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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOB O CÉU DE NOVGOROD / Régine Deforges
SOB O CÉU DE NOVGOROD / Régine Deforges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Era uma vez uma princesa russa chamada Ana: ela casou-se com Henrique, rei de França. Isto foi há muito tempo: em 1051...
Idade Média, metade do século XI. Ana, filha do Grão-Príncipe de Kiev, vivia em contato com a natureza, cavalgava livremente pelas estepes russas e participava de caçadas na companhia do pai e dos irmãos. A princesa, uma jovem encantadora e romântica, habituada a uma corte sofisticada, é prometida em casamento ao rei da França, Henrique I, um homem enigmático e semibárbaro. Ana parte para sua nova terra e, aos vinte anos, é coroada rainha. Na França, descobre que o lugar da mulher é dentro de um castelo, bordando e supervisionando as tarefas domésticas. É deste ambiente melancólico que a autora resgata a heroína do romance, mostrando-a doce, caridosa, mas também dona de grande coragem e poder de sedução. Partindo de poucos registros sobre a vida de Ana e Henrique, Régine Deforges consultou vários especialistas sobre o período medieval antes de escrever este livro, que se enquadra na melhor tradição do romance histórico francês. Assim, descrevendo com grande riqueza de detalhes a vida da época, a autora envolve o leitor num clima de aventuras, cavaleiros mascarados, rivalidades sangrentas, rituais de bruxaria e, sobretudo, de paixões arrebatadoras. Régine Deforges é autora de várias obras de sucesso incluindo a trilogia A bicicleta azul, obra que vendeu, só na França, mais de 6 milhões de exemplares em cinco anos. Referindo-se a SOB O CÉU DE NOVGOROD, a própria autora diz: "Entre todas as histórias românticas, nenhuma é tão bela quanto esta.
Tanto amor exigiu de minha parte um enorme investimento afetivo."

 


 


O desejo, perto de ti, me faz arder em sua febre; No fogo do teu olhar se consome meu coração; Beija-me, meu amor, o contato dos teus lábios É doce e perfumado, mais que um vinho da Grécia. E agora, imóvel, a meu lado permaneces, Para que em teu seio eu durma até a hora Em que triunfará o dia sobre a noite sombria; Sobre a minha fronte inclina-te, teu sopro me acaricie. Ah, como te amo! E tu, meu amor, também me amas?

PUSHkiN, 1825


PRÓLOGO


- Está bem, já que é preciso, podem ir procurá-la com o diabo! - exclamou o rei Henrique, pálido de cólera.

O bispo de Châlons apressou-se em fazer o sinal-da-cruz, enquanto o bispo de Meaux, Gautier, dava de ombros.

Os dois estavam cansados de lutar. Depois da morte da rainha Matilde, em 1044, o neto de Hugo Capeto não queria ouvir falar de um novo casamento. Aos trinta e
nove anos, não tinha amante nem concubina, ao que se soubesse, e sua aparência de donzela, que tanto desgostara sua mãe, a minha Constância, seus gestos efeminados,
continuavam a parecer a muitos uma afronta à dignidade real. Aos conselheiros que o pressionavam para dar um herdeiro à coroa o mais depressa possível, ele opunha
sempre o mesmo argumento, incontestável e bastante cômodo:

- Todas as mulheres que vocês propõem têm algum parentesco comigo. Roma proibiu essas uniões. Não quero ser excomungado como meu pai, Roberto o Piedoso.

- Quem fala em excomunhão, Henrique? - protestou um dia o bispo de Meaux. - Escute-me, por favor. Pouco antes de sua morte, Odilon, o santo abade de Cluny, mostrou-me
uma carta do rei da Polônia, Casimiro, com quem ele mantinha uma correspondência edificante...

- Onde está querendo chegar? Ele tem alguém para casar? - Não. Ele casou com a irmã do rei dos russos, a princesa Maria Dobrogneva...

- Não entendo o que isso tem a ver comigo. - Deixe-me terminar, Henrique. laroslav, grão-príncipe de Kiev e rei da Rússia, filho de Vladimir o Grande, aliado pelo
casamento aos

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imperadores de Bizâncio, aos reinos da Dinamarca, Suécia, Hungria e Alemanha, tem uma filha, a princesa Ana. O rei Casimiro diz que ela possui uma grande beleza,
é devota, sábia, instruída e caridosa com os pobres.

- Ela é boa amazona? - Desde a mais tenra idade, ela monta em companhia dos irmãos e não teme ninguém na caça.

- Tanto melhor. - Isso não é o mais importante - interveio o bispo Roger, que se mantivera calado até esse momento. - O que conta é que ela dê filhos ao reino.
Sua família é prolífica: o avô Vladimir teve doze filhos legítimos e a mesma quantidade de filhas, sem contar os numerosos bastardos; o pai pode se orgulhar de
nove filhos vivos. Além disso, a jovem Ana é da mais nobre linhagem, descendente de Filipe da Macedônia.

- Quem é esse tal Filipe e onde fica essa Macedônia? - O pai de Alexandre o Grande. A França não apenas tem necessidade de um herdeiro, mas também de reforçar suas
alianças e aumentar seu prestígio junto a outros -reinos...

- E ao papa de Roma - acrescentou o bispo Gautier. O rosto franzido de Henrique se desanuviara. Os olhos meio fechados, indolentemente estendido sobre almofadas
bordadas, ele tentava imaginar essa futura companheira, que garantiria a nascente e frágil dinastia dos Capetos.

- E então, rei Henrique? - Senhores bispos, eu me rendo a seus argumentos. Mas quero que o senhor, bispo Roger, e o senhor, bispo Gautier, a busquem para mim.
Devem trazê-la com todas as honras devidas à futura rainha dos francos.

Os dois prelados trocaram um olhar de triunfo e fizeram uma reverência, retirando-se em seguida.

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CAPÍTULO UM


NOVGOROD


Procedente de Smolensk, uma longa fileira de cavaleiros, acompanhada por carroças, estendia-se pela planície.

- Ana... Ana... Espere! Estendida sobre o pescoço do cavalo reluzente de suor, como se estivesse inebriada pelo odor que o animal exalava, a jovem não ouvia coisa
alguma. O vento da corrida desmanchara-lhe as tranças, avermelhara-lhe as faces e ressecara-lhe os lábios. O céu se tingia com as primeiras cores do pôr-do-sol.
Ela queria ver o sol iluminar o rio e a cidade em que nascera. Ao longo do lago Ilmen, bandos de gansos e patos selvagens alçavam vôo ao ruído dos respingos que
os cascos de sua montaria provocavam. Subitamente, Ana avistou a igreja de madeira construída pelo pai, Iaroslav, no lugar em que a lenda dizia que desembarcara
aquele que fundaria a Rússia; e, por um instante, ela sonhou com seu grande ancestral Rurik. A aproximação do outono amarelava as folhas das bétulas e a relva
da planície, que brilhavam como ouro à luz do sol poente. A esfera vermelha fazia com que o céu parecesse ainda mais vasto. E Novgorod apareceu de repente, como
se emergisse do universo aquático que a cercava.

Ana puxou as rédeas tão abruptamente que o cavalo empinou. Relinchando em protesto, o animal sacudiu a crina, mas sob a mão firme da amazona acalmou-se num instante
e ficou imóvel, a boca espumando. A cidade, com três paliçadas de madeira, estendia-se diante de Ana, cortada ao meio pelo rio Volchov, coalhado de embarcações
que voltavam ao porto. Dezenas de filetes de fumaça elevavam-se pelo ar, sinos repicavam, uma paz infinita envolvia as torres, igrejas e palácios, banhados ainda
por um momento por aquela luminosidade de sangue, mais apropriada

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ao deus Péroun do que ao deus dos cristãos, cuja nova catedral de cinco cúpulas dominava a cidade.

Gritos e risos arrancaram Ana de sua contemplação. Vsevolod e seus companheiros se aproximaram.

- Por que não esperou, irmãzinha? Sabe muito bem que nosso pai fez você prometer que não se afastaria de mim.

- Irmão querido, não vai contar nada a ele, não é mesmo? - murmurou Ana, insinuante, inclinando a cabeça.

Vsevolod sorriu, incapaz de resistir à mais linda de suas irmãs. - Olhe ali! Nosso irmão Vladimir vem ao nosso encontro. Uma vintena de cavaleiros, saindo pelo
portão de Kiev, galopava para eles, com o maior clamor. As silhuetas escuras delineavam-se contra o céu púrpura.

- Parecem os anjos do Juízo Final - acrescentou Vsevolod. Numa alegre confusão, os filhos de Iaroslav e seus acompanhantes se reuniram no momento em que o sol
desaparecia no horizonte. Tudo parecia se apagar. Ana sentiu um arrepio, não se acostumava à morte do dia. Era a hora em que os velhos medos de sua infância ressurgiam,
em que Moaryassa tentava atrair os homens para uma sinistra visita aos infernos. Apesar de cristã, Ana não conseguia esquecer os deuses antigos e continuava convencida
de que sua rajasnitsa (*1) a protegia. Mas o momento não era para pensamentos lúgubres sobre a noite. Só o que devia contar era a alegria de rever o irmão mais velho,
príncipe daquela cidade que ela tanto amava, Novgorod!

A noite caiu por completo quando passaram pelos portões da cidade. As tochas seguradas pelos habitantes formavam alas luminosas e dançantes. Em cada lado da ponte
de madeira que levava à segunda paliçada havia rapazes e moças, vestidos em cores vivas, batendo palmas, agitando buquês de flores e soltando exclamações alegres.

- Seja bem-vinda, Ana laroslavna! - Viva a irmã de nosso príncipe! - Vida longa para Vladimir Rurikovitch! - Toda honra aos príncipes de Kiev! Diante do portão
da terceira paliçada, encimado por uma cúpula, à entrada do Kremlin, estavam os representantes das corporações de mercadores e artesãos que tinham vindo prestar
sua homenagem aos recém-chegados.

Antes que alguém tivesse tempo de ajudá-la, Ana saltou do cavalo e correu para um velho de trajes mais sóbrios que os de seus companheiros.

*1. Anjo da guarda feminino.

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- Sveinald, paizinho, Deus seja louvado, você ainda está vivo! - Por que queria que eu estivesse morto, minha pombinha? Não iria me encontrar com nossos deuses
sem revê-la e abraçá-la antes da sua partida para o distante país da França.

Os braços da princesa deixaram o pescoço do velho. Sveinald balançou a cabeça com uma expressão compreensiva.

- Pode ir, não se preocupe, minha pequena Ana. Tudo correrá bem. Tenho pensado em você. O que vou lhe dar lhe trará felicidade e fará com que se lembre de Novgorod.

- Jamais esquecerei Novgorod, não preciso de um presente para isso!

- Sei muito bem, mas olhe, assim mesmo. Dois servos trouxeram uma arca em que estavam pintados São Jorge e seu dragão diante das muralhas da cidade.

- Mas é lindo! - exclamou Ana, abrindo-a. Esculpida numa presa de morsa, a Virgem oferecia ao Menino Jesus em sua mão aberta... Novgorod! Não faltava nada, nem
as quarenta e duas torres da guarda, nem as vinte e seis igrejas, nem a catedral de Santa Sofia, nem o palácio de Iaroslav, nem a ponte sobre o rio, nem os fossos,
nem as muralhas. Ao final de uma longa contemplação silenciosa, Ana levantou a cabeça, os olhos molhados de lágrimas.

- Sveinald, é a coisa mais linda que já fez em sua vida!
- Também acho - respondeu simplesmente aquele a quem o imperador de Bizâncio encomenda estatuetas de marfim para ornamentar seus aposentos.

- Eu agradeço. Jamais ganhei um presente tão bonito e nada poderá jamais me comover tanto. Saber que Novgorod se encontra sob a proteção da Santa Mãe de Deus me
ajudará a deixar meu país.

- Tem razão, minha criança. Pode partir sem medo, pois, com ou sem a proteção de Deus, nossa amada pátria há de superar e vencer todos os perigos.

- Mas que isso não nos impeça de estarmos sempre vigilantes - interveio o príncipe Vladimir. - Afinal, estamos cercados por inimigos, atraídos pela riqueza de nossa
cidade.

- Senhor, que eles venham, estamos esperando! - gritaram alguns jovens, brandindo suas espadas.

- Sei muito bem, meus bravos guerreiros, que posso contar com vocês. Mas vamos embora, pois não é hora para clamores de batalha e cantos de guerra, mas sim para
a festa e a dança!

Uma explosão de alegria partiu dos grupos de moças em ricos trajes, bordados com fios de ouro ou prata, com sedas multicores.

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Vsevolod ajudou a irmã a voltar à sela e entregou a arca preciosa a um de seus capitães.

A multidão não penetrou na terceira paliçada. Só os notáveis, os príncipes e suas comitivas encaminharam-se para Santa Sofia, onde o bispo Louka Chidiata aguardava
na entrada, cercado por todo o clero.

Os príncipes inclinaram-se diante do prelado, que os abençoou antes de precedê-los no santuário onde entraram em procissão.

Os trabalhos ainda não haviam terminado e o espetáculo era deslumbrante. Centenas de chamas tremeluzentes proporcionavam vida aos personagens dos afrescos, o ouro
ressaltando as tintas frescas e fortes. O cheiro de tinta e círio era inebriante. À entrada do cortejo, o canto de regozijo elevou-se sob as abóbadas coloridas.
Ainda cobertos pela poeira do caminho, os kievianos ajoelharam-se em magníficos tapetes estendidos sobre o chão de lajes.

Apesar da beleza dos hinos, ícones e afrescos, Ana, exausta da longa viagem, acabou adormecendo. Uma cotovelada discreta de uma de suas damas de companhia trouxe-a
de volta a seus deveres. O ofício finalmente acabou. Depois de uma última bênção, o bispo retirou-se.

Nos aposentos das mulheres, Ana, revigorada pelos vapores perfumados do banho a que nenhum viajante podia escapar, deixou-se massagear pelo eunuco predileto de
seu irmão Vladimir, enquanto as servas e escravas tiravam das arcas de couro as vestimentas da princesa, soltando gritinhos de admiração pela excelência dos tecidos,
a riqueza dos bordados a ouro adornados com pérolas e pedras preciosas, o couro tão flexível dos calçados e a maciez das peles.

- Que roupa vai querer vestir, Ana, minha filha? Quem fez a pergunta foi uma mulher robusta e bonita, na casa dos quarenta anos, o rosto corado e encimado por
uma coroa de cabelos louros, com um véu por cima. Helena fora ama-de-leite da filha do grãopríncipe de Kiev e desde então nunca mais a deixara. Totalmente devotada
à jovem, que considerava como filha, Helena abandonaria tudo para acompanhá-la na ida para a França. Em Novgorod, sua cidade natal, deveria despedir-se dos pais,
honrados comerciantes.

As criadas disputavam com as escravas a honra de apresentar os trajes, a maioria procedente de Bizâncio, à irmã do príncipe. Ana escolheu o que a fazia pensar
no céu estrelado de Novgorod quando cintila, no início do verão, antes de ceder seu lugar às noites brancas, quando as moças encontram a maior dificuldade para
resistir à corte dos rapazes. Algumas não conseguem resistir, enfeitiçadas, dizem elas, pelas

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vily (*2), por ocasião das festas do verão que os antigos ainda celebram, apesar da proibição do grande Vladimir e da conversão do povo da Rússia ao cristianismo.
- Já chega! - disse Ana, empurrando as mãos do eunuco. - Pode ir embora!

O gordo homem levantou-se resfolegando, mas não tão depressa como gostaria Helena, que o enxotou com um gesto impaciente.

Duas jovens escravas, quase crianças, envolveram a princesa com uma toalha comprida e a ajudaram a acomodar-se num banquinho forrado com peles. Com as mãos ligeiras,
acariciaram os abundantes cabelos vermelhos, soltando gritinhos de admiração. Era mesmo bela a filha de Iaroslav, aureolada por uma cabeleira flamejante, que chegou
até o chão em duas passadas da escova. A toalha que cobria a princesa deslizou, revelando um corpo alvo, os contornos firmes de caçadora, os seios empinados,
as axilas e o púbis ornamentados por um manto de um castanho ardente. Ela se ergueu, sacudindo os cabelos, que fustigaram os rostos das duas pequenas escravas
agachadas a seus pés, segurando um pesado espelho. Uma das escravas inclinou-se e cochichou no ouvido da companheira.

- O que disse a ela? - indagou Ana. A menina ficou vermelha e baixou a cabeça. - Diga logo ou mandarei açoitá-la! - Oh, não! Por favor, não faça isso! - suplicou
a companheira. - Ela me disse que a princesa parecia com a roussalka (*3).

- Muito obrigada, mas a roussalka tem cabelos verdes; você quer dizer que os meus também são?

- Claro que não, princesa, mas é linda como ela e também toda...
- Continue. Por que está rindo? A outra apressou-se a socorrer a amiga. - Ela queria dizer toda... nua. Ana e Helena desataram a rir. Enxugando os olhos com um canto
da túnica, a ama-de-leite perguntou:

- Quer dizer que vocês viram a roussalka como eu estou vendo vocês? - Vimos, sim, e não tivemos medo! Estávamos escondidas atrás
dos juncos e a vimos com o didko (*4)...

- Eles brincavam de esconde-esconde com o vodianie (*5)...

*2. Vily, beregyni ou rusaiki: ninjas favoráveis aos homens, mas que podem, às vezes, mostrar-se hostis.

*3. Ondina de longa cabeleira verde.

*4. Espécie de duende, de gênio dos pântanos.

*5. Deus dos pântanos, que brinca de esconde-esconde.

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- Vocês não têm vergonha de contar essas histórias? - censurou Helena. - Não são cristãs?

- Deixe-as em paz e ajude-me a vestir-me - interveio Ana. - Você também é cristã e isso não a impede de honrar nossos antigos deuses.

- Não é verdade. Eu apenas conto as nossas velhas lendas. - Pode jurar pela Virgem Maria, a Santa Mãe de Deus, que nunca fez sacrifícios aos deuses do amor? -
indagou Ana, em voz baixa.

Helena deu de ombros. - Foi para garantir a sua futura felicidade. Os olhos tão claros, de um azul-verde, tornaram-se quase escuros, a boca sorridente se contraiu,
o rosto atraente de Ana ficou roxo de raiva.

- Não me fale disso! Eu proíbo! Todas se calaram diante da veemência de sua atitude. As servas vestiram-na em silêncio, tomando cuidado para não fazerem movimentos
bruscos. A própria Helena tomou o maior cuidado para não puxar os cabelos, que trançava com fitas e pérolas, presentes da rainha Ingegerde. Penteado concluído,
ela ajeitou sobre a cabeça bonita a coroa alta das princesas russas.

- Sorria, minha filha. Essa atitude é apropriada para você. Os lábios trêmulos esboçaram um sorriso que contradizia os olhos marejados de lágrimas.

- Oh, Helena! - Eu sei, criança, eu sei... Seu pai e sua mãe se sentem tristes por terem de se separar de você, mas deve obedecer. A França, pelo que dizem, é
um lindo país e o rei Henrique, um belo homem...

- Mas é tão longe... - Ah, infelizmente! - suspirou Helena. - Oh, desculpe! Esqueci que você também abandonará tudo para me acompanhar.

- Não diga mais nada! Não há a menor possibilidade de você ir para a França sem mim. E minha própria filha, Irene, não saberia ficar sem a mãe.

- A fim de recompensá-la, exigirei do rei, meu marido, que providencie um dote generoso para minha irmã-de-leite e lhe consiga um bom marido.

A perspectiva desse futuro casamento fez com que Ana esquecesse o seu e lhe devolveu aos olhos a doçura habitual.

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CAPÍTULO DOIS


A GUERRA CONTRA BIZÂNCIO


O salão de banquete, todo ornamentado com folhas de bétulas, estava resplandecente com a claridade das tochas fixadas por escravos nas paredes e portas. As pinturas
nas paredes relatavam em cores vivas as façanhas da princesa Olga. Essa avó sempre impressionara Ana por sua coragem e crueldade, assim como por sua sabedoria.
Sonhava em parecer-se com ela. Sobre as mesas compridas, cobertas por toalhas vermelhas, estendia-se a baixela de ouro e prata, em meio a folhagens e flores,
numa desordem colorida, aguardando os convidados de Vladimir.

Precedido pelos músicos, o príncipe de Novgorod entrou no salão em companhia da irmã, cuja mão se apoiava sobre a sua. Por trás vinham a esposa do príncipe, Sigrid
da Suécia, e Vsevolod, seguidos pelo bispo Louka Chidiata, pelos membros da Viétché (*1) e suas esposas ou filhas, vestidas em pesadas túnicas bordadas em cores
fortes,
os cabelos trançados com fitas, a cabeça encimada por uma tiara mais ou menos alta ornamentada com pedras preciosas, e pelos guerreiros da droujina (*2).

Vladimir instalou a irmã à sua direita e a esposa à esquerda. A um sinal do príncipe, um jovem guerreiro foi procurar na multidão um homem na casa dos quarenta
anos, o rosto marcado, vestindo uma túnica bordada em prata e um calção cinza-claro enfiado nas botas de couro vermelho.

- Seja bem-vindo, vofvode (*3) Vychata. Ana Iaroslavna se sentirá honrada se sentar ao seu lado.

- A honra será minha, grão-príncipe - ele respondeu, fazendo

*1. Assembléia popular.
*2. Tropa dos companheiros de armas do príncipe.
*3. Chefe de guerra.

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uma saudação e virando para a princesa as órbitas vazias.

Ana reprimiu um grito ao contemplar o rosto supliciado. - Por que vazaram os seus olhos? - E não se limitaram a me vazar os olhos, Ana Iaroslavna! - exclamou o
cego, erguendo o braço direito, cuja mão fora decepada.

- Isso mesmo, não foram apenas os olhos! - acrescentaram uma quinzena de outros guerreiros, também prisioneiros de uma noite sem fim, agitando os cotos direitos.

Houve um silêncio angustiado, enquanto cada um ocupava o seu lugar.

- Por que mutilaram esses bravos soldados? Foi Vladimir quem respondeu: - É assim que os bizantinos tratam seus prisioneiros. Aconteceu em 1043, há sete anos,
você ainda era uma criança. Tudo começou com um tumulto entre mercadores russos e bizantinos no bazar de Saint-Mammas, em Tsarigrado (*4). Um dos principais mercadores
de nossa cidade foi morto. Seus companheiros se reuniram e pediram a nosso pai Iaroslav que exigisse uma reparação do basileus Constantino, que recusou com altivez.
O povo de Novgorod, indignado, votou pela guerra e me designou para comandante. Avisei até na Islândia que Novgorod precisava de soldados para a guerra contra
a rica Tsarigrado; e vieram homens da Noruega, Suécia, Groenlândia. Cada um recebeu em moedas de ouro. Não demorou muito para que cem mil guerreiros subissem nos
barcos, tão apertados uns contra os outros que jamais foi possível determinar seu número exato. Acompanhados por um corpo de infantaria, sob o comando do bravo
Vychata, descemos o Dnieper, sonhando com os tesouros da cidade guardada por Deus, sob o céu sereno de um lindo mês de junho. A fim de permitir o reagrupamento
de todas as nossas forças, antes da travessia do Bósforo, lançamos âncora junto à fortaleza do Hiérion, abandonada pelas sentinelas apavoradas diante de tantos
bravos guerreiros prontos para investir contra a orgulhosa cidade.

- Esse atraso nos custou caro, grão-príncipe - comentou voivode Vychata, em tom furioso.

- Tem razão, era preciso atacar sem demora. Num murmúrio crescente, cada guerreiro que participara da guerra deu sua opinião sobre o que deveria ter sido feito
naquele momento.

- Silêncio! - gritou Vladimir, levantando e batendo na mesa com o punho da espada. - Não é mais tempo de voltar no passado. Foi

*4. A cidade do Imperador": nome que os russos davam a Constantinopla até o século XVII. Imperador.

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por comum acordo que adotamos essa tática, assim proporcionando ao Monomaco, infelizmente, o tempo de que precisava para organizar suas defesas. Lembrem-se de
nossa recusa em escutar seus embaixadores, que suplicavam que não rompêssemos a paz já antiga entre nossos países. Assim que a recusa foi conhecida, milhares de
nossos compatriotas foram expulsos da capital, assim como incontáveis naturais das nações do Norte, suspeitos de quererem juntar-se a nós. Ao amanhecer do terceiro
dia, um domingo, nossa frota avançou pelo mar Negro, na direção da entrada do Bósforo. Nossos inimigos navegavam ao longo da costa da Europa. À sua frente estava
uma galera imperial pintada de púrpura, comandada pelo próprio Constantino. Passamos o dia frente a frente. À noite o basileu nos encaminhou novas propostas de
paz. Para depor as armas, exigi três libras de ouro para cada um dos meus guerreiros. Não recebemos nenhuma resposta. A noite passou na expectativa. Quando o dia
raiou, a linha de nossos navios estendia-se de um promontório a outro da baía, enquanto os gregos defendiam a entrada do Bósforo. Durante um tempo que nos pareceu
muito longo, as duas frotas mantiveram suas posições, num mar sereno. E, de repente, três galeras rápidas avançaram para nós. Foi o sinal para um formidável ataque.
Nossos navios atacaram em fileiras cerradas. Nossos guerreiros atravessavam as armaduras dos inimigos com lanças compridas, decepando cabeças, braços, pernas,
apesar da chuva de fogo líquido que incendiou sete de nossas embarcações. Nossa coragem e nossas forças pareciam prestes a conquistar a vitória quando uma tempestade
de violência inaudita surgiu do leste, acompanhada por ventos terríveis, lançando nossos navios contra os rochedos das ilhas Cianeus e os penhascos da costa, onde
naufragaram. Nossos guerreiros que conseguiram chegar a terra foram degolados pelas tropas concentradas na costa. O mar ficou tingido de sangue. O furacão destruiu
meu navio e fui recolhido pela embarcação de Ivã, o filho de Tvorimir. E logo a tempestade passou subitamente, como começara. Dei ordens para o reagrupamento do
que restava de nossa frota. Perseguidos pelos gregos, procuramos refúgio numa enseada da costa da Trácia. Escondidos, observamos a chegada de vinte e quatro galeras,
que logo atacamos com todas as nossas forças. Foi um combate de gigantes, sem misericórdia. Capturamos cinco navios inimigos, inclusive a nave-capitânia, comandada
pelo patrício Constantino Kaballourios, que foi morto, enquanto os outros eram postos a pique. Furiosos pela morte de tantos de nossos companheiros, massacramos
os sobreviventes. Bem poucos nos escaparam. Depois dessa vitória, decidimos voltar para nossa terra. Não dispúnhamos de embarcações em quantidade suficiente para
transportar seis mil guerreiros. Ficou resolvido que um grupo

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seguiria por terra. Com minha droujina, embarquei no meu navio com um aperto no coração por ser obrigado a abandonar tantos valentes companheiros numa situação
tão perigosa. Os olhos cheios de lágrimas, já ia dar a ordem para a partida quando o voiVode Vychata me disse: "Eu sigo com eles; se sobreviver, será com eles,
se morrer, será com a droujina."

- É verdade, foram essas as palavras que pronunciei - confirmou o vorvode. - Partimos na direção da terra russa, mas não conseguimos ir muito longe. Perto de Varna,
deparamos com o vencedor de Messina, o ilustre Katakalon Kékauménos. Lutamos como demônios, mas sucumbimos às forças superiores. Oitocentos dos nossos guerreiros
caíram prisioneiros e foram enviados acorrentados ao basileu Constantino. Diante do povo reunido, vazaram nossos olhos e nos cortaram a mão direita. E nossas mãos
foram se juntar, nas muralhas de Tsarigrado, às mãos já ressequidas dos prisioneiros do grande ataque.

Houve um murmúrio entre os ouvintes. - O grande Iaroslav assinou a paz e, ao cabo de três longos anos, os gregos nos mandaram para nosso país - continuou Vychata.
- é por isso que tenho os olhos vazados, Ana Iaroslavna.

Ana levantou e ajoelhou-se diante do voïvode, pegou seu braço mutilado e nele encostou os lábios.

Vychata repeliu-a. - Não quero a sua compaixão, filha de príncipe. - Pode estar certo de que não é compaixão, voiVode Vychata, mas a expressão de meu respeito
e reconhecimento.

- O som de sua voz me diz que é sincera. Deixe-me abraçá-la. De bom grado, Ana estreitou-se contra ele. - Continua tão linda como na última vez em que a vi? Ainda
era uma criança naquela ocasião. Lembro-me muito bem de suas faces coradas e dos cabelos de fogo, quando voltava da caça, junto com seu pai. Tem muita sorte, esse
distante rei da França, por tomar como esposa a mais bela filha de nosso país!

Ana ficou tensa, o que não escapou ao cego. - Está infeliz com esse casamento? - indagou, baixando a voz. - Uma ordem sua e me tornarei seu campeão para evitá-lo!

- Não, não, grande Vychata, eu me sinto muito feliz... - Nesse caso, vamos esquecer a guerra e seus massacres e beber à futura rainha da França! - exclamou o vorvode.
- Não vamos entristecer suas últimas horas entre nós com o relato de batalhas... ainda mais quando foram derrotas - murmurou, voltando-se para o príncipe de Novgorod.

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- O voivode Vychata está certo - declarou Vladimir, levantando sua taça. - Bebamos ao casamento e à glória de nossa irmã!

Todos ergueram as taças e beberam à felicidade de Ana, que se limitou a encostar os lábios na sua.

Iniciou-se então um banquete interminável, entremeado de música, apresentações de ursos amestrados, danças e lutas, em que os vinhos de Bizâncio mergulharam os
convidados numa alegre embriaguez, cada vez mais ruidosa.

Exausta, Ana retirou-se.

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CAPÍTULO TRÊS


VIÉTCHA


A noite nas muralhas de Novgorod estava magnífica, o ar doce e perfumado. Ana respirou com intenso prazer o cheiro de hortelã e limo. A lua iluminava uma paisagem
de lagos, charcos e o rio majestoso, que lhe eram tão familiares. Seus irmãos e irmãs preferiam Kiev a Grande, que Iaroslav construíra segundo o modelo de Tsarigrado.
Os viajantes diziam que as treze cúpulas e as cinco naves de Santa Sofia rivalizavam em harmonia com as linhas da catedral da capital bizantina. Incontáveis
pintores e escultores a embelezavam mês a mês, misturando as cenas religiosas mais tradicionais com cenas de caça, pesca e diversões. Até ela e suas irmãs haviam
posado para um pintor grego que iniciara na parede do prédio um vasto afresco mostrando o grão-príncipe de Kiev e sua família.

O que ela mais amava em Kiev eram as imensas florestas em torno da cidade, onde a caça abundava. Ana não perdia para ninguém na caça. Amazona intrépida, era incomparável
na busca de lobos, cervos ou javalis. Em Kiev, todos ainda se lembravam da maneira como ela atacara um auroque, o touro selvagem da Lituânia, desgarrado no bosque,
longe das planícies em que vivia. Sua lança se partira no pescoço do animal. Enlouquecido pela dor, o touro atacara o cavalo, estripando-o. Com o choque, a princesa
fora projetada contra uma árvore. Apesar de um ferimento na cabeça, levantara-se com um punhal comprido na mão, pronta para enfrentar o monstro. Cega pelo sangue,
só fora salva pela coragem de um jovem guerreiro da droujina de seu pai. Ana ainda podia vê-lo, pulando no lombo do touro, golpeando-o com várias punhaladas, antes
de degolá-lo. Iaroslav cumulara o jovem de presentes e Ana o aceitara como seu companheiro de caça.

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Educada da mesma maneira que os cinco irmãos, partilhando suas diversões e estudos, ela não se considerava diferente de um rapaz; por isso, ficara muito angustiada
no dia em que a mãe, Ingegerde, resolvera mantê-la confinada nos aposentos das mulheres, para ensiná-la a bordar, fiar a lã e se comportar como uma moça de sua
posição. Assim enclausurada em companhia das irmãs, da mãe e de inúmeras servidoras e escravas, Ana escutava as lendas que as mais velhas contavam, durante as
intermináveis noites de inverno. A vasta sala, aquecida e confortável pelo fogo aceso, almofadas macias, tapetes e peles, era invadida pelos antigos deuses e gênios
da Rússia. Primeiro Péroun, com sua máscara de ouro e bigode de prata, a quem os príncipes russos e seus seguidores prestavam juramento, deus da guerra e do trovão,
um deus terrível, ao qual se ofereciam sacrifícios humanos. As ouvintes ficavam arrepiadas ao relato de suas cóleras. Mais amável lhes parecia Svarog, deus do
sol e do fogo, que algumas chamavam de "andarilho do céu". Ao mesmo tempo deus da poesia, dos oráculos, do gado e do ouro, Volos era um deus afável, mas podia
tornar-se terrível, quando se aliava a Péroun. Mais familiar era Mokos, a deusa sempre benfazeja que presidia aos trabalhos domésticos e à fiação. E todos sucumbiam
às ninfas, criaturas adoradas pelos habitantes da Rússia, contra as quais os bispos lutavam sem nada conseguir; habitavam florestas e lagos, mas também casas,
onde gostavam de fazer brincadeiras, esconder objetos, contrariar os apaixonados. Na sala aquecida, havia risos e exclamações alegres, sob o olhar indulgente
de Ingegerde. Ana ria com as irmãs, mas não tardava a adormecer, junto de sua roca, sonhando com caçadas e galopes desenfreados. Às vezes ela escapava para se juntar
ao pai, em seus aposentos atulhados de objetos de arte e livros. Grande leitor, ele passava boa parte de seu tempo na biblioteca do palácio, em companhia de tradutores,
copistas, poetas, historiadores ou pintores. Iaroslav gostava de dizer:

- Os livros são como rios que banham a terra inteira; são as fontes da sabedoria.

Pai e filha liam as Sagradas Escrituras e as obras dos grandes mestres da Igreja, mas também liam as crônicas e romances traduzidos do grego ou do búlgaro.

A mãe e as irmãs, até a própria Helena, zombavam de sua afeição à companhia dos sábios encanecidos que cercavam laroslav, anciãos que exalavam, dizia Elisabete,
um cheiro de bode e incenso. O mais fedorento era o sábio monge Hilarion, a tal ponto que se podia senti-lo de longe.

A essa lembrança, Ana desatou a rir. Era verdade, Hilarion fedia como um bode! - Por que está rindo?

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Ana teve um sobressalto. - É você, Filipe? Você me assustou. - Desculpe. Os convidados do príncipe especulam sobre a sua ausência e receiam tê-la aborrecido com
o relato de suas batalhas.

- Mas que idéia! Relatos desse tipo nunca me aborrecem. - Pensei que as moças preferissem as histórias de amor. Felizmente estava escuro e ele não podia vê-la
corar. Ana assumiu um tom desenvolto para responder:

- É possível, mas não no meu caso. Isso incomoda você? - Incomoda. A noite não permitia ver o rosto do jovem, apenas seus olhos brilhavam e pareciam querer penetrar
nos de Ana.

- Não me olhe assim. - Desculpe... mas muito em breve não a verei mais. - Cale-se! Ordeno que não fale mais nada. - Pode ordenar quanto quiser, eu não vou obedecer.
- Filipe! Esqueceu com quem fala? - Não, Ana Iaroslavna, não esqueci que você é a filha de meu senhor... e também não esqueci que vai casar com outro. Não consigo
deixar de recordar o doce momento em que a tive nos braços.

- Eu estava inconsciente. - É verdade, mas quando abriu os olhos me fitou com tanta intensidade...

- Isso é normal. Você acabara de me salvar dos chifres daquele terrível touro.

- ... e você murmurou... obrigada... - Era o mínimo que eu podia fazer - respondeu Ana, num tom sarcástico que escapou ao jovem guerreiro perdido em seus devaneios.

- ... e acrescentou: "Qual é o seu nome?" - Filipe! - Isso mesmo, você o disse com toda essa doçura. Fale de novo. - Filipe... Os braços balançando ao longo
do corpo, lânguida, dominada por um suave torpor, Ana, protegida pela penumbra, contemplou seu companheiro de caça como se o visse pela primeira vez: apenas um
pouco maior do que ela, os cabelos e a barba louros, olhos enormes e azuis, nariz forte e reto, dentes muito brancos, a boca de lábios cheios, ombros largos,
braços e pernas musculosos, tudo em sua pessoa irradiava uma impressão de extrema agilidade. Muitas vezes, rindo, ela o comparara a um esquilo, o que não agradava
a Filipe.

- Não creio que um esquilo pudesse salvá-la das patas do auroque! - ele resmungara.

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Seu ar furioso tanto a divertira, que Ana lhe dera o apelido de Viétcha'. Depois de um momento, o jovem acabara concluindo que era melhor rir também.

Por que parecia tão pesado o braço que Ana levantou para ele? Quando seus dedos tocaram no rosto de Filipe, também pareciam de pedra. Foram-se animando pouco a
pouco e deslizaram pela barba, tão sedosa que ela sentiu um arrepio. Era muito diferente da barba do pai, que arranhava a pele frágil de seus braços quando se
aconchegava contra ele, em criança. Filipe não ousava respirar, com medo de que a amiga interrompesse a carícia.

E por um longo tempo permaneceram assim, em silêncio, cada vez mais perturbados um pelo outro. Risos soaram nas muralhas e os trouxeram de volta à terra. O vento
começara a soprar. E como esfriara subitamente!

Desceram a escada às pressas. Helena esperava lá embaixo e lançou um olhar desconfiado para Filipe.

- O que fazia lá em cima com a princesa? - Pare com isso, Helena... É a última vez que contemplo as planícies.

- E contemplava sozinha com um rapaz, na véspera de seu casamento?

- Ora, pare de falar nesse casamento! Depois da visita do bispo franco, não consegue falar em outra coisa.

- Seu pai também não fala em outra coisa! Acha que ele ficaria satisfeito de saber que a filha se permitiu virar a cabeça depois que empenhou sua palavra?

Ana avançou para a ama-de-leite, os olhos faiscando de raiva. Helena não fez um movimento quando a mão gelada atingiu seu rosto.

- Sei quem é meu pai e sei de onde venho. Você me insulta ao pensar que eu poderia esquecê-lo por um instante sequer. Fui educada para ser rainha e, com a ajuda
de Deus, serei digna do lugar que Ele me destinou.

Ignorando Filipe, que batia em retirada, ela se virou e entrou no palácio, onde Vsevolod a acolheu com uma expressão preocupada.

- Onde você estava, irmãzinha? Nosso irmão Vladimir não está satisfeito com a sua longa ausência e seus convidados se espantam.

- Não se preocupe. Direi onde estava e todos compreenderão. No salão de banquetes fazia um calor que deixava a todos com os rostos vermelhos e brilhando de suor.
O cheiro de iguarias, vinhos e corpos era tão forte, o barulho tão intenso, que Ana parou no limiar. O Esquilo.

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O chefe da droujina do príncipe a viu, fez uma reverência e sinalizou para que o seguisse, abrindo caminho através dos convivas. Chegando perto de Vladimir, ela
lhe pediu que mandasse fazer silêncio. A um sinal de seu senhor, o chefe da droujina fez soar uma pequena trompa. No mesmo instante todos ficaram imóveis. Ana,
de pé, começou a falar:

- Meu irmão, meus amigos, sei que ficaram surpresos com a minha ausência, talvez aflitos. Peço perdão a todos. Eu estava nas muralhas, admirando pela última vez
a linda cidade de Novgorod. E me dizia que nada no mundo poderá jamais substituí-la, nunca conseguirei esquecê-la. A vocês que ficam aqui, eu confio esse tesouro,
que mostra ao mundo a grandeza do nosso povo.

Emocionada, Ana tornou a sentar, sob os aplausos dos convivas, que gritaram a uma só voz:

- Viva Ana laroslavna! Viva Novgorod! Vladimir levantou e também gritou: - Viva Novgorod! Viva a rainha da França! - Viva a rainha da França! - repetiu a multidão.

Os dias subseqüentes foram de festas, caçadas e banquetes. Os habitantes de Novgorod e seu príncipe não sabiam o que fazer para agradar àquela que em breve os
deixaria para sempre. Quando chegou o momento da partida, jovens e velhos correram para ver a passagem do cortejo; todos abençoaram Ana, muitos choraram. Duas
enormes carroças quase não eram suficientes para acomodar os incontáveis presentes dos mercadores, do bispo e de Vladimir.

Depois de um último olhar para a cidade que parecia flutuar num nevoeiro matutino, Ana esporeou seu cavalo. Filipe lançou-se em seu encalço.

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CAPÍTULO QUATRO


KIEV


Na capela, perto dos aposentos da mãe, Ana tentava se concentrar. Seus pensamentos sempre voltavam à noite anterior, quando seu pai recebeu, com grande pompa,
os embaixadores do rei da França: o bispo Gautier e o bispo Roger, acompanhados por um nobre cavalheiro, Gosselin de Chauny, que ali estavam para pedir sua mão
oficialmente, em nome do rei dos francos.

Os bispos haviam surpreendido por seu rosto raspado e pela cabeça tonsurada, o que não era o costume em Kiev. Por seu conhecimento de grego, logo conquistaram
o grão-príncipe e Hilarion, que também se mostraram sensibilizados com o presente enviado por Henrique para a catedral de Santa Sofia - um cibório de ouro delicadamente
lavrado, ornamentado com rubis e safiras, contendo um fragmento da Cruz.

Depois das saudações habituais e da entrega de presentes à noiva - tecidos de Reims, brocados de Flandres, rendas de Orléans, broignes (*1) de couro de Étampes,
capas
douradas de Corbie - os enviados manifestaram o desejo de levar a princesa para seu país o mais depressa possível, pois o rei e o povo estavam ansiosos por conhecer
sua nova soberana.

Saindo da França na primavera de 1050, haviam parado por várias semanas na Polônia, a pedido insistente do rei Casimiro, que gostava de recordar o abade Odilon
e o tempo que passara na abadia de Cluny, onde quase se tornara monge. O longo desvio até Kherson, para rezarem no túmulo de São Clemente de Roma e entregar ao
prior, Oldarico, preciosas relíquias do santo mártir, também os retardara. Quanto à etapa

*1. Espécie de couraças para proteger o peito.

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de Kherson a Kiev, fora bastante árdua, por causa do mau tempo e dos combates com os salteadores.

Por que partir tão depressa? Iaroslav ressaltou para os bispos franceses que eles precisavam de repouso, que o inverno não era uma estação para se viajar, que logo
chegaria a primavera e que então levariam quatro ou cinco meses para chegar à França.

- O rei quer casar com a princesa em Pentecostes. A audiência ficou aturdida. - Mas faltam apenas três meses para Pentecostes! - exclamou Iaroslav.

O bispo Roger, que anteriormente negociara o casamento, refugiou-se por trás da vontade do rei de França.

- Compreendo o seu desejo, mas é mais sensato esperar o bom tempo - insistiu o príncipe de Kiev. - A viagem será menos penosa para minha filha.

Pai querido! Ana sentiu vontade de abraçá-lo. Mas os enviados do rei mantiveram-se irredutíveis.

- O rei jurou sobre as sagradas relíquias que tomaria uma esposa no dia de Pentecostes - declarou Roger de Meaux. - Devemos partir nos próximos oito dias.

Todos, na corte de Kiev, embora consternados, tiveram então de aceitar a decisão.

Sobriamente vestida e acompanhada apenas pela irmã-de-leite, Irene, e por Filipe, Ana quis rever pela última vez os mercados do Podol, transbordando de iguarias,
especiarias, tecidos de lã e seda, utensílios de cobre, produtos de cerâmica, armas, peles e jóias, aplaudir a habilidade dos malabaristas e acrobatas, rir com
as cambalhotas dos ursos amestrados. Cada quarteirão possuía seu setor: o dos açougueiros, de cheiros fortes e repulsivos, as moscas zumbindo no verão, sempre
invadidos pelos cães, que os mercadores enxotavam a pontapés; o dos peixeiros, território dos gatos, inebriados pelos odores marinhos; o das especiarias, cujos
mercadores procediam da distante região de Bagdá e também vendiam perfumes às fascinadas mulheres de Kiev, e o incenso que se punha para arder diante dos ícones.
O mercado dos tecidos bordados era o ponto de encontro dos guerreiros nobres e dos negociantes ricos, acompanhados pelas esposas e filhas, que faziam deslizar entre
seus dedos as sedas furta-cor, os veludos, as fitas de todos os tamanhos, os véus de transparência irisada. Ana comprou um para Irene, combinando com a cor dos
olhos da moça. Para Helena, adquiriu um veludo

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de um castanho escuro, da tonalidade de seu cavalo predileto. Para Filipe, enfim, ela escolheu na oficina de um ferreiro famoso do Podol uma adaga, cópia de um
punhal árabe muito em voga, mas difícil de encontrar, mandando gravar na lâmina o nome do rapaz.

- Assim, quando encontrar uma jovem atacada por um auroque, terá a certeza da vitória - comentou, ao entregá-la.

Filipe aceitou o presente de cabeça baixa, corando. - Nunca mais salvarei uma moça de um auroque - balbuciou, enfiando a arma na cintura.

- Oh, Santa Mãe de Deus, rogue a seu Santo Filho para me dar as forças de que preciso para deixar meu pai e minha mãe, meus irmãos e minha linda terra, para esquecer
Filipe. Oh, meu Deus, faça com que eu seja uma esposa fiel e apaixonada, a digna descendente de Iaroslav e do grande Vladimir.

Mais uma vez, seu espírito escapou. Ela se viu novamente em companhia do pai, visitando o mosteiro de São Jorge, uma das numerosas escolas de Kiev que ele criara,
o Portão de Ouro, encimado pela igreja da Anunciação, as grutas de Lavra, escavadas nas margens rochosas do Dnieper, nas quais se recolhiam os santos monges, a
igreja construída por baixo, as fundações de um vasto mosteiro em construção, que o pai queria que fosse o mais belo e o mais importante de toda a Rússia. Iaroslav
o Sábio, cognominado "perna torta" por seus inimigos depois que, derrubado da sela em batalha, seu cavalo caíra sobre sua perna, quebrando-a em vários pontos,
convertera sua cidade num ponto de encontro e comércio, impressionando os estrangeiros pela riqueza de seus palácios e igrejas. Os próprios moradores de Kiev,
apesar de em sua maioria viverem sob o castelo, em Podol, em habitações rudimentares semi-subterrâneas, sentiam o maior orgulho de sua cidade. Rendiam graças
ao seu príncipe por ter mandado construir as novas muralhas, que lhes garantiam proteção no caso de uma invasão.

Ana teve um sobressalto ao sentir uma mão encostar em seu ombro; era o monge Hilarion, futuro bispo de Kiev. Absorvida em seus devaneios, não sentira desta vez
o odor particular - uma mistura de círio, incenso e corpo mal lavado - que sempre precedia o santo homem.

- Não está rezando de verdade, minha filha. Pensa que é fácil rezar quando insistem em aflorar no espírito os rostos daqueles aos quais se vai deixar, os lugares
em que se foi criada?

- Tenha coragem, criança. Sei que está ressentida, mas é dever de

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uma filha obedecer aos pais, fundar um lar. Um dia ela deve deixar seu pai e sua mãe, fazer com que a família do marido se torne a sua. Você vai honrar Nosso Senhor,
criando seus filhos na fé cristã, respeitando os servidores de Deus, distribuindo uma parte de suas riquezas à Igreja e sendo caridosa com os pobres. Siga o exemplo
de suas irmãs, que fazem a felicidade de seus maridos e súditos...

E como ela sentia saudade!... Elisabete, a mais velha, partira para ratar com Harald da Noruega - por quem Ana, quando criança, estivera apaixonada - que mantinha
Iaroslav e a família em suspense com o relato de suas atribulações através do mundo. E Anastásia, unida a André da Hungria, que promovera o batismo de todo o seu
povo. A tia Maria Dobrogneva, esposa do rei da Polônia, Casimiro. Infelizmente, os bispos franceses estavam com tanta pressa de levá-la para seu país...

Agora em silêncio, a jovem desatou a chorar, para grande irritação do monge, interessado apenas na importância fundamental do casamento: não reforçava as alianças
da Rússia com os outros países da Europa? As lágrimas de uma jovem não podiam prejudicar as aproximações necessárias à política de Iaroslav.

- Sua aflição é uma ofensa a Deus e a seu pai - disse ele, em tom seco e severo. - Não está se comportando como uma boa cristã nem como uma filha obediente.

Ana levantou-se, passando o dorso da mão pelo rosto úmido, palavras de cólera aflorando aos lábios.

Hilarion deteve-as com um gesto. - Trate de submeter-se, minha criança. É. na submissão a Deus, a seu pai e a seu marido que uma mulher encontra a paz.

Por que ela não nascera homem? Não era tão sábia quanto seus irmãos, à exceção de Vsevolod? E igualmente competente em cima de um cavalo? Na caça, na natação
e no arremesso da lança, não se comparava a todos?

- Ajoelhe-se e vamos rezar.

Trajando pesadas vestimentas bizantinas bordadas a ouro e adornadas com pedras preciosas, Ana assistiu no dia seguinte, como se estivesse num sonho, a uma cerimônia
em homenagem a seu casamento, antes da partida, na catedral de Santa Sofia.

Quando a longa liturgia finalmente terminou, atordoada pelos cânticos e pelo perfume de incenso, Ana levantou-se devagar. Acompanhada pelos bispos Roger e Gautier,
ela se encaminhou para o altar, onde se encontravam os membros do clero e sua família. Ajoelhou-se

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diante do bispo de Kiev, o grego Théopempte, que a abençoou, depois diante do monge Hilarion, em seguida diante do pai e da mãe, que a abraçaram. As lágrimas
de Ingegerde molharam seu rosto. A irmã Anastásia, recém-casada, tentou em vão sorrir através das lágrimas enquanto os irmãos assumiam expressões tão compenetradas
que ela de repente quase riu. Só as cunhadas, Oda de Stade, a mulher de Sviatoslav. e Gertrude da Polônia, casada com Isiaslav, mostravam-se felizes com seu casamento
que se aproximava.

Em cortejo, sempre flanqueada pelos bispos, empertigada no pesado traje, Ana deixou a basílica de Santa Sofia, A bela cabeça de cabelos vermelhos ostentava uma tiara
bizantina. Gosselin de Chauny e uma vintena de seus cavaleiros, as esporas retinindo no chão de mármore, a seguiam. Depois vinham Théopempte, Hilarion, Iaroslav,
Ingegerde, os príncipes, os guerreiros da droujina. As duas damas de honra, enviadas pelo rei Henrique para escoltarem a futura rainha, mantinham-se a distância.

Todo o povo de Kiev a esperava, apesar do vento glacial que soprava sobre a vasta esplanada e da chuva impregnada de neve que não parava de cair. O imenso clamor
envolveu Ana como uma onda de calor. Diante daqueles milhares de rostos avermelhados pelo frio, a jovem, arrebatada de amor, trêmula de ternura, ficou imóvel,
para melhor saborear aqueles instantes de alegria e dor ao mesmo tempo. As mãos cruzadas sobre o peito, as faces banhadas por lágrimas, Ana laroslavna rezou.

- Senhor, protege o povo russo e abençoa-o! O bispo fez um sinal, a multidão caiu de joelhos. Com um gesto amplo, Théopempte abençoou a todos.

A chuva aumentando, não era mais possível voltar ao palácio a pé, como fora previsto. Carruagens e liteiras conduziram a família e os convidados de Iaroslav, para
grande desapontamento de todos.

O banquete que se seguiu, espetacular, durou várias horas. Ana não conseguiu engolir coisa alguma. Não havia possibilidade, como fizera em Novgorod, de deixar
o salão, pois todos os olhos fixavam-se nela. O olhar ardente de Filipe, sentado à mesa da droujina, não a deixava um só momento. Com um esforço considerável,
Ana conseguiu sorrir aos gracejos dos irmãos, rir das palhaçadas dos bufões e das acrobacias dos ursos. As bebidas fortes finalmente foram servidas e os dançarinos
chegaram. Para as mulheres, os bispos e os monges, era o momento da retirada. Acompanhada pelas damas de honra francesas e pelas outras mulheres, a princesa deixou
o salão. Aquela era a última noite que passava no palácio de seu pai.

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CAPÍTULO CINCO


A PARTIDA


A liteira da princesa, levada por quatro cavalos fulvos, de peitoral grande e pernas curtas, presente de Iaroslav à filha, foi trazida. Dois escravos puxaram as
cortinas de couro. A poucos passos de distância, Filipe segurava Molnia pela rédea. A vista de sua dona, o cavalo sacudiu a crina e relinchou. Desligando-se dos
braços do pai, Ana correu para o animal e, apesar do manto forrado de zibelina que a estorvava, saltou para a sela e partiu a galope, derrubando em sua passagem
três pessoas que não se afastaram depressa o suficiente. Filipe, designado por Iaroslav para comandar o destacamento que escoltaria a princesa até Cracóvia, também
montou e foi em seu encalço.

Houve a maior confusão. O bispo de Meaux ordenou a Gosselin de Chauny que fosse atrás da futura rainha, junto com as damas de honra, que observaram contrariadas
as confortáveis liteiras se afastarem. As despedidas do príncipe e dos bispos foram precipitadas e, no tumulto, pouco protocolares. laroslav e os filhos mal conseguiam
se manter sérios ao verem os honrados dignitários tão agitados. Os bispos acabaram tomando a decisão de montar em seus cavalos e partiram, abençoando de passagem
a multidão que caía de joelhos. Por trás, a caravana organizou-se: liteiras, carroças transportando os presentes destinados ao rei de França, bagagens, víveres e
forragem. Quando o último cavaleiro passou pelo Portão de Ouro, o sol já estava alto no céu de Kiev.

Filipe alcançou Ana perto das muralhas da cidade. Molnia estava com os flancos sangrando. O animal, a princípio surpreso pelos violentos golpes das esporas, a que
não estava acostumado, reagira aumentando a velocidade. Agora, enlouquecido pela dor, tomara o freio nos dentes e Ana nada fazia para acalmá-lo. Alcançando-a, Filipe
conseguiu

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manter seu cavalo na mesma velocidade. Tirou os pés dos estribos, levantou-se na sela e, de um salto, atirou-se na garupa da princesa. Tomou as rédeas. Apesar
da sobrecarga, Molnia manteve mais algum tempo o ritmo desenfreado, até diminuir a velocidade, pouco a pouco. Finalmente parou, as patas trêmulas, uma espuma sangrenta
saindo pela boca, o corpo encharcado de suor. Ana e Filipe desmontaram. Esbaforida, trôpega, a princesa apoiou-se no animal. Os olhos fechados, tentou acalmar
as batidas do coração, indiferente aos tremores convulsivos de Molnia. Filipe, as mãos enfiadas na crina molhada, fitava-a irritado

- Por que agiu assim? Poderia se matar! Ana sacudiu a cabeça; não queria morrer, mas fugir daquela terra, que já não era mais a sua. Já que tinha de partir, que
fosse o mais depressa possível e sem se virar!

- Você não é digna de Molnia. Veja só em que estado o deixou. Afaste-se. É preciso cuidar dele.

Sem qualquer deferência, ele a empurrou bruscamente. - Por que me empurra assim? Oh, Molnia, perdoe-me! - Este não é o momento para se lamentar. Ajude-me a tirar
os arreios.

Com cuidado, os jovens retiraram a sela e se empenharam em estancar o sangue que escorria pelo ventre do animal.

- Calma, meu bem, calma... Eu não queria fazer mal a você... sabe disso... Calma, calma... Está com frio?

Ana tirava seu manto e o estendia no dorso de Molnia no momento em que russos e franceses os alcançaram.

Apesar do vento do galope e do bronzeado que escurecia suas feições rudes, Gosselin de Chauny estava pálido quando desmontou.

- Princesa, acaba de me dar o maior susto que já levei na vida, palavra de soldado e de cristão!

Ana não compreendeu, mas adivinhou o sentido da frase. Sorriu e pôs a mão manchada de sangue no braço do cavaleiro, que baixou a cabeça, subitamente contrafeito.
A fim de disfarçar o embaraço, ele tratou de examinar os ferimentos de Molnia. O olhar que lançou à futura rainha a fez corar por sua vez.

- Espero que trate os homens melhor do que os cavalos - murmurou o francês.

O resto da comitiva chegou ao local. Ajudados por valetes, os bispos desceram de suas montarias. - Graças à senhora, princesa, conseguimos partir antes da hora
- comentou o bispo Gautier, enquanto ajeitava seus trajes.

- Nosso rei ficará feliz ao saber com que pressa partiu ao seu

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encontro - acrescentou o bispo Roger. - Quanto a você, cavaleiro Filipe, nós lhe agradecemos por preservar a vida de nossa futura rainha.

Ana conseguiu conter seu impulso de impaciência. A chegada de Helena, Irene e das damas de honra proporcionou uma interrupção oportuna.

- Depressa, quero um manto, estou com frio! Diante de "sua filha" que tremia, Helena esqueceu o mau humor e virou-se para as servas.

- Apressem-se! A princesa vai ficar doente! Ela envolveu Ana com uma peliça de raposa, cujos reflexos prateados realçaram-lhe a tez e os cabelos.

Gosselin de Chauny, acompanhado por Gerber, o intérprete, inclinou-se diante dela e perguntou:

- Podemos continuar a viagem, princesa? - Como está meu cavalo? - Tão bem quanto é possível. Seu cavaleiro está cuidando dele. Dentro de alguns dias ficará recuperado.
Vamos embora?

Ana fez um gesto de assentimento e encaminhou-se para sua carruagem. Afastou as damas de honra que queriam se instalar na mesma carruagem.

- Helena, vá com elas. Prefiro ficar sozinha. Estou com sono. A ama-de-leite acomodou-a nas almofadas, cobriu-a de peles e puxou as cortinas de couro, prendendo-as
com firmeza. Não demorou muito para que o calor e o balanço da carruagem fizessem Ana adormecer. Nem uma só vez seu rosto voltou-se em direção a Kiev.

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CAPÍTULO SEIS


A VIAGEM


Durante os dez dias que durou a viagem até a cidade de Vladimir, em que Vsevolod era o príncipe, Ana só deixou a liteira para satisfazer as necessidades, por trás
de cortinas levantadas pelas servas. Durante as paradas noturnas, ela andava um pouco pelo acampamento, em companhia de Helena e Irene, visitava Molnia, que se
recuperava dos ferimentos e tremia de prazer ao sentir a mão de sua dona no pescoço. Todas as manhãs Filipe aparecia para indagar como ela estava passando, mas
Ana recusava-se obstinadamente a vê-lo.

A caravana chegou a Vladimir num domingo. A princesa, os bispos e a comitiva foram recebidos com toda consideração por Igor, seu primo, representante de Vsevolod.
Apesar do desejo do príncipe de manter sua linda prima ali por alguns dias, os viajantes retomaram a viagem no dia seguinte.

O tempo bom e o frio pareciam estimular as montarias, a menos que o ânimo demonstrado fosse uma decorrência dos chicotes dos guias búlgaros. Nunca mulas e cavalos
haviam percorrido distâncias diárias tão longas. O comboio chegou a uma região bastante acidentada, em que era preciso avançar com toda precaução, tanto por receio
das avalanches quanto por medo dos salteadores. Estes haviam escavado grutas por cima da rota percorrida pelas caravanas. Ao abrigo do vento e da neve, eram também
postos de observação, propícios a emboscadas. Gosselin de Chauny dobrou o número de batedores e os efetivos da guarda. Graças à vigilância incessante dos guerreiros
francos, alcançaram sem maiores problemas o topo do desfiladeiro, onde os monges haviam instalado

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um albergue. Os viajantes enregelados aceitaram agradecidos a espessa sopa de repolho fermentado que lhes foi servida.

A descida, no dia seguinte, revelou-se extremamente perigosa: havia desmoronamentos pelo caminho, o chão desaparecia subitamente sob os pés; uma mula e seu condutor
caíram num precipício, sem que fosse possível fazer coisa alguma para socorrê-los. Por muito tempo pôde-se ouvir os gritos do infeliz. Diante de tantos perigos,
Gosselin de Chauny deteve o comboio. Ana abriu as cortinas de sua liteira

- O que está acontecendo? - Princesa, não podemos continuar assim. Há o risco permanente de sua carruagem cair a qualquer momento num precipício. O melhor seria
continuar a pé ou nas costas de um homem.

- Nas costas de um homem? - gritou Roger de ChIllons, adiantando-se com dificuldade, atrapalhado com seu manto comprido de pele de raposa. - Não há a menor possibilidade!
Nossa rainha não pode viajar montada num homem, seria contrário ao, decoro e à dignidade real.

- Senhor bispo, há certas ocasiões em que devemos esquecer o decoro. Estou certo de que nosso rei preferiria essa solução a qualquer outra que arriscasse a vida
da princesa.

- Não vejo pessoa aqui que seja digna... - Há, sim, eu! Todos os olhos se viraram para o audacioso. - O pai da princesa, meu senhor Iaroslav, confiou-me a sua
guarda até o reino da Polônia.

Ajoelhando-se diante de Ana, Filipe acrescentou: - Ana Iaroslavna, aceita que eu substitua Molnia? O ligeiro rubor que coloriu as faces da princesa não passou
despercebido a Gosselin. Quando o intérprete explicou a sugestão, ele concordou a contragosto.

Apesar das dificuldades do caminho, Filipe marchou em passos firmes, não sentindo o peso do amado fardo, inebriado de felicidade por senti-la assim contra ele.
Ana, feliz por reencontrar aquele calor familiar, apoiava a cabeça naquela nuca forte e se deixava carregar, indiferente a tudo que não fosse aquele corpo, cada
movimento do qual despertava um eco no seu. Por trás, Gautier de Meaux, agarrado ao pescoço de um monge de corpulência impressionante, não desviava os olhos dos
dois.

Chegaram finalmente a Cracóvia, onde os boiardos da droujina patema deviam deixar Ana continuar a viagem sob a proteção exclusiva dos cavaleiros do rei Henrique
e de seu tio Soudislav, príncipe de Pskov,

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que Iaroslav, depois de mantê-lo preso durante longos anos por ter-se rebelado contra a sua autoridade, acabara de libertar, designando-o como seu representante
nas cerimônias de casamento da filha. Vinte guerreiros o acompanhavam, incumbidos de prestar-lhe todas as honras e ao mesmo tempo vigiá-lo, além do possadnik Ostomir
de Tchernigov, governador de Kiev. Um imenso banquete reuniu pela última vez russos e franceses.

O rei Casimiro e a rainha Maria Dobrogneva acolheram a sobrinha com um fausto desconhecido na austera corte polonesa, pois o rei preferia as longas discussões
teológicas aos repastos suntuosos. Não era a sobrinha que eles recebiam, mas a rainha da França, aquela França em que Casimiro e a mãe haviam encontrado no passado
um refúgio seguro, de onde ele saíra com profundo pesar. Graças àquela união, de que fora o instigador, e aos bons contatos que manteve com os enviados do rei
Henrique, ele esperava que se estreitassem os laços entre os dois países, mantendo a distância o imperador da Alemanha.

Em meio a essas festividades, Ana teve dificuldades para encontrar alguns momentos para se despedir de Filipe. Com a cumplicidade da irmã-de-leite, deu um jeito
de escapar à vigilância de Gosselin, que a observava com um olhar inquieto desde a agitada partida de Kiev.

Os jovens se reuniram numa pequena igreja isolada, na margem do Vístula. Os amigos de Filipe ficaram de guarda na porta.

Seria por causa da luz bruxuleante dos lampiões? Parecia que o rosto do rapaz mudara, estava mais encovado, mais duro; Ana não resistiu quando ele a abraçou.

- Eu não deveria vir... Meu coração se parte ao pensamento de que nunca mais verei você!

- Ana, deixe-me segui-la... Rasparei a barba e os cabelos... Dirá que sou um dos seus servidores... até mesmo um escravo.

- Não é possível, e você sabe muito bem. O senhor de Chauny e os bispos nunca aceitariam. Eles já perceberam a maneira como você me olha... a afeição que sinto
por você.

Filipe a apertou quase com brutalidade. Ana não pôde conter um grito: - Não faça isso! - E ao mesmo tempo em que falava, ela se
comprimiu contra Filipe. - Viétcha!

Como o esquilo das brincadeiras da infância, ele ia lhe escapar, deixando-a desamparada.

- Viétcha, meu querido Viétcha, abrace-me!

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Sem dúvida, o primeiro beijo seria seguido por muitos outros se Irene não entrasse abruptamente na igreja.

