Biblio "VT"
TOCA A MÚSICA DAQUELA BANDA MORTA
Quando Linda e Jackie voltaram da delegacia, Rusty e as meninas estavam sentados nos degraus da frente à sua espera. As Jotinhas ainda estavam de pijama — os leves, de algodão, não os de flanela que costumavam usar naquela época do ano. Embora ainda nem fosse sete da manhã, o termômetro do lado de fora da janela da cozinha marcava 19 graus.
Normalmente, as duas meninas teriam descido correndo o caminho para abraçar a mãe bem antes de Rusty, mas nessa manhã ele as venceu por vários metros. Agarrou Linda pela cintura e ela jogou os braços no pescoço dele com força quase dolorosa — não um abraço de oi-bonitão, mas o agarramento de um afogado.
— Tá tudo bem com você? — sussurrou ele no ouvido dela.
O cabelo dela se esfregou para cima e para baixo no rosto dele quando ela fez que sim. Depois, Linda se afastou. Os seus olhos brilhavam.
— Eu tinha certeza de que o Thibodeau iria olhar os flocos de milho, foi idéia da Jackie cuspir lá dentro, foi genial, mas eu tinha certeza...
— Por que a mamãe tá chorando? — perguntou Judy. Parecia prestes a chorar também.
— Não tou — disse a mãe, e enxugou os olhos. — É, talvez só um pouquinho. Porque eu tou muito feliz de ver o papai.
— Nós tamos todas felizes de ver o papai! — disse Janelle a Jackie. — Porque o papai, ELE É O CHEFE!
— Novidade pra mim — disse Rusty, depois beijou Linda na boca, com força.
— Beijo na boca! — disse Janelle, fascinada. Judy cobriu os olhos e riu.
— Vamos, meninas, balanço — disse Jackie. — Depois, vistam-se pra ir pra escola.
— QUERO IR LÁ NO ALTO! — gritou Janelle, correndo na frente.
— Escola? — perguntou Rusty. — É isso mesmo?
— Isso mesmo — disse Linda. — Só os pequenos, na Escola Gramatical da rua Leste. Meio horário. Wendy Goldstone e Ellen Vanedestine se apresentaram como voluntárias pra dar aulas. Do jardim ao terceiro ano numa sala, do quarto ao sexto em outra. Não sei se vai haver algum aprendizado, mas vai dar às crianças um lugar pra ir e um clima de normalidade. Talvez. — Ela olhou o céu, que estava sem nuvens, mas assim mesmo tinha um tom amarelado. Como um olho azul ficando com catarata, pensou. — Eu adoraria um pouco de normalidade. Olha o céu.
Rusty deu uma olhada rápida e segurou a mulher com os braços esticados para poder examiná-la.
— Vai continuar com isso? Tem certeza?
— Tenho. Mas foi por pouco. Esse tipo de coisa pode ser divertido em filmes de espionagem, mas na vida real é horrível. Não vou tirar ele de lá, querido. Por causa das meninas.
— Os ditadores sempre usam as crianças como reféns — disse Rusty. — Alguma hora alguém tem que dizer que isso não funciona mais.
— Mas não aqui e não agora. Foi ideia da Jackie, então ela que cuide disso. Não vou participar e não vou deixar você participar. — Mas ele sabia que, se exigisse isso dela, ela faria o que ele pedisse; era essa a expressão por trás da expressão. Se isso o transformava em chefe, não era o que ele queria ser.
— Vai trabalhar? — perguntou ele.
— É claro. As crianças vão pra Marta, Marta leva as meninas à escola, Linda e Jackie se apresentam pra mais um dia de trabalho na polícia debaixo da Redoma. Qualquer outra coisa pareceria esquisita. Detesto ter que pensar assim. — Ela soltou a respiração. — E também estou cansada. — Deu uma olhada para ver se as meninas conseguiriam escutar. — Fodida de tão exausta. Mal consegui dormir. Você vai pro hospital?
Rusty fez que não.
— Ginny e Twitch vão ficar sozinhas ao menos até o meio-dia... apesar de que, com aquele sujeito novo pra ajudar, acho que tudo vai dar certo. Thurston é meio Nova Era, mas é bom. Vou até a casa de Claire McClatchey. Preciso conversar com os garotos e preciso ir até onde acharam o pico de radiação no contador Geiger.
— O que eu digo a quem perguntar onde você está?
Rusty pensou um pouco.
— A verdade, eu acho. Ao menos parte dela. Diz que eu estou investigando um possível gerador da Redoma. Isso vai fazer o Rennie pensar duas vezes no próximo passo que estiver planejando.
— E se perguntarem onde? Porque vão perguntar.
— Diz que não sabe, mas que acha que é no lado oeste da cidade.
— Serra Negra fica ao norte.
— Isso. Se o Rennie mandar o Randolph enviar alguns policiais, eu quero que vão pro lugar errado. Se depois alguém te cobrar, diz só que estava cansada e deve ter se confundido. E escuta, querida: antes de ir pra delegacia, faz uma lista das pessoas que podem acreditar que o Barbie é inocente dos assassinatos. — Pensando de novo nós e eles. — Precisamos conversar com essas pessoas antes da assembleia de amanhã. Muito discretamente.
— Rusty, tem certeza disso? Porque depois do incêndio de ontem à noite, a cidade inteira vai estar atrás dos Amigos de Dale Barbara.
— Se eu tenho certeza? Claro. Se eu gosto disso? Com toda a certeza não.
Ela olhou de novo o céu tingido de amarelo, depois os dois carvalhos no jardim da frente, as folhas pendendo moles e imóveis, cores vivas desbotando num marrom sem graça. E suspirou.
— Se o Rennie armou pra cima do Barbara, é provável que tenha mandado queimar o jornal. Você sabe disso, não é?
— Sei.
— E se a Jackie conseguir tirar o Barbara da cadeia, vai esconder ele onde? Que lugar da cidade é seguro?
— Vou ter que pensar nisso.
— Se você conseguir achar e desligar o gerador, toda essa babaquice de 007 se torna desnecessária.
— Reza pra isso acontecer.
— Vou rezar. E a radiação? Não quero que você tenha leucemia nem nada desse tipo.
— Tenho uma idéia sobre isso.
— Posso perguntar?
Ele sorriu.
— Talvez não. É bem maluca.
Ela entrelaçou os dedos nos dele.
— Toma cuidado.
Ele a beijou de leve.
— Você também.
Olharam Jackie empurrando as meninas nos balanços. Tinham muita razão para ter cuidado. Ainda assim, Rusty achou que o risco estava entrando na sua vida como fator importante. Isto é, se queria continuar olhando o seu reflexo quando se barbeasse pela manhã.
Horace, o corgi, gostava de ração de gente.
Na verdade, Horace, o corgi, adorava ração de gente. Por estar meio gordinho (além do focinho um pouco grisalho nos últimos anos), não devia comê-la e Julia interrompera totalmente a alimentação com comida da mesa depois que o veterinário lhe disse sem rodeios que aquela generosidade encurtaria a vida do seu companheiro de casa. Essa conversa acontecera havia 16 meses; desde então, Horace ficara restrito à ração premium e, de vez em quando, uma guloseima canina dietética. As guloseimas pareciam plástico-bolha de isopor e, a julgar pelo olhar de censura de Horace antes de comê-las, ela também desconfiava que talvez tivessem gosto de plástico-bolha. Mas ela manteve a linha: nada de pele de frango frita, nada de salgadinhos de queijo, nada de pedacinhos da rosquinha matutina dela.
Para Horace, isso limitava a ingestão de comestíveis verboten, mas não lhe dava fim por completo; a dieta imposta simplesmente o obrigou a procurar comida, coisa de que Horace gostava bastante, porque lhe devolvia a natureza dos seus ancestrais caçadores de raposa. Os passeios da manhã e da noite eram especialmente ricos em delícias culinárias. Era espantoso o que as pessoas deixavam nas sarjetas da rua Principal e da rua Oeste, que constituíam a rota normal do seu passeio. Havia batatas fritas, batatinhas chips, biscoitos de manteiga de amendoim, de vez em quando um papel de sorvete com um pouco de chocolate ainda grudado. Certa vez ele encontrou uma torta Table Talk inteirinha. Ela sumiu do prato e entrou no seu estômago antes que se pudesse dizer colesterol.
Ele não conseguia abocanhar todas as delícias que encontrava; às vezes Julia via o que ele estava tentando pegar e o puxava pela guia antes que pudesse ingerir. Mas muito ele conseguia, porque geralmente Julia passeava com ele levando um livro ou um exemplar dobrado do New York Times na outra mão. Ser ignorado a favor do Times nem sempre era bom — quando ele queria uma boa coçadinha na barriga, por exemplo —, mas nos passeios a ignorância era uma bênção. Para os pequenos corgis amarelos, ignorância significa guloseima.
Naquela manhã ele estava sendo ignorado. Julia e a outra mulher — a que era dona da casa, porque o cheiro dela estava por toda parte, principalmente na vizinhança do quarto onde os seres humanos vão deixar as fezes e marcar o território — estavam conversando. Uma vez a outra mulher chorou, e Julia a abraçou.
— Estou melhor, mas não totalmente melhor — disse Andrea. Estavam na cozinha. Horace sentia o cheiro do café que tomavam. Café frio, não quente. Também sentia cheiro de bolinhos. O tipo que tem cobertura. — Eu ainda tenho vontade. — Se ela estava falando de bolinhos com cobertura, Horace também.
— A vontade pode durar muito tempo — disse Julia —, e essa nem é a parte mais importante. Eu louvo a sua coragem, Andi, mas o Rusty estava certo: a frio é tolice, é perigoso. Você teve muita sorte de não ter sofrido uma convulsão.
— Pelo que eu sei, sofri, sim. — Andrea tomou um pouco de café. Horace ouviu o gole. — Venho tendo sonhos muito vivos. Um deles foi com um incêndio. Bem grande. No Halloween.
— Mas você está melhor.
— Um pouco. Estou começando a achar que posso conseguir. Julia, você é bem-vinda aqui pra ficar comigo, mas eu acho que há lugares melhores. O cheiro...
— A gente pode dar um jeito no cheiro. Arranjamos um ventilador a pilha no Burpee. Se cama e mesa for mesmo uma oferta, e incluir Horace, eu cuido disso pra você. Quem quer largar o vício não devia fazer isso sozinho.
— Acho que não há outro jeito, querida.
— Você sabe o que eu quero dizer. Por que fez isso?
— Porque, pela primeira vez desde que fui eleita, essa cidade pode precisar de mim. E porque Jim Rennie ameaçou me tirar os comprimidos se eu fizesse objeção aos planos dele.
Horace não deu mais atenção ao resto. Estava mais interessado num cheiro que chegava ao seu nariz sensível vindo do espaço entre a parede e uma das pontas do sofá. Era nesse sofá que Andrea gostava de se sentar em dias melhores (embora consideravelmente mais medicados), às vezes assistindo a programas como Os caçados (continuação inteligente de Lost) e Dança dos famosos, às vezes um filme na HBO. Nas noites de cinema, ela costumava comer pipoca de micro-ondas. Punha a terrina na mesinha de canto. Como viciados raramente são asseados, caía pipoca debaixo da mesa. Fora isso que Horace farejara.
Deixando as mulheres no seu blá, ele se enfiou debaixo da mesinha até aquele espaço. Era um lugar estreito, mas a mesinha de canto formava uma ponte natural e ele era um cão bastante estreito também, principalmente depois de entrar na versão corgi dos Vigilantes do Peso. Os primeiros piruás estavam logo depois do arquivo VADER, ali caído no seu envelope pardo. Na verdade, Horace estava em pé sobre o nome da sua dona (escrito com a letra bonita da falecida Brenda Perkins) e aspirava os primeiros pedacinhos de um tesouro surpreendentemente rico quando Andrea e Julia voltaram à sala.
Uma mulher disse: Leva isso pra ela.
Horace ergueu os olhos, orelhas em pé. Aquela não era Julia nem a outra mulher; era uma vozmorta. Horace, como todos os cães, ouvia vozes mortas com bastante frequência, e às vezes via seus donos. Os mortos estavam por toda parte, mas gente viva não os via, assim como não sentia a maior parte dos 10 mil aromas que havia ao redor em todos os minutos de todos os dias.
Leva isso pra Julia, ela precisa disso, é dela.
Isso era ridículo. Julia jamais comeria nada que tivesse passado pela boca dele, Horace sabia disso pela longa experiência. Mesmo que ele empurrasse com o focinho ela não comeria. Era ração de gente, tudo bem, mas agora também era ração de chão.
A pipoca, não. O...
— Horace? — perguntou Julia naquela voz aguda que dizia que ele estava se comportando mal, como em Ah, seu cachorro danado, você sabe muito bem, blá-blá-blá. — O que você tá fazendo aí atrás? Vem pra cá!
Horace deu marcha a ré. Mostrou o seu sorriso mais encantador — caramba, Julia, como eu te adoro —, torcendo para não haver pipoca presa na ponta do focinho. Conseguira alguns pedaços, mas sentia que o veio principal lhe escapara.
— Andou catando comida?
Horace sentou-se, olhando-a com a expressão certa de adoração. Que ele sentia mesmo; ele a amava muitíssimo.
— Uma pergunta melhor seria o que você andou comendo? — Ela se curvou para olhar no espaço entre o sofá e a parede.
Antes que conseguisse, a outra mulher começou a ter ânsias de vômito. Cruzou os braços em torno do corpo na tentativa de impedir um ataque de tremores, mas não adiantou. O seu cheiro mudou, e Horace soube que ela ia vomitar. Ele observava com atenção. Às vezes vômito de gente tinha coisas boas.
— Andi? — perguntou Julia. — Você tá bem?
Que pergunta estúpida, pensou Horace. Não está sentindo o cheiro? Mas essa pergunta também era estúpida. Julia mal conseguia sentir o próprio cheiro quando estava suada.
— Estou. Não. Eu não devia ter comido aquele pãozinho de passas. Vou...
Ela saiu correndo da sala. Para aumentar os cheiros que vinham do lugar de cagar-mijar, supôs Horace. Julia foi atrás. Por um instante Horace pensou em se espremer de volta debaixo da mesa, mas farejou a preocupação de Julia e preferiu correr nos seus calcanhares.
Já esquecera tudo sobre a vozmorta.
Do carro, Rusty ligou para Claire McClatchey. Era cedo, mas ela atendeu ao primeiro toque, e ele não ficou surpreso. Naqueles dias, ninguém em Chester’s Mill estava dormindo muito, ao menos não sem ajuda farmacológica.
Ela prometeu estar com Joe e os amigos em casa às 8h30 no máximo, ela mesma os buscaria se necessário. Em voz mais baixa, disse:
— Acho que o Joe está caidinho pela garota dos Calvert.
— Seria um bobo se não estivesse — disse Rusty.
— O senhor vai ter que levar eles até lá?
— Vou, mas não na zona de radiação alta. Isso eu prometo, sra. McClatchey.
— Claire. Se vou deixar o meu filho ir com você até uma área onde parece que os animais se suicidam, acho que seria bom nos tratarmos por você.
— Então você leva Benny e Norrie pra sua casa e eu prometo cuidar deles na ida ao local. Assim está bom?
Claire disse que estava. Cinco minutos depois de desligar, Rusty saía da estrada de Motton, estranhamente deserta, e entrava na travessa Drummond, uma ruinha ladeada pelas casas mais bonitas de Eastchester. A mais bonita de todas era a que tinha BURPEE na caixa do correio. Logo em seguida, Rusty estava na cozinha dos Burpee, tomando café (quente; o gerador dos Burpee ainda funcionava), com Romeo e a mulher, Michela. Ambos pareciam pálidos e desgostosos. Rommie estava vestido, Michela ainda de roupão.
— Acha que foi mesmo o tal Barbie que matou a Bren? — perguntou Rommie. — Porrque se foi, mon ami, eu mesmo mato ele.
Michela pôs a mão sobre o seu braço.
— Você não é tão burro assim, querido.
— Acho que não — disse Rusty. — Acho que armaram pra cima dele. Mas se você disser pra alguém que eu disse isso, nós vamos arranjar encrenca.
— Rommie sempre amou aquela mulher. — Michela sorria, mas havia gelo na sua voz. — Às vezes, acho que mais do que a mim.
Rommie não confirmou nem negou; na verdade, parecia nem ter escutado. Inclinou-se na direção de Rusty, os olhos castanhos penetrantes.
— Do que você está falando, doutorr? Armarram como?
— Agora não é hora de falar nisso. Estou aqui por outra razão. E temo que também seja secreta.
— Então não quero escutar — disse Michela. Ela saiu da cozinha, levando consigo a xícara de café.
— Hoje à noite não terrei mulher amorrosa — disse Rommie.
— Sinto muito.
Rommie deu de ombros.
— Tenho outrra, do outrro lado da cidade. Misha sabe, mas não admite. Diga qual o outrro negócio, doutor.
— Uns garotos acham que encontraram o que está gerando a Redoma. São jovens, mas inteligentes. Eu confio neles. Levaram um contador Geiger e encontraram um pico de radiação na estrada da Serra Negra. Não na zona de perigo, mas eles não chegaram muito perto.
— Perto do quê? O que eles viram?
— Uma luz roxa piscando. Sabe onde fica o velho pomar?
— Orra, é clarro. A prroprriedade dos McCoy. Eu costumava ir lá com as garrotas. Dá prra ver a cidade inteirra. Eu tinha um Willys velho... — Ele ficou saudoso um instante. — Ah, não imporrta. Só uma luz piscando?
— Também encontraram vários animais mortos... alguns veados, um urso. Os garotos acharam que tinham se suicidado.
Rommie o olhou muito sério.
— Eu vou com você.
— Tudo bem... até certo ponto. Um de nós tem que ir até o fim, e esse devo ser eu. Mas eu preciso de uma roupa contra radiação.
— No que você está pensando, doutor?
Rusty lhe disse. Quando terminou, Rommie puxou um maço de Winston e ofereceu-o por cima da mesa.
— O meu aperitivo predileto — disse Rusty, e pegou um. — Então, o que acha?
— Ah, posso ajudar — disse Rommie, acendendo os cigarros. — Tenho tudo naquela minha loja, como todo mundo nessa cidade sabe très bien. — Apontou o cigarro para Rusty — Mas não vai querrer fotos suas no jorrnal, porque vai ficar muito engrraçado.
— Não estou preocupado com isso — disse Rusty. — O jornal pegou fogo ontem à noite.
— Eu soube — disse Rommie. — Aquele tal Barbarra de novo. Os amigos dele.
— Acredita nisso?
— Ah, sou uma alma crrédula. Quando Bush disse que tinha bomba atômica no Irraque, eu acrreditei. Disse prra todo mundo: “Ele é o carra que sabe.” Também acrredito que Oswald agiu sozinho prra matar Kennedy.
Na outra sala, Michela gritou:
— Para de falar esse lixo de francês falsificado!
Rommie deu a Rusty um sorriso que dizia Olha o que eu tenho que aguentar.
— Claro, querida — disse ele, sem absolutamente nenhum vestígio do sotaque de Pierre. Depois, encarou Rusty outra vez. — Deixa o carro aqui. Vamos na minha van. Tem mais espaço. Você me deixa na loja e vai buscar os garotos. Eu monto a sua roupa contra radiação. Quanto às luvas... Não sei.
— Temos luvas forradas de chumbo no armário da sala de radiografia do hospital. Vão até o cotovelo. Posso arranjar um dos aventais...
— Boa idéia, detesto ver você pôr em risco a sua contagem de espermatozoides...
— Também deve haver alguns pares de óculos forrados de chumbo que os técnicos e radiologistas usavam na década de 1970. Mas talvez tenham jogado fora. Só espero que a contagem de radiação não suba muito além da última leitura dos garotos, que ainda estava no verde.
— Só que você disse que eles não chegaram muito perto.
Rusty suspirou.
— Se a agulha daquele contador Geiger chegar a oitocentos ou mil por segundo, a preservação da minha fertilidade vai ser a menor preocupação.
Antes de partirem, Michela, agora vestindo minissaia e um suéter espetacularmente justo, voltou à cozinha e censurou o marido por ser um idiota. Ia lhes arranjar encrenca. Já fizera isso antes e faria de novo. Só que agora o problema podia ser maior do que ele pensava.
Rommie a abraçou e falou com ela com um francês rápido. Ela respondeu na mesma língua, cuspindo as palavras. Ele respondeu. Ela bateu o punho duas vezes no ombro dele, depois chorou e o beijou. Lá fora, Rommie virou-se para Rusty com cara de quem pede desculpas e deu de ombros.
— Ela não consegue evitar — disse. — Tem alma de poeta e a estrutura emocional de um cachorro de ferro-velho.
Quando Rusty e Romeo Burpee chegaram à loja de departamentos, Toby Manning já estava lá, esperando para abrir as portas e servir ao público, se fosse do agrado de Rommie. Petra Searles, que trabalhava na drogaria do outro lado da rua, estava sentada junto dele. Estavam em cadeiras de jardim com etiquetas dizendo GRANDE LIQUIDAÇÃO DE VERÃO penduradas nos braços.
— Acho que você não vai querer conversar sobre essa roupa contra radiação que vai montar antes das... — Rusty olhou o relógio — dez horas?
— Melhor não — disse Rommie. — Você me chamaria de maluco. Pode ir, doutor. Vai buscar as luvas, os óculos e o avental. Conversa com os garotos. Me dá algum tempo.
— Vamos abrir, chefe? — perguntou Toby quando Rommie saiu do carro.
— Não sei. Talvez à tarde. Vou ficar um pouco ocupado agorra de manhã.
Rusty foi embora. Só quando chegou à ladeira da praça da Cidade percebeu que Toby e Petra usavam braçadeiras azuis.
Ele achou luvas, aventais e um par de óculos forrados de chumbo nos fundos do armário da radiografia, cerca de dois segundos antes de desistir. O elástico dos óculos estava arrebentado, mas ele achou que Rommie conseguiria prendê-lo de volta. Como bônus, não teria de explicar a ninguém o que estava fazendo. O hospital inteiro parecia dormir.
Voltou lá para fora, farejou o ar — parado, com um toque desagradável de fumaça — e olhou para oeste, para a mancha preta pendente onde os mísseis tinham se chocado. Parecia um tumor de pele. Sabia que estava se concentrando em Barbie e em Big Jim e nos assassinatos porque eram o elemento humano, coisas que ele meio que entendia. Mas ignorar a Redoma seria um erro — um erro potencialmente catastrófico. Ela tinha que sumir, e logo, senão seus pacientes com asma e doença pulmonar obstrutiva crônica começariam a ter problemas. E eles seriam só os canários das minas de carvão. [Referência à prática de mineiros de carvão ingleses e americanos de levarem canários para dentro das minas, disseminada até o início do século XX. Os pássaros, mais frágeis que os humanos, sentiam antes o efeito da inalação de gases como metano e monóxido de carbono. Seu adoecer servia de aviso aos mineiros para que se protegessem ou saíssem da mina]
Aquele céu manchado de nicotina.
— Nada bom — murmurou, e jogou o material que catara na traseira da van. — Nada bom mesmo.
As três crianças estavam na casa dos McClatchey quando ele lá chegou, e estranhamente caladas para garotos que seriam aclamados como heróis nacionais até o final daquela quarta-feira de outubro, caso a sorte os favorecesse.
— Aí, rapazes, prontos? — perguntou Rusty, com mais animação do que sentia. — Antes de irmos até lá vamos ter que passar no Burpee, mas isso não deve de...
— Antes, eles têm algo a te contar — disse Claire. — Meu Deus, eu preferia que não tivessem. Isso está ficando cada vez pior. Quer um copo de suco de laranja? Estamos tentando tomar tudo antes que estrague.
Rusty ergueu o polegar e o indicador como quem diz “só um pouco”. Nunca gostara muito de suco de laranja, mas queria que ela saísse da sala e sentiu que ela queria sair. Parecia pálida e soava assustada. Não achava que fosse por causa do que os garotos tinham encontrado na Serra Negra; era outra coisa.
Bem o que eu estou precisando, pensou ele.
Quando ela saiu, Rusty disse:
— Contem logo.
Benny e Norrie se viraram para Joe. Ele suspirou, afastou o cabelo da testa, suspirou de novo. Havia pouca semelhança entre esse adolescente sério e o garoto que brandia cartazes e agitava todo mundo no pasto de Alden Dinsmore três dias antes. O rosto estava tão pálido quanto o da mãe, e algumas espinhas — talvez as primeiras— tinham aparecido na testa. Rusty já vira erupções assim. Eram causadas pelo estresse.
— O que é, Joe?
— Todo mundo diz que eu sou inteligente — disse Joe, e Rusty se alarmou ao ver que o garoto estava à beira das lágrimas. — Acho que eu sou, mas às vezes preferiria não ser.
— Não se preocupa — disse Benny —, você é burro num monte de coisas importantes.
— Cala a boca, Benny — disse Norrie com gentileza.
Joe nem notou.
— Com 6 anos, eu conseguia vencer o meu pai no xadrez, e a minha mãe quando eu tinha 8. Tirava 10 na escola. Sempre vencia a Feira de Ciências. Escrevo os meus programas de computador há dois anos. Não estou me gabando. Eu sei que sou nerd. — Norrie sorriu e pôs a mão sobre a dele. Ele a segurou. — Mas é que eu só faço ligações, entende? É só isso. Se A, então B. Se não A, então B vai almoçar. E talvez o alfabeto todo.
— O que exatamente você está querendo dizer, Joe?
— Eu não acho que o cozinheiro cometeu esses assassinatos. Quer dizer, nós não achamos.
Ele se sentiu aliviado quando Norrie e Benny concordaram. Mas isso não foi nada perto do olhar de alegria (misturada com incredulidade) que surgiu no seu rosto quando Rusty disse:
— Nem eu.
— Eu falei que ele era foda — disse Benny. — Também dá uns pontos maneiros.
Claire voltou com o suco num copinho minúsculo. Rusty tomou um golinho. Quente, mas tomável. Sem gerador, amanhã não seria.
— Por que você acha que não foi ele? — perguntou Norrie.
— Vocês primeiro. — O gerador na Serra Negra se esgueirara momentaneamente para os fundos da mente de Rusty.
— A gente viu a sra. Perkins ontem de manhã — disse Joe. — Nós távamos na praça da Cidade, começando a procurar com o contador Geiger. Ela tava subindo o morro da praça.
Rusty pôs os óculos na mesa junto à cadeira e se inclinou à frente com as mãos cruzadas entre os joelhos.
— Que horas eram?
— O meu relógio parou lá na Redoma, no domingo, por isso não sei com certeza, mas aquela baita briga no supermercado tava acontecendo quando a gente viu ela. Então tinha que ser, tipo, 9h15. Não mais do que isso.
— Nem menos. Porque o quebra-quebra estava acontecendo. Vocês escutaram.
— É — disse Norrie. — Era um barulhão.
— E tem certeza de que era Brenda Perkins? Não podia ser nenhuma outra mulher? — O coração de Rusty batia com força. Se ela fora vista com vida durante o quebra-quebra, então Barbie estava mesmo limpo.
— Todos nós conhecemos ela — disse Norrie. — Ela foi até minha chefe bandeirante antes de eu sair. — Que, na verdade, ela tivesse sido expulsa por fumar não parecia relevante, logo, ela o omitiu.
— E mamãe me contou o que as pessoas estão falando sobre os crimes — disse Joe. — Ela me contou tudo o que ela sabia. Sabe, as plaquinhas de identificação.
— Mamãe não queria contar tudo o que ela sabia — disse Claire —, mas o meu filho sabe ser muito insistente e isso parecia importante.
— E é — disse Rusty. — Aonde a sra. Perkins foi?
Essa foi Benny que respondeu.
— Primeiro até a casa da sra. Grinnel, mas o que ela disse não deve ter sido muito legal, porque a sra. Grinnel bateu a porta na cara dela.
Rusty franziu a testa.
— É verdade — disse Norrie. — Acho que a sra. Perkins tava entregando correspondência ou coisa assim. Ela deu um envelope pra sra. Grinnell. A Grinnell pegou e bateu na porta. Que nem o Benny falou.
— A-há — disse Rusty. Como se tivesse havido entrega de correspondência em Chester’s Mill depois de sexta-feira. Mas o que parecia importante era que Brenda estava viva e cumprindo tarefas numa hora em que Barbie tinha um álibi. — Depois, aonde ela foi?
— Atravessou a Principal e subiu a rua Mill — disse Joe.
— Esta rua.
— Isso.
Rusty passou a sua atenção para Claire.
— Ela...
— Ela não veio aqui — disse Claire. — A não ser que tenha sido quando eu estava no porão, vendo quantos enlatados nós ainda temos. Fiquei lá embaixo uma meia hora. Talvez uns quarenta minutos. Eu... eu queria fugir do barulho do supermercado.
Benny disse o que dissera na véspera:
— A rua Mill tem quatro quarteirões. Montes de casas.
— Pra mim essa não é a parte importante — disse Joe. — Liguei pro Anson Wheeler. Ele também era skatista, e às vezes ainda leva a prancha até a pista lá de Oxford. Perguntei a ele se o sr. Barbara estava de serviço ontem de manhã, e ele disse que sim. Disse que o sr. Barbara foi até o Food City quando o quebra-quebra começou. A partir daí, ficou com Anson e a sra. Twitchell. Então o sr. Barbara tem um álibi pra sra. Perkins, e se lembra do que eu disse sobre se não A, então não B? Não o alfabeto todo?
Rusty achou a metáfora um pouco matemática demais para questões humanas, mas entendeu o que Joe estava dizendo. Havia outras vítimas para as quais Barbie talvez não tivesse álibi, mas o mesmo depósito de corpos era um forte argumento a favor de um só assassino. E se Big Jim tinha matado ao menos uma das vítimas — como indicavam as marcas de pontos na cara de Coggins —, então provavelmente matara todas.
Ou talvez fosse Junior. Junior, que agora andava armado e usava insígnia.
— Nós temos que ir à polícia, não temos? — perguntou Norrie.
— Tenho medo disso — disse Claire. — Muito, muito medo disso. E se o Rennie matou a Brenda Perkins? Ele também mora aqui na rua.
- Foi o que eu disse ontem — observou Norrie.
— E não parece provável que, depois de falar com uma vereadora que lhe bateu a porta na cara, ela fosse tentar o próximo que morasse mais perto?
Joe disse (com bastante indulgência):
— Duvido que haja alguma ligação, mãe.
— Talvez não, mas mesmo assim ela pode ter ido falar com Jim Rennie. E Peter Randolph... — Ela balançou a cabeça. — Quando Big Jim manda pular, Peter pergunta a altura.
— Boa, sra. McClatchey! — gritou Benny. — A senhora é o máximo, oh, mãe do meu...
— Obrigada, Benny, mas nesta cidade o máximo é Jim Rennie.
— O que nós vamos fazer? — Joe olhava Rusty com olhos preocupados.
Rusty pensou de novo na mancha. No céu amarelo. No cheiro de fumaça no ar. Também guardou um pensamento para a determinação de Jackie Wettington de tirar Barbie da cadeia. Por mais perigoso que fosse, provavelmente seria melhor para o cara do que o depoimento de três garotos, ainda mais quando o chefe de polícia que tomaria o depoimento mal era capaz de limpar a bunda sem o manual de instruções.
— Agora, nada. Dale Barbara está em segurança onde está. — Rusty torceu para que fosse verdade. — Temos esse outro assunto pra resolver. Se vocês realmente acharam o gerador da Redoma, e se nós conseguirmos desligá-lo...
— O resto dos problemas vai simplesmente se resolver sozinho — disse Norrie Calvert. Parecia profundamente aliviada.
— Pode ser mesmo — disse Rusty
Depois que Petra Searles voltou à drogaria (para fazer o inventário, disse ela), Toby Manning perguntou a Rommie se poderia ajudar em alguma coisa. Rommie fez que não.
— Vai pra casa. Vê o que você pode fazer pelo papai e pela mamãe.
— É só o papai — disse Toby. — Mamãe foi ao supermercado lá em Castle Rock sábado de manhã. Ela acha que o Food City é caro demais. O que o senhor vai fazer?
— Pouca coisa — disse Rommie vagamente. — Me diz uma coisa, Tobes... por que você e Petrra estão usando esses panos azuis nos braços?
Toby deu uma olhada no braço, como se tivesse esquecido que estava ali.
— Só pra mostrar solidariedade — disse. — Depois do que aconteceu ontem à noite no hospital... depois de tudo o que está acontecendo...
Rommie fez que sim com a cabeça.
— Não virou policial, não é?
— Claro que não. É mais.., lembra do 11 de Setembro, quando parecia que todo mundo tinha um gorro e uma camisa do Corpo de Bombeiros ou da Polícia de Nova York? É parecido. — Ele pensou um pouco. — Acho que, se precisassem de ajuda, eu gostaria de me apresentar, mas parece que está tudo bem. O senhor tem certeza de que não precisa de nada?
— Tenho. Agorra, vai. Eu ligo se decidir abrrir hoje à tarde.
— Certo. — Os olhos de Toby faiscaram. — Talvez pudéssemos fazer uma Liquidação da Redoma. Sabe aquele ditado? Quando a vida nos dá limões, a gente faz uma limonada.
— Talvez, talvez — disse Rommie, mas duvidava que fosse haver uma liquidação assim. Nessa manhã, ele estava muito menos interessado do que de costume em desovar mercadorias vagabundas a preços que parecessem pechinchas. Sentia que sofrera grandes mudanças nos três últimos dias; não tanto de caráter, mas de perspectiva. Parte disso tinha a ver com o combate ao incêndio e a camaradagem que veio depois. Aquilo fora obra da verdadeira cidade, pensou, em seu melhor caráter. E muito daquilo tinha a ver com o assassinato da sua antiga amante Brenda Perkins... em quem Rommie ainda pensava como Brenda Morse. Ela fora quente e popular, e se ele descobrisse quem a esfriara — supondo que Rusty estivesse certo e que não tivesse sido Dale Barbara —, essa pessoa pagaria. Rommie Burpee cuidaria disso pessoalmente.
Nos fundos da loja cavernosa ficava a seção de Consertos Domésticos, convenientemente localizada ao lado da seção de Faça Você Mesmo. Nesta última, Rommie pegou um conjunto de pesadas tesouras de cortar chapa; depois entrou na primeira e foi até o canto mais distante, escuro e empoeirado do seu reino varejista. Ali, achou duas dúzias de rolos de 20 quilos de folha de chumbo Santa Rosa, normalmente usada em telhados, impermeabilização e isolamento de chaminés. Colocou dois rolos (e as tesouras) num carrinho de compras e levou-os pela loja toda até chegar ao departamento esportivo. Ali, começou a trabalhar selecionando e escolhendo. Várias vezes caiu na gargalhada. Ia dar certo, mas, ah, Rusty Everett ia ficar très amusant.
Quando terminou, endireitou-se para esticar as costas tortas e avistou, do outro lado do departamento esportivo, um cartaz com um veado no cruzamento das linhas de uma mira. Escrito acima do veado havia o seguinte lembrete: A TEMPORADA DE CAÇA ESTÁ CHEGANDO — HORA DE SE ARMAR!
Do jeito que iam as coisas, Rommie achou que se armar seria boa ideia. Ainda mais se Rennie ou Randolph decidissem que confiscar todas as armas, menos as da polícia, seria boa ideia.
Ele levou outro carrinho até os armários trancados das armas, vasculhando só pelo tato os respeitáveis chaveiros pendurados no cinto, O Burpee vendia exclusivamente produtos Winchester, e dado que a temporada de caça aos veados começaria dali a apenas uma semana, Rommie achou que conseguiria justificar alguns furos no estoque caso lhe perguntassem. Escolheu uma Wildcat .22, uma Black Shadow de ação rápida e duas Black Defenders, também de ação rápida. A elas, acrescentou uma Model 70 Extreme Weather (com mira telescópica) e uma 70 Featherweight (sem). Pegou munição para todas as armas e depois empurrou o carrinho até o escritório e guardou as armas no seu velho e verde cofre de chão Defender.
Isso é paranoia, você sabe, pensou enquanto girava o disco.
Mas não parecia paranoico. E, quando voltou para esperar Rusty e os garotos, lembrou-se de amarrar um pano azul no braço. E de dizer a Rusty que fizesse o mesmo. Camuflagem não era má idéia.
Todos os caçadores de veados sabiam disso.
Às oito horas daquela manhã, Big Jim estava de volta ao seu escritório em casa. Carter Thibodeau — agora o seu guarda-costas pessoal até segunda ordem, decidira Big Jim — estava mergulhado num número de Car and Driver, lendo uma comparação entre o BMW H 2012 e o Ford Vesper R/T 2011. Ambos pareciam carros maravilhosos, mas só maluco não sabia que os BMWs eram demais. O mesmo se aplicava, pensou, a quem não soubesse que agora o sr. Rennie era o BMW H de Chester’s Mill.
Big Jim estava se sentindo bastante bem, em parte porque tivera outra hora de sono depois de visitar Barbara. Precisaria de muitos cochilos de beleza nos dias que viriam. Tinha que ficar com tudo em cima. Não admitiria a si mesmo que também temia mais arritmias.
Ter Thibodeau à mão tranquilizou bastante sua mente, ainda mais com Junior agindo de maneira tão instável (Coloquemos dessa forma, pensou). Thibodeau tinha cara de criminoso, mas parecia ter talento para o papel de ajudante de campo. Big Jim ainda não tinha muita certeza, mas achava que, na verdade, Thibodeau poderia se mostrar mais inteligente do que Randolph.
Decidiu tirar a prova.
— Quantos homens guardando o supermercado, filho? Você sabe? — Carter pôs de lado a revista e puxou do bolso de trás um caderninho gasto. Big Jim aprovou.
Depois de folhear um pouco, Carter disse:
— Cinco ontem à noite, três regulares e dois novos. Nenhum problema. Hoje, vão ser só três. Todos novos. Aubrey Towle, o irmão dele é dono da livraria, sabe?, além de Todd Wendlestat e Lauren Conree.
— E você aquiesce em que isso bastaria?
— Hein?
— Você concorda, Carter. Aquiescer significa concordar.
— É, deve bastar. Com a luz do dia e tudo. — Sem pausa para calcular o que o chefe gostaria de ouvir. Rennie gostou muito disso.
— Certo. Agora escute. Quero que você fale com Stacey Moggin agora de manhã. Diga a ela que chame todos os policiais que temos no nosso rol. Quero todos no Food City às sete da noite de hoje. Vou falar com eles.
Na verdade, faria outro discurso, dessa vez com tudo em cima. Dar corda neles como no relógio de bolso do vovô.
— Certo. — Carter fez uma anotação no caderninho de ajudante de campo.
— E diga a cada um que tente levar mais alguém.
Carter passava o lápis roído pela lista do caderno.
— Já temos... deixa eu ver... 26.
— Talvez não seja suficiente. Lembra do supermercado ontem de manhã e do jornal da Shumway ontem à noite. Somos nós ou a anarquia, Carter. Sabe o que significa essa palavra?
— Há, sei sim, senhor. — Carter Thibodeau tinha bastante certeza de que significava um estande de tiro com arco e supôs que o novo chefe dizia que Mill poderia se tornar uma galeria de tiro ou coisa assim se não segurassem as rédeas com força. — Talvez a gente devesse recolher as armas ou coisa assim.
Big Jim sorriu. Sim, em vários aspectos, um rapaz maravilhoso.
— Isso está previsto, provavelmente a partir da semana que vem.
— Se a Redoma ainda estiver aí. O senhor acha que vai estar?
— Acho que sim. — Tinha que estar. Ainda havia tanto a fazer. Precisava tomar providências para espalhar a reserva de gás de volta na cidade. Todos os vestígios do laboratório de metanfetamina atrás da emissora de rádio tinham que ser apagados. Além disso, e era fundamental, ele ainda não atingira a grandeza. Embora estivesse a caminho.
— Enquanto isso, mande alguns policiais, os regulares, irem ao Burpee confiscar as armas que estão lá. Se Romeo Burpee criar algum problema, devem dizer que é pra impedir que os amigos de Dale Barbara ponham as mãos nelas. Entendeu bem?
— Claro. — Carter fez outra anotação. — Denton e Wettington? Pode ser?
Big Jim franziu a testa. Wettington, a garota de peito grande. Não confiava nela. Achava que não gostava muito de policiais com peitos. Garotas não tinham nada a ver com impor a lei, mas era mais do que isso. Era o jeito como ela o olhava.
— Freddy Denton, sim, Wettington, náo. Nem Henry Morrison. Manda Denton e George Frederick. Diga a eles que guardem as armas na caixa-forte da delegacia.
— Entendido.
O telefone de Rennie tocou, e o seu cenho se franziu ainda mais. Ele atendeu e disse:
— Vereador Rennie.
— Olá, vereador. Aqui fala o coronel James O. Cox. Fui encarregado do chamado Projeto Redoma. Achei que já era hora de conversarmos.
Big Jim se recostou na cadeira, sorrindo.
— Bom, então basta começar, coronel, e Deus o abençoe.
— Fui informado de que o senhor prendeu o homem que o presidente dos Estados Unidos encarregou de cuidar de tudo em Chester’s Mill.
— Está correto, senhor. O sr. Barbara foi acusado de assassinato. Quatro corpos. Acho difícil que o presidente queira um assassino desses no comando. Não seria muito bom para a sua posição nas pesquisas.
— O que deixa o senhor no comando.
— Ah, não — disse Rennie, com um sorriso ainda maior. — Sou só um humilde segundo vereador. Andy Sanders é que está no comando, e Peter Randolph, nosso novo chefe de polícia, como o senhor já deve saber, foi o policial que efetuou a prisão.
— Em outras palavras, as suas mãos estão limpas. Essa será a sua postura assim que a Redoma sumir e a investigação começar.
Big Jim adorou a decepção que ouviu na voz do melequento. Aquele filho da égua do Pentágono estava acostumado a comandar; ser comandado era uma experiência nova para ele.
— Por que estariam sujas, coronel Cox? A plaquinha de identificação de Barbara foi encontrada numa das vítimas. Nada poderia ser mais rotineiro.
— Conveniente.
— Chame como quiser.
— Se o senhor sintonizar as redes jornalísticas da TV a cabo — disse Cox —, verá que estão sendo levantadas questões sérias sobre a prisão de Barbara, principalmente à luz da ficha de serviço dele, que é exemplar. Também estão sendo levantadas questões sobre a sua ficha, que não é tão exemplar assim.
— Acha que isso me surpreende? Os senhores são ótimos na hora de controlar noticiários. Fazem isso desde o Vietnã.
— A CNN divulgou uma reportagem sobre uma investigação a respeito de práticas de propaganda enganosa do senhor no final da década de 1990. A NBC noticiou que o senhor foi investigado por empréstimos aéticos em 2008. Acredito que o senhor foi acusado de cobrar taxas de juros ilegais, aí por volta dos 40%, não foi? Depois reclamar de volta carros e caminhões que já tinham sido pagos duas ou três vezes? Os seus eleitores provavelmente já estão assistindo a isso.
Todas essas acusações tinham sido engavetadas. Ele pagara um bom dinheiro para que fossem engavetadas.
— O povo da minha cidade sabe que esses noticiários mostrarão as coisas mais ridículas caso elas vendam mais alguns tubos de creme para hemorróidas e vidros de soníferos.
— Tem mais. De acordo com o procurador-geral do estado do Maine, o chefe de polícia anterior, o tal que morreu no sábado passado, estava investigando o senhor por sonegação de impostos, apropriação indébita de recursos e propriedades municipais e envolvimento com drogas ilegais. Não divulgamos nada disso à imprensa nem temos a intenção de fazê-lo.., se o senhor ceder. Renuncie ao cargo de vereador. O sr. Sanders também deve renunciar. Nomeiem Andrea Grinnell, a terceira vereadora, como autoridade no comando e Jacqueline Wettington como representante do presidente em Chester’s Mill.
Big Jim foi arrancado do que lhe restava de bom humor.
— Você está louco? Andi Grinnell é viciada em drogas, em OxyContin, e a tal Wettington não tem sinal de cérebro naquela cabeça melequenta!
— Posso lhe garantir que não é verdade, Rennie. — Nada de senhor, a Era dos Bons Sentimentos parecia ter terminado. — Wettington foi condecorada por ajudar a desmantelar uma quadrilha de traficantes de drogas que operava no 67º Hospital de Apoio ao Combate de Würzburg, na Alemanha, e foi pessoalmente recomendada por um homem chamado Jack Preacher, o policial mais durão que já existiu no diabo desse Exército, na minha humilde opinião.
Não há nada de humilde no senhor, e a sua linguagem sacrílega não combina bem comigo. Sou cristão.
— Um cristão traficante de drogas, segundo as minhas informações.
— Paus e pedras podem quebrar os meus ossos, mas palavras não me atingem. — Ainda mais debaixo da Redoma, pensou Big Jim, e sorriu. — Tem alguma prova concreta?
— Ora, vamos, Rennie, de um cacique a outro, que importância isso tem? Para a imprensa, a Redoma é melhor do que o 11 de Setembro. E é notícia importante e simpática. Se não começar a ceder, vou sujá-lo tanto que você nunca mais vai se livrar. Quando a Redoma se romper, eu vou mandá-lo para uma comissão de inquérito do Senado, os tribunais e a cadeia. Isso eu lhe prometo. Mas desista e nada disso acontecerá. Isso eu também lhe prometo.
— Quando a Redoma se romper — ponderou Rennie. — E quando isso vai ser?
— Talvez mais cedo do que você pensa. Planejo ser o primeiro a entrar, e a minha primeira ordem vai ser lhe pôr algemas e colocar num avião que o levará a Fort Leavenworth, no Kansas, onde você será hóspede dos Estados Unidos enquanto aguardar o julgamento.
Big Jim ficou momentaneamente sem palavras com a audácia daquilo. Depois, riu.
— Se realmente quisesse o que é melhor para a cidade, Rennie, você renunciaria. Veja o que aconteceu durante o seu turno: seis assassinatos, dois no hospital ontem à noite, sabemos disso, um suicídio e um saque ao supermercado. Você não tem competência pro serviço.
A mão de Big Jim se fechou com força na bola de beisebol dourada. Çarter Thibodeau o olhava com o cenho franzido de preocupação.
Se estivesse aqui, coronel Cox, o senhor poderia provar do remédio que eu dei a Coggins. Com Deus como testemunha, era o que eu faria.
— Rennie?
— Estou aqui. — Ele fez uma pausa. — E você está aí. — Outra pausa. — E a Redoma não vai sumir. Acho que ambos sabemos disso. Jogue a maior bomba atômica que você tiver, deixe inabitáveis as cidades em volta por duzentos anos, mate todo mundo em Chester’s Mill com a radiação se a radiação atravessar e nem assim ela vai sumir. — Agora ele respirava depressa, mas o coração batia forte e firme no peito. — Porque a Redoma é a vontade de Deus.
E, no fundo do seu coração, era nisso que ele acreditava. Assim como acreditava que a vontade de Deus era que ele assumisse o controle da cidade e assim permanecesse durante as próximas semanas, meses e anos.
— O quê?
— Você me ouviu. — Sabendo que ele apostava tudo, todo o seu futuro, na continuação da existência da Redoma. Sabendo que alguns pensariam que ele era maluco de agir assim. Sabendo também que essas pessoas eram pagãos infiéis. Como o coronel James O. Melequento Cox.
— Rennie, seja sensato. Por favor.
Big Jim gostou do por favor, trouxe-lhe o bom humor de volta correndo.
— Vamos recapitular, ok, coronel Cox? Andy Sanders manda aqui, não eu. Embora eu aprecie a cortesia da ligação de um mandachuva como o senhor, naturalmente. E embora eu tenha certeza de que Andy apreciará a sua oferta de cuidar de tudo, por controle remoto, por assim dizer, acho que posso falar por ele quando digo que o senhor pode pegar a sua oferta e enfiá-la onde o sol não brilha. Aqui estamos por nossa conta e vamos cuidar disso por nossa conta.
— Você está louco — disse Cox, perplexo.
— É assim que os infiéis sempre chamam os religiosos. É a sua última defesa contra a fé. Estamos acostumados com isso, e não fico magoado com o senhor. — Isso era mentira. — Posso lhe fazer uma pergunta?
— Faça.
— Vai cortar o nosso telefone e os computadores?
— Você até que gostaria disso, não é?
— É claro que não. — Outra mentira.
— Os telefones e a internet continuam. E também a entrevista coletiva de sexta-feira. Na qual vão lhe fazer algumas perguntas difíceis, eu lhe garanto.
— Não vou comparecer a nenhuma entrevista coletiva em futuro próximo, coronel. Nem eu nem Andy. E a sra. Grinnell não vai adiantar muito, coitada. Por isso, pode cancelar a sua...
— Ah, não, nada disso. — Aquilo era um sorriso na voz de Cox? — A entrevista coletiva vai acontecer ao meio-dia de sexta-feira, pra haver tempo de vender muito creme contra hemorroidas no noticiário da noite.
— E quem da nossa cidade o senhor espera que compareça?
— Todo mundo, Rennie. Absolutamente todo mundo. Porque nós vamos deixar os seus parentes irem até a Redoma na fronteira com Motton, o lado do acidente de avião no qual morreu a esposa do sr. Sanders, você deve se lembrar. A imprensa vai estar lá pra registrar tudo. Será como um dia de visita na penitenciária estadual, só que ninguém é culpado de nada. A não ser você, talvez.
Rennie ficou furioso de novo.
— Você não pode fazer isso!
— Ah, posso sim. — O sorriso estava lá. — Você pode se sentar no seu lado da Redoma e me mostrar a língua: eu posso me sentar do meu lado e fazer a mesma coisa. Os visitantes vão fazer fila, e os que concordarem em comparecer vão usar camisetas onde estará escrito DALE BARBARA É INOCENTE e LIBERTEM DALE BARBARA e IMPEACHMENT PARA JAMES RENNIE. Vai haver reuniões lacrimosas, mãos encostadas em mãos com a Redoma no meio e até, talvez, tentativas de beijos. Serão imagens excelentes para a TV servirá de excelente propaganda. Principalmente, fará o povo da sua cidade perguntar o que estão fazendo com um incompetente como você no controle.
A voz de Big Jim se reduziu a um grunhido grave.
— Eu não vou permitir.
— E como vai impedir? Mais de mil pessoas. Você não conseguiria matar todos. — Quando voltou a falar, a voz estava calma e sensata. — Vamos, vereador, vamos resolver isso. Você ainda pode sair disso limpo. Só precisa largar o controle.
Big Jim viu Junior passar pelo corredor feito um fantasma na direção da porta da frente, ainda usando as calças do pijama e os chinelos, e mal notou. Junior poderia ter caído morto no corredor e Big Jim continuaria curvado sobre a escrivaninha, a bola de beisebol dourada fechada numa das mãos e o telefone na outra. Um pensamento batucava na cabeça: pôr Andrea Grinnell no comando, com a policial Peitchola como vice.
Era piada.
Uma piada de mau gosto.
— Coronel Cox, vá se foder.
Ele desligou, girou a cadeira da escrivaninha e jogou a bola dourada. Atingiu a foto autografada de Tiger Woods. O vidro se estilhaçou, a moldura caiu no chão e Carter Thibodeau, que estava acostumado a provocar medo nos corações mas raramente o sentia no seu, pulou de pé.
— Sr. Rennie? Está tudo bem?
Ele não parecia bem. Manchas roxas irregulares surgiram no seu rosto. Os olhinhos estavam arregalados e saltavam das órbitas de gordura enrijecida. A veia da testa pulsava.
— Nunca vão tirar de mim esta cidade — sussurrou Big Jim.
— Claro que não — disse Carter. — Sem o senhor, estamos acabados.
Isso relaxou Big Jim até certo ponto. Estendeu a mão para o telefone, mas se lembrou de que Randolph fora para casa dormir. O novo chefe tivera pouco tempo precioso de cama desde que a crise começara, e dissera a Carter que pretendia dormir ao menos até o meio-dia. Sem problemas. O homem era inútil mesmo.
— Carter, escreva um bilhete. Mostre pro Morrison, se ele estiver tomando conta da delegacia agora de manhã, e depois deixe na mesa do Randolph. Em seguida, volte direto pra cá. — Ele parou para pensar um instante, franzindo a testa. — E veja se Junior foi pra lá. Ele saiu enquanto eu conversava pelo telefone com o coronel Faz-O-Que-Eu-Quero. Se não foi, não precisa procurar por ele, mas se foi, veja se ele está bem.
— Certo. Qual é a mensagem?
— “Caro chefe Randolph: Jacqueline Wettington deve ser cortada imediatamente da polícia de Chester’s Mill.”
— Quer dizer, demitida?
— Isso mesmo.
Carter ainda rabiscava no seu caderno, e Big Jim lhe deu tempo de terminar. Estava bem de novo. Melhor do que bem. Estava sentindo.
— Acrescente: “Caro policial Morrison: hoje, quando Wettington chegar, por favor lhe informe que foi dispensada do serviço e mande-a esvaziar o armário. Caso ela lhe pergunte a causa, diga-lhe que estamos reorganizando o departamento e que os seus serviços não são mais necessários.”
— Necessários é com c ou com dois ss, sr. Rennie?
— A grafia não importa. A mensagem importa.
— Certo. Tudo bem.
— Se ela fizer mais perguntas, que venha falar comigo.
— Entendido. Isso é tudo?
— Não. Diga a quem a vir primeiro que lhe tire a arma e a insígnia. Se ela se irritar e disser que a arma é propriedade pessoal dela, podem lhe dar um recibo e lhe dizer que será devolvida ou que ela será reembolsada quando a crise passar.
Carter rabiscou mais um pouco e ergueu os olhos.
— O que o senhor acha que há de errado com Junes, sr. Rennie?
— Não sei. Só uma sensação, imagino. Seja o que for, não tenho tempo de cuidar disso agora. Tenho assuntos mais urgentes a tratar. — Ele apontou o caderno. — Traz isso aqui.
Carter levou. A sua letra era como os rabiscos redondos de um garoto da terceira série, mas estava tudo lá. Rennie assinou.
Carter levou os frutos do seu trabalho de secretário para a delegacia. Henry Morrison os recebeu com uma incredulidade que chegou às raias do motim. Carter também procurou Junior, mas Junior não estava lá, e ninguém o vira. Ele pediu a Henry que ficasse de olho.
Então, num impulso, desceu para visitar Barbie, deitado no catre com as mãos na nuca.
— O seu chefe ligou — disse. — Aquele tal de Cox. O sr. Rennie o chama de coronel Faz-O-Que-Eu-Quero.
— Aposto que sim — disse Barbie.
— O sr. Rennie mandou ele se foder. E quer saber? O seu parceiro do Exército teve que engolir e sorrir. O que você acha disso?
— Não me surpreende. — Barbie continuou olhando o teto. Parecia calmo. Era irritante. — Carter, já pensou em tudo o que está acontecendo? Já tentou pensar no longo prazo?
— Não há mais longo prazo, Baaarbie. Não mais.
Barbie só ficou olhando o teto com um sorrisinho que levantava o cantinho da boca. Como se soubesse algo que Carter não sabia. Isso deixou Carter com vontade de destrancar a porta da cela e socar até apagar aquele monte de bosta. Aí lembrou do que ocorrera no estacionamento do Dipper’s. Vamos ver se Barbara consegue usar seus truques sujos com um pelotão de fuzilamento. Vamos ver.
— Vejo você depois, Baaaarbie.
— Tenho certeza — disse Barbie, sem se dar ao trabalho de olhar para ele. — É pequena a cidade, filho, e pro time nós torcemos.
Quando a campainha da porta do presbitério tocou, Piper Libby ainda estava com a camiseta e os shorts do time de hóquei dos Bruins que lhe serviam de pijama. Abriu a porta supondo que a visitante seria Helen Roux, uma hora antes do compromisso marcado às dez, para discutir como seria o funeral de Georgia. Mas era Jackie Wettington. Estava de uniforme, mas não havia insígnia no lado esquerdo do peito nem arma no coldre da cintura. Parecia aturdida.
— Jackie? O que aconteceu?
— Fui demitida. Aquele canalha estava comigo atravessada na garganta desde a festa de Natal da delegacia, quando tentou me passar a mão e eu lhe dei um tapa, mas duvido que tenha sido só isso, ou até se isso contou...
— Entra — disse Piper. — Achei um fogão a gás num dos armários da despensa; acho que era do pastor anterior, e por incrível que seja ainda funciona. Uma xícara de chá quente soa bem?
— Maravilhoso — disse Jackie. As lágrimas se acumularam nos olhos e transbordaram. Quase zangada, ela as limpou das bochechas.
Piper a levou até a cozinha e acendeu o fogãozinho de acampamento Brinkman de uma só boca que estava na bancada.
— Agora me conta tudo.
Jackie contou, sem deixar de incluir as condolências de Henry Morrison, que foram meio desajeitadas, mas sinceras.
— Ele cochichou essa parte — disse, aceitando a xícara que Piper lhe deu. — É como se aquela porra tivesse virado a Gestapo agora. Desculpe a expressão.
Piper fez um gesto para dizer que não tinha importância.
— Henry diz que, se eu protestar amanhã na assembleia da cidade, só vou piorar as coisas; Rennie vai inventar um monte de acusações falsas de incompetência. Ele deve ter razão. Mas o maior incompetente no departamento hoje é quem está mandando lá. Quanto ao Rennie... ele está enchendo a delegacia de policiais que vão ser leais a ele em caso de protestos organizados contra o modo como ele está agindo.
— É claro que sim — disse Piper.
— A maioria dos novatos é jovem demais pra comprar uma cerveja legalmente, mas estão armados. Pensei em dizer ao Henry que ele é o próximo... Ele já andou fazendo comentários sobre como o Randolph está administrando o departamento, e claro que os dedos-duros passaram adiante os comentários, mas pela cara eu pude ver que ele já sabe.
— Quer que eu vá falar com Rennie?
— Não ia adiantar nada. Na verdade, não tou chateada de ter saído, só detesto ser demitida. O maior problema é que eu vou ser o bode expiatório do que vai acontecer amanhã à noite. Talvez eu tenha que sumir junto com o Barbie. Sempre supondo que a gente encontre um lugar pra onde sumir.
— Não entendi do que você está falando.
— Eu sei, mas eu vou te contar. E é aqui que começa o perigo. Se você não guardar segredo, lá vou eu pro Galinheiro. Talvez até ao lado do Barbara quando o Rennie preparar o pelotão de fuzilamento.
Piper a olhou muito séria.
— Tenho 45 minutos até que a mãe de Georgia Roux chegue. Isso dá pra você me dizer o que tem a dizer?
— Dá e sobra.
Jackie começou com o exame dos corpos na funerária. Descreveu as marcas de pontos no rosto de Coggins e a bola de beisebol dourada que Rusty vira. Respirou fundo e depois falou do plano de ajudar Barbie a fugir durante a assembleia especial da cidade na noite seguinte.
— Embora eu não faça ideia de onde a gente pode colocá-lo se é que vamos conseguir tirá-lo de lá. — Tomou um gole de chá. — Então, o que você acha?
— Que eu quero outra xícara. E você?
— Não, obrigada.
Na bancada, Piper disse:
— O que você está planejando é perigosíssimo, e duvido que eu precise te dizer isso, mas talvez não haja outro modo de salvar a vida de um homem inocente. Nunca acreditei nem por um segundo que Dale Barbara fosse culpado desses crimes, e depois do meu próprio encontro pessoal com os nossos agentes da lei, a ideia de que vão executá-lo pra que não assuma o comando não me surpreende muito. — Depois, seguindo sem saber a linha de raciocínio de Barbie: — O Rennie não está vendo a longo prazo, nem os policiais. Só se preocupam com quem manda na casinha da árvore. Esse tipo de pensamento é como um desastre prestes a acontecer.
Ela voltou à mesa.
— Quase desde o dia em que eu voltei pra cá pra assumir o pastorado, que era a minha ambição desde pequena, soube que Jim Rennie era um monstro em embrião. Agora, se me perdoa o tom melodramático da expressão, o monstro nasceu.
— Graças a Deus — disse Jackie.
— Graças a Deus que o monstro nasceu? — Piper sorriu e ergueu as sobrancelhas.
— Não. Graças a Deus que você também pensa assim.
— Tem mais, não é?
— É. A não ser que você não queira participar.
— Querida, já estou participando. Se você pode ser presa por conspirar, eu posso ser presa por escutar e não denunciar. Agora nós somos aquilo que o nosso governo gosta de chamar de “terroristas locais”.
Jackie recebeu essa ideia com silêncio tristonho.
— Não é só de Libertem Dale Barbara que você está falando, não é? Você quer organizar um movimento de resistência ativa.
— Acho que quero — disse Jackie, e deu uma risada bem desamparada.
— Depois de seis anos no Exército dos Estados Unidos, nunca imaginaria isso... Sempre fui do tipo “meu país em primeiro lugar, certo ou errado”, mas... já pensou que a Redoma pode não sumir? Nem no outono, nem no inverno? Talvez nem no ano que vem, nem nas nossas vidas inteiras?
— Já. — Piper estava calma, mas quase toda a cor sumira do seu rosto. — Já, sim. Acho que passou pela cabeça de todo mundo em Mill, mesmo que só lá no fundinho.
— Então pense nisso. Quer passar um ano, ou cinco, numa ditadura comandada por um idiota homicida? Supondo que nós tenhamos cinco anos?
— É claro que não.
— Então a única ocasião de detê-lo pode ser agora. Talvez não esteja mais em embrião, mas essa coisa que ele está construindo, essa máquina, ainda está na infância. É a melhor hora. — Jackie fez uma pausa. — Se ele mandar a polícia começar a recolher as armas dos cidadãos comuns, pode ser a única hora.
— O que quer que eu faça?
— Vamos fazer uma reunião aqui no presbitério. Hoje à noite. Essas pessoas, se todas quiserem vir. — Do bolso de trás, ela tirou a lista que elaborara com Linda Everett.
Piper desdobrou a folha de papel e a estudou. Havia oito nomes. Ela ergueu os olhos.
— Lissa Jamieson, a bibliotecária dos cristais? Ernie Calvert? Tem certeza desses dois?
— Quem seria melhor pra recrutar do que uma bibliotecária, quando a gente lida com uma ditadura em formação? Quanto ao Ernie... o meu entendimento é que, depois do que aconteceu no supermercado ontem, se ele topasse com Jim Rennie em chamas na rua, não mijaria nele nem pra apagar o fogo dele.
— O pronome está meio confuso, mas a imagem é pitoresca.
— Ia pedir a Julia Shumway que sondasse Ernie e Lissa, mas agora eu mesma faço isso. Parece que vou ter muito tempo livre.
A campainha tocou.
— Deve ser a mãe enlutada — disse Piper, se levantando. — Imagino que já esteja meio alta. Ela gosta de licor de café, mas duvido que isso amorteça muito a dor.
— Você não me disse o que acha da reunião — disse Jackie.
Piper Libby sorriu.
— Diga aos seus parceiros terroristas locais que cheguem entre as nove e as nove e meia de hoje. Que venham a pé, e um de cada vez — esquema padrão da Resistência Francesa. Não precisam anunciar o que estão fazendo.
— Obrigada — disse Jackie. — Muito mesmo.
— Não há de quê. É a minha cidade também. Posso sugerir que você se esgueire pela porta dos fundos?
Havia uma pilha de trapos limpos na traseira da van de Rommie Burpee. Rusty juntou dois com um nó e fez um lenço que amarrou na parte de baixo do rosto, mas o nariz, a garganta e os pulmões estavam pesados com o fedor do urso morto. Os primeiros vermes tinham eclodido nos olhos, na boca aberta e na carne do cérebro exposto.
Ele parou, deu alguns passos para trás e depois cambaleou um pouco. Rommie o agarrou pelo cotovelo.
— Se ele desmaiar, segure — disse Joe, nervoso. — Talvez essa coisa atinja os adultos com mais força.
— Foi só o cheiro — disse Rusty — Agora estou bem.
Mas, mesmo longe do urso, o mundo fedia: fumacento e pesado, como se toda a cidade de Chester’s Mill tivesse se transformado numa grande sala fechada. Além dos cheiros de fumaça e de bicho podre, conseguia farejar vida vegetal em decomposição e um fedor pantanoso que, sem dúvida, subia do leito meio seco do Prestile. Ah, se soprasse um ventinho, pensou, mas só havia uma lufada pálida de brisa ocasional que trazia mais mau cheiro. Bem a oeste, havia nuvens — provavelmente chovia a cântaros lá em New Hampshire —, mas quando chegavam à Redoma as nuvens se abriam como um rio que se dividisse num grande aforamento de pedras. Rusty duvidava cada vez mais da possibilidade de chuva debaixo da Redoma. Pensou em verificar alguns sites meteorológicos... se tivesse tempo livre. Sua vida ficara horrivelmente ocupada e de uma desestruturação inquietante.
— Será que o Irmão Urso morreu de raiva, doutor? — perguntou Rommie.
— Duvido. Acho que é exatamente o que os garotos disseram: simples suicídio.
Eles se amontoaram na van, Rommie atrás do volante, e subiram devagar a estrada da Serra Negra. Rusty estava com o contador Geiger no colo, que clicava sem parar. Ele observou a agulha subir rumo à marca de +200.
— Para aqui, sr. Burpee! — gritou Norrie. — Antes que saia da floresta! Se o senhor desmaiar, é melhor isso não acontecer enquanto estiver dirigindo, mesmo que a 15km/h.
Obediente, Rommie parou a van.
— Desçam, garotos. Eu fico cuidando de vocês. O doutor continua sozinho.
Ele se virou para Rusty.
— Leva a van, mas dirrige devagar e parra assim que a contagem radiativa ficar alta demais e perrigosa. Ou se começar a ficar tonto. Vamos andar atrrás de você.
— Toma cuidado, sr. Everett — disse Joe.
Benny acrescentou:
— Não se preocupe se o senhor desmaiar e bater com a van. A gente empurra o senhor de volta pra estrada quando acordar.
— Obrigado — disse Rusty — Vocês são todos coração, pra mais de quilômetro.
— Hein?
— Nada, nada. — Rusty se sentou atrás do volante e fechou a porta do lado do motorista. No banco do passageiro, o contador Geiger clicava. Ele foi — bem devagar — para fora da floresta. Lá em cima, a estrada da Serra Negra se erguia rumo ao pomar. A princípio, não viu nada de estranho, e teve um momento de profunda decepção. Então uma luz roxa e forte o atingiu nos olhos e ele pisou no freio com pressa. Alguma coisa lá em cima, isso mesmo, algo brilhante em meio à confusão de macieiras não cuidadas. Logo atrás dele, no espelho externo da van, viu os outros pararem de andar.
— Rusty? — chamou Rommie. — Tudo bem?
— Estou vendo.
Ele contou até 15 e a luz roxa se acendeu de novo. Estendia a mão para o contador Geiger quando Joe o olhou pela janela do lado do motorista. As novas espinhas se destacavam na pele como estigmas.
— Está sentindo alguma coisa? Tonteira? Zoeira na cabeça?
— Não — disse Rusty.
Joe apontou para a frente.
— Foi ali que nós desmaiamos. Bem ali.
Rusty conseguiu ver as marcas na terra remexida no lado esquerdo da estrada.
— Vão até lá disse Rusty. — Vocês quatro. Vamos ver se desmaiam de novo.
— Cristojesus — disse Benny, se juntando a Joe. — O que a gente é, cobaia?
— Na verdade, acho que Rommie é que é a cobaia. Está disposto, Rommie?
— Tô. — Ele se virou para os garotos. — Se eu desmaiar e vocês não, me arrastem de volta pra cá. Aqui parrece ser forra do alcance.
O quarteto andou até as marcas na terra, Rusty observando atentamente atrás do volante da van. Tinham quase chegado lá quando Rommie primeiro desacelerou e depois cambaleou. Norrie e Benny foram juntos firmá-lo de um lado, Joe do outro. Mas Rommie não caiu. Dali a segundos, voltou a se endireitar.
Não sei se foi real ou só... como é que se diz.., força de sugestão, mas agorra estou bem. Fiquei só meio tonto por um segundo, sabe. Garotos, vocês sentirram alguma coisa?
Eles fizeram que não. Rusty não se surpreendeu. Era como catapora: uma doença leve que acometia principalmente crianças, que só a pegavam uma vez.
— Vai em frrente, doutor — disse Rommie. — Entendo que não queirra carregar todos esses pedaços de folha de chumbo até lá se não for necessário, mas toma cuidado.
Rusty avançou lentamente. Ouviu o ritmo dos diques do contador Geiger se acelerar, mas não sentiu absolutamente nada fora do comum. No alto do morro, a luz piscava a intervalos de 15 segundos. Ele alcançou Rommie e as crianças e depois os ultrapassou.
— Não sinto na... — começou, e então veio: não tontura, exatamente, mas uma sensação de estranheza e de clareza peculiar. Enquanto durou, ele sentiu que a cabeça era um telescópio e que conseguiria ver o que quisesse, não importava a distância. Conseguiria ver o irmão pegando a condução da manhã para o trabalho em San Diego, se quisesse.
Em algum lugar, num universo adjacente, ouviu Benny gritar:
— Epa, o dr. Rusty está desmaiando!
Mas não estava; ainda via a estrada de terra perfeitamente bem. Divinamente bem. Cada pedra e lasca de mica. Se tinha se desviado — e ele achou que tinha —, fora para evitar o homem que de repente estava ali. O homem era magro e ficava ainda mais alto com uma cartola comprida e absurda, vermelha, branca e azul, comicamente inclinada. Usava jeans e uma camiseta que dizia SWEET HOME ALABAMA TOCA A MÚSICA DAQUELA BANDA MORTA.
Não é um homem, é um boneco de Halloween.
Claro, com certeza. O que mais poderia ser, com pás de jardinagem verdes em vez de mãos e uma cabeça de aniagem com cruzes brancas bordadas em vez de olhos?
— Doutor! Doutor! — Era Rommie.
O boneco de Halloween explodiu em chamas.
Um instante depois, sumiu. Agora havia apenas a estrada, o morro e a luz roxa, piscando a intervalos de 15 segundos, parecendo dizer Vem cá, vem cá, vem cá.
Rommie abriu a porta do motorista.
— Doutor... Rusty... você está bem?
— Ótimo. Veio e foi. Acho que foi igual com você. Rommie, você viu alguma coisa?
— Não. Por um instante, achei ter sentido cheiro de queimado. Mas acho que é porque o ar está mesmo com cheiro de fumaça.
— Eu vi uma fogueira de abóboras em chamas — disse Joe. — Eu te disse, não foi?
— Foi. — Rusty não dera importância suficiente àquilo, apesar do que ouvira da boca da própria filha. Agora, estava dando.
— Eu ouvi gritos — disse Benny —, mas esqueci do resto.
— Eu também ouvi — disse Norrie. — Era de dia, mas ainda estava escuro. Tinha os gritos. E acho que tinha fuligem caindo no meu rosto.
— Doutor, talvez seja melhor a gente voltar — disse Rommie.
— Isso não vai acontecer — disse Rusty. — Não se houver a possibilidade de eu tirar daqui as minhas filhas e os filhos de todo mundo.
— Aposto que alguns adultos iriam gostar de ir também — observou Benny. Joe lhe deu uma cotovelada.
Rusty olhou o contador Geiger. A agulha estava parada em +200.
— Fiquem aqui — disse ele.
— Doutor — disse Joe —, e se a radiação ficar mais forte e o senhor desmaiar? O que a gente faz?
Rusty pensou um pouco.
— Se eu ainda estiver perto, me arrastem de lá. Mas não você, Norrie. Só os garotos.
— Por que não eu? — perguntou ela.
— Porque talvez você queira ter filhos um dia. Filhos com dois olhos e todos os membros presos no lugar certo.
— Certo. Daqui eu não saio — disse Norrie.
— Pros outros, uma exposição rápida não deve provocar problemas. Mas quero dizer bem rápida. Se eu subir até o meio do morro ou chegar ao pomar, me deixem lá.
— Vai ser difícil, doutor.
— Não quero dizer pra sempre — disse Rusty — Você tem mais folha de chumbo na loja, não tem?
— Tenho. A gente devia ter trrazido.
— Concordo, mas não se pode pensar em tudo. Se o pior acontecer, traz o resto do rolo de chumbo, põe pedaços nas janelas do veículo que estiver usando e me pega. Droga, a essa altura talvez eu já esteja em pé de novo e andando rumo à cidade.
— Claro. Ou ainda caído lá recebendo uma dose letal.
— Olha, Rommie, provavelmente estamos nos preocupando à toa. Acho que a tontura e até o desmaio das crianças é como os outros fenômenos ligados à Redoma. Só dá uma vez, depois tudo bem.
— Talvez você esteja apostando a sua vida nisso.
— Alguma hora a gente tem que começar a apostar.
— Boa sorte — disse Joe, e estendeu pela janela o punho fechado.
Rusty bateu nele de leve com o seu e fez o mesmo com Norrie e Benny. Rommie também estendeu o punho fechado.
— O que é bom pros garrotos também é bom pra mim.
Vinte metros além do lugar onde Rusty tivera a visão do boneco de cartola, os diques do contador Geiger subiram para um rugido estático. Ele viu a agulha parar em +400, no início do vermelho.
Parou e puxou a roupa que preferiria não vestir. Olhou para os outros atrás.
— Uma palavra de alerta — disse. — E eu estou falando especificamente com o senhor, sr. Benny Drake. Quem rir, volta pra casa.
— Não vou rir — disse Benny, mas logo estavam todos rindo, inclusive o próprio Rusty. Ele tirou os jeans e vestiu calças de futebol americano por cima da cueca. No lugar onde ficava o enchimento das coxas e nádegas, enfiou pedaços já cortados do rolo de chumbo. Depois, vestiu um par de caneleiras e por cima delas prendeu mais folha de chumbo. Em seguida, pôs uma gola de chumbo para proteger a tireoide e um avental de chumbo para proteger os testículos. Era o maior que tinham, e ia até as caneleiras alaranjadas. Pensara em vestir outro avental nas costas (ficar ridículo era melhor do que morrer de câncer de pulmão, na opinião dele), mas decidiu que não precisava. Já aumentara o seu peso para mais de 130kg. E a radiação não se curva. Se ficasse de frente para a fonte, achou que não haveria problema.
Bom. Talvez.
Até então, Rommie e os garotos tinham conseguido se restringir a risinhos discretos e a algumas risadas estranguladas. O controle fraquejou quando Rusty enfiou numa touca de natação tamanho XG dois pedaços de folha de chumbo e a enfiou na cabeça, mas só quando ele calçou as luvas até o cotovelo e pôs os óculos é que o perderam totalmente.
— Está vivo! — gritou Benny, andando com os braços esticados como o monstro de Frankenstein. — Mestre, ele está vivo!
Rommie cambaleou até o lado da estrada e se sentou numa pedra, curvado de tanto rir. Joe e Norrie caíram na própria estrada, rolando como galinhas tomando banho de terra.
— Já pra casa, todos vocês — disse Rusty, mas ele sorria quando voltou (não sem dificuldade) para a van.
À frente dele, a luz roxa piscava como um farol.
Henry Morrison saiu da delegacia quando não dava mais para aguentar as palhaçadas de vestiário estridentes dos novos recrutas. Estava tudo dando errado, tudo mesmo. No fundo, ele já sabia disso antes mesmo que Thibodeau, o brutamontes que agora guardava o vereador Rennie, aparecesse com uma ordem para chutar Jackie Wettington, boa policial e mulher ainda melhor.
Henry viu isso como o primeiro passo do que talvez fosse uma iniciativa abrangente para remover da guarda os policiais mais antigos, aqueles que Rennie veria como partidários de Duke Perkins. Ele mesmo seria o próximo. Freddy Denton e Rupert Libby provavelmente ficariam; Rupert era um panaca moderado, Denton, um caso grave. Linda Everett iria embora. Stacey Moggin também, provavelmente. Então, com exceção daquela cabeça de vento da Lauren Conree, a Guarda Municipal de Chester’s Mill voltaria a ser um clube do Bolinha.
Ele desceu devagar a rua Principal, quase totalmente vazia — como a rua de uma cidade-fantasma do faroeste. Sam Relaxado Verdreaux estava sentado embaixo da marquise do Globe, e aquela garrafa entre os seus joelhos provavelmente não continha Pepsi-Cola, mas Henry não parou. Que o velho pau-d’água tomasse a sua pinga.
Johnny e Carrie Carver cobriam de tábuas a vitrine da frente do Posto & Mercearia. Os dois usavam as braçadeiras azuis que tinham começado a aparecer pela cidade toda. Elas davam arrepios em Henry.
Ele gostaria de ter aceitado a vaga na polícia de Orono quando lhe ofereceram no ano anterior. Não era um passo adiante na carreira e ele sabia que alunos da universidade eram um pé no saco quando estavam bêbados ou doidões, mas o salário era melhor e Frieda disse que as escolas de Orono eram topo de linha.
Mas, no fim das contas, Duke o convencera a ficar prometendo-lhe forçar um aumento de 5 mil por ano na próxima assembleia da cidade e dizendo a Henry — sob absoluto segredo — que ia demitir Peter Randolph se este não se aposentasse voluntariamente.
— Você seria promovido a assistente do chefe de polícia, e aí sáo mais 10 mil por ano — dissera Duke. — Quando eu me aposentar, você pode até chegar ao comando, se quiser. É claro que a alternativa é levar os garotos da universidade estadual com vômito secando nas calças de volta pro alojamento. Pensa bem.
Soara bom para ele, soara bom (bem... muito bom) para Frieda e, naturalmente, deixara aliviados os garotos, que tinham detestado a ideia de se mudar. Só que agora Duke estava morto, Chester’s Mill estava debaixo da Redoma e a Guarda Municipal virara algo que não parecia nada bom e cheirava ainda pior.
Ele entrou na rua Prestile e viu Junior diante da fita amarela da polícia em torno da casa dos McCain. Junior usava calças de pijama, chinelos e mais nada. Balançava visivelmente, e a primeira ideia de Henry foi que Junior e Sam Relaxado tinham muito em comum naquele dia.
A segunda ideia foi sobre e para o Departamento de Polícia. Talvez não ficasse muito tempo lá, mas ainda estava lá, e uma das regras mais firmes de Duke Perkins sempre fora Não quero ver jamais o nome de um policial de Chester’s Mill na coluna de Atas do Tribunal do Democrata. E Junior, quer Henry gostasse, quer não, era policial.
Ele parou a Unidade 3 junto ao meio-fio e foi até onde Junior balançava para a frente e para trás.
— Ei, Junes, vamos voltar pra delegacia, tomar um café e... — Ficar sóbrio era como pretendia terminar a frase, mas aí ele observou que a calça do pijama do garoto estava encharcada. Junior se mijara.
Tão alarmado quanto enojado — ninguém deveria ver aquilo, Duke daria voltas no túmulo —, Henry estendeu a mão e segurou o ombro de Junior.
— Vamos, filho. Você está pagando mico.
— Elas ero minhas nam’radas — disse Junior sem se virar. Balançou mais depressa. O rosto, a parte que Henry conseguia ver, estava sonhador e extasiado. — Gelei elas pra encher elas. Nada bom. Francês. — Ele riu e aí cuspiu. Ou tentou. Um fio grosso e branco ficou pendurado no queixo, balançando como um pêndulo.
— Já basta. Vou te levar pra casa.
Então Junior se virou, e Henry viu que ele não estava bêbado. O olho esquerdo estava vermelho vivo. A pupila estava grande demais. O lado esquerdo da boca, repuxado para baixo, deixava ver alguns dentes. Aquele olhar fixo fez Henry pensar um instante no sr. Sardônico do filme Máscara do terror, que o apavorara quando garoto.
Junior não precisava tomar café na delegacia nem ir para casa dormir. Junior precisava ir para o hospital.
— Vem, filho — disse ele. — Anda.
A princípio, Junior pareceu bem obediente. Henry o escoltou quase todo o caminho até o carro, quando Junior parou de novo.
— Cheiravam igual, eu gostei — disse. — Horrí horrí horrí, a neve já vai começar.
— Claro, com certeza. — Henry tivera esperanças de fazer Junior contornar o capô e entrar pela porta da frente, mas agora isso parecia impraticável. A traseira teria de servir, muito embora os bancos de trás dos carros da polícia costumassem feder bastante. Junior olhou por sobre o ombro para a casa dos McCain, e uma expressão de saudade surgiu no rosto semiparalisado.
— Nam’rads! — gritou Junior. — Golhosas! Nada bom, francês! Tudo francês, difetido! — Ele pôs a língua para fora e a estalou rapidamente contra os lábios. O barulho era parecido com o que o Papa-léguas faz antes de fugir correndo do Coiote numa nuvem de fumaça. Depois riu e começou a voltar na direção da casa.
— Não, Junior — disse Henry, prendendo-o pelo cós da calça do pijama. — A gente tem...
Junior deu meia-volta com velocidade surpreendente. Não havia riso agora; o rosto era uma cama de gato retorcida de ódio e fúria. Lançou-se sobre Henry brandindo os punhos. Pôs a língua para fora e a mordeu com força. Balbuciava numa língua estranha que parecia não ter vogais.
Henry fez a única coisa em que conseguiu pensar: saiu de lado. Junior passou por ele na corrida e começou a dar socos nas luzes no alto do carro da polícia, quebrando uma delas e ferindo os nós dos dedos. Agora havia gente saindo de casa para ver o que estava acontecendo.
— Nmd bnnt mnt! — rugia Junior. — Mnt! Mm! Nmd! Nmd!
Um dos pés escorregou no meio-fio e caiu na sarjeta. Ele titubeou, mas se manteve em pé. Agora também havia sangue no cuspe que pendia do queixo; ambas as mãos estavam muito cortadas e pingavam.
— Ela me deixou louco da fida! — gritou Junior. — Rubei ela co joelho prela calar a boca, e ela cagou! Cagou tudo! Eu... Eu...
Ele se calou. Pareceu pensar. E disse:
— Preciso de ajuda.
Então estalou os lábios — o som tão alto quanto o estalo de uma pistola 22 no ar parado — e caiu para a frente, entre o carro da polícia estacionado e a calçada.
Henry o levou para o hospital, com as luzes e a sirene ligadas. O que não queria era pensar nas últimas coisas que Junior dissera, coisas que quase faziam sentido. Não queria pensar nisso.
Já tinha problemas demais.
Rusty subiu lentamente a Serra Negra, olhando várias vezes o contador Geiger, que agora rugia como um rádio AM entre as estações. A agulha subiu da marca de +400 para a de +1K. Rusty apostava que chegaria até +4K quando estivesse no alto do morro. Sabia que não seria boa notícia — na melhor das hipóteses, a sua “roupa antirradiação” era improvisada —, mas continuou em frente, lembrando-se que a radiação era cumulativa; se fosse rápido, não receberia uma dose letal. Posso perder temporariamente o cabelo, mas não dá pra pegar uma dose letal. É como um voo de bombardeio: vai, faz o serviço e vai embora logo.
Ele ligou o rádio, pegou as Nuvens Poderosas de Alegria na WCIK e desligou no ato. O suor escorreu para dentro dos olhos e ele piscou para tirá-lo. Mesmo com o ar-condicionado no máximo, fazia um calor dos diabos na van. Olhou pelo retrovisor e viu seus parceiros exploradores reunidos. Pareciam bem pequenos.
O rugido do contador Geiger sumiu. Ele olhou. A agulha caíra de volta a zero.
Rusty quase parou, mas percebeu que, se parasse, Rommie e os garotos pensariam que estava com problemas. Além disso, provavelmente eram as pilhas. Mas, quando olhou de novo, viu que a luz de ligado ainda brilhava com força.
No alto do morro, a estrada acabava num retorno diante de um comprido celeiro vermelho. Um caminhão velho e um trator mais velho ainda estavam na frente, o trator inclinado sobre uma única roda. O celeiro parecia em bom estado, embora algumas janelas estivessem quebradas. Atrás dele, havia uma casa de fazenda deserta com parte do telhado desmoronado, talvez com o peso da neve do inverno.
A porta no fim do celeiro estava aberta e, mesmo com janelas fechadas e o ar-refrigerado a toda, Rusty conseguiu sentir o cheiro de sidra das maçãs velhas. Parou ao lado dos degraus que levavam à casa. Havia uma corrente estendida sobre eles, com uma placa: INVASORES SERÃO PROCESSADOS. A placa estava velha e enferrujada e era obviamente ineficaz. Havia latas de cerveja espalhadas pela varanda toda, na qual a família McCoy deve ter se sentado nas noites de verão, aproveitando a brisa e olhando a paisagem: toda a cidade de Chester’s Mill à direita e até New Hampshire se a gente olhasse para a esquerda. Alguém pintara WILDCATS ARRASA numa parede que já fora vermelha e agora era rosa desbotado. Na porta, em spray de outra cor, estava CENTRAL DE ORGIAS. Rusty achou que devia ser o desejo de algum adolescente com fome de sexo. Ou talvez fosse o nome de alguma banda de heavy metal.
Pegou o contador Geiger e lhe deu um tapinha. A agulha pulou e o instrumento cacarejou algumas vezes. Parecia estar funcionando; só não captava nenhuma radiação forte.
Ele saiu da van e, após um rápido debate interior, tirou quase toda a proteção improvisada, ficando só de avental, luvas e óculos. Depois, percorreu a extensão do celeiro, segurando o tubo sensor do contador Geiger à sua frente e prometendo a si mesmo que voltaria para vestir o resto da “roupa” assim que a agulha pulasse.
Mas, quando ele saiu pela lateral do celeiro e a luz piscou a menos de 40 metros, a agulha não se mexeu. Parecia impossível — isto é, se a radiação estivesse ligada à luz. Rusty só conseguiu pensar numa única explicação possível: o gerador criara um cinturão radiativo para desestimular exploradores como ele. Para se proteger. O mesmo poderia se aplicar à tontura que sentira, que, no caso das crianças, levara à inconsciência de fato. Proteção, como os espinhos de um ouriço ou o perfume de um gambá.
Não é mais provável que o contador esteja com defeito? Você pode estar recebendo uma dose letal de raios gama neste exato momento. A maldita coisa é uma relíquia da guerra fria.
Mas, quando se aproximou da beira do pomar, Rusty viu um esquilo passar correndo pelo capim e subir numa das árvores. O bichinho parou num galho pesado de frutas não colhidas e fitou o bípede intruso lá embaixo, os olhos brilhantes, o rabo arrepiado. Para Rusty isso parecia bom, embora esquisitíssimo, e não havia nenhum cadáver de animal no capim nem nos caminhos cheios de mato entre as árvores: nenhum suicídio nem vítimas prováveis de radiação.
Agora estava muito perto da luz, as piscadas regulares tão brilhantes que quase fechava os olhos cada vez que vinham. À direita, o mundo inteiro parecia jazer aos seus pés. Conseguia ver a cidade, perfeita, parecendo de brinquedo, a mais de 6 quilômetros. A grade das ruas; a torre da igreja Congregacional; o cintilar de alguns carros se movendo. Conseguia ver a estrutura baixa de tijolos do Hospital Catherine Russell e, bem a oeste, a mancha preta onde os mísseis tinham se chocado. Lá pendia ela, um sinal na bochecha do dia. O céu no alto era azul desbotado, quase da cor normal, mas no horizonte o azul se transformava num amarelo veneno. Tinha bastante certeza de que parte daquela cor fora causada pela poluição — o mesmo lixo que deixara as estrelas cor-de-rosa —, mas suspeitava que a maior parte era tão sinistra quanto o pólen de outono grudado na superfície invisível da Redoma.
Voltou a avançar. Quanto mais tempo ficasse ali em cima — principalmente ali em cima, sem ser visto —, mais nervosos os amigos ficariam. Queria ir diretamente à fonte da luz, mas antes saiu do pomar e foi até a beira da encosta. Dali conseguia ver os outros, embora fossem pouco mais do que pontinhos. Baixou o contador Geiger e depois acenou devagar com ambas as mãos acima da cabeça, de um lado para o outro, para mostrar que estava bem. Eles acenaram de volta.
— Tudo bem — disse ele. Dentro das luvas pesadas, as mãos estavam escorregadias de suor. — Vamos ver o que nós temos aqui.
Era hora do lanche na Escola Gramatical da rua Leste. Judy e Janelle Everett estavam sentadas numa das pontas do pátio com a amiga Deanna Carver, que tinha 6 anos — em termos de idade, bem no meio das Jotinhas. Deanna usava uma faixinha azul amarrada na manga esquerda da camiseta. Insistira para Carne amarrá-la antes de ir para a escola, para ficar igual aos pais.
— Pra que isso? — perguntou Janelle.
— Quer dizer que eu gosto da polícia — disse Deanna, e mastigou o seu Fruit Roll-Up.
— Quero um — disse Judy —, só que amarelo. — Ela pronunciou esta palavra com todo o cuidado. Quando pequena, ela dizia lelo, e Jannie ria dela.
— Não pode ser amarelo — disse Deanna —, só azul. Esse Roll-Up está bom. Queria ter um bilhão.
— Você ia engordar — disse Janelle. — Ia explodir.
Riram com isso, depois ficaram caladas algum tempo e observaram as crianças maiores, as Jotinhas beliscando os biscoitos de manteiga de amendoim feitos em casa. Algumas meninas brincavam de amarelinha. Os meninos subiam no trepa-trepa, e a srta. Goldstone empurrava as gêmeas Pruitt no balanço duplo. A sra. Vanedestine organizara um jogo de bola.
Tudo parecia bem normal, pensou Janelle, mas não era normal. Ninguém gritava, ninguém chorava com o joelho ralado, Mindy e Mandy Pruitt não pediam à srta. Goldstone que admirasse os penteados iguais. Todos pareciam fingir que estavam no recreio, até os adultos. E todos, ela inclusive, não paravam de dar olhares furtivos para o céu, que deveria estar azul, mas não estava.
Mas o pior não era nada disso. O pior, desde as convulsões, era a certeza sufocante de que algo ruim aconteceria.
Deanna disse:
— Eu ia ser a Pequena Sereia no Halloween, mas agora não vou mais. Não vou ser nada. Não quero sair. Tou com medo do Halloween.
— Você teve um pesadelo? — perguntou Janelle.
— Tive. — Deanna afastou de si o Fruit Roll-Up. — Não quero o resto disso. Não tou mais com tanta fome.
— Não — disse Janelle. Ela não queria nem o resto dos seus biscoitos de manteiga de amendoim, e isso não era mesmo coisa dela. E Judy só comera meio biscoito. Janelle lembrou uma vez que vira Audrey encurralar um camundongo na garagem. Lembrou que Audrey latira e avançara sobre o camundongo quando ele tentou sair correndo do canto onde estava. Isso a deixara triste, e ela gritara para a mãe levar Audrey embora para que não comesse o camundongo. Mamãe riu, mas atendeu.
Agora elas eram o camundongo. Jannie esquecera a maioria dos sonhos que tivera durante as convulsões, mas disso ainda sabia.
