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Naquela noite, ao voltar para casa, Joe não conseguiu ficar quieto. Tinha de contar a alguém, era impossível conter dentro de si mesmo a sua deliciosa exultação. Foi dominado por um estranho desejo, uma tentação. E não pôde resistir. Pegou um bonde para atravessar a ponte e ir a Tynecastle, levando a sua exultação para a Scottswood Road.
Entrou na casa dos Sunleys com um ar descontraído, no momento em que eles sentavam para jantar. Alfred, Ada, Clarry e Phyllis - Sally não estava presente, integrando um grupo musical que acabara de partir para a França receberam-no com a maior satisfação, o que fez com que Joe se sentisse ainda melhor.
- É um prazer tornar a vê-lo - repetia Ada a todo instante.
Joe aceitou a sua antiga cadeira ao lado do fogo e deixou que Ada mandasse buscar um pouco de presunto frio e pão. Enquanto comia os sanduíches, Joe comunicou-lhes os seus sucessos na Millington. Pegando a mostarda, ele acrescentou em tom distraído:
- Por falar nisso, vou jantar amanhã de noite em Hilltop com Stanley e a Sra. Millington.
A admiração atónita de todos proporcionou-lhe uma emoção gloriosa. Joe era um homem que se gabava por natureza, particularmente quando a audiência era receptiva. E agora ele gabou-se a contento de seu coração. Discorreu longamente sobre a coisa espetacular que era o convite, sobre a nobreza de sua missão na fábrica. Declarou solenemente, com a boca cheia de presunto, que alguém tinha de fabricar as balas, bombas e granadas para os rapazes no front. E havia muito futuro na fabricação de munições. Ele soubera outro dia que iam erguer novos galpões em Wirtley, no terreno baldio no alto de Yarrow Hill, destinados a encher de pólvora e dar o acabamento nos produtos que saíam da fundição. Mr. Stanley dissera que estariam em breve empregando centenas de moças ali, enchendo as granadas com T.N.T. Mr. Stanley récebera a notícia diretamente de Londres. Joe olhou para Clarry e Phyllis com uma expressão cordial, indagando:
- Por que vocês duas não entram nisso? Vão pagar três vezes mais do que ganham na Slaterry, e o trabalho é uma sopa.
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Ada parecia interessada. E disse:
- É mesmo verdade, Joe? Joe declarou, pomposamente:
- Claro que é verdade. Por quem está me tomando? Sei das coisas, não é mesmo? Podem ter certeza absoluta!
Ada ficou pensando por um momento, na cadeira de balanço. A pintura de casas em Tynecastle, naqueles primeiros dias da guerra, estava quase parada; não havia tanto dinheiro entrando na casa como Ada gostaria, inclusive porque os salários de Clarry e Phyllis eram bem pequenos. Ela disse finalmente :
- Gostaria que me informasse se souber de mais alguma coisa a respeito, Joe.
Ada sempre tivera uma fraqueza por Joe, uma suave ternura maternal. Naquela noite, estava achando-o maravilhosamente bonito... o perfeito cavalheiro, impetuoso e enérgico. Ada suspirou; sempre quisera ter Joe como genro; era lamentável que Jenny tivesse jogado fora a oportunidade, ainda mais agora, quando as coisas corriam tão bem para Joe.
Depois que Clarry e Phyllis 'se retiraram e Alf estava ocupado com os pombos nos fundos, Ada olhou para Joe e balbuciou, num tom triste e confidencial :
- Não tem tido notícias de Jenny? -Não.
Tirando a cigarreira do bolso, Joe concentrou-se em acender um cigarro. Ada suspirou.
- Ela está esperando filho para o próximo mês. Terei de ir até lá e cuidar de tudo pessoalmente.,Deve ser no princípio de dezembro.
A fumaça do cigarro entrou pela garganta de Joe. Ele tossiu e engasgou, ficou com o rosto vermelho. Depois de uma pausa, ele disse:
- Quer dizer que pode haver dificuldades? Ada assentiu, pesarosa.
- A pobre Jenny não está passando nada bem. E ele ainda vai para o exército. Depois disso, só Deus sabe o que poderá acontecer. Ele foi despedido do seu emprego de professor. Pode imaginar uma coisa dessas? Sempre achei que ela desperdiçou a sua oportunidade, Joe. E pensar agora que ela caiu nessa...
A tosse de Joe tornou a convulsioná-lo.
- Essas coisas acontecem.
Depois disso, Ada tornou-se ainda mais confidencial com Joe. Tiveram uma conversa íntima das mais agradáveis, na semi-escuridão da sala. Ao final, quando Joe teve de partir, Ada estava imensamente consolada, convencida de que a visita de Joe lhe fizera muito bem.
Joe voltou à Beech Road, em Yarrow, com uma expressão curiosa no rosto. Graças a Deus que saíra de Sleescale no momento certo! Mostrou-se excepcionalmente gentil com sua senhoria encarquilhada naquela noite, falando-lhe bondosamente e parecendo dar-lhe os parabéns pelo fato de ser velha, feia e sem filhos.
O dia seguinte chegou e Joe não podia pensar em outra coisa que não em seu compromisso para aquela noite. Quando o trabalho terminou, ele foi à Grigg's, a barbearia que ficava no início da Beech, mandou fazer a barba e aparar os cabelos. Seguiu depois para os seus alojamentos e tomou um banho. Sentou na beira da banheira, inteiramente nu, assoviando baixinho e cortando as unhas. Estava determinado a se apresentar da melhor forma possível naquela noite.
Depois de tomar o banho, ele foi para o seu aposento, misto de quarto e sala de estar, vestiu cuidadosamente o seu melhor terno, cinza-claro, de listras finas, parecido com o terno que vira outrora um ator usando numa comédia musical apresentada no Empire. Acalentava ambições de possuir um smoking, uma imensa ambição, mas sabia que o momento para isso ainda não chegara. Mesmo assim, no terno cinza comum, ele parecia esplêndido, o queixo liso, brilhantina nos cabelos, olhos brilhantes e ardorosos, a corrente fina do relógio estendendo-se pelo colete, uma pérola espetada na gravata. Sorriu para o seu reflexo cintilante no espelho, experimentou uma mesura e algumas poses de negligente elegância. Depois, o sorriso tornou-se mais sombrio e ele pensou: "Finalmente está entre eles, meu rapaz. Basta tomar cuidado e nada poderá de tê-lo."
Joe voltou a ficar compenetrado. Enquanto subia a rua para Hilltop, ensaiou o tom certo, deferente, mas viril; sua expressão, enquanto subia os degraus, pronto para a conquista, era magistral.
A mesma criada impecável, Bessie, conduziu-o à sala de estar, onde Laura estava sozinha, o braço nu apoiado na cornija da lareira e um dos pés estendidos para o fogo. Estava vestida com simplicidade, de preto, oferecendo uma imagem maravilhosamente perfeita, com o clarão do fogo ressaltando a pele pálida e faiscando nas unhas impecavelmente polidas. Joe experimentou no mesmo instante uma admiração incontida. Ela é sensacional, pensou ele. Dominado pela tensão, com uma comovente expressão de humildade no rosto, ele adiantou-se e cumprimentou-a.
Houve em seguida uma pausa constrangedora. Joe esfregou as mãos, alisou os cabelos, endireitou a gravata e sorriu.
- Fez muito frio hoje, um frio terrível para esta época do ano. Parece que está congelando lá fora esta noite.
Laura estendeu o outro pé para o fogo e disse:
- É mesmo?
Joe sentiu-se esnobado, ela o atraía e intimidava; nunca se sentira assim com ninguém em toda a sua vida. Ele insistiu:
- Foi muita gentileza sua convidar-me para jantar esta noite. É uma grande honra. Quando Mr. Stanley apresentou-me o convite, fiquei profundamente emocionado.
Laura fitou-o com aquele sorriso que não sorria, observando a corrente vistosa, a pérola falsa, a terrível emanação da brilhantina. Depois, como se desejasse livrá-lo de tais atrocidades, ela desviou os olhos. E disse para o fogo:
- Stanley descerá dentro de um momento.
Consternado, Joe concluiu que não era capaz de compreendê-la. Teria dado qualquer coisa para conhecer totalmente a natureza da verdadeira personalidade daquela mulher, qual a sua opinião a respeito dele.
Mas não sabia e sentia um pouco de medo dela. Para começar, ela era indubitavelmente uma dama. Não "à imagem de uma dama", no sentido tão tolo de Jenny... e Joe sentia vontade de rir ao recordar o refinamento superficial de Jenny, o dedinho esticado, a mesura, toda aquela bobagem, de "é muita gentileza de sua parte" e "sirva-se primeiro, por favor". Laura não era assim. Laura tinha classe de verdade. Não precisava tentar; no dizer memorável de Joe, ela já era.
Laura exibia também uma curiosa indiferença, que o agradava e fascinava. Ele sentia que Laura nunca insistiria; se não concordasse, simplesmente abandonaria o assunto e guardaria a própria opinião, com aquele estranho sorriso que não sorria. Era como se Laura possuísse uma personalidade secreta e zombeteira. Joe desconfiava que ela era interiormente bastante anticonvencional, que provavelmente discordava das ideias fixadas da vida. Contudo, ela não era anticonvencional exteriormente; era extremamente meticulosa em sua pessoa, e seu bom gosto no vestir era discretamente perfeito. Não obstante, ele não podia deixar de pensar que Laura desdenhava as convenções. Joe tinha a intuição meio absurda de que ela desprezava a todos... inclusive a si mesma.
Os pensamentos dele foram interrompidos pela entrada de Stanley. E Stanley entrou com a maior exuberância, apertando a -mão de Joe, dando-lhe um tapinha nas costas, tentando obviamente demais deixá-lo à vontade.
- É um prazer vê-lo em minha casa, Gowlan. Não fazemos cerimónia. Assim, fique à vontade. - Ele plantou os pés bem separados no tapete diante da lareira, de costas para o fogo, acrescentando: - E então, Laura? O que me diz da ração de rum para as tropas?
Laura encaminhou-se para o armário de nogueira, onde estava uma coqueteleira, copos e gelo. Cada um tomou um martíni seco; depois, Joe e Millington tomaram um segundo; e Millington, que bebia muito depressa, tomou um terceiro.
- Tenho tomado muitos martínis, Gowlan - comentou ele, estalando os lábios. - E também quase não faço mais exercícios. Quero voltar a me cuidar um dia desses, recuperar a forma, fazer exercícios e tudo o mais. Voltar a ser como era nos tempos no St. Bede's.
Ele flexionou o bíceps, apalpando-o com o rosto franzido. Para animarse, Stanley tomou outro drinque, antes de irem jantar.
- É curioso como se pode perder rapidamente o bom estado físico lamentou-se Stanley, abrindo o guardanapo e dirigindo-se à galinha fria. Os negócios estão indo muito bem, está dando para ganhar dinheiro, preso a uma mesa. Mas a saúde ainda é a melhor riqueza. Não foi Shakespeare ou alguém parecido quem disse isso?
- Não foi Emerson? - sugeriu Laura, com os olhos fixados em Joe. Joe não respondeu. Sua biblioteca em seus aposentos consistia em uma
edição em brochura bastante manuseada de Histórias Maliciosas das Francesas e uma Bíblia da Sra. Calder, colocada esperançosamente diante da tigela com as frutas de cera, na qual Joe lia, nas tardes de domingos, quando se sentia especialmente devoto, o que classificava de trechos picantes.
- Eu gostaria de ter podido ingressar no exército - murmurou Stanley, em tom de lamento. Ele tinha o hábito do homem obtuso de preocupar-se interminavelmente com um assunto. - É o lugar onde a gente pode realmente ficar em forma.
Um breve silêncio. Stanley esmagou seu pão num descontentamento momentâneo. Em meio à sua jovialidade, ele era propenso àqueles acessos de depressão, o pesar soturno de um homem que se descobre beirando a calvície e a meia-idade. Mas Stanley sempre fora propenso a insatisfações impulsivas com o seu destino na vida num momento determinado. Seis meses antes, ansiava em ganhar dinheiro e restabelecer a posição de prestígio da firma; mas agora que conseguira isso, seu senso de falta de realização ainda persistia.
Stanley continuou a monopolizar a conversa. Laura falava muito pouco e Joe, embora a sua segurança estivesse aumentando, fazia apenas um comentário ocasional e cuidadoso, concordando com alguma coisa que Stanley dissera. Às vezes, enquanto Stanley discorria sobre bridge ou golie, numa ocasião em especial, quando ele detalhava longamente como acertara num determinado buraco, os olhos de Joe encontravam-se com os de Laura através da , mesa. O vazio deliberado dos olhos dela provocou-lhe uma tristeza secreta. Joe ficou imaginando quais seriam os sentimentos dela por Stanley. Ela já estava casada com Stanley há sete anos. Não tinham filhos. Ela sempre se mostrava extremamente gentil com Stanley, escutando tudo o que ele dizia. Mas será que estaria mesmo prestando atenção? Será que ela não tinha quaisquer sentimentos por baixo daquela indiferença fria? Seria apenas gelo? Ou haveria alguma coisa? Joe sabia que Stanley era louco por ela no início, que a lua-de-mel durara seis semanas ou mais. Só que agora Stanley já não parecia mais tão louco pela mulher. Já não era mais o Don Juan impetuoso. Muitas vezes, no dizer de Joe, ele parecia esgotado.
Laura deixou-os depois da sobremesa, Joe se precipitando para a porta num acesso de polidez, a fim de abri-la. Stanley escolheu um charuto, acendeu-o, empurrou a caixa para Joe, magnânimo.
- Sirva-se, Gowlan. Tenho certeza de que vai gostar desses charutos. Joe pegou um charuto com um ar de humildade e gratidão. Secretamente, estava irritado com o ar condescendente de Millington. Espere só um pouco, pensou ele, e vou lhe mostrar algumas coisinhas. Até lá, porém, ele era todo deferência. Acendeu o charuto sem tirar a cinta.
Seguiu-se um silêncio prolongado, Stanley com as pernas esticadas por
baixo da mesa e a barriga satisfeita, fumando o charuto e olhando para Joe.
E finalmente ele anunciou:
- Quer saber de uma coisa, Gowlan? Gosto de você.
Joe sorriu modestamente e se perguntou que diabo estava para acontecer.
- Sou um homem liberal - acrescentou Stanley, expansivamente... jebera meia garrafa de Sauterne por cima dos coquetéis e estava propenso a se mostrar expansivo. - E não me importa absolutamente o que um homem :, contanto que seja decente. Ele pode ser o filho de um duque ou o filho de un lixeiro que não me importo. É tudo a mesma coisa para mim, desde que ele seja íntegro. Está me entendendo?
- Acho que sim, Mr. Stanley.
- Pois então preste atenção, Joe. vou um pouco mais longe, já que entende o que estou querendo dizer. Eu o tenho observado atentamente nos dois últimos meses e fiquei bastante satisfeito com o que vi.
Ele fez uma pausa, deslocando o charuto em torno da boca, inspecionando Joe. E depois acrescentou, lentamente:
- Clegg está finito, esse é o primeiro ponto. E o ponto número dois é uma ideia que tive, Gowlan: vou experimentá-lo como o meu novo gerente da fábrica.
Joe quase desmaiou.
- Gerente? - sussurrou ele, debilmente. Millington sorriu.
- Estou lhe oferecendo o cargo de Clegg neste momento. Dependerá de você mantê-lo ou não.
A emoção de Joe era tão grande que a sala parecia rodopiar diante de seus olhos. Farejara alguma coisa no vento, mas jamais imaginaria algo assim. Ficou branco como gordura de carneiro e largou o charuto no prato.
- Ora, Mr. Stanley... - balbuciou ele. Não precisava representar desta vez, estava sendo perfeitamente natural e convincente. - Ora, Mr. Stanley...
- Não há problema, Joe. Fique tranquilo. Desculpe se o peguei de surpresa. Mas estamos em guerra, entende? É quando o inesperado acontece. Logo estará perfeitamente controlado. E tenho a impressão de que não vai me decepcionar.
Uma onda de exultação invadiu Joe. O cargo de Clegg... ele!... gerente da Millington!
- Confio em você, Joe - explicou Millington, cordialmente. - E estou pronto a apostar em meu julgamento. É por isso que estou lhe oferecendo o cargo.
Foi nesse momento que o telefone tocou, na sala de estar. Antes que Joe pudesse dizer qualquer coisa, Laura apareceu.
- É para você, Stanley. O Major Jenkins quer lhe falar. Stanley pediu licença e foi atender.
Houve silêncio. Joe podia sentir Laura ali, podia senti-la parada à porta, em frente a ele, perto dele, observando-o. Uma tremenda exultação vibrava em todo o seu ser, sentia-se forte, inebriado, gloriosamente vivo. Levantou os olhos e fitou-a. Mas Laura desviou os olhos e disse bruscamente:
- Tem café na sala de estar, antes de ir embora.
Joe não respondeu. Não podia falar. E com os dois ali, daquela maneira, o som da voz de Stanley ao telefone entrou na sala.
O momento do parto estava se aproximando e o comportamento de Jenny era exemplar, sob todos os aspectos. Desde aquela tarde de terça-feira, quando contara a David, Jenny fora uma "mulher mudada". É claro que ainda tinha os seus momentos rabugentos - e qual a mulher em seu estado que não teria? - e o que ela chamava de suas "fantasias", o súbito desejo, nos momentos mais inoportunos, das mais estranhas e exóticas formas de alimentação, mais simplesmente indicadas como "algo saboroso". Um anseio por biscoitos de gengibre, por exemplo, já que ela renunciara ao pão. Ou por cebolas em conserva ou ovas de arenque em torradas. Ada, sua mãe, sempre tivera fantasias. Assim, Jenny achava-se plenamente no direito de ter também as suas fantasias.
Estava fazendo um enxoval encantador para a filha - tinha certeza de que seria uma menina, queria tanto ter uma menina, para vesti-la elegantemente, os garotos eram horríveis! - e passava noite após noite sentada ao lado do fogo, diante de David, costurando e tricotando, extremamente doméstica, preparando as roupas de acordo com as orientações de Mab's Home Notes e Chickabiddy's Journal. Sonhadora, planejava o futuro da filha. Ela seria uma atriz, uma grande atriz. Ou melhor ainda, uma grande cantora, uma prima-dona na Grand Ópera. O talento da mãe se revelaria na filha e teria um triunfo depois de outro no Covent Garden, com grandes homens e flores espalhados a seus pés, enquanto Jenny, de um camarote, contemplava terna e compreensivamente o sucesso que também poderia ter sido seu, se tivesse recebido a oportunidade. Mas havia também tentações, grandes tentações. Jenny franzia o rosto ao pensar nisso. A cena mudava subitamente e ela via uma freira, uma freira anglicana, pálida e espiritual, com um profundo pesar oculto em seu coração, o palco e o mundo esquecidos, passando pelo claustro de um grande convento e entrando na capela escura. O serviço começava, o órgão soava, a voz da freira ressoava em toda a sua pureza adorável. As lágrimas afloravam aos olhos de Jenny e sua fantasia romântica alçava voos ainda mais trágicos. No final das contas, não haveria menina, não haveria prima-dona ou freira. Ela própria ia morrer, podia senti-lo em seu coração, era absurdo imaginar que teria forças suficientes para ter uma filha, sempre tivera a premonição de morrer jovem. Lembrava que Lily BÍades, uma moça que trabalhava na Slattery e era maravilhosa na leitura da sorte, vira certa ocasião uma doença terrível em sua xícara de chá. Jenny imaginava-se morrendo nos braços de David, que lhe implorava, com uma expressão desesperada, que não o deixasse. Um grande vaso com rosas brancas estava na mesinha-de-cabeceira e o médico, embora um homem calejado, pairava ao fundo, numa agonia de aflição.
Lágrimas de verdade escorriam pelas faces de Jenny, e David, levantando os olhos de repente, exclamava:
- Santo Deus, Jenny! O que está acontecendo?
- Não é nada, David. - Ela suspirava, com um sorriso débil, angelical.
- Estou me sentindo muito feliz. Mas muito feliz mesmo.
Depois disso, Jenny chegou à conclusão de que devia ter um gato, porque era humano, doméstico e alegre ter um gato em casa. Pediu a todos que conhecia para que lhe providenciassem um gatinho; todos, simplesmente todos, deviam procurar-lhe um gatinho. E quando Harry, o filho do açougueiro, trouxe-lhe um gatinho malhado, Jenny ficou deliciada. Já não ficou tão extasiada quando o entregador de Murchinson trouxe-lhe outro gatinho e a Sra. Chorou apareceu no dia seguinte com mais um. Era impossível devolver os dois gatinhes, diante do apelo generalizado. E eles faziam a maior confusão e sujeira na casa. Ao final, Jenny teve de afogá-los, o que lhe doeu terrivelmente, acabar com aquelas duas criaturinhas desamparadas. Mas o que uma moça como ela podia fazer? Contudo, empenhou-se a fundo para escolher um nome para o gatinho sobrevivente. E acabou chamando-o de Pretty.
Jenny decidiu em seguida dedicar-se novamente à música. Passava uma boa parte do dia sentada ao piano, praticando e experimentando a voz. Aprendeu a cantar dois acalantos. Queria ainda mais. A esta altura, sua atitude exprimia um remorso secreto: não era boa o bastante para David, deveria ser melhor sob todos os aspectos, mais talentosa, mais intelectual. Queria ser capaz de conversar com David, ter discussões, discussões de verdade sobre os assuntos que o interessavam, sobre todas as coisas que tinham importância, problemas sociais, económicos e políticos. Pensando nisso, Jenny mergulhou nos livros do marido umas poucas vezes, a fim de elevar o seu plano intelectual e produzir grãos para os moinhos da discussão filosófica. Mas os livros não eram muito estimulantes e Jenny acabou desistindo.
Mas se ela não podia ser esclarecida, pelo menos podia ser boa. Isso mesmo, ela podia ser boa. Comprou um livrinho intitulado Horas de Alegria no Lar Feliz e leu-o devotamente. Leu como uma criança aprendendo uma lição, os lábios se mexendo ligeiramente a cada palavra, o livro repousado em seu colo, por cima do trabalho de croché. Depois de um trecho-particularmente radiante, Jenny fixou os olhos marejados de lágrimas em David e exclamou, emocionada:
- Sou apenas uma coisinha tola, David. Mas não sou realmente má. Diz aqui que todas as pessoas cometem erros, mas que podemos nos redimir. Não sou realmente má, não é mesmo, David?
Ele assegurou pacientemente que ela não era má.
Jenny fitou-o em silêncio por um momento e depois disse, abruptamente:
- Oh, David, você é o melhor homem que já existiu. É mesmo, David, o melhor homem do mundo!
Nunca antes Jenny lhe parecera tanto uma criança. Ela era uma criança. Era simplesmente absurdo que Jenny fosse ter um filho. David a tratava gentilmente. Muitas vezes, à noite, quando estavam deitados na cama e Jenny tinha um sobressalto, perturbada e assustada no sono, agarrando-se a ele, David podia sentir o corpo estufado e a criança se mexendo dentro dela. A ternura o invadia e ele a acariciava durante aquelas noites de lamúrias.
Perguntara a Jenny se gostaria que Martha, sua própria mãe, cuidasse da casa e dela, enquanto estivesse de resguardo. Jenny concordara, com o seu novo comportamento submisso. Mas quando Martha apareceu para acertar as providências necessárias, essa única entrevista provou que a reconciliação era impossível. Martha encontrou-se com David quando ele estava voltando para casa. Ela estava bastante vermelha.
- Não vai ser possível - declarou Martha, a voz visivelmente controlada. - Não adianta. Quanto menos contato eu tiver com ela, melhor será. Não consigo suportá-la e ela também não me suporta. Portanto, não devemos mais pensar nisso.
E Martha afastou-se, antes que David tivesse tempo de dizer qualquer coisa.
Assim, ficou acertado que Ada Sunley viria de Tynecastle. Ada chegou no dia 2 de dezembro, um dia de muita chuva e vento, desembarcando do trem ofegante, com uma pequena valise amarela presa por um cordão. David recebeu-a na estação, carregou a valise para Lamb Lane. O ânimo de Ada era de indiferença, ela não parecia particularmente satisfeita por ter vindo, pelo menos não parecia satisfeita na presença de David. Mostrou-se reservada e um tanto fria com ele, propensa a ficar irritada com a limitação dos recursos domésticos. Não estava há uma hora na casa quando o mandou comprar uma comadre. Seus preparativos, atividades e movimentos eram tremendos. Despojada do conforto de sua própria sala tão desleixada, privada da indolência de sua cadeira de balanço predileta, Ada Sunley assumiu uma atividade anormal, a terrível movimentação da mulher gorda. Era diligente com Jenny, diligente e compadecida. "Coitada da minha pobre ovelhinha!", ela parecia estar dizendo. "Mas pelo menos tem a sua mãe com você."
A língua de Ada era particularmente ativa. Transmitiu todas as notícias a Jenny. Sally encerrara inesperadamente a sua excursão de pantomima no inverno, o espetáculo subitamente fracassara, não prestava mesmo. Sally estava novamente desempregada, procurando por alguma coisa para fazer. Falava-se em concertos sendo organizados para os soldados feridos e Sally podia ser convidada a participar. Mas seria um trabalho voluntário, sem um penny sequer de remuneração. Ada deplorava igualmente a incapacidade de Sally de ganhar um salário decente e certo, a estúpida ambição que a levava a continuar com aquela história sem qualquer esperança de ganhar a vida no palco. Ela gostaria imensamente que Sally jamais tivesse largado o emprego na estação telefónica.
Por um processo gradativo de aproximação, Ada chegou finalmente ao tópico sobre Joe. Jenny e Ada estavam na cozinha naquele momento, no dia seguinte à chegada de Ada. E Ada preparava uma xícara de chá para Jenny. com um ar de indiferença, Ada disse:
- Por falar nisso, soube que Joe foi nos visitar?
Jenny, que estava recostada no sofá, empertigou-se subitamente, o rosto pálido e lânguido contraindo-se como uma ostra. Houve silêncio, até que ela finalmente disse, em voz fria:
- Não sei de nada a respeito de Joe Gowlan e também não quero saber. Eu o desprezo.
Ada ajustou cuidadosamente o abafador do bule.
- Mas a verdade é que ele foi nos visitar, Jenny... e foi uma visita das mais agradáveis. Desde então, já apareceu mais uma ou duas vezes. Não precisa desprezá-lo só porque sente falta dele. O erro foi todo seu, minha cara. Joe é um ótimo rapaz e vou continuar a insistir nisso, nem que seja a última palavra que eu diga. Ele vai arrumar emprego para Clarry e Phyllis na fabricação de munições, assim que as atividades começarem em Whirtley. Ele voltou a trabalhar na Millington e está indo maravilhosamente bem.
- Estou lhe dizendo que não quero ouvir coisa alguma sobre Joe Gowlan! - exclamou Jenny, a voz tensa. - Se quer mesmo saber, eu o detesto e odeio ouvir até mesmo o som do nome dele!
Mas Ada, sentando-se à mesa e pondo as mãos gorduchas sobre o abafador, como se assim quisesse aquecê-las, insistiu no assunto, irritantemente:
- Não pode imaginar como Joe está indo maravilhosamente bem. É o chefe do departamento, trabalha limpo e tudo o mais, veste-se que é uma beleza. Na última vez em que ele foi nos visitar, Jenny, contou até que iria jantar na casa dos Millingtons. Na casa deles lá em Hiltop... pode imaginar uma coisa dessas, Jenny? Estou lhe dizendo, minha cara, que você cometeu um grande erro quando deixou Joe escapulir entre seus dedos. Ele é o homem que eu gostaria de ter como genro.
O rosto de Jenny estava muito pálido, ela cerrava os punhos, a voz tornou-se estridente.
- Não vou permitir que fale assim, mãe. Não vou permitir que mencione Joe em condições de igualdade com David. Joe é absolutamente podre, e David é o melhor homem que já existiu.
Ela ficou olhando fixamente para Ada, com uma expressão de desafio. Mas, desta vez, Jenny não podia dominar a mãe. Seu estado deixava-a fisicamente fraca; e espiritualmente ela se encontrava num estado de curiosa transigência. Ada tinha uma excelente oportunidade de fazer Jenny "baixar a crista por uma vez" e tratou de aproveitá-la.
- Mas que jeito de falar! - declarou ela, empinando bruscamente a cabeça. - Ao ouvi-la, ninguém poderia imaginar que já andou metida com Joe.
Jenny baixou os olhos. Estremeceu ligeiramente e ficou calada.
A porta se abriu naquele momento e David entrou. Voltava dos escritórios da Harbor Board, onde conseguira um emprego temporário como amanuense. Ada virou-se para ele com um pequeno sorriso condescendente. Mas antes que ela pudesse falar, Jenny, no sofá, soltou um grito angustiado e levou a mão ao flanco.
- Oh, Deus! - sussurrou ela. - Estou sentindo uma dor terrível!
Ada hesitou, contemplando a filha, entre o ressentimento e a dúvida.
- Não pode estar sentindo - disse ela, finalmente. - Ainda falta uma semana para o seu tempo.
- Posso, sim - respondeu Jenny, ofegante. -. Sei que posso. Pronto, a pontada de dor está voltando.
- Pois isso nunca me aconteceu - declarou Ada. - Mas acredito que chegou mesmo a hora. Minha pobre ovelhinha!
Dominada pela compaixão, Ada ajoelhou-se e pôs as mãos sobre a barriga de Jenny.
- Está sentindo mesmo, não é? - E virando-se para David, como se a situação estivesse completamente alterada e ele fosse o culpado, por algum processo misterioso, Ada acrescentou: - Vamos logo! Vá buscar o médico! Não fique aí parado olhando para ela!
com um rápido olhar para Jenny, David saiu para chamar o Dr. Scott, que foi encontrar dando as suas consultas vespertinas. Scott era um homem já idoso, de cara vermelha, muito informal e lacónico, com um hábito desconcertante de puxar o catarro pela garganta acima e cuspir. Sob todos os aspectos, era extremamente antiprofissional. Sempre usava culote de montaria e um casaco comprido axadrezado, com bolsos enormes, estufados com todas as coisas que se podia imaginar: cachimbo, p fluías, metade de uma atadura, duas caixas vazias de termómetros, um pequeno bisturi jamais esterilizado, um cateter de borracha elástica que caía no chão toda vez que ele tirava o lenço. Mas apesar de sua estranheza, desmazelo e completa ausência de assepsia, ele era um excelente médico.
Contudo, ele pareceu não atribuir grande urgência às primeiras dores de Jenny. Puxou o catarro, cuspiu e acenou com a cabeça.
- Aparecerei por lá dentro de uma hora. - Depois, ele gritou pela porta aberta, para a sala de espera: - O próximo, por favor.
David ficou transtornado porque Scott não o acompanhou imediatamente. Ele voltou para casa e descobriu que Ada e Jenny haviam subido. Ficou esperando pela chegada de Scott, apreensivo.
Contudo, quando o médico apareceu, por volta das sete horas, assegurou a David, embora as dores de Jenny estivessem piores, que nada podia fazer por enquanto. David compreendia que um primeiro parto era sempre um processo prolongado e perguntou ao médico se Jenny teria de sofrer por muito tempo. Olhando para o fogo da cozinha por um minuto inteiro, antes de escarrar, Scott respondeu:
Não creio que vá demorar tanto assim. Voltarei antes da meia-noite.
Foi difícil esperar até meia-noite. As dores de Jenny foram se tornando cada vez mais rápidas e intensas. Ela parecia não ter mais forças nem qualquer ânimo para suportar as dores. Mostrava-se aos turnos irritada, angustiada, histérica, exausta. O quarto em que investira tanto cuidado e atenção, com o berço cheio de rendas num canto, as novas cortinas de musselina nas janelas e o lindo pano de renda em cima da cómoda, ficou completamente desordenado.
O clímax ocorreu quando houve um débil miado que fez Jenny gritar e revelou o fato de que Pretty estava debaixo da cama.
E foi então que Jenny desistiu. Embora Ada lhe dissesse que deveria continuar a andar, ela estendeu-se de costas na cama, segurando a barriga, chorando em meio às roupas de cama retorcidas. Esqueceu todas as instruções que lera nos livros e no Chickabiddy's Journal. Ficou completamente descontrolada, deitada de costas na cama desarrumada, as pernas separadas, a camisola levantada, os cabelos esparramados pelo rosto fino e pálido, o suor porejando da testa. De vez em quando, ela fechava os olhos e gritava:
- Oh, Deus! Ai! Ai! Ai! Oh, Deus, está doendo novamente nas costas! Ai! Ai! Ai! Oh, mãe, dê-me um pouco de água para beber! Oh, Deus, está cada vez pior!
Não era absolutamente tão romântico quanto Jenny imaginara.
Scott apareceu à meia-noite em ponto e subiu direto para o quarto. A porta foi batida sobre Scott, Ada e Jenny a gritar. Houve mais gritos, o arrastar pesado das botinas de Scott e depois o silêncio.
Clorofórmio, graças a Deus, pensou David. Ele estava encolhido numa cadeira na cozinha, diante do fogo quase apagado. Sofrera cada dor junto com Jenny e agora o silêncio do clorofórmio proporcionou-lhe um alívio quase agoniado. O sofrimento humano sempre o afetava profundamente e o sofrimento de Jenny parecia a síntese de todo o sofrimento humano inevitável. David pensou nela com ternura. Esqueceu todas as brigas e divergências que haviam ocorrido entre os dois. Esqueceu a mesquinhez, impertinências e vaidades de Jenny. Começou a pensar na criança e mais uma vez a criança pareceu-lhe um símbolo... uma vida nova a surgir entre os mortos. Teve uma visão de campos de batalha em que os mortos estavam caídos nas posições mais estranhas, ainda mais do que as posições dos mortos na mina. Em breve ele estaria também naqueles campos de batalha na França. Nugent lhe escrevera do front, onde estava servindo como padioleiro, numa unidade de ambulância agregada aos Fuzileiros de Northumberland. Alistando-se no mesmo centro de recrutamento em Tynecastle, ele também ficaria com os Fuzileiros e esperava que sua unidade estivesse postada perto daquela em que Nugent servia.
Um gemido saiu do quarto lá em cima e depois houve uma cantoria. Era a voz de Jenny cantando. David podia ouvir nitidamente, um verso de uma das antigas canções românticas que Jenny gostava de entoar. Mas as palavras soavam curiosamente engroladas e maliciosas. Era o efeito do clorofórmio. Fazia com que as pessoas cantassem como se estivessem embriagadas.
E depois houve silêncio novamente, um silêncio bastante prolongado, rompido pelo súbito advento de outra voz, uma voz esganiçada e nova, que não era a voz de Jenny, Ada ou Scott, mas uma voz completamente nova, que gritava e se esganiçava como uma flauta. O som dessa foz fina, emergindo da dor e dos gritos, do silêncio tenebroso subsequente, penetrou fundo no coração de David. Novamente o símbolo: em meio ao caos, um novo amanhecer. Ele ficou inteiramente imóvel, as mãos cruzadas, cabeça levantada, um estranho pressentimento nos olhos.
Meia hora depois, Scott desceu a escada e entrou na cozinha. O rosto exibia a expressão cansada e aborrecida que os partos frequentemente acarretam aos médicos com excesso de trabalho e desiludidos. Ele tateou os bolsos à procura de uma passa azul que sempre levava, alegando que era uma cura maravilhosa para lombrigas. Mas Scott realmente gostava de passas e era por isso que sempre as tinha no bolso.
Ele encontrou finalmente uma passa e começou a mastigá-la, enquanto dizia, em tom de indiferença:
- O pequeno artigo chegou.
David não disse nada. Engoliu em seco, acenou com a cabeça.
- Um menino - acrescentou Scott, como uma espécie de resposta automática, tentando incutir algum entusiasmo à sua voz, mas fracassando.
- Jenny está bem?
- Sua mulher está bem, perfeitamente bem. - Scott fez uma pausa, lançando um olhar estranho para David. - Mas o bebé é um tanto delicado. Vai precisar de toda atenção.
Ele lançou outro olhar estranhamente desconfiado para David, mas não disse mais nada. Era um velho rude, com uma prática entre camponeses e mineiros. Mas não estava tão rude agora. Parecia apenas fatigado com a vida, que em momentos como aquele parecia-lhe terrível e incompreensível. Ele bocejou, esticando os braços por cima da cabeça. Acenou com a cabeça para David e cuspiu no fogo que já se extinguira. E depois foi embora.
David ficou parado no meio da cozinha vazia por mais um momento, antes de subir. Bateu na porta do quarto e entrou. Queria estar ao lado de Jenny e da criança. Mas Jenny estava extenuada, completamente extenuada, ainda não inteiramente recuperada do anestésico e propensa ainda por cima a se mostrar histérica. Ada também estava irritada e ocupada, movimentando-se incessantemente pelo quarto. David teve de sair e tornar a descer. Ajeitou sua cama no sofá da sala de visitas. A casa estava completamente silenciosa antes que ele caísse no sono.
Mas David viu o bebé na manhã seguinte. Quando estava sentado à mesa, tomando chocolate e comendo pão, Ada levou-lhe o bebé, orgulhosamente, como se fosse dela. O bebé tomara um banho e estava coberto de talco, impecavelmente vestido, cheio de rendas, como as descrições que se encontravam no Chickabiddy's Journal. Apesar de todo o aparato, o bebé era feio e pequeno. Tinha cabelos pretos e olhos que não paravam de piscar, o nariz sempre escorrendo, pálido, parecendo doentio. O bebé era tão pequeno e feio que o coração de David se derreteu de ternura. Ele largou a xícara de chocolate e ajeitou o bebé nos joelhos. A sensação do bebé em seus joelhos era incrível e maravilhosa. Os olhos do bebé piscavam timidamente na direção dos seus. Havia um pedido de desculpas naquele tímido piscar de olhos do bebé.
- Pronto, pronto! - Ada tornou a pegar o bebé, embalando-o. - Seu pai é muito desajeitado.
Ela se apegava à convenção absurda de que nenhum homem era capaz de segurar um bebé sem que houvesse graves consequências para o bebé. Estranhamente, porém, o bebé ficara quieto nos joelhos de David, enquanto agora começou a chorar. E ainda estava chorando quando Ada se retirou.
David foi para o trabalho pensando no bebé. Quando voltou para casa, ao final do dia, ainda estava pensando no bebé. Começara a sentir a maior afeição pelo bebé pequeno e feio.
Era perfeitamente evidente que o bebé tinha uma saúde delicada. Jenny admitiu-o para si mesma e acabou adotando uma frase perfeitamente descritiva, que usava na presença das visitas. Olhando compadecida para o bebé, ela murmurava:
- O pobre coitado não é muito robusto, segundo diz o médico.
O Dr. Scott receitou alguns pós para o bebé, assim como um unguento para esfregar em seu corpo. E Jenny, depois de seus protestos iniciais, passou a amamentar o bebé. O médico também insistira nisso.
A recordação do parto, considerado um momento torturante e inesquecível, já estava se desvanecendo e Jenny se animava, recuperando-se do desapontamento pelo fato de não haver tido uma menina. Queria dar ao bebé o nome de David. Implorou a David para que lhe deixasse dar o seu nome ao bebé.
- Ele é seu, David - comentou Jenny, com uma lógica ingénua, fitando-o com seus olhos claros e bonitos e sorrindo. - É mais do que certo que tenha o seu nome.
Mas David queria que o bebé tivesse o nome de Robert, seu pai morto e seu filho vivo ambos se chamando Robert. E Jenny, depois de insistir em diversos outros nomes, especialmente Hector, Archibald e Victor, que julgava superiores em termos sonoros e de importância, acabou concordando, submissamente. Queria agradar a David sob todos os aspectos possíveis. Assim, o bebé tornou-se Robert.
Três semanas se passaram. Ada voltou a Tynecastle. Jenny já podia deixar o quarto e reclinar-se languidamente no sofá lá embaixo. Contudo, descobria que o dever de amamentar Robert e cuidar dele era extremamente incómodo, sob muitos aspectos. À medida que suas forças foram voltando e sua vida aproximou-se novamente do normal, as resoluções formadas por sua imaginação romântica pareciam gradativamente menos atraentes. Robert, sendo tão pequeno, tornara-se agora um pequeno estorvo. Jenny sentia-se satisfeita em deixar que David desse banho e ministrasse os medicamentos a Robert, quando ela estava cansada. E, no entanto, de certa forma, Jenny sentia-se estranhamente ressentida com o interesse de David pela criança.
- Você me ama mais do que a ele, David? - perguntou ela uma noite.
- Ou o ama mais do que a mim?
- Claro que não, Jenny.
David riu, enquanto se ajoelhava, com as mangas da camisa levantadas, ao lado da banheira de metal em que Robert estava, na água cheia de espuma de sabão.
Ela não disse mais nada. E, observando-os, a expressão de descontentamento em seu rosto se aprofundou.
À medida que o Ano Novo se avizinhava, Jenny foi se tornando cada vez mais descontente e irrequieta. Tudo parecia errado, não havia nada certo. Ela queria que David partisse logo para o front, ao mesmo tempo em que não queria. Sentía-se orgulhosa num minuto e com medo no instante seguinte. A fim de distrair os pensamentos, começou a ler muitas novelas em brochuras. Esquecera a música agora, jamais se sentava ao piano, não cantava acalantes. Estudava o seu reflexo no espelho por longos períodos, a fim de certificar-se de que sua aparência e seu corpo não haviam sido prejudicados. Mais uma vez, sentia que não tinha amigos. Estava por fora das coisas, a vida passava ao largo. Estava perdendo tudo. Era terrivelmente desolador para Jenny, podia muito bem estar morta. O tempo estava muito úmido agora, ainda por cima. Ela já podia sair de casa, mas não havia sentido em fazê-lo debaixo de chuva. Além do mais, Robert tinha de ser amamentado a cada quatro horas, o que naturalmente interferia com qualquer passeio decente que ela pudesse imaginar.
Na véspera do Ano Novo, no entanto, a chuva cessou e o sol apareceu. Jenny sentiu que não podia aguentar por mais tempo. Precisava dar um passeio de qualquer maneira. Tinha de sair. Já se haviam passado anos, centenas de anos, desde que dera um passeio pela última vez. Iria visitar a mãe em Tynecastle. O rosto animado pela decisão, ela subiu correndo, vestiu-se meticulosamente e tornou a descer. Eram quatro horas da tarde. Ela amamentou Robert, ajeitou-o no berço, escreveu um bilhete apressado para David, informando que estaria de volta às oito horas.
David ficou satisfeito quando voltou e encontrou o bilhete de Jenny, contente em pensar que Jenny estava fazendo um passeio e estranhamente alegre por ter Robert só para si.
Robert estava adormecido em seu berço no canto, ao lado do fogão da cozinha. David tirou as botinas e ficou de meias, a fim de não fazer barulho. Fez um chá e apreciou imensamente tomá-lo em companhia de Robert.
Depois, pegou um livro e sentou-se para lê-lo ao lado do berço. O livro era Além do Bem e do Mal, de Nietzsche. David estava muito interessado em Nietzsche. Mas David olhava mais frequentemente para Robert do que para Nietzsche.
Robert acordou às sete e meia, preparando-se para a mamada. Ficou quieto, deitado de costas, olhando para o teto cheio de rendas do berço. Que estranha visão do mundo ele deve ter, pensou David.
Por cerca de meia hora, Robert contentou-se com a sua estranha visão do mundo, enquanto disfarçava o apetite chupando o polegar. Ao final, porém, o polegar já não era mais satisfatório. Depois de alguns ganidos preliminares, Robert desatou a chorar. David tirou Robert do berço e tratou de acalmá-lo. Foi bem-sucedido por algum tempo, mas depois Robert recomeçou a chorar.
Ansiosamente, David olhou para o relógio. Já passava das oito e meia. Jenny devia ter perdido o trem e o seguinte não chegaria antes das 10 horas! David pensou como Robert estava totalmente dependente de Jenny.
Ele fez o melhor que podia. Percebeu que Robert estava molhado. Embora não tivesse muita experiência com fraldas, tratou de mudar a de Robert. O bebé pareceu ficar satisfeito e, à guisa de gratidão, agarrou os cabelos de David, quando este tornou a levantá-lo.
David riu e Robert riu também. Parecia faminto, mas bastante aliviado, afora isso. David pôs Robert no tapete diante do fogo, o bebé começou a sacudir as pernas e braços. Parecia ter se tornado um bebé bem mais saudável naqueles últimos dias. Estava mais gordo, os furúnculos iniciais haviam desaparecido, já não fungava tanto. Mas agora estava extremamente faminto e se esgoelava desesperadamente, à medida que as 10 horas se aproximavam.
Com uma crescente indignação pelo atraso de Jenny, David ficou de quatro e começou a falar com Robert, tentando acalmá-lo, tranquilizá-lo. Nesse momento, a porta se abriu e Jenny entrou. Estava excepcionalmente animada. Fora ao cinema com Clarry e depois tomara o seu copo de porto. Parou na porta, uma das mãos no quadril, um sorriso nos lábios vermelhos. E depois, subitamente, ela começou a rir. Estava convulsionada pelo riso diante da cena de David e Robert no tapete.
David contraiu os lábios.
- Não ria assim - disse ele, asperamente.
- Não posso evitar - respondeu ela, rindo. - É uma coisa... uma coisa que me passou pela cabeça...
- Como assim?
- Oh, não é nada - disse Jenny prontamente. - Apenas uma coisa engraçada.
Houve uma curta pausa. David levantou-se e pegou o bebé.
- Robert está faminto - disse ele, ainda furioso e indignado. - Será que não pode ver que ele quer ser amamentado?
Jenny adiantou-se, os pés um tanto trôpegos.
- Pode me dar. Sou eu a única que pode providenciar isso, não é mesmo?
Ela pegou Robert e sentou-se abruptamente no sofá. Talvez dois copos de porto tivessem proporcionado uma certa liberalidade a seus movimentos. David observava-a sombriamente. Jenny abriu a blusa. Os seios grandes pularam para fora, como úberes, cobertos de veias, brancos, intumescidos, o leite já pingando. Enquanto Robert era aninhado contra um seio e punha-se a sugar vorazmente, o leite pingava do outro. Corada e feliz, Jenny sorriu, balançando-se sensualmente para frente e para trás no sofá, indiferente ao leite que escorria.
Mas David desviou-se. Sentia-se subitamente revoltado. Simulou estar atiçando o fogo por algum tempo, depois tornou a encarar Jenny.
- Não se esqueça de uma coisa! - disse ele, em voz baixa e solene. Espero que você cuide direito de Robert quando eu estiver longe.
- Pode deixar que eu cuidarei, David - respondeu Jenny. - E você sabe disso perfeitamente.
David partiu para Tynecastle no dia seguinte e de lá foi direto para o acampamento em Catterick. Três meses depois, a 5 de abril, ele embarcou ; com a unidade de ambulâncias de campanha agregada ao 59 Batalhão dos Fuzileiros de Northumberland, na França.
No segundo domingo de setembro de 1915, o carro de Hetty subiu rapidamente pelo caminho de cascalho do Law. Parado na janela da sala de jantar, com as mãos nos bolsos, Arthur ficou observando Hetty saltar, muito elegante em seu uniforme caqui, avançando para a porta da frente.
Arthur soubera que Hetty viria ao Law naquele dia. Fora impossível não tomar conhecimento da vinda de Hetty. Tia Carrie o mencionara, a mãe o mencionara, e no almoço de sábado Barras correra os olhos pela mesa e comentara, incisivamente:
- Hetty virá tomar chá conosco amanhã". Ela pediu o dia de folga especialmente para isso.
Arthur não dissera nada. Será que o tomavam por algum idiota? Era óbvio demais; aquele "especialmente" possuía o seu próprio humor sombrio.
Durante os últimos oito meses, Hetty estivera frequentemente no Law. Como uma das primeiras a ingressar no Corpo Feminino de Emergência, Hetty tinha agora um cargo no quartel-general executivo do Serviço Feminino Voluntário, em Tynecastle. Era muitas vezes últil a Barras nas atividades dele, correndo entre Tynecastle e Sleescale em sua baratinha de dois lugares, levando documentos oficiais para que ele assinasse. Naquele domingo, porém, Arthur sabia perfeitamente que os deveres de Hetty nada tinham de oficiais. Hetty estava tendo um dia de folga para ser docemente extra-oficial. Ele percebia tudo claramente e poderia até ter rido da situação, apesar de sua amargura.
Hetty entrou na sala. Ao vê-lo ali, parado junto à janela, ela sorriu jovialmente e estendeu as mãos, com uma pequena exclamação de prazer.
- Estava à minha espera! Foi muita gentileza sua, Arthur!
Ela estava extremamente jovial, mas Arthur já previra isso. Não retribuiu o sorriso. E disse:
- Tem razão, eu estava à sua espera.
O tom de Arthur poderia alertá-la, mas Hetty não se deixou desanimar.
- Onde estão os outros?
- Todos desapareceram. Todos se afastaram, prestativos, a fim de que pudéssemos ficar a sós.
Hetty riu, com uma expressão de suave censura.
- Você fala como se não quisesse que ficássemos a sós. Mas sei que não tem a menor intenção de ser grosseiro. Eu o conheço melhor do que você próprio se conhece. E então, o que vamos fazer agora? Vamos dar um passeio?
Arthur ficou ligeiramente corado e desviou os olhos dela. Mas disse, um momento depois:
- Está certo, Hetty, vamos dar um passeio.
Ele pegou o chapéu e o casaco e saíram para o passeio que geralmente faziam juntos, embora há meses isso não acontecesse. Era o passeio pela praia da comporta. O dia de outono era sereno, a praia estava avermelhada, as samambaias estalavam sob os pés deles. Foram andando em silêncio. Ao chegarem ao final da praia, sentaram-se na raiz alta de um carvalho, desenterrada por uma sedimentação da terra. Era o lugar em que habitualmente se sentavam. Lá embaixo, a cidade estava quieta no domingo, o mar se estendendo além, tremeluzindo a distância e fundindo-se com o céu. As chaminés da Neptune erguiam-se escuras e altas contra o fundo claro de céu e mar. Arthur ficou olhando sombriamente para as chaminés.
Dali a pouco, depois de ajeitar a saia em torno das pernas, com um recato sedutor, Hetty acompanhou o olhar dele.
- Por que está olhando para a mina desse jeito, Arthur?
- Não sei - respondeu ele, amargamente. - Os negócios estão indo muito bem, com o carvão vendendo a 50 shillings a tonelada.
- Sei que não tem nada a ver com isso - disse Hetty, com um impulso de curiosidade. - Gostaria que me contasse tudo, Arthur. Tem andado muito esquisito ultimamente, tão diferente do que era antes. Conte-me tudo, querido. Talvez eu possa ajudá-lo.
Ele virou-se para Hetty, um excitamento penetrando por sua amargura. Sentiu o impulso de contar, descarregar o peso terrível que o acabrunhava e sufocava sua própria alma. E disse, em voz baixa:
- Não consigo esquecer o desastre na Neptune.
Hetty ficou aturdida, mas conseguiu disfarçar. E disse, como se estivesse tentando acalmar uma criança transtornada:
- De que maneira, Arthur?
- Creio que o desastre poderia ter sido evitado.
Ela observou atentamente o rosto melancólico de Arthur, exasperada, sentindo que precisava ir ao fundo daquele enigma irritante.
- Alguma coisa o está preocupando terrivelmente, Arthur querido. Não quer me contar o que é?
Ele tornou a fitá-la. E disse, lentamente:
- Creio que as vidas de todos aqueles homens foram desperdiçadas desnecessariamente, Hetty.
Arthur parou de falar. De que adiantava? Ela jamais poderia compreender.
Contudo, Hetty teve um vago vislumbre das obsessões mórbidas que ardiam na mente dele. Pegou-lhe a mão. Procurou acalmá-lo. Disse gentilmente:
- Mesmo que isso tenha acontecido, Arthur, não acha que a melhor coisa agora é esquecer? Já se passou muito tempo. E foram apenas cem homens. O que isso representa em comparação com os milhares e milhares de bravos que estão morrendo na guerra? É disso que você deve se lembrar agora, Arthur querido. Estamos em guerra. É uma guerra mundial, bastante diferente do pequeno desastre que tivemos aqui na mina.
- Não, não é diferente - disse ele, comprimindo a mão contra a testa.
- É exatamente a mesma coisa. Não posso encarar de qualquer outra maneira. Não posso separar uma coisa da outra em minha mente. Os homens no front estão sendo mortos exatamente como os homens na mina, desnecessariamente, horrivelmente. O desastre e a guerra significam exatamente a mesma coisa para mim. Tornaram-se unidos num único grande homicídio em massa.
Hetty assumiu o controle da situação. Abandonou os labirintos tortuosos pelos quais Arthur estava conduzindo-a e pegou o atalho para casa. De certa forma, gostava muito de Arthur. Era uma mulher prática, orgulhava-se de ser prática. E tencionava ser gentil.
- Fico contente que tenha me contado, Arthur - disse ela, incisivamente. - Está se preocupando terrivelmente, sem qualquer motivo. Tenho percebido que andava muito esquisito ultimamente, mas não tinha a menor ideia do motivo. Pensei... ora, eu não sabia direito o que pensar. Arthur fitava-a ainda com uma expressão sombria.
- O que você pensou?
Hetty hesitou por um instante.
- Pensei que você estivesse... que você não queria ir para a guerra.
- E eu não quero mesmo.
- Mas o que eu pensei, Arthur querido, foi que você estava com medo de ir.
- Pois talvez eu esteja com medo - murmurou ele, apaticamente. Talvez eu seja um covarde, por tudo o que posso saber.
- Não diga bobagem! - Hetty falou incisivamente, afagando-lhe a mão.
- O que acontece é que você se encontra num terrível estado de nervos. Os homens mais bravos podem ficar assim. Alan contou que se sentiu apavorado pouco antes da ação que lhe valeu a condecoração. Pois agora preste muita atenção, meu querido. Tem pensado e se preocupado demais. Quer um pouco de ação, para variar. E chegou o momento de eu ajudá-lo.
A expressão de Hetty tornou-se inquisitiva. Ela sorriu, muito meiga, segura de si, consciente de seu sexo, sua atração, seu controle.
- E agora preste atenção, por favor, meu garotinho tolo e querido. Está lembrado, Arthur, daquele fim de semana em Tynecastle, quando você queria que ficássemos noivos e eu disse que ainda éramos muito jovens?
- Lembro, sim - respondeu Arthur, lentamente. - Como poderia esquecer tão depressa?
Hetty levantou as pupilas escuras para ele, com uma expressão de intimidade, recomeçando a afagar-lhe a mão.
- bom... seria diferente se você estivesse no exército, Arthur querido. Ele empertigou-se. Finalmente acontecia o que ele temera, sob o odioso
disfarce de ternura. Mas Hetty não percebeu a súbita aversão que o deixou rígido e incapaz de falar. Ela estava arrebatada por seu próprio sentimento, que não era de amor, mas sim o senso de sacrificar-se. Chegou mais perto de Arthur e murmurou:
- Sabe que gosto muito de você, Arthur. Desde que éramos pequenos. Por que não ficamos logo noivos e acabamos com todas essas estúpidas incompreensões? Você tem preocupado seu pai, preocupado todo mundo, inclusive a pobrezinha de mim. Tenho certeza de que vai se sentir muito mais feliz no exército. Ambos nos sentiremos mais felizes e teremos momentos maravilhosos.
Arthur continuou calado por mais um momento. Mas quando Hetty levantou o rosto, um pouco corado agora, com os cabelos louros sedosos a lhe emoldurarem o rosto, sedutoramente, ele respondeu, tensamente:
- Não tenho a menor dúvida de que seria maravilhoso. Infelizmente, já tomei a decisão de não ingressar no exército.
- Oh, não, Arthur! Não pode estar falando sério!
- Mas estou.
A primeira reação de Hetty foi de consternação. Ela apressou-se em dizer:
- Mas escute, Arthur, escute por favor! Não vai ser uma questão de opção. Não vai ser tão fácil quanto você está pensando. Eles vão promover a conscrição obrigatória daqui a pouco. Sei disso. Já ouvi comentários no quartel-general. Vão convocar todos os homens entre 18 e 41 anos que não estejam isentos. E acho que você não ficará isento. Seu pai cuidaria disso, se o achasse indispensável aqui.
- Deixe meu pai fazer o que achar melhor - disse Arthur. em voz baixa e amarga. - Pelo que estou vendo, você já conversou com ele a meu respeito.
- Por favor, Arthur! Por mim! Por favor, por favor!
- Não posso - respondeu ele, firmemente.
O rosto de Hetty estava agora vermelho de vergonha, em parte por Arthur, mas principalmente por si mesma. Retirou a mão bruscamente. Para ganhar tempo, fingiu estar ajeitando os cabelos, de costas para ele. E depois disse, num tom inteiramente diferente:
- Espero que compreenda que isso é horrível para mim. .. estar praticamente noiva de um homem que se recusa a fazer a única coisa decente que lhe é pedida.
- Lamento muito, Hetty, mas você não entende...
- Cale-se! - disse ela, furiosa. - Nunca fui tão insultada em toda a minha vida. Nunca. É... é inadmissível. Não pense que vou continuar presa a você. Fiz isso apenas por seu pai. Ele é um homem de verdade, não um fraco como você. Claro que não podemos continuar. Não quero ter nada a ver com você.
- Está certo - disse ele, quase inaudivelmente.
A satisfação de Hetty de magoá-lo era agora quase tão grande quanto fora antes a satisfação dela na rendição. Ela mordeu os lábios, com uma expressão decidida.
- Só há uma conclusão a que posso chegar, uma única conclusão a que todo mundo pode chegar. Você está com medo, é esse o seu problema. - Ela fez uma pausa, antes de lançar-lhe a palavra terrível. - Você não passa de um covarde, um covarde miserável.
Arthur empalideceu ainda mais. Ela ficou esperando que ele falasse. Mas Arthur não disse nada. E com um gesto de desprezo contido, Hetty levantou-se.
Ele também se levantou. Voltaram juntos para o Law, em completo silêncio. Arthur abriu a porta da frente para ela. Mas depois de entrarem, ele subiu direto para o seu quarto, deixando-a no vestíbulo. Hetty ficou parada ali, atordoada, os olhos brilhando de raiva e autocompaixão. Depois, abruptamente, ela virou-se e foi para a sala de jantar.
Barras estava ali. Estava sozinho, estudando o mapa cheio de bandeiras na parede. Virou-se ao ouvi-la entrar, esfregando as mãos, um tanto efusivo em sua recepção.
- Hetty, Hetty! - exclamou ele. - Tem alguma notícia a me dar? Durante todo o caminho de volta, Hetty aguentara firme. Mas a afabilidade no rosto de Barras fê-la desmoronar. E ela desatou a chorar.
- Oh, Deus... - soluçou ela. - Estou terrivelmente transtornada. Barras aproximou-se. Fitou-a atentamente e, num súbito impulso, passou o braço pelos ombros esguios e sedutores.
- Ora, minha pobre Hetty, o que aconteceu? - perguntou ele, com um ar protetor.
Angustiada, Hetty não pôde dizer-lhe. Mas agarrou-se a ele, como se fosse um refúgio numa tempestade. Tinha o estranho sentimento de que Barras estava cuidando dela, salvando-a de Arthur. Um senso de vitalidade e força invadiu-a. Fechou os olhos e entregou-se àquela sensação nova e estranha de proteção.
Nos seis meses seguintes à sua designação para gerente, Joe encontrou muita coisa com que se ocupar. Chegava cedo na Platt Lane e saía tarde; estava sempre à disposição quando era procurado; projetava uma imagem de energia e entusiasmo ilimitados. No começo, ele se portou cautelosamente. com uma astúcia natural, compreendeu que Fuller, o chefe do escritório, Irving, o chefe dos desenhistas, e Dobbie, o caixa, não haviam aceitado de bom grado a sua promoção. Eram homens já idosos, prontos a se ressentirem da autoridade de um jovem de 27 anos, que ascendera rapidamente do nada. Dobbie em particular, um homem ressequido e magro, uma verdadeira máquina de calcular, com um pincenê equilibrado na ponta do nariz e um colarinho alto que nem o de um pároco, mostrou-se azedo como vinagre. Mas Joe era cuidadoso. Sabia que o seu dia chegaria. Enquanto isso, ele continuava a insinuarse nas boas graças de Millington.
Nada era demasiado para Joe. Ele sempre tinha um meio de aliviar Stanley das tarefas pequenas e desagradáveis, que com o passar do tempo se incorporavam às suas funções. Em março, sugeriu uma reunião nas manhãs de sábado entre Millington e ele próprio, na qual seriam discutidos todos os assuntos importantes da semana. Ao final do mesmo mês, ele propôs a aquisição de seis cadinhos adicionais e aventou a possibilidade de se contratar mulheres para o trabalho extra. Pôs Vic Oliver no comando da oficina e o velho Sam Doubleday na fundição. Tanto Oliver como Doubleday estavam em seu bolso. Em abril, Mr. Clegg morreu e Joe mandou uma enorme coroa para o funeral.
Gradativamente, Joe foi ficando muito íntimo de Millington e passou a conhecer todas as complexidades do negócio. Os lucros que a fábrica estava obtendo eram espetaculares para Joe. Somente as bombas Mills, pelas quais o Governo pagava a Stanley sete shillings e seis pence a unidade, custavam em média nove pence cada. E estavam produzindo-as às dezenas de milhares. Deus Todo-Poderoso!, pensou Joe, sentindo as palmas comicharem. Seu salário, agora de 75 libras por ano, tornou-se insignificante. Joe redobrou seus esforços. Stanley e ele tornaram-se íntimos; frequentemente almoçavam juntos no escritório, comendo sanduíches e tomando cerveja; saíam ocasionalmente para o clube de Stanley, o County, ou para o Central Hotel. E não demorou muito para que Joe acompanhasse Millington à primeira reunião do Comité Local de Munições. Tudo isso aconteceu suavemente, sem que fosse necessário forçar coisa alguma. Quando Stanley estava ausente, a responsabilidade parecia assentar naturalmente sobre os ombros largos de Joe.
- Fale sobre isso com Mr. Gowlan - tornou-se uma das frases mais conhecidas de Stanley, quando queria escapar ao tédio de uma entrevista irritante.
Foi assim que Joe começou a fazer alguns contatos importantes, até mesmo se encarregando de uma parte das compras: sucata, chumbo e especialmente antimônio. O preço do antimônio elevou-se até 25 libras a tonelada. E foi por causa do preço do antimônio que Joe acabou conhecendo Mawson.
Jim Mawson era um homem imenso, de papada e olhos pequenos, vigilantes e cuidadosamente neutros. Seus antecedentes eram ainda mais obscuros do que os de Joe, o que fez com que este o encarasse favoravelmente desde o início. Descrevia-se em termos vagos como negociante e fornecedor. O núcleo de suas atividades estava concentrado num grande armazém no cais de Malmo, onde uma placa antiga, agora quase ilegível, dizia o seguinte: Jim Mawson, Ferro e Metais. Corda Velha, Lonas, Sebo, Refugos de Borracha, Peles de Coelho, Trapos, Ossos, Etc., Vendas por Atacado, Fornecedor e Negociante em Geral. Mas as atividades de Mawson se estendiam muito além disso; ele participava dos novos contratos de construção em Wirtley; era bastante ativo na Bolsa de Tynecastle; era um dos homens que estavam se aproveitando da guerra; conhecido como um homem vigoroso, ele estava se tornando mais rico a cada dia que passava. Uma das atividades secundárias de Mawson atraiu Joe particularmente, quando dela tomou conhecimento. Impressionou-o como típica da astúcia de Mawson. A escassez de papel já atingira Tynecastle. Jim Mawson, perfeitamente a par da situação, contratara um grupo de garotas, todas dos cortiços de Malmo, que percorriam regularmente a cidade todas as manhãs, às cinco horas, tirando os papéis das latas de lixo. Coletavam papel e papelão - papelão era sempre melhor - cada uma recebia dois shillings e seis pence por semana, o que era melhor do que elas mereciam, segundo dizia Jim. Quanto a Jim, ele obtinha um preço estupendo pelo papel assim coletado. Mas era a ideia em si que atraía Joe: que coisa sensacional ganhar dinheiro à custa do lixo!
Joe sentiu-se de fato um irmão de sangue de Mawson. Não se sentia obrigado a disfarçar seus motivos na companhia de Mawson; e tinha a impressão de que Mawson se sentia atraído para ele da mesma forma. Depois da conversa preliminar sobre o problema do antimônio, Mawson convidou Joe para visitá-lo em sua casa na Peters Place. Era uma mansão vasta e em péssimo estado de conservação, uma hipoteca que Mawson executara e para lá se mudara, repleta de pesados móveis amarelos, com tapete na escada já puído, muita sujeira por toda parte. Foi ali que Joe conheceu a Sra. Mawson, uma mulher já idosa, de cabelos crespos e esperta, que se orgulhava de ter possuído outrora uma loja de penhores. Joe empenhou-se em agradar a Ma Mawson, cumprimentando-a com uma deferência jovial, inclinando-se sobre a mão suja como se fosse capaz de lambê-la. O jantar consistiu em um bife grande e cebolas, servido na panela, junto com diversas garrafas de cerveja preta. Depois do jantar, Mawson ofereceu a Joe um aviso sobre as negociações na Bolsa. Falando pelo canto da boca, plácido e lacónico numa poltrona grande de couro, Mawson disse:
- É bom comprar algumas ordinárias da Franks. Não valiam nada antes da guerra. Fabricavam os piores biscoitos que deixavam qualquer um engasgado. Não se tinha coragem de dá-los nem para um cachorro. Mas estão saindo muito bem nas trincheiras. Eles vão dar dividendos de 15 por cento. É melhor comprar antes dos dividendos serem anunciados.
Comprando imediatamente, Joe ganhou 300 libras graças à informação de Mawson. Regozijando-se, ele imaginou um futuro espetacular, em cooperação com Mawson. Ainda por cima, isso era apenas o princípio. A guerra ainda se prolongaria por muito tempo e lhe proporcionaria tudo o que desejava na vida. Era a guerra mais maravilhosa que ele já conhecera e torcia para que durasse para sempre.
Somente uma coisa prejudicava o esplendor das perspectivas de Joe... Laura. Sempre que pensava em Laura, o que acontecia com frequência, Joe franzia o rosto, numa expressão aturdida e frustrada. Não conseguia entendêla. Estava convencido de que, de alguma forma sutil, devia a sua posição atual a Laura; na verdade, devia-lhe mais do que a sua posição. Inconscientemente, descobriu-se a aceitar insinuações de Laura, resolvendo os problemas e moldando-se à imagem dela, imaginando como ela gostaria disso... ou daquilo. Joe ainda era ignorante, mas não estava se saindo tão mal assim. Deixou de -passar brilhantina nos cabelos, abandonando o cheiro penetrante que fizera uma sobrancelha de Laura se altear ligeiramente; as botinas marrons só eram usadas com o terno marrom; as gravatas tornaram-se um pouco menos espalhafatosas; a corrente do relógio estendia-se agora apenas entre os bolsinhos inferiores do colete; numa noite escura, jogara no Tyne os anéis imitando ouro e a pérola falsa. Em questões de detalhes mais íntimos, a influência de Laura também prevalecia. Por exemplo: depois de uma olhada no banheiro em Hilltop, com seus sais de banho, cristais, amónia de toalete, esponja e spray, Joe fora direto à farmácia e resolutamente comprara uma escova de dentes.
Mas o problema era que Laura permanecia perversamente inacessível. Encontravam-se frequentemente, mas sempre na presença de Stanley. Joe queria ficar a sós com ela, teria contribuído generosamente para a caridade em troca de ficar a sós com ela, mas tinha medo de tomar a iniciativa. Não estava completamente seguro; sentia-se aterrorizado com a possibilidade de cometer um erro terrível, que lhe custaria sua posição maravilhosa e as perspectivas ainda mais maravilhosas.
À noite, ele ficava sentado em seu quarto pensando nela, desejando-a, evocando a sua imagem, imaginando o que ela estaria fazendo naquele momento específico: tomando um banho, escovando os cabelos, pondo as meias compridas de seda. Certa ocasião, os pensamentos deixaram-no tio ardoroso que ele saiu correndo para a cabine telefónica mais próxima. com o coração aos solavancos, discou para a casa de Laura. Mas foi a voz de Stanley que atendeu. Dominado pelo pânico, Joe largou o telefone e voltou para o seu quarto.
Era uma situação angustiante. Sentia em relação a Laura a mesma coisa que experimentara diante de sua primeira experiência sexual: ela representava algo estranho e novo, um mistério que Joe queria desvendar. Mas não conseguia. Laura permanecia um enigma. Ele se empenhou a fundo em sondar a personalidade dela e ocasionalmente teve vagos vislumbres de compreensão. Para começar, desconfiava que Laura estava totalmente cansada de Stanley, com seus acessos de mau humor e lamento, com seu patriotismo, que ultimamente se tornara cada vez mais intenso. Ela sentia-se profundamente entediada com o espírito de escola pública do marido, seus elevados ideais e o tipo de conversa de criança que Stanley reservava para os seus momentos de carinho: "Como está a minha gatinha bonitinha?", Joe ouvira-o dizer uma vez e poderia jurar que Laura se empertigara, contrafeita. Contudo, Laura era leal a Stanley. .. e isso, repetia-se Joe interminavelmente, era uma verdadeira praga.
Joe tinha uma imensa vaidade. Via-se como um homem bonito e arrojado. Mas será que Laura também o via assim?
Laura estava interessada nele. Parecia reconhecer as suas possibilidades, demonstrava um certo interesse zombeteiro por Joe. Não tinha ilusões sobre a moralidade dele. O sorriso que não sorria de Laura era a reação imediata a todos os protestos de boa fé e elevados ideais que Joe fazia; contudo, quando ele a cercava pelo lado oposto, usando uma tática inversa, os resultados eram quase que igualmente desastrosos. Numa ocasião, durante o chá, Joe contara uma anedota ligeiramente vulgar. Stanley rira efusivamente, mas Laura ficara impassível, fria e distante. Joe corara como nunca lhe acontecera, sentindo-se a pique de morrer de vergonha. Laura era mesmo muito estranha. Não era um tipo. Ela era própria.
A questão do trabalho de guerra revelava muito bem a esquisitice de Laura. Todas as mulheres de Yarrow estavam loucas pelo trabalho de guerra, havia uma profusão de uniformes, uma perfeita epidemia de corpos, comités e associações. Hetty, a irmã de Laura em Tynecastle, jamais se mostrava sem o uniforme caqui. Mas Laura não queria saber disso. Só ia à cantina nos novos galpões de munições em Wirtley porque, como comentara ironicamente para Joe, gostava de ver as bestas se alimentarem. Servia café e sanduíches aos homens que trabalhavam na fabricação de munições, mas não ia além disso. Laura mantinha-se reservada. E Joe, para sua infinita exasperação, não conseguia aproximar-se.
Junho chegou e a mesma situação persistiu. E foi então que, no dia 16, Stanley deu a Joe a segunda surpresa desconcertante de sua vida. Passavam 15 minutos de meio-dia e Millington, que passara a manhã inteira ausente, meteu a cabeça pela porta da sala de Joe e disse:
- Preciso falar com você, Gowlan. Venha à minha sala.
A extrema solenidade na voz de Stanley deixou Joe aturdido. com um ligeiro sentimento de culpa, ele levantou-se e seguiu Stanley. Chegando à sua sala, Stanley afundou na cadeira por trás da mesa e começou a folhear impacientemente alguns papéis. Stanley vinha se mostrando muito impaciente ultimamente. Era um homem curioso. Até onde se podia determinar, era um homem extremamente comum; espiritualmente, era cheio de clichés; tinha ideias comuns e gostava de coisas vulgares. Apreciava o bridge e o golfe; gostava de histórias de detetives ou uma boa novela que envolvesse um tesouro enterrado; acreditava que um britânico era melhor do que cinco estrangeiros, quaisquer que fossem; em tempo de paz, jamais perdia uma corrida de carros; era também um homem maçante, contando sempre as mesmas histórias, interminavelmente; falava horas a fio a respeito da maneira como St. Bede's vencera Giggleswick no ano anterior. Mas tudo isso estava impregnado de uma estranha veia de descontentamento, um complexo de fuga reprimido. Ele chegava ao escritório na manhã de segunda-feira com os cantos da boca descaídos, numa expressão apática, toda a sua atitude parecia dizer: Oh, Deus, ainda continuo a aturar tudo isso!
Seus negócios estavam prosperando e, no início, isso fizera com que ele ficasse intensamente animado. Queria ganhar dinheiro e fora extremamente agradável ver os lucros entrarem a uma média de mil libras por semana. Agora, no entanto, "o dinheiro não era tudo". Seu descontentamento aumentou quando foi criado o Ministério das Munições. A Millington tornou-se então parte do esquema oficial; eram subcontratados para abastecer os galpões em Wirtley; o trabalho pioneiro estava acabado; tudo estava acertado, ordenado e oficial; havia no total menos coisa para Stanley fazer; surgira uma espécie de calmaria; e embora ele clamasse antes por um pouco de sossego, não gostou quando isso aconteceu.
Ele começou a sentir-se perturbado. As bandas em particular deixavam Stanley transtornado. Sempre que uma banda passava pela rua, tocando Tipperary ou Good-bye, um ligeiro rubor se insinuava nas faces de Stanley, os olhos ardiam, as costas se empertigavam. Mas depois que a banda passava e a música se desvanecia, quando o ruído dos homens marchando não passava de um eco em seu coração, Stanley deixava escapar um suspiro, os ombros descaíam.
Os avisos também preocupavam-no. Yarrow reagira prontamente ao chamado de homens para o exército e muitas janelas exibiam um aviso: UM HOMEM deixou esta casa a fim de lutar pelo Rei e pelo País. A palavra HOMEM estava em letras maiúsculas e Stanley sempre se orgulhara de ser um homem de proporções acima do normal.
Quanto aos cartazes de recrutamento, a expressão severa no rosto de Kitchener e o dedo que lhe apontava não o deixavam sossegado. Ao passar por esses cartazes, Stanley sentia-se angustiado, inquieto e afogueado, apertando o cachimbo entre os dentes e imaginando por quanto tempo mais conseguiria aguentar.
Mas não foi o dedo a apontar e sim o jantar dos antigos alunos de St. Bedes que levou Stanley ao momento de decisão. O jantar fora realizado na noite anterior em Dilley's Rooms, em Tynecastle. Agora, Millington olhou para Joe através da mesa e anunciou solenemente:
- Joe, há uma grande aventura acontecendo na França e estou perdendo-a!
Joe não compreendeu. Seu principal sentimento era de alívio pelo fato de Stanley não haver descoberto suas transações com o antimônio.
- Acho que você deve tomar conhecimento - continuou Stanley, a voz se alteando, um pouco histérica. - Tomei a decisão de ingressar no exército.
Um silêncio tenso. O choque era tão grande que Joe ficou completamente descontrolado. Empalideceu e balbuciou:
- Mas não pode! O que vai acontecer aqui?
- Conversaremos sobre isso mais tarde. - Stanley repeliu prontamente o problema. - Pode ter certeza de que vou mesmo. Fiquei absolutamente convencido na noite passada. Durante o jantar. Santo Deus, não consigo imaginar como pude aguentar por tanto tempo. Pode imaginar uma coisa dessas? Todo mundo de uniforme, menos eu! Todos os meus colegas de uniforme e eu continuando como civil! Senti-me como um estranho. Hampson, que era da minha turma, deixou-me atordoado. Ele e' agora major no Batalhão de Escolas Públicas. E lá estava Robbins, que era um tipo insignificante na escola e que virou agora um capitão, com dois galões por ferimentos. Não posso mais aguentar,.Gowlan. Tenho de ingressar no exército de qualquer maneira! Joe respirou fundo, meio trémulo, fazendo um esforço para se controlar. Ainda não podia acreditar, a coisa era boa demais para ser verdade.
- Está realizando um trabalho de importância nacional. Jamais o aceitarão no exército.
- Terão de me aceitar de qualquer maneira. A fábrica funciona agora sozinha. Os contratos são automáticos. Dobbie cuida das contas e ainda há você... que conhece tudo pelo avesso.
Joe baixou os olhos rapidamente, murmurando:
- Lá isso é verdade...
Stanley levantou-se de um pulo e começou a andar de um lado para outro da sala.
- Não sou um camarada de mentalidade espiritual, mas não posso deixar de reconhecer que me sinto completamente diferente desde que resolvi atender ao chamado da pátria. O espírito de St. George pela Inglaterra ainda vive. Não está morto, não está absolutamente morto. Estamos lutando pelo que é certo. Qual o homem decente que poderia ficar sentado de braços cruzados enquanto continuam esses ataques aéreos e de submarinos, mulheres são estupradas, hospitais são bombardeados, até mesmo crianças... Oh, Deus, só de ler nos jornais o sangue de um homem começa a ferver!
- Sei como se sente - disse Joe, os olhos ainda fixados no chão. - É uma coisa terrível. Se eu não tivesse o joelho ruim...
O joelho era uma justificativa que Joe descobrira ao visitar uma obscura enfermaria na Commercial Road e desembolsar sete shillings e seis pence por um certificado. E Joe sempre fazia questão de claudicar horrivelmente quando o clima se tornava extremamente marcial.
Mas Stanley, marchando de um lado para outro, estava exclusivamente absorvido em Stanley.
- Tenho direito a um posto de oficial. Levarei algumas semanas para tomar as providências necessárias e depois vestirei um uniforme do Batalhão de Escolas Públicas.
Outro silêncio.
- Estou entendendo - disse Joe lentamente, para limpar a garganta em seguida. - A Sra. Millington não vai gostar.
- Claro que ela não está querendo que eu vá. - Stanley riu e bateu jovialmente nas costas de Joe. - Anime-se, companheiro. É muito decente da sua parte ficar transtornado desse jeito, mas lembre-se de que essa maldita guerra não vai durar muito tempo depois que eu entrar nela.
Ele parou de falar, olhou para o relógio.
- Tenho de sair correndo agora para almoçar com o Major Hampson. Se eu não estiver de volta até as três horas, você pode procurar Rutley para tratar daquelas últimas granadas. O velho John Rutley marcou o encontro, mas você pode explicar-lhe o que está acontecendo.
- Está certo - disse Joe, tristemente. - Irei à reunião em seu lugar.
Assim, Joe foi se encontrar com o velho John Rutley para uma discussão tediosa sobre moldes de granadas, enquanto Stanley se demorava no almoço com Hampson. Às cinco horas da tarde, quando Stanley, depois de vários drinques, estava recostado numa cadeira no clube, convulsionado pelo riso ao ouvir uma das histórias de Hampson sobre uma determinada mademoiselle num certo estabelecimento, Joe estava apertando a mão, firmemente, mas de maneira deferente, do velho John Rutley, que pensava com aprovação que ali estava um jovem que sabia o que fazia.
Naquela noite, Joe foi procurar Mawson com a notícia. Mawson ficou em silêncio por um longo tempo, muito empertigado na cadeira, apertando a barriga com as mãos, a testa larga franzida, os olhinhos fixados em Joe, com uma expressão pensativa.
- Isso vai ser muito útil - disse ele, finalmente. Involuntariamente, Joe não pôde deixar de sorrir.
- Nós dois vamos aproveitar muito bem a situação, Joe - acrescentou Mawson, sem demonstrar qualquer emoção, para em seguida altear a voz: Ma, traga uma garrafa de scotch para Joe e para mim!
Acabaram com a garrafa. Mas, por volta de meia-noite, quando Joe voltou a pé para casa, a emoção que lhe inebriava a cabeça não era uma decorrência do uísque. Estava inebriado por sua grande oportunidade, a chance de conquistar dinheiro, poder, tudo enfim. Ele finalmente chegara ao topo, como dissera Jim, estava afundado até as orelhas entre os homens importantes, precisava agora apenas tomar cuidado para se tornar ele próprio grande, terrivelmente grande. Oh, Cristo, não é maravilhoso? Um grande lugar, Tynecastle, um ar maravilhoso, ruas maravilhosas, prédios maravilhosos... havia agora uma perspectiva inevitável e um dia ele teria muito mais do que podia imaginar. Que noite maravilhosa estava fazendo! Olhe só para a lua, iluminando aquele prédio! O que era mesmo aquilo? O banheiro público? Não importava... um maravilhoso banheiro público! Uma meretriz abordou-o na esquina da Grainger Street.
- Suma da minha frente, sua vagabunda ordinária! - disse Joe, suavemente.
Ele continuou em frente, rindo, completamente desperto, exultante. Teria melhor do que isso, pensava ele, muito melhor. Exultava com a perspectiva de Laura, tão meticulosa, cheia de encantos secretos. Ao diabo com as vagabundas. Mulheres como Laura eram diferentes. E como eram diferentes! Sua fantasia idílica com Laura dominou-o por completo naquela noite, especialmente depois que chegou a seus aposentos e foi para a cama.
Na manhã seguinte, porém, ele estava na Platt Lane às nove horas em ponto, viçoso como uma margarida que acabara de desabrochar, mais deferente do que nunca com Stanley. Havia uma quantidade espantosa de problemas a acertar. Joe era meticuloso, nada lhe escapava.
- Santo Deus, Joe! - exclamou Stanley, bocejando, depois de passarem duas horas a discutir. - Você é demais. Não tinha a menor ideia de que tinha tanto olho para os detalhes.
Ele afagou o ombro de Joe jovialmente, antes de acrescentar:
- Não pode imaginar como aprecio imensamente essa sua preocupação. Mas agora tenho de sair para um encontro com Hampson. Voltaremos a conversar mais tarde.
Havia uma expressão estranha no rosto de Joe enquanto observava o vulto de Stanley desaparecer rapidamente pela porta do escritório.
Os dias foram passando, os acertos finais foram tomados e finalmente chegou a tarde da partida de Stanley para Aldershot. Ele acertara tudo para ir de carro até Carnton Junctíon, pegando o expresso ali, ao invés de viajar no trem parador, que passava por Yarrow. Como uma demonstração especial de consideração, ele pedira a Joe que acompanhasse Laura para a despedida na estação.
Era uma tarde chuvosa. Joe chegou cedo a Hilltop, teve de esperar dez minutos na sala de estar, antes que Laura descesse. Ela usava um costume azul simples e uma pele escura, que proporcionava à sua pele pálida aquela estranha luminosidade que sempre deixara Joe excitado. Ele levantou-se prontamente da cadeira, mas Laura seguiu até a janela, como se não tivesse notado a sua presença. Houve um silêncio. Joe observava-a.
- Lamento que ele vá partir - disse Joe, finalmente.
Ela virou-se e observou-o, com aquela expressão misteriosa que sempre deixava Joe desconcertado. Ele podia sentir que Laura estava triste, talvez furiosa também; ela não queria que Stanley partisse; não, não queria absolutamente que ele fosse embora.
Stanley entrou na sala, esfuziante, como se uma fileira de medalhas já estivesse pregada em seu peito. Ele esfregou as mãos animadamente.
- Um dia horrível, não é mesmo? Pois quanto mais úmido é o dia, melhor é a coisa, não é mesmo, Joe? Ah! Ah! E o que me diz agora da ração de rum para os soldados, Laura?
Laura tocou a sineta e Bessie trouxe uma bandeja de sanduíches e chá. Stanley estava terrivelmente exuberante. Gracejou com Bessie, serviu-se de um uísque com soda, ficou andando de um lado para outro da sala, comendo sanduíches e falando.
- Os sanduíches estão ótimos, Laura. Não espero conseguir coisas assim todos os dias, mas talvez uma ou duas vezes por semana seja possível. Vai precisar me mandar embrulhos de comida de vez em quando, Laura. Um camarada estava contando na noite passada que fica aguardando ansiosamente os embrulhos que recebe de casa. Serve para variar a ração de carne dura, ameixa e maçã.
Ele soltou uma risada. Ria agora de qualquer coisa.
- Hampson, aquele velho patife... - Outra risada. - ...estava me contando sobre o plano que eles imaginaram para fazer guisado irlandês numa lata de ração. Dizem que alguns ordenanças são maravilhosos. Fico imaginando se terei sorte nisso. Leram o Bystander desta semana? Estava sensacional, simplesmente sensacional!
Depois, ele voltou a se mostrar patriótico. Marchando de um lado para outro da sala, falou sobre o que o major lhe dissera. .. contra-ataques, máscaras contra gás, granadas, o manual do uso de mosquetes, a coragem britânica.
Enquanto Stanley falava, Laura sentou-se ao lado da janela, o perfil quase triste delineado contra a moita respingando água lá fora. Estava escutando lealmente a dissertação patriótica de Stanley. Subitamente, Stanley bebeu o resto do uísque no copo.
- Acho que está na hora de partirmos. Não vou querer perder a carroça. - Ele olhou pela janela. - É melhor pôr uma capa, menina. Parece que vai haver ainda mais chuva.
- Não vou me importar. - Laura levantou-se, contendo toda a exuberância de Stanley pela completa imobilidade de sua expressão. - Já está tudo no carro?
- Pode apostar que sim - disse Stanley, seguindo na frente para a porta. A estrada subia por uma colina nos arredores de Hillbrow, deixava a
última residência isolada para trás e seguia por campo aberto, na direção das charnecas. Stanley guiava na maior exultação, acelerando a todo instante.
- Parece um aeroplano, não É mesmo? - disse ele, na maior animação.
- Quase que ingressei no Corpo de Aviadores.
- Tome cuidado para não derrapar - comentou Joe. - A estrada está bastante perigosa hoje.
Stanley soltou uma risada. Joe, sentado sozinho no banco de trás, mantinha os olhos no perfil sereno de Laura, ao lado de Stanley. O controle dela era ao mesmo tempo espantoso e fascinante: Stanley guiava como um louco e ela não se alterava. Ela não queria ter um fim inesperado e desagradável, não é mesmo? Pois ele, Joe, não queria de jeito nenhum, não agora, que tudo lhe era favorável.
Passaram velozmente pela velha Igreja de St. Bede, cinzenta em meio à chuva, cercada por algumas lápides, cobertas de musgo, isolada à beira das charnecas.
- Um prédio antigo maravilhoso - comentou Stanley, sacudindo a cabeça. - Já a visitou alguma vez, Joe?
-Não.
- Tem alguns bancos de carvalho maravilhosos. Devia dar uma olhada um dia desses. Está sempre aberta.
Começaram a descer a encosta, passaram pela aldeia de Cadder e por algumas fazendas. Chegaram a Carnton Junction 20 minutos depois. O expresso estava atrasado. Depois de cuidar da bagagem, Stanley pôs-se a andar de um lado para outro da plataforma, lentamente, junto com Laura. Fingindo conversar afavelmente com o carregador, Joe observava-os pelo canto dos olhos, cheio de ciúme. com todos os diabos, pensou ele, acho que, no final das contas, ela está mesmo apaixonada pelo marido!
Um apito estridente e o troar do trem a se aproximar.
- Aí vem o trem, senhor - disse o carregador. - Só está quatro minutos atrasado.
Stanley aproximou-se apressadamente.
- Chegou finalmente o momento, Joe. Quero um compartimento de primeira classe num vagão de fumantes, carregador, se possível de frente para a locomotiva. Quero que me escreva, companheiro. Deixo tudo aos seus cuidados. Já sei que está tudo bem, esplêndido, esplêndido. Tenho certeza de que você cuidará de tudo muito bem.
Ele apertou a mão de Joe - o aperto de Joe foi viril e prolongado - deu um beijo de despedida em Laura e depois embarcou. Stanley era no fundo um sentimental e estava profundamente comovido agora que chegara o momento da partida. Inclinou-se para fora da janela do compartimento, sentindo-se plenamente um homem a caminho do front, olhando para a mulher e o amigo. Lágrimas brilharam em seus olhos, mas ele tratou de reprimi-las, com um sorriso.
- Tome conta de Laura, Joe.
- Não se preocupe com isso, Mr. Stanley.
- Não se esqueça de escrever.
- Pode ficar tranquilo.
Houve uma pausa; o trem não andava. A pausa prolongou-se, constrangedoramente.
- Parece que vai chover mais ainda - comentou Stanley, preenchendo o hiato.
Outra pausa embaraçosa. O trem começou a andar. Stanley gritou:
- Estamos indo! Adeus, Laura! Adeus, companheiro!
O trem estremeceu e parou. Stanley franziu o rosto, correndo os olhos pela composição.
- Deve estar pegando água. Teremos de esperar mais alguns minutos. Imediatamente, o trem recomeçou a andar, afastando-se suavemente,
a velocidade aumentando a cada momento.
- Adeus! Adeus!
E desta vez Stanley partiu mesmo. Joe e Laura ficaram parados na plataforma, até que o último vagão desapareceu de suas vistas, Joe ficou acenando efusivamente, mas Laura permaneceu imóvel. Estava mais pálida do que o habitual e havia uma umidade suspeita em seus olhos. Joe podia percebê-lo. Voltaram ao carro em silêncio.
Descobriram que estava chovendo novamente quando deixaram a estação e chegaram ao carro. Laura encaminhou-se para o banco de trás. Mas Joe estendeu a mão, com uma expressão solícita: .
- Vai ficar toda molhada aí atrás, Sra. Millington. É melhor ir na frente. Ela hesitou por um instante, depois foi sentar-se no banco da frente,
sem dizer nada. Joe acenou com a cabeça, como se ela tivesse tomando uma atitude sensata, depois sentou-se ao volante.
Ele foi guiando devagar, em parte por causa da chuva que toldava a visão pelo pára-brisa, mas principalmente porque queria prolongar a viagem. Embora a atitude dele fosse respeitosa, ostensivamente deferente, ele estava exultante com o conhecimento de sua posição: Stanley estava partindo só Deus sabia para onde, a cada minuto ficando mais e mais longe. Laura estava no carro a seu lado, aqui, agora. Cautelosamente, Joe observou-a. Ela estava sentada na outra extremidade do assento, olhando fixamente para a frente. Joe podia sentir que cada fibra dela estava ressentida, defensivamente alerta. Ele pensou que deveria ser muito cuidadoso, nada de uma pressão suave de seu joelho contra o dela, mas uma técnica diferente, talvez semanas ou meses de estratégia, tinha de ser lento, cauteloso como o diabo. Tinha a estranha impressão de que ela quase o odiava.
Subitamente, Joe disse, num tom de suave pesar:
- Acho que não gosta muito de mim, Sra. Millington.
Silêncio; ele manteve os olhos na estrada.
- Não tenho pensado muito sobre isso - respondeu ela, um tanto desdenhosamente.
- Sei disso... - Uma risada triste. - Não tive qualquer segunda intenção. Apenas pensei... ajudou-me um pouco no início... na fábrica... mas ultimamente tem parecido... ora, não sei...
- Importa-se de guiar um pouco mais depressa? Tenho de estar na cantina às seis horas.
- Pois não, Sra. Millington.
Joe calcou o acelerador, aumentando a velocidade do carro e fazendo com que a chuva passasse pelos lados do pára-brisa.
- Gostaria que me deixasse fazer tudo o que for necessário para ajudála. Mr. Stanley se foi. Um grande camarada, o Stanley... - Joe suspirou.
- Deu-me uma grande oportunidade. Eu faria qualquer coisa por ele... absolutamente qualquer coisa.
Enquanto ele falava, a chuva aumentou de intensidade. Estavam agora no meio da charneca, o vento uivava. Protegido apenas pela capota fina, mas sem qualquer proteção nos lados, o carro recebia agora todo o impacto da chuva tangida pelo vento.
- Está ficando encharcada! - exclamou Joe. Laura levantou a gola do costume.
- Estou bem.
- Não está, não. Está ficando completamente encharcada. Vamos parar por um momento. Temos de nos abrigar. O temporal já vai passar.
Era um verdadeiro dilúvio e Laura, sem uma capa, estava ficando completamente encharcada. Era óbvio que todas as suas roupas estariam molhadas dentro de mais alguns minutos. Mesmo assim, ela não disse nada. Joe, no entanto, avistando a velha igreja à esquerda, subitamente deu uma guinada no volante, o carro derrapando, até parar, com um solavanco.
- Depressa! - disse ele. - Vamos entrar na igreja! O temporal está horrível!
Ele pegou-a pelo braço, tirando-a do carro pelo inesperado de sua ação, correndo os dois pelo curto caminho até o pórtico da velha igreja. A porta estava aberta.
- Vamos entrar! - gritou Joe. - Se não o fizer, vai acabar pegando uma gripe que pode ser fatal. O temporal está horrível, simplesmente horrível!
E eles entraram. Era uma igreja pequena, o interior parecendo aconchegante, depois do frio uivante lá fora, um tanto escuro, impregnado com o odor de velas e incenso. O altar era vagamente visível, tendo por cima um grande crucifixo de latão, flanqueado por dois vasos também de latão, cheios de flores brancas, remanescentes da missa do domingo anterior. O tamborilar da chuva sobre o teto parecia acentuar o silêncio lá dentro.
Olhando ao redor, curioso, Joe avançou pela nave, subconscientemente notando os bancos de carvalho a que Stanley se referira.
- Uma igreja velha e estranha, mas pelo menos está seca. - A voz dele tornou-se solícita quando acrescentou: - Não teremos de esperar muito tempo até o temporal passar. E depois seguiremos viagem, para que possa chegar a tempo à cantina.
Joe virou-se e descobriu de repente que Laura estava tremendo, encostada num dos bancos, as mãos cruzadas.
- Oh, Deus! - exclamou Joe, num tom de autocensura. - Como pude ser tão descortês? Seu casaco está encharcado. Deixe-me ajudá-la a tirá-lo.
- Não precisa. Estou bem.
Ela manteve os olhos desviados, mordendo o lábio ferozmente. Joe pressentiu vagamente que alguma luta interior se travava nela, bem no fundo, algo que não podia imaginar.
- Mas deve tirar, Sra. Millington - insistiu ele, com a mesma gentileza pesarosa e tranquilizadora, estendendo a mão.
- Não, não - balbuciou Laura. - Estou lhe dizendo que não tenho nada. Este lugar não me agrada. Nunca deveríamos ter parado. A chuva...
Ela parou de falar abruptamente, tirou o casaco apressadamente, sozinha. A respiração era ofegante, Joe podia perceber os seios subindo e descendo sob a blusa de seda branca, molhada em alguns lugares, grudada na pele. O controle dela parecia ter se desvanecido inteiramente pelo isolamento da igreja, o tamborilar da chuva, o silêncio. Os olhos pestanejavam rapidamente, assustados. Joe fitava-a fixamente, atordoado, sem compreender. Ela tornou a estremecer. E depois, subitamente, ele compreendeu tudo. Um calor sufocante envolveu-o. Deu um passo para a frente.
- Laura... Laura...
- Não, não... - balbuciou ela. - Quero ir embora... quero...
Enquanto ela falava, os braços de Joe envolveram-na. Os dois se apertaram freneticamente, os lábios se procurando. Ela deixou escapar um gemido. Mesmo antes que a sua boca se abrisse para ele, Joe sabia que ela se sentia irresistivelmente atraída, há meses que vinha lutando. Sentiu-se inebriado. Enlaçados, os dois se deslocaram para o banco da frente, coberto por uma almofada, largo como uma cama. A chuva tamborilava no telhado, a escuridão da igreja os envolvia. E quando aconteceu, o grito de exultação física de Laura ergueu-se diante do altar. O vulto na cruz contemplava-os.
Quando o Plano Derby entrou em vigor, a situação entre Arthur e o pai era intolerável, um estado de hostilidade não disfarçada. O nome de Arthur constava do Registro Nacional. Mas ele não se apresentou quando recebeu a intimação, nos termos do novo Plano. Mas isso não produziu qualquer reação imediata. No Law, chegando atrasado para todas as refeições, ele evitava Barras ao máximo possível. Na Neptune, passava a maior parte do tempo no interior da mina, chegando cedo e descendo com Hudspeth, antes que Barras aparecesse. Apesar de todas as suas precauções, no entanto, era impossível evitar os encontros inevitáveis, impregnados de hostilidade, tensão e conflito.
Quando ele entrava no escritório, sujo e cansado, ao final do dia, Barras fingia ignorá-lo, em meio à tremenda movimentação dos negócios, transmitindo a Arthur o senso inegável de que não era absolutamente necessário na mina. Depois, levantando a cabeça subitamente da massa de papéis, Barras parecia descobrir Arthur, franzindo o rosto como se dissesse: "Você ainda está aí?" E quando Arthur virava-se, em silêncio, Barras seguia-o com os olhos, furioso, tamborilando rapidamente com os dedos sobre a mesa, afixando a sua expressão de injúria e profunda insatisfação.
Arthur sabia que o pai detestava a presença dele na mina. No início de janeiro, ele foi obrigado a reclamar da qualidade das vigas de madeira que estavam sendo usadas na Five Quartei Seam. Barras explodiu no mesmo instante.
- Cuide dos seus próprios negócios e deixe-me cuidar dos meus! Quando eu quiser seu conselho, pode deixar que lhe pedirei!
Arthur não disse mais nada. Sabia que as vigas eram de qualidade inferior, algumas já apodrecidas na base. Sentia-se preocupado com a qualidade do material que o pai estava usando. com os preços crescentes e a produção febril, o dinheiro estava entrando a rodo na Neptune. Contudo, apesar da lição do desastre, nada estava sendo investido para garantir condições melhores e mais seguras na mina.
Naquela mesma noite, o Argus de Tynecastle anunciou em manchete que a Lei do Serviço Militar fora promulgada.
Ao ler a notícia, Barras não pôde esconder a sua satisfação.
- Isto vai abalar aqueles que estão se esquivando a seus deveres - anunciou ele, da cabeceira da mesa. - Já estava na hora de tomarmos uma providência. Muitos estão se fiando em seus falsos pretextos para se livrarem do dever.
Barras soltou uma risada triunfante, antes de arrematar:
- Vão ter agora o que pensar.
Era o jantar, uma das raras ocasiões em que Arthur estava presente. Embora Barras endereçasse seus comentários a Tia Carrie, o sarcasmo estava dirigido a Arthur.
- É absolutamente escandaloso, Caroline - continuou Barras, em voz bem alta - o número de rapazes de corpo são que deveriam estar lutando por seu país. Mas eles se esquivam por todos os meios, chegando ao ponto de se enterrarem em empregos onde não são necessários. Recusam-se a aceitar todas as insinuações de que devem ingressar no exército. Pois já está mais do que na hora de receberem uma lição.
- Tem razão, Richard - murmurou Tia Carrie, lançando um olhar apreensivo para Arthur, que mantinha os olhos fixados no prato.
- É claro que eu já sabia que isso aconteceria - continuou Barras, no mesmo tom. - E não tenho a menor dúvida de que terei uma participação na aplicação da nova lei. Aqui entre nós, já me sondaram para integrar o tribunal local.
- O tribunal, Richard? - balbuciou Tia Carrie.
- Isso mesmo - declarou Richard, evitando deliberadamente os olhos de Arthur. - E posso lhe assegurar que não vou admitir nenhuma bobagem. O caso é muito sério, e é melhor que todos compreendam isso prontamente. Outro dia mesmo conversei a respeito com Hetty. Ela também está convencida de que já é hora dos relapsos serem apontados. E eliminados.
Arthur levantou os olhos lentamente e contemplou o pai. Barras vestia um terno cinza novo e tinha uma flor na botoeira. Ultimamente, ele encomendara diversos ternos novos, muito mais elegantes que o seu estilo habitual
- Arthur desconfiava que o pai mudara de alfaiate em Tynecastle - e passara a usar uma flor na botoeira regularmente, quase sempre um cravo vermelho, tirado das novas plantas na estufa. Sua aparência era exageradamente aprumada, os olhos brilhantes, uma expressão estranhamente excitada.
- Espere só para ver, Caroline. - Barras soltou uma risada, com imensa satisfação. - Tenho certeza de que os tribunais ficarão extremamente ocupados!
Houve um silêncio, enquanto Tia Carrie, num acesso de aflição, olhava rapidamente de um para outro. Depois, Barras olhou para o relógio, seu gesto habitual.
- Tenho de partir agora, Caroline. Não deixe que ninguém se dê ao trabalho de ficar me esperando. Deverei chegar bem tarde. vou levar Hetty ao King's. Não se pode parar com as coisas importantes, apesar da guerra. Vão apresentar The Maid ofthe Mountains, que é excelente, pelo que me disseram, com toda a London Company. Hetty está ansiosa em assistir.
Ele levantou-se, ajeitando a flor na botoeira. Depois, ignorando Arthur, mas com um aceno efusivo para Caroline, ele saiu da sala.
Arthur continuou sentado à mesa, completamente imóvel e silencioso. Sabia perfeitamente que Hetty e seu pai estavam saindo juntos constantemente: os ternos novos, a flor na lapela, o verniz espúrio de juventude, tudo era indicativo desse fato. Começara como uma atitude de reparação... Arthur tratara Hetty vergonhosamente e Barras tinha a obrigação de "providenciar uma compensação". Mas Arthur desconfiava que o relacionamento progredira muito além das fronteiras da mera reparação. Mas não sabia com certeza. Ele suspirou, imerso em seus pensamentos. O suspiro fez com que Tia Carrie se remexesse, apreensivamente, murmurando:
- Quase não comeu esta noite, Arthur. Por que não experimenta um pouco deste pão-de-ló?
- Não estou com fome, Tia Carrie.
- Mas está tão bom, meu querido - disse ela, a voz perturbada.
Arthur sacudiu a cabeça, sem dizer nada, dominado pela angústia. Experimentou um impulso súbito de contar tudo a Tia Carrie, descarregar toda a sua aflição. Mas conteve-se, compreendendo claramente que não adiantaria coisa alguma. Tia Carrie era bondosa, amava-o à sua maneira. Mas a timidez dela, o medo que tinha de Barras, tornava-a incapaz de ajudá-lo.
Arthur levantou-se e saiu da sala. Parou no vestíbulo, de cabeça baixa, indeciso. Num momento como aquele, sua natureza gentil ansiava por simpatia. Se ao menos Hetty estivesse ali... ele sentiu um bolo na garganta... estava perdido, desamparado. Virando-se, subiu lentamente. Parou subitamente ao passar pelo quarto da mãe. Num gesto espontâneo, estendeu a mão para a maçaneta, abriu a porta e entrou no quarto.
- Como está se sentindo esta noite, mãe?
Ela fitou-o atentamente, apoiada nos travesseiros, o rosto pálido e balofo ao mesmo tempo lamurioso e inquisitivo.
- Estou com dor de cabeça. E você me provocou um tremendo sobressalto, ao abrir a porta tão bruscamente.
-Desculpe, mãe.
Arthur sentou-se na beira da cama.
- Oh, não, Arthur! - protestou ela. - Aí não, meu querido. Não suporto que ninguém sente em minha cama, não quando estou sentindo uma terrível dor de cabeça, que quase não consigo suportar.
Ele tornou a se levantar, corando ligeiramente.
- Desculpe, mãe - repetiu Arthur.
Ele fez um esforço para compreender o ponto de vista da mãe, recusando-se a ficar magoado. Ela era sua mãe. De profundezas subliminares, uma recordação de ternura antiga envolveu-o, uma vaga impressão da mãe debruçando-se sobre ele, a camisola de renda entreaberta, aconchegando-o e protegendo-o. Agora, ele cedeu a essa recordação da infância, ansiando pela ternura da mãe. E exclamou, a voz entrecortada:
- Mãe, vai me deixar conversar com você sobre uma coisa? Ela pensou por um momento, com uma expressão consternada.
- Estou com uma terrível dor de cabeça.
- Não vai demorar muito. E estou precisando do seu conselho.
- Não, não, Arthur - protestou ela, fechando os olhos, como se a ansiedade do filho a perturbasse. - Sinto muito, mas não posso. Talvez em alguma outra ocasião. Minha cabeça está doendo demais.
Arthur se encolheu, em silêncio, toda a sua expressão conturbada pela recusa.
- O que será que continua a me dar essas dores de cabeça, Arthur? continuou ela, ainda de olhos fechados. - Estou começando a pensar que a culpa é do fogo dos canhões na França, as vibrações viajando pelo ar. Claro que não posso ouvir as explosões, algo que compreendo perfeitamente. Mas ocorreu-me que as vibrações podem desencadear alguma coisa. Mas, evidentemente, isso não explicaria a minha dor nas costas, que também tem sido terrível ultimamente. Diga-me uma coisa, Arthur; acha que os disparos dos canhões têm alguma influência?
- Não sei, mãe - respondeu ele, apaticamente, fazendo uma breve pausa e recuperando o controle, antes de acrescentar: - Mas tenho a impressão de que dificilmente poderia afetar suas costas.
- A verdade é que não estou me queixando tanto das costas. O linimento que o Dr. Lewis me deu ajuda bastante. Acônito, beladona e clorofórmio. Li a receita São três venenos mortais. Não é estranho que um veneno possa ser tão benéfico externamente? Mas do que mesmo eu estava falando? Ah, sim, das vibrações. Li no jornal outro dia que são responsáveis pelas chuvas fortes que temos tido ultimamente. Isso parece provar o meu ponto. Mostra que as vibrações funcionam. E o Dr. Lewis me disse que existe um estado definido que é conhecido como dor de cabeça de canhão. Claro que a causa básica de tudo é a exaustão nervosa. Esse sempre foi o meu problema, Arthur querido, pura e simplesmente exaustão nervosa.