- Depressa! É preciso sair! Os monges estão vindo para cá! - Fique com este anel, Filipe, para se lembrar de mim. Não se sinta muito triste, Viétcha. Nunca mais
o esquecerei.

- Depressa, princesa, depressa! Irene arrancou Ana dos braços que tentavam retê-la e levou-a correndo pela ribanceira. Foi bem a tempo: os monges, entre os quais
se encontrava o bispo de Meaux, Gautier, que tinha vindo assistir ao ofício vespertino, já entravam na capela. Gautier reconheceu Filipe. Subitamente desconfiado,
ele olhou ao redor, mas avistou apenas, à luz tremeluzente dos lampiões, os três companheiros do boiardo de Iaroslav.

- O que está fazendo aqui, meu filho? - perguntou o bispo, em grego. - Por que essas lágrimas?

Com um gesto irado, Filipe enxugou os olhos. - É proibido rezar? - De jeito nenhum, meu filho. A oração proporciona o conforto. E espero que o tenha encontrado
neste lugar sagrado.

Contemplando a expressão desesperada do jovem, o bispo teve um ímpeto de compaixão.

- Vá em paz. Rezarei por você. Tanta solicitude deixou Filipe acabrunhado e ele saiu sem saudar o prelado.

Pensativo, Gautier de Meaux observou-o partir.

Chegando a seus aposentos, esbaforida, Ana encontrou a tia, Maria Dobrogneva, que a esperava, com uma expressão sombria.

- O rei meu marido já perguntou por você duas vezes. Como ninguém sabia onde se encontrava e para evitar mexericos, vim esperála aqui pessoalmente. Posso saber
onde estava?

- Oh, Maria, não me censure! Lembre-se de que era você quem me consolava quando eu era criança e meu pai me castigava!

Ana jogou-se nos braços daquela rainha só um pouco mais velha do que ela. Desta vez, no entanto, a tia a repeliu.

- Ana Iaroslavna, você não tem o direito de se comportar assim. Como eu, você é uma rainha e nada mais deve contar para você a não ser a glória do seu reino, a
honra do seu marido e a educação de seus filhos. Deve a isso todos os seus pensamentos. Esqueça seu pai e mãe, irmãos e irmãs, amigos, seu próprio país...

- Nunca!

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A veemência com que essa palavra foi pronunciada provocou um sobressalto na esposa de Casimiro, que tanto se esforçava por repetir a lição aprendida.

- Nunca, está me entendendo? Nunca esquecerei meu país! Maria deixou escapar um suspiro de alívio: não era algum amor culpado, mas a saudade do país que inspirava
à filha de seu irmão aquele comportamento inquietante.

- Não chore, minha querida. Eu também penso muitas vezes em nossa terra natal, mas meu dever está aqui, assim como minha felicidade. Meu marido, que conhece bem
o rei Henrique, diz que é um homem delicado, que gosta de belos trajes, jóias, dança e caça. Não são as coisas de que você também gosta?

Ana sorriu através das lágrimas. - Mas ele não é muito mais velho do que eu? - Os homens de mais idade dão os melhores maridos e se preocupam mais com os prazeres
de sua companheira.

- Posso imaginar. O tom era tão triste que Maria foi invadida por suspeitas. - Posso fazer uma pergunta? - Claro. - Por acaso não teria um apaixonado de quem
sente saudade? O rubor que dominou o rosto de Ana já era uma resposta. - Infeliz, vai se desgraçar por isso! - Não é o que você pensa. Amo Filipe como um irmão,
não como um amante. Meu pai sabe disso; se não fosse assim, jamais teria permitido que ele me acompanhasse.

- Meu irmão Iaroslav talvez conheça os seus sentimentos, mas andou errado ao ignorar os sentimentos de Filipe. Todo mundo sabe que ele ama você, a começar pelos
bispos.

- E daí? Não posso fazer nada! Pela primeira vez desde o início da conversa o rosto da rainha se desanuviou e um sorriso irônico iluminou o semblante severo.

- Não é a mim que você vai fazer acreditar nisso. Não se esqueça de que sou mulher, tive apaixonados antes de você. Mas não importa. A escolta enviada por seu
pai voltará amanhã e o belo Filipe terá de partir.

Ana virou a cabeça, passando e repassando os dedos pelos lábios que ainda guardavam a lembrança do beijo do amigo. Maria Dobrogneva bateu palmas. No mesmo instante
uma criada apareceu.

- Traga água para a princesa. Poucos momentos depois a jovem voltou, carregando uma bacia de prata com água perfumada.

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- Lave-se.

A própria rainha ajeitou-lhe os cabelos ruivos compridos e as pregas da túnica.

- E agora vamos embora. Meu marido deve estar impaciente.

Menos de cinco dias depois da chegada a Cracóvia os viajantes tornaram a partir. Ana não viu mais Filipe.

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CAPÍTULO SETE


O ENCONTRO


A viagem até Praga foi horrível: neve, chuva, frio, lama, carroças viradas, carruagens atoladas, cavalos atacados por lobos, homens atacados por salteadores, guerreiros
doentes arriados na sela, mulheres e bispos batendo os dentes, apesar das peles.

Cansada das queixas das damas de honra e dos gemidos de Helena e Irene, ardendo em febre, Ana preferia enfrentar a intempérie e cavalgar junto de Gosselin de Chauny,
por quem sentia bastante simpatia, apesar de seu caráter rabugento e desconfiado. Gosselin admirava sua resistência e se mostrava espantado, para grande diversão
de Ana, que exagerava à vontade sua indiferença pelos elementos, embora jamais recusasse a beberagem feita com vinho, especiarias e mel, na qual se mergulhava
uma espada em brasa, poção mágica que permitia a todos agüentarem o frio penetrante. Chauny obtivera a receita, cujo segredo guardava zelosamente, de um monge
errante e ladrão, que a forneceu em troca de sua vida poupada. O primeiro gole do líquido escaldante aquecia o corpo da cabeça aos pés, o segundo proporcionava
alegria e levava a achar a vida bela; quanto ao terceiro... apesar de suas súplicas, Ana nunca conseguiu tomá-lo.

Através daquelas paisagens sinistras e desoladas, povoadas apenas por fantasmas e ninfas perversas, garantia Helena, fazendo o sinal-dacruz, o comboio avançava
penosamente. A ama-de-leite jurou ter avistado Sviatopolk, o assassino dos filhos de Vladimir o Grande, Bóris e Gleb. Ele enlouquecera, sofrendo mil tormentos enviados
pelo céu, como punição por seu terrível crime. Sua alma amaldiçoada acompanhava a caravana, atraindo as tempestades. A fim de acalmar os espíritos, o bispo

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Gautier rezou as orações que expulsam os demônios e despacham os condenados para o inferno.

Em Praga, o Moldávia estava em cheia, empurrando enormes blocos de gelo, que derrubavam o que a água ainda não arrastara. Bretislau I estava em visita ao imperador
Henrique III, a pedido insistente do papa Leão IX. Roger de Châlons e Gautier de Meaux manifestaram seu desapontamento ao bispo de Praga. Este, assoberbado por
pedidos de socorro que chegavam de todas as partes, não pôde conceder a seus colegas e à noiva do rei de França toda a consideração que lhes era devida e os relegou
aos cuidados de sacerdotes subalternos. Dois dias depois, apesar das doenças e do mau tempo persistente, a pequena caravana retomou a marcha.

A viagem até Nuremberg transcorreu sem novidades. O duque da Baviera enviou ao encontro da futura rainha da França uma importante delegação, chefiada pelo arcebispo
da cidade. Ele também apresentou à filha de Iaroslav as desculpas do duque, igualmente detido junto ao príncipe e desolado por não poder, em pessoa, apresentar
à princesa as honras da cidade. Ana e suas companheiras foram conduzidas aos aposentos reais do arcebispado. Ela mergulhou com a maior satisfação num banho perfumado.
Foi um intenso prazer usar de novo roupa branca passada.

Ana lembrou que a mãe Ingegerde tinha uma devoção particular por um monge solitário, São Sébald, que o povo alemão venerava e considerava um dos seus primeiros
apóstolos. Seu túmulo, ao que se dizia, era um lugar de milagres. Ela desejou visitá-lo para rezar, sem uma escolta particular, acompanhada apenas por Helena, dois
escudeiros e um guia. Gosselin de Chauny, não sem protestos, acabou cedendo, diante da obstinação da jovem. é verdade que a igreja onde estava sepultado o santo
não ficava muito longe da catedral. Ana montou em Molnia e o pequeno grupo partiu.

O tempo estava bom e frio. Atrás do guia, Ana e seus companheiros passaram pelos portões da cidade, saíram a trote e depois a galope através de uma pequena campina,
antes de entrarem numa floresta em que as copas das árvores escondiam o céu. Helena, espantada, interrogou o guia: seguiam na direção certa? Pensava que o túmulo
ficava na própria cidade. Não, respondeu o guia, com um aceno de

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cabeça. Constatando que nem sua ama nem os escudeiros pareciam preocupados, Helena concluiu que devia ter-se enganado.

Ana, absorvida no prazer de galopar, distanciou-se dos companheiros, apesar de seus gritos. Não demorou muito para que estivesse fora do alcance de suas vozes.
Conteve o cavalo, saboreando aquele momento de solidão e silêncio. Subitamente, Molnia ficou imóvel, orelhas erguidas, o corpo tremendo. Um barulho de cascos invadiu
a floresta, um bando de cervos passou à sua frente, em corrida vertiginosa. Eram uns vinte animais, liderados por um macho magnífico. O instinto precipitou Ana
em sua perseguição. Inclinada sobre o pescoço de Molnia, indiferente aos galhos que batiam em seu rosto, Ana voltara a ser a caçadora de Kiev. Absorvida no galope,
não percebeu a princípio que um cavaleiro a acompanhava. Só tomou conhecimento de sua presença no momento em que ele a ultrapassou. Surpresa, depois furiosa, ela
comprimiu os flancos de sua montaria, que aumentou a velocidade e alcançou o insolente. Durante alguns instantes eles galoparam emparelhados, num ritmo infernal.
Ana gritou nas orelhas de Molnia, que deu um pulo vigoroso e saltou uma vala larga, deixando para trás o adversário. Um galho arrancou a faixa bordada que prendia
seu véu e foi bater em cheio no rosto do cavaleiro. Derrubado da sela, o homem caiu violentamente sobre as pedras à beira da vala. Ana alcançou o bando, que se
dispersou em todos os sentidos. Apenas um filhote ficou parado, as patas trêmulas, os olhos transbordando de lágrimas. Detendo-se diante do pequeno animal, o cavalo
escavava e relinchava, irrequieto. Ana desmontou e ajoelhou-se.

- Venha, meu pequeno, venha, não precisa ter medo... O filhote não fez qualquer movimento quando Ana o tomou em seus braços. Como seu coração batesse forte, o
corpo todo tremesse, ela o envolveu com seu manto e falou suavemente.

Um passo pesado fez estalar a terra gelada. Um cavaleiro estava de pé à sua frente. O rosto era uma máscara de terra e sangue. Ana virou-se para ele sem manifestar
a menor curiosidade. Fitaram-se por um longo momento. O homem fervia de raiva por ter perdido a corrida e caído do cavalo na presença de uma mulher. E ainda por
cima uma mulher que, em vez de cuidar dele, afagava um animal e não se preocupava em se ajeitar; uma mulher que exibia uma cabeleira que só um marido deveria
contemplar. Ana, por sua vez, se perguntava o que estaria querendo aquele homem que se metera em seu caminho. Ele falou com voz rouca, dizendo palavras que ela
não entendeu. Soou um grito próximo. O filhote estremeceu e também soltou um grito.

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- É sua mãe que chama você. Vá encontrá-la. Depois de dar um beijo no focinho macio, Ana soltou o animal, que fugiu através do bosque. Só então ela se levantou
e se aproximou do homem. Ele parecia bastante ferido. Ana encostou os dedos no rosto inchado e o homem tremeu. Ela examinou o solo ao redor. Foi colher um punhado
de musgo ao pé de uma árvore e molhou-o numa pequena fonte que jorrava num círculo de pedras. Fez sinal para que o cavaleiro sentasse e se empenhou, com gestos
cuidadosos, em limpar seu rosto, depois de tirar-lhe o elmo. Sem a terra e o sangue, foi possível constatar que os ferimentos não tinham gravidade, à exceção
do talho que se estendia do olho à orelha. Ana, perplexa, observou que o sangue não parava de correr.

- Deite-se - disse-lhe. Com uma expressão profundamente espantada, o homem obedeceu. Era de compleição robusta, um tanto grande, jovem, mas com feições rudes e
marcadas, vestido ricamente, embora com simplicidade; não tinha barba e os cabelos eram curtos. Observou a jovem desgrenhada procurar alguma coisa no alforje em
sua sela. Tirou um frasco, que abriu e levou ao nariz. Por seu ar de satisfação, o homem compreendeu que ela encontrara o que procurava. A jovem derramou algumas
gotas sobre um pouco de musgo e comprimiu o emplastro contra o ferimento. Manteve-o assim até que o sangue parou de correr. Os olhos meio fechados, o homem observou
a jovem inclinada para ele, os cabelos perfumados roçando seu peito. Não parecia com nenhuma das mulheres que ele conhecia, era maior, mais forte, tinha uma expressão
mais determinada, os gestos mais seguros, os cabelos mais espessos e, acima de tudo, era muito mais bonita! Fez um gesto para puxá-la para si, mas uma adaga apareceu,
ele nem percebeu como, na mão livre da jovem.

Subitamente, a clareira encheu-se de gritos e de relinchos de cavalos. Helena, os escudeiros e o guia ali estavam. Apesar de sua corpulência, a ama-de-leite saltou
antes mesmo que o cavalo parasse.

- Minha criança, minha criança, você não sofreu nada? Que medo me causou! Não tem pena de mim?

- Não me censure, Helena. Apostei uma corrida com este cavaleiro. Ganhei, ele caiu do cavalo e cuido de seus ferimentos.

- Estou vendo que cuida dele! Ficou gravemente ferido? Ana levantou o emplastro. - O sangue não corre mais... O senhor - disse Helena - teve sorte de cair junto
de minha ama. Ela é tão hábil em cuidar dos doentes que os pobres de nosso país a chamam de Mora.

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- Mora? - murmurou o ferido, antes de desfalecer. Helena adiantou-se. - Ele perdeu muito sangue. É preciso encontrar seu pessoal. Nesse instante um grupo numeroso
entrou na clareira e cercou-os. Um homem em hábito de religioso inclinou-se primeiro sobre o ferido.

- Que aconteceu com o duque? - Ele caiu do cavalo, ao que me parece - respondeu um dos escudeiros.

- Vocês são do país da França. O que fazem aqui? - E o senhor abade, o que faz? - Jovem insolente, sabe com quem está falando? - Não, mas imagino que estou lidando
com pessoas poderosas. Eu me chamo Arnault de Laon e aquele é meu irmão, Vítor de Dampierre. Somos da comitiva dos bispos de Châlons e Meaux, hóspedes do arcebispo
de Nuremberg. Mas... onde ela vai agora? Madame!... Espere, madame!

Os escudeiros saltaram em seus cavalos e se lançaram atrás da princesa, que se irritara com aquela conversa inútil.

- Adeus, senhor abade! - Arnault ainda teve tempo de gritar, antes de desaparecer pelo bosque.

O homem em hábito de monge deu de ombros e virou-se para o ferido, que abria os olhos.

- Mora! - O que disse, meu senhor? - Onde está a jovem que cuidava de mim? - Ela foi embora. Estava acompanhada por escudeiros franceses. - Quero encontrá-la!
- Não é possível, meu senhor. Devemos ir ao encontro do imperador o mais depressa possível. Só ele pode influenciar o papa em seu favor.

Aquele que o monge chamava de "meu senhor" levantou-se com dificuldade.

- Tem razão, abade. Mas eu daria de bom grado uma das minhas cidades para saber quem é aquela jovem.

- Sem dúvida uma das mulheres da comitiva da princesa russa que o rei Henrique mandou buscar para transformar em sua rainha.

O duque soltou uma risada. - Com um marido assim, a virgindade da pobre coitada não corre o menor risco. Mas se ela é tão bonita quanto a minha caçadora, estou
mais do que disposto a dar uma ajuda, em troca de serviços outrora prestados.

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- Meu senhor, está aqui na esperança de um casamento com a princesa Matilde. Não pode pensar em outra mulher...

O duque e o monge montaram em seus cavalos, segurados por escudeiros.

- Como sempre, abade, está com a razão. Vamos esquecer essa mulher que se chama Mora.

- Mora? - É o nome que lhe foi dado pela mulher que a acompanhava. - Mora... Mora... a feiticeira! - O que está dizendo? Não entendi nada.. - Pelo que me lembro,
Mora é o nome de uma feiticeira das lendas eslavas. Ela fica trançando os cabelos eternamente e usa-os para seduzir aqueles que se aproximam dela.

- A feiticeira Mora... É um nome conveniente, pois o perfume de seus cabelos me enfeitiçou. Iá!

As esporas e o grito arrancaram o cavalo do solo e o projetaram, relinchando de raiva e dor, através da floresta.

Ana e seus companheiros chegaram finalmente a uma humilde capela de madeira, onde um velho monge vendia relíquias de São Sébald.

- Este é o túmulo do santo? - perguntou Helena ao guia. - Não. Esta capela foi erguida no lugar em que ficava sua cabana; o túmulo fica na cidade. Pensei que era
aqui que a princesa desejava rezar.

Helena teve de fazer um esforço para não agredir o infeliz guia, que caíra de joelhos ao se dar conta do tremento erro que cometera.

- Suplico que não contem nada ao arcebispo, pois ele mandaria vazar meus olhos!

- E você não poderia escapar! - gritou Helena. - Tem sorte de que nada aconteceu com a princesa, senão eu é que vazaria seus olhos, lhe arrancaria a língua e o
coração!

Ana, que já entrara na capela, orou diante de uma tosca imagem da Virgem, iluminada pelas chamas trêmulas das velas de cera.

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CAPÍTULO OITO


FIM DA VIAGEM


Eles seguiram pelas densas florestas alemãs, tão escuras que tinham a impressão de que avançavam por trevas sem fim.

Em Ulm, como em Praga, o Danúbio estava obstruído por blocos de gelo. Perto de Tübingen, sofreram um novo ataque de salteadores, que fracassou graças à coragem
dos guerreiros da escolta; eles mataram uma dezena de pobres coitados que estavam armados com grossos porretes e boas espadas. Os franceses só tiveram a lamentar
um homem com ferimentos leves. O mais valente foi um homem de rosto mutilado, recrutado no caminho, e cuja fúria no combate foi notada por Gosselin, que o felicitou.
O homem resmungou e se afastou, limpando o punhal nas vestes esfarrapadas.

Os dias, cada vez mais longos, pareciam intermináveis. A chuva praticamente não parara desde a partida de Nuremberg: os cavalos caíam, liteiras e carroças atolavam,
as fogueiras tinham mais fumaça do que calor. Nada mais conseguia distrair Ana: nem as histórias de sua ama-de-leite, nem as conversas fúteis de Irene, nem as canções
das damas de honra, nem a música dos pajens, nem as aulas de francês do bispo Gautier, nem mesmo os pequenos animais desentocados por Gosselin.

Em muitas ocasiões, Gosselin descompôs os guias, acusando-os de não seguirem o mesmo caminho da viagem de ida. Os búlgaros limitavam-se a dar de ombros e continuavam
em seu percurso, no ritmo regular de seus pequenos cavalos baios, que possuíam uma resistência que os cavaleiros francos desconheciam. Alcançaram finalmente um
rio largo, que foi atravessado em balsas. No outro lado o ar parecia mais suave, o solo mais brilhante, a primavera prematura. Ana removeu as

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coberturas de pele e foi colher pequenas flores, muito perfumadas, cujo nome ignorava.

- São violetas - informou o bispo Roger. - Vi-o-letas... - murmurou ela, de maneira cômica. Depois de Praga, a princesa pedira aos bispos e damas de honra que
lhe ensinassem a língua de seu futuro marido, e mostrara-se muito dotada para esse aprendizado. Em menos de um mês conseguira não apenas se fazer compreender,
mas também era capaz de trocar algumas frases com as damas e com Gosselin de Chauny, a quem conquistara definitivamente. Ele seria apenas o primeiro de uma longa
lista de cavaleiros que se poriam de corpo e alma a serviço daquela a quem chamariam "nossa dama do país distante".

Desesperada pela partida de Filipe e dos boiardos, Ana tentava enganar sua tristeza e tédio com longas cavalgadas em companhia dos cavaleiros da escolta, sob os
olhos a princípio apreensivos e depois benevolentes dos bispos. SÓ Helena, que temia ao mesmo tempo pela saúde e reputação de sua pupila, desaprovava essas excursões.
Nas paradas, Ana pegava sua guzli e cantava, logo acompanhada por Helena e Irene, árias que punham no coração dos ouvintes uma melancolia indefinível.

Uma noite em que o desânimo dos viajantes era maior que o habitual, Gosselin de Chauny não pôde conter-se e exclamou:

- Mas que terra de choronas é a de vocês! A filha de Iaroslav não entendeu direito o sentido da frase e pediu ao intérprete que explicasse. Lançou um olhar furioso
para Gosselin e gritou algumas palavras em sua língua natal, batendo palmas. Helena e Irene levantaram, os guerreiros da guarda de seu tio aproximaram-se, alguns
com sua sopilka (*1), outros com sua guzli (*2) ou seu tzembalég (*3). a um gesto da princesa, todos se lançaram numa música arrebatadora e selvagem, empenhando-se
no que os
outros consideraram, com bons motivos, um espetáculo de bufões. Ana juntou-se a seus compatriotas, cantando, rindo e dançando, sob os olhares aturdidos dos francos,
que nunca haviam testemunhado algo parecido.

O bispo Gautier, que apreciava as artes - era conhecido como "Onisciência" - e recebia em sua residência, em Meaux, cantores e músicos, inclinou a cabeça, consternado
por aqueles acordes que incomodavam seus ouvidos e pela intimidade dos russos com a filha de seu príncipe. Quanto ao bispo Roger, este disse a si mesmo que com
um

*1. Espécie de guitarra.
*2. Espécie de flauta.
*3. Instrumento de cordas sobre as quais se bate com duas varetas.

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temperamento assim era inevitável que a futura rainha seduzisse o rei Henrique e não demorasse a conceber um herdeiro para o trono da França.

- Como pode ver, senhor Gosselin, não somos, como disse... choronas! - comentou Ana, as -faces vermelhas, quase sem fôlego. - Também sabemos rir.

Antes que ele tivesse tempo de responder, a princesa virou-se e foi se refugiar em sua carruagem.

Nos dias subseqüentes ela teve o cuidado de alternar cantos tristes e alegres, mexendo com os nervos e sentimentos do auditório francês. O duque da Alta Lorena,
Gérard d'Alsace, recebeu a noiva do rei da França, em companhia dos bispos de Metz, Toul e Verdun, saudando-a em nome de seu suserano, o imperador da Alemanha.
Depois de dois dias de festividades, os viajantes deixaram Toul, encantados com a acolhida.

- Princesa, eis a França! Então era assim a sua nova pátria? Ana, contra a opinião dos bispos, cavalgava junto de Gosselin, a quem não parava de interrogar:

- Por que essas pessoas se vestem tão miseravelmente? Por que são tão magras? Há muitas escolas? O que comem? Só vejo florestas; não há plantações de trigo?

Gosselin de Chauny não sabia o que responder. Nunca reparara que os camponeses eram magros. É verdade que houvera todos aqueles anos de fome e privações, mas depois
a ordem fora restabelecida. Quanto às escolas, eram raras e reservadas à nobreza.

- Na Rússia não é assim. Meu pai faz questão de que os filhos do povo aprendam a ler.

Aproximaram-se de Reims, onde Henrique e Ana deveriam encontrar-se. Os enviados comunicaram a impaciência do rei, que desejava que o casamento e a coroação fossem
realizados naquele dia mesmo. Roger de Châlons concordava com isso, ao contrário de Gautier de Meaux.

- É melhor que o casamento se realize o mais depressa possível - declarou o primeiro.

- É mais razoável esperar que a princesa descanse por alguns dias - protestou o segundo.

Gosselin interveio: - Estão esquecendo o juramento do rei? Os prelados baixaram a cabeça e se prepararam para entregar a seu soberano aquela rainha que haviam
ido buscar tão longe, à custa de

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fadigas e angústias, das quais esperavam extrair grandes recompensas para suas dioceses.

Ana e as mulheres foram conduzidas para um convento fora dos muros de Reims, cuja abadessa era parente de seu futuro marido.

- Minha prima, seja bem-vinda na casa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ficará aqui até amanhã, dia em que o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos. O rei, meu primo,
virá buscá-la pessoalmente.

- Eu agradeço. - Espero que sua curta estada entre nós seja agradável. Mandei preparar a sala de banho. As criadas estão à sua espera.

Banhada, massageada, perfumada, penteada, Ana, agasalhada num chambre forrado com pele de esquilo, passou a véspera de suas núpcias a escutar lendas de sua terra
e acalantos de sua infância; só ao amanhecer é que pensou em rezar a Deus.

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CAPÍTULO NOVE


O CASAMENTO, A COROAÇÃO (19 de maio de 1051, dia de Pentecostes)


O rei apareceu pouco depois do primeiro oficio, a que Ana assistira. Apesar de uma noite sem dormir, o rosto viçoso da jovem resplandecia sob a touca das princesas
de Kiev. Para o encontro com Henrique, ela se recusara a vestir qualquer traje que não um dos que trouxera de sua terra.

- Não estou interessada nas suas formalidades! - declarara aos bispos.

Assim, foi uma princesa vestida como uma imperatriz de Bizâncio que o rei da França viu adiantar-se. Era mais bela do que lhe haviam dito os bispos, também mais
intimidante, com seus pesados adornos, cravejados de pedras preciosas. Ana ajoelhou-se e beijou a mão de seu futuro marido. O rei a levantou e fez uma reverência.

- Seja bem-vinda ao seu reino, princesa Ana. - Eu agradeço, senhor. Então aquele era o marido a quem seu pai a entregava. Durante a viagem interminável, Ana o
imaginara de muitas maneiras: alto, gordo, baixo, magro, velho, feio, bonito, mas sempre com a segurança viril que caracterizava seus irmãos. E agora descobria
que o rei da França não era um homem nem grande nem pequeno, nem magro nem gordo, nem feio nem bonito, nem jovem nem velho, cuja voz áspera surpreendia, assim
como a languidez dos gestos e a boca de lábios muito vermelhos. Os olhos pretos, pequenos e inquisitivos, brilhavam naquele rosto insignificante, animado por uma
barba ruiva, com alguns fios brancos. A cabeça de cabelos compridos estava cingida por um diadema de ouro, incrustado com pedras preciosas, toscamente lapidadas.
As fitas que adornavam sua túnica eram tecidas com fios de ouro e seda branca, o manto

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púrpura, preso por uma fivela representando um leão, cobria a túnica verde, o calção comprido de seda, em listras vermelhas e verdes, moldava pernas bem torneadas.
Ana suspirou, pensando em Filipe.

Os valetes trouxeram os presentes do príncipe de Kiev para o rei da França. Um magnífico jacinto e um evangeliário precioso provocaram gritos de admiração.

Antes de seguirem para Reims, eles assistiram a uma missa na igreja do mosteiro, que acabara de ser construída graças à generosidade do rei. Os cânticos das religiosas
se elevaram, puros, sob as abóbadas ricamente coloridas. Quando o santo ofício terminou, o casal real, cercado pela nobreza, encaminhou-se para as liteiras, cobertas
por tecidos preciosos e puxadas por bois brancos, em cujos chifres estavam presas fitas vermelhas e douradas. Henrique ajudou Ana a acomodar-se na liteira em
que as almofadas desapareciam sob as flores.

Ao passo lento dos bois, o cortejo avançou, sob as aclamações da multidão; desde a véspera o povo aguardava para contemplar sua futura rainha, admirar o desfile
dos carros em que se encontravam damas da nobreza, rivalizando em elegância e beleza, bispos com longos mantos bordados. O rei seguia à frente dos cavaleiros,
em seu cavalo de desfile ricamente ornamentado, acompanhado por seu cavalo de batalha, conduzido por um escudeiro. O povo manifestava sem reservas seu prazer diante
desse espetáculo. Cercados por seus guerreiros, a cabeça coberta por um barrete de couro pontudo, ornamentado com tachas, em túnicas e mantos de cores fortes,
as pernas envoltas pelas correias dos calções compridos, espada ao lado, a mão esquerda segurando o escudo redondo com desenhos geométricos, lá estavam, magníficos,
todos os condes da França: Enguerrand, conde de Ponthieu, e seu filho Hugo Gautier, conde de Vexin, Geoffroi Martel, conde d'Anjou, Thibaud III, conde de Chartres,
Galem, conde de Meulan, Rainard III, conde de Sens. Todos avançavam sem olhar para a multidão. Quem mais se destacava era o conde de Valois e d'Amiens, Raul de
Crépy, cuja elevada estatura dominava o cortejo. Os gritos quase cessaram à sua passagem; e algumas pessoas na multidão até fizeram o sinal-da-cruz. Todo vestido
de negro, ele montava um cavalo coberto de azeviche; cercava-o uma guarda de elmo, usando cotas de malha de couro escuro sobre túnicas vermelhas, as pernas envoltas
em ferro, segurando um escudo com um dragão expelindo fogo. O grupo irradiava uma impressão de força brutal e perversidade. à passagem dos bispos Gautier de Meaux,
Roger de Châlons e Béroud de Soissons, a assistência caiu de joelhos, implorando bênçãos. O sol fazia faiscar o ouro dos adornos, o aço das armas e elmos, o verde
das campinas e até as muralhas de Reims, cujos portões

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foram abertos ao som dos sinos de todas as igrejas. A cidade estava toda embandeirada, em homenagem à jovem noiva, há tanto esperada.

O cortejo passou sob arcos de triunfo; ao longo de todo o trajeto homens de armas prestavam suas homenagens. Os habitantes da cidade de Saint-Rémy prorromperam
em aclamações. Ana observava curiosa seu novo povo comprimir-se à sua passagem. Não era muito diferente do povo de Kiev, talvez com trajes um pouco menos coloridos,
os homens um pouco mais baixos, mas as mulheres mais bonitas. Das janelas estreitas das casas de madeira pendiam tecidos de cores diversas, nos quais haviam pregado
flores, ramos de um verde brilhante, ou bordado os emblemas da cidade ou das corporações. Apesar da guarda, crianças esfarrapadas corriam ao longo do cortejo,
estendendo a mão. Ana fez um sinal para Gosselin de Chauny, que cavalgava perto de sua liteira; espantado, o cavaleiro aproximou-se.

- Senhor, não podemos dar alguma esmola a essas pobres crianças?

- Isso está previsto para depois das cerimônias, senhora. Todos os pobres da cidade serão convidados pelo rei para um banquete em comemoração ao seu casamento.

A princesa agradeceu com um sorriso. A multidão era cada vez mais densa, o repicar dos sinos se tornava ensurdecedor. Um odor de carne grelhada alcançou Ana. Ela
lamentou ter recusado a tigela de sopa oferecida pela abadessa depois da missa.

A liteira finalmente parou no lugar em que se erguia uma enorme igreja de construção recente, sob cujo pórtico estava o arcebispo de Reims, Guy de Châtillon, cercado
por numerosos bispos de capa e mitra, com a cruz, símbolo de autoridade e bondade, na mão.

O próprio Henrique veio ajudar Ana a descer da liteira. As damas de honra ajeitaram em seus ombros o pesado manto púrpura das rainhas, cujas pregas Helena amimou.
As duas trocaram um olhar aflito, reprimindo o desejo de se jogarem nos braços uma da outra. Com um sorriso cúmplice, Ana murmurou em sua língua:

- Estou com fome. Depois, virando-se, ela estendeu a mão firme para o rei, que parecia perdido nas pregas do manto com que os barões haviam acabado de vesti-lo.
Sobre um chão coberto de folhagem, o casal encaminhou-se para a catedral, ajoelhando-se ao alcançarem o tapete estendido nos degraus. O arcebispo abençoou-os,
um depois do outro, estendeu a mão enluvada, adornada com um anel que Ana e Henrique beijaram respeitosamente. Um cônego apresentou-lhes o livro dos Santos Evangelhos,
que

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eles também beijaram. Depois, levantando-se, entraram na catedral, seguindo Guy de Châtillon.

Os cantos retumbaram. Por trás do casal real seguia Liébert de Cambrai, que ia receber a sagração episcopal das mãos do arcebispo de Reims; depois vinham os outros
prelados e o restante do clero. Apesar da profusão de círios acesos, Ana teve a impressão de que estava escuro no interior do templo. Nada ali lembrava o esplendor
de Santa Sofia. A Virgem que a acolheu, no altar, tinha um ar rebarbativo, muito diferente da doçura altiva que irradiava sua imagem na catedral de Kiev; havia
ali pouco ouro e poucos ornamentos preciosos, mas os afrescos singelos eram vivamente coloridos.

Ajoelhados diante do trono, Ana e Henrique, os olhos fechados, se concentraram, enquanto os convidados dos reis, os príncipes, os bispos, os altos dignitários,
os cavaleiros que haviam realizado a viagem desde a Rússia e os homens do povo que haviam se esgueirado entre a guarda espalhavam-se pela catedral, tomando cuidado
para não pisarem no futuro bispo de Cambrai, estendido com os braços formando uma cruz, o rosto contra o chão. Quando todos se acomodaram, o arcebispo entoou o
Veni Creator diante da assistência ajoelhada. Todos se levantaram depois das ladainhas dos santos. O arcebispo, com o Evangelho nas mãos, aproximou-se então de
Liébert, acompanhado por seus padrinhos, os bispos Léotéric de Laon e Déodat de Soissons. Acolitado por eles, o arcebispo pôs o livro da Palavra Divina nos ombros
de Liébert. Num silêncio profundo, Liébert levantou-se já bispo, recebeu a mitra, o báculo pastoral, o anel e o Evangelho. Os cantos de ações de graças elevaram-se
para Deus.

- Minha alegria é imensa por ver a igreja de Cambrai confiada a seus cuidados. Por seu intermédio, um homem cujos méritos conheço, sei que a palavra de Deus será
sempre respeitada. Que Ele venha em sua ajuda nesta árdua missão pela qual rezaremos todos os dias. - Uma pausa, e Guy de Châtillon acrescentou, dirigindo-se aos
fiéis: - Louvado seja o Senhor.

- Louvado seja o Senhor - respondeu a multidão. Virando-se para Ana e Henrique, o arcebispo expressou sua felicidade por unir tão grande rei e tão nobre princesa,
mas lembrou que eles eram antes de tudo filhos de Deus e deviam viver no temor de desagradá-lo.

Ana escolhera para suas testemunhas Gosselin de Chauny e o possadnik Ostromir de Tchemigov, amigo de seu pai. Do lado de Henrique, a honra fora concedida a Balduíno
de Flandres, seu cunhado, e Eble de Roucy. Eles se adiantaram, rodeando o casal. Gautier de Meaux recebeu

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o consentimento dos cônjuges e abençoou-os, depois da troca dos anéis. O arcebispo de Reims, com a mitra na cabeça, segurando a cruz com a mão esquerda, virou-se
para a princesa de Kiev, que se adiantou sozinha e ajoelhou-se à sua frente. Damas da nobreza abriram a parte superior de seu traje, deixando à mostra o alto do
peito.

- Senhor, rogamos que abençoeis vossa servidora Ana, aqui presente, que vamos coroar rainha. Escutai nossas preces.

O arcebispo sentou diante de Ana, entregando a cruz a um assistente. Pegou com a mão esquerda a patena de ouro, em que estava o óleo sagrado. Com o polegar direito,
fez o sinal-da-cruz sobre a fronte e o peito de Ana, dizendo:

- Eu vos sagro rainha com este óleo santificado, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Oremos. Que Nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, que foi
ungido por Seu Pai com o óleo da alegria, de uma maneira mais extraordinária do que todos aqueles que participam de Sua glória, derrame sobre vossa cabeça, pela
efusão deste santo óleo, a bênção do Espírito Santo, e que Ele penetre em vosso coração, a fim de que, por esta dádiva visível e sensível, mereçais participar
dos bens invisíveis. Que assim seja.

Depois, pegando o anel real sobre a patena, benzeu-o e, inclinando-se para Ana, colocou-o no quarto dedo de sua mão direita.

- Recebei este anel que é o signo da fé e de vossa dignidade real, a marca do vosso poder, a fim de que, com sua ajuda, triunfeis sobre vossos inimigos e permaneçais,
com toda perseverança, na fé de vossos pais.

Tomou das mãos do bispo de Meaux o cetro, menor que o do rei, e colocou-o na mão que acabara de receber o anel.

- Recebei este cetro, que é a marca do poder real, chamado cetro da justiça e modelo da virtude, para bem conduzir-vos, a fim de que, com a ajuda d'Aquele cujo
reino e glória estendem-se por todos os séculos, passeis de um reino temporal a um reino eterno. Que assim seja.

Roger de Châlons adiantou-se agora, pegou a coroa no altar e, suspendendo-a sobre a cabeça de Ana, disse:

- Que Deus vos coroe com a coroa de glória e de justiça, que vos arme de força e coragem para que, abençoada por nossas mãos, cheia de fé e boas obras, alcanceis
a coroa do Reino Eterno, pela graça d'Aquele cujo reino e império estendem-se por todos os séculos. Que assim seja.

Concluída essa oração, ele pôs a coroa na cabeça da rainha. - Recebei a coroa de vosso reino em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a fim de que, rejeitando
a sedução do velho inimigo dos homens e vos precavendo do contágio de todos os vícios, sejais tão

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devotada à justiça, tão acessível à compaixão e tão serena em vossos julgamentos, que mereçais receber de Nosso Senhor Jesus Cristo a coroa do Reino Eterno, na
sociedade dos santos. Mantende-vos íntegra e firme na defesa do reino que Deus vos confia. Que Cristo, mediador entre Deus e os homens, encontre em vós uma rainha
fiel, para velar por Seu povo. Oremos: Deus da eternidade, fonte de toda a virtude, vencedor de todos os nossos inimigos, abençoai vossa servidora, que agora inclina
a cabeça diante de Vossa majestade. Conservai-a numa saúde sempre perfeita e perpetuai sua felicidade. Que Vossa servidora, Senhor Todo-Poderoso, obtenha a graça
da fecundidade, a exemplo de Sara, Rebeca, Léia e Raquel e de todas as outras santas mulheres que Vos serviram fielmente, pela honra do reino e a estabilidade
da Igreja de Deus. Sede seu socorro e proteção em todas as ocasiões, assim como de todos em cujo favor ela suplicar Vossa ajuda. Fazei com que ela participe das
riquezas de Vossa glória; atendei seus bons desejos; cumulai-a com Vossa misericórdia e bondade e fazei com que Vos sirva sempre com devoção; por Jesus Cristo
Nosso Senhor, amém.

A nova soberana entregou as oferendas rituais: um pão, um barrilzinho de vinho, uma pomba, treze peças de ouro e os donativos para os pobres, carregados por quatro
cavaleiros sobre tavaroles (*1) de cetim vermelho, com franjas douradas.

O rei e a rainha voltaram a seus lugares para assistirem à missa cantada, celebrada pelo arcebispo, enquanto o capelão do rei oficiava uma missa simples numa capela
lateral. Ana comungou com fervor nas duas missas, pedindo à Virgem que lhe desse forças para sustentar o peso daquela coroa. Perto dela, Henrique parecia abatido.

Depois do ofício, o rei e a rainha deixaram os tronos e seguiram num grande cortejo para os aposentos reais do arcebispado, precedidos pelo preboste e seus guardas,
músicos, arautos, o mestre-de-cerimônias e os quatro cavaleiros que carregavam as oferendas; seguiam-nos a guarda e seus oficiais. Fascinado por essa procissão,
o povo não regateava nem gritos nem aclamações.

*1. Toalhas guarnecidas de rendas, utilizadas em batismos e na distribuição de pão bento.

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CAPÍTULO DEZ


BANQUETE REAL


Chegando aos aposentos, Henrique fez uma reverência e deixou Ana aos cuidados de suas acompanhantes. Ela soltou um suspiro de alívio quando lhe tiraram o pesado
manto e pensativa, sem dizer palavra, deixou que a despissem. Todas respeitaram seu silêncio. Helena passou pelo corpo da rainha uma toalha macia, úmida e perfumada.
Mais uma vez, ela recusou os trajes oferecidos por Henrique, preferindo um dos que ganhara do pai. Escolheu um vestido que combinava com a cor de seus olhos,
o decote e as mangas debruados por fitas douradas, e um manto curto, branco, pintado com cenas campestres. Calçou botas de couro dourado, a cabeça foi encimada
por uma coroa incrustada de esmeraldas, com fieiras de pérolas e pedras preciosas diversas. Suas criadas francesas ficaram aturdidas com a magnificência daqueles
trajes, procedentes de uma terra que muitas consideravam selvagem, opinião que teria conseguido arrancar um sorriso da neta do grande Vladimir, se ela pudesse
ler seus pensamentos.

O mestre-de-cerimônias veio buscá-la, a fim de conduzi-la ao vasto salão do arcebispado em que se realizaria o banquete.

À sua entrada, todos fizeram silêncio, admirando a beleza daquela jovem rainha que vinha de tão longe e que avançava sozinha, de cabeça erguida, em meio a uma
corte cujos costumes não conhecia.

Ana foi levada a uma mesa em que já se encontravam a irmã do rei, a princesa Adélia, mulher do conde de Flandres, e sua filha Matilde, noiva de Guilherme, duque
da Normandia - que os inimigos chamavam de "o Bastardo" - a condessa de Crépy, a bela condessa d'Anjou, a condessa de Chartres e a condessa de Meulan, vestidas
em trajes de cores vivas, rebordados em ouro. Todas usavam véu, preso por

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uma coroa ou um diadema de ouro. Ana sentou numa cadeira com o encosto finamente esculpido. Os condes sentavam à sua mesa, os bispos na deles, e o pessoal da casa
real em outra. Na quinta mesa, a do rei, instalaram-se o arcebispo de Reims, o representante do rei da Suécia, o jarl de Vastergõtland, Ragnwald, que, além de
representar seu senhor, entregara a Ana um colar de jaspe da parte de sua irmã Elisabete, e a Henrique, da parte do rei Harald, uma espada de Namsos, o enviado
do rei da Hungria, André, o ban de Temesvar-Koppany, Hugo, o abade de Cluny, em nome do rei da Polônia, mas também do imperador da Alemanha, o conde de Sussex,
pelo rei da Inglaterra, Eduardo, os príncipes-bispos Amoldo de Rodez e Ebeherard de Trèves, o possadnik Ostromir e o príncipe de Pskov, Soudislav.

Anunciado pelos arautos, o rei da França entrou. O arcebispo abençoou a assembléia. A um gesto do soberano, o banquete começou, depois de todos terem lavado as
mãos em bacias de água morna, apresentadas pelos criados.

Numa lenta procissão, foram apresentados primeiro os pratos de caça: faisões cujas longas plumagens balançavam, cabritos assados parecendo prestes a saltar, de
tal modo a arte dos cozinheiros conseguira proporcionar-lhes uma espécie de vida, gamos mergulhados em molhos temperados, javalis com o pescoço ornamentado de
flores de açúcar, que provocaram gritos de admiração dos convivas. O trinchante real cortou a peça principal diante de seu soberano. De joelhos, os servidores
apresentaram as iguarias destrinchadas ao rei, que pôs um pedaço de cabrito num tranchoiri e ofereceu-o à rainha.

Em seguida vieram as aves domésticas, parecendo prestes a alçar vôo: patos com as asas estendidas, galos capados roliços, frangos [rufados, pombos no espeto.
Depois, os peixes: enguias enroladas, lampreias num caldo escuro, lúcios de goela aberta, salmões que pareciam saltar das ondas. E, finalmente, as sobremesas: tortas
múltiplas, cremes tremulantes, frutos cristalizados vindos do Oriente, tudo acompanhado por vinho branco aromatizado com mel, que subia à cabeça.

Reinava uma alegre desordem: barões, bispos, cavaleiros, todos interpelavam os criados, reclamando esta ou aquela iguaria; estes corriam em todas as direções para
atender às exigências.

Ana comeu com um apetite que foi observado e comentado com muitos risos.

Ao final do banquete, o arcebispo de Reims levantou-se, apresentou seus agradecimentos e retirou-se acompanhado pelos bispos e sua

*1. Fatia de pão cozido sem levedo, com quatro dedos de espessura, que serve de prato para iguarias sólidas.

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comitiva, dando lugar aos saltimbancos e dançarinos. Apesar da gentileza de Matilde de Flandres, que a envolvia com perguntas que mal conseguia compreender e a
que respondia com um sorriso, apesar da mímica engraçada da condessa d'Anjou, Ana entediava-se e a todo instante levantava a mão para esconder os bocejos, cada
vez mais freqüentes. Não podia deixar de lançar olhares de inveja para a mesa do rei, onde prevalecia, depois da saída do clero, a alegria mais desenfreada. Henrique
parecia divertir-se intensamente com as caretas de três jovens escudeiros que haviam se juntado a ele desde a saída dos bispos. Ana teve a impressão de observar
um gesto de impaciência e mau humor de Gautier de Meaux e Roger de Chalons. E parecia-lhe que os olhares dos convivas a observavam agora com mais curiosidade do
que no início do banquete, desviavam-se para o rei e voltavam a se fixar nela.

A atenção de todos foi atraída pela chegada de um músico, acolhido por um murmúrio lisonjeiro e aplausos, para os quais o próprio rei deu o sinal, ao levantar-se.
O rosto do recém-chegado era de uma beleza angelical. Os anéis dos cabelos, de um louro cor de mel, caíam languidamente pelos ombros, enquadrando o rosto imberbe,
de lábios infantis e amuados. Não podia ter mais que quinze anos. Carregava com extrema graça a harpa dourada, ornada com uma cabeça de carneiro, segurando-a
com uma mão tão delicada que parecia a de uma moça. A túnica, muito curta, aberta na frente e atrás, em cujas bordas estavam pendurados pequenos pingentes de ouro,
deixava à mostra as pernas, moldadas por um calção de seda de um rosa suave. Os pés, pequenos, estavam metidos em sandálias de couro de Córdoba, de um verde que
combinava com a túnica.

- Ele está usando as suas cores - observou Adelaide de Crépy para a rainha Ana.

Servidores trouxeram um banco, no qual o adolescente sentou. Com um movimento gracioso, ele ajeitou o instrumento e levantou delicadamente seu plectro de marfim.
O rei recostou-se em sua cadeira e fechou os olhos.

Num silêncio total, o jovem tocou uma ária como Ana jamais ouvira. Era uma música ligeira, penetrante, que a fez pensar no vento passando pelas folhas novas das
bétulas, em Novgorod, na primavera. No salão de espessas tapeçarias, em que pairavam os cheiros dos molhos fortes e dos vinhos, foi como uma lufada de frescor.

O rapaz cantava com uma voz de ondina, ao mesmo tempo suave e insinuante. Ana não entendia as palavras, mas pelas expressões das damas concluiu que se tratava
de uma canção de amor. Mais tarde, foi uma canção viril, que fez os homens se empertigarem, olhos brilhando, punhos cerrados. Ele terminou sob uma tempestade de
aplausos e gritos

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entusiásticos. Foi inclinar-se diante de Ana e depois do rei, que lhe fez um sinal para aproximar-se. O soberano levantou-se e abraçou o rapaz, que corou como
uma moça. A condessa de Crépy e a condessa d'Anjou cochicharam alguma coisa, rindo. Matilde baixou a cabeça, lançando olhares furtivos para Ana. Outros músicos
entraram, o jovem sentou-se atrás de Henrique, cuja satisfação era intensa

Adivinhando a curiosidade da rainha, a bela condessa d'Anjou inclinou-se em sua direção.

- Chamam-no Olivier d'Arles, pois vem do país da rainha Constância, a mãe de nosso rei, que o considera como um filho.

- Por que vocês estavam rindo? - perguntou Ana. - Parem com essas intrigas estúpidas! - protestou a princesa Adélia. - Estão esquecendo que meu irmão é o rei!

- É rei enquanto nós quisermos - respondeu a condessa de Crépy. - Lembre-se de que as terras de meu marido são mais vastas que as do reino.

- Sei disso. Não se passa um dia sem que você e os outros nos falem nisso. Mas o fato é que ele é o ungido do Senhor e seu soberano.

- Belo soberano, que prefere a companhia dos homens à das mulheres!

- Cale-se! Está esquecendo que fala na presença da rainha? - Ela não entende nada - comentou a condessa de Crépy, dando de ombros.

Matilde pegou a mão de Ana, sorrindo. Era morena, pequena, um tanto franzina, com lindos olhos e um sorriso meigo. O gesto amistoso lhe fez bem. Ana também lhe
sorriu, enquanto o rei aproximava-se de sua mesa. Seu rosto retomara a expressão aborrecida que ele assumira depois de seu encontro. Será que ela não lhe agradava?
O rei não a achava bonita, digna de dar um herdeiro ao reino da França? Habituada desde a infância a ser adulada pelo pai e por seus irmãos, cortejada pelos amigos
deles - o marido de sua irmã Elisabete, o valoroso rei norueguês Harald, grande aventureiro e galanteador, não a apelidara de Mora, a feiticeira, nome que trouxera
de suas viagens pelo mundo? - Ana adorava as homenagens prestadas à sua beleza. Não notara, com uma perturbação pela qual prontamente pedira perdão a Deus, os olhares
audaciosos do sombrio conde de Crépy, marido daquela condessa que tanto irritava a irmã do rei? O rabugento Gosselin de Chauny não se tornara o mais apaixonado
companheiro de viagem, e os bispos Roger e Gautier não haviam sucumbido a seu charme?

- Madame, devemos retirar-nos. Ana pegou a mão estendida, com um sorriso.

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CAPÍTULO ONZE


RAINHA


Um enorme fogo ardia nos aposentos reais do arcebispo. Banhada, perfumada e penteada por suas aias, Ana fez uma refeição leve em companhia de Helena e Irene. Jovialmente,
despachara as damas de honra, desejando passar seus últimos instantes de donzela apenas com suas compatriotas.

Desde o momento em que vira o rei Henrique, Helena sentira uma profunda aversão por seus gestos efeminados, sua voz esganiçada e a ternura que demonstrava pelos
valetes e escudeiros. Mas era sobretudo o pouco interesse que ele manifestava por Ana, sua criança querida, que a deixava furiosa. Precisava fazer um esforço
para não deixar seus pensamentos transparecerem e sentia-se angustiada por ter que elogiar aquele homem, mesmo sendo ele o rei.

Ana não era boba, conhecia muito bem sua ama-de-leite, mas fingia acreditar em seus elogios. Mas quando Helena começou a explicar-lhe, em termos velados, o que
aconteceria na noite de núpcias, Ana interrompeu-a, impaciente:

- Não precisa se preocupar, minha amiga, sei o que vai acontecer. Observei meus irmãos agarrarem as servas e enfiarem seus membros nos ventres delas. Vi e ouvi
o prazer que sentiam. E venho aguardando este momento com a maior ansiedade. Se eu não fosse filha do grão-príncipe de Kiev, e se não temesse a Deus, há muito
teria perdido minha virgindade!

- Por Deus, você nada fez! Helena a contemplou com alívio, balançando a cabeça, enquanto Irene ria, com o rosto vermelho.

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- Houve ocasiões em que foi muito difícil - murmurou a amiga do boiardo Filipe, suspirando.

- É verdade, às vezes é muito difícil - concordou a ama-de-leite, viúva há muito tempo, suspirando mais alto ainda.

- E como! - arrematou Irene, suspirando também. Os suspiros apaixonados levaram as três a desatarem a rir, tão ruidosamente que não ouviram quando empurraram a
porta do quarto.

O mestre-de-cerimônias teve de bater com a bengala no chão várias vezes, antes que elas tomassem conhecimento de sua presença. Finalmente elas se viraram. O rei
ali estava, assim como o arcebispo, os bispos e os condes de França. As três mulheres coraram em confusão. Helena e Irene inclinaram-se numa reverência interminável,
enquanto Ana olhava para o grupo com uma expressão inquisitiva. Seu olhar cruzou com o do conde de Valois, cuja altura dominava os outros. Ele a contemplou com
tanto impudor, que Ana se sentiu despida e instintivamente cruzou os braços. O arcebispo de Reims interpretou errado o gesto e mal conseguiu reprimir um sorriso.
Ele se aproximou de Ana.

- Estamos aqui, rainha, para proceder à bênção do leito nupcial, a fim de que Deus lhe conceda, em Sua misericórdia, a alegria de conceber.

Ana recuou. Vestia apenas uma camisola comprida de tecido fino, quase transparente, presa nos quadris por um cinto dourado, cravejado de pedrarias coloridas. As
tranças de compridos cabelos ruivos ondulavam ao longo da camisola como duas serpentes douradas. Como era bela, aquela rainha vinda da fria terra das estepes! O
rei adiantou-se e pegou sua mão. Ajoelharam-se diante do prelado, na frente do leito coberto por lençóis macios. Guy de Châtillon orou:

- Senhor, tende compaixão deste homem e desta mulher que nós unimos pelos laços do casamento, que se tornem uma só carne e que, amando-se, perpetuem a raça dos
Vossos servidores. Amém.

Com um gesto paternal, o arcebispo abençoou-os e abençoou o leito que receberia seus corpos, a fim de que se repetisse aquilo para que Deus os criara: a multiplicação
para Sua maior glória.

E o clero, os condes, Helena e sua filha se retiraram. Ana e Henrique ficaram a sós. O coração da jovem pôs-se a bater mais depressa. Chegara o momento tão esperado
e temido em que um homem a transformaria em mulher! Todas as espécies de lembranças amontoavam-se em desordem na sua cabeça: moças perseguidas por rapazes nos
bosques de Novgorod ou nas florestas de Kiev, relatos ouvidos às escondidas, orgias de seus irmãos ou dos boiardos da droujina paterna, histórias indecorosas das

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amas-de-leite, suspiros de mulheres forçadas, grunhidos de homens possuindo corpos grandes e brancos, seios mordidos, coxas abertas, membros empinados, peitos
enormes cobertos de cicatrizes; cabelos emaranhados, tranças desfeitas...

Ana lançou um olhar para o rei, que tomava grandes goles de hidromel numa taça de ouro. Ele não tinha a expressão ansiosa que ela havia observado em outros homens
atormentados pela fúria do amor. seu ar era antes sombrio e entediado. Depois de esvaziar outra taça, Henrique finalmente a contemplou. É verdade que ela era linda;
os condes e os bispos haviam-no cumprimentado por sua escolha sensata, e Raul de Crépy tivera a desfaçatez de comentar que se ela não agradasse ao rei estava
disposto a tomar o seu lugar com a maior boa vontade! O comentário atrevido arrancara gargalhadas dos condes e sorrisos dos bispos. Se dependesse apenas dele, Henrique
não se incomodaria se o galante Raul desvirginasse a rainha. Mas era preciso garantir a linhagem; e disso o rei Henrique, que sentia apenas aversão pelo sexo feminino,
tinha plena consciência. Pela continuidade do reino da França legado por seus ancestrais, devia entrar no leito daquela mulher e fazer-lhe um filho, caso contrário
os condes, seu irmão Eudes, o bastardo da Normandia, e o imperador da Alemanha voltariam a entrar em disputa, com terríveis prejuízos para seus súditos que, há
tantos anos, sofriam com as guerras incessantes, passando de um soberano para outro, de uma miséria para outra, só conhecendo o descanso na morte.

Henrique finalmente adiantou-se e pegou as mãos de Ana. - Venha, minha rainha. Ele desamarrou o cinto dourado, depois o laço que prendia a camisola comprida,
que caiu no chão lentamente. Ana não tentou esconder o corpo nu e deixou-se conduzir até o leito, onde se deitou. O rei contemplou aquela nudez, alvoroçado, a contragosto,
com o triângulo dourado na base do ventre da rainha, espantou-se ao sentir que seu sexo se levantava diante do sexo de uma virgem. Tirou seu manto púrpura e a
camisa comprida. Nu como no dia do nascimento, estendeu-se sobre aquele corpo abandonado, que penetrou com um só golpe. O defloramento brutal fez Ana soltar um
grito, tentar repeli-lo. Mas o rei, comprimindo-a com todo seu peso, foi até o fundo, possuindo-a com um vigor que surpreendeu a ele próprio, até o momento em que,
soltando pequenos gritos de prazer, deixou o sêmen jorrar, enquanto Ana, o rosto oculto pelos cabelos, reprimia gemidos de dor.

Satisfeito por haver cumprido tão bem seus deveres para com a linhagem, o rei levantou-se e soltou uma risada de satisfação ao ver as coxas de Ana manchadas de
sangue.

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- Fizemos um bom trabalho, minha cara, e com a graça de Deus, daremos um herdeiro à coroa.

Ana não compreendeu o que ele dizia e não se importava com isso; estava se sentindo mal e só queria uma coisa: que o rei fosse embora. Mas Henrique não pensava
como ela; sem dúvida para melhor garantir sua descendência, por três vezes honrou sua dama. Quando contasse a façanha ao gentil Olivier e a seus graciosos escudeiros,
estes ficariam com certeza tão espantados quanto ele.

Na manhã seguinte, a rainha foi despertada em sobressalto pelo estrépito de vozes e risos. Henrique, apoiado nas almofadas do leito, cercado por seus favoritos
habituais, bebia com ar zombeteiro um vinho perfumado com especiarias. Percebendo que ela abrira os olhos, Henrique estendeu-lhe a taça.

- Beba, minha cara, isto vai recuperá-la das lides desta noite! Constrangida com os olhares dos companheiros de seu marido, Ana inclinou o rosto para a taça e
tomou um gole grande do líquido perfumado. Era quente, muito forte. No mesmo instante ela se sentiu melhor, a cor voltou às suas faces. O rei levantou-se, vestiu
a camisa estendida por um valete cujo nariz ele beliscou. E depois, sem mais um olhar para a rainha, retirou-se com as mãos na cintura de dois de seus escudeiros.

Sozinha, Ana deixou-se cair sobre os travesseiros. O silêncio no quarto era agradável. Mas seu bem-estar teve curta duração: as damas de honra entraram, seguidas
por Helena e quatro servas, carregando uma tina com água perfumada e fumegante.

- Dormiu bem? - indagou insinuante a primeira dama de honra, Hildegarde de Roucy.

- Passou uma noite agradável, rainha? - sussurrou a segunda, Isabel de Boutigny, rindo.

- Quantas vezes o rei a honrou? - perguntou a indiscreta Irene, valendo-se do direito que lhe conferia o leite materno partilhado.

- Querem calar-se? - interveio Helena. - Não percebem que a rainha está cansada e deseja repousar?

Enquanto falava, Helena deslizava a mão sob as cobertas. Ana sentiu um sobressalto ao contato dos dedos frios entre suas coxas, mas não protestou; sabia que seu
tio Soudislav aguardava o resultado daquela investigação, antes de voltar à Rússia, a fim de anunciar ao grão-príncipe de Kiev que sua filha honrara seu compromisso
e era agora mulher e rainha da França.

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Helena mostrou a uma gorda mulher seus dedos pegajosos e ensangüentados. A velha inclinou a cabeça e aproximou-se do leito. Puxou as cobertas com um gesto brusco.
O deslumbrante corpo alvo apareceu, tão manchado de sangue que se podia até pensar que estava gravemente ferido. A parteira abriu-lhe as pernas, apalpou por um
longo tempo o sexo dolorido, balançando a cabeça em satisfação.

- Nosso rei fez um bom trabalho - murmurou, limpando as mãos no lençol branco, enquanto uma lágrima rolava por seu gordo pescoço. - Pus no mundo os quatro filhos
de minha rainha Constância, não acreditava mais na bravura de nosso rei Henrique; mas agora, com a graça de Nosso Senhor e da bem-aventurada Virgem Maria, tenho
certeza de que nossa nova rainha nos dará filhos. Seja louvada, minha rainha.

A velha retirou-se, encurvada, carregando como um troféu o lençol ensangüentado, emblema da virgindade perdida da rainha.

O orgulho iluminou os olhos de Helena, enquanto contemplava "sua criança". Muito bem, aquele rei de modos femininos comportara-se direito! Acabara, como convinha,
com a virgindade da rainha, cuja expressão lânguida indicava que ele se mostrara bastante intrépido. Ela afastou as damas de honra e ajudou Ana a levantar-se e
entrar na tina. A água morna proporcionou-lhe tamanho bem-estar, que a rainha desatou em soluços.

- Chore, minha pombinha; as lágrimas, sejam de alegria ou de dor, acalmam as pessoas que as derramam.

- Cale-se! Não tenho a menor vontade de chorar, nem de alegria nem de dor. Estou apenas cansada. Mande Irene chamar o intérprete. Quero saber o que devo fazer
hoje.

Ana saía do banho no momento em que Irene voltou, acompanhada pelo intérprete, que um brusco empurrão arremessou no meio do quarto.

- Pela barba do Cristo, aquela megera da Brigitte ficou aquém da realidade! Você é muito mais bonita do que ela disse. O rei é um afortunado! Você conseguiu, onde
tantas outras fracassaram... Bravo, minha dama, deve ser meio feiticeira!

Imóvel, coberta apenas pelos cabelos, Ana fitou aturdida, depois com raiva, aquele homem que acabara de forçar a porta de seu quarto nupcial e lhe dizia coisas
que não compreendia, mas que sabia por instinto que era melhor não entender.

Hildegarde de Roucy e Isabel de Boutigny seguraram os braços de Raul de Crépy e tentaram obrigá-lo a sair.

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- Ora, minhas queridas, larguem-me! Estou aqui sem más intenções. É meu dever verificar se o rei cumpriu o seu.

- Senhor, não pode ficar aqui; seremos punidas por sua culpa! - Não se preocupem, minhas gentis damas, já vou retirar-me. Rainha, se a desagradei, peço perdão
de joelhos.

Unindo o gesto à palavra, o conde de Crépy ajoelhou-se diante de Ana.

- Se meus irmãos estivessem aqui, não sairia vivo deste quarto! Estou longe de meu país e não conheço os costumes daqui, mas vou aprendê-los, e, se descobrir que
me ofendeu, juro que me vingarei, por meu ancestral o grande Vladimir!

- Que disse ela? - perguntou o conde ao intérprete, sacudindo-o. Com voz trêmula, o homem traduziu. O conde desatou a rir. - É assim que gosto das mulheres: belas
e furiosas. Diga à rainha que ela não tem servidor mais devotado e fiel do que Raul de Crépy e que só depende dela que eu me torne seu protetor.

Ana ouviu atentamente o tradutor, sem desviar os olhos do conde, sempre ajoelhado a seus pés. Ele não era bonito, mas seu olhar difícil de sustentar projetava
clarões azulados como o aço; toda a sua pessoa irradiava uma impressão de força brutal, que a fazia lembrar dos mais cruéis companheiros de seus irmãos. Ela mostraria,
àqueles nobres da França, do que era capaz uma princesa de Kiev, mostraria que não era jovem que ficasse confinada aos aposentos das mulheres, em companhia de suas
damas de honra, ouvindo as histórias das amas-de-leite!

- Diga a esse arrogante senhor que ele me ofendeu e que não concedo o meu perdão. Diga também que o rei é meu marido e que não posso ter outro protetor a não
ser ele. E que se retire imediatamente.

Depois de ouvir o intérprete, o conde levantou-se, fez uma reverência profunda e saiu, com um sorriso malicioso.

- Vou punir a insolência desse homem - declarou Ana, com uma calma surpreendente.

- Rainha, deve vestir-se, há uma missa cantada na catedral, antes de sua partida para Senlis.

- Que disse ela? - perguntou Helena ao intérprete. - A condessa de Roucy diz que a rainha deve comparecer à catedral.

Com um ar sonhador, Ana deixou que as damas de honra lhe vestissem um pesado vestido de veludo púrpura sobre uma saia bordada com flores, ajustassem sobre seus
cabelos trançados com pérolas um véu preso por uma coroa de ouro e fixassem em seus ombros um manto azul bem claro, com galões púrpura e dourados.