Agora elas é que estavam no canto.
— Eu só vou ficar em casa — disse Deanna. Havia uma lágrima no olho esquerdo, brilhante, límpida e perfeita. — Ficar em casa no Halloween. Não vou nem vir à escola. Não vou. Ninguém pode me obrigar.
A sra. Vanedestine parou o jogo de bola e começou a tocar o sino do fim do recreio, mas nenhuma das três meninas se levantou logo.
— Já é Halloween — disse Judy. — Olha. — Ela apontou para o outro lado da rua, onde havia uma abóbora na varanda da casa dos Wheeler. — E olha. — Dessa vez ela apontou um par de fantasmas de papelão ladeando as portas do correio. — E olha.
Dessa última vez ela apontou o gramado da biblioteca. Ali, Lissa Jamieson montara um boneco de pano. Sem dúvida, quisera que ficasse divertido, mas o que diverte os adultos costuma dar medo às crianças, e Janelle ficou com a ideia de que o boneco do gramado da biblioteca poderia ir visitá-la naquela noite quando estivesse deitada no escuro esperando dormir.
A cabeça era de aniagem, com olhos que eram cruzes brancas feitas de linha. O chapéu era uma cartola torta, como a que o gato usava no livro do dr. Seuss. Tinha pás de jardinagem em vez de mãos (mãos frias que pegam e agarram, pensou Janelle) e uma camiseta com algo escrito. Ela não entendeu o que queria dizer, mas conseguiu ler as palavras: SWEET HOME ALABAMA TOCA A MÚSICA DAQUELA BANDA MORTA
— Viu? — Judy não estava chorando, mas os olhos estavam arregalados e solenes, cheios de algum conhecimento complexo e sinistro demais para ser expresso. — Já é Halloween.
Janelle pegou a mão da irmã e a pôs de pé.
— Não, não é — disse... mas tinha medo de que fosse. Algo ruim ia acontecer, algo com fogo. Nada de gostosuras, só travessuras. Travessuras malvadas. Travessuras ruins.
— Vamos entrar — disse a Judy e Deanna. — Vamos cantar e tudo. Vai ser legal.
Geralmente era, mas não nesse dia. Mesmo antes da grande explosão no céu, não foi legal. Janelle não parava de pensar no boneco com olhos de cruz branca. E a camiseta meio assustadora: TOCA A MÚSICA DAQUELA BANDA MORTA.
Quatro anos antes que a Redoma caísse, o avô de Linda Everett morrera e deixara para cada neto uma quantia pequena mas satisfatória. O cheque de Linda fora de 17.232,04 dólares. A maior parte fora para o fundo universitário das Jotinhas, mas ela achara muito justo gastar algumas centenas com Rusty. O aniversário do marido estava chegando, e ele queria uma Apple TV desde que esta surgira no mercado alguns anos antes.
Ela lhe comprara presentes mais caros no decorrer do casamento, mas nenhum lhe agradara mais. A ideia de baixar filmes da internet e depois assistir a eles na televisão em vez de ficar preso à tela menor do computador o deixava empolgadíssimo. O aparelho era um quadrado de plástico branco, com 18cm de lado e 2cm de espessura. O objeto que Rusty achou na Serra Negra era tão parecido com o seu acessório da Apple TV que a princípio pensou que era um deles... só que modificado, é claro, para que pudesse manter prisioneira uma cidade inteira além de transmitir A pequena sereia em alta definição para o televisor via wi-fi.
A coisa na borda do pomar dos McCoy era cinza-escuro em vez de branco, e em vez do famoso logotipo da maçã em cima Rusty observou esse símbolo um tanto preocupante:
Acima do símbolo, havia uma excrescência encapuzada do tamanho do nó do seu dedo mindinho. Dentro do capuz havia uma lente feita de vidro ou cristal. Era daí que saíam os raios roxos espacejados.
Rusty se curvou e tocou a superfície do gerador — se era um gerador. Um choque violento imediatamente subiu pelo seu braço e lhe perpassou o corpo. Tentou recuar e não conseguiu. Os músculos estavam travados. O contador Geiger deu um zurro só e ficou calado. Rusty não sabia se a agulha fora ou não para a zona de perigo, porque também não conseguia mover os olhos. A luz deixava o mundo, afunilando-se para fora dele como água que escoa pelo ralo da banheira, e ele pensou com clareza súbita e calma: Vou morrer. Que jeito estúpido de ir...
Então, naquela escuridão, surgiram rostos — só que não eram rostos humanos, e mais tarde ele não teria certeza de serem mesmo rostos. Eram sólidos geométricos que pareciam revestidos de couro. A única parte deles que parecia vagamente humana eram formas de losango nas laterais. Poderiam ser orelhas. As cabeças — se eram cabeças — viraram-se umas para as outras, em discussão ou algo que poderia ser confundido com isso. Achou ter ouvido risos. Achou ter sentido empolgação. Visualizou crianças no pátio da Escola Gramatical — as filhas, talvez, com a amiga Deanna Carver — trocando lanches e segredos no recreio.
Tudo isso aconteceu no decorrer de segundos, com certeza não mais do que quatro ou cinco. Então acabou. O choque se dissipou tão repentina e completamente quanto o das pessoas que tocavam a superfície da Redoma pela primeira vez; tão depressa quanto a tontura e a visão do boneco de cartola torta que a acompanhara. Ele estava apenas ajoelhado no alto do morro que dava para a cidade, derretendo de calor com os acessórios de chumbo.
Mas a imagem daquelas cabeças de couro ficou. Inclinadas umas para as outras e rindo numa conspiração obscena e infantil.
Os outros estão lá embaixo me olhando. Acena. Mostra pra eles que você tá bem.
Ele ergueu as duas mãos sobre a cabeça — agora elas se moviam facilmente — e acenou devagar de um lado para o outro, como se o coração não pulasse feito lebre no peito, como se o suor não lhe corresse pelo corpo em arroios agudamente aromáticos.
Lá embaixo, na estrada, Rommie e os garotos acenaram de volta.
Rusty respirou fundo várias vezes para se acalmar e depois segurou o tubo sensor do contador Geiger junto do quadrado plano e cinzento, que estava sobre uma touceira esponjosa de capim. A agulha ondulou pouco abaixo da marca +5. Contagem de fundo, nada mais.
Rusty tinha pouca dúvida de que esse objeto quadrado e plano era a fonte dos seus problemas. Criaturas — seres humanos, não, criaturas — o usavam para mantê-los prisioneiros, mas isso não era tudo. Também o usavam para observar. E para se divertir. Os canalhas estavam rindo. Ele escutara.
Rusty despiu o avental, jogou-o sobre a caixa com a sua lente levemente elevada, levantou-se e se afastou. Por um instante, nada aconteceu. Então o avental pegou fogo. O cheiro foi pungente e horroroso. Ele observou a superfície brilhante formar bolhas e borbulhar, observou as chamas surgirem. Então o avental, que em essência não passava de uma folha de chumbo coberta de plástico, simplesmente se desfez. Por um instante, houve pedaços ardentes, o maior ainda em cima da caixa. Um instante depois, o avental — ou o que restava dele — se desintegrou. Alguns pedacinhos de cinza continuaram a girar — e o cheiro — mas fora isso... puf. Foi-se.
Eu vi isso? perguntou-se Rusty, e aí falou em voz alta, perguntando ao mundo. Sentia o cheiro de plástico queimado e um cheiro mais pesado que supôs que fosse o chumbo derretido — insano, impossível —, mas ainda assim o avental sumira.
— Eu vi mesmo isso?
Como se em resposta, a luz roxa piscou no nó do capuz acima da caixa. Estariam aqueles pulsos renovando a Redoma, como o toque do dedo no teclado do computador pode atualizar a tela? Permitiam que os cabeças de couro vigiassem a cidade? As duas coisas? Nenhuma delas?
Ele disse a si mesmo para não se aproximar novamente do quadrado plano. Disse a si mesmo que o mais inteligente a fazer seria correr de volta à van (sem o peso do avental, ele poderia correr) e depois dirigir como louco, só parando para buscar os companheiros que aguardavam lá embaixo.
Em vez disso, aproximou-se de novo da caixa e caiu de joelhos diante dela, uma postura parecida demais com oração para o seu gosto.
Descalçou uma das luvas, tocou o chão ao lado da coisa e depois puxou a mão de volta. Muito quente. Pedacinhos do avental em chamas tinham chamuscado parte do capim. Depois, estendeu a mão para a caixa propriamente dita, preparando-se para outra queimadura ou choque... embora não fosse de nenhum dos dois que tivesse mais medo, estava com medo é de ver outra vez aquelas formas de couro, aquelas quase cabeças curvadas juntas numa conspiração de risos.
Mas não houve nada. Nem visões, nem calor. A caixa cinzenta era fria ao toque, muito embora tivesse visto o avental de chumbo borbulhar em cima dela e realmente pegar fogo.
A luz roxa piscou. Rusty tomou cuidado para não pôr a mão na frente. Em vez disso, agarrou os lados da coisa, dizendo adeus mentalmente à mulher e às meninas, dizendo-lhes que sentia muito ser tão imbecil. Esperou pegar fogo e se queimar. Como isso não aconteceu, tentou erguer a caixa. Embora tivesse a área de um prato e não fosse muito mais grossa, não conseguiu movê-la. A caixa podia muito bem estar soldada no alto de um pilar plantado em 30 metros de rocha da Nova Inglaterra — só que não estava. Estava pousada em cima de um capinzal, e quando ele enfiou os dedos por baixo, eles se tocaram. Ele cruzou os dedos e tentou erguer a coisa de novo. Nada de choque, nada de visões, nada de calor; nada de movimento também. Nem mesmo uma balançadinha.
Ele pensou: As minhas mãos estão segurando algum tipo de artefato alienígena. Uma máquina de outro mundo. Talvez eu até tenha vislumbrado os seus operadores.
A idéia era intelectualmente espantosa — aterradora, até —, mas não tinha nenhum gradiente emocional, talvez porque estivesse atordoado demais, estupefato demais com informações que não conseguia classificar.
E agora? Infernos, e agora?
Não sabia. E parecia que, afinal de contas, não estava emocionalmente insensível, pois uma onda de desespero o varreu, e ele mal conseguiu se segurar para não vocalizar esse desespero com um grito. As quatro pessoas lá embaixo poderiam ouvir e pensar que ele estava com problemas. E é claro que estava. Também não estava sozinho.
Ele se levantou sobre pernas que tremiam e ameaçavam ceder debaixo dele. O ar quente e abafado parecia colar na sua pele como óleo. Percorreu devagar o caminho de volta até a van por entre as árvores cheias de maçãs. A única coisa de que tinha certeza era que, sob nenhuma circunstância, Big Jim poderia saber do gerador. Não porque tentaria destruí-lo, mas porque, muito provavelmente, poria uma guarda em volta dele para garantir que não fosse destruído. Para garantir que continuasse a fazer o que fazia, para que ele pudesse continuar fazendo o que fazia. Por enquanto, ao menos, Big Jim gostava da situação do jeito que estava.
Rusty abriu a porta da van e foi então que, menos de 2 quilômetros ao norte de Serra Negra, uma imensa explosão abalou o dia. Foi como se Deus se inclinasse e atirasse com uma espingarda celeste.
Rusty gritou de surpresa e olhou para cima. Imediatamente protegeu os olhos do feroz sol temporário que ardia no céu sobre a fronteira entre o TR-90 e Chester’s Mill. Outro avião batera na Redoma. Só que dessa vez não fora um mero Seneca V. Subia fumaça preta do ponto de impacto, que segundo Rusty estimou estava a ao menos 6 mil metros de altura. Se o ponto preto deixado pelos mísseis era um sinal na bochecha do dia, então essa nova marca era um tumor de pele. Um tumor que haviam deixado solto.
Rusty esqueceu o gerador. Esqueceu as quatro pessoas que esperavam por ele. Esqueceu as próprias filhas, pelas quais acabara de se arriscar a ser queimado vivo e depois desincorporado. Por um período de dois minutos, não houve espaço para nada na sua mente a não ser um espanto negro.
Caíam escombros na terra do outro lado da Redoma. A quarta parte anterior e esmagada do jato foi seguida por um motor em chamas; o motor foi seguido por uma chuva de poltronas azuis do avião, muitas com passageiros ainda presos a elas; as poltronas foram seguidas por uma imensa asa brilhante, indo e vindo como uma folha de papel na brisa; a asa foi seguida pela cauda do que provavelmente era um 767. A cauda estava pintada de verde-escuro. Uma forma verde mais clara tinha sido sobreposta. A Rusty parecia um trevo.
Um trevo não, um trifólio.
Então o corpo do avião caiu na terra como uma flecha com defeito e pôs a floresta em chamas.
A explosão abala a cidade e todos saem para olhar. Em toda Chester’s Mill, eles saem para olhar. Ficam diante das casas, nas entradas de garagem, nas calçadas, no meio da rua Principal. E, embora o céu ao norte da prisão deles esteja bastante nublado, têm de proteger os olhos do brilho — que a Rusty, no seu lugar no alto da Serra Negra, parece um segundo sol.
É claro que veem o que é; os de olhos mais penetrantes dentre eles conseguem até ler o nome no corpo do avião em queda antes que desapareça abaixo do alto das árvores. Não é nada sobrenatural; até já aconteceu antes, e nesta mesma semana (embora em escala menor, é verdade). Mas provoca no povo de Chester’s Mill um tipo de temor mal-humorado que dominará a cidade daí até o fim.
Quem já cuidou de um paciente terminal dirá que há um momento em que a negação morre e a aceitação consegue entrar. Para a maioria do povo de Chester’s Mill, essa virada aconteceu no meio da manhã de 25 de outubro, quando estavam sozinhos ou com os vizinhos observando mais de trezentas pessoas caírem na floresta do TR-90.
Mais cedo, naquela manhã, talvez 15% da população da cidade usassem braçadeiras azuis de “solidariedade”; ao pôr do sol desta quarta-feira de outubro, o número terá dobrado. Quando o sol nascer amanhã, serão mais de 50% da população.
A negação dá lugar à aceitação; a aceitação gera dependência. Quem já cuidou de um paciente terminal também vai dizer isso. Quem está doente precisa de alguém que lhe leve comprimidos e copos de suco frio e doce para engoli-los. Precisa de alguém que massageie as articulações doloridas com creme de arnica. Precisa de alguém que fique sentado junto quando a noite é escura e as horas se arrastam. Precisa de alguém que diga Durma agora, pela manhã será melhor. Estou aqui, pode dormir. Durma agora. Durma e deixe que eu cuido de tudo.
Durma.
O policial Henry Morrison levou Junior ao hospital — a essa altura o garoto recuperara uma aparência xaroposa de consciência, embora ainda falasse bobagens — e Twitch o levou para dentro numa maca. Foi um alívio vê-lo se afastar.
Henry pegou no catálogo o número do telefone de Big Jim e da prefeitura, mas ninguém atendeu — eram linhas fixas. Estava escutando um robô lhe dizer que o número do celular de James Rennie não estava na lista quando o jato explodiu. Saiu correndo como todos que eram capazes de andar e ficou no retorno, olhando a nova marca preta na superfície invisível da Redoma. Os últimos destroços ainda caíam.
Big Jim estava de fato na sua sala na Câmara de Vereadores, mas desligara o telefone para que pudesse trabalhar nos dois discursos — o que faria aos policiais naquela noite, o que faria à cidade toda na noite seguinte — sem interrupções. Ouviu a explosão e saiu correndo. A primeira idéia que teve foi que Cox mandara uma bomba atômica. Uma bomba atômica melequenta! Se atravessasse a Redoma, estragaria tudo!
Ele se viu parado ao lado de Al Timmons, o zelador da Câmara. Este apontou para o norte, alto no céu, onde a fumaça ainda subia. A Big Jim, pareceu uma explosão antiaérea num velho filme da Segunda Guerra Mundial.
Foi um avião! — gritou Al. — E dos grandes! Jesus! Eles não foram avisados?
Big Jim teve uma sensação de alívio cautelosa, e seu coração que martelava diminuiu um pouco o ritmo. Se era um avião... só um avião e não uma bomba nuclear nem nenhum tipo de supermíssil...
O celular tocou. Ele o tirou do bolso do paletó e o abriu.
— Peter? É você?
— Não, sr. Rennie. Aqui é o coronel Cox.
— O que o senhor fez? — berrou Rennie. — Em nome de Deus, o que vocês fizeram agora?
— Nada. — Não havia nada da autoridade ríspida anterior na voz de Cox; ele parecia espantado. — Isso... não teve nada a ver conosco. Foi... espera um instante.
Rennie esperou. A rua Principal estava cheia de gente fitando o céu de boca aberta. Para Rennie, pareciam ovelhas com roupas humanas. Amanhã à noite, se amontoariam na prefeitura e fariam bééé bééé bééé, quando vai melhorar? E bééé bééé bééé, cuide de nós até lá. E ele cuidaria. Não porque quisesse, mas porque era a vontade de Deus.
Cox voltou. Agora parecia cansado além de espantado. Não era o mesmo homem que pressionara Big Jim a desistir. E é assim que eu quero que você fique, parceiro pensou Rennie. Exatamente assim.
— As informações iniciais são de que o voo 179 da Air Ireland bateu na Redoma e explodiu. Saiu de Shannon e ia para Boston. Já temos duas testemunhas independentes que afirmam ter visto um trifólio na cauda, e uma equipe da ABC que estava filmando perto da zona da quarentena, em Harlow, pode ter registrado... mais um segundo.
Foi muito mais do que um segundo; mais do que um minuto. O coração de Big Jim vinha se desacelerando rumo à velocidade normal (se 120 batidas por minuto podem ser descritas dessa forma), mas agora se acelerou de novo e deu um daqueles passos em falso cíclicos. Ele tossiu e bateu no peito. O coração pareceu quase se ajeitar, depois caiu numa total arritmia. Ele sentiu o suor surgir na testa. O dia antes escuro de repente ficou claro demais.
— Jim? — Era Al Timmons, e embora estivesse bem ao lado de Big Jim, a sua voz parecia vir de uma galáxia muito, muito distante. — Está tudo bem?
— Ótimo — disse Big Jim. — Fique bem aqui. Eu posso precisar de você.
Cox voltou.
— Foi mesmo o vôo da Air Ireland. Acabei de assistir à filmagem do acidente transmitida pela ABC. Uma repórter fazia uma locução e aconteceu bem atrás dela. Eles filmaram tudo.
— Tenho certeza de que a audiência vai subir.
— Sr. Rennie, nós tivemos as nossas divergências, mas espero que o senhor transmita aos seus eleitores que não há nada a temer.
— Basta me dizer como uma coisa dessas...
O coração pulou de novo. A respiração entrou rasgando e parou. Ele bateu no peito uma segunda vez — com mais força — e sentou-se num banco ao lado do caminho de tijolos que ia da prefeitura até a calçada. Agora Al olhava para ele em vez da cicatriz que o acidente deixara na Redoma, a testa franzida de preocupação — e, pensou Big Jim, medo. Mesmo agora, com tudo isso ocorrendo, ele ficou feliz ao ver aquilo, contente ao saber que era considerado indispensável. As ovelhas precisam de pastor.
— Rennie? Você está aí?
— Estou aqui. — O coração também, mas longe de estar bem. — Como isso aconteceu? Como pôde acontecer? Pensei que vocês tinham avisado a todo mundo.
— Não temos certeza e só vamos ter quando recuperarmos a caixa-preta, mas temos uma boa ideia. Mandamos uma diretriz avisando a todas as empresas aéreas que se afastassem da Redoma, mas essa é a rota costumeira do vôo 179. Achamos que alguém se esqueceu de reprogramar o piloto automático. Simples assim. Vou dar mais detalhes assim que chegarem aqui, mas agora o mais importante é evitar que o pânico se espalhe na cidade.
Mas, sob certas circunstâncias, o pânico poderia ser bom. Sob certas circunstâncias, poderia — como os saques a supermercados e os incêndios propositais — ter um efeito benéfico.
— Isso foi uma estupidez em grande escala, mas ainda assim só um acidente — dizia Cox. — Faça com que o seu povo saiba disso.
Eles vão saber o que eu contar e acreditar no que eu quiser que acreditem, pensou Rennie.
O coração pulou como gordura numa frigideira quente, acalmou-se brevemente num ritmo mais normal e depois pulou de novo. Ele apertou o botão vermelho END sem responder a Cox e largou o celular de volta no bolso. Depois, olhou para Al.
— Preciso que você me leve ao hospital — disse, falando com toda a calma que conseguiu arranjar. — Acho que eu não estou me sentindo muito bem.
Al, que usava uma Braçadeira da Solidariedade, pareceu mais alarmado do que nunca.
— Claro, Jim. Fica aí sentado que eu vou buscar o carro. Não podemos deixar que nada te aconteça. A cidade precisa de você.
E como eu sei disso, pensou Big Jim, sentado no banco e olhando a grande mancha preta no céu.
— Procure o Carter Thibodeau e diga pra me encontrar aqui. Quero ele por perto.
Havia outras instruções que queria dar, mas nisso o seu coração parou completamente. Por um instante, o para sempre se abriu aos seus pés, um abismo escuro e nítido. Rennie ofegou e bateu no peito. Ele explodiu a todo galope. Com isso, ele pensou: Não me deixe na mão agora, eu tenho muita coisa a fazer. Não ouse, seu melequento. Não ouse.
— O que foi isso? — perguntou Norrie, com voz aguda e infantil, e depois respondeu à própria pergunta. — Foi um avião, não foi? Um avião cheio de gente. — Ela caiu em lágrimas. Os meninos tentaram segurar as lágrimas e não conseguiram. O próprio Rommie ficou com vontade de chorar.
— É — disse ele. — Acho que foi isso mesmo.
Joe se virou para olhar a van, que agora vinha na direção deles. Quando chegou ao pé da serra, se apressou, como se Rusty mal pudesse esperar para voltar. Quando chegou e saltou, Joe viu que havia outra razão para a pressa: o avental de chumbo sumira.
Antes que Rusty pudesse dizer alguma coisa, o celular tocou. Ele o abriu, olhou o número e aceitou a ligação. Esperava Ginny, mas era o novo ajudante, Thurston Marshall.
— Sim, diga. Se for sobre o avião, eu vi... — Ele escutou, franziu um pouco a testa e fez que sim com a cabeça. — Tudo bem. Certo. Estou indo agora. Diga pra Ginny ou Twitch que dêem 2 miligramas de Valium intravenoso pra ele. Não, melhor 3. E diga pra ele se acalmar. Isso não faz parte da natureza dele, mas diga para tentar. Dê ao filho 5 miligramas.
Fechou o telefone e olhou os outros.
— Os dois Rennie estão no hospital, o mais velho com arritmia cardíaca, que já teve antes. Essa porra desse idiota devia estar usando marca-passo há dois anos. Thurston diz que o mais novo tem sintomas que parecem de glioma. Espero que ele esteja errado.
Norrie virou para Rusty o rosto manchado de lágrimas. Estava com o braço em volta de Benny Drake, que limpava os olhos furiosamente. Quando Joe veio e ficou ao seu lado, ela pôs o outro braço em torno dele.
— Isso é um tumor cerebral, não é? — perguntou ela. — Um dos ruins.
— Quando aparecem em rapazes da idade de Junior Rennie, quase todos são ruins.
— O que você encontrou lá em cima? — perguntou Rommie.
— E o que aconteceu com o avental? — acrescentou Benny.
— Achei o que o Joe achou que eu acharia.
— O gerador? — perguntou Rommie. — Doutor, tem certeza?
— Tenho. Não se parece com nada que eu já vi. Tenho quase certeza de que ninguém na Terra já viu coisa igual.
— Algo de outro planeta — disse Joe, com voz tão baixa que era um sussurro. — Sabia!
Rusty o olhou com atenção.
— Você não pode dizer nada sobre isso. Nenhum de nós. Se perguntarem, digam que nós procuramos e não achamos nada.
— Nem pra minha mãe? — perguntou Joe, queixoso.
Rusty quase cedeu nesse ponto, mas endureceu o coração. Já era um segredo partilhado por cinco pessoas, o que era demais. Mas os garotos mereciam saber, e Joe McClatchey adivinhara de qualquer jeito.
— Nem ela, ao menos por enquanto.
— Não consigo mentir pra ela — disse Joe. — Não dá certo. Ela tem Visão de Mãe.
— Então diga só que me jurou guardar segredo e que é melhor pra ela que seja assim. Se ela pressionar, peça que ela converse comigo. Vamos, preciso voltar pro hospital. Rommie, você dirige, Os meus nervos estão em frangalhos.
— Você não vai... — começou Rommie.
— Vou contar tudo. No caminho. Talvez a gente consiga até imaginar o que fazer.
Uma hora depois de o 767 da Air Ireland bater na Redoma, Rose Twitchell entrou na delegacia de Chester’s Mill com um prato coberto por um guardanapo. Stacey Moggin estava de volta à recepção, parecendo tão cansada e distraída quanto Rose.
— O que é isso? — perguntou Stacey.
— Almoço. Pro meu cozinheiro. Dois sanduíches de bacon, alface e tomate.
— Rose, não posso deixar você descer lá. Não posso deixar ninguém descer lá.
Mel Searles conversava com dois recrutas novos sobre uma exposição de caminhões gigantes a que assistira no Centro Cívico de Portland na primavera passada. Nisso, olhou em volta.
— Eu levo pra ele, srta. Twitchell.
— Você não — disse Rose.
Mel pareceu surpreso. E um pouco magoado. Sempre gostara de Rose e achou que ela gostava dele.
— Não confio que você não vai deixar cair o prato — explicou ela, embora não fosse a verdade toda; o fato era que ela não confiava nada nele. — Já vi você jogar futebol americano, Melvin.
— Ah, poxa, eu não sou tão desajeitado assim.
— E eu também quero ver se ele está bem.
— Ele não pode receber visitantes — disse Mel. — É ordem do chefe Randolph, e ele recebeu a ordem diretamente do vereador Rennie.
— Pois eu vou descer. Você vai ter que usar a sua arma de eletrochoque em mim, e se fizer isso nunca mais te faço outro waffle de morango do jeito que você gosta, com massa bem molinha no meio. — Ela olhou em volta e farejou. — Além disso, eu não estou vendo esses dois homens por aqui agora. Ou estou enganada?
Mel pensou em endurecer, mesmo que fosse só para impressionar os novatos, mas decidiu que não. Gostava mesmo de Rose. E gostava dos waffles, principalmente quando ficavam meio moles. Puxou o cinto para cima e disse:
— Tudo bem. Mas eu vou descer junto, e você não vai dar nada pra ele sem que eu olhe debaixo do guardanapo.
Ela o levantou. Embaixo havia dois sanduíches de bacon, alface e tomate e um bilhete escrito atrás de uma comanda do Rosa Mosqueta. Fique forte, dizia. Acreditamos em você.
Mel pegou o bilhete, amassou-o e o jogou na cesta de lixo. Errou, e um dos recrutas correu para pegá-lo.
— Vem — disse, e parou, pegou meio sanduíche e deu uma mordida enorme. — Ele não ia conseguir comer tudo mesmo — disse a Rose.
Rose nada respondeu, mas enquanto ele a guiava escada abaixo, ela realmente pensou por um instante em bater na cabeça dele com o prato.
Quando ela estava no meio do corredor, Mel disse:
— Só até aí, srta. Twitchell, eu faço o resto do caminho.
Ela lhe entregou o prato e, tristonha, viu Mel se ajoelhar, empurrar o prato entre as grades e anunciar:
— O almoço está servido, messiê.
Barbie o ignorou. Olhava para Rose.
— Obrigado. Mas se foi Anson que fez, não sei se eu ficarei grato depois da primeira mordida.
— Eu que fiz — disse ela. — Barbie, por que bateram em você? Estava tentando fugir? Você está péssimo.
— Não estava tentando fugir, só resistir à prisão. Não foi, Mel?
— Pode parar com a conversinha esperta, senão eu entro aí e te tiro os sanduíches.
— Pois pode tentar — disse Barbie. — Podemos discutir a questão.
Quando Mel não mostrou nenhuma vontade de aceitar a oferta, Barbie voltou novamente a sua atenção para Rose.
— Foi um avião? Parecia um avião. Um dos grandes.
— A ABC diz que foi um jato da Air Ireland. Lotado.
— Deixa eu adivinhar. Estava a caminho de Boston ou Nova York e algum geninho não muito inteligente esqueceu de reprogramar o piloto automático.
— Não sei. Não estão falando dessa parte ainda.
— Vamos. — Mel voltou e lhe segurou o braço. — Chega de papo. Você tem que ir embora antes que eu me meta em encrenca.
— Você está bem? — perguntou Rose a Barbie, resistindo à ordem — ao menos por ora.
— Estou — disse Barbie. — E você? Já fez as pazes com Jackie Wettington?
E qual seria a resposta correta a essa pergunta? Até onde sabia, Rose não tinha pazes a fazer com Jackie. Achou ter visto Barbie dar uma sacudidinha na cabeça e torceu para não ser só imaginação.
— Ainda não — respondeu.
— Pois devia. Diz pra ela deixar de ser escrota.
— É, vai esperando — murmurou Mel. Segurou o braço de Rose. — Agora vamos; não me obrigue a te arrastar.
— Diz pra ela que eu disse que você é legal — gritou Barbie enquanto ela subia a escada, dessa vez indo à frente com Mel logo atrás. — Vocês duas deviam mesmo conversar. E obrigado pelos sanduíches.
Diz pra ela que eu disse que você é legal.
Era essa a mensagem, ela tinha certeza. Não achou que Mel tivesse entendido; ele sempre fora burro, e a vida debaixo da Redoma não parecia ajudá-lo a ficar mais esperto. E provavelmente era por isso que Barbie correra o risco.
Rose decidiu procurar Jackie assim que possível e passar a mensagem: Barbie diz que eu sou legal. Barbie diz que você pode conversar comigo.
— Obrigada, Mel — disse ela, quando chegaram à sala de controle. — Foi muita gentileza sua me deixar fazer isso.
Mel olhou em volta, não viu ninguém com mais autoridade do que ele e relaxou.
— Sem problema, mas não ache que vai voltar com o jantar, porque isso não vai acontecer. — Ele pensou melhor e depois ficou filosófico. — Mas acho que ele merece algo legal, porque daqui a uma semana vai estar tão tostadinho quanto os sanduíches que você fez.
Isso nós vamos ver, pensou Rose.
Andy Sanders e o Chef estavam sentados ao lado do depósito da WCIK, fumando meth. Bem à frente deles, no campo que cercava a torre de rádio, havia um monte de terra marcado com uma cruz feita com tábuas de caixote. Debaixo do monte jazia Sammy Bushey, torturadora de Bratzes, vítima de estupro, mãe do Pequeno Walter. O Chef disse que, mais tarde, roubaria uma cruz normal do cemitério ao lado do lago Chester. Se houvesse tempo. Talvez não houvesse.
Ele ergueu o controle como se quisesse enfatizar a questão.
Andy estava triste por Sammy, como ficara triste por Claudette e Dodee, mas agora era uma tristeza clínica, guardada em segurança dentro da sua própria Redoma: podia ser vista, a sua existência podia ser avaliada, mas não se podia exatamente entrar lá dentro com ela. O que era bom. Tentou explicar isso ao Chef Bushey, embora se perdesse um pouco no meio — era um conceito complexo. Mas o Chef concordou e passou a Andy um grande narguilé de vidro. Cravado na lateral estavam as palavras VENDA ILEGAL.
— É bom, não é? — perguntou o Chef.
— É! — respondeu Andy.
Por algum tempo, então, eles discutiram os dois grandes temas dos doidões renascidos: como aquela merda era boa e como era foda usar aquela merda boa. Em certo momento, houve uma enorme explosão ao norte. Andy protegeu os olhos, que ardiam com tanta fumaça. Quase deixou cair o narguilé, mas o Chef o salvou.
— Que merda, é um avião! — Andy tentou se levantar, mas as pernas, embora cheias de energia, não o sustentaram. Voltou a se sentar.
— Não, Sanders — disse o Chef. Deu uma tragada no narguilé. Sentado de pernas cruzadas como estava, Andy o achou parecido com um índio com o cachimbo da paz.
Encostados na lateral do depósito, entre Andy e Chef, havia quatro AK-47s automáticos, de fabricação russa mas, como muitos outros ótimos itens guardados no depósito, importados da China. Havia também cinco caixotes empilhados cheios de carregadores de munição e uma caixa de granadas RGD5. O Chef traduzira para Andy os ideogramas da caixa de granadas: Não deixe essa filha da mãe cair.
Agora, o Chef pegou um dos AKs e o pôs sobre os joelhos.
— Isso não foi um avião — disse mais alto.
— Não? Então o que foi?
— Um sinal de Deus. — Chef olhou o que pintara na lateral do depósito: duas citações (interpretadas com liberdade) do Apocalipse, com o número 31 mostrado com destaque. Depois, olhou de novo para Andy. Ao norte, a nuvem de fumaça se dissipava no céu. Abaixo dela, nova fumaça subia de onde o avião caíra na floresta. — Eu entendi a data errada — disse, com voz taciturna. — O Halloween vai vir mesmo mais cedo esse ano. Talvez hoje, talvez amanhã, talvez depois de amanhã.
— Ou no dia seguinte — acrescentou Andy, querendo ajudar.
— Talvez — admitiu o Chef —, mas acho que vai ser mais cedo. Sanders!
— O que é, Chef?
— Pega uma arma. Agora você está no exército do Senhor. Você é um soldado cristão. Os dias de puxar o saco daquele apóstata filho da puta acabaram.
Andy pegou um AK e o pôs em cima das coxas nuas. Gostou do peso e do calor da arma. Verificou se a trava de segurança estava no lugar. Estava.
— Que apóstata filho da puta é esse de que você está falando, Chef?
Chef lhe fixou um olhar de puro desprezo, mas quando Andy estendeu a mão para o narguilé ele o entregou com bastante boa vontade. Havia muito para os dois, haveria de agora até o fim, e, sim, realmente, o fim não demoraria.
— Rennie. Aquele apóstata filho da puta.
— Ele é meu amigo, meu parceiro, mas pode ser muito mandão, é verdade — admitiu Andy. — Meu Deus, como essa merda é boa.
— É mesmo — concordou o Chef mal-humorado, e pegou de volta o narguilé (que Andy agora considerava o Cachimbo da Paz do Fumódromo).
— É o mais longo dos cachimbos longos, o mais puro dos puros, e o que é isso, Sanders?
— Remédio pra melancolia! — respondeu Andy, animado.
— E o que é aquilo? — apontando a nova marca preta na Redoma.
— Um sinal! De Deus!
— Isso — disse o Chef, mais tranquilo. — É exatamente o que é. Agora estamos numa viagem divina, Sanders. Sabe o que aconteceu quando Deus abriu o sétimo selo? Você leu o Apocalipse?
Andy se lembrava vagamente da época do acampamento cristão que frequentara quando adolescente, de anjos saindo do sétimo selo como palhaços do carrinho do circo, mas não queria explicar assim. O Chef talvez achasse blasfêmia. Por isso, só balançou a cabeça.
— Achei que não — disse o Chef. — Você pode ter recebido pregação na Sagrado Redentor, mas pregação não é educação. Pregação não é a verdadeira merda visionária. Entende?
O que Andy entendia é que queria outra baforada, mas fez que sim.
— Quando o sétimo selo se abriu, sete anjos surgiram com sete trombetas. E toda vez que um deles soprava a cometa, uma praga caía sobre a Terra. Pronto, fuma aqui, isso vai ajudar a sua concentração.
Há quanto tempo estavam lá fumando? Horas, ao que parecia. Tinham mesmo visto um avião cair? Andy achava que sim, mas agora não tinha total certeza. Aquilo parecia terrivelmente distante. Talvez devesse dar um cochilo. Por outro lado, era maravilhoso, quase um êxtase, só estar ali com o Chef, ficando doidão e sendo instruído.
— Quase me matei, mas Deus me salvou — disse ele ao Chef. A ideia era tão maravilhosa que os olhos se encheram de lágrimas.
— Claro, claro, isso é óbvio. Essa outra coisa não é. Presta atenção.
— Estou prestando.
— O primeiro anjo tocou e caiu sangue sobre a Terra. O segundo anjo tocou e um grande monte ardendo em fogo foi lançado ao mar. São os seus vulcões e tal.
— É! — gritou Andy, e sem querer apertou o gatilho do AK-47 pousado no seu colo.
— É melhor prestar atenção — disse o Chef. — Se a trava de segurança não estivesse acionada, você teria lançado o meu gravetinho num pinheiro lá longe. Dá uma tragada nessa merda. — Ele entregou o narguilé a Andy. Este nem se lembrava de ter devolvido o cachimbo, mas devia ter devolvido. E que horas eram? Pareciam estar no meio da tarde, mas como poderia? Ele não sentira fome na hora do almoço, e sempre sentia fome na hora do almoço, era a sua melhor refeição.
— Agora escuta, Sanders, porque essa é a parte importante.
O Chef conseguia citar de memória porque fizera um estudo e tanto do Apocalipse depois que se mudara ali para a estação de rádio; lia e relia obsessivamente, às vezes até a aurora manchar o horizonte.
— “E o terceiro anjo tocou, e caiu do céu uma grande estrela! Ardendo como uma tocha!”
— Acabamos de ver isso!
O Chef concordou. Os seus olhos estavam fixos na mancha preta onde o voo 179 da Air Ireland encontrara o seu fim.
— “E o nome da estrela era Absinto; e muitos homens morreram das águas, porque se tornaram amargas.” Você está amargo, Sanders?
— Não! — garantiu Andy.
— Não. Somos brandos. Mas agora que a Estrela Absinto ardeu no céu, homens amargos virão. Deus me disse isso, Sanders, e não é bobagem. Pode conferir e você vai ver que não falo bobagem. Querem nos tirar tudo isso aqui. Rennie e os seus parceiros idiotas.
— De jeito nenhum! — gritou Andy. Uma paranoia súbita e horrivelmente intensa o dominou. Já poderiam estar ali! Parceiros idiotas se esgueirando entre aquelas árvores! Parceiros idiotas descendo a estrada da Bostinha numa fila de caminhões! Agora que o Chef tocara no assunto, ele até entendeu por que Rennie queria fazer aquilo. Ele diria: “livrar-se das provas”.
— Chef! — E agarrou o ombro do novo amigo.
— Solta aí, Sanders. Assim dói.
Ele soltou um pouco.
— Big Jim já falou em vir aqui e tirar os cilindros de gás. Esse é o primeiro passo!
O Chef concordou.
— Já estiveram aqui uma vez. Levaram dois cilindros. Eu deixei. — Ele parou e depois deu um tapinha nas granadas. — Não vou deixar de novo. Concorda com isso?
Andy pensou nos quilos de droga dentro do prédio no qual estavam encostados e deu a resposta que o Chef esperava.
— Meu irmão — disse, e abraçou o Chef.
O Chef estava quente e fedido, mas Andy o abraçou com entusiasmo. Lágrimas corriam pelo rosto que ele deixara de barbear num dia útil pela primeira vez em mais de vinte anos. Isso era ótimo. Isso era... era...
Comunhão!
— Meu irmão — soluçou no ouvido do Chef.
O Chef o afastou e o olhou solenemente.
— Somos agentes do Senhor — disse.
E Andy Sanders, agora totalmente sozinho no mundo a não ser pelo profeta esquelético ao seu lado, disse amém.
Jackie encontrou Ernie Calvert atrás da casa, tirando ervas daninhas do jardim. Estava um pouco preocupada em falar com ele apesar do que dissera a Piper. mas nem precisava. Ele segurou os ombros dela com mãos surpreendentemente fortes para um homenzinho tão gorducho. Os olhos dele brilharam.
— Graças a Deus alguém viu o que aquele balão inflado está querendo — Ele deixou cair as mãos. — Desculpe. Eu sujei a sua blusa.
— Tudo bem.
— Ele é perigoso, policial Wettington. Sabe disso, não sabe?
— Sei.
— E esperto. Provocou aquele maldito saque ao supermercado do mesmo jeito que um terrorista planejaria um atentado.
— Disso eu não tenho dúvida.
— Mas também é estúpido. Esperto e estúpido é uma combinação terrível. Você convence os outros a irem atrás, entende. Até o inferno. Veja s aquele Jim Jones, lembra dele?
— O que fez todos os seguidores tomarem veneno. Então, você vai vir à reunião?
— Pode apostar. E boca fechada. A não ser que queira que eu fale com Lissa Jamieson. Eu faria isso com todo o prazer.
Antes que Jackie respondesse, o celular tocou. Era o telefone pessoal; ela devolvera o que a delegacia lhe entregara junto com a insígnia e a arma.
— Alô, aqui é Jackie.
— Mihi portatoe vuineratos, sargento Wettington — disse uma voz desconhecida.
O lema da sua antiga unidade em Würzburg — tragam-me os seus ferido — e Jackie respondeu sem sequer pensar:
— Em macas, muletas ou sacos, consertamos todos com cuspe e trapos. Quem diabos está falando?
— Coronel James Cox, sargento.
Jackie afastou o telefone da boca.
— Pode me dar um minuto, Ernie?
Ele fez que sim e voltou ao jardim. Jackie andou até a cerca de madeira meio torta na beira do quintal.
— Em que posso ajudá-lo, coronel? E essa ligação é segura?
— Sargento, se esse seu Rennie conseguir grampear ligações feitas de fora da Redoma, estamos lascados.
— Ele não é o meu Rennie.
— Bom saber.
— E eu não estou mais no Exército. O 67º não está sequer no meu retrovisor hoje em dia, senhor.
— Bom, isso não é bem verdade, sargento. Por ordem do presidente dos Estados Unidos, você foi reincorporada. Bem-vinda de volta.
— Senhor, não sei se agradeço ou se mando o senhor se foder.
Cox riu sem muito humor.
— Jack Reacher está dizendo oi.
— Foi assim que o senhor conseguiu o meu telefone?
— O telefone e referências. Referências de Reacher têm muito valor. Você perguntou em que podia ajudar. A resposta é dupla, as duas partes simples. Uma, tire o Dale Barbara dessa confusão em que ele está. A menos que ache que ele é culpado do que o acusam.
— Não, senhor. Tenho certeza de que não é. Quer dizer, nós temos. Somos vários.
— Bom. Muito bom. — Não havia como não sentir o alívio na voz do homem. — Número dois, você pode derrubar esse canalha do Rennie do seu poleiro.
— Isso seria serviço do Barbie. Se... o senhor tem certeza de que a ligação é segura?
— Toda.
— Se nós conseguirmos tirá-lo de lá.
— Isso está em andamento, então?
— Está, senhor, ao menos eu acredito que sim.
— Excelente. Quantos camisas-pardas o Rennie tem?
— Agora, uns trinta, mas ainda está contratando. E aqui em Mill são camisas-azuis, mas eu entendo o que o senhor quer dizer. Não o subestime, coronel. Ele tem a maioria da cidade na mão. Nós vamos tentar tirar o Barbie de lá, e é bom o senhor torcer pra dar certo, porque não posso cuidar de Big Jim sozinha. Derrubar ditadores sem ajuda externa está uns 9 quilômetros acima do meu nível salarial. E só como informação, os meus dias na polícia de Chester’s Mill acabaram, O Rennie me deu um pé na bunda.
— Me mantenha informado quando e como puder. Solte o Barbara e entregue a ele a operação de resistência. Nós veremos quem vai levar o pé na bunda.
— O senhor tinha vontade de estar aqui, não é?
— De todo o coração. — Sem hesitar. — Em 12 horas eu arrancaria as rodas do carrinho vermelho daquele filhodaputa.
Na verdade, Jackie duvidava; as coisas eram diferentes debaixo da Redoma. Quem estava fora não entenderia. Até o tempo era diferente. Há cinco dias, tudo estava normal. Vejam só agora.
— Mais uma coisa — disse o coronel Cox. — Separe um tempinho do seu dia cheio pra assistir à TV. Vamos fazer o possível pra tornar desconfortável a vida do Rennie.
Jackie se despediu e desligou. Depois voltou para onde Ernie cuidava do jardim.
— Tem gerador? — perguntou ela.
— Morreu ontem à noite — disse ele, com bom humor azedo.
— Então vamos a algum lugar onde haja uma TV funcionando, O meu amigo diz que é bom nós assistirmos ao noticiário.
Seguiram para o Rosa Mosqueta. No caminho, encontraram Julia Shumway e a levaram junto.
ARREBENTADOS
O Rosa Mosqueta ficou fechado até as 17h, quando Rose planejava oferecer uma ceia leve, composta na maior parte de sobras. Preparava a salada de batata com um olho na TV em cima do balcão quando começaram a bater à porta. Eram Jackie Wettington, Ernie Calvert e Julia Shumway. Rose atravessou o restaurante vazio, enxugando as mãos no avental, e destrancou a porta. Horace, o corgi, trotava junto aos calcanhares de Julia, orelhas erguidas e sorriso amistoso. Rose conferiu se a placa FECHADO ainda estava no lugar e retrancou a porta atrás de todos.
— Obrigada — disse Jackie.
— Não há de quê — respondeu Rose. — Eu queria mesmo falar com você.
— Nós viemos por causa daquilo — disse Jackie, apontando a TV — Eu estava no Ernie e encontramos a Julia no caminho pra cá. Ela estava sentada na calçada em frente à casa dela, divagando sobre as ruínas.
— Eu não estava divagando — disse Julia. — Horace e eu estávamos tentando imaginar como publicar um jornal depois da assembleia da cidade. Vai ter que ser pequeno, provavelmente só duas páginas, mas vai haver um jornal. Eu já me decidi.
Rose deu uma olhada na TV. Nela, uma moça bonita falava. Abaixo dela, uma faixa com a legenda POUCAS HORAS ATRÁS CORTESIA ABC. De repente, houve uma explosão e uma bola de fogo se abriu no céu. A repórter se encolheu, gritou, rodopiou. Nisso, o câmera já a tirava do enquadramento, fixando-se nos fragmentos do jato da Air Ireland que caíam.
— Não param de reprisar a filmagem do acidente com o avião — disse Rose. — Quem ainda não viu que se esbalde. Jackie, eu vi o Barbie no final da manhã; fui levar uns sanduíches pra ele e me deixaram descer até as celas. Melvin Searles foi o meu cicerone.
— Sorte sua — disse Jackie.
— Como ele está? — perguntou Julia. — Ele está bem?
— Parece o cão chupando manga, mas acho que está, sim. Ele disse... talvez eu devesse te contar em particular, Jackie.
— Seja o que for, eu acho que você pode dizer na frente do Ernie e da Julia.
Rose pensou no caso, mas só por um instante. Se Ernie Calvert e Julia Shumway não fossem de confiança, ninguém seria.
— Ele disse que eu tinha que conversar com você. Fazer as pazes, como se tivéssemos brigado. Ele me mandou te dizer que eu sou legal.
Jackie se virou para Ernie e Julia. Pareceu a Rose que uma pergunta havia sido feita e respondida.
— Se o Barbie diz que é, então é — disse Jackie, e Ernie concordou enfaticamente com a cabeça. — Querida, nós vamos fazer uma reuniãozinha hoje à noite. No presbitério da Congregacional. É meio segredo...
— Meio, não, é segredo — disse Julia. — E do jeito que estão as coisas na cidade agora, é melhor que continue sendo.
— Se é sobre o que eu acho que é, estou dentro. — Depois Rose baixou a voz. — Mas o Anson, não. Ele está usando uma daquelas malditas braçadeiras.
Bem nesse instante o logotipo ÚLTIMAS NOTÍCIAS CNN apareceu na tela da televisão, acompanhado da irritante musiquinha de desastre em tom menor que agora a rede tocava a cada nova notícia da Redoma. Rose esperava ver Anderson Cooper ou o seu querido Wolfie, ambos agora baseados em Castle Rock, mas quem apareceu foi Barbara Starr, a correspondente da rede no Pentágono. Estava diante da aldeia de barracas e traileres que servia de base avançada do Exército em Harlow.
— Don, Kyra... O coronel James O. Cox, porta-voz do Pentágono desde o último sábado, quando surgiu o enorme mistério conhecido como a Redoma, vai falar à imprensa pela segunda vez desde que a crise começou. O tema foi anunciado aos jornalistas há apenas alguns instantes e com certeza vai dar uma injeção de ânimo nas dezenas de milhares de americanos com parentes e amigos na cidade sitiada de Chester’s Mill. Fomos informados de que... — Ela escutou alguma coisa no fone de ouvido. — Agora conosco o coronel Cox.
Os quatro no restaurante sentaram-se nos bancos do balcão, observando a imagem passar para o interior de uma grande barraca. Havia talvez quarenta repórteres sentados em cadeiras de armar e outros em pé ao fundo. Cochichavam entre si. Um palco improvisado fora montado numa das pontas da barraca. Nele havia um pódio envolvido por microfones e flanqueado por bandeiras americanas. Havia uma tela branca atrás.
— Bem profissional pruma operação montada às pressas — comentou Ernie.
— Ah, acho que já estava sendo preparada — disse Jackie. Recordava a conversa com Cox. Vamos fazer o possível pra tornar desconfortável a vida de Rennie, dissera ele.
Abriu-se uma aba no lado esquerdo da barraca e um homem baixo, em boa forma, de cabelo grisalho andou com passos firmes até o palco improvisado. Ninguém pensara em pôr uns degraus ou mesmo um caixote para ele subir, mas não houve problema para o palestrante convidado; ele pulou facilmente, sem perder sequer o ritmo do passo. Vestia uma simples farda cáqui de combate. Se tinha medalhas, não eram visíveis. Não havia nada na camisa a não ser uma tira onde se lia CEL. J. COX. Não levava anotações. Os repórteres silenciaram imediatamente, e Cox lhes deu um sorrisinho.
— Esse cara deve dar entrevistas coletivas desde que nasceu — observou Julia. — Ele parece bom.
— Quieta, Julia — disse Rose.
— Senhoras e senhores, obrigado por estarem aqui — disse Cox. — Serei breve e depois responderei a algumas perguntas. A situação de Chester’s Mill e da Redoma, como está sendo chamada, continua a mesma: a cidade ainda está isolada, não fazemos ideia do que está causando essa situação ou do que a provocou e ainda não conseguimos romper a barreira. É claro que os senhores saberiam se tivéssemos conseguido. Mas os melhores cientistas dos Estados Unidos, os melhores do mundo inteiro, vêm trabalhando no caso, e estamos estudando algumas opções. Não façam perguntas sobre elas, porque por enquanto não haverá respostas.
Os jornalistas murmuraram, descontentes. Cox esperou. Abaixo dele, a legenda da CNN mudou para AINDA SEM RESPOSTAS. Quando o burburinho morreu, Cox continuou.
— Como sabem, criamos uma área de isolamento em volta da Redoma, a princípio de 1,5 quilômetro, ampliada para 2 quilômetros no domingo e 4 na terça-feira. Houve algumas razões para isso e a mais importante foi que a Redoma é perigosa para quem tem certos implantes, como marca-passos. Outra razão é que temíamos que o campo de força que gera a Redoma pudesse causar outros efeitos nocivos que talvez fossem mais difíceis de reconhecer.
O senhor está falando de radiação, coronel? — perguntou alguém.
Cox o congelou com o olhar e, quando achou que o repórter estava devidamente punido (não fora Wolfie, Rose ficou contente ao ver, mas aquele tagarela meio careca da FOX News que diz que não embroma), continuou.
— Agora acreditamos que não há efeitos nocivos, ao menos a curto prazo, e assim marcamos para depois de amanhã, sexta-feira, 27 de outubro, o Dia de Visita na Redoma.
Com isso, jorrou uma torrente insana de perguntas. Cox esperou que acabasse e, quando a plateia silenciou, pegou um controle remoto na prateleira sob o púlpito e apertou um botão. Uma fotografia em alta resolução (boa demais para ter sido baixada do Google Earth, na estimativa de Julia) surgiu na tela branca. Mostrava Mill e as duas cidades ao sul, Motton e Castle Rock. Cox pousou o controle e pegou uma caneta laser.
Agora, a legenda no pé da tela dizia SEXTA-FEIRA: DIA DE VIZITA NA REDOMA. Julia sorriu, O coronel Cox pegara a CNN sem revisor ortográfico.
— Acreditamos que podemos receber e acomodar 1.200 visitantes — disse Cox com energia. — Serão só parentes próximos, ao menos desta vez... e todos esperamos e rezamos que nunca seja preciso uma próxima vez. Os pontos de encontro serão aqui, no Parque de Exposições de Castle Rock, e aqui, no Autódromo de Oxford. — Ele mostrou os dois locais. — Teremos duas dúzias de ônibus, 12 em cada local. Serão oferecidos por seis distritos escolares vizinhos, que suspenderão as aulas nesse dia para ajudar nessa iniciativa, e por isso lhes somos muito gratos. Haverá um vigésimo quinto ônibus para a imprensa na loja Iscas e Anzóis Shiner, em Motton. — Secamente: — Como a Shiner também é autorizada a vender bebidas alcoólicas, tenho certeza de que quase todos vocês a conhecem. Também daremos permissão para um, repito, um, caminhão de filmagem nessa viagem. As senhoras e os senhores organizarão uma cobertura conjunta; a emissora oficial será escolhida por sorteio.
Subiu um gemido, mas foi superficial.
— Há 48 lugares no ônibus da imprensa e, obviamente, há centenas de jornalistas aqui, vindos do mundo inteiro...
— Milhares! — gritou um homem grisalho, e houve uma gargalhada geral.
— Rapaz, fico feliz de alguém estar se divertindo — disse Ernie Calvert com amargor.
Cox se permitiu um sorriso.
— Obrigado pela correção, sr. Gregory. Os lugares serão distribuídos de acordo com as empresas, redes de TV Reuters, Tass, AP etc., e caberá a cada uma escolher os seus representantes.
— Melhor que seja o Wolfie para a CNN, é só o que eu posso dizer — anunciou Rose.
Os repórteres tagarelavam empolgados.
— Posso continuar? — perguntou Cox. — E vocês que estão mandando torpedos, por favor, parem.
— Oooh — disse Jackie. — Adoro homens impositivos.
— Com certeza vocês sabem que o tema aqui não são vocês. Estariam se comportando assim se fosse um desmoronamento numa mina ou gente presa nos escombros depois de um terremoto?
Isso foi recebido com silêncio do tipo que enche uma sala da quarta série depois que a professora finalmente perde a paciência. Ele era mesmo impositivo, pensou Julia, e por um instante desejou de todo o coração que Cox estivesse ali debaixo da Redoma, no comando. Mas é claro que, se porcos voassem, choveria bacon do céu.
— As senhoras e os senhores têm duas tarefas a cumprir: ajudar a divulgar e assegurar que tudo corra bem no Dia de Visita depois da divulgação.
A legenda da CNN virou IMPRENSA AJUDA VIZITANTES NA SEXTA.
— Não queremos de jeito nenhum um estouro da boiada com parentes do país todo correndo para o oeste do Maine. Já temos quase 10 mil parentes dos que estão presos debaixo da Redoma aqui na região; os hotéis, motéis e campings estão lotadíssimos. A mensagem aos familiares de outras regiões do país é: “Se não estiver aqui, não venha.” Além de não receber o crachá de visitante, será mandado de volta nas barreiras aqui, aqui, aqui e aqui. — Ele iluminou Lewiston, Auburn, North Windham e Conway, em New Hampshire.
— Os familiares que já estão na área devem comparecer aos postos de registro já criados no Parque de Exposições e no Autódromo. Se está pensando em pular no carro agora mesmo, não faça isso. Isso aqui não é liquidação de eletrodomésticos, e chegar na frente não garante nada. Os visitantes serão selecionados por sorteio e é preciso se registrar para participar do sorteio. Os que se registrarem para a visita devem trazer dois documentos com foto. Tentaremos dar prioridade aos visitantes com dois ou mais familiares em Mill, mas não podemos prometer nada. E um aviso, pessoal: quem aparecer na sexta-feira para embarcar nos ônibus sem o crachá ou com crachá falso, em outras palavras, quem tentar atrapalhar nossa operação, será preso. Melhor não tentar. O embarque começará às 8h da manhã de sexta-feira. Se tudo der certo, vocês vão passar ao menos quatro horas com os seus familiares, talvez mais. Atrapalhem a operação e o tempo de todo mundo junto à Redoma vai se reduzir. Os ônibus partirão da Redoma às 17h.
— Onde os visitantes vão ficar? — gritou uma mulher.
— Eu já estava chegando aí, Andrea. — Cox pegou o controle remoto e deu um zoom na rodovia 119. Jackie conhecia bem a área; quase quebrara o maldito nariz na Redoma bem ali. Dava para ver o telhado da casa da fazenda Dinsmore, dos anexos e dos estábulos.
— Há um mercadinho junto à Redoma, no lado de Motton. — Cox o fez brilhar com a caneta. — Os ônibus vão estacionar aqui. Os visitantes vão descer e andar até a Redoma. Há muito espaço nos dois lados onde as pessoas podem se reunir. Todos os destroços que havia aí foram removidos.
— Os visitantes terão permissão de ir até a Redoma? — perguntou um repórter.
Mais uma vez, Cox encarou a câmera, dirigindo-se diretamente aos possíveis visitantes. Rose imaginou a esperança e o medo que aquelas pessoas, assistindo em bares e TVs de hotéis, escutando no rádio do carro, deveriam estar sentindo agora. Ela também sentia bastante dos dois.
— Os visitantes terão permissão de chegar a 2 metros da Redoma — disse Cox. — Nós consideramos que seja uma distância segura, embora não possamos garantir nada. Esse não é um parque de diversões que teve a segurança testada. Quem tiver implantes eletrônicos tem que ficar longe. Cada um terá que cuidar de si nesse aspecto; não podemos verificar o peito de todo mundo atrás de marca-passos. Os visitantes também deixarão nos ônibus todos os aparelhos eletrônicos, como iPods, celulares e BlackBerries, entre outros. Os repórteres com câmeras e microfones ficarão a distância. O espaço mais próximo é para os visitantes e o que acontecer entre eles e os seus entes queridos só é da conta deles. Pessoal, tudo dará certo se vocês nos ajudarem. Se me permitem usar termos de Jornada nas estrelas, ajudem-nos a conseguir. — Ele pousou a caneta laser. — Agora eu vou responder a algumas perguntas. Bem poucas. Sr. Blitzer.
O rosto de Rose se iluminou. Ergueu uma nova xícara de café e brindou à tela da televisão.
— Está bonito hoje, Wolfie! Pode comer biscoito na minha cama sempre que quiser.
— Coronel Cox, há algum plano de acrescentar uma entrevista coletiva com as autoridades da cidade? Sabemos que o segundo vereador James Rennie é que está no comando agora. Como anda isso?
— Estamos tentando marcar uma entrevista coletiva com o sr. Rennie e outras autoridades da cidade que quiserem comparecer. Seria ao meio-dia, caso tudo se cumpra de acordo com o cronograma que imaginamos.
Uma onda de aplauso espontâneo dos repórteres foi a resposta. A coisa de que mais gostavam era de entrevistas coletivas, a menos que pegassem algum político de alto nível na cama com uma prostituta de luxo.
— Em termos ideais, a entrevista acontecerá bem ali na estrada, com os porta-vozes da cidade, sejam quem forem, do lado deles e os senhores e senhoras do lado de cá — disse Cox.
Algazarra excitada. Eles gostavam das possibilidades visuais.
Cox apontou.
— Sr. Holt.
Lester Holt, da NBC, pulou de pé.
— Tem certeza de que o sr. Rennie vai comparecer? Pergunto porque tem havido notícias de malversação financeira por parte dele e algum tipo de investigação criminal dos seus negócios pelo procurador-geral do estado do Maine.
— Ouvi falar dessas notícias — disse Cox. — Não estou em condições de comentá-las, embora o sr. Rennie talvez queira fazer isso. — Ele parou, não exatamente sorrindo. — Eu com certeza quereria.
— Rita Braver, coronel Cox, CBS. É verdade que Dale Barbara, o homem que o senhor indicou como administrador de emergência de Chester’s Mill, foi preso por assassinato? Que na verdade a polícia de Chester’s Mill acredita que ele é um assassino em série?
Silêncio total da imprensa; só olhos atentos. O mesmo acontecia com as quatro pessoas sentadas junto ao balcão do Rosa Mosqueta.
— É verdade — disse Cox. Um murmúrio abafado veio dos repórteres reunidos. — Mas não temos como verificar as acusações nem conferir quais são as provas. O que temos é a mesma conversa por internet e telefone que, sem dúvida, os senhores e as senhoras também têm. Dale Barbara é um oficial condecorado. Nunca foi preso. Conheço-o há muitos anos e votaria nele para presidente dos Estados Unidos. Não tenho razão nenhuma para dizer que cometi um erro com base no que sei neste momento.
— Ray Suarez, coronel, PBS. O senhor acredita que as acusações contra o tenente Barbara, agora coronel Barbara, podem ter motivação política? Que James Rennie pode ter mandado prendê-lo para impedir que assumisse o comando como o presidente ordenou?
E é essa a razão da segunda metade desse espetáculo circense, percebeu Julia. Cox transformou a imprensa em Voz da América e nós somos as pessoas por trás do Muro de Berlim. Ela estava cheia de admiração.
— Sr. Suarez, se puder entrevistar o vereador Rennie na sexta-feira, não se esqueça de lhe fazer essa pergunta. — Cox falava com certa calma pétrea. — Senhoras e senhores, isso é tudo.
Saiu tão firme quanto entrou e, antes que os jornalistas reunidos pudessem sequer começar a gritar mais perguntas, ele se foi.
— Uau, uau, uau — murmurou Ernie.
— É — disse Jackie.
Rose desligou a televisão. Parecia brilhante, energizada.
— A que horas é essa reunião? Não lamento nada do que o coronel Cox disse, mas isso pode tornar a vida do Barbie mais difícil.
Barbie soube da entrevista coletiva de Cox quando um Manuel Ortega de rosto corado desceu e lhe contou. Ortega, ex-empregado de Alden Dinsmore, usava agora uma camisa azul, um distintivo de lata que parecia feito em casa e um 45 pendurado num segundo cinto afivelado nos quadris, como um caubói. Barbie o conhecia como um sujeito gentil de cabelo ralo, pele sempre queimada de sol, que gostava de pedir no jantar pratos de café da manhã — panqueca, bacon, ovos supermoles — e falar de vacas, suas preferidas sendo as Galloway cintadas que nunca conseguia convencer o sr. Dinsmore a comprar. Era ianque até os ossos, apesar do nome, e tinha o senso de humor seco dos ianques. Barbie sempre gostara dele. Mas esse era um Manuel diferente, um estranho em quem todo o bom humor secara. Trouxe a notícia dos últimos acontecimentos, quase toda berrada pelas grades e acompanhada de dose considerável de saliva cuspida. O seu rosto estava quase radiativo de fúria.
— Nem uma palavra sobre a plaquinha de identificação que acharam na mão daquela pobre moça, nem uma palavrinha de merda sobre isso! E depois o panaca de calça cáqui atacou Jim Rennie, que tem segurado as pontas da cidade sozinho desde que isso aconteceu! Sozinho! Só com CUSPE e BARBANTE!
— Calma, Manuel — disse Barbie.
— O nome é policial Ortega, seu filho da mãe!
— Tá bom. Policial Ortega. — Barbie estava sentado no catre, pensando como seria fácil para Ortega tirar do cinto o velho Schofield 45 e começar a atirar. — Eu estou aqui dentro, Rennie está aí fora. Pra ele, tenho certeza de que está tudo bem.
— CALA A BOCA! — gritou Manuel. — Nós estamos TODOS aqui dentro! Todos debaixo dessa merda de Redoma! Alden só faz beber, o garoto que restou não come e a sra. Dinsmore não para de chorar por causa do Rory. Jack Evans explodiu os miolos, sabia? E esses babacas militares lá fora não conseguem pensar em nada melhor do que jogar lama. Um monte de mentiras e histórias inventadas enquanto você provoca saques a supermercados e depois põe fogo no jornal! Provavelmente pra que a sra. Shumway não publique QUEM VOCÊ É!
Barbie ficou calado. Achou que, sem dúvida, uma única palavra dita em sua defesa o faria levar um tiro.
— É assim que eles pegam os políticos de que não gostam — disse Manuel. — Querem que um assassino em série, um estuprador que estupra os mortos assuma o comando no lugar de um cristão? Isso é que é baixo nível.
Manuel puxou a arma, ergueu-a, apontou-a entre as grades. Para Barbie, o buraco na ponta parecia tão grande quanto a entrada de um túnel.
— Se a Redoma desmoronar antes que você seja encostado no muro mais próximo e fuzilado — continuou Manuel —, eu vou me dar um minutinho pra fazer o serviço. Sou o primeiro da fila, e agora a fila pra acabar com você está bem comprida aqui em Mill.
Barbie continuou calado e esperou morrer ou continuar respirando. Os sanduíches de bacon, alface e tomate de Rose Twitchell tentavam voltar garganta acima e sufocá-lo.
— Estamos tentando sobreviver e eles só conseguem jogar lama no homem que está mantendo essa cidade longe do caos. — De repente, ele enfiou a pistola enorme de volta no coldre. — Foda-se. Você não vale a pena.
Ele se virou e voltou rumo à escada, de cabeça baixa e ombros caídos.
Barbie se encostou na parede e soltou a respiração. Havia suor na testa. A mão que ele ergueu para limpá-lo tremia.
Quando a van de Romeo Burpee subiu a entrada de automóveis da casa dos McClatchey, Claire saiu correndo de casa. Chorando.
— Mãe! — gritou Joe, e saiu da van antes mesmo que Rommie terminasse de estacionar. Os outros foram atrás. — Mãe, o que aconteceu?
— Nada — soluçou Claire, agarrando o filho e abraçando-o. — Vai ter um Dia de Visita! Na sexta-feira! Joey, talvez a gente consiga ver o seu pai!
Joe soltou um viva e dançou com ela. Benny abraçou Norrie... e aproveitou a oportunidade para roubar um beijo rápido, observou Rusty Diabinho abusado.
— Rommie, me leva pro hospital — disse Rusty. Acenou para Claire e os garotos enquanto voltavam de ré para a rua. Ficou contente de se afastar da sra. McClatchey sem ter que falar com ela; talvez a Visão de Mãe também funcionasse com auxiliares médicos. — E pode me fazer o favor de falar inglês em vez desse françoá de desenho animado no caminho?
— Quem não tem herança cultural pra aproveitar — disse Rommie — inveja quem tem.
— É, e a sua mãe usa galocha — disse Rusty.
— Verrdade, mas só quando chove.
O celular de Rusty tocou uma vez: um torpedo. Ele o abriu e leu: REUNIAO 2130 PRESBIT CONG QUEM NAO FOR DANÇOU JW
— Rommie — disse, fechando o celular. — Supondo que eu sobreviva aos Rennie, você iria a uma reunião comigo hoje à noite?
No hospital, Ginny o recebeu no saguão.
— É Dia do Rennie no Cathy Russell — anunciou, com cara de quem não estava muito descontente. — Thurse Marshall foi ver os dois. Rusty, aquele homem é um presente de Deus. Dá pra ver que não gosta do Junior, foram ele e Frankie que o maltrataram lá no lago, mas foi totalmente profissional. É um desperdício esse sujeito no departamento de inglês de uma universidade; ele devia estar fazendo isso. — Ela baixou a voz. — Ele é melhor do que eu. E muito melhor do que o Twitch.
— Onde ele está agora?
— Foi lá pra onde está morando pra ver aquela namoradinha dele e as duas crianças que adotaram. Parece que também se preocupa genuinamente com os garotos.
— Ai, meu Deus, Ginny está apaixonada — disse Rusty, sorrindo.
— Não seja criança. — Ela lhe deu um olhar zangado.
— Em que quartos estão os Rennie?
— Junior no 7, o pai no 19. O pai veio com aquele tal Thibodeau, mas deve ter mandado que ele fosse cumprir alguma tarefa, porque estava sozinho quando foi ver o filho. — Ela sorriu com cinismo. — Não foi visita longa. Ficou quase o tempo todo naquele celular dele. O garoto só fica sentado, embora esteja novamente racional. Não estava quando Henry Morrison trouxe.
— E a arritmia de Big Jim? Como estamos com isso?
— Thurston conseguiu acalmar.
Por enquanto, pensou Rusty, e não sem satisfação. Quando passar o efeito do Valium, vai recomeçar a velha contradança cardíaca.
— Vai ver o garoto primeiro — disse Ginny. Estavam sozinhos no saguão, mas ela mantinha a voz baixa. — Não gosto dele, nunca gostei, mas agora estou com pena. Acho que ele não tem muito tempo.
— Thurston disse alguma coisa ao Rennie sobre o estado do Junior?
— Disse, sim, que o problema era potencialmente grave. Mas parece que é menos grave do que todos aqueles telefonemas dele. Talvez alguém tenha contado a ele sobre o Dia de Visita na sexta-feira. Rennie está irritadíssimo com isso.
Rusty pensou na caixa na Serra Negra, só um retângulo delgado com uma área menor do que 300cm2, e nem assim conseguira levantá-lo. Sequer movê-lo. Também pensou no riso dos cabeças de couro que avistara rapidamente.
— Algumas pessoas simplesmente não gostam de visitantes — disse.
— Como você está se sentindo, Junior?
— Legal. Melhor. — Parecia apático. Usava um jaleco do hospital e estava sentado junto à janela. A luz era impiedosa no seu rosto emaciado. Parecia um quarentão desgastado.
— Conta o que aconteceu antes de você desmaiar.
— Eu ia pra faculdade, aí em vez disso fui pra casa da Angie. Queria dizer pra ela fazer as pazes com o Frank. Ele está se arrastando.
Rusty pensou em perguntar se Junior sabia que Frank e Angie estavam mortos, mas não — de que adiantaria? Em vez disso, perguntou:
— Estava indo pra faculdade? E a Redoma?
— Ah, é. — A mesma voz apática, sem emoção. — Esqueci isso.
— Que idade você tem, filho?
—Vinte... e um?
— Qual era o nome da sua mãe?
Junior pensou um pouco.
— Jason Giambi — disse, finalmente, depois soltou um riso agudo. Mas a expressão apática e emaciada do rosto não mudava nunca.
— Quando a Redoma caiu?
— Sábado.
— E isso foi há quanto tempo?
Junior franziu a testa.
— Uma semana? — perguntou, finalmente. Em seguida: — Duas semanas? Faz algum tempo, com certeza. Finalmente se virou para Rusty. Os olhos brilhavam com o Valium que Thurse Marshall lhe injetara. — Baaarbie mandou você fazer todas essas perguntas? Ele matou todos eles, sabe. — Fez que sim com a cabeça. — Achamos as taquinhas de pentificação. — Uma pausa. — Plaquinhas.
— Barbie não me mandou fazer nada — disse Rusty — Ele está preso.
— E logo, logo vai estar no inferno — disse Junior com objetividade seca. — Vamos julgar e executar ele. O meu pai que disse. Não tem pena de morte no Maine, mas ele disse que nós estamos numa situação de guerra. Salada de ovos tem calorias demais.
— É verdade — disse Rusty. Trouxera o estetoscópio, o aparelho de pressão e o oftalmoscópio. Enrolou a braçadeira no braço de Junior. — Você sabe o nome dos três últimos presidentes americanos na ordem, Junior?
— Claro. Bush, Push e Tush. — Deu uma gargalhada enlouquecida, mas ainda sem nenhuma expressão facial.
A pressão de Junior era de 14,7 por 12,0. Rusty se preparara para coisa pior.
— Sabe quem veio visitar você antes de mim?
— Sei. O velhote que eu e Frankie encontramos no lago pouco antes de acharmos os garotos. Espero que aqueles garotos estejam bem. Eram bem bonitinhos.
— Lembra o nome deles?
— Aidan e Alice Appleton. Nós fomos até o clube e aquela garota de cabelo ruivo me bateu punheta por baixo da mesa. Achei que ela ia clarear tudo antes de se acabar. — Uma pausa. — De acabar.
— A-hã. — Rusty usou o oftalmoscópio. O olho direito de Junior estava bom. O disco óptico do esquerdo estava protuberante, condição conhecida como papiledema. Era um sintoma comum de tumores cerebrais avançados e do inchaço resultante.
— Está vendo alguma coisa azul, Raul?
— Não. — Rusty pousou o oftalmoscópio e depois ergueu o indicador na frente do rosto de Junior. — Quero que você toque o meu dedo com o seu. Depois, o nariz.
Foi o que Junior fez. Rusty começou a mover o dedo devagar para a frente e para trás.
— Continua.
Junior conseguiu ir uma vez do dedo que se movia até o nariz. Depois atingiu o dedo, mas tocou a bochecha. Da terceira vez, errou o dedo e tocou a sobrancelha direita.
— Oba. Quer mais? Consigo passar o dia fazendo isso, sabe.
Rusty empurrou a cadeira para trás e se levantou.
— Vou mandar Ginny Tomlinson te trazer um remédio.
— Depois do remédio, posso ir pra minhocada? Pra minha casa, quer dizer?
— É melhor passar a noite conosco, Junior. Em observação.
— Mas eu estou bem, não estou? Tive uma das minhas dores de cabeça antes, uma daquelas brabas, mas já passou. Estou bem, não estou?
— Agora não posso dizer nada — respondeu Rusty — Quero conversar com Thurston Marshall e dar uma olhada nos livros.
— Cara, aquele sujeito nem é médico. É professor de inglês.
— Talvez seja, mas ele te tratou bem. Melhor do que você e o Frank trataram ele, pelo que eu sei.
Junior fez um gesto de desdém.
— A gente só tava brincando. Além disso, tratamos bem os garotos, não foi?
— Nesse caso não posso discutir. Por enquanto, Junior, relaxe. Por que não assiste à TV?
Junior pensou um pouco e perguntou:
— O que tem pro jantar?
Naquelas circunstâncias, a única coisa em que Rusty conseguiu pensar para reduzir o inchaço do que servia de cérebro a Junior Rennie foi manitol intravenoso.
Pegou a ficha pendurada na porta e viu um bilhete preso com uma letra redonda desconhecida:
Caro dr. Everett: O que acha de manitol para este paciente? Não posso receitar, não faço idéia da dose correta.
Thurse
Rusty rabiscou a dose. Ginny estava certa; Thurston Marshall era bom.
A porta do quarto de Big Jim estava aberta, mas o quarto estava vazio. Rusry ouviu a voz do homem vindo do dormitório preferido do falecido dr. Haskell. Rusty foi até a sala dos médicos. Não pensou em pegar a ficha de Big Jim, um esquecimento do qual se arrependeria.
Big Jim estava totalmente vestido e sentado junto à janela com o celular ao ouvido, muito embora o cartaz da parede mostrasse um celular vermelho vivo com um X vermelho em cima para os incapazes de ler. Rusty achou que lhe daria muito prazer ordenar a Big Jim que desligasse o telefone. Talvez não fosse a forma mais política de começar o que seria uma combinação de exame e discussão, mas sentiu muita vontade. Deu um passo à frente e parou. A seco.
Uma lembrança nítida surgiu: não conseguir dormir, levantar-se para pegar um pedaço do pão de laranja e uva-do-monte de Linda, escutar Audrey gemendo baixinho no quarto das meninas. Ir até lá dar uma olhada nas Jotinhas. Sentar-se na cama de Jannie debaixo de Hannah Montana, o seu anjo da guarda.
Por que essa lembrança demorou tanto para vir? Por que não durante o encontro com Big Jim, no escritório da casa de Big Jim?
Porque na época eu não sabia dos assassinatos, estava concentrado no gás. E porque a Janelle não estava tendo uma convulsão, estava só no sono REM. Falando enquanto dormia.
Ele tem uma bola de beisebol dourada, papai. É uma bola má.
Nem na noite anterior, no necrotério, aquela lembrança ressurgira. Só agora, quando era tarde-demais-e-meia.
Mas pense no que isso significa: aquele aparelho na Serra Negra, além de emitir radiação limitada, pode estar transmitindo outra coisa. Chame de premonição induzida, chame de coisa que nem nome tem, mas, não importa como se chame, existe.
E se Jannie estava certa a respeito da bola de beisebol dourada, todos os garotos que fizeram pronunciamentos de Sibila sobre um desastre no Halloween também podem estar certos. Mas será no dia exato? Ou poderia ser antes?
Rusty achava que era o segundo caso. Para os garotos da cidade, superempolgados com gostosuras ou travessuras, já era Halloween.
— Não me importa o que você entendeu, Stewart — dizia Big Jim. Parecia que 3 miligramas de Valium não o tinham amaciado; soava fabulosamente irritado como sempre. — Você e Fernald vão até lá, e levem Roger com vo... hein? O quê? — Ele escutou. — Eu nem devia te contar. Não assistiu à melequenta da televisão? Se ele ficar insolente, você...
Ele ergueu os olhos e viu Rusty à porta. Por um instante apenas, Big Jim ficou com o olhar espantado de quem recorda uma conversa e tenta decidir quanto o recém-chegado pode ter ouvido.
— Stewart, tem gente aqui. Ligo depois, e quando eu ligar é bom você me dizer o que eu quero escutar. — Ele desligou sem dizer até logo, estendeu o celular para Rusty e desnudou os dentinhos superiores num sorriso. — Eu sei, eu sei, está errado, mas os problemas da cidade não podem esperar. — Suspirou. — Não é fácil ser o único de quem todos dependem, ainda mais quando a gente não se sente bem.
— Deve ser difícil — concordou Rusty.
— Que Deus me ajude. Gostaria de saber qual a minha filosofia, parceiro?
Não.
— Claro.
— Quando fecha uma porta, Deus abre uma janela.
— Acha mesmo?
— Sei que é assim. E o que sempre tento lembrar é que quando a gente reza pelo que quer, Deus se faz de surdo. Mas quando a gente reza pelo que precisa, ele é todo ouvidos.
— A-hã. — Rusty entrou na sala dos médicos. Na parede, a TV estava sintonizada na CNN. O som estava desligado, mas havia uma foto de James Rennie pai projetando-se atrás do locutor: preta e branca, nada lisonjeira. Um dos dedos de Big Jim estava erguido, assim como o lábio superior. Não num sorriso, mas num muxoxo notavelmente canino. A legenda embaixo dizia CIDADE DA REDOMA: SANTUÁRIO DAS DROGAS? A imagem mudou para um anúncio de carros usados de Jim Rennie, aquele irritante que sempre acabava com um dos vendedores (nunca o próprio Big Jim) gritando: Com Big Jim NEGOCIANDO, quem entra a pé já sai RODANDO!
Big Jim apontou e sorriu com tristeza.
— Vê o que os amigos do Barbara lá fora estão fazendo comigo? Ora, por que a surpresa? Quando veio redimir a humanidade, Cristo foi obrigado a carregar a própria cruz até o Monte Calvário, onde morreu em sangue e pó.
Rusty refletiu, e não pela primeira vez, sobre que remédio estranho o Valium era. Não sabia se realmente havia veritas in vino, mas havia muita verdade no Valium. Quando você o dava a alguém, especialmente por via intravenosa, com frequência ouvia exatamente o que a pessoa pensava de si mesma.
Rusty puxou uma cadeira e preparou o estetoscópio para a função.
— Levanta a camisa. — Quando Big Jim pousou o celular para obedecer, Rusty o enfiou no bolso do peito. — Vou levar isso, tá bem? Vai ficar na mesa da recepção. Lá pode usar celular. As cadeiras não são tão estofadas quanto aqui, mas também não são ruins.
Ele esperava que Big Jim protestasse, talvez explodisse, mas ele só espiou e expôs uma barriga protuberante de Buda e grandes peitos masculinos moles por cima. Rusty se inclinou e checou os batimentos. Estava bem melhor do que esperara. Ficaria contente com 110 batidas por minuto mais moderada ventriculação prematura. Em vez disso, o coração de Big Jim saltitava a 90, sem nenhuma batida fora do tempo.
— Estou me sentindo muito melhor — disse Big Jim. — Foi só estresse. Estou sob um estresse terrível. Vou ficar mais uma ou duas horas aqui pra descansar. Já percebeu que dá pra ver todo o centro da cidade dessa janela, parceiro? E vou ver Junior mais uma vez. Depois disso, vou embora e...
— Não é só estresse. Você está acima do peso e fora de forma.
Big Jim desnudou os dentes superiores naquele sorriso falsificado.
— Administro uma empresa e uma cidade, parceiro... ambas no azul, aliás. Isso deixa pouco tempo pra esteiras, steps etc.
— Dois anos atrás, você foi internado com taquicardia atrial paroxística, Rennie. Isso é...
— Eu sei o que é. Fui até o site da WebMD e lá diz que pessoas saudáveis costumam ter...
— Ron Haskell te disse com muita clareza pra controlar o peso, controlar a arritmia com medicação e, se a medicação não funcionasse, estudar opções cirúrgicas pra corrigir o problema pela raiz.
Big Jim começava a parecer uma criança infeliz presa numa cadeira alta.
— Deus me disse que não! Deus disse nada de marca-passo! E Deus estava certo! Duke Perkins tinha marca-passo, e veja o que aconteceu!
— Sem falar na viúva dele — disse Rusty baixinho. — Que azar o dela, também. Deve ter ido ao lugar errado na hora errada.
Big Jim o examinou, olhinhos de porco a calcular. Depois, ergueu os olhos para o teto.
— As luzes estão acesas de novo, não estão? Consegui seu gás, como você pediu. Algumas pessoas não têm muita gratidão. É claro que um homem na minha posição se acostuma com isso.
— Amanhã à noite acaba outra vez.
Big Jim balançou a cabeça.
— Amanhã à noite você terá gás suficiente pra manter esse lugar funcionando até o Natal, se for necessário. Isso eu prometo por ser tão bom com os seus pacientes e boa pessoa no geral.
— Eu tenho dificuldade pra ser grato quando me devolvem o que já era meu. Sou mesmo esquisito.
— Ah, então agora você se iguala ao hospital? — roncou Big Jim.
— Por que não? O senhor acabou de se igualar a Cristo. É melhor voltarmos ao problema clínico, não acha?
Com desagrado, Big Jim abanou as mãos largas de dedos grossos.
— Valium não é cura. Se sair daqui, pode estar com arritmia de novo às cinco da tarde. Ou simplesmente travar de forma completa. O lado bom é que assim você encontraria o Salvador antes de escurecer aqui na cidade.
— E o que você recomendaria? — Rennie falou com calma. Recuperara a compostura.
— Posso dar algo que provavelmente resolverá o problema, ao menos a curto prazo. É um remédio.
— Que remédio?
— Mas tem um preço.
— Eu sabia — disse Big Jim baixinho. — Eu sabia que você estava do lado do Barbara no dia em que foi até o meu escritório com aquela história de me dá isso, me dá aquilo.
A única coisa que pedira fora o gás, mas Rusty ignorou isso.
— Como você sabia que o Barbara tinha um lado na época? Os assassinatos ainda não tinham sido descobertos, então como você sabia que ele tinha um lado?
Os olhos de Big Jim faiscaram de alegria, paranoia ou ambos.
— Eu tenho os meus truques, parceiro. E qual é o preço? O que você gostaria de trocar pelo remédio que vai evitar que eu tenha um enfarte? — E, antes que Rusty respondesse: — Deixa eu adivinhar. Você quer a liberdade do Barbara, não é?
— Não. Essa cidade lincharia ele assim que pusesse o pé do lado de fora.
Big Jim riu.
— De vez em quando você mostra uma pitada de bom-senso.
— Quero que você renuncie. Sanders também. Deixe a Andrea Grinnell assumir, com Julia Shumway pra ajudar até que Andi se livre das drogas.
Big Jim riu mais alto dessa vez, e deu um tapa na coxa para completar.
— Eu achei que o Cox era ruim: ele queria que aquela peituda ajudasse a Andrea; mas você consegue ser muito pior. Shumway! Aquela coisa-que-rima-com-aranha que não sabe somar dois mais dois!
— Eu sei que você matou o Coggins.
Ele não queria dizer aquilo, mas saiu antes que conseguisse frear. E qual o problema? Só estavam os dois ali, a menos que John Roberts, da CNN, também contasse, olhando da TV presa na parede. Além disso, o resultado valeu a pena. Pela primeira vez desde que aceitara a realidade da Redoma, Big Jim se abalou. Tentou manter o rosto neutro e não conseguiu.
— Você tá maluco.
— Você sabe que não. Ontem à noite, eu fui à Funerária Bowie e examinei o corpo das quatro vítimas de homicídio.
— Você não tinha o direito de fazer isso! Você não é legista! Não é nem um melequento de um médico!
— Relaxa, Rennie. Conta até dez. Lembra do seu coração. — Rusty fez uma pausa. — Pensando melhor, foda-se o seu coração. Depois da merda que você aprontou e da merda que está aprontando agora, foda-se o seu coração. Tinha marcas em todo o rosto do Coggins. Marcas muito atípicas, mas fáceis de identificar. Marcas de pontos. Não tenho dúvida de que combinam com a bola de beisebol que eu vi na sua mesa.
— Isso não significa nada. — Mas Rennie deu uma olhada na porta aberta do banheiro.
— Significa muito. Ainda mais levando-se em conta que os outros corpos estavam jogados no mesmo lugar. Pra mim, isso indica que quem matou o Coggins matou os outros. Eu acho que foi você. Ou talvez você e o Junior. Fizeram um time de pai e filho? Foi assim?
— Eu me recuso a dar ouvidos a isso! — Começou a se levantar. Rusty o empurrou de volta para a cadeira. Foi surpreendentemente fácil.
— Fica aí onde você está! — berrou Rennie. — Caralho, fica aí onde você está!
Rusty disse:
— Por que você matou ele? Ameaçou denunciar seu negócio com drogas? Ele participava?
— Fica aí onde você está! — repetiu Rennie, embora Rusty já tivesse se sentado. Na hora não lhe ocorreu que talvez Rennie não estivesse falando com ele.
— Eu posso guardar segredo — disse Rusty. — E posso te dar algo que vai cuidar da sua taquicardia melhor do que Valium. Em troca, você renuncia. Anuncia a renúncia por razões de saúde a favor de Andrea na grande assembleia de amanhã. Você vai sair de lá como herói.
Não havia como recusar, pensou Rusty; o homem estava acuado.
Rennie virou-se para a porta aberta do banheiro de novo e disse:
— Agora podem vir.
Carter Thibodeau e Freddy Denton surgiram do banheiro onde estavam escondidos — e ouvindo tudo.
— Que merda — disse Stewart Bowie.
Ele e o irmão estavam na sala de trabalho, no porão da funerária. Stewart maquiava Arietta Coombs, o mais recente suicídio de Mill e a mais recente freguesa da Funerária Bowie.
— Maldito monte de merda fodido e filho da puta!
Ele largou o celular no balcão e do bolso largo na frente do avental verde emborrachado tirou um pacote de biscoitos Ritz recheados de manteiga de amendoim. Stewart sempre comia quando se irritava, sempre fazia bagunça com a comida (“Os porcos comeram aqui”, dizia o pai quando o jovem Stewie saía da mesa), e agora havia migalhas de Ritz no rosto de Arietta, virado para cima e nada pacífico; se ela pensara que engolir desentupidor de ralo seria uma forma rápida e indolor de fugir da Redoma, se enganara redondamente. O maldito produto corroera o caminho todo pelo estômago e pelas costas.
— O que aconteceu? — perguntou Fern.
— Por que eu fui me envolver com o filho da puta do Rennie?
— Por dinheiro?
— De que adianta dinheiro agora? — rugiu Stewart. — O que eu vou fazer, um monte de compras na Loja de Departamentos Burpee? Ah, isso me dá mesmo um tesão enorme!
Ele abriu a boca da viúva idosa e jogou lá dentro os restos de biscoito.
— Toma, sua puta, tá na hora do lanche.
Stewart agarrou o celular, apertou o botão CONTATOS e escolheu um número.
— Se ele não estiver lá — disse, talvez para Fern, talvez para si mesmo —, eu vou até lá, acho ele e lhe enfio uma daquelas galinhas bem no maldito...
Mas Roger Killian estava lá. E no seu maldito galinheiro. Stewart conseguia ouvir os cacarejos. Também conseguia ouvir as escalas dos violinos de Mantovani saindo do sistema de som do galinheiro. Quando os garotos estavam lá, era Metallica ou Pantera.
— Lô?
— Roger. É Stewie. Está bem, irmão?
— Tô — concordou Roger, o que provavelmente queria dizer que dera umas baforadas, mas e daí?
— Vem aqui pra cidade. Encontra comigo e com o Fern no pátio da prefeitura. Vamos pegar dois caminhões grandes, aqueles que têm guindaste, e ir até a WCIK. Todo o gás tem que ser trazido de volta pra cidade. Não podemos fazer tudo num dia só, mas o Jim diz que temos que começar. Amanhã vou recrutar mais uns cinco ou seis em quem possamos confiar, parte do maldito exército particular do Jim, se ele quiser abrir mão deles, e nós acabamos.
— Ah, Stewart, não... Eu tenho que alimentar as galinhas! Todos os meninos que me restavam viraram policiais!
O que significa, pensou Stewart, que você quer sentar naquela tua salinha pra fumar meth, ouvir música ruim e assistir a vídeos de lésbicas se beijando no teu computador. Ele não sabia como alguém conseguia ficar com tesão com um fedor de titica tão pesado que dava para esmagar alguém, mas Roger Killian conseguia.
— Não é uma missão voluntária, irmão. Recebi ordens e estou lhe dando uma ordem. Meia hora. E se por acaso você encontrar qualquer um dos seus filhos por aí, arrasta ele junto.
Desligou antes que Roger recomeçasse aquelas queixas de merda e, por um instante, só ficou ali, fulo de raiva. A última coisa que tinha vontade de fazer naquele resto de tarde de quarta-feira era gastar os músculos para pôr cilindros de gás em caminhões.., mas era o que faria, tudo bem. Faria mesmo.
Pegou a mangueira na pia, enfiou-a pela dentadura de Arietta Coombs e ligou a água. Era uma mangueira de pressão e o cadáver deu um pulo na mesa.
— Uma aguinha pro biscoito descer, vovó — grunhiu. — Senão você vai engasgar.
— Para! — gritou Fern. — Vai arrombar o buraco do...
Tarde demais.
Big Jim olhou para Rusty com um sorriso de viu o que você arranjou? Depois, se virou para Carter e Freddy Denton.
— Vocês ouviram o sr. Everett tentar me coagir?
— Claro que sim — disse Freddy.
— Ouviram que ele ameaçou me negar remédios que poderiam me salvar a vida caso eu me recusasse a renunciar?
— Ouvimos — disse Carter, e presenteou Rusty com um olhar negro. Rusty se perguntou como é que pudera ser tão estúpido.
Foi um dia cansativo — foi por isso.
— O remédio em questão talvez seja um medicamento chamado verapamil, que aquele sujeito de cabelo comprido me ministrou no soro.
Big Jim mostrou os dentinhos noutro sorriso desagradável.
