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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOB A LUA CIGANA / Lawrence Thornton
SOB A LUA CIGANA / Lawrence Thornton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SOB A LUA CIGANA

 

Quem sabe onde começa a memória? Quem é capaz de dizer onde a voz vibrante se transforma em eco, e o rosto, antes tão vividamente gravado na retina, apenas uma imagem desbotada?

Três semanas antes, eu não tinha o desejo, tampouco a necessidade, de saber.

Três semanas antes, eu abandonara a memória. Foi quan­do partimos da Gare d'Austerlitz, deixando Paris lentamen­te para trás, sob a neve. Claude, Monika, Joaquín e eu se­guíamos para Lisboa, onde um navio nos levaria para longe da guerra, para a América. Eu acreditava apenas no futuro. O perigo que tínhamos corrido ficara coberto pela neve, silenciado pela brancura que se apresentava como uma nova página da vida.

Desde a chegada a Lisboa, tenho passado todos os dias no porto, observando a partida dos navios, tentando me distrair com suas formas e com a lentidão dos seus movi­mentos. Isso, porém, de nada adianta. Tudo o que vejo está registrado na memória, que ressuscita como Lázaro, para zombar da minha presunção. Reconheço o meu equívoco. Não tinha nem de leve rompido com o passado. Durante muitos anos, dediquei minha vida a seus meandros e vol­teios. Conheci suas câmaras ocultas com uma certa habili­dade de perito e me afastei apenas ao crer que nós quatro logo estaríamos, ao parapeito de um navio, a ver Lisboa ir ficando para trás. Não foi falta de visão nem ingenuidade acreditar que eu escapara. Tudo fora planejado, leváramos em conta todas as contingências. Sem recorrer à arte de um vidente, como poderíamos ter sabido que um homem a cavalo nos aguardava nas montanhas, por onde, a cami­nho da liberdade, precisávamos passar?

 

 

Seria fácil atribuir a morte de Joaquín ao acaso, em vez de à Guarda Civil. Fácil para uma mulher angustiada ficar de um lado para outro, em silêncio, com uma fotografia nas mãos. Fácil vestir a dor como uma mantilha negra ati­rada aos ombros.

A dor, no entanto, torna vitorioso o acaso, permite que seu rosto vazio obscureça o de Joaquín, assim como a som­bra da lua às vezes substitui a luz do sol. Rejeito tal eclipse, e por isso me dedico a este diário.

Até a manhã de hoje, quando soube que precisava es­crever, eu temia a viagem à América, julgando-a uma rup­tura definitiva, uma derradeira despedida a ser lançada ao oceano.

Já não mais. Agora eu a vejo como a oportunidade de purgar-me da dor e da amargura com a essência da vida de Joaquín.

Assim, retorno à memória, não mais como escrava, mas como senhora. A página em branco da vida que a mim se apresentou tão recentemente será preenchida com uma ou­tra história, mais triste do que aquela que eu esperava es­crever. No entanto, haverá nisso benefícios, nenhum deles maior do que o retrato de um homem que nem os nazistas nem a Guarda Civil conseguiram silenciar. Talvez, humil­demente, minhas palavras possam servir de epílogo às fa­mosas Cartas a Lorca, de Joaquín. Talvez, ao enfrentar, des­temida, a memória, eu encontre um modo de olhar de novo para a frente.

 

Informaram-me no porto de que nosso navio partiria no final da semana. Tempo suficiente para eu construir um alicerce que me sustentasse durante a viagem. Tempo su­ficiente para eu explicar por que Joaquín fora procurar em Granada o lugar onde Lorca morrera, modificando assim o rumo da sua vida, e também o da minha.

A jornada de Joaquín ao local que os espanhóis chamam de Fuente Grande começou em Paris, numa manhã da pri­mavera de 1936, pouco mais de seis anos atrás. Já então sua fama de romancista se espalhara pela Europa e lhe trouxera um convite para, no verão, fazer uma palestra so­bre sua obra num congresso de escritores em Madri. Do congresso participariam os maiores vanguardistas, e o con­vite feito por Carnero, o presidente, vinha acompanhado de agradáveis elogios.

Chegava na esteira da publicação de Manhã, o segundo romance de uma série prevista para quatro, dedicada à vida de Paris. Podia bem ter sido um período de felicidade. As críticas eram excelentes, o editor fazia-lhe todas as honras, mas a depressão instalara-se antes mesmo do lançamento do livro. Na época, Joaquín a atribuía ao fato de ter chegado a um impasse. Escrevera umas mil páginas em que traçava a psique da cidade com uma precisão germânica e desa­paixonada. Conferira a Heinz olhos de pintor e ouvidos de músico para registrar tudo o que ele via e ouvia, mas re­ceava que isso não bastasse para sustentar os dois livros seguintes, que teriam de ir além dos anteriores e abranger o todo.

Seu velho amigo ensaísta, Jacques St. Omer, riu-se quan­do Joaquín lhe confidenciou as preocupações.

— Angústia de pós-parto, Wolf. Todo mundo sente a mesma coisa logo que termina algo. Não seja bobo. Saia um pouco de Paris. Divirta-se. Quando voltar, tudo lhe parecerá diferente.

Era quem Joaquín mais respeitava. Conhecera St. Omer pouco depois de ter chegado a Paris, e logo se estabelecera entre eles uma profunda amizade. Viam-se pelo menos uma vez por mês na casa de Jacques, cuja mulher os regalava com comidas e cujos filhos se aproveitavam vergonhosa­mente de sua boa índole. Franco-argelino, St. Omer chegara à Europa aos dezoito anos, a bordo de um imundo vapor. Pagara a passagem trabalhando na casa de máquinas do navio. Em Paris, sobrevivera graças a seus talentos, lera com voracidade e chegara finalmente à condição de jorna­lista respeitado. Era a St. Omer que Joaquín pedia conselhos, depois de iniciada a série de quatro livros. Ambos discu­tiam, gritavam, trocavam insultos. Concluído Aurora, St. Omer levara o romance a um conhecido editor, pedira-lhe que lesse o primeiro capítulo e ficara de um lado para outro aguardando a resposta, como um pai à espera do nasci­mento do filho. Embora o livro não precisasse da intercessão de ninguém, Joaquín ficara grato ao amigo e, a cada ano, no aniversário da publicação, enviava-lhe uma garrada de bom champanhe.

Achava que devia seguir o conselho de St. Omer, mas Joaquín era muito dedicado ao trabalho. Sair de Paris, ainda que por poucas semanas, contrariava sua inclinação. Con­tudo, acabou por reconhecer que, no estado de espírito em que se encontrava, não conseguiria realizar coisa alguma. Assim, decidiu aceitar o convite de Carnero e escreveu uma longa carta a sua tia Maria, que morava em Madri, perguntando-lhe se podia passar algumas semanas com ela e tio Pedro. Logo vinha a resposta, dizendo que ele era bem-vindo para ficar o quanto quisesse.

Em vez de ir diretamente a Madri, resolveu passar uns dias em Berlim, em visita ao pai. Não o via desde o enterro da mãe, sete anos antes. Nunca fora muito próximo de Heinrich. Depois de Joaquín ter deixado a Alemanha com o pro­pósito de ser escritor, dando as costas ao banco da família, Heinrich durante anos se recusara a escrever ao filho, cedendo apenas quando Estrella adoeceu e lhe implorou que deixasse de lado a desavença. Ao retornar, depois da morte da mãe, Joaquín ficara chocado com a intensidade da dor que vira em Heinrich. O velho sempre fora indiferente a Estrella, tra­tara-a com pouco menos desprezo do que o demonstrado pelos criados, mas era como se isso estivesse esquecido. Hein­rich mostrara-se dependente em tudo. Chegara a implorar ao filho que tomasse as providências para o funeral. A noite fizera questão de ficar acordado até tarde, até a bebida o deixar inconsciente, recordando os melhores momentos da vida de casado. Já na manhã seguinte, na sala do café da manhã, cumprimentara Joaquín com um olhar de gelo. A aproximação entre os dois deixara de existir.

— Ele tem um lugar para tudo na vida — certa vez Joa­quín comentou comigo. — A cabeça dele é como uma velha escrivaninha cheia de gavetas, onde as emoções ficam cuidadosamente guardadas: empolgação, raiva, desejo, dor... Tudo em rótulos com escrita gótica. Ele só sabe ser sistemático. Quando minha mãe morreu, ele abriu a gaveta da dor e retirou lembranças, lágrimas, auto-piedade, tudo o que sentia ou acha­va que devia sentir. Não sei se já tinha de fato experimentado essas emoções ou se simplesmente as reservava para quando fossem convenientes. Em todo caso, na manhã seguinte ao enterro, ele encontrou as gavetas vazias e retomou sua vida como Heinrich Wolf, banqueiro e financista.

A cidade que Joaquín deixara, a cidade de seis anos antes, tal como ele a vira pela janela do carro, no cortejo fúnebre da mãe, as altas janelas da residência da família que ele observava a ouvir as recordações do pai, tudo isso havia passado por uma profunda e perturbadora mudança. Na­quela altura, ele ainda era ingênuo em política, embora pou­cos anos antes houvesse se indignado com os relatos da passeata de estudantes que, levando tochas, se concentra­ram na praça, em Unter den Linden, diante da universidade, onde milhares de livros foram queimados. Ele sabia que Hitler, de modo igualmente repugnante, queria apagar o passado, mas, ao chegar a Berlim, naquela tarde quente e sufocante, não estava preparado para ver a cidade trans­formada num pesadelo fascista.

Decidira instalar-se num hotel, assim teria aonde se re­colher, caso o encontro com o pai não transcorresse bem. Naquela primavera, Berlim se preparava para os jogos olím­picos, mas apenas os jardins e as grandes avenidas da ci­dade haviam sido arrumados para dar um aspecto de neu­tralidade. Ao sair da estação, a caminho do hotel, já vira alguns cartazes racistas, mas, só depois de deixar a bagagem e andar pelas ruas, sentiu plenamente o impacto daquilo que encontrava ao longo de quarteirões. Mercearias, açougues, padarias e cafés ostentavam em alemão e hebreu: proi­bida a entrada de judeus: este estabelecimento não se respon­sabiliza pelo tratamento dispensado a judeus.

 

Joaquín entrou num café bastante freqüentado e começou a ler um jornal enquanto comia um pãozinho. Comparada à xenofobia da imprensa oficial, a linguagem dos cartazes parecia modesta. Enojado, largou o jornal, ouviu conversas que aparentemente nada tinham a ver com o que lera e voltou à leitura, incapaz de acreditar em tamanho ódio.

A caminho do hotel, viu uma senhora judia e dois filhos que vinham em sentido contrário. Pareciam andar sem des­tino, perplexos. Quando os olhares se cruzaram, Joaquín sentiu-se envergonhado. Desejou não ter saído.

Ela fixou o olhar em mim, mas não como os mendigos quando encontram alguém em boa situação — Joaquín me contou. — Ela não tinha esperança de receber coisa alguma, e era isso o que havia de terrível. Simplesmente fixou o olhar em mim, incapaz de fazer outra coisa. Tinha ordens para permanecer em silêncio. Estava tão assustada que nem conseguiria estender a mão para pegar uma moeda. Pouco depois que ela se afastou, corri atrás dela, tomado de sentimento de culpa. A mulher se voltou e puxou os filhos junto a si, como se eu lhes fosse fazer algum mal. Mão disse palavra alguma, mas seus olhos expressavam tudo. Tirei as notas que tinha na carteira e, quando vi que ela não ia pegar o dinheiro, enfiei-o na sua sacola. Então me afastei. Compreende? Afastei-me porque não mais podia olhar pata ela. Ainda vejo a mudez dos seus lábios.

Assim que chegou à casa do pai, ficou-lhe claro que o velho não estava feliz em vê-lo. Os cabelos de Heinrich haviam embranquecido, bem como as espessas sobrance­lhas. Joaquín esperava que o pai, já octogenário, estivesse com o coração mais brando. Mas não Ainda guardava ran­cor do filho, não lhe perdoava o fato de ter dado as costas aos negócios da família.

Teria sido melhor que tivesse ficado por aqui — disse Heinrich durante o jantar. — Se não por minha causa, ao menos por sua mãe. Em vez disso, prefere viver cercado de hedonistas e pederastas. Já estive em Paris e não via o momento de ir embora.

Joaquín o deixou prosseguir, sabendo que aquela manifes­tação de ressentimento acabaria por cessar. Além disso, estava mais interessado no que Heinrich tinha a dizer quanto ao presente do que na velha desavença entre os dois. Mais tarde, naquela mesma noite, perguntou qual era a opinião do pai sobre os decretos nazistas. Heinrich lançou-lhe um olhar va­zio. Disse que o banco prosperava e que ele estava feliz.

Concorda com as leis de discriminação racial? — per­guntou Joaquín.

Heinrich olhou-o por cima do copo de vinho.

Há excessos — respondeu, pousando o copo e acen­dendo um charuto. — Mas são perdoáveis diante da ne­cessidade. Você sempre viveu fora do mundo, Joaquín, as­sim como sua mãe. Quanto a mim, o mundo é minha vida. Se entendesse de finanças, você saberia como são os judeus. Agora está tudo melhor. E vai melhorar ainda mais.

Segundo o que recordava Joaquín, o pai sempre demons­trara desprezo pelos levantinos. Até se recusara a conhecer alguns familiares de Estrella, primos distantes do interior, por causa das características mouras. Seria inútil discutir com Heinrich, mas Joaquín se sentia aviltado. De repente, ao lembrar-se da senhora judia e dos filhos, deu-se conta de que não mais poderia permanecer ali, ouvindo aquele discurso. Tão logo encontrou a oportunidade, disse que pre­cisava descansar. Heinrich pareceu pouco se importar com a saída do filho. Joaquín fez um caminho mais longo de volta ao hotel e, durante o trajeto, ficou pensando no pai. Quando criança, achava estranhas e nada generosas as ati­tudes de Heinrich; agora causavam-lhe aversão. Bem antes de chegar ao hotel, já decidia encurtar a visita.

 

O telefone tocou na manhã seguinte quando ele consult­ava o horário de trens. Era Albert, seu primo, que o con­vidava para jantar. Joaquín aceitou, satisfeito, e passou o dia vagando pela cidade. Na casa de Albert, confirmavam- se as impressões que já o haviam deixado cheio de indig­nação. O primo trabalhava como engenheiro na Krupp e nunca havia saído de Berlim. Ele soltou algumas piadas sem graça, referindo-se a Joaquín como o filho pródigo, mas estava interessado em saber da vida em Paris. Joaquín lhe fez a vontade. Albert e a mulher eram sólidos burgueses de vida comicamente claustrofóbica. Contudo, Joaquín achava melhor estar com eles do que com o pai.

Depois do jantar, que não deixou de ser agradável, Albert propôs que tomassem café e conhaque na sala de estar e, ao servir a bebida, perguntou quanto tempo o primo ia ficar na cidade. Joaquín respondeu que partiria no dia se­guinte.

E uma pena que não fique para os jogos — lamentou Albert. — Esperamos obter grandes vitórias.

Os esportes deixavam Joaquín entediado. Já Albert se destacara em corridas de curta distância nos tempos de colégio.

Quem me dera ser quinze anos mais jovem — acres­centou Albert, em tom nostálgico. — Seria um prazer com­petir com negros.

Em seguida, começou a falar das virtudes do Reich. Seus olhos reluziam à medida que expunha as idéias com um complexo senso de retidão moral. Joaquín contou-me que era como se o espírito de vingança, ou algo pior, houvesse se instalado no ambiente. Ouviu o quanto pôde. Depois, frustrado, com raiva, falou a Albert do encontro com a se­nhora judia.

No que me diz respeito, que partam ou morram — disse Albert. — Quanto antes, melhor.

Os primos estavam visivelmente em curso de colisão.

 

No entanto, depois da visita ao pai, Joaquín não mais conseguiria permanecer calado. Perguntou então o que Albert achava de Hitler.

Um grande homem. Um monumento!

Ele não passa de um psicótico obcecado por disciplina — rebateu Joaquín.

Albert pousou o copo, tomado de estupefação.

Vá embora daqui! Não quero traidor na minha casa!

Os dois se levantaram e ficaram um instante se encaran­do. Segundo Joaquín, os olhos de Albert brilhavam de or­gulho presunçoso.

Aqui não há lugar para desajustados — acrescentou Albert. — Seu pai tem razão. De vez em quando conver­samos a seu respeito. Já era de se esperar. Você sempre foi um desajustado, desde criança. Fez um grande mal ao seu pai.

Estou de saída — respondeu Joaquín, querendo chegar à porta o mais depressa possível.

Não antes de eu lhe dizer o que penso.

O quê?

Um alemão compreenderia, mas você tem mistura no sangue. Chego a me perguntar se você é de fato meio alemão ou se isso é só o que se diz para resguardar a honra da família.

E daí?

Talvez sua mãe tenha ido para a cama com outro espanhol, ou até mesmo um judeu. Teria sido bem possível, já que seu pai passava tanto tempo longe dela.

Joaquín deu um passo adiante e esmurrou-lhe o rosto. O golpe jogou-o de costas numa cadeira, que virou e foi ao chão. O nariz de Albert estava quebrado; sangue escorria-lhe pelo rosto, manchando a camisa e o suéter. Joaquín esperava que o primo se levantasse, quando de repente a porta se abriu. Hilda surgiu aos gritos, correndo até o ma­rido, que choramingava com a mão no nariz. Chegou a gritar para Joaquín, que já se voltava para sair. Depois de adulto, ele nunca batera em ninguém. Estava chocado, sua mão doía, mas, ao fechar a porta e descer a escada, tinha uma estranha sensação de júbilo.

Aquela noite foi cheia de sonhos sombrios. Bem mais tarde, lembrando-se deles como se tivessem ocorrido na noite anterior, Joaquín os contaria. Seu pai, em pé ao lado da escrivaninha, ordenava-lhe que entrasse numa gaveta. Joaquín ouviu o ruído da chave na fechadura, o riso do pai e o de Albert. Heinz dizia trechos de Aurora e Manhã, mas aquelas palavras o autor não tinha escrito. Albert in­clinava o copo de conhaque para que Joaquín pudesse olhar para o líquido âmbar, onde, do fundo, emergia o rosto da senhora judia. Albert, em seguida, acendia um fósforo, e, com um gesto solene de saudação, ateava fogo ao rosto. Então ria-se. Heinz estava o tempo todo presente, lendo textos que Joaquín não escrevera.

Acordou trêmulo, exausto, e continuou um bom tempo deitado. Entre os sonhos, os mais perturbadores eram aque­les em que Heinz aparecia. Desprezava o rude simbolismo dos outros, que não lhe traziam novidade alguma. Heinz, porém, zombava dele com palavras ininteligíveis, cujo sen­tido, no entanto, julgava captar. Ele vivera como um sonâmbulo na superfície das coisas. A obra de Joaquín se consumia, parecia-lhe, na ingenuidade e no sentimento de culpa. Várias semanas se passaram sem que sua compreen­são dos sonhos avançasse. Ele, porém, chegara a um limite. Berlim era a porta que inesperadamente se abria, e o ranger das dobradiças confundia-se com o riso do pai e de Albert. Abria-se para o silêncio da senhora judia, abria-se para a Espanha e para Paris, onde Lorca e eu o aguardávamos, com seu destino em nossas mãos.

 

Dois dias depois, numa segunda-feira, Joaquín chegava à principal estação ferroviária de Madri para descobrir, logo ao descer do trem, que o esperado alívio não passava de uma ilusão. Não encontrou os cartazes odiosos, mas era bem visível o ar sombrio das pessoas que, caladas, passa­vam sob o olhar vigilante da Guarda. Os rumores sobre a guerra civil que ele, em Paris, não levara muito a sério, na esperança de que atitudes mais pacíficas fossem por fim prevalecer, confirmavam-se naquele silêncio quase sobre­natural, na presença arrogante e ameaçadora dos policiais, nos olhares esquivos de camponeses, trabalhadores e uns poucos aristocratas. Para nada disso Joaquín estava prepa­rado. Como poderia ser de outro modo? Em apenas quatro dias ele vira, dissera e sonhara tantas coisas! Julgara, antes de passar por Berlim, que a ascendência dual ajustava-se perfeitamente a sua vida, que o propósito do seu trabalho, os longos dias a pesquisar e a escrever correspondiam ao que nele havia de melhor. Mas agora, ao sair da estação, percebia que se encontrava sob o domínio de algo mais poderoso, como se tudo o que vira e ouvira em Berlim estivesse impregnado na vida das pessoas. Ao olhar para a Guarda Civil, enxergava soldados nazistas. Ao passar por uma criança, julgou ter visto ao lado a senhora judia. Ficou fascinado, perplexo. Compreendeu então que era ignorante. O ritmo estável de sua vida transformara-se no estranho sonho em que Heinz o acusava, no soturno estado de es­pírito das pessoas em Madri. Depois de chegar ao ponto de táxi e pedir ao motorista que o levasse à casa de Maria, sentiu-se como um mergulhador que vem à superfície res­pirar, e logo arrefeceu a sensação de estranheza que o as­saltara na estação. Aprendera muitas coisas em Berlim, e agora, na Espanha, as descobertas prosseguiam. Isso era bom. Queria enxergar tudo claramente. Encontrara seu es­pírito criador nas misteriosas acusações de Heinz, e isso também era bom. Queria compreender-se. Enquanto percorria a cidade, na direção dos bairros afastados, a caminho da casa da tia, cometia apenas um engano: ainda acreditava ter controle sobre o próprio destino.

Como o congresso estivesse marcado para quinta-feira, Joaquín teria bastante tempo para se instalar na velha casa, numa rua arborizada, longe do movimento da cidade. As salas do andar térreo da casa da tia davam para um pátio sombreado, e ali ele passou a primeira tarde na companhia de tia Maria e de tio Pedro.

Maria havia ganhado peso desde a última vez em que ele a vira. Seus cabelos presos mim coque, cheio de listras grisalhas, agarravam-se à cabeça como uma touca, realçando-lhe o rosto e o olhar penetrante, agora triste por causa da doença do marido. Um derrame cerebral deixara Pedro num silêncio modorrento, quebrado apenas por comentá­rios ocasionais e desconexos. Sua noção de tempo ficara afetada, e Maria não mais a tentava corrigir. Vivia sozinha, disse ela, e a chegada do sobrinho era uma bênção. En­quanto Maria enchia-lhes os copos de sangria, Joaquín ob­servava o rosto sereno do tio, que, ao lado da fonte, dormia numa cadeira.

Sinto muito — ele lamentou.

Foi a vontade de Deus — respondeu Maria. Ao menos, ele não sente dor. Às vezes, chega a ter alguns momentos de lucidez, mas depois é ainda mais doloroso vê-lo voltar a esse estado. Digo a mim mesma que deveria agradecer o fato de ele ter vivido tão intensamente, mas nem sempre isso me serve de consolo. Aprendi a conviver com a situa­ção. Agora fale-me do seu pai. Ele está bem?

O dinheiro o ajuda a ir vivendo.

Joaquín pensou em comentar as atitudes espantosas de Heinrich, mas, como a tia o conhecesse, concluiu que ela não haveria de se surpreender. Ainda estava abalado com o encontro que tivera com o pai e, assim, achou melhor responder de modo brincalhão:

E vai continuar vivo enquanto tiver lucros.

— Heinrich é assim mesmo. Descobri isso logo que o conheci. Ele e sua rigidez! Você também tinha o coração duro quando era criança, quando sua família vinha aqui no verão. Eu via um burguesinho chegar na minha casa. Mas, depois de alguns dias, você parecia estar mais à von­tade, mais você mesmo. Lembra-se de quando Pedro lhe deu uma roupa de toureiro? Havia um brilho em seu olhar quando você a vestiu. Pensei então comigo: "Ele quer um pouco de aventura, tem gosto pela arena".

Maria olhou para o sobrinho, hesitando antes de pros­seguir.

Será que ainda resta algo do toureiro? Ou agora você é apenas Heinz?

Somente uma tia poderia fazer uma pergunta dessas. Joa­quín lembrava-se perfeitamente daquelas visitas. Embora em Madri fizesse sempre calor, o pai fazia questão de usar camisa branca com gravata. Seu monóculo às vezes saía do lugar, caindo preso ao cordão negro. A mãe usava lenços embebidos em água de colônia, que passava no pescoço e entre os seios. Às vezes ela o chamava e também passava- lhe no rosto o macio lenço de linho. Ele ainda conseguia evocar aquele aroma.

Todos os meninos são toureiros durante certo tempo — respondeu. — Mas acontece que crescemos. Veja estes cabelos brancos.

Não lhe faria nenhum mal de vez em quando dar atenção a esse seu lado, Joaquín. Li seus livros e, em cada página, encontrei somente o sangue alemão. Brilhante, sem dúvida, e orgulho-me em falar do seu sucesso aos amigos. Durante muito tempo não pensei na sua roupa de toureiro. Mas, há alguns meses, minha amiga Isabel observou que o seu Heinz tinha um irmão espiritual, personagem de um autor inglês, cuja filosofia se resume numa frase: "Fique atento e não diga nada". Isso me preocupa um pouco. Até mesmo o seu pai tem compromissos ideológicos. Não quero ofendê-lo. Digo apenas o que me vem à cabeça.

Sem saber, ela o conduzira de volta a Berlim, à estação ferroviária. Durante seis anos, Joaquín vivera em Heinz, como que numa segunda pele. De certo modo, ele era Heinz e agora voltava a sentir, com um renovado senso de estra­nheza, que se comprometera, ou que ficara cego com a de­sembaraçada eloqüência da personagem, com suas arro­gantes teorias. Sabia que Maria não o acusava de desleal­dade, mas não podia dizer o mesmo de si.

Foi assim que as idéias surgiram — ele respondeu, simplesmente.

Posso dizer algo mais?

Claro.

Será possível permanecer assim tão distante? Os tem­pos já não são mais os mesmos. Sabe o que a Guarda fez aos trabalhadores em Casas Viejas? Foi um banho de san­gue. A situação também vai complicar por aqui, na França, na Alemanha. Você não é Pedro, que vai dormir até o fim da vida. Deus me perdoe por dizer isso, mas seria melhor que ele morresse, já não mais vive neste mundo. Você es­creve como um anjo, mas o que será se houver mudanças em Paris?

Um táxi veio buscá-lo na quinta-feira. Uma hora seria mais do que suficiente para ele chegar ao local do congresso, mas, numa praça da cidade, uma manifestação de traba­lhadores impediu-lhe a passagem. Joaquín então pediu ao motorista que se desviasse.

— Olhe ali — respondeu o motorista, erguendo as mãos da direção.

Outros manifestantes se aproximavam, bloqueando as ruas próximas.

Não os critico — observou o motorista. — Já não dá mais para viver.

O motorista praguejava contra Franco, quando um destacamento da Guarda Civil apareceu, dispersando num minuto a multidão. Em frente ao táxi, três policiais agarraram um homem que corria e começaram a bater-lhe com os cassetetes, até que, como um cravo, o sangue irrompeu-lhe pelo rosto. Sem raciocinar, Joaquín desceu do táxi. Um dos policiais fez sinal para que ele se aproximasse enquanto o homem, no chão, levava uma das mãos à cabeça, tentando proteger-se de outro golpe.

Deixem-no em paz! — gritou Joaquín.

Em resposta, o policial o golpeou na testa, de raspão. Cambaleante, Joaquín voltou ao táxi e, ao levar o lenço ao ferimento, viu subir e descer novamente o cassetete que o atingira.

Por sorte, a multidão se dispersara o suficiente para que o motorista pudesse prosseguir.

Foi uma atitude muito corajosa — disse o motorista, ao chegar do outro lado da praça, olhando Joaquín pelo espelho retrovisor. — O senhor está bem?

Estou. Foi só um pequeno corte.

Diante do teatro, onde acontecia o congresso, Joaquín desceu rapidamente do táxi e deu uma gorjeta maior ao motorista, recompensando-o pelo tempo perdido.

Deus o abençoe, senhor. Se o encontrar novamente, faço-lhe uma viagem de graça, para qualquer lugar. Mas agora fique atento. Muitas coisas vão acontecer.

Obrigado por trazer-me até aqui — disse Joaquín, da calçada. — E foda-se a Guarda.

Isso mesmo! — O motorista sorriu, radiante. — Foda- se a Guarda!

A temperatura estava agradável lá dentro. Até os olhos de Joaquín se acostumarem à pouca luz do ambiente, as paredes não passavam de uma superfície negra que se afas­tava na direção do palco amarelo e retangular. Pairava no ar um cheiro de mofo misturado ao de fumaça de cigarro, suor e perfume. Joaquín tocou de leve o ferimento, que doía e estava um pouco inchado. Lembrou-se do que Maria dissera acerca de Casas Viejas e, abrindo caminho entre o público, seguiu na direção do palco, onde um homem meio gordo, de bigode fino, se aproximou dele e se identificou como Constantino Ruíz Carnero.

Eu o reconheci pela fotografia — ele observou, logo notando o corte. — Meu Deus, o que aconteceu?

Uma demonstração de força. Um dos policiais da Guarda não deve ter gostado da minha aparência.

Carnero sacudiu a cabeça, com tristeza.

Agora isso acontece o tempo todo — ele observou. — Há quem diga que a situação vai melhorar, mas creio que estamos caminhando para a guerra.

É, provavelmente. — Joaquín sentiu um forte e súbito desejo de retornar à paz e quietude de Paris.

Mas venha, já é hora de começar. Estão todos a sua espera.

Um poeta e um ensaísta falaram antes de Joaquín. O poeta leu sua obra, pausadamente, com muito sentimento. O ensaísta apresentou um manifesto a favor da rejeição dos velhos métodos. Sua voz era profunda e melodiosa, e Joaquín desejou poder estar à altura de sua dignidade. Ra­ramente falava espanhol, a não ser no café que freqüentava nos fins de semana. Assim, debruçou-se sobre a própria tradução de Aurora, pronunciando com cuidado cada pa­lavra da descrição do amanhecer na Passage des Panora­mas, onde Heinz vê todas as faces de Paris superpostas numa cúpula de vidro.

Fez um grande sucesso. Depois disso, todas as perguntas eram dirigidas a ele, que as respondeu do melhor modo possível. Ficou feliz, no entanto, quando Carnero por fim se levantou para encerrar o encontro. A cabeça de Joaquín doía, e ele estava ansioso por ter uma noite calma. Para o jantar, Maria lhe prometera uma paella e a sobremesa de sua especialidade.

Pessoas subiram ao palco com exemplares de seus livros. Depois dos autógrafos, quando ele juntava seus papéis e se voltava para ir embora, viu um homem bem magro que, sentado na primeira fileira, por certo o esperava. O homem vestia um terno de linho amassado e demasiado grande para o corpo franzino. O que, porém, mais impressionou Joaquín foram os olhos negros, que um acentuado bico-de-viúva realçava. Quando Joaquín descia do palco, ele se aproximou e, depois de cumprimentá-lo pela obra, apresentou-se como Federico Lorca. Em seguida, levou a mão ao bolso, de onde tirou um pequeno livro, dizendo que seria uma honra se Joaquín o aceitasse. Era um exemplar do Romanceiro Cigano.

Joaquín gaguejou que lia a obra de Lorca desde que ela surgira na França. Lorca fez um gesto auto-depreciativo com a mão e perguntou se ele tinha tempo para beber alguma coisa. Diante da resposta afirmativa, Lorca pegou-o pelo braço e disse que conhecia um bom bar naquela mesma rua.

Sentaram-se a uma mesa na calçada e passaram duas horas juntos. Joaquín me contou que, no começo, havia entre eles uma sensação de estranhamento e de surpresa. Lorca parecia-lhe refinado demais diante das personagens que povoavam suas peças e seus poemas.

Confesso que esperava encontrar um cigano — dis­se-lhe Joaquín.

E eu um alemão austero — rebateu Lorca, a rir-se. — Você é bastante afável.

Depois disso, sentiram-se mais à vontade, admitindo que, na obra do outro, o que os atraía era justamente a diferença em relação à própria. O café começava a lotar, mas eles não se incomodaram com os recém-chegados, até que qua­tro homens da Guarda Civil se aproximaram ostensivamen­te e ocuparam uma mesa perto da entrada. Antes, o am­biente estivera ruidoso, mas agora todo mundo conversava em sussurros.

Numa pose desleixada, os homens ficaram olhando ao redor, saboreando o impacto que a presença deles havia causado, desafiando todos a encará-los. Usavam uniforme castanho-escuro, com insígnias em vermelho e azul prega­das nas golas e nas mangas. Um cinto que cruzava o peito pendia do ombro esquerdo de cada policial, e, na cintura, um outro cinto fechava-se numa fivela com emblema.

O que mais chamava a atenção no uniforme era o chapéu de couro fino e reluzente, que, a distância, parecia um tricórnio. Tratava-se, porém, de uma espécie de capacete re­dondo com uma pala atrás, virada para cima, como os cha­péus dos bandarilheiros.

Não fosse o uniforme a encorajar a força bruta daqueles homens, não haveria neles nada de notável, pensou Joaquín.

Lorca, que olhava para Joaquín e o ouvia com atenção, perguntou-lhe se algum deles o havia atacado.

Creio que não. Mas é difícil saber, já que todos se parecem. Gostaria que você não tivesse que lidar com os homens da Guarda.

Que nós não tivéssemos — corrigiu-o Lorca. — Todos os espanhóis têm de lidar com eles. Não temos escolha.

Nessa altura, muitos dos clientes já se haviam retirado, e os que ficavam não pareciam à vontade. Lorca então su­geriu que fossem embora. Joaquín concordou.

Já escurecera, e a luz dos postes projetava sua claridade na fachada suja dos edifícios. A caminho do ponto de táxi, Joaquín admitiu que a Espanha, para ele, havia mudado. Não porque fora agredido pela Guarda, mas por causa do sombrio estado de espírito que ele detectava. A cidade que conhecera na infância agora parecia-lhe um cenário que El Greco teria pintado.

Esse é um modo de ver — respondeu Lorca. — Mas para mim é como ver a chuva no campo, na várzea além de Granada. Não faz diferença se estou a pé, de bicicleta ou de carro. Vejo-a chegando, imagino os primeiros pingos antes de senti-los. Mas talvez eu esteja soltando demais a imaginação. Poetas ciganos vivem com pressentimentos. Se a chuva se aproximar muito, eu a farei prisioneira de pa­lavras.

Ao chegarem ao ponto de táxi, Lorca se despediu. Com um aperto de mão, Joaquín então lhe disse:

Tome cuidado, Lorca. Aqueles cassetetes são bem du­ros.

Eu sei. Vou para Granada amanhã. Meus amigos di­zem que lá é perigoso, mas, se os falangistas vierem me causar problemas, eu lhes direi que meu amigo Joaquín Wolf levou o golpe que me era destinado, que minhas dí­vidas já foram pagas.

Por que não vai a Paris?

Irei, um dia. Talvez logo.

Quando Joaquín entrou no táxi, Lorca ainda ficou um momento parado ao meio-fio antes de voltar-se e seguir na direção do café. Logo em seguida, surgia a Guarda, notou Joaquín. Lorca hesitou, sem saber se devia prosseguir, mas foi adiante.

Os homens da Guarda estavam bêbados. Um deles viu Lorca e fez um comentário qualquer com os outros. Bem no momento em que o motorista dava a partida, Joaquín os ouviu rir.

Espera um pouco, por favor — pediu Joaquín.

Quando Lorca passou pela Guarda, um deles virou-se e gritou:

Oi, querida!

Lorca continuou andando, como se não tivesse ouvido o insulto.

Venha cá, querida! — gritou novamente o policial, pegando na genitália. — Você vai gostar!

Lorca prosseguiu até a esquina e voltou-se. Joaquín, que viu seu rosto à luz do poste, disse-me depois que Lorca parecia irritado, mas não com medo. Ocorreu-lhe então que, antes, já tinha ouvido tudo aquilo. Ameaçou dizer alguma coisa, mas pensou melhor e desistiu.

Está bem — disse Joaquín ao motorista. — Podemos ir.

Quando o táxi se afastou do meio-fio, Lorca acenou em despedida e desapareceu dobrando a esquina.

Joaquín ficara com um corte entre a sobrancelha esquerda e a linha dos cabelos. O cassetete comprimira-lhe a carne, partindo-a em tortuoso semicírculo e não em linha reta, como cortaria uma faca. O ferimento deixaria uma cicatriz, embora todas as noites ele o limpasse cuidadosamente e o sentisse arder com a tintura de iodo que Maria, com deli­cadeza, lhe aplicava. Na semana seguinte, saía a crosta da ferida, e a cicatriz já mostrava sua forma em carne cor-de-rosa.

Quando a viu no espelho, quis enxergá-la melhor e aproximou-se. Viu o rosto aumentar, distorcido, e a cicatriz por fim entrou em perfeito foco. Tinha o formato do chapéu da Guarda Civil: um pequeno semicírculo com uma linha reta, como a pala virada, numa das extremidades. Joaquín riu do próprio infortúnio, dizendo consigo mesmo que não havia nada mais apropriado como assinatura da Guarda.

Vários dias depois, instalado numa agradável rotina que lhe deixava as manhãs livres para ler e escrever, algo o fez lembrar-se disso. Estava no pátio, fazendo anotações sobre a atuação da Guarda Civil, com a idéia de talvez aproveitá-las numa história. A quietude e o escorrer da água na fonte ajudavam-no a se concentrar. De repente, a porta se abriu, e, assim que Maria apareceu, Joaquín soube que havia algo de errado. Ela parecia perturbada. Com certeza, o es­tado de tio Pedro se agravara, pensou. Joaquín então se levantou e se aproximou da tia.

O que houve?

Sinto muito — disse ela, entregando-lhe o jornal. — Lorca foi assassinado. Veja só. Dizem que foi denunciado à Falange.

A manchete gritava em negrito: confirmada a execução do grande poeta garcia lorca. A morte ocorrera fora de Granada, em Fuente Grande, local de que Joaquín nunca ouvira falar. Joaquín leu a história duas vezes e, em seguida, dobrou o jornal. Maria afagou-lhe o braço.

Quer que eu fique ou que o deixe sozinho?

Vou subir para o meu quarto — respondeu.

No entanto, assim que lá chegou, percebeu o erro que cometera. O quarto o sufocava. Jogou o jornal sobre a cama e saiu. Ao descer a escada, lembrou-se de Lorca a dobrar a esquina sob a luz do poste. Não podia acreditar que ele morrera. Isso era tão absurdo quanto alguém dizer que o homem havia chegado à lua.

Caminhou sem destino por entre a sombra manchada de luz, sob as velhas árvores, e quase foi atropelado ao atravessar a rua. O motorista pôs a cabeça para fora e gri­tou-lhe um impropério. Joaquín não respondeu, pois, na­quele momento, o refrão de uma balada repetia-se em sua cabeça: "Às cinco horas da tarde. As cinco em ponto da tarde". Ocorreu-lhe um pensamento terrível. Seria possível que tivessem matado Lorca justamente na hora mencionada em seu famoso poema em homenagem a Ignacio Sánchez Mejías?

Mais tarde, viria a descobrir que ninguém da Falange teria tamanha imaginação. Muitos nem sequer sabiam ler, e outros conheciam apenas a versão oficial da obra de Lorca: que era decadente, anticlerical, que defendia os ciganos. Assim, não fizeram coincidir a hora de sua morte com a do velho amigo. Seguiram as instruções que Valdés, líder da Falange em Granada, lhes apresentara. Levaram-no à barranca de Víznar ao amanhecer, na hora em que o sol se erguia por detrás dos picos da serra de Harana, tingindo de rosa as casas do povoado.

Joaquín chegou a um local de pequenas lojas e cafés. Num deles, escolheu uma mesa, achando que uma xícara de café poderia ajudá-lo a clarear as idéias. Havia ali apenas um casal de jovens, sentados bem próximos um do outro. Conversavam seriamente, esquecidos dos copos que per­maneciam intocados sobre a mesa. A moça usava uma boina preta, um suéter preto, justo, e uma echarpe sobre os om­bros. Seu companheiro vestia um terno elegante e tinha um ar grave ao falar. Sentado de frente para a entrada, Joaquín ficou olhando para eles, na esperança de que a seriedade dos dois o distraísse. A certa altura, a moça tam­bém olhou para Joaquín e sustentou o olhar, dando a en­tender que não gostava de ser observada daquele modo.

Joaquín, então, procurou fixar a atenção no garçom, que trocava o cardápio velho por um novo. Tentou ritualizar o ato de beber o café. Talvez, se fizesse tudo com absoluta precisão, conseguisse controlar a ira e a sensação de aban­dono que o dominava, pensou ele. Isso, porém, de nada adiantou. O gesto de levar a xícara aos lábios, o sabor escuro do café apenas intensificavam suas emoções. Lembrou-se da Guarda no outro café, lembrou-se dos policiais na rua. Tentou afastar a imagem de Lorca a acenar-lhe, de terno branco reluzente como traça à luz do poste. Era um gesto de despedida, mas também parecia um chamado. Foi então que Joaquín soube que devia ir a Granada, que devia ver o lugar onde morrera Lorca.

Pouco importa que Joaquín já estivesse em Paris havia três anos, quando eu soube de tais coisas. Havia nelas um sentimento profético. Nunca, aliás, acreditei que houvesse apenas o acaso a governar aquilo que nos acontece. Não, concordo com os gregos quando afirmam que o destino corre como um fio de ouro no tecido da vida. Sei que algum desígnio conduziu os dois a Fuente Grande. Consternados, os amigos de Lorca deram-se as mãos, convencidos de que ele deveria ter ficado em Madri ou buscado refúgio em Maiorca. Ele, porém, foi a Granada, à cidade dos ciganos, dos padres de batina negra, do Alhambra e da Falange. Foi quando Joaquín estava naquele café, acredito, debru­çado sobre a xícara, sem conseguir beber, que o fio de ouro do seu destino encontrou o de Lorca. Desafio qualquer um a negar que lhe estivesse destinado o que aconteceu em decorrência disso.

Joaquín chegou a Granada amargurado e cheio de raiva. Depois, já instalado em um quarto de hotel, ao ver pela janela a cidade que se estendia abaixo, chegou a pensar que aquele cenário poderia acalmá-lo. Forçou-se a observar os arabescos de ferro das grades dos balcões, o Alhambra a erguer-se como um patriarca mouro acima dos telhados, mas tais bem-aventuranças apenas tornavam mais incom­preensível o destino de Lorca.

Não lhe ocorreu que a força que sentira mover as pessoas na estação ferroviária, em Madri, continuava atuando. Sabia apenas que viera a Granada no impulso de uma emoção que não compreendia muito bem, mas não podia ignorar.

Viera prestar uma homenagem, protestar, lamentar uma morte sem sentido.

Tenho refletido bastante a esse respeito, e a mim parece tratar-se claramente de um prelúdio, em vez de uma coda. Essa é a virtude da compreensão tardia. Não creio que ele tivesse previsto conseqüência alguma. Ele era como o banhista que entra no mar e só percebe que está sendo arrastado para além do que jamais fora quando já é tarde demais.

No dia seguinte, acordou cedo e tomou café da manhã no pátio do hotel. Já obtivera pelos jornais um volume ra­zoável de informações sobre a da morte de Lorca, mas nada sabia do que se passava no campo. Assim, depois do desjejum, foi à recepção perguntar se havia alguém que o le­vasse a Fuente Grande. O recepcionista olhou-o de modo receoso e respondeu que González, o gerente, talvez pu­desse ajudá-lo. Logo em seguida, surgia um homem calvo, de bigode e ar bem sério.

Quando Joaquín lhe disse que queria visitar Fuente Gran­de, González mostrou-se desconfiado.

É um assunto pessoal — acrescentou Joaquín.

González abriu o livro de registros e correu o dedo pela página, na coluna que indicava a nacionalidade dos hós­pedes. Assim que viu que Joaquín era alemão, pôs-se à vontade.

Melhor ir de táxi — ele sugeriu. — Vou chamar um.

Vinte minutos depois chegava um velho Fiat. Um homem corpulento, de boina e paletó surrado, então desceu, foi ao outro lado do carro e abriu a porta do banco de trás.

Não — disse Joaquín, abanando a cabeça. — Vou na frente, se não se importar.

Assim que o táxi se afastou do meio-fio, o motorista pôs óculos escuros.

Tenho um problema nos olhos — ele explicou. — O médico me disse que o sol não lhes faz bem. Por isso o dia é como a noite para mim, mas há coisas piores. González disse que o senhor quer ir a Fuente Grande. Por quê?

Prestar homenagem a um amigo.

Quem?

Garcia Lorca.

O senhor o conhecia?

Um pouco. O suficiente.

Conheci alguns amigos dele — comentou baixinho o motorista, como se lhe fosse difícil dizer tais palavras. — Alguns bandarilheiros e um cantor de flamenco. Cresci na companhia de Mergal, um dos bandarilheiros. Meu irmão Lorenzo era o cantor.

Voltou a ficar calado e, de vez em quando, lançava olha­res a Joaquín. De repente, como se não mais pudesse resistir, começou a falar com veemência:

Os falangistas são uns porcos. Franco é um porco. Não tenho medo de dizer isso. Sabe o que faço todas as manhãs? Vou à igreja e rezo para que ele morra.

Soltou uma das mãos da direção e pinçou com os dedos a manga do velho paletó.

Está vendo isto? — ele prosseguiu. — Tenho outros. Um marrom e um verde, mas estou usando o preto por causa de como me sinto. Meu irmão morreu só porque tinha consciência.

O motorista continuou falando, e suas palavras vinham impregnadas de um amargo de bílis.

Antes da guerra, a trupe de flamenco de Lorenzo se apresentava nas melhores casas de espetáculo. Tinham barriga cheia e grande público, mas a sorte de todos mudou subitamente quando a Espanha passou a morder a si própria como um cão, na rua, com a espinha quebrada. Lorenzo, que odiava a Falange e a Guarda Civil, logo passava a atuar como mensageiro entre os Republicanos. Como, porém, isso não lhe bastasse, passava também a apresentar canções de protesto sempre que julgasse o público receptivo. Embora isso lhe trouxesse problemas, ele não se importava. Quando chegou a Granada, depois do engajamento, já tinha decidido desfazer a trupe e trocar por armas e balas os violões e a música.

Nesse meio tempo, haveriam de se contentar com os pou­cos pesos que ganhariam num café ordinário. Antes da apresentação, o proprietário permitiu-lhes que, para se aquecerem, usassem uma despensa que recendia a queijo e alho. Hector e Angel, os violonistas, tocaram um pouco para os bailarinos, Dolores e Paco. Lorenzo cantou algumas granadianas, preparando a voz. Em seguida, saíram todos para um salão mal iluminado e cheio de gente.

Faziam uma boa apresentação naquela noite. Lorenzo pressentira que seria assim, e, durante o espetáculo, iam ficando cada vez melhores. Lorenzo cumprimentava Dolo­res, que acabara de executar um difícil número de dança, quando a Guarda irrompeu pela porta da frente e seguiu na direção do palco, empurrando o público.

Como o carro de Lorenzo estivesse estacionado no beco, atrás do café, ele gritou aos companheiros que o seguissem. Um tiro despedaçou o violão de Hector, mas todos conse­guiram sair do palco a salvo. Ao atravessarem a despensa, Lorenzo derrubou no chão alguns barris de xerez e bateu a porta.

Estavam para alcançar o carro quando a porta voltou a se abrir. Um feixe de luz, claro como a lua nova, cortou a escuridão. A Guarda atirou, e Dolores deu um rodopio, antes de, como uma boneca de pano, cair morta aos pés de Lorenzo.

No instante seguinte, Angel tropeçava nele, agarrado ao violão e expelindo sangue pela boca. Lorenzo já puxava a porta do carro quando sentiu no ombro a mão de um po­licial. Ouviu então um tremendo ruído na cabeça, e o beco se encheu de luz.

Ao voltar a si, no dia seguinte, foi conduzido por três homens ao escritório do coronel Valdés, que ficava no edi­fício do governo civil. Valdés leu-lhe as acusações e per­guntou-lhe se havia algo a declarar. Lorenzo sabia quem ele era. Todo mundo sabia. O coronel já adquirira certa fama por causa da força que tinha no olhar. Para satisfazer algum tipo de perversidade, obrigava suas vítimas a enca­rá-lo no momento em que ouviam a sentença.

Lorenzo estava com a visão embaçada, e sua cabeça pa­recia arder em chamas. Sabendo que, naquela altura, as palavras seriam inúteis, limpou a garganta e cuspiu no rosto de Valdés. O coronel ficou olhando para ele alguns instan­tes, incapaz de acreditar no insulto. Em seguida, seus olhos encheram-se de ódio, e ele saiu de trás da escrivaninha. Bateu em Lorenzo até deixá-lo inconsciente.

O motorista fez uma pausa e olhou para Joaquín, ava­liando o impacto causado pela história que contava.

— Alguns dias depois, descobri onde ele estava — pros­seguiu o motorista. — Por razões que nunca vou entender, deixaram-me falar com ele durante uma hora. Por isso é que soube disso tudo. Ele estava calmo e pediu-me que o ouvisse com atenção. Nós dois sabíamos o que o aguardava. Ele só estremeceu quando contou que o levaram diante de Valdés. Disse então que só uma vez tinha visto olhos como os dele, grandes, cor de açafrão, como os das efígies em papel machê de Fernando e Isabel que, quando éramos crianças, víamos carregarem pelas ruas de Barcelona, na festa de Corpus Christi. Ficávamos aterrorizados ao ver a procissão percorrer a praça, a caminho da igreja, embora minha mãe explicasse que eram apenas bonecos gigantes, levados por homens que ficavam sob aquelas vestes espa­lhafatosas. Não era nem o tamanho dos olhos o que o as­sustava, mas o fato de não piscarem. Nem mesmo os pe­nitentes encapuzados que andavam pelas ruas com varas e estandartes, durante a Semana Santa, exerciam poder maior sobre a imaginação dele.

Foi a última vez que o vi — acrescentou o motorista. — Mas posso imaginar o que aconteceu depois. Dali a pou­cas noites, levaram-no a Fuente Grande, onde o trancaram numa casa velha, chamada La Colonia. Lorca estava lá. Todo mundo sabia disso.

O motorista então calou-se, aparentemente atento à di­reção. Emocionado com a história, Joaquín lamentou o acon­tecido, mas, como resposta, obteve apenas um grunhido. O motorista estava, com certeza, perdido em pensamentos. Foi então que se tornou real para Joaquín o que acontecera a Lorca. Até então tivera apenas nomes de lugares. Agora, no silêncio, formava-se diante dele a imagem de Valdés. E também a de Lorca, de Lorenzo e de outros, enquanto a cidade ia ficando para trás, num borrão de formas e de cores.

Somente ao chegarem ao campo aberto, à várzea, o mo­torista voltou a falar:

É seguro dizer-lhe meu nome?

Claro.

É Bustamante, Francisco Rodríguez Bustamante. E o seu?