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O bispo Roger veio buscá-la, acompanhado por Gosselin de Chauny. Ana sentiu-se satisfeita à vista daqueles dois homens a quem amava e respeitava. Beijou o anel
episcopal e sorriu para Gosselin, que se inclinou respeitosamente. Um grupo de damas e fidalgos enfeitados formava sua escolta. Ana notou que o conde de Crépy
não figurava entre eles.

O arcebispo de Reims esperava-a aos pés do altar. Ana ajoelhou-se para receber sua bênção. O rei chegou pouco depois. A missa começou.

Ana surpreendeu os olhos do rei pousados nela, expressando um misto de orgulho masculino e espanto. Um sentimento de embaraço dominou-a, fazendo-a corar e baixar
os olhos. Quando tornou a levantálos, deparou com os olhos do conde, que estava voltado para a assistência, perto do altar. E o que divisou naqueles olhos parecia
tão obsceno que um impulso de fúria a levou a adiantar-se. Henrique segurou-a pela manga.

- O que você tem, minha cara? Está se sentindo mal? - Não foi nada. A rápida cena não escapou à atenção do conde e da condessa de Flandres. Como todos ali, eles
temiam o poderoso fidalgo que era Raul de Crépy, conde de Péronne, de Valois e de outros lugares, sempre disposto a fomentar revoltas contra o neto de Hugo Capeto.
Lembravam-se da guerra prolongada entre o rei e o conde de Blois, apoiado por Eudes, irmão do rei, ressentido por não ter recebido nenhuma terra importante;
uma guerra que provocara ruína e desolação em todo o país e que não acabara com a morte do conde em 1037, recomeçando ainda mais virulenta com seus filhos, Étienne
e Thibaut, aos quais o conde de Valois emprestara sua ajuda. Caindo prisioneiro, o conde só recuperara a liberdade depois do pagamento de um vultoso resgate. Depois
disso, Henrique e Raul tornaram-se aliados, não hesitando em guerrear juntos, em proveito de um ou de outro. Balduíno de Flandres tratara de tirar proveito dessa
situação, mas a irmã do rei, Adélia de Flandres, sentia por aquele "maldito", como ela o chamava, um ódio implacável, que os desentendimentos passados não eram
suficientes para explicar.

Muito ligada ao irmão, Adélia sofrera com a atitude da mãe, que tentara em vão afastar Henrique do trono, não hesitando em acusá-lo do pecado de sodomia. Nas confrontações
diárias, o pai, o rei Roberto, consumira suas últimas forças, mas sua decisão acabara prevalecendo: Henrique seria rei.

Pelo irmão, Adélia aceitara como marido o conde de Flandres, que desde então tornara-se um aliado. Sempre para assegurar a paz do reino, ela se dispunha a entregar
sua filha Matilde ao bastardo de Roberto o

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Magnífico, o duque Guilherme da Normandia. Não queria mais testemunhar os sofrimentos acarretados pela guerra, pela fome e pelas epidemias que matavam tantos pobres.
Mulher forte, sua fraqueza chamava-se Henrique. Por esse irmão amado, a condessa, sempre boa e compassiva, podia transformar-se em justiceira, em assassina até.
Deixando o quarto nupcial, o rei fora procurá-la, a fim de fazer-lhe um relato detalhado da noite. Adélia o felicitara calorosamente. Se ao menos aquela princesa
de uma terra distante pudesse lhes dar um filho e afastar seu irmão dos belos escudeiros... O êxito daquela primeira noite convertera Adélia em aliada e amiga de
Ana. A condessa de Flandres decidiu tomar a jovem sob sua proteção. No momento, era preciso afastar o conde de Vaiais: Balduíno, seu marido, encontraria um bom
pretexto.

A missa terminou com mais uma bênção e o casal real deixou a catedral, sob as aclamações dos habitantes da cidade. No arcebispado, Ana despediu-se de seu tio,
o príncipe Soudislav, do possadnik Ostromir, dos boiardos, do enviado do rei da Suécia e do enviado do rei da Hungria. Com o coração apertado, ela entregou muitos
presentes para os pais e também uma carta para Vsevolod, em que pedia notícias de Filipe. Depois, ficou observando a partida dos últimos representantes da terra
russa. Só lhe restavam agora Helena e Irene.

Com trajes menos pesados, Ana recusou-se a viajar na sua liteira, preferindo cavalgar ao lado do rei.

O longo cortejo avançou sob os olhares deslumbrados do povo, que viera admirar sua nova rainha. Seduzido por sua juventude e beleza, o povo proporcionou-lhe um
cortejo triunfal, estimulado em seu entusiasmo, é verdade, pela distribuição de víveres e esmolas.

A viagem até Senlis durou dez dias.

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CAPÍTULO DOZE


SENLIS


Foi com alívio que Ana instalou-se em Senlis, no castelo em que o avô de seu marido fora proclamado rei. Estava cansada dos banquetes, das festas que todos achavam
que tinham a obrigação de oferecer-lhe a cada parada em todos os castelos em que haviam passado a noite. Ela, que gostava tanto de rir, cantar, dançar ou caçar,
sentia, entre aqueles franceses zombeteiros e brigões, um tédio que não passou despercebido a Gosselin de Chauny. Ele não sabia o que fazer para distraí-la. Na
véspera da chegada a Senlis, ela desapareceu por várias horas. Condes, barões, escudeiros, homens de armas e muitos outros puseram-se todos a procurá-la. Foram
encontrá-la sentada sob uma árvore, cantando com Olivier d'Arles. O rei teve um acesso de raiva, fez uma cena com o adolescente e com sua mulher. A suas censuras,
Ana opusera uma expressão serena e inocente, que não pressagiava nada de bom, na opinião de Gosselin e Helena.

Henrique manteve-se amuado até Senlis e, pela primeira vez desde o casamento, abandonou o leito da rainha. A irritação prolongou-se por mais uma semana, o tempo
para Ana se acostumar ao novo ambiente, que achou triste e austero. Mesmo assim, gostou da pequena cidade, elegante e alegre, com seu mercado transbordante de víveres,
seu rio aprazível, suas igrejas e, acima de tudo, as grandes expedições de caça na floresta próxima.

Helena, Irene, as damas de honras, a gentil Isabel, a coquete Hildegarde e a afetuosa Matilde, todas empenhavam-se em diverti-la, sem outra recompensa além de um
sorriso forçado. As únicas ocasiões em que voltava a ser a jovem despreocupada de Novgorod eram aquelas em

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que, em companhia de Gosselin de Chauny, saía em busca de caça na escura floresta do domínio real.

Em pouco tempo a rainha tornou-se a favorita dos cavaleiros e escudeiros, por sua habilidade em lançar o falcão ou perseguir o cervo. Todos enalteciam sua coragem
e competência. Disputavam quem cruzaria as mãos para servir-lhe de estribo, quem seguraria seu cavalo, quem estenderia a taça para saciar sua sede. Todos os dias,
por várias horas, ela se cansava em galopadas, deixando para trás suas damas, que, embora excelentes amazonas, não conseguiam acompanhá-la. Assim, Ana ficava
sozinha entre os homens, quase todos brutos que viviam de pilhagens, violações e mortes. O que não impedia que todos estivessem dispostos a dar a vida por um olhar
seu, e a matar quem ousasse faltar-lhe com o respeito. Ana sentia-se em segurança no meio daqueles homens, encontrava mais prazer em sua companhia do que na do rei,
dos condes, bispos e das mulheres nobres que residiam na corte em Senlis.

Ciumento da popularidade de sua mulher, Henrique também saía para a caça, constatando com um crescente desprazer que seus cavaleiros preferiam as caçadas da rainha
às Suas.

A condessa e os bispos, por sua vez, não gostavam dessas aventuras. O lugar da esposa do rei não era na floresta, mas em seu castelo, supervisionando o bom funcionamento
de seu lar, visitando os pobres, assistindo aos ofícios religiosos, ouvindo sermões piedosos, tocando música para distrair-se um pouco, bordando e fiando em companhia
de Matilde e das damas. Acima de tudo, seu dever era agradar ao marido.

No mês de junho, a corte foi para Meulan. Ana tinha pedido a companhia de Matilde de Flandres, cuja doçura silenciosa a descansava da tagarelice incessante das
outras damas de seu círculo.

Num dia em que as duas jovens se banhavam no Sena, junto com suas companheiras, foram perturbadas por vozes alteradas, além da cortina de salgueiros que as protegia
dos olhares. Em meio a risos e gritinhos de susto, as mulheres saíram da água, criadas e damas misturadas. Ana e Matilde, que se divertiam perseguindo-se, nada
perceberam e assim estavam sozinhas no momento em que um cavaleiro avançou pelo rio. A rainha franziu o rosto em fúria, enquanto Matilde cobria os seios pequenos
com as mãos. O homem pulou na água e segurou-a bruscamente pelo braço.

- é verdade o que me disseram, senhorita, que me recusa como marido porque sou bastardo? Sabe que damas muito mais nobres insistem para que eu me case com elas?

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- Senhor, largue-me, assim me desonra... Estou nua. - Posso ver, e devo dizer que a acho um tanto magrela! Matilde ficou vermelha e sua raiva lhe deu forças para
desvencilhar-se do punho brutal.

- Senhor, saia daí! Está ofendendo a rainha e minha filha! - Dama Adélia, prometeu ou não, assim como seu marido, que me daria sua filha em casamento?

- Sabe muito bem que prometi. - Nesse caso, que importância tem que a veja nua agora, em vez de esperar pela noite de núpcias?

- Senhor Guilherme, não passa de um... de um... - um bastardo, sei disso, já me disseram muitas vezes e não suportaria se...

As palavras morreram na garganta do duque da Normandia. Seus olhos desviaram-se para a companheira de Matilde. Fechou-os por um instante e sacudiu a cabeça, como
se quisesse escapar de um sonho. Não... era impossível! Uma semelhança, talvez, mas aqueles cabelos vermelhos, aquele olhar desdenhoso e selvagem?... A Mora!

- Mora! Ana avaliou com desdém o cavaleiro que a contemplava. Então era aquele o noivo de quem Matilde falara, um bruto que não hesitava em perturbar a intimidade
delas e contemplá-las em sua nudez? Ele retirou o elmo e avançou pela água, desajeitado.

- Mora! Que estava dizendo? Com que direito a chamava assim? Ela nunca o vira, mas... Aquele rosto rude, rubro de calor e cólera, lembrava-lhe alguém. Mas é claro!
O caçador que caíra do cavalo e de quem cuidara... Teria feito melhor se tivesse deixado todo o seu sangue escorrer! Por que estranha circunstância ele se encontrava
ali, com água até a cintura, atrapalhado com seus trajes, enquanto na margem um bando de damas semi-despidas, servas muito brancas, escudeiros e valetes esperavam,
reprimindo o riso, o resultado daquele confronto escandaloso? Matilde, envolta agora pelo manto da mãe, também estava curiosa. Pobre Guilherme, que situação ridícula!
Sua amiga, a rainha, devia pensar a mesma coisa, pois de repente, ainda coberta apenas pelos cabelos molhados, desatou a rir. E no instante seguinte Ana desapareceu
debaixo d'água. O duque virou-se, tentando adivinhar onde ela estava, mas subitamente cambaleou e caiu para trás, salpicando água por todos os lados. Depois de
um momento de espanto, a multidão caiu na gargalhada ao vê-lo voltar à superfície, tossindo e cuspindo, enquanto a rainha deixava o rio, torcendo os cabelos. Os
risos cessaram. Todos contemplavam a

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jovem, que não tentava ocultar sua nudez. Helena envolveu-a num longo manto e levou-a para sua tenda.

Enquanto ela se afastava, pela margem que o duque acabara de alcançar, os risos começaram outra vez, logo acompanhados pelo de Guilherme, cuja explosão estrondosa
superava todos os outros. A um sinal seu, o escudeiro adiantou-se e começou a despi-lo, tarefa difícil, perturbada pelos ataques de riso de seu senhor. Assim que
ficou nu como no dia de seu nascimento, Guilherme voltou à água. Com braçadas longas e firmes, foi para o meio do rio, onde ficou boiando de costas, deixando
que a correnteza o levasse.

Matilde foi juntar-se a Ana na tenda. Durante um momento elas se deixaram pentear em silêncio, lançando-se breves olhares. Matilde foi a primeira a romper o silêncio.

- Ele não caiu sozinho. Foi você que lhe puxou o pé? - Isso mesmo! - respondeu Ana, rindo. - E devia ter visto a cara dele!

- Eu vi - murmurou Matilde, corando. - Não fique triste. Ele merecia uma lição. - É possível, mas você o ridicularizou. Ana ficou espantada. - Devo casar com
ele e não me agrada que meu futuro marido seja alvo da zombaria de todos - explicou Matilde. - E, além disso, depois que viu você ele não teve olhos para mais
nada. Tive a impressão de que já se conheciam.

- Eu havia esquecido, mas é verdade. Venci-o numa corrida durante a viagem.

- Venceu-o numa corrida? - Isso mesmo. Pergunte a ele. Foi perto de Nuremberg, se não me engano. Ele caçava, esporeei meu cavalo, ultrapassei-o, ele foi derrubado
da sela...

- Derrubado da sela? Guilherme? - Não sei o que há de tão espantoso nisso. Afinal, os russos são os melhores cavaleiros do mundo.

- É verdade - concordou Helena. - E não tornou a vê-lo? - perguntou Matilde. - Não. Depois de cuidar dele, pois ficou ferido na queda, fui embora. Tinha me esquecido
completamente da aventura.

- O que não parece ser o caso dele! - murmurou a noiva de Guilherme, com uma cara triste.

Ana fitou-a aturdida, depois desatou a rir. - Está com ciúme?

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- Poderia ficar; você é linda, tão branca, tão cheia de corpo! Enquanto eu sou pequena, magra, morena...

- Pare com isso. Você tem os olhos mais bonitos e mais doces do mundo e um corpo deslumbrante.

- Acha mesmo? A rainha balançou a cabeça, abraçando-a. - Gosto tanto de você que não poderia sentir ciúme - murmurou Matilde, beijando-a no rosto.

- É verdade que você o rejeitou porque ele é um bastardo? - Falei isso porque não tinha o menor desejo de casar, queria ingressar na vida religiosa. Mas meu pai
deseja essa aliança com a Normandia, apesar da oposição do papa.

- Por que a oposição? - Somos parentes muito próximos. Se o casamento se consumar, Roma nos ameaça com a excomunhão.

Matilde fez o sinal-da-cruz, logo imitada pela rainha e por todas as outras mulheres presentes.

- O papa Leão está a serviço do imperador da Alemanha, a quem não agrada a união de nossos países - interveio Adélia de Flandres. - Mas o casamento vai se realizar,
meu marido e meu irmão, o rei, assim o desejam. O papa não ousará decretar a excomunhão. Nossos espiões já nos garantiram isso.

Aureolada pelas tranças úmidas e escuras, que faziam seu pescoço delgado parecer ainda mais frágil, a meiga Matilde baixou os olhos.

Era grande o contraste entre as duas jovens: uma exuberante, vestida numa túnica comprida de um azul intenso, os cabelos flamejantes enrolados sobre a cabeça, parecendo
torná-la ainda maior; a outra, pouco maior do que uma criança de doze anos, com uma túnica de um vermelho forte que lhe acentuava a pele trigueira.

Recusando as liteiras, as duas amigas voltaram ao castelo através dos campos, enlaçando-se pela cintura.

No pátio do castelo, sob uma frondosa tília centenária, estavam sentados a uma mesa, bebendo, o rei, o duque da Normandia, o bispo de Melun e o conde de Flandres.
Todos, à exceção do bispo, levantaram-se à chegada das damas.

- Creio que já conhece a rainha - disse o rei, dirigindo-se a Guilherme.

Este, tão vermelho quanto o traje de sua noiva, inclinou a cabeça, em silêncio.

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- Minha dama, o duque relatou-me o encontro de vocês. É costume, na sua terra, as filhas do príncipe correrem pelos bosques sem uma escolta?

Ana teve uma reação irritada, que não escapou a ninguém. Adélia apressou-se a interferir:

- Não a censure, meu irmão. A rainha havia se extraviado de sua escolta ao ir rezar num lugar santo.

- Às vezes acontecem encontros muito estranhos, quando se vai a lugares santos - resmungou o rei.

Almofadas haviam sido dispostas sobre tapetes, por baixo da árvore, a fim de permitir que as damas repousassem na sombra.

O sol baixava lentamente. Era uma linda tarde de verão, cheia de zumbidos de insetos e cantos de pássaros. Podiam-se ouvir os gritos dos ceifeiros nos campos
ao redor. Era a hora em que tudo se tranqüiliza, em que o espírito vagueia indolente, ainda atordoado pelo calor, em que o corpo relaxado saboreia o frescor da
noite que se aproxima, hora das bebidas servidas pelos valetes. Tudo estava calmo. Cada um se deixava dominar pelo prazer do momento, esquecendo na trégua tão
agradável as divergências, ódios, ciúmes, rancores e conspirações que constituíam o cotidiano da corte itinerante do rei da França. Estendida com toda indolência,
Ana sentiu que um desejo sensual a envolvia.

Matilde, estendida ao seu lado, acomodou a cabeça em seu ombro. - Sabe de que eu gostaria? Que você me cantasse uma canção da sua terra.

- Mais tarde... está tão bom assim! - Vou pedir a Olivier d'Arles que vá buscar seu instrumento. - Como quiser... - murmurou Ana, a voz lânguida. A filha de
Balduíno de Flandres levantou-se e foi murmurar algumas palavras no ouvido do rapaz, que se afastou correndo. Matilde voltou para o lado da amiga. O jovem voltou
pouco depois, trazendo a guzli da rainha e sua própria harpa.

- Rainha, que tal se cantássemos a canção da colheita que me ensinou?

Sem responder, Ana pegou seu instrumento e acomodou-se confortavelmente. Depois de alguns acordes, eles cantaram, na língua natal da rainha, a celebração do verão,
do sol que amadurecia o trigo e alegrava as moças.

Acabado o torpor da tarde, desaparecidas a preguiça estival e os devaneios vagos, uma música que daria vontade de dançar ao mais pesado dos cavaleiros e à mais
recatada das damas elevava-se na tranqüilidade vespertina. Atraído pela música, o pessoal do castelo, dos sentinelas

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aos cozinheiros, das lavadeiras às aias, dos monges copistas aos jardineiros, das porqueiras às fiandeiras, todos interromperam seu trabalho e foram postar-se
nos portais, debruçar-se nos muros de pedra, inclinar-se sobre as raras janelas ou sentar-se no chão, para escutar sua rainha de voz alta e firme, cantando numa
língua
desconhecida, mas que todos achavam bela.

Matilde, a quem Ana ensinara a canção, acompanhou-os batendo palmas. Depois dessa, eles cantaram outra, e mais outra. A noite quase caíra quando pararam, ofegantes,
sob gritos e aplausos. Até o próprio rei parecia contente e foi abraçar ternamente a esposa. O duque da Normandia, por seu turno, parecia não ter-se recuperado
ainda do reencontro com a amazona atrevida com quem não conseguia deixar de sonhar todas as noites, desde aquele incidente no bosque. Normalmente tão loquaz,
estava calado, incapaz de desviar os olhos da jovem a quem chamava Mora.

Essa atitude, tão insólita naquele homem, alternadamente alegre e taciturno, jovial e colérico, tolerante e suscetível, duro e justo, mas sempre senhor de si mesmo,
foi percebida por todos.

- Guilherme, você olha para a rainha como se fosse uma aparição...

- Pode-se dizer que é isso mesmo, Henrique. O rei lançou-lhe um olhar desconfiado. Jamais gostara daquele bastardo da Normandia, que seu pai, o conde Roberto o
Magnífico, lhe confiara no inverno de 1034, por ocasião de uma peregrinação à Terra Santa, onde fora pedir perdão a Deus por seus numerosos crimes. O conde, morto
na viagem de volta - envenenado, segundo seu camareiro Toustain e Dreu, o conde de Vexin - fora sepultado em Nicéia, na basílica dedicada a Nossa Senhora, em julho
de 1035. O camareiro, que ouvira os últimos desejos de seu senhor, transmitira tudo ao rei da França, a quem entregara, da parte do falecido, uma das relíquias
adquiridas na Terra Santa, antes de levar as outras para a abadia de Cerisy, pela qual Roberto o Magnífico tinha uma afeição particular.

Guilherme tinha oito anos quando seu pai morrera. Dezesseis anos haviam transcorrido desde então. O menino transformara-se num cavaleiro cuja coragem todos admiravam.
O rei Henrique fora testemunha privilegiada dessa coragem durante a batalha de Val-lèsDunes, no verão de 1047, que terminara com a vitória dos exércitos franceses
e normandos sobre os rebeldes, cujos chefes tentavam derrubar o jovem duque. O combate, de uma terrível violência, durara apenas algumas horas, mas inúmeros cavaleiros
encontraram a morte. O próprio rei, arrancado da sela por um infante, só devia a vida à solidez de sua

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couraça e à intervenção de Guilherme, pronto a cortar a garganta de um miliciano de Renouf de Briquessart que se atirara sobre ele. Apesar desse ato de bravura
e fidelidade, Henrique não podia superar sua desconfiança e hostilidade em relação ao homem de quem fora tutor. O duque, por sua vez, desafiava todo mundo, tendo
aprendido desde cedo que um príncipe não pode submeter-se a ninguém, muito menos ele. Além disso, a natureza efeminada do rei irritava-o profundamente. E eis
que, para aumentar ainda mais o rancor, aquele homem secretamente desprezado era, por um acaso que Guilherme amaldiçoava, marido da mulher que ele vira triunfante
na corrida, determinada em seus cuidados e mais linda que qualquer outra. Absorvido em seus pensamentos, ele não escutou a pergunta do rei.

- Com que está sonhando, Guilherme? Está longe de nós... - O que disse, Henrique? - Fiz uma pergunta: quando tenciona casar com minha sobrinha Matilde?

O duque estava tão distante dessas preocupações que fitou o rei com uma expressão aturdida.

- Esqueceu seus compromissos? - insistiu Henrique, num tom irritado.

Matilde escondeu o rosto no pescoço da rainha, que apertou contra si o corpo pequeno e trêmulo.

- Mas claro que não! Amo Matilde e quero que ela se torne minha esposa o mais depressa possível.

- Apesar da discordância do papa e dos bispos? - Sou um filho submisso da Igreja e o primeiro a respeitar as decisões de seu pastor, quando me parecem justas e
boas. Em relação a esse casamento, eu as considero erradas; assim, não posso submeter-me. O imperador não será a lei na Normandia.

- Assim é que se fala. A aliança entre a França, a Normandia e Flandres imporá respeito aos nossos inimigos. Seria conveniente que essa união ocorresse antes do
fim do ano.

- Marque você mesmo a data, Henrique. - O que acham do mês da vindima? - indagou Henrique, virando-se para a irmã e o cunhado.

- Se Guilherme estiver de acordo, essa data me convém - respondeu Balduíno de Flandres.

- Ela me parece boa. Qual é a sua opinião, minha cara Matilde? Aninhada contra Ana, a jovem olhava fixamente para o homem que lhe haviam escolhido para marido,
mas a quem amava desde o primeiro instante.

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- Senhor, se essa data é do seu agrado, também é boa para mim. Ana abraçou-a, feliz pela amiga. Matilde lhe confidenciara seu amor por Guilherme, que nunca ousara
demonstrar, com medo de atrair o ódio do círculo do duque.

- Você verá, seu primogênito será um homem, palavra de Mora! O banquete do noivado prolongou-se pela noite inteira. Ao amanhecer, o rei voltou ao leito da rainha.

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CAPÍTULO TREZE


O CASAMENTO DE GUILHERME E MATILDE


No final do mês de setembro de 1051, o rei da Inglaterra, chamado por seus súditos "o Confessor", por causa de sua excessiva devoção, anunciou, por intermédio
do arcebispo de Canterbury, que na ausência de descendentes diretos proclamava seu sobrinho Guilherme, duque da Normandia, único herdeiro da coroa da Inglaterra.

Guilherme recebeu a notícia sem manifestar surpresa nem alegria. Só houve uma alteração em seus hábitos: as orações tornaram-se mais prolongadas depois das vésperas.

No castelo d'Eu, Arlette, mãe do duque, e seu marido, Hellouin de Conteville, empenhavam-se nos preparativos para o casamento. Em Lille, Matilde, entre dois ofícios,
provava os trajes oferecidos por seu pai.

Naquele ameno e quente mês de outubro predominou na corte de Flandres um clima de divergências dissimuladas, desavenças latentes, silêncios súbitos e mesquinharias,
que se abatiam sobre o humor de todos. Com objetivos políticos, o conde Balduíno oferecera asilo a Godwin, conde de Wessex, e a dois de seus filhos, Gyrth e Tosti,
banidos pelo rei Eduardo da Inglaterra. E mais: ele dera sua meia-irmã, Judite, ao turbulento Tosti.

Matilde não gostava daqueles saxões beberrões e belicosos, que perseguiam as damas de companhia até seus aposentos. Sua mãe Adélia partilhava a antipatia e não
parava de pressionar o marido para que os expulsasse de seus Estados.

- O direito de asilo é uma coisa sagrada, minha cara. Eu não seria um cavaleiro digno se recusasse minha hospitalidade. Pare de me importunar com isso!

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Guilherme tinha pressa na celebração do casamento. Queria partir logo em guerra contra o Conde d'Anjou, Geoffroi Martel, que acabara de tomar suas fortalezas de
Alençon e Domfront. Pressionou Balduíno a enviar-lhe Matilde o mais depressa possível. E foi assim que um cortejo partiu de Lille, escoltando a noiva, acompanhada
pelos pais. Um embaixador normando foi recebê-los na fronteira do ducado.

Num vestido vermelho com fitas de seda verdes e prateadas, com um manto branco e dourado, sapatos vermelhos com bordados verdes, os cabelos pretos trançados com
fitas verdes e vermelhas, cobertos por um longo véu preso por uma coroa de ouro, a bela flamenga desaparecia sob os adornos demasiado suntuosos e pesados para
seu corpo pequeno.

O cortejo foi recebido no castelo d'Eu por Turold, em nome de seu senhor, o que surpreendeu Balduíno de Flandres.

- Onde está o duque? Por que não veio nos receber? - Senhor, ele foi ao encontro da esposa do rei da França, que veio representar o marido na cerimônia.

- Ouviu isso, meu pai? A rainha Ana estará presente ao meu casamento! Que bom! Ela chegou a prometer-me, mas pensei que o marido não permitiria.

- Partilho a sua alegria, minha filha - murmurou Balduíno, com uma expressão pensativa.

Matilde saía de sua liteira no momento em que a liteira da amiga entrava no pátio do castelo. A seu lado seguia o cavalo de desfile de Guilherme, ricamente ornamentado.
O duque, vestido com toda pompa, saltou de sua montaria, que um valete conteve com a maior dificuldade. Com gestos cautelosos, ele ajudou a rainha a deixar sua
liteira.

- Deixe-me, Guilherme! Lá está Matilde, esperando e suspirando por você!

O duque ficou vermelho, soltou a mão enluvada em veludo do mesmo tom de azul do manto cobrindo o vestido grená de mangas compridas, presas com um laço. Encaminhou-se
para o conde de Flandres.

- Sejam bem-vindos, você, Matilde, princesa Adélia e conde Balduíno. A rainha Ana nos concede a grande honra de assistir à união de nossas duas casas. Sei que
o motivo para isso é a amizade, o que me deixa comovido.

Na capela do castelo, adornada com tapeçarias com emblemas da Normandia e de Flandres, reuniu-se um grupo pequeno para o casamento: os membros da família do duque
- sua mãe, o padrasto e os meio-irmãos: Odon, o jovem bispo de Bayeux, e Roberto, a quem ele

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acabara de dar o condado de Mortain, tirado de Guilherme Werlenc, conde d'Avranches, acusado de traição; os amigos mais próximos, como o prior da abadia de Bec,
Lanfranc, e Guilherme de Poitiers; e os seus cavaleiros mais fiéis. Não havia grandes personalidades leigas ou eclesiásticas, à exceção da rainha Ana e da família
de Flandres. Uma cerimônia às escondidas e rápida... A discrição devia-se à proibição do papa, à presença de Arlette, que a aristocracia normanda sempre considerara
com desdém, ou a um desejo do próprio Guilherme?

A bênção nupcial foi concedida, apesar da proibição, pelo capelão do duque. Durante a missa, Guilherme concentrou-se na oração, enquanto a devota Matilde não conseguia
deixar de lançar-lhe ternos olhares.

Depois de cumprimentarem o conde e a condessa de Flandres, depois Arlette e Hellouin de Conteville, os recém-casados encaminharam-se para Ana. O duque pôs um joelho
no chão.

- Rainha, hoje, diante de Deus e dos homens, tomei por esposa minha dama Matilde, aqui presente, a quem jurei proteção, fidelidade e amor. Diante dela e diante
de todos, declaro querer servir-vos e amarvos com o mais puro amor de um cavaleiro, com o consentimento dela e o vosso. Aguardo vossa resposta.

Houve um profundo silêncio. Não era tão raro assim que um homem da nobreza se tornasse o cavaleiro-servidor de uma mulher casada, mas era surpreendente que a
proposta do duque fosse apresentada no próprio dia de seu casamento.

Pálida, os olhos brilhando, a nova duquesa da Normandia ajoelhou-se, pegou a mão da rainha, colocou-a sobre a de Guilherme e manteve a sua ali.

- Rainha, não apenas dou o consentimento a meu marido, mas declaro que eu também quero servir-vos e amar-vos.

A emoção de Ana era visível. Todos sabiam de sua afeição por Matilde e do amor que esta lhe dedicava. Mas ninguém tinha desconfiado dos sentimentos do duque.

- Aceito com alegria - respondeu Ana, levantando-os e abraçando-os.

No banquete que se seguiu, no vasto salão do castelo d'Eu, Guilherme, entre a ruiva Ana e a morena Matilde, irradiava orgulho e felicidade. Sua mãe mal conseguia
controlar a emoção; finalmente via aquele filho, que tantas vezes temera perder pelo punhal ou pelo veneno, feliz, sorridente, homenageado como convinha a um descendente
do homem que a amara e respeitara, apesar de sua origem modesta, o duque Roberto. Desapareciam as rugas que marcavam aquele rosto jovem,

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aquele olhar desconfiado e duro, a expressão amarga e cruel! Hoje, chamado a reinar sobre a Inglaterra, único senhor da Normandia, cercado pelas três mulheres a
quem mais amava no mundo, sua mãe, sua esposa e a rainha da França, Guilherme, que por hábito jamais esquecia coisa alguma, nem um serviço prestado nem uma afronta,
não mais se lembrava de seus medos, ofensas, traições, nem mesmo dos nomes de seus inimigos. Entregou-se à felicidade, saboreando as iguarias que se sucediam,
calmamente, ele, o glutão que nunca ficava saciado, bebendo com moderação, servindo a Ana e a Matilde, mandando levar para a mãe os melhores bocados, aplaudindo
as piruetas dos acrobatas, a habilidade dos malabaristas, as melodias dos músicos, rindo como um menino das cabriolas dos cães amestrados.

Depois do banquete, a seu pedido, foi realizado um serviço de ação de graças na capela. Todos comentaram sua devoção.

Concluído o ofício, a rainha, cansada, retirou-se para os aposentos que lhe estavam reservados. A duquesa, a condessa e a mãe do duque a acompanharam. Chegando
ao quarto, Ana manifestou o desejo de ficar a sós com Matilde por alguns instantes. As duas amigas se jogaram nos braços uma da outra.

- Ana, como posso agradecer por sua presença? - Lembrando-se do meu amor. - Eu me lembrarei enquanto você se lembrar do meu e do amor de meu marido.

- Juro que nunca esquecerei. - Que o céu a ouça, ó minha rainha! Olhos nos olhos, as duas jovens fizeram o sinal-da-cruz. - Prometa que irá me visitar com freqüência.
Eu me aborreço em Senlis ou Paris.

- Perdoe... mas o rei não é bom para você? Ana deu de ombros, com uma expressão subitamente desamparada. - Ele prefere a companhia dos valetes. - Mas você é a
rainha! - Rainha de um reino bem pequeno, ainda menor do que a menor das províncias de meu pai, onde os condes têm mais terras e mais poder do que o meu marido,
são mais temidos e respeitados!

- Seria diferente se meu primo tivesse um filho. - Um filho! - exclamou Ana, dando uma volta. Naquela noite a rainha da França anunciou à duquesa da Normandia
que estava grávida.

No dia seguinte, o duque e a duquesa partiram para Ruão, onde foram recebidos pela população em regozijo.

A rainha voltou a Senlis. O rei a esperava nos aposentos das damas, em companhia de Olivier d'Arles, que cantava para distrair seu senhor.

- Deixe-nos a sós, por favor - pediu a rainha. O rapaz fez uma reverência e retirou-se, acompanhado pelas damas. - Senhor meu marido, minhas orações não foram
em vão. Estou

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grávida.

O rosto franzido de Henrique desanuviou-se. - Tem certeza, minha dama? - Tenho, meu senhor. Daqui a alguns meses eu lhe darei um filho.

- Deus seja louvado, minha cara! Ele beijou-a na testa e saiu gritando: - A rainha está grávida! A rainha está grávida!

Apesar de sua aparência frágil, Matilde era forte e robusta. E era preciso para agüentar as reiteradas investidas de Guilherme, que só conhecia das relações com
as mulheres as uniões rápidas e rudes com as pastoras de Falaise e as apanhadoras de moluscos de Fécamp. Com a passagem dos dias, Matilde descobriu o prazer nas
lides amorosas e até passou a antecipar-se aos desejos do marido.

Uma semana depois do casamento, Guilherme anunciou sua intenção de atacar as tropas do conde d'Anjou, Geoffroi Martel, nos arredores dos castelos de Domfront e
Alençon. No maior sigilo, o duque reuniu cinqüenta cavaleiros e, sem esperar mais nada, partiu para atacar Domfront. Mas a guarnição angevina, prevenida por um
barão normando, traidor de seu duque, efetuou um contra-ataque inesperado. Cercados, Guilherme e seus guerreiros lutaram com a coragem e o ódio inspirados pela
traição, conseguindo repelir o inimigo. O duque ordenou então a construção de quatro torres, protegidas por paredões de terra e fossos. Instalou seu acampamento
na aldeia junto do castelo, onde Matilde foi encontrá-lo.

O sítio durou vários meses, que foram para a jovem duquesa da Normandia os mais felizes de sua vida. Guilherme converteu o acampamento na capital do ducado, sua
residência e também dos cavaleiros e de suas famílias. Em meio à lama, entre as tendas de peles, os meninos

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se perseguiam, brincando de guerra com espadas de pau; os escudeiros ocupavam-se com o serviço de seu senhor, os valetes tratavam dos cavalos, as mulheres fiavam
ou bordavam. Quando não acompanhava o marido na caça ou em visita a um dos castelos próximos, Matilde, hábil bordadeira, gostava de mostrar às damas e servas
os pontos que aprendera com as melhores fiandeiras e rendeiras de Flandres. O frio e a chuva impedindo qualquer saída durante semanas, muitos cavaleiros ganharam
túnicas bordadas e estandartes com suas cores para ostentarem em combate.

Três meses depois de seu casamento, Matilde também teve o orgulho de anunciar que estava grávida. A notícia encheu Guilherme de alegria. Ele mandou rezar missas
de ação de graças em todas as igrejas da Normandia, vendo no futuro nascimento a aprovação de Deus a seu casamento e sua reprovação à proibição papal.

Para encerrar logo a campanha e poupar a vida de seus homens, o duque da Normandia encaminhou por dois de seus cavaleiros, Roger de Montgomery e Guilherme Fitz-Osbern,
um desafio ao conde d'Anjou, para decidir o destino de Domfronc propôs um confronto entre os dois em campo fechado. Geoffroi Martel respondeu que aceitava. Porém
no dia seguinte, ao amanhecer, nada de combatente! Guilherme esperou em vão... O conde partira durante a noite para defender suas terras ao mesmo tempo contra
o rei da França e contra salteadores liderados por Néel de Saint-Sauveur. Confiando a um dos seus lugares-tenentes a continuação do sítio, Guilherme seguiu durante
a noite para Alençon, pensando em surpreender seus habitantes ao raiar do dia. Para sua grande fúria, porém, a guarnição, prevenida por uma nova traição, fechara
os portões da fortaleza.

Uma população zombeteira, divertida e insolente escarneceu do duque e seus guerreiros. Para demonstrar o desprezo pelo Bastardo, os chefes da cidade estenderam
peles de animais recém-abatidos sobre as defesas de madeira, mais do que era necessário para evitar que ardessem sob os projéteis incendiários dos atacantes. Sob
os gritos de "A pele, a pele do curtidor!" - alusão injuriosa ao ofício do pai de sua mãe - Guilherme, tremendo de raiva, lançou-se ao ataque.

Em poucos dias os arrogantes se renderam. A repressão foi terrível: o lugar foi incendiado e o vencedor mandou trazer à sua presença trinta e dois homens entre
os prisioneiros, cavaleiros, burgueses e artesãos. Ordenou que cortassem suas mãos e pés, sob a vista dos que ainda resistiam; depois os mutilados, mortos ou sangrando,
foram jogados

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na estrada. Diante disso, os últimos combatentes capitularam. Essa crueldade não era um hábito de Guilherme. Sem dúvida ele quis cobrar de Alençon todas as
traições passadas, todas as humilhações sofridas por sua mãe e por ele próprio durante a infância. É verdade que o Bastardo fora solenemente reconhecido por seus
vassalos e que o rei da França aceitara ser seu tutor na falta do pai, mas a família real não suportava ver o ducado da Normandia nas mãos do neto de um curtidor
de peles.

Deixando uma guarnição na cidade dominada, o duque seguiu para Domfront, que capitulou na primavera.

A fim de reforçar suas posições, ele iniciou então a construção, na confluência do Mayenne com o Varenne, do castelo de Ambrières, apesar de o senhor de Mayenne
tentar muitas vezes impedi-lo.

O duque despachou Matilde para Falaise, onde se encontrava sua mãe, permitindo que no caminho fizesse uma visita à rainha da França, cujo parto era iminente.

A duquesa da Normandia encontrou a amiga num estado de profunda tristeza; Ana acabara de tomar conhecimento da morte de sua mãe, Ingegerde, e de seu irmão, Vladimir.
Depois do casamento de sua filha com o rei da França, a filha do rei da Suécia, segundo seu marido Iaroslav, retirara-se para um convento em Novgorod, a fim de
ficar mais perto do filho predileto. Mas a doença não lhe permitira desfrutar essa felicidade por muito tempo. Ela morrera pouco depois de sua chegada. E logo
depois Vladimir fora ao seu encontro na morte. Mãe e filho haviam sido sepultados lado a lado, na catedral de Santa Sofia, em Novgorod.

A alegria de rever Matilde atenuou a tristeza de Ana, e o anúncio da gravidez da amiga lhe proporcionou grande felicidade.

- Nossos filhos serão irmãos. - É o nosso maior desejo, de meu senhor Guilherme e meu. Vai dar a ele o nome do avô, o rei Roberto?

- Não. Meu marido concordou em dar o nome de meu ilustre ancestral, Filipe, rei da Macedônia.

- Filipe... Não é um nome de rei franco. - Não importa. Será esse seu nome. E como vai chamar o seu filho?

- Roberto, como o pai de Guilherme.

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Com algumas semanas de antecedência, a rainha teve um menino enorme, que recebeu o nome de Filipe, em memória do pai de Alexandre o Grande.

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CAPÍTULO QUATORZE


O HERDEIRO


- Minha dama, agradeço-lhe pelo lindo presente que acaba de me dar! - exclamou o rei Henrique, pegando o filho recém-nascido das mãos de Helena, que não quisera
deixar a ninguém o cuidado de fazer o parto da rainha. - Minha irmã, meus amigos, olhem o futuro rei da França: não é bem proporcionado, o rapagão? Seu armamento
me parece capaz de garantir nossa linhagem. O que acha, Balduíno.

- Ele se parece com todos os meninos de saúde perfeita, Henrique.

- Não fala sério! Ele é muito mais forte... Balduíno explodiu numa risada. - Senhor, certamente tem toda razão. - Meu irmão, devolva-o à ama, esse menino vai
acabar pegando um resfriado - interveio a condessa de Flandres.

- Oh, meu tio, passe-o para mim! - pediu Matilde. - Como ele é pequeno!

- Pequeno? - protestou Henrique. - Pequeno, meu filho? Acha que o seu será tão bonito?

Matilde e a mãe apressaram-se em fazer o sinal-da-cruz. A cortina que separava o quarto da sala foi puxada e um homem coberto de lama, exalando um cheiro de estrebaria
e corpo mal lavado, entrou no aposento, tirando o elmo.

- Onde está ele? Disseram-me que nos nasceu um rei... Quero apresentar-lhe minhas homenagens.

- Conde de Valois, deveria ter passado pelo banho antes de apresentar-se ao rei e à rainha! - protestou Adélia de Flandres, irritada. - Cheira pior que um bode!

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- Condessa, minha impaciência era tão grande que não pensei em me lavar. Peço que me perdoe pela pressa.

- Eu o perdôo - disse o rei - ainda mais porque sua presença aqui, tão depressa, augura boas relações entre nossas casas no futuro.

- Eu lhe agradeço, rei - murmurou Raul de Crépy, fazendo uma reverência exagerada, que Henrique fingiu não perceber.

Ao contrário, ele pegou o recém-nascido dos braços de Matilde e estendeu-o para o conde.

- Aqui está meu filho. Balduíno e Adélia fizeram um gesto para retomar o bebê. O rei era louco, deixando que um homem como Valois pegasse o herdeiro da coroa?
Não diziam que ele era incomparável no envenenamento daqueles que o incomodavam?

- Lindo menino... a cara da mãe! Como vai se chamar? - Filipe. - Filipe, o primeiro com esse nome... Por que não? Deus lhe conceda uma longa vida, Filipe.

- Amém - responderam em coro os presentes. Helena veio buscar o menino e desapareceu por trás das cortinas. - Posso cumprimentar a rainha, apresentar-lhe minhas
congratulações e reiterar-lhe minha amizade?

- Mais tarde, pois a rainha está abatida - respondeu a condessa. - Minha irmã, a rainha é uma mulher forte e valente; e tenho certeza de que a homenagem de um
homem como o conde de Valois lhe será agradável. Venha comigo. Vou levá-lo à sua cabeceira.

E o rei puxou as pesadas cortinas que isolavam o leito do resto do aposento.

Recostada em numerosas almofadas, muito pálida, com olheiras, os cabelos desgrenhados, coberta por uma peliça que deixava à mostra os ombros nus, Ana repousava,
os olhos fechados.

Pelo sangue do Cristo, como essa mulher é bonita, mesmo poucas horas depois do parto! E essa pele tão alva, em que o menor contato um pouco mais forte deixaria
sua marca! A tal pensamento, Raul de Crépy sentiu seu sexo levantar-se. Mesmo que fosse acabar no inferno, ainda teria aquela mulher; pouco importava o tempo necessário,
ele esperaria, mas, pela Santa Mãe de Deus, jurava que ela seria sua! Que o céu tivesse compaixão: por ela, seria capaz de matar, e pior ainda...

Meio adormecida, Ana estremeceu. Sentiu frio subitamente e experimentou uma vaga sensação de perigo. Os olhos sempre fechados, puxou as cobertas até o queixo e
murmurou:

- Helena...

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Helena adiantou-se e murmurou algumas palavras em sua língua natal, enquanto lhe acariciava os cabelos.

O conde de Valois daria Péronne para poder segurar aquela cabeleira flamejante. Teve de fazer um esforço considerável para não empurrar aquela mulher corpulenta,
que nunca saía de perto de sua ama, e vigiava-o constantemente quando ia à corte para visitar o rei. Em duas ocasiões tentara suborná-la, para que o deixasse a
sós com a rainha; ela recusara nas duas vezes, sem dissimular seu desprezo. Ela e mais o conde e a condessa de Flandres, pensou Raul de Crépy, haviam adivinhado
seu desejo arrebatado de possuir aquela mulher. Nem mesmo o Bastardo, que se declarara abertamente seu cavaleiro-servidor, percebera qualquer coisa. Quanto ao
marido, bastava enviar-lhe um ou dois valetes graciosos como donzelas para que não se preocupasse com mais nada.

Lentamente, a jovem parida levantou as pálpebras. Olhos ardentes, como os de uma ave de rapina, a fitavam; quanto mais ela tentava desviar-se, mais se sentia atraída.
Apesar de seus esforços, não foi capaz de se mexer nem falar. Em seu espírito fatigado, fragmentos de pensamentos colidiam: o que a tornava tão cativa?... meus
irmãos, venham me ajudar... meu pai, não me deixe sozinha com esse homem... onde está meu marido?... e o duque Guilherme, meu cavaleiro-servidor?... Senhor Deus,
afastai esse homem de mim!... Viétcha... Filipe!

- Filipe! Ana ergueu-se, gritando, desvairada, estendendo as mãos para a frente, como se tentasse repelir um agressor.

- Retirem-se, por favor. A rainha precisa de repouso e reclama seu filho.

Helena, o rosto dominado por uma profunda tristeza, fez a rainha recostar-se de novo, enxugou-lhe a testa coberta de suor e, sem se preocupar mais com os grandes
personagens que se movimentavam em torno do leito, aconchegou a cabeça amada contra seu colo e cantarolou o acalanto que expulsava os pesadelos. Pouco a pouco,
Ana parou de tremer e adormeceu, com um sorriso nos lábios.

Raul contemplou aquele sono e aquele sorriso. Um ciúme brutal dilacerou-lhe o coração. Ninguém devia ver aquele sorriso, só ele tinha o direito de fazê-lo nascer...
ou fazê-lo desaparecer!

Então, dobrou um joelho no chão, e, sem parar de devorar Ana com os olhos, murmurou com voz abafada:

- Rainha, aceite minhas felicitações mais sinceras pelo nascimento de seu lindo filho. Honrou enormemente o rei e a coroa da França. Que toda a glória lhe seja
concedida!

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- Conde, por favor, a rainha adormeceu, não está escutando - murmurou Adélia de Flandres, puxando-o pela manga. - O rei e eu transmitiremos a ela as suas palavras.
E tenho certeza de que a rainha ficará comovida.

Ele não se mexeu. Instintivamente, Helena apertou ainda mais a sua filha amada. Ana gemeu. Um silêncio opressivo dominou as pessoas que assistiam à cena, perturbadas.
Os gritos do recém-nascido arrancaram a todos do estupor.

- Ora, conde, não parece que foi envolvido por um sortilégio? Está petrificado como a mulher de Lot.

Lentamente, Raul levantou-se. - Perdoe-me, Henrique. Não há nenhuma bruxaria nisso. Apenas cavalguei durante o dia inteiro, estou um pouco cansado.

- Prefiro assim. Por um momento, cheguei a pensar que tencionava levar a rainha diante de nossos olhos!

- Senhor, mais de um homem gostaria de arrebatar uma mulher tão linda quanto a rainha.

- Valois, está esquecendo com quem fala! - Não se zangue, Henrique. Foi apenas um elogio, uma maneira de falar, mais nada.

- Não aprecio as suas maneiras, conde. Acho melhor mudá-las, daqui por diante, quando estiver na minha presença.

Sem responder, o conde inclinou-se diante do rei, tão profundamente que este precisou fazer um gesto irritado para que se levantasse. Balduíno e Adélia responderam
secamente a seu cumprimento; apenas Matilde teve um sorriso amável.

- Finalmente um semblante agradável! Deus a tenha em sua santa guarda, gentil duquesa, e que lhe dê, assim como ao duque Guilherme, uma nobre descendência...

- Quem é o cavaleiro que pede para mim as bênçãos de Deus? - indagou o duque da Normandia entrando no aposento. - Que Nosso Senhor faça o mesmo por ele. Ah, é você,
conde de Valois?

- Isso não parece ser-lhe agradável, vindo de minha parte? - Não gosto de você, conde, e sabe disso. Mas neste dia de alegria quero esquecer nossas desavenças.
Henrique, ao tomar conhecimento da notícia, resolvi vir felicitá-lo pessoalmente. Mandei rezar missas em toda a Normandia.

- Agradeço a gentileza, meu primo. Tragam meu filho! Uma parteira apresentou ao duque o bebê, que adormecera.

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Sem dizer nada, Guilherme contemplou-o com profunda emoção. - É um lindo menino - murmurou Matilde, aproximando-se. - Não acha?

Parecendo perseguir um sonho, ele a fitou sem vê-la. - Não acha? - ela repetiu. - Ahn... claro, claro... Como está a rainha? - Muito bem, descansando. - Posso
vê-la? O tom suplicante não agradou a Matilde; ela fez um esforço para responder com voz serena:

- Creio que o rei permitirá. Guilherme puxou a cortina e pôs um joelho no chão, diante da jovem adormecida no colo de sua ama-de-leite. Como o conde, sentiu aflorar
em seu íntimo, à vista de tanta beleza e abandono, um desejo tão violento que o fez empalidecer. Pensou que ia desfalecer como uma donzela quando ela abriu os
olhos e murmurou com voz dolente:

- Estou feliz por vê-lo, Guilherme. - Mora! De pé, próximo do duque, o rei perguntou à irmã: - Por que ele a chama de Mora? Já o ouvi antes dar-lhe esse nome...

- Matilde me disse que é o nome de uma fada da terra russa. - Uma fada? Eles também têm fadas naquela terra tão distante? - Meu tio - interveio Matilde, sorrindo
-, há fadas em todas as terras do mundo.

- Como ousa dizer essas bobagens, duquesa, logo você, que é uma boa cristã, apesar de seu casamento? - indagou Froland, o bispo de Senlis.

Essa alusão à proibição de seu casamento pelo papa entristeceu a filha do conde de Flandres. A Igreja continuava contrária à união e ainda os ameaçava de excomunhão,
uma perspectiva que a fazia estremecer. Como viver sem os sacramentos, os ofícios diários, como ficar privada do amor de Deus? Seria possível que Lanfranc, por
tanto tempo hostil ao casamento, enviado por Guilherme a Roma, conseguiria dobrar o papa? O prior de Bec partira confiante. A criança que ela tinha no ventre
mexeu-se pela primeira vez e Matilde considerou que era um bom presságio e desejou partilhar sua alegria com o futuro pai. Mas Guilherme só tinha olhos para a rainha,
a quem ambos haviam jurado amor e fidelidade. Matilde sentia um terno amor por Ana, um amor total e irrevogável. Quando Guilherme relatara o encontro dos dois e
o amor que daí nascera, ela não apenas compreendera, mas também se sentira feliz.

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- Como nós vamos amá-la! - exclamara. O duque a beijara gentilmente e lhe dera de presente uma vasta propriedade, perto de Falaise. Todos os dias, juntos, rezavam
por Ana.

Mas hoje, pela primeira vez, Matilde sentiu-se espoliada e dominada pelo ciúme.

- Matilde! Quero ver Matilde! Esse apelo de Ana expulsou seus pensamentos sombrios. - Estou aqui. - Minha boa Matilde, não pode imaginar como estou feliz por
ter vocês dois aqui, ao meu lado - murmurou a rainha, pegando as mãos da jovem duquesa e apertando-as. - Tive um pesadelo: um homem de negro se inclinava para mim,
queria arrebatar-me, gritei por socorro, ninguém apareceu, lutei com ele, mas o homem era mais forte e me dominava...

- Ana - interveio Adélia de Flandres -, esses pesadelos decorrem da fadiga e são naturais depois de um nascimento. Deve descansar agora. Matilde e Guilherme, é melhor
vocês se retirarem.

O duque e a duquesa de Normandia obedeceram e deixaram o aposento, acompanhados pelo rei e pelo cortejo de visitantes. Ficaram no aposento apenas as parteiras e
as aias, que Helena apressou-se em despachar também.

- Sonhei outra vez com Filipe, não é mesmo?

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CAPÍTULO QUINZE


FILIPE


Apesar da insistência de todos, Filipe não seguira seus companheiros no momento em que Ana, saindo da Polônia para a França, separara-se da escolta de seus compatriotas.

Contemplara sem pesar a partida daqueles que, desde a sua infância, partilhavam suas alegrias, seus combates, a honra de pertencer à droujina do príncipe de Kiev,
onde só os melhores, os mais bravos e os mais nobres eram admitidos. Não retornando à Rússia, Filipe tornava-se traidor e desertor. Havia rezado para tentar ver
a
situação mais claramente e, de antemão, pedira perdão a Deus.

À noite, trocou suas vestimentas muito ricas e chamativas pelos andrajos que eram usados pelos miseráveis recrutados pelo lugar-tenente de Gosselin de Chauny conforme
as necessidades da viagem. De seu esplendor passado, o jovem guerreiro guardou apenas o punhal que ganhara de Ana, uma adaga oferecida por laroslav e algumas peças
de ouro e prata, dissimulados numa bolsa de couro, escondida sob a camisa. E seguiu a caravana, sem ser visto. Decidido a tornar-se irreconhecível para todos,
sobretudo para "Ela", com o punhal cuja lâmina beijou primeiro, cortou os cabelos, raspou o crânio, deixando apenas uma mecha atrás da cabeça, ao estilo dos guerreiros
tártaros; a barba e o bigode também foram raspados.

- Grande Vladimir e São Jorge, meu santo padroeiro, dêem-me coragem para levar minha empresa até o fim.

Com uma calma terrível, ele fez talhos na testa e nas faces, cortou a garganta, da orelha direita à base do pescoço. Cego pelo sangue, cambaleando de dor, prendeu
o pé numa raiz e caiu sobre a fogueira que acendera para proteger-se do frio. O sofrimento lancinante fê-lo perder a

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consciência em poucos instantes. Quando recuperou os sentidos, transformado em tocha humana, todo o rosto estava queimado. O uivo que soltou nesse instante foi
ouvido, apesar da distância, pela retaguarda do comboio da princesa, deixando os homens gelados de pavor, apesar de acostumados aos gritos da morte. As mãos comprimidas
contra os olhos, com a sensação de que iam derreter-se, Filipe rolou pela neve, que apagou o fogo de seus trajes, mas não foi capaz de aliviar o calor intenso
que lhe queimava o rosto. E perdeu de novo a consciência.

Quantas horas permaneceu assim? Meio morto de frio, conseguiu arrastar-se até o cavalo, que tremia todo, o corpo já coberto por uma fina camada de gelo. Tateando,
tirou da sela um cantil contendo álcool. Uma golada desentorpeceu-lhe um pouco os membros. Quis levantar-se e tornou a cair no chão, violentamente; o tornozelo
direito, sem dúvida torcido na queda, recusava-se a sustentá-lo. Resfolegando como um animal, cortou largas faixas do pano de uma capa e enrolou-os firmemente
na cabeça. O rosto quase gelado não o fazia sofrer muito. Os dedos entorpecidos e queimados encontravam apenas inchaços e fendas, os olhos não passavam de duas
aberturas mínimas. E a boca... o nariz! Um gemido surdo tomou conta dele, transformando-se pouco a pouco num rugido que saía de suas profundezas para explodir
num clamor de demente, que se extinguiu no gorgolejo do sangue que jorrava da garganta aberta. Com um punhado de musgo, ele tapou o ferimento.

Com um último esforço de vontade, ele montou no cavalo, que no mesmo instante partiu a galope. Milagrosamente, não foi derrubado, conseguindo manter-se na sela
pelo seu instinto de exímio cavaleiro. Depois de uma longa disparada, o cavalo, revigorado e mais calmo, passou a avançar a trote.

Durante alguns dias, atordoado pela febre e pela dor, Filipe seguiu o rastro da caravana, arrastando a perna estropiada, lambendo como um animal a água das poças
que encontrava pelo caminho, depois de romper a camada de gelo. Mais tarde, recuperando a visão, passou a alimentar-se com o sangue das lebres que abatia com uma
funda. Para atenuar o fogo que lhe queimava o rosto, usava máscaras de musgo. Certa manhã, enfraquecido e encovado, a febre cessou e pôde engolir, apesar do ferimento,
alguns pedaços da carne crua de um pequeno gamo. Foi o suficiente para que recuperasse um pouco de suas forças.

Marchando dia e noite, cavalo e cavaleiro conseguiram alcançar o comboio. Chegara o momento de Filipe separar-se de seu fiel companheiro. Não teve coragem de matá-lo.
Amarrou-o numa árvore e abraçou-o pela última vez, depois fugiu, claudicando. Por muito tempo ouviu os relinchos do animal, depois houve silêncio. Os lobos?

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Naquela noite Filipe experimentou um sofrimento tão intenso, que sem dúvida teria atentado contra a própria vida se não tivesse a impressão de ouvir em seu delírio
um chamado:

- Viétcha! Viétcha! Três dias depois matou um homem da comitiva dos bispos e conseguiu ser engajado em seu lugar, apesar do horror que inspirava. Quando perguntaram
seu nome, limitou-se a indicar a ferida purulenta no pescoço. Chamaram-lhe o "mudo-coxo".

Os ferimentos atrozes pareciam ter decuplicado suas forças, por isso lhe confiavam os trabalhos mais pesados: árvores caídas no caminho para deslocar, liteiras
atoladas para puxar, enormes pedras a empurrar sob as rodas das carroças, caça ao javali ou ao cervo para a mesa da princesa, caça ao lobo para proteger os viajantes,
combate contra os salteadores que acompanhavam mais ou menos discretamente o cortejo, aguardando o momento oportuno para um ataque.

Em duas ocasiões ele frustrou emboscadas e matou cinco bandidos sozinho. Gosselin de Chauny chamou-o à sua presença, a fim de felicitálo. Aquela estatura e o rosto
desfigurado lhe pareceram vagamente familiares. Mas, graças aos céus, nenhum de seus homens tinha um semblante tão selvagem e dilacerado. O infeliz não falava,
sem dúvida em conseqüência do ferimento cuja cicatriz sobressaía no pescoço. Ao que tudo indicava, um soldado abandonado num campo de batalha... Quem quer que
fosse, era um recruta vigoroso e confiável. Se o homem não morresse até lá e se se comportasse direito, ele o levaria para a França.

Depois desse encontro, Filipe adotou a precaução de manter-se a distância de Gosselin e dos bispos, temendo acima de tudo a perspicácia de Gautier.

Pensou que seria descoberto no dia em que retirou Ana dos destroços de sua liteira que caíra no rio. Quase se traiu quando a manteve em seus braços, inanimada,
por mais tempo do que o necessário. Com toda doçura, Helena removeu o fardo amado de seus braços, carregando Ana sozinha, apesar dos trajes mais pesados pela água,
até a liteira seguinte. Ali, sem as roupas encharcadas, massageada, aquecida pelos braseiros, a princesa recuperou os sentidos. Seu sorriso alegre tranqüilizou
prontamente a ama-de-leite e os bispos que acorreram às pressas.

- Sonhei que um homem jovem e vigoroso me salvava - murmurou Ana.

- Tais sonhos não são convenientes para uma futura esposa! - protestou Roger de Châlons.

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O bispo de Meaux mal conseguiu reprimir um riso sardônico pela desfaçatez do colega, que na juventude não se mostrara dos mais virtuosos.

Pouco tempo depois, Helena entregou uma pomada a Filipe, para ajudar na cicatrização de seus ferimentos. Emocionado, o jovem reconheceu um ungüento cujo segredo
só Ana conhecia. "Sem saber, ela vela por mim", pensou Filipe.

Não demorou muito para que sua coragem e lealdade conquistassem o respeito dos companheiros, que pouco a pouco se acostumaram com sua presença taciturna, seu rosto
torturado, sua aparência bárbara e estranha. Nunca falando, escutava muito, e logo passou a compreender a língua dos soldados francos.

Todos os dias escondia-se atrás de uma árvore ou embaixo de uma carroça para ver a princesa; e todos os dias precisava reprimir o impulso de gritar-lhe:

- Olhe, sou eu, Viétcha! Um dia, ao pôr-do-sol, alcançaram um rio largo, o Reno. Gosselin de Chauny chamou-o à sua tenda.

- Chamam você de Mudo ou Retalhado. Não são nomes cristãos. É preciso arrumar-lhe outro. Compreende nossa língua, Mudo?

"Sim", respondeu Filipe, com um aceno de cabeça. - Ótimo. Daqui a pouco estaremos na França. Quero recompensálo por sua coragem no combate. Não sei de onde vem,
nem mesmo se é batizado...

Filipe balançou a cabeça vigorosamente. - Você é batizado? Isso facilitará tudo. Nada sei a seu respeito, mas conheço os homens. Apesar do rosto destruído, você
me inspira confiança, não sei explicar-lhe o motivo. Quer ir comigo para a França e passar a servir-me? Mais tarde, se for digno, talvez se torne um escudeiro.
Quem sabe, é possível até, embora não seja de uma família nobre...

Filipe teve um gesto de ira e Chauny percebeu.
-... que possa tornar-se um cavaleiro. O que me diz? Em resposta, o jovem boiardo pôs um joelho no chão e estendeu as mãos com a espada que tirara de um chefe de
salteadores.

- Muito bem, agora você é um dos meus. Precisamos arrumar-lhe um nome.

Filipe escreveu algumas letras na areia da margem, sob o olhar aturdido de Gosselin.

- Você sabe escrever... e ler? Filipe balançou a cabeça afirmativamente, o que lamentou no

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mesmo instante, diante da expressão desconfiada de Gosselin.

- Deve ser um monge que largou o hábito?... Não? Então não compreendo. Eu não sei ler, pois é uma coisa de que um cavaleiro não tem a menor necessidade. E agora
pode ir. Preciso pensar.

Foi Gautier de Meaux quem o arrancou da contemplação das letras desenhadas na areia pelo estranho guerreiro desfigurado.

- Está com um ar pensativo demais, Gosselin. O que olha com tanta atenção?

- Senhor bispo, pode dizer-me o que significam esses sinais? Gautier abaixou-se para uma rápida verificação. - São caracteres da língua grega e significam George.
-É um nome cristão? - Evidentemente! George é a mesma coisa que São Jorge, um dos setenta e dois discípulos de Nosso Senhor. Ele teve uma morte súbita e ressuscitou
depois de seis dias, quando o bastão de São Pedro tocou em sua sepultura. é um santo muito venerado pelos cristãos gregos e russos. Por que pergunta? - Não sei.
Encontrei esses sinais, queria saber o que significam.

- Viu quem os desenhou? Graças ao bronzeado do rosto de Gosselin, o bispo Gautier não percebeu o súbito rubor que se espalhou pelas faces do chefe do comboio.

- Não, não vi. - Deve ter sido um dos nossos clérigos, com toda certeza - comentou o bispo, afastando-se.

Chauny voltou para o acampamento, indeciso e descontente. Por que o homem mentira? A indagação atormentou-o durante toda a noite. A confusão em seu espírito simples
era tão grande que não percebeu de imediato a presença de Filipe, parado não muito longe da liteira da princesa, montando guarda, apoiado numa lança. A claridade
inconstante das chamas da fogueira, ao lado da qual Gosselin deitara, fazia com que as mutilações do jovem parecessem ainda mais terríveis, acentuando sua aparência
bárbara. Como passara de mero carregador a sentinela? Quem autorizara essa transformação? Gosselin não se lembrava de ter tomado tal decisão.

Ele teve um sono pesado e irrequieto, povoado por homens de rosto todo cortado que o perseguiam soltando gritos inarticulados e desenhando com seu sangue sinais
enigmáticos, que nada podia apagar.

Pela manhã, pediu que trouxessem o Mudo à sua presença, mas não foi possível encontrá-lo. Ele só reapareceu três dias depois, pálido e

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abatido, carregando nos ombros um enorme cervo, que jogou aos pés de Gosselin, com um enorme sorriso. Chauny, comovido pelo presente, não quis saber mais nada.
Além disso, o estranho guerreiro fez sinal de que um bando de salteadores os seguia há dois dias.

- Cavaleiros, e vocês também, soldados, fiquem de sobreaviso, pois os bandidos podem atacar a qualquer momento. O que você quer?

Filipe retirou a mão que pusera no braço de Gosselin e murmurou: - Mortos. - Ah, você fala! O que está querendo dizer? - Todos... mortos... - Quantos? - Sete
- respondeu Filipe, ilustrando com os dedos. - Onde? Filipe indicou a direção. - Leve-nos até lá. Filipe embrenhou-se pelo bosque, seguido por Gosselin e uma
dezena de guerreiros. Todos pararam de repente, depois de uma centena de passos: sete corpos, já rígidos com o frio, jaziam ali. O local testemunhava a violência
da luta. Dois homens tinham as cabeças cortadas, outros dois haviam sido estripados. Diante de tal carnificina, Gosselin de Chauny olhou para Felipe com uma admiração
apreensiva. Como um homem sozinho podia ter massacrado sete outros sem que seus gritos ou os ruídos do combate tivessem chegado até eles? Havia alguma coisa estranha
ali, diabólica talvez.