Verapamil. Pela primeira vez, Rusty se amaldiçoou por não pegar a ficha de Big Jim pendurada na porta e examiná-la. Não seria a última vez.
— Que tipo de crime nós temos aqui, na opinião de vocês? — perguntou Big Jim. — Ameaça criminosa?
— Claro, e extorsão — disse Freddy.
— Porra nenhuma, foi tentativa de homicídio — disse Carter.
— E quem vocês acham que mandou ele fazer isso?
— Barbie — disse Carter, e atingiu Rusty na boca. Rusty não percebeu a vinda do golpe e sequer começou a erguer a guarda. Cambaleou para trás, bateu numa das cadeiras e caiu sobre ela de lado, com a boca sangrando.
— Isso é por resistir à prisão — observou Big Jim. — Mas não basta. Ponham ele no chão, amigos. Quero ele no chão.
Rusty tentou correr, mas mal conseguiu sair da cadeira quando Carter agarrou um dos seus braços e o girou. Freddy pôs o pé atrás das suas pernas. Carter empurrou. Como garotos no pátio da escola, pensou Rusty ao cair.
Carter se abaixou ao lado dele. Rusty lhe deu um golpe. Bem na bochecha esquerda de Carter. Carter sacudiu a cabeça com impaciência, como o homem que tenta se livrar de uma mosca incômoda. Um instante depois, estava sentado no peito de Rusty a lhe sorrir. É, que nem no pátio da escola, só que sem inspetor para interromper as coisas.
Ele virou a cabeça para Rennie, que agora estava em pé.
— Você não vai querer fazer isso — ofegou. O coração batia com força. Mal conseguia respirar o suficiente para alimentá-lo. Thibodeau era muito pesado. Freddy Denton estava nos seus joelhos, ao lado dos outros dois. Para Rusty, parecia o juiz numa daquelas lutas armadas de vale-tudo.
— Mas eu quero, Everett — disse Big Jim. — Na verdade, que Deus o abençoe, eu tenho. Freddy, pega meu celular. Está no bolso do peito dele, e não quero que se quebre. O melequento roubou. Pode acrescentar isso à ficha quando levar ele pra delegacia.
— Mais gente sabe — disse Rusty Ele nunca se sentira tão desamparado. E tão estúpido. Dizer a si mesmo que não fora o primeiro a subestimar James Rennie pai não adiantava. — Mais gente sabe o que você fez.
— Talvez — disse Big Jim. — Mas quem são? Outros amigos de Dale Barbara, é claro. Os que começaram o saque do supermercado, os que queimaram a redação do jornal. Os que criaram essa Redoma, aliás, não tenho dúvida. Algum tipo de experiência do governo, é isso que eu acho. Mas nós não somos ratos numa caixa, somos? Somos, Carter?
— Não.
— Freddy, o que você tá esperando?
Freddy estivera escutando Big Jim com uma expressão que dizia Agora entendi. Pegou o celular de Big Jim no bolso de Rusty e o jogou num dos sofás. Depois, se virou para Rusty.
— Há quanto tempo você tá planejando isso? Há quanto tempo ficou planejando nos trancar na cidade pra ver o que a gente faria?
— Freddy, ouça o que você está dizendo — disse Rusty. As palavras saíram num assovio. Céus, como Thibodeau era pesado. — Isso é loucura. Não faz sentido. Não consegue ver que...
— Segura a mão dele no chão — disse Big Jim. — A esquerda.
Freddy fez o que lhe foi mandado. Rusty tentou lutar, mas com Thibodeau lhe segurando os braços, não tinha apoio.
— Sinto muito fazer isso, parceiro, mas o povo dessa cidade tem que entender que nós temos o terrorismo sob controle.
Rennie poderia dizer o quanto quisesse que sentia muito, mas um instante antes de pôr o calcanhar do sapato e todos os seus 105 quilos sobre a mão esquerda fechada de Rusty este viu um motivo diferente surgir na frente das calças de gabardina do segundo vereador. Ele gostava daquilo, e não só no sentido cerebral.
Então o calcanhar apertou e moeu: com força, com mais força, com toda a força. O rosto de Big Jim se contraiu com o esforço. Apareceu suor sob os olhos. A língua estava presa entre os dentes.
Não grita, pensou Rusty. A Ginny vai vir, e aí vai cair no fogo também. E ele quer que você grite. Não dê a ele esse prazer.
Mas, quando escutou o primeiro estalo debaixo do calcanhar de Big Jim, ele gritou. Não conseguiu segurar.
Houve outro estalo. E um terceiro.
Big Jim recuou, satisfeito.
— Ponham ele de pé e levem pra cadeia. Que vá conversar com o amigo dele.
Freddy examinava a mão de Rusty, que já começava a inchar. Três dos quatro dedos estavam curvados bem fora de prumo.
— Arrebentados — disse, com grande satisfação.
Ginny apareceu na porta da sala dos médicos, os olhos arregalados.
— Em nome de Deus, o que vocês estão fazendo?
— Prendendo esse canalha por extorsão, ameaça criminosa e tentativa de homicídio — disse Freddy Denton enquanto Carter punha Rusty Everett de pé. — E é só o começo. Ele resistiu à prisão e nós o subjugamos. Por favor, sai da frente, senhora.
— Vocês estão doidos! — gritou Ginny. — Rusty, a sua mão!
— Eu estou bem. Liga pra Linda. Diz pra ela que esses brutamontes...
Ele não disse mais nada. Carter o agarrou pelo pescoço e correu com ele para fora da porta com a cabeça baixa. No seu ouvido, Carter sussurrou:
— Se eu tivesse certeza de que aquele velho sabe tanto de medicina quanto você, eu mesmo te mataria.
Tudo isso em quatro dias e pouco, espantou-se Rusty, enquanto Carter o forçava a descer o corredor, cambaleando e quase dobrado ao meio, agarrado pelo pescoço. A mão esquerda não era mais mão, era só um naco berrante de dor abaixo do pulso. Só quatro dias e pouco.
Ele gostaria de saber se os cabeças de couro — o que quer ou quem quer que fossem — estavam gostando do espetáculo.
A tarde estava no fim quando Linda finalmente encontrou a bibliotecária de Mill. Lissa descia a 117 de bicicleta, na direção da cidade. Disse que ficara conversando com as sentinelas do lado de fora da Redoma, tentando obter mais informações sobre o Dia de Visita.
— Eles não podem conversar com os habitantes, mas alguns falam — disse ela. — Ainda mais quando a gente deixa os três botões de cima da blusa abertos. Parece que isso é bom pra começar uma conversa. Ao menos com os caras do Exército. Já os fuzileiros... Acho que eu podia tirar a roupa toda e dançar a macarena que eles não fariam nem buu. Aqueles rapazes parecem imunes a apelo sexual. — Ela sorriu. — Não que alguém vá me confundir com a Kate Winslet.
— Conseguiu alguma informação interessante?
— Nenhuma. — Lissa estava montada na bicicleta, olhando Linda pela janela do carona. — Eles não sabem de nada. Mas estão preocupadíssimos conosco; fiquei comovida com isso. E ouvem tantos boatos quanto nós. Um deles me perguntou se era verdade que cem pessoas já tinham se suicidado.
— Pode entrar no carro um instante?
O sorriso de Lissa aumentou.
— Estou sendo presa?
— Tem uma coisa que eu quero falar com você. — Lissa baixou o descanso da bicicleta e entrou, tirando antes do caminho a prancheta de Linda e o radar de velocidade que não funcionava. Linda lhe contou a visita clandestina à funerária e o que tinham achado lá, e depois a proposta de reunião no presbitério. A resposta de Lissa foi veemente e imediata.
— Eu vou estar lá; nem tentem me deixar de fora.
O rádio soltou um pigarro e Stacey falou.
— Unidade 4, Unidade 4. Câmbio-câmbio-câmbio.
Linda agarrou o microfone. Não foi em Rusty que pensou; foi nas meninas.
— Quatro aqui, Stacey. Câmbio.
O que Stacey Moggin lhe disse em seguida transformou a inquietação de Linda em puro terror.
— Tenho algo ruim pra te contar, Lin. Eu diria pra se sentar, mas acho que não adianta se sentar pra uma coisa dessas. Rusty foi preso.
— O quê? — Linda quase gritou, mas só para Lissa; não apertou o botão ENVIAR na lateral do microfone.
— Puseram ele lá embaixo no Galinheiro, junto do Barbie. Ele está bem, mas parece que quebrou a mão; estava segurando ela contra o peito, e estava toda inchada. — Ela baixou a voz. — Disseram que foi por resistir à prisão. Câmbio.
Dessa vez, Linda se lembrou de ligar o microfone.
— Já estou indo. Diz pra ele que eu estou indo. Câmbio.
— Não posso — disse Stacey. — Ninguém mais pode descer lá, só os policiais de uma lista especial... e eu não estou nela. Há uma montanha de acusações, inclusive tentativa de homicídio e cúmplice de homicídio. Volta pra cidade com calma. Não vão deixar que você veja ele, e não há por que se arrebentar pelo caminho...
Linda ligou o microfone três vezes: câmbio-câmbio-câmbio. Depois, disse:
— Eu vou ver ele assim mesmo.
Mas não o viu. O chefe Peter Randolph, parecendo recém-descansado do cochilo, a recebeu no alto da escada da delegacia e lhe disse que queria de volta a arma e a insígnia; como esposa de Rusty, também era suspeita de conspirar contra o governo legal da cidade e fomentar a insurreição.
Ótimo, foi o que teve vontade de dizer. Me prende, me põe lá embaixo com meu marido. Mas aí pensou nas meninas, que agora estariam na casa de Marta, esperando que ela as buscasse, querendo lhe contar tudo sobre o dia de aula. Também pensou na reunião no presbitério à noite. Não poderia comparecer se estivesse numa cela, e agora a reunião era mais importante que nunca.
Afinal, se iam soltar um prisioneiro amanhã à noite, por que não dois?
— Diz pra ele que eu amo ele — pediu Linda, desafivelando o cinto e tirando o coldre. Nunca gostara mesmo do peso da arma. Parar o trânsito para atravessar os pequenos a caminho da escola, e dizer aos garotos do secundário que jogassem o cigarro fora junto com os palavrões... essas coisas eram mais o seu forte.
— Eu transmito a mensagem, sra. Everett.
— Alguém deu uma olhada na mão dele? Disseram que a mão dele pode estar quebrada.
Randolph franziu a testa.
— Quem disse?
— Não sei quem ligou. Ele não se identificou. Talvez fosse um dos nossos rapazes, mas a recepção lá na 117 não é muito boa.
Randolph pensou um pouco e decidiu deixar para lá.
— A mão do Rusty está bem — disse ele. — E nossos rapazes não são mais seus rapazes. Vai pra casa. Acho que nós vamos ter perguntas a lhe fazer mais tarde.
Ela sentiu as lágrimas e as segurou.
— O que eu devo dizer pras minhas filhas? Devo dizer que o papai está na cadeia? Você sabe que Rusty é um dos caras do bem; você sabe disso. Meu Deus, foi ele que diagnosticou a sua vesícula no ano passado!
— Não posso ajudar muito nisso, sra. Everett — disse Randolph; os dias em que a chamava de Linda pareciam ter ficado para trás. — Mas sugiro que não conte que papai conspirou com Dale Barbara no assassinato de Brenda Perkins e Lester Coggins; dos outros não tenho muita certeza, foram claramente crimes sexuais e talvez Rusty não soubesse deles.
— Isso é loucura!
Talvez Randolph não tenha escutado.
— Também tentou matar o vereador Rennie não lhe dando acesso a um remédio vital. Por sorte, Big Jim teve a perspicácia de esconder alguns policiais por perto. — Ele balançou a cabeça. — Ameaçar não dar remédios capazes de salvar a vida de um homem que adoeceu cuidando da cidade. Eis o seu cara do bem; eis o seu maldito cara do bem.
Ela estava numa enrascada, e sabia disso. Foi embora antes que a situação piorasse. As cinco horas até a reunião no presbitério da Congregacional se estendiam bem compridas diante dela. Ela náo conseguia pensar em nenhum lugar para ir, em nada para fazer.
Foi quando pensou.
A mão de Rusty não estava nada bem. Isso até Barbie podia ver, e havia três celas vazias entre eles.
— Rusty, há algo que eu possa fazer?
Rusty conseguiu sorrir.
— Não, a menos que possa me jogar uma aspirina. Darvocet seria ainda melhor.
— Acabou de acabar. Não te deram nada?
— Não, mas a dor diminuiu um pouco. Eu vou sobreviver. — Aquele papo era bem mais durão do que na realidade; a dor era fortíssima, e ele estava prestes a piorá-la. — Mas eu tenho que fazer algo com esses dedos.
— Boa sorte.
Por milagre, nenhum dos dedos estava quebrado, só um osso da mão. O quinto metacarpo. A única coisa que poderia fazer era rasgar tiras da camiseta e usá-las como tala. Mas primeiro...
Ele agarrou o indicador esquerdo, deslocado na articulação interfalangeana proximal. No cinema, essas coisas sempre aconteciam depressa. Depressa era dramático. Infelizmente, depressa poderia piorar em vez de melhorar. Ele aplicou uma pressão firme, lenta e crescente. A dor era pavorosa; ele a sentia até a articulação do maxilar. Conseguiu escutar o dedo ranger como a dobradiça de uma porta que passa muito tempo sem ser aberta. Em algum lugar, tanto perto quanto em outro país, ele avistou Barbie em pé na porta da cela, observando.
Então, de repente, o dedo ficou magicamente reto e a dor diminuiu. Naquele, ao menos. Ele se sentou no catre, ofegando como quem termina uma corrida.
— Pronto? — perguntou Barbie.
— Ainda não. Também tenho que ajeitar o dedo do foda-se. Talvez precise dele.
Rusty agarrou o dedo médio e começou de novo. E novamente, bem quando parecia que a dor não poderia piorar mais, a articulação deslocada voltou ao lugar. Agora havia só o problema do mindinho, que apontava para fora como se quisesse fazer um brinde.
E faria, se pudesse, pensou ele. “Ao dia mais fodido da história.” Ao menos da história de Eric Everett.
Começou a enrolar o dedo. Esse também doeu, e foi o que mais demorou.
— O que você fez? — perguntou Barbie, depois estalou o dedos duas vezes, com força. Apontou o teto e pôs uma das mãos em concha junto à orelha. Será que sabia mesmo que o Galinheiro tinha escuta ou só desconfiava? Rusty decidiu que não importava. Seria melhor se comportar como se tivesse, embora fosse difícil acreditar que alguém naquele bando de patetas tivesse pensado nisso.
— Cometi o erro de tentar fazer Big Jim renunciar — disse Rusty — Sem dúvida eles vão acrescentar uma dúzia de outras acusações, mas fui preso basicamente por dizer a ele que parasse de forçar tanto a barra, senão teria um enfarte.
É claro que isso deixava de lado o assunto de Coggins, mas Rusty achou que assim seria melhor para a sua saúde.
— Como é a comida aqui?
— Não é ruim — disse Barbie. — Rose me trouxe o almoço. Mas é bom tomar cuidado com a água. Pode estar meio salgada.
Ele abriu os dois primeiros dedos da máo direita, apontou os olhos com eles e depois apontou a boca: observe.
Rusty fez que sim.
Amanhã à noite, fez Barbie com a boca, sem emitir som.
Eu sei, respondeu Rusty de volta com a boca. Exagerar as sílabas fez os lábios se racharem e voltarem a sangrar.
Barbie fez com a boca: Precisamos... de... um... lugar... seguro.
Graças a Joe McClatchey e os amigos, Rusty achou que essa parte estava resolvida.
Andy Sanders teve uma convulsão.
Era mesmo inevitável: não estava acostumado com a meth e andara fumando muito. Estava no estúdio da WCIK, escutando a sinfonia do Nosso Pão de Cada Dia se elevar em Como sois grande, e regendo junto. Via-se voando por cordas de violino eternas.
O Chef estava em algum lugar com o narguilé, mas deixara com Andy um suprimento de gordos cigarros híbridos que chamava de piticos.
— É melhor tomar cuidado com esses, Sanders — dissera. — São explosivos. “Pois não dado ao vinho deves ser moderado.” Primeira Epístola a Timóteo. Também se aplica a isso.
Andy concordou solenemente, mas fumou feito demônio depois que o Chef se foi: dois piticos, um depois do outro. Baforou até virarem só guimbas quentes que lhe queimaram os dedos. O cheiro de mijo de gato assado do ice já subira para o primeiro lugar da sua parada de sucessos aromaterápica. Estava no meio do terceiro pitico e ainda regia como Leonard Bernstein quando deu uma tragada especialmente profunda e imediatamente apagou. Caiu no chão e ficou se contorcendo num rio de música sacra. Espuma de cuspe escorria entre os dentes cerrados. Os olhos semiabertos rolavam nas órbitas, vendo coisas que não estavam ali. Ao menos, ainda não.
Dez minutos depois, ele acordou de novo, animado o bastante para sair correndo pelo caminho entre o estúdio e o depósito vermelho e comprido dos fundos.
— Chef! — berrava. — Chef cadê você? ELES ESTÃO VINDO!
O Chef Bushey saiu pela porta lateral do depósito. O cabelo se eriçava da cabeça em fusos engordurados. Vestia calças de pijama imundas, manchadas de mijo na virilha e capim na barra. Estampadas com sapos de desenho animado que diziam RIBBIT, pendiam precariamente das flanges ossudas dos quadris, exibindo um tufo de pelos pubianos na frente e a rachadura da bunda atrás. Levava o AK-47 numa mão. Na coronha, pintara com cuidado as palavras GUERREIRO DE DEUS. O controle de porta de garagem estava na outra mão. Ele pousou o Guerreiro de Deus, mas não o Controle de Porta de Deus. Segurou os ombros de Andy e o sacudiu com força.
— Para com isso, Sanders, você está histérico.
— Eles estão vindo! Os homens amargos! Como você disse!
O Chef pensou no caso.
— Alguém ligou pra avisar?
— Não, foi uma visão! Desmaiei e tive uma visão!
Os olhos do Chef se arregalaram. A desconfiança deu lugar ao respeito. Olhou Andy, a estrada da Bostinha e Andy de novo.
— O que você viu? Quantos? Eram todos ou só uns poucos, como antes?
— Eu... Eu... Eu...
Chef o sacudiu de novo, mas dessa vez com mais gentileza.
— Calma, Sanders. Agora você está no exército do Senhor, e...
— Um soldado cristão!
— Isso, isso, isso. E eu sou o seu superior. Portanto, faça o relatório.
— Eles vêm em dois caminhões.
— Só dois?
— É.
— Alaranjados?
— É!
O Chef puxou a calça de pijama (que voltou à posição anterior quase de imediato) e concordou.
— Caminhões do município. Talvez aqueles mesmos três imbecis: os Bowie e o sr. Galinha.
— Sr...?
— Killian, Sanders, quem mais? Ele fuma ice, mas não entende o propósito do ice. É um idiota. Vem buscar mais gás.
— Será que a gente deve se esconder? Só se esconder e deixar eles levarem?
— Foi o que eu fiz antes. Mas não desta vez. Chega de me esconder e deixar que os outros levem tudo. A estrela Absinto ardeu. É hora de os homens de Deus içarem a sua bandeira. Você está comigo?
E Andy, que debaixo da Redoma perdera tudo o que já importara para ele, não hesitou.
— Estou!
— Até o fim, Sanders?
— Até o fim!
— Onde você deixou a sua arma?
Pelo que Andy conseguia se lembrar, estava no estúdio, encostada no pôster de Pat Robertson com o braço nos ombros do falecido Lester Coggins.
— Vamos buscar — disse Chef, pegando o GUERREIRO DE DEUS e verificando a trava. — E de agora em diante você leva ela com você, entendeu?
— Certo.
— A caixa de munição está lá?
— Está. — Andy arrastara um daqueles caixotes até lá havia apenas uma hora. Ao menos, achava que fora há uma hora; os piticos eram terríveis nisso de entortar as beiradas do tempo.
— Um instantinho — disse o Chef. Entrou pela lateral do depósito, foi até o caixote de granadas chinesas e pegou três. Deu duas a Andy e mandou que as pusesse no bolso. Pendurou a terceira granada pelo anel de detonação no cano do GUERREIRO DE DEUS. — Sanders, me disseram que, depois de puxar o pino, temos sete segundos pra nos livrarmos dessas chupa-picas, mas quando experimentei uma na vala de cascalho lá embaixo, foram uns quatro. Não se pode confiar nas raças orientais. Não se esqueça disso.
Andy disse que não se esqueceria.
— Tudo bem, vamos. Vamos buscar a sua arma.
Hesitante, Andy perguntou:
— Vamos usá-las?
Chef pareceu surpreso.
— Não, não, só se a gente precisar.
— Bom — disse Andy. Apesar de tudo, realmente no queria machucar ninguém.
— Mas se forçarem a barra, nós faremos o que for necessário. Você entende isso?
— Entendo — respondeu Andy.
Chef lhe deu um tapinha no ombro.
Joe perguntou à mãe se Benny e Norrie podiam dormir ali. Claire disse que tudo bem, se os pais deles concordassem. Na verdade, seria quase um alívio. Depois da aventura na Serra Negra, ela gostou da ideia de ficar de olho neles. Poderiam fazer pipoca no fogão de lenha e continuar o barulhento jogo de Banco Imobiliário que tinham começado uma hora atrás. Era barulhento demais, na verdade; a conversa e os miados tinham um toque nervoso, como quem passa assoviando do lado do cemitério, de que ela não gostava.
A mãe de Benny concordou, e, para a sua surpresa, a de Norrie também.
— Ótimo — disse Joanie Calvert. — Ando querendo uns tragos desde que isso aconteceu. Parece que hoje é a minha chance. E, Claire? Diz praquela menina pra ir atrás do avô amanhã pra dar um beijo nele.
— Quem é o avô?
— Ernie. Conhece Ernie, não conhece? Todo mundo conhece Ernie. Ele se preocupa com ela. Eu também, às vezes. Aquele skate... — Houve um tremor na voz de Joanie.
— Eu digo pra ela.
Claire mal desligara e bateram à porta. A princípio, não soube quem era a mulher de meia-idade com o rosto pálido e tenso. Então percebeu que era Linda Everett, que costumava ajudar as crianças a atravessar a rua diante da escola e multava os carros que ficavam tempo demais nas zonas de duas horas de estacionamento na rua Principal. E não era mesmo de meia-idade. Só que agora parecia.
— Linda! — exclamou Claire. — O que aconteceu? Foi o Rusty? Aconteceu alguma coisa com o Rusty? — Ela estava pensando em radiação... ao menos era o que lhe vinha à frente na mente. Nos fundos, ideias ainda piores se esgueiravam.
— Ele foi preso.
O jogo de Banco Imobiliário na sala de jantar se interrompera. Agora os participantes estavam juntos na porta da sala, fitando Linda solenemente.
— As acusações mais parecem um rol de lavanderia e incluem cumplicidade no assassinato de Lester Coggins e Brenda Perkins.
— Não!— gritou Benny.
Claire pensou em lhes pedir que saíssem da sala e decidiu que não adiantava. Achou que sabia por que Linda estava ali e compreendia, mas ainda a odiava um pouquinho por ter ido. E Rusty também, por envolver as crianças. Só que estavam todos envolvidos, não estavam? Debaixo da Redoma, envolvimento não era mais uma questão de opção.
— Ele se meteu no caminho do Rennie — disse Linda. — Essa é a verdadeira razão. Essa é a verdadeira razão de tudo, no que diz respeito a Big Jim: quem está ou não no caminho dele. Ele esqueceu inteiramente a situação terrível que nós vivemos aqui. Não, é pior. Ele está usando a situação.
Joe olhou Linda com solenidade.
— O sr. Rennie sabe aonde nós fomos hoje cedo, sra. Everett? Ele sabe da caixa? Acho que ele não deveria saber da caixa.
— Que caixa?
— A que nós encontramos na Serra Negra — disse Norrie. — Nós só vimos a luz que ela emite; Rusty foi até lá e olhou.
— É o gerador — disse Benny. — Só que ele não conseguiu desligar. Não conseguiu nem levantar, embora tenha dito que era bem pequena.
— Eu não sei nada sobre isso — disse Linda.
— Então o Rennie também não sabe — concluiu Joe. Parecia que tinham lhe tirado dos ombros o peso do mundo.
— Como é que você sabe?
— Porque ele teria mandado os policiais interrogarem a gente — disse Joe. — E se a gente não respondesse, ele ia levar a gente pra cadeia.
A distância, vieram duas leves explosões. Claire inclinou a cabeça e franziu a testa.
— Foram fogos ou tiros?
Linda não sabia, e como não vieram da cidade — fracas demais para isso —, não deu bola.
— Garotos, me contem o que aconteceu na Serra Negra. Contem tudo. O que vocês viram e o que o Rusty viu. Hoje à noite, talvez tenham que contar pra outras pessoas. Está na hora de juntar tudo o que nós sabemos. Na verdade, já passou da hora.
Claire abriu a boca para dizer que não queria se envolver, mas não disse. Porque não havia opção. Ao menos, nenhuma que conseguisse ver.
O estúdio da WCIK ficava bem afastado da estrada da Bostinha, e o caminho que levava até lá (asfaltado, em situação bem melhor do que a estrada propriamente dita) tinha quase meio quilômetro. Na ponta que dava na Bostinha, era flanqueado por um par de carvalhos centenários. A folhagem de outono, numa estação normal tão colorida que serviria para um calendário ou folheto turístico, pendia agora mole e marrom. Andy Sanders estava atrás de um daqueles troncos enrugados. O Chef estava atrás do outro. Dava para ouvir o rugido de motores a diesel de caminhões grandes se aproximando. O suor caiu nos olhos de Andy e ele o limpou.
— Sanders!
— O quê?
— A arma está destravada?
Andy verificou.
— Está.
— Tudo bem. Presta atenção e vê se entende de primeira. Se eu te disser pra começar a atirar, você metralha aqueles filhos da puta! De cima pra baixo, da esquerda pra direita! Se eu não te disser pra atirar, fica aí parado. Entendeu bem?
— En-entendi.
— Acho que não vai haver nenhuma morte.
Graças a Deus, pensou Andy.
— Não se forem só os Bowie e o sr. Galinha. Mas não dá pra ter certeza. Se eu tiver que fazer uma encenação, você me dá apoio?
— Dou. — Sem hesitar.
— E tira o dedo desse maldito gatilho senão você vai explodir a própria cabeça.
Andy olhou para baixo, viu que o dedo estava mesmo enrolado no gatilho do AK e o retirou com pressa.
Aguardaram. Andy conseguia ouvir o coração bater no meio da cabeça. Disse a si mesmo que era estupidez ter medo — se não fosse um telefonema fortuito, já estaria morto —, mas não adiantou. Porque um novo mundo se abrira diante dele. Sabia que podia ser um mundo falso (não vira o que as drogas tinham feito com Andi Grinnell?), mas era melhor do que o mundo de merda onde vivera até então.
Deus, por favor, faça com que vão embora, orou. Por favor.
Os caminhões surgiram, rodando devagar e soltando fumaça negra nos restos amortecidos do dia. Quando espiou detrás da sua árvore, Andy conseguiu ver dois homens no caminhão da frente. Provavelmente os Bowie.
Por muito tempo, o Chef não se mexeu. Andy começou a achar que, afinal de contas, ele mudara de ideia e pretendia deixar que levassem o gás. Então, o Chef se adiantou e disparou duas rajadas rápidas.
Doidaço ou não, a mira do Chef era boa. Os dois pneus da frente do primeiro caminhão se esvaziaram. A dianteira balançou três ou quatro vezes e então o caminhão parou. O de trás quase bateu na traseira. Andy conseguiu ouvir o som fraco de música, algum hino, e calculou que quem dirigia o segundo caminhão não ouvira os tiros por causa do rádio. Enquanto isso, a cabine do caminhão da frente parecia vazia. Os dois homens tinham se abaixado e ficado invisíveis.
O Chef Bushey, ainda descalço e usando só a calça do pijama RIBBIT (o controle de porta de garagem estava pendurado como um bipe no cordão frouxo da cintura) saiu detrás da árvore.
— Stewart Bowie! — gritou. — Fern Bowie! Saiam daí e falem comigo!
— Ele encostou no carvalho o GUERREIRO DE DEUS.
Nada na cabine do caminhão da frente, mas a porta do motorista do segundo caminhão se abriu e Roger Killian desceu.
— Qual é o problema? — berrou. — Tenho que voltar e dar comida pras minhas gali... — Então, viu o Chef. — Oi, Philly, o que há?
— Se abaixa! — berrou um dos Bowie. — Esse filhodaputa maluco tá atirando!
Roger olhou o Chef, depois o AK-47 encostado na árvore.
— Talvez estivesse, mas ele baixou a arma. Além disso, é só ele. Qual é o problema, Phil?
— Agora sou Chef. Me chame de Chef.
— Tudo bem, Chef, qual é o problema?
— Desce daí, Stewart — gritou o Chef. — Você também, Fern. Acho que ninguém vai se machucar aqui.
As portas do caminhão da frente se abriram. Sem virar a cabeça, o Chef disse:
— Sanders! Se algum desses dois idiotas estiver armado, atire. Nada de um tiro só; é pra transformar eles em queijo suíço.
Mas nenhum dos Bowie estava armado. Fern estava com as mãos para cima.
— Com quem você está falando, parceiro? — perguntou Stewart.
— Vem pra cá, Sanders — disse Chef.
Andy obedeceu. Agora que a ameaça de carnificina imediata parecia ter passado, começava a se divertir. Se tivesse se lembrado de trazer um dos piticos do Chef, tinha certeza de que se divertiria ainda mais.
— Andy? — disse Stewart, espantado. — O que você está fazendo aqui?
— Fui convocado para o exército do Senhor. E vocês são homens amargos. Sabemos tudo sobre vocês, e aqui não é o seu lugar.
— Hein?— espantou-se Fern. Baixou as mãos. O capô do caminhão da frente se inclinava lentamente na direção da estrada enquanto os grandes pneus dianteiros continuavam a se esvaziar.
— Bem dito, Sanders — falou o Chef. E então, para Stewart: — Vocês três, embarquem naquele segundo caminhão. Deem meia-volta e levem essas bundas de merda de volta pra cidade. Quando chegarem, digam àquele filho apóstata do demônio que agora a WCIK é nossa. Isso inclui o laboratório e todos os suprimentos.
— Que merda você tá falando, Phil?
— Chef
Stewart fez um gesto, abanando a mão.
— O nome que quiser, mas me diz qual é o...
— Eu sei que o seu irmão é estúpido — disse o Chef— e o sr. Galinha ali provavelmente não consegue amarrar os sapatos sem ler as instruções...
— Ei! — gritou Roger. — Veja lá como você fala!
Andy ergueu o AK. Achou que, quando tivesse oportunidade, pintaria CLAUDETTE na coronha.
— Não, veja lá você como fala.
Roger Killian empalideceu e deu um passo atrás. Isso nunca acontecera quando Andy discursava nas assembleias da cidade, e foi muito gratificante.
O Chef continuou falando como se não tivesse havido interrupção.
— Mas você tem ao menos meio cérebro, Stewart, então use. Deixa esse caminhão bem aqui onde está e volta pra cidade no outro. Diz pro Rennie que isso aqui não lhe pertence mais, pertence a Deus. Diz pra ele que a estrela Absinto ardeu, e que, se não quiser que o Apocalipse venha mais cedo, é melhor nos deixar em paz. — Ele reconsiderou. — Também pode dizer que vamos continuar transmitindo música. Duvido que ele se preocupe com isso, mas pra alguns na cidade ela pode ser um consolo.
— Sabe quantos policiais ele tem agora? — perguntou Stewart.
— Não dou a mínima.
— Acho que uns trinta. Até amanhã talvez sejam cinquenta. E metade da maldita cidade tá usando braçadeiras de apoio azuis. Se ele mandar pegarem em armas, ninguém vai achar ruim.
— Não vai adiantar também — disse o Chef. — A nossa fé está no Senhor, e a nossa força é de dez.
— Bem — disse Roger, exibindo a sua capacidade matemática —, então sáo vinte, mas vocês ainda estão em desvantagem.
— Cala a boca, Roger — disse Fern.
Stewart tentou de novo.
— Phil... Chef, quer dizer.., você precisa se acalmar, porque não tem problema nisso. Ele não quer a droga, só o gás. Metade dos geradores da cidade já pifou. Até o fim de semana, vão ser três quartos. Deixa a gente levar o gás.
— Preciso dele pra cozinhar. Sinto muito.
Stewart o olhou como se ele tivesse enlouquecido. Provavelmente enlouqueceu mesmo, pensou Andy. Nós dois, provavelmente. Mas é claro que Jim Rennie também era louco, então empatava.
— Vai embora agora — disse o Chef. — E avise a ele que, se tentar mandar soldados contra nós, vai se arrepender.
Stewart pensou um pouco e deu de ombros.
— Não tenho mesmo nada a ver com isso. Vamos, Fern. Roger, eu dirijo.
— Tá bom pra mim — disse Roger Killian. — Detesto isso de motores. — Deu a Chefe Andy um último olhar cheio de desconfiança e partiu de volta para o segundo caminhão.
— Deus os abençoe, amigos — gritou Andy.
Stewart deu um olhar azedo para trás, por sobre o ombro.
— Deus te abençoe também. Porque Deus sabe que você vai precisar.
Os novos donos do maior laboratório de metanfetamina da América do Norte ficaram lado a lado, observando o grande caminhão laranja dar marcha a ré na estrada, fazer o retorno de forma desajeitada e ir embora.
— Sanders!
— Diga, Chef.
— Quero dar um tchã na música, e imediatamente. Essa cidade precisa de Mavis Staples. E um pouco de Clark Sisters. Depois que resolver essa merda, vamos fumar.
Os olhos de Andy se encheram de lágrimas. Pôs o braço em torno dos ombros ossudos do ex-Phil Bushey e apertou.
— Amo você, Chef.
— Obrigado, Sanders. Vamos voltar. Mantenha a arma carregada. De agora em diante, temos que fazer turnos de vigia.
Big Jim estava sentado ao lado do leito do filho enquanto a aproximação do pôr do sol deixava o dia alaranjado. Douglas Twitchell viera dar uma injeção em Junior. Agora o rapaz estava profundamente adormecido. De certa forma, Big Jim sabia que seria melhor se Junior morresse; vivo e com um tumor pressionando o cérebro, não havia como saber o que faria ou diria. É claro que o garoto era sangue do seu sangue, mas havia o bem maior em que pensar: o bem da cidade. Um dos travesseiros do armário provavelmente serviria...
Foi então que o celular tocou. Ele olhou o nome na telinha e franziu a testa. Alguma coisa dera errado. Stewart dificilmente ligaria tão cedo se não fosse assim.
— O quê.
Escutou com espanto crescente. Andy lá? Andy com uma arma?
Stewart esperava que ele respondesse. Esperava que lhe dissessem o que fazer. Entra na fila, parceiro, pensou Big Jim, e suspirou.
— Me dê um instante. Preciso pensar. Eu ligo de volta.
Desligou e pensou no novo problema. Podia levar um grupo de policiais até lá naquela noite. De certa forma, a idéia era atraente: atiçá-los no Food City e depois ele mesmo comandar o ataque. Se Andy morresse, melhor ainda. Isso faria de James Rennie Sr. todo o governo municipal.
Por outro lado, a assembleia especial da cidade seria amanhã à noite. Todos iriam e haveria perguntas. Ele tinha certeza de que conseguiria jogar a culpa do laboratório em Barbara e nos Amigos de Barbara (na cabeça de Big Jim, Andy Sanders agora se tornara oficialmente um Amigo de Barbara), mas ainda assim.., não.
Não.
Ele queria o rebanho assustado, mas não em pânico total. O pânico não serviria ao seu propósito, que era obter o controle total da cidade. E se deixasse Andy e Bushey ficarem mais um pouco onde estavam, que mal faria? Talvez até fosse bom. Ficariam relaxados. Podiam até se imaginar esquecidos, porque as drogas eram ricas em vitamina E de Estupidez.
Sexta-feira, por outro lado — depois de amanhã —, era o dia que o melequento do Cox escolhera para Dia de Visita. Todos correriam de novo para a fazenda Dinsmore. Burpee iria armar outra barraquinha de cachorro-quente, com certeza. Enquanto a surumbamba rolasse e Cox desse a sua entrevista coletiva de um homem só, o próprio Big Jim comandaria uma tropa de 16 ou 18 policiais até a emissora de rádio e varreria de lá aqueles drogados problemáticos.
Isso. Era essa a resposta.
Ligou de volta para Stewart e lhe disse que deixasse tudo como estava.
— Mas eu achei que você queria o gás — disse Stewart.
— Nós vamos pegá-lo — disse Big Jim. — E você pode nos ajudar a cuidar daqueles dois, se quiser.
— Ah, pode ter certeza de que quero. Aquele filhodaputa — desculpe, Big Jim — aquele filhodamãe do Bushey precisa de uma lição.
— Ele vai ter. Sexta-feira à tarde. Marca na sua agenda.
Big Jim se sentia bem de novo, o coração batendo firme e devagar no peito, sem nenhum tropeço nem batida a mais. E isso era bom, porque havia muito a fazer, começando com a palestra para a polícia esta noite no Food City: o ambiente certo para mostrar a importância da ordem a um monte de novos policiais. Realmente, não havia nada como um cenário de destruição para fazer todo mundo brincar de seguir o líder.
Ele ia sair do quarto, depois voltou e beijou o rosto do filho adormecido. Livrar-se de Junior talvez fosse necessário, mas por enquanto isso também podia esperar.
Outra noite cai sobre a cidadezinha de Chester’s Mill: outra noite debaixo da Redoma. Mas para nós não há descanso; temos que comparecer a duas reuniões, e também temos que dar uma olhada em Horace, o corgi, antes de dormir. Hoje Horace faz companhia a Andrea Grinnell, e embora por enquanto esteja matando o tempo, ele não esqueceu a pipoca entre o sofá e a parede.
Então vamos, você e eu, enquanto a noite se espalha contra o céu como um paciente anestesiado sobre a mesa. Vamos enquanto as primeiras estrelas desbotadas começam a aparecer lá em cima. Hoje à noite, esta é a única cidade, numa área de quatro estados, em que elas estão visíveis. A chuva se espalhou pelo norte da Nova Inglaterra e os espectadores de noticiários de canais a cabo logo terão acesso a algumas notáveis fotografias de satélite mostrando um buraco nas nuvens que imita com exatidão o formato de meia de Chester’s Mill. Ali as estrelas brilham, mas agora são estrelas sujas, porque a Redoma está suja.
Cai chuva forte em Tarker’s Mills e na parte de Castle Rock conhecida como “A Vista”; Reynolds Wolf, meteorologista da CNN (nenhum parentesco com o Wolfie de Rose Twitchell), diz que, embora ninguém ainda tenha certeza absoluta, o fluxo de ar de oeste para leste empurra as nuvens contra a lateral oeste da Redoma e espreme-as como esponjas antes que consigam fugir para o norte e para o sul. Ele chama isso de “fenômeno fascinante”. Suzanne Malveaux, a âncora, lhe pergunta como ficaria o clima a longo prazo debaixo da Redoma, se a crise continuar.
— Suzanne — diz Reynolds Wolf—, essa é uma boa pergunta. Só temos certeza de que hoje não chove em Chester, embora a superfície da Redoma seja permeável o bastante para que alguma umidade possa passar onde a chuva for mais forte. A Agência Atmosférica e Oceânica Nacional diz que a probabilidade de precipitação debaixo da Redoma a longo prazo não é grande. E nós sabemos que o principal curso d’água da cidade, o riacho Prestile, praticamente secou. — Ele sorri, mostrando um conjunto espetacular de dentes televisivos. — Graças a Deus existem poços artesianos!
— Tem razão, Reynolds — diz Suzanne, e então o lagarto da seguradora Geico aparece nas telas de TV dos Estados Unidos.
Chega de noticiários; vamos flutuar por certas ruas semidesertas, passar pela igreja Congregacional e pelo presbitério (a reunião ali ainda não começou, mas Piper encheu a máquina grande de café, e Julia está fazendo sanduíches à luz de um lampião sibilante), pela casa dos McCain, cercada pelas curvas tristes de fita amarela da polícia, pelo morro da praça da Cidade e pela Câmara de Vereadores, onde o zelador Al Timmons e dois amigos seus limpam e arrumam tudo para a assembleia especial da noite de amanhã, pela praça do Memorial de Guerra, onde a estátua de Lucien Calvert (bisavô de Norrie; provavelmente não preciso dizer isso a você) faz a sua longa vigília.
Que tal uma paradinha para olharmos Barbie e Rusty? Não vai haver problema em ir até lá embaixo; só há três policiais na sala de controle, e Stacey Moggin, que está na recepção, dorme com a cabeça apoiada no braço. O resto da delegacia está no Food City; ouvindo o mais recente e empolgante discurso de Big Jim, mas não importaria se estivessem todos aqui, porque somos invisíveis. Sentiriam apenas um ventinho quando passássemos por eles.
Não há muito o que ver no Galinheiro, porque a esperança é tão invisível quanto nós. Os dois homens não têm nada para fazer a não ser esperar até amanhã à noite e torcer para que tudo dê certo para eles. A mão de Rusty dói, mas a dor não é tão forte quanto ele achou que seria, e o inchaço não é tão grande quanto temia. Além disso, Stacey Moggin, que Deus a abençoe, lhe passou dois Excedrins por volta das cinco da tarde.
Por enquanto, os dois homens — os nossos heróis, suponho — estão sentados no catre e brincam de adivinhar. É a vez de Rusty.
— Animal, vegetal ou mineral? — pergunta.
— Nenhum deles — responde Barbie.
— Como assim, nenhum deles? Tem que ser um deles.
— Não é — diz Barbie. Ele está pensando no Vovô Smurf.
— Você tá me enrolando.
— Não estou.
— Tem que estar.
— Para de reclamar e começa a perguntar.
— Pode me dar uma pista?
— Não. É o seu primeiro não. Ainda tem 19.
— Espera um minuto aí. Isso não é justo.
Que tal deixá-los para aliviar como puderem o peso das próximas 24 horas? Vamos seguir o nosso caminho pelo monte ainda fumegante de cinzas onde ficava o Democrata (que pena, não serve mais à “Cidadezinha que Parece uma Bota”) e passar pela Drogaria Sanders (chamuscada mas ainda de pé, embora Andy Sanders nunca mais vá cruzar a sua porta), pela livraria e pela Maison des Fleurs de LeClerc, onde todas as flores estão mortas ou moribundas. Passemos pelo sinal apagado que marca o cruzamento das rodovias 119 e 117 (encostamos nele; balança de leve e se endireita de novo) e cruzemos o estacionamento do Food City; Somos tão silenciosos quanto a respiração adormecida de uma criança.
A grande vidraça da frente do supermercado foi coberta de compensado requisitado na serraria de Tabby Morrell, e o grosso da sujeira do chão foi limpo por Jack Cale e Ernie Calvert, mas o Food City ainda está uma bagunça terrível, com caixas e produtos secos espalhados de cabo a rabo. A mercadoria que restou (o que não foi levado para várias despensas ou armazenado no pátio atrás da delegacia, em outras palavras) está espalhada ao acaso nas prateleiras. A geladeira de refrigerantes, a de cervejas e o freezer de sorvetes estão arrebentados. Há um fedor forte de vinho derramado. Esses restos de caos são exatamente o que Big Jim Rennie quer que o seu novo quadro — extremamente jovem, na maior parte — de oficiais da lei veja. Quer que percebam que a cidade toda pode ficar assim, e é bem esperto para saber que não precisa dizer isso em voz alta. Eles entenderão a questão: é o que ocorre quando o pastor falta com o dever e o rebanho estoura.
Precisamos escutar o discurso dele? Não. Amanhã à noite escutaremos Big Jim e já basta. Além disso, todos sabemos como são essas coisas; as duas maiores especialidades dos Estados Unidos são os demagogos e o rock and roll, e já ouvimos bastante dos dois em nossas vidas.
Mas devemos examinar o rosto dos seus ouvintes antes de irmos. Observe como estão enlevados, e então lembre-se de que muitos deles (Carter Thibodeau, Mickey Wardlaw e Todd Wendlestat, para citar apenas três) são rapazes que não conseguiam passar nem uma semana de escola sem serem suspensos por criar problemas na sala de aula ou brigar no banheiro. Mas Rennie os hipnotizou. Nunca foi muito bom no corpo a corpo, mas quando está diante de uma multidão... upa, upa e tchá-tchá-tchá, como dizia o velho Clayton Brassey na época em que ainda tinha alguns neurônios em funcionamento. Big Jim lhes fala da “fina linha azul” e do “orgulho de estar ao lado dos seus parceiros policiais” e que “a cidade depende de vocês”. Outras coisas, também. As coisas boas que nunca perdem o encanto.
Big Jim passa a falar de Barbie. Diz que os amigos de Barbie ainda estão por aí, semeando discórdia e fomentando dissensão em nome de seus maus propósitos. Baixa a voz e diz:
— Vão tentar me desacreditar. As mentiras que eles contarão não têm fim.
Isso é recebido com um grunhido de desprazer.
— Vocês vão dar ouvidos às mentiras? Vão deixar que me desacreditem? Vão permitir que esta cidade fique sem um líder forte na hora de maior necessidade?
É claro que a resposta é um retumbante NÃO! E, embora Big Jim continue (como a maioria dos políticos, ele acredita não só em dourar a pílula como em pintá-la com tinta spray), podemos deixá-lo agora.
Vamos seguir por essas ruas desertas até o presbitério da Congregacional. E vejam! Há alguém com quem podemos andar: uma garota de 13 anos de jeans desbotados e camiseta de skate à moda antiga, com a morte alada. O muxoxo de garota-problema que é o desespero da mãe sumiu do rosto de Norrie Calvert hoje à noite. Foi substituído por uma expressão de assombro que a faz parecer a menina de 8 anos que foi não faz muito tempo. Seguimos o seu olhar e vemos uma imensa lua cheia subindo das nuvens a leste da cidade. Tem a cor e o formato de um grapefruit rosado recém-cortado.
— Ai... meu... Deus... — sussurra Norrie. A mão fechada se aperta entre as parcas saliências dos seios quando ela olha aquele capricho rosado de lua. Depois continua andando, não tão espantada a ponto de se esquecer de olhar em volta de vez em quando para verificar se não está sendo notada. Isso é ordem de Linda Everett: tinham de ir sozinhos, tinham de não chamar a atenção e tinham de se assegurar de não serem seguidos.
— Isso não é brincadeira — dissera Linda. Norrie ficou mais impressionada com o rosto pálido e tenso do que com as palavras. — Se nos pegarem, não vamos perder só uma fase ou pontos de vida. Vocês entendem isso, garotos?
— Posso ir com Joe? — perguntou a sra. McClatchey. Estava quase tão pálida quanto a sra. Everett.
A sra. Everett fez que não com a cabeça.
— Má idéia.
E isso impressionara Norrie mais do que tudo. Não, não era um jogo; talvez vida e morte.
Ah, mas lá está a igreja, e o presbitério enfiado logo ao lado. Norrie vê a luz branca e brilhante dos lampiões a gás no fundo, onde deve ficar a cozinha. Logo estará lá dentro, longe do olhar daquela horrível lua cor-de-rosa. Logo estará a salvo.
É o que ela pensa quando uma sombra se destaca de uma das sombras mais densas e a segura pelo braço.
Norrie se espantou demais para gritar, o que foi bom; quando a lua rosa iluminou o rosto do homem que a abordara, ela viu que era Romeo Burpee.
— O senhor quase me matou de susto — sussurrou ela.
— Desculpe. Só estava aqui forra de olho. — Rommie soltou o braço dela, olhou em volta. — Onde eston os seus amigos?
Norrie sorriu.
— Não sei. Era pra gente vir sozinhos e por caminhos diferentes. Foi o que a sra. Everett disse. — Ela olhou morro abaixo. — Acho que a mãe do Joey está vindo agora. Vamos entrar.
Eles andaram na direção da luz dos lampiões. A porta interior do presbitério estava aberta. Rommie bateu de leve na lateral da tela e disse:
— Rommie Burpee e amiga. Se tem senha, não nos deram.
Piper Libby abriu a porta e os deixou entrar. Olhou curiosa para Norrie.
— Quem é você?
— Ora, ora, se não é a minha neta — disse Ernie, entrando na sala. Tinha um copo de limonada numa das mãos e um sorriso no rosto. — Vem cá, garota. Estava com saudades.
Norrie lhe deu um abraço forte e o beijou, como a mãe instruíra. Não esperava obedecer às ordens tão cedo, mas ficou contente com isso. E a ele contaria a verdade que nenhuma tortura arrancaria dos seus lábios diante dos rapazes com quem andava.
— Vovô, eu tou apavorada.
— Todos nós estamos, doçura. — Ele a abraçou com mais força e depois olhou o rosto virado para cima. — Não sei o que você está fazendo aqui, mas agora que veio, que tal um copo de limonada?
Norrie viu a cafeteira e disse:
— Prefiro café.
— Eu também — disse Piper. — Enchi até em cima e ia ligar quando lembrei que não há eletricidade. — Ela deu uma sacudidela na cabeça, como se quisesse limpá-la. — Isso me atinge cada vez de um jeito.
Houve outra batidinha na porta dos fundos e Lissa Jamieson entrou, as faces cheias de cor.
— Guardei a bicicleta na garagem, reverenda Libby. Espero que não haja problemas.
— Tudo bem. E se estamos fazendo uma conspiração criminosa aqui, como Rennie e Randolph sem dúvida afirmariam, é melhor me chamar de Piper.
Todos chegaram cedo e Piper deu início à reunião do Comitê Revolucionário de Chester’s Mill logo depois das nove. A princípio, o que a impressionou foi o desequilíbrio da divisão sexual: oito mulheres e apenas quatro homens. E dos quatro homens, um já tinha passado da idade da aposentadoria e dois não tinham idade suficiente para entrar sozinhos em filmes proibidos para menores. Ela teve de se lembrar que centenas de exércitos guerrilheiros de várias partes do mundo puseram armas nas mãos de mulheres e crianças menores do que as que estavam ali naquela noite. Nem por isso era correto, mas às vezes o correto e o necessário entravam em conflito.
— Gostaria que baixássemos a cabeça um minuto — disse Piper. — Não vou orar porque não tenho mais certeza de com quem eu falo quando faço isso. Mas talvez vocês queiram dizer algumas palavras ao Deus da sua compreensão, porque hoje precisamos de toda a ajuda possível.
Fizeram o que ela pediu. Alguns ainda estavam de cabeça baixa e olhos fechados quando Piper levantou a sua para fitá-los: duas policiais recém-demitidas, um gerente de supermercado aposentado, uma jornalista que não tinha mais jornal, uma bibliotecária, a dona do restaurante local, uma viúva da Redoma que não conseguia parar de girar a aliança no dedo, o magnata da loja de departamentos local e três garotos de rosto atipicamente solene amontoados no sofá.
— Ok, amém — disse Piper. — Vou passar a reunião para Jackie Wettington, que sabe o que está fazendo.
— Talvez isso seja otimista demais — disse Jackie. — Pra não dizer apressado. Porque eu vou passar a reunião pra Joe McClatchey.
Joe pareceu espantado.
— Eu?
— Mas antes que ele comece — continuou ela — vou pedir aos amigos dele que fiquem de vigia. Norrie na frente e Benny nos fundos.
Jackie viu o protesto no rosto dos dois e ergueu a mão para se antecipar.
— Isso não é uma desculpa pra tirar vocês da sala. É importante. Não preciso dizer que não vai ser nada bom se as autoridades constituídas nos pegarem num conclave. Vocês dois são os menores. Procurem alguma sombra bem densa e se escondam. Se virem alguém de aparência suspeita se aproximar, ou algum carro da polícia, batam palmas assim.
Ela bateu uma vez, depois duas, depois mais uma.
— Prometo contar tudo a vocês depois. A nova ordem do dia é reunir informações, sem segredos.
Quando os dois saíram, Jackie se virou para Joe.
— Essa caixa de que a Linda falou. Conta pra todo mundo. Do início ao fim.
Joe o fez de pé, como se recitasse na escola.
— Então nós voltamos pra cidade — terminou. — E aquele escroto do Rennie prendeu o Rusty. — Ele limpou o suor da testa e voltou a se sentar no sofá.
Claire lhe abraçou os ombros.
— Joe diz que seria ruim o Rennie saber da caixa — disse ela. — Ele acha que o Rennie pode querer que ela continue fazendo o que está fazendo em vez de tentar desligar ou destruir.
— Acho que ele tem razão — disse Jackie. — Portanto, a existência e a localização dela são o nosso primeiro segredo.
— Não sei... — disse Joe.
— O quê? — perguntou Julia. — Você acha que ele devia saber?
— Talvez. Mais ou menos. Preciso pensar.
Jackie continuou sem lhe fazer mais perguntas.
— Eis o segundo ponto da pauta. Eu quero tentar tirar Barbie e Rusty da cadeia. Amanhã à noite, durante a grande assembleia da cidade. Barbie é o cara que o presidente nomeou pra assumir o governo da cidade...
— Qualquer um menos Rennie — grunhiu Ernie. — Filhodaputa incompetente, acha que é dono da cidade.
— Numa coisa, ele é bom — disse Linda. — Sabe criar problemas quando é bom pra ele. O saque ao supermercado e o incêndio do jornal... Eu acho que os dois ocorreram por ordem dele.
— É claro que sim — disse Jackie. — Qualquer um que mata o próprio pastor...
Rose arregalou os olhos para ela.
— Você está dizendo que o Rennie matou o Coggins?
Jackie lhes contou sobre a sala de trabalho no porão da funerária e que as marcas no rosto de Coggins combinavam com a bola de beisebol dourada que Rusty vira no escritório de Rennie. Escutaram consternados, mas sem descrença.
— As garotas também? — perguntou Lissa Jamieson com uma vozinha horrorizada.
— Eu responsabilizaria o filho por isso. — Jackie falava quase bruscamente. — E esses assassinatos provavelmente não estavam ligados às maquinações políticas de Big Jim. Junior desmaiou hoje de manhã. Na casa dos McCain, aliás, onde os corpos foram encontrados. Por ele.
— Que coincidência — disse Ernie.
— Ele está no hospital. Ginny Tomlinson diz que quase com certeza é um tumor no cérebro. Que pode provocar comportamento violento.
— Uma equipe de pai e filho assassinos? — Claire abraçava Joe com mais força do que nunca.
— Não exatamente uma equipe — disse Jackie. — Digamos, uma característica de comportamento selvagem, algo genético, que surge sob pressão.
— Mas os corpos estarem no mesmo lugar é um forte indício de que, se houve dois assassinos, estariam trabalhando juntos — disse Linda. — A questão é que o meu marido e Dale Barbara, quase com certeza, estão presos por um assassino que quer usá-los pra montar uma grandiosa teoria da conspiração. A única razão pra ainda não terem sido mortos na prisão é que o Rennie quer usá-los como exemplo. Quer executá-los em público. — O rosto dela se contraiu um instante, enquanto lutava com as lágrimas.
— Não consigo acreditar que ele chegou a esse ponto — disse Lissa. Torcia de um lado para o outro a cruz egípcia que usava pendurada. — Ele é um vendedor de carros usados, pelo amor de Deus.
Isso foi recebido com silêncio.
— Vejamos agora — disse Jackie, depois que o silêncio se estendeu um pouco. — Quando eu lhes contei o que eu e Linda pretendemos fazer, transformei isso numa conspiração de verdade. Vou pedir uma votação. Quem quiser participar, levante a mão. Quem não levantar a mão pode ir embora, desde que prometa não dizer nada sobre o que nós discutimos, O que vocês não iam mesmo querer fazer; se não contarem a ninguém quem estava aqui e o que foi discutido, não terão que explicar o que ouviram. Isso é perigoso. Nós podemos acabar na cadeia ou coisa pior. Então vamos levantar as mãos. Quem quer ficar?
Joe levantou a mão primeiro, mas Piper, Julia, Rose e Ernie Calvert não demoraram a segui-lo. Linda e Rommie levantaram a mão juntos. Lissa olhou para Claire McClatchey. Ela suspirou e concordou. As duas levantaram a mão.
— É isso aí, mãe — disse Joe.
— Se você contar ao seu pai no que eu deixei que você se metesse — disse ela —, não vai precisar que o James Rennie te mate. Eu mesma faço isso.
— Linda não pode ir à delegacia buscar eles — disse Rommie. Falava com Jackie.
— Quem, então?
— Você e eu, querida. Linda vai à grande assembléia. Onde seiscentas ou Oitocentas pessoas vão poder testemunhar que a viram.
— Por que eu não posso ir? — perguntou Linda. — Foi o meu marido que eles pegaram.
— É exatamente por isso — disse Julia, simplesmente.
— Como você quer fazer? — perguntou Rommie a Jackie.
— Bom, sugiro que nós usemos máscaras...
— Dãã... — disse Rose, e fez uma careta. Todos riram.
— Nós estamos com sorte — comentou Rommie. — Tenho um ótimo sortimento de máscarras de Halloween na loja.
— Talvez eu possa ser a Pequena Sereia — disse Jackie, um pouco desejosa. Percebeu que todos a olhavam e corou. — Ou qualquer coisa. Seja como for, precisamos de armas. Tenho uma a mais em casa, uma Beretta. Tem alguma coisa, Rommie?
— Separrei algumas espingardas e carrabinas no cofre da loja. Ao menos uma delas tem mirra telescópica. Não vou dizer que sabia que isso ia acontecer, mas sabia que algo ia acontecer.
Joe ergueu a voz.
— Vocês também vão precisar de um veículo pra fugir. A sua van, não, Rommie, porque todo mundo conhece.
— Quanto a isso, tenho uma ideia — disse Ernie. — Vamos pegar um veículo da loja de carros usados do Jim Rennie. Ele tem meia dúzia de vans já velhas da companhia telefônica que comprou na primavera passada. Estão nos fundos. Usar um carro dele seria, como é que se diz, justiça poética.
— E exatamente como conseguir as chaves? — perguntou Rommie. — Vai arrombar o escritórrio dele?
— Se escolhermos uma sem ignição eletrônica, eu faço ligação direta — disse Ernie. Olhando Joe com a testa franzida, acrescentou: — Prefiro que não conte isso à minha neta, rapaz.
Joe encenou a pantomima de fechar os lábios com um zíper que fez todos rirem de novo.
— A assembléia extraordinária da cidade está marcada pra começar às sete da noite de amanhã — disse Jackie. — Se nós chegarmos à delegacia por volta das oito...
— Podemos fazer coisa melhor — disse Linda. — Se tenho que ir à maldita assembleia, posso também fazer algo de bom. Vou com um vestido com bolsos grandes e levo o meu rádio da polícia, o extra, que ainda está no meu carro particular. Vocês ficam na van, prontos pra partir.
A tensão aumentava na sala; todos a sentiam. Aquilo começava a ser real.
— Na árrea de entrregas atrás da minha loja — disse Rommie. — Forra de vista.
— Quando Rennie estiver embalado no discurso — disse Linda —, dou um toque triplo no rádio. É o sinal pra vocês partirem.
— Quantos policiais vai haver na delegacia? — perguntou Lissa.
— Talvez eu consiga descobrir com Stacey Moggin — disse Jackie. — Mas não vão ser muitos. Por que seriam? Pelo que Big Jim sabe, não existem Amigos de Barbie de verdade, só os fantoches que ele inventou.
— Ele também quer garantir que a bunda mole dele fique bem protegida — disse Julia.
Isso provocou alguns risos, mas a mãe de Joe parecia preocupadíssima.
De qualquer forma, vai ter alguns na delegacia. O que vocês vão fazer se resistirem?
— Eles não vão resistir — disse Jackie. — Vão estar trancados nas próprias celas antes de saberem o que aconteceu.
— Mas e se resistirem?
— Então vamos tentar não matá-los. — A voz de Linda estava calma, mas os olhos eram os da criatura que arranjou coragem num último esforço desesperado para se salvar. — Vai haver mortes de qualquer jeito, provavelmente, se a Redoma durar muito mais tempo. A execução do Barbie e do meu marido na praça do Memorial de Guerra vai ser só o começo.
— Digamos que vocês os tirem de lá — disse Julia. — Vão levar pra onde? Trazer pra cá?
— De jeito nenhum — disse Piper, e tocou a boca ainda inchada. — Eu já estou na lista negra do Rennie. Sem falar daquele cara que agora é guarda-costas pessoal dele. Thibodeau. Meu cachorro mordeu ele.
— Nenhum lugar perto do centro da cidade seria uma boa ideia — disse Rose. — Eles podem vasculhar casa a casa. Deus sabe muito bem que ele tem policiais suficientes.
— E mais todas as pessoas com brraçadeirras azuis — acrescentou Rommie.
— E as casas de veraneio perto do lago Chester? — perguntou Julia.
— É possível — disse Ernie —, mas eles também pensariam nisso.
— Ainda pode ser a melhor sugestão — disse Lissa.
— Sr. Burpee? — perguntou Joe. — O senhor ainda tem aquele rolo de chumbo?
— Claro, toneladas. E me chama de Rommie.
— Se o sr. Calvert conseguir furtar uma van amanhã, o senhor poderia escondê-la atrás da loja e pôr um monte de pedaços de chumbo já cortados na traseira? De tamanho suficiente pra cobrir as janelas?
— Acho que sim...
Joe olhou para Jackie.
— E a senhora conseguiria falar com esse coronel Cox, se for preciso?
— Consigo — responderam juntas Jackie e Julia, e depois se entreolharam com surpresa.
A luz se acendia no rosto de Rommie.
— Você está pensando na velha casa do McCoy, não é? No alto da Serra Negra. Onde está a caixa.
— É. Pode ser má ideia, mas se todos tivermos que fugir... se estivermos todos lá em cima.., podemos defender a caixa. Sei que parece maluquice, já que é a coisa que está causando todos os problemas, mas não podemos deixar o Rennie pôr as mãos nela.
— Esperro que non seja repetir a batalha do Álamo num pomar de macieirras — disse Rommie —, mas entendo a sua ideia.
— Tem mais uma coisa que dá pra fazer — disse Joe. — É meio arriscado e talvez não dê certo, mas...
— Fala logo — incentivou Julia. Ela olhava Joe McClatchey com um tipo de assombro pensativo.
— Bom... o contador Geiger ainda tá na sua van, Rommie?
— Acho que sim.
— Talvez alguém pudesse devolver pro abrigo antirradiação de onde ele saiu. — Joe se virou para Jackie e Linda. — Uma de vocês consegue entrar lá? Quer dizer, eu sei que demitiram vocês.
— Acho que Al Timmons nos deixaria entrar — disse Linda. — E deixaria Stacey Moggin entrar, com certeza. Ela está conosco. A única razão pra não estar aqui agora é porque ficou de plantão. Por que arriscar, Joe?
— Porque... — Ele falava com lentidão atípica, tateando o caminho. — Bom, tem radiação por lá, entende? Muita radiação. É só um cinturão; aposto que dá pra passar de carro por ela sem nenhuma proteção e não sofrer nada, se dirigir depressa e não fizer isso muitas vezes; mas disso eles não sabem. O problema é que eles não sabem que tem radiação por lá. E não saberão se não tiverem o contador Geiger.
Jackie franziu a testa.
— É uma idéia legal, garoto, mas eu não gosto de mostrar ao Rennie exatamente aonde nós estamos indo. Não combina com a minha ideia de esconderijo seguro.
— Não precisa ser assim — disse Joe. Ainda falava devagar, testando pontos fracos. — Quer dizer, não exatamente. Uma de vocês podia falar com o Cox, entende? Pedir a ele que ligue pro Rennie e diga que estão captando radiação localizada. O Cox pode dizer algo tipo: “Não deu pra identificar exatamente onde porque vem e vai, mas é muito forte, talvez até letal, entáo toma cuidado. Por acaso vocês não têm um contador Geiger?”
Houve um longo silêncio enquanto pensavam no caso. Então, Rommie disse:
— Levamos Barbarra e Rusty pra fazenda McCoy. Vamos todos parra lá se necessárrio for... e prrovavelmente vai serr. E se eles tentarrem ir até lá...
— Vão ver o pico de radiação no contador Geiger que vai fazê-los voltar correndo pra cidade com as mãos sobre as gônadas inúteis — interrompeu Ernie. — Claire McClatchey, você tem um gênio aí.
Claire abraçou Joe com força, desta vez com os dois braços.
— Ah, se eu conseguisse que ele arrumasse o quarto! — disse ela.
Horace estava deitado no tapete da sala de estar de Andrea Grinnell com o focinho sobre uma das patas e um dos olhos na mulher com quem a dona o deixara. Em geral, Julia o levava a toda parte; ele era silencioso e nunca causava problemas mesmo quando havia gatos, para os quais não ligava por causa do seu cheiro de erva fedorenta. Mas naquela noite ocorreu a Julia que ver Horace vivo quando o seu cachorro estava morto poderia fazer Piper Libby sofrer. Também notara que Andi gostava de Horace e achou que o corgi poderia afastar a mente de Andi dos sintomas da abstinência, que tinham se reduzido sem desaparecer.
Por algum tempo, funcionou. Andi achou uma bola de borracha na caixa de brinquedos que ainda guardava para o único neto (que agora já passara há tempos do estágio da caixa de brinquedos). Horace, obediente, caçou a bola e a trouxe de volta como pedido, embora não houvesse nisso muito desafio; ele preferia bolas que pudessem ser pegas no vôo. Mas serviço era serviço, e ele continuou até que Andi começou a tremer como se estivesse com frio.
— Ah... Ah, merda, lá vem de novo. — Ela se deitou no sofá, tremendo toda. Agarrou uma das almofadas contra o peito e fitou o teto. Logo os dentes começaram a bater — um som muito incômodo, na opinião de Horace.
Ele trouxe a bola, na esperança de distraí-la, mas ela o afastou.
— Não, querido, agora não. Deixa isso passar.
Horace levou a bola de volta para a frente da TV desligada e se deitou. O tremor da mulher diminuiu e o cheiro de doente também. Os braços que apertavam a almofada se afrouxaram quando ela começou a cochilar e depois a roncar.
O que significava que era hora do lanche.
Horace se enfiou debaixo da mesa outra vez, andando por cima do envelope pardo que continha o arquivo VADER. Além dele, ficava o Nirvana da pipoca. Ah, cachorro de sorte!
Horace ainda se refestelava, o traseiro sem rabo balançando de prazer próximo do êxtase (os piruás espalhados eram incrivelmente amanteigados, incrivelmente salgados e, melhor do que tudo, envelhecidos com perfeição), quando a vozmorta falou de novo.
Leva aquilo pra ela.
Mas ele não podia. A sua dona saíra.
A outra ela.
A vozmorta não aceitaria recusa, e a pipoca quase acabara, de qualquer modo. Horace marcou as últimas que restavam para lhes dar atenção futura e depois recuou até que o envelope estivesse na sua frente. Por um instante, esqueceu o que devia fazer. Depois se lembrou e o pegou na boca.
Que cachorro bonzinho.
Alguma coisa fria lambeu a bochecha de Andrea. Ela a empurrou e virou de lado. Por um instante ou dois quase escapou de volta para o sono curativo, e então houve um latido.
— Cala a boca, Horace. — Ela pôs a almofada do sofá sobre a cabeça.
Houve outro latido, e então 15 quilos de corgi pousaram na sua perna.
— Ah! — gritou Andi, sentando-se. Olhou o par de brilhantes olhos castanhos e o rosto sorridente de raposa. Só que havia algo interrompendo o sorriso. Um envelope de papel pardo. Horace o largou na barriga dela e pulou de volta no chão. Não podia subir em mobília que não fosse dele, mas a voz-morta falara como se fosse uma emergência.
Andrea pegou o envelope, que ficara vincado pela ponta dos dentes de Horace e tinha marcas leves das suas patas. Também havia um piruá de pipoca grudado, que ela jogou longe. O que havia dentro parecia bem grosso. Escrito na frente do envelope, em letras de forma, estavam as palavras ARQUIVO VADER. Abaixo, também em letras de imprensa: JULIA SHUMWAY.
— Horace? Onde arranjou isso? — É claro que Horace não podia responder, mas nem precisou. O piruá de pipoca lhe revelou o lugar. Então uma lembrança surgiu, tão cintilante e irreal que mais parecia um sonho. Era um sonho ou Brenda Perkins fora mesmo à sua porta depois daquela primeira noite terrível de abstinência? Enquanto o saque ao supermercado acontecia do outro lado da cidade?
Pode guardar isso pra mim, querida? Só por algum tempo? Tenho um serviço afazer e não queria levar isso comigo.
— Ela esteve aqui — disse a Horace —, e estava com esse envelope. Eu peguei... pelo menos acho que sim... mas aí tive que vomitar. Vomitar de novo. Devo ter jogado o envelope na mesinha enquanto corria pro banheiro. Será que caiu? Você achou no chão?
Horace deu um latido agudo. Podia ser concordância; podia ser Quero brincar mais de bola se você quiser.
— Ora, obrigada — disse Andrea. — Que cãozinho bonzinho. Vou entregar pra Julia assim que ela voltar.
Não se sentia mais sonolenta, e, por enquanto, também não tremia. Estava era curiosa, Porque Brenda estava morta. Assassinada. E deve ter acontecido pouco depois da entrega daquele envelope. O que poderia torná-lo importante.
— Vou só dar uma olhadinha, tá? — perguntou ela.
Horace latiu de novo. Para Andi Grinnell, soou como Por que não?
Andrea abriu o envelope, e a maioria dos segredos de BigJim Rennie caiu no seu colo.
Claire chegou primeiro. Benny foi o seguinte, depois Norrie. Os três estavam sentados juntos na varanda da casa dos McClatchey quando Joe chegou, cortando caminho pelos gramados e ficando na sombra. Benny e Norrie tomavam refrigerante Dr. Brown’s Cream Soda, morno. Claire ninava uma garrafa de cerveja do marido enquanto oscilava devagar de um lado para o outro no banco de balanço da varanda. Joe se sentou ao lado dela, e Claire abraçou os seus ombros ossudos. Ele é frágil, pensou. Ele não sabe, mas é. É quase um passarinho
— Oi, cara — disse Benny, entregando-lhe o refrigerante que guardara para ele. — A gente estava começando a ficar meio preocupado.
— A srta. Shumway tinha mais umas perguntas pra fazer sobre a caixa — disse Joe. — Mais do que eu podia responder, na verdade. Caramba, tá quente aqui, não tá? Quente que nem numa noite de verão. — Ele voltou o olhar para cima. — E olha aquela lua.
— Não quero — disse Norrie. — Assusta.
— Tá tudo bem, querido? — perguntou Claire.
— Sim, mãe. E você?
Ela sorriu.
— Não sei. Isso vai dar certo? O que vocês acham? Quero dizer, o que acham de verdade.
Por um instante, nenhum deles respondeu, e isso a assustou mais do que tudo. Então Joe a beijou no rosto e disse:
— Vai dar certo.
— Tem certeza?
— Tenho.
Ela sempre conseguia saber quando ele estava mentindo — embora soubesse que o talento a abandonaria quando ele fosse mais velho —, mas dessa vez ela não chamou a atenção para isso. Só o beijou de volta, o hálito quente e um pouco paternal devido à cerveja.
— Desde que não haja derramamento de sangue.
— Sem sangue — disse Joe.
Ela sorriu.
— Tudo bem; pra mim está bom.
Ficaram ali sentados no escuro mais algum tempo, falando pouco. Depois só entraram, deixando a cidade a dormir sob a lua rosa.
Era pouco mais de meia-noite.
SANGUE POR TODA PARTE
Era meia-noite e meia, madrugada de 26 de outubro, quando Julia entrou na casa de Andrea. Entrou em silêncio, mas não havia necessidade; ouviu música no radinho portátil de Andi: as Staples Singers, pondo os bofes para fora cantando Get Right Church.
Horace veio pelo corredor recebê-la, balançando o traseiro e dando aquele sorriso meio louco de que só os corgis parecem capazes. Curvou-se diante dela, as patas abertas, e Julia lhe deu uma coçadinha entre as orelhas — era o seu ponto mais sensível.
Andrea estava sentada no sofá, tomando um copo de chá.
— Desculpe a música — disse, baixando o rádio. — Eu não conseguia dormir.
— A casa é sua, querida disse Julia. — E quanto à WCIK, ela é o máximo.
Andi sorriu.
— Desde hoje à tarde só toca um gospel animadíssimo. Estou me sentindo como se ganhasse na loteria. Como foi a reunião?
— Boa. — Julia se sentou.
— Quer conversar a respeito?
— Você não precisa dessa preocupação. Só precisa se concentrar em melhorar. E quer saber? Você parece um pouco melhor.
Era verdade. Andi ainda estava pálida e magra demais, mas os círculos escuros sob os olhos tinham desbotado um pouco, e os olhos propriamente ditos tinham um novo brilho.
— Obrigada por dizer isso.
— Horace se comportou?
— Muito bem. Jogamos bola e depois dormimos um pouco. Se eu pareço melhor, talvez seja por isso. Nada como um cochilo pra melhorar a aparência de uma mulher.
— E as costas?
Andrea sorriu. Era um sorriso estranho, de quem sabia das coisas, sem muito humor.
As minhas costas não estão nada más. Quase nenhuma pontada, nem quando me curvo. Sabe o que eu acho?
Julia fez que não.
— Acho que, quando se trata de drogas, o corpo e a mente conspiram juntos. Se o cérebro quer drogas, o corpo ajuda. Diz “Não se preocupe, não sinta culpa, tá tudo bem, eu estou mesmo sentindo dor”. Não é exatamente de hipocondria que eu estou falando, não é simples assim. É só que... — A voz se calou e os olhos ficaram distantes, enquanto ela ia para outro lugar.
Onde?, perguntou-se Julia.
Então ela voltou.
— A natureza humana pode ser destrutiva. Me diz, você acha que uma cidade é como um corpo?
— Acho — disse Julia instantaneamente.
— Será que ela diz que sente dor pra que o cérebro receba a droga que quer?
Julia pensou e fez que sim.
— Acho.
— E nesse momento Big Jim Rennie é o cérebro da cidade, não é?
— É, querida. Eu diria que é.
Andrea sentou-se no sofá, a cabeça levemente abaixada. Então, desligou o radinho de pilha e se levantou.
Acho que eu vou me deitar. E, sabe, acho que até consigo dormir.
— Isso é bom. — Então, sem nenhuma razão que fosse capaz de articular, Julia perguntou: — Andi, aconteceu alguma coisa enquanto eu estive fora?
Andrea pareceu surpresa.
— Ora, aconteceu. Eu e Horace jogamos bola. — Ela se curvou sem nenhuma careta de dor, movimento que há apenas uma semana declararia impossível, e estendeu a mão. Horace foi até ela e deixou que acariciasse a sua cabeça. — Ele é ótimo pra buscar a bola.
No quarto, Andrea se instalou na cama, abriu o arquivo VADER e começou a ler tudo de novo. Com mais atenção desta vez. Quando afinal enfiou as folhas de papel de volta no envelope pardo, eram quase duas da manhã. Ela pôs o envelope na gaveta da mesa junto à cama. Também na gaveta estava uma pistola 38 que o irmão Douglas lhe dera de aniversário dois anos antes. Ela ficara consternada, mas Dougie insistira que uma mulher morando sozinha precisava de proteção.
Agora ela a pegou, abriu o cilindro e verificou as câmeras. A que rolaria sob o percussor ao apertar o gatilho pela primeira vez estava vazia, por instrução de Twitch. As outras cinco estavam carregadas. Havia mais balas na prateleira de cima do armário, mas nunca lhe dariam a chance de recarregar. O pequeno exército de policiais dele a mataria primeiro.
E se ela não conseguisse matar Rennie com cinco tiros, provavelmente não merecia mesmo viver.
— Afinal de contas — murmurou enquanto devolvia o revólver à gaveta, — pra que foi que eu me endireitei, ora bolas?
A resposta parecia clara, agora que o Oxy tinha saído do seu cérebro: ela se endireitara para atirar direito.
— Amém a isso — disse, e desligou a luz.
Cinco minutos depois, dormia.
Junior estava bem acordado. Estava sentado junto à janela na única cadeira do quarto do hospital, observando a esquisita lua rosa baixar e se enfiar atrás de uma mancha negra na Redoma que, para ele, era nova. Essa era maior e muito mais alta do que a deixada pelos mísseis que não deram certo. Teria havido alguma outra tentativa de romper a Redoma enquanto ele estivera inconsciente? Não sabia e não se importava. O importante é que a Redoma ainda se mantinha. Caso contrário, a cidade estaria iluminada como Vegas e cheia de soldados. Ah, sim, havia luzes aqui e ali, marcando alguns insones obstinados, mas na maior parte Chester’s Mill dormia. Isso era bom, porque ele tinha coisas em que pensar.
Ou seja, Baaarbie e os amigos de Barbie.
Junior não estava com dor de cabeça quando se sentou junto à janela, e sua memória havia voltado, mas ele sabia que era um menino muito doente. Havia uma fraqueza suspeita em todo o lado esquerdo do corpo, e às vezes escorria cuspe daquele lado da boca. Quando o limpava com a mão esquerda, às vezes conseguia sentir a pele contra a pele, outras vezes, não. Além disso, havia uma forma de fechadura, escura e bem grande, flutuando no lado esquerdo da visão. Como se algo tivesse se rasgado dentro daquele globo ocular. Ele achou que tinha.
Conseguia se lembrar da raiva louca que sentira no Dia da Redoma; conseguia se lembrar de que perseguira Angie pelo corredor até a cozinha, jogando-a contra a geladeira e lançando o joelho no seu rosto. Conseguia se lembrar do som que fizera, como se houvesse um prato de porcelana atrás dos olhos dela e o joelho o tivesse estilhaçado. Agora aquela raiva se fora. O que ocupava o seu lugar era uma fúria sedosa que fluía pelo corpo vinda de alguma fonte inesgotável no fundo da cabeça, uma fonte que, ao mesmo tempo, petrificava e esclarecia.
O velho de merda em quem ele e Frankie tinham dado uma dura no lago Chester viera examiná-lo mais cedo, naquela noite. O velho de merda agira como profissional, medira a temperatura e a pressão, perguntara como estava a dor de cabeça e até verificara os reflexos do joelho com um martelinho de borracha. Então, depois que ele saiu, Junior ouviu conversas e risos. O nome de Barbie foi mencionado. Junior se esgueirou até a porta.
- Era o velho de merda e uma das chupadoras de doce, aquela carcamana bonitinha cujo nome era Búfalo ou coisa parecida. O velho de merda abrira a blusa dela e tateava as suas tetas. Ela abrira o zíper dele e lhe sacudia o pinto. Uma luz verde venenosa os cercava.
— Junior e o amigo dele me bateram — dizia o velho de merda — mas agora o amigo dele está morto e logo ele vai estar também. Ordens de Barbie.
— Eu gosto de chupar o pinto do Barbie que nem um pirulito de hortelã — disse a garota-búfalo, e o velho de merda disse que também gostava. Então, quando Junior piscou, os dois só estavam andando pelo corredor. Nada de aura verde, nada de coisas sujas. Então talvez fosse uma alucinação. Por outro lado, talvez não. Uma coisa era certa: estavam todos juntos naquilo. Todos em aliança com Baaarbie. Ele estava na cadeia, mas isso era apenas temporário. Para despertar simpatia, provavelmente. Tudo parte do plaaano de Baaarbie. Além disso, ele achava que, na cadeia, estava fora do alcance de Junior.
— Errado — sussurrou, sentado junto à janela, olhando a noite com a visão agora defeituosa. — Errado.
Junior sabia exatamente o que lhe acontecera; veio num relâmpago, e a lógica era inegável. Sofria de envenenamento por tálio, como o que acontecera com aquele russo na Inglaterra. As plaquinhas de identificação de Barbie estavam revestidas com pó de tálio, e Junior as manuseara, e agora estava morrendo. E como o pai o mandara ao apartamento de Barbie, isso significava que ele também fazia parte daquilo. Era outro dos... como é que se diz... dos... dos que de Barbie...
— Peixinhos — sussurrou Junior. — Só mais um filé de peixinho de Big Jim Rennie.
Depois que se pensava naquilo — depois que a mente clareava — fazia todo o sentido. O pai queria calá-lo por causa de Coggins e Perkins. Portanto, envenenamento por tálio. Tudo batia.
Lá fora, além do gramado, um lobo passou aos pulos pelo estacionamento. No gramado propriamente dito, duas mulheres nuas faziam um 69. Sessenta e nove, apoteose!, repetiam ele e Frankie quando garotos ao verem duas meninas andando juntas, sem saber o que aquilo queria dizer, só que ofendia. Uma das rachadas parecia Sammy Bushey. A enfermeira — Ginny era o nome dela — lhe dissera que Sammy morrera, o que obviamente era mentira e significava que Ginny também estava no rolo; no rolo com Baaarbie.
Haveria alguém naquela cidade inteira que não estivesse? Que ele pudesse ter certeza de que não estava?
Sim, percebeu que havia duas pessoas. As crianças que ele e Frank tinham achado perto do lago, Alice e Aidan Appleton. Ele se lembrou dos seus olhos assustados e de como a menina o abraçara quando ele a pegou no colo. Quando lhe disse que ela estava a salvo, ela perguntou Jura?, e Junior respondera que sim. Ele se sentira muito bem ao jurar. O peso confiante dela também o fizera se sentir bem.
Tomou uma decisão súbita: mataria Dale Barbara. Quem se metesse no seu caminho ele mataria também. Depois procuraria o pai e o mataria... coisa que sonhava fazer havia anos, ainda que nunca admitisse isso por completo a si mesmo até agora.
Depois que terminasse, procuraria Aidan e Alice. Se alguém tentasse detê-lo, mataria também. Levaria as crianças de volta ao lago Chester e tomaria conta delas. Cumpriria a promessa feita a Alice. Dessa forma, ele não morreria. Deus não o deixaria morrer envenenado pelo tálio enquanto estivesse tomando conta das crianças.
Agora, Angie McCain e Dodee Sanders saltitavam pelo estacionamento, usando saias e suéteres de animadoras de torcida com grandes Ws dos Mill’s Wildcats no peito. Elas o viram olhando e começaram a rebolar os quadris e erguer as saias. O rosto delas escorria e se sacudia de podridão. Repetiam: “Abre aporta da despensa! A trepada é a recompensa! Viva o TIME!”
Junior fechou os olhos. Abriu-os. As namoradas tinham sumido. Outra alucinação, como o lobo. Sobre as moças do 69 ele não tinha tanta certeza.
Talvez, pensou, não devesse levar as crianças para o lago, afinal. Era muito longe da cidade. Talvez as levasse para a despensa dos McCain. Ficava mais perto. Havia muita comida.
E, naturalmente, estava escuro.
— Vou tomar conta de vocês, garotos — disse Junior. — Vou manter vocês a salvo. Depois que o Barbie morrer, toda a conspiração vai acabar.
Por algum tempo, encostou a testa no vidro, e depois também dormiu.
A bunda de Henrietta Clavard só sofrera hematomas e não se quebrara, mas ainda doía como um filhodaputa — ela descobrira que, aos 84 anos, tudo o que desse errado na gente doía como um filhodaputa —, e a princípio achou que fora a bunda que a acordara às primeiras luzes da manhã de quinta-feira. Mas parecia que o efeito do Tylenol que tomara às três da manhã ainda não passara. Além disso, ela achara a almofada em anel do falecido marido (John Clavard sofria de hemorroidas), e isso ajudara bastante. Não, era outra coisa, e pouco depois de acordar ela percebeu o que era.
Buddy, o irish setter dos Freeman, uivava. Buddy nunca uivava. Era o cachorro mais bem educado da rua Battle, uma ruela logo depois da entrada do Catherine Russell. Além disso, o gerador dos Freeman parara de funcionar. Henrietta achou que talvez fosse isso que a acordara e não o cachorro. Com certeza a ajudara a dormir na noite anterior. Não era um daqueles geradores barulhentos que sopravam no ar a fumaça azul da exaustão; o dos Freeman tinha um ronronar grave e brando que, na verdade, acalmava bastante. Henrietta achou que era caro, mas os Freeman podiam pagar. Will era dono da franquia Toyota que Big Jim Rennie já cobiçara e, embora fosse uma época difícil para todos os vendedores de automóveis, Will sempre parecera a exceção da regra. Ano passado, ele e Lois tinham construído na casa um puxado agradável e de bom gosto.
Mas aqueles uivos. O cão parecia machucado. Um animal de estimação machucado era o tipo de coisa que gente como os Freeman cuidaria de imediato... então por que não cuidavam?
Henrietta se levantou (franzindo um pouco o rosto quando a bunda saiu do buraco confortável da rosquinha de espuma) e foi até a janela. Dava para ver perfeitamente bem os dois níveis da casa dos Freeman, embora a luz fosse cinzenta e apática, em vez de nítida e clara como costumava ser nas manhãs do final de outubro. Da janela, ouvia Buddy ainda melhor, mas não via ninguém se mexendo por lá. A casa estava inteiramente às escuras, sem nenhum lampião aceso em nenhuma janela. Dava para pensar que tinham ido para algum lugar, mas os dois carros estavam estacionados na entrada. E, de qualquer forma, aonde eles iriam?
Buddy continuava a uivar.
Henrietta vestiu o robe, calçou os chinelos e saiu. Quando estava parada na calçada, um carro parou. Era Douglas Twitchell, sem dúvida a caminho do hospital. Tinha os olhos inchados e segurava um copo descartável de café com o logotipo do Rosa Mosqueta quando saiu do carro.
— Tudo bem, sra. Clavard?
— Tudo, mas tem algo errado com os Freeman. Está ouvindo?
— Estou.
— Eles também deviam estar. O carro está aí, por que não dão um jeito nisso?
— Vou dar uma olhada. — Twitch tomou um gole de café e pousou o copo no capô do carro. — Fique aqui.
— Bobagem — disse Henrietta Clavard.
Percorreram uns 20 metros de calçada e subiram pela entrada de garagem dos Freeman. O cachorro uivava sem parar. O som gelava a pele de Henrietta, apesar do calor mole da manhã.
— O ar está péssimo — disse. — Cheira como o de Rumford quando eu era recém-casada e todas as fábricas de papel ainda funcionavam. Isso não pode fazer bem à gente.
Twitch grunhiu e tocou a campainha dos Freeman. Como ninguém respondeu, deu uma batidinha na porta e depois socou-a com força.
— Veja se está destrancada — disse Henrietta.
— Eu não sei se devo, senhora....
— Ora bolas. — Ela passou à frente dele e experimentou a maçaneta. Girou. Ela abriu a porta. A casa estava em silêncio e cheia de profundas sombras matutinas.
— Will? — gritou. — Lois? Estão aí? — Ninguém respondeu, só mais uivos.
— O cachorro está lá atrás — disse Twitch.
Seria mais rápido atravessar a casa, mas nenhum deles gostaria de fazer isso, então seguiram pela entrada de automóveis e pela passagem lateral entre a casa e a garagem em que Will guardava não os carros, mas os seus brinquedos: duas motoneves, um todo-terreno, uma Yamaha de motocross e uma enorme Ronda Gold Wing.
Havia uma cerca alta de privacidade em volta do quintal dos Freeman. O portão ficava depois da passagem lateral. Twitch abriu o portão e foi imediatamente atingido pelos 30kg de um frenético irish setter. Gritou de surpresa e levantou os braços, mas o cachorro não queria mordê-lo; Buddy estava no modo por-favor-me-salve, ligado no máximo. Pôs as patas na frente do último guarda-pó limpo de Twitch, sujando-o de terra, e começou a lhe lamber o rosto.
— Para! — gritou Twitch. Empurrou Buddy, que saiu mas pulou de novo, deixando mais marcas no guarda-pó de Twitch e limpando-lhe as bochechas com uma comprida língua rosada.
— Buddy, no chão! — ordenou Henrietta, e Buddy se sentou imediatamente, gemendo e passando os olhos de um para o outro. Uma poça de urina começou a se espalhar debaixo dele.
— Sra. Clavard, isso não é bom.
— Não — concordou Henrietta.
— Talvez fosse melhor a senhora ficar com o ca...
Mais uma vez, Henrietta disse bobagem e marchou para o quintal dos Freeman, deixando que Twitch a alcançasse. Buddy se arrastou atrás deles, cabeça baixa e rabo entre as pernas, gemendo desconsolado.
Havia um pátio com piso de pedra e churrasqueira. A churrasqueira estava cuidadosamente coberta com uma lona verde que dizia A COZINHA ESTÁ FECHADA. Além dela, à beira do gramado, havia uma plataforma de sequoia. No alto da plataforma ficava a banheira quente dos Freeman. Twitch achou que a cerca alta estava lá para que pudessem ficar nus na banheira, talvez até com um aconchego a mais se desse vontade.
Will e Lois estavam ali agora, mas os dias de aconchego tinham se acabado. Usavam sacos plásticos transparentes sobre a cabeça. Parecia que os sacos tinham sido amarrados no pescoço com barbante ou elástico marrom. Estavam enevoados por dentro, mas não a ponto de Twitch não conseguir ver o rosto arroxeado dos dois. Pousados na borda de sequóia, entre os restos mortais de Will e Lois Freeman, havia uma garrafa de uísque e um vidrinho de remédio.
— Para — disse. Não sabia se falava sozinho, com a sra. Clavard ou talvez com Buddy, que acabara de soltar outro uivo de pesar. Sem dúvida não podia estar falando com os Freeman.
Henrietta não parou. Foi até a banheira, subiu os dois degraus com as costas tão eretas quanto as de um soldado, fitou o rosto descolorido dos seus excelentes vizinhos (e normalíssimos, diria ela), deu uma olhada na garrafa de uísque, viu que era Glenlivet (ao menos, tinham ido embora com estilo), depois pegou o vidro de remédio com o rótulo da Drogaria Sanders.
— Ambien ou Lunesta? — perguntou Twitch gravemente.
— Ambien — disse ela, e ficou contente porque a voz que lhe saiu da garganta e boca secas parecia normal. — Dela. Embora eu ache que os dois tomaram ontem à noite.
— Há algum bilhete?
— Aqui, não — respondeu ela. — Talvez lá dentro.
Mas não havia, ao menos em nenhum lugar óbvio, e nenhum deles conseguiu pensar numa razão para esconder um bilhete de suicídio. Buddy os seguiu de quarto em quarto, sem uivar, mas gemendo no fundo da garganta.
— Acho que eu vou levá-lo pra casa comigo — disse Henrietta.
— Tem que ser. Não posso levá-lo pro hospital. Vou ligar pra Stewart Bowie vir.., buscá-los. — Fez um gesto com o polegar por cima do ombro. O estômago estava embrulhado, mas essa não era a pior parte; a pior parte era a depressão que começou a se esgueirar dentro dele, lançando uma sombra sobre a sua alma normalmente ensolarada.
