem capaz... desde que eu viva com Angela. Por intermédio de Angela. "Que indivíduo feliz você é, meu velho!" Com um outro pincelzinho ela traçou sobre as pestanas linhas escuras, estendendo-as, também, para os cantos dos olhos. Sentado perto dela e observando seus movimentos, eu tinha a impressão de estar presenciando a coisa mais interessante que já vira em minha vida. Uma sensação de calor perpassou-me o peito com o ímpeto de ondas revoltas. Refleti: "Ela terá que me ajudar também a encontrar trabalho. Meu Deus, tudo é tão fácil! Na noite passada tudo me parecia impossível. Que grande idiota você é! O eterno Dilema-Joe". Dilema-Joe é o nome que calha perfeitamente para mim. Como são enormes as possibilidades de encontrar trabalho para um homem nas minhas condições, depois de submeter-me a uma prótese perfeita! Eu falo diversos idiomas, isso facilita muito, sem dúvida. Posso trabalhar, por exemplo, num escritório de advocacia ou num tabelionato. Angela conhece tanta gente em Cannes. Tenho absoluta certeza de que ela encontrará emprego para mim. E, desse modo, estará eliminado o problema do dinheiro. Ganharei o suficiente Para mim, para Angela e também para Karin. Como seria Maravilhoso se minha perna fosse amputada sem muita demora a fim de que eu pudesse permanecer em Cannes, não tendo mais necessidade de sair daqui! Este era o nosso maior Problema, embora não tivéssemos ainda falado nele.
"Que idiota você é!"
Angela tinha cílios longos e pretos. Nesse instante ela os estava pintando.
Eu poderia permanecer em Cannes para sempre! Junto de Angela! "Ó, grande idiota, não percebe que a enorme avalancha de problemas que parecia rolar sobre você desapareceu bruscamente, como por encanto? Como pode duvidar de Angela? Que grande bênção é o fato de ela encarar tudo com otimismo, podendo, assim, contrapor-se a você, um pessimista tão infeliz que vê tudo através de óculos escuros! Você, o Dilema-Joe."
Lembrei-me, então, das seguintes palavras que ela me dissera numa dessas nossas conversas noturnas por telefone, ao manifestarmos um certo temor pelo nosso futuro: "Sempre adotei em minha vida o seguinte lema: ESPERAR SEMPRE QUE OS FATOS ACONTEÇAM ..."
Esta seria a maneira mais acertada de pensar. Só que eu jamais teria força e coragem para pensar desse modo. Entretanto, com ela ao meu lado...
Angela, agora, usava um batom cor de laranja. Ela traçava o contorno da linha dos lábios com precisão e bem devagarinho, retocando-a levemente. Nunca, em minha vida, fiquei tão sensibilizado como agora, contemplando esse corpo de mulher, com o busto saliente e de aparência tão delicada. E que encanto era a sua cabecinha com os cabelos louros!
Depois de ter pintado os lábios, Angela levantou-se e passou pelo corpo um pouco de perfume, que ela tirou de uma caixa de papelão na qual havia muitos outros frasquinhos.
- Sabe que desde que cheguei a Cannes nunca mais comprei perfumes? Nessas recepções de gala, diversas firmas dão de presente às damas vidros de perfume. Aos cavalheiros elas presenteiam outras coisas. Por que eu iria comprar perfumes? Como você vê, nem posso gastar todos os vidros que me foram presenteados. Não é bom este perfume? - Ela estendeu-me o braço.
- Magnífico! - exclamei, inclinando-me para ela e beijando-lhe o bico dos seios.
- Oh... Quem sabe você quer que fiquemos em casa, Robert?
- Não. Eu quero fazer a nossa comemoração!
- Então, não faça assim... Você bem sabe como eu fico... E não passe a mão na minha nuca nem nas minhas costas, pois já lhe disse que me excito com muita facilidade. Ajude-me a ajeitar o vestido.
O sutiã achava-se costurado no próprio vestido. Segurei o vestido e Angela entrou nele. Depois ambos o levantamos com jeito e eu puxei o zíper para fechá-lo. Sobre a cama estavam os brincos de brilhantes que eu havia presenteado a Angela. Viam-se ali, também, a aliança, um brilhante branco pertencente a ela, engastado num anel de platina, e uma pequena pulseira de brilhantes. Nessa noite ela usou todas essas jóias.
Depois, então, sentou-se mais uma vez e começou a pintar as unhas com um esmalte da mesma cor do batom.
- Eu sempre deixo a pintura das unhas para o fim. Elas secam rapidamente. Por favor, enquanto termino isso, pegue os documentos do carro.
O Mercedes, que havia sido levado para a oficina, lhe fora entregue na tarde desse dia e se encontrava estacionado na frente do edifício. Já eram quase sete horas. Angela, na minha frente, revoluteava lentamente, exibindo o lindo vestido de seda, comprido até os joelhos, guarnecido de pregas e com a gola fechada, da qual despontavam o pescoço e a cabecinha como se estivessem emergindo de um cálice.
- Estou bastante linda para você?
Só pude responder meneando a cabeça, pois não conseguia falar.
- Por favor, feche a porta do terraço.
Fechei a porta e eis que os pensamentos começaram a me assaltar de novo: "Sim, ela é a sua salvação, meu velho. Ela o ajudará e seu amor por você aumentará cada vez mais".
De repente fiquei imóvel, com a mão no trinco da porta, como que estarrecido. E se meus pensamentos estivessem errados? E se tudo acontecer exatamente como imaginei na noite passada?
Capítulo 19
O carro rodava para o Majestic. Como sempre, eu ia sentado ao lado de Angela, que estava ao volante. Meu coração palpitava ante a contemplação de tamanha beleza. Atingimos a Croisette. O sol ainda ofuscava a visão. A essa hora, encontrava-se exatamente sobre o monte Esterel. Inopinadamente veio-me à lembrança o poema que Angela havia lido Para mim aquela noite. Como era mesmo que começava o poema? - "...completamente livre do selvagem apego à vida, de temores e de esperanças. .."
Livre de temores e de esperanças!
Louvado seja quem é livre dessas coisas! Não sou um desses felizardos. Vivo perseguido por esperanças, temores e um selvagem apego à vida. E o meu futuro, que pouco antes, enquanto eu observava Angela pintar-se e preparar-se, me parecia tão róseo, voltava a parecer-me, agora, completamente obscuro e impenetrável. De um momento para outro invadiu-me uma profunda tristeza.
- Em que é que você está pensando, queridinho?
- Em você, Angela - respondi-lhe.
- Você está feliz?
- Sim, estou muito feliz.
Enquanto Angela conversava em frente ao Majestic com Serge, o chefe da garagem, e se dirigia depois à nossa mesa naquele cantinho do terraço para pedir champanha, entrei no hall. Não havia nenhum recado para mim. Ainda bem. Subi até o meu quarto e vesti rapidamente o smoking. Depois tirei algo da gaveta do meio, na minha escrivaninha. Desci logo em seguida e dirigi-me ao terraço do hotel, que, como sempre acontecia a essa hora, já se encontrava repleto de pessoas alegres. Sentei-me ao lado de Angela. O nosso garçom abriu a garrafa de champanha e Angela convidou-o a beber um copo conosco.
- Estamos comemorando hoje uma grande data - disse ela.
O garçom, que se chamava Robert, foi buscar um copo e, depois que acabei de enchê-lo, ele o levantou em saudação, dizendo: - Bebo à saúde e à felicidade dos senhores, madame e monsieur! Os senhores são... perdoem-me a liberdade que tomo em falar-lhes desse modo... um par ideal.
- Obrigado - disse eu.
- Eu não sou a única pessoa que diz isso - emendou meu xará.
- Quem mais disse isso?
- Muitos senhores e senhoras que têm visto monsieur e madame freqüentemente juntos aqui neste hotel.
Ele esvaziou o copo, inclinou-se respeitosamente e saiu.
- Somos um par ideal - disse Angela. - Finalmente você mesmo acabou de ouvir essa afirmação.
- É verdade. E isso foi dito por muita gente que nos viu juntos.
- Mas somos de fato um par ideal, Robert. Ou você acha que não? Eu me sinto orgulhosa de você. Você fica ufto bem com esse smoking. Beije-me.
Inclinei-me para o seu lado e ficamos nos beijando durante um bom tempo, mesmo estando na presença de toda aquela gente. Ninguém estava nos observando. A única pessoa que lançou o olhar para nós sorriu-nos amavelmente.
Que país extraordinário é a França!
- Por ser hoje o dia do nosso aniversário - disse Angela, enquanto remexia na bolsa -, você vai receber um presente também. Já faz alguns dias que o comprei... Mas depois fiquei com um terrível medo de que tudo estivesse acabado entre nós. Então que deveria eu fazer com esse presente? - Ela tirou da bolsa um pacotinho, que me entregou. Desenrolei o papel de seda e uma correntinha dourada, de comprimento regular, surgiu diante dos meus olhos. Presa à correntinha havia uma moeda de ouro. Propriamente falando, não era uma única moeda, mas sim duas, unidas pelos respectivos reversos. Num lado via-se o signo de Leão e no outro o de Aquário.
Angela pertencia ao signo de Leão e eu ao de Aquário.
- Agradeço-lhe, Angela.
- Você gostou?
- Muito.
- Eu o comprei quando você ainda se encontrava na Alemanha. Foi Monsieur Quémard, da Van Cleef, quem me vendeu.
- Ah, sim, o bom Monsieur Quémard - disse eu, tirando por meu terno também um pacotinho do bolso do casaco do meu smoking.
- Aqui está o meu presente para você, Angela.
Ela retirou o papel e ficou segurando na mão também uma correntinha de comprimento regular na qual estavam presas duas moedas de ouro igualmente unidas pelos seus reversos. Um lado apresentava o signo de Leão e o outro o de Aquário.
- Nós estamos...
- ...nos oferecendo o mesmo presente. Eu também estive na joalheria de Monsieur Quémard. Foi logo após o meu regresso da Alemanha. Escolhi esse presente para você. Monsieur Quémard não disse uma palavra que pudesse trair o segredo da compra que você fez.
- Ele é um homem de caráter.
- E muito discreto.
- Um homem magnífico, não há dúvida - concluiu Angela.
Ela colocou seus braços em torno do meu pescoço e beijou-me novamente. Meu pé esquerdo começou a doer um pouco.
Meu Deus, não permitas que hoje me apareça essa dor!
Angela ergueu o copo dizendo:
- Ao nosso futuro! Que continuemos a nos amar tanto como estamos nos amando agora!
Bebemos. Robert, o garçom, aproximou-se da mesa e encheu de novo os nossos copos. Depois que ele saiu Angela disse:
- Cada um de nós tem agora um presente igualzinho ao do outro. Andarei com essa correntinha sempre pendurada no pescoço. Só vou tirá-la quando tiver que usar vestidos decotados.
- Eu também a usarei sempre. Mas qual é a minha e qual é a sua?
- Já as pegamos tantas vezes que nem sabemos qual foi a que você me presenteou e qual a que eu comprei para você. E isso é muito bom. Significa que nossas almas são tão semelhantes como os nossos presentes. Para mim não importa qual delas eu deva usar.
Ela passou por cima da minha cabeça uma das correnti-nhas, que enfiei por baixo do colarinho da camisa. As duas moedas unidas ficaram à altura do meu peito.
- Tomei o cuidado de ajeitar a moeda de modo que ela caísse com o signo de Leão virado para o seu coração - disse Angela. - E coloque agora a minha de modo que o signo de Aquário caia virado para o meu coração.
Fiz conforme ela mandou. A dor no meu pé estava aumentando.
- Happy birthday to you, darling! - exclamou Angela.
- And a very happy birthday to you, darling - disse eu.
- Você está com fome?
- Estou com uma fome danada.
- Então vamos logo ao restaurante de Nicolai. Ah, espere. Pegue o seu copo.
Derramamos, então, sobre o azulejo do terraço os restos de bebida que se encontravam nos copos.
- É para os deuses sedentos que vivem debaixo da terra - disse ela.
Serge, vendo que nos aprestávamos para sair, foi buscar o Mercedes, que se encontrava na garagem.
Enquanto ele conversava com Angela, engoli rapidamente dois comprimidos do meu remédio.
O sol já havia desaparecido atrás do monte Esterel. O réu ali parecia de ouro incandescente, ao passo que nas bandas do nascente ele se apresentava límpido e claro.
Capítulo 20
O L'Âge d'Or ficava localizado na Rue des Frères, que era um beco muito íngreme. Tratava-se de uma construção antiqüissima. Salas bem espaçosas e teto baixo. Nos corredores e passagens o teto apresentava-se com a forma arqueada. Essa edificação servira outrora para um convento. Nos fundos via-se um grande jardim. Nas noites de verão, quando o calor é intenso, os fregueses são atendidos também lá fora, a céu aberto, disse-me Angela.
Penetramos naquele amplo salão em cujas paredes pintadas de branco achavam-se pendurados pratos de estanho, frigideiras e elmos de cavaleiros. Um indivíduo alegre, com porte de gigante, aproximou-se de nós com os braços estendidos. Cumprimentou Angela, que fez a nossa apresentação:
- Robert, este é Nicolai. Nicolai, aqui está o meu futuro marido.
- Já ouvi dizer que a senhora pretende casar-se, Madame Delpierre.
Nicolai usava uma camisa branca com a gola aberta e estava de mangas arregaçadas. Um avental vermelho achava-se amarrado à sua cintura. Tudo nele era de grandes proporções: as mãos, os braços, a cabeça, o rosto, os olhos, a boca.
- Mas quem foi que lhe disse que eu pretendia casar-me? - perguntou Angela.
- Já não me lembro mais. São tantas as pessoas que vêm aqui, que é impossível lembrar-me de todas. Monsieur Lucas, meus sinceros votos de felicidade!
- Obrigado, Monsieur Nicolai.
- Monsieur, não. Nicolai. Meus amigos chamam-me somente de Nicolai. Madame Delpierre ama o senhor. E ela me chama simplesmente de Nicolai porque somos amigos. E agora também nós somos amigos, monsieur.
Ele conduziu-nos a uma mesa colocada num canto do salão, sobre a qual estava estendida uma toalha vermelha de linho; em cima dela havia um vaso com rosas. Em cima de cada mesa do salão havia um candelabro no qual ardiam três velas. O ambiente era fresco e agradável.
- Veja, Nicolai - disse Angela, mostrando-lhe a aliança no dedo.
- Oh! - exclamou ele.
Angela começou a alisar minha face. Meu pé já não doía mais.
- Eu mesmo vou trazer a bebida. E não adianta retrucar, monsieur! Que é que os senhores querem beber? Vinho? Champanha?
- Champanha - respondeu Angela.
- E para a senhora a horta, como de costume, Mada-me Delpierre? - interrogou o alegre dono do restaurante.
- Sim, como sempre - confirmou Angela. - Nicolai é um cozinheiro magnífico. Você está vendo aquele fogão lá do outro lado?
Via-se no local para onde Angela apontava um enorme fogão aberto, com a forma de uma semi-esfera, que chamejava.
- É ali que Nicolai assa a carne - disse ela. - O assado que ele faz é extraordinário. Ele prepara, também, um ótimo folheado de maçãs. Você tem que provar essas duas coisas.
- Sem dúvida, com prazer - disse.
- Como é que o senhor quer a carne, monsieur? No ponto ou passada? - perguntou-me Nicolai.
- No ponto - respondi-lhe.
- Voltarei logo trazendo o champanha - disse o sorridente gigante, dando-me umas palmadinhas nas costas. - Monsieur conquistou a melhor mulher do mundo!
- Eu sei - respondi-lhe. Ele saiu.
- Mas que significa "a horta"? - perguntei a Angela.
- Daqui a pouco você saberá. Eu tenho uma novidade para você. Eu o amo, Robert!
Notei que Nicolai, postado atrás de uma espécie de bar-zinho de pedra, colocava discos na vitrola. Imediatamente soou a doce música de um violino acompanhando uma grande orquestra.
- O sogro de Nicolai é um violinista muito afamado aqui na França. Ele se chama Grapelly - disse-me Angela. - Como ele toca bem, você não acha?
- É verdade.
- Nicolai é romano, sabe? Você mesmo pode notar sotaque dele. Acho que foi em 1955 que ele veio para a França.
Meus olhos já tinham se acostumado à luz das velas. Percebi que os outros freqüentadores do restaurante usavam simples trajes de passeio. Contudo, ninguém se preocupava em observar-nos. Nesse momento, penetraram no salão um homem e uma mulher, avançando na direção da nossa mesa. Reconheci o homem: era o Dr. Joubert, do Hôpital des Broussailles. Por que não poderia também o Dr. Joubert, nas suas noites livres, jantar no L'Âge d'Or?
Capítulo 21
Ele também reconheceu-me e parou. Notei que Angela ficou surpresa com a parada do médico. Entretanto, eu não podia fazer nada em tal circunstância, por isso levantei-me.
Ele aproximou-se da nossa mesa com a sua companheira, uma senhora baixinha, de aspecto amável.
- Boa noite, Dr. Joubert! - disse eu.
- Boa noite, Monsieur Lucas! Fiz a nossa apresentação.
A mulher que o acompanhava era sua esposa. Passei a explicar a Angela a razão do nosso conhecimento:
- O Dr. Joubert tratou de mim ontem.
- Onde? - interrogou-me Angela com os olhos arregalados.
- No Hôpital des Broussailles - respondi-lhe. Expliquei, então, que no carro de Gaston Tilmant eu
havia sofrido uma pequena indisposição. Tilmant assustou-se e levou-me ao hospital, onde o Dr. Joubert me tratou.
- Mas por que você não me disse isso antes? - perguntou-me Angela, muito preocupada.
- Não era coisa que valesse a pena comentar, não é verdade, doutor?
- Claro, claro - confirmou ele sorrindo.
- Mas que foi que você teve, Robert?
- Um pequeno distúrbio da circulação sem grande importância. Deve ter sido porque andei muito ao sol e fiz muito esforço. Mas depois de ter tomado uma injeção e de ter ficado deitado durante duas horas, fiquei completamente restabelecido.
- Realmente? - perguntou Angela ao médico.
- Realmente, madame. Como está passando agora, Monsieur Lucas?
O violino do sogro de Nicolai executava nesse instante uma melodia suave e triste.
- Sinto-me com excelente disposição, Dr. Joubert.
- Alegro-me com isso.
- E estou fazendo conforme o senhor me recomendou: cuido-me e evito apanhar muito sol.
- Ótimo! - disse Joubert. - Se acontecer algo ou se o senhor sentir-se mal novamente, já sabe onde poderá encontrar-me.
Ele inclinou-se diante de Angela e sua mulher fez um aceno com a cabeça. Em seguida retiraram-se ambos, indo para uma mesa distanciada da nossa, no outro canto do salão.
Angela encarou-me.
- Então você esteve no hospital?
- Não fique tão assustada assim! Eu estava na verdade muito nervoso, por causa daquele nosso desentendimento. Mas tive apenas uma pequena indisposição. Você mesma ouviu o médico declarar isso.
- Mas realmente não foi nada mais do que isso?
- Nada mais do que isso, Angela. O violino continuava tocando...
- Ah, seu pé! - exclamou ela. - Foi o seu pé. E o seu coração.
- Não! - retruquei-lhe. - Não foi meu pé nem meu coração, Angela.
- Não acredito em você. - Ela parecia estar fora de si. - Você não quer me deixar assustada. Você não se lembra como sentiu-se mal naquele dia em que estávamos passeando na ilha de Saint-Honorat? E não se lembra de que me havia jurado que iria procurar um especialista?
Respondi-lhe logo, sem titubear:
- Pois então posso acalmar você agora: cumpri o meu juramento.
- Quando?
- Ontem mesmo. Lá no hospital. Com o Dr. Joubert. Por coincidência, ele é o especialista que trata de distúrbios circulatórios.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que ele me fez um exame completo.
- E daí?
- E daí ele verificou que eu não tinha nada. Apenas, como já disse, um pequeno problema circulatório. Os comprimidos que eu trouxe da Alemanha são especialmente indicados para o meu caso. Devo tomá-los e deixar de fumar.
Com isso, a dor no meu pé desaparecerá. Você mesma ouviu a opinião de um especialista. Satisfeita?
__ Não! - respondeu-me ela, de maneira incisiva. -
Por que você não me falou antes sobre esse exame médico?
- Eu ia falar. Agora, na hora do jantar. Era a grande surpresa que eu tinha para você. Era...
Ela não estava mais prestando atenção às minhas palavras. Levantou-se bruscamente e dirigiu-se à mesa onde estava sentado o Dr. Joubert.
O médico levantou-se eu fiquei observando como Angela conversava com ele. Ela parecia insistir, suplicar. Santo Deus! A conversa deles parecia não ter mais fim. Eu não estava agüentando mais. Estava fazendo menção de levantar-me a fim de ir para junto deles, quando notei que ela se despedia do médico e voltava para a nossa mesa. Tentei ler na expressão do seu semblante o que ela ficara sabendo, mas seu rosto parecia estar vazio de expressão. Ela caminhava olhando para o chão.
Quando chegou, levantei-me, e depois sentamo-nos. Angela contemplava as chamas das velas.
- E então? - perguntei-lhe. Não me deu resposta.
- Angela, que foi que ele disse a você?
Ela começou a falar parecendo estar cochichando:
- Ele disse exatamente a mesma coisa que você me havia dito. O mal que você teve não é perigoso. Foi apenas um distúrbio circulatório e nada mais. E com seu coração nada há de anormal.
Eu te agradeço, ó Deus!
- Mas por que, então, você está com essa cara?
Ela pegou a minha mão e apertou-a contra a sua face. Depois começou a falar como que murmurando:
- Eu... eu preciso antes acalmar-me. Tive medo... Um medo horrível, Robert...
- De quê?
- De que você me estivesse mentindo para não me deixar nervosa e de que, na realidade, sua doença fosse muito grave. Tão grave que seria... seria preciso...
Seria preciso o quê?
- Que seria preciso... que talvez houvesse necessite de amputar o seu pé... ou até mesmo a sua perna. .
- Sua voz, agora, tornou-se quase inaudível. - Mas agora acredito que não há nenhum perigo. Agora estou sossegada. Você não mentiu. Agora tudo está bem. - Sim... Agora tudo está bem...
Capítulo 22
Uma garçonete jovem e bela trazia um grande cesto cheio de verduras. Havia raminhos de aipo, pepinos, tomates, cebolinhas com os talos, variados tipos de saladas, alcachofras, além de algumas hortaliças que eu desconhecia. Para acompanhar tudo isso ela trazia também ovos duros e uma boa quantidade de tempero, molho e coalhada feita em casa.
- É isso que costuma comer?
- E com um prazer extraordinário! Agora você compreende o que significa a horta. Nicolai cobra invariavelmente um preço único por refeição, não importando a quantidade que você peça ou coma.
A linda garçonete trouxe uma garrafa de champanha e encheu nossos copos.
Nicolai estava de pé na frente do fogão. As labaredas davam ao seu rosto um aspecto mágico. Nesse momento ele segurava, com habilidade e destreza, o comprido cabo de uma assadeira, sobre cuja chapa de ferro havia colocado o pedaço de carne que me deveria ser servido. Depois de assada a carne, ele mesmo a trouxe para a nossa mesa. Era um indivíduo magnífico e eu o elogiei dizendo isso na sua presença. Enquanto comíamos - eu, a minha carne assada, e Angela, as suas verduras -, ele ficou sentado à nossa mesa. Depois foi buscar outra garrafa de champanha e bebeu também. Então, passou a contar-nos que ele, ultimamente, vinha sempre ganhando no jogo de roleta, lá no cassino. Pela conversa depreendi que ele era um apaixonado jogador de roleta. A noite, depois de fechar o restaurante, ele muda de roupa e vai imediatamente para o cassino a fim de entregar-se ao vício. Ele insistia em explicar-me um método seu para jogar, que era infalível. Eu o ouvia com grande atenção, muito embora soubesse que para o jogo de roleta não existe nenhum método ou sistema possível. Todavia, Nicolai acreditava no seu método. E nós também não acreditamos quase sempre em algo, não importando se este algo existe ou não, se é possível ou impossível? E poderíamos viver se não procedêssemos assim?
Depois dessa conversa, Nicolai levantou-se e foi preparar o folheado de maçã, para Angela e para mim. Tratava-se realmente de um ótimo folheado. Tão bom assim eu ainda não havia experimentado em nenhuma outra parte. Nicolai voltou novamente a sentar-se conosco. Ele também bebia Campanha. Demonstrou sua satisfação pelo fato de eu ter gostado do seu folheado de maçãs. Que felicidade seria poder viver num país como a França, onde as pessoas levam em tanta consideração o amor, a boa comida e a amizade! Esvaziamos ainda uma terceira garrafa de champanha. Angela já estava levemente embriagada. E eu também.
- Os senhores parecem estar muito felizes - disse Nicolai. - Madame hoje tem um aspecto mais jovial e mais lindo do que tinha quando a vi da última vez. É amor, naturalmente.
- Sim, Nicolai - respondeu-lhe Angela, enquanto apertava minha mão. - É o amor.
Capítulo 23
Ela dirigia o carro com uma velocidade um tanto excessiva, mas com muita segurança, fazendo-o rodar através de uma estrada bem larga. No lado esquerdo da estrada viam-se cercas contornando diversas obras em construção.
- Sabe, estão querendo, agora, tornar todo o leito da via férrea subterrâneo - disse-me ela. - E também pretendem construir uma nova estação ferroviária. A estação velha é uma vergonha para esta cidade. É um verdadeiro caixão que foi construído no século passado. Agora vai aparecer aqui um gigantesco buraco para essas obras e a gente so poderá atingir o leito ferroviário através de um túnel. -Desse modo, dentro de dez ou vinte anos todos os trabalhos estarão concluídos. Opa!
- O que foi?
- Hum... Você não notou nada?
- Não.
Então o champanha já subiu à sua cabeça... Assim me parece. Mas que significa esse "Opa"?
- Nada de especial. É que eu só chego aos cruzamentos quando o sinal está vermelho. - O carro rodava na direção de La Californie.
- Você tem dinheiro na carteira?
- Sim.
- Quanto?
- Uns mil e quinhentos francos.
- Ótimo! - exclamou ela, e logo percebi para onde ela estava se dirigindo: à nossa igrejinha no Boulevard Alexandre III.
Estacionou o carro novamente debaixo daquelas lindas árvores antigas. Em seguida caminhamos até a porta da igreja, que estava fechada. Havia, pendurada na porta, uma caixinha, na qual estava escrito: "Para os nossos pobres". Juntei todo o dinheiro que pude encontrar nos meus bolsos: mil seiscentos e cinqüenta francos, que entreguei a Angela. Ela enfiou tudo na caixinha.
Sem mais demora voltamos ao local onde estava estacionado o carro, já resolvidos a seguir dali diretamente ao apartamento de Angela. Quando chegamos à passagem da estação ferroviária, o portão estava fechado. Angela teve que buzinar duas vezes antes que ele fosse aberto, pois o homem encarregado do serviço estava dormindo na sua guarita. Logo que o carro arrancou, Angela acenou-lhe e ele correspondeu ao aceno.
Em casa, Angela tratou logo de tirar todas as jóias, inclusive a aliança e a correntinha com as duas moedas juntas. Tirou também o lindo vestido e vestiu um robe. Tirei o casaco e desfiz o nó da gravata, afrouxando o colarinho. Já passava um pouco da meia-noite.
Angela tirou da geladeira mais uma garrafa de champanha. Abrimos novamente a porta do terraço. A essa hora já estava soprando a brisa fresca da noite. Angela trouxe um candelabro de seis braços e colocou-o sobre uma mesa perto da janela, através da qual ficamos contemplando a cidade. Acendeu todas as velas do candelabro e desligou a luz elétrica. Depois foi buscar no quarto o rádio transistor e sintonizou uma estação alemã que no momento estava transmitindo um jazz sentimental e suave.
Sentados no sofá, bem agarradinhos, sorvíamos o champanha e contemplávamos o mar e a cidade de Cannes. Notamos que lá embaixo umas luzes se aproximaram de outras e depois se distanciaram novamente. Eram dois navios que haviam passado um pelo outro.
- Até parece ridículo - disse, depois de termos ficado em silêncio durante um certo tempo.
- Ridículo o quê?
- Exatamente neste momento me ocorreu a idéia de que, por estranho que pareça, quase nada sei acerca da sua vida.
Ela fitou-me com o olhar enviesado.
- Você está com ciúmes? Alegro-me com isso!
- Não, não tenho ciúmes. Apenas...
- Compreendo - disse ela. - Aliás, eu já quis lhe contar tudo sobre minha vida, mas você não se dispôs a ouvir-me. Quer que eu conte agora?
- Conte, por favor.
- Muito bem. Você tem mesmo o direito de saber tudo...
- Mas se você não quiser, não precisa contar...
- Ora, é claro que quero! Eu sempre quis.
Ela passou, então, a me falar dos casinhos que teve na sua vida com alguns homens, procurando conscienciosamente mencioná-los todos sem omitir nenhum. Citou uns oito ou nove indivíduos. Realmente não eram muitos para uma mulher da sua idade e da sua aparência. Ela falava baixinho, apoiando a cabeça nos meus ombros. Por duas vezes chegou a cochilar um pouquinho, mas despertava logo e prosseguia no seu relato. Ao que me pareceu, ela teve os seus romances só com homens distintos, até que lhe apareceu um que lhe roubou dinheiro, e um outro que assumiu o compromisso de casar-se com ela, mas que já era casado. Eu mesmo odiava este último indivíduo porque foi por causa dele que Angela tentara suicidar-se.
- Sabe, Robert... e fatos assim você conhece também... às vezes a gente encontra homens distintos com os quais a gente se entende perfeitamente e julga tratar-se de amor. Mas, depois de decorrido algum tempo, percebe-se que tudo não passa de uma simples sugestão. Não é assim que às vezes acontece também aos homens com relação às mulheres?
- Exatamente da mesma forma.
- A gente quase sempre procura convencer-se de que e amor, embora sabendo de antemão que é só sexo e prazer, não é?
- É verdade.
- O gozo na cama e nada mais! Depois que o caso passa, a gente se considera simplesmente bons amigos. Ah, mas escute! Houve também na minha vida um tal Harry.
meu encontro com ele deu-se certa vez quando eu viajava de trem de Ostende a Paris...
Angela passou a contar tudo minuciosamente. Não parava de falar. Eu prestava atenção às suas palavras, mas não sentia ciúmes, pois tinha a absoluta convicção de que ela não dedicara a nenhum desses indivíduos o mesmo amor que me vinha dedicando. Da mesma forma, eu tinha certeza de que jamais havia amado outra mulher com um amor tão intenso como o que lhe dedicava. Quanto a mim, essa circunstância era bem fácil de se compreender: na verdade, até então, eu nunca havia amado mulher alguma.
Soava a melodia lenta do jazz. O céu, nas bandas do nascente, começava a ficar claro. As horas fugiam. O sol, que começava a despontar no horizonte, parecia emergir do próprio mar.
Fazia um bom tempo que estávamos calados, sentados um ao lado do outro, contemplando a cidade e o mar. Inclinei-me para o lado dela e cochichei-lhe ao ouvido:
- Agora venha, Angela.
Beijei suas pálpebras.
Uma hora mais tarde ela estava dormindo nos meus braços. Postado de lado, fiquei contemplando-a, como já era do meu hábito. Observando-a de perfil, seu rosto parecia o de uma madona. Rosto calmo e sereno, que irradiava paz. Permaneci contemplando-a até que a luz do sol penetrou no quarto através das venezianas inclinadas. Eu ouvia o barulho dos trens.
Capítulo 24
Curd Jurgens contava casos fazendo uma grande encenação com gestos expansivos. Elizabeth Taylor, Richard Burton e as outras pessoas que estavam sentadas na mesa de Curd Jurgens riam a bandeiras despregadas. Numa outra mesa localizada mais adiante, o exilado rei da Grécia e sua mulher conversavam com a Begum e com uma jovem dama. Na outra extremidade do terraço, Henry Kissinger, o conselheiro do presidente norte-americano, palestrava animadamente com uns homens que, calados, o escutavam com muita atenção. Toda essa gente estava sentada no terraço aberto, na borda do rochedo que ficava embaixo do Restaurante Éden Roc. Havia ali muitos terraços e todos eles estavam repletos de gente, nessa hora da tarde em que o sol ia quase descambando. Lá fora, na enseada, achavam-se ancorados diversos iates. Eu e o casal Athanasios e Melina Tenedos tínhamos a nossa mesa no terraço superior. Como todas as pessoas que ali se encontravam, nós também tomávamos o nosso aperitivo. Eu havia solicitado a Tenedos uma entrevista e ele me propôs que fôssemos no seu Rolls-Royce de Cannes a Cap d'Antibes a fim de, nessa tarde, jantarmos no Éden Roc. Na realidade, quem fez essa proposta foi sua esposa, a mulher com rosto de boneca.
- Iremos a qualquer lugar. Aqui em casa é muito perigoso. O senhor bem sabe por quê, Monsieur Lucas.
Conversamos pelo telefone. Melina e Athanasios falavam comigo alternadamente. Eu havia telefonado do apartamento de Angela.
- Sim, sei - confirmei. - É por causa da criadagem. Os senhores têm medo daquele sujeito, Vittorio, o maoísta.
- Cuidado! Ele pode estar ouvindo nossa conversa. Como já lhe disse, aqui em casa não podemos receber ninguém. Parece ridículo, mas é realmente um perigo receber as pessoas aqui. Além do mais, suponho que o senhor deseja tratar conosco assuntos de negócio e Vittorio poderá ficar nos espreitando. Não, não e não! Terminantemente, aqui não dá - disse Melina com aquela sua voz de mulher tagarela. - Onde nosso chofer poderá encontrá-lo?
- No Majestic.
Eu ainda estava trajando o smoking e tinha que mudar de roupa.
- Muito bem. Depois, então, resolveremos para onde ir. Mas só poderemos sair de tarde. Às quatro horas, está bem?
- Às quatro horas - confirmei.
- E o senhor poderá usar um traje leve, Monsieur Lucas - disse Melina Tenedos. - Nós também sempre vamos assim. E desse jeito é mais seguro, não há tanto perigo.
- É verdade, madame - respondi-lhe.
- Eles, esses pobres multimilionários, têm um medo horrível dos seus criados - disse-me Angela, depois que coloquei o fone no gancho. Ela escutara toda a conversa na extensão.
Havíamos ficado durante muito tempo deitados na cama. Por fim, eu também consegui dormir um pouquinho. Depois nos levantamos e almoçamos ao meio-dia. Nessa tarde, Angela teria que trabalhar. Combinamos que, depois de terminada a minha entrevista, eu voltaria ao seu apartamento, mesmo que fosse tarde da noite. Ela queria passar a noite comigo e era isso mesmo o que eu também desejava. Quando saí, fizemos as nossas despedidas como se eu tivesse de me ausentar por uma eternidade. Nós nos beijamos e ela acompanhou-me até o elevador. Permaneceu ao meu lado com o semblante triste até que entrei no elevador. Fui ao Majestic de táxi. Lá ninguém se importou pelo fato de eu estar trajando smoking a essa hora do dia. Aliás, nessa cidade, habitualmente ninguém se preocupa com o que os outros fazem e disso eu tive uma prova cabal ao pedir ao chefe da portaria que enviasse ao apartamento de Angela uma das minhas malas, na qual eu iria colocar minhas roupas. Expliquei-lhe que dali por diante eu passaria a maior parte do tempo no apartamento de Madame Delpierre, mas que o quarto no hotel continuaria sob a minha responsabilidade, evidentemente. Pedi-lhe que me procurasse naquele endereço na hipótese de aparecer algum recado, telegrama ou telefonema para mim. Perguntei-lhe se isso seria possível e, na verdade, fiquei encabulado ao fazer-lhe tal pedido.
- Mas certamente, monsieur! - respondeu-me o chefe da portaria, solícito e com um amplo sorriso nos lábios. - O senhor está gostando de Cannes, não é, monsieur?
- Muito.
- Alegro-me com isso.
Depois, subi até meu quarto. Tomei um banho. Vesti somente calça e camisa e calcei um par de sapatos leves. Em seguida preparei a mala, enchendo-a com roupas. Um carregador veio buscá-la. Ele já tinha conhecimento do lugar para onde deveria levá-la. Dei-lhe uma gorjeta e, logo que ele saiu, tive a impressão de que com essa pequena mudança parcial eu estava me aproximando um pouco mais de Angela.
O chofer de Tenedos apareceu pontualmente. Quando ele chegou, eu me encontrava sentado sozinho no nosso can-tinho no terraço do hotel, tomando gim-tônica e pensando em Angela. Eu estava sempre na expectativa de que a qualquer momento pudesse aparecer aquela dor no meu pé, mas felizmente ela não veio.
O chofer usava um uniforme bege. Conduziu-me à villa dos Tenedos. O casal já estava me esperando no parque. Athanasios, com aquela cabeça em forma de cubo que se assentava sobre os ombros sem deixar vestígio de pescoço, trazia à minha lembrança a figura de Gustav Brandenburg. Ele também só usava calça e camisa e sua mulher trajava um vestido colorido barato, próprio para o verão. Foi assim que se apresentou na minha frente um dos maiores armadores do mundo, acompanhado da esposa.
Desci do carro e beijei a mão de Melina. Ela começou a casquinar e, sempre conservando aquele seu riso abafado de criança, disse-me que escolhera o Éden Roc.
- Lá finalmente poderemos jantar em paz, comendo o que bem nos apetecer. - Ela falava inglês. - O chofer é italiano e não compreende uma palavra de inglês.
Foi desse modo que se ensejou a oportunidade de nos encontrarmos, agora, no terraço superior do Restaurante Éden Roc. Melina, que parecia fortemente impressionada com o grande número de pessoas ricas e famosas ali reunidas excepcionalmente nesse dia, chamou-me a atenção para o fato.
- Lá embaixo, naquela mesa dos fundos, está sentado Juan Carlos, o pretendente ao trono espanhol. As outras pessoas da sua mesa são condes, barões, príncipes, princesas e condessas.
- Ah, sim! - exclamei.
- E lá no outro lado, aqueles homens que estão fumando são americanos. Industriais do aço. Conheço dois deles.
Tenedos acenou-lhes e os dois homens corresponderam ao aceno.
- Veja como nos conhecemos - disse Athanasios com orgulho. - Mas o senhor tem uma falsa impressão de nós, Monsieur Lucas.
- Como assim?
- O senhor nos considera uns arrivistas, não é verdade?
- Por favor...
- É evidente que essa é a idéia que o senhor faz de nós - disse Melina, retomando o fio da conversa e movendo as pestanas.
Tenedos prosseguiu:
- Em Atenas eu comecei a minha vida como engraxate. O senhor não sabia disso?
- Não, eu não sabia.
Na água profundamente azulada da baía formavam-se estrias douradas.
- Mas Vittorio sabe. E apesar disso, ele vê em mim um inimigo mortal. Nós todos temos a mesma chance na vida. Eu não tenho culpa se ele não soube fazer uso da sua. Tudo depende do destino. Poderia ter acontecido de ele estar aqui sentado conversando com o senhor, como um grande proprietário de navios, sendo eu o seu criado.
Hoje eu só quero comer caviar - disse Melina. - Vou comer caviar até estourar. E só quero beber Roederer. Pelo menos aqui podemos comer sem medo.
- Antes tomaremos um aperitivo - disse seu marido. - Monsieur Lucas tem algumas perguntas a fazer-me. Elas poderiam ser feitas antes do jantar. Que acha, monsieur?
Passei então a relatar a Tenedos - como já havia feito antes a Thorwell - tudo o que Seeberg me dissera. Ambos escutaram-me com muita atenção. Por fim Tenedos disse:
- Eu e Melina achamos que Hellmann foi assassinado.
- Mr. Thorwell pensa da mesma maneira.
- Mas note o senhor que ele não foi assassinado por nenhuma das pessoas do nosso círculo, ou seja, dos componentes do grupo ao qual pertence a Kood. Nenhum de nós tinha um motivo plausível para tanto... e o senhor tem de admiti-lo, Monsieur Lucas.
- Não vejo nenhum motivo. Mas o motivo talvez se encontre aqui mesmo, nesta cidade.
- Aqui não há nenhum motivo. Já faz bastante tempo que o senhor se encontra em Cannes investigando o caso. Se aqui houvesse qualquer coisa, o senhor e a polícia já teriam descoberto. Deve haver algum assassino aqui, sem dúvida. Esta cidade constitui um ambiente próprio para os criminosos, como lhe disse na noite em que nos conhecemos na casa dos Trabaud, o senhor se lembra?
- Lembro-me perfeitamente.
Notei que lá embaixo Curd Jurgens e Burton deixavam a mesa e saíam do terraço.
- E realmente deve ter havido um assassino, mormente se considerarmos tudo o que aconteceu depois da morte de Hellmann. Não é verdade? Tenho uma idéia fixa - disse Tenedos.
- Qual? - perguntei.
- O assassino é desta cidade ou atualmente está nesta cidade. Entretanto, um pouco antes da morte de Hellmann, ele se encontrava em outro lugar.
- Onde?
- Na Córsega. Garanto que nenhum dos senhores havia pensado nesse lugar, não é verdade? Córsega! Foi na Córsega que colocaram ocultamente aquela bomba no iate. Foi na Córsega que o assassino cumpriu a tarefa que lhe fora dada.
- Por quem?
- Hellmann havia ido a Ajaccio encontrar-se com amigos com os quais tinha negócios. É o que andam dizendo por aí, não é verdade? Mas a polícia lhe disse alguma vez quem eram esses amigos de Hellmann?
- Não. A polícia nunca me disse nada a respeito.
-. Então o senhor ainda não sabe quem são esses dois indivíduos?
- Sei. São industriais.
Tenedos esboçou um sorriso malicioso, depois prosseguiu :
- Foi o que lhe disseram, ah! ah! ah! O senhor não sabe mais nada?
- Nada mais.
- Nesse caso eu me permito sugerir-lhe, Monsieur Lucas, que o senhor ao conversar com esse tal Monsieur Tilmant, do Ministério das Relações Exteriores da França, que agora se encontra nesta cidade. Sim, sim., não me olhe tão admirado desse jeito, nós já tivemos conhecimento da vinda dele. Já fomos suficientemente informados de tudo... Mas, como eu ia dizendo, permito-me sugerir-lhe que ao conversar com Monsieur Tilmant o senhor procure informar-se bem acerca desses dois homens. Clermont e Abel são os nomes deles.
- Clermont e Abel - repeti.
- Exato. Pergunte a Tilmant quem são eles.
- E se Tilmant não quiser responder-me?
- Insista com ele. Insista energicamente. E, se mesmo assim ele não quiser falar, o senhor pode tirar suas próprias conclusões. Se ele falar, talvez o senhor venha a ter uma grande surpresa.
- Surpresa em que sentido?
- Não direi mais nada. Não, não e não! Pergunte a Tilmant. Se ele lhe revelar tudo, o senhor ficará embasbacado, meu amigo. O senhor terá uma grande surpresa.
- Caviar! Quero comer caviar até rebentar - disse Melina.
- Sim, meu tesouro, você vai ter a quantidade de caviar que quiser. Mas será que poderemos dar um passeiozinho antes do jantar?
Fizemos nosso passeio, os três juntos, ao longo de um caminho estreito com o chão de terra vermelha, que se estendia do restaurante até o ponto de atracação dos barcos destinados ao transporte do pessoal para os iates. As orlas desse caminho estavam cheias de roseiras e cravos, além de viçosos bustos com as folhas douradas, os quais eu ainda não conhecia. Viam-se ali, em cada margem, laranjeiras, limoeiros pinheiros, palmeiras e eucaliptos. Alguns iates, depois de desembarcadas as pessoas, partiam de volta, enquanto outros chegavam cheios de gente. O céu e o mar cambiavam incessantemente de tonalidade. Aproximamo-nos da gaiola bem grande, pendurada à beira do caminho, na qual se encontrava o papagaio que, como todos ali sabiam, falava.
- Bonjour, Marcel - disse o papagaio, que a si próprio se chamava de Marcel.
- Não é engraçadinho? - interrogou-me Melina com sua carinha de boneca.
- How do you do? - perguntou Marcel.
- All right, thank you - respondeu Tenedos, sério. Aliás, esse homem permanecia com o semblante sempre sério. Quando ele sorria, seu sorriso parecia forçado, fingido. Não precisaria ter contado que começara sua vida como engraxate. Mas já que me falara sobre seu passado, senti-me na verdade um tanto compelido a olhá-lo com bons olhos. Talvez ele tivesse me contado essa particularidade da sua vida precisamente com tal intuito.
- You are happy - disse Marcel a Melina, que não cabia em si de tão encantada com o bichinho e que batia palmas na frente da gaiola como uma criança.
- Thank you, Marcel, thank you - respondeu ela.
- You are a wise man (tradução: você é um homem inteligente) - disse Marcel a Tenedos, que permaneceu calado.
- And you are a fool (tradução: e você é um bobo) - disse o papagaio, dirigindo-se a mim.
- Thank you, Marcel - respondi-lhe.
Passei, então, a contemplar, lá embaixo no mar, o porto de Juan-les-Pins, pintado com cores vivas, e depois desviei meus olhos para a baía em cuja orla se estende Cannes. Tudo o que eu via parecia vago e com contornos maldefinidos por causa da longa distância, mas o sol ardente projetava seus raios sobre as casas brancas fazendo com que milhares de janelas resplandecessem com um brilho dourado. Eu divisava Port Canto e o antigo porto, bem como os suntuosos hotéis da Croisette, os quais eu já conhecia muito bem. Eu via as luxuosas résidences espalhadas pelas íngremes encostas da cidade. Virei-me para a direita: surgiu diante dos meus olhos La Californie. Ali estava a Résidence Cléopâtre. Era lá que Angela estava.
- You lucky fool (tradução: seu bobo sortudo) - disse Marcel.
Melhor assim...