Gosselin ajoelhou-se, fez o sinal-da-cruz e concentrou-se em oração, acompanhado por seus homens. Após um momento de hesitação, Filipe juntou-se a eles. Depois,
foi dada ordem para recolher as armas e despojar os cadáveres.

- Seu nome é mesmo George? - Não. - Então qual é o seu nome? - Não tenho mais nenhum nome. Gosselin fitou-o atentamente, outra vez desconfiado. - Todo homem
tem um nome. - Pode me chamar de Retalhado ou Coxo, já que me apelidaram assim.

Sentindo que não conseguiria arrancar mais nada, Chauny deu de ombros.

- Está bem. A partir de hoje, você está a meu serviço, ficará perto

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de mim, terá abrigo e alimento sempre que possível, direito de pilhagem razoável em caso de combate, a não ser, é claro, na Trégua de Deus... Mas com certeza não
sabe o que é a Trégua de Deus: todo cavaleiro, todo guerreiro, deve abster-se do combate durante esse período, sob pena de pecado mortal. Deve também comportar-se
com respeito em relação às damas, e proteger a viúva e o órfão. Meu escudeiro providenciará um traje completo para você. Sabe montar bem?... Então terá um cavalo,
ao qual deverá dispensar o melhor cuidado, caso contrário será severamente punido. Quanto às armas, pode escolhê-las, você as conquistou. E agora saia e peça
perdão a Deus por seus pecados. Lembre-se de não me trair e de ser fiel à rainha e ao rei.

Filipe não entendeu muita coisa desse longo discurso, mas, pelo tom de voz de Gosselin, compreendeu que fora aceito. Dobrou um joelho no chão e, com a mão direita
no peito, inclinou a cabeça, em sinal de assentimento. Depois, carregando os despojos, foi juntar-se ao comboio, que acabara de parar. Ali, sentado num canto, deixou-se
dominar, pela primeira vez desde que abandonara a droujina, por um sentimento próximo da euforia. Conseguira! Estava no reino da França! Respirava o mesmo ar
que sua princesa! Encostado numa árvore, elevou o rosto desfigurado para o céu, deixando uma lágrima escorrer ao longo das horríveis cicatrizes. "São Jorge, dai-me
forças para cumprir meu juramento!"

Um bafo quente, seguido por uma leve carícia, trouxe-o de volta à terra

- Molnia! De um salto, apesar do tornozelo ainda dolorido, Filipe levantou-se, enlaçando a cabeça do animal, que relinchou de alegria.

- Molnia... meu lindo... você me reconheceu! Não esqueceu... Ah, se você pudesse falar... Diria a ela que estou aqui, tão perto, que sua imagem nunca me sai da
cabeça! Vamos, Molnia, diga a ela...

- Molnia! Molnia! - gritou outra voz. - Ah, você conseguiu agarrá-lo!... Esse animal me deixa louco. Está sempre tentando escapar, me morde, dá coices. Venha cá,
seu demônio, vai aprender uma lição... Ai!

O chicote não chegou a atingir o cavalo, arrancado por Filipe, que no mesmo instante açoitou no rosto o escudeiro encarregado de cuidar do cavalo da princesa.

O homem desembainhou a pesada espada com um grito de raiva. - Vai pagar caro por isso, camponês! Filipe desarmou-o e feriu-lhe o braço logo na primeira carga.
- Parem! - gritou Gosselin de Chauny.

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Filipe, que já ia desferir o golpe de misericórdia, conteve-se a tempo.

- Que está acontecendo aqui? Pálido de raiva e de medo, o ferido empertigou-se. - Esse homem está louco! Ele me atacou, querendo me matar! - É verdade? - Não
- respondeu Filipe, estendendo o chicote e indicando Molnia, que cabriolava ao redor.

- Está querendo dizer que ele queria bater no cavalo da princesa? - Isso. - Fez bem em impedir, mas isso não merece a morte. É curioso, este cavalo está lhe fazendo
festas, quando não deixa outra pessoa além da princesa aproximar-se. Você é um homem muito estranho. Um dia, quando puder falar direito, vai me contar toda a sua
história. Enquanto isso, pode ir embora.

Tranqüilamente, Filipe limpou a espada na erva antes de guardá-la na bainha, depois encaminhou-se para a carroça da cozinha. Em troca de dois pássaros tirados
de baixo de sua camisa, deram-lhe um bom pedaço de carne do cervo, o molho escorrendo, dentro de um pão. Felipe agradeceu com um aceno de cabeça.

- É um famoso matador de homens e de animais - comentou o cozinheiro, chupando os dedos. - Sempre volta com um ou outro.

Depois de comer, Filipe afastou-se à procura de uma fonte para se lavar, raspar o crânio e a barba. O que lhe valeu, na volta, os sarcasmos dos companheiros de
viagem, pois alguns não se lavavam desde a partida de Kiev. Sem dar-lhes a menor atenção, deitou-se por baixo de uma carroça, o rosto voltado para a liteira de
Ana.

As cerimônias do casamento e coroação foram um suplício para Filipe. Tentou esquecer com o álcool horrível das infames tavernas dos arrabaldes de Reims, entre
as pernas de velhas rameiras ou de garotas magras, quase impúberes, que, aterrorizadas com sua aparência, fechavam os olhos com aversão e medo. No dia seguinte
a essas bebedeiras e tristes orgias, ninguém ousava aproximar-se de Filipe, pois o desespero desvairado em seus olhos injetados repelia os mais temerários e os
mais amistosos.

Não estava entre os homens que acompanharam a nova rainha e o rei para Senlis. Seguiu Gosselin para suas terras de Chauny, onde o esperavam a esposa e os filhos.
Gosselin providenciou para que uma boa

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acolhida fosse dispensada àquele homem por quem passara a sentir uma espécie de amizade.

Algumas semanas transcorreram assim, sem que Filipe tornasse a ver Ana. Pouco a pouco, ele conseguiu falar sem sofrimento, em voz rouca e baixa, que aumentava seu
mistério. O ungüento oferecido por Helena acelerara a cicatrização e atenuara as inchações. Ele passava bastante tempo a caçar em companhia do filho mais velho
de seu senhor, um menino que nunca o deixava e o importunava com perguntas, das quais ele só respondia a metade.

- Meu pai diz que você é um dos seus melhores guerreiros. Quantos homens já matou?... Vamos, responda.

- Não sei. - Não acredito. Meu pai diz que sempre se sabe o número de homens que se matou com as próprias mãos. Quantos?... Quantos?

Cansado, Filipe acabou por responder: - Talvez uma dezena? - Só? Meu pai já matou milhares! - Acho que está exagerando, filho. Gosselin os observava há algum
tempo. Sentia o maior orgulho da segurança viril do filho e de sua competência com as armas. O Retalhado era um excelente mestre, e Thibaut, um bom discípulo.

- Vá brincar, meu filho. - Pai, não sou mais um menino que brinca, mas um homem. - Muito em breve, filho, muito em breve... E agora vá brincar, pois preciso
conversar com o Retalhado. O rei me chama. Partiremos ao amanhecer... O que há com você, está tão pálido...

Filipe mal conseguiu reprimir um grito de alegria. Ia revê-la! O sangue nas têmporas batia como um tambor. Senhor, agradeço por Vossa generosidade! Vou revê-la!...

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CAPÍTULO DEzeSSEIS


HENRIQUE


O nascimento de um herdeiro deixara o soberano na maior satisfação, tranqüilizando-o quanto ao futuro de sua linhagem. Isso acabava com as pressões dos bispos,
as zombarias da corte, o desprezo mal disfarçado dos condes! Agora, graças ao filho, mostraria a todos que era de fato o senhor do reino; e depois de cumprir seu
duplo dever, de rei e de marido, estava livre para viver como desejasse.

Em primeiro lugar, daria uma lição ao Bastardo, tão poderoso, que na sua frente vinha fazer corte à rainha, com o consentimento da tola de sua mulher: não lhe
haviam pedido para ser a madrinha de seu primogênito, Roberto? Para isso, ele faria a paz com Geoffroi Martel e firmaria uma aliança. O conde d'Anjou, empenhado
na guerra contra Guilherme para recuperar as fortalezas de Domfront e Alençon, não podia deixar de satisfazer a todas as suas exigências, ainda mais depois que
a escaramuça de Sainte-Maure acabara com a vitória dos franceses.

A 15 de agosto de 1052, Henrique convocou Geoffroi e, contra o conselho de Balduíno de Flandres, celebrou com ele uma paz solene, ao final de uma missa cantada
na abadia de Saint-Germain-des-Prés.

Houve festividades em comemoração da ocasião, para grande alegria do povo de Paris: justas no Sena, lutas e torneios em que a própria rainha entregou o prêmio ao
vencedor, o que aumentou ainda mais o brilho da festa. Uma rainha cuja presença Henrique suportava cada vez menos. E não queria mais que lhe falassem de Helena,
que a rainha trouxera em sua companhia e que o fitava com uma aversão evidente, insistindo em falar apenas na sua língua bárbara. Mais de uma vez ele tentara mandá-la
de volta à sua terra, mas temia a ira de Ana. Ah, a cena terrível quando ela o descobrira, poucos dias depois do parto,

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acariciando um jovem valete! Ana empregara as mesmas palavras que sua mãe, duras, cruéis, violentas, ele se sentira de novo o rapazinho que a rainha Constância tratava
como uma mulherzinha. Não tornara a procurar a rainha depois do nascimento de Filipe. Dentro em breve retomaria o caminho de seu leito. Não que sentisse a sua falta,
mas devia salvar as aparências. Mostraria a ela quem mandava. Tomara-a como esposa para dar filhos à coroa e ela os daria, de bom grado ou à força. Ou então ele
a repudiaria.

- Senhor, está muito sonhador... Ganhará um beijo se me disser por que essa expressão sombria.

- Meu Olivier, eu estava pensando na rainha. - Então por que essa tristeza? A rainha Ana é uma boa mulher, e bonita ainda por cima.

- Cale-se! Não sabe do que está falando. Não é porque ela gosta de cantar com você que deve tomar sua defesa.

- Está sendo injusto, meu querido rei. Ela não lhe deu um filho? Acho que está com ciúme, porque todo mundo a ama, a começar por mim.

- Está sendo estúpido: como se pode amar uma mulher sempre tagarela, coquete, maliciosa e impudica, e aquele corpo repulsivo com suas mamas, aquela racha úmida
e malcheirosa, aquele sangue! Tudo isso me enoja. Só de pensar já sinto vontade de vomitar. Enquanto o corpo de um rapaz, firme e macio ao mesmo tempo, o peito
liso, as nádegas redondas e musculosas, o sexo frágil, que uma carícia da pessoa amada torna duro como o mármore. Ah, toda a beleza está no homem!

- Não tenho a mesma opinião. Também aprecio a beleza do homem e agrada-me acariciar seu corpo, mas também amo a beleza da mulher, a flexibilidade de seus membros,
a profundidade do ventre. Lembre-se da rainha: o senhor mesmo me confessou que sentiu prazer ao possuí-la.

- Era preciso, mas sofri muito. Para ter coragem, pensei em você, fechei os olhos, imaginei que era o seu corpo que tinha nos braços.

- Somos diferentes. No seu lugar, eu teria aberto bem os olhos para contemplar a bela Ana contorcendo-se embaixo de mim.

- Modere suas palavras! Está esquecendo que é da rainha que fala?

Olivier d'Arles, que se estendera com uma graça despreocupada sobre as almofadas, levantou-se com um salto gracioso e, com a mão no coração, fez uma reverência
irónica.

- Perdoe-me, senhor. Esqueci que falava com o rei e não com meu amante.

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- Eu o perdôo por esta vez, se me prometer que não vai mais cortejar as donzelas dos aposentos das mulheres.

- Meu bom senhor, prometo de bom grado, pois não aprecio tanto assim as donzelas, prefiro as damas bem fornidas, com nádegas, seios e ventre cheios...

Uma almofada de veludo arremessada por Henrique cortou-lhe a palavra. Rindo, o jovem trovador devolveu-a. A alegre confusão que se seguiu acabou por derrubá-los
sobre as almofadas, onde se amaram sem reservas.

Estendido ao lado de Olivier adormecido, semidespido, o rei ficou olhando pela janela estreita as nuvens ameaçadoras que anunciavam a tempestade. Há vários dias
predominava sobre Paris um calor sufocante, que a noite mal conseguia atenuar. A própria água do Sena estava tão quente que mal proporcionava um pouco de alívio
aos parisienses de todas as condições, que lá se banhavam na esperança de encontrarem algum bem-estar. Aflitas, as pessoas quase se arrastavam, só encontrando
algum vigor numa taça de vinho, de Montmartre ou de Argenteuil para os mais ricos, ou uma zurrapa duvidosa para os outros. Bebia-se muito, pensando que assim se
saciava a sede; e com a embriaguez ajudando, as desavenças e brigas multiplicavam-se. A cada dia os soldados da guarda recolhiam uma vintena de cadáveres; a cada
dia os monges do Hôtel-Dieu cuidavam de novos feridos; a cada dia o carrasco tinha trabalho. Reinava na cidade um clima opressivo, pontilhado pelo soar dos sinos
das igrejas, repicando sob um céu cinzento. Podia-se ouvir as trovoadas a distância. Embora a tarde ainda não estivesse muito adiantada, estava escuro como em pleno
inverno, Um relâmpago iluminou o quarto, revelando a brancura do corpo de Olivier. O rei estendeu os dedos e acariciou a nuca do trovador, onde os cabelos escuros
formavam anéis, grudados pelo suor. E foi nesse instante que um raio de extrema violência provocou um sobressalto nos dois homens. Henrique fez o sinalda-cruz e
murmurou uma oração. Olivier soergueu-se, esfregando os olhos.

- Deus não parece muito satisfeito, está num acesso de raiva, como dizem.

- Cale-se! Não diga nenhuma blasfêmia! Somos pobres pecadores, que a Santa Mãe de Deus nos proteja. Vista-se, sua nudez é uma ofensa...

- E a de um rei? - Oh!... Henrique arrumou suas roupas com gestos desajeitados que provocaram um sorriso em seu companheiro.

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- Saia agora... deixe-me sozinho... Quero rezar, suplicar a Deus que nos perdoe...

Ajoelhado, a cabeça entre as mãos, o rei da França pediu a Deus que mais uma vez o absolvesse do pecado de sodomia.

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CAPÍTULO DEZESSETE


OLIVIER D'ARLES


Sem responder aos chamados dos valetes que jogavam dados, apesar da proibição da Igreja, Olivier encaminhou-se em passos largos para o pátio do castelo. Estava
sufocando! Sentia a maior necessidade de ar fresco. A paixão do rei tornava-se cada vez mais insuportável.

Último filho de uma família outrora rica e nobre, ele fora levado aos dez anos de idade, por um menestrel de sua terra, à presença do arcebispo de Orléans, Isambard,
que gostava de cercar-se de cantores. A voz suave e o rosto bonito do menino conquistaram o prelado e o mestre de música. Mediante uma compensação honesta, o menestrel
deixara o menino com os monges, que lhe ensinaram, além da música, o canto e a salmodia, a leitura e a escrita, além de determinados jogos, sobre os quais recomendaram-lhe
que nada falasse na confissão. Foi durante uma cerimônia na catedral de Orléans que o rei ouviu aquela voz clara e ao mesmo tempo ardente, que deixava os ouvintes
encantados. Henrique quis conhecer o jovem cantor. Os cabelos castanhos encaracolados, os olhos de um verde da primavera, os lábios vermelhos abrindo-se sobre
dentes perfeitos, os pés e as mãos pequenos e delicados, tudo isso causou uma impressão tão profunda no rei que ele não teve palavras para felicitar o jovem cantor
e retirou-se às pressas. Olivier pensou que o desagradara. Dois dias depois, no entanto, o mestre de música ordenou que Olivier arrumasse sua pequena trouxa e
o conduziu ao bispo.

- Meu filho, você foi notado pelo rei. É uma grande honra para você e uma grande tristeza para mim. Espero que saiba mostrar-se digno do ensino que recebeu aqui,
que seja sempre fiel a seu senhor e respeitoso em seus deveres para com Deus e sua Igreja. Vá, meu filho, e que nossa Santa Mãe o proteja!

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Na despedida, Isambard abençoou-o e entregou-lhe uma peça de ouro.

Olivier deixou os monges e seus companheiros sem qualquer pesar. Aqueles três anos em Orléans não haviam sido felizes; invejado pelos discípulos, perseguido pelas
atenções de certos mestres, refugiara-se no estudo e numa disciplina zombeteira, que lhe perdoavam por causa de seus múltiplos talentos: nenhum instrumento musical
tinha segredos para ele, compunha canções deslumbrantes de improviso, desenhava e dançava de maneira encantadora.

Nessa ocasião, a corte do rei estava instalada perto de Dreux. Olivier foi recebido ali como os filhos dos condes. Henrique confiou-o ao mestre de armas Roscelin,
encarregado da instrução dos valetes. Não demorou muito para que Olivier superasse os melhores, tanto no bastão quanto na espada. Esses novos talentos lhe garantiram
o respeito daqueles adolescentes, que pensavam que poderiam dominar facilmente o novo favorito do rei; ele podia ter a aparência de uma donzela, mas lutava com
a coragem de um guerreiro!

Olivier cedia às carícias do rei sem repugnância, mas também sem prazer. Henrique, apesar da idade, era até bonito, sabia mostrar-se doce, terno e generoso e...
era o rei! Por um momento ele quase temeu que o casamento o afastasse dele, mas aconteceu justamente o contrário. Cada noite passada com Ana trazia-lhe de volta
o marido da rainha mais ardente do que nunca. E, no entanto, ocorreu outra coisa que Olivier estava longe de imaginar: apaixonou-se pela jovem que, por sua vez,
demonstrava grande afeição por aquele músico insolente, tão hábil na arte de distraí-la. Olivier passava cada vez mais tempo na companhia das damas e da rainha,
aprendendo com ela canções na língua de sua terra e ensinando-lhe em troca as músicas da França. O provençal, proibido depois da morte da rainha Constância, ressurgiu
então com toda força, bastante apreciado pela juventude, embora as pessoas da corte não compreendessem direito o sentido das palavras cantadas. Henrique ficou contrariado
e proibiu que se cantasse em outra língua que não o francês ou latim. Proibição que Ana e Olivier nunca respeitaram...

O ciúme do rei tornou-se tão intenso que a rainha, como boa esposa, acabou afastando o trovador. Ele não voltara à sua presença depois do nascimento de Filipe.
Olivier mandara-lhe um longo poema, em que exaltava sua beleza, saudava-a como mulher e mãe e lamentava o exílio a que ela o condenara. Ana agradecera mandando-lhe
uma peça de tecido de Damasco.

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Sob a chuva torrencial, o jovem deixou o castelo. Fora dos muros, desceu para a margem do Sena, onde moças e rapazes dançavam em roda, os rostos erguidos para
melhor receberem a água do céu. Os pés descalços escorregavam na relva, todos caíam, braços e pernas misturavam-se; parecia uma cópula de todos os jovens, iluminada
pelos relâmpagos, pontuada pelas trovoadas. Tirando as roupas, Olivier saiu correndo; não podia perder aquele frenesi erótico.

Esgotado, os sentidos saciados, Olivier avançou pela lama até o Sena, no qual mergulhou. A água estava morna. Boiando de costas, ele se deixou levar pela correnteza,
recebendo com um prazer sensual as enormes gotas de chuva que caíam em seu rosto, golpeando-lhe as pálpebras como mil picadas de agulhas, ou escorrendo para sua
boca aberta com a suavidade do mel. Tinha a sensação de que a água do céu o purificava de todos os pecados, devolvia-o à inocência da infância. Imagens de felicidade
passaram docemente em sua mente enlanguescida: carícias da mãe quando lhe presenteava os produtos de suas primeiras caçadas, orgulho do pai quando vencera na corrida
o filho do conde de Provence, brincadeiras e brigas com os irmãos e primos... Não tinha oito anos quando tudo acabara subitamente, com a morte dos pais e dos
irmãos mais velhos, levados em poucos dias por uma doença conhecida como fogo-de-santo-antônio. Desde então, ele tivera de lutar, sempre e sempre. Para expulsar
as lembranças ruins, Olivier nadou por um longo tempo debaixo d'água. E, depois, tomou pé na margem da ilha da Cité, completamente nu.

Encostado numa árvore, um homem grande e forte, o crânio raspado, enorme bigode, o rosto parecendo um campo monstruosamente rasgado pelo arado, contemplava-o com
insistência.

- Por que me olha assim? O homem não respondeu e continuou a fitá-lo. Olivier teve a impressão de que já o vira, ao mesmo tempo em que se dizia que jamais poderia
esquecer uma cara assim. Sem aquelas horríveis cicatrizes e aquela falta de cabelos, o desconhecido certamente seria bonito.

- Que é que você quer? Minha nudez o incomoda?... Deixei minhas roupas na outra margem, nas mãos de algumas moças. A menos... talvez eu lhe agrade... Não? Nesse
caso, desisto de compreender. Qual é o seu nome?... Não quer responder? Você me cansa... deixe-me passar...

O homem deu um passo, a mão no punho da espada. - Covarde! Não vê que estou desarmado? Quer me matar? O outro fez que não com a cabeça e, tirando seu manto, estendeu-lho.

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Depois de um breve instante de hesitação, Olivier pegou o manto e envolveu-se nele.

- Obrigado. Mas eu gostaria muito de entender. Para onde você deseja ir?... Quer que eu o siga... Ora, por que não?

Sob a tempestade que redobrava de violência, os dois homens seguiram correndo para uma taverna, tão cheia que mal conseguiram entrar. O homem de cara cheia de
cicatrizes devia ser conhecido ali, porque uma criada bem fornida, bem no estilo que Olivier apreciava, fez sinal para que se adiantassem. A cotoveladas, apesar
dos protestos e imprecações, eles conseguiram chegar ao fundo da sala, um canto em que quase não chegava a claridade das tochas fixadas nas paredes.

- Sente-se aí, senhor. Vou buscar nosso melhor vinho. - É muito bem tratado aqui, amigo, a mulher parece ter os melhores sentimentos por você. E agora que estamos
onde queria, pode explicar o que espera de mim?

A mulher voltou com duas taças de estanho e um jarro com gotas condensando-se por fora.

- Obrigado, Gisele. - Pode beber, senhor Retalhado. O vinho está fresco, tirei pessoalmente do tonel.

Ela esperou que o homem bebesse e estalasse a língua, com um ar de conhecedor, antes de servir o músico. Olivier também gostou do vinho.

- Ela não estava mentindo, senhor Retalhado. É. esse mesmo o seu nome?

- É, sim - respondeu a voz rouca -, é esse o meu nome. - O meu é Olivier. - Sei disso. - Ahn... E quem é você? Gosto de saber com quem bebo. - Eu pertenço ao
senhor Gosselin de Chauny. - Sei agora por que tive a impressão de que já o vira em algum lugar. Não estava na escolta que trouxe a rainha Ana?

O súbito rubor que dominou o rosto de Filipe ressaltou as enormes cicatrizes esbranquiçadas e não escapou à atenção do trovador.

- Não estava na escolta? - repetiu. - Estava. - É da terra da rainha? - Não. - É pena. Bem que gostaria que me falasse dela e dessa terra de que a rainha parece
sempre sentir saudade. Dizem na corte que ela deixou um apaixonado por lá. O que acha?

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O rosto mutilado ficou púrpura de novo. Olivier sentiu uma simpatia misturada com compaixão por aquele homem torturado na carne, e com certeza no coração também.
E perguntou com uma voz suave:

- Percebo que você sofre... tem algum segredo? Não estou querendo conhecê-lo, mas pode falar-me se acha que isso vai lhe proporcionar algum conforto. Pode estar
certo de que serei discreto.

Filipe só tinha prevenções contra o favorito do rei, que observara às escondidas quando acompanhava Gosselin à corte, mas percebera que Ana o tratava com amizade
e que o rapaz, apesar de seus modos vergonhosos, era corajoso e escrupuloso nas questões de honra.

- Foi ao serviço do senhor de Chauny que ficou nesse estado? - Não. Fui atacado por salteadores e o fogo fez o resto. Beba. O vinho é bom.

Durante algum tempo os dois beberam em silêncio, no calor de estufa da taverna, onde a penumbra era cada vez mais densa.

Um monge, num hábito tão rasgado que deixava à mostra as pernas magras e tortas, subiu numa mesa, aos gritos.

- Foram seus pecados, malditos, que irritaram o Divino Filho de Maria... Arrependam-se!... As trevas se aproximam... o fogo do céu vai abater-se sobre vocês...
De joelhos!... Imploremos à Santa Mãe de Deus que interceda em nosso favor junto a Deus feito homem... Ó mulher eleita entre todas as mulheres, olhai por nós,
miseráveis que somos... A cada dia ofendemos vosso pudor por nossas fornicações abomináveis... A cada dia o fedor de nosso cio é um insulto ao vosso odor virginal...
Ó mãe sempre virgem, nós suplicamos... Rogai a vosso Santo Filho que afaste de nós Sua cólera... Que Ele perdoe nossos crimes, criaturas miseráveis que o Pai criou
à Sua imagem... De joelhos, meus irmãos, arrependam-se, senão todos serão aniquilados!...

As mulheres foram as primeiras a obedecer, logo acompanhadas pelos homens. Só Olivier e Filipe não se mexeram.

O monge circulou pela assistência ajoelhada com um olhar brilhante e satisfeito, até que percebeu os dois companheiros na penumbra.

- São rebeldes à palavra de Deus, pagãos? - Não ouço nenhuma palavra além da sua, monge. A de Deus é suave, a sua fede a zurrapa.

- Ousa injuriar o Seu servidor? Pois tema a Sua vingança! - Só temo as suas asneiras, palerma. - Ajudem-me, irmãos! Ao blasfemo! Vamos dar uma lição a esse adepto
de Satã!

- É melhor saírem - disse a criada. - Esse monge é terrível, vai provocar a morte de vocês...

117

Uma dezena de homens levantaram-se com expressões ameaçadoras, avançando para os dois rebeldes, empurrando os ajoelhados.

- Não estou armado. Passe-me seu punhal. Depois de uma hesitação imperceptível, Filipe entregou-lhe o punhal que Ana lhe dera.

- Vamos depressa. Há uma porta ali atrás... Com a espada na mão, Filipe começou a recuar. - Cuidado! Eles vão nos escapar! Olivier correu na direção do castelo
real, pensando que o companheiro o seguia. O vento da corrida abria o manto, revelando sua nudez. Mas não havia ninguém pelo caminho para observar; a tempestade
encerrara os parisienses em suas casas.

- Mais um pouco e estaremos seguros, amigo! - gritou, olhando para trás.

Não havia o menor sinal do Retalhado! E de repente ele teve a impressão de ouvir gritos, um retinir de armas. Virou-se. Eram cinco homens atacando.

Dois já estavam caídos no chão, o sangue derramado misturando-se com a chuva. Olivier atacou de surpresa um dos agressores e cortou-lhe a garganta com seu punhal.
Espantou-se pela facilidade com que se mata um homem. Era a primeira vez. Diante de tanta simplicidade, sentiu apenas estupor.

Filipe acabava de enfiar a espada em um dos sobreviventes. O último, diante daquela carnificina, virou-se e saiu correndo, seguido pelo monge, que não parara de
incitá-los ao combate.

- Ainda nos encontraremos, malditos! A noite os envolveu. - Obrigado por ter vindo em meu socorro. - Não precisa agradecer. Perdoe-me por não estar ao seu lado
desde o início, pensei que me seguia. Mas... você está ferido?

- Não é nada. Um daqueles bandidos conseguiu acertar-me uma punhalada nas costas.

- Venha comigo, cuidarei do ferimento. - Como quiser. E se vamos para sua casa, pode aproveitar para vestir-se.

Olivier soltou uma risada. -Tem razão, meu amigo. Esqueci que estava com meus penduricalhos ao vento!

A sentinela de guarda no pequeno portão do castelo conhecia o trovador e deixou-o passar com seu companheiro, sem fazer qualquer

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comentário. Os dois desceram para uma vasta cozinha de teto baixo, sustentado por enormes colunas; numa das lareiras ardia um fogo do inferno, diante do qual se
movimentava o cozinheiro-chefe, cercado por três ajudantes.

- Imbert - disse Olivier -, pode arranjar-me alguns fios de linho?

- O que aconteceu? Sofreu outro golpe de mau jeito? - Não. É para meu amigo. Imbert aproximou-se, examinou Filipe da cabeça aos pés e depois, empurrando-o com
a mão, obrigou-o a sentar-se. Afastou o traje rasgado para inspecionar o ferimento.

- é profundo, mas está limpo. Vou mandar chamar a velha Ermengarda.

O cozinheiro levou Olivier para um lado. - Nunca vi esse homem aqui. Você o conhece? Confia nele? - Eu o conheci esta tarde, fomos atacados pelo bando do monge
Lancelin. Ele matou três e eu mais um. Os outros fugiram.

- Ele foi horrivelmente desfigurado, parece até que um animal selvagem retalhou seu rosto.

- Tem razão. Eu não havia pensado nisso. Mas quem quer que seja, parece boa companhia.

- É possível, mas desconfio dos homens que sofreram muito... e este, dá para perceber, ainda sofre.

- Também tem razão nisso. Mas em vez de ficar filosofando como um clérigo, seria melhor se me arrumasse alguma coisa para vestir, senão a velha Ermengarda pode
me violar.

Imbert desatou a rir e chamou um ajudante. - Ei, você! Tome aqui a chave do meu baú, vá buscar um calção e minha bliaud*1 bordada. Só tenho um par de calçados
e estão nos meus pés.

- E você, vá procurar a dama Ermengarda e não se demore pelo caminho - acrescentou o cozinheiro para outro ajudante. - E enquanto esperam a velha, vocês vão comer
alguma coisa e beber um copo.

- Não dá para recusar, cozinheiro, pois essa luta me abriu o apetite.

Ao chegar, Ermengarda encontrou os três sentados a uma mesa, ocupados em retalhar um cabrito assado, tomando enormes goles de vinho.

*1. Espécie de camisa.

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- Falaram-me num ferido e vejo três comilões empanturrando-se como porcos!

- O camarada de crânio raspado recebeu uma punhalada nas costas.

- Não deve ser nada grave. Deixe-me dar uma olhada, meu rapaz. Filipe virou-se. - Santo Deus! Há muitos anos que me ocupo em curar e costurar, mas nunca vi ninguém
tão desfigurado assim. Quem o maltratou desse jeito? Era preciso ter muito ódio para deixar você nesse estado... Isso o faz sorrir?... Tem bom gênio. Mostre-me
o ferimento... Passe-me uma faca, vou cortar sua camisa.

Olivier estendeu o punhal de Ana que Filipe lhe emprestara para se defender, depois de examiná-lo.

- É uma bela arma, essa sua. Tenho a impressão de que já vi uma escritura parecida com a que está gravada na lâmina. Sabe o que significa?

- Não. Ganhei esse punhal em combate. - Teve sorte - comentou a velha, arrumando o emplastro, que prendeu com faixas compridas. - A lâmina deslizou ao longo do osso,
caso contrário estaria morto. Deve ficar em repouso durante dez dias.

Filipe tirou uma moeda da bolsa pendurada em seu pescoço. A Velha apanhou-a com avidez.

- Uma moeda de prata! Senhor, é mais generoso do que o rei! Que o céu esteja sempre consigo! - Ela lançou um último olhar para o rosto coberto por cicatrizes.
- Que tristeza... E então, cozinheiro, não vai me oferecer uma taça de vinho? Não acha que mereci?

A velha bebeu tudo num único trago. - Este não é mijo de asno! - exclamou, estalando a língua. - Saúde, companheiros.

Olivier vestira as roupas de Imbert. Os três homens continuaram a beber, em silêncio. Pouco depois soaram as doze badaladas da meia-noite. Ao redor, o pessoal da
cozinha dormia nos cantos, sobre montes de palha. O último fogo projetava uma claridade cada vez menor. Lá fora a chuva cessara, mas a tempestade ainda não se
afastara, os raios sucediam-se, iluminando por instantes os rostos cada vez mais pálidos dos bebedores, enquanto as trovoadas faziam o solo vibrar.

- Tenho de procurar o rei, ele deve estar precisando de mim - murmurou Olivier, com a voz engrolada.
- Obrigado, amigo, por seu vinho e suas roupas. Eu as devolverei
com juros...

- Conto com isso! - disse o cozinheiro, sem levantar a cabeça. Filipe ficou de pé, olhando ao redor, com uma expressão indecisa.

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- Venha comigo - disse Olivier. - Vou levá-lo para os aposentos dos escudeiros e valetes. Ponha o manto para encobrir o curativo e o sangue nas suas roupas.

Eles subiram escadas, atravessaram salas em que guardas cochilavam, apoiados em suas lanças.

- Aqui ficam os aposentos das damas. - A rainha está aí? - perguntou Filipe, em voz tão baixa que Olivier mais adivinhou do que escutou.

- Está, sim, se não foi para os aposentos do rei. O que há com você? Está se sentindo mal?

O trovador não pôde deixar de inquietar-se ao ouvir o gemido involuntário de seu novo amigo.

- Não... não é nada. Olivier empurrou a porta de um vasto aposento, impregnado por um cheiro forte de homens suados, deitados nus no chão, em busca de um pouco
de frescor. Passaram por cima dos corpos dos adormecidos.

- Este é o meu domínio - disse o favorito do rei, puxando uma cortina, por trás da qual havia uma cama alta, onde dois jovens dormiam enlaçados.
- Amauri! Ricardo! Saiam daqui!

Resmungando, sem chegarem bem a despertar, os jovens deixaram a cama e acomodaram-se junto da cortina.

- Pode deitar. Vou procurar o rei. Ficando sozinho, Filipe deitou de lado, por causa do ferimento... Enfim, estou sob o mesmo teto que ela... Minha princesa dorme
a alguns passos de mim... Abençoado seja este ferimento que me valeu a amizade do músico e me trouxe para tão perto de minha dama... Desejo apenas uma coisa,
Senhor: vê-la, assim como ao filho a quem ela deu meu nome.

Ele adormeceu, segurando o punhal.

O sol já estava alto quando Olivier voltou à sua cama. Filipe se despira e dormia nu. O trovador admirou aquele corpo harmonioso, esguio e musculoso, e não pôde
deixar de compará-lo com o do rei. E a comparação lhe arrancou um suspiro de enfado. Deitou também, tomando o cuidado de não encostar-se no corpo de Filipe. Logo
adormeceu, apesar dos risos e gritos de escudeiros e valetes que entrariam de serviço.

Em seu sonho, Henrique o chamava, acariciava-o, puxava-lhe os cabelos.

- Olivier... Olivier... acorde!

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- O que aconteceu?... Deixe-me dormir! - Olivier! Levante-se! Apoiado num cotovelo, Filipe observou o homem de cabelos grisalhos que sacudia seu companheiro de
cama. Ele tinha olheiras e mau hálito, estava cercado por jovens rindo, parecia vagamente com o rei.

- Senhor, deixe-o dormir. Ele teve um dia difícil. - Quem é você? Não é um dos escudeiros... Nunca o vi antes. Que faz aqui?

- Estava dormindo. - Dá para perceber, cara do demônio! Olivier! O jovem trovador finalmente abriu um olho, com a maior dificuldade, depois o outro.

- Senhor! Veio procurar-me aqui? Estou confuso... - O que faz esse homem na sua cama? - É o homem que me salvou a vida e de quem falei ontem. - Tinha-me esquecido.
E você não me disse que ele era tão feio. Qual é o seu nome?

- Retalhado, majestade. Pertenço ao senhor de Chauny. - Muito bem, pode-se ver que é um vassalo fiel. É um cavaleiro? - Ainda não. - Verei o que posso fazer por
você. Salvou meu doce amigo e por isso agradeço. E agora trate de levantar-se.

- Majestade, eu estou... - Não fique com esses melindres, já vi homens nus. Obedeça logo.

Filipe saiu da cama, tentando em vão esconder uma magnífica ereção matinal, que encheu o rei de melancolia e arrancou murmúrios de admiração dos outros.

- é uma pena que um corpo tão bonito seja encimado por um rosto assim! Se ao menos deixasse crescer os cabelos... Vista-se. Vai acompanhar-me na caça.

- Senhor, ele foi ferido ontem, precisa repousar - protestou Olivier, pondo os sapatos.

- Um ferimento sem gravidade, dá para ver. Não será uma pequena caçada que vai agravá-lo. Não tenho razão?... Qual é mesmo o seu nome?

- Retalhado, senhor. - Isso mesmo, Retalhado. Não acha que tenho razão? - Claro que tem, senhor. - Vamos logo embora. O cervo nos espera, impaciente. Olivier,
providencie um cavalo para seu amigo.

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Henrique afastou-se, cercado por sua comitiva de escudeiros e valetes, vestidos em cores vivas, falando sem parar. Todos rivalizavam em beleza.

- É a primeira vez que vejo o rei interessar-se por um homem que não é... desculpe... bonito. Acho que ele ficou impressionado pelo tamanho do seu instrumento.

- Ainda bem que me restou alguma coisa... Ajude-me a vestirme, esse maldito ferimento está doendo.

- A velha Ermengarda falou em repouso. - Tenho escolha? - Não - respondeu Olivier, rindo. - Por que contou ao rei que eu salvei sua vida? Isso não é verdade.

- E daí? Se fosse necessário, você me teria salvo. E não encontrei outra maneira de pôr você em suas boas graças.

- E por que fez isso? - Não sei... você me agrada... Filipe teve um movimento brusco. - Não é o que está pensando - acrescentou Olivier. - Você me agrada porque
é diferente dos outros e porque dá a impressão de ser tão solitário quanto eu me sinto, na realidade.

- Não faz muito tempo que aprendi a falar sua língua e não entendi direito o que disse.

- Estou propondo a minha amizade. Pense se quer aceitá-la. Não, não precisa dizer nada agora... E trate de apressar-se, pois o rei nos espera.

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CAPÍTULO DEZOITO


SETEMBRO DE 1052


O verão aproximava-se do fim, mas o calor insuportável persistia. Apesar das tempestades sucessivas, as colheitas haviam sido boas e os cereais abarrotavam os
celeiros. A França via enfim o espectro da fome afastar-se. As festas multiplicavam-se, para a alegria intensa de nobres e camponeses; por todo o reino havia caçadas,
corridas náuticas, bailes, jogos diversos e aqueles torneios cada vez mais populares. A Igreja não via com bons olhos essas manifestações pagãs e empenhava-se
em promover cerimônias religiosas, em que o povo, um bom filho, sempre encontrava novas diversões: admirava o esplendor dos ornamentos por ocasião das procissões,
o ouro que faiscava nas vestimentas dos bispos e príncipes nas missas cantadas celebradas ao ar livre, pensava que ouvia as vozes dos anjos quando escutava os
coros. A nova rainha e seu primogênito haviam trazido a prosperidade, as igrejas estavam repletas de pessoas agradecendo ao céu, pedindo a bênção divina para seus
soberanos.

Fora preciso toda a diplomacia de Balduíno de Flandres e a ternura insistente da condessa Adélia para que Henrique concordasse com a viagem de Ana a Ruão, onde
se realizaria o batizado do filho de Guilherme e Matilde; ela fora convidada para madrinha do pequeno Roberto. Na verdade, a cerimônia era bastante conveniente
para Henrique: a ausência do cunhado e da irmã lhe permitiria preparar melhor a lição que queria aplicar ao Bastardo.

Ana partiu no início de setembro, com uma comitiva numerosa: capelães, médicos, escudeiros, damas de companhia, amas-de-leite, babás, costureiras, músicos e, como
não podia deixar de ser, Helena e Irene. Helena não confiava a ninguém mais os cuidados com o pequeno

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Filipe, o bebê mais bonito que ela já vira, garantia a todos, depois de sua querida princesa.

A longa caravana real seguiu sob um sol forte, que a folhagem das florestas que atravessavam mal conseguia atenuar. O cortejo parava com freqüência para que a
rainha e suas damas pudessem banhar-se no Sena. Ana recuperara a disposição e a silhueta, apenas as novas dimensões dos seios indicavam que se tornara mãe. Sentia
orgulho do filho, que demonstrava um vigor e um apetite excepcionais.

O conde de Valois insistira em escoltar a rainha. Apesar dos protestos de Ana, o rei dera seu consentimento, preferindo ver seu poderoso vassalo a distância por
algum tempo. Gosselin de Chauny fora incumbido de velar pelo menino, responsabilidade que delegara a Filipe, por quem sentia uma afeição cada vez maior. Como não
ficar comovido pela recusa do Retalhado em ingressar no serviço do rei? Ele preferira a família de Chauny à companhia dissoluta dos guardas reais.

Filipe quase se traiu quando viu o bebê nos braços de Helena. Ela fitou-o com uma expressão desconfiada e falou-lhe em sua língua. Filipe teve medo de que a felicidade
evidente por ouvir aquela língua querida fosse percebida pelos olhos perspicazes de Helena. Fingiu que não compreendia e pronunciou em francês os cumprimentos
habituais. A ama-de-leite soltou um suspiro e recomeçou o acalanto que interrompera à chegada de Filipe. O guerreiro da droujina de Iaroslav, ao ouvir aquela
canção ingênua, teve de fugir para esconder as lágrimas. No bosque, entregou-se à tristeza, a maior que já conhecera desde o casamento daquela por quem renunciara
à própria idéia de felicidade.

Atordoado pela dor, ele vagueou pela mata, batendo com a espada nos galhos, as folhas caindo lentamente ao seu redor. E foi em frente, envolvido pelo aroma intenso
da seiva das plantas. Só no último instante é que percebeu um velho descamado à sua frente, erguendo o punho cerrado com um vigor que o surpreendeu. Filipe fixou
no intruso seu olhar marejado de lágrimas e recuou, sem o menor espanto, sem a menor cólera, murmurando com uma voz de serena indiferença que provocou um arrepio
no velho:

- Está procurando a morte? - Não, não a procuro, mas se for essa a vontade de Deus, e você seu enviado, eu a aceito.

- Por muito pouco não me tornei Seu instrumento. Quem é você, pobre louco, para surgir assim no meu caminho?

- Sou apenas um homem entre os homens, uma árvore entre as árvores, uma planta entre as plantas. E o sofrimento delas é o meu sofrimento. Destruindo-as, você destrói
a obra de Deus.

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- Pensa mesmo que as árvores e as plantas sofrem como os homens?

- Sofrem como todas as coisas que vivem no mundo para a maior glória de Deus. Conheço a linguagem dos meus amigos do mundo vegetal, desde o carvalho mais robusto
à erva mais frágil, assim como a linguagem dos animais, do lobo odiado e perseguido à furtiva doninha.

Filipe guardou a espada na bainha e sentou num tronco, observando o velho com uma expressão pensativa.

- Como você, em menino eu falava com as árvores das florestas de minha terra, contava minhas aflições e alegrias, o que me fazia muito bem. Estava convencido de
que podiam compreender-me.

- E tinha toda razão. Se tivesse sido mais atento, teria, em troca, ouvido suas confidências.

- Não! Eram apenas idéias de criança. Cresci e há muito tempo não faço confidências nem às árvores nem aos homens.

- Talvez o momento tenha chegado. Alguém que vive há muitos anos no fundo da floresta é capaz de entender tudo.

- Siga seu caminho, não há nada para entender! - Como servidor de Deus, eremita neste lugar, devo ajudar meus semelhantes que se encontram em profunda aflição.
A sua parece enorme. Não quer descarregar uma parte do fardo?

- Bem que eu gostaria, mas não é possível. - Não vou insistir. Mas não quer orar a Deus comigo? - Se faz questão, vamos. Filipe levantou-se. - Aonde vai?
- Para o seu lugar de orações. - Olhe ao redor. Tudo aqui é obra do divino criador. Estas árvores não formam a abóbada de sua igreja, o musgo não é seu tapete,
o canto dos passarinhos, seus hinos? Deus está em toda parte, o ar que respiramos é impregnado com Seu amor. Rezemos, meu filho, a fim de que Ele dê a você paz
à sua alma. De joelhos!

E por muito tempo o eremita e o guerreiro oraram. Quando Filipe se levantou, seu coração estava menos pesado, o espírito mais desanuviado. Em poucas palavras agradeceu
ao monge, que o deixou partir depois de dar-lhe sua bênção.

A noite já caíra quando ele se reuniu à caravana, uma noite de verão quente e agradável, o céu constelado de estrelas, algumas riscando uma trajetória faiscante
para encontrar-se com a terra. Haviam parado à

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beira de um bosque, leito de um rio em que Ana e suas companheiras se banhavam rindo, à claridade de uma lua cheia. Na margem, enormes fogueiras assavam aves,
lebres e pequenos javalis, abatidos no caminho por cavaleiros e escudeiros ansiosos por exercício.

Escondido sob os ramos de um salgueiro que caíam até o rio, Raul de Crépy não desviava os olhos da rainha. A nudez da jovem, enfim contemplada, aumentava ainda
mais o seu desejo. Não importava que o tratasse com desdém, repelisse seus avanços, recusasse sua companhia, enquanto aceitava a de Olivier d'Arles, que partilhava
o leito de seu marido, um dia ainda a possuiria, mostraria o que um homem pode fazer com uma mulher; como as outras ela gemeria sob seu corpo e suplicaria misericórdia!

Um ruído próximo arrancou-o de sua contemplação. Imediatamente em guarda, empunhando a enorme faca de caça que nunca o deixava, ele prendeu a respiração. Mal dissimulado
por um tronco de árvore, o hábito levantado, um clérigo se masturbava, observando a alegre cena aquática. Raul divertiu-se vendo o gordo monge proporcionando prazer
a si mesmo, suando e resfolegando; e quando o homem gozou, com gritinhos iguais aos de um leitão, o conde saiu do sério e explodiu em gargalhadas. Apavorado, o
infeliz monge quase caiu no rio, segurou-se nos galhos, tropeçou, recuperou o equilíbrio por milagre e, o hábito ainda arregaçado, fugiu sem dizer nada. O alvoroço
alertou os guardas reais, que atravessaram o rio, mas encontraram apenas moitas pisoteadas e galhos partidos.

Ajudada pelas aias, Helena enxugou e vestiu a rainha, que se recusou a pôr as roupas de cima, muito grossas para aquela noite quente. Lânguida, ela deixou-se pentear,
a cabeça inclinada para trás, sem pensamentos, consciente apenas do bem-estar do corpo, da doçura daquela noite e da beleza do céu da França, de onde tombava de
vez em quando uma estrela cadente. Ela tratou de repelir a lembrança de Novgorod... De nada adiantava sonhar com sua terra perdida!

Ana ajeitou ao seu redor as pregas do véu grande que Irene pusera sobre suas tranças e levantou-se. à luz das fogueiras, ela própria parecia uma chama, a túnica
e o véu escarlates ondulando a cada movimento. Todos a contemplavam, sobretudo os homens. Ela se encaminhou para uma mesa ornamentada com ramos, sobre a qual estavam
arrumadas as iguarias. Sentou numa cadeira dobrável, de encosto alto. Um valete ajoelhou-se, estendeu uma bacia com água perfumada, na qual ela agitou os dedos,
enquanto outro lhe oferecia uma toalha branca. As aves estavam assadas no ponto e a carne de lebre, temperada com ervas da floresta, era suculenta. Ana devorou
com gula os pêssegos e damascos

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secos procedentes da Pérsia, enviados por seu irmão Vsevolod, bebeu um vinho capitoso, 'oferta do conde de Provença.

A um sinal seu, Gosselin de Chauny, que se mantinha a uma distância respeitosa, adiantou-se.

- Sabe onde está o gentil Olivier? Eu gostaria de ouvir um pouco de música.

- Não o vejo desde o amanhecer, rainha, mas vou mandar procurá-lo.

- Obrigada, senhor Gosselin. Como está seu filho? Já se recuperou da queda do cavalo?

- Num instante. Já voltou à sela, como se nada tivesse acontecido. Agradeço o seu interesse por minha família.

- Helena contou-me que tem em sua casa um homem de confiança de extrema feiúra, e que parece muito devotado a meu filho.

- É verdade, rainha. Encarreguei-o de modo muito particular de velar pelo jovem príncipe. Ele é de fato muito feio, mas de uma feiúra feita pela mão do homem,
não de nascimento... e seu rosto pode ser hediondo, mas a alma é bela. Tenho muita estima e afeição por ele.

- Eis um elogio raro em sua boca. Diga-me uma coisa, senhor Gosselin: têm algum fundamento os rumores que me chegam de uma guerra entre os normandos e nós?

- Não sendo um condestável do reino, não conheço as intenções do rei, mas não acredito nisso. Há muitos laços unindo os dois países e esta sua viagem prova que
os rumores não passam de intrigas de guerreiros sem ter o que fazer.

- Que Nosso Senhor o ouça, Gosselin! - Rainha, permita que eu lhe deseje boa noite... Raul de Crépy surgira a poucos passos, sem que ela percebesse sua aproximação.

- Boa noite, conde de Valois. - Não está cansada da viagem? Seu longo banho foi agradável? - Agradeço a sua preocupação para comigo. Está tudo bem. Boa noite.

Raul fingiu ignorar que fora despachado. - Ouvi quando comentou que gostaria de um pouco de música. Aqui estão os músicos que me acompanham, eles vêm da corte
do imperador da Alemanha. Não gostaria de ouvi-los?

Ana aceitou com um aceno de cabeça. Os músicos, dois homens e uma mulher, tocaram uma canção lenta e compassada, que nada tinha a ver com a leveza e a alegria
da música provençal, que ela tanto amava.

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Seria a música que fez Olivier sair de seu esconderijo? Ele apareceu de repente, pulando e dançando como um demônio, tocando flauta. Confusos, os trovadores tocaram
mais alguns acordes e depois pararam.

- Continuem! - resmungou Raul, furioso. - Não! Eles podem parar... prefiro ouvir Olivier. Helena... Traga minha guzli.

- Minha irmã, não é conveniente que a rainha da França se ofereça em espetáculo - disse a condessa de Flandres, aproximando-se.

- Adélia, minha cara, não me censure, a noite está linda. E pode ficar tranqüila, não esquecerei que sou rainha. Meu pai, Iaroslav o Sábio, não desdenhava cantar
no meio de seu povo. Costumava dizer que o homem exprime pelo canto o melhor de sua felicidade por ter sido criado pela mão de Deus. Dizia também que através da
música os homens se aproximam de Deus e se tornam melhores.

- Você sempre dá a última palavra - comentou a cunhada, rindo.

Adélia de Flandres fez sinal às damas e aos cavaleiros para que se aproximassem. As primeiras acomodaram-se em almofadas trazidas pelas servas, enquanto os homens
ficavam de pé, atrás delas.

Depois de certificar-se de que estava tudo em ordem, Filipe afastou-se da liteira em que repousavam o bebê e as amas-de-leite, e encaminhou-se para o grupo.

Estava apenas a poucos passos de sua bem-amada, os olhos tomados por sua beleza. Fechou-os aos primeiros acordes da guzli e deixou-se invadir pela lembrança de seus
galopes, das brincadeiras, dos longos dias de verão, das longas noites de inverno, da mão delicada de Ana na sua, do seu sorriso, dos seus olhos ternos, não mais
experimentando, a essas evocações melancólicas, o sofrimento intenso que antes o transformava numa besta feroz, mas uma suave nostalgia. Então ela se pôs a cantar...

Em francês primeiro, depois em provençal, finalmente em russo. Filipe aguardava essa prova e preparara seu coração. O que o acalanto de Helena não conseguira, o
hino das colheitas, que tantas vezes haviam cantado juntos, conseguiu, proporcionando-lhe força e confiança. Subitamente, teve a impressão de que se abria à sua
frente um mundo novo, onde encontraria seu lugar. Jurou que se tornaria um daqueles cavaleiros de que Gosselin de Chauny relatava as façanhas; e pelo amor de sua
dama, seria o melhor de todos. É verdade, não esquecia que também jurara que nunca tentaria fazer-se reconhecer por ela, mas haveria de

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tornar-se outro homem, e este não estaria preso a nenhum juramento.

Em seu canto, Raul de Crépy mal conseguia conter sua impaciência. Aquele Olivier sem dúvida assumia uma importância exagerada, era preciso afastá-lo. Quanto à rainha,
ele tinha certeza, chegaria o momento de fazê-la pagar por suas afrontas. Enquanto aguardava, poria em prática uma pequena vingança que planejava há alguns dias:
percebera que Irene, a irmã-de-leite da rainha, corava cada vez que seu olhar a fixava e que ela nunca perdia uma oportunidade de pôr-se em seu caminho, apesar
do noivo que o rei lhe concedera, um certo Clemente de Tussac, de uma boa família de Poitou. A vingança, aliás, seria das mais agradáveis, porque a jovem era atraente,
com enormes olhos azuis, lábios muito vermelhos e lindos cabelos louros. A perspectiva devolveu-lhe o bom humor e ele decidiu atacar a presa imediatamente. E
deixou discretamente o círculo de ouvintes.

O conde não teve qualquer dificuldade para encontrar Irene. Em companhia da mãe e do noivo, ela ouvia deslumbrada a amiga de sua infância. Levantou os olhos à
sombra que surgiu de repente à sua frente e pensou que ia sentir-se mal ao reconhecer o conde. Absorvidos pela música, nem Helena nem Clemente notaram a manobra
de Raul, que fez sinal a Irene para que o seguisse. O coração batendo, consciente do erro que estava prestes a cometer, a jovem levantou-se, sem atrair qualquer
atenção, e afastou-se.

Aquele homem a atraía tanto que até esquecia o medo que sempre sentia diante dele. Cada fibra do seu corpo parecia vibrar. Seguiu a silhueta alta e escura que
se embrenhava entre as árvores e que logo desapareceu, tão escura e densa era aquela parte da floresta. Irene parou depois de mais alguns passos, esquadrinhando
as trevas. Não havia qualquer som além dos ruídos da floresta, cada vez mais hostis. Ela decidiu chamá-lo.

- Senhor, onde está?... Não é digno de um cavaleiro abandonarme assim... Senhor, eu suplico, responda! Santa Mãe de Deus, ajudaime...

Irene caiu de joelhos e começou a rezar. A dois passos dela, o conde divertia-se com a situação, irritado com a densa folhagem, que impedia que o lugar iluminasse
a jovem. Era verdade que não precisava de claridade para o que ia fazer, mas seu prazer não seria tão intenso; gostava de contemplar o terror, o prazer, a repulsa,
o ódio no rosto de suas vítimas. Quer estivesse matando ou fazendo amor, sempre gostava de observar o resultado de sua atuação.

Como um gato selvagem, ele deu um pulo e derrubou Irene, a mão comprimida sobre seus lábios.

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- Não grite, minha cabritinha... Pare de tremer... Sou eu, não quero lhe fazer mal... Pare de se mexer... Relaxe... Sua pele é macia... vamos, abra as coxas...
Você me seguiu e sabia muito bem o que poderia acontecer... Ah, mas que coisa!... Você também está com vontade, toda molhada... Vamos, abra as pernas... assim,
está ótimo... Não se arrepende de ter vindo, não é mesmo?... Ahn...

Raul ficou imóvel sobre o corpo dócil e trêmulo de Irene. E depois, exausto, rolou para o lado, ficou estendido de costas, os olhos abertos para a noite, enquanto
Irene se recuperava lentamente, atordoada pela intensidade do prazer. Permaneceram imóveis por um longo tempo.

- Senhor... - Vá embora! Não fale com ninguém... com ninguém, está me entendendo?... sobre o que aconteceu entre nós. Quando eu a quiser, farei um sinal... O
que está esperando?... Vá logo...

Confusa, Irene levantou-se, endireitou automaticamente as roupas e arrumou os cabelos, depois saiu das sombras cúmplices da floresta e afastou-se, encurvada como
uma velha, na direção do rio.

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CAPÍTULO DEZENOVE


BATIZADO DO FILHO DE GUILHERME E MATILDE


Ana e Matilde reencontraram-se com a maior alegria, felizes por apresentarem os respectivos filhos. Guilherme manifestou sua satisfação por ver a rainha com uma
exuberância que alguns acharam descabida.

Todas as cidades do ducado tinham feito questão de estar representadas nas cerimônias do batizado, na catedral de Ruão, através de seu senhor ou de seu bispo. As
ruas de Ruão não eram suficientemente largas para abrigar os inúmeros cortejos e os milhares de curiosos que se comprimiam à sua passagem. A chegada da rainha da
França foi saudada por aclamações que calaram fundo no coração de Guilherme. Embora nada ignorasse, graças a seus espiões, sobre os preparativos de Henrique
ou suas intenções belicosas, esforçava-se por dissociar a rainha do rei e empenhava-se, por uma questão de honra, em comportar-se como um honesto vassalo; se seu
senhor pegasse em armas contra ele, haveria de se defender, mas em caso algum tomaria a iniciativa do ataque. Além do mais, o momento era de festa; mais tarde,
se fosse necessário, partiria para o combate.

Foi com alguma irritação que divisou Raul de Crépy na esteira da rainha. Mesmo assim, recebeu-o conforme sua posição exigia, da mesma forma como aceitara que o
segundo filho do conde de Valois, Simon, que acabara de nascer, fizesse a sua educação de futuro cavaleiro na corte da Normandia, quando chegasse o momento. O
conde era poderoso demais para que o duque o mantivesse a distância.

Em homenagem à rainha da França, eles resolveram cruzar lanças ao final do primeiro torneio. A corte normanda transferira-se para Fécamp, onde deveriam realizar-se
grandes festividades.

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Sobre um penhasco alto, onde normalmente pastavam os carneiros da abadia, foram construídos estrados em torno do campo. O das damas, coberto por um enorme toldo
para protegê-las do sol e da chuva, era ornamentado com ricos tecidos bordados e tapeçarias, tinha almofadas nos assentos. Cercas de madeira continham os espectadores.
Juízes, ajudantes, arautos e servidores corriam em todas as direções, verificando se estava tudo em ordem e cada um em seu lugar.

A chegada da rainha da França, da duquesa da Normandia e da rainha da Escócia foi saudada por prolongadas ovações. As três sentaram juntas, rodeadas pelas condessas
de Flandres, Valois, Sens e Chartres, a mãe do duque e numerosas outras damas. As cores fortes das roupas, tapeçarias e estandartes tornavam ainda mais azul o azul
do céu, mais verde a relva da pradaria.

O som das fanfarras saudou a chegada dos cavaleiros, seguidos por seus escudeiros. Vestidos e equipados de maneira magnífica, eles avançavam lentamente, com um
ar solene e majestoso. Montado num cavalo branco ajaezado com suas cores, uma túnica vermelha ornada com um leão bordado por Matilde e apertada na cintura sobre
a cota de malha, o elmo debaixo do braço, Guilherme inclinou-se diante da tribuna de honra. Apresentou sua lança a Ana que, sorrindo, prendeu nela um véu azul,
depois a Matilde, que prendeu um véu vermelho. Um murmúrio elevou-se da multidão. O duque deu uma volta a galope pela liça, levantando a lança em que tremulavam
os símbolos de sua dama e de sua esposa.

Embora soubesse, como todo mundo, que a rainha da França aceitara o duque da Normandia como seu cavaleiro-servidor, Raul de Crépy ficou irritado. Esperava que
Guilherme combatesse apenas sob as cores de sua mulher. Montado num cavalo tão negro que chegava a faiscar, os arreios pretos com frisos dourados, como sua vestimenta,
ele se encaminhou para o estrado, com a viseira levantada. Irene, postada atrás de sua senhora, conteve um grito. Raul saudou a rainha e a duquesa, que retribuíram
o cumprimento com um ligeiro aceno de cabeça. E, depois, ele inclinou a lança diante da mãe daquele que considerava no momento como um rival. Houve um silêncio
profundo na liça, rompido apenas pelos movimentos dos cavalos. Era uma afronta, e ninguém tinha a menor dúvida: Guilherme não podia triunfar sobre aquele que ostentava
as cores de sua mãe. Mas Arlette, habituada a superar todos os obstáculos desde que o duque Roberto a escolhera entre todas as mulheres de seu ducado, não era pessoa
que se pudesse embaraçar. Sorriu gentilmente para o conde e declarou, a voz bastante alta para que todos pudessem ouvi-la:

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- Senhor, sinto-me profundamente reconhecida por seu desejo de homenagear-me assim. Estou sensibilizada e asseguro-lhe que não me esquecerei disso. Mas sua gentileza
será em vão, conde. Não estou mais em idade de permitir que um cavaleiro ostente minhas cores, por mais ardoroso que seja. Estou na idade dos cabelos brancos,
como comprova o nascimento de meu querido neto. Muitas jovens aqui teriam orgulho em conceder-lhe uma insígnia, em particular a condessa de Valois...

Era a ordem de uma dama: não havia como esquivar-se, sem ofender sua mulher e a mãe do anfitrião. Com raiva no coração, mas um sorriso nos lábios, Raul de Crépy
fez uma reverência para Arlette de Conteville, ergueu a lança para incliná-la diante de Adelaide de Valois, que tirou um véu de sua manga e prendeu-o na lança
com uma expressão sombria.

Os dois adversários retiraram-se para as tendas altas pintadas com suas cores, cedendo lugar aos cavaleiros que disputariam o torneio e que foram desfilar diante
das tribunas, antes de voltarem para trás das cordas, ao som das trombetas. Depois que cavaleiros e escudeiros ocuparam seus lugares na liça, armados com a espada
de ponta achatada e a maça, o arauto dos juizes pediu silêncio e proclamou:

- Magníficos e poderosos príncipes, nobres, barões, cavaleiros e escudeiros, rogo a todos e a cada um que levanteis a mão direita para os santos e, juntos, antes
de irdes mais longe, prometais e jureis pela fé e pela honra que nenhum de vós golpeará um outro deliberadamente com a ponta da espada, como também não atacará
abaixo da cintura, seja de que modo for, e não empurrará nem puxará ninguém que não tenha indicado; e se por acaso o elmo cair da cabeça de alguém, ninguém o
tocará até que seja posto de volta e amarrado; sob pena de, se o fizerdes deliberadamente, perderdes armadura e cavalo e serdes banidos do torneio; deveis observar,
também, em tudo e por tudo, a palavra e a ordem dos senhores juízes, que farão com que os culpados sejam punidos sem apelação. E assim, todos e cada um, jurai
e prometei por vossa fé e honra...

- Juro! Juro! - gritaram os cavaleiros que disputariam o torneio. No alto de seu palanque, os quatro juízes balançaram a cabeça. A uma ordem do mais velho, o mestre-de-armas
gritou três vezes:

- Cortai as cordas e iniciai os combates quando quiserdes! Os servidores dos combatentes soltaram um enorme brado e lançaram os gritos de guerra de seus senhores.

O ataque foi violento, o estrépito logo tornou-se ensurdecedor; da liça projetava-se um cheiro forte de ervas e terra pisoteados, excremento de cavalo, suor animal
e humano, e logo em seguida o de sangue.

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Ferimentos leves, mas numerosos. Na refrega, mal se percebia quem levava vantagem. Não demorou muito para que a confusão se tornasse total e os feridos evacuados
fossem
cada vez mais numerosos.

Um cavaleiro numa cota de malha simples, montado num cavalo nervoso, de arreios despojados, rapidamente atraiu a atenção das damas, juízes e público em geral por
sua habilidade como ginete e audácia como combatente. Não demorou muito para que restassem apenas seis disputantes na liça, inclusive aquele que despertava tanto
entusiasmo na multidão.

- Quem é aquele cavaleiro de traje tão modesto? - perguntou Ana.

- Ninguém o conhece, rainha - respondeu a condessa de Valois. - Mas parece que Olivier d'Arles lhe serve de valete.

- Sem dúvida é um que partilha os gostos do trovador favorito de nosso rei - acrescentou a condessa de Sens, rindo.

- Isso explica por que ele não ostenta as cores de nenhuma de nós - comentou a bela condessa de Chartres.

- Ele não monta como nossos cavaleiros, é mais flexível, mais ágil... - murmurou Ana para Matilde, comprimindo as mãos contra o coração. - Olhe só! Ele desliza
pela sela... Parece até um cavaleiro da minha terra.