- Eu sei, mãe - concordou ele, em voz baixa.
Houve outra breve pausa e depois ela recomeçou a falar. Falou durante meia hora sobre o seu próprio estado. Depois, levando a mão à cabeça subitamente, ela suplicou que Arthur se retirasse, pois estava deixando-a exausta. Ele obedeceu em silêncio. Quinze minutos depois, ao voltar pelo corredor, Arthur pôde ouvir os roncos altos da mãe.
A sensação de estar isolado em sua angústia foi aumentando em Arthur com o passar dos dias, o senso de estar isolado das outras pessoas, quase de ser um pária. Instintivamente, ele começou a reduzir a esfera de suas atividades. Saía apenas para o seu trabalho, e mesmo lá surpreendia olhares estranhos que lhe eram lançados... de Armstrong e Hudspeth, de alguns dos homens. Nas ruas, no percurso entre a casa e a mina, frequentemente gritavam-lhe insultos. Suas divergências com o pai eram do conhecimento comum, sendo atribuídas à recusa dele em ingressar no exército. Barras não hesitava em definir suas opiniões abertamente; sua atitude firme e patriótica era aplaudida por todos os lados; considerava-se que era extraordinária a sua decisão de não permitir que o sentimento natural interferisse com o seu senso de dever naquela grande emergência nacional. Arthur sentia-se paralisado por compreender que a cidade inteira estava observando o conflito entre ele e o pai.
Durante o mês de fevereiro, a situação foi se agravando cada vez mais. Finalmente, em meados de março, o Tribunal de Sleescale entrou em ação. O tribunal era composto por cinco membros,James Ramage, Bates, o negociante de fazendas, o velho Murchison, o Reverendo Enoch Low, da Capela da Bethel Street, e Richard Barras, que foi escolhido para a presidência, por votação unânime. Além desses cinco, havia o Representante Militar, Capitão Douglas, da guarnição de Tynecastle. Rutter, o secretário do Conselho Municipal de Sleescale, atuava como secretário do tribunal.
com um interesse tenso e angustiado, Arthur acompanhou as atividades iniciais do tribunal. Não podia ter mais qualquer dúvida sobre o rigor do tribunal. Em caso após caso, eles recusavam a isenção do serviço militar. Douglas era um autocrata empedernido, tinha um jeito de intimidar os suplicantes, para declarar em seguida, sumariamente: "Quero esse homem"; Ramagê e o pai dele estavam dominados por um patriotismo desenfreado; os outros não tinham muita importância. A orientação era radical. O tribunal alegava que o suplicante tinha de provar uma objeção ao serviço em combate e assim só podiam isentá-lo do serviço em combate. O serviço em combate era a questão vital; e a alternativa ao serviço era a prisão.
À medida que os dias passavam, a indignação de Arthur foi aumentando fervorosamente, contra os métodos arbitrários do tribunal. com um rosto pálido e angustiado, ele observava o pai voltar da administração da justiça. O ânimo de Barras era invariavelmente exultante. com a intenção de atingir Arthur, ele frequentemente descrevia para Caroline os incidentes mais sensacionais da sessão. No último dia de março, Barras chegou em casa exatamente dessa maneira, atrasado para o chá, mas exultante, talvez mais do que habitualmente. Ignorando Arthur ostensivamente, ele sentou-se e serviu-se de torrada quente com manteiga. Passou a discorrer sobre o caso que mais o absorvera naquela tarde: um jovem estudante de teologia, pedindo isenção por motivos religiosos.
- Sabe qual foi a primeira pergunta de Ramage? - disse ele, com a boca cheia de torrada. - Perguntou se ele já tinha tomado banho alguma vez!
Ele parou de mastigar por um momento, para rir triunfantemente.
- Mas Douglas saiu-se ainda melhor. Lançou-me um olhar de esguelha e depois gritou para o rapaz: "Sabia que um homem que se recusa ao dever militar pode ser fuzilado?" Isso liquidou o camarada. Devia tê-lo visto desmoronar. Ele concordou em se alistar. Estará na França dentro de três meses.
Barras riu novamente. Arthur não podia suportar por mais tempo. Levantou-se abruptamente, os lábios lívidos.
- Acha que é muito engraçado, não é mesmo? Gosta de sentir que empurrou uma arma para as mãos dele, contra a vontade dele. Está contente por tê-lo obrigado a partir, atirar, matar, assassinar alguém na França. Matar ou morrer. Mas que lema maravilhoso! Deveria gravar numa bandeira e colocar por cima de sua cadeira no tribunal. É o que lhe convém. E como convém! Mas eu tenho algum respeito pela vida humana, embora você não tenha. Não vai me assustar e me levar a matar. Não vai mesmo, de jeito nenhum!
Ofegante, Arthur parou de falar. com um gesto desesperado, virou-se e seguiu para a porta. Mas Barras deteve-o.
- Espere um instante. Precisamos ter uma conversa. Arthur virou-se, ouvindo Tia Carrie prender a respiração. Houve uma pausa.
- Está bem - disse Arthur, em voz baixa, voltando e tornando a sentar-se.
Barras serviu-se de mais torrada e comeu. Tia Carrie estava pálida, com uma cor doentia. Ela suportou o silêncio por um momento, numa intensa agonia; mas logo não pôde mais aguentar. Pediu licença, em voz trémula, levantou-se apressadamente e saiu da sala.
Barras terminou de tomar o chá, limpou a boca com um movimento brusco, depois fixou seus olhos injetados em Arthur.
- Quero apenas saber de uma coisa - disse ele, a voz contida. - Pela última vez, vai ou não ingressar no exército?
Arthur sustentou o olhar do pai; o rosto estava muito pálido, mas determinado. Ele respondeu: -Não. Uma pausa.
- Eu gostaria de deixar bem claro que não preciso de você na Neptune.
- Está certo.
- Isso não o ajuda a mudar de ideia? -Não.
Outra pausa.
- Neste caso, é melhor você saber logo de uma vez que seu caso será levado ao tribunal na terça-feira da próxima semana.
Uma sensação angustiante de apreensão invadiu Arthur. Ele baixou os olhos. No fundo de seu coração, não imaginara que o pai pudesse chegar àquele extremo. Embora não ocupasse qualquer cargo oficial na Neptune, pensara estar fora do alcance da lei.
- Já está na hora de você compreender que o fato de ser meu filho não o protege - continuou Barras, incisivamente. - É jovem, em perfeitas condições físicas. Não tem qualquer desculpa. Minhas opiniões são bastante conhecidas. Não vou permitir que continue a se esconder nas minhas costas por mais tempo.
- Imagina que pode assim me forçar a ingressar no exército - disse Arthur, a voz trémula.
- Exatamente. E é a melhor coisa que poderia acontecer-lhe.
- Está completamente enganado. - Arthur sentia-se a tremer violentamente por dentro. - Pensa que tenho medo de comparecer ao tribunal?
Barras soltou uma risada brusca.
- Isso mesmo.
- Pois está enganado. Eu irei.
O sangue afluiu ao rosto de Barras.
- Neste caso, será tratado como alguém comum. Já conversei a respeito com o Capitão Douglas. Não haverá qualquer tratamento privilegiado. Tomei a decisão. Terá de ingressar no exército de qualquer maneira.
Houve um silêncio.
- O que está tentando fazer comigo? - perguntou Arthur, em voz baixa.
- Estou tentando fazer com que cumpra o seu dever.
Barras levantou-se abruptamente. Parou por um momento ao lado do aparador, empertigado, o peito estufado.
- Vá a Tynecastle amanhã e aliste-se. Para o seu próprio bem. Aliste-se antes que seja obrigado a isso. É a minha última palavra.
E ele saiu da sala. Arthur continuou sentado à mesa. Ainda sentia-se trémulo. Apoiou o cotovelo na mesa, sustentando a cabeça com a mão.
Tia Carrie, voltando furtivamente à sala, dez minutos depois, encontrou-o naquela atitude. Adiantou-se e passou o braço pelos ombros encurvados de Arthur.
- Oh, Arthur, nunca dá certo ir contra seu pai - sussurrou ela. - Deve ser razoável. Faça isso, para o seu próprio bem.
Ele não respondeu, continuando a olhar fixamente para a frente, muito pálido. Tia Carrie continuou, suplicante:
- Há algumas coisas contra as quais não se pode ficar contra, Arthur querido. Ninguém compreende isso melhor do que eu. Você terá de ceder, quer goste ou não. Eu gosto muito de você, Arthur. Não posso vê-lo estragar toda a sua vida. Deve fazer o que seu pai está querendo, Arthur.
- Não vou fazer - murmurou ele, como se falasse mais para si mesmo.
- Oh, não Arthur! - insistiu Tia Carrie. - Não faça isso, por favor. Tenho medo de que alguma coisa horrível possa acontecer. Pense na desgraça, a desgraça terrível. Oh, Arthur, prometa-me que vai fazer o que seu pai quer!
- Não - sussurrou ele. - Tenho de fazer o que acho certo. Levantando-se, Arthur exibiu o lamentável arremedo de um sorriso e
subiu para o seu quarto.
Na manhã seguinte, ele recebeu a intimação para comparecer ao tribunal. Barras, que estava presente quando o carteiro chegou, observou-o atentamente, enquanto ele abria o envelope. Mas ficou desapontado se esperava que Arthur dissesse alguma coisa. Arthur guardou a carta no bolso e saiu da sala. Estava consciente de que o pai contava com a sua submissão. E estava igualmente determinado a não se submeter. Sua natureza não era forte, mas agora uma força de exaltação proporcionava-lhe força.
Os dias de intervalo passaram e a manhã de terça-feira chegou. Arthur deveria se apresentar às 10 horas da manhã, na Old Bethel Street School. O tribunal se instalara no salão da antiga escola, onde havia espaço suficiente para o seu funcionamento e ainda mais uma galeria ao fundo para acomodar o público. Havia uma plataforma em que se sentavam os cinco membros do tribunal. Rutter, o secretário do tribunal, ocupava uma das extremidades da mesa, com o Capitão Douglas, o Representante Militar, sentando na outra. Uma bandeira inglesa estava pendurada na parede por trás. Por baixo dela, havia um quadro-negro fora de uso, alguns cotos de giz e uma prateleira em que havia uma garrafa de água lascada, com um copo por cima.
Arthur chegou à Old Bethel Street School quando faltavam exatamente cinco minutos para as 10 horas. Roddam, o sargento de serviço, informou-o que o seu caso era o primeiro da lista. com um gesto brusco, conduziu-o ao interior do tribunal.
Quando Arthur entrou, ouviu um murmúrio excitado. Ele levantou a cabeça e viu que a galeria estava apinhada. Divisou alguns homens da mina, Harry Ogle, Joe Kinch, Jake Wicks, o novo controlador de peso, uma vintena de outros. Havia também muitas mulheres, mulheres dos Terraços e da cidade, Hannah Brace, a Sra. Reedy, a velha Susan Calder, a Sra. Chorou. A bancada dos repórteres estava repleta. Dois cinegrafístas estavam encostados numa janela. Arthur baixou os olhos rapidamente, angustiado com a repercussão de seu caso. Seu nervosismo, que já era extremo, tornou-se ainda maior. Sentou-se na cadeira que lhe estava destinada no meio do salão e começou a retorcer o lenço, nervosamente. Sua natureza sensível esquivava-se em todas as ocasiões ao foco da publicidade. E agora era o centro das atenções. Ele estremeceu ligeiramente. Era a intensidade de sua fraqueza que o levara até ali e também o mantinha firme na determinação de seguir em frente. Mas não tinha qualquer audácia. Estava intensamente consciente da hostilidade da multidão. Sofria terrivelmente. Sentia-se como um criminoso comum.
Um murmúrio elevou-se da galeria, logo se desvanecendo. Os membros do tribunal passaram por uma porta lateral, acompanhados por Rutter e pelo Capitão Douglas, um homem corpulento, de rosto avermelhado e bexiguento, Roddan, por trás de Arthur, disse-lhe prontamente:
-Levante-se!
Arthur levantou-se. Seus olhos, como que atraídos por um imã, fixaram-se no pai, que naquele momento estava se sentando. Arthur encarava o pai como um juiz. Não podia desviar os olhos, existia numa teia de irrealidade, um suspense hipnotizado.
Barras inclinou-se sobre a mesa, na direção do Capitão Douglas. Tiveram uma conversa prolongada, depois Douglas acenou com a cabeça com uma expressão de aprovação, empinou os ombros e bateu com os nós dos dedos na mesa.
Os últimos sussurros de conversa na galeria e no corpo do salão cessaram, sucedendo-se um silêncio tenso. Douglas deixou que os olhos frios se deslocassem lentamente pelo salão, abrangendo a audiência, os repórteres e Arthur. Depois, ele olhou para os seus colegas à mesa e falou em voz bastante alta, para que todos pudessem ouvir:
- Este é um caso particularmente penoso, pois envolve o filho de nosso estimado presidente, que tem prestado serviços tão relevantes neste tribunal. Os fatos são claros. Este jovem, Arthur Barras, ocupa uma posição redundante na mina Neptune, e assim está qualificado ao serviço como combatente. Não preciso repetir o que todos já sabem. Antes de abrirmos o caso, no entanto, quero reafirmar minha admiração pessoal por Mr. Barras sénior, que não tem se esquivado a seu dever, com grande coragem e patriotismo, mesmo diante de seus próprios sentimentos naturais. Creio que estou certo ao declarar que todos nós o respeitamos e honramos pelo que tem feito.
Houve uma explosão de aplausos no tribunal. Nenhum esforço foi feito para reprimir. Quando acabou, Douglas continuou:
- Falando na minha qualidade de representante das autoridades militares, gostaria de declarar que, de nossa parte, estamos dispostos a transigir neste caso infeliz e aflitivo. O requerente precisa apenas aceitar a sua qualificação para o serviço de combatente e receberá toda a consideração possível na questão do recrutamento e treinamento.
Ele olhou para Arthur, com uma expressão fria e inquisitiva. Arthur umedeceu os lábios ressequidos. Percebeu que se esperava uma resposta sua. Fazendo um esforço para se controlar, ele disse:
- Eu me recuso a aceitar o serviço de combatente.
- Mas não pode estar falando sério!
- Estou, sim.
Houve uma pausa imperceptível, um aumento da tensão. Douglas trocou um rápido olhar com Barras, como se exprimisse a sua incapacidade de fazer algo mais. James Ramage esticou a cabeça para a frente belicosamente e perguntou:
- Por que se recusa a lutar?
A inquisição começara. Arthur virou o rosto para o açougueiro de pescoço grosso, cuja testa estreita e olhinhos fundos pareciam combinar os atributos do touro e do porco. Ele respondeu em voz quase inaudível:
- Não quero matar ninguém.
- Fale mais alto! -gritou Ramage. -Assim não dá para ninguém ouvi-lo. Arthur repetiu, a voz rouca:
- Não quero matar ninguém.
- Mas por quê? - insistiu Ramage.
Ele já matara muitas coisas vivas ao longo de sua vida. Não podia compreender aquela mentalidade desconcertante.
- É contra a minha consciência.
Uma pausa. E depois Ramage acrescentou, asperamente:
- Ora, consciência demais é ruim para qualquer pessoa.
O Reverendo Enoch Low interveio apressadamente. Era um homem alto e cadavérico, as narinas contraídas, um estipêndio insuficiente. James Ramage, o principal adepto de sua igreja, pagava a metade desse estipêndio. O Reverendo Low sempre podia contar com o apoio de Ramage e por isso tratava de ajudá-lo, sempre que era necessário.
- Você não é um cristão? - perguntou ele a Arthur. - Não há nada na religião cristã que impeça o ato legítimo de matar, a serviço de seu país.
- Não existe nenhum ato legítimo de matar. O Reverendo Low inclinou a cabeça.
- Como assim?
Arthur respondeu prontamente:
- Não sou muito ligado a qualquer religião, pelo menos não no seu senso de religião. Mas está falando de cristianismo, a religião de Cristo. Pois não posso imaginar Jesus Cristo a empunhar uma baioneta e enfiá-la na barriga de um soldado alemão. Ou de um soldado inglês. Não posso imaginar Jesus Cristo sentado atrás de uma metralhadora inglesa ou de uma metralhadora alemã, abatendo dezenas de homens perfeitamente inocentes.
O Reverendo Low ficou vermelho de horror. Parecia indescritivelmente chocado.
- Isso é blasfémia - murmurou ele, virando-se para Ramage.
Mas Murchison não podia permitir que a discussão parasse por aí. O mal-humorado merceeiro queria demonstrar o seu conhecimento das Sagradas Escrituras. Inclinando-se para a frente, um tanto furtivamente, como se estivesse pesando meio quilo de presunto, ele falou:
- Não sabe que Jesus Cristo disse olho por olho, dente por dente? O Reverendo Low parecia ainda mais constrangido.
- Não! - gritou Arthur. - Ele nunca disse isso!
- Pois estou lhe falando que disse! - berrou Murchison. - Está na Bíblia!
Ele recostou-se na cadeira, vitorioso. Foi a vez de Bates intervir. Tinha uma pergunta estereotipada a fazer, uma pergunta que jamais deixava de apresentar, sentia que aquele era o momento apropriado. Acariciando o bigode comprido, de pontas caídas, ele perguntou:
- Se um alemão atacasse sua mãe, o que você faria? Arthur fez um gesto desanimado, sem responder.
Com outro puxão no bigode, Bates repetiu:
- Se um alemão atacasse sua mãe, o que você faria? Arthur mordeu o lábio trémulo.
- Como posso explicar o que penso respondendo a uma pergunta dessas? Talvez estejam perguntando a mesma coisa na Alemanha. Será que não percebem? Estão perguntando a mesma coisa em relação a nossos soldados!
- Mataria o alemão ou deixaria que o alemão matasse a sua mãe? insistiu Bates, pomposamente.
Arthur desistiu. Não respondeu. com um ar de triunfo infantil, Bates olhou para os colegas.
Houve um momento de silêncio. Todos à mesa pareciam agora estar esperando que Barras se manifestasse. E Barras também parecia estar esperando. Subitamente, ele limpou a garganta. Os olhos brilhavam e as faces estavam ligeiramente coradas. Olhava fixamente por cima da cabeça de Arthur.
- Recusa-se a admitir a necessidade desta grande emergência nacional, deste tremendo conflito mundial que exige sacrifícios de todos nós?
Enquanto o pai falava, Arthur sentiu que tremia novamente, sendo dominado pelo senso de sua própria fraqueza. Ansiava por serenidade e coragem, pelo poder de expressar-se com determinação e eloquência. Em vez disso, porém, seus lábios tremeram e ele pôde apenas balbuciar:
- Não posso admitir a necessidade de reunir homens para se matarem mutuamente nem a necessidade de fazer mulheres e crianças passarem fome, por toda a Europa. Especialmente quando ninguém sabe para que serve tudo isso.
Barras ficou ainda mais vermelho.
- Esta guerra está sendo travada para acabar com todas as guerras.
- É o que sempre se disse! - exclamou Arthur, com uma inflexão crescente na voz. - E se dirá a mesma coisa para se conseguir que os homens se matem mutuamente quando a próxima guerra começar.
Ramage remexeu-se em sua cadeira, inquieto. Pegou a pena que estava à sua frente e começou a espetá-la na mesa. Estava acostumado a métodos mais eficazes no tribunal e aquela divagação irritava-o.
- Vamos acabar com essa indecisão e continuar com o nosso trabalho - comentou ele, para os seus colegas.
Barras, que no passado sempre dera a impressão de desprezar Ramage, não demonstrou agora ter ficado ressentido com a intromissão. Sua expressão permaneceu impassível. Pôs-se a tamborilar com os dedos sobre a mesa.
- Qual é o seu verdadeiro motivo para se recusar a ingressar no exército?
- Já falei! - respondeu Arthur, respirando fundo.
- Deus do céu! - interveio Ramage novamente. - De que ele está falando afinal? Por que tanto rodeio? Que ele fale bem claro ou fique de boca fechada!
- Explique-se - disse o Reverendo Low para Arthur, com um ar de compaixão condescendente.
- Não posso dizer mais do que já falei - respondeu Arthur, a voz contida. - Eu me oponho ao sacrifício injusto e desnecessário de vida humana. Não quero participar disso, na guerra ou fora dela.
Ao pronunciar as últimas palavras, Arthur olhava fixamente para o pai.
- Santo Deus! - resmungou Ramage. - Mas que maldito estado de espírito para se estar!
Foi nesse momento que ocorreu uma interrupção. Na galeria, uma mulher levantou-se, pequena, aprumada, empertigada. Era a Sra. Chorou. Em voz clara e incisiva, ela declarou:
- Ele tem toda razão e todos vocês estão errados. Não matarás. Lembrem-se disso e a guerra terminará amanhã.
Houve um tumulto no mesmo instante, uma tempestade de protestos. Várias vozes bradaram:
- Vergonha!
- Cale-se!
- Expulsem-na daqui!
A Sra. Chorou foi cercada, empurrada para a porta, expulsa violentamente do tribunal.
Depois que a ordem foi restaurada, o Capitão Douglas bateu sonoramente na mesa.
- Outra interrupção como esta e o tribunal será evacuado.
Ele virou-se para os seus colegas. Havia um momento em cada caso quando se tornava necessário concentrar as forças desgarradas do comité e rapidamente encaminhar o problema para uma solução. Evidentemente, chegara tal momento naquele caso. Douglas ouvira Arthur com um desdém que não podia disfarçar. Era um tipo autoritário, severo e ignorante, promovido depois de anos como sargento, a mentalidade tacanha do quartel. Dirigiu-se a Arthur bruscamente:
- Vamos examinar a questão por outro ângulo, se não se importa. Diz que se opõe a servir. Mas já pensou na alternativa?
Arthur ficou muito pálido, sentindo a intensa hostilidade que fluía de Douglas para ele.
- Isso não vai alterar minha atitude.
- Apesar de tudo o que está dizendo, tenho certeza de que não vai querer ficar preso por dois ou três anos. i
Um silêncio tenso no tribunal. Arthur podia sentir que a atenção fascinada da multidão se fixava nele. E pensou: não estou realmente aqui, não estou nesta horrível situação. Disse finalmente, a voz angustiada:
- Não quero ser preso, assim como a maioria dos soldados não quer ir para as trincheiras.
Os olhos de Douglas se tornaram belicosos. Em voz mais alta, ele declarou:
- Eles vão porque acham que é seu dever.
- Posso achar que é meu dever ir para a prisão.
Um ligeiro suspiro ergueu-se da multidão na galeria. Douglas levantou os olhos, furioso, depois virou-se para Barras. Deu de ombros, ao mesmo tempo em que largava os papéis na mesa, com um gesto categórico, como a dizer: "Lamento muito, mas não tem jeito."
Barras empertigou-se na cadeira. Passou a mão lentamente pela testa. Parecia escutar a discussão baixa que se processava agora entre os outros membros, ao seu redor. Depois, ele disse, formalmente:
- Creio que todos são da mesma opinião que eu.
Barras levantou a mão, pedindo silêncio. Houve um minuto de intervalo. Depois, com o silêncio tenso ainda persistindo e com Barras ainda olhando por cima da cabeça de Arthur, ele pronunciou o veredicto:
- O tribunal estudou cuidadosamente o seu caso. E chegamos à conclusão de que não podemos lhe conceder uma isenção.
Houve uma explosão imediata de aplausos, aclamações altas e prolongadas, sem que houvesse qualquer ordem a Rutter para que fossem reprimidas. Da galeria, uma mulher gritou:
- Muito bem, Mr. Barras!
O Capitão Douglas inclinou-se sobre a mesa, estendendo a mão. Os outros membros do tribunal fizeram a mesma coisa. Barras apertou as mãos de todos, com um ar impressivo, mas vagamente remoto, os olhos voltados para a galeria, de onde soavam os aplausos.
Arthur continuou imóvel no centro do tribunal, as feições contraídas e pálidas, cabeça baixa. Parecia esperar que alguma coisa acontecesse. Experimentava um senso agoniado de anticlímax. Levantou a cabeça de repente, como se estivesse querendo encontrar os olhos do pai. Um calafrio percorreu-lhe o corpo. Depois, ele virou-se e deixou o tribunal.
Já era bem tarde quando Barras voltou para casa naquela noite. Encontrou Arthur no vestíbulo. Parou e, de maneira estranha, meio mortificado, meio aturdido, disse subitamente:
- Pode apelar, se quiser. Sabe que pode apelar. Arthur fitou o pai firmemente. Sentia-se calmo agora.
- Levou-me a esta situação. Não vou apelar. Continuarei até o fim. Houve uma pausa.
- Está certo - disse Barras, quase em tom de lamento. - A decisão é sua.
Ele virou-se e foi para a sala de jantar. Enquanto subia a escada, Arthur estava vagamente consciente dos soluços de Tia Carrie.
Houve muito excitamento na cidade naquela noite. A ação de Barras causara a maior sensação. O patriotismo elevou-se a um novo fervor e uma multidão marchou pela Freehold Street, empunhando bandeiras e cantando Tipperary. Quebraram as janelas da casa da Sra. Chorou, depois seguiram para a loja de Hans Messuer. Há algum tempo que o velho Hans era um tipo suspeito, como estrangeiro. Agora, com aquele acesso de zelo patriótico, todas as suspeitas foram confirmadas. A loja foi arrombada, vidros espatifados, garrafas quebradas, cortinas rasgadas, o poste listrado de azul e vermelho, o orgulho do coração do velho Hans, foi destruído em incontáveis fragmentos. Hans, arrancado da cama em pânico, foi brutalmente espancado e deixado sem sentidos no chão da loja.
Dois dias depois, Arthur foi preso e levado para o quartel de Tynecastle. Aconteceu com perfeita calma e ordem. Ele estava agora apanhado pelas engrenagens, tudo se movia suavemente, independente de sua vontade. No quartel, recusou-se a aceitar o uniforme. Foi prontamente submetido à corte marcial, condenado a dois anos de trabalhos forçados e removido para a Prisão Benton.
Ao sair desse segundo julgamento, ele se perguntava como tudo acontecera. E teve uma estranha recordação do rosto do pai, corado, confuso, vagamente aturdido.
O tintureiro parou com um solavanco diante da Prisão Benton e houve o ruído de trancas sendo puxadas. Arthur estava sentado no banco estreito, ainda tentando compreender, meio atordoado, que estava mesmo ali, dentro daquele carro da prisão.
O tintureiro tornou a avançar e parou pouco mais adiante, com um novo solavanco. Depois, a porta foi bruscamente aberta, deixando entrar o ar frio da noite. Além da porta, a voz de um carcereiro gritou:
- Saiam!
Arthur e quatro outros homens levantaram-se dos bancos estreitos e saíram. Fora uma viagem comprida e apertada de Tynecastle a Benton. Mas agora a viagem finalmente terminara e estavam no pátio da prisão. Era uma noite nublada e chovia forte, a água empoçando em depressões no asfalto. Arthur olhou ao redor apressadamente: muros cinzentos altos, pequenas janelas gradeadas nas paredes, guardas em capas reluzentes com a chuva, silêncio e uma escuridão disforme, atenuada apenas por um débil clarão amarelo, da luz por cima da arcada. Os cinco prisioneiros ficaram parados sob a chuva. Um dos guardas gritou uma ordem e eles foram conduzidos a uma sala pequena, caiada de branco, com uma claridade tão intensa que chegava a ofuscar os olhos, depois da escuridão lá fora. Um homem estava sentado a uma mesa naquela sala iluminada, com diversos documentos e um livro de registro à sua frente. Era um homem idoso, com a cabeça calva e lustrosa.
O guarda do tintureiro aproximou-se daquele homem, um oficial, e falou-lhe. Enquanto os dois falavam, Arthur observou os quatro outros prisioneiros que o haviam acompanhado no tintureiro. Os dois primeiros eram pequenos e raquíticos, usando gravatas e com rostos puritanos, tão estranhamente parecidos que era óbvio se tratarem de irmãos. O terceiro homem tinha uma expressão fraca e desolada, com um pincené de aro de ouro, dando a impressão de ser um amanuense de categoria inferior. Em comum com os dois irmãos, parecia também inofensivo e constrangido. O quarto homem era grandalhão, sujo, a barba por fazer. Era o único que não parecia surpreso ou aflito por se encontrar ali.
O oficial à mesa parou de falar com o guarda do tintureiro. Pegou a pena e disse:
- Entrem em fila, está bem?
Ele era o encarregado de receber os novos prisioneiros. Começou a ler rapidamente os detalhes da sentença de cada homem, anotando no livro de registro o nome, ocupação e religião, além da quantidade de dinheiro com que cada um chegara.
O homem sujo foi o primeiro. Não tinha qualquer dinheiro, absolutamente nada. Fora condenado por assalto com violência, não tinha ocupação e deveria cumprir três anos de trabalhos forçados. O nome dele era Hicks. Em seguida, foi a vez de Arthur. Arthur tinha exatamente quatro libras, seis shillings e dez pence. Ao terminar de contar o dinheiro de Arthur, o oficial disse, sarcasticamente, olhando para a pilha de moedas por cima das notas:
- Tem bastante dinheiro...
Os dois irmãos e o amanuense foram registrados depois. Todos os três eram opositores por motivos de consciência e o oficial fez um comentário irritado, em voz baixa, lamentando a necessidade de perder tempo com porcos assim.
Depois que fez os registros, ele se levantou e abriu uma porta interna. Sacudiu o polegar, numa ordem silenciosa, e eles entraram numa sala comprida, com pequenas celas nos dois lados. O oficial disse:
- Dispam-se.
Eles se despiram. Os dois irmãos, que eram quacres, ficaram transtornados por serem obrigados a se despirem na presença de outras pessoas. Tiraram as roupas devagar, timidamente. Ficaram imóveis por um momento, quando estavam de ceroulas, tremendo de vergonha. Hicks devia tê-los achado muito engraçados. Quando ficou em pêlo, Hicks revelou um corpo enorme, sujo e cabeludo, pústulas avermelhadas cobrindo diversas partes. com as pernas abertas, os pés bem plantados no chão, ele sorriu e fez um gesto injurioso para os quacres.
- Vamos logo, meninas - disse ele. - Temos de acabar com isso de uma vez.
- Cale a boca! - disse o oficial.
- Sim, senhor - respondeu Hicks, subservientemente.
Ele adiantou-se e subiu na balança. Todos foram pesados e medidos. Depois que isso acabou, Hicks, que obviamente estava a par da rotina, seguiu na frente pelo chão de concreto, a caminho do banheiro. Havia uma banheira imensa, cheia com uma água morna, com uma espuma na superfície. O próprio banho estava sujo.
Arthur olhou para Hicks, que já estava molhando o corpo cheio de pústulas com a água. Virou-se para o oficial e perguntou, em voz baixa:
- Tenho de entrar nesse banho?
O oficial era dotado de senso de humor e disse:
- Claro, querido. - E depois acrescentou: - Não quero ninguém falando!
Arthur entrou no banho. Depois do banho sujo, eles receberam as roupas da prisão. Arthur ganhou uma calça e uma túnica amarela de flanela, um par de meias, um uniforme caqui muito pequeno, com flechas pretas estampadas por toda parte. A calça ficava acima dos tornozelos. Olhando para a túnica apertada e curta, ele pensou que finalmente o haviam obrigado a vestir um uniforme caqui.
Uma porta interna se abriu e um médico entrou. Era um homem redondo, de rosto avermelhado, com diversas obturações de ouro nos dentes da frente. Entrou rapidamente, com o estetoscópio já em posição nos ouvidos, usou-o sem mais delongas. Fez um exame rápido e superficial de cada homem, mantendo-se a alguma distância, perfeitamente mecânico e impessoal. Mandou que Arthur dissesse trinta-e-três, deu-lhe algumas pancadinhas apressadas, perguntou se já tivera alguma doença venérea. E depois seguiu adiante. Arthur não culpou o médico por ser tão superficial. Pensou: se eu fosse o médico aqui, provavelmente agiria da mesma forma. Arthur forçava-se a ser justo. Jurara a si mesmo que manteria a calma. Era a única maneira, uma aceitação serena do inevitável. Pensara a respeito cuidadosamente, na noite anterior. Sabia que, se não se comportasse assim, poderia facilmente enlouquecer.
Depois do exame, o homem careca retirou-se com o médico, deixando-os aos cuidados de um novo carcereiro, que entrara em silêncio na sala e ficara observando-os em silêncio. Era um homem baixo e corpulento, a cabeça imensa, uma atitude agressiva. Os lábios eram finos, sendo que o superior muito curto, a cabeça larga e deformada parecia protuberante, como numa atitude de vigilância. Era o guarda Collins.
Depois que concluiu sua inspeção silenciosa, o Guarda Collins atribuiu um número a cada novo preso, além de um número da cela. O número de Arthur era 115 e sua cela tinha o número 273. Depois, o Guarda Collins abriu um pesado portão de ferro, dizendo:
- Entrem agora. E quero ver todo mundo andando depressa.
Os homens marcharam, sob os olhos vigilantes do guarda Collins, entrando no corpo principal da prisão.
A prisão era como um poço, um poço enorme, profundo e retumbante, com celas ao redor, as galerias se elevando a uma grande altura. Cada galeria era fortemente gradeada, de tal forma que o conjunto apresentava a aparência de uma enorme gaiola. O ar era frio, havia o cheiro espectral de prisão, apesar do odor penetrante de desinfetante.
O guarda Collins levou Arthur à Cela 273. Ficava na terceira galeria. A cela tinha dois por quatro metros, era muito alta. As paredes eram de tijolos, pintados com um marrom-amarelado na parte inferior e caiadas de branco por cima. No alto de uma parede havia uma pequena janela gradeada, tão pequena que não chegava a ser uma janela. Bem pouca claridade entrava por lá, mesmo nos dias de sol. Uma lâmpada elétrica protegida por um globo de ferro e acendida do lado de fora projetava uma débil claridade pela cela. O chão era de cimento e havia ali um jarro esmaltado e um urinol. Era o fedor de centenas de urinóis que constituía o cheiro da prisão.
A cama era de madeira, com dois metros de comprimento, por 80 centímetros de largura. Tinha uma manta, mas não havia colchão. Por cima da cama, havia uma prateleira com uma caneca esmaltada, um prato, colher e faca. Havia uma lousa e um lápis por cima da prateleira. Encostada na lousa, convidativamente, havia uma pequena Bíblia.
Arthur virou-se de sua inspeção para deparar com o guarda Collins parado na porta, como se esperasse pela opinião dele a respeito da cela. O lábio estava um pouco repuxado para baixo, a cabeça esticada para a frente. Ao compreender que Arthur nada tinha a dizer, ele virou-se sem falar e afastou-se silenciosamente.
Enquanto a porta se fechava ruidosamente, uma porta pesada, com uma pequena janela gradeada, Arthur sentou-se na beira da cama. Estava na prisão. Aquilo era uma cela de prisão e ele estava ali. Não era mais Arthur Barras. Era o número 115.
Apesar de toda a sua determinação, Arthur foi dominado por um medo frio. Era pior, muito pior, do que ele imaginara. Lá fora, era fácil falar sobre a prisão, quando não se tinha a menor ideia de como era uma prisão. Mas, lá dentro, não era tão fácil assim. A prisão era um lugar horrível. Ele correu os olhos pela pequena cela. Não, não seria nada fácil, no final das contas.
O jantar foi servido às sete horas. Era um jantar extra, um jantar especial para os recém-chegados, consistindo em uma tigela de mingau de farinha aguado. Embora o nauseasse, Arthur forçou-se a comer o mingau. E comeu de pé. Ao acabar, tornou a sentar-se na beira da cama. Sabia que era fatal pensar. Contudo, não tinha mais nada a fazer. Não podia ler a Bíblia e não havia coisa alguma em particular que desejasse escrever na lousa.
Ele pensou: por que estou aqui? Estava ali porque se recusava a matar, porque se recusava a ir enfiar uma baioneta no corpo de outro homem, em algum ponto desolado e enlameado da França. Não era porque cometera homicídio que estava ali, mas porque se recusara a cometer homicídio.
Era estranho, era até engraçado. Mas quanto mais pensava a respeito, menos achava engraçado. E em breve começou a suar nas palmas, a evidência física de sua neurose. O suor despejava-se das palmas até que ele pensou que nunca mais fosse acabar.
E de repente, quando ele estava sentado ali, um som súbito, uma espécie de uivo, provocou-lhe um sobressalto. Vinha do fundo do poço da prisão, a mais baixa de todas as galerias, onde ficavam as solitárias, um som brutal, inteiramente inumano e descontrolado. Arthur levantou-se de um pulo. Todos os seus nervos vibravam de compaixão, como as cordas de um violino, diante daquele uivo horrível. Ficou escutando, tensamente. O uivo foi se elevando, num crescendo insuportável. E depois cessou subitamente. Acabou com uma brusquidão quase violenta. O silêncio subsequente vibrava de conjeturas sobre o motivo pelo qual o uivo cessara.
Arthur começou a andar de um lado para outro da cela. Andava depressa, aumentando o ritmo gradativamente. Esperava que o uivo recomeçasse, mas tal não aconteceu. Estava quase correndo de um lado para outro do chão de concreto da cela, quando de repente uma campainha soou e as luzes se apagaram.
Arthur parou no meio da cela, completamente imóvel. Depois, lentamente, tirou o uniforme caqui e deitou-se. Não conseguiu dormir. Disse a si mesmo que não poderia mesmo dormir de imediato, mas que acabaria se acostumando à dureza da cama. Enquanto isso, um imenso caleidoscópio de pensamentos amargos turbilhonava em seu cérebro, como uma enorme roda a girar e crescer, preenchendo toda a cela. Rostos e cenas surgiam e desapareciam rapidamente na roda a girar. O pai, Hetty, Ramage, o tribunal, a Neptune, os homens mortos na Neptune, homens tombados nos campos de batalhas com os olhos mortos a protestarem, tudo se misturando e turbilhonando, depressa, cada vez mais depressa. Arthur agarrou-se nas beiras da cama, fazendo um esforço tremendo para enfrentar o caos, enquanto a noite ia passando.
Às cinco e meia da manhã, quando ainda estava escuro, a campainha da prisão tornou a soar. Arthur levantou-se. Lavou-se, vestiu-se, dobrou a manta, limpou a cela. Mal acabara quando a chave girou na fechadura. O ruído era peculiar, um rangido, como dois metais sendo forçados um contra o outro, protestando. O guarda Collins jogou alguns sacos de correspondência na cela, dizendo:
- Costure tudo.
E depois ele bateu a porta. Arthur pegou os sacos de lona. Não sabia como costurá-los. Largou os sacos. Ficou olhando-os até sete horas, quando a chave tornou a girar na fechadura e o desjejum lhe foi entregue. Consistia em um mingau aguado e um pedaço de pão escuro.
Quando ele acabou de comer, o guarda Collins tornou a aparecer na porta. Deu uma boa olhada nos sacos por costurar, depois fitou Arthur, de uma maneira curiosa. Mas não fez qualquer comentário. Limitou-se a dizer, um tanto suavemente:
- Saia para o exercício.
O exercício se fazia no pátio da prisão, um quadrado sujo de asfalto, cercado por muros altos e com uma plataforma elevada numa das extremidades. Um guarda estava postado na plataforma, vigiando os homens a andarem em torno do pátio. Observava os lábios dos homens, para impedir que falassem. E gritava de vez em quando:
- Nada de falar!
Os veteranos eram tão hábeis que podiam conversar entre si sem mexerem os lábios.
Havia um banheiro no meio do pátio, uma cinta redonda de metal, sustentada por colunas baixas. Dando voltas pelo pátio, os homens levantavam a mão ocasionalmente, pedindo permissão ao guarda para se servirem do banheiro. Ao sentarem, as cabeças ficavam por cima da cinta de metal, as pernas aparecendo por baixo. Era considerado um grande privilégio ter permissão para ficar sentado ali por um longo tempo, algo que o guarda só permitia aos seus favoritos.
Arthur ficou dando voltas pelo pátio junto com os outros. À débil claridade do início da manhã, o círculo de homens a se arrastarem era incompreensível à razão, tornava-se grotesco como um circo de loucos. Os rostos dos homens eram degradados, soturnos, desesperados, apáticos. Os corpos tinham o fedor da prisão, os braços pendiam inumanamente.
Um pouco à sua frente, ele divisou Hicks, que virou ligeiramente a cabeça ao reconhecê-lo, com uma expressão zombeteira.
- Está querendo alguma coisa, maricas? - perguntou Hicks, as palavras saindo pelo canto da boca.
- Nada de falar! - gritou o guarda Hall da plataforma. - Ei, você, 514, cale essa boca!
Voltas e mais voltas, circulando sempre, como a roda no cérebro de Arthur, circulando sempre, em torno do foco obsceno do banheiro. O guarda Hall era o mestre-de-cerimônias, a voz estalando como um chicote:
- Nada de falar! Nada de falar! O carrossel insano do exercício.
Foram para a oficina às nove horas. Era ali que os sacos de lona eram costurados. Arthur recebeu mais sacos. O guarda Beeby, o inspetor da oficina, foi quem entregou os sacos a Arthur. Observando a falta de jeito dele, o guarda Beeby inclinou-se e explicou:
- É assim que tem de costurar, idiota.
Ele empurrou a agulha grande por duas dobras da lona grossa, indicando jovialmente como os pontos deviam ser feitos. E depois acrescentou, com uma ironia que não era de todo hostil:
- Se costurar bastante sacos, terá chocolate à noite. Está entendendo agora, imbecil? Uma tigela de chocolate quente!
A bondade que se insinuava na voz do guarda Beeby deu um novo ânimo a Arthur. Ele pôs-se a costurar os sacos. Cerca de uma centena de homens estavam costurando os sacos de correspondência. O homem ao lado de Arthur era um velho de cabelos grisalhos que trabalhava habilmente, rapidamente, garantindo o chocolate daquela noite. Cada vez que terminava um saco de correspondência, ele se coçava por baixo da axila e lançava um olhar furtivo para Arthur. Mas não falava. Se falasse, perderia seu chocolate.
A campainha tornou a soar ao meio-dia. Os homens pararam de trabalhar na oficina e voltaram às celas para o almoço. A chave soou na cela de Arthur. O almoço era ensopado, pão e margarina rançosa. Depois do almoço, o guarda Collins abriu a janelinha da porta. Vistos através da grade, seus olhos pareciam imensos e sinistros. Ele disse:
- Não veio para cá para não fazer nada. Trate logo de costurar esses sacos.
Arthur pôs-se a trabalhar nos sacos de correspondência. As mãos estavam doloridas de empurrar a agulha grossa através da lona e uma bolha surgira no polegar. Trabalhava automaticamente. Não sabia o que estava fazendo ou por que estava fazendo; sua ação já se tornara mecânica, costurando os sacos interminavelmente. A chave tornou a soar. O guarda Collins entrou com o jantar, mingau aguado e um pedaço de pão. Ao entrar na cela, olhou para os sacos de correspondência, depois para Arthur, repuxando o lábio inferior, deixando os dentes à mostra. Não podia haver a menor dúvida: por algum motivo, o guarda Collins estava de birra com Arthur. Mas ele não tinha pressa. Havia muitos meses à sua disposição e sabia por longa experiência o prazer imenso que sentia quando agia bem devagar. Ele limitou-se a dizer, pensativo:
- Não fez mais do que isso? Não queremos saber de molengas por aqui.
- Não estou acostumado - respondeu Arthur. Inconscientemente, ele imprimiu a sua voz um tom submisso, como se
compreendesse a importância de estar nas boas graças do guarda Collins. Ele levantou os olhos, cansados do trabalho atento, tendo a impressão de que o guarda Collins estufara. A cabeça especialmente, a cabeça larga e deformada, parecia fantasticamente ampliada e ameaçadora. Arthur teve de proteger os olhos para olhar o guarda Collins.
- Pois é melhor se apressar e ficar acostumado logo de uma vez. - O guarda Collins falava gentilmente, adiantando um pouco a cabeça deformada.
- Não fique pensando que se livrou do exército para ter vida mansa aqui. Continue a trabalhar nesses sacos até soar a campainha.
Arthur continuou a trabalhar nos sacos até ouvir a campainha. Ouviu-a às oito horas. O retinir da campainha povoou o poço profundo da prisão com um barulho terrível. Arthur compreendeu que tinha agora a noite inteira pela frente, uma noite longa a enfrentar sozinho.
Sentou na beira da cama, olhando para as flechas pretas estampadas na calça caqui. Começou a traçar os contornos das flechas com o indicador. Por que tinha flechas estampadas nele? Estava coberto de flechas; o corpo inteiro, envolto por um nevoeiro, num estupor atordoante, era penetrado por flechas e mais flechas. Tinha a estranha sensação de que cessara de existir, um senso de aniquilação espiritual. Aquelas flechas haviam-no matado.
As luzes se apagaram às nove horas. Depois de ficar sentado na escuridão por um minuto, completamente imóvel, ele caiu de costas na cama, vestido como estava, sentindo-se atordoado. E dormiu.
Mas não dormiu por muito tempo. Pouco depois da meia-noite, foi despertado pelo uivo que tanto o perturbara na noite anterior. Mas desta vez o uivo prolongou-se interminavelmente, como se esquecido. Era um uivo desvairado, angustiado. Arthur levantou-se no escuro. O sono deixara-o recuperado. Estava alerta, horrível e aflitivamente alerta, não podia suportar o uivo, a escuridão e a solidão. Alteou a voz para gritar:
- Parem com isso! Pelo amor de Deus, parem com isso!
E começou a bater na porta da cela com os punhos cerrados. Gritou e bateu freneticamente. Um minuto depois, ouviu outros gritando e batendo também. Das catacumbas escuras da galeria, elevou-se um grande clamor de gritos e batidas. Mas ninguém deu qualquer importância e o clamor foi se desvanecendo grada ti vãmente, resvalando pela escuridão, até que o silêncio se restabeleceu.
Arthur ficou imóvel por um momento, o rosto comprimido contra a grade da porta, o peito arfando, os braços estendidos. Finalmente se mexeu, pondo-se a andar pela cela. Não havia espaço suficiente para se movimentar direito, mas ele tinha de manter-se em movimento, era-lhe impossível ficar parado. As mãos permaneciam cerradas e ele parecia não ter a menor força para relaxar o corpo. Jogava-se na cama de vez em quando, mas não adiantava, o tormento dos nervos não o deixava ter sossego. Só se sentia aliviado andando de um lado para outro. E por isso continuou a andar.
Ainda estava andando quando a chave soou na fechadura. O barulho da chave inaugurava outro dia. Ele teve um sobressalto ao ouvir o ruído, depois ficou parado no meio da cela, olhando para o guarda Collins. E balbuciou:
- Não consegui dormir por causa daquele uivo. Não consegui dormir a noite inteira.
- Mas que pena! - disse o guarda Collins, desdenhosamente.
- Não consegui dormir... não consegui dormir... O que é aquele uivo?
- Nada de falar!
- O que é aquele uivo? O que é?
- Estou lhe dizendo que não pode falar. Mas se quer mesmo saber, foi um sujeito que enlouqueceu e está sob observação médica. E agora fique de bico fechado. Nada de falar!
O guarda Collins saiu. Arthur comprimiu o rosto contra as mãos, fazendo um tremendo esforço para se controlar. Baixou a cabeça. As pernas pareciam incapazes de sustentá-lo. Sentia-se mortalmente doente. Não podia comer a gororoba que o guarda Collins lhe deixara, na tigela de barro. O cheiro da comida provocava-lhe náuseas. Sentou-se na beira da cama. Não podia comer de jeito nenhum.
Subitamente, a chave soou novamente. O guarda Collins entrou, olhou para Arthur, repuxou o lábio. E disse:
- Por que não come?
- Não posso.
- Fique de pé quando eu lhe falar. Arthur levantou-se.
- Coma!
- Não posso.
Collins tornou a repuxar os lábios, muito finos, arroxeados.
- Não é bom o bastante para você, hem? Não é uma comida de luxo para o filhinho da mamãe, hem? Pois trate de comer!
Arthur repetiu, apaticamente:
- Não posso.
O guarda Collins afagou o queixo gentilmente. Estava começando a gostar da situação.
- Sabe o que vai lhe acontecer? Será alimentado à força, se não quiser comer. Vão meter um tubo por sua goela e despejar sopa no seu estômago. Já fizemos isso antes e será um prazer experimentar outra vez.
- Lamento muito - murmurou Arthur, os olhos fixados no chão. - Se eu comer, tenho certeza de que vou vomitar.
- Pegue a tigela!
Arthur abaixou-se e pegou a tigela. O guarda Collins observava-o atentamente. Desde o começo que Collins sentira uma profunda aversão por Arthur, pelo simples fato de que ele era bem alimentado, instruído e um cavalheiro. Havia também o outro motivo. E Collins explicou o outro motivo, falando bem devagar:
- Ficarei de olho em você. Não gosto de gente como você. E não gostei de você desde o minuto em que entrou aqui. Tenho um filho nas trincheiras, entende? O que explica muita coisa. Explica, por exemplo, por que você terá de comer tudo que está na tigela. Vamos, comece logo a comer!
Arthur começou a comer. Engoliu a metade da massa repulsiva e depois disse, a voz tensa:
- Não posso.
E no momento em que ele falou, a náusea tornou-se incontrolável. Vomitou nas botinas do guarda Collins.
O guarda Collins ficou lívido. Pensou que Arthur vomitara deliberadamente em suas botinas. Esqueceu a técnica de seu sadísmo. Sem a menor hesitação, acertou um soco violento na cara de Arthur.
Arthur empalideceu. Ficou olhando aturdido para o guarda Collins, uma expressão desesperada nos olhos.
- Não pode fazer isso comigo - balbuciou ele. - vou denunciá-lo por me agredir.
- Vai mesmo? - O guarda Collins repuxou o lábio desdenhosamente, até ao máximo possível. - Pois então denuncie isto também.
Ele desferiu outro soco ainda mais violento em Arthur, derrubando-o. Arthur caiu no chão de concreto e ficou imóvel. Gemeu debilmente. Ao ouvir o gemido, o guarda Collins sorriu sombriamente, pensando em seu filho nas trincheiras. Limpou as botinas sujas na túnica de Arthur e depois, com o lábio fino ainda repuxado, saiu da cela. Arthur ouviu muito longe o barulho da chave.
No mesmo dia em que Arthur ficou caído na poça de vómito no chão de cimento de sua cela, Joe sentava-se à mesa tranquilamente, diante de um prato de ostras, no Central Hotel, Tynecastle. Entre outras coisas, Joe recentemente descobrira ostras. As ostras eram espantosas, sob todos os aspectos, especialmente a quantidade que um homem podia comer. Joe conseguia comer facilmente uma dúzia e meia, quando estava com boa disposição, o que geralmente acontecia. E, por Deus, como eram gostosas... com uma pitada de molho de pimentão e algumas gotas de limão. As mais polpudas eram as melhores.
Muito embora alguns alimentos fossem difíceis de obter, como carne de vaca e galinha, por exemplo, as pessoas que tinham algum prestígio sempre podiam comer ostras no Central, durante a temporada. Para dizer a verdade Joe podia conseguir praticamente qualquer coisa no Central. Aparecia tão constantemente que já se tornara bastante conhecido. Todos corriam para atendê-lo e quem corria mais depressa era o mattre, o velho Sue - o nome dele era realmente Suchard, mas tinha o hábito jovial e íntimo de abreviar os nomes.
- Por que não compra algumas ações da Crocker & Dicksons? - sugerira-lhe Joe, alguns meses antes. - Não precisa ficar tão assustado, Sue. Sei que não especula... é um homem dedicado à família e tudo o mais, não é mesmo?... mas este caso é diferente. Deve comprar pelo menos uma centena de ações, só para se divertir um pouco.
Uma semana depois, Sue estava esperando por Joe à entrada do restaurante, transbordando de gratidão, quase se ajoelhando, conduzindo-o à melhor mesa.
- Ora, Sue, não foi nada. Nem precisa se incomodar em agradecer. Quanto ganhou? Sessenta libras? Dá para pagar os charutos, hem? Ah! Ah! Preste atenção, Sue, basta cuidar direito de mim e eu também cuidarei de você.
O dinheiro consegue tudo, pensou Joe, espetando a última ostra e deixando-a descer pela goela abaixo. Enquanto o garçom retirava o prato de ostras e trazia o filé, Joe correu os olhos pelo Grill Room, alegremente. O Grill Room do Central era o melhor lugar para se frequentar naqueles dias; mesmo aos domingos, estava sempre repleto, o local em que todos os homens bemsucedidos se encontravam, os homens de negócios que estavam ganhando dinheiro a não poder mais. Joe conhecia quase todos, Bingham e Howard, ambos no Conselho de Munições, Snagg, o advogado, Ingram, da Ingram Toogood, a cervejaria, Wainwright, da Bolsa de Tynecastle, e Pennington, cuja especialidade era geléia sintética. Joe estava deliberadamente empenhado em fazer contatos, com homens ricos, qualquer pessoa que pudesse ser-lhe útil. A simpatia pessoal nada significava, pois ele cultivava apenas aqueles que poderiam contribuir-lhe com alguma coisa. Mas Joe tinha um comportamento tão efusivo, era uma companhia tão agradável, que por toda parte consideravam-no um excelente companheiro, o melhor dos homens.
Dois homens perto da janela atraíram a atenção de Joe. Ele acenou com a cabeça e os homens - retribuíram com um aceno de mão. Joe sorriu, com uma profunda satisfação íntima. Uma dupla esperta, Bostock e Stokes... capazes de qualquer coisa. Bostock estava no negócio de botinas, uma empresa sem muito movimento, antes da guerra começar, com uma pequena fábrica de faturamento à vista em East Town. Mas nos 18 meses que haviam transcorrido desde o início da guerra Bostock conseguira um punhado de contratos do exército. Contudo, a sua grande fonte de lucros não estava nos contratos, embora estes fossem excelentes, por si mesmos. O segredo estava nas botinas. Não havia um único centímetro de couro nas botinas de Bostock. Absolutamente nenhum. Bostock revelara a Joe poucas noites antes, no County, quando estava meio tocado. O que Bostock usava nas botas era um tipo especial de látex, que tinha a garantia de não durar muito tempo. Mas isso não fazia a menor diferença, confidenciara Bostock, quase em lágrimas, pois os pobres coitados na guerra dificilmente conseguiam sobreviver as botinas que usavam. Uma pena!
- Oh, Deus, Joe, isso não é muito triste? - balbuciara Bostock subitamente, num ataque de patriotismo.
Stokes trabalhava com roupas. Nos últimos meses, ele comprara toda a área por cima de sua loja e agora referia-se ao local como "minha fábrica". Era o maior patriota em todo o distrito de Crockertown. Sempre falando em "necessidade nacional", ele obrigava todas as suas operárias a trabalharem horas extras sem pagamento, descontava as horas de almoço, fazia com que trabalhassem inclusive aos domingos, às vezes até oito horas da noite. Apesar disso, a maior parte do seu trabalho era absorvida pelas mulheres dos cortiços ao redor. Stokes pagava sete pence por uma calça e um shilling e seis pence pelo uniforme completo. Pagava dois shillings por uma dúzia de túnicas caquis, descontando dois pence por um rolo de Unha. Calças de soldados eram acabadas por um penny, cintos de pano por oito pence a dúzia, agulhas e linhas fornecidas pelas mulheres. E o lucro? Joe umedeceu os lábios, sequiosamente, ao pensar nisso. No caso dos cintos, por exemplo, Joe sabia que estavam sendo comprados de Stokes por alguém lá de cima a 18 shillings a dúzia. E o custo total para Stokes era de apenas dois shillings e 10 pence! Por Deus, era maravilhoso! É verdade que um porco socialista estava fazendo o maior escândalo por que Stokes pagava apenas um penny por hora às mulheres dos cortiços que trabalhavam para ele. O que Joe achava um absurdo. Aquelas mulheres não brigavam para trabalhar? E havia mulheres sobrando. Bastava dar uma olhada nas filas esfarrapadas da margarina. Além do mais, eles não estavam em guerra?
A experiência de Joe era a de que não podia haver nada como uma guerra para ajudar um homem a se impor. Pelo menos Joe atribuía sua posição à guerra. Na Millington, ele conseguira se impor e todos tinham medo dele agora, Morgan, Irvine, até mesmo o ranzinza do Dobbie. Joe sorriu. Recostou-se na cadeira e removeu cuidadosamente a cinta de um charuto Havana. Stokes e Bostock podiam fumar seus charutos com as cintas, já que não passavam de exploradores sem classe. Mas ele sabia o que era melhor. O sorriso de Joe tornou-se sonhador. Mas ele empertigou-se de repente, alerta e jovial, ao ver Jim Mawson se aproximando. Estava esperando por Mawson, que sempre almoçava em casa aos domingos, para aparecer no Central por volta das duas horas da tarde.
Jim avançou serenamente pela sala apinhada e veio sentar-se à mesa de Joe. Olhou para Joe, que acenou com a cabeça silenciosamente, em resposta. Era o cumprimento de dois homens que sabiam o que faziam. Uma pausa, enquanto Mawson corria os olhos pelo restaurante, com um tédio evidente.
- Uísque, Jim? - perguntou Joe finalmente. Jim sacudiu a cabeça e bocejou. Outra pausa.
- Como estão as coisas, Joe?
- Até que não estão muito ruins. - Joe tirou um pedaço de papel do bolsinho do colete. - A produção na última semana foi de 200 toneladas de shrapnel, 10 mil granadas Mills, mil projéteis de alta velocidade e mil e 500 bombas de 18 libras.
- Deus do céu, Joe, você vai acabar com essa maldita guerra sozinho, se não tomar cuidado - comentou Jim, sem qualquer emoção na voz, pegando um palito no pratinho de vidro.
Joe sorriu cautelosamente.
- Não precisa se preocupar, Jim. Algumas dessas granadas não conseguiram arrebentar um coco. Por Deus, nunca vi tantos buracos nos moldes como na última semana. É a sucata que você entregou, Jim. Estava demais. A metade saiu tão esburacada como queijo Gruyêre. Tivemos de cobrir os buracos e passar duas camadas de tinta.
- Ah... - Jim suspirou. - E não vai dar para desconfiar?
- Claro que não.
Trabalhando lentamente com o palito, Jim perguntou, depois de uma breve pausa:
- Quanto vai poder absorver esta semana?
Joe inclinou a cabeça para o lado, pensando por um momento.
- É melhor me mandar 150 toneladas. Mawson assentiu.
- E fature 350 toneladas esta semana, Jim. Já estou cansado de ficar contando apenas cem toneladas extras.
O sorriso enigmático de Jim indagava: é seguro?
- Não devemos ir com muita sede ao pote - disse ele finalmente, pensativo. - Temos de pensar em Dobbie!
- Não se preocupe com ele. Quando a fatura chegar, Dobbie não terá a menor ideia do que estamos usando na fundição. Desde que os seus malditos números confiram, ele acha que tudo está absolutamente certo.
Talvez Joe falasse com alguma veemência. Seus esforços iniciais para corromper Dobbie, o pomposo caixa de pincenê, haviam sido frustrados. Felizmente, era muito fácil enganar Dobbie. Ele estava preocupado exclusivamente com a escrupulosidade da parte contábil. Não conhecia absolutamente nada do lado prático. Há meses que Joe vinha realizando aquelas operações com Jim Mawson. Naquele dia, por exemplo, ele acabara de encomendar 150 toneladas de sucata, mas a fatura que visaria como correia estaria indicando 350 toneladas. Dobbie pagaria pelas 350 toneladas e Mawson e Joe dividiriam o lucro de 200 toneladas-fantasmas, na base de sete libras por tonelada. Era um lucro total de mil e 400 libras. Talvez fosse apenas um item secundário nas atividades conjuntas de Jim e Joe. Mas já era o suficiente para fazer com que se sentissem agradecidos pelas benesses da guerra.
Os negócios concluídos satisfatoriamente, Mawson recostou-se na cadeira, segurando a barriga ternamente. Um silêncio.
- Lá vêm os dois - declarou ele, finalmente.
Stokes e Bostock haviam se levantado e estavam se aproximando. Pararam ao lado da mesa. Os dois estavam corados da comida e das bebidas, sentindo-se felizes e importantes. Stokes ofereceu a caixa de charutos a Joe e Mawson, Joe largou o seu Havana pela metade e inclinou-se sobre a caixa de charutos de couro de crocodilo, enquanto Stokes dizia, com uma piscadela desnecessária:
- Não precisa cheirá-los. Cada um custou-me meio dólar.
- Os malditos preços não andam de brincadeira - declarou Bostock, solenemente. Tomara apenas quatro conhaques, mas balançava ligeiramente.
- Sabiam que apenas um maldito ovo está custando cinco pence!
- Você está em condições de pagar - comentou Joe.
- Pessoalmente, não gosto de ovo - disse Bostock. - Acho intragáveis. E ando muito ocupado para pensar nessas coisas. Estou construindo uma maldita casa imensa em Kenton, porque minha mulher e minha filha estão querendo. Ah, as mulheres! Mas o que eu estava querendo dizer era o seguinte: como diabo a maldita guerra vai poder continuar, se um ovo está custando cinco pence!.
Cortando o seu charuto, Mawson disse:
- Pode fazer um seguro contra esse risco. Eu já o fiz. De 15 por cento, contra a guerra terminar este ano. Vale a pena.
Bostock disse, muito sóbrio:
- Eu estava falando sobre ovos, Jim. Stokes piscou para Joe e disse:
- Por que uma galinha atravessa a estrada? Bostock olhou para Stokes e disse solenemente: -Va !
- Vá você! - respondeu Stokes, apoiando-se afetuosamente no ombro de Bostock.
Instintivamente, Joe e Mawson trocaram um rápido olhar de desdém. Stokes e Bostock não podiam suportar o peso do dinheiro, não aguentavam o ritmo, um dia desses desapareceriam numa nuvem de fumaça. O amor-próprio de Joe ficou imensamente lisonjeado pela compreensão silenciosa que tinha com Mawson. Começou a quase desprezar Stokes e Bostock, estava agora por cima deles. Acariciou o charuto lentamente entre os lábios e soltou desdenhosamente uma nuvem de fumaça.
- O que vai fazer esta tarde, Jim? - perguntou Stokes afavelmente. Mawson olhou para Joe, com uma expressão inquisitiva.
- Acho que vou ao County.
- Está ótimo para nós - disse Bostock efusivamente. - Vamos todos ao clube.
Joe e Mawson levantaram-se e encaminharam-se todos para a porta do restaurante. Uma moça que servia como porteira abriu a porta servilmente para deixar passar aqueles quatro machos triunfantes, muito bem alimentados e vestidos, mestres do universo. Formavam um grupo impressivo nos degraus do Central, Joe um pouco para trás, ajeitando a echarpe azul de seda.
Mawson virou-se para ele.
- Vamos embora, Joe. Podemos os quatro jogar um pouco de sinuca. Joe olhou para o seu relógio de platina com uma expressão de pesar.
- Sinto muito, Jim, mas tenho um compromisso. Bostock relinchou uma risada, sacudindo o indicador gordo.
- Aposto que tem saia nisso. Joe sacudiu a cabeça.
- É uma reunião de negócios.
- É trabalho de guerra - sugeriu Stokes, com uma risada maliciosa. É trabalho de guerra com alguma voluntária.
Todos contemplaram-no com inveja.
- Então adeus! - disse Bostock. - Não vamos ter sinuca hoje! Até a próxima!
Mawson, Stokes e Bostock partiram para o clube. Joe ficou observando-os se afastarem por um momento, depois desceu para a escada e encaminhou-se para o seu carro. Ligou o carro e partiu para Wirthley. Prometera buscar Laura na cantina. Guiando pelas ruas quietas do domingo, pensativo, Joe pensava no esquema de Mawson, dinheiro, negócios, granadas, aço, a sua barriga repleta de boa comida e bebida. Descobriu-se a pensar com a maior satisfação na tarde que teria pela frente. Não pôde deixar de sorrir, um sorriso esfuziante, de intensa satisfação. Laura era ótima, devia-lhe muita coisa. Ela lhe ensinara muitas coisas, do jeito de dar o laço em suas gravatas novas até encontrar o pequeno e discreto apartamento que Joe ocupava há seis meses. Laura o melhorara consideravelmente. Mas agradava a ela fazer as coisas por ele, como levá-lo a tornar-se sócio de County e com uma discrição similar providenciar-lhe convites para as casas dos Howards, os Penningtons e até mesmo da Sra. John Rutley. Ela estava totalmente caída por ele. O sorriso de Joe se ampliou. Compreendia Laura perfeitamente agora. Sempre se orgulhara de conhecer as mulheres: as assustadas, as frias (que eram as mais comuns), as "fingidas". Mas nunca antes conhecera uma mulher como Laura. Não era de admirar que ela não fosse capaz de resistir-lhe. Ou melhor, de resistir a si mesma.
Ao entrar na praça por baixo da Fábrica de Munições Wirtley - por motivos óbvios, sempre se encontravam ali - Laura estava virando a esquina, andando rapidamente. A pontualidade dela sempre deixava Joe satisfeito. Ele parou o carro, tirou o chapéu e saltou para abrir-lhe a porta. Ela entrou e Joe voltou a sentar-se ao volante, seguindo para seu apartamento, sem uma palavra.
Não disseram nada por alguns minutos, no silêncio da mais profunda intimidade. Joe gostava de tê-la ao seu lado. Laura era uma mulher perfeitamente elegante, de muita classe. Os sentimentos que Joe tinha por ela eram agora os de um marido ainda muito afeiçoado à mulher. Claro que já não havia mais tanto excitamento agora, a própria consciência da afeição de Laura reduzindo um pouco o apetite de Joe.
- Onde você almoçou? - perguntou ela finalmente.
- No Central. E você?
- Comi um sanduíche de bacon na cantina.
Joe riu jovialmente; sabia que o interesse dela não era por comida.
- Ainda não está cansada daquele lugar, Laura? Já não se cansou de ficar servindo todo mundo?
- Não. - Ela pensou por um momento. - Gosto de pensar que ainda possuo alguns instintos decentes.
Joe riu novamente, abandonou o assunto. Passaram a falar de coisas triviais, até chegarem ao final da Northern Road. Era ali que ficava o apartamento de Joe, um pouco afastado da rua. O apartamento era na verdade o primeiro andar de uma casa dividida, os cómodos de teto alto, lareiras e sancas, um senso discreto de espaço, acentuado pelos jardins, na frente e atrás. Laura mobiliara o apartamento para ele, com um bom gosto indiscutível, pois ela tinha inclinação para essas coisas. Não havia dificuldade em cuidar do apartamento. Uma mulher vinha todas as manhãs para a arrumação. Era absolutamente seguro para a intimidade deles, já que ficava a oito quilómetros de Yarrow. Para os que viam Laura entrar e sair, ela passava por irmã de Joe.
Joe abriu a porta do apartamento e entrou com Laura. Acendeu o aquecedor elétrico na sala de estar. Sentando-se, começou a tirar os sapatos. Laura serviu-se de um copo de leite e ficou de pé atrás de Joe, observando-o.
- Tome um u isque com soda - sugeriu Laura.
- Não estou com vontade.
Joe pegou o jornal de domingo que estava na mesa e abriu-o na página financeira.
Ela estudou-o por um momento, em silêncio, terminando de tomar o leite. Por alguns minutos, movimentou-se pela sala, endireitando as coisas, como se esperasse que Joe falasse. Depois, discretamente, foi para o quarto. Joe ouviu-a no quarto, tirando as roupas. Baixando o jornal, ele sorriu ligeiramente. Iam para a cama em todas as tardes de domingo, serenamente, decentemente, como as pessoas vão à igreja. Mas, ultimamente, agora que seu próprio desejo arrefecera um pouco, Joe gostava de "caçoar um pouco de Laura". Agora, ele esperou meia hora, fingindo ler o jornal, antes de ir para o quarto, com um bocejo ostensivo.
Ela estava deitada de costas na cama, com uma camisola branca de algum tecido maravilhoso, bem decotada, os cabelos maravilhosamente arrumados, as roupas impecavelmente dobradas numa cadeira, seu perfume espalhando-se pelo quarto. Joe não podia deixar de admitir que ela tinha classe. Uma semana antes, ele tivera uma aventura com uma das operárias de Wirtley, indo para o quarto dela. Não restava a menor dúvida de que se tratava de uma jovem sedutora, a cor morena atraindo-o, em comparação com a alvura de Laura. Mas a camisola de mau gosto da jovem, assim como os lençóis ordinários da cama, haviam-lhe causado alguma repugnância. Era verdade, Laura soubera educá-lo devidamente. Evidentemente, o melhor jeito de aprender boas maneiras era ir para a cama com uma mulher de classe.
Joe despiu-se lentamente, consciente de que Laura observava-o. Demorou-se a tirar dos bolsos as chaves, a cigarreira de ouro e as moedas, guardando tudo na arca de gavetas. Ficou até parado, quando estava só de cueca, contando deliberadamente o dinheiro, antes de se aproximar .e sentar-se na beira da cama.
- Estava calculando o quanto deveria me dar? - perguntou Laura, com sua voz controlada.
Joe desatou a rir, contente pela oportunidade de descarregar o seu divertimento.
- Para dizer a verdade, Joe - continou Laura, no mesmo tom irónico estive pensando que eu é quem tem dado quase tudo. Cigarreira, relógio, abotoaduras, todos esses pequenos presentes, além do uso do carro. Você me arrancou até os móveis. Sei que você está sempre pensando em me dar o cheque pelos móveis. Mas, para ser franca, não me importo absolutamente que me dê ou não esse cheque. Não sou mesquinha. Mas fico imaginando se compreende tudo o que tenho feito por você, de um jeito ou de outro.
Joe apalpou seu bíceps, no maior bom humor.
- Ora, fez tudo isso porque queria.
- Então é assim que você pensa? - Laura fez uma pausa. - Quando penso como tudo começou... Foi naquela manhã em que você foi buscar os talões de cheques. Um tolo momento de fraqueza. E agora chegamos a este ponto.
- Ora, seria a mesma coisa, de qualquer forma - comentou Joe, sorrindo maliciosamente. - Você sabe muito bem que é louca por mim.
- Que maneira ótima de analisar a situação... Sabe, Joe, creio sinceramente que você não se importa comigo nem um pouco. Simplesmente usoume. .. usou-me para conseguir...
- Mas também não fui de algum uso para você? Um silêncio.
- Você é muito eficiente em fazer com que eu odeie a mim mesma, Joe.
- Ora, Laura, não comece com isso agora!
Joe meteu-se na cama, ao lado dela. Laura deixou escapar um suspiro que era quase um gemido, por sua própria fraqueza, por seu desejo. E depois virou-se de lado, entregando-se.
Dormiram por cerca de uma hora depois, Joe um tanto irrequieto. Sempre o irritava o fato de Laura grudar nele, depois que seu próprio desejo estava saciado. Nos primeiros dias, era gratificante para a sua vaidade demonstrar sua virilidade, contrastar o seu corpo vigoroso com a flacidez óbvia de Stanley. Mas agora estava cansado disso e não tinha a menor intenção de exaurir os seus recursos físicos por Laura. Quando ela abriu os olhos e fitou-o, Joe sustentou o olhar dela, através do travesseiro, com uma expressão ligeiramente zombeteira.
- Não me ama mais, Joe?
- Sabe que a amo.
Ela suspirou, desviando os olhos.
- Oh, Deus...
- Qual é o problema?
- Nada. Você sabe ser odioso quando quer. E às vezes me faz sentir horrivelmente. - Uma pausa. - Sei que sou horrível, mas nada posso fazer para evitar.
Joe continuou a fitá-la, consciente daquele riso interior que o dominava o dia inteiro. Chegara à sutileza de extrair uma curiosa satisfação do jogo de emoções no rosto de Laura; observava-a especialmente nos momentos de orgasmo, obtendo um senso de sua própria importância como o apaziguador daquele turbilhão interior. Isso mesmo, ele era "o chefe", como gostava de pensar. Claro que ainda gostava de Laura, mas era ótimo sentir a dependência dela de vez em quando. Agora, percebendo que Laura estava com ânimo para a ternura, Joe simulou uma vitalidade jovial.
- Acho que devemos tomar o nosso chá - disse ele. - Estou ressequido. Ele começara a sorrir quando o telefone tocou subitamente. Ainda sorrindo, inclinou-se por cima de Laura e atendeu.
- Alo? Isso mesmo, aqui é Mr. Gowlan. Pois não, Morgan... Entendo... Não, não tenho a menor ideia... O quê? - A voz de Joe alterou-se ligeiramente. Houve uma pausa mais prolongada. - Então é isso... Santo Deus, não me diga que isso... Isso mesmo, Morgan... claro, claro... Estarei aí daqui a pouco... Isso mesmo, irei pessoalmente!
Joe desligou, voltando lentamente para o seu lado da cama. Seguiu-se um silêncio.
- O que era? - perguntou Laura.
- bom. .. - Joe limpou a garganta. - O problema.,.
- Mas, afinal, o que aconteceu?
Joe hesitou, pegando a beirada do lençol.
- Acaba de chegar um telegrama ao escritório. Laura soergueu-se na cama.
- É Stanley?
- Não foi nada - Joe apressou-se em dizer. - Ele está bem. Foi apenas choque de combate.
- Choque de combate... - repetiu Laura, lentamente, os lábios ficando lívidos.
- Isso é tudo. Não houve mais nada. Laura comprimiu a mão contra o rosto.
- Oh, Deus! - murmurou ela, a voz angustiada. - Eu sabia que alguma coisa assim acabaria acontecendo! Eu sabia! Eu sabia!
- Mas não foi nada demais - insistiu Joe. - Não precisa ficar preocupada. Ele não sofreu um arranhão sequer. Apenas foi soterrado pela explosão de uma granada, ficou em estado de choque e vão mandá-lo de volta para casa a fim de se recuperar. Ele não está nem ferido. Estou lhe dizendo que não é nada.
Ele tentou retirar a mão que Laura mantinha sobre o rosto, mas ela não deixou.
- Deixe-me em paz! - Laura desatou a chorar. - Deixe-me em paz!
- Mas ele nem sequer está ferido...
Ela virou-se bruscamente, saiu da cama e, soluçando, tirou a camisola. Nua, o corpo alvo encurvado, ela pegou as roupas na cadeira, começou a vestir-se.
- Mas, Laura...
Joe nunca a vira chorar antes. Ela gritou:
- Cale-se! Qualquer coisa que você disser só vai servir para piorar a situação. Já fez algo por mim. Fez com que eu me odiasse. E agora, Stanley... Oh, Deus!
Pondo o casaco, ela pegou o chapéu e saiu correndo do quarto, a soluçar.
Joe continuou com o corpo meio erguido, apoiado no cotovelo, por mais um minuto. Depois, dando de ombros, estendeu a mão para a mesinha-de-cabeceira, bocejou, acendeu um cigarro.
Foi na primavera de 1916, quase 14 meses depois que Hilda e Grace foram para Londres, como enfermeiras voluntárias. Hilda estava mais feliz do que jamais se sentira. As mudanças perturbadoras no pai, todas ecos angustiantes do desastre na Neptune, a história terrível da prisão de Arthur, relatada em cartas aflitivas por Tia Carrie, tudo isso a afetara muito pouco. Foi o que demonstrou quando Grace foi procurá-la, em lágrimas, dizendo:
- Oh, Hilda, temos de fazer alguma coisa por Arthur! Não podemos ficar aqui e deixar que isso aconteça!
Hilda respondeu bruscamente:
- O que podemos fazer? Nada. A não ser nos mantermos a distância de toda a confusão.
Sempre que Grace tentava abordar o assunto, Hilda prontamente a interrompia, à sua maneira brusca.
A casa de Lorde Kell ficava na Belgrave Square, uma enorme mansão que fora despojada... a não ser por alguns admiráveis candelabros de cristal, uns poucos quadros e tapeçarias... e convertida num hospital, um propósito para o qual era extremamente apropriada. Seis dos cómodos eram enormes, tão vastos quanto um salão de baile de tamanho médio, com tetos altos e assoalhos de carvalho polidos. Transformaram-se nas enfermarias. A grande sala de música nos fundos foi transformada numa sala de operações. Era ali que Hilda tinha os seus momentos mais felizes.
Hilda se dera maravilhosamente bem em Belgrave Square; em seis meses, absorvera tantos conhecimentos quanto uma enfermeira comum leva três anos de estudos para adquirir. Miss Gibbs, a matrona, já estava de olho nela, convencida de que encontrara em Hilda alguma coisa extraordinária. Miss Gibbs elogiara Hilda e a transferira para a sala de operações. Ali, as qualidades de Hilda pareciam exatamente certas. Calma e precisa, Hilda funcionava na mesa de operações com uma competência impressionante e infalível. O tempo de folga que Hilda usara para estudar fora amplo, mas era o seu instinto e temperamento que a tornavam tão perfeita. Olhava-se para Hilda e compreendia-se prontamente que ela não podia falhar. Mr. Ness olhou para Hilda por diversas vezes durante a sua primeira semana na sala de operações, um olhar rápido e penetrante, quando Hilda previa alguma coisa que ele estava querendo. Ness era um homem baixo, de modos bruscos, que suava horrivelmente quando estava trabalhando. Mas era extraordinário na cirurgia abdominal. Posteriormente, ele sugeriu discretamente a Miss Gibbs que Hilda poderia ser em breve tão útil na sala de operações quanto a irmã que ali funcionava.
Ao ser informada do interesse de Ness por seu trabalho, Hilda não demonstrou qualquer exultação. A grande honra, como Miss Gibbs pomposamente classificou-a, não impressionou Hilda. É claro que ela experimentou alguma satisfação interior, mas prontamente reprimiu-a, não se sentindo triunfante. O sucesso reforçou a determinação de Hilda e fez com que projetasse a sua ambição ainda mais alto do que antes. Quando estava parada ao lado de Ness, observando-o fazer suas incisões, suturas e anastomoses, Hilda não imaginava o momento em que estaria substituindo a irmã na sala de operações, ajudando-o mais de perto no trabalho. Nada disso! Ela observava Ness operar e ficava imaginando o dia em que ela própria operaria. Era essa a ambição de Hilda. Ela sempre desejara ser médica... uma cirurgiã. Sempre. Talvez estivesse um pouco atrasada para começar, mas ainda era jovem, tinha apenas 25 anos. E desde a sua milagrosa emancipação do Law, Hilda jurara a si mesma que nada poderia impedi-la de alcançar seu objetivo. Enquanto isso, Hilda estava feliz. .. tinha um objetivo em vista, tinha o seu trabalho e tinha Grace.
Grace não alcançara o mesmo sucesso espetacular de Hilda. Na verdade, Grace não era absolutamente um sucesso. Desleixada, impontual, imprecisa. .. a pobre Grace não possuía nenhuma das qualidades essenciais ao sucesso. Enquanto Hilda subia como um foguete às alturas estonteantes da sala de operações, Grace continuava nos assoalhos e banheiros. Grace não se importava. Grace estava perfeitamente contente; tão contente que por duas vezes fora convocada à presença de Miss Gibbs; por servir chá às mulheres dos pacientes na cozinha da enfermaria e outra vez por contrabandear Gold Flake para um sargento punido por praguejar diante da irmã da enfermaria. Como Miss Gibbs não hesitava em dizer, Grace era incompetente, irremediavelmente incompetente. Grace nunca seria alguém, dizia Miss Gibbs, a menos que consertasse.
Mas Grace era assim mesma e ninguém queria que ela consertasse, a não ser Miss Gibbs e Hilda. Grace era extremamente popular entre as outras enfermeiras. Na residência das enfermeiras, uma casa na Sloane Street, cerca de um quilómetro e meio de distância, havia sempre alguém no cubículo desarrumado de Grace, pedindo ou dando um cigarro, um Bystander, um disco ou um chocolate de imitação que a guerra produzira. Ou convidando Grace para tomar um chá, ir ao cinema ou conhecer um irmão que estava em casa de licença.
Hilda detestava tudo isso. Ninguém aparecia no quarto austeramente impecável de Hilda e Hilda também não queria que ninguém aparecesse... à exceção de Grace. Isso mesmo, Hilda queria Grace, queria Grace toda para si e com todo o coração. Amarrava a cara para as visitantes cordiais, procurava cortar no nascedouro as amizades de Grace.
Uma manhã, ao final de março, ela comentou desdenhosamente:
- Por que você tinha de sair com aquela tal Montgomerie?
- A velha Monty não é tão má assim, Hilda - respondeu Grace. - E só fomos no Kardomah.
- Aquela mulher é horrível! - exclamou Hilda, dominada pelo ciúme.
- Deve sair comigo em sua próxima folga. vou arranjar tudo.
Hilda acertava a maioria das coisas para Grace, continuando a ditar-lhe o que devia ou não fazer, em seu amor possessivo. E Grace, ingénua, simples e meiga como sempre, submetia-se alegremente.
Mas Grace não se submetia a Hilda nas cartas. Grace não discutia, não contradizia. Nessa questão, ela simplesmente se recusava a submeter-se a Hilda. E as cartas preocupavam Hilda terrivelmente. As cartas chegavam da França uma vez por semana e às vezes duas, com o carimbo postal do front e a mesma letra, uma letra de homem. Hilda podia compreender que Grace mantinha uma correspondência constante com alguém no front. Finalmente chegou um momento em que Hilda não pôde mais aguentar. Numa noite de abril, ao voltar para casa com Grace, pelas ruas desertas, Hilda perguntou:
- Recebeu hoje outra carta da França?
Olhando para a calçada à sua frente, Grace murmurou:
- Recebi.
Como estava transtornada, a atitude de Hilda tornou-se mais fria e agressiva.
- Quem está lhe escrevendo?
Grace não respondeu imediatamente. Corou prontamente, na escuridão. Mas acabou respondendo... não havia evasiva ou qualquer artifício em Grace.
- Dan Teasdale.
- Dan Teasdale! - A voz de Hilda era ao mesmo tempo desdenhosa e chocada. - Está se referindo àquele Teasdale... o filho do padeiro?
Grace disse simplesmente:
- Ele mesmo.
- Santo Deus! Não está querendo dizer... Ora, em toda a minha vida nunca ouvi nada tão terrivelmente idiota!
- Por que É idiota?
- Por quê? Ainda pergunta por quê? Não acha que é um tanto vulgar manter um romance com um mero padeiro?
Grace estava muito pálida agora e sua voz era extremamente contida.
- Pode dizer todas as coisas desagradáveis que quiser, Hilda. Dan Teasdale não tem nada de que se envergonhar. Ele me escreve as cartas mais bonitas que já recebi em toda a minha vida. Não acho que haja alguma coisa de vulgar nisso.
- Você não acha, mas eu acho! - disse Hilda, incisivamente. - E não vou permitir que você se comporte como uma garotinha apaixonada. Muitas mulheres tolas já estragaram suas vidas por causa de seus heróis de guerra. É repulsivo... simplesmente repulsivo!. Você tem de parar com essas cartas.
Grace sacudiu a cabeça.
- Sinto muito, Hilda.
- Estou lhe dizendo que vai parar com essas cartas! Grace tornou a sacudir a cabeça.
- Não vou, não!
As lágrimas brilhavam nos olhos de Grace, mas havia em sua voz uma estranha determinação, que dissipou a raiva de Hilda e deixou-a assustada.
Hilda não disse mais nada naquela noite. Mas assumiu uma atitude e tentou coagir Grace com essa atitude. Deu o gelo em Grace, só lhe falava asperamente, geralmente a ignorava, com uma expressão desdenhosa. Isso perdurou por duas semanas e as cartas continuaram a chegar.
Num pânico secreto, Hilda subitamente mudou. Pediu desculpas a Grace, passou a agradá-la e lisonjeá-la, acompanhou-a ao Kardomah, um café bastante apreciado pelas enfermeiras, para o melhor que o dinheiro e a influência de Hilda junto à proprietária podiam proporcionar. Por uma semana inteira, Hilda mimou Grace, que recebeu tal atitude tão submissamente quanto recebera antes a censura. Depois, Hilda tentou novamente persuadir Grace a deixar de escrever para Dan. Não adiantou. Grace não renunciaria jamais a escrever para Dan.
Hilda vigiava as cartas, aquelas cartas abomináveis e intermináveis, descia todas as manhãs para inspecionar os escaninhos de cartas, dominada por uma espécie de ódio. E numa manhã de junho ela notou, com um sobressalto, que a carta que acabara de chegar tinha o carimbo postal de Loughborough.
Ela foi falar com Grace depois do café da manhã, perguntando em voz controlada:
- Ele está ferido?
- Está.
Grace evitava fitá-la nos olhos.
- Gravemente?
- Não.
- Está no hospital?
- Está.
Um alívio secreto invadiu Hilda. Não podia deixar de sentir-se profundamente aliviada. Afinal, Loughborough ficava longe, muito longe mesmo. Como o ferimento não era grave, Dan estaria voltando à França em breve. Mas Hilda não podia também deixar de escarnecer:
- Ele devia ter sido trazido para cá, é claro. É assim que acontece nas novelas baratas.
Grace afastou-se rapidamente, mas não antes de Hilda acrescentar:
- Seria maravilhoso para ele sair do efeito da anestesia e encontrála ao lado da cama, pronta para abraçá-lo.
O tremor-na voz de Hilda indicava o quanto lhe doía dizer aquilo... e doía terrivelmente. Contudo, ela tinha de dizer. Estava dominada pelo ciúme.
Grace não respondeu a Hilda. Foi para a enfermaria levando a carta de Dan no bolso do avental. Leu-a diversas vezes, enquanto estava de plantão.
Dan participara da grande ofensiva no Somme, fora ferido no pulso e antebraço esquerdos. Ficaria bom quase que imediatamente, escrevera Dan, o braço não doía absolutamente, apenas não podia usar a mão.
As cartas de Dan tornaram-se irregulares ao final de julho. Mas ao cair da noite do último dia do mês, quando Grace avançava pela Sloane Street, ela avistou alguém de uniforme parado diante da casa, com o braço na tipóia. Ela estava sozinha e andava um tanto devagar, pois sentia-se cansada, entristecida por causa de Arthur, por todas as mudanças em Sleescale. Por um momento, tudo parecia errado. Miss Gibbs lhe dera outra preleção por desmazelo e ela estava ainda mais perturbada por não receber notícias de Dan. Era impressionante como passara a depender daquelas cartas de Dan. Grace estacou abruptamente ao divisar o vulto de uniforme, indecisa. E no instante seguinte ela teve certeza absoluta. O coração pulou dentro do peito. Era Dan. Ele atravessou a rua e bateu-lhe continência.
- Dan! Eu pensei... isso mesmo, pensei que era você!
O prazer que Grace sentia por vê-lo transparecia em seu rosto. E esquecendo inteiramente que estava cansada e triste, ela estendeu a mão.
Sem dizer nada, Dan apertou-lhe a mão, timidamente. A inibição de Dan na presença de Grace era quase uma doença. Ele parecia ter medo até de olhá-la. Grace nunca antes conhecera alguém que sentisse medo dela. Era tão absurdo que ela sentia vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Rapidamente, antes que pudesse fazer alguma coisa tão estúpida assim, ela disse:
- Estava esperando há muito tempo, Dan? Não quis entrar na casa?
- Não queria preocupá-la. Pensei que poderia vê-la por um instante, quando entrasse.
- Por um instante?
Grace sorriu novamente; de repente, ela olhou para o braço ferido de Dan.
- Como está seu braço?
- Tiveram algum problema com o pulso... com os tendões. Fui enviado para cá a fim de fazer um tratamento ortopédico, na Clínica Langham. Eletricidade e uma dessas máquinas novas de exercícios. Seis semanas de tratamento, antes de eu voltar.
- Seis semanas!
A exclamação de prazer de Grace quase o tranquilizou. Ele disse, constrangido :
- Eu estava imaginando se você... se não se importaria... se não tivesse outra coisa melhor para fazer...
Grace apressou-se em declarar:
- Não, eu não me importaria. E não tenho nada melhor para fazer.
Ela fez uma pausa, fitando-o com olhos a brilharem intensamente. Os cabelos saíam comicamente pela touca de enfermeira; havia uma mancha visível em seu rosto.
- Tenho duas horas de folga amanhã. Vamos tomar chá? Dan riu, ainda olhando para o chão.
- Era o que eu queria lhe perguntar...
- Já sei que sou horrível, tomei a iniciativa de me convidar... Oh, Dan, é maravilhoso demais para se exprimir com palavras! Há centenas de coisas que podemos fazer em seis semanas. - Grace fez uma pausa. - Não há qualquer outra garota com quem mantenha correspondência e deseje levar para passear?
Ele levantou os olhos com tamanha expressão de preocupação que foi a vez de Grace rir. E ela riu de felicidade. Era maravilhoso ver Dan outra vez. Ele sempre fora o companheiro mais maravilhoso do mundo, desde o dia em que lhe dera uma carona na carroça pela Avenue e a fizera pegar um bolo de creme no cesto. O mesmo Dan que lhe fizera apitos com rebentos de salgueiro, mostrara o ninho de uma cambaxirra e trazia cestos com frutas. E apesar do uniforme de segundo-tenente e do braço na tipóia, Dan não mudara nem um pouco do rapaz que era naqueles tempos felizes. Grace sabia que ele poderia ter voltado ao front brusco e autoritário, completamente diferente, por dentro e por fora. Mas Dan, como ela própria, jamais mudaria: era o mesmo Dan tímido e humilde. Grace não imaginava que estava apaixonada por Dan, mas sabia que nunca se sentira tão feliz desde que deixara o Law. Ela estendeu a mão.
- Amanhã, às três horas, Dan. Espere por mim do lado de fora. E não' chegue muito perto ou vai chamar atenção.
E Grace subiu correndo os degraus, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa.
Encontraram-se no dia seguinte às três horas e foram ao novo Harris's, na Oxford Street, para o chá. Conversaram e conversaram. Dan, depois que superava a sua inibição, tinha uma conversa das mais interessantes... ou pelo menos era o que Grace pensava. Ele queria também que Grace falasse, mostrava-se ansioso em escutar tudo o que ela tinha a dizer, o que a impressionava como algo excepcional e agradável. Encorajada, Grace contou todas as suas preocupações com Arthur e com o pai. Ele ouviu-a em silêncio, compreensivo.
- As coisas não têm andado certas lá em casa desde o desastre, Dan concluiu Grace, os olhos ansiosos e tristes. - Não é mais o mesmo lugar de antigamente. E, por algum motivo, acho que nunca mais voltará a ser.
Ele acenou com a cabeça.
- Eu compreendo, Grace. Ela fitou-o atentamente.
- Não vai voltar à Neptune, não é mesmo, Dan? Oh, eu detestaria pensar em você a descer naquela mina horrível!
- Acho que eu não aguentaria mais a mina. Tenho tido tempo bastante para pensar. Creio que jamais gostei da mina, mas... Ora, de que adianta dizer tudo outra vez? Já se falou muitas vezes antes... o desastre e todo o resto... - Ele fez uma pausa. - Se eu conseguir chegar ao final da guerra, quero ser fazendeiro.
- Seria maravilhoso, Dan.
Continuaram a conversar. E conversaram por tanto tempo que a garçonete por duas vezes veio perguntar altivamente se não iam querer mais nada.
Depois, deram um passeio pelo parque; seguiram pelo Serpentine, voltaram por Hyde Park Comer. Cinco horas chegou antes que eles se dessem conta da hora. Grace parou diante da casa das enfermeiras e disse:
- Se eu não o aborreci demais, Dan, não poderíamos nos encontrar de novo?
Grace e Dan começaram a se encontrar regularmente. Iam aos lugares mais estranhos e divertiam-se... e como se divertiam! Passeavam pelo Chelsea Embankment, tomavam a barca para Putney e o ônibus para Richmond, descobriram pequenas e esquisitas casas de chá, comiam macarrão e minestrone no Soho... era tudo banal e lindo, acontecera um milhão de vezes antes. Só que nunca acontecera com Grace e Dan.
Uma noite, porém, ao voltarem de um passeio em Kensington Gardens, esbarraram com Hilda, diante da casa das enfermeiras. Hilda sabia de tudo a respeito das expedições de Grace com Dan. Embora ardendo de vontade de falar, Hilda mantivera-se astuciosamente indiferente. Mas agora Hilda parou. Sorriu friamente para Dan e disse:
- Boa-noite.
Era como um golpe na cara. Dan respondeu:
- Boa-noite, Miss Barras.
Houve uma pausa e depois Hilda acrescentou:
-Parece que está tirando o máximo de proveito da guerra, Mr.Teasdale.
Grace interveio, com a maior veemência:
- Dan foi ferido, se é isso o que está querendo insinuar.
- Não, não foi isso o que eu quis dizer - declarou Hilda, no mesmo tom insuportavelmente condescendente.
Dan ficou vermelho. Fitou Hilda nos olhos. Houve um silêncio constrangedor e depois Hilda tornou a falar:
- Será um grande alívio quando tudo acabar. Todos poderemos então voltar aos lugares a que pertencemos.
O sentido era inconfundível. Dan parecia profundamente infeliz. Apressou-se em dizer boa-noite, apertou a mão de Grace sem fitá-la e afastou-se rapidamente.
Entrando na casa, Hilda virou-se para Grace e disse, desdenhosamente:
- Lembra-se de quando brincávamos de família feliz, Grace? Lembra-se de Mestre Sonho, o Filho do Padeiro?
E com os lábios contraídos em seu sorriso frio e amargo, ela começou a subir a escada. Grace correu atrás dela, segurando-a pelo braço dizendo, furiosamente:
- Se se atrever a falar assim de novo comigo ou com Dan, nunca mais vou querer saber de você enquanto viver!
Os olhos de Grace e Hilda encontraram-se por um momento longo e intenso. Foram os olhos de Hilda que se desviaram.
O passeio seguinte que Dan e Grace haviam combinado era na quintafeira da última semana dele em Londres. Seria também o último passeio dos dois. Dan já estava inteiramente recuperado, não usava mais a tipóia, deveria voltar a seu batalhão na segunda-feira.
Foram a Kew Gardens. Dan estava ansioso em conhecer os jardins. Tinha paixão por plantas e por isso haviam reservado Kew Gardens para a última excursão. Mas parecia que não seria uma excursão das melhores. Para começar, o dia estava nublado e ameaçador, Hilda deixara-os transtornados. Dan estava calado e Grace triste. Grace estava muito triste. Não restava agora a menor dúvida, Grace sabia que amava Dan. O pensamento de que Dan ia voltar à França sem saber que ela o amava quase partia o coração de Grace. Era evidente que Dan não podia gostar dela da mesma forma. Ele a encarava como uma amiga. Quem no mundo poderia amá-la? Ela era tola, descuidada, desleixada, nem ao menos era bonita. Uma angústia insuportável foi subindo pela garganta de Grace, enquanto andava em silêncio ao lado do silencioso Dan.
Foram ver as aves aquáticas, no pequeno lago além de um bosque. Os patos eram lindos e Dan disse que eram patos lindos. Acrescentou sombriamente :
- Se algum dia eu tiver a oportunidade, gostaria de criar patos como esses.
Grace disse:
- Seria maravilhoso, Dan.
Ela não sentia naquele momento a menor vontade de acrescentar qualquer outro comentário. Ficaram parados, dois vultos desolados à beira d'água, observando as aves emplumadas. E de repente começou a chover, um tremendo aguaceiro.
- Oh, Deus! - exclamou Grace.
- Temos de correr - disse Dan. - Está chovendo muito forte.
E saíram correndo em busca de abrigo. Foram se refugiar no orquidário. Em circunstâncias normais, haveria todo um mundo de alegria naquela corrida em busca de abrigo. Mas não havia nada de divertido agora. Absolutamente nada.
Grace estava com o capote azul do uniforme, mas Dan não tinha casaco e sua túnica ficou encharcada. Ao chegarem ao orquidário e recuperarem o fôlego, Grace virou-se para Dan com a testa franzida, numa expressão de preocupação.
- Sua túnica está encharcada, Dan. - Ela olhou ao redor; estavam sozinhos. - Não pode ficar com ela. Deixe-me secá-la para você no aquecedor.
Dan abriu a boca para recusar, mas prontamente tornou a fechá-la. Sem dizer nada, ele tirou a túnica e entregou a Grace. Sempre fizera o que Grace lhe dizia e não protestou agora. No momento em que Grace pegava a túnica, um velho jardineiro entrou pelo outro lado do orquidário. Vira os dois correrem para se abrigarem ali. Acenou com a cabeça para Dan e sorriu para Grace.
- Venha enxugar a túnica aqui, enfermeira. O aquecedor é melhor.
Grace agradeceu e seguiu o jardineiro até um pequeno recesso, onde havia um rolo de canos quentes. Ela sacudiu a túnica de Dan e estendeu-a por cima. Depois, contemplou-se no pequeno espelho que o jardineiro mantinha por cima dos canos. O vento lhe desmanchara os cabelos, estava mais desmazelada do que nunca. Oh, Deus, sou um pavor!, pensou ela, desolada. Não é de admirar que Dan deteste me ver.
Ela esperou até que a túnica de Dan secasse, escutando por uma questão de polidez, mas sem prestar muita atenção, a conversa do jardineiro, que era velho e loquaz, ficava andando de um lado para outro, enquanto falava... principalmente sobre a dificuldade de se obter combustível para o aquecimento. Quando a túnica ficou seca, ela levou-a para Dan. Ele estava olhando para a chuva. Virou-se, com uma expressão consternada.
- Vai ser um fim de semana de chuva. Grace disse:
- É o que parece.
Depois, ela estendeu os braços, segurando a túnica, com a intenção de ajudá-lo a vesti-la. Dan contemplou-a ansiosamente, parada ali, com os braços estendidos, uma expressão desconsolada, os cabelos desmanchados pelo vento. Ele ficou olhando e olhando e de repente alguma coisa como um gemido brotou lá do seu fundo.
- Eu a amo, Grace, eu a amo!
No instante seguinte, estavam nos braços um do outro. A túnica ficou caída no chão. O coração de Grace batia furiosamente, de felicidade. - Oh.Dan...
- Eu tinha de dizer, Grace. .. tinha de dizer... não pude evitar. repetia Dan, desesperado.
O coração de Grace ainda batia violentamente, de felicidade; os olhos dela estavam marejados de lágrimas; mas sentia-se agora serena e forte.
- Você me ama de verdade, Dan?
- Oh, Grace...
Ela fitou-o nos olhos.
- Quando você vai voltar à França, Dan? Uma pausa.
- Na segunda-feira.
- Que dia é hoje, Dan?
- Quinta-feira, Grace. Ela declarou, serenamente:
- Então vamos casar no sábado, Dan.
Dan ficou inteiramente branco. Fitou-a e toda a sua alma estava nos olhos.
- Grace... -Dan!
O velho jardineiro, observando a cena por trás das orquídeas, esqueceu tudo sobre a escassez de carvão e quase sofreu um ataque do coração.
Eles casaram no sábado. Grace conseguiu arrancar de Miss Gibbs uma folga no fim de semana. Foi a lua-de-mel que tiveram. Passaram-na em Brighton. Como Dan previra, foi um fim de semana de chuva. Choveu o tempo todo. Mas a chuva não fez a menor diferença para Grace e Dan.
Ao final daquela tarde de agosto, a gaiola subiu lentamente da Paradise. Barras, acompanhado por Armstrong e Hudspeth, saiu para o pátio da mina. Barras usava as suas roupas da mina: blusão e calça escuros, gorro redondo de couro, um bastão grosso na mão. Parou por um momento diante do escritório, falando com Armstrong e Hudspeth, consciente dos olhares dos mineiros nas proximidades, como se fosse um ator numa cena importante.
- Acho que é melhor dar a notícia aos jornais - disse ele. - Ou pelo menos ao Argus. Eles ficarão contentes de saber.
- Está certo, Mr. Barras - disse Armstrong. - vou telefonar amanhã.
- Informe todos os detalhes sobre o custo estimado do novo túnel.
- Certo, senhor.
- E não se esqueça de ressaltar, Armstrong, que minhas principais razões para essa providência são patrióticas. A partir do momento em que estivermos trabalhando novamente na Paradise, vamos dobrar nossa produção.
Barras acenou com a cabeça e depois encaminhou-se para o portão do pátio. Consciente da dignidade que lhe era conferida pelo traje de mineiro, ele atravessou a cidade a pé, a caminho do Law. Era obrigado a levantar a mão a cada poucos metros, retribuindo a cumprimentos, acenos, saudações respeitosas. Era agora incrivelmente popular. Suas atividades patrióticas eram intensas. Estranhamente, a prisão de Arthur intensificara essas atividades. A princípio, Barras encarara o resultado assombroso de seus métodos persuasivos com alguma consternação. Mas o ajustamento se processara rapidamente. Sua imaginação, sufocada pela sucessão vertiginosa de seus próprios assuntos, não admitia imagens perturbadoras do filho, existindo e sofrendo na prisão. Ele assumiu sua posição, admitindo abertamente a prisão de Arthur, inclusive referindo-se ao fato publicamente, com um pesar virtuoso.
Todos concordavam que Barras se comportara admiravelmente. O caso fora amplamente noticiado. O Argus lhe dedicara uma coluna dupla, sob o título "Pai espartano"; o Sunday Echo publicara um artigo especial, "Tiremos o Chapéu a um Patriota". Houvera uma tremenda repercussão, não apenas em Sleescale, mas também em Tynecastle. Barras vivia num fulgor de glória, que estava longe de lhe ser desagradável. Em diversas ocasiões, jantando no Central com Hetty, ele se descobrira sendo apontado, não sendo capaz de reprimir uma pontada intensa de satisfação. Circulava bastante agora, deleitando-se com a aprovação geral. Chegara ao estado de espírito em que todo o processo de sua existência era deliberadamente extrovertido. No começo, a reação fora defensiva; agora, era deliberada. Não tinha momentos particulares de reflexão, uma serena introspecção ou auto-análise. Não havia tempo, não havia tempo! Seu vulto, ofegante e um tanto afogueado, parecia lançar as palavras para trás enquanto se afastava, sempre apressadamente. Estava absorvido pelo exterior, cada vez mais absorvido por seu desempenho público, atraído apenas pelas luzes da ribalta, o barulho, as aclamações, as multidões.
Sua atividades no tribunal foram redobradas. Tornou-se quase uma impossibilidade, até mesmo para os casos mais legítimos, obter uma isenção quando Barras estava presente naquele tribunal arbitrário. Tamborilando impacientemente sobre a mesa, ele parecia escutar argumentações incoerentes e protestos nervosos com uma afetação de imparcialidade. Contudo, ele não dava a menor atenção à lógica do caso em julgamento; sua decisão já fora tomada. Nada de isenção.
À medida que o tempo foi passando e os seus métodos sistemáticos já não tinham mais tanta repercussão, Barras tratou de acelerar as decisões, julgando um caso depois de outro, passando a orgulhar-se da quantidade que podia resolver em cada sessão. Nas noites desses dias bem-sucedidos, ele voltava para casa com uma intensa satisfação e o senso de haver merecido a aprovação de seus semelhantes.
Contudo, ao subir pela Cowpen Street naquele momento, seu rosto expressava uma satisfação ainda mais profunda. O acerto que concluíra na Neptune naquele dia proporcionava-lhe um senso extraordinário de auto-aprovação. Há meses que deplorava o fechamento compulsório na Paradise, mas não podia enfrentar o custo elevado de abrir um novo caminho pelo basalto alagado. Agora, no entanto, graças a argumentos criteriosos apresentados aos escalões certos, podia contrabalançar o custo do túnel necessário com as entregas subsequentes ao Governo do carvão da Paradise. O túnel já estava pago antes mesmo de começar a ser aberto. Nada precisava interferir com seu fascinante acúmulo de lucros de guerra. Os preços do carvlo na boca da mina haviam subido mais dez shillings por tonelada e ele estava ganhando dinheiro mais depressa do que jamais pudera imaginar. No fundo de seu ser, o conhecimento secreto de sua própria importância e riqueza encantava Barras, sustentando-o como uma droga.
Não era um avarento, mas simplesmente tinha consciência de seu dinheiro. Não hesitava em gastar dinheiro... e, na verdade, sentia-se gratificado, quase infantilmente, ao pensar que cinco libras significavam para ele tão pouco quanto cinco pence. Seu atual excitamento exigia um dispêndio considerável em pequenas despesas, garantindo-lhe assim que a vida, com todas as suas potencialidades, abrindo-se à sua frente, não passaria em brancas nuvens. Desenvolvera uma nova febre de aquisição. Já efetuara mudanças assombrosas no Law. Novos móveis e tapetes, um novo gramofone, o carro, diversas poltronas suntuosas, um novo aquecedor de água, o velho órgão americano removido e substituído por uma pianola elétrica. Era significativo que ele não comprasse mais quadros. Isso pertencia à fase anterior de aquisições mais contidas. Embora o senso de seus "tesouros" de arte ainda lhe proporcionasse um grande conforto... como se podia constatar por seu frequente comentário complacente "Tenho uma fortuna em meus quadros!"... não aumentou sua coleção durante os anos da guerra. Sua indulgência era mais ostentosa, espontânea e irregular. Comprava por capricho, descobrindo uma atração intensa por "barganhas". Tornou-se um frequentador assíduo de Tynecastle Arcade, onde abundavam as lojas de quinquilharias e antiguidades. Jamais voltava de tais expedições sem levar para casa, triunfante, alguma aquisição.