Joaquín Wolf.

Espanhol?

Por parte de mãe.

Compreendo. Veremos o lugar onde meu irmão e seu amigo foram assassinados, Joaquín. Eu me sentiria honrado se fizéssemos um brinde quando chegarmos lá — disse ele, tirando uma garrafa de debaixo do banco.

Seguiam por uma estrada estreita em meio à paisagem cor de terra. Uma cadeia de montanhas não muito altas estendia-se a distância. Pareciam montanhas de deserto. Ao se aproximar delas, Joaquín notou que em dois terços da encosta crescia uma vegetação rala, mas, no cume, havia apenas rochas e terra nua.

É muito bonito, eu acho — disse Bustamante, apontando a montanha. — A serra de Alfacar sempre esteve presente na minha vida. Depois, vem a serra de Harana. Lorenzo e Federico morreram lá, entre os povoados de Al­facar e Víznar. Eu ainda não tinha tido coragem de ir até o local, mas podemos pedir ajuda em Víznar. Quer um gole?

Bustamante puxou a rolha com os dentes, tirou-a com a mão livre e levou a garrafa à boca. Depois, secou os lábios com a manga do paletó e passou a garrafa a Joaquín. Era um bom amontillado, bem puro e seco, que Joaquín bebeu num grande gole, enquanto subia a encosta de Alfacar, entre os olivais.

Era-lhe inevitável sentir um aperto de medo. Sabia que estava na estrada do Arcebispo, mencionada em todas as histórias que lera.

E por aqui que passam todas as noites — disse Bus­tamante, como se tivesse lido os pensamentos de Joaquín. — Antes que a Falange tornasse Víznar conhecido pelo fa­moso passeio ao amanhecer, a jornada da morte, o povoado era apenas conhecido por causa dos padeiros, que fazem um pão excelente e o vendem em Granada. Agora também fazem um pão especial, que chamam de el negro. A cada remessa segue junto um pão preto, em lembrança dos que foram assassinados. Veja, lá está Víznar.

Um sonolento povoado acabava de surgir na encosta, apenas uma rua íngreme, com casas de um branco ofuscante, diante das quais alinhavam-se vasos de argila com cápsicos cor-de-laranja e gerânios. Bustamante apontou para uma grande edificação na colina, acima das casas.

E o palácio do arcebispo Moscoso — disse ele. — Os malditos falangistas transformaram-no em quartel-general. Todas as noites chegam a Víznar com rebeldes prisioneiros amarrados no banco de trás do carro. As vezes, eles param para fazer alguma coisa no palácio, talvez matar alguns.

Ninguém sabe ao certo. Há quem diga que o palácio é agora assombrado.

Logo o táxi parava diante de uma cantina, onde davam diretamente para a rua duas janelas e uma porta estreita, com cortina de contas.

Vou pedir informações — disse Bustamante, e dali a pouco desaparecia dentro da cantina.

Joaquín desceu do carro e, para esticar as pernas, decidiu caminhar até o fim da rua. O povoado parecia existir fora do tempo. E pensava nisso quando notou que Bustamante se aproximava, enfurecido.

São todos covardes — disse o motorista, já dentro do carro. — Ninguém quer servir de guia. Temos de encontrar sozinhos, o caminho.

O que disseram?

Apenas que fica no final da estrada do Arcebispo. Disseram ainda que nunca foram lá, mas não acredito.

De que eles têm medo? Da Guarda? Não vi nenhum desde que saímos da cidade.

Bustamante olhou para Joaquín, que viu o reflexo de si próprio nos óculos do motorista, pequenos para disfarçar sua impaciência.

Todo mundo tem medo da Guarda, senhor. O que é prudente. Mas lembre-se também de que os camponeses são supersticiosos.

Está se referindo ao palácio?

Estou. Eles têm ainda mais medo daquilo que não vêem.

Bustamante deu partida no carro, e logo o táxi, deixando Víznar para trás, subia a colina que dava para um vale pontilhado de pinheiros e oliveiras. O cume desnudado da serra de Alfacar erguia-se mais adiante, trazendo à cena uma serenidade imparcial, o que, de algum modo, acen­tuava a sensação de agouro que Joaquín encontrara nas observações do motorista. Joaquín não era supersticioso, não acreditava no sobrenatural. Além disso, nada havia de inquietante no aspecto do palácio do arcebispo, que parecia até modesto enquanto residência de verão de uma eminên­cia. Joaquín atribuía aquela sensação ao modo como falara Bustamante. Parecia-lhe que, de certa forma, o motorista também acreditava que o local fosse assombrado. Refletia acerca disso, quando, de repente, lhe ocorreu algo impor­tante: na pressa de chegar a Granada, de encontrar um meio de transporte até Fuente Grande, não se preparara para ver o local onde morrera Lorca. E a barranca de Víznar estava já bem próxima, embora ele ainda não a pudesse ver. Era, sem dúvida, por causa disso que se sentia vulne­rável. Perguntou-se então como faria para controlar as emo­ções quando estivesse bem diante da barranca.

A certa altura, Bustamante parou para consultar o mapa. Enquanto o motorista percorria com o dedo a linha ver­melha da estrada, Joaquín observava o cume da serra de Alfacar. Alguns pinheiros solitários e uma vegetação qual­quer cresciam entre as rochas, tornando a nudez da terra ainda mais visível. Joaquín viu nessa nudez algo de sinistro, e achou bom que Bustamante já estivesse novamente prosseguindo. Desceu então o vidro da janela e ouviu o escorrer da água na acéquia, ao lado da estrada. Mais adiante, en­traram num bosque que cercava uma casa velha de pedra e madeira, coberta por telhas.

La Colonia — disse Bustamante. — Costumava ser um lugar de veraneio para filhos de gente rica. Daqui po­demos ir a pé.

Pegou a garrafa, desceu do carro, estendeu o mapa sobre o capô, consultou-o e afastou-se sem dizer palavra.

Acompanharam o curso d'água e atravessaram uma pon­te de pedra sobre um pequeno aqueduto.

E a barranca? — perguntou Joaquín.

Mais adiante, eu acho.

A certa altura, a estrada e o curso d'água faziam uma curva, contornando a colina, e chegavam a um espaço aber­to, de terra pálida, pontilhado de pinheiros novos, pouco mais que mudas. Joaquín distinguiu saliências no chão.

— São covas — observou Bustamante. — Sabia que seria assim que eu reconheceria o local, caso alguma vez viesse até aqui.

Seguiram pelo olival que sombreava um lago em forma de lágrima, o lago de Ainadamar. Tudo o que Joaquín lera juntava-se agora num todo. Ele chegava mesmo a ver, com espantosa clareza, homens e mulheres chegando a La Colonia e sendo trancados numa sala do andar térreo. A Fa­lange demonstrava então seu único aspecto humanitário. Caso alguém quisesse se confessar, chamava-se o padre da paróquia de Víznar, e ele, num canto da sala, ouviria, um a um, os prisioneiros, enquanto, no andar de cima, dormiam os homens que iriam matá-los.

Uma das histórias negava que Lorca tivesse ficado em La Colonia, declarando que, por causa do seu prestígio, deixaram-no dentro de um carro estacionado em Víznar e só o levaram à velha casa pouco antes do amanhecer. Joa­quín não acreditava nisso. Outras histórias, no entanto, afir­mavam que ele de fato passara a noite encarcerado em La Colonia, junto do mestre-escola local e cinco ou seis outros prisioneiros. Ao amanhecer, foram todos conduzidos à barranca e fuzilados. Lorca fora encontrado morto, com uma echarpe frouxamente enrolada no pescoço, ao lado do mestre-escola. Dizem que os coveiros retiraram-lhe a echarpe antes de enterrá-lo.

Esses eram os fatos de que Joaquín se lembrava ali na barranca. Insignificantes, no entanto. Apenas esboçavam a tragédia representada em meio às cores do amanhecer. A luz era bem suave, supunha Joaquín, púrpura ou averme­lhada, e todos, vítimas e assassinos, seriam somente vultos no caminho entre a velha casa de pedra e a barranca. Os tiros espocaram em rápida sucessão, ele imaginou, e os pássaros aninhados voaram das árvores, num borrão de asas, fugin­do da morte. Encontrava-se de tal modo absorto nessa visão que mal notou que Bustamante puxava a rolha da garrafa.

— A Lorca e Lorenzo — ele brindou, tomando um grande gole. Em seguida, passou a garrafa a Joaquín, que repetiu o brinde.

Depois de passarem várias vezes a garrafa um para o outro, Joaquín sugeriu que fossem mais adiante. Queria conhecer melhor o lugar, juntar mais lembranças. No ca­minho, Bustamante desviou-se na direção de La Colonia, dizendo que queria ficar um pouco sozinho.

Joaquín já sabia que a visita à barranca haveria de ser dolorosa, mas não esperava ficar tão abalado. Uma leve brisa brincava entre as oliveiras. Um grito de pássaro soou a distância, quando ele se aproximava do lago, cercado de folhas recurvadas e meio secas, em forma de pena. Caroços de azeitona pontilhavam o chão, e ele se agachou para pegar alguns. Não tinha o costume de colecionar objetos de recordação, mas tratava-se, naquele momento, de algo excepcional. Guardou os caroços no bolso e, ao levantar-se, lembrou-se de alguns poemas de Lorca. Forçou-se então a recitá-los, pois agora a compreensão do que realmente acontecera na barranca avançava sobre ele, atravessava sua tristeza, prevalecia sobre as imagens e os pensamentos essencialmente sentimentais que o protegiam desde que entrara no carro de Bustamante. Passou a contemplar a barranca, dizendo versos da Balada da Guarda Civil, do Romance Sonâmbulo, de tudo o que lhe viesse à mente. Imaginou a melodia de um cante hondo, tal como Lorenzo devia cantar, mas nem os poemas nem as canções atenuavam a imagem de Lorca caído ali, de mãos atadas para trás. Então deixou a sombra de Ainadamar, seguiu depressa na direção de La Colonia, mas não se esquecia de se afastara demasiado tarde para poupar-se da visão de Lorca estendido no chão da barranca, onde o ricto da morte vicejava como flores azuis nos seus lábios líricos.

Nada disseram durante o caminho de volta. Joaquín pres­tara atenção em tudo a partir do momento em que deixara a cidade, mas ir a Fuente Grande era uma coisa, voltar era outra. Passaram pela cantina, onde os homens silenciosos os tinham observado através da cortina de contas. Passaram pelo palácio, pela acéquia, pelas subidas e descidas da es­trada do Arcebispo e chegaram à várzea, que agora parecia bem menor. A medida que prosseguiam, a indignação de Joaquín ia crescendo, como se a estrada de Fuente Grande a Granada fosse uma Via Dolorosa contemporânea, e a can­tina, o palácio, as montanhas, a várzea falassem de uma agonia que ele não mais associava apenas a Lorca, mas a toda a Espanha. Naquela manhã, enquanto esperava Bus­tamante, Joaquín lera as notícias sobre as atrocidades dos Nacionalistas. Lera a respeito dos suprimentos enviados às tropas de Franco, por meio de representantes da Alemanha e da Itália. Fora, no entanto, necessário ele ir ao campo para que tudo isso se tornasse real. Fora necessário ir à barranca, onde tão recentemente derramara-se o sangue do poeta, fora necessário evocar os apaixonados poemas de Lorca para que Joaquín afinal compreendesse que todas essas perdas eram apenas o início. Antes disso, o perigo a que a Espanha estava exposta não lhe parecia tão real. A morte de Lorca ferira-lhe o coração, mas a ida a Fuente Grande ferira-lhe a consciência. Quando chegou a Granada, o impacto de sua visita a Berlim, a poderosa e difusa sen­sação que o assaltara na estação ferroviária de Madri, a inconsciência do tio, o ferimento que sofrerá, o encontro com Lorca, tudo isso redemoinhava em sua cabeça, sem deixá-lo, no entanto, confuso. Aquele era um momento, ele me diria depois, em que o acúmulo de contradições de um determinado período juntava-se numa única idéia que expressava tudo, condensava tudo, congelava formas cambiantes, realçava cores, punha em foco as imagens.

Já era noite quando chegaram ao hotel, e Joaquín con­vidou Bustamante para jantar. O motorista parecia estar esperando pelo convite.

Seria um prazer — ele respondeu. — Quer jantar aqui mesmo?

Não. Leve-me aonde eu possa encontrar as pessoas certas.

Vou ter que dar algumas explicações. Refiro-me ao seu passaporte. A outras coisas também. Há espiões em todo lugar.

Não se preocupe com isso.

Assim que Joaquín entrou no café Los Tres Hombres, ocorreu-lhe que aquele era o local onde Lorenzo fora preso. Um olhar de relance para Bustamante confirmou-lhe a suposição.

É o melhor lugar para conversar — observou Busta­mante.

Joaquín foi conduzido a uma mesa, onde cinco homens olhavam para ele bastante surpresos.

Naquela noite, ele conheceu vários líderes rebeldes. Nada foi dito que revelasse o que aqueles homens faziam, mesmo depois de Bustamante lhes ter contado que Joaquín fora amigo de Lorca. Todos comeram, beberam, e a crescente simpatia entre eles parecia ainda mais forte pelo fato de não ser mencionada, contou-me Joaquín. Nada tampouco foi decidido, mas, depois, quando ele e Bustamante estavam de saída, Mendez, por certo o mais influente dos cinco, sugeriu-lhe que voltassem na noite seguinte.

Seria necessário eu insistir no óbvio? Insistir no fato de que Joaquín apenas seguia o fio de ouro que o ligara a Lorca em Madri e ainda mais fortemente em Fuente Gran­de? De que o entrelaçamento desse fio — já bastante com­plexo desde que Joaquín deixara a vida calma e organizada que tinha em Paris — se tornaria ainda mais intricado de­pois do encontro com os amigos de Bustamante?

O que hoje mais me impressiona, ao tentar seguir o rumo desse fio, é a intensidade do seu brilho, a clareza com que seu desígnio atravessava a vida de Joaquín, o fato de ele ter renunciado a si próprio para viver de um modo que, como ele próprio admitiu, lhe teria sido impensável alguns meses antes.

Na noite seguinte, ele e Bustamante voltaram ao café e, dali, foram parar numa pequena casa situada num bairro pobre da cidade. Depois disso, na companhia de Busta­mante ou de outros membros do grupo rebelde, Joaquín se submeteu, durante uma semana, a longas horas de in­terrogatório, até que não mais suspeitassem dele. Não lhe ocorreu parar para refletir sobre o compromisso que estava assumindo. A morte de Lorca não lhe deixara escolha. Joa­quín se juntou aos rebeldes e participou de vários combates. Também escrevia comunicados, atividade que preparou o caminho para um novo modo de escrever, mais tarde, em Paris, e para o retorno à Espanha, dessa vez comigo. Com certeza teria ficado na Espanha até a derrota dos rebeldes, não tivesse acompanhado um amigo ferido a sua casa, em Guernica.

José Ansaldo era um homem taciturno, reservado, car­pinteiro de profissão. Fiel ao seu País Basco, juntara-se aos rebeldes nas primeiras semanas da guerra. Conhecera Joa­quín durante um pequeno combate em que ocuparam a mesma posição, forçados a permanecer atrás de uma casa de fazenda por causa do intenso tiroteio. Não fora nada surpreendente que entre eles houvesse surgido um vínculo de amizade; tampouco que, meses depois, quando Ansaldo ficara ferido no braço, Joaquín tivesse se preocupado em levar o amigo para casa.

Joaquín pretendia passar um dia ou dois na casa de An­saldo e depois voltar a sua unidade. A mulher de Ansaldo, Gabriela, e duas filhas, Maria e Concepta, choraram quando viram os dois na rua, se aproximando. O ferimento de Ansaldo se abrira durante a viagem. Assim, tão logo teve a oportunidade, Joaquín insistiu em levá-lo ao hospital em Josefinas, onde o amigo ficou numa ala junto de vários outros combatentes.

Ansaldo foi internado num domingo, no final da tarde. Joaquín poderia então ter partido, mas Gabriela, que aparentemente suportara com bravura a ausência do marido, desmanchou-se em lágrimas no caminho de volta para casa. Diante disso, Joaquín decidiu ficar mais um dia. Segunda- feira era o dia de mercado em Guernica, e ele poderia ajudar a trazer comida para a família, o suficiente por algum tem­po, até Gabriela se sentir melhor.

Por volta do meio-dia, foram juntos ao mercado e, mais tarde, quando preparavam o jantar, ouviram o toque do sino da Igreja de Santa Maria. Joaquín não viu nada de estranho nisso, mas Gabriela soltou a faca e chamou as filhas, que brincavam fora de casa.

O que foi isso? — perguntou Joaquín.

O alarme para aviões — ela respondeu. — Precisamos ir ao porão.

Joaquín ouviu os aviões rapidamente se aproximarem, o assobio das bombas e, em seguida, uma série de explosões perto da estação. Maria começou a choramingar, mas Concepta correu à janela. Gabriela gritou à filha que voltasse.

Veja, mamãe. São tão bonitos! — exclamou a menina, apontando para o céu.

Nesse momento, Joaquín viu três bombardeiros Junker voando baixo sobre a cidade.

Concepta! — ele gritou. — Faça o que sua mãe lhe diz!

Você não é meu pai — respondeu a menina, com um olhar de censura.

Esse instante ficou para o resto da vida gravado na lembrança de Joaquín. Concepta era a imagem da criança linda e voluntariosa. Ele ficou admirado com a noção que a me­nina tinha de si própria, com o fato de ela defender o lugar que Ansaldo ocupava em sua vida. Foi então que Joaquín viu os Junkers se erguerem no céu e desaparecerem. Sabia que os aviões tinham soltado bombas e que todos ali esta­vam por ser atingidos, congelados no tempo como a po­pulação de Pompéia, soterrada por toneladas de cinza vul­cânica.

— Corram para o porão! — ele gritou.

Joaquín tinha dado um passo adiante quando um clarão branco tomou de repente conta de tudo. Concepta, Gabriela e Maria perderam o chão e vieram voando na direção dele, num flutuar de vestidos de cores alegres.

Ele não sabia onde estava. Não enxergava, não ouvia, não sentia cheiro algum. Depois, seus ouvidos passaram a zunir doloridamente, e ele ouviu um som profundo, quase rítmico, um bater, como o do coração quando o ouvimos com a orelha no travesseiro. Ficou prestando atenção na­quele som, a única coisa que parecia existir, conforme me contaria. Não conseguia pensar, talvez nem soubesse quem era. Em seguida, seu coração começou a soar como um grande tambor, e o cheiro acre dos explosivos chegou até ele, logo se misturando ao da madeira queimada. Joaquín estava preso no entulho da casa de Ansaldo. Tentou mo­ver-se, mas a perna esquerda ficara imobilizada sob uma viga de madeira. A perna doía. Ele sabia que estava que­brada. Chamou por Gabriela e pelas crianças, mas, como resposta, ouviu apenas sucessivos estrondos de bombas e, durante uma pausa, o terrível crepitar dos incêndios.

De sua caverna de escombros, pôde por fim enxergar boa parte da cidade e então compreendeu que tinha sido lançado para fora. Não havia sequer uma casa em pé. O único edifício em seu campo de visão que não fora des­truído pela chuva de bombas era a Casa de Juntas, onde um dia se instalara o velho Parlamento. Os galhos do fa­moso carvalho de Guernica estendiam-se como gânglios negros contra as nuvens, a refletir o incêndio da cidade.

Guernica se retorcia em chamas, mas, dentro dela, algu­mas formas se distinguiam: indescritíveis paródias de ruas, pelas quais Joaquín caminhara poucas horas antes e que, agora, não passavam de ruínas avermelhadas, sem relação alguma com as formas das casas e dos outros edifícios. Joaquín contemplou a cidade, chamou novamente pela mu­lher e pelas filhas de Ansaldo, perdeu a consciência. Algum tempo depois, sentiu que alguém lhe tocava o rosto. Abriu os olhos. Dois homens com as faces enegrecidas de fumaça e fuligem tentavam retirá-lo dos escombros. Quis falar, mas conseguiu emitir apenas um grunhido. Sua garganta doía, e ele não tinha forças. Nunca na vida se sentira tão impo­tente. Os homens praguejaram e empurraram a viga. Depois de resgatá-lo, levaram-no a uma carroça.

Não tinha idéia de quanto tempo ficara sob os escombros. Sabia apenas que o bombardeio havia cessado e que um velho carro de boi, de rodas maciças, o transportava para algum lugar.

Havia outras pessoas no carro, embora ele não soubesse quantas, nem se eram homens, mulheres ou crianças. Esperava que não houvesse crianças. Deitado de costas, Joaquín virava a cabeça de um lado para outro, olhando para a cidade em ruínas. Grandes nuvens de faíscas se erguiam no céu ao desabar o que sobrava dos prédios. Outras car­roças e carros de bois passavam, carregados de objetos do­mésticos e refugiados. Joaquín não sabia para onde iam. Ainda não conseguia pensar. O mundo para ele se reduzira a variadas sensações de calor, diversas tonalidades de fogo, casas que desabavam, ranger de rodas de carroça algumas pessoas que, mais vagarosas, iam ficando para trás. Ouviu gritos, gemidos, toques de sino das brigadas de incêndio. Mesmo depois de tais sons terem diminuído, já enfraquecida a luz da cidade em chamas, ainda se via nas nuvens o reflexo do fogo. Devagar, a procissão atravessou Guernica. Demorou até chegar ao campo, onde casas de fazenda ar­diam nas colinas, como velas votivas, pequenas chamas a tremular em meio à vaga lembrança do cenário que, no dia anterior, ele vira ao chegar à cidade com Ansaldo.

A certa altura, Joaquín sentiu que tinha febre. A perna e a cabeça doíam. Lutou para se manter acordado, a par do que acontecia. Os homens no assento tocavam os bois e, de vez em quando, falavam, mas não havia seqüência no que diziam. Pessoas que corriam para o campo tinham sido metralhadas, comentou um deles.

Não — retrucou o outro. — Impossível!

Veja! — exclamou o primeiro. — Mataram todas as ovelhas.

As vozes dos homens confundiam-se com outras, vozes da tia, de Lorca, de Ansaldo no trem.

Veja, mamãe — disse Concepta. — São tão bonitos!

Joaquín acordou em meio ao cheiro de curativos, iodo, gesso, e, ao tentar abrir os olhos, descobriu que estavam inchados. Sentia as pálpebras espessas, laceradas, mas, com um medo súbito da cor vermelha, forçou-se a abri-las. En­xergou o lustre e assustou-se, confundindo a lâmpada com uma chama. Lembrou-se então das bombas incendiárias que vira de sob os escombros. Quando tentou levantar-se, um enfermeira, com ar preocupado, delicadamente o conteve, pousando a mão sobre seu peito. Joaquín a viu levar o dedo aos lábios. Viu também que estava com a perna en­gessada, suspensa num aparato metálico.

Você vai ficar bom — disse ela, tocando-lhe a testa.

Joaquín sentiu o frescor da mão da enfermeira e também um cheiro de leve perfume misturado ao de remédios.

Sua perna está quebrada, mas não é nada muito grave — ela acrescentou.

Onde estou?

Em Bilbao. Você chegou ontem. Tem também uma concussão. Agora, tome isto.

A enfermeira ajudou-o a sentar-se, e ele engoliu as pí­lulas. Antes de novamente deitar-se, Joaquín notou que es­tava num grande quarto de hospital, cheio de gente enfaixada.

Durma — disse a enfermeira.

Obediente como uma criança, ele fechou os olhos.

Ponha a mão na minha testa — pediu Joaquín. Pare­ceu-lhe que a enfermeira ficou ao seu lado até ele dormir.

Ficou dois meses em Bilbao. Durante a primeira semana, consumiu-se de dor na cabeça e na perna. Às vezes, agar­rando as têmporas, sem conseguir suportá-la, chegava a tomar morfina.

Só aplico injeção em situações extremas — disse o médico — O estoque é limitado.

Naquela semana, a vida de Joaquín restringiu-se à dor que sentia. Nunca ele se vira tão prisioneiro do próprio corpo. Às vezes, associava-o à casa de Ansaldo. Ou então a uma rede de terminais nervosos e de minúsculos vasos sangüíneos, que se estendiam como fios de teia de aranha, como o velho carvalho de Guernica. Durante uma semana, ele foi apenas dores e gânglios; ficou sem saber se era dia ou noite.

Quando a dor cedeu e ele se deu conta de que conseguia pensar, sentou-se com cuidado na cama, temendo que al­gum enorme objeto lhe caísse sobre a cabeça. Nada caiu. Joaquín examinou o quarto, ouviu gemidos e também pas­sos de enfermeiras e médicos. Quando sua enfermeira se aproximou, pareceu-lhe que desde muito a conhecia. Seu nome era Felicia, disse ela.

Você está melhor. — Ela sorriu. — Vi logo que entrei, de manhã.

Conte-me o que aconteceu.

Ela sentou-se. As notícias ainda estavam chegando, disse a enfermeira, mas sabia-se que Guernica fora bombardeada e atingida pelo fogo das metralhadoras durante quase qua­tro horas.

A cidade ficou arrasada — ela acrescentou. — Não se sabe quantos foram os mortos.

O médico calvo, de bigode e cavanhaque, que lhe apli­cava morfina, se aproximou de Joaquín, deixou a prancheta sobre a mesa, ao lado da cama, e tirou-lhe a pressão. Depois, examinou-lhe os olhos com uma pequena lanterna e ergueu o tronco. Joaquín pensava no que a enfermeira lhe acabara de contar. Nesse momento, lembrou-se de ter visto a mulher e as filhas de Ansaldo virem voando em sua direção. Pre­cisava contar isso ao médico e a Felicia. Queria perguntar- lhes se tinham alguma notícia delas, se havia alguma criança no hospital. Sabia, porém, que a pergunta era inútil. Lem­brou-se também das chamas que haviam engolido o hos­pital onde estava José.

Quando posso voltar? — ele perguntou.

O médico abanou a cabeça.

A guerra acabou para você — ele respondeu. — A fratura é bem grave. Com alguma sorte, você poderá andar com muletas daqui a alguns meses, mas acho que nunca mais voltará a correr. E sem correr... — A voz do médico foi sumindo, e ele estralou a língua. — Somos gratos por tudo.

Dois meses depois, Joaquín chegava a Paris. St. Omer foi buscá-lo na Gare d'Austerlitz e, sob os protestos do ami­go, insistiu em levá-lo ao seu próprio apartamento, para que lá ficasse até que as muletas não fossem mais neces­sárias.

Para Joaquín foi um alívio o fato de o velho amigo não lhe ter permitido voltar para casa. Queria ter com quem conversar e, além disso, temia ficar sozinho. Todas as noites, seu sono era povoado de imagens lúgubres de incêndios e crianças voando. Durante o dia, ele evocava seguidamente sua viagem a Guernica. Sabia que nada poderia ter feito para alterar o que acontecera. Decidira permanecer mais um dia para ajudar Gabriela, mas esse não era o único motivo. Na verdade, deleitara-se com cada minuto longe da frente de combate. Ao embarcar no trem para o País Basco, sentira-se em segurança pela primeira vez em meses. Resolvera, portanto, ficar mais tempo em Guernica para prolongar sua sensação de segurança, de normalidade, e agora enchia-se de sentimento de culpa.

Foi covardia minha. Eles precisavam do maior número possível de combatentes.

St. Omer olhou para ele, sem lhe dar crédito.

Bobagem, Wolf. Talvez você ainda não esteja muito bom da cabeça. Ficou dez meses com eles, o que também lhe custou um problema na perna — observou St. Omer, apontando para as muletas. — Isso é romantismo ingênuo. Parece que você só ficaria satisfeito se morresse pela Espa­nha ou com alguma tolice do gênero. Converse com outras pessoas. Muita gente o considera notável, se é que isso sig­nifica alguma coisa para você.

As palavras de St. Omer não trouxeram alívio a Joaquín. Enquanto o amigo falava, ele evocava o momento em que vira os bombardeiros se aproximarem da casa de Ansaldo, o brilho das suásticas nas fuselagens no instante em que os aviões arremeteram para cima.

Eu os abandonei — censurou-se Joaquín. — Devia ter voltado depois de deixar José no hospital.

St. Omer compreendeu o que o atormentava. Não havia incredulidade em sua voz quando ele disse:

Você logo vai se sentir melhor.

Isso não aconteceu. A morte de Lorca, a luta, a morte cia família de Ansaldo haviam ficado na alma de Joaquín como uma marca de nascença. Para sempre ele viveria e escreveria sob a sombra de Guernica.

 

                 Travessia

                 26 de Novembro-13 de Dezembro de 1942

Nós nos conhecemos três anos depois, na primavera de 1940, depois da invasão Tchecoslováquia e da Po­lônia pelos nazistas. Ninguém sabia o que haveria de re­sultar daquilo tudo. Alguns achavam que a França seria a próxima, e, por mais que eu não quisesse pensar na Ale­manha, as circunstâncias me obrigavam a isso. A ansiedade desceu como névoa sobre Paris, tão espessa que quase a podíamos perceber com o tato.

Lembrei-me ontem, ao partir de Lisboa em meio a um forte vento, do estado de espírito dessa época. Estou incerta quanto ao que nos aguarda além do horizonte, assim como nós, parisienses, ficávamos ao olhar para o leste, à espera de que algo acontecesse, sabe Deus lá o quê. Agora, é claro, temos um destino: a cidade de Los Angeles, um local cha­mado Pacific Palisades. Mas não tenho bola de cristal nem jogo de dados que me permitam prever o futuro. Tudo está em movimento.

Depois de três semanas e meia de espera, começava a me perguntar se um dia partiríamos. Todos os dias, Claude, Monika e eu íamos ao porto e ouvíamos do capitão, que calmamente mascava a ponta do charuto apagado, histórias duvidosas acerca de provisões extraviadas, problemas de abastecimento e defeitos nas máquinas. Assim, livres de quaisquer compromissos, explorávamos a cidade, embora nela não tivéssemos interesse. Não quero dizer que faltas­sem encantos a Lisboa, apenas que suas ruas, edifícios e monumentos, cada vez mais familiares para nós, não nos pareciam bem reais e nos lembravam a ausência de Joaquín. Fiquei feliz ao vê-la desaparecer por detrás da chuva.

Depois de tanta espera, cheguei a pensar que a tripulação não tinha pressa, mas, ontem, o capitão estava ao mesmo tempo em todos os lugares do navio, a gritar ordens para os companheiros, a arrancar os cabelos, como se quisesse recuperar o tempo perdido.

Parece-me que, além de nós, há outros cinco passageiros: dois casais e um senhor de idade. Cumprimentamo-nos educadamente ao nos encontrarmos, mas todos querem manter-se reservados. Acho melhor assim, pois a compa­nhia de Claude e de Monika já me é bem suficiente. O capitão previu que ficaremos duas semanas no mar, talvez mais se houver mau tempo. Antes de eu ter decidido tentar, por meio da escrita, compreender o que se passou, essas duas semanas haveriam de me parecer uma eternidade. Agora vejo-me na urgência de continuar escrevendo e de dizer o que for possível antes de chegar à América.

Tão logo nos instalamos, soube que não conseguiria pas­sar os dias na cabina exígua que me indicaram. Assim, aca­bei escolhendo este lugar no convés de ré do navio. Já me acostumei a este mundo de águas do oceano e até desfrutei esta manhã, durante uma hora ou duas, de uma certa celebridade. Cheguei ao convés logo ao nascer do sol, com o propósito de começar o dia como Joaquín costumava fazer em Paris, quando, ao amanhecer, saía a pesquisar nas ruas. Já tinha começado a escrever quando alguns membros da tripulação e um dos casais deram para me observar. Todos desviavam a atenção de mim quando eu erguia os olhos. Logo, porém, satisfaziam a curiosidade, e agora, depois de me haverem julgado uma excêntrica inofensiva, os homens se ocupam de suas tarefas.

Ontem, agarrada ao frio parapeito de ferro, vendo Lisboa ir ficando, sob a chuva, para trás, lembrei-me do Romance Sonâmbulo de Lorca, e vi minha vida e a de Joaquín retratadas na história. Disse comigo mesma que a vida das pes­soas não segue o que acontece nos poemas. A minha e a de Joaquín, porém, seguiam. Então pensei: já que descobri isso no poema, por que não o aproveitar? A memória pre­cisa ser organizada. Senão haveria apenas imagens soltas, frases vistas de relance, como manchetes de jornal. Assim, olhando para o mar, vou dar forma ao que escrever; como no poema de Lorca, em que a cigana, do balcão, contempla as verdes águas da cisterna, à espera do homem que ama. Tenho, com certeza, muito mais conhecimentos do que ela; passei por experiências que estariam muito além do seu alcance, sendo ela uma mulher espanhola tradicional. Ao contrário da cigana, não tenho falsas esperanças. Essa per­sonagem sem nome de um poema e eu, Ursula Krieger, temos, porém, pontos em comum. A maior proximidade entre nós acontece ao contemplarmos a água, pensando em quem amamos — ela, um contrabandista; eu, um escritor de algum renome.

A primeira vez que li o poema, fiquei perdida na exu­berância da linguagem, e somente aos poucos, depois de duas semanas, foi que o mundo interior da cigana se abriu para a minha compreensão. Agora que o domino, sou capaz de ir das imagens para a história, da história para as imagens. Isso é ainda mais fácil aqui no mar, cujo verde me proporciona a atmosfera propícia. Vejo-a agora na planície inundada de sol, na casa do pai, de teto achatado e cisterna. Ela ama um contrabandista que costuma ir a cavalo das colinas para o mar, onde um navio, à noite, chega à costa carregado de mercadorias. O caminho de volta é cheio de perigos. Ele precisa não somente despistar os funcionários da alfândega, como também a Guarda Civil, que tem ordens para atirar nos contrabandistas. Ela o espera noite após noi­te, debruçada no parapeito do terraço, olhos fixos na direção das colinas além da verde relva da cisterna, quase invisíveis. A luz da Lua confere-lhe ao rosto um brilho levemente esverdeado. Ela está apaixonada, obcecada, e logo sua an­siedade abarca o mar, as colinas, o vento. Evoca então um mundo verde de segurança, frescor, sem frustrações. Em seu encantamento, atira-se à cisterna, procurando nas águas o homem que ama. No momento em que ela submerge, seu amado está a caminho da casa da jovem, ferido pela Guarda. Ao chegar, ele a encontra morta. Mais tarde, dei­tado na cama, ele ouve a Guarda Civil que está à porta.

Pensar nisso tudo é como consultar um vidente que me diga: "Veja! Aí está o caminho da sua vida. Lorca traçou o da cigana conforme o seu, o do contrabandista conforme o de Joaquín, o caminho da Guarda conforme o da Guarda". As palavras do vidente são, porém, dirigidas a quem sou agora. Quem eu era se encontra no recuo da memória, e a memória é algo que venho odiando há muitos anos. Quase vinte anos atrás, trazendo Monika e uma caixa de dinheiro, mudei-me de Berlim para Paris com o único desejo de matar o passado. Desci a cortina do trem, sob os protestos de Monika e dos dois jovens que também estavam na cabina. Era a primeira vez que ela andava de trem. Queria ver a paisagem e as cidades, mas eu estava farta da Alemanha. Não queria saber de vislumbres dos prédios cinzentos de Berlim nem das cidadezinhas mimosas em que a torre da igreja se erguia acima das casas ao redor. Em Paris, fazia o possível para esquecer meu país de origem; e conseguia, a não ser quando chegavam os Homens do Relógio, minhas visitas. Não adiantava eu fechar as cortinas e trancar a porta. Eles entravam assim mesmo, trazendo-me o passado numa bandeja de prata.

Agora, aqui no convés, não há nada que se interponha entre mim e o passado, mesmo que o desejasse. Pode vir uma tempestade, mas as ondas nunca serão tão altas a ponto de impedir que eu enxergue Berlim. As nuvens podem des­cer até as chaminés do navio, mas sempre haverá um vão livre entre elas e o mar, ainda que tão estreito quanto as ranhuras dos óculos que usam os esquimós para se proteger do ofuscamento da neve. Minha infância está presente. Vejo-a atrás dos capacetes dos soldados do Kaiser, pontia­gudos como lanças de grades de ferro. Vejo-os circular, ondulantes, pelas ruas. Vejo a casa da minha infância, numa rua estreita, num bairro modesto, longe da luxuosa resi­dência da família de Joaquín. Na verdade, num outro mun­do, governado pelo espírito dócil, reservado, de minha mãe. Não conheci ninguém que exigisse tão pouco da vida. Um marido, filhos, comida, algumas flores no minúsculo jardim da casa eram mais que o suficiente para satisfazê-la. Isso ficava visível nas fotografias da época. Um rosto de camafeu, emoldurado por cabelos loiros; pele macia como um manjar; olhos sem malícia, interesse e, triste dizer, muita inteligência. Minha mãe chegou ao auge de vida aos vinte e cinco anos e aí permaneceu, equilibrada como uma bai­larina em ponta, até a morte do meu irmão Jürgen, no dia em que ele completava onze anos. Ouço vozes afoitas, so­luços abafados. Vejo-me na escura sala de visitas, meu pai debruçado sobre minha mãe, a dar-lhe a notícia. Ela até então estivera sentada, ereta, como se, por encantamento, a rigidez pudesse eliminar a infecção que, dali a pouco, mataria o seu primogênito. Foi quando a bailarina caiu da ponta, e ela se despetalou como uma rosa murcha.

Outra clara lembrança que tenho dela é de vê-la polir as fotografias de Jürgen, que ficavam sobre sua penteadeira. Às vezes, vejo-a encostar os pequenos lábios nas fotografias, empurrando para trás os cabelos rebeldes e volumosos. Lembro-me do meu pai em pé, braços caídos, ao lado dela. Ele estava sempre nessa posição, talvez porque assim ex­pressasse seu sentimento de derrota. Permanecia imóvel, mas sua voz se erguia ao dizer a minha mãe que ela não podia trazer Jürgen de volta. Repetia isso várias vezes, en­quanto ela olhava para o retrato.

Sob muitos aspectos, era parecido com minha mãe. Na falta de ambição, principalmente. Haviam encontrado um o outro, e esse era o maior acontecimento da vida de ambos. Tiveram dois filhos, eu e Jürgen, e isso lhes dava um grande contentamento.

Meu pai era relojoeiro, e o trabalho minucioso o levara a se distanciar do mundo. Sua loja mal se distinguia no quarteirão de variado comércio. Às vezes eu ia até lá e encontrava um homem diferente daquele que todas as noi­tes voltava para casa. Ele se debruçava sobre o trabalho com surpreendente energia e concentração, lente de joalheiro encaixada na órbita do olho esquerdo. Achando que devia haver coisas maravilhosas naquele mundo de minús­culos mecanismos, um dia implorei a meu pai que me dei­xasse espiar pela lente. Foi uma decepção. Aquele meca­nismo não significava nada para mim, nada além do que a pintura abstrata significa para muita gente.

Pendurados nas paredes da loja, havia relógios quadra­dos, redondos, retangulares, a soar um tique-taque agou­rento aos meus ouvidos de criança. Embora eu não tivesse muita noção do tempo, estava convencida de que aqueles relógios o consumiam e, quando se esgotasse, seria o Juízo Final — de que eu ouvia falar todos os domingos, na igreja — ou algo semelhante. Os relógios evocavam o mal, e é por isso, eu sei, que vim a chamar as minhas visitas de os Homens do Relógio.

Minhas visitas, porém, somente apareceram muitos anos depois, e não quero agora me deter nessa nuvem sombria que até o presente parece pairar sobre a minha vida. A infância foi um período tranqüilo para mim e para Jürgen. Éramos acarinhados, amimalhados, mal-acostumados. Vi­víamos fazendo birra, pelas quais minha mãe apenas nos repreendia de leve, aplicando castigos insignificantes. Quando meu pai chegava do trabalho, ela lhe falava da louça quebrada, dos doces furtados, da linguagem insolente. Ele não a ouvia, lançando para nós um olhar inexpres­sivo, para, em seguida, abrir um sorriso sonhador, nos cha­mar até ele, olhar para a minha mãe e dizer-lhe, em sua melhor imitação de autoridade, que devíamos sair do cas­tigo. Estou certa de que minha mãe também devia se sentir aliviada com isso, pois, ainda mais do que nós, devia contar com a suposta supremacia da autoridade do meu pai. Logo cedo eu e meu irmão aprendemos o segredo da nossa li­berdade, ao qual nos entregamos como pássaros à luz do sol.

De Jürgen, eu diria que ele tinha em si o potencial de um guerreiro teutônico. Dos castelos que sonhava no jar­dim, ou atrás do sofá, ele ditava para mim as ordens que regiam seus mundos imaginários. Eu era sempre a donzela raptada, e ele o vingador justiceiro, mas não tardou que eu me cansasse do papel de submissão.

Mas nos livros é sempre assim! — ele argumentava.

Não me importa — eu respondia. — Fique de prisio­neiro uma vez para ver como é bom.

Ah, isso é para as meninas! Agora finja que está presa na masmorra.

Quando ele morreu, tive certeza de que tinha ido para o inferno, pois tal noção de pós-vida me fora inculcada pelo ministro luterano.

O que é a morte? — perguntei então a minha mãe.

Ela desandou a chorar e meu pai a levou para outra sala.

Jürgen vai para o inferno? — perguntei a meu pai, assim que ele voltou.

Não, agora ele é um anjo, querida.

Jürgen estava muito feliz e agora vivia num lugar com ruas pavimentadas de ouro, não no inferno, ele explicou. Como, porém, eu não conseguisse muito bem distinguir a liberdade que meu irmão desfrutava no Céu daquela que tivera na Terra, perguntei-lhe qual era a diferença. Confuso, ele me pegou pela mão, dizendo que tinha trabalho a fazer, e me levou a minha tia, a quem eu devia fazer tais per­guntas, acrescentou.

Foi sua passividade, creio eu, que acabou me conduzindo a alguém completamente diferente dele, mas não agi de modo consciente ou deliberado. Aos dezesseis anos, senti-me atraída por um rapaz muito bonito que escrevia poemas e era sempre premiado por isso. Seus temas, exclusivamente medievais, lembravam-me os castelos de Jürgen, e, quando eu o ouvia ler os poemas em classe, queria que ele viesse me salvar. Outra moça, porém, conquistou-lhe o interesse, o que me deixou infeliz por várias semanas.

Pouco depois, conheci Hans. Tinha saído da escola, pois o negócio de meu pai não ia bem e não havia mais dinheiro para os estudos. Eu estava trabalhando numa loja de artigos femininos de moda, quando certo dia Hans apareceu, querendo comprar um corte de tecido para dar de presente à mãe. Ele era apenas um ano mais velho que eu, mas parecia ter vindo do outro mundo. Tinha cabelos loiros bem curtos, bigode cheio e uma beleza de adulto. O que nele me atraiu foi a atitude determinada e o vigor no discurso, tão diferente dos sussurros do meu pai.

Ele vivera algum tempo em Munique, mas, por não se dar bem no trabalho, entrara para o Exército. Quando voltei a vê-lo, achei-o magnífico de uniforme. Ele me convidou para, num domingo, passear no parque, e outros convites se sucederam. Certa noite — era verão, e voltávamos do circo —ao atravessarmos o parque, ele decidiu me levar para debaixo das árvores. Eu sabia qual era sua intenção e acabei ficando também ansiosa quando ele pôs a mão entre minhas coxas. Não dei importância à dor. Era uma aventura e eu o amava. Quando lhe perguntei se ele havia tomado precauções, senti seu coração bater. Ele respondeu que não e se afastou.

Desculpe — disse ele. — Desculpe.

Não há do que se desculpar — respondi.

Dois meses depois, precisei contar-lhe que estava grávi­da. Naquela noite, jantamos num restaurante, e, depois do café, estendi a mão por cima da mesa e toquei-lhe o braço.

Há algo que você precisa saber — eu disse. — Vou ter um filho.

Ele se retesou, sem ser dramático ou cômico. Apenas ficou sentado, rígido, ajeitando a gravata e a lapela, como se estivesse para sair num desfile. Desde que eu saíra do consultório médico, um sem-número de pensamentos me consumia, principalmente o de que minha vida mudara de modo irreversível. Isso também estava refletido no rosto de Hans, que dava ares de ter sido pego numa armadilha.

Bem — disse ele com um aperto na voz —, devemos nos casar.

Não estou lhe pedindo que faça isso — respondi, em­bora não soubesse o que eu haveria de fazer sozinha. Nem mesmo sei o que tinha pensado. Lembro-me apenas de que me parecia muito importante dar-lhe essa opção. Creio que também estivesse interessada em ver como ele reagiria. Essa foi a única vez que ele me desapontou: eu o vi esquivar-se. Era um momento de perda para ele, sua liberdade voava pela janela, mas eu não podia criticá-lo. Poucas horas antes, eu havia sentido a mesma coisa.

Nós queríamos ter um filho — eu disse.

E, queríamos — ele concordou e, sem dar pausa, pediu champanhe ao garçom.

Parecia que minha vida havia tomado um rumo. Pondo-me com freqüência a recordar essa época, tentando ima­ginar quem eu seria caso a Primeira Grande Guerra não tivesse eclodido. Eu seria, sem dúvida, uma mulher dife­rente. Sim, uma estranha! Será que eu gostaria dessa outra Ursula? Lembro-me de uma história em que a personagem se confronta, no alto de uma escadaria, com a pessoa que teria sido. Mon semblable, mon frère! Não, eu diria: Ma soeur, mon enfant! Pois só poderia ser uma criança, uma pessoa ingênua. Eu provavelmente teria vivido como minha mãe, teria tido mais filhos, teria servido incontáveis xícaras de chá e feito toneladas de rouladen para os superiores de Hans, até que, grisalha, serena, entorpecida, eu me transformasse na esposa do comandante, na conselheira das jovens se­nhoras que viessem à minha casa em cumprimento às for­malidades da vida militar.

Não havia, porém, outra Ursula. Eu me compunha de lembranças e vozes.

A do meu pai, por exemplo, poucos meses depois da morte da minha mãe, seu sorriso doce e sonhador, inalte­rado diante de uma dupla derrota:

O negócio faliu. Vendi o estoque, mas o que tenho mal dá para viver um ano. Sei que Hans não ganha muito...

De tempo em tempo, eu lhe mandava ajuda.

Lembro-me também de Hans, logo após o assassinato de Francisco Ferdinando, na primeira semana da guerra:

Nossa unidade foi convocada, mas não se preocupe.

Ele partiu, de uniforme, mas parecia um executivo num dia de folga.

Um mês depois, dois oficiais me procuravam:

— Sentimos muito...

Monika me puxava pela mão, querendo saber quem eram eles. Amigos do papai?

Depois da morte de Hans, senti-me quase sem vínculos com o mundo, flutuando sobre Berlim. A guerra prosseguia, e nossas vidas iam ficando a cada dia mais pobres, mais confinadas. Monika e eu sobrevivíamos frugalmente, como pássaros no inverno, graças ao pouco que eu conseguia ganhar fazendo trabalhos domésticos para os mais afortu­nados. Veio por fim o armistício, mas ficamos ainda mais pobres. Eu desconhecia as causas disso. Sabia apenas que o período da guerra me parecia um tempo de abundância, pois o que eu ganhava não dava mais para nos sustentar, ainda que trabalhasse doze horas, às vezes quinze, lavando e fazendo limpeza. Meu dinheiro comprava cada vez me­nos, e logo já não havia sequer trabalho.

A pobreza consome o corpo antes de ir se esbaldar na cabeça. Ao menos comigo foi assim. Talvez por orgulho, por simples recusa em admitir a derrota. Meu corpo se acostumou a receber cada vez menos alimento, e eu dava a Monika cada migalha que conseguisse, mas isso não era o suficiente. À noite, eu a punha na cama e, na manhã seguinte, já a encontrava mais magra, ombros e pernas ain­da mais esqueléticos. Ela acabou pegando uma tosse seca e curta que meus remédios caseiros não conseguiam curar. Um dia em que eu estava sem trabalho, ao vê-la devorar uma casca de pão, lembrei-me de Hans, pois ela tinha a cor da pele, a boca e o nariz do pai. Pareceu-me que a estava perdendo, pois compreendi de repente que ela tam­bém poderia morrer. Naquele momento, a pobreza chegou à minha mente na forma dos escuros semicírculos que Mo­nika tinha sob os olhos. Ela está subnutrida, disse comigo mesma. Vai morrer, a menos que eu tome alguma provi­dência. Eu nunca tivera um momento de tanta clareza, de compreensão tão profunda, quanto aquele em que vi o rosto transparente de Monika. Todo mundo algum dia passa por uma experiência marcante, que se torna o parâmetro pelo qual são julgados todos os outros acontecimentos. Até aque­la manhã, eu pensava que fosse a morte de Hans, minha viuvez precoce, mas isso era apenas o prelúdio para o passo que dei em seguida.

Naqueles anos de pós-guerra, Berlim em ruínas andava à deriva, como um navio abandonado. A cidade seguia de cabeça baixa, em sinal de derrota, andar arrastado e vaci­lante; ou então em meio ao riso, ao olhar malicioso e sar­cástico, ao movimento frenético, saltitante, sem se dar conta do que lamentava ou julgava comemorar.

Em certos dias, como uma fênix, a velha Berlim se erguia das cinzas de sua derrota, estendendo os múltiplos braços para abarcar as mais flagrantes contradições. Parecia dizer, com uma voz de antigamente, que seria capaz de vencer a miséria, que aguardássemos com paciência um novo desabrochar da sua alma. A conversa fiada e as promessas não conseguiam, porém, esconder sua ruína, seu rosto mas­carado, o tom de bravata que havia em sua voz. Havia, sim, aqueles que, por sorte, conveniência ou má-fé, achavam possível acreditar em tais promessas, mas, para a maioria, a compreensão de que estávamos presos numa armadilha era apenas uma questão de tempo.

A derrota adquiria disfarces atraentes, mas eu seguia pela sombra, procurando atender às necessidades mais simples, tentando, sem êxito, descobrir como Monika e eu podería­mos sobreviver. Eu fazia faxina, lavava e passava roupa, mas o dinheiro que saía dos bolsos de quem me pagava não resistia à inflação, já não valia quase nada ao final do penoso dia, quando eu, grata, estendia a mão para pegá-lo.

Assim, certa vez perguntei à vizinha, Frau Baumgarten, uma velha prussiana que vivia com um ou dois pratos por dia de aguada sopa de aveia, se ela poderia ficar com Mo­nika à noite, em troca de umas míseras moedas. Sem ao menos perguntar quantas, ela concordou imediatamente, dizendo que Monika era a criança mais linda do prédio. Sequer perguntou aonde eu ia. Apenas olhou para mim com ares de compreensão e de pena. Percebi então que ela sabia o que eu iria fazer.