Capítulo 25
Antes de dirigir-me à mesa para jantar com os Tenedos, telefonei para Angela, dizendo-lhe que iria chegar bem mais tarde, pois tinha muita coisa a fazer ainda.
- Não importa. Eu espero. Robert, a sua mala já foi entregue aqui. Já tirei tudo da mala e arrumei no guarda-roupa. A pilha do aparelho de escovar dentes já estava muito fraca.
- É verdade. Eu sabia.
- Pois bem, fui à cidade e comprei uma nova. Eu tenho que cuidar de você... cuidar do meu maridinho. Mas você deverá ser tolerante para comigo se alguma vez a minha orientação do serviço da casa não funcionar direito... como, por exemplo, não servir a comida na hora certa, ou coisa semelhante. Não estou ainda acostumada a viver com um homem. Vivi sozinha durante tanto tempo! Praticamente durante toda a minha vida. Sempre andei vagando por esse mundo como uma cigana. Mas, daqui por diante, vou modificar-me, Robert. Tornar-me-ei uma dona-de-casa excelente e...
- Angela?
- Sim?
- Você deve continuar sendo o que é. Você absolutamente não deve modificar-se nem um pouquinho.
- Você é magnífico, Robert! Esperarei você... Aproveitando a ocasião, logo em seguida telefonei para
Gaston Tilmant. Ele se encontrava no Carlton nesse momento. Solicitei-lhe que permanecesse no hotel, aguardando minha chegada, pois tinha necessidade de discutir um assunto com ele.
Está bem! - respondeu-me.
Depois, então, entrei no salão de refeições do Eden Roc, onde havia um enorme bufê de frios. Sentei-me à mesa com os Tenedos. Começamos a comer. O grego disse-me com o semblante sério:
- O senhor nem faz idéia do que significa permanecer durante o jantar, à noite, um bom tempo sem precisar temer os criados. Faz quase um mês que não me sinto tão bem como hoje.
- Mas o senhor pode fazer as refeições fora sempre que quiser - ponderei.
- Isso é exatamente o que não devemos fazer com muita freqüência - interveio Melina. - Tal circunstância também serviria de motivo para que Vittorio instigasse os outros criados contra nós. Ficaríamos em maior perigo de vida ainda. Só uma vez ou outra podemos sair para comer... e assim mesmo sempre a pretexto de tratar de negócios.
Nessa noite Melina, de fato, só comeu caviar.
Capítulo 26
Gaston Tilmant deu um profundo suspiro. Tirou os óculos para limpar as lentes com o seu lencinho de bolso e ajeitou-os novamente sobre o nariz.
- Era de esperar que mais cedo ou mais tarde o senhor viesse a me fazer tal pergunta, Monsieur Lucas.
Estávamos sentados ao ar livre no terraço em frente ao bar do Carlton e bebíamos uísque. Na Croisette, avançava com lentidão a comprida fila de carros. Eu relatava a Tilmant a entrevista que tivera com Tenedos. Perguntei-lhe quem eram Clermont e Abel.
Tilmant respondeu-me:
- Tenedos agiu com muita inteligência procurando desviar sua atenção, para Clermont e Abel. Eu já imaginava que ele iria fazer isso. Parece-me, pois, que Tenedos é o mais inteligente de todos os componentes do grupo. Ou talvez os outros lhe tenham dado essa incumbência.
- Quem são Clermont e Abel, Monsieur Tilmant?
Em frente ao hotel algumas prostitutas faziam trottoir, caminhando de um lado para outro. Eram bem jovens. De vez em quando, um carro parava e uma delas subia ou ficava conversando com algum dos passageiros para fazer o necessário acerto. Certa vez, conversando com um dos porteiros do Ma-jestic, ele me disse que as meretrizes que ali faziam o trottoir eram das mais baratas. Não ganhavam mais de quatrocentos francos para "servir" toda a noite e isso com o compromisso de fazerem toda e qualquer espécie de sacanagem.
Para uma relação simples elas conseguiam, no máximo, duzentos francos Todas as meretrizes de nível elevado possuem apartamentos próprios e não fazem trottoir na frente dos hotéis à procura de clientes. Habitualmente entram nos restaurantes, onde sempre se tolera um bom número delas, ou então permanecem nos seus apartamentos aguardando algum telefonema pois os seus nomes e os números dos seus telefones podem ser fornecidos pelos próprios porteiros dos hotéis. Essas meretrizes de luxo chegam a cobrar de quinhentos a mil francos por uma noite inteira e dão nove francos de comissão ao porteiro. Disse-me que os porteiros só indicavam lindas mulheres. A maioria das prostitutas eram alemãs.
- Clermont e Abel são os homens que, com os seus nomes acobertados, estão à testa do grande truste da indústria eletrônica na França - prosseguiu Tilmant. - O senhor não conhece esses nomes precisamente porque são mantidos em sigilo. Não teria nenhum sentido eu não,querer revelar-lhe toda a verdade a respeito deles, Monsieur Lucas. Se eu não procedesse assim, o senhor iria fazer enormes esforços procurando investigar tudo, sem outro resultado senão criar maiores inquietações. Esses dois gigantes da indústria, por diversas razões (o fornecimento de armas está evidentemente no primeiro plano, mas deve-se considerar também outros motivos), estão em estreita ligação com o governo. Clermont e Abel... eu os conheço pessoalmente e sei até de cor os respectivos dossiês... em virtude das maquinações e tramas da Kood, encontram-se numa situação financeira difícil. Também a colocação dos seus produtos no mercado está sendo muito dificultada. O governo só pode ajudá-los com dinheiro, mas não pode absolutamente modificar as condições do mercado em benefício de Clermont e Abel, já que a Kood está sempre fazendo concorrência, fornecendo seus produtos a preços mais baratos e procurando criar o monopólio do mercado em detrimento das demais empresas. Hellmann conhecia muito bem esses dois senhores. De fato eles eram amigos antes. Depois se inimizaram.
- Mas todos eles... refiro-me aos do grupo desses multimilionários envolvidos no caso... alegam que Hellmann viajara à Córsega precisamente com o intuito de visitar amigos com os quais mantinha relações de negócios - argumentei.
Uma prostituta lourinha e com a boca bem grande passava por nós pela terceira vez. Ela nos olhou sorrindo, sacudiu os ombros e foi andando.
- É preciso que se diga que muito poucas pessoas conhecem a verdade, Monsieur Lucas.
- Mas, então, que desejavam de Hellmann esses dois homens?
- Consoante o depoimento deles, fazia muito tempo que esse encontro havia sido marcado. Pretendiam pedir que Hellmann interferisse para acabar com essa perseguição, esse verdadeiro acossamento por parte dos elementos da Kood, de modo a dar-lhes também uma chance para novamente colocarem seus produtos no mercado. Conforme eles próprios declararam, chegaram até a apelar para a dignidade pessoal de Hellmann...
- O senhor mesmo inquiriu os dois?
- E minuciosamente! Entrevistei-os em Paris. E não tenho nenhuma razão para duvidar do que eles declararam. Quando Hellmann lhes disse que nada poderia fazer, apesar da sua boa vontade, eles se tornaram... bem... eles se tornaram ameaçadores...
- Em que sentido?
- Exatamente como aquele banqueiro desconhecido que discutiu asperamente com Hellmann lá no Frankfurt-Hof. Da mesma forma que aquele homem, Clermont e Abel também tinham conhecimento das operações financeiras que Kilwood, em nome do grupo Kood, realizava com Hellmann. Eles então... Bem, falemos claramente, eles então ameaçaram tornar públicas essas transações se Hellmann não procedesse de maneira mais decente, assumindo, para tanto, o compromisso de debater amplamente o assunto com os seus parceiros. Afinal de contas ele era um homem livre. Não tinha a obrigação de só fazer o que Kilwood exigisse dele.
- E ele se recusou?
- Derramando lágrimas!
- O quê?!
- Clermont e Abel me disseram que ele chorou. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. Ele estava profundamente abalado. Declarou-lhes que, muito ao contrário do que eles supunham, ele vivia sob a constante pressão do grupo e tinha que fazer tudo o que Kilwood exigisse dele... tudo, tudo... e que por isso não podia auxiliá-los...
- Um momento, por favor! As dificuldades deles não terminariam absolutamente com a morte de Hellmann. Os herdeiros do banco de Hellmann e o pessoal da Kood continuariam com a mesma política, fazendo a mesma coisa...
- Bem, até agora eles nada fizeram - disse Gaston Tilmant, lançando o olhar para a lourinha que mais uma vez passava por nós. - Que pena! Tão jovem. Tão bela. Tão sadia. Com a pele ainda tão cheia de frescor. Dentro de dez anos nem lavando com barrela! Ou estará doente ou morta.
O senhor é muito sentimental - disse.
- Não, sentimental não sou. Eu apenas gostaria de que todas as pessoas fossem felizes. Se eu pudesse, ajudaria todos os infelizes...
- Ajude pelo menos alguns dos infelizes.
Ele ficou calado durante um certo tempo; depois, me-neando a cabeça, disse-me em voz baixa:
- Eu os ajudaria de bom grado na medida do possível.
- Então o senhor realmente está exercendo uma profissão errada, Monsieur Tilmant.
- É mesmo, não é verdade?
Em seguida, retomando o fio da conversa, prosseguiu:
- Como ia lhe dizendo, os elementos do grupo da Kood até agora não tomaram nenhuma atitude contra Cler-mont e Abel nem contra a sua empresa. Também o banco de Hellmann, através de Seeberg, o procurador munido dos mais amplos poderes, nada empreendeu em detrimento desses dois industriais franceses. Parece que todos eles pararam de fazer as suas chicanas.
- É evidente que, com essa nova atitude, eles pretendem dar a entender que agora Clermont e Abel sentem-se aliviados precisamente pelo fato de terem removido do seu caminho o teimoso e obstinado Hellmann.
- Isso é o que poderia parecer. Mas na realidade não é assim.
- Por que não?
- Clermont e Abel são homens de renome nacional, Monsieur Lucas. Acusá-los de assassinato seria o mesmo que acusar o próprio governo francês.
- Já houve precedentes que comprovam que essa gente é capaz de remover do seu caminho até mesmo homens com altos encargos governamentais.
- Sem dúvida - concordou Tilmant.
- E apesar disso os supremos escalões do governo trances concordaram em enviar um alto funcionário, ou seja, o senhor, para tratar desse caso da maneira mais discreta possível. E todos nós teremos que fazer o que o senhor nos ordenar. Essa é que é a verdade.
- Realmente é isso mesmo, Monsieur Lucas. Como já lhe disse, Monsieur Tenedos é um homem muito inteligente... Fique sabendo que... desde que fui incumbido de tratar desse caso não posso deixar de pensar numa passagem dos escritos de um homem que muito admiro. Ele é alemão: Georg Christoph Lichtenberg.
- O que diz essa passagem?
- Diz o seguinte: "Choveu tanto que os porcos se lavaram, ficando limpos, e os homens se sujaram completamente". Este caso, Monsieur Lucas, é uma grande chuvarada, e eu já estou metido nela.
Capítulo 27
Eu estava sentado no sofá, ao lado de Angela, perto da janela. À meia-noite havíamos desligado o aparelho de televisão e ficamos bebendo Rémy Martin. Contei a Angela tudo o que havia feito depois da minha saída do apartamento.
- Sim - disse ela -, eu conheço Marcel, o papagaio que fala. Já estive algumas vezes no Éden Roc, acompanhada de amigos.
- O que você acha, Angela? Será que Tilmant está dizendo a verdade?
- Não o tenho visto com freqüência e pouco falei com ele. Mas à primeira vista deu-me a impressão de ser um indivíduo absolutamente íntegro. Não acredito que seja um homem capaz de mentir... mesmo que se esforçasse para tanto.
- Eu também penso assim. Entretanto, minhas investigações, do jeito que vão, não progridem. Não consegui avançar um único passo sequer.
- E esse funcionário de Bonn, esse tal...
- Kessler? Ele também não fez muito progresso. Com permissão de Tilmant, telefonei para ele e para Roussel, falando-lhes de Clermont e Abel. Roussel continua muito enfurecido por causa dessa intromissão direta de Paris, pondo o caso sob a tutela de Tilmant. Kessler se mostra, agora, muito mais calmo. Como você, ele também acha que se deve dar crédito às palavras de Tilmant.
Ela começou a alisar os meus cabelos.
- Ora, veja só... Deve fazer muito tempo que você não faz uma limpeza em regra nos seus cabelos.
- Irei amanhã de tarde ao cabeleireiro.
- Eu mesma lavarei os seus cabelos.
- Você está louca?
- Ora, por quê?
- Até hoje mulher alguma lavou minha cabeça.
- Então você só deve ter convivido com mulheres muito ridículas. Eu quero lavar seus cabelos. Ou será que isso não é do seu agrado?
- Claro que não, Angela. Esse maldito caso! Não faço nenhum progresso com as minhas investigações. De Karin, nem notícias. Foi um grande erro da minha parte autorizar o crédito mensal de mil e quinhentos marcos na conta dela. Meu advogado tinha razão.
Angela permaneceu calada, contemplando a cidade.
- O que você acha, Angela? Não diz nada?
- Já refleti muito sobre isso depois que aquela tal Sra. Dreyer me trouxe a carta da sua mulher.
- E então?
- Acho que você não cometeu erro algum!
- Mas agora vou mandar suspender imediatamente essas consignações mensais a Karin.
- Seria a coisa mais fácil do mundo fazer isso. Depois então...
- Então o quê?
- Aquela carta demonstra que, apesar de tudo, ela ainda o ama, Robert.
- Que ela ainda me... Absurdo! Faz anos que Karin não me ama. A carta demonstra apenas que ela não recua nem mesmo diante dos mais torpes atos de baixeza. Afora isso, nada mais se depreende do que ela escreveu.
- Você pode chamar de baixeza a atitude dela... Talvez só agora, depois que perdeu você, ela se tenha dado conta de que o ama. Ou de que precisa de você. Nós sempre temos propensão para amar as pessoas de que precisamos. E numa situação como a dela, não há nenhum ato considerado torpe e baixo que se deixe de praticar...
- Um ato desses você jamais praticaria! - exclamei com veemência.
- Mas posso imaginar - respondeu ela simplesmente.
- Angela!
- Posso imaginar muito bem, sim. - Ela passou a falar ponderadamente e com calma. - Por isso refleti que a gente nunca deve pagar o mal com o mal. Se você mandar suspender agora o pagamento desse dinheiro, sua mulher se tornará pior ainda. Ela bem sabe que você quer o divórcio. E simplesmente fará uso do seu direito de não concordar com divorcio se você tomar tal atitude.
Mas se você continuar mandando fazer o crédito mensal dessa quantia na sua conta (para refletir melhor, coloco-me no lugar dela), então forçosamente ela terá que pensar assim: "A atitude dele para comigo é decente e vejo que eles realmente se amam porque do contrário, aquela minha carta teria produzido um verdadeiro estardalhaço. Realmente eu já perdi Robert. Mas o perdi por causa de um novo amor que surgiu e não por ódio. Temos ainda a oportunidade de nos separarmos em paz e por bem. Ele não deixará nunca de zelar por mim. Deu provas disso e eu, portanto, tenho que lhe conceder a liberdade".
- Assim pensaria você, Angela! - disse, alteando a voz. - Você!
- Sim, eu.
- Mas você não é Karin. Karin não pensa como você. Eu a conheço muito bem.
- Então continue dando-lhe esse dinheiro, ainda que seja por pura superstição. Tenho o pressentimento de que tudo vai correr mal se você suspender o pagamento dessa importância a sua mulher.
- Eu também - disse, em voz baixa. - Realmente só por superstição é que não mandarei suspender esse pagamento.
- Então concorda comigo? - Ela deu-me um beijo na face. - Quer dizer que você mandará creditar na conta dela mensalmente esses mil e quinhentos marcos?
Respondi afirmativamente com a cabeça.
- Por superstição ou por outro motivo qualquer - prosseguiu Angela -, é a melhor coisa que você poderá fazer. Oh, Robert!...
Ela encostou-se em mim, enfiou a mão debaixo da minha camisa e começou a alisar meu peito e a brincar com a correntinha da qual pendiam aquelas duas moedas com os nossos signos.
- Eu fiz uma coisa... Espero que você não fique zangado comigo - disse ela.
- Eu jamais poderia ficar zangado com você por coisa alguma deste mundo.
- A minha cabeleireira telefonou-me. Já faz bastante tempo que ela me conhece. Foi ela a pessoa que me levou ao consultório daquela famosa cartomante de Saint-Raphaël, de quem já lhe falei. Pelo telefone expliquei-lhe que nós nos amamos... Perdoe-me, sim?... Ela só vive consultando cartomantes. Agora é cliente de outra: Madame Bernis.
Essa cartomante vem de Antibes para dar consultas nesta cidade uma vez por semana. Ela atende no Hotel d'Autriche, no Boulevard Carnot. Minha cabeleireira afirma que ela é fenomenal. Você está rindo?
- Não, meu amor - respondi-lhe.
Angela, com suas idéias, era de amargar. Foi assim que começamos com esse negócio de cartomante.
- Você estaria disposto a acompanhar-me ao consultório de Madame Bernis?
- Por que não?
- Amanhã ela estará em Cannes. Posso marcar com ela uma consulta para amanhã de tarde?
- Sem dúvida. Ela abraçou-me.
- Obrigada, Robert! Eu bem sei em que você está pensando agora. Eu também penso do mesmo modo. Mas é preciso dizer que em nossa situação a gente tem que se agarrar a qualquer tábua de salvação. E, para dizer a verdade, a gente sempre gosta de ouvir coisas boas, coisas capazes de nos deixar mais esperançosos, não é verdade?
- É claro.
- Venha agora. Vou lavar sua cabeça.
Eram três horas da madrugada quando, puxando-me pela mão, ela levou-me até uma peça onde mostrou-me um armário embutido no qual havia arrumado cuidadosamente as minhas roupas que estavam na mala. Eram apenas dois ternos compostos de calças e camisetas esporte leves, próprias para o verão, e algumas cuecas.
- Aqui estão as primeiras coisas que você mandou. Graças a Deus o apartamento é bem grande. Eu já tive uma idéia que acho que vai dar certo: você vai ficar com este lindo quartinho exclusivamente para você. E poderá colocar todas as suas coisas neste armário.
Era de fato um armário bem amplo com portas corrediças. Com tão poucas roupas parecia até que estava vazio.
- Realmente é bem espaçoso - disse.
Em seguida ela me levou para mostrar-me um outro banheiro, que eu ainda não conhecia. Não era muito grande, mas confortável e bem arrumado.
- Ontem de tarde fui à Rue d'Antibes e comprei este armariozinho para você. Eu mesma pendurei-o na parede. Sou muito habilidosa, você não acha?
Abri o pequeno armário, onde encontrei o meu aparelho elétrico de barbear, vidros com água-de-colônia e alguns remédios.
- Agora tire a roupa - disse ela - e sente-se aqui. Vou buscar o xampu.
Ela saiu apressada. Tirei a minha roupa, ficando só de cueca, e sentei-me num banquinho que ficava em frente da pia. Angela voltou logo.
Ela lavou bem os meus cabelos e me fez massagens no couro cabeludo. Com isso eu tinha uma maravilhosa sensação de prazer. Por fim ela disse:
- Não se assuste, agora vou derramar água fria. O jato de água fria causou-me um certo arrepio.
- Desse modo os cabelos adquirem um brilho todo especial.
Então ela passou a esfregar meus cabelos e depois penteou-os para trás, inclusive nos lados.
- Seus cabelos, nos lados, deveriam ser um pouco mais compridos - disse ela com senso crítico. - O corte de cabelo que você usa é tipicamente prussiano. Você tem que deixar seus cabelos crescerem bastante nos lados, a fim de que fiquem bem ajeitados e fixos quando os pentear para trás. Não se esqueça de observar isso quando for ao cabeleireiro. Você não precisa mais usar o cabelo repartido. Sua aparência ficará muito melhor sem repartir os cabelos. Mas, por favor, não'se esqueça. Pense em mim quando você estiver no cabeleireiro. De maneira alguma...
- ...devo deixar que ele corte os cabelos nos lados - concluí. - Fique sossegada que eu não me esquecerei da sua recomendação.
Depois, com a seriedade de uma exímia profissional, colocou na minha cabeça uma rede. Logo que me levantei, ela, orgulhosa, mostrou-me, pendurados nuns ganchos de plástico, um roupão e um pijama.
- Também fui eu quem colocou esses ganchos. Venha agora para baixo do secador de cabelos.
Ela conduziu-me até o jardim de inverno e ali tirou de um cantinho o secador elétrico, com o formato de um enorme capacete. Sentei-me numa cadeira e ela ligou o secador. Um ar quente começou a circular sobre minha cabeça. Ao executar seu trabalho, Angela ficou com as faces vermelhas. Sentou-se à minha frente e acendeu um cigarro.
Capítulo 28
O Hotel d'Autríche era pequeno e antigo. Poder-se-ia classificá-1o como uma hospedaria. Madame Bernis havia mar-do a nossa consulta para as quatro horas. Chegamos penalmente porém ela ainda estava atendendo clientes no seu quarto, conforme nos informou o porteiro. Tudo era apertado naquele hotel. Eu e Angela ficamos sentados numa sala com o ar tão viciado que quase nos deixava sufocados. Tentei abrir a janela, mas o ferrolho estava emperrado. Eu estava com dor de cabeça. Fazia uma tarde abafadiça de mor-maço. Uma mosca bem grande zumbia, batendo continuamente na vidraça. Ia ficando cada vez mais nervoso, por isso resolvi espairecer um pouco no corredor. Ali, perguntei ao porteiro se ele podia trazer-nos alguma bebida. Respondeu -me que sim e pedi cerveja. Ele nos trouxe duas garrafas e encheu nossos copos. A cerveja estava morna. Quis reclamar, porém Angela me fez sinal com a cabeça para que não dissesse nada. Deixamos a cerveja nos copos. Minha dor de cabeça recrudescia a cada momento. Angela tirou a aliança do dedo e colocou-a na bolsa.
- A cartomante não deve ter nenhuma indicação ou sinal a nosso respeito - disse ela, com o semblante sério.
Finalmente lá pelas cinco e meia um parzinho desceu por um velho elevador que parecia pouco firme e frouxo, penetrando no hall. Julguei que ambos houvessem alugado um quarto para um encontro de poucas horas, mas, como o porteiro no mesmo instante nos convidou a subir, deduzi que deviam ser clientes de Madame Bernis. O porteiro nos fez entrar naquele elevador que balançava e fazia ruídos, cuja cabina parecia estar dentro de uma jaula preta de ferro, e acompanhou-nos até o quarto alugado por Madame Bernis. Nesse quarto também estava quente e o ar parecia irrespirável. Deitado na cama, via-se um enorme gato com o pêlo cor de âmbar. Madame Bernis achava-se sentada atrás de uma mesa de forma oval, colocada bem no meio do quarto. Era gorda e tinha o aspecto de uma burguesa da classe média de porte avantajado. Sobre a mesa, estava uma bola de cristal hem grande. Na sua frente Madame Bernis tinha uma série de baralhos.
Eu e Angela sentamo-nos um ao lado do outro.
- Está errado dizer que sou uma cartomante - começou ela. - Isso todo mundo pode ser. Mas eu não o sou. Sou médium. Depois de uma inflamação na membrana do cérebro, que sofri quando ainda era menina, nunca mais pude fazer progressos no colégio. Eu era sempre a última da classe. Por fim tive que ser examinada por um neurologista, pois sentia toda espécie de incômodos possíveis de imaginar. O neurologista disse, então, a minha mãe que eu possuía faculdades mediúnicas e que permaneceria com elas durante toda a vida. A idade não influi em nada sobre a capacidade mediúnica de uma pessoa. Tenho oitenta e seis anos. Os senhores diriam que tenho essa idade?
- De forma alguma! - respondeu Angela.
- O meu trabalho é muito penoso e fatigante - continuou Madame Bernis. - Não posso atender mais de quatro clientes por dia. Por hoje, os senhores são os últimos. Depois que terminar, terei que ficar deitada durante mais de uma hora.
Passou a mão pelas têmporas. Não lhe dissemos nossos nomes nem fizemos menção alguma acerca das nossas relações.
- Vamos começar com monsieur - disse Madame Bernis. - Por favor, coloque a mão sobre a mesa.
Fiz conforme ordenara. Ela fechou os olhos e começou a deslizar a mão sobre a minha durante um certo tempo. Percebi, então, que as veias das suas têmporas começaram a palpitar, como se estivessem latejando. Dali por diante ela prosseguiu seu trabalho conservando os olhos quase sempre fechados.
- O senhor não é daqui, monsieur, mas vai tomar a decisão de permanecer definitivamente aqui. Para sempre.
- Quando ele irá tomar tal decisão? - interrogou Angela, que se encontrava num estado de grande excitação.
- Por favor, calma, minha senhora! - disse ela, dirigindo-se a Angela. Mas não deixou de responder à sua pergunta. - Ainda neste ano se dará isso. O senhor não é homem desimpedido, monsieur... Vejo uma mulher numa cidade distante. O senhor é casado, não é verdade?
- Sim, sou casado.
O gato cor de âmbar ronronava. Lá de baixo chegavam até nós os ruídos do intenso tráfego do Boulevard Carnot.
- Mas o senhor já abandonou sua mulher... E nunca mais vai voltar para junto dela... E nunca mais o senhor a verá de novo...
Fitei Angela, mas ela estava tão fascinada com as palavras da cartomante, que nada notou. Ela observava com o olhar fixo Madame Bernis, que falava com voz monótona.
- Não, nunca mais o senhor verá de novo sua mulher... Aqui existe outra mulher que está bem perto do senhor... essa mulher o ama e o senhor a ama também... Ela e o senhor permanecerão juntos... sim... juntos...
Bruscamente ela parou de falar. Notei que a ponta dos seus dedos passaram a mudar de cor, adquirindo uma tonalidade azulada. Isso me impressionou... Madame Bernis, falando com dificuldade, prosseguiu:
- Nada no mundo poderá separá-lo dessa mulher que o senhor ama... Vejo muito dinheiro...
"Ora, até que não seria mau!", pensei comigo mesmo. - ...Sim ...sim. O senhor vai ganhar muito dinheiro com um determinado negócio...
- Que espécie de negócio é esse?
- Está tudo muito obscuro... Não posso ver com clareza... Estou fazendo um esforço tremendo. - As veias das suas têmporas palpitavam agora com mais força. - Estou vendo fantasmas... Pessoas mortas... Pessoas assassinadas... E no meio de tudo isso, muito dinheiro... Muito dinheiro para o senhor, monsieur... Vejo aventais brancos de médicos... Muitos aventais brancos... Ainda neste ano morrerá uma pessoa, e com isso o senhor terá a possibilidade de se unir ao seu verdadeiro amor... numa união tão firme que ninguém jamais poderá desfazer... Vejo felicidade... Uma felicidade muito grande... E vejo chuva... Uma forte chuva torrencial... Um cemitério... Mas não posso distinguir bem porque a chuva está muito forte... Alguém está sendo sepultado... O senhor está presente, monsieur, na chuva...
- E tudo isso deverá acontecer ainda este ano? - perguntei, mas logo me dei conta de que Karin gozava de boa saúde; só se ela resolvesse praticar o suicídio. Não. Não pode ser Karin. Morrerá alguém por causa de uma amputação da perna? Todavia, consoante as palavras da cartomante, eu serei feliz e depois que se der essa morte ficarei livre para me unir à mulher que amo. Portanto, não serei eu a pessoa que vai morrer. Nem tampouco poderá ser Angela.
- Mas quem é a pessoa que vai morrer? - perguntei.
- Isso eu não sei... - Madame Bernis começou mais uma vez a alisar minha mão. - O seu trabalho tem algo a ver com a realização de investigações...
- O que a senhora quer dizer com isso?
- Investigações semelhantes às que a polícia efetua... Só que o senhor não é da polícia.
- Está certo - confirmei.
- Mas o senhor não mais precisará efetuar investigações. Terá bastante dinheiro... Oh, sim... A pessoa que vai morrer. Espere!... Ali surge uma estrada... Um carro...
- Algum acidente?
Ela abriu os olhos. Seu semblante estava desfigurado.
- Não posso dizer-lhe. Desculpe-me, mas preciso fazer uma pequena pausa. Este trabalho está sendo muito penoso para mim.
Ela levantou-se. Pegou uma garrafa com água, que verteu num copo, e bebeu com sofreguidão. Passados alguns minutos, ela se refez, recobrando ânimo. As pontas dos seus dedos recuperaram novamente sua cor normal.
Chegou a vez de Angela colocar a mão sobre a mesa.
- Madame, a senhora é desta cidade mesmo... e nesta cidade permanecerá para sempre... Santo Deus!... A senhora é exatamente a mulher que se unirá para sempre ao monsieur aqui presente!
- A nossa união será ainda este ano?
- Ainda este ano - respondeu prontamente Madame Bernis. - Será uma união que durará para sempre... Vejo agora uma grande festa... Música... Pessoas trajando roupas finíssimas... Festeja-se algo... Fogos de artifício... Agora os estou vendo a ambos... Os senhores estão muito felizes... Os senhores fumam bastante, em demasia... Não se esqueça de prestar muita atenção quando chove, madame ... Com chuva, qualquer um pode ser vítima de... acidentes .
- Com o carro?!
- Também com o carro... A senhora vive sozinha e não é casada... Eis que agora surge de novo a pessoa que vai morrer, mas não posso reconhecê-la... Vejo novamente muitos jalecos brancos de médicos... Uma sala de cirurgia... Uma pessoa morta que deixará o caminho livre para ambos. - Observei que as pontas dos dedos de Madame Bernis se tornavam novamente azuladas. - Vejo uma igre-jinha... Os senhores estão dentro dela... Um carro está sendo tirado da água... Uma pessoa morta está sentada ao volante... É aquela mesma pessoa que... Não consigo distinguir... Muitos policiais... Madame, seu primeiro nome começa com A?
- Sim...
- Chuva... chuva... A senhora sempre deve tomar cuidado com a chuva... 13 é o seu número da felicidade...
Tá era demais. Madame Bernis praticamente fez a Angela o mesmo vaticínio que me havia feito. Ainda neste ano ficaríamos unidos para sempre.
Por fim ela convidou-me a tirar cartas dos diversos baralhos que se achavam à sua frente.
- É apenas para o meu controle, a fim de que possa verificar se fiz as predições com exatidão.
Tirei as cartas dos baralhos, conforme ela mandara. Eram cartas que continham estranhos desenhos e símbolos que eu desconhecia. Uma determinada carta não deixou de sair em cada um dos baralhos. (Madame Bernis explicou-nos que era a carta da morte.) Angela também tirou repetidamente a mesma carta quando chegou sua vez.
Depois disso Madame Bernis deu por encerrada a sua "sessão". Pelo seu trabalho ela cobrou cinqüenta francos. Despediu-se de nós como que maquinalmente. Dava a impressão de estar num deplorável estado de abatimento. Descemos por aquele elevador frouxo e vacilante. Em seguida entramos no carro, dirigindo-nos ao Majestic. Lá, naquele nosso can-tinho, tomamos champanha, como fazíamos habitualmente à tardinha. Angela enfiou novamente a aliança no dedo.
- Fiquei bastante impressionada. E você, Robert?
- Eu também - respondi-lhe, lançando o olhar para a Croisette, com a sua enorme quantidade de palmeiras e de flores. Depois passei a observar, ao longe, o mar.
Durante longo tempo permanecemos calados. Por fim Angela começou a falar:
- Ouvimos hoje coisas tão assombrosas! Parece que agora nossas vidas estão suspensas dos lábios de uma cartomante.
- Você tem certeza de que sua cabeleireira não havia contado nada à cartomante a nosso respeito?
- Eu lhe pedi que nada dissesse e ela deu-me sua palavra de honra. Não, Madame Bernis nada sabia a nosso respeito! E é exatamente por isso que estou tão impressionada. Por exemplo, como poderia ela ter conhecimento da sua profissão?
- Sim, como?
Começamos a beber e mais uma vez permanecemos calados até que Angela, com palavras quase inaudíveis, disse-me:
- Eu não deveria ter ido consultar essa mulher Robert!
- Eu também não.
- Você também está se sentindo muito perturbado não é verdade?
- Sim.
- Então você está como eu. Se para sermos felizes é preciso que ocorra a morte de alguma pessoa que deixará, ainda neste ano, o caminho livre para nossa felicidade, devo dizer que em tais condições só...
- Sim. É exatamente isso o que penso.
- Uma felicidade assim de forma alguma eu quero. Se realmente acontecesse uma coisa dessas, eu não poderia suportar! Eu... eu teria a impressão de ser a culpada pela morte daquela pessoa.
- Eu também. E é por isso que estou terrivelmente impressionado.
- Como poderíamos ser felizes algum dia se realmente acontecesse como ela vaticinou? Não, Robert, eu não poderia suportar!
- Ora, mas não devemos acreditar no que ela disse! Embora você afirme o contrário, acho que sua cabeleireira traiu sua confiança. E a cartomante, então, procurou dizer coisas do nosso agrado. E ainda tivemos que lhe pagar.
- Algo do nosso agrado... - repetiu Angela, estremecendo com uns arrepios pelo corpo.
- Não devemos acreditar nela. Tudo o que ela disse não passa de embuste, não passa de mentira, Angela. Nós ainda seremos felizes vivendo juntos, sem que seja preciso que ocorra a morte de alguém e sem aventais brancos de médicos e enfermeiros.
- Foi um grande erro ter levado você para consultar essa cartomante. Mas não tinha a mínima idéia do que ela iria dizer.
- Procure esquecer tudo isso, Angela!
- É verdade - concordou ela. - Tenho que esquecer. Oh! Meu Deus! Como eu gostaria de poder esquecer, Robert!
Capítulo 29
Os Fabiani tinham a sua villa na Avenue de la Cava, no bairro de Les Gabres. A imponente mansão estava pintada de um amarelo vivo e situava-se no meio de um enorme parque ajardinado. Esse parque achava-se protegido contra os olhares dos curiosos por uma cerca-viva bem podada e aparada, que se estendia ao longo da estrada. Tratava-se de uma mansão em estilo moderno cuja construção datava, no máximo de dez anos. Tudo ali tinha o aspecto de novo, e pomposo. No meio de canteiros de flores via-se uma piscina em forma de rim. Toquei a campainha no portão de entrada e, comunicando-me através do interfone ali instalado, disse meu nome, explicando que o Signor Fabiani havia marcado uma entrevista comigo para as onze horas. Uma voz baixa, que parecia zumbir, saiu do interfone e disse-me que o portão estava aberto e que eu podia entrar. Então, dirigindo-me à mansão, fui caminhando através daquele parque no qual se sobressaíam belas e imponentes palmeiras. Um criado, todo de branco, veio ao meu encontro.
- Queira ter a bondade de ficar esperando perto da piscina, Monsieur Lucas. Dentro de alguns momentos será atendido.
- Quer dizer, então, que não posso entrar na mansão?
- Faça a gentileza de esperar ao lado da piscina.
Na verdade, não tive outro remédio senão concordar. Havia, ali, mesas brancas, cadeiras de vime e espreguiçadeiras. Sentei-me numa cadeira de vime e fiquei esperando. Esperei não por alguns poucos momentos apenas. Passaram-se uns vinte minutos antes que aparecesse alguém. E não foi Fabiani quem veio atender-me, mas sim Bianca, sua mulher, a corista de outrora. Com o caminhar elegante e com uma pose de mulher altiva e pretensiosa, aproximou-se de mim. Levantei-me e fui ao seu encontro. Bianca vestia um roupão de banho branco. Nesse dia ela não mostrava absolutamente aquela faceirice exagerada que parecia peculiar ao seu comportamento. Revelava no semblante uma frieza e arrogância ostensivas.
- Bom dia, Monsieur Lucas.
- Bom dia, madame. Gostaria de falar com seu marido. Nosso encontro foi marcado para as onze horas e já são...
- Meu marido não pode falar com o senhor.
- O quê?!
Sem mais nem menos, ela saiu caminhando na direção piscina. Eu a segui. Na beira da piscina Bianca tirou o roupão, passando a exibir um biquíni de diminutas proporções, confeccionado em tecido branco bem lustroso. Essa peça parecia ter um certo quê de obsceno. Sentou-se numa cadeira, puxou para perto de si uma das mesas providas de gavetas e rodízios.
Em seguida abriu uma das gavetas e tirou de dentro dela um tubo com creme especial para proteção contra os efeitos dos raios solares. Enquanto falava, ia untan-do o corpo com camadas de creme, porém não de maneira a cobri-lo totalmente;
- Meu marido não vai recebê-lo, Monsieur Lucas! Sua voz revelava a íntima satisfação de quem leva uma boa vida. Fazendo com os braços amplos movimentos circulares, ela passava óleo nos cabelos.
- Mas que significa isso?
- Significa que ele não manterá mais contato com o senhor. E eu tampouco, Monsieur Lucas. Foram essas as palavras que ouvi do meu marido.
Bianca pronunciava as palavras de tal maneira que elas pareciam desfazer-se ao saírem da sua boca. A pontinha do nariz tremia. Isso para ela... Bem, a sensação de um orgasmo poderia manifestar-se assim.
- Madame, escute, não é por meu gosto que aqui...
- Nem tampouco por meu gosto.
- ...estou, mas sim porque tenho que esclarecer a morte do Sr. Hellmann.
- Esse assunto é com a polícia. Se alguém da polícia vier aqui, meu marido o receberá. Mas não o senhor. Agora, esfregue minhas costas.
Pronunciou as últimas palavras como se estivesse dando uma ordem. Eu permaneci imóvel.
- O senhor não ouviu? Mandei que esfregasse minhas costas.
- Ouvi, sim - retruquei-lhe. - Mas não quero esfregá-las. Peço-lhe que me diga agora mesmo e sem evasivas o que foi que houve.
- Sim, sem evasivas e até mesmo com prazer responderei à sua pergunta: nós ficamos sabendo que o senhor é casado na Alemanha.
- Sim, e daí?
- E aqui em Cannes o senhor vive maritalmente com Madame Delpierre. Apresenta-se em toda parte com ela. - Agora a Lido-girl atravessa na minha frente. - O senhor se exibe publicamente com ela, presenteou-a com uma aliança, embora esteja ainda muito longe a consecução do seu divórcio. O senhor está morando no apartamento de Madame Delpierre. Todo mundo na cidade está comentando suas relacões com ela. Se para Madame Delpierre isso pouco importa é problema dela. Mas será que para a sua companhia de seguros isso tampouco importa?
- Para minha companhia de seguros tanto faz - retruquei-lhe, notando que a caçada já havia começado.
- Não acredito que a sua companhia não se importe com isso. Se eu lhe pedir que me esfregue as costas o senhor o fará? .
Peguei o tubo de creme e comecei a esfregar suas lindas costas lisas. Ela se esticava toda, espreguiçando-se prazerosamente. Ela vencera.
- Mas nós não somos tão carrancas assim, tão apegados a preconceitos do passado, Monsieur Lucas. Nós nos alegramos com a sua felicidade.
- Ah, é? Os senhores se alegram de fato?
- Claro que sim! Especialmente eu. Qual a mulher que não teria compreensão para um grande amor? Mas isso corresponde à outra face da moeda. Meu marido não pode conversar com um homem que se acha tão comprometido com uma dama como Madame Delpierre. A sua elevada posição não permite isso.
- Oh, é a sua elevada posição que não lhe permite?
- É, sim, senhor!
- Mas o meu assunto se relaciona com um assassinato. Ou, melhor dizendo, com diversos assassinatos, Madame Fabiani.
- Exatamente por se tratar de um assunto tão grave, o senhor não poderá ser recebido por meu marido. O senhor já estragou não somente a sua vida privada, mas também a sua vida profissional, Monsieur Lucas. Uma conversa com o senhor é impossível. Sim... Esfregue também mais abaixo um pouquinho... É bom...
Atirei o tubo de creme em cima da mesa. O sangue parecia subir-me à cabeça. Disse-lhe:
- Nesse caso terei que valer-me do Comissário Roussel ou do Inspetor Lacrosse, pedindo que um deles venha até aqui para falar com seu marido.
- Ninguém o impede de fazer isso.
Bianca puxou para baixo a parte superior do seu biquíni, pegou o tubo de creme e começou a passá-lo também pelo seio. O tênue tecido daquela parte do biquíni estava bem abaixado. Com os seios nus, ela sentou-se na minha frente mas apenas por alguns instantes, pois logo em seguida levantou novamente a peça do biquíni que estava abaixada. Perguntou-me então:
- O senhor não viu nada, ou será que viu?
- É claro que vi! - respondi-lhe um tanto furioso.
- E que tal? Achou bonito ou não?
Bianca Fabiani, com os olhos semicerrados, fez uma expressão carrancuda. A mulher certamente queria valer-se do efeito da sua carranca para qualquer fim. E, como é óbvio, valeu-se dele para dizer-me alteando a voz:
- O senhor pode ir embora. Bom dia, Monsieur Lucas! Voltei -me sem me despedir e sai caminhando sobre a grama daquele chão arenoso em direção ao portão de saída. Depois de me ter distanciado um pouquinho, virei a cabeça e notei que Fabiani já se havia aproximado da mulher. Ambos observavam-me.
Bianca estava de novo com os seios de fora.
Capítulo 30
Segui caminhando por aquela rua em frente à mansão, até que cheguei a um barzinho e entrei. Pedi um Pastis e procurei telefonar para o Majestic.
- Algum recado para mim?
- Sim, monsieur - respondeu-me um dos porteiros com voz que denotava estranha excitação. - Monsieur Lacrosse telefonou. Pediu-me que lhe dissesse que é para o senhor se dirigir imediatamente ao antigo porto. Recomendou-me que lhe desse o recado logo que o senhor aparecesse.
- Devo dirigir-me ao gabinete dele?
- Não. O senhor deverá ir diretamente ao antigo porto. Lá o senhor verá logo para onde deverá dirigir-se.
- Que significa isso?
- Pelo que me foi dado ouvir, houve um acidente naquele local.
O porteiro dava a impressão de estar num indescritível estado de nervosismo.
Pelo telefone chamei um táxi. Mal acabara de beber o meu Pastis, um carro estava na frente do barzinho, de cuja porta pendia uma cortina de continhas, que tilintaram levemente quando a atravessei.
- Para o antigo porto - disse ao chofer.
- Muito bem, monsieur.
O antigo porto encontrava-se totalmente isolado pela polícia. Uma enorme multidão de curiosos se comprimia no local. Inicialmente os policiais não quiseram deixar-me passar. Disse-1hes o meu nome e mostrei-lhes o meu documento de identidade.
- Perdão, Monsieur Lucas! O pessoal está lá na frente.
Faça o favor...
O caso ocorrera no lado oeste da bacia do porto, no Quai Saint-Pierre. Do outro lado, todo pintado de um vermelho vivo, eu divisava o edifício do Municipal e o cassino de inverno - na verdade um pouco distante dali. O porto era bem grande. Dos pequenos quais, no seu interior, partiam barcos a motor, cheios de gente com destino às ilhas Lérins. Muitos barcos de pesca e navios se encontravam ali amarrados.
Observei que haviam transportado dois guindastes para o local do acidente. Os compridos cabos dos guindastes estavam imersos na água. Muitos carros da polícia achavam-se parados por ali em torno.
Num dos grupos, descobri Lacrosse, Roussel e Tilmant.
- Que foi que aconteceu? - perguntei.
Lacrosse precipitou-se para mim, abraçando-me comovido e exclamando:
- Graças a Deus! Você está vivo! Trata-se portanto de uma mentira.
- Que mentira?
Roussel e Tilmant também se aproximaram de mim. O semblante deles, igualmente, dava a impressão de um grande alívio.
- Recebemos um telefonema anônimo - disse Roussel.
- Sim, e daí?
- A pessoa que telefonou disse que você havia se precipitado na bacia do porto com seu carro.
- Eu?!
- Sim, você.
- Quem poderia ter inventado um boato desses?
- Não sabemos. Foi um homem. Com uma voz simulada, evidentemente. Mesmo assim, corremos para cá e começamos a procurar. A água está oleosa e turva, mas um carro se acha de fato submerso na água. Os homens-rãs descobriram-no.
Nesse instante emergia da água um homem-rã. Usava máscara e carregava nas costas um tubo de oxigênio. Era ele quem fornecia as indicações aos operadores dos guindastes a fim de que pudessem deslocar os cabos de aço para o lugar apropriado.
- Finalmente, eles já devem ter conseguido amarrar os cabos - disse Roussel.
- Eles quem? - interroguei.
- Um homem-rã ainda se encontra sob a água. Os cabos de aço, em cada tentativa que eles faziam, sempre deslizavam e escapavam. É possível que desta vez eles tenham acertado.
O homem-rã submergiu novamente na água oleosa. Notava-se que os cabos distendidos estavam sendo puxados, pois os dois guindastes já haviam começado a funcionar. Tilmant permanecia de pé ao meu lado. Parecia estar muito abatido e não dizia uma palavra sequer.
Todos nós fixamos nossos olhares nos cabos de aço, que, agora, os operadores dos guindastes iam tracionando com muito cuidado. O capo de um automóvel já começava a despontar da água turva. Não demorou muito e o carro inteiro, pendurado nos ganchos do guindaste, ficou fora da água. Tratava-se de um Chevrolet antigo, verde-escuro. Os guindastes balançavam. O carro foi içado, ficando quase à altura das nossas cabeças. Os operadores em seguida foram baixan-do-o devagarinho, a fim de evitar um baque muito forte, até o chão do cais. A água não parava de escorrer do veículo recém-pescado. Dirigimo-nos apressadamente para o lugar em que ele fora colocado. A janela do lado do volante estava baixada. Com o tronco caído para a frente e a cabeça sobre o volante, estava um homem. Ele ainda conservava as mãos agarradas ao volante. Era um indivíduo baixote, com poucos cabelos. Notava-se perfeitamente na têmpora esquerda um orifício produzido por bala. O occipital, com a saída do projétil, ficara estraçalhado.