— Não entendo por que fizeram isso — disse Henrietta. — Se fosse um ano debaixo da Redoma... ou mesmo um mês... aí, talvez. Mas menos de uma semana? Não é assim que pessoas estáveis reagem aos problemas.
Twitch achou que entendia, mas não quis dizer a Henrietta: seria um mês, seria um ano. Talvez mais. E sem chuva, com menos recursos e ar mais poluído. Se o país com a tecnologia mais moderna do mundo não conseguira entender até então o que acontecera em Chester’s Mill (muito menos resolver o problema), era provável que isso não acontecesse tão cedo. Will Freeman deve ter entendido isso. Ou talvez tenha sido ideia de Lois. Talvez, quando o gerador parou, ela tenha dito Vamos agir antes que a água da banheira esfrie, querido. Vamos sair de baixo da Redoma enquanto a barriga ainda está cheia. O que acha? Mais um mergulho com alguns tragos pra nos despedirmos.
— Talvez o avião tenha sido a gota d’água — disse Twitch. — O da Air Ireland que bateu na Redoma ontem.
Henrietta não respondeu com palavras; puxou um pigarro e cuspiu na pia da cozinha. De certa forma, foi um gesto chocante de repúdio. Os dois saíram de novo.
— Mais gente vai fazer isso, não é? — perguntou ela, quando chegaram de volta à calçada. — Porque o suicídio às vezes fica no ar. Como um vírus de resfriado.
— Alguns já fizeram. — Twitch não sabia se o suicídio era indolor, como diz a canção, mas nas circunstâncias corretas, com certeza era atraente. Talvez ainda mais atraente quando a situação era sem precedentes e o ar começava a cheirar tão mal quanto naquela manhã sem vento e de um calor antinatural.
— Suicidas são covardes — disse Henrietta. — Regra pra qual não há exceção, Douglas.
Twitch, cujo pai tivera uma morte longa e arrastada em consequência do câncer de estômago, duvidava disso, mas nada disse.
Henrietta se curvou para Buddy com as mãos nos joelhos ossudos. Buddy esticou o pescoço para cheirá-la.
— Vamos pra casa do lado, meu amigo peludo. Tenho três ovos. Você pode comer antes que estraguem.
Ela começou a andar e depois se virou de novo para Twitch.
— Eles são covardes — disse, dando a cada palavra uma ênfase especial.
Jim Rennie saiu do Cathy Russell, dormiu profundamente na sua própria cama e acordou renovado. Embora não admitisse a ninguém, parte da razão era saber que Junior não estava em casa.
Agora, às 8h, o seu Hummer preto estava estacionado uma ou duas casas acima do Rosa (na frente de um hidrante, mas e daí? Por enquanto não havia corpo de bombeiros). Tomava café da manhã com Peter Randolph, Mel Searles, Freddy Denton e Carter Thibodeau. Carter ocupara o lugar que estava se tornando seu: à direita de Big Jim. Usava duas armas esta manhã: a pessoal no quadril e a Beretta Taurus de Linda Everett, recentemente devolvida, num coldre de ombro.
O quinteto tomara a mesa do papo-furado nos fundos do restaurante, depondo sem nenhum escrúpulo os fregueses regulares. Rose não se aproximou; mandou Anson servi-los.
Big Jim pediu três ovos fritos, porção dupla de linguiça e torrada frita no bacon, do jeito que a mãe costumava fazer. Ele sabia que tinha que reduzir o colesterol, mas hoje precisaria de toda a energia que pudesse acumular. Na verdade, nos próximos dias; depois disso, tudo estaria sob controle. Então poderia cuidar do colesterol (fábula que contava a si mesmo havia dez anos).
— Cadê os Bowie? — perguntou a Carter. — Queria a meleca dos Bowie aqui, cadê eles?
— Tiveram que atender a um chamado na rua Battle — disse Carter. — O sr. e a sra. Freeman se suicidaram.
— Aquele melequento se matou? — exclamou Big Jim. Os poucos fregueses — a maioria no balcão, assistindo à CNN — olharam e logo desviaram o olhar de novo. — Ora, ora! Não fico nem um pouco surpreso! — A ideia de que a revendedora Toyota poderia ser dele lhe ocorreu... mas para que iria querê-la? Uma ameixa muito maior caíra no seu colo: a cidade toda. Já começara a esboçar uma lista de decretos-leis que baixaria assim que assumisse o poder executivo total. Isso aconteceria hoje à noite. Além disso, fazia anos que odiava aquele filhodamãe bajulador do Freeman e a coisa-que-rima-com-aranha peituda da mulher dele.
— Rapazes, ele e Lois estão tomando café da manhã no céu. — Parou e caiu na gargalhada. Não era muito político, mas não conseguiu se segurar. — No quarto de empregada, sem dúvida.
— Enquanto estavam lá, os Bowie receberam outro telefonema — disst Carter. — Fazenda Dinsmore. Outro suicídio.
— Quem? — perguntou o chefe Randolph. — Arlen?
— Não. A mulher dele. Shelley.
Isso realmente era quase uma vergonha.
— Vamos baixar a cabeça um minuto — disse Big Jim, e estendeu as mãos. Carter pegou uma; Mel Searles, a outra; Randolph e Denton fecharam o círculo.
— Ohsenhorabençoeessaspobresalmas, emnomedejesusamém — disse Big Jim, e ergueu a cabeça. — Aos negócios, Peter.
Peter puxou o caderno. O de Carter já estava ao lado do prato; Big Jim gostava cada vez mais do garoto.
— Encontrei o gás que sumiu — anunciou Big um. — Está na WCIK.
— Jesus! — exclamou Randolph. — Temos que mandar uns caminhões até lá pra buscar!
— Isso, mas não hoje — disse Big Jim. — Amanhã, enquanto todo mundo estiver recebendo a visita dos parentes. Já comecei a cuidar disso. Os Bowie e Roger vão até lá de novo, mas nós vamos precisar de alguns policiais também. Fred, você e Mel. E eu diria mais uns quatro ou cinco. Você, não, Carter, quero você comigo.
— Por que precisa de policiais pra pegar cilindros de gás? — perguntou Randolph.
— Bom — disse Jim, limpando a gema do ovo com um pedaço de torrada frita —, isso nos leva de volta ao nosso amigo Dale Barbara e seus planos pra desestabilizar a cidade. Tem homens armados por lá, e parece que estão protegendo um tipo de laboratório de drogas. Acho que Barbara instalou aquilo lá bem antes de aparecer aqui em pessoa; foi tudo bem planejado. Um dos guardas atuais é Philip Bushey.
— Aquele fracassado — grunhiu Randolph.
— O outro, sinto muito dizer, é Andy Sanders.
Randolph espetava batatas fritas. Com isso, largou o garfo com estardalhaço.
— Andy?
— Triste, mas verdadeiro. Foi Barbara que pôs ele no negócio; sei por boa fonte, mas não me pergunte quem; ele pediu anonimidade. — Big Jim suspirou e enfiou um pedaço de pão frito coberto de gema de ovo no seu buraco de bolo. Meu Deus, como se sentia bem nessa manhã! — Suponho que Andy precisava de dinheiro. Eu soube que o banco estava a ponto de lhe tomar a drogaria. Ele nunca teve cabeça pra negócios.
— Nem pro governo da cidade — acrescentou Freddy Denton.
Em geral, Big Jim não gostava de ser interrompido por inferiores, mas nesta manhã estava gostando de tudo.
— Infelizmente, é verdade — disse, depois se inclinou sobre a mesa o máximo que o barrigão permitia. — Ele e Bushey atiraram num dos caminhões que mandei lá ontem. Estouraram os pneus da frente. Aqueles melequentos são perigosos.
— Viciados em drogas e armados — disse Randolph. — O pesadelo da lei. Os homens que forem até lá vão ter que usar coletes à prova de balas.
— Boa ideia.
— E não posso garantir a segurança do Andy.
— Deus o ama, eu sei disso. Faça o que tiver que fazer. Precisamos daquele gás. A cidade clama por ele, e eu pretendo anunciar na assembleia de hoje que descobrimos uma nova fonte.
— Tem certeza de que eu não posso ir, sr. Rennie? — perguntou Carter.
— Eu sei que pra você é uma decepção, mas quero você comigo amanhã, não lá onde vão fazer a festa da visita. Randolph também, acho. Alguém tem que coordenar essa coisa, que pode virar uma surumbamba. Temos que evitar que pessoas sejam pisoteadas. Embora provavelmente algumas venham a ser, porque ninguém sabe se comportar. É melhor mandar o Twitchell levar a ambulância pra lá.
Carter escreveu isso.
Enquanto ele escrevia, Big Jim se virou para Randolph. O rosto estava comprido de tristeza.
— Detesto dizer isso, Pete, mas o meu informante insinuou que Junior também pode estar envolvido com o laboratório de drogas.
— Junior? — disse Mel. — Não, Junior não!
Big Jim fez que sim e limpou o olho seco com o punho.
— Pra mim também é difícil acreditar. Não quero acreditar, mas vocês sabiam que ele está no hospital?
Eles fizeram que sim.
— Overdose — sussurrou Rennie, inclinando-se ainda mais sobre a mesa. — Parece ser a explicação mais provável para o que ele está passando.
— Ele se endireitou e se voltou outra vez para Randolph. — Não tenta ir pela estrada principal, eles vão estar esperando por isso. Cerca de 1,5 quilômetro a leste da emissora, tem uma estrada de acesso...
— Eu conheço — disse Freddy. — Era lá que ficava o terreno de Sam Relaxado Verdreaux antes de o banco tomar. Acho que agora toda aquela terra pertence à Sagrado Redentor.
Big Jim sorriu e fez que sim, embora a terra realmente pertencesse a uma empresa de Nevada da qual ele era o presidente.
— Vão por ali e se aproximem da emissora por trás. Ali é quase tudo mato crescido, e não deve haver dificuldades.
O celular de Big Jim tocou. Ele olhou a telinha, quase deixou tocar até a secretária eletrônica atender e aí pensou: Ah, e daí? Sentindo-se tão bem quanto naquela manhã, escutar Cox espumar pela boca talvez fosse agradável.
— Aqui fala Rennie. O que o senhor quer, coronel Cox?
Escutou, o sorriso desbotando um pouco.
— Como saber que o senhor está dizendo a verdade a esse respeito?
Escutou mais um pouco e desligou sem se despedir. Ficou um instante parado, a testa franzida, processando o que ouvira. Então levantou a cabeça e falou com Randolph.
— Nós temos um contador Geiger? Talvez no abrigo antirradiação?
— Caramba, não sei. Talvez Al Timmons saiba.
— Fala com ele e manda verificar.
— É importante? — perguntou Randolph, e ao mesmo tempo Carter perguntou:
— Radiação, chefe?
— Nada preocupante — disse Big Jim. — Como Junior diria, ele só está querendo me meter medo. Disso eu tenho certeza. Mas verifique esse contador Geiger. Se estiver lá e se ainda funcionar, traz pra mim.
— Certo — disse Randolph, parecendo assustado.
Big Jim agora desejou ter deixado a secretária eletrônica atender, afinal de contas. Ou ter ficado de boca fechada. Searles podia comentar a respeito, começar um boato. Droga, Randolph também. E provavelmente não era nada, só aquele melequento de chapéu de lata tentando estragar um dia bom. O dia mais importante da sua vida, talvez.
Ao menos Freddy Denton mantivera a pouca atenção que tinha na questão a ser tratada.
— A que horas o senhor quer que ataquemos a emissora, sr. Rennie?
Mentalmente, Big Jim repassou o que sabia sobre o cronograma do Dia de Visita e depois sorriu. Era um sorriso genuíno, que enfeitava as bochechas levemente engorduradas com boa alegria e revelava os seus dentinhos.
— Ao meio-dia. Nisso todos estarão papeando lá na 119 e o resto da cidade vai estar vazio. Então vão até lá e peguem aqueles melequentos que estão sentados no nosso gás bem ao meio-dia, como num daqueles filmes antigos de faroeste.
Às 11h15 daquela manhã de quinta-feira, a van do Rosa Mosqueta seguia para o sul pela rodovia 119. Amanhã a estrada ficaria engarrafada, fedendo a escapamento, mas hoje estava estranhamente deserta. Sentada atrás do volante estava a própria Rose, com Ernie Calvert no banco do carona. Norrie estava sentada entre os dois, na cobertura do motor, agarrada ao skate coberto de adesivos com logotipos de bandas punk que já não existiam mais há tempos, como Stalag 17 e Dead Milkmen.
— O ar está com um cheiro tão ruim — disse Norrie.
— É o Prestile, querida — explicou Rose. — Virou um grande pântano fedorento no ponto em que corria na direção de Motton. — Ela sabia que não era só o cheiro do rio moribundo, mas não falou nada. Tinham de respirar, logo não havia por que se preocupar com o que poderiam estar respirando. — Falou com a sua mãe?
— Falei — disse Norrie, de má vontade. — Ela vai vir, mas não gostou muito da ideia.
— Vai trazer os mantimentos que tiver, quando chegar a hora?
— Vai. Na mala do carro. — O que Norrie não acrescentou foi que Joanie Calvert poria na mala primeiro o suprimento de bebidas; a comida viria em segundo lugar. — E a radiação, Rose? Não dá pra cobrir todos os carros que subirem com folha de chumbo.
— Se só passarem uma ou duas vezes, deve dar tudo certo. — A própria Rose confirmara isso na internet. Também descobrira que a segurança em caso de radiação dependia da força dos raios, mas não via sentido em se preocupar com coisas que não podiam controlar. — O importante é limitar a exposição... e o Joe diz que o cinturão não é largo.
— A mãe do Joey não quer vir — disse Norrie.
Rose suspirou. Disso ela sabia. O Dia de Visita era uma bênção e uma maldição. Podia proteger a retirada deles, mas os que tinham parentes do outro lado queriam vê-los. Talvez McClatchey não seja escolhido no sorteio, pensou.
À frente deles estava a loja de Carros Usados de Jim Rennie, com o grande cartaz COMPRAR COM BIG JIM É GOSTOSO ASSIM! FACILITAMOS O PAGAMENTO!
— Lembrem-se... — começou Ernie.
— Já sei — disse Rose. — Se houver alguém lá, é só dar meia-volta e retornar pra cidade.
Mas no pátio todas as vagas RESERVADAS PARA FUNCIONÁRIOS estavam vazias, o salão estava deserto e havia uma placa branca com a mensagem FECHADO ATÉ SEGUNDA ORDEM pendurada na porta principal. Rose foi para os fundos a toda. Lá havia fileiras de carros e caminhões com placas nas janelas mostrando o preço e frases como PECHINCHA e NOVO EM FOLHA e EI! OLHE PARA MIM! (com o O transformado num olho feminino sexy, de longos cílios). Esses eram os cansados cavalos de batalha do estábulo de Big Jim, nada como os polidos puros-sangues alemães e de Detroit lá na frente. No fundo do terreno, enfileirados junto à cerca de correntes que separava a propriedade de Big Jim de um terreno cheio de lixo e coberto de mato, havia uma série de vans da companhia telefônica, algumas ainda com o logotipo da AT&T.
— Aqueles — disse Ernie, enfiando a mão atrás do assento. Tirou uma tira de metal comprida e fina.
— Isso aí é uma chave mixa — disse Rose, achando graça apesar do nervosismo. — Por que você tem uma chave mixa, Ernie?
— Da época em que eu ainda trabalhava no Food City. Você se espantaria com o tanto de gente que tranca as chaves dentro do carro.
— Como você vai dar a partida, vô? — perguntou Norrie.
Ernie sorriu de leve.
— Eu dou um jeito. Para aqui, Rose.
Ele desceu e foi até a primeira van, movendo-se com agilidade surpreendente para um homem de quase 70 anos. Espiou pela janela, balançou a cabeça e foi para a seguinte. Depois para a terceira, mas essa estava com o pneu vazio. Depois de olhar a quarta, virou-se para Rose e mostrou o polegar erguido.
— Vai em frente, Rose. Chispa.
Rose achava que Ernie não queria que a neta o visse usando a chave mixa. Ficou comovida com isso e voltou para a frente da loja sem dizer mais nada. Ali, parou de novo.
— Está tudo bem, meu amor?
— Está, sim — disse Norrie, descendo. — Se ele não conseguir, a gente simplesmente volta pra cidade a pé.
— São quase 5 quilômetros. Ele consegue?
O rosto de Norrie estava pálido, mas ela conseguiu sorrir.
— Vovô consegue andar muito mais do que eu. Faz 6,5 quilômetros por dia, diz que isso mantém as articulações lubrificadas. Vai logo, antes que alguém te veja.
— Você é uma garota de coragem — disse Rose.
— Eu não me sinto corajosa.
— Os corajosos nunca se sentem assim, querida.
Rose voltou à cidade. Norrie ficou olhando até ela sumir de vista e começou a fazer manobras no terreno da frente. O piso tinha uma leve inclinação, e ela só precisava dar impulso num sentido... embora estivesse tão ligada que se achava capaz de empurrar o skate pelo morro da praça da Cidade acima e nem sentir. Porta, naquele momento provavelmente conseguiria levar um capote e nem sentir. E se alguém aparecesse? Ora, tinha andado até lá com o avô, que queria dar uma olhada numas vans. Só estava esperando por ele, depois voltariam a pé para a cidade. Vovô adorava andar, todo mundo sabia. Lubrificava as juntas. Só que Norrie achava que não era só isso, não era nem o principal. Ele começara a fazer caminhadas quando vovó começara a ficar confusa com as coisas (ninguém ia dizer que era Alzheimer, embora todo mundo soubesse). Norrie achou que ele andava para esquecer a tristeza. Algo assim era possível? Ela achava que sim. Sabia que, quando andava de skate, fazendo um duplo kink irado na pista de Oxford, só havia espaço dentro dela para alegria e medo, e a alegria mandava na casa. O medo morava no puxadinho dos fundos.
Depois de algum tempo que pareceu muito, a ex-van da companhia telefônica saiu de trás do prédio com o vovô no volante. Norrie enfiou o skate debaixo do braço e embarcou. O seu primeiro passeio num veículo roubado.
— Vô, você é fera — disse ela, e o beijou.
Joe McClatchey ia para a cozinha, querendo uma das latas de suco de maçã que restavam na geladeira desligada, quando ouviu a mãe dizer Bump e parou.
Sabia que os pais tinham se conhecido na faculdade, na Universidade do Maine, e que naquela época os amigos de Sam McClatchey o chamavam de Bump, mas mamãe raramente o chamava assim e, quando chamava, ria e corava, como se o apelido tivesse algum tipo de segunda leitura picante. Isso Joe não sabia. O que sabia é que para ela escorregar daquele jeito — escorregar no passado daquele jeito — é porque devia estar nervosa.
Ele se aproximou um pouco mais da porta da cozinha. Estava escancarada, e dava para ver a mãe e Jackie Wettington, hoje vestida de blusão e jeans desbotado em vez da farda. Elas o veriam também, se erguessem os olhos. Ele não tinha a mínima intenção de ficar espionando; não seria uma boa, ainda mais com a mãe nervosa, mas por enquanto as duas só olhavam uma para a outra. Estavam sentadas à mesa da cozinha. Jackie segurava a mão de Claire. Joe viu que os olhos da mãe estavam úmidos, e isso lhe deu vontade de chorar também.
— Você não pode — dizia Jackie. — Eu sei que quer, mas simplesmente não pode. Não se tudo der certo hoje à noite.
— Posso ao menos ligar pra ele e dizer por que eu não vou estar lá? Ou mandar um e-mail! Isso eu posso fazer!
Jackie fez que não. O rosto era gentil, mas firme.
— Ele pode comentar, e a história pode chegar até o Rennie. Se o Rennie farejar alguma coisa antes que nós tiremos Barbie e Rusty de lá, vamos ter um desastre enorme nas mãos.
— Se eu pedir que ele guarde total segredo...
— Mas Claire, você não entende? Tem coisa demais em jogo. A vida de dois homens. A nossa também. — Ela fez uma pausa. — A do seu filho.
Os ombros de Claire caíram e depois voltaram a se endireitar.
— Então você leva o Joe. Eu vou depois do Dia de Visita. O Rennie não vai desconfiar de mim; não sei a diferença entre Adão e Dale Barbara, nem conheço Rusty, a não ser de “oi” na rua. Meu médico era o dr. Hartwell, lá em Castle Rock.
— Mas o Joe conhece o Barbie — disse Jackie com paciência. — Foi o Joe quem armou a transmissão de vídeo quando lançaram os mísseis. E Big Jim sabe disso. Acha que ele não iria te prender e te pressionar até que você dissesse aonde nós fomos?
— Eu não contaria — disse Claire. — Eu nunca contaria.
Joe entrou na cozinha. Claire limpou o rosto e tentou sorrir.
— Ah, oi, querido. Estávamos falando sobre o Dia de Visita e...
— Mãe, ele pode fazer mais do que te pressionar — disse Joe. — Ele pode te torturar.
Ela pareceu chocada.
— Ah, isso ele não faria. Eu sei que ele não é um homem bom, mas é vereador da cidade, afinal de contas, e...
— Ele era vereador da cidade — disse Jackie. — Agora está se candidatando a imperador. E mais cedo ou mais tarde todo mundo fala. Quer que o Joe fique em algum lugar imaginando que alguém está arrancando as unhas dos dedos da mãe dele?
— Para com isso! — exclamou Claire. — Isso é horrível!
Jackie não soltou as mãos de Claire quando ela tentou puxá-las.
— É tudo ou nada, e é tarde demais pra ser nada. Essa coisa já está em movimento e nós temos que nos mover com ela. Se fosse só Barbie fugir sozinho sem a nossa ajuda, Big Jim talvez até deixasse ele ir. Porque todo ditador precisa de um inimigo-fantasma. Mas não vai ser só ele, não é? E isso significa que ele vai tentar nos achar e acabar conosco.
— Como eu queria nunca ter entrado nisso! Como eu queria nunca ter ido àquela reunião, e nunca deixado que o Joe fosse!
— Mas nós temos que deter ele! — protestou Joe. O sr. Rennie tá tentando transformar Mill, saca, num Estado policial!
— Não posso deter ninguém! — Claire quase choramingava. Sou uma reles dona de casa!
— Se te serve de consolo — disse Jackie —, provavelmente você ganhou a sua entrada nisso na hora em que os garotos acharam aquela caixa.
— Isso não é consolo. Não é!
— De certa forma, até que nós temos sorte — continuou Jackie. — Não chamamos gente inocente demais pra entrar nisso conosco, ao menos ainda não.
— Rennie e a polícia dele vão nos achar de qualquer jeito — disse Claire. Você não sabe disso? Dentro dessa cidade não tem tanta cidade assim.
Jackie sorriu sem alegria.
— Até então nós seremos mais. Com mais armas. E o Rennie vai saber disso.
— Vamos ter que tomar a emissora de rádio assim que pudermos — disse Joe. — As pessoas precisam conhecer o outro lado da história. Nós temos que transmitir a verdade.
Os olhos de Jackie se iluminaram.
— É uma puta boa ideia, Joe.
— Meu Deus — disse Claire. E pôs as mãos sobre o rosto.
Ernie estacionou a van da empresa telefônica junto à plataforma de entregas do Burpee. Agora sou um criminoso, pensou, e a minha neta de 12 anos é minha cúmplice. Ou será que já tem 13? Não importa; ele não achava que Peter Randolph iria tratá-la como menor de idade se fossem pegos.
Rommie abriu a porta dos findos, viu que eram eles e veio para a plataforma com armas em ambas as mãos.
— Algum prroblema?
— Tudo tranquilo — disse Ernie, subindo os degraus da plataforma. — Não tem ninguém na estrada. Tem mais armas?
— Tenho. Algumas. Lá dentrro, atrrás da porta. Me ajuda também, srta. Norrie.
Norrie pegou duas espingardas e as entregou ao avô, que as enfiou na traseira da van. Rommie trouxe um carrinho até a plataforma de desembarque. Nele, havia uma dúzia de rolos de folha de chumbo.
— Não prrecisamos descarregar isso agorra — disse. — Só vou cortar os pedaços das janelas. Nós fazemos o parra-brisa depois de chegar lá. Deixamos uma fenda pra olhar, como os velhos tanques Sherman, e dirrigimos assim. Norrie, enquanto Ernie e eu fazemos isso, vê se consegue trazer aquele outro carrinho de mão. Se não conseguir, deixa lá e depois vamos buscar.
O outro carrinho estava cheio de caixas de alimentos, a maioria enlatados ou sacos de concentrados para acampamento. Uma das caixas estava cheia de envelopes de pó para refresco com desconto. O carrinho de mão estava pesado, mas depois que começou a se mover foi fácil. Pará-lo foi bem diferente; se Rommie não tivesse se esticado para segurá-lo de onde estava, em pé na traseira da van, o carrinho de mão teria caído da plataforma.
Ernie terminara de bloquear as pequenas janelas traseiras da van furtada com pedaços de folha de chumbo, presos com generosa aplicação de fita crepe. Então, limpou a testa e disse:
— Isso é um inferno de tão arriscado, Burpee; estamos planejando um maldito comboio até o pomar dos McCoy.
Rommie deu de ombros e começou a carregar as caixas de suprimentos, forrando as paredes da van e deixando o meio livre para os passageiros que esperava levar mais tarde. Uma árvore de suor crescia nas costas da camisa.
— Temos que torcer que, se a gente agir rápido e em silêncio, a grrande assembléia nos sirva de coberturra. Não temos muita opção.
— Julia e a sra. McClatchey vão ter chumbo na janela dos carros? — perguntou Norrie.
— Claro. Hoje à tarde. Vou ajudar. Depois vão ter que deixar o carro atrrás da loja. Não dá pra sair por aí com janelas forradas de chumbo... haverria perguntas.
— E aquele seu Escalade? — perguntou Ernie. — Ele levaria o resto dos suprimentos sem nem reclamar. A sua mulher podia levá-lo pa...
— Misha não vai — disse Rommie. — Não quer ter nada a ver com isso. Pedi, só faltou implorrar de joelhos, mas erra como se fosse um sopro de vento passando pela casa. Acho que eu já sabia, porque não contei nada além do que ela já sabe... o que não é muito, mas não vai deixá-la livre de encrencas se o Rennie cair em cima dela. Mas ela não quer saber.
— Por que não? — perguntou Norrie, os olhos arregalados, e só percebeu que a pergunta podia ser grosseira depois de falar, quando viu a testa franzida do avô.
— Porque ela é querrida e teimosa. Eu disse que podiam machucar ela. “Pois que tentem”, ela disse. Essa é a minha Misha. Bom, que se dane. Se eu tiver uma chance mais tarde, posso ir até lá e ver se ela muda de idéia. Dizem que é prerrogativa das mulheres. Venham, vamos embarcar mais algumas caixas. E não cobre as armas, Ernie. Podemos precisar delas.
— Nem acredito que envolvi você nisso, garota — disse Ernie.
— Tudo bem, vovô. Prefiro estar dentro do que fora. — E ao menos isso era verdade.
BONC. Silêncio.
BONC. Silêncio.
BONC. Silêncio.
Ollie Dinsmore estava sentado de pernas cruzadas a um metro da Redoma com a velha mochila de escoteiro ao lado. A mochila estava cheia de pedras que catara diante da porta — tão cheia, na verdade, que ele cambaleara até ali em vez de andar, achando que o fundo de lona se rasgaria e se soltaria da mochila, espalhando a munição. Mas não, e ali estava ele. Escolheu outra pedra — uma bem lisa, polida por alguma antiga geleira — e, erguendo a mão acima do ombro, a jogou na Redoma, onde bateu no que parecia ser só ar e ricocheteou. Pegou outra e jogou de novo.
BONC. Silêncio.
A Redoma tinha uma coisa a seu favor, pensou. Podia ser a razão para o irmão e a mãe estarem mortos, mas pelo velho e cabeludo Jesus, uma carga de munição era suficiente para durar o dia todo.
Bumerangues de pedra, pensou, e sorriu. Era um sorriso de verdade, mas o deixava com uma cara meio terrível, porque o rosto estava magérrimo. Não vinha comendo muito e achou que demoraria bastante a sentir vontade de comer de novo. Ouvir um tiro e encontrar a mãe caída ao lado da mesa da cozinha com o vestido erguido mostrando a calcinha e metade da cabeça destruída... uma coisa dessas não ajudava o apetite de ninguém.
BONC. Silêncio.
O outro lado da Redoma era uma colmeia de atividade; uma cidade de barracas tinha brotado. Jipes e caminhões corriam de um lado para o outro, e centenas de militares passavam zumbindo enquanto os superiores gritavam ordens e xingavam, muitas vezes na mesma frase.
Além das barracas já levantadas, três novas e compridas estavam sendo armadas. As placas já instaladas diante delas diziam POSTO DE RECEPÇÃO DE VISITANTES 1, POSTO DE RECEPÇÃO DE VISITANTES 2 e POSTO DE PRIMEIROS SOCORROS. Outra barraca ainda mais comprida tinha uma placa na frente dizendo LANCHES. E pouco depois de Ollie se sentar e começar a jogar na Redoma o seu tesouro de pedras, chegaram dois caminhões-plataforma carregados de banheiros químicos. Agora, fileiras de alegres cagadouros azuis estavam lá em pé; bem longe da área onde ficariam os familiares para falar com os entes queridos que poderiam ver, mas não tocar.
A coisa que saíra da cabeça da mãe parecia geleia de morango mofada, e o que Ollie não conseguia entender era por que ela agira daquele jeito e naquele lugar. Por que no cômodo onde faziam quase todas as refeições? Será que ficara táo maluca que não se lembrara que tinha outro filho que poderia comer de novo (supondo que não morresse de fome antes), mas que jamais iria esquecer o horror do que ficara ali no chão?
É, pensou ele. Maluca assim. Porque Rory sempre foi o favorito, o queridinho. Ela mal notava que eu estava perto, a não ser quando eu esquecia de alimentar as vacas ou de limpar o estábulo quando elas estavam no pasto. Ou quando recebia D no boletim. Porque ele só tirava A.
Jogou uma pedra.
BONC. Silêncio.
Havia vários caras do Exército montando pares de placas ali perto da Redoma. As viradas para Mill diziam
ATENÇÃO!
PARA A SUA SEGURANÇA!
FIQUE A 2 METROS DA REDOMA!
Ollie adivinhou que as placas viradas para o outro lado diziam a mesma coisa, e do outro lado talvez funcionassem, porque do outro lado haveria muita gente para manter a ordem. Aqui, no entanto, haveria talvez oitocentos moradores da cidade e talvez duas dúzias de policiais, na sua maioria novos no emprego. Deste lado, manter as pessoas longe seria como proteger um castelo de areia da maré montante.
As calcinhas dela estavam molhadas, e havia uma poça entre as pernas abertas. Ela mijara nas calças pouco antes de puxar o gatilho ou logo depois. Ollie achou mais provável depois.
Jogou uma pedra.
BONC. Silêncio.
Havia um cara do Exército ali perto. Era bem jovem. Não havia nenhum tipo de insígnia nas mangas, por isso Ollie achou que devia ser soldado raso. Parecia ter uns 16 anos, mas Ollie achou que só podia ser mais velho. Já ouvira falar de garotos que mentiam a idade para servir, mas achou que isso fora antes de todo mundo ter computador para saber desse tipo de coisa.
O cara do Exército olhou em volta, viu que ninguém prestava atenção nele e falou em voz baixa, O sotaque era do Sul.
— Garoto? Não quer parar com isso? Tá me deixando maluco.
— Vai pra outro lugar então — respondeu Ollie.
BONC. Silêncio.
— Não posso. São ordens.
Ollie não respondeu. Em vez disso, jogou outra pedra.
BONC. Silêncio.
— Por que você tá fazendo isso? — perguntou o cara do Exército. Agora ele só mexia com as duas placas que tinha que instalar para que pudesse conversar com Ollie.
— Porque mais cedo ou mais tarde, uma delas não vai ricochetear. E quando isso acontecer, eu vou me levantar e sair andando e nunca mais quero ver essa fazenda. Nunca mais ordenhar uma vaca. Como está o ar aí fora?
— Bom. Mas friozinho. Sou da Carolina do Sul. Não é assim em outubro na Carolina do Sul, isso eu posso garantir.
Onde Ollie estava, a menos de 3 metros do garoto sulista, fazia muito calor. E fedia.
O cara do Exército apontou além de Ollie.
— Por que não para com as pedras e faz alguma coisa com as vacas? — Ele disse va-a-cas. — Leva pro estábulo e ordenha ou esfrega aquele creme nas tetas, alguma coisa dessas.
— Não precisamos levar as vacas. Elas sabem onde ir. E agora não precisam ser ordenhadas, nem precisam de creme também. O úbere delas está seco.
— É mesmo?
— É. O meu pai diz que tem alguma coisa errada no capim. Diz que o capim está errado porque o ar está errado. O cheiro aqui não é bom, sabe. Tem cheiro de bosta.
— É mesmo?
O cara do Exército parecia fascinado. Deu no alto das placas, uma de costas para a outra, uma ou duas batidas com o martelo, embora já parecessem bem firmes.
— É. A minha mãe se matou hoje de manhã.
O cara do Exército erguera o martelo para bater mais uma vez. Agora simplesmente o deixou cair.
— Está brincando comigo, garoto?
— Não. Ela deu um tiro na cabeça junto da mesa da cozinha. Eu que achei ela.
— Caralho, que coisa horrível.
O cara do Exército se aproximou da Redoma.
— Levamos o meu irmão pra cidade quando ele morreu domingo passado, porque ainda estava vivo.., um pouco... mas a minha mãe estava mortinha da silva e a gente enterrou no outeiro. O meu pai e eu. Ela gostava de lá. Era bonito lá antes que tudo ficasse tão nojento.
— Jesus, garoto! Você passou pelo inferno!
— Ainda tô lá — disse Ollie e, como se as palavras abrissem uma válvula em algum lugar lá dentro, começou a chorar. Levantou-se e foi até a Redoma. Ele e o jovem soldado se encararam, a menos de meio metro de distância. O soldado ergueu a mão, fazendo uma careta quando o choque temporário passou por ele e saiu. Pôs a mão na Redoma, os dedos abertos. Ollie ergueu a sua mão e a apertou contra o seu lado da Redoma. As mãos pareciam se tocar, dedo com dedo, palma com palma, mas não. Era um gesto inútil que seria repetido várias vezes no dia seguinte: centenas de vezes, milhares.
— Garoto...
— Soldado Ames! — berrou alguém. — Sai daí, seu imbecil!
O soldado Ames pulou como um garoto flagrado roubando geleia.
— Vem cá! Acelerado!
— Espera aí, garoto — disse o soldado Ames, e correu para receber a sua bronca. Ollie imaginou que tinha que ser uma bronca, já que não se podia rebaixar um soldado raso. Sem dúvida não o poriam no xadrez ou o que fosse por conversar com um dos animais do zoológico. Nem ganhei amendoim, pensou Ollie.
Por um momento, olhou as vacas que não davam mais leite — que mal mordiscavam o capim — e depois sentou-se ao lado da mochila. Ele procurou e achou outra pedra bem redonda. Pensou no esmalte lascado nas unhas da mão aberta da mãe morta, a que estava com a arma ainda fumegante ao lado. Então jogou a pedra. Ela bateu na Redoma e ricocheteou.
BONC. Silêncio.
Às 16h daquela tarde de quinta-feira, enquanto as nuvens se mantinham sobre o norte da Nova Inglaterra e o sol brilhava como um refletor turvo sobre Chester’s Mill atravessando as nuvens pelo buraco em forma de meia, Ginny Tomlinson foi ver como estava Junior. Perguntou se ele precisava de alguma coisa para a dor de cabeça. Ele disse que não, depois mudou de idéia e pediu Tylenol ou Advil. Quando ela voltou, ele atravessou o quarto para pegar o remédio. Na ficha, ela escreveu Ainda manca, mas parece melhor.
Quando Thurston Marshall enfiou a cabeça pela porta 45 minutos depois, o quarto estava vazio. Ele supôs que Junior tivesse ido para a sala dos médicos, mas quando foi até lá estava vazia, a não ser por Emily Whitehouse, a paciente do enfarte. Emily se recuperava bem. Thurse lhe perguntou se ela vira um rapaz moreno que mancava. Ela disse que não. Thurse voltou ao quarto de Junior e olhou o armário. Estava vazio, O rapaz com o provável tumor cerebral se vestira e se dera alta sem ligar para a papelada.
Junior foi para casa a pé. A perna que mancava pareceu ficar totalmente boa depois que OS músculos se aqueceram. Além disso, o contorno escuro de fechadura que flutuava do lado esquerdo da visão encolhera para o tamanho de uma bola de gude. Talvez não tivesse recebido uma dose muito grande de tálio, afinal de contas. Difícil dizer. Ainda assim, tinha que cumprir a promessa feita a Deus. Se cuidasse dos garotos Appleton, Deus cuidaria dele.
Quando saiu do hospital (pela porta dos fundos), matar o pai estava no alto da lista de afazeres. Mas, quando realmente chegou à casa — à casa em que sua mãe morrera, em que Lester Coggins e Brenda Perkins morreram —, mudou de idéia. Se matasse o pai agora, a assembleia extraordinária da cidade seria cancelada. Junior não queria isso, pois a assembleia extraordinária seria ótima cobertura para sua missão principal. A maioria dos policiais estaria lá, e isso facilitaria o acesso ao Galinheiro. Só queria estar com as plaquinhas de identificação envenenadas. Adoraria enfiá-las na garganta moribunda de Baaarbie.
Big Jim nem estava em casa, afinal de contas. A única coisa viva na casa era o lobo que vira galopando no estacionamento do hospital durante a madrugada. Estava no meio da escada, olhando para ele e grunhindo do fundo do peito. O pelo estava eriçado. Os olhos eram amarelos. No pescoço, estavam penduradas as plaquinhas de Dale Barbara.
Junior fechou os olhos e contou até dez. Quando os abriu, o lobo sumira.
— Eu sou o lobo agora — sussurrou para a casa quente e vazia. — Eu sou o lobisomem e vi Lon Chaney dançar com a rainha.
Subiu a escada, mancando de novo mas sem notar. A farda estava no armário, assim como a arma — uma Beretta 92 Taurus. A delegacia tinha umas 12, pagas, na maior parte, com verba federal do Departamento de Segurança Interna. Conferiu o pente de 15 tiros da Beretta e viu que estava cheio. Pôs a arma no coldre, afivelou o cinto na cintura cada vez menor e saiu do quarto.
No alto da escada parou, perguntando-se aonde ir até que a assembleia estivesse em pleno andamento e ele pudesse agir. Não queria falar com ninguém, não queria sequer ser visto. Então teve a ideia: um bom esconderijo que também ficava perto da ação. Desceu a escada com cuidado — a maldita coxeadura estava de volta, e o lado esquerdo do rosto estava tão dormente que Parecia até congelado — e se arrastou pelo saguão. Parou um instante na frente do escritório do pai, pensando em abrir o cofre e queimar o dinheiro lá dentro. Decidiu que não valia a pena. Lembrou-se vagamente de uma piada com banqueiros numa ilha deserta que enriqueceram vendendo as roupas uns para os outros, e soltou um risinho agudo mesmo sem conseguir recordar o final da piada e mesmo sem nunca ter entendido a graça direito.
O sol se pusera atrás das nuvens a oeste da Redoma e o dia ficara sombrio. Junior saiu andando da casa e desapareceu na escuridão.
Às 17h15, Alice e Aidan Appleton entraram, vindos do quintal nos fundos da casa emprestada. Alice disse:
— Caro? Pode levar Aidan e eu... mim e Aidan... pra grande assembléia?
Carolyn Sturges, que fazia sanduíches de geleia e manteiga de amendoim para o jantar na bancada de Coralee Dumagen com o pão de Coralee Dumagen (dormido, mas comível), olhou as crianças com surpresa. Nunca vira crianças quererem ir a reuniões de adultos; se perguntassem a ela, diria que provavelmente sairiam correndo na direção oposta para evitar um evento tão chato. Ficou tentada. Porque, se as crianças fossem, ela poderia ir.
— Têm certeza? — perguntou, se abaixando. — Vocês dois?
Antes desses últimos dias, Carolyn diria que não tinha nenhum interesse em filhos, que queria uma carreira de professora e escritora. Talvez romancista, embora lhe parecesse que escrever romances era muito arriscado; e se a gente gastasse todo aquele tempo, escrevesse mil páginas, e fosse horrível? Mas a poesia... percorrer o país (talvez de motocicleta)... declamar e fazer seminários, livre como um pássaro... isso seria legal. Talvez conhecer alguns homens interessantes, tomar vinho e discutir Sylvia Plath na cama. Alice e Aidan a fizeram mudar de ideia. Ela se apaixonara por eles. Queria que a Redoma se rompesse, é claro que queria, mas devolver esses dois à mãe lhe cortava o coração. Ela quase torcia que também cortasse um pouquinho o coração deles. Talvez fosse crueldade, mas assim era.
— Ade? É o que você quer? Porque reuniões de gente grande podem ser terrivelmente compridas e chatas.
— Quero ir — disse Aidan. — Quero ver todo mundo.
Então Carolyn entendeu. Não era a discussão dos recursos e como a cidade os usaria dali para a frente que lhes interessava; por que interessaria? Alice tinha 9 anos e Aidan, 5. Mas ver todo mundo reunido, como uma grande, enorme família extensa? Isso fazia sentido.
— Vocês vão se comportar? Sem se mexer nem cochichar demais?
— É claro disse Alice com dignidade.
— E vão fazer todo o xixi que tiverem aí dentro antes de a gente sair?
— Vamos! — Dessa vez a menina ergueu os olhos para mostrar como Caro estava sendo uma estupidinik incômoda... e Caro meio que amou aquilo.
— Então o que vou fazer é embrulhar esses sanduíches pra viagem — disse Carolyn. — E vamos levar duas latas de refrigerante pra crianças que sabem se comportar e usam canudinho. Supondo que as crianças em questão tenham feito todo o xixi possível antes de pôr mais líquido garganta adentro, é claro.
— Eu uso canudinhos desde sempre — disse Aidan. — Tem bulinho?
— Ele quer dizer bolinho recheado — disse Alice.
— Eu sei o que ele quer dizer, mas não tem. Mas talvez haja bolachas. Do tipo com açúcar e canela por cima.
— Bolachas com canela são legais — disse Aidan. — Eu te amo, Caro.
Carolyn sorriu. Achou que nenhum poema que já lera era tão bonito. Nem mesmo o de Williams sobre ameixas frias.
Andrea Grinnell desceu a escada devagar mas com firmeza, enquanto Julia a fitava com espanto. Andi sofrera uma transformação. A maquiagem e uma boa escovada no desastre arrepiado que era o cabelo fizeram a sua parte, mas não era só isso. Ao olhá-la, Julia percebeu como fazia tempo que vira a terceira vereadora da cidade como realmente era. Nessa noite, ela usava um lindo vestido vermelho com cinto — parecia Ann Taylor — e levava uma grande bolsa de pano fechada com um cordão.
Até Horace ficou boquiaberto.
— Como eu estou? — perguntou Andi quando chegou ao pé da escada. — Como se pudesse ir voando até a assembléia se tivesse uma vassoura?
— Você está ótima. Vinte anos mais nova.
— Obrigada, querida, mas eu tenho espelho lá em cima.
— Se ele não te mostrou como você está melhor, é bom experimentar o daqui de baixo, onde tem mais luz.
Andi pôs a bolsa no outro braço, como se estivesse pesada.
— Bom. Eu devo estar. Ao menos um pouco.
— Tem certeza de que você se sente forte o bastante pra isso?
— Acho que sim, mas se começar a tremer e me debater, saio pela porta lateral.
Andi não tinha a mínima intenção de sair, com ou sem tremor.
— O que é que tem na bolsa?
O lanchinho de fim Rennie, pensou Andrea. Que eu pretendo dar pra ele na frente da cidade inteira.
— Sempre levo o meu tricô às assembleias da cidade. Às vezes são muito lentas e chatas.
— Não acho que essa vá ser chata — disse Julia.
— Você não vem?
— É, acho que vou — disse Julia vagamente. Esperava estar bem longe do centro de Chester’s Mill antes que a assembléia terminasse. — Tenho coisas pra fazer antes. Consegue chegar lá sozinha?
Andi lhe deu um olhar cômico de Mãe, por favor.
— Descer a rua, descer o morro, e pronto. Faço isso há anos.
Julia olhou o relógio. Eram 17h45.
— Você não está saindo cedo demais?
— Al vai abrir as portas às seis horas, se não me engano, e quero ter certeza de conseguir um bom lugar.
— Como vereadora, você devia estar lá em cima no palco — disse Julia. — Se for o que você quer.
— Não, acho que não. — Andi trocou a bolsa de ombro outra vez. O tricô estava ali dentro; o arquivo VADER também e o 38 que o irmão Twitch lhe dera para proteger o lar. Achou que também serviria para proteger a cidade. A cidade era como um corpo, mas tinha uma vantagem sobre o corpo humano: quando o cérebro ficava ruim, podia-se fazer um transplante. E talvez não fosse preciso matar. Ela rezava que não.
Julia a olhava curiosa. Andrea percebeu que devaneara.
— Acho que hoje eu vou me sentar junto com o povo. Mas vou ter o que dizer quando a hora chegar. Pode contar com isso.
Andi estava certa sobre Al Timmons abrir as portas às 18h. Nisso a rua Principal, quase vazia o dia todo, se enchia de cidadãos que iam para a Câmara de Vereadores. Outros desciam o morro da praça da Cidade em pequenos grupos, vindos das ruas residenciais. Começavam a chegar carros de Eastchester e Northchester, a maioria lotados. Parecia que ninguém queria ficar sozinho naquela noite.
Ela chegou cedo o suficiente para escolher o seu lugar e ficou na terceira fila a contar do palco, junto ao corredor central. Bem à frente dela, na segunda fila, estavam Carolyn Sturges e os pequenos Appleton. Os garotos estavam boquiabertos e de olhos arregalados para tudo e para todos. Parecia que o menininho segurava uma bolacha no punho fechado.
Linda Everett foi outra que chegou cedo. Julia contara a Andi que Rusty fora preso — absolutamente ridículo — e sabia que a mulher dele estaria arrasada, mas ela escondia bem com uma bela maquiagem e um vestido bonito de bolsos grandes. Dada a sua situação (boca seca, dor de cabeça, estômago embrulhado), Andi lhe admirou a coragem.
— Vem sentar comigo, Linda — disse, dando um tapinha na cadeira a seu lado. — Como está o Rusty?
— Não sei — disse Linda, passando por Andrea e se sentando. Algo num daqueles bolsos engraçados bateu na madeira. — Não me deixaram vê-lo.
— Essa situação vai ser retificada — disse Andrea.
— Claro — respondeu Linda, muito séria. — Vai ser. — Depois, se inclinou à frente. — Oi, garotos, como vocês se chamam?
— Esse é o Aidan — disse Caro, e essa é...
— O meu nome é Alice. — A menininha estendeu uma mão majestosa: da rainha ao leal súdito. — Mim e Aidan... Aidan e eu... somos redomórfãos. É tipo órfãos da Redoma. O Thurston que inventou. Ele faz truques de mágica, como tirar moeda da orelha da gente e tudo mais.
— Bom, vocês parecem muito bem — disse Linda, sorrindo. Náo tinha vontade de sorrir; nunca estivera tão nervosa na vida. Só que nervosa era uma palavra muito suave. Ela estava se cagando de medo.
Às 18h30, o estacionamento atrás da Câmara de Vereadores estava cheio. Depois disso, as vagas da rua Principal se encheram, e as da rua Oeste e da rua Leste. Às 18h45, até o estacionamento do correio e o dos bombeiros estavam lotados, e quase todos os lugares do salão da Câmara estavam ocupados.
Big Jim previra a possibilidade de excesso de lotação, e Al Timmons, ajudado por alguns novos policiais, pusera no gramado bancos do Salão da Legião Americana. Havia APOIE OS NOSSOS SOLDADOS escrito em alguns; JOGUE MAIS BINGO! em outros. Grandes alto-falantes Yamaha tinham sido instalados nos dois lados da porta da frente.
A maior parte da força policial da cidade — e todos os policiais veteranos, menos um — estavam presentes para manter a ordem. Quando os retardatários reclamaram de ter que se sentar do lado de fora (ou ficar lá em pé, quando até os bancos se encheram), o chefe Randolph lhes disse que deviam ter chegado mais cedo: quem vai ao ar perde o lugar. Também acrescentou que estava uma noite agradável, quente e bonita, e que mais tarde deveria haver outra grande lua cor-de-rosa.
— Agradável pra quem não se incomoda com o fedor — disse Joe Boxer. O dentista andava de péssimo humor desde o confronto no hospital por causa dos seus waffles libertados. — Tomara que a gente consiga ouvir direito com essas coisas. — Apontou os alto-falantes.
— Vão ouvir direitinho — disse o chefe Randolph. — Nós pegamos no Dipper’s. Tommy Anderson diz que são o que tem de melhor, e foi ele mesmo que instalou. Imagine que você está num drive-in sem imagens.
— Acho que é um pé no saco — disse Joe Boxer, depois cruzou as pernas e ficou beliscando o vinco das calças.
Do seu esconderijo dentro da Ponte da Paz, Junior os viu chegar, espiando por uma rachadura da parede. Espantou-se de ver tanta gente da cidade no mesmo lugar ao mesmo tempo e ficou agradecido pelos alto-falantes. Conseguiria escutar tudo de onde estava. E assim que o pai realmente pegasse ímpeto, ele passaria à ação.
Que Deus ajude quem se meter no meu caminho, pensou.
Era impossível deixar de ver o corpanzil do pai com a ladeira da barriga, mesmo na escuridão crescente. E também a Câmara de vereadores estava totalmente iluminada esta noite, e a luz de uma das janelas desenhava um retângulo que ia até onde estava Big Jim, à beira do estacionamento lotado. Carter Thibodeau estava ao lado.
Big Jim não se sentiu observado — ou melhor, ele se sentia observado por todo mundo, o que dá na mesma. Conferiu o relógio e viu que acabara de dar 19h. O seu senso político, afiado no decorrer de muitos anos, lhe disse que as reuniões importantes deviam começar sempre com dez minutos de atraso; nem mais, nem menos. O que significava que já era hora de começar a descer a pista. Segurava uma pasta com o discurso dentro, mas depois de começar não precisaria mais dele. Sabia o que iria dizer. Parecia que tinha feito o discurso durante o sono na noite passada, não uma vez, mas várias, e cada vez fora melhor.
Cutucou Carter.
— Hora de começar o espetáculo.
— Certo.
Carter correu até onde Randolph estava em pé nos degraus da Câmara (provavelmente acha que se parece com Júlio Melequento César, pensou Big Jim) e o trouxe de volta.
— Entramos pela porta lateral — disse Big Jim. Consultou o relógio. — Daqui a cinco... não, quatro minutos. Você na frente, Peter, eu depois, Carter atrás de mim. Vamos direto pro palco, certo? Andem com confiança — nada de arrastar a meleca dos pés. Vai haver aplausos. Fiquem em posição de sentido até começarem a diminuir. Então se sentem. Peter, você fica à minha esquerda. Carter, à minha direita. Vou até o púlpito. Oração primeiro, depois todo mundo se levanta pra cantar o hino nacional. Depois disso, eu vou falar e passar a pauta rápido como um raio. Eles vão votar sim a tudo. Entendido?
— Estou nervoso pra caramba — confessou Randolph.
— Não fique. Tudo vai dar certo.
Sem dúvida, quanto a isso ele estava errado.
Enquanto Big Jim e o seu séquito andavam rumo à porta lateral da Câmara de Vereadores, Rose entrava com a van do restaurante na casa dos McClatchey. Atrás dela, havia um sedã Chevrolet simples dirigido por Joanie Calvert.
Claire saiu da casa com uma mala numa das mãos e uma sacola de lona cheia de mantimentos na outra. Joe e Benny Drake também levavam malas, embora a maior parte das roupas de Benny tivesse saído das gavetas de Joe. Benny levava outra sacola de lona menor com o saque à despensa dos McClatchey. Do pé do morro vinha o som amplificado de aplausos.
— Depressa — disse Rose. — Estão começando. Hora de evacuar.
Lissa Jamieson estava com ela. Abriu a porta da van e começou a passar as coisas para dentro.
— Temos folha de chumbo pra cobrir as janelas? — perguntou Joe a Rose.
— Temos, e mais pedaços pro carro da Joanie também. Vamos chegar até onde você disser que é seguro e depois bloqueamos as janelas. Passa aquela mala.
— Isso é loucura, sabiam? — disse Joanie Calvert. Andou em linha reta entre o seu carro e a van do Rosa Mosqueta, o que levou Rose a acreditar que ela só tomara um trago ou dois para se fortalecer, O que era bom.
— Deve ser mesmo — disse Rose. — Está pronta?
Joanie suspirou e pôs o braço nos ombros magros da filha.
— Pra quê? Pra ver a vaca ir pro brejo? Por que não? Quanto tempo vamos ter que ficar lá?
— Não sei — disse Rose.
Joanie soltou outro suspiro.
— Bom, ao menos está quente.
Joe perguntou a Norrie:
— Cadê seu avô?
— Com Jackie e o sr. Burpee, na van que roubamos do Rennie. Ele vai esperar lá fora enquanto eles entram pra buscar o Rusty e o sr. Barbara. — Ela lhe deu um sorriso apavorado. — Vai servir de motorista.
— Macaco velho não devia meter a mão em cumbuca — observou Joanie Calvert. Rose teve vontade de levantar a mão e lhe dar um tapa, e uma olhada lhe revelou que Lissa tivera a mesma vontade. Mas não era hora de discutir, muito menos de brigar.
A união faz a força; a desunião traz a forca, pensou Rose.
— E Julia? — perguntou Claire.
— Vem com Piper. E o cachorro.
Do centro da cidade, amplificado (e com os que estavam nos bancos do lado de fora unindo as suas vozes), veio o Coro Unido de Chester’s Mill cantando o hino nacional americano.
— Vamos — disse Rose. — Vou na frente.
Joanie Calvert repetiu, com um tipo de bom humor doloroso:
— Ao menos está quente. Vamos, Norrie, seja a copilota da sua velha mãe.
Havia um beco para entregas no lado sul da Maison des Fleurs de LeClerc, e ali estava estacionada a van furtada da companhia telefônica com a frente para fora. Ernie, Jackie e Rommie Burpee estavam sentados e escutando o hino nacional que vinha do alto da rua. Jackie sentiu uma pontada nos olhos e viu que não era a única a ficar comovida; Ernie, sentado atrás do volante, tirara um lenço do bolso de trás e limpava os olhos com ele.
— Acho que não vamos precisar que a Linda nos diga pra partir — disse Rommie. — Não esperava alto-falantes. Não pediram pra mim.
— Ainda assim, é bom que todos vejam ela lá — disse Jackie. — Você pegou a máscara, Rommie?
Ele ergueu a cara de Dick Cheney estampada em plástico. Apesar do enorme estoque, Rommie não conseguira para Jackie uma máscara de Ariel; ela se contentara com Hermione, a amiga de Harry Potter. A máscara de Darth Vader de Ernie estava atrás do banco, mas Jackie achou que provavelmente estariam numa encrenca se ele tivesse mesmo que usá-la. Não disse isso em voz alta.
E na verdade, de que importa? Quando de repente nós não estivermos mais na cidade, todo mundo vai ter uma boa ideia depor que nós fugimos.
Mas desconfiar não era o mesmo que saber, e se desconfiar fosse o máximo que Rennie e Randolph conseguissem, os amigos e parentes que estavam deixando para trás talvez não fossem submetidos a nada além de um interrogatório mais intenso.
Talvez. Em circunstâncias como aquelas, percebeu Jackie, essa era uma palavra grandiosa.
O hino terminou. Houve mais aplausos e então o segundo vereador da cidade começou a falar. Jackie conferiu a pistola que levava — a sua particular — e achou que os próximos minutos provavelmente seriam os mais demorados da sua vida.
Barbie e Rusty estavam na porta das respectivas celas, escutando Big Jim se lançar ao seu discurso. Graças aos alto-falantes do lado de fora da porta principal da Câmara, podiam ouvir bastante bem.
— Obrigado! Obrigado a todos! Obrigado por virem! E obrigado por serem o povo mais corajoso, firme e engenhoso dos Estados Unidos da América!
Aplausos entusiasmados.
— Senhoras e senhores... e crianças, também, vejo algumas na platéia...
Risos bem-humorados.
— Estamos numa situação terrível aqui. Disso vocês sabem. Hoje, pretendo lhes contar como foi que aconteceu. Não sei tudo, mas vou lhes contar o que eu sei, porque vocês merecem. Quando eu terminar de lhes pintar o quadro, nós teremos uma pauta breve mas importante a examinar. Mas, em primeiríssimo lugar, quero lhes dizer que estou ORGULHOSO de vocês, que me sinto HUMILDE por ser o homem que Deus, e vocês também, escolheram para ser o seu líder nessa terrível conjuntura, e quero GARANTIR que, juntos, atravessaremos as dificuldades, juntos e com a ajuda de Deus sairemos disso MAIS FORTES, MAIS FIÉIS e MELHORES do que antes! Agora podemos ser israelitas no deserto...
Barbie ergueu os olhos e Rusty deu uma banana com o punho.
— ... mas logo chegaremos a CANAÃ e ao banquete de leite e mel que o Senhor e os nossos compatriotas americanos com certeza nos prepararão!
Aplausos enlouquecidos. Parecia uma ovação de pé. Quase certo de que, mesmo que houvesse um microfone ali embaixo, os três ou quatro policiais lá em cima estariam agora amontoados na porta da delegacia, escutando Big Jim, Barbie disse:
— Prepare-se, meu amigo.
— Estou preparado — Rusty disse. — Pode acreditar.
Desde que Linda não seja um dos que planejaram invadir, pensou. Não queria que ela matasse ninguém, mas mais do que isso, não queria que ela corresse o risco de ser morta. Não por ele. Que ela fique bem onde está. Ele pode ser maluco, mas, ao menos, se ela estiver com o resto da cidade, vai estar a salvo.
Foi o que ele pensou antes de o tiroteio começar.
Big Jim estava exultante. Tinha todos exatamente onde queria: na palma da mão. Centenas de pessoas, os que tinham votado nele e os que não tinham. Nunca vira tantos naquele salão, nem mesmo quando as orações na escola e o orçamento escolar foram discutidos. Estavam sentados coxa a coxa, ombro a ombro, do lado de fora e de dentro, e faziam mais do que lhe dar ouvidos. Com Sanders desaparecido em ação e Grinnell sentada na plateia (era difícil não ver aquele vestido vermelho na terceira fila), ele possuía a multidão. Os olhos de todos lhe imploravam que cuidasse deles. Que os salvasse. O que completava a exultação era ter o seu guarda-costas ao lado e ver as filas de policiais — os seus policiais — arrumadas nos dois lados do salão. Nem todos estavam ainda fardados, mas todos estavam armados. Na plateia, ao menos mais uns cem usavam braçadeiras azuis. Era como ter o seu próprio exército particular.
— Meus concidadãos, a maioria de vocês sabe que prendemos um homem chamado Dale Barbara...
Surgiu uma tempestade de vaias e assovios. Big Jim esperou que diminuísse, sério por fora, rindo por dentro.
— ... pelo assassinato de Brenda Perkins, Lester Coggins e duas mocinhas adoráveis que todos nós conhecíamos e amávamos: Angie McCain e Dodee Sanders.
Mais vaias, intercaladas com gritos de “Enforca ele!” e “Terrorista!” O grito de terrorista parecia ser de Velma Winter, gerente diurna do Brownie’s.
— O que vocês não sabem — continuou Big Jim — é que a Redoma é o resultado de uma conspiração perpetrada por um grupo de elite de cientistas renegados e financiada secretamente por um grupo dissidente do governo. Somos cobaias de uma experiência, meus concidadãos, e Dale Barbara foi o homem indicado pra mapear e conduzir essa experiência por dentro!
Isso foi recebido com silêncio espantado. Depois, houve um rugido ofendido.
Quando tudo se aquietou, Big Jim continuou, as mãos plantadas nos dois lados do púlpito, o rosto largo brilhando de sinceridade (e, talvez, hipertensão). O discurso estava à sua frente, mas ainda dobrado. Não havia por que olhar. Deus usava suas cordas vocais e lhe movia a língua.
— Quando falo de financiamento secreto, talvez vocês se perguntem o que eu quero dizer. A resposta é horrível, mas simples. Dale Barbara, auxiliado por um número ainda desconhecido de moradores da cidade, montou uma fábrica de drogas que vem fornecendo enorme quantidade de cristais de metanfetamina aos grandes traficantes, alguns com ligações com a CIA, em todo o litoral leste. E, embora ele ainda não tenha nos revelado o nome de todos os outros conspiradores, parece que um deles, me corta o coração lhes dizer isso, é Andy Sanders.
Tumulto e gritos de espanto da plateia. Big Jim viu Andi Grinnell começar a se levantar da cadeira e depois voltar a se sentar. Isso mesmo, pensou, fica aí sentadinha. Se for imprudente a ponto de me questionar, eu te como viva. Ou aponto o dedo e te acuso. E eles te comerão viva.
E, na verdade, ele sentia vontade de fazer isso.
— O chefe de Barbara, o seu controle, é o homem que todos vocês viram no noticiário. Ele afirma ser coronel do Exército americano, mas de fato ocupa alto cargo no conselho de cientistas e autoridades do governo responsável por essa experiência satânica. Tenho aqui a confissão de Barbara a respeito disso. — Ele deu um tapinha no paletó esporte, cujo bolso interno continha a carteira e um Novo Testamento tamanho míni com as palavras de Cristo impressas em vermelho.
Enquanto isso, surgiam mais gritos de “Enforca ele!”. Big Jim ergueu uma das mãos, a cabeça baixa, o rosto grave, e os gritos acabaram silenciados.
— Nós votaremos a punição de Barbara como uma cidade, como um organismo único dedicado à causa da liberdade. Está nas suas mãos, senhoras e senhores. Se votarem pela execução, ele será executado. Mas não haverá forca enquanto eu for seu líder. Ele será executado pelo pelotão de fuzilamento da polícia...
Aplausos enlouquecidos o interromperam, e a maior parte da plateia se levantou. Big Jim se inclinou sobre o microfone.
— ... mas só depois que obtivermos cada fiapo de informação que ainda se esconde naquele MISERÁVEL CORAÇÃO DE TRAIDOR!
Agora quase todos tinham se levantado. Mas não Andi; ela estava sentada na terceira fila, junto ao corredor central, olhando para ele com olhos que deveriam ser suaves, enevoados e confusos, mas não eram. Olha pra mim o quanto quiser, pensou ele, desde que fique aí sentadinha como uma boa menina.
Enquanto isso, ele se deleitava com os aplausos.
— Agorra? — perguntou Rommie. — O que acha, Jackie?
— Espera mais um pouco — respondeu ela.
Era instinto, nada mais, e em geral o seu instinto era confiável.
Mais tarde, ela se perguntaria quantas vidas poderiam ter sido salvas se tivesse dito a Rommie tudo bem, vamos.
Pela rachadura na parede lateral da Ponte da Paz, Junior viu que até as pessoas nos bancos do lado de fora tinham se levantado, e o mesmo instinto que disse a Jackie para esperar mais um pouco lhe disse que era hora de agir. Ele saiu mancando da ponte, pelo lado da praça da Cidade, e foi até a calçada. Quando a criatura que o gerara voltou a falar, partiu na direção da delegacia de polícia. A mancha escura no lado esquerdo do campo de visão se expandira de novo, mas a mente estava limpa.
Estou indo, Baaarbie. Estou indo atrás de você agora mesmo.
— Essas pessoas são mestras em desinformação — continuou Big Jim —, e quando vocês forem até a Redoma visitar seus entes queridos, a campanha contra mim chegará ao ponto máximo. Cox e os seus representantes não se deterão diante de nada pra me caluniar. Vão me chamar de mentiroso, de ladrão, podem até dizer que era minha a fábrica de drogas deles...
— E é mesmo — disse uma voz clara e forte.
Era Andrea Grinnell. Todos os olhos se fixaram nela quando se levantou, um ponto de exclamação humano com o vestido vermelho vivo. Ela olhou Big Jim um instante com uma expressão de desprezo frio e depois se virou para encarar o povo que a elegera terceira vereadora quando o velho Billy Cale, pai de Jack Cale, morrera de derrame quatro anos antes.
— Vocês precisam pôr o medo de lado um instante — disse ela. — Quando fizerem isso, verão que a história que ele está contando é ridícula. Jim Rennie acha que pode tocar vocês como se fossem gado numa tempestade. Eu vivi com vocês minha vida inteira e acho que ele está errado.
Big Jim esperou gritos de protesto. Não houve nenhum. Não que os moradores da cidade acreditassem nela necessariamente; só estavam espantados com essa virada súbita dos acontecimentos. Alice e Aidan Appleton tinham se virado inteiramente e estavam ajoelhados nas poltronas, fitando a dama de vermelho. Caro estava igualmente espantada.
— Uma experiência secreta? Quanta bobagem! O nosso governo tem feito coisas muito erradas nos últimos cinquenta anos mais ou menos, eu sou a primeira a admitir, mas manter uma cidade inteira presa por um tipo de campo de força? Só pra ver o que a gente vai fazer? Isso é idiota. Só gente apavorada acreditaria nisso. Rennie sabe disso, por isso está orquestrando o terror.
Big Jim perdera o ritmo por um instante, mas nisso reencontrou a sua voz. E é claro que estava com o microfone.
— Senhoras e senhores, Andrea Grinnell é uma boa mulher, mas não está no seu juízo perfeito esta noite. É claro que está tão chocada quanto todos nós, mas além disso, sinto muito dizer que ela tem um grave problema de dependência de drogas, devido a uma queda e ao consequente uso de um medicamento extremamente viciante chamado...
— Faz dias que eu não tomo nada, só aspirina — disse Andrea, em voz clara e forte. — E estou de posse de documentos que mostram...
— Melvin Searles? — trovejou Big Jim. — Você e vários dos nossos policiais, com gentileza e firmeza, podem remover a vereadora Grinnell da sala e levá-la pra casa? Ou talvez pro hospital, pra ficar em observação. Ela não está bem.
Houve alguns murmúrios de aprovação, mas não o clamor que ele esperava. E Mel Searles dera apenas um passo à frente quando Henry Morrison meteu a mão no peito de Mel e o jogou para trás, contra a parede, com um choque audível.
— Deixa ela terminar — disse Henry. — Ela também é autoridade na cidade, então deixa ela terminar.
Mel ergueu os olhos para Big Jim, mas Big Jim, quase hipnotizado, observava Andi tirar um envelope pardo da grande bolsa. Soube o que era no instante em que o viu. Brenda Ferkins, pensou ele. Ah, aquela puta. Mesmo morta, a sua putaria continua.
Quando Andi ergueu o envelope, ele começou a balançar de um lado para o outro. Os tremores voltavam, a merda dos tremores. Não poderiam ter escolhido hora pior, mas ela não se surpreendeu; na verdade, era de se esperar. Era o estresse.
— Os documentos neste envelope chegaram a mim por intermédio de Brenda Perkins — disse ela, e ao menos a voz era firme. — Foram reunidos pelo marido dela e pelo procurador-geral do estado. Duke Perkins investigava James Rennie por causa de uma lista enorme de crimes e contravenções graves.
Mel olhou o amigo Carter em busca de orientação. E Carter o encarou, os olhos brilhantes, penetrantes e quase divertidos. Apontou Andrea e depois pôs o lado da mão contra a garganta: Faz ela calar a boca. Dessa vez, quando Mel partiu para a frente, Henry Morrison não o deteve; como quase todo mundo na sala, Henry estava boquiaberto olhando Andrea Grinnell.
Marty Arsenault e Freddy Denton se juntaram a Mel quando ele saiu correndo pela frente do palco, abaixado como quem corre na frente da tela do cinema. Do outro lado do salão da Câmara de Vereadores, Todd Wendlestat e Lauren Conree também se puseram em ação. A mão de Wendlestat estava num pedaço serrado de bengala de castanheira que ele levava como cassetete; a de Conree, na coronha da arma.
Andi os viu chegando, mas não parou.
— A prova está neste envelope, e acredito que prova que... — que Brenda Perkins morreu por isso, era o que pretendia dizer, mas nesse momento a mão esquerda suada e trêmula perdeu a força e largou a bolsa. Esta caiu no corredor, e o cano do seu 38 de proteção doméstica saiu como um periscópio da boca aberta da bolsa.
Claramente, ouvido por todos no salão agora silencioso, Aidan Appleton disse:
— Uau! Essa senhora tem uma arma!
Outro instante de silêncio espantado se seguiu. Então Carter Thibodeau pulou do assento e correu para a frente do chefe, gritando “Arma! Arma! ARMA!’”
Aidan desceu para o corredor para investigar mais de perto.
— Não, Ade! — berrou Caro, e se curvou para segurá-lo bem quando Mel deu o primeiro tiro.
Ele fez um buraco no chão de madeira polida diante do nariz de Carolyn Sturges. Voaram lascas. Uma a atingiu logo abaixo do olho direito e o sangue começou a lhe correr pelo rosto. Ela teve a vaga consciência de que agora todos gritavam. Ajoelhou-se no corredor, agarrou Aidan pelos ombros e o enfiou entre as coxas como uma bola de futebol americano. Ele voou de volta para a fila onde estivera sentado, surpreso mas incólume.
— ARMA! ELA TEM UMA ARMA! — berrou Freddy Denton, e tirou Mel do caminho. Mais tarde, juraria que a moça estava tentando pegar a arma, e que ele só quisera feri-la, de qualquer modo.
Graças aos alto-falantes, os três na van roubada ouviram a mudança das festividades na prefeitura. O discurso de Big Jim e o aplauso que o acompanhava foram interrompidos por alguma mulher que falava alto, mas estava longe demais do microfone para que entendessem as palavras. A voz dela foi afogada por uma algazarra geral pontilhada de gritos. Depois houve um tiro.
— Que inferno! — disse Rommie.
Mais tiros. Dois, talvez três. E gritos.
— Não importa — disse Jackie. — Vamos, Ernie, depressa. Se vamos fazer, é preciso fazer agora.
Não! — gritou Linda, pulando de pé. — Sem tiros! Tem crianças aqui! TEM CRIANÇAS AQUI!
A Câmara de Vereadores explodiu num pandemônio. Talvez por um ou dois minutos tivessem deixado de ser gado, mas agora eram. O estouro na direção da porta da frente começou. Os primeiros conseguiram sair, depois a multidão se atolou. Algumas almas que mantinham um fiapo de bom-senso desceram pelos corredores laterais e central rumo às portas de saída que flanqueavam o palco, mas foram minoria.
Linda correu para Carolyn Sturges, querendo puxá-la para a relativa segurança dos bancos, quando Toby Manning, correndo pelo corredor central, a atingiu. O joelho dele bateu na nuca de Linda e ela caiu para a frente, tonta.
— Caro!— berrava Alice Appleton de algum lugar muito longe. — Caro, levanta! Caro, levanta! Caro, levanta!
Carolyn começou a se levantar, e foi então que Freddy Denton lhe deu um tiro bem entre os olhos, matando-a instantaneamente. As crianças começaram a guinchar. O rosto delas estava respingado de sangue.
Linda teve a vaga consciência de ser chutada e pisada. Ficou de quatro (nesse momento, ficar em pé estava fora de questão) e engatinhou pelo lado oposto àquele em que estivera sentada. A mão se esparramou em mais sangue de Carolyn.
Alice e Aidan tentavam chegar até Caro. Sabendo que poderiam ficar gravemente feridos se chegassem ao corredor (e não querendo que vissem como ficara a mulher que ela achava que era a mãe deles), Andi curvou-se sobre o banco na frente dela para segurá-los. Deixara cair o envelope VADER.
Carter Thibodeau esperava por isso. Ainda estava em pé na frente de Rennie, protegendo-o com o corpo, mas puxara a arma e a apoiava no antebraço. Aí apertou o gatilho, e a encrenqueira de vestido vermelho — a que causara a confusão — caiu voando para trás.
A Câmara de Vereadores estava um caos, mas isso Carter ignorou. Desceu a escada e andou com firmeza até onde a mulher de vestido vermelho caíra. Quando veio gente correndo pelo corredor central, jogou-os para fora do caminho, primeiro à esquerda, depois à direita. A menininha, aos gritos, tentou se agarrar à sua perna, e Carter a chutou para o lado sem olhar.
A princípio, não viu o envelope. Então o avistou. Estava caído ao lado de uma das mãos abertas da tal Grinnell. Uma grande pegada impressa em sangue fora carimbada sobre a palavra VADER. Ainda calmo no caos, Carter olhou em volta e viu que Rennie fitava os escombros da plateia, o rosto chocado e incrédulo. Ótimo.
Carter puxou as fraldas da camisa. Uma mulher aos berros — era Carla Venziano — correu para ele, que a empurrou para o lado. Então, enfiou o envelope VADER nas costas, sob o cinto, e cobriu-o com a fralda da camisa.
Uma pequena apólice de seguro era sempre boa coisa.
Voltou de costas para o palco, não querendo ser pego de surpresa. Ao chegar aos degraus, virou-se e subiu-os aos pulos. Randolph, o destemido chefe de polícia da cidade, ainda estava sentado com as mãos plantadas sobre as coxas carnudas. Poderia ser uma estátua se não fosse a veia isolada que pulsava no centro da testa.
Carter pegou Big Jim pelo braço.
— Vamos, chefe.
Big Jim o olhou como se não soubesse onde estava nem mesmo quem era. Então, os olhos se clarearam um pouco.
— Grinnell?
Carter apontou o corpo da mulher esparramado no corredor central, a poça crescente em torno da cabeça combinando com o vestido.
— Certo, ótimo — disse Big Jim. — Vamos sair daqui. Lá embaixo. Você também, Peter. Levanta. — E quando Randolph continuou sentado a fitar a multidão enlouquecida, Big Jim lhe deu um chute na perna. — Anda!
No pandemônio, ninguém ouviu os tiros no prédio ao lado.
Barbie e Rusty se entreolharam.
— Que diabos está acontecendo lá? — perguntou Rusty.
— Não sei — respondeu Barbie —, mas não parece bom.
Vieram mais tiros da Câmara de Vereadores, depois um muito mais perto: no andar de cima. Barbie torceu para serem os seus amigos... então ouviu alguém berrar “Não, Junior! Você está maluco? Wardlaw, me dá cobertura!” Mais tiros se seguiram. Quatro, talvez cinco.
— Ai, Jesus — disse Rusty. — Lá vem encrenca.
— Eu sei disso — disse Barbie.
Junior parou nos degraus da delegacia, olhando por sobre o ombro o alvoroço recém-surgido na Câmara de Vereadores. Agora as pessoas nos bancos do lado de fora estavam em pé e esticavam o pescoço, mas não havia nada para ver. Não para eles, e não para ele. Talvez alguém tivesse assassinado o seu pai — ele torcia por isso; lhe pouparia o trabalho — mas, enquanto isso, a sua missão era dentro da delegacia. No Galinheiro, para ser específico.
Junior empurrou a porta que tinha TRABALHANDO JUNTOS: VOCÊ E A POLÍCIA DA SUA CIDADE escrito. Stacey Moggin veio correndo na direção dele. Rupe Libby estava atrás dela. Na sala de controle, em pé diante da placa mal-humorada que dizia CAFÉ E ROSQUINHAS NÃO SÃO DE GRAÇA, estava Mickey Wardlaw. Grandalhão ou não, parecia muito assustado e inseguro.
— Você não pode entrar, Junior — disse Stacey.
— Claro que posso. — Claro saiu carr. Era a dormência no lado da boca. Envenenamento por tálio! Barbie! — Sou da polícia. — Sodapliss.
— Você é um bêbado, isso é o que você é. O que está havendo lá? — Mas aí, decidindo talvez que ele era incapaz de resposta coerente, a piranha lhe deu um empurrão no centro do peito. Isso o fez cambalear na perna ruim e quase cair. — Vai embora, Junior. — Ela olhou por sobre o ombro e disse as suas últimas palavras na face da Terra. — Fica onde está, Wardlaw. Ninguém vai lá pra baixo.
Quando ela se virou, na intenção de empurrar Junior para fora da delegacia, viu o cano de uma Beretta da polícia. Houve tempo para mais um pensamento — Ah, não, ele não faria isso — e então uma luva de boxe indolor a atingiu entre os seios e a jogou para trás. Ela viu o rosto espantado de Rupe Libby de cabeça para baixo, quando a cabeça caiu para trás. E se foi.
— Não, Junior! Você está maluco? — berrou Rupe, tentando agarrar a arma. — Wardlaw, me dá cobertura!
Mas Mickey Wardlaw só ficou ali parado, boquiaberto, enquanto Junior enfiava cinco balas no primo de Piper Libby. A mão esquerda estava dormente, mas a direita ainda estava boa; ele nem precisava ter mira muito boa com um alvo estacionário a apenas 2 metros de distância. Os dois primeiros tiros atingiram a barriga de Rupe, jogando-o contra a mesa de Stacey Moggin e a derrubando. Rupe se dobrou ao meio, segurando-se. O terceiro tiro de Junior errou o alvo, mas os outros dois entraram no alto da cabeça de Rupe. Ele caiu numa grotesca posição de balé, as pernas se abrindo para os lados e a cabeça — o que restava dela —, descendo para descansar no chão, como numa última reverência profunda.
Junior mancou até a sala de controle com a Beretta fumegante estendida à frente. Não conseguia se lembrar exatamente de quantos tiros dera; achava que sete. Talvez oito. Ou dezeonze — quem poderia saber com certeza? A dor de cabeça voltara.
Mickey Wardlaw ergueu a mão. Havia um sorriso assustado e apaziguador no seu grande rosto.
— Sem problemas comigo, bródi — disse. — Faz o que você tem que fazer. — E fez o sinal da paz.
— Vou fazer — disse Junior. — Bródi.
Atirou em Mickey. O meninão caiu, o sinal da paz agora enquadrando o buraco na cabeça onde antes havia um olho. O olho que restava rolou para fitar Junior com a humildade burra de uma ovelha no cercado. Junior lhe deu outro tiro, só para garantir. Depois, olhou em volta. Parecia que o lugar era só dele.
— Tudo bem — disse ele. — Tuuudo... bem!
Partiu para a escada, depois voltou até o corpo de Stacey Moggin. Verificou que ela usava uma Beretta Taurus igual à dele e ejetou o pente da sua arma. Trocou-o pelo pente cheio do cinto dela.
Junior se virou, cambaleou, caiu de joelhos e se levantou de novo. Agora a mancha preta no lado esquerdo da visão parecia grande como uma tampa de bueiro, e ele teve a idéia de que o olho esquerdo estava bem fodido. Bom, tudo bem; se precisasse de mais do que um olho para matar um homem trancado numa cela, não valeria nem um pio num galinheiro. Cruzou a sala de controle, escorregou no sangue do falecido Mickey Wardlaw e quase caiu de novo. Mas se endireitou a tempo. O coração batia com força, mas ele achou bom. Está me mantendo esperto, pensou.
— Oi, Baaarbie — gritou ele escada abaixo. — Eu sei o que você me fez e eu vou acabar com você. Se quer rezar, é melhor rezar depressa.
Rusty observou as pernas que desceram mancando a escada de metal. Sentia cheiro de fumaça de pólvora, sentia cheiro de sangue e entendia perfeitamente que chegara a sua hora de morrer. O homem que mancava estava ali para pegar Barbie, mas quase com certeza não iria desperdiçar um certo auxiliar médico engaiolado pelo caminho. Ele nunca mais veria Linda nem as Jotinhas.
O peito de Junior ficou visível, depois o pescoço, depois a cabeça. Rusty deu uma olhada na boca, caída para a esquerda num desdém congelado, e no olho esquerdo, que chorava sangue, e pensou: Já foi longe demais. Um espanto ainda estar de pé, e uma pena que não tenha esperado mais um pouco. Mais um Pouco e ele não seria capaz de atravessar a rua.
De leve, em outro mundo, ouviu uma voz amplificada por um megafone vinda da Câmara de Vereadores: “NÃO CORRAM! NÃO ENTREM EM PÂNICO! O PERIGO ACABOU! AQUI FALA O POLICIAL HENRY MORRISON, E REPITO: O PERIGO ACABOU!”
Junior escorregou, mas nisso estava no último degrau. Em vez de cair e quebrar o pescoço, só se apoiou no joelho. Descansou assim um instante, parecendo um boxeador à espera da contagem obrigatória para se levantar e reiniciar a luta. Para Rusty, tudo parecia claro, próximo e muito querido. O mundo precioso, de repente diáfano e sem substância, era agora apenas uma única gaze que se desenrolava entre ele e o que viesse depois. Se viesse.
Acaba de cair, pensou, para Junior. De cara no chão. Desmaia, seu filho da puta.
Mas, com muito esforço, Junior se levantou, fitou a arma na mão como se nunca tivesse visto uma coisa daquelas e olhou pelo corredor até a cela na ponta, onde Barbie estava em pé, as mãos enroladas nas grades, devolvendo o olhar.
— Baaarbie — disse Junior num sussurro sentimental, e se lançou à frente. Rusty deu um passo atrás, achando que talvez Junior não o visse ao passar. E talvez se matasse depois de acabar com Barbie. Sabia que eram pensamentos negros, mas também sabia que eram pensamentos práticos. Não podia fazer nada por Barbie, mas talvez conseguisse sobreviver.
E talvez desse certo se estivesse numa das celas do lado esquerdo do corredor, porque esse era o lado cego de Junior. Mas fora posto numa cela à direita, e Junior o viu se mexer. Parou e espiou Rusty, o rosto semiparalisado ao mesmo tempo perplexo e astuto.
— Fusty — disse. — É o seu nome? Ou é Berrick? Não consigo me lembrar.
Rusty queria implorar pela vida, mas a língua estava colada no céu da boca. E de que adiantaria implorar? O rapaz já erguia a arma. Junior ia matá-lo. Nenhum poder terreno o deteria.
A mente de Rusty, naquela situação extrema, buscou uma fuga que muitas outras mentes encontraram nos últimos momentos de consciência — antes que o interruptor fosse desligado, antes que a armadilha se abrisse, antes que a pistola pressionada contra a têmpora cuspisse fogo. É um sonho, pensou. Tudo. A Redoma, a loucura no pasto de Dinsmore, o saque ao supermercado; este rapaz também. Quando ele puxar o gatilho, o sonho vai terminar e eu vou acordar na minha cama, numa manhã fresca e revigorante de outono. Vou me virar pra Linda e dizer: “Que pesadelo eu tive, você não vai acreditar.”
— Fecha os olhos, Fusty — disse Junior. — Vai ser melhor assim.
O primeiro pensamento de Jackie Wettington ao entrar no saguão da delegacia foi Ah, meu Deus amado, tem sangue por toda parte.
Stacey Moggin estava caída contra a parede debaixo do quadro de avisos comunitários com a nuvem de cabelo louro espalhada em torno dela e os olhos vazios fitando o teto. Outro policial — ela não conseguiu identificar qual, — estava caído de cara na frente da mesa virada da recepção, as pernas abertas para os lados num impossível grand écart. Além dele, na sala de controle, um terceiro policial estava morto, caído de lado. Esse só podia ser Wardlaw, um dos garotos novos. Era grande demais para ser outra pessoa. A placa sobre a mesinha do café estava respingada de sangue e cérebro do garoto. Agora dizia C FÉ E ROSQUI NÃO SÃO D AÇA.
Houve um leve claque atrás dela. Ela girou, sem perceber que erguera a arma até ver Rommie Burpee na porta da frente. Ele nem a notou; fitava os corpos dos três policiais mortos. O claque fora a máscara de Dick Cheney. Ele a tirara e a deixara cair no chão.
— Jesus Cristo, o que aconteceu aqui? — perguntou ele. — Isso é...
Antes que conseguisse terminar, veio um grito lá de baixo, nco Galinheiro:
— Ei, seu cara de merda! Te peguei, não foi? Te peguei de boa!
Então, incrivelmente, risos. Eram agudos e maníacos. Por um instante, Jackie e Rommie só conseguiram se entreolhar, incapazes de se mexer.
Então, Rommie disse:
— Acho que é o Barbara.
Ernie Calvert estava sentado atrás do volante da van da companhia telefônica, ligada em ponto morto junto ao meio-fio marcado POLÍCIA APENAS 10 MIN. Trancara todas as portas, com medo de ser invadido por uma ou mais das pessoas em pânico que fugiam da prefeitura pela rua Principal. Segurava a espingarda que Rommie pusera atrás do banco do motorista, embora não tivesse certeza de que conseguiria atirar em quem tentasse invadir; conhecia aquelas pessoas, por anos lhes vendera mantimentos. O terror tornara estranho o seu rosto, mas não irreconhecível.
Viu Henry Morrison percorrer de um lado para o outro o gramado da Câmara de Vereadores, parecendo um cão de caça atrás de um rastro. Berrava no megafone e tentava levar um pouco de ordem ao caos. Alguém o derrubou e Henry logo se levantou, Deus o abençoasse.
E agora havia outros: Georgie Frederick, Marty Arsenault, o garoto Searles (reconhecível pela atadura que ainda usava na cabeça), os dois irmãos Bowie, Roger Killian e dois outros novatos. Freddy Denton marchava pelos degraus largos da frente da Câmara com a arma fora do coldre. Ernie não viu Randolph, embora fosse de esperar, caso não soubesse das coisas, que o chefe de polícia estivesse no comando do destacamento de pacificação, que em si cambaleava à beira do caos.
Ernie sabia das coisas. Peter Randolph sempre fora um verme petulante e incapaz, e a sua ausência naquele circo enlouquecido não surpreendeu Ernie nem o preocupou. O que o preocupou foi que ninguém saía da delegacia e que houvera mais tiros. Foram abafados, como se tivessem sido dados lá embaixo, onde estavam os prisioneiros.
Não sendo muito de rezar, agora Ernie rezou. Para que ninguém que fugia da Câmara de Vereadores notasse o velho atrás do volante da van em marcha lenta. Que Jackie e Rommie saíssem a salvo, com ou sem Barbara e Everett. Ocorreu-lhe que podia simplesmente ir embora, e ficou chocado ao perceber como a idéia era tentadora.
O celular tocou.
Por um instante ficou só ali sentado, sem saber o que escutava, então o tirou do cinto. Quando o abriu, viu JOANIE na telinha. Mas não era a nora; era Norrie.
— Vô! Está tudo bem?
— Tudo — disse ele, olhando o caos à sua frente.
— Tiraram eles?
— Está acontecendo agora, querida — disse, na esperança de que fosse verdade. — Não dá pra falar. Está a salvo? Está no... no lugar?
— Estou! Vô, brilha de noite! O cinturão de radiação! Os carros também brilharam, mas aí parou! A Julia diz que acha que não é perigoso! Ela acha que é falso, pra assustar as pessoas!
É melhor não contar com isso, pensou Ernie.
Mais dois tiros amortecidos e abafados vieram de dentro da delegacia. Alguém estava morto lá no Galinheiro; tinha que ser.
— Norrie, não posso falar agora.
— Vai dar tudo certo, vô?
— Vai, vai. Te amo, Norrie.
Fechou o telefone. Brilha, pensou, e se perguntou se chegaria a ver aquele brilho. A Serra Negra ficava perto (numa cidade pequena, tudo fica perto), mas agora parecia muito longe. Olhou as portas da delegacia, tentando forçar os amigos a saírem. E quando não saíram, ele desceu da van. Não aguentava mais ficar ali sentado. Tinha que entrar e ver o que estava acontecendo.
Barbie viu Junior erguer a arma. Ouviu Junior dizer a Rusty que fechasse os olhos. Berrou sem pensar, sem idéia do que ia dizer até que as palavras lhe saíram da boca. “Ei, seu cara de merda! Te peguei, não foi? Te peguei de boa!” O riso que veio depois parecia o riso de um lunático que abandonasse os remédios.
Então é assim que eu rio quando estou preparado para morrer, pensou Barbie. Tenho que me lembrar disso. O que o fez rir ainda mais.
Junior se virou para ele. O lado direito do rosto revelava a surpresa; o esquerdo estava paralisado num muxoxo de desdém. Lembrou a Barbie algum supervilão que lera na juventude, mas não conseguia se lembrar qual era. Talvez um dos inimigos de Batman, eles eram sempre os mais horripilantes. Então se lembrou de que, quando o irmão caçula Wendell tentava dizer inimigos, saía nimicos. Isso o fez rir mais do que nunca.
Pode haver jeitos piores de morrer, pensou, ao passar ambas as mãos pelas grades e, com os dedos médios erguidos, mandá-lo se foder duas vezes. Se lembra do Stubbs, de Moby Dick? “Seja qual for o meu destino, irei até ele rindo.”
Junior viu Barbie lhe mostrar o dedo, em estéreo, e esqueceu tudo sobre Rusty Começou a descer o corredor com a arma erguida à frente. Os sentidos de Barbie estavam muito aguçados agora, mas não confiava neles. Quase com certeza, as pessoas que pensou ter ouvido se mover e falar lá em cima eram só a sua imaginação. Ainda assim, a gente tem que representar o papel até o fim. No mínimo, ele daria a Rusty um pouco mais de respiração, um pouco mais de tempo.
— Olha você aí, seu cara de merda — disse. — Lembra como acabei com você naquela noite no Dipper’s? Você gritou como uma putinha.
— Não gritei. — O som mais parecia um prato exótico num cardápio chinês. O rosto de Junior era um desastre. O sangue do olho esquerdo pingava pela face escurecida pela barba por fazer. Ocorreu a Barbie que talvez tivesse uma chance. Não muito boa, mas uma chance ruim era melhor do que nenhuma.
Começou a andar de um lado para o outro na frente do catre e do vaso sanitário, primeiro devagar, depois mais depressa. Agora você sabe como se sente o pato mecânico da galeria de tiro, pensou. Também tenho que me lembrar disso.
Junior seguia os seus movimentos com o olho bom.
— Você fodeu com ela? Você fodeu com a Angie? — Cefudecuel? Cefudecuaell?
Barbie riu. Era o riso louco, aquele que ainda não reconhecia como seu, mas nele não havia nada fingido.
— Se eu fodi com ela? Se eu fodi com ela? Junior, eu fodi com ela por cima, por baixo e por trás, tudo contado e registrado. Fodi com ela enquanto ela cantava Hail to the Chief e Bad Moon Rising. Fodi com ela até ela bater no chão e berrar por muito mais. Eu...
Junior inclinou a cabeça na direção da arma. Barbie viu e se jogou para a esquerda sem demora. Junior atirou. A bala atingiu a parede de tijolos no fundo da cela. Voaram lascas vermelhas e escuras. Algumas atingiram a grade — Barbie ouviu o chocalhar metálico, como ervilhas numa caneca de lata, mesmo com o tiro tinindo nos ouvidos —, mas nenhuma atingiu Junior. Merda. Do corredor, Rusty berrou alguma coisa, talvez tentando distrair Junior, mas este não podia mais ser distraído. Estava com o alvo principal na mira.