Naquela noite, pus meu melhor vestido, passei ruge no rosto, saí bonita. Andei quarteirões à sombra da velha Ber­lim. Quando me faltava coragem, eu recuava, entrava em becos, parava à porta de cafés que não podia freqüentar, mas acabava indo em frente, pois tinha que ser assim. Segui meu caminho em meio ao movimento ondulante da cidade, atravessei praças decrépitas, elegantes túneis de árvores, e por fim cheguei a uma rua onde vi o cartaz do Seven Dolphins. Sem olhar novamente para o letreiro, entrei num salão mal iluminado, onde umas tantas mulheres exerciam sua profissão.

Falei com uma mulher ruiva, imponente, que se apre­sentou como Odile. Ela usava um vestido verde de lantejoulas, que a deixava parecida com um obelisco cor de es­meralda, coroado de fogo. Seus olhos também eram verdes, assim como a sombra que os colocava sob uma máscara. A única coisa que lhe estragava a beleza eram as marcas de varíola no rosto, visíveis até mesmo sob a maquiagem pesada. Enquanto me ouvia gaguejar o motivo que me le­vara até lá, ela mantinha as mãos — seus dedos eram cheios de anéis — pousadas nos quadris e me olhava de alto a baixo, de modo grosseiro, como às vezes, na rua, os homens faziam comigo. Depois, comprimiu os lábios, fez um aceno de cabeça e pediu que eu a acompanhasse até o seu escritório, uma pequena sala decorada com objetos antigos, tão respeitável quanto a sala de estar de uma tia solteira. Lá chegando, serviu de uma garrafa de cristal dois copos de schnapps e bebeu o dela com modos de marinheiro. Girou a mão com o copo entre os dedos e deu um passo para o lado, me examinando como se eu estivesse exposta numa vitrine.

Sabe o que está fazendo? — ela perguntou, pousando o copo no bar.

Respondi que sim.

Não poderá se queixar se não gostar do cliente. A ordem é pegar o que aparecer.

Preciso de dinheiro — expliquei. — Não vejo outro modo de consegui-lo.

Falei no tom mais seguro que me foi possível, tentando colocar-me à altura da franqueza de Odile, embora o medo e o desgosto me deixassem abalada.

Bem — disse ela, contraindo os lábios —, eu poderia contratar alguma outra moça esta noite.

Esta noite?

Se não for você, será outra — ela respondeu com impaciência. — Agora vivem me procurando, três ou quatro por noite, e sem tantos pudores. Então?

Perguntei-lhe o que ela queria que eu fizesse.

Dispa-se. Preciso verificar se há algum problema com você, marcas na pele, verrugas. Ofereço apenas corpos em bom estado. Não se preocupe — ela acrescentou —, não vou lhe fazer nada de mais.

Despi-me, mas não tirei a roupa de baixo.

Tudo.

Depois de examinar o meu corpo nu, ela acenou com a cabeça, em sinal de aprovação.

Muito bem — disse ela. — Um pouco magra, mas vai agradar. Espere um pouco.

Foi até um armário, remexeu nas roupas e entregou-me um chemisier preto e vermelho.

Use isto na primeira semana. Depois, deve comprar suas próprias roupas. E o que todas fazem. Fale com elas. Vão lhe dizer aonde ir.

Ela sorriu pela primeira vez.

Não está se esquecendo de nada?

Do quê? — perguntei.

Não perguntou quanto vai ganhar. Não se acanhe. Isso acontece com que nunca antes esteve na vida.

Eu não tinha a menor idéia do quanto propor. Ela então me informou das taxas cobradas por uma hora, duas, a noite toda.

Pegue o dinheiro antes de subir e entregue-o para mim. Quando você estiver de saída, eu lhe pago a porcen­tagem.

Era mais do que eu esperava. Enquanto ouvia Odile falar, eu fazia mentalmente rápidos cálculos. Se fosse comedida, seria possível poupar dinheiro.

Venha — ela me chamou. — Você logo vai começar.

Segui-a até o salão, e era como se eu estivesse num sonho.

Umas doze mulheres vestidas mais ou menos como eu conversavam com alguns homens ou simplesmente esparramavam-se pelos sofás. Ao vê-las e ser apresentada, senti-me degradada, suja, mas deixei meus sentimentos de lado e tranquei-os com cuidado. Era o único modo de eu suportar o que estava por vir.

Os homens circulavam por entre nós, escolhendo qual mais lhes agradasse com ares de grandes peritos. Como eu não soubesse o que fazer, permaneci em pé, no meio da sala, desviando o olhar sempre que um deles me observava. Um homem sentou-se no sofá, ao lado de uma jovem loira. Mal pude acreditar quando o vi enfiar a mão entre as coxas dela, que subitamente se abriram, obedientes. Um outro, com incerteza no olhar, perguntou o meu nome. Seu hálito exalava bebida.

Ursula — respondi. — Ursula Krieger.

Meu nome, porém, não tinha nenhuma relação comigo. Quando o senti tocar meus seios, fechei os olhos, dizendo comigo mesma que o meu corpo não era eu, apenas algo que eu usaria para alimentar Monika. Assim que voltei a abri-los, vi que ele sorria.

Você gosta disso, não é mesmo?

Ele tirou da carteira algumas notas que eu imediatamente traduzi numa tigela de cozido, com grandes e suculentos pedaços de carne, repolho, cenoura e nabo. Imaginei Mo­nika diante do prato, vi-a comer.

A partir dessa noite, minha vida seguiu um padrão rí­gido. Eu voltava para casa às três, quatro horas da manhã e guardava o dinheiro num cofre de metal que ficava no chão do armário. Acordava Frau Baumgarten, pagava-lhe, levava-a até a porta. Raramente falávamos, pois não tínha­mos o que dizer uma à outra. Para nós duas, havia apenas a necessidade. Minha opção tornara possível a sobrevivên­cia, e, naquelas circunstâncias, o discurso seria obsceno. As­sim, nós nos despedíamos em silêncio, muitas vezes sem ao menos dirigir o olhar uma à outra até a noite seguinte.

Depois de fechar a porta, eu ia ao quarto de Monika, verificava se ela estava coberta, voltava à cozinha, onde punha para ferver dois caldeirões de água para banho, e ficava na banheira até que a água esfriasse. O banho era para mim uma espécie de santuário, um lugar só meu. Em seguida, punha um roupão e sentava-me na cama, que se curvava sob o meu peso. Eu não tinha penteadeira, apenas uma cadeira velha onde se equilibrava um espelho. Voltava a luz do abajur na direção do meu rosto e via minha pele tornar-se da brancura do inverno. Meu rosto ia adquirindo uma rigidez de máscara, e, às vezes, ao vê-lo tão magro, achava possível atravessá-lo com a mão.

Começava a pentear-me. Naquela época, eu tinha cabelo comprido, bem loiro, nenhum fio grisalho. No ato de pen­tear os cabelos, eu era como centenas de outras mulheres em Berlim. Algumas executavam o ritual mecanicamente, ou com sono, ou contemplando com ternura o próprio rosto no espelho, o brilho dos cabelos, talvez jogando encantos para o marido ou para o amante, que, em pé, na sombra, ou deitado na cama, aguardava os prazeres que estavam por vir.

Há vários modos de se pentear o cabelo, muitos senti­mentos subjacentes, mas nenhum que se comparasse ao meu. Eu inclinava o abajur para que a luz incidisse sobre mim e via o contraste entre minha pele opaca, quase trans­parente, e meus cabelos reluzentes, preguiçosamente on­dulados. Eu me penteava bem devagar, com todo cuidado, removendo os beijos, as carícias, os odores de cerveja, vinho, schnapps, colarinhos engomados e camisas suadas. Eu via o pente a percorrer meu cabelo, e cada movimento rítmico ia me afastando do Seven Dolphins. Eu me forçava a pensar no dinheiro que se acumulava, nota a nota, no cofre, a ouvir apenas o leve farfalhar dos cabelos, que me embalava como o barulho do mar.

Nas primeiras semanas do Seven Dolphins, alimentei a ilusão de ser uma pessoa à parte, dizendo a mim mesma que o motivo pelo qual eu fora até lá tornava-me diferente das outras. Elas logo notaram minha atitude distante e pas­saram a me ignorar. O silêncio só foi quebrado certa noite em que chorei. Tentei recompor-me ao perguntar a Elsie se ela compreendia o significado do Seven Dolphins. Elsie deu de ombros e disse-me que fizesse essa pergunta a Odile, que acabara de entrar.

— Venha comigo — disse Odile ao ver que eu chorava.

Ela me pegou com firmeza pelo braço e me levou ao seu escritório. Serviu-se de bebida e, comprimindo os lábios, olhou para mim com o modo que lhe era peculiar.

— Não tenho tempo para bobagens, Ursula. Você é quem sabe. Não é difícil encontrar que trabalhe para mim. Desse jeito você não ganha dinheiro algum e ainda deixa má impressão. Veja bem, não é preciso rir. Alguns até gostam de tipos melancólicos. Mas chorar, não! Ninguém quer uma choramingas. Isso os deixa com sentimento de culpa. Vou lhe dar uma chance esta noite, só uma. Entende?

Ao chegar em casa, eu estava perturbada demais para conseguir tomar banho. Havia chorado ao longo de todo o caminho e, quando me olhei no espelho, vi meu rosto aprisionado atrás de borrões, de riscos de rimei. Eu não tinha o que fazer. Deixar o Seven Dolphins estava fora de questão. Eu tinha que descobrir um modo de suportar aqui­lo tudo, de distanciar-me do que estava refletido no espelho. Tentei lembrar-me de tempos mais felizes, mas sempre me vinham à mente imagens do salão, das mulheres, dos ho­mens, dos minúsculos quartos do andar de cima. A mais clara de todas era a do cartaz acima da entrada, iluminada por uma lâmpada exposta. Uma inscrição em branco pairava sobre um mar negro, onde golfinhos cinzentos nadavam da esquerda para a direita, mal discerníveis na superfície escura da água.

Nessa noite, minhas visitas falaram comigo pela primeira vez. Nas semanas anteriores, os rostos dos meus clientes já tinham aparecido algumas vezes durante o dia. Eu podia estar no parque, com Monika, ou então falando com ela durante o almoço, quando, de repente, um desses rostos surgia no gramado, num muro ou no rosto da minha filha, como uma fotografia com imagens sobrepostas. Eu me sen­tia então subitamente tomada de desgosto e sentimento de culpa, sobretudo quando estava olhando para Monika. Nes­ses momentos, eu desviava o olhar, forçava-me a pensar em alguma coisa bem específica, como uma janela de pré­dio, a forma de uma árvore, um quadro no apartamento. O rosto sumia em seguida, e eu procurava recuperar o equilíbrio, fugindo do parque ou indo depressa abrir um dos livros de contos de fadas de Monika, para lê-lo em voz alta, com todo o entusiasmo de que fosse capaz.

Algo mudara naquela noite. Talvez porque eu não con­seguisse deixar de pensar no cartaz, ou talvez porque es­tivesse exausta. Não importa. Sabia apenas que eu não tinha mais resistência, nenhuma reserva de energia. Através das barras de rimei que me aprisionavam o rosto, eu via, parecia-me, a meia dúzia de homens que eu havia atendido. Era de enlouquecer o modo como aqueles rostos mudavam de forma — três, quatro vezes em questão de segundos. As vezes, eram apenas rostos de homens, tais como os de quaisquer desconhecidos encontrados nas ruas. Em outras ocasiões, seus traços se assemelhavam aos dos gárgulas pen­durados nos beirais das igrejas. Em seguida, eles se trans­formavam em figuras que desfilavam em plataformas ro­lantes de relógios de igreja. Eu até teria achado graça da crueldade da minha imaginação se não estivesse tão assus­tada. O relógio era o símbolo perfeito das minhas noites no Seven Dolphins, onde meus clientes faziam as carícias que bem entendessem, durante o tempo que Odile atenta­mente controlava. Os Homens do Relógio, eu disse comigo mesma, e todos eles sorriram no momento em que lhes dei tal nome.

Eu estava à beira do desespero. Um deles, um soldado chamado Kurt, que sempre me escolhia, levava o meu cofre de metal. Ele sacudia o cofre, produzindo um obsceno chocalhar de moedas, e o estendia na minha direção, dizendo: "Lembre-se da sua opção, Ursula. Consegue ouvir a si mesma?" Em seguida, ele erguia o cofre até a orelha e o sacudia novamente. "Eu a ouço", dizia ele. Depois, ria-se. "E o som de Ursula Krieger, não é mesmo?"

Na semana seguinte, quando eu estava no banho, eles surgiram novamente, dessa vez desfilando na borda da ve­lha banheira de porcelana. Seus passos produziam um rangido semelhante ao da escada do Seven Dolphins, e eles ficavam observando a minha nudez. Embora eu tivesse vi­rado de lado, cruzando os braços sobre os seios, senti-me completamente exposta a seus olhares maliciosos. Eu não era nada além de um corpo pálido, branco, um objeto que lhes proporcionava prazer. Estava tão vazia quanto o meu ventre, era um oco cuja identidade se limitava à minha função. Aproximava-se da nulidade, era uma escuridão po­voada pelas vozes de Odile e dos homens, por seus pênis, pelas obscenidades que eles sussurravam no meu ouvido. Senti que não podia mais suportar aquela escuridão, nem o negror do mar, nem o movimento ornamental, perma­nentemente congelado, dos golfinhos. Eu despencava nesse sombrio precipício, corpo submerso na água tépida da ba­nheira, quando, de repente, o vizinho do apartamento ao lado começou a tocar piano.

Eu nada sabia a respeito dele, nem mesmo o nome. Ele chegara poucos meses antes com uma mala surrada, subira a escada do prédio, entrara no apartamento e batera a porta. Fizera isso sem se voltar na minha direção, sem parar, em­bora talvez tivesse notado a minha presença.

No dia seguinte à chegada do novo vizinho, ouvi um tumulto na escada. Ele e um outro homem, também com roupas surradas, carregavam o menor piano que eu tinha visto. Mesmo assim, faziam um grande esforço para trans­portá-lo. Suavam, praguejavam, mas acabaram rindo ao chegarem ao nosso andar. Como o piano tivesse rodas, daí para a frente foi só empurrá-lo para dentro do apartamento.

Eu não sabia o que esperar daquele homem. Ele era ma­gro como uma vareta e tinha as mãos trêmulas. Ocorreu-me que talvez fosse um desses músicos bêbados, como o que tocava canções populares no salão do Seven Dolphins. Se isso fosse verdade, não sei o que faria. A música me enjoava. O som estridente e as letras lascivas seriam, em casa, um prolongamento das minhas horas de trabalho. Eu teria que ouvi-lo tocar e cantar, como se minha vida com Monika fosse apenas um prelúdio para o que eu fazia à noite.

Preparei-me para o pior, mas nada de mau aconteceu. Durante uma semana, sequer um som veio do vizinho. E quando finalmente veio, era Debussy, numa execução nem um pouco amadora.

Ele tinha um repertório de umas doze peças, a maioria estudos. Às vezes, tocava-as todas, seguidamente, ao longo de várias horas. A duração era determinada pelo perfec­cionismo, pois, assim que ele cometesse um erro, eu ouviria um estrondo dissonante, apenas possível se os braços fos­sem jogados contra o teclado. Ele então praguejaria, gritaria a si próprio, palavras de desprezo. Isso, porém, raramente acontecia. A maior parte do tempo, sua execução era mar­cada por uma adorável e suave elegância, que transformava o som daquele instrumento precário, estridente, em música serena e refinada.

Naquela noite, ele tocou La Mer, tornando a melodia etérea e sensual. A música interrompeu minha sensação de queda, de que estava para ser engolida pelas águas escuras do cartaz do Seven Dolphins. Pareceu-me que ele nunca tinha tocado tão bem. Deitada de costas, de olhos fechados, entreguei-me com gratidão à música, deixei-me levar por ela. Continuava vendo o cartaz, mas ele não mais me amea­çava. De algum modo, La Mer me protegia como um escudo. A água se tornara clara, verde-azulada, como a costa do Mediterrâneo. Forcei-me então a mergulhar, evocando água, tepidez e cor.

Ali, naquele refúgio da minha mente, eu via os golfinhos cinzentos a distância, nadadeiras semelhantes as dos tuba­rões. Senti o sonho, a ilusão ou a esperança — ainda hoje mal sei que nome dar a isso — abrir caminho para um pânico desorientador, quando vi o primeiro golfinho bran­co. Nesse instante, os cinzentos desapareceram sem deixar vestígio.

O golfinho branco se aproximou de mim, me olhou, na­dou à minha volta em perfeita sincronia com o ritmo de La Mer. Um outro apareceu, mais outro, e logo eram sete. A música os atraíra. Lembrei-me então do estrondo dos braços contra o teclado e fiquei torcendo para que meu vizinho não errasse nenhuma nota.

Perguntei-me o que os golfinhos haveriam de querer de mim. Repeti a pergunta ao que estava mais próximo, e ele me respondeu emitindo sons leves e curtos, em staccato. Parecia dizer-me que não queriam nada, que tinham vindo me trazer algo de que eu precisava.

Então juntei-me a eles, nadei com eles no andamento da música de Debussy. Seguimos para alto-mar. Os golfinhos saltavam acima da superfície, e, na companhia deles, eu me entregava de corpo todo ao sol. Era também uma forma branca que, naquele mar verde-azulado, saltava, dançava, dizendo a mim mesma, em murmúrios líquidos, que nunca fora nada além daquilo: uma forma branca, livre, solta, inviolável.

Passei a mergulhar, noite após noite, naquelas águas ver­des. Noite após noite, eu deixava o salão, na companhia dos meus clientes, subia a escada que conduzia aos minús­culos quartos e suportava o que quer que fosse em troca do que me pagavam. Em pensamento, porém, eu não estava com eles. Estivessem as luzes acesas ou apagadas, não im­portava. Eu atravessava o telhado, entrava na noite e mer­gulhava nas águas verdes e quentes do mar. Noite após noite, eu punha mais dinheiro no cofre. Semana após se­mana, os frágeis braços e pernas de Monika se fortaleciam, seu rosto ganhava uma cor saudável. Enquanto isso, eu vivia entre os golfinhos brancos.

Houve algum progresso. Já um bom número de páginas foram escritas, conferindo volume a este diário e trazendo-me satisfação. Sinto-me tentada a proclamar-me drama­turga e a ver, neste convés batido pelo vento, um palco improvisado, onde os atores principais bebem café e con­versam, impacientes, à espera de que a cortina se erga no­vamente e eles prossigam a representação da minha histó­ria. A comparação é, porém, precária, pois sugere clareza de compreensão. A verdade está mais próxima do trabalho do cartógrafo que tenta mapear os territórios da própria vida, para formar um todo, relacionando umas às outras as regiões dispersas.

O navio geme e range. Um véu de nuvens, tudo o que resta da tempestade de ontem, flutua a sotavento, onde o mar se desenrola como um pergaminho e a linha da minha vida une Berlim ao Somme, Berlim a Paris, Paris à Espanha e a Portugal. O caminho que conduz a Hans é curto, abruptamente interrompido; o que vai do meu apartamento até o Seven Dolphins é negro, como uma sombria pincelada de um pintor angustiado. O mapa mostra uma linha tempestuosa que se inicia na minha tenra infância e segue até Hans, Monika e os Homens do Relógio. Amanhã começará o caminho que conduz a Joaquín; caminho tortuoso, vaci­lante, incerto no início, cheio de dúvidas. Ganha força, no entanto, ao chegar à Cidade-Luz, onde se entrelaça aos de dois outros homens. O mapa seria incompleto sem eles, quase irreconhecível sem os caminhos que levam a Gerhard Munch — que acompanhou minhas evocações de Berlim — e Guy Lafont — que considerava Joaquín a sua salvação.

 

Alguns meses depois de voltar de Bilbao, Joaquín an­dava pelas ruas de Paris, apoiado numa bengala. Certo dia, quando deu por si, estava na parte baixa de Montmartre, numa rua estreita, onde descobriu o café La Masia. Visto de fora o café parecia pequeno, mal se diferenciava de outros das redondezas. Velhos de paletó e boina sentavam-se às mesas na calçada, fazendo hora diante dos copos de bebida e tomando sol. Lá dentro, no entanto, era a Es­panha. Havia umas doze mesas agrupadas em duas fileiras e, no fundo, uma mesa grande, própria para banquetes. Um balcão galvanizado percorria toda a extensão da parece, revestido de um velho espelho, onde as prateleiras exibiam uma coleção de garrafas de xerez. Cartazes de touradas pendiam das paredes, cada qual em homenagem a um tou­reiro morto na pomposa festividade ou então já aposentado muito antes de Joaquín aparecer por lá.

 

No La Masia, Joaquín lembrou-se imediatamente de Los Tres Hombres, em Granada. Começou a freqüentar o café e tornou-se amigo do dono, Rodríguez, que passou a fazer de tudo por ele, tão logo soube que Joaquín lutara contra Franco. Ao longo dos meses seguintes, Joaquín levou os amigos ao La Masia, e o lugar foi aos poucos se tornando um ponto de encontro de literatos, que, de modo irregular e informal, se reuniam para discutir as próprias obras e as dos escritores que admiravam. Reinava uma simpática anar­quia entre seus gritos e insultos, e o grupo foi ali se insta­lando e se tornando uma espécie de instituição.

Além das preocupações literárias, todos se aferravam à política, mantendo intermináveis conversas sobre o que acontecia na Espanha e na Alemanha. O assassinato de Lor­ca ainda era recente para eles, tanto que não foi surpresa a decisão, encorajada por Joaquín, de darem ao grupo o nome do poeta. Ricard, que também era escultor, ofereceu- se para fazer uma pequena placa com nome, datas de nas­cimento e morte. No mês seguinte, aparecia com ela. No bronze, em letras espessas e em relevo, havia a inscrição: "O Clube de Lorca". Rodríguez fez uma grande festa ao aceitá-la em nome de todos os espanhóis. Em seguida, pediu licença para se retirar, mas logo voltava com uma perfuradora, fazia buracos na parede, parafusava a placa e pedia a um garçom que trouxesse duas garrafas de bom conhaque. Quando Sandoz propôs que fizessem um brinde, todos er­gueram os copos. St. Omer pediu a Joaquín que fizesse um discurso, e ele falou do encontro com Lorca, do aceno de despedida que o poeta fizera à luz do poste, do que Lorca dissera a respeito da chuva. Perguntou-se Lorca teria pres­sentido o que estava por vir, se os insultos que lhe dirigira a Guarda não lhe parecera um presságio do que aconteceria em Fuente Grande. Enquanto falava, Joaquín teve a im­pressão de ouvir o tiro que matara Lorca, tão claramente quanto o ruído dos copos ao serem pousados na mesa, como se a bala não tivesse morrido com o poeta, não tivesse ficado enterrado no solo rochoso de Fuente Grande, mas voado em arco sobre Víznar, sobre os Pireneus, sobre a Espanha e a França, até cair, reluzente, sobre a mesa do La Masia.

Claude estava presente naquele dia, pois St. Omer, que recentemente decidira protegê-lo, queria apresentá-lo ao grupo. Ele vinha escrevendo críticas tão excepcionais que fora convidado para contribuir com regularidade para vá­rios jornais importantes. Estava no apartamento de um edi­tor, na Ile de la Cité, quando conheceu St. Omer — um feliz acaso. Claude já pensava que a vida literária de Paris lhe fosse inacessível. Não se julgava escritor imaginativo.

Nem sempre fora assim. Quando mais jovem, escrevia poesia e, depois de iniciar a carreira acadêmica, continuou escrevendo, mas então já começava a sentir que aquilo era inútil. Certo dia, olhou para a pilha de cartas de rejeição e se deu conta de que nunca escreveria nada publicável. Assim, esvaziou suas pastas e jogou os papéis na lareira na esperança de se entregar a uma reconfortante auto-piedade. Em vez disso, sentou apenas alívio, o que o poupou de alguns meses a ruminar esperanças perdidas. Lançou-se ao ensino, transferindo a paixão pela poesia para as aulas que ministrava a caminhar de um lado para outro, com toda a convicção de um pregador fundamentalista diante de um rebanho de céticos. Logo os alunos apareciam aos bandos nas suas aulas. Os jovens imitavam seu discurso, seus maneirismos, e algumas mulheres o viam com inte­resse não apenas literário. Monika era uma delas.

No começo, Monika o deixava intrigado. Suas observa­ções eram perspicazes, e as fazia sem-cerimônia, quase sem­pre com senso de humor. Certa vez ele perguntou por que ela lia apenas algumas das obras que ele indicava. Ela riu e respondeu que isso não acontecia por culpa dele. Queria ser fotógrafa e, por isso, lia somente aquilo que julgava útil para aguçar o olhar.

Numa tarde chuvosa, ele a convidou para beber alguma coisa. Era uma indiscrição, mas Monika não resistiu. Vestia saia e suéter pretos, e, durante a aula, Claude não afastara dela o olhar. Ao sentarem-se no café, as pernas dos dois se tocaram. Tudo então se definia para ele, já estava pen­sando em quando voltaria a vê-la. Monika o encorajou, di­zendo que à tarde, quando trabalhava na padaria, com fre­qüência pensava no que ele dizia em classe. Isso explicava o que, para Claude, vinha sendo um dos mistérios de Mo­nika. Ao conhecê-la, sentira cheiro de pão, o que produzira um efeito tão erótico quanto perfume. Naquela noite, ao chegar em casa, levou ao nariz uma fatia de pão. Nunca nenhum outro cheiro lhe parecera tão fresco e limpo.

Eu sabia que ela amava alguém, mas Monika somente o levou em casa vários meses depois. Quando o fez, eu tinha coisas a dizer a Claude. Depois do chá, quando ela levou as xícaras e pratos à cozinha, fiquei a sós com ele. Receio tê-lo confrontado de maneira abrupta.

Monika já é adulta — eu disse —, mas desculpe-me por exercer o papel de mãe. Sei que vocês estão dormindo juntos. Já faz algum tempo que isso é notório. Gostaria de saber quais são suas intenções.

Ele foi pego desprevenido. Sabendo aonde a conversa haveria de conduzir, olhou para a porta da cozinha, na esperança de que Monika viesse salvá-lo. Como a porta estivesse fechada e Monika não voltasse, a melhor resposta que ele pôde dar foi dizer, de modo canhestro, que a amava.

Ah, amor! — Fiz com a mão um gesto de abano. — E fácil dizer isso. Gostaria de saber o que há além do amor, o que você espera dela. Peço-lhe apenas que a respeite. Monika o admira, mas é fácil para uma mulher da idade dela confundir admiração com outras coisas. Ela pode fazer sexo com quem quiser, mas precisa mais do que isso. Peço-lhe, se não quiser ficar com ela, que a deixe. Você é bonito. Não lhe seria difícil encontrar outra.

Era difícil dizer isso, mas eu não tinha escolha, mesmo que fosse provocar um desentendimento com Monika. Não era possessividade o que me levava a fazer aquele pequeno sermão. Eu precisava protegê-la. O Seven Dolp­hins me ensinara coisas que eu não quisera aprender. Embora soubesse que os homens não fossem todos iguais àqueles que freqüentavam o salão, eu era cética em re­lação a eles, atenta como um animal que detecta perigo para os filhotes.

Não havia, no entanto, nada a temer de Claude. Ele se casou com Monika no ano seguinte, e fomos todos morar num apartamento da Rue de Seine, onde ampliei os hori­zontes da minha vida, dando aulas particulares, quase todas as tardes, para crianças da vizinhança. O dinheiro ajudava nas despesas, mas isso não era tão importante quanto as oportunidades que ele me proporcionava. Por causa da guerra, da morte do pai e da nossa pobreza, Monika passara rapidamente pela adolescência. Já não havia mais nada que eu pudesse fazer por ela, mas restava-me a possibilidade de ensinar. Assim, eu dava aulas a crianças de todos os tipos, crianças que tinham dificuldades em aprender, crian­ças inteligentes, crianças ricas e pobres. As aulas deviam durar uma hora e meia, mas eu sempre dava um jeito para que chegassem mais cedo. Eu me mostrava compreensiva, brincava, ralhava com elas e também as mimava; fazia o que era necessário, e dava certo.

Claude sabia que eu me interessara muito por Aurora e Manhã. Tínhamos, aliás, discutido as duas obras poucos dias antes de St. Omer levá-lo ao La Masia. Ele achou Joa­quín uma pessoa encantadora e ficou profundamente comovido com o elogio fúnebre a Lorca. Claude, que, por coincidência, estava na época escrevendo um artigo sobre os romancistas parisienses, pediu-me que eu desse um pa­recer sobre seu primeiro esboço. Concordei quanto ao re­conhecimento do talento, mas pareceu-me que Claude, em seu artigo, fazia vista grossa a um aspecto da obra de Joa­quín que eu achava inquietante. Havia nos seus romances um certo distanciamento, e, ao lê-los, eu tinha a impressão de seguir sem rumo numa galeria repleta de belos quadros. Tudo era apresentado com muita precisão, mas o tom geral era de rigidez e implacabilidade. Lembro-me de ter comen­tado com Claude que eu sentia um certo descompasso entre a qualidade da escrita e o austero ponto de vista de Heinz. Creio até ter falado de uma certa ambigüidade, como se estivessem presentes dois modos conflituosos de percepção.

— Concordo — ele respondeu. — Ele parecia diferente no clube, bastante apaixonado. Mas e daí, Ursula? Foi isso o que ele decidiu escrever.

Claude mencionou o prefácio de Aurora, onde Joaquín afirmava que seu propósito era o de simplesmente registrar a totalidade da vida parisiense, como numa série de foto­grafias em preto-e-branco. Heinz seria o olho que tudo per­corre, um sistema de observação.

Quanto mais eu falava, mais me dava conta de não ad­mirar Joaquín Wolf tanto quanto supunha. Algo faltava. Incomodava-me a falta de engajamento dos romances e ain­da mais me intrigava o discurso aparentemente apaixonado de Joaquín no Clube de Lorca. As duas coisas não se jun­tavam.

Semanas depois, numa sexta-feira, Monika levou mais tempo do que de costume a fazer compras. Por estranho que pareça, nada comentei até a manhã de domingo, quan­do ela e Claude enchiam uma cesta de piquenique. Os dois se comportavam de modo estranho. Deixei enfim o livro de lado e perguntei o que estava acontecendo.

Vocês parecem conspiradores — observei.

Monika riu, e Claude esforçou-se para manter o ar de seriedade.

Respondam. Vocês sabem que não gosto de surpresas.

Claude estava a ponto de falar quando ouvimos uma batida à porta.

Temos visita. E isso.

Quem?

Alguém de quem vai gostar.

Monika abriu a porta antes que Claude pudesse dizer mais alguma coisa.

Mein Gott! — exclamei.

Reconheci Joaquín imediatamente, pois já o tinha visto em fotografias de jornal. A expressão de espanto me fez sentir rude e deselegante. Fiquei encabulada. Eu já domi­nava o francês a ponto de pensar nessa língua com facili­dade, mas, sempre que acontecia algo inesperado, alguma frase em alemão pegava-me desprevenida.

Bem mais tarde, Joaquín me contaria que tinha notado o quanto eu ficara espantada. E, de fato, tamanho fora meu espanto que, naquele momento, eu não era nada além de uma mulher perplexa. Só depois de recobrar o autocontrole é que fui me situar novamente. Ele sabia que eu era a mãe de Monika. Tínhamos as mesmas maçãs do rosto, os mes­mos olhos, os mesmos ombros. Lembro-me de que minha surpresa se transformou em desculpa quando lhe disse, no meu melhor francês, que era um prazer conhecê-lo.

O prazer é todo meu — ele respondeu em alemão, acrescentando que reconhecia o sotaque de Berlim. Perguntou se eu havia nascido lá.

Eu me amaldiçoei. Senti-me cair numa cilada, ser con­duzida numa direção que eu não queria tomar.

Vivi lá até pouco depois da guerra — respondi, com uma certa frieza na voz.

Ele perguntou em que parte da cidade eu tinha morado.

Quis mentir. Estava disposta a dizer qualquer coisa, mas deu-me um branco quando tentei lembrar outros nomes de bairro e de rua. Ele ficou parado, esperando a resposta, e eu, confusa, contei-lhe onde tinha morado. Cheguei até a mencionar a rua do Seven Dolphins. Não acreditei no que tinha acabado de fazer. Tentando consertar meu erro, disse-lhe que tinha trabalhado por algum tempo num café que ficava naquela rua.

— Não era nada agradável — acrescentei —, mas, depois da guerra, não havia muito o que se fazer.

Lembro-me de ter virado a conversa para ele, de também ter-lhe perguntado sobre o passado. Ele me contou onde sua família morava, que estava em Paris havia dez anos e que isso lhe parecia uma vida inteira. Claude, que trouxera vinho, ficou em pé ao meu lado, falando apenas quando a conversa parecia morrer. Sabia que era um risco ter con­vidado Joaquín, pois não havia como prever qual seria mi­nha reação. Agora estava satisfeito. Inquietara-se apenas quando demonstrei vacilar. Acontecia algo notável. Não sei exatamente o motivo, mas havia meses que eu não me sentia tão bem, e essa sensação cresceu ainda mais no metrô, a caminho do Bois de Boulogne. Eu me sentia livre. Os anos que eu já tinha vivido em Paris haviam me preparado para uma vida à prova de choques. Agora eu me via numa situação imprevisível e, pela primeira vez em muito tempo, sentia-me despreocupada. Isso também era para mim uma surpresa.

O parque estava cheio de gente que desfrutava o calor daquele dia de primavera. Eu estava perplexa com o fato de que me parecia perfeitamente normal estar ali com Joa­quín Wolf, embora não tivesse ilusões quanto à situação. Eu me predispusera a não esperar coisa alguma. Esse era o princípio que orientava minha vida, e eu dizia a mim mesma que aquele era apenas um momento de trégua.

Escolhemos um lugar perto do lago, sob uma árvore, estendemos cobertores no chão, pegamos comida e vinho. Enquanto comíamos, Monika arrancava cascas de pão, dizendo que ia jogá-las aos cisnes e que devíamos fazer o mesmo. Depois de servidas as tortas de maçã e bebido o sauternes, ela se levantou, alisou a saia e puxou Claude pela mão.

Venha — disse ela. — E a vez deles. Vou deixar uma parte da minha torta. Talvez sejam loucos por doce.

Assim que os dois se afastaram, Joaquín voltou-se na minha direção.

Ela é de fato encantadora. Você deve ficar orgulhosa.

Fazia calor até mesmo sob a árvore. Nós quatro tínhamos bebido duas garrafas e meia de vinho, e eu me sentia bas­tante descontraída. Sentada no chão, eu me apoiava nas duas mãos. Joaquín estava deitado de lado. Ele tirara o chapéu, e, em meio às manchas de luz, seu cabelo parecia ainda mais grisalho. Foi então que notei a forma peculiar da sua cicatriz. Monika e Claude estavam agachados à beira do lago, atirando pão aos cisnes. Os transeuntes olhavam com interesse para mim e para Joaquín. Deviam pensar que havia um relacionamento entre nós, e, de tão equivo­cada, espantava-me a idéia de tal ligação. Receei que ele adivinhasse meu pensamento.

Corei. Não pude evitar que fosse assim. Era um velho constrangimento que eu costumava evitar com uma con­versa qualquer. Eu tinha quase cinqüenta anos e, nessa ida­de, já não devia sofrer de inibições juvenis. Naquele mo­mento, porém, sentia-me muito acanhada. Quis que Claude e Monika voltassem, pois, na presença deles, seria mais fácil conversar com Joaquín. Eles, no entanto, haviam se afastado ainda mais, e, para disfarçar minha perturbação, comecei a limpar os pratos. Joaquín veio me ajudar, e, en­quanto juntávamos os pratos, copos e talheres, houve um momento de alívio. Ele estava esperando que eu falasse, mas havia um vazio na minha mente. De repente, lembrei-me de que Claude o conhecera na inauguração do Clube de Lorca e mencionei o fato.

Ele deve ter significado muito para você. Lorca, quero dizer — acrescentei.

Ele assentiu. Tão logo toquei no nome de Lorca, Joaquín recuou. Não compreendi por quê. Eu costumava deixar o assunto de lado quando via alguém reagir de tal modo, trancando-se na própria concha. Naquele momento, porém, o vinho, o calor e a minha surpresa com o fato de estar encantada com ele fizeram-me insistir:

Por quê?

Sou meio espanhol. Ele tem a ver com esse meu lado que minha tia certa vez chamou de "o toureiro".

Foi uma resposta interessante, mas não muito direta. De­pois de servir-nos o que restava do vinho, Joaquín girou o copo na mão, pensativo, e olhou para mim. Eu então soube que queria conhecê-lo melhor. Ele saíra da concha, e seus olhos haviam adquirido um brilho súbito. Mais tarde, vim a descobrir que essa sua expressão sempre surgia nos momentos de franqueza.

É porque os fascistas o assassinaram — ele acrescen­tou. — Esse é o principal motivo.

Eu já sabia disso, é claro. Com a morte de Lorca, sua fama se espalhara. Sabia também que, além disso, não havia mais nada. Joaquín parecia perguntar a si próprio se eu estava apenas conversando ou se queria de fato compreen­der sua ligação com o poeta. Foi então que me dei conta de que ele o conhecera pessoalmente.

Então eram amigos! — eu disse de repente. Receei que meu comentário tivesse soado mais como uma acusação do que como descoberta, mas ele não se mostrou ofendido.

Éramos, embora eu tivesse passado apenas algumas horas com ele. Essa é uma longa história.

Sou paciente.

Ele me contou tudo, rapidamente, até chegar a Guernica.

Depois, passou a falar em frases entrecortadas, forçando-me a prosseguir. Não sei o que deu em mim, mas estendi a mão, levando o dedo aos lábios.

Não precisa falar — eu o interrompi.

Mas tudo isso faz parte de um todo — ele respondeu, pegando minha mão.

Joaquín me contou que, depois de voltar da Espanha, passara meses sem escrever, pois queria avaliar o que acon­tecera lá. Sentira-se, porém, ainda muito próximo de tudo. Com o tempo, à medida que a perna ia melhorando, foi se dando conta de que o ano em que estivera fora de Paris permitira-lhe enxergar o que precisava fazer em Tarde. O romance estava quase concluído.

Não sei dizer se gosto dele, mas seria uma estupidez abandoná-lo agora. Sinto que estou contrariando meu propósito inicial. O Quarteto era outra coisa antes de eu ir para a Espanha. Agora vejo Heinz como um parasita que vive à margem da sociedade, desligado de tudo. Não acre­dito mais na minha teoria. Acredito não sei bem em quê. Minha única certeza é o compromisso com Lorca. Algum dia ele voltará a fazer parte da minha vida.

Joaquín sorriu. Parecia sentir-se melhor.

Ouça-me — disse ele. — Gostaria de ir a um funeral?

O quê?

Vou enterrar Heinz quando terminar Tarde. Ocorreu- me essa idéia. Investi nele seis anos da minha vida, e tem que ser um funeral bem apropriado. Quero que venham você, Claude, Monika e todos do clube. O que me diz?

Fico feliz por você.

Minha resposta soou mais séria do que eu pretendia, mais do que a situação parecia exigir, mas o fato era que eu compreendia o que estava por trás do humor de Joaquín. Ele olhou para mim como se eu tivesse tocado num ponto fraco, entrado em sua consciência. Tratava-se de algo muito íntimo, que, segundo sua expressão, não deveria ser tocado. Não naquela hora, pelo menos.

Tem que ser algo bem-feito, com um discurso fúnebre — ele prosseguiu. — Que tal: "Vim para enterrar Heinz, não para elogiá-lo"? St. Omer... Conhece St. Omer? Não importa. Ele cuidará da espátula de jardineiro que irei usar para abrir a cova. Terá que ser uma cova funda o bastante para conter três livros e a caixa de fósforos com a alma de Heinz. Depois, poderemos beber à vontade, fazer uma noi­tada no La Masia.

Não sei o que me levou de repente a querer acrescentar algo de mim a cova de Heinz. Imaginei também dentro dela os meus Homens do Relógio, deitados uns sobre os outros, para em seguida cobri-los de terra. Eles, porém, se levantaram e saíram. Joaquín talvez tivesse suficiente força de imaginação para poder acabar com Heinz. A minha, no entanto, não conseguia acabar com os homens que me vi­sitavam.

Agora fale-me de você, Ursula. Nós dois somos de Berlim. Por que partiu? Quem era você naquela época?

Desviei o olhar, mas não a tempo de esconder minha dor, creio eu. Monika era apenas um ponto branco a dis­tância, estava longe demais para vir me socorrer. Lembrei- me da chegada de Joaquín ao apartamento, da minha ex­pressão de surpresa. Aquelas palavras guturais, ditas com rapidez, sem pensar, despertaram-me a memória. Desde que Joaquín surgira à porta de casa que os Homens do Relógio vinham se movimentando no recuo da minha men­te. Ele não fechara a porta a tempo, e os homens entraram, acotovelando-se, atrás dele. Até então, eu conseguira evitar seus olhares, conseguira forçá-los a permanecer na sombra. A conversa com Joaquín me distraíra deles, cobrira seus rostos com o meu discurso, mas a pergunta que acabava de me ser feita dera-lhes nova força. Alguns estavam ao meu lado, no cobertor, outros flutuavam acima das árvores.

Tinham o rosto visível, como num retrato, ou então apareciam num perfil de camafeu. Eu me lembrava de suas vozes. Joaquín queria saber por que eu deixara Berlim, e, por uma fração de segundo, julguei-me talvez incapaz de mentir. Nesse ínfimo instante, o Bois de Boulogne parecia não existir, nem Paris. Nada era real, a não ser minhas visitas. Ninguém sabia da existência delas, nem Monika, nem Claude, nem meus amigos. Eu encontrava forças para resistir somente porque sabia que minha vida podia desa­bar, e eu resistia como um nadador puxado pela maré, um alpinista que tenta chegar a uma plataforma segura.

— Bem... Há vários motivos — gaguejei. — Você sabe como era a vida em Berlim naquela época.

Contei-lhe onde minha família morava, como éramos, falei de Jürgen e de Hans, mas fiz as mais vagas generali­zações a respeito do período posterior, concluindo que a guerra e o pós-guerra haviam sido difíceis para todo mundo e que me era muito dolorosa falar disso. Diante da minha mentira, os Homens do Relógio sorriram com malícia, deleitando-se. "Você não é essa mulher", disseram eles. "Ele é muito inteligente. Tome cuidado, Ursula, porque ele pode descobrir a mentira. Ele sabe ouvir. Que direito você tem de estar aqui?" Eu os combati, combati suas vozes, suas acusações, e venci. Venci porque não poderia fazer outra coisa, porque me sentia humilhada, embora, no meu íntimo, a dignidade se mantivesse. Anos atrás, eu justificara meu passado, ainda enquanto o vivia.

Falei com rapidez e leveza. Sentia-me tão aliviada por conseguir mentir que minha voz se ergueu um pouco, ga­nhou um timbre mais suave, parecia vir dos meus lábios em vez da garganta. Notei a diferença e perguntei-me se ele também.

Ele tinha notado. Bem mais tarde, quando conversamos a respeito daquele dia, não me surpreendeu descobrir que ele estivera tentando me decifrar desde o primeiro momento em que nos vimos. Ele disse que, quando estávamos sob a árvore, a forma da minha vida parecia distorcida, como se eu tivesse sido uma pessoa horrível. E acrescentou:

— Sua expressão dizia que você tinha que suprimir al­guma coisa qualquer que a deixava com um olhar estranho, pois isso estava a ponto de lhe fazer mal. Não era doença, com certeza. Tinha a ver com solidão, ou medo. Havia em você muitas coisas que eu não conseguia compreender, mas estava determinado a descobrir a causa. Você tinha me sen­sibilizado. Eu precisava saber por que você vivia com algo que poderia colocar uma arma nas suas mãos.

Esse foi o nosso começo. Quando penso no que escrevi ontem, dou-me conta de que tudo parecia indicar uma maior aproximação de nossas vidas. Nós tínhamos nos co­nhecido, conversado, feito um certo contato, mas eu não podia ir além disso. Eu não podia estar totalmente com ele por causo dos Homens do Relógio. Eles estavam gravados na minha mente. Recusava-me a dar-lhes nomes — dera- lhes números —, mas não podia estar com Joaquín porque Um, Dois ou Três — às vezes sozinhos, ou então na com­panhia de Quatro, Cinco e Seis — sempre chamavam a atenção para si, atravessavam paredes, flutuavam no ar. Se eu me encontrasse mais freqüentemente com Joaquín, se­ríamos uma multidão, e eu não podia correr o risco de tal confronto.

Nós nos encontrávamos ocasionalmente ao longo dos me­ses seguintes, mas eu não acreditava que pudéssemos ir muito além de onde estivéramos naquela tarde, no Bois de Boulogne. Creio que nosso relacionamento teria permane­cido assim caso ele não tivesse vindo à minha casa no dia em que os nazistas entraram em Paris.

Joaquín sempre pensava em Paris em termos de velhas arcadas, especialmente a Passage des Panoramas. Para ele, Paris existia sob o abrigo dessa maravilhosa estrutura, como se as velhas paredes da cidade tivessem sido envidraçadas para que ficassem protegidas dos elementos e do desgaste do tempo. A cidade sobre a qual ele escrevia ficava sob uma redoma, era um lugar livre de corpos estranhos, como o ar contido num jarro.

Durante dez anos ele caminhara à sombra invisível dessas formas de vidro, aninhadas na luz perfeita que refletiam. Depois, os brados do mundo exterior — que no início ele considerara apenas gritos distantes de trogloditas em seu país de origem — estilhaçaram sua redoma, assim como uma poderosa voz de tenor consegue partir o cristal. No dia em que os nazistas atacaram pelos Países Baixos, ou­viu-se o barulho medonho da redoma a partir-se, embora o Exército estivesse a centenas de quilômetros de distância. Estilhaços de vidro caíram de alturas enormes, refletindo distorcidamente a luz do sol, antes de espatifarem-se nas ruas e nas calçadas, rasgarem os toldos dos cafés, encher de cacos as entradas de metrô.

Nos postes, cartazes advertiam que partissem todos aque­les que não precisavam permanecer em Paris. Havia gente fugindo de carro, e as estações ferroviárias estavam cheias de refugiados. Depois do ataque no Somme, o Ministério de Obras Públicas mandou chamar trabalhadores do inte­rior do país para que construíssem barricadas. Joaquín os viu bloquearem as ruas que antes considerava suas. Em poucos dias surgiam alguns soldados do Exército francês, um Exército em trânsito, sem líderes ou provisões. Eram pequenos grupos de homens perplexos e abatidos, que tra­ziam a derrota estampada nos olhos e no modo de andar. A expressão sombria e amedrontada de seus rostos fazia crescer o pânico dos parisienses, que fugiam para o sul em número cada vez maior.

Paris tornou-se uma cidade aberta, na tentativa de pou­par-se da destruição; um lugar oferecido ao deleite dos ale­mães, como as prostitutas de Pigalle que os gigolôs enviam aos clientes.

Desapareceram os limites entre a cidade e o campo. Camponeses das regiões mais próximas conduziam seus animais pelas ruas, na esperança de salvá-los do Exército que avan­çava. Comerciantes desciam as portas metálicas de suas lo­jas, cujo ruído, ao se abrirem, tanto confortara Joaquín nas primeiras horas da manhã. Os cafés se enchiam de gente desconfiada, com medo. O metrô ficou vazio de trabalhadores, e, quando Joaquín entrou na estação Opera, encon­trou apenas corredores escuros e mofados como catacum­bas.

Ônibus, táxis, carros particulares, caminhões, veículos de limpeza pública, tudo que tivesse rodas percorria as ruas da cidade em direção ao sul. O lixo se amontoava nas es­quinas. Malas de viagem jaziam abandonadas nos cruza­mentos, abertas, com as entranhas expostas. Mobília que­brada, armações de cama, peças de antigüidades eram re­colhidas para serem usadas como lenha. Em todos os bair­ros, bicicletas enchiam as ruas. Mal podiam abrir caminho entre homens e mulheres a empurrar carrinhos de mão, carrinhos de bebê, atulhados com os objetos domésticos que puderam carregar. Homens, mulheres, crianças e in­válidos afluíam desordenadamente para o sul, para a es­trada que conduzia à segurança. Seguiam aos empurrões, aos gritos, correndo, cada qual com seu medo. De vez em quando, por cima do ombro, olhavam para a cortina de fumaça que, a distância, se erguia dos reservatórios de pe­tróleo incendiados.

Em 14 de junho, no final da tarde, ouvi uma batida à minha porta. Eu estava com uma aluna, a pequena Jeanne-Marie. Fui atender. Assim que o vi manchado de sangue, disse à menina que a aula estava encerrada e mandei-a imediatamente para casa. Quando passou por Joaquín, ela arregalou os olhos de medo e desceu correndo as escadas do prédio.

Sinto muito — ele foi logo dizendo. — Algo horrível aconteceu.

Olhei para ele em meio ao choque e a preocupação e perguntei se estava ferido.

Não, mas gostaria de beber alguma coisa.

Mas... — gaguejei.

Conto-lhe tudo depois.

Tem certeza de que não há nada de errado?

Tudo está errado, mas o problema não é este sangue.

Sente-se — respondi. — A bebida fica para daqui a pouco.

Fui à cozinha pegar um pano e molhei-o. Ao voltar, disse a Joaquín que ficasse quieto para eu poder limpá-lo.

Foi um momento estranho. Eu não tinha idéia do que acontecera. Estava espantada, surpresa, consciente de que a vida inesperada de Joaquín implicava uma certa intimi­dade. Estava também consciente de que essa intimidade, em meio ao nosso silêncio, continuava a desabrochar en­quanto eu limpava seu rosto. Ao limpar-lhe a teste, logo abaixo da cicatriz, olhei de relance para ele. Seus olhos en­contraram os meus o suficiente para que entre nós se ins­talasse uma espécie de reconhecimento, e isso bastou para fazer ruir as barreiras que nos separavam. Cinco minutos antes eu estivera trabalhando o péssimo inglês de Jeanne-Marie. Joaquín então não existia. Agora, porém, olhávamos um para o outro, mais próximos do que nunca, e ambos nos demos conta disso. Quis suprimir tal constatação, mas já era demasiado tarde. Lembro-me de ter desistido com um suspiro, ao dar um passo para trás e examinar o que tinha feito.

Agora eu lhe trago um drinque.

Fomos para a sala de estar, e ele me contou tudo.