Ao ver esse crânio aberto, com a massa cerebral saltada para fora e suja pela água oleosa, comecei a sentir-me indisposto, mas não pude deixar de exclamar em voz bem alta:
- É Danon!
- Quem é ele? - interrogou-me Lacrosse.
- Alain Danon. Você deve se lembrar desse nome. E o sujeito da Résidence de Paris, que estava no apartamento que aquela tal Nicole Monnier me indicou para um encontro. Ela me disse que ele estaria aguardando minha chegada.
Résidence de Paris! O lugar onde fui espancado. Nicole Monnier, a mulher que queria vender-me a "verdade"!
Mas o senhor tem absoluta certeza de que é Danon? - perguntou-me Tilmant. Falava devagarinho, como se estivesse cansado.
- Tenho absoluta certeza de que e Danon! - repeti.
É o sujeito que sumiu com essa tal Monnier e que se encontrava desaparecido. Não se lembra, Lacrosse, de que você disse que seria praticamente impossível encontrá-lo?
Lembro-me perfeitamente - respondeu-me o baixinho. - E agora aqui está ele, "sumido" de novo debaixo da água!
- É verdade - confirmou Roussel, que falava com o tronco curvado sobre a janela do carro. - Ele recebeu um tiro de bala dundum disparado por arma de grosso calibre, exatamente como Viale.
Depois, encarando Tilmant, prosseguiu:
- Para a imprensa este fato também deve ser considerado um pequeno incidente, não é verdade?
- Para a imprensa trata-se de um assassinato - respondeu-lhe Tilmant calmamente. - Um crime do submundo. Um rufião qualquer que recebeu um tiro. Provavelmente numa contenda entre rivais. Não basta isso?
- Basta - respondeu Roussel com um tom de amargura na voz. - Basta, Monsieur Tilmant! Cabe ao senhor dizer-nos do que se trata e nós passamos adiante as suas palavras.
Gaston Tilmant encarou-o até que Roussel, não podendo suportar seu olhar por mais tempo, virou a cabeça para o lado.
Capítulo 31
Aproveitei um carro da polícia, que me conduziu ao Majestic. Lá redigi um telegrama cifrado a Gustav Brandenburg relatando-lhe os acontecimentos mais recentes e pedindo-lhe instruções. Mal acabara de entregar o telegrama na central do hotel, fui chamado para atender ao telefone. Entrei na cabina e coloquei o fone no ouvido.
- Aqui fala Robert Lucas.
Ao telefone ouvi uma voz feminina muito trêmula, foi com muita dificuldade que consegui entender quando a mulher se anunciou:
- Nós já nos conhecemos, monsieur. Certa vez eu quis vender-lhe algo... Foi aí no bar do hotel que conversamos. O senhor não se lembra?
Nicole Monnier! Eu não poderia reconhecer sua voz agora, se ela não fizesse tal referência.
- Uma rosa vermelha - disse eu.
- Exatamente! - Percebi que ela começou a chorar. - Já sabe o que aconteceu?
- As minhas condolências!
Seus soluços se tornaram mais fortes.
- E o senhor acha que agora tudo deve ficar por isso mesmo? Ele posto fora de circulação e eu sozinha no mundo... e pronto! Tudo terminado, não é? Não, não e não! O senhor ainda está interessado em comprar algo, monsieur?
- Naturalmente.
- Então terá de vir até onde me encontro. Venha o mais breve possível, pois não poderei permanecer aqui por muito tempo. Tenho que ir embora imediatamente... E para bem longe. Mas antes disso o senhor poderá obter a informação que deseja. Eu a tenho!
- Onde você se encontra?
- Em Fréjus. Tome um táxi para vir até aqui. Mas venha sozinho. Previno-o de que não deverá vir acompanhado. Se o senhor trouxer junto algum elemento da polícia ou se eu notar que alguém o segue, não estarei mais à sua espera no lugar indicado. Estou falando sério. O senhor tem de vir sozinho.
- Irei sozinho.
- E também não deverá dizer a ninguém para onde vai.
- Não direi a ninguém. Para onde devo dirigir-me?
- Ao Boulevard Salvarelli, 121. Residénce Jules Lurey. Mas o senhor não deverá chegar com o carro em frente ao prédio. Diga ao chofer que o deixe na Plate-Forme. Fica um pouco antes da residência. O senhor conhece Fréjus?
- Não.
- Nesse caso terá que indagar. Não fica muito longe dessa cidade. Se o senhor não descer do carro na Plate-Forme, não me encontrará no local indicado. Acho bom preveni-lo disso mais uma vez.
- Sim. Já compreendi.
- Estou falando seriamente.
- Farei conforme você disse.
- E traga dinheiro, também.
- Quanto?
- Cem mil francos. Antes, nós queríamos muito mais: um milhão. Mas agora não posso mais esperar. Tenho que ir embora. Ficarei satisfeita com cem mil apenas... Para mim agora que Alain está morto, tanto faz... Não preciso mais de um milhão.
Eu ainda conservava em meu poder os cheques de viagem que me haviam sido entregues por Gustav Brandenburg: cheques no montante de trinta mil marcos alemães fornecidos quando vim a Cannes pela primeira vez e no montante de cinqüenta mil marcos entregues da última vez em que estive em Frankfurt. Expliquei à mulher:
- Só tenho cheques de viagem.
- Não serve - disse-me Nicole Monnier, que subitamente parara de chorar. - Nada de cheques! Eu já lhe disse que tenho que ir embora desta cidade. O pagamento dos cheques pode ser cancelado a qualquer momento ou pode mesmo dar-se o caso de não haver fundos para o seu resgate. Exijo o pagamento em dinheiro. O senhor mesmo poderá trocar os cheques. Faça o que lhe digo ou não precisará vir até aqui.
- Mas a essa hora os bancos estão fechados. Somente lá pelas duas horas é que conseguirei trocar os cheques. Portanto, não poderei ir aí senão à tarde. Não fique tão impaciente...
- Não estou ficando impaciente. Devo adverti-lo de que, a partir de agora, cada passo que o senhor der será vigiado, monsieur. O senhor compreende, não é? Eu não quero que, como aconteceu a Alain... - Ela calou-se sem completar a frase.
- Compreendo - disse eu, pus o fone no gancho. Refleti um pouco sobre o caso e depois resolvi dar um telefonema a Angela. Ela se encontrava no seu estúdio trabalhando.
- Hoje, depois do meio-dia, tenho que fazer uma pequena viagem. Espere-me lá pela tardinha.
- A que horas?
- Ainda não sei ao certo.
- O serviço que você vai fazer é muito importante, não é verdade?
- Acho que sim.
- Tome cuidado, Robert, por favor! Muito cuidado!
- Não deixarei de ser cauteloso, fique sossegada. Então até logo mais! - disse, e em seguida desliguei o fone.
Antes do almoço saí para o terraço e sentei-me à mesinha do nosso cantinho, sob a sombra daquela possante marquise. Fiquei ali bebendo gim-tônica em pequenos goles. Eu tinha o pressentimento de que dentro de poucas horas finalmente iria descobrir a verdade sobre a morte de Hellmann, encerrando definitivamente o caso.
E por uns seis meses ainda, eu poderia contar com a minha perna esquerda. Mas quantas coisas não aconteceriam ainda nesses seis meses?
Em Cannes já se propalavam as fofocas sobre minhas relações com Angela. É claro que Bianca Fabiani procurará por todos os meios possíveis atirar na imundície o nosso amor... À tardinha, quando eu chegar ao apartamento de Angela, terei uma porção de coisas para contar-lhe.
A bebida estava muito gelada, pois eu havia pedido que pusessem bastante gelo no copo.
Capítulo 32
Fréjus fica localizada a uma distância de cerca de trinta quilômetros de Cannes. O chofer do táxi entrou na rodovia Esterel-Côte d'Azur. O carro ia em marcha acelerada. De Cannes seguimos primeiramente na direção de Mandelieu, avançando até o vale de Argentière. Transpusemos as colinas que ficam entre Tanneron e Esterel. Depois começamos a descer a encosta, passando por uma represa muito grande.
O chofer virou-se um pouco para o meu lado e disse:
- Malpasset. O senhor se lembra?
- Em que época?
- Em 1959. Dia 2 de dezembro. Lá em cima rompeu-se um dique. Morreram mais de quatrocentas pessoas.
- Sim, agora estou me lembrando. Mas naquela ocasião só se falava na represa de Fréjus.
- Exato. Em poucos minutos estaremos em Fréjus. O chofer era um indivíduo de aparência taciturna. Falava laconicamente.
Atingimos o vale do rio Reyron. A estrada, agora, estendia-se através da região montanhosa e erma do Esterel. Sob aquele sol abrasador, o penhasco vermelho parecia incandescente. Alguns quilômetros antes de Fréjus terminou a rodovia asfaltada e entramos numa dessas estradas bem largas, características das regiões interioranas.
A cidadezinha estava situada cerca de vinte metros acima do nível do Reyron e distava um quilômetro e meio do mar. Viam-se ali antigos palácios muito lindos e uma catedral gótica. O chofer estava com pressa. De repente, eis-nos passando por diversas ruínas que provinham da época do Império Romano: um anfiteatro, um gigantesco aqueduto, seguramente com mais de vinte metros de altura, o qual passava por um corte do vale. Rodando sobre o terreno acidentado daquela região, o carro aproximou-se de um muro em ruínas, onde o chofer fê-lo estacar.
- Eh, voilà, la Plate-Forme, monsieur!
Paguei a corrida e desci do carro. Teria que tomar outro táxi para regressar a Cannes. O chofer fez votos para que eu encontrasse facilmente um táxi para voltar e o seu carro arrancou furiosamente.
De pé, fiquei esperando na frente de um muro em ruínas, onde não se via vivalma. Se pelo menos aparecesse outro carro; mas tudo por ali estava calmo. Não havia nenhum movimento. A essa hora todos faziam a sesta devido ao intenso calor. Caminhando a esmo pela estrada, retrocedi até o ponto onde uma tabuleta indicava o caminho para Cannes. Ali, sentado no chão, à sombra projetada por uma das casas, encontrava-se um aleijado ao qual faltava uma perna. Ele tocava violino. Havia um gorro colocado na sua frente. Durante um certo tempo procurei verificar qual era a porção de perna que fora suprimida com a amputação, fazendo um confronto com a outra perna que estava espichada. Era a perna esquerda que lhe faltava. Atirei algumas moedas para dentro do seu gorro, que ainda se achava completamente vazio.
Pedi-lhe que me indicasse o caminho para o Boulevard Salvarelli. Sem interromper a execução do violino, forneceu-me a necessária explicação. Avancei um certo trecho seguindo pela estrada de Cannes, no sentido da cidade; depois dobrei à esquerda passando pelo Cours Paul-Vernet. Desse local vislumbravam-se o encantador panorama de Saint-Raphaël e o Esterel. Meu pé esquerdo começou a doer. Parei um pouco e fiquei contemplando a linda vista que se descortinava à minha frente. Engoli dois comprimidos do meu remédio e segui caminhando, primeiro para a esquerda e depois para a direita, até chegar à Avenue de la Porte d'Orée. entrei nessa avenida pelo lado direito. Bem no centro de uma pracinha do lado esquerdo estava a Porte d'Orée. Tratava-se indubitavelmente de uma portentosa obra arquitetônica muito antiga.
O tocador de violino me havia falado sobre ela, explicando que fora construída no século IV, provavelmente pelos romanos. O porto localizava-se outrora exatamente no ponto em que se sobressaía o muro remanescente. Dali andei mais alguns passos e cheguei ao Boulevard Salvarelli.
Em todo o trajeto que percorri, com exceção do aleijado, não vi mais ninguém. Só posso dizer que vi, também, dois cães e uma gata, que estavam deitados na calçada, descansando à sombra daquelas casas antigas. A gata permanecia completamente imóvel, mas os cães, com as línguas de fora, ofegavam e estavam inquietos. As venezianas das janelas de todas as residências achavam-se fechadas. Tive a impressão de ter penetrado numa cidade de mortos.
A casa número 121 tinha um só pavimento e estava pintada com uma cor verde que lhe dava um aspecto horrível. Uma tabuleta indicava "Lavanderia a Vapor Lurey". A porta estava trancada. Bati com força. O sol caía em cheio sobre as minhas costas. Com o lenço enxuguei o suor da testa e do pescoço. A dor no meu pé continuava. Já fazia quase cinco minutos que eu estava batendo quando comecei a ouvir os passos de alguém que se aproximava. Então soou uma voz de homem:
- Quem está aí? Diga o seu nome.
- Robert Lucas.
Uma chave girou na fechadura e a porta se abriu. À minha frente surgiu um jovem de porte gigantesco, um verdadeiro montão de músculos, de camiseta, cueca, meias e sapato.
- Robert Lucas e o que mais? - interrogou-me.
- Alguém que marcou encontro comigo deve estar me esperando aqui.
- Quem?
- Mademoiselle Monnier.
- Descreva-me logo como é essa pessoa.
Descrevi-lhe o melhor que pude o tipo da mulher. Depois que mencionei os dentes estragados, o gigante não fez mais nenhuma objeção.
- Venha comigo.
Ele trancou novamente a porta e, fazendo-me passar através de um pátio de forma quadrangular, onde se viam diversas calandras de passar roupa já enferrujadas, e um velho caminhão de carga, conduziu-me até o pé de uma escada, por onde se subia a um corredor que ficava no primeiro andar e que circundava todo o pátio. As portas e janelas de todos os apartamentos davam para o corredor.
- Ali em cima. A primeira porta seguindo pelo corredor. Bata três vezes: duas pancadas leves e uma forte. Subi aquela escada de ferro toda enferrujada. As chapas dos degraus rangiam. O corredor era de pedra. Estaquei diante da primeira porta e dei duas batidas leves e uma forte A porta se abriu imediatamente e apareceu diante de mim Nicole Monnier. Reconheci-a logo, mas tive que fazer um esforço para ocultar-lhe o meu espanto. Ela estava sem pintura. Sua face mostrava uma palidez cor de cinza. Seus cabelos estavam caídos em madeixas. De tanto chorar tinha os olhos vermelhos e inchados, mas agora não estava chorando. Seu rosto parecia ter adquirido a rigidez de uma máscara. Tinha a aparência de uma velha. Seus lábios estavam quase brancos.
- Entre - disse ela.
Então penetrei numa cozinha pequena e suja, que se achava em completa desordem. Dali conduziu-me até um quarto, também sujo e desarrumado, no qual havia uma cama de casal. Na parede, sobre a cabeceira da cama, estava pendurado um óleo representando a crucificação de Cristo. Havia também nesse quarto duas cadeiras de vime, um armário e uma mesa. Com as persianas fechadas o quarto parecia estar na penumbra e o calor ali era insuportável.
Nicole estava usando uma camisola cinzenta e nada mais por baixo, conforme pude perceber. Ela andava com os pés descalços. Eu descalcei o sapato do meu pé esquerdo, que doía horrivelmente.
- Vamos sentar - disse Nicole.
Sentamo-nos, então, nas cadeiras de vime, perto da mesa e em frente à cama, a qual ainda não havia sido arrumada. Sobre a mesa viam-se algumas fotografias. Um pequeno gravador estava ligado à tomada.
- Sinceramente, sinto muito pelo que aconteceu - disse-lhe.
- Eu também sinto muito. Alain era um patife, mas eu sempre o amei. Agora ele está morto. E eu estou sozinha no mundo.
Ela, agora, não fazia esforço algum para esconder seus dentes estragados.
- Que pretende fazer?
- Ir embora. O senhor acha que vou ficar aqui esperando até que eles venham e me liquidem também? Os proprietários deste conjunto residencial são nossos amigos mas mesmo assim eu não posso ficar mais aqui.
- Para onde pretende ir?
- Para qualquer lugar. Bem longe. Quero sair da França. Mas para isso preciso de dinheiro. O senhor trouxe o dinheiro?
- Sim.
- Quero ver.
Mostrei-lhe o maço de notas que eu havia colocado na pasta de couro que me fora presenteada por Angela.
- O senhor tem um cigarro?
- Deixei de fumar.
- Não tem importância. O cigarro também é uma porcaria. É uma merda. Mas vamos logo ao que interessa, pois o senhor deve estar com pressa, não é?
- Sim, estou.
- Eu também. Preste bem atenção: aquela vez no bar do Majestic eu lhe disse que poderia vender-lhe toda a verdade e não estava mentindo: era exatamente o que tinha a intenção de fazer. Nós já possuíamos a verdade naquela ocasião, eu e Alain. Foi Alain mesmo quem me mandou ao Majestic para falar com o senhor. Eu o teria recebido naquele nosso apartamento na Résidence de Paris para entrarmos em entendimento, se não tivéssemos visto o senhor sendo espancado.
- Então viram o que me aconteceu? Você e Alain?
- É como estou lhe dizendo! Aí Alain pensou: se ele agora entra aqui e toma conhecimento de tudo, estaremos perdidos quando ele soltar a bomba. Aí, sim, eles ficarão sabendo onde foi que ele obteve as informações.
- Eles quem?
- Os outros - respondeu-me simplesmente Nicole.
- Os outros quem?
- Santo Deus! Espere!
- Desculpe-me.
- Bem, não é nada. É que meus nervos estão em pandarecos. Os seus também, não é verdade?
- Sim.
- Eu imagino! - disse-me a mulher, que no nosso primeiro encontro havia achado até bonita, mas que agora, ali sentada na minha frente, tinha a aparência de um trapo humano.
Ela prosseguiu:
- Eu imagino! Ficou tudo cagado. Também para o senhor. E o que posso fazer? Tenho que ir embora. Mas para isso preciso de dinheiro. Do seu dinheiro. E o senhor também precisa da minha informação para saber a verdade. Mas, voltando ao assunto, naquela noite Alain disse: "Agora não dá. Eu recebo o homem. Para todos os efeitos você não está aqui". Eu estava dentro do guarda-roupa quando Alain conduziu o senhor por todo o apartamento. Naquele guarda-roupa com espelho, que estava no quarto. O senhor não se lembra?
- Mas eu inspecionei aquele guarda-roupa e vi que estava vazio.
- No seu interior há uma porta corrediça pela qual se entra num pequeno compartimento secreto. O compartimento fica entre duas paredes.
- Se eu não tivesse sido espancado naquela noite, você conversaria comigo naquele mesmo quarto e Alain ficaria escondido dentro daquele compartimento, não é verdade?
- É verdade.
- Vocês faziam sempre assim quando recebiam os seus clientes?
- Sempre, não. Muitas vezes, sim. Especialmente quando queríamos extorquir dinheiro de alguém ou eu me sentia amedrontada. Falando a pura verdade, depois que o senhor esteve lá no apartamento, Alain ficou bastante assustado e achou melhor sumirmos por algum tempo. Andamos de um lugar para outro até que, por fim, viemos parar nesta cidade. Daqui, Alain se pôs em contato com o tal Seeberg.
- Com quem?
- Com Seeberg, aquele sujeito do banco de Hellmann. Eu sei que o senhor o conhece.
- E claro que o conheço. Mas não sabia que Alain também o conhecesse...
- Alain conhecia toda aquela cambada. Todos eles. E tenho comigo as informações que queríamos vender ao senhor. Ao senhor e não a eles. Alain sempre dizia que lidar com aquela gente era muito perigoso. Com o senhor... Com o senhor não há perigo. O senhor pagaria com prazer bom dinheiro pelas informações porque elas são do interesse da companhia de seguros para a qual o senhor trabalha. - Nicole passava a mão pelas madeixas caídas. - Isso era o que dizia Alain naquela ocasião. Mas depois ele começou a ficar com mania de grandeza. Queria a todo custo ganhar um milhão de Seeberg. Um milhão e nada menos!
Conversou com Seeberg pelo telefone indicando-lhe o lugar onde ambos poderiam tratar do assunto. Ficou combinado que eles se encontrariam, ainda ontem à noite, no antigo porto. Naturalmente Alain não havia levado o material consigo. Essa é que é a verdade.
Nicole passou a olhar fixamente suas mãos. O esmalte estava descascado. Suas mãos estavam sujas.
A dor no meu pé diminuíra um pouco.
- Então você acha que foi Seeberg quem atirou em Alain?
- Ele, certamente, não. Mas, para fazer isso, ele tem os seus homens, os seus capangas.
Ela curvou-se um pouco para a frente e prosseguiu:
- Veja, monsieur: Alain e Argouad eram amigos havia muitos anos...
- Alain e quem?
- Santo Deus! Argouad, o argelino de La Bocca.
- Ah, sim. Pardon! e daí?
- Então certo dia ele, Argouad, aproximou-se de Alain e disse: "Uma italiana veio falar comigo e quer que eu lhe arranje dinamite. Dinamite maciça. Ela paga cem mil francos". Dali por diante, Alain começou a interessar-se pelo caso.
- Já a partir dessa conversa com o argelino?
- Sim, senhor! A partir dessa conversa! Meu Alain conhecia muitas pessoas, refiro-me a indivíduos da mesma especialidade, o senhor me compreende, não é? Desde então, Alain começou a agir ocultamente, procurando observar com atenção o que aquela irmã-enfermeira pretendia fazer com a dinamite. Logo no princípio ela não fez nada. O tal Hellmann veio a Cannes completamente arruinado. Alain passou a observá-lo também. Seguia-o quando ele dava os seus giros, sempre visitando as mesmas pessoas: Fabiani, Kilwood, aquele fresco de nome Thorwell, Tenedos, Sargantana. Sempre os mesmos.
- Eram só essas as pessoas que Hellmann visitava?
- O que o senhor quer dizer?
- Será que você não se esqueceu de nenhuma outra pessoa?
Ela refletiu um pouco e depois sacudiu a cabeça negativamente.
- Que me diz de Trabaud? - interroguei.
- Ah, sim... esse homem também tinha negócios com Hellmann, mas ele nada tem a ver com este caso. Disso eu tenho absoluta certeza! Dentro de alguns segundos o senhor, também compreenderá por quê. Berr Hellmann andava auieto, nervoso, sempre se movimentando de um lugar para outro Visitava, também, o apartamento da sua amiga, Madame Delpierre. Ela igualmente nada tem a ver com este caso. Nada mais fez senão pintar um retrato de Hellmann. Mas como já lhe disse, Alain conhecia muita gente. Conhecia, por exemplo, um italiano, o qual por sua vez, era amigo do criado de Tenedos, aquele tal Vittorio. Desse modo, foi fácil para Alain conseguir falar com Vittorio, que odeia os Tenedos.
- Sim, ele odeia Tenedos porque Tenedos é multimilionário.
- Não! - retrucou Nicole. - Não é por isso.
- Por quê, então?
- É porque Tenedos é um porco. Um porco assassino. Vittorio possui um notável senso para perceber o que é justo e o que é injusto e para distinguir o mal do bem. Por isso ele disse que iria ajudar Alain a liquidar Tenedos, aquele tubarão desgraçado que colocou uma geladeira dentro do piano da sala de estar, onde ele, altas horas da noite, tira caviar e champanha para comer e beber com a porca covarde da sua mulher. E aquele porco faz isso porque tem medo de que Vittorio venha a instigar os outros empregados da casa para matá-lo, se ele fizer ostentação da sua riqueza.
- Mas Vittorio teria mesmo alguma vez tentado instigar os criados contra seus patrões?
- Ele não teria necessidade de fazer uma coisa dessas. Que pensa o senhor? Todos eles tinham e têm o mesmo pensamento de Vittorio. Mas não há perigo: eles nunca matarão os Tenedos. Nem Vittorio nem os demais criados são assassinos. Os verdadeiros assassinos são outros.
- Francamente não estou compreendendo nada - disse eu.
- Tenha paciência. Calma! Vou explicar-lhe tudo direitinho. Tudo, tudo. Vittorio colocou fios de telefone na sala de visitas da casa de Tenedos. Esses fios achavam-se ligados a um microfone que estava bem escondido. Então todas as vezes que Hellmann ia lá e ficava naquela sala conversando com Tenedos, Vittorio, no seu quarto (os fios iam até o seu quarto), fazia o gravador funcionar. O gravador é este mesmo que está aqui na sua frente. O cassete com a gravação já está colocado.
Ela ligou o aparelho e disse-me: - Preste bem atenção agora. Falta a parte inicial, pois Vittorio não pôs o gravador a funcionar no devido tempo. Mas, mesmo assim, o que ficou gravado é suficiente.
Ela apertou um botão e soou uma voz de homem:
- ...eu já lhe disse duas vezes e vou repeti-lo agora pela terceira: nada sabia com relação a esses negócios infames dos senhores. Já declarei isso a todos os outros, principalmente a esse tal de Kilwood. Até aquela tarde em que fiz a conferência, lá no Frankfurter-Hof, não sabia absolutamente de nada. Imediatamente, de noite mesmo, fui ao banco e examinei todos os documentos na seção de câmbio. Essa foi a primeira vez... a primeira vez, note bem, Tenedos!... que tomei conhecimento de que Kilwood, em nome de todos os senhores, com a conivência de Seeberg, fazia traiçoeiramente negociatas sujas que atingiam a casa dos bilhões. Ele fazia isso sem que eu soubesse de nada. Tais negociatas eram efetuadas em nome de todos os senhores. Foi por isso que vim a esta cidade. Seeberg, aquele patife, eu já queimei através de um telegrama. Lamentavelmente não posso tornar pública tal deliberação..."
- Essa é a voz de Hellmann - cochichou Nicole ao meu ouvido.
Explicação desnecessária, pois me encontrava com o tronco curvado sobre o gravador. A voz que surgiu logo em seguida também me era conhecida: era a voz de Tenedos. Passo, agora, a descrever o diálogo por mim anotado, de acordo com a gravação:
"TENEDOS: - O que o senhor exige é uma loucura. Não se pode anular facilmente assim transações com libras sem que alguém note...
HELLMANN: - Mas eu posso anulá-las! Eu posso! (Sua voz parecia desesperada. Esse homem não acreditava ele próprio no que afirmava.) Tenho que fazer novos registros contábeis de todas essas importâncias, alterando toda a escrita. E, para isso, os senhores terão que me ajudar. Pois de forma alguma poderei permitir que os senhores destruam minha boa reputação.
TENEDOS: - E lhe digo que ninguém acreditará que o senhor nada sabia a respeito dessas transações.
HELLMANN: - Valer-me-ei de peritos de reconhecida competência. Em todas as partes do mundo tenho amigos que são banqueiros. Todos eles são homens de primeira plana. Eles poderão atestar que seria muito fácil para um patife sem escrúpulos como Seeberg, dirigindo com autonomia a seção de câmbio de um banco do porte do meu, efetuar em qualquer época transações ilícitas dessa natureza, sem que o proprietário do banco tivesse conhecimento delas.
TENEDOS: - Não grite assim!
HELLMANN: - Gritarei muito mais alto ainda! Os se-hores negaram-me a coverage para essas operações. Seeberg, revelando o máximo de baixeza na sua atitude, reteve propositadamente as libras negociadas, não as transferindo para o Banco Central. Os senhores queriam arruinar-me, essa é que é a verdade! Os senhores esperavam que eu, em desespero, estourasse os miolos com uma bala, quando viesse a descobrir toda a trama. Então o meu banco passaria para o controle dos senhores, juntamente com o porco do Seeberg, pois os senhores poderiam facilmente tomar da minha irmã as rédeas da administração. Mas exijo dos senhores, de todos os senhores juntos, a cobertura para as perdas e danos verificados. Foi isso que disse a Kilwood.
TENEDOS: - E que foi que ele respondeu?
HELLMANN: - Ele deu uma risada e disse que eu devia dar cabo da minha vida.
TENEDOS: - Só mesmo rindo...
HELLMANN: - Ah, é?! O senhor acha? Veremos quem vai rir por último! Digo-lhe pela última vez, Tenedos: exijo a cobertura em marcos alemães dos prejuízos verificados. E imediatamente! E de todos os senhores! Kilwood agiu em nome de todos os senhores quando deu suas instruções a Seeberg para que ele efetuasse os negócios.
TENEDOS: - Quarenta milhões não liquidam com um homem como o senhor.
HELLMANN: - Não. Mas são oitenta milhões! É esse o montante que terei que exigir quando lhes devolver as libras negociadas com base na sua antiga cotação e transferir para a responsabilidade dos senhores as operações de crédito que foram efetuadas. Não poderei suportar a perda de oitenta milhões. E, como é óbvio, não farei mais qualquer negócio com os senhores. A Kood pode procurar desde já um outro banco."
Nicole comprimiu o botão do gravador, dizendo-me: - Agora a gravação continua durante um certo tempo com Hellmann gritando e Tenedos falando e esquivando-se, sem dizer sim nem não. De qualquer maneira, conforme o próprio Alain havia percebido, está fora de dúvida que Hellmann realmente nada sabia a respeito dos negócios que aquela cambada fez. A melhor prova disso é que ele estava muito nervoso.
Ligando novamente o gravador, Nicole deixou correr um pouco e, ao atingir o início de uma segunda conversa comprimiu novamente o botão e disse-me:
- No mesmo dia em que Hellmann esteve lá conversando com Tenedos, o grego recebeu uma outra visita: Sar-gantana. Eles também conversaram na mesma sala. Mais uma vez Vittorio fez o gravador funcionar. Como aconteceu com a primeira gravação, também nesta falta o começo da conversa.
Ela ligou o aparelho e passei a ouvir o seguinte diálogo:
"SARGANTANA: - ...tudo saiu de acordo com os nossos planos, meu caro. Hellmann caiu na armadilha direitinho. A coisa não poderia ter funcionado melhor. Já discutimos bastante sobre o que nos resta fazer agora, mas vou repeti-lo apenas mais uma vez, porque o tempo de que dispomos está se escoando rapidamente: não negaremos agora em caráter definitivo nossa ajuda a Hellmann. Deixemos que ele faça primeiro sua viagem à Córsega. Vamos dizer-lhe que quando ele regressar dessa viagem nós lhe daremos a resposta definitiva.
TENEDOS: - Mas dessa viagem ele jamais regressará!...
SARGANTANA: - Assim espero, com a ajuda de Deus! Portanto a combinação é a seguinte: cada um de nós agora deve desincumbir-se da tarefa que lhe cabe neste 'negócio'. Você já conseguiu de um indivíduo de absoluta confiança a dinamite que a irmã-enfermeira foi buscar, conforme você mesmo disse. Agora lhe pergunto: será que esse indivíduo é mesmo de confiança?
TENEDOS: - Da mais absoluta confiança.
SARGANTANA: - Tenho que acreditar nas suas palavras. Agora só espero que cada um de nós procure valer-se dos serviços de homens da mais absoluta confiança ao executar a sua parte neste trabalho em comum. (- Neste crime em comum - disse eu. Nicole concordou com um meneio de cabeça.)
TENEDOS: - Meu técnico construirá um engenho que será uma máquina infernal. Ele fará tudo, inclusive a instalação elétrica. Thorwell se encarregou de arranjar o homem para colocar as peças e os acessórios da aparelhagem elétrica, deixando a coisa pronta para funcionamento.
Temos que encarar também a possibilidade de que alguém, depois, tente abrir o bico seja um de nós (não se ofenda por eu falar assim, pois o assunto é muito importante), seja um dos indivíduos que irão trabalhar para nós, pois eles não passam de uns gângsteres. Na verdade, essa possibilidade existe, tanto
assim que você e Kilwood se encarregaram de arranjar um pistoleiro capaz de agir imediatamente para eliminar seja lá quem for que se torne perigoso para nós.
SARGANTANA: - E nós já encontramos o homem talhado para essa incumbência.
TENEDOS: - Quem?
SARGANTANA: - Não posso dizer-lhe o nome dele. Só posso garantir que é o melhor indivíduo que poderíamos encontrar para isso. E sobre ele jamais recairá a mínima suspeita. Mas o nome o senhor não ficará sabendo. Nem mesmo a mim disseram o nome desse homem.
TENEDOS: - Muito bem! Então mantenha em sigilo o nome desse merda! Só espero que ele saiba agir direitinho quando for preciso e que não falhe.
SARGANTANA: - Ele agirá sempre prontamente. Podemos pôr a mão no fogo por ele.
TENEDOS: - Que é que há com esses dois franceses com os quais Hellmann irá se encontrar na Córsega? SARGANTANA: - Clermont e Abel?
TENEDOS: - Sim.
SARGANTANA: - Não há nada. Hellmann de forma alguma poderá fechar qualquer negócio com eles ou fazer-lhes qualquer promessa antes que seu assunto conosco fique resolvido. Ele mesmo nos concedeu todo o tempo até seu regresso dessa viagem para refletirmos sobre o caso. Mas depois que ele estiver em viagem não precisaremos mais nos preocupar com isso. Acidente, suicídio, assassinato... ninguém jamais poderá descobrir a causa do seu desaparecimento, se trabalharmos direitinho, cada um de nós desincum-bindo-se perfeitamente da parte que lhe toca nesse servici-nno, feito em conjunto. E que o pistoleiro mostre a sua eficiência, se for preciso! Então, sim, estará perfeito nosso plano de eliminar Hellmann!"
Nicole apertou o botão e desligou o fio da tomada.
- Uma súcia de criminosos - disse ela. - Sim, monsieur, é isso mesmo: uma súcia de criminosos! E como eles conseguiram fazer tudo direitinho! A explosão. O pistoleiro, viale foi eliminado provavelmente porque descobrira a pista 3ue conduziria a esse tal Argouad.
A irmã-enfermeira foi assassinada porque havia o perigo de que ela pudesse falar, Eles liquidaram com a pobre mulher só porque já estava se tornando uma ameaça para eles. Depois que o meu Alain deu um susto em Seeberg, acabaram logo com ele. Eu sempre dizia a Alain que não devia lidar com aquela gente, que ele devia procurar o senhor para fazer esse negócio, embora contentando-se em ganhar menos. Mas Alain nunca quis me ouvir. Agora está morto...
Ela calou-se e passou a me fitar. Contudo, estava de tal maneira absorta que parecia não se dar conta da minha presença. Lá embaixo, no pátio, crianças brincavam. Eu ouvia suas alegres algazarras.
- Mas quais são as fotos que você disse que possui?
- Ah, sim! - Nicole começou a remexer num montão de fotografias. - Alain teve muito trabalho com esse caso. Conseguiu encontrar o homem que construiu a primeira parte da bomba que fez voar para os ares o iate de Hellmann. Atrás da fotografia está o nome e o endereço.
Ela passou às minhas mãos a foto e pegou uma outra.
- Este aqui fez a montagem elétrica. O nome e o endereço também estão anotados atrás da foto.
Em seguida ela atirou sobre aquela mesa suja uma série de fotografias e prosseguiu:
- Estas são as fotos dos encontros dos indivíduos que trabalharam fazendo o tal engenho numa oficina. Aqui estão eles levando o material. Alain fez um serviço que nem um louco se arriscaria a fazer.
- Que serviço?
- Ele chegou a dormir no Moonglow quando estava ancorado em Port Canto. Havia sempre dois homens que permaneciam a bordo. Alain arranjou prostitutas, que levou para o iate, e conseguiu fazer com que os dois marinheiros se embebedassem e dormissem com elas. Durante a noite Alain ficava oculto a bordo do Moonglow esperando a pessoa que devia trazer a máquina destruidora e montá-la dentro do iate. Teve que esperar durante três noites. Então apareceu alguém. Alain, só de meias nos pés, seguiu-o até a cabina das maquinas, que ficava embaixo.
- Mas na cabina certamente não havia claridade.
- A cabina estava escura, mas Alain tinha uma câmara de raios infravermelhos. A luz infravermelha não é visível, mas serve para tirar fotos com uma certa nitidez. Alain fotografou a tal pessoa que estava escondendo o engenho na cabina. Aqui está ela! - disse Nicole, entregando-me a foto.
Examinando-a, consegui distinguir perfeitamente na cabina de máquinas de uma embarcação, Hilde Hellmann, Hilde dos Brilhantes, a irmã de Herbert Hellmann ocupada na colocação de algo com o formato de uma caixa!
Capítulo 33
Às nove e meia da noite, cheguei de volta ao Majestic.
Aluguei um outro cofre bem grande e coloquei dentro dele todo o material que Nicole Monnier me havia vendido por cem mil francos. Coloquei a chave no outro cofre menor, que alugara antes. Como fazia habitualmente, entreguei a chave deste último cofre para ser guardada pelo porteiro, que, ao recebê-la, disse-me:
- Um telefonema de Düsseldorf para o senhor, Monsieur Lucas. Esta é a quarta vez que a pessoa telefona hoje, tentando falar com o senhor. Na cabina 3, por favor.
Dirigi-me à cabina e coloquei o fone no ouvido.
- Robert?
- Oh, Gustav! Eu tenho algo... - ia falar-lhe, porém, como que por efeito de uma premonição subconsciente, interrompi a frase bruscamente e fiquei calado durante alguns segundos. - Que é que há de novo? - perguntei-lhe, então.
- Você vai ter que voltar! - disse Gustav Brandenburg. Ele falava com um tom de frieza na voz. - No primeiro avião. E venha imediatamente aqui falar comigo.
- Por quê?
- Você já tirou proveito demais com esse caso.
- Mas por quê? - gritei.
- Angela Delpierre!
- Que é que há com ela?
- Você bem sabe o que há com ela.
- Ora bolas, você também sabe! Aí no seu gabinete, nós bebemos juntos à saúde minha e dela.
- Não me lembro...
- Gustav, ó homem!...
- Recebemos reclamações de certa gente. Gente de Cannes. Gente muito perigosa.
- Sim, já posso imaginar quem...
- Eles não se queixaram a mim, mas à diretoria, a qual Julgou seu comportamento incompatível com as boas normas de vida que deve ter um funcionário incumbido de tal missão. Os diretores se desculparam perante eles e prometeram tirar você imediatamente desse serviço. E agora chegou a ocasião da sua aposentadoria, Robert. E praza aos céus que você a consiga! Num caso desses, você teria que ser demitido por um grave desleixo no cumprimento dos seus deveres.
- Gustav - disse eu -, será que você não se lembra de me ter dito: "Em mim você e sua amada podem confiar, haja o que houver, aconteça o que acontecer"? Será que você se esqueceu dessas palavras?
- Não me lembro de nada! - respondeu Gustav, meu bom amigo Gustav Brandenburg.
Comecei a gritar:
- E você disse também: "Não há nada que eu não possa fazer por vocês a fim de favorecer tão grande amor". Foi assim mesmo que você falou!
- Não grite comigo! - disse-me Brandenburg, soltando uma risadinha maliciosa. - Foi realmente isso que eu disse? E daí? Que é que tenho a ver com minha conversa fiada de ontem?
- Você, seu porco sujo...
- Cale essa boca! Você terá que vir no primeiro avião, apresentando-se imediatamente no meu gabinete. Compreendeu bem?
Desliguei o aparelho sem dar-lhe resposta.
Saí para o hall e passei a refletir como se tornara cômica minha situação. Eu me encontrava numa das mais ridículas situações de toda a minha vida. Cheguei a dar, sozinho, uma estrondosa gargalhada. Algumas pessoas que passavam por mim ficaram estupefatas. Pedi ao porteiro que me reservasse uma passagem no primeiro avião que partisse para Düsseldorf na manhã seguinte.
- Vai conservar seu quarto, monsieur?
- Sim - respondi-lhe quase maquinalmente. - Estarei de volta sem demora.
- Alegramo-nos com isso, Monsieur Lucas.
- Provavelmente hoje não voltarei mais ao hotel e amanhã cedo seguirei diretamente ao aeroporto.
- Está bem, monsieur. Boa viagem e feliz regresso! Oh, esquecia-me, há aqui uma carta para o senhor chegada com o correio da tarde.
Ele entregou-me um envelope no qual se via impresso o endereço do meu amigo e advogado Paolo Fontana.
Capítulo 34
Angela permanecia sentada bem perto de mim, no balanço armado num dos cantos do amplo terraço. A luz da sala de estar projetava-se sobre aquela infinidade de flores. Havia, também, bastante claridade para que eu pudesse ler a carta que segurava na mão. Eu esperara para abrir o envelope quando estivesse junto de Angela. Comecei a ler em voz alta:
"Muito estimado Robert:
Uso o tratamento você, mas - compreenda bem! - esta é uma correspondência de caráter oficial. Anexa à presente, estou lhe remetendo uma cópia da carta do Dr. Berchert. O Dr. Berchert é o advogado da sua mulher. Espero que no mais breve tempo possível você me procure no meu escritório para uma conversa. Atenciosamente, Paolo Fontana."
Onde está a carta que veio anexa? Puxei de dentro do envelope um papel mais fino, desdobrei-o e passei a ler:
"Muito honrado colega!
A Sra. Karin Lucas recebeu uma carta na qual V. S.a lhe comunica que seu marido deseja divorciar-se dela, tendo já V. S.a encaminhado ao juízo competente a petição de divórcio. Em nome da minha constituinte, cumpre-me declarar-lhe que ela em hipótese alguma concorda com o divórcio, sejam lá quais forem as circunstâncias alegadas. Tenho absoluta certeza de que o juiz, com base na situação ora citada, de forma alguma acatará a petição do seu constituinte, ainda que seja para efeito de verificar a possibilidade de discutir o caso.
Cordiais saudações,
Berchert Advogado."
- É evidente que o bom Deus não nos ama - disse eu, deixando cair no joelho a mão que segurava a carta.
- Não diga isso! - reagiu Angela. - Nós estamos apenas no começo. E já previmos que iriam surgir dificuldades. Desde o princípio admitimos isso, não é verdade? E então? Pouco importam essas dificuldades agora, pois já nos possuímos um ao outro. E ficaremos sempre juntos. Ninguém nos poderá proibir isso, nem mesmo sua mulher. Nem sua mulher nem juiz algum deste mundo pode forçá-lo a viver com ela.
- Vejo que você tem coragem para enfrentar a situação.
- Eu apenas encaro a realidade dos fatos. Para nós, já somos marido e mulher. Para tanto, nada mais nos falta senão um documento, um simples pedaço de papel. Sim, só um pedacinho de papel, Robert.
- É verdade. Hoje você pode dizer isso mesmo. Mas daqui a dois ou três anos...
- Mesmo então não passará de um simples pedaço de papel, que talvez possa ter alguma utilidade para nós. Talvez, não. Sua mulher também poderá mudar de idéia a qualquer momento. Na vida sempre acontece o contrário daquilo que se espera.
- Não no nosso caso. Não com Karin.
- Embora você não acredite que ela talvez possa vir a mudar de idéia, essa é uma hipótese que não excluo. Você, Robert, é muito pessimista. Não me retruque: pessimista é o que você é! E eu o amo também porque você é assim. Mas, agora que estamos vivendo juntos, você tem que se tornar mais otimista e adquirir mais autoconfiança. De uns tempos para cá você já adquiriu uma boa dose de autoconfiança. Mas terá que adquirir muito mais ainda.
- Como eu gostaria de ser corajoso como você! Mas lamentavelmente não sou.
- Pois então procurarei ser corajosa por dois.
- Depois de decorridos três anos, tendo muita sorte poderei me divorciar de Karin, mesmo contra sua vontade.
- Mas se você não tiver sorte, nunca poderá divorciar-se dela! E se realmente você nunca conseguir o divórcio? E se nunca na vida pudermos nos casar? Haja lá o que houver, sempre hei de amá-lo, Robert! Será que afinal você me compreendeu? Será que você não acredita em mim?
- Acredito.
- Portanto ficarei sendo sua amante por toda a minha vida, se preciso for. Isso não me prejudica em nada. Absolutamente em nada! Desde que você também me ame, o resto pouco me importa. Parece até estranho que no seu idioma pátrio a palavra "amante" ("geliebte") tenha um sentido depreciativo. Mas poderá existir palavra mais bela? Diga-me!.
- Não, não existe.
- Sinceramente, Robert, eu ainda estou contando com o consentimento da sua mulher para o divórcio. Mas fica desde já declarado de uma vez por todas que essa circunstancia de forma alguma terá qualquer influência sobre o meu sentimento com relação a você ou sobre o nosso amor.
Uma rajada de vento muito forte penetrou no terraço. Levantei os olhos. O céu já estava encoberto. Repentinamente esfriou. Pela primeira vez desde que cheguei a Cannes senti frio. Uma segunda rajada de vento seguiu-se à primeira. Então passamos a ouvir os bramidos de uma tormenta que estava ainda bem longe, mas que se aproximava com rapidez.
- Que é isso? - perguntei.
- É o Mistral. Venha, vamos para dentro.
Ajudei Angela a levar os cobertores e travesseiros para a sala de estar e voltei para abaixar o grande toldo do terraço movido a manivela.
A tormenta já havia atingido Cannes. Ela murmurava e retumbava com uma fúria infernal. As venezianas das janelas batiam com força e as palmeiras farfalhavam. A enorme quantidade de flores no terraço emaranhava-se com o vento. Tive dificuldade em fechar as grandes portas de vidro. Finalmente conseguimos ficar em segurança dentro do apartamento.
- Mistral?! - interroguei.
- Sim - respondeu-me Angela. - Às vezes ele passa também por aqui. Não é nada agradável.
- Por quê?
- Todas as pessoas se tornam nervosas e ficam com dor de cabeça. O Mistral é um vento frio do norte, que vem do vale do Reno. Mas, por favor, não faça uma cara tão triste assim, Robert! Você tem que acreditar no que eu lhe disse. Mesmo que tenha de viver sempre como sua amante, pouco me importa. Que poderá haver de mais belo e encantador para mim?
Abracei-a e dei-lhe um beijo. Afundamo-nos no sofá. O Mistral agora bramia em torno do edifício. Ele sacudia as portas e janelas de vidro e fazia ringir a barra em que se firmava o toldo do terraço. O vento assobiava e uivava ao penetrar através dos buracos das fechaduras das portas e janelas.
Por fim, tendo tirado os meus braços do pescoço de Angela, notei que as lágrimas brotavam-lhe dos olhos, que enxuguei com meus beijos.
Estou chorando porque me sinto muito feliz - murmurou ela.
- Sim, acredito. É só porque você está feliz - disse-lhe, e continuei a enxugar suas lágrimas com meus beijos, mas elas não paravam de brotar dos seus olhos.