Os presentes que ele dava a Hetty eram expressivos do mesmo impulso. Não eram as coisas simples de devoção paternal, nada de bombons, perfumes ou uma caixa de lenços, mas presentes de uma escala psicológica diferente.
Barras sorriu conscientemente. Quase insensivelmente, passara a encarar Hetty como o relaxamento normal de seus empenhes vigorosos. Hetty sempre o agradara. Mesmo antigamente, quando ela era apenas uma menina de 12 anos e sentava em seus joelhos para pedir uma bala, uma das pastilhas que Barras sempre levava no bolsinho do colete, Hetty já lhe provocara uma curiosa reação. A fragrância de banho recente de Hetty penetrava por suas narinas e ele pensava que ela daria uma ótima mulher para Arthur. Mas agora, diante do comportamento desprezível de Arthur, tudo mudara completamente. A mudança começara naquele domingo em que Hetty, prorrompendo em lágrimas, permitira que Barras a confortasse, na sala de jantar do Law. A partir desse momento, Barras começou a "compensar" as deficiências de Arthur. Ostensivamente, o motivo era compaixão: era preciso compensar Hetty, levála a se distrair, fazê-la esquecer, depois que ocorrera a catástrofe final da prisão de Arthur. Tudo isso estava sintonizado com o ânimo de Barras. Agora, com sua nova inquietação a impeli-lo para a frente, o processo estava sendo intensificado. Barras passou a melhorar a aparência visivelmente, mudou de alfaiate, usava gravatas e meias de seda, adquiriu o hábito de frequentar o Stirrocks, perto da Grainger Street, para uma massagem facial e um tratamento de vibrações elétricas dos cabelos. Gradativamente, começou a tratar Hetty com uma certa galanteria consciente. Naquela noite, ela estava acompanhando-o ao King's Theatre, a fim de assistir à nova revista Zig Zag.
Barras estava dominado por um senso de expectativa ao subir pelo caminho do Law e entrar na casa. Subiu direto e tomou um banho, deitando-se na banheira cheia de água quente, consciente de sua virilidade. Depois, vestiu-se cuidadosamente e desceu para pegar uma flor para a lapela.
Na sala de música, encontrou Tia Carrie, que acabara de fazer meia hora de massagem nas costas de Harriet e estava indo cortar aspargos na horta. Tia Carrie asumira os cuidados especiais da horta durante aqueles anos da guerra, estendendo suas atividades até mesmo às galinhas e patos. Assim, enquanto as refeições racionadas tornavam-se a regra geral naqueles dias sem carne, enquanto muitas pessoas passavam horas em filas para comprar algumas batatas, havia sempre uma abundância de excelente comida na mesa do querido Richard.
Tia Carrie levantou os olhos quando Richard entrou e murmurou:
- Teve um dia difícil, Richard?
Ele contemplou-a com uma indulgência excepcional.
- Decidi abrir um novo túnel na Paradise, Caroline.
- Oh, Richard! - balbuciou ela, emocionada diante do favor da confidência. - Isso é ótimo, não é mesmo?
- Poderemos resgatar os corpos daqueles dez homens - declarou Barras, solenemente. - E isso me agrada, Caroline.
- É mesmo ótimo, Richard.
- Deve haver um funeral público. Providenciarei tudo. Como um símbolo de respeito.
Tia Carrie inclinou a cabeça. Uma pausa. Ela encaminhou-se para a porta.
- Eu ia cortar alguns aspargos para o seu jantar. Os primeiros da temporada.
Ela ficou esperando: Richard sempre a elogiava pela excelência de seus aspargos. Ele acenou com a cabeça.
- Por falar nisso, deixe alguns sanduíches prontos para mim esta noite, Caroline. Posso chegar tarde. vou levar Hetty ao teatro.
Tia Carrie ficou vermelha e seu coração despencou da blusa desbotada às velhas botinas rachadas de jardinagem. Ela respondeu com a voz trémula:
- Está bem, Richard.
E saiu para a horta. Mas Tia Cairie cortou os aspargos com a mente inquieta, apreensiva. Vindo logo em cima do infortúnio de Arthur... era típico de Tia Carrie atenuar o impacto da sentença de prisão com tal ambiguidade ... a situação entre Hetty e Richard afligia-a terrivelmente. É claro que Richard estava além de qualquer censura. Mas Tia Carrie já não tinha tanta certeza agora em relação a Hetty. Encarava com apreensão aqueles presentes recentes. Havia ocasiões em que Tia Carrie chegava a odiar Hetty.
Durante toda aquela noite, Tia Carrie foi ficando mais e mais preocupada, não querendo se deitar enquanto Richard não voltasse.
Já eram quase 11 horas quando Barras voltou ao Law. E Hetty veio com ele. Barras sugerira que fizessem a viagem refrescante juntos, depois do calor do teatro. Bartley levaria Hetty para casa depois.
Entraram na sala de estar na maior animação.
- Não posso realmente ficar - declarou Hetty, jovialmente.
Ela pegou o cigarro que Barras lhe ofereceu e acomodou-se no braço de uma poltrona, as pernas cruzadas, um dos pés balançando.
- Não quer um sanduíche? - sugeriu Barras, com um sorriso encabulado, indo à sala de jantar para buscar a bandeja que Tia Carrie preparara.
Não podia haver a menor dúvida, ele estava relutante em deixá-la partir. Barras não se perguntou por quê. Sempre se considerara um homem de moral, mecanicamente satisfeito em satisfazer suas necessidades físicas com a fonte legítima de moral lá em cima. Mas desde o desastre que ele estava diferente. O estado de tensão em que vivia acelerava suas funções, infundia uma febre por seu sangue. Estava experimentando uma reativação das glândulas endócrinas. Havia ocasiões em que a sensação de bem-estar físico era extraordinária. É verdade que uma ou duas vezes experimentara um ataque repentino de tontura, quase vertigem, fazendo-o cambalear e agarrar-se ao móvel mais próximo, a fim de não cair. Mas ele sabia que isso nada significava, absolutamente nada; nunca se sentira melhor em toda a sua vida.
Barras voltou à sala de estar.
- Aqui está, minha cara.
Ela aceitou um sanduíche de galinha, em silêncio.
- Ficou muito quieta de repente - comentou Barras, depois de vários olhares furtivos para o perfil pequeno e atraente de Hetty.
- É mesmo? - murmurou ela, desviando os olhos.
A admiração no rosto de Barras deixava-a subitamente inquieta. Era impossível não perceber a mudança nele. Nas últimas semanas, o comportamento de Barras, suas atenções e repetidos presentes sugeriam a possibilidade de um clímax se aproximando. O que absolutamente não convinha a Hetty. Ela não estava gostando da situação. Queria continuar a receber todas as vantagens, sem dar nada em troca. Para começar, Hetty era, em suas próprias palavras, uma boa moça. Na verdade, ela não tinha qualquer moral; era pura por desígnio, salva do pecado pelo valor de mercado de sua virgindade. Sua ideia fixa era conseguir um bom casamento, um casamento que lhe proporcionasse dinheiro e posição. Sabia perfeitamente como era importante, para atingir esse objetivo, manter o seu estado virginal. O que era fácil, pois o efeito que causava podia ser afrodisíaco, mas ela própria não tinha impulsos sexuais... Laura, a irmã, recebera toda a carga em dobro. No início, as atenções de Barras haviam-na lisonjeado e agradado. A prisão de Arthur fora um golpe terrível para a sua vaidade, removendo-o abruptamente dos agradáveis planos de Hetty para o futuro. Agora, ela nunca poderia casar com Arthur, mas nunca mesmo. Era natural que aceitasse as atenções de Barras; o simples fato de ser vista em público com ele já contribuía para "livrar sua cara". Os dois estavam unidos contra um fraco que desgraçadamente os desamparara.
A sala de estar estava iluminada por diversos abajures novos, que projetavam poças de claridade sobre o tapete, deixando o teto misterioso e escuro.
- Mas que bonito! - exclamou Hetty de repente, levantando-se e indo acariciar as franjas de um abajur.
Depois, ela virou-se com um brilho nos olhos.
- Por que não fuma um charuto?
Ela tinha a noção de que Barras seria mais seguro se estivesse segurando um charuto.
- Não quero um charuto - respondeu ele, solenemente, os olhos fixados no rosto dela.
Hetty riu alegremente, como se ele tivesse dito um gracejo. E depois comentou :
- Pois então eu vou fumar outro cigarro.
Depois que Barras lhe acendeu o cigarro, Hetty foi até o gramofone e pôs Violet Lorraine para cantar Ifyou were the only gari in the woríd. - vou tomar chá com Dick Purves e a irmã no Dilley's amanhã - comentou ela, inconsequentemente.
O rosto de Barras se alterou. Ele alcançara agora o estágio do ciúme- detestava o jovem Purves. O Tenente-Aviador Dick Purves, o companheiro relativamente apagado da infância de Hetty, era agora o herói do momento. Durante o último ataque aéreo contra os condados do Nordeste, ele voara sozinho sobre um Zepelin impelido pelo vento e soltara da escuridão a bomba que fizera o dirigível descer em chamas. Tynecastle ficara louca por Dick Purves. Corria o rumor de que seria condecorado. Enquanto isso, bastava ele aparecer num restaurante para ser saudado por frenéticas manifestações de culto ao herói.
Tudo isso ocorreu a Barras num relance e ele disse, mal-humorado:
- Você parece estar se encontrando muito com esse tal de Purves.
- Sabe muito bem que não tenho o menor interesse por ele. Mas acontece que Dick está em grande evidência neste momento. Sabe o que estou querendo dizer. Todo mundo estará olhando para a nossa mesa e nos invejando. Faz com que tudo se torne emocionante.
Barras remexeu-se impacientemente, pensando no rapaz de uma beleza insossa, com seus olhos azuis de bebé, os cabelos louros repartidos no meio e grudados como cera na cabeça, um sorriso presunçoso, a fumar um cigarro, olhando ao redor em busca de admiração. Ele reprimiu sua irritação com dificuldade. Voltara ao sofá, estava afogueado, a respiração um tanto áspera. Um momento depois, ele disse:
- Venha sentar aqui, Hetty.
- Gosto de me movimentar um pouco, depois de passar tanto tempo sentada no teatro - respondeu ela, jovialmente.
- Mas eu quero que você sente ao meu lado.
Uma pausa. Hetty compreendeu que era impossível recusar sem ofendê-lo seriamente. Relutante, ela foi sentar-se no outro canto do sofá.
- Está implicando comigo esta noite - murmurou ela.
- Estou mesmo?
Ela acenou com a cabeça brejeiramente. Ou pelo menos tentou ser brejeira, mas não foi muito bem-sucedida. Estava consciente demais da presença de Barras ao seu lado, o rosto congestionado, os ombros largos, os vincos no colete.
- Gostou da pulseira que lhe dei? - perguntou Barras finalmente, mexendo na pulseira fina de platina em seu pulso.
- Gostei muito - disse Hetty prontamente. - Mas acho que está me mimando demais.
- Sou um homem muito rico. Posso lhe dar muitas coisas.
Barras era extremamente desajeitado e inexperiente: as emoções dominavam-no, quase o sufocavam.
- Sempre foi muito gentil comigo - murmurou Hetty, baixando os olhos.
Barras tentou pegar a mão de Hetty, mas foi nesse momento que o gramofone parou. com a sensação de ser salva no último instante, Hetty levantou-se de um pulo e foi até a máquina.
- vou tocar o outro lado - disse ela, virando o disco.
Barras observava-a fixamente, com um sorriso vagamente enamorado. Sua respiração estava mais difícil do que nunca, o lábio inferior estava espichado.
- É muito bonita essa música - comentou Hetty. - Terrivelmente contagiosa.
Ela ficou estalando os dedos no ritmo, determinada a não voltar ao sofá. Começou a balançar com a música, deslocando-se pela sala. Mas quando passou por perto de Barras, ele estendeu-se subitamente, segurou-a pelo pulso fino e puxou-a para os seus joelhos.
Aconteceu tão espontaneamente que os dois foram tomados de surpresa. Hetty não sabia se devia ou não gritar. Ela não se debateu. Simplesmente fitou-o, aturdida.
E foi nesse instante, quando os dois permaneciam nessa atitude, que a porta se abriu por trás deles e Tia Carríe entrou na sala. O barulho inesperado, tão tarde da noite, fizera com que ela descesse. Ao deparar com a cena no sofá, Tia Carrie estacou prontamente, ficando imóvel, como se convertida em pedra. Os olhos estavam arregalados de horror. Ficou absolutamente pálida. Foi o momento mais horrível de sua vida. Por um terrível instante, ela sentiu que ia desmaiar. Mas recuperou-se, com um supremo esforço, virou-se e quase caiu ao sair da sala. Depois, como se estivesse perseguida, saiu correndo e subiu a escada aos tropeções.
Nem Barras nem Hetty perceberam o incidente. Barras estava cego para qualquer outra coisa que não fosse Hetty, sua proximidade, seu perfume, a pressão de seu corpo contra as coxas dele.
- Você sabe que gosto muito de você, Hetty - balbuciou ele, a voz rouca.
As palavras arrancaram-na do estranho estado em que ela se encontrava, como se fosse de transe.
- Por favor, não me aperte desse jeito.
Barras relaxou a pressão, pôs a mão no joelho dela.
- Oh, não! - gritou ela, resistindo vigorosamente. - Não deve fazer isso! Eu não gosto!
- Mas, Hetty. ..
- Não, não! Não sou esse tipo de moça! Não sou absolutamente esse tipo de moça!
Ela odiou-o subitamente por metê-la naquela situação, por estragar tudo, acabando com sua proteção e seus presentes, com aquele horrível anti-clímax.
Odiou o rosto contraído de Barras, as rugas por baixo dos olhos, o nariz grande. Pensou nas feições jovens e impecáveis de Purves, num súbito contraste. E gritou:
- Largue-me! Largue-me ou vou gritar!
Barras reagiu comprimindo o corpo dela contra o seu, grudando os lábios em seu pescoço. Hetty não gritou, mas desvencilhou-se bruscamente, como uma gata, a mão indo bater no rosto de Barras. Ela se levantou de um pulo, ajeitando o vestido e os cabelos. E disse:
- Você é um velho horrendo e bestial. É pior do que o desgraçado do seu filho. Será que não sabe que sou uma boa moça? Pois fique sabendo que sou uma boa moça! Devia se envergonhar de agir dessa maneira! Nunca mais quero vê-lo, enquanto viver!
Barras levantou-se, muito excitado, tentando falar. Mas, antes que tivesse tempo, Hetty já saíra da sala, deixando-o sozinho ali. Barras ficou imóvel por um momento, com a mão estendida, como se ainda tentasse deté-la. O coração batia forte contra o lado do corpo, a cabeça estava completamente atordoada, os ouvidos zumbiam. Experimentava uma sensação angustiante de prostração, por sua idade, que o derrotara na tentativa de seduzi-la. Continuou de pé, balançando ligeiramente, na sala vazia e suavemente iluminada, quase dominado por um ataque de vertigem. Depois, levou a mão à cabeça que ameaçava estourar e arriou inerte no sofá.
Enquanto isso, sentada na escuridão de seu quarto, Tia Carrie ouvia o barulho do carro partindo para Tynecastle, levando Hetty. Viu os dois fachos dos faróis darem a volta pelo quarto, aterradoramente. Na escuridão e no silêncio que se seguiram, ela tremeu desesperadamente. O que Tia Carrie vira na sala de estar abalara até as raízes de sua convicção mais sagrada. Pensar que Richard... Richard! A tremedeira de Tia Carrie aumentou. Todo o corpo tremia, num nervosismo terrível. As duas imensas lágrimas que haviam se formado em seus olhos foram desprendidas pelo tremor incontrolável da cabeça inclinada. Oh, Deus! Oh, Deus!, pensava Tia Carrie, num paroxismo de desespero.
A crença de Tia Carrie era Richard. Há 15 anos que o servia de corpo e alma. Servira Richard à distância, mas isso não a impedira de adorá-lo, guardando essa adoração ciumentamente no próprio centro de seu ser. Nenhum outro homem existia para Tia Carrie. É verdade que ela outrora acalentara alguma afeição pela memória do Príncipe Albert, a quem considerava um homem de bem. Mas era uma lua esmaecida em comparação com o sol de sua adoração por Richard. Tia Carrie existia para esse sol, deleitava-se com esse sol, que lhe aquecia a sua vida reprimida. E agora, depois de 15 anos de sol, depois de 15 anos a cuidar das chinelas dele, providenciar suas refeições, cuidar de suas roupas, cortar-lhe aspargos, encher a sua garrafa de água quente, religiosamente manter as traças afastadas de suas roupas de baixo de lã, cerzir suas meias e cachecóis... depois de 15 anos de sua servidão celestial, Tia Carrie vira Richard acariciando Hetty Todd em seus joelhos. Num acesso de compaixão e angústia, Tia Carrie enterrou a cabeça trémula nas mãos trémulas, soluçando amargamente.
E de repente, enquanto estava sentada ali, chorando, desesperada, ela ouviu a bengala de Harriet. Sempre que Harriet queria atenção, pegava a bengala que ficava ao lado da cama e batia na parede, chamando Tia Carrie. Era o procedimento estabelecido e Tia Carrie compreendeu naquele momento que Harriet estava querendo o seu medicamento. Mas ela não tinha ânimo para atender a Harriet. Não era capaz de se mexer, pois a lembrança de Richard, aquele novo Richard, aquele pobre Richard, era ao mesmo tempo terrível e aterrador.
Tia Carrie não compreendia que o novo Richard era um desdobramento do velho Richard. Não podia conceber que aquelas novas propensões, que tanto a chocavam, derivavam de antigas propensões. Imaginava Richard, o pobre Richard, vítima de alguma estranha calamidade. Não tinha ideia do que poderia ser tal calamidade. Simplesmente via um deus transformado em bufão, um arcanjo transformado em sátiro. E seu coração estava profundamente abalado. Tia Carrie chorou e chorou. Richard com Hetty Todd no colo... Tia Carrie continuou a chorar, não podia suportar.
Depois, com um sobressalto, ela tornou-se novamente consciente das batidas de Harriet. Já fazia pelo menos cinco minutos que Harriet estava batendo. Embora vagamente consciente das batidas, Tia Carrie não se mexera para atender ao chamado. Não podia ir ao encontro de Harriet com os olhos inchados e cegos, as mãos trémulas, o aperto insuportável no peito, revelando o fato óbvio de que alguma coisa estava profundamente errada. E, no entanto, ela tinha de ir. Harriet precisava tomar o medicamento. Se Harriet não tomasse o medicamento, continuaria a bater, cada vez mais alto, acabando por derrubar a casa e talvez provocando algum desenvolvimento terrível, que liquidaria com Tia Carrie para sempre.
Dominando os soluços da melhor forma que podia, Tia Carrie enxugou os olhos inchados e avançou a tatear pelo corredor, na direção do quarto de Harriet. Estava escuro no corredor, pois era uma noite escura. Tia Carrie, em seu nervosismo, não acendera a luz elétrica no alto da escada. O quarto de Harriet também estava escuro, uma escuridão difusa, que o brilho esverdeado do abajur na mesinha-de-cabeceira não chegava a dissipar. Por causa de suas dores de- cabeça, Harriet era avessa a luzes muito fortes. Agora, Tia Carrie sentiu-se tremulamente contente porque a escuridão lhe ocultava o rosto banhado pelas lágrimas. Ela não propôs acender a luz.
À entrada de Tia Carrie, Harriet tremeu sobre a cama, onde os seus contornos pálidos e bovinos eram obscuramente visíveis. Estava tremendo de indignação e exibiu os dentes postiços para Tia Carrie, com um estalido.
- Por que demorou tanto a vir, Caroline? Estou batendo pelo menos há meia hora.
Tia Carrie reprimiu um vasto soluço. Controlando a voz da melhor forma que podia, ela disse:
- Desculpe, Harriet querida. Não sei o que deu em mim. Quer o seu medicamento agora?
Mas Harriet não deixaria o seu ressentimento morrer com tanta facilidade. Recostada nos travesseiros, na semi-escuridão do quarto, cercada por seus vidros de remédios, o rosto pálido brilhava de veemência e autocompaixão.
- Está se tornando uma desgraça a maneira como sou negligenciada. Estou deitada aqui com uma dor de cabeça insuportável, ansiando por meu medicamento, e ninguém vem cuidar de mim!
Triste e envergonhada, cabeça baixada, piscando os olhos inchados, Tia Carrie balbuciou:
- Peço que me perdoe, Harriet. Quer tomar o seu medicamento agora?
- Já era tempo de se lembrar disso!
- Está bem, Harriet.
Escondendo o rosto, Tia Carrie encaminhou-se para a mesinha, pensando: Oh, Deus, preciso dar o medicamento logo a Harriet e sair do quarto rapidamente, antes de desmoronar completamente!
- A essência de valeriana, Harriet?
- Não! - respondeu Harriet, mal-humorada. - Quero o meu brometo esta noite, o velho brometo aromático que o Dr. Lewis me receitou. Acho que é melhor para mim, no final das contas. Está ali na prateleira, no canto.
- Está certo, Harriet. - Tia Carrie foi obedientemente até a prateleira, pôs-se a procurar entre os vidros. Havia vidros demais. - Onde foi mesmo que você disse, Harriet?
- Aí mesmo! - disse Harriet asperamente. - Está bem debaixo de sua mão. Eu mesma pus aí na última vez em que estive de pé. Lembra-perfeitamente. Está uma tola rematada esta noite.
- Este vidro? - Tia Carrie sabia que ia perder o controle novamente. Oh, Deus, pensou ela, deixe-me sair daqui antes de desmoronar por completo!
- É este, Harriet?
- Não! O do lado, o vidro verde! O que há com você, Caroline? É esse mesmo!
Tia Carrie pegou o vidro atordoada e voltou para junto da mesinha-de-cabeceira. Sua mão tremia tanto que teve dificuldade em pegar o copo.
- Quanto vai tomar, Harriet?
- Duas colheres de chá! Será que nem isso sabe? Nem mesmo é capaz de ler?
Mas Tia Carrie não podia ler, Tia Carrie estava cega, atordoada e desolada. Seus movimentos eram automáticos, a mente estava longe, numa terra grotesca e horrível, em que Richard mantinha Hetty Todd no colo. Só podia fazer o que lhe era ordenado e depois tudo o que queria era voltar a seu quarto, dar vazão às lágrimas que afloravam dentro dela. Ela serviu as duas colheres de sopa de medicamento que julgara que Harriet indicara. Vagamente, em meio à escuridão do quarto, a confusão da impertinência de Harriet e a terrível desolação de seu coração, Tia Carrie achou que o medicamento tinha um cheiro esquisito. Mas devia ser o salgado das lágrimas derramadas e não derramadas que a fazia pensar que o medicamento tinha um cheiro esquisito. E Harriet estava insistindo pelo medicamento, dizendo-lhe que se apressasse, não bancasse a tola.
Ela aproximou-se da cama, desviando a cabeça, a mão estendida. Harriet sentou-se e pegou o copo com um gesto irritado.
- Está sendo muito estúpida e lerda esta noite, Caroline! E sabia que eu estava morrendo pelo meu medicamento!
Fechando os olhos firmemente à sua maneira, Harriet engoliu o medicamento de um só gole. Engoliu o medicamento de um só gole e por um segundo permaneceu sentada na cama, empertigada, com os olhos fechados, o copo na mão. Depois, ela abriu os olhos e gritou:
- Não é o medicamento!
Ela gritou e o copo caiu de sua mão. As lágrimas de Tia Carrie ficaram congeladas pelo horror. Por meio segundo, ela ficou paralisada. Depois, correu para o interruptor e acendeu a luz. Pegou o vidro. Um grito estridente saiu de sua garganta, como um coelho assustado. O vidro dizia linimento. Dera a Harriet um linimento venenoso. Ela gritou, mais alto do que Harriet.
Harriet estava agarrando a barriga e se contorcendo na cama. Pela primeira vez desde que se confinara à cama, Harriet conheceu a dor de verdade. Estava numa terrível agonia. Seu rosto era de um branco-esverdeado, os lábios estavam inchados, queimados pelo linimento.
- Água! - balbuciou ela, com extrema dificuldade, segurando agora com as duas mãos a barriga imensa e branca. - Está queimando como fogo!
Dominada pelo horror, Tia Carrie foi pegar a garrafa com água na pia e voltou com um copo cheio. Mas a água não desceria. Harriet não podia tomar a água. Escorreu da boca inchada e inútil pelas roupas de cama impecáveis.
Harriet pareceu não perceber que a água só a estava molhando nos lugares errados.
- Água! - balbuciou ela de novo, debilmente. - Está queimando como fogo!
Uma pontada de razão penetrou pelo pânico de Tia Carrie. Largando o copo ruidosamente na cómoda, ela saiu correndo para providenciar um médico. Correu pelo corredor e desceu a escada, os pés com joanetes realizando um milagre de velocidade. No vestíbulo dos fundos, esbarrou com Ann, que estava subindo para se deitar.
Tia Carrie segurou Ann, balbuciando:
- O médico... telefone para o médico... qualquer um... deve vir imediatamente. .. depressa, depressa... o médico!
Ann olhou atentamente para Tia Carrie. Era uma mulher sensata, habitualmente taciturna. Compreendendo que alguma coisa terrível e grave acontecera, ela não se deteve a fazer perguntas. Foi prontamente para o telefone e, com perfeita eficiência, ligou para o Dr. Lewis, que prometeu vir imediatamente. Ann pensou por um momento e depois, prevendo algum atraso inevitável, ligou para o Dr. Proctor, seu próprio médico, pedindo-lhe que viesse também.
Enquanto isso, Tia Carrie correra para a copa, em busca de bicarbonato de sódio. Tinha a plena convicção de que bicarbonato de sódio era um antídoto de valor. Voltando com o pacote de bicarbonato de sódio, deparou com Richard saindo da sala de estar. Ele andava lentamente, perturbado em sua meditação pelo movimento inesperado. Apoiando-se no umbral da porta, ele disse, a voz arrastada:
- O que está acontecendo?
- É Harriet - balbuciou Tia Carrie, apertando o pacote com tanta força, em seu nervosismo, que um pouco do pó branco começou a escorrer pelo canto.
- Harriet? - repetiu Barras, apaticamente.
Tia Carrie não podia esperar, não podia suportar; virou-se com outro grito e subiu correndo. Barras seguiu-a, lentamente.
Harriet ainda estava estendida na cama, sob a luz forte, entre fileiras e mais fileiras de vidros. Parara de gemer agora. Estava deitada de lado, meio contorcida, a boca inchada estava aberta. Um muco viscoso se formara nos lábios enegrecidos.
Ocasionalmente, as pernas de Harriet se contorciam um pouco. com esse movimento, a respiração de Harriet voltava, num ronco rápido. Angustiada pelo terror diante daquele ronco irregular, Tia Carrie misturou o bicarbonato de sódio num frenesi de pressa, esforçando-se por ministrar alguma coisa pelos lábios inchados de Harriet. Ainda estava tentando fazer isso quando Richard entrou no quarto. Ele parou, olhando para Harriet, atordoado.
- Harriet - disse ele, a voz engrolada.
Harriet respondeu vomitando um pouco de bicarbonato de sódio de Tia Carrie.
Richard adiantou-se, num estado de estupor.
- Harriet - murmurou ele novamente, aturdido.
Foi interrompido pela entrada abrupta do Dr. Lewis, efusivo e jovial, com sua maleta preta. Ao ver Harriet, o Dr. Lewis perdeu inteiramente a jovialidade. Sua atitude se alterou e com uma voz consternada pediu a Tia Carrie que telefonasse para o Dr. Scott, avisando-o para que viesse imediatamente. Tia Carrie saiu para cumprir a missão. Richard retirou-se para a alcova junto à janela, onde ficou observando, em silêncio, como algum estranho vulto do destino.
O Dr. Scott chegou com o máximo de presteza. O Dr. Proctor, que viera a pé de Sleescale, chegou exatamente ao mesmo tempo. Os três médicos empenharam-se em cuidar de Harriet. Aplicaram-lhe injeções, levantaram as pálpebras que não resistiam de Harriet, bombearam-lhe o estômago. Todos viram o excelente jantar que Harriet comera... era incrível a quantidade de aspargos que ela podia consumir. Mas Harriet não viu nada. Harriet, estando morta, não podia mais ver.
Finalmente, depois de uma última tentativa de ressuscitação, os médicos acabaram desistindo. Enxugando a testa, o Dr. Lewis encaminhou-se para Richard, que ainda estava parado na alcova, imóvel.
- Lamento muito, Mr. Barras, - Ele parecia genuinamente desolado. Infelizmente, não podemos fazer mais nada.
Barras não falou. Fitando-o, o Dr. Lewis percebeu a pulsação das artérias temporais, o rubor escuro do rosto. Misturando-se com a sua simpatia, veio o pensamento de que a pressão sanguínea de Barras devia ser muito alta. E o Dr. Lewis acrescentou:
- Fizemos tudo o que era possível.
- Sei disso - murmurou Barras, numa voz estranha.
Outra onda de compaixão dominou o Dr. Lewis. Ficou olhando para Barras com uma expressão de pesar nos olhos. É claro que ele não sabia que estava olhando, em última análise, para o assassino de Harriet.
Até mesmo Hilda ficou consternada. Por várias semanas depois que ela e Grace voltaram ao hospital, depois de comparecerem ao funeral da mãe em Sleescale, Hilda permaneceu taciturna e sorumbática. Não podia deixar de admitir agora o clima anormal no Law. Porque estava preocupada, ela falava asperamente com os pacientes, era rude com Ness, empenhava-se em seu trabalho com uma eficiência incansável. Em relação a Grace, tornou-se novamente possessiva, ciumentamente afetuosa.
Era o final de seu meio dia de folga e as duas estavam andando lentamente pela Regent Street, a caminho da Oxford Circus, a fim de pegarem um ônibus para Knightsbridge. Hilda, concluindo uma diatribe amarga contra as complicações humilhantes da vida familiar, olhou para Grace e disse, sarcasticamente:
- Você está sempre querendo endireitar as coisas. Pois agora é a sua oportunidade de voltar para casa e tentar.
- Eu não teria muita utilidade neste momento.
- Como assim?
O ônibus encostou no meio-fio nesse instante.
Grace esperou até sentarem. Depois, no momento em que se acomodou, ela deu a notícia de que ia ter um filho.
Hilda ficou horrivelmente vermelha. Dava a impressão de que ia ter um ataque qualquer. Permaneceu absolutamente imóvel, enquanto a trocadora vinha cobrar as passagens. Depois, em voz baixa e magoada, ela disse:
- Como se já não fosse terrível o bastante o fato de casar... Como se já não tivéssemos problemas suficientes ultimamente... Você é uma tola, Grace, uma tola irremediável!
- Não me considero uma tola.
- Pois eu a considero. - Hilda estava agora muito pálida, mais amargurada do que nunca. - Os filhos da guerra não têm nada de engraçados.
- Nunca falei que eram, Hilda. Mas o meu pode ser diferente.
- Ah, mas que besteira! - disse Hilda, olhando fixamente para a frente.
- Perde a cabeça com aquele tal de Teasdale e agora acontece isso. Terá de deixar o hospital. O que é terrível. Não vou querer me envolver nisso. Tenho me mantido por fora das complicações da família e também pretendo manterme afastada do seu problema. É uma idiotice, uma terrível vulgaridade, a mesma coisa que as enfermeiras vulgares de todo o país estão fazendo. Estão tendo filhos com heróis da guerra! Oh, Deus, é... é repulsivo! Não quero ter nada a ver com isso, absolutamente nada. Pode ir embora e ter o seu filho sozinha.
Grace não disse nada. Grace tinha um jeito simples 'de não dizer nada, quando não dizer nada era a melhor resposta do mundo. Ela e Hilda nunca haviam realmente se unido desde o seu casamento com Dan. E agora acontecia isso! O fato de que Grace, a quem ela sempre mimara e protegera, a pequena Grace, que dormira em seus braços, fosse ter um filho, um filho de guerra, chocava e nauseava Hilda, levava-a a jurar que se manteria afastada daquele caso repulsivo. As lágrimas afloravam aos olhos de Hilda quando ela se levantou tensamente na Harrod's e saiu do ônibus.
Então Grace teve de tomar as providências sozinha. Na manhã seguinte, ela foi procurar Miss Gibbs. Tradicionalmente, Miss Gibbs deveria ser gentil. Mas, como Hilda, Miss Gibbs não foi gentil. Miss Gibbs disse, com uma exibição dos dentes e de ira:
- Estou cansada desse tipo de coisa, Enfermeira Barras. O que pensa que temos para você fazer aqui... cuidar dos feridos ou propagar a raça? Nós nos demos ao trabalho de prepará-la para um determinado serviço. E é assim que nos retribui! Não estou muito satisfeita com a sua atuação, Enfermeira Barras. Não é um sucesso como sua irmã. Ela não me aparece de repente para dizer que vai ter um filho. Fica na sala de operações, cumprindo o seu dever. Neste último mês, você foi censurada três vezes por negligência e conversar nos corredores. E agora me aparece com essa história. As coisas andam muito difíceis. E não estou absolutamente satisfeita. Isso é demais.
Grace sentiu quase como se não estivesse casada, pois Hilda e Miss Gibbs falavam como se fosse algo extremamente indecente. Mas Grace não se deixava abater facilmente. Grace era simples, ingénua, despreocupada, a pessoa menos agressiva do mundo. Mas tinha um jeito de manter o coração animado, mesmo quando as coisas estavam difíceis, para usar os termos de Miss Gibbs.
À sua maneira individual, Grace prosseguiu com seus planos. Desde a morte da mãe que aumentara o seu temor de voltar ao Law. Escreveu para Tia Carrie e a resposta que recebeu, repleta de medos reprimidos e premonições devotas, terminando com um postscript nervoso, sublinhado duas vezes, fez com que Grace sentisse que não podia mesmo voltar para casa.
Ela pensou um pouco na carta de Tia Carrie e depois decidiu o que faria. De certa forma, era fácil para Grace tomar uma decisão. Problemas que teriam atormentado Hilda por duas semanas jamais chegavam a preocupar Grace. Ela mal parecia analisá-los, limitando-se a tomar sua decisão. Grace tinha a capacidade de converter montanhas em simples montículos de terra. Isso acontecia porque ela nunca pensava em si mesma.
No primeiro sábado de janeiro, quando teve um dia inteiro de folga no hospital, Grace pegou o trem para Sussex. Tinha a impressão de que gostaria de Sussex, que encontraria ali um lugar quente e ensolarado, diferente da paisagem inóspita e desolada do Norte. Não sabia muita coisa a respeito de Sussex, apenas o que lhe dissera uma enfermeira que lá passara um feriado, em Winrush, perto de Parnham Junction. Ela dera a Grace o nome da mulher com quem se hospedara, a Sra. Case.
O trem levou Grace para Sussex e deixou-a na plataforma de Parnham Junction. Não era uma paisagem das mais atraentes o entroncamento, apenas uns poucos galpões, currais de gado vazios e pilhas de latões de leite amassados. Mas Grace não se deixava abater.
Ela avistou uma placa em que estava escrita a palavra Winrush. A distância indicada era de apenas um quilómetro e meio e por isso ela partiu a pé para Winrush.
Era um dia de vento, ameno e viçoso. Havia um cheiro maravilhoso de terra úmida no vento, misturando-se com o cheiro de maresia. Ocorreu-lhe de repente, com alguma angústia, que não dava para entender por que, quando o mundo podia ser tão maravilhoso quanto aquele lugar, a guerra devesse continuar, mutilando a natureza, destruindo a beleza, liquidando homens. O rosto jovem contraiu-se, angustiado, enquanto ela andava. Mas desanuviou-se ligeiramente quando se aproximou da Winrush. Grace sentiu que Winrush era um lugar maravilhoso no momento em que lá entrou. Winrush era uma aldeia bem pequena, apenas uma rua, com os campos numa extremidade e o mar na outra. No meio dessa ruazinha, havia uma pequena loja, com um cartaz de fabricação doméstica e pintado a mão, onde se lia: Sra. Case -Mercearia - Fazendas - Farmácia. Não havia muita coisa de farmácia, exceto um pacote de pó de Seidlitz na vitrina. Mas Grace adorou a loja e ficou olhando pela janela por muito tempo, identificando todas as coisas que conhecera na juventude. Lá estava um doce chamado Slim Jim, um tanto fino e parecendo mesmo racionado, assim como os Gob Stoppers, bolas vermelhas e brancas, grandes e bonitas, que enganavam todo mundo, pois se pensava que havia uma noz por dentro, mas nada se encontrava. Grace divertiu-se intensamente a contemplar a vitrina. Depois, ela respirou fundo e entrou na loja. Entrou tão impulsivamente que quase caiu, pois estava escuro no interior da loja e havia um degrau que ela não vira. Ao se apoiar com um baque contra uma barrica de batatas, Grace ouviu uma voz por trás do balcão dizer:
- Oh, minha cara... esse degrau horrível!
Ainda se apoiando na barrica, Grace olhou para a pessoa que a chamara de minha cara. Chegou à conclusão de que só podia ser a Sra. Case. E disse:
- Estou bem. É que sempre sou desajeitada. Espero não ter arrebentado a barrica.
A Sra. Case disse, com um aceno de aprovação por sua própria réplica:
- Oh, minha cara, espero que não tenha arrebentado a si mesma! Grace sorriu. Qualquer pessoa teria sorrido para a Sra. Case, pois a Sra.
Case era bastante estranha, uma mulher idosa e pequena, com olhinhos brilhantes e uma corcunda. A corcunda da Sra. Case não deveria ser absolutamente romântica... ela tinha a espinha deformada desde que sofrera da doença de Pott, em criança... mas no fundo era romântica. A cabeça era tão afundada no corpo e os olhos brilhavam tanto que a Sra. Case dava a cómica impressão de sentar sobre os próprios ombros, como uma galinha sentada sobre seus ovos. Uma galinha parda, é claro, pois a pele da Sra. Case era escura e encarquilhada, exceto sob o nariz, onde era ainda mais escura. A mancha escura sob o nariz da Sra. Case oferecia a sugestão de que ela tomava rapé. E era de fato o que acontecia.
- Vim procurá-la a respeito de aposentos para alugar - disse Grace, polidamente. - A Enfermeira Montgomerie, amiga minha, recomendou-me que viesse procurá-la.
- Ah, sim... - A Sra. Case esfregou as mãos, pensativa. - Claro que me lembro dela. Uma moça bem animada. Vai querer os aposentos para o próximo verão?
- Não. Seria para a primavera. - Grace fez uma breve pausa, antes de acrescentar: - O meu caso é diferente. Acontece que vou ter um filho.
- Entendo... - murmurou a Sra. Case, depois de um longo tempo.
- Isso faz com que a coisa seja um pouco diferente.
- Já entendi, minha cara, já entendi. Isso faz com que a coisa seja diferente. Posso compreender tudo agora.
Grace não pôde mais conter o riso. O jeito como a Sra. Case falava era irremediavelmente engraçado. Dentro de um momento, a Sra. Case riu também, embora não de todo efusivamente. E depois ela disse:
- Tenho a impressão de que gosta muito de rir. Tem alguma objeção que eu lhe pergunte se seu marido está na guerra ou em algum outro lugar, minha cara?
Grace não tinha qualquer objeção. Ela falou à Sra. Case a respeito de Dan. Explicou-se mais ou menos e a Sra. Case tornou-se amistosa outra vez, visivelmente aliviada. Ela disse:
- Eu sabia com certeza, minha cara. Basta se olhar um rosto para conhecer a pessoa. Mas é preciso tomar muito cuidado atualmente, com esses alemães e o preço da manteiga. Talvez queira que eu lhe mostre os aposentos, minha cara.
Os aposentos eram esplêndidos. Ou pelo menos foi isso o que Grace pensou. Eram dois aposentos, ligados, no segundo andar. Os assoalhos eram irregulares e os tetos exibiam alguns pontos inesperadamente abaulados. Era preciso abaixar bastante a cabeça ao se aproximar da cama e a sala de estar não era absolutamente um lugar onde se ficar de pé. Mas eram aposentos muito limpos, com cortinas novas de musselina, um quadro bonito da coroação da Rainha Vitória, uma caixa de ovos de pássaros colecionados pelo sobrinho da Sra. Case, uma ampliação do marido da Sra. Case, que trabalhara na ferrovia e morrera de um problema no rim, além de uma vista maravilhosa do jardim. Era um jardim comprido, com um pomar de cerejeiras. Grace viu-as como estariam na primavera, ansiosas para desabrochar. Havia vacas no campo além e uma fileira de olmos. Grace ficou parada na janela e uma pequena lágrima aflorou a seu olho...era tudo tão bonito que até doía um pouco, fazendo-a pensar em Dan.
Ela virou-se para a Sra. Case.
- Eu gostaria de ficar com os aposentos, se me permitisse ocupá-los. Satisfeita, a Sra. Case assentiu.
- Vamos descer, minha cara, e tomar uma xícara de chá, enquanto conversamos.
Elas desceram, Grace e a Sra. Case... a Sra. Case segurando no corrimão, porque claudicava... e tomaram diversas xícaras de chá, enquanto conversavam, interminavelmente. A Sra. Case estava livre dali por diante e gostava muito de conversar.
- Se eu dissesse 15 shillings por semana - falou a Sra. Case, a cabeça inclinada para o lado, como um passarinho curioso - levando em consideração as circunstâncias, seria pedir demais?
- Claro que não.
O assunto foi acertado, sem a menor discussão. Continuaram a conversa, numa crescente compreensão. A Sra. Case era uma verdadeira mina de informações úteis. Havia um telefone na aldeia, na fazenda do velho Mr. Purcell. Certamente ele lhe permitiria o uso do telefone. E Fittlehampton ficava a apenas cinco quilómetros de distância, havia diversos médicos de qualidade em Fittlehampton. Foi uma conversa bastante comprida entre Grace e a Sra. Case. Embora ao final envolvesse confidências, sobre a maneira como o rim do falecido Mr. Case levara-o à glória, foi uma conversa bastante afável e satisfatória.
Mais tarde, ao pegar o trem das 4:10h em Parnham Junction, Grace sentia-se extraordinariamente feliz e animada. Grace não era muito esperta. Hilda e Miss Gibbs poderiam alegar que Grace era negligente, estúpida e indolente. Hilda e Miss Gibbs teriam recomendado a Grace um hospital-maternidade competente. Teriam julgado Grace louca se a vissem partir de Parnham Junction ou comprimindo o nariz contra a vitrina da loja da Sra. Case.
Ao voltar, Grace sentia-se tão feliz que queria compartilhar sua alegria com Hilda. Radiante, ela foi ao quarto de Hilda. De pé no limiar, as faces coradas pelo ar fresco da noite, os olhos cheios de confiança e esperança, Grace disse:
- Já acertei tudo, Hilda. Encontrei o lugar mais maravilhoso do mundo em Sussex.
- É mesmo? - disse Hilda, friamente.
Ela estava morrendo de curiosidade em saber onde Grace estivera e o que acertara, mas estava muito magoada e era orgulhosa demais para deixar que isso transparecesse. Gradativamente, a expressão radiante foi se desvanecendo do rosto de Grace.
- Quer que eu lhe conte tudo? - perguntou ela, indecisa.
- Vamos deixar para outra ocasião - disse Hilda, pegando uma revista e começando a folheá-la.
Grace virou-se e deixou o quarto. No instante em que a porta fechou, Hilda levantou-se de um pulo para segui-la. Mas Hilda não a seguiu... era contra a natureza de Hilda seguir qualquer pessoa. Ela ficou imóvel, de rosto franzido, com uma expressão de angústia no rosto pálido. Depois, jogou a revista violentamente contra o canto do quarto. Naquela mesma noite, houve um ataque aéreo a Londres. Sempre que havia um ataque, Grace geralmente ia para o quarto de Hilda e se deitava na cama dela. Naquela noite, porém, embora Hilda esperasse e ansiasse, Grace não apareceu.
O tempo foi se arrastando. Sempre que tinha o seu meio dia de folga, Grace saía a comprar pequenas coisas, que poderiam ser-lhe úteis. Ou talvez não fossem. Divertia-se muito assim, especialmente nas lojas de departamentos de produtos baratos. Dan escrevia duas vezes por semana. Esperava obter uma licença a tempo de estar presente ao grande acontecimento. Iria suplicar, tomar emprestado ou roubar uma licença, desertaria e atravessaria a nado o Canal da Mancha... mas tudo dependia, é claro, até mesmo a travessia do Canal, do fato de saber se haveria ou não uma ofensiva.
As cartas de Dan constituíam um conforto mais do que nunca para Grace. Ela ainda esperava se tornar novamente amiga de Hilda. Mas em seu último dia no hospital, quando foi ao quarto da irmã para despedir-se, descobriu que Hilda fora ao teatro. Grace tinha de partir, deixando as coisas nesse ponto. Sentiu-se triste ao partir assim.
No dia 16 de abril de 1917, Stanley Millington voltou a Tynecastle. Durante as últimas semanas, Laura estivera em Sawbridge, Warwickshire, onde Stanley estava internado, no hospital especial para neuroses de guerra. Joe de nada soubera, até tomar conhecimento no escritório, indiretamente, do telegrama para Hilltop comunicando o retorno do casal. Na verdade, ele não recebia qualquer recado de Laura desde a noite em que ela saíra em lágrimas do apartamento. Mas o fato de não ter recebido convite para estar presente não impediu que Joe comparecesse à estação. Joe possuía uma esplêndida combinação de coragem desavergonhada e uma couraça de rinoceronte, que lhe permitia enfrentar com a maior tranquilidade a situação mais delicada. Além do mais, ele sabia que os dois o esperariam. .. por que não? Joe estava perfeitamente disposto a esquecer a última cena que Laura fizera e genuinamente propenso a manifestar uma intensa admiração pelo heroísmo de Stanley e prazer pela sua recuperação. Ele guiou o carro para a estação, ao encontro de Stanley, cheio de boa vontade e simpatia, dominado pela afeição viril de um bom companheiro por outro.
Mas quando o trem chegou, bastou um único olhar para Stanley e Joe perdeu prontamente o sorriso radiante.
- Olá, Stanley - disse ele, com um entusiasmo cauteloso. Stanley apertou-lhe a mão, bastante trémulo, murmurando:
- Fui soterrado por uma granada.
Joe lançou um olhar para o rosto de Laura. A plataforma estava apinhada, as pessoas passavam por eles apressadamente, carregadores ofegavam ao peso de malas. Stanley parecia estar se interpondo no caminho de todo mundo. Evitando os olhos de Joe, Laura pegou o braço de Stanley e conduziu-o para a grade. No caminho, Stanley confidenciou novamente para Joe:
- Fui soterrado por uma granada.
Entraram no carro. Durante todo o percurso da Central Station a Hilltop, Joe ficou sentado no carro a olhar de esguelha para Stanley, ao mesmo tempo em que fazia um esforço para não olhar assim e dizia a si mesmo: Santo Deus, quem poderia acreditar numa coisa dessas?
Ele esperava que Stanley não repetisse.
Mas Stanley repetiu. Pela terceira vez, Stanley disse:
- Fui soterrado por uma granada!
Olhando de esguelha, ao mesmo tempo em que procurava não olhar, Joe disse:
- Já sei, Stanley. Você foi soterrado por uma granada.
Stanley não disse nada. Estava sentado na beira do banco de trás, como se fosse esculpido em madeira. Olhava para a frente, parecendo longe dali. O rosto era impassível. Segurava-se no lado do carro com as duas mãos. Mr. Stanley, o nosso Mr. Stanley, estava completamente atordoado.
- Estamos quase chegando - disse Joe, encorajadoramente.
Ele pensara que Stanley estava bem, absolutamente ileso, pronto para recomeçar tudo. Mas aquele era Stanley, agora Stanley estava assim. Joe tinha de ficar dizendo a si mesmo para acreditar. Isto... aqui. .. isto. Ele lançou um olhar furtivo para Laura. Ela estava impassível, amparando Stanley com o braço.
O carro parou em Hilltop e Joe saltou. Estava extremamente solícito e prestativo.
- Por aqui. Olhe o degrau. Cuidado agora.
Mr. Stanley foi cuidadoso. Saltou do carro e ficou parado. Estava sendo extremamente cuidadoso. Mantinha a cabeça imóvel, como se quisesse tomar cuidado com a cabeça. Parecia um homem com torcicolo, até que se percebia que todo o seu corpo estava rígido. Os movimentos do corpo eram efetuados por uma sucessão de pequenos impulsos. Os movimentos não eram absolutamente coordenados. Eram como os movimentos de um homem mecânico quase perfeito.
Joe disse:
- Quer que eu lhe dê uma ajuda?
Stanley não respondeu... tinha o hábito de não responder. Mas acabou dizendo, dali a um minuto:
- As pernas funcionam muito bem, mas o problema está na cabeça. Estive no hospital. Fui soterrado por uma granada.
Enquanto Laura ficava no portão, dando instruções ao motorista sobre a bagagem, Joe conduzia Stanley para a casa. Bessie, a criada, estava parada na porta, esperando-os. Os olhos de Bessie estavam esbugalhados ao contemplarem Mr. Stanley. Joe disse, efusivamente:
- Aqui está Mr. Stanley de volta, Bessie.
Sem prestar a menor atenção a Bessie, Stanley entrou no vestíbulo e foi sentar-se na beira de uma cadeira. A casa não lhe pertencia e ele não pertencia à casa. Tateou nos botões do colete, depois olhou para Bessie. Devia ter notado Bessie desta vez, pois ficou fitando-a fixamente.
Abruptamente, Bessie desatou a chorar.
Joe tirou o gorro de Mr. Stanley.
- Pronto! - disse ele, gentilmente. - Ele vai se sentir melhor depois de almoçar, Bessie.
Joe sorriu para Bessie. Achava que Bessie era uma boa moça e sempre a tratara bem.
Bessie retirou-se para tratar do almoço. Joe podia ouvi-la a chorar na cozinha, enquanto contava tudo à cozinheira.
Stanley correu os olhos pelo vestíbulo. Para fazê-lo, não virou a cabeça; em vez disso, virou o corpo, lentamente, cuidadosamente, na beira da cadeira. Foi nesse momento que Laura entrou.
- É um prazer vê-lo de volta, Stan - disse Joe, esfregando as mãos, vigorosamente. - Não é mesmo, Sra. Millington?
- É, sim.
Laura aproximou-se de Stanley. A tensão em seu rosto era quase insuportável.
- Não gostaria de subir agora? - perguntou Laura.
Mas Stanley respondeu que não. Não demonstrava muito interesse por Laura. Na verdade, ele parecia, de uma estranha maneira, ressentir-se do interesse de Laura por sua pessoa. Continuou a olhar pelo vestíbulo. Os olhos estavam curiosos, havia obviamente uma curiosidade intensa a movimentá-los. A impressão era de que os olhos estavam mais escuros, cobertos por uma película de escuridão, sob a qual se podia perceber um sentimento intenso. Quando esse sentimento chegava perto da superfície, o rosto de Stanley aproximava-se da emoção. Era difícil definir qual era a emoção que aflorava tão abruptamente e se desvanecia com a mesma rapidez. Mas era uma emoção horrível Era medo, não simplesmente um medo específico, mas medo em geral. Stanley não estava com medo de alguma coisa. Estava simplesmente com medo. Ele terminou de correr os olhos ao redor do vestíbulo e comentou:
- Fizemos uma boa viagem.
- Ótimo. Ótimo.
- A não ser pelo barulho.
- O barulho, Stanley?
- As rodas. Nos túneis. Essa não!, pensou Joe.
- Pensei...
- Está tudo bem - disse Joe, suavemente. O gongo soou nesse momento. - Vamos almoçar. Ele se sentirá melhor depois de almoçar. Não é mesmo, Sra. Millington? Nada como um bom almoço para deixar um homem em forma.
- Tenho de me deitar depois do almoço - disse Stanley. - É uma das coisas que os médicos me recomendaram. Fizeram-me prometer, antes de ir embora.
Foram almoçar. Laura parou deliberadamente à entrada da sala de jantar e perguntou, em voz impassível, sem olhar para Joe:
- Você não precisa estar na fábrica?
- Claro que não - respondeu Joe, efusivamente. - Está tudo correndo muito bem por lá.
- Acho que Stanley gostaria que você se retirasse agora. Stanley demonstrou alguma irritação.
- Não, não! Deixe Joe ficar.
Um breve silêncio; Joe sorriu cordialmente, Laura afastou-se relutantemente. Sentaram-se para almoçar.
Quando terminou de tomar a sopa, Stanley tornou a falar a Joe, para demonstrar que não se esquecera de suas instruções:
- Tenho de deitar depois do almoço. É uma das coisas que os médicos me recomendaram. E quando eu me levantar, vou fazer o meu tricô.
Joe ficou boquiaberto... não é nada engraçado, pensou ele, oh, Deus, não é nada engraçado! Em voz hesitante, ele disse:
- Seu tricô?
Laura fez um movimento angustiado, como se quisesse intervir. Mas Mr. Stanley continuou, explicando; parecia feliz quando estava se explicando.
- O tricô ajuda a cabeça. Aprendi a fazer tricô no hospital, depois que fui soterrado pela granada.
Joe afastou os olhos apressadamente do rosto de Stanley. Tricô, pensou ele... tricô! Recordou o pesadelo. Pensou Stanley, nos comentários de Mr. Stanley naquela mesma sala, um ano antes. O homem exuberante que queria dar uma lição nos alemães, por St. George e a Inglaterra, o bretão de raça pura que queria ingressar no Corpo de Aviadores... uma grande aventura, o Batalhão das Escolas Públicas, bravura e valor... o nosso Mr. Stanley, que julgava a guerra simplesmente maravilhosa. Oh, Deus, pensou Joe, gostaria de saber o que ele pensa agora a respeito de tudo isso; e, de repente, Joe sentiu a maior vontade de rir.
Mas foi nesse momento que Stanley começou a chorar, balbuciando:
- Não posso... não posso...
Laura interveio, em voz baixa, inclinando-se para a frente:
- Qual é o problema, querido?
O rosto de Stanley contraiu-se de angústia, sob a máscara de impassibilidade.
- Não posso fechar o pote de mostarda.
Ele estava tentando fechar o pote de mostarda e não conseguia. E começava a tremer todo, da cabeça aos pés, porque não conseguia fechar o pote de mostarda.
Joe levantou-se de um pulo.
- Deixe-me cuidar disso para você.
Ele mudou a posição da colher, a fim de que a tampa pudesse se ajustar. Depois, pegou o guardanapo e limpou o molho no queixo de Stanley. Tornou a sentar-se.
Subitamente, Laura desmoronou. Levantou-se abruptamente e pediu licença, a voz trémula.
- Tenho de resolver um problema.
E ela saiu da sala, sem olhar para o marido. Houve silêncio por alguns minutos, enquanto Joe analisava tudo mentalmente, com extremo cuidado. E, finalmente, ele disse:
- Não pode imaginar o prazer que sinto por vê-lo de volta, Stan, meu velho. Estamos ganhando muito dinheiro na fábrica atualmente. O último mês foi espetacular.
Stanley disse que isso era ótimo.
- Mas aquele Dobbie lá do escritório não vale nada, Stanley. Agora que você está de volta, podemos nos livrar dele. Stanley disse que sim.
- Eu estava pensando até em dar-lhe o aviso prévio no final deste mês. Acha que está bem assim, Stanley?
Stanley disse que sim. Depois, Stanley levantou-se abruptamente, muito rígido, embora Joe ainda não tivesse acabado a sobremesa.
- Tenho que ir para a cama.
- Está certo, Stan - concordou Joe, afavelmente. - Faça o que achar melhor.
Num acesso de desamparo, Joe levantou-se e pegou o braço de Stanley. Laura estava esperando ao pé da escada, um lenço molhado embolado tensamente na mão. Fez menção de pegar o braço de Stanley, mas Joe não estava disposto a permitir que ela o privasse daquela oportunidade. E o próprio Stanley parecia apoiar-se em Joe, depender dele. E Stanley disse, irritado:
- Deixe-me, Laura.
Joe ajudou-o a subir para o quarto e depois ajudou-o a despir-se. Stanley tirou todas as roupas, ficou nu em pêlo. Despido, Stanley parecia menos com um homem mecânico e mais com um cadáver mecânico. Parecia pronto para deitar. Mas antes de ir para a cama, ele efetuou um pequeno ritual. Abaixou-se e olhou por baixo da cama, depois ergueu-se e olhou embaixo dos travesseiros. Olhou dentro dos dois armários e por trás das cortinas nas duas janelas. Só depois é que se deitou. Ficou deitado de costas, pernas e braços estendidos. Os olhos mortos, arregalados, estavam fixados no teto. Joe saiu do quarto na ponta dos pés.
No vestíbulo, ao pé da escada, Laura estava esperando por Joe, com os olhos vermelhos e inchados. Ela enfrentou-o determinada, mordendo o lábio inferior, de um jeito que Joe tão bem conhecia.
- Só tenho uma coisa a dizer. - Laura falava com dificuldade, o peito subindo e descendo rapidamente. - E é pedir-lhe que se mantenha longe desta casa.
- Ora, Laura, não seja assim - disse Joe, censurando-a suavemente. Está na maior encrenca com Stan e vai precisar de toda ajuda que puder obter.
- Você chama isso de ajuda?
- E por que não? Não há ninguém mais transtornado do que eu, absolutamente ninguém no mundo. Mas temos de acertar algumas coisas. - Ele sacudiu a cabeça, com uma expressão de absoluta sensatez. - Em relação ao front, Stanley está acabado. Mas estou pensando na fábrica...
- Era de se imaginar - murmurou ela, amargamente.
- Estou falando sério. - Joe abriu os braços, no gesto de um homem que fora mal interpretado. - com todos os diabos, Laura, dê-nos algum crédito. Quero ajudar vocês dois. Quero levar Stanley para a fábrica, interessá-lo novamente nas coisas, dar-lhe toda a ajuda que puder.
- Se eu não o conhecesse, pensaria que está mesmo falando sério.
- Mas estou falando sério. Afinal, temos de nos ajudar mutuamente diante de uma situação dessas. Juro por Deus, Laura, que farei tudo o que puder.
Houve um silêncio. Os olhos inchados de Laura permaneceram fixados no rosto de Joe, a respiração dela tornou-se mais acelerada, angustiada.
- Não acredito que vá fazer coisa alguma - murmurou ela, finalmente. E o odeio pelo que fez... quase tanto quanto odeio a mim mesmo.
Laura virou-se e deixou rapidamente o vestíbulo. Joe continuou parado no mesmo lugar, afagando gentilmente o queixo. Depois, sorriu para si mesmo e saiu da casa. Mas voltou na manhã seguinte, aparecendo por volta das 11 horas, a fim de cumprir a sua promessa de levar Stanley à fábrica. Laura saíra, mas Stanley estava de pé, inteiramente vestido, sentado na beira de uma cadeira na sala, o gramofone tocando. Claro que era ótimo que ele estivesse tocando o gramofone, mas a música escolhida por Stanley deixou Joe nervoso. E ele não pôde deixar de protestar:
- Por que não toca alguma coisa mais animada, Stanley? Como uma música dos Bing Boys ou algo parecido?
- Gosto desta música - disse Stanley, tornando a pôr o mesmo disco no gramofone. - É a única que eu gosto. Fiquei tocando-a durante a manhã inteira.
Aturdido, Joe aguentou o disco todo mais uma vez. A combinação da música e de Stanley ouvindo a música era horrível. Quando a música acabou, Joe foi até o gramofone e examinou o disco. Marcha Fúnebre, de Chopin. Joe virou-se.
- Santo Deus, Stanley, por que está querendo ouvir essa música? Vamos, anime-se. O carro está lá fora e todos estamos esperando. Vamos à fábrica.
Seguiram em silêncio até a fábrica, forarn direto para a fundição, quando lá chegaram. Joe preparara tudo de antemão. Todas as bandeiras inglesas estavam hasteadas e havia uma faixa grande, que Joe tirara de um velho armário, estendida de um lado a outro: Seja Bem-vindo. Quando Stanley entrou, acompanhado por Joe, todos pararam de trabalhar e aclamaram-no, exuberantemente. Havia agora muitas mulheres trabalhando na fábrica, pois Joe descobrira que as mulheres eram muito mais baratas e mais rápidas que os homens mais velhos. As mulheres aclamaram freneticamente. Stanley ficou olhando para as mulheres, as mulheres que o aclamavam, as mulheres de macacão, as mulheres que estavam fazendo as granadas. Dava a impressão de que não sabia o que fazer diante de todas aquelas mulheres, parecia mais do que nunca não pertencer a lugar nenhum. Falando baixo, Joe sugeriu:
- Diga alguma coisa, Stanley... diga qualquer coisa que quiser.
E ele levantou as mãos, pedindo silêncio. Mr. Stanley olhou para as mulheres e disse:
- Fui soterrado por uma granada. Estive no hospital.
Houve outra aclamação. Aproveitando o barulho, Joe procurou estimular Stanley:
- Diga que está contente pelo fato da produção estar cada vez mais alta e que espera que todos continuem a trabalhar como vêm fazendo.
Mr. Stanley repetiu, em voz alta:
- Estou contente pelo fato da produção estar cada vez mais alta e espero que todos continuem a trabalhar como vêm fazendo.
Outra aclamação, mais alta e mais prolongada. Depois, Joe tornou a assumir o comando da situação. Levantou a mão outra vez, pedindo silêncio. Empurrou o chapéu para trás da cabeça enfiou o polegar na cava do colete, contemplando a todos com uma expressão radiante.
- Todos vocês sentem a maior satisfação pela volta de Mr. Stanley, tanto quanto eu. Mr. Stanley não tenciona falar sobre o que fez. Assim, eu falarei um pouco, no lugar dele. Não falarei muito, porque vocês precisam trabalhar pelo país. Há um trabalho para fazer e vocês não podem interrompê-lo para escutar qualquer um. Mas uma coisa não posso deixar de dizer: na presença do próprio, faço questão de declarar que todos nos sentimos extremamente orgulhosos de Mr. Stanley. Sinto-me orgulhoso de estar associado a ele nos negócios e tenho certeza de que todos vocês se orgulham de trabalhar para Mr. Stanley. Estivemos fazendo planos, Mr. Stanley e eu. Ele espera que todos continuem a cumprir o seu dever aqui, assim como ele cumpriu o seu dever na França. Vocês devem trabalhar, trabalhar muito, para manter a produção bem alta. Isso é tudo. Mas antes de voltarem ao trabalho, quero que todos cantemos o Hino Nacional e depois daremos um hurra por Mr. Stanley.
Houve um momento de silêncio. Depois, todos cantaram GodSave the King. Foi bastante comovente e havia lágrimas nos olhos de Joe.
Quando acabaram de pedir a Deus que protegesse seu Rei, eles aclamaram Mr. Stanley, aclamaram Joe, aclamaram quase todo mundo. Em seguida, com um fervor quase religioso, voltaram a se concentrar na fabricação de shrapnel, bombas Mills e bombas de 18 libras.
Joe e Stanley afastaram-se pelo corredor, a caminho do escritório. Mas não foram muito longe. Havia uma enorme granada no meio da passagem. Joe não fizera aquela granada, embora sentisse a maior vontade de fabricar granadas daquele tipo. Era um presente a Joe de John Rutley, o velho Rutley, de Yarrow, seu colega no Comité de Munições. Rutley possuía uma fábrica enorme e fabricava granadas enormes. Joe sentia o maior orgulho daquela linda granada de 17 polegadas, que indicava muitas coisas, entre as quais a de que John Rutley, por assim dizer, era amigo dele. Joe montara a granada num pedestal de madeira envernizada. Agora ali estava, apontando para o céu, numa espécie de êxtase silencioso.
Foi a granada que fez Stanley parar. Ficou olhando para a granada grande e reluzente, como se estivesse paralisado.
Joe bateu na granada afetuosamente.
- Não é uma beleza? Dei-lhe o nome de Katie.
Mr. Stanley não disse nada, mas o brilho escuro se intensificou no fundo de seus olhos.
- Eu gostaria que estivéssemos produzindo granadas desse tamanho comentou Joe. - Há também muito dinheiro nessas coisas grandes. Mas vamos para o escritório. Morgan e Dobbie estão esperando lá e precisamos conversar com os dois.
Mas Mr. Stanley não se mexeu. Não podia passar pela granada. Contemplava-a fixamente, não podia desviar os olhos. Fora uma granada assim que o soterrara. Sua alma se encolhia e tremia diante daquela granada.
- Vamos, meu velho - insistiu Joe, impacientemente. - Não sabe que eles estão à sua espera?
- Quero ir para casa.
A voz era estranha e Stanley começou a recuar, muito tenso, afastando-se da granada.
Oh, Deus, pensou Joe, vai começar de novo! Ele pegou o braço de Stanley, a fim de ajudá-lo a passar pela granada. Mas Stanley não podia passar pela granada. A pele de sua testa se contraía espasmodicamente, a agonia do medo aflorava aos olhos. Ele balbuciou:
- Largue-me. Quero ir para casa.
- Está tudo bem, Stanley. Não há mais nada com você. Não se preocupe com a granada. Não vai mordê-lo. Nem mesmo está carregada. Seja sensato, Stanley.
Mas Stanley não podia ser sensato. Stanley perdera todo o bom senso por causa de uma granada como aquela, na França. Todo o rosto de Stanley estava agora se contraindo nervosamente, rapidamente. Era horrível de se ver o medo no fundo dos olhos.
- Tenho de ir para casa.
Stanley mal conseguia falar agora. Por baixo dos olhos embaçados, havia uma agonia indescritível, um nervosismo profundo. Joe deixou escapar um suspiro de resignação.
- Está bem, Stanley. Você irá para casa. Não precisa fazer estardalhaço nenhum por isso.
Joe não queria uma cena na fábrica. Deus do céu, isso seria terrível, ainda mais agora, quando estavam todos tão animados. Ainda segurando o braço de Stanley, Joe conduziu-o rapidamente pela oficina. O sorriso de Joe indicava que estava tudo na mais perfeita ordem. Mr. Stanley ainda não estava se sentindo muito bem, acabara de sair do hospital, entendem?
O carro partiu para Hilltop, com Stanley sentado rígido no banco de trás. Depois de um último sorriso jovial e tranquilizador, Joe foi para sua sala. Fechou a porta e acendeu um charuto. Fumou o charuto lentamente, pen- sativo. Era um bom charuto, mas Joe não perdeu tempo a pensar no charuto. Estava pensando em Stanley.
Não podia mais haver qualquer dúvida. Stanley estava incapacitado. No instante em que pusera os olhos em Stanley, na estação, Joe o percebera; aquela história do choque era muito mais profunda do que ele imaginara. Muitos meses se passariam antes que Stanley voltasse ao normal. Enquanto isso, Joe teria de controlar a Millington ainda mais do que antes. E isso não era justo para com Joe, a menos que ganhasse com a Millington muito mais do que vinha tirando. Não, não era mesmo justo. Joe contemplou atentamente a ponta em brasa do charuto, calculando rapidamente. Estava ganhando cerca de duas mil libras por ano, tudo de entrada, nada de saída, como diria Jim Mawson. Mas isso não era nada, absolutamente nada. Precisava pensar no futuro. E, por Deus, aquela era uma oportunidade espetacular de consolidar seu futuro, tornar-se grande, muito maior do que jamais sonhara. Joe suspirou, suavemente. Teria de haver uma espécie de reajustamento - era essa a palavra certa - na Millington. Isso mesmo, era essa a ideia exata.
Umedecendo os lábios, Joe estendeu a mão para o telefone. Ligou para Jim Mawson. Nunca antes se sentira tão contente por conhecer Mawson, por sentir-se tão seguro da cooperação dele. Um camarada esperto, o Jim, alguém que sabia exatamente como resolver um problema e encontrar o caminho para sair de alguma dificuldade.
- Alo? Jim? É você mesmo, meu velho?
Joe empenhou-se em apresentar o caso objetivamente a Mawson. E não esqueceu de acrescentar uma pitada de compaixão.
- Foi de cortar o coração de qualquer um ver o pobre coitado, Jim. Ele está perfeitamente sensato, tão são quanto você e eu. Mas os nervos não aguentam. É um problema de choque. Isso mesmo, Jim, um problema de choque, causado pela explosão de uma granada.
Uma pausa, enquanto a voz de Mawson saía pelo telefone. E, depois, Joe disse:
- Então amanhã de noite em sua casa, Jim. Claro que sei que não há pressa. Já conheço Snagg. Encontrei-o na casa de Bostock. Não foi ele quem cuidou daquele contrato? Claro, claro... Que diabo, Jim, está pensando que eu sou... ei, espere um pouco, não vamos discutir essas coisas pelo telefone... está bem... como está sua mulher?... isso é ótimo, Jim, maravilhoso. Até amanhã, meu velho.
Joe largou o telefone, mas apenas por um minuto. A mão grande logo tornou a pegar o aparelho. Ligou para Laura, em Hilltop, a voz serena, compreensiva:
- Preciso conversar com você, Laura. Sinceramente, preciso muito. Claro que sei como se sente. Não posso culpá-la por isso. Mas somos humanos, não é mesmo? E temos de encontrar a melhor solução. Isso mesmo, pode me chamar do que quiser. Eu acho que mereço. Mas, pelo amor de Deus, vamos endireitar as coisas. Mas preciso vê-la, não posso fazer nada. O quê? Está bem, Laura, está bem. Não posso forçá-la a se encontrar comigo, se não quiser. .. mas estarei no apartamento esta noite, caso você mude de ideia...
Joe continuou a falar por mais um ou dois minutos, antes de perceber que ela desligara. Ele sorriu, repôs o fone no gancho e entregou-se alegremente ao trabalho.
Depois do trabalho, ele foi comer no County, como sempre fazia, chegando ao apartamento por volta das seis horas. Assoviando, acendeu o fogo, serviu-se de um uísque e de um pedaço de pastelão de carneiro frio. Vestiu o chambre novo, axadrezado, sentou-se para ler o jornal e esperar.
De vez em quando, os olhos desviavam-se para o relógio. Ocasionalmente, o barulho de um carro se aproximando fazia com que se empertigasse na cadeira, na expectativa. À medida que os ponteiros do relógio iam avançando, o rosto bonito começou a ficar franzido. Mas às nove horas em ponto a campainha da porta soou, fazendo-o levantar-se ansiosamente.
Laura entrou com uma espécie de violência nervosa. Estava de capa e usava um velho chapéu marrom, bem justo na cabeça. Os sapatos estavam salpicados de lama. Joe teve a impressão de que ela viera a pé desde Hilltop. Laura estava muito pálida.
- Vim vê-lo - disse ela, com uma hostilidade amarga, as mãos enfiadas nos bolsos da capa, todo o corpo tenso. - O que tem a me dizer?
Joe não fez qualquer menção de aproximar-se dela. Manteve os olhos abaixados.
- Estou contente que tenha vindo, Laura.
- E então? - insistiu ela, com a mesma voz aflita. - É melhor falar logo de uma vez. Não posso ficar muito tempo.
- Sente-se - disse Joe, em tom fraternal. - Não podemos conversar assim. Você está cansada, parece mesmo esgotada.
com extremo tato, ele virou-se e foi atiçar o fogo. Laura observou-o por um instante com uma expressão de ironia, depois soltou um suspiro de cansaço e arriou numa poltrona. E disse, amargurada:
- Não tive um momento de paz desde que deixei este maldito apartamento.
- Posso imaginar. - Joe acomodou-se na outra poltrona, parecendo contrito, os olhos fixados no fogo. - Mas não podíamos prever o que aconteceu, não é mesmo, Laura?
- Cada vez que olho para ele, a cada minuto do dia. - Um soluço elevou-se pela garganta de Laura. - Ele não pode me suportar agora. Você viu tudo, não é mesmo? Parece odiar a minha proximidade. Tem de ir para Bournemouth, a fim de passar algum tempo numa casa de repouso que existe lá. E pediu-me até que o acompanhasse. Eu bem que mereço tudo o que está me acontecendo. Oh, Deus, como sinto ódio e repugnância de mim mesma!
Joe murmurou algumas palavras de simpatia.
- Não diga nada! - protestou Laura. - Também sinto ódio e repugnância de você.
- Stanley não precisa saber de nada a nosso respeito. Absolutamente nada.
- Espero mesmo que ele não saiba. - Laura fítou-o com uma ironia agressiva. - Você não pretende contar-lhe nada, não é mesmo?
- Claro que não! - Joe falou com uma voz estranha. Levantou-se e foi até o aparador, preparando um uísque com soda. - Não se você ficar do meu lado, Laura. Tome, beba isto. Parece inteiramente esgotada.
Ela aceitou o copo mecanicamente, ainda observando-o atentamente.
- O que está querendo dizer com ficar do seu lado?
- Temos de ser amigos, Laura. - Joe tomou um gole de seu uísque, pensando por um momento, a expressão sombria. - Amigos para o que der e vier... Esse sempre foi o meu lema. Sempre fui do tipo amigável. Afinal, seria bastante constrangedor se houvesse uma briga. Não faria nenhum bem a Stanley. Nem a nós dois, diga-se de passagem. Stanley precisa de mim nos negócios, mais do que nunca. Tenho muitas ideias, de expandir os negócios, estabelecer ligações com outros. Ainda outro dia mesmo estive conversando com Jim Mawson, de Tynecastle. Deve conhecer Mawson. .. um dos melhores homens de negócios de Tynecastle. Pois se Mawson, Stanley e eu nos unirmos, não faz a menor ideia de como poderíamos desenvolver a fundição. Transformaríamos a fábrica numa verdadeira mina de ouro.
- Já percebi o que você está querendo - murmurou Laura. - De qualquer forma, está cansado de mim. E agora quer me usar, usar tudo o que aconteceu entre nós...
- Pelo amor de Deus, Laura. Tenha dó! O que estou falando é em termos absolutamente comerciais. Teremos uma companhia e tanto, com muito dinheiro para todos.
- Dinheiro, dinheiro, é a única coisa em que você pensa. É um homem desprezível.
- Sou apenas humano, Laura. Todos nós somos apenas humanos. Foi por isso que me apaixonei por você.
-Não!
Houve silêncio. Laura tomou o uísque. Serviu para recuperá-lo. Joe pelo menos era sempre prático em tudo o que fazia. Ela contemplou-o, odiando-o. Odiara-o por todas aquelas semanas, imaginando a sua ostentação, vulgaridade, egoísmo insaciável, brutalidade física. Ele era bonito, extraordinariamente bonito. O corpo era bem proporcionado e musculoso, os olhos castanhos eram os mais sedutores que se podia imaginar. E ela lhe ensinara tanta coisa,, como vestir-se, como arrumar-se. De certa forma, ela o criara.
- Ainda está zangada comigo, Laura? - perguntou Joe, humildemente.
- Eu nem mesmo estava pensando em você. - Uma pausa. Rudemente, Laura estendeu o copo vazio. - Sirva-me outro uísque. Acho que mereço.
Joe apressou-se em servi-la, soltando um suspiro.
- Tenho pensado muito em você nas últimas semanas, Laura. E sinto uma saudade terrível.
Ela soltou uma risada brusca, engolindo o uísque como se fosse amargo.
- Está mentindo. Andou metido com outra mulher, enquanto eu estava longe... dormia com outra mulher, enquanto eu cuidava de um homem que me detesta, um homem que deixou de ser o que era antes. Vamos, diga a verdade.
- Estou dizendo a verdade - mentiu Joe, com um ar de absoluta sinceridade.
- Não acredito em você. - Apesar disso, Laura sentiu um súbito aperto no coração. E acrescentou: - De qualquer forma, isso não importa. Sou eu mesma novamente, graças a Deus. Não quero saber se você tem uma centena de mulheres. vou me dedicar exclusivamente a Stanley agora.
- Sei disso, Laura. Vamos apenas ser amigos.
Joe inclinou-se para pegar o copo vazio de Laura, mas em vez disso segurou-lhe a mão.
- Como se atreve?
Ela retirou a mão bruscamente, os olhos enchendo-se de lágrimas. E desatou a chorar.
- Apenas amigos, Laura - suplicou Joe. - Apenas bons companheiros,
- Como pode me fazer tão infeliz? Será que já não sofri o bastante? Eu vou... eu vou...
Ela levantou-se, às cegas. No mesmo instante, os braços de Joe enlaçaram-na, apertando-a gentilmente, segurando-a com uma força confiante.
- Não pode ir embora desse jeito, Laura.
- Deixe-me! Pelo amor de Deus, largue-me!
Ela tentou se desvencilhar, chorando histericamente.
- Por favor, Laura, por favor...
Enquanto se debatia, ela sentiu que tremia toda. Podia sentir o tremor de seu corpo contra o de Joe.
- Como pôde fazer isso, Joe? - balbuciou ela. - Como pôde me tratar tão mal?
- Laura! Ele beijou-a.
- Não, Joe, não - sussurrou Laura, debilmente.
Mas os lábios dele impediram-na de falar mais alguma coisa. Tudo se dissolveu e desapareceu em Laura, exceto a sensação da proximidade física de Joe. A reação dominou-a por completo. Todas aquelas semanas terríveis em Cawbridge, sua solidão, a impertinência de Stanley... a monotonia angustiante do homem-máquina, cujo sexo estava enterrado em alguma trincheira na França. Laura fechou os olhos. Um tremor percorreu-lhe o corpo. Joe não a amava realmente, estava apenas usando-a, iria repudiá-la mais adiante. Mas de nada lhe adiantava tentar resistir. Sentiu que Joe a estava levando para o quarto.
Quando ela voltou a Hilltop, já eram quase 10 horas da noite e a Sra. John Rutley estava sentada à sua espera.
- Oh, minha cara! - exclamou a Sra. Rutley, levantando e pegando as mãos de Laura. - Disseram-me que havia saído para respirar um pouco de ar fresco, mas eu tinha de ficar esperando. Lamento profundamente o que aconteceu com Stanley. E você parece tão transtornada! O que não é de admirar, como -eu disse a John. Afinal, vocês dois sempre foram pombinhos apaixonados. Mas não se preocupe, minha cara. Tenho certeza de que não vai demorar muito para ele ficar bom como antes.
Laura ficou olhando fixamente para a mulher mais velha. E seu rosto se abriu num sorriso distorcido.
Em meados de novembro de 1917, Martha soube do estado de Annie Macer. Foi Hannah Brace quem contou a Martha, numa manhã fria de inverno. Hannah Brace estava consternada porque tal infortúnio acontecera com uma moça tão decente como Annie. Ela estava parada numa calçada dos Terraços, os cabelos desgrenhados presos sob um gorro de homem, o nariz arroxeado do frio, o corpo arqueado, o capacho que viera sacudir pendendo frouxo de sua mão.
- Fiquei absolutamente chocada quando vi Annie naquele estado!
A consternação no rosto afável de Hannah não se refletiu no rosto de Martha. A expressão dela nada deixava transparecer. Sem fazer qualquer comentário, como Hannah obviamente estava esperando, Martha entrou em sua casa e fechou a porta. Mas sentia-se dominada por uma grande euforia. Ela sentou-se à mesa, apoiando o queixo no punho grande, a pensar no que Hannah acabara de lhe dizer. Um sorriso insinuou-se em seus lábios. Sempre dissera que Annie não prestava. Agora, estava comprovado que Annie realmente não prestava. Ela estava certa. Isso mesmo, Martha Fenwick estava certa.
Sammy era o responsável, é claro. Sammy passara muito tempo fora de casa durante a sua última licença. Chegara mesmo a passar um fim de semana inteiro fora de casa, para irritação de Martha. E aquele era o resultado. Isso mesmo, Sammy era o responsável. Mas isso não tinha a menor importância. Pelo raciocínio de Martha, o homem nunca era o culpado. Martha estava satisfeita. Não podia deixar de admitir para si mesma que estava profundamente contente pelo fato de tudo terminar daquele jeito. Sammy jamais respeitaria Annie agora. Nunca mais! Martha sabia que não havia nada que um homem detestasse tanto quanto uma moça em dificuldades. Além do mais, Sammy estava ausente, longe dali, na França. E quando voltasse para casa, ela, Martha, daria um jeito em Sammy. Conseguiria manter Sammy afastado de Annie Macer. Sabia como fazê-lo. Sabia perfeitamente.
A primeira providência, evidentemente, era conferir se Hannah Brace estava certa. Às 11 horas daquela mesma manhã, Martha pôs o casaco e desceu lentamente a Cowpen Street, atenta ao som da sineta de Annie. No momento, os Macers estavam em dificuldade. Pug ingressara no exército e o velho Macer, retido em terra pelas minas e prejudicado pelo crescente reumatismo, era obrigado a ficar pescando de linha na praia, tentando pegar algumas pescadas. Annie ajudava-o na pesca de linha, catava minhocas para isca, de vez em quando saía com o pai no bote, jogando os anzóis além da enseada, enquanto o amanhecer se estendia pelo mar. No resto da manhã, depois que a cidade despertava, Annie apregoava os peixes que haviam apanhado. com um cesto nas costas e uma sineta na mão, ela percorria as ruas de Sleescale.
Naquela manhã, Martha ouviu a sineta de Annie ao pé da Cowpen Street. Era sempre uma irritação para Martha ouvir a sineta de Annie. Hoje, porém, Martha esqueceu inteiramente a sineta ao avistar Annie. Um olhar de águia revelou a Martha que Hannah Brace estava absolutamente correta. Annie estava naquele estado.
Martha foi descendo pela rua, lenta e imponente, até emparelhar com Annie, que largara o cesto na calçada e estava servindo a Sra. Dale, de Middlerig Dairy. Martha ficou parada, observando Annie, enquanto esta destripava o peixe com suas mãos hábeis e depois punha no prato que a Sra. Dale lhe estendera. Martha não podia deixar de admitir que Annie era uma moça limpa. O rosto curtido estava impecavelmente limpo, o avental azul fora recentemente lavado e passado, os braços à mostra até os cotovelos eram rosados e firmes, os olhos eram claros como se tivessem sido polidos pelo vento. O reconhecimento relutante de que Annie era uma moça arrumada deixou Martha ainda mais amargurada. com os lábios contraídos, ela continuou parada, esperando, até que Annie acabasse de atender a Sra. Dale.
Annie finalmente empertigou-se. Viu Martha e seu rosto iluminou-se ligeiramente, imperceptivelmente. A expressão de Annie jamais se alterava rapidamente. Possuía uma serenidade fixa, quase apática. Agora, no entanto, iluminou-se visivelmente. Ela pensou que Martha queria o seu peixe. Era uma honra que Martha nunca antes concedera a Annie. E Annie sorriu, timidamente.
- Tenho uma ótima pescada, Sra. Fenwick. - Uma pausa, enquanto Annie refletia se não exagerara um pouco. E depois ela acrescentou: - Ou pelo menos está um pouco maior do que o normal.
Martha não disse nada, continuando apenas a olhar fixamente para Annie.
Annie ainda não estava entendendo. com um movimento ágil do corpo esguio, ela levantou o cesto pela tira de couro preto e mostrou os peixes a Martha.
- Papai e eu pegamos esses peixes às quatro horas da madrugada. É mais fácil de pegá-los'quando há uma neblina sobre o mar. Deixarei dois em sua porta ao passar. Não precisa carregá-los até lá em cima.
Era um discurso comprido para Annie, um discurso excepcionalmente comprido; e era extremamente comprido porque Annie estava extremamente ansiosa em agradar.
Martha não disse nada. Mas quando Annie levantou os olhos dos peixes recentemente apanhados, Martha lançou-lhe um olhar gelado e insolente. Era um olhar que sabia de tudo, dizia tudo, exprimia tudo. Annie compreendeu. E, depois, Martha disse:
- Não quero seu peixe nem qualquer outra coisa que você possa ter.
Ela ficou esperando, alta, empertigada, formidável, esperando que Annie lhe respondesse. Mas Annie não disse nada. Baixou os olhos para o cesto, como se estivesse humilhada.
Uma onda brutal de triunfo invadiu Martha. Continuou a esperar por mais algum tempo, até compreender que Annie nada diria. Virou-se então, a cabeça erguida, e afastou-se.
Annie levantou os olhos e ficou observando o vulto de Martha a se afastar. Havia uma nobreza em Annie naquele momento. O rosto franco e curtido não exibia vergonha, confusão ou raiva. Havia apenas uma espécie de pesar refletido ali. Ela permaneceu imóvel por um momento, como se lamentasse profundamente, depois ajeitou o cesto nas costas e pôs-se a subir a rua. A sineta tornou a soar, alta, incisiva.
Depois disso, Martha empenhou-se em humilhar Annie. Não hesitava em "contar a verdade" sobre Annie. Era uma estranha reação. Martha nunca tivera tempo para conversas ociosas, detestava e desprezava a simples menção da palavra escândalo. Agora, porém, experimentava um prazer amargo em espalhar a notícia sobre o problema de Annie pelos Terraços.
Fazia questão de se encontrar com Annie tão frequentemente quanto era possível. Jamais passava sem lançar um olhar fulminante para Annie. Nada dizia, mas havia sempre aquele olhar. Ela descobriu um' passeio predileto de Annie, um passeio que Annie sempre fazia ao cair da noite, o único momento em que tinha algum tempo livre para si mesma, um passeio que a levava pela praia, subindo a ladeira e chegando ao Snook. Martha, que nunca antes ia além dos Terraços ou do centro da cidade, começou a fazer também esse passeio. Havia ocasiões em que Annie chegava primeiro ao penhasco e ficava olhando para o mar. Outras vezes, no entanto, era Martha quem lá chegava primeiro. Em qualquer dos casos, Martha sempre lançava aquele olhar para Annie, em silêncio. Muitas vezes, Annie parecia desejosa de falar com Martha. Mas o olhar de Martha impedia qualquer tentativa de aproximação. Há anos que Martha sofria por causa de Annie. Agora, Annie bem que podia sofrer por causa dela!
É verdade que Martha nunca insinuava qual era a situação para Sammy. Em suas cartas para o filho, ela nunca dizia uma só palavra a respeito do assunto. Era esperta demais para fazer uma coisa dessas. Enviava-lhe mais pacotes do que nunca, remessas sempre maravilhosas. Empenhava-se em fazer com que Sammy a considerasse extraordinária. Recebia o soldo de Sammy todas as semanas e isso lhe permitia fazer o que quisesse. Martha jamais poderia aguentar sem o soldo de Sammy.
Os dias passavam, as semanas passavam. Bem pouca coisa acontecia em Sleescále. Na Neptune, estavam bem avançados com o novo túnel na Paradise. Jenny ainda residia em Tynecastle com sua família e Martha nunca recebia notícias dela. Harry Ogle, filho do velho tom Ogle, fora eleito para o Conselho Municipal. Hans Messuer fora transferido do hospital para um campo de prisioneiros. A Sra. Chorou abria sua loja dois dias por semana. Jack Reedy voltara do front, ao sofrer envenenamento por gás. As cartas de David chegavam regularmente, uma vez por mês. A vida ainda continuava.
E Annie Macer continuava a apregoar o peixe que ela e o pai pescavam de linha ao amanhecer, quando a neblina se espalhava pelo mar. Todos diziam que era uma desgraça que Annie continuasse a vender peixe. Mas Annie não podia fazer qualquer outra coisa. O irmão de Annie, Pug, não era do tipo de mandar seu soldo para casa todas as semanas e a venda dos peixes era o único meio de sustento de Annie e do pai. Assim, Annie continuava a fazê-lo, apesar da desgraça.
Mas veio um dia em que Annie não apareceu. Foi a 22 de março, e nesse dia Annie não apareceu com o cesto e a sineta. Martha procurou por Annie em vão. E Martha pensou: Será que chegou o momento do parto?
Mas não era o momento do parto de Annie. Ao cair da tarde, Martha fez o passeio pela praia, passando pelo Snook e subindo ao penhasco além. Fez o passeio em parte pelo hábito recentemente adquirido, em parte na esperança de encontrar Annie. Mas Annie não estava ali. E Martha ficou parada no alto do penhasco, ereta e vigorosa, ornando para a trilha, pensando que chegara o momento de Annie, que Annie finalmente estava dando à luz o bastardo.
Mas não era o momento do parto de Annie. Parada ali, Martha empertigou-se de repente, ao avistar Annie na base da trilha. E Annie estava subindo.
Annie subia pela trilha lentamente e Martha ficou esperando, com seu olhar pronto, aguardando até que Annie chegasse perto. Naquela noite, Annie demorou bastante a subir. Subia devagar, bem devagar, como se carregasse um enorme fardo. Mas finalmente chegou ao topo e Martha lançou-lhe seu olhar. Mas Annie não prestou atenção ao olhar. Parou diante de Martha, excepcionalmente pálida e ofegante, ligeiramente inclinada, como se estivesse cansada demais, como se ainda suportasse um imenso fardo. Olhou para Martha e depois para o mar, como sempre fizera, olhando na direção do lugar em que Sammy poderia estar. E, depois, ela disse, como se enunciasse o fato mais simples do mundo:
- Sammy e eu casamos em agosto.
Martha recuou, como se tivesse levado uma pancada. Empeitigou-se prontamente e afirmou:
- É mentira!
Ainda olhando para o lugar em que Sammy poderia estar, Annie tornou a dizer, tristemente, a voz cansada:
- Sammy e eu casamos na última licença dele, em agosto.
- Não é verdade - protestou Martha. - Não pode ser verdade.
Ela fez uma pausa, antes de acrescentar, com uma expressão triunfante:
- Estou recebendo o soldo de Sammy!
Ainda olhando para o lugar em que Sammy poderia estar, Annie murmurou:
- Sammy e eu achamos melhor que continuasse a receber o soldo dele. Não quisemos que deixasse de receber.
Martha estava pálida de raiva. O orgulho a dominava. E ela disse, entre os dentes cerrados:
- Não acredito. Nunca vou acreditar.
Lentamente, Annie desviou os olhos do lugar em que Sammy poderia estar. Os olhos estavam secos. O rosto estava sombrio, ela parecia mais do que nunca sustentar um imenso fardo. Entregou a Martha o telegrama que tinha na mão.
Martha pegou o telegrama. O telegrama era para a Sra. Annie Fenwick. O telegrama dizia: Lamentamos informar que seu marido, o Cabo Samuel Fenwick, foi morto em ação, a 19 de março.
A sentença de Arthur terminou no dia 24 de abril de 1918. Às nove horas da manhã desse dia, vestido em suas próprias roupas, ele passou pelos portões da prisão. Atravessou a arcada de pedra cinzenta de cabeça baixa e afastou-se cautelosamente. Era uma manhã úmida e nublada, mas a sensação de claridade e espaço que Arthur experimentava era indescritível. Mal podia compreender, os olhos piscavam apreensivamente. Por que não havia cela, por que não havia muro nenhum para detê-lo? Ele andou mais depressa, subitamente consciente de que os muros estavam agora por trás dele. Queria escapar dali rapidamente.
Mas em breve teve de desistir de andar depressa. Não estava em condições para isso. Era como um homem que acabara de sair do hospital, muito fraco e cansando-se facilmente, encurvado, com uma palidez doentia. Os cabelos estavam cortados bem rentes, quase raspados... o guarda Collins providenciara isso dois dias antes, como uma última brincadeira... de tal forma que dava a impressão de ter sido submetido a uma operação grave no cérebro, no vasto hospital que deixara para trás.
Não restava a menor dúvida de que fora essa operação no cérebro que o fazia agora olhar nervosamente para todos por que passava, querendo verificar se não o estavam observando. As pessoas estariam olhando para ele? Estariam olhando? Estariam?
Ele andou por cerca de um quilómetro e meio, até chegar aos arredores de Benton, quando entrou num café de operários. melhor parada para caminhões, estava escrito numa placa lá fora. Ele sentou-se, sem tirar o chapéu, para esconder a cabeça raspada. Olhando para a mesa, pediu café e dois ovos quentes. Não olhou para o homem que o serviu, mas reparou nas botinas dele, o avental sujo e os dedos amarelados de nicotina. O homem pediu-lhe que pagasse no momento em que pôs o café e os ovos quentes na mesa.
Inclinado sobre a mesa, sempre de chapéu, Arthur tomou o café e comeu os ovos. A faca e o garfo grandes pareciam meio desajeitados em suas mãos, depois dos talheres de estanho da prisão. As roupas estavam folgadas demais, caindo desajeitadamente por seu corpo. Emagrecera bastante na prisão. Mas estou fora, pensou ele. Finalmente estou fora. Graças a Deus estou fora.
O café e os ovos fizeram com que se sentisse melhor e ele pôde olhar para o homem a caminho da porta, pedindo um maço de cigarros.
O homem tinha cabelos vermelhos e uma expressão de curiosidade vulgar.
- Um maço de 20 cigarros?
Arthur assentiu bruscamente, pondo um shilling em cima do balcão. O homem de cabelos vermelhos assumiu um ar confidencial.
- Ficou muito tempo?
Arthur compreendeu nesse momento que o homem sabia que ele estivera na prisão. Provavelmente, a maioria dos ex-presidiários paravam ali ao serem soltos. Uma onda de vermelho espalhou-se pelo rosto pálido de Arthur. Sem responder, ele saiu do café.
O primeiro cigarro não foi muito bom, deixou-o estonteado. Mas deulhe a impressão de que já não atraía tanta atenção na rua. Um garotinho a caminho da escola viu-o abrir a porta e correu atrás dele, pedindo o cartão. Arthur tirou o cartão do maço com a mão calosa e os dedos insensíveis, entregando-lhe. O fato do garotinho ter falado com ele ajudou-o, de uma estranha maneira, a sentir por um momento o calor do contato da mão dele. Sentiu-se subitamente mais humano.
No terminal de Benton, ele pegou o bonde para Tynecastle. Manteve os olhos no chão, pensando. Enquanto estava na prisão, não conseguia pensar em outra coisa que não o mundo exterior. A despedida do diretor e do capelão da prisão ressoava em seus ouvidos:
- Espero que este tempo o tenha transformado num homem. O exame do médico:
- Levante a camisa e abaixe a calça.
O sarcasmo final de Hicks, durante o último exercício:
- Vai tirar uma saia esta noite, garoto?
Isso mesmo, ele se lembrava de tudo. E lembrava-se especialmente do derradeiro ataque do guarda Collins. Alguma coisa o levara a estender a mão para Collins, quando o guarda abrira a porta da cela, pela última vez. Mas o guarda Collins dissera:
- De jeito nenhum!
E cuspira na mão de Arthur. Ao pensar nisso, Arthur instintivamente esfregou a mão na perna da calça.
O bonde entrou ruidosamente em Tynecastle, avançando pelas ruas familiares apinhadas, indo finalmente parar do lado de fora da Central Station. Arthur saltou e entrou na estação. Tencionava comprar uma passagem para Sleescale. Mas hesitou ao chegar ao guichê. Não conseguia se decidir. Aproximou-se de um carregador.
- A que horas sai o próximo trem para Sleescale? -Às 11:55.
Arthur olhou para o relógio grande por cima do estande de livros. Tinha cinco minutos para comprar a passagem e pegar o trem. Não, não podia se decidir tão depressa, não queria voltar para casa por enquanto. Fora informado na ocasião da morte da mãe e agora, iludindo a si mesmo, tentava atribuir sua indecisão ao fato de que não mais iria encontrá-la em casa. Afastou-se do guichê e foi parar diante do estande de livros, revistas e jornais, olhando para um cartaz: A Grande Ofensiva Começa. Gostava da multidão ao seu redor, o movimento, a obscuridade. Quando uma moça roçou nele, lembrou-se novamente do comentário de Hicks: Vai tirar uma saia esta noite, garoto?
Arthur ficou vermelho e afastou-se abruptamente. A fim de passar o tempo, entrou num café e pediu uma caneca de chá e um bolinho. Por que disfarçar? Ele queria mesmo ver Hetty. Estava tão fraco, tão cansado, tão dominado pela angústia e anseio que queria estar com Hetty, sentir seus joelhos contra os dela, abraçá-la. Hetty realmente o amava. Ela compreenderia, teria compaixão, haveria de confortá-lo. Uma ternura intensa invadiu-o, as lágrimas afloraram a seus olhos. Nada mais importava. Ele tinha de ver Hetty.
Deixou a estação por volta de uma hora e foi andando para College Row. Avançou lentamente pela ladeira suave, em parte porque estava extenuado, mas principalmente porque sentia medo. O simples pensamento de que tornaria a ver Hetty fazia com que o sangue deixasse seu coração. Estava angustiado de expectativa ao chegar ao número 17. Ficou parado no outro lado da rua, olhando para a casa dos Todds. Agora que estava ali, sentia pavor de entrar, uma porção de pensamentos infelizes o continha. Como ficariam satisfeitos em vê-lo, entrando daquele jeito, inesperadamente, direto da prisão! Não, ele não tinha coragem de subir aqueles degraus e tocar a campainha.
Arthur ficou parado ali, numa agonia de indecisão, ansiando com toda a força de sua alma ter a sorte de encontrar Hetty a entrar ou sair da casa. Mas não houve o menor sinal de Hetty. Por volta das três horas, uma fraqueza intensa tornou a dominá-lo e ele sentiu que precisava sentar-se. Seguiu para o Town Moor, que ficava no alto da College Row, procurando um dos bancos sob as árvores. Disse a si mesmo que voltaria mais tarde e retomaria sua vigília. Atravessou a rua, os pés quase se arrastando. Na esquina, esbarrou com Laura Millington.
O inesperado do encontro foi desconcertante, fazendo com que Arthur prendesse a respiração. A princípio, Laura não o reconheceu. O rosto dela, exibindo uma expressão de preocupação, quase apatia, permaneceu inalterado. Ela fez menção de seguir adiante. E foi então que o reconheceu.
- Arthur! É você!
Os olhos dele permaneceram fixados na calçada.
- Sou eu mesmo. ..
Laura observou-o atentamente, a expressão alterada, arrancada abruptamente de sua melancolia.
- Já viu meu pai?
Arthur sacudiu a cabeça atordoado, ainda evitando os olhos dela. O desespero na atitude de Arthur provocou uma angústia renovada em Laura, Profundamente comovida, ela aproximou-se dele e encostou a mão em seu braço.
- Você tem de entrar, Arthur. Estou indo para casa agora. Parece estar passando mal.
- Não - murmurou Arthur, afastando-se infantilmente. - Eles não querem a minha presença.
- Mas tem de ir!
E, como uma criança, Arthur cedeu, deixando que Laura o conduzisse para a casa. Ele tinha o horrível pressentimento de que a qualquer momento poderia desatar a chorar.
Laura tirou uma chave da bolsa, abriu a porta e os dois entraram na sala de estar dos fundos, que Arthur tão bem conhecia. A visão de sua cabeça raspada arrancou uma exclamação de compaixão de Laura. Ela pegou-o pelos ombros e fê-lo sentar numa cadeira ao lado do fogo. Arthur ficou sentado ali, exibindo a palidez da prisão, as roupas folgadas no corpo emagrecido pela prisão, enquanto Laura seguia apressadamente para a cozinha. Ela não disse nada a Minnie, a criada, preparando pessoalmente uma bandeja com chá e torradas quentes, com manteiga. Ficou observando-o, com uma expresão preocupada, enquanto ele tomava o chá e comia uma torrada.
- Coma tudo - disse Laura, gentilmente.
Arthur obedeceu. Sua intuição lhe disse prontamente que nem Hetty nem o pai estavam na casa. Por um momento, sua mente desligou-se de Hetty. Levantou os olhos e fitou Laura pela primeira vez. E murmurou, humildemente:
- Obrigado, Laura.
Ela não respondeu. Mas novamente a compaixão estampou-se em seu rosto, como se um brilho súbito de fogo a iluminasse. Arthur não pôde deixar de pensar que ela parecia bem mais velha, com olheiras, vestida descuidadamente, os cabelos arrumados negligentemente. Mesmo em seu torpor, a mudança em Laura deixou-o atónito.
- Tem alguma coisa errada, Laura? Por que está aqui sozinha?
Desta vez, uma emoção profunda e angustiante aflorou à superfície dos olhos de Laura.
- Não, não tem nada errado. - Ela inclinou-se e atiçou o fogo. - Estou passando esta semana com o pai. vou deixar a casa de Hilltop fechada por algum tempo.
- Vai fechar a casa?
Ela assentiu, acrescentando em seguida, em voz baixa:
- Stanley foi para Bourmouth, a fim de passar uma temporada numa casa de repouso. Você provavelmente não soube que ele sofreu um choque por causa da explosão de uma granada. vou me encontrar com ele assim que acabar de acertar tudo por aqui.
Arthur fitou-a com uma expressão desamparada; seu cérebro recusava-se a funcionar.
- E a fábrica, Laura? - indagou Arthur, finalmente.
- Já está tudo acertado. Esse é o problema menor, Arthur.
Ele continuou a fitá-la com uma expressão de espanto. Aquela não era a Laura que sempre conhecera. A tristeza no rosto dela era surpreendente, assim como a boca descaída nos cantos, numa expressão irónica, ao mesmo tempo angustiada. Um instinto profundo e misterioso, nascido de seu próprio sofrimento, fez Arthur sentir um espírito magoado, por trás da crosta exterior de indiferença. Mas ele não podia definir o problema naquele momento, pois a fadiga insuportável tornava a dominá-lo. Houve um longo silêncio entre os dois.
- Lamento estar sendo um problema para você, Laura - murmurou Arthur, depois de algum tempo.
- Você não é nenhum problema.
Arthur hesitou, sentindo que ela poderia querer agora que ele fosse embora.
- Mas agora que estou aqui, pensei... pensei que poderia esperar um pouco para ver Hetty.
Outro silêncio. Arthur podia sentir que Laura o observava atentamente. Ela finalmente levantou-se do tapete diante da lareira, onde estivera ajoelhada, olhando para o fogo, foi postar-se diante dele.
- Hetty não está mais aqui, Arthur.
- Como?
- Ela não vive mais aqui. - Laura sacudiu a cabeça. - Está agora em Farnborough... onde Dick Purves está.
- Mas o que...
Arthur não continuou a falar, sentindo uma pontada no coração.
- Você ainda não sabe, mas ela casou com Dick Purves em janeiro. Os olhos de Laura desviaram-se, ela pôs a mão no ombro de Arthur. - Foi um casamento repentino... quando deram a Victoria Cross a Dick Purves, logo depois que sua mãe morreu, logo depois do inquérito. Ele recebeu a condecoração por derrubar o Zeppelin. Nunca imaginamos, Arthur... Mas Hetty estava decidida. A notícia do casamento saiu em todos os jornais.
Arthur ficou perfeitamente imóvel, numa terrível apatia.
- Então Hetty está casada.
- Isso mesmo, Arthur.
- Nunca pensei nisso. - Ele engoliu em seco, o espasmo parecendo percorrer todo o seu corpo. - De qualquer forma, não creio que ela fosse querer ter alguma coisa comigo.
Sensatamente, Laura não fez qualquer tentativa de consolá-lo. Ele fez um esforço para se controlar e disse, a voz trémula:
- Acho que devo ir agora.
- Ainda não, Arthur. Parece que continua indisposto.
- O pior de tudo... posso sentir... - Ele levantou-se, tremendo. Oh, Deus, como estou me sentindo esquisito! A cabeça parece que vai estourar. Como posso chegar à estação?
Arthur levou a mão ao rosto, completamente aturdido. Laura deu um passo para a frente, interceptando-o a caminho da porta.
- Não vai sair agora, Arthur. Não posso deixar. Ainda não está em condições. Deve se deitar um pouco.
- Você tem boas intenções, Laura - disse Arthur, a voz engrolada, balançando ligeiramente. - Eu também tenho boas intenções. Ambos temos boas intenções.
Ele fez uma pausa, soltando uma risada, antes de arrematar:
- Só que não podemos fazer nada.
Laura tomou uma decisão. Passou o braço pelos ombros de Arthur, determinada.
- Eu me recuso a permitir que você saia nesse estado, Arthur. Vai se deitar... aqui. .. agora... E não diga mais nada. Explicarei tudo ao pai quando ele chegar.
Amparando-o, Laura ajudou-o a ir para o vestíbulo e subir a escada. Acendeu o fogo de gás em seu quarto, ajudou-o a tirar as roupas e se deitar, calmamente, mas firmemente. Depois de acabar, encheu uma garrafa de água quente e pôs nos pés dele. Fitou-o por um momento, ansiosamente.
- Como está se sentindo agora?
- Melhor - respondeu Arthur, sem estar realmente se sentindo melhor. Ficou deitado de lado, enroscado, compreendendo que estava no quarto
de Hetty, na cama de Hetty. Mas que coisa engraçada! Ele estava mesmo na cama de Hety! Vai tirar uma saia esta noite, hem, garoto? Ele queria rir, mas não podia. A recordação provocou-lhe outra pontada no coração.