Quatro disputantes ficaram na liça depois da última investida. A rainha fez um sinal para o mestre-de-armas, que se aproximou no mesmo instante, correndo.

- Vá dizer àquele cavaleiro que ficarei feliz se ele aceitar combater sob as cores de minha irmã-de-leite, a donzela Irene.

- Oh, rainha, seria uma honra grande demais para ele. Ninguém por aqui o conhece, ele nem sequer é cavaleiro e recusou-se a dar seu nome. Os juízes o teriam recusado
se não fosse pela insistência do senhor de Chauny.

- Para mim, basta que o senhor de Chauny tenha estima por ele. Vá transmitir-lhe meu oferecimento.

O mestre-de-armas fez uma reverência e encaminhou-se para o combatente sem nome.

- A rainha, hóspede de nosso duque, solicita-lhe que ostente as cores de sua irmã-de-leite, a donzela Irene. Aceita?

- Diga à rainha que serei digno da honra que me concede, com a ajuda de Nosso Senhor.

Depois de transmitir suas palavras, o mestre-de-armas chamou o desconhecido, que removeu a corrente que prendia a espada à sela e estendeu-a para Irene, segurando-a
pela lâmina.

- Mas que homem grosseiro! - murmurou Matilde para a mãe. - Nem mesmo retirou o elmo!

- Talvez, minha filha, ele não conheça os costumes de nossos torneios. Variam muito, de um país para outro... Aqui não é muito comum, mas em outros lugares um
cavaleiro pode manter o anonimato num torneio.

Corando, Irene prendeu um pedaço de seu véu no punho da espada.

- Confio-lhe minhas cores. A partir deste instante, seja o seu defensor.

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Sem responder, o desconhecido inclinou-se, beijou a lâmina da espada e depois, levantando-a bem alto, soltou um grito que quase fez a rainha desfalecer. Matilde
foi a única que percebeu sua palidez repentina.

- O que houve, minha amiga? Está se sentindo mal? - Não... pensei ter ouvido a voz de... Viétcha - balbuciou Ana. Sob o olhar inquieto da amiga, a rainha empertigou-se,
suspirando. As cores de Irene tiveram um desempenho maravilhoso; seu defensor derrubou o primeiro adversário como se estivesse brincando, e não deu muita chance
ao segundo.

As trombetas soaram, assinalando o fim dos combates. O vencedor foi inclinar-se diante das damas. Imóvel, sob a proteção do elmo sempre baixado, Filipe enchia
os olhos com a beleza daquela que tanto amava. Intrigadas por essa imobilidade e silêncio, as damas entreolharam-se e cochicharam. Olivier d'Arles veio em socorro
do amigo e empurrou-o para a frente dos juízes, aos quais ele saudou, antes de afastar-se, sob os gritos e aplausos da multidão. Foram servidos refrescos nas tribunas.

As trombetas tornaram a soar, anunciando a disputa entre o duque da Normandia e o conde de Valois. Eles entraram nos cavalos suntuosamente ajaezados, precedidos
por seus estandartes levados por pajens, por seus escudeiros e servidores. Deram a volta pela liça sob aclamações, foram fazer uma reverência às damas, uma de
cada vez. Tomaram seus lugares nas extremidades da corda estendida ao longo do campo.

Depois das saudações habituais, puseram os elmos na cabeça. Reinava agora um profundo silêncio. A um sinal do mestre-de-armas, avançaram um para o outro, a lança
estendida, protegidos pelo escudo suspenso com a outra mão na altura do pescoço. As duas lanças, cruzadas, partiram-se ruidosamente. Ana, que involuntariamente
fechara os olhos, tornou a abri-los. Aliviada, constatou que Guilherme continuava firme na sela, pegando outra lança, estendida por um dos escudeiros. Raul de Crépy,
também ainda na sela, igualmente preparava-se

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para uma nova investida. Depois de verificar a flexibilidade das lanças, eles voltaram a seus lugares.

Gentilmente, Ana acariciou a mão de Matilde que, muito pálida, não afastava os olhos do jovem marido.

Ao sinal, o combate recomeçou. Rudemente esporeados, os cavalos empinaram-se e, com um salto, partiram a galope, num estrépito de cascos e ferraduras, levantando
torrões de terra que caíam até sobre os espectadores. Durante um tempo que pareceu uma eternidade a todos, os dois cavaleiros permaneceram frente a frente, de
pé nos estribos. E depois tudo aconteceu muito depressa. Raul de Crépy caiu na poeira. Guilherme, atingido no peito pela lança do adversário, também foi derrubado
da sela. Um imenso clamor elevou-se da multidão, mas o duque já se levantava, com a espada na mão. O conde, ainda atordoado, levou alguns instantes para recuperar-se.
Com um gesto furioso, ele desprendeu o elmo, que tirou da cabeça e jogou ao chão, bem longe. O público murmurou, ao mesmo tempo em admiração e censura. Aquele cavaleiro
vestido de preto, cor maligna, não contava com a aprovação dos espectadores. Quem o conhecia bem sabia que o conde era sempre um provocador, em todas as circunstâncias.
Odiado por sua crueldade, pelo desprezo com que tratava os inimigos e às vezes também os amigos, nada respeitando, nem Deus nem os homens, ainda assim ele seduzia
por sua coragem e pompa, pelos olhos frios de um azul intenso, emoldurados por longos cílios. A barba, os cabelos e as espessas sobrancelhas escuras acentuavam-lhe
a palidez do rosto.

Guilherme também retirou o elmo, a cabeça protegida apenas pela touca da cota. Na tribuna, Matilde apertou com força a mão de Ana. Só se ouviam o tilintar das
espadas e os grunhidos dos combatentes.

Apesar de sua habilidade nas armas, o conde de Valois não tinha nem o ímpeto nem a juventude do adversário. Cada golpe do duque deixava-o atordoado, pois Guilherme
possuía a força de um touro e avançava sem a preocupação de proteger-se, totalmente empenhado em vencer sob os olhos de suas damas. Desprezando as regras, Raul
de Crépy desferiu uma estocada, que Guilherme desviou. Essa atitude despertou a fúria do duque. Com a parte achatada da espada, ele arremessou para longe a arma
do conde. Bom jogador, Raul estendeu a mão a seu vencedor e foi inclinar-se diante das damas e dos juízes. As trombetas tornaram a soar. Depois que silenciaram,
o arauto proclamou:

- Cavalgai, estandartes, retornai aos alojamentos; e vós, nobres, príncipes, barões, cavaleiros, escudeiros, que aqui vos apresentastes diante das damas, cumpristes
tão bem vosso dever que agora podeis

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dispersar-vos, pois o prêmio já foi atribuído e esta noite será entregue pelas damas a quem o mereceu.

As trombetas soaram a retirada, as cercas foram removidas, os combatentes afastaram-se numa alegre desordem.

Naquela noite, no salão do castelo de Fécamp, depois do magnífico banquete oferecido pelo duque a seus hóspedes e aos participantes do torneio, os juízes e o mestre-de-armas
anunciaram a entrega do prêmio. O cavaleiro de honra, acompanhado pelo mestre-de-armas, foi inclinar-se diante da rainha da França, indicando com isso que ela era
a escolhida para cumprir o ritual. Flanqueada por duas damas de honra, com a recompensa coberta por uma fina toalha, Ana seguiu o cavaleiro de honra, segurando
um pedaço de lança. Escoltada por juízes e arautos, ela deu três voltas pelo salão, antes de parar diante do cavaleiro vencedor.

- Chauny! - exclamou Ana. - Então era você! - Perdoe-me, rainha - murmurou ele, dobrando um joelho no chão. - Não fui eu que ganhei o prêmio, mas um dos meus
homens, envergonhado demais por sua aparência desagradável e por não ser cavaleiro, não sendo portanto digno da sua homenagem e desta nobre assembléia. Por isso,
a conselho da condessa de Flandres e dos juízes, vim receber o prêmio em seu lugar, se me considerar digno dessa honra.

- Senhor, não conheço bem os regulamentos dos seus torneios e submeto-me de bom grado à arbitragem da condessa e dos juízes. Mesmo assim, se posso dar minha opinião,
um rosto, por mais feio que seja, deve ser considerado, se é a obra de Deus, com todo o respeito devido ao Criador. E se essa feiúra tem por origem a mão dos homens,
deve ser considerada com compaixão e com horror pelo ato cometido. E se é conseqüência de um combate por seu príncipe, tal coragem deve ser homenageada. Vi muitas
vezes heróis assim em minha terra, eram extremamente venerados por todos, a começar por meu pai, o grão-príncipe de Kiev. Quanto ao fato de o vencedor do torneio
não ser um cavaleiro, ele me parece digno por todos os motivos de vir a sê-lo... não concorda?

- Respondo por ele como por mim, e estou disposto a ser seu padrinho.

O mestre-de-armas adiantou-se. - Aqui está nossa nobre dama, Ana, rainha da França, acompanhada pelo cavaleiro de honra e pelos senhores juízes, que vem entregar-lhe
o prêmio a que fez jus como o cavaleiro que melhor combateu com a espada e o mais ardoroso na conquista do primeiro lugar no torneio. A rainha solicita que aceite
o prêmio de bom grado.

Ana descobriu o prêmio e estendeu-o para Gosselin, que se levantou e, de acordo com o costume, beijou a rainha e as duas damas de

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honra. Depois, o mestre-de-armas conduziu as damas a seus lugares e o baile recomeçou.

Estendidos sobre a relva de uma campina, os olhos perdidos no céu estrelado, Filipe e Olivier d'Arles deixavam-se embalar pela música que vinha do salão do castelo.
Sem que qualquer confidência tivesse sido trocada entre eles, ambos sabiam que pensavam na rainha da festa. Cada um a tinha no fundo de seu coração, imaginando
as palavras, os gestos endereçados a ele apenas: Filipe a revia correndo em sua direção, as tranças compridas soltas, os braços transbordando de flores, rindo
e gritando:

- Viétcha! Meu lindo Viétcha! Olivier admirava a linha de seu pescoço, a agilidade dos dedos sobre as cordas da harpa, que ela deixava cair sobre as almofadas,
com um suspiro, murmurando com aquela voz que lhe penetrava no âmago:

- Meu pequeno Olivier, jamais conseguirei tocar direito este instrumento. Prefiro minha velha guzli.

Em perfeita harmonia, ambos suspiraram e voltaram-se para esconder um do outro, apesar da escuridão, a ereção provocada pelo devaneio, que os deixava embaraçados.
Mas a simultaneidade dos suspiros fez com que desatassem a rir.

- De pé, amigo, certos sonhos podem ser funestos! Conheço um lugar perto das muralhas em que mulheres belas e gentis não são avaras de seu traseiro nem de suas
carícias. Neste dia de glória, nós conquistamos o direito de nos distrair!

- Como sempre, você tem razão. Entre sozinho, escolha uma que seja doce e terna e traga-a para mim. No escuro, tenho certeza de que poderei ser amado sem reticências.

Olivier desistiu de dizer-lhe que ganhara em beleza interior o que perdera em beleza física, pois sabia que as mulheres raramente percebiam tais coisas.

De braços dados, um pouco devagar porque Filipe claudicava, eles desceram pelo caminho rochoso ao longo das muralhas.

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CAPÍTULO VINTE


IRENE


Ao longo do ano de 1053, as relações entre o rei da França e seu vassalo, o duque da Normandia, foram se deteriorando. Ana e Matilde acompanhavam com tristeza
e angústia esse afrouxamento dos laços entre os dois países. Henrique observava com temor seu jovem e turbulento vizinho confirmar sua autoridade através de novas
conquistas, apesar das constantes revoltas provocadas pelos descendentes de Ricardo II, tio de Guilherme, que o rei às vezes apoiava com homens e víveres.

A excomunhão lançada contra o duque pelo papa Leão IX, sob pressão do arcebispo de Ruão, Mauger, por não haver respeitado a proibição de seu casamento, agravou
ainda mais a situação. Guilherme, que todos os dias assistia à missa, ficou transtornado com a condenação, mas recusou-se a aceitar a separação de Matilde, que
acabava de dar à luz outro menino. O bebê foi batizado pelo prior da abadia de Bec, Lanfranc, que em seguida partiu para Roma, a fim de interceder em favor do
casal ducal.

Outra vez grávida ela também, Ana esperava o parto com impaciência. Médicos e parteiras haviam recomendado o maior repouso. Acabaram-se as cavalgadas pelas florestas
de Dreux e Senlis, as festas nos castelos de Étampes, Paris ou Melun, as corridas pelos lagos congelados! Só lhe restavam atividades de velha, nos aposentos das
mulheres. Ficava escutando as conversas das condessas, amas-de-leite e bordadeiras, e o tempo passava lentamente. Se ao menos Matilde estivesse em sua companhia...
mas o estado de guerra entre os dois países estava agora instituído.

Nem mesmo Olivier d'Arles e suas canções conseguiam distrair a rainha, e o ciúme de Henrique muitas vezes impedia que o jovem trovador

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fosse mostrar-lhe uma nova canção ou declamar um novo poema. Helena, apesar do pequeno Filipe, tinha saudade de sua terra e ainda não conseguira aprender direito
a língua dos francos. Sofria também com o mau comportamento de Irene, que se esforçava em esconder da rainha. A jovem rompera o noivado sem dar qualquer explicação,
ameaçando retirar-se para um convento se insistissem em casá-la com Clemente de Tussac. Sua paixão por Raul de Crépy aumentava cada vez mais. Ser obrigada a permanecer
junto da irmã-de-leite a deixava tão melancólica que Ana acabou por sentir-se ofendida.

- Aceito que permanecer enclausurada seja desagradável, mas por consideração a mim você podia mostrar-se um pouco menos amuada!

Irene não respondeu e debruçou-se no trabalho, o rosto ainda mais franzido. Ah, os intermináveis dias de inverno no fundo daqueles castelos úmidos e escuros!

Em janeiro de 1054, a rainha teve um filho que recebeu o nome de Roberto, em homenagem ao avô. Henrique, à véspera de invadir a Normandia à frente de um dos dois
exércitos franceses - o outro era comandado por seu irmão Eudes, com o qual, para a ocasião, ele se reconciliara - veio cumprimentar a mulher e deu-lhe de presente
uma corrente de ouro.

- Minha dama, agradeço por mais esse filho. Estou feliz com você. Peço as suas orações na guerra que vou empreender para proteger o reino que me foi legado por
meus antepassados e que espero, por minha vez, com a graça de Deus, legar a nosso filho Filipe, aumentado pelas terras que o Bastardo da Normandia possui injustamente...

- Mas... - Peço-lhe encarecidamente, minha dama, que suspenda todo relacionamento com ele, inclusive com minha sobrinha Matilde. Estamos em guerra e você é a
rainha da França. Se Deus permitir que me aconteça algum infortúnio, não se esqueça disso!

Mal recuperada do parto, Ana deixou Paris e seguiu para Senlis, o que proporcionou a maior alegria a Irene, que assim ficava próxima dos domínios do conde de
Valois.

Antes de sua partida para juntar-se ao exército do rei, Raul de Crépy quis cumprimentar a rainha. Diante da insistência de Irene, Ana concordou em recebê-lo.
Convalescente, ela se acomodava num leito com as cortinas levantadas, instalado ao lado da lareira do salão do castelo. O conde pareceu-lhe ainda mais alto, mais
sombrio do que o habitual. Assim que o via, seu coração batia mais depressa, as mãos tornavam-se

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úmidas, pressentia o perigo. Jamais sentira tanta repugnância por alguém que se empenhava ao máximo em agradá-la, que lhe mandava, sempre que se encontrava
em Senlis, os melhores produtos de suas caçadas e pescarias; mas nenhum presente, nem mesmo o falcão caçador que admirara um dia em seu pulso e que ele lhe oferecera
com toda cortesia, podia atenuar suas prevenções.

- Rainha, eu não queria partir para a guerra sem revê-la. Venho solicitar suas orações e assegurar-lhe que não tem vassalo mais devotado e respeitoso, e que só
depende da senhora que eu permaneça assim para sempre.

- O que está querendo dizer com isso, conde? Não entendi. Declara-se devotado à causa do rei... porque é vassalo do rei... mas apesar disso sinto em sua proposta
alguma ameaça...

Raul de Crépy percebeu que fora longe demais. - Não há qualquer ameaça em minhas palavras, rainha, apenas a expressão, talvez um pouco exagerada, da respeitosa
amizade que lhe dedico.

- Houve mesmo um exagero, conde. Já me faz feliz cumprindo o seu dever e protegendo o rei.

- Por amor à senhora e a meu rei, não poderia ser de outra forma, dou-lhe minha palavra.

- Eu agradeço, senhor de Crépy, e que Deus o proteja. Ana acompanhou essas palavras com um sorriso. Era algo tão inesperado que ele caiu de joelhos, pegou a mão
da jovem e levou-a aos lábios.

Diante desse gesto que achou odioso, a rainha empertigou-se e retirou a mão bruscamente, transtornada demais para falar. O conde interpretou seu silêncio e palidez
como aquiescência, levantou-se com uma expressão satisfeita, fez uma reverência e saiu.

Irene observara a cena atentamente. Então o homem por quem sacrificara sua honra amava outra mulher! Há muito tempo não queria render-se à evidência de que era
a rainha, mas agora não podia mais ignorar a verdade. Ainda mais quando ouviu o conde murmurar, ao passar por ela:

- Ainda a terei, por Deus, ainda a terei! Ela fez o sinal-da-cruz diante da blasfêmia, não sem antes lançar um olhar maligno para aquela a quem, desde sua infância
em comum, tudo fora concedido. Ana surpreendeu esse olhar, mas recusou-se a acreditar que se dirigisse a ela. E nesse momento lembrou-se dos rubores de Irene
quando se encontrava na presença do conde, as expressões coquetes quando ele lhe falava, sua diligência em segurar suas luvas,

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suas roçaduras quando havia oportunidade e, principalmente, sua recusa obstinada em aceitar um marido, com o que antes concordara na maior alegria. Santa Mãe de
Deus, fazei com que eu esteja enganada!... Não permitais que minha pequena Irene ame um homem assim!... Um impulso de compaixão e ternura aproximou-a da amiga,
a quem chamou na sua língua natal.

- Venha para perto de mim... Há algum tempo você anda estranha. Tenho a impressão de que foge de mim, de que não sou mais sua irmã... Esqueceu as nossas brincadeiras,
como ríamos sem parar?... Não se sente feliz ao meu lado?... Não tem tudo o que deseja?... Não entendi por que você não quis mais casar com Tussac, mas posso arrumar-lhe
outro marido... Não fala nada? Será que ama alguém em segredo?... Diga-me, por favor... Sabe que a amo com a maior ternura, farei tudo para ajudá-la...

Infelizmente, essas palavras não conseguiam mais comover Irene, chegavam tarde demais. A jovem sentia agora uma antipatia cada vez mais intensa por aquela que
a chamava de irmã. Mesmo assim, fingiu amizade, jogando-se nos braços da rainha.

- Nada desejo quando estou ao seu lado... Não quis um marido para não afastar-me de você, dos seus filhos e de nossa mãe.

- Está falando a verdade? Ah, não imagina como isso me deixa feliz!... Sentia-me inquieta, tinha medo que você se deixasse seduzir por um homem como esse conde
de Valois, a quem detesto.

Irene mordeu os lábios até tirar sangue para não revelar seu amor. Ana percebeu o brusco retesamento do seu corpo, mas continuou:

- Sei agora que estava enganada. Perdoe-me, irmãzinha, em nome do nosso lindo país. Vamos rezar diante da Virgem de Novgorod.

Ana levantou-se, apesar da insistência das mulheres para que permanecesse deitada, levou Irene para trás das cortinas, onde armara uma espécie de capela. Ali estava
a imagem da Virgem oferecida pelo escultor Sveinald, que a acompanhava por toda parte. Ajoelhada, ela rezou com fervor, enquanto Irene, invejosa daquela beleza
iluminada docemente pelo lampião que ardia noite e dia, deixava que o ódio invadisse sua alma.

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CAPÍTULO VINTE E UM


A BATALHA DE MORTEMER


Enquanto Raul de Crépy e Guy de Ponthieu se juntavam a Eudes, o irmão do rei, perto de Pontoise, Henrique, acompanhado por Geoffroi Martel, ia reunir-se com o
exército angevino no castelo de Tillières.

Gosselin de Chauny seguira na frente do rei para providenciar a instalação das tropas e garantir que tudo estaria em ordem, das cozinhas aos estábulos. Ele incumbira
Filipe de inspecionar os arredores, a fim de certificar-se de que não havia nenhum espião do duque na região. Tudo estava calmo, inundado pela chuva. Os rios em
cheia, os campos alagados brilhavam sob a lua. Durante o dia, com aquele dilúvio persistente, não se encontrava ninguém. Os camponeses enregelados mantinham-se
em suas choupanas úmidas e enfumaçadas, apavorados por aquela multidão de homens em armas, que mais cedo ou mais tarde se voltariam contra eles. Entre uma pancada
de chuva e outra, os pobres corriam às igrejas para implorar a proteção de Deus.

A chuva cessara quando o rei chegou, substituída por um frio intenso, que o sol fraco não conseguia atenuar. À luz de grandes fogueiras acesas no pátio do castelo,
Henrique foi cumprimentar os chefes de seu exército e certificar-se de que nada faltava a homens e animais.

- Meus bravos, conto com vocês para vencer o Bastardo da Normandia, com a ajuda de Deus, e dar a meu amado irmão Eudes o ducado que, reunido à França, aumentará
a prosperidade do reino.

Esse breve discurso foi concluído sob aclamações. E depois começaram as libações. Contra a opinião de Chauny, haviam trazido em carroças incontáveis tonéis de
vinho, sob o pretexto de incutir ânimo nos soldados. Por enquanto, a embriaguez dos soldados era alegre, mas se houvesse um ataque de surpresa... O rei, que adorava
a alegria, mesmo

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artificial, estava errado ao encorajar aquilo. Ele censurou Gosselin:

- Está ficando velho, meu bom Chauny, tenho a impressão de ouvir meu capelão, sempre pregando moral. Os homens precisam divertir-se um pouco, e não será o vinho
que os tornará menos valentes, muito ao contrário.

- Em tempo de guerra, o duque Guilherme proíbe a seus homens toda bebida forte.

- Já chega! Que o duque Guilherme faça como quiser. Se prefere comandar um exército de monges, que tenha bom proveito!

- Esses monges, majestade, são temíveis guerreiros, bem treinados, bem armados...

- Mas muito menos numerosos do que nós. É verdade que são valorosos, pude avaliá-lo pessoalmente em Val-les-Dunes, na época em que éramos aliados, o Bastardo e
eu. Mas fique tranqüilo, Gosselin, o número vai prevalecer.

- Que o céu o ouça! - resmungou Chauny, retirando-se. Era verdade que ele se sentia velho, aos cinqüenta anos, cansado de guerrear. Ansiava por repouso, embora
soubesse que os prazeres da caça jamais poderiam substituir os da guerra. Como bom cavaleiro, devia começar a preparar-se para a morte, entregar pouco a pouco
seus bens aos filhos, sem esquecer o Retalhado, que também considerava como um filho.

Exausto, foi descansar. A chuva recomeçara a cair.

A amizade entre Olivier d'Arles e o Retalhado, como todos o chamavam agora, continuava a crescer. Filipe passara a conhecer mais o trovador e compreendia melhor
seu comportamento desde que soubera como fora sua infância. No início, Gosselin de Chauny mostrara-se apreensivo com aquele relacionamento, temendo que seu protegido
se deixasse arrastar para orgias contra a natureza. Mas logo se tranqüilizara: era Filipe quem tinha a ascendência, tornando-se para Olivier uma espécie de irmão
mais velho. Os dois amigos se encontravam sempre que os respectivos serviços o permitiam.

Naquele fim de inverno de 1054, eles seguiram o exército real, comandado pelo rei em pessoa, para conquistar a Normandia: encolhidos sob as mesmas cobertas de
peles de lobo, entorpecidos pela chuva forte que não parava de cair desde a partida de Dreux, os dois conversavam:

- Você ainda não me disse o que queria naquele dia de tempestade em que nos conhecemos... Está lembrado? Você me procurou... Sempre pensei que era alguma coisa
relacionada com a rainha... Por

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acaso estou enganado?... Pode me responder! Eu não falei tudo a meu respeito, até mesmo as coisas de que não me orgulho?... Ah, posso perceber, não tem confiança...
Sua amizade não é tão grande quanto a minha.

- Olivier, meu caro Olivier, sinto por você a mais terna afeição, você sabe disso... Mas o tempo passou... e renunciei àquilo que queria perguntar... Não há mais
nada a dizer. É melhor que você não conheça o meu passado. Não há nisso hostilidade de minha parte, mas apenas o desejo de não mais pensar a respeito.

- Perdoe-me. Sou um tolo por ressuscitar seus sofrimentos com a minha curiosidade insistente. Mas não veja nisso nada de mórbido, é somente prova de meu amor e
o desejo de ajudá-lo.

- Graças ao seu amor, Olivier, e ao do senhor de Chauny, a vida me parece menos amarga. Às vezes chego até a esquecer meu rosto monstruoso e a perna aleijada.

- Ah, se você estivesse mesmo dizendo a verdade! Quanto a mim, vejo apenas sua alma nos seus olhos.

- Para as mulheres, uma bela alma nunca substituiu um rosto bonito. Posso perceber até que ponto as assusto, como as repugno.

- Nem todas! Já esqueceu aquela gentil criada da taverna na margem do Sena? Era evidente que ela amava você, embora estivesse mais desfigurado do que agora. O
ungüento da rainha lhe fez muito bem.

Felizmente a escuridão escondeu o rubor que invadiu o rosto de Filipe. Ele conhecia muito bem aquela pomada preparada por médicos gregos de Kiev, sob a orientação
da princesa, que recebera a fórmula de um mago de Novgorod. O ungüento tinha a propriedade de amenizar as queimaduras e ajudar na cicatrização. A pedido do trovador,
Ana fizera uma lista das plantas necessárias e ordenara o abate dos patos, cuja gordura era indispensável. Pensativa, a rainha mandara-lhe o ungüento. Como o gentil
Olivier adivinhara seus conhecimentos nas artes da cura? Só Irene e Helena estavam a par...

Olivier não insistiu. Filipe pensou que o amigo adormecera. Entregou-se a um doce devaneio, todo povoado por Ela, um sonho sem tristeza, cheio de melancolia. À beira
do sono, inconsciente, ele murmurou o nome em voz alta:

- Ana... Ao seu lado, o companheiro moveu-se. Filipe sentiu sua respiração em seu ouvido.

- A você, só a você, farei uma confidência: como você, também a amo em segredo e estou disposto a morrer por ela... Não tenha medo de nada e não diga nada... Como
você, eu a amo sem esperança. Para

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ela, não passo de um músico que partilha o leito de seu marido. E já soube por suas damas que ela não me julga muito rigorosamente por isso...

- Cale-se! - Não, deixe-me falar... Você pode compreender, porque a ama e a conheceu antes de mim...

- Como assim? - Não se zangue; não estava na escolta que a trouxe para a França? Portanto, conheceu-a antes de mim, não é mesmo?

- É verdade, mas nunca me aproximei. Enquanto ela adora cantar e tocar com você.

- É verdade, temos a música em comum e as canções que compomos, ela sobre sua terra e eu... sobre ela.

Filipe retesou-se. - Conhece as canções que ela faz? Podia mostrar-me? - Copiei uma antes de partir. - Deixe-me vê-la. - Amanhã, quando o dia clarear. - Não,
agora! Olivier esquadrinhou no saco sob sua cabeça e tirou um rolo, que o amigo arrancou de sua mão. Segurando a preciosa canção, encaminhou-se para a fogueira,
cujas brasas, definhando, irradiavam a última claridade. Abrigando o pergaminho sob o manto, ele desfez a fita que o prendia e leu, balbuciando, em voz baixa,
à tênue claridade:

Graças a Vós, Virgem Maria, Cuja imagem me acompanha desde Novgorod a bela, Por Vossa intercessão um lindo filho me nasceu, Cumulando de felicidade meu triste
coração. Que por Vosso Filho ele tenha uma vida longa e piedosa, Para celebrar Vossos louvores e os do Vosso fruto. Filipe, assim o chamei, um nome tão caro ao
meu coração...

Os olhos marejados de lágrimas, Filipe não pôde continuar a leitura, mas todo seu ser ficou inundado de felicidade. "Ela não me esqueceu, ela não me esqueceu...",
pensou. Que importância tinha ter-se transformado num monstro, estar exilado da Rússia? Os dois respiravam o mesmo ar e ela não o esquecera!

Sereno, deitou-se de novo, devolveu o pergaminho a Olivier e logo adormeceu.

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A chuva parou na manhã seguinte. O exército do rei invadiu o condado de Évreux, incendiando e saqueando na passagem, sem encontrar qualquer resistência concreta,
depois dirigiu-se para Mantes, onde se reagrupavam os reforços procedentes de Paris. Henrique decidiu esperar ali por notícias de seu irmão mais novo, antes de
marchar para Ruão.

Ajudado pelos condes de Valois e Clermont, Eudes concentrou suas tropas em Beauvaisis, penetrou na Normandia, atravessando o Bresle em Aumale, que foi saqueada.
Ali, como acontecia diante do exército real, o inimigo esquivava-se, os soldados só deparavam com pobres coitados que tentavam fugir à aproximação dos franceses
e assistiam impotentes aos massacres, incêndios de aldeias, pilhagens de casas, saques de castelos mal guarnecidos. Raul de Crépy se espantava com a facilidade
da conquista. Transmitiu suas apreensões a Eudes e Guy de Ponthieu.

- Senhores, estou preocupado. Desde o início da campanha só encontramos camponeses, mulheres e crianças. Nada de guerreiros. Conhecendo o duque Guilherme, eu não
ficaria surpreso se isso fosse um ardil e ele nos atacasse no momento em que menos esperarmos.

- Está enganado, Raul. O Bastardo sabe que nossas forças são mais numerosas do que as suas e reluta em enfrentar-nos - respondeu Eudes, com uma risada desdenhosa.

- Partilho a sua opinião, senhor: nosso exército impressiona os normandos.

- Que o céu o ouça, Ponthieu... ou melhor, o diabo, porque já vi os normandos em combate e posso garantir-lhe que são guerreiros temíveis. Temos notícias do rei?

- Sua pergunta será respondida bem depressa, pois aqui está um dos nossos batedores. Vamos, apresente seu relatório. Esteve com o rei meu irmão? Qual é a sua posição?
Encontrou tropas inimigas? Onde se encontram? Quantos homens, quantos cavaleiros?

- Senhor - interveio o conde de Valois -, deixe-o falar. - Vamos, fale logo. O que está esperando? O homem, todo enlameado, tentava recuperar o fôlego. - O rei
está em Mantes... Seguirá para Ruão margeando o Sena... Pede que o encontro dos exércitos se dê na ponte de Arche, dentro de três dias.

- Os combates foram duros? - Não houve nenhuma batalha de verdade até agora.

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- Gosto cada vez menos do que está acontecendo. É demais. Invadimos um país, matamos, saqueamos e, exceto os camponeses, não encontramos homens em armas. O rei
pelo menos se inquieta com essa situação?

- Não me pareceu que estivesse apreensivo, senhor. Raul de Crépy levantou os braços para o céu. - Só nos resta esperar a boa vontade do duque, já que ele parece
ser o único dono do jogo, e não nos inquietarmos mais do que o rei.

Em Drincourtt, o conde mostrou-se fiel à sua reputação. Agarrou uma jovem que tentava fugir, dentro da igreja, estuprou-a ao pé da cruz, antes de entregá-la a
seus soldados. Carregados de pilhagens, os franceses deixaram a cidade, depois de incendiá-la.

Instalaram-se para a noite em Mortemer, na margem do Eaulne, onde as fortificações de terra, assim como a própria aldeia, estavam vazias.

Acenderam-se enormes fogueiras para assar carneiros, porcos e aves, vários tonéis de vinho foram abertos, fizeram as rameiras e mais algumas jovens bonitas seqüestradas
das aldeias destruídas descerem de sua carroça. Uma parte da noite transcorreu em bebedeira e orgia, inclusive com a participação do irmão do rei, que possuiu três
infelizes, uma depois da outra, as coxas mantidas abertas por soldados que se jogaram sobre elas às gargalhadas depois que seu senhor acabou. Uma delas, virgem
até poucas horas antes, enlouqueceu e jogou-se no Eaulne, onde morreu afogada. Finalmente, todos mergulharam num sono pesado. Só as mulheres violentadas e feridas
permaneceram acordadas.

Pouco antes do amanhecer, Gautier Giffard e Guilherme Crepin, que comandavam o exército normando, cercaram Mortemer e ali penetraram silenciosamente, depois de
matarem as sentinelas adormecidas, e puseram fogo no acampamento. Despertados em sobressalto, os franceses precipitaram-se para suas armas e se defenderam encarniçadamente.
Ajudados pela população que saiu dos bosques ao redor, os normandos massacraram e massacraram. Durante dez horas a fio, os franceses lutaram com a fúria do desespero.
Um dos mais encarniçados foi Guy de Ponthieu, que queria vingar seu irmão Enguerrand, mortalmente atingido durante o sítio de Arques. Ao final da tarde, a maioria
dos cavaleiros tinham sido mortos; Eudes, o irmão do rei, conseguiu escapar, em companhia de Raul de Crépy e de um punhado de soldados. Os remanescentes foram
feitos prisioneiros. Um dos chefes do exército normando, o conde d'Eu, deu ordem para liquidar os feridos e permitiu que a população se apoderasse de sua parte
dos despojos dos vencidos.

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Viram-se simples mendigos se apoderarem de um ou dois cavalos de combate e de boas armas.

O duque, que estava na margem esquerda do Sena observando os deslocamentos do exército do rei, recebeu a notícia da vitória com a maior alegria. À noite, Guilherme
da Normandia enviou um mensageiro a Henrique. Do alto de uma pequena elevação, dominando o acampamento real, o homem gritou a plenos pulmões:

- Ouçam, franceses... Anuncio uma trágica notícia... Ouçam, eu me chamo Raul de Toeni e trago-lhes uma grande tristeza... Enviem carroças a Mortemer para buscar
os cadáveres daqueles que lhes são caros... Ouçam, estão todos mortos, aqueles que queriam invadir a Normandia... Mandem buscar seus pobres corpos...

Houve raiva e consternação no acampamento. Os cavaleiros queriam partir no mesmo instante para vingar seus irmãos de armas. Foi preciso toda a autoridade do conde
d'Anjou para contê-los.

- Talvez seja apenas uma manobra para dispersar-nos. Vamos aguardar a volta de nossos enviados.

Apenas um voltou ao acampamento, ferido. - A maioria em Mortemer sucumbiu, outros foram feitos prisioneiros, poucos conseguiram fugir.

- Meu irmão? - indagou o rei. - Ele não faz parte nem dos mortos nem dos prisioneiros. Angustiado, Henrique baixou a cabeça. - Agradeço o seu empenho. Vá cuidar
dos seus ferimentos e depois trate de repousar.

Todos calaram-se diante da extensão da derrota, respeitando a dor do rei. Geoffroi Martel foi o primeiro a falar:

- Somos mulheres para nos deixarmos abater dessa maneira? Vamos permitir que o Bastardo nos domine outra vez?

- Conde d'Anjou, nunca foi bom para nós aventurar-nos pelos caminhos da Normandia - disse Gosselin de Chauny. - O duque Guilherme conhece cada palmo de suas terras,
o menor dos regatos, a mais perdida das aldeias. Não hesita em rebentar uma dezena de seus melhores cavalos para ir defender, no outro lado da Normandia, uma de
suas possessões ameaçada. No combate, empenha-se pessoalmente como nenhum outro, e ninguém como ele para incitar seus soldados. Penso que se ele decidisse atacar-nos,
estaríamos agora tão mortos quanto os guerreiros em Mortemer, apesar de toda a nossa bravura. Assim, proponho a retirada.

Todos fitaram com espanto aquele cavaleiro que sabiam possuir uma coragem incomparável, ser inflexível nas questões de honra e fiel

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ao rei. Henrique aproximou-se e contemplou-o em silêncio por um longo tempo, com uma expressão pensativa, antes de dizer:

- Se qualquer outro que não você dissesse isso, eu o mandaria matar por traição. Suas palavras são terríveis, mas infelizmente creio que tem razão. Conheço Guilherme
tão bem quanto você. Respeitoso ao seu senhor, ele não será o primeiro a atacar-me. Espera que eu ataque antes. E então se esquivará e nos atrairá para uma armadilha,
onde acabaremos sucumbindo... Isso mesmo, devemos retirar-nos e reagrupar nossas forças... Em frente, vamos recolher nossos mortos!

Era a primeira vez que Filipe participava de uma ação militar na França. Pensava encontrar agora a oportunidade para distinguir-se. Quem sabe, poderia até ser
armado cavaleiro no campo de batalha. Mas, subitamente, todos os seus sonhos de glória se desvaneceram. Não compreendia por que o exército do rei não se lançava
à perseguição dos normandos: não havia a obrigação de vingar os mortos? Na Rússia era assim. A atitude e a proposta de Gosselin surpreenderam e decepcionaram Filipe.
Seu senhor jamais o habituara a uma linguagem assim. A idade estaria arrefecendo seu ardor? Maldita seja a velhice, que transforma um bravo numa velha! Ele pediu
para integrar o destacamento que iria a Mortemer. Olivier d'Arles ficou espantado.

- O que deseja fazer lá? Não posso imaginá-lo bancando o coveiro.

- E não tenho a menor intenção de ser um coveiro. Venha comigo e verá.

- O rei nunca me deixaria partir. - Pior para você. Eu lhe daria assunto para um longo poema. - Como assim? Alguma vez precisei de você para compor minhas canções?

Filipe não respondeu. Terminou de aparelhar seu cavalo, montou, e afastou-se a trote...

Olivier foi encontrá-lo à noite. - Vou matá-lo se zombou de mim - disse calmamente o jovem trovador, deitando-se ao lado do amigo.

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CAPÍTULO VINTE E DOIS


O CAMPEÃO DOS MORTOS


Como fora anunciado, eles só encontraram em Mortemer cadáveres, às centenas, despojados de suas armas, cotas de malha e até mesmo calçados. Só haviam deixado as
camisas, por decência. O estado do local testemunhava a violência do combate; o estado dos corpos, a coragem dos franceses.

Escarnecendo, os normandos observaram os soldados recolherem o que restava do exército de Eudes, o irmão do rei da França.

Bouchard de Montmorency, que recebera o comando do destacamento fúnebre, mal conseguia conter lágrimas de raiva e vergonha. Veterano soldado e bravo cavaleiro,
conhecia muitos dos que haviam morrido por nada, nem sequer pela glória.

- Quem vingará vocês, meus amigos? - Com sua permissão, eu! Bouchard virou-se, enxugando os olhos com o dorso da mão. Reconheceu o homem que seu amigo Gosselin
trouxera da viagem ao país da rainha. Como sempre acontecia, ficou surpreso com aquele rosto desfigurado, do qual toda e qualquer expressão desaparecera. Só o
olhar direto e franco permanecia vivo.

- Que quer dizer com isso? Fale. - Irei desafiar o duque e serei o campeão dos mortos. Um espanto profundo estampou-se no rosto de Bouchard de Montmorency.

- O campeão dos mortos? Desafiar o duque?... Você ficou louco! Nunca se ouviu ou viu coisa igual!

- Não é motivo para que não se faça.
- Está delirando. Um grande príncipe como o duque não se rebaixaria

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a travar um combate singular com um homem tão insignificante como você.

Filipe estendeu a mão para a espada, furioso. - Acalme-se. Não quis ofendê-lo. Conheço a amizade de Chauny por você e sei que ele não é homem de depositar confiança
em qualquer um. Mas sua opinião será igual à minha: quem é você para se bater com o duque da Normandia? Nem sequer é cavaleiro, e sua origem é obscura...

- Minha origem é mais importante que a de Guilherme, e ele não se rebaixaria ao lutar comigo. Diga-lhe que fui o vencedor do torneio de Fécamp.

Montmorency deu de ombros. - Você pode estar dizendo a verdade, mas não temos a prova. - A prova está aqui! - exclamou Filipe, tirando a espada da bainha e brandindo-a
diante do lugar-tenente do rei.

- Se quer saber a verdade, eu me bateria com você, pois vejo que possui uma nobreza genuína. Mas não sou o duque.

- Antes de ser duque, ele é um homem que ama a Deus e Sua glória, pelo que dizem, e um cavaleiro que respeita as regras. Sendo assim, ele não poderá ignorar meu
desafio, pois eu o acuso de ter causado a morte de todos esses homens pela traição. Pela Santa Virgem Maria e por todos os santos, juro exigir uma reparação de
Guilherme da Normandia e combater até a morte!

- O Retalhado tem razão, o Bastardo não pode ignorar o desafio! - interveio Lancelain de Beauvais, que ouvira toda a conversa. - Lamento não ter tido a idéia desse
combate singular. Se permitir, serei seu escudeiro.

- Não! - protestou Olivier d'Arles, que não perdera uma só palavra do que o amigo dissera. - O lugar me pertence!

- Ousa contestar-me esse direito, gracioso? - Não só contesto como também vou ensinar-lhe uma lição - declarou o amante do rei, com a espada na mão.

- Calma, meus amigos, calma! O senhor de Beauvais não queria ofender você, Olivier, as palavras devem ter sido mais rápidas do que seu pensamento... não é mesmo,
Lancelain? Troquem um aperto de mão, e ambos acompanhem o Retalhado para apoiá-lo em seu desafio.

Um monge que acompanhara o destacamento francês aproximou-se nesse instante.

- De joelhos, soldados, para que eu lhes dê a bênção de Deus! Os três jovens ajoelharam-se.

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- Meus filhos, que Deus os tenha em Sua guarda e conceda a vitória à sua causa justa. Vão em paz.

Bouchard de Montmorency foi pedir uma audiência ao comandante normando.

- O campeão de nossos mortos, aceito por nós, quer lançar um desafio ao duque Guilherme. Solicitamos que o conduzam são e salvo à presença do duque, a fim de que
ele o combata em campo fechado pela honra do reino da França e pelo juramento que fez à Virgem Maria e aos santos.

- Não posso tomar a iniciativa de levar seu campeão - respondeu Hugo de Gournay. - Enviarei um mensageiro ao duque. Se ele responder favoravelmente, então, pelo
sangue de Cristo, levarei pessoalmente seu campeão.

- Teremos de esperar muito tempo? Receberão a resposta ainda esta noite. - Está bem, aguardaremos até lá. Os franceses ocuparam-se durante o resto do dia em pôr
os cadáveres nas carroças, que não eram suficientes para transportá-los todos. Um primeiro comboio partiu, conduzido por um monge. Os habitantes de Mortemer, Aumale
e Drincourt que haviam escapado ao massacre dos franceses agruparam-se ao longo do caminho, rindo, aplaudindo e insultando os mortos.

Os corpos restantes foram amontoados nas ruínas fumegantes da igreja, onde um padre muito velho disse a missa. Filipe e seus companheiros rezaram com devoção.

Pouco antes do pôr-do-sol o enviado de Hugo de Gournay apareceu.

- O duque se lembra muito bem do torneio de Fécamp e daquele que o venceu. Seu primeiro impulso foi o de recusar o desafio de um homem que não é cavaleiro. Queria
indicar um campeão para lutar em seu lugar. Mas, depois de refletir, concluiu que era preciso ser nobre e corajoso para apresentar-se como o campeão dos homens
mortos na guerra. Assim, aceita o combate, com a condição de que seja realizado em Ruão, de acordo com as regras habituais: a pé, os cabelos cortados acima das
orelhas, com bastões recobertos por couro e um escudo para aparar os golpes. Aceitam essas condições?

- Em nome de nossos mortos, aceitamos. - Então ajoelhemo-nos e oremos. Depois das orações, Hugo de Gournay mandou vendar os olhos de

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Filipe, Olivier e Lancelain, apesar de ser uma noite escura, e eles partiram, cercados por uma escolta.

As vendas foram retiradas ao amanhecer. Diante deles, faiscando ao sol nascente, apesar de alguns vestígios de brumas, o Sena corria lentamente ao pé da cidade
de Ruão, onde a fumaça se elevava pelas chaminés. Os olhos ofuscados pela claridade matinal, o coração apertado, Filipe contemplou aturdido aquela cidade que tanto
lhe lembrava Novgorod...

Hugo de Gournay conduziu os franceses a um albergue, onde foram recebidos com as atenções devidas aos hóspedes do duque.

Serviram-lhes uma refeição abundante e depois levaram-nos aos banhos. Algumas horas mais tarde, Guilherme recebeu-os no salão do castelo de Ruão, rodeado por sua
corte, pela duquesa Matilde, por seu irmão, o bispo de Bayeux, Gautier Giffard, o vencedor da batalha de Mortemer, Guilherme Crespin, conde de Vexin, e Roberto
d'Eau. Hugo de Gournay fez uma reverência e foi postar-se ao lado de seu senhor. Filipe adiantou-se.

- Duque, sou conhecido como o Retalhado e acuso-o de haver causado a morte, por traição, de centenas de meus companheiros de armas. O sangue deles clama por vingança.
Pela Virgem e os santos, jurei que os vingaria e seria seu campeão. Eis minha luva.

Filipe jogou o penhor de batalha aos pés do duque. A assembléia mantinha um silêncio atento. Guilherme permaneceu imóvel por um longo momento, contemplando aquele
homem com o rosto tão cruelmente desfigurado que o desafiava com uma linguagem hesitante, mas com voz firme e altiva... A um sinal seu, um escudeiro pegou a luva
e entregou-lha.

- Aceito seu desafio - disse, jogando a sua própria luva aos pés de Filipe. - Não é um cavaleiro, mas é digno de sê-lo. Disseram-me que pouco se sabe a seu respeito,
a não ser que alguns homens da cavalaria o consideram como um igual. Farei como eles. Combaterei com você como um homem comum, a pé e com um bastão. Apesar disso,
juro diante de Deus e dos homens que não houve traição de minha parte nem de meus homens, apenas ardis normais de guerra. Agora retire-se e passe as horas que
lhe restam a rezar para a Santa Virgem Maria.

Filipe e seus companheiros foram conduzidos a um mosteiro da cidade, onde ficariam até o "dia aprazado para a batalha".

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Dois dias depois, despertados muito antes do amanhecer, Filipe e seus companheiros assistiram à missa e receberam os sacramentos. Uma hora antes do meio-dia o
duque mandou Hugo de Gournay e uma escolta de seis homens buscá-los. Entraram a cavalo e armados na liça. Lancelain de Beauvais e Olivier d'Arles ajudaram Filipe
a tirar suas vestimentas de guerreiro e depois ajustaram uma faixa larga em sua cintura. Eles se retiraram no momento em que o duque da Normandia entrou no campo
fechado, em grande pompa. Como Filipe, ele removeu as vestes e as armas. Os dois campeões ajoelharam-se frente a frente, mãos entrelaçadas, cada um jurando por
sua vez, pela Cruz e pelo Evangelho, que o direito estava do seu lado e que o outro era falso e desleal; juraram também que não traziam consigo encantamento
ou sortilégio. Um padre abençoou-os. O arauto anunciou o duelo aos quatro cantos da liça:

- Ouçam! É. proibido aos espectadores e testemunhas do combate qualquer gesto ou grito que possa encorajar ou perturbar os combatentes, sob pena de perda de um
membro ou mesmo da vida.

Os valetes trouxeram escudos e bastões. - Escolha - disse Guilherme. Filipe inclinou-se, pegou ao acaso a arma e o grande escudo de madeira.

O mestre-de-armas fez as últimas recomendações, e todos os que ainda se encontravam na liça foram evacuados. Depois, por três vezes, ressoou o grito:

- Ao combate! A pequena assistência fez silêncio. O duque fizera questão de que o duelo fosse travado sem a presença da turba, normalmente ávida por aquele gênero
de combate.

- Por respeito aos mortos - explicara Guilherme. Até o anoitecer, eles lutaram com coragem e sem compaixão. Esqueceram quem eram, queriam apenas vencer. Guilherme
foi o primeiro a ser atingido, por um golpe violento que lhe abriu o couro cabeludo. Cego pelo sangue, apoiou-se com as duas mãos no escudo. O combate foi suspenso
pelo tempo necessário para que um valete lhe enxugasse o rosto e o duque recuperasse as forças, que pareciam ter decuplicado quando ele se lançou de novo contra
Filipe que, com o choque, deixou cair seu bastão. Durante quase uma hora ele se defendeu das investidas do duque por trás do escudo, com o braço pendente. Conseguiu
finalmente recuperar sua arma, soltando o grito de guerra da droujina do grão-príncipe de Kiev. O grito surpreendeu Guilherme, que

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baixou a guarda; atingido em cheio no peito, ele foi jogado violentamente no chão lamacento. A fim de evitar os golpes de Filipe, rolou pelo chão e conseguiu desequilibrar
o adversário. Foi a vez do Retalhado apoiar-se no escudo.

O combate recomeçou, mais lento. Podia-se ouvir a respiração ofegante dos rivais. Os corpos transformados em estátuas de lama exalavam um cheiro forte de suor,
misturado ao cheiro adocicado de sangue. Os ataques, amortecidos pela fadiga, eram cada vez mais raros. Pouco a pouco, Guilherme tomou vantagem. Recorreu a suas
últimas forças e, quando o sol estava prestes a desaparecer, acertou um golpe final, acabando com o duelo. A testa aberta, Filipe tombou e não se mexeu. Mas o
Bastardo atingira os limites de sua própria resistência. Deu alguns passos na direção do vencido e caiu por cima dele.

Os valetes e os escudeiros correram para levantar o duque. Ele só recuperou os sentidos algum tempo depois, quando lhe derramaram entre os dentes algumas gotas
de um elixir de vida. Suas primeiras palavras foram para o homem que derrotara:

- Ele está morto? Olivier d'Arles, virando o amigo com cuidado, respondeu bruscamente, o rosto molhado de lágrimas:

- Não sei. - Chamem meu médico! - gritou o duque, levantando-se com dificuldade.

- Estou aqui, senhor. - Então faça o seu trabalho. Um guerreiro tão valente não deve morrer. Que combate! Há muito não me divertia tanto. É a primeira vez que,
no bastão, encontro um adversário à minha altura...

- e que venceu com bastante facilidade, senhor - comentou um cavaleiro.

- Com facilidade? A sua subserviência o confunde, João de Coutances! A menos que esteja fazendo uma alusão a minhas origens...

- Oh, não! - protestou o cortesão, corando. - Senhor, ele recupera os sentidos... Guilherme da Normandia inclinou-se para Filipe. - E então, ainda sou um assassino?
- Deus decidiu o contrário - murmurou Filipe, tentando levantar-se.

- Não se mexa. Deixe que meu médico cuide de você. - Para que os cuidados, se devo morrer? - Quem falou em morte?

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- Não fui vencido? Não devo perder a vida? - Ou uma das mãos! - Tome a minha vida, você a ganhou, mas não me mutile ainda mais!

- Está esquecendo que sou o vencedor. Cabe a mim decidir. - Pelo amor da Mora, mate-me! Agarrando as vestes do ferido, Guilherme puxou-o rudemente. - O que disse?...
Como conhece a Mora? - Pouco importa, eu a conheço... E por amor a ela, mate-me. - Não antes que me conte tudo! - Senhor, largue-o... ele está sufocando. - Levem-no
para a minha tenda. Pouco depois, Filipe, sem as vestes enlameadas e rasgadas, lavado, estava estendido, ainda muito fraco, num leito do acampamento ducal. Ao
seu lado, Olivier d'Arles e Lancelain de Beauvais terminavam de enxugar seu corpo bastante machucado em muitos lugares. O duque entrou e se deixou despir, em silêncio.
Ficou nu e entrou numa tina com água quente, em que haviam moído ervas apropriadas para curar hematomas.

- Deixem-nos a sós! Todos se retiraram. No banho, os olhos meio fechados, Guilherme soltava pequenos suspiros de satisfação. Mergulhou a cabeça na água para tirar
a terra e o sangue. Quando tornou a levantá-la, surpreendeu o olhar de Filipe a observá-lo. Fitaram-se em silêncio por um longo tempo, e foi o duque o primeiro
a ceder.

- Fale-me de você. - Não há nada a falar, senhor. - Ainda deseja morrer? - Mais do que nunca! - Então, diga-me, por que invocou o nome da Mora. De onde conhece
esse nome?

- Está lembrado de sua queda nas florestas alemãs? - Continue. - Uma bela jovem cuidou do senhor, e uma mulher de mais idade pronunciou esse nome em sua presença.

- Como sabe de tudo isso? - Eu estava lá. - Integrava a comitiva da rainha? - Pode-se dizer assim. - Isso não é uma resposta. Falou muito, mas não o suficiente.
Ordeno que me diga quem você é.

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- Não se esqueça de que não é meu senhor, duque Guilherme. Pertenço por escolha ao senhor de Chauny. Só minha vida é sua, pois a ganhou em combate leal. Pode tomá-la.

- Se eu a tomasse agora, seria culpado de um crime e Deus não me perdoaria. Você assumiu o papel de campeão dos mortos na guerra e foi por isso que aceitei seu
desafio. Sabia que não podia ser vencido, porque nunca houve traição de minha parte ou dos chefes normandos. Foi a leviandade dos franceses que causou sua derrota.

- Isso pouco importa agora. Pelo amor da rainha Ana, mate-me! - Quem é você? Filipe escondeu o rosto entre as mãos. Lágrimas enormes escorreram pelas faces feridas.
Guilherme ficou comovido com tanto desespero. Saiu da tina e, a água escorrendo, aproximou-se do desventurado jovem.

- Não pode confiar em mim? Juro pela Cruz de Nosso Senhor que jamais revelarei o que me contar.

- Jura também que, não importa o que venha a acontecer, jamais contará coisa alguma a ela?

- Juro. E Filipe então contou tudo.

Durante todo o relato, Guilherme, envolto por uma toalha de linho, permaneceu em silêncio, impassível. Quando Filipe se calou, visivelmente esgotado, o duque continuou
a fitá-lo em silêncio, por um longo tempo, dissimulando a profunda emoção que sentia. Esse olhar e o silêncio prolongado levaram ao máximo a perturbação do ferido.
Penosamente, Filipe ergueu-se.

- O senhor não diz nada... Compreende agora que tenho motivos para procurar a morte.

- Não será por mim que a encontrará. - Depois do que contei, não posso continuar a viver, porque a rainha deve ignorar o que sou hoje.

- E quem dirá a ela? Pode ter certeza de que não serei eu. Esqueceu meu juramento?

- Esperava que me matasse depois de descobrir meu amor pela rainha.

- A outro que não fosse você, sem dúvida eu faria isso. Mas você, como eu, ama a rainha com um amor puro, e eu não teria coragem de fazer o que fez por ela. Esperava
encontrar a glória nos combates para que o relato chegasse aos ouvidos da rainha e ela indagasse: quem é esse valente cavaleiro de rosto tão feio? E queria ainda
mais: que pelo

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brilho de suas façanhas ela esquecesse a feiúra de suas feições?

- Não encontrei a glória e não me tornei um cavaleiro... - Se você aceitasse, seria uma honra para mim introduzi-lo na nobre ordem da cavalaria.

Filipe fitou-o com surpresa. - Mas não lhe pertenço! - Isso não tem a menor importância. Sendo cavaleiro, posso armar cavaleiro a quem quiser, sobretudo quem
é digno!

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CAPÍTULO VINTE E TRÊS


A DECISÃO DE IRENE


O mau humor do rei Henrique estava no auge. Aquele ano de 1054 era o pior de seu reino. Aproveitando a desastrosa derrota de Mortemer, o Bastardo escarnecia de
seu suserano mandando construir um castelo em Breteuil, não muito longe de Tillières, e confiando o comando ao valoroso Guilherme Fitz-Osbem. Aquele demônio exigia,
para libertar os numerosos prisioneiros feitos em Mortemer, que lhe fosse reconhecida a posse legítima das terras conquistadas, inclusive as de Geoffroy de Mayenne,
que também estavam em seu poder.

Além disso, o rei devia suportar as censuras dos condes e barões, que o condenavam por ter confiado o comando do destacamento francês a seu irmão Eudes, que só
demonstrava coragem ao saquear fazendas isoladas, traficar os bens da Igreja e violar mulheres. O mais severo era Raul de Crépy, que dizia ter alertado o rei.

Mas o cúmulo era o fato de que a rainha, desafiando sua proibição formal, continuava a manter correspondência com sua sobrinha Matilde e até mesmo, segundo informavam
os espiões, com o próprio duque. Ana não negara e suportara com desdém as severas críticas do marido.

E como suportar a atitude de Olivier d'Arles, que não parava de elogiar a generosidade do duque? Ele não ousara compor uma canção em homenagem ao Bastardo? Henrique
sentia-se três vezes ferido em seu orgulho, como rei, homem e amante, pois o jovem encontrava pretexto, com uma freqüência cada vez maior, para recusar-se a ele.
Essas recusas inflamavam a paixão do rei, levando-o a perder toda moderação e prudência. As más línguas da corte chegavam a insinuar que o trovador preferia aquele
manco desfigurado, cuja virilidade ele admirara um

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dia. A suas perguntas, Olivier respondera com uma explosão de riso. O Retalhado era seu irmão, não seu amante: jamais tal idéia lhe passaria pela cabeça!

Fatigado... Henrique sentia-se fatigado. Tantos anos passados a guerrear para assegurar sua posição de rei diante da mãe Constância, sua autoridade diante dos
vassalos, do papa e do imperador e, nos últimos anos, do duque da Normandia, tudo isso o envelhecera prematuramente. Aspirava à paz, à tranqüilidade. Fora forçado
a prometer sua neutralidade aos enviados normandos, no conflito que continuava entre seu antigo aliado de Anjou, Geoffroi Martel, e Guilherme.

Foi nos últimos dias do ano que Ana tomou conhecimento da morte de seu pai, ocorrida na primavera. Desde o casamento, ela não cessara de corresponder-se com ele,
e os sábios conselhos de Iaroslav lhe tinham sido úteis em muitas ocasiões. Mandou rezar inúmeras missas em todo o reino pelo repouso da alma do príncipe, e pediu
permissão ao rei para retirar-se por algum tempo num convento, a fim de entregar-se totalmente à sua tristeza.

Quando voltou do mosteiro em Senlis, em que permaneceu por várias semanas, Ana estava muito pálida e magra. O conde de Valois foi um dos primeiros a visitá-la.
Mais apaixonado do que nunca, empenhou-se em distraí-la, mandando saltimbancos de todos os tipos. Em comparação com a indiferença do rei, essas atenções a comoveram
e ela passou a considerar o conde com menos antipatia. Ele acabara de perder a esposa, Adelaide de Bar. Ana deixou-se impressionar pela aflição simulada do conde,
a quem dispensou palavras de consolo. O trovador também lhe proporcionava algum conforto, mas o ciúme do rei impedia encontros mais freqüentes.

O pequeno Filipe já estava com três anos. Era um menino vigoroso, glutão e belicoso. Devotava à mãe um amor intenso e recusava-se obstinadamente a falar outra língua
que não fosse a dela. Atacava todos que se aproximavam de Ana, inclusive o pai. Ana brincava de bom grado com o filho por alguns momentos, depois o repelia, como
um cachorrinho. O menino adorava ouvir as canções daquele país extraordinário para onde sonhava viajar um dia, a fim de combater o gênio das águas, que atrai os
filhos de rei para seu palácio úmido, transformando-os em escravos. Helena, por sua vez, era totalmente devotada ao pequeno Filipe e satisfazia todos os seus caprichos.

O nascimento do irmão o deixara indiferente.

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No início do verão, Henrique acabou cedendo às pressões insistentes da irmã, a condessa de Flandres, e permitiu que a sobrinha Matilde viesse visitar a rainha.
A duquesa da Normandia chegou com seus filhos num belo dia de junho, com grande aparato, escoltada por cavaleiros flamengos. Só as amas-de-leite e as criadas eram
normandas. Depois dos cumprimentos habituais, as duas amigas finalmente ficaram a sós. A alegria era tão profunda, que ficaram em silêncio, contentando-se em
trocar beijos, carícias, sorrisos misturados com lágrimas. Ana foi a primeira a recuperar o controle.

- Como senti saudade, e como o tempo me pareceu longo sem a sua companhia!

- Por que nossos maridos devem estar sempre guerreando? Perguntei isso a Guilherme muitas vezes. E ele se limitou a responder: "Não fui eu quem começou!"

- Vamos esquecer essas guerras. Fale-me de você, dos seus filhos, do meu querido amigo Guilherme.

- Ah, se o rei meu tio a ouvisse! - Ele se ocupa muito pouco comigo. - E você lamenta? - Sim e não. Afinal, ele é o rei. Trouxeram enormes baús de couro, com
grandes cadeados de ferro. Matilde tirou do bolso um molho de chaves.

- Eu trouxe alguns presentes - anunciou, levantando uma tampa. A duquesa tirou uma peça de tecido de Flandres, liso e macio como seda, fitas bordadas e rendas
de Bayeux. Encantada com a delicadeza dos presentes, Ana agradeceu efusivamente.

A acolhida de Henrique, fria a princípio, foi se tornando mais calorosa à medida que os dias passavam. Ficara surpreso por Guilherme ter permitido que os dois filhos
viajassem para o reino da França.

- Ele não receia que eu os tome como reféns? - perguntou à irmã.

- O duque conhece muito bem seu senso de honra. Sabe que você jamais pensaria em capturar crianças.

Lisonjeado, a contragosto, o rei resmungara que não se devia tentar o diabo...

Até o outono foi uma sucessão de festas. A corte transferia-se de um castelo para outro, de Étampes a Poissy, de Senlis a Melun. Só se foi uma vez a Paris, que
a rainha não apreciava muito, achando a cidade suja e barulhenta, os parisienses insolentes e indecentes. Nada do que lhe

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dissesse Olivier d'Arles, para quem a cidade era a mais linda do mundo, podia fazê-la mudar de idéia. Era em Paris que ela sentia a maior saudade de sua terra. Tudo
ali lhe parecia insignificante, e o Sena, tão decantado pelo gentil trovador, parecia-lhe um mero regato, em comparação com o Dnieper, o Volga ou o Volkhov.

O momento da partida aproximava-se. As duas combinaram encontrar-se de novo na primavera. Ana fizera a promessa de ir ao Mont Saint-Michel para orar pelo repouso
da alma de seu pai. O duque, garantiu Matilde, teria o maior prazer em receber pessoalmente a rainha no monte sagrado. Apesar dessa feliz perspectiva, as duas jovens
separaram-se chorando.

O inverno passou depressa. Todos os dias, depois da missa, a rainha saía para caçar; ou se o tempo não permitia, ia visitar os pobres. Supervisionava a construção
de um abrigo em Senlis, assim como de uma escola que seria aberta a todos. Para levar a bom termo esses empreendimentos, ela não hesitava em recorrer às suas reservas
pessoais. À míngua de recursos, encarregou o camareiro Renaud, que guardava o tesouro real, de vender as jóias que trouxera de Kiev. Tomando conhecimento, Guilherme
mandou entregar-lhe um saco de peças de ouro; Raul de Crépy, por sua vez, comprou algumas jóias e pediu a Irene que as devolvesse à rainha.

A jovem dissimulou sua fúria com a maior dificuldade. Tivera esperanças de que a morte de Adelaide de Bar a aproximaria ainda mais do conde e de que assumiria,
sem ser a esposa oficial, a posição de concubina. Mas logo compreendeu que isso não aconteceria. O tempo ia passando e Raul mostrava-se cada vez mais apaixonado
pela rainha. Mesmo em meio às maiores orgias - das quais ela participava, para agradá-lo - Irene percebia que seu amante só pensava em Ana. Como era possível deixar
de odiar uma rival assim?

No dia seguinte a uma noite de orgia, ela anunciou que estava grávida. O conde desatou a rir. Pelo menos sabia quem era o pai? Irene jogou-se a seus pés, em lágrimas,
jurando que era ele. Abruptamente, Raul parou de rir, agarrou-a pelos cabelos e obrigou-a a levantar-se.

- Não diga um absurdo desses! Diante de meus olhos você se prostituiu muitas e muitas vezes! Esse bastardo não pode ser meu!

Irene desvencilhou-se das mãos do conde, deixando em seus dedos um punhado de cabelos.