O Mistral fazia um barulho estrondoso, investindo contra o nosso apartamento, o único lugar neste mundo em que nos sentíamos seguros.
Tomara que fosse assim!
Capítulo 35
Nessa noite quase não dormimos tampouco.
Bebíamos champanha e ficávamos observando, lá embaixo, o mar açoitado pela tormenta. Em Port Canto as luzes destinadas a indicar a posição dos iates pareciam dançar. Vimos um filme na televisão e escutamos o último noticiário da noite. Depois Angela colocou na vitrola os discos de Cole Porter. A cada instante a tormenta se tornava mais forte.
- Normalmente esse temporal dura três dias - disse-me Angela. - Você está com frio, meu amorzinho?
- Não.
Eu havia vestido o roupão e Angela, o casaco.
- Preciso viajar para Düsseldorf - disse. Ela balançou a cabeça, concordando.
- Brandenburg quer falar comigo.
- Ah, sim, que foi que aconteceu esta tarde? Você conseguiu alguma coisa?
Eu escutava a música de Cole Porter, escutava os uivos e gemidos do Mistral. Depois de ter ouvido tudo o que Angela me dissera, ficou claro para mim qual o caminho que deveria seguir. Mais claro do que a água. Passei, então, a refletir bastante sobre esse caminho. Forçosamente teria que segui-lo. Não havia outro. E quero deixar aqui bem explicado que espécie de caminho era esse. Não me calarei e não ocultarei nada.
O que eu tinha em mente não era nada de bom. Não era decente. Não. Tratava-se de uma atitude criminosa, inescrupulosa. Nem sei como defini-la. Eu nunca fora assim antes daquela noite em que o Mistral bramia. A prolongada convivência com patifes fez com que também me tornasse um deles. Tornei-me, portanto, um criminoso, um indivíduo sem escrúpulos. Talvez eu tenha mesmo me tornado um tipo abominável.
Os leitores que acompanharam o meu relato até este nto sabem perfeitamente o que foi que me aconteceu...
De um momento para outro, sem mais nem menos, fui exoerado das minhas funções. Ando doente. O mais tardar dentro de seis meses, deverá ser amputada uma das minhas pernas. Depois disso como ficará a minha situação? Angela é muito corajosa. Ela está disposta a permanecer como minha amante durante toda a sua vida, se minha mulher não concordar com o divórcio. Mas até este momento ela não sabe da necessidade de fazer a amputação da minha perna. Desconhece também minha situação funcional na companhia. Ela é o único grande amor da minha vida.
Contrariando meu pessimismo e o espírito de um "Dilema- Joe" que sempre me dominou, passei a ter a convicção de que Angela continuaria a dedicar-me o seu amor mesmo após a amputação. O importante era que eu fosse bem sucedido com meu plano.
Forçosamente eu tinha que tomar logo providências a fim de dar segurança a Angela na hipótese de eu não ser bem sucedido. E se conseguir realizar o meu intento, terei que tomar providências para a nossa segurança, minha e dela.
Como os leitores notarão em breve, eu já não mais agia levando em conta o costumeiro conceito de moral. Não mais podia pensar em moral depois de tudo aquilo que, nessa tarde, lá em Fréjus, eu ficara sabendo por intermédio de Nicole Monnier e depois daquele infame telefonema de Brandenburg. Além disso, contribuía para essa minha atitude a obstinada recusa de Karin em concordar com o nosso divórcio. Deixei de raciocinar como um homem decente sobre o que deveria fazer depois de ter descoberto tudo com relação ao objeto das minhas investigações.
Homem decente! Que significa essa expressão? Nesta cidade fui forçado a entrar em contato com um grupo dos assim chamados homens decentes, muito honrados e respeitados, temidos por todos e poderosíssimos. Mas na realidade eles não passavam de miseráveis criminosos e assassinos. Eram homens que faziam propagar por todo o mundo uma galopante inflação que tornava os pobres cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. Eram homens que dispunham de muita força. Não se podia tocar sequer num fio de cabelo deles por grande que fosse o número de crimes que praticassem, porque, em se tratando de crimes tão hediondos de criminosos tão potentes, não existiam crimes nem criminosos.
Pois bem, agora eu queria ser como eles. Havia concebido mais ou menos a maneira como deveria agir a fim de em qualquer eventualidade, garantir a segurança de Angela e a minha para sempre... para todo o tempo em que permanecêssemos sobre a face da terra. Tais foram os pensamentos que invadiram a minha mente naquela noite em que roncava o Mistral.
Que me condenem os leitores! Que se repugnem da minha atitude! Não tenho outro caminho a seguir... Mas talvez os leitores venham a ter um pouco de compreensão para comigo.
Capítulo 36
- Ah, sim - disse Angela. - Que foi que aconteceu esta tarde? Você conseguiu alguma coisa?
Notem os leitores que já vou começar a mentir.
- Estive em Fréjus. Na casa da amiga do tal Alain Danon, aquele sujeito que eles "pescaram" lá no antigo porto. Ela me disse que Danon havia praticamente descoberto toda a verdade e que por isso esfacelaram-lhe o crânio com um tiro. Ela conhece os homens com os quais Danon trabalhou. Ele vivia praticando extorsões. Evidentemente pretendia utilizar-se desses segredos, se é que de fato os possuía, para extorquir dinheiro dos culpados. Ou mesmo vendê-los a quem mais oferecesse. É isso que tenho que informar a Brandenburg. Será preciso muito dinheiro para pagar a esses homens. Talvez Brandenburg sozinho não possa tomar tal deliberação e tenha que consultar a diretoria. A companhia desembolsará um montão de dinheiro, mas, em compensação, a verdade surgirá... embora talvez seja muito triste a revelação que vamos ter: a verdade sobre Hellmann e sobre todos os seus amigos que se encontram nesta cidade.
Passei a ouvir, agora, o farfalhar das ramagens das árvores e os fortes bramídos do Mistral. Em algum lugar ali por perto as telhas faziam um ruído danado. Devia ser na antiga mansão Kazbek, que ficava lá embaixo, nas proximidades do nosso edifício, e que era o lugar onde outrora os príncipes russos davam suas pomposas festas, pois as résidences não dispõem de coberturas de telhas. Eu sentia a correnteza do vento que penetrava na sala. Parecia que o Mistral podia penetrar mesmo através das paredes de cimento, das chapas metálicas e dos vidros das janelas.
Felizmente Angela estava tão preocupada com a nossa própria vida, que parou de fazer indagações sobre os homens que "pretendiam vender a verdade". Prosseguindo, perguntou-me:
- Quando você vai partir?
- Amanhã cedo no primeiro avião.
- E... quando estará de volta?
- Sem demora. Muito breve, minha queridinha.
- Por favor, não demore muito desta vez, Robert!
- Voltarei logo - disse-lhe, na certeza de que, de fato, eu podia prometer-lhe isso.
- Eu preciso muito de você!
- Eu também preciso de você. Fique sossegada que em breve estarei aqui de novo.
Ela se inclinou um pouco para a frente e deu um beijo naquelas moedas de ouro da correntinha pendurada no meu pescoço. Eu também beijei as moedas que se encontravam pendentes entre seus lindos seios. O contato da nossa pele deixou-nos a ambos excitados e fizemos amor ao som da música de Cole Porter e dos uivos do Mistral, que fazia um estrondo de fim do mundo. Depois adormecemos agarradinhos, sob um cobertor de flanela.
Acordei às sete e meia da manhã. Não havia tirado o relógio do pulso. Notei que o céu continuava ainda cinzento e que o Mistral não parava de fazer estrondos. Lá fora, no terraço, as flores e os arbustos ficavam envergados com o vento.
Despertei Angela com muitos beijinhos suaves. Ao abrir os olhos, ela sorriu e me abraçou imediatamente. Bebemos somente chá. Tomamos nosso banho às pressas e vestimo-nos. Enquanto eu me barbeava, Angela fez a minha mala. Saímos do apartamento às oito horas. Angela havia resolvido levar-me de carro ao aeroporto de Nice. Vestiu uma calça marrom e um grande casaco cor de oliva em estilo militar. Parecia perdida naquele casaco largo. Angela fez o carro seguir pela pista ao longo da praia. As ondas inundavam diversos pontos da estrada. O Mistral dificultava muito o tráfego. O vento sacudia o carro. Tudo estava cinzento: a paisagem, a luz, o céu, o mar. Passamos pelo Tetou, o restaurante onde se comia a boa bouilabaisse. Ali o Mistral havia rompido uma parede lateral de madeira, forçando-a para dentro, alguns homens se esforçavam para repará-la.
- Você está com dor de cabeça? - perguntou-me Angela.
- Sim, estou.
- Eu também. É mais uma coisa que temos em comum: quando você sente alguma dor, eu também sinto.
- É verdade, Angela.
No aeroporto, ela acompanhou-me até o ponto onde podia ir. Então beijamo-nos ali mesmo. Apertei o seu rostinho frio entre as minhas mãos frias.
- Estarei na segunda sacada - disse-me ela.
Beijou rapidamente minhas mãos e saiu correndo, dentro do enorme casaco americano. Logo que pus os pés na esplanada do aeroporto, lancei os olhos na direção da segunda sacada. Uma única pessoa, nesse dia, se encontrava lá em cima: Angela. Com uma fúria selvagem, o vento puxava-lhe os cabelos e ela os segurava para que não se espalhassem. Com a mão livre ela me acenava e eu, cambaleando no meio da tormenta, correspondia ao seu aceno. Pensei comigo mesmo: se tudo der certo e sair de acordo com o meu plano, esta será a última vez em que teremos de nos despedir. Sim, a última vez!
Entrei no veículo que transportava o pessoal para o avião. O Mistral batia lateralmente com tal ímpeto nesse ônibus, que o chofer só a custo conseguia fazê-lo rodar na direção certa. Depois de ter descido do veículo, dirigi mais uma vez o olhar para a sacada: lá estava Angela. Pude contemplar mais uma vez seus lindos cabelos louros. Ela me acenava e eu, parado ali na pista de aterrissagem, fiquei correspondendo aos seus acenos até que a aeromoça, postada na extremidade da escada, convidou-me para entrar.
O avião levantou vôo seguindo em direção ao mar. O piloto fez subir rapidamente e com acentuada inclinação o aparelho, que foi sacudindo com ímpeto ao atravessar as correntezas do Mistral. O sinal de "APERTEM SEUS CINTOS" não foi apagado. Permanecemos com os cintos afivelados. Foi, na verdade, um vôo horrível. Muitas pessoas começaram a sentir-se mal. Mas eu estava calmo e confiante no futuro. Notem os leitores que quando um indivíduo toma a decisão de tornar-se um criminoso é porque seguramente ele já se tornou insensível a toda e qualquer espécie de remorsos e de tormentos de ordem moral. Depois de tomada uma tal resolução, desaparece a sensibilidade moral. E era exatamente a esse ponto que eu havia chegado. Nada mais me perturbava. Eu havia perdido o sentimento de culpa. Não sabia mais o que era decoro e dignidade. Eu havia tomado a decisão de ser como aqueles outros. E, por incrível que pareça, jamais minha vida me sentira tão calmo como naquele momento que já pretendia começar a prática de crimes.
Capítulo 37
- Fiz por você tudo o que podia fazer - disse-me Gustav Brandenburg, falando com a boca cheia de pipocas.
- Cheguei a criar calos na língua de tanto falar com eles. Você nem pode imaginar quanta coisa eu tentei para acertar a sua situação. Esforço inútil! Sinto muito. Mas você também é um desgraçado de um idiota!
- Como assim?
- Com aquele negócio do seu estado de saúde, nós cagamos para a diretoria. E como se isso não bastasse, você se deixou fisgar pelo sorriso de uma mulher. Exatamente como um doido. Durante todo o tempo em que trabalhou comigo, você, tal qual um passarinho, pôde voar por todas as partes do mundo, gozando a vida, que era o que você mais desejava. Mas agora, pelo que vejo, surgiu um grande amor. Idiota! O mais idiota dos idiotas!
- Gustav?
- O quê?
Ele vestia uma camisa listrada com as cores laranja e azul.
- Cale essa boca! - disse-lhe baixinho.
- O quê?
Seus olhos de porco se tornaram maliciosos e traiçoeiros.
- Se já não consegue se lembrar de que, para esse amor, você já me havia desejado sorte e felicidades, tendo nos dado a sua bênção e dito que para o nosso bem - meu e dessa mulher - você faria tudo o que lhe fosse possível, agora pelo menos cale essa boca e deixe de dizer besteiras a nosso respeito. Falando a pura verdade, você não tem merda nenhuma a ver com isso.
Ele engoliu as pipocas que tinha na boca. Em seguida começou a tamborilar com os dedos grossos na mesa e, cheio de malícia, passou a examinar-me dos pés à cabeça.
- Você falou no tom exato. Minhas congratulações! Mesmo nessa situação, você se mantém altivo. Bravo! Você se conserva por cima. Eu nunca lhe disse que me sentia contente por causa desse seu novo amor. Nunca na minha vida!
- Mentiroso!
- E você, idiota, capacho das putas! Você pode me dizer os nomes que quiser. Comigo está tudo acabado. - Bruscamente ele começou a gritar: - Acabado! Você compreendeu bem?
Eis que meu velho Gustav mais uma vez mostrava as unhas.
- Já faz muito tempo que eu compreendi isso - retruquei-lhe.
Logo em seguida ele se tornou calmo de novo.
- A partir de agora você está livre dessa incumbência. Da primeira vez eu lhe entreguei, em cheques de viagem, trinta mil marcos e depois mais cinqüenta mil. Onde estão os cheques?
- Estão aqui! - respondi-lhe, já colocando os talões dos cheques em cima da sua mesa.
Antes de dirigir-me ao gabinete de Gustav, eu havia estado no meu banco e entregara ao meu velho amigo Kresse um cheque para sacar oitenta mil marcos.
- Toda essa quantia? Que é que o senhor está cogitando fazer, Sr. Lucas? - perguntou-me Kresse, assustado.
Como todo funcionário de banco que lida com dinheiro, ele sempre se assustava quando um cliente sacava boa parte do depósito feito. Devia ser indubitavelmente uma espécie de sestro de natureza psíquica. Parece que esses indivíduos adquirem o hábito de cuidar do dinheiro alheio como se fosse deles.
- Não faça, agora, na situação pela qual o senhor está passando, nenhuma loucura. Lembre-se de que na sua vida sempre precisará de dinheiro. E se o senhor agora retira tal montante...
- Em breve esse dinheiro estará novamente depositado na minha conta, Sr. Kresse. Agora preciso de oitenta mil marcos para comprar cheques de viagem.
E foi o que fiz. Kresse tinha razão: eu estava retirando a maior parte das minhas economias. Mas tinha que proceder assim. Isso fazia parte do meu plano. Era evidente que Gustav exigiria a devolução dos cheques de viagem da companhia, e os primitivos cheques que ele me entregara eu ja havia trocado para pagar Nicole Monnier. Quando me dirigi ao gabinete de Gustav já tinha levado os novos talões.
- Aqui estão os cheques! - disse, ao atirá-los na sua frente, em cima da mesa.
Foi um momento perigoso, pois ele poderia dar-se conta de que não eram os mesmos cheques que ele me havia entregue. Mas é preciso dizer que Gustav também estava nervoso e muito indignado com o meu comportamento frio e grosseiro. Provavelmente ele esperava que eu chorasse e lhe fizesse súplicas, bajulando-o. Forçosamente nesse nosso encontro eu tinha que me comportar assim. Ele apenas lançou um olhar fugaz sobre os cheques de viagem e empurrou-os para o lado da mesa.
- Agora os documentos e os livros do código secreto de telegramas! - rosnou.
Entreguei-lhe tudo. De manhã, quando Angela me conduzia ao aeroporto de Nice, eu havia passado no Majestic para retirar do meu cofre pequeno toda a papelada. Entretanto Gustav nunca poderia imaginar que, no outro cofre grande que eu alugara no hotel, havia ficado guardada uma porção de coisas importantíssimas...
- Que é que vão fazer comigo agora? - perguntei, embora já soubesse de antemão qual seria a resposta. Eu queria apenas ver como o meu amigo Gustav a formularia.
- Você se arruinou com o que fez. A companhia não pode mais tolerá-lo. A gente que fez as reclamações aos nossos chefões disse que seu comportamento em Cannes foi escandaloso. A Global não pode tolerar um comportamento assim. Nós temos uma reputação sólida em todo o mundo para salvaguardar. Eu tinha você na conta de indivíduo inteligente. Mas veja que bela atitude a sua! Você nunca quis me ouvir. Se é que você já está farto...
- Gustav, escute, você não passa de um porcalhão.
- E você é uma negação. A mais completa negação que se possa imaginar. Uma verdadeira nulidade - retrucou ele, fedendo a suor, enquanto acendia um grosso havana.
E dizer que eu suportei um bosta desses durante dezenove anos! É inacreditável! Ele prosseguiu:
- Você só serviu para dissipar o tempo e o dinheiro da companhia. Você sempre teve toda a chance, toda a possibilidade, todos os meios para agir. E que foi que você descobriu para o nosso benefício? O quê? O que foi que você nos trouxe de resultado? Para nós todo o seu trabalho só resultou numa boa merda! O tempo admissível para as suas atividades na empresa já se escoou. Você está liquidado, Robert. Sua carreira já terminou. Não preciso mais de você.
Ele sorriu e eu sorri do mesmo modo. Fitamo-nos exatamente como dois namorados...
Sim, investigando o caso, que foi que eu descobri?...
Ele continuou:
- Ou você tem uma opinião contrária ao que estou afirmando? Se tem, desembuche logo! Não pense que queremos fazer injustiça com você. Que foi que você conseguiu de positivo no caso? Diga!
- Nada! - respondi-lhe com uma expressão beatífica de pessoa arrependida e contrita, mas com o pensamento voltado para aquele material guardado no cofre do Majestic. - Absolutamente nada!
- Ao invés de cumprir suas obrigações, você não fez outra coisa senão dar as suas trepadinhas com essa...
- Gustav! - disse, interrompendo-o bruscamente. - Se você pronunciar mais uma palavra, vou quebrar com um soco esses seus dentes fedorentos!
Levantei-me. Ele passou a me olhar, parecendo não acreditar no que via e ouvia. Na verdade, ele nunca me havia visto desse jeito. O charuto lhe escorregou do canto da boca e ele o agarrou ainda a tempo de evitar que caísse no chão. As cinzas se espalharam sobre sua camisa horrível e imunda. Prossegui, dando um tom de veemência às minhas palavras :
- Você nunca mais falará uma palavra sequer a respeito dessa mulher! Se você falar, vai ter que gastar dinheiro com uma dentadura nova, porque vou rebentar-lhe a fuça, seu cachorro! Ainda que isso seja a última coisa que eu tenha que fazer neste mundo, ouviu?
Ele esboçou um sorriso amarelo e respondeu-me:
- Nem mais uma palavra com relação a essa dama! O amor é uma dádiva divina. Você agora terá bastante tempo para o seu amor. Posso transmitir-lhe a feliz notícia de que você desde já está dispensado dos nossos serviços. A Global é decente e correta. Mais correta do que você foi para com ela. Ela não vai desmascará-lo. Vai conceder a sua aposentadoria com base no laudo médico do Dr. Betz e não porque você se comportou escandalosamente e negligenciou o cumprimento dos seus deveres, orientando mal os negócios de interesse da empresa. Não, ela não mencionará nada disso! Ela considerará exclusivamente os motivos de saúde. A carta comunicando seu desligamento já se encontra no gabinete da diretoria. Você pode recebê-la ainda hoje. Conforme ficou deliberado, você vai ter a sua aposentadoria e não trabalhará mais para nós. O dinheiro da aposentadoria será remetido a você mensalmente.
Calei-me. Ele continuou:
- Bem... pouco me importam as merdas das suas palavras. Saiba, Robert, eu já não podia mais suportar você!
- Eu também não podia mais suportá-lo, Gustav.
- Faz muito tempo que previ que iríamos acabar assim. Você morde a mão que bota a comida no seu cocho. Você não foi leal para com a Global. Deu motivo a que ela sofresse difamações. Eu sabia que, mais dia menos dia, você iria proceder assim.
- Então, se você pensava desse modo, tinha razão - disse eu. .
Até aqui tudo estava correndo perfeitamente em consonância com meu plano. Exatamente conforme eu previra.
- Quem vai se encarregar do caso agora? Bertrand? Holger? - perguntei.
- Ninguém!
- Que significa isso?
- O caso está encerrado. Vamos pagar o valor do seguro.
Também isso se enquadrava perfeitamente no meu plano. Por uma espécie de sexto sentido que se manifestara em mim depois de dezenove anos de atividade, tinha a convicção de que aconteceria isso mesmo. Essa atitude da companhia veio a calhar perfeitamente: era excelente para o meu objetivo. Sim, sim, devo dizer que o bom Deus me ama! Entretanto, simuladamente passei a fazer uma espécie de encenação, mostrando-me indignado e gritando:
- Vocês vão pagar o seguro?! Será que vocês ficaram loucos? Maldição! Por que é que vocês têm que fazer esse pagamento?
- Sente-se - disse-me Gustav.
Ele tinha uma aparência asquerosa. E dizer que durante dezenove anos suportei esse sujeito repugnante e de aspecto nada agradável! Depois que me sentei, ele prosseguiu:
- Você agora não tem mais merda alguma de interesse em saber se vamos cuspir quinze milhões de marcos ou se não vamos pagar nada. Pelo contrário, você deve ficar bastante satisfeito com o nosso prejuízo. - Disso não há dúvida, pensei com os meus botões. - Temos que fazer esse pagamento externando, antes de mais nada, do fundo do coração nossos agradecimentos à sua inépcia. Você não conseguiu encontrar um resquício qualquer, por mínimo que fosse, capaz de indicar que houve suicídio...
- Está certo! - respondi-lhe. - Entretanto nada encontrei simplesmente pelo fato de que não se tratava de suicídio, mas sim de assassinato. E vocês aqui sabem disso tão bem quanto eu.
- Não se esquente de novo - disse-me Gustav, mastigando a ponta do charuto que já estava triturada. - Também é preciso que se diga que até agora não foi encontrado nenhum assassino. E, pelo que parece, nunca mais será encontrado. Se você já não estivesse caduco, teria pelo menos encontrado alguma razão plausível que nos permitisse ir preterindo esse pagamento... até mesmo por tempo indeterminado. Mas não foi isso o que aconteceu. O cidadão que a companhia mandou a Cannes ficou por lá dando as suas trepadas ao invés de trabalhar... O cidadão, esse cagou para nós, que lhe pagamos um bom ordenado... O cidadão...
- Ponha o rabo no meio das pernas e fique quieto! - disse, interrompendo-o mais uma vez, - Então quer dizer que vocês vão pagar mesmo os quinze milhões?
- Sim.
- Quando?
- Agora. Já. Imediatamente. Isso se já não foram pagos. Os advogados de Hilde dos Brilhantes se grudaram na nossa pele com uma gana infernal.
- Que maravilha! pensei.
- Já que a companhia enviou uma pessoa incompetente, ela não tem outro remédio senão pagar.
- Agora quero dizer algo a você, Gustav.
Nesse meio tempo eu ficara conhecendo muito bem todos aqueles poderosos lá em Cannes e passei a dar também a minha própria versão dos fatos, explicando a Gustav:
- Não foram somente os advogados de Hilde dos Brilhantes que se grudaram na Global, mas também outras pessoas muito diferentes. Pessoas ricas. Multimilionárias. Poderosas. Superpoderosas. É claro que elas não agiram diretamente, mas por intermédio dos seus advogados ou de terceiros. Talvez até mesmo uma porçãozinha da própria Global pertença a essas pessoas. Ou talvez elas sejam grandes seguradas dessa companhia. E essas pessoas, sejam lá quais forem, declararam: "Se vocês não pagarem o valor do seguro a Hilde dos Brilhantes, terão grandes incômodos e dissabores. Não só aqui, mas em todos os países. Terão contrariedades muito desagradáveis". Está fora de dúvida que se trata de assassinato. Não foi absolutamente por causa da incapacidade de um funcionário que não se pôde comprovar o suicídio, mas sim porque realmente não houve suicídio. Portanto a companhia terá que pagar o seguro... eu...
- Quanta besteira! - exclamou Gustav sem fitar-me, estendendo na minha direção o dedo com a unha preta de sujeira. - A Global não admite que alguém, seja ele quem for, pratique extorsão contra ela.
- Não?! Entretanto ela mandou interromper bruscamente as investigações e resolveu efetuar o pagamento do seguro. Em outros casos semelhantes, que são do meu conhecimento, ela levou anos e anos recusando-se a pagar, sempre com novos pretextos, com novos truques e com novos subterfúgios engendrados com grande sagacidade.
- Garanto a você que ninguém exerceu pressão contra a Global.
- Não, claro que não! - disse eu. - A Global é muito distinta e não quer se preocupar com negócios tão sujos assim. Por isso ela paga antes mesmo de o caso ficar esclarecido. Uma coisa dessas ela nunca fez até agora.
- Para nós o caso já está esclarecido: houve assassinato.
- Mas era você mesmo quem estava convencido de que se tratava de suicídio. Pois você não disse que havia cheirado isso no ar? Você não se lembra mais?
- Logo no início qualquer pessoa pode se enganar. Depois, a minha faculdade de percepção pouco pode me ajudar se eu só conto com a cooperação de uma nulidade que é uma verdadeira decepção. Quinze milhões!!! Que eles enfiem no cu! - Ele, agora, fez uma cara de choro. Mas era sempre assim que ele fazia quando a empresa era obrigada a pagar o valor de um seguro vultoso. - Eu devia estar louco empenhando-me tanto a seu favor para que lhe fosse concedida a aposentadoria e você não fosse simplesmente queimado por ter tido um comportamento danoso aos nossos interesses no desempenho das suas funções. E tenho de penitenciar-me agora de meu erro! Que belo e comovente agradecimento estou recebendo! Mas está bem... O culpado sou eu mesmo: bem que eu devia saber que você não passava de um sujeitinho de merda!
- E você levou dezenove anos para descobrir isso? Sua vida durante todo esse tempo deve ter sido um verdadeiro inferno.
- E foi mesmo. Agora estou contente porque tudo acabou. Felizmente é o fim do meu tormento! Se há um nome que eu devo esquecer, esse nome é o seu.
- Veja só: comigo se dá, também, a mesma coisa. A recíproca é muito mais verdadeira ainda.
Pensei com os meus botões: o pessoal da diretoria deve ter passado uma boa carraspana nesse sujeito. Passei, então a sentir-me aliviado e alegre. Fazia muitos anos que não me sentia desse jeito. Meu plano está funcionando! Meu plano vai dar certo!
- Não se incomode, fique sentado, Gustav - disse-lhe, já me levantando para sair. - E não é preciso deixar de segurar o charuto: não vou apertar a sua mão para despedir-me. E que você tenha uma vida repleta do santo temor de Deus, você que é a única preciosidade da Global.
Ele cuspiu sobre o tapete.
- Vá para o diabo! - disse-me ele. - Não levará muito tempo e você vai esticar as canelas. E nunca mais na sua vida se dê ao trabalho de vir aqui chorando miséria para pedir algum auxílio. Para mim, você já está morto. Meu Deus! Como respirarei aliviado se nunca mais enxergar a sua cara!
- A recíproca também é verdadeira, Gustav. A sua fuça é a coisa que menos desejo ver neste mundo! E ainda hoje de tarde quero todos os meus documentos e papéis lá no Intercontinental. Compreendeu bem? Ainda existe neste país um Tribunal do Trabalho.
- Isso é o que menos me preocupa, seu bosta. Depois de tudo o que você fez... ocultando o que o médico de confiança da companhia declarou... E dizer que ainda ajudei você nessa trapaça! Que bobalhão fui! Mas é assim mesmo. Eu sempre tenho que fazer o bem. É a maldição da minha vida. Eu nunca faço outra coisa.
- É verdade. É uma sina muito diabólica, a sua.
- Já falei com o médico da companhia e ele acha que a sua perna deverá ser cortada. Você sabia que ela terá que ser amputada?
Virei-me e, caminhando sobre o enorme tapete, fui me dirigindo à porta de saída. Eu dava meus passos apoiando meu pé com firmeza e não senti dor alguma. Só o coração batia aceleradamente, por ver que uma das condições essenciais para a realização do meu plano (o pagamento do valor do seguro) me fora confirmada por Gustav. Eu ouvira essa declaração da sua própria boca. A luz do sol penetrava no gabinete através das janelas bem altas. Nesse dia fazia calor em Düsseldorf. Abri a porta, penetrando na ante-sala, e fechei-a novamente. Nem eu nem Gustav pronunciamos mais uma palavra.
E foi assim que deixei a Global depois de dezenove anos de patifarias trabalhando para aumentar a riqueza de indivíduos que, falando a pura verdade, eu não conhecia. Pensando bem, até que minha saída da empresa foi perfeitamente legal. Na verdade, consideradas as características do nosso sistema empresarial, não é com chocolate e doces finos que eles tratam o indivíduo quando querem que ele vá embora depois de tê-lo explorado e inutilizado. Oh não, não é com chocolate!...
Capítulo 38
- Que é que você pretende fazer, agora? - perguntou-me o meu amigo Dr. Paolo Fontana, meu advogado.
Eram sete horas da tarde desse mesmo dia quando cheguei ao seu escritório. O rosto pequeno e liso de Fontana nunca deixava transparecer o mínimo vislumbre dos seus pensamentos íntimos nem das suas emoções. Com a mão, ele alisava os cabelos castanhos penteados para trás. Falei da altercação que eu tivera no gabinete de Gustav Brandenburg e disse-lhe:
- Vou voltar para Cannes. Tomarei o avião para lá ainda amanhã. Vou apenas esperar receber os meus papéis e documentos da Global.
Ele ficou me fitando durante um bom tempo, depois disse:
- Robert, exatamente como Berchert previu, o juiz recusou-se a dar atendimento à petição de divórcio. Naturalmente, era o que já se poderia prever. Era o que eu temia. Você é um pobre-diabo.
- Oh, não - respondi-lhe.
- Oh, sim - confirmou ele. - Agora você vai ficar só com uma parte dos seus vencimentos. Você anda doente, conforme já me confessou. E o que se pode esperar do seu futuro... não me parece que seja muito bom. Como homem compreendo você, mas como advogado devo censurá-lo, porque você, contrariando o meu conselho, deu autorização para que mensalmente fosse feito um crédito na conta da sua mulher. Não me olhe com essa cara: eu sei de tudo! Foi o próprio advogado dela quem me disse isso.
- Bem... este é um assunto liquidado!
- Não... Não é um assunto liquidado! Você, por iniciativa própria, se antecedeu, estabelecendo, por assim dizer, a estimativa de uma importância que deveria ser estipulada pelo juiz. Você deve se lembrar que eu pretendia compelir sua mulher a aceitar o divórcio precisamente com alguma proposta de consignação mensal na conta dela. Mas agora não dá mais, pois você já lhe concedeu um crédito mensal de mil e quinhentos marcos, além de ficar pagando as prestações do apartamento e o seguro. Em todo caso, vou tentar em juízo, em virtude da diminuição dos seus vencimentos, a redução da importância mensal que você lhe concedeu espontaneamente. E tomara que, pelo menos, eu consiga isso! Como já disse, você mesmo se antecipou em fazer a estimativa de uma quantia que deveria ser estipulada pelo juiz. E isso muito contribuirá para que sua mulher nem mesmo pense no divórcio.
Ele passou a revolver o fumo do cachimbo com um palito. Depois perguntou-me:
- Por que você fez isso, Robert, contrariando os meus insistentes conselhos?
- Por superstição. Angela também estava de acordo.
- Angela também? - Fontana passou a falar baixinho. - Não, não creio que tenha sido por superstição. Você procedeu assim porque é um indivíduo correto e decente... e essa mulher também. Vocês não podiam suportar o pensamento de que Karin...
- Pare com essa conversa, por favor! - exclamei.
- Mas por que, então, você contratou um advogado se não procede como ele manda? Fique sossegado, sou seu amigo e permanecerei seu amigo. Apenas devo dizer que desse jeito não posso ajudá-lo. O que poderá acontecer depois de decorados esses três anos... só Deus sabe.
- Não tem importância. Nem para mim, nem para Angela. Para nós tanto faz. Já resolvemos viver juntos, de um jeito ou de outro.
- Ela disse isso? - perguntou-me Fontana, tirando a cinza e os resíduos do seu cachimbo e enchendo-o novamente com fumo.
- Sim, ela mesma disse isso.
- Então ela é uma excelente mulher, Robert!
- Tão excelente quanto a sua - respondi-lhe. Fontana acendeu novamente o cachimbo e prosseguiu:
- Vou tentar conseguir a redução da importância consignada em favor de Karin. Se conseguir, o caso muda de figura. Provavelmente você terá que comparecer em juízo no dia aprazado. O juiz deve ouvir ambas as partes. O meu plano inicial você já torpedeou. Evidentemente, Karin jamais dará sua aquiescência ao divórcio.
- Eu tenho outro plano - disse-lhe -, mas não posso falar sobre ele agora.
- Eu não estou zangado com você. Apenas estou aborrecido por não poder ajudá-lo.
- Não fique aborrecido, fique contente. Eu também estou contente. Coisas muito agradáveis para mim estão por acontecer.
- Ainda bem! - exclamou ele.
- É como estou lhe dizendo: coisas muito agradáveis para mim estão por acontecer - repeti.
A secretária trouxe a correspondência que, nesse meio tempo, havia sido remetida ao Intercontinental e de lá trazida ao escritório de Fontana num envelope de plástico. Até que havia bastante correspondência para mim. Lá no hotel eu insistira em que toda a minha correspondência fosse enviada ao endereço de Angela, em Cannes.
- Ah, lembrei-me agora: tenho ainda um pedido a fazer-lhe - disse eu. - Preciso de um escrivão em Cannes. Será que por acaso você não conhece um que seja bom e de confiança?
- Acho que posso indicar-lhe um exatamente como você quer. Espere um momento...
Fontana passou a folhear um volumoso livro de endereços e, em seguida, citou-me o nome e o endereço de um escrivão de Cannes. O homem chamava-se Charles Libellé. Tomei nota desse nome e do seu endereço. Por fim despedi-me de Fontana. Ele apertava minha mão enquanto me acompanhava até a porta.
- Quando nos veremos de novo? - perguntou-me.
- Quando eu tiver que me apresentar em juízo, certamente.
- Mas não é isso que quero dizer. Acho que você me compreende: refiro-me a uma visita sua a mim e à minha mulher, na minha residência, acompanhado da sua querida.
Fiquei calado.
Acho que uma visita dessas nunca se dará - disse ele.
- Mas é claro que lhe faremos uma visita algum dia - respondi. - Ora, que é que você está pensando, Paolo? Não há dúvida de que ainda visitaremos vocês.
Eu disse isso, mas tendo quase a certeza absoluta de que unca faríamos tal visita. A partir de então eu me sentia definitivamente desligado daquele ambiente e nada mais poderia prender-me ali. Não pretendia de forma alguma regressar à Alemanha. E me sentia muito feliz com tais pensamentos. Fontana acompanhou-me até o elevador. Até então ele nunca havia feito isso. Na sala de espera estavam sentados dois clientes.
- Felicidades! - disse-me ele. - Desejo-lhe muita felicidade, meu velho amigo! Mas nunca se esqueça de que muito poucos têm a felicidade de conseguir facilmente isso que você pretende. A maior parte fica esmagada debaixo das rodas. Será horrível para mim se você também se esmagar!
- Não há perigo! - disse eu.
O elevador surgiu atrás da porta corrediça de vidro. Abri a porta.
- Mais uma vez desejo-lhe toda a felicidade - repetiu Fontana com um tom de voz estranhamente caloroso.
Entrei no elevador. Ainda por um segundo pude ver Fontana com a sua aparência grandiosa, rosto pequeno e continuamente dominador. Sua face parecia estar palpitando. O elevador desceu.
Nunca mais tornei a ver Paolo Fontana.
Capítulo 39
Caminhei um bom pedaço através das ruas de Düsseldorf, observando tudo atentamente como um verdadeiro turista. Parecia que eu nunca tinha visto antes aquelas igrejas, bancos, museus, hotéis, teatros, praças, as grandes casas comerciais da Konigs-Allee, os elevados e as compridas fileiras de carros. Observava tudo isso e muita coisa mais. Ouvia vozes com o sotaque da Renânia e já sabia que, para o futuro, eu não mais veria essas coisas nem mais ouviria tais vozes... Não, nunca mais! Pois eu já havia tomado a decisão de não voltar a Düsseldorf nem mesmo para discutir em juízo o assunto do subsídio a ser concedido à minha mulher. Eu tinha, agora, um outro plano muito diferente. Por isso, nessa tarde, fiz minha despedida definitiva de Düsseldorf.
De tanto caminhar, fiquei cansado e tomei um táxi para ir ao meu hotel. Lá, disse a um dos porteiros que queria mudar-me no dia seguinte e pedi que ele me arranjasse uma empresa especializada nos serviços de mudança. Garantiu-me que arranjaria tudo conforme eu pedira. Dei-lhe o endereço de Angela em Cannes. Era para lá que deveria ser remetida também toda a minha correspondência.
- Muito bem, Sr. Lucas. Sinto muito que o senhor vá nos deixar.
Subi até o meu apartamento e fui sentar-me perto da erande janela da sala. Lancei o olhar para o aeroporto de Lohausen e fiquei observando o movimento dos aviões que aterrissavam e decolavam. Nessa tarde de verão estava demorando muito a ficar escuro. Pedi uma garrafa de uísque, soda e gelo e fiquei bebendo enquanto examinava a minha correspondência. Encontrei algumas cartas muito interessantes. Depois de tê-las lido, rasguei-as todas, pois não tencio-nava responder a nenhuma delas, especialmente agora que estava decidido a entrar numa nova vida. No meio de toda aquela papelada encontrei, também, diversos extratos da minha conta bancária. Pelo extrato que se reportava ao último débito da minha conta, pude verificar que, com a retirada dos oitenta mil marcos, o meu saldo ficara reduzidíssimo. Mas isso pouco importava, pois em breve eu faria um depósito de vulto que daria suficientemente para pagar a Karin qualquer importância que fosse adjudicada pelo juiz.
O porteiro telefonou avisando-me de que no hall do hotel se encontrava um mensageiro com um envelope bem grande para mim. Mandei que ele o fizesse subir ao meu apartamento. O rapaz entregou-me o envelope e eu lhe dei uma gorjeta. Tratava-se do documento relativo ao convênio sobre a aposentadoria em que a Global me agradecia pela minha fidelidade e pelo espírito de sacrifício demonstrados durante muitos anos de serviço. Desejava-me toda sorte de felicidades e fazia votos, principalmente, para a melhora do meu estado de saúde. Indagava-me se a empresa poderia creditar na minha conta as importâncias relativas à minha aposentadoria. Declarava-me que, salvo manifestação expressa da minha parte, continuaria a proceder como vinha fazendo até então com relação aos meus vencimentos. Eu não tinha intenção alguma de escrever à Global.
Comecei, então, a rasgar uma carta após outra, pois não havia nenhuma que merecesse minha resposta. De um momento para outro, passei a refletir que, na Alemanha, eu nada mais teria a fazer. Em Cannes... sim... Lá eu teria algo importante a realizar. Aqui na Alemanha, que mais deveria eu fazer? Nada. Por fim veio ter às minhas mãos um cartãozinho com letras manuscritas. Um indivíduo do qual eu já não me lembrava mais comunicava-me ter contraído matrimônio. Tratava-se de uma comunicação discreta e muito distinta. Examinei o cartãozinho durante um certo tempo, depois rasguei-o também.
Em seguida, pequei o fone e pedi uma ligação para Cannes.
Angela atendeu sem demora:
- Robert! Você está bem?
- Excelente!
- Noto que você bebeu, Robert!
- É verdade - confirmei. - E vou beber mais ainda. É de alegria por tudo ter corrido bem aqui.
- Nos assuntos com a companhia?
- Sim.
- Certamente eles ficaram impressionados com o que você conseguiu descobrir nas suas investigações, não é verdade?
- Ficaram muito impressionados - respondi-lhe, falando com dificuldade. - Ficaram extraordinariamente impressionados. Eles me louvaram... elogiaram... Como é mesmo que se diz?
- Por favor, não beba tanto assim, Robert!
- Estou bebendo porque me sinto muito feliz, sabe? O que está fazendo?
- Estou trabalhando nas minhas pinturas.
- Será que já lhe disse que a amo?
- Quando é que você vai voltar para casa? Para casa, disse ela. Para casa...
- Tenciono tomar um avião amanhã de tarde.
- Não dá para você partir daí mais cedo?
- Não.
- Por quê?
- Terei que ficar esperando os empregados da empresa de mudanças. Vou mandar para Cannes todas as minhas coisas. Tudo, tudo o que retirei do meu apartamento. Posso endereçar a bagagem para o seu apartamento?
Ela soltou um gritinho de alegria.
- Oh, Robert, quer dizer, então, que você vem morar definitivamente comigo?
- Sim. Resolvi ir morar definitivamente com você. - Eu devia ser cauteloso ao me expressar, considerando o que eu tinha em vista fazer naquela cidade. - Isso significa que vou viver em Cannes. Quando eles me incumbirem de qualquer missão em outra localidade, terei que ir. Mas, uma vez concluída a minha tarefa, regressarei logo a Cannes.
- Para junto de mim?
- Para junto de você. Eu já esclareci tudo à minha companhia e os dirigentes se manifestaram de acordo. Além do mais, por enquanto preciso continuar com as investigações do caso aí, não é?
- Sim, Robert, sim... Ah... Mas eu ando tão nervosa! ...
- Você vai ficar em casa hoje?
- Sim. Por quê?
- Porque eu vou continuar bebendo. E bem que me poderá dar na veneta telefonar-lhe mais uma vez... ou duas...
- Telefone-me quantas vezes quiser. E você pode telefonar-me até mesmo de madrugada. Eu ficarei aqui aguardando seu telefonema.
Continuei sentado perto da janela e fiquei observando como o dia, aos poucos, se transformava em noite. Por todos os lados acendiam-se as lâmpadas da iluminação pública. Eu ia tomando meu uísque devagarinho enquanto refletia sobre o que pretendia fazer após meu regresso a Cannes. Até que não era muito difícil...
Pedi que servissem o jantar no quarto mesmo. Depois continuei bebendo. Telefonei mais uma vez a Angela. Nessa noite cheguei a ficar bastante embriagado; basta dizer que lhe telefonei quatro vezes, a última às três horas da madrugada.
Capítulo 40
No dia seguinte, às nove da manhã, vieram os homens da empresa de mudança. Eram três - dois dos quais estudantes -; arrumaram cuidadosamente as minhas roupas, os meus elefantes e todos os meus pertences, fazendo dois pacotes bem grandes. O terceiro era um indivíduo mais idoso. Ele teve que aprontar a minha documentação a fim de preencher as necessárias formalidades. Dei-lhe o endereço para onde deveriam ser remetidos os pacotes e tive que assinar diversos papéis e depositar uma certa importância em dinheiro. Mas todo esse serviço foi feito bem ligeiro. Os estudantes enrolaram os elefantes, para evitar que se quebrassem. Eram moços educados e distintos. Eu continuava um pouco tonto em conseqüência da bebedeira da véspera, mas me sentia animado.
Duas horas depois, os homens já tinham saído levando os pacotes. Guardei na minha mala as coisas que sobraram e tratei de me vestir. Ao meio-dia almocei no restaurante do hotel. Meu avião partiria às três e meia da tarde, com escala em Zurique. Entreguei ao chefe da portaria a chave e os documentos do meu Admiral, que se encontrava estacionado em frente do hotel, autorizando-o a vendê-lo. Disse-lhe que tirasse dez por cento do produto da venda para si, a título de comissão, e que depositasse o resto na minha conta bancária.
Dessa vez os pilotos não tiveram que fazer o avião decolar "de acordo com instruções especiais". Fizemos um vôo magnífico. Em Düsseldorf fazia um sol esplendoroso. Em Zurique também o sol estava radiante. Mas em Nice o céu continuava encoberto e o Mistral rugia. Logo que desembarquei do avião, vi que Angela estava lá em cima, na segunda sacada do aeroporto. Saímos correndo através do amplo hall, um ao encontro do outro. Ficamos ofegantes.
Dessa vez Angela não tomou a estrada que margeava a praia, porque ela se achava coberta pela água. Seguimos pela rodovia. Tivemos que fazer uma parada num pequeno posto aduaneiro. O vento da tormenta batia com força contra o Mercedes, que por pouco não caiu na água. As palmeiras na beira da estrada estavam dobradas. A ventania quebrara muitas delas. Comecei a sentir dor de cabeça. Angela parecia estar tresnoitada. Notava-se que ela estava com os olhos fundos. Estava usando novamente a calça marrom e o casaco verde-oliva.
Chegamos a Cannes e fomos diretamente ao apartamento de Angela. Tirei minha mala do carro. O Mistral continuava roncando e rugindo. Exatamente como no primeiro dia, o vento penetrava em todas as salas. No terraço voavam folhas e flores impelidas pelo vento. O mar estava revolto. O céu apresentava-se nublado e escuro. Com dificuldade, abri uma porta de vidro que dava para o terraço e saí. O vento quase me derrubou. Eu tinha que respirar profundamente. Então senti a mão de Angela colocada sobre meu ombro. Virei-me e notei que lágrimas escorriam pela sua face.
- Angela!... Angela!... - tive que gritar. - Que é que você tem, Angela?
Ela aproximou a boca do meu ouvido e respondeu-me:
- Nada... Absolutamente nada... É esse maldito Mistral... Eu já lhe disse que ele deixa as pessoas loucas...
Hoje é o terceiro dia... Oh, Robert, Robert... você nunca me deixará sozinha... nunca mais, não é verdade? Eu não poderei mais suportar a sua ausência...
Notei que o Mistral arrancava as plantinhas pela raiz. Puxei Angela para a cama bem larga que estava colocada perto da parede do terraço. Ficamos logo excitados, como e fora de nós. De repente senti uma pontada no coração, mas não liguei.