Eram por volta de cinco horas da tarde. O sol, rompendo a camada de nuvens, entrou enviesado no quarto, fazendo o papel de parede reluzir. No pequeno jardim dos fundos, alguns tordos estavam cantando. Tudo era muito quieto e irreal, a maciez da cama de Hetty era irreal, Laura devia ter se retirado e o anseio desconhecido em seu peito doía terrivelmente.
- Tome isso, Arthur. Vai ajudá-lo a dormir.
Laura voltara. Como ela estava sendo bondosa! Soerguendo-se, apoiado no cotovelo, Arthur tomou a tigela de sopa que Laura lhe trouxera. Ela sentou-se ao seu lado, na beira da cama, preenchendo o quarto silencioso com sua presença real. As mãos que seguravam a bandeja para Arthur eram alvas e macias. Ele nunca pensara muito em Laura antes, nunca se preocupara com ela. Mas agora a bondade de Laura o subjugava. Por pura gratidão, ele gritou:
- Por que se incomoda comigo, Laura?
- Se eu fosse você, Arthur, não me preocuparia com nada. Tudo vai acabar bem.
Ela pegou a tigela vazia e pôs na bandeja. Fez menção de se levantar. Mas Arthur estendeu a mão e conteve-a, como uma criança com medo de ficar sozinha.
- Não me deixe, Laura.
- Está bem.
Ela tornou a sentar-se, pôs a bandeja na mesinha-de-cabeceira. Começou a afagar gentilmente a testa de Arthur.
Ele soluçou, depois desatou a chorar. No mais completo abandono, aninhou-se contra ela, o rosto comprimido contra o dela, apertando-se contra o seu corpo. O conforto de seu rosto contra a maciez de Laura era indescritível, uma intensa serenidade fluía por todo o seu corpo, como leite morno tomado na hora de dormir.
- Laura. .. Laura...
Um fogo de indulgência ardeu em Laura subitamente. A atitude de Arthur, sua necessidade de conforto, a pressão de sua cabeça contra a parte inferior do corpo dela, tudo isso despertou uma tremenda tensão em Laura. Olhando rigidamente através do quarto, ela divisou seu próprio rosto no espelho. Uma repulsa imediata invadiu-a. Isso não, pensou ela, desesperada, não, não essa dádiva. Ela tornou a olhar para Arthur. Ele estava esgotado, os soluços haviam cessado, chegara à beira do sono. Os lábios estavam entreabertos, a expressão indefesa, desamparada, exposta. Laura podia ver os ferimentos claramente. Havia algo de infinitamente triste e expectante no jeito flácido como as pálpebras se fechavam, no queixo estreito.
Lá fora, os tordos pararam de cantar e o princípio da escuridão na noite invadiu o quarto. Laura continuava sentada ali, embora Arthur estivesse dormindo, sustentando-lhe a cabeça. A expressão no rosto dela era patética e linda.
Há duas semanas que Arthur estava doente, na casa dos Todds, incapaz de se levantar. O médico a quem Laura chamara teve uma suspeita alarmante de anemia aplástica. Era o Dr. Dobbie, de College Row, l, amigo íntimo da família Todd, que conhecia a história de Arthur e por isso comportou-se com bondade e discrição. Efetuou diversas contagens sanguíneas e tratou Arthur com injeções intramusculares de manganês. Mas foi Laura e não o Dr. Dobbie quem conseguiu recuperar Arthur. Havia uma qualidade rara, um altruísmo intenso, na atenção que ela dedicava a Arthur. Fechara a casa em Hilltop e dedicava todo o seu tempo a cuidar de Arthur, preparando sua comida, lendo para ele ou simplesmente ficando sentada ao lado da cama, num companheirismo silencioso. Era um estranho comportamento para uma mulher naturalmente tão indiferente, tão aparentemente egocêntrica. Talvez fosse uma expiação, o aproveitamento da última oportunidade de redenção, o desejo intenso de provar que havia alguma coisa de bom nela. Por causa disso, cada passo de Arthur a caminho da recuperação, cada palavra de gratidão que ele dizia, tudo deixava Laura imensamente feliz. Cuidando dos ferimentos dele, ela curava os seus.
O pai não interferia. Não era da natureza de Todd interferir. Além do mais, ele sentia pena de Arthur, que tão desastrosamente tentara nadar contra a correnteza. Ele aparecia no quarto duas vezes por dia, ficava de pé, tentando conversar, meio constrangido, com pausas frequentes, limpando a garganta. Numa tentativa de ficar à vontade, ficava se equilibrando ao lado da cama, primeiro sobre uma perna, depois sobre a outra, como um papo-roxo velho e cansado. O jeito óbvio como se desviava dos assuntos perigosos, a Neptune, a guerra, Hetty, de qualquer coisa que pudesse ser dolorosa para Arthur, era comovente e cómico. E ele sempre concluía, encaminhando-se para a porta:
- Não há pressa, meu rapaz. Pode ficara aqui por tanto tempo quanto lhe for necessário.
Gradativamente, Arthur foi melhorando, saiu do quarto, depois começou a fazer pequenos passeios com Laura. Evitavam os lugares mais apinhados e geralmente atravessavam o Town Moor, o parque no alto da ladeira, de onde se podia avistar, num dia claro, as Otterburne Hills. Embora ainda não estivesse consciente do quanto devia a Laura, de vez em quando ele se virava para ela espontaneamente.
- Está sendo muito boa comigo, Laura.
- Não é nada - respondia ela, invariavelmente.
Era uma manhã de sol, extremamente agradável. Os dois estavam sentados há vários minutos num banco na parte mais alta do Moor.
- Não sei o que eu teria feito sem você - murmurou Arthur, suspirando. - Acho que eu teria desmoronado... moralmente, é claro. Não sabe como é grande a tentação, Laura, de largar tudo.
Ela não respondeu.
- Mas, de alguma forma, tenho a sensação de que você conseguiu me recuperar, deu um jeito de transformar-me outra vez num homem. Sinto agora que posso enfrentar todas as coisas. Mas não é justo que eu tenha todo o benefício e você nada receba.
Enquanto o vento soprava ao seu redor, Arthur contemplou o rosto pálido de Laura, o corpo numa imobilidade passiva.
- Sabe o que você me lembra, Laura? - disse ele, subitamente. - Uma das Madonas de Rafael num livro que tenho em casa.
Laura ficou vermelha terrivelmente, angustiosamente, o rosto subitamente distorcido.
- Não diga bobagem - disse ela asperamente, levantando-se e afastando-se rapidamente.
Arthur ficou olhando para ela, completamente aturdido. Depois, levantou-se e seguiu-a.
À medida que foi recuperando as forças, ele pôde pensar no pai, Sleescale, em voltar. Tinha de voltar, sua determinação assim o exigia. Embora a procrastinação e a timidez estivessem em seu sangue, ele possuía uma estranha intensidade, que lhe dava forças. Além do mais, a prisão deixara-o calejado, aumentara seu senso de opressão e injustiça, que agora ativavam sua vida.
Uma noite, ao final da terceira semana, eles estavam jogando besigue, como faziam frequentemente, depois do jantar. Arthur pegou suas cartas e, abruptamente, declarou:
- Tenho de voltar a Sleescale em breve, Laura.
Nada mais foi dito. Agora que anunciara sua intenção, Arthur sentiu-se tentado a protelar a data de sua partida. Mas na manhã de 16 de maio, quando desceu para o café da manhã, depois que Todd partira para o escritório, uma notícia no Courier atraiu-lhe a atenção. Ficou parado ao lado da mesa com o jornal nas mãos, completamente imóvel. Era uma notícia pequena, de apenas seis linhas, perdida em meio à massa de notícias espetaculares da guerra. Mas Arthur parecia considerá-la de extrema importância. Ele sentou-se, com os olhos ainda fixados nas seis linhas.
- É alguma coisa importante? - perguntou Laura, observando-o.
Houve um silêncio; depois, Arthur disse:
- Abriram o novo túnel na Paradise. Passaram pela barreira há três dias. Encontraram os corpos dos dez homens e o inquérito será realizado amanhã.
Todo o impacto do desastre tornou a invadi-lo, como uma onda que recuara apenas momentaneamente, para retornar com uma força ainda maior. A mente de Arthur contraiu-se sob a investida. E ele disse, lentamente, os olhos ainda no jornal:
- Trouxeram alguns dos parentes da França... para a identificação oficial. Tenho de voltar também. Partirei hoje... esta manhã.
Laura não disse nada. Estendeu o café para Arthur. Ele tomou, mecanicamente, confrontado outra vez pela situação que alterara e arruinara sua vida. O problema do qual não havia escapatória. Tinha de voltar agora, tinha de voltar de qualquer maneira.
Terminando o café, Arthur olhou para Laura. Ela interpretou aquele olhar, a ideia fixa que o compelia, acenou com a cabeça, imperceptivelmente. Arthur levantou-se, foi para o vestíbulo, pôs o casaco e o chapéu. Não tinha bagagem para arrumar. Laura acompanhou-o até a porta.
- Prometa-me, Arthur - disse ela, em voz destituída de qualquer emoção - que não fará nada estúpido.
Ele sacudiu a cabeça. Um silêncio. Depois, impulsivamente, pegou as mãos de Laura.
- Não sou muito bom para agradecer, Laura. Mas você sabe como me sinto. Voltarei a vê-la. Um dia desses, muito em breve. Talvez possa então fazer alguma coisa por você.
- É possível.
A atitude passiva de Laura deixou-o um tanto desconcertado. Ele ficou parado no vestíbulo estreito, como se não soubesse direito o que fazer. Soltou as mãos dela.
- Adeus, Laura.
- Adeus.
Arthur virou-se e saiu para a rua. Uma rajada de vento arremessou a chuva em cima dele, por toda a descida da College Row. Ele chegou à estação 20 minutos depois das 10 horas e comprou a passagem para Sleescale.
O trem local das 10:15 estava quase vazio e Arthur ficou sozinho num compartimento de terceira classe. Enquanto o trem saía de Tynecastle, passando pela sequência interminável de estações, pelos pontos de referência familiares, atravessando a Ponte do Canal e o Túnel Brent, finalmente aproximando-se de Sleescale, Arthur experimentou uma estranha sensação de finalmente retornar à consciência.
Eram onze e meia quando ele desceu na plataforma de Sleescale. Outro passageiro desembarcou naquele exato momento do final da composição. Quando os dois convergiram para o coletor das passagens, Arthur descobriu com um súbito aperto no coração que o outro passageiro era David Fenwick. David reconheceu Arthur imediatamente, mas não deu qualquer sinal. Também não tentou evitá-lo. Encontraram-se e passaram pelo corredor estreito para a rua.
- Você voltou para o inquérito - disse Arthur, em voz baixa, sentindo-se compelido a falar.
David assentiu, em silêncio. Ele foi seguindo pela Freehold Street, em seu uniforme desbotado, acompanhado por Arthur. Uma chuva miúda, vinda do mar, encontrou-os na esquina. Juntos, começaram a subira Cowpen Street.
Arthur lançou um olhar aturdido para David, intimidado pelo silêncio dele, pelo controle firme de seu rosto. Mas David falou dali a um momento, como se estivesse fazendo um esforço para mostrar-se tranquilo e à vontade:
- Voltei há dois dias. Minha mulher está vivendo em Tynecastle, com a família dela. E meu filho pequeno também.
- Isso é ótimo.
Arthur sabia agora por que David estava no trem. Mas não podia encontrar mais nada para dizer. Houve outro silêncio, até chegarem a Inkerman Terrace e às proximidades de sua antiga casa, quando David parou abruptamente. Reprimindo a amargura secreta que o dominava, ele disse:
- Pode entrar por um minuto? Tenho uma coisa que gostaria de lhe mostrar.
Invadido por uma emoção desconhecida, intensa e angustiante, Arthur seguiu-o pela calçada quebrada, entrando na casa nº 23. As cortinas estavam arriadas na sala da frente, mas Arthur pôde divisar dois caixões, ainda abertos, bem no meio. Os sentidos de Arthur fervilhavam dentro dele, como ondas se esbatendo contra um braço de mar estreito. com o coração descompassado, ele aproximou-se do primeiro caixão e seus olhos se encontraram com os olhos mortos de Robert Fenwick. O cadáver de Robert já tinha quatro anos: o rosto estava perfeitamente preservado, muito branco, a pele caindo sobre os ossos encolhidos. Recuando, Arthur cobriu os olhos. Não podia fitar aqueles olhos mortos, os olhos da vítima, impassíveis, mas acusadores. Queria sair dali, tremia todo. Mas não podia escapar. Estava atordoado, desamparado!
David tornou a falar, ainda se esforçando para reprimir a amargura em sua voz:
- Encontrei isso no corpo de meu pai. Ninguém mais viu. Lentamente, Arthur tirou as mãos do rosto. Olhou para o papel na mão de David. Depois, num movimento súbito, pegou-o. Era a carta de Robert; e Arthur leu-a. Por um segundo, ele pensou que ia morrer.
- Isso esclarece tudo finalmente - disse David, a voz tensa.
Arthur ficou olhando para a carta. Estava terrivelmente pálido, dava a impressão de que poderia cair a qualquer momento.
- Não tenciono levar o caso adiante - acrescentou David, num tom decidido. - Mas achei que você deveria saber.
Arthur desviou os olhos da carta e de David. Estendeu a mão, amparando-se na parede. O interior da sala parecia girar ao seu redor. Era como se a acumulação de todos os seus sofrimentos, suspeitas e medos se abatesse sobre ele, num tremendo golpe. Pareceu finalmente descobrir a presença de David. Dobrou a carta e devolveu-a. David tornou a guardar a carta no bolso interno da túnica. Depois, em voz trémula, Arthur disse:
- Pode deixar tudo comigo. Farei com que meu pai saiba.
Um calafrio percorreu-lhe o corpo. Sentindo que precisava sair de qualquer maneira, respirar um pouco de ar fresco, ele virou-se às cegas e saiu da casa.
Subiu para o Law, através da chuva forte que agora caía. Mas a chuva atingia-o sem qualquer efeito. Arthur caminhava numa espécie de transe. O papel dobrado que por quatro anos ficara encostado no coração parado de Robert Fenwick deixava tudo claro para Arthur, confirmava tudo o que sempre desconfiara e temera. Uma raiva intensa dominava Arthur, queria se encontrar com o pai imediatamente.
Uma súbita convicção invadiu-o. Estava tudo predeterminado, ele teria de ver aquela carta de qualquer maneira. O significado da carta se expandia e ampliava, assumia muitos e insondáveis sentidos, todos diferentes além da sua compreensão no momento. Mas tudo levava para o mesmo fim. A culpa de seu pai.
Ele subiu os degraus da casa e tocou a campainha. Tia Carrie abriu a porta pessoalmente. Ela ficou imóvel, emoldurada pela porta, fitando-o com olhos arregalados e surpresos. Depois, com um grito de felicidade e compaixão, ela enlaçou-o pelo pescoço.
- Oh, Arthur, meu querido - soluçou Tia Carrie. - Como estou contente em vê-lo! Estava pensando... não sabia... Oh, meu pobre menino, você não está com um bom aspecto... está com uma aparência horrível. .. mas é maravilhoso que tenha voltado!
Controlando-se com dificuldade, Tia Carrie deixou-o entrar, ajudou-o a tirar o casaco, pegou o chapéu que estava encharcado. Pequenas frases de afeição e compaixão saíam a todo instante de seus lábios. O prazer que ela demonstrava pela volta de Arthur era patético. Ela se agitava em torno dele, as mãos nervosas, os lábios contraídos e trémulos.
- Vai tomar alguma coisa agora, Arthur querido. Imediatamente. Um copo de leite, um biscoito, qualquer coisa...
- Não, obrigado, Tia Carrie.
Arthur parou a alguns passos da sala de jantar, para onde ela o estava conduzindo.
- Meu pai já voltou?
- Ainda não, Arthur - balbuciou Tia Carrie, desconcertada com o estranho tom da voz dele.
- Ele virá almoçar em casa?
Tia Carrie deixou escapar uma exclamação de surpresa. Contraiu os lábios mais firmemente, deixando-os descair nos cantos, nervosamente.
- Claro, Arthur. Ele disse que estaria em casa por volta de uma hora. Sei que ele tem muitos problemas para resolver esta tarde. Providências para o funeral. Tudo está sendo feito da melhor forma possível.
Arthur não fez qualquer esforço de responder. Olhou ao redor, observando as mudanças que haviam ocorrido desde a sua partida: os novos móveis, os novos tapetes e cortinas, os novos acessórios elétricos. Lembrou-se de sua cela, os sofrimentos na prisão. Um tremor de repulsa percorreu-lhe o corpo diante de tanto luxo, um ódio intenso contra o pai. Uma emoção nervosa, uma espécie de êxtase como nunca conhecera antes, dominou-o. Sentiu-se forte. Apercebeu-se do que queria fazer e de um anseio quase angustiante em fazer logo de uma vez. Virou-se para Tia Carrie e disse: - vou subir por algum tempo.
- Está bem, Arthur - balbuciou ela, mais nervosa do que nunca. - O almoço será servido à uma hora. .. e será um almoço maravilhoso.
Ela hesitou por um instante, mas acabou acrescentando, num sussurro de aflição:
- Você não não deve transtornar seu pai, querido. Ele está... com muitos problemas... anda um pouco irritado nos últimos dias...
- Irritado... - repetiu Arthur.
Ele parecia tentar sondar o significado da palavra. Depois, afastou-se e subiu. Só que não foi para o seu quarto, mas sim para o gabinete do pai, um lugar considerado tabu desde os dias de sua infância, uma sala sagrada e proibida. Bem no meio da sala estava a escrivaninha do pai, grande, de mogno, com alças e fechaduras de latão mais sagrada e mais proibida do que a própria sala. A hostilidade fazia o rosto de Arthur arder, enquando contemplava a escrivaninha. Ali estava, imensa e sólida, impregnada com a personalidade de Barras, uma coisa odiosa para Arthur, o símbolo de tudo que o destruíra.
Num gesto súbito, ele pegou o atiçador que estava ao lado da lareira e avançou para a escrivaninha. com uma violência deliberada, arrebentou a tranca e examinou o conteúdo da gaveta de cima. Depois, arrebentou a outra tranca, examinou a gaveta seguinte; uma gaveta depois da outra, ele foi arrombando e vasculhando sistematicamente.
A escrivaninha estava atulhada com os comprovantes da riqueza do pai. Recibos de ações, notas de câmbio, uma lista de hipotecas importantes. O livro encadernado em couro, escrito com a letra precisa do pai, relacionando as propriedades e aluguéis. Um outro livro, com uma pequena etiqueta, Meus Quadros, relacionando os preços de compra, ao lado da data. Um terceiro livro, relacionando os investimentos. Rapidamente, Arthur examinou as colunas. Tudo parecia sólido, de liquidez imediata, em pequenas parcelas, pelo menos 200 mil libras em investimentos excepcionais. Num acesso de fúria, Arthur arremessou o livro para longe. Duzentas mil libras: a magnitude do total, a complacência que se traduzia nas fileiras e mais fileiras de cifras, tudo o irritava profundamente. Dinheiro, dinheiro, dinheiro; dinheiro obtido à custa do sangue e suor de muitos homens. Os homens não tinham importância; era o dinheiro que importava, dinheiro, dinheiro, dinheiro. Morte, destruição, fome, guerra... tudo isso nada significava, contanto que o dinheiro entrasse a rodo.
Arthur abriu outra gaveta. Um espírito vingativo dominava-o agora. Queria mais, muito mais do que a evidência do dinheiro. Tinha a terrível convicção de que a planta da Old Neptune ali estava. Conhecia o pai, um homem marcado pelo estigma do lucro. Por que nunca pensara nisso antes? O pai jamais destruía documentos ou papéis. Para ele, era uma impossibilidade física, uma terrível agonia, destruir documentos ou papéis. Se a carta de Robert Fenwick não mentia, a planta existia e estava ali.
E o conteúdo de uma gaveta depois de outra foi se espalhando pelo chão. E lá estava, no fundo da última gaveta, um rolo fino de papel apergaminhado, bastante sujo e parecendo não ter qualquer importância. Perfeitamente insignificante. Um grito alto irrompeu dos lábios de Arthur. Nervosamente, ele desenrolou a planta, ajoelhando-se para examiná-la no chão. A planta mostrou-lhe imediatamente que as antigas escavações estavam perfeitamente indicadas, correndo paralelas ao Dyke nos níveis inferiores e chegando, em determinados pontos, a pouco mais de meio metro. Arthur examinou os cálculos feitos pela letra do pai. Era a prova final, a última iniquidade.
Ele levantou-se, enrolando a planta lentamente. Toda a estrutura do embuste colossal erguia-se agora diante de seus olhos, numa visão atormentada. Ele ficou parado no meio da sala proibida, com a planta nas mãos, os olhos ardendo, o rosto ainda exibindo a palidez da prisão. E como se estivesse consciente de si mesmo, o prisioneiro, segurando a prova da culpa de seu pai, como se estivesse achando engraçado aquele paradoxo da justiça humana, os lábios lívidos se entreabriram num sorriso. Um paroxismo de riso histérico convulsionou-o. Queria esmagar, queimar, destruir, queria arrebentar toda a sala, arrancar os quadros, espatifar as janelas. Queria punição, recompensa, justiça.
Controlou-se com um grande esforço, virou-se e desceu. Ficou parado no vestíbulo a esperar, os olhos fixados na porta da frente. Olhava para o relógio de vez em quando, ouvindo as batidas lentas e inexoráveis dos segundos a passarem, numa febre de impaciência. Mas finalmente teve um sobressalto. Quando faltavam 25 minutos para uma hora, o carro chegou e houve o som de passos rápidos e vigorosos. A porta se abriu e o pai entrou no vestíbulo. Um momento de completa imobilidade. Os olhos de Arthur encontraram-se com os olhos do pai.
Arthur deixou escapar um rápido soluço. Mal podia reconhecer o pai. A mudança em Barras era incrível. Estava mais corpulento, os contornos do corpo atenuados e flácidos, as bochechas descaindo, a barriga estofada, um rolo de gordura por trás do colarinho, a velha imobilidade estática suplantada por uma atividade febril. As mãos estavam ativas, mexendo num maço de jornais; os olhos estavam ativos, deslocando-se constantemente de um lado para outro, a fim de ver o que tinha para ser visto; a mente estava ativa, reagindo ansiosamente a todas as diversões da vida que eram triviais e frívolas. Ocorreu a Arthur, num relance terrível, que toda a tendência daquela atividade era reconhecer o presente, repudiar o passado, ignorar o futuro; o final do processo de desintegração. Ele continuou parado, de costas para a escada, enquanto o pai entrava no vestíbulo. Houve um momento de silêncio-.
- Então você voltou - disse Barras, finalmente. - É um acontecimento inesperado.
Arthur não disse nada. Observou Barras adiantar-se até a mesa, largar os jornais e alguns embrulhos pequenos que pendiam de seus dedos. Barras ficou arrumando as coisas sobre a mesa.
- Você sabe, é claro, que a guerra continua. Minhas opiniões não mudaram. Sabe que continuo a não querer aqui homens que se esquivam a cumprir seu dever para com a pátria.
Em tom contido, Arthur disse:
- Não me esquivei a cumprir meu dever. Estava na prisão.
Barras soltou uma exclamação brusca, arrumando e rearrumando as coisas na mesa.
- Foi você quem preferiu ir para a prisão, não é mesmo? E se não mudar de ideia, poderá voltar. Sabe disso, não e' mesmo?
Arthur respondeu:
- Tenho visto muitas coisas. A prisão é um bom lugar para se conhecer coisas.
Barras parou de arrumar as coisas e lançou um olhar furtivo para Arthur. Pôs-se a andar de um lado para outro do vestíbulo. Tirou do bolso do colete o relógio de ouro e verificou a hora. E depois disse, com uma hostilidade visível:
- Tenho um compromisso logo depois do almoço. E tenho duas reuniões esta noite. Este é um dia movimentado demais. Não tenho tempo a perder com você. Estou muito ocupado.
- Muito ocupado ganhando a guerra, pai? É isso o que está querendo dizer?
O rosto de Barras ficou vermelho. As artérias nas têmporas saltaram subitamente.
- É isso mesmo, já que prefere pôr as coisas desse jeito. Tenho feito tudo o que posso para ganhar a guerra.
Os lábios de Arthur se contraíram numa expressão amargurada. Uma onda imensa de emoção incontrolável dorninou-o.
- Não é de admirar que se sinta orgulhoso de si mesmo. É um patriota. Todos o admiram. Participa de comités, seu nome sai nos jornais, faz discursos sobre vitórias gloriosas, enquanto milhares de homens estão sendo massacrados nas trincheiras. E durante todo o tempo está ganhando dinheiro, milhares e milhares de libras, explorando os homens na Neptune, clamando que é pelo Rei e pelo país, quando na verdade é tudo para você mesmo. O problema é justamente esse. - A voz de Arthur era cada vez mais alta. - Não se importa com a vida ou com a morte. Só se preocupa consigo mesmo.
- Pelo menos me mantenho fora da prisão! - gritou Barras.
- Não tenha tanta certeza assim de que vai continuar de fora. - Arthur estava quase sufocando. - Tudo indica que pode estar na prisão muito em breve. E não vou ficar na prisão por você.
Barras parou de andar subitamente. Sua boca se entreabriu.
- O que está querendo dizer com isso? - disse ele, num tom de espanto total. - Está louco?
- Não - respondeu Arthur, com a maior veemência. - Não estou louco mas deveria estar.
Barras olhou atentamente para Arthur, depois desviou os olhos, dando de ombros, como se o filho fosse um caso perdido. Tornou a pegar o relógio, num gesto impaciente, verificando a hora com os olhos injetados.
- Tenho de ir agora - disse ele, as palavras se atropelando. - Tenho um compromisso importante logo depois do almoço.
- Não vá ainda, pai.
Arthur falou devagar, imóvel, envolvido por um terrível calor, consumido por seu terrível conhecimento.
- O quê...
Barras parou de repente, o rosto vermelho, já se encaminhando para a escada.
- Preste atenção ao que tenho a dizer, pai. Já sei de tudo agora sobre o desastre. Robert Fenwick escreveu um bilhete antes de morrer. Eu tenho esse bilhete. E sei que você foi o culpado.
Barras teve um sobressalto quase imperceptível. Um temor súbito parecia invadi-lo.
- O que foi mesmo que disse?
- Ouviu perfeitamente.
Pela primeira vez, uma expressão de culpa insinuou-se nos olhos de Barras.
- É mentira! Nego com toda veemência!
-Pode negar quanto quiser, mas acontece que descobri a planta da Old Neptune.
O rosto de Barras ficou completamente congestionado pelo sangue, os vasos do pescoço sobressaindo, escuros e grossos. Balançou por um momento, apoiando-se instintivamente na mesa do vestíbulo. E balbuciou:
- Você está louco. Perdeu o juízo. Não vou mais escutá-lo.
- Deveria ter destruído a planta, pai.
Subitamente, Barras perdeu o controle por completo. E gritou:
- O que você pode saber a respeito disso? Por que eu deveria destruir qualquer coisa? Não sou um criminoso. Fiz o que era melhor. E não vou me incomodar com isso. Está tudo acabado. Estamos em guerra. Tenho um compromisso às duas horas... uma reunião.
Ele agarrou-se ao corrimão, respirando desesperadamente, o rosto vermelho, tentando passar além de Arthur. Arthur não se mexeu.
- Pode ir para a sua reunião. Mas sei que matou aqueles homens. E vou providenciar para que haja justiça.
Na mesma voz ofegante, Barras disse:
- Tenho de pagar os salários. Tenho de fazer com que a mina dê lucro. Tenho de assumir os riscos que aparecerem. Somos todos humanos. Todos cometemos erros. Fiz o que era melhor. Está acabado, o assunto foi encerrado. Não podem reabrir o inquérito. Tenho de almoçar agora e sair para o meu encontro às duas horas.
Ele fez o gesto apressado e impaciente de estender a mão para o relógio. Não encontrou o bolso e esqueceu. Ficou olhando fixamente para Arthur, desmoronando por dentro.
Arthur sentiu um frio na alma. Aquele era seu pai, e o amara. Sua voz era impessoal e destituída de sentimento quando falou:
- Neste caso, vou apresentar a planta às autoridades competentes. Não pode objetar a que eu faça isso.
Barras comprimiu a testa com as mãos, como se quisesse conter o latejar do sangue.
- Não sei realmente do que está falando - resmungou ele, meio incoerente. - Esqueceu que tenho uma reunião, uma reunião importante. Tenho de me lavar e almoçar. A reunião será às duas horas.
Ele olhava agora para Arthur com uma expressão aturdida e infantil. Fez um gesto convulsivo e encontrou o relógio. Olhou para o relógio por um momento, depois deu alguns passos rápidos, passando por Arthur e começando a subir a escada.
Arthur continuou parado no vestíbulo, as feições contraídas. Sentia-se vazio e desolado. Preparara-se para uma luta, uma luta desesperada para se impor, exigir justiça. E não houvera qualquer luta, não houvera justiça. Agora, nunca haveria justiça. Ele não apresentaria a planta às autoridades. Era lamentável aquele arremedo do que fora outrora um homem... do que fora seu pai. Encolhido contra o corrimão, ele sentiu-se esmagado pela hipocrisia e implacabilidade da vida. Lá em cima, podia ouvir o pai se movimentando. Eram movimentos rápidos e irregulares, passos pesados. Ouviu água correndo. Depois, quando se virava para sair da casa, ouviu um baque sonoro.
Tornou a virar-se, escutando. Não havia mais sons. Silêncio absoluto. Ele subiu correndo, Tia Carrie estava correndo também. Correram para o banheiro e bateram na porta. Não houve resposta. Tia Carrie soltou um grito aterrorizado. Arthur afastou-se um pouco, arremessou-se contra a porta, arrombando-a.
Richard Barras estava caído no chão, o rosto meio coberto por espuma, o sabonete ainda em sua mão. Estava consciente, a respiração era profunda. Sofrera um derrame.
O dia 25 de novembro de 1918 foi claro e ensolarado. Os equipamentos na boca da Neptune estavam banhados pelo sol, os contornos suavizados, as roldanas falseando. Baforadas de vapor branco saíam da casa de máquinas, pairando cono pequenos halos por cima do poço.
Enquanto descia rapidamente a Cowpen Street, Arthur via a claridade que incidia sobre a mina, as roldanas faiscando, as baforadas de vapor pairando como pequenos halos. Sentia a radiância do dia fluindo sobre a Neptune, o futuro e ele próprio. Não pôde reprimir um sorriso.
Era incrível que pudesse sentir-se feliz novamente, que a influência sinistra da mina pudesse se dissolver, mudar, transformar-se em algo maravilhoso. Como ele duvidara, temera e sofrera durante aqueles anos da guerra! Isso mesmo, como sofrera! Sentira sua vida arruinada. Mas agora o futuro estendia-se à sua frente, claro e promissor, o resultado de todo o seu sofrimento, a recompensa.
Ele passou pelos portões abertos, atravessou o pátio de asfalto, em passos vigorosos, alertas. Estava bem vestido, mas discretamente, num terno cinza de tweed, colarinho engomado, gravata borboleta azul e branca. Embora parecesse mais velho do que os seus 26 anos, a expressão tinha uma estranha ansiedade.
Armstrong e Hudspeth estavam à sua espera no escritório, ambos de pé. Arthur acenou com a cabeça para os dois, pendurou o chapéu atrás da porta, alisou os cabelos louros e lisos, já escasseando no alto da cabeça. Depois, foi sentar-se atrás da mesa.
- Já está tudo acertado - disse ele. - Bannerman aprontou os últimos papéis ontem.
Armstrong limpou a garganta e disse, servilmente:
- Estou bastante satisfeito, senhor. E lhe desejo muito sucesso. Não há motivo para não desejar. Nós nos saímos muito bem na Neptune no passado.
- Mas não É nada em comparação com o que vamos fazer no futuro, Armstrong.
- Sim, senhor.
Armstrong lançou um olhar rápido para Arthur. Seguiu-se um breve silêncio e depois Arthur recostou-se na cadeira.
- Quero dizer algumas coisas, a fim de que possamos começar com tudo bem definido. Vocês estavam acostumados a meu pai dando ordens por aqui. Agora que ele está de cama, terão de se acostumar comigo. Essa é a primeira mudança... mas apenas a primeira. Teremos outras mudanças e podem estar certos de que serão muitas. É o momento certo para mudanças. A guerra acabou, não vai mais haver guerra. Quaisquer que tenham sido as nossas divergências de princípios durante a guerra, estamos todos de acordo na paz. Conquistamos a paz e vamos mantê-la. Paramos de destruir. Graças a Deus, vamos começar a reconstruir, para variar. É êxatamente o que vamos fazer aqui. Teremos uma mina segura, sem qualquer possibilidade de outro desastre. Estão compreendendo? Quero uma mina segura. Tem de haver justiça para todos. E para mostrar que estou falando sério...
Arthur fez uma breve pausa, antes de indagar.
- Quanto você está ganhando Armstrong? Quatrocentas libras, não é mesmo?
Armstrong ficou vermelho, baixando os olhos.
- Isso mesmo, senhor. Se acha que é demais...
- E você, Hudspeth? - perguntou Arthur. Hudspeth soltou uma risada brusca.
- Estou ganhando 250 libras há três anos, senhor. Parece que não consigo mais melhorar.
- Pois os dois vão melhorar agora - declarou Arthur. - Você passa para 500 libras, Armstrong, a contar do primeiro dia do mês passado. E você passa para 350 libras, Hudspeth, a partir da mesma data.
Armstrong ficou ainda mais vermelho e balbuciou, agradecido:
- Devo dizer que é muita generosidade sua, senhor.
- É isso mesmo - acrescentou Hudspeth, os olhos opacos finalmente brilhando.
- Então está acertado. - Arthur levantou-se abruptamente. - Quero os dois de prontidão esta manhã. Mr. Todd deve chegar de Tynecastle por volta das 11 horas. Vamos fazer uma inspeção completa. Entendido?
- Mas claro, Mr. Barras!
Armstrong sacudiu a cabeça vigorosamente e depois saiu, acompanhado por Hudspeth. Arthur ficou sozinho na sala. Foi até a janela e ficou parado ali por um momento, observando o pátio ensolarado da mina: homens cruzavam de um lado para outro, vagonetes corriam pelos trilhos, uma locomotiva jogava vapor para o ar, arrogantemente. Os olhos dele se dilataram, indicando a emoção que o dominava. Ele pensou: Não sofri por nada. vou mostrar-lhes agora. Minha oportunidade finalmente chegou.
Ele voltou à mesa, sentou-se e pegou uma pasta com contas e faturas na gaveta de cima, do lado esquerdo. Aquelas faturas não eram novidade para ele, mas jamais haviam deixado de chocá-lo. Vigas ruins, tijolos ordinários, estacas fracas, os piores materiais, comprados onde quer que fossem mais baratos. Os custos de operação haviam sido reduzidos a quase nada. Tudo sempre um pouco além dos regulamentos. Até mesmo o cabo de reserva já tinha dez anos de idade e fora comprado de segunda mão, numa venda de massa falida. Tudo obra de seu pai. E era justamente o que o pai fizera que ele tinha agora de consertar.
Ainda estava sentado à mesa, trabalhando e fazendo cálculos, quando Saul Pickings, com 74 anos e ainda vigoroso, meteu a cabeça pela porta e anunciou a chegada de Adam Todd. Arthur levantou-se imediatamente e foi apertar a mão de Todd, genuinamente contente por vê-lo. Todd mudara muito pouco, continuava taciturno e reservado, os olhos um tanto amarelados, ainda recendendo a alho. Sentou-se ao lado da mesa, em resposta ao convite de Arthur. Não tinha personalidade ou presença, simplesmente estava ali.
Um breve silêncio. Depois, Arthur empurrou a pasta na direção de Todd.
- Dê uma olhada nisso.
Todd examinou os documentos, umedecendo o polegar na ponta da língua, lento e metódico.
- São negócios vantajosos - disse ele, finalmente.
- Negócios vantajosos? Não se trata exatamente disso. Todos os materiais são de qualidade inferior.
O velho Todd não disse nada, mas Arthur percebeu que ele concordava. Baixando a voz cuidadosamente, Arthur acrescentou:
- vou ser bastante franco, Mr. Todd. Afinal, sabe de tudo. Advertiu meu pai. Mas não precisará me advertir. vou endireitar tudo. Transformarei a Neptune numa mina segura!
- Isso é ótimo, Arthur - disse Todd, os olhos fixados na mesa. - Tem poderes para cuidar de tudo, não é mesmo?
- Bannerman já tomou todas as providências necessárias. Estou agora investindo no controle da mina. Vamos descer pela mina esta manhã. Vai me apresentar sugestões, como fazia com meu pai. A diferença é que eu vou adotá-las.
- Está certo, Arthur.
vou substituir toda essa porcaria. vou retirar todas as vigas podres da mina, queimá-las, mudar todo o trabalho de alvenaria. Usarei vigas de aço no novo túnel, cimentarei o teto, farei um novo sistema de transporte.
- Isso vai custar um bocado de dinheiro.
- Dinheiro! - Arthur soltou uma risada brusca. - O dinheiro entrou a rodo nesta mina durante a guerra... como a água que se despejou no desastre. vou gastar uma parte desse dinheiro... até mesmo todo ele, se for necessário. vou fazer uma nova Neptune. E não vou me ater ao aspecto da segurança. vou mostrar como se pode tirar o melhor dos homens. vou instalar banheiros, vestiários, armários, tudo o que for necessário.
- Estou entendendo, Arthur. Arthur levantou-se abruptamente.
- Pois então vamos embora.
Visitaram o pátio, a casa de máquinas e a sala das bombas. E depois desceram. Acompanhados por Armstrong e Hudspeth, fizeram uma inspeção completa, acima e abaixo da superfície. Conversaram, discutiram, experimentaram. Arthur impunha a sua vontade a cada vez e sua decisão era sempre a melhor.
Era uma hora da tarde quando voltaram ao escritório. Todd parecia um pouco cansado. Por sua própria sugestão, tomou um pequeno refresco. Depois disso, pareceu menos cansado. Ficou fazendo cálculos por um longo tempo, o lápis a deslizar sobre o bloco. Finalmente levantou os olhos e perguntou, lentamente:
- Tem uma ideia do custo aproximado de tudo isso?
- Não - respondeu Arthur, num tom de absoluta indiferença.
- Alguma coisa em torno das cem mil libras.
- Isso comprova como estávamos numa situação terrível! - Arthur fechou a mão bruscamente, num repentino acesso de fúria. - Não podemos evitar essa despesa. E eu não me importaria que fosse o dobro. Tenho de fazê-lo de qualquer maneira.
- Está certo, Arthur. Teremos alguma dificuldade em obter o material necessário. Quase todas as fábricas foram convertidas para a produção de materiais bélicos durante a guerra e só os mais espertos já efetuaram a conversão de volta.
Ele hesitou por um instante, mas acabou acrescentando:
- Soube que já fizeram a reconversão em Platt Land.
- Na Millington?
- Era a Millington. - Todd suspirou. - Já deve saber que Stanley vendeu a fábrica para Mawson e Gowlan.
Ele guardou os papéis em sua pasta e fechou-a, sem qualquer sinal de amargura. Arthur pegou o braço de Todd.
- Está muito cansado. - Arthur sorriu, o seu sorriso sensível e encantador. - Precisa almoçar. Vamos almoçar no Law. Hilda está em casa. E Grace e Dan vão passar um ou dois dias conosco.
Foram para o Law sob o sol quente. Durante a viagem, Todd começou a sentir-se um pouco menos pessimista que o habitual. Era muito bom o que Arthur estava fazendo, uma ótima coisa, algo que o pai dele nunca teria feito. Isso o fez meditar e comentar:
- Sabe, Arthur, é muito estranho não encontrar seu pai na Neptune. Arthur sacudiu a cabeça vigorosamente.
- Infelizmente, ele nunca mais voltará à mina. - E Arthur apressou-se em acrescentar, depois de uma breve pausa: - Ele está melhor, muito melhor. O Dr. Lewis diz que pode continuar a viver por muitos anos. Mas todo o lado direito do corpo está paralisado. E não consegue falar .direito. Alguma coisa se rompeu, um feixe de fibras nervosas no cérebro. Para ser franco, Mr. Todd, ele não está... não está muito bom da cabeça.
Houve um momento de silêncio, até que Arthur voltou a falar, em voz baixa:
- Minha única esperança é de que ele possa sobreviver pelo tempo suficiente para ver o final do que estou fazendo na Neptune.
Uma sensação de intensa satisfação envolveu Todd: era o dia ensolarado, o uísque e uma grande admiração pela determinação de Arthur.
- Por Deus, Arthur, espero que isso realmente aconteça!
Entraram no Law na maior animação e entusiasmo. Era uma e meia. Foram diretos para a sala de jantar, onde todos sentaram: Arthur na cabeceira da mesa, Tia Carrie no outro lado, Todd e Hilda num dos lados, Grace e Dan no outro.
Todos estavam joviais, um tom de otimismo vibrava no ar, havia o êxtase, o milagre daquela paz nova e permanente. Todd pensou que nunca, em toda a sua vida, vira uma mesa tão animada no Law. É claro que havia a sensação de que alguma coisa estava faltando. A presença real não estava ali, mas escondida lá em cima, muda e paralítica, mas também estranhamente impressiva, em sua ausência.
Todd pensou por um momento e depois virou-se para Hilda.
- Está cuidando de seu pai, Hilda? A experiência como enfermeira deve estar lhe sendo bastante útil.
Hilda sacudiu a cabeça.
- Tia Carrie é a enfermeira.
A risada nova e exuberante de Arthur ressoou pela sala.
- Nunca vai imaginar o que Hilda está querendo fazer. Ela tenciona estudar medicina. Vai para Londres no próximo mês.
- Medicina? - repetiu Todd, disfarçando o seu espanto pelo expediente de concentrar-se no carneiro em seu prato.
- Hilda está bastante satisfeita por isso - acrescentou Arthur. Ele estava no melhor ânimo possível. Lançou um olhar para Dan. - É por isso que está se mostrando tão simpática com todos nós.
Dan ficou vermelho, consciente da tolerância fria de Hilda e de sua própria situação constrangedora no Law. Viera apenas para agradar a Grace; mesmo agora, podia sentir a mão de Grace procurando a sua, por baixo da mesa. Ele apertou a mão de Grace, num gesto afetuoso e tranquilizador, pensando nela e no bebé que estava lá em cima, no futuro que se abria diante deles. Não se importava absolutamente com a esnobação de Hilda. Dan levantou os olhos, o rosto ainda vermelho, para deparar com os olhos de Todd fixados nele.
- Vai voltar a trabalhar na Neptune, agora que a guerra acabou? - perguntou Todd.
Dan engoliu um pedaço de batata pelo caminho errado.
- Não. vou ser fazendeiro.
Grace falou, apertando a mão de Dan por baixo da mesa:
- Não vou deixar Dan voltar à mina, Mr. Todd. Vamos para Sussex. Compramos uma pequena propriedade lá, em Winrush. - Ela fez uma breve pausa, para logo acrescentar: - E compramos com a gratificação que Dan recebeu.
- É um casal muito teimoso - explicou Arthur. - Já fiz tudo o que era possível para levar Dan a compreender que o quero ao meu lado, na mina. Mas eles não querem saber disso. São independentes demais... e também não querem aceitar um só penny. Tudo ideia de Grace, é claro. Grace descobriu que Winrush é um lugar tão bom para bebés que vai experimentar agora com galinhas e porcos.
Grace disse, imperturbável:
- Deve nos visitar, Mr. Todd. Vamos aceitar hóspedes pagantes.
Todd presenteou Grace com o seu sorriso raro e discreto, admirado com o entusiasmo e a determinação dela. Achava-a estranha e maravilhosa, um tanto patética. Fazia com que se sentisse muito velho.
Tia Carrie levantou-se nesse momento, de cabeça baixa, deixando a sala silenciosamente. Não havia Harriet agora, mas tinha outro inválido para cuidar. A eficiência de Tia Carrie em trocar roupas de cama sujas e remover comadres ainda era necessária no Law, mas em outra causa, mais sagrada.
A lembrança do vulto impotente, aprisionado em seu quarto, provocou um repentino silêncio à mesa. O almoço terminou rapidamente. Arthur pegou Todd pelo braço, acompanhando-o até o carro, que o levaria de volta à estação. Todd decidira não subir para ver Barras... poderia deixá-lo transtornado, como sabiamente comentara. Por um momento, Arthur e Todd ficaram parados ao lado do carro.
- Eu lhe darei todas as informações sobre os equipamentos. - Todd fez uma pausa. - É uma ótima coisa o que está fazendo, Arthur. Terá uma minamodelo, se prosseguir em seus planos.
As palavras ressoaram nos ouvidos de Arthur: uma mina-modelo!
- Foi com isso que sonhei... uma mina-modelo.
Houve silêncio. Depois, Todd apertou-lhe a mão e entrou no carro, que partiu, deixando Arthur parado no caminho. Instintivamente, ele levantou os olhos para o céu. O sol brilhava sobre ele, o mundo envolvia-o com seu calor, o passado terrível estava enterrado e esquecido. Renascera milagrosamente, seu ideal estendia-se à sua frente. Oh, gloriosa ressurreição!
Arthur subiu lentamente, muito feliz, a fim de fazer sua visita diária ao pai. Entrou no quarto e aproximou-se da cama.
Barras estava deitado de costas, um corpo flácido, inerte, desamparado, imóvel. A mão direita estava contraída, os dedos arroxeados. Um lado do rosto estava rígido e um filete de saliva escorria pelo canto da boca. Ele parecia inteiramente inanimado. Somente seus olhos estavam vivos, virando-se na direcção de Arthur, com um reconhecimento angustiante e quase animal.
Arthur sentou-se ao lado da cama. Todo o ódio e amargura que sentira contra o pai estavam mortos. Sentia agora uma serena paciência. Começou a falar para o pai, explicar-lhe um pouco do que estava acontecendo. O médico dissera que isso poderia ajudar as faculdades dele. E Arthur podia perceber que Barras realmente compreendia tudo.
Ele continuou a falar, pacientemente, observando aqueles olhos opacos, a se remexerem constantemente, os olhos de um animal acuado. E de repente ele parou. Viu que o pai estava tentando falar. Uma palavra tentava sair por seus lábios lacrados. Havia duas palavras, na verdade, mas os lábios flácidos recusavam-se a lhes permitir a passagem. Arthur abaixou-se para escutar as palavras, mas as palavras não saíram. Não podia ouvi-las. Ainda não.
Às seis horas da tarde de sábado, 17 de dezembro, a paz gloriosa trouxe David de volta. No instante em que o trem entrou na estação de Tynecastle, ele saltou e saiu correndo pela plataforma, olhando ansiosamente para o lado da grade, procurando muito excitado por Jenny e Robert. A primeira pessoa que ele reconheceu foi Sally Sunley. Acenou, compreendendo que haviam recebido o seu telegrama. Sally acenou em resposta, de uma forma cautelosa. Mas David não percebeu. Estava ocupado em entregar sua passagem ao coletor. Finalmente passou para o outro lado, ofegante, sorridente.
- Olá, Sally! Onde está o resto da família?
Sob o vigor da saudação de David, Sally também sorriu. .. mas um tanto constrangida.
- É um prazer vê-lo de volta, David. Preciso falar com você por um momento. Como o seu trem atrasou! Esperei por tanto tempo que tenho agora de tomar uma xícara de café.
David sorriu.
- Se está querendo tomar um café, então vamos correr para a Scottswood Road.
- Não, David. Vamos tomar o café aqui.
Sem compreender, ele seguiu-a para o café. Sally comprou duas xícaras no balcão e levou-as para uma das mesinhas, redondas, de tampo de mármore. David protestou:
- Não quero café, Sally. Acabei de tomar um chá no trem.
Ela pareceu não ter ouvido. Sentou-se à mesa, que estava molhada, onde alguém pusera um copo de cerveja. David sentou-se também, aturdido. Sally disse:
- Preciso conversar com você, David.
- Não podemos deixar para conversar quando chegarmos em casa?
- Não é conveniente.
Sally pegou a colher e remexeu o café. Mas não o tomou. Os olhos dela estavam fixados nos de David. Havia uma trágica compaixão nos olhos de Sally, mas David não percebeu. Contemplando o rosto desgracioso dela, com os malares salientes e o queixo um tanto grande, David começou a pensar que havia alguma coisa errada com Sally.
Ela tomou o café lentamente, parecia querer prolongar aquele momento interminavelmente. Mas, finalmente, a xícara estava quase vazia. Fazendo um esforço para controlar a sua impaciência, David pegou a mochila que largara no chão.
- Pois vamos embora! Sabe muito bem que já se passaram nove meses desde a minha última licença. Estou ansioso em ver Jenny e o bebé. Como está o garoto... Robert, meu filho?
Sally levantou novamente os olhos escuros para fitá-lo, com uma súbita determinação.
- Não foi realmente culpa de Jenny, David.
- Como?
- Não foi porque ela estivesse ocupada no trabalho de guerra ou qualquer outra coisa assim. - Sally fez uma pausa. - Você sabia que o garoto nunca foi muito forte, David. Quero que compreenda que não foi realmente culpa de Jenny.
David ficou imóvel, contemplando-a, no café enfumaçado, através da mesa de tampo de mármore. Lá fora, havia um alarido de aclamações, a multidão recebendo os bravos guerreiros de volta. Uma locomotiva apitou desdenhosamente.
David não precisava dizer uma única palavra. Sabia por que Sally fitava-o daquele jeito. Podia compreender tudo. Embora tivesse ansiado desesperadamente em rever Robert, sabia que nunca mais tornaria a vê-lo.
Sally contou-lhe em voz baixa o que acontecera, um ataque de febre tifóide, em agosto, apenas dois dias de doença, o temor de Jenny em informá-lo. David ouviu em silêncio, rangendo os dentes. Na guerra, aprendera pelo menos a manter-se controlado. Quando Sally terminou, ele permaneceu estranhamente imóvel por um longo tempo.
- Não deve ser muito duro com Jenny - suplicou Sally. - Ela pediume especialmente...
- Não vou dizer nada.
David levantou-se, ajeitou a mochila nas costas, foi até a porta, seguroua para que Sally passasse. Saíram da estação e seguiram a pé para a Scotteswood Road. Ela parou diante do nº 17.
- Não vou entrar agora, David. Tenho de fazer uma coisa.
Ele ficou parado, observando-a, enquanto ela afastava-se pela rua, consciente, em meio à dor que lhe despedaçava o coração, da bondade de Sally em ir recebê-lo na estação. Mas que pessoa maravilhosa que Sally era! Talvez ela soubesse que ele não quisera que Jenny aceitasse um emprego na Wirtley, que tirasse Robert do ar marinho puro de Sleescale e o trouxesse para aquele distrito urbano congestionado. David afastou o pensamento de sua mente. Expulsando do rosto a expressão sombria, ele entrou na casa,
Jenny estava sozinha na sala de estar, enroscada sobre o velho sofá de crina de cavalo, sem sapatos, acariciando os dedos dos pés, metidos em meias de seda. A visão de Jenny a prestar o tributo familiar a seus dedos dos pés com cãibras fez vibrar uma corda de sua memória. Ele disse, da porta:
- Jenny!
Ela levantou os olhos com uma exclamação de surpresa, depois estendeu os braços, num gesto emocionado.
- Oh, David! Finalmente você voltou!
Ele adiantou-se lentamente. Numa espécie de paroxismo, Jenny abraçou-o, comprimindo o rosto contra a sua túnica e desatando a chorar.
- Não olhe para mim desse jeito! Oh, David, não fique zangado comigo! Não pude fazer nada! Não pude realmente! Ele estava brincando, o pobre coitado, enquanto eu trabalhava. Nunca pensei em chamar o médico. E depois o rostinho dele pareceu encolher, não podia mais me reconhecer... Oh, David querido, como eu sofri quando os anjos o levaram... Oh, meu Deus!
Soluçando desesperadamente, Jenny discorreu sobre todo o sofrimento por que passara, revelando inconscientemente os detalhes da morte de seu filho indesejável. David ficou escutando, em silêncio, o rosto inescrutável. Finalmente, Jenny bradou:
- Meu coração não aguentaria se você não tivesse voltado, David. Oh, como é maravilhoso! Você não pode imaginar como... oh, Deus!... durante todo esses meses... diga que compreende, David, por favor... não foi culpa minha. Não pude suportar, sofri demais.
Ela fez uma pausa, engolindo em seco.
- Mas está tudo bem agora que você voltou... meu bravo guerreiro voltando da guerra. Oh, eu não conseguia dormir nem comer...
David afagou-a da melhor forma que podia. Depois, enquanto ela soluçava no sofá, detalhando seus sofrimentos, suas agonias pela perda de Robert, a angustiada espera do retorno dele, uma almofada escorregou para o chão, deixando à mostra uma caixa de bombons, pela metade, e uma revista. Ainda tentando aquietá-la, David pôs a almofada no lugar, silenciosamente.
Jenny levantou o rosto finalmente, um sorriso surgindo em meio às lágrimas.
- Está contente em voltar para mim, David? Está contente?
- É maravilhoso voltar, Jenny. - Ele fez uma pausa. - A guerra acabou e vamos começar tudo de novo imediatamente.
- Vamos, sim, David! - concordou ela, com a voz ligeiramente trémula. - É o que estou querendo. Você é o melhor marido que já existiu. Vai tirar o seu B.A. e ser um diretor de escola num instante.
- Não, Jenny - respondeu David, numa voz estranha. - Não quero mais saber de ensinar. Isso é um beco sem saída. Está acabado. Eu nem deveria ter começado.
- O que vai fazer então, David? - perguntou ela, quase chorando novamente.
Havia novas rugas em torno dos olhos de David, uma nova dureza em seu rosto, deixando Jenny quase aturdida.
- Harry Nugent deu-me uma carta para Heddon, no escritório da Federação em Tynecastle. É quase certo que vou conseguir um emprego lá, Jenny. Não será grande coisa, é certo. Para começar, terei um trabalho de escritório. Mas é um começo. O princípio de tudo, Jenny. - Uma ansiedade intensa insinuava-se agora na voz de David. - Será finalmente a coisa de verdade.
- Mas, David...
- Sei que o dinheiro será pouco. Duas libras por semana, se eu tiver sorte. Mas será o suficiente para vivermos. Você parte para Sleescale amanhã, Jenny querida, a fim de abrir a casa, enquanto eu fico acertando tudo com Heddon.
- Mas, David... - balbuciou Jenny outra vez, consternada. - Duas libras por semana e eu... eu estava ganhando quatro libras.
Ele fitou-a nos olhos.
- O dinheiro não tem a menor importância, Jenny. Não estou querendo ganhar dinheiro. Desta vez, não farei qualquer concessão.
- Mas eu não poderia... - murmurou ela, mexendo na lapela de sua túnica, como fazia antigamente. - Eu não poderia continuar em meu emprego por mais algum tempo? Afinal, David, é muito dinheiro.
Os lábios dele se contraíram, o rosto ficou franzido.
- Jenny, querida, temos de nos compreender um ao outro, acertar tudo, de uma vez por todas...
- Mas nós nos compreendemos, David! - Jenny estava outra vez submissa, comprimindo a cabeça contra o peito dele. - E você sabe que eu o amo!
- E eu também a amo, Jenny. Assim, vamos arrumar as coisas e voltar para Sleescale e nossa casa amanhã.
- Está bem, David.
Ele olhou fixamente para a frente, como se estivesse divisando o futuro.
- Tenho um trabalho de verdade para fazer desta vez. Harry Nugent é meu amigo. Começo a trabalhar na Federação e depois concorro ao Conselho Municipal. Se eu conseguir...
- Oh, David... o Conselho Municipal Seria maravilhoso!
Jenny levantou os olhos úmidos, com uma expressão de admiração. Já podia se imaginar como a mulher de um Conselheiro Municipal. Uma imensa satisfação estampou-se em seu rosto e instintivamente alisou o vestido. Estava vestida com muito bom gosto, realmente bonita: uma blusa de seda, saia bem justa nos quadris, dois anéis bonitos. Era incontestavelmente atraente. Talvez estivesse trabalhando demais ultimamente. Sob a ligeira camada de póde-arroz nas faces, podia-se perceber um emaranhado de pequenas veias avermelhadas. Era como uma flor, uma flor estranha, uma flor exótica, sob o pó-de-arroz, quase linda.
Jenny fitou-o, a cabeça inclinada para o lado, os lábios polpudos entreabertos, consciente do seu encanto.
- E então, David? Ainda gosta de mim? - Ela exibiu um sorriso insinuante. - O pai e a mãe foram a Whitley Bay. Sally arrumou-lhes ingressos para o espetáculo desta noite. Eles não voltarão tão cedo.
David levantou-se abruptamente e foi até a janela. Ficou parado ali, olhando para o pátio. Não respondeu.
Jenny entreabriu a boca. Tinha de admitir que David mudara, de alguma forma sutil; estava mais duro, resistente, seguro, a antiga obstinação infantil se transformara numa determinação firme.
Mais tarde, quando Alfred e Ada chegaram, ela percebeu mais claramente a mudança em David. Ele foi bastante amável, mas deixou bem claro, sem a menor sombra de dúvida, diante do ar ofendido de Ada, que iria partir com Jenny para a casa deles, em Lamb Lane, no dia seguinte.
E Jenny, se acalentara a esperança de fazê-lo, não pôde desviá-lo de sua resolução. Na manhã seguinte, ela partiu para Sleescale no trem das nove horas, enquanto David seguia para a sua entrevista com Heddon.
O escritório local da Federação ficava na Rudd Street, perto da Central Station. Eram duas salas pequenas, uma maior, onde um homen de cabelos grisalhos, o rosto bexiguento, as mãos de um velho mineiro, estava arrumando fichas num arquivo grande, outra sala menor, interna, em cuja porta havia uma placa pequena em que se lia Particular. Não havia linóleo ou tapete, apenas as tábuas nuas e empoeiradas; não havia nada nas paredes, além de dois gráficos, um mapa do distrito e um cartaz de Não Cuspa no Chão. Ao sair da sala interna, tom Heddon tirou da boca um cachimbo curto e, embora visasse a lareira, desrespeitou imediatamente o aviso.
- Então você é Fenwick - disse ele. - Lembro-me de você antes da guerra, no Inquérito. E também conheci seu pai.
Ele apertou a mão de David rapidamente e recusou com um gesto a carta que lhe era estendida, acrescentando azedamente:
- Harry Nugent também me escreveu. Não precisa me mostrar essa carta, a menos que tenha dinheiro nela.
Ele lançou um sorriso azedo para David. tom Heddon era um homem azedo. Era baixo e moreno, cáustico, cabelos pretos, sobrancelhas pretas e espessas, a pele suja e pálida. Possuía uma tremenda vitalidade. Suava, cuspia e praguejava. Possuía uma capacidade excepcional para comer, beber, trabalhar e praguejar. Usava a torto e a direito a palavra "maldito". Era um orador inflamado, cheio de clichés e com um talento excepcional para as réplicas. Não tinha muita inteligência, um pequeno defeito que o mantivera na seção local de Sleescale por 15 anos, como um homem desapontado. Jamais iria adiante e sabia disso. Não tomava banho com muita frequência. Dava a impressão de que dormia com as roupas de baixo. O que de fato acontecia.
- Então você esteve com Harry na maldita guerra? - indagou Heddon, sarcasticamente. - Não me diga que gostou da coisa. Mas vamos entrar logo de uma vez.
Entraram na pequena sala. E conversaram. Era verdade que Heddon perdera seu escriturário na guerra... recrutado pelo maldito Plano Derby e baleado na maldita cabeça em Sampre Wood. Daria uma oportunidade a David, para atender a Harry Nugent. Tudo dependeria de David, que teria de aprender depressa para lidar com Reclamações, Benefícios e Correspondência, tudo ao mesmo tempo. Além do mais, David superestimara o salário, que seria apenas de uns minguados 35 shillings por semana.
- Vai ter de conhecer o meu estilo - resmungou Heddon. - Dê uma olhada nisto.
Com um ar de indiferença, ele abriu uma gaveta, tirou um jornal e jogou para David. Era um jornal trabalhista, The Weekly Worker, de alguns anos antes. Numa das folhas amareladas, com o ranço indefinível de um tesouro de valor inestimável, havia um artigo assinalado com lápis azul.
- O artigo é meu - disse Heddon. - Pode ler. Escrevi a maldita coisa.
Enquanto Heddon fingia não o estar observando, David leu o artigo. Tinha o título de Cortes e Cortes e possuía uma certa mordacidade. Comparava a corte do Palácio de Buckingham com outra corte, a de Bloggs, que o autor conhecia. O fraseado era desajeitado e rude, mas o contraste era violentamente eficaz: "A jovem Lady de Fallington usava um vestido de cetim branco, com uma cauda cheia de lantejoulas. Um colar de pérolas de valor inestimável enfeitava o pescoço aristocrata, as plumas presas por uma fita com diamantes." Logo a seguir, estava escrito: "A velha Sra. Slaney é uma empregada doméstica. Não usa plumas, mas alguns sacos velhos, costurados para servirem de saia. Vive num único cómodo em Bloggs, ganha 12 shillings por semana e tem tuberculose."
David leu todo o artigo e, contra a sua vontade, não pôde deixar de ficar impressionado por sua ansiedade e vigor. O artigo resumia Heddon, sincero, fanático, imbuído com um violento ódio de classe.
- É muito bom - disse David finalmente, com toda sinceridade. Heddon sorriu, atingido em seu ponto mais fraco, reconhecendo David
como um amigo. Tornou a pegar o artigo e guardou-o cuidadosamente na gaveta.
- Isso mostra o que penso deles. Eu os odeio, todo o maldito bando. Já espetei minha faca em alguns deles por aqui. Faço com que dancem de acordo com a minha música. Tome o caso de sua maldita Sleescale, por exemplo. Vamos nos divertir um bocado por lá, um dia desses, muito em breve.
David ficou interessado. Heddon continuou, sombriamente:
- Preste atenção ao que vou lhe dizer. O velho Barras está liquidado e o filho pensa que vai dirigir o espetáculo. Está gastando em banheiros na boca do poço, em toda essa história de higiene, aplicando uma parte do dinheiro que seu velho arrancou dos homens, usando um pouco dos lucros extorsivos. Está querendo nos fazer acreditar que uma nova Jerusalém vai surgir da maldita Neptune. Mas espere só para ver. Ainda não esquecemos o que eles fizeram conosco no desastre. Escaparam impunemente com muita facilidade. Eu estava só esperando que a maldita guerra terminasse para poder cuidar deles. Eles vão ter o gostinho da maldita coisa antes de eu terminar!
Heddon parou de falar de repente, olhando fixamente para a frente. Ficou imóvel desse jeito por um minuto inteiro, sombrio, ameaçador. Depois, tornou a acender o cachimbo, que se apagara, puxou uma caixa de correspondência por responder.
- Comece então na segunda-feira - disse a David, encerrando a entrevista com uma terrível jovialidade. - Vá logo! Não deixe o seu Rolls-Royce esperando por mais tempo lá fora ou o lacaio vai lhe dar um maldito aviso prévio!
David pegou o trem seguinte para Sleescale. Durante a viagem, analisou seus planos com a maior profundidade e seriedade. A primeira providência que fixara para si mesmo já fora tomada. Não era um passo dos mais espetaculares, apenas um reinício obscuro e muito humilde. Nada havia para louválo, exceto a sua necessidade... não a necessidade de dinheiro, mas a necessidade do propósito. Seu propósito estava claramente definido. Chegara à conclusão de que não poderia haver concessões. Agora, era tudo ou nada.
Foi encontrar Jenny absorvida na reabertura da casa, dominada pela novidade da ocasião, misturando emoções de descoberta com exclamações de consternação.
- Oh, David, eu havia esquecido inteiramente esses lindos castiçais de porcelana!
Ou então:
- Oh, Deus, olhe só como esse prato de bolo ficou todo descascado! E o rapaz jurou que era todo niquelado!
Mais adiante:
- Sou uma boa dona-de-casa, não é mesmo, David querido?
David tirou o casaco, arregaçou as mangas e começou a mudar os móveis de lugar. Pegou a lata de parafina e esfregou meticulosamente a grade enferrujada da lareira. Esfregou uma boa parte do assoalho. Foi arrancar o mato crescido no pequeno jardim. Jenny lhe prometera outrora, suavemente, que ali haveria um jardim de verdade, algo que jamais chegara a se concretizar. David ajudou assim até três horas da tarde, quando fizeram uma refeição às pressas. Depois, David lavou-se, arrumou-se e saiu de casa.
Era maravilhoso estar de volta à sua cidade, deixando para trás todo o horror, sofrimento e desespero da guerra. Ele desceu lentamente a Lamb Street, sentindo a vida de Sleescale tornar a envolvê-lo, vendo os guindastes da mina por cima dele, por cima da cidade, da enseada e do mar. No caminho para os Terraços, vários homens detiveram-no e apertaram-lhe a mão, dando os parabéns por seu retorno são e salvo. A cordialidade deles estimulou o coração de David, estimulou a esperança que lá ardia.
Ele foi primeiro à casa da mãe e passou meia hora com ela. A morte de Sammy deixara sua marca em Martha e o conhecimento do casamento dele afetara-a da maneira mais estranha possível. Pois Martha simplesmente ignorava o casamento de Sammy; apagara-o completamente da consciência. Toda a cidade sabia do casamento de Sammy, o menino de Annie tinha agora 11 meses e fora batizado com o nome de Samuel Fenwick. Para Martha, no entanto, o casamento nunca existira. Erguia um muro contra o casamento e mantinha a ilusão de que Sammy nunca pertencera a qualquer outra pessoa que não a ela.
Eram cinco horas quando David deixou a casa da mãe e seguiu por Inkerman, até a casa de Harry Ogle. Harry Ogle era o mais velho dos filhos Ogles, irmão de Bob Ogle, que perdera a vida no desastre, um homem de 45 anos que acompanhava e admirava Robert Fenwick no passado, um homem pálido e vigoroso, com uma voz rouca e curiosamente apagada. Mas embora não tivesse uma boa voz, Harry possuía a reputação entre os homens de ser "uma cabeça". Era o secretário da associação local, tesoureiro do serviço de assistência médica e representante trabalhista no Conselho Municipal de Sleescale.
Harry Ogle mostrou-se contente em rever David. Depois de trocarem notícias na pequena cozinha, David inclinou-se para a frente, muito sério.
- Harry, vim lhe pedir que fizesse uma coisa por mim. Quero que me ajude a ser indicado para a eleição do Conselho no próximo mês.
Harry raramente fazia perguntas e jamais demonstrava surpresa. Mas agora ficou calado por um longo tempo.
- A indicação seria bastante fácil, David. Mas, infelizmente, você não teria a menor possibilidade. Murchison concorreria com você. Há dez anos que ele vem concorrendo.
- Sei disso. E ele só comparece a uma reunião em cada seis. A resposta de David pareceu divertir Harry.
- Talvez seja por isso mesmo que ele consegue se manter no Conselho.
- Quero tentar, Harry - disse David, um pouco do seu antigo ímpeto aflorando. - Não há mal nenhum em tentar.
Houve outro silêncio.
- Já que está tão determinado, David... Verei o que posso fazer. David voltou para casa naquela noite sentindo lá no fundo que dera o
segundo passo. Não disse nada a Jenny até que, dez dias depois, sua indicação foi confirmada. E então contou.
O Conselho! David concorrendo ao Conselho! Jenny ficou extremamente excitada. Por que ele não lhe contara antes? Pensara que ele estivesse apenas brincando, quando lhe falara naquela noite, na Scottswood Road. Ora, isso era maravilhoso, simplesmente maravilhoso, David querido!
Deliciada, Jenny lançou-se ativamente à campanha. Pôs-se a solicitar votos, apresentar pequenas sugestões... Clarry tinha um namorado que trabalhava com carros e que poderia lhes emprestar um carro, Jenny o acompanharia nas excursões pelo distrito. Por que não se podia persuadir o gerente do Picturedrome a projetar na tela alguma coisa sobre David? Em todas as janelas da casa, Jenny pregou um cartaz Vote em Fenwick, as letras vermelhas. Os cartazes deixavam Jenny extasiada. Ela saía de casa várias vezes por dia para contemplá-los.
- Ora, David, você vai se tornar famoso finalmente! - declarava ela, na maior alegria.
Não podia compreender por que David comprimia os lábios ao ouvir o comentário, com uma expressão de infelicidade, afastando-se no mesmo instante.
Claro que ela encarava como um fato consumado que David seria eleito, imaginava com a maior ansiedade pequenos chás com as mulheres dos outros conselheiros, via-se a visitar a Sra. Ramage na casa grande no alto do Sluice Dene, sentia que alguma coisa resultaria de tudo aquilo, permitindo-lhes subir na vida. Não havia dinheiro no Conselho Municipal, mas podia levar a alguma coisa, pensava Jenny, com a maior alegria. Ela não compreendia. Era fisicamente incapaz de compreender o motivo por trás da ação de David.
O dia da eleição chegou. No fundo do coração, David tinha dúvidas sobre as suas possibilidades. Tinha uma boa reputação em Sleescale, o pai morrera na mina, o irmão morrera na guerra e ele próprio servira no front por três anos. Havia um sabor romântico bastante útil, que ele desprezava, em voltar da guerra e concorrer ao Conselho Municipal. Mas ele era inexperiente e Murchison sempre dava um jeito de ampliar o crédito em sua loja na época da eleição, o hábito de acrescentar um pacote de sabonete ou uma lata de sardinhas nos cestos das freguesas, o que não era nada bom para seu adversário. Na tarde de sábado, ao subir para o centro da cidade, David encontrou-se com Annie, que vinha da New Bethel Street School, onde estava se realizando a eleição. Annie parou e disse, com a maior simplicidade:
- Acabei de votar em você. Dei um jeito de terminar tudo a tempo de votar em você.
David sentiu uma intensa satisfação pela maneira como Annie falou, ao pensar que ela se dera ao trabalho de apressar tudo para votar nele.
- Obrigado, Annie.
Os dois ficaram parados, em silêncio. Annie nunca tinha muito a dizer, nenhuma expressão de confiança, nenhuma garantia delirante de sucesso. Mas David podia sentir a boa vontade que emanava dela. Ele sentiu de repente que tinha muito o que dizer a Annie. Queria consolá-la pela perda de Sammy, perguntar pelo menos. Experimentou um desejo incontrolável de falar-lhe a respeito de Robert. Mas a rua apinhada e barulhenta impediu-o. Em vez disso, ele falou apenas:
- Jamais conseguirei ser eleito. Annie sorriu.
- Pode ser eleito e pode não ser, Davey. Mas não há nada como tentar para saber.
Depois, acenando com a cabeça à sua maneira suave, ela seguiu para casa, a fim de cuidar do filho.
Ocorreu a David, depois do encontro com Annie, como ela soubera avaliar a situação dele, sabiamente, encorajadoramente. Quando foi efetuada a apuração, ele vencera Murchison por apenas 47 votos. Mas estava eleito.
Jenny, um pouco frustrada com a exiguidade da vitória, mesmo assim ficou encantada porque David fora eleito.
- Eu disse que você conseguiria!
Ela pôs-se a aguardar ansiosamente a primeira reunião do novo Conselho, na maior animação, como se fosse a nova conselheira.
David não demonstrava a mesma alegria. Tendo acesso às minutas, registros e agenda, David estivera examinando o pequeno turbilhão da política local, descobrindo a fermentação habitual de interesses sociais, religiosos e pessoais, a aplicação constante da teoria "você faz isso por mim que farei aquilo por você". É claro que Ramage era o fator dominante. Desde o começo, David compreendeu perfeitamente que Ramage era o homem que teria de enfrentar.
Ao cair da tarde de 2 de novembro, o novo Conselho reuniu-se, com Ramage na presidência. Os outros eram Harry Ogle, David, o Reverendo Enoch Low, da Bethel Street Chapei, Strother, o diretor da escola, Bates, o negociante de fazendas, Connolly, da Companhia de Gás, e Rutter, o secretário. Houve uma troca de cumprimentos efusivos na ante-sala, entre Ramage, Bates e Connolly. Soltaram risadas estrondosas, trocaram tapinhas nas costas, conversaram jovialmente. O Reverendo Low manteve-se à distância dos gracejos mais obscenos, mas mostrou-se deferente com Connolly e subserviente com Ramage. Ninguém deu a menor atenção a David e Harry Ogle. Mas Ramage lançou um olhar frio para David, quando se encaminharam para a sala de reuniões.
- Lamento que o nosso velho amigo Murchison não esteja aqui conosco - comentou ele, em voz alta e agressiva. - Não parece direito termos a presença de um estranho.
- Não se preocupe, rapaz - sussurrou Harry para David. - Vai logo se acostumar a esse tipo de coisa.
Sentaram-se e Rutter pôs-se a ler as minutas da última reunião do antigo Conselho. Ele leu rapidamente, em voz seca, monótona, desinteressada. Depois, quase sem parar e no mesmo tom de voz, ele anunciou:
- O primeiro assunto é a aprovação dos contratos de carne e uniformes. Imagino, senhores, que desejam considerá-los como aprovados.
- Isso mesmo - disse Ramage, soltando um bocejo.
Ele recostou-se na cadeira à cabeceira da mesa, o nariz grande e vermelho virado para o teto, as mãos pousadas sobre a imensa barriga.
- Os contratos estão aprovados - concordou Bates, revirando os polegares e olhando fixamente para a mesa.
- Aprovado, senhores - disse Rutter, estendendo a mão para o livro de registros.
David interveio em voz baixa:
- Um momento, por favor!
Houve um silêncio, um estranho silêncio.
- Ainda não vi esses contratos - declarou David, em voz serena, perfeitamente controlada.
- Não precisa vê-los - disse Ramage, desdenhosamente. - Foram aprovados pela maioria.
- É mesmo? - disse David, em tom de surpresa. - Pois eu nem sabia que tínhamos votado!
Rutter, o secretário do Conselho, estava rígido e constrangido, examinando atentamente a ponta da pena, como se estivesse rombuda. Sabia que David estava fitando-o e finalmente teve de enfrentar aqueles olhos inquisitivos.
- Posso ver os contratos? - perguntou David.
Ele sabia de tudo a respeito dos contratos, queria apenas retardar o registro no livro. Aqueles contratos eram um escândalo antigo em Sleescale. O contrato de uniformes não era importante. Relacionava-se com o fornecimento de uniformes ao inspetor sanitário, ao fiscal de saúde e diversos outros funcionários municipais. Embora Bates obtivesse um lucro escandaloso com a transação, a quantia envolvida não era significativa. Mas o caso do contrato de carne era diferente. Esse contrato, que concedia a Ramage o fornecimento de toda a carne ao hospital local, era uma iniquidade diante de Deus e dos homens. Os preços cobrados eram para carne de primeira qualidade, mas Ramage fornecia apenas carne das pernas e de pescoço.
David tirou o contrato da carne dos dedos nervosos de Rutter. Ele examinou o contrato. A quantia era vultosa, o total beirando as 300 libras. Deliberadamente, ele prolongou o exame do documento, paralisando a reunião, sentindo que todos os olhos estavam fixados nele.
-Este é um contrato em concorrência? - perguntou ele, finalmente.
Incapaz de conter-se por mais tempo, Ramage inclinou-se para a frente, através da mesa, o rosto vermelho de indignação e raiva.
- Tenho esse contrato há mais de 15 anos. Tem alguma objeção a fazer? David olhou para Ramage. Estava acontecendo, o primeiro momento,
o primeiro teste. Ele sentia-se controlado, senhor de si mesmo. E disse, friamente:
- Imagino que há algumas pessoas que fazem objeções.
- Vá para o diabo! - explodiu Ramage.
-Por favor, Mr. Ramage - interveio o Reverendo Low, suavemente. Dentro e fora do Conselho, Low sempre adulava Ramage, seu paroquiano predileto, o homem que lançara a pedra fundamental da Bethel Street Chapei, o bezerro de ouro entre o seu minguado rebanho. E agora ele virou-se para David, com uma expressão de censura.
- É novo aqui, Mr... ahn... Fenwick. Talvez esteja sendo um pouco zeloso demais. Está esquecendo que esses contratos são anunciados.
David respondeu:
- Um anúncio mínimo no jornal local, um anúncio que ninguém vê.
- E por que alguém teria de ver? - berrou Ramage, da extremidade da mesa. - E por que diabo você tem que se meter? O contrato é meu há 15 anos e ninguém jamais disse nada contra!
- A não ser as pessoas que comem a sua carne podre - disse David, a voz calma.
Houve um silêncio opressivo. Harry Ogle lançou um olhar alarmado para David. Rutter, o secretário do Conselho, estava branco de medo. Ramage, vermelho de fúria, bateu com o punho imenso na mesa.
- Isso é calúnia! Há uma lei contra esse tipo de coisa. Bates, Rutter, vocês são testemunhas... ele me caluniou!
Rutter levantou o rosto humilde com uma expressão de protesto. O Reverendo Low fez menção de intervir outra vez, apaziguadoramente. Mas Ramage tornou a berrar:
-Ele tem de retirar o que disse! É melhor ele se retratar imediatamente!
Rutter disse:
- Devo lhe pedir para retirar o que disse, Mr. Fenwick.
Um estranho ardor dominou David. Sem desviar os olhos do rosto de Ramage, enfiou a mão no bolso interno do paletó e tirou um maço de papéis.
- Não preciso retirar nada, se puder provar minha declaração. Dei-me ao trabalho de providenciar as provas. Tenho aqui declarações assinadas de
15 pacientes do Cottage Hospital, de três enfermeiras e da própria enfermeira-chefe. São as pessoas que comem a sua carne, Mr. Ramage. Nas palavras da enfermeira-chefe, não serve nem para um cachorro. Gostaria de ler essas declarações, senhores. Mr. Ramage pode considerá-las como depoimentos no caso.
Houve um momento de silêncio terrível. Depois, David leu os depoimentos sobre a carne de Ramage. Dura, cheia de sebo e cartilagem, às vezes apodrecidas: essas eram as principais características da carne. Jane Lowry, uma das serventes do hospital, declarava que sofrera de cólicas terríveis depois de comer um pedaço de carneiro malcheiroso. A enfermeira Gibbings contraíra um parasita interno que só poderia provir de carne deteriorada.
O clima era tenso quando David terminou. Ao dobrar os papéis, calmamente, ele podia ver Ogle ao seu lado, com uma expressão deliciada no rosto, enquanto Ramage, à cabeceira da mesa, estava apoplético de ódio e fúria.
- É tudo um monte de mentiras - balbuciou Ramage. - A carne que forneço é de primeira.
Ogle manifestou-se pela primeira vez:
- Então que Deus nos livre da carne de primeira.
O Reverendo Low ergueu a mão, num gesto conciliador, murmurando:
- Talvez haja alguns pedaços ruins de vez em quando. Nunca se pode ter certeza nessas coisas.
Harry Ogle disse:
- Há 15 anos que está acontecendo... é assim o seu bendito de vez em quando.
Connolly enfiou as mãos nos bolsos, impacientemente.
- Não sei por que tanta confusão por nada! Vamos fazer uma votação. - Ele sabia a maneira certa de resolver o problema de uma vez por todas. E repetiu, em voz mais alta: - Vamos fazer uma votação.
- Eles vão vencê-lo, David - disse Harry Ogle, em voz baixa e nervosa. Bates, Connolly, Ramage e Low sempre se uniam, na defesa dos interesses comuns. David virou-se para o Reverendo Low.
- Eu lhe faço um apelo, como um ministro do Evangelho. Quer que os doentes no hospital continuem a comer carne deteriorada?
O Reverendo Low corou ligeiramente, mas uma expressão de obstinação estampou-se em seu rosto.
- Ainda não estou convencido.
David desistiu do Reverendo Low. Fixou os olhos em Ramage novamente e disse, bem devagar:
- Quero deixar as coisas bem claras. Se esta reunião se recusar a aprovar um anúncio novo e apropriado para fornecedores de carne, encaminharei estes depoimentos ao diretor do Departamento de Saúde do Condado e pedirei uma investigação completa do assunto.
Seguiu-se um duelo entre os olhos de Ramage e os de David. Mas os olhos de Ramage baixaram primeiro. Ele estava com medo. Vinha enganando o Conselho há 15 anos, vendendo carne ruim e abaixo do peso. Estava com medo, com um medo terrível, do que um inquérito poderia revelar. Maldito seja ele!, pensou Ramage. vou ter de ceder desta vez, submeter-me à interferência desse porco nojento. Mas um dia ainda vou me vingar, nem que isso me mate. Em voz alta, soturna, ele disse:
- Não há necessidade de uma votação. Pode fazer o anúncio. Minha proposta será tão boa quanto as outras.
Uma onda gloriosa de triunfo invadiu David. Eu venci, pensou ele, eu venci! O primeiro passo da longa estrada fora dado. Podia fazê-lo. E o faria.
A reunião prosseguiu.
Mas, infelizmente, os resultados da eleição de David foram tristemente desapontadores para Jenny. Os entusiasmos de Jenny eram invariavelmente tão intensos que os resultados sempre ficavam um tanto ofuscados. E o entusiasmo de Jenny pela eleição elevou-se como um foguete, explodiu numa deslumbrante exibição de estrelas e depois se apagou.
Ela acalentara a esperança de ascensão social através da eleição, ansiando especialmente em "conhecer" a Sra. Ramage. Os chás da tarde que a Sra. Ramage oferecia eram o haut ton de Sleescale. A Sra. Strother, a mulher do diretor da escola, geralmente comparecia, assim como a Sra. Armstrong, a Sra. Proctor e a Sra. Bates, a mulher do negociante de fazendas. E se a Sra. Bates podia comparecer, por que não a Sra. Fenwick? Era essa a indagação que Jenny se fazia, com a maior ansiedade. Frequentemente havia música naqueles encontros. E quem podia cantar melhor do que Jenny? Passing By era uma linda canção. .. e bem clássica, por assim dizer. Jenny ansiava em cantar essa música para todas as damas elegantes de Sleescale, na sala de estar da Sra. Ramage, na casa grande e nova, em Sluice Dene. Oh, Deus, pensava Jenny, se ao menos eu pudesse manter relações com a Sra. Ramage!
Mas não houve qualquer reconhecimento da Sra. Ramage, nem mesmo um cumprimento superficial, ao se cruzarem na rua. E foi então que, no começo de novembro, ocorreu um terrível incidente. Numa tarde de terça-feira, Jenny foi à loja de Bates para comprar um pedaço de musselina, pois a Prima Mayrianne, escrevendo no Mab's Journal, acabara de insinuar que a musselina seria o demier cri para as roupas de baixo femininas. No balcão, examinando algumas rendas, estava a Sra. Ramage. Surpreendida naquela situação desprevenida, a Sra. Ramage mostrou-se quase cordial. Era uma mulher grandalhona, de rosto hostil, que dava a impressão estranha de ter sido consideravelmente atacada, resistindo com uma determinação extraordinária. Naquela tarde, porém, ela tinha menos determinação e mais cordialidade no rosto. Ao aproximar-se da Sra. Ramage, Jenny pensou que os maridos de ambas pertenciam ao mesmo Conselho Municipal. As aspirações sociais de Jenny subiram-lhe à cabeça. Ela chegou ao balcão, sorrindo cordialmente para a Sra. Ramage e exibindo todos os seus dentes bonitos, enquanto dizia:
- Boa-tarde, Sra, Ramage. Não acha que está fazendo uma tarde maravilhosa para esta época do ano?
A Sra. Ramage virou-se lentamente. Olhou para Jenny. A coisa horrível foi que reconheceu Jenny e depois deixou de reconhecê-la. Num segundo angustiante, seu rosto fechou-se como uma ostra. E ela disse, em tom condescendente e formal:
- Não creio que já tenhamos nos conhecido antes.
Mas a pobre Jenny, afogueada e desorientada, arremeteu cegamente para a própria tragédia.
- Sou a Sra. Fenwick. Meu marido participa do Conselho Municipal, junto com seu marido, Sra. Ramage.
A Sra. Ramage olhou Jenny de alto a baixo, brutalmente.
- Ah, sim!
Erguendo o ombro do lado de Jenny, ela voltou a se concentrar nas rendas, dizendo em sua voz mais suave à moça que era a ajudante de Bates:
- Acho que vou ficar com a renda mais dispendiosa, minha cara. Mande entregar na minha casa e ponha na minha conta.
Jenny ficou completamente vermelha. Poderia ter morrido de vergonha naquele momento. Era uma terrível afronta e ainda por cima na presença da vendedora! Jenny virou-se bruscamente e saiu da loja quase correndo.
Naquela noite, contou a história a David, choramingando. Ele escutou com uma expressão firme, os lábios contraídos. E depois disse, pacientemente:
- Não podia esperar que a mulher a tratasse amavelmente, Jenny, quando Ramage e eu estamos brigando. Nos últimos três meses, já consegui suspender o contrato de carne podre que ele tinha. Estou tentando agora bloquear a verba de 500 libras que ele estava pedindo com a maior desfaçatez para construir uma estrada até sua casa em Sluice Dene. Uma estrada que não serve para mais ninguém além dele próprio! Na última reunião, comentei que ele estava violando seis regulamentos diferentes em seu nojento matadouro particular. Dá para imaginar que ele não está exatamente me amando.
Jenny fitou-o com uma expressão ressentida, lágrimas escaldantes nos olhos.
- Por que você tinha de brigar com gente assim, David? É um homem tão estranho! Seria muito melhor que ficasse do lado de Mr. Ramage. Quero que suba na vida.
Ele respondeu em tom compadecido:
- Mas eu já lhe disse, Jenny querida, que subir na vida desse jeito é algo que não mais me interessa. Talvez eu esteja mesmo estranho. Mas passei por algumas estranhas experiências nos últimos anos. O desastre na mina... e a guerra! Não acha, Jenny, que está na hora de alguns de nós se levantarem para lutar contra abusos que produzem desastres como o da Neptune e guerras como a última?
- Mas você está ganhando apenas 35 shillings por semana, David! - lamuriou-se Jenny, com uma lógica irrespondível.
Ele estofou o peito subitamente. Parou de argumentar, contemplou-a com uma expressão serena e foi para a outra sala.
Jenny ficou sufocada por um senso de negligência. Lágrimas de autocompaixão tornaram a escorrer de seus olhos. Depois ela pôs-se a pensar, ficou soturna e mal-humorada. David estava diferente, completamente diferente. As adulações dela pareciam não ter o menor efeito, não conseguia mais dominá-lo. Bem que tentava com algum ressentimento deixá-lo ardente, mas nisso também David se tornara estranhamente austero. Jenny podia sentir que o lado físico do amor, sem a contribuição da ternura, era-lhe repulsivo. E encarava isso como um insulto. Ela podia sentir-se ardente num instante, sair direto de uma discussão violenta para uma paixão ainda mais violenta, querendo uma satisfação rápida e urgente. .. dizendo recatadamente que era para "acertar tudo". Mas tal não acontecia com David. E Jenny dizia a si mesma que tal atitude era antinatural.
É claro que Jenny não era do tipo de "suportar uma desfeita", para repetir suas próprias palavras. E revidou de muitas maneiras. Suspendeu inteiramente os seus esforços para agradar. David começou a chegar em casa à noite para encontrar o fogo apagado, sem nada para comer. O fato de que ele jamais se queixava agora e nunca discutia era o que mais irritava Jenny. Numa noite, ela recorreu a tudo o que conhecia para provocá-lo a uma discussão. Como não conseguisse, passou a escarnecer:
- Sabia que eu estava ganhando quatro libras por semana durante a guerra? É mais do que o dobro do que você está ganhando agora!
- Não estou neste trabalho por dinheiro, Jenny.
- Não me importo com dinheiro e você sabe disso muito bem. Não sou mesquinha. Ao contrário, sou generosa. Lembra-se do terno que lhe dei para a nossa lua-de-mel? Ah, como era bonito! E fui eu quem lhe deu seu enxoval. Mesmo naquele tempo, você já não tinha o menor senso prático. Eu não me consideraria um homem direito se não fosse capaz de trazer para casa um dinheiro decente ao final da semana!
- Todos temos os nossos padrões, Jenny.
- Claro que eu poderia arrumar um bom emprego no momento que quisesse - disse ela, com um supremo desdém. - Dei uma olhada no jornal esta manhã e havia pelo menos meia dúzia de empregos que eu poderia obter com a maior facilidade. Eu bem que poderia voltar a trabalhar um dia desses.
- Seja paciente, Jenny. Talvez eu não seja um fracasso como você está imaginando.
Se Jenny compreendesse a situação, ainda poderia ter paciência, interpretando-a a seus próprios padrões. David estava sendo um sucesso para Heddon. Acompanhava-o a todas as reuniões no distrito e geralmente era convidado a falar. Em Seghill, ele falou a mil e 500 homens, no Instituto local, sobre a questão das Resoluções de Southport. Heddon estava ocupado com os problemas da Conferência de Janeiro e permitiu que David cuidasse de tudo.
O discurso foi um triunfo para David, lúcido, vigoroso, transbordando de sinceridade. Ao final do comício, quando desceu do palanque, David foi cercado por uma multidão, os homens querendo apertar-lhe a mão, para seu espanto. O velho Jack Briggs, de 76 anos, um homem calejado, o mais antigo líder trabalhista de Seghill, sacudiu-lhe tanto o braço que até doeu.
-Por Deus, foi um discurso danado de bom, rapaz! - disse o velho Jack. - Já ouvi uma porção, mas nunca escutei um discurso melhor do que o seu. Tenho certeza de que vai longe, rapaz!
E Heddon concordava com o pressentimento histórico. Isso serviu para ressaltar o fato inacreditável de que Heddon, um homem amargurado e inculto, não sentia a menor inveja de David. Heddon tinha poucos amigos, pois sua natureza violenta provocava repulsa em todos, a não ser uns poucos conhecidos mais perseverantes. Mas desde o início que Heddon simpatizara com David. Via em David um espírito raro, um homem altru ísta. Conhecia tão profundamente a escória da humanidade que, contra a sua vontade, acabou por amar David. Sentia instintivamente que ali estava um homem que encontrara a sua inclinação natural, um orador nato, inabalável, penetrante e sincero, um homem inteligente e fervoroso, um homem que muito poderia fazer por seus semelhantes. Era como se Heddon tivesse dito a si mesmo, com a maior veemência:pelo amor de Deus, que eu não me torne amargo, mesquinho e invejoso, mas faça todo o possível para ajudá-lo!
Heddon lia com a maior satisfação as notícias sobre as reuniões do Conselho Municipal de Sleescale que estavam começando a sair nos jornais de Tynecastle. Os jornais de Tynecastle haviam descoberto David e suas investidas contra os abusos antigos e institucionais em Sleescale constituíam boas notícias num período sem acontecimentos de maior importância. De vez em quando, os jornais de Tynecastle falavam de David e suas proezas: "Tumulto na Câmara do Conselho de Sleescale"; "O Vingador de Sleescale Volta a Atacar".
Heddon desatou a rir ao ler uma notícia a respeito de David. Espiando por cima do jornal, ele perguntou:
- Você disse isso mesmo que está no jornal, David?
- Não fui tão bom assim, tom.
- Eu gostaria de ver a cara do tal de Ramage quando você lhe disse que o seu maldito matadouro não servia nem para matar porcos!
A modéstia inveterada de David contribuía ainda mais para que ele caísse nas boas graças de tom Heddon. Se ele demonstrasse algum sinal de vaidade, estaria liquidado aos olhos de Heddon. Mas tal não acontecia, o que levava Heddon a recortar as melhores notícias do Argus de Tynecastle e enviar para o seu velho amigo, Harry Nugent, com um rabisco significativo do seu lápis azul.
Mas Jenny não sabia de nada disso. E Jenny não era paciente. Encarava a absorção de David no trabalho como negligência e sentia-se ainda mais ressentida e furiosa. O que acabou se transformando num excelente pretexto para procurar um consolo no porto que Murchison vendia. Na primavera de
1919, Jenny estava outra vez bebendo regularmente. E foi nessa ocasião que ocorreu um evento de considerável importância psicológica.
No dia 5 de maio, um domingo, o velho Charley Gowlan morreu. Charley estava passando mal há seis meses, com a doença de Bright. Finalmente, apesar de inúmeras punções no abdómen lustroso e inchado, Charley foi se encontrar com Deus. Era um macabro paradoxo o fato de que Charley, que jamais gostara de água, acabasse morrendo saturado de água. Mas com todo o paradoxo, Charley morreu, nas circunstâncias mais miseráveis, inteiramente negligenciado. Dois dias depois, Joe apareceu em Sleescale.
A única maneira de descrever a chegada de Joe a Sleescale é dizer que foi uma sensação. Ele chegou na manhã de terça-feira, num reluzente automóvel Sunbeam verde, dirigido por um motorista de uniforme verde-escuro. No momento em que Joe saltou do carro, diante de sua antiga casa em Alma Terrace, uma multidão boquiaberta ali se concentrou. Harry Ogle, Jake Wicks, o novo conferente do peso, e mais alguns veteranos da Neptune estavam na casa, pois era quase a hora do funeral. Embora alguns rumores da prosperidade de Joe houvessem chegado aos Terraços, todos ficaram abertamente aturdidos com a mudança que ocorrera nele. Frank Walmsley, que fora outrora seu capataz, começou a tratá-lo imediatamente de senhor. Joe estava vestido discretamente, mas também elegantemente, usava polainas, as abotoaduras eram de ouro, a corrente fina do relógio de platina. Estava bem barbeado, as unhas impecáveis. Recendia a opulência.
Harry remexeu os pés, contrafeito diante da opulência de Joe, reprimindo a recordação do jovem Joe, que fora outrora um ajudante ria Paradise.
- Estou contente que tenha vindo, Joe. Nós nos cotizamos para arrumar o dinheiro. Não queríamos que seu pai tivesse um enterro de indigente.
- Santo Deus, Harry! - exclamou Joe, dramaticamente. - Está mesmo falando sério? A situação estava tão ruim assim?
Ele correu os olhos pela cozinha imunda, onde outrora lambera massa de pastelão em lâmina de faca. Contemplou o caixão preto miserável em que estava o cadáver do pai.
- Oh, Deus, por que alguém não me avisou? - murmurou ele. - Por que ninguém me escreveu? Todos vocês me conhecem, sabem onde estou, o que eu sou. Este é um país cristão ou o quê? Deveriam estar envergonhados, deixando que o pobre velho finasse desse jeito. Imagino que pensaram que seria trabalho demais telefonar para a minha fábrica...
Joe ficou profundamente comovido no funeral. À beira do túmulo, não conseguiu se conter e chorou num lenço de seda. Todos concordaram que ele se comportou de uma forma condigna. Ele seguiu direto do cemitério para a oficina de Pickings, na Lamb Street, onde encomendou uma lápide magnífica.
-Mande-me a conta, tom! - declarou ele, solenemente. - Não se preocupe com a despesa!
Mais tarde, tom mandou a conta; e teve de mandar uma porção de vezes.
Depois do funeral, Joe fez um passeio sentimental pela cidade, exibindo toda a emoção de um homem bem-sucedido ao visitar os lugares em que passara a infância. Pediu insistentemente a Harry Ogle que lhe providenciasse uma fotografia da casa de Alma Terrace. Joe queria uma fotografia de qualquer maneira, uma fotografia grande, ampliada; não podia deixar de ter uma fotografia da casa humilde em que nascera. Harry devia pedir a Blair, o fotógrafo, que providenciasse a fotografia e lhe enviasse, juntamente com a conta.
Ao final da tarde, por volta das seis horas, Joe foi visitar o seu velho amigo David. A notícia da visita de Joe a Sleescale o precedera. Além de avisar a David, Jenny se preparara meticulosamente, no maior excitamento, para a visita de Joe.
Mas Joe recusou prontamente a hospitalidade de Jenny, alegando que tinha um compromisso para o jantar no Central, em Tynecastle. Jenny ficou desconsolada, mas mesmo assim insistiu. Joe lançou um olhar calmo e penetrante para Jenny, um olhar de alto a baixo. Jenny compreendeu que não poderia haver mais nada entre os dois... absolutamente nada. A alegria apagou-se em seus olhos, o coquetismo desvaneceu-se. Ela ficou sentada em silêncio, trémula e invejosa.
Mas ficou escutando a tudo-atentamente. Absorvendo cada palavra de Joe a respeito de si mesmo, ela não pôde deixar de comparar os dois homens e o ponto a que haviam chegado: o sucesso espetacular de Joe e o fracasso desolador de David.
Joe falava abertamente, pois sempre demonstrara uma franqueza excepcional. Ficou evidente que ele considerava o fim da guerra como prematuro ... afinal, não fora uma guerra tão ruim assim. Contudo, apesar disso, a situação parecia das mais promissoras. Tirando do bolso a cigarreira de ouro, Joe pegou um cigarro, acendeu, soprou pelas narinas a fumaça aromática do tabaco turco. Depois, inclinando-se para a frente, bateu jovialmente no joelho de David.
- Já deve saber que compramos a Millington. .. Jim Mawson e eu. Oh, Deus, como tenho pena do pobre Stanley! Ele está vivendo agora em Bournemouth, para sempre, junto com a mulher. Tinha de sair de Platt Lane o mais depressa possível. Era um bom sujeito, mas não tinha a menor estabilidade. Pelo que me contaram, está irremediavelmente abalado, os nervos em pandarecos. Talvez a melhor coisa que possa lhe ter acontecido, nas circunstâncias, foi o fato de estarmos dispostos a ficar com a fábrica. E ele vendeu por um bom preço... um ótimo preço!
Joe fez uma pausa, tragando o cigarro e sorrindo inocentemente para David. Sua arrogância adquirira agora uma nova sutileza, disfarçando-a com uma afável indiferença.
- Sabia que recebemos a encomenda para o novo equipamento da Neptune? Como? Mas claro que fizemos a reconversão no instante em que a guerra acabou. Enquanto todos os otários estavam sentados em seus moldes de bombas, imaginando o que estava acontecendo, nós tratamos de voltar a produzir ferramentas, parafusos, alavancas.
Joe tornou-se mais confidencial, mais expansivo do que nunca.
- Enquanto a guerra estava em andamento, as minas de carvão só estavam preocupadas com a produção. Nenhuma tinha tempo para se modernizar e renovar, mesmo que pudesse obter os equipamentos necessários... o que não conseguiria, diga-se de passagem. Agora que a paz voltou, Jim e eu calculamos que todas estarão clamando com urgência pelos equipamentos de que precisam, sem ninguém para atendê-las, à exceção dos mais espertos, como nós.
Joe suspirou, gentilmente.
- Pois foi assim que obtivemos a encomenda da Neptune. São 50 mil libras de equipamentos que venderemos à Neptune antes do ano terminar.
A soma espetacular, quase fabulosa, 50 mil libras, ficou ressoando na pequena sala, repleta de móveis ordinários e da fumaça do cigarro turco de Joe, quase arrebentando os tímpanos da pobre Jenny. E pensar que Joe estava dirigindo um negócio tão colossal! Ela encolheu-se toda no assento, consumida pela inveja.
Joe percebeu o efeito que estava provocando, a expressão ansiosa nos olhos de Jenny, a fria hostilidade nos olhos de David. Tudo lhe subiu um pouco à cabeça. com uma fluência condescendente, ele continuou:
- Embora estejamos muito ocupados na fábrica... não acham que Mawson & Gowlan é um bom nome?... Desculpe, mas não consigo parar de me sentir orgulhoso com a firma. Mas eu ia dizer que nós dois temos uma porção de atividades secundárias. vou citar um exemplo. Já ouviram falar na Comissão de Excedentes de Guerra? Não?
Joe sacudiu a cabeça, com uma expressão pesarosa.
- Pois deveriam ter se informado. Poderiam ganhar muito dinheiro, se soubessem. Mas é verdade que sempre se precisa ter um bom capital para fazer qualquer coisa. Pois o caso é que o Governo, que Deus o guarde, comprou, encomendou e requisitou uma porção de coisas que não vai mais precisar, desde botas de goma elástica a toda uma frota de navios cargueiros. E como não precisa mais dessas coisas, o Governo naturalmente está querendo livrarse delas!
Joe, o súdito leal da Coroa, recostou-se na cadeira, permitindo-se um sorriso por estar ajudando o Governo, tão generosamente, a livrar-se daquelas coisas.
- Viram o meu carrinho lá fora?
- Claro que vi, Joe! - balbuciou Jenny. - É uma beleza!
- Não é nada mau, não é nada mau... E tem apenas um mês. Talvez queiram saber como aconteceu.
Ele fez uma pausa, os olhos castanhos brilhando intensamente.
- Há seis semanas, Jim e eu fomos examinar algum material do Governo, além de Morpeth. Pois encontramos dois tratores que eram usados numa serraria e foram esquecidos na pressa da guerra. Estavam entre troncos apodrecidos, cheios de ferrugem, cobertos de mato. Quem olhasse os tratores superficialmente, veria apenas uma sucata. Mas quem olhasse direito, veria duas máquinas em perfeitas condições de funcionamento, tão boas como se fossem novas, valendo cada uma pelo menos duas mil libras.
Joe fez outra pausa, sorridente.
- Pois Jim e eu oferecemos um preço de sucata pelos tratores e os compramos. Trouxemos os tratores para Tynecastle sob o impulso de seus próprios motores, limpamos, pintamos e vendemos por um bom preço. Dividimos os lucros... e aquele carrinho que está lá fora... - .Joe acenou com a mão para a janela. - ... é o resultado!
Silêncio. E depois uma exclamação involuntária de admiração escapou dos lábios lívidos de Jenny. Aquele carro tão maravilhoso, reluzindo lá fora, comprado com os lucros de um único negócio! Mas quanta esperteza! Era demais para Jenny.
Joe deixou por aí. Sabia quando devia parar. Desviou o olhar para o relógio barato em cima da lareira. Soltando uma exclamação de surpresa, confirmou a hora em seu relógio de ouro. Levantou-se abruptamente.
- Santo Deus! Já está na hora de ir embora. Se não me apressar, vou chegar atrasado para o jantar com Jim. Lamento ter de partir tão cedo, mas estou sendo esperado no Central às sete horas.
Ele apertou a mão de David e Jenny e encaminhou-se para a porta, jovial, risonho, loquaz, na maior satisfação consigo mesmo. A porta bateu, o carro foi ligado e ele partiu.
David olhou para Jenny com um sorriso irónico e comentou:
- Aquele era Joe.
Jenny retribuiu o olhar com uma expressão de raiva.
- Sei que era Joe. De que diabo está falando?
- Nada, Jenny, nada... Mas agora que Joe foi embora, lembrei que ele ainda me deve três libras!
Um demónio de raiva dominou Jenny, espicaçada pela inveja e pela certeza de que Joe não queria mais saber dela. Nunca mais. Ela disse, desdenhosamente:
- Três libras? Joe é capaz de dar tudo isso de gorjeta a um garçom! Ele vale uma fortuna, poderia comprar e vender tudo o que você tem mil vezes. Joe é um homem de verdade. Pode fazer coisas, viajar, ganhar dinheiro. Por que não aprende com ele? Pense no carro de Joe, nas roupas, jóias, os cigarros que ele fuma. Pense nele e se envergonhe do que você é!
A voz dela se alteou, estava agora gritando.
- Joe é o tipo que daria uma vida boa à sua mulher, trataria de levá-la a restaurantes e bailes, aos melhores lugares, daria um lugar na sociedade, refinamento e tudo o mais. Pois pense nele e depois olhe para você! Não tem condições de lamber as botas de Joe. Não é um homem de verdade. Não passa de um rebotalho e é justamente isso o que Joe está pensando de você neste momento. E Joe está viajando agora em seu carro grande e maravilhoso, rindo de você. Rindo de sua burrice. E está pensando que você não passa de um rebotalho, rebotalho, rebotalho!
A voz de Jenny estava estridente e trémula, a saliva espumava nos cantos da boca, o ódio ardia nos olhos.
David ficou imóvel, com as mãos cerradas, fitando-a. com um grande esforço, ele controlou-se, compreendendo que a única maneira de arrancá-la daquele paroxismo era deixá-la em paz. Ele virou-se e saiu da sala, indo para a cozinha.
Jenny ficou na sala, a respiração ofegante. Reprimiu um impulso de seguir David e insistir na discussão. Guardou todos os escárnios e insultos contundentes que ainda tinha na ponta da língua. Conhecia um meio melhor de vingar-se. Engoliu em seco. O cheiro da fumaça do cigarro turco ainda pairava no ar, enfurecendo-a além dos limites de suportar. Deixou a sala correndo, pôs o chapéu e saiu de casa.
Já era bem tarde quando voltou. Quase 11 horas da noite. Mas David ainda não fora se deitar. Estava sentado à mesa da cozinha, absorvido na leitura da nova Lei da Indústria do Carvão, que acabara de ser promulgada. Levantou os olhos quando Jenny entrou na cozinha. Ela parou logo depois de passar pela porta, o chapéu ligeiramente torto na cabeça, os olhos vidrados, as faces avermelhadas, pequenas veias sobressaindo. Estava completamente embriagada.
- Olá - disse ela, desdenhosamente. - Está ocupado a ganhar dinheiro?