- Como ousa insultar-me, se foi a seu pedido que me prostituí?

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Foi para agradá-lo que deixei que seus amigos me emporcalhassem! Tudo o que fiz foi por você...

- E conseguiu, sua prostituta! Jamais conheci uma mulher tão submissa como você a minhas fantasias, até as mais ignóbeis. Continue assim, se quer me seduzir,
e não me fale mais nessa criança. Trate de se livrar dela!

- Nunca! Seria um pecado! O conde quase engasgou de tanto rir. E, ainda rindo, obrigou-a a rolar no chão e, mantendo-a de barriga para baixo, levantou-lhe a
saia e fê-la empinar o traseiro, que acariciou com tapinhas. A bunda grande e branca ficou logo rosada e ofereceu-se ainda mais aos golpes e aos olhares. Raul
libertou seu sexo e penetrou Irene com uma violência que a fez gritar de prazer e dor. Satisfeito, afastou-se dela e empurrou-a bruscamente.

- Vá embora! Deixe-me em paz! Ela agarrou-se em suas pernas, balbuciando palavras ternas. Um soco forçou-a a soltá-lo. No mesmo instante, o sangue esguichou de
seu nariz ferido, manchando-lhe o rosto e o peito. O conde virou as costas e saiu.

Irene permaneceu prostrada por muito tempo, os olhos secos e fixos. Ao levantar-se, tomara uma decisão.

Nem Ana nem Helena perceberam o crescimento do ventre de Irene, que conseguiu esconder seu estado até o final. O parto foi prematuro, no final da primavera. Dominada
por dores intensas ao amanhecer, Irene correu para esconder-se numa cabana na floresta de Senlis, habitada por uma velha chamada Ermelina, que diziam ser feiticeira.
Ermelina, que outrora fora uma linda mulher, fornecia a muitos nobres venenos e poções revigorantes, assim como poções amorosas às mulheres. Raul de Crépy era
um dos seus clientes. Ela conhecia Irene por tê-la visto muitas vezes em companhia do conde e não demonstrou nenhuma surpresa quando a jovem caiu no chão imundo
de sua cabana.

- Está com as dores do parto, criança. Teria feito melhor se tivesse bebido minha poção. A esta hora estaria flexível e delgada como uma árvore nova.

- Escute, velha, não quero saber dos seus conselhos. Os que segui de nada me adiantaram...

- Está se referindo à minha poção amorosa? Não fez o que eu mandei...

- Não tive confiança.

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- Pois errou. O conde estaria hoje a seus pés. - Quem falou no conde? - Não me tome por tola. Vi você andando ao redor dele e não preciso ser feiticeira para
compreender que o ama e que ele não a ama.

- Cale-se!... Oh, estou me sentindo mal... - Venha para cá. Ermelina acomodou-a num leito de musgo. - Levante a saia e abra as pernas... assim... está Ótimo!
Ao final da manhã, Irene deu à luz um menino franzino. A velha envolveu o bebê com um pedaço de pano imundo e acomodou-o ao lado da mãe. Ermelina contemplou longamente
a mãe e o filho, pensativa. À noite, depois de ajudar a mãe a beber uma poção amarga, perguntou-lhe:

- Ainda quer que o conde ame você? - O que devo fazer? - perguntou Irene, soerguendo-se. - Dê-me o seu bebê.

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CAPÍTULO VINTE E QUATRO


O SABÁ


A noite estava escura. Os cavalos tropeçavam nos sulcos do caminho coberto por uma espessa camada de neve. A tocha levantada pelo cavaleiro que ia à frente iluminava
fracamente, com uma claridade amarelada, as árvores com os galhos pesados de geada. O ar estava gelado; o silêncio, rompido de vez em quando pelo uivo de um lobo
solitário. Das bocas dos homens e das narinas dos cavalos saía um denso vapor. Subitamente, um grito prolongado espalhou-se pelas trevas. Olivier d'Arles estremeceu.
O pequeno grupo parou, à espreita.

- Você ouviu? - murmurou Olivier. Filipe fez sinal para que ele se calasse, acrescentando em voz baixa:

- Apaguem a tocha. No instante seguinte a escuridão envolveu-os. Todos ficaram alerta, atentos ao menor ruído. Nada se mexia. Felipe já ia dar a ordem para avançar
quando o grito soou de novo. Aqueles homens, que ignoravam o medo no combate, temiam acima de tudo os maus espíritos da noite. Persignavam-se, apavorados.

- Escutem! - sussurrou um deles. Trechos de um canto chegavam a seus ouvidos. - Devem ser monges numa procissão. - Já viu monges desfilarem à noite pela floresta
em pleno inverno?

- Silêncio! Não demorou muito para que através dos galhos eles pudessem perceber luzes, enquanto as vozes se tornavam cada vez mais nítidas. A

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um gesto de Filipe, todos desmontaram, amarraram as montarias e sacaram as espadas.

Mais adiante, tochas formavam um círculo de fogo. - Eles estão na clareira do diabo - balbuciou alguém. Outra vez todos fizeram o sinal-da-cruz. O Retalhado ordenou
aos homens que não se mexessem e fez sinal a Olivier para que o seguisse. Os dois amigos, arrastando-se pela neve, foram se aproximando. Cerca de cinqüenta homens
e mulheres balançavam-se no mesmo lugar, enquanto cantavam, só parando para beber, de uma vasilha carregada por dois monges trôpegos e às gargalhadas, um líquido
fumegante. A beberagem provocava um comportamento estranho em quem a tomava: os corpos eram agitados por risos nervosos, espasmos incontroláveis. No meio do círculo
foi acesa uma fogueira, perto de uma espécie de estrado. Subitamente o grito que tinham ouvido antes ecoou de novo, acima do canto, que parou de repente. Um estranho
cortejo penetrou no círculo. Um bispo em trajes cerimoniais, seguido por mulheres com o corpo envolto apenas por uma pele de lobo, uma velha carregando um bebê,
monges embriagados com os hábitos rasgados deixando à mostra os sexos eretos...

- Não sei como eles conseguem com todo esse frio! - murmurou Olivier.

Num carrinho puxado por quatro meninos refestelava-se uma mulher velada, coberta de jóias, balançando entre as pernas, lentamente, uma cruz que faiscava...

Filipe e Olivier fecharam os olhos com repulsa e horror. Por trás do carro vinha um bando de seres disformes, monstros criados pela mão do homem, armados com porretes
e maças eriçadas de pontas.

O canto recomeçou depois que todos entraram no círculo. Os recém-chegados também beberam uma tigela do líquido sempre fumegante, apesar do frio.

"Eles devem mergulhar nele uma espada em brasa", pensou Filipe. O bispo subiu no estrado, seguido pela velha com o bebê e a mulher velada que brandia a cruz manchada
de sangue, sob as aclamações da multidão, cada vez mais agitada. Pegando uma espada estendida por um monge, o bispo abriu a roupa da mulher, de alto a baixo. A
vista do corpo bonito, cheio e alvo, exposto complacentemente, provocou gritos de alegria. Aqueles seres seminus pareciam não sofrer nem um pouco com o frio.

A mulher deitou-se no estrado, as coxas abertas, expondo seu sexo manchado de sangue aos olhares de todos. O canto tornou-se cada vez mais intenso, cada vez mais
desvairado. Uma baba avermelhada saía das

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bocas, os olhos brilhantes e enlouquecidos reviravam nas órbitas, os cabelos eriçavam-se, nas cabeças que se agitavam para a frente e para trás, cada vez mais
depressa, como os braços, como os pés, que pareciam dotados de vida própria. Todo o grupo exalava um fedor de sujeira, podridão, excremento e incenso, misturando-se
com um perfume adocicado que provocava náuseas.

A velha descobriu o bebê e estendeu-o para o bispo, que o pegou. Por três vezes ele levantou o pequeno corpo nu. Era um menino com cerca de seis meses, que se
debatia, soltando gritos. Um monge estendeu um cibório de ouro, incrustado de pedras preciosas.

Comprimidos um contra o outro, trêmulos, tão fascinados pelo que viam que estavam paralisados, incapazes de qualquer movimento ou pensamento coerente, Filipe e
Olivier assistiam impotentes ao espetáculo extraordinário.

Uma lâmina fina e comprida apareceu na mão do bispo; com a outra, ele segurava o bebê pelos pés.

Houve então um silêncio profundo. A multidão soltou um grito quando o bispo mergulhou a lâmina na barriga do bebê, abrindo-a com um movimento lento. Os espasmos
da pequena vítima salpicaram de sangue as vestes sacerdotais e os rostos dos participantes. As vísceras fumegantes caíram com um baque seco sobre o ventre da mulher,
que as pegou com as duas mãos, espalhando-as voluptuosamente. Segurando o pequeno corpo palpitante pelo pescoço, o bispo abriu-lhe a garganta e recolheu no cibório
o sangue derramado. Depois que a última gota caiu, ele arrancou o coração e jogou o cadáver para a multidão.

Olivier desfalecera; Filipe, dominado pela náusea, fechara os olhos. Quando tornou a abri-los, viu o bispo arrancar com uma dentada um pedaço do coração e comê-lo
com voracidade; a mulher levantou-se, mão estendida, e apoderou-se do resto, que enfiou na boca avidamente. Mastigou por um longo tempo o músculo duro, antes de
engoli-lo.

Junto ao estrado, as pessoas disputavam os restos do cadáver, todas querendo saboreá-lo. As chamas altas da fogueira, o horror que se desenrolava diante de seus
olhos, levaram os dois espectadores inocentes a pensar que tinham morrido em estado de pecado mortal e que era o inferno que contemplavam...

Empurrada, uma mulher caiu na fogueira. Num instante transformou-se em tocha humana, correndo para escapar a um fogo que logo a envolveu por completo. Ninguém tentara
ajudar. Quando ela não era mais do que uma massa informe e fumegante, alguns aproximaram-se, cutucando-a com seus porretes e chuços. Dois sentaram-se e, com a
ajuda de seus facões, começaram a retalhar aquele assado inesperado.

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Depois que todos estavam saciados e tinham tomado novamente a beberagem fumegante, os cantos e as danças recomeçaram.

No estrado, o bispo oficiava uma espécie de missa. Na hora da oferenda, ele tirou seu membro e sacudiu-o, sem desviar os olhos do sexo da mulher, de onde se projetavam
as entranhas do bebê. Ele gozou em longos jatos, que foram recolhidos. Consagrou a mistura ímpia, comungou, fez a mulher comungar, depois entregou o cibório a
um monge e montou nela. Foi o sinal para a apoteose do sabá. As sentinelas, postadas aqui e ali, abandonaram seu posto.

Filipe pôs sobre os ombros o corpo de Olivier, ainda desfalecido, e empurrou os soldados atordoados à sua frente. Era preciso deixar aquele lugar maldito o mais
depressa possível. Ele não dera três passos quando parou e voltou-se. A fogueira e as tochas cravadas na neve iluminavam os movimentos de seres copulando, nas
posições mais obscenas. No estrado, a mulher se levantou; os longos cabelos louros estavam ensangüentados e cobertos de excremento. Com o corpo agitado por movimentos
lascivos, ela virou-se... Não estava mais com o véu... e ria! Filipe largou Olivier e caiu de joelhos, sacudido por soluços.

A queda reanimou o trovador. - Oh, Deus! - murmurou ele. - Pensei que estava tendo um pesadelo... Como tais horrores são possíveis? Como uma mulher é capaz de
comer o coração de um bebê? Aquela mulher ali...

Não, desta vez era mesmo um terrível pesadelo! Ele pegou um punhado de neve e comprimiu-o contra o rosto, contra os olhos. Mas não, não estava sonhando: se ainda
tinha alguma dúvida, os soluços do amigo ali estavam para comprovar a realidade do que testemunhara.

Ele ajudou Filipe a levantar-se e arrastou-o para junto dos companheiros, aterrorizados, trêmulos, metidos numa vala que escondia de seus olhos o horrendo espetáculo.
Mas o que haviam escutado já era suficiente para que pensassem que estavam diante dos portões do inferno.

"Ainda bem que eles não viram coisa alguma, senão eu teria de matá-los!", pensou Filipe.

Puxando os cavalos pelas rédeas, eles trataram de afastar-se, sem ruídos.

Durante muito tempo a risada de Irene ecoou sob as frondes sombrias da floresta de Senlis.

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CAPÍTULO VINTE E CINCO


REENCONTRO


Depois da morte do filho, o ódio que Irene sentia pela rainha parecia ter-se atenuado. A jovem fizera Raul de Crépy tomar o líquido infame recolhido no recipiente
sagrado; o efeito tão desejado não demorou: o amante só tinha olhos para ela. Apesar dos pesadelos que às vezes atormentavam suas noites, Irene sentia-se absolutamente
feliz. Os meses passavam sem que nada alterasse o comportamento do conde.

Grávida mais uma vez, Ana passava a maior parte do tempo no castelo de Senlis, sua residência predileta, ocupando-se com os pobres, com a educação de seus filhos
e, principalmente, com a escola que acabara de ficar pronta.

No inverno de 1056, ela teve uma filha que não sobreviveu. Mas a perda de Molnia talvez tenha sido ainda mais penosa para ela. Era seu amigo mais fiel, que conseguia,
na vertigem do galope, lembrar-lhe as longas cavalgadas pelas margens do Dnieper ou do lago Ilmen, em companhia de Filipe. Sua tristeza foi tão profunda que até
Henrique ficou apreensivo.

Filipe... Que teria acontecido com ele? Por muitos meses ela esperara uma mensagem dele, uma carta. Nada! Não podia acreditar que ele a esquecera, que amava outra.
Apesar da distância que devia separá-los, Ana o sentia bem próximo. Mas sem dúvida eram pensamentos absurdos. Muitas vezes, no entanto, era tão forte a impressão
de que Filipe a observava, que ela levantava a cabeça ou se virava. Mas ele não estava ali: nada a não ser os rostos familiares de seu séquito. Querido Filipe,
como sentia saudade, apesar de tanto tempo passado! O rei não conseguira fazê-la esquecer aquele que, no fundo de seu coração, continuava

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a chamar Viétcha. Helena, que compreendia a força dessa lembrança, jamais evocava o jovem capitão da droujina do grão-príncipe de Kiev.

Adélia de Flandres, cuja afeição por Ana permanecia inabalável, procurou uma maneira de acabar com aquela tristeza. As circunstâncias políticas proporcionaram
uma ocasião: o rei da Noruega, Harald Hardrada, foi visitar o conde de Flandres, a fim de discutir o possível retorno à Inglaterra de Eduardo Aetheling, o último
herdeiro direto do rei Étherred. Harald opunha-se a esse retorno, apesar da concordância do imperador da Alemanha, e queria que Balduíno o apoiasse. A condessa
pediu ao marido que insistisse para que o norueguês trouxesse também a rainha Elisabete...

Ao desembarcar no porto de Bruges, em companhia de Harald da Noruega, Elisabete de Kiev exibia uma expressão aborrecida. Esgotada pela travessia, ficou esperando
impaciente que o bispo da cidade, o conde e os representantes das diversas corporações de artesãos apresentassem os cumprimentos habituais. Finalmente, a condessa
de Flandres adiantou-se em companhia de uma jovem muito elegante. Elisabete, como conhecedora, examinou o vestido azul de veludo, com as mangas ornamentadas de
bordados e peles, semicoberto por um magnífico manto de pele de raposa, que tanto se parecia com o seu... A jovem elegante parou a alguns passos, comprimindo as
mãos enluvadas em couro verde e vermelho contra o peito. Elisabete lançou um olhar confuso para Adélia.

E foi nesse instante que todos viram a rainha da França e a rainha da Noruega, num mesmo impulso, levantarem os mantos e correrem uma para a outra.

- Elisabete! - Ana! As duas irmãs não cansavam de abraçar-se, acariciar-se, olhar-se. Como parecia distante o tempo em que, tranças ao vento, corriam ao encontro
do pai! Ana, a caçula, raramente conseguia chegar primeiro. Mas Elisabete não se aproveitava da idade, e de bom grado concedia-lhe um lugar entre os braços de
Iaroslav, que carregava as duas, dizia ele, para o reino das ninfas...

- E eu fico esquecido? - Harald! - Venha dar-me um beijo, irmãzinha. Como você está bonita! O que aconteceu com aquela arisca caçadora das florestas da Rússia?
Se eu não estivesse apaixonado por Elisabete, daria um jeito de tirá-la do rei da França.

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Ana ria, chorava, balbuciava palavras sem nexo em sua língua natal, sob o olhar enternecido da condessa.

Acalmada a alegria do reencontro, foram trazidos os cavalos de desfile, em que os soberanos noruegueses, a rainha da França, os condes de Flandres, os bispos e
os fidalgos da comitiva montaram, para entrar num lento cortejo na cidade de Bruges em regozijo.

Elisabete reencontrou com a maior satisfação Helena e Irene, que acompanhavam o pequeno Filipe, o qual recusou-se a cumprimentar seus primos, Magnas e Olaf.

Passou-se um mês, tão depressa como se fosse um dia. Era preciso separar-se de novo. Ana permaneceu na margem por muito tempo, observando o navio afastar-se. Depois
que este desapareceu nas brumas, ela deixou que Helena a conduzisse para a liteira, onde a condessa de Flandres a esperava.

- Procura a morte ao ficar imóvel com todo esse frio. Está tremendo. Se lhe acontecer alguma coisa, meu irmão Henrique não me perdoará... E ainda por cima está
chorando! É assim que me agradece por haver insistido com meu marido pela vinda da rainha da Noruega?

- Perdoe-me, Adélia. Não estou me mostrando grata ao seu empenho afetuoso. Mas já lhe disse quanta felicidade me proporcionou esse reencontro inesperado. Jamais
poderei agradecer-lhe o suficiente. Por quê, minha querida irmã, toda alegria deve terminar em tristeza?

Ana realizou, na primavera de 1057, a peregrinação ao Mont Saint-Michel, projetada com Matilde. Impressionada com a beleza do santuário, que parecia surgir das ondas,
ela orou com um intenso fervor. Os monges da abadia ficaram enternecidos com os presentes que ela deu à sua ordem. Recebida com toda pompa pelos soberanos da Normandia,
Ana ficou espantada com a afeição que a população dispensava a seus príncipes, a riqueza das cidades e dos campos, a ordem que reinava em todo o ducado. Não havia
nada de parecido no reino da França, onde condes e barões não paravam de brigar. A rainha ficou também emocionada ao ver o amor que unia Guilherme e Matilde. Um
amor que não excluía a violência: o duque não chegara ao ponto de arrastar a mulher pelos cabelos, na rua Froide, em Caen, depois de uma briga? A surpresa de
Ana divertira Guilherme: segundo ele, um bom marido devia bater em sua mulher sempre que ela merecesse.

- Graças a Deus o rei nunca se comportou comigo dessa maneira! - Sem dúvida, de marido ele só tem o nome!

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O comentário afligiu a rainha. Guilherme percebeu e desmanchou-se em desculpas. Não sendo ele, era um homem como o Retalhado que ela precisava ter como marido...
Com o passar do tempo, o duque passara a sentir uma profunda amizade por Filipe e conseguira que Gosselin de Chauny lhe concedesse a liberdade. O jovem agora fazia
parte da sua guarda pessoal. O duque encomendara para seu novo amigo, num competente armeiro de Toledo, uma máscara de prata forrada com seda, que se adaptava
tão bem ao rosto desfigurado, que logo as pessoas deixaram de prestar-lhe atenção. À exceção das mulheres, que achavam o cavaleiro mascarado, como o chamavam,
ainda mais atraente por isso. Aquele rosto de prata faiscando ao sol, emoldurado pelos cabelos louros que Filipe deixava bem compridos, aquele corpo flexível e
forte, que se podia adivinhar bonito, apesar da manqueira, aquela voz rouca e abafada... como era possível que as mulheres não ficassem seduzidas?

Filipe manteve-se a distância durante toda a estada da rainha da França na Normandia, recusando-se a participar das festividades. Ao abrigo da máscara, no entanto,
foi bastante ousado para aproximar-se o suficiente de Ana para ouvir o som de sua voz. Como sempre acontecia, ele percebeu a maneira abrupta com que ela se empertigou,
para depois voltar-se, devagar, contida. Seu olhar passara por ele e depois se projetara além, inquisitivo... surpreso... decepcionado... irritado ao voltar a
fixá-lo. Filipe precisou recorrer a toda a sua coragem, à lembrança de seu juramento, para não se precipitar a seus pés e gritar:

"Abra os olhos, olhe para mim... Não me reconhece? Sou eu, Filipe! Mulher sem coração! Mesmo feia, desfigurada ou velha, eu a reconheceria entre todas as mulheres...
Será eternamente a minha amada!"

Ele não foi capaz de suportar aquele olhar que não o via, e tratou de fugir, reprimindo os soluços.

- Quem é aquele homem? - perguntou Ana a Matilde. - Nada sei a seu respeito, a não ser que meu marido lhe dedica uma grande amizade. É conhecido apenas por Retalhado,
por causa de ferimentos horríveis que desfiguraram seu rosto. Meu marido não quis responder a nenhuma das minhas perguntas e ordenou-me que não falasse mais
a respeito, não tentasse descobrir nada.

- E você obedeceu? Matilde baixou a cabeça, corando. - Não completamente. As duas amigas desataram a rir. - Quer dizer que conversou com esse Retalhado? Quem
é ele? - Conversei, mas não descobri nada. Embora não tenha sido sagrado, ele diz ser um cavaleiro errante...

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- Ele não é um cavaleiro e mesmo assim Guilherme o honra com Sua amizade?

- Ele será sagrado cavaleiro no dia de Sant'Ana... - Sant'Ana? - repetiu a rainha, pensativa. - Isso mesmo, no dia da festa de sua santa padroeira. Foi o duque
quem decidiu assim.

- O duque? - Isso a decepciona? - Por que deveria decepcionar-me? Esse cavaleiro mascarado não me interessa.

- Por acaso ele não lhe lembra aquele belo capitão de seu país, de quem me falou pouco depois do nascimento de seu primeiro filho?

- Cale-se! Matilde, apesar de acostumada às explosões de voz de Guilherme, teve um sobressalto diante da veemência da amiga.

- Desculpe, não tive a intenção de magoá-la. Apenas pensei que sua confidência me autorizava a falar a respeito.

- Eu é que perdi o controle, mas como pôde comparar meu Filipe com esse coxo desfigurado, que freqüenta as tavernas e se relaciona com as mulheres fáceis, pelo
que dizem? Apesar de toda a estima que Gosselin de Chauny dedicava a ele, tive de pedir que fosse afastado da corte.

- Por quê? Não faltam coxos e desfigurados ao nosso redor. Essa atitude não é muito caridosa e sei que você não costuma comportar-se assim.

- Sei disso - murmurou Ana, consternada. - Sofro cada vez que o vejo... você percebeu... Há alguma coisa nele, especialmente nos gestos, que me faz pensar no
meu amigo perdido... Eu o detesto por lembrá-lo, por ter com ele uma vaga semelhança. Sua presença é um insulto à minha lembrança... Você, que ama seu marido,
não pode entender!

- Vamos orar à Santa Mãe de Deus... que ela interceda junto a Seu filho para que lhe dê a paz e o esquecimento.

- Todos os dias peço a Deus essa paz, mas esquecimento, jamais! As reminiscências dos tempos felizes da juventude ajudam-me a viver e tornam meu exílio menos pesado.

- Como lamento por você! Sentir-se exilada na terra de seu marido, de seus filhos! E, contudo, todos aqui amam você. Nosso amor não vale nada?

- Não deve pensar assim, minha querida Matilde. Sua amizade é o que tenho de mais precioso neste país, assim como a amizade do duque, do gentil trovador de Arles
e do fiel Gosselin. Muitas vezes, à

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noite, desperto pensando: um dia voltarei a viver sob o céu de Novgorod...

- Nunca voltará. É a rainha da França, seu país é este para sempre.

Ana levantou a cabeça num gesto altivo. - Conheço meus deveres para com o rei, para com a França e para comigo mesma. Orgulho-me muito da posição em que Deus me
colocou, para mostrar-me indigna. Submeto-me à memória de meu pai, o príncipe de Kiev, a meus gloriosos ancestrais... Quanto mais o tempo passa, porém, mais sinto
saudade da Rússia...

- Que Deus nos perdoe por não havermos conseguido, não fazêla esquecer, pois não se pode nem se deve, mas fazer com que amasse sua nova pátria - murmurou Guilherme,
que se aproximara um momento antes e ficara escutando a conversa das duas.

- Está equivocado, Guilherme: amo a França, embora ela não me faça sonhar - respondeu a rainha, soltando um profundo suspiro.

- Matilde, minha cara, e você, minha dama Ana, gostaria que assistissem à cerimônia que vai sagrar cavaleiros alguns de meus escudeiros, em comemoração pelo nascimento
de meu filho Guilherme...

Sobre o altar, à luz das velas, sete espadas faiscavam. Depois de se confessar, Filipe passara a noite em orações na capela do castelo de Falaise, em companhia
de seis jovens escudeiros, o mais velho com dezessete anos. Ele se recusara a ser sagrado cavaleiro sozinho, como desejava o duque.

- Não sou digno de tamanha honra - declarara. E Guilherme acatara a objeção. Durante toda aquela noite, o antigo guerreiro da droujina do príncipe de Kiev pensara
apenas nela, na mulher que fugia do novo homem em que ele se transformara, na mulher a quem seu juramento impedia de revelar quem era. Pediu a Deus que não o deixasse
quebrar o juramento, que o tornasse digno da confiança do duque da Normandia e o fizesse um cavaleiro sem medo e sem mácula. Implorou a proteção da Virgem Maria
para a rainha.

Ao amanhecer, assistiu à missa num profundo recolhimento. Recebeu a comunhão das mãos do bispo de Bayeux. Parecia que sua espada no altar brilhava mais do que as
outras. Sabia que Guilherme a escolhera com um cuidado todo especial, e que uma santa relíquia, a que ele dava a maior importância, estava encerrada no punho.

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Ao final da missa, precedidos pelos sons das trombetas, os sete candidatos à cavalaria apresentaram-se em grande pompa no pátio do castelo, onde os aguardava,
tendo na cabeça a coroa de seu pai, aquele que ia armá-los cavaleiros, Guilherme, duque da Normandia, cercado por seus barões, cavaleiros e pelo clero. As damas
estavam num palanque a que se tinha acesso por três degraus. Na primeira fila, Ana e Matilde, uma com um vestido azul de mangas ornamentadas com pele branca, a
outra num vestido vermelho debruado com pele preta. Bordados em ouro e prata perdiam-se nas pregas enormes das saias. Véus presos por broches de prata lavrados
enquadravam os rostos bonitos e atentos.

Um a um, os escudeiros aproximaram-se do oficiante. O duque prendeu na cintura de cada um o boldrié com a espada benta; depois colocou-lhe as esporas. Enquanto
ajudantes acabavam de vesti-los, cada um prestou o juramento de respeitar as leis da cavalaria e recitou uma oração. Depois que os seis jovens estavam equipados,
Guilherme aplicou-lhes o colée, golpe tradicional com o lado da espada dado no pescoço de quem era armado cavaleiro, gritando:

- Seja bravo! Apesar da violência do golpe, nenhum se mexeu. E chegou a vez de Filipe. Depois que o boldrié estava em sua cintura e podia sentir ao longo de seu
flanco a espada, presente de Guilherme, batizada por ele de Mora, Filipe lançou um breve olhar para a tribuna e disse uma oração com sua voz rouca:

- Senhor Pai Todo-Poderoso, Tu que permitiste na terra o emprego do gládio para reprimir a perversidade dos maus e defender a justiça, que para a proteção do povo
desejaste constituir a ordem da cavalaria, faze com que este teu servidor, predispondo seu coração para o bem, jamais use este gládio ou qualquer outra arma para
ferir injustamente qualquer pessoa, mas que dele se sirva sempre para defender a justiça e o bem.

Durante toda essa oração, os olhos de Filipe não se desviaram dos olhos de Guilherme, que depois recuou dois passos e aplicou-lhe o colée.

- Seja bravo, amigo! Montando em seus cavalos, os novos cavaleiros foram saudar as damas, antes de realizarem uma demonstração de seus talentos no controle dos
animais e da sua competência no manejo das armas. O mais hábil de todos, na opinião geral, foi o cavaleiro mascarado por quem o duque parecia ter o maior apreço.

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CAPÍTULO VINTE E SEIS


GRITO DE GUERRA


Aproveitando a estada de Ana na Normandia, Henrique fez uma longa visita a Geoffroi Martel, em março de 1057. Os dois renovaram sua aliança, decididos desta vez
a derrotarem o Bastardo. Em Angers, todos já se preparavam para a guerra, prevista para os próximos meses.

O rei reencontrou a rainha em Senlis. Rejuvenescido, olhos brilhantes, interrogou-a jovialmente sobre a corte normanda, pedindo notícias de seu "querido sobrinho
Guilherme" e de sua gentil sobrinha Matilde. Entregam em seu nome os vasos sagrados aos monges de Mont Saint-Michel, orara pelo repouso da alma de seu pai, o grão-príncipe
de Kiev?

Aturdida pelas palavras, surpresa com tanta jovialidade, Ana respondeu confiante a todas as perguntas do marido.

- Não observou, por acaso, alguma concentração de tropas? - Não - respondeu ela, sorrindo. - Tudo está calmo e em ordem no rico ducado da Normandia.

- Sei disso muito bem! - resmungou Henrique, assumindo de repente uma expressão sombria.

Que dissera ela para que o marido se tornasse subitamente tão furioso e amargo?

- Meu senhor, gostaria que me dissesse em que o desagradei... - Não é isso, minha cara. Eu pensava no amor que o duque lhe dedica e que você encoraja...

- Mas nunca desaprovou! - Era apenas uma manobra política... - Como? Durante todos esses anos permitiu que sentimentos

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nobres e puros tivessem livre curso para satisfazer à sua política? Não posso entender...

- Que importância tem? Isso não é assunto para mulheres. - Em minha terra era diferente. Meu pai jamais deixava de consultar minha mãe, e muitas vezes acatava seus
conselhos.

O rei limitou-se a dar de ombros. Entristecida, Ana retirou-se para seu quarto, afastou a cortina que cobria a entrada do oratório e ajoelhou-se diante de uma cruz
de ouro que continha relíquias da Virgem de Novgorod, suavemente iluminada. E logo concentrou-se na oração.

No início do verão, os exércitos franceses e angevinos, estacionados no Maine, atravessaram as planícies de Argentan e Falaise e invadiram a Normandia. O rei da
França e o conde d'Anjou instalaram seu posto de comando na abadia de Saint-Pierre-sur-Dives, deixando que suas tropas avançassem para o norte, saqueando e incendiando
tudo na passagem, como de hábito. Alguns raros sobreviventes da batalha de Mortemer inquietaram-se por encontrar, lá também, apenas pequena resistência, mas as
zombarias dos companheiros logo dissiparam seus temores.

O duque esperava um ataque, mas previa-o para o final do verão. Encerrou-se em Falaise e convocou seu exército. Os vigias receberam ordens de informá-lo diariamente
sobre o avanço dos exércitos inimigos. Estes, retardados pelas carroças carregadas de despojos, voltaram para Caen, onde atravessaram o Orne, depois dirigiram-se
para a embocadura do Dives. Henrique e Geoffroi Mantel montaram seu acampamento na praia, cercados pelas respectivas cortes. À luz das fogueiras acesas na areia,
os cavaleiros jogavam dados, ouviam um trovador relatar as façanhas do valoroso Rolando, bebiam aquela bebida adocicada que haviam confiscado na Normandia, ou divertiam-se
com mulheres. Tudo estava tranqüilo, a noite era quente e fragrante, o céu constelado de estrelas, o mar brilhante e sereno ao luar. Henrique, muito terno, inclinou-se
para Olivier d'Arles. O rosto franzido do jovem deteve-lhe bruscamente o ímpeto.

- O que há com você, meu belo amigo? Há algum tempo percebo em você uma enorme tristeza... Não está feliz ao meu lado? Não tem tudo o que pode desejar?... Ou não
ama mais seu rei?... Não responde?... Então é isso? Ama outro?

O trovador balançou a cabeça negativamente. - Então o que é? Sente saudade de alguém? - Ele vai morrer.

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- Não estou entendendo! Explique-se! Eu ordeno... Perdão, eu suplico - retificou o rei, diante da reação irritada do amigo.

- Majestade, sempre foi bom para mim, mas estou cansado desta vida, das intrigas para me fazer perder seu amor, do ódio de uns e da inveja de outros. Queria que
me desse permissão para deixá-lo...

- Nunca! - para me elevar, por minha coragem, à condição de cavaleiro. - Você, cavaleiro? Olivier recebeu a risada desdenhosa do rei como uma bofetada. Levantou-se
de um salto e desembainhou a espada. Henrique não estava com a sua. Não se mexeu, mas indagou com um profundo desprezo:

- Ousa levantar a mão contra seu rei? - Quem me ofendeu foi um homem, não um rei! Vamos, enfrente-me! Quer que eu o espete de maneira menos agradável do que na
noite passada?

- Pobre Olivier... e eu que gostava tanto de você! Sem ruído, os homens da guarda real haviam se aproximado; agarraram e golpearam o amante do rei.

Finalmente, seguido por uma centena de cavaleiros, o duque da Normandia resolveu deixar o castelo de Falaise. Pelo caminho, recrutou os camponeses que choravam
nos escombros de suas choupanas. Acompanhado por esse exército transbordante de ódio e desejo de vingança, embrenhou-se pela floresta de Bavent, onde parou, aguardando
o momento oportuno de passar ao ataque. Esse momento não demoraria. Pelas informações de que dispunha, o inimigo preparava-se para atravessar o Dives, na ponte
de Varaville.

- Eles estão tão carregados com o produto de suas pilhagens que levarão várias horas para alcançar a outra margem - assegurou um espião normando.

- Thor aïe! - bradou Guilherme, montando em seu cavalo, seu emblema tremulando na guarda da lança.

Ao grito de guerra dos normandos, cavaleiros e camponeses avançaram, unidos.

O rei da França e o conde d'Anjou acabavam de subir a colina, depois de atravessarem o Dives. Pararam e voltaram-se, contemplando com satisfação a longa fileira
de homens, cavalos e carroças que se estendia ao longe diante deles.

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E subitamente, apesar do barulho daquela multidão, ouviram o grito de guerra tão temido, ao mesmo tempo em que um tremendo espasmo agitava os soldados a seus pés.

- Os normandos! - exclamou Geoffroi Marte. Henrique precisou segurar-se com toda força na sela para não cair de surpresa. E depois, paralisados e impotentes,
eles assistiram ao massacre de seus guerreiros.

Guilherme calculara com perfeição a hora do ataque. Um terço do exército francês já cruzara o Dives, outro encontrava-se na ponte, e o restante aguardava o momento
da travessia.

A golpes de clavas, chuços, pás, a retaguarda, comandada pelo conde de Blois, foi violentamente atacada por uma horda de camponeses, que batiam, retalhavam, matavam.
Apavorados, os franceses comprimiram-se sobre a ponte, numa confusão de carroças, cavalos feridos, cavaleiros pisoteados, animais enlouquecidos. Os guerreiros normandos
entraram em ação. Apesar da coragem dos franco-angevinos, a derrota era inevitável. Alguns jogaram-se na água para tentar escapar, mas a maré montante arrastou-os
às dezenas, afogaram-se sob os olhos aturdidos do rei e do conde. Uma parte das pilhagens já estava em poder dos normandos. Não demorou muito para que o massacre
se tornasse metódico... Na margem esquerda do Dives, só havia cadáveres tristemente mutilados, membros decepados. A carnificina na ponte continuava... As ondas
tingiam-se de sangue, as gaivotas recolhiam pedaços de carne... O conde d'Anjou caiu de joelhos; seus olhos incrédulos contemplavam a visão de São João, o Apocalipse:

"E vi então um anjo de pé ao sol. Ele gritou em voz alta a todas as aves que voavam no zênite: 'Venham, reúnam-se para o grande banquete de Deus, para comer a
carne dos reis, a carne dos chefes, a carne dos poderosos, a carne dos cavalos e daqueles que os montam, a carne de todos os homens, livres e escravos, pequenos
e grandes...'"

Com certeza Deus o punia por seu desejo intenso de poder. O conde bate no peito e encosta a testa no chão, implorando a Divina Misericórdia. Deus não o escuta.
A maré sobe, as ondas turbilhonam em torno dos pilares de madeira. O tumulto é intenso, os movimentos desordenados... Os combatentes não ouvem o primeiro estalo;
quando percebem o perigo, a ponte desaba com um estrondo que se sobrepõe aos gritos dos infelizes arrastados em sua queda. O Dives transforma-se numa confusão
de elmos, braços, patas, rodas, pernas, cavalos, homens

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mortalmente unidos. Paralisados diante do espetáculo de seus inimigos e seus aliados irresistivelmente tragados, os normandos suspendem por um instante os golpes.
Mas seu duque logo lança o grito de guerra:

- Thor aïe! Aqueles que se salvam das ondas e se arrastam para a margem pantanosa são massacrados. à frente de uma vintena de cavaleiros, Guilherme, guiado por
camponeses, atravessa o Dives num vau a montante e persegue os que conseguiram alcançar a margem oposta. Combate com a fúria de matar, é preciso impedir qualquer
nova tentativa de invasão dos franceses e angevinos.

Henrique observa o braço do Bastardo, avermelhado até o ombro, levantar e baixar incansavelmente. Apesar de sua fadiga e idade, ele salta sobre seu cavalo. Num
mesmo ímpeto, Geoffroi Martel e seu sobrinho lançam-se na frente do animal, que empina, assustado, jogando o rei ao chão, antes de escapar na direção do inimigo.
Atordoado, Henrique se levanta.

- É preciso fugir, majestade! O neto de Hugo Capeto sacode a cabeça, os ombros encurvados, o rosto molhado de lágrimas, apontando com a mão trêmula para o campo
de batalha.

Um cavaleiro normando aproxima-se a galope, o rosto faiscante, segurando pelas rédeas um cavalo de batalha coberto de espuma. Pára, levantando terra diante dos
vencidos petrificados.

- O duque Guilherme envia ao rei Henrique seu cavalo, a fim de que ele possa deixar suas terras rapidamente. Manda dizer que o conde de Soissons e o conde de Blois
são seus prisioneiros.

Franceses e angevinos ficam observando em silêncio o cavaleiro mascarado afastar-se.

E lá se vai o rei da França, cheio de cólera e de dor...

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CAPÍTULO VINTE E SETE


O CALABOUÇO


Geoffroi Mantel retirou-se para o castelo d'Angers, Henrique para o de Paris. O rei mandou dizer a Ana, que queria ir ao seu encontro, que não aparecesse diante
dele sem sua ordem. A rainha permaneceu em Senlis.

Olivier d'Aries foi jogado num calabouço em que a água lhe chegava aos tornozelos. Uma tênue claridade entrava por uma estreita abertura, fora do alcance do prisioneiro.
Nos primeiros dias, sua natureza alegre e a flauta que tinham deixado com ele ajudaram-no a suportar a espera e as correntes que lhe dificultavam os movimentos.
Estava convencido de que Henrique não tardaria a libertá-lo. O rei queria dar-lhe uma lição, mas seu amor faria com que esquecesse a afronta. Porém os dias foram
passando e o trovador, faminto, transido de frio, começou a ter dúvidas. Esquecendo seu amor-próprio, suplicou ao carcereiro que lhe arrumasse algo com que pudesse
escrever. O homem, que não sabia ler, recusou-se, mas propôs, em troca de aulas de flauta, falar com o chefe da guarda real, que costumava freqüentar a taverna
de sua irmã. Olivier sentiu uma lufada de esperança invadi-lo.

- A taverna da sua irmã não fica na margem do Sena, na frente do castelo de nosso rei?

- Isso mesmo. - O nome dela não é Gisele? - Exatamente. Você a conhece? - perguntou o carcereiro, subitamente desconfiado.

- Você terá muitas peças de ouro se lhe levar uma mensagem. - De ouro? Você não tem cara de quem já viu sua cor!

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- Procure sua irmã e diga que Olivier, o amigo do Retalhado, está na prisão.

- Não farei nada, não quero perder meu emprego. E agora cale essa boca, vem gente aí!

O carcereiro saiu apressado. O coração apertado, Olivier ouviu o barulho de ferrolhos empurrados, depois passos que se afastavam, rangendo no cascalho do subterrâneo.

Durante dez dias não houve qualquer ruído nas proximidades do calabouço. Há muito que o prisioneiro já engolira o último pedaço de pão mofado, avidamente disputado
aos ratos, cujas mordidas lhe haviam ensangüentado as mãos e o rosto. Matava a sede com a água estagnada, na qual boiavam seus excrementos e os cadáveres inchados
dos ratos que conseguira matar. Para isolar-se um pouco daquela água pútrida, amontoou embaixo de si a palha fétida que lhe haviam jogado ao encerrá-lo naquele
túmulo. Acocorado sobre aquele leito de palha repulsivo, aguardava a morte, os cabelos e a barba infestados de vermes, esgotado demais pela fome e pela febre para
se revoltar. As poucas forças que lhe restavam concentrava-as em tirar da flauta sons de uma beleza tão grande e de uma tristeza tão profunda que as pessoas que
os ouviam, escapando pelo buraco no alto da cela, não podiam conter as lágrimas. Dois apaixonados, estendidos na relva ao lado da muralha, foram transportados ao
paraíso; um pescador caiu de joelhos em seu barco, pensando que a música vinha das ondinas que habitavam o rio; um monge rendeu graças a Deus, uma lavadeira deixou
a correnteza levar sua única blusa, sentinelas enxugavam os olhos nas mangas...

A porta foi aberta na manhã do décimo primeiro dia. Alguém entrou com uma tocha na mão. Os olhos do prisioneiro, ofuscados pela súbita claridade, fecharam-se. Ele
tentou levantar um braço descamado para proteger-se, mas não tinha forças suficientes.

- Oh, meu pobre Olivier! Braços fortes levantaram o corpo do infeliz, que soltou um grito: o homem não percebera as correntes que o mantinham preso à parede. Ele
tirou o manto e estendeu-o sobre a palha. Ajoelhou nele o amigo, com terno cuidado.

- Filipe! O Retalhado não pensou em perguntar como o jovem descobrira seu verdadeiro nome. Para salvá-lo, tê-lo-ia gritado diante do rei e da rainha.

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- Solte-o! - ordenou ao trêmulo carcereiro. - Não posso, senhor. Arrisquei a vida por amor à música ao trazê-lo aqui, não me peça mais do que isso.

- Desgraçado! Não me disse que ele estava morrendo! - Senhor, deixe-me fazê-lo beber este leite - murmurou a mulher que o acompanhava.

- Faça isso, minha boa Gisele. Alguns goles do líquido morno revigoraram Olivier. Abriu os olhos e tentou sorrir. Dominado pela náusea, vomitou longos jatos de
bílis fétida. E depois, esgotado pelos espasmos, perdeu a consciência.

Ao recuperar os sentidos, ficou surpreso com a claridade no calabouço. Tentou erguer-se e sua surpresa foi ainda maior ao não sentir o peso das correntes, nem o
frio intenso que normalmente lhe trespassava o corpo; ao contrário, havia um agradável calor.

- Estou com sede - murmurou. Desta vez não rejeitou o leite. Depois de alguns instantes, Gisele ajudou-o a engolir alguns pedaços pequenos de pão molhado no leite.
Alimentado, Olivier adormeceu.

- Senhor, agora é preciso levá-lo de volta. - Providenciou outra cela, seca, com água fresca, um jarro de vinho, pão e pastelão de cabra?

- Providenciei, senhor. - Não esqueceu uma boa palha, limpa, e uma coberta? - Não, senhor, não esqueci. - Ótimo. Já foi bem pago. Receberá ainda mais se o prisioneiro
for bem alimentado e bem tratado. Ponha-o nas correntes somente à noite. E um conselho: não me traia, disso depende a sua vida e a de seus filhos.

- Sei disso, senhor, mas quer o traia ou não, serei um homem morto se meus chefes descobrirem que o trouxe até aqui. Ah, maldita seja a música que me enfeitiçou!

- Não fale dessa maneira, Randock - murmurou Gisele, fazendo o sinal-da-cruz.

- Não há qualquer feitiçaria nisso, simplesmente você é um homem sensível e bom.

O carcereiro fitou Filipe com uma expressão aturdida: era a primeira vez que alguém lhe dizia que era bom! Esse insólito elogio partia de um homem com um rosto
de prata parecido com o dos anjos... ou melhor, de um demônio!

- Meu irmão, não esqueça que jurou pela Santa Cruz. Depois de um último olhar para Olivier, ainda adormecido, Filipe deixou a prisão, acompanhado por Gisele.

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Era um lindo dia lá fora. O Retalhado respirou a plenos pulmões o ar de Paris. Como homem acostumado aos grandes espaços da Rússia e às vastas florestas da França,
o encarceramento lhe parecia a pior das torturas. Era preciso tirar o trovador daquele lugar malsão o mais depressa possível. Não podendo abordar o rei nem a rainha,
resolveu pedir a ajuda de Gosselin de Chauny, cuja amizade conservara, apesar de sua partida para a Normandia. E no dia seguinte ele foi bater à porta do seu
antigo senhor.

- Nada posso fazer para ajudá-lo, ele levantou a espada contra o rei.

- Sei disso. Assim, só o que lhe peço é que avise a rainha da situação de Olivier d' Arles.

- A rainha não é a pessoa mais indicada para interceder em favor do antigo favorito de seu marido.

- Senhor de Chauny, suplico-lhe. Sabe que amo Olivier como a um irmão mais moço... Ele não tem a idade de um dos meus irmãos?... Sei que ele não tem a sua estima,
embora seja bravo no combate. Não o julgue por sua vida passada, foram pessoas horríveis que o lançaram na devassidão. Apesar de tudo, ele permaneceu honesto e
puro. E queria abandonar essa vida...

Gosselin de Chauny ficou andando de um lado para outro, o rosto enrugado contraído, os ombros largos vergados pela idade, imagem viva da perplexidade. Finalmente
parou diante daquele a quem acolhera e confortara.

- Por amor a você, falarei com a rainha sobre o trovador, e principalmente com a condessa de Flandres, que exerce grande influência sobre o irmão.

- Mas não me havia dito que ela sempre manifestou uma grande aversão pelo pobre Olivier?

- É verdade, como aconteceu com todos os favoritos do rei. Mas Olivier d'Arles mostrou-se menos ganancioso do que os outros, como ela própria comentou um dia na
minha presença.

- Que o céu faça com que ela se lembre disso! - Vá, volte para Paris. Darei notícias na taverna que me indicou. Enquanto isso, não faça nada que possa comprometer
nossos planos.

- Não poderei agradecer-lhe o suficiente pelo resto de minha vida...

- Guarde seus agradecimentos para mais tarde, meu filho. E que a Santa Mãe de Deus o acompanhe.

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Quando Filipe chegou às margens do Sena, havia um aglomerado da muralha por trás da qual Olivier estava preso. A multidão, às gargalhadas, apontava com o dedo
para um corpo balançando no alto da torre, atacado pelos corvos. Dominado por um terrível pressentimento, o Retalhado correu para a taverna. Os soldados acabavam
de tirar os barris, afastando os basbaques com golpes de porrete. Subitamente, uma chama alta projetou-se da taverna. O monge que insultara Filipe e Olivier, por
ocasião de seu primeiro encontro, saiu do interior com uma tocha na mão, soltando risadas desvairadas. Aquela silhueta destacada pelas chamas... aquele riso...
Uma visão atroz sobrepôs-se à cena a que Filipe assistia.

- De joelhos, incrédulos, chegou o momento da vingança do Senhor!... O fogo de Deus vai purificar este lugar de perdição... Ele me enviou como mensageiro para
executar Sua sentença divina... Implorem à Santa Virgem Maria... Orem aos mártires e aos santos... Se não quiserem arder nas chamas do inferno ou balançar na ponta
de uma corda, como Randock, o danado, arrependam-se, malditos! O dia do Juízo Final está próximo... Ah, ah!... Fornicadores abomináveis, mulheres de vida fácil
e entranhas apodrecidas, eis que chega o fim do mundo... Quem ousa levantar a mão para o enviado do Altíssimo?

- Eu, demônio! - Quem é você, que não ousa mostrar seu rosto? - Já dei uma lição em você, há alguns anos, estou pronto para recomeçar, se não me disser onde
está a mulher que atende pelo nome de Gisele.

- Pensa que sei o nome de todas as prostitutas de nossa boa cidade de Paris?

- Fale óu eu o mato! - Não se atreveria a levantar a mão para um homem de Deus - insistiu o monge, num tom lamuriento.

- Se você é aquele que diz ser, prefiro balançar como o infeliz lá em cima.

- Ele teria podido dizer-lhe onde está a mulher que procura: era sua irmã!

Filipe já esperava por isso, mas mesmo assim a confirmação o desesperou. Afrouxou um pouco o aperto, sem permitir, contudo, que o "homem de Deus" escapasse. Mas
este percebeu sua emoção.

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- Lá onde está, ele não falará mais. E foi a língua que o levou à forca. Não dizia que recebera ouro de um anjo para permitir a fuga de um prisioneiro do rei?...
Mas dizia também que esse anjo tinha uma máscara de prata... como a sua! Não seria você esse anjo?... Socorro! Socorro!... Como destruiu a poderosa Babilônia,
Deus também destruirá Paris, que se tornou a morada dos demônios, o covil de todos os espíritos impuros... Porque esta cidade chafurdou no vinho, no pecado, no
furor da fornicação...

A ponta de uma adaga deteve seus gritos. - Continue e será um homem morto. - Piedade... sou um servidor de Deus... - Não blasfeme com o Santo Nome. Há em você
alguma coisa da Besta sórdida... Tenho a impressão de que o vi numa clareira coberto pelo sangue de uma criança...

O rosto do monge empalideceu, ficou encharcado de suor; um cheiro pestilento exalava de seus andrajos.

- Deve ter sido algum pesadelo - balbuciou. - Espero, pelo seu bem, que tenha razão. Agora diga-me onde está Gisele.

- Depois que enforcaram seu irmão, eles vieram buscá-la... - Eles quem? - Os soldados do rei. - Tem certeza? - Pode-se ter certeza de alguma coisa nestes tempos
malditos? Enquanto interrogava o monge, Filipe não perdia de vista dois ou três jovens, de aparência cruel e frágil ao mesmo tempo, que se aproximavam lentamente.
Subitamente, um deles saltou como um animal feroz, com um punhal na mão. Como seria atingido, o Retalhado empurrou o monge na direção da arma levantada. O espanto
do rapaz só foi superado pelo medo. Ficou olhando atordoado para a mancha de sangue que aumentava no hábito do monge. E caiu de joelhos, babando, urinando-se todo.

- Mestre!... Oh, mestre! Não foi culpa minha! Não me bata, mestre, por piedade!

Num gesto violento, o monge arrancou o punhal cravado em seu corpo com um grito surdo. Cambaleou, mas não caiu. Contemplou com desprezo o infeliz prostrado a
seus pés, depois ergueu o braço, ao longo do qual o sangue escorria, e com um só golpe trespassou a nuca encurvada.

Alguns soldados empurraram Filipe e o afastaram do monge ferido. Este aproveitou a confusão para fugir, seguido pelos dois companheiros

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do desastrado que se esvaía em sangue em meio à indiferença geral. O Retalhado desistiu de persegui-los.

A noite caíra há muito tempo, escura, fria, sem o menor luar. Extenuado, tremendo de frio, Filipe deixou-se cair na areia da margem, ao abrigo dos juncos. As informações
que conseguira obter sobre os acontecimentos da tarde eram contraditórias. Alguns diziam que haviam visto passar um homem a cavalo que correspondia à descrição
de Olivier; outros', que ele se jogara no Sena; outros ainda, os mais numerosos, que nada tinham visto. Logo a fadiga prevaleceu e ele mergulhou num sono pesado.

Um contato úmido despertou-o sobressaltado. Uma mão gelada deslizou por seu rosto. Num gesto brusco, ele segurou a mão. E adivinhou que era de uma mulher. Perguntou
gentilmente:

- Quem é você? - Sou Gisele - respondeu uma voz abafada. - Enfim eu a encontro! Fale! Onde está Olivier? - Senhor, está me machucando. Filipe largou-a. - Onde
ele está? - Acho que está com o rei. - Com o rei? Então ele está salvo! - Não, está perdido! O espanto impediu que o Retalhado dissesse qualquer coisa. - Fui
levar provisões a seu amigo. A sentinela, que me conhece, deixou-me passar. Ia para a sala dos guardas quando ouvi gritos. Apavorada, corri para me esconder atrás
de uma coluna. Homens armados com enormes facas apareceram, arrastando por uma corda passada pelo pescoço o meu pobre irmão, o rosto coberto de sangue, as costas
parecendo retalhadas por garras. Ele berrava: "Já contei tudo... Não sei o nome dele... é um cavaleiro mascarado... Piedade, não me matem!... Perguntem à minha
irmã!"

- Por Deus, o traidor! - Não diga isso, senhor. Se tivesse visto o que fizeram com ele... - Fale mais alto. Não estou ouvindo direito. Depois de um momento,
Gisele voltou a falar, a voz cada vez mais fraca:

- Perdoe-me, senhor, não tenho mais forças... - Conte tudo logo de uma vez. Sei o que aconteceu com seu irmão, mas Olivier... o que fizeram com Olivier?

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Ofegante, ela respondeu com a voz entrecortada: - Eu fui... até sua cela... ele não estava lá... havia manchas de sangue... eu as segui... levavam à entrada dos
subterrâneos...

- Que subterrâneos? - Meu irmão... me contou... eles desembocam... - Continue! - No pátio... de uma pequena casa... que pertence ao rei... - Onde fica essa
casa?... Responda!... Gisele! Inclinando-se para ela, Filipe sacudiu-a. A cabeça com longos cabelos, completamente molhados, pendeu para trás. A pobre mulher
desmaiara. Com cuidado, ele a amparou pela nuca. Um líquido quente escorreu entre seus dedos.

- Gisele, minha criança! - Sua criança está morrendo, senhor... - Não está, não! Não é nada! Vou salvá-la! - Não... é tarde demais... por amor a você... não
contei nada... Olivier... a casa do rei... perto da fonte do convento de Saint-Germain... com uma porta alta... Oh, Virgem Maria... estou me sentindo mal... com
frio... senhor... enterre-me em terra benta... Deus o proteja... Como está frio... tão frio...

Durante muito tempo Filipe manteve-se abraçado à mulher humilde que dera a própria vida para ajudá-lo a salvar seu amigo. Tirou seu manto, envolveu o corpo e escondeu-o
entre os juncos.

- Muito em breve, minha pobre criança, você repousará em terra cristã.

Uma violenta chuva começou a cair nesse instante.

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CAPÍTULO VINTE E OITO


AS LÁGRIMAS DA RAINHA


Desde o início do outono a chuva não parava de cair, transformando os bosques e os campos em brejos, impossibilitando a caça e a guerra. Em seus castelos, os fidalgos
tremiam de frio e entediavam-se, preenchendo o tempo com bebedeiras. Estas terminavam com freqüência em orgias, com as criadas ou as filhas dos servos tiradas
de suas famílias em troca de um saco de trigo, na melhor das hipóteses.

No salão do castelo de Senlis, Ana, um trabalho esquecido nos joelhos, olhava através da vidraça esverdeada da janela estreita, o céu obstinadamente cinzento,
do qual o sol parecia ter sido expulso para sempre. Uma lágrima deslizou-lhe pelo rosto e caiu em sua mão.

- Por que chora, minha mãe? A rainha baixou a cabeça e sorriu para o menino que brincava a seus pés.

- Por que chora? - repetiu ele. - Não estou chorando, filho querido, é uma gota da chuva que se extraviou em meu rosto.

O menino fitou-a com uma expressão incrédula. - Vá brincar com seu irmão. - Não gosto de brincar - murmurou ele, aconchegando-se contra a mãe. - Prefiro ficar
sempre com você.

Eles ficaram abraçados por alguns instantes, em silêncio, enquanto a última claridade do dia triste se extinguia.

Uma acha de lenha desabou na lareira, espalhando fagulhas para todos os lados.

Subitamente, no outro lado do salão, houve o barulho de botas, ferragens e risos. Três valetes passaram correndo, levando tochas, que fixaram na parede.

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- E então, meu filho - disse o rei -, sempre nas saias de sua mãe?

Surpreendidos em seu devaneio, a rainha e o pequeno Filipe tiveram um sobressalto. O menino escondeu-se por trás do assento da cadeira que a rainha deixara.

- Está na hora de esse menino ser retirado das mãos das mulheres. Que idade ele tem?

- Acaba de fazer cinco anos. - Você o mima demais, vai fazer dele um covarde. - Isso me deixaria muito espantada, senhor. Ele é o melhor dos cavaleiros de sua
idade no castelo.

- Tem razão - disse o rei, abrandando a voz. - O conde de Valois já me havia feito essa observação. Sabia que minha sobrinha Matilde da Normandia pegou Simon,
o filho do conde, para cuidar dele como mãe?

- Ela me contou que tinha essa intenção, se o duque seu marido não se opusesse. Além do mais, ele não concordara, a pedido do conde, em aceitar o menino como um
nourri*1 em sua casa a partir dos sete anos de idade?

- É verdade. Raul de Crépy é imbatível na obtenção de bons lugares para si e para os seus.

Um jovem de longos cabelos louros, lábios muito vermelhos, olhos azuis risonhos e insolentes, aproximou-se do rei com um ar afetado.

- Majestade, prometeu que escutaria minha canção. - Não esqueci, meu querido. Vá para junto dos seus camaradas. Irei daqui a pouco.

À vista do belo cantor, Ana sentiu um aperto no coração. Desde a desastrada expedição contra a Normandia ela não via Olivier d'Arles. Henrique recusara-se a responder
suas perguntas, e nenhum dos companheiros do trovador pudera ou quisera dar notícias. Ela não compreendia a atitude do marido, que antes não podia passar um dia
sem ver o amante.

Ana resolveu interrogá-lo de novo. - Sabe o que aconteceu com Olivier, o trovador? Por que não o vejo mais na corte? Ele desagradou você? Cometeu alguma falta?
Aconteceu-lhe alguma desgraça? Sinto saudade dele.

- Sinta tantas saudades quantas quiser, mas nunca mais me fale nele!

- Por que tanta cólera? Suplico-lhe, diga-me se ele está bem... - Já chega! Não diga mais nada! Isso não é da sua conta... Meu

*1. Menino a serviço de um nobre.

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filho, você também ousaria levantar a mão contra mim? - Henrique levantou o menino, que se debateu, gritando. - Acalme-se, garoto, senão vou encarcerá-lo também
num calabouço bem escuro. Podem levá-lo!

Helena arrancou o menino de suas mãos e fugiu tão depressa quanto sua corpulência o permitia. Ana seguiu-a, reprimindo as lágrimas, e foi refugiar-se atrás das
cortinas que abrigavam seu oratório. Cantos e risos vinham do salão.

Quanto tempo ficou prostrada assim? O frio a arrancou de sua triste meditação. Pegou um manto de pele, envolveu-se e deitou no tapete, os olhos fixos na lamparina.

- Ana... Ana Iaroslavna, acorde! - É você, Helena? Sonhei que estava no palácio de meu pai... - O rei pede a sua presença, minha filha. - O rei me chama? -
Isso mesmo... em seu leito. - Para partilhá-lo com um dos seus amiguinhos? - Não seja tão amarga, minha filha. Ele é seu marido. - Um triste marido, que só me
toca com repulsa, que não me procura desde o nascimento de minha pobre criança e me manda dormir com minhas damas de companhia e servas. Não irei.

- Esquece que seu primeiro dever, como rainha da França, é dar-lhe filhos?

- Já lhe dei dois. - É pouco, em comparação com sua mãe Ingegerde... - Minha mãe e meu pai se amavam. Fazer amor era tão natural para eles quanto beber e comer.
Não é o caso do rei. O que lhe parece natural não são as carícias de sua mulher, mas as dos seus valetes. É neles que deveria fazer filhos!

- Cale-se! Se alguém ouvisse... Ana desatou a rir. - Ora, minha cara Helena, todo mundo sabe que o rei prefere os homens às mulheres.

- A rainha não deveria saber! - Já chega de falar de Henrique e de seus favoritos. Vá dizer a ele que estou me sentindo mal.

- Mas... - Obedeça logo! Estou cansada.

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Ângela de Lussac acabara de trançar os cabelos da rainha quando o rei afastou a cortina.

- A idiota da Helena disse-me que você estava doente. Sem dúvida ela se exprimiu mal, como é seu hábito, já que você está com uma aparência deslumbrante. Não é
mesmo, meu gentil Thierry?

Thierry dos Bosques, como todos o chamavam, já que fora encontrado por caçadores na floresta de Senlis, sacudiu os cachos louros com uma expressão de dúvida.

- Não?... Mas a rainha é considerada a mais bela mulher do reino da França. Pergunte ao Bastardo da Normandia o que ele pensa a respeito...

- Henrique! - O que é, minha dama? - Você bebeu demais! - Só para esquecer sua frieza, minha cara. Mas consinto em perdoá-la. Venha aquecer seu velho marido...
Precisamos dar príncipes à França!

Eles atravessaram o salão, precedidos por dois jovens segurando tochas. Por toda parte, sobre colchões de palha, repousavam valetes, escudeiros e servidores.

O rei afastou as cortinas do vasto leito, para o qual empurrou Ana, que fechou os olhos, submissa, preparando-se para sofrer a investida do marido. Não demorou
muito para que ela ouvisse gemidos e percebesse movimentos que não lhe permitiam ignorar que Henrique se fazia antes acariciar pelo belo louro, a fim de se pôr em
condição de cumprir seu dever conjugal. Depois que estava pronto, ele levantou a camisa e forçou, ajudado por uma mão estranha, a entrada do ventre da mulher. Ana
virou o rosto para esconder as lágrimas de vergonha e repulsa. Ele gozou depressa e arrancou-se daquele corpo pelo qual só sentia repugnância. E depois aconchegou-se
suspirando contra Thierry, que lançou um olhar de triunfo para a rainha.

Todas as noites, durante quase um mês, o rei fez amor com a rainha dessa maneira, até o dia em que ela anunciou que provavelmente estava grávida outra vez. Um
e outro sentiram um alívio profundo.

Mais uma vez a escassez instalara-se no reino. As chuvas que haviam estragado as plantações acabaram por apodrecer o que já fora colhido. Hordas de pobres voltaram
a aparecer nas estradas alagadas, expulsos de seus casebres pela fome. Comprimiam-se à entrada das cidades, castelos e mosteiros, na esperança de conseguirem um
pouco de

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pão. Ana mandara abrir as portas das igrejas para acolher centenas de desabrigados. No hospital construído por seus esforços, cuidava-se dos doentes e crianças
sem mãe. Apesar de sua gravidez e do frio intenso que endurecia a neve nas ruas, tornando perigoso o menor passo, todos os dias ela fazia uma visita aos doentes.
Também supervisionava as aulas dos alunos de sua escola, ajudava a servir uma sopa quente nas igrejas, solicitava contribuições de fidalgos e damas. Cada um devia
dar seu óbolo. O mais generoso de todos, como sempre acontecia, foi Raul de Crépy, que abriu à rainha um crédito ilimitado, para grande desgosto de Irene, cujo
ciúme, por um instante aplacado, despertava agora com mais violência do que nunca.

Uma noite em que Ana deixava o hospital, tendo como única escolta um jovem valete, uma mulher jogou-se a seus pés e estendeu um rolo de pergaminho, fugindo antes
que a rainha pudesse dizer qualquer coisa. O valete nada vira. Estava muito escuro na rua para ler, por isso Ana encaminhou-se para sua escola. As crianças haviam
voltado para suas casas, os mestres rezavam na capela, a sala de aula estava vazia. Uma pequena lanterna ainda estava acesa no lugar do professor. Ana instalou-se
ali, depois de despachar o valete.