Capítulo 41
- Eu sou uma mulher fraca e doente - disse-me Hilde Hellmann, queixando-se. - Não tenho prática de negócios. Por isso quero que o Sr. Seeberg fique aqui comigo.
- E eu quero que o Sr. Seeberg nos deixe a sós! - retruquei-lhe. - Sei que a senhora tem bastante prática do negócio que vou tratar com a senhora agora, Sra. Hellmann.
Estávamos numa segunda-feira, dia 26 de junho, às quatro horas da tarde. Eu havia regressado a Cannes no sábado. Passara o comingo com Angela. Ficáramos quase todo o tempo deitados no terraço, descansando.
O Mistral desaparecera e o céu apresentava-se límpido e azulado. Fazia calor novamente. No domingo mesmo, eu havia marcado essa visita a Hilde dos Brilhantes, dizendo que queria falar com ela em particular. No entanto, lá estava, sentado à beira da sua cama (ela, como da outra vez, vestia um casaco sobre a camisola de dormir), o Procurador Seeberg, com aquela expressão de frieza no olhar. Disse-me ele:
- Eu sou o confidente da Sra. Hellmann. Se o senhor não quiser falar com ela na minha presença, pode retirar-se, Sr. Lucas.
A época em que eu suportava um tratamento dessa espécie já havia passado. "Até que é bom não ter mais consciência, pensei com os meus botões.
- Se D senhor não se retirar imediatamente - retruquei a Seeberg -, eu não falarei com a Sra. Hellmann, mas sim diretamente com a polícia.
Fiquei esperando um pouco para ver o efeito da ameaça. Esse efeito não tardou.
- Deixe-nos a sós - disse Hilde dos Brilhantes, dirigindo-se a Seeberg.
Muito bem, minha senhora - respondeu-lhe este.
- Depois a senhora poderá relatar-lhe a nossa conversa - disse eu, enquanto o jovem procurador saía daquele quarto que sempre recendia a um perfume de flores tão forte que me deixava narcotizado. - Naturalmente a senhora terá que contar-lhe tudo. E não somente a ele. Para mim essa suposição é evidente. Mas primeiro quero falar só com a senhora.
- A respeito do quê?
- A respeito de crime. De diversos crimes.
Seus olhos albinos pestanejaram. Foi a única reação que ela demonstrou. Sentada na cama em estilo rococó, ela endireitou o tronco. Nesse dia ela usava um magnífico colar de esmeraldas e diamantes. Das suas orelhas pendiam brincos de esmeraldas em forma de pêra. Dessa vez a peruca estava bem ajeitada na sua cabeça.
- Mas de que crime o senhor está falando? - perguntou-me. - E quais são esses diversos crimes?
Sentei-me à beira da cama e passei a responder-lhe:
- Refiro-me ao seu crime, Sra. Hellmann. Aos seus diversos crimes.
Na manhã dessa segunda-feira eu havia estado no gabinete do escrivão Charles Libellé, que Paolo Fontana me indicara. Libellé era um homem de cerca de cinqüenta anos. Tratava-se de indivíduo excepcional. Sério. Despertava confiança à primeira vista...
- Maître - disse-lhe eu -, só lhe declararei meu nome depois que o senhor me garantir que vai se encarregar do meu caso.
Seus olhos castanhos se ergueram,
- Essa é uma atitude que foge da nossa prática habitual, monsieur.
- Eu sei. Mas por obséquio escute-me: neste envelope encontram-se algumas fotografias e uma fita cassete. Será que o senhor precisa ouvir a gravação e ver as fotografias a fim de encarregar-se da custódia do material?
- Não.
- Muito bem. Eu desejaria então que ambos... eu e o senhor... lacrássemos e autenticássemos este envelope e juntos fôssemos alugar um cofre num banco para guardá-lo. Eu e o senhor ficaríamos cada um com uma chave do cofre, bem como uma autorização expressa permitindo a qualquer um de nós isoladamente retirar do banco o envelope em qualquer época. Seria possível fazer isso?
- Sim - respondeu-me laconicamente Libellé.
- Muito bem. Dentro de alguns dias vou trazer-lhe um outro envelope contendo um manuscrito que também deverá ser guardado no mesmo cofre. Portanto, preste bem atenção por favor: se eu for eliminado ou sofrer morte violenta provocada por alguém, o senhor irá buscar os envelopes no banco e levará tudo à cidade de Zurique. Lá o senhor invocará a imprensa internacional para uma conferência, exibindo-lhe todo o material. Só depois disso é que o senhor poderá entregar o conteúdo dos envelopes a Interpol. Está claro ?
- Nada poderia ser mais claro do que isso, monsieur!
- Mas o senhor terá que esperar até obter a confirmação da minha morte. Morte ocasionada ou forçada por alguém. Se eu morrer de morte natural, o senhor não deverá fazer nada. Absolutamente nada. O material, então, ficará onde está.
- Para sempre?
- Para sempre. Não! Para sempre, não! Digo-lhe agora o meu nome: chamo-me Robert Lucas. - Ele arregalou os olhos. - Se depois da minha morte uma senhora chamada Angela Delpierre... - Citei-lhe o endereço dela, que ele anotou, conservando as sobrancelhas levantadas enquanto escrevia - ...sofrer nas mesmas condições uma morte violenta, então o senhor deverá proceder da mesma forma, levando ao conhecimento público o conteúdo dos envelopes, conforme já expliquei com relação à minha pessoa. Agora o senhor já sabe quem sou. E se o senhor tem acompanhado os acontecimentos que ultimamente vêm se desenrolando em Cannes, certamente deve ter ouvido tanto o meu nome quanto o de Madame Delpierre.
- Eu já tinha ouvido o seu nome, Monsieur Lucas, bem como outros nomes citados em conexão com tais acontecimentos.
- O senhor acha que podemos nos dirigir agora mesmo ao banco?
- Sim.
Libellé era um homem reservado e de pouca conversa.
A pé mesmo, nos dirigimos à agência da Banque Nationale de Paris, que ficava na Rue Buttura, não muito longe, e alugamos um cofre em nosso nome. Cada um de nós ficou com uma chave. Enfrentando o calor, voltamos ao gabinete de Libellé, que era bem fresquinho e pouco iluminado. Lá, assinei a necessária procuração que para tal efeito lhe devia ser outorgada. Finalmente pedi-lhe que me fizesse mais um obséquio e ele se prontificou a atender-me. Só então foi que me dirigi à mansão de Hilde dos Brilhantes. Encontrava-me portanto sentado à beira da sua cama.
- Mas de que crime o senhor está falando e quais são esses diversos crimes?
- Refiro-me ao seu crime, Sra. Hellmann. Aos seus diversos crimes.
- Pelo que vejo, o senhor enlouqueceu!
- Não, não enlouqueci, Sra. Hellmann...
Nunca, antes, eu fora tão resoluto assim nas minhas atitudes... nem tão inescrupuloso. Prossegui:
- É mais provável que a senhora tenha enlouquecido. Ou que já esteja atingindo as raias da loucura. A senhora é louca por dinheiro, poder e riqueza. Não lhe basta o que já tem. A senhora quer sempre possuir mais, mais e mais. A senhora odiava o seu irmão...
- Odiá-lo?! Eu?! Eu sempre o amei! - interrompeu-me ela em voz alta, fazendo encenação.
- ...a senhora o odiava como quem odeia a peste. A senhora queria apoderar-se do banco dele. Queria tornar-se a dona absoluta de tudo o que ele possuía. Então ocorreu-lhe um plano. Tenho a certeza de que foi a senhora quem concebeu tal plano. Na pessoa do Procurador Seeberg, munido de amplos e irrestritos poderes, a senhora encontrou o parceiro ideal que obedecia docilmente aos seus desígnios. A senhora prometeu-lhe participação no banco. Os membros da Kood - Fabiani, Thorwell, Sargantana, Kilwood e Tenedos - acolheram com entusiasmo o seu plano. Fazia muito tempo que seu irmão, com o espírito ainda imbuído do antigo conceito de moral, se tornara um ossinho atravessado na sua garganta. Então Seeberg ainda fez aquela transação com as libras esterlinas... seguindo aquele velho critério de comprovada eficácia...
- Que quer o senhor dizer com a expressão "critério de comprovada eficácia"? - Sua voz se tornara estridente.
- Ah, sim... Preste bem atenção: nunca houve nem para a senhora nem para os seus amigos consciência da baixeza ou sordidez do que pretendiam fazer quando se oferecesse a oportunidade. Para os senhores nunca houve uma crise séria no mundo. Entretanto, é sabido que desde o término da guerra inúmeras foram as oportunidades e as crises que surgiram. Primeiro, o franco sofreu um verdadeiro abalo. Depois, a lira. O dólar pode-se dizer que anda sempre escorregando, com oscilações bruscas.
E foi precisamente aproveitando-se do descalabro da desvalorização dessas moedas que os senhores conseguiram fazer as suas absurdas fortunas. - Contra a minha vontade, eu falava muito exaltado. - É admirável a maneira como amontoaram riquezas tão grandes provenientes da queda do valor das moedas nos países que sofreram abalo financeiro. Os trustes nos Estados Unidos só fazem o que os senhores querem. Os bravos cidadãos mericanos que constituem a média dos homens comuns estão impedidos de adquirir ações de empresas alemãs. Para fazerem investimentos no exterior, eles teriam que pagar impostos absurdos. Todavia, tais restrições não atingem os senhores. Os senhores possuem a Kood, uma espresa multinacional, que se radicou em solo alemão, uma empresa que conta com uma infinidade de organizações subsidiárias em muitas outras nações. Desse modo conseguem... paradoxalmente mediante um procedimento legal... burlar a lei, contrapondo-se às disposições expressas relativas a operações de câmbio e transferência de divisas. Desse modo conseguem superar todos os obstáculos. E com isso seu irmão, Sra. Hellmann, deixara de ser um paradigma de dignidade e de distinção. Seu irmão jamais poderia fazer uma idéia do que estavam traiçoeiramente tramando contra ele. Tenho absoluta certeza disso. Ele só veio a se dar conta dessa traição quando descobriu o negócio efetuado com as libras. Aí, então, ficou desesperado. Tomou imediatamente um avião e veio para cá a fim de convocar todos os senhores para uma prestação de contas. Note bem: eu disse "todos os senhores" referindo-me, também, aos elementos da Kood e não somente à senhora, que era sua irmã. Acho que ele jamais poderia ter imaginado que a sua maior inimiga era precisamente a senhora, que, nesse meio tempo, havia maquinado um crime perfeito. A cada um dos senhores cabia o desempenho de uma tarefa especial. A irmã-enfermeira encarregou-se de conseguir a dinamite a ser utilizada naquela bomba. Tenedos arranjou um indivíduo para construir o engenho. Thorwell arranjou um outro indivíduo que se encarregou da instalação elétrica..
- O senhor está louco - gemeu Hilde.
As jóias que ela estava usando reluziam refletindo a luz quando ela movia a cabeça rapidamente. Ela continuou:
- Um verdadeiro louco é o que o senhor é! Vou mandar que o ponham para fora. Vou avisar a polícia imediatamente...
Colocou a mão sobre o fone do aparelho que se achava :rto da cama. Eu a encarei calmamente. Ela conservava a mão sobre o fone sem erguê-lo. E eu não deixava de olhá-la fixamente. Finalmente tirou a mão do aparelho.
- Assim é melhor. - Olhei as horas no meu relógio de pulso. Dentro de alguns minutos alguém deveria telefonar. Eu sabia. - Como eu ia dizendo, cada qual tinha que se desincumbir da sua tarefa. Até mesmo um assassino profissional, um pistoleiro, foi contratado. Mas para a senhora, a irmã de Herbert Hellmann, ficou reservada a missão de colocar aquela máquina infernal a bordo do iate.
- Isso é um absurdo! É uma loucura o que o senhor está dizendo!
- O que estou dizendo é a pura verdade! Posso provar com fotografias e conversas gravadas em fitas. Possuo até uma foto que mostra a senhora colocando o engenho dentro do iate.
Puxei do bolso uma foto, que deixei cair sobre o tapete. Com uma agilidade assombrosa Hilde saltou da cama, apanhou-a e passou a examiná-la detidamente. Tratava-se de um cartão-postal que mostrava uma vista panorâmica de Cannes. Hilde Hellmann soltou uma praga indecente e encarou-me com uma expressão de ódio no semblante.
- Eu só queria ver se a senhora estava realmente fraca e alquebrada, Sra. Hellmann. Mas vejo que a senhora anda muito bem. Tem mais saúde do que muita gente.
Ela subiu de novo na cama e cobriu-se com o cobertor.
- Seu porco ordinário! - exclamou.
A campainha do telefone tilintou. "Chegou a hora", pensei. Ela pegou o fone e eu peguei também o outro fone da extensão.
- Aqui fala o escrivão Charles Libellé. É Madame Hellmann quem está ao aparelho?
- Sim.. - gemeu ela.
- Monsieur Lucas encontra-se aí, madame?
- Sim..
- Ele me pediu para telefonar-lhe a esta hora. Fui incumbido de comunicar-lhe que ele me entregou, para custódia, uma série de fotografias, bem como uma fita gravada. Todo esse material encontra-se guardado no cofre de um banco. Em determinadas circunstâncias, com relação às quais Monsieur Lucas lhe prestará amplos esclarecimentos, terei a obrigação de, mediante compromisso formalmente assumido, entregar todo esse material depositado no cofre do banco (além do material que, nas mesmas condições, me venha a ser entregue no futuro) à imprensa internacional e à Interpol. Madame, queira aceitar os meus protestos de elevada estima e consideração.
A conversa terminou.
Hilde encarou-me com o olhar fixo.
- Como é que posso saber se quem telefonou não é seu comparsa? Como é que posso saber se o senhor não está blefando?
- É muito fácil. Telefone ao escrivão Libellé. Se não acreditar no que estou dizendo, pouco importa, porque a coisa, então, será muito mais rápida..
- O que.. o que é que mostram as fotografias?
- Mostram todos os senhores.. E os homens que prepararam aquela bomba que ocasionou a explosão do iate. Especificamente uma das fotos mostra a senhora, em pessoa, dentro da casa das máquinas do Moonglow.
- Mas estava escuro naquela cabina - disse ela, mordendo a ponta dos lábios.
- O homem que bateu as chapas tinha uma câmara de raios infravermelhos - disse eu com um sorriso amarelo nos lábios.
- Oh! - exclamou Hilde. - Então quer dizer que o senhor quer extorquir dinheiro, não é verdade?
- É verdade, Sra. Hellmann!
- Acho que isso deve interessar à polícia e à sua companhia..
- Mas é claro! - respondi-lhe. - Disso não há dúvida alguma.
Peguei o fone e comecei a discar um número.
- Que está fazendo?
- Vou telefonar ao Comissariado Central.
Com um golpe brusco ela desfez a ligação que eu simulava estar fazendo.
Nos seus olhos albino-rosados surgiu aquela mesma expressão de pânico que eu já havia visto uma vez. Aquela indescritível expressão de terror. Ela gaguejou:
- O que é que o senhor exige?
- Uma confissão sua, por escrito, Sra. Hellmann. Com todos os detalhes e a citação de todos os cúmplices.
- Ah.. mas isso eu não posso fazer!
- A senhora terá que fazer!
- Realmente, isso eu não posso fazer.
- Por que não?
- Porque não os conheço a todos.. Eu não sei quem é o pistoleiro que Kilwood e Tenedos contrataram.
- Deixe de mencioná-lo, então. Mas descreva minuciosamente todos os outros. E comece imediatamente o seu trabalho. Cada dia que passa é importante e conta muito. Exijo sua confissão até a próxima segunda-feira. Mas antes disso também quero uma outra coisa.
- O quê?
- A Global vai fazer o pagamento do seguro do Moonglow. Quinze milhões de marcos alemães. Eu quero esses quinze milhões.
Capítulo 42
- O senhor está realmente doido... O senhor deve estar louco - gaguejou Hilde Hellmann.
Levantei-me e apertei o interruptor para acender a lâmpada que iluminava o retrato de Hilde Hellmann pintado por Angela.
Fiquei meditando então como era grande o meu amor por Angela e refleti que devia fazer tudo para protegê-la, até mesmo depois da minha morte. Para mim pouco importava a maneira de protegê-la.
No retrato, Hilde parecia viva e tinha no semblante uma expressão tão horrível, que chegava a causar arrepios. Contemplei o retrato e depois lancei o olhar para a verdadeira Hilde, que nesse momento estava com a cabeça afundada no travesseiro.
- Quinze milhões!.. Onde o senhor vai guardar todo esse dinheiro? Vão perguntar-lhe onde foi que conseguiu tão enorme quantia. O senhor mesmo, caminhando com passos lentos como quem tateia no escuro, vai cair na armadilha.
- Oh, não, não há perigo - retruquei-lhe sem titubear.
- A luz! Por favor, apague essa luz.
Apertei o interruptor para apagar a luz que incidia sobre seu retrato e sentei-me novamente à beira da cama.
- Esse dinheiro irá para a Suíça, Sra. Hellmann. Para ser depositado numa conta numerada. Quinta-feira estarei em Zurique e lá esperarei receber o dinheiro.
- Mas o que está pensando? Uma quantia tão enorme assim! Como poderei arranjá-la sem chamar a atenção do pessoal?
- A senhora dispõe dos serviços de um hábil e competente procurador. Para ele será muito fácil arranjar tudo.
Quero depositar esses quinze milhões numa conta numerada, no mesmo banco onde a senhora mantém um vultoso depósito. Isso, para facilitar a operação. Não exijo absolutamente que levem esse montante em espécie para me ser entregue em Zurique. Nem tampouco quero que o Sr. Seeberg compareça pessoalmente em Zurique para tal fim.
Antes de ir à mansão de Hilde dos Brilhantes, eu havia consultado uma tabela com o horário dos aviões. Prossegui: - Na próxima quinta-feira, às dez horas da manhã, estarei esperando no Hotel Baur-au-Lac, em Zurique. Se a pessoa credenciada para entregar-me o dinheiro não comparecer até as onze e meia, a senhora poderá considerar desfeito o nosso negócio.
- Nosso trato não pode extinguir-se simplesmente por uma questão de tempo..
- Cale-se! - disse-lhe em tom enérgico. - Sim, senhora, o nosso trato ficará desfeito se o dinheiro não me for entregue no devido tempo. Sra. Hellmann, se a senhora não fizer exatamente como lhe digo, então a imprensa mundial tomará conhecimento do caso. E por mais ricos e poderosos que os senhores sejam... a senhora e os seus amigos... não mais poderão ocultar a verdade com ameaças e espalhando o terror, como vinham fazendo até agora. Alguns dos senhores irão passar o resto da vida atrás das grades, inclusive a senhora.
- Eu não irei para trás das grades. Prefiro matar-me!
- A senhora deve antes preferir pagar a quantia que exijo. Mas ainda não terminei de fazer todas as minhas exigências. Além desses quinze milhões, que considero um recurso para eventuais necessidades, quero que a senhora, a partir de agora, me pague mensalmente, até a minha morte, a quantia de quinze mil francos. A maneira como deverá ser-me efetuado esse pagamento a senhora ainda vai saber. Não admito atraso superior a dez dias. Se eu sofrer uma morte violenta ou se fizerem alguma tentativa para liquidar-me, a senhora já sabe o que vai lhe acontecer pela declaração de Libellé. Que são esses quinze milhões e essa pequena importância mensal para a senhora e para seus amigos? Poderão muito bem dividir todos esses gastos. Que podem representar esses montantes em confronto com o seu conceito, o do seu banco e da Kood? Em confronto com a sua liberdade? E além disso a senhora terá a possibilidade de continuar fazendo negócios sujos, como sempre fez até agora.
É evidente que daqui por diante seus negócios terão que ser mais sujos ainda.
- O senhor deveria morrer... Mas morrer lentamente, aos poucos... com bastante sofrimento. Deveria sofrer tanto como ninguém neste mundo sofreu ainda..
- A senhora não deve desejar-me isso, Sra. Hellmann.
- Mas se por sua culpa acontecer isso... então, felizmente, ficará tudo acabado com o senhor.
Levantei-me e disse-lhe:
- Ficarei aguardando até amanhã de tarde o seu tele fonema comunicando-me se a pessoa encarregada pela senho ra irá ou não encontrar-se comigo quintafeira às dez horas no Hotel Baur-au-Lac em Zurique. A senhora poderá telefo nar para o Majestic. Ou mandar telefonar. Diga, apenas, que "permanece a combinação do ponto de encontro".
Hilde movia nervosamente as mãos sobre o cobertor. Conservava os olhos semicerrados e respirava pesadamente.
- No tocante aos pagamentos mensais, vou lhe dizer ainda como quero que eles sejam feitos... pelo menos com relação às primeiras parcelas, antes que tudo fique acertado definitivamente. Ah, sim, acabo de me lembrar: em Zurique, desejo que a pessoa incumbida pela senhora me entregue, primeiro, somente oitocentos mil marcos, com os quais abrirei a minha conta numerada. Depois, então, teremos que nos encontrar mais uma vez. No segundo encontro deverá ser feita a transferência dos restantes catorze milhões e duzentos mil marcos da sua conta para a minha.
- Por que isso?
- Porque da primeira vez eu não estarei só e não quero que a pessoa que me acompanha tome conhecimento do montante total que vou receber. No segundo encontro eu estarei sozinho.
- Ah, a tal Delpierre! - exclamou Hilde. - O senhor estará acompanhado dessa tal Delpierre porque vai abrir uma conta conjunta e ela terá que assinar também.
- É exato. Como os senhores todos sabem, e eu já comuniquei à minha companhia, eu e ela nos amamos. Eu não quero que Madame Delpierre venha a passar necessidade, caso me aconteça algo. Esse dinheiro é destinado a ela. Mas ela não precisa saber disso agora.
- O senhor é um demônio!
- E a senhora é uma assassina. Eu perdi o meu emprego, Sra. Hellmann. E não serei mais condescendente com ninguém daqui por diante. Não se esqueça de que na próxima segunda-feira a senhora terá que me entregar a sua confissão por escrito. Se eu não a receber, não ligarei nenhuma importância ao dinheiro depositado na minha conta e entregarei todo o material à Interpol. Eu não sei por quanto tempo a senhora poderá ainda viver atrás das grades. Muitas pessoas conseguem atingir uma idade avançada na prisão. Agora vou deixá-la. Mande chamar o Sr. Seeberg e conte-lhe tudo o que conversamos. Tenho a certeza de que ele recomendará à senhora, com insistência, que aceite a minha proposta. A senhora deve entender-se, também, com os seus amigos. E eles, sem dúvida, serão da mesma opinião. Ficarei, portanto, aguardando o seu telefonema no Majestic. Fica esclarecido desde já que eu, da mesma forma, darei conhecimento público do material em meu poder se tentarem comunicar a Madame Delpierre este nosso negócio. A senhora compreendeu bem?
Ela não me respondeu.
- A senhora deve responder-me se compreendeu bem ou não.
- Sim.. compreendi. - Ela respirava com dificuldade. - Eu... eu odeio o senhor...
- Sim, sim, está bem - disse eu.
Bruscamente ela começou a gritar como se tivesse perdido a razão.
- Odeio muito o senhor.. mas não tanto quanto eu odiava o meu irmão. Não. Tanto assim, não! Ninguém neste mundo odiou tanto uma outra pessoa quanto eu odiei meu irmão. Ninguém!
Apertava o peito com ambas as mãos. Parecia estar sufocada, sentindo falta de ar.
Seeberg entrou precipitadamente no quarto.
- Santo Deus! O que foi que aconteceu? - perguntou.
- A senhora lhe explicará tudo - respondi-lhe. - Bom dia, Sra. Hellmann! Bom dia, Sr. Seeberg!
Saí do quarto. Um criado taciturno conduziu-me através da mansão até a porta da saída, em frente à qual já se encontrava aquele jipe com um baldaquino. Entrei no jipe e um outro criado, que estava sentado ao volante, fê-lo arrancar sem demora.
Como que a espreguiçar-me, encostei-me no assento traseiro. Ao passar pela estátua representando a cabeça de Jano, procurei contemplá-la mais uma vez. Um pássaro grande de plumagem colorida estava sentado sobre ela.
Capítulo 43
Eu permanecia sentado naquele banquinho na cozinha de Angela enquanto ela, postada de pé ao lado da mesa, com uma tesoura bem grande, dividia as lagostas em duas partes, cortando-as no sentido longitudinal. Os bichinhos rompiam-se com estalidos. Angela retirava cuidadosamente a carne branca da casca, colocando-a numa bacia. Ouvíamos a televisão. Não demorou muito e chegou a hora do noticiário do meio-dia. Angela fez uma salada de lagosta com maionese e tomates cortados em rodelas.
Preparamos a mesa no terraço. Na sala de estar achava-se ligado um outro aparelho de televisão. Desse modo conseguimos ouvir a parte final do noticiário enquanto saboreávamos a salada de lagosta acompanhada de torradas e bebíamos um vinho branco suave. A salada tinha um gosto excelente. Eu comi bastante e Angela também.
- Na quinta-feira tomaremos um avião para Zurique.
- Com que finalidade?
Mais uma vez preguei-lhe uma mentira:
- Há alguns anos recebi como legado uma herança. Oitocentos mil marcos. Vou depositar essa quantia numa conta numerada, a fim de evitar que Karin venha a saber da sua existência - disse eu, procurando falar de maneira tão vaga e imprecisa quanto possível. - Você sabe o que significa uma conta numerada?
- Ainda não consegui compreender o que significa isso.
"Ótimo!", pensei.
- Lá eles explicarão a você tudo direitinho. Você terá que me acompanhar porque quero que a conta seja conjunta. É preciso que você assine também e tome conhecimento do número da conta a fim de habilitar-se a retirar dinheiro em qualquer época, se me acontecer algo.
- Não diga isso, por favor!
- A gente deve pensar em tudo, Angela. Portanto, na quinta-feira cedo estaremos voando num avião da Swissair. Levaremos cinquenta minutos para chegar a Zurique. Regressaremos no mesmo dia. Você está de acordo?
- Sim. Será a primeira vez que viajaremos juntos de avião. Oh, há tanta coisa ainda que teremos que fazer juntos!..
- É verdade!
E pensar que dentro de seis meses o mais tardar minha perna deverá ser amputada! E se, por infelicidade, a minha angina pectoris se agravar? Mas é preciso que se diga que eu já estava tomando todas as providências a fim de poder viver com Angela sossegado, assegurando, na eventualidade de minha morte, que ela pudesse viver tranquilamente e sem preocupações.
- Robert, você hoje parece que está alegre e bem-disposto.
- Estou alegre realmente. Encontro-me junto de você e, enquanto não receber novas instruções de Dusseldorf, disponho de bastante tempo. E durante todo o dia poderemos fazer o que for do nosso agrado. Por exemplo, que é que você gostaria de fazer amanhã?
- Amanhã? Deixe-me ver. Amanhã é terça-feira. Nessa época, nas terças-feiras, há corridas no hipódromo de Cagnes-sur-Mer. Essas corridas são bastante atraentes. Será que poderemos ir ao hipódromo?
Capítulo 44
O hipódromo da Côte d'Azur, em Cagnes-sur-Mer, é uma construção gigantesca. Fomos até lá seguindo sempre pela rodovia principal. Policiais controlavam o tráfego no parque de estacionamento. As pessoas estavam comprimidas e se empurravam. Uns meninos gritavam oferecendo os jornais de apostas. Uma verdadeira multidão ia penetrando no hipódromo enquanto muitas pessoas ficavam paradas na frente do elevador do restaurante localizado no segundo andar e construído numa posição que confrontava com a reta de chegada. O restaurante achava-se disposto em forma de um amplo terraço. Uma porção de garçons atendia os fregueses. Também ali havia guichês de apostas, mas quem quisesse podia ficar tranquilamente sentado à mesa, esperando que se aproximasse uma das moças encarregadas de recolher as apostas e pagar os prémios. Em toda parte, naquele local fortemente iluminado, viam-se aparelhos de televisão instalados nos tetos e nas colunas. Era no vídeo de tais aparelhos que apareciam os nomes dos cavalos dos próximos páreos, bem como a relação dos respectivos números. Depois transmitiam, também, a própria corrida e mostravam o cavalo vencedor, dando conhecimento do valor do rateio.
A pista de corridas, em formato oval, ficava embaixo e achava-se iluminada por uma infinidade de lâmpadas que projetavam uma luz forte como a claridade do dia. Quando chegamos, os jóqueis estavam fazendo os cavalos trotar para aquecê-los e deixá-los preparados para a largada. Todos os animais levavam o respectivo número no lado, abaixo da sela.
Tivemos que dar uma boa gorjeta para conseguir mesa num bom lugar. Vindo de baixo, ouvíamos o barulho ocasionado pela multidão, parecendo o ruído das ondas do mar.
Bebemos champanha com o jantar. Mas Angela estava irrequieta. Eu nunca a vira desse jeito antes. Demonstrava que sabia fazer previsão sobre as corridas tão bem como qualquer assíduo frequentador do hipódromo com prática em reconhecer os bons cavalos. Disse-me que sabia quais eram os favoritos e qual era o mais interessante dos dezoito cavalos que iriam correr no primeiro páreo. Mesmo enquanto comia, não parava de consultar o jornal de corridas e a lista com o nome dos cavalos, explicando-me quais eram os seus proprietários, quais os seus jóqueis e tratadores, e de que haras provinham. Disse-me que num dos páreos ela apostava habitualmente um tiercé.
- Que é um tiercé?
- Preste atenção: esta tarde, por exemplo, haverá seis páreos diferentes. Às vezes correm doze cavalos, às vezes dezoito ou até mais. Em cada páreo você poderá escolher quantos cavalos quiser, declarando qual o vencedor ou a colocação deles, ou ambas as coisas. - Ela estava tão irrequieta como uma menina e a sua face ficava vermelha. - Esta é uma das modalidades de aposta. O tiercé, além das apostas normais, só existe num único páreo, em cada tarde. Geralmente só no quarto ou quinto páreo. Hoje excepcionalmente teremos o tiercé no primeiro páreo. Para participar do tiercé, você terá que declarar a outra moça o seu palpite, pagando-lhe o valor da aposta. O tiercé significa que você escolheu três cavalos. O bom seria que os três cavalos passassem pela baliza final na ordem exata citada por você ao fazer sua aposta. Isto é o que se chama en ordre. Nesse caso você ganhará um rateio de primeira categoria. Mas mesmo que os três não cheguem na reta final na ordem declarada, você terá direito a um rateio de segunda categoria que, às vezes, também rende bastante. Mademoiselle!
Uma das mocinhas se aproximou e Angela pediu que ela lhe arranjasse um binóculo. No hipódromo normalmente alugavam-se binóculos.
- Coma um pouquinho mais, Angela - disse eu.
- Agora não posso. Estou muito afobada. É ridículo, não é verdade? Mas sempre fico assim quando assisto às corridas de cavalos. Esta também é uma coisa que estamos fazendo juntos pela primeira vez: assistir a uma corrida no hipódromo.
Ela colocou sua mão sobre a minha. A moça trouxe-lhe o binóculo. Angela colocou os óculos que usava para dirigir o carro e fez uma aposta registrando oito números de cavalos do primeiro páreo, de dois mil e duzentos metros, o qual, conforme li, se denominava Prix du Mont-Agel. Angela ficou com a primeira via do recibo como comprovante, tendo a segunda via ficado com a moça que recebia as apostas.
- E você? - perguntou-me Angela.
- Eu não tenho a mínima noção..
- Você nunca assistiu a corridas?
- Nunca.
- Então ainda é virgem no assunto! Por isso você deve ganhar. Depressa, mencione alguns números que lhe derem na cabeça ou os nomes dos cavalos que mais lhe agradam!
Examinei a lista e gostei mais dos nomes Milopea, Bril-lant-Chef, Chant d'Arôme, Ardent Amour, Élan d'Or, Cou-rageux, Pierre Puré e Linda Bell.
Correspondiam a esses animais os números 3, 4, 6, 8, 10, 11, 13 e 14, respectivamente. Para o tiercé apostei com uma outra moça os números 10, 3 e 13, colocados nessa mesma ordem. A aposta mínima era de dez francos. Como é natural, podia-se apostar mais, e foi o que fizemos.
Nesse meio tempo apareceram na pista, todos reunidos, os dezoito cavalos montados pelos respectivos jóqueis. Uma voz masculina que saía de diversos alto-falantes anunciava que estava se aproximando o momento da largada do primeiro páreo. Pela televisão eu já havia presenciado diversas vezes tais corridas. Depois que os animais começaram a correr e se distanciaram um pouco, fizeram com que a iluminação do restaurante se tornasse bem fraca a fim de permitir melhor visão da pista. Apalpei o pé esquerdo, que começara a doer. Angela levantou-se de um salto e começou a gritar bem alto, numa torcida doida, citando os números nos quais ela havia apostado:
- Corre, 3! Mais depressa, 10! Cuidado, 14! Três! Três! Dez! Dez! Treze! Treze! Treze!...
Ela não chamava a atenção de ninguém porque quase todos os que estavam no restaurante se comportavam da mesma maneira. A maior parte das pessoas que se encontravam perto de nós eram homens. Lá de baixo chegava até nós a gritaria da multidão. Os jóqueis faziam todo o possível para incitar os animais que montavam. Muitos gritos de exclamação eram até bem cômicos.
Passei a refletir nesse instante que, mesmo tendo só uma perna, eu poderia frequentar os hipódromos com Angela, já que ela adorava as corridas de cavalos. Tal pensamento trouxe-me uma certa calma. Os animais já haviam passado por nós uma vez e agora, depois de terem contornado a extremidade oval da pista, dobravam para enveredar de novo pela reta.
Quando os primeiros cavalos atingiram a baliza de chegada, explodiu um terrível berreiro da multidão lá embaixo. Até dentro do restaurante todos, inclusive Angela, portavam-se como loucos.
- O 3,o l0 e o 13! Eu apostei neles! Foi com eles que eu fiz o meu tiercé. Exatamente nessa ordem! - gritou Angela.
- Eu também apostei neles - disse eu. - Só que não fiz o meu tiercé exatamente nessa ordem.
- Não é magnífico? - Ela se pendurou no meu pescoço e me beijou. - Você tinha que ganhar porque é virgem neste assunto. Entretanto, o que há de mais grandioso nisso tudo é que ambos ganhamos...
Ainda dominada pela excitação ela sentou-se e tomou um gole de champanha. Nas diversas telas dos aparelhos de televisão surgiram os resultados. Acenderam novamente todas as luzes do restaurante. As moças se movimentavam de mesa em mesa. Angela, ao receber o seu rateio, ficou muito orgulhosa. Ambos, de maneira um tanto excêntrica, havíamos apostado em cavalos considerados ruins e por isso a cota que nos coube no rateio foi bastante elevada. Cada um de nós recebeu cerca de cinco mil francos. Com o seu tiercé Angela recebeu doze mil e quinhentos francos e eu, com o meu, seis mil duzentos e cinquenta francos.
- Que tal você achou? - perguntou-me Angela, enquanto a moça me pagava e eu lhe dava uma gorjeta. - Você achou ruim? Puuuu! Como está calor aqui! Há ainda um pouco de champanha na garrafa?
A garrafa estava vazia. Fiz sinal para o garçom.
Angela começou a fazer logo a sua aposta para o Prix du Mont-Perdu, que era o segundo páreo, de dois mil e cem metros, no qual tomariam parte vinte animais.
Entre uma corrida e outra havia sempre um intervalo de cerca de meia hora. Uma espécie de gigantesco trator munido de cilindros que rolavam sobre o chão varria as pistas em pouco tempo, deixando-as lisas de novo. Sobre o hipódromo, a essa hora, o céu apresentava-se recamado de estrelas. O garçom, ao qual eu havia acenado, aproximou-se da nossa mesa trazendo dentro de um pequeno balde outra garrafa de champanha, colocada no meio de pedrinhas de gelo.
Nos fundos do hipódromo ficava o mar. Ele estava calmo. O reflexo da lua que nele se espelhava prateava a água.
Capítulo 45
No segundo páreo não ganhamos nada. Nem no terceiro. No quarto páreo ganhei dois mil francos. No intervalo do quarto para o quinto páreo, entraram inopinadamente no restaurante Pasquale e Claude Trabaud, que se dirigiram logo à nossa mesa. As mulheres se abraçaram e se beijaram. Os Trabaud perguntaram se podiam ficar conosco e nós os convidamos para que se sentassem.
- Telefonamos para você, Angela, mas ninguém atendeu. Então ocorreu-me que você me havia dito que viria para cá a fim de assistir às corridas - disse Pasquale.
- É verdade. Aconteceu alguma coisa?
Os Trabaud davam a impressão de estar oprimidos com algo que os atormentava.
- Pois fale de uma vez! - disse Angela a Pasquale.
- Já faz algum tempo que isso está se propalando, mas só hoje é que ficamos sabendo - respondeu Pasquale.
A moça com o seu tabuleiro aproximou-se da mesa, mas Angela delicadamente fez sinal para que ela se retirasse.
- Ficaram sabendo do quê? - insistiu Angela.
- É uma história nada agradável. Parece que essa conversa toda partiu de Bianca Fabiani. Mas agora é muito difícil averiguar isso. Esse fato já constitui o comentário obrigatório em todas as rodas da assim chamada "alta sociedade" de Cannes.
- A que se refere esse comentário? - perguntei.
- A vocês dois. Ao seu amor. Às suas relações. Seja lá quem for que se dispôs a espalhar essa conversa, não passa de um tipo infame e baixo. Nas rodas da alta sociedade, eles comentam que você é casado na Alemanha, que abandonou sua pobre mulher, deixando-a no desamparo, que descaradamente passeia por toda Cannes em companhia de Angela, que chegou até a comprar-lhe uma aliança e agora está morando com ela. Alegam, também, que você veio para cá incumbido por uma organização respeitável a fim de efetuar sindicâncias ouvindo pessoas da mesma forma altamente respeitáveis, circunstância essa que para tais pessoas constitui uma escandalosa afronta... e...xiiiii! ...tantas coisas mais...
A voz no alto-falante soou de novo e apagaram-se as luzes no restaurante. O quinto páreo havia começado. Acho que em nossa mesa ninguém, a não ser eu próprio, notou isso. Eu tinha a possibilidade de observar com calma tudo em nosso redor porque me encontrava com o espírito prevenido para enfrentar uma situação dessas, há muito esperada. Mas Angela dava a impressão de ter ficado muito perturbada e nervosa.
- Mas quem iria se dispor a praticar um ato de maldade tão ignóbil? Quem, nesta cidade, poderia ser tão infame assim? - perguntou ela, aflita.
- Qualquer um - respondeu Claude. - Até mesmo todas as pessoas. Elas só encontram prazer e satisfação quando presenciam um escândalo. Você bem sabe que terrível foco de escândalos Cannes realmente é e como aqui os escândalos são sempre esperados com ansiedade, Angela. Por isso devemos encarar o assunto com seriedade. Já comentam até que ninguém mais quer se dar com vocês. Não são muitos os que conhecem Robert. Mas a sua vida eles podem estragar, Angela. Eles acham que você tem grandes possibilidades de ganho com a pintura aqui em Cannes porque é benquista pela nossa high society.
- Bem.. isso é verdade - confirmou Angela. - Mas por que as criaturas têm que ser assim, Claude? Por que invejam a felicidade dos outros? Por que será que se comprazem em espalhar maledicências? Robert, na verdade, abandonou a mulher, mas ele já pediu o divórcio e...
- Isso não interessa a ninguém. Propalar escândalos é o que eles querem - interrompeu Pasquale.
- É evidente que todas as pessoas cujos calos você pisa com a sua superioridade têm um especial interesse em fazer com que você seja considerada indesejável - disse Claude.
"E eles já conseguiram isso", pensei com os meus botões.. "E no entanto eu os tenho a todos seguros na minha mão.."
- Isso é evidente, Claude - disse eu.
Já havia terminado o quinto páreo. Angela não se dava conta de nada, absolutamente. Estava apavorada. Ela também não tomou conhecimento do sexto nem do sétimo páreos. Só ficava conversando acaloradamente com os Trabaud sobre as consequências que poderiam ter na sua vida um boicote total da sociedade, e eles pareciam estar levando muito a sério tal fato.
Pasquale e eu refletimos muito sobre uma coisa - prosseguiu Claude Trabaud. - Se o que pensamos der resultado (e terá que dar resultado indubitavelmente), então taparemos a boca de toda essa gente e vocês terão a sua paz de espírito sem que Angela precise ter receio de ficar sem trabalho.
E eu mais uma vez pensei com os meus botões: "Mesmo que não tiver sorte com o seu trabalho, ela, durante todo o resto da sua vida, não precisará pintar um único retrato sequer e poderá mandar às favas as encomendas". Depois, entretanto, refleti que ela gostava demasiadamente da sua arte, a pintura, e eu não deveria de forma alguma proibir-lhe o exercício da sua profissão.
Pasquale demonstrava o seu plano falando acaloradamente, enquanto a luz se apagava de novo no restaurante e o último páreo já começava.
- Como você sabe, Angela, no dia 4 de julho teremos o maior baile de gala do ano no Palm-Beach.
Angela dirigiu-se a mim, explicando:
- Para esse baile de gala sempre vêm a Cannes porta-aviões americanos. Comparecem a ele as pessoas mais importantes, mais famosas e mais ricas da cidade a fim de festejarem o dia da independência americana. É a oportunidade para uma das maiores festas.
- Compreendi - disse eu, e passei a observar, lá embaixo, os cavalos que já contornavam a extremidade da pista, os diversos aparelhos de televisão e as silhuetas das pessoas que, à nossa frente, haviam saltado das suas cadeiras. Eu ouvia uma enorme confusão de vozes, ao mesmo tempo que também feriam os meus ouvidos as palavras de Pasquale, que dizia:
- E nós podemos fazer isso não pelo fato de sermos ricos. Ou talvez seja por isso mesmo que podemos fazer. Claude bem que pode fazer algo. Ele, durante toda a vida, sempre trabalhou sem descanso...
- Durante toda a minha vida só tive felicidades - interrompeu Claude.
- Sim, sim, e daí? - insistiu Angela, revelando ansiedade.
- Nós recebemos um convite para ocuparmos uma mesa bem na frente, em lugar de honra - prosseguiu Pasquale. - Como sempre acontece todos os anos. Exatamente no local onde ficam sentados os políticos de maior evidência, as elevadas patentes militares, os aristocratas, enfim, todo esse refugo de alto coturno, como você bem sabe, Angela.
- Sim, eu sei - respondeu ela.
- Pois bem, a nossa mesa tem quatro lugares. Poderemos levar conosco mais dois convidados. Então tivemos a ideia de convidar você e Robert para, com grande ostentação, nos apresentarmos os quatro juntos nesse baile. Não é por vaidade nem por pedantismo ou soberba, você me compreende, não é, Angela? Também não é por vaidade que sempre digo que Claude tem um nome de projeção em toda a França. Bem... como ia dizendo, se comparecermos os quatro, deixando-nos fotografar e fazendo com que todo o mundo nos veja dançar juntos, estou certa de que esse falatório terminará de uma vez por todas. Disso não tenho dúvidas.
A dor no meu pé começou a aumentar. Ocultamente engoli dois comprimidos e comecei a refletir que eu estava caminhando claudicante sobre um perigoso montão de musgos num pântano, depois da resolução por mim tomada..
- Angela procurará preparar-se do melhor modo possível, para ficar bem bonita - disse Pasquale. - Estou certa de que ela será a mais bela mulher do baile. Gostariam de aceitar nosso convite?
- Ora, como não! E com os nossos mais sinceros agradecimentos! Vocês são realmente nossos amigos. Só temos que agradecer do fundo do nosso coração, não é verdade, Robert?
- Sim, agradecemos muito a gentileza de vocês.
- Essa tal Bianca e toda aquela gentalha vão se arrebentar de raiva! - disse Pasquale.
- Pelo contrário - interrompeu Claude -, toda aquela cambada procurará imediatamente demonstrar a Angela e a Robert a mais requintada consideração. Aprenda comigo a conhecer as pessoas!
Ele levantou os olhos. As luzes se acenderam de novo no restaurante, que ficou intensamente iluminado.
- Parece que as corridas já terminaram - disse Claude.
Em torno de nós, os frequentadores iam deixando as suas mesas. As lâmpadas a gás que iluminavam o hipódromo já se encontravam apagadas. Claude disse:
- Vamos tomar mais uma garrafa de champanha. É quase impossível sairmos agora com os nossos carros. Devía-mos ter saído antes de terminar o último páreo.
Bebemos, portanto, mais uma garrafa de champanha. Pasquale e Angela começaram a falar baixinho sobre os vestidos que deveriam usar no baile de gala do Independence Day. Eu e Claude passamos a conversar um pouco sobre Hellmann. Ele deixava transparecer a sua descrença com relação aos fatos e circunstâncias. Deve ter tido a impressão de que estava por acontecer algo comigo. Finalmente, procuramos desviar o assunto e enveredamos nossa conversa para outro rumo, passando a falar das pessoas em geral. Lembro-me ainda de uma frase que Claude citou: "Sabe, Robert, à medida que vou ficando mais velho mais se enraíza em mim a convicção de que não se deve julgar os homens pelas suas ações, mas sim pelos motivos preponderantes que os levam a praticar essas ações".
Deixamos o restaurante quando ele se encontrava praticamente vazio. O grosso da multidão já havia ido embora. Caminhamos até o parque de estacionamento pisando num verdadeiro tapete de papéis, formado pelos milhares de jornais de corridas que haviam sido lançados fora.
Capítulo 46
Eu e Angela nos hospedamos no Baur-au-Lac só por um dia. Deram-nos dois quartos bem sossegados, de frente para o canal. Eram quartos um tanto escuros, mas não tínhamos a intenção de permanecer muito tempo no hotel. Na noite de terça-feira, depois de termos assistido às corridas em Cagnes-sur-Mer, voltamos para o apartamento de Angela e de lá telefonei ao Majestic perguntando se havia algum recado para mim.