As palavras soaram meio ininteligíveis, mas a expressão no rosto de Jenny era inconfundível. David levantou-se de um pulo, horrorizado. Nunca antes a vira embriagada daquele jeito.
- Deixe-me em paz! - gritou ela, empurrando David e quase caindo. Não quero saber de você! Tire as mãos de cima de mim! Você não me merece!
David sentiu um aperto no coração e suplicou:
- Jenny, Jenny...
Ela balançou outra vez, em sua embriaguez, pôs as mãos nos quadris.
- Você é mesmo um homem maravilhoso, fazendo-me perder o melhor da minha vida neste buraco! Eu me diverti um bocado durante a guerra, quando você estava longe! Mas agora não tenho nenhuma diversão!
- Por favor, Jenny - implorou David, paralisado pela angústia. - É melhor você se deitar.
- Não quero me deitar! - gritou ela. - Não quero me deitar para você. ..
Contemplando-a, David pensou subitamente no filho que ela lhe dera. A angústia pela degradação de Jenny agora tornou-se insuportável.
- Pelo amor de Deus, Jenny, trate de se controlar. Mesmo que eu não signifique nada para você agora, pense em nosso filho, pense em Robert. Não tenho falado a respeito, pois não queria magoá-la. Mas será que essa recordação nada significa para você?
Ela desatou a rir, incontrolavelmente, o riso da embriaguez, até que a saliva escorria de sua boca.
- Há muito tempo que eu venho pensando em lhe contar tudo! Nosso filho? Por Deus que se tem em alta conta, até demais. Como sabe que era seu?
Sem entender direito, David ficou olhando-a em silêncio, com uma expressão de repulsa estampada no rosto. O que deixou Jenny ainda mais enfurecida. E ela gritou, estridentemente:
- Seu imbecil! O filho era de Joe!
David compreendeu. Ficou terrivelmente pálido. Segurou-a vigorosamente pelo ombro, comprimiu-a contra o umbral da porta.
- É mesmo verdade?
Fitando-o, com os olhos ainda vidrados, mas subitamente sóbria pelo choque, Jenny compreendeu que fora longe demais. Nunca tivera a-menor intenção de revelar a verdade a David. Aterrorizada, ela começou a chorar. Desmoronou por completo. Apoiando-se nele, chorou até a histeria.
- Oh, Deus! Perdoe-me, David! Eu sou má, uma mulher horrível! Nunca mais quero saber dos homens! Nunca mais! Quero ser boa, sempre boa!
Não estou me sentindo bem! É esse o problema! Não estou passando bem e tenho de tomar um copo de vez em quando para recuperar as forças!
E ela continuou a se lamuriar, interminavelmente. com um rosto frio e impassível, David levou-a para o sofá, amparando-lhe a cabeça descaída com a mão. Jenny pôs-se a bater com os pés no chão, no frenesi de sua histeria.
- Dê-me outra chance, David! Pelo amor de Deus, dê-me outra chance! Não sou tão má assim! Juro que não sou! Ele me envolveu inteiramente, mas tudo acabou há muitos anos! Você mesmo pôde ver esta noite! Parecia até que eu era um capacho sob os pés dele! E você é o melhor homem do mundo, David, o melhor homem que já existiu! Eu estou muito cansada, David, estou doente, terrivelmente doente! Há séculos que não tiro umas férias e não estou passando bem! Se você me desse outra chance, David, David, David...
Ele desviou os olhos dela, com uma expressão sombria, deixando-a continuar a falar, deixando-a esgotar toda a agonia de seu remorso. Uma terrível angústia lhe comprimia o coração, fora terrível o golpe que Jenny desferira. Ele amava a recordação do pequeno Robert, guardada como um grande tesouro em seu coração. E Jenny conseguira macular até mesmo isso!
Jenny finalmente parou de se lamuriar, o bater nervoso dos pés cessou. Houve silêncio. David respirou fundo e depois disse, a voz perfeitamente controlada:
- Não vamos mais falar sobre isso, Jenny. O que você disse é a pura verdade. Não está passando bem. Acho que lhe faria bem se passasse algum tempo longe daqui. Não gostaria de ir para a fazenda de Dan Teasdale, em Sussex? Eu poderia providenciar tudo facilmente. Tenho mantido contato com Dan.
- Ir para a fazenda? - balbuciou Jenny, levantando o rosto, ao mesmo tempo agoniado e extasiado. - Em Sussex?
- Isso mesmo.
- Oh, David! - Jenny recomeçou a chorar; a súbita perspectiva era maravilhosa, David era maravilhoso, tudo era maravilhoso. - Você é tão bom para mim, David! Aperte-me em seus braços e diga que ainda me ama!!
- Vai prometer não tocar em bebida por lá?
- Eu juro, David, eu juro!
Soluçando, Jenny lançou-se a um discurso de boa vontade e devoção.
- Está certo, Jenny. vou cuidar de tudo.
- Oh, David - soluçou ela, agarrando-o e apertando-o - você é o melhor homem que já existiu!
Uma manhã, no início de junho, o mês seguinte, David levou Jenny à Central Station, em Tynecastle. Fora muito simples acertar tudo com Grace Teasdale para Jenny passar uma temporada em Wirush. Grace adorara a ideia. A quantia semanal que David podia pagar era bem pequena. Mas, pela carta simples e franca de Grace, David tinha a impressão de que seria bem recebida.
Jenny estava emocionada. O excitamento das férias lhe subira à cabeça, deixando as faces coradas e os olhos brilhantes. Sentia-se afetuosa, terna, arrependida. Imaginava-se a alimentar as galinhas, acariciar os cordeirinhos, voltar a David ao final das três semanas purificada e santificada, mais linda do que nunca. Oh, seria maravilhoso!
Ela ficou parada com David junto da porta aberta do compartimento, o canto do assento, de frente para a locomotiva, reservado por uma pequena pilha de embrulhos e uma revista. Ela pensou que era ótimo que David lhe tivesse comprado uma revista... não que aprovasse muito a escolha dele, mas era correto para uma dama partir numa viagem com uma revista. E Jenny sempre se sentia imensamente feliz quando estava fazendo a coisa correta. Ela ficou conversando com David, lançando-lhe olhares patéticos de vez em quando, indicando o seu arrependimento e o desejo sincero de emendar-se. Ele estava muito calado. Jenny se perguntara muitas vezes o que ele pensava a respeito... ahn... do que ela tão tolamente deixara escapar. Havia ocasiões em que sentia vagamente que David esquecera tudo ou então não acreditava absolutamente, pois jamais se referia ao assunto. De qualquer forma, Jenny estava convencida de que ele a perdoara, o que muito lisonjeava a sua vaidade. Ela não tinha a menor ideia do golpe terrível que a revelação representava para David. Ele sempre acreditara que Jenny lhe era totalmente fiel. Acalentara a recordação do pequeno Robert com uma profunda ternura. E numa frase que escapara em sua embriaguez, Jenny destruíra tudo. Ele sofria terrivelmente. Mas porque não a acusava, não a interrogava, não lhe arrancava todos os sórdidos detalhes e depois a espancava brutalmente, Jenny pensava que ele não sofria. Ela não conhecia realmente David. Não podia entender que era a força e a excelência de seu caráter que o mantinha calado. No fundo de seu coração, Jenny estava perplexa, mas satisfeita, talvez um pouco desdenhosa.
Jenny olhou para o relógio grande no final da estação.
- Está quase na hora, David.
Ela entrou no compartimento e fechou a porta. O apito soou. Ela deulhe um abraço. E suas últimas palavras foram:
- Vai sentir saudades minhas, não é mesmo, David?
Depois, Jenny recostou-se confortavelmente, com um suspiro de satisfação. Foi uma viagem longa, mas passou rapidamente, entre a revista e os sanduíches, um exame interessante dos outros passageiros. Jenny orgulhava-se de sua capacidade de situar as pessoas. Bastava-lhe um olhar para saber tudo o que uma pessoa usava, quanto custara, se o diamante era verdadeiro ou falso, se a pessoa tinha ou não "classe de verdade".
Às duas horas, Jenny mudou de trem. Às três horas, ela seguiu pelo corredor até o vagão-restaurante, onde tomou um chá e teve uma conversa refinada com um rapaz louro e simpático na mesma mesa. Ou melhor, ele estava na mesa ao lado, mas levantou-se e veio sentar-se à mesa de Jenny. Ela achou engraçado que ele fosse caixeiro-viajante. com uma risadinha interior, recordou o caixeiro-viajante calvo que inventara para David durante a lua-de-mel em Cullercoats. Ah, David querido! Ela mostrou-se bem distante do rapaz louro e simpático, apenas polidamente interessada quando ele contou que vendia instrumentos cirúrgicos. Em suma, comportou-se como uma verdadeira dama, apertando-lhe a mão de leve ao se despedirem.
Às quatro e meia, Jenny chegou a Barnham Junction e Dan recebeu-a na estação. Dan parecia grande, saudável e feliz. Usava uma túnica do exército aberta no pescoço, perneiras e calça de veludo pique. Dan tinha uma baratinha Ford, a traseira como um caminhão, onde pôs a mala de Jenny, levantando-a como se fosse uma pena. E depois partiu para Winrush e a fazenda.
Jenny ficou deliciada com a fazenda e a recepção de Grace deixou-a ainda mais deliciada. Grace tinha um chá esplêndido já pronto, com ovos colhidos naquele mesmo dia, pão-de-ló e pequenos bolinhos. Jenny achou os bolinhos deliciosos e Grace explicou que eram bolos de chapa de Sussex. Todos se sentaram juntos, Jenny, Grace, Dan, a pequena Caroline Ann e Thomas, o bebé, empoleirado numa cadeira alta, à direita de Grace. Sentaram-se na cozinha de lajes de pedra e Jenny ficou extasiada com os bolos de chapa, os ovos e Thomas. Jenny estava extasiada com tudo. E disse que tudo era maravilhoso.
Depois do chá, Grace levou Jenny numa volta pela fazenda, explicando que era muito pequena, apenas 40 acres, haviam-na arrendado do velho Mr. Purcell. Grace não escondeu o que a esperta Jenny já percebera claramente. Grace disse com a mais comovente simplicidade que Dan e ela não tinham uma vida fácil. A criação de galinhas, que era a principal atividade a que Dan se dedicava, era um trabalho árduo, proporcionando pouco lucro. Mas teriam alguns hóspedes pagantes no verão e os hóspedes pagantes sempre pagavam, comentou Grace, sorrindo. Grace sorria a todo instante, pois sentia-se muito feliz com Dan, Caroline Ann e Thomas. Tinha de trabalhar arduamente, mas era feliz. Arrancara Dan da Neptune, estavam muito longe da maldita mina, isso era tudo o que importava. Quanto a dinheiro, acrescentou Grace... ora, dinheiro não tinha a menor importância!
Comovida pelas confidências de Grace, Jenny concordou efusivamente. com alguma emoção por ser capaz de corroborar o argumento de Grace, ela disse que era exatamente isso o que meu David costuma falar a respeito de dinheiro.
Cansada da viagem, Jenny foi se deitar cedo naquela noite. Dormiu profundamente e acordou com o sol brilhando lá fora, as árvores balançando suavemente à brisa que soprava, uma vaca mugindo. Ah, mas como tudo isso é maravilhoso!, pensou Jenny, espreguiçando-se na cama. Houve uma batida na porta.
- Entre - disse Jenny, sentindo-se maravilhosamente bem.
Uma moça rechonchuda, a única criada de Grace, que vinha todos os dias da aldeia, entrou no quarto, trazendo o chá de Jenny. O nome da moça era Peg. As faces eram vermelhas como cerejas e os pés imensos, as pernas maciças. Jenny compreendeu no mesmo instante que se divertiria muito às custas das pernas de Peg. .. as pernas de Peg eram um verdadeiro pagode!
Depois de tomar o chá, Jenny levantou-se, vestiu o chambre e as chinelas verdes, com o passamane de marabu. Sentia-se extremamente elegante. Foi para o banheiro. Era uma casa antiga, com as tábuas enceradas, sem papel nas paredes. Mas Grace fora ativa com o pincel e as paredes bem pintadas faziam um contraste agradável com a madeira escura e velha. O banheiro também era bastante agradável, simples, esmaltado. Jenny tomou um banho. Em casa, Jenny nunca tomava banho pela manhã. Mas quando estava na casa de outras pessoas, é claro que... ora, nada mais natural!
Depois de comer alguma coisa, Jenny vagueou sozinha pela fazenda, descobrindo um novo encantamento a cada passo. As galinhas tão graciosas, o cheiro maravilhoso do estábulo, a horta de Grace com saxífragas, os bacorinhos que fugiam diante dela. Ah, a vida rural é maravilhosa!, pensou Jenny, num êxtase romântico.
Às 11 horas, Grace perguntou a Jenny se não queria nadar um pouco. Grace explicou que, no verão, ela, Dan e a "família" davam um mergulho todos os dias, por mais ocupados que estivessem. Sorrindo, disse que ela e Dan haviam jurado jamais abandonar esse ritual. Jenny não sabia nadar, mas acompanhou-os alegremente até a praia, uma pequena faixa de areia no final da propriedade.
Jenny ficou na praia, enquanto Grace, Dan e "a família" entravam na água. Dan carregava Caroline Ann e Grace levava Thomas, de apenas seis meses. Divertiram-se enormemente na água rasa. Depois, enquanto as duas crianças ficavam deitadas na areia quente, Grace e Dan saíram nadando. E nadaram para bem longe, nadaram maravilhosamente. Ao voltarem, pareciam exatamente com a fotografia na capa da revista de Jenny. Ela sentiu um estranho aperto na garganta. O corpo esguio e forte de Grace era bronzeado, empertigada, despreocupada! E ela pôs-se a brincar com Dan, um jogando o pequeno Thomas para o outro, como se fosse uma bola. E como o bebé estava gostando!
Caroline Ann corria ao redor, gritando de prazer, implorando ao pai e à mãe que deixassem Thomas cair, Mas mamãe e papai não deixaram o bebé cair. Dan finalmente puxou as pernas de Caroline Ann e todos rolaram gloriosamente pela areia.
A meia hora de folga de Dan acabou e ele voltou correndo, a fim de seguir no Ford para Fittlehampton. Jenny voltou com Grace, pensativa. Que importância tinha o dinheiro para aquelas pessoas felizes? Eram todos maravilhosamente saudáveis, com ar fresco para respirarem, o mar para se banharem, o sol para esquentá-los.
Logo depois do almoço, Jenny sentou-se e escreveu para David uma carta de quatro páginas, manchada de lágrimas, exaltando as maravilhas da vida simples e os prazeres da vida no campo. Seguiu a pé até Barnham Junction para despachá-la e sentiu-se pura e sublimada. Sabia que estava se encontrando. Poderia ser como Grace, se quisesse... e por que não? Ela sorriu. Ternamente, tentou afagar um cordeiro que enfiava o focinho pela sebe em sua direção. Mas o cordeiro fugiu e foi parar no meio do campo. Não tinha importância. Era tudo maravilhoso demais para exprimir com palavras.
O dia seguinte amanheceu claro e ensolarado, assim como o outro e o outro. Tudo continuava a ser maravilhoso. Pensando melhor, talvez não fosse tão completamente maravilhoso. Mas Jenny podia compreender que era preciso tempo para se acostumar com as coisas. Era por isso que, embora ainda gostasse da fazenda, já não gostava tanto como no começo. Era tão estranho! Jenny sorriu para si mesma, no sábado seguinte, sentada na praia a fumar um cigarro, sozinha. Não podia dizer que Dan e Grace não a estavam tratando bem. Ao contrário, Dan e Grace eram perfeitos. Mas ela tinha de admitir que a fazenda era um tanto insípida. Não havia uma única outra pessoa na praia, muito menos uma banda, uma calçada para se passear. E ela já estava cansada de dar comida às galinhas. E os porcos... ela odiava a simples visão dos animais repulsivos!
Jenny levantou-se. Sentindo que precisava fazer alguma coisa, decidiu ir a pé até Barnham. Lá chegando, comprou outro maço de cigarros e um jornal matutino. Entrou depois no Merrythought e tomou um copo de porto. Mas que buraco! Será que eles tinham mesmo a desfaçatez de chamar aquilo de hotel? E ela estava com a sua melhor aparência, conforme podia constatar pelo espelho de anúncio na parede oposta. Estava com a sua melhor aparência e não havia ninguém para admirá-la, a não ser a velha encarquilhada no Merrythought que a fitou com uma expressão desconfiada e quase se recusou a servi-la. A velha estivera alimentando suas galinhas. Oh, Deus, pensou Jenny, será que nunca vou conseguir escapar das malditas galinhas?
Ela voltou à fazenda dominada pela raiva, subiu direto para o seu quarto e começou a ler o jornal. Era um jornal de Londres. Jenny adorava Londres, lá estivera quatro vezes em toda a sua vida, amara cada momento. Ela leu todas as notícias sociais e depois passou a ler os anúncios. Os anúncios eram inegavelmente interessantes, especialmente os que se referiam a vendedoras com experiência. Naquela noite, Jenny foi se deitar bastante pensativa. No dia seguinte estava chovendo.
- Oh, Deus! - murmurou Jenny, olhando consternada para a chuva. Um domingo de chuva!
Ela recusou-se a ir à igreja, ficou vagueando de um lado para outro, perdeu a paciência com Caroline Ann. De tarde, Grace foi deitar-se enquanto Dan saía para o estábulo, a fim de cuidar do feno. Cinco minutos depois, Jenny entrou no estábulo.
- Ei! - gritou ela para Dan, jovialmente, lançando-lhe um olhar brejeiro, os pés coquetemente separados.
Dan fitou-a, muito simples, sem sorrir.
- Olá - disse ele, virando-lhe as costas e voltando a trabalhar vigorosamente com o feno.
Jenny ficou desolada. Continuou ali por mais um minuto, a fim de resguardar seu orgulho. Deveria ter imaginado que Dan não tinha olhos para outra mulher além de Grace. Além do mais, ele não passava de um matuto. Jenny saiu para a chuva.
No dia seguinte, continuava a chover. O descontentamento de Jenny foi aumentando. Por quanto tempo mais teria de suportar aquele buraco nojento e desagradável? Mais 12 dias! Jamais conseguiria suportar por tanto tempo. Nunca! Queria um pouco de vida, um pouco de diversão, não era do tipo talhada para aquela miséria insossa. Começou a culpar David por mandá-la para aquele buraco, passou mesmo a odiá-lo. Isso mesmo, era ótimo para ele, certamente estava se divertindo a valer em Tynecastle. Jenny sabia perfeitamente o que os homens faziam quando suas mulheres estavam longe. David estava fazendo tudo o que queria, enquanto ela ficava presa ali, naquele buraco.
À sua maneira, Jenny pôs-se a analisar todo o problema de suas relações com David. Não ia mais suportar. Por que deveria? Podia ganhar quatro libras por semana por sua própria conta e ainda por cima divertir-se em Londres. Além do mais, realmente não amava David.
O sol reapareceu no dia seguinte, um sol glorioso. Mas não despertou qualquer reação em Jenny. As portas e janelas da casa estavam escancaradas, uma brisa maravilhosa soprava. Grace estava fazendo geléia de cereja, uma deliciosa geléia, com cerejas de seu próprio pomar. Afogueada e feliz, ela movimentava-se incessantemente pela cozinha grande. Achou que Jenny estava um pouco abatida. Depois de ordenhar a vaca Guemsey, ela pôs um copo de leite espumante na mesa, para Jenny.
- Não gosto de leite - disse Jenny, mal-humorada, saindo em seguida para o pátio ensolarado.
As abelhas zumbiam sobre as flores, Dan estava no canto cortando lenha. - - o machado descrevia um arco faiscante maravilhoso. .. o gado pastava pelo campo, à sombra. Era uma cena deslumbrante.
Mas não para Jenny. Ela odiava tudo aquilo agora, odiava e odiava. Sonhava com Londres, seu coração estava seduzido por Londres, ansiava pelo barulho, o movimento e o encanto das ruas. Angustiada, ela foi a Barnham e comprou um jornal. Ficou parada no lado de fora da loja, lendo os anúncios, sempre muitos anúncios. Tinha certeza de que poderia obter um dos empregos anunciados. Apenas para se distrair, foi à estação e perguntou o horário dos trens para Londres. Um expresso partia às quatro horas. A decisão de Jenny foi tomada subitamente. Naquela tarde, enquanto Grace estava ocupada a fazer chá, Jenny arrumou sua mala e partiu, furtivamente. Pegou o expresso das quatro horas para Londres.
Quando foi chamar Jenny e descobriu que ela fizera a mala e fora embora, Grace ficou profundamente transtornada. Desceu correndo para a cozinha.
- Dan! Jenny foi embora. O que será que fizemos?
Dan parou de espalhar a nova geléia de cereja sobre uma fatia grande de pão.
- Quer dizer que ela se foi, hem?
- Isso mesmo, Dan. Será que nós a ofendemos? Não pode imaginar como isso me deixa aflita.
Dan voltou a se concentrar no pão e na geléia. Deu uma enorme mordida e depois disse, mastigando lentamente:
- Eu não ficaria muito aflito no seu lugar, Grace querida. Acho que ela não valia grande coisa.
O comentário provavelmente indicava que Dan não era tão matuto quanto Jenny imaginara.
Naquela noite, Dan empenhou-se em escrever uma carta para David. Escreveu que lamentava profundamente que Jenny fosse obrigada a interromper sua estada em Winrush e acrescentou que esperava que ela chegasse em casa sã e salva.
David recebeu a carta ao final da tarde seguinte e prontamente ficou apreensivo. Jenny ainda não chegara. Ele olhou para a mãe, que viera cuidar da casa, na ausência de Jenny. Mas não disse nada. Tinha o pressentimento de que Jenny chegaria no dia seguinte. Apesar de tudo, ainda amava Jenny. E estava convencido de que ela voltaria para casa.
Mas Jenny não voltou.
Gentilmente, ternamente, Tia Carrie empurrou a cadeira de rodas de Richard pelo gramado até o laburno, com as flores amarelas desabrochando. Era um dia quente e ensolarado, a árvore projetava uma sombra agradável sobre a grama. Naquela sombra, com muito espalhafato, Tia Carrie começou a ajeitar Richard. Primeiro, havia o apoio de madeira que ela mandara Bartley fazer especialmente para os pés dele. Havia também a garrafa de água quente, de alumínio, já que mantinha o calor por mais tempo. Havia ainda a manta, envolvendo-o cuidadosamente. Tia Carrie sabia exatamente do que Richard gostava e sentia a maior alegria em satisfazer-lhe todos os caprichos, especialmente porque sabia que ele estava finalmente se recuperando.
Tia Carrie jamais esqueceria a primeira indicação de que Richard estava se recuperando. Acontecera há três meses e uma semana, exatamente. Naquele dia, Richard lhe falara. Deitado na cama, como um tronco inanimado, os olhos revirando na cabeça, como se acompanhasse todos os movimentos dela pelo quarto, Richard murmurara:
- É você... Caroline.
Tia Carrie quase desmaiara, num êxtase indescritível, como uma mãe que ouve a primeira palavra do primogénito.
- Sou eu mesma, Richard... - balbuciara ela, levando a mão ao peito.
- Caroline. .. Caroline...
Ele murmurou:
- O que eu falei?
E depois perdeu o interesse. Depois daquilo, porém, nada importava. Richard falara.
Inebriada por aquele sinal auspicioso, ela redobrara suas atenções, lavando-o cuidadosamente duas vezes por dia, massageando-lhe as costas todas as noites com álcool metilado, antes de espalhar talco. Fora difícil evitar as escaras da cama, mas ela conseguira, frequentemente mudando os lençóis molhados até quatro vezes por dia. Ela estava recuperando Richard. Pouco a pouco, os movimentos dele foram voltando, ligeiramente, os movimentos do lado paralisado. Tia Carrie massageava-lhe o braço direito por uma hora inteira, da mesma forma como antigamente escovava os cabelos de Harriet. Enquanto ela o massageava, os olhos embaçados de Richard fitavam-na de alto a baixo, não sem alguma ironia. E muitas vezes ele murmurava:
- Você é uma boa mulher, Caroline... Mas eles estão interferindo comigo. .. eletricidade...
Era uma das ilusões de Richard, a de que estavam aplicando correntes elétricas através de seu corpo. Agora, à noite, sempre pedia a Caroline que afastasse sua cama da parede, a fim de que não pudessem enviar eletricidade do quarto contíguo. Ele pediu com a voz engrolada, misturando as sílabas, algumas vezes omitindo palavras inteiras.
Poderia haver alguma procedência naquelas ideias sobre correntes elétricas, assim como poderia não haver. Tia Carrie simplesmente não queria se comprometer. Não lhe passava pela cabeça contestar o julgamento de Richard. A ideia de Tia Carrie era interessá-lo pelas coisas, tirá-lo de si mesmo. Isso a fez pensar na Sra. Humphry Ward, sua autora predileta, que nos momentos de aflição espiritual sempre lhe proporcionara consolo e cura. Foi assim que ela começou, todas as manhãs e às vezes no final da tarde, a ler em voz alta para Richard, começando por Lady Rose's Daughter, talvez com algum egoísmo, já que era o seu livro predileto. Quando chegou ao grande momento de renúncia, as lágrimas escorriam abundantemente pelas faces de Tia Carrie. E Richard ficava olhando para o teto ou revirando as roupas, às vezes enfiando o dedo na boca. Ao final de um capítulo, ele comentava:
- Estão interferindo comigo. - E acrescentava, em voz mais alta: Eletricidade.
com o advento do bom tempo, ela passou a sair com Richard na cadeira de rodas, a fim de respirar um pouco de ar fresco. E com Richard acomodado no gramado, Tia Carrie avançou mais um estágio em seu processo de cura, pondo o livro aberto na mão direita dele e proporcionando-lhe o prazer de ler pessoalmente a Sra. Ward. Richard parecia gostar muito da Sra. Ward. Ele começou pondo Lady Rose's Daughter nos joelhos, tirando o relógio, olhando-o, tornando a guardá-lo. Depois, pegou um lápis e, desajeitadamente, com grande esforço, usando a mão esquerda, escreveu na margem da página: Começo 11,15. Depois de ler quatro páginas, ele escreveu ao pé da última página: 72,75 x 4. Fim do turno. Contemplou a escrita trémula, quase indecifrável, com uma expressão de triunfo infantil.
Naquela manhã ensolarada de maio, no entanto, depois que Richard estava acomodado e antes que ele pudesse pedir-lhe o livro, Tia Carrie sentou no banco ao lado e disse:
- Recebi uma carta de Hilda esta manhã, Richard. Ela foi aprovada em mais um de seus exames. Gostaria de ouvir o que ela escreveu?
Ele olhou distraidamente para as flores amarelas do laburno.
- Hilda é uma boa mulher... você também é uma boa mulher, Caroiine - Uma pausa e ele acrescentou: - Harriet era uma boa mulher.
Tia Carrie, sempre hábil em interpretar favoravelmente aquelas pequenas excentricidades, continuou jovialmente:
- O progresso de Hilda tem sido realmente esplêndido, Richard. Ela diz que se sente muito feliz em seu trabalho. Escute, Richard.
Ela leu a carta de Hilda, datada de 14 de maio de 1920, escrita de um endereço em Chelsea. Leu devagar, pronunciando cada palavra nitidamente, empenhando-se em manter Richard interessado e informado. Mas no momento em que ela acabou, Richard lamuriou-se:
- Por que eu não recebo cartas? Nunca me mandam cartas. Onde está Arthur? Ele é o pior de todos... O que Arthur está fazendo na Neptune? Onde está meu livro?... Quero meu livro.
- Pois não, Richard. - Tia Carrie tratou de acalmá-lo rapidamente e entregou-lhe o livro de escrever. - Aqui está.
com o livro nos joelhos, Richard ficou observando-a fixamente, até que ela pegou o trabalho de tricô e nele concentrou-se. Protegendo o livro contra olhos curiosos com a mão encurvada e paralítica, Richard pôs-se a escrever, com a mão esquerda.
Em defesa da Neptune, notas adicionais ao Memorando... Fez uma pausa, olhando furtivamente para o relógio... 72,22 x 3,14 e considerando daqui por diante...
Foi nesse momento que um ruído perturbou-o. Num pânico de suspeita, fechou desajeitadamente o livro. Ann estava se aproximando pelo gramado, com seu leite. Ele ficou observando Ann se aproximar e gradativamente seu rosto foi se desanuviando, até que lhe estava sorrindo e acenando com a cabeça... Ann era também uma boa mulher. Ann parecia consciente do sorriso dele e dos acenos com a cabeça, pois entregou a bandeja a Tia Carrie, evitando cuidadosamente olhar para Richard, depois afastou-se rapidamente.
Richard ficou consternado, depois furioso, recusou-se a tomar o leite.
- Por que ela foi embora? Por que Arthur não vem? O que ele está fazendo? Onde ele está?
As perguntas saíam incoerentemente de seus lábios.
- Está tudo bem, Richard - murmurou Tia Carrie. - Ele está na mina, é claro. Você sabe que ele estará em casa daqui a pouco, para o almoço.
- O que ele está fazendo? O que está escondendo de mim?
- Nada, Richard, absolutamente nada. Você sabe muito bem que ele sempre lhe fala e conta tudo. Tome seu leite... Cuidado! Está derramando tudo! Pronto! Quer seu livro outra vez? Está bem. Não se preocupe. Está tudo certo.
- Não, não está nada certo. Ele não compreende. Não tem cabeça... e está estragando tudo. Está tentando me manter aqui. Eletricidade... pelas paredes. Se ele não tomar cuidado... - Os olhos embaçados fixaram-se em Tia Carrie. - ...se ele não tomar cuidado, vai acabar se metendo em encrenca. Um acidente. .. um desastre... um inquérito. Um absurdo total!
- Está certo, Richard.
- Tenho de falar com ele outra vez... tenho de insistir... não há ocasião melhor que esta.
- Tem razão, Richard.
- Pois então pegue este copo e pare de falar. Você fala sem parar. Isso me impede de trabalhar.
Outro ruído o perturbou. Era Arthur que subia de carro pelo caminho. com a mesma pressa furtiva, Richard entregou o copo vazio a Tia Carrie e depois ficou esperando Arthur, com uma grande simulação de despreocupação Mas, por baixo, ele estava tremendo de ressentimento e desconfiança.
Arthur atravessou o gramado na direção do laburno. Estava de calção grande, preso nos joelhos, botas de mineiro. Os ombros estavam vergados, como se andasse trabalhando arduamente. O que de fato acontecia, há mais de um ano. Arthur vinha se empenhando a todo vapor, consciente de sua própria tensão nervosa, mas decidido a não relaxar, enquanto não estivesse tudo concluído. Finalmente, as melhorias na Neptune estavam quase prontas. Os banheiros já haviam sido concluídos, os vestiários ficariam prontos ao final de junho, copiando o modelo mais moderno, instituído pela Sandstríim Obergamt. Todo o setor acessório fora remodelado, os velhos ventiladores removidos e substituídos por modernas bombas de ar, os guindastes renovados, tudo fixado em concreto, uma nova casa de força. Era quase impossível reconhecer aquela nova Neptune. Perdera inteiramente a aparência desleixada antiga, parecia agora eficiente e segura.
Quanto esforço ele precisara desenvolver para conseguir isso! E quanto dinheiro tivera de investir! Mas o esplendor de sua criação recompensava-o plenamente. É claro que houvera dificuldades ocasionais. Os homens duvidavam às vezes de suas intenções, pois seu comportamento na guerra fizera com que se tornasse suspeito. Além disso, o temperamento dele muitas vezes o traía, levando-o a acessos de melancolia, quando se sentia desamparado e sozinho.
Era esse o ânimo que o dominava no momento que se aproximou de Barras. Fez com que sua voz se tornasse mais gentil e mais tolerante do que o habitual.
- Como está, pai?
Barras fitou-o com uma grotesca pretensão de autoridade.
- O que estava fazendo?
- Desci na Globe esta manhã - respondeu Arthur, suavemente, contente por poder conversar com o pai. - É onde estamos trabalhando agora.
- Na Globe?
- Isso mesmo, pai. Não há uma grande demanda para o nosso carvão no momento, pai. E estamos recebendo 55 shillings por tonelada.
- Cinquenta e cinco shillings. - Um brilho momentâneo de inteligência insinuou-se nos olhos de Barras; ele parecia ultrajado, na reação de probidade ofendida. - Eu recebia 80 shillings por aquele carvão. Está errado... errado. Você está fazendo alguma coisa... me escondendo alguma coisa.
- Não estou escondendo nada, pai. Deve se lembrar que os preços caíram. - Arthur fez uma pausa. - O carvão caiu mais dez shillings na semana passada.
A luz desvaneceu-se do rosto de Barras, mas ele continuou a olhar para Arthur com uma expressão desconfiada, enquanto prosseguia intensamente a luta em sua mente avariada. E, finalmente, ele murmurou:
- O que eu estava dizendo? - Uma pausa. - Conte-me... conte-me... conte-me o que estava fazendo.
Arthur suspirou.
- Já tentei explicar antes, pai. Estou fazendo o melhor possível para a Neptune. Segurança e eficiência... uma política decente de cooperação. Tem de compreender, pai, que um homem sempre retribui da mesma forma quando é tratado com justiça. É o primeiro princípio da razão.
A reação de Barras foi violenta. As mãos começaram a tremer, ele parecia a pique de chorar.
- Está gastando dinheiro. Já gastou dinheiro demais.
- Gastei apenas o que já deveria ter sido gasto há muitos anos. E você sabe disso muito bem, pai.
Barras fingiu não escutar.
- Estou com raiva... estou com raiva de você por gastar lodo esse dinheiro... gastar todo esse dinheiro da maneira errada.
- Por favor, pai, não fique tão transtornado. Sabe que não pode aguentar.
- Não posso admitir! - O sangue afluiu ao rosto de Barras. Ele passou a balbuciar. - Você é um idiota! Espere só até eu voltar à mina na próxima semana. Espere e vou lhe mostrar tudo na próxima semana.
- Está bem, pai - murmurou Arthur.
O gongo soou na casa, anunciando o almoço. Arthur virou-se e seguiu para a casa.
Barras esperou, tremendo de raiva, até que Arthur desaparecesse pela varanda da frente. Depois, voltou a assumir uma expressão de astúcia infantil. Tateou por baixo da manta com um olhar furtivo para Tia Carrie, pegou o livro e escreveu:
Em defesa da Neptune. Indagar na próxima semana sobre dinheiro gasto contra a minha vontade. É essencial lembrar que estou no controle. Memorando. Durante ausência temporária da mina, vigiar atentamente principal inimigo.
Ao terminar, ele contemplou o que escrevera com uma satisfação infantil. Depois, com uma inocência furtiva, pediu a Tia Carrie que o levasse de volta à casa.
David acordou naquela manhã com o pensamento agradável de que iria encontrar-se com Harry Nugent. Geralmente seu primeiro pensamento ao acordar era para Jenny - a estranha recordação de que ela fora embora, deixara-o, desaparecera no desconhecido. Mas naquela manhã ele pensou primeiro em Harry. Continuou deitado por um momento, pensando em sua amizade com Nugent, naqueles dias na França, os dois ligados pela maca que carregavam, primeiro vazia e leve, depois ocupada e pesada. Quantas dessas jornadas silenciosas não fizera com Harry Nugent!
O barulho de sua mãe lá embaixo e o cheiro de bacon frito um momento depois trouxe-o de volta à realidade. David levantou-se prontamente, fez a barba, lavou-se, vestiu-se e desceu para a cozinha. Embora ainda não fossem oito horas, Martha estava de pé há mais de uma hora, o fogo estava aceso, a grade limpa, a toalha branca na mesa, os ovos com bacon já no prato, à sua espera, saídos da caçarola naquele instante.
- Bom-dia, mãe - disse David, sentando-se e pegando o Herald que estava ao lado de seu prato.
Ela acenou com a cabeça, sem falar. Não tinha o hábito de dar bom-dia ou boa-noite. Todas as palavras de Martha eram palavras úteis, nunca havia qualquer desperdício. Ela pegou os sapatos de David e pôs-se a escová-los, em silêncio.
David continuou a ler o jornal, por mais um momento. No dia anterior, Harry Nugent, Jim Dudgeon e Clement Bebbington haviam inaugurado o novo Instituto, em Edgeley. Havia uma fotografia de Harry e Bebbington em primeiro plano. Subitamente, David levantou os olhos e viu Martha escovando seus sapatos. Ele ficou vermelho e censurou-a:
- Já não lhe disse para não fazer isso? Calmamente, Martha continuou a escovar os sapatos.
- Sempre escovei sapatos, desde o tempo em que havia cinco pares, ao invés de apenas um. Não há motivo para deixar de escovar agora.
- Por que não deixa que eu faça isso? - insistiu David. - Por que não senta e come junto comigo?
- Há algumas pessoas que não mudam facilmente - disse Martha, com um ar de desafio. - Eu sou uma delas.
David estava aturdido. Agora que viera cuidar da casa para ele, a mãe não parava de trabalhar. Providenciava tudo. David nunca fora melhor cuidado em toda a sua vida. E, no entanto, sentia que Martha estava lhe retendo alguma coisa, tinha a impressão de que existia um fator qualquer, sombrio e sarcástico, por trás de cada ação da mãe em prol de seu conforto. Observando-a, David resolveu testá-la, por pura curiosidade:
- vou almoçar com Harry Nugent hoje, mãe.
Martha pegou o segundo sapato, o corpo forte delineado contra a janela, o rosto inescrutável. Soprando no sapato, ela disse, desdenhosamente:
- Disse que vai almoçar?
David sorriu interiormente. Era isso mesmo, ela acabara de se trair. Deliberadamente, ele continuou:
- vou comer alguma coisa em companhia de Harry, mãe, se acha melhor assim. Certamente já ouviu falar dele. Harry Nugent, membro do Parlamento. É meu amigo. Um homem a que vale a pena a gente se ligar.
- É o que parece.
Os lábios de Martha estavam contraídos. David estava achando engraçado, manobrando-a sob o disfarce de estar se gabando.
- Nem todo mundo tem a oportunidade de almoçar com Harry Nugent, membro do Parlamento, um homem importante na Federação. É uma grande honra, mãe.
Ela fitou-o, com um desdém sombrio no rosto e uma amargura na língua, só então percebendo que David estava rindo dela. Ficou vermelha ao pensar que se deixara apanhar na armadilha. Tentou disfarçar, abaixando-se rapidamente para colocar os sapatos perto do fogo. Um sorriso insinuou-se em seus lábios.
- Pode continuar a se gabar. Não vai mais me pegar.
- Mas é verdade, mãe. Sou um homem que sempre acompanha quem está por cima. Sou pior do que pode imaginar. Ainda vai me ver numa camisa a rigor, de peito engomado.
- Não conte comigo para passar essa camisa.
Mas os lábios de Martha estavam contraídos num sorriso. Era um triunfo para a estratégia de David. Ele a fizera sorrir. Uma pausa. Depois, aproveitando o bom humor da mãe, David acrescentou, com uma súbita seriedade.
- Não deve ser sistematicamente contra tudo o que eu faço, mãe. Não estou fazendo as coisas por nada.
- Não sou contra você - respondeu Martha, abaixando-se junto ao fogo para ocultar o rosto. - Apenas não me agrada o que você está fazendo. Todo esse trabalho no Conselho, a política e o resto. Essa história de nacionalização em que está metido... não passa de asneira. Não posso concordar com isso. Nunca foi do meu feitio nem de qualquer dos meus antepassados. No meu tempo e no tempo deles, sempre houve patrão e empregado na mina. É antinatural pensar em qualquer outra coisa.
Houve outro silêncio. Apesar da rispidez na voz da mãe, David sabia que ela estava mais apaziguada, mais bem disposta em relação a ele. Num repentino impulso, resolveu mudar de assunto.
- Outra coisa, mãe.
- O que é? - perguntou ela, desconfiada.
- Sobre Annie e o pequeno Sammy, mãe. Ele é um garoto crescido. agora Annie está criando-o da melhor forma possível. Há muito tempo que estou querendo lhe falar a respeito. Gostaria que esquecesse toda a sua antiga amargura, mãe, e os aceitasse em casa. Gostaria imensamente que fizesse isso, mãe.
O rosto de Martha tornou-se imediatamente impassível.
- E por que eu deveria fazer?
- Sammy é seu neto, mãe. Estou surpreso que isso não a tenha ainda sensibilizado. Tenho certeza de que ficaria, se o conhecesse como eu. E Annie é uma moça maravilhosa, mãe, das melhores que podem existir. O velho Macer está de cama agora, só faz resmungar, reclamar e gemer o tempo todo. Pug não está indo muito bem na mina, eles mal têm o suficiente para sobreviver. Mas a maneira como Annie cuida da casa só pode ser descrita como maravilhosa.
- O que isso tem a ver comigo?
Martha estava com os lábios comprimidos, amargurada. O louvor de Annie deixara-a irritada. David compreendeu que cometera um erro, fora precipitado. Martha insistiu, alteando a voz:
- E então, o que isso tem a ver comigo? Por que devo me preocupar, se eles não prestam para nada?
- Esqueça, mãe - disse David prontamente, voltando a se concentrar no jornal.
Um minuto depois, enquanto ele continuava a ler o jornal, Martha pôs mais bacon em seu prato. Era a sua maneira de demonstrar que não era intransigente, mas generosa, à sua maneira. David não deu atenção. Julgava-a por demais intransigente, mas sabia que falar de nada adiantaria. Falar nunca adiantava com Martha.
Quando faltavam 15 minutos para as nove horas, David dobrou o jornal e levantou-se. Ela ajudou-o a vestir o casaco.
- Não chegue atrasado... mesmo com seu almoço tão importante.
- Não chegarei, mãe.
David sorriu-lhe, antes de sair. Também não adiantava ficar zangado com Martha.
Ele foi andando rapidamente para a estação. A manhã estava fria, já havia uma geada prematura na estrada. Vários homens que desciam dos Terraços para a Neptune cumprimentaram-no. Se fosse propenso a ser vaidoso, pensou David, ironicamente, ali estava a oportunidade. Sabia que se tornara uma personalidade preeminente na cidade, em todo o distrito. Mas compreendia isso sem qualquer vaidade. O cumprimento que recebeu de Strother, ao Passar pela escola, divertiu-o bastante... um olhar meio assustado de reconhecimento, repleto de admiração involuntária. Strother tinha um pavor mortal de Ramage, presidente da Junta Escolar. Sofrera terrivelmente com Rarnage. O assustado Strother deliciava-se com tudo o que David fazia com Ramage e ansiava em apertar-lhe a mão. Era muito engraçado, pois antigamente Strother sempre o encarara com o maior desdém.
No meio da Freehold Street, David avistou as novas casas de mineiros em construção, estendendo-se pela Hedley Road. A distância, viu homens carregando padiolas com tijolos, misturando cimento, construindo, construindo... era algo que o excitava... o estranho simbolismo por trás de tudo, o clima de promessa, de vitória. Se conseguisse demolir inteiramente os Terraços, com seus chãos de pedras quebradas, escadas de madeira, paredes infestadas de bichos e privadas externas, fazendo dez novos conjuntos como aquele, instalando-os - ele pensou nisso com um sorriso - em plena vista da mansão de Ramage, em Sluice Dene...
Ele viajou no trem distraidamente, esquecendo de ler o jornal. Em Tynecastle, seguiu para a Rudd Street ainda pensativo. Na esquina da Rudd Street, no lado de fora de uma loja de jornais, um dos cartazes bradava, em letras enormes: As Minas para os Mineiros. Era um jornal trabalhista. O cartaz ao lado proclamava: Duquesa Monta Pónei em Festa em Park Lane. Não era um jornal trabalhista. David sentiu-se subitamente animado e não era por estar pensando na duquesa.
Heddon ainda não chegara ao escritório. David pendurou o casaco, conversou um pouco com o velho Jack Hetjerington, o zelador, depois foi para a sala interna. Trabalhou durante a manhã inteira. Era meio-dia e meia quando Heddon apareceu, aparentemente irritado, como geralmente acontecia em tais ocasiões, numa atitude brusca e taciturna.
- Esteve em Edgeley, tom? - perguntou David. -Não!
Heddon ficou vasculhando os papéis em cima de sua mesa, procurando por alguma coisa; quando encontrou, deu a impressão de que não era o que estava querendo. Gritou um minuto depois:
- O que você fez com aquelas remessas de Seghill?
- Já arquivei.
- Mas que diabo! Você é um daqueles... conscienciosos!
Heddon fitou David rapidamente e logo desviou os olhos, numa estranha mistura de frustração e afeição. Empurrou o chapéu para trás da cabeça e cuspiu violentamente na direção da lareira.
- Qual é o problema, tom? - indagou David.
- Ora, cale a boca! - respondeu Heddon, bruscamente. - E vamos embora. Está na hora do maldito banquete. Estive com Nugent durante toda a manhã e ele pediu para não chegarmos atrasados. Jim Dudgeon e o Senhor Deus Todo-Poderoso Bebbington também estarão presentes!
Heddon ficou calado enquanto seguiam pela Grainger Street, na direção do North-Eastern Hotel. Ainda faltavam 15 minutos para uma hora e teriam de esperar um pouco ao chegarem ao hotel. Sentaram-se a uma das mesas de vime no salão e Heddon tomou dois drinques, como provavelmente tencionara desde o começo. Depois disso, pareceu melhorar de ânimo. Olhou para David com uma jovialidade um tanto sombria.
- Para dizer a verdade, até que estou contente. Mas vai ser um problema.
- Do que está falando?
- Nada, meu doce... como disse Shakespeare. Ei, lá estão os figurões!
Ele levantou-se no instante em que Harry Nugent, Dudgeon e Clement Bebbington entraram. Também se levantando, David apertou a mão de Harry calorosamente, foi apresentado a Dudgeon e Bebbington. Dudgeon sacudiulhe a mão como um velho amigo, mas o aperto de Bebbington foi frio e distante. Heddon terminou de tomar seu uísque de um gole. Dudgeon sugeriu uma rodada de drinques para todos, mas Harry Nugent simplesmente sacudiu a cabeça e foram para o restaurante.
A sala grande, com as janelas de um lado se abrindo para a tranquilidade da Eldon Square e no outro para a intensa movimentação da North-Eastem Station, estava quase cheia. Mas o maitre recebeu-os pessoalmente e prontamente conduziu-os a uma mesa, fazendo muitas mesuras para Bebbington. Era evidente que reconhecera Bebbington. Clement Bebbington vinha recebendo ultimamente muita atenção pública, alto, frio, discretamente bem vestido, com um ar de superioridade, olhos irrequietos, uma suave cortesia, sorriso desagradável. Tinha um jeito de atrair as atenções, de transformar-se em notícia. Havia nele uma expressão controlada, que provinha de uma ambição desmedida, cuidadosamente oculta por trás de uma carapaça de indiferença entediada. Essencialmente, era um aristocrata, um produto de Winchester e Oxford, frequentava a sociedade de Londres e praticava esgrima todas as manhãs, no Bertrand's, como exercício. Bebbington não revelava se era atraído para o barco trabalhista por convicção ou por razões de saúde, mas concorrera nas últimas eleições por Chalworth Borough, um baluarte dos conservadores, conquistando uma estrondosa vitória. Ainda não estava no Conselho Executivo, mas estava querendo integrá-lo. David detestou-o à primeira vista.
Dudgeon era muito diferente. Como Harry Nugent, Jim Dudgeon participava há muitos anos da Executiva dos Mineiros. Era pequeno, corpulento e jovial, gostava de contar histórias e cantar músicas alegres. Há quase 25 anos que era reeleito por Seghill sem qualquer oposição. Chamava a todo mundo pelo primeiro nome, com a maior familiaridade. Os óculos de aros de osso davam-lhe a aparência de uma coruja velha. Chamou o garçom e, usando as mãos para indicar o tamanho e a espessura, pediu costeleta de carneiro e uma caneca de cerveja.
Todos pediram: Heddon a mesma coisa que Dudgeon, Nugent e David rosbife e puré de batata, Bebbington solha grelhada, torrada Melba e água de Vichy.
- É um prazer tornar a vê-lo - disse Nugent a David, com seu sorriso amistoso e tranquilizador.
Havia sempre uma grande cordialidade em Harry Nugent, uma sinceridade que provinha de sua personalidade franca e inabalável. Como Bebbington, ele não se empenhava em ser convincente. Suas atitudes eram espontâneas, era perfeitamente natural, apenas ele próprio. Naquele dia, porém, David sentiu que havia algum propósito por trás do encorajamento de Nugent. E sentiu também que Dudgeon e Bebbington estavam avaliando-o. Era estranho, muito estranho.
- Até que não é um mau lugar - comentou Dudgeon, mastigando pão, olhando ao redor e esfregando as mãos.
- Gosta de espelhos, não é mesmo? - disse Bebbington, com seu sorriso desagradável. - Esticando o pescoço com algum cuidado, pode experimentar a incalculável satisfação de contemplar seis Dudgeons ao mesmo tempo.
- Tem razão, Ciem, tem toda razão...
Dudgeon continuou a esfregar as mãos, ainda mais jovialmente do que antes. Embora fosse capaz de rir e chorar de pura emoção nos momentos de crise política. Jim Dudgeon era insensível ao ridículo e à injúria pessoal, tanto quanto um hipopótamo.
- É uma bela garota a que está lá no canto, de azul!
- Nosso pequeno Don Juan!
- Sempre tive uma queda pelas louras, Ciem.
- Por que não vai até lá e combina um encontro para esta noite?
- Não, Ciem, acho melhor não fazê-lo. Mas seria uma boa ideia, se não fôssemos pegar o trem das três horas para Londres.
Heddon soltou uma risada e Bebbington, com um espanto frio, pareceu descobri-lo de repente, para esquecê-lo no momento seguinte. Nugent virou-se para David.
- Ouvi dizer que andou muito ocupado movimentando as coisas em Sleescale.
- Não foi tanto assim, Harry - respondeu David, com um sorriso.
-Não acredite nisso! - interveio Heddon, bruscamente. Estava furioso com a arrogância de Bebbington, determinado a não ser humilhado por um mero político de Londres. Tomara uma caneca de cerveja por cima de dois uísques duplos e estava disposto a se impor. - Não tem lido os jornais? Ele acaba de aprovar um plano de casas populares que é o melhor do país. Conseguiu criar uma clínica pré-natal e um programa de fornecer leite de graça às crianças necessitadas. Sempre houve um bando de corruptos por lá o governo local era o alvo de risadas. Mas agora há um homem honesto entre aqueles ladrões e todos estão entrando na linha, com medo de Deus e pedindo para entrar na Banda da Esperança!
Heddon fez uma pausa, tomando um gole imenso da cerveja amarga.
- Se quer mesmo saber, ele arrasou com todo o bando.
Seguiu-se um silêncio. Nugent parecia satisfeito. Dudgeon despejou ketchup sobre sua costeleta e disse, com um sorriso:
- Eu gostaria que também pudéssemos fazer isso com a nossa turma, Harry. Liquidaríamos o Duckham num instante.
À menção do recente Relatório, David inclinou-se para a frente, com um súbito interesse.
- Há alguma perspectiva imediata de nacionalização?
Bebbington e Nugent trocaram um olhar, enquanto Dudgeon retirava-se divertido para trás dos óculos. Pôs um dedo na mesa, diante de David.
- Sabe o que Sir John Sankey propôs em seu Relatório. Todas as instalações e minas de carvão seriam adquiridas pelo Governo. Sabe o que Mr. Lloyd George disse na Câmara dos Comuns, a 18 de agosto. Que o Governo aceita a política de aquisição dos direitos sobre o carvão, algo em que todos os pareceres da Comissão Real foram unânimes. O que mais pode querer? Será que não percebe que a coisa é tão boa como se já fosse um fato consumado?
E com todos os sinais de que estavam achando muito engraçado, Jim Dudgeon desatou a rir incontrolavelmente.
- Estou entendendo - murmurou David.
- A Comissão foi muito engraçada. - Dudgeon riu ainda mais jovialmente. - Deveria ter ouvido a discussão de Bob Smillie com o Duque de Northumberland. Ou como Frank criticou o Marquês de Bute por causa da origem de seu direito a royalties. Tudo veio da assinatura de um garoto de dez anos, Edward VI. Ah, como nos divertimos! Mas, por Deus, isso não foi nada. Eu daria tudo para ter Lorde Kell na minha frente. O tataravô dele ganhou todas as terras de carvão bancando o proxeneta para Charles II. Pode imaginar uma coisa dessas? Milhões em royalties por um fim de semana de arrumar mulher para Sua Majestade!
Dudgeon recostou-se na cadeira e riu estrondosamente, até que os talheres começaram a chocalhar.
- Não acho nada engraçado - disse David, amargurado. - O Governo fez um acordo com a Comissão. No fundo, a coisa não passa de uma trapaça gigantesca.
- Foi exatamente o que Harry disse no plenário da Câmara dos Comuns. Mas isso não fez a menor diferença. Ei, garçom, traga-me mais batatas fritas!
Enquanto Dudgeon falava, Nugent estudava David, recordando longas discussões, os dois agachados por trás de sacos de areia, em seu posto na linha de frente, enquanto a lua iluminava uma desolação de arame farpado, lama e crateras de bombas.
- Ainda se sente muito empenhado na nacionalização? - perguntou ele.
David assentiu, sem falar; naquela companhia, nenhuma outra resposta poderia ser mais eficaz.
Houve uma breve pausa. Nugent interrogou Dudgeon silenciosamente. com a boca cheia de batata, emitiu um som gutural enfático, olhando em seguida para Bebbington, que balançou a cabeça ligeiramente, numa aquiescência neutra. Nugent virou-se finalmente para David.
- Preste atenção ao que vou dizer, David. O Conselho decidiu fundir as três áreas locais que temos aqui e criar um novo distrito. O quartel-general será em Edgeley. E queremos um novo secretário, que será não apenas o Tesoureiro do Distrito, mas também o Secretário de Benefícios para a Associação dos Mineiros do Norte. Estamos procurando por um homem jovem e dinâmico. Conversei a respeito com Heddon esta manhã, mas agora é oficial. Pedimos para que se encontrasse aqui eonosco a fim de lhe oferecermos o cargo.
David olhou atentamente para Harry Nugent, aturdido, sufocado pela oferta. Ficou vermelho.
- Está querendo que eu me candidate ao cargo? Nugent sacudiu a cabeça.
- Seu nome e mais outros três foram submetidos ao comité na semana passada. Este é o comité e você é o novo secretário.
Ele estendeu a mão. Mecanicamente, David apertou-a, o impacto de sua escolha deixando-o atordoado.
- Mas, Heddon...
Ele virou-se bruscamente, fitando tom Heddon, que fora tão obviamente preterido. Seus olhos se enevoaram de consternação. Nugent disse, calmamente:
- Heddon deu-nos as melhores informações a seu respeito.
Os olhos de Heddon encontraram-se com os de David por um momento, em que toda a sua alma, magoada mas brava, ficou à mostra; depois, ele inclinou o queixo, com veemência.
- Eu não aceitaria o cargo por dinheiro nem por amor. Não ouviu dizer que estão querendo um homem jovem? Além do mais, estou grudado na Rudd Street. Não sairia de lá por nada neste mundo.
O sorriso que Heddon exibiu, embora um tanto tenso nos cantos, foi relativamente bem-sucedido. Ele estendeu a mão para David.
Bebbington olhou para o relógio de pulso, fatigado com toda aquela demonstração de emoção.
- O trem parte às três horas - disse ele.
Todos se levantaram e saíram pela porta no lado da estação. Ao atravessarem a plataforma apinhada, Nugent ficou um pouco para trás. Apertou o braço de David e disse:
- Chegou finalmente a sua oportunidade. Uma oportunidade de verdade. Eu queria que você a tivesse. Ficaremos a observá-lo, para verificar como vai se sair.
Um fotógrafo estava esperando ao lado do trem. Ao divisá-lo, Jim Dudgeon pôs os óculos e assumiu uma expressão solene; adorava ser fotografado.
- Os negócios estão melhorando - comentou ele para David. - Esta é a segunda vez que me fotografam hoje.
Ouvindo isso, Bebbington sorriu friamente; tomou o cuidado de postarse em primeiro plano. E comentou:
- Não é de surpreender, levando-se em consideração que fui eu quem providenciou, nas duas vezes.
Harry Nugent não disse nada. Mas quando o trem partiu, a última impressão de David, parado na plataforma, ao lado de Heddon, foi a de extrema serenidade no rosto dele.
No começo do mês de fevereiro seguinte, quando Arthur firmou o contrato com Mawson, Gowlan & Co., sentiu que finalmente a maré estava virando. Os negócios na mina eram deploráveis há cerca de 12 meses. As reparações de guerra, com muito carvão sendo arrancado da Alemanha, haviam prejudicado em larga escala o mercado de exportação, do qual a Neptune dependia consideravelmente. É claro que a França preferia o carvão barato ou de graça da Alemanha ao carvão excelente mas dispendioso de Arthur. E como se isso não fosse o bastante, a América entrara, numa demonstração de ingratidão, na seara europeia, uma concorrente poderosa e implacável nos mercados exclusivos da Inglaterra durante a guerra.
Arthur não era um tolo. Podia compreender claramente que a demanda anterior de carvão na Europa produzira uma inflação artificial do preço de exportação do carvão britânico. Sentiu intensamente a ilusão geral de prosperidade e concentrou seus esforços em contatos com os consumidores locais, procurando se reformular, com a venda do carvão da Neptune no mercado interno.
Aquele contrato de retribuição com a Mawson & Gowlan fora previsto quando a Neptune encomendara seus novos equipamentos, em 1918. Mas Mawson & Gowlan não eram fáceis de lidar e fora somente agora que Arthur conseguira fazer com que cumprissem sua palavra, mesmo assim sendo obrigado a reduzir seus preços ao mínimo.
Apesar disso, seu ânimo naquela manhã era de exultação natural. com o contrato na mão, ele levantou-se e foi até a sala de Armstrong.
- Dê uma olhada nisso - disse ele. - Tempo integral e turno duplo pelos próximos quatro meses.
com uma expressão satisfeita, Armstrong tirou os óculos do bolsinho do casaco - sua vista já não era mais como antes - e lentamente examinou o contrato.
- Mawson & Gowlan, hem? Quando me lembro, senhor, que esse Gowlan trabalhou aqui na mina, no tempo de seu pai e sob as minhas ordens...
Andando de um lado para outro da sala, Arthur riu, sem qualquer humor.
- É melhor não lembrá-lo disso, Armstrong. Ele estará aqui às 10 horas. Por falar nisso, eu queria que você fosse testemunha de nossas assinaturas.
- Ele é agora um figurão em Tynecastle. - Armstrong ficou pensando por um momento. - Mawson e ele estão metidos em meia dúzia de negócios. Já soube que eles assumiram a Youngs. .. deve conhecer, senhor, aquela fundição de latão de Tynecastle que estourou no mês passado.
- Eu já sabia - disse Arthur, bruscamente, como se a lembrança de outra falência local o deixasse irritado. - Gowlan está se expandindo. Foi por isso que obtivemos este contrato.
Armstrong olhou para Arthur por cima dos aros de ouro dos óculos, depois tornou a concentrar-se no contrato. Leu tudo, meticulosamente, os lábios formando cada palavra. Depois, sem olhar para Arthur, ele comentou:
- Há uma cláusula de multa. -Claro.
- Seu pai jamais aceitou uma cláusula de multa.
Arthur sempre ficava irritado quando a sombra do seu pai se projetava para censurá-lo. Pôs-se a andar de um lado para outro um pouco mais depressa, as mãos cruzadas nas costas. E declarou, com uma veemência nervosa:
- Não se pode escolher atualmente. É preciso fazer concessões aos clientes. Se não o fizer, algum outro fará. Além do mais, podemos cumprir esse contrato sem a menor dificuldade. Não teremos problemas com os homens. Ainda estamos sob controle oficial e o Governo prometeu que não suspenderia a medida até 31 de agosto. Temos mais de seis meses de controle garantido para cumprir um contrato de quatro meses. O que mais você quer?
Com todos os diabos, Armstrong, estamos precisando desesperadamente desse trabalho!
- Tem razão - concordou Armstrong, lentamente. - Eu estava apenas pensando... Mas sabe muito bem o que faz, senhor.
O barulho de um carro entrando no pátio impediu a resposta de Arthur. Parou diante da janela. Houve um momento de silêncio.
- Lá está Gowlan - disse ele, olhando para o pátio. - E não parece que veio catar carvão agora.
Um minuto depois, Joe entrou no escritório. Avançou impressivamente, num terno azul espetacular, a mão estendida, uma exuberante cordialidade nos olhos. Apertou vigorosamente as mãos de Arthur e Armstrong, correndo os olhos pelo escritório, radiante, como se isso o deixasse exultante.
- Faz muito bem ao meu coração voltar a esta mina. Deve lembrar que trabalhei aqui quando era garoto, Mr. Armstrong.
Apesar dos temores de Arthur, não havia falsa modéstia em Joe. Ao contrário, sua franqueza afável era humana e edificante.
- Isso mesmo, Mr. Armstrong, trabalhei sob as suas ordens, aqui aprendi as primeiras lições. E foi de seu pai, Mr. Barras, que recebi o primeiro dinheiro que ganhei na vida. E, pensando bem, não faz tanto tempo assim.
Ele sentou-se, puxando a calça com um vinco impecável, jovial e triunfante.
- Devo dizer que senti o maior prazer em acertar esse contrato. Talvez tenha sido um pouco de sentimentalismo. Mas quem pode evitar essas coisas? Gosto desta mina e aprecio a maneira como está operando, Mr. Barras. Tem aqui um lugar magnífico. Foi exatamente o que falei a meu sócio, Jim Mawson. Algumas pessoas dizem que não há sentimentos nos negócios. Pois não estão nem começando a perceber o sentido dos negócios. Não é mesmo, Mr. Barras?
Arthur sorriu; era impossível resistir ao charme jovial de Joe.
- É claro que ficamos muito contentes com este contrato. Joe assentiu, graciosamente.
- Os negócios não andam tão bons como poderiam estar, não é mesmo, Mr. Barras? Sei muito bem qual é a situação, não precisa me dizer nada. É um problema quando se põe todos os ovos no mesmo cesto. É por isso que Jim e eu estamos sempre nos expandindo.
Ele fez uma pausa, pegou distraidamente um cigarro na caixa que estava na mesa de Arthur. Depois disse, um tanto solenemente:
- Sabia que estamos fazendo um lançamento no próximo mês?
- O lançamento de uma companhia?
- Isso mesmo. Uma companhia pública. Este é o momento apropriado. O mercado de ações está se desenvolvendo cada vez mais.
- Mas não pode estar renunciando ao controle! Joe riu efusivamente.
- Por quem está nos tomando, Mr. Barras? Vamos ganhar 200 mil dólares pela venda das ações, mas continuaremos a manter o controle.
- Isso é ótimo.
Arthur empalideceu ligeiramente. Por um segundo, pensando em seus próprios problemas na Neptune, ele ansiou por um sucesso igual, desejou pôr as mãos no mesmo dinheiro.
Um silêncio; depois, Arthur aproximou-se da mesa.
- Vamos tratar do contrato?
- Claro, Mr. Barras. Estou pronto quando estiver. Sempre estou pronto para fazer negócios... negócios bons e honestos!
- Só há um ponto que eu gostaria de levantar. É a questão da cláusula de multa.
- Como assim?
- Não tenho a menor dúvida de que poderemos cumprir o contrato. Joe sorriu afavelmente.
- Então por que se preocupar com a cláusula?
- Não estou preocupado. Mas como reduzimos tanto nosso preço e incluímos a entrega do carvão em Yarrow, achei que poderíamos concordar em suprimi-la.
O sorriso de Joe persistiu, ainda afável e amistoso, mas mesclado com uma espécie de pesar virtuoso.
- Ora, Mr. Barras, temos de nos proteger. Se lhe damos um contrato para o fornecimento de carvão de coque, temos de obter a garantia de que receberemos esse carvão. No final das contas, nada mais justo. Estamos cumprindo a nossa parte e querendo que cumpra a sua. Mas se não está gostando, é claro que podemos...
- Não se preocupe mais - disse Arthur rapidamente. - Está tudo certo. Se você insiste, então eu concordo.
Acima de tudo, Arthur não queria perder o contrato. E não restava a menor dúvida de que a cláusula era perfeitamente justa; era simplesmente uma condição rigorosa, que qualquer firma tinha o direito de exigir naqueles tempos conturbados. Joe tirou do bolso uma caneta-tinteiro de ouro para assinar o contrato. E assinou com um enorme floreio. Armstrong, que outrora censurara Joe asperamente durante meio quilómetro de túnel, por ter largado um vagonete desgovernado, serviu como testemunha de sua assinatura, humildemente. Radiante, Joe voltou para seu carro, que rapidamente o levou de volta a Tynecastle.
Depois que Joe partiu, Arthur sentou-se à sua mesa, um pouco preocupado, como sempre acontecia depois que tomava uma decisão, imaginando se não deixara que Gowlan levasse a melhor. Ocorreu-lhe que podia fazer um seguro contra a possibilidade remota de não ser capaz de cumprir o contrato. Num súbito impulso, pegou o telefone e ligou para o escritório da Eagle Alliance, com a qual geralmente fazia negócios. Mas o prémio proposto era alto demais, absurdamente alto, iria absorver a sua pequena margem de lucro. Armur desligou e tirou o problema da mente.
E quando os homens começaram a trabalhar, em turno duplo, a 10 de fevereiro, Arthur esqueceu suas preocupações na gloriosa atividade e movimentação da mina. Depois de um longo período de apatia, ele sentia a pulsação da mina como se fosse a sua. Valia a pena viver pela vibração intensa e maravilhosa da Neptune. Era isso o que queria. .. trabalho para todos, trabalho justo, pagamento justo, lucro justo. Sentia-se mais feliz do que em qualquer outra ocasião nos últimos meses. Naquela noite, ao voltar ao Law, ele foi direto procurar o pai, com uma expressão triunfante.
- Estamos agora trabalhando em tempo integral, nos dois turnos. Achei que gostaria de saber disso, pai. A mina está outra vez funcionando a pleno vapor.
Um silêncio, impregnado de suspeita, Barras espiando Arthur do sofá em seu quarto no qual era obrigado a ficar, por causa do frio lá fora. O quarto estava intoleravelmente quente, portas e janelas hermeticamente fechadas, com a ajuda de Tia Carrie, como precaução contra descargas elétricas. Alguns papéis rabiscados estavam meio escondidos sob a manta no colo de Barras. Ao seu lado havia uma bengala, com a qual podia cambalear por alguns passos, arrastando o pé direito.
- E por que não? - murmurou ele, finalmente. - Não é assim que deve ser... deve ser?
Arthur corou ligeiramente.
- Eu diria que sim, pai. Mas a situação não é das mais fáceis atualmente.
- Atualmente! - As sobrancelhas, agora grisalhas, uniram-se numa expressão indignada. - Você não sabe de nada! Levei anos e anos... mas estou esperando... esperando...
com um sorriso indeciso para o vulto prostrado, Arthur murmurou:
- Apenas pensei que gostaria de saber, pai...
- Você é um tolo. Sei de tudo. Está bem, pode rir... rir como um tolo. Mas anote minhas palavras... a mina nunca estará bem enquanto eu não voltar.
- Está certo, pai - disse Arthur, sem querer discutir. - Deve se esforçar para voltar o mais depressa possível.
Ele ficou no quarto por mais um momento, depois pediu licença e foi tomar o chá, jovialmente. Continuou bastante animado e jovial durante os dias seguintes. Apreciava as refeições, apreciava o trabalho, apreciava o seu lazer. Ocorreu-lhe com algum espanto que ultimamente quase não dispunha de tempo para o lazer; há meses e meses que estava preso de corpo e alma à Neptune. Agora, no entanto, podia relaxar à noite, ler um livro, ao invés de ficar sentado em sua cadeira a pensar tensamente onde poderia arrumar negócios. Escreveu para Hilda e Grace. Sentia-se renovado e revigorado.
Tudo transcorreu maravilhosamente até a manhã de 16 de fevereiro, quando desceu para tomar o café e pegou o jornal, com uma sensação de bem-estar e tranquilidade. Comeu sozinho, como o pai fazia antigamente, com um excelente apetite. Subitamente, uma notícia no meio da página atraiu sua atenção. Ficou olhando para o título, como se estivesse paralisado. Largou a colher e leu toda a notícia. Depois, sem pensar mais em comer, jogou o guardanapo em cima da mesa, arrastou a cadeira para trás e saiu correndo para o telefone no vestíbulo. Ligou para Probert, da Amalgamated, um dos membros mais destacados da Associação de Mineração do Norte.
- Já viu The Times, Mr. Probert? - balbuciou Arthur. - Vão suspender o controle. Está no discurso do Rei. A 31 de março. Vão introduzir a legislação imediatamente.
A voz de Probert respondeu calmamente:
- Eu vi a notícia, Arthur... já sei de tudo. .. é um tanto prematuro... Arthur não o deixou continuar, de tão desesperado que estava:
- Mas querem suspender o controle a 31 de março! No próximo mês! É inadmissível! Eles assumiram o compromisso de esperar até agosto!
Probert continuava com a voz calma ao responder:
- Estou tão surpreso quanto você, Arthur. Vamos ser empurrados a uma crise. É uma verdadeira bomba.
- Tenho de falar-lhe, Mr. Probert - gritou Arthur. - Irei imediatamente !
Sem dar tempo para uma possível negativa, Arthur desligou rapidamente. Vestindo um casaco, ele saiu correndo para a garagem e pegou a baratinha de dois lugares que agora substituía o carro imenso antigo. Ele guiou numa espécie de frenesi até a casa de Probert, em Hedlington, a sete quilómetros de distância, pela costa. Chegou em sete minutos e foi prontamente conduzido à sala envidraçada, onde Probert estava, refestelado numa poltrona, descontraído, fumando um charuto depois do café da manhã, com o jornal sobre os joelhos. Arthur foi logo dizendo:
- Eles não podem fazer isso, Mr. Probert!
Edgar Probert levantou e apertou a mão de Arthur com uma suave gravidade.
- Estou igualmente preocupado, meu caro rapaz - disse ele, ainda segurando a mão de Arthur. - Por minha alma estou terrivelmente preocupado.
Ele era alto, pomposo, os cabelos inteiramente brancos, sobrancelhas muito pretas, uma presença magnífica, que usava com um efeito maravilhoso, como membro da Associação de Mineração do Norte. Era extremamente rico e muito respeitado, contribuía generosamente para todas as obras de caridade locais que publicavam relações de doadores. Todos os invernos, sua fotografia aparecia em cartazes do Oddfellows Hospital, de Tynecastle, com os dizeres por baixo, em letras grandes: Mr. Edgar Probert, que tão generosamente apoia a nossa causa, pede-lhe novamente que se junte a ele... Há 30 anos consecutivos que ele explorava os outros. Era um velho patife, perfeitamente encantador.
- Sente-se, Arthur - disse ele, acenando gentilmente com o charuto. Mas Arthur estava nervoso demais para sentar.
- O que isso significa? - gritou ele. - É o que estou querendo saber. Estou completamente desorientado.
- Infelizmente, significa encrenca - respondeu Probert, parado diante da lareira, olhando distraidamente para o teto.
- Mas por que fizeram isso?
- O Governo tem ficado com uma parcela considerável de nossos lucros, mas não tem o menor desejo de partilhar os nossos prejuízos. Em termos bem simples, eles estão caindo fora enquanto a coisa ainda está boa. Mas, francamente, não lamento a decisão. Aqui entre nós, recebi uma comunicação confidencial de Westminster. Está na hora de pormos a casa em ordem. Há uma tempestade fermentando entre nós e os trabalhadores, desde a guerra. Devemos nos preparar, ficar unidos e lutar.
- Lutar?
Probert acenou com a cabeça, através da fumaça fragrante do charuto. Parecia extremamente nobre e imponente. E acrescentou, gentilmente:
- vou propor uma redução de 40 por cento nos salários.
- Quarenta por cento? - balbuciou Arthur. - Mas isso nos levará aos níveis antes da guerra! Os homens não vão aceitar! De jeito nenhum! Entrarão em greve!
- Eles podem não ter condições de entrar em greve. - Não havia qualquer hostilidade por trás das palavras, apenas uma afável abstração. - Se eles não concordarem prontamente, vamos promover um lockout.
- Um lockoutl Mas isso seria ruinoso!
Probert sorriu calmamente, desviou os olhos do teto e fixou-os em Arthur, com uma expressão um tanto condescendente.
- Creio que todos nós guardamos alguma coisa do que ganhamos durante a guerra. Poderemos consumir uma parte dessas reservas, até que os homens yejam a luz da razão. É isso o que devemos fazer.
Reservas! Arthur pensou no capital investido em equipamentos e nas melhorias na Neptune; pensou no contrato que tinha agora, com cláusula de multa. Uma raiva súbita e intensa dominou-o.
- Não vou fazer um lockout. Não posso fazê-lo. Estamos trabalhando em turno duplo na Neptune. Uma redução de 40 por cento é uma loucura. Estou disposto a pagar salários razoáveis. Não vou fechar uma mina em funcionamento. Não vou cortar minha própria garganta por ninguém.
Probert afagou o ombro de Arthur, mais condescendente do que nunca, recordando o comportamento escandaloso de Arthur na guerra, desprezando-o como um jovem idiota, desequilibrado e covarde, disfarçando tudo isso com uma benevolência afável.
- Calma, meu rapaz, calma. Não encare a situação como algo pior do que na realidade. Sei que é naturalmente impetuoso. Mas vai superar isso. Teremos uma reunião na Associação dentro de Uma semana. Até lá, você já estará recuperado. E vai assumir a mesma posição que todos nós. Não lhe resta alternativa.
Arthur ficou olhando fixamente para Probert, com uma expressão tensa. Um nervo em seu rosto começou a se contrair espasmodicamente. Não lhe restava alternativa! Era verdade, verdade absoluta. Estava preso à Associação por cem maneiras diferentes, pés e mãos amarrados.
- Vai ser terrível para mim, Mr. Probert. Probert afagou-o um pouco mais ternamente.
- Temos de fazer com que os homens conheçam o seu lugar, Arthur. Já comeu esta manhã? Não quer tomar um café?
- Não, obrigado - murmurou Arthur, de cabeça baixa. - Tenho de voltar.
- Como está seu pai? - indagou Probert, suavemente. - Deve sentir muito a falta dele na Neptune. Mas já me disseram que ele está se recuperando maravilhosamente. Seu pai é o meu colega mais antigo na Associação. Espero que possamos tornar a vê-lo muito em breve. Gostaria que lhe apresentasse meus cumprimentos.
- Está bem.
Arthur acenou com 'a cabeça bruscamente, encaminhando-se para a porta.
- Tem certeza de que não quer tomar um café?
- Tenho.
Arthur tinha a dolorosa convicção de que o velho hipócrita estava escarnecendo dele. Ele saiu da casa e foi para o seu carro, quase cambaleando. Seguiu lentamente para a Neptune, entrou no escritório, sentou-se à sua mesa. com a cabeça enterrada entre as mãos, pensou exaustivamente na situação. Possuía uma mina maravilhosamente equipada e trabalhando a todo vapor, com um contrato razoável. Estava disposto a pagar salários apropriados a seus homens. A proposta de salário de Probert era irrisória. com um aperto no coração, Arthur pegou um lápis e fez alguns cálculos rapidamente. Era isso mesmo. Levando-se em consideração o custo de vida, o valor real da proposta de Probert equivalia a um salário de antes da guerra inferior a uma libra por semana. Para os homens que operavam as bombas, era o equivalente a um salário de antes da guerra de 16 shillings e nove pence para uma semana de cinco turflos- Dezesseis shillings e nove pence... para pagar aluguel, comprar roupas e comida para uma família! Era insanidade esperar que os homens aceitassem. Não era uma proposta, mas um desafio para provocar a luta. E ele estava preso à Associação. Era suicídio financeiro sequer pensar num rompimento. Teria de fechar a mina, deixar os homens desempregados, sacrificar o contrato. A terrível ironia da situação deixou-o com vontade de rir.
Foi nesse momento que Armstrong entrou na sala. Arthur fitou-o com uma intensidade nervosa.
- Quero que comece a dobrar o tempo para extrair aquele carvão de coque, Armstrong. Trate de extrair o máximo que puder e estoque. Está entendendo? Tire tudo o que puder. Faça todo o esforço possível, use todos os homens.
- Pois não, Mr. Barras - respondeu Armstrong, com uma voz aturdida. Arthur não tinha o ânimo para esclarecer Armstrong naquele momento.
Fez mais alguns cálculos, largou o bloco e ficou olhando fixamente para a frente. A data era 16 de fevereiro.
A Associação reuniu-se no dia seguinte. Como resultado, foi enviada uma circular secreta para todos os proprietários de minas no distrito, insinuando discretamente o lockout iminente e recomendando que se providenciasse reservas de carvão. Arthur sorriu amargurado ao receber esse documento confidencial. Como poderia acumular a produção de quatro meses em apenas seis semanas?
No dia 24 de março, a Lei que suspendia o controle governamental das minas de carvão foi promulgada, E a 31 de março, com metade do contrato de Arthur ainda por cumprir, começou a paralisação das minas.
Foi um dia chuvoso e triste. De tarde, quando Arthur estava de pé em sua sala, olhando sombriamente para os últimos vagonetes que saíam da mina, sob a chuva, a porta se abriu e tom Heddon entrou, sem ser anunciado. Havia algo quase sinistro na entrada silenciosa de Heddon. Ele parou, sombrio e formidável, de costas para a porta fechada, fitando Arthur, o corpo compacto ligeiramente encurvado, como se já estivesse suportando a carga do lockout iminente.
- Quero lhe falar. - Heddon fez uma pausa. - Mandou avisos de suspensão do trabalho a todos os homens nesta mina.
- E qual é o problema? - disse Arthur, a voz cansada. - Não sou diferente dos outros.
Heddon soltou uma risada curta, amargamente sarcástica.
- Acontece que é diferente. Tem a mina mais úmida da região e mandou avisos também para os homens de segurança e os operadores das bombas.
Esforçando-se para manter o controle, Arthur respondeu:
- Não gosto do que está acontecendo tanto quanto você, Heddon. Mas sabe que tenho a obrigação de mandar avisos a todos os homens.
- Está querendo outra inundação? - perguntou Heddon, com uma estranha inflexão na voz.
Arthur estava quase no limite de sua resistência. Não era o culpado, não admitiria ser intimidado por Heddon. Uma onda de indignação nervosa invadiu-o. E ele disse:
- Os homens de segurança vão continuar a trabalhar.
- É mesmo? - disse Heddon, desdenhosamente. Ele fez uma pausa, antes de acrescentar, com uma ênfase amarga. - Quero que compreenda que os homens da segurança vão continuar a trabalhar apenas porque eu estou lhes dizendo para continuarem. Se não fosse por mim e pelos homens que tenho por trás, sua maldita mina estaria inundada em 24 horas. Não se esqueça disso, inundada e liquidada! Os mineiros que está tentando matar de fome vão continuar a bombear a água de sua mina, para mantê-lo gordo e confortável, em sua maldita sala de estar. Engula isso, pelo amor de Cristo, descubra qual é o gosto!
com um gesto súbito e brusco, como se não pudesse confiar mais em sua capacidade de controlar-se, Heddon virou-se e saiu da sala. Arthur sentou-se à sua mesa. Ficou sentado ali por muito tempo, até que a escuridão invadiu a sala e todos os homens deixaram a mina, à exceção dos que estavam encarregados da segurança. Ele se levantou então e voltou para casa.
O lockout começou. E foi se arrastando pelas semanas intermináveis e terríveis. com a segurança das minas garantida, restava apenas ficar de lado, observando a luta entre os mineiros e o espectro da fome. À medida que os dias foram passando, Arthur viu, com o coração confrangido, os limites a que se podia levar o conflito desigual... os rostos encovados dos homens, as mulheres e crianças famintas, expressões sombrias, as ruas sem riso, sem alegria. O coração de Arthur se encolhia com uma terrível angústia. O homem era mesmo capaz de infligir tanta crueldade a seu semelhante? A guerra para terminar com todas as guerras, para promover uma paz duradoura, uma nova e gloriosa era em nossa civilização... E agora acontecia aquilo! Aceitem uma ninharia, escravos, trabalhem sem parar debaixo da terra, em meio ao suor, sujeira e perigo, aceitem uma ninharia ou passem fome. Uma mulher morreu ao dar à luz em Inkerman Terrace. O Dr. Scott, quando pressionado pelo juiz sumariamente encarregado do inquérito, usou uma palavra forte para explicar, que foi oficialmente atenuada para desnutrição. Margarina e pão; pão e margarina; às vezes nem isso. Para criar um filho vigoroso que contribuiria para as glórias do Império.
Pensamentos assim ardiam incoerentemente na mente de Arthur. Ele não podia e não queria suportar. Ao final do primeiro mês, iniciou a distribuição de sopa gratuita pela cidade, organizou um esquema de ajuda particular para os que eram totalmente carentes nos Terraços. Seus esforços não foram recebidos com gratidão, mas com ódio. Arthur não culpava os homens. Podia compreender a amargura deles. Sentia a sua incapacidade de mudar a maré do sentimento em relação a ele. Não tinha o talento para a publicidade espetacular, não dispunha de uma personalidade cativante para usar. Desde o começo que os homens haviam desconfiado dele na Neptune. Agora, diante do lugar em que sua sopa era distribuída, apareceram palavras rabiscadas: Ao Inferno com o Covarde] Essa frase ou outra mais abominável era apagada, para se rabiscar mais uma durante a noite, pronta para receber sua atenção na manhã seguinte. Alguns homens mais jovens mostravam-se particularmente hostis. Chefiados por Jack Reedy e Chá Leeming, incluíam muitos dos que haviam perdido pais ou irmãos no desastre da Neptune. Agora, sem qualquer motivo que ele pudesse imaginar, o ódio dos homens concentrava-se em Arthur.
A farsa lúgubre prosseguiu interminavelmente. com uma estranha repulsa, Arthur leu a notícia da criação da Força de Defesa, um corpo fortemente armado e uniformizado de 80 mil homens. A Força de Defesa... em defesa contra o quê? Em maio, começaram a ocorrer distúrbios na Amalgamated e as tropas chegaram ao distrito. Houve muitas Proclamações Reais e Mr. Probert partiu com a família para umas férias bem merecidas e agradáveis em Bournemouth.
Mas Arthur permaneceu em Sleescale... ao longo de abril, maio, junho. Foi em junho que os cartões-postais começaram a chegar... cartões anónimos, infantilmente difamatórios, um tanto grosseiros. Todos os dias chegava um cartão, a letra esparramada, meio disforme, que Arthur julgou a princípio ser um disfarce. No começo, ele ignorou-os. Mas, gradativamente, os cartões passaram a causar-lhe uma profunda angústia. Quem poderia persegui-lo com tanta maldade? Ele não podia imaginar. Ao final do mês, o culpado foi descoberto, surpreendido no ato de entregar um novo cartão a um dos estafetas que apareciam no Law. Era Barras.
A perseguição incessante do velho era pior de suportar, sempre vigiando Arthur durante todo o tempo, acompanhando suas idas e vindas, exultando com seu desalento, regozijando-se com as provas manifestas de problemas. Era como uma praga a se abater sobre Arthur, aqueles olhos senis, vigilantes, injetados, minando-lhe a energia, deixando-o esgotado.
A 19 de julho, uma exaustão como a da morte levou a luta ao final. Os homens estavam derrotados, humilhados, esmagados. Mas Arthur não vencera. Os prejuízos decorrentes do contrato inadimplente foram elevados. Contudo, ao ver os homens atravessarem novamente o pátio da mina, lentamente, silenciosos, observando os equipamentos voltarem a funcionar, ele tratou de livrarse de seu desânimo. Os reveses podiam ocorrer. Mas não fora culpa sua. Afinal, era um deles. Não se deixaria dominar pelo desalento. A partir daquele momento, começaria tudo novamente.
Era um domingo do verão de 1925. Voltando do seu passeio à tarde pelas Dunas, David encontrou-se com Annie e o pequeno Sammy na extremidade leste da Lamb Street. Ao ver David, Sammy saiu correndo com um grito triunfante, pois era louco pelo tio.
- Entro de férias no sábado. Não é maravilhoso?
- É, sim, Sammy.
David sorriu para Sammy, refletindo por trás desse sorriso que Sammy, crescendo depressa demais, parecia mesmo estar precisando de umas férias. Sammy estava agora com oito anos, o rosto pálido, a testa saliente, olhos azuis joviais, que desapareciam cada vez que ele ria, como acontecia com o pai. Estava impecavelmente vestido e limpo, para o seu passeio dominical com a mãe, numa roupa que a mãe lhe fizera, com um retalho de sarja cinzenta comprado na loja de Bates. Estava crescendo depressa e as botinas, compradas menos pela beleza e mais para evitar a umidade, pareciam enormes, nas extremidades das pernas finas e compridas.
- Vai ter muito trabalho, Annie. - David virou-se para a mãe de Sammy, que viera postar-se ao lado deles, em silêncio. - Sei como são essas férias.
- Estou zangada com Sammy - disse Annie, numa voz que nada tinha de zangada. - Ele subiu no portão em Sluice Dene e arrebentou o seu novo colarinho de celulóide.
- Eu só queria pegar algumas bolotas de carvalho - disse Sammy, ansiosamente. - Só isso, Davey.
- Tio David - interveio Annie, em tom de censura. - Cuidado com os modos, Sammy!
- Não se preocupe com isso, Annie - disse David. - Somos velhos amigos. Não é mesmo, Sammy?
- Claro!
Sammy sorriu e David tornou a sorrir. Mas parou de sorrir quando olhou para Annie. Ela parecia completamente extenuada pelo calor, estava com olheiras e bastante pálida, como Sammy. Só que Sammy era naturalmente pálido, como o pai também fora. Annie estava com a mão na parede, apoiando-se. David sabia que Annie trabalhava sem parar, com o velho Macer agora completamente inválido do reumatismo, Pug sem trabalhar assiduamente na Neptune e Sammy para cuidar. Annie estava lavando roupa para fora e fazendo faxina, para ajudar a sustentar a família. David já oferecera ajuda a Annie várias vezes, mas ela sistematicamente recusava o dinheiro, pois era muito independente. Num súbito impulso, ele perguntou:
- Já que estamos falando nisso, quando foi a última vez que você tirou férias, Annie?
Os olhos serenos de Annie arregalaram-se ligeiramente de surpresa.
- Tive férias quando estava na escola. Como Sammy está tendo agora.
Essa era a ideia de férias de Annie... não tinha qualquer outra, nenhuma noção de mudança de paisagem, praias aprazíveis, a música a se misturar com as ondas. O patético espontâneo da resposta dela provocou um aperto na garganta de David. Ele tomou uma decisão rápida e inesperada.
- Você e Sammy não gostariam de passar uma semana em Whitley Bay? Annie ficou imóvel, os olhos fixados na calçada quente. Sammy soltou
um grito, para depois ficar ofuscado pela perspectiva.
- Whitley Bay... - repetiu ele. - Por Deus, como eu gostaria de ir a Whitley Bay!
David continuou a olhar para Annie.
- Harry Nugent escreveu-me e pediu que fosse encontrá-lo lá no dia 26.
- Ele fez uma pausa, antes de acrescentar uma mentira: - Eu já tinha decidido chegar lá uma semana antes, para descansar um pouco.
Annie continuou imóvel, ainda a olhar para a calçada quente, mais pálida do que antes.
- Não vai ser possível, David.
- Ah, mãe! - gritou Sammy, suplicante.
- A mudança de ares por uma semana seria ótima para você, Annie. E também para Sammy.
- O calor está mesmo demais.
A perspectiva de uma semana em Whitley Bay era maravilhosa, mas Annie não podia deixar de pensar nas dificuldades, em meio a centenas de obstáculos. Não tinha roupas apropriadas, iria envergonhar David, tinha de cuidar da casa e do pai, Pug poderia entregar-se à bebida se o deixasse sozinho. Foi então que uma ideia brilhante ocorreu-lhe e ela exclamou:
- Leve Sammy!
David disse, sombriamente:
- Sammy não vai a lugar nenhum sem a mãe.
- Ah, mãe! - exclamou Sammy outra vez, uma expressão de desespero se insinuando no rostinho pálido.
Houve um momento de silêncio. Depois, Annie fitou David e sorriu, o seu sorriso sereno.
- Está certo, David. Se você quiser ter a bondade de nos levar... Estava acertado. David sentiu-se subitamente contente, imensamente
contente, surpreendentemente contente. Era como se um calor intenso e agradável o envolvesse. Ficou parado por um momento, observando Annie e Sammy se afastarem, na direção da Quay Street, com Sammy pulando em torno da mãe, botinas grandes, colarinho quebrado, falando sem parar sobre Whitley Bay. Depois, David seguiu pela Lamb Lane, voltando para casa. Não havia agora tiririca na frente da casa, o pequeno jardim estava finalmente bem cuidado, capuchinhas amarelas desabrochavam junto à parede, plantadas por Martha. O degrau da porta estava impecavelmente limpo. As cortinas tinham guarnições de croché, como somente as mãos de Martha sabiam fazer. Todas as janelas de mineiros tinham guarnições de croché, um símbolo de esmero, mas nenhuma outra em Sleescale era melhor que as de Martha.
David pendurou o chapéu na sala e foi para a cozinha, onde Martha estava de pé, preparando um pouco de agrião para o chá dele. Martha estava sempre absorvida a serviço de David, a própria imagem do trabalho doméstico. A cozinha estava tão limpa que ele poderia ter tomado o chá no chão... como se dizia na região. Os móveis brilhavam, a louça no armário faiscava. O relógio de mármore, que o pai de Martha ganhara no boliche e ela trouxera de Inkerman Terrace, quando fechara a sua casa, tiquetaqueava solenemente, uma herança sagrada. A serenidade do domingo pairava sobre a casa.
David estudou Martha atentamente por um momento e depois disse:
- Não gostaria de passar uma semana em Whitley Bay, mãe? vou para lá no dia 19.
Ela não se virou para fitá-lo, continuando a cuidar meticulosamente do agrião; não admitia a menor sujeira na alface ou agrião. Quando David já começava a pensar que ela não o ouvira, Martha disse:
- O que eu faria em Whitley Bay?
- Pensei que poderia gostar, mãe. Annie e o menino também vão. Seria ótimo se você quisesse ir.
Ela estava de costas, para David e não falou nada por um minuto inteiro. Mas finalmente respondeu, num tom indiferente:
- Não. Estou muito bem aqui.
Quando ela se virou, com o prato de agrião, seu rosto estava rígido.
David sabia que era melhor não insistir. Sentando-se no sofá, ao lado
da janela, ele pegou o último número do Worker's Independent. Seu artigo semanal, uma série com que vinha contribuindo há 12 meses, estava na primeira página. Um discurso que ele fizera em Seghill na terça-feira estava reproduzido integralmente na página do meio. Não leu nenhum dos dois. Estava com 35 anos. Há quatro anos que vinha trabalhando incansavelmente, organizando, fazendo comícios, circulando pelo distrito, sem se poupar. Aumentara o número de associados de Edgeley em mais de quatro mil. Tinha a reputação de tenacidade, força e competência. Três monografias suas haviam sido editadas pela Anvil Press. Seu estudo A Nação e as Minas lhe valera a Medalha Russell. A medalha estava lá em cima, perdida em algum lugar, por trás de uma gaveta. David sentiu uma tristeza momentânea dominá-lo. Naquela tarde, nas Dunas, o canto da cotovia fizera-o lembrar-se do garoto que sempre passeava ali, quase 20 anos antes. E depois se pusera a pensar em Jenny. Onde ela estaria? Jenny querida... Apesar de tudo, ele ainda a amava, sentia saudade, pensava nela. Ao pensar em Jenny, correndo ao sol, enquanto a cotovia cantava, David sentira-se profundamente triste. O encontro com Annie e Sammy deixara-o um pouco animado, é verdade, mas agora a tristeza voltava a dominá-lo. Talvez Martha fosse a responsável por seu estado de espírito, com a atitude que assumia. Não seria presunção de sua parte tentar mudar os movimentos das grandes massas da humanidade, quando o coração secreto de cada ser humano lhe permanecia inviolável, inacessível e inalterável? Martha era intransigente demais, implacável.
David sentiu-se melhor depois do chá - o agrião, apesar do coração intransigente de Martha, estava ótímo - e sentou-se para escrever uma carta a Harry. Dudgeon, Bebbington e Harry haviam conseguido manter suas cadeiras na eleição daquele ano. Bebbington fora reeleito por uma margem estreita. Houvera algum escândalo por causa do processo de divórcio, levantado por Sir Peter Outram, quando Bebbington se candidatara à reeleição, mas o assunto fora rapidamente resolvido e abafado. Bebbington acabara vencendo, apesar de tudo. David escreveu uma carta comprida a Harry. Depois, pegou o livro Experiências sobre o Controle do Estado, de Erich Flitner. Vinha se interessando bastante por Flitner ultimamente, assim como por Max Sering, especialmente Agressão à Comunidade. Naquela noite, porém, Flitner não conseguiu interessá-lo. Não conseguia parar de pensar na excursão iminente a Whitley Bay. Acabou chegando à conclusão de que seria excepcionalmente divertido levar Sammy para nadar. E haveria sorvete também; não podia de jeito nenhum esquecer o sorvete. Era bem possível que Annie tivesse uma fraqueza secreta por sorvete, o sorvete italiano autêntico. Será que Annie permaneceria impassível se fosse confrontada com um autêntico sorvete italiano? David recostou-se no sofá e soltou uma gargalhada.
Nos dez dias subsequentes, ele não conseguiu tirar da cabeça os pensamentos de Whitley Bay, Annie e Sammy. Na manhã do dia 19, quando chegou à Central Station, em Tynecastle, onde combinara se encontrar com Annie e Sammy, estava extremamente excitado. Fora retardado por um caso de benefício de última hora e chegou apressado ao guichê, ao lado do qual Annie e Sammy estavam esperando.
- Pensei que chegaria atrasado! - exclamou ele, sorridente e ofegante, pensando que era maravilhoso sentir-se ainda jovem o bastante para ficar excitado e ofegante.
- Há tempo suficiente - comentou Annie, à sua maneira prática. Sammy não disse nada, recebera instruções para não dizer nada. Mas o olhos azuis reluzentes, no rosto impecavelmente limpo, exprimiam toda uma filosofia.
Embarcaram no trem para Whitley Bay, David carregando as malas. Annie não gostou disso. Queria carregar a sua mala... ou melhor, a mala que tomara emprestada de Pug. Era uma mala muito pesada e já um tanto gasta para que David fosse visto a carregá-la. Annie parecia aflita, como se fosse a coisa mais imprópria do mundo David estar carregando a mala, quando ela carregara tantas vezes um cesto com peixes que tinha três vezes o seu próprio peso. Mas ela pensou que não lhe cabia protestar. E depois estavam no compartimento, o apito soou e o trem partiu.
Sammy sentou-se no canto do assento, ao lado de David, com Annie no outro lado. Ao deixarem os subúrbios da cidade e entrarem nos campos, o entusiasmo de Sammy foi enorme. Esquecendo que prometera manter-se calado, ele partilhou o seu entusiasmo com David, generosamente.
- Ei, está vendo aquela locomotiva e os vagões? E aquele guindaste? Puxa, olhe que chaminé! Nunca antes vi uma chaminé tão grande!
A chaminé levou a uma conversa profunda e excitante sobre trabalhadores que desenvolviam suas atividades nas alturas, como devia ser maravilhoso ficar no alto de uma chaminé tão grande, sem nada entre você e a terra, 60 metros abaixo.
- Não gostaria de ser um operário para trabalhar nas alturas quando crescer, Sammy? - perguntou David, sorrindo para Annie.
Sammy sacudiu a cabeça e disse, com alguma reserva:
- Não. vou ser como meu pai.
- Um mineiro? - indagou David.
- É isso mesmo o que vou ser.
A expressão de Sammy era tão solene que David não pôde deixar de rir. E comentou:
- Terá tempo bastante para mudar de ideia.
Foi uma viagem agradável, embora não muito longa, pois logo chegaram a Whitley Bay. David reservara aposentos na Tarrant Street, uma rua pequena e sossegada, perto da praia e do Waverley Hotel. Os aposentos haviam sido recomendados por Dickie, seu escriturário no Instituto, que informara que a Sra. Leslie, a senhoria, sempre aceitava como hóspedes delegados da Federação, quando havia conferências no distrito. A Sra. Leslie era viúva de um médico que morrera num acidente numa mina de carvão, em Hedlington, cerca de 20 anos antes. Um mineiro ficara preso numa galeria por um desmoronamento do teto, com o antebraço esmigalhado por um bloco de rocha, sendo impossível tirá-lo de lá. O Dr. Leslie fora amputar o braço do mineiro, para que ele pudesse ser removido da galeria. Estava quase terminando a amputação, efetuada heroicamente no mineiro também heróico, sem anestesia, quando o resto do teto desmoronara, soterrando os dois. Todos já haviam esquecido o incidente, mas era por causa desse desmoronamento que a Sra. Leslie alugava quartos na rua sossegada, com suas casas de tijolos vermelhos, cada um tendo um pequeno jardim na frente, cortinas de rendas, um piano.
A Sra. Leslie era uma mulher alta, morena, retraída; não era cómica nem mal-humorada, não apresentava nenhuma das características que são tradicionalmente associadas às senhorias de balneários. Ofereceu uma recepção cordial mas comedida a David, Annie e Sammy, mostrou-lhes os aposentos. Mas foi aqui que a Sra. Leslie cometeu inesperadamente um engano constrangedor. Virou-se para Annie e disse:
- Achei que a senhora e seu marido ficariam melhor neste quarto da frente, enquanto o menino pode ficar no quarto pequeno nos fundos.
Annie não corou; se teve alguma reação, foi a de empalidecer. E sem o menor constrangimento, ela respondeu:
- Esse é meu cunhado, Sra. Leslie. Meu marido foi morto na guerra. Foi a Sra. Leslie que corou, o rubor difícil de uma mulher reservada; e corou até as raízes dos cabelos.
- Foi muita estupidez da minha parte. Eu deveria ter compreendido, pela carta.
Assim, Annie e Sammy ficaram no quarto da frente, enquanto David ocupava o quarto pequeno nos fundos. A Sra. Leslie sentiu que, de certa forma, magoara Annie, empenhando-se em agradá-la. Não demorou muito para que as duas se tornassem amigas.
As férias transcorreram maravilhosamente, galvanizadas por Sammy. Ele era como uma agulha elétrica a espicaçar David... embora David não precisasse de qualquer estímulo. Estava se divertindo na companhia de Sammy tanto quanto Sammy na dele. O sol era constante e o tempo quente, mas a brisa constante que soprava em Whitley Bay impedia que o calor se tornasse opressivo. Iam à praia todas as manhãs, jogavam críquete francês na areia. Tomavam sorvete em quantidades incríveis, assim como comiam frutas sem parar. Passeavam com Cullercoats, constantemente visitavam a casa em que uma velha vendia caranguejos frescos. David sentia um remorso secreto, pensando que os caranguejos não poderiam fazer muito bem ao estômago de Sammy. Mas a verdade é que Sammy adorava. Esgueiravam-se para a sala da pequena casa de dois cómodos, recendendo a alcatrão e redes, sentavam no sofá de crina de cavalo e comiam caranguejo fresco na própria casca, enquanto a velha observava-os, chamando Sammy de "pequeno" e fumando o seu cachimbo de barro. O caranguejo era delicioso, tão delicioso que David se convencia de que não podia fazer mal algum ao estômago de Sammy. Voltando de Cullercoats, Sammy pegava a mão de David. Era a hora das perguntas. David permitia que Sammy lhe fizesse qualquer pergunta que desejasse. E Sammy não se fazia de rogado, bombardeando-o com perguntas. David respondia corretamente quando podia e inventava quando não podia. Mas Sammy sempre sabia quando ele estava inventando. Fitava David com seus olhos faiscantes e que desapareciam, soltando uma risada.
- Está brincando comigo, Tio Davey?
Mas Sammy gostava das brincadeiras tanto quanto das respostas. David e Sammy fizeram juntos muitas excursões maravilhosas. Annie parecia sentir que os dois gostavam de ficar juntos e mantinha-se em segundo plano. Ela era naturalmente retraída e sempre tinha alguma coisa para fazer quando David e Sammy queriam que os acompanhasse - compras, alguma costura ou prometera tomar um chá com a Sra. Leslie. Em colaboração com a Sra. Leslie, Annie estava sempre inventando alguma coisa nova para o cardápio, tentando descobrir do que David gostava. A gratidão de Annie era enorme, mas seu medo de importunar David era ainda maior. Mas David finalmente conseguiu levá-la para um passeio. Na tarde de quinta-feira, ele entrou na casa e encontrou Annie subindo com sua calça cinza de flanela dobrada no braço... ela acabara de passá-la na cozinha, com o ferro emprestado pela Sra. Leslie. David compreendeu tudo no mesmo instante e sentiu-se exasperado.
- Santo Deus, Annie! Para que está passando roupa? Não pode ficar dentro de casa num dia tão bonito como este. Por que não vai à praia comigo e com Sammy?
Annie baixou os olhos. Estava furiosa consigo mesma por se deixar surpreender daquele jeito. E disse, como uma desculpa:
- Irei mais tarde, David.
- Mais tarde? É sempre mais tarde, daqui a pouco, depois de falar qualquer coisa com a Sra. Leslie. Santo Deus, mulher, não quer aproveitar nada das férias? Por que acha que a trouxe para cá?
- Pensei que fosse cuidar de você e de Sammy.
- Mas que bobagem! Quero que você se distraia, passeie bastante, dênos o prazer de sua companhia.
Sorrindo outra vez, debilmente, Annie murmurou:
- Está bem... se eu não for atrapalhar. Pensei que não queria ser incomodado.
Ela pôs o chapéu e foi para a praia com David. Sentaram-se na areia macia junto com Sammy e foram felizes. David a contemplava de vez em quando Annie reclinada, o rosto virado para o sol, os olhos fechados. Ela o desconcertava. Era uma ótima moça, sempre fora uma ótima moça... determinada, competente, quieta, modesta. Não havia ostentação de sexo com Annie. Contudo, ela era uma mulher e tanto, com pernas bonitas, seios firmes, uma curva graciosa do pescoço. O rosto sereno agora, levantado para o sol, possuía uma beleza tranquila, suave, ligeiramente triste. Isso mesmo, embora não cuidasse de si mesma, Annie tinha uma beleza quase clássica, de que qualquer mulher poderia orgulhar-se. E, no entanto, Annie não tinha orgulho. O que era muito estranho. Possuía uma independência resoluta, mas não tinha vaidade nem presunção. O conceito que fazia de si mesma era tão pequeno que tinha medo de constituir um estorvo para ele, de ser um "incómodo". David não conseguia imaginar qual a noção infernalmente exaltada que Annie tinha dele agora. Ela não era assim antes. Mas agora podia quase sentir que Annie estava com medo dele. E, de repente, deitado na areia, apoiado no cotovelo, enquanto Sammy brincava com o balde na beira da água, David disse:
- O que está havendo ultimamente entre você e mim, Annie? Éramos tão bons amigos...
Ainda mantendo os olhos fechados, o rosto virado para o sol, ela respondeu:
- Você é o melhor amigo que tenho, David.
Ele franziu o rosto, deixando a areia fina escorrer entre seus dedos.
- Eu gostaria de saber o que está acontecendo dentro de sua cabeça. Gostaria de animá-la. Gostaria de arrancar uma opinião de verdade sua. Tornou-se uma espécie de Mona Lisa, Annie. Não pode imaginar como tenho vontade de lhe dar uma surra, por causa disso.
- Eu não tentaria se fosse você - disse ela, com um sorriso. - Sou bastante forte.
Depois de um momento, David exclamou:
- Já sei! Já sei o que vou fazer com você! - Ele contemplou o rosto de Annie com uma careta cómica. - Depois que Sammy estiver deitado esta noite, vou levá-la ao parque de diversões. E vou obrigá-la a participar de tudo o que lá houver. Vai entrar no concurso de dança, andar nos carros elétricos e no trenzinho. E quando estiver girando pelo ar a 120 quilómetros por hora, vou olhar bem para você e descobrir se a velha Annie ainda existe.
- Eu bem que gostaria de passear no trenzinho - disse ela, com a sua impassibilidade sorridente e desconcertante. - Mas não é muito caro?
David estendeu-se de costas na areia, às gargalhadas.
- Annie, Annie, você é demais! Vamos passear no trenzinho nem que custe um milhão e mate a nós dois!
E eles foram. Depois que Sammy foi para a cama, sem desconfiar de nada e feliz com a bala de hortelã que ganhou, David e Annie partiram para o parque de diversões em Tynemouth. O vento acabara, era uma noite tranquila e amena. Sem qualquer motivo que pudesse explicar, David lembrou-se de repente, nitidamente, das noites que ali passara com Jenny, durante a lua-demel em Cullercoats. Ao passarem por Cullercoats, ele não pôde deixar de falar em Jenny.