Joaquín saíra de casa de manhã cedo, e, mesmo antes que o sol viesse a bater nos telhados, já se notava o vazio da cidade. As poucas pessoas que encontrara nas ruas apenas reforçaram nele a impressão de silêncio. O crescendo dos sons que sempre acompanha o despertar da cidade provocava em Joaquín o mesmo efeito que o lastro nos balões; mas agora, sentindo faltar-lhe peso, ele se sentia a flutuar, vagando ainda mais a esmo do que de costume, até o meio-dia, quando, ao chegar em Quai d'Orsay, a tontura obrigou-o a parar para um descanso. Sentado num banco à sombra de uma árvore, ele contemplou a avenida, que continuava a se estender a distância, como um exercício de perspectiva ordenado por árvores irrelevantes, absurdas, que se erguiam acima das grades de metal presas às cal­çadas. Um cão vadio, cinzento, de orelhas balançantes, sur­giu de repente, deu duas voltas ao redor do banco e sen­tou-se a menos de um metro de distância, orelhas para trás, focalizando o olhar, claramente atento a Joaquín. Ao ser chamado, o cão não se moveu. Um casal de velhos passou apressado do outro lado da avenida. A mulher apontou para Joaquín, e o homem fez um aceno de cabeça. Os dois entraram num beco estreito. Ela ainda olhou por cima do ombro, como que para se certificar de que Joaquín não se levantara para segui-los.

Um grande silêncio pairava no ar. O cão coçou desajeitadamente o pescoço com uma pata traseira. Uns poucos pássaros cantavam. Era um silêncio muito peculiar, não o silêncio do campo, nem do amanhecer, nem das primeiras horas da manhã. Era o silêncio do vácuo de imobilidade que, segundo se diz, existe no centro de um tornado. Joa­quín evocou as cores que haveriam de também existir nesse centro, imaginou uma sombra de amarelo, um pouco mais pálido do que um resto de Pernod no fundo de um copo.

Quase imperceptivelmente, o vácuo se encheu de som. No início, Joaquín não conseguiu sequer distinguir de que direção ele vinha, tão fraca era a alteração produzida no ambiente ao redor. Apenas aos poucos ele foi percebendo que o som vinha de longe, da avenida, um som que podia ter vindo de sob o calçamento, ou do ar, mas que por fim se materializou na forma negra de uma motocicleta com um carro conjugado.

Joaquín não viu nada de especial na aproximação do veículo, pois não imaginava que seus ocupantes pudessem ter com ele alguma relação. O som tornou-se mais alto, mais agressivo, e logo Joaquín enxergava dois soldados ale­mães, com seus uniformes da cor dos pombos do Boulevard St. Germain. Como o motorista tivesse diminuído a velo­cidade, Joaquín pôde ver claramente os rostos dos soldados. A apreensão que se apoderara dele então se desfez. O mo­torista e seu acompanhante não deviam ter mais do que vinte anos. Tinham rostos avermelhados e saudáveis de rapazes do campo, e era curioso vê-los usar capacetes prus­sianos de aço em vez de confortáveis bonés de tecido.

Joaquín viu com especial interesse o que acontecia na­quele momento. Era algo que prendia a atenção de um escritor. Apegado ao hábito, tirou um pequeno caderno do bolso do peito e, ao fazer esse gesto instintivo, já tinha noção de como descreveria aqueles rostos de camponeses, tão implausivelmente cercados de aço. Foi então que a motocicleta se afastou do meio da rua e, cada vez mais depressa, começou a se aproximar dele. Numa fusão de velocidade e som, o ruído do motor de quase preguiçoso passou a forte, a um som agudo e choroso que o escapamento, na parte traseira do veículo, comprimia.

Em seguida, Joaquín viu que o acompanhante da moto­cicleta segurava uma pistola. A arma parecia negra, enorme, ao sol do meio-dia. O soldado a pegava de modo quase displicente, meio apontada para o céu. No momento se­guinte, porém, já estava apontada para Joaquín. Tudo acon­tecera tão depressa que ele não tivera tempo para o medo, nem para registrar a estranheza do fato ou encontrar-lhe o sentido. Joaquín viu o cano da pistola crescer diante dos seus olhos, a ponto de ficar tão largo quanto uma boca de canhão. Tão perto de si ele viu a arma que estava para lhe tirar a vida que lhe pareceu possível levantar-se e tocá-la.

Somente compreendeu seu erro quando viu o amarelo da explosão e o cachorro atingido pelo tiro. Um jorro de sangue irrompeu, espumante, do corpo do animal, man­chado a roupa, o rosto e as mãos de Joaquín. O cão ainda deslizou pela calçada, arrastando consigo um longo intes­tino vermelho, até sucumbir na base de um poste, onde se transformou num monte de pêlos ensangüentados.

Joaquín ficou confuso por um momento. Havia algo além do cachorro morto, do ruído do motor que se tornava menos audível. Não se dava conta de que esse algo mais era apenas medo, apenas ódio e desprezo pelos nazistas, ou algo que sua mente bloqueava por ser inadmissível. Somente foi per­ceber o que estava sentindo depois de dar meia-volta, apoia­do no pé esquerdo, e de pisar com o direito na superfície rígida da calçada. O bulevar vazio, que lhe dera tanta sa­tisfação ao longo dos anos em que perambulara pela cidade, já não passava de uma prisão. Logo Joaquín, às pressas, se afastava dali, e a sensação de perda tornava-se imediata­mente real para ele, entrando em sua consciência como um corte de bisturi.

Até aquele momento ele era como qualquer pessoa que se vê diante dos grandes acontecimentos da História, quase sempre observados com o canto do olho, num rápido re­lance. Para os que não presenciam a cena, o evento pode­roso, devastador ou simplesmente simbólico é ainda mais fragmentário. Eles estão à mercê do olho do fotógrafo, das palavras do repórter, e tanto as imagens quanto os relatos impõem um pano de fundo, induzem ao artifício de um começo, um meio, um fim.

Às vezes, porém, a força, o significado, as conseqüências de um desses momentos são capturados com a clareza de um sonho. Ao observar a motocicleta ir diminuindo a dis­tância, Joaquín sentiu aquele dia entrar-lhe na memória com a imagem penetrante do vira-lata estripado a deslizar pela calçada. O animal não ficou em sua mente como um simples monte de pêlos, sangue e ossos, mas, antes, como uma rai­nha na ópera, que calmamente contempla a destruição de sua liberdade. Penteado, escovado, enfeitado e sereno, o cão contemplava de um camarote ricamente estofado o va­zio de Paris. Estava ofegante, língua caída a um canto da boca, e seu sangue manchava o veludo do parapeito. Seu olhar era fixo, calmo, impassível.

Não ocorreu a Joaquín voltar para casa, tirar a roupa ensangüentada, lavar o rosto, o pescoço e as mãos antes de ir me procurar. No caminho, ele foi sentindo coagularem os respingos pontilhados que lhe repuxavam a pele, como se ela fosse a tela que um pintor estica. As pessoas se afas­tavam dele como de um leproso. Joaquín queria dar-lhes explicações, pegá-las pelo braço e falar-lhes do cachorro, mesmo sabendo que ao fazer isso ele se tornaria mais re­pulsivo e assustador. Todo mundo se dispersava nas ruas estreitas e becos que ele percorria.

— Quando o nazista apontou a arma para mim, eu me vi à espera da bala. Eu estava, no entanto, em outro lugar. Acima, abaixo, não sei dizer. Meu corpo estava para ser destruído, mas era algo separado de mim.

Ao ouvi-lo, senti minha expressão mudar. Estremeci. Veio-me à mente o velho desespero. Sua lembrança des­pertava em mim uma outra mais velha, e não quis que ele notasse isso. Ao descrever a cena que presenciara, Joaquín me fez lembrar como eu me via ao subir a escada do Seven Dolphins e, depois, sob a luz impiedosa do pequeno quarto. Eu me sentia exatamente como ele naquele momento. Joa­quín, porém, notou minha reação e ficou convencido de que ferira meus sentimentos. Muito depois, ele me diria que não encontrara outro modo de interpretar meu súbito distanciamento. Era como se eu tivesse levado ao rosto as palmas das mãos, assim como fazem os muçulmanos em suas orações.

Sinto muito — ele se desculpou. — Não tenho o direito de atormentá-la com isso.

Eu lhe disse que me alegrava com o fato de ele falar comigo.

Você está chocado — acrescentei. Em seguida, tentei disfarçar minha perturbação indo pegar para ele um outro conhaque.

Depois de servir-lhe a bebida e sentar-me de novo, con­segui recompor-me. Voltara a estar presente; não com a intimidade de antes, mas ao menos não me mantinha a distância.

Ele me perguntou o que eu iria fazer, e respondi que não sabia. Desviei o olhar, mas não a tempo de esconder as lágrimas. Espalhei-as com a mão, pedi desculpas e acres­centei:

Não sei se posso ficar.

Ele quis me ajudar — isso era claro —, mas não estava me compreendendo.

Talvez não seja tão mau... — interrompeu-se. — O que foi, Ursula?

Detesto uniformes — respondi. — Não sei se posso viver com a presença de soldados.

Olhei pela janela, numa tentativa de recuperar o auto- controle, mas isso não adiantou. Eu já ouvia o toque do relógio.

Ele se levantou rapidamente e, ajoelhando-se ao lado da cadeira, pegou minha mão. Eu não sabia o que estava sentindo. Estava com medo de ter transposto a barreira que havia entre nós e, ao mesmo tempo, feliz pelo que tinha acontecido. Abandonei minha mão na dele, desejando que Joaquín tivesse permanecido no sofá. Agradava-me, porém, sua proximidade. Passei minha outra mão pelos olhos, humilhada com o fato de não conseguir conter as lágrimas.

Não tenho o direito de deixá-lo fazer isto — disse eu, olhando para nossas mãos. — Devemos esquecer. Não é para mim.

O quê?

Olhei demoradamente para Joaquín antes de responder. Claro que não podia lhe dizer o que era, mas, naquele breve instante, perguntei-me o que aconteceria se o fizesse. Qual seria sua reação? O que ele diria?

Estou pensando em como tem sido a nossa amizade. Acredite, é melhor assim.

Tentei sorrir, mas tenho certeza de que foi um fiasco.

Estou feliz por ter vindo — acrescentei. — Sinto muito o que aconteceu.

Eu deveria ter ido para casa antes.

Não, mas talvez agora deva.

Retirei a mão. Senti-me subitamente exausta. O relógio soava na minha cabeça e, bem naquele momento, soou tam­bém, três vezes, o da igreja, na rua de casa. Sentia-me cer­cada e não podia lhe dizer o que se passava comigo. Ele estava demasiado próximo. Parecia que tudo estava dema­siado próximo.

Que perfume é esse que está usando? — ele perguntou.

Era natural, creio eu, que ele tivesse feito uma observação

sobre o meu perfume. Eu sabia que ele estava tentando retornar ao momento em que havíamos estado próximos, sabia também que ele se dera conta do erro que cometera.

Estou indo agora.

Acho que deve.

À porta, ele se voltou e propôs que logo todos nós jan­tássemos juntos.

Sim, seria agradável — respondi. — Mas esqueça o que aconteceu aqui, Joaquín.

Ele, que já tinha aberto a porta, ficou parado com a mão na maçaneta.

Por quê?

Era demais. Tantas coisas haviam acontecido em tão pou­co tempo: os nazistas, nossa súbita aproximação, os claros sinais de que minhas visitas estavam chegando. Ele não tinha como saber o que sua pergunta significava para mim, o que trazia à tona. Senti-me mais do que nunca próxima dele. Quis preservar esse sentimento e ser honesta.

— Por favor! Se eu lhe contasse, você me desprezaria. Deixe tudo como está. Algum dia... — interrompi-me. Não podia conceber esse "algum dia". Parecia-me desonesto, uma promessa barata que eu nunca poderia cumprir. Senti-me cansada, velha, abatida, além do que a linguagem é capaz de expressar. Acenei com a mão e dei-lhe as costas antes mesmo de ele sair.

Eu estava muito abalada com a ternura do olhar de Joa­quín, com a pergunta que ele fizera ao sair, mão na maça­neta. Minha resposta, abrupta, levemente arrogante, fora dada com a intenção de distanciá-lo de mim, magoá-lo. Se, por um lado, eu tentava desencorajar Joaquín — e para o seu próprio bem —, por outro, sentia-me culpada com o fato de ele ter, de leve, estremecido quando eu limpava com um pano úmido os respingos do sangue do cachorro. Tentei reter a imagem do seu rosto diante do meu, o som da sua voz, a surpreendente sensação de proximidade. Tentei usar tudo isso para me defender dos dois soldados de pele e cabelos claros que haviam se instalado no meu quarto, fazendo-me sentir paralisada e impotente. Nas duas horas seguintes em que, sentada na minha poltrona, fiquei à es­pera de Monika e Claude, eu os vi, com suas botas relu­zentes, escarrapachado no sofá. Eu sabia que eles eram os batedores dos Homens do Relógio, mas podiam muito bem ter vindo da Lua. Talvez algum estranho veículo, seme­lhante às máquinas de Júlio Verne, os tivesse trazido. Ti­nham o olhar fixo, reluzente, e assim ficaram durante toda a tarde, em meio à crescente obscuridade.

Somente sumiram quando ouvi o ruído da chave de Monika na fechadura. Ela notou que havia algo errado assim que viu minha expressão e o pano manchado de sangue. Contei-lhe o que tinha acontecido. Logo depois chagou Claude, e repeti-lhe a história. Quis fugir. Se dependesse de mim, teríamos deixado Paris tão logo chegasse a notícia de que os alemães havia transposto os Países Baixos. Eu teria, de boa vontade, caminhado até a estação ferroviária, carregando tudo o que conseguisse. Teria feito esse per­curso, duas, três, dezenas de vezes. No entanto, por mais que eu quisesse partir, sabia que isso não era possível. Es­távamos atados a Paris pelo trabalho de Claude. Mesmo assim, eu não sabia se podia ficar e, por causa desse medo, não me permiti pensar no que poderia acontecer com a presença dos nazistas. O futuro era um enigma. Eu não conseguia vê-lo de outro modo. Passei a pensar apenas em termos de dias, tentei enxergá-los maleáveis, abertos a op­ções. Eu poderia suportar a passagem dos dois. O que es­tivesse adiante deveria permanecer vago e indefinido.

Estava muito cansada. Pela primeira vez, desde que nós três morávamos juntos, desejei ter mais privacidade e, di­zendo que estava com dor de cabeça, fui cedo para a cama. Foi então que minhas visitas finalmente chegaram.

Em geral, eles permaneciam na plataforma rolante, mas, naquela noite, a plataforma avançava diante do relógio, saliente como uma grande língua, por onde minha visitas desceram, entrando no quarto. Estavam todos de uniforme. Uma parede de vidro cercava minha cama, e eles pressionavam o vidro com as mãos, com o rosto, como crianças diante de uma confeitaria. Pareciam contentes.

Fique tranqüila — disse um deles. Procurei quem tinha falado. Era o último, um oficial que freqüentava o Seven Dolphins.

Fez bem em mandá-lo embora — disse outro. — Seja fiel a nós.

Todos aplaudiram.

— Deixe-nos entrar, Ursula. Em nome dos velhos tempos.

Diante da constante pressão que faziam, o vidro formava uma saliência na minha direção. Levantei-me e comecei a empurrá-lo, com força, em sentido contrário. O vidro então se dissolveu, e logo o oficial estava em pé ao meu lado, curvando-se para me pegar. Não senti mais meus braços e, quando tentei gritar, caiu da minha boca um cachorro morto.

Acordei bruscamente e acendi a luz, esperando encontrá-los ali. Não acreditava que aquilo fora um sonho. Re­mexi na gaveta do criado-mudo e pequei um sedativo. De­testava tomá-los, pois deixavam-me entorpecida no dia se­guinte, mas, naquela noite, eu não tinha escolha. Tomei o sedativo e fiquei aguardando o efeito. Em poucos minutos, minhas visitas começavam a desaparecer, como moscas que voam de um prato com restos de comida.

 

Quando a onda do êxodo passou por nós, perguntamo-nos se seria estupidez ficarmos ou se simplesmen­te estávamos sendo mais corajosos e otimistas do que os amigos e vizinhos que haviam fugido. Não havia respostas fáceis, e isso contribuía para o nosso estado de confusão. Pouco antes, o ritmo da cidade que Joaquín havia capturado com tanta eloqüência em seus romances nos parecia ina­balável como pedra esculpida. Trabalhávamos, pagávamos aluguel, comprávamos comida e roupas, fazíamos planos. Em poucas semanas, no entanto, viemos a compreender a fragilidade do futuro e o vimos tal qual era — um sonho que pode desaparecer num instante, ao despertarmos com o ruído dos caminhões do Exército numa rua habitualmente calma, ou com o grito de algum nazista abaixo da nossa janela. Quase de um dia para outro, os peritos em previsões do futuro tornaram-se guardiães da memória. Mudou o modo de pensarmos, de falarmos. "Lembra-se?", "Eu me lembro" transformaram-se em arautos de outras mudanças na linguagem provocadas pelos nazistas.

Durante esse período, Claude, Monika e eu tentávamos nos adaptar à nova vida, e o resultado obtido não foi melhor do que esperávamos. Eu tinha notícias de Joaquín por meio de Claude, que o via aos sábados no La Masia. Certa vez ele telefonou para dizer que se recuperara do choque so­frido em Quai d'Orsay e que se sentia grato pela tarde em que estivemos juntos. Gostei de ouvir sua voz, mas recu­sei-me a vê-lo, sabendo que meu prazer seria reprimido pelos Homens do Relógio. Mesmo ao falarmos no telefone eu já sentia despertar em mim o velho sentimento de culpa. Meu rosto corou, meu coração bateu com angústia quando me lembrei do momento de intimidade e de confiança que tínhamos compartilhado. Em seguida, desejei que ele não tivesse vindo, que tivesse procurado outra pessoa.

Um mês depois, senti-me fortalecida e me dei conta de que não desmoronaria se nos encontrássemos de vez em quando. Já me parecia possível tê-lo como amigo. Além disso, estava sozinha. A maioria dos meus alunos tinha parado de vir, e eu estava com muito tempo ocioso. Não me bastava ler enquanto Claude e Monika estavam fora de casa. Assim, concordei em vê-lo.

Estávamos almoçando quando ele me falou da proposta de St. Omer. Eu tinha feito omeletes — ainda era possível encontrar ovos —, e, depois de servidas, ele disse que acon­tecera algo que eu poderia achar interessante. Tinha a ver com o que havíamos conversado quando nos conhecemos, quando ele me disse estar convencido de que Lorca ainda voltaria a participar de sua vida.

Num sábado, St. Omer chegou mais cedo ao La Masia e falou sem parar durante uma hora. Estivera procurando um modo de reagir à ocupação, e, por coincidência, havia um amigo rico que se dispunha a financiar um jornal clandestino. Esse amigo tinha participação num dos jornais que passara a ser controlado pelos nazistas e tornara-se um veí­culo de propaganda. O jornal clandestino seria, portanto, um modo de restaurar a verdade. Como o benfeitor não quisesse nenhum envolvimento direto, deixaria a publica­ção a cargo de St. Omer. Jacques, que já tinha recrutado vários membros do Clube de Lorca, queria o quanto antes começar a trabalhar na primeira edição.

— Nenhuma restrição, Wolf — dissera ele. — Pode es­crever o que quiser.

Joaquín aceitou sem pensar duas vezes.

Naquela tarde, enquanto St. Omer explicava a logística de impressão e distribuição, Joaquín já procurava assuntos. Sua primeira idéia foi escrever sobre o primo Albert, apontando-o como exemplo de mentalidade nazista. Começou o ensaio no dia seguinte, mas as idéias contidas eram de­masiado óbvias. "Uma estupidez. Qualquer pessoa escre­veria isso." Ao amassar os papéis e jogá-los no cesto de lixo, deu com os olhos num pote cheio de caroços de azei­tona que recolhera em Fuente Grande. O pote recebia a luz vinda das janelas que davam para a Rue Littré. Lembrou-se do que Maria dissera a respeito de Heinz e do toureiro. Os caroços de azeitona, que até então não passavam de suvenir, começaram a germinar. Joaquín compreendeu que poderia servir-se da história de Lorca para lançar luz sobre o que acontecera na França. De repente, o vidro quebrado da redoma de Paris ergueu-se no ar, como num filme pro­jetado ao contrário. A lembrança de Fuente Grande e da guerra haviam-no recomposto.

Mais de uma vez refleti a respeito daquele momento. Repasso-o agora devagar, com o cuidado de uma colegial, atenta à verdade, procurando vê-lo de vários ângulos, reordenando as coisas, enfatizando um aspecto em detrimento de outros, mas a conclusão a que chego é sempre a mesma, sempre moldada pelo paradoxo. O fato incontestável é que os nazistas forneceram a Joaquín os meios de ele se redimir do passado. A decisão de ficar mais um dia em Guernica deixara nele uma marca mais profunda do que o cassetete da Guarda. Nunca ele disse isso abertamente, mas nem pre­cisava. Joaquín queria compor uma nova imagem de si pró­prio. Sim, ele lutara e arriscara a vida em nome daquilo que acreditava. Ninguém o culparia por ter querido ficar mais um dia ou dois fora de combate. Ele, porém, se cul­pava, e por causa disso os nazistas precisavam vir. Vivo me perguntando que caminho ele teria tomado se os nazistas não houvessem invadido a França. Estou certa de que, nesse caso, ele teria levado uma vida centrada na ausência, amar­gurado com o fato de ter-se demorado em Guernica. A cidade ficara em sua mente, como uma ferida. Ele sofria com o que acontecera a Ansaldo, à família do amigo, a todas as vítimas do bombardeio; mas sofria igualmente por acusar-se de covardia. Por isso permaneceu tanto tempo em Paris. Precisava se convencer de que não tinha medo.

Assim sendo, Joaquín voltou à arena que julgava ter abandonado em Guernica, agora não mais com um rifle, mas armado de palavras.

Em tempos de normalidade, as palavras não alcançam a velocidade das balas; não chegam sequer à sombra de um ato. São apenas ensaio ou lembrança desse ato. A Ocu­pação, no entanto, modificou a natureza das palavras. Qua­se de um dia para outro, o uso das palavras — a não ser na imprensa oficial — tornou-se um ato de sabotagem, se­melhante a fazer explodir linhas de trem, cortas cabos te­lefônicos, cometer assassinatos. Aqueles que escreviam para jornal clandestinos, como o composto por membros do Clu­be de Lorca — chamado de Les Ecrivains de la Résistance, isto é, Os Escritores da Resistência, acabaram por descobrir que suas palavras haviam se transformado em objetos corpóreos, sólidos como pedras, cortantes como vidro. Desco­briram também que — escritas a caneta ou a máquina, impressas em gráfica ou em mimeógrafo — eram, na opinião dos nazistas, tão perigosas quanto dinamites, bloquear es­tradas, enfiar uma faca nas costas de um oficial que entra, desprevenido, numa escura estação do metrô.

Por isso os nazistas faziam expurgos nos jornais, punham a prêmio a cabeça dos escritores. Não conseguiam, porém, calar suas vozes. Haviam transformado a superfície de Paris numa fortaleza, mas uma outra cidade vivia nos subterrâ­neos, numa cidade invisível, povoada de gente invisível cujas vozes teimavam em dali emergir, como que vindas das catacumbas do museu de Cluny, dos esgotos, de mis­teriosas rachaduras no chão, ou das bocas-de-lobo. Afoitos, os nazistas procuravam ouvir o arranhar das canetas sobre o papel, o ruído das máquinas de escrever, o estrépito das impressoras, tão perigosas quanto as minas que seus ini­migos tentavam colocar embaixo do Hotel Crillon. No Crillon, quartel-general da Gestapo na Rue des Saussaies, ho­mens uniformizados, homens de jaqueta de couro e chapéu verde de feltro liam, raivosos, as denúncias publicadas nes­ses jornais, os relatos sobre o avanço da guerra e os atos de sabotagem. Caso tivessem algum pendor literário, talvez pudessem comentar as boas qualidades daqueles escritos, em meio à descoberta de alguns endereços, identidades, dossiês e pseudônimos. Designavam homens da contra-inteligência, da Abwehr, da Gestapo, colaboradores franceses, para vigiarem as esquinas, as lojas, os bistrôs, e cada um desses homens passou a representar um fio da teia espa­lhada por toda a cidade. Sabíamos que eles estavam atentos a sutilezas, que eram capazes de detectar pessoas suspeitas, ações, gestos, expressões, imprudências ou excesso de zelo. Andavam em busca de tudo — armas, documentos falsos, mensagens. Nos bloqueios das estradas e nos postos de inspeção, tentavam nos confundir, procurando incoerências nas histórias que contávamos a respeito de aonde íamos, de por que estávamos ali naquela hora. Também procuravam pessoas específicas. Guardavam fotografias dentro dos chapéus, e ouvíamos dizer que, com freqüência, as consult­avam discretamente para ver se correspondiam a rostos de pessoas que passavam pela rua.

Se eu desenhasse essa teia no meu mapa, haveria círculos concêntricos partindo do mal-afamado Hotel Crillon até os subúrbios mais afastados. Eu tentaria mostrar como as capturas, a vigilância, as denúncias de pessoas ou atos suspeitos se davam por meio dessa enorme teia. De manhã, ao meio-dia, à noite, voltavam ao hotel os homens que tinham a incumbência de descobrir de onde vinham as vozes subterrâneas. Eles passavam as informações recolhidas, enquanto lá fora tremulavam, cor de sangue, quatro bandeiras com suástica.

A voz de Joaquín devia tê-los, desde o início, afrontado. Muitas das histórias do LER relatavam abertamente vitórias dos aliados e atos de sabotagem informados em francês pela BBC, bem como as informações transmitidas pelos participantes da rede subterrânea de resistência. Havia ainda ensaios especulativos, e foi esse o modo que Joaquín esco­lheu para se expressar. De tempo em tempo, St. Omer, Sandoz e Feinstein também escreviam artigos desse tipo para o LER. Outros faziam o mesmo para o Combat, L'Humanité e Les Lettres Françaises. Os ensaios de Joaquín eram muito peculiares em razão dos paralelos que traçavam entre a guerra espanhola e a Ocupação. Fuente Grande tornara-se o canteiro onde germinava sua indignação, e os frutos que dali saíam eram mais amargos para os homens encarrega­dos de silenciar as vozes. Ainda agora posso vê-los a folhear com impaciência exemplares do LER, em busca da coluna "Cartas a Lorca". Em parte autobiografia, história e elogio fúnebre, a coluna era sempre dedicada ao amigo. Os escri­tores da Resistência eram passionais, líricos e precisos em suas denúncias. As "Cartas" eram tudo isso e ainda mais, pois o que Joaquín nelas dizia estava imbuído de uma visão de tempo e lugar que rompia as amarras da verossimilhança que ele tão fielmente cultivara antes de ir para a Espanha. Tenho-as comigo, um espesso maço embrulhado numa fo­lha de linóleo comprada na véspera da minha partida de Lisboa. Claude acha possível que venham a ser editadas na América, o que me traria enorme satisfação. Isso, porém, não teria para mim tanta importância quanto o fato de in­vocarem o verdadeiro Joaquín, e parece-me bem adequado que, de vez em quando, ele possa falar por si mesmo, como agora, no momento em que, ao vento do convés, procuro evocar sua vida.

A primeira carta apresentava o mundo pedregoso de Fuente Grande. Ele nos conduzia por entre os olivais, ao redor do lago de Ainadamar, mostrava os cômodos de La Colonia, convencido de que deveríamos conhecer esses lu­gares com a clareza das fotografias ou dos sonhos.

Pensemos na última noite de Lorca. Depois das Baladas Ciganas, ele se voltou para a escuridão, como se esse fosse seu verdadeiro elemento, um lugar povoado de facas e sangue, amor e vingança, para que assim estivesse mais preparado do que os outros prisioneiros, que também seriam conduzidos à barranca de Víznar tão logo o sol despontasse no horizonte. Assim como os outros, ele tinha medo, pois não era tolo. Seu medo, porém, viria mesclado ao mundo dos seus poemas, onde os espanhóis como ele, ciganos de coração, senão de sangue, procuravam mortes honoráveis e memórias sem mancha. Creio que seu medo tenha brotado em silêncio, que Lorca — como um vaso com uma só tulipa — o guardasse dentro de si e que tivesse falado com os outros com a mesma chama de dignidade que percorre seus poemas. Alguns eram amigos, especialmente o cantor de flamenco, Lorenzo, cujo rosto estava ferido, in­chado, por causa dos golpes que lhe dera o chefe falangista de Granada, um certo Luís Valdés. Lorca e Lorenzo teriam consolado um ao outro e, depois, mergulhado em silêncio com a chegada do padre, que lá fora ouvir as confissões dos fiéis.

O latim sibilante devia ainda ressoar pesadamente, mesmo depois da saída do padre, contrastando com o cante hondo que Lorenzo, a certa altura, começou a cantar. Logo todos marcavam o ritmo, a bater palmas; eram vozes e mãos a vazar pelo teto, chegando aos quartos onde dormiam os falangistas que os iriam matar. Alguns talvez tivessem acordado, talvez aquele som desafiador tivesse despertado neles a consciência de que estavam ali para matar homens e mulheres cujas raízes pene­travam nas profundezas do mesmo chão. Outros talvez tives­sem sonhado àquela música. Em todo caso, ela não surtiu efeito nos homens de Valdés. Ao amanhecer, Lorca e os outros pas­saram por entre os homens que a tinham ouvido, ou não, e caminharam até a barranca onde a explosão dos tiros espantou os pássaros pousados nas oliveiras e morreu em meio ao afoito bater de asas.

Fuente Grande está em silêncio. Agora lá ouve-se apenas o escorrer das águas da acéquia e o ruído do vento nas oliveiras e nos pinheiros. Não está, porém, vazia. Naquele lugar, no final da estrada do Arcebispo, Lorca, Lorenzo e todos os outros devem existir sob alguma forma de vida. Eles existem na minha imaginação e na das pessoas que conheci. Eu os vejo reunidos, à noite, ao redor de uma fogueira de lenha de oliveira. Valdés também está lá, condenado a vigiar e ouvir. Diz-se que, nas casas pobres ao longo do caminho, nas casas de fazenda e nas choupanas espalhadas pela várzea, sonha-se à noite com vozes ao vento. Nas cantinas, homens que jogam baralho interrom­pem a conversa e, deixando de lado as cartas, ouvem algo além do murmúrio das águas da acéquia. Aldeões e campo­neses afirmam que, em certas noites, o brilho de um fogo dis­tante ilumina o céu acima da barranca de Víznar.

St. Omer assegurara a Joaquín liberdade para ele escrever o que bem entendesse, mas, poucos dias depois da primeira aparição do LER, após a reunião do Clube de Lorca, chamou o amigo de lado. St. Omer jantara na noite anterior com o patrocinador do jornal que, embora satisfeito com a edição, não compreendera a carta.

Ele perguntou para que serve esse material a respeito de Lorca. — Em seguida, olhando com ceticismo para Joa­quín, St. Omer acrescentou: — Devo dizer que compreendo o ponto de vista dele. Em todo caso, ele quer falar com você.

Eles se encontraram num apartamento da Margem Di­reita do rio Sena. Um homem idoso abriu a porta, e Joaquín entrou numa sala escura, iluminada apenas pelo fogo da lareira. Joaquín se surpreendeu ao ouvir, vinda do outro lado da sala, a voz do benfeitor:

Prefiro que não se aproxime. Não sou tão corajoso quanto você e os outros e quero que saiba disso. Saiba tam­bém que admiro seu trabalho. O problema é que não com­preendo muito bem o que você vem fazendo, nem seus motivos.

Joaquín explicou que, ao lançar luz sobre o que aconte­cera na Espanha, encontrara um modo de situar a Ocupação num contexto mais amplo.

Mas é a França que me preocupa.

A mim também — respondeu Joaquín. — O destino de Lorca é também o nosso. Posso me servir disso, mas, se não gostar, desistirei.

O benfeitor se aproximou do fogo, e sua silhueta se de­senhou contra a luz.

É um ultimato?

É você quem diz isso, não eu. Esse é o meu modo de colaborar. Ainda há mais artigos por serem publicados, e, depois de lê-los, você talvez mude de idéia.

O benfeitor remexeu no fogo e deu alguns passos adiante, aproximando-se o suficiente para que Joaquín visse uma mecha de cabelos grisalhos e o reluzir de vários anéis.

Estava apenas preocupado com o seu compromisso. Desde que você tenha convicção no que está fazendo, deve continuar. Sou paciente. Posso fazer-lhe uma última pergunta? Por que vê o que acontece aqui do ponto de vista da Espanha?

Eu estava lá — respondeu Joaquín, percebendo de imediato que essa simples frase não bastava. Achou que lhe devia uma explicação completa, já que o benfeitor con­cordava com o que ele queria fazer.

Eu estava lá — ele repetiu —, e o que acontece aqui não é diferente. O mesmo aconteceu e o mesmo acontecerá. Será útil demonstrar isso.

St. Omer me contou que você se feriu em Guernica.

Ele disse por quê? O que isso me custou?

Não.

Um homem só é útil ao agir.

Sentimento de culpa?

É um modo de pagar uma dívida. Faço o que é possível agora.

Desde que sirva para lançar luz...

Confie em mim.

O homem, em seguida, lhe deu as costas e, antes de desaparecer na escuridão, Joaquín vislumbrou-lhe o rosto saliente.

Então escreva sobre o seu amigo.

No dia seguinte, enquanto passeávamos, ele me falou desse encontro. Já havíamos chegado à Place de la Concorde quando, de repente, o que vi desviou minha atenção do que ele contava. Eu não saía muito de casa havia várias semanas. Na Rue de Seine não costumávamos ver muitos nazistas; o que não era de surpreender, pois tratava-se de uma rua de prédios de apartamento, sonolenta e pouco movimentada. No entanto, na Place de la Concorde, pare­ceu-me que todo o Exército alemão se encontrava em Paris. A avenida estava congestionada de caminhões grandes e barulhentos, com logotipos de companhias transportadoras de Dresden, Munique, Stuttgart, Hamburgo e Berlim.

Estão saqueando. Veja.

Ele apontou para um caminhão azul que encostava diante de uma casa elegante, na esquina da Rue St. Florentin. Qua­tro homens de macacão cinzento desceram do caminhão e entraram na casa sem bater à porta. Logo, uma mulher assistia, perturbada, aos homens que carregavam mobília, prataria e quadros de casa. Eu, que nunca tinha visto nin­guém tão amedrontado, insisti em que prosseguíssemos, pois não suportava ver aquela cena.

Em seguida, vimos as bandeiras vermelhas hasteadas ao Hotel Crillon. À distância, a cúpula branca da Igreja do Sacré-Coeur erguia-se acima de Montmartre. As esculturas de mármore da Concorde, as mulheres monumentais que representam as cidades da França, pareciam travestis da ordem que deviam simbolizar. Joaquín e eu éramos os úni­cos parisienses na praça. Não se avistava nenhum velho, nenhuma mulher jovem a empurrar carrinho de bebê, ne­nhum carro particular, nada a não ser caminhões como aquele que parara diante daquela casa. Por toda parte, havia placas de trânsito improvisadas, cheias de setas e informa­ções em alemão. Veículos militares passavam em espantosa velocidade. Disse a Joaquín que estava farta. Sentia-me vul­nerável no meu apartamento, mas aquilo era pior. Eu tinha uma sensação de perigo, de impotência.

O que foi? — ele perguntou.

Respondi, e ele disse que devíamos ir até o Arco do Triun­fo.

Há algo lá que a fará se sentir melhor.

Quase deu certo. O monumento tornara-se uma atração turística para os nazistas que afluíam de veículos fechados. Eles formavam fila para passar ao lado de um homem que lia uma lista das conquistas de Napoleão, acrescentando que as doze avenidas que convergiam para o monumento tinham nomes de heróis militares. Logo descobri por que Joaquín insistira em que eu fosse lá. Os nazistas estavam tremendamente aborrecidos. Pareciam tão inofensivos quanto vacas, estúpidos, imbecilizados, entorpecido e, no entanto, prontos para obedecer. Isso era tudo em que eu conseguia pensar. Eles cumpririam o que quer que lhes fosse ordenado. Tudo me pareceu pior no caminho de volta para casa, e essa sensação se intensificou quando me dei conta de que as centenas de nazistas que eu vira haviam encorajado minhas visitas. Despedi-me de Joaquín à porta, bruscamente, e fechei as cortinas. Nenhum rosto flutuava na sala, mas eu podia ouvi-los sussurrar. Lembrei-me da mulher parada à porta da casa dela, lágrimas a lhe escorrer pelo rosto. Tive pena; mas ela ao menos assistia, impotente, a algo que tinha uma finalidade. Vi-me tentada a abrir as cortinas, escancarar as janelas, gritar, dizer a todos que en­trassem de uma vez e levassem o que quisessem do que ainda restava de mim. Não consegui imaginar nada melhor do que vê-los a seguir pela Rue de Seine, alguns agachados em cima do veículo fechado, outros na parte traseira, es­piando. O vazio estampou-se na minha frente, tão doce e desejável quanto o amor.

Quando saiu a segunda edição do LER, Rodríguez já ti­nha esvaziado uma despensa nos fundos do La Masia para que fosse usada como escritório dos editores, um dos vários lugares a que St. Omer chamava Joaquín quando se tratava de encomendar-lhe artigos ou discutir estratégias. A sala oferecia duas vantagens. Como o Clube de Lorca se reunia aos sábados, havia uma boa justificativa para que tanta gen­te se juntasse lá. Chegaram até a colocar um cartaz na janela, com a agenda da reunião do sábado seguinte. A normali­dade e a rotina eram o melhor disfarce para o trabalho que desenvolviam, e todos faziam questão de manter a fachada daquilo que se iniciara como um grupo restrito de literatos.

A segunda vantagem da sala dos fundos do La Masia era a de que ninguém que não a conhecesse desconfiaria de sua existência. Rodríguez a construíra quando comprara o café, e somente era possível entrar lá passando por trás do balcão e atravessando a cozinha. Por trás, não havia entrada, apenas uma espessa parede de tijolos. Quando pre­cisavam se reunir, alguém ficava de guarda a uma das me­sas da calçada, tomando café ou bebendo cerveja. Haviam combinado um sinal para anunciar a presença de alguém que estranhasse o fato de tantos clientes passarem por trás do balcão e desaparecerem nos fundos. Era um arranjo bas­tante seguro, já que o café se abria aos sábados somente para os membros do clube. Em todo caso, sentiam-se mais seguros reunindo-se lá do que nas respectivas casas.

Joaquín, St. Omer, Sandoz e Feinstein compunham o qua­dro de editores. Ninguém mais podia entrar na sala dos fundos, mas às vezes Joaquín me contava o que acontecia lá dentro. Além disso, encontrei entre seus papéis uma lista manuscrita dos assuntos discutidos na reunião que antece­deu a primeira de várias crises.

Sandoz, um cigano tcheco que tinha somente uma vista, estivera escrevendo a respeito de membros da resistência mor­tos em combates de rua, ao tentarem escapar da prisão. Ele também escrevia sobre atos de sabotagem. No dia em questão, Sandoz contou-lhes que queria publicar um artigo que haveria de chocar os leitores. Talvez fosse uma coluna que aparecesse regularmente, comentando os abusos cometidos pelos nazis­tas. Joaquín pegou uma folha de papel e começou a enumerar os fatos que podiam ser incluídos. A lista é incompleta e tanto mais empolgante em virtude de ser-me impossível saber quantos outros incidentes semelhantes ocorreram. Está orga­nizada de acordo com os meses em que se deram os fatos, e eu a reproduzo aqui tal qual é:

Julho: Padeiro executado por participar de uma comemoração proibida do dia da Queda de Bastilha. Um garçom, talvez chamado Leconte, levou um tiro por cantar a "Marselhesa" no mesmo evento.

Agosto: Nazista morto a facadas perto da Porte d'Orléans.

Seis dias depois, dois mecânicos da Porte St. Denis são executados em represália. Sargento nazista assassinado numa es­tação de metrô, perto de Montmartre. Desconhecida a causa da morte. Três reféns são executados em represália. O conde D'Estrene d'Orves e outros dois homens são capturados em missão designada pelo quartel-general, em Londres, de De Gaulle. Guilhotinados.

SETEMBRO: Oficial nazista morto a tiro, à meia-noite, na Pont du Carrousel. O colaborador Marcel Gitton é executado por membros da resistência. Soldado nazista assassinado a tiro. Três reféns, mulheres, executadas publicamente. Três suboficiais nazistas assassinados a tiro. Dois reféns executados em represália. Outros doze reféns são executados. Jean Catelas é guilhotinado.

OUTUBRO: Comande nazista assassinado em praça de Nantes. Quarenta e oito reféns são executados. Oficial assassinado em Bordeaux. Quatro reféns executados.

NOVEMBRO: Bombardeada livraria nazista, perto da Sorbonne. Restaurantes nazistas bombardeados. Médico nazista es­trangulado perto do Boulevard Magenta. Morrem três oficiais nazistas e oito ficam feridos em explosão de restaurante. Vinte reféns executados em represália.

Todos à mesa leram a lista e, por fim, concordaram em que Sandoz deveria dar ênfase à execução dos reféns. A certa altura chegou Feinstein. Ele pediu desculpas por estar atrasado e, tirando o sobretudo, deixou à mostra uma reluzente estrela amarela pregada em seu paletó. Tentou fazer piada daquilo, dizendo que era um cartão de racionamento em tecido.

— Tenho que usá-la em toda parte — acrescentou —, mas vesti o sobretudo para que ninguém visse esse meu pequeno farol quando eu entrasse.

Feinstein deixara de ser invisível e, por causa disso, não mais podia trabalhar como mensageiro. Ele entrara para o Clube de Lorca, logo no início, em razão da sua fama de poeta menor. Quando da fundação do LER, ele parecia a pessoa ideal para o trabalho de intermediário. Na época, ainda trabalhava no Louvre, onde descrevia obras que po­diam ser adquiridas. Depois de ser despedido, por causa do sangue judeu, arranjou emprego como auxiliar de pa­deiro e racionalizou seu rebaixamento dizendo que assim estaria mais bem protegido. No entanto, até mesmo ele sabia que não poderia continuar.

Joaquín substituiu Feinstein, argumentando que tinha mais tempo que todos para percorrer grandes distâncias, o que era às vezes necessário. Os jornais clandestinos atua­vam de modo autônomo, mas, de vez em quando, seus dirigentes precisavam trocar informações. Logo depois de Joaquín substituir o amigo, um homem apareceu num sá­bado no La Masia, pouco antes de o café fechar para a reunião. Ele trazia uma mensagem de Jacques Decour, edi­tor de Les Lettres Françaises. Decour, que era amigo de Joa­quín e St. Omer desde quando recém-chegados a Paris, tra­balhara na primeira edição do LER, desentendera-se com eles numa questão de estratégia e fundara o próprio jornal. Nem LER nem Les Lettres tinha exclusividade sobre o que publicavam. O mensageiro de Decour disse que se tratava de certas mudanças no alto comando nazista, e Joaquín logo marcava um encontro com o amigo numa pequena praça perto de Gare du Nord. Os dois deveriam chegar exatamente ao meio-dia, vindos de pontos diferentes. Caso tudo lhes parecesse normal, seguiriam para um café a pou­cos quarteirões de distância, administrado por um homem que tinha vínculos com a Resistência.

Joaquín passou as primeiras horas da manhã trabalhando na carta seguinte. No início, escreveu com rapidez, e o avan­ço o deixou satisfeito. Algo, porém, aconteceu em seguida. Mais tarde, a recordar, disse que pensava tratar-se apenas de uma mudança de estado de espírito, o que às vezes lhe ocorria quando se deparava com um novo rumo na narrativa. Esse sentimento era-lhe, porém, familiar; diferente da­quele que o tomava de assalto naquela manhã.

Na época, ele ainda era relativamente novo no mundo invisível. Todos que trabalhavam em jornais clandestinos tinham que aprender as regras da invisibilidade, e, às vezes, ao repassar as regras da sobrevivência, ele se sentia um menino de escola que se prepara para os exames.

Não escreva nada que possa incriminar a si próprio ou os colegas.

Nunca leve arma consigo.

Não permita que ninguém descubra seu endereço.

Ao despedir-se de alguém, vá na direção oposta à que pretende tomar.

Nunca espere.

Não estabeleça rotina no dia-a-dia.

No entanto, a regra mais importante era a mais difícil de se aprender, porque se baseava na intuição, em vez de no conhecimento. A sobrevivência dependia de um sexto sentido, da confiança que a pessoa aprendesse a ter em seus pressentimentos. As pessoas, que em tempos normais tinham um senso inflexível de realidade, passavam a des­cobrir as premonições, tornavam-se adeptas do mistério. Assim, a intuição ganhava o poder de cancelar reuniões, manter as pessoas durante dias dentro de casa, mandá-las à rua em ocasiões inesperadas. O pensamento racional, todo um setor do conhecimento que vinha prevalecendo desde o Iluminismo, abria caminho à necessidade de se retornar ao mundo dos sinais e presságios, onde cada ser humano que se dedica ao mundo invisível é capaz de interpretar sonhos e sensações com a convicção de um vidente.

Joaquín não se deixou impressionar de imediato por essa estranheza, mas, ao olhar para o relógio e ver que eram apenas dez e meia, sentiu-se aliviado com o fato de não ter que sair antes de dali a meia-hora. Já tinha retomado a carta e reencontrado o fio de pensamento quando aquela estranha sensação voltou com ainda mais força. Sentia-se vigiado por pessoas que não via, disse ele. Tão intensa era a interferência que não conseguiu continuar escrevendo. Tentou ocupar-se com alguma coisa no apartamento, mas a sensação permanecia, incômoda, como se ali houvesse uma presença indefinida, como um sonho que sabemos ter tido e de cujos detalhes não lembramos.

A essa altura já eram onze e quinze. Se não saísse em poucos minutos, chegaria atrasado ao encontro, que preci­saria ser remarcado. Decour não ficaria esperando. Como o prazo para entregar o material às pessoas que mimeografavam o LER expirasse no dia seguinte, Joaquín não po­dia perder o encontro. Assim, vestiu rapidamente o casaco e desceu correndo as escadas, dizendo consigo mesmo que estava sendo tolo. À caminho as escadas, dizendo consigo mesmo que estava sendo tolo. A caminho da estação do metrô Montparnasse—Bienvenue, sentiu-se melhor, mas, ao chegar aos degraus que iam dar na calçada, precisou for­çar-se a descer. Era como se um vento forte soprasse, ten­tando arrastá-lo de volta à calçada.

O trem chegou e Joaquín deixou todo mundo entrar antes dele. Depois, deu um passo para dentro do trem, mas voltou à plataforma. As pessoas o olharam com desconfiança. Quando chegou o trem seguinte, ele entrou imediatamente, sentou-se à janela e não olhou para nenhum passageiro. Túneis passaram em forma de borrão. Joaquín contou as placas de estação que emergiam de repente do escuto, pe­quenos retângulos brancos com palavras flutuantes, e foi até a estação seguinte àquela em que devia descer, embora soubesse que, por causa disso, precisaria apressar-se ao che­gar à rua.

Quando saiu da estação, viu que todo mundo aparentava normalidade. Faltavam cinco minutos para o meio-dia. Joaquín ajustou o passo ao tempo que tinha para percorrer a distância até a praça e ficou satisfeito com a precisão com que se aproximava do local combinado. Tudo se encontrava no devido lugar. As pessoas dos dois lados da rua tinham a aparência que deviam ter. Ao avistar as três árvores da praça, tranqüilizou-se. Logo apenas um quarteirão o sepa­rava do local do encontro. Sentiu-se invadido por uma onda de alívio e estava a ponto de rir-se do temor infundado, quando atravessou uma rua estreita e notou dois Citroéns de tração dianteira estacionados do lado esquerdo, bem onde a ruazinha se abria para outra maior. Joaquín dimi­nuiu o passo, consciente de que caminhava depressa de­mais. Foi então que viu três homens parados sob as árvores à entrada da praça. Dois outros, notórios em seus sobretu­dos e chapéus, bebiam a uma mesa de calçada, do outro lado da rua. Achando que um deles o observava, Joaquín prosseguiu, quase descontraidamente, caminhando ao lado da praça e ignorando a tentação de procurar ao menos um rápido vislumbre de Decour. Seguiu a pé até o rio.

Ninguém soube quem traiu Jacques Decour. Podia ter sido má sorte. Era igualmente possível que algum inform­ante tivesse revelado a hora e o local do encontro. Joaquín e St. Omer intensificaram as medidas de segurança, altera­ram procedimentos, passaram a espiar por cima do ombro com maior freqüência, mas atribuíram à dor maior impor­tância que ao perigo, real ou imaginário. Uma semana de­pois da data marcada para o encontro na praça, os nazistas anunciavam a execução de Decour. Embora já temesse esse fim, nem por isso Joaquín ficou menos chocado ao ver o nome do amigo nos cartazes que os nazistas haviam co­meçado a afixar nos postes da cidade. Naquele sábado, o nome de Decour era acrescentado à lista. Joaquín insistiu em escrever a história. Quanto a mim, apesar de admirar sua atitude, sabia que ele havia ultrapassado um limite, expondo-se ainda mais que antes. Ele se arriscava cada vez mais em suas cartas, e o artigo sobre Decour, publicado na edição do LER, só podia ser visto como um desafio. Um coisa é insultar os inimigos em linguagem simples, acusá-los de estupidez e bestialidade. Talvez até tolerassem ofensas e imprecações, considerando-as infantis. Espera-se essa rea­ção-, afinal de contas. Outra coisa, porém, é insultá-los num discurso rico em metáforas e imagens. O poder abomina figuras de linguagem porque elas são capazes de destruir máscaras e poses. Por isso a Guarda perseguiu Lorca; por isso os nazistas procuravam Joaquín. O ensaio sobre Decour intitulava-se "Cem Estátuas" e é o seguinte:

Os nazistas amam a cidade que invadiram. Ao passarmos pela torre Eiffel, pelo Arco do Triunfo, pelo palácio Chaillot, pelo Louvre, pelas Tulherias, pelo jardim de Luxemburgo, podemos vê-los consumindo nossa cultura com as mesma avidez estúpida com que roubaram nossa mobília, nossos quadros. Reservam, porém, o amor mais profundo pelas estátuas de Paris, as figuras de pedra e bronze colocadas bem acima deles, sobre blocos de granito.

E possível compreender por que a Gestapo assassinou Jac­ques Decour ao nos projetarmos na mente dos nazistas que contemplam essas imagens. Os homens da Gestapo têm muita determinação, e é o desejo de fazer-nos tão imóveis quanto essas estátuas o que mais evidencia a força que possuem. Ficarão satisfeitos apenas quando nos tirarem os movimentos e puderem passar livremente ao nosso redor, saboreando o po­der que exercem. Para eles, o poder do Reich de Mil Anos é como as nuvens de cinza vulcânica que caíram sobre Pompéia, aprisionando a população nos mais diversos gestos da vida cotidiana; estivessem as pessoas bebendo de uma taça de prata, pintando um afresco ou fazendo amor.

A Gestapo matou meu amigo porque ele se recusava a tor­nar-se uma estátua de mármore ou de frio bronze. Mataram-no porque ele tinha a coragem de mover a cabeça e olhar, enquanto tentavam tornar-nos tão imóveis quanto as estátuas que admiram. O crime de Decour foi escrever sobre o que ele via, refutando a imagem de que fôssemos criaturas indefesas, congeladas no silêncio, como uma lebre em campo aberto, paralisada de medo.