Ainda não, nada disso, pensou Barbie. Ainda ria. Era doido, maluco, mas ria. Ainda não, seu filho da puta frio e caolho.
— Ela disse que você não conseguia, Junior. Chamou você de El Brocha Supremo. A gente ria disso enquanto...
Pulou para a direita no mesmo instante em que Junior atirou. Dessa vez, ouviu a bala passar pelo lado da cabeça: o som foi de zzzzzz. Mais lascas de tijolo pularam. Uma feriu a nuca de Barbie.
— Vamos lá, Junior, o que há de errado com você? Você atira como uma marmota fazendo contas. Tá lelé? Era o que Angie e Frankie sempre diziam...
Barbie fez uma finta para a direita e depois correu para o lado esquerdo da cela. Junior atirou três vezes, as explosões ensurdecedoras, o fedor da pólvora queimada rico e forte. Duas balas se enterraram no tijolo; a terceira atingiu a base metálica do vaso sanitário com um som de spang. A água começou a jorrar. Barbie bateu na outra parede da cela com força suficiente para chacoalhar os dentes.
— Te peguei agora — ofegou Junior. Tchegueigorra. Mas no fundo do que restava da sua máquina de pensar superaquecida, ele duvidou. O olho esquerdo estava cego e o direito, borrado. Não via um Barbie, mas três.
O filhodamãe odioso se abaixou quando Junior atirou, e essa bala também errou. Um olhinho preto se abriu no meio do travesseiro na cabeceira do catre.
Mas ao menos ele estava no chão. Chega de dança e sacolejo. Graças a Deus eu pus aquele pente novo, pensou Junior.
— Você me envenenou, Baaarbie.
Barbie não fazia ideia do que ele estava falando, mas concordou na mesma hora.
— Isso mesmo, seu chupa-picazinho odioso, foi mesmo.
Junior passou a Beretta entre as grades e fechou o olho esquerdo ruim; isso reduziu o número de Barbies que via para apenas dois. A língua estava presa entre os dentes, O rosto escorria de sangue e suor.
— Quero ver você correr agora, Baaarbie...
Barbie não podia correr, mas podia se arrastar e se arrastou, indo direto para Junior. A bala seguinte assoviou por sobre a cabeça e ele sentiu uma vaga queimadura numa das nádegas quando o projétil rasgou os jeans e a cueca e removeu a camada superior da pele ali debaixo.
Junior recuou, tropeçou, quase caiu, se agarrou nas grades da cela à direita e se levantou de novo.
— Fica parado, seu filho da puta!
Barbie girou para o catre e enfiou a mão ali, atrás do canivete. Tinha esquecido tudo sobre a merda do canivete.
— Quer nas costas? — perguntou Junior atrás dele. — Tudo bem, pra mim está ótimo.
— Mata ele! — berrou Rusty. — Mata ele, MATA ELE!
Antes do próximo tiro, Barbie só teve tempo de pensar: Jesus Cristo, Everett, de que lado você está?
Jackie desceu a escada com Rommie atrás. Teve tempo de perceber a névoa de fumaça que passava em volta das lâmpadas engaioladas do teto e o fedor de pólvora queimada, e então Rusty Everett gritou Mata ele, mata ele.
Viu Junior Rennie no fim do corredor, agarrado às grades da última cela, aquela que os policiais às vezes chamavam de Ritz. Gritava alguma coisa, mas estava tudo embolado.
Ela nem pensou. Nem mandou Junior levantar as mãos e se virar. Simplesmente lhe meteu duas balas nas costas.
Uma penetrou no pulmão direito; a outra perfurou o coração. Junior estava morto antes de escorregar até o chão com o rosto apertado entre duas grades da cela, os olhos puxados com tanta força que parecia uma máscara mortuária japonesa.
O que o corpo em queda revelou foi Dale Barbara em pessoa, agachado no catre com o canivete cuidadosamente escondido na mão. Nunca tivera a chance de abri-lo.
Freddy Denton agarrou o ombro do policial Henry Morrison. Naquela noite, Denton não era a sua pessoa favorita e nunca mais seria. Não que já tenha sido, pensou Henry amargamente.
Denton apontou.
— Por que aquele velho idiota do Calvert entrou na delegacia?
— Como é que eu vou saber? — perguntou Henry, e agarrou Donnie Baribeau, que passava correndo, gritando alguma merda sem sentido sobre terroristas.
— Mais devagar! — berrou Henry na cara de Donnie. — Acabou tudo! Está tudo bem!
Fazia dez anos que Donnie cortava o cabelo de Henry e contava as mesmas piadas velhas duas vezes por mês, mas agora olhava Henry como se não o conhecesse. Então se soltou e correu na direção da rua Leste, onde ficava a barbearia. Talvez quisesse se refugiar lá.
— Nenhum civil tem nada que fazer na delegacia hoje — disse Freddy. Mel Searles fumegava ao seu lado.
— Ora, por que não vai lá ver, assassino? — perguntou Henry — Leva esse inútil com você. Porque nenhum dos dois vai servir pra nada aqui.
— Ela ia pegar a arma — disse Freddy pela primeira de muitas vezes. — E eu não queria matar. Só deter, tipo assim.
Henry não tinha a intenção de discutir.
— Vai até lá e manda o velho sair. E vê se tem alguém tentando soltar os prisioneiros enquanto nós estamos aqui correndo como um monte de galinhas de cabeça cortada.
Uma luz surgiu nos olhos confusos de Freddy Denton.
— Os prisioneiros! Mel, vamos!
Eles começaram a correr, mas foram paralisados pela voz de Henry, amplificada pelo megafone, 3 metros atrás deles:
— E LARGUEM ESSAS ARMAS, SEUS IDIOTAS!
Freddy fez o que a voz amplificada ordenou. Mel também. Atravessaram a praça do Memorial de Guerra e subiram correndo os degraus da delegacia com as armas no coldre, o que provavelmente foi muito bom para o avô de Norrie.
Sangue por toda parte, pensou Ernie, igual a Jackie. Fitou a carnificina, desolado, e depois se forçou a avançar. Tudo dentro da mesa da recepção tinha se espalhado quando Rupe Libby a atingiu. No meio do lixo havia um retângulo de plástico vermelho que ele rezou para que o povo lá embaixo talvez pudesse aproveitar.
Abaixava-se para pegá-lo (dizendo a si mesmo para não vomitar, dizendo a si mesmo que ainda era muito melhor do que o vale A Shau, no Vietnã) quando alguém atrás dele disse:
— Puta que o santo pariu de manhã! Levanta, Calvert, devagar. As mãos sobre a cabeça.
Mas Freddy e Mel ainda tentavam pegar as armas quando Rommie subiu a escada para procurar o que Ernie já achara. Rommie estava com a Black Shadow de ação rápida que guardara no cofre e a apontou para os dois policiais sem hesitar um instante.
— Vocês aí, bons rapazes, é melhor entrrar — disse. — E fiquem juntos. Ombrro a ombrro. Se eu ver luz entre vocês, atirro. E não estou brrincando mesmo.
— Baixa isso — disse Freddy. — Somos da polícia.
— Grrandes cuzões é o que vocês são. Fiquem ali encostados no quadrro de avisos. E com os ombros bem juntinhos. Ernie, que diabos você está fazendo aqui?
— Ouvi tiros. Fiquei preocupado. — Ele ergueu o cartão vermelho que abria as celas do Galinheiro. — Você vai prrecisar disso, acho. A menos... a menos que estejam mortos.
— Não estão mortos, mas foi por pouco. Leve lá prra Jackie. Eu fico de olho nesses dois.
— Você não pode soltar eles, estão presos — disse Mel. — Barbie é assassino. O outro tentou enquadrar o sr. Rennie com uns documentos ou... ou coisa parecida.
Rommie não se deu ao trabalho de responder.
— Vai logo, Ernie. Depressa.
— O que vai acontecer conosco? — perguntou Freddy. — Você não vai nos matar, vai?
— Por que eu te mataria, Freddy? Você ainda me deve aquele motocultivador que comprrou de mim na prrimaverra passada. As prrestações atrrasadas também, se bem me lembro. Não, só vamos trrancar vocês no Galinheirro. Prra ver se gostam lá de baixo. Tem cheirro de mijo, mas vai ver que vocês gostam.
— Você teve que matar o Mickey? — perguntou Mel. — Ele era só um garoto miolo mole.
— Não matamos nenhum deles — disse Rommie. — Foi o seu bom amigo Junior que fez isso. — Não que alguém vá acreditar nisso amanhã à noite, pensou.
— Junior! — exclamou Freddy. — Cadê ele?
— Transportando carvão lá no inferno, eu dirria — respondeu Rommie. — É onde põem os novatos.
Barbie, Rusty, Jackie e Ernie subiram. Os dois ex-prisioneiros pareciam ainda não acreditar que estavam vivos. Rommie e Jackie escoltaram Freddy e Mel até o Galinheiro. Quando Mel viu o corpo amarrotado de Junior, disse:
— Vocês vão se arrepender disso!
— Cala a boca e entrra no seu novo lar — retrucou Rommie. — Os dois na mesma cela. Afinal de contas, vocês são amigos.
Assim que Rommie e Jackie voltaram ao andar de cima, os dois começaram a berrar.
— Vamos sair daqui enquanto ainda podemos — disse Ernie.
Nos degraus, Rusty olhou as estrelas cor-de-rosa e inspirou o ar que fedia e cheirava maravilhosamente bem ao mesmo tempo. Virou-se para Barbie.
— Eu não esperava ver o céu de novo.
— Nem eu. Vamos cair fora da cidade enquanto temos chance. Que tal Miami Beach?
Rusty ainda ria quando entrou na van. Vários policiais estavam no gramado da prefeitura, e um deles — Todd Wendlestat — ergueu os olhos. Ernie ergueu a mão e acenou; Rommie e Jackie também; Wendlestat devolveu o aceno e depois se abaixou para ajudar uma mulher que caíra de pernas abertas na grama quando os saltos altos a traíram.
Ernie se enfiou atrás do volante e ligou os fios elétricos pendurados abaixo do painel. O motor ligou, a porta lateral se fechou e a van se afastou do meio-fio. Subiu lentamente rumo ao morro da praça da Cidade, desviando-se de alguns participantes da assembleia que andavam estupefatos pela rua. Depois, saíram do centro da cidade e seguiram para a Serra Negra, pegando velocidade.
FORMIGAS
Eles começaram a ver o brilho do outro lado de uma velha ponte enferrujada que agora só cruzava um lamaçal. Barbie se inclinou para a frente entre os bancos dianteiros da van.
— O que é isso? Parece o maior relógio fluorescente do mundo.
— É radiação — disse Ernie.
— Não se preocupe — completou Rommie. — Temos muita folha de chumbo.
— Norrie me ligou do celular da mãe enquanto eu esperava vocês — contou Ernie. — Ela me falou do brilho. Disse que Julia acha que não passa de um tipo de... espantalho, acho que podemos dizer assim. Não perigoso.
— Pensei que Julia tinha se formado em jornalismo, não em ciência — disse Jackie. — Ela é uma pessoa ótima e inteligente, mas ainda assim vamos blindar isso aqui, não é? Porque não estou com muita vontade de ganhar um câncer de mama ou de ovário de presente quando fizer 40 anos.
— Passamos depressa — disse Rommie. — Você pode até pôr um pedaço daquela folha de chumbo na frente das calças, se for se sentir melhor assim.
— Isso é tão engraçado que me esqueci de rir — disse ela... e então, riu ao se imaginar com calças de chumbo, elegantemente cavadas nas laterais.
Chegaram ao urso morto junto ao poste telefônico. Conseguiriam vê-lo mesmo com os faróis apagados, porque nisso as luzes combinadas da lua cor-de-rosa e do cinturão radiativo quase dariam para ler um jornal.
Enquanto Rommie e Jackie cobriam as janelas da van com folha de chumbo, os outros formaram um semicírculo em torno do urso que apodrecia.
— Não foi radiação — supôs Barbie.
— Não — disse Rusty. — Suicídio.
— E tem outros.
— Tem. Mas os animais menores parecem a salvo. As crianças e eu vimos muitos passarinhos e tinha um esquilo no pomar. Vivinho da silva.
— Então quase com certeza Julia está certa — concluiu Barbie. — A faixa brilhante é um espantalho e os animais mortos, outro. É a velha coisa: cinto mais suspensórios.
— Não estou entendendo, amigo — comentou Ernie.
Mas Rusty, que aprendera a abordagem do cinto com suspensórios quando estudava medicina, entendeu perfeitamente.
— Dois avisos pra se afastar — disse ele. — Animais mortos de dia, um cinturão brilhante de radiação à noite.
— Até onde eu sei — disse Rommie, indo até eles à beira da estrada — a radiação só brrilha em filmes de ficção científica.
Rusty pensou em lhe dizer que estavam vivendo num filme de ficção científica, e Rommie perceberia isso quando se aproximasse daquela estranha caixa no alto do morro. Mas é claro que Rommie estava certo.
— Eles querem que a gente veja — disse. — É a mesma coisa com os bichos mortos. Querem que a gente diga: “Uau, se aqui tem um tipo de raio suicida que afeta mamíferos de grande porte, melhor eu me afastar. Afinal de contas, eu sou um mamífero de grande porte.”
— Mas os garotos não se afastaram — disse Barbie.
— Porque são garotos — disse Ernie. E, depois de pensar um instante: — E skatistas. É uma raça diferente.
— Eu ainda não gosto disso — foi a vez de Jackie —, mas como não temos pra onde ir, talvez possamos passar por esse Cinturão de Van Allen ali antes que eu perca a coragem que me resta. Depois do que aconteceu na delegacia, estou me sentindo meio abalada.
— Esperem um instante — disse Barbie. — Tem alguma coisa fora de ordem aqui. Eu estou vendo, mas me deem um instante pra pensar num jeito de explicar.
Esperaram. O luar e a radiação iluminavam os restos mortais do urso. Barbie o fitava. Finalmente, levantou a cabeça.
— Tudo bem, eis o que está me incomodando. Essa história de eles. Sabemos que existem porque a caixa que o Rusty achou não é um fenômeno natural.
— Certíssimo, é uma coisa fabricada — disse Rusty. — Mas não terrestre. Aposto a minha vida nisso. — Então pensou em como chegara perto de perder a vida não havia nem uma hora e tremeu. Jackie lhe segurou o ombro.
— Essa parte agora não importa — disse Barbie. — Eles existem, e se quisessem mesmo nos manter afastados, conseguiriam. Estão mantendo o mundo inteiro fora de Chester’s Mill. Se quisessem nos afastar da caixa deles, por que não pôr uma mini-redoma em volta dela?
— Ou um som harmônico que cozinhasse o nosso cérebro como coxinhas no micro-ondas — sugeriu Rusty, entrando no espírito da coisa. — Diabos, radiação de verdade, por assim dizer.
— A radiação pode ser de verdade — disse Ernie. — Na verdade, o contador Geiger que você trouxe aqui confirmou isso bastante bem.
— É — concordou Barbie —, mas isso significa que o que o contador Geiger registrou é perigoso? Rusty e os garotos não estão cheios de lesões, nem perdendo cabelo, nem vomitando até o forro do estômago.
— Ao menos ainda não — disse Jackie.
— Que otimista — comentou Rommie.
Barbie ignorou a conversa paralela.
— Sem dúvida, se sabem fazer uma barreira tão forte que resiste aos melhores mísseis que os Estados Unidos conseguem lançar, eles poderiam criar um cinturão radiativo que matasse depressa, talvez instantaneamente. Seria até do interesse deles fazer isso. Algumas mortes humanas horríveis teriam muito mais probabilidade de desencorajar exploradores do que um monte de animais mortos. Não, eu acho que a Julia está certa, e o chamado cinturão radiativo na verdade é um brilho inofensivo que foi preparado pra ser registrado pelos nossos detetores. Que, provavelmente, parecem bem primitivos pra eles, se forem mesmo extraterrestres.
— Mas por quê? — explodiu Rusty. — Por que uma barreira? Não consegui levantar a maldita coisa, ela nem balançou! E quando pus o avental de chumbo em cima, ele pegou fogo. Mas a caixa estava fria ao toque!
— Se estão protegendo a caixa, ela pode ser destruída ou desligada de algum jeito — disse Jackie. — A não ser...
Barbie sorria. Sentia-se estranho, quase como se flutuasse acima da própria cabeça.
— Continua, Jackie. Fala.
— A não ser que eles não estejam protegendo a caixa, não acha? Não de quem esteja decidido a se aproximar dela.
— Tem mais — continuou Barbie. — Não poderíamos dizer que, na verdade, estão apontando pra ela? Joe McClatchey e os amigos praticamente seguiram um rastro de migalhas.
— Está aqui, terráqueos insignificantes — disse Rusty — O que vão fazer com isso, vocês que têm coragem suficiente pra se aproximar?
— Parece que é isso mesmo — disse Barbie. — Vamos. Vamos subir até lá.
— É melhor eu dirigir a partir daqui — disse Rusty a Ernie. — Foi ali na frente que os garotos desmaiaram. Rommie quase desmaiou. Eu também senti. E tive um tipo de alucinação. Um boneco de Halloween que pegou fogo de repente.
— Outro aviso? — perguntou Ernie.
— Não sei. — Rusty foi até onde a floresta acabava e o terreno aberto e pedregoso subia rumo ao pomar dos McCoy. Logo à frente, o ar brilhava tanto que tiveram de franzir os olhos, mas não havia fonte; o brilho ficava simplesmente ali flutuando. Para Barbie, lembrava o tipo de luz dos vagalumes, só que ampliada um milhão de vezes. O cinturão parecia ter uns 50 metros de largura. Além dele, o mundo estava escuro de novo, a não ser pelo brilho rosado do luar.
— Tem certeza de que não vai desmaiar de novo? — perguntou Barbie.
— Parece que é como tocar a Redoma: a primeira vez deixa a gente vacinado. — Rusty se instalou atrás do volante, pôs a alavanca de transmissão em “drive” e disse: — Segurem a dentadura, senhoras e senhores.
Pisou no acelerador com força suficiente para os pneus de trás girarem em falso. A van disparou rumo ao brilho. Estavam blindados demais para ver o que aconteceu depois, mas várias pessoas já no morro, à beira do pomar, assistiram de onde olhavam com angústia crescente. Por um instante, a van ficou claramente visível, como no meio da luz de um refletor. Quando cruzou o cinturão, continuou a brilhar por vários segundos, como se mergulhasse em rádio. E arrastou atrás de si uma cauda de cometa de brilho evanescente, como a exaustão do cano de descarga.
— Caralho — disse Benny. — Parece o melhor efeito especial que eu já vi.
Depois, o brilho em torno da van se esvaiu e a cauda desapareceu.
Quando passaram pelo cinturão brilhante, Barbie sentiu uma tontura momentânea, nada mais. Para Ernie, o mundo real dessa van e dessas pessoas foi substituído por um quarto de hotel que cheirava a pinho e trovejava com o som das Cataratas do Niágara. E ali estava a sua esposa, com apenas 12 horas de casada, vindo para ele, com uma camisola que não passava de um sopro de fumaça violeta, pegando as mãos dele e pondo-as sobre os seios, dizendo Dessa vez a gente não precisa parar, querido.
Então ouviu Barbie gritar, e isso o trouxe de volta.
— Rusty! Ela está tendo uma convulsão! Para!
Ernie olhou em volta e viu Jackie Wettington se sacudindo, os olhos erguidos nas órbitas, os dedos abertos.
— Ele levantou a cruz e tudo está queimando! — gritou. Saía cuspe dos seus lábios. — O mundo está queimando! AS PESSOAS ESTÃO QUEIMANDO! — Ela deu um guincho que encheu a van.
Rusty quase jogou a van na vala lateral, voltou para o meio da estrada, desceu e correu até a porta lateral. Quando Barbie a abriu, Jackie limpava o cuspe do queixo com a mão em concha. Rommie estava com o braço em volta dela.
— Você está bem? — perguntou Rusty.
— Agora estou. Eu só... foi que... tudo estava pegando fogo. Era de dia, mas estava escuro. As pessoas estavam q-q-queimando... — Ela começou a chorar.
— Você disse alguma coisa sobre um homem com uma cruz — disse Barbie.
— Uma cruz grande e branca. Pendurada numa cordinha ou numa tira de couro cru. Estava no peito dele. No peito nu. Aí ele levantou ela na frente do rosto. — Ela inspirou fundo, soltou o ar em pequenos jorros. — Está tudo sumindo agora. Mas... uuu!
Rusty ergueu dois dedos na frente dela e perguntou quantos via. Jackie deu a resposta correta e seguiu o seu polegar quando ele o moveu primeiro de um lado para o outro, depois de cima para baixo. Deu-lhe um tapinha no ombro e em seguida olhou desconfiado o cinturão brilhante. O que foi mesmo que Gollum dissera de Bilbo Baggins? É traiçoeiro, precioso.
— E você, Barbie? Tudo bem?
— Tudo. Uma tonturinha por alguns segundos e foi só. Ernie?
— Eu vi minha mulher. E o quarto de hotel onde ficamos na lua de mel. Claro como o dia.
Ele pensou de novo nela a se aproximar dele. Havia anos que não pensava nisso, e que vergonha negligenciar lembrança tão maravilhosa. A brancura das coxas debaixo da camisolinha curta; o belo triângulo escuro de pelos pubianos; os mamilos duros contra a seda, quase parecendo arranhar a palma da mão quando ela enfiou a língua na sua boca e lambeu o revestimento interno do lábio inferior.
Dessa vez a gente não precisa parar, querido.
Ernie se recostou e fechou os olhos.
Rusty subiu o morro — devagar, agora — e estacionou a van entre o celeiro e a dilapidada casa da fazenda. A van do Rosa Mosqueta estava lá; a da Loja de Departamentos Burpee; também um Chevrolet Malibu. Julia estacionara o seu Prius dentro do celeiro. Horace, o corgi, estava sentado junto ao para-choque traseiro, como se o guardasse. Não parecia um canino feliz, e não fez nenhum movimento para ir recebê-los. Dentro da casa, dois lampiões a gás estavam acesos.
Jackie apontou a van com TODO DIA É LIQUIDAÇÃO NO BURPEE na lateral.
— Como isso chegou aqui? A sua mulher mudou de idéia?
Rommie sorriu.
— Você não conhece Misha dirreito pra pensar uma coisa dessas. Não, tenho que agrradecer a Julia. Ela recrrutou os dois repórterres prremiados dela. Esses rapazes...
Ele se interrompeu quando Julia, Piper e Lissa Jamieson surgiram das sombras enluaradas do pomar. As três vinham aos tropeços, uma ao lado da outra, de mãos dadas, e as três choravam.
Barbie correu para Julia e a segurou pelos ombros. Ela estava na ponta da pequena fila, e a lanterna que segurava na mão livre caiu na terra coberta de mato do jardim da frente. Ergueu os olhos para ele e fez um esforço para sorrir.
— Então tiraram você de lá, coronel Barbara. Mais um pro time da casa.
— O que aconteceu com vocês? — perguntou Barbie.
Nisso, Joe, Benny e Norrie vieram correndo com as mães logo atrás. Os gritos dos garotos se interromperam quando viram o estado das três mulheres. Horace correu para a dona, latindo. Julia se ajoelhou e enterrou o rosto no pelo dele. Horace a cheirou e, de repente, se afastou. Sentou-se e uivou. Julia o olhou e cobriu o rosto, como se estivesse envergonhada. Norrie agarrara a mão de Joe à sua esquerda e a de Benny à direita. O rosto deles estava solene e assustado. Pete Freeman, Tony Guay e Rose Twitchell saíram da casa, mas não se aproximaram. Ficaram amontoados junto à porta da cozinha.
— Fomos olhar aquilo — disse Lissa com voz arrastada. A sua costumeira vivacidade à la ai-o-mundo-é-tão-maravilhoso sumira. — Nós nos ajoelhamos em volta. Tem um símbolo que eu nunca vi antes... não é da cabala...
— É horrível — disse Piper, enxugando os olhos. — E aí Julia tocou nele. Foi a única, mas nós... nós todas...
— Vocês viram eles? — perguntou Rusty.
Julia soltou as mãos e o olhou com cara de espanto.
— Vi. Vi sim, todas vimos. Eles. Horríveis.
— Os cabeças de couro — disse Rusty.
— O quê?— perguntou Piper. Depois, concordou. — É, acho que pode ser isso mesmo. Rostos sem rosto. Rostos altos.
Rostos altos, pensou Rusty Não sabia o que isso significava, mas sabia que era verdade. Pensou de novo nas filhas com a amiga Deanna trocando segredos e lanches. Depois, pensou no melhor amigo de infância — ao menos por algum tempo; ele e Georgie brigaram violentamente no segundo ano — e o horror o inundou como uma onda.
Barbie o segurou.
— O quê? — Quase gritava. — O que é?
— Nada. Só que... Eu tinha um amigo quando era pequeno. George Lathrop. Certa vez ele ganhou de aniversário uma lente de aumento. E às vezes... no recreio...
Rusty ajudou Julia a se levantar. Horace voltara para ela, como se o que o assustara sumisse como o brilho sumira da van.
— Vocês faziam o quê? — perguntou Julia. Parecia quase calma outra vez. — Conta.
— Era na velha Escola Gramatical da rua Principal. Duas salas só, uma pras turmas do primeiro ao quarto ano, a outra pras turmas do quinto ao oitavo. O pátio não era pavimentado. — Ele deu um riso trêmulo. — Diabos, não havia nem água corrente, só uma latrina que os garotos chamavam de...
— Casa do Mel — disse Julia. — Eu também frequentei.
— George e eu íamos até a cerca depois do trepa-trepa. Tinha formigueiros lá e a gente punha fogo nas formigas.
— Não se culpa por isso, doutor — disse Ernie. — Muitas crianças já fizeram isso, ou coisa pior.
O próprio Ernie, junto com alguns amigos, já mergulhara o rabo de um gato em querosene e pusera fogo com um fósforo. Era uma lembrança que não contaria a ninguém, como também não contaria os detalhes da sua noite de núpcias.
Em especial porque a gente riu muito quando o gato saiu disparado pensou. Deus do céu, como a gente riu.
— Continua — disse Julia.
— Acabou.
— Não acabou — insistiu ela.
— Olha — disse Joanie Calvert —, eu sei que isso tudo é muito psicológico, mas acho que não é hora...
— Psiu, Joanie — disse Claire.
Julia não tirava os olhos do rosto de Rusty
— Que importância isso tem pra você? — perguntou Rusty. Naquele momento, sentia-se como se não houvesse ninguém olhando. Como se fossem só eles dois.
— É só me contar.
— Certo dia, enquanto estávamos fazendo... aquilo... me ocorreu que as formigas também têm as suas vidinhas. Sei que isso soa como uma xaropada sentimental...
— Milhões de pessoas no mundo inteiro acreditam exatamente nisso — disse Barbie. — Guiam a vida por isso.
— Seja como for, eu pensei: “Estamos machucando as formigas. Estamos queimando as formigas, talvez torrando elas vivas nas suas casas subterrâneas.” Sobre as que recebiam o efeito direto da lente de aumento de Georgie, não havia o que duvidar. Algumas só paravam de se mexer, mas a maioria realmente pegava fogo.
— Isso é horrível — disse Lissa. Ela torcia o seu ankh de novo.
— É mesmo, senhora. E naquele dia eu disse a Georgie que parasse. Ele não quis. Disse: “É guerra jucular.” Eu me lembro bem. Não nuclear, mas jucular. Tentei tirar a lente de aumento dele. No instante seguinte, a gente estava brigando e a lente se quebrou.
Ele parou.
— Isso não é verdade, embora seja o que eu disse na época, e nem a surra que o meu pai me deu me fez mudar a história. A história que o George contou aos pais dele foi a verdadeira: eu quebrei o diabo da coisa de propósito. — Apontou a escuridão. — Do mesmo jeito que quebraria aquela caixa, se pudesse. Porque agora nós somos as formigas e aquilo é a lente de aumento.
Ernie pensou de novo no gato com o rabo em chamas. Claire McClatchey lembrou que ela e a melhor amiga do terceiro ano tinham se sentado em cima de uma garota que chorava e que as duas odiavam. A garota era nova na escola e tinha um sotaque sulista engraçado, e parecia que falava com a boca cheia de purê de batata. Quanto mais a menina nova chorava, mais elas riam. Romeo Burpee lembrou do porre que tomara na noite em que Hillary Clinton chorou em New Hampshire, brindando à tela da TV e dizendo: “Acabou pra você, diabo de garota, sai do caminho e deixa um homem fazer o serviço dele.”
Barbie lembrou de um certo ginásio: o calor do deserto, o cheiro de merda, o som de risos.
— Quero ver com meus próprios olhos — disse. — Quem vai comigo?
Rusty suspirou.
— Eu vou.
Enquanto Barbie e Rusty se aproximavam da caixa com o seu estranho símbolo e a luz pulsante e brilhante, o vereador James Rennie estava na cela onde Barbie estivera preso fazia pouco tempo naquela noite.
Carter Thibodeau o ajudara a erguer o corpo de Junior até o catre.
— Me deixa com ele — disse Big Jim.
— Chefe, eu sei que o senhor deve estar se sentindo muito mal, mas tem mil coisas que precisam da sua atenção agora mesmo.
— Eu sei disso. E vou cuidar delas. Mas primeiro preciso de um tempinho com meu filho. Cinco minutos. Depois você pode arranjar dois camaradas pra levar ele até a funerária.
— Tudo bem. Sinto muito pela sua perda. Junior era um bom rapaz.
— Não, não era — retrucou Big Jim. Falava num tom de voz suave, digo-apenas-o-que-é. — Mas era meu filho e eu amava ele. E isso não é tão mau assim, você sabe disso.
Carter pensou um pouco.
— Eu sei.
Big Jim sorriu:
— Eu sei que você sabe. Estou começando a achar que você é o filho que eu devia ter.
O rosto de Carter corou de prazer quando subiu a escada aos pulos até a sala de controle.
Quando o outro se foi, Big Jim se sentou no catre e baixou a cabeça de Junior no seu colo. O rosto do rapaz não estava marcado, e Carter lhe fechara os olhos. Se a gente ignorasse o sangue que empapava a camisa, poderia estar dormindo.
Era meu filho e eu amava ele.
Era verdade. Estivera prestes a sacrificar Junior, sim, mas isso tinha um precedente; bastava ver o que acontecera no Monte Calvário. E, como Cristo, o rapaz morrera por uma causa. Qualquer que tivesse sido o dano causado, o delírio de Andrea Grinnell seria reparado quando a cidade percebesse que Barbie matara vários policiais dedicados, inclusive o filho único do seu líder. Barbie solto e, provavelmente planejando novas diabruras era um bônus político.
Big Jim ficou mais algum tempo sentado, penteando o cabelo de Junior com os dedos e olhando extasiado o rosto sossegado do rapaz. Então, entredentes, cantou para ele como a mãe cantara quando o rapaz era um bebê deitado no berço, olhando o mundo lá em cima com espanto nos olhos arregalados. “Tutu Marambá... não venhas mais cá... Que o pai do menino te manda matar... Tutu Marambá...”
Então, parou. Não conseguia se lembrar do resto. Ergueu a cabeça de Junior e se levantou. O coração deu uma finta irregular, ele prendeu a respiração... mas aí se acalmou de novo. Achou que acabaria tendo de arranjar um pouco mais daquele verapa-sei-lá-o-quê na farmácia de Andy, mas por enquanto havia trabalho a fazer.
Deixou Junior e subiu a escada devagar, segurando o corrimão. Carter estava na sala de controle. Os corpos tinham sido removidos e folhas duplas de jornais absorviam o sangue de Mickey Wardlaw.
— Vamos até a Câmara antes que isso aqui se encha de policiais — disse a Carter. — O Dia de Visita começa oficialmente... — ele olhou o relógio — daqui a umas 12 horas. Temos muito que fazer até lá.
— Eu sei.
— E não se esquece do meu filho. Quero que os Bowie façam tudo direito. Uma apresentação respeitosa dos restos mortais e um bom caixão. Diga ao Stewart que, se eu vir Junior num daqueles troços baratos lá dos fundos, eu mato ele.
Carter rabiscava no caderninho.
— Eu cuido disso.
— E diz pro Stewart que logo eu vou conversar com ele. — Vários policiais entraram pela porta da frente. Pareciam desanimados, um pouco assustados, muito jovens e inexperientes. Big Jim se içou da cadeira onde se sentara enquanto recuperava o fôlego. — Hora de ir.
— Por mim, tudo bem — disse Carter. Mas ele parou.
Big Jim olhou em volta.
— Tem algo em mente, filho?
Filho. Carter gostou do som daquele filho. O seu pai morrera cinco anos antes, ao bater com a picape numa das pontes gêmeas de Leeds, e não foi grande perda. Agredia a mulher e os dois filhos (agora o irmão mais velho de Carter servia nos Fuzileiros Navais), mas Carter não se importava muito; a mãe tinha o café com aguardente para se entorpecer e o próprio Carter sempre dera os seus golinhos. Não, o que ele detestava no velho era que vivia se queixando e era estúpido. Todos supunham que Carter também era estúpido — diabos, até Junes pensava assim —, mas não era. O sr. Rennie entendera isso, e sem dúvida o sr. Rennie não vivia se queixando.
Carter descobriu que não estava mais indeciso sobre o que fazer agora.
— Eu tenho algo que o senhor talvez queira.
— É mesmo? — Big Jim descera na frente de Carter, dando a este a oportunidade de ir até o seu armário. Ele o abriu e tirou o envelope com VADER escrito. Entregou-o a Big Jim. A pegada sangrenta impressa nele parecia brilhar.
Big Jim abriu o fecho.
— Jim — disse Peter Randolph. Viera sem ser notado e estava em pé junto à mesa virada da recepção, com ar exausto. — Acho que acalmamos a situação, mas não encontro vários dos novos policiais. Acho que eles podem ter abandonado o barco.
Era de se esperar — disse Big Jim. — E é temporário. Vão voltar quando tudo voltar ao normal e perceberem que o Dale Barbara não vai comandar uma quadrilha de canibais sedentos de sangue pra comer eles vivos.
— Mas com essa maldita coisa do Dia de Visita...
— Quase todo mundo vai se comportar o melhor possível amanhã, Pete, e tenho certeza de que nós temos policiais suficientes pra cuidar dos que não se comportarem.
— O que nós vamos fazer com a entrevista cole...
— Você não tá vendo que eu estou um pouco ocupado aqui? Não está vendo, Pete? Céus! Vai até a sala de reuniões da Câmara de Vereadores daqui a meia hora e a gente discute o que você quiser. Mas agora, me deixa sozinho, por favor.
— É claro. Sinto muito. — Pete recuou, o corpo tão rígido e ofendido quanto a voz.
— Para — disse Rennie.
Randolph parou.
— Você não me deu condolências pelo meu filho.
— Eu... Sinto muitíssimo.
Big Jim mediu Randolph com os olhos.
— Sente mesmo.
Quando Randolph se foi, Rennie tirou do envelope as folhas de papel, olhou-as rapidamente e depois enfiou-as de volta lá dentro. Olhou Carter com curiosidade sincera.
— Por que não me deu isso imediatamente? Estava planejando guardar?
Agora que entregara o envelope, Carter não viu opção a não ser a verdade.
— É. Por algum tempo, ao menos. Por precaução.
— Precaução? Por quê?
Carter deu de ombros.
Big Jim não insistiu na pergunta. Como alguém que mantinha dossiês rotineiros sobre tudo e todos que pudessem criar problemas, nem precisava. Uma outra pergunta lhe interessava mais.
— Por que você mudou de ideia?
Mais uma vez, Carter não viu opção a não ser a verdade.
— Porque eu quero ser o seu homem de confiança, chefe.
Big Jim levantou as sobrancelhas grossas.
— Mesmo? Mais do que ele? — Indicou com a cabeça a porta pela qual Randolph acabara de sair.
— Ele? Ele é uma piada.
— Isso. — Big Jim largou a mão no ombro de Carter. — Isso mesmo. Vamos. E assim que nós chegarmos à Câmara, queimar esses documentos no aquecedor a lenha da sala de reuniões vai ser o nosso primeiro ponto de pauta.
Eram mesmo altos. E horríveis.
Barbie os viu assim que o choque que passou pelos seus braços se reduziu. O primeiro impulso forte foi largar a caixa, mas ele o combateu e se segurou, olhando as criaturas que os aprisionavam. Aprisionavam e torturavam por prazer, se Rusty estivesse certo.
O rosto — se era rosto — deles era cheio de ângulos, mas os ângulos eram acolchoados e pareciam mudar a cada segundo, como se a realidade subjacente não tivesse forma fixa. Não sabia dizer quantos estavam lá, nem onde. A princípio, achou que eram quatro; depois oito; depois só dois. Inspiravam nele uma profunda sensação de asco, talvez por serem tão alienígenas que, na verdade, ele não conseguia entendê-los. A parte do cérebro que cuidava de interpretar informações sensoriais não conseguia decodificar as mensagens que os olhos transmitiam.
Os meus olhos não conseguiriam vê-los, não mesmo, nem com telescópio. Essas criaturas estão numa galáxia muito, muito distante.
Não havia como saber — a razão lhe dizia que os donos da caixa podiam ter uma base debaixo do gelo do polo Sul, ou talvez estivessem na órbita da Lua numa versão da nave estelar Enterprise — mas ele sabia. Estavam em casa... o que quer que fosse a casa deles. Estavam observando. E gostando.
Só podiam gostar, porque os filhos da puta estavam rindo.
Então ele voltou ao ginásio em Fallujah. Estava quente porque não havia ar-condicionado, só ventiladores de teto que empurravam em voltas e voltas o ar xaroposo com cheiro de suor. Tinham deixado todos os interrogados ir embora, exceto dois Abduls burros a ponto de aparecer um dia depois que duas bombas de fabricação caseira tiraram seis vidas americanas e um francoatirador tirara outra, a de um garoto de Kentucky de quem todos gostavam — Carstairs. E começaram a chutar os Abduis pelo ginásio e lhes arrancar a roupa, e Barbie gostaria de dizer que fora embora, mas não foi. Gostaria ao menos de. dizer que não tinha participado, mas tinha. Ficaram febris naquilo. Ele se lembrava de ter chutado a bunda ossuda e suja de merda de um Abdul e da marca vermelha que o coturno deixou. Nisso, os dois Abduls nus. Lembrou-se de Emerson chutando os cojones pendurados do outro com tanta força que voaram na frente dele e dizendo Isso é por Carstairs, seu negro fodido do deserto. Alguém logo daria à máe dele uma bandeira, com ela sentada numa cadeira de armar junto ao túmulo, sempre igual, sempre igual. Então, assim que Barbie se lembrou que, tecnicamente, era responsável por esses homens, o sargento Hackermeyer puxou um deles pelo resto desenrolado do hijab que agora era a sua única roupa e o segurou contra a parede e encostou a arma na cabeça de Abdul e houve uma pausa e ninguém disse náo nessa pausa e ninguém disse não faça isso nessa pausa e o sargento Hackermeyer puxou o gatilho e o sangue atingiu a parede como atingiu a parede por 3 mil anos ou mais, e foi isso, foi adeus, Abdul, não se esqueça de escrever quando não estiver ocupado molhando o biscoito naquelas virgens.
Barbie largou a caixa e tentou se levantar, mas as pernas o traíram. Rusty o agarrou e o segurou até ele se endireitar.
— Cristo — disse Barbie.
— Você viu eles, não foi?
— Foi.
— São crianças? O que acha?
— Talvez. — Mas não era bem isso, não era no que o coração acreditava. — É provável.
Voltaram devagar até onde os outros estavam reunidos diante da casa.
— Você está bem? — perguntou Rommie.
— Estou — disse Barbie. Tinha que falar com as crianças. E com Jackie. Com Rusty também. Mas não agora. Primeiro tinha que se controlar.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Rommie, tem mais daquela folha de chumbo na sua loja? — perguntou Rusty.
— Tem. Deixei na plataforma de desembarque.
— Ótimo — disse Rusty, e pediu emprestado o celular de Julia. Torcia para que Linda estivesse em casa e não numa sala de interrogatório da delegacia, mas só podia mesmo torcer.
O telefonema de Rusty foi necessariamente rápido, menos de trinta segundos, mas para Linda Everett foi longo o suficiente para fazer aquela quinta-feira terrível dar uma curva de 180 graus rumo à luz do sol. Sentou-se à mesa da cozinha, pôs as mãos no rosto e chorou. Chorou com o máximo de silêncio possível, porque agora havia quatro crianças lá em cima em vez de apenas duas. Levara com ela para casa as crianças Appleton, e agora tinha os Azinhos além das Jotinhas.
Alice e Aidan tinham ficado nervosíssimos — meu Deus, é claro que ficaram —, mas a companhia de Jannie e Judy ajudou. Doses de Benadryl por toda parte também. A pedido das filhas, Linda abrira sacos de dormir no quarto delas e agora os quatro estavam espalhados no chão entre as camas, Judy e Aidan abraçados.
Mal ela se controlara e houve uma batida na porta da cozinha. A primeira ideia foi a polícia, embora com o derramamento de sangue e a confusão no centro da cidade ela não os esperasse tão cedo. Mas não havia nada autoritário naquelas batidinhas leves.
Ela foi até a porta, parando para pescar um pano de prato na ponta da bancada e enxugar o rosto. A princípio, não reconheceu o visitante, principalmente porque o cabelo estava diferente. Não havia mais rabo de cavalo; ele caía sobre os ombros de Thurston Marshall, emoldurando o rosto, deixando-o parecido com uma lavadeira velha que tivesse recebido más notícias — notícias terríveis — depois de um dia longo e difícil.
Linda abriu a porta. Por um instante, Thurse ficou na soleira.
— A Caro morreu? — A voz era baixa e áspera. Como se a tivesse gastado em Woodstock cantando The Fish Cheer e a voz nunca mais tivesse voltado, pensou Linda. — Morreu mesmo?
— Morreu sim, infelizmente — disse Linda, também em voz baixa. Por causa das crianças. — Sr. Marshall, sinto muitíssimo.
Por um instante, ele só continuou ali. Depois, agarrou os cachos grisalhos que pendiam nos dois lados do rosto e começou a balançar para a frente e para trás. Linda não acreditava em romances de um semestre; nisso era antiquada. Daria a Marshall e Caro Sturges dois anos no máximo, talvez apenas seis meses — o tempo que levasse para os seus órgãos sexuais pararem de fumegar —, mas naquela noite não havia como duvidar do amor daquele homem. Ou da sua perda.
O que quer que sentissem, as crianças aprofundaram, pensou ela. E a Redoma, também. Viver debaixo da Redoma intensificava tudo. A Linda já parecia que estavam debaixo dela não há dias, mas há anos. O mundo exterior se esvaía como um sonho quando a gente acordava.
— Entra — disse ela. — Mas em silêncio, sr. Marshall. As crianças estão dormindo. As minhas e as suas.
Ela lhe deu chá feito ao sol — não frio, nem muito fresco, mas o melhor que podia fazer dadas as circunstâncias. Ele tomou metade, baixou o copo e depois esfregou os punhos nos olhos como uma criança que já tivesse passado muito da hora de dormir. Linda reconheceu o que era aquilo, um esforço para se controlar, e ficou quieta, esperando.
Ele inspirou fundo, soltou a respiração e depois enfiou a mão no bolso do peito da velha camisa de trabalho azul que usava. Tirou uma tirinha de couro e amarrou o cabelo nas costas. Ela considerou isso um bom sinal.
— Conta o que aconteceu — disse Thurse. — E como aconteceu.
— Eu não vi tudo. Alguém me deu um bom chute na nuca enquanto eu tentava puxar a sua... a Caro... pra fora do caminho.
— Mas um dos policiais atirou nela, não foi isso? Um dos policiais dessa cidade cheia de policiais alegres e rápidos no gatilho.
— Foi. — Ela estendeu a mão sobre a mesa e pegou a dele. — Alguém gritou arma. E havia uma arma. Era da Andrea Grinnell. Ela pode ter levado a arma à assembleia com a ideia de assassinar Rennie.
— Acha que isso justifica o que aconteceu com a Caro?
— Céus, não! E o que aconteceu com a Andi foi puro e simples assassinato.
— Caro morreu tentando proteger as crianças, não foi?
— Foi.
— Filhos que nem eram dela.
Linda não disse nada.
— Só que eram. Dela e meus. Seja por sorte da guerra ou da Redoma, eram nossos, os filhos que nunca teríamos de outra maneira. E até a Redoma se romper, se isso acontecer um dia, são meus.
Linda pensava furiosamente. Poderia confiar neste homem? Achou que sim. Sem dúvida Rusty confiara nele; dissera que o sujeito era bom para cacete como paramédico para quem estava fora de ação há tanto tempo. E Thurston detestava os que mandavam ali debaixo da Redoma. Tinha boas razões.
— Sra. Everett...
— Linda, por favor.
— Linda, posso dormir no seu sofá? Eu gostaria de estar aqui caso eles acordem durante a noite. Se não acordarem — tomara que não —, eu gostaria que me vissem aqui quando descessem pela manhã.
— Tudo bem. Nós tomamos o café da manhã juntos. Flocos de milho. O leite ainda não estragou, mas logo vai estragar.
— Parece bom. Depois que as crianças comerem, vamos embora. Perdoe o que vou dizer se você for daqui, mas eu já me enchi de Chester’s Mill. Não posso me separar da cidade por completo, mas pretendo fazer o possível. O único paciente em estado grave no hospital era o filho do Rennie, e ele se deu alta hoje à tarde. Vai voltar, aquela massa crescendo na cabeça dele vai obrigá-lo a voltar, mas por enquanto...
— Ele morreu.
Thurston não pareceu muito surpreso.
— Uma convulsão, suponho.
— Não. Um tiro. Na cadeia.
— Gostaria de dizer que sinto muito, mas não sinto.
— Nem eu — disse Linda. Ela não sabia com certeza o que Junior fazia lá, mas tinha uma boa ideia de como o pai em luto contaria a história.
— Vou levar os garotos de volta ao lago onde eu e Caro estávamos quando isso aconteceu. Lá é tranquilo e tenho certeza de que vou encontrar comida suficiente pra algum tempo. Talvez um bom tempo. Talvez até encontre um lugar com gerador. Mas no que diz respeito à vida em comunidade — ele deu um tom satírico às palavras — eu estou fora. Alice e Aidan também.
— Talvez eu tenha um lugar melhor pra irmos.
— É mesmo? — E quando Linda não disse nada, ele estendeu a mão pela mesa e tocou as dela. — Você tem que confiar em alguém. E posso ser eu.
Assim, Linda lhe contou tudo, inclusive que teriam de parar no Burpee para pegar folhas de chumbo antes de sair da cidade e ir para a Serra Negra. Conversaram até quase meia-noite.
A parte norte da casa da fazenda McCoy era inútil — graças à neve pesada do inverno anterior, agora o telhado estava dentro da sala de visitas — mas, no lado oeste, havia uma sala de jantar em estilo country quase tão comprida quanto um vagão de trem, e foi ali que os fugitivos de Chester’s Mill se reuniram. Primeiro Barbie interrogou Joe, Norrie e Benny sobre o que tinham visto ou sonhado quando desmaiaram à beira do que agora chamavam de cinturão brilhante.
Joe se lembrou de abóboras de fogo. Norrie disse que tudo ficara preto e que o sol sumira. A princípio, Benny afirmou não se lembrar de nada. Depois, deu um tapa na boca.
— Tinha uns gritos — disse. — Eu ouvi gritos. Foi ruim.
Ponderaram em silêncio sobre isso. Depois, Ernie disse:
— Abóboras de fogo não reduzem muito as possibilidades, se é o que você está tentando fazer, coronel Barbara. Provavelmente tem uma pilha delas no lado ensolarado de cada celeiro da cidade. Tem sido uma boa temporada pra elas. — Ele fez uma pausa. — Ao menos, foi.
— Rusty e as suas meninas?
— Praticamente a mesma coisa — respondeu Rusty, e contou o que conseguiu lembrar.
— Sem mais Halloween, sem mais Grande Abóborra — repetiu Rommie, pensativo.
— Gente, dá pra ver um padrão aqui — disse Benny.
— Descobriu a pólvora, Sherlock — comentou Rose, e todos riram.
— Sua vez, Rusty — disse Barbie. — E quando você desmaiou ao subir até aqui?
— Não cheguei a desmaiar — disse Rusty. — E tudo isso pode ser explicado pela pressão que todos nós estamos sofrendo. Histeria coletiva, inclusive com alucinações coletivas, é comum quando se está sob estresse.
— Obrigado, dr. Freud — respondeu Barbie. — Agora nos conta o que você viu.
Rusty chegara à cartola com as suas listras patrióticas quando Lissa Jamieson exclamou:
— É o boneco do gramado da biblioteca! Está usando uma velha camiseta minha com uma frase de Warren Zevon...
— “Sweet Home Alabama, toca a música daquela banda morta” — disse Rusty. — E pás de jardinagem em vez de mãos. Seja como for, pegou fogo. Aí, puf, sumiu. A tontura também.
Ele olhou os outros em volta. Os seus olhos arregalados.
— Relaxa, gente, provavelmente eu já tinha visto o boneco antes de tudo isso acontecer e o meu subconsciente simplesmente vomitou ele de volta.
Apontou o dedo para Barbie. — E se me chamar de dr. Freud outra vez, te faço engolir.
— Você o viu mesmo antes? — perguntou Piper. — Talvez quando foi buscar as meninas na escola ou coisa assim? Porque a biblioteca fica bem em frente ao pátio da escola.
— Não, que eu me lembre, não. — Rusty não acrescentou que não buscava as meninas na escola desde o comecinho do mês, e duvidava que na época já houvesse algum enfeite de Halloween na cidade.
— Agora você, Jackie — disse Barbie.
Ela umedeceu os lábios.
— É tão importante assim?
— Acho que é.
— Gente em chamas — contou ela. — E fumaça, com fogo brilhando através dela sempre que se mexia. O mundo todo parecia estar pegando fogo.
— Isso — disse Benny. — Todo mundo gritava porque estava pegando fogo. Agora eu me lembro. — De repente, ele enfiou o rosto no ombro de Alva Drake. Ela pôs o braço em torno dele.
— Ainda faltam cinco dias pro Halloween — disse Claire.
— Acho que não — foi o comentário de Barbie.
O fogão a lenha no canto da sala de reuniões da Câmara de Vereadores estava empoeirado e abandonado, mas ainda usável. Big Jim checou se a chaminé estava aberta (guinchou, enferrujada) e depois removeu a papelada de Duke Perkins do envelope com a pegada ensanguentada. Folheou os papéis, fez uma careta para o que viu e jogou tudo no fogão. O envelope ele guardou.
Carter estava ao telefone, falando com Stewart Bowie, dizendo-lhe o que Big Jim queria para o filho, que começasse a trabalhar agora mesmo. Um bom rapaz, pensou Big Jim. Ele vai longe. Desde que se lembre de que lado do pão está a manteiga, é claro. Quem esquecia pagava o preço. Andrea Grinnell descobrira isso naquela noite.
Havia uma caixa de fósforos de madeira na prateleira ao lado do fogão. Big Jim acendeu um e o encostou no canto das “provas” de Duke Perkins. Deixou aberta a porta do fogão para vê-las queimar. Era muito gratificante.
Carter foi até ele.
— Stewart Bowie está na espera. Devo dizer que o senhor fala com ele depois?
— Me dá o celular aqui — disse Big Jim, e estendeu a mão para pegar o aparelho.
Carter apontou o envelope.
— Não vai queimar aquilo também?
— Não, vou encher de papel branco da máquina de xerox.
Carter levou um instante para entender.
— Ela só estava com alucinações causadas pela droga, não é?
— Coitada — concordou Big Jim. — Desce até o abrigo anti-radiação, filho. Lá. — Com o polegar, apontou a porta, discretíssima, a não ser por uma velha placa de metal com triângulos pretos contra um campo amarelo, não muito longe do fogão a lenha. — São dois cômodos. Nos fundos do segundo, tem um pequeno gerador.
— Certo.
— Na frente do gerador tem um alçapão. É difícil de ver, mas você encontra, se procurar. Abre e olha lá dentro. Deve ter oito ou dez botijões de gás pequenos acomodados ali embaixo. Ao menos, tinha da última vez que eu olhei. Confere e me diz quantos são.
Ele aguardou para ver se Carter perguntaria por que, mas Carter não perguntou. Simplesmente se virou para obedecer. Então, Big Jim lhe disse.
— Só por precaução, meu filho. Pingos em todos os is, esse é o segredo do sucesso. E ter Deus ao nosso lado, é claro.
Quando Carter saiu, Big Jim apertou o botão de espera... e se Stewart não estivesse mais lá, ia ver só.
Stewart estava.
— Jim, sinto muito pela sua perda — disse. Na mesma hora, um ponto a seu favor. — Nós vamos cuidar de tudo. Estou pensando no caixão Descanso Eterno; é de carvalho, dura mil anos.
Vai e pega o outro, pensou Big Jim, mas ficou calado.
— E vai ser o nosso melhor serviço. Ele vai parecer prestes a acordar e sorrir.
— Obrigado, parceiro — disse Big Jim. Pensando, Sei muito bem o que você vai fazer.
— Agora, sobre esse ataque amanhã... — disse Stewart.
— Eu ia telefonar sobre isso. Você está querendo saber se ainda vai acontecer. Vai.
— Mas com tudo o que houve...
— Não houve nada — retrucou Big Jim. — E por isso podemos agradecer à misericórdia de Deus! Pode me dar um amém a isso, Stewart?
— Amém — respondeu Stewart devidamente.
— Só uma surumbamba provocada por uma mulher armada e mentalmente perturbada. Sem dúvida agora ela está jantando com Jesus e todos os santos, porque nada do que aconteceu foi culpa dela.
— Mas Jim...
— Não me interrompe quando eu estiver falando, Stewart. Foram as drogas. Essa coisa maldita apodreceu o cérebro dela. Todos vão perceber isso assim que se acalmarem um pouco. Chester’s Mill foi abençoada com um povo sensato e corajoso. Confio que vão aguentar, sempre aguentaram, sempre aguentarão. Além disso, agora eles só têm uma coisa na cabeça: ver os seus entes queridos. A nossa operação ainda vai acontecer ao meio-dia. Você, Fern, Roger, Melvin Searles, Fred Denton vai comandar. Pode escolher mais quatro ou cinco, se achar necessário.
— Ele é o melhor que você consegue? — perguntou Stewart.
— Fred é bom — disse Big Jim.
— E Thibodeau? Esse rapaz que tem ficado ao seu la...
— Stewart Bowie, toda vez que você abre a boca metade das tripas cai. Você precisa se calar um pouco e escutar. Estamos falando de um viciado em drogas esquelético e um farmacêutico que não sabe espantar um ganso. Você me dá um amém a isso?
—Tá, amém.
— Usa os caminhões da cidade. Procura o Fred assim que largar o telefone; ele deve estar por aí. Diz pra ele o que é o quê. Diz que vocês têm que se proteger, só por precaução. Temos todo aquele lixo da Segurança Interna na sala dos fundos da delegacia, coletes à prova de bala, jaquetas anti-estilhaços e sei lá mais o quê, e seria bom usar. Depois, vai até lá e expulsa aqueles camaradas. Nós precisamos daquele gás.
— E o laboratório? Estava pensando que talvez fosse melhor queimá-lo...
— Está maluco? — Carter, que acabara de voltar à sala, o olhou surpreso. — Com todos aqueles produtos químicos lá guardados? O jornal da tal Shumway é uma coisa; aquele depósito é outra totalmente diferente. É bom tomar cuidado, parceiro, senão vou começar a achar que você é tão estúpido quanto Roger Killian.
— Está bem. — Stewart parecia ofendido, mas Big Jim avaliou que faria o que mandara. Mas não tinha mais tempo para ele, de qualquer modo; Randolph chegaria a qualquer instante.
O desfile de imbecis nunca acaba, pensou.
— Agora me diz o velho e bom Glória ao Senhor — disse Big Jim. Na cabeça, imaginou-se sentado nas costas de Stewart, esfregando o rosto do outro na terra. Era uma imagem alegre.
— Glória ao Senhor — murmurou Stewart Bowie.
— Amém, irmão — disse Big Jim, e desligou.
O chefe Randolph chegou pouco depois, com cara de cansado mas não insatisfeito.
— Acho que perdemos pra sempre alguns novos recrutas — Dodson, Rawcliffe e o garoto Richardson sumiram todos —, mas a maioria dos outros ficou. E consegui alguns novos. Joe Boxer... Stubby Norman... Aubrey Towle... o irmão dele é dono da livraria, sabe...
Big Jim escutou esse recitativo com bastante paciência, embora sem lhe dar muita atenção. Quando Randolph finalmente acabou, Big Jim lhe passou o envelope VADER por cima da lustrosa mesa de reuniões.
— Eis o que a pobre da Andrea estava sacudindo. Dá uma olhada.
Randolph hesitou, depois abriu os fechos e tirou o conteúdo.
— Aqui só tem papel em branco.
— Certíssimo, papel novo em folha. Quando reunir a sua tropa amanhã, sete da manhã em ponto, na delegacia, porque pode acreditar no seu tio Jim quando ele disser que as formigas vão começar a sair do formigueiro bem cedo, cuide pra que saibam que a pobre coitada estava tão iludida quanto o anarquista que matou o presidente McKinley.
— Isso não é uma montanha? — perguntou Randolph.
Big Jim parou um instante para imaginar de que pé de imbecis caíra o filhinho da sra. Randolph. Então continuou. Esta noite não teria um bom sono de oito horas, mas com a bênção de Deus talvez conseguisse cinco. E precisava delas. O coitado do seu velho coração precisava delas.
— Usa todos os carros da polícia. Dois policiais em cada carro. Veja se todos têm gás de pimenta e armas de eletrochoque. Mas quem der um tiro na frente dos repórteres e câmeras e do melequento mundo exterior... eu lhe arranco as tripas.
— Sim, senhor.
— Manda descerem pelo acostamento da 119, margeando a multidão. Sem sirene, mas com as luzes piscando.
— Como num desfile — disse Randolph.
— Isso, Pete, como num desfile. Deixa a estrada pros pedestres. Diga aos que estiverem de carro que desçam e caminhem. Usa os megafones. Quero todos bem cansados quando chegarem lá. Gente cansada tende a ser bem comportada.
— Não acha que devíamos poupar alguns policiais pra procurar os prisioneiros fugidos? — Ele viu os olhos de Big um relampejarem e ergueu uma mão. — Só perguntando, só perguntando.
— Ora, e merece uma resposta. Você é o chefe de polícia, afinal de contas. Não é, Carter?
— É — respondeu Carter.
— A resposta é não, chefe Randolph, porque... preste bastante atenção... eles não podem escapar. Há uma Redoma em volta de Chester’s Mill e eles absotivamente... posilutamente... não podem escapar. Agora entendeu essa linha de raciocínio? — Ele observou o rosto de Randolph se corar e disse: — Agora tome cuidado com a resposta. Ao menos, eu tomaria.
— Entendi.
— Então entenda isso também: com Dale Barbara à solta, sem falar do seu correligionário Everett, o povo vai buscar com mais fervor a proteção dos seus funcionários públicos. E, por mais que estejamos sobrecarregados, nós estaremos à altura da ocasião, não é?
Randolph finalmente entendeu. Podia não saber que havia um presidente e uma montanha chamados McKinley, mas parecia entender que, de várias formas, um Barbie voando era mais útil do que um Barbie na mão.
É — respondeu. — Estaremos. Bem à altura. E a entrevista coletiva? Se você não vai estar lá, quem quer nomear...
— Não, não vou estar. Vou estar bem aqui no meu posto, que é meu lugar, acompanhando os acontecimentos. Quanto à imprensa, os repórteres podem muito bem entrevistar as mil e tantas pessoas que vão se amontoar lá no lado sul da cidade como espectadores boquiabertos numa obra. E boa sorte pra traduzir as bobagens que eles vão ouvir.
— Algumas pessoas podem dizer coisas não muito elogiosas sobre nós — comentou Randolph.
Big Jim deu um sorriso gelado.
— Foi por isso que Deus nos deu costas largas, parceiro. Além disso, o que aquele melequento intrometido do Cox vai fazer? Entrar aqui marchando e nos destituir?
Randolph deu a devida risadinha, seguiu para a porta e depois pensou noutra coisa.
— Vai haver muita gente por lá e por muito tempo. Os militares montaram banheiros químicos no lado deles. Não acha que devíamos fazer o mesmo no nosso lado? Acho que temos alguns no depósito. Principalmente pro pessoal do trânsito. Talvez Al Timmons pudesse...
Big Jim lhe deu um olhar sugerindo que achava que o novo chefe de polícia enlouquecera.
— Se fosse eu a decidir, o nosso povo ficaria em segurança em casa amanhã, em vez de sair da cidade como os israelitas fugiram do Egito. — Parou para dar ênfase. — Se alguns ficarem apertados, que caguem no mato mesmo.
Quando Randolph finalmente foi embora, Carter disse.
— Se eu jurar que não estou puxando o saco, posso dizer uma coisa?
— Claro que pode.
— Adoro ver como o senhor opera, sr. Rennie.
Big Jim sorriu — um grande sorriso ensolarado que lhe iluminou o rosto todo.
— Pois você terá a sua oportunidade, filho; já aprendeu com os outros, agora aprenda com o melhor.
— É o que planejo.
— Agora preciso que você me dê uma carona até a minha casa. Amanhã, me encontra exatamente às oito horas. Nós vamos vir pra cá assistir ao espetáculo na CNN. Mas primeiro nós vamos nos sentar no morro da praça da Cidade pra observar o êxodo. É mesmo triste; israelitas sem Moisés.
— Formigas sem formigueiro — acrescentou Carter. — Abelhas sem colmeia.
— Mas, antes de ir me buscar, quero que você visite algumas pessoas. Ou tente; aposto que elas terão sumido sem avisar.
— Quem?
— Rose Twitchell e Linda Everett. A mulher do paramédico.
— Sei quem é.
— Dê também uma olhada na Shumway. Disseram que talvez esteja com Libby, a pastora do cachorro mal-humorado. Se encontrar alguma delas, pergunte onde estão os fugitivos.
— De leve ou à força?
— Moderado. Não quero necessariamente que Everett e Barbara sejam capturados logo, mas não me incomodaria saber onde estão.
Nos degraus lá fora, Big Jim inspirou profundamente o ar fedorento e depois suspirou com algo que parecia satisfação. Carter se sentia bastante satisfeito. Uma semana antes, trocava amortecedores com óculos de segurança para impedir que os flocos esvoaçantes de ferrugem dos sistemas de exaustão apodrecidos pelo sal lhe caíssem nos olhos. Hoje, era um homem de posição e influência. Um pouco de ar fedorento parecia um preço pequeno a pagar por isso.
— Tenho uma pergunta a fazer — disse Big Jim. — Se não quiser responder, tudo bem.
Carter o olhou.
— A garota Bushey — disse Big Jim. — Como era? Gostosa?
Carter hesitou e disse:
— Um pouco seca no início, mas ficou bem molhadinha depois.
Big Jim riu. O som era metálico, como o som das moedas que caem na bandeja de uma máquina de bingo.
Meia-noite, e a lua cor-de-rosa descia rumo ao horizonte de Tarker’s Mills, onde poderia ficar pendurada até o amanhecer, transformando-se em fantasma antes de, finalmente, sumir.
Julia escolheu o caminho pelo pomar até onde a terra dos McCoy descia no lado oeste da Serra Negra e não se surpreendeu ao ver uma sombra escura encostada numa das árvores. À direita, a caixa com o símbolo alienígena gravado em cima emitia um relâmpago a cada 15 segundos: o menor e mais estranho farol do mundo.
— Barbie? — perguntou ela, mantendo a voz baixa. — Como vai Ken?
— Foi pra São Francisco marchar na Parada do Orgulho Gay. Sempre soube que aquele rapaz não era hétero.
Julia riu, pegou a mão dele e a beijou.
— Meu amigo, estou felicíssima por você estar bem.
Ele a abraçou e beijou os dois lados do rosto antes de soltá-la. Beijos demorados. Reais.
— Minha amiga, eu também.
Ela riu, mas um arrepio a percorreu, do pescoço aos joelhos. De um tipo que ela reconhecia, mas que não sentia havia muito tempo. Calma, moça, pensou. Ele tem idade pra ser seu filho.
Bom... se ela tivesse engravidado aos 13 anos.
— Todo mundo está dormindo — disse Julia. Até Horace. Está com as crianças. Ficaram brincando de jogar varinhas até que a língua dele praticamente se arrastou no chão. Aposto que ele pensa que morreu e foi para o paraíso.
— Tentei dormir. Não consegui.
Duas vezes chegara perto de cochilar e nas duas vezes se viu de volta ao Galinheiro, diante de Junior Rennie. Na primeira vez, Barbie escorregara em vez de fazer uma finta para a direita e caíra de pernas abertas sobre o catre, virando um alvo perfeito. Na segunda vez, Junior enfiara a arma entre as grades com um braço plástico absurdamente comprido e o segurara para que parasse tempo suficiente para se despedir da vida. Depois desse, Barbie saíra do celeiro, onde dormiam os homens, e fora até ali. O ar ainda cheirava como o quarto onde um fumante vitalício tivesse morrido seis meses antes, mas era melhor do que o ar da cidade.
— Tão poucas luzes lá embaixo — disse ela. — Numa noite comum, haveria nove vezes mais, mesmo a esta hora. As lâmpadas da rua pareceriam um colar de pérolas com duas voltas.
— Mas tem aquilo. — Barbie pusera um dos braços em torno dela, mas ergueu o outro e apontou o cinturão brilhante. Se não fosse a Redoma, onde acabava de repente, ela achou que formaria um círculo perfeito. Daquele jeito, parecia uma ferradura.
— É. Por que acha que Cox não mencionou? Eles devem ter visto nas fotos de satélite. — Ela pensou melhor. — Ao menos ele não me disse nada. Talvez tenha dito a você.
— Não, e teria. O que significa que eles não veem.
— Acha que a Redoma... o quê? Filtra isso?
— Alguma coisa assim. Cox, as redes de notícias, o mundo exterior.., eles não veem porque não precisam. Acho que nós precisamos.
— Acha que Rusty está certo? Somos só formigas torturadas por crianças cruéis com uma lente de aumento? Que tipo de raça inteligente permitiria que crianças fizessem uma coisa dessas a outra raça inteligente?
— Nós achamos que somos inteligentes, mas e eles? Sabemos que as formigas são insetos sociais, construtores de casas, de colônias, arquitetos espantosos. Trabalham duro como nós. Sepultam os mortos como nós. Têm até guerras raciais, formigas pretas contra vermelhas. Sabemos disso tudo, mas não pressupomos que as formigas sejam inteligentes.
Ela puxou o braço dele para envolvê-la melhor, embora não fizesse frio.
— Inteligentes ou não, está errado.
— Concordo. A maioria concordaria. Rusty sabia disso até quando criança. Mas a maioria das crianças não tem uma ideia moral do mundo. Isso leva anos pra se desenvolver. Quando nos tornamos adultos, a maioria abandona as coisas infantis, que incluem queimar formigas com uma lente de aumento ou arrancar asas de moscas. Talvez os adultos deles façam o mesmo. Quero dizer, se chegarem a notar coisinhas como nós. Quando foi a última vez que você se abaixou e realmente examinou um formigueiro?
— Ainda assim... se achássemos formigas em Marte, ou mesmo micróbios, nós não os destruiríamos. Porque a vida no universo é mercadoria muito preciosa. Todos os outros planetas do nosso sistema são desertos, pelo amor de Deus.
Barbie pensou que, se a Nasa encontrasse vida em Marte, não teria escrúpulo nenhum de destruí-la para pôr no microscópio e estudar, mas não disse nada.
— Se fôssemos mais avançados cientificamente.., ou espiritualmente, talvez isso é que seja necessário pra sair viajando pelo grandioso lá-fora, víssemos que há vida por toda parte. Tantos mundos habitados e formas de vida inteligentes quanto formigueiros nessa cidade.
A mão dele agora descansava na lateral do seu seio? Ela acreditava que sim. Fazia muito tempo que nenhuma mão de homem descansava ali, e era muito bom.
— Só tenho certeza de que há mais mundos do que podemos ver com os nossos telescópios insignificantes aqui na Terra. E até com o Hubble. E... eles não estão aqui, sabe. Não é uma invasão. Só estão olhando. E... talvez... brincando.
— Eu sei como é — disse ela. — Servir de brinquedo.
Ele a olhava. À distância de um beijo. Ela não se incomodaria de ser beijada; não, de jeito nenhum.
— O que você quer dizer? O Rennie?
— Você acredita que há certos momentos de definição na vida de uma pessoa? Divisores de água que nos fazem mudar de verdade?
— Acredito — disse ele, pensando no sorriso vermelho que a sua bota deixara nas nádegas de Abdul. Apenas um trapalhão ordinário levando a, sua vidinha ordinária. — É claro.
— O meu aconteceu no quarto ano. Na Escola Gramatical da rua Principal.
— Conta.
— Não vai levar muito tempo. Foi a tarde mais demorada da minha vida, mas a história é curta.
Ele esperou.
— Eu era filha única, O meu pai era o dono do jornal local; tinha alguns repórteres e um vendedor de anúncios, mas fora isso era quase uma orquestra de um homem só, e era assim que ele gostava. Nunca foi questionado que eu assumiria o jornal quando ele se aposentasse. Ele acreditava nisso, a minha mãe acreditava nisso, as professoras acreditavam nisso e é claro que eu acreditava nisso. A minha formação universitária estava toda planejada. Nada tão caipira quanto a Universidade do Maine, nada disso, não pra filhinha de Al Shumway. A filhinha de Al Shumway iria pra Princeton. Quando eu estava no quarto ano, tinha uma flâmula de Princeton em cima da minha cama e as minhas malas praticamente já estavam feitas.
“Todo mundo, eu, inclusive, simplesmente cultuava o chão onde eu pisava. A não ser os meus parceiros do quarto ano, é claro. Na época, eu não entendia a causa, mas agora me pergunto como é que eu não via. Eu era a que se sentava na primeira fila e sempre levantava a mão quando a sra. Connaught fazia uma pergunta, e sempre acertava a resposta. Entregava os deveres de casa antes da hora, quando possível, e me apresentava como voluntária pra mais tarefas. Só tirava nota máxima e era meio puxa-saco. Uma vez, quando a sra. Connaught voltou pra sala depois de nos deixar sozinhos alguns minutos, o nariz da pequena Jessie Vachon estava sangrando. A sra. Connaught disse que deixaria todos nós de castigo, a menos que alguém contasse quem tinha feito aquilo. Eu levantei a mão e disse que tinha sido Andy Manning. Andy deu um soco no nariz da Jessie porque a Jessie não emprestou a borracha enfeitada dela. E eu não vi nada de errado nisso, porque era verdade. Está vendo o quadro?
— Nítido e claro.
— Esse pequeno episódio foi a última gota. Certo dia, não muito depois, eu voltava pra casa cruzando a praça e um monte de garotas esperavam por mim dentro da Ponte da Paz. Eram seis. A chefe era Lila Strout, que hoje é Lila Killian; ela se casou com Roger Killian, que combina perfeitamente com ela. Nunca credite em quem disser que as crianças não levam os seus rancores pra idade adulta.
“Elas me levaram até o coreto. Primeiro eu lutei, mas aí duas delas — Lua foi uma, Cindy Collins, a mãe de Toby Manning, a outra — me bateram. E não no ombro, como as crianças costumam fazer. Cindy me bateu no rosto, e Lila me socou diretamente no seio direito. Como doeu! Os seios estavam começando a crescer, e doíam mesmo quando estavam em paz.
“Eu comecei a chorar. Em geral, esse é o sinal, ao menos entre as crianças, de que a situação foi longe demais. Não naquele dia. Quando eu comecei a berrar, Lila disse: ‘Cala a boca, senão apanha mais.’ Também não tinha ninguém pra impedir. Era uma tarde fria e chuvosa, e a praça estava deserta, a não ser por nós.
“Lila me deu um tapa na cara com força suficiente pra fazer o meu nariz sangrar e disse: ‘Dedo-duro! Alcaguete! Até os cachorros da cidade têm nojo de você!’ E as outras garotas riram. Disseram que era porque eu tinha dedurado o Andy, e na época eu achei que era, mas hoje vejo que era tudo, até o jeito como as minhas saias e blusas e até a fita do cabelo combinavam. Elas usavam roupas, eu tinha trajes. O Andy foi só a última gota.”
— Elas bateram em você?
— Me deram uns tapas. Puxões de cabelo. E... cuspiram em mim. Todas elas. Isso foi depois que as minhas pernas cederam e eu caí no coreto. Estava chorando mais do que nunca, e cobria o rosto com as mãos, mas senti. Cuspe é quente, sabia?
— Sei.
— Elas diziam coisas como queridinha da professora e bonitinha da mamãe e metida. Aí, quando pensei que tinham acabado, Corrie Macintosh disse: “Vamos tirar as calças dela!” Porque naquele dia eu estava de calça comprida, calças bonitas que a minha mãe tinha comprado num catálogo. Eu adorava. Eram o tipo de calça que uma subeditora usaria ao cruzar o clube dos alunos de Princeton. Ao menos, era o que eu pensava na época.
“Lutei mais dessa vez, mas claro que elas venceram. Quatro delas me seguraram enquanto Lila e Corrie puxavam as minhas calças. Aí Cindy Collins começou a rir, apontando e dizendo: ‘Ela tem o ursinho Puff na calcinha!’ E tinha mesmo, junto com Bisonho e Guru. Começaram a rir, todas, e... Barbie... fui diminuindo... diminuindo... diminuindo. Até que o chão do coreto virou um grande deserto plano e eu era um inseto preso bem no meio. Morrendo bem no meio.
— Como uma formiga debaixo da lente, em outras palavras.
— Ah, não! Não, Barbie! Estavafrio, não quente.. Eu estava congelando. Estava com as pernas arrepiadas. Corrie disse: “Vamos tirar a calcinha dela também!”, mas isso era ir um pouco além do que elas estavam dispostas. Talvez como a segunda melhor coisa a fazer, Lila pegou a minha linda calça comprida e jogou no telhado do coreto. Depois disso, foram embora. Lila foi a última a ir. E disse: “Se você nos dedurar dessa vez, eu pego a faca do meu irmão e corto esse seu focinho de cadela.”
— O que aconteceu? — perguntou Barbie. E, sim, a mão dele estava mesmo descansando contra o lado do seio dela.
— A princípio, o que aconteceu foi só uma menininha assustada encolhida ali no coreto, sem saber como voltaria pra casa sem que metade da cidade a visse com uma ridícula calcinha de bebê. Fiquei me sentindo a menina mais insignificante, mais burra que já existiu. Finalmente, eu decidi esperar que escurecesse. Os meus pais iriam ficar preocupados, podiam até chamar a polícia mas eu não liguei. Ia esperar escurecer e depois me esgueirar pra casa pelo becos. E me esconderia atrás das árvores se viesse alguém.
“Eu devo ter cochilado um pouco porque, de repente, Kayla Bevins estava em pé acima de mim. Ela tinha estado lá com as outras, batendo e puxando o meu cabelo e cuspindo em mim. Não xingou tanto quanto as outras, mas participou. Ajudou a me segurar quando Lila e Corrie tiraram a minha calça e, quando viram que uma das pernas estava pendurada na borda do telhado, Kayla subiu na grade e jogou pra cima, pra que eu não conseguisse alcançá-la.
“Eu implorei que ela não me machucasse mais. Eu estava além de coisa como orgulho e dignidade. Implorei que não tirasse a minha calcinha. Então implorei que me ajudasse. Ela só ficou ali, escutando, como se eu não fosse nada pra ela. Eu não era nada pra ela. Soube disso naquele momento. Acho que esqueci isso com o passar dos anos, mas é como se eu voltasse àquela verdade específica em consequência da experiência da Redoma.
“Finalmente, eu desisti e só fiquei lá fungando. Ela me olhou mais um pouco e depois tirou o suéter que usava. Era uma coisa velha, larga e marrom que ia quase até os joelhos. Ela era uma menina grandona e o suéter era grande. Ela jogou em cima de mim e disse: ‘Usa isso pra voltar pra casa, vai parecer um vestido.’
“Foi tudo o que ela disse. E, embora frequentasse a escola com ela por mais oito anos até a formatura na Escola Secundária de Mill, nós nunca mais nos falamos. Mas às vezes, em sonhos, eu ainda a ouço dizer aquela única coisa:
Usa isso pra voltar pra casa, vai parecer um vestido. E eu vejo o rosto dela. Sem ódio nem raiva, mas também sem pena. Ela não fez aquilo por pena, e não fez aquilo pra me calar. Não sei por que ela fez aquilo. Não sei sequer por que ela voltou. Você sabe?”
— Não — disse ele, e lhe beijou a boca. Foi rápido, mas quente, úmido e maravilhoso.
— Por que você fez isso?
— Porque parecia que você precisava, e eu sei que eu precisava. E depois, Julia?
— Vesti o suéter e fui pra casa, o que mais? E os meus pais estavam à espera.
Ela ergueu o queixo com orgulho.
— Nunca contei o que aconteceu, e eles nunca descobriram. Por uma semana vi as calças no caminho da escola, caídas lá, no telhadinho cônico do coreto. Toda vez sentia a vergonha e a dor, como uma faca no coração. Então um dia elas sumiram. Isso não fez a dor ir embora, mas depois foi um pouco melhor. Surda em vez de aguda.
“Nunca dedurei as meninas, embora o meu pai ficasse furioso e me deixasse de castigo até junho; eu só podia ir à escola e nada mais. Fui proibida até de fazer com a escola a viagem ao Museu de Arte de Portland, que eu tinha passado o ano inteiro esperando. Ele disse que eu poderia fazer a viagem e ter todos os meus privilégios de volta se dissesse o nome das crianças que tinham me ‘agredido’. Foi a palavra que ele usou. Mas eu não disse, e não só porque calar a boca fosse a versão infantil do Credo.
— Você fez isso porque, no fundo, achava que tinha merecido o que te aconteceu.
— Merecer não é a palavra certa. Achei que tinha comprado e pago por aquilo, o que não é a mesma coisa de jeito nenhum. Depois disso, a minha vida mudou. Continuei tirando boas notas, mas parei de levantar a mão toda hora. Nunca deixei de tirar notas ótimas, mas parei de me gabar. Podia ter sido oradora da turma na formatura do secundário, mas me segurei no segundo semestre do último ano. Só o suficiente pra garantir que Carlene Plummer ganhasse, não eu. Eu não queria. Nem o discurso, nem a atenção que vinha com o discurso. Fiz alguns amigos, os melhores na área de fumantes nos fundos da escola.
“A maior mudança foi ir pra faculdade no Maine e não em Princeton... onde eu realmente fui aceita, O meu pai ferveu e trovejou, afirmando que filha dele não iria pruma faculdade de caipiras, mas eu fui muito firme.”
Ela sorriu.
— Muitíssimo firme. Mas abrir mão é o ingrediente secreto do amor, e eu amava muito o meu pai. Amava os dois. O meu plano era ir pro campus de Orono da Universidade do Maine, mas durante o verão, depois da minha formatura, me candidatei de última hora a Bates, eles chamam de pedido por circunstâncias especiais, e fui aceita. Meu pai me fez pagar a matrícula com meu próprio dinheiro, e paguei satisfeita, porque afinal houve um pouco de paz na família depois de 16 meses de guerra de fronteiras entre o país dos Pais Controladores e o principado menor mas bem fortificado da Adolescente Teimosa. Fiz bacharelado em jornalismo e isso terminou o serviço de fazer sarar a brecha... que tinha estado lá desde aquele dia no coreto. Meus pais nunca souberam por quê. Não estou aqui em Mil! por causa daquele dia; meu futuro no Democrata estava bastante previsto, mas sou a pessoa que sou em boa parte por causa daquele dia.
Ela ergueu os olhos para ele de novo, olhos brilhantes de lágrimas e desafio.
— Mas eu não sou uma formiga. Não sou uma formiga.
Ele a beijou de novo. Ela o abraçou com força e o beijou de volta o melhor que conseguiu. E quando a mão dele puxou a blusa dela para fora das calças e depois se enfiaram até o meio do tronco para segurar os seios, ela o beijou com a língua. Quando se separaram, ela respirava depressa.
— Você quer? — perguntou ele.
— Quero. E você?
Ele pegou a mão dela e a pôs sobre os jeans, onde o tanto que ele queria ficou evidente na mesma hora.
Um minuto depois ele estava em cima dela, descansando sobre o cotovelo. Ela o pegou pela mão para guiá-lo.
— Vai com calma, coronel Barbara. Eu praticamente esqueci como se faz isso.
— É como andar de bicicleta — disse Barbie.
Pelo jeito ele estava certo.
Quando acabou, ela ficou deitada com a cabeça no braço dele, olhando lá em cima as estrelas cor-de-rosa, e perguntou no que ele pensava.
Ele suspirou.
— Nos sonhos. Nas visões. Nos sei-lá-o-que-são. Está com o celular?
— Sempre. E a carga está se segurando bem, embora não dê pra saber por quanto tempo. Pra quem você pretende ligar? Cox, acho...
— Achou certo. Tem o número dele na memória?
— Tenho. — Julia estendeu a mão para as calças descartadas e tirou o celular do cinto. Ligou para COX e entregou o aparelho a Barbie, que começou a falar quase na mesma hora. Cox deve ter atendido ao primeiro toque.
— Oi, coronel. Aqui é Barbie. Estou fora. Vou me arriscar e dizer onde estamos. Na Serra Negra. O antigo pomar McCoy. O senhor tem isso no seu... tem. É claro que tem. E o senhor tem imagens de satélite da cidade, certo?
Ele escutou e depois perguntou a Cox se as imagens mostravam uma ferradura de luz em volta do morro, terminando na fronteira com o TR-90. Cox respondeu negativamente e depois, a julgar pelo modo como Barbie escutava, pediu mais detalhes.
— Agora, não — disse Barbie. — Agora eu preciso que você faça algo por mim, Jim, e quanto mais cedo melhor. Nós vamos precisar de alguns Chinooks.
Ele explicou o que queria. Cox escutou e depois respondeu.
— Não posso explicar direito agora — disse Barbie —, e provavelmente não faria muito sentido mesmo que eu explicasse. Só aceite a minha palavra de que alguma merda muito feia está acontecendo aqui, e eu acredito que há coisa pior a caminho. Talvez só no Halloween, se tivermos sorte. Mas acho que não teremos sorte.
Enquanto Barbie falava com o coronel James Cox, Andy Sanders estava sentado com as costas na lateral do depósito atrás da WCIK, olhando as estrelas anormais. Estava alto como uma pipa, feliz como uma ostra, fresco como um pepino, outras comparações talvez se apliquem. Mas havia uma profunda tristeza — estranhamente tranquila, quase confortadora — correndo por baixo, como um poderoso rio subterrâneo. Nunca tivera premonições em toda a sua vida prosaica, prática, comum. Mas agora tinha. Essa era a sua última noite na face da Terra. Quando os homens amargos viessem, ele e o Chef Bushey partiriam. Era simples, e na verdade não tão ruim assim.
— Eu já estava na fase de bônus, de qualquer jeito — disse. — Desde que quase tomei aqueles comprimidos.
O que é, Sanders? — Pelo caminho, o Chef veio de trás da emissora, com o facho da lanterna logo à frente dos pés. A calça larga do pijama de sapinhos ainda pendia precariamente nas asas ossudas dos quadris, mas algo novo fora acrescentado: uma grande cruz branca. Estava amarrada ao pescoço por uma tira de couro cru. Pendurado no ombro estava o GUERREIRO DE DEUS. Duas granadas pendiam da coronha em outra tira de couro cru. Na mão que não segurava a lanterna, estava o controle de porta de garagem.
— Nada, Chef — disse Andy. — Só estava falando sozinho. Parece que eu sou o único que escuta hoje em dia.
— Que bobagem, Sanders. Uma bobajona total e completa. Deus escuta. Ele escuta as almas do mesmo jeito que o FBI escuta telefones. Eu também escuto.
A beleza disso — e o consolo — fez a gratidão inundar o coração de Andy. Ele ofereceu o narguilé.
— Dá uma tragada nessa merda. Vai acender o seu fogão.
Chef soltou um riso rouco, deu uma tragada profunda no cachimbo de vidro, prendeu a fumaça e depois a tossiu.
— Bazum! — disse. — Poder de Deus! Poder de hora em hora, Sanders!
— É isso aí — concordou Andy. Era o que Dodee sempre dizia, e ao pensar nela o coração se partiu de novo. Enxugou os olhos sem perceber. — Onde você arranjou a cruz?
Chef apontou a emissora com a lanterna.
— Coggins tinha uma sala lá. A cruz estava na mesa dele. A gaveta de cima estava trancada, mas forcei a fechadura. Sabe o que mais havia lá, Sanders? O material de masturbação mais nojento que já vi.
— Crianças? — perguntou Andy. Não se surpreenderia. Quando o diabo pega, os pastores podem cair muito fundo. Fundo o bastante para rastejar de cartola debaixo de uma cascavel.
— Pior, Sanders. — Baixou a voz. — Orientais.
O Chef pegou o AK-47 de Andy, que estava sobre as suas coxas. Iluminou a coronha, onde Andy escrevera CLAUDETTE com todo o cuidado, usando um dos pincéis atômicos da emissora.
— Minha mulher — disse Andy. — Foi a primeira baixa da Redoma.
Chef o segurou pelo ombro.
— Você é um bom homem por se lembrar dela, Sanders. Fico contente que Deus tenha nos unido.
— Eu também. — Andy pegou o narguilé de volta. — Eu também, Chef.
— Você sabe o que deve acontecer amanhã, não sabe?
Andy agarrou a coronha de CLAUDETTE. Foi resposta suficiente.
— O mais provável é que estejam com colete à prova de balas, e se tivermos de ir à guerra, mire na cabeça. Nada de um tiro só; basta cobrir eles com a rajada. E se parecer que vão nos vencer... você sabe o que vem depois, não é?
— Sei.
— Até o fim, Sanders? — Chef ergueu o controle diante do rosto e iluminou-o com a lanterna.
— Até o fim — concordou Andy. E tocou o controle com o cano de CLAUDETTE.
Ollie Dinsmore acordou de repente de um pesadelo, sabendo que havia algo errado. Ficou na cama, olhando as primeiras luzes pálidas e um tanto sujas espiando pela janela, tentando se convencer de que era só o sonho, algum pesadelo horrível de que não se lembrava direito. Fogo e gritos, era tudo o que conseguia lembrar.
Gritos, não. Berros.
O despertador barato tiquetaqueava na mesinha de cabeceira. Ele o agarrou. Quinze para as seis e nenhum som do pai andando pela cozinha. Mais revelador ainda, nenhum cheiro de café. O pai já estava sempre vestido às 5h15, no máximo (“Vacas não esperam”, era a escritura preferida de Alden Dinsmore) e sempre havia café sendo feito às 5h30.
Não nessa manhã.
Ollie se levantou e vestiu as calças de ontem.
— Pai?
Nenhuma resposta. Nada além do tique-taque do relógio e, longe, o mugido de um bezerro descontente. O pavor se instalou no menino. Disse a si mesmo que não havia razão para isso, que a sua família — unida e perfeitamente feliz havia apenas uma semana — aguentara todas as tragédias permitidas por Deus, ao menos por algum tempo. Disse a si mesmo, mas não acreditava.
— Papai?
O gerador lá dos fundos ainda funcionava e ele conseguia ver os numerozinhos verdes do fogão e do micro-ondas quando foi até a cozinha, mas a cafeteira elétrica estava desligada e vazia. A sala também estava vazia, O pai estava assistindo à TV quando Ollie fora se deitar ontem à noite, e o aparelho ainda estava ligado, embora sem som. Um sujeito de cara torta demonstrava a nova e aperfeiçoada toalha Sham Wow.
— Você gasta quarenta dólares por mês em papel-toalha e joga o seu dinheiro fora — disse o cara torto naquele outro mundo onde essas coisas talvez tivessem importância.
Ele está lá fora alimentando as vacas, é só isso.
Só que ele teria desligado a TV para poupar energia, não teria? Tinham um cilindro de gás enorme, mas não duraria para sempre.
— Pai?
Ainda sem resposta. Ollie foi até a janela e olhou o celeiro. Ninguém lá. Com nervosismo crescente, desceu o corredor dos fundos até o quarto dos pais, fortalecendo-se para bater à porta, mas não houve necessidade. A porta estava aberta. A grande cama de casal estava bagunçada (o olho do pai para a bagunça parecia ficar cego quando saía do celeiro), mas vazia. Ollie começou a se virar, mas avistou algo que o apavorou. Desde que se lembrava, o retrato de casamento de Alden e Shelley ficava pendurado ali na parede. Agora sumira, e só um quadrado mais claro no papel de parede marcava o lugar onde ficara.
Não há por que ter medo.
Mas havia.
Ollie continuou a descer o corredor. Havia mais uma porta, e essa, que ficara aberta durante o ano anterior, estava fechada. Tinham grudado nela alguma coisa amarela. Um bilhete. Mesmo antes de se aproximar o bastante para ler, Ollie reconheceu a letra do pai. Tinha que reconhecer; havia bilhetes suficientes naquela letra grande à espera dele e de Rory quando voltavam da escola e sempre terminavam do mesmo jeito.
Varre o celeiro, depois você brinca. Limpa os tomateiros e pés de feijão, depois você brinca. Traz a roupa limpa pra sua mãe, e não deixa arrastar na lama. Depois você brinca.
Acabou a hora de brincar, pensou Ollie com tristeza.
Mas então um pensamento esperançoso lhe ocorreu: talvez estivesse sonhando. Seria possível? Depois da morte do irmão por ricochete e do suicídio da mãe, por que não sonharia em acordar numa casa vazia?
O bezerro mugiu de novo, e mesmo isso parecia um som ouvido num sonho.
O quarto atrás da porta com o bilhete tinha sido do vovô Tom. Com o lento sofrimento da insuficiência cardíaca congestiva, fora morar com eles quando não conseguiu mais morar sozinho. Por algum tempo conseguira andar até a cozinha para comer com a família, mas no fim ficara preso ao leito, primeiro com uma coisa plástica presa no nariz — se chamava cateto, ou coisa parecida —, depois com uma máscara de plástico no rosto a maior parte do tempo. Certa vez Rory dissera que ele parecia o astronauta mais velho do mundo, e mamãe lhe dera um tapa na cara.