- Sabia que estive aqui uma vez com Jenny?
- Sabia, sim - respondeu Annie, lançando-lhe um olhar estranho, involuntário.
- Parece que foi há muito tempo.
- Não faz tanto tempo assim.
Houve uma pausa. Depois, imerso em seus pensamentos, dominado por uma súbita ternura por Jenny, David murmurou: .
- Sinto muita saudade de Jenny, Annie. Há momentos em que a saudade é terrível. Ainda não deixei de esperar que ela volte para mim.
Houve outro silêncio, bastante prolongado, finalmente rompido por Annie:
- Também espero que isso aconteça, David. Sempre soube que você era apaixonado por ela.
Depois disso, continuaram a andar sem falar. E quando entraram no parque de diversões, parecia até que não iam se divertir, pois Annie estava não apenas calada, mas também estranhamente melancólica. Mas David estava determinado a arrancar Annie daquela melancolia sem qualquer motivo. Descartando-se de sua própria melancolia, ele empenhou-se a fundo. Levou Annie por toda parte, começando pela Casa dos Espelhos e passando depois pelo foguete. Ao descerem do foguete, Annie exibiu um sorriso excitado.
- Assim está melhor - comentou David.
O passeio no trenzinho foi ainda melhor. Andaram de um lado para outro, mergulhando em túneis dos horrores, Annie prendendo a respiração. Mas o melhor de tudo foi a montanha-russa. Descobriram a montanha-russa por volta das nove horas, subindo e descendo velozmente de alturas vertiginosas, até que todo o parque de diversões em torno deles parecia girar num clarão ofuscante. Não havia nada como a montanha-russa, absolutamente nada, no céu, inferno, limbo, purgatório ou todas as dimensões do Universo Subia-se a uma altitude incrível, com todas as luzes do parque de diversões se estendendo lá embaixo, remotas. Subia-se devagar, com uma lentidão enganadora, desfrutando toda a tranquilidade, apreciando calmamente a vista. O carro quase que se arrastava até lá em cima. E de repente, quando ainda estava se contemplando a vista, o carro mergulhava inesperadamente para as profundezas. E mergulhava interminavelmente, para uma escuridão desconhecida e inesperada. O estômago subia pela boca, a sensação era de se estar dissolvendo, morria-se e renascia, num terrível êxtase. Mas um mergulho não era nada[ pois o carro logo tornava a subir, ainda mais alto, para descer novamente, vertiginosamente, a pessoa tornando a morrer e renascer.
David ajudou Annie a sair do carro. Ela parou, vacilante, amparando-se no braço dele, o rosto corado, o chapéu torto, uma estranha expressão nos olhos, como se estivesse contente por segurar o braço de David.
- Oh, Davey, nunca mais me leve nessa coisa! - balbuciou Annie.
E depois ela desatou a rir, um riso sereno, descontraído, antes de tornar a balbuciar:
- Mas foi maravilhoso. David contemplou-a, sorrindo.
- Fez você rir... e era isso o que eu queria.
Passearam pelo parque, interessando-se alegremente por tudo o que viam. A música era vigorosa, os pregoeiros proclamavam seus espetáculos, as luzes faiscavam, a multidão circulava incessantemente. Eram pessoas comuns, alegres e pobres. Mineiros de carvão de Tyneside, operários de Shiphead, metalúrgicos de Yarrow, trabalhadores de Seghill, Hedlington e Edgeley. Gorros na cabeça, cachecóis, cigarros nas orelhas. As mulheres os acompanhavam, de rostos vermelhos, felizes, comendo de sacos de papel. Quando os sacos ficavam vazios, enchiam de ar e estouravam. Era um verdadeiro festival do humilde, desconhecido e obscuro. Subitamente, David disse a Annie:
- É este o lugar a que pertenço, Annie. Esta é a minha gente. Sinto-me feliz entre pessoas assim.
Mas ela não estava disposta a admitir. Sacudiu a cabeça com veemência.
- Você vai subir até o topo, Davey - declarou ela, à sua maneira franca e direta. - É o que todo mundo está dizendo. Vai para o Parlamento na próxima eleição.
- Quem disse isso?
- Todos os rapazes na Neptune estão dizendo. Pug me contou. Todos dizem que você é o único que pode fazer alguma coisa por eles.
- Ah, se eu pudesse... - murmurou David, respirando fundo.
Ao voltarem para a Tarrant Street, pela praia, a lua cheia saiu do mar e contemplou-os. O barulho e brilho do parque de diversões se desvaneceram lá atrás. David contou a Annie o que queria fazer. Mal estava consciente de Annie caminhando a seu lado, ela falava tão pouco e escutava tão bem. Mas ele revelou todas as aspirações que havia em seu coração. Não tinha ambição para si mesmo. Absolutamente nenhuma.
Queria justiça para os mineiros, sua gente, uma classe há muito oprimida, brutalmente oprimida.
- Justiça e segurança, Annie - concluiu ele, em voz baixa. - A mineração não é uma indústria como outra qualquer. Exige a nacionalização. As vidas dos homens dependem disso. Enquanto houver a iniciativa privada visando apenas ao lucro, a segurança será reduzida. E de repente há um desastre. FoÍ o que aconteceu na Neptune.
Houve um momento de silêncio, enquanto subiam pela Tarrant Street. Mudando subitamente de tom, David perguntou:
- Está cansada de ouvir toda a minha conversa fiada?
- Não... e não é conversa fiada... é sério demais.
- Quero que conheça Harry Nugent, quando ele chegar aqui amanhã. Harry sabe ser realmente convincente. Vai gostar dele, Annie.
Ela sacudiu a cabeça rapidamente.
- Prefiro não conhecê-lo.
- Por quê?
David estava surpreso.
- Apenas não quero - respondeu Annie, com uma determinação inflexível.
Inexplicavelmente, David sentiu-se magoado. O retraimento incompreensível de Annie, depois da cordialidade dele, de seu esforço para arrancá-la de si mesma, não podia deixar de magoá-lo. Abandonou o assunto inteiramente e refugiou-se no silêncio. Ao entrarem na casa, David recusou a oferta de Annie de preparar-lhe alguma coisa para comer, desejou boa-noite e foi direto para o seu quarto.
Harry Nugent chegou no dia seguinte. Nugent gostava de Whitley Bay, jurava que não havia ar melhor no mundo. E sempre que podia arrumar um fim de semana de folga, vinha respirar aquele ar maravilhoso. Hospedou-se no Waverley e David foi encontrá-lo lá às três horas.
Embora ainda fosse cedo, tomaram chá no restaurante. Nugent era um grande bebedor de chá, tomava xícaras intermináveis, aproveitava qualquer pretexto para tomar uma xícara de chá. O que não lhe fazia muito bem, agravando a sua dispepsia crónica. Nugent era um homem fisicamente frágil, o corpo magro e desajeitado, o rosto encovado e pálido indicando um organismo que não se adaptava muito bem a uma vida intensa. Sofria consideravelmente e frequentemente de pequenas doenças, que nada tinham de românticas... certa ocasião, por exemplo, passou seis meses sofrendo por causa de uma fístula. Mas jamais se queixava, jamais se acomodava, jamais se entregava. Era também extrema e humanamente grato pelos pequenos prazeres da vida. .. um cigarro, uma xícara de chá, um fim de semana em Whitley Bay ou uma tarde em Kennington Oval. Nugent era acima de tudo um ser humano. Era o que seu sorriso exprimia, formando-se discretamente no rosto feio, um sorriso que sempre parecia infantil, por causa da pequena falha entre os dentes da frente. Ele sorriu agora para David, enquanto tomava a sua terceira xícara de chá.
- Acho que é melhor ir direto à questão.
- É o que geralmente faz - comentou David.
Nugent acendeu um cigarro, segurando-o entre os dedos manchados de nicotina, com uma súbita solenidade.
- Você já sabia, David, que Chris Stapleton estava doente. E o estado do pobre coitado era pior do que imaginávamos. Ele foi operado no Freemasons' Hospital na semana passada, com um problema interno... e pode imaginar o que isso significa. Estive com ele ontem. Está inconsciente e piorando a cada momento.
Nugent fez uma pausa, contemplando a ponta em brasa do cigarro. O silêncio foi prolongado, antes que acrescentasse:
- Vai haver uma eleição suplementar em Sleescale.
Uma emoção intensa aflorou no peito de David e subiu aos olhos, como uma pontada de medo. Houve outro silêncio.
Nugent fitou-o atentamente e acenou com a cabeça.
- É isso mesmo, David. Estive em contato com a executiva local. Não resta a menor dúvida sobre o que eles estão querendo. Você será escolhido, à maneira habitual.
David não podia acreditar. Ficou olhando fixamente para Nugent, aturdido. Depois, seus olhos se enevoaram subitamente e não mais podia ver Nugent.
A primeira pessoa que David encontrou, ao voltar a Sleescale, foi James Ramage. Na manhã de segunda-feira, ele partiu de Whitley Bay para Tynecastle, com Annie e Sammy, pondo-os depois no trem para Sleescale. E depois seguiu apressadamente para Edgeley, a fim de enfrentar um dia inteiro de trabalho intenso. Eram sete horas da noite quando desembarcou na estação de Sleescale, quase colidindo com Ramage, que se encaminhava para a banca de jornais, a fim de comprar uma edição vespertina.
Ramage estacou abruptamente e David compreendeu, pela expressão dele, que já sabia de tudo. Stapleton morrera na noite de domingo no Freemansons' Hospital e na manhã de domingo saíra um comentário significativo no Tynecastle Herald.
- Ora, ora - disse Ramage, desdenhosamente, fingindo estar extremamente divertido. - Então vamos fazer uma tentativa para o Parlamento, hem?
Com a cordialidade mais exasperante de que era capaz, David respondeu:
- Isso mesmo, Mr. Ramage.
- E acha que conseguirá ser eleito?
- É o que espero - disse David, irritantemente.
Ramage deixou de tentar parecer divertido. O rosto grande e vermelho tornou-se ainda mais vermelho. Fechou uma das mãos e bateu vigorosamente na palma da outra.
- Não se eu puder impedir! Por Deus, não se eu puder impedir! Não queremos que malditos agitadores representem este distrito!
David observou o rosto contorcido de Ramage quase com curiosidade, vendo o ódio exibido tão abertamente. Ele forçara Ramage a fornecer carne de boa qualidade ao hospital, combatera-o a propósito do seu abominável matadouro e de seus cortiços insalubres por trás da Quay Street. No total, tentara induzir James Ramage a fazer as coisas certas. E James Ramage era j capaz de matá-lo por isso. O que era muito curioso.
David disse calmamente, sem rancor:
- É natural que apoie o seu candidato.
- Pode apostar que sim! - explodiu Ramage. - Vamos esmagá-lo nas urnas, vamos liquidá-lo, vamos transformá-lo no motivo de riso em Tyneside...
Ele sufocou, procurando insultos mais violentos, acabou balbuciando incoerentemente. Virou-se bruscamente e afastou-se, furioso.
David seguiu pela Freehold Street, pensativo. Sabia que a opinião de Ramage não era a geral. Contudo, compreendia perfeitamente o que teria de enfrentar. Sleescale era normalmente um distrito seguro para os trabalhistas. Mas Stapleton, que o representava há quatro anos, era um homem já idoso, um homem já abalado de antemão com a terrível enfermidade do câncer. Na última eleição, que instalara no poder o Governo Baldwin, Sleescale vacilara ligeiramente. Laurence Roscoe, o candidato conservador, reduzira a maioria de Stapleton para apenas 1.200 votos. Roscoe certamente concorreria novamente e era um adversário perigoso. Jovem, bem-apessoado e rico, David já o encontrara diversas vezes, um homem esguio, de 34 anos, testa alta, dentes extremamente brancos e o estranho hábito de empinar os ombros com um solavanco, corrigindo uma tendência para ficar encurvado. Era filho de Lynton Roscoe, K.C.... agora Sir Lynton e um diretor da mina de carvão, em Tynecastle. Seguindo a tradição da família, o jovem Roscoe era advogado, com uma excelente banca; os clientes procuravam-no constantemente, graças à posição do pai e à sua própria capacidade. Integrara a equipe de críquete em Cambridge e durante a guerra servira romanticamente na R.A.F. Ainda estava interessado em voar. Tinha o seu brevé de piloto e frequentemente decolava de Heston no fim de semana, seguindo para a casa de campo do pai, em Morpeth. David achava que era estranhamente significativo que o filho do homem com quem se confrontara tão encarniçadamente no Inquérito se tornasse agora o seu adversário nas urnas. Quanto maior eles forem, a queda será mais forte, pensou David, com um sorriso amargo.
Ele foi para casa. Martha estava sentada à mesa, espiando por cima do jornal vespertino, com os óculos de aros de aço que comprara recentemente na Woolworths, desdenhando a sugestão de David de que fosse consultar antes um oculista. Geralmente, Martha não perdia tempo com o jornal vespertino. Mas Hannah Brace fora procurá-la para falar sobre a notícia da eleição. E Martha saíra de casa para comprar o jornal. Ela levantou-se com um ar de culpa. David percebeu que a mãe estava atónita, confusa, quase aturdida. Mas ela não se permitia ficar completamente aturdida, de jeito nenhum. David pôde ver no rosto dela a luta intensa para não se mostrar impressionada. Escondendo o jornal, ela disse, em tom de acusação:
- Chegou cedo. Não o esperava antes das nove horas. Mas David não lhe permitiu esquivar-se.
- O que está achando, mãe?
Martha esperou por um momento, antes de dizer, asperamente:
- Não me agrada.
Ela foi cuidar do jantar; isso foi tudo o que disse.
Enquanto jantava, David começou a planejar. Uma campanha vigorosa... era assim que diziam. Mas não era fácil fazer uma campanha vigorosa quando se era pobre. Nugent fora brutalmente franco na questão de dinheiro: já era concessão suficiente garantir a indicação de David. Mas isso não o assustava. Poderia reduzir as despesas ao máximo; o velho Peter Wilson era um agente razoável. Alugaria um dos caminhões pequenos da Cooperativa e faria muitos comícios ao ar livre, usando o prédio da municipalidade para o comício final. Ele sorriu para Martha, quando ela lhe -entregou o prato de ameixas cozidas. Ele estava certo de que ela sabia que ele jamais gostara de ameixas.
- Ameixas para um membro do Parlamento!
- Tempo bastante para falar - respondeu Martha, enigmaticamente. A designação dos candidatos ocorreu a 24 de agosto. Havia apenas dois
candidatos, a luta direta seria entre David e Roscoe. O dia 24 foi extremamente úmido, a chuva caindo intensamente. O que significava, comentou Roscoe jovialmente, que os presságios eram desfavoráveis para um dos candidatos. David esperava que não fosse ele. Achou a confiança exuberante de Roscoe um tanto depressiva. Até onde podia determinar, a organização dos conservadores era três vezes mais eficiente do que a sua. Peter Wilson, o pequeno advogado de Sleescale, parecia insignificante em contraste com Bannerman, um homem de fraque, importado de Tynecastle. Ainda por cima, a chuva forte era inteiramente desfavorável à eloquência do alto de um caminhão.
Assim, sentindo-se terrivelmente inferiorizado, David foi obrigado a adiar o início de sua campanha. Foi para casa e trocou as botinas molhadas.
Mas o dia seguinte foi de céu azul e sol. David lançou-se à batalha de corpo e alma. Estava nos portões da Neptune quando o turno da manhã saiu, de cabeça descoberta e pronto, com Harry Ogle, Wicks, o conferente de peso, e Bill Snow a seu lado no caminhão, tendo Chá Leeming como o motorista voluntário. David fez um discurso veemente, incisivo, deliberadamente curto. Sabia que os homens estavam ansiosos em jantar e por isso não os reteve por muito tempo. Roscoe, que jamais saíra da mina faminto, poderia cometer esse erro. Mas ele jamais o faria. O discurso foi um sucesso.
A plataforma de David era simples e formal, mas mesmo assim lhe proporcionava um apoio considerável. Justiça para os mineiros. Eles sabiam que jamais teriam justiça se não houvesse a nacionalização. David estava batalhando por essa questão e nada mais. E era eficiente na luta por isso. Afinal, era a convicção de toda a sua vida.
Ao final da primeira semana, tom Heddon veio de Tynecastle para "dizer uma palavra" por David. Todos os discursos de David haviam sido intencionalmente impessoais, pois Roscoe estava fazendo uma luta limpa e a campanha mantinha-se livre de ofensas pessoais. Mas Heddon era Heddon. Embora David lhe suplicasse antes do comício que fosse cuidadoso, tom recusou-se a manter a campanha em termos altos. com um sorriso amargo, ele começou:
- Prestem atenção ao que tenho a dizer, rapazes. Há dois candidatos nesta maldita eleição, Roscoe e Davey Fenwick. E agora quero que prestem muita atenção. Quando esse tal de Roscoe estava batendo numa bolinha de críquete lá em Eton e Harrow, sei mais o quê, todo bonitinho, com o papai, a mamãe e a irmãzinha batendo palmas sob as sombrinhas coloridas, Davey Fenwick estava descendo na Neptune, nu da cintura para cima, chapinhando na lama, suado, empurrando os malditos vagonetes de carvão, como todos nós já fizemos, quando começamos. E agora me respondam, rapazes: em qual dos dois vão querer investir os seus malditos votos? O que empurrava o maldito vagonete de carvão ou o que ficava batendo na maldita bolinha de críquete?
Houve meia hora de discurso nessa mesma tónica. Foi um discurso exuberante, satisfatório, bem temperado. Depois, tom Heddon disse calmamente a David:
- Não foi grande coisa, Davey. Eu próprio não gostei. Mas se lhe adiantar de alguma coisa, então ficarei satisfeito.
Se tom Heddon fosse um homem brilhante, poderia estar muito bem concorrendo à cadeira. E tom Heddon sabia disso. Como tom não era brilhante, podia apenas ser altruísta. Mas seu altruísmo não o salvava de momentos de terrível amargura, de uma autotortura particular, pior do que a tortura dos amaldiçoados.
Sábado, 21 de setembro, foi o dia da eleição. Às seis horas da tarde de sexta-feira, dia 20, David promoveu o seu comício final no prédio da municipalidade de Sleescale. O salão estava lotado, com homens de pé nos corredores, amontoando-se nas portas, escancaradas para a noite quente. Era uma grande multidão. Todos os principais partidários de David estavam presentes: tom Heddon, Harry Ogle, Wicks, Kinch, o jovem Brace, o velho tom Ode, Peter Wilson e Carmichael, que viera especialmente de Wallington para passar o fim de semana com David.
Houve um silêncio tenso quando David se adiantou para falar. Ele parou por trás da mesa pequena e da garrafa de água da qual ninguém jamais bebia. O ar estava tão parado que se podia ouvir os ruídos distantes das ondas no Snook. Diante dele, havia fileiras e mais fileiras de rostos, todos levantados em sua direção. Além do clarão intenso da plataforma, eles possuíam uma palidez simbólica, com uma expressão vagamente suplicante. Contudo, David podia distinguir rostos individuais, todos rostos que ele conhecia. Lá estava Annie na primeira fila, os olhos fixados nele, tendo Pug ao seu lado. Lá estavam Ned Sinclair e tom Townley, Chá Leeming com Jack Reedy, uma expressão amarga, Woods, Slattery, mais dezenas e dezenas de homens da Neptune. Ele os conhecia, os mineiros, sua própria gente. Sentiu uma grande humildade envolvê-lo, o coração estufar de ternura e orgulho. Abandonou os clichés, os sofismas políticos, a retórica vazia. Oh, Deus, ajude-me, pensou David, por favor, ajude-me! E ele falou com simplicidade, as palavras saindo do fundo de sua alma, a voz tremendo de emoção:
.- Conheço quase todos os que estão aqui. Muitos já trabalhavam na Neptune quando eu lá trabalhei. E esta noite, mesmo que eu pudesse, não sinto a menor vontade em me lançar a voos de oratória diante de vocês. Eu os considero como meus amigos. E quero lhes falar como a amigos.
Foi nesse momento que uma voz lá do fundo gritou, encorajadoramente:
- Pode continuar, Davey! Estamos todos escutando!
Houve aclamações ruidosas e depois o silêncio voltou a reinar. David continuou :
- Quando se pensa a respeito, descobre-se que a vida de cada homem e mulher neste salão está ligada de alguma forma à mina. Todos vocês são mineiros, mulheres, filhos e filhas de mineiros. Todos estão presos às minas. E é sobre a questão das minas, uma questão certamente vital para todos vocês, que quero lhes falar esta noite...
A voz de David, alteando-se numa paixão fervorosa, ressoava pelo salão enfumaçado. Ele sentiu de repente, com a maior intensidade, que era capaz de prender-lhes a atenção, de persuadi-los. Começou a expor-lhes seus argumentos. Falou sobre o sistema de propriedade particular, com sua frequente indiferença à segurança, sua base de lucro exorbitante,com o acionista sempre em primeiro lugar, ficando o mineiro por último. Discorreu sobre a questão dos royalties, um princípio intolerável e imoral, permitindo que quantias vultosas fossem tiradas de um distrito, não por serviços prestados à comunidade, mas exclusivamente por causa de um monopólio concedido há centenas de anos. Depois, rapidamente, apresentou-lhes o sistema alternativo. Nacionalização! Uma palavra que há anos vinha sendo bradada no vazio. David pediulhes que pensassem no que representava a nacionalização. Significava, em primeiro lugar, uma unificação das minas de carvão, de sua administração, métodos melhorados de produção, que por sua vez seriam seguidos por uma reorganização do sistema de distribuição de carvão aos consumidores. Significava, em segundo lugar, um trabalho seguro nas minas. Havia centenas de minas por todo o país, antiquadas, mal equipadas, onde o mineiro, sob o sistema de propriedade privada, tinha de pensar primeiro em manter seu emprego, deixando para um segundo plano a preocupação com perigos ou condições de trabalho impróprias. E os salários? A nacionalização significava melhor salário, porque os anos ruins na indústria seriam compensados pelos anos melhores; significava pelo menos um salário que dava para viver. E significava também melhores moradias. O Estado nunca poderia permitir as condições deploráveis das habitações de mineiros em muitos distritos que existiam atualmente; não podia permitir, por sua própria honra. Esse legado de moradias miseráveis era o resultado de anos de ganância, egoísmo e apatia. Os homens que trabalhavam nas minas desempenhavam um serviço público, um perigoso serviço público, deveriam ser tratados como servidores públicos. Pediam apenas por justiça humana, a justiça que lhes era negada há séculos. Pediam para ser os servidores do Estado, não os Escravos do Dinheiro...
David prendeu a audiência por meia hora, hipnotizou a todos ao silêncio, atentos às suas palavras, a seus argumentos. Sua convicção sobrepunha-se a tudo. Comoveu-os com a história de seu próprio tormento, uma iniquidade depois da outra, traição em cima de traição. Fê-los exultantes com o registro de sua própria solidariedade, sua camaradagem diante das dificuldades, a coragem em face do perigo.
- Ajudem-me! - gritou David finalmente, as mãos estendidas, numa súplica veemente. - Ajudem-me a lutar por vocês, a conquistar a justiça para vocês!
Ele ficou imóvel, em silêncio, quase ofuscado por sua própria emoção. Depois, sentou-se abruptamente. Por um momento, o silêncio persistiu. Mas logo começou a aclamação, um troar incontrolável. Harry Ogle levantou-se de um pulo e apertou a mão de David. E lá estavam Kinch, Wilson, Carmichael e também Heddon.
- Você os conquistou! - Heddon teve de gritar para se sobrepor ao tumulto. - Conquistou a todos eles!
Wicks estava batendo nas costas de David, enquanto uma massa humana se adiantava ruidosamente, desejando apertar-lhe a mão, todos querendo falar ao mesmo tempo, sufocando-o. O clamor ressoava pela noite.
No dia seguinte, David recebeu 12.424 votos. Roscoe teve 3.691 votos. era um grande triunfo, uma vitória surpreendente, a maior maioria que acontecia em Sleescale nos últimos 14 anos. Parado diante do prédio da municipalidade, de cabeça descoberta, enquanto a multidão inebriada aclamava, David sentiu uma exultação intensa dominá-lo, experimentou uma força que jamais conhecera antes. Sem saber direito como, conseguia ser eleito.
Roscoe apertou-lhe a mão e a multidão aclamou ainda mais delirantemente. Roscoe era um bom perdedor e sorria, apesar do terrível desapontamento. Mas Ramage não sorria. Ramage estava observando a tudo, em companhia de Bates e Murchison. Ramage não apertou a mão de David. Estava de cara amarrada, a expressão que havia em seu rosto, misturada com a de incredulidade, era de hostilidade implacável.
David fez um pequeno discurso de vitória. Não sabia o que disse ou como disse. Agradeceu, agradeceu do fundo de seu coração. Trabalharia por eles, lutaria por eles. Haveria de servi-los. Um telegrama lhe foi entregue; era de Nugent, um telegrama de congratulações. O telegrama de Harry Nugent significava muito para David. Ele leu-o rapidamente, guardou-o no bolso. Mais pessoas lhe davam os parabéns, havia mais apertos de mão, mais aclamações. A multidão começou subitamente a cantar For he's a Jolly Good Fellow (Pois Ele é um bom Companheiro). Estavam cantando para ele. Um repórter, conseguindo abrir caminho através da multidão, aproximou-se de David e disse:
- Não quer dar alguma mensagem, Mr. Fenwick? Algumas palavras para o Argusl
Os fotógrafos estavam em ação, os clarões dosflashes espocando a todo momento. Mais aclamações e depois, lentamente, a multidão começou a se dispersar. As comemorações continuaram, em partes diferentes da cidade. Peter Wilson, o agente de David, rindo e gracejando, ajudou-o a descer os degraus. Estava acabado. Estava tudo acabado. E ele vencera!
David chegou finalmente a sua casa, entrou na cozinha, meio atordoado. Ficou parado ali, pálido, o rosto contraído, fitando a mãe. Subitamente, sentia-se cansado e terrivelmente faminto. E disse, lentamente:
- Ganhei, mãe. Já sabia que eu ganhei?
- Já, sim - disse Martha,secamente. - E sei que ainda não comeu nada. Está agora acima de comer um pastelão de carne de mineiro?
A reação inevitável ocorreu com a introdução de David na Câmara dos Comuns, quando ele se sentiu sem a menor importância, insignificante, sem amigos. Foi quase cómico, mas no primeiro dia seu principal estímulo veio da força policial londrina. Ele chegou cedo e cometeu o erro comum de tentar ingressar pela entrada pública. Um guarda interceptou-o, indicando amavelmente o lugar em que ficava a porta especial privativa dos parlamentares. David atravessou o pátio, contornou a estátua de Oliver Cromwell, passou por fileiras e mais fileiras de carros estacionados, pelos pombos a arrulharem, entrou pela porta particular. Ali, outro guarda amigável encaminhou-o para o vestiário, uma sala comprida, cheia de ganchos nas paredes, alguns com uma curiosa fita rosa. Enquanto David tirava o chapéu e o casaco, outro guarda explicou-lhe afavelmente a geografia da Câmara, discorrendo sobre pequenos fatos históricos, até mesmo elucidando o mistério das fitas rosas.
- Remonta ao tempo em que eles usavam espadas, senhor. As espadas eram penduradas ali, antes de entrarem na Câmara.
- Era de se imaginar que a esta altura as fitas já estivessem completamente gastas - comentou David.
- Quando uma fita começa a se esfiapar, senhor, eles tratam de colocar outra.
Nugent e Bebbington chegaram às três horas. David acompanhou-os por um corredor imenso, repleto de livros de capa azul-clara... Relatórios dos Debates, Leis, Atas Parlamentares... livros que davam a vaga impressão de jamais terem sido lidos. David teve uma impressão confusa da Câmara alta e comprida, vultos refestelados, o Presidente lá no alto; de uma prece sendo murmurada, seu próprio nome sendo chamado, ele se encaminhando para o fundo da Câmara. Tinha uma sensação misturada de humildade e a mais elevada determinação... a convicção de que seu trabalho de verdade finalmente começara.
Ele alugara aposentos na Blount Street, em Battersea. Os aposentos constituíam na verdade um pequeno apartamento, com um cómodo que servia de quarto e sala, uma kitchenette com um fogão a gás e banheiro. Mas não era um apartamento separado, e o acesso era através do corredor e da escada da casa. David pagava uma libra por semana pelo apartamento, com a combinação da Sra. Tucker, a senhoria, fazer sua cama e manter tudo arrumado e limpo. Afora isso, David queria cuidar de si mesmo. Estava disposto até mesmo a preparar o seu próprio café da manhã, o que deixou a Sra. Tucker consideravelmente surpresa.
A Blount Street nada tinha de proeminente, não passando de uma artéria pobre e suja, entre duas fileiras de casas cobertas pela fuligem. Nas calçadas coalhadas de papéis, muitas crianças pálidas brincavam, empenhadas em jogos estranhos e ruidosos, subiam pelas grades ou sentavam, especialmente as meninas, no meio-fio, com os pés na sarjeta, conversando. Mas ficava num raio de um quilómetro e meio de Battersea Park, e a casa da Sra. Tucker, a de número 33, tinha um andar extra, o que permitia a David vislumbrar as árvores verdes e o céu azul, além das chaminés sempre expelindo fumaça. Ele experimentara uma atração imediata pelo Battersea Park. Não era tão bonito como Hyde Park, Green Park ou Kensington Park, mas estava muito mais perto de seu coração. Ali, ele observava os jovens operários que praticavam corrida e pulos, na pista de escória de hulha, os estudantes que disputavam uma bola de futebol com extremo vigor e habilidade, os escriturários pálidos e ofegantes que jogavam ténis nas quadras de saibro, empunhando as raquetes de um jeito jamais sonhado em Wimbledon. Não havia babás elegantes e crianças bem-vestidas, brincando por trás de carrinhos construídos como coches e exibindo brasões. Peter Pan, sendo uma criança bem-criada, jamais teria olhado duas vezes para o Battersea Park. Mas David, misturando-se com a humanidade rude que ali descansava e se divertia, encontrara conforto e uma vigorosa inspiração.
Sua primeira inspeção verdadeira do parque foi na tarde do sábado em que almoçou com Bebbington. O desempenho de David na eleição e sua esmagadora maioria impressionara Bebbington, que era o tipo de homem sempre ansioso em cultivar as pessoas certas, em ligar-se ao sucesso... o que explicava por que Bebbington se adiantara com Nugent para apresentar David à Câmara. Mais tarde, Bebbington abordou David, indagando:
- Vai sair da cidade neste fim de semana? - Não.
- Eu já tinha acertado tudo para passar o fim de semana fora - disse Bebbington, impressivamente, estudando o efeito de suas palavras. - Ia a uma festa em Larchwood Park... na casa de Lady Outram... mas no último momento fui designado para falar na União Democrática, na tarde de domingo. Ah, como detesto passar o fim de semana em Londres! Uma coisa horrível, não é mesmo? Poderia almoçar comigo no sábado, se não tiver nada melhor para fazer.
- Está certo - concordou David, depois de um segundo de hesitação.
Ele não gostava muito de Bebbington, mas parecia-lhe grosseiro recusar.
Almoçaram no restaurante do Adalia, numa mesa ao lado da janela, com uma vista deslumbrante do rio. Ficou imediatamente evidente que Bebbington conhecia todo mundo naquele restaurante famoso e exclusivo. E muitas pessoas conheciam Bebbington. Consciente dos olhares para o seu vulto empertigado mas flexível, Bebbington mostrou-se bastante simpático com David, num estilo condescendente, explicando as coisas, com quem se ligar, a quem evitar. Mas falou principalmente de si mesmo.
- Foi uma decisão difícil para mim, entre ingressar no Foreign Office ou me tornar trabalhista. Afinal, sou um homem ambicioso. Mas acho que tomei a decisão correta. Não acha que há mais perspectivas no partido?
- Que espécie de perspectivas? - perguntou David, bruscamente. Bebbington alteou as sobrancelhas ligeiramente, desviando os olhos, como se a pergunta não fosse de bom gosto.
- Não estamos todos querendo a mesma coisa? - murmurou ele, gentilmente.
Desta vez foi David quem desviou os olhos. Bebbington já o nauseava, com sua vaidade, seu egoísmo inabalável e imenso. Deixou que o olhar vagueasse pelo restaurante, notando o serviço eficiente, as flores, vinho gelado, comida farta, mulheres elegantes. As mulheres especialmente... desabrochavam naquele ar quente e perfumado como flores exóticas. Não eram como as mulheres dos Terraços, com as mãos cheias de calos, os rostos enrugados pela eterna luta para sobreviver. As mulheres ali usavam peles suntuosas, pérolas, pedras preciosas. As unhas eram vermelhas, como se tivessem mergulhado em sangue. Comiam caviar da Rússia, patê de Estrasburgo, morangos amadurecidos em estufas e trazidos de avião do sul da França. Numa mesa ao lado, uma mulher jovem e bonita estava sentada com um velho. Ele era gordo, de nariz adunco, calvo. As bochechas caídas brilhavam de gordura; a barriga, estufada por baixo da mesa, chegava a ser obscena. A moça fitava-o languidamente. Um enorme diamante, grande como um feijão, faiscava no dedo indicador do homem. Ele pediu uma garrafa grande de champanha, explicando que os melhores vinhos sempre iam para as garrafas grandes. Embora quisesse tomar apenas um copo, ele sempre pedia uma garrafa grande. Quando a conta lhe foi trazida, apresentada com uma profunda reverência, David viu a mão gorda colocar seis libras em cima da mesa. Os dois mal haviam tocado na comida e na bebida, demorando-se ali cerca de meia hora, gastando o que sustentaria uma família nos Terraços por um mês.
Uma sensação de irrealidade envolveu David. Não era verdade, não podia ser verdade, a enormidade daquela injustiça. Uma ordem social que permitia tamanha desigualdade estava certamente podre.
Ele ficou calado pelo resto da refeição, perdendo inteiramente o apetite. Lembrou-se dos dias de sua infância, da greve, quando fora aos campos e comera um nabo cru, a fim de aliviar as pontadas da fome. Seu espírito revoltava-se contra aquele luxo complacente. Respirou aliviado quando finalmente escapou dali. Tinha a sensação de sair de uma estufa, onde -odores fatais e voluptuosos intoxicavam os sentidos e destruíam a alma. Voltando para os seus aposentos, encontrou o Battersea Park aberto e puro.
A reação àquele primeiro almoço com Bebbington foi um fortalecimento de sua determinação de viver com simplicidade. Deparara com um estranho livro: A Vida do Cura de Ars. Era a história de um padre de aldeia, numa região rural da França. A austeridade de sua vida e a frugalidade de sua dieta impressionaram David profundamente. Depois de testemunhar o esbanjamento no Adalia, David sentia um novo respeito pelo homem simples de Ars, cuja única refeição diária era constituída por duas batatas frias, com um copo de água da fonte.
A Sra. Tucker sentia-se aflita pelas intenções de David de levar uma vida espartana. Era uma irlandesa idosa e loquaz - o sobrenome de solteira, como orgulhosamente declarava, fora Shanahan! - de olhos verdes, rosto sardento, cabelos vermelhos. O marido era cobrador da Companhia de Gás e ela tinha dois filhos crescidos e ainda solteiros que trabalhavam na City, como escriturários. Não exibia nada da indolência natural de sua raça, algo que era impedido pelos cabelos vermelhos flamejantes. Estava acostumada, em sua própria frase, a cuidar dos homens. A recusa de David em permitir-lhe preparar o café da manhã e o jantar foi um golpe terrível para o orgulho Shanahan, fazendo-a com que se pusesse a falar. E Nora Shanahan falava de verdade. .. o que acarretou resultados extremamente desagradáveis.
Na tarde do último sábado de janeiro, David foi fazer compras na Buli Street, que era uma rua comercial bastante movimentada, logo depois da Blount Street. Ele frequentemente comprava frutas na Buli Street, biscoitos, um pedaço de queijo. Havia lojas na Buli Street que eram ao mesmo tempo boas e baratas. Mas naquela tarde David comprou uma frigideira. Há muito tempo que desejava ter uma frigideira, algo bem simples, rápido e eficiente para preparar alguma coisa para comer pela manhã. E agora ele tinha uma frigideira. A moça da loja de ferragens achou a frigideira um artigo difícil de embrulhar. Depois de rasgar diversas folhas de jornal e divertir-se muito, juntamente com David, acabou desistindo. E perguntou se David não se incomodava de levar a frigideira sem embrulhar. E assim David levou a frigideira nova e reluzente para a Blount Street, 33, sem o menor constrangimento.
Mas aconteceu algo diante da casa. Um rapaz de calça de golfe, capa e chapéu, a quem David já vira pelas redondezas diversas vezes, nas ocasiões mais estranhas, levantou de repente uma máquina fotográfica e bateu uma chapa de David. E depois afastou-se rapidamente.
Na manhã seguinte, no Daily Gazette, a fotografia apareceu, com o título de "A Frigideira do Membro do Parlamento", tendo por baixo meia coluna a celebrar o ascetismo do novo representante dos mineiros do Norte. Havia uma entrevista curta mas vigorosa da Sra. Tucker, cheia de conversa fiada.
Ao ler a notícia, David ficou vermelho de raiva e consternação. Levantou-se abruptamente e correu para o telefone no patamar. Ligou para o editor do jornal e protestou, indignado. O editor lamentou profundamente, mas não via nada de mal na história. No fundo, não era um elogio, um elogio de primeira? A Sra. Tucker também não pôde compreender o motivo da contrariedade de David. Ela estava deliciada por ver seu nome no jornal... e respeitosamente, como fez questão de acrescentar.
Mas David foi para a Câmara naquela manhã sentindo-se ressentido e diminuído, esperando que o incidente passasse despercebido. Mas era uma vã esperança. Foi recebido com uma aclamação ligeiramente desdenhosa. Era o seu primeiro contato com o ridículo. David ficou vermelho e baixou a cabeça, envergonhado porque todos estavam pensando que ele procurava uma publicidade tão vulgar.
- Limite-se a rir - sugeriu Nugent, suavemente. - É a melhor coisa. Ria e não dê importância às pilhérias.
Nugent podia compreender. Mas o mesmo não acontecia com Bebbington. Bebbington mostrou-se um tanto satírico e distante. Encarava o incidente como algo cuidadosamente arrumado e não hesitou em manifestar sua opinião. Talvez estivesse ressentido com a publicidade obtida por David.
Naquela noite, Nugent foi ao apartamento de David. Sentou-se, pegou o cachimbo, contemplando o cómodo, com seus olhos serenos. O rosto parecia mais cadavérico do que nunca e as mechas de cabelos que caíam pela testa eram poucas e ralas. Mas sua jovialidade infantil e impenetrável prevalecia. Ele acendeu o cachimbo e depois comentou:
- Há muito tempo que estava querendo visitá-lo. Tem um apartamento bastante agradável.
- Não é nada mau para uma libra por semana - respondeu David, bruscamente. - A maldita frigideira está na cozinha.
Os olhos de Nugent se iluminaram, divertidos.
- Não deve se incomodar com esse tipo de coisa, David. Provavelmente vai lhe fazer muito bem com os rapazes lá no Norte.
- Mas eu é que gostaria de fazer alguma coisa por eles - respondeu David, irritado.
- Isso vai acabar acontecendo. Não podemos fazer muita coisa no momento, além de ganhar tempo. Estamos enfrentando uma sólida maioria torry, 419 cadeiras contra as nossas 151.0 que se pode fazer numa situação assim? Só nos resta ficar esperando que chegue a nossa vez. Compreendo como você se sente. Quer fazer alguma coisa. E não pode fazer nada. Quer passar por cima das formalidades, de toda a burocracia, dos procedimentos pomposos. Quer resultados. Mas terá de esperar, David. Um dia desses você terá muita chance de agir.
David ficou calado por um momento, antes de dizer, lentamente:
- É essa maldita procrastinação que me parece absolutamente sem sentido. Há problemas fermentando nas minas. Pode-se perceber a um quilômetro de distância. Quando o atual acordo expirar, os proprietários de minas vão exigír horas extras e salários mais baixos. Enquanto isso, estão deixando as coisas à deriva.
- Estão aventando a possibilidade de outro subsídio. - Nugent sorriu gentilmente. - Em 1921, dez milhões de libras se evaporaram num subsídio. E depois tiveram a grande ideia... uma comissão! Mas antes que a comissão apresentasse suas conclusões, o Governo pagou outro subsídio. Ao final, a comissão condenou todos os subsídios. É altamente instrutivo. Chega a ser engraçado.
- Mas quando vamos conseguir a nacionalização? - perguntou David, na maior veemência. - É a única solução. Temos de esperar até que nos ofereça numa bandeja?
- Temos de esperar até que um governo trabalhista conquiste o poder
- respondeu Nugent calmamente, sorrindo. - Até lá, continuamos a carregar nossos livros de atas e nossas frigideiras.
Houve outro momento de silêncio. E depois Nugent continuou:
- O problema pessoal é muito importante. Há muitas distrações e questões secundárias em que você pode perder-se, se não tomar cuidado. Não ha nada como a vida pública para revelar as fraquezas pessoais de um homemA praga é a ambição pessoal, a ambição social, o terrível egoísmo. Veja o caso do nosso amigo Bebbington, por exemplo. Pensa que ele se importa com os vinte e tantos mil mineiros de Durnham que o elegeram? Pois não se importa absolutamente! Bebbington só está preocupado com Bebbington! Pense em Chalmers, outro caso muito interessante. Bob Chalmers era uifl perfeito fanático quando aqui chegou, há quatro anos. com lágrimas nos olhos, jurou-me que conseguiria um dia de sete horas para os tecelões, nem que isso o matasse. Pois o dia de sete horas ainda não chegou a Lancashire e Bob não está morto. Ao contrário, está muito vivo. Foi mordido pela mosca azul. Está com a turma de Clinton, fornecendo informações úteis e ganhando muito dinheiro na City. Cleghorn é outro exemplo. O problema dele é apenas o lado social. Casou com uma mulher da sociedade. E agora é capaz de perder a reunião de qualquer comité por uma recepção no West End com a sua mulher. Procuro ser generoso, David, mas tudo isso é capaz de levar um homem ao desespero. Não sou nenhum santo, mas juro por Deus que estou sendo sincero. É por isso que me sinto profundamente contente por vê-lo aqui, tentando levar uma vida simples e honesta. Continue assim, meu caro, continue assim, pelo amor de Deus!
David nunca vira Nugent tão excitado. Mas foi apenas por um momento. Ele logo tornou a se controlar, a serenidade habitual voltando a se estampar em seu rosto.
- Mais cedo ou mais tarde, David, você terá de enfrentar tudo isso. Vai ser envolvido pela corrupção, como um mineiro é envolvido pelo grisu.
O lugar recende a corrupção, David. Tome cuidado com o bar da Câmara dos Comuns. Tome cuidado com quem bebe. Tome cuidado com Bebbington, Chalmers e Dickson. Sei que estou falando como um pregador, mas mesmo assim é a verdade de Deus. Se conseguir ao menos ser honesto com você mesmo, não importa o que mais possa acontecer. Ele bateu o cachimbo.
- E aqui termina o sermão. Eu tinha de falar. Depois disso, se algum dia eu entrar aqui e encontrar uma porção de convites desprezíveis, pode estar certo de que minha reação não vai ser brincadeira. Se quiser distrair-se, venha assistir a um jogo de críquete comigo no Oval, quando o tempo esquentar. Sou sócio de lá. E gosto muito.
David sorriu.
- Essa é a sua forma de corrupção.
- Exatamente! Custa-me dois guinéus por ano. E eu não abriria mão, mesmo que me oferecessem a liderança do partido. - Olhando para o relógio, Nugent levantou-se e esticou-se. - Tenho de ir agora.
Ele encaminhou-se para a porta, acrescentando:
- Por falar nisso, não esqueci o seu discurso de estreia. Haverá uma grande oportunidade dentro de duas semanas, quando Clarke apresentar a emenda à Lei da Segurança das Minas. É o momento apropriado para tirar algumas das coisas que tem no peito. Boa-noite.
David sentou-se depois que Nugent saiu. Sentia-se melhor, aliviado. Nugent sempre exercia tal influência sobre ele. Era verdade que vinha se sentindo inquieto, pois a inércia da rotina parlamentar era um anticlímax insosso à intensa disputa da eleição e ao entusiasmo incandescente de suas convicções. Ressentia-se da lentidão, a perda de tempo, os discuros sem sentido, as questões absurdas, as respostas suaves, a insinceridade polida... tudo poeira nos olhos. Ao invés de um turbilhão de engrenagens, ouvia o clangor enfadonho da máquina. Mas Nugent fizera-o sentir que seu ressentimento era ao mesmo tempo natural e absurdo. Devia cultivar a paciência. Ele pensou ansiosamente e com alguma apreensão em seu discurso de estreia. Era da maior importância que esse discurso fosse impressivo e bom. A apresentação da emenda à Lei da Segurança das Minas era uma oportunidade maravilhosa. Ele já podia ver claramente como trataria o assunto, os pontos que abordaria, as questões a enfatizar e o que evitar. O discurso já começava a se delinear, vigoroso, a se criar como uma coisa viva, dentro de sua mente. Ele deixou o aposento, pela força de seu pensamento; a mina absorveu-o e estava novamente nos túneis escuros, onde homens trabalhavam em constante perigo de mutilação e morte. Era muito fácil não se preocupar com essas coisas, quando não as conhecia. Mas ele as conhecia. E faria com que a imagem de seu conhecimento se gravasse indelevelmente nas mentes e corações dos que não conheciam. E tudo seria diferente.
Sentado ao lado do fogo, imóvel e tenso, ele ouviu uma batida na porta. Um momento depois, a Sra. Tucker entrou.
- Há uma dama querendo vê-lo - anunciou ela. David voltou a si, com um sobressalto.
- Uma dama?
Subitamente, uma esperança incontrolável povoou-lhe a mente. Sempre tivera a impressão de que Jenny estava em Londres. Seria possível que Jenny tivesse voltado para ele?
- Ela está lá embaixo. Posso deixá-la subir?
- Pode, sim - murmurou David.
Ele levantou-se, de frente para a porta, o coração descompassado. E depois sua expressão mudou, a esperança se desvaneceu, tão depressa quanto surgira. Não era Jenny, mas Hilda Barras.
- Isso mesmo, sou apenas eu - declarou ela, com sua franqueza habitual, percebendo a mudança de expressão de David. - Soube de seu paradeiro pelo jornal de hoje e resolvi vir apresentar-lhe meus parabéns. Se está muito ocupado, basta dizê-lo e irei embora.
- Não seja absurda, Hilda.
Era uma grande surpresa deparar com Hilda Barras. Mas depois do desapontamento inicial, David ficou satisfeito ao vê-la. Hilda usava um costume cinza bem simples e uma pele de raposa. O rosto severo fez com que David recordasse subitamente as discussões veementes que tinham antigamente. Ele sorriu. E o mais estranho foi que Hilda sorriu também; ela nunca sorrira quando a conhecera antes. .. ou quase nunca.
- Sente-se, Hilda. Este é um acontecimento e tanto.
Ela sentou-se e tirou as luvas; as mãos eram muito brancas, fortes e flexíveis.
- O que está fazendo em Londres, Hilda?
- É muita gentileza sua perguntar, considerando que já está aqui há um mês. Vocês, provincianos, são sempre iguais.
- Ora, você também é provinciana.
- Vamos começar uma discussão?
Então ela também se lembrava das discussões! David respondeu:
- Não sem leite quente e biscoitos.
Hilda riu de verdade. Quando ela ria, ficava bastante atraente, pois tinha dentes excelentes. Estava muito menos agressiva do que antes; a expressão soturna e mal-humorada desaparecera, parecia mais feliz e segura. Ela disse:
- É mais do que óbvio que você esqueceu inteiramente a minha existência, enquanto eu acompanhava a sua carreira com o maior interesse.
- Não foi o que aconteceu. Soube que se formou em medicina há quatro anos.
- Sou uma cirurgiã. E me formei com distinção. Provavelmente não o interessa, mas trabalho agora no Hospital Feminino St. Elizabeth, que fica no outro lado do rio... na Clifford Street, em Chelsea.
- Isso é ótimo, Hilda - comentou David, satisfeito.
- Não é mesmo?
Não havia sarcasmo em sua voz, ela falava com simplicidade e sinceridade.
- Quer dizer que gosta?
- Eu adoro! - declarou Hilda, com súbita veemência. - Não poderia viver sem o meu trabalho.
Então foi isso o que mudou nela, pensou David, instintivamente. Nesse momento, Hilda levantou os olhos e percebeu os pensamentos de David, com uma percepção quase fantástica.
- Eu era horrível, não é mesmo? - disse ela, calmamente. - Horrível para Grace, Tia Carrie, para todo mundo... inclusive para mim mesma. Não me contradiga, por favor, nem mesmo para promover uma discussão. Esta visita é na verdade um ato de reparação.
- Espero que a repita.
- É muita gentileza sua - murmurou Hilda, corando ligeiramente, agradecida. - vou ser bem franca. Tenho bem poucos amigos em Londres, terrivelmente poucos. Sou muito rígida. Não sou boa em conhecer pessoas. Não faço amizades facilmente. Mas sempre gostei de você. Não me compreenda mal, por favor. Não há qualquer tolice em mim. Apenas pensei que você poderia gostar de voltarmos a pôr em choque as nossas inteligências de vez em quando.
- Mas você não tem nenhuma!
- É justamente esse o espírito! - declarou Hilda, com o maior entusiasmo. - Eu sabia que você não me entenderia mal!
David estava de pé, as mãos nos bolsos, de costas para o fogo, observando-a.
- Vou jantar agora. Chocolate e biscoitos. Também vai querer?
- Claro! Costuma fazer o chocolate na frigideira?
- Conhece outro lugar melhor?
David foi para a cozinha. Hilda ouviu-o tossir lá. Quando ele voltou, ela perguntou:
- O que é essa tosse?
- Tosse de fumante. E mais um pouco de gás alemão.
- Devia cuidar disso.
- Pensei que fosse apenas uma cirurgiã.
Tomaram chocolate com biscoitos. Conversaram e discutiram. Hilda falou de seu trabalho, da sala de operações, as mulheres que eram submetidas a seu bisturi. De certa forma, David invejou-a; ali estava um meio concreto e objetivo de socorrer a humanidade sofredora. Mas Hilda sorriu ao ouvir tal comentário.
- Não sou nenhuma humanitária. É tudo uma questão de técnica. Matemática aplicada. Fria e deliberada. - Ela fez uma pausa, antes de acrescentar: - De qualquer forma, fez com que eu me tornasse humana.
- É um ponto discutível.
E lá se foram os dois novamente. Conversaram sobre o discurso iminente de David. Ela mostrou-se interessada e excitada. Ele descreveu as suas ideias, Hilda discordou vigorosamente. Era tudo muito agradável, como nos velhos tempos.
Eram 10 horas. E ela se levantou para ir embora.
- Deve ir me visitar, David. Faço um chocolate muito melhor do que o seu.
- Irei mesmo. Mas tenho certeza de que o seu chocolate jamais poderá ser tão bom quanto o meu.
Seguindo a pé para Chelsea, Hilda refletiu com a maior satisfação que a noite fora um sucesso. Precisara de muita força de vontade para fazer a visita. Estava com medo, sabendo que era uma visita que poderia ser mal interpretada. Mas David compreendera perfeitamente. Era muito inteligente, muito sensato. Hilda estava satisfeita. Hilda era uma excelente cirurgiã. Mas não era muito boa em psicologia.
No dia em que David fez o seu discurso, ela comprou um jornal vespertino com a maior ansiedade. Estava noticiado e comentado favoravelmente. Os jornais matutinos foram ainda mais favoráveis. O Daily Herald concedia-lhe uma coluna e meia e até mesmo The Times referia-se em termos simpáticos à eloquência sincera e comovente do novo representante de Sleescale.
Hilda ficou deliciada. E pensou: tenho de telefonar para ele. Antes de começar a trabalhar, ela telefonou para David e deu-lhe os parabéns, calorosamente. Deixou o telefone satisfeita. Talvez tivesse sido um pouco efusiva demais. Mas o discurso fora maravilhoso. E, naturalmente, era o discurso que a interessava!
Arthur estava de pé ao lado da janela de sua sala na Neptune, olhando para os homens que enchiam o pátio da mina, recordando angustiosamente o lockout de 1921, a primeira de uma série de disputas industriais a que fora arrastado, tudo levando e culminando na greve geral de 1926. Passou a mão pelo rosto, ansioso em esquecer todo o conflito sem sentido. Era suficiente pensar que estava acabado, a greve rompida, os homens de volta, enchendo o pátio da mina, comprimindo-se para a frente, na direção do apontador das horas de trabalho. Não estavam pedindo trabalho. Estavam clamando por trabalho. Estava estampado em seus rostos silenciosos. Trabalho! Trabalho! A qualquer preço! Contemplar aqueles rostos silenciosos era ver como fora esmagadora a vitória dos proprietários de minas. Os homens não estavam vencidos. .. estavam aniquilados. Em seus rostos podia-se ver o medo pânico de um inverno de fome. Quaisquer condições, quaisquer termos, mas trabalho, trabalho de qualquer maneira, a qualquer preço! Comprimiam-se para a frente, ansiosamente, avançando para o barracão do apontador, onde Hudspeth estava, junto com o velho Pettit, por trás do balcão, conferindo e registrando.
Os olhos de Arthur permaneciam fixados na cena. A cada homem que se apresentava, Hudspeth examinava-o, avaliava-o, olhava para Pettit e assentia. Se ele assentia, estava tudo bem, o homem conseguia trabalho, passava pelo balcão como uma alma admitida no paraíso, depois do julgamento. Era estranha a expressão nos rostos silenciosos dos homens que eram admitidos: um súbito desanuviar, um grande espasmo de alívio, um agradecimento quase inacreditável por ser readmitido no escuro mundo subterrâneo da Paradise. Mas nem todos os homens eram admitidos. O problema era que não havia trabalho para todos. com um turno de seis horas, haveria trabalho para todos os homens. Mas houvera uma vitória gloriosa das forças da Lei e da Ordem, comandadas por um Gabinete exultante, pró-Greve, apoiadas pelo Povo Britânico. Assim, o turno era de oito horas. Mas não tem importância, nada mais importa, não se preocupem com isso agora, quaisquer termos servem, quaisquer condições, mas nos dêem trabalho, pelo amor de Deus!
Arthur fez um esforço para afastar-se da janela, mas não pôde. Os rostos dos homens atraíam-no inexoravelmente, o rosto de um homem em particular fascinava-o. Era Pug Macer. Arthur conhecia Pug muito bem; sabia que Pug era um trabalhador indiferente, que não cumpria os horários direito, sempre estava ausente nas manhãs de segunda-feira, que bebia. E Arthur podia perceber que Pug também sabia disso. O reconhecimento de seu próprio imerecimento estava estampado no rosto de Pug, juntamente com o seu desejo de conseguir trabalho. O conflito dessas duas emoções criava uma incerteza, um suspense horrível de se observar. Dava a Pug Macer a expressão de um cachorro rastejando por um osso.
Arthur ficou esperando, hipnotizado. A vez de Pug foi se aproximando. Quatro homens na frente de Pug foram contratados e cada homem reduzia as possibilidades de Pug de ser aceito... o que também se refletia no rosto de Pug. E depois Pug chegou ao balcão, ofegando um pouco da pressão da multidão, da luta entre a ansiedade e o medo.
Hudspeth lançou um olhar para Pug, um olhar rápido, depois desviou o rosto. Ele não assentiu, não se deu ao trabalho de sequer olhar para Pettit. Simplesmente desviou os olhos. Pug não era desejado. Estava excluído. Arthur viu os lábios de Pug se mexendo. Não podia ouvir nada, mas viu os lábios de Pug se mexendo e se mexendo, numa súplica desesperada. Não adiantava. Pug estava excluído, era um dos 400 homens que ficariam sem trabalho. A expressão no rosto de Pug, nos rostos daqueles 400 homens, deixava Arthur frenético. Ele virou-se abruptamente, afastou-se da janela. Queria manter aqueles 400 homens trabalhando na mina e não podia. com todos os diabos, não podia, não podia! Ele olhou para o calendário, que marcava o dia 15 de outubro de 1926. Aproximou-se do calendário e arrancou a folha violentamente. Os nervos exigiam alguma descarga. Queria que o dia terminasse logo de uma vez.
Além dos portões, Pug Macer afastava-se do pátio da mina, descendo a Cowpen Street; arrastava-se ao invés de andar, as mãos nos bolsos, os olhos no chão, os ombros ligeiramente vergados, sentindo que as mulheres observavam-no, das casas dos Terraços... um dos 400 homens que não eram queridos, um dos que não teriam trabalho.
Ele virou na Scut, entrou na Quay Street, chegou em casa.
- Onde está Annie? - perguntou, no limiar da sala vazia, de chão de pedra.
- Saiu - respondeu o pai, da cama na cozinha.
O velho Macer estava agora permanentemente acamado, inválido com a artrite reumática. Como sempre fora um homem ativo, sua incapacidade de sequer levantar tornava-o difícil e rabugento. Sentia uma dor constante nas costas, o que o fazia acreditar que tinha alguma doença nos rins. Jurava que todo o seu problema era nos rins e poupava tudo o que podia para gastar nas pílulas para os rins do Dr. Poupart, uma droga de fórmula secreta fabricada em Whitechapel por um plutocrata chamado Lorberg, ao custo de um quarto de penny e vendida a três pence por caixa, composta inteiramente de sabão, açúcar e azul de metileno. As pílulas faziam com que a urina do velho Macer fosse azulada. Como a publicidade explicava que o azul da urina representava a saída das impurezas, o velho Macer sentia-se bastante satisfeito. Tinha certeza de que ficaria completamente curado se pudesse eliminar todas as impurezas dos rins. O problema era que o velho Macer não conseguia obter pílulas suficientes. Como a publicidade também explicava, as pílulas eram dispendiosas de se fabricar, os ingredientes consistindo em caríssimas ervas indianas, colhidas nas encostas do Himalaia, na estação de Karma Shalia, de acordo com uma receita fornecida ao falecido Dr. Poupart por um sábio indiano.
O velho Macer não tinha pílulas agora e olhou para Pug com uma expressão ansiosa, belicosa.
- Por que você não está na mina?
- Porque não estou - respondeu Pug, mal-humorado.
- Tem de trabalhar, Pug.
- Tenho mesmo? Pois prefiro fazer um cruzeiro pela Espanha. O velho Macer começou a sacudir a cabeça.
- Não pode deixar de trabalhar, Pug. Por seu velho pai. Pug não disse nada. Estava desesperado, desamparado.
- Não tenho mais pílulas, Pug. Não tenho mais as minhas pílulas.
- Ao diabo com as suas pílulas!
Pug arriou numa cadeira e ali ficou, com o gorro sujo na cabeça, as mãos nos bolsos, olhando para as brasas no fogão.
Annie saíra para levar umas costuras que fizera para a Sra. Proctor e ao mesmo tempo acompanhar Sammy por um trecho do caminho para a escola. Ela voltou em breve.
Viu Pug sentado na cadeira, soturno, assim que entrou. E no mesmo instante compreendeu tudo. Tirou o chapéu e o casaco, removeu a louça da mesa e começou a lavar.
Pug foi o primeiro a falar:
- Estou de fora, Annie.
- Daremos um jeito, Pug - disse Annie, continuando a lavar a louça. Mas a ignomínia de sua dispensa estava corroendo Pug, magoando-o profundamente.
- Não sou bom o bastante para eles - disse Pug, falando com os dentes cerrados. - Não sou bom o bastante, entende? Logo eu, que sou capaz de fazer o trabalho de dois homens!
- Sei disso, Pug - murmurou Annie, procurando consolá-lo, pois a afeição que sentia pelo irmão fazia-a se condoer com o desespero dele. - Mas não precisa se preocupar, rapaz.
- Eles querem me ver recebendo umas migalhas do Governo. Logo eu, que estou querendo trabalhar.
Silêncio. O velho Macer, na cama, acompanhando a conversa num acesso de autocompaixão, olhando de um para outro com uma expressão aturdida, agora interveio:
- Precisa escrever para Davey Fenwick, Annie. Precisa deixá-lo ajudar você agora.
- Daremos um jeito, pai - repetiu Annie. Ela jamais aceitaria dinheiro de David. - Sempre demos um jeito.
A ideia de Annie era conseguir mais trabalho para si mesma. E quando acabou o serviço doméstico naquela manhã, saiu de casa para ver o que podia conseguir. O que ela queria era trabalho doméstico, por dia. Mas o trabalho doméstico, mesmo como biscate, era difícil de se encontrar. Ela tentou na casa do Dr. Scott e na casa da Sra. Armstrong. Chegou mesmo a engolir seu orgulho e tentou com a Sra. Ramage. Mas não foi bem-sucedida. Obteve a promessa de mais costura da Sra. Proctor. A Sra. Low, a mulher do novo ministro da New Bethel Street, relutantemente combinou um dia para lavagem de roupa, na segunda-feira. Isso garantia pelo menos meia coroa, embora a Sra. Low sempre pagasse com um ar de quem estava dispensando uma caridade. Por mais que tentasse, no entanto, Annie não conseguiu mais trabalho do que isso. Ela tentou no dia seguinte e no outro dia, com o mesmo resultado. O trabalho andava difícil em Sleescale e Annie não tinha outra coisa a oferecer.
Enquanto isso, Pug foi cuidar de seu auxílio-desemprego. Não queria. Mas depois que seu senso angustiante de injustiça arrefeceu, ele foi ao sindicato, candidatar-se ao auxílio. Havia uma fila comprida à espera. Não havia atropelo naquela fila, como acontecera na mina, não havia pressa; todos esperavam. Era algo tácito que se tinha de esperar para conseguir o auxílio de desemprego. Em silêncio, Pug ocupou seu lugar ao final da fila, ao lado de Len Woods, Slattey e Chá Leeming. Não falou com nenhum deles, eles também não lhe falaram. Estava chovendo agora, não chovendo forte, o que lhes daria pelo menos a oportunidade de praguejar, mas chovendo fino, uma chuva fria. Pug levantou a gola do casaco. Não estava pensando em nada. Simplesmente esperava.
Jack Reedy apareceu cinco minutos depois. Jack não foi ocupar imediatamente seu lugar. Nisso, era diferente dos outros; ficou andando de um lado para outro da fila, como se a fila o enfurecesse. Depois, foi para a frente da fila, abotoando lentamente o casaco, pôs-se a arengar para os homens. Jack era o irmão de tom e Pat Reedy, que haviam morrido no desastre. Outrora um rapaz saudável e forte, Jack estava agora encolhido pelo ódio e infortúnio, um homem magro, de peito encovado, com opiniões extremadas e amarguradas. Houvera o desastre primeiro e depois Jack, querendo lutar contra qualquer um, fora à guerra e acabara levando um tiro na coxa, em Passchendaele. Ficara coxo em consequência do ferimento. Hudspeth acabara de recusar-lhe uma vaga na Neptune.
Pug levantou a cabeça e escutou apaticamente o que Jack estava dizendo, embora já soubesse antes o que seria.
- Era diferente quando eles queriam que lutássemos, rapazes - Jack estava dizendo, com revolta na voz sombria e amarga, revolta contra a vida, o destino e o sistema que o levara àquela situação." - Éramos os... heróis da nação! E o que somos agora? Uma ralé indolente e desempregada! É como nos chamam agora. Mas prestem atenção, rapazes, que vou deixar tudo bem claro. Quem fabricou os malditos aeroplanos, os encouraçados, os canhões e as malditas granadas? Os trabalhadores! Quem disparou as malditas granadas nos malditos canhões durante a maldita guerra? Os trabalhadores! E o que os trabalhadores ganharam com tudo isso? Pois foi isso o que ganhamos, rapazes! A oportunidade de ficarmos numa fila em plena chuva, com a mão estendida para a caridade! Disseram-nos que lutássemos pela Inglaterra... nossa amada pátria! Oh, Deus, como lutamos, não é mesmo? E todos nós só conseguimos nos... com isso! E o que conseguimos com isso? A coisa em que estamos de pé agora! Lama! Pura e simplesmente lama! Mas não podemos comer lama, rapazes. Lama não vai sustentar nossas mulheres e filhos.
Jack fez uma pausa, pálido como osso, passando as costas da mão pela boca. E continuou, a voz se alteando, o rosto contorcido pela angústia:
- Quando vocês e eu estávamos lutando e trabalhando na maldita guerra, milhões de libras em lucros saíram das minas. É coisa certa, rapazes, preto no branco. Foram 140 milhões de libras de lucros. Foi o que sustentou os donos das minas durante a greve. Por que eles não usam um pouco agora para nos sustentar? Pois escutem, rapazes...
Uma mão caiu no ombro de Jack. Ele parou de falar abruptamente, ficou imóvel, depois se virou, bem devagar.
- Não queremos saber dessas coisas por aqui - disse Roddam. - Volte para o seu lugar na fila e feche a matraca.
Roddam era agora o sargento da delegacia, gordo, importante, 50 anos.
- Largue-me! - disse Jack, em voz baixa, impregnada de ódio, os olhos brilhando no rosto pálido. - Lutei na... da guerra. Não estou acostumado a ser agarrado por gente como você.
A fila estava com o maior interesse agora, muito mais interessada do que ficara durante o discurso de Jack.
Roddam ficou intensamente vermelho.
- Cale a boca, Reedy, ou vou levá-lo para a delegacia.
- Tenho tanto direito a falar quanto você.
- Volte para a fila! - explodiu Roddam, empurrando Jack. - Volte para o fim da fila! Vamos logo!
- Não preciso ir para o fim da fila! - gritou Jack, resistindo, sacudindo a cabeça. - Meu lugar é aqui, depois de Pug Macer.
- Vá para onde estou mandando! - insistiu Roddam. - No fim da fila! E ele deu um empurrão final em Jack.
Jack virou-se, o peito arfando, os olhos fixados em Roddam, como se estivesse com vontade de matá-lo. E de repente seus olhos baixaram, ele pareceu se controlar, guardar-se para uma ocasião futura. Encaminhou-se em silêncio para o fim da fila, claudicando. Um suspiro elevou-se dos homens a observarem, um suspiro de desapontamento. Os corpos relaxaram, suas atenções voltaram a se concentrar nas próprias agruras. Roddam percorreu a fila, intrometido, um tanto arrogante, de pelerine. Os homens continuaram parados, esperando. A chuva caía suavemente.
Havia ocasiões em que estava seco quando os homens iam buscar o auxílio-desemprego. Mas foi um inverno ruim e na maior parte do tempo estava chovendo, às vezes bem forte. E umas poucas vezes nevava. Mas os homens estavam sempre lá, tinham de estar, sempre esperando. E Pug esperava com os outros. Sammy não gostava de Pug estar vivendo do auxílio-desemprego. Ao voltar da escola, ele sempre passava pela fila olhando para o outro lado, fingindo não ver Pug. E Pug, que também se sentia humilhado com a passagem de Sammy, fingia igualmente não vê-lo. Pug e Sammy não falavam do problema, mas mesmo assim Sammy sentia-o profundamente. E além do mais por diversos outros motivos. Por exemplo, Pug não mais podia lhe dar os cartões dos maços de cigarros. E Sammy também sentia falta do penny que Pug costumava lhe dar aos sábados. Pior ainda, nem mesmo ia mais às partidas de futebol em Sleescale junto com Pug, embora os desempregados pudessem agora entrar por apenas três pence. Isso era mesmo o pior de tudo.
Não, de certa forma não era o pior de tudo. A comida estava se tornando cada vez mais simples em casa, algumas vezes não havia tanto quanto Sammy gostaria. A grande greve fora no verão e no verão não se sentia tanta fome. Mas no inverno era diferente. Certa ocasião, quando Pug não aguentou mais e gastou todo o dinheiro do auxílio-desemprego numa bebedeira, não houve um só pedaço de bolo em casa durante a semana inteira. E a mãe sabia fazer um bolo tão gostoso!, pensava Sammy, angustiado. Durante toda a semana houve apenas mingau e sopa, sopa e mingau... e o avô não parara de reclamar. Se não fosse pela mãe lavar roupa para fora e costurar para os outros, eles não teriam qualquer coisa para comer. Sammy gostaria de ser mais velho. Poderia então trabalhar, ajudar a mãe. Apesar da Depressão, Sammy tinha certeza de que poderia arrumar um emprego. Estavam sempre precisando de ajudantes na Neptune.
Semana após semana, Sammy via Pug na fila do auxílio-desemprego e fingia não avistá-lo. A cada semana, a fila ia se tornando mais comprida. Sammy sentia-se tão angustiado que adquiriu o hábito de passar correndo pela fila. Sempre que se aproximava da fila, ele parecia descobrir alguma coisa de imenso interesse ao pé da New Bethel Street, lá embaixo. E com os olhos fixados à frente, ele saía em disparada. É claro que, no final das contas, não havia coisa alguma quando chegava lá embaixo.
Na tarde da última sexta-feira de janeiro, no entanto, quando a fila era mais comprida e mais lenta do que nunca, Sammy desceu a rua correndo e finalmente aconteceu alguma coisa. Virando na esquina da Lamb Street, Sammy esbarrou em cheio na avó Martha.
Sammy levou a pior na colisão; escorregou nas biqueiras de aço das botinas, cambaleou e acabou caindo. Não se machucou, mas ficou apavorado com o que fizera. Constrangido, levantou-se, pegou o gorro e os livros da escola, preparou-se para seguir em frente, com o rosto vermelho. E foi então que descobriu que Martha estava fitando-o. Ele sabia muito bem que aquela mulher era Martha Fenwick, sua avó. Mas ela nunca o fitara antes. Sempre passara por ele da mesma forma como passava por Pug na fila, sem vê-lo. Era como se Sammy não existisse.
Contudo, Martha estava agora olhando para ele... olhando e olhando, com uma expressão estranha. E depois ela falou, com uma voz meio esquisita:
- Você se machucou?
- Não, madame.
Sammy sacudiu a cabeça, confuso. Um silêncio.
- Qual é o seu nome?
Era a pergunta mais estúpida para se fazer e a voz de Martha parecia guinchar da maneira mais estúpida.
- Sammy Fenwick. Martha repetiu:
- Sammy Fenwick.
Os olhos dela pareciam devorá-lo, o rosto pálido, a testa saliente, os olhos muito azuis, o corpo crescendo na roupa remendada, de fabricação doméstica, as pernas finas, terminando nas botinas pesadas. Embora Sammy não pudesse adivinhar, há meses e meses que Martha vinha observando-o. Observava-o todos os dias quando ele ia para a escola, observava-o disfarçadamente, por trás das cortinas na janela lateral da casa da Lamb Lane. Ele estava crescendo tanto quanto o seu próprio Sammy, tinha agora 10 anos. Era uma agonia para Martha não tê-lo perto dela. Será que nada jamais derreteria o gelo do seu orgulho? Cautelosamente, Martha disse:
- Você sabe quem eu sou?
- É a minha avó.
Martha ficou intensamente vermelha, de prazer. Sammy rompera o gelo finalmente, abalara a camada gelada que envolvia o coração da velha Martha.
- Venha até aqui, Sammy.
Ele se aproximou e Martha pegou-lhe a mão. Sammy sentiu-se terrivelmente estranho, propenso a ficar com medo. Mas acompanhou Martha até a casa. Entraram juntos.
- Sente-se, Sammy.
Martha experimentou um prazer intenso, quase insuportável, em falar novamente o nome de Sammy.
Sammy sentou-se, olhando ao redor da cozinha. Era uma boa cozinha, impecavelmente limpa como deveria ser, como a sua própria cozinha. Mas os móveis eram melhores e em maior quantidade. E depois os olhos de Sammy se iluminaram; ele viu que Martha estava cortando um bolo, uma enorme fatia de bolo de ameixa.
- Obrigado - murmurou Sammy, ajeitando os livros e o gorro nos joelhos, depois enchendo a boca de bolo.
Os olhos escuros de Martha estavam fixados absortos no rosto jovem do neto. Era o rosto do seu próprio Sammy.
- O bolo está bom? - perguntou ela, com a maior ansiedade.
- Está, sim, madame. É um bolo de primeira.
- É o melhor bolo que já provou?
- bom... - Sammy hesitou por um momento, perturbado, com medo de magoar os sentimentos da avó. Mas tinha de dizer a verdade. - Minha mãe faz um bolo tão bom como este, quando tem os ingredientes. Mas ela não tem tido as coisas para fazer um bom bolo ultimamente.
Mas nem isso pôde romper o encantamento do êxtase de Martha.
- Seu tio está recebendo o auxílio-desemprego? Pug Macer? Sammy ficou vermelho.
- Está, sim... mas só por enquanto.
- Seu pai nunca ficaria desempregado - declarou Martha, com orgulho.
- Sei disso.
- Ele era um dos melhores mineiros da Neptune.
- Sei disso - repetiu Sammy. - Minha mãe me contou.
Silêncio. Martha observou-o terminar de comer o bolo, depois cortoulhe outra fatia. Ele aceitou-o com um sorriso tímido, um sorriso igual ao do pai.
- O que você vai ser quando crescer, Sammy?
Ele pensou por um momento, enquanto Martha aguardava ansiosamente a resposta.
- Eu gostaria de ser como meu pai.
- É mesmo, Sammy?
- É, sim.
Martha ficou absolutamente imóvel. Sentia-se fraca, abalada profundamente. Seu próprio Sammy lhe voltava, para continuar na mais esplêndida tradição. Ela tornaria a ver Sammy Fenwick como um dos melhores mineiros da Neptune. Martha estava incapaz de falar de tanta emoção.
Sammy terminou de comer a última migalha de bolo, pegou o gorro e os livros, levantou-se.
- Não se vá ainda, Sammy.
- Minha mãe pode ficar preocupada.
- Então leve isso com você, Sammy, para o seu lanche.
Febrilmente, ela cortou-lhe outra fatia de bolo, embrulhou num papel, pegou uma maçã vermelha no armário, fê-lo guardar tudo nos bolsos. Ela parou na porta.
- Venha me visitar de novo amanhã, Sammy.
A voz de Martha era suplicante. .. suplicante...
- Está bem - respondeu ele, descendo pelo caminho quase a correr.
Martha ficou observando-o, observando-o até que ele desapareceu. Depois, virou-se e entrou na cozinha. Movia-se devagar, como se tivesse a maior dificuldade. Na cozinha, avistou o bolo partido. Ficou parada ali, silenciosa, imóvel, enquanto um fluxo de recordações desfilava por sua vista impassível. E de repente seu rosto desmoronou. Sentou-se à mesa da cozinha, pôs a cabeça sobre os braços, desatou a chorar amargamente.
O desenvolvimento político de David processou-se como o desenvolvimento do corpo humano... foi um lento crescimento, imperceptível no dia-adia, contudo aparente quando comparado com a sua estatura cinco anos antes. Embora seu objetivo fosse definido e firme, ele avançava em sua direção por caminhos compridos e difíceis. O meteoro político só brilha na imaginação do romancista. David experimentava a realidade. Ele trabalhava; trabalhava de uma forma incrivelmente árdua; e esperava. Aprendeu muitas coisas, mas principalmente a cultivar a paciência. Seu discurso de estreia foi seguido por outro, alguns meses depois, sobre a situação aflitiva nas regiões mineiras. A repercussão desse segundo discurso fez com que diversos líderes do partido o procurassem, pedindo mais informações sobre o assunto. Depois disso, diversas orações admiráveis foram feitas na Câmara sobre a situação penosa dos mineiros, pelas quais David não recebeu qualquer crédito, embora os discursos fossem quase que exclusivamente seus. Mais tarde, no entanto, à guisa de reconhecimento, ele foi convidado a participar de um comité que investigava a questão da incapacidade industrial nas minas. Durante os 12 meses seguintes, ele trabalhou com esse comité, estudando o nistagmo, problemas musculares e a incidência de silicose nas minas não-metalíferas. Antes do final daquela sessão, ele foi eleito para uma comissão que investigava a qualificação das autoridades mineiras, sob a legislação existente. No ano seguinte, Nugent estava designado para falar numa concentração de massa promovida pelo Congresso dos Sindicatos Britânicos, no Albert Hall. Mas caiu de cama, com uma forte gripe. A seu pedido urgente, David foi convocado para substituí-lo. Falando a uma audiência de cinco mil pessoas, David fez o discurso da noite no Albert Hall, um discurso de intenso ardor, sentimento humano e estilo vigoroso. Paradoxalmente, o brilho desta única noite atraiu-lhe mais atenção do que todo o seu trabalho árduo nos dois últimos anos. David passou a destacar-se nas reuniões. Foi ele quem preparou o memorando do C.S.B. sobre a Nacionalização das Minas e a proposta Comissão de Energia e Transporte. Um estudo seu, Energia Elétrica e Progresso Nacional, foi lido na Conferência Americana do Trabalho. Ele tornou-se o principal representante dos mineiros na comissão que revisava o problema dos perigos de água nas minas. No outono de 1928, ele era membro do Comité Parlamentar do Partido Trabalhista. Finalmente, no início do ano seguinte, chegou ao topo. Foi designado para a executiva da Federação dos Mineiros.
As esperanças de David eram mais altas do que nunca. Sentia-se pessoalmente muito bem, lúcido, capaz de enfrentar qualquer quantidade de trabalho. E mais do que nunca, sentia que os acontecimentos assumiam um rumo favorável. O atual governo estava moribundo, preparando-se tristemente para morrer. O país, cansado de políticas cediças, chavões reiterados de uma administração conservadora irredutível, estava erguendo os olhos, repletos de conjeturas, para um novo horizonte. Finalmente, através de sua apatia característica, o povo estava começando a questionar o acerto de um sistema político e económico que deixava campear a necessidade, a miséria e o desemprego. Ideias novas e ousadas começavam a circular. Os homens não mais recuavam horrorizados diante da sugestão de que o capitalismo fracassara, como um sistema de vida. Aumentava o reconhecimento de que o mundo jamais seria reconstruído pela violência e a supressão do nacionalismo económico. Trabalhadores que se sustentavam com o auxílio governamental não mais eram encarados como uma ralé inútil. A explicação convencional das "condições mundiais" ressoava agora como hipocrisia, uma piada de musichall.
David sentia, com toda a força de sua alma, que a grande oportunidade dos trabalhistas estava se aproximando. Haveria eleição naquele ano, uma eleição em que se deveria lutar pela questão das minas. O partido estava comprometido. E seria uma plataforma gloriosa: um grande plano nacional construtivo, para beneficiar o mineiro e levar prosperidade à comunidade.
Naquela manhã ensolarada de abril, David estava no melhor animo possível, sentado junto à janela de seu apartamento, lendo o jornal. Era um sábado. David pensava em passar a manhã estudando o novo Relatório de Baixa Temperatura, um processo recente que deveria ser incorporado ao capítulo de Energia do programa trabalhista, quando o telefone tocou.
Ele não atendeu imediatamente, pois geralmente a Sra. Tucker se encarregava de fazê-lo. Mas como a campainha continuasse a tocar, ele largou o jornal e desceu para o patamar do meio, a fim de atender. No'mesmo instante, a voz estridente e gutural de Sally soou em seu ouvido... uma voz que ele reconheceu imediatamente.
-Você deve estar muito ocupado, pois o telefone está tocando há cinco minutos.
Sorrindo, Davíd exclamou: -Sally!
- Quer dizer que reconheceu a minha voz, hem?
- Você é inconfundível.
Os dois riram e David perguntou:
- Onde você está?
- Estou no Hotel Stanton, perto do Museu Britânico. E Alf está comigo.
- Mas que diabo está fazendo aqui?
- Se quer mesmo saber, Davey, vou casar. E tive a ideia de trazer papai numa pequena viagem a Londres, antes de me amarrar. Está havendo uma exposição de pombos no Palácio de Cristal e papai queria vê-la.
- Mas isso é uma ótima notícia, Sally - disse David, ao mesmo tempo surpreso e satisfeito. - Quem é ele? Por acaso o conheço?
-. Não sei, David. - A voz de Sally era feliz, um tanto acanhada. - É Dick Jobey, de Tynecastle.
- Dick Jobey! Ora, Sally, ele é um ótimo rapaz!
Um momento de silêncio. David pôde sentir que ela estava satisfeita com a sua reação. Depois, Sally disse:
- Quero vê-lo, David. E Alf também. Pode nos dar algum tempo hoje? Combinamos ir ao Palácio de Cristal esta tarde, mas você poderia vir almoçar conosco no hotel. Venha, por favor, David.
Ele pensou por um momento. Ora, o sábado sossegado e o Relatório poderiam esperar.
- Está certo. Aparecerei aí logo depois do meio-dia. Sei onde fica o Stanton, Sally. Pode ficar me esperando.
David deixou o telefone ainda sorrindo. Havia alguma coisa irremediavelmente jovial em Sally que jamais deixava de animá-lo.
Eram 11:30 horas quando ele saiu do metro na estação do Museu e seguiu pela Thackeray Street, na direção do Stanton, um hotel sossegado e simples na Woburn Square. Era uma manhã de sol, a primavera estava no ar, as árvores na praça exibiam folhas novas, um bando de pardais ruidosos estava debaixo de um banco, onde um velho lhes dava farelos. Os táxis que passavam também pareciam alegres, como se estivessem se regozijando com o dia agradável. Ele chegou ao hotel alguns minutos antes de meio-dia, mas Alf e Sally já estavam à sua espera no salão. Cumprimentaram-no afetuosamente.
Já se haviam passado alguns anos que David não via Alf Sunley. Mas Alf quase não mudara. O bigode talvez estivesse mais manchado de tabaco e mais irregular, o rosto mais pálido, a cãibra no pescoço mais acentuada. Mas ainda era o mesmo homenzinho amigável, obstinadamente suave. Usava um terno preto novo para a ocasião, um tanto grande para o seu corpo, com uma gravata também nova. As botinas eram provavelmente novas, pois rangiam sempre que ele andava.
Mas Sally mudara. Talvez puxando à mãe, ela ficara redonda como uma barrica, com pequenas pulseiras de gordura nos pulsos. O rosto era indubitavelmente gordo. Ela sorriu, diante da surpresa apressadamente disfarçada de David.
- Engordei um pouco, não é mesmo? Mas não tem importância. Vamos logo almoçar.
Sentaram-se a uma das mesas no restaurante sossegado, iluminados pelo sol, pediram carne fria e salada. A carne fria e a salada estavam saborosas e a torta de ruibarbo, servida depois, também estava ótima. Sally comeu vorazmente, com uma evidente satisfação. Tomou sozinha uma garrafa de cerveja Guinness. O rosto pequeno e rechonchudo estava corado, o corpo quase parecia expandir-se com a excelência da refeição. Ao terminar, ela deixou escapar um suspiro de satisfação e sem o menor constrangimento afrouxou o cinto. David sorriu-lhe.
- Então vai se casar, hem? Eu já imaginava que algo assim acabaria acontecendo algum dia.
- Dick é um bom rapaz. - Sally soltou outro suspiro de satisfação. Não tem muita coisa a dizer, mas é um dos melhores que existem. Posso lhe garantir que tenho muita sorte. Além do mais, David, já estou cansada de cair na estrada. Fiz tantas vezes o circuito Payne-Gold que não aguento mais. Estou cansada de pierrôs no verão e pantomimas no inverno. Ainda por cima, estou engordando terrivelmente. Dentro de mais algum tempo, só terei condições para ser a rainha das fadas. E prefiro ficar com Dick a enfrentar o rei dos demónios. Quero assentar, levar uma vida tranquila e confortável.
David fitou-a zombeteiramente, recordando os terríveis anseios da juventude de Sally, o desejo intenso de alcançar a fama nos palcos.
- Mas o que me diz da grande ambição, Sally? Ela sorriu serenamente.
- Isso também engordou, meu caro. Pode me imaginar como uma das personagens dos livros, o nome em letras imensas em Piccadilly?
Sally riu um pouco, depois sacudiu a cabeça. Fitou David firmemente e depois acrescentou:
- É só uma em um milhão que consegue, David. E não serei eu. Talvez tenha um pouco de talento, mas fico por aí. Não pense que, a esta altura, já não descobri isso. Em confronto com a coisa de verdade, eu simplesmente não existo.
- Ora, Sally, não sei...
- Você pode não saber, mas eu sei - disse ela, com um pouco da sua antiga veemência. - Bem que tentei, mas sei quando devo parar. Todos começamos com grandes ideias sobre os nossos destinos, Davey, mas são bem poucos os que lá chegam. Tenho sorte de encontrar uma parada no meio do caminho que me convém.
Houve um silêncio. Sally recuperou-se prontamente. Mas embora o fogo em seus olhos se desvanecesse, ela permaneceu excepcionalmente séria. Pôs-se a mexer com a colher, distraidamente, traçando círculos na toalha com o cabo. O rosto estava sombrio, como se alguma coisa lhe tivesse ocorrido e agora não quisesse deixar sua mente. Subitamente, como se tivesse tomado uma decisão, virou-se para Alf, que estava reclinado na cadeira, indolentemente usando o palito que acabara de fazer de um fósforo.
- Alf, preciso falar a sós com David por um momento - disse ela, pensativa. - Poderia dar uma volta pela praça, enquanto conversamos?
-Ahn?
Alf empertigou-se na cadeira, tomado de surpresa. Olhou aturdido para Sally.
- David e eu ainda estaremos aqui quando voltar - insistiu Sally. Alf assentiu. A palavra de Sally era sempre lei. Ele levantou-se, ajeitando o chapéu. Enquanto o observava afastar-se, Sally comentou:
- Alf é um bom homem. Graças a Deus que posso dar um jeito em sua vida agora. Estou lhe comprando um bangalô em Gosforth. Dick concordou com a ideia. vou instalar Alf em Gosforth e deixá-lo criar à vontade os seus pombos-correios. Ele será feliz.
David sentiu uma estranha satisfação a comprimir-lhe o coração. Era da sua natureza sempre ficar comovido com a constatação de generosidade e bondade nos outros. E podia sentir tais qualidades na afeição de Sally pelo pai, o homenzinho de terno preto muito grande, botas que rangiam a cada passo.
- Você é maravilhosa, Sally. Jamais magoou ninguém, em toda a sua vida.
- Tenho as minhas dúvidas quanto a isso. - Ela ainda continuava muito séria. - Acho que vou magoá-lo agora.
- O que aconteceu? - indagou David, surpreso. Sally abriu a bolsa e tirou uma carta, lentamente.
- Tenho de lhe dizer uma coisa, David. Detesto ter de fazê-lo, mas você me odiaria se eu não o fizesse. - Uma pausa. - Tive notícias de Jenny.
- Jenny?
- Isso mesmo - respondeu Sally, em voz baixa. - Ela enviou-me esta carta.
E sem dizer mais nada, Sally estendeu-lhe a carta.
David pegou-a mecanicamente. O papel era violeta, perfumado, escrito com a letra redonda e infantil de Jenny. O endereço no envelope era Excelsior Hotel, Cheltenham. A data era de algumas semanas antes.
"Minha querida Sally, acho que devo pegar a pena para acabar com o longo silêncio entre nós, devido principalmente ao fato de eu estar no exterior. Não posso realmente imaginar o que você deve ter pensado. Mas espere até eu lhe contar tudo, Sally. Quando eu estava em Barnham, li no jornal o anúncio de uma senhora idosa que precisava de uma companheira. Apenas como diversão, candidatei-me ao posto e fiquei surpresa ao receber uma resposta polida, tendo em anexo uma passagem de trem para Londres. Resolvi ir procurá-la e ela não aceitou um não como resposta. Estava de viagem marcada para o exterior, Espanha e Itália, Veneza e Paris. Tinha cabelos brancos, usava um vestido malva, lindas rendas, os olhos mais bondosos que se pode imaginar. E você não pode nem acreditar como ela gostou de mim. Não posso deixá-la ir embora agora que a conheci, minha cara, ela insistia em dizer. Assim, para abreviar uma história comprida, eu tive de ir, Sally. Sei que agi errado, mas eu não pude resistir à viagem. Estivemos em toda parte, Espanha e Itália, Veneza e Paris, até no Egito. E que classe! Os melhores hotéis por toda parte, criados fazendo mesuras, a ópera em terras estrangeiras, sempre de camarote. A Sra. Vansittar não admite que eu me afaste dela, pois simplesmente me adora. Diz que eu sou como uma filha. E também estou incluída em seu testamento. Tenho apenas de ler para ela, acompanhá-la a passeios, tomar chá junto, coisas assim. E também arrumar as flores. Devo dizer que tenho mais sorte do que você pode imaginar, Sally. Não quero deixá-la com inveja, mas se visse a classe com que vivemos, tenho certeza de que ficaria de cara no chão, Sally. Pretendia dar um jeito de nos encontrarmos, mas só vamos passar uns poucos dias aqui, tomando as águas, depois viajaremos novamente. A vida é muito boa para mim, Sally, bem que gostaria que você tivesse tanta sorte quanto eu. Dê meu amor à mãe, Clarisse e Phyllis. E ao pai também, é claro. Se encontrar com David, diga-lhe que penso nele de vez em quando. Não há ninguém na minha vida agora, Sally. Diga-lhe isso também. Acho que os homens são horríveis, mas ele foi bom para mim. Tenho de encerrar esta carta agora, pois está na hora de vestir-me para o jantar. Tenho um vestido novo, preto, com lentejoulas, que é uma beleza. Pense em mim com um vestido assim, Sally! Adeus e que Deus a abençoe para todo o sempre e mais um dia. Jenny."
Silêncio. Depois, David deixou escapar um longo suspiro. Ficou olhando para a estranha carta, cada frase evocando uma recordação de Jenny, dolorosa e triste, às vezes terna.
- Por que não me mostrou a carta antes? - perguntou ele, finalmente.
- De que adiantaria? - Sally hesitou por um instante. - Fui a Cheltenham, ao Excelsior Hotel. Jenny lá estivera mesmo, por dois dias, durante a semana da corrida. Mas não com a senhora sei lá o quê.
- Dá para perceber - murmurou David, sombriamente.
- Não deixe que isso o transtorne, David. - Ela se inclinou por cima da mesa, apertou a mão dele. - Vamos, anime-se. Já é alguma coisa saber que ela está viva e passando bem.
- Acho que tem razão.
- Fiz bem em lhe mostrar a carta? - indagou Sally, ansiosamente. David dobrou a carta e guardou-a no envelope, depois meteu-o no bolso.
- Fico contente que tenha me mostrado, Sally. Eu não poderia deixar de tomar conhecimento.
- Foi o que pensei.
Houve outro silêncio, durante o qual Alf voltou. Ele olhou rapidamente de um para outro, mas não fez perguntas. O comportamento taciturno de Alf era às vezes uma dádiva maior que muitas palavras.
Eles deixaram o hotel meia hora depois e David acompanhou Sally e Alf até o ônibus. Forçou-se a parecer despreocupado, até mesmo a sorrir. Sally estava feliz e ele não tinha o menor desejo de estragar a felicidade dela com o seu pesar particular. Não queria que ela percebesse que, ao mostrar-lhe a carta, como era obviamente o seu dever, reabrira uma ferida profunda e dolorosa. David sabia que a carta era vulgar e inverídica. com uma visão infalível, podia imaginar a cena: Jenny sozinha naquele hotel ordinário, enquanto seu companheiro ia às corridas ou a um pub próximo; um súbito impulso de dissipar o tédio, aproveitando a visita a Cheltenham - um balneário tão refinado! - para impressionar a família, apaziguar os anseios insaciáveis de sua mente romântica. David suspirou. A fragrância do papel de carta vulgar deixava-o nauseado. Se encontrar com David, diga-lhe que penso nele de vez em quando. Por que isso deveria afetá-lo tanto? Será que Jenny pensava mesmo nele? David duvidava, tristemente. Talvez até ela pensasse, assim como ele pensava nela. Apesar de tudo, David não podia esquecê-la. Ainda sentia ternura por Jenny, a lembrança dela não o deixava, era como uma sombra em seu coração. Sabia que podia desprezá-la, até mesmo odiá-la, mas jamais conseguiria dissipar aquela sombra, eliminar a ternura secreta.
Naquela noite, David ficou sentado em seu apartamento, diante do fogo, com o Relatório sobre a mesa. Não conseguia estudá-lo. Uma estranha inquietação dominava-o. Tarde da noite, ele saiu e fez uma longa caminhada pelas ruas desertas.
A inquietação persistiu por vários dias e ele não fez qualquer tentativa de trabalhar. Andava de um lado para outro. Foi diversas vezes à Galeria Tate, parando em silêncio diante do pequeno Degas, Leitura de Uma Carta, que sempre o fascinara. Procurou distração e esclarecimento em Tolstoi, cujo impressionismo nervoso parecia vibrar em consonância com seu ânimo atual. Releu rapidamente Ana Karenina, Três Filhos, Ressurreição e O Poder das Trevas. Também via a sociedade humana como cruzada por tendências fatídicas e contrárias, acorrentada à terra por um sórdido egoísmo, mas alteando-se de vez em quando ao sublime, como um gesto de nobreza, de sacrifício.
Pôde finalmente concentrar-se no trabalho. Abril terminou e maio começou. Os acontecimentos sucediam-se rapidamente. Tornou-se cada vez mais evidente que o governo estava prestes a morrer. Absorvido nos preparativos para a grande campanha, David não tinha tempo para pensar. Mas deu um jeito de encontrar algum tempo para correr a Tynecastle e assistir ao casamento de Sally. Afora isso, não tinha um momento sequer para si mesmo.
O Parlamento foi dissolvido a 10 de maio, as indicações dos candidatos já estavam definidas lá pelo dia 20 do mesmo mês, a eleição geral foi realizada a 30 de maio. A política de nacionalização era um dos pontos principais do Programa Trabalhista. Os trabalhistas lançaram um manifesto de apelo à nação:
A situação da indústria de mineração de carvão é tão trágica que se tornam indispensáveis providências imediatas para atenuar os sofrimentos nas regiões mineiras, reorganizar a indústria de alto a baixo, tanto no lado de produção como no de comercialização, reduzir as horas de trabalho. Uma maioria trabalhista nacionalizaria as minas e os minerais, como a única condição para um trabalho satisfatório. Desenvolveria o aproveitamento científico do carvão e de seus valiosos subprodutos, agora em grande parte desperdiçados.
J. Ramsay MacDonald
J.R. Clynes
Herbert Morrison
Arthur Henderson
Foi com esse manifesto e sua política de nacionalização que os trabalhistas conquistaram o poder. David aumentou sua maioria em quase dois mil votos. Nugent, Bebbington, Dudgeon, Chalmers e Cleghorn receberam mais votos que em qualquer outra eleição anterior. com uma sensação de exultação, misturada com a mais intensa expectativa, David voltou a Londres. Imaginava a Lei das Minas de Carvão, há tanto tempo defendida pelo partido, sendo apresentada e triunfantemente aprovada, apesar de todos os protestos. O pensamento lhe era inebriante, como vinho subindo à cabeça. Finalmente, pensava David, finalmente! A sessão legislativa foi formalmente iniciada no dia 2 de julho de 1929.
Num cair de noite de nevoeiro, no início daquele outono, Davide Harry Nugent saíram da Câmara e pararam por um momento nos degraus de baixo da escadaria, conversando. Dez semanas antes, o Rei fizera o seu discurso do trono. Os ministros trabalhistas haviam beijado mãos. Jim Dudgeon, vestido de calção tradicional até os joelhos e chapéu antigo, pavoneara-se diante de uma dúzia de fotógrafos, extremamente afável. O Primeiro-Ministro, partindo às pressas para uma visita aos Estados Unidos, enviara uma mensagem à Conferência do Partido Trabalhista: Temos de arrancar a indústria de carvão das profundezas a que foi mergulhada por muitos anos de descaso e política cega.
Mas o rosto de David, visto indistintamente através do nevoeiro, exibia uma expressão curiosamente em desacordo com princípios tão auspiciosos. com as mãos nos bolsos e a cabeça afundada na gola levantada do sobretudo, ele parecia perturbado e inquieto.
- Vamos ver a aprovação da lei ainda este ano? - ele perguntou a Nugent. - É isso o que eu gostaria de saber.
Ajeitando o cachecol em torno do pescoço, Nugent respondeu, em sua voz serena:
- Claro que sim. Em dezembro, se for correto o que me garantiram. David olhou para a cortina incerta do nevoeiro, que de certa forma parecia simbolizar seu ânimo.
- Temos de esperar até vermos o texto - comentou ele, com um suspiro. - Mas não consigo compreender essa procrastinação. Isso me perturba. Fico com a impressão de que estamos todos tão ocupados tentando parecer constitucionalistas e respeitáveis que ninguém tem tempo para demonstrar qualquer iniciativa.
- Não é apenas a questão do tempo - disse Nugent, lentamente. - É um tanto significativo que o Governo fique insistindo para nos lembrarmos de que estamos no Gabinete e não no poder.
- Já ouvi isso tantas vezes, Harry, que tenho até a impressão de que um dia será gravado em minha lápide.
- Quando isso acontecer, você não estará no Gabinete. - Os lábios de Nugent contraíram-se ligeiramente num sorriso, mas ele logo voltou a ficar sério. - De qualquer forma, você está certo quando diz que temos de esperar pela lei. Enquanto isso, só nos resta esperar pelo melhor.
- É o que estou fazendo - respondeu David, sombriamente.
Houve uma pausa. Um carro comprido e escuro parou silenciosamente no outro lado da rua. Os dois homens ficaram olhando, sem dizer nada. Dali a pouco, Bebbington emergiu do saguão atrás deles. Olhou para Nugent e David com o seu ar de superioridade habitual.
- Uma noite horrível - comentou ele, suavemente. - Querem uma carona para oeste?
David limitou-se a sacudir a cabeça, sem dizer nada. Nugent respondeu:
- Não, obrigado. Estamos esperando Ralston.
Bebbington sorriu, um tanto indiferente e condescendente. Depois, com um aceno ligeiro, desceu os degraus e entrou no carro. O motorista colocou uma manta de pêlo sobre os joelhos dele e foi sentar-se ao volante. O carro desapareceu no nevoeiro.
- É muito esquisito - refletiu David, numa voz estranha. - Esse carro de Bebbington... É um Minerva, não é mesmo? Como será que ele o conseguiu?
Harry Nugent olhou de esguelha para David, uma expressão satírica nos olhos, sugerindo:
- Talvez tenha sido por serviços prestados ao Estado.
- Estou falando sério, Harry - insistiu David, muito sério. - O lamento permanente de Bebbington sempre foi o de que não tinha recursos pessoais. E agora aparece com esse carro e motorista.
- Vale a pena ser tão sério? - A boca de Nugent tornou a se contrair, numa expressão de cinismo insólita. - Se você quer mesmo saber a verdade, o nosso amigo Bebbington acaba de entrar para o conselho de administração da Amalgamated. Ora, David, não fique com essa cara tão desesperada. Há muitos precedentes. Está tudo perfeitamente em ordem e você, eu ou qualquer outra pessoa não pode dizer absolutamente nada.
- A Amalgamated!
Contra a sua vontade, David não pôde evitar um tom amargo. Olhou atentamente para Nugent, dominado por um súbito ressentimento. A aceitação passiva de Nugent aumentava a sua inquietação e apreensão. Nugent vinha se mostrando um homem cansado ultimamente, um tanto desanimado até nas atitudes, andando mais devagar, aceitando o seu fracasso em conseguir uma inclusão no Gabinete quase com resignação. Não havia muita dúvida de que a saúde de Nugent estava profundamente abalada, sua antiga vitalidade parecia gasta. Somente por esse motivo, David não insistiu no assunto. Quando Ralston chegou, ele mudou o assunto para a reunião a que os três haviam prometido comparecer, na Liga do Controle Democrático. Partiram juntos para a Victoria Street, através do nevoeiro.
Mas David não estava feliz em sua mente. A sessão, iniciada com tanta exultação, continuava estranhamente ineficaz, estranhamente igual às sessões anteriores. Muitas vezes, durante as semanas que se seguiram, seus pensamentos voltaram a Sleescale, aos homens a que prometera justiça. Ele se comprometera. O partido, como um todo, também se comprometera. O compromisso lhes valera a vitória na eleição. E as promessas tinham de ser cumpridas, mesmo que isso significasse ter o país novamente contra o partido. A situação em Sleescale era tão terrível agora, a cidade dominada pela miséria, os homens acalentando um ódio oculto, uma revolta latente, contra a ordem social que admitia tanto sofrimento, que David podia sentir a crescente urgência de ação. Estava em contato com os homens, com Heddon, Ogle, os dirigentes locais. Ele sabia com certeza. A situação não era imaginária, existia de fato, era uma sombria realidade. As circunstâncias eram desesperadas.
Em face da crise, David concentrou todas as suas esperanças na nova Lei das Minas de Carvão. Considerava-a a única solução para o problema, o único meio lógico de justificar o programa do partido e salvar os homens. De vez em quando, ele tinha notícias da lei, que estava sendo elaborada por um Comité do Gabinete, em consulta com um comité especial da Federação dos Mineiros. Mas nem Nugent nem ele estavam nesse comité e as informações eram bastante escassas. A administração interna do partido tornara-se extremamente rígida e os membros do comité se ressentiam contra qualquer intromissão. Era impossível descobrir a orientação ou contexto da lei que estava sendo elaborada. De qualquer forma, a lei seria mesmo garantida. Pelo menos isso estava garantido. E quando dezembro se aproximou, David disse a si mesmo que suas premonições haviam sido absurdas, apenas uma expressão de sua impaciência. Ele ficou esperando, com uma expectativa cada vez maior.
E, de repente, a 11 de dezembro, a lei foi apresentada. Patrocinada pelo Presidente da Comissão do Comércio, apoiada pelo Procurador-Geral e pelo Ministro das Minas, foi formalmente apresentada pela primeira vez. A Câmara não estava particularmente cheia nem havia no ar qualquer sinal de algo importante acontecendo. Tudo transcorreu sem qualquer dramatismo, até mesmo sem pressa. Foram apenas umas dez linhas, lidas rapidamente; não foram necessários mais que dez minutos, do princípio ao fim, para que tudo estivesse acabado. David escutou com uma crescente apreensão. Não podia compreender direito. Não havia ainda qualquer indicação da extensão da lei; contudo, mesmo naquele estágio, ele já podia perceber que sua aplicação seria limitada. Levantando-se apressadamente, ele foi para o saguão e formulou pedidos a diversos membros do comité para obter uma cópia do esboço da lei. Naquela mesma noite, recebeu o texto integral. Somente então pôde apreciar o significado completo do projeto. Sua reação foi indescritível. Ficou não apenas aturdido. Ficou estarrecido, consternado.
Nugent tivera de ir a Edgeley naquele dia 11 de dezembro e David passou a noite sozinho, estudando o projeto. Mesmo assim, ainda não podia acreditar na evidência diante de seus olhos. Era incrível, assombroso... um golpe terrível.
Ele ficou acordado até tarde da noite, pensando, procurando definir sua linha de ação. A resolução foi se firmando. Compreendeu tudo o que podia fazer, tudo o que devia fazer.
No dia seguinte, David compareceu a uma reunião do Comité Parlamentar do Partido Trabalhista. Foi uma reunião pequena, talvez com metade dos membros. Contemplando os poucos membros presentes, David sentia um aperto no coração. Ultimamente, os ministros não vinham comparecendo regularmente. Mas naquele dia isso era especialmente significativo, pois o Ministro das Minas estava ausente. Somente Dudgeon, Bebbington, Nugent, Ralston, Chalmers e mais uns poucos dos vinte e tantos membros do comité estavam na sala. Pairava no ar um clima de fim de almoço... Chalmers desabotoara os dois últimos botões do colete, enquanto Cleghorn, com uma expressão sonolenta, os olhos meio fechados, acomodava-se para um confortável cochilo.
Jim Dudgeon estava na presidência. Olhou para os papéis à sua frente, correu os olhos pela mesa e depois disse, rapidamente:
- O programa da Câmara esta semana incluirá o debate sobre o desemprego, a discussão sobre moradias populares e a segunda leitura da Lei das Minas de Carvão...
David levantou-se abruptamente.
- Senhor Presidente, numa questão de ordem, posso perguntar se essa lei tem a pretensão de representar a política do Partido Trabalhista?
-Apoiado! Apoiado! - gritaram alguns membros da ala esquerda do comité.
Dudgeon não se mostrou absolutamente desconcertado. Olhou para David afavelmente, de alto a baixo.
- Tem algum motivo para acreditar que não representa a política do partido?
David fez um esforço para manter a calma, mas não conseguiu eliminar da voz um tom de sarcasmo cortante:
- Parece-me que a lei, em sua forma atual, é um tanto inadequada. Fomos reeleitos para esta Câmara com o compromisso de promover a nacionalização. Assumimos num manifesto assinado o compromisso de aliviar a trágica situação nas regiões carboníferas, reorganizando a indústria em linhas absolutamente nacionais, de alto a baixo. E como nos propomos a fazer isso? Não sei se todos os membros deste comité já examinaram o texto integral do projeto. Mas eu já o estudei e posso assegurar que vai contra todas as promessas que fizemos.