Decour faz a Gestapo sonhar em seus escritórios na Rue des Saussaies, nas casas e nos apartamentos confiscados. Ele volta à vida, erguendo-se de uma sepultura anônima, quan­do eles vão dormir, pensando em modos mais eficazes de nos capturar em bronze. Deve ser enlouquecedor quando, em seus sonhos, eles se vêem a admirar nossas formas em pedra, para, em seguida, enxergarem algo espantoso. Talvez o oficial em que estou pensando seja aquele que puxou o gatilho e viu Decour morrer. Agora ele analisa o rosto das estátuas e, para seu horror, descobre que está cercado desses rostos, e todos são idênticos ao de Decour, nos mínimos detalhes, até na verruga do lado esquerdo e na pálpebra esquerda meio caída. Em seu sonho, centenas de Decours movem suas bocas de pedra e apontam-no. Outros gritam com suas bocas de bronze. Outros ainda ajoelham-se e fazem de seus pedestais escrivaninhas, onde começam a escrever, escrever e escrever.

Quando o oficial acorda, a transpirar, e acende a luz ao lado da cama, centenas de Decours permanecem na visão da sua mente. Bebe um copo d'água, um schnapps, mas o sonho persiste. Ele ouve o arranhar das canetas de pedra. Entre o sono e a vigília, esse oficial da Gestapo não consegue controlar seu mundo. Decour é como uma personagem de conto folclórico, um cavaleiro, digamos, cuja cabeça volta a crescer, não importa quantas vezes uma enorme espada a decepe. O oficial da Gestapo sabe que cada um de nós, sobreviventes, fala por Jacques Decour, que sua voz e a nossa são uma só. Quando esse oficial vai para o trabalho, já se livrou do sonho em que as estátuas falam; o suficiente para acreditar que ele e seus companheiros podem descobrir to­dos os Decours existentes em Paris e no interior da França. Não se permite pensar de outro modo. A verdade, porém, encontra-se além da sua convicção. Aquilo que nele sabe que a Raça Superior é apenas um mito sempre lhe dirá que ele pode matar Jacques Decour, mas será impotente diante da idéia de Jacques Decour, cuja voz não está no homem em quem atirou, mas nas centenas de pessoas como nós que continuam escrevendo os pensamentos de Decour, como que ditados pelo morto.

 

O sol ontem se punha no horizonte quando eu copiava as palavras de Joaquín. O mar se estendia pálido ao redor, e tudo parecia suspenso na luminosidade. A cigana de Lorca, esperançosa, olhava para as colinas enquanto seu contrabandista retornava do mar, ainda não avistado pela Guarda, que em algum riacho o esperava. Joaquín subia a trilha da montanha com passos firmes e constantes.

Entreguei-me a essa ilusão, queria conservar o torpor que produzia em mim. Estava conseguindo, quando Claude surgiu no meu campo de visão. O vento agitava seus cabelos cacheados quando ele se debruçou, entregando-me o ca­checol e as luvas.

— Achei que você estava precisando disso — disse ele, acrescentando que tínhamos sido convidados para jantar com o capitão. Olhou para mim como se eu fosse uma criança, e eu então lhe pedi que parasse de me tratar com condescendência.

Irritei-me por perder aquele momento e decidi ser mais firme com ele e Monika. Contei-lhe o que eu estava fazendo, que já podia pensar no que acontecera sem me dilacerar e que as interrupções me incomodavam muito.

O jantar foi embaraçoso, desconfortável. Durante o dia, o capitão costumava vestir um velho suéter esfiapado, mas, na noite anterior, usava um bom paletó com botões dou­rados e um quepe cheio de insígnias. Havia cinco passa­geiros além de nós: Emma e Kurt, Marguerite e Jean-Paul, e Francisco, um velho espanhol. Todos teriam preferido jantar nas respectivas cabines, como vínhamos fazendo. Fa­lamos do tempo, passamos uns para os outros as velhas travessas, fingimos nos divertir sem revelar absolutamente nada a respeito de quem éramos. O que o capitão poderia esperar de refugiados cujas histórias eram cruas demais para serem compartilhadas? Ao menos ele percebeu seu equívoco. Uma súbita compaixão estampou-se em seus olhos, e durante o jantar ele repetiu várias vezes que che­garíamos à América o mais depressa possível.

Depois, subi para o convés e fiquei caminhando por meia hora. Desde que partira de Lisboa não me sentia tão forte. Mais do que nunca estava convencida de que este trabalho haveria de render seus frutos e juntar num todo os nossos dias. A certa altura, uma estrela cadente traçou um risco em direção ao leste, e lembrei-me de Joaquín a cair na neve. Por um breve instante sua morte me pareceu tão casual quanto aquele arco luminoso; o que me perturbou, me tirou o prazer de admirar o céu negro, reluzente, e a pálida fosforescência do rastro do navio. Mais tarde, porém, deitada na cama, tentando me acomodar ao movimento rítmico da embarcação, dei-me conta de que aquele minúsculo inci­dente no céu não tinha paralelo com a vida dele nem com a minha. Reafirmava-se a idéia — embora às vezes obscura — de haver um propósito em tudo o que acontecera, assim como a convicção de que devo registrá-la nestas páginas.

De súbito, veio-me à mente o ensaio sobre Jacques De­cour, chamando-me a atenção para o contexto em que se situava. Sem dúvida, o ensaio levara os nazistas a redobrar esforços para identificar Joaquín e desvendar as operações do LER. Do mesmo modo, porém, que instigava a reação dos nazistas, encorajava Joaquín a prosseguir seu trabalho. Nessa altura, Joaquín havia concluído uma exaustiva in­vestigação das circunstâncias que conduziram à captura de Lorca. A Falange tentara encobrir com mentiras o fato de ter prendido Lorca, mas Joaquín aos poucos fora reunindo informações com a determinação de um arqueólogo que, anos após ano, fragmento após fragmento, consegue recom­por um vaso, um prato, uma parede. Ele lera e comparara as histórias publicadas nos jornais espanhóis e de vários outros países, até formar um espesso arquivo de recortes que lhe forneciam todos os detalhes necessários. Agora a traição de que Decour fora vítima aguçava sua noção do que acontecera em Granada, e ele começava a escrever com espírito de urgência, consciente de que sua liberdade corria perigo e ainda mais determinado a concluir a história de Fuente Grande.

Semanas depois, a carta saía publicada no LER. Eu a li na ocasião, e de novo hoje, depois de ter tomado café da manhã com Claude e Monika. As estátuas falantes do ensaio sobre Decour pareciam murmurar palavras que falavam de traição e desafio, levando a comparações entre o destino de Decour e o de Lorca. As palavras eram perigosas, e vi-me novamente pensando nos movimentos e estranhos ritmos que regem o ritual que sempre se repete na Espanha. Não tenho a pretensão de compreendê-lo. A carnificina me repugna. Avilta tanto os que a presenciam quanto os que a executam em cintilantes trajes de toureiro. Tratava-se, po­rém, de um modo de Joaquín compreender a história da sua vida, e é nessa perspectiva que procuro enxergá-la. O touro que ataca e a capa ondulante, o grito da multidão e a espada reluzente são para mim menos sugestivos que os momentos de calma, que medem a violência com tanta pre­cisão quanto a métrica esconde o verso poético. Ao ler a carta e pensar na interação com o que ele tão recentemente dissera a respeito do destino de Decour, imaginei o toureiro e o touro frente a frente, olhando-se, medindo-se. Vi o tou­reiro agitar a capa, preparar-se para o ataque. A morte de um ou de outro parecia mais real, mais iminente nesse mo­mento estático do que quando a espada entrasse no coração do touro ou o toureiro fosse atirado para cima, demasiado perplexo para sentir a dor provocada pelo chifre que o per­furasse. Com cada carta, Joaquín reencenava esse momento estático, instigando o touro a atravessar a arena, expondo-se aos chifres do animal, bem como à voz de alguém na mul­tidão que o pudesse trair. Por isso quero incluir a carta neste trabalho sobre o qual me debruço diariamente.

Fazia muito calor naquele verão em que Garcia Lorca foi assassinado. Madri sufocava havia dias sob a alta temperatura de julho, quando ele decidiu voltar a Granada para ficar na casa dos pais, a vila conhecida como Huerta de San Vicente. Vários amigos o preveniram de que a Falange de Granada era muito arrogante, mas ele os ignorou. Pensava apenas no frescor, no encanto daquela casa e nos aromas de jasmim e erva-moura, que lhe davam o prazer delicado de líricas cefaléias. Diante das imagens e cenas que a casa dos pais lhe inspirava, a Falange não lhe parecia mais perigosa do que travessos me­ninos de escola. Além disso, estava ansioso por comemorar o dia de São Frederico com o pai, que também tinham o nome do santo.

Mal chegou, recebeu a notícia de que o cunhado fora preso. No dia seguinte, os aviões de Franco bombardeavam os bairros mais afastados da cidade. A situação, porém, se acalmou de­pois disso, e ele começou a se sentir em casa na Huerta.

 

Certa manhã, ao tomar café, viu dois homens espiando a casa pelo portão gradeado do jardim. Os homens retornaram às cinco horas com meia dúzia de companheiros. Empurraram o portão, percorreram rapidamente o caminho até a porta da frente, onde um deles disse à empregada que procuravam o irmão do caseiro, responsável, supunham, pelo incêndio de uma igreja. Vasculharam a casa de cima a baixo sem encontrar o rapaz e, quando exigiram a identidade de todos da casa, Lorca desceu para intervir. Não tinham o direito de entrar ali, disse Lorca.

Então é você! — disse um deles com ar de desprezo, para em seguida soltar uma ladainha de insultos, condenar a posição política, a falta de religião, a vida particular de Lorca, que, segundo ele, não passava de um parasita repugnante, perigoso.

Os falangistas ficaram tão frustrados por não encontrar o rapaz que levaram para fora seu irmão mais velho, Gabriel, amarraram-no a uma árvore e chicotearam-no até ele soltar o corpo entre as cordas. Depois, entraram na casa do caseiro, fizeram, aos empurrões, a mãe do rapaz descer a escada e forçaram os demais membros da família a ir ao pátio, onde foram ameaçados de fuzilamento. Lorca protestou e foi atirado ao chão, enquanto a mãe de Gabriel implorava aos homens que os deixassem em paz. Ela, que tinha reconhecido o líder, foi até ele com as mãos no rosto. Disse-lhe que ele devia se lembrar dela, que fora ela quem o amamentara, anos atrás, em sua aldeia natal. O homem ficou visivelmente embaraçado e gritou-lhe que se calasse.

Nunca fui amamentado com leite de puta — acrescentou.

Enquanto tudo isso acontecia no pátio, uma das emprega­das, uma moça chamada Angelina, levou as sobrinhas e so­brinhos de Lorca até a porta dos fundos, de onde correram em campo aberto até a casa de um vizinho. O homem chamou imediatamente o quartel-general falangista. Ele devia ter alguma influência, pois logo chegava um outro grupo, que parou com o açoite, desamarrou Gabriel e cuidou de seus ferimentos.

Essa não seria, no entanto, a última vez que os homens viriam à Huerta. Depois do primeiro incidente, um deles foi até o prédio do Governo Civil e informou o líder, Luís Valdés, da presença de Lorca. Ele descreveu o comportamento de Lorca durante o interrogatório de Gabriel, e isso era tudo de que precisavam para o acusar. Nessa altura, Lorca já tinha chamado a atenção para si por causa de sua obra. Além disso, dizia-se que era comunista e operava um rádio no sótão, de onde en­trava em contato com os líderes rebeldes.

Um amigo de Lorca, Angel Saldana, soube do plano contra Lorca e telefonou para preveni-lo. Lorca ligou de imediato para o poeta Luís Rosales, que meia hora depois vinha visitá-lo.

Lorca disse-lhe que não sabia a quem mais recorrer, mas não queria fazer o amigo correr riscos. Luís não lhe deu ou­vidos. Disse que Federico deveria sair de Granada imediata­mente e que ele o faria chegar à zona rebelde. Já antes fizera o mesmo com outros. Lorca não podia suportar a idéia de ver-se acuado pelos dois lados e também rejeitava a sugestão de ir para a casa de Manuel de Falia. Eles recentemente havia se desentendido a respeito de um poema de Lorca em que De Falia julgava haver ofensa a Deus.

Foi então que Luís decidiu correr o risco de levar Federico a sua casa, onde o amigo estaria seguro para pensar sobre suas opções. Luís instruiu uma das criadas a negar que sou­besse do paradeiro de Lorca. Caso a interrogassem, ela deveria dizer que o vira correndo pelo campo apenas com a roupa do corpo.

Federico passou oito dias no santuário da casa dos Rosales. A rua Angulo era um lugar sonolento, de prédio de três an­dares, com sacadas, uma rua tão estreita que somente ao meio-dia em ponto o sol eliminava as sombras nas calçadas. Parecia um lugar seguro, mas ficava em Granada, na Espanha, onde em qualquer lugar a segurança não passava de ilusão.

A Falange retornou à Huerta de San Vicente várias vezes ao longo dos dias seguintes. Quando se deram conta de que Lorca havia escapado, trataram seu pai com brutalidade. O líder, Ramón Ruíz Alonzo, empurrou-o contra a parede e pegou-o pelo colarinho:

— Diga onde se escondeu o veado do seu filho. Se não disser, levo-o no lugar dele.

Garcia Rodríguez olhou com desprezo para Alonzo, que lhe deu um soco no rosto.

Conchita, irmã de Lorca, não suportou aquilo. Depois, veio a descobrir que cometera um terrível engano, mas na hora não pensou em nada além de encontrar um modo de fazer Alonzo para de bater no pai. Ela o pegou pelo braço.

— Ele não está escondido! Foi à casa de um amigo para ler poesia. Sempre fazem isso. Ele não fez nada.

Como houvesse muitos poetas em Granada, ela achou se­guro dizer isso. Alonzo, porém, sabia quem eram os amigos de Lorca e, tão logo ouviu Conchita, imaginou que ele tivesse ido para a rua Angulo.

Durante sua permanência na casa dos Rosales, Lorca manteve-se de espírito erguido, falando de Nova York e Buenos Aires. As vezes, tocava piano. Estava perturbado demais para escrever, mas ler ele conseguia, e era o que estava fazendo quando os falangistas chegaram para levá-lo ao Governo Civil.

Naquele momento, a Falange acreditou que a vida de Lorca chegava ao fim. A jornada do santuário à escuridão, do sol à obscuridade, seria vista por Valdés e seus auxiliares com um ritual religioso. Os padres e os verdadeiros fiéis desfiam rosários. Fazem o mesmo os fascistas deste mundo, com a dife­rença de que substituem as contas por seres humanos, e não há seqüência nem hierarquia em sua súplicas. E sempre assim. Naquele dia, a conta correspondente à vida de Lorca foi para entre o indicador e o polegar de Valdés. Ele a apertou, e ponta dos seus dedos bloqueou a luz, assim como fez a Gestapo quando conduziu à escuridão meu amigo Decour.

A Falange e a Gestapo cometeram, porém, o mesmo erro. Repetidas vezes elas sentiram a vida ser destruída entre seus dedos. Para os que foram capturados desse modo, não há certamente mais nada, e, uma vez esmagados, é como se nunca tivessem existido. Esse era o propósito da Gestapo ao matar Decour e o da Falange ao capturar Lorca para levá-lo a Fuente Grande. Em ambos os casos houve, no entanto, um erro de cálculo que não perceberam na hora. Valdés deve ter desfrutado vários dias, talvez uma semana, de sensação de vitória, antes de ir percebendo, aos poucos, que Lorca tinha uma outra vida, fora do seu alcance. Meu amigo Federico foi assassinado por causa das suas palavras, e essas palavras haviam tocado a mente das pessoas com as cores de suas crenças e emoções. Lorca entrou na escuridão concebida no mesmo ódio e desdém que caracteriza a mentalidade nazista, mas suas palavras per­maneciam vivas em outras mentes. Mais cedo do que Valdés podia imaginar, o céu de Granada ficou carregado dos poemas de Lorca. Imagens de Lorca enchiam os olhos das velhas mu­lheres que caminhavam ao lado de paredes revestidas de gesso. Lorca sorria para Valdés de sob a luz dos postes, olhava-o por detrás de grades de janelas que davam para praças silen­ciosas.

Imaginemos o desgosto de Valdés quando finalmente com­preendeu que, ao matar Lorca, deu vida nova às líricas de­núncias sobre a atuação da Guarda e dos padres; desgosto compartilhado pelos nazistas que, ao assassinar Jacques Decour, criaram estátuas que falam ao vento. A Falange e a Ges­tapo nada podem contra as palavras dele. Teriam que trazer o céu abaixo para impedir Decour de dançar com Lorca.

Pouco depois de publicada a carta — logo no início da semana seguinte, creio eu —, Joaquín foi jantar na casa de St. Omer e passou a noite lá. No dia seguinte, ao voltar a pé para casa, ouviu na Rue de Rennes uma banda militar. Diariamente, ao meio-dia, em alguns pontos da cidade, um grupo de músicos surgia atrás de um tambor-mor que in­tercalava as batidas com movimentos estilizados de uma reluzente baqueta. Ele vinha a um metro ou dois adiante da banda, cujas primeiras fileiras eram ocupadas por tam­bores de corda, seguidos por clarins e tropas de soldados com os respectivos rifles no ombro, apontados para cima. Aquela música entrava na mente de todos com espantosa facilidade, pois tinha o dom de uma simpatia universal. Por mais que odiassem os nazistas, os parisienses junta­vam-se nas calçadas ao ouvir aqueles clarins estridentes, e Joaquín nunca deixava de se surpreender ao ver os franceses de olhar duro a marcar o ritmo enquanto a banda passava.

Para livrar-se da melodia de Deutschland. über Alles, Joa­quín cantarolou uma canção de Piaf e, em seguida, exami­nou as mercadorias expostas nas vitrines pontilhadas de moscas, na esperança de clarear as idéias. Ainda estava absorto quando entrou na Rue Littré e viu dois carros es­tacionados obliquamente à calçada, bloqueando o trânsito nos dois sentidos. A zeladora do seu prédio, Madame Faverges, encontrava-se entre dois oficiais da Gestapo. Ela era robusta, e seu vestido florido acentuava a saliência dos quadris, a barriga protuberante e os seios pendulares. Pa­recia discutir com o homem de casaco comprido, de couro. Em seguida, o outro, que estava de uniforme, começou a falar com rapidez, agitando um maço de papéis sob o nariz da zeladora. Ele mantinha a cabeça inclinada para trás, como se a olhasse através de lentes bifocais. Joaquín não sabia dizer se ela tinha mais medo dos papéis ou do oficial que os brandia. Naquela altura, não fazia idéia do que es­tava acontecendo. Pensou que talvez a tivessem surpreen­dido com estoques clandestinos, ou em posse de documen­tos falsos, mas não tardou a compreender que aqueles ho­mens tinham vindo procurá-lo. Esteve a ponto de prosse­guir, mas voltou depressa à Rue de Rennes, seguiu até o Boulevard Montparnasse e depois até a Closerie des Lilás. Lá, pediu um conhaque, e ainda outro. O garçom perguntou se Joaquín queria o cardápio, mas ele sacudiu a cabeça em negação, olhou para o relógio e ficou ali uma hora. Em seguida, voltou para casa pelo outro lado da rua.

Os nazistas haviam partido. Assim que ele entrou no hall do prédio, a porta de Madame Faverges se abriu alguns centímetros, o bastante para deixar entrever um olho e um cacho de cabelos grisalhos. Ela abafava um soluço e lançava um rápido olhar para fora. Estava zangada e com medo ao contar que os nazistas haviam vasculhado o apartamento de Joaquín.

Eu os vi lá fora — disse ele.

Ficaram bastante tempo, monsiear. Meia hora, no mí­nimo. Eu os convenci de que o senhor havia partido ontem.

Era tudo o que Joaquín precisava ouvir. Sabia que ela não lhe pediria abertamente que fosse embora. O lábio in­ferior da mulher estremeceu, e ela começou a chorar. Joa­quín então lhe disse que não se preocupasse. Estava para subir a escada quando ela tirou do bolso do roupão vários envelopes.

Chegaram ontem.

Joaquín pegou as cartas e lamentou o acontecido, acrescentando que partiria o mais breve possível.

Sim, como achar melhor — respondeu a mulher.

A porta do apartamento estava escancarada. Joaquín cha­mou os gatos, Rimbaud e Villon, e, já ao fazer isso, dava-se conta de que os animais haviam sumido. Os livros estavam espalhados pelo chão. As portas de vidro da estante, onde ele guardava as primeiras edições, estavam quebradas. To­das as gavetas, todos os armários haviam sido abertos. O tinteiro que ficava sobre a escrivaninha fora entornado, e a tinta preta penetrara a madeira, deixando nela uma man­cha escura. Pousadas pelo chão, como borboletas amarelas, havia folhas de papel e papeletas de anotações. O original da carta mais recente desaparecera. Isso, porém, não o in­comodou, pois havia uma cópia no escritório do LER. Por algum motivo, os nazistas haviam deixado seus arquivos intactos. Haveriam de pagar caro pelo descuido que lhe permitiria continuar escrevendo.

No banheiro, Joaquín encontrou presa numa única dobradiça a porta do armário que ficava sobre o lavatório. A bacia estava cheia de frascos, lâminas, ataduras. Ele molhou uma toalha, voltou à sala e tentou limpar a tinta derramada, mas, por mais que esfregasse, não conseguiu remover a mancha oval que se formara. O estado de devastação em que se encontrava a escrivaninha era-lhe quase tão doloroso quanto a perda dos seus gatos. As duas coisas expressavam com eloqüência o fato de que sua vida mudara de modo irreversível. Pela primeira vez tomava consciência de que, desde o início da Ocupação, estivera vivendo com uma falsa noção de segurança. Sempre se sentira protegido na­quele apartamento, sempre estivera certo de poder voltar para casa e ali encontrar refúgio. Agora aquele espaço havia sido violado. Ele podia partir. Algo dentro de si lhe dizia que ele fizera o possível e que devia, sem demora, encontrar um modo de sair da França. Nunca se julgara herói. Quando ele me contou da invasão do apartamento, disse-me, no entanto, que nunca estivera tão consciente de não poder deixar o país. Havia nele um senso de dever, voltado para fora de si, que o marcava mais profundamente do que a visita dos nazistas. A configuração essencial da sua vida vem à tona nesse momento que tento recriar. Houve uma reação defensiva, imediata, seguida da decisão de perma­necer. Joaquín ficara mais transtornado com a perda dos gatos do que com o fato de os nazistas o terem localizado. Depois, ele abriu a janela e chamou os animais, consciente de estar fazendo uma tolice. Era mais do que provável que alguém tivesse ficado incumbido de vigiá-lo. Ele já tinha quebrado uma regra básica de sobrevivência ao retornar ao apartamento, e tal imprudência ficava ainda mais evi­dente quando, minutos depois, ele, às pressas, enfiava numa mala algumas roupas e os arquivos.

Somente lembrou-se da correspondência quando já es­tava pronto para sair. Uma das cartas lhe fora enviada pelo editor e continha um cheque, o suficiente para um mês de aluguel. Outra era do pai. Havia muito que a caligrafia de Heinrich perdera a elegância, e a homogeneidade fora subs­tituída pelo tremor da escrita das pessoas bem idosas. No entanto, assim que começou a ler, Joaquín percebeu também que a carta fora escrita sob o peso da raiva. Aquele era o dia das traições, pensou ele. De algum modo, exemplares das Cartas a Lorca haviam chegado a Berlim. Heinrich as chamava de "lúbricas defesas de um pederasta e libelos contra o Reich". Ele condenava os pontos de vista de Joa­quín, expressando vergonha e revolta pelo fato de o filho, sua própria carne, seu próprio sangue, ser capaz de trair. Para ele, Joaquín não mais pertencia à família. Por sorte, a mãe morrera antes de ver no que o filho se tornara, dizia Heinrich, acrescentando que, num jovem, aquilo poderia ser perdoado. Também talvez fosse admissível que uma pessoa estúpida, que não tivesse sido educada, agisse da­quele modo. Ele, porém, não tinha perdão. Heinrich dizia ainda que enviava ao filho um último cheque de seu pro­curador, que tinha instruções para ignorar qualquer ape­lação.

Enquanto Joaquín lia a carta, eu estava no apartamento de uma amiga, na rue Bonaparte. Antes da Ocupação, eu e Madeleine Langlois não nos encontrávamos com freqüên­cia, mas, durante o inverno, passamos a nos ver uma vez por semana. O marido dela havia desaparecido logo após a chegada dos nazistas. Aos outros, elas explicava que o marido, não encontrando emprego em Paris, fora a Rouen, onde trabalhava como zelador de prédio. A verdade era que Theo havia entrado para a Resistência. Ela não dizia mais nada, mas, com alguma pergunta do gênero "Soube que os trilhos de tal lugar foram destruídos?", ela comu­nicava indiretamente, e sempre demonstrando muito orgu­lho, o que ele andava fazendo.

De quando em quando, ele voltava à cidade, e, quando isso acontecia, Madeleine me telefonava, dizendo que não se sentia muito bem e que esperava podermos nos ver na semana seguinte. Com freqüência, porém, os telefones dei­xavam de funcionar, e, duas vezes em que isso se deu, fui à casa dela, bati à porta e ouvi ruído de passos apressados.

A porta, em seguida, se abriu, e Madeleine apareceu de roupão, dizendo que lamentava, que pegara um resfriado. Era a senha que indicava a presença de Theo. Eu ficava feliz por causa dela, mas me sentia só ao voltar para casa.

Naquela tarde, porém, Theo não se encontrava perto de Paris, e nós duas bebíamos um sucedâneo de café, na ten­tativa de nos aquecermos. Tão logo cheguei, ela me pegou pela mão e me conduziu ao velho sofá verde. A situação se acalmara havia bem pouco tempo, disse ela.

Os alemães nunca se dão ao trabalho de vir a esta rua — acrescentou —, mas, ontem à noite, estavam em toda parte. Ouvi um tumulto e olhei para fora. Ainda não havia escurecido completamente. Eles vasculharam tudo, pare­ciam um bando de formigas. — Sua voz era trêmula.

Peguei-lhe a mão, tentando tranqüilizá-la, mas o pálido sorriso que nela se abriu logo desapareceu.

Entraram em todos os apartamentos do prédio — ela prosseguiu. — Bateram à minha porta e, assim que abri, três deles já foram entrando bruscamente. Falavam em ale­mão. Gostaria que você estivesse aqui naquele momento para me contar o que eles diziam. Entraram no quarto, reviraram o colchão, jogaram minhas roupas no chão, exigi­ram meus documentos, perguntaram de Theo, onde ele mo­rava em Rouen, esse tipo de coisa. Pouco depois de terem saído, ouvi que estavam no telhado e desejei que ali hou­vesse gelo para que escorregassem. Em seguida, desceram e prenderam Pierre Callard, o velho que mora no fim do corredor. Mais tarde eu soube que encontraram um rádio e alguns panfletos na casa dele. Não sei como acreditaram no que eu disse a respeito de Theo. Não há lógica nisso. Hoje de manhã, ouvi o boato de que os nazistas tinham invadido o prédio porque um agente da Gestapo havia sido assassinado aqui por perto. Talvez seja verdade, talvez não; você sabe como são essas coisas.

Madeleine era forte e costumava enfrentar a Ocupação melhor do que muitos de nós. Eu nunca a ouvira se queixar, mas, naquela tarde, ela havia ultrapassado o limite das suas forças. Se a vida já era difícil mesmo para quem não despertasse suspeitas, como seria para Madeleine, cujo marido vivia pelo país a explodir linha de trem, a praticar atos de sabotagem? Ela temia pela própria segurança e pela de Theo. Passei mais tempo do que desejava a tentar consolá-la.

Havia semanas que os nazistas não me pareciam tão pró­ximos quanto naquele momento em que eu saía da casa de Madeleine. Uma luminosidade aquosa dava a Paris um aspecto antigo e alienígena. Estremeci ao pensar na possibilidade de viver mais um inverno sob a Ocupação e perguntei-me como iria suportá-lo. Logo, porém, esforçava-me para não pensar nisso. Eu não tinha alternativa, não naquela ocasião.

Claude e Monika me esperavam com notícias de Joaquín. Ele tinha ido à universidade e contara tudo a Claude. Para mim estava claro que devíamos sair da França, mas ele dissera a Claude que não cogitaria disso por enquanto. Pre­tendia ficar mais um ou dois meses, o tempo necessário para terminar as Cartas. Partiria depois, embora não sou­besse muito bem para onde. Vi-me dividida entre querer dar-lhe refúgio e a preocupação com as mudanças que tal arranjo haveria de trazer a nossas vidas. O apartamento não era grande, e nós três já precisávamos fazer várias con­cessões. Não tínhamos, porém, escolha. Ficaríamos com nossos quartos e deixaríamos o sofá para Joaquín.

Somente bem depois de Claude e Monika terem ido dor­mir foi que me permiti pensar no que aquilo significaria em minha vida. Eu me sentia atraída por Joaquín, mas o tinha intencionalmente desencorajado a ir além de certo ponto, no dia em que ele me contou o que acontecera em Quai d'Orsay. Agora eu passaria a morar com ele, e essa perspectiva me deixava ansiosa e assustada.

 

A cigana de Lorca e o contrabandista parecem bem pró­ximos. Não tenho nem um pouco me esquecido deles desde que, há uma semana, venho aqui para refletir sobre minha vida, mas agora eles retornam com uma leve insistência. Por certo, quando o destino dos dois se formava na mente do poeta, deve ter havido um momento em que ele os viu se aproximar um do outro e se surpreendeu quando, de repente, suas vidas se entrelaçaram como videiras entre as estacas de um caramanchão. Ao pensar no poema que des­creve esse entrelaçamento, sinto que estamos todos nós uni­dos, a cigana e o contrabandista, Joaquín e eu, Lorca e Joa­quín. E não distorço os fatos nem estabeleço uma falsa si­metria.

Estou pensando no momento em que Lorca entrou no prédio do Governo Civil. A distância entre a rua Angulo e o quartel-general de Valdés, passando pela rua Trinidad e pela praça do mesmo nome, era mais ou menos a mesma que havia entre a Rue Littré e a Rue de Seine. Lorca estava sendo conduzido à prisão, e Joaquín dirigia-se a um escon­derijo, lugar não tão sombrio quanto aquele em que ficaria confinado. As correspondências, no entanto, existem, encontráveis também no que aconteceu depois. Joaquín ficou preso num torno, sua liberdade deixou a amplitude de Paris para se restringir a um espaço onde ele mal podia respirar. Lorca transformou-se numa lenda, e Joaquín, no último in­verno da sua vida, fez o mundo conhecê-la.

 

Aquele era o inverno mais gélido e sombrio de que tínhamos lembrança. Rezávamos para que nevasse porque, assim, a situação não nos pareceria tão má por algum tempo. A neve transformava Paris, com seus telha­dos de mansardas e chaminés, num cartão postal, e a luz que nela refletia acentuava a pátina amarelada dos prédios, ao longo das avenidas. O efeito geral era tão notável que quase nos permitia alimentar a ilusão de que tudo havia mudado. A neve, porém, nunca durava muito tempo. Logo as ruas e calçadas cobriam-se de lama, e a água gelada penetrava as solas dos sapatos por mais cuidado que to­mássemos. Sentir os pés enregelados era o que mais efi­cazmente destruía nossas esperanças e lembrava-nos a rea­lidade implacável da Ocupação.

Em parte, essa realidade tinha a ver com o tempo, que os nazistas haviam distorcido. Uma das maiores afrontas que fizeram foi a de decretar que a hora de Paris passaria a ser a da Alemanha. Todos os relógios públicos foram sincronizados com os de Berlim. Relógios de igrejas, agên­cias de correio, padarias, lojas de sapatos, casas e aparta­mentos seguiam o tique-taque que soava no Reich. Assim, amanhecia mais tarde, e, quando o sol finalmente se erguia, brilhava sobre uma cidade que parecia cada vez mais alemã.

Durante semanas, o gelo permaneceu nas janelas que não davam para o sol. Nos dias particularmente frios, era encontrado por toda parte, até no olhar das pessoas que passavam pelas ruas. Podíamos então ser perdoados por pensar que Paris não mais era a Cidade Luz, mas a Cidade de Gelo, uma paródia maldosa do mundo benigno que Joaquín imaginara, quando tudo parecia protegido sob uma cúpula de cristal.

Vivíamos entocados debaixo de casacos e cobertores, na esperança de nos aquecermos o suficiente. Nunca, porém, o conseguíamos; não em casa. As casas e os apartamentos eram gélidos, tanto de noite quanto de dia. Tínhamos uma vaga lembrança do que fosse água quente. Caso aquecês­semos um ou dois caldeirões para o banho, nos enxugáva­mos mais que depressa. As crianças choravam diante da ameaça do banho, e os velhos acreditavam que iam morrer.

Já que congelávamos dentro de casa, íamos às igrejas aos bandos, como se fôssemos verdadeiros fiéis. Claude e Monika haviam descoberto que as igrejas das proximidades ainda tinha aquecimento. Assim, passamos a juntar-nos regularmente aos vizinhos, ao redor de aparelhos de calefação.

Quando acabou o carvão das igrejas, tornamo-nos devo­tos dos bancos. Joaquín ia disfarçado, de barba e com os óculos austeros que St. Omer lhe emprestara. Parecia um patriarca, e nós, logo atrás, o esperávamos, satisfeitos, sacar algum dinheiro da conta que rapidamente minguava.

Logo fomos notados, e os funcionários passaram a verificar se as pessoas iam mesmo tratar de assuntos que diziam respeito ao banco. Em pouco tempo já não mais podíamos ir lá. Depois, foi a vez das agências de correio, que eram frias, mas não tanto quanto o apartamento. Havia também as estações de metrô, que nos abrigavam quando saíamos para fazer alguma tarefa. Elas nos protegiam do vento, e nelas permanecíamos enquanto agüentássemos o mau chei­ro.

Buscar calor tornou-se um ofício secundário. Invejáva­mos o trabalho de Monika na padaria, pois, quando não havia fregueses, ela podia ir aos fundos e ficar ao lado do forno, grata, a fazer o que o patrão quisesse. Em casa, Clau­de se preparava para suas aulas. Vestia uma blusa de lã de gola alta, mais dois suéteres, um paletó pesado e luvas sem dedos. Seus alunos eram fardos de lã, tentando acom­panhar o que ele dizia.

A comida era a grande prioridade. Todos do prédio ha­viam se transformado em aves de rapina. Os generosos compartilhavam informações; os egoístas guardavam para si notícias de lugares onde talvez se encontrasse algo co­mestível. Os mercadores de víveres haviam se tornado ru­des, arrogantes, e quem fizesse estoques seria preso.

A busca de alimentos começava às cinco da manhã, com o cessar do toque de recolher. Era preciso um sono muito profundo para não acordarmos com o bater dos tamancos nas calçadas, com os vizinhos que ruidosamente saíam à procura de provisões. Joaquín sempre estava entre eles. O confinamento durante o dia o sufocava, e ele julgava seguro sair um pouco de casa ao amanhecer. Assim, podia tomar ar fresco e também poupar-nos o desconforto de ir às com­pras. Era ele que se acotovelava com donas-de-casa e pen­sionistas do governo para conseguir hortaliças, manteiga e gordura para o preparo das refeições. Tramava a troca de cartões de racionamento com o cuidado de um jogador de xadrez, escolhendo entre pilhas de nabos, rutabagas e cebolas murchos, às vezes estragados, antes de finalmente levá-los. Nos fins de semana, ia a açougues, freqüentava mercados negros. Às vezes percorria de bicicleta grandes distâncias, somente por causa de algum boato, e sempre de olho em algum possível canteiro de hortaliças.

Nossa cozinha era cheia de engradados. Criávamos coe­lhos e tínhamos duas galinhas que punham ovos. Algumas pessoas do prédio tinham até mesmo cobaias, e em muitos dos parapeitos de janela havia armadilhas para pombos, preparadas com algumas migalhas de pão sob um pedaço de rede de pescar. Quando os coelhos chegaram ao ponto de serem comidos, eu os abati com a ajuda de Monika.

Em meio a tudo isso, meu comportamento e o de Joaquín estavam sempre a nos fazer lembrar o dia em que ele me procurara, vindo de Quai d'Orsay, e eu puxara uma cortina entre nós. Meus motivos eram mais complexos do que os das mulheres jovens que se sentem confusas quanto a seus sentimentos e querem tempo para pensar no grau de intimidade que desejam. Minha atitude era ditada exclusivamente pela necessidade, e ainda hoje é-me difícil acreditar que essa cortina foi se abrindo aos poucos, como que por si só.

Do momento em que ele chegou até ficarmos a sós pela primeira vez, falamos muito pouco. Estávamos os dois bem conscientes da situação embaraçosa, o que levou Joaquín a se desdobrar em gentilezas e cuidados, como se isso pu­desse nos deixar mais à vontade. Esse seu modo de agir me punha nervosa. Ele andava de mansinho e, quando se oferecia para fazer alguma tarefa doméstica, sempre dava à voz um tom de formalidade. Eu tinha vontade de dizer-lhe que não se preocupasse, que considerasse aquele aparta­mento a sua própria casa e que não agisse como se estivesse numa estação de trens ou num restaurante. Tais observações bem-intencionadas haveriam, porém, de ofendê-lo, e, em­bora ele aceitasse a distância que eu havia estabelecido, também fazíamos progressos quanto a essa estranha for­malidade.

Durante o dia, a urgência em concluir as Cartas exigia-lhe toda a atenção. Assim, passavam-se horas em que ele pa­recia ter apenas uma vaga consciência da minha presença. Eu passava o tempo perdida em livros, mas isso se tornou mais difícil para mim depois de Joaquín ter dito que partiria tão logo terminasse seu trabalho. Ele não queria nos colocar em risco. Havia também a possibilidade de que eu e as crianças fizéssemos o mesmo. Claude procurara se informar a respeito de trabalho fora do país antes mesmo da chegada dos nazistas. Depois de meses sem resposta, acabou por receber uma carta encorajadora de uma universidade da Califórnia. Descartei a possibilidade tão logo ele me falou disso, dizendo a mim mesma que haveria muitos obstáculos pelo caminho. A idéia de liberdade era-me demasiado do­lorosa, e eu me forçava a aceitar o mundo gélido de Paris como o único que pudesse ter.

Havia longos períodos de silêncio em que Joaquín fixava o olhar na página diante de si ou olhava pela janela coberta de gelo, procurando imagens para as suas Cartas. Às vezes, eu adivinhava o que Joaquín estava pensando e, quando ele me pedia que lesse o que fora escrito, eu com freqüência encontrava passagens que correspondiam exatamente ao que havia imaginado. No início, esses reconhecimentos pa­reciam completos em si mesmos, vinham somente acom­panhados do prazer de descobrir que nossos pensamentos se cruzam com os de outra pessoa. Quando compreendi o verdadeiro significado das minhas intuições, tentei voltar atrás, mas era demasiado tarde. Eu já havia me afastado da cortina protetora e não podia ignorar meus sentimentos, apesar dos sussurros dos Homens do Relógio.

Talvez tivéssemos começado a conversar mais porque tínhamos um tempo restrito para ficarmos juntos. Em todo caso, vejo aqueles dias como os momentos finais de despedida numa estação de trem, quando o único imperativo das pessoas é falar, para que tenham o maior número pos­sível de lembranças. Havíamos ultrapassado o limite que eu tinha estabelecido porque não éramos diferentes de ou­tros homens e mulheres. Também tínhamos tido nosso mo­mento de reconhecimento, sentido nosso campo de visão se estreitar até que apenas víssemos um o outro. Não ha­víamos, porém, estado livres para darmos o passo seguinte, necessário para entrarmos na história de vida do outro, histórias que faziam de nós quem nós éramos. Esse passo somente foi dado no dia em que pousei o livro para con­templar Joaquín em seu trabalho. Então soube, de repente, que precisava ter a sua história. Precisava. Quando ele ter­minou o que fazia, fiz-lhe o pedido. Joaquín me olhou como se não me compreendesse.

E o nosso pacto?

Esqueça — respondi. — Quero conhecê-lo antes de você partir.

Foi quando eu soube que ele crescera numa casa em que a linguagem servia a propósitos diferentes. A mãe espa­nhola falava com a intensidade retórica do povo a que per­tencia, e suas palavras chocavam-se com o pragmatismo do pai. Quando Joaquín entrou para a universidade, as exi­gências conflitantes de sua origem dual ficaram bem evi­dentes. O curso de literatura o distanciava ainda mais do mundo do pai. Joaquín se apaixonou por mulheres jovens e por poesia simbolista. Descobriu Baudelaire e, pela pri­meira vez, sentiu os encantos da vida do flaneur, daquele que observa o desenrolar da cena e se mantém à parte. A linguagem da mãe o predispusera a uma visão romântica da vida, o que não poderia deixá-lo mais afastado dos ne­gócios paternos. Não era, porém, suficientemente forte para ignorar a tradição e acabou entrando para a companhia de Heinrich, onde passou dois penosos anos, até que, um dia, abandonou o trabalho em pleno expediente e, alheio aos gritos do pai, passou pelas portas de vidro do escritório, a caminho da liberdade.

O dinheiro da família permitiu-lhe seguir seus caprichos. Joaquín morou um ano em Viena e, em seguida, mudou-se para Roma e Londres, período em que escreveu um ro­mance impublicável, pastiche de Goethe e Novalis. Poucos depois de Joaquín chegar Paris, seu renovado interesse por Baudelaire levou-o a criar Heinz. Logo surgia Aurora, mas inquietava-o saber que não se tratava da sua própria voz.

Eu tinha somente um assunto e uma única voz para o expor — ele comentou. — Aceitei o fato, na esperança de que algo mais viesse a surgir, mas, durante anos, nada aconteceu.

Conheceu St. Omer e, com a ajuda do amigo, encontrou um apartamento na Rue Littré, perto da Rue de Rennes e dos bistrôs do Boulevard Montparnasse. Levantava-se to­dos os dias às seis da manhã, ao som do despertador, e passava o dia a vagar pelas ruas de Paris e a escrever nos cafés. Conheceu Fabien logo depois da publicação de Aurora e casaram-se no ano seguinte. Era doloroso ouvi-lo falar disso, pois tratava-se de um casal claramente incompatível. Desde o início, ela se mostrara infeliz com o modo de Joa­quín ocupar o tempo, e, após dois anos de amarguras, divorciaram-se.

Você sabe o resto — ele concluiu. — Receio tê-la de­sapontado.

Não era uma história extraordinária, mas comoveu-me sua honestidade, principalmente o conflito que tanto tempo permanecera na dualidade do seu sangue, conflito que ele ainda tentava solucionar ao escrever as Cartas. Eu admirava sua determinação em mudar o rumo da própria vida, mas essa admiração parece-me agora uma camuflagem para os sentimentos que contrariavam minha velha necessidade de permanecer distanciada. Quando cedi, os Homens do Re­lógio começaram a bater à janela, lembrando-me de que eu não tinha tanto poder sobre eles quanto tivera Joaquín ao afastar-se de Heinz. Por um momento, o rosto horroroso da inveja ameaçou mostrar-se, pois eu ardentemente dese­java ter a liberdade de Joaquín.

Paguei um alto preço por sua história. Aquilo que co­meçara como uma necessidade de palavras que pudessem ser lembradas ganhou, quando ele saiu, uma vida própria, transformou-se em algo que eu não tivera como prever. Eu desejara algo equivalente aos caroços de azeitona de Fuente Grande. Em vez disso, descobri um desejo de estar com ele em pé de igualdade, ainda que apenas por alguns meses.

Durante duas semanas, lutei contra os Homens do Re­lógio, que surgiam em meus pensamentos com repulsiva regularidade. Às vezes falavam um por vez, às vezes ao mesmo tempo, como num coro. De manhã, enquanto Clau­de e Monika apressadamente tomava café, os Homens do Relógio sentavam-se do outro lado da mesa, fixavam em mim o olhar, com arrogância, e diziam que eu não passava de um embuste. Quando Joaquín e eu estávamos a sós, ele se erguiam das páginas dos meus livros.

Desista — diziam eles. — Que direito tem você a que­rer o que quer?

Todo o direito — eu respondia.

Vocês pertencem ao passado, a um outro país. Eu os usava para salvar a vida da minha filha.

Todas tinham histórias — eles respondiam. — Todas as putas do Seven Dolphins. Você era uma puta, Ursula. Lembra-se do que fazia? De que entregava seu corpo, como uma cabaça vazia, para que o enchêssemos de vez em quan­do? O que acha que ele diria caso soubesse?

Ele compreenderia.

Eles riam.

Você o deixaria enojado — retrucavam. — Ele vomi­taria ao vê-la.

Era assim todos os dias. Se eu estivesse sozinha, poderia me insurgir contra os homens que levavam o meu passado ao apartamento, como se fosse um cálice do qual sacerdotes dementes iriam beber. Eu poderia atirar pratos e xícaras, gritar que o sentimento de culpa não era uma marca de nascença que me acompanharia até a morte. Eu, porém, nunca estava sozinha. Eu era mãe, sogra, companheira de Joaquín, um ser social entrelaçado à vida de outras pessoas. Não tinha a quem fazer confidências, nem mesmo a Madeleine. A simples idéia de revelar como eu havia vivido em Berlim fazia minha garganta se contrair, a ponto de eu temer sufocar-me. A vida dupla que eu tivera depois de chegar com Monika a Paris pareceu-me paradisíaca após Joaquín ter se refugiado em nossa casa. Antes disso, fingir era tão fácil quanto calar. Agora o silêncio doía como uma queimadura. Por fora, eu desempenhava o meu papel. Por dentro, ouvia minhas visitas, recuava diante de seus ataques, tentava desviar os olhos de cenas que me eram apresentadas como provas científicas de que nunca eu e Joaquín poderíamos nos ver de modo inocente.

O que aconteceu em seguida não parece muito diferente do que ocorre durante a guerra. Recolhi-me ao fundo de mim mesma, buscando a segurança que a estrada oferece aos refugiados. Havia dias em que eu mal falava com Joa­quín ou com as crianças. Concluí que havia cometido um terrível engano ao baixar minha vigilância; que teria sido melhor se eu nunca tivesse alimentado a idéia de que Joa­quín e eu pudéssemos ser, ao contrário do que eu preten­dera, importantes um para o outro; que eu agira correta­mente ao afastar-me de Joaquín quando ele aparecera borrifado de sangue.

Certo dia, porém, em que o rigor do frio congelou nas janelas desenhos de vidro partido, dei-me conta de não estar nem além da redenção nem condenada a reprimir minhas emoções. Como um arauto, tal idéia mobilizou os Homens do Relógio, que acorreram ao quarto, batendo címbalos, tocando loucas melodias em flautas de madeira. Es­tavam todos presentes. Nessa delegação estavam todos os homens que haviam pago por mim, e, pela primeira vez, vi inquietação em seus olhos, até mesmo vislumbres de medo. Em resposta, com a dignidade gravemente ofendida, eles me conduziram escada acima e mostraram-me o que haviam feito. Eu sabia o que estava por vir, sabia desde o momento em que compreendera não estar condenada. Essa subida ao Seven Dolphins era o preço que eu tinha que pagar, mas isso me era indiferente. Até aquele momento eu pensava que suas mãos, línguas e pênis intumescidos me haviam paralisado. Agora descobria que podia me mo­ver, que o mal constante em meu coração fora provocado por mim, não por eles. Eles podiam me trazer imagens da memória até que o quarto estivesse tão cheio de quadros quanto o Louvre. Eu podia suportá-las. Podia viver com o que me mostravam. Pela primeira vez em vinte anos, eu estava viva.

Naquele noite foi também a primeira vez que associei minha vida a um mapa. Registrei tudo com mão firme na minha imaginação, pessoas e lugares, meses e anos, esboços de pessoas que me eram queridas. Não era um mapa em que tudo estivesse presente de uma só vez, como no dia da criação. O tempo ali era levado em conta, e, quando pensei em mim mesma, circunscrevi minha figura num cír­culo que representava a estagnação da minha vida, pois compreendia que eu tinha me movido no espaço, mas não no tempo. Assim que eu e Monika nos instalamos em Paris, não houve mais progressos. Eu tinha algum dinheiro ganho no Seven Dolphins, trabalhava em vários empregos, cui­dava do crescimento da minha filha. Vivíamos frugalmente, mas não queria nada para mim mesma. Estava farta de Ursula Krieger, via-me como um banqueiro vê um mau pagador. Eu existia para Monika, dava-lhe tudo o que po­dia, e ela desabrochava como mulher.

Não quero dizer que me afastei do contato humano. Quando a dor se atenuava, eu queria companhia. Conheci Pierre, um comerciante alguns anos mais velho que eu; Da­niel, um contabilista; Gerard, tradutor de uma pequena edi­tora. Eles aplacavam um pouco minha solidão, mas eu não conseguia estar de fato com eles. Os Homens do Relógio sempre apareciam, e, quando isso acontecia, minhas emo­ções iam dar na praia, como algo expulso do mar. Eu nunca alcançara a satisfação, e, embora isso não me importasse, meus amigos sempre se ofendiam e iam embora, pois eu não lhes podia contar por que era assim.

De manhã, resolvi entra no tempo e deixar algum registro no mapa, fora do círculo que me isolava. O frio vazava pelas janelas, e todos os sons que vinham da rua pareciam friáveis.

Joaquín e eu estávamos instalados na rotina do dia. As luvas que eu usava para me proteger do frio tornavam um tanto desajeitado o virar das páginas. Os velhos cobertores cinzentos em que nos embrulhávamos aqueciam o suficien­te para não tremermos, mas meus dedos eram um gelo. Quando Joaquín notou o meu desconforto, disse que ia acender o fogo na cozinha. Respondi-lhe que devíamos pou­par o papel para a noite, mas logo me dei conta de que era bobagem ficar suportando o ar gélido. Prontifiquei-me então a fazer café e um doce.

Como sempre, nossos rolos de papel secavam no parapeito da janela da cozinha. Eram de tamanho uniforme, da espessura de uma bola de bocha, mosqueados, com predominância do cinzento, mas aqui e ali havia uma estria de branco, vermelho ou amarelo. Cada pedaço de papel que encontrávamos era colocado numa vasilha d'água, onde permanecia até se transformar numa pasta. Nossas estantes de livros estavam quase vazias. Alguns dos rolos eram romances condensados ou livros de ensaios. Alguns eram feitos de caixas que antes haviam guardado presentes e velhas edições de jornal. Monika contribuía na formação do estoque, roubando cartazes que os nazistas afixavam nas paredes para anunciar execuções. Nomes de espiões costumavam vir relacionados em papel amarelo com bordas pretas. Terroristas, membros da Resistência e outros do gê­nero apareciam em cartazes vermelhos, também com bordas pretas. Desgostava-nos ver aqueles cartazes, mas ficávamos gratos com o calor que proporcionavam.