No final, todos se revezavam para trocar os cilindros de oxigênio, e certa noite mamãe o achou morto no chão, como se tentasse se levantar e tivesse morrido disso. Gritou por Alden, que foi, olhou, escutou o peito do velho e desligou o oxigênio. Shelley Dinsmore começou a chorar. Desde então, o quarto ficara quase sempre fechado.
Desculpe era o que dizia o bilhete na porta. Vai pra cidade Ollie. Os Morgan ou os Denton ou a Rev. Libby cuidam de você.
Ollie olhou o bilhete por muito tempo, depois girou a maçaneta com a mão que não parecia sua, torcendo para que não houvesse sujeira.
Não havia. O pai estava deitado na cama do vovô com as mãos cruzadas no peito. O cabelo estava penteado do jeito que ele penteava quando ia à cidade. Segurava a foto do casamento. Um dos velhos tanques verdes de oxigênio do vovô ainda estava no canto; Alden pendurara na válvula o seu boné dos Red Sox, o que dizia CAMPEÕES MUNDIAIS.
Ollie sacudiu o ombro do pai. Sentiu cheiro de bebida e, por alguns segundos, a esperança (sempre teimosa, às vezes odiosa) reviveu no seu coração. Talvez só estivesse bêbado.
— Pai? Papai? Acorda!
Ollie não sentia nenhuma respiração contra o rosto, e agora via que os olhos do pai não estavam completamente fechados; pequenos crescentes brancos espiavam entre as pálpebras superiores e inferiores. Havia um cheiro do que a mãe chamava de eau de pipi.
O pai penteara o cabelo, mas enquanto jazia morto, como a falecida esposa, mijara nas calças. Ollie se perguntou se saber que isso podia acontecer o teria impedido.
Sem se virar, se afastou lentamente da cama. Agora que queria sentir que estava sonhando, não sentiu. Estava vivendo uma realidade ruim, e disso ninguém acordava. O estômago se contraiu e uma coluna de líquido vil subiu pela garganta. Ele correu para o banheiro, onde foi confrontado por um intruso de olhos arregalados. Quase gritou antes de se reconhecer no espelho sobre a pia.
Ajoelhou-se junto ao vaso sanitário, agarrando o que ele e Rory chamavam de corrimão de aleijado do vovô, e vomitou. Quando aquilo saiu dele, deu a descarga (graças ao gerador e ao poço bom e fundo, ele podia dar a descarga), baixou a tampa e sentou-se nela, tremendo todo. Ao seu lado, na pia, estavam dois vidros de comprimidos do vovô Tom e uma garrafa de Jack Daniels.
Tudo estava vazio. Ollie pegou um dos vidros de comprimidos. PERCOCET, dizia o rótulo. Nem deu atenção ao outro.
— Agora estou sozinho — disse.
Os Morgan ou os Denton ou a Rev. Libby cuidam de você.
Mas ele não queria que cuidassem dele — era o que a mãe faria com uma peça de roupa no quarto de costura. Às vezes ele odiara a fazenda, mas sempre a amara mais. Aquela fazenda o possuía. A fazenda e as vacas e a pilha de lenha. Eram dele e ele era delas. Sabia disso, assim como sabia que Rory teria ido embora para ter uma carreira brilhante e bem-sucedida, primeiro na universidade e depois nalguma cidade longe dali, onde iria a peças e galerias de arte e coisas assim. O irmão menor fora inteligente e conseguiria se fazer no grande mundo; Ollie talvez fosse inteligente a ponto de não se enredar em empréstimos bancários e cartões de crédito, e só.
Decidiu sair e alimentar as vacas. Daria a elas ração dupla, se quisessem comer. Talvez houvesse até uma vaca ou duas que quisessem ser ordenhadas. Se assim fosse, poderia mamar um pouco direto da teta, como fizera quando criança.
Depois, iria até o grande pasto, o máximo que conseguisse, e jogaria pedras na Redoma até que as pessoas começassem a aparecer para ver os parentes. Grande coisa, diria o pai. Mas não havia ninguém que Ollie quisesse ver, a não ser, talvez, o soldado Ames, da Carolina do Sul. Sabia que a tia Lois e o tio Scooter talvez fossem — moravam perto, em New Gloucester — mas o que diria se aparecessem? Oi, tio, está todo mundo morto menos eu, obrigado por vir?
Não, assim que as pessoas de fora da Redoma começassem a chegar, ele admitiu que iria até onde a mãe estava enterrada e abriria outra cova ali perto. Isso o deixaria ocupado, e talvez, quando chegasse a hora de se recolher, ele conseguisse dormir.
A máscara de oxigênio do vovô Tom estava pendurada no gancho da porta do banheiro. A mãe a lavara cuidadosamente e a pendurara ali, sabe-se lá por quê. Ao olhá-la, a verdade finalmente caiu sobre ele, e foi como se um piano atingisse o chão de mármore. Ollie bateu as mãos no rosto e começou a balançar para a frente e para trás no assento sanitário, uivando.
Linda Everett encheu de enlatados duas sacolas de pano, quase as deixou junto à porta da cozinha, mas decidiu deixá-las na despensa até ela, Thurse e as crianças estarem prontos para sair. Quando viu o rapaz Thibodeau subindo pela entrada, ficou contente. Aquele rapaz a deixava apavorada, mas teria muito mais a temer se ele visse duas bolsas cheias de sopa, feijão e atum.
Vai a algum lugar, sra. Everett? Vamos conversar a respeito.
O problema era que, de todos os novos policiais que Randolph contratara, Thibodeau era o único inteligente.
Por que o Rennie não mandou o Searles?
Porque Melvin Searles era burro. Elementar, meu caro Watson.
Pela janela da cozinha, ela deu uma espiada no quintal e viu Thurston empurrando Jannie e Alice no balanço. Audrey estava ali perto, com o focinho na pata. Judy e Aidan estavam na caixa de areia. Judy abraçara Aidan e parecia consolá-lo. Linda a amou por isso. Torcia para que conseguisse satisfazer o sr. Carter Thibodeau e mandá-lo embora antes que as cinco pessoas no quintal chegassem a saber que ele estivera ali. Ela não atuava desde que representara Stella em Um bonde chamado desejo, lá na escola técnica, mas voltaria ao palco nesta manhã. A única boa crítica que desejava era a continuação da sua liberdade e das pessoas lá longe.
Correu pela sala, pondo no rosto o que ela torcia que fosse uma cara ansiosa e adequada antes de abrir a porta. Carter estava em pé no capacho BEM-VINDO com o punho erguido para bater. Ela teve de erguer os olhos; media 1,75m, mas ele tinha 15cm ou mais acima dela.
— Ora, ora, vejam só — disse ele sorrindo. — Toda animada e bem-disposta, e ainda nem são sete e meia. — Ele não estava com muita vontade de sorrir; não fora uma manhã produtiva. A pregadora sumira, a piranha do jornal sumira, os seus dois repórteres de estimação pareciam ter sumido e Rose Twitchell também. O restaurante estava aberto e o rapaz Wheeler cuidava do local, mas disse que não tinha a mínima ideia de onde Rose poderia estar. Carter acreditou nele. Anse Wheeler parecia um cachorro que esquecera onde enterrara seu osso favorito. A julgar pelo cheiro horrível que vinha da cozinha, também não tinha a mínima ideia do que era cozinhar. Carter fora até os fundos, à procura da van do Rosa Mosqueta. Sumira. Não ficou surpreso.
Depois do restaurante, fora à loja de departamentos, batendo primeiro na frente e depois nos fundos, onde algum funcionário descuidado deixara um monte de rolos de isolamento de telhado para qualquer mão-leve furtar. Só que, quando a gente pensava melhor, quem ia querer isolamento de telhado numa cidade onde não chovia mais?
Carter achara que a casa de Everett também seria um buraco vazio e só foi até lá para dizer que obedecera à risca as instruções do chefe, mas ouviu as crianças no quintal enquanto subia pela entrada de automóveis. E a van dela também estava lá. Sem dúvida que era dela; havia uma daquelas lâmpadas magnéticas no painel. O chefe dissera interrogatório moderado, mas já que Linda Everett era a única que conseguira encontrar, Carter achou que podia ficar no lado mais duro do moderado. Gostasse ou não — e não gostaria —, Everett teria de responder não só por si, como também pelos que ele não conseguira encontrar. Mas antes que ele abrisse a mão, ela já estava falando. Não só falava como o pegou pela mão e o puxou mesmo para dentro.
— Vocês acharam ele? Por favor, Carter, Rusty está bem? Se ele não estiver... — Ela largou a mão dele. — Se ele não estiver, fala baixo, as crianças estão lá atrás e não quero que fiquem mais nervosas do que já estão.
Carter passou por ela, foi à cozinha e espiou pela janela sobre a pia.
— O que o médico hippie está fazendo aqui?
— Ele trouxe as crianças de que está cuidando. Caro as levou à assembléia de ontem à noite e... você sabe o que aconteceu com ela.
Esse blá-blá-blá corrido era a última coisa que Carter esperava. Talvez ela não soubesse de nada. O fato de que estivera na assembléia da véspera e ainda estava ali nessa manhã certamente favorecia essa ideia. Ou talvez só estivesse tentando desequilibrá-lo. Dando um, como é que se diz, golpe preventivo. Era possível; ela era esperta. Bastava olhar para ver. E quase bonita, para alguém mais velho.
— Vocês acharam ele? Barbara... — Ela achou fácil pôr ansiedade na voz. — Barbara feriu ele? E o deixou por aí? Pode me dizer a verdade.
Ele se virou para ela, sorrindo à vontade na luz diluída que vinha da janela.
— Você primeiro.
— Hein?
— Você primeiro, foi o que eu disse. Você me conta a verdade.
— Eu só sei que ele foi embora. — Ela deixou os ombros caírem. — E você não sabe pra onde. Dá pra ver que não sabe. E se Barbara matar ele? E se ele já estiver mor...
Carter a agarrou, girou-a como giraria a parceira se estivesse dançando quadrilha e puxou o braço dela nas costas até que o ombro estalou. Agiu com rapidez tão estranha e líquida que ela só entendeu o que ele queria fazer quando terminou.
Ele sabe! Ele sabe e vai me machucar! Me machucar até eu contar...
O hálito dele estava quente na orelha dela. Ela sentiu a aspereza da barba raspada arranhar a sua bochecha quando ele falou, e isso a deixou toda arrepiada.
— Não tente enrolar um enrolador, mamãe. — Foi pouco mais do que um sussurro. — Você e Wettington sempre foram unidas, bunda com bunda, peito com peito. Quer me convencer de que não sabia que ela ia soltar seu marido? É isso que você está dizendo?
Ele puxou o braço dela mais para o alto e Linda teve de morder o lábio para sufocar um grito. As crianças estavam lá fora, Jannie gritando por sobre o ombro para Thurse empurrar com mais força. Se ouvissem um grito vindo da casa...
— Se ela tivesse me contado, eu teria dito ao Randolph — ofegou. Acha que eu ia arriscar a vida do Rusty quando ele não fez nada?
— Ele fez muita coisa. Ameaçou não dar remédio ao chefe se ele não renunciasse. Puta chantagem. Eu ouvi. — Ele puxou o braço dela outra vez. Um gemidinho lhe escapou. — Tem alguma coisa a dizer a respeito? Mamãe?
— Talvez ele tenha feito isso. Não vi nem falei com ele, como saberia? Mas nessa cidade ele ainda é o que mais se parece com um médico. Rennie não executaria ele. Talvez o Barbara, mas não o Rusty. Eu sei disso, e você deve saber também. Agora me solta.
Por um instante, ele quase a soltou. Tudo fazia sentido. Então, teve uma idéia melhor, e a empurrou até a pia.
— Se abaixa, mamãe.
— Não!
Ele puxou o braço dela para cima outra vez. Parecia que o osso do ombro ia ser arrancado do soquete.
— Se abaixa. Como se fosse lavar esse lindo cabelo louro.
— Linda? — gritou Thurston. — Como estão as coisas?
Jesus, não deixe ele perguntar sobre os mantimentos. Por favor, Jesus.
Então, outra idéia lhe ocorreu. Onde estavam as malas das crianças? Cada uma das meninas preparara uma malinha de viagem. E se estivessem na sala?
— Diz pra ele que você está bem — disse Carter. — Não queremos envolver o hippie nisso. Nem as crianças. Queremos?
Por Deus, não. Mas onde estavam as malas?
— Tudo bem! — respondeu ela.
— Tudo quase pronto? — gritou ele.
Ah, Thurse, cala a boca!
— Mais cinco minutinhos!
Thurston ficou lá olhando como se fosse dizer mais alguma coisa e depois voltou a empurrar as meninas.
— Bom trabalho. — Agora ele se encostava nela, e estava com tesão. Deu para ela sentir contra os fundilhos das calças. Era grande como uma chave inglesa. Depois ele se afastou.
— Quase pronto o quê?
Ela quase disse café da manhã, mas os pratos sujos estavam na pia. Por um instante a mente dela virou um vazio trovejante e ela quase desejou que ele encostasse o pau duro nela de novo, porque, quando a cabeça menor dos homens fica ocupada, a cabeça maior desliga.
Mas ele puxou o braço dela para cima outra vez.
— Fala comigo, mamãe. Deixa o papai feliz.
— Biscoitos! — disse ela num só fôlego. — Eu prometi fazer biscoitos. As crianças pediram!
— Biscoitos sem luz? — perguntou ele. — O melhor truque da semana.
— São do tipo que não precisa assar! Olha na despensa, seu filho da puta!
Se ele olhasse, acharia mesmo na prateleira mistura para biscoitos de aveia que não precisavam de forno. Mas é claro que, se olhasse para baixo, também veria os mantimentos que ela embalara. E faria mesmo isso se notasse quantas prateleiras da despensa estavam agora vazias ou quase.
— Você não sabe onde ele está. — A ereção estava de volta contra ela. Com a dor pulsante no ombro, ela mal notou. — Tem certeza disso.
— Claro. Achei que você sabia. Achei que você tinha vindo me contar que ele estava ferido ou m-m...
— Acho que você está mentindo deslavadamente. — O braço dela foi puxado mais um pouco, e agora a dor era excruciante, a necessidade de gritar insuportável. Mas ela deu um jeito de segurar. — Acho que você sabe, sim, mamãe. E se não me contar, vou arrancar seu braço do ombro. Última chance. Onde ele está?
Linda se resignou a ter o braço ou o ombro quebrado. Talvez ambos. A questão era se conseguiria ou não segurar os gritos, que fariam Thurston e as Jotinhas virem correndo. De cabeça baixa, o cabelo caindo na pia, ela disse:
— No cu. Por que não chupa, seu puto? Quem sabe ele sai e te diz oi.
Em vez de quebrar o braço dela, Carter riu. Aquela fora mesmo boa. E ele acreditou. Ela nunca ousaria falar assim com ele, a menos que estivesse dizendo a verdade. Só queria que ela não estivesse de calça jeans. Foder com ela talvez ainda estivesse fora de questão, mas sem dúvida chegaria bem perto se ela estivesse de saia. Ainda assim, uma boa esfregada não era o pior jeito de começar o Dia de Visita, mesmo que contra calças jeans e não contra uma bela calcinha macia.
— Fica parada e de boca fechada — disse ele. — Se obedecer, talvez saia dessa inteira.
Ela ouviu o tilintar da fivela do cinto e o raspar do zíper. Então, o que se esfregara contra ela se esfregou de novo, só que agora com bem menos pano no meio. Uma partezinha dela ficou contente de ao menos ter vestido calças bem novas; ela torceu para que ele se arranhasse bastante.
Desde que as Jotinhas não entrem e me vejam assim.
De repente, ele apertou mais e com mais força. A mão que não segurava o seu braço lhe agarrou o seio.
— Ei, mamãe — murmurou ele. — Ei, ei, mamãe.
Ela sentiu o espasmo dele, embora não a umidade que se seguia a tais espasmos como o dia segue a noite; os jeans eram grossos demais para isso, graças a Deus. Um momento depois, a pressão no seu braço finalmente afrouxou. Ela poderia ter chorado de alívio, mas não chorou. Não choraria. Ela se virou. Ele reafivelava o cinto.
— Talvez seja melhor trocar essas calças antes de fazer biscoitos. Ao menos, eu trocaria, se fosse você. — Deu de ombros. — Mas sabe lá, talvez você goste. Cada macaco no seu galho.
— É assim que vocês protegem a lei por aqui agora? É assim que o seu chefe quer que se defenda a lei?
— Ah, ele é mais de ver o quadro geral. — Carter se virou para a despensa, e o coração disparado dela pareceu parar. Então, ele deu uma olhada no relógio e subiu o zíper. — Liga pro sr. Rennie ou pra mim se o seu marido entrar em contato. É o melhor a fazer, pode acreditar. Caso contrário, e se eu descobrir, o próximo tiro que eu der vai pelo velho cu acima. Quer as crianças estejam olhando, quer não. Não me incomodo com platéia.
— Sai daqui antes que eles entrem.
— Diz por favor, mamãe.
A garganta dela travou, mas ela sabia que logo Thurston viria ver como ela estava, e ela falou.
— Por favor.
Ele seguiu para a porta, depois olhou a sala de estar e parou. Vira as malinhas.
Ela tinha certeza.
Mas ele estava pensando em outra coisa.
— E devolve a lâmpada giratória que eu vi na sua van. Caso tenha esquecido, você foi demitida.
Ela estava no andar de cima quando Thurston e as crianças entraram dali a três minutos. A primeira coisa que fez foi olhar o quarto das crianças. As malinhas estavam nas camas. O ursinho de pelúcia de Judy saía de uma delas.
— Ei, crianças! — gritou ela alegremente. Toujours gai, ela era assim. — Olhem alguns livros de figuras que eu desço num instante!
Thurston chegou ao pé da escada.
— Precisamos mesmo...
Ele viu o rosto dela e parou. Ela lhe acenou.
— Mãe? — gritou Janelle. — A gente pode tomar a última Pepsi se dividir?
Embora geralmente vetasse a ideia de refrigerantes assim tão cedo, ela respondeu:
— Tudo bem, mas não derramem!
Thurse subiu metade dos degraus.
— O que aconteceu?
— Fala baixo. Veio um policial. Carter Thibodeau.
— O altão de ombros largos?
— Ele. Veio me interrogar...
Thurse empalideceu, e Linda soube que ele recordava o que lhe gritara quando achou que ela estava sozinha.
— Acho que está tudo bem — disse ela —, mas preciso que você verifique se ele foi mesmo embora. Estava a pé. Confere a rua e olha pela cerca dos fundos do quintal dos Edmund. Tenho que trocar de calça.
— O que ele fez com você?
— Nada! — cochichou ela. — Só confere se ele foi embora, e, se foi, vamos sair correndo daqui.
Piper Libby largou a caixa e sentou-se, olhando a cidade com lágrimas a se acumular nos olhos. Pensava em todas aquelas orações tarde da noite a Não-Taí. Agora sabia que tinham sido apenas uma piada boba de calouro, e o motivo da piada, no fim das contas, fora ela. Havia um Taí por lá. Só que não era Deus.
— Você viu eles?
Ela levou um susto. Norrie Calvert estava ali em pé. Parecia mais magra. Mais velha, também, e Piper viu que ela seria bonita. Para os garotos com quem andava, provavelmente já era.
— Vi, sim, querida.
— Rusty e Barbie estão certos? As pessoas que estão nos olhando são só crianças?
Piper pensou: Talvez só mesmo uma consiga reconhecer outra.
— Não tenho 100% de certeza, querida. Experimenta.
Norrie a olhou.
— Posso?
E Piper, sem saber se era certo ou errado, fez que sim.
— Pode.
— Se eu ficar... não sei... esquisita ou coisa assim, você me puxa?
— Puxo. E não precisa, se não quiser. Não é um desafio.
Mas para Norrie era. E ela estava curiosa. Ajoelhou-se no capim alto e agarrou a caixa com firmeza pelos lados. Ficou imediatamente eletrizada. A cabeça caiu para trás com tanta força que Piper ouviu as vértebras do pescoço estalarem como nós dos dedos. Estendeu a mão para a garota, mas deixou-a cair quando Norrie relaxou. O queixo caiu até o peito e os olhos, que estavam bem fechados quando o choque a atingiu, se abriram de novo. Estavam distantes e nebulosos.
— Por que vocês estão fazendo isso? — perguntou ela. — Por quê?
Os braços de Piper se arrepiaram.
— Digam! — Uma lágrima caiu de um dos olhos de Norrie sobre o alto da caixa, onde chiou e sumiu. — Digam!
O silêncio se estendeu. Pareceu muito demorado. Então a menina soltou as mãos e se inclinou para trás até que o traseiro descansou nos calcanhares.
— Crianças.
— Com certeza?
— Com certeza. Não sei quantas. Não paravam de mudar. Usam chapéus de couro. Têm a boca suja. Usavam óculos e olhavam a caixa delas. Só que a delas é como uma televisão. Elas veem tudo, na cidade inteira.
— Como sabe?
Norrie balançou a cabeça, incapaz.
— Não sei dizer, só sei que é verdade. São crianças más de boca suja. Nunca mais quero tocar naquela caixa. Estou me sentindo tão imunda! — E começou a chorar.
Piper a abraçou.
— Quando você perguntou por que, o que eles disseram?
— Nada.
— Acha que eles ouviram?
— Ouviram. Só não ligaram.
Detrás deles veio um som rítmico e firme, cada vez mais alto. Dois helicópteros de transporte vinham do norte, quase encostando no alto das árvore do TR-90.
— É melhor tomarem cuidado com a Redoma, senão vão bater que nem o avião! — gritou Norrie.
Os helicópteros não bateram. Chegaram à beira do espaço aéreo seguro, a uns 3 quilômetros dali, e começaram a descer.
Cox falara a Barbie de uma velha estradinha que ia do pomar McCoy até a fronteira do TR-90 e disse que ainda parecia transitável. Barbie, Rusty, Rommie, Julia e Pete Freeman a percorreram de carro por volta das sete e meia da manhã de sexta-feira. Barbie confiava em Cox, mas não necessariamente nas fotos de uma velha trilha para caminhões tirada a 300km de altura, então foram na van que Ernie Calvert roubara do pátio de Big Jim Rennie. Essa Barbie tinha toda a boa vontade de perder, caso ficasse presa. Pete estava sem câmera; a sua Nikon digital parara de funcionar quando ele se aproximara da caixa.
— ETs não gostam de paparazzi, bródi — disse Barbie. Achou que era uma frase moderadamente engraçada, mas, quando se tratava da sua câmera, Pete não tinha senso de humor.
A ex-van da companhia telefônica foi até a Redoma e agora os cinco observavam os dois enormes CH-47 vadearem rumo a um campo de feno alto no TR-90. A estrada continuava até lá e os rotores dos Chinooks levantavam grandes nuvens de poeira. Barbie e os outros protegeram os olhos, mas era só instinto desnecessário; a poeira se ergueu até a Redoma e depois rolou para os dois lados.
Os helicópteros pousaram com o decoro lento das damas gordas que se instalam no teatro em poltronas pequenas demais para os seus traseiros. Barbie ouviu o guincho infernal do metal em pedras que se elevavam do chão e o helicóptero da esquerda se deslocou lentamente uns 30 metros para o lado antes de tentar de novo.
Uma figura pulou da cabine aberta do primeiro e andou pela nuvem de terra remexida, acenando para o lado com impaciência. Barbie reconheceria aquele hidrantezinho impaciente em qualquer lugar. Cox desacelerou ao se aproximar e estendeu uma das mãos como o cego que procura obstruções no escuro. Logo limpava a poeira do seu lado.
— É bom vê-lo respirando o ar da liberdade, coronel Barbara.
— Sim, senhor.
Cox mudou o olhar.
— Olá, sra. Shumway. Olá, outros Amigos de Barbara. Quero saber de tudo, mas você terá que ser rápido; tenho um pequeno circo de cavalinhos do outro lado da cidade e não quero perder nada.
Cox sacudiu o polegar por sobre o ombro para onde o desembarque já começara: dúzias de ventiladores Air Max ligados a geradores. Com alívio, Barbie viu que eram grandes, do tipo usado para secar quadras de tênis e pit stops de pistas de corrida depois de chuvas fortes. Cada um estava aparafusado na sua plataforma-carrinho de duas rodas. Os geradores pareciam ter no máximo 20 HP. Torceu para que bastassem.
— Primeiro, quero que me diga que aquilo não será necessário.
— Não sei com certeza — disse Barbie —, mas acho que será. Talvez você possa arranjar mais alguns pro lado da 119, onde os moradores da cidade vão encontrar os parentes.
— Hoje à noite — disse Cox. — É o máximo que eu posso fazer.
— Leva alguns daqui — disse Rusty. — Se precisarmos de todos, vai ser uma merda muito merda mesmo.
— Não dá, filho. Talvez se pudéssemos cruzar o espaço aéreo de Chester’s Mill, mas se pudéssemos o problema não existiria, não é? E pôr uma fila de ventiladores industriais com geradores no lugar onde vão estar os visitantes praticamente destrói o nosso objetivo. Ninguém escutaria nada. Esses bichinhos são barulhentos. — Ele deu uma olhada no relógio. — Agora, quanto vocês conseguem me contar em 15 minutos?
O HALLOWEEN CHEGA MAIS CEDO
Às 7h45, o Honda Odyssey Green quase novo de Linda Everett foi até a plataforma de desembarque atrás da loja de departamentos Burpee. Thurse ia de carona. A garotada (silenciosa demais para crianças que partiam numa aventura) estava no banco de trás. Aidan abraçava a cabeça de Audrey. Esta, provavelmente sentindo a angústia do menininho, aguentava com paciência.
O ombro de Linda ainda pulsava apesar das três aspirinas, e ela não conseguia tirar da cabeça a cara de Carter Thibodeau. Nem o cheiro dele: uma mistura de suor e água de colônia. Não parava de esperar que ele aparecesse atrás dela num dos carros de polícia da cidade, bloqueando a fuga. O próximo tiro que eu der vai pelo velho cu acima. Quer as crianças estejam olhando, quer não.
Ele faria isso, também. Faria. E embora não pudesse sair da cidade, estava louca para deixar o máximo possível de distância entre ela e o novo Sexta-Feira de Rennie.
— Pega um rolo inteiro e tesouras de cortar metal — disse a Thurse. — Estão debaixo daquela caixa de leite. Rusty me falou.
Thurston abrira a porta, mas aí parou.
— Não posso fazer isso. E se mais alguém precisar?
Ela não ia discutir; provavelmente acabaria gritando com ele e assustando as crianças.
— Como quiser. Mas depressa. Isso é como um desfiladeiro fechado.
— O mais depressa possível.
Mas pareceu que ele levava uma eternidade para cortar pedaços do rolo de folha de chumbo, e ela teve de se segurar para não se inclinar para fora da janela e perguntar se ele era uma velha chata desde que nascera ou se aprendera depois.
Cala a boca. Ele perdeu alguém que amava ontem à noite.
É, e se não se apressassem ela poderia perder tudo. Já havia gente na rua Principal, seguindo para a 119 e para a fazenda Dinsmore, na intenção de ocupar os melhores lugares. Linda pulava toda vez que um alto-falante da polícia berrava: “PROIBIDO CARROS NA ESTRADA! QUEM NÃO FOR DEFICIENTE FÍSICO TEM QUE CAMINHAR.”
Thibodeau era esperto e farejara alguma coisa. E se voltasse e visse que a sumira? Iria procurá-la? Enquanto isso, Thurse não parava de cortar pedaços de chumbo do rolo de revestimento de telhado. Ele se virou e ela achou que terminara, mas só media visualmente o para-brisa. Começou a cortar de novo. Separando outro pedaço. Talvez estivesse mesmo tentando deixá-la maluca. Uma idéia boba, mas depois que entrou na cabeça não quis mais sair.
Ainda sentia Thibodeau se esfregando contra o seu traseiro. O arranhado da barba. Os dedos lhe apertando o seio. Disse a si mesma para não olhar o que ele deixara no traseiro da calça quando a despiu, mas não conseguiu se segurar. A palavra que lhe surgiu na cabeça foi esporro, e ela se viu numa luta breve e dura para manter o café da manhã na barriga. O que também o agradaria, se ele descobrisse.
O suor lhe brotou na testa.
— Mãe? — Judy, bem junto ao seu ouvido. Linda pulou e soltou um grito. — Desculpa, não queria assustar. Posso comer alguma coisa?
— Agora, não.
— Por que aquele homem não para de falar no megafone?
— Querida, não posso conversar agora.
— Tá triste?
— Estou. Um pouco. Agora senta.
— Vamos ver o papai?
— Vamos. — A menos que nos peguem e eu seja estuprada na frente de vocês. — Agora senta.
Finalmente Thurse estava vindo. Graças a Deus pelos pequenos favores. Parecia trazer quadrados e retângulos suficientes para blindar um tanque.
— Viu? Não foi tão ruim ass... Ah, merda.
As crianças riram, o som como limas ásperas corroendo o cérebro de Linda.
— Moedinha no vidro, sr. Marshall — disse Janelle.
Thurse olhava para baixo, perplexo. Enfiara as tesouras no cinto.
— Vou pôr isso de volta debaixo da caixa de lei...
Linda as agarrou antes que ele terminasse, engoliu a vontade momentânea de as enfiar até o cabo no peito estreito dele — admirável a capacidade de se conter, pensou — e saiu para guardá-las pessoalmente.
Nesse momento, um veículo se enfiou atrás da van, bloqueando o acesso à rua Principal, única saída daquele beco.
No alto do morro da praça da Cidade, logo abaixo do cruzamento em Y no qual a avenida Highland se separava da rua Principal, estava o Hummer de Jim Rennie em marcha lenta. Lá debaixo vinham as exortações amplificadas para que todos largassem o carro e caminhassem, a menos que fossem deficientes. As pessoas escorriam pelas calçadas, muitas com mochila às costas. Big Jim as olhou com aquela espécie de desprezo sofrido que só sentem os cuidadores que fazem o seu serviço por dever e não por amor.
Contra a maré, vinha Carter Thibodeau. Dava passos largos pelo meio da rua, de vez em quando empurrando alguém para fora do seu caminho. Chegou ao Hummer, sentou-se no banco do carona e limpou o suor da testa com o braço.
— Cara, como é bom esse ar-condicionado. Nem são oito da manhã e já vai dar 26 graus lá fora. E o ar fede que nem uma merda de cinzeiro. Desculpe o termo, chefe.
— Que tipo de sorte você teve?
— O tipo ruim. Falei com a policial Everett. Ex-policial Everett. Os outros sumiram.
— Ela sabe de alguma coisa?
— Não. Não tem notícias do médico. E Wettington tratou ela feito uma imbecil, não contou nada e só disse merda.
— Tem certeza?
— Tenho.
— As crianças estão com ela?
— Estão. O hippie também. Aquele que ajeitou o seu coração. Mais os dois garotos que Junior e Frankie acharam no lago. — Carter pensou a respeito. Com a garota dele morta e o marido dela sumido, ele e Everett provavelmente vão pular na cama antes do fim de semana. Se quer que eu vá lá de novo, chefe, eu vou.
Big Jim ergueu um único dedo do volante e o balançou para mostrar que isso não seria necessário. Estava com a atenção em outra coisa.
— Olha pra eles, Carter.
Carter não poderia evitar. O tráfego de gente a pé para fora da cidade aumentava de minuto a minuto.
— A maioria vai chegar à Redoma às nove, e os melequentos dos familiares só chegam às dez. No mínimo. A essa altura, vão estar morrendo de sede. Ao meio-dia, quem não se lembrou de levar água vai tomar mijo de vaca no lago de Alden Dinsmore, Deus os ama. Deus tem que amá-los, porque a maioria é burra demais pra trabalhar e assustada demais pra roubar.
Carter latiu uma gargalhada.
— É com isso que temos que lidar — disse Rennie. — A turba. A escória melequenta. O que eles querem, Carter?
— Não sei, chefe.
— Claro que sabe. Querem comida, Oprah, música country e uma cama quente pra fazer coisa feia quando o sol se põe. Pra que possam fazer outros iguais a eles. E, caramba, aí vem outro membro da tribo.
Era o chefe Randolph, subindo o morro com dificuldade e limpando com um lenço o rosto vermelho vivo.
Agora Big Jim estava em pleno modo palestra.
— O nosso serviço, Carter, é tomar conta deles. Podemos não gostar, talvez nem sempre achemos que merecem, mas é o serviço que Deus nos deu. Só que, pra fazer o serviço, temos primeiro que cuidar de nós, e foi por isso que anteontem guardamos boa quantidade de frutas e verduras frescas do Food City na repartição pública da cidade. Você não sabia disso, não é? Ora, tudo bem. Você está um passo à frente deles e eu estou um passo à sua frente, e é assim que deve ser. A lição é simples: o Senhor ajuda quem se ajuda.
— Sim, senhor.
Randolph chegou. Ofegava, havia círculos sob os olhos e parecia ter emagrecido. Big Jim apertou o botão que abria a sua janela.
— Entra, chefe, aproveite o ar-condicionado.
E, quando Randolph partiu para o banco do carona, Big Jim acrescentou:
— Aí, não, Carter está sentado aí. — Sorriu. — Entra atrás.
Não foi um carro da polícia que estacionou atrás da van Odyssey; foi a ambulância do hospital. Com Dougie Twitchell ao volante. Ginny Tomlinson estava no banco do carona com um bebê adormecido no colo. A porta de trás se abriu e Gina Buffalino desceu. Ainda usava o uniforme listrado. A garota que a seguiu, Harriet Bigelow, estava de jeans e uma camiseta que dizia “EQUIPE DE BEIJO OLÍMPICO DOS EUA”.
— O quê... o quê... — Parecia ser o máximo de que Linda era capaz. O coração disparara, o sangue pulsava com tanta força na cabeça que parecia que os tímpanos adejavam.
— Rusty nos ligou e mandou que fôssemos pro pomar da Serra Negra — disse Twitch. — Nem sabia que tinha um pomar lá, mas Ginny sabia, e... Linda? Querida, você está pálida como um fantasma.
— Estou bem — disse Linda, e percebeu que estava prestes a desmaiar. Beliscou o lóbulo das orelhas, truque que Rusty lhe ensinara havia muito tempo. Como muitos dos seus remédios populares (vencer os cistos sebáceos com a lombada de um livro pesado era outro), deu certo. Quando ela voltou a falar, a voz parecia mais próxima e um tanto mais real. — Ele te disse pra passar aqui primeiro?
— Disse. Pra pegar um pouco daquilo. — Ele apontou o rolo de folha de chumbo na plataforma de desembarque. — Só por segurança, foi o que ele disse. Mas vou precisar dessa tesoura.
— Tio Twitch! — gritou Janelle, e correu para os seus braços.
— O que é que há, gatinha? — Ele a abraçou, a girou, a pôs no chão. Janelle espiou o bebê pela janela do passageiro. — Qual é o nome dela?
— É ele — disse Ginny. — O nome dele é Pequeno Walter.
— Legal!
— Jannie, volta pra van, temos que ir embora — disse Linda.
— Ei, vocês, quem está cuidando do hospital? — perguntou Thurse.
Ginny ficou sem graça.
— Ninguém. Mas Rusty disse pra gente não se preocupar, a menos que houvesse alguém precisando de cuidados constantes. Além do Pequeno Walter, não tinha ninguém. Então peguei o bebê e viemos. Twitch disse que talvez possamos voltar depois.
— Alguém devia voltar — disse Thurse, entristecido. Linda notou que a tristeza parecia ser a posição default de Thurston Marshall. — Três quartos da cidade estão trotando pela 119 até a Redoma. A qualidade do ar é ruim e até as 10h já vai estar fazendo uns 30 graus, mais ou menos na hora em que chegarão os ônibus de visitantes. Se Rennie e seus comparsas fizeram algo pra oferecer abrigo, não me disseram. Pode haver muita gente doente em Chester’s Mill antes do pôr do sol. Com sorte, só internação e asma, mas pode haver também alguns enfartes.
— Gente, talvez fosse melhor voltar — disse Gina. — Estou me sentindo como um rato que abandona o navio naufragado.
Não! — exclamou Linda tão incisivamente que todos a olharam, até Audi. — Rusty disse que alguma coisa ruim vai acontecer. Pode não ser hoje... mas disse que pode ser. Peguem o chumbo pras janelas da ambulância e vão embora. Não ouso esperar. Um dos brutamontes do Rennie foi me visitar hoje de manhã e se voltar até a casa e vir que a van sumiu...
— Vamos, vamos — disse Twitch. — Vou dar ré pra que vocês possam sair. Não peguem a rua Principal, já está uma bagunça.
— A rua Principal, na frente da delegacia? — Linda quase tremeu. — Não, obrigada, O táxi da mamãe vai pela rua Oeste até a Highland.
Twitch entrou atrás do volante da ambulância e as duas jovens enfermeiras conscritas embarcaram de novo, Gina dando a Linda um último olhar de dúvida por sobre o ombro.
Linda parou, olhando primeiro o bebê suado e adormecido, depois Ginny.
— Talvez você e Twitch possam voltar ao hospital hoje à noite pra ver como está a situação. Digam que foram atender a um chamado lá em Northchester ou coisa parecida. Façam o que fizerem, não mencionem nada sobre a Serra Negra.
— Não.
Agora é fácil falar, pensou Linda. Talvez não achem tão fácil fingir se Carter Thibodeau forçar vocês contra a pia.
Ela empurrou Audrey de volta, fechou a porta de correr e se sentou atrás do volante da Odyssey Green.
— Vamos sair daqui — disse Thurse, embarcando ao lado dela. — Não me sinto tão paranoico desde a época dos Panteras Negras.
— Ótimo — disse. — Porque a perfeita paranoia traz a perfeita consciência.
Ela saiu com a van de ré, passando pela ambulância, e começou a subir a rua Oeste.
— Jim — disse Randolph, no banco de trás do Hummer —, andei pensando sobre esse ataque.
— É mesmo? Por que não nos dá o benefício dos seus pensamentos, Peter?
— Sou chefe de polícia. Se a questão for escolher entre o controle da multidão na fazenda Dinsmore e o comando de um ataque a um laboratório de drogas onde pode haver viciados armados guardando substâncias ilegais... bem, eu sei qual o meu dever. Digamos assim.
Big Jim descobriu que não queria discutir a questão. Discutir com imbecis era contra-producente. Randolph não fazia ideia do tipo de arma que podia estar armazenado na emissora de rádio. Na verdade, nem o próprio Big Jim (não havia como dizer o que Bushey pusera na conta da empresa), mas ao menos conseguia imaginar o pior, façanha mental da qual esse balão de gás fardado parecia incapaz. E se algo acontecesse a Randolph... ora, ele já não decidira que Carter seria um substituto mais do que adequado?
—Tudo bem, Pete — disse ele. — Longe de mim ficar entre você e o seu dever. Você é o novo oficial no comando, com Fred Denton como auxiliar. Isso te satisfaz?
— Caramba, claro que sim! — Randolph encheu o peito. Parecia um galo gordo prestes a cacarejar. Embora não fosse famoso pelo senso de humor, Big Jim teve de sufocar uma risada.
— Então vai pra delegacia e começa a reunir o pessoal. Caminhões da cidade, não esqueça.
— Certo! Atacamos ao meio-dia! — Sacudiu no ar o punho fechado.
— Vai pela floresta.
— Sabe, Jim, queria falar sobre isso. Parece meio complicado. Aquela mata atrás da emissora é muito fechada... vai haver urtiga... e sumagre-venenoso, que é ainda pi...
— Tem uma estrada de acesso — disse Big Jim. Estava chegando ao fim da paciência. — Quero que você use. Ataque pelo lado cego.
— Mas...
— Uma bala na cabeça seria muito pior do que urtiga. Foi bom conversar com você, Pete. É bom ver você tão... — Mas tão o quê? Pomposo? Ridículo? Idiota?
— Tão cheio de entusiasmo — disse Carter.
— Obrigado, Carter, exatamente o que eu pensei. Pete, diga ao Henry Morrison que agora ele está encarregado do controle da multidão na 119. E use a estrada de acesso.
— Mas eu acho...
— Carter, abre a porta pra ele.
— Ah, meu Deus — disse Linda, e fez a van virar para a esquerda. Bateu no meio-fio a menos de 100 metros do cruzamento da Principal com a Highland. As três meninas riram com a batida, mas o pequeno Aidan, coitado, parecia apenas apavorado, e agarrou de novo a cabeça da sofredora Audrey.
— O quê? — exclamou Thurse. — O quê?
Ela estacionou no gramado de alguém, atrás de uma árvore. Era um carvalho de bom tamanho, mas a van também era grande, e o carvalho perdera a maior parte das folhas apáticas. Queria acreditar que estavam escondidos, mas não estavam.
— É o Hummer do Jim Rennie parado no meio da merda do cruzamento.
— Palavrão de novo! — disse Judy. — Duas moedinhas no vidro do palavrão!
Thurse espichou o pescoço.
— Tem certeza?
— Acha que mais alguém na cidade tem um veículo imenso daqueles?
— Ah, caralho — disse Thurston.
— Vidro do palavrão! — Dessa vez, Judy e Jannie falaram juntas.
Linda sentiu a boca seca e a língua grudou no céu da boca. Thibodeau saía pelo lado do carona do Hummer, e se olhasse para lá...
Se ele nos vir, atropelo ele, pensou. A idéia lhe deu uma certa calma perversa.
Thibodeau abriu a porta de trás do Hummer. Peter Randolph desceu.
— Aquele homem está puxando a cueca — informou Alice Appleton ao grupo como um todo. — A minha mãe diz que isso é falta de papel higiênico.
Thurston Marshall caiu na risada, e Linda, que acharia que não havia mais riso nenhum dentro dela, riu também. Logo todos riam, até Aidan, que com certeza não sabia do que riam. Linda também não tinha muita certeza.
Randolph desceu o morro a pé, ainda puxando o traseiro da calça da farda. Não havia razão nenhuma para isso ter graça, e por isso ficou mais engraçado ainda.
Não querendo ficar de fora, Audrey começou a latir.
Em algum lugar, um cão latia.
Big Jim escutou, mas não se deu ao trabalho de se virar. Observar Peter Randolph descer o morro a pé o inundava de bem-estar.
— Veja só ele ajeitando a cueca — observou Carter. — O meu pai costumava dizer que isso era falta de papel higiênico.
— Agora só falta ele ir pra WCIK — disse Big Jim. — Se teimar em fazer um ataque de frente, é provável que seja o último lugar aonde vai. Vamos voltar pra Câmara de Vereadores e assistir a esse festival por algum tempo na TV. Quando ficar cansativo, quero que você ache o médico hippie e diga pra ele que, se tentar escapulir pra algum lugar, vamos atrás dele e jogamos ele na cadeia.
— Sim, senhor. — Era um dever que não se incomodaria de cumprir. Talvez pudesse dar outra dura na ex-policial Everett, dessa vez lhe tirando as calças.
Big Jim engrenou o Hummer e desceu o morro devagar, buzinando para quem não saísse logo da frente dele.
Assim que ele entrou no acesso da Câmara de Vereadores, a van Odyssey passou pelo cruzamento e seguiu para fora da cidade. Não havia trânsito de pedestres no alto da rua Highland, e Linda acelerou rapidamente. Thurse Marshall começou a cantar “Noventa e nove quilômetros”, e logo todas as crianças cantavam com ele.
Linda, que a cada décimo de quilômetro que o odômetro girava sentia um pouco mais de terror deixá-la, logo começou a cantar também.
O Dia de Visita chega a Chester’s Mill, e um clima de expectativa voraz toma conta das pessoas que percorrem a pé a rodovia 119 rumo à fazenda Dinsmore, onde a manifestação de Joe McClatchey dera tão errado apenas cinco dias atrás. Estão esperançosos (embora não exatamente felizes) apesar daquela lembrança — apesar também do calor e do ar fedorento. Agora o horizonte além da Redoma parece borrado e, acima das árvores, o céu escureceu, devido ao acúmulo de material particulado. É melhor quando se olha diretamente, mas mesmo assim não é perfeito; o azul tem uma tonalidade amarelada, como uma película de catarata no olho de um velho.
— Era como ficava o céu acima das fábricas de papel, quando funcionavam a todo vapor na década de 1970 — diz Henrietta Clavard, aquela da bunda não-exatamente-quebrada. Ela oferece a garrafa de ginger ale a Petra Searles, que caminha ao seu lado.
— Não, obrigada — diz Petra. — Eu trouxe água.
— Temperada com vodca? — indaga Henrietta. — Porque essa aqui está. Meio a meio, querida; chamo isso de Foguete Seco Canadense.
Petra pega a garrafa e dá um gole saudável.
— Uau! — comenta.
Henrietta faz que sim em tom pragmático.
— Pois é, dona. Não é lá grande coisa, mas serve pra alegrar o dia.
Muitos dos peregrinos levam placas que planejam mostrar aos visitantes do mundo exterior (e às câmeras, é claro), como a plateia de um programa de auditório. Mas placas de programas de auditório são sempre alegres. A maioria dessas não é. Algumas, restos da manifestação do último domingo, dizem COMBATA O PODER! e NOS DEIXEM SAIR, CACETE! Há outras novas, que dizem EXPERIÊNCIA DO GOVERNO: POR QUÊ???, SEM MAIS FINGIMENTO e SOMOS SERES HUMANOS, NÃO COBAIAS. A de Johnny Carver diz PAREM COM ISSO EM NOME DE DEUS! ANTES Q SEJA TARDE!! A de Frieda Morrison, errada mas apaixonada, pergunta PELO CRIME DE QUEM TAMOS MORRENDO? A de Bruce Yardley é a única a ter um tom totalmente positivo. Presa numa vara de 2 metros e embrulhada em papel crepom azul (na Redoma, se elevará acima das outras), diz OI MÃE E PAI EM CLEVELAND! AMO VOCÊS!
Nove ou dez placas fazem referência às Escrituras. Bonnie Morrell, esposa do dono da madeireira da cidade, leva uma que proclama NÃO OS PERDOAI, PORQUE SABEM O QUE FAZEM! A de Trina Cale diz O SENHOR É O MEU PASTOR debaixo de um desenho que talvez seja de uma ovelha, embora seja difícil ter certeza.
A de Donnie Baribeau diz, simplesmente, ORAI POR NÓS.
Marta Edmunds, que às vezes toma conta das meninas dos Everett, não está entre os peregrinos. O ex-marido mora em South Portland, mas ela duvida que apareça, e o que diria se aparecesse? A pensão está atrasada, seu chupa-pica? Em vez da rodovia 119, ela vai para a estrada da Bostinha. A vantagem é que não precisa andar. Ela vai no seu Acura (e liga o ar-condicionado no máximo). O seu destino é a casinha aconchegante onde Clayton Brassey passou os anos da velhice. É seu tio-bisavô em segundo grau (ou coisa parecida) e, embora ela não tenha certeza do parentesco nem do grau de afastamento, sabe que ele tem gerador. Se ainda estiver funcionando, ela pode assistir à TV Também quer se certificar de que o tio Clayt está bem — ou tão bem quanto pode estar quem tem 105 anos e um cérebro que virou aveia Quaker.
Ele não está bem. Clayton Brassey despiu o manto de morador mais velho da cidade. Está sentado na sala de estar, na sua cadeira favorita, com o urinol de esmalte lascado no colo e a bengala do Boston Post encostada na parede ao lado, e frio como uma bolacha. Não há sinal de Nell Toomey, a tataraneta e principal cuidadora; ela foi para a Redoma com o irmão e a cunhada.
— Ah, tio — diz Marta —, sinto muito, mas provavelmente já era hora.
Ela vai até o quarto, pega um lençol limpo no armário e o joga sobre o velho. O resultado o faz parecer um pouco um móvel coberto numa casa abandonada. Uma cômoda alta, talvez. Marta ouve o gerador funcionando nos fundos e pensa que se dane. Liga a TV, sintoniza na CNN e se senta no sofá. O que se desenrola na tela quase a faz esquecer que faz companhia a um cadáver.
É uma tomada aérea, feita com uma teleobjetiva poderosa num helicóptero que sobrevoa a feira de usados de Motton, onde estacionarão os ônibus de visitantes. Os que saíram cedo de casa dentro da Redoma já chegaram. Atrás deles, vem o haj: duas pistas de asfalto, cheias de lado a lado e que se estendem até lá atrás, no Food City A semelhança entre os moradores da cidade e formigas em viagem é inequívoca.
Algum locutor não para de falar, usando palavras como maravilhoso e extraordinário. A segunda vez que ele diz Nunca vi nada assim, Marta silencia o aparelho, pensando Ninguém viu, idiota. Pensa em se levantar e ver o que há para beliscar na cozinha (talvez não seja muito correto com um cadáver na sala, mas ela está com fome, potra), quando a imagem vira uma tela dividida. Na metade esquerda, outro helicóptero acompanha agora a fila de ônibus que sai de Castle Rock, e a legenda no pé da tela diz VISITANTES CHEGARÃO POUCO DEPOIS DAS 10 HORAS.
É hora de fazer um lanchinho, afinal de contas. Marta encontra bolachas, manteiga de amendoim e, melhor do que tudo, três garrafas frias de Budweiser. Leva tudo para a sala numa bandeja e se instala.
— Obrigada, tio — diz.
Mesmo sem som (principalmente sem som), as imagens justapostas são instigantes, hipnóticas. Quando a primeira cerveja sobe à cabeça (alegremente!), Marta percebe que é como esperar que uma força irresistível atinja um objeto imóvel, e se pergunta se haverá uma explosão quando se encontrarem.
Não muito longe do ajuntamento, no morrinho onde cavava o túmulo do pai, Olhe Dinsmore se apoia na pá e observa a multidão chegar: duzentos, depois quatrocentos, depois oitocentos. Oitocentos, ao menos. Vê uma mulher com um bebê nas costas, num daqueles cangurus, e se pergunta se está louca de levar uma criança naquele calor sem nem um chapéu para lhe proteger a cabeça. Os moradores da cidade que chegam ficam em pé ao sol nebuloso, observando e esperando ansiosos os ônibus. Olhe pensa na caminhada lenta e triste que farão depois que a comoção acabar. A volta toda até a cidade no calor fervilhante do fim da tarde. Depois, vira-se novamente para o serviço em suas mãos.
Atrás da multidão crescente, nos dois acostamentos da 119, a polícia — uma dúzia, em sua maioria novos policiais comandados por Henry Morrison — estaciona com as luzes pulsando. Os dois últimos carros chegam tarde, pois Henry ordenou que enchessem o porta-malas com botijões d’água da torneira do Corpo de Bombeiros, onde descobriu que o gerador não só funcionava como parecia bom para continuar funcionando mais uns 15 dias. A água não será suficiente — uma quantidade ridícula de tão pouca, na verdade, dado o tamanho da multidão — mas é o máximo que podem fazer. Vão poupá-la para os que desmaiarem no sol. Henry torce para que não sejam muitos, mas sabe que haverá alguns, e amaldiçoa Jim Rennie pela falta de preparativos. Sabe que é porque Rennie não dá a mínima, e na cabeça de Henry isso piora ainda mais a negligência.
Ele veio com Pamela Chen, única dos novos “recrutas especiais” em quem confia totalmente, e quando vê o tamanho da multidão a manda ligar para o hospital. Quer a ambulância ali a postos. Ela volta cinco minutos depois com uma notícia que Henry acha ao mesmo tempo inacreditável e nada surpreendente. Um dos pacientes atendeu ao telefone na recepção, diz Pamela — uma moça que chegara de manhã cedo com o pulso machucado. Diz que todo o pessoal médico sumiu, e a ambulância também.
— Ora, mas não é ótimo? — pergunta Henry. — Espero que os seus conhecimentos de primeiros socorros sejam bons, Pammie, porque talvez você tenha de usá-los.
— Eu sei fazer ressuscitação cardiorrespiratória — diz ela.
— Ótimo. — Ele aponta Joe Boxer, o dentista amante de waffles. Boxer usa uma braçadeira azul e acena com empáfia para pessoas dos dois lados da estrada (a maioria não lhe dá atenção). — E se alguém ficar com dor de dente, aquele idiota metido pode arrancar.
— Se tiverem grana pra pagar — diz Pamela. Ela já tivera sua experiência com Joe Boxer, quando os dentes do siso nasceram. Ele disse alguma coisa sobre “trocar um serviço por outro” enquanto olhava os seios dela de um jeito que ela não gostou nem um pouquinho.
— Acho que tem um boné dos Red Sox no banco de trás do meu carro — diz Henry. — Se tiver, pode trazer aqui? — E aponta a mulher que Ollie já notara, a tal com o bebê de cabeça descoberta. — Põe no garoto e diz praquela mulher que ela é uma idiota.
— Eu levo o chapéu, mas não vou dizer uma coisa dessas — responde Pamela baixinho. — Aquela é Mary Lou Costas. Tem 17 anos, está casada há um ano com um caminhoneiro que tem quase o dobro da idade dela e provavelmente está torcendo pra que ele venha.
Henry suspira.
— Mesmo assim é uma idiota, mas acho que com 17 anos todos nós somos.
E eles continuam a chegar. Um homem parece não ter água, mas traz um rádio-gravador enorme que berra a música evangélica da WCIK. Dois amigos dele desenrolam uma faixa. As palavras são marcadas por dois S gigantescos e mal desenhados. POR FAVOR NOS SALVEM, diz a faixa.
— Isso vai ser feio — diz Henry e é claro que está certo, mas não faz ideia de quanto.
A multidão crescente aguarda ao sol. Os que têm a bexiga frouxa perambulam para mijar no mato a oeste da estrada. A maioria se arranha toda antes de se aliviar. Uma gorda (Mabel Alston; também sofre da doença que chama de dia-betty) torce o tornozelo e fica lá uivando até que dois homens a ajudam a se pôr de volta sobre o pé bom. Lennie Meechum, gerente da agência de correio da cidade (ao menos até esta semana, quando a entrega dos correios dos Estados Unidos foi cancelada até futuro próximo), lhe empresta uma bengala. Depois, diz a Henry que Mabel precisa de uma carona para voltar à cidade. Henry diz que não pode usar nenhum carro e que ela vai ter que descansar na sombra.
Lennie gira os braços para os dois lados da estrada.
— Caso você não tenha percebido, é pasto de um lado e espinheiros do outro. Não tem nenhuma sombra.
Henry aponta o estábulo dos Dinsmore.
— Tem bastante sombra lá.
— É quase a meio quilômetro daqui! — diz Lennie indignado.
São no máximo 200 metros, mas Henry não discute.
— Põe ela no banco da frente do meu carro.
— Quente demais ao sol — diz Lennie. — Ela vai precisar do ar-condicionado.
É, Henry sabe que ela vai precisar do ar-condicionado, o que significa ligar o motor, o que significa queimar gasolina. Não há escassez por enquanto — quer dizer, supondo que possam tirá-la dos tanques do Posto & Mercearia —e ele acha que terão de se preocupar com o depois depois.
— A chave está na ignição — diz ele. — Não liga no máximo, entendeu?
Lennie diz que sim e vai até Mabel, mas esta não se dispõe a andar, embora o suor escorra pelas faces e o rosto esteja vermelho-vivo.
— Não fui ainda! — reclama ela. — Eu tenho que ir!
Leo Lamoine, um dos novos policiais, vai até Henry É companhia de que Henry não faz questão; Leo tem cérebro de nabo.
— Como é que ela chegou aqui, campeão? — pergunta ele. Leo Lamoine é o tipo de homem que chama todo mundo de “campeão”.
— Não sei, mas chegou — diz Henry, cansado. Está ficando com dor de cabeça. — Junta umas mulheres pra levar ela pra tris do meu carro e ajudar enquanto ela faz xixi.
— Quais, campeão?
— As grandes — diz Henry, e se afasta antes que a vontade forte e súbita de dar um soco no nariz de Leo Lamoine o domine.
— Que tipo de polícia é essa? — pergunta uma mulher enquanto ela e mais quatro escoltam Mabel até a traseira da Unidade 3, onde Mabel poderá urinar enquanto se segura no para-choque, as outras em pé na frente em nome do recato.
Henry gostaria de responder o tipo despreparado, graças aos seus líderes destemidos Rennie e Randolph, mas não. Sabe que a boca lhe criou problemas na noite da véspera, quando falou a favor de que escutassem Andrea Grinnell. O que diz é:
— A única que nós temos.
Para ser justo, a maioria das pessoas, como a guarda de honra de Mabel, estava mais do que disposta a ajudar. Os que se lembraram de trazer água a dividem com os que não, e a maioria bebe só o necessário. Mas há idiotas em todas as multidões, e os dessa tomavam água à vontade e sem pensar. Alguns mastigavam biscoitos e bolachas que os deixariam com mais sede depois. A bebezinha de Mary Lou Costas começa a chorar irritada debaixo do boné dos Red Sox, grande demais para ela. Mary Lou trouxe uma garrafa d’água e agora começa a molhar com ela o rosto e o pescoço superaquecidos da menina. Logo a garrafa estará vazia.
Henry pega Pamela Chen e aponta Mary Lou de novo.
— Pega aquela garrafa e enche com a água que nós trouxemos — diz. — Não deixa muita gente ver, senão acaba tudo antes do meio-dia.
Ela faz o que lhe mandam e Henry pensa: Pelo menos uma que pode realmente virar uma boa policial de cidade pequena, se quiser o emprego.
Ninguém se dá ao trabalho de olhar aonde Pamela vai. Isso é bom. Quando os ônibus chegarem, esse pessoal vai esquecer tudo sobre a sede e o calor por algum tempo. É claro que, depois que os visitantes forem embora.., e com a longa caminhada de volta à cidade pela frente...
Ele tem uma ideia. Henry faz um inventário dos seus “policiais” e vê um monte de imbecis mas alguns em quem confia; Randolph levou quase todos os semi-decentes para alguma missão secreta. Henry acha que tem a ver com a operação antidrogas que Andrea acusou Rennie de comandar, mas o que é não lhe interessa. Só sabe que não estão ali e que essa função ele não pode cumprir sozinho.
Mas sabe quem pode e o chama.
— O que você quer, Henry? — pergunta Bill Allnut.
— Está com as chaves da escola?
Allnut, que há trinta anos é zelador da Escola Secundária, faz que sim.
— Bem aqui. — O chaveiro pendurado no cinto faísca ao sol nebuloso. — Estou sempre com elas, por quê?
— Pega a Unidade 4 — diz Henry. — Volta pra cidade o mais depressa possível sem atropelar nenhum retardatário. Pega um dos ônibus escolares e traz pra cá. Um dos de 47 assentos.
Allnut não parece contente. A boca se abre de um jeito ianque que Henry, também ianque, viu a vida inteira, conhece bem e detesta. É um olhar de penúria que diz tenho que cuidar do meu lado, amigo.
— Essa gente toda não cabe num ônibus só, tá maluco?
— Toda, não — diz Henry —, só os que não vão conseguir voltar sozinhos.
Ele está pensando em Mabel e no bebê superaquecido da garota Corso, mas é claro que até as três da tarde vai haver mais gente que não conseguirá caminhar de volta à cidade. Ou talvez a lugar nenhum.
A boca de Bill Allnut se fecha com ainda mais firmeza; agora o queixo se projeta como a proa de um navio.
— Não, senhor. Os meus dois filhos vêm com as mulheres, eles disseram. Vão trazer os filhos. Não quero perder esse encontro. E não vou abandonar minha mulher. Está toda nervosa.
Henry gostaria de sacudir o homem pela sua estupidez (e esganá-lo de uma vez pelo egoísmo). Em vez disso, requisita as chaves de Allnut e lhe pede que lhe mostre qual delas abre a garagem. Depois, manda Allnut voltar para a mulher.
— Sinto muito, Henry — explica Allnut —, mas tenho que ver meus filhos e netos. Mereço isso. Não pedi que nenhum perneta, coxo e cego viesse e não vou pagar pela estupidez dos outros.
— Claro, você é um bom americano, ninguém questiona isso — diz Henry. — Some da minha frente.
Allnut abre a boca para protestar, pensa melhor (talvez haja algo visível na cara do policial Morrison) e se afasta arrastando os pés. Henry grita para chamar Pamela, que não protesta quando a mandam voltar à cidade, só pergunta onde, o quê e por quê. Henry lhe explica.
— Certo, mas... esses ônibus têm câmbio manual? Porque eu não sei dirigir com câmbio manual.
Henry berra a pergunta para Allnut, que está com a mulher Sarah junto da Redoma, ambos examinando com ansiedade a estrada vazia do outro lado da fronteira de Motton.
— O Dezesseis é manual! — grita Allnut de volta. — Todos os outros são automáticos! E diz pra ela prestar atenção à trava! Os ônibus não funcionam se ela não puser cinto de segurança!
Henry manda Pamela ir andando, dizendo-lhe que se apresse o máximo que a prudência permitir. Quer o ônibus ali o mais cedo possível.
A princípio, as pessoas ficam paradas, observando ansiosas a estrada vazia. Depois, a maioria delas se senta. As que trouxeram mantas as abrem. Alguns usam as placas para proteger a cabeça do sol nebuloso. A conversa se arrasta, e pode-se ouvir com bastante clareza Wendy Goldstone perguntar à amiga Ellen onde estão os grilos — não há nenhum cantando no capim alto.
— Ou será que eu estou surda? — pergunta.
Não está. Os grilos estão calados ou mortos.
No estúdio da WCIK, o espaço central arejado (e de um frescor confortável) ressoa com a voz de Ernie “Barril” Kellogg e o seu Delight Trio a se cantar “Recebi um telefonema do Céu e era Jesus quem falava”. Os dois homens não escutam; assistem à TV, tão hipnotizados pelas imagens da tela dividida quanto Marta Edmunds (que está na segunda Budweiser e esqueceu tudo sobre o cadáver do velho Clayton Brassey debaixo do lençol). Tão hipnotizados quanto todo mundo nos Estados Unidos e, sim, no mundo além.
— Olha, Sanders — diz o Chef num sopro.
— Estou vendo — diz Andy. Está com CLAUDETTE no colo. Chef lhe ofereceu também um par de granadas de mão, mas dessa vez Andy recusou. Tem medo de puxar o pino e ficar paralisado. Viu isso num filme certa vez.
— É fantástico, mas você não acha que é melhor nos prepararmos pras visitas?
O Chef sabe que Andy está certo, mas é difícil tirar os olhos do lado da tela onde o helicóptero acompanha os ônibus e o grande caminhão de vídeo que encabeça o desfile. Conhece cada marco geográfico por onde passam; são reconhecíveis até de cima. Agora, os visitantes estão chegando perto.
Agora todos estamos chegando perto, pensa ele.
— Sanders!
— O que, Chef?
O Chef lhe entrega uma latinha de pastilhas para a garganta.
— As rochas não vão escondê-los; as árvores mortas não lhes dão abrigo; nem o grilo, alívio. Em que livro está agora não consigo lembrar.
Andy abre a latinha, vê seis cigarros grossos enrolados à mão apertados ali, e pensa: Esses são os soldados do êxtase. É o pensamento mais poético da sua vida e lhe dá vontade de chorar.
— Pode me dar um amém, Sanders?
— Amém.
O Chef usa o controle remoto para desligar a TV. Gostaria de ver os ônibus chegarem — doidão ou não, paranoico ou não, gosta de histórias sobre encontros felizes como todo mundo —, mas os homens amargos podem chegar a qualquer momento.
— Sanders!
— Diga, Chef.
— Vou tirar da garagem o caminhão das Refeições Cristãs sobre Rodas e estacionar do outro lado do depósito. Posso ficar atrás dele e ter uma visão clara da floresta. — Ele pega o GUERREIRO DE DEUS. As granadas penduradas nele balançam e regiram. — Quanto mais penso, mais certeza tenho de que é por lá que eles virão. Tem uma estrada de acesso. Provavelmente acham que eu não a conheço, mas... — os olhos vermelhos do Chef faíscam — o Chef sabe mais do que pensam.
— Sei disso. Amo você, Chef.
— Obrigado, Sanders. Amo você também. Se vierem pela floresta, eu deixo que cheguem a campo aberto e depois derrubo eles como trigo na época da colheita. Mas náo podemos pôr todos os ovos na mesma cesta. Por isso, quero que você fique na frente, onde nós estávamos no outro dia. Se algum deles vier por lá...
Andy ergue CLAUDETTE.
— Isso mesmo, Sanders. Mas não seja apressado. Atrai pra fora o máximo que puder antes de começar a atirar.
— Pode deixar. — Às vezes, Andy tem a sensação de que deve estar vivendo um sonho; esta é uma dessas vezes. — Como o trigo na época da colheita.
— É isso aí. Mas escuta, porque é importante, Sanders. Não vem depressa se me ouvir atirar. E eu não vou depressa se ouvir você atirar. Podem achar que não estamos juntos, mas esse truque eu conheço. Sabe assoviar?
Andy enfia dois dedos na boca e dá um assovio penetrante.
— Bom, Sanders. Espantoso, na verdade.
— Aprendi na Escola Gramatical. — Quando a vida era muito mais simples, ele não acrescenta.
— Não faça isso, a menos que corra perigo de ser vencido. Aí eu vou. E se me ouvir assoviar, corra como o diabo pra reforçar a minha posição.
— Certo.
— Vamos fumar um, Sanders, o que acha?
Andy aprova a moção.
Na Serra Negra, na beira do pomar dos McCoy, 17 exilados da cidade se destacam contra o céu manchado, como índios num bangue-bangue de John Ford. A maioria fita em silêncio fascinado o desfile mudo de pessoas que passa pela rodovia 119. Estão a quase 10 quilômetros, mas o tamanho da multidão torna impossível não ver.
Rusty é o único que olha algo mais próximo, que o enche de alívio tão grande que lhe dá vontade de cantar. Uma van Odyssey prateada sobe correndo a estrada da Serra Negra. Ele prende a respiração quando o veículo se aproxima da beira das árvores e do cinturão de brilho, que agora voltou a ficar invisível. Há tempo para que pense como seria horrível se o motorista — Linda, supõe — desmaiasse e a van batesse, mas aí ela passa do ponto perigoso. Pode ter havido um leve zigue-zague, mas ele sabe que até isso pode ter sido a sua imaginação. Logo estarão ali.
Estão uns 100 metros à esquerda da caixa, mas Joe McClatchey acha que assim mesmo consegue senti-la: uma pequena pulsação que lhe escava o cérebro toda vez que a luz violeta brilha. Pode ser só sua mente brincando com ele, mas ele acha que não.
Barbie está em pé ao seu lado, com o braço em volta da srta. Shumway. Joe lhe dá um tapinha no ombro e diz:
— Dá uma sensação ruim, sr. Barbara. Toda aquela gente junta. É uma sensação horrível.
— É mesmo — diz Barbie.
— Eles estão observando. Os cabeças de couro. Dá pra sentir.
— Dá, sim — diz Barbie.
— Eu também — concorda Julia, em voz quase baixa demais para ser escutada.
Na sala de reuniões da Câmara de Vereadores, Big Jim e Carter Thibodeau assistem em silêncio à imagem da tela dividida da TV dar lugar a uma tomada no nível do solo. A princípio, a imagem se sacode, como o vídeo de um tornado que se aproxima ou dos momentos imediatamente após um atentado com carro-bomba. Veem céu, cascalho e pés que correm. Alguém murmura:
— Vamos, depressa.
Wolf Blitzer diz:
— Chegou o caminhão da imprensa. É óbvio que estão se apressando e tenho certeza de que em instantes.., isso. Céus, vejam isso.
A câmera se firma sobre as centenas de moradores de Chester’s Mill junto à Redoma, bem quando se levantam. É como observar um grupo grande de adoradores ao ar livre se erguendo para orar. Os que estão na frente são lançados contra a Redoma pelos que estão atrás; Big Jim vê narizes, bochechas e lábios amassados, como se os moradores da cidade fossem pressionados contra uma parede de vidro. Sente um instante de vertigem e percebe por quê: é a primeira vez que vê a coisa de fora. Pela primeira vez, a enormidade da coisa e a sua realidade o atingem. Pela primeira vez, fica verdadeiramente assustado.
De leve, um tanto amortecido pela Redoma, vem o som de tiros.
— Acho que eu ouvi tiros — diz Wolf. — Anderson Cooper, você ouviu tiros? O que está acontecendo?
De leve, soando como uma ligação telefônica via satélite vinda do fundo do sertão australiano, Cooper responde.
— Wolf, ainda não chegamos lá, mas tenho um monitor pequeno e parece...
— Agora eu estou vendo — diz Wolf. — Parece que...
— É o Morrison — afirma Carter. — O sujeito é corajoso, isso eu tenho que dizer.
— Vai ser demitido amanhã — responde Big Jim.
Carter o olha com as sobrancelhas erguidas.
— Pelo que disse na assembleia de ontem?
Big Jim lhe aponta o dedo.
— Sabia que você é um garoto esperto.
Na Redoma, Henry Morrison não pensa na assembleia de ontem nem em coragem, nem mesmo no seu dever; pensa que pessoas vão ser esmagadas contra a Redoma se não agir depressa. Assim, dá um tiro para o ar. Vários outros policiais — Todd Wendlestat, Ranee Conroy e Joe Boxer — entendem o recado e fazem o mesmo.
As vozes que berram (e os gritos de dor dos da frente que estavam sendo esmagados) dão lugar a um silêncio chocado, e Henry usa o megafone: “ESPALHEM-SE! ESPALHEM-SE, CARALHO! TEM ESPAÇO PRA TODOS, É SÓ SE ESPALHAREM.”
O palavrão tem efeito ainda mais tranquilizante do que os tiros e, embora os mais teimosos permaneçam na estrada (Bill e Sarah Allnut se destacam entre eles, assim como Johnny e Carne Carver), os outros começam a se espalhar ao longo da Redoma. Alguns vão para a direita, mas a maioria vai para a esquerda, para o pasto de Alden Dinsmore, onde o caminho é mais fácil. Henrietta e Petra estão entre eles, cambaleando de leve devido às doses liberais de Foguete Seco Canadense.
Henry põe a arma no coldre e diz aos outros policiais que façam o mesmo. Wendlestat e Conroy obedecem, mas Joe Boxer continua a segurar o seu 38 cano curto — uma arma baratinha, a mais vagabunda que Henry já viu.
— Me obriga — diz com um muxoxo, e Henry pensa: Tudo isso é um pesadelo. Logo eu acordo na minha cama, vou até a janela e fico lá olhando um lindo dia revigorante de outono.
Muitos que preferiram ficar longe da Redoma (um número inquietante ficou na cidade, começando a sentir problemas respiratórios) podem assistir à televisão. Trinta ou quarenta orbitaram até o Dipper’s. Tommy e Willow Anderson estão na Redoma, mas deixaram o bar aberto com a TV de tela grande ligada. Os que se reúnem no piso de madeira do salão de baile para assistir o fazem em silêncio, embora haja alguns chorando. As imagens da TV de alta definição são muito nítidas. São de cortar o coração.
Também não são os únicos afetados pela visão de oitocentas pessoas ao longo da barreira invisível, algumas com as mãos apoiadas no que parece ar.
— Nunca vi tanta saudade em rostos humanos — diz Wolf Blitzer. — Eu... — Ele engasga. — Acho que é melhor deixar as imagens falarem por si.
Ele se cala, e isso é bom. A cena não precisa de narração.
Na entrevista coletiva, Cox disse: Os visitantes vão descer e andar.., os visitantes terão permissão de chegar a 2 metros da Redoma, consideramos que seja uma distância segura. É claro que nada disso acontece. Assim que a porta dos ônibus se abre, as pessoas transbordam numa inundação, gritando o nome dos mais íntimos e mais queridos. Alguns caem e logo são pisoteados (um morrerá nesse estouro da boiada e 14 ficarão feridos, meia dúzia gravemente). Os soldados que tentam manter a zona de segurança diretamente na frente da Redoma são empurrados para longe. As fitas amarelas NÃO ATRAVESSE são derrubadas e somem no pó levantado por pés que correm. Os recém-chegados enxameiam à frente e se espalham no seu lado da Redoma, a maioria chorando e todos gritando por esposas, maridos, avós, filhos, filhas, noivas. Quatro mentiram sobre os vários aparelhos médicos eletrônicos ou se esqueceram deles. Três morrem imediatamente; o quarto, que não viu seu implante auditivo a pilha na lista de aparelhos proibidos, ficará em coma uma semana antes de expirar com múltiplas hemorragias cerebrais.
Pouco a pouco eles se ajeitam e as câmeras do pool de emissoras vêem tudo. Observam os moradores da cidade e os visitantes pressionarem as mãos umas nas outras, com a barreira invisível entre elas; observam as tentativas de se beijarem; examinam homens e mulheres que choram ao se olhar nos olhos; notam os que desmaiam, dentro e fora da Redoma, e os que caem de joelhos e rezam de frente uns para os outros, as mãos postas erguidas; registram o homem do lado de fora que soca com os punhos a coisa que o separa da esposa grávida, soca até a pele se abrir e as gotas de sangue se pendurarem no ar; espiam a velha que tenta passar os dedos, as pontas brancas e lisas contra a superfície invisível entre elas, na testa da neta chorosa.
O helicóptero da imprensa decola de novo e sobrevoa, mandando mensagens de uma dupla serpente humana que se estende por quase meio quilômetro. No lado de Motton, as folhas brilham e dançam com as cores do fim de outubro; no lado de Chester’s Mill, pendem moles. Atrás dos moradores da cidade — na estrada, nos campos, presos nos arbustos — há dúzias de cartazes jogados fora. Nesse momento de reencontro (ou quase reencontro), a política e os protestos foram esquecidos.
Candy Crowley diz:
— Wolf, sem dúvida esse é o evento mais triste e mais estranho que já vi em todos os meus anos de jornalismo.
Mas os seres humanos são extremamente adaptáveis, e pouco a pouco a empolgação e a estranheza começam a passar. Os reencontros se transformam em conversa de verdade. E, atrás dos visitantes, os que foram vencidos, dos dois lados da Redoma, são levados embora. No lado de Mill, não há barraca da Cruz Vermelha aonde levá-los. A polícia os deixa na pouca sombra dos seus carros para esperar Pamela Chen com o ônibus da escola.
Na delegacia, o grupo de ataque à WCIK assiste com o mesmo fascínio calado de todo mundo. Randolph deixa; ainda há tempo. Confere os nomes na prancheta e depois faz um aceno para que Freddy Denton vá com ele até os degraus da frente. Esperara de Freddy tristeza por ele assumir o papel de chefão (a vida toda, Peter Randolph julgou os outros por si), mas nada disso. Isso é coisa muito maior do que tirar velhos bêbados e sujos de dentro de uma loja, e Freddy está exultante de ceder a responsabilidade. Não se incomodaria de assumir o crédito se tudo der certo, mas digamos que não dê? Randolph não tem esses escrúpulos. Um desempregado encrenqueiro e um farmacêutico gentil que não diria merda se a visse no prato? O que poderia dar errado?
E, quando chegam aos degraus onde Piper Libby rolou não faz muito tempo, Freddy descobre que não conseguirá fugir totalmente ao papel de líder. Randolph lhe entrega uma folha de papel. Nele há sete nomes. Um é o de Freddy. Os outros seis são Mel Searles, George Frederick, Marty Arsenault, Aubrey Towle, Stubby Norman e Lauren Conree.
— Você vai levar esse grupo pela estrada de acesso — diz Randolph. — Sabe qual é?
— Sei, sai da Bostinha desse lado da cidade. O pai do Sam Relaxado abriu aquele trecho...
— Não me importa quem abriu — diz Randolph —, basta ir até o fim. Ao meio-dia, leva os seus homens pelo cinturão de árvores até lá. Você vai sair nos fundos da emissora. Meio-dia, Freddy. Não é um minuto antes nem um minuto depois.
— Achei que todos nós iríamos por lá, Pete.
— O plano mudou.
— Big Jim sabe da mudança?
— Big Jim é vereador, Freddy. Eu sou o chefe de polícia, sou seu superior, por isso, por favor, cala a boca e escuta.
— Desculpe — diz Freddy, e põe as mãos em concha nas orelhas de um jeito no mínimo atrevido.
— Eu vou estacionar na estrada que passa pela frente da emissora. Levo o Stewart e o Fern comigo. E Roger Killian também. Se Bushey e Sanders forem idiotas a ponto de atacar você, se nós escutarmos tiros vindos de trás da emissora, em outras palavras, nós três entramos na dança e pegamos eles por trás. Entendeu?
— Entendi. — Para Freddy, parece mesmo um plano muito bom.
— Tudo bem, vamos sincronizar os relógios.
— Hã... como é?
Randolph suspira.
— Temos que ver se eles marcam a mesma hora, pra que o meio-dia chegue ao mesmo tempo pra nós dois.
Freddy ainda parece confuso, mas obedece.
Lá dentro da delegacia, alguém — Stubby, parece — grita:
— Uau, caiu mais um! Os desmaiados estão empilhados que nem lenha atrás dos carros!
Isso é recebido com risos e aplausos. Estão empolgados e entusiasmados por terem sido escolhidos para a “possível tarefa de tiro”, como diz Melvin Searles.
— Saímos às 11h15 — diz Randolph a Freddy. — Isso nos dá quase 45 minutos pra assistir ao espetáculo na TV
— Quer pipoca? — pergunta Freddy. — Tem bastante no armário em cima do micro-ondas.
— Acho que pode ser.
Lá na Redoma, Henry Morrison vai até o carro e se serve de refrigerante. A farda está encharcada de suor, e ele não consegue se lembrar de já ter ficado tão cansado (ele acha que boa parte disso se deve ao ar ruim; não consegue inspirar direito), mas no geral está satisfeito consigo e com seus homens. Conseguira evitar um esmagamento em massa na Redoma, ninguém morreu do seu lado — ainda — e o povo está se acalmando. Meia dúzia de operadores de câmera de TV correm de um lado para o outro no lado de Motton, registrando o máximo possível de imagens de reencontros calorosos. Henry sabe que é invasão de privacidade, mas acha que os Estados Unidos e o mundo lá fora podem ter o direito de ver isso. E, em geral, ninguém se incomoda. Alguns até gostam; estão obtendo os seus 15 minutos de fama. Henry tem tempo de procurar o pai e a mãe, mas não se surpreende quando não os vê; moram onde Judas perdeu as botas, em Derry e já estão com idade bem avançada. Duvida que tenham posto o nome no sorteio de visitantes.
Um novo helicóptero vem girando do oeste e, embora Henry não saiba, o coronel James Cox está lá dentro. Cox também não está inteiramente insatisfeito com o modo como o Dia de Visita vem se desenrolando até agora. Disseram que ninguém, no lado de Chester’s Mill, fizera preparativos para uma entrevista coletiva, mas isso não o surpreende nem incomoda. Com base no extenso dossiê que acumulou, ficaria mais surpreso se Rennie aparecesse. Cox batera continência por muitos anos e conseguia farejar a quilômetros de distância gente covarde que usava o cargo para intimidar.
Então Cox vê a longa fila de visitantes e os moradores presos diante deles. A imagem tira James Rennie da sua cabeça.
— Não pode haver merda pior — murmura. — Nunca se viu merda pior.
No lado da Redoma, o policial especial Toby Manning grita: “Lá vem o ônibus!” Embora os civis mal percebam — estão extasiados com os parentes ou ainda os procuram —, os policiais dão vivas.
Henry vai até a traseira do carro e, sem dúvida, um grande ônibus escolar amarelo acaba de passar pelos Carros Usados de Jim Rennie. Pamela Chen pode não pesar 50 quilos nem quando molhada, mas veio direitinho, e com um ônibus grande.
Henry confere o relógio e vê que são 11h20. Vamos conseguir, pensa ele. Vamos conseguir sem problemas.
Na rua Principal, três grandes caminhões alaranjados sobem o morro da praça da Cidade. No terceiro, Peter Randolph está amontoado com Stew, Fern e Roger (cheirando a galinha). Quando pegam a 119 rumo ao norte, indo para a estrada da Bostinha e a emissora de rádio, um pensamento ocorre a Randolph, que mal se controla para não dar um tapa na testa.
Têm bastante poder de fogo, mas esqueceram os capacetes e os coletes de Kevlar.
Voltar pra buscar? Se o fizerem, só chegaráo ao local ao 12h15, talvez mais tarde. E sem dúvida os coletes são mesmo uma precaução desnecessária. São 11 contra dois, e os dois provavelmente doidaços.
Realmente, era para ser uma mamata.
Andy Sanders estava estacionado atrás do mesmo carvalho que usara como cobertura na primeira vez que os homens amargos vieram. Embora não tivesse nenhuma granada, estava com seis carregadores de munição na frente do cinto e outros quatro saindo das costas da calça. Havia mais duas dúzias no caixote a seus pés. Suficiente para segurar um exército... embora achasse que, se Big Jim realmente mandasse um exército, logo o venceriam. Afinal de contas, ele era só um embrulhador de comprimidos.
Parte dele não conseguia acreditar que estava fazendo aquilo, mas outra parte — um aspecto do seu caráter do qual nunca suspeitaria sem a meth — estava terrivelmente satisfeita. Ofendida também. Os Big Jims do mundo não teriam tudo nem conseguiriam tomar tudo. Dessa vez não haveria negociação, política nem recuos. Ficaria ao lado do amigo. A sua alma gêmea. Andy entendia que esse estado de espírito era niilista, mas tudo bem. Passara a vida calculando custos, e a não-dou-a-minimite dos doidões era uma delirante mudança para melhor.
Ouviu caminhões se aproximarem e olhou o relógio. Tinha parado. Ergueu os olhos para o céu e avaliou, pela posição da mancha branca amarelada que antes era o Sol que devia ser quase meio-dia.
Escutou o som crescente dos motores a diesel e, quando o som divergiu, soube que o seu compadre tinha sacado a jogada — sacado tão bem quanto qualquer jogador de defesa sábio e experiente numa tarde de domingo. Alguns deles estavam indo para os fundos da emissora pela estrada de acesso que havia lá.
Andy deu mais uma tragada funda no seu atual pitico, prendeu a respiração o mais que pôde e soltou a fumaça. Com arrependimento, jogou a bagana no chão e pisou em cima. Não queria que nenhuma fumaça (por mais que fosse delirantemente esclarecedora) revelasse a sua posição.
Amo você, Chef pensou Andy Sanders, e soltou a trava de segurança do Kalashnikov.
Havia uma corrente fina atravessando a sulcada estrada de acesso. Freddy, atrás do volante do caminhão da frente, não hesitou; simplesmente a atingiu e rompeu com a grade dianteira. O caminhão da frente e o que vinha atrás (pilotado por Mel Searles) seguiram para a floresta.
Stewart Bowie estava ao volante do terceiro caminhão. Parou no meio da estrada da Bostinha, apontou a torre de transmissão da WCIK e depois olhou Randolph, apertado contra a porta com o seu fuzil HK semiautomático entre os joelhos.
— Avança mais um quilômetro — instruiu Randolph —, depois para e desliga o motor. — Eram só 11h35. Excelente. Bastante tempo.
— Qual é o plano? — perguntou Fern.
— O plano é esperar até o meio-dia. Quando ouvirmos tiros, avançamos imediatamente e pegamos eles por trás.
— Esses caminhões são bem barulhentos — disse Roger Killian. — E se aqueles caras ouvirem a gente chegar? Vamos perder o... como é que se diz... elefante surpresa.
— Não vão nos ouvir — disse Randolph. — Vão estar sentados na emissora assistindo à televisão no conforto do ar-condicionado. Nem vão saber o que atingiu eles.
— Não devíamos estar com coletes à prova de balas ou coisa assim? — perguntou Stewart.
— Por que carregar todo aquele peso num dia tão quente? Para de se preocupar. O Cheech e o Chong lá vão estar no inferno antes mesmo de perceber que morreram.
Pouco depois das 12 horas, Julia olhou em volta e viu que Barbie sumira. Quando ela voltou à casa da fazenda, ele punha enlatados na traseira da van do Rosa Mosqueta. Pusera também várias sacolas na van roubada da companhia telefônica.
— O que você tá fazendo? Ontem mesmo nós descarregamos tudo isso.
Barbie virou para ela o rosto tenso, sem sorriso.
— Eu sei, e acho que foi um erro. Não sei se é por estar perto da caixa ou não, mas de repente comecei a sentir aquela lente de aumento de que o Rusty falou bem em cima da minha cabeça, e logo o sol vai subir e começar a brilhar por ela. Tomara que eu esteja errado.
Ela o estudou.
— Tem mais coisas? Te ajudo se tiver. Sempre podemos guardar de novo mais tarde.
— É — disse Barbie, e lhe deu um sorriso forçado. — Sempre podemos guardar de novo mais tarde.
No fim da estrada de acesso havia uma pequena clareira com uma casa há muito abandonada. Ali, os dois caminhões alaranjados pararam e o grupo de ataque desembarcou. Grupos de dois descarregaram pesadas sacolas cilíndricas marcadas em estêncil com as palavras SEGURANÇA INTERNA. Numa das sacolas, algum espertinho acrescentara LEMBREM-SE DO ÁLAMO com pincel atômico. Dentro, havia mais semiautomáticas HK, duas espingardas de ação rápida com capacidade para oito tiros e munição, munição, munição.
— Hã, Fred? — Era Stubby Norman. — A gente não devia usar coletes ou algo assim?
— Vamos pegar eles por trás, Stubby. Não se preocupa com isso. — Freddy torceu para a voz soar melhor do que ele se sentia. Estava com um baita nó na boca do estômago.
— Damos a eles a oportunidade de se render? — perguntou Mel. — Sabe, o sr. Sanders é vereador e coisa e tal.
Freddy pensara nisso. Também pensara na Parede da Honra, onde estavam penduradas as fotos dos três policiais de Chester’s Mill que tinham morrido no cumprimento do dever desde a Segunda Guerra Mundial. Não tinha pressa de pôr a sua foto naquela parede e, como o chefe Randolph não dera ordens específicas sobre o tema, sentiu-se livre para dar as suas.
— Se as mãos estiverem pra cima, eles vivem — disse. — Se estiverem desarmados, vivem. Qualquer outra coisa, morrem bem morridos. Algum problema?
Nenhum. Eram 11h56. Quase hora do show.
Examinou os homens (mais Lauren Conree, de cara tão enfezada e tão sem peito que quase passaria por um deles), respirou fundo e disse:
— Me sigam. Fila indiana. Paramos na beira da floresta e examinamos a situação.
Os temores de Randolph a respeito de urtiga e sumagre-venenoso provaram-se infundados, e as árvores estavam suficientemente espaçadas para tornar bem fácil o avanço, mesmo estando carregados de material bélico. Freddy achou que a sua pequena tropa se movia pelas touceiras de zimbro que não conseguiam evitar com furtividade e silêncio admiráveis. Começava a sentir que tudo ia dar certo. Na verdade, estava quase ansioso por aquilo. Agora que realmente estavam a caminho, o nó do estômago se desfizera.
Com calma, vai, pensou. Calma e silêncio. E aí pam! Não vão nem saber o que aconteceu.
O Chef, agachado atrás da camionete azul estacionada no capim alto atrás do depósito, escutou-os quase assim que saíram da clareira onde a antiga residência dos Verdreaux afundava aos poucos de volta à terra. Para os seus ouvidos apurados pela droga e o cérebro em Alerta Vermelho, soaram como uma manada de búfalos atrás da mina d’água mais próxima.
Correu para a frente da caminhonete e se ajoelhou com a arma apoiada no para-choque. As granadas antes penduradas no cano do GUERREIRO DE DEUS estavam agora no chão atrás dele. O suor brilhava nas costas magras e cravejadas de espinhas. O controle de porta estava preso à cintura do pijama de sapinho.
Seja paciente, aconselhou a si mesmo. Você não sabe quantos são. Deixa eles entrarem em terreno aberto antes de atirar, e aí é só ceifá-los rapidinho.
Espalhou diante de si vários pentes de munição do GUERREIRO DE DEUS e aguardou, pedindo a Cristo que Andy não tivesse de assoviar. Pedindo que ele também não. Era possível que ainda conseguissem sair dessa e viver para lutar mais um dia.
Freddy Denton chegou à borda da mata, empurrou com o cano da espingarda um ramo de abeto para o lado e espiou. Viu o capinzal crescido com a torre de transmissão no meio, emitindo um zumbido baixo que parecia sentir nas obturações dos dentes. Em torno dela havia uma cerca com placas dizendo ALTA VOLTAGEM. Na extrema esquerda da sua posição ficava o prédio de tijolos do estúdio, de um andar só. Entre eles, um grande celeiro vermelho... Supôs que fosse um depósito. Ou fábrica de drogas. Ou ambos.
Marty Arsenault se enfiou ao lado dele. Círculos de suor escureciam a camisa da farda. Os olhos pareciam aterrorizados.
— O que aquele caminhão está fazendo ali? — perguntou, apontando com o cano da arma.
— É o caminhão das Refeições sobre Rodas — disse Freddy. — Pra doentes presos ao leito e coisa assim. Nunca viu pela cidade?
— Vi e ajudei a carregar — respondeu Marty — Eu troquei a igreja católica pela Sagrado Redentor ano passado. Por que não está no depósito? — Ele falava à moda ianque e “depóóósito” soou como o grito de uma ovelha descontente.
— Como é que eu vou saber e por que me preocuparia? — perguntou Freddy. — Eles estão no estúdio.
— Como você sabe?
— Porque é lá que fica a TV e o grande espetáculo da Redoma está em todos os canais.
Marty ergueu o seu HK.
— Deixa eu dar uns tiros naquele caminhão só pra ter certeza. Pode ter uma bomba. Ou eles podem estar lá dentro.
Freddy empurrou o cano para baixo.
— Jesus Cristo, está maluco? Eles não sabem que nós estamos aqui e você quer avisar? A sua mãe teve algum filho que sobreviveu?
— Foda-se — disse Marty Reconsiderou. — Foda-se a sua mãe também.
Freddy olhou para trás, por sobre o ombro.
— Vamos, rapazes. Vamos atravessar o capim até o estúdio. Olhar pelas janelas dos fundos e conferir a posição deles. — Sorriu. — Mar de almirante.
Aubrey Towle, homem de poucas palavras, disse:
— Veremos.
No caminhão que ficara na estrada da Bostinha, Fern Bowie falou:
— Não ouvi nada.
— Você vai ouvir — disse Randolph. — Basta esperar.
Era meio-dia e dois.
Chef observou os homens amargos saírem da proteção e começarem a se mover numa diagonal pelo campo, rumo aos fundos do estúdio. Usavam fardas de verdade da polícia; os outros quatro vestiam camisas azuis que o Chef adivinhou que deveriam ser fardas. Reconheceu Lauren Conree (antiga freguesa dos seus dias de vendedor de maconha) e Stubby Norman, do brechó local. Também reconheceu Mel Searles, outro antigo freguês e amigo de Junior. Amigo também do falecido Frank DeLesseps, o que provavelmente significava que era um dos caras que tinham currado Sandy. Pois não curraria mais ninguém — não depois de hoje.
Sete. Ao menos deste lado. No de Sanders, quem saberia?