- Sim, monsieur. Um senhor telefonou e mandou dizer-lhe que permanece a combinação do ponto de encontro.
Era exatamente essa a expressão combinada com Hilde dos Brilhantes para ser citada ao telefone, na hipótese de que concordasse com minha exigência.
Pontualmente às onze e meia tilintou a campainha do telefone do meu quarto no Baur-au-Lac.
- Sr. Lucas, um senhor de nome Lichtenstein está aqui. Ele disse que havia marcado este encontro com o senhor.
- Por favor, diga-lhe que nos dirigiremos imediatamente ao hall.
Angela vestia um costume branco de fios de estame e uma blusa com um grande laço nas cores amarela e ametista. O casaco era forrado com um tecido nas mesmas cores da blusa.
Lichtenstein era um jovem de semblante muito sério e que parecia ser refratário a qualquer tipo de emoções. Mostrou-me uma carta assinada pelo Procurador-Geral Seeberg, apresentando-o como a pessoa autorizada para realizar a transação que havíamos combinado.
Lichtenstein disse-me:
- Teremos que ir ao Schweizer Merkurbank. Fica na Bahnhofstrasse. É melhor irmos a pé mesmo.
Em Zurique brilhava um sol esplendoroso e fazia muito calor.
Lá no Schweizer Merkurbank subimos de elevador até o quarto andar. Ali, todas as paredes estavam forradas de mogno e grossos tapetes cobriam o soalho. Um empregado pediu que esperássemos um pouco. Saiu e entrou num gabinete de onde voltou sem demora, acompanhado de um senhor mais idoso, corpulento e bastante simpático, que se apresentou como sendo o diretor, Sr. Rüth.
Ruth conduziu-nos diretamente ao seu luxuoso gabinete, onde nos sentamos todos.
Litchtenstein entregou a Rüth diversos papéis. Ambos falavam baixinho um com o outro.
- Quem é esse tal Lichtenstein? - perguntou-me Angela, também em voz baixa.
- É um representante do meu banco em Dússeldorf, onde se acha depositada a minha herança. Pedi-lhe que viesse até aqui. Seria mais difícil passar na fronteira com oitocentos mil marcos, você entende? Desse modo, de banco para banco, torna-se muito mais fácil a transferência. Além disso, a abertura de uma conta numerada seria bastante dificultada de outra maneira.
- Entendo - disse Angela, e agradeci aos céus por ela não ter continuado a formular perguntas. Rüth levantou os olhos.
- Tudo em ordem. O Sr. Lichtenstein terá que nos deixar agora. Ele ainda tem que tratar de outros
assuntos. E, para o resto do negócio, não precisamos mais dele - concluiu Rüth, soltando uma risadinha: - Ah, ah, ah!
- Ah, ah, ah! - emendei, já levantando-me para apertar a mão de Lichtenstein, ao qual me dirigi falando entre dentes: - Às duas horas, em frente do banco com o resto do dinheiro!
Sempre conservando o semblante sério, demonstrou, com um movimento de cabeça, ter compreendido as minhas palavras. Um tanto embaraçado, beijou a mão de Angela e desapareceu. Sentamo-nos de novo, eu e Rüth.
O diretor apertou uma campainha e um jovem entrou no seu gabinete. Rüth entregou-lhe os papéis deixados por Lichtenstein, falando com ele também em voz baixa. Em seguida o jovem saiu do gabinete.
- Bem... então os senhores desejam abrir uma conta numerada em nosso banco, não é?
- Sim - respondi.
- Posso ver o passaporte dos senhores?
Mostramos-lhe os passaportes.
- É apenas para comprovar a identidade dos senhores - disse-nos, devolvendo-nos os documentos. - Ninguém, a não ser nós próprios, jamais ficará sabendo o que conversamos aqui hoje.
Retirou da gaveta um formulário com diversas vias, colocou papel carbono em todas elas e começou a escrever com uma caneta esferográfica.
- São entregues hoje oitocentos mil marcos. Esse montante corresponde a - calculou rapidamente a respectiva conversão à taxa do dia - 949 360 francos suíços. Já depositei a importância. Depois os senhores farão a fineza de dirigir-se ao gabinete do jovem que esteve aqui, onde ele autenticará essa quantia a máquina, certificando, desse modo, a sua contabilização. Também compreendi perfeitamente que o senhor, Sr. Lucas, e a senhora, Madame Delpierre, desejam abrir uma conta conjunta, sobre a qual poderão sacar juntos ou isoladamente. Isso significa que cada um dos senhores, em qualquer época, pode comparecer aqui e retirar a quantia que quiser. Da mesma forma, qualquer um dos senhores poderá depositar o montante que desejar. Está certo?
- É exatamente isso o que desejamos - confirmei.
- O endereço dos senhores, por favor.
Dei-lhe o endereço de Angela em Cannes.
- Telefone? Não que tencionemos telefonar-lhes com frequência. Mas pode dar-se o caso de aparecer alguém aqui, fazendo menção do número da sua conta ou de ser adulterada qualquer uma das suas assinaturas. Nesse caso teremos que consultar os senhores. A não ser em caso de necessidade, não telefonaremos nunca.
Angela deu-lhe o número do seu telefone.
- Além do mais - prosseguiu Rüth -, para todos os efeitos, esse negócio processou-se como se nunca nos tivéssemos visto e os senhores jamais ouvirão qualquer comentário da nossa parte. Quando quiserem dinheiro, basta vir aqui e retirar o montante que desejarem. Não há nada de imposto, nada com a polícia e ninguém neste mundo ficará sabendo da existência dessa conta. Agora, por favor, Sr. Lucas, assine aqui: depois a senhora, madame.
Assinamos. O diretor também assinou, para autenticar o papel. Com isso ficou tudo pronto. Rüth, então, conduziu-nos ao gabinete do seu secretário, que ficava ao lado do seu, e pediu-nos que esperássemos um momento. Expressou-nos a sua satisfação por contar-nos entre os clientes do seu banco. No gabinete do secretário não havia ninguém.
- Agora somos gente rica! - exclamou Angela.
- É verdade, meu coração.
"E se você realmente soubesse quão grande é a nossa riqueza!", pensei comigo mesmo.
- Eu jamais tocarei num centavo desse dinheiro - disse ela.
- Se me acontecer algo, você forçosamente terá que tocar no dinheiro, pois nesse caso ele pertencerá a você.
- Por favor, não diga isso! Não fale assim, Robert!
O jovem secretário apareceu e pegou o formulário que nos havia sido entregue por Rüth. Saiu mais uma vez, voltando alguns minutos depois com o registro do depósito, cuja contabilização, desse modo, ficara comprovada. A conta identificava-se por uma letra do alfabeto seguida de um número bem grande.
Agradecemos ao secretário de Ruth e nos retiramos do banco.
No Baur-au-Lac comemos lagostas. Então pedi a Angela que comprasse, para ela, numa das lojas da Bahnhofstrasse, alguma coisa bem linda que fosse do seu agrado. Dei-lhe dinheiro e separamo-nos. Às duas horas da tarde em ponto, eu estava diante do portal do Schweizer Merkurbank.
Passados dois segundos das duas horas, chegou também Lichtenstein, sempre com o semblante impassível. Subimos ao quarto andar e procuramos mais uma vez falar com o Sr. Rüth. Lichtenstein trazia novos papéis e documentos. Obviamente Seeberg já havia comunicado a Rüth a transação. Mas, mesmo assim, ele ficou falando ao telefone durante bastante tempo antes de nos atender. E só poderia ter sido para comunicar-se com Seeberg. Finalmente ele se acalmou e mandou entrar o seu secretário. Repetiu-se a mesma tramitação da manhã desse dia. Levou cerca de vinte minutos para ficar tudo pronto. Depois de decorridos esses vinte minutos, foi-me entregue um novo papel devidamente autenticado, confirmando a contabilização de mais uma quantia creditada na minha conta numerada. Tratava-se do depósito da importância de catorze milhões e duzentos mil marcos alemães, que correspondia a 16 851 140 francos suíços.
Enfiei os talões do depósito num envelope grande que o secretário de Rüth passara às minhas mãos. Ele próprio lacrou e autenticou esse envelope, que me foi entregue logo em seguida.
Eu e Lichtenstein saímos do banco juntos. Diante do portal ele inclinou-se um pouquinho e foi andando sem pronunciar mais palavra alguma.
Voltei a pé ao Baur-au-Lac. Ali, fui sentar-me no terraço, onde tomei chá e fiquei esperando Angela. Ela chegou lá pelas quatro e meia e disse-me que só em Cannes iria mostrar-me o que havia comprado.
Às cinco e meia tomamos o avião de volta. O Mercedes de Angela encontrava-se no estacionamento em frente ao aeroporto de Nice. Angela também tinha um cofre no Palm-Beach, o cassino de verão. O número desse cofre era 13. Disse-lhe:
- Devemos dar uma chegadinha no Palm-Beach. Você irá guardar no seu cofre este envelope com o certificado da nossa conta numerada. Lá ele ficará guardado com segurança.
E, na verdade, naquele cofre seria mais fácil para Angela apanhar tal documento se me acontecesse algo.
Dirigimo-nos, portanto, ao Palm-Beach, que se encontrava aberto desde as cinco horas da tarde. A essa hora havia jogo somente em duas mesas. Levando o envelope lacrado e autenticado, Angela desapareceu, entrando numa saleta que ficava nos fundos dos guichês de troca de fichas. Ela voltou logo em seguida. Dessa vez não fizemos nenhum jogo. Voltamos para casa imediatamente. No apartamento de Angela tiramos a roupa, tomamos um bom banho e vestimos nossos roupões. Depois fomos nos sentar no terraço no meio daquele mar de flores.
- Finalmente, chegou o momento de mostrar-me o que foi que comprou para você.
Ela saiu correndo para buscar o pacotinho.
Sentei-me no balanço, onde fiquei balançando-me devagarinho de um lado para o outro.
Como eu estava satisfeito com os quinze milhões de marcos alemães, que correspondiam a 17 800 500 francos suíços! Era sem dúvida uma quantia vultosa.
Angela voltou para perto de mim. Segurava na mão um pequeno estojo com revestimento azul.
- É para você! - disse ela.
- Como para mim? Eu disse que comprasse algo para você mesma.
- Ah, sabe, Robert, para mim não encontrei nada que me agradasse. Abra agora o estojinho.
Abri-o. Dentro havia um par de abotoaduras de platina cravejada de diminutos brilhantes.
- Com as minhas melhores e mais cordiais felicitações! - exclamou Angela.
Capítulo 47
- É verdade - disse eu -, a Global vai pagar o seguro do Moonglow. Na verdade ela não deveria pagá-lo, pois o caso não ficou ainda esclarecido. Entretanto, com essa gentileza da nossa companhia de seguros, esperamos novas revelações, que deverão surgir com o desenrolar dos acontecimentos.
Conversávamos no gabinete de Lacrosse, no Comissariado Central, onde se efetuava uma das reuniões que Gaston Tilmant convocava com frequência. Além de mim, encontravam-se presentes também Roussel, Lacrosse e Kessler, o funcionário de serviço de repressão à sonegação de impostos de Bonn.
Lacrosse comentou com um tom de amargura na voz:
- Ainda mais essa! A companhia vai pagar o valor do seguro. Inegavelmente eu escolhi a profissão errada: assassino é o que eu deveria ser.
Notei que Tilmant me encarava de viés, com o semblante sério. E prossegui:
- É evidente que minha companhia poderá exigir a devolução da soma paga se ficar comprovado que de fato houve suicídio. Minha empresa espera que com tal procedimento os cúmplices agora fiquem sossegados e tenham a impressão de que, pelo menos no que lhes diz respeito, o caso está encerrado. Não era esse também o objetivo que o senhor tinha em mira, Monsieur Tilmant?
O homem de olhos tão amáveis e de semblante triste fitou-me calado durante um certo tempo. Depois, disse:
- É claro que esse seria um aspecto pelo qual se poderia encarar o caso. Contudo, haveria outro caminho a seguir. Só que esse caminho não seria viável para a Global, o senhor não acha?
- Não, não seria viável - respondi prontamente. - Acontece que agora resolvemos pôr em prática uma nova estratégia.
Eu mentia, tendo a inabalável convicção de que a Global, em hipótese alguma, iria propalar o escândalo que - segundo ela - eu lhe havia ocasionado aqui e que servira de pretexto para aposentar-me. Continuei:
- A Global vai até desobrigar-me de continuar investigando o caso, o senhor compreende? Para ela, trata-se de assunto encerrado. Pelo menos assim deve parecer. Se ainda permaneço nesta cidade é porque estou de férias. Isso é o que terei de dizer se alguém me perguntar. Mas acho que ninguém me perguntará nada. No entanto, é óbvio que não me encontro aqui em gozo de férias. Procedendo dessa maneira, poderei esquivar-me das perguntas indiscretas e acalmarei os elementos envolvidos no caso como cúmplices. E não é precisamente isso que o senhor considera o fato mais importante, Monsieur Tilmant?
Ele fitou-me novamente de viés, balançando a cabeça.
Ocorreu-me, também, que poderia explicar a Angela essa nova "estratégia" como pretexto até que meu assunto com Hilde Hellmann ficasse completamente resolvido. Depois, então, poderia dizer-lhe que a Global considerou o caso encerrado, tendo-me desobrigado de prosseguir com as investigações. Só mais tarde diria a Angela que a Global, por causa das nossas relações amorosas, me havia aposentado, tendo pago, todavia, uma indenização bem elevada. Desse modo poderia ficar sempre em casa junto dela. E isso era o que ela mais queria... E teríamos dinheiro de sobra...
Kessler começou a falar:
- Quanto a mim, nem a força de dez cavalos conseguirá arrancar-me da porcaria desse caso. Vou ficar na dança até o fim... Até que possa fazer algo.
Ele falou expressando-se com ardor. Lacrosse e Roussel concordaram com ele.
Quando todos já íamos saindo, depois de terminada a reunião, Gaston Tilmant alcançou-me na porta e disse:
- Não acho que a sua companhia venha a ter bons resultados com tal procedimento.
Cheguei a assustar-me.
- Por que não? - perguntei.
- Os cidadãos componentes desse grupo sentem-se tão seguros, que já começaram a fazer de novo as suas chicanas contra a empresa de Abel e Clermont. E dessa vez estão agindo com maior ímpeto, criando toda sorte de obstáculos. Eles se consideram como deuses e se julgam intocáveis. Acham que ninguém poderá compeli-los a comparecer diante de um tribunal.
- Contudo, mais dia menos dia, eles terão que enfrentar a justiça - disse eu, mas sem acreditar nas minhas próprias palavras.
- Nunca! - retrucou Gaston Tilmant com a sua voz cansada. - O que o senhor afirma não faz sentido. O dia em que essa gente será levada perante um tribunal... nunca chegará. Eu já percebi isso.
Ele falava de um modo tão desconexo, que parecia uma criança.
- O nosso mundo é mau, Monsieur Lucas. E permanecerá sempre mau.
Capítulo 48
No dia seguinte eu e Angela fomos à feira denominada Marché Forville, que se realizava todas as manhãs. Ali se podiam comprar por preço mais baixo diversas espécies de verduras e hortaliças, bem como carne e outros comestíveis. Havia, também, no mesmo local, um mercado de flores. Em nenhuma parte do mundo eu vira tantas flores. Era uma coisa estupenda. Mal podia acreditar no que meus olhos viam ao contemplar aquela infinidade de tipos variados e de estonteante beleza. Eu e Angela compramos comestíveis e plantas para o seu terraço. Colocamos nossas compras no carro e rumamos para Vallauris, onde compramos vasos comuns com terra para colocar as plantinhas, bem como vasos do tipo Ali-Babá, com a forma de botija. Dali, então, fomos direta-mente para casa e tratamos de plantar logo os arbustos
ornamentais que havíamos comprado.
Com esse trabalho nos sujamos bastante. Tomamos um banho juntos e depois fizemos amor. Em seguida pegamos no sono. Quando despertamos, já eram cinco horas da tarde. Vestimo-nos e nos dirigimos ao nosso cantinho lá no terraço do Majestic, onde ficamos bebendo champanha. O tal cantinho, agora, ficava sempre reservado para nós. Ali sentados, de mãos dadas, contemplávamos o mar. Lá longe achavam-se ancorados dois gigantescos porta-aviões americanos e a cidade estava cheia de marinheiros americanos com os seus uniformes brancos. As prostitutas faziam o trottoir. Contei a Angela que a minha companhia tomara em consideração a exigência de Nicole Monnier e dos seus amigos, tendo resolvido despender bastante dinheiro na compra das suas informações, muito embora, ao que tudo indicava, o valor do seguro devesse ser pago logo a Hilde Hellmann. Muito em breve eu estaria em condições de dizer-lhe, também, qual a quantia que havia recebido para pagar esses informantes, detalhando-lhe a maneira e o local do pagamento.
Dali resolvemos voltar ao apartamento. Fomos seguindo através da Rue du Canada. Por ali fervilhavam os marinheiros americanos, misturados às meretrizes. Ocorreu-me, então, que aquela prostituta de nome Jessey tinha, agora, a sua tão almejada possibilidade de fazer grandes negócios. Era sábado, dia 1º de julho. Nem mesmo no terraço de Angela soprava alguma brisa. Permanecemos lá fora até de madrugada, contando nossas vidas um para o outro. O tempo, entretanto, não deu para contar tudo e uma boa porção de coisas ficou para outra oportunidade. Aliás, juntos iríamos ter muitas experiências da vida, pensei comigo mesmo. Depois comecei a pensar, também, na amputação da minha perna. E, como era óbvio, no que poderia resultar disso...
Capítulo 49
Na manhã do dia seguinte bem cedo chegaram dois caixotes contendo os meus pertences, trazidos pela empresa de mudanças. As minhas coisas empacotadas foram levadas para o apartamento de Angela. O transporte foi feito com rapidez surpreendente. Os próprios empregados da empresa esvaziaram os caixotes, receberam a gorjeta e foram embora.
Angela estava nervosa. Procuramos arrumar todas as coisas no armário que ficava no quarto que ela me reservara.
Ela ficou encantada com os meus elefantinhos. Na prateleira onde estava colocada sua coleção de elefantes havia lugar também para os meus.
- Seus elefantinhos devem ficar misturados com os meus - disse ela -, pois agora todos eles nos pertencem.
Formamos uma única família, nós e nossos elefantinhos.
Para os cavalinhos sicilianos ela encontrou lugar na estante de livros. Por fim ficou tudo arrumado direitinho.
Assustei-me ao notar que Angela, bruscamente, desandou a chorar.
- Que foi que houve? Angela, meu único amor, que é que você tem?
- Nada..
- Que é que você tem? Diga-me!
- Eu... eu me sinto tão feliz - respondeu ela com palavras entrecortadas de soluços. - Finalmente agora vejo que você realmente quer ficar morando comigo.
- É verdade! - respondi-lhe e, lançando meu olhar por cima dos seus ombros, passei a contemplar o mar repleto de luzes. - Finalmente vim para ficar definitivamente com você.
Capítulo 50
- A senhora mandou me chamar, Sra. Hellmann?
- Eu já preparei tudo. Está aqui mesmo - respondeu-me Hilde dos Brilhantes.
Como sempre, ela encontrava-se deitada no seu leito em estilo rococó. Nesse dia ela não usava jóias de espécie alguma. Dava a impressão de ter vivido momentos de sofrimento e de preocupações. Esse nosso encontro se dera nas primeiras horas da tarde de segunda-feira. Ela apontou-me um papel enrolado que se encontrava ao lado da sua cama.
Sentei-me e li a confissão de Hilde dos Brilhantes com muita atenção. Palavra por palavra, frase por frase. Realmente ela fizera um relato completo. Citou nomes e fez uma descrição das circunstâncias e do tempo em que os fatos se desenrolaram. Só omitiu o nome do pistoleiro profissional contratado. Na verdade, ao que me pareceu, ela não sabia quem ele era. Kilwood, um dos que o haviam contratado, já estava morto, e o outro, Sargantana, certamente se recusara a revelar o nome do tal assassino profissional.
- Satisfeito? - interrogou-me Hilde, não podendo ocultar o sentimento de ódio que a dominava.
- Sim.
- E quanto ao dinheiro que o senhor também exige em pagamentos mensais? Não quer recebê-lo agora?
- Eu ainda vou me comunicar com a senhora, para dizer-lhe como deve ser feito esse pagamento.
- Quando?
- Muito em breve, Sra. Hellmann - respondi.
Levando comigo a confissão de Hilde, dirigi-me ao gabinete do escrivão Charles Libellé. Colocamos esse documento num grande envelope, que lacramos e autenticamos, e em seguida nos dirigimos à agência da Banque Nationale de Paris, a fim de colocá-lo no cofre alugado.
Despedi-me de Libellé e segui caminhando pela cidade até chegar à Croisette. Ali, postado de pé à beira da pista do passeio, fiquei contemplando os porta-aviões americanos. Então comecei a fazer as minhas reflexões e cheguei à conclusão de que eu não era melhor do que aqueles indivíduos culpados pela morte de Hellmann. Mas, apesar disso, parecia que eu havia agido com muita lógica e que fora bem sucedido. Vi novamente aquele jovem pintor com sua exposição de quadros. Ele reconheceu-me logo e cumprimentou-me com muita atenção.
Fui falar com ele e ele me disse que eu lhe dera muita sorte. Depois daquele dia ele conseguira vender quatro quadros.
- Ótimo! - exclamei.
Ele percebeu que eu estava olhando para o mar e começou também a fazer o mesmo.
- Que porta-aviões gigantescos, não é verdade?
- É - confirmei. - São tão grandes que dão arrepios.
Capítulo 51
O Cassino Palm-Beach, ao contrário do Municipal, é uma edificação moderna que se estende num grande raio de amplitude e que possui enormes salões. Nesse cair da tarde do dia 4 de julho, a fachada do Cassino Palm-Beach achava-se feericamente iluminada pela luz de possantes refletores. Carros e mais carros subiam a rampa da entrada. A polícia havia estendido um cordão de isolamento em frente ao edifício.
Eu e Angela fomos no Rolls-Royce de Claude Trabaud. Os empregados do cassino mostravam-se muito gentis e solícitos, ajudando Pasquale e Angela a descerem do carro. Um deles levou o Rolls-Royce ao parque de estacionamento. Eu e Claude trajávamos smokings de paletós brancos. Pasquale exibia um lindo vestido lilás para soirée. Angela usava um vestido de musselina cor de limão, todo cheio de volants em forma de campânulas que se abriam facilmente. Tratava-se do vestido que ela adquirira na casa de modas Old England, em Juan-les-Pins. Pendiam das suas orelhas aqueles brincos que eu lhe havia presenteado. Usava também a aliança e mais um lindo anel no qual se achava engastado um brilhante de bom tamanho. Em torno do pescoço colocara o valioso colar de brilhantes adquirido com o seu trabalho.
A partir do ponto da rampa onde desembarcavam os convidados, haviam sido estendidos tapetes vermelhos. Caminhamos sobre eles ao nos dirigirmos ao passadiço do Palm-Beach. No lado esquerdo, formando fileira até a entrada, permaneciam de pé, imóveis, os policiais franceses, com seus uniformes azuis, perneiras, luvas e quepes brancos. No lado direito, igualmente imóveis, viam-se marinheiros americanos, com seus uniformes brancos. As luzes dos refletores ofuscavam a visão. Flashes espocavam ininterruptamente. As câmaras se movimentavam. Passamos entre as fileiras formadas por aqueles homens imóveis e, seguindo pelo interior do edifício, penetramos num amplo terraço. Ali, bem na frente do tablado, achava-se a mesa para a qual o maitre d'hôtel nos conduziu. O terraço estendia-se até o ponto de ser alcançado pela água do mar que ficava nos fundos desse tablado e refletia as luzes dos holofotes e projetores. Sobre dois andaimes de madeira achavam-se montadas diversas câmaras de televisão. Três operadores, passando entre as mesas, se deslocavam de um lado para outro com suas câmaras portáteis. Também havia no local muitos fotógrafos.
Nessa noite estava reunido ali aquilo que se podia chamar de crème de la crème da sociedade da Cote d'Azur. Ficava tonto só em pensar que, considerada minha posição, eu estava sentado num lugar errado, mas ao mesmo tempo raciocinei que era necessário para mim e para Angela ficarmos na companhia de gente famosa, muito rica, poderosa e elegante.
Angela e os Trabaud iam me explicando quem eram as pessoas presentes: os prefeitos de Cannes e de Nice, políticos do sul da França, edis de diversos departamentos, aristocratas, pintores, músicos de renome, cientistas, industriais, banqueiros e, como não podia deixar de ser, também os Tenedos, os Fabiani, os Sargantana, Seeberg e Thorwell.
Achavam-se presentes também inúmeros oficiais militares franceses e americanos de alta patente. As mulheres usavam finíssimos vestidos de gala e os homens trajavam smokings. Os oficiais apresentavam-se com vistosos uniformes de gala, ostentando todos eles as suas condecorações. O valor de todas as jóias que eu vi nesse baile atingiria sem dúvida o elevado montante de mais de cem milhões de francos.
Ao sermos conduzidos para a nossa mesa, cessou a enorme confusão de vozes que se verificava lá dentro, fazendo-se silêncio por alguns instantes. Notei, então, que muitas pessoas tinham os olhos voltados para nós. Era como se todas elas tivessem refreado a respiração por alguns momentos. Um cameraman, fazendo retroceder a sua câmara, filmou-nos. Bem sei que o que vou dizer poderá soar de maneira estúpida, parecendo inclusive um relato preconcebido. Entretanto, não há nada de preconcebido e o que eu digo reflete a pura realidade: de todas aquelas mulheres lindas que nessa noite ali estavam reunidas, Angela era a mais bela. Seus cabelos louros brilhavam. Seu semblante parecia resplandecer. A cor de limão do seu vestido fazia um contraste maravilhoso com sua pele amorenada.
Um chafariz luminoso, jorrando continuamente, iluminava duas bandeiras que se encontravam perto uma da outra: a bandeira americana e a francesa. A banda de música de um dos porta-aviões começou a executar a Marseillaise. Todos os presentes se levantaram. Depois da Marseillaise foi executado o hino nacional americano. Ouvimo-lo também de pé. Os americanos, quer em traje civil quer uniformizados, colocaram a mão direita sobre o peito. Então apareceu sobre o tablado uma orquestra. Inicialmente ela só executou melodias de operetas, mas depois fez soarem as músicas de Jazz-Evergreens. As câmaras de televisão não paravam de movimentar-se, mas os operadores conservavam continuamente nossa mesa no foco da objetiva.
- É isso mesmo que nós queremos, não é verdade? - perguntou-me Pasquale.
- É verdade. Muito obrigado, Pasquale - respondi.
Fazia muito calor naquele ambiente e não soprava nenhuma brisa, nem mesmo para agitar um pouco as bandeiras, que ficavam caídas e imóveis.
Quando começaram a nos servir o jantar, chamou-me a atenção uma dama que estava sentada numa das mesas ao lado da nossa. Ela usava luvas compridas até os cotovelos e não as tirou para iniciar a refeição. Com os dedos enfiados nas luvas ela segurava as fatias de pão com manteiga que comia enquanto esperava os pratos que iriam ser servidos. Suas luvas deviam ter sido brancas outrora, mas agora se achavam completamente desbotadas, tendo adquirido uma tonalidade cinzenta. Também o aspecto geral da mulher não era nada atraente. Pasquale percebeu a minha surpresa.
- Ocupa essas mesas somente a fina flor da aristocracia, que nós hoje aqui temos que aturar - explicou-me ela.
- Aquela ali, que despertou sua paixão, é a princesa... - Ela citou o nome.
- Mas é sempre assim que ela come?
- Sim. Parece que é um hábito corriqueiro das famílias principescas. Pelo menos, da sua família. Ela também joga roleta sem tirar essas luvas. Todas as noites.
- E ela usa sempre as mesmas luvas?
- Sempre as mesmas. Talvez por superstição.
- Seja lá como for, ela se tem por muito asseada e muito limpa - comentou Claude. - Continuamente diz às outras pessoas que é uma prática pouco higiênica tocar nas fichas com os dedos nus.
Depois do jantar subiu no tablado um conjunto de ballet para executar suas danças coreográficas. Pendentes do teto, diversos refletores começaram a projetar luzes em diversas cores. O ambiente ficava banhado sucessivamente de azul, vermelho, amarelo e verde. A estrela da noite foi anunciada nesse momento: Esther Ofarim. Ela interpretou canções americanas, francesas e israelenses, tendo sido muito aplaudida.
Depois disso o amplo tablado ficou livre para as danças.
Como primeiro par saíram Trabaud e Angela, ininterruptamente seguidos pelas câmaras de televisão e pelos olhares dos presentes. Eu, então, comecei a dançar com Pasquale. Fomos filmados enquanto dançávamos. O tablado do palco ficou cheio de pares. Havia barulho e movimento. Foi com dificuldade que conseguimos voltar à nossa mesa. Depois de Trabaud, o Procurador Seeberg saiu dançando com Angela. Foi desmanchando-se em cortesia e quase suplicante que ele a convidou para uma dança. Em seguida, também dançaram com ela Tenedos, Fabiani, Thorwell, Sargantana, o chefe de polícia de Cannes, o almirante americano e alguns oficiais.
Eu fiquei por uns momentos sentado sozinho à nossa mesa e de repente notei que à minha frente se encontrava Bianca Fabiani. Seu vestido, como sempre, deixava os seios quase totalmente à mostra.
- O senhor ainda está zangado comigo, Monsieur Lucas?
- Por quê? - perguntei, já levantando-me.
- Ora, o senhor bem sabe por quê. Eu me comportei de maneira ignóbil com o senhor. Sinto muito. Peço-lhe que me perdoe. Por favor, aceite as minhas desculpas.
- Mas é claro! O que houve já passou.
- Então quer dizer que não está mais zangado comigo?
- Nem o mínimo resquício de raiva existe em mim.
- Então, dance comigo, por favor.
Saí dançando com Bianca Fabiani, a Lido-girl de outrora. Ela comprimia o peito contra o meu. Mal podíamos nos mover no meio de tantos pares. As câmaras de televisão zumbiam e os flashes dos fotógrafos não paravam de piscar.
Em seguida Bianca levou-me para a mesa dos Tenedos e eu saí dançando com Melina Tenedos. Depois dancei com Maria Sargantana. Só depois disso foi que consegui dançar com Angela. Estava sendo executada uma valsa e eu lhe disse: - E agora temos que mostrar algo a toda essa gente.
Começamos a fazer nossos revoluteios bem agarradinhos, como se estivéssemos a sós. As objetivas de todas as câmaras de televisão ficaram apontadas para o nosso lado e os flashes piscavam ininterruptamente. De repente todos os pares recuaram um pouco e ficamos dançando sozinhos sob as duas grandes bandeiras, tendo embaixo de nós a cintilante água do mar. Logo que a valsa terminou, as pessoas que nos cercavam começaram a nos aplaudir estrondosamente. As palmas mais fortes eram as de Bianca Fabiani e de Athanasio Tenedos.
- Ao que parece, o pessoal nos perdoou..
- É verdade - respondi. - Pelo menos é o que parece.
Passei a observar com atenção toda aquela gente - os multimilionários, os poderosos, os famosos, os elegantes, e lembrei-me das palavras de Gaston Tilmant: "O nosso mundo é mau. E ele permanecerá sempre mau"...
Mal chegamos à nossa mesa, apagaram-se todos os refletores. Ao nosso redor, irromperam fogos de artifício. Tínhamos a impressão de estarmos sentados sobre a cratera de um fumegante vulcão lançando lavas incandescentes.
Os foguetes explodiam ininterruptamente e tapavam o céu, já escuro a essa hora da noite, com desenhos luminosos em todas as cores, configurando estrelas, feixes de espigas e luzentes esferas que se estilhaçavam numa infinidade de chispas luminosas. Um verdadeiro chuvisco de fagulhas caía sobre o mar, que refletia todo aquele imponente quadro pirotécnico.
Angela apertou meu braço e cochichou ao meu ouvido:
- É assim que eles fazem também na noite de Natal e na passagem do ano. Nós ainda teremos a oportunidade de presenciar juntos essa cena. Santo Deus, Robert! Eu jamais teria ousado sonhar que ainda viesse a viver momentos tão felizes e maravilhosos assim!..
Ela se curvou para o meu lado e deu-me um beijo. Ao nosso redor continuavam explodindo os fogos de artifício.
Capítulo 52
Como é natural, a maior parte dos convidados se dirigiu também aos salões de jogos, onde havia maior número de mesas do que no Municipal. Tratava-se de um cassino de verão bem montado. Angela jogou um pouco, mas perdeu. Eu não joguei. Fui sentar-me perto do comprido balcão do bar. Pedi uma taça de champanha. Em seguida, outra. Depois mais outra. Subitamente comecei a sentir-me exausto e triste. Pedi ainda mais uma taça de champanha. Percebi, então, que eu ficara um pouco embriagado, mas meu estado de abatimento melhorou. Passei a observar o movimento nas caixas e nos guichês que trocavam fichas. Nos fundos desses guichês estava uma pequena sala onde havia cofres de aço. Um deles, com o número 13, pertencia a Angela. E no cofre de Angela encontrava-se um envelope contendo os comprovantes de dois depósitos, no montante de 17 800 500 francos suíços efetuados num banco de Zurique. Achei até que essa foi uma boa lembrança que me ocorreu naquele instante para contrapor-se aos maus pensamentos que me invadiam. Por isso não parei de pensar nesse montante de dinheiro a noite toda.
Claude Trabaud aproximou-se de mim. Ele havia ganho no jogo e pretendia continuar jogando, mas estava com sede.
- Acho que tudo aconteceu como se fosse num conto de fadas - disse-me.
- Agradeço a vocês do fundo do meu coração, Claude.
- Ora, pare com isso. É preciso notar que os amigos de Bianca Fabiani são uma verdadeira cambada da ralé.
- Você acha? - perguntei-lhe.
Ele fitou-me franzindo a testa e sorrindo.
- Escute aqui - disse ele. - Será que vocês não gostariam de dar mais um passeio conosco no Shalimar? Pretendemos, eu e Pasquale, sair no iate depois de amanhã, e ela achou que eu deveria perguntar a vocês se não querem nos acompanhar.
- Com muito prazer! - respondi.
No mesmo instante ocorreu-me uma idéia e disse:
- Podemos ir até o Éden Roc. Convido vocês para o almoço lá.
- Ótimo! - exclamou Claude. - Bem, agora devo ir "trabalhar" de novo. Ele esvaziou o copo e se dirigiu a uma das mesas de roleta. Vi Angela, que estava sentada perto de uma outra mesa mais adiante. Ela acenou-me e eu correspondi ao seu aceno. Já eram duas horas da madrugada quando os Trabaud nos levaram para casa. Vestimos nossos roupões e fomos nos sentar no sofá em frente à grande janela.
Os porta-aviões americanos achavam-se feericamente iluminados, com um aspecto festivo. Viam-se neles uma infinidade de lâmpadas configurando uma enorme guirlanda. Contei a Angela que Claude nos convidara para darmos novamente um passeio no seu iate dali a dois dias, ou melhor, no dia seguinte, pois já passava da meia-noite.
Ela respondeu:
- Que bom! Mas o melhor mesmo foi esta magnífica noite que passamos juntos. Amanhã à noite o programa regional de televisão mostrará nossas figuras a todo o mundo. Talvez até sejamos mostrados no programa principal. Então toda essa gente ficará sabendo o que há conosco e ninguém mais falará mal de nós. Ninguém mais ousará fazer fofoca e nem dirá que eu não poderei mais encontrar trabalho aqui em
Cannes. É muito importante que ninguém diga isso, você não acha? - Ela havia bebido um pouco. - E nos jornais aparecerão nossas fotografias. Foi o que eles me disseram.
Você não acha bom?
- Muito bom!
- Você não viu como todos recuaram quando nós dançamos? Que coisa maravilhosa é dançar com você, formando um par completamente isolado, Robert!
- É maravilhoso mesmo, não é? - disse eu, mas logo invadiu-me o pensamento de que era pura sorte poder ainda contar com minhas duas pernas.
- Robert?
- Sim?
- Eu tenho que perguntar algo a você. Mas, por favor, nada de gentileza, nada de cavalheirismo. Quero que você me preste uma informação leal e sincera. Você me ama?
- Não! - respondi-lhe.
- Então está bem - disse ela. - Muito bem! Mas quero ainda outra informação sincera.
- Diga, por favor!
- Você acha que, mesmo assim, sem me amar, poderá ir para a cama comigo?
- Acho que será possível.
Então fomos para a cama e, ao lado da sonolenta Angela, que logo adormeceu, fiquei deitado com os olhos bem abertos. Eu ouvia o barulho dos trens que rodavam entre a cidade e o mar.
"Patifão - trapaceiro - patifão - trapaceiro - patifão - trapaceiro", pareciam dizer-me as rodas deslizando compassadamente sobre os trilhos.
Vejam os leitores: desde que me encontrei com aquele jovem pintor na Croisette pareceu-me lógica e consequente a atitude que tomei. Mas quando me encontrei com ele era dia e estava bem claro. Agora, entretanto, era noite e só havia escuridão. E na escuridão da noite, a coisa parece muito diferente. Oh, sim, Santo Deus, muito, muito diferente mesmo!
Patifão - Trapaceiro - Paatifão - Traapaceiro!
Capítulo 53
"Bonjour, Marcel", disse o papagaio em sua gaiola pendurada à beira do caminho coberto de saibro, o qual, partindo do ancoradouro dos barcos, se estendia até o Restaurante Eden Roc.
Meu pé doía muito. Fazia um calor horrível, quase insuportável. Estávamos nas primeiras horas da tarde do dia 6 de julho de 1972, uma quinta-feira.
Eu e Angela permanecíamos de pé diante de Marcel. Claude e Pasquale Trabaud, nesse momento, pulavam do seu iate para o barco a motor que já nos havia transportado, a mim e a Angela, e voltara para buscar os Trabaud. Naftali, o cão, ainda excitado, corria de um lado para outro sobre o convés. Não soprava nenhuma brisa. Lancei os olhos para o mar e divisei ao longe, através de uma atmosfera esfumaçada pela constante evaporação, o antigo e o novo porto de Cannes. Vislumbrei, também, as palmeiras que margeavam a Croisette, bem como o hotel todo pintado de branco, que ficava um pouco atrás. No entanto, tudo o que via parecia-me fantástico e sem contornos definidos. Era assim que se apresentava diante dos meus olhos aquela parte da cidade com os seus edifícios, valas e casas residenciais espalhados entre enormes jardins sobre a íngreme encosta que se estendia até a Super-Cannes. À direita, na parte leste de Cannes, despontava o bairro La Californie, onde Angela morava. Eu podia dizer que estava vendo a minha casa, o meu lar, pois Angela e a sua casa eram as únicas coisas que eu podia dizer que possuía neste mundo. Tudo isso e mais quinze milhões de marcos já convertidos em francos suíços.. E ainda ia receber mais dinheiro..
- Já passam três minutos das duas. O tal homem está atrasado - disse Angela.
- Mas ele virá. Tenho certeza de que dentro de alguns segundos ele estará aqui.
- O próprio Brandenburg foi quem me anunciou a vinda dele. Além disso, foi Brandenburg quem codificou, pessoalmente, em termos cifrados, as instruções que me foram transmitidas e entregou a esse homem o dinheiro para pagar meus informantes.
Essa foi a melhor versão que encontrei para dar a Angela uma explicação plausível.
No dia anterior eu havia estado mais uma vez na mansão de Hilde dos Brilhantes.
- Amanhã, quinta-feira, às duas horas da tarde, um mensageiro da sua confiança deverá levar-me a quantia correspondente à primeira parcela dos pagamentos mensais - disse à mulher de olhos albinos. - E esse mensageiro deverá levar o dinheiro ao Eden Roc, em Cap d'Antibes. Eu o estarei esperando diante da gaiola do papagaio. Exijo o montante que corresponde ao primeiro semestre: trezentos mil francos.
- Se Deus quiser, o senhor ainda vai esticar as canelas! - disse-me Hilde dos Brilhantes.
- Seguramente, cara senhora! - respondi-lhe. - Mas antes disso eu ainda terei um bocado de tempo para viver. A senhora já sabe o que acontecerá se o mensageiro, na hora marcada, não comparecer com o dinheiro no lugar designado, ou se a senhora fizer qualquer tentativa para eliminar-me, não é verdade?
Ela respondeu afirmativamente com um meneio de cabeça.
- Não basta balançar a cabeça - disse. - Quero que a senhora confirme com palavras.
Ela disse então:
- Eu sei o que acontecerá. Pode ficar sossegado, seu porco, o mensageiro chegará na hora marcada.
- Com os trezentos mil francos?
- Com os trezentos mil francos.
Nesse dia Hilde dos Brilhantes usava jóias de safira.
Eis, pois, que eu me encontrava diante da gaiola do papagaio e já passavam três minutos das duas, mas eu estava calmo. Completamente calmo. O mensageiro viria porque ele forçosamente teria que vir.
- Mas por que você tem que se encontrar com esse homem precisamente aqui, neste local? - perguntou-me Angela, que já se mostrava um tanto impaciente.
- Eu já expliquei isso a você, Angela. Depois do que nos sucedeu, queremos evitar todo e qualquer risco. Neste local, em plena luz do dia, com tantas pessoas andando por aí, pode-se excluir a possibilidade de uma tentativa de assassinato. Brandenburg quer sempre agir com segurança. E eu também.
- Esse homem vai trazer-lhe muito dinheiro?
- Sim, muito dinheiro. Meus informantes exigem muito dinheiro.
Dizendo isso, eu estava mentindo. Mas não me restava outra alternativa. Angela jamais saberia a verdade sobre esse encontro diante da gaiola de Marcel. Eu já estava decidido a dizer-lhe bem breve, talvez mesmo dentro de alguns dias, que a minha companhia resolvera pagar o valor do seguro à Hilde dos Brilhantes, tendo, portanto, me desobrigado de tratar do caso.
Mais tarde um pouco eu lhe diria, também, que a Global me concedera uma aposentadoria com bons proventos e que eu ficaria vivendo em Cannes para sempre.. Depois, então, teria que lhe falar sobre a amputação da minha perna. Não tinha ainda nenhuma idéia de como deveria agir para explicar a Angela todas essas coisas. Até agora tudo estava correndo muito bem. Eu já não era o mesmo homem de dois meses antes. Para mim pouco importava o fato de ter-me tornado semelhante àquelas outras pessoas. Absolutamente nada. Para mim uma única pessoa valia neste mundo sujo: Angela!
- Os Trabaud já vêm chegando - disse ela.
Realmente o barco, descrevendo uma grande curva, avançava na direção do ponto de atracação. Nesse instante cheguei a considerar uma felicidade ter marcado encontro com um mensageiro impontual, pois eu havia pedido a Claude Trabaud que, despistando e da maneira mais disfarçada possível, tirasse algumas fotos minhas e do mensageiro. Claude possuía uma ótima máquina fotográfica e eu queria obter um retrato do sujeito junto comigo, focando especialmente o momento da entrega do dinheiro. "Tudo sairá bem", pensei com meus botões.
Eu estava dizendo a Angela:
- Eu a adoro! Se nesse instante tivesse que morrer, seria o mais feliz..
Não pude terminar a frase. Algo, com uma violência terrível, bateu nas minhas costas, um pouco abaixo do ombro esquerdo. Precipitei-me para a frente, caindo sobre aquele chão de terra vermelha. "Foi um tiro", pensei. Mas eu não tinha ouvido nenhuma detonação de arma de fogo.
A única coisa de que tenho noção foi de ter ouvido Angela gritar desesperadamente, mas não pude entender nada do que ela dizia. Parecia-me bastante estranho o fato de não estar sentindo dor alguma. Em seguida passei a ouvir, juntamente com a voz de Angela, muitas outras vozes de pessoas apavoradas que falavam alto. Repentinamente tudo ficou escuro ao meu redor. Eu tinha a sensação de estar me precipitando rapidamente, cada vez com maior velocidade, num imenso turbilhão, num verdadeiro redemoinho. Antes de ter perdido completamente a consciência, ainda pensei: é a morte!
Era o começo da morte.
Depois disso, por diversas vezes recobrei a consciência, embora sem ficar completamente lúcido. Já dentro de um helicóptero, vi os olhos castanhos de Angela, os quais jamais esquecerei. O rotor do helicóptero fazia um barulho muito forte e Angela tinha que colocar a boca quase colada ao meu ouvido para que eu pudesse entendê-la.
Com as lágrimas escorrendo pela face desesperada, ela dizia:
- Robert, eu lhe peço.. eu lhe suplico, não morra, por favor! Você não morrerá se não quiser! Não deixe fugir o seu espírito. Você não deve morrer! Sou sua mulher e o amo imensamente, Robert! Pense em tudo o que ainda pretendemos fazer. Pense na nova vida que apenas está começando para nós. Você vai pensar na nossa nova vida, não é?
Só com grande dificuldade pude mover a cabeça um pouquinho, mas em seguida, completamente combalido, tive que fechar os olhos. Então comecei a perceber, como um caleidoscópio, uma franética avalancha de cores, vozes e vultos. Tudo parecia fluir passando por mim; as cores, os semblantes, os vultos, as vozes. E tudo o que ouvi e vi nas últimas semanas girou sobre mim. Minha mulher Karin, meu chefe Gustav Brandenburg. Os fogos de artifício no baile de gala do Independence Day, lá no Palm-Beach. Eu e Angela dançando no palco. Eu e Angela.. como nos amávamos! As flores no terraço do seu apartamento. John Kilwood enforcado no banheiro. Jessy, a prostituta da Rue du Canada. Aquela velha na farmácia em Dusseldorf. Os ricos ficando cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Como podem acontecer coisas assim? Oh, a infelicidade não vem como a chuva, mas ela é ocasionada pelas pessoas que tiram proveito dela. O beberrão John Kilwood no salão de jogos.. Assassinos!... Assassinos!.. Nós todos somos assassinos! Malcolm Thorwell jogando golfe. Hilde Hellmann na sua cama estilo rococó. Nicolai, o dono do L'Âge d'Or. A filial da Joalheria Van Cleef & Arpeis. Jean Quémard e sua mulher. A aliança! As luzes na cidade, no mar e ao longo da estrada no sopé do monte Esterel, contempladas do terraço de Angela a altas horas da noite. A caçada policial em La Bocca. Armas de fogo troando. O Irmão Ilja e sua moto transportando um cesto de verduras. A nossa igrejinha. A madona preta no seu nicho, tendo à frente as velas acesas. O Chevrolet que foi tirado do fundo do mar no antigo porto. Sentado ao volante estava Alain Danon, assassinado. Sobre uma cama, Anna Galina, a irmã-enfermeira, assassinada com um punhal cravado no peito. Três aparelhos de televisão. Noticiários ouvidos em três aparelhos. A manchinha branca nas costas da mão de Angela. Meu advogado Fontana em Dusseldorf. O Dr. Joubert do Hôpital des Broussailles...