Houve um momento de silêncio. Dudgeon esfregou o queixo, pensativo, fitando David atentamente, através dos óculos de aros de chifre.
- O ponto que você está esquecendo é que estamos no Gabinete e não no poder. Devemos tirar o melhor proveito possível de tal situação. E o Governo não pode deixar de fazer concessões.
- Concessões? Mas não se trata de concessões e sim de pura covardia! A Oposição não poderia produzir uma lei que é totalmente complacente com os proprietários das minas. Mantendo o sistema de quotas, rejeitando as propostas de salário mínimo... é uma lei totalmente conservadora e não vai demorar para que todos os membros da Câmara o percebam.
- Um momento, por favor - murmurou Dudgeon, suavemente. - Sou um homem pragmático. Ou pelo menos tenho a reputação de ser um homem pragmático. Creio que se deve ir direto ao ponto. E agora pode explicar exatamente qual é a sua objeção?
- Minha objeção? - gritou David. - Sabe perfeitamente que essa lei não oferece qualquer solução fundamental para as nossas dificuldades. Seu objetivo principal é a comercialização do carvão. É uma tentativa ridícula de conciliar dois princípios absolutamente irreconciliáveis. O sistema de quotas é totalmente prejudicial aos mineiros e nunca poderá ser outra coisa. Quando se compara o que assumimos o compromisso de fazer e o que o Governo se propõe agora a fazer, a coisa se torna um ultraje clamoroso!
- Mesmo que assim seja, qual é a alternativa? - interveio Dudgeon. Não se esqueça da nossa posição.
- É exatamente o que estou lembrando - declarou David, no auge da indignação. - De nossa posição e de nossa honra!
- Pelo amor de Deus! - gritou Chalmers, olhando para o teto. - O que esse membro está querendo?
- O que eu quero é ver o projeto emendado de forma a cumprir nossas promessas e satisfazer a consciência de todos os homens no partido. E que seja depois apresentada à Câmara. Se formos derrotados, mostraremos nosso projeto ao país. Os homens saberão então por que lutamos. Não poderíamos ter um argumento melhor.
Outros gritos de "Apoiado! Apoiado!" da extremidade da sala. Na frente, porém, um murmúrio de desaprovação elevou-se em torno da mesa. Chalmers inclinou-se para a frente lentamente, espetando a mesa com o indicador, para aumentar a ênfase de suas palavras:
- Fui escolhido para este comité e não vou permitir que qualquer um aja impulsivamente aqui.
Dudgeon voltou a falar, afavelmente, olhando fixamente para David:
- Será que não compreende que temos de demonstrar ao país nossa capacidade de governar? Estamos obtendo os mais favoráveis comentários pela maneira como temos cuidado dos problemas nacionais.
- Não se iluda - reagiu David, amargamente. - Eles estão rindo de nós. Leia os jornais tones. A classe inferior imitando os seus melhores! O Governo domado. Segundo eles, não estamos governando, mas representando. E se insistirmos nessa lei nos termos em que foi formulada, eles só terão desprezo por nós!
- Ordem! Ordem! - Dudgeon suspirou, com uma expressão de censura.
- Não queremos palavras mais duras dentro do partido.
Ele fez uma pausa, piscando para David com um ar de exasperação paciente.
- Será que ainda não lhe deixamos bem claro que temos de ir devagar?
- Devagar? - repetiu David, furioso. - Nesse ritmo, ainda estaremos nos preparando para a nacionalidação daqui a dois mil anos!
Nugent falou pela primeira vez, bem devagar:
- Fenwick está certo. Em termos de princípio, não resta a menor dúvida de que devemos lutar. Podemos nos manter no Gabinete por mais 12 meses, brincando de poder, mantendo a impostura, simplesmente nos iludindo. Mas, ao final, acabaremos nos afundando. E por que não afundar com as bandeiras hasteadas? Além do mais, como Fenwick disse, temos de pensar nos homens. A paciência deles estáquase se esgotando, em Tynecastle. Estou lhes dizendo isso porque sei com certeza.
Cleghorn disse, asperamente:
- Se está nos pedindo a renunciar ao Gabinete por causa de uns poucos descontentes em Tynecastle, então está enveredando pelo caminho errado.
- Por acaso chamou-os de descontentes quando lhes pediu os seus votos? - gritou David. -' A situação é mais do que suficiente para levar os homens à revolução!
Chalmers bateu na mesa, irritado.
- Está sendo muito inconveniente, Fenwick. Revolução uma ova! Não queremos quaisquer ideias russas importadas num momento como este!
- É muito desagradável para as classes médias! - concordou Bebbington, em tom desdenhoso.
Dudgeon retomou o controle da reunião, dizendo suavemente:
- Todos concordamos que deve haver uma completa reavaliação do esforço humano. Mas não podemos repudiar o sistema atual abruptamente, como se estivéssemos nos descartando de uma botina velha. Devemos avançar com extremo cuidado. Não podemos deixar de ser constitucionalistas. com todos os diabos, sou popular demais para fazer qualquer coisa contra a Constituição Britânica.
- Preferem não fazer nada. - Uma raiva incontrolável dominava David.
- Preferem ficar sentados e ganhar um salário de ministro do Gabinete, enquanto milhares de mineiros passam fome com seus minguados subsídios!
Houve um intenso clamor, gritos de "Ordem! Ordem!" e "Retire o que disse!"
- Não vou cometer suicídio político por ninguém - murmurou Dudgeon, muito vermelho.
- É essa a opinião do comité? - perguntou David, olhando ao redor.
- O que estão querendo fazer? Cumprir a palavra empenhada ou ignorar todas as promessas?
- O que estou querendo fazer é manter minha reputação de sanidade mental - disse Bebbington, friamente.
- Apoiado! Apoiado! - gritaram diversos membros. Depois, a voz de Cleghorn se sobrepôs ao tumulto:
- Proponho que passemos para o item seguinte, Senhor Presidente. A proposta foi prontamente aceita. David ainda tentou resistir, desesperadamente:
- Peço que reconsiderem os termos do projeto atual. Não posso acreditar que se recusem a emendá-lo. Deixem de lado a questão da nacionalização. Faço um apelo para que considerem pelo menos uma cláusula de salário mínimo.
Remexendo-se na cadeira, muito irritado, Chalmers disse:
- Senhor Presidente, obviamente não dispomos de tempo para prosseguir nessa discussão. Claro que o membro pode ficar com as suas próprias teorias e confiar em que o Governo fará tudo o que é possível, nas atuais circunstâncias.
Diversas vozes gritaram:
- O próximo item, Senhor Presidente!
- Não estou lhes falando em termos de teorias! - gritou David. - Estou falando em termos de homens e mulheres. Devo advertir ao comité que a lei vai levar os mineiros ao desespero, a motins...
- Terá a oportunidade de emendar a lei na ocasião apropriada - disse Dudgeon, bruscamente, para logo depois acrescentar: - O que vamos tratar agora?
Seus partidários gritaram:
- O próximo item!
Desesperado, David ainda tentou insistir na discussão. Mas não adiantava. A voz de Dudgeon retomou monotonamente a leitura do ternário da reunião interrompida. O comité continuou em sua rotina.
Naquela manhã fria de dezembro, Arthur foi para a Neptune e entrou em sua sala. Estava chegando mais cedo. Pendurou o chapéu e o casaco, ficou olhando por um momento para o calendário, depois adiantou-se e arrancou a folha. Outro dia. Certamente que isso era alguma coisa. Sobrevivera outro dia. Ele sentou-se à mesa. Embora tivesse acabado de se levantar, dormira mal e já se sentia cansado, cansado da luta interminável, cansado do choque interminável contra as forças económicas que ameaçavam destruí-lo. O rosto estava encovado e vincado, tinha a aparência de um homem consumido pela preocupação.
Apertou a campainha em cima da mesa e um momento depois Pettit, seu escriturário e contador de tempo, trouxe a correspondência da manhã
- as cartas arrumadas metodicamente, as maiores por baixo, as menores por cima. Pettit era sempre impecável.
- Bom-dia, Pettit - disse Arthur, automaticamente.
Ele sentiu que sua voz soava automaticamente, embora tentasse fazê-la cordial e animadora.
- Bom-dia, Mr. Barras. Houve uma geada grande durante a noite.
- Está mesmo muito frio, Pettit.
- Frio demais, senhor. Quer que eu ponha mais carvão no fogo?
- Não, obrigado, Pettit.
Quase antes mesmo de Pettit chegar à porta, Arthur pegou a carta por cima da pilha, a carta que estava esperando, a carta de seus banqueiros em Tynecastle.
Abrindo o envelope, ele leu rapidamente a comunicação formal, sem qualquer surpresa, de certa forma nem mesmo consternado. A política atual do banco era contrária a novos empréstimos a curto prazo, lamentava profundamente a impossibilidade de atender... Arthur largou a carta. Lamentar era de fato uma boa palavra; todo mundo lamentava quando se sentia obrigado pelos motivos mais elevados a recusar um pedido de dinheiro. Ele suspirou. Contudo, já esperava aquela resposta antes mesmo de escrever. Chegara ao limite de seu saque a descoberto, tomara emprestado até o último penny sobre os equipamentos; pelo menos tinha a vantagem de saber exatamente qual era a sua situação.
Arthur continuou sentado à mesa. Embora estivesse cansado, custava-lhe um grande esforço permanecer quieto, seus nervos exigiam alguma vazão violenta. com uma intensidade febril, ele fez uma revisão de sua situação. A tensão era visível em seu rosto.
Percorrera um longo caminho desde os dias do desastre. E agora não havia caminho nenhum, apenas um atoleiro, um brejo industrial, um colapso. O carvão caíra para apenas 15 shillings por tonelada; mesmo assim, ele não conseguia vendê-lo. Os consórcios, os grandes grupos, estavam vendendo carvão. Mas ele, o pequeno produtor particular, estava impotente. Contudo, tinha de cobrir as despesas: a manutenção das bombas não podia ser abandonada, os royalties tinham de ser pagos, seis pence para cada tonelada de carvão que tirava da mina. E os homens? Arthur tornou a suspirar. com sua política de conciliação e segurança, Arthur esperava conquistar os homens para o seu lado. Mas sempre ficara tristemente desiludido. Os homens pareciam ressentir-se de suas tentativas de reorganizá-los, desconfiavam dos motivos por trás de suas reformas profundas. Para muitos, seus maravilhosos banheiros na boca do poço ainda eram uma fonte de irritação e comentários escarninhos. Ele sabia que era um mau líder. Muitas vezes vacilava em suas decisões, era persuasivo quando devia ser firme, obstinado quando um homem mais forte teria rido e cedido. Os homens percebiam sua fraqueza e tratavam de explorá-la. Podiam compreender a arrogância do velho Barras; temiam-na, até mesmo admiravam-na. Mas desconfiavam e desprezavam o altruísmo e os ideais elevados de Arthur.
O terrível paradoxo espicaçou Arthur. Ele levantou a cabeça abruptamente, na mais profunda exasperação. Recusava-se a admiti-lo.
Não estava derrotado, mas apenas num momento difícil. Seguiria em frente, acabaria vencendo. A maré voltaria a fluir; não estava muito longe agora. Ele concentrou-se no problema com uma renovada intensidade. Na febre de sua concentração, a situação ficou bastante clara, os fatos se tornaram nítidos, os números se alinharam diante de sua imaginação. A mina estava hipotecada, seu crédito esgotado, a produção era a mais baixa nos últimos 20 anos. Mas ele tinha a forte convicção de que os negócios não demorariam a se recuperar. A depressão tinha de acabar, certamente terminaria em breve. Ele continuaria, resistiria até ao final da depressão. E, depois, tudo estaria bem. Poderia aguentar por mais 12 meses. Pelo menos disso tinha certeza. Pensara em tudo, na expectativa da recusa do banco, previra os menores detalhes. Era o caso de reduzir as "despesas, fazer ainda mais economia, de aguentar, isso mesmo, ficar firme, resistir. Poderia fazê-lo, sabia que era capaz.
Arthur respirou fundo, nervosamente. A redução das despesas era o pior de tudo, mas não havia outro jeito. Outros 50 homens teriam de ser dispensados naquele dia; ele os tiraria da Five Quarter Seam, interromperia a exploração ali, até que os negócios melhorassem. Era com um aperto no coração que dispensaria aqueles 50 homens, que iriam se juntar aos outros 600 mineiros da Neptune que já estavam vivendo do auxílio-desemprego governamental. Mas não tinha alternativa. Haveria de contratá-los novamente assim que fosse possível.
com um movimento brusco, Arthur olhou para o relógio. Devia comunicar a Armstrong imediatamente. Ele abriu a porta e avançou rapidamente pelo corredor, na direção da sala de Armstrong.
Passou meia hora com Armstrong, decidindo quais os homens que seriam dispensados. Tinha de ser assim agora. Arthur insistia em examinar e avaliar a situação de cada homem, antes de concordar com a sua dispensa. Nada lhe poderia ser mais doloroso. Alguns dos homens eram veteranos, hábeis e experientes, que há 20 anos ou mais vinham extraindo carvão da Neptune. Mas tinham de ser dispensados, para se juntarem aos 600 homens que já viviam do auxílio-desemprego, aumentando a miséria e o descontentamento que fervilhava em Sleescale.
E finalmente tudo foi acertado. Arthur ficou observando Armstrong atravessar o pátio a caminho do barracão do apontador de tempo, com o papel na mão. Uma estranha sensação de estar liquidando aqueles homens dominou-o, angustiosamente. Ele levou a mão à testa, comprimindo-a. A mão estava tremendo. Depois, virou-se e voltou à sua própria sala.
A sala não estava vazia. Hudspeth estava ali, esperando-o, o rosto vermelho, a expressão furiosa. Hudspeth estava com um rapaz, um rapaz grande e mal-humorado, com uma das mãos no bolso, a outra segurando o gorro. Arthur reconheceu-o imediatamente. Era Bert Wicks, o filho de Jake Wicks, o conferente de peso dos mineiros. Ele trabalhava na Globe Coal. Bastou um olhar para que Arthur compreendesse que a presença dos dois em sua sala representava um problema. Os nervos vibraram por todo o seu corpo.
- O que aconteceu? - perguntou ele, tentando permanecer calmo. Hudspeth disse:
- Veja isso!
E estendeu um maço de cigarros e uma caixa de fósforos. Todos olharam fixamente para o maço e a caixa de fósforos, até mesmo Bert Wicks. O efeito desses artigos triviais era obviamente enorme. Hudspeth acrescentou:
- E nos estábulos! No novo túnel da Globe, sentado no meio da palha, fumando... com licença, Mr. Barras, mas é incrível demais! Forbes acaba de trazê-lo.
Arthur continuou olhando para o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Parecia incapaz de desviar os olhos, especialmente da caixa de fósforos. Pequenas ondas de angústia percorriam-lhe o corpo. Teve de fazer um enorme esforço para controlar o nervosismo. Havia muito grisu nas novas escavações na Globe. Inspeções recentes haviam revelado a presença de grisu numa concentração explosiva. Ele estava com receio de olhar para o jovem Wicks, temendo perder o controle.
- O que tem a dizer?
- Não fiz nada - respondeu Bert Wicks.
- Estava fumando.
- Só dei uma tragada no estábulo. Não fiz nada. Um pequeno calafrio percorreu o corpo de Arthur.
- Desceu com os fósforos. Estava fumando.
Wicks não disse nada. Arthur acrescentou, entre os dentes cerrados:
- Apesar dos regulamentos e todas as minhas advertências sobre fogo na Globç.
Bert Wicks revirou o gorro. Sabia o que os homens pensavam de Arthur, o que diziam a respeito dele, escarnecendo de tudo o que fazia, de suas adulações aos malditos regulamentos de segurança. Bert era duro, não se deixaria abater facilmente. Meio assustado, meio irritado, ele disse:
- Meu pai garante que nunca houve grisu na Neptune. Acha que a ordem contra fósforos não passa de uma...
Arthur perdeu inteiramente o controle. A ignorância, a estupidez, a insolência. Sacrificara-se, quase se arruinara, isso mesmo, matara-se de tanto trabalho e preocupação, procurando tornar a Neptune segura, proporcionar condições de trabalho decentes aos homens. E aquela era a resposta. Arthur não pôde mais aguentar. Deu um passo para a frente e acertou Wicks no rosto.
- Seu idiota! - gritou ele, a respiração ofegante, como se tivesse acabado de correr. - Seu idiota maldito e ignorante! Está querendo provocar uma explosão na mina? Quer nos acarretar outro desastre? É isso o que está querendo? É isso que está querendo? Eu fico aqui a dispensar homens decentes, tirá-los da mina, enquanto você fica refestelado num canto, fumando, ansioso em provocar uma tremenda explosão! Saia daqui, pelo amor de Deus! Saia da minha frente! Está despedido! Leve seus fósforos e seus malditos cigarros! Vamos, saia logo daqui antes que eu o expulse a pontapés!
Ele pegou Wicks pelos ombros, virou-o e empurrou-o pela porta. Wicks caiu no corredor lá fora. Arthur fechou a porta violentamente.
Silêncio na sala. Arthur recostou-se contra a mesa, ainda respirando como se tivesse corrido; mal parecia capaz de respirar. Hudspeth lançou-lhe um olhar perturbado. Era um olhar instintivo e Arthur percebeu-o.
- Ele merecia! gritou Arthur. - Eu tinha de despedi-lo!
- Não poderia mesmo manter um rapaz assim - murmurou Hudspeth, olhando para o chão, constrangido.
- Não posso admitir uma coisa dessas!
- Tem toda razão. - Hudspeth fez uma pausa. Continuava a olhar para o chão, embaraçado. - Mas é claro que ele vai contar direto ao pai... Jake Wicks, o conferente de peso.
Arthur fez um esforço para controlar-se.
- Não bati nele com força.
- Ele vai dar a impressão de que quase o matou. Esses Wicks já gostam de criar encrencas. - Hudspeth encaminhou-se para a porta, acrescentando:
- É melhor eu ir.
E ele saiu. Arthur ficou sozinho na sala, apoiando-se na mesa. Cometera um erro, um erro terrível. A acumulação de sua ansiedade e tensão levara-o a cometer esse erro, agredir Bert Wicks.
Hudspeth saíra para tentar atenuar o erro. Arthur esperava que tudo acabasse bem. Empertigou-se, entrou no pequeno vestiário, ao lado de seu gabinete. Combinara inspecionar a New Paradise naquela manhã e vestiu as roupas de descer à mina. Ao entrar na gaiola para descer pelo poço, ele ainda esperava que seu erro não tivesse maiores consequências.
Mas tal não aconteceria. Ao se levantar, Bert Wicks seguiu diretamente para o lugar em que estava o pai, conferindo os vagonetes carregados que saíam da mina. Sua perna doía no lugar em que batera no degrau, ao cair. E quanto mais pensava na perna, mais a perna doía. Estava com receio de apoiar o peso do corpo na perna machucada.
O pai, Jake Wicks, observou-o aproximar-se daquele jeito, com receio de apoiar-se na perna. Jake parou os vagonetes.
- O que aconteceu, Bert?
Chorando, Bert contou-lhe. E depois de ouvir tudo, Jake disse:
- Mas ele não pode fazer uma coisa dessas!
- Mas ele fez - gritou Bert. - Derrubou-me e chutou-me. E chutou quando eu estava caído.
Jake meteu o livro em que registrava os vagonetes carregados dentro do blusão. Apertou o cinto de couro.
- Ele não pode fazer isso. Não pode escapar impune depois de fazer uma coisa dessas.
Franzindo o rosto, ele pensou por um momento. Tudo porque o pobre Bert esquecera de tirar alguns fósforos do bolso antes de descer. Tudo por causa daqueles malditos regulamentos novos. Alguém poderia aturar uma coisa daquelas? Não, ninguém podia aturar, muito menos ele, o conferente de peso, representante dos mineiros. Jake disse abruptamente:
- Vamos embora, Bert.
Ele abandonou inteiramente os vagonetes e levou Bert ao hospital. O Dr. Webber, o jovem médico-residente, recentemente formado e designado há pouco tempo para o hospital, é que estava de plantão. com a atitude categórica de um homem que conhecia a sua posição, Jake pediu ao Dr. Webber que examinasse a perna de Bert. Jake Wicks, além de ser conferente de peso, o mesmo posto que Charley Gowlan outrora ocupara, era também o tesoureiro do Comité de Assistência Médica. Era muito importante para o Dr. Webber estar nas boas graças de Jake Wicks. Assim, tratou de agradá-lo, fazendo um exame prolongado e compenetrado da perna de Bert.
- A perna está quebrada? - perguntou Jake.
O Dr. Webber achava que não. Na verdade, estava praticamente certo de que a perna não estava quebrada. Mas nunca se podia ter certeza e, de qualquer forma, não era muito sensato ter certeza. As publicações médicas estavam sempre publicando estranhos casos de fraturas, com as consequências mais desagradáveis, especialmente para os médicos. E Jake Wicks era um cliente dos mais desagradáveis. Para ser mais objetivo, o Dr. Webber tinha medo de Jake. E ele disse:
- Precisamos tirar uma radiografia.
Jake Wicks achava que uma radiografia seria uma boa ideia.
- Poderíamos mantê-lo em observação por 24 horas - acrescentou o Dr. Webber. - Ficar 24 horas na cama não vai lhe fazer mal algum, Bert. É apenas uma medida de precaução, para se ter um diagnóstico correto. O que acha da ideia?
Jake e Bert concordaram que era a medida mais acertada, em face das circunstâncias. Bert foi para a cama, na enfermaria dos homens, enquanto Jake seguia direto para o Instituto, telefonando para Heddon, em Tynecastle.
- Alo? É Heddon quem está falando? Aqui é Jake Wicks, tom. O conferente de peso da Neptune, tom.
O tom com que Jake falava com Heddon era um tanto diferente do que usara com o Dr. Webber.
- O que aconteceu? - perguntou Heddon, bruscamente. - E seja breve, pelo amor de Deus. Não tenho o dia inteiro para escutá-lo. O que aconteceu?
- É o meu garoto, Bert - disse Jake, apaziguadoramente. - Um caso de agressão. Tem de escutar, tom.
E Heddon escutou, por cinco minutos inteiros. Ficou sentado no outro lado da linha, com o fone encostado no ouvido, escutando com uma expressão sombria, roendo a unha do polegar, cuspindo os pedacinhos no mataborrão à sua frente.
- Está certo - disse ele, ao final. - Irei até aí.
Duas horas depois, quando Arthur saiu da Paradise e atravessou o pátio, Heddon estava sentado na sala, esperando-o. A visão de Heddon provocou um choque em Arthur; ele se sentiu subitamente gelado. Heddon não se levantou. Continuou sentado na cadeira, como se estivesse plantado ali. E não disse nada.
Arthur também não disse nada, por um minuto inteiro. Atravessou a sala e entrou no banheiro, lavando as mãos e o rosto. Saiu em seguida, enxugando-se. Mas não se lavara direito, pois as mãos deixaram uma mancha escura na toalha. Parou de costas para a janela, enxugando as mãos na toalha. Descobriu que era mais fácil ficar fazendo alguma coisa. Não se sentiria tão nervoso se continuasse a enxugar as mãos. Tentando falar calmamente, ele perguntou:
- O que é desta vez, Heddon?
Heddon pegou uma régua em cima da mesa e pôs-se a brincar com ela.
- Sabe muito bem o que é.
- Veio falar de Wicks. Não posso fazer nada. Já o despedi, por desobediência aos regulamentos.
- É isso o que tem a dizer?
- Ele foi surpreendido fumando no interior da Globe. Você sabe perfeitamente que encontramos grisu ali. Gastei muito dinheiro para tornar esta mina segura, Heddon. Não quero ter problemas maiores do que já enfrentamos.
Heddon cruzou as pernas calmamente, ainda segurando a régua. Não estava com pressa. Mas finalmente disse:
- Bert Wicks está no hospital.
Ele falou olhando para a régua. Arthur sentiu que as entranhas se reviravam, que ficava oco. Parou de retorcer as mãos na toalha.
- No hospital? - Uma pausa. - O que aconteceu com ele?
- Deveria saber.
- Mas não sei.
- Acham que ele está com a perna quebrada.
- Não acredito nisso - gritou Arthur. - Não fiz nada demais. Mr. Hudspeth estava presente. Ele lhe dirá que nada aconteceu.
- Wicks terá de tirar uma radiografia amanhã... e isso lhe mostrará se não foi nada. Por ordem do Dr. Webber. Acabei de vir do hospital.
Arthur estava muito pálido agora, sentia-se fraco. Teve de sentarse no peitoril da janela. Lembrou-se de que o jovem Wicks caíra quando o empurrara pela porta.
- Pelo amor de Deus, Heddon, o que está querendo afinal? - perguntou Arthur, em voz baixa.
Heddon largou a régua. Não havia suavidade ou amor fraternal em Heddon; sua função exigia que fosse violento e arbitrário e tencionava cumprir a missão.
- Preste muita atenção, Barras. vou ser bem claro. Perdeu o controle hoje e agrediu um homem. Não tente negar. E não importa o que o homem fez. Agrediu-o com violência. Praticamente quebrou-lhe a perna. É um caso da maior gravidade. Não se trata de uma simples questão de reintegração. Foi um ato criminoso. E não interrompa enquanto eu estiver falando. Represento todos os homens que ainda restam em sua maldita mina e se eu levantar o dedo eles entrarão em greve.
- E de que isso lhes adiantaria? - disse Arthur. - Os homens querem trabalhar, não vão entrar em greve.
- Os homens devem permanecer unidos. O que afeta um, afeta todos. Não gosto da Neptune. Para mim, é uma mina que fede, desde que tiveram o desastre. Não vou admitir nenhuma besteira.
A violência na voz de Heddon deixou Arthur apavorado e ele protestou debilmente:
- Sabe muito bem como eu trabalhei arduamente para melhorar esta mina. Mas o que está querendo?
- Vai descobrir muito em breve. Convocamos uma reunião para as seis horas. Os homens estão bastante nervosos. Vim apenas avisá-lo. E não vai adiantar você tentar fazer qualquer coisa agora. Já está feito. Você meteu-se numa encrenca... uma tremenda encrenca.
Arthur não disse nada. Estava cansado de Heddon e das ameaças de Heddon. Aquelas ameaças faziam parte da função de Heddon. Ele estava apenas tentando intimidá-lo e provavelmente conseguindo. Mas, no fundo de seu coração, Arthur não podia acreditar que Heddon persuadisse os homens a entrarem em greve. Os homens sentiam-se tão satisfeitos por poderem trabalhar na Neptune que não paralisariam as atividades. A miséria no distrito era terrível, a cidade estava fervilhando de desempregados. Os homens que tinham trabalho eram os afortunados. Arthur acabou dizendo, apaticamente:
- Faça o que achar melhor. Sei que também não quer nenhuma encrenca. Heddon levantou-se. Ele estava acostumado a homens que batiam com
os punhos na mesa, berravam, diziam-lhe que sumisse. Estava acostumado a rompantes e contra-rompantes, imprecações, ameaças, blasfémia. Era pago para lutar e lutava sempre. A apatia de Arthur provocou uma vaga expressão de compaixão em seus olhos.
- Isso é tudo por enquanto, Barras. Receberá outras notícias nossas mais tarde.
E ele saiu da sala, com um brusco aceno de cabeça. Arthur continuou imóvel. Ainda segurava a toalha meio dobrada. Terminou de dobrá-la. Voltou ao banheiro, pendurou a toalha no cano quente da calefação. Percebeu então que a toalha não estava muito limpa. Tornou a pegá-la e jogou-a no cesto, para ser trocada.
Mudou para as suas roupas comuns. Não poderia se dar ao trabalho de tomar um banho naquela noite. Ainda estava cansado, apático, sentindo-se mal. Tudo era um pouco irreal; sentia-se leve por dentro das roupas, como se não pertencesse a elas. Era tão sensível que podia sentir tudo intensamente. Mas depois que tal sensibilidade ultrapassava um certo ponto de acuidade, ficava meio entorpecido. Estava meio entorpecido agora. Viu-se subitamente no pequeno espelho quadrado, pendurado na parede esmaltada de branco. Não era de admirar que se sentisse extenuado. Parecia dez anos mais velho do que os seus 36 anos, havia rugas em torno dos olhos, os cabelos não tinham qualquer lustro, haviam quase desaparecido por completo no alto da cabeça. Por que estava desperdiçando sua vida daquele jeito, transformando-se num velho antes do tempo, perseguindo ideais insanos, assumindo a absurda ilusão de justiça? Outros homens estavam desfrutando suas vidas, tirando o máximo proveito do dinheiro, enquanto ele permanecia ali, naquela mina que não lhe proporcionava a menor alegria, trabalhando incansavelmente. Pela primeira vez, Arthur pensou: Oh, Deus, como tenho sido idiota!
De volta à sala, ele olhou para o relógio. Eram quase seis horas. Arthur pegou o chapéu e saiu. Atravessou o pátio vazio da mina e foi andando pela Cowpen Street. É claro que deveria ir ao hospital, indagar como estava o jovem Wicks. Mas decidiu deixar tal providência para depois. Essa procrastinação era típica de Arthur. Subindo pela Avenue, ele ouviu o rumor de vozes altas no Instituto dos Mineiros. As vozes soavam a distância, pareciam-lhe fúteis e remotas. Ele sabia que não poderia haver qualquer problema. Era absurdo pensar em qualquer problema num momento como aquele.
Mas Arthur estava enganado. De vez em quando, os fatos contradizem a lógica. Não se pode dizer que os acontecimentos da noite de 14 de dezembro necessariamente desacreditavam o julgamento de Arthur. Eles simplesmente ocorreram.
A reunião no Instituto começou às seis horas. Foi rápida. Heddon providenciou para que a reunião fosse rápida. A política de Heddon era perfeitamente definida: não queria encrenca, absolutamente nenhuma encrenca. Os fundos lamentavelmente exauridos do sindicato não suportariam qualquer encrenca. Sua política era intimidar Arthur, deixá-lo indeciso e preocupado por 24 horas, aparecer no dia seguinte para conseguir uma negociação vantajosa. A reintegração de Bert Wicks, uma indenização e mais alguma coisa, para aproveitar a oportunidade. Acima de tudo, porém, a política de Heddon era voltar para casa, mudar as meias que estavam úmidas porque seus pés suavam intensamente, tomar um chá com meias secas e chinelas, depois sentar-se ao lado do fogo com seu cachimbo. Heddon já não era mais tão jovem, suas ambições estavam mortas, os ódios de sua juventude apenas fumegavam. Sua política ainda era bastante vigorosa, mas era governada menos pela cabeça de Heddon e mais pelos seus pés.
Ele acelerou a reunião, esnobou Jake Wicks, apoiou as opiniões rapidamente expressas de Harry Ogle e depois saiu correndo para pegar o trem das 6:45h para Tynecastle.
Ele parou nos degraus do Instituto, um tanto aturdido com as proporções da multidão lá fora. com todos os diabos, pensou ele, mas o que será que deu nessa gente? Havia pelo menos 500 homens, parados ali, esperando, conversando. Eram quase todos homens que estavam sobrevivendo graças ao auxílio-desemprego.
Confrontado pela multidão, Heddon sentiu-se na obrigação de falar. Enfiou as mãos nos bolsos, esticou a cabeça para a frente e disse bruscamente:
- Escutem bem, rapazes. Acabamos de realizar uma reunião para discutir o que aconteceu hoje. Não podemos permitir que qualquer membro do nosso sindicato seja agredido. E não vou aceitar uma demissão injusta. Suspendemos a reunião, por uma questão de ordem. Estarei outra vez aqui amanhã, para novas negociações. Isso é tudo, rapazes.
E com seu gesto brusco habitual, Heddon desceu os degraus e encaminhou-se para a estação.
Os homens aclamaram tom Heddon enquanto ele subia a Freehold Street. Heddon representava a esperança daqueles homens, uma esperança vaga e um tanto ilusória, conforme todos sabiam, mas ainda uma esperança. Ele representava tabaco, cerveja, uma boa cama, roupas quentes e trabalho. Foi em parte por isso que o aclamaram. Mas não foi uma aclamação das mais entusiasmadas, e podia-se perceber alguma apatia, alguma insatisfação e inquietação por trás.
Quando Jake Wicks saiu do Instituto, cinco minutos depois de Heddon ir embora, ficou evidente que ele também estava longe de sentir-se satisfeito. Desceu os degraus lentamente, com uma expressão ofendida. Foi imediatamente cercado pelos homens à espera, que queriam saber mais a respeito do caso. Todos queriam saber, especialmente Jack Reedy e sua turma. A turma de Jack fazia parte dos homens à espera e ao mesmo tempo não fazia, era um pouco diferente. Quase todos eram jovens e não falavam muito. Mas todos tinham cigarros. Os rostos eram curiosamente parecidos. Exibiam uma certa dureza, como se o dono de cada rosto não mais se importasse com o que pudesse acontecer. O rosto de Jack era exatamente assim, como se outrora ele tivesse se preocupado, mas agora tal não mais acontecia. As rugas no rosto de Jack eram todas viradas para baixo, sinuosas, profundas. Era um rosto chupado nas faces e nas têmporas, extremamente pálido, exceto por uma mancha de nicotina no canto do lábio superior. Mas a firmeza do rosto era a sua característica mais extraordinária; o rosto dava a impressão, à primeira vista, de que era absolutamente incapaz de sorrir. Tinha-se o estranho pressentimento de que o rosto de Jack haveria de arrebentar, se ele tentasse sorrir.
- O que aconteceu? - perguntou Jack, adiantando-se, através da multidão.
Jake Wicks olhou para Jack Reedy, Wood, Slattery e Chá Leeming, que estavam juntos.
- Imagine só! - resmungou Wicks. - Ele quer conciliar tudo! Em voz veemente, Wicks contou o que acontecera na reunião.
- Ele falou alguma coisa sobre a pensão? - gritou Harry Kinch, da beira da multidão.
- Está apenas querendo que nós todos nos...! - respondeu Jake. Houve um silêncio amargo entre os homens. O auxílio fora reduzido no
início do mês e a pensão provisória cortada.
Jack olhou fixamente para Wicks. Havia algo de imponente em seu rosto impassível. E ele indagou, em seu tom áspero, ofensivo:
- O que ele disse de fazer os homens pararem de trabalhar?
- É a última coisa que ele está querendo. Jake estava fervendo de indignação. - Ele perdeu a coragem. Não vai fazer nada.
- Devemos fazer outra manifestação - sugeriu Wood.
- Para quê? - disse Jack, amargamente.
E isso liquidou a ideia de uma manifestação. Já houvera uma manifestação naquela semana, uma manifestação dos desempregados, uma marcha ao Snook, com a bandeira vermelha, polícia montada e discursos. Fora ótimo, a polícia acompanhando na maior cordialidade, tudo correra bem, sem que houvesse prejuízo para ninguém. Os pensamentos de Jack eram amargurados, muito amargurados. Aquele tipo de coisa não adiantava. Não servia para nada. Ele queria ação, precisava de ação, todo o seu ser ansiava por ação.
Aproveitando o pretexto da dispensa do jovem Wicks, Jack esperara ansiosamente que Heddon decretasse uma greve. Uma greve era ação de massa, e a ação de massa era o único caminho. Uns poucos homens sem trabalhar, umas poucas centenas de homens sem trabalhar, nada significava; mas todos os homens sem trabalhar significava alguma coisa. Significava a quebra da Neptune, significava dar-lhes uma lição, significava ação, ação. Mas, no final das contas, não haveria greve.
A testa de Jack estava franzida, como se ele sentisse a maior angústia. Parecia alguma criatura estúpida, tentando decifrar o incompreensível. Ele murmurou:
- A reunião que vocês tiveram não serviu para nada. Precisamos promover outra reunião. Temos de fazer alguma coisa. Pelo amor de Deus, alguém me dê uma guimba!
Um cigarro foi imediatamente oferecido por Wood. O cigarro provinha de uma máquina automática que Wood sabia operar. Um fósforo protegido pela-mão em concha foi estendido por Slattery. Jack inclinou o rosto pálido e aspirou fundo. Depois, olhou para os homens ao redor, alteando a voz:
- Escutem, rapazes! Uma reunião de massa às oito horas! Estão entendendo? Passem o aviso adiante. Às oito horas, uma reunião de massa!
O aviso foi passado adiante. Mas Jake Wicks protestou, meio alarmado, meio insinuante:
- Terá de se meter sozinho nessa, Jack.
- E daí? - disse Jack, em tom indiferente. - Fique em casa, se achar melhor. Ou então vá se meter no hospital com Bert.
O rosto de Jake ficou vermelho, mas ele não disse mais nada. Era sempre melhor não responder a Jack.
- Vamos embora - disse Jack aos outros. - Querem passar a noite inteira aqui?
Ele seguiu na frente, claudicando, desceu a Cowpen Street, entrou no Salutation. Jack não usou a mão para abrir a porta de vaivém do Salutation. Empurrou-a com o ombro e entrou. Os outros fizeram a mesma coisa.
O balcão do Salutation estava repleto e Bert Amour estava do outro lado. Há muitos anos que Bert estava por trás daquele balcão; parecia ter crescido ali, com seu rosto avermelhado, os cabelos achatados na cabeça, o topete úmido e suavemente virado para trás, como se alguma vaca o tivesse lambido.
- Olá, Bert - disse Jack, com uma jovialidade aflitiva. - O que vão querer, rapazes?
Os outros disseram o que queriam e Bert serviu-os. Ninguém pagou e Bert sorriu, como se isso o magoasse.
- Pode servi-los, Bert - disse Jack.
Bert estremeceu e seu rosto ficou mais avermelhado do que nunca. Mas tornou a encher os copos. Era porque estava há tantos anos por trás do balcão do Salutation que Bert Amour sabia quando encher os copos, sorrir e não dizer nada. O comércio de bebidas alcoólicas era muito estranho e era melhor para Bert estar de bem com Jack Reedy e seu bando, muito melhor.
- É uma coisa terrível, Jack - disse Bert, tentando puxar conversa. O que aconteceu com o jovem Bert Wicks.
Jack fingiu não ouvir, mas Chá Leeming inclinou-se polidamente sobre o balcão.
- Que diabo sabe a respeito disso?
Bert olhou para Chá Leeming e pensou que era mais sensato não dar atenção à reação dele. Chá era exatamente como o pai, Slogger Jeeming. Só que Chá estivera na guerra, o que o tornava mais atualizado. Chá ganhara uma medalha militar na guerra, e na semana anterior, depois da manifestação no Snook, pendurara a sua medalha militar no rabo de um cachorro vira-lata. O vira-lata correra por toda a cidade arrastando a linda medalha militar pela lama e Chá chamara o cachorro de Herói de Guerra. Um homem deveria ir para a prisão por uma coisa assim. E Chá acabaria indo, certamente, pensava Bert.
Bert estendeu a mão para recuperar a garrafa de uísque. Mas antes que pudesse fazê-lo, Jack tirou a garrafa do balcão e seguiu para uma mesa no canto. Todos foram para a mesa. Alguns homens já estavam ali, mas prontamente deram os seus lugares. Jack e seus homens sentaram-se e começaram a conversar. Bert ficou observando-os conversar; pôs-se a enxugar o balcão, observando-os.
Eles ficaram sentados na mesa do canto, conversando e bebendo, acabando a garrafa. Quanto mais tempo ficavam sentados ali, mais homens se apinhavam ao redor, escutando, falando e bebendo. O barulho tornou-se tremendo, até que parecia que todos falavam ao mesmo tempo, todos violentamente, discutindo - o caso de Wicks, a falta de ação de Heddon, o corte da pensão provisória, as esperanças na nova Lei das Minas. A exceção era Jack Reedy. Jack ficou sentado à mesa com os olhos mortiços fixados à sua frente. Não estava bêbado, nenhuma quantidade de bebida conseguia jamais deixar Jack embriagado, o que era o pior de tudo. Os lábios estavam contraídos, tensamente, ele ficava comprimindo os dentes contra os lábios, como se estivesse mordendo a própria amargura. A vida de Jack fora toda moldada pela angústia; ele era todo angústia por dentro e os olhos angustiados contemplavam um mundo de aflição. O desastre moldara Jack, assim como a guerra e a paz - a degradação e miséria do auxílio-desemprego, os empréstimos, a brutalidade da necessidade, a desolação da alma, que é pior do que a fome.
Toda aquela conversa levava-o ao desespero; não passava de conversa fiada. Seria a mesma coisa na reunião às oito horas - palavras e mais palavras, que nada significavam, nada faziam, não levavam a parte alguma. Uma imensa desesperança dominou-o.
E de repente, enquanto ele estava sentado ali, a porta abriu-se bruscamente e Harry Kinch entrou. Harry era o sobrinho daquele mesmo Will Kinch que entrara no Salutation desesperado alguns anos antes, quando Ramage recusara-se a lhe vender fiado para a sua pequena Alice. Mas havia uma diferença. Harry era um estudioso de política maior do que Will jamais fora. E Harry tinha na mão agora uma última edição do Argus. Ele ficou parado por um momento, olhando para os outros, depois disse:
- Está no jornal, pessoal. Finalmente saiu. - A voz começou a tremer.
- Eles nos traíram. .. enganaram...
Todos os olhos fixaram-se em Kinch.
- Mas o que aconteceu? - perguntou Slattery, a voz engrolada. - Qual é o problema, Harry?
, Harry afastou os cabelos caídos na testa.
- Está no jornal... a nova lei... é a maior trapaça em muitos anos. Não estão nos dando nada, rapazes. Absolutamente nada...
E outra vez ele foi incapaz de continuar. Houve um silêncio opressivo. Todos sabiam o que lhes fora prometido. Subconscientemente, as esperanças de todos os homens ali dentro haviam se concentrado na nova lei. Jack Reedy foi o primeiro a se recuperar do choque.
- Por Deus! - exclamou ele. - Mostre-nos o jornal!
Jack pegou o jornal e examinou-o. Todos se agruparam ao redor, esticando a cabeça, olhando para o jornal, onde estavam revelados os termos da traição.
- Por Deus! - repetiu Jack. - Então é isso!
Leeming levantou-se abruptamente, tenso e furioso, gritando:
- Isso é demais! Não vamos mais aturar!
Todos puseram-se a falar ao mesmo tempo, num tumulto total. O jornal passou de mão em mão. Jack Reedy estava agora de pé, frio e controlado. No meio do caos, ele via a sua oportunidade. Os olhos não estavam mortiços agora, mas ardendo intensamente.
- Dê-me outro u isque, Bert! E depressa!
Ele tomou o uísque de um só gole. Olhou para os homens ao redor e depois gritou:
- Estou indo para o Instituto! Quem quiser que me siga!
Um clamor foi a resposta. Todos saíram atrás dele. Deixaram o pub para a escuridão tempestuosa da Cowpen Street, encaminhando-se para o Instituto, com Jack um pouco à frente.
Mais homens estavam concentrados diante do Instituto, quase todos os jovens mineiros da Neptune que estavam de folga, todos os mineiros que haviam sido dispensados desde o início da crise. E cada homem estava no auge do desespero por aquela notícia que se espalhara rapidamente pelos Terraços, a extinção final de suas esperanças.
Jack subiu correndo os degraus do Instituto e virou-se para fitar os homens. Por cima da porta do Instituto, um globo elétrico parecia como uma pêra amarela, na ponta de um galho. A luz dessa pêra elétrica incidia sobre o rosto soturno de Jack. Estava bastante escuro na rua, os poucos lampiões projetando uma débil claridade sobre as poças.
Jack ficou imóvel por um momento, olhando para os homens. O uísque intensificara a sua amargura, que era agora quase como veneno; todo o seu corpo vibrava com uma amargura venenosa. Ele sentia que o seu momento estava se aproximando, o momento pelo qual sofrera, o momento para o qual nascera.
- Camaradas - gritou ele - acabamos de receber a notícia. Fomos enganados. Eles nos ignoraram, como Heddon fez. Traíram-nos, como sempre fizeram. E tinham prometido!
Jack respirou fundo, a respiração ofegante, torturada, os olhos sempre ardendo.
- Eles não vão nos ajudar! Ninguém vai nos ajudar! Absolutamente ninguém! Estão me ouvindo? Ninguém! Temos de ajudar a nós mesmos. Se não o fizermos, nunca sairemos da maldita sarjeta para a qual o capitalismo nos empurrou. Deus Todo-Poderoso, todo o sistema económico está podre e fedorento como bosta. Eles ficam com o dinheiro, os carros, as boas casas, tapetes no chão, tudo conseguido à custa de gente como nós. Nós trabalhamos como escravos para eles. E o que conseguimos em troca? Nem mesmo temos comida, rapazes, nem fogo nem roupas direitas nem botinas para os nossos filhos. Assim que alguma coisa sai errada, somos imediatamente dispensados. Passamos a pão e margarina, nem mesmo havendo o bastante para a mulher e as crianças! E que ninguém me diga que isso acontece porque não há dinheiro. O país está nadando em dinheiro, os bancos estão estourando de tanto dinheiro, há milhões e milhões sobrando. E que também ninguém me diga que não há comida. Estão jogando peixe de volta no mar, queimando café e trigo, matando porcos para deixá-los apodrecer, enquanto nós estamos aqui passando fome. Se isso é um bom sistema, rapazes, então que Deus TodoPoderoso me faça cair morto neste momento!
Outra respiração convulsiva. Depois, alteando a voz ainda mais, Jack continuou:
- Não compreendemos isso quando eles tiveram o desastre na maldita Neptune e assassinaram uma centena de homens. Não percebemos na guerra, quando assassinaram milhões de homens. Mas, por Deus, podemos perceber tudo agora! E não podemos mais continuar a aturar um sistema assim, rapazes. Temos de fazer alguma coisa. Temos de mostrar-lhes o que valemos, rapazes. Temos de fazer alguma coisa. Temos de fazer qualquer coisa, de qualquer maneira. Se não fizermos nada, bem que podemos apodrecer no inferno pelo resto dos nossos dias!
A voz de Jack estava agora estridente, desvairada, frenética.
- Eu vou fazer alguma coisa, rapazes. Quem quiser, que me siga. vou começar agora mesmo. E vou mostrar-lhes na Neptune, onde meus dois irmãos morreram. vou agora arrasar aquela mina, rapazes. vou me vingar de uma parte do que me fizeram. Vocês vão comigo ou não?
Um clamor elevou-se da multidão. Inflamados pelas palavras de Reedy, todos se amontoaram ao seu redor, enquanto ele descia correndo os degraus. E acompanharam-no pela rua. Alguns, apavorados, voltaram aos Terraços. Mas pelo menos cem homens foram atrás de Jack. Todos se encaminharam para a mina, exatamente como a multidão seguira para a loja de Ramage, cerca de 20 anos antes. Mas havia agora mais homens no movimento, muito mais. A mina era uma atração bem maior que a loja de Ramage. A mina era o foco em que se concentrava a fúria de suas almas. A mina era a arena, o anfiteatro. Vida e morte, trabalho e salários, sangue e suor, tudo se misturava na poeira preta dessa arena, desse anfiteatro escuro.
Os homens despejaram-se pelo pátio da mina, liderados por Jack Reedy. O pátio da mina estava silencioso, o escritório fechado, o poço vazio, como a entrada para uma imensa tumba. Não havia qualquer pessoa lá embaixo agora, não havia mais turno da noite. Até mesmo as instalações na boca do poço pareciam desertas, embora os homens da segurança lá estivessem, os homens que operavam as bombas. Eram dois e estavam na casa de máquinas, por trás do vestiário. Os nomes deles eram Joe Davis e Hugh Galton. A multidão seguiu para a casa das máquinas, onde Davis e Galton estavam. Galton foi o primeiro a ouvi-los se aproximarem. Uma das janelas da casa de máquinas estava entreaberta, para deixar sair o calor e o cheiro de óleo. Galton, um homem meio velho, com uma barba pequena e grisalha, esticou a cabeça pela janela.
A multidão cercava agora a casa de máquinas, uma multidão de uma centena de homens, todos os rostos virados para Galton, na janela alta da casa de máquinas.
- O que está acontecendo? - gritou Galton. Foi Jack Reedy quem respondeu:
- Saia daí! Queremos que venha para fora!
- Para quê?
Jack repetiu, em tom ameaçador:
- Saia daí! Saia logo e não vai se machucar!
Em resposta, Galton recuou e bateu a janela com toda força. Houve uma pausa de cerca de dez segundos, povoada pelo ressoar das bombas. Depois, Chá Leeming soltou um grito e arremessou uma pedra. A janela foi espatifada, o barulho do vidro quebrado misturando-se com o das bombas. Foi o bastante. Jack Reedy subiu correndo os degraus da casa de máquinas, com Leeming e uma dúzia de outros atrás. Entraram bruscamente pela casa de máquinas.
Estava muito quente lá dentro, intensamente iluminado, um cheiro de óleo forte, a vibração dos motores.
- Mas que diabo estão querendo aqui? - gritou Joe Davis.
Era um homem de 40 anos, macacão azul, as mangas arregaçadas, um pedaço de estopa enrolado no pescoço. Estava limpando os metais com uma lata de parafina.
Jack Reedy olhou para Joe Davis e disse prontamente:
- Não queremos fazer mal a nenhum dos dois. Queremos apenas que saiam daqui. E depressa.
- Vá para o diabo! - gritou Joe Davis.
Jack deu um passo à frente. E disse, observando Joe Davis atentamente:
- Você vai sair daqui. Os homens estão querendo que saia.
- Que homens?
Jack correu para cima de Joe Davis agarrou-o pela cintura. Os dois ficaram assim engalfinhados pela cintura, lutando. Lutaram por um minuto inteiro, com todos olhando. E enquanto lutavam, derrubaram uma lata de parafina. Era uma lata grande de parafina, escorregou pela grade, derramou-se na caixa de estopas de limpeza. Slattery foi o único que percebeu a parafina cair ali, pois todos os demais estavam observando a luta. Numa espécie de reflexo, Slattery tirou a guimba de cigarro da boca e jogou-a na caixa de estopas. Além de Slattery, ninguém mais viu o cigarro cair lá dentro, pois naquele momento Davis escorregou e caiu, com Jack por cima. A multidão avançou Agarraram Davis, depois correram para Galton, arrancaram os dois da casa de máquinas.
Depois disso, tudo aconteceu rapidamente. Não foi ninguém em particular. Todos o fizeram, arremessando ferramentas soltas, chaves de porcas uma pesada marreta, tudo o que estava à mão, nos pistões lentos e refulgentes. Foi a marreta que causou o dano decisivo. A marreta bateu na cruzeta e caiu sobre o cilindro principal, rachando-o, resvalando em seguida sobre os rolamentos. Houve um terrível rangido e um silvo de vapor. Toda a maquinaria tremeu, com um barulho estrepitoso, acabou enguiçando. Toda a casa de máquinas estremeceu em suas fundações e depois ficou imóvel.
Foi nesse momento que Slattery gritou, como se tivesse acabado de fazer uma grande descoberta:
- Está pegando fogo! Santo Deus! Olhem ali! Está pegando fogo!
Todos olharam para a caixa de estopas, da qual as chamas saltavam, olharam para os motores parados das bombas. E depois correram para a saída. Espremeram-se pela porta, meio em pânico. Jack Reedy ficou para trás. Jack sempre era atilado e oportunista. Foi até o tambor de óleo e abriu a torneira. Por um momento, ele ficou observando o óleo escorrer, escuro. Sua expressão era fria, amargamente triunfante. Fizera alguma coisa, isso mesmo, fizera alguma coisa. Ele saiu rapidamente, batendo a porta.
Os homens ficaram parados lá fora, no pátio. Não houve chamas a princípio, apenas densos espirais de fumaça. Mas as chamas não demoraram a surgir, grandes línguas de fogo subindo para o céu.
Os homens recuaram um pouco diante das chamas, que iluminavam seus rostos levantados, no anfiteatro escuro na boca do poço. Ondas de calor estendiam-se para eles, através do frio da noite. Quando as chamas alcançaram o teto da casa de máquinas, as telhas de ardósia começaram a espocar. Era impressionante como as telhas espocavam, saltando do telhado como ervilhas quicando num tambor, uma, duas, três, uma perfeita saraivada de telhas de ardósia, cada uma descrevendo uma curva graciosa, em chamas, para cair estrepitosamente no pátio de concreto.
A multidão recuou ainda mais, comprimindo-se de costas contra as paredes do escritório, tornando a passar pelos portões, voltando à Cowpen Street. Soltaram Galton e Joe Davis. Estava tudo bem, estava tudo bem agora. Galton correu para o escritório, correu para o telefone. Deixaram-no ir. Estava tudo certo, estava tudo certo agora; outra saraivada de telhas caiu, ruidosamente. Galton pôs-se a telefonar furiosamente. Ligou para Arthur, Armstrong e o corpo de bombeiros. Telefonou para o escritório do sindicato em Tynecastle. Deixou um aviso no centro de ajuda popular para que informasse a todos no distrito que pudessem prestar algum serviço na emergência. E depois saiu correndo do escritório para fazer o que pudesse. Ao sair para o pátio, uma telha de ardósia incandescente passou zunindo ao lado de seu crânio, deixando de rachá-lo por poucos centímetros. Foi cair no chão do escritório e os fragmentos dispersaram-se alegremente. Um deles caiu chiando na cesta de papel. E foi o bastante para atear fogo ao escritório.
Tudo estava acontecendo muito depressa. Mais homens estavam entrando no pátio da mina, Forbes, Harry Ogle, alguns dos mineiros mais antigos. E depois a polícia chegou, Roddam, o sargento, mais uma dúzia de homens, em disparada. Galton juntou-se à polícia, todos correram para a sala de segurança, onde Joe Davis já desenrolara as mangueiras. Saíram com as mangueiras e ligaram ao hidrante. Davis deu toda a pressão. As mangueiras sacudiram-se bruscamente e a água esguichou de uma dúzia de buracos. Alguém retalhara as mangueiras. Estavam inúteis.
Arthur e Armstrong chegaram simultaneamente. Arthur estava lendo em seu quarto quando Galton telefonara. Armstrong estava se deitando. Correram para os homens agrupados diante da sala de segurança. Enquanto as chamas projetavam luz e sombras sobre eles, ficaram parados por um momento, em rápidas consultas. Depois, Arthur correu para o escritório, a fim de telefonar. Encontrou o escritório em chamas.
Os bombeiros de Sleescale finalmente chegaram. Camhow ligou uma mangueira. Um jato fino de água foi dirigido para as chamas, sibilando. Outra mangueira foi ligada e um segundo jato de água subiu. Mas eram jatos finos e débeis. E aquelas duas mangueiras eram as únicas de que os bombeiros dispunham.
As coisas estavam acontecendo ainda mais depressa agora, a confusão era total. Homens corriam pelo pátio, de um lado para outro, as cabeças abaixadas. Vigas estavam caindo, assim como tijolos em brasa. As chamas devoravam tudo, madeira, alvenaria, pedra e metal. O fogo a tudo consumia. Gritos se elevavam de vez em quando, o som ressoava pela cidade, como disparos de canhões do mar. A Cowpen Street estava agora tomada por uma imensa multidão, todos observando, assistindo ao incêndio.
Metade das instalações estava destruída quando Heddon chegou à mina. Ele correu da estação sob o clarão intenso, parecendo que era dia, abrindo caminho bruscamente, através da multidão. Enquanto ele se empenhava em chegar ao pátio, dois carros de combate ao fogo da Amalgamated passaram ruidosamente pela rua. Heddon foi atrás do segundo. E entrou no pátio da Neptune.
A casa de força já não existia mais, assim como a sala de segurança, a estação das bombas. O vento, formando uma correnteza, estava atiçando o fogo. O calor era intenso.
Heddon tirou o casaco e pôs-se a ajudar os bombeiros da Amalgamated. Uma mangueira depois de outra despejou o seu jato poderoso sobre as chamas. O vapor se elevara entre a fumaça, pairando como uma mortalha, descendo lentamente. Escadas eram levantadas, homens corriam, subiam, manejavam picaretas, suavam. E a noite ia passando.
Quando o dia raiou, não havia mais fogo, apenas os rescaldos. A luz fria e cinzenta da manhã mostrava isso... e mostrava também toda a desolação dos escombros.
Arthur, apoiando-se numa escada, contemplava os destroços na superfície da mina. Um suspiro escapou de seu peito. Sabia que a situação era pior lá embaixo. Subitamente, ouviu alguém gritando. Era Heddon.
- Aqui, Armstrong! - gritou Heddon. - Vai precisar ligar novas bombas e depressa!
Armstrong olhou para Heddon e seguiu adiante. Aproximou-se dos guinchos queimados, onde Arthur estava, ao lado da gaiola vazia. Em voz cansada, Armstrong disse:
- É melhor providenciarmos logo o novo equipamento de bombeamento. Temos de ligar para Tynecastle imediatamente, se quisermos salvar alguma coisa.
Arthur levantou a cabeça lentamente. O rosto estava enegrecido, os olhos injetados pela fumaça, a expressão era inteiramente vazia.
- Pelo amor de Deus - sussurrou ele - deixe-me em paz! Pelo amor de Deus!
Apesar do novo e vigoroso memorando em seu diário, intitulado Defesa Adicional da Programação da Neptune, além de alguns cálculos complexos, efetuados nas margens de Robert Elsmere, Richard não conseguia compreender direito. Diariamente, ao meio-dia, ele fazia um esforço para descer a pé pelo gramado, passando pelo laburno agora desfolhado e equilibrando-se contra o portão branco do pasto. Aquela posição, de onde podia ver a parte superior dos guindastes da Neptune, não mais do que isso, recebera de Richard o nome de Posto de Observação nº 1. Era estranho, muito estranho: não havia sinais de atividade em torno dos guindastes, não podia ver fumaça nem vapor. Será que os guindastes estavam funcionando? Era impossível dizer, mesmo quando ele protegia os olhos com as mãos trémulas, usando-as como lunetas, como convinha ao Posto de Observação Nº 1. Era estranho, muito estranho mesmo...
Naquele dia, no início de janeiro, Richard voltou do Posto de Observação Nº 1 com um ar ao mesmo tempo aturdido e triunfante. Estava vagamente consciente de que havia alguma encrenca, conforme ele previra. Eles iriam chamá-lo em breve, dali a pouco, imediatamente... para endireitar tudo. Eles!
Apesar de todo o seu triunfo, no entanto, Richard parecia um velho trémulo e doente. Andava com a maior dificuldade e até mesmo Tia Carrie não podia deixar de admitir que o pobre Richard não apresentava muitas melhoras ultimamente. Voltando pelo gramado, ele cambaleava e quase caiu. Seu andar era como o discurso de um gago, constituído por pequenas corridas e paradas bruscas, alguns passos rápidos, cada vez mais rápidos, até que de repente os pés se embaralhavam e ele cambaleava. Era preciso então parar por um instante, começar tudo de novo, como o gago a procurar pela sílaba certa. Apesar de todas as dificuldades, porém, Richard insistia em fazer a sua caminhada sozinho, recusando bruscamente o braço que Tia Carrie lhe oferecia, com uma expressão desconfiada. O que era perfeitamente natural. Afinal, era um homem cercado, vigiado, ameaçado. Tinha de resguardar os seus interesses. Um homem devia cuidar de si mesmo.
Tendo atravessado o gramado, ele evitou o olhar terno e triste de Tia Carrie, postada a esperá-lo junto ao pórtico. Richard deu a volta, aos tropeções, para a porta de vidro da sala de estar. Entrou na sala, levantando os pés com extremo cuidado sobre a estreita saliência. Foi para a sala de fumar e ajeitou-se numa cadeira para escrever. Seu jeito de sentar era ajustar-se cuidadosamente com as costas na cadeira, arriando em seguida.
Escreveu trémulo: Memorando do Posto de Observação Nº 1. 12,15 x 3,14. Nenhuma fumaça hoje, um mau sinal. O principal criminoso não apareceu, mas estou convencido de que há encrenca. Estou esperando todos os dias ser convocado em defesa da Neptune. Estou ainda preocupado com a presença aqui da minha filha Hilda e daquele homem Teasdale. Por quê? A resposta pode revelar tudo. Mas há muitas idas e vindas contra mim, especialmente desde o desaparecimento de Ann. Acima de tudo, devo proteger-me e aguentar firme, preparado para o que der e vier.
Um barulho perturbou-o e ele levantou os olhos, irritado. Tia Carrie entrara... Caroline estava sempre entrando. Por que ela não podia deixá-lo em paz? Richard fechou o livro de escrever ciumentamente e encolheu-se na cadeira, furioso e desconfiado.
- Ainda não repousou, Richard.
- Não quero repousar.
- Está bem, Richard.
Tia Carrie não insistiu; contemplou Richard com sua expressão triste e terna, os olhos avermelhados, as pálpebras inchadas. O coração de Tia Carrie se derramava por Richard. Pobre e querido Richard, era terrível que ele não devesse saber. Mas seria ainda pior, se soubesse. Tia Carrie não podia suportar pensar nisso.
- Quero lhe perguntar uma coisa, Caroline. - Os olhos opacos e desconfiados assumiram uma expressão de jovialidade persuasiva. - O que eles estão fazendo na Neptune, Caroline?
-/Ora, Richard, nada - balbuciou ela.
- Tenho de salvaguardar meus interesses - disse Richard, com um ar astucioso. - Um homem deve cuidar de si mesmo. Ainda mais um homem que está sendo acuado, como eu. Você compreende tudo, Caroline.
Um silêncio angustiado. Tia Carrie voltou a falar, suplicante:
- Não acha que deve repousar um pouco agora, Richard?
O Dr. Lewis estava sempre insistindo em que Richard deveria repousar mais, só que Richard se recusava a repousar mais. Tia Carrie tinha certeza de que isso ajudaria a pobre cabeça de Richard, se ele repousasse mais.
Richard perguntou:
- Por que Hilda está aqui?
Tia Carrie sorriu, com uma jovialidade forçada.
- Ora, Richard, ela veio visitá-lo. E também a Arthur. Grace pode vir também... só que ela vai ter outro filho... Deve estar lembrado, Richard querido, pois eu lhe contei.
- Por que todas essas pessoas estão sempre aparecendo aqui em casa?
- Ora... - O sorriso de Tia Carrie era de extrema bravura; nem cavalos selvagens poderiam arrancar-lhe a verdade. Se Richard tinha de saber, não seria por intermédio dela. - Que pessoas, Richard? E agora vá descansar um pouco. Estou pedindo, Richard.
Ele fitou-a com uma expressão furiosa, a irritação crescendo a uma intensidade febril, para depois deixá-lo subitamente; e quando a irritação desvaneceu-se, ele ficou completamente aturdido. Baixou os olhos e descobriu que a mão que segurava o diário tremia incontrolavelmente. Muitas vezes suas mãos tremiam daquele jeito, assim como as pernas. Era a eletricidade. De repente, ele sentiu vontade de chorar.
- Está bem. - com uma ânsia infantil de compaixão, Richard explicou:
- É a corrente que me deixa assim... a eletricidade.
Tia Carrie ajudou-o a levantar-se da cadeira, ajudou-o a subir e ajudou-o parcialmente a despir-se e deitar na cama. Richard parecia um velho extenuado, o rosto estava muito vermelho. Caiu no sono imediatamente e dormiu por duas horas. Roncou sonoramente.
Ao acordar, sentia-se muito bem, completamente revigorado, cheio de vitalidade e inteligência. Comeu o pão e tomou o leite vorazmente, uma tigela grande e esplêndida de leite com pão. Estava delicioso e não ardia em sua boca. A mão também não mais tremia com eletricidade. Richard constatou que Tia Carrie saíra do quarto e depois lambeu com a língua o fundo da tigela. Era sempre mais gostoso assim.
Depois, ele ficou deitado, olhando para o teto, sentindo o calor no estômago e ouvindo o zumbido de uma mosca-varejeira na janela, deixando que pensamentos agradáveis lhe passassem pela cabeça, consciente de sua prodigiosa capacidade. Todos os tipos de projetos e conjeturas surgiam em sua mente prodigiosamente capaz. Havia até uma cerimónia de casamento no fundo de tudo, com música, música de órgão, uma virgem esguia de beleza incomparável e que o adorava.
Richard estava deitado quando barulho de carros a chegar perturbouo. Soergueu-se no cotovelo, escutando. Compreendeu imediatamente que eram pessoas chegando. Uma expressão de astúcia deliciada surgiu em seu rosto. Aquela era a sua oportunidade, a grande oportunidade, enquanto toda a eletricidade se dissipara.
Ele levantou-se. Não era fácil levantar-se, pois os movimentos eram numerosos e complicados. Mas nada era impossível, com a sua prodigiosa capacidade. Empurrou o corpo para o lado, rolou para fora da cama. Caiu de joelhos, com um baque. Esperou por um minuto, escutando atentamente, para verificar se alguém ouvira o barulho. Ótimo! Ninguém ouvira. Avançou de joelhos até a janela e olhou para fora. Um carro, dois carros; era emocionante agora, ele estava se divertindo, sentia vontade de rir.
Apoiando-se no peitoril da janela, Richard levantou-se lentamente... era o pior de tudo, mas finalmente conseguiu... e depois vestiu o chambre. Levou cerca de cinco minutos para pôr o chambre; os braços eram sempre difíceis e começou pondo o chambre ao contrário. Mas finalmente estava de chambre, devidamente amarrado na cintura. Não calçou os sapatos, pois sapatos fazem barulho. Ficou imóvel, triunfante, de chambre, cueca e meias. Depois, cautelosamente, saiu do quarto e começou a descer.
Havia apenas um jeito de descer a escada. O corrimão era inútil, o corrimão só servia para atrapalhar. Não! O único jeito de descer a escada era ficar parado no degrau de cima, olhando fixamente para a frente, como um mergulhador, depois soltar os pés. Os pés desciam a escada rapidamente desse jeito. Mas era importante não olhar para os pés e também não pensar neles.
Richard desceu ao vestíbulo dessa maneira. Parou ali, muito satisfeito consigo mesmo, escutando. Eles estavam na sala de jantar; podia ouvir as vozes claramente. Avançou furtivamente até a porta da sala de jantar. Isso mesmo, eles estavam ali, podia ouvi-los falar e estava escutando. Isso era ótimo! Richard abaixou-se sobre o chão de ladrilhos, com o olho na fechadura. Posto de Observação Nº 2, pensou Richard. Isso era bom, muito bom, Richard podia ver e ouvir tudo.
Estavam todos sentados em torno da mesa de jantar, com Mr. Bannerman, o advogado, à cabeceira, com Arthur do outro lado. Tia Carrie estava ali, assim como Hilda e Adam Todd, aquele tal de Teasdale. Mr. Bannerman tinha muitos papéis, Arthur também tinha papéis, Adam Todd tinha um único papel, mas Hilda, Tia Carrie e Teasdale não tinham qualquer papel. Mr. Bannerman estava falando.
- É uma oferta - disse Bannerman. - É assim que deve encarar. É uma oferta.
Arthur respondeu:
- Não é uma oferta; é desprezível, é um insulto.
Richard podia perceber encrenca na voz de Arthur e ficou satisfeito. Arthur parecia encurvado e desesperado, falava com a testa apoiada numa das mãos. Richard riu interiormente.
Mr. Bannerman examinou um papel que não precisava examinar. Parecia muito magro, ressequido, com o colarinho apertado. Ajeitou o monóculo com a fita preta e larga, disse suavemente:
- Repito que é uma oferta, a única que recebemos. E é uma oferta concreta.
Silêncio. Depois, Adam Todd disse:
- É impossível providenciar o esvaziamento da mina? Reconstruir as instalações? É inteiramente impossível?
- Quem vai entrar com o dinheiro? - indagou Arthur.
- Já conversamos sobre tudo isso antes - disse Mr. Bannerman, fingindo não olhar para Arthur, mas fitando-o durante todo o tempo.
- É uma pena - murmurou Todd, desolado. - Uma coisa lamentável. Ele fez uma pausa, depois levantou a cabeça abruptamente.
- E o que me diz dos quadros... os quadros de seu pai? Não pode levantar o dinheiro com eles?
- Não valem nada - respondeu Arthur. - Pedi ao jovem Vincent que os avaliasse. Ele limitou-se a rir. Os Goodalls e Copes nem se pode dar de graça. Ninguém os quer agora.
Outro silêncio. Depois, Hilda falou, incisivamente:
- Arthur não deve ter mais nenhuma preocupação. Isso é tudo o que tenho a dizer. Em seu atual estado, ele não pode aguentar mais.
Os ombros de Arthur vergaram, ele cobriu novamente o rosto com a mão. E disse, em tom angustiado:
- Está sendo muito generosa, Hilda. Mas sei o que todos estão pensando, a confusão irremediável que promovi. Fiz o que achava certo e melhor. E não podia evitar. Simplesmente aconteceu. Mas todos estão pensando que isso jamais teria acontecido se meu pai estivesse no comando.
No outro lado da porta, o rosto de Richard ficou vermelho de satisfação. Não compreendia direito, é claro, mas podia perceber que havia encrenca e queriam que ele endireitasse tudo. Iriam chamá-lo.
Arthur estava falando outra vez, apaticamente:
- Eu estava sempre clamando por justiça. E agora a consegui. Esprememos os homens, inundamos a mina, acabamos com tudo. E agora, quando tento fazer tudo pelos homens, eles se viram contra mim e inundam a mina, acabam comigo.
- Oh, Arthur, meu querido, não fale assim! - lamuriou-se Tia Carrie, pondo a mão trémula sobre a mão de Arthur.
- Desculpe - murmurou Arthur. - Mas é assim que vejo a situação.
- Não seria melhor se nos limitássemos a tratar de negócios? - sugeriu Mr. Bannerman, secamente.
- Pois então continue - disse Arthur. - Acerte logo a maldita coisa e vamos acabar com isso de uma vez!
- Por favor! - exclamou Mr. Bannerman. Hilda interveio:
- Qual é a oferta, Mr. Bannerman? Quais são exatamente os termos? Mr. Bannerman ajustou o monóculo e olhou para Hilda.
- vou expor a situação com toda precisão. De um lado, temos uma mina fora de operação, as escavações inundadas, os equipamentos incendiados. No outro lado, podemos colocar essa oferta de assumir a Neptune, comprar todo o conjunto não-produtivo. E se permite-me dizer, respeitosamente, comprar também a água que inundou a mina.
- Eles sabem perfeitamente que podem se livrar da água - comentou Arthur, amargamente. - Gastei milhares de libras nos novos túneis. É a melhor mina do distrito e eles sabem disso. Não estão oferecendo nem um décimo do valor da mina. É pura insanidade aceitar.
- Os tempos estão difíceis, Arthur - disse Mr. Bannerman. - E as circunstâncias atuais tornam as coisas ainda mais difíceis.
Hilda disse:
- E se aceitássemos a oferta?
Mr. Bannerman hesitou. Tirou o monóculo, examinou-o.
- Teremos de liquidar nossos compromissos financeiros. - Ele fez uma pausa. - Se me permitem dizer, Arthur foi um tanto temerário em seus gastos. Não podemos esquecer os compromissos financeiros em que estamos envolvidos.
Hilda olhou sombriamente para Mr. Bannerman. Aquele jeito de falar, no plural, irritava Hilda particularmente, pois Mr. Bannerman não estava envolvido, Mr. Bannerman não tinha quaisquer compromissos financeiros. Um tanto asperamente, Hilda disse:
- Não pode obter um aumento da oferta?
- São homens muito hábeis - respondeu Mr. Bannerman. - Muito hábeis mesmo. Não vão mudar a oferta.
- É puro roubo - resmungou Arthur.
- Quem são eles? - perguntou Hilda.
Mr. Bannerman ajeitou o monóculo, delicadamente.
- São Mawson & Gowlan. Isso mesmo, Mr. Joseph Gowlan é a parte que está negociando.
Houve um momento de silêncio. Arthur levantou a cabeça lentamente, olhou para Hilda. Sua voz era terrivelmente irónica:
- Conhece o sujeito, não é mesmo? Aquele escritório novo na Grainger Street, todo preto, mármore em profusão. Somente a instalação deve ter custado umas 40 mil libras. É o mesmo Joe Gowlan que já trabalhou como servente na Neptune.
- Ele não trabalha mais na mina. - Mr. Bannerman falou incisivamente, examinando o cabeçalho do papel timbrado à sua frente. - Mawson & Gowlan têm agora uma participação majoritária na Northern Steel Industries, United Brassfounders, Tyneside Commercial Corporation, Corporation and Northern Securities e Rusford Aeroplane.
Houve outro silêncio. Adam Todd parecia muito infeliz e mastigava uma bala, como se o gosto fosse horrível.
- Não há outro meio? - perguntou ele, remexendo-se na cadeira, inquieto. - Conheço o material que existe na Neptune. E é de primeira qualidade. A Neptune sempre foi dos Barras. Não há qualquer outra possibilidade?
- Tem alguma sugestão a fazer? - indagou Mr. Bannerman, polidamente. - Se tiver, tenha a gentileza de nos comunicar.
- Por que não vai procurar diretamente esse Gowlan e tenta negociar com ele? - disse Todd subitamente, virando-se para Arthur. - Diga-lhe que não quer vender por dinheiro. Prefere fazer uma fusão. Quer um lugar na diretoria, ações. Se conseguir se ligar a Gowlan, Arthur, estará tudo resolvido.
Arthur foi ficando vermelho lentamente.
- É uma ótima ideia, Todd. Mas, infelizmente, não adianta. Já tentei.
- Ele fitou a todos, acrescentando, numa súbita explosão de amargura: Procurei Gowlan há dois dias, em seu maldito escritório novo. Oh, Deus! Deveriam ver como é! Portas de bronze maciço, mármore de Garrara, elevador de teca. Tentei me impor. Mas todos sabem o que ele é. Começou roubando a fundição de Millington. Enganou todos os acionistas. Nunca teve um dia de trabalho honesto em toda a sua vida. Tudo o que ele tem foi obtido por meios desonestos... do suor de seus operários, corrupção nos contratos. Mas engoli tudo isso, tentei vender-lhe minha alma.
Arthur fez uma pausa, tremendo.
- Teriam rido se assistissem à reunião. Ele brincou comigo como um gato com um rato. Começou por dizer que se sentia honrado, mas que nossas ideias pareciam ser ligeiramente diferentes. Passou a falar da nova fábrica de aeroplanos em Rusford, onde está produzindo aeroplanos militares às centenas, vendendo a todos os países da Europa. Está investindo na fábrica de Rusford, porque acha o melhor de todos os seus negócios. Foi me engambelando pouco a pouco, fazendo uma insinuação aqui, uma promessa ali, até eu renegar tudo aquilo em que sempre acreditei. E quando me deixou inteiramente nu, riu e ofereceu-me um emprego como supervisor na Neptune.
Houve outro silêncio, um silêncio prolongado. Dan Teasdale remexeuse na cadeira, inquieto, falando então, pela primeira vez:
- É uma vergonha! - O rosto avermelhado vibrava de indignação. Por que não larga tudo isso e vai viver conosco, Arthur? Não ganhamos dinheiro, mas também não queremos. E somos perfeitamente felizes sem dinheiro. Há coisas melhores... e foi o que Grace me ensinou. Saúde, o trabalho ao ar fresco e puro, ver os filhos crescendo bem fortes. Venha morar conosco, Arthur, comece tudo outra vez.
- Eu ficaria muito bem entre as galinhas - murmurou Arthur, numa agonia de desalento.
Bannerman fez outro gesto de impaciência.
- Posso perguntar quais são as instruções que me dá?
- Já não lhe disse para vender?
As palavras saíram com um terrível desapontamento. Arthur levantou-se abruptamente, como se desejasse encerrar o assunto de vez.
-Venda o Law também. Gowlan também quer comprá-lo. Deixe-o ficar com tudo. E ele pode também me contratar como supervisor, que não me importo com mais nada.
No outro lado da porta, de joelhos, Richard Barras estava boquiaberto, o rosto muito vermelho agora, terrivelmente confuso. Não podia avaliar plenamente o que estava acontecendo. Mas era capaz de perceber pelo menos, com o seu pobre cérebro perturbado, que havia problema na Neptune e somente ele era capaz de endireitar. Além do mais, todos haviam-se esquecido dele e de sua capacidade de realizar o impossível. O que era esplêndido. Richard acocorou-se no chão de ladrilhos do vestíbulo. Não estavam mais falando lá dentro agora e ele estava um pouco cansado de ficar de joelhos, queria uma posição mais confortável para poder pensar direito.
Subitamente, enquanto ele estava acocorado ali, a porta da .sala de jantar se abriu e todos saíram. O inesperado fez com que Richard caísse para trás. O chambre se levantou, expondo as canelas finas, a cueca, todo o seu corpo. Era um triste arremedo de homem o que estava ali, encolhido e distorcido, desamparado. Mas Richard não se importava. Ficou como estava, sobre os ladrilhos frios do vestíbulo, com uma expressão sorrateira. E riu, desatou a rir.
Todos os rostos exprimiram preocupação e Hilda adiantou-se rapidamente, gritando:
- Meu pobre pai!
Teasdale e Hilda ajudaram-no a levantar-se e a subir para o seu quarto. Bannermán, com uma sobrancelha alteada, deu de ombros e despediu-se formalmente de Arthur.
Arthur ficou parado no vestíbulo, fitando os olhos amarelados de Adam Todd, que lhe suplicara, anos antes, que não nadasse contra a correnteza. Ele disse subitamente:
- Vamos para Tynecastle, Todd. Acho que vou me embriagar.
Richard manteve-se quieto durante os dias subsequentes. Depois que o incidente foi registrado em seu diário como Descoberta no Posto de Observação Nº 2, Hilda falara gravemente sobre a conveniência de não lhe permitir sair da cama. Ele estava tão fraco agora, as pernas não conseguindo aguentálo direito, que Hilda insistiu, antes de voltar para Londres, em que devia pelo menos ficar confinado ao quarto. Isso deixou Richard alarmado, pois estava consciente de que não podia conduzir as operações do quarto. Assim, ele simulou um comportamento exemplar, mostrando-se bom e dócil, fazendo tudo o que Tia Carrie lhe dizia.
Todos os seus pensamentos estavam agora concentrados em sua ideia nova e grandiosa para recuperar a Neptune. Na manhã de sexta-feira, ele sentia-se tão excitado com a ideia que não pôde mais conter-se. Sentado no quarto, sentia um martelo a bater em sua cabeça, o couro cabeludo parecia a pele de um tambor. Em determinado momento, quase pensou que a eletricidade o dominara por completo. Mas recostou-se e fechou os olhos, até que desligaram a eletricidade.
Quando tornou a abrir os olhos, deparou com Arthur no quarto, parado à sua frente.
- Está se sentindo bem, pai?
Arthur contemplou o pai com uma profunda tristeza estampada no rosto. Não podia ver aquele velho encolhido e senil ou sentir os olhos furtivos e injetados a esquadrinharem-no sem experimentar uma imensa compaixão. Arthur acrescentou:
- Achei que deveria vir falar-lhe, pai. Pode entender o que estou dizendo?
Se ele podia compreender? A insolência fez com que o sangue tornasse a afluir à cabeça de Richard. Encolheu-se interiormente, no mesmo instante.
- Não agora.
- Gostaria de lhe esclarecer tudo, pai. Talvez assim as coisas se tornem mais fáceis para você. Está irrequieto, muito excitado. Não percebe que não está passando bem.
- Estou bem - disse Richard, furioso. - Nunca estive melhor em toda a minha vida.
Arthur continuou, querendo transmitir o mais gentilmente que fosse possível a notícia da mudança iminente:
- Ocorreu-me, pai, que não seria uma má ideia se deixássemos o Law para morar num lugar menor. Afinal...
Richard interrompeu-o:
- Não agora. Talvez amanhã. Não vou escutar. Em alguma outra ocasião. Simplesmente não quero escutar. Não agora.
Ele recostou-se na cadeira, de olhos fechados, recusando-se a ouvir Arthur, até que este finalmente desistiu e saiu do quarto. Richard não tinha a intenção de falar com Arthur por enquanto. Não agora! Ditaria seus termos a Arthur mais tarde, quando a recuperação da Neptune estivesse concluída. Ele tornou a abrir os olhos, com um sobressalto, o olhar remoto, mas febril, fixando-se distraidamente no teto. O que era mesmo? Ah, sim, ele lembrou-se de repente. O vazio desvaneceu-se do rosto, os olhos opacos tornaram a brilhar. Por que não pensara nisso antes? Por que não? Por quê? A mina, é claro, a sua mina Neptune! Era uma ideia extraordinária, uma ideia terrível, brilhante. Devia desafiar a todos eles, indo à Neptune pessoalmente.
Trémulo de agitação e excitamento, Richard levantou-se e desceu. Até ali, estava tudo correndo bem. Não havia ninguém por perto; todos estavam ocupados, preocupados, angustiados. Ele atravessou o vestíbulo apressadamente, pegou o chapéu, meteu na cabeça. Os cabelos não eram cortados há algum tempo e saíam por trás do chapéu, numa espécie de franja desgrenhada. Mas Richard não se importava. Furtivamente, ele saiu pela porta da frente e ficou parado no alto dos degraus, equilibrando-se. O caminho estendia-se à sua frente, com o portão aberto mais além, desguarnecido. Era tudo terreno proibido, terreno perigoso, muito longe do gramado e do laburno. Tanto Hilda como o Dr. Lewis haviam ressaltado solenemente que se tratava de terreno proibido e perigoso. Toda a coisa era um terrível empreendimento. Mas Richard também não se importava com isso. Desceu os degraus numa corrida impetuosa, cambaleante, seguiu em frente. Estava fora, finalmente livre. Cambaleava, é verdade, por algumas vezes quase caiu. Mas que importância isso tinha, quando em breve estaria livre de tudo, do cambalear, as marteladas na cabeça, a eletricidade, toda a horrível conspiração contra ele?
Richard subiu pelo caminho, na direção do topo de Sluice Dene. Era muito esperto seguir pelo caminho normal para a Neptune, pois era um lugar certamente vigiado e haveriam de interceptá-lo. E ele sabia que não deveria se deixar apanhar. Seguiu pelo caminho mais longo, dando uma volta, passando por trás do bosque de Sluice Dene, atravessando os campos e o Snook com o acesso à Neptune pelos fundos. Richard exultava com.o seu plano brilhante. Maravilhoso, maravilhoso!
Mas andara chovendo intensamente e a estrada pela qual seguia ficara enlameada, difícil. A chuva forte deixara grandes poças na estrada. Richard mal conseguia levantar os pés. Não demorou muito para que estivesse todo salpicado de água e lama. Ele chapinhava pela água e lama, com seus pequenos tremores, cambaleando, até alcançar o degrau no alto de Sluice Dene.
E foi ali que ele parou. O degrau apresentava uma dificuldade inesperada. Richard compreendeu que teria de escalá-lo. Mas não podia erguer o pé mais do que 15 centímetros de cada vez e a altura do degrau era de pelo menos 45 centímetros. Richard não podia escalá-lo e as lágrimas afloraram a seus olhos trémulos e aturdidos.
Lágrimas e fúria, uma terrível fúria. Não estava derrotado, não estava mesmo. O degrau era apenas parte da conspiração; tinha de vencê-lo também, o degrau conspirador. Tremendo de raiva, Richard ergueu os braços e caiu sobre o degrau. A barriga bateu na barra de ferro logo acima do degrau. Ficou equilibrado assim por um segundo, como se estivesse nadando, por cima da barra, depois caiu para o outro lado, superando o obstáculo. Maravilhoso, maravilhoso, ele conseguira! Caiu de cara numa poça de lama e ali ficou, ofegando, atordoado, babando, enquanto as marteladas soavam em sua cabeça, a eletricidade percorria-lhe o corpo, através da água e da lama.
Ficou caído ali por muito tempo, pois o martelo parecia ter explodido em algum lugar dentro de sua cabeça. Mas finalmente levantou-se, isso mesmo, levantou-se, ficou de joelhos, ergueu-se, com uma tremenda dificuldade. A terra balançava ligeiramente, ele perdera o chapéu, o rosto e as roupas estavam cobertos de lama. Mas isso não importava, não tinha a menor importância. Ele estava de pé novamente e andando. Estava andando a caminho da Neptune.
Agora, já não era tão fácil andar. O martelo batera com muita força, a perna direita estava dormente, sem funcionar direito, tinha de arrastá-la, como se fosse uma terrível carga. Era um tanto estranho, pois geralmente tanto o martelo como a eletricidade atuavam sobre a perna esquerda. Mas agora haviam afetado a perna direita e também o braço direito. Todo o lado direito estava paralisado.
Mas Richard seguiu em frente, por trás do bosque, pela trilha através do Snook, cambaleando, arrastando a perna, de cabeça descoberta, todo enlameado, os olhos injetados fixados febrilmente no guindaste daNeptune, que aparecia por cima da última fileira de casas à margem do Snook. Embora desejasse avançar rapidamente, ele seguia bem devagar; andava com extrema dificuldade; sabia que avançava lentamente e isso o enfurecia. Tentou se apressar, mas não conseguiu. Tinha a certeza de que alguma coisa estava acontecendo na Neptune, uma conspiração ou uma catástrofe, que não chegaria lá a tempo. E isso deixava-o frenético.
E foi então que começou a chover, um temporal forte, açoitado pelo vento. A chuva escorria por seu corpo, despejando-se na cabeça descoberta. A chuva grudava os cabelos grisalhos na cabeça descoberta, tirava a lama de seus olhos, batia contra ele furiosamente, encharcava-o, ofuscava-o.
Richard parou. Toda a fúria se desvanecera. Ficou completamente imóvel, sob a chuva forte. Estava assustado. E, subitamente, começou a chorar. As lágrimas misturavam-se com a chuva, molhando-o ainda mais. Ele foi avançando, às cegas. Queria encontrar um abrigo.
Ao final da fileira de casas que margeava o Snook havia uma taverna pequena, conhecida como The Hewer's Rest, uma taverna pobre e miserável, mantida por uma viúva, de nome Susan Mitchell. Ninguém ia lá, exceto os trabalhadores mais pobres na área do Snook. Mas Richard foi até lá, entrou na taverna chamada de The Hewer's Rest.
Entrou como se fosse soprado por uma rajada de vento e chuva, ficou parado no chão de pedra, a água escorrendo, balançando como um velho vagabundo embriagado. Somente dois homens estavam na taverna, dois trabalhadores braçais, que jogavam dominó, as canecas de cerveja vazias. Olharam para Richard e riram. Não reconheceram Richard. Pensaram que Richard fosse um velho vagabundo que passara da conta. Um piscou para o outro e disse para Richard:
- Como estão as coisas, velho? Pelo que vejo, está vindo de uma farra e tanto.
Richard fitou-os e alguma coisa em sua expressão, parado ali, a balançar, fez com que os dois homens rissem. E eles se sacudiram de tanto rir. Depois, o segundo homem disse:
- Mas não importa, velho. Todo mundo fica assim de vez em quando.
Ele se levantou, pegou Richard pelos ombros, conduziu-o para um banco de madeira ao lado da janela. Richard arriou no banco. Não sabia onde estava, não sabia quem eram aqueles dois homens que o fitavam atentamente. Enfiou no bolso a mão dormente para tirar o lenço. Ao fazê-lo, uma moeda caiu, rolou pelo chão de pedra. Era uma moeda de meia coroa.
O segundo homem pegou a moeda, cuspiu nela, sorriu.
- Ei, velho, você é mesmo dos bons! Vai ser meia dose para cada um? Richard não compreendeu e o homem bateu com força no balcão, gritando:
- Salta três meias doses!
Uma mulher veio lá dos fundos, uma mulher magra e morena, de rosto pálido. Serviu as três doses de uísque. Enquanto servia a terceira, olhou para Richard, com uma expressão de dúvida, comentando:
- Ele ficaria melhor sem beber mais nada. O primeiro homem disse:
- Mais um trago não vai lhe fazer mal nenhum. O segundo homem aproximou-se de Richard.
- Tome aqui, velho. Pode beber.
Richard pegou o copo que o homem lhe estendia e bebeu o que estava dentro. Era uísque, deixou-o sem fôlego, esquentou-o, fez com que o martelo recomeçasse a bater dentro de sua cabeça. O uísque fez também com que se lembrasse da Neptune. Ele tinha a impressão de que parara de chover. Os homens fitavam-no atentamente, até que ele acabou ficando com medo dos dois. Lembrava-se de si mesmo como Richard Barras, proprietário da Neptune, um homem de posses e dignidade. Queria sair dali, escapar rapidamente, chegar à Neptune. Levantou-se com um grande esforço, cambaleou para a porta. Foi seguido pelo riso dos homens.
Quando Richard deixou a taverna, a chuva cessara e o céu já se abrira. O sol forte, caindo sobre a desolação fumegante do Snook, rebrilhava em seus olhos, deixava-os doloridos. Mas, através da claridade ofuscante, podia divisar os guindastes da Neptune, elevando-se numa espécie de glória celestial. A Neptune, a sua Neptune, a Neptune de Richard Barras. Ele começou a atravessar o Snook.
A jornada através do Snook foi uma jornada estranha e terrível. Richard Barras não estava consciente da jornada. Os pés tropeçavam nos montinhos úmidos e nos buracos enlameados da terra devastada. Os pés traíam-no, implacavelmente, acabou caindo. Rastejou, debatendo-se na água e lama, como um estranho anfíbio. Mas ele de nada sabia. Não sentiu quando caiu, não sentiu quando se levantou e tornou a cair. O corpo estava morto, a mente estava morta, mas o espírito elevava-se numa determinação implacável. A Neptune, a mina Neptune, a glória daqueles guindastes elevando-se para o céu, atraíam seu espírito, sustentavam-no. O resto não passava de um vago pesadelo.
Mas Richard Barras não chegou à Neptune. No meio do caminho pelo Snook, ele caiu mais uma vez, para não mais se levantar. O rosto estava muito pálido sob a crosta de lama, os lábios ressequidos e roxos, a respiração era um rápido estertor. Não havia qualquer eletricidade agora. A eletricidade desaparecera, deixando-lhe o corpo flácido. Mas o martelar recomeçara, estava cada vez pior. Batia e batia dentro de sua cabeça, tentava arrebentá-la. Debilmente, ele tentou levantar-se. E foi então que o martelo na cabeça de Richard desfechou o golpe final. Ele caiu para a frente e não se mexeu mais. Os últimos raios do sol poente, passando pelas instalações queimadas da Neptune, iluminavam a terra devastada e encontravam-no ali, morto. A mão sem vida, estendida para a frente, apertava um punhado de terra.
Era o dia da Terceira Discussão da Lei das Minas, agora habilmente mutilada e repleta de Emendas da Oposição. Naquele momento, uma emenda apresentada pelo representante de Keston, Mr. St. Claire Boone, estava em discussão. com uma admirável precisão legal, Mr. St. Claire Boone solicitara formalmente que na terceira linha da cláusula 7, antes da palavra "designado", fosse acrescentada a palavra "devidamente". Há mais de três horas que estava ocorrendo uma afável discussão a propósito desse acréscimo, proporcionando ampla oportunidade ao Governo e a seus partidários na oposição de elogiarem a nova lei.
Sentado com os braços cruzados e o rosto inexpressivo, David escutava o debate. Um depois do outro, os partidários do Governo levantaram-se para enumerar as dificuldades com que o Governo se defrontava e os esforços extraodinários que vinha desenvolvendo e continuaria a desenvolver para superá-las. Fervendo de indignação, David escutava - discursos de Dudgeon, Bebbington, Hume e Cleghorn, cada palavra expressando procrastinação e concessão. Seus ouvidos, treinados pela experiência e sintonizados pela emoção naquele momento, captavam a inflexão em cada frase, o pedido de desculpas latente, a intenção persistente de tirar o melhor proveito de um péssimo trabalho. Sentado ali, frio, mas ardendo de raiva, David esperava atrair a atenção do Presidente da Câmara. Tinha de falar. Era impossível permanecer sentado passivamente diante daquela traição. Fora por isso que tanto trabalhara, lutara, dedicara sua vida? Enquanto esperava, pensou em todo o esforço que desenvolvera naqueles últimos anos: o começo humilde no escritório da Federação, a luta através do emaranhado da política local, o empenho longo e incansável daqueles anos, concentrando toda a sua alma no trabalho. E nada adiantara, se aquela lei inútil, aquele repúdio a todos os compromissos, aquele arremedo de justiça, assinalava a consumação de tudo!
Ele levantou a cabeça abruptamente, dominado por uma fúria de determinação, fitando o orador do momento com os olhos dilatados. Era Stone quem estava agora falando, o velho Eustace Stone, que começara como um radical, passara para os liberais e depois, durante a guerra, adotara definitivamente a camisa dos conservadores. Stone, o mestre do casuísmo político, astucioso como uma velha raposa, estava louvando a nova lei, na esperança de obter um título de nobreza. Durante toda a sua vida, Stone sempre ansiara por um título de nobreza. Agora, já podia farejá-lo, como um cacho de uvas baixando lentamente, quase ao alcance de suas mandíbulas ansiosas. Num esforço para ampliar sua popularidade, ele arremessava flores à direita e à esquerda, num discurso florido e pomposo. Sua tese era a de que o mineiro possuía uma nobreza incomparável, habilmente desenvolvida para contestar todos os argumentos de que a lei poderia provocar novos descontentamentos entre os trabalhadores.
- Quem nesta Câmara - proclamou ele, pomposamente - pode declarar que existe alguma sombra de deslealdade, por menor que seja, espreitando no coração do mineiro britânico? A esse respeito, devemos lembrar as palavras tão apropriadas, poeticamente enunciadas aqui pelo representante de Carnarvon. Peço a indulgência desta Câmara para citar essas palavras tão memoráveis.
Ele fez uma pausa, contraindo os lábios, antes de começar a recitar:
- "Tenho visto o mineiro como trabalhador e não há qualquer outro melhor. Tenho visto como político e não há outro mais leal. Tenho visto como cantor e não há outro mais suave. Tenho visto como jogador de futebol e é um terror. Em tudo, ele é sempre leal, diligente e bravo..."
Oh, Deus, pensou David, por quanto tempo mais isso vai continuar? Ele lembrava-se do incêndio da Neptune, um ato de sabotagem, mas por si mesmo indesculpável, uma loucura inadmissível, mas que devia ser encarado exclusivamente como uma manifestação da revolta dos mineiros contra o seu destino. A própria alma de David ardia num ressentimento implacável, enquanto uma frase hipócrita depois de outra escorria dos lábios do astuto Stone. Ele olhou rapidamente para Nugent, sentado ao seu lado, o rosto coberto pela mão. Nugent sentia tudo aquilo tão profundamente quanto ele. Mas Nugent possuía uma resignação maior, uma espécie de fatalismo, que o levava a curvar-se mais facilmente diante do inevitável. Mas David não podia dobrar-se daquele jeito. Nunca! Tinha de falar, não podia deixar de falar. Numa agonia de determinação, ele esforçou-se em manter o controle, não perder a calma, conservar a coragem necessária. Quando Stone finalmente chegou ao final de sua peroração, contemplando a casa com uma expressão radiante, sentando-se em seguida, David levantou-se bruscamente.
Ficou esperando, tenso, imóvel; atraiu os olhos do Presidente. Respirou fundo, o ar entrando pelos pulmões lentamente, dolorosamente, parecendo fluir por todo o seu corpo, numa grande onda de determinação. Naquele instante, decidiu fazer um grande e desesperado esforço, lançar toda a força de sua determinação da vida inteira contra a lei. Ele respirou fundo novamente. Estava sob controle, imbuído de coragem. Começou devagar, quase impessoalmente, com uma terrível sinceridade, que prontamente atraiu-lhe a atenção de toda a Câmara, em contraste com a pomposidade do orador anterior.
- Venho escutando o debate durante toda a tarde. E bem que gostaria, com toda a força do meu coração, de poder partilhar a admiração dos meus nobres colegas pela lei.
Uma pausa.
- Mas enquanto escutava as frases lapidares, não pude deixar de pensar nos homens a que tão poeticamente se referiu o nobre colega que me antecedeu. Esta Câmara sabe que, em diversas ocasiões, tenho procurado atrair a atenção para a situação aflitiva nas áreas de mineração deste país. Em mais de uma ocasião, convidei alguns dos meus nobres colegas a me acompanharem numa visita ao meu distrito, a fim de constatarem pessoalmente o desespero terrível e total que se espalha pelas ruas de lá. Para conhecer os homens desamparados, mulheres cujos corações foram despedaçados, crianças com a fome estampada em seus rostos. Se o nobre colega que me precedeu tivesse aceitado o convite, imagino que ficaria completamente aturdido e diria: "Mas como essas pessoas vivem?" A resposta é que tais pessoas não vivem. Simplesmente sobrevivem. E sobrevivem num estado alquebrado e desmoralizado, carregando um fardo que se torna mais insuportável porque incide com mais força sobre os fracos e os jovens. Nobres colegas, não duvidem, por favor, não digam que estou me entregando a um sentimentalismo exagerado. Leiam os relatórios das autoridades médicas desses distritos, de meu próprio distrito. Encontrarão nesses relatórios ampla confirmação dos fatos. Há crianças sofrendo por falta de roupas, crianças sem botinas, crianças abaixo do peso médio, crianças classificadas como subnormais, por causa da deficiência de nutrição. Deficiência de nutrição! É possível que os meus nobres colegas tenham inteligência suficiente para compreender o significado desse eufemismo polido. Recentemente, na sessão inaugural deste Parlamento, tivemos novamente a oportunidade de testemunhar todo o esplendor, pompa e fausto que, segundo me asseguram os nobres colegas, exprime a grandeza de nossa nação. Mas algum dos meus nobres colegas a contrasta, por um segundo que seja, com a pobreza, miséria e penúria que existem dentro da grandeza desta nação? Mas talvez eu esteja cometendo uma grave injustiça com esta Câmara.
Um tom de amarga indignação insinuava-se agora na voz de David.
- Em duas ocasiões, ouvi um nobre colega levantar-se com a sugestão de que a Câmara "circule o chapéu", a fim de aliviar o sofrimento nas regiões mineiras. Poderia alguma coisa ser mais infame? Por mais desesperados que estejam, ao ponto da mais total exaustão, os mineiros não querem caridade. Querem justiça! E esta lei não lhes dá justiça. Não passa de hipocrisia. Será que esta Câmara não compreende que a indústria de extração de carvão, por sua própria natureza, é diferente de todas as outras? Sua situação é singular. Não se trata apenas do processo de obter o carvão. É a indústria básica, que proporciona a matéria-prima para a metade das prósperas indústrias deste país. E os homens que produzem este artigo único e vital, com risco de suas próprias vidas, são mantidos na penúria e miséria, presos a um salário que não daria para pagar a conta de charutos de alguns dos honrados membros desta Câmara. Algum dos nobres colegas acredita sinceramente que esta lei inadequada e hipócrita vai finalmente salvar a indústria? Se assim acontece, eu o desafio a apresentar-se para um debate. Nosso atual sistema de mineração foi se desenvolvendo a esmo, não em decorrência de causas económicas, mas por causas históricas e pessoais. Como já foi dito, não está planejado em bases geológicas, mas sim genealógicas. Será que os meus nobres colegas sabem que constituímos o único importante produtor de carvão em todo o mundo onde não há qualquer controle nacional comunitário sobre o mineral propriamente dito? Duas Comissões Reais recomendaram enfaticamente a nacionalização dos minerais, a fim de que o Estado possa reorganizar a exploração do carvão em bases científicas. O atual Governo, antes de subir ao poder, comprometeu-se a nacionalizar as minas. E como responde agora a esse compromisso? Mantendo o caos, procurando às cegas uma vazão através do velho sistema competitivo, aplicando o estrangulamento da produção restrita, reduzindo a produção ao invés de ampliar o mercado, subsidiando minas abandonadas para mantê-las fechadas, lançando a classe trabalhadora, que produz toda a riqueza desta nação, às ruas, desempregada, centenas e milhares de homens. Devo advertir a esta Câmara que se pode continuar assim por algum tempo, mas o fim inevitável é a degradação do trabalhador e a ruína da nação como um todo. A voz de David se alteou consideravelmente.
- Não se pode extrair mais sangue das veias dos mineiros para revitalizar a indústria. As veias já estão encolhidas, lívidas. Salários miseráveis e situação de fome existem nos distritos mineiros desde a guerra, quando o nobre colega que me precedeu vivia proclamando à nação que precisávamos apenas matar muitos alemães para viver em paz e prosperidade até o fim de nossos dias. Que esta Câmara preste atenção. Não pode condenar a comunidade mineira a mais alguns anos de miséria.
David fez outra pausa, seu tom tornou-se persuasivo, quase suplicante.
- A lei proposta admite, por sua própria natureza, o fracasso da mina independente, diante da competição dos grandes consórcios. Por si só, isso não leva à conclusão de que devemos ter uma indústria totalmente nacionalizada? A Câmara não pode ignorar que já foi preparado um grande plano de propriedade nacional da indústria, eliminando-se o desperdício, propiciando um trabalho com a mais alta eficiência, reduzindo os custos e os preços, estimulando o consumo de alta energia. Por que o Governo trabalhista deste país ignorou essa integração, preferindo uma estranha mistura capitalista? Por que este Governo não disse, ousadamente: "De uma vez por todas, vamos limpar a contusão deixada por nossos antecessores. Vamos acabar para sempre com o sistema que nos mergulhou no caos. Vamos assumir o controle, em nome da nação, da indústria de mineração, administrando-a para o bem-estar do país ?." Um silêncio final, depois a voz de David alteou-se ao tom mais alto, para a súplica fervorosa:
- Faço um apelo a esta Câmara, em nome da honra e da consciência, para examinar os argumentos que apresentei. E antes que haja uma divisão, apelo especialmente aos meus colegas no Governo. Eu lhes imploro para não traírem os trabalhadores e o movimento que os levou ao poder. Eu lhes imploro para reconsiderarem sua posição, abandonarem as medidas paliativas, cumprirem a palavra empenhada e adotarem pura e simplesmente uma Lei de Nacionalização. Se e quando formos derrotados no plenário desta Câmara, sairemos pelo país de cabeça erguida, em busca de outro mandato. Em nome da humanidade, eu lhes suplico, imploro do fundo do coração, que procurem esse novo mandato armados com uma gloriosa derrota.
Houve um silêncio opressivo quando David se sentou, um silêncio que era ao mesmo tempo indeciso e expectante. Contra a sua vontade, a Câmara estava impressionada. Foi nesse momento que Bebbington, num tom de fria indiferença, manifestou-se:
- O nobre representante de Sleescale evidentemente acredita que o Governo pode nacionalizar as minas com a mesma facilidade com que ele tira uma licença para cachorro.
Um murmúrio espalhou-se pela Câmara, constrangido, indeciso. E foi então que o Honorável Basil Eastman teve a sua intervenção histórica. Ele era um jovem Tory representante de Shires, que passava as suas raras visitas à Câmara num estado de coma hereditário. Possuía uma rara qualificação parlamentar, que lhe granjeara a estima de seu partido. Era capaz de imitar com perfeição os ruídos animais. E agora, arrancado de sua letargia habitual pela menção da palavra cachorro, Eastman empertigou-se na cadeira e ganiu subitamente, imitando um cachorro espantado. A Câmara teve um sobressalto, prendeu a respiração, soltou umas risadinhas abafadas. As risadinhas foram aumentando, transformaram-se em gargalhadas incontroláveis. A Câmara sacudia-se com uma gargalhada deliciada. Diversos membros levantaram-se, a questão de ordem foi apresentada, o Comité desligou-se. Era um final feliz para uma crise. Enquanto os membros do Comité retiravam-se do plenário, David deixou a Câmara, sem ser notado por ninguém.
David foi para o St. James's Park. Caminhava rapidamente, como se tivesse um destino determinado, a cabeça ligeiramente inclinada para a frente, os olhos perdidos na distância. Não percebia que se encontrava no parque, pois estava consciente apenas de sua derrota.
Não sentia humilhação nem mortificação pela derrota, mas apenas uma tristeza profunda, que parecia comprimi-lo como um enorme peso. O escárnio final de Bebbington não lhe causava qualquer angústia, a zombaria de Eastman e o riso da Câmara não provocavam rancor. Os pensamentos projetavam-se para longe, para algum ponto a distância, onde se concentravam e fundiam, numa luz de tristeza, uma tristeza que não era por si mesmo.
Ele saiu do parque no Arco do Almirantado, pois inconscientemente dera a volta pelo Mall. Ali, o barulho do tráfego conseguiu penetrar em sua tristeza. Ficou parado por um momento, contemplando o movimento da vida, homens e mulheres sempre apressados, táxis, ônibus e carros particulares desfilando diante de seus olhos, pela rua de mão única, correndo, acelerando, buzinando, como se cada um tentasse desesperadamente ser o primeiro. Os veículos cortavam-se e ultrapassavam-se um ao outro, aproveitavam até o último centímetro de vantagem que podiam obter, seguiam todos no mesmo caminho. Num círculo.
David ficou olhando e a angústia aprofundou-se em seus olhos tristes. A pressa alucinada tornava-se para ele os símbolos da vida dos homens, o tráfego de mão única da vida humana. Sempre em frente, sempre na mesma direção, cada um por si.