Esperou mais e, quando não vieram mais, se levantou, plantou os cotovelos no capô da camionete e berrou: “EIS QUE O DIA DO SENHOR VEM, HORRENDO, COM FUROR E IRA ARDENTE; PARA PÔR A TERRA EM ASSOLAÇÃO!’
As cabeças se viraram de repente, mas por um momento eles ficaram paralisados, sem tentar erguer as armas nem correr. Não eram mesmo policiais, viu o Chef; apenas passarinhos no chão, burros demais para voar.
“E PARA DESTRUIR DO MEIO DELA OS SEUS PECADORES! ISAÍAS TREZE! SELÁ, FILHOS DA PUTA!”
Com essa homilia e conclamação ao julgamento, o Chef abriu fogo, varrendo-os da esquerda para a direita. Dois policiais fardados e Stubby Norman caíram para trás como bonecas quebradas, pintando o capim alto com o seu sangue. A paralisia dos sobreviventes se desfez. Dois se viraram e fugiram para a floresta. Conree e o último dos policiais fardados seguiram para o estúdio. O Chef os perseguiu e atirou de novo. O Kalashnikov cuspiu uma rajada rápida e o pente se esvaziou.
Conree deu um tapa na nuca como se tivesse sido picada, caiu de cara no capim, deu dois chutes e ficou parada. O outro, um careca, chegou aos fundos do estúdio. O Chef não se preocupou muito com o par que correra para a floresta, mas não queria deixar o Careca fugir. Se o Careca contornasse o canto do prédio, poderia ver Sanders e atirar nele pelas costas.
O Chef agarrou um carregador novo e o instalou com o punho.
Frederick Howard Denton, por alcunha Careca, não pensava em nada quando chegou aos fundos do estúdio da WCIK. Vira a garota Conree cair com a garganta arrebentada e esse foi o fim das considerações racionais. Agora, só sabia que não queria a sua foto na Parede da Honra. Tinha que se proteger, e isso significava entrar. Havia uma porta. Atrás dela, um grupo evangélico cantava “Daremos as mãos em volta do trono”. Freddy agarrou a maçaneta. Não quis girar.
Trancada.
Largou a arma, levantou a mão que a tinha segurado e gritou:
— Eu me rendo! Não atira, eu me...
Três golpes pesados o atingiram na parte baixa das costas. Ele viu respingos vermelhos atingirem a porta e teve tempo de pensar. Devíamos ter lembrado dos coletes. Então desmoronou, ainda segurando a maçaneta com uma das mãos enquanto o mundo fugia dele às pressas. Tudo o que ele era e tudo o que já soubera diminuiu até um único ponto brilhante e ardente de luz. Então se apagou. A mão escorregou da maçaneta. Ele morreu de joelhos, encostado na porta.
Melvin Searles também não pensou. Mel vira Marty Arsenault, George Frederick e Stubby Norman serem derrubados na frente dele, sentira ao menos uma bala passar bem na frente dos filhos da puta dos seus olhos e esse tipo de coisa não leva a pensar.
Mel só correu.
Tropeçou de volta pelas árvores, sem ligar para os galhos que açoitavam seu rosto, caindo uma vez e levantando, e finalmente invadiu a clareira onde estavam os caminhões. Ligar um e ir embora seria a linha de ação mais racional, mas Mel e razão tinham se separado. Provavelmente teria corrido direto pela estrada de acesso até a Bostinha se o outro sobrevivente do ataque à porta dos fundos não o agarrasse pelo ombro e o jogasse contra o tronco de um pinheiro grande.
Era Aubrey Towle, o irmão do dono da livraria. Era um homem grande, de passos lentos e olhos pálidos que às vezes ajudava o irmão Ray a arrumar as prateleiras mas raramente falava. Havia gente na cidade que achava Aubrey retardado, mas agora ele não parecia nada retardado. Nem parecia em pânico.
— Vou voltar e pegar aquele filhodaputa — informou a Mel.
— Boa sorte, parceiro — disse Mel. Afastou-se da árvore e virou-se de novo para a estrada de acesso.
Aubrey Towle o empurrou de volta, dessa vez com mais força. Afastou o cabelo dos olhos e depois apontou o fuzil Heclder Koch para a seção mediana de Mel.
— Você não vai a lugar nenhum.
De trás, veio outra matraca de tiros. E gritos.
— Ouviu isso? — perguntou Mel. — Quer voltar praquilo?
Aubrey o olhou com paciência.
— Não precisa vir comigo, mas tem que me dar cobertura. Entendeu? Faz isso senão eu mesmo te mato.
O rosto do chefe Randolph se abriu num sorriso tenso.
— O inimigo está engajado na retaguarda do nosso objetivo. Tudo de acordo com o plano. Vai, Stewart. Sobe a entrada. Vamos desembarcar e cortar caminho pelo estúdio.
— E se estiverem no depósito? — perguntou Stewart.
— Então ainda vamos ser capazes de pegá-los por trás. Agora, vai! Antes que a gente perca a festa!
Stewart Bowie foi.
Andy ouviu os tiros atrás do depósito, mas como o Chef não assoviara, ficou onde estava, abrigado atrás da árvore. Torcia para que tudo estivesse bem lá atrás, porque agora tinha os seus próprios problemas: um caminhão da cidade preparava-se para subir pela entrada da emissora.
Andy contornou a árvore quando o caminhão subiu, sempre mantendo o carvalho entre ele e o veículo. Este parou. As portas se abriram e quatro homens saíram. Andy tinha bastante certeza de que os três eram os mesmos que haviam ido até lá antes... E sobre o sr. Galinha não havia dúvida. Andy reconheceria em qualquer lugar aquelas botas de borracha verde sujas de titica. Homens amargos. Andy não tinha a mínima intenção de deixar que pegassem o Chef de surpresa.
Saiu de trás da árvore e começou a andar pelo meio do caminho, CLAUDETTE segura junto ao peito na posição de apresentar armas. Os pés esmagavam o cascalho, mas havia muita cobertura sonora: Stewart deixara o motor do caminhão ligado e a música evangélica se despejava do estúdio em alto volume.
Ele ergueu o Kalashnikov, mas se obrigou a esperar. Que eles se agrupem, se quiserem. Quando se aproximaram da porta da frente do estúdio, eles realmente se agruparam.
— Ora, ora, o sr. Galinha e todos os seus amigos — disse Andy, numa imitação passável de John Wayne. — Como vão, rapazes?
Eles começaram a se virar. Por você, Chef pensou Andy, e abriu fogo.
Matou os dois irmãos Bowie e o sr. Galinha com a primeira rajada. Randolph ele só arranhou. Andy tirou o carregador como o Chef Bushey lhe ensinara, pegou outro na cintura das calças e pôs no lugar. O chefe Randolph rastejava rumo à porta do estúdio com sangue escorrendo do braço e da perna direitos. Olhou por sobre os ombros, os olhos à espreita imensos e brilhantes no rosto suado.
— Por favor, Andy — sussurrou. — As ordens não eram de te machucar, só de levar de volta pra você trabalhar com Jim.
— Claro — disse Andy, e chegou a rir. — Não tente enrolar um enrolador. Você ia levar todo esse...
Uma longa rajada explodiu atrás do estúdio. O Chef poderia estar em encrencas, podia precisar dele. Andy ergueu CLAUDETTE.
— Por favor, não me mata! — gritou Randolph. Pôs a mão sobre o rosto.
— Pensa no rosbife que você vai jantar com Jesus — disse Andy. — Ora, daqui a três segundos você vai estar abrindo o guardanapo.
A rajada prolongada do Kalashnikov rolou Randolph quase até a porta do estúdio. Depois, Andy correu para os fundos do prédio, ejetando o carregador parcialmente usado e pondo outro cheio pelo caminho.
Do campo, veio um assovio agudo e penetrante.
— Estou indo, Chefi — berrou Andy. — Aguenta aí que eu estou indo! Algo explodiu.
— Me dá cobertura — disse Aubrey de cara feia à beira da floresta. Tirara a camisa, rasgara-a ao meio e amarrara metade na testa, aparentemente buscando um ar de Rambo. — E se você tá pensando em me pegar pelas costas, é bom acertar de primeira, senão volto aqui e te corto essa garganta de merda.
— Eu cubro você — prometeu Mel. E cobriria. Ao menos ali, na borda da floresta, estaria em segurança.
Provavelmente.
— Aquele doidão não vai desistir — disse Aubrey. Respirava depressa, entrando no clima. — Aquele perdedor. Aquele drogado fodido. — E, elevando a voz: — Vou aí te pegar, seu pirado!
O Chef saíra de trás do caminhão das Refeições sobre Rodas para ver o que caçara. Voltou a atenção para a mata assim que Aubrey Towle saiu de lá, berrando a plenos pulmões.
Então Mel começou a atirar e, embora os tiros passassem longe, o Chef se agachou instintivamente. Quando o fez, o controle de porta de garagem se soltou do cós frouxo da calça de pijama e caiu no capim. Ele se curvou para pegá-lo, e foi então que Aubrey abriu fogo com o fuzil automático. Os buracos de bala costuraram uma trajetória maluca na lateral do caminhão das Refeições sobre Rodas, fazendo sons ocos ao se chocar com o metal e estilhaçando a janela do carona em migalhas faiscantes. Uma bala guinchou pela tira de metal da lateral do quebra-vento.
O Chef abandonou o controle de porta de garagem e voltou a atirar. Mas o elemento surpresa se fora, e Aubrey Towle não era um alvo fácil. Corria de um lado para o outro, seguindo rumo à torre de transmissão. Não lhe daria cobertura, mas limparia a linha de fogo de Searles.
O carregador de Aubrey se esvaziou, mas a última bala cavou um sulco no lado esquerdo da cabeça do Chef. O sangue jorrou e um chumaço de cabelo caiu num dos ombros finos do Chef, onde ficou grudado no suor. O Chef caiu de bunda, soltou momentaneamente o GUERREIRO DE DEUS e o pegou de novo. Não achava que estivesse gravemente ferido, mas já era hora de Sanders vir, se ainda pudesse. O Chef Bushey enfiou dois dedos na boca e assoviou.
Aubrey Towle chegou à cerca que circundava a torre transmissora bem na hora em que Mel voltou a abrir fogo na borda da mata. Dessa vez, o alvo de Mel era a traseira do caminhão de Refeições sobre Rodas. As balas a rasgaram em ganchos e flores de metal. O tanque de combustível explodiu e a metade traseira do caminhão voou numa almofada de chamas.
O Chef sentiu um calor monstruoso contra as costas e teve tempo de pensar nas granadas. Explodiriam? Viu o homem junto à torre mirar nele e, de repente, a opção ficou clara: atirar de volta ou pegar o controle da porta. Preferiu o controle e, assim que a sua mão se fechou sobre ele, o ar à sua volta se encheu de repente de abelhas invisíveis que zumbiam. Uma lhe picou o ombro; outra lhe socou o lado e rearrumou os intestinos. O Chef Bushey tropeçou e rolou, soltando mais uma vez o controle de porta. Estendeu a mão para ele e outro enxame de abelhas encheu o ar em volta. Engatinhou no capim alto, deixando o controle de porta onde estava, agora só à espera de Sanders. O homem da torre de transmissão — Um homem amargo e corajoso entre sete, pensou o Chef, isso mesmo — andava na sua direção. Agora o GUERREIRO DE DEUS estava muito pesado, todo o seu corpo estava pesado, mas o Chef conseguiu se pôr de joelhos e puxar o gatilho.
Nada aconteceu.
O carregador estava vazio ou engasgara.
— Seu doidão fodido — disse Aubrey Towle. — Seu maluco. Toma isso, seu cabeça de...
— Claudette! — gritou Sanders.
Towle girou, mas era tarde demais. Houve uma metralha curta e dura de fogo e quatro balas chinesas 7.62 arrancaram dos ombros quase toda a cabeça de Aubrey.
— Chef — gritou Andy, e correu até onde o amigo se ajoelhava no capim, com sangue escorrendo do ombro, lado e têmpora. Todo o lado esquerdo do rosto do Chef estava rubro e molhado. — Chef! Chef! — Ele caiu de joelhos e abraçou o Chef. Nenhum dos dois viu Mel Searles, o último homem em pé, sair da mata e começar a andar com cautela na direção deles.
— Pega o gatilho — sussurrou o Chef.
— O quê? — Andy olhou um instante o gatilho de CLAUDETTE, mas obviamente não era dele que o Chef falava.
— Controle de porta — sussurrou o Chef. O olho esquerdo se afogava em sangue; o outro fitava Andy com intensidade clara e lúcida. — Controle de porta, Sanders.
Andy viu o controle de porta de garagem caído no capim. Pegou-o e o entregou ao Chef. Este o envolveu com a mão.
— Você... também... Sanders.
Andy fechou a mão sobre a do Chef.
— Amo você, Chef — disse, e beijou os lábios secos e respingados de sangue do Chef Bushey.
— Amo... você... também... Sanders.
— Ei, seus viados! — gritou Mel com certa jovialidade delirante. Estava só a 10 metros.
— Arranjem um quarto! Não, tenho uma idéia melhor! Arranjem um quarto no inferno!
— Agora... Sanders... agora!
Mel abriu fogo.
Andy e o Chef foram jogados para o lado pelas balas, mas antes de serem dilacerados, as mãos juntas apertaram o botão branco que dizia ABRIR.
A explosão foi branca e envolveu tudo.
À beira do pomar, os exilados de Chester’s Mill fazem um piquenique quando começam os tiros — não vindos da 119, onde a visita continua, mas a sudoeste.
— É lá na estrada da Bostinha — diz Piper. — Céus, adoraria ter binóculos.
Mas não precisam disso para ver a flor amarela que se abre quando o caminhão das Refeições sobre Rodas explode. Com uma colher de plástico, Twitch come picadinho de frango com molho de ketchup.
— Não sei o que está acontecendo lá embaixo, mas com certeza é na emissora de rádio — comenta.
Rusty agarra o ombro de Barbie.
— É lá que está o gás! Eles estocaram pra fabricar drogas! É lá que está o gás! Barbie tem um instante de terror claro e premonitório; um momento em que o pior ainda está para acontecer. Então, a 6 quilômetros dali, uma fagulha branca e brilhante pisca no céu enevoado, como um relâmpago que sobe em vez de descer. Um momento depois, uma explosão titânica abre um buraco bem no centro do dia. Uma bola de fogo vermelho esconde primeiro a torre da WCIK, depois as árvores atrás dela, depois o horizonte inteiro ao se espalhar para o Norte e para o Sul.
As pessoas na Serra Negra gritam, mas não conseguem se ouvir no rugido vasto, esmagador, crescente quando 35 quilos de explosivo plástico e 38 mil litros de gás sofrem uma mudança explosiva. Cobrem os olhos e cambaleiam para trás, pisando nos sanduíches e derramando os copos. Thurston agarra Alice e Aidan no colo e, por um instante, Barbie vê o seu rosto contra o céu que empretece — o rosto comprido e aterrorizado de um homem que observa os Portões do Inferno literalmente se abrirem, e o oceano de fogo à espera logo além.
— Temos que voltar pra fazenda! — berra Barbie. Julia se agarra a ele, chorando. Ao lado dela está Joe McClatchey, tentando ajudar a mãe em prantos a se levantar. Essas pessoas não vão a lugar nenhum, ao menos por algum tempo.
A sudoeste, onde a maior parte da estrada da Bostinha deixará de existir nos próximos três minutos, o céu azul amarelado vai ficando preto, e Barbie tem tempo de pensar, com calma perfeita: Agora estamos debaixo da lente.
A explosão estilhaça todas as janelas do centro da cidade quase deserto, faz persianas voarem, entorta postes telefônicos, arranca as portas das dobradiças, amassa caixas do correio. Em toda a rua Principal, o alarme dos carros dispara. Para Big Jim Rennie e Carter Thibodeau, parece que a sala de reuniões foi atingida por um terremoto.
A TV ainda está ligada. Wolf Blitzer pergunta, com alarme real na voz:
— O que é isso? Anderson Cooper? Candy Crowley? Chad Myers? Soledad O’Brien? Alguém sabe que diabos foi isso? O que está havendo?
Na Redoma, os mais novos astros da TV americana olham em volta, mostrando somente as costas às câmeras enquanto protegem os olhos e fitam a cidade. Uma câmera dá uma panorâmica, revelando por um instante a coluna monstruosa de fumaça negra e detritos que gira no horizonte.
Carter pula de pé. Big Jim lhe agarra o pulso.
— Uma olhada rápida — diz Big Jim. — Pra ver se é muito ruim. Depois volta logo pra cá. Talvez tenhamos que ir pro abrigo anti-radiação.
— Certo. — Carter sobe a escada correndo. Os cacos de vidro da porta da frente quase vaporizada se esmagam sob as botas quando ele atravessa o saguão correndo. O que vê ao chegar aos degraus de fora é tão além de tudo o que já imaginou que o faz cair de volta na infância e, por um momento, fica paralisado e pensa: É como a maior trovoada, a mais horrível que já se viu, só que pior.
O céu a oeste é um inferno vermelho alaranjado cercado de vagalhões de nuvens do mais profundo ébano. O ar já está fedendo com o gás explodido. O som é como o rugido de uma dúzia de usinas siderúrgicas funcionando a toda.
Diretamente acima dele, o céu escurece com pássaros em vôo.
É a visão deles — pássaros que não têm para onde ir — que rompe a paralisia de Carter. Isso e o vento que sente contra o rosto. Há seis dias que não há vento em Chester’s Mill, e esse é ao mesmo tempo quente e nojento, fedendo a gás e madeira vaporizada.
Um imenso carvalho arrancado cai na rua Principal, derrubando emaranhados de cabos elétricos fatais.
Carter foge de volta pelo corredor. Big Jim está em pé no alto da escada, o rosto pesado pálido, assustado e, para variar, irresoluto.
— Pra baixo — diz Carter. — Abrigo anti-radiação. Está chegando. O fogo está chegando. E quando chegar, vai comer essa cidade viva.
Big Jim geme.
— O que aqueles idiotas fizeram?
Carter não se importa. Seja o que for, está feito. Se não se moverem depressa, estarão feitos também.
— Tem purificador de ar lá embaixo, chefe?
—Tem.
— Ligado ao gerador?
— É claro.
— Agradeça a Cristo por isso. Talvez tenhamos chance.
Ajudando Big Jim a descer a escada para que se mova mais depressa, Carter só torce para que não cozinhem vivos lá embaixo.
A porta do Dipper’s tinha sido aberta e travada, mas a força da explosão arranca as travas e fecha a porta. O vidro é tossido lá para dentro e várias pessoas em pé nos fundos do salão de dança se cortam. Whit, irmão de Henry Morrison, tem a jugular retalhada.
A multidão corre para a porta, a TV de tela grande completamente esquecida Pisoteiam o pobre Whit Morrison no local onde jaz moribundo numa poça cada vez maior do seu próprio sangue. Chegam à porta e mais gente se corta quando forçam a abertura esfacelada.
— Os pássaros! — grita alguém. — Meu Deus, vejam os pássaros!
Mas a maioria olha para oeste e não para cima — para oeste, onde o destino ardente vem rolando sobre eles sob um céu que agora é negro como a meia-noite e cheio de ar venenoso.
Os que conseguem correr seguem a dica dos pássaros e começam a trotar, galopar ou simplesmente desembestam pelo meio da rodovia 117. Vários outros se jogam dentro dos carros, e há múltiplas batidas no cascalho do estacionamento onde, em priscas eras, Dale Barbara levou uma surra. Velma Winter entra na sua velha picape Datsun e, depois de evitar o bate-bate no estacionamento, descobre que a sua preferencial até a estrada está bloqueada por pedestres em fuga. Olha para a direita — para a tempestade de fogo que ondula na direção deles como um grande vestido em chamas, comendo a floresta entre a Bostinha e o centro da cidade — e avança às cegas, apesar das pessoas no caminho. Atinge Carla Venziano, que foge com o bebê no colo. Velma sente a picape sacudir ao passar sobre o corpo dos dois e, resoluta, bloqueiaos ouvidos para os guinchos de Carla, com as costas quebradas e o bebê Steven morto esmagado debaixo dela. Velma só sabe que tem que sair dali. Ela tem que dar um jeito de sair.
Na Redoma, os reencontros foram encerrados por um estraga-prazeres apocalíptico. Os de dentro têm algo mais importante do que os parentes para ocupá-los agora: a gigantesca nuvem em cogumelo que cresce a noroeste da sua posição, subindo com uma força de fogo já com mais de um quilômetro de altura. A primeira lufada de vento — o vento que fez Carter e Big Jim fugirem para o abrigo anti-radiação — os atinge, e eles se encolhem contra a Redoma, praticamente ignorando as pessoas atrás. De qualquer modo, as pessoas atrás recuam. Têm sorte; podem.
Henrietta Clavard sente uma mão fria segurar a sua. Vira-se e vê Petra Searles. O cabelo de Petra se soltou dos grampos que o seguravam e pende contra o rosto.
— Tem mais suco de alegria? — pergunta Petra, e dá um horrível sorriso vamos-beber.
— Pena, acabou — diz Henrietta.
— Bom, talvez não importe.
— Fica junto de mim — diz Henrietta. — É só ficar junto de mim. Vai dar tudo certo.
Mas, quando Petra olha nos olhos da velha, não vê crença nem esperança. A festa praticamente acabou.
Olhe agora. Olhe e veja. Oitocentas pessoas estão amontoadas contra a Redoma, a cabeça virada para cima e os olhos arregalados, observando o fim inevitável que vem correndo na sua direção.
Eis ali Johnny e Carne Carver, e Bruce Yardley, que trabalhava no Food City Eis Tabby Morrell, que tem uma madeireira que logo será reduzida a rodopios de cinzas, e a mulher, Bonnie; Toby Manning, que trabalhava na loja de departamentos; Trina Cole e Donnie Baribeau; Wendy Goldstone com a amiga e colega de magistério Ellen Vanedestine; Bill Allnut, que não quis ir buscar o ônibus, e a mulher Sarah, que grita para que Jesus a salve enquanto vê o fogo chegando. Eis aqui Todd Wendlestat e Manuel Ortega com o rosto erguido burramente para oeste, onde o mundo some em fumaça. Tommy e Willow Anderson, que nunca receberão outra banda de Boston no seu bar de beira de estrada. Veja todos, toda uma cidade de costas para uma parede invisível.
Atrás deles, os visitantes passam do recuo à retirada, e da retirada à fuga desenfreada. Ignoram os ônibus e correm diretamente pela estrada rumo a Motton. Alguns soldados mantêm a posição, mas a maioria larga as armas, dispara atrás da multidão e não olha para trás, como Ló não olhou para Sodoma.
Cox não foge. Cox se aproxima da Redoma e grita:
— Ei, você! Oficial no comando!
Henry Morrison se vira, anda até a posição do coronel e encosta as mãos numa superfície dura e mística que não consegue ver. Respirar ficou difícil; um vento mau empurrado pela tempestade de fogo atinge a Redoma, gira e volta contra a coisa faminta que vem: um lobo negro de olhos vermelhos. Ali, na fronteira de Motton, está o rebanho de ovelhas de que se alimentará.
— Ajuda a gente — diz Henry.
Cox olha a tempestade de fogo e estima que chegará à posição atual da multidão em no máximo 15 minutos, talvez apenas três. Não é fogo nem explosão; nesse ambiente fechado e já poluído, é um cataclisma.
— Senhor, eu não posso — diz ele.
Antes que Henry responda, Joe Boxer lhe agarra o braço. Ele gagueja.
— Larga, Joe — diz Henry. — Não há pra onde fugir e nada a fazer senão rezar.
Mas Joe Boxer não reza. Ainda segura a sua estúpida pistolinha barata e, depois de uma última olhada enlouquecida no inferno que vem chegando, põe a arma na têmpora como quem joga roleta-russa. Henry tenta segurá-la, mas é tarde demais. Boxer puxa o gatilho. Nem morre na mesma hora, embora um jorro de sangue saia voando do lado da cabeça. Cambaleia, acenando a pistolinha estúpida como se fosse um lenço, gritando. Então cai de joelhos, ergue a mão uma vez para o céu que escurece, como um homem nas garras de uma revelação divina, e cai de cara na linha branca tracejada da rodovia.
Henry vira o rosto espantado para o coronel Cox, que ao mesmo tempo está a um metro e a um milhão de quilômetros de distância.
— Sinto tanto, meu amigo — diz Cox.
Pamela Chen chega aos tropeços.
— O ônibus! — grita ela para Henry acima do rugido que cresce. — Temos que pegar o ônibus e ir direto contra aquilo! É a nossa única chance!
Henry sabe que não é chance nenhuma, mas faz que sim, dá uma última olhada em Cox (este nunca esquecerá os olhos infernais e desesperados do policial), pega a mão de Pammie Chen e a segue até o ônibus 19 enquanto o negrume enfumaçado dispara na direção deles.
O fogo chega ao centro da cidade e explode pela rua Principal como um maçarico num cano. A Ponte da Paz evapora. Big Jim e Carter se encolhem no abrigo antirradiação quando a Câmara de Vereadores implode acima deles. A delegacia de polícia suga para dentro as paredes de tijolo e depois as cospe para o céu. A estátua de Lucien Calvert é arrancada do pedestal na praça do Memorial de Guerra. Lucien voa para o negrume ardente com o rifle corajosamente erguido. No gramado da biblioteca, o boneco de Halloween com a alegre cartola e as mãos de pá de jardinagem sobe num lençol de labaredas. Surge um alto barulho sugado — parece o aspirador de pó de Deus — quando o fogo faminto de oxigênio suga o ar bom para encher o seu único pulmão venenoso. Os prédios da rua Principal explodem um atrás do outro, jogando para o ar as tábuas, mercadorias, telhas e vidros como confete na véspera de ano-novo: o cinema abandonado, a Drogaria Sanders, a Loja de Departamentos Burpee, o Posto & Mercearia, a livraria, a loja de flores, o barbeiro. Na funerária, os acréscimos mais recentes do rol de mortos começam a assar nos cofres de metal como frangos numa panela de ferro. O fogo termina a sua corrida triunfante pela rua Principal engolindo o Food City; depois continua rolando na direção do Dipper’s, onde os que ainda estão no estacionamento gritam e se agarram. A última coisa que veem na face da Terra é uma parede de fogo de 100 metros de altura correndo ansiosa para encontrá-los, como Albion com os seus amados. Agora as labaredas rolam pelas estradas principais, fervendo o asfalto numa sopa. Ao mesmo tempo, se espalha para Eastchester, beliscando tanto as casas yuppies quanto os poucos yuppies encolhidos lá dentro. Michela Burpee logo correrá para o porão, mas tarde demais; a cozinha explodirá em torno dela e a última coisa que verá na face da Terra será a geladeira Amana derretendo.
Os soldados em pé na fronteira entre Tarker e Chester, mais perto da origem da catástrofe, recuam aos trambolhões quando o fogo bate punhos impotentes contra a Redoma, deixando-a preta. Sentem o calor passar, fazendo a temperatura subir mais de 10 graus em segundos, encaracolando as folhas das árvores mais próximas. Mais tarde, um deles dirá: “Foi como ficar do lado de fora de uma bola de vidro com uma explosão nuclear lá dentro.”
Agora as pessoas que se encolhem contra a Redoma começam a ser bombardeadas com pássaros mortos e moribundos, pois os pardais, pintarroxos, estorninhos, corvos, gaivotas e até gansos batem na Redoma que aprenderam tão depressa a evitar. E do outro lado do pasto de Dinsmore vem um estouro de cães e gatos da cidade. Também há gambás, marmotas, porcos-espinho. Veados saltam entre eles, e vários alces galopam desajeitados, e naturalmente o gado de Alden Dinsmore, os olhos rolando e mugindo de angústia. Quando chegam à Redoma, batem contra ela. Os sortudos morrem. Os sem sorte ficam caídos em alfineteiros de ossos quebrados, latindo e guinchando e miando e mugindo.
Ollie Dinsmore vê Dolly, a bela vaca suíça castanha que já lhe dera a fita azul de primeiro lugar no 4-H (a mãe a batizara, achara que Ollie e Dolly era bonitinho). Dolly galopa pesadamente rumo à Redoma com o weimaraner de alguém lhe mordendo as pernas já ensanguentadas. Ela bate na barreira com um barulho que ele não consegue ouvir acima do fogo que chega... só que na cabeça consegue ouvir, e, de certo modo, ver o cão igualmente condenado atacar a pobre Dolly e começar a rasgar o seu úbere indefeso é ainda pior do que encontrar o pai morto.
A visão da vaca moribunda que já tinha sido a sua preferida rompe a paralisia do menino. Ele não sabe se há sequer a mínima chance de sobreviver a esse dia terrível, mas de repente vê duas coisas com total clareza. Uma é o tanque de oxigênio com o boné dos Red Sox do pai pendurado. A outra é a máscara de oxigênio do vovô Tom pendurada no gancho da porta do banheiro. Quando corre para a fazenda onde passou a vida inteira — a fazenda que logo deixará de existir —, Ollie só tem uma idéia totalmente coerente: o porão das batatas. Enterrado debaixo do estábulo e entrando por debaixo do morro atrás dele, o porão das batatas talvez seja seguro.
Os expatriados ainda estão em pé na borda do pomar. Barbie não conseguiu fazer com que o escutassem, muito menos movê-los. Mas têm de voltar para a casa e para os veículos. Logo.
Dali têm uma visão panorâmica da cidade inteira, e Barbie consegue avaliar a trajetória do fogo do jeito que um general consegue avaliar a rota mais provável do exército invasor pelas fotografias aéreas. Segue para sudeste, e pode ficar do lado oeste do Prestile. O rio, embora seco, ainda deve servir de barreira natural contra o fogo. A tempestade explosiva que o fogo gerou também ajudará a mantê-lo longe do quadrante mais ao norte da cidade. Se o fogo arder até onde a Redoma faz fronteira com Castle Rock e Motton — o calcanhar e a sola da bota — essa parte de Chester’s Mill que faz fronteira com o TR-90 e com Harlow ao norte pode se salvar. Do fogo, ao menos. Mas não é o fogo que o preocupa.
O que o preocupa é esse vento.
Agora ele o sente, correndo sobre os ombros e entre as pernas abertas com força suficiente para fazer as roupas ondularem e emaranhar o cabelo de Julia em torno do rosto dela. O vento foge deles para alimentar o fogo, e como Mill agora é um ambiente quase totalmente fechado, haverá muito pouco ar bom para substituir o que está sendo perdido. Barbie vê uma imagem de pesadelo com peixinhos dourados flutuando mortos na superfície de um aquário cujo oxigênio se exauriu.
Julia se vira para ele antes que consiga agarrá-la e aponta algo lá embaixo: alguém subindo com esforço a estrada da Serra Negra, puxando um objeto com rodas. Dessa distância, Barbie não consegue saber se o refugiado é homem ou mulher, e não importa. É quase certo que, seja quem for, morrerá de asfixia muito antes de chegar até um lugar alto.
Ele pega a mão de Julia e põe os lábios junto do ouvido dela.
— Temos que ir. Pega a Piper e manda ela agarrar quem estiver ao lado. Todo mundo...
— E ele? — berra ela, ainda apontando a figura que anda com esforço. Pode ser um carrinho de bebê que ele ou ela está puxando. Está carregado com alguma coisa que deve ser pesada, porque a figura está curvada e avança muito devagar.
Barbie tem de fazer com que ela entenda, porque o tempo está acabando.
— Deixa ele pra lá. Vamos voltar pra fazenda. Agora. Todo mundo de mãos dadas pra ninguém ficar para trás.
Ela tenta se virar e olhá-lo, mas Barbie a segura firme. Quer que ela escute, literalmente, porque tem de fazer com que entenda.
— Se não formos agora, vai ser tarde demais. Vamos ficar sem ar.
Na rodovia 117, Velma Winter encabeça um desfile de veículos em fuga na sua picape Datsun. Só consegue pensar no fogo e na fumaça que enchem o retrovisor. Está a 110 quando bate na Redoma, da qual, em pânico, se esquecera completamente (só mais um pássaro, em outras palavras, esse no chão). A colisão acontece no mesmo ponto onde Billy e Wanda Debec, Nora Robichaud e Elsa Andrews sofreram um revés, O motor da picape leve de Velma é arremetido para trás e a dilacera ao meio. A parte de cima do corpo sai pelo para-brisa, espirrando intestinos como serpentinas, e se esborracha na Redoma como uma barata suculenta. É o começo de um engavetamento de 12 veículos no qual muitos morrem. A maioria só se fere, mas não sofrerão por muito tempo.
Henrietta e Petra sentem o calor lavá-las. Acontece o mesmo com as centenas apertadas contra a Redoma. O vento levanta o cabelo e sacode roupas que logo estarão ardendo.
— Segura a minha mão, querida — diz Henrietta, e Petra obedece.
Elas observam o grande ônibus amarelo fazer uma volta ampla e bêbada. Cambaleia pela vala, quase acerta Richie Killian, que primeiro se afasta e depois pula adiante com agilidade, agarrando-se à porta traseira quando o ônibus passa. Ele ergue os pés e se agacha no para-choque.
— Tomara que consigam — diz Petra.
— Tomara mesmo, querida.
— Mas acho que não vão.
Agora alguns veados que saltam da conflagração que se aproxima estão em chamas.
Henry pegou o volante do ônibus. Pamela está ao lado dele, segurando-se num mastro cromado. Os passageiros são cerca de uma dúzia de moradores da cidade, a maioria embarcada mais cedo porque sofriam de problemas físicos. Entre eles estão Mabel Alston, Mary Lou Costas e o bebê de Mary Lou, ainda com o boné de beisebol de Henry. O respeitável Leo Lamoine também embarcou, embora pareça que o seu problema é emocional e não físico; ele choraminga de terror.
— Pisa fundo e vai pro norte!— grita Pamela. O fogo já quase os atingiu, está a menos de 500 metros, e o som abala o mundo. — Acelera feito um filho da puta e não para por nada!
Henry sabe que não adianta, mas, como também sabe que prefere morrer assim do que encolhido sem esperanças com as costas contra a Redoma, acende os faróis e vai em frente. Pamela é jogada para trás e cai no colo de Chaz Bender, o professor — ajudaram Chaz a entrar no ônibus quando começou a sentir palpitações. Ele agarra Pammie para firmá-la. Há guinchos e gritos de alarme, mas Henry mal escuta. Sabe que vai perder a visão da estrada apesar dos faróis, mas e daí? Como policial, já passou por esse trecho mil vezes.
Use a força, Luke, pensa, e na verdade ri enquanto dirige rumo às trevas flamejantes com o pedal do acelerador enfiado até o fundo. Agarrado à porta traseira do ônibus, de repente Richie Killian não consegue respirar. Tem tempo de ver os braços pegarem fogo. Um instante depois, a temperatura do lado de fora do ônibus pula para oitocentos graus e ele é queimado no seu poleiro como um fiapinho de carne caído numa grelha quente de churrasco.
As luzes que correm pelo centro do ônibus estão acesas, lançando um brilho fraco de lanchonete à meia-noite sobre o rosto aterrorizado e encharcado de suor dos passageiros, mas o mundo lá fora ficou totalmente preto. Redemoinhos de cinzas se projetam contra os fachos ultra-encurtados dos faróis. Henry dirige de memória, se perguntando quando os pneus explodirão debaixo deles.
Ainda ri, embora não consiga se ouvir acima do guincho de gato escaldado do motor do 19. Ele se mantém na estrada; é só isso o que se pode pedir a ele. Quanto tempo até que saiam do outro lado da parede de fogo? Será possível que consigam sair? Ele começa a achar que pode ser. Bom Deus, que espessura terá?
— Você está conseguindo! — grita Pamela. — Você está conseguindo!
Talvez, pensa Henry Talvez esteja. Mas, Jesus, que calor. Ele estende a mão para o botão do ar-condicionado, querendo ligá-lo no FRIO MAX, e é então que a janela implode e o ônibus se enche de fogo. Henry pensa, Não! Não! Não quando estamos tão perto!
Mas, quando o ônibus carbonizado avança para fora da fumaça, ele não vê nada além de uma devastação negra. As árvores se queimaram como tocos ardentes e a própria estrada é uma vala borbulhante. Depois uma sobrecapa de fogo cai sobre ele vinda de trás e Henry Morrison não sabe mais nada. O 19 sai dos restos da estrada e cai cuspindo labaredas por todas as janelas quebradas. A mensagem que empretece rapidamente na traseira diz: DEVAGAR, AMIGO! NÓS AMAMOS NOSSOS FILHOS!
Ollie Dinsmore dispara rumo ao celeiro. Com a máscara de oxigênio do vovô Tom no pescoço e levando dois tanques com uma força que nunca soube ter (o segundo, avistou ao cruzar a garagem), o menino corre para a escada que o levará ao porão das batatas lá embaixo, Um som raivoso e dilacerante vem de cima quando o telhado começa a arder. No lado oeste do celeiro, as abóboras também começam a arder, o cheiro rico e sufocante, como Ação de Graças no inferno.
O fogo avança rumo ao lado sul da Redoma, correndo pelos últimos 100 metros; há uma explosão quando os estábulos de vacas leiteiras de Dinsmore são destruídos. Henrietta Clavard encara o fogo que vem e pensa: Ora, sou velha. Tive a minha vida. Estou melhor do que essa pobre moça.
— Se vira, querida — diz a Petra —, e põe a cabeça no meu peito.
Petra Searles vira para Henrietta um rosto muito jovem e riscado de lágrimas.
— Vai doer?
— Só um segundo, querida. Fecha os olhos e, quando abrir, você vai estar banhando os pés num riacho fresco.
Petra diz as suas últimas palavras.
— Parece bom.
Ela fecha os olhos. Henrietta faz o mesmo. O fogo as envolve. Num segundo estão lá, no próximo... somem.
Cox ainda está perto do outro lado da Redoma, e as câmeras ainda funcionam na sua posição segura no local da feira de usados. Ao redor do país, todos assistem com fascínio abalado. Os comentários aturdidos viram silêncio e a única trilha sonora é o fogo, que tem muito a dizer.
Por um instante Cox ainda consegue ver a comprida cobra humana, embora as pessoas que a formam sejam apenas silhuetas contra o fogo. A maioria deles, como os expatriados da Serra Negra, que finalmente voltam para a fazenda e os veículos, se dão as mãos. Então o fogo ferve contra a Redoma, e eles somem. Como se para compensar o seu desaparecimento, a Redoma propriamente dita se torna visível: uma grande parede carbonizada subindo para o céu. Mantém quase todo o calor do lado de dentro, mas fulgura do lado de fora o suficiente para fizer Cox se virar e sair correndo. Ele arranca a camisa fumegante pelo caminho.
O fogo ardeu na diagonal que Barbie previra, varrendo Chester’s Mill de noroeste a sudeste. Quando morrer, será com rapidez extraordinária. O que levou foi oxigênio; o que deixa para trás é metano, formaldeído, ácido hidroclorídrico, dióxido e monóxido de carbono, além de traços de gases igualmente nocivos. Também nuvens sufocantes de matéria particulada: casas, árvores e, naturalmente, pessoas volatilizadas.
O que deixa para trás é veneno.
Vinte e oito exilados e dois cães vão num comboio até onde a Redoma fazia fronteira com o TR-90, chamado de Cantão pela velha guarda. Estavam amontoados em três picapes, dois carros e na ambulância. Quando chegaram, o dia escurecera e o ar ficara cada vez mais difícil de respirar.
Barbie pisou com força no freio do Prius de Julia e correu para a Redoma, onde um preocupado tenente-coronel do Exército e meia dúzia de outros soldados avançaram para encontrá-lo. A corrida foi curta, mas, quando chegou à faixa vermelha pintada em spray na Redoma, Barbie ofegava. O ar bom desaparecia como água pelo ralo da pia.
— Os ventiladores! — disse arquejante para o tenente-coronel. — Liga os ventiladores! — Claire McClatchey e Joe saíram da picape da loja de departamentos, ofegantes e cambaleando. A picape da companhia telefônica veio atrás. Ernie Calvert saiu, deu dois passos e caiu de joelhos. Norrie e a mãe tentaram ajudá-lo a se levantar. Ambas choravam.
— Coronel Barbara, o que aconteceu? — perguntou o tenente-coronel. De acordo com a tirinha da farda, o seu nome era STRINGFELLOW. — Explique.
— Foda-se a explicação! — berrou Rommie. Trazia no colo uma criança semi-consciente, Aidan Appleton. Thurse Marshall cambaleava atrás dele com o braço em volta de Alice, cuja camiseta polvilhada de brilhos estava grudada no corpo; ela vomitara. — Foda-se a explicação, liga logo esses ventiladorres!
Stringfellow deu a ordem e os refugiados se ajoelharam, as mãos encostadas na Redoma, inspirando ansiosos a leve brisa de ar limpo que os imensos ventiladores conseguiam forçar pela barreira.
Atrás deles, o fogo rugia.
SOBREVIVENTES
Só 397 dos 2 mil moradores de Mil! sobrevivem ao incêndio, a maioria deles no quadrante nordeste da cidade. Até o anoitecer, que tornará completa a escuridão suja dentro da Redoma, serão 106.
Quando o sol nasce na manhã de sábado, brilhando fraco pela única parte da Redoma não totalmente enegrecida, a população de Chester’s Mill é de apenas 32 habitantes.
Ollie bateu a porta do porão de batatas antes de correr escada abaixo. Também ligou o interruptor que acendia a luz, sem saber se ainda funcionaria. Funcionou. Quando chegou aos tropeções no porão do celeiro (agora gelado, mas não por muito tempo; já conseguia sentir o calor começando a forçar a entrada atrás dele), Ollie se lembrou do dia quatro anos antes em que os caras da Ives Electric, de Castle Rock, foram até o celeiro descarregar o novo gerador Honda.
— É melhor que esse filhodamãe funcione direito — dissera Alden, mastigando uma folha de capim —, porque foi um roubo e eu me endividei até a raiz do cabelo pra comprar.
Funcionara direito. Ainda funcionava direito, mas Ollie sabia que não seria por muito tempo. O fogo o engoliria, assim como engolira tudo o mais. Se ainda tivesse um minuto de luz, ficaria surpreso.
Talvez eu nem esteja vivo daqui a um minuto.
O classificador de batatas estava no meio do chão sujo de concreto, uma complexidade de correias, correntes, engrenagens que parecia um antigo instrumento de tortura. Além dele, havia uma pilha imensa de batatas. Fora um outono bom para elas, e os Dinsmore tinham acabado a colheita só três dias antes de a Redoma cair. Num ano normal, Alden e os meninos passariam novembro classificando batatas para vender na feira da cooperativa agrícola de Castle Rock e em várias barraquinhas de beira de estrada em Motton, Harlow e Tarker’s Mills. Nada de dinheiro de batata este ano. Mas Ollie achou que elas poderiam lhe salvar a vida.
Correu até a beira da pilha e parou para examinar os dois cilindros. O mostrador do da casa estava apenas meio cheio, mas a agulha do mostrador do da garagem estava lá no verde. Ollie deixou o meio cheio cair no concreto e prendeu a máscara no da garagem. Fizera isso muitas vezes quando o vovô Tom estava vivo, e era serviço de segundos.
Assim que pôs a máscara de volta no pescoço, a luz se apagou.
O ar foi ficando mais quente. Ele se ajoelhou e começou a se enterrar no peso frio das batatas, empurrando com os pés, protegendo o cilindro comprido com o corpo e empurrando-o debaixo de si com uma das mãos. Com a outra, fazia movimentos desajeitados de natação.
Escutou a avalanche de batatas atrás dele e combateu o pânico da ânsia de voltar. Era como estar enterrado vivo, e dizer a si mesmo que se não estivesse enterrado vivo com certeza morreria não ajudava muito. Ofegava, tossia, parecia respirar tanto pó de batata quanto ar. Pôs a máscara de oxigênio no rosto e... nada.
Remexeu na válvula do cilindro por um tempo que parecia para sempre, o coração batendo forte no peito como um animal na jaula. Flores vermelhas começaram a se abrir na escuridão diante dos seus olhos, O frio peso vegetal o pressionava. Fora maluco de fazer aquilo, tão maluco quanto Rory, disparando uma arma na Redoma, e ia pagar o preço. Ia morrer.
Então os dedos finalmente encontraram a válvula. A princípio não quis girar, e ele notou que tentava girar para o lado errado. Inverteu os dedos e um jorro de ar fresco e abençoado irrompeu na máscara.
Ollie ficou deitado debaixo das batatas, arfando. Pulou um pouco quando o fogo arrombou a porta no alto da escada; por um momento conseguiu mesmo ver o berço sujo onde estava. Estava ficando mais quente e ele se perguntou se o cilindro meio cheio que deixara para trás explodiria. Também se perguntou quanto tempo mais o cilindro cheio lhe daria e se valia a pena.
Mas isso era o seu cérebro, O corpo só tinha um imperativo: a vida. Ollie começou a rastejar mais fundo na pilha de batatas, arrastando o cilindro consigo, ajustando a máscara no rosto toda vez que entortava.
Se os bookmakers de Las Vegas tivessem aceitado apostas sobre prováveis sobreviventes da catástrofe do Dia de Visita, as de Sam Verdreaux pagariam mil para um. Mas probabilidades piores já foram vencidas — é isso que continua levando gente de volta às mesas de jogo — e Sam era a figura que Julia avistara subindo com esforço a estrada da Serra Negra pouco antes que os exilados corressem para os veículos na casa da fazenda.
Sam Relaxado, o Homem Conservado em Álcool, viveu pela mesma razão que Ollie: tinha oxigênio.
Quatro anos antes, consultara o dr. Haskell (O Mágico — você se lembra dele). Quando disse que andava sem fôlego, o dr. Haskell checara a respiração chiada do velho bebum e lhe perguntara se fumava muito.
— Bom — respondera Sam —, eu costumava fumar até quatro maços por dia quando morava na floresta, mas agora que recebo pensão por invalidez, reduzi um pouco.
O dr. Haskell perguntou quanto era isso em termos de consumo real. Sam disse que achava que agora eram dois maços por dia. American Iggles.
— Eu fumava Chesterfoggies, mas agora só tem com filtro — explicara. — E é caro. Os Iggles são baratos e dá pra tirar o filtro antes de acender. Mole, mole. — Então, começou a tossir.
O dr. Haskell não encontrou câncer de pulmão (quase uma surpresa), mas as radiografias mostraram um belíssimo caso de enfisema, e disse a Sam que provavelmente teria de usar oxigênio pelo resto da vida. Não era um bom diagnóstico, mas deu paz ao sujeito. Como dizem os médicos, quando a gente ouve cascos não pensa em zebras. Além disso, todo mundo tende a ver o que está procurando, não é? E embora se possa dizer que o dr. Haskell tenha morrido como herói, ninguém, nem Rusty Everett, jamais o confundiu com Gregory House. Na verdade, Sam estava com bronquite, que melhorou pouco tempo depois de O Mágico fazer o diagnóstico.
Mas nisso Sam requisitara entregas semanais de oxigênio da Castelos no Ar (empresa sediada em Castle Rock, naturalmente) e nunca cancelou o serviço. Por que cancelaria? Como os remédios para hipertensão, o oxigênio era pago pelo serviço que ele chamava de O PLANO. Sam não entendia O PLANO direito, mas entendia que o oxigênio não saía do seu bolso. Também descobrira que respirar oxigênio puro tinha o efeito de alegrar o corpo.
No entanto, às vezes se passavam semanas sem que Sam pensasse em visitar o galpãozinho sujeco que considerava “o bar de oxigênio”. Então, quando os caras da Castelos no Ar vinham buscar os cilindros vazios (coisa em que costumavam ser negligentes), Sam ia até o bar de oxigênio, abria as válvulas, esvaziava os cilindros, empilhava-os no velho carrinho vermelho do filho e os levava até o caminhão azul vivo com bolhas de ar.
Se ainda morasse na estrada da Bostinha, local do antigo lar dos Verdreaux, Sam teria queimado até virar torresmo (como aconteceu com Marta Edmunds) minutos depois da explosão inicial. Mas há muito tempo o lar e a floresta que o cercava lhe tinham sido tomados por causa de impostos atrasados (e comprados de volta em 2008 por uma das várias empresas de fachada de Jim Rennie... uma pechincha baratíssima). Mas a irmã caçula tinha uma terrinha perto do riacho de Deus e era lá que Sam morava no dia em que o mundo explodiu. O barraco não era grande coisa, e tinha que fazer as suas necessidades numa latrina externa (a única água corrente vinha de uma antiga bomba manual na cozinha), mas, carácoles, os impostos estavam pagos, a caçula cuidava disso... e ele tinha O PLANO.
Sam não se orgulhava do seu papel de instigador do saque ao Food City. Por anos, tomara muita pinga e cerveja com o pai de Georgia Roux, e se sentira mal ao atingir com uma pedra a cara da filha do homem. Não parava de pensar no som que aquele pedaço de quartzo fizera ao bater, e como o maxilar quebrado de Georgia ficara pendente, fazendo-a parecer um boneco de ventríloquo com a boca arrebentada. Podia ter matado a moça, Cristo Jesus. Provavelmente era um milagre que não tivesse... não que ela tivesse durado muito mais. E uma ideia ainda mais triste lhe ocorreu: se a tivesse deixado em paz, ela não teria ido para o hospital. E se não estivesse no hospital, provavelmente ainda estaria viva.
Se visse as coisas desse jeito, ele a matara, sim.
A explosão na emissora de rádio o fez acordar de repente do sono de bêbado, agarrando o peito e olhando em volta loucamente. A janela acima da cama tinha explodido. Na verdade, todas as janelas tinham explodido e a porta da frente do barraco, virada para oeste, fora arrancada das dobradiças.
Ele saiu e ficou paralisado no jardim da frente cheio de mato e pneus velhos, fitando o oeste, onde o mundo inteiro parecia estar em chamas.
No abrigo anti-radiação debaixo de onde antes ficava a Câmara de Vereadores, o gerador — pequeno, antiquado e agora a única coisa entre os ocupantes e o grande além — funcionava direitinho. As lâmpadas a pilha lançavam um brilho amarelado nos cantos da sala principal. Carter estava sentado na única cadeira, Big Jim ocupava quase todo o idoso sofá de dois lugares e comia sardinhas de uma lata, catando-as uma a uma com os dedos grossos e deitando-as em Saltines.
Os dois tinham pouco a dizer; a TV portátil que Carter encontrara pegando poeira no depósito atraía toda a sua atenção. Só pegava um único canal — a WMTW de Poland Spring —, mas um bastava. Era até demais; a devastação era difícil de compreender. O centro da cidade fora destruído. As fotos de satélite mostravam que as florestas em torno do lago Chester tinham se reduzido a escória e a multidão do Dia de Visita na 119 era agora pó no vento que morria. Até uma altura de 6 mil metros, a Redoma ficara visível: uma fuliginosa prisão sem fim cercando uma cidade que agora estava 70% carbonizada.
Não muito depois da explosão, a temperatura no porão passou a subir consideravelmente. Big Jim disse a Carter que ligasse o ar-condicionado.
— O gerador vai aguentar? — perguntara Carter.
— Se não aguentar, vamos assar — respondera Big Jim, irritado —, qual a diferença?
Não me dê esporro, pensou Carter. Não me dê esporro porque foi você que fez isso acontecer. Você é o responsável.
Ele se levantara para procurar o ar-condicionado e, enquanto isso, outra ideia lhe passou pela cabeça: como aquelas sardinhas fediam. Perguntou-se o que o chefe diria se ele lhe dissesse que o troço que punha na boca fedia a boceta velha e morta.
Mas Big Jim falara sério quando o chamara de filho, por isso Carter ficou de boca fechada. E, ao ser ligado, o ar-condicionado começou a funcionar na mesma hora. Mas o som do gerador se aprofundou um pouco, como se sofresse com a carga a mais. Queimaria o suprimento de gás bem mais depressa.
Não importa, ele está certo, é preciso, disse Carter a si mesmo enquanto observava as cenas incansáveis de devastação na TV. A maioria vinha de satélites ou aviões de reconhecimento em altitude elevada. Em nível mais baixo, quase toda a Redoma ficara opaca.
Mas, como ele e Big Jim descobriram, não na parte nordeste da cidade. Por volta das três da tarde, a cobertura passou de repente para lá, com vídeos gravados atrás de um movimentado posto avançado do Exército na floresta.
— Aqui é Jake Tapper no TR-90, distrito não incorporado ao município ao norte de Chester’s Mill. É o mais perto que nos permitiram chegar, mas, como podem ver, há sobreviventes. Repito, há sobreviventes.
— Há sobreviventes bem aqui, seu débil mental — disse Carter.
— Cala a boca — disse Big Jim. O sangue estava se acumulando nas bochechas pesadas e se lançava pela testa numa linha ondulada. Os olhos se projetaram nas órbitas e as mãos se cerraram. — É o Barbara. Aquele filhodamãe do Dale Barbara.
Carter o viu entre os outros. A imagem era transmitida por uma câmera com teleobjetiva longuíssima, o que deixava a imagem trêmula — era como olhar alguém numa névoa de calor —, mas ainda estava bastante clara. Barbara. A pastora faladeira. O médico hippie. Um monte de crianças. A mulher do Everett.
Aquela piranha mentiu o tempo todo, pensou. Ela mentiu e o estúpido do Carter acreditou.
— O rugido que vocês escutam não são helicópteros — dizia Jake Tapper. — Se pudermos recuar um pouco... — A câmera recuou, revelando uma fila de ventiladores imensos sobre carrinhos, cada um deles ligado a um gerador. A visão de todo aquele poder a poucos quilômetros dali deixou Carter doente de inveja.
— Agora dá pra ver — continuava Tapper. — Não são helicópteros, são ventiladores industriais. Agora... se pudermos voltar aos sobreviventes... — A câmera obedeceu. Estavam ajoelhados ou sentados à beira da Redoma, bem diante dos ventiladores. Carter conseguiu ver o cabelo deles se mexendo com a brisa. Não voando, mas se mexendo com clareza. Como plantas numa lenta corrente submarina.
— Olha lá a Julia Shumway — maravilhou-se Big Jim. — Eu devia ter matado aquela coisa-que-rima-com-aranha quando pude. — Carter não lhe deu atenção. Seus olhos estavam pregados na TV.
— O sopro combinado de quatro dúzias de ventiladores seria suficiente pra derrubar aquelas pessoas, Charlie — disse Jake Tapper —, mas daqui parece que estão recebendo o mínimo suficiente de ar pra se manterem vivos numa atmosfera que se transformou numa sopa venenosa de dióxido de carbono, metano e Deus sabe o que mais. Nossos especialistas dizem que o suprimento limitado de oxigênio de Chester’s Mill foi quase todo para alimentar o fogo. Um deles, o professor de Química de Princeton Donald Irving, me disse pelo celular que agora o ar dentro da Redoma não deve estar muito diferente da atmosfera de Vênus.
A imagem passou para Charlie Gibson, com cara de preocupado, mas a salvo em Nova York. (Canalha de sorte, pensou Carter.)
— Alguma notícia do que pode ter provocado o incêndio?
De volta a Jake Tapper... e aos sobreviventes na sua pequena cápsula de ar respirável.
— Nenhuma, Charlie. Foi algum tipo de explosão, isso parece claro, mas não houve mais notícias dos militares e nada de Chester’s Mill. Algumas pessoas que você vê na tela devem ter celular, mas se estão se comunicando é só com o coronel James Cox, que desceu aqui faz uns 45 minutos e foi imediatamente conversar com os sobreviventes. Enquanto a câmera mostra uma panorâmica dessa triste cena no ponto onde nós estamos, que é bem distante, vou ler para os espectadores preocupados dos Estados Unidos e do mundo inteiro o nome das pessoas junto à Redoma que foram identificadas. Talvez você ainda tenha fotos de várias e possa mostrá-las na tela enquanto eu leio. Acho que a lista está na ordem alfabética, mas não posso garantir.
— Tudo bem, Jake. E, sim, nós temos algumas fotos, mas vá devagar.
— Coronel Dale Barbara, antes tenente Barbara, Exército dos Estados Unidos. — Uma foto de Barbie com farda camuflada do deserto surgiu na tela. Tinha o braço em volta de um garoto iraquiano sorridente. — Veterano condecorado e, recentemente, chapeiro da lanchonete da cidade.
— Angelina Buffalino... temos foto dela?... não?... tudo bem.
— Romeo Burpee, dono da loja de departamentos local. — Havia uma foto de Rommie. Estava em pé ao lado de uma churrasqueira de quintal com a mulher e usava uma camiseta que dizia ME BEIJA QUE EU SOU FRANCÊS.
— Ernest Calvert, a filha Joan e a neta Eleanor Calvert. — A foto parecia tirada numa reunião de família: havia Calverts por toda parte. Norrie, ao mesmo tempo bonita e carrancuda, estava com o skate debaixo do braço.
— Alva Drake... o filho dela, Benjamin Drake...
— Desliga isso — grunhiu Big Jim.
— Ao menos estão em campo aberto — disse Carter, melancólico. — Não enfiados num buraco. Eu me sinto como a porra do Saddam Hussein quando estava foragido.
— Eric Everett, a esposa Linda e as duas filhas...
— Outra família! — disse Charlie Gibson com uma voz de aprovação que era quase mormonesca. Isso bastou para Big Jim; ele se levantou e desligou a TV com uma torcida dura do pulso. Ainda segurava a lata de sardinhas e derramou um pouco do azeite nas calças com o movimento.
Isso aí não vai sair nunca, pensou Carter, mas não disse.
Eu estava assistindo, pensou Carter, mas não disse.
— A mulher do jornal — remoeu Big Jim, sentando-se de novo. As almofadas sibilaram ao se esvaziar sob o seu peso. — Ela sempre foi contra mim.
Usou todas as artimanhas. Todas as artimanhas melequentas. Pode me trazer outra lata de sardinha?
Vai buscar, pensou Carter, mas não disse. Levantou-se e pegou outra lata de sardinha.
Em vez de comentar a associação olfativa que fizera entre as sardinhas e os órgãos genitais de falecidas, fez a pergunta que parecia óbvia.
— O que a gente vai fazer, chefe?
Big Jim removeu a chavinha da base da lata, enfiou-a na tirinha e desenrolou a tampa para revelar um novo esquadrão de peixes mortos. Eles brilhavam gordurentos sob a luz das lâmpadas de emergência.
— Esperar o ar limpar, subir e começar a catar os cacos, filho. — Suspirou, pôs um peixe pingante num Saltine e o comeu. As migalhas de biscoito grudaram nos lábios em contas de óleo. — É o que gente como nós sempre faz. Os responsáveis. Os que puxam o arado.
— E se o ar não limpar? A TV disse...
— Socorro, o céu está caindo, socorro, o céu está caindo! — declamou Big Jim num falsete estranho (e estranhamente perturbador). — Dizem isso há anos, não é? Os cientistas e os liberais de coração partido. Terceira Guerra Mundial! Reatores nucleares se derretendo até o centro da Terra! Pane nos computadores no ano 2000! O fim da camada de ozônio! Calotas polares derretendo! Furacões assassinos! Aquecimento global! Ateus maricas de titica que não confiam na vontade de um Deus amoroso e cuidadoso! Que se recusam a acreditar que haja um Deus amoroso e cuidadoso!
Big Jim apontou o dedo engordurado mas firme para o rapaz.
— Ao contrário da crença dos humanistas seculares, o céu não está caindo. Eles não conseguem lavar a mancha de covardia que têm na testa, “o homem culpado foge quando ninguém o persegue”, sabe, Levítico, mas isso não muda a verdade de Deus: os que acreditam Nele não se cansarão, mas subirão com asas de águia. Isaías. Lá fora o que há é basicamente fumaça. Só vai levar algum tempo pra ir embora.
Mas, duas horas depois, pouco depois das quatro horas daquela tarde de sexta-feira, um som agudo de quiip-quiip-quiip veio da alcova onde ficava o sistema de apoio mecânico do abrigo anti-radiação.
— O que é isso? — perguntou Carter.
Big Jim, agora acachapado no sofá com os olhos semi-fechados (e gordura de sardinha na papada), sentou-se e escutou.
— Purificador de ar — disse. — Parecido com um Sterilair gigante. Tem um deles no salão lá da loja de carros. Bom aparelhinho. Não só deixa o ar limpo e doce, como impede aqueles choques de eletricidade estática que a gente acaba levando no tempo fri...
— Se o ar da cidade está se limpando, por que o purificador de ar começou a funcionar?
— Por que você não vai lá em cima, Carter? Abre a porta um pouquinho e vê como estão as coisas. Isso te acalmaria?
Carter não sabia se sim nem se não, mas sabia que ficar ali sentado ia deixá-lo maluco. Ele subiu a escada.
Assim que ele saiu, Big Jim levantou e foi até a fila de gavetas entre o fogão e a pequena geladeira. Para um homem tão grande, movia-se com rapidez e silêncio surpreendentes. Achou o que procurava na terceira gaveta. Olhou por sobre o ombro para garantir que ainda estava sozinho e se serviu.
Na porta no alto da escada, Carter se viu diante de um cartaz bem ameaçador:
PRECISA CONFERIR A CONTAGEM RADIATIVA?
PENSE BEM!!!
Carter pensou. E a conclusão a que chegou foi que, quase com certeza, Big Jim só falava merda sobre a limpeza do ar. Aquele pessoal em fila diante dos ventiladores provava que a troca de ar entre Chester’s Mill e o mundo exterior era quase nenhuma.
Ainda assim, não faria mal nenhum verificar.
A princípio, a porta não se mexeu. O pânico provocado por pensamentos sinistros de estar enterrado vivo o fez empurrar com mais força. Dessa vez, a porta se mexeu só um pouquinho. Ele ouviu tijolos caindo e madeira raspando. Talvez pudesse abrir mais, mas não havia por quê. O ar que entrou pelos poucos centímetros que abrira não era ar nenhum, era algo que cheirava como o lado de dentro de um tubo de escapamento quando o motor estava funcionando. Não precisava de nenhum instrumento complicado para dizer que dois ou três minutos fora do abrigo o matariam.
A pergunta era: o que dizer a Rennie?
Nada, sugeriu a voz interior fria de sobrevivente. Ouvir algo assim só vai deixar ele pior. Mais difícil de lidar.
E o que exatamente assim significava? Que importância tinha, se iam morrer no abrigo anti-radiação quando o gerador ficasse sem combustível? Se era esse o caso, que importância teria tudo aquilo?
Ele voltou escada abaixo. Big Jim estava sentado no sofá.
— E...?
— Bem ruim — disse Carter.
— Mas respirável, certo?
— É, sim. Mas vai fazer a gente passar mal. Melhor esperar, chefe.
— É claro que é melhor esperar — disse Big Jim, como se Carter tivesse sugerido outra coisa. Como se Carter fosse o maior idiota do universo. — Mas vai dar tudo certo, essa é a questão. Deus cuida de tudo. Ele sempre cuida. Enquanto isso, temos ar bom aqui dentro, não está quente demais e tem bastante comida. Por que não vê os doces que nós temos, filho? Chocolate, coisas assim? Eu ainda estou com fome.
Não sou o seu filho, o seu filho está morto, pensou Carter... mas não disse. Foi até o depósito ver se havia chocolate nas prateleiras.
Por volta das dez horas daquela noite, Barbie caiu num sono perturbado, com Julia bem ao seu lado, os corpos encaixados. Junior Rennie dançou pelos seus sonhos: Junior em pé na frente da cela no Galinheiro. Junior com a arma. E dessa vez não haveria salvação, porque o ar lá fora virara veneno e estava todo mundo morto.
Esses sonhos finalmente se foram e ele dormiu mais profundamente, a sua cabeça — e a de Julia — inclinada para a Redoma e o ar fresco que passava por ela. Era o suficiente para viver, mas não para dar conforto.
Algo o acordou por volta das duas da madrugada. Pela Redoma manchada, olhou as luzes amortecidas do acampamento do Exército do outro lado. Então o som veio de novo. Era tosse, baixa, áspera e desesperada.
Uma lanterna se acendeu à sua direita. Barbie se levantou com o máximo de silêncio possível, não querendo acordar Julia, e foi até a luz, passando por sobre os outros que dormiam no capim. A maioria estava só de roupa de baixo. As sentinelas a 3 metros estavam enroladas em casacos de feltro e luvas, mas ali estava mais quente do que nunca.
Rusty e Ginny estavam ajoelhados ao lado de Ernie Calvert. Rusty tinha o estetoscópio no pescoço e uma máscara de oxigênio na mão, presa a um pequeno botijão vermelho no qual estava escrito AMBULÂNCIA CRH NÃO REMOVA SEMPRE TROQUE. Abraçadas, Norrie e a mãe olhavam ansiosas.
— Desculpa por ele ter te acordado — disse Joanie. — Ele está doente.
— Muito doente? — perguntou Barbie.
Rusty balançou a cabeça.
— Não sei. Parece bronquite ou um resfriado forte, mas é claro que não é. É o ar ruim. Eu dei um pouco do que tinha na ambulância e ajudou por algum tempo, mas agora... — Ele deu de ombros. — E não gosto do som do coração. Ele passou por muito estresse e não é mais um garoto.
— Não tem mais oxigênio? — perguntou Barbie. Apontou o botijão vermelho, que parecia muito o tipo de extintor que todos têm no armário da cozinha e sempre esquecem de recarregar. — É isso?
Thurse Marshall se uniu a eles. No facho da lanterna, parecia carrancudo e cansado.
— Tem mais um, mas concordamos, Rusty, Ginny e eu, em guardar pras crianças. Aidan também começou a tossir. Eu pus ele o mais perto possível da Redoma e dos ventiladores, mas ainda está tossindo. Vamos começar a dar a Aidan, Alice, Judy e Janelle o ar que resta, em doses racionadas, quando acordarem. Talvez se os oficiais trouxerem mais ventiladores....
— Não importa quanto ar fresco soprem na gente — disse Ginny —, só um pouco passa. E por mais perto que fiquemos da Redoma, nós ainda estamos respirando esse lixo. E os que estão passando mal são exatamente os que se esperaria.
— Os mais velhos e os mais novos — disse Barbie.
— Volta a dormir, Barbie — disse Rusty. — Poupa as suas forças. Aqui você não pode fazer nada.
— E você, pode?
— Talvez. Também temos descongestionante nasal na ambulância. E epinefrina, se for necessário.
Barbie engatinhou de volta ao longo da Redoma com a cabeça virada para os ventiladores — todos agora faziam isso, sem pensar — e ficou horrorizado ao ver como estava cansado quando alcançou Julia. O coração batia com força e ele estava sem fôlego.
Julia estava acordada.
— Como ele está?
— Não sei — admitiu Barbie —, mas não pode estar bem. Estão dando oxigênio da ambulância, mas ele não acordou.
— Oxigênio! Tem mais? Quanto?
Ele explicou e ficou triste ao ver a luz dos olhos dela se apagar um pouco.
Ela lhe pegou a mão. Os dedos estavam suados e frios.
— É como estar preso numa mina desmoronada.
Agora estavam sentados, um de frente para o outro, os ombros encostados na Redoma. A mais leve das brisas suspirava entre eles. O rugido constante dos ventiladores Air Max se tornara um ruído de fundo; erguiam a voz para falar acima dele, mas fora isso nem notavam mais.
Notaríamos separassem, pensou Barbie. Ao menos por alguns minutos. Então não notaríamos mais nada, nunca mais.
Ela deu um sorriso fraco.
— Para de se preocupar comigo, se é o que você está fazendo. Eu estou bem pra uma senhora republicana de meia-idade que não consegue recuperar o fôlego. Ao menos, consegui trepar mais uma vez. Positivo, operante e muito bom também.
Barbie sorriu de volta.
— O prazer foi todo meu, pode acreditar.
— E a ogiva nuclear que vão tentar no domingo? O que você acha?
— Não acho. Só torço.
— Tem esperança?
Ele não queria lhe dizer a verdade, mas a verdade era o que ela merecia.
— Com base em tudo o que aconteceu e com o pouco que nós sabemos sobre as criaturas que comandam a caixa, não muita.
— Me diz que você não desistiu.
— Isso eu posso fazer. Estou bem menos assustado do que deveria. Acho que é porque... é insidioso. Estou até me acostumando com o fedor.
— É mesmo?
Ele riu.
— Não. E você? Assustada?
— É, mas principalmente triste. É assim que o mundo acaba, não com um barulhão, mas arfando. — Ela tossiu de novo, com o punho fechado junto à boca. Barbie podia ouvir outras pessoas fazendo o mesmo. Um seria o menininho que agora era o menininho de Thurston Marshall. Ele vai receber coisa melhor pela manhã, pensou Barbie, e depois se lembrou do que Thurston dissera: ar em doses racionadas. Não era assim que um menino devia respirar.
Não era assim que ninguém devia respirar.
Julia cuspiu no capim e depois o encarou de novo.
— Não acredito que nós fizemos isso conosco. As coisas que comandam a caixa, os cabeças de couro, criaram a situação, mas acho que são só um monte de crianças observando a festa. É o equivalente a um videogame pra eles, talvez. Estão lá fora. Nós estamos dentro, e nós fizemos isso a nós mesmos.
— Você já tem problemas suficientes sem se responsabilizar por isso — disse Barbie. — Se há um responsável, é Rennie. Foi ele que montou o laboratório pra fabricar drogas, foi ele que começou a roubar gás de todas as fontes da cidade. Também foi ele que mandou os homens pra lá e provocou algum tipo de confronto, disso eu tenho certeza.
— Mas quem o elegeu? — perguntou Julia. — Quem deu poder pra ele fazer essas coisas?
— Você, não. O seu jornal fez campanha contra ele. Ou eu estou errado?
— Você está certo — disse ela —, mas só nos últimos oito anos, mais ou menos. No começo, o Democrata, eu, em outras palavras, achou que ele era a melhor coisa do mundo. Quando descobri quem ele era de verdade, já estava com o cargo no bolso. E tinha aquele pobre coitado do Andy Sanders na frente pra servir de proteção.
— Você ainda não pode se culpar...
— Posso e me culpo. Se eu soubesse que aquele filhodaputa brigão e incompetente iria acabar no comando durante uma crise verdadeira, eu teria... teria... Eu teria sufocado ele como um gatinho num saco.
Ele riu e começou a tossir.
— Cada vez você parece menos republica... — começou ele e se interrompeu.
— O quê? — perguntou ela, e depois também escutou. Alguma coisa chocalhava e guinchava no escuro. Chegou mais perto e eles viram uma figura que andava com dificuldade e empurrava um carrinho de bebê.
— Quem está aí? — gritou Dougie Twitchell.
Quando o moroso recém-chegado respondeu, a voz veio levemente abafada. Pela máscara de oxigênio dele, descobriu-se.
— Ora, graças a Deus — disse Sam Relaxado. — Tive um pequeno cochilo à beira da estrada e achei que ia ficar sem ar antes de chegar aqui em cima. Mas cá estou. Bem na hora, também, porque estou quase vazio.
O acampamento do Exército na rodovia 119, em Motton, era um lugar triste naquela manhã de sábado. Só restavam três dúzias de militares e um helicóptero Chinook. Uma dúzia de homens carregava as grandes barracas e alguns ventiladores Air Max restantes que Cox dera ordem de levar para o lado sul da Redoma assim que veio a notícia da explosão. Os ventiladores nunca foram usados. Quando chegaram, não havia ninguém para apreciar o pouco ar que conseguiam forçar pela barreira. O fogo se apagou às seis da tarde, estrangulado pela falta de combustível e oxigênio, mas todos no lado de Chester’s Mill estavam mortos.
A barraca médica estava sendo desmontada e enrolada por uns 12 homens. Os que não se ocupavam dessa tarefa tinham sido encarregados do mais antigo serviço dos exércitos: policiar a área. Era trabalho de mentirinha, mas ninguém daquela patrulha lascada se importava. Nada os faria esquecer o pesadelo a que tinham assistido na tarde anterior, mas catar papéis, latas, garrafas e pontas de cigarro ajudava um pouco. Logo amanheceria e o grande Chinook ligaria os motores. Subiriam a bordo e iriam para outro lugar. Os integrantes desse exército de zés-ninguém mal podiam esperar.
Um deles era o soldado Clint Ames, de Hickory Grove, na Carolina do Sul. Segurava numa das mãos um saco de lixo verde e andava lentamente pelo capim pisoteado, catando aqui e ali cartazes abandonados ou latas de Coca-Cola amassadas, para que, se aquele mandachuva do sargento Groh olhasse para ele, parecesse que estava trabalhando. Estava quase dormindo em pé e, a princípio, achou que as batidinhas que escutou (pareciam nós dos dedos num pirex grosso) faziam parte de um sonho. Quase tinha que ser, porque pareciam vir do outro lado da Redoma.
Ele bocejou e se espreguiçou com uma das mãos na nuca. Quando fez isso, as batidinhas voltaram. Vinham mesmo detrás da parede enegrecida da Redoma.
Então uma voz. Fraca e desincorporada, como a voz de um fantasma. Provocou arrepios.
— Tem alguém aí? Alguém consegue me ouvir? Por favor... Eu estou morrendo.
Jesus Cristo, ele conhecia aquela voz! Parecia...
Ames largou o saco de lixo e correu para a Redoma. Pôs as mãos na superfície enegrecida e ainda morna.
— Garoto das vacas? É você?
Eu estou maluco, pensou. Não pode ser. Ninguém sobreviveria àquele fogaréu.
— AMES! — berrou o sargento Groh. — Que diabos você está fazendo aí?
Ele estava prestes a se virar quando a voz atrás da superfície carbonizada voltou.
— Sou eu. Não... — Houve uma série irregular de tossidas fortes. — Não vai embora. Se estiver aí, soldado Ames, não vai.
Nisso apareceu uma mão. Era tão fantasmagórica quanto a voz, os dedos sujos de fuligem. Esfregava para limpar um lugar no lado de dentro da Redoma. Um instante depois, surgiu um rosto. A princípio, Ames não reconheceu o garoto das vacas. Depois, percebeu que o menino usava uma máscara de oxigênio.
— Estou quase sem ar — chiou o garoto das vacas. — O mostrador está no vermelho. Já está lá... há quase meia hora.
Ames fitou os olhos assombrados do garoto das vacas, que o fitou de volta. Então um único imperativo surgiu na mente de Ames: não podia deixar o garoto das vacas morrer. Não depois de tudo a que ele sobrevivera.., embora para Ames fosse impossível imaginar como sobrevivera.
— Garoto, escuta. Você vai ficar de joelhos e...
— Ames, seu imbecil inútil! — berrava o sargento Groh, vindo a passos largos. — Para de brincar e trabalha! Não estou com paciência nenhuma pra essa sua moleza de maricas!
O soldado Ames o ignorou. Estava inteiramente concentrado no rosto que parecia fitá-lo atrás de uma parede de vidro sujo.
— Se deita e tenta respirar por baixo! Faz isso agora, garoto, agora mesmo!
O rosto saiu de vista, deixando Ames torcendo para que o garoto das vacas estivesse fazendo o que dissera e não tivesse apenas desmaiado.
A mão do sargento Groh caiu sobre o seu ombro.
— Está surdo? Eu disse...
— Traz os ventiladores, sargento! Nós temos que pegar os ventiladores!
— Do que você está falan...
Ames gritou na cara do temido sargento Groh:
— Tem alguém vivo aí dentro!
Só restava um único cilindro de oxigênio no carrinho vermelho quando Sam Relaxado chegou ao campo de refugiados junto à Redoma, e a agulha do mostrador estava pouco acima de zero. Ele não fez objeção quando Rusty tirou a máscara e a pôs no rosto de Ernie Calvert, só se arrastou até a Redoma, ali onde Barbie e Julia estavam sentados. O recém-chegado caiu de quatro e respirou fundo. Horace, o corgi, sentado ao lado de Julia, o olhou com interesse.
Sam rolou e se deitou de costas.
— Não é muito, mas é o melhor do que eu tinha. O último restinho dos cilindros nunca tem o gosto bom do novinho de cima. — Então, inacreditavelmente, ele acendeu um cigarro.
— Apaga isso, tá maluco? — disse Julia.
— Estava doido por um desses — disse Sam, tragando com satisfação. — Não dá pra fumar com oxigênio por perto, sabe. Pode explodir a gente. Mas tem gente que faz isso.
— Deixa ele — disse Rommie. — Não pode ser pior do que o lixo que a gente está respirando. Pelo que sabemos, o alcatrão e a nicotina do pulmão dele servem de proteção.
Rusty veio e se sentou.
— Aquele cilindro secou — disse —, mas Ernie conseguiu respirar mais um pouco com ele. Parece estar descansando melhor agora. Obrigado, Sam.
Sam fez um gesto de desdém.
— O meu ar é o seu ar, doutor. Ou ao menos, era. Você não pode fazer mais com alguma coisa na ambulância? Os caras que trazem os meus cilindros.., que traziam, ao menos, antes que esse saco de merda caísse no ventilador, podiam fazer mais no caminhão. Eles tinham um, comossediz, um tipo de bomba.
— Condensador de oxigênio — disse Rusty —, e você tem razão, nós temos um a bordo. Infelizmente, está quebrado. — Ele mostrou os dentes num arremedo de sorriso. — Está quebrado há uns três meses.
— Quatro — disse Twitch, chegando. Olhava o cigarro de Sam. — Será que você tem outro desses?
— Nem pensa nisso — disse Ginny.
— Com medo de poluir esse paraíso tropical com fumaça passiva, querida? — perguntou Twitch, mas quando Sam Relaxado lhe estendeu o maço amassado de American Eagles, Twitch fez que não.
Rusty disse:
— Eu mesmo fiz a requisição de um concentrador de O2 novo. À diretoria do hospital. Disseram que o orçamento estava estourado, mas que talvez a cidade me ajudasse. Aí mandei a requisição aos vereadores.
— Rennie — disse Piper Libby.
— Rennie — concordou Rusty — Recebi de volta uma carta impessoal dizendo que o meu pedido seria avaliado na assembléia do orçamento em novembro. Então lá a gente vê o que acontece. — Ele acenou as mãos para o céu e riu.
Agora os outros se reuniam em volta, olhando Sam com curiosidade. E o cigarro com horror.
— Como chegou aqui, Sam? — perguntou Barbie.
Sam adorou contar a história. Começou a explicar que, por causa do diagnóstico de enfisema, passara a receber entregas regulares de oxigênio graças ao PLANO, e como às vezes os cilindros cheios acabavam ficando com ele. Contou ter ouvido a explosão e o que viu quando saiu.
— Sabia o que ia acontecer assim que eu vi o tamanho da coisa — disse. Agora a plateia incluía os militares do outro lado. Cox, vestindo bermudas e uma camiseta cáqui, estava entre eles. — Vi incêndios grandes antes, quando trabalhei na floresta. Algumas vezes tivemos que largar tudo e só fugir deles, e se um daqueles antigos caminhões International Harvester que tínhamos na época se atolasse nós nunca conseguiríamos. O incêndio da copa é o pior, porque cria o próprio vento. Vi na hora que era isso que ia acontecer. Alguma coisa muito grande explodiu. O que foi?
— Gás — disse Rose.
Sam passou a mão no queixo com a barba branca por fazer.
— Ah, mas não era só gás. Tinha algum produto químico também, porque algumas labaredas eram verdes. Se tivessem vindo na minha direção, eu já era. Vocês também. Mas foi pro sul. O formato da terra tem algo a ver com isso, posso apostar. E o leito do rio também. Seja como for, eu sabia o que ia acontecer, e tirei os cilindros do bar de oxigênio...
— Do quê? — perguntou Barbie.
Sam deu uma última tragada no cigarro e depois o apagou na terra.
— Ah, é só o nome que eu dei ao barraco onde eu guardava os tanques. Seja como for, eu tinha cinco cheios...
— Cinco! — Thurston Marshall quase gemeu.
— É — disse Sam, com alegria —, mas nunca conseguiria arrastar cinco. Estou ficando velho, né?
— Não dava pra usar um carro, uma picape? — perguntou Lissa Jamieson.
— Senhora, perdi a carteira faz sete anos. Talvez oito. Multa demais por dirigir bêbado. Se me pegassem de novo atrás do volante de qualquer coisa maior que um carrinho de brinquedo, me poriam na penitenciária e jogariam a chave fora.
Barbie pensou em ressaltar a falha fundamental da história, mas por que desperdiçar o fôlego quando agora era tão difícil arranjar fôlego?
— Seja como for, achei que conseguia levar quatro cilindros naquele carrinho vermelho meu, e não tinha andado nem 400 metros quando comecei a respirar o primeiro. Tive, né?
Jackie Wettington perguntou:
— Você sabia que a gente estava aqui?
— Não, senhora. É um lugar alto, só isso, e eu sabia que o meu ar enlatado não duraria pra sempre. Não sabia de vocês e também não sabia desses ventiladores. Foi só o caso de não ter pra onde ir.
— Por que demorou tanto? — perguntou Pete Freeman. — Não são nem 5 quilômetros do riacho de Deus até aqui.
— Bom, isso é engraçado — disse Sam. — Eu vinha pela estrada.., sabe, a estrada da Serra Negra... e passei numa boa pela ponte... ainda respirando o primeiro cilindro, embora estivesse um calor poderoso e... uau! Vocês viram aquele urso morto? O que parece que esmagou o cérebro no poste telefônico?
— Vimos — disse Rust — Deixa eu adivinhar. Um pouco além do urso, você ficou tonto e desmaiou.
— Como você sabe?
— A gente veio por lá — disse Rusty — e ali tem algum tipo de força. Parece atingir mais as crianças e os velhos.
— Ainda não estou velho — disse Sam, com voz ofendida. — Meu cabelo só ficou branco mais cedo, como o da minha mãe.
— Quanto tempo ficou desmaiado? — perguntou Barbie.
— Bom, eu não uso relógio, mas estava escuro quando finalmente voltei a andar, então foi um bom tempo. Acordei uma vez porque mal conseguia respirar, troquei de cilindro e dormi de novo. Maluquice, né? E os sonhos que eu tive! Mais pareciam coisa de circo! A última vez que acordei, foi de verdade. Estava escuro e passei pra outro cilindro. A troca não foi muito difícil, porque não estava escuro de verdade. Devia estar, devia estar mais escuro do que o cu da galinha, com toda a fuligem que o fogo jogou na Redoma, mas tem um lugar claro lá onde eu deitei. Não dá pra ver à luz do dia, mas à noite é como um bilhão de vagalumes.
— O cinturão brilhante, é como a gente chama — disse Joe. Ele, Norrie e Benny estavam todos juntos. Benny tossia na mão.
— Um bom nome disse Sam com aprovação. Seja como for, eu sabia que tinha alguém aqui em cima, porque nisso escutei os ventiladores e vi as luzes. — Com a cabeça, ele indicou o acampamento do outro lado da Redoma.
— Não sabia se ia conseguir chegar aqui antes que o ar acabasse, aquele morro é foda e eu suguei tudo daqueles dois sem nem pensar, mas consegui.
Ele olhava Cox com curiosidade.
— E, aí, coronel Klink, consigo ver a sua respiração. É melhor vestir uni casaco ou vir pra cá, onde está quentinho. — E riu, mostrando os poucos dentes que lhe restavam.
— É Cox e não Klink, e eu estou bem.
— Com o que você sonhou, Sam? — perguntou Julia.
— É engraçado você perguntar — respondeu ele —, porque do bolo todo só me lembro de um, e era sobre você. Você estava deitada no coreto da praça e chorava.
Julia apertou a mão de Barbie, com força, mas os olhos não saíram do rosto de Sam.
Como você sabia que era eu?
— Porque estava coberta de jornais — explicou Sam. — Números do Democrata. Você abraçava eles contra o corpo como se estivesse nua por baixo, me desculpe, mas você perguntou. Não é o sonho mais engraçado do mundo?
O walkie-talkie de Cox bipou três vezes: breque-breque-breque. Ele o tirou do cinto.
— O que é? Fala depressa, estou ocupado aqui.
Todos escutaram a voz que respondeu:
— Temos um sobrevivente aqui no lado sul, coronel. Repito: Temos um sobrevivente.
Quando o sol nasceu na manhã de 28 de outubro, “sobrevivente” era tudo o que o último membro da família Dinsmore podia afirmar. Ollie estava deitado com o corpo apertado contra a base da Redoma, respirando apenas o suficiente do ar dos grandes ventiladores do outro lado para continuar vivo.
Fora uma corrida para limpar o suficiente do lado dele da Redoma antes que o resto do oxigênio do cilindro acabasse. Era o que ele deixara no chão quando se enfiou embaixo das batatas. Ele se lembrava de ter achado que explodiria. Não explodiu, e isso foi muito bom para Oliver H. Dinsmore. Se tivesse explodido, agora ele estaria morto debaixo de um túmulo de batatas roxas e brancas.
Ele se ajoelhara no seu lado da Redoma e escavara placas de crosta preta, sabendo que parte daquela coisa era tudo o que restava de seres humanos. Era impossível esquecer isso ao ser repetidamente furado por fragmentos de osso.
Sem o estímulo constante do soldado Ames, ele tinha certeza de que teria desistido. Mas Ames não desistiu, só ficava insistindo: cava, porra, arranca essa merda, garoto das vacas, você tem que fazer isso pros ventiladores funcionarem.
Ollie achou que não desistiu porque Ames não sabia o seu nome. Ollie conseguira conviver com os garotos da escola que o chamavam de chuta-merda e puxa-teta, mas imagine só se ia morrer escutando um metido a besta da Carolina do Sul chamá-lo de garoto das vacas.
Os ventiladores começaram a funcionar com um rugido e ele sentiu a primeira leve aragem de ar na pele superaquecida. Arrancou a máscara do rosto e apertou a boca e o nariz diretamente contra a superfície suja da Redoma. Então, arfando e tossindo fuligem, continuou a raspar a crosta carbonizada. Conseguia ver Ames do outro lado, de quatro com a cabeça inclinada como um homem que tenta espiar dentro de um buraco de rato.
— É isso aí! — gritou. — Arranjamos mais dois ventiladores que estamos trazendo. Não vai desistir agora, garoto das vacas! Não desiste!
— Ollie — disse, ofegante.
— O quê?
— O nome é... Ollie. Para de me chamar... de garoto das vacas.
— Vou chamar você de Ollie de agora em diante se continuar limpando um espaço pros ventiladores funcionarem.
O pulmão de Ollie deu um jeito de sugar o suficiente do que passava pela Redoma para manter o garoto vivo e consciente. Ele observou o mundo clarear pela sua fenda na fuligem. A luz também ajudou, embora doesse o coração ver o brilho rosado da aurora manchado pela película de imundície que ainda restava do seu lado da Redoma. A luz era boa, porque ali dentro estava tudo escuro e torrado e duro e silencioso.
Tentaram tirar Ames da guarda às cinco da manhã, mas Ollie gritou para que ele ficasse, e Ames se recusou a sair dali. Quem estava no comando cedeu. Aos poucos, parando para apertar a boca na Redoma e sugar mais ar, Ollie contou como sobrevivera.
— Sabia que tinha que esperar o fogo apagar — disse —, então fui muito econômico com o oxigênio. Uma vez o vovô Tom me disse que um cilindro duraria a noite toda se ele dormisse, então eu só fiquei lá parado. Por um bom tempo nem precisei usar, porque tinha ar debaixo das batatas e eu respirei.
Ele pôs os lábios na superfície, sentindo o gosto da fuligem, sabendo que podia ser o resíduo de alguém que estava vivo 24 horas antes, sem se importar. Sugou avidamente e tossiu a crosta enegrecida até que conseguiu continuar.
— No começo estava frio embaixo das batatas, mas aí ficou mais quente e depois muito quente. Achei que ia queimar vivo. O celeiro estava queimando bem em cima da minha cabeça. Tudo estava ardendo. Mas foi tão quente e tão rápido que não durou muito, e talvez tenha sido isso que me salvou. Não sei. Fiquei onde estava até o primeiro cilindro esvaziar. Aí precisei sair. Estava com medo de que o outro tivesse explodido, mas não. Mas aposto que foi por pouco.
Ames concordou. Ollie sugou mais ar pela Redoma. Era como tentar respirar por um pano grosso e sujo.
— E a escada. Se fosse madeira em vez de concreto, eu não ia conseguir sair. No começo nem tentei. Só me arrastei de volta pra debaixo das batatas porque estava quente demais. As que estavam do lado de fora da pilha assaram com casca e tudo — dava pra sentir o cheiro. Aí ficou difícil puxar o ar, e vi que o segundo cilindro também estava acabando.
Ele parou, tomado por um ataque de tosse. Quando ficou sob controle, continuou.
— O que eu mais queria era ouvir uma voz humana outra vez antes de morrer. Fico contente de ser você, soldado Ames.
— O meu nome é Clint, Ollie. E você não vai morrer.
Mas os olhos que espiavam pela fenda suja na base da Redoma, como olhos que espiam pela abertura de vidro de um caixão, pareciam conhecer outra verdade mais verdadeira.
Da segunda vez que o despertador tocou, Carter soube o que era, embora tivesse acordado de um sono sem sonhos. Porque parte dele não ia dormir de verdade até que aquilo acabasse ou ele morresse. Pelo jeito, instinto de sobrevivência era isso: um vigia acordado no fundo do cérebro.
A segunda vez foi por volta das sete e meia da manhã de domingo. Ele sabia porque o seu relógio de pulso era do tipo que acende quando se aperta um botão. As luzes de emergência tinham apagado durante a noite e o abrigo anti-radiação estava completamente às escuras.
Ele se sentou e sentiu alguma coisa cutucar a sua nuca. O corpo da lanterna que usara na noite passada, talvez. Tateou para encontrá-la e a ligou. Estava no chão. Big Jim, no sofá. Fora Big Jim que o cutucara com a lanterna.
É claro que ele fica com o sofá, pensou Carter, ressentido. Ele é o chefe, não é?
— Vamos, filho — disse Big Jim. — O mais depressa possível.
Por que tem que ser eu? pensou Carter... mas não disse. Tinha que ser ele porque o chefe era velho, o chefe era gordo, o chefe tinha o coração doente. E porque era o chefe, é claro. James Rennie, o Imperador de Chester’s Mill.
Imperador de carros usados, é só o que você é, pensou Carter. E está fedendo a suor e azeite de sardinha.
— Anda. — Voz irritada. E assustada. — O que você está esperando?
Carter se levantou, o facho da lanterna balançando pelas prateleiras cheias do abrigo antirradiação (tantas latas de sardinha!), e seguiu para o depósito. Uma das luzes de emergência ainda estava acesa lá, mas tremulava, quase apagada. O zumbido agora era mais alto, um AAAAAAAAAAAA constante. O som do destino próximo e cruel.
Nós nunca vamos sair daqui, pensou Carter.
Ele jogou o facho da lanterna no alçapão diante do gerador, que continuava emitindo o zumbido irritante e sem modulação que, por alguma razão, o fazia lembrar do chefe quando discursava. Talvez porque ambos os ruídos se resumissem à mesma ordem estúpida: Me dá comida, me dá comida, me dá comida. Me dá gás, me dá sardinha, me dá gasolina premium pro meu Hummer. Me dá comida. Vou morrer do mesmo jeito, e depois você também vai, mas quem se importa? Quem dá a mínima? Me dá comida, me dá comida, me dá comida.