Essas e muitas outras coisas eu via e ouvia enquanto as cores cambiavam continuamente. Lembro-me de que o helicóptero aterrissou sobre a cobertura do hospital e de que me colocaram numa padiola. Um elevador. Um corredor muito comprido. E eis que inopinadamente surge a voz de Angela recitando com clareza: "Completamente livre do selvagem apego à vida, de temores e de esperanças..."
Da padiola fui transladado para uma cama. Algo rasgou-se ringindo: a minha camisa. Algo me ofuscava a visão. Uma vidraça enorme. As luzes de uma porção de lâmpadas de intensa luminosidade atingiram-me em cheio. Pessoas com máscaras e gorros brancos na cabeça. Eles se curvavam sobre mim..
Punção com a agulha no meu braço direito. Algo apertava as minhas faces. Sibilos bem leves, quase imperceptíveis, feriram meus ouvidos. As cores! As cores! Cores tão maravilhosas assim não existem neste mundo!
A voz de Angela estava agora bem fraca: "...até o mais vagaroso rio encontra seu caminho para o mar. ."
Os sibilos vão-se tornando gradativamente mais fortes. Repentinamente fiquei sabendo do que se tratava: via o mais vagaroso e cansado de todos os rios passando serpeante através de um prado florido. Sentia um dedo leve a deslizar pelo corpo. Algo frio e áspero tocou meu peito no lado esquerdo. Inopinadamente fiquei sabendo que espécie de rio era aquele: era o Letes, do mundo subterrâneo, que separa o reino dos vivos do reino dos mortos. O rio Letes no qual a alma dos mortos bebe o esquecimento. Admirado, observei que suas margens eram também ensolaradas.
Em seguida, com grande suavidade, meu coração começou a parar. Eu percebia isso. Depois, lenta e cautelosamente, foram desaparecendo as imagens do prado florido e do rio. As rutilantes cores também foram desaparecendo. Surgiu de novo aquele turbilhão escuro. Pela última vez, então, fui lançado na voragem desse imenso e turbilhonante mar de pretume. Resignei-me. Minha respiração, já bem fraca, começou a parar. Os sibilos terminaram. Meu sangue paralisou-se nas veias e artérias. Tudo tornou-se pretume, calor e paz.
EPÍLOGO
Capítulo 1
Depois que morri, começou para mim, em sonhos, uma vida muito intensa que durou bastante. Sim, certamente foi isso mesmo que aconteceu comigo. Voltei a viver depois de um curto período de tempo, com relação ao qual não tenho noção alguma. Só sei dizer que, consoante as experiências por mim vividas nesse curto lapso de tempo, a morte não me pareceu ser outra coisa senão a passagem para "um certo estado de fraqueza".
Nessa "minha vida após a morte" eu me sentia completamente livre de preocupações e me achava unido a Angela para sempre. Nós nos encontrávamos a bordo do France, que, partindo de Cannes, iniciara uma viagem pelo mundo. Enleados em cobertores, passávamos as noites sentados em espreguiçadeiras colocadas no convés e ficávamos contemplando o céu escuro recamado de luzentes estrelas. Estávamos casados. Inopinadamente Karin havia resolvido concordar com o divórcio. As estrelas, com um brilho bem vivo, faiscavam ininterruptamente. Sobre nossas cabeças pairava uma lua bem grande com sua luz de um palor cor de mel. Permanecíamos bem quietos e não pronunciávamos uma palavra sequer. Não havia mais desespero, nem incertezas, nem pensamentos ruins.
Depois da minha morte, eu só sentia o prazer beatífico de ver a plena realização de todos os meus desejos. Não sei se a todas as pessoas que morrem acontece o mesmo. Mas comigo foi assim que se passou. Eu me sentia calmo, plenamente realizado no meu amor e cheio de segurança. Encontrava-me completamente livre daquele selvagem apego à vida, de temores e de esperanças..
E devo ter sentido tudo isso logo que o meu coração parou e fiquei morto. Clinicamente morto. Morto de fato.
Saído deste mundo. Na cobertura do Hôpital des Broussailles havia um local para aterrissagem de helicópteros. Quando o helicóptero que me transportara do Éden Roc aterrissou, a equipe de médicos do plantão de emergência já aguardava a minha chegada. Entre os médicos encontrava-se também o Dr. Joubert, que ficara sabendo do ocorrido.
Mais tarde, quando voltei à vida, ele contou-me o que aconteceu naquela ocasião, logo nos primeiros momentos após a minha chegada.
E aconteceu o seguinte: fui levado à mesa de operação já anestesiado. Os cirurgiões abriram meu tórax. Constataram que uma bala disparada por arma de fogo lesara o pericárdio e o miocárdio. Havia o perigo de um bloqueio do pericárdio. Quando meu coração parou, deram-me uma injeção intracardíaca e, apesar do tamanho da lesão, tentaram ativar suas batidas por meio de um aparelho que provocava choques elétricos. O sangue derramado no pericárdio foi retirado por meio de sucção e o ferimento, suturado. Fiquei, todavia, morto durante tanto tempo - isto é, com o coração parado durante tanto tempo - que sobreveio a anoxia cerebral. A consequência disso foi que fiquei seis dias em completo estado de inconsciência, submetido a tratamento intensivo.
Que sabia sobre o que haviam feito comigo? Absolutamente nada.
A bordo do France eu viajava acompanhado de Angela pelo Mediterrâneo e passeava pelas ruas de Gibraltar. Fomos a Casablanca e à Cidade do Cabo, localidades que visitamos detidamente. Em todos os lugares fazia muito calor. Pareceu-me assustadoramente grande a montanha achatada no sopé da qual se estende a Cidade do Cabo. Eu havia comprado para Angela uma câmara de filmar, com a qual ela se entretinha prazerosamente e cheia de entusiasmo durante a viagem. Não parava de filmar, pois queria levar para casa películas com as cenas e as vistas dos lugares por nós visitados durante esse cruzeiro através do mundo. E sempre foi o sonho dela fazer uma viagem dessas.
A bordo do navio fizemos muitas amizades com pessoas importantes e afáveis: israelenses, americanos, suecos, holandeses e franceses. Muitas vezes, à noite, havia bailes de gala e Angela tinha a oportunidade de usar os seus mais belos vestidos e eu de vestir o meu smoking.
Lembro-me perfeitamente de que, depois que terminava o baile, por mais tarde que fosse, nós ainda íamos para o convés e lá ficávamos durante muito tempo, apoiados no alambrado.
Talvez eu tivesse "vivido" tais situações (bem como outras que vou descrever ainda) apenas durante um milésimo de segundo da minha morte. Talvez eu as "vivesse" durante um segundo inteiro. Ou, quem sabe lá, talvez mesmo no decurso de todos os dias e noites em que permaneci inconsciente. O Dr. Joubert é de opinião que ninguém jamais poderá esclarecer isso. Disse-me que nunca na sua vida profissional lidou com um paciente como eu, um paciente que quando recobrou a consciência, voltando à vida depois de ter sido considerado clinicamente morto, se lembrava de tudo o que viu, disse e fez, num estado entre a vida e a morte. Acontecia, por exemplo, que durante um determinado tempo da minha morte, eu e Angela perambulávamos pelas ruas da Cidade do Cabo. Mais tarde chegávamos a Durban. Depois, encontrando-nos na antiga cidade de Dares-Salam, eu pechinchava com um negociante para que ele baixasse o preço de um colar de pérolas que eu queria comprar para Angela. É bem provável que a ocorrência de tais situações se tivesse dado no exato momento em que os médicos colocaram um tubo em minha traqueia para provocar a respiração artificial com o auxílio de aparelho apropriado. É bem possível que no instante em que aportávamos em Karachi e Bombaim estivesse pendurado em mim um tubo de ar, despontando para fora no local da incisão praticada durante a operação, ou que se encontrassem presos ao meu cotovelo tubinhos de borracha adaptados a pequenas câmaras de ar. Ou, então, que eu me encontrasse atado para receber transfusões de sangue, por meio das quais ia sendo alimentado artificialmente. É bem provável, também, que nesse preciso momento se achassem grudados no meu peito e nas extremidades dos meus braços e pernas eletrodos para registrar o meu eletrocardiograma. É claro que os médicos controlavam também outras funções do corpo, tais como a temperatura, a pressão sanguínea. Entretanto, jamais se poderá saber como foi que tais ocorrências se desenrolaram. Na noite em que partimos de Bombaim, pensei comigo mesmo: "Você vai morrer. Vai morrer enquanto estiver fazendo amor". Mas quando foi que isso aconteceu? Quando? Qual é o significado específico da palavra "vida"? E o da palavra "morte"? Estarei mesmo vivendo enquanto escrevo essas frases? Quem sabe se já não faz bastante tempo que estou morto?
Quem sabe se a morte não corresponde a uma nova forma de vida? Quem sabe se a morte não tem uma tão acentuada semelhança com a vida que não podemos dar-nos conta do limite entre ambas? Recordo-me de que em Bombaim, a estranha cidade que possui um reator nuclear e que, ao mesmo tempo, é a sede dos Adoradores do Fogo, adeptos da seita de Zoroastro, a cidade onde, no subúrbio Malabar Hill, se encontra o templo da Torre do Silêncio... precisamente nessa cidade irreal, nós, eu e Angela, postados fora do templo, conversamos com um hindu muito velho. Lembro-me perfeitamente das suas palavras: "O segredo da vida e o segredo da morte se acham guardados em dois cofrezinhos, contendo um a chave para abrir o outro".
Mas quem se arriscará a tentar abrir um desses cofrezinhos?
Ninguém.
Nem mesmo o Dr. Joubert.
Como já disse, talvez eu tenha vivido todas essas situações durante o espaço de tempo em que cintila uma faísca ou talvez durante dias e noites. Nada posso esclarecer porque eu me achava separado, isolado do mundo exterior, naquele quarto onde estava sendo submetido a tratamento intensivo. Ora víamos, eu e Angela, a imponente beleza ou a miséria chocante de Madrasta, Calcutá, Rangun e Cingapura, ora ficávamos estupefatos ante a contemplação da magnificência dos palácios reais de Bangkok. Angela filmou a visão fantasmagórica e irreal dos templos dessa cidade fantástica. Em seguida já nos encontrávamos novamente em viagem, contornando o Vietnam e avançando em direção a Hong Kong, cidade que eu já conhecia e onde teria a oportunidade de mostrar tantas coisas a Angela.
Muito tempo depois, disse-me o Dr. Joubert:
- Só depois de decorridas quarenta e oito horas foi que começou a processar-se a sua respiração natural, mas mesmo assim ela continuou deficiente durante um bocado de tempo. E quando, depois de seis dias, recobrou a consciência, o senhor se mostrava inquieto e confuso, falava coisas incoerentes e devaneava muito.
- Que espécie de devaneios tinha eu, doutor?
- Bem.. Ora o senhor dizia que se encontrava em alto-mar... Depois o senhor desembarcava sucessivamente em Manila, Taiwan, Nagasáki, Yokohama...
Oh, mas eu estive realmente nesses lugares, acompanhado de Angela!! Estive com ela também em Tóquio. E admiramos os castelos reais, os templos, as fábricas de seda, faianças e porcelanas. Visitamos uma exposição de arte japonesa antiga, onde comprei para Angela uma peça maravilhosa, toda envernizada: um casalzinho de pombos. O macho era grande e a fêmea pequena. Eles estavam com as asas abertas.
Dois cofrezinhos fechados, contendo um a chave para abrir o outro..
De Tóquio, sempre a bordo do France, avançamos na direção sul, até atingirmos Sydney. Dessa cidade fomos a Wellington, na Nova Zelândia. Depois desembarcamos mais uma vez no Havaí, onde filmamos os vulcões já extintos, bem como os que se encontravam em atividade. Eu nunca antes estivera no Havaí, mas fui capaz de descrever minuciosamente ao Dr. Joubert os vulcões Mauna-Kea e Mauna-Loa, bem como a cratera Kilauea e o mar de lavas denominado Halemaumeru. Ele, consultando os livros, constatou que a minha descrição estava certa. Quem poderá explicar esse fenômeno?
Ninguém.
Depois do Havaí, chegamos a San Francisco, com a sua Golden Gate. Dali, após termos atravessado o Canal do Panamá, penetramos no mar das Caraíbas, com a intenção de regressarmos à nossa cidade passando por Gibraltar.
Era noite quando já íamos deixando para trás o mar das Caraíbas e eu me encontrava deitado na cama com Angela, na nossa cabine.. Estava quase pegando no sono quando ouvi um ruído e abri os olhos. A primeira coisa que vi, depois que as minhas pupilas se acomodaram à claridade (como podia haver claridade se era de noite?), foram os olhos de Angela bem perto dos meus.
- Que é que há, amorzinho? - perguntei-lhe calmamente e com a voz bem clara. - Por que você acendeu a luz? Não consegue dormir?
- Eu não acendi nenhuma luz - respondeu-me Angela. - É o sol radiante que está brilhando e penetra através das persianas, Robert.
- Ah! - exclamei. - E onde estamos?
- No Hôpital des Broussailles. Hoje de manhã eles transferiram você para este quarto.
- Transferiram de onde?
- Da unidade de tratamento intensivo. Durante dez dias eu só podia ver você através de uma vidraça. Mas agora sua crise já se acha superada e você não precisa mais do tratamento intensivo.
O médico-chefe deu ordens para que neste quarto fosse colocada uma outra cama a fim de que eu possa permanecer com você quanto tempo quiser. Agora posso dormir aqui no seu quarto. Você está vivo, Robert! Você está vivo! Você não morreu!
- Onde foi que você guardou o colar de pérolas? - perguntei.
- Onde guardei o quê?
- Não, nada - emendei, pois no mesmo instante percebi estar falando de maneira tão desconexa como uma criança e compreendi que havia sonhado. - Não, nada, minha queridinha. Realmente eu não morri. Pelo menos não permaneci morto durante muito tempo.
Comecei a olhar em torno de mim, virando um pouco a cabeça (só um pouquinho, uma coisinha de nada), e notei que me encontrava num quarto amplo e moderno, com bastante claridade e bem limpo. Isso não me ocasionou nenhum choque, mas produziu em mim um inexplicável sentimento de tristeza, por compreender que havia saído do mundo da fantasia e entrado no mundo da realidade. (Oh, seria mesmo real o que agora eu estava vendo?) Lembro-me de ter perguntado baixinho a Angela:
- Que dia é hoje?
- Domingo.
- Que dia do mês?
- Dezesseis de julho.
Dezesseis de julho!
Passei a refletir, falando comigo mesmo: "No dia 6 de julho você esteve no Éden Roc. No dia 6 de julho recebeu um tiro. Durou, portanto, dez dias a sua permanência num estado entre a vida e a morte. Dez dias sem ter consciência de nada, devaneando e delirando. Dez maravilhosos dias!"
Passando a falar com Angela, disse:
- Você sabe que permanecemos sempre juntos? Fizemos uma viagem pelo mundo, um verdadeiro cruzeiro, exatamente como você sempre desejou fazer. Foi uma viagem tão linda! Mas ainda vamos fazer realmente uma viagem dessas!
- Oh, sim! - respondeu-me Angela com os lábios tremendo.
Notava-se o seu estado de abatimento. Seu rosto pareceu-me muito desfigurado e pálido. Seus olhos estavam fundos.
O Dr. Joubert contou-me depois que durante esses dez dias Angela não arredara pé do hospital. Durante todo esse tempo ela só se ausentou dali por algumas horas. Dia e noite permanecia tanto quanto possível perto de mim. Não adiantava querer forçá-la a ir embora. Durante a noite ela se deitava num banco colocado em frente da sala de tratamento intensivo para dormir um pouco. Por fim, arranjaram-lhe um quarto vazio com cama, que era ocupado por uma das irmãs-enfermeiras. Mas ela só conseguia dormir, no máximo, uma hora por noite, afirmou-me o Dr. Joubert. Depois ela se levantava e ia postar-se de pé na vidraça da sala de tratamento intensivo, onde permanecia completamente imóvel e triste durante horas a fio a observar-me ali estirado sem consciência de nada, saindo lentamente e com dificuldade de uma morte feliz e radiante para entrar numa vida de obscuridades e incertezas.
Capítulo 2
Nesse dia compareceu o médico-chefe. Vieram também os cirurgiões acompanhados dos homens e mulheres que integravam a equipe de emergência para o tratamento cardíaco. O Dr. Joubert também esteve presente. Fui submetido a um exame rigorosíssimo e minucioso e, à vista dos resultados obtidos, os médicos foram de opinião que a fase perigosa já havia sido superada, muito embora perdurasse ainda o problema circulatório, que inspirava sérios cuidados, visto evidenciar a tendência para um colapso.
Dirigindo-se a Angela, que se achava também presente, disse o médico-chefe, um homem de estatura abaixo da média, que usava óculos com armação dourada:
- A senhora pode ficar aqui no hospital. Só posso esperar melhores resultados com isso.
- Obrigada! - respondeu-lhe Angela.
- Tenho que falar urgentemente com uma pessoa - disse eu, já que, tendo voltado à realidade, queria resolver alguns assuntos sem perda de tempo.
- Absolutamente impossível! - exclamou o médico-chefe. - Será que o senhor não compreende que é um grande milagre o senhor estar vivo ainda? Em noventa por cento dos casos iguais ao seu o resultado é fatalmente a morte. Não, não e não! Por enquanto, o senhor não pode falar com ninguém. Além do mais, já compareceram aqui duas pessoas que me afirmaram ter absoluta necessidade de falar com o senhor e eu lhes declarei que era impossível.
- Quem eram essas pessoas? - perguntei.
- Uma tal Madame Hellmann e um escrivão de nome Libellé.
- De fato eu preciso falar urgentemente com essas duas pessoas - ponderei.
- E eu lhe proíbo de falar com quem quer que seja enquanto a sua pressão sanguínea se encontrar tão baixa assim. Dentro de uma semana.. talvez!... eu poderei dar-lhe essa permissão. Aliás, foi isso mesmo que eu disse a essas duas pessoas.
- Quando?
- Antes de vir aqui. Elas comparecem diariamente ao hospital. Que é que o senhor deseja falar com elas?
- Ah, trata-se de um assunto privado. O senhor sabe quem sou e por que me encontro aqui em Cannes?
- Sim.
- Essas duas pessoas provavelmente estão preocupadas com o meu estado de saúde.
- Eu lhes direi que o senhor está passando bem e que, em circunstâncias favoráveis, ficará restabelecido dentro de pouco tempo. Com isso elas se acalmarão.
- Acho também que tal declaração lhes trará um grande sossego - confirmei. - E agradeço a todos, minhas senhoras e meus senhores, pelo grande esforço e trabalho que tiveram a fim de trazer-me de volta à vida.
Foi exatamente assim que me expressei, mas não tenho certeza se meu pensamento era sincero realmente. Logo em seguida passei a sentir um cansaço horrível e peguei no sono. Lembro-me de que mais uma vez sonhei com templos. Muitos templos com uma enorme quantidade de deuses de marfim. E os deuses tinham muitos braços.
Capítulo 3
No sábado, 22 de julho, o décimo sexto dia do meu tratamento, meu estado melhorou tanto que o médico-chefe permitiu que me fossem feitas visitas de curta duração. E, quando digo médico-chefe, refiro-me ao Professor Henri Brillet, o dirigente da Seção de Cirurgia, que também foi um dos médicos que me operou. O Hôpital des Broussailles - e isso eu sabia desde a primeira vez em que lá estive - é uma instituição hospitalar grande e moderna, com muitas seções.
Angela encontrava-se junto de mim quando Roussel, Lacrosse e Tilmant entraram no meu quarto. Ela havia recobrado um pouco de ânimo dormindo bem nas noites anteriores, mas continuava muito pálida ainda e com olheiras que denotavam o seu cansaço. Sentada na cama, ela ouvia calada a nossa conversa. Aos três homens fora concedida permissão para uma visitinha de cinco minutos. Como é óbvio, a primeira pergunta que me fizeram foi se eu tinha idéia de quem poderia ser, por qualquer motivo, o responsável pelo atentado de que fui vítima. Angela já lhes havia feito saber como se desenrolara o fato.
- Não faço a mínima ideia - respondi-lhes.
"Já estou salvo", pensei com os meus botões. "Já voltei de novo a viver e quero ter uma vida bem boa, com segurança e com muito dinheiro." Prossegui:
- Não tenho o mínimo indício para suspeita.
Lacrosse, encarando-me com uma expressão que parecia ao mesmo tempo suplicante e irada, perguntou-me:
- Será que você não está guardando segredo para encobrir-nos algum fato importante?
- Que fato importante deveria eu encobrir?
- Mas é claro que deve haver um motivo ponderável para que alguém tentasse matá-lo. Sem dúvida, você tornou-se um elemento perigoso... para aquela gente... Você descobriu algo importante, deixando transparecer àquela súcia a sua descoberta?
Que maldição! Não é que ele acertara em cheio?
- Não descobri nada! - retruquei-lhe. - Absolutamente nada! Você deve lembrar-se muito bem de que já criaram, às ocultas, confusões no carro de Madame Delpierre e com isso quase conseguiram nos matar. Essa não foi, portanto, a primeira tentativa de assassinato praticada contra mim.
E eu naquela ocasião também não tive a mínima idéia de quem poderia ter sido o criminoso.
Roussel começou a falar:
- Como é natural, já nos pusemos em contato com a sua companhia de seguros.
Isso era mau!
- Sim, é claro que os senhores teriam que proceder assim - disse.
- E os dirigentes da sua companhia garantiram-nos que você não está mais com a incumbência de investigar o caso. Aliás, informaram-nos, também, que a companhia desobrigou você de prosseguir fazendo qualquer sindicância...
Fiz apenas um ar de riso, pois eu me sentia mal quando ria. Percebi logo que, se Lacrosse e Roussel prosseguissem as suas sondagens, martelando insistentemente no assunto, mais cedo ou mais tarde viriam a descobrir a verdade no tocante à minha situação na companhia. Portanto, achei que seria melhor que eu próprio fosse o primeiro a abrir a boca para esclarecer o fato, mesmo porque na presença de Angela eu não deveria continuar mentindo.
- Tenho até mesmo outros esclarecimentos a prestar-lhes, meus senhores. A minha companhia foi muito discreta.
- Discreta como?
- Eu não somente fui desobrigado de prosseguir fazendo sindicâncias no caso do iate de Hellmann, mas também em qualquer outro caso para o futuro, pois não estou mais trabalhando para a Global.
- Robert! - exclamou Angela, levantando-se sobressaltada e vindo para perto da minha cama.
- Acalme-se, queridinha. Eu ia contar-lhe tudo. Não há nenhum motivo para esse nervosismo.
- Quer dizer, então, que o senhor não está mais trabalhando para a Global? - perguntou Tilmant. - O senhor foi demitido da empresa?
- Sim - respondi-lhe, e passei a observar a expressão de seriedade nos seus olhos, julgando até que houvesse descoberto a minha intenção, bem como a minha manobra. - Ou, melhor dizendo, não fui demitido. Eles encontraram uma modalidade especial para dispensar-me: concederam-me a aposentadoria antecipada considerando os leais serviços por mim prestados à Global durante tantos anos, bem como meus elevados méritos.
- Mas que significa isso, Robert? Por que a aposentadoria antecipada? Será que foi por causa da sua perna? Diga-me, por favor!
Angela não podia conter-se. Tinha os olhos arregalados de espanto.
- Não há nada com a minha perna. Absolutamente nada. A minha perna foi o pretexto... aliás, um misericordioso pretexto... que eles encontraram para solucionar o meu caso.
- Que espécie de mal você tem na perna? - interrogou-me Roussel.
- Nenhum. Simplesmente um pequeno distúrbio circulatório. A Global lá em Dússeldorf tem um médico de confiança que é muito rigoroso e meticuloso e ela acata sempre sem reservas tudo o que ele atesta. Mas na verdade não fui dispensado da companhia por causa da minha perna (a qual antes havia sido examinada aqui neste hospital mesmo, conforme poderá atestar o Dr. Joubert), mas sim por causa das minhas relações com Madame Delpierre. As distintíssimas pessoas com as quais temos que lidar, à frente das quais provavelmente se encontra Hilde dos Brilhantes, se dirigiram à Global e a encostaram na parede, queixando-se dessas relações e declarando que iriam espalhar por todo o mundo que a companhia não era uma empresa séria e digna de confiança se não me demitisse e se não efetuasse logo o pagamento do seguro. Sinto muito, meus senhores, por não lhes ter dito a verdade na nossa última reunião. Todavia acho que lhes disse parte da verdade, pois a Global obviamente prosseguirá investigando o caso mesmo após o pagamento do seguro. Ela apenas foi compelida a dispensar-me do seu quadro de funcionários. Eu tencionava permanecer ainda por tanto tempo quanto fosse possível metido nesse negócio e por isso menti.
- Robert, foi por causa das nossas relações que você perdeu o seu cargo! E até agora não me disse nada, por quê? Você me disse que seu chefe iria mandar uma pessoa ao Éden Roc, com o dinheiro para que você pudesse pagar aos seus informantes.
Angela falou em voz alta, quase gritando. E logo numa hora dessas ela vomitou isso!
Capítulo 4
Mas já era de se esperar que, mais dia menos dia, também esse fato seria revelado. E a revelação saíra da boca de Angela. Depois que ela falou, verificou-se, durante alguns segundos, silêncio naquele quarto de paredes brancas. Então soou a voz baixa e cansada de Tilmant:
- Isso é verdade, Monsieur Lucas?
Respondi-lhe afirmativamente, balançando a cabeça.
- E é nesse fato que reside todo o seu segredo, não é verdade?
Desta vez sacudi a cabeça negativamente.
- Robert! - gritou Angela.
Eu achava que ela jamais deveria ter conhecimento desse fato, mas eis que agora eu me via forçado a falar sobre ele. Não tinha outra alternativa.
- Perdoe-me - disse.
- Por que o senhor mentiu a Madame Delpierre?
- Porque eu não queria inquietá-la dizendo a verdade.
- E qual é a verdade com relação a esse assunto? - interrogou-me Lacrosse.
Uma irmã-enfermeira nesse instante enfiou a cabeça para dentro do quarto e disse:
- Os senhores devem retirar-se, meus senhores. Já se passaram os cinco minutos permitidos.
- Sairemos sem demora, irmã. Mais dois minutinhos, por favor - disse Roussel.
- Bem, excepcionalmente mais dois minutinhos. Então, se os senhores não se retirarem, serei forçada a chamar o médico - disse a irmã-enfermeira, e desapareceu.
- A verdade, Monsieur Lucas! - insistiu Lacrosse.
- A verdade é que no dia 4 de julho, já bem tarde da noite, no salão de jogos do Palm-Beach, após o baile do Independence Day, fui chamado ao telefone. Você não viu nada, Angela, porque estava jogando.
- Quem telefonou? - perguntou Roussel.
- Um homem. Não sei quem era ele.
- Claro que não! - exclamou Roussel.
- Calma! - pedia Tilmant. - Prossiga, Monsieur Lucas.
- O tal homem disse que ele estava disposto a dar-me dinheiro, muito dinheiro, se eu me comprometesse a não mais continuar investigando o caso da morte de Hellmann.
- Então, ao que tudo indica, esse homem não tinha conhecimento da sua aposentadoria, não é verdade?
- É provável que não. A Global não costuma propalar esse tipo de coisa.
- Quanto ele prometeu lhe dar? - interrogou Lacrosse.
- Um milhão de francos novos.
- Então o senhor devia ter chegado a alguma conclusão, descobrindo algo que punha em perigo a vida de alguém.
- Pode ser.
- O que foi que você descobriu? - insistiu Lacrosse.
- Não tenho a mínima idéia. Mas numa situação como a minha, a gente aceita o dinheiro, não é verdade? Também eu tinha a curiosidade de ver quem iria levar-me o dinheiro. Eu esperava fazer uma importante descoberta.
- Robert, Robert, nem uma vez sequer você me falou a verdade! - gaguejou Angela.
- Não, nem uma vez. O homem exigiu que eu me calasse. Foi uma condição que ele me impôs. Recomendou-me também, que a polícia não fosse envolvida. Deu-me a liberdade de escolher o local e marcar a hora do encontro. Como o meu amigo Trabaud, um pouquinho antes desse telefonema, me havia convidado para, no dia 6 de julho, dar um passeio no seu iate, escolhi o Éden Roc como local do encontro. O homem aceitou. Cheguei ao local pontualmente, mas ele se atrasou. Recebi o tiro com atraso.
- Naturalmente o senhor não viu o tal homem! -. disse Roussel.
- Claro que não.
Novamente seguiu-se um pequeno silêncio.
- Eu não acredito no que o senhor acaba de contar - disse Lacrosse, finalmente.
- Nem eu - emendou Roussel.
Ambos disseram tais palavras com um tom de amabilidade na voz.
- Eu acredito no senhor - disse-me Tilmant, fitando-me de modo estranho.
- Eu também acredito em você - emendou Angela.
- Acredito em você, muito embora seja chocante o que você contou... Demitido por causa das nossas relações... E, além do mais, você demonstrou não ter confiança em mim...
- Eu só lhe ocasionaria temores se lhe contasse a verdade. Realmente, esperava encontrar-me com alguém que me trouxesse dinheiro, tanto assim que havia pedido a Claude Trabaud que tirasse algumas fotos do meu encontro com o tal sujeito.
Achei que a menção de tal circunstância era importantíssima, pelo menos poderia servir para comprovar a veracidade da minha declaração. Continuei:
- Evidentemente, se eu descobrisse qualquer novo vestígio ou se me surgisse qualquer suspeita, era da minha intenção comunicar-me imediatamente com os senhores..
- Ah, sim! Tinha mesmo a intenção de comunicar-se conosco? - perguntou-me Roussel.
- Evidentemente! Então os senhores acham que eu iria enfiar-me debaixo de um cobertor com essa gentalha?
- Calma, calma! O senhor deve permanecer calmo, Monsieur Lucas - disse Tilmant. - Ninguém acredita que o senhor iria meter-se com essa gente. Estou convencido de que o senhor nos teria comunicado qualquer descoberta que fizesse.
- Obrigado - disse eu.
- Monsieur Lucas, daqui por diante deverá ficar sob a proteção da polícia - prosseguiu Tilmant, dirigindo-se aos dois funcionários da polícia criminal. - A porta do seu quarto deverá ser vigiada dia e noite. Todo e qualquer visitante terá que ser identificado e revistado. É bem possível que essa gente cisme que Monsieur Lucas esteja de posse de algum segredo capaz de ameaçá-la. Na realidade, Monsieur Lucas não possui nenhum segredo ou, se o possui, não sabe.
Lacrosse e Roussel permaneceram calados.
- Será que me fiz compreender? - perguntou-lhes Tilmant.
- Claro que sim, monsieur - respondeu-lhe Roussel. - Proteção policial. A partir de agora. Por quanto tempo?
- Por muito tempo - respondeu Tilmant.
A porta se abriu e entraram no quarto a irmã-enfermeira e um médico. Este estava zangado e foi logo dizendo:
- Meus senhores, vejo-me na contingência de pedir-lhes que se retirem imediatamente. Monsieur Lucas se encontra ainda muito fraco.
Eles saíram logo. Todos apertaram-me a mão. Tilmant sorriu-me animadoramente.
Logo que fiquei a sós com Angela, ela começou a me dizer, gaguejando:
- Você não me falou a verdade, Robert... Bem, eu compreendo... Mas você acha que posso ficar sossegada agora? Meu Deus, que horrível é saber que eles pensam que você sabia algo. Foi por isso que tentaram matá-lo, mas não conseguiram. E eles sem dúvida continuarão acreditando que você esteja de posse de algum segredo e por isso você não está livre da ameaça de morte..
- Que eu não estou livre de tal ameaça já fiquei sabendo desde aquela noite em que o nosso carro quase se precipitou no mar, depois que jantamos no Tetou.
- Sim, está certo... Mas isso não melhora em nada a situação. Eles tentarão novamente...
- Não creio. Se nada lhes acontecer agora, eles se convencerão de que estavam errados e de que realmente eu nada sabia. Se eu soubesse algo, já teria revelado, Angela! Você não acha?
Ela fitou-me, calada.
- Angela, eu lhe perguntei: "Se eu soubesse algo, você não acha que eu teria revelado?"
- Acho que agora você o teria revelado - respondeu-me ela com palavras quase inaudíveis. - Queira Deus que você nada saiba mesmo e que eles se convençam disso.
- Eles terão que se convencer, fique sossegada!
Era só o que eu podia dizer-lhe para acalmá-la. O resto teria que continuar como um segredo exclusivamente meu.
- Eles despediram você da empresa só porque nós nos amamos, não é verdade?
- Sim.
- Que horrível!
- Que felicidade!
- Felicidade por quê?
- Vou receber uma aposentadoria bem elevada, Angela. E então... Mas será que você não percebeu ainda?
- O quê?
- Será que você ainda não se deu conta de que agora poderemos ficar sempre juntos?
Ela fitou-me durante algum tempo e depois inclinou-se sobre a minha mão esquerda estendida sobre o cobertor, beijando-a.
- Você ficará comigo... Sempre comigo!... A partir de agora ficaremos juntos... para sempre!
Capítulo 5
Uma hora mais tarde um policial foi postar-se em frente da porta do meu quarto. A partir de então passei a ser vigiado por ele. Os policiais que me vigiavam, um de cada vez, rendiam-se de seis em seis horas. Isso tranqüilizava Angela, tanto assim que nos dias subseqüentes ela saiu por diversas vezes, ficando mesmo bastante tempo fora a fim de tratar de assuntos inadiáveis. Na quarta-feira, dia 26 de julho, pela primeira vez depois de algumas semanas, ela foi ao cabeleireiro. Disse-me que julgava ter já a aparência de uma mulher desleixada e pouco asseada. Não queria mais apresentar-se assim diante de mim para que eu não deixasse de amá-la.
A essa altura já conhecíamos todos os policiais que me vigiavam, os quais, uma vez ou outra, também entravam no meu quarto.
Para essa missão haviam sido escolhidos policiais corteses e educados. Angela recomendara expressamente a um deles, que se achava de serviço nessa tarde, que me vigiasse e me protegesse com todo o carinho.
Ela saiu logo depois das quatro horas da tarde. Às cinco e meia o policial abriu a porta e disse-me:
- Visitas para o senhor, Monsieur Lucas. Madame Hellmann e Monsieur Libellé. Eles já têm a permissão do médico. Ele foi revistado por mim e ela, por uma irmã-enfermeira. Eles não têm armas de espécie alguma. - "Finalmente!", pensei. - Madame Hellmann deseja falar primeiro a sós com o senhor.
- Faça o favor de mandá-la entrar.
Apresentou-se, então, na minha frente, Hilde dos Brilhantes, sem jóias, mal pintada, usando um caríssimo vestido de seda branca próprio para o verão. Nos seus olhos albino-rosados estampava-se o terror. Apontei-lhe uma cadeira, que ela puxou, vindo sentar-se bem pertinho de mim.
- Será que alguém aqui poderá nos ouvir? Quero dizer alguém com microfone ou..
- Não sei, Sra. Hellmann. Mas creio que não...
- Mas e se alguém estiver mesmo nos ouvindo ou captando a nossa conversa?
- A senhora terá que correr o risco...
- Então vou falar cochichando aos seus ouvidos.
- Eu não procederia desse modo nessas circunstâncias - retruquei-lhe. - O policial sabe o seu nome. E se ele realmente tem um microfone...
- Mas é exatamente isso o que tenho que fazer! - insistiu ela de maneira descomedida, sem poder controlar-se.
- Não!
- Não o quê?
- Não posso suportar esse tom de voz, Sra. Hellmann.
- Oh, perdoe-me, por favor, Sr. Lucas.
- Aqui não existe nenhum microfone. - "E tomara que não exista mesmo!", pensei com meus botões. - Então o que é que a senhora tem para dizer-me?
Era para mim, agora, uma visão estranha, a de Hilde dos Brilhantes fora da sua cama e usando vestido.
- Eu já tentei diversas vezes pôr-me em contato com o senhor, mas...
- Eu sei. Que é que a senhora tem para dizer-me?
- Que não fomos nós. Nenhum de nós. Nenhum de nós mandou algum pistoleiro fazer isso. - As palavras saltavam precipitadamente de sua boca. - Todos nós ficamos desesperados quando tomamos conhecimento do atentado. O senhor deve acreditar em mim, Sr. Lucas! O senhor não pode deixar de acreditar em mim! Eu vim aqui falar em nome de... em nome de todos. Eu aceitei essa incumbência, muito embora saiba quão humilhante e perigosa ela é. Mas o senhor tem que acreditar em mim; nós não somos os responsáveis por esse atentado! Nós esperamos que o senhor se restabeleça em breve e que viva por muito tempo... Mas não ria, por favor!
- Eu tenho que rir! - respondi-lhe.
As lágrimas escorriam de meus olhos de tanto rir. Prossegui falando:
- Para mim já está claro que a senhora e os seus amigos desejam a melhora do meu estado de saúde e que eu ainda tenha uma vida longa, Sra. Hellmann. Entretanto, o que acontecerá com os senhores se eu sofrer um novo atentado e for morto?
- Pois é isso mesmo o que nos deixa aflitos. E daí? - Sua peruca deslizava facilmente com os movimentos da cabeça. Eu achava que uma mulher tão rica assim devia usar uma peruca que lhe assentasse melhor.
- Nós estamos todos preocupados.. É grande a nossa aflição..
- Por quê?
- Nós bem sabemos que esse atentado não foi feito a nosso mando. Deve ter sido, portanto, por ordem de outra pessoa.
- Por ordem de quem?
- Sim, por ordem de quem? Essa é a pergunta que nós mesmos nos fazemos. Nada sabemos. O senhor não terá alguma opinião formada?
Respondi-lhe, falando em tom jocoso:
- Talvez os senhores tenham conseguido comprar o meu escrivão Libellé e ele já lhes tenha feito a entrega de todo o material. Nesse caso, bem que os senhores poderiam ter-lhe pedido, mediante um pagamento adicional, que mandasse executar o atentado...
- Meu Deus, o senhor está louco! Um escrivão a gente não pode comprar. Quem dera que a gente pudesse suborná-lo! Mas, nesse caso, iríamos simplesmente cair nas mãos de uma outra pessoa. Ficaríamos livres do senhor.
Mas e de Libellé?... - Ela interrompeu bruscamente a frase. - Noto que o senhor está brincando e eu, pobre vaca estúpida, caí na sua brincadeira.
Não, Sr. Lucas... Nós supomos o seguinte: alguém que quer nos eliminar sabia que o senhor nos tinha em suas mãos e o que poderia acontecer-nos na hipótese de que o senhor sofresse morte por atentado. Por isso essa pessoa contratou um pistoleiro para assassiná-lo.
- E quem a senhora e os seus amigos imaginam que poderia ser essa pessoa?
- Clermont e Abel.
- Absurdo! - respondi-lhe, sem titubear.
Entretanto, raciocinando, pensei comigo mesmo: "Seria mesmo um absurdo? Certamente não foi Hilde nem seus amigos quem mandaram liquidar-me. Mas alguém deve tê-lo feito. Por que não poderiam ser os donos dessa grande empresa industrial francesa que, aos poucos, vinha sendo arruinada pela Kood? Por que não Clermont e Abel?" Fiquei imaginando a rapidez com que Gaston Tilmant me socorreu com o seu apoio logo que fiz a minha declaração. E se ele.. Não, não e não!.. Tilmant é um homem digno e honesto... Entretanto, o que significa especialmente "um homem digno e honesto"? Serei eu um deles? Só Deus sabe! E então? Então...
- O senhor ficou calado - disse-me Hilde dos Brilhantes. - De um momento para outro tornou-se pensativo. Sr. Lucas, todos nós, agora, nos encontramos numa situação horrível. Que nos acontecerá se alguém tentar mais uma vez eliminá-lo e for bem sucedido no atentado?
- Nesse caso acontecerá o que eu já lhe declarei - respondi-lhe de modo grosseiro. - E agora paremos de fazer conjeturas e de manifestar suspeitas! O futuro nos revelará a verdade. E a senhora tem ainda mais coisas para dizer-me? Eu não posso receber visitas demoradas.
- O senhor... Será que o senhor nos traiu? - Ela fez essa pergunta cochichando ao meu ouvido.
- Não.
- Nem mesmo em sonhos, no seu estado de fraqueza... devaneando?
- Isso eu não sei. Mas acho que não. Do contrário a senhora não estaria agora sentada aqui, Sra. Hellmann.
- E o senhor não prestou posteriormente nenhuma informação a qualquer pessoa, seja ela quem for?
- Não prestei informações de espécie alguma.
- Obrigada! Muito obrigada!
- Pare com isso...
- Libellé!..
- Que é que há com ele?
- Poderia mandá-lo entrar agora só por um instantinho?
Ela saiu do quarto, falou com o policial e em seguida voltou para perto da minha cama acompanhada de Libellé. O escrivão conservava o aspecto de cidadão íntegro e, como era do seu hábito, mostrava-se lacônico no falar. Cumprimentou-me formalmente, expressando sua alegria por eu ter escapado do atentado. Disse-me:
- Madame Hellmann veio ter comigo logo depois do atentado. Declarei-lhe que o caso estava tomando um rumo tal que eu, consoante as suas instruções, me via compelido a dar conhecimento público do material entregue aos meus cuidados logo que eu tivesse absoluta certeza de que o senhor sofrera morte provocada por violência ou em consequência de qualquer atentado. O mesmo procedimento eu deveria ter, disse-lhe, com relação a Madame Delpierre.
- Muito bem, maître! - disse-lhe.
Ele fez uma pequena mesura, inclinando-se um pouco.
- Mas o senhor não morreu - prosseguiu Libellé. - Durante muito tempo parecia que sim, mas agora vejo que não está morto.
- Faltou pouco - disse-lhe.
- Como o senhor não morreu, deixei de dar conhecimento público do material. Além do mais, devo dizer-lhe que Madame Hellmann, por ocasião da visita que me fez, entregou-me trezentos mil francos novos, que recebi e guardei no cofre alugado no banco.
- Os senhores devem compreender, quero dizer, Maître Libellé deve compreender que nós não temos culpa alguma pelo que aconteceu - disse Hilde dos Brilhantes num tom de súplica.
- Muito obrigado pelo dinheiro - disse, dirigindo-me a Hilde. - A partir de agora, os pagamentos futuros, nos prazos combinados, deverão ser efetuados a Monsieur Libellé. Não sei por quanto tempo ainda devo permanecer neste hospital. Recibos dos pagamentos, como é óbvio, não deverão existir. Entretanto, Monsieur Libellé terá que me comunicar imediatamente qualquer atraso de pagamento superior a um mês.
- Eu pagarei pontualmente! Pontualmente! - gritou Hilde dos Brilhantes.
- O pagamento será efetuado no devido tempo, Mon-sieur Lucas - disse o escrivão.
- E mais uma coisa! - disse eu. - Foi muito bom a senhora ter vindo aqui acompanhada de Maître Libellé. Assim não é preciso que eu lhe faça esta comunicação por intermédio dele. Pensei numa coisa..
- Em que o senhor" pensou? - perguntou-me Hilde dos Brilhantes, ansiosa.
Declarei a ambos o que eu havia pensado.
Capítulo 6
- Ouvi dizer que você recebeu visitas - disse-me Angela.
Eram sete horas da tarde. Nesse dia ela aproveitara o tempo também para fazer algumas compras. Encontrava-se, agora, em frente do meu leito com um novo penteado muito, muito bonito. Mas no seu semblante continuava estampado o terror.
- É verdade - respondi-lhe. - A Sra. Hellmann e o escrivão Libellé estiveram aqui.
- Quem é esse homem?
- É um escrivão com o qual travei conhecimento através do meu advogado Fontana. Trata-se de um cidadão absolutamente íntegro. Logo que fui vítima do atentado, a Sra. Hellmann agarrou-se nele para que ele me dissesse que nem ela nem seus amigos estavam envolvidos no caso.
- E você acreditou no que ela disse? - Sim.
- Por quê?
- Como você sabe, descobri algo acerca dela e dos seus amigos. É exato que eu conhecia gente que queria vender-me a verdade sobre o caso por bastante dinheiro. Hilde dos Brilhantes também sabia disso. Antes do atentado entreguei ao escrivão Libellé uma declaração escrita relatando tudo o que eu descobrira. Essa declaração ficou guardada no cofre de um banco. Entreguei a minha declaração ao escrivão e não à polícia. Monsieur Libellé tinha a incumbência de tornar pública tal declaração se me acontecesse algo. Julguei que só assim eu poderia garantir a nossa vida, você me compreendeu?
- Mas como você se enganou!
- Foi uma coincidência infeliz. Houve algum mal-entendido... Uma falha dessas não mais se repetirá, creia-me, Angela.
- Mas de onde lhe vem tanta certeza assim?
- Nesses últimos dias, refletindo bastante, pensei em algo que comuniquei a Hilde dos Brilhantes e a Libellé, durante a visita que eles me fizeram.
- Em que você pensou?