Que significavam aqueles sinais desenhados de maneira tão inábil? Lembravam.. não, não era possível! Ninguém ali - à exceção de Helena e Irene, que apenas falavam,
e o pequeno Filipe, que balbuciava algumas palavras - tinha qualquer conhecimento da língua kieviana. Com bastante dificuldade, ela foi decifrando o que estava
escrito. E à medida que lia, experimentava um sentimento de alegria, misturado com uma angústia insuportável. Era na língua e na escrita de sua terra que lhe
davam notícias de Olivier d'Arles! Ela adiou para mais tarde a preocupação de esclarecer aquele mistério. Por enquanto, precisava descobrir o local em que o rei
mantinha Olivier. O autor da carta achava que o trovador não se encontrava mais na casa em Paris, mas num dos castelos reais, talvez o de Senlis. Suplicava-lhe,
em nome da amizade e em lembrança de sua infância livre e feliz, que o ajudasse a salvar Olivier.

Salvar o trovador era o maior desejo de Ana. Mas aquilo não seria uma armadilha? A quem pedir um conselho? Em quem podia confiar? Matilde, mais uma vez, fazia-lhe
uma falta enorme.

Ana não ignorava as relações entre Irene e Raul de Crépy, mas desconhecia o ódio que a jovem lhe votava. E, com bastante freqüência, ela a defendia contra a mãe,
Helena, que desejara para a filha um casamento rico e que vivia na tristeza e na vergonha. Assim, foi a Irene que ela confiou o desejo de encontrar-se em segredo
com o conde de Valois.

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Se ela não morreu do veneno derramado naquela mesma noite na taça de vinho que lhe era destinada, foi porque um valete guloso demais a levara antes aos lábios
e morrera em meio a horríveis sofrimentos, diante dos olhos aterrorizados da corte. Depois desse incidente, foram encarcerados todos os que podiam ter-se aproximado
do vinho, e valetes foram incumbidos de provar cada comida e bebida apresentadas na mesa real.

E, com isso, Irene foi obrigada a cumprir sua missão.

Ana acabara de servir a última tigela de sopa aos doentes do hospital quando Raul de Crépy entrou, acompanhado por seus escudeiros.

- Rainha, mandou chamar-me e aqui estou. A jovem mulher fez um gesto irritado, que não escapou ao conde. - Parece surpresa por ver-me. Interpretei mal o seu recado?
- Perdoe-me, conde, eu estava absorvida nos cuidados com estes pobres coitados. Queria agradecer-lhe em nome deles e expressar minha gratidão por sua generosidade.

- Já me agradeceu. Esperava que me pedisse outra coisa. Ana suspirou aliviada. Ele lhe oferecia a oportunidade de uma conversa em particular.

- Venha comigo, conde. Quero mostrar-lhe uma nova sala, que nem mesmo o rei conhece até agora. Mas isso deve ficar em segredo por algum tempo.

Raul de Crépy deu ordem a seus escudeiros para esperarem e seguiu a rainha.

- O que acha do lugar? Poderemos instalar quarenta leitos aqui. - Tem razão, tem razão, o lugar é interessante - murmurou Raul, com um ar entediado.

- Senhor, quero que me escute e não interrompa. Mas, antes, jure pela Cruz que não repetirá nenhuma palavra de nossa conversa.

A surpresa deixou-o paralisado. Aquela mulher, que não deixara de cobiçar mesmo depois de tantos anos, queria ter com ele uma conversa secreta! Para reforçar
a cumplicidade, ele estava disposto a jurar tudo o que ela quisesse.

- Estou esperando, conde. Jure pela Cruz ou retire-se. Aquela palidez, a expressão irritada, o olhar inquieto... Como ela era linda!

- Juro pela Cruz que nunca a trairei. - Quero que me ajude a encontrar Olivier d'Arles.

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- Não me interrompa. Creio que ele está encarcerado neste castelo. Já verifiquei em toda parte, a não ser nos subterrâneos, que estão fechados e guardados por homens
armados. É preciso que me leve até lá.

- A senhora? A rainha? - Suplico-lhe. Quero encontrá-lo vivo... - Que a faz pensar que ele não está morto? - Sinto que não está. - Mas se ele está encarcerado
neste castelo, é por ordem do rei; quer que eu desobedeça às ordens do meu rei?

- Se não me ajudar, ele matará Olivier. - Por que está tão preocupada com esse trovador? Por acaso o ama?

- Amo-o, sim... como a um filho, como a um irmão. - Mas ele era... - ... o amante de meu marido, pode dizer! Isso não tem a menor importância para mim. Está
disposto a ajudar-me?

- É uma coisa muito perigosa o que me pede, rainha. - Está com medo, conde? Raul deu de ombros. - Poderia jurar, por sua vez, que não tem outro sentimento além
da amizade?

- Juro. - Que me daria em troca da minha ajuda? - Pensei nisso. Possuo, não muito longe de suas terras de Crépy, uma boa fazenda, que proporciona um rendimento
considerável. Poderá tornar-se o proprietário.

- Conheço a propriedade, é realmente muito boa, mas eu não poderia aceitá-la. Não é isso o que espero de sua parte.

- Que espera, então? - No momento, nada, a não ser um penhor de sua parte. - Como se fosse meu cavaleiro-servidor? - Isso mesmo. Ana tirou da cintura uma faixa
bordada com folhas de carvalho, trabalho executado por suas damas de companhia, estendeu-a ao conde, que a recebeu com um joelho no chão.

- Receba isto, conde, como um penhor da minha confiança. Deposito em suas mãos minha honra e minha paz.

- Saberei mostrar-me digno de uma e morrerei em defesa da outra. Se esse trovador estiver aqui, hei de encontrá-lo, por amor à rainha.

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Beijou-lhe a bainha do vestido e levantou-se, guardando o penhor embaixo da camisa, contra a pele. Sentiu uma voluptuosidade a que se misturava um certo sentimento
de poder.

- Voltaremos a falar dentro de dois dias. Raul de Crépy fez uma reverência e retirou-se.

O final do encontro teve uma testemunha: Irene. Ela tinha reconhecido entre as mãos do amante a faixa que ajudara a bordar. Para dar um penhor tão pessoal, tão
comprometedor, era preciso que a rainha visse em Raul algo mais do que um grande nobre. A paixão de Irene pelo conde levava-a a pensar que todas as mulheres eram
suas rivais, dispostas a arrebatá-lo. Resolveu vigiar todos os seus movimentos, tomar conhecimento de todas as suas palavras. Para isso, não hesitou em recorrer
aos mendigos de Senlis, salteadores, oportunistas, homens que eram contratados para as mais baixas empreitadas.

- Tinha razão, seu protegido está mesmo encarcerado no castelo. - Você o viu? - Não. Ele está numa caverna que data do tempo dos romanos, segundo dizem, e que
foi preparada pelo rei Hugo Capeto como prisão para os barões rebeldes. O acesso é difícil, só um corredor leva até lá, o lugar é profundo como um poço.

- Sabe por que ele foi encarcerado lá? - Levantou a espada contra o rei. - Oh! Era um crime terrível, talvez o pior de todos. Por menos do que isso, seu pai
ordenaria a morte de valentes companheiros.

- Pessoalmente, eu o teria matado no mesmo instante. Sem dúvida, da parte do rei, é um refinamento suplementar na vingança...

- Desde quando um rei se vinga de um pobre músico? - Olivier era muito mais do que um músico para seu senhor. Ouvi dizer que antes de sua prisão o trovador queria
deixá-lo. É uma coisa imperdoável.

- Ele merece certamente a morte por seu gesto, não por outra coisa. Há alguma possibilidade de tirá-lo de lá?

- Pelo que sei do lugar, nenhuma. Só se conseguiria subornando os guardas, e duvido muito que eles aceitassem: são bem remunerados, e pagariam com a vida por uma
fuga.

- O que podemos fazer então? - Só há uma saída: obter o perdão do rei.

202

- De uns meses para cá, sempre que falo de Olivier ele manda que me cale.

- Experimente mais uma vez, dizendo que sabe onde ele está. - Eu não me atreveria! - Nesse caso, só resta rezar, à espera de um milagre. A rainha pensou, andando
de um lado para outro da sala de aula vazia. Como um caçador à espreita, o conde não desviava os olhos dela, transtornado pela presença daquela mulher como jamais
se sentira diante de qualquer outra. Pelas olheiras de Ana, pelos gestos lentos, pelo andar, adivinhara que ela esperava outra criança. Sentia ao mesmo tempo raiva
e ternura. Como aquele efeminado do Henrique conseguia engravidar sua esposa? Se fosse outra, imaginaria algum pecado, mas sabia que a rainha era irrepreensível,
o que a tornava ainda mais desejável. Tinha certeza de que ela não conhecia o prazer e de que nunca amara qualquer homem. Aquele amor da juventude de que Irene
lhe falara devia estar esquecido há muito... Desde o momento em que a vira, jurara que um dia a possuiria. O tempo passara sem arrefecer seu desejo. Ele a teria,
mesmo que tivesse de matar seu marido! Enquanto esperava, precisava conquistar, se não seu amor, pelo menos sua confiança.

- Espero conseguir de um guarda um plano detalhado da prisão. Se houver uma possibilidade de salvar Olivier, por menor que seja, verá que pode contar comigo.

A neve parara de cair. Ana e Raul encontraram-se novamente alguns dias depois, numa caçada à raposa. Eles se "extraviaram" e encontraram-se num eremitério abandonado.
O conde, ajudando a rainha a descer do cavalo, manteve-a em seus braços por mais tempo do que o necessário; contra toda a expectativa, ela não protestou. Eles
não ouviram um gemido que se confundiu com o vento.

- Sabe que não é a única pessoa que está querendo libertar Olivier d'Arles?... Lembra-se daquele cavaleiro mascarado, conhecido como o Retalhado, que passou para
o serviço do duque da Normandia?

Por que a súbita perturbação da rainha? - Sim. - Ele soube, não me pergunte como, de meu interesse por seu amigo. E me propôs unir as nossas forças.

- E você aceitou? - Aceitei, porque ele está mais adiantado do que nós no conhecimento de certos lugares. Além do mais, ele tem um homem na prisão.

- E tem notícias de Olivier?

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A mortificação de Raul de Crépy não escapou à rainha. - Fale! O que sabe? - Segundo o Retalhado, o trovador estaria muito fraco, incapaz de andar.

- Oh, Deus! Como é possível? - Teria sido torturado...

Irene viu Ana sair do eremitério, pálida, quase carregada por Raul. Já ia avançar, com um punhal na mão, quando o rei e seu séquito apareceram.

- Que aconteceu, conde? - A rainha passou mal e eu a trouxe para repousar aqui. - Minha dama, sabe que seu estado não lhe permite acompanhar a caçada. Providenciem
uma liteira para a rainha! Onde estão as suas aias?

- Majestade, estou aqui - disse Irene, saindo de trás de uma moita.

- Cuide de sua senhora. Venha comigo, conde. - Majestade, não se pode deixar a rainha sem uma guarda. - Tem toda razão. Pior para você, continue aqui! Foi com
alívio que Ana viu Henrique afastar-se. No momento, ele lhe causava o maior horror. A espera não foi muito longa, mas Valois teve a precaução de não desviar um
só momento os olhos de Irene, pois ela poderia desfechar um golpe fatal contra a rainha. Ao vê-la emergir das moitas, com uma expressão desvairada, uma espuma
esbranquiçada nos cantos dos lábios, ele adivinhara no mesmo instante que a moça os estivera espionando. Cansado há muito tempo de suas carícias e também de suas
crises de ciúme, mantendo-a apenas para satisfazer suas tendências mais infames, Raul de Crépy decidiu, naquele momento, fazê-la desaparecer.

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CAPÍTULO VINTE E NOVE


OS SUBTERRÂNEOS DO REI


Apesar de todas as buscas, Ana não conseguiu descobrir a origem da mensagem escrita na língua de Kiev. Uma derradeira prudência evitara que falasse com Helena,
que com toda certeza não deixaria de comentar com Irene.

Depois da caça à raposa, o médico do rei, Jean de Chartres, proibira a rainha de montar a cavalo. Prescrevera-lhe, além disso, purgantes e sangrias, medicação cujo
resultado foi deixá-la muito fraca.

Raul de Crépy veio pedir notícias, mas não pôde ficar a sós com ela um momento sequer. Foi obrigado a dizer-lhe na presença do médico, de Helena, de Irene e das
aias, que não aceitasse qualquer alimento ou bebida que não tivesse sido provada antes na sua frente.

Todos protestaram, à exceção de Irene, que lançou um olhar de raiva para o amante. Ana percebeu o olhar. Como, a advertência dizia respeito à sua irmã-de-leite?
Uma profunda aflição a invadiu.

- Saiam! A rainha está se sentindo mal!

Três dias depois, tendo despedido o médico e a enfermeira, Ana foi ao hospital, apesar das súplicas de Helena e de suas damas de honra. Sob o olhar espantado das
freiras, ela tomou duas tigelas de sopa, que disse estar muito boa, depois serviu aos pobres que se comprimiam ao seu redor. De repente, sentiu que punham um rolo
em sua mão junto com uma tigela, mas manteve o rosto impassível. Quem lhe entregara a mensagem tomava a sopa ruidosamente. A rainha fitou-o e não pôde reprimir
uma expressão de repulsa à vista do infeliz de corpo disforme, mal dissimulado sob os andrajos imundos; o rosto era todo inchado, sem

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nariz, pestanas ou sobrancelhas. Só os olhos, de um brilho intolerável, ainda viviam naquele rosto morto.

Ana abandonou o serviço dos pobres, alguns dos quais seguravam sua saia, numa tentativa de reter a boa mulher que servia a sopa com mais generosidade do que as
religiosas. Foi refugiar-se na lavanderia, único lugar deserto àquela hora. Desamarrou febrilmente a fita que envolvia o rolo. Reconhecendo a escrita kieviana,
beijou a carta com emoção. O correspondente anônimo da rainha conseguira entrar em contato com Olivier, encontrara-o num estado lastimável. Suplicava que ela
intercedesse junto ao rei, o único que podia absolvê-lo do crime de lesa-majestade. Recomendava-lhe também que desconfiasse da "companheira de sua infância" que,
para sua infelicidade, fizera um pacto com o diabo. Dizia ter encontrado no conde de Valois um apoio real e encerrava reiterando-lhe seu profundo respeito e pedindo-lhe
que destruísse o pergaminho. Uma vez dissipados o prazer e a emoção de ler aquelas linhas escritas em sua língua, Ana viu uma ameaça naquela situação, e subitamente
sentiu-se cercada por inimigos e espiões.

O barulho de vozes, de chamados insistentes, arrancaram-na de seus pensamentos sombrios.

- Onde está a rainha? Procurem a rainha! Ana acabava de esconder a carta quando sua cunhada entrou na lavanderia, com uma expressão irada.

- Ah, está aqui! Não acha uma loucura sair de seu leito e vir aqui expor-se a todos os tipos de doença?

- Não se preocupe, minha irmã, estou muito bem. São os remédios do mestre Jean que me deixam doente.

- Acredito em você, mas, no seu estado, ele tem razão. - Já disse que estou muito bem! Não é a primeira vez que espero uma criança.

- Sei disso - murmurou a condessa, num tom apaziguador. - Mas conhece meu amor por você. É essa afeição que me deixa inquieta, sobretudo depois daquela tentativa
de envenenamento. Quem pode ser bastante infame e mau para atentar contra a sua vida? Não tem alguma idéia?

- Absolutamente nenhuma. Agradeço a sua preocupação, minha boa Adélia. Sempre foi gentil desde a minha chegada a esta bela terra da França. Permita agora que eu
abuse de sua generosidade ainda mais, pedindo-lhe que seja minha intérprete...

Ana parou de falar abruptamente; não seria loucura entregar-se àquela mulher tão próxima do rei?

206

- Continue, minha cara, sabe muito bem que farei tudo o que estiver ao meu alcance para agradá-la.

- Afaste seu pessoal, pois o que vou dizer-lhe deve ficar entre nós.

- Saiam! Deixem-nos a sós! Depois que a porta foi fechada, Ana fez Adélia sentar-se num banco perto da estufa, ajoelhou-se diante dela e segurou-lhe as mãos.

- Que está fazendo? Levante-se! - Por favor, deixe-me falar sem interromper. - Mas... - O que tenho a pedir-lhe é muito difícil para mim. Queria que intercedesse
junto ao rei para a libertação de Olivier d'Arles.

A condessa de Flandres retesou-se e tentou retirar as mãos. Ana impediu-a e continuou:

- Ele está prisioneiro neste castelo, agonizando. Sei que seu gesto merece a morte, mas suplico-lhe que use sua influência para convencer Henrique a perdoá-lo.

- Alguém já viu coisa igual, uma mulher pedindo misericórdia pelo favorito de seu marido?

- Esqueçamos isso. Sei que você também, apesar dos vícios dele, sente afeição por Olivier...

- Mas não ao ponto de perder a afeição de meu irmão. - Suplico-lhe! Com um gesto brusco, a condessa desvencilhou-se e levantou-se. - Por amor a você, esquecerei
esta conversa e nada contarei ao rei. Aconselho-a a fazer a mesma coisa, se não quiser ir parar no lugar de seu protegido.

A estupefação que se estampou no rosto da rainha pôs um sorriso triste no rosto da condessa, que acrescentou:

- Minha cara, a convivência na corte da França ainda não lhe ensinou quantos são os perigos? Que só há intrigas, mentiras e traições? Não vai me fazer acreditar
que não era a mesma coisa na corte de seu pai. Pessoalmente, nunca observei que fosse diferente em outros reinos.

Ana, que permanecera ajoelhada, levantou-se agora, muito pálida. - Perdoe-me. Pensei que podia contar com sua bondade e amor ao próximo. Cristo não nos ensinou
o perdão?

- Não misture Nosso Senhor com isso. Considere Olivier como morto e reze por ele. Parece estar passando mal. Vou levá-la embora.

A condessa de Flandres abriu a porta. - Vamos, venha. Imóvel, gelada, Ana sacudiu a cabeça. - Como quiser.

207

Por trás das cortinas que cercavam seu leito, Ana tremia de frio. Não tornara a ver Adélia depois da conversa. Uma de suas aias informara que a condessa voltara
a Flandres. Essa partida, sem despedida, deixou Ana profundamente triste e fê-la sentir seu isolamento numa corte em que, no momento, tinha mais inimigos do que
amigos. Há quase um mês não tinha notícias de Raul de Crépy e do desconhecido que, em duas ocasiões, lhe escrevera na língua kieviana. As mensagens enviadas a
Matilde da Normandia, a Gosselin de Chauny e a Roger, arcebispo de Châlons, ficaram sem resposta. Parecia-lhe que o menor de seus gestos era espionado, qualquer
palavra sua, relatada. Só achava um pouco de paz na oração. O resto do tempo permanecia imóvel e silenciosa, olhando fixamente para a frente, recusando toda alimentação.
Helena, desesperada, fez um apelo ao rei.

Há várias semanas que Henrique não visitava a mulher. Ficou surpreso com sua magreza.

- Que houve com você? Disseram-me que se recusa a comer... Pense na criança que está em seu ventre! Coma, faça um esforço. Tem medo de ser envenenada?... Não tem
provadores?... Vamos, diga alguma coisa!... O que você quer?

Ana levantou o rosto com olheiras profundas. - Quero que me deixe ir embora livremente. - Minha cara, pode ir aonde quiser, ninguém a impede. Foi por seu bem,
e pelo bem da criança que meu médico prescreveu que não deveria deixar o quarto.

- Jean de Chartres sem dúvida acha que está fazendo o melhor, mas os purgantes e as sangrias, a falta de ar fresco e de exercício são prejudiciais para minha saúde
e tiram-me o apetite. Serei incapaz de engolir qualquer coisa enquanto permanecer longe de minha escola, de meu hospital e de meus pobres.

Todos se entreolharam, compreendendo que nada a faria ceder. O médico não sabia o que fazer. Estava convencido da excelência de sua medicina, mas a augusta paciente
decidira de outra forma e parecia determinada a deixar-se morrer de fome se não alterasse o tratamento.

- Uma atividade moderada e alguns passeios certamente não farão mal à rainha, que ainda está longe do parto...

- E então, minha dama, ouviu o que mestre Jean disse? Pode sair, desde que não cometa imprudências. E agora trate de comer.

208

Ana teve de recorrer a todo o seu orgulho para não arrancar a sopa de cristas de galo e cogumelos da mão dos provadores antes que cumprissem seu dever; e depois
tomou-a sem manifestar pressa nem prazer. Dois dias mais tarde estava em condições de ir ao hospital, onde os doentes a acolheram com uma alegria que acabou de
reconfortá-la.

Os habitantes de Senlis tornaram a ver, com satisfação, sua rainha, envolta em peles, percorrer as ruas da cidade, parando nas bancas dos mercadores, conversando
com os artesãos, distribuindo esmolas aos infelizes que a seguiam a uma distância respeitosa, afagando as crianças, bebendo leite tirado das vacas na sua frente,
rindo dos gracejos dos valetes, observando os patinadores com inveja, assistindo devotamente à missa no meio do povo. Foi durante um ofício que lhe entregaram uma
mensagem do conde de Valois, dizendo que não precisava mais inquietar-se e que, antes da lua nova, com a graça de Deus, "tudo estaria bem".

Naquela noite Ana orou com um fervor renovado.

O ódio e a concupiscência uniram-se para tentar desgraçar a rainha e o trovador. Irene compreendera que o amante sentia apenas repulsa por ela e aguardava o momento
propício para matá-la. Todas as suas magias se haviam mostrado impotentes para fazer com que ele a amasse. E também tinham sido impotentes para tirar do coração
do conde a imagem da filha do príncipe de Kiev. Desesperada, Irene resolveu acabar com a própria vida; antes, no entanto, sua rival devia perecer!

Por sua vez, Thierry dos Bosques, que substituíra Olivier d' Arles no coração do rei, insistia para que o antecessor fosse punido por seu crime. Não entendia por
que Henrique adiava sempre a execução do culpado, e temia que os amigos do trovador acabassem obtendo seu perdão.

Foi à cabeceira da rainha que Irene e Thierry se encontraram, observaram-se e concluíram que ambos eram capazes de qualquer sujeira para atingir seus fins. Espionaram,
ou mandaram espionar, a rainha e assim descobriram o motivo de seus encontros com o conde de Valois. Resolveram dar um jeito de abrir à rainha as portas da prisão
de Olivier e fazer com que o rei os surpreendesse. Tiveram êxito onde o conde e o Retalhado haviam fracassado: entraram em contato com o prisioneiro. Pensando
que estavam lá para salvá-lo, enfraquecido no corpo e no espírito, Olivier escreveu com seu sangue, num pedaço da sua camisa, o que um cúmplice de Thierry lhe
ditou: "Venha, sem você não posso viver." Contudo, faltaram-lhe forças para assinar.

209

A mensagem foi entregue à rainha por um pequeno mendigo. Com a maior emoção, ela reconheceu a letra: Olivier estava vivo! O menino esfarrapado esperava, os valetes
tentaram afastá-lo. Ana deteve-os e mandou que se afastassem. O menino puxou-a pela manga e disse, quase sem mexer os lábios:

- Amanhã, depois das vésperas, na escola...

Durante toda a noite Ana perguntou-se se deveria comparecer ao encontro. Ao amanhecer, ela adormeceu, um sono irrequieto, povoado por pesadelos, em que se reuniam,
para matar o trovador, o assassino de Bóris e Gleb, Sviatopalk, e seu próprio marido. Despertou gritando, sacudida por Helena.

- Minha criança, não tenha medo, abra os olhos, sua velha ama-de-leite está aqui.

Suando, os cabelos em desalinho, Ana olhou ao redor com uma expressão de terror que alarmou as mulheres que tinham acorrido aos seus gritos.

- Que houve? - Que está acontecendo? - A rainha está passando mal? - É preciso chamar o médico! - Não, o capelão! A própria rainha teve de dar uma ordem para
que a turba frenética se calasse e se retirasse.

- A Santa Virgem venha em seu socorro! Seu interesse por esse rapaz é excessivo e os sentimentos que tem por ele não me agradam.

- Quer lhe agradem, quer não, isso é só da minha conta. Helena ignorou a frieza do tom e respondeu: - Em nossa língua, você implorava à nossa Santa Mãe que poupasse
Olivier. Pedia ajuda a seu pai, o grão-príncipe Iaroslav, e a seu irmão Vladimir, lutava contra Sviatopalk o Maldito e... contra sua irmã... minha própria filha,
Irene! Gritava seu nome e foi nesse momento que a acordei... Dizia coisas horríveis, que me partiram o coração.

- Não chore, foi apenas um sonho... Ajude-me a vestir-me. - Não. Vi a Moaryassa rondando pelos bosques. Ana apressou-se a fazer o sinal-da-cruz, imitada por Helena.
- Ficou completamente louca! Esquece que é cristã? Proíbo-lhe que evoque na minha presença a deusa da Morte!

- é verdade, sou cristã, creio em Deus Pai, em seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, e no Espírito Santo. Mas há algum tempo que

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nossos deuses antigos ressurgem na minha frente; alguns, como a Moaryassa, me chamam. Talvez tenha chegado o tempo de ir ao encontro deles; estou velha e cansada...

- Cale-se! Está dizendo bobagens e blasfêmias! - Não penso assim, mas se é verdade, entrego-me às mãos da Divina Providência. Você e Irene... aquelas palavras
horríveis! O que teme de sua irmã?

- Nada, ajude-me a vestir-me. - Percebi que não há mais amor entre vocês, mas ódio da parte de Irene, e desconfiança de sua parte...

- Já chega! Vista-me ou chamarei as aias! Chorando, Helena obedeceu. - Onde está Irene? - Não sei. Há vários dias não a vejo. A vida que ela leva agora enche-me
de vergonha. Ah, eu deveria tê-la encerrado num convento, como a condessa me recomendou!

- É tarde demais para lamentar-se. Sou tão culpada quanto você, faltou-me coragem...

- Minha querida, não deve censurar-se por nada, lembre-se de que teve compaixão, ela ameaçava suicidar-se...

- E agora quem está ameaçada sou eu - murmurou Ana, com um ar cansado.

- Que está dizendo? Não pensa no que diz? Isso seria horrível demais!

- Minha boa Helena!... Você me acompanhará à missa esta tarde, depois à escola. E fará com que ninguém nos escolte.

- Mas... - É uma ordem! E não diga nada a ninguém.

Quando a porta de entrada do subterrâneo que conduzia aos calabouços fechou-se sobre elas, Ana teve consciência de estar cometendo um ato irremediável. Uma ligeira
vertigem obrigou-a a apoiar-se na pedra úmida. No mesmo momento, a criança que ela carregava mexeu-se pela primeira vez. Instintivamente, pôs as mãos sobre o ventre,
num gesto de proteção. O mal-estar e o gesto não escaparam a Helena. Ela não disse nada e amparou aquela cuja infância protegera: era tarde demais, o destino
já estava a caminho...

O rapaz que as guiara até lá havia desaparecido. Um homem de ar inquietante o substituiu. Segurava uma tocha que desprendia uma fumaça escura e malcheirosa. Uma
escada estreita, sinuosa, de pedras

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desconjuntadas, descia para as profundezas. Uma depois da outra, as duas mulheres foram descendo, apoiando-se nas paredes escorregadias. Depois de um momento,
que lhes pareceu muito longo, alcançaram uma espécie de sala, as abóbadas sustentadas por quatro grossas colunas; ao redor, desenrolavam-se cenas obscenas, desenhadas
com tanto realismo que as fez corar sob o véu. Morcegos perturbados pela claridade voaram em todos os sentidos, guinchando.

O homem acendeu uma tocha fixada na parede. - Esperem aqui - murmurou. Encostadas uma contra a outra, elas o viram desaparecer por uma das sete galerias que partiam
da câmara. Não havia qualquer ruído, a não ser o crepitar da tocha e os guinchos dos animais. Depois do frio úmido da escada, o ar ali parecia agradável. Ana deixou-se
cair no chão arenoso.

Há quanto tempo estavam ali, ouvidos atentos, coração batendo, têmporas latejando? Seus olhos começavam a fechar-se.

Um grito terrível arrancou-as do torpor. Levantaram-se rapidamente, cada uma empunhando uma adaga. Apesar do medo que sentiam, a vista das armas arrancou-lhes um
sorriso cúmplice. Filhas da Rússia, reconheciam seu sangue naquela precaução! E foi nesse instante que o guia voltou, gritando, as mãos comprimidas contra o rosto
ensangüentado. Como um animal preso na armadilha, ele correu em todas as direções, esbarrando nas paredes, nas colunas, que manchou com seu sangue, berrando sem
parar. E finalmente caiu. Das órbitas vazias saía um turbilhão de fluidos. Helena inclinou-se.

- Está morto - murmurou, empertigando-se. Novos gritos soaram, indicando sofrimentos insuportáveis. - Não! Não! Piedade! - É a voz de Olivier! - exclamou Ana.
- Vamos embora, filha, vamos! A rainha desvencilhou-se dos braços da ama-de-leite, que tentava arrastá-la para a escada, pegou a tocha e avançou pela galeria de
onde pareciam vir os gritos. Helena seguiu-a.

Tiveram de voltar depois de alguns passos; escombros bloqueavam a passagem. O outro corredor desembocava num canal de correnteza rápida, largo demais para ser
atravessado; o terceiro estava fechado por uma grade enferrujada; o quarto era o certo. Depois de várias voltas, os gemidos que haviam substituído os gritos pareciam
bem próximos. Chegaram a uma câmara menor que a anterior e que se estreitava para o alto. Tochas fixadas na terra iluminavam o local; mais galerias, mas também
celas!

212

Numa delas estava um velho nu, descamado, cabelos e barba misturados com palha, teias de aranha, terra e sangue ressequido, contorcendo-se, as mãos apertando a haste
de uma lança que o pregava no chão.

Reprimindo a náusea que sentia dominá-la, Ana inclinou-se para o infeliz, cujos olhos vidrados a fitaram. No olhar que se iluminou, estamparam-se a dúvida, depois
o medo e finalmente a alegria.

- Minha rainha! Atordoada, ela largou a tocha, que rolou para perto das pernas do infeliz, revelando todo o horror das torturas que lhe haviam infligido: no lugar
dos órgãos genitais, uma massa infecta na qual estava cravada a lança.

- Minha rainha - murmurou o velho, num tom de alegria insensata, estendendo os braços esqueléticos.

Não! Não!... Não era o gentil Olivier quem estava ali, o alegre companheiro de longas noites de inverno, o amigo querido de canções tão ternas, o músico maravilhoso
que sabia encontrar os acordes capazes de fazer esquecer o tédio dos dias e a vergonha das noites! Ana gritou:

- NãO!!! - Minha rainha... Com raiva, ela arrancou a lança, estendeu o manto sobre o homem que fora amante de seu marido, comprimiu contra o seio a cabeça de
cabelos brancos, murmurando um acalanto de sua infância.

- Olivier! Não havia mais lugar para o espanto quando o cavaleiro mascarado surgiu na cela.

- Chegou muito tarde, Retalhado. O trovador contemplou as duas únicas pessoas que amara e que o haviam amado, a ponto de arriscar a honra e a vida para salvá-lo.

- Morro feliz. Deixe-me, amigo, salve a rainha... Prepararam uma armadilha... O rei está informado de sua presença aqui.

- Eu já sabia. Foi um dos traidores que me trouxe até aqui. - Leve-a depressa... Vá embora, minha rainha... Que Deus a proteja... Filipe!

Ana estremeceu. Seu filho... Ele também estaria ameaçado? O cavaleiro levantou-se. - Venha! Num derradeiro esforço, Olivier soergueu-se, estendeu os braços,
como se quisesse mostrar alguma coisa.

- Filipe... - murmurou, e tornou a cair, morto.

213

O cavaleiro mascarado e a rainha permaneceram imóveis por mais um instante, sem conseguir desviar os olhos do braço que continuava estendido, parecendo apontá-los.

- Estão chegando, senhor! - gritou a ama-de-leite. - Salve a minha criança!

Em sua agitação, ela disse isso na língua natal. - Nada tema, Helena, eu a salvarei - respondeu o Retalhado, tomando Ana nos braços.

Então ela soube quem era ele, e que os deuses da Rússia a atendiam.

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CAPÍTULO TRINTA


A MORTE DE HELENA


A longa doença da rainha impediu o rei de interrogá-la, para grande desapontamento de Thierry dos Bosques e de Irene, que haviam conspirado para que ela fosse
surpreendida com Olivier d'Arles. Mas a terrível dissimulação dos patifes que haviam contratado para ajudá-los no plano, e a obstinação de Helena em afirmar que
a rainha nada sabia, que apenas ela tomara a iniciativa de salvar o trovador subornando os guardas, frustraram todo seu projeto.

Espancada pelos soldados, encerrada num convento em Senlis, Helena morreu pedindo perdão a Deus por seus pecados, sem conseguir rever aquela a quem dedicara sua
vida.

Irene recebeu com indiferença a notícia da morte de sua mãe. Não procurou descobrir quem dera a ordem para construir a suntuosa sepultura no cemitério do convento,
na qual o nome de Helena foi gravado na língua de Kiev.

Durante várias semanas o pequeno Filipe despertou à noite chorando e chamando sua kouma (*1). Passava os dias à cabeceira da mãe, protestando quando tinha de deixá-la.

Ana teve um parto prematuro, um menino raquítico, que recebeu o nome de Hugo. Todos estavam convencidos de que o menino não poderia sobreviver.

O estado da rainha agravou-se depois do nascimento. Missas e preces foram rezadas por toda a França em sua intenção. O duque e a duquesa da Normandia foram em
peregrinação a Coutances, para suplicar à Virgem que salvasse sua amiga. O conde de Valois fez o

*1. Babá.

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juramento solene de ir a Jerusalém inclinar-se sobre o túmulo de Cristo se ela vivesse. Logo Ana estava fora de perigo. No outono, ainda pálida e fraca, ela foi
visitar
o túmulo de sua ama-de-leite, acompanhada pelo filho Filipe. Abraçados, choraram por aquela mulher que tanto se dedicara à infância de ambos.

Depois do assassinato de Olivier, Henrique tornou-se um velho de cabelos grisalhos e escassos, a boca desdentada, o corpo tolhido por dores. Os rapazes de que continuava
a cercar-se não conseguiam mais distraí-lo. Via a morte aproximar-se com terror, e multiplicava as dádivas aos mosteiros do reino, na esperança de que Deus perdoasse
seus pecados. A conselho do cunhado, o conde de Flandres, do conde de Valois, de seu antigo aliado o conde d'Anjou, que se retirara para um convento depois do
desastre da ponte de Varaville, e dos bispos de Reims e Chalons, resolveu sagrar o filho Filipe como rei dos francos, como acontecera com ele ainda em vida de
seu pai. Ficou acertado que se aguardariam os sete anos completos do menino. Depois que ele alcançasse essa idade, seria retirado das mãos das damas e confiado
a um preceptor e a um mestre-de-armas. Filipe, devidamente instruído pela mãe, aceitou a separação com uma coragem pela qual o pai o cumprimentou. E Enguerrand
foi designado seu preceptor.

Para surpresa geral, o pequeno Hugo sobreviveu e espantou as amas-de-leite pelo vigor de seus gritos e apetite.

Com a saúde recuperada, Ana retornou alegremente aos galopes pela floresta, às expedições de caça, das quais voltava com as faces vermelhas e o corpo fatigado,
mas finalmente apaziguada. O vento da corrida, que desmanchava seus cabelos, tinha o poder benéfico de proporcionar-lhe esquecimento e acalmar-lhe os tormentos
da alma.

Algum tempo depois, ela quis saber das circunstâncias da morte de Helena. Ninguém parecia disposto a responder. O rei limitou-se a dizer-lhe que a ama-de-leite confessara
seu plano de promover a fuga do trovador; compreendendo a enormidade do seu crime, morrera de vergonha.

Ana descobriu qual fora o preço pago pela sua salvação. - Foi o amigo de Olivier, o cavaleiro mascarado, como todos o chamam, um homem do duque da Normandia, quem
providenciou sua

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saída dos subterrâneos antes da chegada dos soldados do rei - contou-lhe finalmente Raul de Valois. - Ele ouviu numa taverna uma conversa de dois bandidos que se
gabavam que iam desgraçar a rainha. O cavaleiro mascarado matou um e obrigou o outro a falar. Enviou-me uma mensagem, pedindo que lhe informasse de que planejavam
prejudicá-la. Procurei-a imediatamente, mas era tarde demais. Subornando, matando e estrangulando, fazendo-se passar por um dos bandidos, ele conseguiu chegar
ao calabouço, onde testemunhou a morte do amigo e de onde a tirou...

- Por que ele não salvou também minha ama-de-leite? - A senhora estava fraca demais para ficar de pé; ela pediu-lhe que levasse a senhora e a deixasse lá para
dar cobertura à fuga.

- Oh, não! - Já conhece o resto. Ela sucumbiu à brutalidade dos soldados... - Ela morreu como uma mãe protegendo sua criança. E perdi com ela o último vínculo
com meu amado país. Agora, estou sozinha.

- Sozinha? Esquece seus filhos, seu marido, seus amigos, seu povo? Esquece que é a rainha?

Ana levantou a cabeça, o rosto banhado em lágrimas, e fitou-o com altivez.

- Como poderia esquecer? Mesmo assim, agradeço por lembrar-me. Conheço os deveres que me foram impostos pelo nascimento, mas não é porque sou rainha da França que
deixo de ser filha da Rússia. Acha que um marido e filhos podem fazer-me esquecer a terra em que nasci? Sou feita dessa terra, de seus rios, de seus lagos, da
sua planície, dos seus bosques. Acreditaria? O ar que lá se respira é mais forte, mais puro, o próprio Deus se sente bem lá... Está rindo? Não pode compreender...

- Claro que compreendo, mas terra é terra, e Deus está em toda parte. Uma terra de que me aposso torna-se minha, como uma mulher, passa a ser-me tão cara como
se a possuísse desde o nascimento. E ai de quem tente arrebatá-la; por ela, estou disposto a matar!

- Todos sabem, conde, que não hesita em matar para conseguir o que deseja, seus inimigos não ignoram que é um guerreiro terrível e implacável, que nem sequer
respeita a Trégua de Deus...

- Eu a respeito, quando meu adversário a respeita. - Os habitantes de Péronne não esquecerão o sítio que precedeu a captura da cidade. Naquela ocasião, demonstrou
não apenas sua habilidade na guerra, mas seu rigor na paz.

- Eu não iria demonstrar ternura para com uma cidade de mercadores ladrões e mentirosos!

217

- Daí a mandar cortar as mãos e os pés dos mais ricos... - Assim eles não podem mais roubar! - exclamou com uma gargalhada o homem que desde então era conhecido
como Raul de Péronne.

- E precisava, com tanta iniqüidade, capturar Montdidier? - É uma bela cidade! - Que não valia a sua excomunhão! Renuncie, conde, pense em sua alma que será condenada.

- Um descendente do imperador Carlos Magno jamais renuncia. - Já não é suficientemente poderoso? Suas propriedades são quase tão vastas quanto as do rei. Seu casamento
recente com Aliénor trouxe-lhe cidades e castelos na Champagne, controla a navegação do Sena, portanto o abastecimento de Paris...

- Nunca faltou farinha em Paris... - E suponho que o rei da França deveria ser-lhe grato! - Deveria, sim! - Já chega de falar a seu respeito. Que aconteceu com
aquele cavaleiro mascarado? Não me lembro de ter visto o senhor no calabouço. E por que Olivier morreu evocando meu filho Filipe?

- Em nenhum momento seu filho esteve em perigo. - Não era o que Olivier pensava. Caso contrário, por que teria pronunciado seu nome duas vezes?

- É de fato surpreendente, mas não tenho explicação para isso. O cavaleiro mascarado deixou Senlis pouco depois da morte de sua ama-de-leite. Voltou para a corte
do duque da Normandia. Recebo notícias suas por intermédio de meu filho Simon, que tem por ele uma grande admiração.

- Gostaria de agradecer-lhe e conversar com ele sobre Olivier d'Arles.

- Se ele continuar a servir ao Bastardo, certamente terá a oportunidade de revê-lo.

- Conseguiu descobrir sua origem? A duquesa Matilde nada sabe a respeito. E Gosselin de Chauny só pôde contar-me que o viu pela primeira vez por ocasião de minha
chegada à França.

- Também nada sei a seu respeito, a não ser que nobres valorosos o têm no maior apreço e o tratam como um igual. Isso é suficiente para mim.

Pensativa, Ana murmurou, como se falasse para si mesma: - Cada vez que o vejo, sinto ao mesmo tempo atração e repulsa... - Como a maioria das mulheres. - Que
disse?

218

- Perdoe-me, rainha, mas as damas da Normandia também sentem em relação a ele atração e repulsa. Mas parece que, no caso delas, a atração é mais forte, pois, dizem,
bem poucas lhe resistem!

- Chega, conde - disse Ana, corando. - Agradeço a sua ajuda. Adeus!

Raul de Crépy fez uma reverência e despediu-se. Dera apenas alguns passos quando a rainha o chamou:

- Conde! Que aconteceu com minha irmã-de-leite? Lentamente, ele tornou a aproximar-se e fitou-a com uma súbita hesitação.

- E então? Estou esperando! - Ela morreu. Ana já esperava pela resposta, mesmo assim cambaleou e empalideceu.

- Quando? Como? - Quer mesmo saber? - Quando faço uma pergunta, conde, exijo uma resposta! - Está certo, rainha. Irene morreu há dez dias... - Continue. Está
hesitando. Você a matou? - Censurei-me muitas vezes por não tê-lo feito. Aquela mulher era um demônio, uma feiticeira empenhada em promover a sua desgraça, tinha
um pacto com o diabo e não hesitou em sacrificar o próprio filho para satisfazer seus desejos mais vis...

- Pare com essas abominações! - Ela própria me confessou seu crime com detalhes horríveis, acompanhando o relato com gargalhadas, como uma condenada... Eu deveria
tê-la matado nessa ocasião!

Raul de Crépy empalideceu agora, gotas de suor surgiram em sua testa. Após um momento de silêncio, acrescentou:

- Ela se enforcou. Ana soltou um grito e perdeu os sentidos. Suas aias aproximaram-se e carregaram-na para o leito. Assim que se recuperou, seus olhos fixaram-se
no conde, imóvel ao pé do leito. E as lágrimas correram.

Como ela era linda quando chorava! Ah, abraçá-la assim, confortala!...

- Retire-se, senhor, nossa rainha precisa de repouso - disse Adelaide de la Ferté, dama de honra, amiga e confidente.

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CAPÍTULO TRINTA E UM


A SAGRAÇÃO DE FILIPE


A notícia do suicídio deixou a rainha transtornada. Sentia-se responsável. Não ficara suficientemente atenta. Absorvida em seus próprios tormentos, abandonara
a irmã, não fora capaz de defendê-la de um homem como Raul de Crépy. Humildemente, confessou sua culpa e obteve permissão do rei para retirar-se por algum tempo
num convento de Melun, onde sua submissão às regras e sua devoção foram consideradas exemplares. Ao voltar ao mundo, mandou construir às suas expensas, no centro
de Senlis, às margens do Viétel, uma igreja consagrada à Santíssima Trindade, a Nossa Senhora, a São João Batista e a São Vicente mártir, em substituição a uma
antiga capela em ruínas consagrada ao padroeiro dos vinhateiros, e um mosteiro para os religiosos da ordem de Santo Agostinho, como reparação por seus pecados.

Pouco depois, recebeu uma carta do papa, que a encheu de orgulho e apaziguou seus remorsos:

"Nicolau, bispo, servidor dos servidores de Deus, à gloriosa rainha, saudação e bênção apostólica!

"Rendemos graças a Deus Todo-Poderoso, fonte de todo bom desejo, porque soubemos que a força das virtudes manifesta-se vigorosamente num coração de mulher.

"Fomos informados, virtuosa filha, da grandeza de sua generosidade e de sua caridade para com os indigentes, do seu cuidado e empenho na oração, da justiça de suas
intervenções em favor dos que são oprimidos pela violência e de todas as boas obras através das quais se esforça por cumprir seu dever real, na medida do possível.

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"Exortamos a que continue a seguir fielmente esse caminho em que se lançou sob a inspiração de Deus, a esforçar-se para manter seu invencível marido, o rei, nosso
filho, na justiça, na moderação e na devoção, e a guardar a Igreja no que lhe é de direito. Pois se a eloqüência de Abigail pôde salvar o estúpido Nabal do gládio
de Davi em cólera (I Samuel, XXV, 3-42), muito mais a sua devoção fará com que seu prudente marido se torne sensível aos desígnios de Deus. Assim, finalmente, o
amará verdadeiramente se, por suas piedosas orações, o ajudar a servir aos interesses de Deus. De outra forma, qual seria o amor de uma mulher por seu marido, se
amasse apenas o escrínio do corpo, permita-se dizer assim, sem prestar qualquer atenção aos tesouros da alma que nele está contida? 'Temos este tesouro em vasos
de barro', nos diz o Apóstolo Coríntios, IV, 7).

"Mulheres assim só englobam, em seu amor, o que os vermes devorarão no sepulcro; desprezam insensatamente aquele ao qual está prometida nos céus uma glória que
jamais se extingue. Foi na carne também, que aquela que se dirigiu com uma ironia insultuosa a Davi depositou seu amor, humilhando-se diante do Senhor: 'Que glória
teve hoje o rei de Israel ao descobrir-se aos olhos de suas servas, como se descobriria um homem ordinário?' (II Samuel, VI, 20). E como ela concentrou seu desejo
apenas na carne, foi em troca privada do fruto da carne. É por isso que as Escrituras acrescentam um pouco adiante: 'E Mical, filha de Saul, não teve filhos até
o dia de sua morte.' (idem, 23). Mas você, filha gloriosa, mereceu de Deus a dádiva da fecundidade; instrua essa descendência ilustre de tal maneira que, desde
os balbucios da criança que mama, ela seja nutrida pelo amor de seu Criador."Que seus filhos aprendam com a mãe, a quem mais devem, que, nascidos nobres sobre
o trono real, são, pela graça do Espírito Santo, guiados com maior nobreza ainda no seio da Igreja. Não deixe que prefiram a prata à justiça, mas faça com que
procurem com avidez a verdadeira sabedoria, que é um tesouro. A rainha de Sabá não foi procurar riquezas, mas ouvir a sabedoria de Salomão (I Reis, X); e, no
entanto, obteve em abundância o que não pediu.

"Você também, filha, obedecendo aos mandamentos divinos, possui a sabedoria que merece, para a salvação de sua alma, para beneficiar-se dos bens da terra e passar
de um reino efêmero para o Reino dos Céus."

222

Fora decidido que o pequeno Filipe seria sagrado na presença do rei Henrique, da rainha, dos bispos e dos grandes do reino.

A 23 de maio de 1059, dia de Pentecostes, o arcebispo de Reims, Gervásio, recebeu na entrada da catedral a família real e sua comitiva, sob as aclamações de uma
multidão numerosa, que os soldados mantinham a distância. Um sol forte fazia faiscar as cores das sedas e veludos, cintilar, o ouro e as pedras preciosas das jóias,
o metal dos elmos e das armas. O povo estava maravilhado. A rainha estava particularmente resplandecente. A fronte encimada por uma coroa alta sobre um véu ornamentado
com pérolas; mais pérolas espalhavam-se pelo vestido, de um azul forte que lhe ressaltava a alvura da pele. Entrando no santuário, entre o marido e o filho, Ana
revia-se oito anos antes, avançando por aquela mesma nave para o homem que a desposaria e a tornaria rainha. Hoje, eles acompanhavam o menino nascido de sua união.

Filipe estava empertigado, a fronte cingida por uma faixa de ouro, escondida em parte pelos cachos dourados. Em duas ocasiões ele roçou a mão da mãe para ter coragem.
Devia portar-se bem para que ela se orgulhasse dele e lhe permitisse esgueirar-se para seu leito sempre que conseguisse escapar à vigilância de mestre Enguerrand!
Lançou um olhar na direção do pai. Não era capaz de amar aquele homem rabugento, cujas palavras duras ou zombeteiras temia e que, pensava ele, fazia sua mãe sofrer.

O rei avançava com dificuldade. Muitas recordações penosas atropelavam-se em sua cabeça: trinta e dois anos antes, no dia santo de Pentecostes de 1027, fora seu
pai Roberto quem o acompanhara para fazer com que fosse reconhecido rei, depois da morte de Hugo, o irmão mais velho e preferido de sua mãe Constância. Henrique
ainda podia sentir na fronte, ombros e braços os resquícios do óleo sagrado com que o arcebispo Ehalus o ungira. Com o desaparecimento do pai, precisara batalhar
durante muito tempo contra Constância, contra os irmãos, contra os barões que queriam arrancar-lhe a coroa. Quantos combates em trinta e um anos de reinado...

O rei estava cansado e velho, desejava o descanso, a hora soara. Precisava agora preparar-se para comparecer à presença do Criador. A morte terrível de Olivier
d'Arles, que ele não tinha desejado, causara-lhe uma profunda tristeza. Encarregara Ghislain, seu capelão, de rezar e mandar rezar missas pelo repouso da alma
do trovador, outrora tão ternamente amado.

Agora, suplicava à Santíssima Virgem e a seu doce Filho que lhe dessem forças para suportar a interminável cerimônia. Antes de ler a Epístola, o arcebispo virou-se
para Filipe e disse:

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- Deus é o Criador e o Senhor de todas as coisas, liga-nos a Ele com toda a força de nossa alma pela Fé, Esperança e Caridade. Só Ele pode proporcionar-nos a
felicidade pela comunicação do bem infinito que é Ele próprio. Devemos a Deus nossa adoração e nosso amor. Filipe, reconheceis o Pai, o Filho e o Espírito Santo
como um só e o mesmo Deus?

- Reconheço. - Quereis conservar a fé católica de vossos pais e continuar a praticar suas obras?

- Quero. - Quereis proteger e defender a Santa Igreja e seus ministros? - Quero. - Quereis governar e defender, segundo a justiça, o reino dos vossos pais?

- Quero. O rei Henrique tomou a palavra: - Acima de todas as coisas, meu filho, eu o aconselho a amar a Deus, a temê-lo e a obedecer a todos os seus mandamentos;
a cuidar das igrejas de Deus e defendê-las da corrupção e da impiedade; a ser indulgente com seus irmãos e irmãs mais novos, seus sobrinhos e outros parentes;
a honrar os ministros de Deus como seus pais; a tratar o povo como seus filhos; a obrigar os soberbos e maus a andarem pelo caminho certo; a confortar os pobres
e os devotos cenobitas; a não expulsar ninguém de seus Estados sem justa causa e a manter-se irrepreensível diante de Deus e dos homens.

Entregaram ao menino sua profissão de fé, escrita num pergaminho e, em meio a um silêncio total, ele a leu com a voz fraca:

"Eu, Filipe, devendo em breve, pela graça de Deus, tornarme rei dos francos, prometo, no dia da minha sagração, na presença de Deus e dos santos, manter para cada
um de vós, meus súditos, o direito canônico, a lei e a justiça que vos são devidos; e, com a ajuda de Deus, tanto quanto me for possível, hei de empenhar-me em
defendê-los com o zelo que um rei deve demonstrar em seus Estados, em favor de cada bispo e da Igreja que lhe foi confiada; concederemos também, com nossa autoridade,
ao povo cujo cuidado nos foi confiado, a aplicação das leis conforme seus direitos."

Depois de assinar, entregou o pergaminho ao arcebispo, que também o rubricou. Este estava rodeado pelo enviado do papa, Hugo de

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Besançon, por vinte e dois bispos, entre os quais Roger de Châlons e Gautier de Meaux, fiéis amigos de sua mãe, bastante velhos agora, e dos abades de inúmeros
mosteiros. Gervásio pegou o báculo pastoral de Saint- Rémy e o estendeu para a assistência, declarando em voz suave:

- Poder foi-me concedido, a mim, Gervásio, arcebispo de Reims pela graça de Deus e do papa Vítor, para consagrar Filipe rei, como o bispo Rémy recebeu do papa
Hormisdas o direito de consagrar por este báculo o rei Clóvis. Por estes poderes que me são conferidos, eu, arcebispo de Reims, declaro escolher Filipe para rei
da França, com o consentimento de seu pai, o rei Henrique, aqui presente.

Agora adiantaram-se os legados pontificais, os arcebispos, os bispos, os abades e os clérigos que aprovavam a escolha. Foram seguidos por Guy, duque da Aquitânia,
Hugo, filho e representante do duque da Borgonha, pelos enviados dos condes de Flandres e Anjou, depois pelos condes Raul de Crépy, Humberto de Vermandois, Guy
de Ponthieu, Guilherme de Soissons, Foulques d'Angoulême, Aldebert de la Marche, Bernard, Roger, Manasses, Hilduin, e pelo visconde de Limoges. E depois os cavaleiros
e o povo, aglomerados na igreja, ratificaram a eleição, gritando três vezes:

- Nós aprovamos, nós queremos que assim seja! Como seus antecessores, Filipe rubricou sua primeira ordenação, confirmando na posse de seus bens a igreja de Santa
Maria, o condado de Reims, as terras de Saint-Rémy e outras abadias. E de acordo com o costume, o arcebispo foi reconhecido como grão-chanceler.

Depois que a ordenação foi selada, começou a cerimônia da consagração. Gervásio pegou numa almofada bordada a ouro Joyeuse, a espada de Carlos Magno, e entregou-a
ao rei. Henrique beijou o botão do punho, voltou-se para o filho e pronunciou as palavras rituais:

- Recebei este gládio pela autoridade divina e pelo poder que vos é concedido para enfrentar os bárbaros inimigos do nome de Jesus Cristo, expulsar os maus cristãos
do reino francês e manter a paz entre os fiéis que vos são confiados.

Voltado para a assistência, Filipe levantou a espada Joyeuse com as duas mãos, brandiu-a por um instante, a ponta para cima, antes de colocá-la no altar, reconhecendo
por esse gesto ser um vassalo de Deus. Cléricos retiraram a faixa de ouro de sua cabeça, seu manto e sua túnica, abriram os cordões da camisa, deixando-lhe à mostra
os ombros e o peito. Todos prenderam a respiração, emocionados diante da fragilidade do menino sobre o qual Resaria o fardo da coroa. O abade de Saint-Rémy apresentou
a Santa Ambula ao arcebispo, assim como uma agulha de ouro. Com a ajuda da agulha, Gervásio despejou uma gota numa taça

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de prata dourada contendo o crisma; com as pontas dos dedos impregnadas com o óleo sagrado, ele fez o sinal-da-cruz sobre a testa, da orelha direita para a esquerda,
sobre o topo da cabeça, sobre o peito, entre os ombros, sobre as articulações dos braços do novo rei. Todos se ajoelharam e oraram em silêncio.

Terminado o tempo de oração, todos se levantaram. Os doze pares aproximaram-se do oficiante, que entregou o anel a Filipe, dizendo:

-Tomai este anel, símbolo da Santa Fé, solidez do reino e aumento do poder, para que saibais assim enfrentar os inimigos pelo poder triunfal, unir os súditos e
conduzi-los na perseverança da fé católica de Jesus Cristo, Nosso Senhor. Amém.

Ele pegou no altar o cetro, que pôs na mão direita do menino, enquanto na esquerda colocou a mão da justiça. Filipe ajoelhou-se.

O arcebispo pegou a grande coroa de ouro de Carlos Magno, cravejada de rubis, safiras e esmeraldas, e levantou-a sobre a cabeça do pequeno rei; no mesmo instante
os doze pares estenderam a mão para sustentá-la, formando um círculo em torno do soberano.

- Que Deus vos coroe, meu filho, com a coroa da glória e da justiça! Sede o protetor e o servidor fiel do reino que é confiado a vossos cuidados, a fim de que,
investido de todas as virtudes, como se fossem pedras preciosas, obtenhais a coroa da glória junto Aquele que reina no reino dos Céus.

Gervásio, muito emocionado, inclinou-se, abraçou o menino e gritou três vezes:

- Viva o rei! O grito foi repetido pelos pares, depois por toda a assembléia. O arcebispo conduziu o rei ao trono, junto do pai e da mãe. As oferendas foram trazidas
por quatro cavaleiros: um pão de ouro, um pão de prata, um jarro de prata dourada cheio de vinho e uma bolsa de veludo vermelho contendo treze peças de ouro.

Depois da bênção e do beijo da paz, Filipe comungou pela primeira vez com o pão e o vinho.

Em memória de seu antepassado, o rei Roberto, cognominado o Piedoso, que curara doentes no dia de sua sagração, trouxeram doze pessoas com ferimentos infectados.
Sem manifestar qualquer repulsa, o menino tocou nas chagas e mandou entregar aos doentes presentes e esmolas.

Só restava agora percorrer, ao passo lento dos cavalos de desfile, as ruas da cidade de Reims, sob as aclamações da multidão.

Ana contemplou com orgulho o menino que, apesar da solenidade da cerimônia, não parara de olhar para ela, em busca de aprovação. Mas não deixava de sentir uma
grande tristeza pela ausência do duque e da duquesa da Normandia.

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CAPÍTULO TRINTA E DOIS


A MORTE DO REI


Nas profundezas da floresta de Orléans, em Vitry, o rei Henrique mandara arrumar algumas cabanas de lenhadores para suas temporadas de caça e pesca. Na calma daquele
bosque, em companhia de seu capelão, de seu médico, de dois escudeiros, de uma dezena de homens de armas, cozinheiros e servidores, ele descansava, longe das intrigas
que fervilhavam por todo o reino. Ana, os três filhos e seu séquito foram ao seu encontro no segundo dia de agosto. Henrique os viu chegar sem qualquer prazer; sentia-se
mal e estava sendo medicado. João de Chames, "o Surdo", como o chamavam respeitosamente os escudeiros, determinara uma dieta total, cujo efeito foi agravar seu mau
humor.

O dia 4 de agosto anunciava-se tórrido. Sem qualquer brisa. Sob as árvores altas minava um calor de fornalha. Nem mesmo a água dos lagos conseguia refrescar os
banhistas. Vestindo apenas uma blusa leve, estendida sobre as almofadas de um barco, Ana molhava o rosto e o corpo. Não muito longe, Filipe e Roberto brincavam
na água, aos gritos. Um barulho de galope arrancou as sentinelas de seu torpor durante um momento, mas os recém-chegados eram bastante conhecidos: podiam voltar
a seu cochilo, O conde de Valois, à frente de uma dezena de cavaleiros, fora visitar o rei. Sofrendo muito, Henrique recusou-se a recebê-lo. O visitante perguntou
pela rainha e seguiu para o lago.

À beira d'água, as crianças pararam de brincar. Nada se mexia, tudo ao redor parecia deserto. Um barco, parcialmente escondido pelos galhos de um salgueiro, balançava
de maneira imperceptível; o braço branco de uma mulher aparecia a intervalos. Raul despiu-se e entrou na água, nu. Seus pés afundaram no lodo. Com braçadas vigorosas,
ele nadou para o meio do pequeno lago, mergulhou e voltou à superfície

227

perto do barco. Cuidadosamente, apoiou-se na borda e içou-se. O grito de Ana foi abafado por sua mão molhada.

- Nada tema, rainha, sou seu fiel vassalo, Raul de Crépy. A rainha sacudiu a cabeça e desvencilhou-se. - Que faz aqui, conde? - Sentia saudade sua, senhora. -
Não é motivo para surpreender-me assim, sozinha... Chame minhas aias.

- Mais tarde - murmurou ele, subindo no barco, que balançou perigosamente.

Ana, toda molhada, soerguera-se e, apoiada nos cotovelos, observava aquele homem enorme, de coxas fortes, ombros largos e musculosos, cobertos por uma espessa pelagem
escura que lhe dava a aparência de um animal e fazia com que seu sexo moreno parecesse frágil. Era sem qualquer constrangimento que ela o contemplava, com a impressão
de que o via pela primeira vez. Sentiu-se tão agitada que fechou os olhos e comprimiu as pernas, enquanto um calor intenso invadia-lhe as faces e os ombros. A blusa
transparente e molhada nada ocultava de seu corpo; os bicos dos seios pareciam querer perfurar o tecido. Os olhos de Raul eram fendas estreitas, os lábios sorriam,
enquanto seu sexo levantava-se lentamente. Agora, ali ou em outro lugar, ele sabia que aquela mulher seria sua. Pegou na mão seu membro de proporções impressionantes.
Ana encolheu-se no fundo do barco, como se estivesse hipnotizada. Raul inclinou-se.

E foi nesse instante que ouviram os gritos: - O rei está morrendo! O rei está morrendo!

Vestindo-se às pressas, descalça, a rainha montou num cavalo e dirigiu-se para a cabana real, os cabelos compridos flutuando atrás dela. Quando chegou à rústica
habitação, os guardas afastaram-se para deixála passar. O marido estava estendido num leito alto. Seu médico, João de Chames, debruçava-se sobre ele. De pé, num
canto, o camareiro do rei chorava.

- Que aconteceu? Ghislain, o capelão, adiantou-se. - Ó rainha, uma terrível desgraça! O rei, apesar da proibição de mestre João, bebeu um copo grande de água
gelada e caiu, gritando de dor.

- Quem lhe deu o copo com água? - Eu - balbuciou o camareiro. - Sabia que o médico havia proibido?

228

- Sabia, rainha... mas não sabia o que fazer. Recusei a princípio, mas o rei ficou furioso, ameaçando punir-me se não obedecesse...

Muito pálido, o médico aproximou-se da rainha e do capelão. - Padre, minha ciência não pode fazer mais nada por ele. Entrego-o aos seus cuidados.

- Tudo aconteceu tão de repente... - murmurou Ghislain. - O rei não foi envenenado?

- Pensei nisso. Examinei imediatamente o copo, nada encontrei de suspeito. Depois de tomar o medicamento, o rei devia permanecer em completo jejum. A desobediência,
o esgotamento físico, o calor e a água gelada foram-lhe fatais.

- Desejo pedir perdão a Deus... - balbuciou o moribundo, a voz abafada. - Chamem meus filhos.

O capelão avançou. Todos se afastaram e puseram-se de joelhos. Com grande dificuldade, Henrique confessou seus pecados. Depois que Ghislain lhe concedeu a absolvição,
ele orou em voz alta, com um vigor renovado.

A um sinal do pai, o rei Filipe adiantou-se, hesitante, empurrado pela mãe.

- Meu filho - murmurou Henrique -, confio-lhe o belo reino da França. Mantenha-o na fé de seus pais, como jurou no dia da sua sagração. Seja justo com seus súditos,
proteja a viúva e o órfão, respeite a Trégua de Deus. Até sua maioridade, deixo o reino nas mãos de sua mãe, minha querida esposa diante de Deus, a rainha Ana,
e de meu querido irmão Balduíno, conde de Flandres, marido de minha amada irmã Adélia. Seja generoso com seus irmãos e prefira a paz à guerra, para o bem de
seu povo e sua glória. Adeus, meu filho.

Henrique abençoou Filipe. que beijou sua mão. Teve ainda forças para abençoar Roberto e o pequeno Hugo, trazido pela ama-de-leite. Ana, ajoelhada ao seu lado,
mal conseguia conter as lágrimas.

- Não chore, minha cara. Morro confiante na graça divina... Perdoe-me, não fui um marido digno de você. Ore por mim...

Seus olhos se reviraram, o corpo inteiro contraiu-se. Quando relaxou, o rei estava morto.

Por causa do calor, o corpo foi transportado assim que anoiteceu para Saint-Denis, onde foi embalsamado e sepultado na cripta real.

O novo rei e sua mãe foram para Dreux, onde receberam os bispos e os vassalos que tinham vindo prestar sua homenagem. O conde de Valois foi um dos primeiros.

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O duque da Normandia também se apresentou. Ana recebeu-o com uma alegria tão evidente, que Raul de Crépy ficou ressentido. Ajoelhado diante da regente, o duque
pôs as mãos sobre as de sua suserana.

- Sou duas vezes seu vassalo, senhora, e quero que saiba que enquanto eu for vivo nenhum normando jamais atacará seu reino.

- Sei disso, duque. - Ana, você é tão bela, tão jovem ainda! Quem será seu protetor? - Nada tema, Guilherme. Nosso Senhor Jesus me protege. - Cada vez que a revejo,
sinto uma enorme felicidade, que ilumina minha vida por muitos dias. Se eu não soubesse que é tão rigorosa nas questões da religião, pensaria em algum encantamento.
Como Mora me apareceu, continua sendo Mora para mim!

Matilde também se aproximou e renovou seus protestos de amor e amizade. Manifestou sua confiança no futuro:

- Fico feliz porque meu tio, o falecido rei Henrique, designou meu pai para tutor do rei; é uma garantia de paz para você e para a França.