Eu geralmente conseguia deixar de ler os nomes, mas, na noite anterior, meu olhar tinha caído sobre a folha ama­rela, antes de eu colocá-la na vasilha:

Roger-Herin Nogarede, de Paris

Alfred Ottino, de Saint-Ouen

André Sigonney, de Oraney

Raumond Justice, de Oraney

Jean-Louis Rapinet, de Pavillons-sous-Bois

Aos nomes seguia-se um longo parágrafo sobre crimes, e, no final, havia o comentário de que a corte marcial con­denara tais homens à morte por terem eles ajudado o ini­migo e participado de atividades comunistas contra o Exér­cito alemão.

Queimávamos apenas o necessário. Depois de pronta a comida, feito o café, fervida em vasilhas pateticamente pequenas a água para banhos de esponja, retirávamos do fo­gão os rolos de papel, apagávamos o fogo e os colocávamos no parapeito da janela para secar. O cheiro de papel quei­mado, que se instalara na cozinha como um fantasma, já começava a atingir também outros cômodos.

Enquanto eu punha água para o café, Joaquín ateou fogo a dois rolos meio queimados. O papel cinzento fez-me lem­brar dos nomes que eu lera na noite anterior, e, ocupando-me, tentei esquecê-los. Cortei ao meio uma das baguetes levemente queimadas que Monika trouxera da padaria, abri-a e coloquei-a sobre o fogão. Quando os dois pedaços ficaram tostados, salpiquei neles um pouco de açúcar e co­bri-os com fatias de maçã seca.

A cozinha era tão pequena que duas pessoas ali não po­diam trabalhar sem que se tocassem. Embora tentássemos evitá-lo, de vez em quando nossas mãos se encontravam, ou nossos ombros, ou nossos quadris. Quando retirei do fogão os pedaços de pão, quis logo colocar o açúcar, e, na minha pressa, meus seios roçaram o ombro de Joaquín. Ele agiu como se não tivesse notado, mas, assim que o olhei, soube que ele me queria. Foi como o brilho do acender de um fósforo, mas não a chama amarela que há nos olhares dos homens que passam pela rua, nem a azul, fria, de gás, que eu via nos clientes do Seven Dolphins. Aquela chama estava lá havia três anos, fixadas nas íris, brilhantes como pedras incrustadas em prata. Os Homens do Relógio viraram-se na plataforma rolante, mas afastei-me deles, dizendo a mim mesma que me lembrasse da noite anterior, que já me punira demasiado. Lembro-me de ter ouvido um toque de sirene na rua quando ele pronunciou meu nome e, em seguida, com delicadeza, tocou meus lábios. Fiquei pertur­bada, e também louca de paixão. Joaquín demorou um pou­co para compreender que minha dor não era provocada por ele, que me agradava o seu abraço. Levei-o para o meu quarto. O quarto era espartano, arrumado, e a luz difusa, vinda da janela coberta de gelo, situava os objetos numa atmosfera quente, impressionista. Não vacilamos nem tive­mos pressa, e o amor que fizemos foi bonito e silencioso.

Depois, cobrimo-nos com o cobertor e ficamos bem jun­tos, deitados.

O calor inabitual de um outro corpo parecia despertar quase tanta volúpia quanto nossos abraços. Joaquín se preo­cupou com a possibilidade de que Claude ou Monika nos surpreendessem, mas respondi que não morreríamos se isso acontecesse.

Você ainda é um mistério — eu disse, pondo a mão em seu ombro. — Conheço apenas o homem que todos conhecem. Com o que você sonha?

Foi então que ele me contou o que tinha acontecido de­pois da sua visita a Fuente Grande.

Ele tinha voltado ao hotel exausto e indignado. Depois do jantar, passara bastante tempo sentado, pensando no que vira.

Às vezes — disse ele —, pouco antes de dormir, sei com o que vou sonhar. Era assim em Granada. Eu podia me forçar a ficar acordado e pensar em outras coisas, mas preferia não fazer isso. Eu queria sonhar, embora não sou­besse por quê.

Depois de fazer alguns segundos de silêncio, em que aguardei com angustiante expectativa, ele prosseguiu:

Lembro-me de caminhar pelo campo, à procura de alguma coisa. Logo dei por mim na estrada do Arcebispo, onde ouvi uma vaga música, tão pouco audível que não conseguia distinguir a melodia ou saber quais eram os ins­trumentos que a tocavam. Logo, porém, aquele som se de­finia num cante hondo. Ouvi a voz de um cantor, dois violões, vi um grupo de pessoas ao redor dos músicos. Lorca estava lá, o mestre-escola, os bandarilheiros e outros que eu não conhecia. No meu sonho, eles não sofriam. Estavam livres da morte, Ursula, acima e além do que lhes tinha acontecido.

Ele descreveu:

O cantor era um homem frágil, de testa larga, início de calva, olhos grandes, sinceros, que se fechavam quando ele alcançava as notas mais altas. Sua voz era profunda, pura, e as mãos moviam-se ao tempo da música, quase como se guiassem as notas. Lorca cantava com ele e tirava um grande prazer da música. Quando a canção chegou ao fim, ele me viu a caminho e fez sinal para que eu me apro­ximasse. Depois que passei o lago de Ainadamar e cheguei ao centro do bosque, vi outros músicos com trompas, que, de repente, soltaram uma melodia bem diferente do cante hondo. Era uma sardana, dança folclórica da Costa Brava. Todos rodearam os músicos, e, quando começamos a dan­çar, notei alguns vultos sob as oliveiras. Soube imediata­mente que eram os Falangistas. Tentei fazer que Lorca e o cantor os vissem, mas eles sacudiram a cabeça e continua­ram dançando.

Mais um suspiro, e eu tinha certeza de que era apenas uma pausa para conter as emoções que afloravam.

Compreendi de repente que era Luís Valdés. Ele estava preso numa armadilha, atrás dos galhos de oliveiras. Estava condenado a permanecer ali, incapaz de invadir nosso cír­culo mágico ou de ouvir a música. Somente então peguei o ritmo e acompanhei os passos dos meus amigos. Era o sonho mais estranho que eu tinha tido. Ele retorna uma ou duas vezes por mês.

Lembro-me de não querer outra coisa senão permanecer deitada e refletir sobre as imagens que Joaquín me transmitira, mas, assim que ele terminou, pegou minha mão e beijou meus dedos. Pensei que era um prelúdio para fa­zermos mais amor. Quando, porém, me voltei para ele, vi que não era isso o que ele queria.

Agora é a sua vez — ele disse. — O que acontece com Ursula à noite?

Pequenas coisas — respondi rapidamente. — Coisas sem importância. Nada que se compare a seus sonhos.

Mas e sua vida? E Berlim?

Tive no rosto uma sensação de morte. Não há outro modo de expressar o que senti. A palavra ficou reverberando no quarto, repetindo-se em ecos, e os Homens do Relógio voltaram. Eram tantos que eu não podia contá-los. Címbalos e flautas tocavam em contraponto à música que eu imagi­nara quando Joaquín falava. Kurt, Erik, Helmut e outros cujos nomes eu havia esquecido, ou nunca soubera, fixavam o olhar em mim, lábios contraídos, a dizer em voz alta a palavra Berlim, às vezes com suavidade, às vezes com des­prezo e até benevolência. Quis afastar-me, mas Joaquín não me soltou. Quando ele tentou enxugar minhas lágrimas, segurei-lhe as mãos.

— Não volte a me fazer essa pergunta — eu disse. — Prometa-me agora, nesse momento.

Ele acenou com a cabeça, concordando. Minhas visitas foram embora, saíram do quarto num remoinho de som e estrépito de címbalos. Tinham uma expressão quase tão bondosa quanto a dos pais que acabam de disciplinar uma criança desobediente. Era, porém, algo mais que isso. Algo fundamental havia sido demonstrado, uma opção se apresentara diante de mim, como se eles me tivessem dito que eu poderia ter Joaquín, mas sempre sob a condição de que viesse a mim através deles. Não me importei. Se essa era a lição do catecismo daqueles homens, eu a seguiria à risca.

 

Vejo como uma ilha no tempo — o silêncio entre o tique e o taque -— o dia em que levei Joaquín para a minha cama. Quando minhas visitas retornaram, deram toda a corda no relógio, e voltei então a ouvir o som de seu me­canismo e as vozes que me eram familiares.

No entanto, por mais que exercessem poderes sobre mim, algo havia mudado. Eu tinha aprendido que não morreria caso me arriscasse a viver, e esse conhecimento libertava-me do catecismo dos Homens do Relógio, embora eu estivesse ferida por causa do último encontro. Parecia que eles ti­nham entrado no meu peito para comprimir meu coração, mas até mesmo essa dor foi-me instrutiva. Logo compreendi que a mão que comprimia não era a de nenhum cliente do Seven Dolphin nem de nenhum sacerdote mais encontrado em pesadelo. Era a minha própria.

Joaquín não aceitava viver aprisionado na Rue de Seine.

Ele insistia em fazer compras na Rue de Buci e também em encontrar-se com St. Omer para entregar a carta mais recente ou para planejar a edição seguinte do LER. Sabia que estava sendo incauto, que devia fazer suas incursões pelo que chamava de mundo real com a mesma parcimônia com que utilizávamos nossos cartões na compra de alimen­tos. Ele, porém, não tinha escolha. Vivia sempre exposto ao perigo, como se esse fosse o único modo de pagar a dívida que contraíra na Espanha. Nada que eu ou as crian­ças disséssemos era capaz de dissuadi-lo, e não havia ape­nas isso a alertá-lo. A mania de precisão se instalara na mente dos nazistas. Informantes e homens da inteligência infiltravam-se mais profundamente do que nunca nos enclaves da Resistência. Depois de vários membros do Clube de Lorca terem sido presos, homens que não trabalhavam para o LER, o clube se desfez, embora Joaquín jurasse que a dissolução era somente temporária e que, quando a guerra acabasse, todos voltariam a se reunir. Mantive em segredo minha satisfação com o fim das reuniões. Tratava-se de um risco a menos para Joaquín, que insistia em ir todos os sábados ao La Masia, ainda que por apenas uma hora.

Depois de, na primavera, Feinstein ter sido preso e en­viado com outros mil judeus a um campo de trabalhos for­çados, Joaquín passou um dia todo fora do apartamento, reunido com St. Omer e representantes de jornais clandes­tinos de outras cidades. Não me contou por quê. Na semana seguinte, ele comunicava que passaria alguns dias longe de casa.

Onde —- perguntei.

No interior — foi tudo o que ele disse.

Pedi-lhe que tomasse cuidado. Já me inquietava bastante o desassossego que o levava a sair para comprar carne, vinho, ou para se encontrar com St. Omer, mas isso eu suportava, pois tornara-se rotineiro. Creio que foi sua recusa em me dizer aonde ia, ou por que ia, o que fez "alguns dias" soar de modo agourento. A insegurança reinava na vida de todo mundo, e eu não podia mais suportá-la. Estava irritada, voltada só para mim mesma e, sem pensar, perguntei-lhe:

O que isso vai adiantar? Você tem as Cartas.

Não posso me omitir — ele respondeu.

Você não tem se omitido. Desde Fuente Grande.

Lembra-se de Guernica? — ele perguntou, olhando para o relógio.

Como não viesse ao caso discutir, eu disse que o acompanharia até a rua. Quando chegamos ao hall do prédio, Madame Morain, a zeladora, abriu a porta. Ela era uma bisbilhoteira inofensiva que se interessava pela vida de to­dos os moradores do prédio. Eu tinha lhe contado que Joa­quín era um primo de Áries, história que inventamos cui­dadosamente, e isso fora a melhor coisa a lhe dizer, já que Madame Morain adorava a cidade. Como ela olhasse por cima dos óculos, exigindo uma explicação, Joaquín lhe dis­se, com naturalidade, que ia ao campo visitar um amigo fazendeiro. O olhar dela se iluminou.

Ele tem cenouras? Estou louca para comer cenouras frescas.

Joaquín lhe prometeu trazer algumas e voltou-se na mi­nha direção.

E para a minha prima também — ele acrescentou.

Era para Joaquín um alívio, eu sabia, que Madame Mo­rain houvesse eliminado a perspectiva de uma despedida somente entre nós dois. Não o condeno por isso. Creio que eu lhe teria feito uma última súplica. Talvez, Deus me livre, até chorado. Eu estava desequilibrada, e sua previsão fa­zia-me sentir ainda pior. Era o mais claro sinal de que ele precisava realizar o seu intento, independentemente do quanto isso custasse; de que agora sua vida — não impor­tava como tivesse sido até então — estava marcada pelo perigo. Ele se debruçou sobre mim e me beijou como se de fato fosse meu primo.

— Nós nos veremos daqui a três dias — disse, indo em­bora em seguida.

Precisei fingir que não estava preocupada. Conforme de­pois constatei, havia motivos para eu estar assim.

Na impaciência de voltar de Lion — para lá que ele fora —, Joaquín deixou de perguntar quais eram os caminhos mais seguros. Talvez isso não lhe tivesse servido para nada, já que os nazistas haviam descoberto as virtudes da imprevisibilidade, mas esse descuido era um sinal, o primeiro de vários que mudaram o rumo da sua vida. Agora acredito ainda mais firmemente que ele estivesse destinado a Fuente Grande. Ao mudar a direção que havia estabelecido para quitar a dívida de Guernica, ele escolheu o caminho que julgava mais seguro, assim como, no teatro grego, a personagem vai ao encontro do destino ao tentar fugir dele.

Ele fora a Lion na companhia de dois homens de codinome Leconte e Jeannot. Na volta, tomaram um trem até uma certa estação e, dali, seguiram em bicicletas fornecidas por membros da Resistência. Como fosse tarde e estivessem com pressa, não perguntaram qual seria o melhor caminho a tomar. Num posto de inspeção, pouco além dos limites da cidade, um oficial os fez parar e lhes pediu documentos. O pessoal da Resistência havia enchido de hortaliças os cestos das bicicletas para que eles pudessem dizer que ti­nham saído em busca de comida. Joaquín declarou que conheciam um fazendeiro, cujo nome inventou na hora. O oficial examinou os documentos de todos, notou que Joa­quín estava barbeado na fotografia e fez-lhe perguntas a respeito do nome. Joaquín explicou que era alemão e viera à França quando a situação não era boa, acrescentando que pretendia voltar a Berlim quando sua mulher se recuperasse de uma doença grave.

O oficial devolveu-lhe os documentos. Era evidente que não ficara plenamente satisfeito, mas os deixou passar, pois um caminhão encostara havia pouco, a soltar fumaça. Cen­tenas de metros adiante, Jeannot comentou que o oficial tinha algo em mente. Não se importara com ele nem com Leconte, mas suspeitara de Joaquín. Joaquín notara a mesma coisa, mais claramente que Leconte, mas seguiu em silêncio por todo o caminho. Com todo o cuidado, forjara várias identidades, tinha documentos perfeitos para todas elas. Algo, porém, ele não podia disfarçar: a cicatriz. Até então Joaquín nunca se importara com isso. Ou melhor, decidira ignorá-la. No caminho de volta à cidade, no entanto, pensou nela de modo obsessivo. Pareceu-lhe tão visível quanto uma seta que apontasse para o nosso prédio, na Rue de Seine.

Eu estava assustada naquela noite. Tão logo escureceu sem que Joaquín tivesse voltado, convenci-me de que ele havia sido preso. Sentia-me dividida entre o medo e a dor. Minha consternação devia ser bem visível, pois, quando eu preparava o jantar, Claude entrou na cozinha e disse que eu não me preocupasse. Havia em seus olhos um brilho brincalhão que me deixou incomodada. Eu temperava uma patética sopa quando surgiu Monika. Os dois sorriram um para o outro, e ela fez um aceno de cabeça.

— Ursula — ele disse —, fizeram-me a proposta.

Fiquei furiosa. Perguntei-lhe que direito ele tinha a omitir de mim a notícia. Claude respondeu que a proposta lhe fora feita naquela tarde, na universidade, e que ele estivera esperando por Joaquín, mas, ao ver-me tão transtornada, decidira contar-me.

Pedi desculpas e tentei me controlar. Aquilo era um cho­que para mim. Desde que Claude mencionara pela primeira vez a possibilidade de partirmos, eu dizia a mim mesma que ficaria em Paris até o fim da guerra. Eu desistira de ter esperanças; não era boa nisso, só em resistir ao sofri­mento. Agora a perspectiva era concreta. Eu não me es­quecera de Joaquín. Estava, aliás, mais apreensiva, mas ten­tei me distrair perguntando quando partiríamos. Claude calculava que em duas, três semanas. Muita coisa podia acontecer nesse período, retruquei. Mal acabei de falar, che­gou Joaquín. Parecia abalado, mas senti-me tão aliviada que, num pulo, o abracei sem levar em conta a aparência que ele tinha. Joaquín ficou muito satisfeito com a notícia.

— Ótimo — disse ele. — Agora podemos partir juntos.

Sentei-me, incapaz de compreender a súbita mudança em seu coração. Ele e Claude achavam que duas semanas eram tempo suficiente para que fossem tomadas as provi­dências necessárias e para que Joaquín terminasse as cartas que tinha em mente escrever. Diante da possibilidade de partir, Claude já vinha colhendo informações. Alguns ami­gos lhe haviam dito que o melhor caminho era o do sul, através da Espanha e de Portugal.

Tomaríamos um navio em Lisboa. Agora que Joaquín viria conosco, havia também o problema de sua cidadania alemã, mas Claude disse que ele poderia conseguir um visto especial no consulado americano, em Marselha.

Naquela noite, descobri algo novo a respeito de Joaquín. Ele vinha operando quase às cegas, recusando-se dar ou­vidos a St. Omer e a outros que o aconselhavam a partir. Ele se recusara a admitir que nos pusera em perigo, a nós que o havíamos acolhido de braços abertos. Dissera a St. Omer que ainda tinha boa cobertura. Agora, porém, com­preendia que executara seu trabalho sem levar em conta a realidade, a mesma que, de repente, no posto de inspeção, se estampara no rosto dos nazistas e também se refletia em sua preocupação com a cicatriz. Ele cometera erros que não devia ter cometido, vivera com a ilusão da invencibilidade e, ao fazer isso, perdera o instinto de auto-proteção. Tratava-se de um sintoma típico de algo a ser evitado, algo de que a Resistência prevenia todo mundo.

Suas idéias a respeito das Cartas passaram por uma mu­dança ao longo dos dias seguintes. Elas não mais seriam publicadas no LER, mas num livro. Já havia quase o bastante para isso, e seu trabalho poderia ser concluído em qualquer lugar.

Não me surpreende que o confronto com os nazistas, no posto de inspeção, houvesse iluminado a consciência de Joaquín. Isso costuma acontecer quando uma pessoa age às cegas diante de coisas que não devem ser desconside­radas. Uma pequena mudança em nosso ângulo de visão, um som incomum, uma nova textura bastam para lembrar-nos daquilo que já sabemos, mas não compreendíamos por estarmos demasiado ocupados. Surpreende-me apenas que ele houvesse ignorado isso por tanto tempo, pois Joaquín não era inconseqüente. Creio que sua energia viesse da fi­delidade a Lorca.

Depois de nos empenharmos em partir, tornamo-nos mais cautelosos. A história de Joaquín ser meu primo de Áries me parecera boa no início, mas, a certa altura, passei a crer que os demais moradores do prédio nos olhavam com descon­fiança. Eu estava demasiado sensível, com medo de que algo acontecesse. Não conseguia evitar que fosse assim. Tentar não pensar em desastres exigia todas as minhas forças.

Monika, por sua vez, estava feliz como uma cotovia. A idéia de levar uma vida nova na América empolgava-a além dos limites. Vivia a falar do que a oportunidade de ver com novos olhos significaria para sua carreira de fotógrafa. Eu não a via tão entusiasmada desde quando ela era ado­lescente, e esse entusiasmo também contagiou Claude.

Desaparecera o estado depressivo que nele se instalara desde a Ocupação, e era perdoável que naquele momento ele estivesse um pouco cheio de si.

Apesar da minha apreensão, eu também estava feliz e, pela primeira vez em anos, olha para a frente. Logo, porém, me acautelava contra a ingenuidade. Até que eu visse gaivotas voando, que tivéssemos embarcado num navio em Lisboa, que alguma distância houvesse entre nós e a doca, tudo podia acontecer. Animava-me, no entanto, a perspec­tiva de nunca mais ver os nazistas, de não mais ter que suportar a música pomposa das bandas militares, de deixar para trás os Homens do Relógio. Sim, isso também eu avis­tava num futuro próximo. Sentia que havia chegado ao um ponto de mudança em que as pontas da minha vida interior e exterior poderiam ser atadas novamente. Eu dissera co­migo mesma que Joaquín e eu havíamos surgido demasiado tarde um na vida do outro. Quando fizemos amor pela primeira vez, vi em nosso gesto uma forma de adeus, um presente de despedida que nos dávamos. Isso, porém, havia mudado, e eu, a cética inveterada, passara a achar que havia uma oportunidade para nós, na América. Imaginava o que avistaria ao atravessar o mar. Na esteira do navio, eu veria os Homens do Relógio se afogarem, e, quando eles desli­zassem para debaixo das ondas, minha vergonha se afogaria com eles.

Joaquín e eu nos aproximávamos a cada dia. Às vezes, quando ele parava de escrever, fazíamos amor. Eu lhe dizia que o seu trabalho era coisa mais importante, que teríamos muito tempo para nós quando ele o concluísse.

— Pensei que você esperasse de mim o desempenho de um jovem — ele dizia a rir-se, e eu respondia que não queria jovem algum.

As cartas saíam com uma rapidez incrível, cheias de pro­funda compreensão do que se passava na Espanha e na Alemanha. A última delas é de uma especial eloqüência, e quero transcrevê-la aqui, em memória daqueles dias ma­ravilhosos.

Ouçam o caudilho: "Não matamos poeta algum".

Ouçam a voz do Unidad, jornal falangista: "Juro solenemen­te, pela amizade que eu e Lorca certa vez compartilhamos, pelo meu sangue nobremente derramado nos campos de ba­talha, que nem a Falange nem o Exército espanhol tiveram participação na morte de Lorca. A Falange sempre perdoa e esquece. Ele teria sido nosso maior poeta, pois seus propósitos eram iguais aos da Falange: ele queria pátria, pão e justiça para todos".

Depois que o mataram, perceberam o erro cometido. O cor­po de Lorca, crivado de balas, não descansou em paz no solo pedregoso de Fuente Grande. Imaginem a surpresa daqueles homens quando começaram a surgir indagações do mundo todo. Eles julgavam ter matado um intruso, um apologista do comunismo, um porta-voz dos ciganos. Lorca, porém, se levantou e passou a ser visto em toda parte sob o sol do meio-dia. Cantou com as fontes, e a lua passou a refleti-lo. As balas que o atravessaram criaram asas e voaram para os aposentos do caudilho, sugando sua paz de espírito tão naturalmente quan­do o beija-flor extrai o néctar da rosa.

Pensem nisso e, em seguida, nas mentiras que inventaram sobre ele.

— Ele era um de nós — exclamara. — Como poderíamos matar alguém da mesma carne e mesmo sangue que o nosso, assim como a porca que devora a própria cria?

As mentiras do caudilho foram ditas com o intuito de en­terrar Lorca de uma vez por todas, de que fossem mais pesadas do que a terra e as pedras jogadas sobre o corpo sangrento do poeta.

"Não matamos poeta algum."

Peço-lhes que imaginem o caudilho sentado, bem ereto, diante do jornalista mexicano que pergunta se ele está pronto para começar. Ele acena afirmativamente com a cabeça, o repórter lê suas anotações e, em seguida, olha para o señor Franco.

O senhor mandou matar algum escritor de fama mun­dial?

Os homens do caudilho haviam cuidadosamente preparado uma resposta que o pudesse livrar do embaraço. Ele anseia em dar um fim a essa questão desagradável, que criara pro­blemas para sua causa e ameaça sua reputação. No entanto, pouco antes de ele responder, sua autoridade se afirma. Ele sente a própria força e, embora o caudilho tivesse concordado com a entrevista, seu orgulho se rebela. Ele pensa em puxar o revólver do lustroso coldre e, calmamente, dar um tiro entre os olhos do repórter. Imagina o barulho da cadeira quando o homem cai de costas, o jorro de sangue e o impudente saltar da massa encefálica. Imagina-se a colocar o revólver de volta ao coldre e, sempre com calma, virar-se para seus perplexos auxiliares. A pequena fantasia o enche de satisfação. Ele poderia realizá-la, mas contenta-se em saber disso. Em seguida, inclina-se para diante, com rigidez, consciente de sua postura militar.

Em vez de atirar no impertinente repórter, diz-lhe que tem havido muitos boatos sobre a morte de um poeta, encorajados pela propaganda comunista. O poeta esteve envolvido com os rebeldes, no início da Revolução, e sua morte foi um desses inevitáveis acidentes de guerra, ele acrescenta. Insinua vagamente que Lorca morreu nas mãos dos Republicanos e cita, de memória, nomes de Nacionalistas mortos pela oposição. Ele se inclina para trás, faz uma pausa e repete:

Não matamos poeta algum.

Por que isso o incomodava?

Incomodava porque Lorca era um poeta que dissera a verdade sobre o coração da Espanha. Porque pintou retratos inesquecíveis da verdade.

Como não poderia ficar incomodado depois do retrato da Guarda Civil, "encurvada e noturna", a espalhar "medo como areia fina"? Ou do de outra vítima da Guarda, Rosa de Camborios, "sentada, gemendo à porta de casa, os dois seios, cortados, sobre uma bandeja"?

Incomodava porque Luís Valdés assistiu à execução de um poeta que pregava não em latim livresco, mas na língua do povo; um poeta cujo altar não era mármore e renda, mas solo pedregoso, o Alhambra e as cavernas ciganas de Sacromonte.

O caudilho jurou que não matara poeta algum porque sabia que um sacrilégio fora cometido em Fuente Grande. Falange cometera o erro que o príncipe Hamlet evitara ao se aproximar do rei fratricida, que rezava na capela, e pensar: "Agora eu o mato, enquanto ele reza; eu o mato, e ele irá para o céu". Ao contrário do melancólico príncipe, a Falange não soube conter a vingança, e, por causa disso, Lorca ascendeu ao lugar que não alcançavam — a alma espanhola.

Assim o caudilho precisava dizer: "Não matamos poeta algum". Sua mentira contava uma verdade que ele fora incapaz de prever: que as palavras são ícones que ele não podia quei­mar, derreter, enterrar. O mesmo acontece com os nazistas, cujos furgões com antenas rondam as ruas de Paris em busca de nossas palavras transmitidas por rádio; que se infiltram em nossas redes e matam os que escrevem para jornais como este. Para eles, somos todos poetas: Decour, Feinstein, até mesmo escritores como eu, de prosa opaca. Eles vão ao nosso local de trabalho, matam-nos ali mesmo, ou em praça pública, ou no porão do prédio da Rue des Saussaies. Acham que com nossas mortes conseguem o silêncio. Acham que podem dizer que não mataram poetas, deixando de compreender que suas mentiras e nossas mortes garantem a verdade e a vida nas palavras póstumas daqueles que pegaram microfones e cane­tas.

Lembrem-se disso: Nossa força fica mais evidente quando os caudilhos deste mundo e seus irmãos nazistas são forçados a dizer: "Não matamos poeta algum".

Tenho olhado adiante, refletindo sobre o que ainda há por ser explicado nos dias que me restam de viagem. As páginas que escrevi estão curvadas para cima e farfalham como folhas secas, o som singular da minha devoção.

Quando, em Lisboa, comecei a escrever este livro, não tinha idéia de forma. Imagens, vozes, sentimentos me sub­jugavam, e parecia-me bastar que fossem expressos tais quais surgiam, sem que eu me preocupasse em saber aonde me haveriam de conduzir. Esta tarde, porém depois de ter copiado a carta, caminhei um pouco para aliviar a rigidez das pernas e, ao dar a volta pelo convés, dei-me conta de que há de fato uma forma coesa em tudo o que eu disse e que a narrativa ascende na direção de um ponto decisivo: a viagem de Joaquín a Lion.

Depois de Joaquín ter partido e eu escapado de Ma­dame Morain, subi a escada. Agora tenho consciência de que, durante o tempo em que esperei por ele — e ainda mais alguns dias —, estivemos livres os dois. Quero dizer com isso que nossos caminhos poderiam ter seguido ou­tros rumos, pois o futuro ainda estava em aberto, como no início do "Romance Sonâmbulo". Fiquei apreensiva, é claro, e minha inquietação não devia ser diferente da que sentia a cigana quando observava o amante desapa­recer a cavalo pelas colinas. Assim como seus pensamen­tos viajavam com o contrabandista, os meus acompanha­vam Joaquín. Forcei-me, esperançosa, a suportar sua au­sência e a crer que ele estaria a salvo no interior do país. Nisso eu era igual a qualquer pessoa cujo objeto do desejo se encontra ao alcance; seja amor, como no meu caso, seja riqueza, seja simplesmente um prato de comida. Quando a esperança se torna visível no horizonte, julga­mos estar seguindo um caminho. Nossa imaginação se enche de metáforas de viagem, como se fôssemos exploradores que, depois de anos a vagar pelo deserto, por regiões áridas, vêem de repente, em sua forma perfeita, aquilo que desejam, o melhor da vida, aquilo para o qual nasceram. Assim aconteceu comigo. Quando Joaquín vol­tou e eu compreendi que poderíamos partir juntos, ficava superada a esperança da cigana. Meu desejo estava lá diante de mim, palpável, inteiro. Naquele momento era- me inconcebível que fosse ilusão. Mas era. Devo então retornar ao poema, pois o sonho da cigana mostra-me a direção certa daquilo que me resta a contar, o que inclui o momento em que ela acorda e nada vê além dos reflexos da lua na cisterna, abaixo do balcão.

 

Ao longo dos dias seguintes, Claude e Joaquín colheram informações a respeito de navios que partissem de Lisboa e tomaram um trem para Marselha, onde tirariam nossas passagens, no escritório da companhia de navegação, e providenciariam os papéis para que Joaquín viajasse. Quando voltassem, faríamos as malas e partiríamos para a América. Precisávamos apenas seguir o caminho que se abrira para nós, e foi o que fizemos. Não nos fora possível prever o surgimento de um obstáculo que nos forçou a alterar não propriamente nossa direção, mas nossos planos.

Isto é, havia um rato no sótão do prédio onde moráva­mos, na Rue de Seine, um desses que aparecem em cantos poeirentos em épocas como aquela que vivíamos. Tais cria­turas hibernam em lugares isolados até que ocorre algo como a Ocupação ou a subida de Franco ao poder. Aban­donam então a complacência e saltam à vida, partindo da paranóia, do ódio ou da perspectiva de obter vantagens. Sempre agem assim. Os mais atrevidos se expressam aber­tamente como ratos, abrem a boca e proferem palavras pe­rigosas, espalham escândalo. Os mais tímidos encontram pedaços de papel, tocos de lápis, canetas de pena esgarçada, tinteiros com tinta coagulada no fundo. Alguns dizem ape­nas uma palavra, um nome, um local. Outros bradam até que a energia inabitual lhes arranhe a garganta, lábios amar­gos com sabor de bílis. Entre os ratos, aqueles que não confiam em suas vozes escrevem sem parar, como se hou­vessem acabado de descobrir a linguagem. Assim que preenchem o primeiro pedaço de papel, saem freneticamente em busca de mais papel. Caso nada encontrem, desmon­tam, no calor da paixão, a moldura que encerra o retrato de si próprios, da mulher ou do marido, da mãe ou do pai, da família inteira, e continuam a escrever nas costas da fotografia. Não importa por quanto tempo escrevam ou falem, encontram-se atordoados com o espírito criativo, o mesmo impulso que Lorca certa vez atribuiu a um demônio que libertava sua voz e lhe oferecia imagens delicadas.

O rato em questão vivia pacificamente num pequeno apartamento do último andar do prédio. Chamava-se Guy Lafont. Isso era tudo o que, na época, eu sabia a seu respeito. Na manhã em que partimos, porém, ele deixou uma ima­gem indelével na minha lembrança, mais poderosa do que tudo o que já sonhei. A ela recorro para compor a história desse homem; evoco o espanto e a angústia que havia em seus olhos para estimular minha imaginação; dela extraio detalhes de uma vida que afetou todos nós. O que se segue é o que pude conceber de mais fiel ao seu espírito.

Lafont era, por certo, feliz em seu estado de hibernação. Vivera durante anos em paz e satisfeito com a mulher. Saía de casa todos os dias em direção a Les Halles, onde traba­lhava de oito a dez horas. Raramente se queixava e nunca de fato se incomodou com o modo de vida que lhe proporcionara o destino. Era um homem de aspirações mo­destas que, durante o dia, se contentava em empurrar car­rinhos de mão, carregar caixas e, à noite, comer o mais que pudesse para, em seguida, ter com a mulher uma relação sexual rápida, maquinal, que o punha a dormir como um bebê.

Ele estava entre os homens que menos tinham inquieta­ções, que não se interessavam pelo mundo de além dos limites da sua vida cotidiana. Sobrevivera quarenta e oito anos sem nenhum tipo de ambição e, às vezes, sacudia a cabeça desgrenhada, criticando as pessoas que se moviam, apressadas, pelas ruas, incapaz de compreender como al­guém poderia trabalhar, ou mesmo caminhar, num ritmo que não fosse lento e calculado. Bastava-lhe que houvesse comida e vinho suficientes, um lugar aquecido onde dormir, uma conversa ocasional com os colegas de trabalho e, mais raramente, com a mulher.

Tudo isso, porém, mudou com a chegada dos nazistas. Não de imediato, pois Lafont demorava para compreender o novo. Quando acontecia algo fora do comum, ele parava por dentro e fixava o olhar, como um rato atordoado.

Isso aconteceu depois de os nazistas terem se espalhado pelas ruas de Paris, depois de seu apartamento ter ficado frio a ponto de não mais se manter o calor do seu corpo. Ele ficava parado e de olhos fixos, enquanto seu estoque de carvão diminuía, decrescia a quantidade e a qualidade da sopa que tomava, encolhia o já pequeno círculo a que seus movimentos se restringiam.

Lafont não tinha opinião formada sobre a Ocupação. Os nazistas haviam simplesmente chegado, e, por causa disso, sua vida mudara. Bastava-lhe essa explicação. Não sentia a transformação na superfície da pele, não se dava conta que uma camada macia de pêlos nela crescia imperceptivelmente. Sabia apenas que os nazistas olhavam com amabilidade para pessoas que tinham certos tipos de informação; que dinheiro, carvão e comida podiam ser trocados por palavras. Foi então que ele passou a ter um novo in­teresse pela vida dos moradores do prédio.

Os apartamentos de Paris não são diferentes dos de ou­tras partes do mundo. Numa sociedade como a nossa, nin­guém demora a descobrir, caso queira, coisas interessantes a respeito dos vizinhos. Antes da Ocupação, Lafont vivia de modo complacente em nosso prédio. Ignorava-nos. Quando, porém, seu estômago começou a roncar, seus de­dos passaram a estar sempre enregelados e, à noite, o calor do corpo de Adrienne deixou de aquecê-lo o suficiente, ele se tornou atento. No início, foi apenas a curiosidade que o levou a ver se sofríamos como ele. Sentiu uma certa sa­tisfação ao descobrir que sim, que passavam fome e apro­veitavam lixo até mesmo os que moravam nos apartamen­tos maiores e mais confortáveis.

Lafont não tinha simpatia por nenhum de nós, embora às vezes gostasse de imaginar Monika nua na cama. Sempre que isso acontecia, ele tentava puxar conversa. Monika res­pondia com educação, apenas, mas qualquer coisa que ela dissesse bastava para deixá-lo excitado. Mais tarde, à noite, ele se mostraria particularmente ansioso com Adrienne, que ficaria perplexa com a voracidade. Ela comentaria com ou­tras mulheres a atitude do marido e ouviria, com freqüência, que o mesmo se passava com elas. Adrienne atribuía à meia-idade tais ímpetos esporádicos de paixão e os suportava com uma certa curiosidade.

O desdém que ele tinha por nós transformou-se em ressentimento com a chegada de Joaquín, que não lhe caiu no agrado. Joaquín lhe pareceu muito seguro de si e, além disso, um privilegiado, pois, pelo jeito, não trabalhava. A mulher lhe confirmou tal impressão ao dizer que Joaquín, durante o dia, ficava sempre em casa e, geralmente, só saía de manhã cedo por uma hora ou duas.

Havia, portanto, reforçada pelo oportunismo e pelo um sentimento de injustiça, uma certa lógica no fato de Joaquín atrair-lhe a atenção. Logo Lafont passou a farejar a possibilidade de tornar mais confortável sua vida. Assim, certa noite, depois do trabalho, ele pediu a Adrienne que lhe trouxesse uma caneta e uma folha de papel, diante da qual permaneceu durante muito tempo. Desde que saíra da es­cola, nunca mais escrevera, a não ser as inscrições em giz nos barris do depósito onde trabalhava. Matutou sobre como começar até que, finalmente, depois de considerável esforço, encontrou algo que lhe pareceu apropriado e expôs, como melhor lhe foi possível, suas suspeitas. Exausto, de­pois de uma hora à mesa, caiu na cama, mas o demônio que se apossara dele não o deixou dormir. Sempre que fechava os olhos, Lafont encontrava outras coisas para di­zer. Ao longo de horas, levantou-se três vezes para acres­centar à carta novos argumentos. No dia seguinte, bêbado de sono, foi à papelaria. Comprou envelope e selo, postou a carta na agência de correio de nossa rua e foi para o trabalho, imaginando, no caminho, uma bouillabaisse e, em seguida, uma sopa de lentilhas com saborosos pedaços de lingüiça. Trabalhou naquele dia num alegre estado de âni­mo.

Repugna-me essa história de que inventei a respeito do rato do só tão; não apenas porque Lafont tem participação no que mais tarde aconteceria a Joaquín, mas também por­que na vida de Lorca havia um rato semelhante. Aquele que telefonou para o Governo Civil contando que o vira na casa do pai. Durante toda a manhã, a escrever estas páginas, estive pensando no lugar que Joaquín imaginou para Lorca e todos os outros que foram levados a Fuente Grande. E como uma bolha no tempo; um lugar acima, além e fora daquilo que chamamos de realidade. A mim me parece muito real, ainda mais agora que estou a caminha da América. Vejo claramente esse lugar, do modo completo como Joaquín o descreveu. O fato de ter evocado Lafont deu-me, no entanto, algo além da realidade final de tal lugar. Momentos atrás, quando eu olhava para o mar, vi um semblante que, no início, não reconheci. Agora sei que era Valdés.

O que digo a faz sorrir. Parece noite ali, e a luz do fogo tinge da cor de velho bronze o bosque de oliveiras, ilumi­nando o movimento de Valdés por entre as árvores — mais do que um espectro, menos do que um homem.

Ele se aproxima do fogo o mais que pode. Vejo-o de uniforme, radiante como quando Lorca e os outros foram conduzidos ao Governo Civil, nos primeiros meses da guer­ra, e ele bebia uma xícara após outra de café forte, atento às reações dos prisioneiros. Isso, no entanto, não lhe fazia bem, pois ele já sofria do mal interno que o acabou matando. Vejo Lorca em pé, ao lado da escrivaninha, enquanto ele bebia, estremecendo a cada gole, como se quisesse ferir a si próprio para que a dor o tornasse mais impiedoso.

Minha história sobre o rato o faz sorrir com olhos de pedras obsidianas, incrustadas num rosto de açafrão. Ca­belos puxados para trás, como ele costumava usar na época, Valdés está em pé, ao lado de uma retorcida oliveira, mão levada à orelha. Tem nos lábios uma linha fina, inarticulada, de malícia. Enquanto eu descrevia o rato do sótão, ele sorria com o prazer do reconhecimento. Compreendo o porquê disso. Criaturas como Lafont infestavam as ruas de Gra­nada, e Valdés sabia como alimentá-las, pôr isca na arma­dilha, atraí-las ao seu escritório com promessas de recom­pensa por suas folhas de papel ou suas palavras. Ele tem gostado da história até o momento, e continuará gostando, pois deve saber o que acontecerá e que, diante disso, nada poderíamos fazer.

Estou certa de que ele sabe que o trem para Marselha saiu da Gare de Lion numa manhã de domingo, dois dias depois de Lafont ter enviado sua carta ao quartel-general da Gestapo. Claude conseguira licença no trabalho por causa de uma história que inventara a respeito de uma tia doente. Ele e Joaquín chegara à Gare St. Charles, em Marselha, por volta da meia-noite e, cansados, tomaram imediatamente um táxi para um hotel que Claude conhecia, o Grand Hôtel de Genève, na Rue Reine-Elizabeth, atrás do velho porto.

Logo cedo, no dia seguinte, os dois desceram pela Canabière, na direção do porto, onde tomaram um pobre café da manhã e viram os marinheiros de ressaca que voltavam aos navios depois de uma noite nos bordéis. Era um lugar inóspito, mas Joaquín apreciava tudo o que via e ouvia. Marselha era muito diferente de Paris, tinha uma atmosfera muito peculiar, e ele então insistiu em que permanecessem um pouco mais. Na Gare de Lion, no dia anterior, ele se dera conta, de repente, de quão pouco tempo lhe restava na França. Queria então saborear tudo o que pudesse. As colinas brancas, de pedra calcária, que rodeavam o porto brilhavam ao sol da manhã. Joaquín sentiu-se em outro país. De certo modo, era verdade. Marselha estava fora da zona de ocupação. Por um momento, ele ficou a imaginar como seria para nós viver naquela cidade. O sonho, porém, logo se desfez quando ele pensou em mim. Compreendeu de imediato que o que me perturbava não tinha nada a ver com Paris; que eu sofreria em Marselha, em Londres ou em Roma. Recostado na cadeira, Claude desfrutava o calor quando Joaquín se viu a ponto de lhe perguntar sobre o meu passado. Conteve-se apenas porque isso seria desleal comigo. Ele aceitou o meu silêncio, apesar do incômodo que o acompanhou pelo resto do dia.

Quando Claude terminou o café, levantou-se e disse que deviam tomar o caminho do consulado, já que, até lá, havia uma certa distância a ser percorrida. Não tinha idéia de quanto tempo levariam a fazer o que fosse necessário, mas esperava que, antes do almoço, já tivessem marcado a passagem do navio que sairia de Lisboa. Assim teriam o resto do dia para passear, acrescentou. Joaquín, que olhava para um cargueiro a distância, no porto, em meio ao riso disse a Claude que seria sorte se o navio deles estivesse em tão bom estado.

— O que importa isso? —- respondeu Claude. — Desde que possa navegar e o capitão saiba o caminho para San Francisco...

Havia ansiedade em sua voz, mas Joaquín também estava ansioso. Ambos tinham pela frente mudanças radicais, e tal perspectiva começava a produzir um efeito tônico, tanto que, a caminho do consulado, Joaquín foi deixando de ter considerações sentimentais em relação à França e crivou Claude de perguntas a respeito de San Francisco.

Os diplomatas foram simpáticos. O funcionário que os atendeu, Chester Anderson, folheou um arquivo de cartas de recomendação em favor de Joaquín, enviadas por escri­tores americanos e também por alguns acadêmicos a quem Claude as solicitara. Depois de examinar o passaporte ale­mão de Joaquín, Anderson disse que estava tudo em ordem e que seria prudente partirem o quanto antes, pois, a qual­quer momento, o governo de Vichy poderia fechar a fron­teira. Pediu licença e retornou meia hora mais tarde com os papéis. Joaquín achou-o muito eficiente e pensou que bem poderia vir a gosta da América. Quando ele e Claude estavam de saída, Anderson lhes perguntou de seus planos. Joaquín explicou-lhe que comprariam passagem para um navio por­tuguês no escritório da companhia de navegação, em Mar­selha. Anderson então lembrou-lhes que precisavam de vistos de turista para entrar na Espanha. Seriam providenciados tão logo comprassem as passagens, respondeu Claude.

Duas horas mais tarde, os dois retornaram ao hotel, e Joaquín entregou os vistos e as passagens ao recepcionista, que os guardou no cofre. Depois, saíram para almoçar e acabaram descobrindo um restaurante por perto, onde pro­varam uma excelente bouillabaisse e uma garrafa de Montrachet. Durante a refeição, sentiram o leve balanço do navio no porto de Lisboa, viram a linha do horizonte, além do Golden Gate, e falaram dos prazeres de San Francisco. En­quanto acabava de beber o vinho, Joaquín deixou a ima­ginação demorar-se nas casas em tom pastel.

Claude. que queria permanecer na região do porto, as­segurou a Joaquín que valeria a pena fazer isso.

Confie em mim — disse ele. — Há algo aqui que merece ser visto.

Joaquín se dispunha a ir aonde Claude quisesse, desde que pudesse encontrar um suvenir para Monika e para mim, algo que assinalasse a ocasião.

Dez minutos depois, percorriam as ruas dos arredores de Porte d'Aix e a Rue Ste. Barbe. Nas calçadas, homens em dashikis, homens com turbantes e envoltos em vestes longas, negras, passavam por eles. Argelinos, tunisianos, marroquinos os abalroavam, e a atmosfera continha a vida de dezenas de línguas, como se os dois estivessem em al­gum canto esquecido do Norte da África.

Está gostando? — perguntou Claude.

Claro. Mas é totalmente inesperado.

Assaltavam-nos aromas exóticos de comida africana, de fortes temperos que, expostos em cestos, enchiam o ar de ricas fragrâncias. Passaram diante de uma loja que expunha mercadorias na calçada, e, depois de muito escolher, Joa­quín comprou dois pares de brincos, bem longos e delica­damente trabalhados, dos quais, julgou ele, iríamos gostar.

E agora? — perguntou Claude. — Estou a sua dispo­sição.

Ao vir de Paris, Joaquín pensara no Château d'If.

Temos tempo para visitar a cela do conde de Monte Cristo?

Eu já devia ter adivinhado — respondeu Claude. — E claro. Monika e eu fomos lá alguns anos atrás.

 

Embora o correio fosse irregular e o atraso das cartas muitas vezes durasse semanas, o envelope de Lafont chegou ao quartel-general da Gestapo na segunda-feira de manhã, no momento em que Claude e Joaquín saíam do restaurante para o consulado, pouco depois de Monika ir para o tra­balho, na padaria.

Havia procedimentos bem definidos, na Rue des Saussaies, para comunicados como o de Lafont. A carta foi pri­meiro parar nas mãos de um rotundo sargento que se re­cuperava da noite anterior em que bebera muito vinho. Ele abriu o envelope, sentindo na boca o gosto horrível do ca­chimbo, e franziu o cenho para ler as frases desajeitadas e compreender as cruas insinuações. Tinha dificuldade em se concentrar por causa da ressaca e também porque esti­vera pensando na esposa, que ficara em Munique. Receava que ela estivesse gostando do açougueiro do quarteirão de casa, mas o ciúme diminuiu quando ele se lembrou, com satisfação, da mulher com quem estivera na noite anterior. Somente voltou à carta depois de equacionar os problemas domésticos e, decidindo o destino que lhe devia dar, en­tregou-a ao assistente para que fosse levada ao andar de cima.

Já era quase meio-dia quando, depois de alguns atrasos de natureza diversa e duas paradas intermediárias, a carta chegou à mesa do Obersturmführer Gerhard Munch, ho­mem alto, de cabelos claros, cujo rosto nada revelava de seus sentimentos. Durante os ocasionais momentos de introspecção a que Munch se permitia, ele às vezes se dis­punha a admitir que o êxito de sua carreira tinha a ver tanto com a falta de expressão do rosto quanto com a ca­pacidade mental, o que sempre lhe causava uma sensação de desconforto. Desagradava-lhe a idéia de acaso, preferia pensar que tudo acontecia de modo racional, com causa e efeito. Tomava, no entanto, muito cuidado com o rosto, usando à farta bons sabonetes e hidratantes, como se fosse um ator de certo renome.

Munch leu a carta às pressas, pois seu auxiliar a entregara no momento em que seus superiores chegavam para ir com ele almoçar. Estavam de saída para um café que, dizia-se, servia um excelente rouladen. Como a idéia de comida lhe ocupasse a mente, Munch passou por alto pelas acusações que Lafont expunha acima da canhestra, mas ostensiva, as­sinatura. Logo na primeira linha, suspeitou da veracidade do conteúdo da carta.

Diariamente chegavam cartas de informantes conhecidos, e mais ainda de aspirantes como Lafont, que não conse­guiam esconder o desejo de obter vantagens. Embora as cartas muitas vezes trouxessem informações úteis e o tra­balho de Munch fosse justamente o de examiná-las com atenção, ele decidiu deixar o assunto para depois do almoço. Não tinha reconhecido o nome de Lafont e não queria pas­sar por idiota, gastando tempo e recursos com acusações falsas, como acontecera em várias ocasiões recentes. Além disso, Lafont fora extremamente vago. Ao levantar-se e abotoar o paletó, Munch estava inclinado a ver na carta apenas uma tentativa de vingança mesquinha. Cada vez mais os franceses eram forçados a conviver uns com os outros, a aceitar uma variedade de inofensivos inconvenientes. À tar­de, pensou ele, haveria bastante tempo para decidir o que fazer.

Quando Munch saía com os colegas, Lafont, no local de trabalho, empurrava um carrinho de mão e assobiava um trecho de canção popular cujo título desconhecia. Seu passo, em geral lento, se acelerara, e até mesmo um brilho surgiu em seus olhos quando ele pensou na sopa de lentilhas com gordas lingüiças. Depois, lembrou-se das nádegas de Mo­nika contornadas pela saia justa. Deu-se conta de que havia meses não se sentia tão feliz.

Nessa altura, eu devia estar na Rue de Buci, onde tinha comprado alguns patéticos legumes que pretendia colocar num pobre cozido. A calçada estava escorregadia de gelo, e eu caminhava com cuidado. O frio atravessava a pouca es­pessura do meu casaco, mas isso não tinha importância alguma. Eu estivera animada durante toda a manhã, pen­sando em Claude e Joaquín em Marselha. Até mesmo permitia-me o luxo de imaginar como seria o navio. Os únicos de que eu me aproximara eram os à vela com que Jürgen costumava brincar nos parques. Lembro-me de que sempre pareciam precários e frágeis quando o vento os conduzia pela imprevisível jornada no lago. Eu tampouco conhecia o oceano, mas era capaz de facilmente visualizar a travessia. Sabia como haveria de me sentir, como seriam aquelas águas. Tentava imaginar uma tempestade quando três ofi­ciais nazistas desceram de um carro e vieram na minha direção. Quando eles se aproximaram de mim, dei um passo para o lado. Em geral, eu detestava dar passagem, mas naqueles tempos tudo era diferente. Na verdade, queria dar passagem porque assim poderia vê-los sumir do meu campo de visão. Tratava-se de um jogo que eu esponta­neamente inventara, de uma preparação para o que em breve aconteceria. Não cheguei, porém, a me desviar o su­ficiente. Como houvesse gelo no meio-fio, fui forçado a pa­rar perto dele, receosa de escorregar caso avançasse na di­reção da rua. Um dos oficiais então abalroou meu ombro e eu pedi desculpas. Ele me ignorou. Os três falavam a respeito do almoço, e eu não era mais importante que um poste.