Ele contemplou os rostos dos homens e mulheres apressados. Parecia que cada rosto exibia uma estranha concentração, como se estivesse absorvido pela vida íntima e especial que havia por trás e nada mais. Este homem estava absorvido por dinheiro, aquele por comida, o outro por mulheres. O primeiro arrancara 50 libras de outro homem na Bolsa de Valores, naquela tarde, estava extremamente satisfeito por isso. O segundo analisava imagens mentais de lagosta, patê e aspargos, tentando determinar o que o deixaria mais satisfeito. O terceiro repassava as possibilidades de seduzir a mulher do sócio, que lhe sorrira de maneira significativa, num jantar na noite anterior.
Ocorreu a David o pensamento terrível de que cada homem, naquele vasto e apressado fluxo de vida, estava vivendo por seus próprios interesses, para a sua própria satisfação, para o seu próprio bem-estar, para si mesmo. Cada homem estava consciente apenas de si mesmo, as vidas dos outros homens eram meros acessórios de sua própria existência. Os outros não tinham a menor importância, era ele quem importava, apenas ele. As vidas de todos os outros homens só tinham importância na medida em que afetavam a felicidade de cada homem. O homem sacrificaria a felicidade e as vidas de outros homens, trapaçaria e enganaria, exterminaria e aniquilaria, para garantir o seu próprio bem-estar, seu próprio interesse.
O pensamento deixou David angustiado. Tratou de afastar-se dele e do volume vertiginoso de tráfego. Seguiu para Haymarket. Ali, na esquina da Panton Street, alguns homens estavam cantando na rua, um grupo de quatro homens. David percebeu imediatamente que eram mineiros. Estavam de frente uns para os outros, eram todos jovens, todos inclinavam as cabeças ao mesmo tempo, no ritmo da música, as testas quase se tocando. Cantavam em galês. Eram jovens mineiros galeses e estavam na miséria... cantando nas ruas, enquanto toda a riqueza e luxo de Londres passava por eles.
A canção terminou e um dos homens estendeu uma caixa. David confirmou agora que eram realmente mineiros. O homem estava bem barbeado, as roupas podiam ser pobres e sortidas, mas estavam limpas... como se ele quisesse manter-se lá no alto, recusando-se a resvalar para as profundezas que o aguardavam. David pôde ver as pequenas cicatrizes de mina no rosto limpo e barbeado. Pôs um shilling na caixa. O homem agradeceu-lhe sem subserviência e com uma tristeza ainda maior. David pensou: será que esse shilling pode ajudar mais do que todo meu trabalho, esforços e discursos nos últimos cinco anos?
Ele encaminhou-se lentamente para a estação do metro em Piccadilly.
Atravessou a rua para entrar na estação, comprou a passagem e pegou o trem seguinte. Sentado à sua frente, um operário estava lendo o jornal vespertino, lendo um relato do discurso de David, que já estava nas últimas edições. O homem lia devagar, com o jornal dobrado, muito pequeno, enquanto o trem corria estrepitosamente pelos túneis escuros do metro. David sentiu o impulso de perguntar ao homem o que achava do discurso. Mas não perguntou.
David desembarcou na estação de Battersea e seguiu para a Blount Street. Sentia-se cansado ao entrar no número 33. Foi com algum alívio que subiu a escada com seu carpete puído. Mas a Sra. Tucker deteve-o no meio da escada. David virou-se para fitá-la, enquanto ela falava pela porta aberta da sala de estar lá embaixo.
- A Dra. Barras telefonou. Ela já ligou várias vezes, mas não quis deixar recado.
- Obrigado, Sra. Tucker.
- Ela pediu que lhe ligasse assim que chegasse.
- Está bem.
David imaginou que Hilda ligara para lhe manifestar o seu pesar. Mas embora se sentisse grato pela atitude, ainda não estava com ânimo para receber condolências. Mas a Sra. Tucker insistiu:
-Prometi à Dra. Barras que o faria telefonar assim que chegasse
-Está certo.
David virou-se para o telefone, que ficava no patamar do meio, atrás dele. Enquanto discava o número de Hilda, ouviu a Sra. Tucker, satisfeita fechar a porta da sala.
Hilda atendeu assim que a ligação foi completada. A campainha começava a tocar pela segunda vez quando ele ouviu a voz de Hilda. Ela estava sentada ao lado do telefone, esperando.
- É você, Hilda?
David não podia evitar que sua voz soasse apática e cansada.
- Estou tentando falar com você durante toda a tarde, David.
- O que é?
- Preciso vê-lo, imediatamente. David hesitou.
- Desculpe, Hilda, mas estou um pouco cansado neste momento. Você se importaria...
Ela não o deixou continuar:
- É muito importante. Tem de ser agora. Houve um momento de silêncio.
- Mas o que é, afinal?
- Não posso dizer... não posso dizer pelo telefone. - Uma pausa. Mas é a sua mulher.
- O quê?
- É isso mesmo, a sua mulher.
David ficou completamente imóvel, segurando o fone, esquecido do cansaço, da inércia, de tudo o mais.
- Jenny... - murmurou ele, mais para si mesmo.
- Isso mesmo.
Houve outro momento de silêncio e depois David disse, falando depressa, quase incoerentemente:
- Você viu Jenny. Onde ela está? Diga-me logo, Hilda. Sabe onde Jenny está?
- Sei, sim.
A voz de Hilda deixou-o inquieto.
- Pois então me diga. Por que não pode contar?
- Precisamos nos encontrar pessoalmente - disse ela, categórica. - Venha ao meu apartamento. Ou, se prefere, irei ao seu apartamento. Não podemos continuar a falar pelo telefone.
- Está bem, está bem - concordou David rapidamente. - Estarei aí o mais depressa possível.
David desligou e desceu correndo a mesma escada que subira tão devagar. Fez sinal para um táxi que passava na Buli Street e seguiu a toda pressa para o apartamento de Hilda. Sete minutos depois, estava tocando a campainha do apartamento dela.
A criada estava de folga e Hilda abriu a porta pessoalmente. David contemplou-a ansiosamente, sentindo o coração bater descompassadamente, de ansiedade e pressa. Esquadrinhou atentamente o rosto de Hilda.
- E então, Hilda?
David quase esperava que Jenny pudesse estar no apartamento de Hilda. Talvez fosse esse o motivo pelo qual Hilda lhe pedira que fosse ao apartamento.
Mas Hilda sacudiu a cabeça. O rosto dela estava pálido e triste. Levou-o para a sala que dava para o rio e sentou-se, sem fitá-lo.
- O que foi, Hilda? Não há nada de errado?
Ela estava imóvel, empertigada, em seu vestido escuro austero, os cabelos pretos penteados para trás, as mãos pálidas e bonitas no colo. Parecia com medo de falar e estava mesmo com medo. Ela finalmente disse:
- Jenny esteve na minha clínica hoje.
- Ela está doente?
A preocupação intensa estampou-se imediatamente no rosto de David.
- Está, sim.
- Está no hospital? -Está.
Um silêncio. A alegria em David transformou-se em angústia. Ele podia sentir um aperto na garganta.
- Qual é o problema? Jenny está muito doente?
- Infelizmente, David, a doença é grave. - Hilda continuava a não querer fitá-lo. - Ela apareceu na minha clínica de pacientes externos esta tarde. Não sabe como a sua doença é grave. Apenas apareceu, pedindo para falar comigo, porque me conhecia...
- Mas é realmente grave? - indagou David, ansiosamente.
- É, sim. .. um problema interno...
David olhava para Hilda, sem vê-la. Em vez disso, via Jenny, a pobre Jenny. Havia angústia e ternura em seus olhos. Ele fez um gesto instintivo, murmurando:
- vou imediatamente para o hospital. Não podemos perder mais um minuto sequer. Quer ir comigo ou devo ir sozinho?
- Espere um instante.
David parou, a caminho da porta. Até mesmo os lábios de Hilda estavam agora lívidos; ela estava terrivelmente aflita. E disse:
- Não consegui fazer com que Jenny fosse internada no St. Elizabeth. Tentei tudo o que podia, mas não consegui. Há um problema na doença... a causa... Mas eu tinha de dar um jeito, tinha de mandá-la... tinha de interná-la em outro hospital... primeiro.
- Que hospital?
Hilda fitou-o finalmente. Ele tinha de saber, acabaria sabendo, mais cedo ou mais tarde.
- Ela está no Lock Hospital, na Cannon Street.
David não compreendeu a princípio e ficou olhando aturdido para o rosto agoniado de Hilda. Mas ficou assim apenas por alguns segundos. Um grito de angústia escapou de seus lábios, inarticulado.
- Não pude evitar.
Hilda desviou os olhos, porque lhe doía ver David sofrendo tanto. Ela olhou pela janela, na direção do rio, que corria serenamente lá embaixo. O rio corria em silêncio e havia silêncio na sala. O silêncio na sala perdurou por muito tempo, prolongou-se até que David tornou a falar:
- Eles me deixarão vê-la?
- Posso dar um jeito. vou telefonar para lá agora mesmo. - Hilda hesitou, ainda evitando olhar para David. - Ou prefere que eu o acompanhe?
- Não, obrigado, Hilda. Irei sozinho.
David ficou parado no mesmo lugar, enquanto ela telefonava e falava com o cirurgião de plantão no hospital. Quando Hilda lhe disse que estava tudo acertado, David agradeceu apressadamente e saiu. Sentia-se muito fraco. Pensou por um momento que fosse desmaiar e teve de segurar-se na grade em torno do prédio de apartamentos. O que era uma coisa terrível, pois receava que Hilda estivesse observando-o da janela de seu apartamento. Mas ele não pôde evitar. Um gramofone estava tocando num dos apartamentos do andar térreo; estava tocando You are my heart's delight (Você é o prazer do meu coração). Todos estavam tocando e cantando aquela música agora, era a grande sensação em Londres. David lembrou que nada comera desde a hora do almoço. Pensou: é melhor eu comer alguma coisa ou farei uma cena no hospital.
David largou a grade de ferro e seguiu para um estande de café que havia ali perto. Era na verdade um abrigo para motoristas de táxi, mas o homem encarregado percebeu que ele estava passando mal e por isso serviu-lhe café quente e um sanduíche.
- Quanto é? - perguntou David.
- Cinco pence.
Enquanto David tomava o café e comia o sanduíche, o gramofone continuava a tocar em sua cabeça.
O Lock Hospital... Não ficava muito longe dali e um táxi levou-o rapidamente. David ficou empertigado no banco do táxi, que era limpo e novo, com flores amarelas de papel num vaso cromado. Havia uma sugestão de perfume no interior do táxi, pefume e fumaça de cigarro. As flores amarelas de papel pareciam exalar um cheiro de perfume e fumaça.
O porteiro do hospital na Cannon Street era um velho de óculos; era velho e lerdo. Apesar do telefonema de Hilda, houve alguma demora. David ficou esperando no lado de fora da guarita do porteiro, enquanto o velho falava com a enfermaria pelo telefone interno. O chio de mosaico tinha um padrão de vermelho e azul, as beiradas curvando-se na direção das paredes, a fim de impedir o acúmulo de poeira.
O elevador subiu devagar, guinchando. David parou na entrada da enfermaria. Jenny, sua mulher, estava internada naquela enfermaria. Seu coração começou a bater com uma rapidez sufocante. Seguiu a freira para a enfermaria.
À enfermaria era comprida e fria, toda branca, com camas estreitas nos dois lados. Tudo era impecavelmente branco e em cada cama impecavelmente branca havia uma mulher. You are my heart's delight, o gramofone continuava a tocar, interminavelmente, dentro da cabeça de David.
Jenny. Finalmente era Jenny, sua mulher, Jenny na última cama, na última cama impecavelmente branca, por trás de um biombo impecavelmente branco. O rosto conhecido e amado de sua mulher Jenny apareceu diante dos olhos dele, em meio à brancura estranha e impecável da enfermaria. David sentiu o coração revirar-se dentro do peito, bater ainda mais violentamente. Tremia pelo corpo inteiro.
- Jenny...
A freira da enfermaria lançou-lhe um último olhar e depois afastou-se. Os lábios da freira da enfermaria estavam contraídos, os quadris balançavam.
- Jenny... - murmurou David outra vez.
- Estava mesmo esperando que viesse me ver.
Ela sorriu-lhe débilmente, o seu antigo sorriso inquisitivo e insinuante.
O coração de David rompeu-se bruscamente. Ele não podia dizer nada. Arriou na cadeira ao lado da cama. Os olhos de Jenny angustiavam-no terrivelmente, eram os olhos de um cachorro espancado. As faces estavam recortadas por pequenas veias vermelhas. Os lábios eram pálidos. Jenny ainda era bonita e não parecia velha, mas sua beleza estava um tanto intumescida. Tinha a expressão trágica de uma pessoa que fora usada.
- Isso mesmo, David, achei que você viria. Foi muito engraçado eu ir procurar a Dra. Barras. Mas quando fiquei doente, não queria ser tratada por uma pessoa estranha. E já ouvira falar de Hilda Barras. Como fomos amigos dela em Sleescale... Pois foi isso o que aconteceu! E fiquei esperando que você aparecesse!
David compreendeu que ela estava satisfeita por vê-lo. Mas não tinha nada da emoção terrível que o consumia. Débilmente, quase como se pedisse desculpas, ela estava satisfeita em vê-lo. David fez um esforço para falar, indagando:
- Está bem aqui?
Jenny corou, um pouco envergonhada do que antigamente teria chamado de sua posição. E ela disse, meio constrangida:
- Estou, sim. Sei que é uma enfermaria pública, mas a irmã tem sido muito simpática. É uma dama e tanto.
A voz de Jenny estava ligeiramente rouca. Uma das pupilas estava dilatada e escura, maior do que a outra.
- Fico contente que esteja bem instalada.
- Estou mesmo. Mas devo dizer que jamais gostei de hospitais. Ainda me lembro quando papai quebrou a perna.
Jenny tornou a sorrir-lhe e o sorriso provocou uma dor lancinante em David. Era o sorriso de um cachorro espancado, encolhendo-se de medo. Em voz baixa, ele disse:
- Se tivesse me escrito, Jenny...
- Tenho lido muito a seu respeito nos jornais, David. Você sabia, David. .. - A voz de Jenny adquiriu uma súbita animação. - ...você sabia que um dia passou por mim na rua? Foi na Strand. Passou bem perto de mim.
- E por que não me falou?
- Ora, pensei... achei que era melhor não falar com você. - Ela tornou a ficar ligeiramente vermelha. - É que eu estava com um amigo, entende?
- Entendo. Um silêncio.
- Você estava em Londres - disse David finalmente.
- Isso mesmo - concordou Jenny, humildemente. - Aprendi a gostar de Londres. Os restaurantes, as lojas, todo o resto. Estava tudo correndo bem, muito bem até. Não gostaria que você pensasse que estive por baixo durante todo o tempo. Tive muitos momentos maravilhosos.
Ela fez uma pausa. Estendeu a mão para o copo na mesinha ao lado da cama. David estendeu-se prontamente, pegou o copo e entregou-lhe.
- É engraçado... - murmurou Jenny. - Parece um pequeno bule de chá.
- Está com sede?
- Não. Mas preciso beber isso por causa do meu estômago. Não deve demorar muito para endireitar tudo. A Dra. Barras vai me operar assim que eu estiver forte o bastante.
Ela falou quase com orgulho.
- Isso é ótimo, Jenny.
Ela devolveu-lhe o copo, fitou-o nos olhos. Alguma coisa nos olhos de David levou-a a baixar os seus próprios olhos. Houve outro momento de silêncio, rompido por Jenny:
- Lamento muito, David. Desculpe se não o tratei como devia.
As lágrimas afloraram aos olhos dele e ele não pôde falar por algum tempo. Depois, murmurou:
- Trate de ficar boa, Jenny. Isso é tudo o que eu quero. Ela disse, apaticamente:
- Sabe que enfermaria é esta? -Sei.
Outro silêncio.
- Eles vão me submeter a tratamento antes da operação.
- Isso mesmo, Jenny.
Outro silêncio. E depois, subitamente, Jenny começou a chorar. Chorava silenciosamente, as lágrimas derramando-se sobre o travesseiro. Pelo canto dos olhos, que eram olhos de um cachorro espancado, as lágrimas fluíam silenciosamente.
- Oh, David, sinto-me tão envergonhada de olhar para você! A freira se aproximou.
- Está na hora de se retirar. Creio que já é o bastante por esta noite. E ela ficou parada ali, indiferente, formidável.
David disse:
- Voltarei a vê-la, Jenny. Amanhã. Ela sorriu, em meio às lágrimas.
- Isso mesmo, David, volte amanhã. Ele levantou-se. Inclinou-se e beijou-a.
A irmã acompanhou-o até a porta, dizendo friamente:
- Devia saber que não é muito sensato beijar alguma pessoa internada nesta enfermaria.
David não respondeu. Saiu do hospital.
Na Cannon Street, um realejo estava tocando You are my heart's delight.
Por volta das 10 horas daquele lindo dia de outubro, Tia Caroline olhou pela janela de seu quarto, na Linden Place. E decidiu, com a maior satisfação, que "daria uma voltinha". Duas vezes por dia agora, de manhã e à tarde, quando o tempo era favorável, Tia Caroline fazia um pequeno passeio. Entre os prazeres de estar em Londres incluíam-se aqueles pequenos passeios tranquilos que Tia Caroline fazia.
Isso mesmo, Tia Carrie estava em Londres. Era mesmo muito estranho encontrar-se naquele poderoso centro do Império, que sempre a desconcertara e intimidara, mantendo-a a distância. Mas seria mesmo tão estranho assim?
Richard estava morto, a Neptune vendida, reaberta por Mawson, Gowlan & Co. O Law, infelizmente, também se fora, o próprio Mr. Gowlan instalando-se lá. Diziam que ele estava gastando quantias enormes em reformas e nos jardins. Oh, Deus! Tia Carrie estremecia só de pensar em mãos rudes no seu canteiro de aspargos. Como poderia suportar essas mudanças e continuar em Sleescale? Também não fora convidada a permanecer. Arthur, que se tornara soturno e mal-humorado, contratado como supervisor na mina, não a convidara a partilhar a pequena casa que alugara na Hedley Road. Na verdade, Tia Carrie jamais esqueceria aquela noite terrível em que ele voltara de Tynecastle completamente embriagado e lhe dissera asperamente que teria agora de "arrumar-se sozinha". Pobre coitado! Arthur não podia imaginar como suas palavras deixaram-na magoada. Mas é claro que Tia Carrie jamais admitiria continuar por lá, a vítima de uma odiosa compaixão, no âmbito de sua dignidade anterior. Ela estava com apenas 64 anos. Tinha uma renda de 120 libras por ano. Era a independência... e Londres, a cidade da inteligência e da cultura, estava à espera. Aturdida com a própria audácia, ela mesma assim analisara tudo, à sua maneira meticulosa. Em Londres, estaria perto de Hilda, que ultimamente a vinha tratando com extrema gentileza. Também não estaria muito longe de Grace, que sempre lhe fora gentil. Ah, a querida Grace, pensou Tia Carrie, ainda simples, despretensiosa e pobre, levando uma vida despreocupada com o marido e os filhos, indiferente ao dinheiro e a todas as coisas materiais, mas feliz, saudável e feliz. Isso mesmo, ela certamente passaria um mês ou dois por ano em Barnham. E havia Laura também, Laura Millington, instalada há muitos anos com o marido inválido em Bournemouth. Ela tinha de visitar Laura. No total, as perspectivas no Sul da Inglaterra pareciam as mais animadoras para Tia Carrie. Passara os últimos 30 anos de sua vida principalmente nos quartos de doente de Harriet e Richard. Talvez, no fundo de seu coração, Tia Carrie estava um pouco cansada de quartos de doentes, de trocar roupas de cama.
Evidentemente, Bayswater foi o distrito que a atraiu. Ninguém sabia melhor do que Tia Carrie que Bayswater "decaíra"... mas ela experimentava um certo orgulho por saber que isso também lhe acontecera. Os remanescentes da aristocracia em Bayswater despertavam um eco sentimental em seu coração que fazia sua cabeça inclinar-se, não sem alguma resignação infeliz. E Linden Place era um lugar dos mais convenientes, o verde das árvores na primavera era gracioso, contra a tinta amarela desbotada das velhas casas de estuque. Havia uma igreja ao final da rua, que proporcionava clima e conforto ao mesmo tempo. Ultimamente, Tia Carrie tornara-se ainda mais devota. As missas em St. Philip, a que comparecia regularmente, muitas vezes arrancavam lágrimas de imensa ternura de seus olhos. No alto da torre da igreja, um sino repicava ocasionalmente. O leiteiro gritava jovialmente na rua e o cheiro de carneiro assado saía de muitos porões. Depois de muito investigar, Tia Carrie escolheu seu quarto na casa da Sra. Gittins, a 104C. Era uma casa de eminente respeitabilidade e o banheiro, embora com rachaduras e o esmalte descascado, estava sempre limpo. Por dois pence, tinha-se uma excelente água quente. E era rigorosamente proibido lavar roupas no banheiro, uma medida das mais corretas. Todos os inquilinos da Sra. Gittins eram senhoras idosas, à exceção de um jovem cavalheiro indiano, que podia ser de cor, mas também mantinha o banheiro meticulosamente limpo.
Consciente de suas múltiplas vantagens, Tia Carrie afastou-se da janela e correu os olhos pelo quarto. Ali estava em conforto, cercada por suas próprias coisas, seus tesouros. Que bênção jamais ter jogado qualquer coisa fora em toda a sua vida! O quarto estava praticamente mobiliado com seus bens preciosos e apreciados. Sobre a mesa, estava o modelo de chalé suíço que Harriet lhe trouxera de Lucerne quase 40 anos antes. O trabalho em madeira era realmente impecável e havia pequenas vacas dentro do estábulo. E pensar que ela outrora quase mandara aquele modelo de chalé para um leilão de caridade! Lá estavam também, pendurados por cima da lareira de mármore, os três cartões-postais que Arthur lhe mandara outrora de Boulogne e que ela própria emoldurara há muito tempo em passe-partout. Tia Carrie sempre gostara daqueles cartões-postais, as cores eram muito alegres. E é claro que os selos estrangeiros ainda estavam no verso e, com o passar do tempo, poderiam tornar-se valiosos. Na outra parede, estava o trabalho em bordado que ela fizera para a querida Harriet 14 anos antes, com uma poesia que começava com Auspicioso foi o dia em que você respirou pela primeira vez. Em seu tempo, Tia Carrie fora considerada excepcional em trabalhos de bordado.
Todas as suas coisas estavam ali, as fotografias, o álbum em cima da mesa, o aparelho de porcelana, o globo terrestre amarelado que provinha da antiga sala de aula no Law, a concha grande que sempre estava ao seu lado, o jogo de paciência com uma bola de vidro perdida por Arthur aos sete anos... ah, o pânico que ela tivera, receando que Arthur houvesse engolido a bola!... o conjunto de pena e mata-borrão, o almanaque de 1907, tudo mesmo. Ela guardara até o mata-moscas de vime que comprara para Richard quase ao final.
Aquele único cómodo continha o registro da vida de Tia Carrie. Nele, Tia Carrie não podia lamentar o seu destino. Ao contrário, ela contava as suas bênçãos e contava agradecida. Mas agora ia sair para o seu pequeno passeio. Postou-se diante do pequeno espelho quadrado e ajeitou o chapéu na cabeça. Comprara o chapéu sete anos antes e agora talvez estivesse um pouco desbotado, com uma pluma um tanto murcha. Mas ainda era um chapéu perfeitamente bom... o preto "dava bem" praticamente com qualquer coisa. Pondo as luvas, Tia Carrie ajeitou o guarda-chuva enrolado debaixo do braço, como se fosse uma arma. Lançou um último olhar pelo quarto: a metade de pão e o jarro de leite estavam impecavelmente guardados na prateleira, com o tomate que sobrara do dia anterior ao lado, a tampa ajustada sobre a lata de chocolate para evitar a umidade, o bico de gás seguramente fechado, a janela aberta apenas o suficiente para arejar, sem fósforos esquecidos pelos móveis, tudo arrumado, na mais perfeita ordem. Satisfeita, erguendo a cabeça, Tia Carrie saiu.
Seguiu pela Linden Hace e Westbourne Grove, olhando as vitrinas, admirando muitos dos artigos oferecidos nas lojas. Depois, ao final de Westbourne Grove, ela entrou na Merretfs, com um ar de familiaridade e determinação. A Merretfs era um lugar delicioso, a melhor das grandes lojas de departamentos, onde era possível inspecionar e admirar tudo, simplesmente tudo. Por meia hora, Tia Carrie deslocou-se pelos corredores, a cabeça inclinada para um lado, sob o chapéu preto antiquado, examinando tudo, até mesmo parando uma ou duas vezes para indagar preços. Os vendedores eram corteses até certo ponto... especialmente porque as compras de Tia Carrie na Merretfs nunca poderiam ser muito grandes. Sua situação financeira, com 120 libras por ano, era perfeitamente segura, mas nem por isso ela podia ser perdulária. Naquela manhã, porém, Tia Carrie foi perdulária. Há algumas semanas que estava de olho num pequeno abridor de cartas, uma espátula que parecia de marfim de verdade, moldado como um bico de papagaio numa das extremidades... como conseguiam fazer aquilo? Tia Carrie sonhava... mas que linda espátula e custando nove pence! Naquela manhã, porém, os olhos de Tia Carrie arregalaram-se de prazer. Ao lado da espátula, havia um pequeno cartão em que estava escrito Preço reduzido para 6 pence. Oh, Deus, mas que oportunidade, que pechincha! Tia Carrie comprou a espátula e mandou embrulhar em papel verde, com barbante também verde. E ali, naquele momento, decidiu que daria a espátula de presente a Hilda.
Satisfeita com a compra, pois era uma questão de honra para ela comprar alguma coisa na Merretfs de vez em quando, Tia Carrie foi para o elevador. A ascensorista era uma moça, de uniforme. Ela apertou um botão, levando Tia Carrie para o último andar.
- Sala de descanso, leitura e de escrever - anunciou a moça, suavemente.
Era uma sala bonita, com lambris de cedro, espelhos, cadeiras confortáveis, com muitos jornais e revistas, senhoras descansando. E era tudo gratuito, absoluta e incrivelmente gratuito.
Ao sair do elevador com o seu guarda-chuva, que ainda carregava como uma arma, Tia Carrie esbarrou nas nádegas da moça.
- Oh, perdoe! - exclamou Tia Carrie, a pluma tremendo de pesar. Foi um erro lamentável!
- Não foi nada, madame - disse a moça.
Mas quanta cortesia!
Uma hora transcorreu, enquanto Tia Carrie lia os jornais. Outras damas como Tia Carrie pareciam estar lendo os jornais. Talvez os espelhos criassem uma ilusão de ótica, pois tantas damas eram idosas, as roupas pretas um pouco desbotadas, ansiosas em aproveitarem os jornais de graça. Os jornais tinham muitas notícias naquela manhã. O país estava num turbilhão de excitamento. Mr. MacDonald estivera novamente reunido com o Rei, o Gabinete Nacional estava fazendo declarações maravilhosas, falava-se muito numa eleição iminente. Tia Carrie era inteiramente a favor de um Governo Nacional... era tão seguro! Havia um excelente artigo no Tribune, intitulado Não Deixem os Socialistas Esbanjarem o SEU Dinheiro. O Meteor também apresentava um artigo muito interessante, Bolchevismo Enlouquecido. Tia Carrie leu os dois. Examinou todos os jornais com a maior satisfação... à exceção daquele horrível pasquim trabalhista, que estava repleto de informações distorcidas sobre a miséria nos vales do Sul de Gales. Ela sempre tivera bem pouco tempo para ler no Law. Agora, apreciava intensamente o seu lazer.
O mesmo elevador tornou a levá-la para o térreo e a mesma moça sorriulhe. Era uma moça simpática, realmente simpática, Tia Carrie torcia para que ela recebesse em breve uma promoção.
Saindo da Merretfs, Tia Carrie seguiu para o apartamento de Hilda, com a intenção de entregar-lhe o presente. Como sempre, passou por Kensington Gardens. Era um passeio dos mais agradáveis, mas continha uma tremenda tentação, sob a forma de uma confeitaria. Tia Carrie raramente conseguia resistir aos bolos e biscoitos deliciosos ali vendidos. Apesar da extravagância que já fizera na Merretfs, ela entrou na confeitaria. A moça já a conhecia, sorriu, pegou um bolinho de café, pôs num saco de papel.
- Parece que vai chover - comentou a moça, entregando o saquinho a Tia Carrie.
- Espero que não, minha cara - disse Tia Carrie, dando os doispence à moça.
Ela tinha agora a espátula e um bolinho de dois pence, que mastigado lentamente transformaria o chá numa intensa alegria. Era uma manhã e tanto de compras.
Os jardins estavam maravilhosos, as crianças em torno do laguinho adoráveis como sempre. Havia um garotinho que estava começando a andar, de casaco vermelho, cambaleando de um lado para outro, afastando-se da babá e quase caindo na água. Mas que coisa linda!, pensou Tia Carrie.
Havia também gaivotas, que mergulhavam e gritavam, pegando migalhas de pão. Tia Carrie sempre ficava emocionada ao contemplar as gaivotas. Tanto pão fora jogado para as gaivotas que as margens do pequeno lago estavam coalhadas, centenas de pedaços flutuando. Jogue o seu pão na água, pensou Tia Carrie. Mas era estranho ver todo aquele pão desperdiçado, quando havia tantas crianças passando fome, a se acreditar naquele jornal horrível que lera na Merretfs. Mas não podia ser verdade; era um exagero absurdo; além do mais, sempre havia a caridade.
Confortada, Tia Carrie seguiu pela Exhibition Road. South Kensington era um lugar delicioso, Chelsea também, Carlyle e a amoreira... ou seria uma simples moita? Tia Carrie aproximou-se do apartamento de Hilda. No fundo da mente de Tia Carrie, perdurava uma vaga esperança de que Hilda pudesse pedir-lhe um dia que tomasse conta da casa para ela. Imaginava-se num vestido preto de gola alta, admitindo pessoas importantes e gravemente doentes ao consultório de Hilda... e quanto mais importantes e mais gravemente doentes, melhor. Embora Tia Carrie tivesse cansado de quartos de doentes, a doença ainda exercia uma certa fascinação mórbida sobre ela.
A criada informou que Hilda estava em casa. Exibindo para a criada de Hilda o seu sorriso especial, o sorriso ligeiramente insinuante que por 30 anos exibira aos criados no Law, Tia Carrie seguiu-a pelo apartamento.
Mas um choque aguardava Tia Carrie. Hilda não estava sozinha. Tia Carrie ficou completamente nervosa ao descobrir que o visitante de Hilda era David Fenwick. Ela estacou abruptamente logo depois de passar pela porta da sala, o rosto se avermelhando.
- Desculpe, Hilda - balbuciou ela. - Eu não sabia. Pensei que estivesse sozinha.
Hilda levantou-se. Estava sentada em silêncio e não parecia muito satisfeita com a presença de Tia Carrie. Mas ela disse:
- Pode entrar, Tia Carrie. Já conhece David Fenwick.
Num nervosismo maior do que nunca, Tia Carrie apertou a mão de David. Sabia que Hilda e David eram amigos. Mas a presença dele em carne e osso, o rapaz simpático que outrora fora professor de Arthur no Law e agora fazia discursos tão inflamados e terríveis no Parlamento, quase que a fazia tremer. Ela arriou numa cadeira ao lado da janela.
David olhou para o relógio.
- Infelizmente, tenho de ir embora - disse ele a Hilda - se quiser passar pelo hospital esta tarde.
- Por favor, não se retire por causa da minha chegada - disse Tia Carrie apressadamente.
Ela achou-o pálido e cansado. Os olhos estavam preocupados, terrivelmente preocupados, com uma expressão de expectativa angustiada.
- Está fazendo um lindo dia - acrescentou Tia Carrie. - Pensei que fosse chover, mas tal não aconteceu.
- Acho que não vai mesmo chover - murmurou Hilda, depois de uma pausa constrangedora.
Tia Carrie disse:
- Espero que não. Outra pausa.
- Vim por Kensington Gardens - persistiu Tia Carrie. - Os jardins estão muito bonitos.
- É mesmo? - disse Hilda. - Devem estar realmente, nesta época do ano.
- Havia um garotinho lindo perto do lago - continuou Tia Carrie, sorrindo. - Num casaco vermelho. Eu gostaria que o tivesse visto. Era um garotinho lindo.
Apesar de suas boas intenções, Tia Carrie tinha a confusa impressão de que Hilda não lhe estava dando qualquer importância. Um pouco aturdida, ela olhou para David, que estava parado ao lado da janela, em silêncio, com uma expressão preocupada.
Tia Carrie podia farejar encrenca no ar... tinha um bom faro para encrencas, como uma raposa para uma manhã de caçada. A curiosidade invadiu-a. Mas David tornou a olhar para o relógio e depois fitou Hilda.
- Tenho de ir agora de qualquer maneira - disse ele. - Tornaremos a nos encontrar às três horas.
Ele apertou a mão de Tia Carrie e saiu. Aguçando os ouvidos, Tia Carrie pôde ouvi-lo falando com Hilda no vestíbulo. Mas, para o seu desapontamento, não conseguiu discernir as palavras. Por uma vez, a curiosidade sobrepôs-se à sua timidez. Quando Hilda voltou à sala, Tia Carrie perguntou:
- Qual é o problema, Hilda querida? Ele parecia transtornado. E por que falou em hospital?
Por um momento, Hilda deu a impressão de não ter ouvido. Depois, sua resposta soou involuntariamente, como se quisesse acabar de uma vez por todas com a curiosidade de Tia Carrie:
- É a mulher dele. Ela está no hospital. Vai ser operada esta tarde.
- Oh, Deus! - balbuciou Tia Carrie, os olhos se arregalando num espasmo de sensação satisfeita. - Mas...
- Não há qualquer mas - interrompeu Hilda, bruscamente. - vou efetuar a operação e prefiro não conversar a respeito.
Os olhos de Tia Carrie ficaram ainda mais arregalados. Houve um silêncio e depois ela murmurou, humildemente:
- Vai fazer com que ela fique melhor, Hilda querida?
- O que acha? - respondeu Hilda, rudemente.
Tia Carrie ficou consternada. Oh, Deus, Hilda ainda podia ser bastante brusca, quando assim queria! Ela desejava intensamente perguntar a Hilda qual era o problema com a mulher de David, mas a expressão de Hilda intimidava-a. Abatida, Tia Carrie respirou fundo, e houve novamente silêncio por um minuto. Depois, lembrando subitamente, seu rosto iluminou-se. Ela sorriu.
- Por falar nisso, Hilda, eu lhe trouxe um presentinho maravilhoso. Ou pelo menos... - Um tom modesto agora. -... eu acho que é maravilhoso.
E, contemplando a sombria Hilda com uma expressão radiante, Tia Carrie entregou-lhe alegremente a espátula.
A uma e meia daquela tarde, David partiu para o Hospital St. Elizabeth, para onde Jenny fora transferida, depois de um exame de sangue satisfatório. Ele sabia que ainda era muito cedo, mas não suportava ficar sentado em seu apartamento, pensando em Jenny sendo operada. Jenny, sua mulher, sendo operada naquele dia!
Muitas vezes, durante aqueles meses de tratamento necessários para aprontá-la para a operação, ele sondara o seu sentimento em relação a Jenny. Não era amor. Não, não podia ser amor, que estava morto há muito tempo. Mesmo assim, era um sentimento intenso e irresistível. E era algo mais do que apenas compaixão.
A história de Jenny estava agora bastante clara; ela lhe contara trechos aqui e ali, mentindo ocasionalmente e enfeitando sempre, mas tristemente não conseguindo transformar os fatos em ficção. Ao chegar a Londres, ela fora trabalhar numa das grandes lojas de departamentos. Mas o trabalho era árduo, muito mais árduo do que na Slattery, o salário pequeno, muito menor do que seu otimismo lhe permitira imaginar. Não demorou muito para que Jenny arrumasse um amigo. E depois teve outro amigo. Todos os amigos de Jenny haviam sido perfeitos cavalheiros no início, mostrando-se ao final como perfeitas bestas. É claro que a história de dama de companhia não passava de um mito. Ela nunca saíra da Inglaterra. David achava estranho que Jenny ainda tivesse tão pouca noção de sua situação. Ainda tinha a mesma facilidade infantil para desculpar a si mesma, a capacidade infantil para a autocompaixão chorosa. Estava magoada e estava por baixo, mas não era a culpada por nada.
- Não acreditaria do que os homens são capazes, David! - soluçara ela. - Nunca mais quero ver outro homem, enquanto viver!
Ainda era a mesma Jenny. Quando David lhe levava flores, ela ficava profundamente satisfeita, não porque gostasse muito de flores, mas porque isso mostraria à irmã que estava "um ponto acima" das outras mulheres na enfermaria. Ele desconfiava que Jenny inventara uma pequena história para a irmã, certamente uma história polida e romântica. O mesmo acontecera quando ela fora transferida para o St. Elizabeth e David lhe providenciara um quarto particular. Isso indicava à nova irmã como ele a tinha "em alta conta".
Até mesmo no hospital, Jenny era romântica. Era incrível, mas era verdade. Quando ela condenara a bestialidade do homem, pedira-lhe por favor que pegasse o batom em sua bolsa, no armário ao lado da cama. Jenny mantinha um pequeno espelho escondido por baixo da mesinha-de-cabeceira, a fim de poder arrumar-se antes de receber visitas. O espelho era proibido, mas Jenny o guardava; dizia que queria ficar bonita para ele.
David suspirou, ao deixar o Embankment, aproximando-se do hospital. Esperava que tudo acabasse bem... esperava com toda a força de sua alma.
Ele olhou para o relógio por cima da arcada do hospital. Ainda era muito cedo, cedo demais, mas sentia que devia entrar no hospital. Não poderia esperar ali fora, na rua. Tinha de entrar. Passou pelo porteiro e subiu a escada. Chegou ao segundo andar, onde Jenny estava internada, ficou parado no vestíbulo alto e frio.
Muitas portas abriam-se para o vestíbulo... a porta do quarto de Hilda, do quarto da irmã, da sala de espera. Mas uma porta dupla de vidro atraiu sua atenção. Era a porta da sala de operações. Ficou olhando para aquela 'porta, de vidro fosco, angustiando-se ao pensar no que poderia estar acontecendo do outro lado.
A irmã" encarregada, Irmã Clegg, saiu da enfermaria. Não era a irmã da sala de operações. Ela fitou-o com um ar de censura e disse:
- Chegou muito cedo. Eles começaram agora.
- Sei disso - murmurou David. - Mas eu tinha de vir.
Ela afastou-se sem lhe pedir que fosse para a sala de espera. Simplesmente deixou-o ali e ali David ficou, de costas contra a parede, procurando passar despercebido, a fim de que não lhe pedissem para sair dali, observando a porta dupla de vidro fosco da sala de operações.
Olhando para a porta, sentiu que ela se tornava transparente e podia ver o que estava acontecendo no outro lado. Assistira a muitas operações no hospital de campanha, via tudo nitidamente, como se estivesse na sala.
Exatamente no centro da sala havia uma mesa de metal, que era menos uma mesa e mais uma máquina reluzente, com alavancas, rodas, engrenagens, permitindo que fosse contorcida para as posições mais estranhas e maravilhosas. Não, também não era como uma máquina. Era como uma flor, uma flor enorme, reluzente, metálica, sobre uma haste reluzente, saindo do chão da sala de operações. E, no entanto, não era máquina nem flor, mas uma mesa, em que algo estava estendido. Hilda estava num dos lados da mesa reluzente, a assistente de Hilda no outro lado. Em torno da mesa, comprimindo-se para ver o que estava na mesa, havia diversas enfermeiras. Todas estavam de branco, com toucas brancas, máscaras brancas, as mãos pretas e brilhantes, nas luvas de borracha.
A mesa de operações estava muito quente, ouvia-se o barulho de borbulhar, de sibilar. À cabeceira da mesa, a anestesista estava sentada num banco branco e redondo, com cilindros de metal ao lado, tubos vermelhos, uma enorme bolsa vermelha. Era também uma mulher que cuidava da anestesia, estava muito calma e entediada.
Grandes vidros coloridos de soluções anti-sépticas estavam perto da mesa, assim como bandejas de instrumentos, que saíam quentes dos esterilizadores de vapor. Os instrumentos eram entregues a Hilda. Hilda não olhava para os instrumentos, simplesmente estendia a mão na luva preta de borracha e um instrumento era colocado ali. Hilda usava-o.
Hilda inclinava-se ligeiramente sobre a mesa para usar os instrumentos. Era quase impossível ver o que estava na mesa, porque as enfermeiras comprimiam-se ao redor, como se estivessem olhando e tentando esconder o que havia na mesa. Mas era Jenny que ali estava, o corpo de Jenny. E, no entanto, não era Jenny, não era o corpo de Jenny. Tudo estava coberto, envolto em branco, com o maior sigilo, toalhas brancas estendidas por toda parte, tudo coberto por toalhas brancas.
Somente um pequeno quadrado do corpo de Jenny permanecia descoberto e esse quadrado sobressaía nitidamente entre as toalhas brancas. Era dentro desse quadrado que tudo estava acontecendo, era dentro desse quadrado que Hilda usava seus instrumentos, manejados pelas mãos ágeis e firmes, nas luvas de borracha.
Primeiro a incisão, isso mesmo, a incisão em primeiro lugar. O bisturi quente e reluzente traçando lenta e firmemente uma Unha através da pele amarelada, a pele adquirindo lábios, num sorriso vermelho. Pequenos jatos vermelhos esguicharam dos lábios vermelhos sorridentes e as mãos pretas de Hilda moviam-se incessantemente, logo havia uma fileira de pequenas pinças ao longo da incisão.
Outra incisão, mais profunda, a boca vermelha aumentando, não mais sorrindo agora, mas rindo muito, de tão escancarados estavam os lábios vermelhos.
E depois a mão de Hilda entrou direto na incisão, a mão preta e reluzente de Hilda tornando-se pequena e pontuda como a cabeça reluzente de uma serpente, penetrando fundo pela incisão. Era como se a boca vermelha e risonha engolisse a cabeça da serpente.
Depois, mais instrumentos foram usados, as pinças acumulavam-se umas sobre as outras. A confusão de instrumentos parecia indecifrável, mas não era. Tudo era necessário e matemático. Era impossível ver o rosto de Hilda por trás da máscara branca de gaze. Mas os olhos escuros de Hilda brilhavam por cima da máscara branca, eram olhos sempre firmes. As mãos de Hilda tornaram-se projeções dos olhos de Hilda. Também eram inexoráveis e firmes.
Era necessário firmeza. Na sala de operações, o corpo saudável era um desencantamento. Na doença, o corpo era obsceno. Os homens deveriam ser levados à sala de operações para contemplarem a angústia do sorriso pintado. Era inútil, inteiramente inútil. O esquecimento era muito fácil. Mesmo agora, a incisão estava perdendo seu horror e seus instrumentos, esquecendo e tornando-se outra vez uma incisão risonha, um sorriso pintado.
Os lábios da incisão de sorriso pintado se fecharam, enquanto as suturas eram rapidamente efetuadas. Hilda efetuava as suturas com uma precisão impecável e os lábios da incisão se contraíram, numa linha fina. Estava quase acabado agora, fechado, lacrado e esquecido. O sibilar e o borbulhar diminuíram um pouco, a sala já não estava tão quente. As enfermeiras não mais se comprimiam em torno da mesa. Uma delas tossiu por trás da máscara, rompendo o longo silêncio. Outra pôs-se a contar as mechas de algodão ensanguentadas.
No vestíbulo alto è frio, David continuava imóvel, os olhos fixados no vidro fosco da porta. E finalmente a porta se abriu e a maca sobre rodas saiu. Duas enfermeiras empurravam a maca, que se deslocava silenciosamente sobre as rodas de borracha. As enfermeiras não o viram quando David se comprimiu contra a parede, mas ele viu Jenny na maca. O rosto de Jenny estava ligeiramente virado em sua direção, vermelho e inchado; as pálpebras e faces estavam especialmente inchadas e vermelhas, como se Jenny estivesse num sonho bonito e agradável de embriaguez. As bochechas estofavam e se encolhiam, enquanto Jenny roncava. Os cabelos haviam escapado da touca branca de Jenny e estavam emaranhados, como se alguém tivesse tentado empurrá-los de volta. Jenny não parecia romântica agora.
Ele observou as portas de vaivém da enfermeira se fecharem depois da passagem da maca, levando Jenny para o seu quarto, na outra extremidade da enfermaria. Depois, David virou-se e avistou Hilda saindo da sala de operações. Ela avançou em sua direção. Parecia fria, remota e desdenhosa. E disse abruptamente:
- Está acabado e ela deve ficar boa.
David sentiu-se grato pela dureza dela; não poderia ter suportado qualquer outra coisa. Ele perguntou:
- Quando poderei vê-la?
- Ao cair da noite. O efeito da anestesia não é muito prolongado. Hilda fez uma pausa. - Ela poderá receber visitas por volta das oito horas.
David sentiu outra vez a frieza dela e novamente sentiu-se contente. A bondade naquele momento seria odiosa, abominável demais para se converter em palavras. Alguma coisa do brilho frio e implacável da sala de operações ainda aderia a Hilda, suas palavras cortavam fundo como um bisturi. Ela não podia ficar parada ali no vestíbulo. Quase impacientemente, Hilda abriu a porta de sua sala e entrou. A porta ficou aberta. Embora ela parecesse tê-la esquecido, David seguiu-a. E disse, em voz baixa:
- Quero que saiba que me sinto profundamente grato, Hilda.
- Grato!
Ela deslocou-se pela sala, pegando fichas e relatórios, pondo em cima da mesa. Sob a frieza, estava profundamente transtornada. Todo o seu propósito fora o sucesso da operação. Desejara intensamente que tudo desse certo, a fim de mostrar a David a sua perícia, a sua capacidade. E agora que estava feito, ela odiava tudo. Podia ver o seu trabalho requintado de maneira crua e brutal, ajustando apenas as relações do corpo, deixando intactos os ajustamentos da mente e da alma. De que adiantava? Remendara a carcaça do animal e isso fora tudo. Aquela mulher indigna voltaria para David, saudável apenas no corpo, ainda mórbida na alma. Revoltava Hilda mais profundamente por causa de seu próprio sentimento para com David. Não era amor... oh, não, era muito mais sutil do que isso! Ele era o único homem que jamais a atraíra. Em determinada ocasião, ela quase desejara apaixonar-se por David. Impossível! Não podia amar nenhum homem. O senso de seu fracasso, o fato de que jamais poderia amá-lo, tornava ainda mais duro restaurar a saúde daquela mulher para ele. Hilda virou-se bruscamente.
- Estarei aqui às oito horas. Deixarei um aviso se você puder vê-la.
Ela foi até a pia e abriu a água, encheu um copo e, disfarçando a sua emoção, bebeu.
- Tenho de fazer uma ronda pela enfermaria agora.
- Está bem.
David afastou-se. Desceu a escada e saiu do hospital. Ao final da John Street, ele pegou um ônibus que ia para a Ponte de Battersea. No ônibus, seus pensamentos eram profundos. Não importava o que Jenny lhe fizera ou a si mesma, ele sentia-se contente por ela ter se salvado. Jamais poderia desligar-se inteiramente de Jenny. Ela era como uma sombra que sempre estivera projetada sobre o seu coração. Ao longo de todos aqueles anos de ausência, Jenny continuara a viver com ele. Jamais a esquecera. Agora que a encontrara e tudo estava morto entre os dois, aquele senso curioso de vínculo e obrigação persistia. Ele podia ver claramente que Jenny era ordinária e vulgar. Sabia que ela estivera trabalhando nas ruas. Sua atitude deveria ser normalmente de repulsa e horror. Mas não, era algo que não podia. Era estranho. Tudo o que era melhor em Jenny se lhe apresentava. Podia recordar os momentos de altruísmo dela, os súbitos impulsos generosos, o desprendimento com dinheiro. Lembrava especialmente a lua-de-mel em Cullercoats e como Jenny insistira para que ele aceitasse o dinheiro dela a fim de comprar um terno.
David desceu do ônibus e foi andando pela Blount Street, a caminho de seu apartamento. A casa estava muito quieta. Ele sentou-se ao lado da janela e ficou olhando para as copas das árvores do parque que apareciam por cima dos telhados no outro lado, para o céu que aparecia além das árvores. O silêncio do cómodo envolvia-o, o tique-taque do relógio assumia um ritmo lento demais, parecia os pés de vagabundos a marcharem, homens avançando lerdamente.
David empertigou-se inconscientemente e os olhos fixaram-se no céu distante. Não se sentia derrotado agora. O velho impulso obstinado de lutar e continuar a lutar ressuscitara em sua alma. A derrota só era desprezível quando acarretava a submissão em sua esteira. Não abandonaria nada. Absolutamente nada. Ainda tinha a sua fé e a fé dos homens por trás dele. O futuro estava aberto à sua frente. A esperança ressurgiu, num ímpeto incontrolável.
Levantando-se abruptamente, ele foi até a mesa e escreveu três cartas. Escreveu para Nugent, Heddon e Wilson, seu agente em Slescale. A carta para Wilson era importante. Ele assegurava a Wilson que estaria em Sleescale dentro de dois dias, a fim de falar na reunião da executiva local. Havia um vigoroso otimismo na carta. David sentiu-o ao relê-la e ficou satisfeito. Aqueles últimos dias, enquanto a aproximação da operação de Jenny expulsava de sua mente todos os outros pensamentos, haviam sido de efervescência, a situação política beirando rapidamente um ponto de impasse. Em agosto, conforme ele previra, as forças financeiras e políticas forçaram o governo vacilante a deixar o poder. Na semana anterior, a 6 de outubro, a coalizão temporária dissolvera-se voluntariamente. O dia para a designação dos candidatos para a nova eleição seria 16 de outubro. Os lábios de David contraíram-se firmemente. Lutaria naquela eleição como nunca o fizera antes. Encarava a proposta política nacional de conciliação como um ataque determinado contra o padrão de vida dos trabalhadores, instituída para atender a uma situação criada pelos grandes interesses bancários. Reduções drásticas nos subsídios por desemprego eram justificadas sob a grotesca expressão de "igualdade de sacrifícios". Os sacrifícios dos trabalhadores seriam certos, mas nem tanto os sacrifícios de outros setores da comunidade. Enquanto isso, quatro milhões de libras de capital britânico .estavam investidos no exterior. O trabalhismo enfrentava a maior crise de sua história. E não ajudava nada o fato de determinados líderes trabalhistas terem decidido jogar a sua sorte com a coalizão.
Seis e meia. Um olhar para o relógio revelou a David que era mais tarde do que imaginara. Preparou uma xícara de chocolate e tomou devagar, lendo o jornal vespertino, que a Sra. Tucker acabara de lhe trazer. O jornal estava repleto de propaganda deturpada. Mantenham a indústria a salvo da nacionalização. Bolchevismo enlouquecido. O pesadelo do controle trabalhista. Frases assim atraíram sua atenção. Havia um desenho de John Buli, personificação do inglês, no ato de pisotear uma víbora repulsiva. A víbora tinha um rótulo visível: Socialismo. Alguns dos comentários mais incisivos de Bebbington eram amplamente noticiados. Bebbington era agora um herói da Causa Nacional. No dia anterior, ele declarara:
- A paz na indústria está ameaçada pela doutrina da luta de classes. Estamos resguardando o trabalhador de si mesmo!
David sorriu sombriamente e largou o jornal na mesa. Quando voltasse a Sleescale, teria algo a dizer sobre aquele mesmo tema. Algo talvez um pouco diferente.
A esta altura, eram sete horas. David levantou-se, lavou o rosto e as mãos, pegou o chapéu e saiu. A estranha jovialidade persistia dentro dele e era intensificada pela beleza do cair da noite. Enquanto ele atravessava a Ponte de Battersea, o céu estava vermelho e dourado, o rio reproduzia o brilho colorido do céu. David chegou ao hospital num ânimo muito diferente de seu desânimo naquela tarde. Tudo era fácil, quando se tinha coragem.
Ele esbarrou em Hilda no alto da escada. Ela acabara de fazer a sua ronda vespertina e estava falando com a Irmã Clegg no vestíbulo, antes de se retirar. David parou, perguntando:
- Posso entrar agora?
- Pode, sim.
Ela estava mais controlada do que se mostrara naquela tarde. Talvez, como David, tivesse pensado o bastante e recuperado assim o controle. A atitude de Hilda era formal e remota, mas era acima de tudo controlada. Ela acrescentou:
- Acho que vai encontrar Jenny muito bem. A anestesia não a perturbou muito. Ela voltou a si muito bem.
David não pôde pensar em coisa alguma para dizer. Estava consciente de que as duas observavam-no atentamente. A Irmã Clegg em particular parecia ter sempre uma incontrolável curiosidade feminina em relação a ele.
- Avisei a ela que você viria vê-la - disse Hilda, calmamente. - Ela ficou bastante satisfeita.
A Irmã Clegg olhou para Hilda e sorriu, o seu sorriso frio. E comentou:
- Ela até me perguntou se seus cabelos estavam direitos.
David corou ligeiramente. Havia algo de inumano no fato da Irmã Clegg denunciar tão friamente a vaidade de Jenny. Uma resposta pronta aflorou a seus lábios, mas ele não chegou a pronunciá-la. Quando levantava os olhos para a Irmã Clegg, uma jovem enfermeira saiu correndo da enfermaria, o rosto extremamente pálido. Parecia assustada. Deixou escapar um suspiro de alívio ao deparar com a Irmã Clegg.
- Venha, Irmã! Depressa!
A Irmã Clegg não fez qualquer pergunta. Sabia o que significava aquela expressão no rosto de uma jovem enfermeira. Significava uma emergência. Ela virou-se sem dizer nada e entrou na enfermaria. Hilda continuou parada por um momento, depois entrou também na enfermaria.
David ficou sozinho no vestíbulo. O incidente acontecera tão subitamente que o deixara desnorteado. Não sabia se devia passar pela enfermaria agora, se havia algum problema na enfermaria. Mas Hilda voltou antes que ele chegasse a uma decisão. Hilda voltou com uma urgência quase inacreditável e lhe disse:
- Vá para a sala de espera.
David olhou para Hilda, aturdido. Duas enfermeiras saíram da enfermaria, encaminhando-se rapidamente para a sala de operações. Caminhavam emparelhadas, vagamente irreais, como a vanguarda de uma procissão. As luzes da sala de operações se acenderam e a porta dupla de vidro fosco brilhou, como a tela iluminada de um cinema.
- Vá para a sala de espera - repetiu Hilda.
A urgência estava agora na voz, nos olhos, no rosto implacável e autoritário. Não havia mais nada a fazer. David obedeceu, entrando na sala de espera. A porta fechou-se atrás dele e pôde ouvir os passos rápidos de Hilda.
Ele compreendeu que a emergência era Jenny, com uma certeza súbita e assustadora. Ficou de pé na sala de espera pequena, ouvindo passos atravessarem o vestíbulo de um lado para outro. Ouviu o guincho do elevador. Ouviu mais passos. Seguiu-se um período de silêncio. Depois, David ouviu um som que o deixou completamente apavorado: era o barulho de alguém correndo. Alguém saía correndo da sala de operações, entrava na sala de Hilda, voltava. Ele sentiu o coração contrair-se. Quando a disciplina cedia a tanta pressa, a emergência devia ser grave, desesperadamente grave. O pensamento fez com que David ficasse completamente imóvel, como se estivesse congelado.
Um longo tempo se passou, um tempo bastante longo. Meia hora, talvez uma hora, David simplesmente não sabia. Imóvel, tenso, numa atitude de escuta, os músculos recusavam-se a permitir-lhe que olhasse para o relógio.
A porta abriu-se subitamente e Hilda entrou na sala. David não podia acreditar que fosse mesmo Hilda, tão grande era a mudança nela; parecia exausta, emocionalmente esgotada. E ela disse, com um tom de cansaço na voz:
- É melhor ir vê-la agora.
David adiantou-se apressadamente.
- O que aconteceu? Hilda fitou-o nos olhos.
- Hemorragia.
Ele repetiu a palavra.
Os lábios de Hilda contraíram-se. Ela disse, incisivamente, amargamente:
- No momento em que a irmã saiu do quarto, ela levantou-se na cama. Estendeu-se para pegar um espelho. A fim de verificar se estava bonita. - A amargura e a derrota na voz de Hilda eram terríveis. - A fim de verificar se estava bonita, para ajeitar os cabelos, passar batom. Pode imaginar uma coisa dessas? Estendendo-se para pegar um espelho, depois de tudo o que eu fiz!
Hilda não pôde continuar, totalmente desesperada, a dureza daquela tarde esquecida, pensando apenas na destruição de seu trabalho. Era algo que a deixava arrasada. Ela escancarou a porta, num gesto desolado.
- É melhor ir agora, se deseja vê-la.
David deixou a sala de espera, atravessou a enfermaria, entrou no quarto de Jenny. Ela estava deitada de costas, com a extremidade da cama levantada. A Irmã Clegg estava aplicando uma injeção no braço de Jenny. O quarto estava na maior confusão, bacias por toda parte, gelo, toalhas.
O rosto de Jenny estava da cor de argila. Ela respirava em ofegos curtos. Os olhos estavam fixados no teto. Eram olhos aterrorizados, pareciam grudar-se no teto, como se estivessem com medo de se despregarem.
O coração de David derreteu-se prontamente. Ele caiu de joelhos ao lado da cama.
- Jenny. .. Oh, Jenny, Jenny...
Os olhos finalmente desviaram-se do teto, fixaram-se nele. Os lábios lívidos sussurraram:
- Eu Queria ficar bonita para você.
As lágrimas escorriam pelo rosto de David. Ele pegou a mão lívida de Jenny, apertou-a.
- Jenny... Oh, Jenny, Jenny, minha querida. Ela sussurrou novamente, como se fosse uma lição:
- Eu queria ficar bonita para você.
As lágrimas sufocavam-no; ele não podia falar. Apertou a mão branca contra seu rosto.
- Estou com sede - balbuciou Jenny, debilmente. - Posso beber um pouco de água?
Ele pegou o copo - engraçado, parece um bule pequeno! - e levou-o aos lábios lívidos de Jenny. Ela levantou a cabeça e bebeu. Depois, um calafrio percorreu-lhe o corpo. A água derramou-se pela camisola.
Ao final, tudo acabara saindo da melhor forma possível para Jenny. O dedo mínimo da mão que segurava o copo estava elegantemente encurvado. Isso deixaria Jenny satisfeita, se ela soubesse. Jenny morrera com classe.
Às oito e meia da manhã, depois do funeral de Jenny, David desembarcou na plataforma da estação de Sleescale, sendo recebido por Peter Wilson. Todo o dia anterior, 15 de outubro, fora muito agitado e o deixara dominado por uma profunda tristeza, tomando todas as providências necessárias, seguindo tudo o que restava de Jenny ao cemitério, pondo uma coroa de flores em sua sepultura. Ele partira de Londres no trem noturno e quase não dormira. Contudo, não se sentia cansado; o vento firme que soprava do mar espalhava-se pela plataforma, incutindo-lhe uma energia tensa. Tinha um curioso senso de resistência física ao largar a mala no chão e apertar a mão de Wilson.
- Finalmente chegou - disse Wilson. - E já não era sem tempo.
O sorriso lento e jovial de Wilson era um tanto distraído. A pequena barba pontuda sacudia-se em movimentos bruscos e irrequietos, o que sempre indicava uma perturbação em sua mente.
- Foi uma pena que tivesse perdido a reunião de ontem do comité. Não pode imaginar o que estamos enfrentando.
- Já estou imaginando que vai ser uma luta difícil - comentou David, calmamente.
- Talvez mais difícil do que está imaginando. Já sabe quem é o candidato que apresentaram contra você? - Wilson fez uma pausa, contemplando o rosto de David com uma expressão preocupada, antes de acrescentar, bruscamente: - Joe Gowlan.
O coração de David pareceu ficar parado por um instante, o corpo se contraindo, gelado, ao ouvir aquele nome.
- Joe Gowlan! - exclamou ele, aturdido.
Houve um silêncio tenso. Wilson sorriu sombriamente.
- Só foi revelado ontem à noite. Ele está no Law agora... vivendo em grande estilo. Desde que reabriu a Neptune que se tornou a grande sensação local. Está com Ramage a reboque, assim como Connolly e Low. Deve estar com a executiva do Partido Conservador no bolso. Houve também uma grande pressão em Tynecastle. Isso mesmo, ele foi designado para candidato. Já está tudo resolvido e sacramentado.
David foi dominado por uma perplexidade intensa, misturando-se com uma espécie de terror. Não podia acreditar, de jeito nenhum, a coisa era absurda demais, era inteiramente impossível. Ele perguntou, mecanicamente:
- Está falando sério?
- Nunca falei mais sério em toda a minha vida.
Outro silêncio. Então era verdade, aquela notícia desconcertante,brutal.
com o rosto contraído, David pegou a mala e foi saindo da estação, acompanhado por Wilson. Desceram a Cowpen Street, sem falarem. Joe, Joe Gowlan, o nome revolvia implacavelmente no cérebro de David. Não restava a menor dúvida sobre as qualificações de Joe... ele tinha dinheiro, sucesso, influência. Era como Lennard, por exemplo, que ganhara uma fortuna com móveis ostentosos, mas ordinários, comprando a sua cadeira por Clipton, na última eleição... Lennard, que nunca fizera um só discurso em toda a sua vida, que passava as suas raras visitas à Câmara no bar ou resolvendo problemas de palavras cruzadas no salão de fumar. Um dos legisladores da nação. E, no entanto, pensou David, amargamente, não se podia dizer que o indolente Lennard fosse o exemplo. Joe usaria a Câmara para algo mais além de problemas de palavras cruzadas. Não havia como prever quais os usos diversos e interessantes que Joe poderia encontrar para a sua posição, se fosse eleito.
Abruptamente, David desviou-se de sua amargura. Isso não adiantava. A única solução para a situação era impedir que Joe fosse eleito. Oh, Deus, pensou David, caminhando sob o vento firme que soprava do mar, oh, Deus, permita-me só mais uma coisa, derrotar Joe Gowlan nesta eleição!
Dominado mais do que nunca pelo senso de suas obrigações, David foi para a casa de Wilson e lá comeu alguma coisa, enquanto analisavam meticulosamente a situação. Wilson não poupou os fatos. O atraso imprevisto de David no retorno a Sleescale criara um clima desfavorável. Além disso, como David já sabia, a executiva do Partido Trabalhista não se mostrara muito favorável à sua indicação; desde .o seu discurso sobre a Lei das Minas que estava marcado como um rebelde, tratado com hostilidade e desconfiança. Mas o partido, em dívida com a Federação dos Mineiros por causa das mensalidades de filiação, não quisera vetar o indicado pela Federação. Contudo, isso não os impedira de enviar um agente a Sleescale, num esforço para influenciar os mineiros para outro candidato.
- Ele apareceu aqui como um maldito espião - resmungou Wilson, na conclusão. - Mas não conseguiu mudar nenhum de nós. Queríamos você. Levamos a questão à executiva regional e a questão foi definitivamente encerrada.
Depois disso, Wilson insistiu para que David fosse para casa, a fim de dormir um pouco, antes da reunião do comité, às três horas. David não sentia a menor necessidade de dormir, mas foi para casa assim mesmo. Queria ficar sozinho para pensar em tudo.
Martha estava esperando-o - ele lhe telegrafara na noite anterior - e seus olhos fixaram-se prontamente na gravata preta. Os olhos de Martha nada revelaram, enquanto observava a gravata preta. Ela não fez qualquer pergunta.
- Está atrasado, com certeza - disse ela. - Sua comida está esperando há uma hora.
David sentou-se à mesa.
- Já tomei o café da manhã com Wilson, mãe.
Ela não gostou e insistiu:
- Não quer tomar ao menos uma xícara de chá? David assentiu.
- Está bem.
Ele ficou observando a mãe preparar a infusão de chá fresco, primeiro despejando água quente no bule, depois medindo o chá exatamente na vasilha de latão que pertencera a sua mãe. David contemplou os movimentos firmes e seguros da mãe, pensando com algum espanto que ela quase não mudara ao longo dos anos. Não muito longe dos 70 anos agora, Martha continuava vigorosa, taciturna, inflexível. Ele disse subitamente:
- Jenny morreu há três dias.
As feições de Martha permaneceram impenetráveis.
- Assim é melhor - disse ela finalmente, pondo o chá diante de David. Houve um silêncio. Isso era tudo o que ela podia dizer? Ocorreu a David
que era insuportavelmente cruel que ela pudesse receber a notícia da morte de Jenny sem sequer uma palavra de pesar. Mas enquanto ele se desesperava com a atitude insensível da mãe, ela acrescentou, quase bruscamente:
- Lamento que isso o tenha deixado tão desconsolado, David.
As palavras pareciam ser arrancadas dela com dificuldade. Depois de um momento que parecia ser de constrangimento, Martha fitou-o disfarçadamente, indagando:
- E o que vai acontecer com você agora?
- Outra eleição... outro começo.
- Ainda não está cansado disso?
- Não, mãe.
Depois de tomar o chá, David subiu para deitar-se um pouco. Fechou os olhos, mas o sono esquivou-se por muito tempo. O pensamento persistia em martelar-lhe a cabeça, insistente, nervoso, como uma prece... Oh, Deus, ajude-me a impedir a eleição de Joe Gowlan. Tudo aquilo contra o qual lutara, ao longo de sua vida, concentrava-se naquele homem que era agora seu oponente. Ele tinha de vencer. Não podia deixar de vencer. Desejando isso com todas as suas forças, David foi finalmente invadido pela sonolência e acabou dormindo.
O dia seguinte, 16 de outubro, era o dia da designação oficial dos candidatos. Às 11 horas da manhã, no próprio início da campanha, David encontrou-se com Joe. A reunião ocorreu diante do prédio da municipalidade. Acompanhado por Wilson, David estava subindo a escadaria para entregar seus documentos, quando Joe passou pela porta e começou a descer, acompanhado por Ramage, Connolly e o Reverendo Low, todos membros de seu comité executivo, além de diversos partidários. Ao avistar David, Joe parou dramaticamente, fitando-o com uma expressão firme. Estava dois degraus acima de David, uma presença expansiva, o peito impressivamente estofado, o paletó aberto, um raminho de centáureas azuis na botoeira. E naquela posição, numa altivez rude, Joe estendeu a mão. Sorriu... o seu sorriso exuberante, de homem para homem.
- É ótimo vê-lo aqui, Fenwick! - gritou ele. - Melhor cedo do que tarde, não é mesmo? Espero que seja uma disputa limpa. Jogo limpo, sem qualquer favor. E que vença o melhor.
Houve um murmúrio de aprovação entre os partidários de Joe, enquanto David sentia um calafrio percorrer-lhe o corpo. Joe acrescentou:
- Quero que saiba que não vai haver absolutamente luvas de pelica. Será uma luta com os punhos a descoberto, durante todo o tempo. Para mim, estou lutando pela Constituição... a Constituição Britânica, Fenwick. Devo lhe advertir que não deve se enganar a respeito disso. De qualquer forma, teremos uma luta limpa. O espírito esportivo britânico, entende... o espírito esportivo britânico!
Houve uma nova aclamação entre a multidão de partidários de Joe, aumentando rapidamente. No entusiasmo do momento, vários homens se adiantaram e apertaram-lhe a mão. David desviou-se, com uma repulsa intensa. Sem dizer nada, ele entrou no prédio. Mas Joe, indiferente à descortesia de seu oponente, continuou a apertar as mãos dos partidários. Joe não era orgulhoso, por Deus que apertaria a mão de qualquer homem, contanto que fosse decente, um britânico e desportista. Parado ali, na escadaria do prédio da municipalidade, Joe sentiu-se compelido a exprimir tal sentimento para a multidão que se postava agora à sua frente. Ele declarou:
- Estou orgulhoso e disposto a apertar a mão de qualquer homem decente. - Uma pausa, impregnada de profundo sentimento. - Desde que ele queira apertar-me a mão. Mas que nenhum bolchevista se atreva a tentar. Oh, não, por Deus, isso não!
Joe estofou o peito ainda mais, numa atitude beligerante. Sentia-se vigoroso, poderoso, estava exultante.
- Quero que vocês saibam que sou contra os bolchevistas e os vermelhos, contra todos os agitadores. Sou defensor da Constituição Britânica, a Bandeira Britânica e a Libra Britânica. Não cumprimos o nosso dever durante a guerra, aqui e no exterior, por nada. Sou a favor da lei e da ordem, do espírito esportivo e sociável. É por isso que estou lutando pela eleição, é por isso que vocês vão votar em mim. Nenhum homem tem o direito de deixar o mundo tão ruim quanto o encontrou. Temos de fazer tudo o que for possível para tornar o mundo melhor. Temos de respeitar a ética e a educação, todos os Dez Mandamentos. Isso mesmo, os Dez Mandamentos, por Deus! Não vamos admitir nenhum anarquismo bolchevista anticristão contra os Dez Mandamentos! E nenhum anarquismo contra a Bandeira Britânica, a Constituição Britânica e a Libra Britânica! É por isso que estou lhes pedindo que votem em mim. E se querem continuar em seu trabalho, não se esqueçam disso!
Sob o comando de Ramage, as aclamações soaram insistentemente. As aclamações inebriaram Joe; sentia-se um orador nato, com a aprovação de sua própria consciência e de seus semelhantes. Estava radiante e apertou as mãos de todos ao redor, depois terminou de descer a escadaria.
Ao chegar à calçada, um garotinho tropeçou em suas pernas e caiu. Abaixando-se, num excesso de bondade, Joe pegou-o e ajudou-o a se levantar, sobre os pés descalços.
- Pronto, não foi nada! - disse ele, rindo paternalmente.
O riso de Joe pareceu espantar o garoto, em torno dos seis anos, esfarrapado, o rosto pálido e subnutrido, os cabelos grandes caindo pela testa, os olhos grandes e assustados. Subitamente, ele começou a chorar. A mãe, segurando um bebé com um dos braços, adiantou-se rapidamente para afastá-lo de Joe com a outra mão.
- É um belo garoto o seu filho, madame - disse Joe, radiante. - Qual é o nome dele?
A mulher, ainda jovem, corou nervosamente, por descobrir-se a atenção do grande homem. Ela ajeitou o xale velho que prendia o bebé a seu corpo e murmurou timidamente:
- O nome dele é Joey Townley, Mr. Gowlan. O irmão do pai dele, isto é, seu tio, tom Townley, trabalhou ao seu lado na Paradise, quando era mineiro. .. antes de se tornar... o que é agora.
- Ora, mas quem diria! - exclamou Joe, cada vez mais radiante. - E seu marido trabalha na mina, Sra. Townley?
A Sra. Townley corou ainda mais intensamente, confusa, envergonhada, apavorada com a própria ousadia.
- Não, Mr. Gowlan. Ele está por conta do auxílio-desemprego. Mas se ele pudesse voltar ao trabalho, senhor. ..
Joe sacudiu a cabeça, com uma súbita gravidade.
- Pode deixar comigo, madame. É por isso que estou lutando para gar nhar esta eleição. Por Deus, vou mudar as coisas para melhor por aqui!
Ele afagou por um momento a cabeça do pequeno Joe Townley, sorriu novamente, olhou para a multidão, com uma expressão de modéstia.
- É um ótimo garoto. E também se chama Joe! Quem sabe se ele não pode virar outro Joe Gowlan?
Ainda radiante, Joe encaminhou-se para o seu carro à espera. O efeito foi espetacular. Espalhou-se rapidamente pelos Terraços a notícia de que Joe Gowlan ia contratar de volta o homem de Sarah Townley, dar-lhe um emprego de primeira classe na mina, a melhor de todas as galerias para trabalhar.
Havia algumas mulheres como Sarah Townley em Sleescale. E tudo isso foi muito favorável a Joe.
A força de Joe como orador foi se desenvolvendo. Ele tinha bons pulmões, uma segurança total, uma garganta de ferro. Berrava para os Homens. Era viril. Criava slogans. Imensos cartazes apareceram em todos os tapumes da cidade.
Abaixo com o Desemprego, Problemas, Doenças,
Pobreza e Pecado!
Prefira a Lei, Ordem, Espirito Esportivo e a Constituição Britânica!! VOTE EM JOE GOWLAN!
Joe era um baluarte da moralidade. Mas é claro que era também intensamente humano, um verdadeiro esportista. Em seu primeiro comício na New Bethel Street School, depois de exortar os ouvintes a apoiarem a Bandeira, ele acrescentou, radiante, embora um tanto furtivamente:
- E podem apostar até a camisa em Radio, na próxima corrida em Gosforth Park.
Radio era um cavalo seu. A informação fez com que sua popularidade aumentasse ainda mais.
Muitas vezes, também, sua altivez, como um homem de posses e posição, dissolvia-se, derretia-se numa humildade de homem temente a Deus.
- Sou um de vocês, rapazes! Não nasci com uma colher de prata na boca. Fui criado como qualquer um de vocês. Lutei muito para subir na vida. E a minha política é dar a todo mundo a oportunidade de conseguir a mesma coisa!
Mas seu trunfo, jamais exibido abertamente, mas habilmente mostrado por baixo da manga, era a sua capacidade de conceder-lhes emprego. Embora fosse humano, um deles, um homem que passara por necessidades e lutara muito, agora era o Patrão. Por trás de toda a sua jactância, apresentava-se como o Benfeitor dos homens. Tirara a Neptune das ruínas e agora se propunha a proporcionar trabalho honesto a todos os homens. O que, evidentemente, aconteceria depois da eleição.
A campanha de Joe foi crescendo em ostentação e força. Ramage, que outrora dera um chute no pequeno Joe por roubar uma bexiga de porco, era agora o seu mais fervoroso bajulador. A pedido de Ramage, o Reverendo Low fez um sermão fervoroso do púlpito de sua capela na New Bethel Street, enumerando as virtudes da lei e da ordem e de Mr. Joseph Gowlan, condenando às trevas eternas aqueles que se atrevessem a votar em Fenwick. Connolly, na companhia de gás, declarara abertamente que qualquer empregado que não apoiasse Gowlan era um vermelho sujo e seria despedido imediatamente. A imprensa de Tynecastle era inteiramente favorável a Joe. Jim Mawson, enigmaticamente em segundo plano, puxou diversos condões em defesa da nobre causa da humanidade. Todos os dias, dois aviões decolavam de Rusford e sobrevoavam Sleescale em propaganda. O dinheiro falava por muitos meios insidiosos. Homens estranhos eram vistos em Sleescale, misturando-se com os trabalhadores, formando grupos nas esquinas, fazendo ponto no Salutation. Quanto a promessas... Joe prometia tudo.
David via as forças que se alinhavam contra ele e tratava de lutar, com uma coragem desesperada. Mas como suas armas eram inadequadas diante do vasto arsenal de Joe! Por toda parte para onde se virava, sentia uma investida insidiosa contra ele, limitando suas atividades, sufocando-o. Sem se poupar, David redobrou os esforços, usando todos os seus recursos físicos, todo o treinamento e experiência que adquirira em sua carreira política. Quanto mais batalhava, no entanto, mais vigorosamente Joe respondia. As intromissões de homens com perguntas inesperadas, que desde o começo haviam perturbado os comícios de David, tornaram-se agora implacáveis. David podia controlar as interrupções comuns e muitas vezes tirar proveito delas. Mas aquelas intromissões não eram legítimas. Partiam de um bando de arruaceiros de Tynecastle, que apareciam em todos os comícios, sob o comando de Pete Bannon, antigo lutador de boxe e bartender do Malmo Wharf, sempre disposto e ansioso por uma briga. Wilson, o agente de David, protestou com veemência na polícia e exigiu uma proteção apropriada. O protesto foi recebido com apatia.
- Isso não é da nossa conta - disse Roddam, com a maior desfaçatez. - Esse Bannon não tem nada a ver conosco. E você pode providenciar seus próprios homens.
A campanha limpa persistiu, desenvolvendo-se por linhas mais sutis. Na manhã da terça-feira seguinte, a caminho das salas de seu comité, David deparou com um aviso, pintado com tinta branca num muro ao final da Jamb Lane: Perguntem a Fenwick sobre sua mulher. David empalideceu, deu um passo à frente, como se quisesse apagar a indignidade. Era inútil, inteiramente inútil. As palavras estavam pintadas por toda a cidade, em cada muro e parede, até mesmo nos tapumes da ferrovia, as palavras brutais e irrespondíveis. Dominado pela angústia e horror, David seguiu pela Lamb Street e entrou no comité. Wilson e Harry Ogle estavam à sua espera. Os dois haviam visto as palavras. O rosto de Ogle estava contraído de indignação.
- É uma coisa terrível, David - resmungou ele. - Temos de reagir. .. apresentar um protesto.
- Ele se limitaria a negar qualquer participação - respondeu David, em voz firme. - Nada o deixaria mais satisfeito do que se saíssemos ganindo, a nos lamuriar.
- Pois então, por Deus, vamos revidar de alguma forma! - gritou Harry, com a maior veemência. - Direi alguma coisa sobre ele quando falar por você no Snook esta noite.
- Não, Harry. - David sacudiu a cabeça, com súbita determinação. Não quero retaliação.
Ultimamente, em face da perseguição organizada, ele não sentia raiva nem ódio, mas uma intensificação extraordinária de sua vida interior. Encarava essa vida interior como a verdadeira explicação para a existência do homem, independente das formas de religião, completamente separada do plano material. A pureza dos motivos era o único padrão, a verdadeira expressão da alma. Nada mais importava. E a plenitude dessa interpretação espiritual de seu próprio propósito não deixava lugar para a maldade ou ódio.
Mas Harry Ogle sentia-se de maneira diferente. Harry Ogle estava inflamado de indignação, sua alma simplesmente exigia justiça, pelo menos a justiça simples do olho por olho. Naquela noite, no Snook, onde às oito horas estava promovendo um comício ao ar livre por contra própria, Harry ficou tão arrebatado que acabou se esquecendo da promessa que fizera a David e acabou criticando as táticas de Joe Gowlan. David estivera na Hedley Road, onde ficava o novo conjunto habitacional dos mineiros. Voltou tarde para casa. Era um noite escura, de muito vento. Por diversas vezes, um barulho lá fora fez com que ele levantasse os olhos, na expectativa, pois esperava que Harry viesse lhe contar como fora o comício no Snook. Às 10 horas, ele levantou-se para trancar a porta da frente. Foi nesse momento que Harry apareceu, cambaleando, o rosto pálido e ensanguentado, quase desmaiando, sangrando profusamente de um talho fundo por cima do olho.
Deitado no sofá, com uma compressa fria sobre o ferimento, enquanto David mandava Jack Kinch chamar o Dr. Scott, Harry balbuciou, a voz trémula:
- Estávamos voltando do Snook quando eles nos pegaram, David... Bannon e seus arruaceiros. Eu tinha falado que Gowlan explora seus empregados, que fabrica aviões de guerra e munições. Eu poderia aguentar firme, se um deles não estivesse com um cano de chumbo...
Harry sorriu debilmente e desmaiou por completo.
Harry levou dez pontos na testa e depois foi levado para a sua cama. É claro que Joe se mostrou furioso, com uma ira indignada. Como uma coisa dessas podia acontecer em solo britânico? Num comício no prédio da municipalidade, ele denunciou os insidiosos vermelhos, os bolchevistas, que eram capazes de se virarem contra os seus próprios líderes e agredi-los. Ele enviou mensagens de condolências a Harry Ogle. A atitude de Joe mereceu o maior destaque, suas palavras magnânimas foram reproduzidas literalmente pelos jornais. No total, o incidente só serviu para beneficiá-lo.
Mas a perda do apoio pessoal de Harry foi um golpe terrível para David. Harry era um homem respeitado, tinha influência em Sleescale, entre os setores mais cautelosos. Os homens mais velhos, aturdidos e um tanto intimidados, começaram a pensar que era melhor não comparecer aos comícios de David. Foi também nessa ocasião que a onda de histeria contra os trabalhistas que varria o país alcançou o clímax. O terror era incutido no coração do povo, com predições veementes de ruína financeira. Descreviam-se quadros frenéticos da situação a que o trabalhador ficaria reduzido, sendo pago em punhados de notas sem valor, tentando desesperadamente comprar alguma comida. Ao invés de atribuir o cataclismo iminente aos resultados finais do sistema económico existente, tudo era lançado à culpa dos trabalhistas. Não deixem que eles lhes tomem o seu dinheiro, era o clamor insistente. Toda a questão se concentrava no Dinheiro. Devemos manter o nosso Dinheiro, a qualquer custo, preservá-lo, essa coisa sagrada. Dinheiro... Dinheiro!
com uma resistência quase sobre-humana, David lançou-se a um esforço final. A 26 de outubro, ele percorreu toda a cidade, em seu caminhão velho e pequeno, que o conduzira em seu sucesso original. Falou em toda parte, durante o dia inteiro, comendo alguma coisa, rapidamente, nos raros intervalos. Falou até que sua voz estava quase se apagando. Às 11 horas, depois de um último comício à luz de tochas, diante do Instituto, ele voltou à Lamb Lane, jogando-se na cama, exausto. Caiu no sono imediatamente. A eleição seria no dia seguinte.
As primeiras informações eram de um comparecimento maciço às urnas. David passou a manhã inteira em casa. Fizera o melhor possível, dera o máximo de si. No momento, nada mais podia fazer. Conscientemente, não antecipava o resultado, não prejulgava o veredicto que lhe seria dado por sua própria gente. Contudo, por baixo da superfície, sua mente lutava entre a esperança e o medo. Sleescale sempre fora uma cadeira garantida para os trabalhistas, um baluarte dos mineiros. Os homens sabiam que ele trabalhara e lutara para defendê-los. Se fracassara, não fora por sua culpa. Certamente que lhe dariam a oportunidade de continuar a trabalhar e lutar por eles. Não subestimava Gowlan nem a vantagem estratégica de Gowlan como proprietário da Neptune. Sabia perfeitamente que os métodos inescrupulosos de Gowlan haviam rompido a solidariedade dos homens, lançando dúvidas e suspeitas sobre a reputação dele. Lembrou-se daquela odiosa referência a Jenny, que o prejudicara mais do que qualquer outra coisa. Sentiu um aperto no coração ao pensar na deturpação de Joe. Teve uma rápida visão de Jenny na sepultura. E foi nesse instante que uma onda de compaixão e aspiração envolveu-o, o antigo sentimento familiar, intensificado e fortalecido. Queria vencer, com toda a força de sua alma, para provar que o bem prevalecia na humanidade, ao invés do mal. Haviam-no acusado de pregar a Revolução. Mas a única Revolução que ele pedia era no coração do homem, um final à mesquinharia, crueldade e egoísmo, uma elevação à devoção e nobreza, de que o coração humano era perfeitamente capaz. Sem isso, toda e qualquer outra mudança era inútil.
Por volta das seis horas, David foi visitar Harry Ogle. Enquanto subia a Cowpen Street, lentamente, observou um vulto aproximando-se pela Freehold Street. Era Arthur Barras. David manteve os olhos fixados à frente, pensando que Arthur poderia não querer reconhecê-lo. Mas Arthur parou ao alcançá-lo.
- Fui votar em você - disse ele, bruscamente.
A voz era apática, quase áspera, as faces estavam encovadas, propensas a comicharem nervosamente. O cheiro de álcool exalava de sua respiração.
- Eu lhe agradeço, Arthur. Um silêncio.
- Desci na mina esta tarde. Mas lembrei subitamente, quando subi. Os olhos de David estavam perturbados, repletos de compaixão. Ele disse, meio constrangido:
- Não esperava o seu apoio.
- Por que não? Não sou nada agora... nem vermelho nem azul nem qualquer outra coisa. - Depois, com uma súbita amargura, Arthur acrescentou: - De qualquer forma, que importância isso tem?
Outro silêncio, através do qual as palavras que acabara de pronunciar foram corroendo Arthur. Ele fitou David nos olhos, com uma expressão desolada.
- É muito engraçado, não é mesmo? Terminar deste jeito...
E com um aceno de cabeça, ele recomeçou a descer a rua. David continuou para a casa de Ogle, comovido e profundamente perturbado por aquele encontro, em que tão pouco fora dito e tanto ficara implícito. Era como uma advertência: a derrota poderia ser terrível. Os ideais de Arthur haviam sido destruídos, ele se afastara da vida, com todas as fibras de seu ser bradando: "Já sofri demais. Não quero continuar a sofrer." A batalha estava acabada, a chama se extinguira. David suspirou ao entrar na casa de Ogle.
Ele passou a noite com Harry, que estava bem melhor, bastante animado. Embora os dois não deixassem de pensar por um instante sequer no resultado das urnas, quase não falaram da eleição. Harry, no entanto, à sua maneira gentil e pensativa, previu a vitória... pois qualquer outra coisa era inconcebível. Depois do jantar, eles jogaram cartas, críbbage, um jogo em que Harry era viciado, até quase 11 horas. Mas os olhos de David desviavam-se a todo instante para o relógio. Agora que saberia em breve, estava dominado por uma sensação insuportável de tensão. Por duas vezes, sugeriu que estava na hora de ir embora, que a apuração no prédio da municipalidade devia estar bem adiantada.
Mas Ogle, talvez consciente da ansiedade de David, insistiu em que ele ficasse mais um pouco. O resultado não poderia ser conhecido antes das duas horas. Enquanto isso, havia ali uma poltrona confortável e um bom fogo. David concordou, reprimindo sua inquietação, expectativa e apreensão. Mas, finalmente, pouco depois de uma hora, ele levantou-se. Antes que saísse da sala, Harry apertou-lhe a mão.
- Como não posso estar lá, quero lhe dar os parabéns agora. Mas lamento perder a cara de Gowlan quando souber que você o derrotou.
A noite estava agora quieta, uma lua pela metade corria pelo céu. Ao se aproximar do prédio da municipalidade, David ficou surpreso com a multidão pelas ruas. Teve alguma dificuldade em alcançar o prédio. Mas finalmente conseguiu entrar e foi postar-se ao lado de Wilson, no saguão. A apuração estava sendo efetuada na sala do Conselho Municipal. Wilson virou-se enigmaticamente e abriu um espaço para David ficar ao seu lado. Ele parecia cansado.
- Mais meia hora e saberemos.
O saguão estava repleto. Lá fora, soou a buzina de um carro. Um minuto depois, Gowlan entrou, à frente de seu grupo. .. Snagg, o agente, Ramage, Connolly, Bostock, vários de seus associados em Tynecastle e, em homenagem àquele momento decisivo, Jim Mawson em pessoa. Joe usava um casaco com gola de astracã, aberto, exibindo o smoking por baixo. O rosto estava cheio, ligeiramente corado. Jantara com seus amigos; depois do jantar, foram servidos conhaque e charutos. Ele cambaleou pelo saguão, atravessando a multidão, que se afastava para lhe dar passagem. Ele parou diante da sala do Conselho, de costas para David. Foi imediatamente cercado por seus partidários. O grupo pôs-se a conversar ruidosamente, rindo a todo instante.
Cerca de dez minutos depois, o velho Rutter, secretário do Conselho, saiu da sala com um papel na mão. Houve silêncio no mesmo instante. Rutter parecia imensamente importante; e estava sorrindo. Quando viu o sorriso no rosto de Rutter, David prontamente sentiu um aperto no coração. Ainda sorrindo, espiando por cima dos óculos de aros de ouro, Rutter contemplou o saguão apinhado, consciente de sua importância, depois gritou os nomes dos dois candidatos.
O grupo de Joe adiantou-se rapidamente, atrás de Rutter. Wilson levantou-se, dizendo para David, com um tom de ansiedade:
- Vamos.
David levantou-se e entrou com os outros na sala do Conselho. "Não havia ordem, nenhum sentido de precedência, apenas uma tensão prevalente, um excitamento incontido.
- Por favor, senhores, por favor - Rutter repetia a todo instante. Deixem os candidatos se aproximarem.
Subiram pela escada de ferro, passaram pela sala pequena do comité, finalmente saíram para o balcão. O ar frio da noite era revigorante, depois do calor do saguão apinhado. Lá embaixo, uma enorme multidão espalhava-se pela rua. A lua passava por cima da Neptune, lançava uma débil claridade prateada sobre o mar. Um murmúrio de expectativa elevou-se da multidão à espera.
O balcão estava repleto. David foi empurrado para um canto. A seu lado, afastado de Gowlan pela confusão, estava Ramage. O gordo açougueiro olhou para David, as mãos grandes se contraindo, os olhos fundos brilhando de excitamento e desdém, sob as sobrancelhas espessas. O desejo frenético de ver David derrotado estava estampado em seu rosto.
Rutter estava agora no meio do balcão, olhando para a multidão em silêncio, com o papel na mão. Houve um momento de silêncio total, angustiante, eletrizante. Em toda a sua vida, David nunca experimentara um momento tão angustiante, tão nervoso. O coração batia furiosamente dentro do peito. Depois, a voz estridente de Rutter proclamou:
Mr. Joseph Gowlan 8.852
Mr. David Fenwick 7.490
Houve um imenso clamor, liderado por Ramage.
- Hurra! Hurra! - berrava Ramage, como um touro, acenando com os braços, extasiado.
Aclamações intermináveis povoaram o ar da noite. Os partidários de Joe estavam envolvendo-o no balcão, sufocando-o com os seus cumprimentos. David segurou-se na grade de ferro, fazendo um tremendo esforço para controlar-se. Derrotado, derrotado, derrotado! Ele levantou os olhos, viu Ramage inclinar-se em sua direção, os lábios se movendo, numa satisfação insultuosa:
- Foi vencido, com todos os diabos! Você perdeu! Perdeu tudo!
- Nem tudo - respondeu David, em voz baixa.
Mais aclamações, gritos, pedidos insistentes para que Joe falasse. Ele estava agora bem no meio do balcão, deliciando-se com a adulação da multidão excitada. Pairava acima deles, uma presença impressiva, dominante, escura contra o luar, inacreditavelmente ampliado e ameaçador. Lá embaixo, os rostos pálidos das pessoas estendiam-se à sua frente. Todas aquelas pessoas lhe pertenciam, para o seu uso, para os seus propósitos! A terra lhe pertencia, assim como o céu. Um zumbido soou à distância... um voo noturno de aviões de Rusford. Ele era um rei, era divino, o poder ilimitado lhe pertencia. E estava apenas começando. Continuaria em frente, interminavelmente. Os idiotas a seus pés haveriam de ajudá-lo. Subiria às alturas, racharia o mundo com as mãos nuas, racharia o céu com seu relâmpago. Paz e Guerra atendiam a seu chamado. O dinheiro lhe pertencia. Dinheiro, dinheiro, dinheiro... e os escravos do dinheiro. Erguendo os braços para o céu, num gesto de suprema hipocrisia, ele começou:
- Meus caros amigos...
Cinco horas na manhã fria de setembro. Ainda não havia claridade e o vento, soprando da escuridão do mar, corria pelo céu e polia as estrelas, que brilhavam intensamente. Havia silêncio nos Terraços.
E de repente, rompendo timidamente o silêncio e a escuridão, um brilho apareceu na janela de Hannah Brace. O brilho persistiu e dez minutos depois a porta se abriu e a velha Hannah saiu de casa, prendendo a respiração quando o vento gelado a envolveu. Ela usava um xale, botinas com biqueiras de ferro e um amontoado de anáguas, com papel pardo por baixo para esquentar. Um gorro de homem estava em sua cabeça, escondendo os cabelos grisalhos e desgrenhados. Sobre os ouvidos e o queixo, havia um pedaço de flanela vermelha. Levava na mão um bastão comprido. Desde que o velho tom Calder morrera de pleurisia que Hannah era a chamadora dos Terraços, bastante contente naqueles tempos difíceis pelo "pequeno extra" que o trabalho lhe proporcionava. Gingando ligeiramente, ela foi seguindo devagar pela Inkerman, um pobre destroço, escassamente humano, batendo nas janelas com o bastão, chamando os homens para o turno da manhã na mina.
Mas ela não bateu no número 23. Nunca havia necessidade de chamar no número 23, jamais, pensou Hannah, com um ar de aprovação. Hannah passou pela janela iluminada, estremecendo pelo caminho, batendo com o bastão e chamando, chamando e batendo, desaparecendo na escuridão de Sebastopol mais abaixo.
No interior da casa de número 23, Martha movia-se ativamente pela cozinha iluminada. O fogo já estava aceso, sua cama na alcova feita, a chaleira fumegando, as salsichas na frigideira. Rapidamente, ela estendeu uma toalha azul quadriculada sobre a mesa, ajeitou tudo para uma pessoa. Usava os seus 70 anos com serenidade, até mesmo com alegria e entusiasmo. Havia em seu rosto uma expressão de satisfação invencível. Desde que voltara à casa em Inkerman, sua antiga casa, seu lar, que aquela satisfação lhe ardia nos olhos, desanuviando o rosto, tornando a expressão estranhamente alegre.
Uma inspeção rápida das providências mostrou-lhe que estava tudo em ordem e um olhar para o relógio - o famoso relógio de mármore, um trofeu - indicou que eram cinco e meia. Avançando rapidamente, os pés em chinelas, ela foi até a escada e gritou para o quarto lá em cima:
- David! Cinco e meia, David!
Escutando, a cabeça ligeiramente inclinada, ela esperou até ouvi-lo se remexer lá em cima - passos firmes, o barulho de água na bacia, a tosse várias vezes repetida.
David desceu dez minutos depois, ficou parado por um momento, estendendo as mãos geladas para o fogo. Depois, sentou-se à mesa. Usava roupas de mineiro.
Martha serviu-lhe a comida sem demora, as salsichas, o pão feito em casa, um bule de chá escaldante. Havia uma ternura profunda nos olhos dela enquanto observava David comer.
- Pus um pouco de canela no chá, David. Vai acabar com a sua tosse num instante.
- Obrigado, mãe.
- Ajudava muito seu pai. Ele não dispensava o meu chá com canela.
- Sei disso, mãe.
David não olhou imediatamente. Mas, um instante depois, levantando a cabeça subitamente, pegou-a desprevenida. A expressão de Martha, desguarnecida, era espantosa em sua devoção. Rapidamente, quase constrangido, David desviou os olhos. Pela primeira vez, ao que podia se recordar, via o amor por ele estampado abertamente no rosto da mãe. Para disfarçar seus sentimentos, ele continuou a comer, inclinando-se sobre a mesa, tomando o chá fumegante. Ele sabia o motivo daquele comportamento da mãe... era porque estava outra vez trabalhando na mina. Ao longo de todos aqueles anos de estudos, como professor, de trabalho na Federação, até mesmo no Parlamento, Martha fechara-lhe o coração. Mas agora que ele fora compelido a voltar à Neptune, ela o encarava realmente como seu filho, seguindo a tradição do pai, uma realidade, um homem finalmente.
Não fora um instinto de bravata que o levara a voltar à mina, mas o fato puro e amargo da necessidade. David fora obrigado a encontrar trabalho e bem depressa. Descobrira como isso era inacreditavelmente difícil. Não havia agora um lugar para ele nos escritórios da Federação, por causa dos antagonismos que provocara. Não tinha a menor possibilidade de voltar à antiga profissão de professor. Fora compelido a retornar à mina, entrando na fila, postando-se diante de Arthur, o supervisor, suplicando por um emprego debaixo da terra. O infortúnio não ocorrera somente a ele. Sua situação difícil estava longe de ser singular. A derrota fragorosa dos trabalhistas nas eleições deixara muitos outros candidatos vencidos numa situação desesperada. Ralston era agora escriturário numa agência de navegação em Liverpool, Bond era assistente de um fotógrafo em Leeds, Davis, o bom e velho Jack Davis, tocava piano num cinema. Como era diferente a situação dos renegados! David sorriu sombriamente, pensando em Dudgeon, Chalmers, Bebbington e todos os outros, deleitando-se com a popularidade nacional, tranquilamente endossando uma política que era contrária a todas as convicções trabalhistas. Bebbington, em particular, noticiado e com fotografias em todos os jornais, falando por todas as emissoras de rádio uma semana antes, um discurso nobre, retumbante de chavões e chauvinismo, estava sendo aclamado como o salvador da pátria.
Abruptamente, David arrastou a cadeira no chão e estendeu a mão para o cachecol, pendurado num prego da parede. De costas para o fogo, ajeitou-o em torno do pescoço. Depois, amarrou as botinas, batendo-as no chão de pedra. Martha já aprontara o seu lanche, a garrafa cheia de chá, devidamente arrolhada. Ao lhe entregar tudo, ela sorriu, tirando uma maçã vermelha da blusa e polindo-a, até que estivesse brilhando.
- Sempre gostou de uma maçã, Davey. Lembrei disso quando estive na cooperativa ontem.
- É mesmo, mãe. - David retribuiu o sorriso, ao mesmo tempo comovido e divertido com a solicitude da mãe. - Mas não estou ganhando muito atualmente.
Ela sacudiu a cabeça, num gesto de censura. E, depois, disse:
- Não se esqueça de trazer Sammy para casa esta noite. vou fazer um bolo de passa esta manhã.
- Mas Annie vai ficar contra você, mãe, se continuar a roubar-lhe Sammy em todas as refeições.
Martha desviou os olhos do filho. Não havia rancor em seu rosto, apenas um vago constrangimento.
- Está bem - murmurou ela, finalmente. - Se é assim que ela sente, então é melhor trazê-la também. Não posso deixar que o meu Sammy tenha o seu primeiro dia de trabalho na mina sem lhe servir depois um bolo de passa.
Ela fez uma pausa, atenuando a suavidade com uma pretensão de severidade.
- Está me ouvindo, rapaz? Peça à mulher para vir também!
- Está certo, mãe - respondeu David, encaminhando-se para a porta.
Mas ela tinha de acompanhá-lo, abrir a porta pessoalmente. Sempre fazia isso por David agora, era o sinal mais alto de sua consideração. Olhando atentamente pela escuridão, Martha respondeu ao aceno final do filho com um movimento lento da cabeça. Continuou parada na porta, com uma das mãos no quadril, observando-o afastar-se pela Inkerman. Somente depois que ele desapareceu é que Martha fechou a porta e voltou para o calor da cozinha. No mesmo instante, embora ainda fosse muito cedo, ela começou a trabalhar, com uma intensa alegria, preparando o bolo, pegando a farinha de trigo, as passas, ajeitando tudo, ansiosamente, ternamente, a fim de fazer o bolo para Sammy. Bem que tentou disfarçar, mas não podia, a expressão de felicidade persistia, triunfante, em seu rosto moreno e orgulhoso.
Davíd foi seguindo pelos Terraços, os passos ressoando, junto com outros passos, no amanhecer gelado. Vultos indefinidos acompanhavam-no, num clima de camaradagem. Soavam palavras abafadas de cumprimento: "Como está, Ned?" "Olá, tom." "Oi, Davey." De um modo geral, porém, havia silêncio. Passos pesados, cabeças abaixadas, a brasa de um cachimbo aqui e ali, uma formação furtiva, a marcha dos homens do amanhecer.
Desde que voltara à Neptune que David sentia intensamente aquele momento. Podia ter fracassado na vanguarda da batalha, mas estava marchando com os homens. Não se traíra nem a eles. O destino deles estava preso ao seu, o futuro deles era também o seu. O pensamento incutiu-lhe coragem. Talvez um dia ele tornasse a emergir da mina, talvez um dia contribuísse para levar aquele exército para uma nova liberdade. Instintivamente, David levantou a cabeça.
Em frente à Quay Street, ele atravessou e bateu na porta de uma das casas. Sem esperar por uma resposta, virou a maçaneta, abaixou a cabeça e entrou. Aquela cozinha também tinha um fogo firme. E Sammy, pronto até a ponta das botinas, esperava impacientemente, de pé no meio da cozinha, enquanto Annie, sua mãe, observava-o em silêncio.
- Ficou pronto na hora, Sammy - disse David, jovialmente. - Eu estava com medo de ser obrigado a arrancá-lo da cama.
Sammy sorriu, os olhos azuis desaparecendo de puro excitamento. Ele não era muito alto para os seus 14 anos, mas compensava em animação, emocionado com a grande aventura de seu primeiro dia na mina.
- Ele mal conseguiu dormir durante a noite, de tanto que pensava no trabalho - disse Annie, adiantando-se. - E me acordou muito cedo.
- Ele parece um mineiro de verdade. - David sorriu. - Tenho muita sorte de tê-lo como meu ajudante, Annie.
- Cuide bem dele, Davey - murmurou Annie.
- Oh, mãe! - protestou Sammy, ficando vermelho.
- Pode deixar que tomarei conta dele, Annie - prometeu David, calmamente. - Não se preocupe.
Ele olhou para Annie, cujo rosto pálido estava agora iluminado pelo clarão do fogo, o botão de cima da blusa desabotoado, revelando a garganta lisa. O corpo de Annie, empertigado mesmo em repouso, tinha força e suavidade. A sua ansiedade por Sammy, apenas meio disfarçada, fazia com que parecesse curiosamente jovem e inexperiente. Subitamente, o coração de David encheu-se de afeição por ela. Como Annie era corajosa, como era honesta e altruísta! Possuía uma nobreza de verdade.
- Por falar nisso - acrescentou David, procurando disfarçar sua emoção com um tom de indiferença - você e Sammy estão convidados para o jantar esta noite. Vai ser um verdadeiro banquete.
Silêncio.
- Fui mesmo convidada, Davey?
Ele assentiu, vigorosamente, com uma expressão jovial.
- Foram as palavras de minha mãe.
A ansiedade desapareceu do rosto de Annie; ela baixou os olhos. David podia perceber que ela se sentia profundamente grata por aquele reconhecimento tardio da velha Martha.
- Terei o maior prazer em ir, Davey.
Sammy já estava na porta, ansioso em partir. Virou a maçaneta, sugestivamente. David seguiu-o para fora da casa, depois de despedir-se rapidamente de Annie. Foram descendo pela rua, lado a lado, a caminho da mina. David estava calado a princípio, imerso em seus pensamentos. A expressão nos olhos de Annie, enquanto contemplava Sammy, havia-o inspirado estranhamente. Coragem e esperança, pensava ele, coragem e esperança.
Passaram pela loja de Ramage. Quando deixassem a Neptune, no final do turno, a porta estaria aberta, com Ramage plantado ali, esperando para regozijar-se com a humilhação de David. Todos os dias, naquelas quatro semanas, Ramage esperara, perversamente exultante, desfrutando até a última gota de seu triunfo.
E agora David e Sammy aproximaram-se do pátio da mina. Deram uma pequena volta para evitar alguns caminhões, nos quais estava escrito, em letras grandes e brancas, MAWSON & GOWLAN. Seguiram em frente, uma parte do fluxo em lento movimento de homens. Acima deles, assomando na escuridão, erguiam-se os novos guindastes da Neptune, mais altos que os antigos, dominando a cidade, a enseada e o mar. David lançou um rápido olhar para Sammy, cujo rosto perdera agora um pouco de sua exuberância, intimidado pela proximidade do grande acontecimento. Chegando mais perto do rapaz, David começou a falar-lhe, desviando-lhe a atenção para outras coisas.
- Vamos pescar no sábado, Sammy. Setembro é sempre um bom mês no Wansbeck. Vamos pegar algumas minhocas em Middlerig e depois iremos pescar. Aceita, Sammy?
- Oh, Tio Davey!
Os olhos ansiosos, mas ainda apreensivos de Sammy, estavam fixados nas instalações.
- E quando voltarmos, Sammy, pode ter certeza de que vou lhe pagar um pastel e uma limonada na loja da velha Sra. Chorou.
- Oh, Tio Davey! - Os olhos fascinados ainda estavam fixados na entrada do poço. Depois, falando muito depressa, ele acrescentou: - É-muito escuro quando se desce, não é mesmo?
David sorriu, encorajadoramente.
- Nem tanto assim, companheiro. E, de qualquer forma, você não vai demorar a se acostumar.
Juntos, eles atravessaram o pátio. Acompanhando os outros, subiram os degraus para a gaiola. Protegendo Sammy, David conduziu-o em segurança entre o amontoado de homens no grande elevador de aço da mina. Sammy comprimiu-se bem perto de David agora, dentro da gaiola. Sua mão procurou a de David.
- Desceu muito depressa? - sussurrou ele, sentindo as palavras arranharem na garganta.
- Não muito depressa - sussurrou David em resposta. - Basta prender a respiração na primeira vez. Não é tão ruim assim.
Um silêncio. Um clangor quando a barra da gaiola foi ajustada no lugar. Outro silêncio. O som de uma campainha distante. Os homens ficaram parados ali, apertados dentro da gaiola, em silêncio, na semi-escuridão do amanhecer. Acima deles, erguiam-se as instalações de metal da mina, dominando a cidade, a enseada, o mar. Abaixo deles, como uma tumba, estava a escuridão oculta da terra. A gaiola baixou. Caiu subitamente, rapidamente, pela escuridão oculta. E o barulho de sua queda ergueu-se daquela escuridão como um imenso suspiro, que se elevou para as estrelas distantes.
A. J. Cronin
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