Agora dentro do depósito só havia seis cilindros de gás. Quando ele trocasse o que estava quase vazio, haveria cinco. Cinco botijõezinhos, um pouco maiores que os de cozinha, entre eles e a morte por sufocação quando o purificador deixasse de funcionar.
Carter puxou um dos cilindros do depósito, mas só o pôs ao lado do gerador. Não pretendia trocar o cilindro atual antes que se esvaziasse totalmente, apesar daquele irritante AAAAAAA. Não. Não. Como costumavam dizer sobre o café Maxwell House, era bom até a última gota.
Mas sem dúvida aquele zumbido dava nos nervos. Carter considerou que podia achar o alarme e silenciá-lo, mas aí como saberiam que o gerador estava ficando sem gás?
Como dois ratos presos num balde virado, é isso que nós somos.
Ele repassou os números na cabeça. Restavam seis tanques, cada um durava cerca de 11 horas. Mas podiam desligar o ar-condicionado, e assim cada tanque talvez durasse 12 ou até 13 horas. Por segurança, digamos 12. Doze vezes seis era... vejamos...
O AAAAAAAA tornava a matemática mais difícil que o normal, mas ele finalmente chegou lá: 72 horas entre eles e a morte horrível por sufocamento ali embaixo no escuro. E por que estava escuro? Porque ninguém se dera ao trabalho de trocar a pilha das lâmpadas de emergência. Por isso. Provavelmente não eram trocadas há vinte anos ou mais. O chefe andara poupando. E porque só sete botijõezinhos de merda no depósito quando havia cerca de um zilhão de litros lá na WCIK, esperando pra explodir? Porque o chefe gostava de ter tudo bem onde ele queria.
Ali sentado, escutando o AAAAAAA, Carter recordou uma das frases do pai: Poupe um centavo e perca um dólar. Isso era Rennie da cabeça aos pés. Rennie, o Imperador de Carros Usados. Rennie, o político figurão. Rennie, o supervilão das drogas. Quanto ganhara com o tráfico? Um milhão de dólares? Dois? E que importância tinha isso?
Provavelmente nunca teria gastado nada, pensou Carter, e é óbvio que não vai gastar agora. Não tem nada com que gastar dinheiro aqui embaixo. Tem todas as sardinhas que quiser comer e são de graça.
— Carter? — A voz de Big Jim veio flutuando pela escuridão. — Você vai trocar esse troço ou vai ficar só escutando o barulho?
Carter abriu a boca para berrar que iam esperar, que cada minuto contava, mas bem então o AAAAAAA finalmente parou. E também o quip-quip-quip do purificador de ar.
— Carter?
— Estou trocando, chefe. — Com a lanterna presa no sovaco, Carter puxou o cilindro vazio, pôs o cheio numa plataforma de metal de tamanho suficiente para conter um cilindro dez vezes maior e ligou o conector.
Cada minuto contava.., contava? Por que contava, se ia acabar na mesma conclusão sufocante?
Mas o vigia da sobrevivência lá dentro achou que a pergunta era idiota. O vigia da sobrevivência achava que 72 horas eram 72 horas, e cada minuto dessas 72 horas contava. Por que quem sabe o que pode acontecer? Os militares podiam finalmente descobrir como abrir a Redoma. Podia até sumir sozinha, indo tão de repente e tão sem explicação como viera.
— Carter? O que você está fazendo aí atrás? A melequenta da minha avó seria mais rápida e ela já morreu!
— Quase pronto.
Ele verificou se a conexão estava firme e pôs o polegar no botão de ligar (achando que, se a bateria que ligava o pequeno gerador fosse tão velha quanto a das lâmpadas de emergência, eles estariam numa encrenca). Então parou.
Eram 72 horas se fossem os dois. Mas se fosse só ele, talvez conseguisse esticar para 90 ou mesmo 100, se desligasse o purificador até que o ar ficasse muito ruim. Ele dera essa última ideia a Big Jim, que a rejeitara na mesma hora.
— Eu tenho o coração fraco — lembrara a Carter. — Quanto pior o ar, mais provável que ele queira pifar.
— Carter? — Em voz alta e exigente. Uma voz que lhe chegou aos ouvidos do mesmo jeito que o cheiro das sardinhas do chefe lhe chegara ao nariz. — O que está acontecendo aí?
— Tudo pronto, chefe! — gritou, e apertou o botão. O motor de arranque zumbiu e o gerador ligou imediatamente.
Tenho que pensar nisso, disse Carter a si mesmo, mas o vigia da sobrevivência pensava diferente, O vigia da sobrevivência achava que cada minuto perdido era um minuto desperdiçado.
Ele foi bom comigo, disse Carter a si mesmo. Ele me deu responsabilidades.
Serviço sujo que ele não queria fazer, foi o que te deu. E um buraco no chão pra morrer. Isso também.
Carter se decidiu. Tirou a Beretta do coldre enquanto voltava para a sala principal. Pensou em enfiá-la nas costas para que o chefe não visse, mas decidiu que não. Afinal de contas, o homem o chamara de filho, e talvez até falasse sério. Merecia coisa melhor do que um tiro inesperado na nuca e ir embora despreparado.
Não estava escuro na extremidade nordeste da cidade; ali a Redoma estava muito suja, mas não opaca. O sol brilhava por ela e deixava tudo de um rosa febril.
Norrie correu para Barbie e Julia. Ela tossia e estava sem fôlego, mas correu ainda assim.
— O meu avô está tendo um enfarte! — gemeu e caiu de joelhos, tossindo e ofegando.
Julia abraçou a menina e virou o rosto dela para os ventiladores que rugiam. Barbie engatinhou até onde os exilados cercavam Ernie Calvert, Rusty Everett, Ginny Tomlinson e Dougie Twitchell.
— Dêem espaço, pessoal! — gritou Barbie. — O sujeito precisa de ar!
— Esse é o problema — disse Tony Guay. — Deram a ele o que restava... o que seria pros garotos... mas...
— Epi — disse Rusty, e Twitch lhe entregou uma seringa. Rusty deu a injeção. — Ginny, começa as compressões. Quando se cansar, troca com Twitch. Depois, eu.
— Também quero — disse Joanie. As lágrimas corriam pelo seu rosto, mas ela parecia bastante serena. — Tive aulas.
— Eu tive também — disse Claire. — Posso ajudar.
— E eu — completou Linda baixinho. — Fiz a reciclagem no último verão.
É pequena a cidade, e pro time nós torcemos, pensou Barbie. Ginny, o rosto ainda inchado dos ferimentos, começou as compressões no peito. Trocou com Twitch bem na hora em que Julia e Norrie se juntaram a Barbie.
— Vão conseguir salvá-lo? — perguntou Norrie.
— Não sei — respondeu Barbie. Mas ele sabia; esse era o problema.
Twitch assumiu o lugar de Ginny. Barbie observou as gotas de suor da testa de Twitch escurecerem a camisa de Ernie. Dali a uns cinco minutos ele parou, tossindo, sem fôlego. Quando Rusty começou a avançar, Twitch balançou a cabeça.
— Ele faleceu. — Twitch virou-se para Joanie e disse: — Sinto muito, sra. Calvert.
O rosto de Joanie tremeu e depois se contraiu. Ela soltou um grito de dor que virou um ataque de tosse. Norrie a abraçou, também voltando a tossir.
— Barbie — disse uma voz. — Uma palavrinha?
Era Cox, agora vestindo farda camuflada marrom e uma jaqueta acolchoada contra o frio do outro lado. Barbie não gostou da expressão sombria do rosto de Cox. Julia foi com ele. Inclinaram-se perto da Redoma, tentando respirar devagar mas regularmente.
— Teve um acidente na base da Força Aérea em Kirtland, Novo México.
— Cox mantinha a voz baixa. — Faziam os últimos testes no míssil nuclear que nós queríamos tentar e... merda.
— Ele explodiu? — perguntou Julia, horrorizada.
— Não, senhora, derreteu. Duas pessoas morreram e mais meia dúzia pode morrer de queimaduras ou envenenamento por radiação. A questão é: nós perdemos o míssil. Perdemos a merda do míssil.
— Foi defeito? — perguntou Barbie. Quase torcendo para que fosse, porque significava que poderia ter dado certo.
— Não, coronel, não foi. Foi por isso que usei a palavra acidente. Acontece quando todo mundo está com pressa, e estamos todos com uma pressa do caralho.
— Sinto muito por esses homens — disse Julia. — Os parentes já sabem?
— Dada a sua situação, é muita gentileza sua pensar nisso. Logo serão informados. O acidente aconteceu à uma da madrugada. O trabalho já começou no Garoto Dois. Deve estar pronto em três dias. Quatro, no máximo.
Barbie fez que sim.
— Obrigado, senhor, mas não sei se temos todo esse tempo.
Um longo queixume agudo de pesar — o queixume de uma criança — veio de trás deles. Quando Barbie e Julia olharam, o queixume virou uma série de tossidas fortes e arfadas tentando respirar. Viram Linda se ajoelhar ao lado da filha mais velha e acolher a menina nos braços.
— Ela não pode ter morrido! — gritava Janelle. — Audrey não pode ter morrido!
Mas tinha. A golden retriever dos Everett morrera à noite, em silêncio e sem confusão, enquanto as Jotinhas dormiam ao lado dela.
Quando Carter voltou à sala principal, o segundo vereador de Mil! comia flocos de milho de uma caixa com um papagaio de desenho animado na frente. Carter reconheceu esse pássaro mítico dos muitos cafés da manhã da infância:
Tucano Sam, santo padroeiro dos Froot Loops.
Deve estar velho como o diabo, pensou Carter, e teve um momento passageiro de pena do chefe. Depois pensou na diferença entre setenta e poucas horas de ar e oitenta ou cem e endureceu o coração.
Big Jim remexeu e tirou mais flocos da caixa, depois viu a Beretta na mão de Carter.
— Ora, ora — disse.
— Sinto muito, chefe.
Big Jim abriu a mão e deixou os Froot Loops cascatearem de volta na caixa, mas a mão estava grudenta e alguns anéis de cores vivas se agarraram aos dedos e à palma. O suor brilhava na testa e pingava na linha recuada do cabelo.
— Filho, não faça isso.
— É preciso, sr. Rennie. Não é nada pessoal.
E não era mesmo, decidiu Carter. Nem um tiquinho. Estavam presos ali, e só. E como aconteceu em consequência de decisões de Big Jim, ele é que teria de pagar o preço.
Big Jim pousou a caixa de Froot Loops no chão. Fez isso com cuidado, como se tivesse medo de que a caixa se estilhaçasse se tratada com rudeza.
— Então o que é?
— Só...ar.
— Ar. Entendo.
— Eu poderia ter vindo com a arma nas costas e lhe pôr uma bala na cabeça, mas não quis fazer isso. Quis lhe dar tempo de se preparar. Porque o senhor foi bom pra mim.
— Então não me faça sofrer, filho. Se não é pessoal, não me faça sofrer. Se o senhor ficar parado, não vai sofrer. Será rápido. Como matar um veado ferido na floresta.
— Podemos conversar?
— Não, senhor. Eu já me decidi.
Big Jim fez que sim.
— Então tudo bem. Posso fazer uma oração primeiro? Você me permitiria?
— Sim, senhor, pode orar se quiser. Mas seja rápido. Isso também é difícil pra mim, sabe.
— Acredito. Você é um bom menino, filho.
Carter, que não chorava desde os 14 anos, sentiu uma pontada no canto do olho.
— Me chamar de filho não vai ajudar.
— Isso me ajuda. E ver que você está comovido.., isso também me ajuda.
Big Jim moveu o corpanzil do sofá e ficou de joelhos. No ato de fazer isso, derrubou os Froot Loops e soltou uma risadinha triste.
— Não foi lá essas coisas como última refeição, isso eu posso garantir.
— Provavelmente não. Lamento.
Big Jim, agora de costas para Carter, suspirou.
— Mas vou comer rosbife na mesa do Senhor daqui a poucos minutos, então está tudo bem. — Ele ergueu o dedo gordo e o apertou no alto da nuca. — Bem aqui. O tronco cerebral. Tudo bem?
Carter engoliu o que parecia uma grande bola seca de algodão.
— Sim, senhor.
— Quer se ajoelhar comigo, filho?
Carter, que vivera sem orações mais tempo do que vivera sem lágrimas, quase disse sim. Então se lembrou que o chefe sabia ser dissimulado. Provavelmente não estava sendo dissimulado agora, provavelmente estava além desse ponto, mas Carter vira o homem trabalhar e não ia se arriscar. Fez que não.
— Faz a sua oração. E se quiser chegar ao amém, é bom mesmo que seja curta.
De joelhos, de costas para Carter, Big Jim pôs as mãos sobre a almofada do sofá, ainda afundada pelo peso da sua bunda bem considerável.
— Meu Deus, aqui é o Seu servo, James Rennie. Acho que estou indo para o Senhor, querendo ou não. A taça foi erguida até os meus lábios, e não consigo...
Um grande soluço seco lhe escapou.
— Apaga a luz, Carter. Não quero chorar na sua frente. Um homem não morre assim.
Carter estendeu a arma até quase tocar a nuca de Big Jim.
— Tudo bem, mas foi o seu último pedido. — Então, apagou a luz.
Soube que fora um erro assim que o fez, mas aí já era tarde. Ouviu o chefe se mexer, e ele era rapidíssimo para um homem grande de coração fraco. Carter atirou e, com o flash da arma, viu um buraco de bala aparecer na almofada afundada do sofá. Big Jim não estava mais ajoelhado na sua frente, mas não podia ter ido longe, por mais veloz que fosse. Quando Carter cutucou o botão da lanterna, Big Jim avançou com a faca de açougueiro que pegara na gaveta junto ao fogão do abrigo antirradiação, e 15 centímetros de aço entraram no estômago de Carter Thibodeau.
Ele berrou de agonia e atirou de novo. Big Jim sentiu a bala zumbir junto à orelha, mas não recuou. Também tinha um vigia da sobrevivência, que o servira muitíssimo bem no decorrer dos anos, e agora ele dizia que, se recuasse, morreria. Levantou-se, puxando a faca para cima ao se erguer, eviscerando o garoto estúpido que achara que levaria a melhor sobre Big Jim Rennie.
Carter berrou de novo ao ser aberto. Gotas de sangue respingaram no rosto de Big Jim, impulsionadas pelo que ele, devotamente, torceu para ser o último suspiro do garoto. Empurrou Carter para trás. No facho da lanterna caída, Carter cambaleou, esmagando os Froot Loops caídos e segurando a barriga. O sangue jorrou sobre seus dedos. Ele tateou as prateleiras e caiu de joelhos numa chuva de sardinhas Vigo, marisco frito Snow e sopas Campbell. Por um instante ficou ali, como se tivesse pensado melhor e decidido orar, afinal. O cabelo caía sobre o rosto. AÍ perdeu as forças e caiu.
Big Jim pensou na faca, mas era trabalhoso demais para um homem que sofria do coração (prometeu a si mesmo novamente que cuidaria disso assim que essa crise acabasse). Em vez disso, pegou a arma de Carter e foi até o garoto tolo.
— Carter? Ainda está entre nós?
Carter gemeu, tentou se virar, desistiu.
— Vou pôr uma bala no alto da sua nuca, como você sugeriu. Mas quero lhe dar um último conselho antes. Está me ouvindo?
Carter gemeu de novo. Big Jim interpretou isso como assentimento.
— Eis o conselho: nunca dê a um bom político tempo pra orar.
E puxou o gatilho.
— Acho que tá morrendo! — gritou o soldado Ames. — Acho que o garoto tá morrendo!
O sargento Groh se ajoelhou ao lado de Ames e espiou pela fenda suja na base da Redoma. Ollie Dinsmore estava deitado de lado com os lábios quase apertados contra uma superfície que agora conseguiam ver, graças à imundície ainda agarrada. Na melhor voz de sargento de ordem unida, Groh gritou:
— Ei! Ollie Dinsmore! De frente! No centro!
Devagar, o menino abriu os olhos e fitou os dois homens acocorados a menos de meio metro, mas num mundo mais frio e mais limpo.
— O quê? — sussurrou.
— Nada, filho — disse Groh. — Volta a dormir.
Groh se virou para Ames.
— Relaxa, soldado. Ele está bem.
— Não está, não. Basta olhar pra ele!
Groh pegou Ames pelo braço e o ajudou — não sem gentileza — a se levantar.
— Não — concordou em voz baixa. — Não está nem um pouquinho bem, mas está vivo e dormindo e agora é o melhor que nós podemos desejar. Vai precisar de menos oxigênio assim. Vai comer alguma coisa. Tomou o seu café da manhã?
Ames fez que não. A idéia de café da manhã nem lhe passara pela cabeça.
— Quero estar aqui caso ele acorde. — Ele parou, depois foi fundo. — Quero estar aqui caso ele morra.
— Ele não vai morrer por enquanto — disse Groh. Não fazia idéia se isso era verdade ou não. — Vai pegar alguma coisa no caminhão, mesmo que seja só uma fatia de mortadela dentro de um pão. Você está péssimo, soldado.
Ames virou a cabeça na direção do menino que dormia no chão carbonizado com a boca e o nariz encostados na Redoma. O rosto estava riscado de sujeira, e eles mal conseguiam ver o peito subir e descer.
— Quanto tempo acha que ele tem, sargento?
Groh sacudiu a cabeça.
— Pouco, provavelmente. Alguém no grupo do outro lado já morreu hoje de manhã, e vários não estão bem. E lá está melhor. Mais limpo. Você tem que se preparar.
Ames sentiu que ia chorar.
— O garoto perdeu a família toda.
— Vai comer alguma coisa. Eu fico de olho até você voltar.
— Mas depois disso, posso ficar?
— O garoto quer você, soldado, o garoto fica com você. Pode ficar até o fim.
Groh observou Ames correr até a mesa perto do helicóptero, onde a comida estava servida. Ali fora, eram dez horas de uma linda manhã de fim de outono. O sol brilhava e derretia o resto de uma geada forte. Mas a meros centímetros, havia um mundo-bolha de crepúsculo perpétuo, um mundo onde o ar era irrespirável e o tempo deixara de ter significado. Groh se lembrou de um lago no parque da cidade onde nascera. Wilton, Connecticut, era isso mesmo. Havia carpas douradas no lago, bem grandes. Os garotos costumavam alimentá-las. Até o dia em que um dos guardas do parque causou um acidente com algum fertilizante, foi isso. Adeus, peixes. Todos os dez ou 12, flutuando mortos na superfície.
Olhando o menino sujo adormecido do outro lado da Redoma, era impossível não pensar naquelas carpas... só que meninos não são peixes.
Ames voltou, comendo alguma coisa que obviamente não queria. Não era um bom soldado, na opinião de Groh, mas era um bom garoto de bom coração.
O soldado Ames se sentou. O sargento Groh se sentou com ele. Por volta do meio-dia, receberam notícias do lado norte da Redoma: outro sobrevivente de lá morrera. Um menininho chamado Aidan Appleton. Outro garoto. Groh achava que tinha conhecido a mãe dele na véspera. Torcia para estar errado, mas achava que não.
— Quem fez isso? — Ames perguntou. — Quem criou essa potra, sargento? E por quê?
Groh sacudiu a cabeça.
— Não faço idéia.
— Isso não faz sentido! — gritou Ames. Além deles, Ollie se mexeu, ficou sem ar e moveu o rosto adormecido novamente para a brisa escassa que passava pela barreira.
— Não acorda ele — disse Groh, pensando: Se ele se for durante o sono, será melhor para todos nós.
Às duas da tarde, todos os exilados tossiam, exceto — inacreditável, mas verdadeiro — Sam Verdreaux, que parecia se sentir muito bem no ar ruim, e Pequeno Walter Bushey, que só fazia dormir e mamar de vez em quando uma ração de leite ou suco. Barbie sentou-se encostado na Redoma, abraçado a Julia. Não muito longe, Thurston Marshall estava sentado ao lado do cadáver do pequeno Aidan Appleton, que morrera de forma súbita e aterradora. Thurse, que agora tossia sem parar, estava com Alice no colo. Ela chorara até dormir. A uns 5 metros, Rusty se aconchegava à mulher e às meninas, que também tinham chorado até dormir. Rusty levara o corpo de Audrey para a ambulância, para que as meninas não tivessem de olhá-lo. Prendeu a respiração pelo caminho: mesmo a 15 metros da Redoma, o ar ficava sufocante, mortal. Assim que recuperou a respiração, achou que devia fazer o mesmo com o menininho. Audrey seria boa companhia para ele; sempre gostara de crianças.
Joe McClatchey se deixou cair ao lado de Barbie. Agora parecia mesmo um espantalho, o rosto pálido cheio de espinhas e com círculos de carne roxa feito hematomas abaixo dos olhos.
— Mamãe está dormindo — disse Joe.
— Julia também — disse Barbie —, então fale baixo.
Julia abriu o olho.
— Dormindo nada — disse ela, e na mesma hora fechou o olho de novo.
Tossiu, parou, tossiu mais um pouco.
— Benny está muito mal — disse Joe. — Está com febre, como o menininho antes de morrer. — Ele hesitou. — Mamãe também está bem quente. Talvez seja só por causa do calor aqui dentro, mas... Acho que não é isso. E se ela morrer? O que todos nós vamos fazer?
— Nós, não — disse Barbie. — Eles vão pensar em alguma coisa.
Joe balançou a cabeça.
— Não vão. E você sabe disso. Eles estão lá fora. Nada lá fora pode nos ajudar. — Ele olhou a terra devastada e enegrecida onde na véspera havia uma cidade e riu (som áspero como um grasnido, e pior porque realmente havia nele alguma diversão). — Chester’s Mill é uma cidade desde 1803, aprendemos na escola. Mais de duzentos anos. E uma semana pra varrer ela da face da Terra. Uma semana de merda, foi o tempo que levou. O que você acha disso, coronel Barbara?
Barbie não conseguiu pensar no que dizer.
Joe cobriu a boca, tossiu. Atrás deles, os ventiladores rugiam e rugiam.
— Eu sou um garoto inteligente. Sabia? Quer dizer, não estou me gabando, mas... Eu sou inteligente.
Barbie pensou na transmissão de vídeo que o garoto armara perto do local do míssil.
— Nem discuto, Joe.
— Nos filmes do Spielberg, é o garoto inteligente que descobre a solução no último instante, não é assim?
Barbie sentiu Julia se mexer de novo. Agora os dois olhos estavam abertos, e ela fitava Joe muito séria.
As lágrimas escorriam pelo rosto do menino.
— Em que belo garoto do Spielberg eu me transformei. Se estivéssemos no Jurassic Park, os dinossauros iam nos comer, com certeza.
— Ah, se eles se cansassem — disse Julia, sonhadora.
— Hein? — Joe piscou para ela.
— Os cabeças de couro. As crianças cabeças de couro. Crianças costumam se cansar das brincadeiras e fazer outra coisa. Ou — ela tossiu com mais força — ou os pais os chamam pra ir pra casa jantar.
— Talvez não comam — disse Joe, soturno. — Talvez nem tenham pais.
— Ou talvez o tempo deles seja diferente — disse Barbie. — No mundo deles, talvez tenham acabado de se sentar em torno da versão deles da caixa. Pra eles, a brincadeira pode estar só começando. Nem sabemos direito se são crianças.
Piper Libby veio ficar com eles. Estava corada e o cabelo grudava no rosto.
— São crianças — disse.
— Como você sabe? — perguntou Barbie.
— Eu sei. — Ela sorriu. — São o Deus em que eu deixei de acreditar faz uns três anos. Deus acabou virando um monte de garotinhos maus brincando de videogame interestelar. Não é engraçado? — O sorriso se alargou e depois ela caiu em prantos.
Julia olhava a caixa com a luz roxa piscante. O rosto estava pensativo e meio sonhador.
É noite de sábado em Chester’s Mill. É a noite em que as senhoras da Ordem da Estrela do Oriente costumavam se reunir (e em geral, depois da reunião, iam para a casa de Henrietta Clavard tomar vinho e contar as melhores piadas sujas). É a noite em que Peter Randolph e os amigos costumavam jogar pôquer (e também contar as melhores piadas sujas). A noite em que Stewart e Fern Bowie costumava ir a Lewiston arranjar duas putas num bordel da rua Lower Lisbon. A noite em que o reverendo Lester Coggins costumava fazer reuniões de oração com adolescentes no salão do presbitério da Sagrado Redentor e Piper Libby organiza os bailes de adolescentes no porão da Igreja Congregacional. A noite em que o Dipper’s costumava ferver até uma da manhã (e por volta de meia-noite e meia a multidão bêbada começava a cantar seu hino Dirty Water, uma música que todas as bandas de Boston conheciam bem). A noite em que Howie e Brenda Perkins costumavam caminhar de mãos dadas na praça da cidade, dando oi a outros que conheciam. A noite em que se dizia que Alden Dinsmore, a mulher Shelley e os dois filhos jogavam bola à luz da Lua cheia. Em Chester’s Mill (como na maioria das cidades pequenas em que todos torcem pelo time), as noites de sábado costumavam ser as melhores, feitas para dançar, trepar e sonhar.
Não esta. Esta é negra e parece interminável. O vento morreu. O ar envenenado é quente e parado. Lá onde costumava ser a rodovia 119 até que o calor da fornalha a ferveu, Ollie Dinsmore está deitado com o rosto apertado na sua fenda na escória, ainda se agarrando à vida com teimosia, e, a apenas meio me tro o soldado Clint Ames continua sua vigília paciente. Algum garoto esperto quis acender um refletor no menino; Ames (apoiado pelo sargento Groh, que afinal de contas não é tão ogro assim) conseguiu impedir que acontecesse, argumentando que acender refletores sobre gente adormecida é o que se faz com terroristas, não com adolescentes que provavelmente vão morrer antes de o Sol nascer. Mas Ames tem uma lanterna, e de vez em quando a acende sobre o menino para ter certeza de que ainda respira. Ainda, mas cada vez que Ames usa a lanterna, espera que mostre que essa respiração curta parou de vez. Na verdade parte dele começou a torcer por isso. Parte dele começou a aceitar a verdade: não importa até que ponto Ollie Dinsmore foi engenhoso ou se a sua luta foi heróica; ele não tem futuro. Vê-lo lutar é terrível. Pouco antes da meia-noite, o próprio soldado Ames adormece, sentado, com a lanterna na mão frouxa.
Dormes?, dizem que Jesus indagou a Pedro. Não pudeste vigiar uma hora?
A isso o Chef Bushey acrescentaria: Evangelho de Mateus, Sanders.
Pouco depois de uma da manhã, Rose Twitchell sacode Barbie para acordá-lo.
— Thurston Marshall morreu — diz ela. — Rusty e o meu irmão estão levando o corpo pra ambulância pra menina não ficar nervosa demais quando acordar. — Depois, acrescenta: — Se ela acordar. Alice também está mal.
— Agora todos estamos mal — diz Julia. — Menos Sam e aquele bebezinho dopado.
Rusty e Twitch voltam correndo do grupo de veículos, desmoronam diante de um dos ventiladores e começam a respirar atabalhoadamente. Twitch começa a tossir e Rusty o aproxima mais do ar, com tanta força que a testa de Twitch bate na Redoma. Todos escutam o barulho.
Rose ainda não terminou o inventário.
— Benny Drake também está mal. — Ela baixa a voz num sussurro. — Ginny diz que talvez não dure até o sol nascer. Ah, se houvesse algo que a gente pudesse fazer...
Barbie não responde. Nem Julia, que olha mais uma vez na direção de uma caixa que, embora com menos de 300cm2 de área e uns 2cm de espessura, não pode ser mexida. Os olhos estão distantes, especulativos.
A lua avermelhada finalmente sai da imundície acumulada na parede leste da Redoma e lança a sua luz sangrenta. É fim de outubro e, em Chester’s Mill, outubro é o mês mais rude, misturando lembrança e desejo. Não há lilases nessa terra morta. Nem lilases, nem árvores, nem capim. A lua olha a ruína e pouco mais.
Big Jim acordou no escuro, agarrando o peito. O coração negava fogo outra vez. Ele lhe deu um soco. Depois o alarme do gerador disparou, quando o cilindro atual de gás chegou ao ponto de perigo. AAAAAAAAAAA. Comida, comida.
Big Jim pulou e gritou. O pobre coração torturado sacudia, falhava, pulava, depois corria para alcançar a si mesmo. Ele se sentia como um carro velho com o carburador ruim, o tipo de calhambeque que a gente podia aceitar numa troca, mas nunca venderia, o tipo que só servia para o desmanche. Ele ofegou e socou. Esse era tão ruim quanto aquele que o mandara para o hospital. Talvez até pior.
AAAAAAAAAAAA: o som de algum inseto imenso e pavoroso — uma cigarra, talvez — ali no escuro com ele. Quem sabe o que poderia ter entrado ali enquanto ele dormia?
Big Jim tateou atrás da lanterna. Com a outra mão, socava e esfregava alternadamente, dizendo ao coração que se acalmasse, que não fosse um bebê tão melequento; ele não passara por tudo aquilo só para morrer no escuro.
Achou a lanterna, lutou para se pôr de pé e tropeçou no corpo do falecido ajudante de ordens. Gritou de novo e caiu de joelhos. A lanterna não quebrou, mas rolou para longe dele, lançando um facho móvel na prateleira mais baixa da esquerda, cheia de caixas de espaguete e latas de massa de tomate.
Big Jim engatinhou atrás dela. Quando o fez, os olhos abertos de Carter Thibodeau se moveram.
— Carter? — O suor corria pelo rosto de Big Jim; as faces pareciam coberta com alguma gordura leve e fedorenta. Conseguia sentir a camisa grudando no corpo. O coração deu outro daqueles sacolejos saltados e então, com espanto, se acalmou de novo no ritmo normal.
Bom. Não. Não exatamente. Mas ao menos num ritmo mais parecido com o normal.
— Carter? Filho? Está vivo?
Ridículo, é claro; Big Jim o eviscerara como um peixe na margem do rio e depois lhe dera um tiro na nuca. Estava tão morto quanto Adolf Hitler. Mas ele juraria... bom, quase juraria... que os olhos do garoto...
Ele combateu a ideia de que Carter ia estender a mão e agarrá-lo pela garganta. Disse a si mesmo que era normal se sentir um pouco (aterrorizado) nervoso, porque, afinal de contas, o rapaz quase o matara. E ainda esperava que Carter se sentasse e o puxasse para a frente e enterrasse dentes faminto na sua garganta.
Big Jim apertou os dedos debaixo da mandíbula de Carter. A carne grudenta de sangue estava fria e nenhum pulso se mexia ali. Claro que não. O garoto estava morto. Estava morto há 12 horas ou mais.
— Você está jantando com o seu Salvador, filho — sussurrou Big Jim. — Rosbife e purê de batata. Torta de maçã de sobremesa.
Isso o fez se sentir melhor. Engatinhou atrás da lanterna e, quando achou que ouviu algo se mexer atrás dele — o sussurro de uma mão, talvez, escorregando pelo chão de concreto, buscando às cegas —, não olhou para trás. Tinha que alimentar o gerador. Tinha que silenciar o AAAAAA.
Enquanto puxava um dos quatro cilindros restantes do cubículo de depósito, o coração entrou em arritmia de novo. Ele se sentou ao lado do alçapão aberto, ofegando e tentando tossir para fazer o coração voltar ao ritmo normal. E orando, sem perceber que a sua oração era, basicamente, uma série de exigência e racionalizações: faz isso parar, nada disso foi culpa minha, me tira daqui, fiz o melhor possível deixa tudo como era antes, fui traído por incompetentes, cura o meu coração.
— Em nome de Jesus, amém — disse. Mas o som das palavras arrepiou em vez de confortar. Eram como ossos chocalhando numa tumba.
Quando o coração se acalmou um pouco, o grito áspero de cigarra do alarme tinha parado. O cilindro atual se esvaziara. A não ser peio brilho da lanterna, agora estava tão escuro na segunda sala do abrigo anti-radiação quanto na primeira; a lâmpada de emergência que restava tinha dado a última piscadela havia sete horas. Na luta para tirar o cilindro vazio e pôr o novo na plataforma ao lado do gerador, Big Jim teve a leve lembrança de carimbar INDEFERIDO numa requisição de manutenção do abrigo que fora parar na sua escrivaninha um ano ou dois atrás. Aquela requisição provavelmente incluía o custo de baterias novas para as lâmpadas de emergência. Mas ele não podia se culpar. O dinheiro do orçamento da cidade era limitado e todos viviam estendendo a mão: Me dá comida, me dá comida.
Al Timmons devia ter feito isso por iniciativa própria, disse a si mesmo. Pelo amor de Deus, é demais pedir um pouco de iniciativa? Em parte, não é pra isso que a gente paga o pessoal da manutenção? Ele podia ter ido até aquele sapo do Burpee e pedido as baterias como doação, pelo amor do céu. Era o que eu faria.
Ele ligou o cilindro ao gerador. Então o coração titubeou outra vez. A mão sacudiu e ele deixou a lanterna cair no depósito, onde bateu num dos cilindros que restavam. A lente se estilhaçou e ele ficou mais uma vez na escuridão total.
— Não! — gritou. — Não, inferno, NÃO!
Mas de Deus não houve resposta. O silêncio e o escuro se apertaram contra ele enquanto o coração sobrecarregado engasgava e lutava. Coisa traidora!
— Não importa. Vai ter outra lanterna na outra sala. Fósforos também. Só preciso achar. Se o Carter tivesse empilhado logo, eu iria direto até eles. — Era verdade. Ele superestimara o garoto. Achara que o garoto era um dos que chegam, mas no final era um dos que vão. Big Jim riu, depois se obrigou a parar. O som numa escuridão tão completa era um tanto fantasmagórico.
Não importa. Liga o gerador.
Isso. Certo. O gerador era a tarefa um. Podia verificar novamente a conexão depois que estivesse funcionando e o purificador de ar quipasse de novo. Então arranjaria outra lanterna, talvez até um lampião. Bastante luz até a próxima troca.
— Esse é o preço — disse. — Quem quer as coisas feitas direito nesse mundo tem que fazer com as próprias mãos. É só perguntar ao Coggins. É só perguntar à coisa-que-rima-com-aranha Perkins. Eles sabem. — Riu mais um pouco.
Não podia impedir, porque era engraçado. — Eles descobriram. Ninguém mexe com cachorro grande quando só tem pau pequeno. Não, senhor. Não meeeesmo.
Tateou atrás do botão de ligar, encontrou, apertou. Nada aconteceu. De repente, o ar na sala pareceu mais pesado do que nunca.
Apertei o botão errado, só isso.
Sabendo que não, mas acreditando porque é preciso acreditar em certas coisas. Soprou nos dedos como um jogador querendo esquentar um par de dados frios. Depois, tateou até que os dedos acharam o botão.
— Deus — disse —, aqui é o Seu servo James Rennie. Por favor, faça essa maldita coisa ligar. Peço em nome do Seu Filho Jesus Cristo. — E apertou o botão.
Nada.
Ficou sentado no escuro com os pés enfiados no compartimento do gás, tentando empurrar o pânico que queria descer e comê-lo vivo. Tinha que pensar. Era a única maneira de sobreviver. Mas era dificil. Quando a gente está no escuro, quando o coração ameaça se rebelar a qualquer segundo, pensar é difícil.
E o pior? Tudo o que fizera e tudo pelo que trabalhara nos últimos trinta anos de vida parecia irreal. Como o jeito que as pessoas eram do outro lado da Redoma. Andavam, falavam, dirigiam, até voavam em aviões e helicópteros. E nada disso importava, não debaixo da Redoma.
Se controle. Se Deus não te ajudar, se ajude.
Certo. A primeira coisa era a luz. Até uma caixa de fósforos serviria. Tinha que haver alguma coisa numa das prateleiras da outra sala. Ele só iria tateando — bem devagar, bem metódico — até encontrar. Então acharia baterias para o melequento do motor de arranque. Havia baterias, disso tinha certeza porque ele precisava do gerador. Sem o gerador, morreria.
Suponhamos que consiga ligá-lo de novo. O que vai acontecer quando o gás acabar?
Ah, mas algo interviria. Ele não iria morrer ali embaixo. Rosbife com Jesus? Abriria mão dessa refeição, na verdade. Se não pudesse sentar à cabeceira da mesa, preferia pular a coisa toda.
Isso o fez rir de novo. Ele avançou bem devagar e com todo o cuidado de volta até a porta que dava para a sala principal. Estendeu as mãos à frente, como um cego. Depois de sete passos, elas tocaram a parede. Ele se moveu para a direita, passando a ponta dos dedos pela madeira e... ah! Vazio. A porta. Bom.
Ele passou por ela, avançando agora com mais confiança apesar do negrume. Lembrava-se perfeitamente da planta da sala: estantes dos dois lados, sofá bem à fren...
Ele tropeçou de novo no maldito garoto melequento e caiu de cara. Bateu a testa no chão e gritou — mais de surpresa e indignação do que de dor, porque havia carpete para amortecer o golpe. Mas, meu Deus, havia uma mão morta entre as suas pernas. Parecia lhe agarrar o saco.
Big Jim ficou de joelhos, engatinhou à frente e bateu a cabeça de novo, dessa vez no sofá. Soltou outro grito, depois subiu no sofá, puxando as pernas atrás de si depressa, como um homem puxaria as pernas da água se percebesse que estava infestada de tubarões.
Ficou ali tremendo, dizendo a si mesmo que se acalmasse, tinha que se acalmar senão teria mesmo um enfarte.
Quando a gente sente essas arritmias, é preciso se concentrar e respirar fundo e devagar, dissera o médico hippie. Na hora, Big Jim achou que era bobagem da Nova Era, mas agora não havia mais nada — ele não estava com o seu verapamil — e tinha que tentar.
E pareceu que funcionava. Depois de vinte inspirações profundas e expirações longas e lentas, conseguiu sentir o coração se aquietar. O gosto de cobre saía da boca. Infelizmente, um peso parecia se instalar no seu peito. A dor se esgueirava pelo braço esquerdo. Ele sabia que eram sintomas de enfarte, mas achou que uma indigestão de tanta sardinha que comera era igualmente provável. Mais provável. As respirações longas e lentas estavam cuidando direitinho do coração (mas ele ainda teria de cuidar disso quando saísse daquela encrenca, talvez até ceder e fazer a cirurgia de ponte de safena). O calor era o problema. O calor e o ar pesado. Tinha que achar aquela lanterna e ligar o gerador de novo. Só mais um minuto, talvez dois...
Havia alguém respirando ali.
É claro. Eu estou respirando aqui.
Ainda assim ele tinha bastante certeza de que ouvira outra pessoa. Mais do que só uma. Parecia que havia várias pessoas ali com ele. E achou que sabia quem eram.
Isso é ridículo.
É, mas um dos respiradores estava atrás do sofá. Outro estava escondido no canto. E um estava em pé a menos de um metro dele.
Não. Parem!
Brenda Perkins atrás do sofá. Lester Coggins no canto, a mandíbula solta e pendurada.
E bem à sua frente...
— Não — disse Big Jim. — Isso é bobagem. Isso é pura bosta.
Ele fechou os olhos e tentou se concentrar em fazer inspirações longas e lentas.
— Cheira mesmo bem aqui, pai — recitou Junior diante dele. — Cheira igual à despensa. E às minhas namoradas.
Big Jim guinchou.
— Me ajuda aí, cara — disse Carter, de onde estava caído no chão. — Ele me cortou legal. Me deu um tiro, também.
— Parem com isso — sussurrou Big Jim. — Não estou escutando nada disso, por isso parem. Estou contando inspirações. Estou acalmando o meu coração.
— Ainda tenho os documentos — disse Brenda Perkins. — E montes de cópias. Logo vão estar pregadas em todos os postes telefônicos da cidade, do mesmo jeito que Julia pregou o último número do jornal. “Estai certos de que o vosso pecado vos há de atingir”. Números, capítulo 32.
— Vocês não estão aqui!
Mas então algo — pareceu um dedo — beijou um caminho pela sua face.
Big Jim guinchou de novo. O abrigo anti-radiação estava cheio de gente morta que ainda assim respirava o ar cada vez pior, e se aproximavam. Mesmo no escuro, conseguia ver o seu rosto pálido. Conseguia ver os olhos do filho morto.
Big Jim pulou do sofá, açoitando o ar negro com os punhos.
— Vão embora! Todos vocês, se afastem de mim!
Ele correu para a escada e tropeçou no primeiro degrau. Dessa vez não havia carpete para amortecer o golpe. O sangue começou a pingar nos olhos. Uma mão morta lhe acariciou a nuca.
— Você me matou — disse Lester Coggins, mas com a mandíbula quebrada saiu Ooêê êê aôôô.
Big Jim correu escada acima e se jogou na porta do alto com todo o seu peso considerável. Ela se escancarou, empurrando a madeira carbonizada e os tijolos caídos na frente. Abriu só o bastante para ele se espremer por ali.
— Não! — latiu. — Não, não me toquem! Nenhum de vocês me toque!
Estava quase tão escuro nas ruínas da sala de reuniões da Câmara de Vereadores quanto no abrigo, mas com uma grande diferença: o ar não valia nada.
Big Jim percebeu isso quando inspirou pela terceira vez. O coração, torturado além do suportável por essa ofensa final, subiu mais uma vez para a garganta. Dessa vez, ali ficou.
De repente, Big Jim sentiu que estava sendo esmagado da garganta até o umbigo por um peso terrível: um comprido saco de aniagem cheio de pedras. Lutou para voltar à porta como um homem que se move pela lama. Tentou se espremer pela abertura, mas dessa vez ficou preso. Um som terrível começou a sair da boca escancarada e da garganta fechada, e o som era AAAAAAA: me dá comida, me dá comida, me dá comida.
Ele se debateu uma vez, novamente, depois outra vez: a mão estendida, buscando o resgate final.
Foi acariciada do outro lado. Papaaaaai, sussurrou uma voz.
Alguém sacudiu Barbie para acordá-lo logo antes do amanhecer de domingo. Ele abriu os olhos relutante, tossindo, virando-se instintivamente para a Redoma e os ventiladores do outro lado. Quando a tosse finalmente cedeu, ele olhou para ver quem o acordara. Era Julia. O cabelo pendia frouxo e as faces estavam coradas de febre, mas os olhos estavam claros. Ela disse:
— Benny Drake morreu uma hora atrás.
— Ah, Julia. Jesus. Sinto muito.
A voz estava rouca e áspera, não era a sua voz de verdade.
— Tenho que chegar até a caixa que está fazendo a Redoma — disse ela. — Como é que eu chego até a caixa?
Barbie balançou a cabeça.
— É impossível. Mesmo que conseguisse fazer alguma coisa com ela, está no morro, a meio quilômetro daqui. Não conseguimos nem chegar às vans sem prender a respiração, e elas estão a menos de 5 metros.
— Tem um jeito — disse alguém.
Olharam em volta e viram Sam Relaxado Verdreaux. Ele fumava o seu último cigarro e os olhava com olhos sóbrios. Ele estava sóbrio; inteiramente sóbrio pela primeira vez em oito anos.
E repetiu:
— Tem um jeito. Eu posso mostrar.
USA ISSO PRA VOLTAR PRA CASA, VAI PARECER UM VESTIDO
Eram sete e meia da manhã. Tinham todos se reunido, mesmo a mãe sofrida e de olhos vermelhos do falecido Benny Drake. Alva abraçava os ombros de Alice Appleton. A ousadia e o atrevimento da menina tinham sumido e, quando ela respirava, roncos chocalhavam no seu peito magro.
Quando Sam terminou o que tinha a dizer, houve um momento de silêncio.., a não ser, é claro, pelo rugido onipresente dos ventiladores. Então, Rusty disse:
— É loucura. Vocês vão morrer.
— Se ficarmos aqui, nós vamos viver? — perguntou Barbie.
— Por que tentariam fazer uma coisa dessas? — perguntou Linda. — Mesmo que a idéia do Sam dê certo e vocês consigam...
— Ah, eu acho que vai dar certo — disse Rommie.
— Claro que vai — concordou Sam. Um cara chamado Peter Bergeron me contou, pouco depois do grande incêndio de Bar Harbor em 47. Pete tinha muitos defeitos, mas nunca foi mentiroso.
— Mesmo que dê certo — disse Linda —, por quê?
— Porque há uma coisa que nós não tentamos — respondeu Julia. Agora que se decidira e que Barbie dissera que iria com ela, estava serena. — A gente não tentou implorar.
— Você está maluca, Jules — disse Tony Guay. — Acha que eles vão ouvir? Ou escutar, se ouvirem?
Julia virou o seu rosto sério para Rusty.
— Daquela vez, quando o seu amigo George Lathrop queimava formigas vivas com a lente de aumento, você as ouviu implorar?
— Formigas não imploram, Julia.
— Você disse: “me ocorreu que as formigas também têm as suas vidinhas”. Por que isso lhe ocorreu?
— Porque... — Ele se calou e deu de ombros.
— Talvez você as tenha escutado — disse Lissa Jamieson.
— Com o devido respeito, isso é bobagem — disse Pete Freeman. — Formigas são formigas. Não podem implorar.
— Mas a gente pode — interrompeu Julia. — E também não temos as nossas vidinhas?
A isso ninguém retrucou.
— O que mais podemos tentar?
Atrás deles, o coronel Cox falou. Tinham praticamente se esquecido dele. Agora o mundo do lado de fora e os seus cidadãos pareciam irrelevantes.
— Eu tentaria, se estivesse no lugar de vocês. Não me citem, mas... sim. Eu tentaria. Barbie?
— Eu já concordei — disse Barbie. — Ela tem razão. Não há mais nada.
— Deixa eu ver os sacos — disse Sam.
Linda lhe entregou três sacos de lixo verdes. Em dois deles, pusera roupas para si e para Rusty e alguns livros para as meninas (agora as camisas, calças, meias e roupas de baixo estavam jogadas de qualquer jeito atrás do grupinho de sobreviventes). Rommie doara o terceiro, que usara para carregar duas espingardas de caça. Sam examinou os três, encontrou um furo no saco que contivera as armas e o deixou de lado. Os outros dois estavam intactos.
— Tudo bem — disse —, escutem com atenção. Deve ser a van da dona Everett que vai até a caixa, mas precisamos dela aqui primeiro. — Ele apontou a Odyssey. — Tem certeza de que as janelas estão fechadas, dona? É bom ter certeza, porque vidas vão depender disso.
— Estão fechadas — disse Linda. — Nós estávamos usando o ar-condicionado.
Sam olhou Rusty.
— Você vai dirigir até lá, Doc, mas a primeira coisa que vai fazer é desligar o ar-condicionado. Sabe por que, não sabe?
— Pra proteger o ambiente dentro da cabine.
— Um pouco do ar ruim vai entrar quando abrirem a porta, claro, mas não vai ser muito se forem rápidos. Ainda vai ter ar bom lá dentro. Ar da cidade.
Quem estiver lá dentro vai conseguir respirar direito no caminho até a caixa. Aquela picape velha não serve, e não só porque a janela está aberta...
— Nós tivemos que abrir — disse Norrie, olhando a van roubada da telefônica. — O ar-condicionado estava enguiçado. O v-vovô disse. — Uma lágrima escorreu devagar do olho esquerdo e riscou a sujeira no rosto. Agora havia sujeira por toda parte, e fuligem, quase fina demais para ver, flutuando no ar turvo.
— Tudo bem, querida — disse Sam. — Os pneus também não valem um penico. Uma olhada e a gente sabe de que loja de carros usados veio essa gracinha.
— Estou vendo que isso significa que, se precisarmos de outro veículo, é a minha van — disse Rommie. — Eu vou buscar.
Mas Sam fez que não com a cabeça.
— É melhor que seja o carro da dona Shumway, porque os pneus são menores e mais fáceis de manejar. Além disso, estão novinhos em folha. O ar lá dentro vai estar mais limpo.
Joe McClatchey deu um sorriso súbito.
— O ar dos pneus! Pôr o ar dos pneus nos sacos de lixo! Cilindros de mergulho feitos em casa! Sr. Verdreaux, isso é genial!
Sam Relaxado sorriu, mostrando todos os seis dentes que lhe restavam.
— Não posso aceitar o crédito, filho. O crédito é de Pete Bergeron. Ele me falou de uns homens que ficaram presos atrás daquele incêndio de Bar Harbor depois que a copa das árvores pegou fogo. Estavam bem, mas o ar não servia pra respirar. Então o que fizeram foi tirar a tampinha de um pneu do caminhão de troncos e se revezar respirando direto dali até que o vento limpou o ar. Pete disse que eles contaram que o gosto era horrível, igual ao de peixe morto e velho, mas que isso os manteve vivos.
— Um pneu vai ser suficiente? — perguntou Julia.
— Talvez, mas não dá pra confiar no estepe se for uma daquelas rosquinhas de emergência feitas pra durar 30 quilômetros estrada abaixo e só.
— Não é, não — disse Julia. — Detesto aquelas coisas. Pedi ao Johnny Carver que me arranjasse um novo, e ele arranjou. — Ela olhou para a cidade. — Acho que agora Johnny está morto. Carne também.
— É melhor tirar um pneu do carro também, só por segurança — disse Barbie. — Você está com o macaco, não está?
Julia concordou com a cabeça.
Rommie Burpee sorriu sem muito humor.
—Trago você correndo de volta pra cá, Doc. A sua van contrra o híbrrido da Julia.
— Eu trago o Prius — disse Piper. — Fica aí mesmo, Rommie. Você está mal pra caralho.
— Bela expressão pra uma pastorra — resmungou Rommie.
— Você devia estar grato por eu ainda me sentir animada o bastante pra falar palavrão. — Na verdade, a reverenda Libby não parecia nada animada, mas Julia lhe entregou as chaves mesmo assim. Nenhum deles estava com cara de quem tivesse vontade de sair, beber e dançar, e Piper estava em melhor forma do que muitos; Claire McClatchey estava pálida como leite.
— Certo — disse Sam. — Temos mais um probleminha, mas antes...
— O quê? — perguntou Linda. — Que outro problema?
— Não se preocupa com isso agora. Primeiro vamos trazer o material rodante até aqui. Quando vocês querem tentar?
Rusty olhou a pastora da Igreja Congregacional de Mill. Piper concordou.
— Nenhuma hora é melhor que agora — respondeu Rusty.
Os cidadãos restantes observaram, mas não sozinhos. Cox e quase cem soldados a mais tinham se juntado do outro lado da Redoma, assistindo com a atenção silenciosa dos espectadores de um jogo de tênis.
Rusty e Piper respiraram fundo na Redoma, enchendo o pulmão com o máximo possível de oxigênio. Depois saíram correndo de mãos dadas na direção dos veículos. Quando chegaram lá, se separaram. Piper tropeçou e caiu de joelhos, largando as chaves do Prius, e todos que estavam olhando gemeram.
Então ela as pegou do capim e se levantou. Rusty já estava na Odyssey com o motor ligado quando ela abriu a porta do carrinho verde e se jogou lá dentro.
— Tomara que tenham se lembrado de desligar o ar-condicionado — disse Sam.
Os veículos vieram numa parelha quase perfeita, o Prius fazendo sombra na van muito maior como um cão terrier pastoreando uma ovelha. Foram depressa até a Redoma, sacudindo no terreno acidentado. Os exilados se afastaram diante deles, Alva com Alice Appleton no colo e Linda com uma Jotinha tossindo em cada braço.
O Prius parou a menos de meio metro da barreira suja, mas Rusty deu meia-volta na Odyssey e parou de ré.
— O seu marido tem um bom par de colhões, e pulmões melhores ainda — disse Sam a Linda, sem rodeios.
— É porque parou de fumar — disse Linda, e não ouviu ou fingiu não ouvir o risinho estrangulado de Twitch.
Bons pulmões ou não, Rusty não demorou. Bateu a porta atrás dele e correu até a Redoma.
— Mamão com açúcar — disse... e começou a tossir.
— O ar dentro da van é respirável, como Sam disse?
— Melhor do que o que nós temos aqui. — Ele riu distraído. — Mas Sam acertou outra coisa: sempre que a porta se abre, um pouco mais de ar bom sai e um pouco mais de ar ruim entra. Provavelmente vocês conseguem chegar à caixa sem o ar dos pneus, mas não sei se conseguem voltar sem ele.
— Eles não vão dirigir, nenhum deles — disse Sam. — Eu dirijo.
Barbie sentiu os lábios se virarem no primeiro sorriso genuíno a lhe enfeitar o rosto há dias.
— Achei que você tinha perdido a carteira.
— Não estou vendo nenhum policial aqui — disse Sam. Ele se virou para Cox. — E o senhor, capitão? Está vendo algum meganha local ou a polícia do condado?
— Nenhum — respondeu Cox.
Julia puxou Barbie de lado.
— Tem certeza de que quer tentar?
— Tenho.
— Você sabe que a probabilidade varia entre pouca e nenhuma, não é?
— Sei.
— Tem talento pra implorar, coronel Barbara?
Ele se recordou do ginásio em Fallujah: Emerson chutando o saco de um dos prisioneiros com tanta força que voaram à frente, Hackermeyer puxando o outro pelo hijab e encostando a arma na cabeça dele. O sangue atingira a parede como sempre atinge a parede, de volta à época em que os homens lutavam com clavas.
— Não sei — disse. — Só sei que é a minha vez
Rommie, Pete Freeman e Tony Guay usaram o macaco para erguer o Prius e tiraram uma das rodas. Era um carro pequeno e, em circunstâncias normais, talvez conseguissem levantar a traseira usando só as mãos. Não agora. Embora o carro estivesse parado perto dos ventiladores, tiveram de correr várias vezes para respirar junto à Redoma até terminar o serviço. No final, Rose ocupou o lugar de Tony, que tossia demais para continuar.
Mas, finalmente, estavam com duas rodas com pneus novos encostadas na Redoma.
— Até agora, tudo bem — disse Sam. — Agora o outro probleminha. Espero que alguém tenha uma idéia, porque eu não tenho mesmo.
Todos os olharam.
— O meu amigo Peter disse que aqueles caras arrancaram a válvula e respiraram direto do pneu, mas aqui isso não vai dar certo. É preciso encher os sacos de lixo, mas isso exige um buraco maior. Podemos furar os pneus, mas sem algo pra enfiar no buraco, tipo um canudo, vamos perder o ar em vez de guardá-lo.. Então... como vai ser? — Ele olhou em volta esperançoso. — Será que alguém trouxe uma barraca? Uma daquelas com polos ocos de alumínio?
— As meninas têm uma casa de boneca — disse Linda —, mas está em casa, na garagem. — Então ela se lembrou de que a garagem se fora, junto com a casa a que pertencia, e riu feito louca.
— Que tal o corpo de uma caneta? — perguntou Joe. — Eu tenho uma Bic...
— Muito pequena — disse Barbie. — Rusty? E a ambulância?
— Um tubo traqueal? — perguntou Rusty em dúvida, depois respondeu à própria pergunta. — Não, ainda pequeno demais.
Barbie se virou.
— Coronel Cox? Alguma idéia?
Cox fez que não com relutância.
— Provavelmente nós temos aqui mil coisas que serviriam, mas isso não ajuda muito.
— Isso não pode nos impedir! — exclamou Julia. Barbie ouviu frustração e um toque de pânico na voz dela. — Esquece os sacos! Levamos os pneus e respiramos diretamente deles!
Sam já fazia que não com a cabeça.
— Não basta, dona. Sinto muito, mas não dá.
Linda se curvou perto da Redoma, respirou fundo várias vezes, prendeu a última. Depois, foi até a traseira da Odyssey, esfregou um pouco da fuligem do vidro de trás e espiou.
— A sacola ainda está lá — disse. — Graças a Deus.
— Que sacola? — perguntou Rusty, segurando-a pelos ombros.
— A da Best Buy com o seu presente de aniversário dentro. Oito de novembro, ou você esqueceu?
— Esqueci. De propósito. Quem gosta de fazer 40 anos? O que é?
— Eu sabia que, se guardasse dentro de casa antes de embrulhar, você ia achar... — Ela olhou para os outros, seu rosto tão sujo e solene quanto o de um menino de rua. — Ele é muito intrometido. Por isso deixei na van.
— O que você comprou pra ele, Linnie? — perguntou Jackie Wettington.
— Tomara que seja um presente pra todos nós — disse Linda.
Depois de prontos, Barbie, Julia e Sam Relaxado abraçaram e beijaram todo mundo, até as crianças. Havia pouca esperança no rosto das quase duas dúzias de exilados que ficariam para trás. Barbie tentou dizer a si mesmo que era só porque estavam exaustos e agora com falta de ar crônica, mas sabia que não.
Eram beijos de despedida.
— Boa sorte, coronel Barbara — disse Cox.
Barbie lhe fez um rápido sinal de cabeça como agradecimento e se virou para Rusty. Era Rusty que realmente importava, porque ele é que estava debaixo da Redoma.
— Não perca a esperança e não deixe que percam a esperança. Se não der certo, cuida deles enquanto puder, o melhor que puder.
— Pode deixar. Tente o máximo que puder.
Barbie inclinou a cabeça na direção de Julia.
— Acho que a tentativa é dela. E, porra, talvez a gente consiga voltar, mesmo que não dê certo.
— Com certeza — disse Rusty. Soava sincero, mas aquilo em que acreditava estava nos seus olhos.
Barbie lhe deu um tapinha no ombro e depois se reuniu a Sam e Julia na Redoma, mais uma vez respirando fundo o pouquinho de ar limpo que passava. Disse a Sam:
— Tem certeza de que quer tentar?
— Tenho. Eu preciso compensar o que fiz.
— O que foi que você fez, Sam? — perguntou Julia.
— Prefiro não contar. — Ele deu um sorrisinho. — Principalmente à dona do jornal da cidade.
— Está pronta? — perguntou Barbie a Julia.
— Estou. — Ela segurou a mão dele, deu-lhe um apertão rápido. — O máximo possível.
Rommie e Jackie Wettington se posicionaram na porta traseira da van. Quando Barbie gritou “Pronto!”, Jackie abriu a porta lateral e Rommie jogou lá dentro as duas rodas do Prius. Barbie e Julia se jogaram em seguida, e as portas foram fechadas atrás deles uma fração de segundo depois. Sam Verdreaux, velho e embebido de álcool, mas ainda ágil feito um grilo, já estava atrás do volante da Odyssey, ligando o motor.
O ar dentro da van fedia como o que agora era o mundo exterior — um aroma de madeira carbonizada em cima com um fedor de tinta e terebintina por baixo —, mas ainda melhor do que tinham respirado na Redoma, mesmo com dezenas de ventiladores soprando.
Não vai ficar assim por muito tempo, pensou Barbie. Não com nós três respirando.
Julia agarrou a sacola amarela e preta típica da Best Buy e a virou. O que caiu foi um cilindro plástico com as palavras PERFECT ECHO. E abaixo: 50 CDs GRAVÁVEIS. Ela começou a puxar a cobertura selada de celofane sem sucesso imediato. Barbie enfiou a mão no bolso para pegar o canivete e o coração se apertou. O canivete não estava lá. Claro que não. Agora era apenas uma pelota derretida debaixo do que restava da delegacia.
— Sam! Por favor, me diga que você tem um canivete!
Sem dizer palavra, Sam jogou um para trás.
— Era do meu pai. Estou com ele a vida toda e quero de volta.
As laterais do canivete eram marchetadas de madeira, quase lisas de tanto uso, mas quando ele o abriu, a única lâmina estava afiada. Cortaria o celofane e faria belos furos nos pneus.
— Depressa! — berrou Sam, e acelerou o motor da Odyssey. — Não avançamos enquanto vocês não me disserem que está tudo ok, e duvido que o motor funcione pra sempre com esse ar!
Barbie abriu o celofane. Julia o tirou. Quando ela deu meia-volta para a esquerda no cilindro plástico, ele se soltou da base. Os CDs virgens previstos para o aniversário de Rusty Everett descansavam num eixo de plástico preto. Ela jogou os CDs no piso da van e depois fechou o punho em volta do eixo. A boca se espremeu com o esforço.
— Deixa que eu faço is... — disse ele, mas aí ela o quebrou.
— Meninas também são fortes. Ainda mais quando estão morrendo de medo.
— É oco? Se não for, voltamos à estaca zero.
Ela ergueu o eixo até o rosto. Barbie olhou por uma das pontas e viu o olho azul dela a fitá-lo da outra.
— Vamos, Sam — disse. — Estamos prontos.
— Tem certeza de que vai dar certo? — gritou Sam, pondo a alavanca da transmissão automática em drive.
— Pode apostar! — respondeu Barbie, porque Como é que eu vou saber não alegraria ninguém. Nem a ele.
Os Sobreviventes da Redoma observaram em silêncio a van percorrer o caminho de terra que voltava à “caixa de luz”, como Norrie Calvert passara a dizer. A Odyssey esmaeceu na neblina de poluição, virou fantasma e depois sumiu.
Rusty e Linda estavam juntos, em pé, cada um com uma criança no colo.
— O que acha, Rusty? — perguntou Linda.
— Acho que precisamos torcer pelo melhor — foi a resposta.
— E nos preparar pro pior?
— Isso também — concordou ele.
Passavam pela casa da fazenda quando Sam gritou para trás.
— Vamos entrar no pomar agora. Segurem-se bem, garotos porque não vou parar essa merda nem que arrebente o trem de pouso.
— Vai em frente — disse Barbie, e um sacolejo fortíssimo o jogou no ar com os braços em volta de uma das rodas. Julia segurava a outra como uma vítima de naufrágio que se agarra à bóia salva-vidas. Macieiras passaram voando. As folhas pareciam sujas e desanimadas. A maioria das frutas caíra, derrubadas pelo vento que sugara o pomar depois da explosão.
Outro sacolejo tremendo. Barbie e Julia subiram e desceram juntos, Julia caída sobre o colo de Barbie sem largar a sua roda.
— Onde arranjou a sua carta, seu velho maluco? — berrou Barbie. — Na Sears?
— No Walmart! — respondeu o velho. — Tudo é mais barato no Mundo de Wally! — Então parou de rir. — Estou vendo. Estou vendo a dona piscante do bordel. Luz roxa e forte. Vou parar bem ao lado. Esperem eu parar pra esburacar esses pneus, senão eles rasgam de uma vez só.
Dali a um instante, ele pisou no freio e fez a Odyssey parar guinchando, e Barbie e Julia caíram sobre o encosto do banco de trás. Agora sei como se sente uma bolinha de pinball, pensou Barbie.
— Você dirige como um taxista de Boston! — disse Julia indignada.
— Não esquece a gorjeta — Sam foi interrompido por um forte ataque de tosse —, vinte por cento. — A voz parecia engasgada.
— Sam? — perguntou Julia. — Você está bem?
— Talvez não — disse ele, sem rodeios. — Estou sangrando em algum lugar. Pode ser a garganta, mas parece que é mais fundo. Acho que rompi o pulmão. — E começou a tossir de novo.
— O que a gente pode fazer? — perguntou Julia.
Sam controlou a tosse.
— Faz eles desligarem essa merda dessa barreira pra gente sair daqui. Meu cigarro acabou.
— Sou só eu — disse Julia. — É bom que você saiba.
Barbie fez que sim.
— Sissiora.
— Você só cuida do ar. Se o que eu vou tentar não der certo, podemos trocar de lugar.
— Ajudaria se eu soubesse exatamente no que você pensou.
— Não há nada de exato nisso. Só tenho intuição e um pouco de esperança.
— Não seja tão pessimista. Também tem dois pneus, dois sacos de lixo e um eixo oco.
Ela sorriu. O rosto tenso e sujo se iluminou.
— Devidamente anotado.
Sam tossia de novo, curvado sobre o volante. Cuspiu alguma coisa.
— Deus amado e seu filho Jesus, que gosto horrível isso tem — disse. — Depressa.
Barbie furou o seu pneu com a faca e ouviu o ruído do ar assim que puxou a lâmina. Julia bateu o eixo na mão dele com a mesma eficiência de uma enfermeira instrumentadora. Barbie o enfiou no buraco, viu a borracha agarrá-lo... e sentiu um jorro divino de ar no rosto suado. Respirou profundamente uma vez, incapaz de se controlar. O ar era muito mais fresco, muito mais rico, do que o jogado sobre a Redoma pelos ventiladores. O cérebro pareceu acordar, e ele tomou uma decisão imediata. Em vez de pôr o saco de lixo sobre o bocal improvisado rasgou um pedaço grande de um deles.
— O que você está fazendo? — gritou Julia.
Não havia tempo de dizer que ela não era a única a ter intuição.
Ele tapou o eixo com o plástico.
— Confia em mim. Vai até a caixa e faz o que você tem que fazer.
Ela lhe deu uma última olhada que parecia ser só olhos e abriu a porta lateral da Odyssey. Quase caiu no chão, endireitou-se, tropeçou num montinho e se ajoelhou ao lado da caixa de luz. Barbie a seguiu com as duas rodas. Estava com o canivete de Sam no bolso. Ajoelhou-se e ofereceu a Julia o pneu com o eixo preto espetado.
Ela tirou a tampa, inspirou — as bochechas se esvaziando com o esforço — exalou para o lado, inspirou de novo. As lágrimas corriam pelas faces, abrindo ali lugares limpos. Barbie chorava também. Não tinha nada a ver com emoção; era como se estivessem no meio da pior chuva ácida do mundo. Era muito pior do que o ar na Redoma.
Julia inspirou mais.
— Bom — disse, falando ao expirar e quase assoviando a palavra. — Muito bom. Sem peixe. Poeira. — Ela inspirou de novo e inclinou o pneu na direção dele.
Ele fez que não e o devolveu, embora o seu pulmão começasse a latejar. Ele bateu no peito e apontou para ela.
Ela inspirou fundo mais uma vez e outra. Barbie apertava o alto do pneu para ajudá-la. De longe, em algum outro mundo, podia ouvir Sam tossindo, tossindo, tossindo.
Ele vai se arrebentar, pensou Barbie. Sentia-se como se também fosse arrebentar se não respirasse logo, e quando Julia empurrou o pneu para ele uma segunda vez, ele se curvou sobre o canudo improvisado e inspirou profundamente, tentando puxar o ar empoeirado e maravilhoso até o fundo do pulmão. Não havia o bastante, parecia que nunca haveria o bastante, e houve um momento em que o pânico (Meu Deus estou me afogando) quase tomou conta dele. A ânsia de correr de volta para a van — deixa Julia pra lá, deixa Julia se virar — quase foi forte demais para resistir... mas ele resistiu. Fechou os olhos, respirou e tentou encontrar o centro calmo e frio que estava ali em algum lugar.
Calma. Devagar. Calma.
Ele inspirou o pneu longamente, mais uma vez, e o coração que batia forte começou a se desacelerar um pouco. Viu Julia se inclinar e segurar a caixa pelos dois lados. Nada aconteceu, e isso não surpreendeu Barbie. Ela tocara a caixa quando subiram ali pela primeira vez, e agora estava imune ao choque.
De repente, as costas dela se arquearam. Ela gemeu. Barbie tentou lhe oferecer o eixo-canudo, mas ela o ignorou. O sangue jorrou do nariz e começou a pingar pelo canto do olho direito. Gotas vermelhas desceram pela face.
— O que está acontecendo? — gritou Sam. A voz estava abafada, sufocada.
Não sei, pensou Barbie. Não sei o que está acontecendo.
Mas de uma coisa ele sabia: se ela não inspirasse logo, morreria. Ele tirou o canudo do pneu, segurou-o com os dentes e mergulhou o canivete de Sam no segundo pneu. Enfiou o canudo no buraco e o tampou com o retalho de plástico.
Depois, esperou.
Este é o tempo que não é tempo:
Ela está numa vasta sala branca sem teto com um céu verde alienígena no alto. É... o quê?... A sala de brinquedos? É, a sala de brinquedos. A sala de brinquedos deles.
(Não, ela está deitada no chão do coreto.)
Ela é uma mulher de certa idade.
(Não, é uma menininha.)
O tempo não existe.
(É 1974 e existe todo o tempo do mundo.)
Ela precisa respirar no pneu.
(Não precisa.)
Algo a olha. Algo terrível. Mas ela é terrível para aquilo também, porque ela é maior do que devia ser, e está aqui. Não devia estar aqui. Devia estar na caixa. Mas ela ainda é inofensiva. Aquilo sabe, muito embora seja (só uma criança) muito jovem; mal saiu do berçário, na verdade. E fala.
— Você é de mentirinha.
— Não, eu sou de verdade. Por favor, eu sou de verdade. Todos nós somos.
O cabeça de couro a olha com o seu rosto sem olhos. Franze a testa. Os cantos da boca se viram para baixo, embora não tenha boca. E Julia percebe a sorte que teve de encontrar um deles sozinho. Geralmente são mais, mas foram (para casa jantar para casa almoçar dormir à escola sair de férias, não importa se foram) para outro lugar. Se estivessem aqui juntos, a mandariam de volta. Essa pode mandá-la de volta sozinha, mas está curiosa.
Ela?
É.
Essa é fêmea, como ela.
— Por favor, liberta a gente. Por favor, deixa a gente viver a nossa vidinha.
Nenhuma resposta. Nenhuma resposta. Nenhuma resposta. Então:
— Vocês não são de verdade. Vocês são...
O quê? O que ela disse? Vocês são brinquedos da loja? Não, mas é algo assim. Julia tem uma faísca de lembrança da fazenda de formigas que o irmão teve quando crianças. A recordação vem e vai em menos de um segundo. Fazenda de formigas também não é certo, mas assim como brinquedos da loja, chega perto. Na mesma categoria, como diz o outro.
— Como vocês podem ter vida se não são de verdade?
— NÓS SOMOS MUITO REAIS! — grita ela, e esse é o gemido que Barbie escuta. — TÃO REAIS QUANTO VOCÊ!
Silêncio. Uma coisa com uma cara de couro que muda numa vasta sala branca sem teto que também de certa forma fica no coreto de Chester’s Mill. Então:
— Prova.
— Me dá a mão.
— Eu não tenho mão. Não tenho corpo. Corpos não são de verdade. Corpos são sonhos.
— Então me dá a sua mente!
A menina cabeça de couro não dá. Não quer.
Então Julia a toma.
Este é o lugar que não é lugar:
Faz frio no coreto, e ela está com tanto medo. Pior, ela está... humilhada? Não, é muito pior do que humilhação. Se conhecesse a palavra aviltada, diria: Sim, sim, é isso, estou aviltada. Elas tiraram a calça dela.
(E em algum lugar há soldados chutando gente nua num ginásio. Essa é a vergonha de outra pessoa misturada com a dela.)
Ela chora.
(Ele quer chorar, mas não chora. Nesse momento eles precisam esconder o que houve.)
Agora as meninas a abandonaram, mas o nariz ainda sangra — Lila lhe deu um tapa e prometeu lhe arrancar o nariz se contasse e todas cuspiram nela e agora ela está ali deitada e deve ter chorado muito mesmo porque acha que o olho está sangrando e o nariz também e ela não consegue recuperar o fôlego. Mas não se importa que sangre ou onde sangre. Prefere sangrar até a morte no chão do coreto do que voltar para casa com aquela estúpida calcinha de bebê. Ficaria contente de sangrar até a morte por mil lugares se assim não tivesse de ver o soldado
(Depois disso Barbie tenta não pensar naquele soldado, mas quando acontece pensa em “Hackermeyer, o monstro”.)
Puxa o homem nu pela coisa (hiyab) que ele usa na cabeça, porque ela sabe o que vem depois. É o que sempre vem depois quando se está debaixo da Redoma.
Ela vê que uma das meninas voltou. Kayla Bevins voltou. Está ali em pé e olha a estúpida Julia Shumway que se achava esperta. A estúpida Julinha Shumway com a sua calcinha de bebê. Será que Kayla voltou para tirar o resto da sua roupa e jogar tudo no telhado do coreto, para ela voltar para casa nua com a mão sobre a perereca? Por que as pessoas são tão más?
Ela fecha os olhos para não chorar e quando os abre de novo Kayla mudou. Agora não tem rosto, só um tipo de capacete de couro que não para de mudar e não mostra compaixão, nem amor, nem mesmo ódio.
Só... interesse. É isso. O que isso aqui faz quando eu faço... isso?
Julia Shumway não vale mais nada. Julia Shumway não importa; encontre o mais vil dos vis, depois olhe mais abaixo, e lá está ela, um inseto Shumway que tenta fugir. Ela também é um inseto-prisioneiro nu; um inseto-prisioneiro num ginásio sem nada no corpo a não ser o chapéu que se desenrola na cabeça e debaixo do chapéu a última lembrança do pão árabe cheiroso e recém-assado nas mãos da esposa. Ela é um gato com o rabo pegando fogo, uma formiga sob o microscópio, uma mosca prestes a perder as asas para os dedos curiosos de um aluno da terceira série num dia de chuva, um jogo para crianças sem corpo entediadas com o universo inteiro a seus pés. Ela é Barbie, ela é Sam morrendo na van de Linda Everett, ela é Ollie morrendo nas cinzas, ela é Alva Drake chorando o filho morto.
Mas, principalmente ela é uma menininha encolhida nas tábuas cheias de farpas do coreto da praça da Cidade, uma menininha punida pela sua arrogância inocente, uma menininha que cometeu o erro de pensar que era grande quando era pequena, que tinha importância quando não tinha, que o mundo se importava com ela quando na realidade o mundo é uma imensa locomotiva morta com motor mas sem farol. E com todo o coração e mente e alma ela grita:
— POR FAVOR, DEIXA A GENTE VIVER! EU IMPLORO, POR FAVOR!
E por apenas um instante ela é a cabeça de couro na sala branca; ela é a menina que (por razões que nem sabe explicar a si mesma) voltou ao coreto. Por um momento terrível Julia é a que fez em vez de ser aquela a quem foi feito. É até o soldado com a arma, o monstro com que Dale Barbara ainda sonha, aquele que não parou.
Então ela só é ela mesma de novo.
Erguendo os olhos para Kayla Bevins.
A família de Kayla é pobre. O pai corta lenha no TR e bebe no Freshie’s Pub (que, com o passar do tempo, se transformará no Dipper’s). A mãe tem uma antiga marca rosada e grande na bochecha, e os garotos a chamam de cara de cereja ou cabeça de morango. Kayla não tem nenhuma roupa bonita. Hoje está usando um velho suéter marrom e uma saia velha de xadrez e mocassins gastos e meias brancas meio frouxas. Um dos joelhos está arranhado, onde ela caiu ou foi empurrada no pátio da escola. É Kayla Bevins, tudo bem, mas agora o seu rosto é feito de couro. E embora assuma muitas formas, nenhuma delas chega perto de ser humana.
Julia pensa: Eu estou vendo como a criança é para a formiga, se a formiga erguer os olhos do seu lado da lente de aumento. Se erguer os olhos pouco antes de começar a queimar.
— POR FAVOR, KAYLA! POR FAVOR! NÓS ESTAMOS VIVOS!
Kayla baixa os olhos para ela sem fazer nada. Então, cruza os braços na frente do corpo — são braços humanos nessa visão — e tira o suéter por cima da cabeça. Não há amor na sua voz quando fala; não há arrependimento nem remorso.
Mas pode haver piedade.
Ela diz.
Julia foi arrancada da caixa como se uma mão lhe desse um tapa. A respiração presa saiu do seu corpo. Antes que pudesse inspirar, Barbie a agarrou pelos ombros, puxou o tampão de plástico do eixo e o enfiou na sua boca, torcendo para não lhe cortar a língua nem — Deus queira que não — enfiar o plástico duro no céu da boca. Mas não podia permitir que ela respirasse o ar envenenado. Tão faminta de oxigênio como ela estava, isso poderia lhe provocar convulsões ou matá-la na mesma hora.
Onde quer que estivesse, Julia pareceu entender. Em vez de tentar lutar, ela abraçou com força a roda do Prius e começou a sugar freneticamente o eixo. Ele conseguiu sentir tremores imensos e convulsivos lhe passarem pelo corpo.
Sam finalmente parara de tossir, mas agora havia outro som. Julia também escutou. Sugou mais um pouco do pneu e ergueu os olhos arregalados nas órbitas sombrias e fundas.
Um cachorro latia. Tinha que ser Horace, porque era o único cão que restara. Ele...
Barbie agarrou o braço dela com tanta força que ela achou que o quebraria. No rosto dele havia uma expressão de puro espanto.
A caixa com o estranho símbolo flutuava a um metro do chão.
Horace foi o primeiro a sentir o ar fresco, porque estava mais perto do chão. Começou a latir. Depois Joe sentiu: uma brisa, espantosamente fria, contra as costas suadas. Ele estava encostado na Redoma, e a Redoma se movia. Se movia para cima. Norrie estivera cochilando com o rosto encostado no peito de Joe, e agora ele viu um cacho do cabelo sujo e emplastrado dela começar a flutuar. Ela abriu os olhos.
— O quê...? Joey, o que está acontecendo?
Joe sabia, mas estava espantado demais para lhe contar. Tinha uma sensação fria e deslizante nas costas, como uma vidraça interminável sendo erguida.
Horace agora latia loucamente, as costas curvadas, o focinho no chão. Era a sua posição quero-brincar, mas Horace não estava brincando. Enfiou o nariz debaixo da Redoma que subia e farejou o ar fresco, frio e doce.
Paraíso!
No lado sul da Redoma, o soldado Clint Ames também cochilava. Estava sentado de pernas cruzadas no acostamento macio da rodovia 119, enrolado à moda indígena num cobertor. De repente o ar escureceu, como se os sonhos ruins que passavam velozes pela sua cabeça tivessem assumido forma física. Então ele tossiu até acordar.
A fuligem regirava em torno dos seus pés calçados de botas e pousava nas pernas da farda cáqui. Em nome de Deus, de onde vinha aquilo? Todo o fogo acontecera lá dentro. Então ele viu. A Redoma subia como uma vidraça gigantesca. Era impossível — ela chegava a quilômetros abaixo assim como acima, todo mundo sabia —, mas estava acontecendo.
Ames não hesitou. Engatinhou para a frente e segurou Ollie Dinsmore pelos braços. Por um instante, sentiu a Redoma que subia lhe raspar o meio das costas, vítrea e dura, e teve tempo de pensar Se descer agora, vai me cortar meio. Depois, ele arrastou o garoto para fora.
Por um instante, achou que puxava um cadáver.
— Não! — gritou. Levou o garoto até um dos ventiladores que rugiam. — Não ouse morrer no meu colo, garoto das vacas!
Ollie começou a tossir, depois se inclinou à frente e vomitou de leve. Ames o segurou enquanto isso. Agora os outros corriam na direção deles, gritando jubilosos o sargento Groh na frente.
Ollie vomitou de novo.
— Não me chama de garoto das vacas — sussurrou.
— Chamem a ambulância! — berrou Ames. — Precisamos da ambulância!
— Não, vamos levar ele pro Hospital Geral Central do Maine no helicóptero — disse Groh. — Já andou de helicóptero garoto?
Ollie, os olhos estonteados, fez que não. Depois vomitou nos sapatos do sargento Groh.
Groh sorriu e apertou a mão imunda de Ollie.
— Bem-vindo de volta aos Estados Unidos, filho. Bem-vindo de volta ao mundo.
Ollie pôs o braço em torno do pescoço de Ames. Sabia que ia desmaiar. Tentou se segurar o bastante para agradecer mas não conseguiu. A última coisa que percebeu antes que as trevas o levassem de novo foi que o soldado sulista o beijou no rosto.
Na parte norte, Horace foi o primeiro a sair. Correu diretamente para o coronel Cox e começou a dançar em torno dos seus pés. Horace não tinha cauda, mas não importava; todo o seu traseiro se balançava.
— Não acredito — disse Cox. Pegou o corgi no colo e Horace começou a lhe lamber o rosto num frenesi.
Os sobreviventes se reuniram do seu lado (a linha de demarcação era visível no capim, claro de um lado e cinza e sem vida no outro), começando a entender, mas não ousando acreditar. Rusty, Linda, as Jotinhas, Joe McClatchey e Norrie Calvert, com suas respectivas mães ao lado. Ginny, Gina Buffalino e Harriet Bigelow abraçadas. Twitch segurava a irmã Rose, que soluçava e embalava o Pequeno Walter. Piper, Jackie e Lissa se deram as mãos. Pete Freeman e Tony Guay, tudo o que restava da equipe do Democrata, estava atrás delas. Alva Drake se apoiava em Rommie Burpee, que segurava Alice Appleton no colo.
Observaram a superfície suja da Redoma se erguer rapidamente no ar. A folhagem de outono do outro lado era de cortar o coração de tão colorida.
O ar fresco e doce ergueu o cabelo deles e secou o suor na pele.
— Porque agora vemos como por um vidro escuro — disse Piper Libby. Ela chorava. — Mas então veremos face a face.
Horace pulou do colo do coronel Cox e começou a fazer oitos pelo capim, dando latidinhos, farejando e tentando mijar em tudo ao mesmo tempo.
Os sobreviventes, sem acreditar, ergueram os olhos para o céu claro que se arqueava sobre o final da manhã de domingo no outono da Nova Inglaterra. E, acima deles, a barreira suja que os mantivera prisioneiros ainda subia, movendo-se cada vez mais depressa, encolhendo numa linha como um longo risco de lápis numa folha de papel azul.
Um pássaro passou pelo lugar onde estivera a Redoma. Alice Appleton, ainda no colo de Rommie, olhou para cima e riu.
Barbie e Julia se ajoelharam com a roda entre eles, alternando inspirações no eixo-canudo. Observaram a caixa começar a subir de novo. A princípio foi devagar, e pareceu pairar uma segunda vez numa altura de uns 20 metros, como se em dúvida. Depois, subiu direto, a uma velocidade grande demais para olhos humanos a seguirem; seria como tentar ver uma bala em vôo. A Redoma voava para o alto ou, por assim dizer, era recolhida.
A caixa, pensou Barbie. Está puxando a Redoma para cima como um ímã puxa limalha de ferro.
Uma brisa veio atingi-los. Barbie acompanhou o seu avanço na ondulação do capim. Balançou Julia pelo ombro e apontou direto para o norte. O céu imundo e cinzento estava azul de novo, quase brilhante demais para olhar.
As árvores tinham entrado em foco perfeito.
Julia ergueu a cabeça do canudo e respirou.
— Não sei se é uma boa... — começou Barbie, mas aí a brisa chegou. Ele a viu erguer o cabelo de Julia e sentiu que secava o suor no seu rosto riscado de sujeira, tão suave como a mão de uma amante.
Julia tossia de novo. Ele bateu nas costas dela, respirando pela primeira vez enquanto o fazia. O ar ainda fedia e se agarrava à garganta, mas era respirável. O ar ruim soprava para o sul, enquanto o ar fresco do TR-90 do outro lado da Redoma — o que fora o lado do TR-90 — se despejava sobre eles. A segunda inspiração foi melhor; a terceira, melhor ainda; a quarta, uma dádiva de Deus.
Ou de uma menina de cabeça de couro.
Barbie e Julia se abraçaram junto ao quadrado preto de chão onde estivera a caixa. Nada cresceria ali, nunca mais.
— Sam! — gritou Julia. — Temos que buscar o Sam!
Eles ainda tossiam ao correr até a Odyssey, mas Sam não. Estava caído sobre o volante, olhos abertos, mal respirando. A parte de baixo do rosto estava barbada de sangue e, quando Barbie o empurrou para trás, viu que o azul da camisa do velho virara um roxo lamacento.
— Consegue carregar ele? — perguntou Julia. — Consegue carregar ele até onde estão os soldados?
A resposta era quase certamente não, mas Barbie disse:
— Posso tentar.
— Não — sussurrou Sam. Os olhos se moveram na direção deles. — Dói demais. — Sangue fresco escorria da boca a cada palavra. — Você conseguiu?
— Julia conseguiu — disse Barbie. — Não sei direito como, mas ela conseguiu.
— Em parte, foi o homem no ginásio — disse ela. — O que o monstro matou com um tiro.
A boca de Barbie se escancarou, mas ela não notou. Abraçou Sam e o beijou nas duas bochechas.
— Você também, Sam. Você nos trouxe aqui e viu a menininha no coreto.
— Você não era uma menininha no meu sonho — disse Sam. — Era adulta.
— Mas a menininha ainda estava lá. — Julia tocou o peito. — Aqui também. Ela vive.
— Me ajuda a sair da van — sussurrou Sam. — Quero respirar ar fresco antes de morrer.
— Você não vai...
— Quieta, mulher. Nós dois sabemos a verdade.
Cada um deles segurou um braço, ergueram-no suavemente do volante e o deitaram no chão.
— Sente o cheiro desse ar — disse ele. — Meu bom Deus. — Ele inspirou profundamente e depois tossiu um jorro de sangue. — Estou sentindo um aroma de madressilva.
— Eu também — disse ela, e tirou o cabelo dele da testa.
Ele pôs a mão sobre a dela.
— Eles ficaram... ficaram arrependidos?
— Era uma só — disse Julia. — Se fossem mais, nunca teria dado certo. Acho que não dá pra combater uma multidão propensa à crueldade. E não... ela não se arrependeu. Ficou com pena, mas não se arrependeu.
— Não é a mesma coisa, não é? — sussurrou o velho.
— De jeito nenhum.
— A piedade é pros fortes — disse, e suspirou. — Eu só posso me arrepender. O que eu fiz foi por causa da bebida, mas assim mesmo me arrependo. Desfaria se pudesse.
— Seja o que for, você compensou tudo no fim. — disse Barbie. Pegou a mão esquerda de Sam. A aliança pendia no terceiro dedo, grotesca de tão grande na carne pouca.
Os olhos de Sam, de um azul ianque desbotado, pousaram nele, que tentou sorrir.
— Talvez sim... pelo fazer. Mas fiquei feliz ao fazer. Acho que não dá pra compensar uma coisa des... — Ele começou a tossir de novo, e mais sangue voou da sua boca quase sem dentes.
— Para agora — disse Julia. Para de tentar falar.
Estavam ajoelhados um de cada lado dele. Ela olhou Barbie.
— Esqueça aquilo de carregar ele. Rompeu algo por dentro. Vamos precisar buscar ajuda.
— Ah, o céu — disse Sam Verdreaux.
Foram as últimas palavras. Ele expirou, achatou o peito e não houve nova inspiração para erguê-lo. Barbie ia fechar os olhos dele, mas Julia lhe segurou a mão e o impediu.
— Deixa ele olhar — disse. — Mesmo que esteja morto, deixa ele olhar enquanto puder.
Sentaram-se ao seu lado. Havia pássaros cantando. E, em algum lugar, Horace ainda latia.
— Acho que eu tenho que ir procurar o meu cachorro — disse Julia.
— É — concordou ele. — A van?
Ela fez que não.
— Vamos andando. Acho que aguentamos um quilômetro se formos devagar, não acha?
Ele a ajudou a se levantar.
— Vamos descobrir disse ele.
Enquanto caminhavam de mãos dadas pela margem gramada da velha estrada de suprimentos, ela lhe contou o máximo que conseguiu sobre o que chamava de “estar dentro da caixa”.
— Então — disse ele quando ela terminou. — Você contou a ela as coisas terríveis de que nós somos capazes, ou mostrou... e mesmo assim ela nos libertou.
— Eles sabem tudo sobre coisas terríveis — explicou ela.
— Aquele dia em Fallujah é a pior lembrança da minha vida. O que torna isso tão ruim é que... — Ele tentou pensar em como Julia explicara. — Era eu que fazia, em vez de ser aquele a quem era feito.
— Você não fez aquilo — disse ela. — Foi o outro homem.
— Não importa — contrapôs Barbie. — O cara está morto do mesmo jeito, não importa quem fez.
— Teria acontecido se só estivessem dois ou três de vocês naquele ginásio? Ou se fosse você sozinho?
— Não. É claro que não.
— Então põe a culpa no destino. Ou em Deus. Ou no universo. Mas para de se culpar.
Ele talvez não fosse capaz de fazer isso, mas entendeu o que Sam dissera no final. Arrependimento pelo erro era melhor do que nada, supôs Barbie, mas nenhuma tristeza depois do fato poderia reparar a alegria sentida na destruição, fosse esta queimar formigas ou atirar em prisioneiros.
Ele não sentira alegria em Fallujah. Nisso, podia se considerar inocente. E isso era bom.
Os soldados corriam na direção deles. Talvez tivessem mais um minuto a sós. Talvez dois.
Ele parou e a abraçou.
— Te amo pelo que você fez, Julia.
— Eu sei disso — disse ela calmamente.
— O que você fez foi muito corajoso.
— Me perdoa por ter roubado as suas lembranças? Eu não queria; só aconteceu.
— Totalmente perdoada.
Os soldados estavam mais perto. Cox corria com o resto, com Horace dançando nos seus calcanhares. Logo Cox estaria ali, perguntaria quem era Ken e, com essa pergunta, o mundo os reclamaria de volta.
Barbie olhou o céu azul, inspirou profundamente o ar que se limpava.
— Não consigo acreditar que acabou.
— Acha que um dia volta?
— Talvez não a este planeta, e não por causa daquele grupo. Vão crescer e sair da sala de brinquedos, mas a caixa vai ficar lá. E outras crianças vão achar. Mais cedo ou mais tarde, o sangue sempre atinge a parede.
— Isso é horrível.
— Talvez, mas posso te contar uma coisa que a minha mãe sempre dizia?
— É claro.
Ele recitou:
— Depois da noite escura, a luz da aurora brilha mais pura.
Julia riu. Era um som adorável.
— O que a menina cabeça de couro te disse no final? — perguntou ele. — Fala depressa, porque eles estão quase aqui e isso só pertence a nós. Ela pareceu surpresa por ele não saber.
— Ela disse o que a Kayla disse. “Usa isso pra voltar pra casa, vai parecer um vestido.”
— Ela estava falando do suéter marrom?
Julia pegou de novo a mão dele.
— Não. Das nossas vidas. Das nossas vidinhas.
Ele pensou um pouco.
— Se ela te deu, vamos vestir.
Julia apontou.
— Olha quem está chegando!
Horace a vira. Imprimiu velocidade, contornou os homens que corriam e, assim que passou por eles, se abaixou e engrenou a quarta marcha. Um enorme sorriso lhe ornava o focinho. As orelhas estavam para trás, grudadas no crânio. A sombra corria ao seu lado no capim manchado de fuligem. Julia se ajoelhou e estendeu os braços.
— Vem pra mamãe, meu amor! — berrou.
Ele pulou. Ela o pegou no ar e caiu para trás, rindo. Barbie a ajudou a se levantar.
Andaram juntos de volta ao mundo, usando o presente que tinham recebido: vida, apenas.
Piedade não era amor, refletiu Barbie... mas, para uma criança, dar roupas a quem está nu só podia ser um passo na direção certa.
Stephen King
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