Eu não costumava dar atenção a desaforos desse tipo, mas, dessa vez, foi diferente. Assim que o nazista passou por mim, senti o cheiro da colônia que ele usava. No início, nada me ocorreu, mas logo reconheci a colônia de um dos clientes do Seven Dolphins, um oficial do governo que sem­pre me escolhia. Determinada a esquecer o que acabara de se passar, segui pela rua, apressada, sem mais me preocupar com o gelo. A visita, porém, permaneceu comigo. Soou en­tão um leve toque de relógio, e várias outras delas olharam para mim e sorriram, como se estivessem no convés de um navio, em Lisboa. Empreguei toda a disciplina de que era capaz para forçá-los a sair do meu pensamento, decidida a não permitir que estragassem meu dia. Imaginei-me em casa, a preparar o cozido e, quando cheguei e fechei a porta, tudo o que restava do incidente era um vago aroma de bebida, de bay rum.

Nesse meio tempo, Munch havia esquecido a carta de Lafont, mas, ao chegar do almoço, refestelado de rouladen e meio tonto de vinho, viu-a num cesto de documentos. Pôs os pés sobre a escrivaninha e ficou admirando as botas. A carta o incomodava, e, embora Munch tivesse que tomar uma decisão, ele deliberadamente a adiava. Poucas semanas antes chegara uma carta semelhante, e ele passara por tolo quando seus homens voltaram da investigação e disseram nada terem encontrado do que o remetente com tanta se­gurança afirmara existir. Sua intuição lhe dizia que, muito provavelmente, a carta de Lafont também era uma dessas. Se fosse, ele o tomaria como exemplo.

Nessa altura, o prazer de ter almoçado com os superiores, que o tinham cumprimentado pelo trabalho, já se desfizera na raiva por Lafont. Munch então, com um suspiro, pegou a carta e, devagar, a leu várias vezes. Lafont mal sabia es­crever, e sua prosa, floreada, mas rude, provocou gargalha­das no oficial nazista. O texto, de uma caligrafia garranchosa e infantil, revelava servilismo em certos momentos e, nou­tros, cômica velhacaria. Munch, porém, já passara a se in­teressar pela carta. Os hábitos do homem que Lafont iden­tificava apenas como recém-chegado ao apartamento doze eram suficientemente estranhos para atiçar sua curiosidade. Seria preferível arriscar outro fracasso a perder a oportu­nidade de capturar um membro da Resistência ou qualquer outro causador de problemas. Munch pensou na boa impressão que dele teriam caso o homem do apartamento doze fosse, afinal, alguém importante. Nesse momento, sen­tiu uma ponta de vaidade e tomou uma decisão. Girou a cadeira para a esquerda, num movimento rápido, elegante, e suas botas bateram no chão com um ruído seco, de quem está satisfeito.

— Manheim! — ele chamou.

Às pressas, o auxiliar logo entrou na sala.

 

Dez pessoas fizeram a travessia em lancha para a ilha rochosa. Assim que desembarcaram, o guia, um jovem de barba rala, começou seu discurso. Claude sussurrou que não lhes faria mal se submeterem ao óbvio, mas Joaquín, que não conhecia a história do Château d'If, ouviu com atenção a explicação do guia. O castelo fora construído no século dezesseis para servir de defesa contra invasores e, somente anos depois, quando não era mais necessário para essa finalidade, transformou-se em prisão do Estado.

— Sabe-se que o mais famoso hóspede do castelo foi o conde de Monte Cristo, personagem de Alexandre Dumas. Dumas fez descrições muito precisas. Teremos tempo para ver a cela e os corredores sobre os quais ele escreveu — acrescentou o guia.

As pedras haviam resistido com dignidade à passagem do tempo, e os passos do grupo de turistas ecoavam com insignificância a caminho da famosa cela. Joaquín estava perplexo com a estranheza da situação. Horas atrás estivera tomando providências para se exilar. Agora era turista. A sensação de insegurança que os levara a viajar a Marselha se desfez assim que Joaquín entrou nos corredores escuros, substituída por outra que ele não sabia definir. Sabia apenas que, de algum modo, estava relacionada ao espaço restrito. Lem­brou-se de que não era claustrofóbico e tentou esquecê-la.

A cela do conde não o impressionou. Era, afinal de contas, apenas a fonte de inspiração de Dumas. Claude, porém, examinou cada canto e fenda com interesse de estudioso e somente saiu diante da insistência do guia.

Joaquín se interessou mais pelas celas em que os prisio­neiros huguenotes passavam o tempo esculpindo nas pe­dras imagens de si próprios e de suas casas. Observava atentamente as figuras quando, de repente, sentiu a sensa­ção opressiva voltar com tanta intensidade que não a pôde mais ignorar. Saiu da cela, na esperança de sentir-se melhor, mas isso de nada adiantou. Tivera o pressentimento de que eu estava em perigo, mas, como a idéia lhe parecesse ab­surda, nada disse a Claude quando terminaram de subir a escada que conduzia às ameias. Dali, a contemplar Marse­lha, sentiu, no entanto, o pressentimento voltar com a mes­ma força de antes. Joaquín olhou para o relógio. O trem para Paris sairia somente horas mais tarde. Como nada pu­desse fazer, tentou convencer-se de que era apenas o espaço diminuto, o eco dos passos nos corredores estreitos, sua própria situação de insegurança que o tornavam suscetível. A má impressão, porém, persistiu.

Eu estava na cozinha, cortando legumes. Por algum pe­queno milagre, encontrara berinjelas, pimentões e cebolas. O cheiro de bay rum sumira diante do aroma forte e natural das hortaliças. Estava determinada a não permitir que o encontro com os nazistas e a lembrança do Seven Dolphins arruinassem a tarde. Minha atenção voltava-se para a tarefa de cortar os legumes em formas geométricas perfeitas. Pa­recia-me que eu mantinha fisicamente minha consciência sob controle, forçando-a a permanecer no presente.

Estava cortando cebola quando, a certa altura, ergui o olhar e vi, na janela da cozinha, os Homens do Relógio, que zumbiam como moscas na vidraça coberta de gelo. Brandi a faca de modo ameaçador, disse-lhes que se cui­dassem, que tudo havia mudado, que agora eram pequenos e podiam ser mortos. Eles continuaram zumbindo, lançando inutilmente seus minúsculos corpos contra a janela. Depois, foram embora. Lembro-me de ter sorrido, com a estranha e nova segurança que sentira quando soube que iríamos partir. Ignorei todas as advertências que, prevenida, fizera a mim mesma; esqueci todos os perigos que pudera con­ceber. Quando terminei de preparar o prato, passei a sonhar com os jardins da Califórnia. Claude me dissera que o clima da Califórnia era temperado, como o da Provença, e, tam­pando a sopeira, visualizei dias quentes de sol, fileiras de hortaliças na horta da minha casa. Em pensamento, eu já havia deixado a França. Recusei-me a admitir o frio, o fato de que minhas mãos doíam por causa da água gelada em que as mergulhara para preparar a comida. Ao enxugá-las, pareceu-me que a pele dos dedos havia sido arrancada. Nada disso, porém, importava. Em seguida, fui para a sala de estar, onde me embrulhei no velho cobertor cinzento. Pensei em Joaquín, nas Cartas, e concluí que seria interes­sante e adequado reler os romances do já superado quarteto, repassar essa experiência para então deixar o mundo de Heinz, tudo, para trás. Eu leria as demais cartas no trem, saindo da França. Isso também seria adequado. Não me lembrava de antes sentir-me tão forte, vitoriosa, de um modo absolutamente novo.

Foi então que, em meio a essa incomum sensação de poder e bem-estar, tudo se desenrolou. Na verdade, pare­ce-me agora, havia começado aproximadamente meia hora antes, quando dois Mercedes deixaram o quartel-general da Gestapo, mais ou menos ao mesmo tempo em que Clau­de e Joaquín embarcavam na lancha, de volta ao continente. Havia sete nazistas nos carros, três oficiais e quatro solda­dos. Munch e Manheim iam no banco de trás do carro que era seguido. Não estavam muito animados com o que fa­ziam.

— Nunca se sabe — disse Munch, a refletir. — Há muitos deles. É bom dar uma olhada.

Quando ouvi portas de carro baterem, soube que eram nazistas. Os franceses, com exceção, colaboracionistas, não mais tinham permissão para dirigir. Ouvi também vozes na rua, mas não distintamente a ponto de compreender o que era dito. Em seguida, ruído de botas na escada e no corredor. Mal acabava de me perguntar quem teria atraído a atenção deles quando uma batida soou à porta. Até então não tinha pensado em momento algum que pudessem estar a caminho do nosso apartamento. Teria eu sido demasiado ingênua? Tudo o que posso dizer é que nosso medo era devido à situação geral, não ao incômodo que Joaquín cau­sara com suas Cartas. Isso, creio eu, é o que estava em minha mente. No entanto, aqui neste convés, a contemplar apenas um plácido oceano, reconheço quanto me enganava. Não pensei que vinham ao nosso apartamento porque não podia permitir que tal idéia surgisse em minha consciência. Tí­nhamos ido longe demais, todos nós. Dou-me conta de que minha precaução fora simplesmente retórica e que nunca de fato acreditara nela. A realidade, porém, voltou com a batida à porta, com o anúncio seco, em um só tom, de que minha integridade estava para ser violada, de que meu lu­gar no mundo, meu lar, sofreria deformações ainda inima­gináveis. Era uma intimação e um julgamento para a minha recente ingenuidade. Eu estivera lendo Aurora, mas também estivera refletindo sobre as Cartas. Não era, portanto, um grande rasgo de imaginação enxergar Lorca de olhar er­guido, perplexo e amedrontado, no momento em que os Falangistas chegavam à casa dos Rosales.

Abri a porta e dei comigo a encarar o oficial que abalroara meu ombro na Rue de Buci. O cheiro de bay rum era muito forte. Agora ele estava de óculos redondos de aro prateado, que lhe davam um ar abstrato, de acadêmico. A coincidên­cia quase me fez rir. Talvez devesse ter rido, afinal de contas. Isso o deixaria por um momento desconcentrado e mudaria o curso do seu pensamento, os acontecimentos seguintes. Eu, porém, estava demasiado surpresa. Ele notou. Ficou parado sem dizer nada, como se estivesse medindo minha influenciabilidade, sinceridade, meu medo. Sabe Deus mais o quê. A luz refletia-se nas lentes dos óculos, impedindo que eu visse claramente seus olhos, voltados para mim e para o interior da sala. Ele olhava sem pressa, com consi­derável atenção. Eu sabia que ele era perito em ler rostos e detectar objetos. Seu olhar se desviou, pousou de novo em mim, e sua expressão, quase de displicência, de insolência, tornou-se dura, como se ele soubesse tudo a meu respeito. Quase me convenci disso. Pareceu-me até que ele tinha conhecimento do fato de que sua colônia despertara em mim a lembrança do oficial que eu chamava de Número Onze.

— Aqui mora um homem que chegou alguns meses atrás — disse ele de modo displicente. — Quero saber que é.

O oficial então empurrou a porta e entrou seguido dos outros.

Quando decidimos dar refúgio a Joaquín, previmos a possibilidade de um momento como esse. Por mais implausível que fosse, concordamos em que devíamos estar preparados para isso, pois a vida em Paris chegara ao ponto em que tudo podia acontecer. Nada era impossível. Ao longo de noites, após o jantar, criamos uma vida nova para Joaquín, uma outra história. Ficávamos ao redor da mesa, trocando idéias, quase como se fosse um jogo. Nós o trans­formamos num relojoeiro cujo negócio fora atingido pelos maus tempos. Como eu lhe dera a profissão do meu pai, também fiz de Joaquín um parente, um primo em segundo grau vindo de Áries. Chegamos a inventar até gestos e há­bitos, que o forçávamos a praticar até se tornarem naturais.

Assim que Munch se dirigiu a mim, comecei meu dis­curso. Contei-lhe quem era meu pobre e desorientado pri­mo, respondendo a sua insolência no tom mais natural e ligeiramente triste que consegui encontrar. Em momento algum deixei de encarar seu olhar direto e perscrutador. Cheguei até a reforçar minha história com um certo toque de intimidade coquete. Agi com cuidado, calculadamente, e, enquanto falava, ia notando as enormes diferenças entre nós; não apenas porque eram nazistas, mas, antes, porque me faziam sentir tão estranha e frágil na minha feminilidade quanto nos tempos em que trabalhava no Seven Dolphins.

Munch ouviu-me com atenção. Sua inteligência era visí­vel em seu olhar incisivo, no modo como me ouvia, à espera de um tom falso, vacilante. Tive motivos para pensar nele demoradamente, para ter-me tornado muito íntima de Gerhard Munch. Embora eu o desprezasse, admirava suas ha­bilidades. Ele sabia exatamente o que observar. Detectar tiques verbais e gestos que acompanham mentiras eram sua especialidade, bem como coisas em que nunca me per­mitia pensar, brutalidades que tornaram famosas as rondas de Valdés. Enquanto eu falava, seu olhar percorria o apartamento para voltar-se, inesperadamente, na minha direção. Eu sabia que ele sondava meu rosto em busca de pistas e também que não tinha encontrado nenhuma. Mesmo antes de eu terminar, já estava convencido de que sua visita re­petia a situação embaraçosa em que recentemente se vira. Por causa disso ele me castigou um pouco mais com perguntas rápidas e incisivas. Estava preocupado com a pos­sibilidade de seus homens depreciarem seu procedimento, caso fosse embora. Assim, ordenou que revistassem o apar­tamento, embora julgasse que eu dizia a verdade.

Enquanto os homens reviravam gavetas e armários, ele ficou sentado na minha cadeira, folheando os livros empi­lhados ao lado. Retesei-me quando ele pegou Aurora. Con­tudo, não olhou para a capa. Creio que deve ter sido mais ou menos nesse momento que me achou interessante e co­meçou a considerar minha calma. Concluiu então que havia algo errado. Não havia nada que incriminasse alguém, eu disse. Nada havia no meu rosto. Meus gestos revelavam apenas que eu dizia a verdade pura e simples. Algo, porém, o intrigava. Achou, portanto, que devia me levar à Rue des Saussaies, onde, no conforto do seu escritório, poderia con­versar melhor a respeito daquele homem que fora visitar um parente enfermo em Marselha. Afinal de contas, coisas inesperadas aconteciam com uma certa freqüência no seu escritório.

Você vem conosco — disse ele e, como que enfatizando a decisão, fechou Aurora com um ruído.

Mas não fiz nada — protestei. — Estamos apenas ten­tando viver.

Ele já estava em pé, olhando para mim.

Não a estou acusando de nada. Ainda não — ele res­pondeu, quase como quem pede desculpas.

Munch fez sinal para um dos soldados, que se aproximou de mim e me pegou pelo braço. O soldado tinha um rosto fino, pálido, olhos azuis, bem claros. Uma mecha de cabelos amarelados aparecia sob seu capacete. Ele me assustava. Não sei por que, mas instintivamente me soltei, e o soldado me bateu no rosto. Meus ouvidos retiniram, e, embora eu sentisse dor, olhei para Munch com toda a inocência ultra­jada que consegui reunir. Ele me encarou, calmamente.

Faço o que ele diz — ordenou o soldado.

Em seguida, conduziram-me à porta. No caminho, ergui a mão e senti um corte ao lado do olho. O tapa amassara o aro dos meus óculos, e, quando os tirei, tudo ficou ne­buloso. No corredor, desamassei o aro o mais que pude e voltei a pôr os óculos.

Havia um certo ritual, bem calculado, nesse meu seqües­tro. Conduziram-me às pressas pelo corredor. Dois solda­dos me acompanhavam, um de cada lado. Munch e Manheim seguiam na frente. Ao descermos a escada, passamos por Madame Morain que, num relance, se deu conta da situação e quase atravessou a parede ao abrir caminho. No térreo, à porta, ela pôs a cabeça para fora e retirou-a ime­diatamente, como uma velha tartaruga que se recolhe à carapaça.

Se eu não estivesse tão apreensiva, creio que teria repa­rado melhor na estranheza da situação, do novo, na sen­sação inesperada de estar num carro com alemães. Vi, po­rém, o suficiente. Todo mundo na rua nos notava, e era evidente o medo que sentiam. Era quase um sonho em que eu estivesse sendo observada. Fiz o possível para manter a calma e repassei cuidadosamente o que dissera a Munch, pois ele tentaria pegar-me em contradições. O problema das mentiras é que, não tendo um peso exato, se recusam a permanecer na mente com a solidez dos fatos verdadeiros; vão embora a flutuar quase com a mesma rapidez com que são ditas.

Assim que chegamos à Rue des Saussaies, começou a dança, o minueto do gato e o rato em que Munch fez par com dezenas, senão centenas, de parisienses. Ao entrarmos em seu escritório, ele fez sinal para que eu me sentasse e, em seguida, saiu sem dizer palavra. Durante dez minutos fiquei esperando que ele voltasse a qualquer momento, mas depois dei-me conta de que seu objetivo era dar tempo para que eu perdesse a concentração, tornasse minha his­tória confusa. Estava certa de que sua intenção era essa.

Havia alguns jornais sobre uma mesinha perto de mim. Eu não tinha interesse algum nas chamadas notícias, mas, se eu lesse, pensei, isso o deixaria intrigado, viraria a mesa. Seria a última coisa que ele poderia esperar.

Soltei o corpo na cadeira, pus os pés em cima da mesa e passei a ler as notícias dos colaboracionistas. Ao fazer isso, recuperei um pouco da autoconfiança. Havia desco­berto as intenções de Munch. Meu rosto e minha postura desleixada devem ter revelado o que eu sentia, pois, quando ele entrou abruptamente, meia hora depois, parou à porta e ficou me olhando, como se não soubesse o que fazer. Estávamos dançando juntos, formal e corretamente, embora a música que ouvíamos não pudesse ser mais diferente.

Não estamos numa reunião social — ele disse, tirando o jornal das minhas mãos.

Munch sentou-se ao meu lado, cruzou as pernas e co­meçou a me interrogar, como um padre a repassar a lição de catecismo. Durante quinze minutos ele lançou de novo as perguntas que me fizera no apartamento, mas com outra ênfase. Respondi impecavelmente. Sentia-me mais confiante cada resposta, a ponto de achar que sustentaria até em so­nho a história de Joaquín.

Por fim, ele se cansou. Parecia frustrado, e pensei que me deixaria ir embora. Em vez disso, tocou o lugar ao lado do olho onde o aro dos óculos me ferira.

Isso não me parece bem — disse Munch.

Ele chamou um dos homens e ordenou-lhe que fosse buscar um curativo. Quando, logo depois, o auxiliar voltou, ele pegou o curativo e o entregou de modo cortês.

Se quiser, pode usar a toalete para se recompor — acrescentou Munch.

Nossas posições se inverteram. Eu fora mais forte quando ele retornou à sala. Agora era ele. Ao lavar a ferida e pôr o curativo, percebi que nada era o que parecia ser.

Assim está melhor — ele disse quando voltei.

O tom incisivo de sua voz fora substituído por um modo suave, educado, inegavelmente agradável de pronunciar as sílabas. Ele era um camaleão de muitos rostos, tons de voz, gestos, e eu nada podia fazer além de esperar para descobrir que transformação era aquela.

Acredito na senhora, Frau Krieger. Está livre para da­qui a pouco ir embora. Mas, primeiro, fale-me um pouco de quem é. Nós dois somos alemães. A senhora chegou aqui há alguns anos. Por quê?

Contei-lhe que vivera em Berlim e, para despistá-lo, pas­sei algum tempo falando da minha vida com Hans. Munch foi surpreendentemente simpático. Até hoje não sei ao certo se ele estava sendo sincero ou se sua atitude era apenas uma outra cilada. Em todo caso, disse-me que perdera um tio e amigos próximos na Primeira Grande Guerra.

A situação ficou muito difícil depois, eu me lembro, embora fosse bem jovem na época — ele acrescentou. — As pessoas tinham dificuldade em ganhar a vida. O que a senhora fazia?

Creio que fosse uma pergunta inocente, natural em que está curioso ou quer, de modo sutil, completar o dossiê que mentalmente compila. Eu deveria tê-la previsto logo que ele começou a sondar meu passado, mas não. Quando ele fez a pergunta, tive que usar todo o autocontrole para não demonstrar minha perturbação. Não se tratava da mi­nha própria segurança ou do risco de revelar qualquer coisa que prejudicasse Joaquín. Era apenas o meu equilíbrio in­terior que estava em questão, o que restava do bem-estar que eu tinha começado a sentir. Eu já estava cansada, sem forças, e creio que seria estranho se não tivesse vislumbre da velha Berlim em toda a sua desgrenhada glória. Então olhei diretamente para Munch e disse que, sim, aqueles tempos haviam sido mesmo difíceis, que eu levava a vida, como podia, lavando roupa, fazendo limpeza e, como não me ocorresse nada mais original, trabalhando de garçonete no bairro do Seven Dolphins.

Por favor. Estou muito cansada. Posso ir embora? — perguntei.

Parece que Munch estivera ouvindo sem muito interesse até o momento em que mencionei meu emprego fictício. Creio que ao falar da morte de Hans eu havia de fato des­pertado sua simpatia, e ele me deixara prosseguir por uma certa consideração pelo que eu havia sofrido. No entanto, quando citei o bairro em que trabalhara, sua expressão ta­citurna mudou. Não era um sorriso, mas um retesamento de traços, um interesse súbito que notei assim que ele tirou os óculos e pousou-os sobre a escrivaninha.

Ah, sim, a rua das putas!

Nada restou do ar de acadêmico, mas não me surpreendi. Minha memória estava aberta aos tempos distantes do Se­ven Dolphins, quando eu, com freqüência, via ocorrer esse tipo de mudança. Eu odiava o momento em que meus clien­tes tiravam os óculos e cuidadosamente os pousavam na mesa-de-cabeceira. Era como um anúncio, um aviso de que eu não podia escapar, e foi isso o que senti com Munch. O acadêmico dera lugar ao lânguido sensualista.

Sim — respondi depois de um tempo —, era isso mesmo.

Ele devia saber que eu mentia a respeito do café. O que mais poderia explicar a mudança de expressão ou seu modo escancarado de olhar para mim? Talvez ele estivesse ressentido com o fato de ter passado por tolo ao não ter encontrado nenhuma falha na minha história a respeito de Joaquín. Essa seria então sua vingança. Isso, porém, não explicaria o modo como me olhava, abrindo e fechando lentamente as hastes dos óculos. Ele não tentou esconder que seu olhar lentamente deixou o meu rosto na direção dos seios e da dobra da saia, entre minhas coxas. Ele me via através da roupa com um olhar tão direto quanto o dos clientes do Seven Dolphins quando eu, bem menos ves­tida, ficava no salão à espera de que me escolhessem.

Nunca pensou em ser uma delas?

— Como?

Devia ganhar muito pouco como garçonete. Uma mu­lher como você poderia ficar bastante ocupada. Poderia ga­nhar o suficiente para se sair bem, apesar da inflação.

Munch fez uma pausa, avaliando minha reação. Não pude deixar de corar.

O suficiente para sair de Berlim — ele acrescentou, sorrindo.

Creio que então ele estivesse jogando, saboreando uma ponta de crueldade. Eu, no entanto, não conseguia pensar. Era toda sentimento, mais nada. Meu rosto queimava de vergonha, de uma sensação de profunda derrota. O corte em meu rosto doía. Um grito ecoava dentro de mim diante da indecência do que ele estava fazendo. Aquilo era uma violentação. Eu me sentia tão ultrajada e indefesa quanto qualquer mulher ao sofrer um estupro.

Você não tem o direito! — gritei. — Como pode dizer isso?

Ele reagiu com calma e cautela.

Muito interessante! — disse ele, deixando por um mo­mento a ambigüidade no ar. — Tenho direito a tudo de que precise — acrescentou logo em seguida.

Uma espécie de reconhecimento surgiu em seus olhos. Algo que ele queria guardar para si os fazia brilhar. Estava sorrindo, como que para reafirmar sua plena autoridade.

De fazer isso? — perguntei. — De me insultar desse modo?

Todo o direito, Ursula. Tenho direito a fazer tudo o que quiser.

Foi um momento terrível. Não sabia o que ele iria fazer. Munch tinha se levantado de repente da cadeira. Preparei- me para vê-lo atravessar a sala, fechar a porta, assediar-me.

Ele, porém, não saiu do lugar. Ficou apenas me olhando. Em seguida, com um movimento decidido, pegou os óculos e os colocou novamente. Por um momento pensei que talvez preferisse que ele tivesse vindo até mim a vê-lo saborear, como um voyeur, o que acontecera entre nós. Ao dar a entender que sabia de mim, ele satisfazia seu prazer e sua necessidade. Nunca compreenderei o porquê disso. — Vá embora! — ele ordenou de repente. Voltou-se e olhou pela janela. Lá fora caía um pouco de neve. Tive um desejo forte de senti-la nas mãos e no rosto. Saí sem dizer palavra. Manheim ergueu o olhar ao perceber que eu passava, espiou dentro da sala de Munch e voltou ao trabalho como se eu não estivesse ali.

 

Lafont estava em pé ao lado de um barril, perto da doca de embarque de mercadorias. Comia pão e queijo. O pão e queijo. O pão era razoavelmente fresco, mas o queijo estava duro e frio. O leve gosto azedo indicava estar quase estragado. Quando chegasse em casa, ele teria uma conversa com Adrienne. Queijo velho era algo intolerável. Por que era obrigado a comê-lo quando outros, pessoas que tinham mais dinheiro, não precisavam passar por isso?, ele se per­guntou. Lembrou-se do prédio onde morava. De vez em quando, aromas deliciosos de comida subiam de outros an­dares até sua sala de estar. Concluiu que vinham do nosso apartamento e fez rápidos cálculos na cabeça. Parecia-lhe inegável que tais aromas começaram a se propagar com maior freqüência depois que o homem veio morar conosco. Tinha essa certeza em mente enquanto roía o queijo duro, frio, e bebia seu vinho.


Depois, seu estado de espírito mudou. Esquecera-se de que a sorte estava para melhorar. Vautrin se aproximou. Lafont sorriu e deu-lhe um tapinha no ombro.

Que tal bebermos alguma coisa mais tarde? — ele convidou, propondo que fossem a um pequeno bar perto do depósito.

A saída do trabalho, ficou à espera de Vautrin. Estava para desistir e ir sozinho ao La Belle Reine quando o viu surgir carregando a marmita. Vautrin demonstrou surpresa ao ver que ele o esperava.

Pensei que estivesse brincando — disse Vautrin.

De jeito nenhum. Vamos.

Depois de dois conhaques, a carteira de Lafont lhe pa­receu bem vazia. Costumava beber cerveja. O dia do pa­gamento, porém, não estava longe, e era importante não beber sozinho quando se tinha algo para comemorar.

Beba mais! Posso pagar.

Lafont chamou o garçom e pediu mais dois conhaques. Há anos que freqüentava o La Belle Reine e conhecia Pierre quase tão bem quanto a própria mulher. Agora, porém, adotava um ar formal ao fazer os pedidos. Tratava Pierre de senhor, e até mesmo Vautrin, que não prestava atenção a sutilezas de comportamento, estranhou o cavalheirismo de Lafont.

Quando Pierre trouxe os conhaques, Vautrin apoiou os cotovelos na mesa e lançou um olhar direto para Lafont, que transbordava de autoconfiança.

Ora, vamos. Você nunca pagou bebida para os colegas. Recebeu herança de algum tio? — perguntou Vautrin. — Está apaixonado por alguém? Marie, talvez?

Marie, a secretária do chefe, causava verdadeiro furor entre os trabalhadores que viviam a criar fantasmas sobre sua vida sexual.

Nada disso. Quando se cuida bem dos negócios, tudo melhora.

Na sua imaginação, Lafont já recebera uma generosa recompensa dos alemães. Queria falar disso com Vautrin, mas não tinha bem certeza de que ele compreenderia. Estava satisfeito com a própria perspicácia, com sua habilidade natural em fazer tais distinções. Seria melhor, mais discreto, deixá-lo curioso. Consciente de que subira no conceito do colega, olhou para ele e, engolindo rapidamente o conha­que, repetiu:

Tudo melhora.

Sentiu-se muito bem ao levantar-se e puxar o relógio de bolso, como vira um dos chefes fazer.

Estou atrasado — disse ele. — Até amanhã.

Lafont foi para casa todo cheio de si. Havia de fato impressionado Vautrin. Deu-se então os parabéns por ter reproduzido o gesto de chefe ao consultar o relógio. Era o gesto de um homem ocupado, um homem importante. No metrô, não se sentou, embora houvesse lugares desocupa­dos. Era o que convinha ao novo status. Nada mais de sentar-se em posições desleixadas. Ele e Adrienne precisavam sair de casa com maior freqüência, nunca beber cerveja em público.

Lafont e eu chegamos ao prédio no mesmo momento. Eu tinha feito a pé a maior parte do caminho, na esperança de que o exercício me ajudasse a recuperar o autocontrole, mas isso pouco havia adiantado. Não fazia diferença que Munch houvesse intuído meu passado, demonstrando seu poder sobre mim. Por que eu haveria de me incomodar com o que ele pensava? No entanto, aquela longa tarde, a série de choques e reconhecimentos deixaram-me exaurida. Em parte pelo simples fato de os nazistas terem vindo ao apartamento; em parte pelo renovado medo de que esti­vessem perto de descobrir Joaquín. No entanto, assim que entrei na Rue de Seine, o que mais me perturbava era minha própria ingenuidade. Eu havia pensado que finalmente me livraria de Berlim, de tudo o que essa palavra evocava. Era como se as últimas semanas não tivessem existido. A con­seqüência mais grave do que se passou naquela tarde era forte demais para ser totalmente percebida, e fiz o possível para me sentir de novo, inteira, inviolada. Tentei até mesmo livrar-me das garras da obscena referência de Munch ao lugar onde eu costumava encontrar os golfinhos brancos, mas em vão. Quando vi Lafont, que, nessa altura, era apenas um vizinho com quem eu raramente falava, senti-me ferida na alma, com a dignidade em farrapos.

Ele fixava o olhar em mim. Dei-me conta de que meus olhos ainda deviam estar inchados de choro, de que devia ter uma cor feia a pele do meu rosto ao redor do ferimento. Antes, quando nos encontrávamos, ele rapidamente des­viava o olhar, como se o contato comigo lhe causasse des­conforto. Naquela tarde, não. Ele me olhou de um modo rude enquanto subíamos a escada, a caminho da porta. Eu estava para pegar na maçaneta quando ele deu um passo adiante e abriu a porta com um floreio.

— Primeiro as damas — disse ele com um sorriso.

Murmurei um agradecimento e entrei.

Não pensei mais em Lafont naquele dia, mas hoje sei que deve ter achado muito interessante aquele encontro. Ele deve ter se perguntado a respeito do inchaço em meus olhos, do curativo. Como fosse um homem simples, sem muitos pontos de referência, talvez tivesse concluído que meu amante batera em mim durante uma discussão. Talvez tivesse até mesmo aprovado o gesto hipotético, já que, de vez em quando, fazia o mesmo com Adrienne. Não tenho dúvida quanto a ele ter reconhecido o corpo de Monika no meu. Ele conseguiu observar o movimento das minhas nádegas, embora eu usasse um casaco de inverno. Seu passo se acelerou para que ele pudesse olhar de mais perto. A certa altura, olhei para trás porque sabia o que ele estava fazendo. Depois que meu olhar, zangado, pousou em Lafont, ele prosseguiu sem dizer palavra ao longo do lance seguinte da escada, desconsiderando minha indignação e voltando a pensar na sua carta. Perguntou-se então se os alemães viriam quando ele estivesse em casa, se os ouviria.

Adrienne estava agitada quando ele entrou

Os alemães vieram aqui esta tarde. Levaram a mulher do apartamento doze — ela contou.

Lafont olhou para a mulher com o ar mais indiferente possível, do modo como, às vezes, o chefe olhava para Ma­rie. Em seguida, serviu-se um copo de vinho e levou-o aos lábios.

Bem, ele não a prenderam. Acabo de vê-la subindo a escada.

O que acha que ela fez?

Ele deu de ombros, como se isso não merecesse consi­deração.

Sei lá. — E bebeu o vinho com um gesto afetado.

 

Monika normalmente parava de trabalhar às quatro ho­ras, mas, como o serviço estivesse atrasado, o padeiro pe­diu-lhe que ficasse. Só saiu às cinco e meia, meia hora depois de Lafont e eu termos subido a escada. Claude e Joaquín deviam chegar em casa somente na manhã seguinte, logo cedo. A perspectiva de Monika era então a de estar, à noite, na minha companhia apenas. Ela estivera aguardando essa oportunidade. Queria perguntar o que havia entre sua mãe e Joaquín. Era evidente que um bom relacionamento havia surgido ao longo do tempo em que estiváramos juntos. Ela, por sua vez, achava a ocasião perfeita para contar-me quan­to estava feliz. Monika nos imaginava sentadas no sofá, jantando, do modo como às vezes fazíamos quando ela era mais jovem. Embora amasse Claude e se sentisse próxima de Joaquín, nem sempre era fácil morar com dois homens no apartamento, especialmente quando queria ter uma conversa íntima com a mãe. Assim, voltou para casa em meio à neve, feliz e ansiosa por me ver. Queria saber como eu estava, a que ponto chegava o relacionamento com Joaquín. Queria conversar sobre a América.

Quando chegou à Rue de Seine, não viu luzes acesas no apartamento. No início, pensou que eu fora executar algu­ma tarefa fora de casa ou visitar Madeleine. Logo, porém, lembrou-se de que eu nada dissera a respeito de sair e concluiu que eu devia estar lendo no quarto. Assim que entrou no saguão do prédio, Madame Morain entreabriu a porta para ver quem era e saiu em seguida. Monika percebeu que havia algo errado quando sentiu no ombro a mão da zeladora.

Graças a Deus que você chegou! Os alemães ficaram com sua mãe a tarde toda. Ela saiu com eles e só voltou há uma hora. E melhor subir imediatamente. Ela está bem, eu acho, mas nunca se sabe.

A notícia era tão inesperada que Monika nem soube o que pensar. A velha era muito bisbilhoteira e, às vezes, inventava coisas absurdas.

Tem certeza, madame?

Sou velha, menina, mas não sou cega. Suba depressa!

Monika subiu, incerta de que Madame Morain tivesse compreendido o que acontecera. Somente começou a se preocupar ao enfiar a chave na fechadura e notar que a porta não estava trancada. Eu sempre a trancava; ela não se lembrava de exceção. Monika empurrou a porta com o pé e não viu luz alguma sob a porta do meu quarto. Foi então que ela me chamou com uma voz assustada, infantil.

Eu havia reconhecido seus passos e sabia que ela estava assustada. Contudo, não conseguia responder. Não se tra­tava de crueldade ou desatenção. Eu estava simplesmente exausta. Passara mais de uma hora sentada no escuro, ten­tando recuperar a noção de mim mesma, reconstituir pelo menos a parte da identidade que me fora arrancada durante o interrogatório aplicado por Munch. Fora em vão. Sentia- me incapaz de olhar para mim mesma, a pairar no escuro acima de Ursula Krieger. Havia tão pouca semelhança entre mim e a mulher que eu fora ainda naquele mesmo dia que pensava estar sonhando, que me tomara por uma estranha. Tentara pensar no que fazer quando Monika chegasse, quando Claude e Joaquín chegassem de Marselha. Eu po­deria contar-lhes o que acontecera depois da chegada dos nazistas; que não encontraram vestígio algum do trabalho de Joaquín; que eu fora levada ao escritório de Munch. Por nada no mundo, porém, eu poderia contar o verdadeiro motivo da minha dor.

Durante esse tempo, minha desorientação fora observada pelos Homens do Relógio, que se movimentavam como pavões.

Que estupidez crer que podia nos deixar, Ursula! — disse um deles. — Olhe para nós. Admita a nossa presença. Desista.

A ausência de luz não me impedia de vê-los. Até mesmo de olhos fechados, em meio à dupla escuridão, eu os en­xergava. Não sabia o que fazer para que fossem embora. Estava pensando nisso quando Monika voltou a me chamar. Eles se encontravam todos ao meu redor, e eu tinha que responder.

Não se preocupe — eu disse. — Estou bem.

Monika acendeu a luz. Houve um pequeno milagre, pois todos fugiram agitando os braços, em meio a um ruído maquinal. Voaram, assustados com a luz, e tudo o que permanecera deles era o tique-taque do relógio na mesa do meu lado.

Ela se ajoelhou e pegou na minha mão.

Madame Morain me contou.

Estou bem — respondi, protegendo os olhos com a mão.

É verdade?

É, mas não sabem nada sobre Joaquín. Isso é o que importa.

Eu estava salva. Desde o início, devia ter me ocorrido que a história dos nazistas bastava para explicar o meu estado. Ocupada em espantar minhas visitas, não tinha pen­sado nisso. Contei-lhe tudo, menos minha conversa com Munch. Senti-me melhor ao falar, mas não tinha idéia de qual seria minha aparência.

Muito depois, em Lisboa, durante a interminável espera de que o navio partisse, conversamos a respeito dessa noite. Monika então me contou que tivera dois choques. O pri­meiro fora a notícia dada por Madame Morain. O segundo — e também o mais forte, porque não o compreendera — fora por causa de uma lembrança. Ajoelhada ao meu lado, ela recordou com extraordinária clareza um momento de infância. Vira naquela noite a mesma expressão que certa vez, quando criança, encontrara em mim. Era de manhã cedo, e, não conseguindo dormir, Monika viera ao meu quarto no momento em que eu começava a me pentear. Eu me penteava lentamente, com muito cuidado, e tanta atenção dedicada ao cabelo despertara-lhe a curiosidade. No início, ela vira somente a parte de trás da minha cabeça, as mechas de cabelo a reluzirem à luz do abajur. Depois, aproximara-se e, quando estava para falar, vira meu rosto no espelho. Ela disse que eu parecia tão distante, tão dife­rente da mãe que ela conhecia, que voltara ao quarto e ficara muito tempo deitada na cama, tentando compreender por que não conseguira dizer coisa alguma.

Lembra-se, mamãe? Havia sido, de algum modo, um noite especial?

Pensei em quanto minhas visitas ficariam satisfeitas ao ouvir isso.

Lembra-se de ter visto a mesma expressão alguma outra vez? — perguntei.

Se ela tivesse respondido "sim", eu ficaria absolutamente arrasada. Ela não se lembrava. Olhei para ela.

— Bem, então, provavelmente não era nada. Você sabe como eu às vezes sou.

Não fui à estação na manhã seguinte. Ao vê-la abrir ca­minho entre a multidão, Joaquín logo percebeu que algo havia acontecido, ele me diria depois, tanto que não se sur­preendeu ao saber do informante e da visita de Munch. Não conseguira se livrar da impressão que tivera no Château d'If. Durante toda a viagem de volta sentira-se dese­quilibrado, oprimido. No entanto, era comigo que se preo­cupava. Não lhe ocorrera que também estivesse envolvido.

Monika sentiu-se aliviada ao vê-los, mas, depois de con­tar o que se passara, mostrou-se distante, quase zangada. Não tardaram a perceber que ela estava ressentida com Joaquín; que o culpava do que eu havia sofrido. Joaquín disse a Claude que precisávamos partir. Não seria possível antecipar a data da passagem de navio, mas nada nos de­tinha em Paris e não ser umas poucas coisas que Claude poderia rapidamente resolver. O importante era partirmos. Joaquín estava convencido de que nós dois corríamos pe­rigo. Não consegui fazê-lo compreender que Munch não tinha interesse em mim.

Teria discutido mais se ele não tivesse tirado do bolso dois pacotinhos e os dados a mim e a Monika. Dentro de cada um havia um par de brincos de prata, idênticos, cada qual com uma conta azul dependurada. Coloquei o meu e passei a usá-lo sempre.

Como não pudéssemos saber se Munch voltaria ou não com seus homens, Joaquín insistiu em ficar na casa de St. Omer. Planejava voltar na sexta-feira de manhã para que fôssemos juntos à estação. Com Joaquín em segurança, no subúrbio, era-me novamente possível acreditar no nosso sonho de liberdade. Claro que o inesperado poderia surgir a qualquer momento, mas agora parecia-me muito improvável. Saber de uma data fixa, do horário de partida do trem restauravam minha confiança. A visita de Munch, no dia anterior, transformara-se para mim quase num bom presságio.

Havia muito o que fazer. Partir apenas com o que se pode carregar exige cuidadosos procedimentos. Claude pre­cisava tomar providência quanto a suas aulas, e Monika insistia em passar o dia na cada de Madame Lemonnier, com quem tinha uma dívida impagável.

Claude e Monika saíram depois do café da manhã. Joa­quín, que entrara em contato com St. Omer, quis sair com eles, mas pedi-lhe que ficasse mais um pouco. A possibi­lidade de outra visita dos nazistas, naquela manhã, era re­mota, e eu tinha coisas a dizer, coisas que pensara depois de tentar livrar-me dos efeitos da tarde passada no quar­tel-general da Gestapo.

Por incrível que pareça, eu tinha descoberto que fora grato o comportamento bárbaro de Munch. Ao voltar para casa, em meio à neve, estava perplexa com a rapidez com que meu passado fora trazido à luz. Eu vivera com ele, suportara-o por mais de quinze anos, fizera acomodações, aceitara as visitas dos Homens do Relógio. Mesmo depois da proposta de que Claude recebera, depois de achar pos­sível uma vida nova para mim, fora de Paris, eu conseguira me convencer de que poderia continuar carregando o meu segredo, que isso não afetaria a vida que eu e Joaquín le­vássemos na América.

Munch, no entanto, havia lançado uma luz nos recessos mais profundos da minha mente. Não era muito diferente do que acontecera quando minhas visitas haviam vindo, mas essa luz era mais forte e revelava uma verdade que eu havia escondido por ser incapaz de aceitá-la. Minha ha­bilidade em disfarçar as causas das minhas depressões, de­pois de meus amigos terem surgido, era semelhante à do artista que, diante da tela, sem precisar pensar, sabe o que precisa fazer, como o espaço deve ser dividido, quais cores as formas ganharão. Se a guerra houvesse de repente ter­minado e pudéssemos retornar à vida de antes, sei que não teria coragem de trazer à tona o que eu vivera no Seven Dolphins. A guerra, porém, não estava acabando. Faltavam poucos dias para partirmos para o exílio, e eu ainda era uma pobre refugiada da velha Berlim.

Pedira, portanto, a Joaquín que ficasse um pouco, dis­posta a correr o risco de que Munch aparecesse de novo, disposta até a arriscar sua segurança, para que eu pudesse unir os dois lados da minha vida. Somente então podería­mos partir como dois seres completos, sem que o passado estivesse encoberto pela sombra da falsidade.

Fazia muito frio. Fiz um substitutivo de café e o fomos beber na sala de estar. Ele deixara sobre a mesa as coisas que levaria para a casa de Jacques, bem como o original das Cartas. Queria escrever sobre Munch e Valdés. Caso aprovasse o texto, providenciaria que fosse publicado na semana seguinte. Parecia-lhe apropriado que a última das Cartas escrita na França falasse deles. Joaquín comentou em detalhes o que se propunha a fazer.

Eu o ouvi com atenção, mas, ao mesmo tempo, tentava encontrar um modo de começar. O que eu tinha a dizer era como uma gravidez que tivesse levado anos para chegar ao fim. Estava assustada, cheia de dúvidas, não quanto ao acerto da minha decisão, mas quanto a encontrar as palavras que expressassem exatamente o que precisava ser dito. Sim, eu estava ciente de que poderia perdê-lo. Embora acredi­tasse na sua compaixão, havia o risco de que eu tocasse seu coração num ponto que me fosse desconhecido; de que eu despertasse em Joaquín um medo latente que ele não pudesse controlar, assim como acontecia comigo quando minhas visitas chegavam. No entanto, eu não podia mais impedir o que estava para acontecer, do mesmo modo que não pudera impedir Monika de vir ao mundo depois de iniciadas as dores de parto que me dilaceravam as entra­nhas. Não, eu não podia impedir, e isso de certo modo me reconfortava. Se o que eu dissesse não matasse o sentimento que ele tinha por mim, partiríamos da França em quatro dias. Parecia-me que nossa nova vida, a dele e a minha a de Claude e de Monika, já era visível no horizonte, que novamente era nítida a forma do meu coração, como o sol a erguer-se em pleno oceano.

O que aconteceu em seguida eu não tinha previsto. Joa­quín, que acabara de falar das Cartas, tentava explicar-me a premonição que tivera no Château d'If. Quando compreendera que eu corria perigo, sentira uma súbita fraqueza, como se estivesse doente.

Eu queria ajudá-la, mas nada podia fazer. Parecia um sonho — concluiu.

Olhei para ele, e foi como se todo o medo tivesse me deixado naquele instante. Quis tê-lo junto de mim para que nosso abraço pudesse responder à apreensão que ele cla­ramente continuava a sentir. Queria estar com ele uma úl­tima vez, se, depois do que eu dissesse, fosse esse o caso. Então levantei-me, aproximei-me de Joaquín, pus as mãos em seu rosto e beijei-o.

Está frio aqui — eu disse.

Já estávamos acostumados um ao outro, sabíamos instintivamente agradar, ter a reação certa, esperada. Dessa vez, porém, minha expectativa em relação ao ato do amor era diferente. Não fui nem mais nem menos apaixonada do que antes, tampouco apressada ou langorosa. Havia, no entanto, algo de elegíaco em meu modo de fazer amor, como se meu corpo preparasse meu coração e minha mente para o que pudesse acontecer.

Depois, sentei-me, recostei-me na cabeceira da cama e puxei os cobertores.

Peguei na mão de Joaquín e entrelacei meus dedos nos dele.

Por favor, lembre-se de que somos assim — pedi-lhe.

Ele me olhou, intrigado, como se eu estivesse fincando, mas logo viu que eu falava a sério.

Claro — ele respondeu. — Mas por quê?

Já lhe conto. Antes, prometa lembrar-se. Vou lhe dizer algo que você não vai querer ouvir. Vai doer, mas não tenho escolha. Compreenda, Joaquín. Depois você pode decidir se isso muda alguma coisa entre nós. Talvez sim, mas não posso mais me calar. Não podemos ficar juntos a menos que eu fale.

Nada é assim tão importante, Ursula.

Há algo que sim.

Seu olhar então se alterou, de modo tão sutil que alguém que não conhecesse bem não teria notado. Eu, porém, per­cebi, do mesmo modo que vejo as nuvens ensombrecerem a água.

Foi por isso que me mandou embora? — ele pergun­tou.

Na época eu não conseguia falar disso. Agora precise. Lembra-se de quando lhe falei dos golfinhos brancos? Havia outros, mas não brancos. Eram cinzentos, golfinhos que nadavam num cartaz, numa certa rua.

A história veio lentamente, cheia de pausas, como se eu tivesse que lutar para tirá-la da garganta, puxá-la à super­fície áspera de uma língua indócil, fazê-la ultrapassar a boca. No início, senti-me sem fôlego, e isso deve explicar a platitude, a ausência de sentimento do meu tom de voz, que soava como o de alguém que sofresse de um irreme­diável dano emocional. Minha voz parecia vir de um antigo toca-discos ao qual não tivessem dado corda suficiente. O tom baixo, doloroso, logo, porém, se acelerou, ganhou in­tensidade, até que finalmente me reconheci a falar. Pouco antes disso, Joaquín se debruçara sobre mim e tocara meus lábios, como se dissesse que eu não precisava prosseguir. Eu, porém, sacudira a cabeça e dissera que não havia outro jeito. No momento seguinte, eu o levava até a velha Berlim e, pegando em sua mão, eu me sentia a conduzi-lo por aquelas ruas, receosa de que a qualquer momento ele se levantasse e me deixasse. Eu sabia que meu estoicismo, o comentário quase incidental de que ele poderia decidir de­pois o que fazer não passavam de bravata. Eu me agarraria a ele como pudesse.

Assim que lhe contei o que era o Seven Dolphins, senti-me descontrair, aliviada. A tensão se dissolvera para abrir caminho para a verdade. Contei-lhe tudo, vi tudo de acordo com a lembrança que eu, ao longo de anos, carregara. Em certos momentos, surpreendi-me com o que fizera de certas cenas e pessoas. Acima de tudo, vi que havia transformado os Homens do Relógio em figuras que mal se assemelhavam ao original. Agora eles eram apenas homens — alguns bons, alguns corruptos — que vinham satisfazer comigo e com outras mulheres seus desejos de luxúria. Ao descrevê-los, ouvi suas vozes, do modo como soavam quando eles vi­nham até mim; vozes maliciosas, insinuantes, ameaçadoras ou persuasivas. Pareceu-me que se tornavam mais fracas à medida que eu prosseguia; que seu poder se instaurara com o meu segredo, meu silêncio.

Lembrei-me de todos. Contei que, no vão esforço de distanciar-me, lhes dera números em vez de nomes, reinventando-os em figuras humanas de relógios de torre. Contudo, não falei a respeito de Um, Dois, Sete, Oito ou Nove porque isso teria sido capitular a uma franqueza que eu não mais sentia. Não, restituí-lhes os nomes, e nem ao menos me surpreendi com o fato de lembrá-los depois de tantos anos. Os números haviam sido véus. Não os poderia esquecer antes de pronunciá-los em voz alta.

Lembrei-me de Klaus Schloeger, conhecido no Seven Dolphins como "O Choramingas". Ele se aproximava de todas nós como um animal voraz, ávido e ardente. Depois de satisfeitos seus desejos, ele implorava, com lágrimas nos olhos e um gemido na voz, que nada contássemos a sua mãe.

Lembrei-me de Eric Sturmer, um banqueiro gordo, de barriga avantajada e sem pêlos. Ele sempre me pedia que eu dissesse que o amava, prometendo pagar em dobro por essas palavras. Quando eu não fazia isso, ele pagava assim mesmo, dizendo que, quando eu o conhecesse melhor, veria o homem maravilhoso que ele era.

Lembrei-me de Dieter, rapaz de uns dezessete anos que sempre se espantava com o fato de estar na cama com uma mulher e parecia nunca compreender que não éramos ape­nas receptáculos de seu descomedido desejo.