- Eu vou escrever a minha história ou, se quiser, a nossa história. Uma história relatando tudo o que me aconteceu e tudo o que sei. Farei um amplo relato sem ocultar nada. E isso eu disse a Hilde dos Brilhantes. Os médicos informaram-me que levará bastante tempo antes que eu possa sair do hospital. Pois bem, tomarei nota de tudo para redigir a minha história. Eu sei estenografia muito bem, mesmo em francês. Todas as tardes uma secretária de Monsieur Libellé virá aqui ao hospital buscar os papéis com as anotações para datilografá-las. Depois, as folhas datilografadas serão guardadas no cofre do banco. Libellé tem a outra chave do cofre. Eu trabalharei com muita concentração e bem rápido. Hilde dos Brilhantes já sabe que essa história será publicada, caso me suceda algo ou caso suceda algo a você. Eu pensei em nós dois. Os médicos aqui já têm conhecimento de que tudo o que escrever deverá ser entregue a Libellé. Eu tenho testemunhas, portanto. Nós queremos viver em paz e sem temor, como pessoas livres. A própria Hilde irá propalar a notícia da minha atividade literária. Tenho a certeza de que, quando a minha história tiver sido totalmente anotada, ambos estaremos em segurança.
Angela sentou-se à beira da cama, curvou-se para a frente e beijou-me carinhosamente. Seus cabelos tinham um perfume maravilhoso.
Capítulo 7
Mas aconteceu que fui impedido de escrever a minha história. Pelo menos por um tempo. Os médicos protestaram energicamente contra a minha resolução. Alegaram que eu me encontrava muito fraco ainda. Passaram-se semanas e o meu estado melhorou sensivelmente. Angela trouxe para o quarto aquele seu pequeno aparelho de televisão Sony. No nosso quarto, no hospital, havia também um banheiro. Então passamos novamente a assistir juntos aos programas de televisão à noite.
Contudo, eu pegava logo no sono, pois me encontrava ainda muito fraco. Todavia, a minha sensação de fraqueza foi desaparecendo gradativamente. Por fim, eu já não adormecia tão rapidamente assim. Ao término da quarta semana de tratamento, levantei-me da cama pela primeira vez e andei um pouquinho, amparado por Angela e por uma irmã-enfermeira. Meu pé esquerdo doeu bastante quando o firmei no chão, mas eu não disse nada a ninguém. A duração dessas minhas caminhadas diárias foi sendo gradativamente aumentada. Uma massagista me tratava todos os dias regularmente. Eu tomava banhos medicinais e de repente passei a ter bastante apetite. Aliás, posso mesmo dizer que sentia uma fome canina. No fim da quinta semana de tratamento, no dia 10 de agosto, uma quinta-feira, deram permissão para que eu começasse a minha história.
Pus logo mãos à obra. Tinha muita coisa a fazer diariamente: escrever, dar as minhas caminhadas, praticar ginástica, tomar banhos medicinais. Meu tempo tinha que ser bem dividido para que eu pudesse aproveitar até o último minuto. Os médicos acharam até bom que eu escrevesse. Minha atividade equivalia à prática de uma laborterapia, afirmavam eles. Naturalmente, a polícia também tinha conhecimento da minha atividade. Por expressa determinação de Tilmant, a secretária do escrivão Libellé deveria vir buscar todas as tardes as folhas escritas. Eu trabalhava com afinco. Angela havia interrompido todos os seus trabalhos artísticos e pedira aos seus fregueses que tivessem paciência, esperando para mais tarde a conclusão dos quadros encomendados. Recusava novos pedidos. Ela precisava, antes, terminar as pinturas prometidas havia muito tempo. Por isso, durante o dia, deixava-me sozinho a maior parte do tempo. Angela saía às nove horas da manhã e só voltava quase de noite. Não deixou de dormir nem uma noite perto de mim. Pela primeira vez na minha vida executei um trabalho apaixonadamente. O relato que os senhores ora estão lendo foi escrito, conforme já disse, para servir de garantia de vida para a mulher que amo: Angela. E, como é óbvio, para mim também. Por isso - notem bem os leitores -, eu pedia ao bom Deus que me concedesse a graça de ser bem sucedido em tomar nota com fidelidade de todas as situações por mim vividas, descrevendo-as minuciosamente do princípio ao fim. Não tinha dúvida alguma quanto à maneira de fazer isso. A única dúvida prendia-se a uma questão de tempo.
No mês de agosto fez um calor insuportável. Em setembro também. Com muita freqüência ouviam-se trovoadas assustadoras. Muitas vezes Angela tinha que ir aos bailes de gala. Se dependesse dela, não queria ir a lugar nenhum, mas eu a obrigava a apresentar-se nos bailes. Afinal de contas, isso era exigido pela sua profissão artística e a vida devia continuar. Quando Angela saía para ir a algum baile de gala, eu ficava escrevendo, mesmo de noite, durante muitas horas, até que ela voltasse. Muitas vezes ela vinha diretamente do salão de festas ainda trajando o seu magnífico vestido de soirée. Numa noite do mês de outubro (o tempo já havia refrescado um pouco, mas mesmo assim o sol continuava intenso e as plantinhas e os arbustos se apresentavam floridos), Angela voltou cerca das três horas da madrugada e entrou no quarto pisando na ponta dos pés para não fazer barulho. Eu havia escrito até as duas horas e ainda estava desperto. Ela tirou a roupa no escuro mesmo e foi tomar banho. A lua brilhava no céu. Então pude ver, banhada pela luz de estranho palor que penetrava pela janelinha aberta, a silhueta do seu corpo. Depois da minha operação foi a primeira vez que fiquei excitado e senti um desejo irreprimível.
Eu a chamei, pronunciando baixinho seu nome. Ela se assustou.
- Eu pensei que você estivesse dormindo. Será que o despertei?
- Venha cá!
- O quê?!
- Venha para junto de mim, por favor, Angela!
- Você está louco? O policial pode espiar para dentro do quarto..
- Ele nunca espia para dentro do quarto quando você está aqui comigo.
- Ou então a irmã-enfermeira que está de plantão durante a noite..
- Ela já esteve aqui e fez o que tinha que fazer. Venha, Angela, por favor. Eu lhe suplico! Estou sentindo um desejo tão grande..
- Mas é uma loucura, Robert!
- Eu sei que você também está com vontade. Você tem tanta vontade quanto eu.
- Naturalmente, Robert, naturalmente...
- Então venha logo!..
Ela se enfiou rapidamente debaixo do cobertor. Eu senti o perfume de sua pele e o suave contato do seu corpo nu. Então nossos corpos ficaram bem unidos... Havia muito tempo que não fazíamos amor de um jeito tão gostoso e demorado...
Capítulo 8
No dia 6 de novembro me foi dada alta do hospital.
Era uma segunda-feira e chovia torrencialmente em Cannes. Lá pelas quatro e meia da tarde desse dia 6 de novembro eu iria deixar o Hôpital des Broussailles.
No tocante às anotações para o relato da minha história, eu já havia feito, até então, um enorme progresso. Havia quase chegado ao ponto em que os senhores estão.
Mas antes de prosseguir devo ainda relatar duas conversas:
A primeira eu definiria melhor dizendo que se tratava de diálogos havidos entre mim e Angela, os quais se repetiam freqüentemente. As palavras eram quase sempre as mesmas:
- Que acontecerá quando os médicos lhe derem alta, Robert? Então ficará tudo de novo como era antes do atentado. Eles procurarão matá-lo novamente. Nós não poderemos ter nem mais um minuto de sossego. Será que teremos de viver permanentemente sob a vigilância policial para nossa proteção?
Eu lhe respondia:
- Eu não sei por que motivo me deram um tiro. Que posso fazer, portanto?
- Você poderia telefonar a essa tal de Hilde Hellmann explicando-lhe que não está mais trabalhando para a Global e que não se preocupará com o caso do iate do irmão dela nem por um segundo mais. Diga-lhe que você nada tem a revelar a quem quer que seja e que daqui por diante só quer viver em paz junto comigo.
- Mas eu já disse isso à Sra. Hellmann - afirmei-lhe mentindo.
- Então repita-lhe uma vez mais essas palavras!
Portanto não tive outro remédio senão telefonar para Hilde dos Brilhantes. Disse-lhe pelo telefone:
- Dentro de pouco tempo terei alta do hospital. Como a senhora bem sabe, não estou mais trabalhando para a Global. Nada existe que eu tenha descoberto com relação à morte do seu irmão ou com relação a qualquer outro fato. Por isso nada poderei denunciar a quem quer que seja.
- Madame Delpierre está escutando a nossa conversa na extensão, não é?
- Sim, Sra. Hellmann.
- Eu já lhe afirmei e repito agora para Madame Delpierre que não foi nenhuma das pessoas do nosso círculo quem atentou contra a sua vida. Nem mesmo em sonho pensamos alguma vez em fazer-lhe isso. Aliás, não tínhamos motivo algum para tanto. Mas o senhor, da sua parte, declarou-me que vai tomar anotações para relatar todos os fatos ocorridos com o senhor.
- Eu já fiz isso, Sra. Hellmann.
- Isso já constitui para os senhores uma boa proteção contra qualquer pessoa. Se não fosse assim, por que teria então tomado a resolução de escrever tal relato? Estou certa de que tanto Monsieur Tilmant como a polícia têm conhecimento de que o senhor está escrevendo a história da sua vida.
- É verdade, Sra. Hellmann. - O meu intento era proteger Angela e a mim próprio o máximo possível.
- Se Tilmant sabe disso, então Clermont e Abel também devem saber.
- Indubitavelmente.
- Então o senhor não poderá ter melhor proteção neste imenso mundo, Sr. Lucas.
- Mas acontece que neste imenso mundo existem milhões de idiotas, Sra. Hellmann.
- Mas não haverá ninguém que seja tão idiota assim para decidir-se a tocar num fio de cabelo dos senhores, sabendo que... - uma pausa de hesitação -...- que o senhor foi inteligente e procurou proteger-se por todos os modos.
- A senhora tem razão. Eu só queria dizer-lhe que eu, depois da minha alta do hospital, não pretendo outra coisa senão viver em Cannes como um simples cidadão.
- Alegro-me pelo fato de o senhor desejar permanecer aqui. Faço votos pelo seu completo restabelecimento, Sr. Lucas.
Assim se despediu Hilde dos Brilhantes.
Finalmente, com esse telefonema, consegui acalmar Angela.
O Comissário Roussel determinou que, pelo menos durante algum tempo depois da minha saída do hospital, eu deveria ficar sob a proteção da polícia.
- A gente nunca sabe o que pode acontecer - disse ele.
Concordei com sua idéia.
A segunda conversa realizou-se na manhã desse mesmo dia, 6 de novembro, ao me submeterem mais uma vez a um rigoroso exame.
Finalmente ficamos a sós num quarto, eu e o Dr. Joubert. Fitamo-nos durante um bom tempo sem pronunciar uma palavra sequer. Finalmente ele se decidiu a falar:
- Fiz um enorme esforço tentando persuadir os colegas para que mudassem de opinião. Eles não querem absolutamente dar-lhe alta, mas sim conservá-lo aqui no hospital.
- Por quê?
- O senhor bem sabe por quê. Sua perna esquerda! Naturalmente também aos meus colegas chamou a atenção o estado da sua perna. Com o tratamento e o descanso que o senhor teve que ter depois do atentado, foi-lhe concedido, por assim dizer, uma espécie de prazo de misericórdia que não pode mais ser dilatado. As condições da irrigação sanguínea da sua perna são péssimas. Dentro de pouco tempo o seu pé vai começar a ficar com uma cor arroxeada.
- Mas o meu pé ainda não está arroxeado.
- No entanto o senhor sente dores quando caminha. Não negue. O senhor deve sentir dores.
Tive que admitir isso.
- Seria melhor que os cirurgiões amputassem a sua perna imediatamente.
- Não! - retruquei-lhe com veemência. - Eu não quero! Permaneci durante tanto tempo neste hospital deitado sobre uma cama e agora quero sair daqui antes da amputação, ainda que seja uma única vez. Será que o senhor não pode compreender isso?
- Claro que posso compreender. Entretanto...
Interrompi a sua frase:
- Madame Delpierre ainda não tem conhecimento disso.
- E por nosso meio ela nunca virá a saber de nada.
- Antes, tenho que lhe dar conhecimento do meu estado. Para isso preciso de tempo. Apenas um pouco de tempo.
Ele soltou uma espécie de suspiro pesado.
- Por quanto tempo?
- Até o Natal e o ano-novo.
- Por quê?
- Eu... - pigarreei -... eu no Natal e no ano-novo gostaria de sair com Angela para passear. Aliás, eu já lhe havia prometido isso. Passear e passar essas datas com alegria, dançando. Sim, dançando, Dr. Joubert! O senhor nem pode imaginar o que isso significa para mim!
Ele me fitou com um olhar de tristeza e respondeu-me:
- Está bem. Mas no dia primeiro de janeiro terminará o prazo concedido. Depois desse dia o seu pé e parte de sua perna começarão a arroxear-se e o senhor sentirá fortes dores. Poderá, até, ser acometido de um novo ataque. Como o senhor bem pode imaginar, o seu coração não melhorou nada.
- O senhor me cumula de alegres notícias, doutor!
- Sou obrigado a dizer-lhe a verdade. Sua perna tem que ser amputada. Bem... por minha causa, o senhor terá ainda mais um adiamento do prazo. Mas é o último prazo que lhe poderá ser concedido.
- Com tal comunicação, que lindo presente de Natal eu darei a Angela!
- Ela suportará tudo com ânimo forte e amor - disse o Dr. Joubert. - Eu já sei como ela é. Ela é uma mulher magnífica. - Une chic femme, disse ele, e essa expressão me fez lembrar daquele velho que dissera o mesmo na escada do ancoradouro dos barcos, quando fomos ao Éden Roc. Aquele velho que nos contou a história da sua mulher que fugira com um verdureiro da região de Grasse.
Chovia torrencialmente na tarde do dia 6 de novembro na hora em que me despedi dos médicos e das irmãs-enfermeiras. Agradeci a todos do fundo do meu coração. Angela havia trazido ao hospital roupas de baixo, um terno, um par de sapatos e uma capa de chuva. Roussel, Lacrosse e Tilmant também apareceram no hospital. Eles haviam resolvido escoltar-me até minha casa. Durante as semanas subseqüentes eu deveria ficar ainda sob constante vigilância policial, para minha proteção, declarou-me Roussel.
Cada vez que saísse de casa, os funcionários da polícia seguir-me-iam para proteger-me. Um policial manteria guarda em frente da porta do apartamento e outro na porta de entrada do edifício. Confesso que fiquei muito satisfeito com tal esquema de proteção, pois nos primeiros dias após a minha saída do hospital veríamos o que poderia acontecer.
Afligia-me demasiadamente o pensamento de ter que falar a Angela sobre a amputação da minha perna e eu fazia um enorme esforço para mostrar-lhe um semblante alegre. É claro que também tinha medo dessa operação. "Mas", pensei, "no Natal e no ano-novo ainda dançaremos juntos, conforme eu lhe prometi."
E, assim, deixei o Hôpital des Broussailles, uma instituição de primeira ordem, onde me tiraram da morte, trazendo-me novamente para a vida. O Hôpital des Broussailles é um portentoso edifício todo
pintado de branco. Possui uma ala interior por onde se passa para ir à clínica. Em cada lado do edifício existe um pavilhão bem amplo e de boa altura.
Depois de ter posto os pés fora da porta notei que o edifício da clínica, mais amplo, ficava do lado oposto. Entre as duas edificações estendia-se um grande parque no qual medravam palmeiras já bem altas, de cujas talas nesse momento se desprendiam pingos de chuva. A marquise descansava sobre colunas redondas. No lado esquerdo de quem saía do hospital ficava uma parte de estacionamento, limitado por um muro baixo, atrás do qual existia uma capela.
Quando fui ferido no atentado, era verão, um verão abrasador e maravilhoso pelo fascínio de cores em profusão. Agora uma grande quantidade de flores já se encontrava murcha e o céu apresentava-se quase preto. Em toda parte as lâmpadas elétricas estavam acesas. Uma chuva fria batia-me no rosto. Angela trouxe logo o Mercedes, que ela deixara estacionado naquele parque. Tilmant, Roussel e Lacrosse tinham vindo ao hospital cada um no seu carro. Partimos numa formação de coluna militar. Lacrosse fez seu carro arrancar em primeiro lugar, seguido de Tilmant e, atrás deste, Angela com o Mercedes. Por fim, encerrando a coluna, seguia Roussel no seu Citroën. Vi alguns homens vestindo impermeáveis, os quais, pode-se dizer, haviam ficado esperando a nossa saída de maneira ostensiva. Quando nos viram, se apressaram em embarcar nos seus carros. Três desses veículos tomaram posição na frente da coluna logo que nossos carros começaram a movimentar-se lentamente.
- Estamos muito bem protegidos - disse eu, como sempre sentado ao lado de Angela.
- Graças a Deus! - respondeu-me ela.
A partir do grande parque em frente da clínica, um caminho asfaltado estendia-se até o limite do terreno pertencente ao hospital. Em ambos os lados desse caminho havia palmeiras. Setas desenhadas no asfalto indicavam as entradas e saídas. O caminho passava por baixo do arco de um portão no trecho de uma curva que contornava uma edificação ocupada pela gerência do hospital, não muito longe da entrada. Os carros que chegavam tinham que avançar fazendo a volta por um lado da edificação, e os que saíam, pelo outro lado. Logo adiante dessa edificação achava-se aberto um largo portão de grades com setas luminosas. As grades se prolongavam de cada lado. Os carros de Lacrosse e Tilmant já haviam transposto o portão e começavam a rodar sobre a estrada. O Hôpital des Broussailles estava localizado na Avenue de Grasse, que não é muito larga. No lado oposto à entrada havia um outro parque de estacionamento e um ponto de táxis. Devido ao intenso tráfego na Avenue de Grasse, que não dispunha de largura suficiente, havia sido colocado um semáforo em frente ao hospital. A luz vermelha acendeu. Lacrosse e Tilmant frearam seus carros. Angela teve que parar o Mercedes exatamente na saída do portão.
Nesse momento, lançando meu olhar para um possante Buick que se achava parado em frente, no parque de estacionamento, notei que da janelinha do lado do volante saíam lampejos produzidos por arma de fogo que detonavam rapidamente dando um tiro após outro. Logo percebi que se tratava de um pistoleiro em ação. Angela soltou um grito desesperado e eu a puxei com força, fazendo-a curvar-se sobre o chão do carro. Desliguei o motor. Passei a ouvir, no mesmo instante, uma confusão de berros de homens e logo em seguida uma enorme quantidade de tiros. Os policiais que nos acompanhavam respondiam ao fogo do bandido. "Certamente Lacrosse e Tilmant também estavam detonando as suas armas", pensei, completamente fora de mim. Invadiu-me, então, uma fúria incontrolável. Eu tinha que ver tudo! Tinha que saber o que estava acontecendo! Precisava saber quem era o cachorro amaldiçoado que estava atirando contra nós: abri a portinhola do meu lado e disse a Angela:
- Fique deitada aí e não saia antes que eu volte.
Comecei a deslocar-me em torno do carro até conseguir um melhor ângulo de visão.
Notei que as pessoas que no momento estavam passando por ali haviam se atirado no chão. Alguns dos policiais estenderam-se sobre a calçada enquanto outros procuravam abrigar-se atrás das grades e das estacas de concreto armado, no portão da entrada. Todos eles atiravam furiosamente contra o Buick que não se encontrava a mais de dez metros de distância. Os choferes de táxi que estavam no ponto também se haviam atirado no chão. Um projétil, tendo perdido a direção, veio bater contra um muro onde ricocheteou lateralmente e foi estilhaçar o vidro da vitrine de uma casa comercial que ficava diante do semáforo. Ouviam-se os brados confusos dos homens. As mulheres soltavam gritos estridentes. Tudo aconteceu com tal rapidez que é impossível descrever a seqüência de todos os lances com a mesma rapidez com que eles se desenrolaram.
A cada minuto que passava ia ficando mais escuro. Aos estrondos das detonações das armas de fogo seguiu-se um silêncio sepulcral. Notei que dois policiais, dando saltos em ziguezague, avançavam para o outro lado, na direção do Buick. Eu os segui, fazendo como eles. Ao mesmo tempo que eles, eu também atingi o tal Buick bege que, agora, tinha os vidros do quebra-vento e os do pára-brisa reduzidos a estilhaços pelas balas. Antes que qualquer outro o fizesse, eu mesmo abri a portinhola a fim de ver quem era o cachorro amaldiçoado que mais uma vez tentou tirar-me a vida. O tronco de um indivíduo com um casaco azul pendeu para fora, vindo a tombar sobre o asfalto molhado pela chuva. Ele caiu com o rosto por terra. Ninguém mais poderia deter-me. Abaixei-me e virei o sujeito para poder reconhecê-lo. E o que vi foi a cara de Kessler, o caçador de sonegadores de impostos de Bonn - exatamente a cara do categorizado funcionário do Ministério das Finanças, com seus ralos cabelos louros, uma cicatriz na têmpora esquerda e cujos olhos denotavam sua crueldade, sua frieza, sua tendência ao mando e seu caráter autoritário. Agora seus olhos se encontravam quase fechados e seu rosto se tornara branco como a cal. Muitas balas deviam ter acertado esse indivíduo. Ele estava morrendo e resfolegava. O casaco se abriu. O sangue, que ele estava perdendo em grande quantidade, atravessava a sua roupa. Kessler estava quase morto, mas ainda se notava nele um resquício de vida. Perdi o meu autodomínio. Sacudindo o sujeito, arrastei-o até que ele ficasse completamente espichado e com o rosto voltado para cima. Ouvi o ruído de um baque. Foi a sua arma que caiu no chão. Muito embora os policiais tivessem feito um grande esforço tentando puxar-me de perto do pistoleiro, nada conseguiram. Eu lhe dava pontapés e o espancava. Eu berrava como um doido com Kessler, com Otto Kessler, que era o papa da repartição fazendária alemã incumbida de perseguir os sonegadores de impostos.
Capítulo 9
- Por que você fez isso, seu cachorro?
Ele não me respondeu.
Dei-lhe uns tapas no rosto. Para mim pouco importava agora fazer isso.
- Responda!
Os policiais que haviam chegado perto do Buick deixaram-me à vontade. Provavelmente não sabiam nada de alemão e era evidente para eles que eu talvez pudesse arrancar do moribundo alguma confissão. Os outros policiais estavam completamente ocupados, tentando afastar a multidão de curiosos que se aproximava do local. E chovia torrencialmente!
- Você tem que me responder, seu porco! - Bati-lhe de novo na fuça.
- Dinheiro... - ele só balbuciava as palavras. - Muito dinheiro..
- Quanto?
- Dois milhões de marcos..
- Foram eles, os indivíduos daquela cambada, que deram esse dinheiro a você? Não foram eles? Diga! Você tem que responder, seu cachorro!
- Foram eles que... me deram... sim...
- E você é que era o tal pistoleiro contratado, não é verdade?
- Sim... Não me deixe morrer... Eu... estou morrendo... Socorro! ...
- Foi você quem eliminou todas essas pessoas, não é verdade? Primeiro, Viale, não é?
- Sim...
- Foi você quem assassinou a irmã-enfermeira e Danon e quem mandou preparar o Mercedes de Angela para sofrermos um acidente fatal, não foi?
- Sim... sim...
- E foi você quem mandou outros amigos seus espancar-me em frente da Résidence de Paris logo que cheguei aqui a Cannes, não foi?
- Outros... amigos meus... sim, fui eu... sim... sim... Eu vou morrer...
- Mas é claro que você vai esticar as canelas, agora, seu porco amaldiçoado. E foi você quem escreveu aquela carta anônima ameaçando Hellmann, não é verdade?
- Eu... sim...
Isso explicava o fato de as caligrafias dos suspeitos não combinarem..
- Quem foi que lhe ditou aquele bilhete? Foi Sargantana?
- Sim... sim... Socorro!... Por misericórdia... Socorro!...
- E foi você quem me deu o tiro lá no Éden Roc, não foi?
- Fui eu... Eles me deram ordens...
- Mas será que eles não sabiam que se você tivesse me eliminado todos eles se desgraçariam?
- Isso... eu não sei... Eles tinham certeza de que... estavam em segurança... Se não fosse assim... não me teriam dado... tal incumbência... nem esta de hoje... aqui... Dois milhões... Homem, isso foi...
Bruscamente a sua cabeça virou-se para o lado. Ele abriu desmesuradamente os olhos, que ficaram esbugalhados. Desapareceu completamente o branco daqueles olhos que, agora, pareciam fitar-me. Pela primeira vez desde que conheci Otto Kessler, seus olhos pareceram-me sentimentais, cheios de calor afetivo e dotados de uma expressão de bondade. Mas também é preciso dizer-se que ele já estava morto. Pingos de chuva caíam sobre seus olhos esbugalhados. Só então notei que um dos policiais puxava-me com força pela manga do capote.
- Que é... que há?
- Vamos até o seu carro, monsieur! Vamos bem depressa, por favor!
Ele andava depressa. Eu, por causa da forte dor no pé, tinha que seguir coxeando atrás dele. Aproximei-me do Mercedes. Em frente ao quebra-vento, que ficava do lado em que Angela se achava sentada, estava agachado, com os joelhos por terra, um médico que usava calça e túnica brancas. Toquei nele.
- Aconteceu algo a ela?...
Ele ergueu os olhos. Depois levantou-se, postando-se de lado. Então ajoelhei-me naquele chão sujo e molhado, levando o meu rosto para perto do de Angela, que se achava agachada sobre o chão do carro exatamente na mesma posição em que a deixara quando saí para avançar até o Buick.
- Angela!... Angela!... Tudo já passou... O sujeito está morto. Mais uma vez a felici... - interrompi-me.
- Você está ferida? Então não se mova, Angela! Não se mova. Fique nessa posição em que você está!
Ela se encontrava agachada entre o assento e os pedais, bem debaixo do volante, com os olhos abertos. No seu semblante estampava-se uma expressão de seriedade, muito embora dos seus lábios parecesse aflorar um estranho sorriso. Ela ainda conservava uma das mãos sobre o volante.
- Eu não vejo sangue... mas você está ferida, não é
verdade? O choque.. Você não pode falar, Angela?... Angela...
Alguém tocou no meu ombro. Levantei-me. Não estava mais no meu juízo perfeito.
- Levante-se para que o médico possa aproximar-se dela - disse-me Gaston Tilmant.
- Ela está ferida, não é? Ela se encontrava sentada no lado esquerdo, ao volante, e foi precisamente por esse lado que entraram as balas... Mas ela não está ferida gravemente. Diga-me que ela não está ferida gravemente, diga-me!
Nesse instante chovia torrencialmente.
- Não vejo uma gota de sangue..
- Nenhuma gota de sangue?! - disse o médico, que se aproximara de Angela. - Ele abriu o casaco dela. Sua blusa branca estava empapada de sangue.
- Angela... isso não quer dizer que seja grave... O sangue... Deve ser um ferimento superficial...
- Pare com isso! - disse o médico, dirigindo-se a mim. - Meu Deus, será que o senhor não vê que essa mulher está morta?
Capítulo 10
Quarta-feira, 8 de novembro de 1972. À tarde. Hoje sepultamos Angela. Sentei-me à sua escrivaninha. Continuava a chover torrencialmente. Comecei a escrever logo que cheguei a casa, de volta do enterro.
Enterramos Angela no Cimetière du Grand Jas, que se localizava igualmente na Avenue de Grasse, a qual, nesse trecho do seu percurso em declive, se encontrava em posição bem elevada. No cemitério viam-se poucos cedros e muitas palmeiras. Em frente do portão de entrada havia muitas casas baixas, pintadas de uma cor escura. Numa delas achava-se instalada uma loja de antiguidades. As pedras tumulares eram muito diferentes das usadas na Alemanha. Os sepulcros, em sua quase totalidade, são bem grandes e os respectivos pedestais freqüentemente se elevam do solo até quase a altura de um metro. Sobre os pedestais acham-se colocadas cruzes de pedra. Por cima das grandes lousas tumulares espalhavam-se muitas flores. Hoje, depois de um dia de chuva torrencial ininterrupta, as próprias flores pareciam traduzir a tristeza e o desespero das almas desoladas. Todo o cemitério, no qual sobressaíam diversos mausoléus com pequenas capelas, tinha o aspecto de uma profunda desolação. Como é natural, ali existiam também sepulturas rasas, cobertas por lajes de mármore, exatamente como se usa na Alemanha. Só que aqui elas não são dispostas simetricamente em fileiras ordenadas. Pode-se dizer que formam um verdadeiro labirinto. Facilmente a gente erra o caminho ao passar pelo meio delas. Destinaram-me, para guardar os restos mortais de Angela, uma sepultura que ficava na parte mais elevada do cemitério, cujo solo era bem inclinado lateralmente. Da sua sepultura podiam-se ver os demais túmulos e divisava-se todo o contorno da cidade. Dali via-se também o mar. Mas nesse dia o mar estava cinzento e com um aspecto fúnebre. O céu também. Tudo parecia abandonado e triste. Divisei o terraço do apartamento de Angela - onde, neste momento em que escrevo esta parte do meu relato, ouço o tamborilar da chuva batendo na vidraça. Depois, desviando o olhar, passei a observar as vistas desde Port Canto até o golfo de La Napoule e não vi uma única embarcação sequer. Enquanto o pastor fazia o sermão, eu ficava continuamente contemplando o mar. Com isso procurava desviar os olhos da sepultura. Mas não dava. De instante a instante meus olhos se fixavam sobre o túmulo. Os coveiros já estavam segurando o esquife de Angela pelas cordas. Eu não conhecia o pastor que fazia o ofício fúnebre. Tratava-se de um religioso cuja jurisdição abrangia La Californie, onde Angela residia. Ele havia estado comigo no dia anterior e prontificou-se a mandar preencher, por mim, todas as formalidades necessárias através de uma instituição especializada.
Era um pastor amável e quero agra-decer-lhe pelos auxílios que me prestou, pois ontem - como também esta manhã - eu não conseguia andar um metro sequer. Ontem eles me seguraram no Hôpital des Broussailles durante todo o dia. Hoje de manhã bem cedo, deram-me algumas injeções. Só depois disso é que consegui ficar de pé, caminhar, conversar, ler e escrever. Infelizmente já posso raciocinar de novo. O pastor interessou-se em saber algo a respeito da vida de Angela, que ele não conhecera pessoalmente. Do contrário, como poderia tecer a sua oração fúnebre? Portanto, fiz-lhe alguns relatos, citando exclusivamente fatos de pouca importância. Os aspectos mais importantes da vida de Angela não consegui relatar, por mais esforço que fizesse. Em cada tentativa a voz se me embargava. Eu disse ao pastor que Angela era boa, sincera e inteligente e que eu a havia amado sobre todas as coisas deste mundo. Tudo isso e algumas coisinhas mais, apropriadas para o momento, foi o que o pastor disse na sua oração fúnebre. Achavam-se presentes pessoas que eram conhecidas minhas e de Angela.
Permanecíamos todos de pé em frente da sepultura aberta, sob aquela intensa chuva. Em torno de mim encontravam-se o baixinho Inspetor Lacrosse, o Comissário Roussel e Gaston Tilmant. Notei, também, a presença da arrumadeira Alphonsine Petit, aquela que sempre rezava para a nossa felicidade, de Monsieur e Madame Quémard, de Serge, o chefe da garagem do Majestic, daquele jovem pintor que, no verão, expunha seus quadros na Croisette (não sei como foi que ele ficou sabendo da morte de Angela). Estavam presentes, também, o proprietário do Félix, Nicolai, o dono do L'Âge d'Or, Jacques, do Club Port Canto, Pasquale e Claude Trabaud, a pequena Geórgia, cujo retrato Angela havia pintado, acompanhada do pai, o grande produtor cinematográfico de Hollywood, o nosso garçom Robert, do Majestic, aquela senhora idosa que no Municipal atendia a caixa registradora e que, embora já octogenária, continuava trabalhando, o Dr. Daniel Friese, do Ministério das Finanças de Bonn, sempre superelegantemente vestido e sempre conservando no rosto ossudo e saliente uma expressão de calma e ponderação. Compareceram também ao enterro mais algumas dezenas de pessoas que me eram desconhecidas. Friese havia chegado a Cannes na manhã anterior, a fim de ajudar a esclarecer o caso da morte de Kessler, e logo depois de ter desembarcado foi visitar-me no hospital, onde me externou suas condolências. Nem sei o que foi que ele me disse, pois eu ainda me encontro em péssimo estado. O pastor estendeu-se bastante com o sermão, bem desenvolvido e bem pensado, mas ele só disse coisas de pouca importância. Comecei a notar que eu, de minuto a minuto, me tornava mais intranqüilo e desassossegado. Meu pé doía terrivelmente.
"...o homem, que nasce da mulher, vive durante pouco tempo e anda sempre intranqüilo e desassossegado. Ele desabrocha como uma flor e declina logo em seguida. Ele voa como uma sombra e o vento não pode..."
Desde que Angela morreu, tenho chorado muito, mas pessoa alguma notou isso. Chorei intimamente. Meu rosto devia estar como uma máscara... uma máscara de pedra. Enquanto o pastor fazia as orações, eu contemplava o mar, sobre o qual pairavam nuvens escuras. Entre as nuvens e o mar, um denso véu de chuva parecia desfazer-se continuamente, caindo com ímpeto sobre o solo. Finalmente, os coveiros começaram a puxar o esquife pelas cordas, a fim de deixá-lo cair dentro da cova. O pastor pegou minha mão e disse-me algumas palavras que não entendi. Depois, entregou-me uma pazinha. Eu me curvei e apanhei com a pá um pouco de terra úmida, que atirei no fundo da cova, sobre o esquife de Angela. A pazinha então correu de mão em mão e todos os presentes também atiraram terra para dentro da sepultura, bem como flores... muitas flores. Todos eles, em seguida, apertaram minha mão. Muitos deles disseram-me algumas palavras, mas não sei o quê. Então foram saindo todos, um após o outro. Por fim, fiquei sozinho, acompanhado dos quatro coveiros, os quais, depois de terem tapado a sepultura, começaram a fumar e a conversar. Durante todo esse tempo permaneci postado de lado e não parei de contemplar o mar que Angela tanto amara.
Já estava ficando escuro e comecei a sentir frio. Observei todo o trabalho dos coveiros. Eles colocaram as flores e as coroas sobre o monte de terra da sepultura e depois foram embora. Naturalmente, só com esse trabalho a sepultura ainda não ficara pronta. Eu havia encomendado uma lápide, que já estava paga, e sobre a qual pedi que fosse inscrita uma única palavra: "ANGELA". Disseram-me que demoraria um pouco até que a terra assentasse bem para permitir a colocação da lápide, mas que antes eles colocariam provisoriamente uma pequena pedra de mármore com a superfície preta.
O Cimetière du Grand Jas é realmente enorme. Por fim, eu era a única pessoa que permanecia nesse local. Pelo menos, assim me pareceu. Aproximei-me do monte de terra da sepultura e tentei falar com Angela.
Digo com sinceridade que tentei falar com ela e isso exigiu de mim um grande esforço, pois muitas eram as coisas que eu ainda tinha para dizer-lhe. Todavia, não consegui formular uma só frase inteligível. Resolvi, portanto, sair caminhando debaixo da chuva até o portão do cemitério. Saí e entrei no carro de Angela. Foi a primeira vez que me sentei ao volante do seu carro. Viam-se ainda ali os orifícios produzidos pelas balas. O ursinho que eu tinha dado a Angela continuava pendurado sob o espelho retrovisor. Entrei na cidade em marcha lenta, descendo pela Croisette. Passei em frente ao Majestic, ao Félix e à Joalheria Van Cleef & Arpeis. Já havia escurecido.
Levei o Mercedes à garagem, fechando-o cuidadosamente. Em frente da porta de entrada do edifício um homem, que estava de vigilância, cumprimentou-me. Quando desci do elevador, um outro homem, que se achava postado em frente à porta do apartamento, também me cumprimentou. Roussel determinara que a polícia continuasse vigilantemente a me proteger, muito embora Kessler já estivesse morto. Com Kessler, moribundo, eu só falara em alemão. Ninguém, à minha volta, pudera compreender a nossa conversa. Eu simplesmente declarei a Roussel que Kessler recebera a incumbência de eliminar-me porque eu estava investigando tudo com muita desconfiança. A mesma coisa declarei a Riese. Do resto a imprensa internacional tomará conhecimento quando meu escrivão Libellé, em Zurique, lhe apresentar o material que se encontra guardado no cofre da agência da Banque Nationale de Paris, ao qual deverá ser juntado este relato que estou terminando, para fazer parte integrante de todo o conjunto de provas coligidas, tais como a confissão de Hilde dos Brilhantes, as fotografias e o cassete com a gravação. Nesse meio tempo não vi Libellé. Ele não compareceu ao enterro de Angela. Mas ele sabe o que deve fazer agora. É evidente que não posso atinar com a razão por que eles obrigaram Kessler a cometer tal loucura, sabendo das providências que eu havia tomado para a nossa segurança, minha e de Angela. Hilde dos Brilhantes, bem como os seus amigos, tinham perfeito conhecimento do que lhes sucederia se eles nos liquidassem. Será que essa gente perdeu o juízo? Ou teriam eles encontrado uma saída para anular o efeito das provas por mim coligidas? Por mais que eu me esforce dando tratos à bola, não consigo fazer nenhuma conjetura sobre qual poderia ser a saída encontrada por eles. Contudo, não fiquei muito tempo pensando nisso.
Cansei-me logo, sentindo dificuldade em concentrar-me. E, falando a pura verdade, agora que Angela não mais existe, para mim pouco importa tudo isso.
No apartamento estava frio. Acendi todas as luzes e liguei todos os aparelhos de televisão. Comecei, então, a caminhar de uma peça para outra, observando tudo atentamente: as pinturas já terminadas e as que estavam em vias de conclusão no estúdio, as louças na cozinha, o banquinho no qual eu me sentara tantas vezes, o meu armário e os vestidos de Angela. Procurei sentir o perfume da sua pele nos panos daqueles vestidos, mas tive que parar imediatamente, pois não consegui suportar isso por mais tempo. Entrei no nosso quarto de dormir e ali fiquei sentado durante muito tempo sobre aquela cama bem larga, onde sempre dormíamos juntos. Por causa da minha comoção, tive que sair do quarto. Examinei todos os nossos elefantinhos.
Sobre a mesa, na sala de estar, havia um copo com pastis até a metade. Angela devia ter bebido nele, um pouco antes de sair para ir buscar-me no hospital. Notavam-se, nas bordas do copo, vestígios de batom. Esse copo, no momento em que escrevo estas linhas, sentado na escrivaninha de Angela, encontra-se na minha frente.
A chuva torrencial não parava de cair. O policial, que se achava postado na frente da porta do apartamento, foi rendido. E eu continuava escrevendo. Levei muito tempo para terminar este relato. São vinte e duas e quinze. Neste exato momento acabei de telefonar ao escrivão Libellé e pedi-lhe que às vinte e três horas impreterivelmente viesse aqui para buscar as últimas páginas do meu relato, do relato que constitui a minha história. Disse-lhe que depois, então, ele deveria proceder conforme havíamos combinado. Respondeu-me que, como era óbvio, iria proceder de acordo com as minhas instruções.
Saí do apartamento a fim de conversar com o policial que me vigiava. Ele se achava sentado num degrau da escada perto do elevador. Entreguei-lhe a chave do apartamento, comunicando-lhe que às vinte e três horas deveria chegar o escrivão Libellé. Recomendei-lhe que o deixasse entrar, pois ele viria buscar algo que deveria levar consigo. Disse ao policial que eu estava muito cansado e que, por isso, iria repousar.
Depois de ter falado com o homem, entrei de novo no apartamento e dirigi-me ao terraço, onde a chuva fria batia em meu rosto. Estando ali, ocorreu-me que certa vez alguém advertira Angela de que tomasse cuidado com a chuva e falara, também, acerca de uma enorme quantidade de jalecos brancos e de uma pessoa que iria morrer. Esse "alguém" era Madame Bernis, a cartomante que atendia no Hotel d'Autriche, no Boulevard Carnot. Ela vaticinara que depois da morte dessa pessoa nada mais me impediria de viver unido e feliz com Angela para sempre. E tudo isso deveria acontecer ainda nesse ano, dissera ela. Sim, foi Madame Bernis quem profetizou tais acontecimentos.
Fiquei caminhando no terraço. Grande parte das flores se achava com as pétalas caídas por causa da forte chuvarada. De cima da balaustrada, de onde Angela certa vez quis se atirar, lancei o olhar lá para baixo. O chão ali era de concreto. O apartamento era realmente bem alto. Qualquer pessoa que se precipitasse dessa altura fatalmente teria morte instantânea.
Fui para dentro mais uma vez. Os aparelhos de televisão estavam transmitindo o noticiário, mas não prestei atenção em nada. Desliguei todos os aparelhos e apaguei todas as luzes, inclusive a lâmpada que se encontrava sobre a escrivaninha, depois de haver terminado de escrever as últimas linhas. Dentro de um quarto de hora estará aqui Libellé. Terei que colocar ordenadamente as folhas do meu relato, uma sobre a outra, a fim de que ele possa encontrar o manuscrito imediatamente. Creio ter anotado tudo o que é de importância.
Agora voltarei de novo ao terraço. A balaustrada está lisa por causa da chuva. Dali será fácil precipitar-me. E, com certeza, tudo se passará bem depressa.
EM TESTEMUNHO DE FÉ PÚBLICA
"Eu, abaixo assinado, declaro na data de hoje, 10 de novembro de 1972, que o cidadão de nacionalidade alemã, de nome Robert Lucas, que se suicidou na noite passada, me havia procurado no meu gabinete no dia 26 de junho de 1972. Pediu-me ele para acompanhá-lo até a agência da Banque Nationale de Paris, na Rue Buttura, para alugarmos um cofre, do qual cada um de nós ficaria com uma chave. Nesse cofre o referido cidadão colocou dois envelopes fechados. Disse-me ele que um dos envelopes continha fotografias e o outro, um cassete com gravação. Eu nunca vi nem as fotografias nem o cassete. Robert Lucas solicitou-me que, no caso de ser ele morto por violência ou no caso de morte de Madame Angela Delpierre em idênticas condições, eu levasse os dois envelopes a Zurique e exibisse os respectivos conteúdos, primeiro aos representantes da imprensa, especialmente reunidos em conferência para tal fim, e depois, à Interpol.
Após o malogrado atentado que sofreu, Robert Lucas teve a idéia de escrever um relato sobre os fatos ocorridos com ele. Todas as tardes, minha secretária ia buscar no Hôpital des Broussailles as folhas que ele estenografava, para datilografá-las. No dia seguinte, invariavelmente, eu levava as folhas datilografadas para colocá-las dentro do cofre alugado na agência da Banque Nationale de Paris. Só após a morte de Robert Lucas foi que tomei a iniciativa de ler a sua história e devo declarar aqui que se trata de pura invencionice maquinada propositadamente - talvez com o objetivo de vingança e de extorsão, ou até mesmo com a finalidade de encobrir os seus próprios crimes. O seu relato parece ser o produto de uma mente desequilibrada e doentia. Eu nunca falei com Robert Lucas acerca de Madame Hellmann nem telefonei a essa senhora. Simplesmente por acaso, encontrei-me com ela uma única vez no Hôpital des Broussailles.
Portanto, não é verdade - caso isso seja dito - que eu mantenho relações de natureza interesseira ou acordos de qualquer espécie com Madame Hellmann ou seja lá com quem for, e agirei judicialmente contra a pessoa que fizer tal afirmação. Nunca recebi de Madame Hellmann aqueles trezentos mil francos a que Robert Lucas faz referência no seu relato. Nem tampouco alguma vez tive conhecimento de certa confissão que ele declarou ter sido redigida por Madame Hellmann. E nenhum papel desse tipo se encontra guardado no cofre da Banque Nationale de Paris.
A polícia criminal, em virtude de decisão judicial, abriu hoje o cofre número 13, que se encontra no salão de jogos do Cassino Palm-Beach e que pertencia a Madame Delpierre. Achavam-se presentes o Comissário Roussel, o Inspetor Lacrosse, Gaston Tilmant, representante do Ministério do Exterior da França, e o Juiz de Instrução Gerald Panisse. Nesse cofre foi encontrado, além de dinheiro e jóias de propriedade da falecida, também um envelope fechado, o qual, por ordem do Exmo. Sr. Juiz de Instrução, foi aberto na presença das citadas autoridades. Dentro do envelope encontrava-se um formulário do Schweizer Merkurbank, de Zurique, devidamente autenticado, que se reportava a uma conta numerada, no montante de 17 800 500 (por extenso: dezessete milhões oitocentos mil e quinhentos) francos suíços. Como já era de se esperar, a diretoria do Schweizer Merkurbank negou-se terminantemente a revelar os nomes dos possuidores da citada conta. E, como é óbvio, também os dirigentes daquele banco se recusaram a dizer de que maneira foi feito o depósito de tal importância.
Robert Lucas telefonou-me um pouco antes do seu suicídio e pediu-me para ir buscar, no apartamento de Madame Delpierre, as últimas folhas da sua história, o que por mim foi feito. No dia seguinte li suas anotações feitas apressadamente e dirigi-me com elas à agência do banco para retirar dele todo o material guardado, a fim de proceder de acordo com as instruções que me haviam sido dadas pelo falecido. Ele me pedira, após a morte de Madame Delpierre, que eu não abrisse o cofre imediatamente, mas sim que esperasse até que ele tivesse concluído todos os apontamentos e anotações para o seu relato. Robert Lucas, ou antes do atentado de que fora vítima ou depois de ter recebido alta do Hôpital des Broussailles, deve ter ido buscar o material guardado, pois nada mais encontrei dentro da gaveta de aço onde o havíamos colocado.
No cofre encontrava-se somente este manuscrito.
CHARLES LIBELLÉ
Escrivão - Cannes"
J. M. Simmel
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