Lembrei-me de outros que não identifiquei e, ao abrir meu passado para Joaquín, ouvi portas e janelas se fecharem ruidosamente, vi os Homens do Relógio caírem da alta posição a que minha angústia, meu sentimento de culpa os haviam conduzido. Chorei porque sabia que era a última vez, que eles nunca voltariam. Chorei porque tivera que esperar tanto tempo para lhes dar nome, porque descobrira que essa fora, o tempo todo, a chave da minha libertação.

Joaquín não se abalou. Depois, perguntei-lhe por que rea­gira assim, pois parecia-me impossível que, em algum lugar da mente, ele não estivesse perplexo. Ele não estava. Já sabia o que eu ia dizer, embora o como e o porquê disso lhe fossem um mistério. No máximo, conseguia associar tal mistério à premonição que tivera no Château d'If e a Munch.

Ouvi-o com muita atenção, à espera de uma palavra ou de um gesto que revelassem algum distanciamento entre nós, mas nada notei. Ao contrário. Ele me disse algo que me convenceu de que havia passado o perigo que eu tanto temia, o de nos separarmos.

— Só agora compreendo o que significavam os golfinhos brancos, Ursula, e me pergunto se você compreendia.

Eu não tinha idéia do que aconteceria em seguida, mas devo dizer que isso não me importava. Às vezes ele falava de um modo sonhador a respeito de coisas que lhe vinham à imaginação. Parecia-me um desses momentos quando, de repente, ele disse:

— Eu os tinha visto como criaturas de sonho. Agora per­cebo o que de fato eram: magia sua. Eles surgiram como personagens de conto popular e permitiram que você escapasse.

Foi o único comentário que fez a respeito da minha his­tória. Depois foi como se eu não tivesse falado com ele naquela manhã. Eu sabia, porém, que Joaquín não estava ignorando o que eu dissera. Isso já entrara para o passado, e sua compreensão daquele período da minha vida estava ligada às esguias criaturas brancas que me conduziram para longe de tudo o que eu não podia suportar.

Desejei que houvesse um modo de passarmos o dia jun­tos, mas já era quase meio-dia, e Joaquín insistia em dizer que precisava sair para encontrar-se com St. Omer. Depois que ele saiu, eu o fiquei observando através da vidraça contornada de gelo, até vê-lo sumir ao longo da rua. O gelo da vidraça era de um azul pálido. Pensei nas planícies ondulantes do sul da França, nas sombras dos Pireneus no ponto em que as montanhas encontravam o mar e, em se­guida, no próprio mar, o mesmo no qual agora navego. Em poucos dias eu o veria. Já havia um frescor no ar rançoso do apartamento, um aroma de algas e sal, gritos distantes de gaivotas ao vento.

 

Joaquín e Jacques passaram aquela tarde revendo os pla­nos que havíamos feito para a partida. Estavam de humor sombrio, pois muito provavelmente não voltariam a se ver. Nenhum dos dois falou nisso até terminarem o jantar, quando, de modo brusco, Jacques disse que sentiria falta do amigo.

A guerra vai acabar, Wolf, mas o exílio costuma tor­nar-se algo de permanente.

Então vá à América —- retrucou Joaquín. — Vá visitar-me em Pacific Palisades.

Você me conhece bem, Wolf. Estou velho demais para viajar. Teremos que ser heróicos correspondentes.

Depois do jantar, Elizabeth deixou-os à sós com uma garrafa de calvados, e os dois conversaram a respeito de trabalho até bebê-la toda. Quando Jacques pegou a garrafa vazia e perguntou se devia abrir outra, Joaquín respondeu que tinha bebido bastante. Além de cansado, Jacques não estava de bom humor, e Joaquín sabia que não seria bom beberem mais.

Embora fossem velhos amigos, raramente conversavam sobre o que os aproximava. Como a maioria dos homens, teriam ficado encabulados com uma aberta demonstração de emoções. Isso, porém, havia mudado. Desde que me deixara ao meio-dia, Joaquín estivera pensando no que eu lhe contara. Estava profundamente comovido, e o fato de saber que ele e Jacques teriam apenas mais alguns dias juntos rompia suas reservas.

Joaquín agradeceu novamente ao amigo e a acolhida em casa.

Tolo! O que acha que eu faria? — respondeu St. Omer.

Olharam-se sem saber o que fazer.

Vou sentir sua falta — disse finalmente Joaquín.

Abraçaram-se. Jacques recuou um pouco, logo depois, mão nos ombros de Joaquín.

Tome cuidado, Wolf. Só ficarei tranqüilo depois que receber uma carta da Califórnia.

Assim terminou o dia dos dois, com um demorado e inevitavelmente melancólico reconhecimento de amizade. Exausto com minha confissão e com a dor de deixar St. Omer, Joaquín caiu na cama e dormiu de imediato.

Eu tinha passado o dia sozinha, pensando na transfor­mação pela qual passara. Já me parecia que éramos pessoas diferentes das que havíamos sido naquela manhã. Não que­ro dizer que estivesse obcecada por nossa conversa, somente que minha percepção do dia vinha através da paz que ela me trouxera. Eu não sabia o que esperar, talvez uma en­xurrada de pensamentos, apreensões, lembranças de opor­tunidades perdidas de enfatizar algum ponto, modificar ou­tro. Nada disso, no entanto, aconteceu. Meu alívio, meu cansaço eram demasiado grandes para eu ficar relembrando tudo. Deve ser assim com todo mundo que passe por tamanha purgação. Então dormi; pensei em Monika e Ma­dame Lemonnier; em Claude, na reunião, e, depois, no es­critório, decidindo o que levar para a América.

Ao meio-dia, nuvens negras ameaçavam neve, e a Rue de Seine estava deserta. Lembro-me de ter olhado para a rua com um sentimento de gratidão. Eu me sentia feliz de estar sozinha naquele momento, mas agora me pergunto o que teria acontecido se, inquieta, eu tivesse resolvido sair para uma caminhada. Não se trata de especulação ociosa. Todo mundo é capaz de lembrar-se de certos dias em que algo importante ocorreu, modificando nossa vida: um nas­cimento, uma morte, uma ascensão ou um declínio súbitos da sorte. Minha confissão e a reação de Joaquín com certeza faziam daquele um dia importante, mas era mais que isso. Tenho sido muitas vezes forçada a pensar naquele dia e sempre tenho a impressão de que, caso houvesse saído do apartamento para ir, digamos, até a Basílica de Sacré-Coeur, teria tido algum vislumbre das mudanças pelas quais logo passaríamos. Como, porém, fiquei em casa, posso somente recriar, desenvolver a partir do que mais tarde saberia por meio de St. Omer e das histórias de jornais. Embora hoje eu disponha de fatos para me orientar, eles são incompletos. Devo, portanto, novamente contar com minha imaginação, como fiz com Guy Lafont. O que vejo é tão vivido e preciso como seria se tivesse olhado das alturas de Montmartre e visto dois jovens nazistas e abotoar os respectivos sobre­tudos, sair do quartel e percorrer as ruas cobertas de gelo, a caminho da missa na Notre-Dame.

Imagino-os simples rapazes do campo, religiosos que nunca pensaram profundamente em tal assunto. Imagino-os também gratos por tem encontrado alguém que comparti­lhasse suas crenças. Sentem-se deslocados em Paris, tão di­ferente das cidadezinhas do interior de onde vieram, e, sem­pre que estão juntos, alegram-se em contar histórias a res­peito de suas casas e famílias.

Esses rapazes, Josef e Otto, acreditam no Reich, embora, em segredo, sintam-se aliviados por não estarem em com­bate. Quando falam da possibilidade de serem enviados à frente de batalha, ambos insistem em dizer que estão dis­postos a matar pela pátria, embora nunca digam nada quan­do a morrer por ela. No fundo de seus corações, temem a morte. Para Josef, a morte é a imagem do avô deitado no caixão. Para Otto, a máscara que vira quando tinha dez anos durante uma comemoração da Walpurgisnacht.

Nessa manhã seus pensamentos estão longe da morte. O padre os absolve de seus pecados. Josef confessa o desejo de ir a um bordel; Otto, ter desejado uma balconista que lhe inspirara um ato de amor solitário. Depois de falarem de seus desejos no escuro do confessionário, ouvem, livres dos pecados e gratos pelas penitências, um outro padre entoar a missa em latim, espalhando pela catedral conforto para o espírito e promessas de alívio.

As nuvens haviam se dispersado no leste, depois de ter­minada a missa. Como não quisessem voltar à guarnição, os dois decidem, de repente, caminhar até os jardins de Luxemburgo e procurar um bom café para o almoço. Acos­tumados a passar longos dias de inverno ao ar livre, en­chem-se de superioridade juvenil em relação às pessoas que, curvadas, voltam às pressas para casa. Atravessam para o lado ensolarado do Boulevard St. Germain. Está muito frio para caminharem pela sombra. Chegam ao parque. Se fosse verão, escolheriam um banco e ficariam conversando até sentirem fome, mas constatam que o frio é ainda mais forte que nas ruas. Além disso, as árvores sem folhas compõem um cenário austero, melancólico. Resolvem então acelerar o passo e antecipar o almoço.

Ao chegarem do outro lado do parque, avistam o Obersturmführen Munch, que parecia sentado atrás de um ralo arbusto, ao pé do esqueleto de uma árvore. Espantado, Josef olha para Otto e aponta para o que acabam de ver. Seguem adiante, temerosos e, ao mesmo tempo, felizes por terem a companhia um do outro.

Munch, na verdade, está apoiado no tronco da árvore. Ao se aproximarem dele. Josef cutuca o braço de Otto.

Talvez só esteja bêbado — ele observa.

Não — sussurra Otto. — Veja.

As pernas nuas de Munch parecem dois grandes peixes sobre a neve. A calça e a roupa de baixo encontram-se ao lado, empilhadas; e o quepe com viseira, da SS, pousado no colo, de modo quase jovial. Munch parece bocejar. No entanto, quando Josef e Otto se aproximam ainda mais, notam que sua boca se mantém aberta por causa de um galhinho colocado entre os dentes de cima e de baixo. Mais tarde, Josef haveria de contar aos soldados da guarnição que a boca de Munch parecia congelada num eterno grito, um grito silencioso. Sua língua havia sido cortada.

Tão logo Otto compreende a situação, ajoelha-se e passa violentamente mal, gemendo e vomitando. Josef mantém o olhar fixo, incapaz de acreditar no que vê. Somente pode conceber nos pesadelos uma cena dessas e, como num pesadelo, não consegue se mover. Sabe que precisa correr até o prédio mais próximo e telefonar para seus superiores, mas sabe também que para Munch mais nenhuma ajuda é necessária. Assim, depois de abaixar-se e dar um tapinha no ombro de Otto, gesto que apenas faz aumentar os ge­midos do colega, Josef se aproxima do pesadelo.

As pernas de Munch estão abertas como uma forquilha de árvore. Suas botas reluzem mesmo sob a luminosidade do céu encoberto. Josef não olha para dentro da boca es­cancarada, sem língua. Toda a sua atenção está voltada para o quepe pousado entre as pernas do oficial. Abaixa-se de­vagar, como num sonho, com medo do que está para ver, mas incapaz de deter o movimento da mão que se aproxima da ponta arqueada do quepe. Olha somente depois de levantar-se.

Convencido de que Munch fora castrado ou que lhe ti­vessem cortado o pênis, Josef quase suspira de alívio ao ver intacta a genitália, tão normal quanto a sua própria. Nota, no entanto, que um barbante grosseiro, amarrado à coxa, a puxa para o lado. Ao ver o que haviam feito com Munch, Josef junta-se a Otto, caindo de quatro na neve. Fecha os olhos e sente a náusea emergir. A imagem de há pouco ficara gravada de modo indelével em sua mente. A parte mais funda entre as nádegas de Munch assomava-se sombria como uma caverna, e um pedaço de carne gelati­nosa, enfiado no ânus, saltava para fora, numa paródia san­grenta de criança que mostra a língua.

St. Omer lia tanto os jornais da Resistência quanto os cooptados pelos nazistas.

Acho divertido ler as mentiras que o porco é capaz de inventar — ele disse certa vez.

Tinha o hábito de ir ao meio-dia a uma banca de jornais, perto de casa, e foi o que fez no dia seguinte. Voltou vinte minutos depois, murmurando algo consigo mesmo.

Leia isto — disse ele, entregando o jornal a Joaquín. — Depois conversamos sobre o que fazer.

A história da morte de Munch estava estampada na pri­meira página. Não havia dúvida de que a Resistência fosse a responsável, e o Alto Comando emitira a ordem de que dez reféns fossem mortos em represália.

Houvera muitos assassinatos ao longo do ano anterior. Na maioria das vezes os nomes dos nazistas não era men­cionados, mas o caso de Munch ficara muito evidente. Joa­quín se alegrou ao ler o nome dele. Sentira-se ultrajado com o que Munch fizera comigo, odiava-o por causa da humilhação a que me submetera. Tentara visualizá-lo a par­tir do que eu dissera, mas Munch permanecera um vulto sem rosto em sua imaginação, e de algum modo isso au­mentava sua raiva. Ao mesmo tempo, a violência perpe­trada contra Gerhard Munch ia além da sua compreensão, e ele chegou a sentir repulsa, até mesmo sentimento de culpa, depois da reação inicial. Seria preciso algo pior que os nazistas para brutalizá-lo, e esse é mais um motivo para eu tê-lo amado.

Assim que Joaquín pousou o jornal, St. Omer pegou-o, amassou-o e jogou-o no recipiente de carvão.

Foi esse que interrogou Ursula?

Sem dúvida — respondeu Joaquín.

Nesse caso, Wolf, acho que vocês precisam partir imediatamente. Eles não podem ignorar o caso, não quando se trata de alguém da importância de Munch. Eles vão pro­curar por toda parte, e é lógico que vão verificar as inves­tigações recentes.

St. Omer tinha razão, é claro, e Joaquín amaldiçoou-se por ter vindo morar conosco. Todos corríamos perigo por causa dele.

Ouça — disse St. Omer. — Vou conversar com eles.

Não. E responsabilidade minha.

Não, Wolf! Provavelmente o estão procurando. E ób­vio que o informante lhes deu uma descrição. Sua cicatriz não ajuda em nada. Agora vamos resolver isso. Sou eu quem sai às ruas.

St. Omer Chegou duas horas depois, preparado para con­tar-nos o que havia acontecido, mas também nós havíamos lido os jornais. Joaquín passaria aquela noite com ele. Na manhã de terça-feira, tão logo cessasse o toque de recolher, os dois voltariam para que fôssemos à Gare d'Austerlitz. A idéia era que, em cinco, ficaríamos mais parecidos com uma família.

Claude, Monika e eu passamos o resto do dia fazendo as malas. Foi um dos dias mais longos da minha vida. Pai­rava no ar gélido a incerteza quanto ao que pudesse acon­tecer. Parecia-me possível até tocá-la com a mão. Depois do anoitecer, tudo ficou pior. De vez em quando, espiáva­mos a rua, para ver se alguém vigiava o apartamento. Não víamos ninguém, mas isso não nos encorajava porque os nazistas podiam surgir a qualquer momento. Não nos sen­tíamos seguros quando a nosso plano, não nos sentíamos seguros quanto a coisa alguma. Fomos para a cama depois da meia-noite, mas dormi de modo intermitente e, sempre que caía no sono, voltava ao mesmo sonho. Eu via Munch no parque, rejubilando-se com a morte e a mutilação. Em seguida, para o meu horror, ele se levantava lentamente e, movendo a boca sem língua, frustrado por não poder gritar meu nome, se aproximava de mim, cambaleante, cheio de ódio no olhar.

Esse sonho era tudo de que me lembrava da noite anterior à nossa partida. Depois, seu espaço escuro foi sendo preen­chido com um quadro mais completo do que aconteceu na esteira da morte de Munch. Nossos vizinhos nunca entra­vam em meus pensamentos. Ao que eu soubesse, nada ha­via acima do nosso teto além do gélido ar da noite e do céu sem lua. Agora, porém, sei que havia algo mais. Sim, tive tempo de compreender o que havia acima. O pensa­mento tem a insistência de uma dor de dentes, de uma dor no ventre, de uma febre que não cede.

Lafont andava de um lado para o outro, quebrando a cabeça para compreender por que caíra em desgraça. Co­meçara a beber assim que lera a respeito de Munch. Ao ver o seu estado, Adrienne pediu uma explicação. Ele, po­rém, a ignorou e encheu o copo até a borda. Já um pouco embriagado, tomou a morte de Munch como uma desonra pessoal e sentou-se à mesa arranhada como se fosse o único cliente de um bar. Adrienne fazia limpeza e, de vez em quando, assoprava os dedos para aquecê-los. Naquele mo­mento, para Lafont, ela não passava de uma faxineira de bar que o fazia se sentir ainda mais só. Lembrou-se de como era seu estado de espírito no La Belle Reine, alguns dias antes, na companhia de Vautrin. Sentiu-se humilhado. Vautrin, por certo, teria comentado com os colegas sua ge­nerosidade, o modo como se portara, e eles estariam aguar­dando novidades. Em poucas semanas, um mês no máximo, já saberiam. Lafont não podia suportar a idéia da iminente humilhação.

Mais tarde, ao cair na cama, sonhos inquietantes lhe perturbariam o sono. Ele alternadamente vivia num hotel elegante da Margem Direita e num apartamento bem mais pobre do que aquele onde morava. Os colegas de trabalho o tratavam como rei para, em seguida, rirem-se dele, apontarem-no, ridicularizarem-no. Lafont queria fugir, mas eles o cercavam, acusavam-no de mentiroso, pretensioso.

Acordou às cinco da manhã, transpirando, com uma ter­rível dor de cabeça. Cutucou Adrienne.

— Pegue uma aspirina e um copo de vinho — ordenou.

Engoliu a pílula e bebeu todo o vinho, apesar do gosto ruim. Sabia, por experiência, que esse era o único modo de tratar uma ressaca daquelas. Passou pelo corredor, para urinar. Sentiu-se melhor depois de esvaziar a bexiga, mas despertara completamente. Assim que se lembrou do mo­tivo da bebedeira, lançou-se numa invectiva contra Munch por ele ter morrido. Tinha certeza de que os alemães haviam descoberto algo a respeito do misterioso vizinho, certeza também de que Munch pretendia entregar-lhe uma gene­rosa recompensa, talvez até convidá-lo para ser seu espião na vizinhança. Coisas do gênero aconteciam o tempo todo. A perda era tão dolorosa que ele se serviu de mais bebida, certo de que estaria sóbrio na hora de ir para o trabalho.

Lafont estava na cozinha. Tinha começado a nevar. Ele foi espiar pela janela e, nesse momento, viu Monika na calçada. A caminho do trabalho, ele pensou. Imaginou seus seios a moverem-se de modo rítmico enquanto ela batia massa. A fantasia desenrolou-se agradavelmente até que nos juntamos a ela. Lafont então se deu conta de que es­távamos partindo. Quando Joaquín e St. Omer começaram a caminhar, ele bateu à janela.

Parem — ele gritou.

Adrienne ergueu-se, sentou-se, ereta, na cama. Ele correu à porta e desceu as escadas, praguejando pelo caminho. Ao passar pela porta de Madame Morain ouviu-a pergun­tar:

O que é isso? Quem está aí?

Ignorou-a, abriu a porta da rua e saiu correndo na nossa direção.

Traidor! — ele gritou. — Sei que você é.

Parou apenas quando Joaquín se voltou para ver quem era.

Vamos! — disse St. Omer, acelerando o passo.

Eu, porém, tinha que olhar. Lafont estava visivelmente bêbado, ainda de pijama. Tremia de frio e de raiva.

Ursula! — sussurrou Joaquín. — Vamos!

Eu não podia. Percebi imediatamente que aquele era o rato, o que morava no sótão, mas não pude acreditar. Não sei como imaginara que ele fosse. Talvez alto e magro, de olhar inquieto. Velho e amargo. Um dândi efeminado que vive a praguejar. Podia ser qualquer um, menos aquele ho­mem atarracado, cuja barriga peluda saltava da blusa desabotoada do pijama. Era, porém, Lafont que pusera Munch em nossas vidas e nos forçava a partir. Eu o odiava. Tive pena dele. A emoção irrompeu em mim num acesso de amargo riso. Pareceu-me absurdamente cômico que fosse ele o informante, aquele homem cujos olhos faiscavam ao ver minhas nádegas quando eu subia a escada. Ele era tão absurdo quanto a minha lembrança da velha Berlim.

Meu Deus, Joaquín, é ele! — exclamei, caminhando apressadamente ao seu lado. — Por pouco você não é descoberto, e por causa dele!

Pare! — Lafont gritou mais uma vez, no momento em que eu olhava para trás, por cima do ombro.

Ele nos viu dobrar a esquina e deve ter ficado ali um pouco mais, ignorando o frio, tentando descobrir o que fazer. Sua mente, porém, estava vazia. Lafont sabia que sua recompensa sumira em meio à neve.

Ao voltar ao apartamento, tirou o pijama molhado e pu­xou uma gaveta da cômoda; com tanta força que ela veio ao chão. Ele, porém, não se importou com isso. Vestiu ra­pidamente outro pijama e o roupão. Tiritava de frio quando foi buscar outro conhaque. Adrienne estava na cama, cho­rando.

Não compreendo — ela disse. — O que aconteceu?

Em seguida, ao vê-lo com a garrafa, perdeu a paciência.

Não! Assim não vai conseguir trabalhar. Vão despe- di-lo. O que será de nós?

Lafont lançou-lhe um olhar malévolo. Queria que ela fos­se Monika. Sob um lenço desbotado, enroladores de cabelo avolumavam a cabeça de Adrienne.

Cale-se. Faço o que quiser — ele retrucou.

Bebeu o conhaque e serviu-se de mais uma dose. Depois, sentou-se à mesa da cozinha de costas para a janela, para a neve traiçoeira. Nossa partida era a prova de que ele tinha razão. Suspeitara o tempo todo de Joaquín. Não era tolo. Bem que merecia algo, algum reconhecimento por sua perspicácia. Munch morrera, mas havia outros na Gestapo. Ele poderia contar-lhes que fugimos logo depois de levan­tado o toque de recolher.

Naquela manhã, não foi além disso em seus pensamen­tos. Uma hora mais tarde, Adrienne o ajudava a arrastar-se para a cama, onde, antes de adormecer, murmurou qual­quer coisa quanto a merecer ser pago.

Pelo quê? — Adrienne perguntou com sarcasmo. — O que você merece?

Lafont dormiu como uma pedra até pouco depois das três da tarde, quando a voz estridente de Adrienne, acom­panhada de outras vozes, vozes masculinas, pareceu-lhe, penetrou sua bebedeira. Rolou na cama e disse à mulher que se calasse. Ela o sacudiu violentamente.

Deixe-me em paz — resmungou Lafont, com um aceno de mão.

Sentiu um golpe na orelha, e sentou-se com um terrível zumbido na cabeça. Foi então que ergueu o olhar e viu, de punho cerrado, um soldado alemão, pronto para golpeá-lo novamente.

Imagino que, a partir da morte de Munch, numerosas patrulhas nazistas tenham saído para investigar aqueles cu­jos nomes constassem de seus arquivos. Lafont — e também outros — foi levado à Rue des Saussaies, onde três homens o interrogaram a respeito da carta, insinuando que ele fosse membro da Resistência. Queria chorar por causa da ressaca e da dor no ouvido. Sua audição fora afetada, e ele implo­rava por um médico. Depois, responderam. Primeiro a ver­dade.

Lafont declarou que apoiava o governo de Vichy e des­creveu como havíamos fugido. Riram-se, porém, de sua história.

Isso não é prova alguma — questionou um deles.

Lafont fez o sinal da cruz.

Deus é minha testemunha. Eu os vi partir. Eram todos da Resistência. Eles mataram Munch, sei disso.

Os nazistas não acreditavam nem duvidavam. Às vezes a verdade demorava um pouco, exigia alguma persuasão, mas estavam preparados para esperar. Tinham certeza de que descobririam a verdade de Lafont e estavam determi­nados a fazer de cada um exemplo naquela investigação.

Lafont foi preso na companhia de muitos outros, e com isso chegou ao fim a pouca sorte que lhe restava.

Uma falha administrativa levou-o a ficar num grupo de detentos que se destinava aos campos de trabalho forçado. Sempre clamando inocência, era incapaz de acreditar na armadilha que lhe preparara o destino. Transferiam-no de uma cela a outra, alimentavam-no uma vez por dia com uma rala e repulsiva sopa de aveia e, por fim, transportaram-no a uma estação ferroviária, na companhia de dezenas de homens, mulheres e crianças. Ao ser tocado para dentro do vagão, mais uma vez clamou inocência e levou uma coronhada de rifle na cabeça. Seu ouvido machucado doeu, zumbiu e ficou surdo. As vozes e gemidos dentro do vagão, o estalido contínuo das rodas chegavam-lhe apenas pelo ouvido bom, aumentando-lhe o sofrimento e fazendo sua fúria crescer ainda mais. Por que o levavam?, ele insistia em perguntar. Por fim, também ele se calou, caindo num meio-sono intermitente, do qual despertou com o ruído ás­pero da porta que se abria. Ao pisar na plataforma, ficou cego com a luz dos holofotes.

Nunca mais se soube de Lafont. Imagino somente a imen­sa escuridão em que ele teria caído, gritando, clamando inocência, voz perdida em meio aos gritos de outros, enquanto as portas de uma enorme sala atrás dele se fechavam.

Esse terrível reconhecimento do fim de Lafont somente agora vem a mim. No momento em que seguíamos às pres­sas pela rua, ele era simplesmente o rato do sótão, cuja imagem odiosa permaneceu comigo até tomarmos o metrô. Depois, por necessidade, porque começava a acontecer aquilo que eu tanto esperara, esqueci-me dele e olhei adian­te.

Nevava muito quanto saímos da estação Austerlitz. Uns cinco centímetros de neve se acumulara nas ruas, e, ao che­garmos à estação de trem, estávamos salpicados de branco.

O austero teto arqueado parecia condensar todo o frio. As pessoas fechavam bem os casacos, assopravam os dedos avermelhados, crianças choravam, mas isso não importava. A caminho da plataforma do nosso trem, vimos as luzes de seus vagões a brilhar como enfeites de árvore de natal, acenando com mais promessas do que imaginara possível, pois havíamos sacudido de nós não apenas a neve ao en­trarmos na estação. Havíamos também deixado grande par­te do nosso medo e da nossa apreensão no pavimento sujo, onde continuavam a se dissolver, formando inofensivas po­ças em que as pessoas desatentamente pisavam, a espalhá- las. Chegamos ao nosso vagão. Não estávamos ainda a sal­vo, totalmente livres de perigo, mas logo estaríamos.

St. Omer tinha os olhos vermelhos e impacientemente os secava, desdenhoso das lágrimas. Embaraçava-o a emo­ção demonstrada. Percebi que seria mais fácil para ele e Joaquín se despedirem se tivéssemos embarcado. Pequei então Claude e Monika pelo braço e os fui levando, adiante de mim, para dentro do trem. Joaquín somente entrou no vagão depois que o agudo apito do condutor soou sob as vigas de ferro do arco do teto.

Pela décima vez naquela manhã, verificamos nossos passaportes e vistos. Em seguida, revimos o nosso plano, questionando, explicando, esclarecendo-o, certos de que nada fora negligenciado. Estávamos preparados para atravessar a fronteira. Um amigo de Joaquín, do Clube de Lorca, co­nhecia Port Bou e a região ao redor. Havia crescido em Gerona. Semanas antes, ele fizera um mapa detalhado da área, bem como um diagrama da estação. Sabíamos de cor cada detalhe, as distâncias relevantes, a extensão de terra ao longo da Costa Brava. Se fosse necessário, saberíamos evitar a estação, atravessar o campo e pegar o caminho da Espanha, através das montanhas. Noite após noite, havía­mos perguntado "E se?"; colocado a cabeça para funcionar em conjunto, até encontrarmos as soluções para as mais implausíveis contingências. Havíamos nos tornado estudio­sos da fronteira, nossas mentes eram um arquivo coletivo de Port Bou; arquivo que consultávamos mais uma vez en­quanto aguardávamos o estalido do engate dos vagões, o primeiro arranco do trem que nos poria a caminho. Eu já podia ver os trilhos serpenteando no campo, ciente de que, cada quilômetro adiante de Paris me fortaleceria, me per­mitiria respirar mais livremente. Eu já podia sentir o ar salgado, mais pungente do que quando o imagináramos semanas antes; ver o sol a incidir na água do porto de Lisboa e os robustos marinheiros a soltar as amarras do navio.

Joaquín estava ao meu lado no assento da janela. Claude e Monika, de frente para nós. Sorriram quando o trem deu um mínimo avanço. St. Omer apareceu à janela, mostrando o polegar erguido, e foi ficando para trás, na plataforma.

Vou sentir falta dele — disse Joaquín.

Todos vamos — respondeu Claude. — Talvez algum dia ele vá à América.

Joaquín estivera tenso desde que eu o vira naquela ma­nhã. Agora já relaxava, de olhos fechados. A barba lhe dava uma aparência patriarcal, quase rabínica, e aprovei o dis­farce. Nem sinal do homem bem barbeado que eu conhe­cera. Em seguida, ele tirou os óculos de aro preto e guar­dou-os na minha mala.

Monika falava a Claude do presente de despedida que Madame Lemonnier lhe dera, sua máquina fotográfica preferida, uma Rolleiflex. Estava feliz a explicar suas funções, e a energia deles fez-me sentir velha. Olhei para Joaquín, um pouco surpresa com o fato de ele deixar definitivamente Paris sem vê-la ir ficando para trás. Verdade que havia muito pouco para se ver, por causa da tempestade de neve. Além disso, a cidade inteira estava em sua cabeça. Pergun­tei-me se deveria também descansar. Nada havia de inte­ressante nos sombrios edifícios de tijolos ao longo da linha.

Houvera muita ansiedade, muito frenesi de preocupação e preparativos, mas eu não estava disposta a ceder ao cansaço antes de chegarmos ao campo. A neve caía em rajadas, às vezes bloqueando a visão, às vezes abrindo espaços em que apareciam uma cornija, uma chaminé, árvores. A cidade estava agora ordenada pelo estalido das rodas, o agradável balanço do trem. Surgia de repente além do véu de neve, abrindo-se como um portão invisível, para fechar-se em seguida, trancando lá dentro Lafont, Munch, os Homens do Relógio e, principalmente, a velha Ursula. Lembrei-me do trem em que eu e Monika partíramos de Berlim. Eu então fechara as cortinas. Agora estavam abertas, e eu olha­va para a frente, na direção do meu desejo.

Mas e Joaquín? Não é difícil imaginar. Ele devia estar pensando no quanto se distanciara dos dias em que levan­tava antes do amanhecer e caminhava pelas ruas em busca dos primeiros sons da cidade que, despertando, se espreguiçava. Devia também estar lembrando que vivera na men­te de Heinz, que vira a cidade através dos seus olhos e que tudo isso estava agora enterrado numa caixa de fósforos. Devia estar triste por abandonar Paris, mas isso não alterava nada, pois tinhas as Cartas e estava indo para a América. Ouvira falar de uma estrada que percorre a costa da Cali­fórnia e queria que conhecêssemos essa costa, partindo de San Francisco, num carro alugado, em direção ao sul. Vi­sualizava um cenário esplêndido de verdes penhascos, praias e veleiros. Publicaria as Cartas na América e, por fim, na Espanha, país a que verdadeiramente pertenciam.

Devia estar pensando em Lorca. Disso não tenho dúvida. Apesar de todo o tempo transcorrido desde a época em que conhecera o poeta, nunca ele se esquecera de Granada, a cidade das fontes, das treliças cobertas de jasmim, das fantasias em pedra do Alhambra. Ainda lamentava o fato de Lorca tê-la amado, pois era também a cidade da Falange e do poder eclesiástico, o lugar onde o espírito morto da Inquisição vicejava na mente de Valdés.

Lembro-me de estar contemplando a brancura dos cam­pos quando, de repente, ele recitou o Romance Sonâmbulo.

 

                 A noite se fez íntima

                 como uma pequena praça.

                 Guardas civis embriagados

                 a porta golpeavam.

                 Verde que te quero verde.

                 Verde vento. Verdes ramas.

                 O barco sobre o mar.

                 E o cavalo na montanha.

 

Contou-me que esses versos lhe haviam inspirado a úl­tima Carta, e, no trem, a caminho do sul, fiquei pensando nisso.

 

Onde está Lorca? Procurem pelo bosque de oliveiras, além do lago de Ainadamar. Dele, nenhum vestígio; não na super­fície. Enterraram-no sem deixar sinal, junto do mestre-escola de perna mutilada e do cantor de flamenco. Agora procurem em seus próprios pensamentos. Lorca está lá. Os homens da Falange tentarão invadir suas mentes, torná-las tão planas quanto o pálido chão de Fuente Grande. Tentarão esconder o que está em suas mentes assim como, ao plantar pinheiros, tentaram encobrir o que lá aconteceu. Lorca, porém, os desafia. Ele está nos pinheiros, no verde vento, nas verdes ramas. Se olharem, verão que é lá onde, em suas mentes, ele se encontra, onde as árvores cresceram e atingiram alturas fora do alcance daqueles que as plantaram.

 

Além de Toulouse, não havia mais neve, apenas névoa cor de aquarela cinzenta, o que reduzia as terras de cultivo a campos abstratos, assinalados aqui e ali por muros de pedra e cercas bamboleantes. Joaquín ergueu o colarinho para se proteger do frio enquanto aguardava a chegada a Carcassone. Temia que não houvesse visibilidade, mas a névoa enfim se ergueu antes de passarmos pela planície, e a velha cidade surgiu vários quilômetros a leste. Talvez, vista a distância, pudesse parecer menos interessante, mas não. Erguia-se das colinas ondulantes, com suas torres pon­tiagudas, suas barbacãs, e cada detalhe era ainda melhor em relação à lembrança que Joaquín tinha deles. Essa era a última imagem que queria da França. Mãos no joelho, tronco inclinado para a frente, ele viu ir ficando para trás, sob a pálida luz do sol, a cidade de muralhas avermelhadas. O ruído rítmico do trem parecia ter mudado de tom, e era possível ouvir sem esforço o som de um pandeiro, a música queixosa de um trovador.

A cidade foi diminuindo a distância, e Joaquín encostou o rosto à janela para continuar contemplando suas torres cônicas, negras, como chapéus de bruxa, reluzentes no lusco-fusco, como o verniz do couro usado pela Guarda Civil. Lembrou-se então de uma outra música, da voz forte de um cantor, de mãos a bater um ritmo de flamenco, e essa música, a soar em sua imaginação, dava-lhe as boas-vindas à Espanha, antes mesmo de Joaquín chegar a vê-la. Desejou que pudéssemos atrasar a partida para que fôssemos a al­gum povoado costeiro, de enseadas cor de esmeralda, cujo casario branco, de telhados vermelhos, cintilava como os inúmeros olhos do plácido mar. Desejou ficar um pouco na Espanha. Lembrou-se do molhe de pedra acima da praia, em Llfranch, e da pequena praça abaixo do morro de pi­nheiros, onde, nos finais de semana, orquestras tocavam e pessoas dançavam sardana em roupas alegremente colori­das.

O que foi? — perguntei.

Estava pensando num lugar da costa onde há muito tempo estive. Estava pensando em como seria se pudéssemos ir lá dançar, só um pouco. A música é estranha e ado­rável.

Olhamos um para o outro quando o trem começou a diminuir a velocidade. Agora que havíamos chegado à fron­teira, a cabine pareceu-nos muito pequena. Os trilhos faziam uma curva na direção de Port Bou, um delicado arco que nos permitia ver, a distância, as luzes da estação. Depois, fez-se um tremor, e ouvimos o guincho dos freios. Havía­mos chegado.

Minutos mais tarde, os passageiros se aglomeravam dian­te de duas cabines da alfândega, ocupadas por policiais franceses. Quando a Guarda Civil passou sob as lâmpadas nuas dependuradas no teto de ferro corrugado, seus cha­péus reluziram, como se tivessem vida própria.

Semanas antes, havíamos concluído que seria prudente esperarmos um pouco para sair da cabine, supondo que os primeiros das filas estariam sujeitos a inspeção mais ri­gorosa. A certa altura, pareceu-nos que havia um tumulto, e Monika então disse que iria ver o que era. Isso fazia parte do cuidadoso plano. Como ela tivesse a aparência menos suspeita, havíamos concluído que podia ir na nossa frente, numa situação como aquela, para verificar se seria neces­sário alterarmos os procedimentos. Se fosse, teríamos al­guns minutos para decidir o que fazer.

Tome cuidado! — preveniu-a Joaquín.

Volto em cinco minutos.

Assim que ela chegou à plataforma, viu dois soldados da Guarda Civil se aproximarem de um casal idoso. Pare­ciam estar pedindo documentos, e o homem rapidamente os mostrou. Todos ao redor pareciam preocupados. Ao lon­go da fila, as pessoas respiravam nuvens de fino gelo que cintilavam sob as luzes.

Passaram cinco minutos. Dez.

Não agüento mais — eu disse.

Levantei-me para ir procurar Monika. Joaquín pôs a mão em meu braço e lembrou-me de que devíamos seguir o plano.

Ela está lá — disse Claude. — Eu a vejo. Está falando com algumas pessoas.

Eu também a vi e, mesmo a distância, era capaz de ver que ela estava preocupada. Havia algum problema no início da primeira fila. Os que estavam na segunda haviam obtido permissão de passar. Eu via gente a fechar malas e a ca­minhar para os trens que esperavam do lado espanhol.

Monika voltou angustiada. Os espanhóis haviam fechado a fronteira para quem não tinha passaporte francês. Ela vira alguns cidadãos alemães serem conduzidos a uma sala de espera.

Serão mandados de volta amanhã de manhã. Há um trem vindo de Barcelona.

Teríamos que atravessar as montanhas para chegar a Gerona, onde tomaríamos um trem para Lisboa. Joaquín disse a Claude que saísse e examinasse os trilhos na direção da parte traseira do trem. Ele faria o mesmo do lado da pla­taforma. Ambos voltaram minutos depois sem terem visto nenhum guarda. Nós sairíamos pela lateral, do lado oposto à plataforma, atravessaríamos os trilhos e, depois, os cam­pos.

A porta de extremidade do vagão abriu-se para um en­gate coberto de gelo. Um corrimão acompanhava os estrei­tos degraus da escada. Depois que todos havíamos descido, Joaquín apontou na direção do final do trem. O último vagão ultrapassava a cobertura da plataforma e parecia grande, ameaçador, na escuridão. Atravessamos rapida­mente os trilhos e chegamos do outro lado da estação. Uma única lâmpada, no alto da parede, estralou na luminária cônica, apagou-se e voltou a ficar acesa o tempo suficiente para que eu lesse numa placa, em letras desbotadas, as palavras "Port Bou, Espana".

Uma lua cheia azulava os campos à sombra das montanhas. Seguimos a trilha que conduzia ao primeiro cume, coroado de pinheiros que lembravam as torres de Carcassone. A neve estava dura como casca de pão velho e, quando nossos pés lhe rompiam a superfície, parecia produzir um ruído forte como louça a partir-se em chão de mármore. Começamos a subir a montanha. Nossa respiração era como notas musicais a determinar a duração dos nossos passos. À esquerda, num pasto cercado, vários cavalos tentavam se aquecer, permanecendo bem juntos uns dos outros. O luar era cada vez mais intenso, e eu não pensava em coisa alguma a não ser no estreito topo da montanha, que assi­nalava a fronteira, e na planície que, além dele, se estendia até a costa. Vi algo mover-se na escuridão.

— O que é isso — sussurrei.

Ninguém tinha visto nada. Prosseguimos. Em seguida, no espaço entre duas árvores, vi um homem a cavalo. Fez-se um clarão, e Joaquín caiu ao meu lado. Somente ao abai­xar-me foi que ouvi o estampido ecoando a distância.

 

                           PACIFIC PALISADES

                           12 de Janeiro de 1943

Como se mede a fidelidade? Na Europa que eu deixara para trás, destruída pela guerra, a fidelidade convo­cava a morte por meio dos seus compromissos. O mundo de Lorca, povoado de ciganos, camponeses, amantes e vi­sionários, inflamou os pensamentos da Falange, jogou ácido no estômago doente de Valdés, a ponto de somente a exe­cução do poeta, poder dar fim a sua dor. A fidelidade a São Frederico, a fidelidade ao velho pai conduziram Lorca de volta a Granada e mostraram-lhe o rosto do homem que olhava pelo portão do jardim, em Huerta de San Vi­cente. Essa aparente pobreza é, no entanto, apenas uma ilusão, a visão truncada dos homens que olham através de grades. A fidelidade de Lorca a uma Espanha que nunca sonharam está fora do alcance dos olhos desses homens. Joaquín me ensinou isso e muitas outras coisas.

Tenho tido muito tempo para avaliar o custo da fidelidade — desde que o clarão surgiu na boca do rifle, desde que Joaquín caiu e o tiro ricocheteou entre as montanhas, tentando descobrir um meio de voltar e novamente atin­gir-lhe o coração, num supérfluo ato de misericórdia. Há um mês que escrevi essas palavras e ouvi o capitão dizer, naquela mesma noite, que chegaríamos pela manhã a San Francisco. Eu tinha entrado em sua cabine, imbuída de uma dor de ferida recente. Perguntava-me onde encontraria for­ças para terminar este livro, para contar que carregamos Joaquín, trilha abaixo, até a estação, e que lá, ao amanhecer, um policial francês, em tom baixo e compassivo de voz, explicou que os espanhóis haviam quixotescamente aban­donado suas restrições e que podíamos entrar no país. Foi ele quem confirmou o que eu intuíra sem palavras no mo­mento em que Joaquín caiu. O tiro fora disparado por um soldado da Guarda Civil. Tudo me parecia absurdo sob as luzes da estação. Meu único pensamento era que, se Lafont não tivesse denunciado Joaquín, se Munch não tivesse mor­rido, teríamos saído de Paris no final de semana, encontrado a fronteira aberta, os portões acolhedoramente escancara­dos, talvez pelo mesmo homem que disparara o tiro.

Eu queria dizer tudo isso antes que o navio atracasse e os mesmos marinheiros que haviam soltado as amarras no porto de Lisboa as atirassem aos estivadores americanos; antes que o capitão e seus auxiliares aparecessem na ponte de comando e assistissem à chegada, com alívio e satisfação, imaginando os prazeres que os aguardavam em terra. Era importante terminar antes que isso tudo acontecesse, por­que, desde o momento em que inscrevera neste diário a primeira palavra a respeito da minha vida com Joaquín, eu vinha prevendo esse momento de conclusão, supondo que ele me traria algum alívio, que minha última palavra seria o sinal de que eu me preparara para uma vida nova, num lugar que ainda não vira.

Foi por isso que me levantei ao primeiro vestígio de luz na vigia. Eu a olhava havia horas. Vesti-me rapidamente e cheguei ao convés no momento em que o céu passava do púrpura para o vermelho. Tarde demais! A luz do sol incidia nas ilhas Farallon, nos pináculos do Golden Gate, nas casas em tom pastel da parte mais alta das distantes colinas, oferecendo-me um cenário, lindo e amargo, que me tirava a vontade de escrever. Claude e Monika apare­ceram pouco depois e juntaram-se a mim no parapeito, de onde, a deslizar silenciosamente sob a fria sombra da enor­me ponte, contemplamos nossa chegada à América.

Isso foi há um mês, e desde então não tenho propensão nem energia para voltar a estas páginas. Seguimos a cami­nho de Los Angeles poucos dias depois, num carro que Claude comprara em San Francisco; exploramos as ensea­das de Monterey; suportamos o calor dos vales do interior da Califórnia; passamos a noite em Santa Barbara. No dia seguinte, pouco antes do meio-dia, subimos uma colina, e a grande planície de Los Angeles se estendeu diante de nós. A cidade prosseguia, prosseguia até a base das mon­tanhas de San Fernando. Uma hora depois, chegávamos a nossa nova casa, em Pacific Palisades, uma casa de estilo espanhol, em estuque, à beira de um penhasco que dava para a baía de Santa Monica. Claude a alugara de um colega que estava em viagem de estudos.

Tenho um quarto com vista para o mar; um jardim; um terraço de madeira avermelhada, onde sopra uma brisa refrescante. Venho aqui fora diariamente desde que cheguei, mas esta é a primeira vez que trago meu diário — não porque não quisesse terminá-lo, mas porque não sabia o que dizer. Mesmo ao navegar sob o Golden Gate, já me dava conta de que, caso houvesse mais um dia de viagem, seria falso aquilo que eu escrevesse, de que os meros fatos ocorridos depois da morte de Joaquín eram apenas fatos. Ele sofrerá de uma falha radical de compreensão, interpre­tara mal a natureza desses acontecimentos, assim como aqueles do poema de Lorca, do qual me apropriara para dar forma ao meu escrito. Já então percebia que me faltava o conhecimento de um contexto mais amplo; o único que importa, segundo o ponto de vista de agora. Assim como tantas vezes acontecera com a história de Joaquín, bem como a minha, a direção surgiu espontaneamente, guiada pela questão da fidelidade.

Somente depois de vários dias descobri por que era impelida a este terraço e aqui passava o dia todo. Agora isso me parece bastante simples. Substituí o meu lugar no navio por este no terraço por motivo de continuidade. Aqui me sinto próxima da cigana de Lorca, mas, para encontrar a vontade de escrever, eu precisava do que aconteceu esta manhã. Quando caminhava pela praia, pensando na cigana a mergulhar na cisterna, como um cormorão, descobri o segredo que ela por tanto tempo detivera. Desde a partida de Lisboa, venho tentando imaginar o que ela viu mergulhar silenciosamente. Imaginei-me a passar o pé por cima do parapeito do velho navio e a lançar-me para fora. Seu verde passou então a ser o meu azul; suas montanhas, o meu horizonte; meu diário, o irmão do poema de Lorca. Esta manhã, vi seu segredo na curva translúcida do arrebentar de uma onda. Quando a onda se ergueu, fez a crista e começou a cair na direção da praia, ele emergiu, delicadamente tirou o amante da cama e levou-o para aquele mundo verde, além do alcance da Guar­da; para um lugar onde as rosas escuras da ferida, que man­chavam sua camisa, se soltaram, flutuando. Essas rosas eram o presente que a cigana me dava. Agora quero retribuir o pre­sente, entregá-lo a Lorca e a Joaquín, pois sei onde está o des­fecho. Até que eu visse aquela onda, sentia um vazio por dentro, como se meu útero antes estivesse cheio de um ar que houvesse descido como uma rajada de vento; meu corpo fosse seco, árido, como os desertos batidos pelas ventanias. Eu, porém, me en­ganava. Estava vazia, mas não sozinha. Eu tinha minhas vozes e meus lugares. Lorca. Joaquín. A cigana.

Agora, então, retorno ao meu lugar no frio do convés e, equilibrando-me no balanço do navio, evoco a Espanha. O som do vento toma a forma de Fuente Grande, assim como argila se molda em forma de bronze. Estendo os braços. A voz de Lorenzo entra pela ponta dos meus dedos. Além das fachadas rosadas do Alhambra, além dos jardins flori­dos e dos telhados de Granada, surgem as planícies que conduzem a Víznar e à barranca. Ouço Joaquín contar-me que chegou àqueles terraços pela trilha que contorna Ainadamar; ouço o vento soprar com mais força, arrastando, em remoinho, as folhas pela trilha. E o mesmo vento que soprava do golfo de Almería a Fuente Grande na manhã em que partimos de Austerlitz. Pesadas nuvens obscurecerem a serra de Harana, e os habitantes de Víznar fecham suas janelas, recolhendo-se como tartarugas à carapaça. Em La Colonia, Lorca ouve a chuva bater no teto, o vento soprar entre as oliveiras e os pinheiros. Lorenzo faz um sinal aos violinistas e começa a cantar. Uma mecha de cabelo negra cai-lhe sobre a testa. A luz do fogo tinge rostos, mãos em meio às palmas; acende a expectativa nos olhos de todos quando, num trovejante rasgado, a canção termina. Silen­ciosos, vêem Joaquín entrar na Gare d'Austerlitz, o trem a serpentear pelos campos brancos, pela neblina que encobre as fazendas e os povoados do Languedoc. Vêem o céu claro acima de Carcassone até a velha cidade tornar-se rosada como o Alhambra. Ao chegarmos a Port Bou, a tempestade sopra na direção de Sevilha, deixando um céu todo estre­lado e uma lua cigana a iluminar a estrada do Arcebispo. Eles observam Joaquín atravessar os campos, azulados como pálido luar, e seguir pela trilha que conduz às mon­tanhas. Depois, vêem o homem a cavalo - chapéu a reluzir como gelo negro — disparar o tiro e, por fim, a rosa vermelha abrir-se em dor no peito de Joaquín.

No céu já varrido pela tempestade nada há além da lua resplancedente. Claude se debruça sobre ele, olhando de uma grande altura. Depois, Monika. Eu. Ele se esforça para nos enxergar; ver os pinheiros, imponentes como as torres de Carcassone, subitamente arrancados pelo desejo da lua. A luz abraça as torres, navegando pelo céu, e ele segue seu percurso. Olha para Fuente Grande, lá embaixo, onde o astro brilha no lado de Ainadamar, não na forma de um disco prateado, mas na de uma mulher esguia, pálida, vestida de branco. Ele se vê refletido nos olhos da mulher. Ela abraça o lago e o bosque de oliveiras, braços ondulantes a envolver também Lorca e os outros prisioneiros — Disocoro González, o mestre-escola, os bandarilheiros, Cabezas e Mergal, Lorenzo. Ela entrelaça a acéquia, os terraços, a escola, num desenho intri­cado como renda de mantilha. Por um momento, Claude, Monika e eu surgimos lá também, e nossas vozes são suaves, distantes, aflitas. Depois, nossas palavras se dissolvem, e ele fica só. Não houve meu grito abafado; já caminha pela trilha, atraído por uma música tênue, tão tênue que ele não reconhece a melodia nem os instrumentos que a produzem. Ao passar pelo bosque de oliveiras, onde o rosto de Valdés reluz como um sol de açafrão, o ritmo de um cante hondo se ergue dos terraços. A voz de Lorenzo captura o trinado das notas, corre solta. Suas palavras parecem que vão flutuar até as estrelas de escarcha. Ele vê Lorca e os outros reunidos num espaço aberto, abaixo do terraço, onde a música se torna mais intensa à medida que as trompas enchem o ar com as notas metálicas de uma sardana.

Ao longo da estrada do Arcebispo, sonha-se com música e vozes ao vento. Nas cantinas, os homens interrompem a conversa e deixam de lado suas cartas. Ouvem mais do que o tênue murmúrio da acéquia que acompanha a estrada. Os habitantes de Víznar e os camponeses das fazendas pró­ximas mais tarde contariam terem visto um fogo arder continuadamente aquela noite em Fuente Grande.

 

                                                                                Lawrence Thornton  

 

                      

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