- Com a ajuda dele e de Deus, governarei no interesse de todos. Reze por mim e por meu filho.

Preocupado em fazer-se reconhecer pelos barões da França como regente do reino, junto com a rainha Ana, Balduíno de Flandres empreendeu, em companhia do rei e da
rainha-mãe, uma excursão pelos domínios reais.

No início do outono, depois de Dreux, eles foram aclamados em Paris e Senlis, onde permaneceram até meados de novembro. Em Blois, o conde de Thibaud jurou fidelidade
ao rei, à regente e ao tutor. A 25 de novembro, eles estavam em Étampes, a 30 em Orléans. Depois retornaram a Senlis para passar o inverno.

Após a morte do rei, o conde de Valois não deixara a corte e fizera questão de acompanhar a rainha em suas viagens, para grande insatisfação de Filipe, que não
gostava da maneira como ele olhava para sua mãe, e do conde de Flandres, que se inquietava com a sua ascendência aparente sobre Ana. Balduíno temia - assim como
o irmão do falecido rei, o duque da Borgonha, Roberto, que se ressentira por não ter ficado com a regência - que Raul de Crépy tentasse apoderar-se do reino seduzindo
a rainha-mãe. Alguns barões e bispos partilhavam suas apreensões.

Ana retornou com prazer à sua boa cidade de Senlis. Já não aparecia tanto na escola, no hospital, no meio dos pobres; é que muitas vezes

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ela percorria a floresta na perseguição de um cervo ou cabrito selvagem, em companhia de Filipe ou de Raul, com quem rivalizava em audácia na corrida e na caça,
redescobrindo suas diversões de filha da Rússia. Os servos e camponeses viam passar por entre as árvores seu manto branco, seguido cada vez com mais freqüência
por um manto preto. À noite, nas cabanas, nas tavernas de Senlis, nas cozinhas, nos cômodos dos castelos, comentava-se o comportamento da rainha.

O arcebispo de Reims e seus velhos amigos, os bispos de Châlons e Meaux, dirigiam-lhe censuras afetuosas, que ela escutava com uma paciência desdenhosa. Um dia,
o conde de Flandres mandou a condessa procurá-la e Adélia falou-lhe às claras:

- Esquece que é a rainha e regente do reino? Todos se admiram de que passe mais tempo com o conde Raul do que junto do rei, dos seus conselheiros e dos seus filhos.
Está viúva há poucos meses apenas e circula por toda parte com um homem da pior reputação. Compromete-se ao aceitar sua presença. Meu marido acha que reconhece a
mão do conde em algumas decisões suas...

- É mentira! O conde Raul de Crépy nunca interferiu nos negócios do reino. É culpa minha se ele é mais agradável do que os nobres que formam meu conselho?

- Que necessidade tem de se distrair, quando deveria chorar um marido e educar seus filhos, pedindo a Deus que a ilumine? Que aconteceu com você, tão devota, esposa
e mãe irrepreensível? Sabe muito bem, Ana, como sou sua amiga e como a defendi muitas vezes junto de meu falecido irmão, especialmente por ocasião da triste morte
de Olivier d'Arles...

- Não me fale dessa morte lamentável que você teria podido evitar se tivesse interferido quando lhe pedi...

- Por favor, Ana, não me faça lembrar aquelas circunstâncias; venho sentindo um profundo remorso e não se passa um dia sem que me censure e reze por ele.

As duas fitaram-se em silêncio por algum tempo: Adélia de Flandres foi a primeira a rompê-lo. Pegando as mãos da cunhada, disse-lhe ternamente:

- Minha querida, pode me contar tudo, não direi nada... Está apaixonada por Raul de Crépy?

A rainha puxou as mãos bruscamente e corou. - Está louca? Não sinto nada parecido pelo conde! Como ousa pensar uma coisa dessas?

Adélia levantou-se e começou a andar de um lado para outro da sala, com uma expressão preocupada. Não se enganara: a rainha amava o conde e não sabia.

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- Perdoe-me, minha irmã. Fico feliz por saber que não há nada e que tudo são intrigas das criadas. Estou tranqüila. Mas trate de evitar que suspeitem de sua conduta,
e jamais se esqueça de que é rainha.

Mais tarde, quando o conde de Valois apareceu para visitar a regente, como fazia todos os dias, foi informado de que Ana não podia recebê-lo. Ele não se incomodou
e voltou no dia seguinte; informaram-lhe, então, que suas visitas não eram mais desejáveis. Ele teve um acesso de cólera que assustou o capelão.

Ana continuou invisível para ele até a primavera. No final de abril, Valois soube que a corte estava se transferindo para Compiègne. Seguiu na frente e recebeu
a família real ao lado do bispo e do preboste Obert. Embora fugaz, o sorriso malicioso da rainha não escapou ao conde, que não se impressionou com a frieza das
palavras que lhe foram dirigidas. Também foi para Reims, onde Filipe, a pedido da mãe, assinou um edito em favor da igreja de São Nicásio. Cansado de ver a silhueta
alta de Raul desfilar sob o pórtico, o conde de Flandres intimou-o a afastar-se da presença do rei. Foi preciso toda a força de persuasão do arcebispo Gervásio
e dos cavaleiros para impedi-los de chegar às vias de fato. O conde de Valois acabou cedendo, não sem fazer ameaças.

De volta a Senlis, a rainha passava muito tempo com os três filhos, feliz com os progressos de Filipe na escrita e com a robustez de Roberto e Hugo. Vestindo trajes
brancos de viúva, Ana gostava de montar em seu cavalo ao final do dia pela floresta, seguida apenas por dois ou três cavaleiros e por seus escudeiros. Balduíno
não via esses passeios com bons olhos, mas não podia impedi-los.

Numa tarde em que o ar tinha uma extrema suavidade, impregnado pelo odor da mata, Ana desceu do cavalo para colher algumas flores. "Farei coroas", pensou ela.
A pequena comitiva instalou-se numa clareira, esperando que a rainha terminasse de preparar seus buquês. Distraída, Ana afastou-se. No fundo de uma vala em profundo
declive, havia um tapete de flores brancas, que pareciam esperá-la. Ela escorregou pelo musgo e caiu deitada entre as flores. Os olhos meio fechados, deixou-se
inebriar pelo perfume de húmus e folhas amontoadas que a envolvia. Através dos galhos, a lua e as estrelas surgiram. Era uma noite como ela não via há muito tempo.
Lembranças de passeios pelas muralhas de Novgorod ou ao longo do Dnieper, em Kiev, afloraram em sua mente. O rosto de Filipe apareceu tão nitidamente em sua memória,
que ela arregalou os olhos, esperando vê-lo.

Foi outro rosto que descobriu inclinado sobre ela. Como conseguira

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descer até lá sem que nada revelasse sua presença? O calor do corpo do homem irradiava-se através das roupas, envolvendo-a, seu hálito forte era agradável,
bem como seu cheiro, uma mistura de suor, de feno cortado, de bafio de estrebarias... Um imenso torpor, contra o qual nem tentou lutar, invadiu a rainha. Nem um
nem outro planejara aquele encontro; Raul vagava todos os dias pela floresta de Senlis na esperança de vê-la; Ana afastava esse pensamento sempre que lhe ocorria.
Agora, o destino os reunia. Não sentiam amor um pelo outro, mas um desejo intenso. Naquele instante, naquela vala cheia de flores, havia apenas um homem e uma
mulher que não sabiam mais quem eram.

Foi Ana quem estendeu a mão para ele. Como Raul parecesse hesitar, agarrou-o pelos cabelos e puxou os lábios dele para os seus. Esse contato fez com que perdesse
toda a noção do tempo. A rainha, que até então só conhecera a repulsa no desvario amoroso, sentiu seu corpo e sua alma fundirem-se num prazer que jamais fora capaz
de imaginar.

Quando voltaram a si, a floresta estava cheia de chamados e gritos. Procuravam a rainha com uma apreensão cada vez maior. Tinham ido ao castelo buscar criados munidos
de tochas.

- Finja que torceu o tornozelo - aconselhou Raul, antes de desaparecer.

Ela não tinha opção. Para explicar a desordem dos trajes, as manchas da vegetação em toda aquela brancura, era preciso simular uma queda. Quando sua voz fraca
chegou aos ouvidos dos escudeiros e eles a viram estendida no chão, pálida e desalinhada, precipitaram-se, pensando que estivesse gravemente ferida. Transportaram-na,
gemendo, para o palácio, onde suas damas assumiram o comando, sem entender por que a rainha não queria permitir que seu médico examinasse a perna que dizia estar
machucada.

No dia seguinte, para espanto geral, Ana levantou-se revigorada e bem- disposta, com leves olheiras. Depois da missa, que escutou com absoluto recolhimento, ela
abraçou os filhos e foi inspecionar as obras de São Vicente, discutiu os problemas do reino com Balduíno, deu algumas ordens, visitou os doentes no hospital, levou
esmolas para algumas famílias pobres.

Nos dias subseqüentes, dividiu suas horas entre essas diversas atividades. Passou algum tempo em sua vila em Vemeuil, onde recebeu o intendente de suas terras
de Châteauneuf-sur-Loire. Passou uma noite na casa de Adelaide de la Ferté, onde o coaxar das rãs do Essonne impediu-a de dormir. Ali, um mensageiro do conde de
Valois entregou-lhe

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uma carta. De volta a Senlis, nada parecia ter mudado em seu comportamento.

Numa madrugada de julho, pouco antes do amanhecer, ela acordou um valete do estábulo e pediu-lhe que selasse seu cavalo mais veloz. Ainda meio zonzo de sono, o
rapaz obedeceu, atordoado demais para espantar-se com o fato de que ninguém a acompanhava. Quando se deu conta e avisou ao chefe do estábulo, que por sua vez informou
ao oficial da guarda, a rainha já estava longe...

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CAPÍTULO TRINTA E TRÊS


A CONDESSA DE VALOIS


No dia seguinte ao encontro com Ana na floresta de Senlis, Raul instalou-se em seu castelo de Crépy, de onde expulsou sua mulher Aliénor, sob a alegação de que
ela cometera adultério. Louca de humilhação e de raiva, a condessa foi procurar o arcebispo Gervásio, pedindo-lhe que interferisse. Prudente, o prelado perguntou-lhe
se seu comportamento não dera ao marido motivos para agir assim. Aliénor jurou sobre as Santas Escrituras que nenhum outro homem a tocara e que, se fosse necessário,
iria a Roma pedir justiça ao papa...

Ana e Raul encontraram-se a meio caminho entre Crépy e Senlis, debaixo de uma súbita tempestade. Desataram a rir quando se viram em estado tão lamentável. Raul
ajudou Ana a desmontar e carregou-a, correndo, até uma cabana de lenhador. Com cuidado, estendeu-a sobre um leito de ervas secas e começou a despi-la. Como ela
quisesse impedi-lo, o conde murmurou:

- Se não me deixar tirar essas roupas molhadas, vai ficar doente. Quando Ana ficou nua, friccionou-a com uma toalha. Não demorou muito para que uma agradável
sensação de calor substituísse o frio. Era a primeira vez que um homem lhe dispensava tais cuidados. Depois que ela estava aquecida, Raul envolveu-a com uma manta
de lã.

- Agora é a minha vez! Ele se despiu num instante. Olhos semicerrados, Ana contemplou aquele corpo grande e vigoroso. Levantou-se sem pensar em segurar a manta
que a cobria e que deslizou a seus pés, pegou a toalha e pôs-se a esfregar Valois com uma energia que foi declinando à medida que uma

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violenta perturbação a dominava. Seus dedos roçaram no sexo levantado do amante. Subjugada, ela ficou imóvel. Raul pegou sua mão e fez com que lhe envolvesse o
membro. Ficaram assim por um longo momento, tremendo da cabeça aos pés. E depois, um mesmo impulso atirou-os um contra o outro e jogou-os, enlaçados, sobre a palha
da cabana.

Quando se separaram, as estrelas brilhavam no céu de verão.

No final de junho, eles se casaram em Montdidier. A união foi abençoada por um trêmulo padre; havia menos de um ano que o rei Henrique morrera. A rainha comunicou
o casamento, por carta, ao conde de Flandres, e pediu-lhe que informasse Filipe e seus irmãos. Balduíno ficou abatido com a notícia. Pediu ajuda à mulher Adélia,
à filha Matilde, ao genro Guilherme, ao arcebispo de Reims, aos bispos de Meaux e Châlons e ao velho Gosselin de Chauny. Todos ficaram consternados. Mas o mais
atingido foi o pequeno rei, que não parava de chorar e chamar pela mãe. O duque da Normandia falou em arrancar a rainha do conde, que certamente a retinha pela
força, contra sua vontade; não era a primeira vez que um nobre arrebatava uma mulher para pressionar sua família.

- Mas a rainha não foi seqüestrada, Guilherme - ressaltou Balduíno. - Releia sua carta.

- Não acredito em nada do que está na carta! Aquele homem é capaz de tudo. Obrigou-a a tomar alguma poção.

- Está enganado, senhor - interveio Matilde, com sua voz doce. - A rainha Ana está apaixonada...

- Está louca! A Mora nunca poderia amar um homem como o conde. Vamos atacar suas terras, ele a entregará...

- Ela não deixará de ser sua mulher, diante de Deus e dos homens.

- Não pode ser - protestou Matilde. - O conde já é casado. Balduíno deu de ombros. - Ele repudiou Aliénor sob a alegação de adultério. - Todos sabemos que é mentira.
Ela está a caminho de Roma, a fim de pedir uma reparação.

- Quero que a rainha me diga pessoalmente que casou com o conde de Valois por sua própria vontade. Jurei fidelidade a ela como minha suserana, preciso saber se
ela ainda o é. Onde estão eles? Em Péronne? Amiens? Crépy? Montdidier?

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Foi em Péronne, no mês de outubro, que o duque da Normandia reencontrou aquela que jamais deixara de ser para ele a Mora das florestas alemãs. Para aquele homem
rude, fiel à esposa, filho respeitoso da Igreja, profundamente crente, guerreiro temível e cavaleiro denodado, Ana era mais do que uma mulher: era parte de seu
sonho inconfesso, era também aquela por quem o cavaleiro mascarado, um homem que ele amava, se tornara um monstro. Era, igualmente, rainha da França e regente
do reino. Quando a viu aproximar-se, sempre vestida com o traje branco das viúvas reais, em plena maturidade de sua beleza, a mão enluvada pousada sobre a de Raul,
compreendeu que Ana finalmente encontrara um senhor. Se ficou abalado, guardou para si as reações e mostrou-se um comensal alegre do banquete oferecido em sua
homenagem.

No dia seguinte, na caçada, Guilherme cavalgava ao lado dela. - Lembra-se de nosso primeiro encontro? - Claro! - gritou a rainha, esporeando sua montaria. Era
um desafio, e ele aceitou; seu cavalo empinou sob o violento golpe das esporas. Como acontecera tantos anos antes, ele quase foi derrubado da sela. Desta vez desatou
a rir e lançou-se em sua perseguição.

Surpresos, seus companheiros pararam. Raul interrogou Matilde com um olhar.

- Deixe, conde, é um jogo - respondeu a duquesa. Esse jogo durou até que os cavalos pararam, esgotados, trêmulos, cobertos de espuma, uma baba sangrenta saindo
pela boca.

Apesar de sua corpulência, Guilherme saltou para o chão com facilidade e ajudou a rainha a descer.

- É sempre magnífica num cavalo, digna descendente das amazonas!

- Poderia tê-lo vencido mais uma vez, mas não quis. - Desta vez não teria conseguido, pois eu estava prevenido. Eles se avaliaram com amizade. - Sente ao meu
lado, Guilherme... Não tem nada a me dizer? O duque, tão seguro em todas as circunstâncias, ficou aturdido com a naturalidade da atitude de Ana e permaneceu calado.

- Disseram-me... mas dizem tantas coisas na corte!... que se espantou pelo meu casamento com o conde de Valois... Sei que dizem também que o conde me seqüestrou
e que só casei com ele para salvar minha honra.. Dizem ainda que só a regente da França lhe teria interessado em minha pessoa... Mas fico feliz por garantir-lhe
que não é nada disso, e que sentimos um pelo outro um terno amor... Você, que ama

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tanto minha querida Matilde, pode compreender... Não diz nada? Duvida de minhas palavras?

Guilherme limitou-se a sacudir a cabeça, em silêncio. - Eu ficaria muito triste se duvidasse de mim... Sem dúvida pensa, como todos por aqui, que eu deveria dedicar-me
à educação de meus filhos, especialmente a do rei... Mas o rei deve agora afastar-se de mim, não é bom que um menino fique ligado demais à mãe...

- Está dizendo bobagens. Amo ternamente minha mãe e nem por isso me tornei menos homem. Sua ternura, sua presença foram preciosas para mim.

- Era um menino, como Filipe, quando seu pai morreu. O marido de sua mãe não o substituiu?

- Nada jamais substitui um pai, e falo com conhecimento de causa... Mas... que está me fazendo dizer? O problema não sou eu, mas você, que é regente da França.
Esse casamento lhe tira o direito de governar.

- Não penso assim. Continuo a ser a mãe do rei. - Duvido que os barões da França aceitem a autoridade do conde de Valois.

- Não se trata do conde, mas de mim, Ana, filha de laroslav, grão-príncipe de Kiev, viúva de Henrique, rei dos francos, regente designada por ele e reconhecida
pelos barões...

- Esposa adúltera de Raul de Péronne, conde de Valois! - Proibo-lhe de falar assim! - Não sabia que ele ainda está casado? - Repudiou a mulher... - Apenas
para possuí-la. - Não importa! Vermelhos de raiva, levantaram-se e empertigaram-se um na frente do outro. Com um grande esforço, o duque conseguiu controlar-se.

- Perdoe-me por me deixar exaltar. É livre e dona de seus atos como mulher, mas e como rainha?...

Ana, com ar determinado, chutava um montinho de terra. Levantou a cabeça e fitou Guilherme com um sorriso provocante.

- Acha que eu deveria renunciar a conhecer o amor porque Deus me fez rainha? Deveria continuar a ignorar os prazeres do corpo porque sou viúva de um homem que
só me procurava com repulsa?... Por que está corando? Matilde e você não sentem alegria ao se possuírem?... Por que me negariam a felicidade que conhecem?... O
conde de Valois é meu marido e eu o amo como Matilde ama você... Escute, os outros se aproximam. Guilherme, suplico-lhe, seja meu amigo como sempre foi... Não
me responde?

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- Desculpe, eu estava pensando... Ana, minha cara, concedi-lhe minha fidelidade há muito tempo e não vou retirá-la agora. Seja feliz com o conde; rezarei por você.

- Obrigada, duque. Está me proporcionando uma enorme alegria. O reconhecimento que iluminou o rosto da rainha foi insuportável para Guilherme.

- E então, quem ganhou? - perguntou Matilde, do alto de seu cavalo.

Durante os dois primeiros anos de seu casamento com Raul, Ana manteve-se quase constantemente nas terras de seu novo marido, passando do castelo de Péronne para
o de Amiens, de Crépy para Montdidier, levando sempre os dois filhos menores, Roberto e Hugo. A seu pedido, Balduino de Flandres assumiu sozinho o governo da França.
Os barões, que haviam temido a influência do conde de Valois, ficaram aliviados.

Em diversas ocasiões Filipe foi visitar a mãe, pouco a pouco conhecendo melhor seu padrasto. O homem e o menino, preocupados em não desagradarem a Ana, mostravam-se
amáveis um com o outro.

No final do ano de 1063, a rainha-mãe acompanhou o filho a Soissons, onde o pequeno rei confirmou uma doação em favor da abadia de São Crispim. Ali ficaram por
vários dias.

No ano seguinte, Ana pôs no mundo uma menina, que não sobreviveu.

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CAPÍTULO TRINTA E QUATRO


O JURAMENTO DE HAROLDO


Cedendo aos pedidos reiterados de Matilde, Ana foi à Normandia no início do verão, em companhia dos filhos menores, Hugo e Roberto. As duas mulheres reencontraram-se
com a maior alegria. Como Ana, a duquesa perdera uma criança no início do ano e deplorava que Guilherme tivesse ido guerrear contra o duque da Bretanha. Inquietava-se
por saber que junto dele se encontrava o conde de Wessex, Haroldo, acusado por Guy de Ponthieu de querer arrebatar a coroa da Inglaterra a seu marido, apesar da
promessa formal do rei Eduardo. Grande tinha sido sua surpresa diante da atitude do duque, cumulando Haroldo de honrarias e presentes, armando-o pessoalmente cavaleiro
por ter salvo dois guerreiros normandos da morte em areia movediça, chegando mesmo a propor-lhe que desposasse uma de suas filhas, a pequena Ágata.

Precedidas por um imenso comboio de mulas, carroças transportando servidores, tendas e víveres para vários dias, cercadas por soldados da guarda e escudeiros, numa
confusão de gritos e latidos, Ana e Matilde deixaram o castelo de Lisieux, em liteira, para Caen. A duquesa queria mostrar à amiga as obras da abadia para homens
dedicada a Saint-Etienne e as da abadia para mulheres dedicada a Nossa Senhora da Trindade, construídas em penitência, a pedido do papa, por não haver respeitado
a proibição a seu casamento. Nove anos, fora preciso esperar nove anos para que Lanfranc, o santo prior da abadia do Bec, obtivesse do papa Nicolau II a revogação
da condenação proferida por Leão IX. Ana ficou maravilhada com a beleza da abadia da Trindade e impressionada com sua arquitetura audaciosa. Não foi sem uma ponta
de ciúme que comentou para a amiga:

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- Seus trabalhos estão muito mais adiantados do que os meus, que longe estão de ter a mesma importância. Já me desespero, pensando que nunca verei São Vicente
concluída!

O comentário deixou Matilde satisfeita. Pegando a companheira pela cintura, levou-a para o promontório de onde se descortinava todo o rico vale do Orne.

- Não se desespere. Você também terá a alegria de ver subir sua igreja consagrada a Nosso Senhor e a sua Santa Mãe, a Virgem Maria. Se quiser, posso emprestar-lhe
meus arquitetos. Tenho certeza de que, por você, Guilherme não faria qualquer objeção.

- Sempre generosa, minha pequena Matilde! Os anos não mudaram sua bondade e caráter.

- Não acredite nisso, minha rainha. Tenho lutado muito contra meus arrebatamentos.

Ternamente enlaçadas, os véus agitados pela brisa amena, os vestidos, branco o da rainha, amarelo o da duquesa, colados ao corpo, pareciam dois anjos prestes a alçar
vôo para o céu. O conde de Mortain, Roberto de Conteville, meio-irmão de Guilherme, trouxe-as de volta à terra:

- Matilde, minha irmã, e a senhora, rainha Ana, está na hora de partir, o duque nos espera em Bayeux.

Ainda enlaçadas, elas voltaram à liteira e partiram, ao passo lento dos bois, deixando para trás o canteiro de obras da igreja espetacular, testemunho do poder
do duque e de sua submissão à Igreja.

Ao fim de três dias, chegaram a Bayeux, depois de pararem para orações na abadia de Mont Saint-Michel, a pedido da regente da França.

O duque, tendo ao seu lado o conde de Wessex, adiantou-se para receber as viajantes. Como sempre acontecia, reviu Ana com emoção.

- É sempre uma grande felicidade vê-la pisar o solo normando. Seja bem-vinda, minha rainha! Este é o conde Haroldo, meu substituto junto ao rei Eduardo, que veio
prestar o juramento de fidelidade sobre as santas relíquias.

Com um gracioso aceno de cabeça, Ana cumprimentou o inglês que, ao contrário dos normandos, tinha os cabelos compridos e um enorme bigode, acontecendo o mesmo
com os homens de sua comitiva.

- É uma grande honra para mim, senhora, conhecer a regente do belo reino da França. Como vai o jovem rei, seu filho?

- Muito bem, conde. Está aprendendo o ofício de rei com pessoas mais sábias do que eu.

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- Mas tenho certeza de que solicita seus conselhos com freqüência.

- Conde, estas nobres damas precisam repousar - interveio Guilherme, tornando a montar em seu cavalo. - Voltaremos a encontrar-nos esta noite na catedral.

O cortejo entrou lentamente na cidade, sob as aclamações do povo reunido. Na multidão de cavaleiros que escoltavam o duque, Ana teve a impressão de divisar o homem
mascarado, o amigo de Olivier d'Arles, que a salvara dos subterrâneos de Senlis. Com um gesto da mão, ela chamou um de seus escudeiros.

- Está vendo aquele cavaleiro que usa uma máscara? - Estou, sim, rainha. - Vá chamá-lo. Bruscamente, o jovem levou seu cavalo através da multidão, que se afastou
contrariada.

Quando viu o cavaleiro com as cores da França dirigir-se para ele, seguido pelos olhos de Ana, Filipe compreendeu que ela mandava chamá-lo. Um golpe violento da
espora fez seu cavalo empinar e disparar, derrubando quem se encontrava por perto.

Ouviu gritos de dor e raiva. - Senhor! Senhor! A voz do escudeiro perdeu-se na confusão. O jovem quis partir em seu encalço, mas a multidão compacta e ameaçadora
impediu-o. Com bastante dificuldade, constrangido, ele voltou para junto da liteira real.

- Perdoe, rainha, mas o cavaleiro pareceu fugir à minha aproximação e não pude transmitir-lhe sua mensagem.

- Eu vi. O incidente deixou Ana melancólica. Afundou nas almofadas da liteira, mal respondendo às aclamações dos habitantes de Bayeux.

Por que aquele homem não se dera a conhecer depois da morte do trovador? Ninguém pudera ou quisera responder às suas perguntas sobre aquele estranho cavaleiro.
Seu marido, Raul de Crépy, dizia que sob a máscara devia esconder-se o rosto de um nobre que ficara leproso depois de uma peregrinação à Terra Santa, e que o Bastardo,
por espírito de penitência, o mantinha a seu lado. Era possível, mas por que Guilherme sempre se recusara a falar sobre o cavaleiro mascarado?

A liteira parou, uma mão foi estendida para ajudá-la a descer. Um adolescente deslumbrante, de olhar meigo, cujo rosto lembrava-lhe outro rosto, estava de pé à
sua frente, com as cores da Normandia.

- Quem é você? Tenho a impressão de que já o conheço. - Sou Simon, filho de Raul, conde de Valois, e nourri de Guilherme, duque da Normandia.

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O filho de meu marido!... Mudou muito desde a última vez em que o vi... É quase um homem agora... muito em breve será sagrado cavaleiro.

Enquanto conversavam, encaminharam-se para a entrada do palácio episcopal, onde o bispo de Bayeux, Eudes de Conteville, aguardava seus hóspedes. Meio-irmão do
duque, que o pusera à frente daquele importante bispado, ele adquirira, apesar de sua juventude, uma grande autoridade sobre o clero Normando. Recebeu a rainha
com toda a consideração devida à sua posição, e a cunhada Matilde com uma afeição respeitosa.

- É uma honra e um prazer recebê-las aqui, nobres damas, em minha boa cidade de Bayeux. Espero que sua estada aqui seja a mais agradável. Que Deus as abençoe,
minhas filhas!

Durante o banho em que lavou a poeira e a fadiga da viagem, Ana pensou em Raul e lamentou sua ausência; sentia saudade de seu corpo grande e musculoso, de suas
carícias. Depois que ele a fizera descobrir o prazer, a presença de homens jovens e atraentes a emocionava. E havia muitos na corte de Guilherme. Ainda podia
sentir o olhar daquele conde inglês de quem Matilde não gostava, e corou com a perturbação que a dominou à lembrança. Cada noite daquelas três semanas passadas
longe de seu marido, que permanecera em Vexin para tomar posse das terras herdadas de seu primo Gautier de Mantes, parecia-lhe interminável. Só conseguia dormir
ao amanhecer, esgotada por sonhos que a deixavam insatisfeita. Tinha pressa de partir ao seu encontro em Magny, em Vexin, onde ele estava construindo um castelo,
com o qual queria homenageála antes do inverno. Centenas de servos e artesãos haviam sido requisitados para levar a termo essa operação impossível num prazo tão
curto, mas a palavra impossível não existia para o senhor de Péronne. Ele queria que tudo ficasse pronto antes do inverno... e, portanto, tudo seria concluído
nesse prazo. Ana sorriu. Aquele homem violento e cruel, temido por todos, demonstrava paciência e bondade para com ela e seus filhos. Empenhava-se em tornar sua
vida agradável, cercando-a de trovadores, músicos, mandando buscar trajes suntuosos, a peso de ouro. Quando não estava guerreando, organizava festas, torneios
e caçadas. Pusera à sua disposição grandes quantias de dinheiro, para suas esmolas e donativos a abadias e igrejas. Era um companheiro agradável, que gostava
do amor tanto quanto da guerra.

Aias foram ajudar a rainha a sair do banho. Nenhuma conseguira substituir Helena nesse serviço íntimo. Muitas vezes Ana sonhava com a

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mulher que a acalentara desde a infância, que, com sua presença e carinho, fizera com que sua vida de esposa desprezada se tornasse suportável. Deixou-se vestir,
suspirando.

Ao passo lento dos cavalos de desfile, os convidados do duque da Normandia chegaram à catedral, onde devia realizar-se a cerimônia do juramento de Haroldo.

Guilherme devia atribuir a essa cerimónia uma grande importância, pois não negligenciara coisa alguma para que sua pompa permanecesse na memória de todos para
sempre. Estandartes com as cores da Inglaterra, da Normandia (e da França, em homenagem à rainha-mãe) tremulavam sobre os prédios; as ruas estavam cobertas de
folhagens entremeadas com flores. A suntuosidade das vestimentas da corte normanda e dos arreios dos cavalos, do próprio sol que fazia faiscar as armas e as cotas
de malha, causaram uma forte impressão nos cavaleiros ingleses que acompanhavam o conde Haroldo. Lá estava o bispo de Bayeux todo paramentado, levando com orgulho
o báculo de São Pedro, cercado por muitos padres e monges.

Dando a mão a Ana e Matilde, o duque entrou na catedral ao som das trombetas. Depois que os nobres ali reunidos ocuparam seus lugares, de pé, sob as abóbadas
sagradas, os cantos dos monges da abadia de Jumièges elevaram-se, sustentados pelo órgão, do qual o prelado tinha o maior orgulho, pois era o único dos bispos
normandos a possuir um.

Depois de comungarem o pão e o vinho, o duque da Normandia e o conde de Wessex receberam a bênção episcopal. A um sinal do prelado, os servidores chamaram quatro
jovens monges. Estes trouxeram, num andor dourado, coberto por uma toalha ricamente bordada, um precioso relicário, que depositaram junto do altar. Haroldo adiantou-se
e, pondo a mão direita sobre o relicário, a esquerda sobre o altar, pronunciou em voz quase inaudível o esperado juramento de compromisso, na presença dos principais
barões normandos:

- Eu, Haroldo, conde de Wessex, filho de Godwin, juro solenemente que serei na corte de meu senhor o rei Eduardo, enquanto eu viver, o representante do duque Guilherme,
em cujas mãos entregarei, por ocasião da morte de Eduardo, o reino da Inglaterra. Prometo também entregar aos cavaleiros do duque o castelo de Douvres, após tê-lo
fortificado a minhas expensas, e garantir com abundância o abastecimento de outros castelos, situados em diversas partes do reino, que o duque ordenará que sejam
reforçados.

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Guilherme abraçou-o e confiou-lhe, a seu pedido, as terras que possuía, assim como todos os seus poderes.

No banquete que se seguiu, ingleses e normandos beberam tanto que só se recuperaram da bebedeira três dias depois.

Cercadas por suas damas de honra e aias, Ana e Matilde comentavam a cerimônia a que haviam acabado de assistir.

- Não acha que Haroldo tinha uma expressão fingida ao prestar o juramento? - indagou a duquesa.

- Só notei a sua palidez. Mas isso é normal, o momento era solene. Ele jurou sobre as santas relíquias.

- Sei disso... Mas é mais forte do que eu, não tenho confiança. É. um nobre poderoso, vive na corte da Inglaterra e exerce sobre o rei Eduardo, doente, uma grande
influência. Alega ter atravessado o mar para encontrar o duque a pedido de seu senhor...

- Por que não acreditar? - Ele não tinha nenhum documento confirmando isso quando encalhou na costa de Ponthieu, onde Guy o fez prisioneiro. Para conseguir sua
libertação, Guilherme teve de oferecer ao conde Guy muitos presentes, acompanhados de promessas e ameaças...

- Por que falar desse Haroldo, se você não gosta dele? - Tem toda razão. Em vez disso, falemos de você. Quase não nos vimos depois de seu casamento com o conde
de Péronne. Qual foi a reação do rei? Ouvi dizer que Filipe ficou muito infeliz, recusou-se a receber o padrasto...

- Não foi exatamente assim. No começo foi bastante difícil para ele e para mim. Você sabe que sua mãe, a condessa de Flandres, ficou contrariada com meu novo casamento,
tão pouco tempo depois da morte de seu irmão, e tentou lançar meu filho contra mim. O que foi um erro, porque quase tivemos uma briga séria, algo que comprometeria
o futuro do reino. Foi necessária toda a habilidade do arcebispo de Reims e a sabedoria de Gosselin de Chauny para apaziguar sua cólera e reconciliarnos. Quanto
ao rei, passou a conhecer Raul melhor e aprendeu a gostar dele.

Depois de um momento de silêncio, Matilde perguntou, corando: - O conde Raul é um bom marido? - Tanto quanto um homem pode ser - respondeu Ana, mais friamente
do que tencionava.

- Perdoe-me, estou sendo indiscreta... Deixaram de conversar sobre Raul de Crépy e passaram a falar

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sobre os trabalhos de bordado que a duquesa da Normandia mandara fazer para a igreja da Trindade.

Haroldo voltou à Inglaterra no início do outono, cumulado de presentes e homenagens. Ana foi encontrar-se com o marido em Soissons, onde também se encontrava o
jovem rei Filipe.

Uma grande alegria a aguardava em seu retorno: as obras de São Vicente haviam sido concluídas. Um mês depois, a 25 de outubro de 1065, a igreja dedicada à Santíssima
Trindade, a Nossa Senhora, a São João Batista e a São Vicente mártir foi consagrada pelo bispo de Senlis, Froland, na presença do rei, do arcebispo de Reims, Gervásio,
do conde e da condessa de Flandres, da duquesa da Normandia, do conde de Valois e dos nobres da corte.

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CAPÍTULO TRINTA E CINCO


A MORTE DE ROBERTO


- Deixe-me tratar do senhor, conde Roberto, senão contarei a sua mãe como está sendo um menino mau!

- Minha mãe pouco se importa que eu esteja doente. Prefere correr pelos bosques em companhia do excomungado.

- Quer fazer o favor de calar-se? Não tem vergonha de falar assim daquela que o pôs no mundo, e do senhor seu marido?

- Ela é que devia envergonhar-se! Não casou de novo logo no ano seguinte à morte do rei meu pai?

- A rainha ainda era jovem, precisava de um protetor. - Precisava de um protetor? Não tinha meu tio, o conde de Flandres, regente do reino?

O capelão do rei Filipe, em visita ao segundo filho da rainha Ana, levantou os braços para o céu.

- Mas o conde de Valois é bom para você, para seus irmãos e para sua mãe. E não integra o conselho do rei?

- Ele não foi excomungado pela Igreja por casar com minha mãe?

- Foi... mas... - Então minha mãe é adúltera! O capelão estremeceu e disse, com extrema severidade: - Acho, Roberto, que não está se dando conta do que diz. Sem
dúvida é a febre que o faz delirar. Procure descansar. Tais assuntos não são para uma criança.

- Não sou mais criança, daqui a pouco estarei com doze anos! Sou um homem!

- Quem fala em ser um homem? Você, meu filho?

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O rosto do jovem doente iluminou-se no mesmo instante, mas o brilho logo se extinguiu. Ele virou o rosto para a parede, sem dizer nada.

Ana suspirou. Dos três filhos, Roberto era o predileto, o que mais se parecia com ela: os mesmos olhos, os mesmos malares salientes, os mesmos cabelos ruivos, o
mesmo temperamento, alternadamente alegre, triste, divertido, desconfiado, espontâneo. O único que compreendia e falava fluentemente a língua da Rússia. Ele ainda
não tinha seis anos quando a mãe lhe ensinara cada um dos artigos da Russkaia Pravda, que Iaroslav, seu pai, elaborara quando se tornara o grão-príncipe de Kiev.
Ana ouvia fascinada o filho enumerar as reparações a que tinham direito as vítimas, o preço a pagar por tal ou tal crime. Para ela, era ao mesmo tempo uma oportunidade
de verificar os conhecimentos do filho e ouvir a língua russa. Mas desde que ele deixara a mãe para juntar-se a Filipe e receber educação igual à dele, seu comportamento
mudara. Quando Ana ia assistir às aulas de mestre Enguerrand e lhe fazia perguntas em russo sobre seu estudo, ele fingia que não compreendia e não respondia.

Quanto a Filipe, mal conseguia reprimir um sorriso de triunfo. Apesar de seus próprios esforços e do empenho do marido, o jovem rei não lhe perdoava o novo casamento.
Ana pensara que, com o passar do tempo, ele acabaria compreendendo e se tornaria amigo de Raul. Mas Filipe só suportava a presença do conde de Valois em sua corte
a pedido expresso do regente Balduíno, que temia a influência do conde sobre a rainha-mãe e vê-lo aliar-se com os inimigos do reino.

Ana sofria muito com a situação; sentia-se cada vez mais cansada. O anúncio de uma nova gravidez só contribuiu para aumentar sua fadiga e a hostilidade dos filhos.

Sentada ao lado do alto leito em que Roberto repousava, no salão do castelo de Senlis, ao abrigo dos olhares, por trás de cortinas espessas que abafavam o barulho
dos risos e vozes, Ana velava e rezava. Há vários dias a febre persistia e os medicamentos prescritos não faziam efeito. Ao saber que o afilhado estava doente,
Matilde enviara seu médico, João le Mire, que examinara o menino e declarara:

- Não é só no corpo que este menino está doente, mas também na alma. Só nos resta pedir a Deus que o cure.

Pedir a Deus? Há vários dias que ela Lhe pedia. Depois de uma noite que todos pensavam que seria a última, Ana deixou o castelo ao amanhecer, acompanhada apenas
por um escudeiro. Galopou, apesar da gravidez, até uma clareira perdida na floresta. Ali ficava a cabana de um eremita conhecedor de plantas e que todos diziam
ser um santo. - Monge, meu filho está morrendo. Dê-me um remédio.

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- Já não lhe deu os seus, acompanhados por fórmulas pouco cristãs?

- Já, mas sem resultados. - É evidente! As fórmulas que você pronunciou vinham do diabo, não de Nosso Senhor.

- Vinham dos deuses de meu país... Ajude-me, velho! O anacoreta manteve-se calado por um longo tempo, os olhos dirigidos para o céu. Ajoelhada na relva molhada,
Ana rezava. Finalmente ele baixou os olhos e fitou-a com compaixão.

- Vá, minha filha. Não posso fazer nada por você ou por seu filho. Tenha confiança em Deus e ore para a Santíssima Virgem Maria. Vá...

- Meu pai, suplico-lhe, o senhor não tem algum remédio? - Infelizmente, não. Esgotei todos os meus conhecimentos, só resta recorrer a Deus. E agora deixe-me...
Vou rezar por você, pobre mãe, e por seu filho.

Desesperada, sentindo de repente todo o cansaço do corpo, Ana voltou. Suas mãos sem forças não conseguiam mais controlar o cavalo. Abatida, a testa encostando
na crina, ela se deixou levar. Apreensivo, o escudeiro deteve-a.

- Rainha, devemos continuar? Não quer repousar por alguns instantes?

Sem endireitar-se, ela sacudiu a cabeça. Ele prendeu uma corda no cabresto e tornou a partir, a passo. Virava-se a todo instante, esperando ver a rainha deslizar
da sela. Amaldiçoava-se agora por haver obedecido e partido sem escolta, à mercê de um bando de salteadores. Ouvido atento, ele espreitava os ruídos da floresta.
Se acontecesse alguma desgraça à rainha, o conde de Valois o mataria. Apesar do frio, o escudeiro suava, angustiado por sua responsabilidade, pelo silêncio ameaçador
da floresta. Seu medo era tão grande que pensava divisar sombras esgueirando-se sob os galhos, desaparecendo por trás dos troncos. Sacou a espada. Então, tudo
aconteceu muito depressa.

Subitamente foram cercados por um bando de homens a cavalo, vestidos com farrapos, armados com chuços e porretes. Recuperando toda a sua coragem, o escudeiro colocou-se
entre a rainha e os homens. Lançado com força, um chuço atravessou-lhe a garganta. Ele caiu, salpicando sangue na rainha. Ana, que não se mexera desde o início
do ataque, empertigou-se. À vista do sangue manchando suas roupas e suas mãos, reanimou-se. Com altivez, olhou para os salteadores; eram cinco.

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Um deles, que parecia ser o chefe, adiantou-se. Ela sentiu por ele uma repulsa imediata: ele trajava um hábito de monge, imundo, sob o capuz brilhavam olhos perversos
e ameaçadores

- Acho que acabamos de conseguir uma boa presa, meus irmãos - disse o monge, fitando-a com uma expressão gananciosa. - Vejam os trajes, deve ser a mulher de um
rico nobre, de um conde, talvez.

- Está divagando. Desde quando a mulher de um conde passearia pela floresta com um simples escudeiro?

- Um simples escudeiro, não, mas um amante... - ... de quem ela estaria grávida! - Por Satã, tem toda razão, demos um golpe duplo! O gracejo sórdido arrancou
risos do bando. O mais jovem dos salteadores, com uma venda num olho, também se adiantou.

- Se queremos obter um bom preço, não podemos maltratá-la. - E quem falou em maltratá-la? Conheço muito bem o valor de uma boa mercadoria. Vamos trocá-la por lindas
peças de ouro.

Uma criatura disforme, de braços muito compridos e pernas muito curtas, saltou do cavalo e aproximou-se de Ana, contemplando-a com insolência.

- Sem maltratá-la, não poderíamos nos divertir um pouco? - indagou ele.

- Isso mesmo, vamos nos divertir! - Vamos, rapazes, essa nobre dama não parece estar com vontade de se divertir... Deve preferir os galantes perfumados da corte
a pobres vagabundos como nós. Não tem vergonha, mulher impura, de oferecer seu corpo conspurcado aos poderosos deste mundo e recusá-lo aos miseráveis? Lembre-se
da palavra de Cristo: bem-aventurados os pobres, deles é o Reino dos Céus... Está me entendendo, mulher dissoluta? Nós somos reis, foi Nosso Senhor quem o disse!
Chegou o tempo da Besta de sete cabeças e dez chifres... O dragão lhe deu sua força e seu grande poder... Trema, mulher, não terá a grande águia, suas asas não
a levarão para o deserto, longe de nós. A mim, demônios criados pelo Deus Todo-Poderoso, venham aniquilar esta mulher mais prostituída do que Babilônia a Grande,
que se sacia com o sangue dos santos e o sangue dos mártires de Jesus!

Apavorada, Ana via aquele monstro gesticular, sua boca babando e desdentada cuspindo horríveis blasfêmias. "Vou morrer", pensou. A criança em seu ventre se mexeu.
"Pobre criança, só conhecerá da vida o calor do meu ventre!" Tirou da manga um punhal que sempre a acompanhava.

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- Cuidado! A prostituta vai se matar! Num mesmo ímpeto, todos correram para ela. O cavalo, assustado, deu um salto; o punhal baixou. As dobras do manto impediram
que o golpe fosse mortal. Um sangue quente escorreu entre seus dedos.

E foi nesse instante que um cavaleiro apareceu a galope, espada na mão, interpondo-se entre a rainha e os atacantes.

- O cavaleiro mascarado! - gritaram todos ao mesmo tempo. - Voltamos a encontrar-nos! - exclamou Filipe. - Afaste-se, maldito! Isto é assunto nosso! - O que
está querendo dizer com isso, cão? - Esta dama é minha refém, ela me pertence. - Creio que se engana. Se você e os seus derem um passo, vou matá-los, juro por
Mora!

- Somos cinco e você está sozinho. - Podiam ser uma centena e não me meteriam medo. - Aiii! Filipe acabara de cortar a mão de um dos bandidos, que fugiu pela
floresta, gritando.

- Quem será o próximo? - Você! - berrou o monge, desferindo um golpe que por pouco não atingiu o braço do cavaleiro mascarado.

Traiçoeiramente, o homem de pernas curtas deslizou para trás de Filipe.

- Cuidado, cavaleiro! - gritou Ana. A espada atravessou o corpo do atacante. As pernas curtas ainda se agitaram por um instante na lama, antes de se imobilizarem
para sempre. Enlouquecidos pelo medo, os cavalos davam coices para todos os lados, relinchando. Filipe desmontou e arrancou o monge de sua montaria.

- Desta vez vou matá-lo, o que já deveria ter feito há muito tempo!

O monge levantou-se, empunhando uma espada curta, com a qual trespassou o corpo de um dos seus companheiros e, com uma agilidade surpreendente, montou no cavalo
do infeliz, cutucando-o com a ponta de sua arma, antes que Filipe tivesse tempo de reagir. A dor deu asas ao pobre animal, que partiu como uma flecha.

- Ainda não nasceu aquele que me matará! - gritou o monge, com um riso de demente. - Voltaremos a encontrar-nos e serei eu quem mandará você para o outro mundo!

Ele se afastou, seguido pelo sobrevivente. Filipe hesitou em persegui-lo; um gemido deteve-o. Mal houve tempo para amparar Ana

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em seus braços. Apesar do medo de que ela estivesse morta, pensou que ia desfalecer de felicidade quando a apertou contra seu corpo. Ela estava apenas desmaiada.
Com todo cuidado, acomodou-a ao lado de uma árvore. A frente do vestido estava manchada de sangue; com a ajuda de seu punhal, ele rasgou o tecido. O ferimento
era logo abaixo do seio esquerdo, pouco profundo, mas grande. Tremendo, Filipe contemplou aquele corpo tão amado, semidespido, que carregava a vida. Com carinho,
passou a mão pelo ventre estufado e sentiu a criança mexer-se. Perturbado, afastou a mão precipitadamente e foi procurar um pouco de musgo para aplicar no ferimento.
Ana gemeu.

- Perdoe-me. Eu a machuquei. Ela abriu os olhos e teve um sobressalto ao vê-lo debruçado sobre seu corpo.

- Não tenha medo... Aquela voz rouca dissipou todos os temores de Ana. Sentia-se em segurança entre as mãos daquele homem que já a salvara. Um pequeno sorriso
insinuou-se em seus lábios. Filipe ficou transtornado. Como ela era linda, apesar da exaustão, do rosto pálido e encovado! Para ele, Ana não mudara, seria sempre
a princesa de Novgorod, que outrora corria pela relva alta das planícies, colhendo buquês que lhe atirava rindo. Suas lembranças eram tão fortes que fechou os
olhos no momento em que os olhos de Ana pousaram nos seus. Uma lágrima deslizou pela máscara de prata.

- Por que está chorando? - perguntou ela, numa voz terna. Ele não respondeu de imediato. Ana insistiu: - Por que está chorando? - Talvez por minha juventude perdida...
Ana suspirou. - Não se deve chorar o passado, só o presente conta, e a vida eterna que nos reunirá a Nosso Senhor. Meu Deus, estou aqui e meu filho está morrendo!
Depressa, leve-me a Senlis!

Depois de endireitar suas roupas, Filipe levantou-a e ajeitou-a no seu cavalo. Sentou atrás dela e partiu a passo.

- Mais depressa! Mais depressa! - Isso pode agravar seu ferimento... - Que importa? Mais depressa! A contragosto, ele obedeceu, passando o cavalo para o trote.
- Mais depressa! Ana aninhou a cabeça contra o peito do cavaleiro. Sentia-se bem, apesar da dor que a fazia comprimir os lábios, do sangue que escorria,

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do medo de ver seu filho morrer. Parecia-lhe que sempre estivera ali, contra o peito daquele estranho. Sentia-se tão segura quanto no tempo distante em que Filipe...
Mas por que pensava naquele amor da juventude num momento como aquele? Ana virou o rosto para o homem: só havia aquela máscara impenetrável...

O cavalo a galope dilacerava seu corpo, gemidos escaparam de seus lábios. O cavaleiro mascarado diminuiu a velocidade. Firmou o braço em torno da cintura de Ana.
Ah, que o tempo parasse! Que Deus, em sua misericórdia, os levasse juntos, enfim desembaraçados de sua carcaça humana, para serem, em Seu amor, uma única e mesma
alma!

Um grito da amada trouxe-o de volta à realidade. Ana estava inerte em seus braços.

- Deus! - gritou Filipe. - Não a leve sem mim! Empurrando os guardas, ele entrou no salão do castelo de Senlis carregando a rainha inanimada. Pajens e servidores
corriam para todos os lados, sem lhe darem qualquer atenção. No salão, todos choravam, enquanto padres rezavam. Enfim o notaram, ele e seu real fardo. Todos se
afastaram, assustados. O rei, ajoelhado ao pé do leito, levantou-se bruscamente.

- Minha mãe! Balduino de Flandres e Raul de Crépy olharam aturdidos para o cavaleiro ensangüentado e enlameado, de rosto mascarado, que carregava a rainha-mãe
coberta de sangue, os cabelos compridos desgrenhados, misturados com folhas e terra, arrastando-se pelo chão.

- Ana! O conde de Valois, muito pálido, quis tomá-la dos braços do estranho, mas este depositou-a no leito em que estava o menino moribundo. Filipe pegou uma das
mãos da rainha e a pôs sobre a do filho. O menino estremeceu ao contato. Estendidos, um ao lado do outro, a semelhança era tão impressionante que as lágrimas redobraram.

Roberto abriu os olhos. - Mãe... - disse ele, a voz clara e forte, virando o rosto para ela. Ao chamado, a rainha recuperou os sentidos e tentou erguer-se. Afastando
as damas de honra e Raul, Filipe amparou-a.

- Meu filho querido, estou feliz por ver você de novo! O menino apertou a mão da rainha e sorriu.

Perdoe-me, minha mãe, por causar-lhe tanto tormento e tristeza, mas sinto que Deus Todo-Poderoso me chama... Adeus... eu amo você...

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Na noite seguinte à morte de Roberto a condessa de Valois pôs no mundo um filho que nasceu morto.

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CAPÍTULO TRINTA E SEIS


A MORA


Mais uma vez, temeu-se pela vida da rainha-mãe e foram feitas preces por todo o reino e além. Seu irmão mais velho, Vsevolod, que se tornara o grão-príncipe de
Kiev, avisado de sua doença, mandou seu próprio médico; o rei da Noruega, Harald, e sua irmã Elisabete enviaram relíquias sagradas; Guilherme e Matilde da Normandia
fizeram um retiro em sua intenção no Mont Saint-Michel; o próprio papa mandou uma mensagem dizendo que rezava por ela.

Durante todo o tempo em que permaneceu inconsciente, Filipe manteve-se à sua cabeceira, para profundo descontentamento de todos. Haviam tentado afastá-lo depois
da morte do pequeno Roberto, mas sempre que ele não estava a seu lado, Ana se agitava, chorando e gritando. Raul de Crépy foi obrigado a aceitar a presença daquele
cavaleiro que estimava por sua coragem, mas que continuava negando-se a revelar seu nome.

- Espero que pelo menos você não seja leproso! - exclamou um dia o conde de Valois.

Apesar das circunstáncias, Filipe não pôde deixar de rir. - Não, conde, não sou leproso. Pode verificar pessoalmente. Ele desfez os laços de couro que prendiam
a máscara e mostrou o rosto horrível. Um murmúrio de medo e compaixão percorreu a assistência. O próprio Raul empalideceu.

- Perdoe-me, cavaleiro. Continue ao lado de minha mulher, já que sua presença parece acalmá-la.

- Dou-lhe minha palavra de que irei embora assim que ela recuperar os sentidos.

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Passaram-se longos meses. E de repente, numa manhã clara de inverno, a condessa de Valois abriu os olhos, sentindo-se ao mesmo tempo exausta e descansada... Por
trás das cortinas altas que cercavam seu leito, reinava um calor intenso, mantido por um braseiro vigiado por um valete sonolento. Erguendo-se penosamente, Ana
abriu as cortinas. Numa cadeira de encosto alto, dormia um homem que a princípio ela tomou por Raul. No sono, o homem se mexeu. Foi sem surpresa que ela reconheceu
o cavaleiro mascarado. Uma vertigem a fez recair sobre os travesseiros. Ergueu os braços, espantou-se ao constatar sua magreza. Há quanto tempo estaria naquele
leito? Deslizou a mão sob as cobertas e apalpou a barriga. A memória voltou subitamente. Lágrimas começaram a escorrer, silenciosamente. Jamais tornaria a ver
os cachos ruivos do pequeno Roberto, nunca mais o veria, alegre e bonito, montado num cavalo, nem o ouviria cantar na língua russa as canções de sua infância.
Morto! Ele estava morto! Deus o levara. "Oh, Virgem Maria, vós que fostes mãe, dai-me forças para perdoar a Vosso Santíssimo Filho por têlo chamado... Não sinto
mais a criança que havia em mim... Ele a levou também?" Não havia berço! Não havia choro! As lágrimas se tornaram mais intensas. Sem dúvida era para puni-la por
seu casamento com um adúltero que Deus não permitia que vivessem os frutos dessa união criminosa. "Senhor, como é cruel!" Pouco a pouco, a oração amainou as
lágrimas. Fatigada, ela adormeceu.

A noite caíra quando tornou a abrir os olhos. Delineadas pela luz bruxuleante das tochas, sombras moviam-se por trás das cortinas, que uma mão afastou. O cavaleiro
mascarado contemplou a rainha por um longo momento. Com profunda emoção, fitou a cabeleira em que mechas brancas se misturavam agora com os cabelos ruivos. Um
pouco de cor voltara a suas faces e lábios. Apesar da magreza, como continuava linda! Por trás das pálpebras semicerradas, Ana observava-o e se lembrava. Estendeu
a mão para ele. O homem hesitou, antes de pegá-la. A partir do momento em que seus dedos se tocaram, Ana o reconheceu, negando-se a admiti-lo. Para ela, Filipe
de Novgorod estava morto desde o dia em que a deixara no caminho que levava à França.

Ele se sentiu reconhecido, mas percebeu também a recusa de Ana em acreditar. Ficou aliviado e profundamente desesperado ao mesmo tempo. Contemplou-a intensamente,
incapaz de afastar-se daquela mulher que era toda a sua vida. Sem largar a mão que se abandonava, Filipe ajoelhou-se. Ficaram assim por um longo tempo, incapazes
de falar. Apesar da fraqueza, Ana recuperou-se primeiro:

- Muito obrigada, cavaleiro. Fez por mim mais do que qualquer outro homem. Quero que saiba que me compadeço de seus sofrimentos

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e peço a Deus para atenuá-los. Agora, retire-se, por favor. Que Deus lhe conceda misericórdia e perdoe seus pecados.

Ele devia partir: seu juramento, sua promessa, ela própria, tudo assim exigia.

Ana retirou a mão; mais uma vez, Filipe sentiu-se despojado de tudo, mais vazio e mais sozinho do que jamais estivera, mais velho também.

Há quanto tempo Raul os observava? Não tinha a menor importância, pois ele estava de partida e Ana nunca mais tornaria a vê-lo.

- A rainha está muito melhor, conde. Vou embora. - Aceite isto como um agradecimento - disse Raul, estendendo uma bolsa cheia de peças de ouro.

A máscara ocultou o súbito rubor que dominou o rosto de Filipe. Sob a afronta, instintivamente levou a mão à espada. Não estava ali, deixara-a aos cuidados de
seu escudeiro.

- Não espero agradecimentos, conde. Dê isso aos pobres. Adeus e cuide bem dela.

Sem olhar para trás, empurrando o escudeiro que se aproximara correndo, Filipe deixou o castelo de Senlis.

Para surpresa dos médicos, Ana recuperou-se depressa. Um desligamento sereno substituiu seus gritos e lágrimas. Havia ocasiões em que até a surpreendiam com um
estranho sorriso nos lábios. Recobrou forças suficientes para poder assistir à missa solene que assinalou a abertura do mosteiro de São Vicente aos sacerdotes
regulares da ordem de Santo Agostinho e a seu prior, Liétaud, vestidos, ao contrário do branco dos outros agostinianos, em hábito e capuz vermelhos, em memória
do sangue de seu santo mártir, o diácono Vicente.

Foi pouco depois dessa cerimônia que chegou a notícia da morte do rei da Inglaterra, Eduardo, ocorrida a 6 de janeiro de 1066, e a coroação no mesmo dia do conde
de Wessex, Haroldo, quebrando com isso o juramento que fizera a Guilherme.

A 24 de abril apareceu na Inglaterra, na Normandia e na França uma estrela que se julgava voltar em períodos regulares e a que se chamava cometa ou estrela de cabeleira;
brilhou durante uma semana. Algumas pessoas na Inglaterra viram nisso um funesto presságio para seu país: Deus faria cair lágrimas de sangue em expiação pelo perjúrio
de seu novo rei. Na Normandia, Guilherme viu na estrela um sinal de

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que Deus estava do seu lado e deu ordens para se preparar a invasão da Inglaterra. Todos deviam participar, do nobre senhor ao pobre-diabo. Os meio-irmãos de Guilherme,
Roberto, conde de Mortain, e Eudes, bispo de Bayeux, empenharam-se em fornecer-lhe embarcações; um, cento e vinte, o outro, cem. De seus recursos pessoais, Ana
enviou um baú cheio de ouro e jóias para Matilde, para que fossem usados na construção da nave de Guilherme, reiterando-lhes sua afeição e prometendo rezar pelo
êxito da campanha. Os soberanos normandos ficaram comovidos com a atenção de sua querida amiga.

- Ana antecipou-se aos meus desejos - disse Matilde. - Eu queria oferecer-lhe essa embarcação, agora nós duas o faremos. Se não se opuser, ela se chamará Mora.

Guilherme abraçou-a. - Minha querida amiga, você e a rainha me cumulam de gentilezas. Não acho que as mereço, mas aceito de bom grado esse presente generoso das
duas pessoas que mais amo no mundo. Você, porque é a esposa mais amante, mais fiel; ela, porque...

- Continue! - É difícil dizer... - EntãO direi por você: porque ela é inacessível e bela, estranha, ora alegre, ora triste, ora forte, ora fraca... e porque ela
o seduziu ao primeiro olhar.

Marido e mulher calaram-se, fitando-se com ternura. - É verdade que a amei desde que a vi, como... Deus me perdoe por dizer isso... como a sereia das canções das
fiandeiras de Falaise. Mas você, minha cara, amei-a como mulher. Já não o provei várias vezes, inclusive na noite passada?

- Também nunca me queixei, e aprovei seu amor pela rainha Ana, amor que partilho.

- Pois bem, essa nave se chamará Mora!

A 18 de junho, o conde e a condessa de Valois foram a Caen para a consagração da igreja abacial da Trindade, construída por Matilde. Além dos ricos donativos que
o duque e a duquesa da Normandia fizeram à abadia para mulheres, ainda ofereceram como oblata, àquela morada de Deus, sua filha Cecília, que tinha cinco anos. Visitaram
os estaleiros, inclusive o de Barfleur, onde estava sendo construída a Mora. Ana declarou-se encantada com a beleza da embarcação. Depois, junto com Raul, foi
admirar, da aldeia de Saint-Sauveur, dominando o estuário do Dives, a parte principal da frota normanda. Ficaram impressionados

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com as centenas de embarcações que balançavam levemente ao sol. Não soprava uma brisa, nenhuma nuvem ofuscava o azul do céu. Há muito não se via um verão tão bonito.
As colheitas anunciavam-se prematuras e abundantes. Os camponeses não temiam a pilhagem de milhares de soldados. Bretães, franceses, borgonheses, poitevinos, alemães
acorriam, às vezes de muito longe, para alistar-se no exército do duque, que prometera a todos um bom soldo e ricos despojos; as ordens de Guilherme eram categóricas:
nada de pilhagens na Normandia! Nos acampamentos, para surpresa de muitos, prevalecia uma disciplina que causava admiração a todos. Raul de Crépy ficara muito impressionado.
Mesmo assim, circulavam opiniões derrotistas; os mais velhos recordavam a expedição malograda de Roberto o Magnífico; o filho se sairia melhor? Desconfiava-se de
seus recursos; o pagamento aos mercenários esvaziara seus cofres. Guilherme tivera de prometer terras e uma pilhagem abundante no outro lado da Mancha. Além disso,
exagerava-se a riqueza do usurpador.

- Por mais rico que seja, ele não está em condições de acenar a seus homens com a esperança de conquistar o que me pertence - disse Guilherme. - Eu, ao contrário,
posso prometer aos que me seguirem uma parte dos bens que legitimamente me pertencem, e que Haroldo arrogou a si injustamente.

Ana e Raul atravessaram o Dives para visitar o acampamento de Cabourg, onde estavam instalados milhares de homens, à espera do dia do embarque. Dissimulavam sua
impaciência jogando dados, correndo atrás de mulheres, pescando ou perseguindo-se, aos gritos, entre as ondas. Algumas brigas estouraram, mas foram punidas com
tanto rigor que se tornaram cada vez mais raras. Contudo, por volta de 15 de agosto alguns impacientes resolveram embarcar sem esperar pela ordem. Foi uma catástrofe:
ventos contrários, que se levantaram bruscamente, jogaram as embarcações umas contra as outras. Houve mortos, que foram enterrados rápida e discretamente.

Novamente o sol voltou a brilhar, implacável. Não havia a menor brisa. Sufocados, os cavaleiros e seus homens esquadrinhavam o céu esbranquiçado pelo calor. Nos
campos ao redor a colheita ia muito bem. Só os camponeses manifestavam sua alegria: graças à firmeza do duque, os campos não haviam sido devastados pelos soldados
desocupados, e a colheita abundante afastava o espectro da fome.

Em fins de agosto, Ana teve a satisfação e o orgulho de ver a Mora deixar o estaleiro de Barfleur, conduzida por vinte remadores, tremulando sobre ela o estandarte
de São Pedro, presente do papa Alexandre a Guilherme, acompanhado por sua bênção. A multidão de guerreiros,

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apinhada na margem, aclamou aos gritos a entrada da nave no estuário. Lanfranc, que agora era o abade de Saint-Etienne, abençoou a embarcação, na presença
do duque e da duquesa da Normandia, do conde e da condessa de Valois, dos barões, dos cavaleiros e de todos os que deviam participar da expedição. Depois, o duque
e seu séquito retiraram-se para o castelo de Bonneville.

Para matar o tempo e distrair seus hóspedes, Guilherme mandou buscar trovadores e menestréis, que cantaram as façanhas dos conquistadores normandos na Itália.

Abruptamente, o tempo mudou e uma tremenda tempestade desabou sobre a Mancha, impedindo qualquer saída para o mar. Guilherme mandou redobrar as orações e procissões;
fundou, perto de Bonneville, o priorado de São Martinho, na esperança de obter mais clemência do céu. Nos acampamentos, a irritação dos soldados chegava ao auge.
A tempestade finalmente cessou e o vento, embora forte, tornou-se regular. A 10 de setembro, o duque deu a ordem de embarcar e subir pela costa normanda até a embocadura
do Somme. Ana e Matilde embarcaram na Mora, que levantou âncora ao final da noite. Fazia frio e, apesar dos mantos forrados de pele, as duas mulheres, enlaçadas,
tremiam. O barco partiu sob o vento, à testa da frota. Nos penhascos, nas praias, nos portos, as aclamações de alegria dos normandos, vindos em grande número de
todos os cantos do país para assistir à partida, formavam um cortejo triunfal para aquele a quem não ousavam mais chamar o Bastardo. Subitamente, o vento tornou-se
violento, soprando na direção da costa. A Mora resistiu valentemente à atração fatal, mas numerosas embarcações não tiveram a mesma sorte. Sob os olhos horrorizados
de todos, várias naufragaram, enquanto outras partiam-se contra a margem. Ajoelhadas, segurando-se no mastro, Ana e Matilde rezavam. Na confusão de seu espírito,
Ana teve a impressão de ouvir o irmão Vladimir relatar a batalha naval que perdera para os bizantinos.

Muito pálido, o rosto fustigado pela chuva, Guilherme dava ordens. Bravamente, a Mora resistiu. A tempestade finalmente amainou; dia 12 ancoraram em São Valério.
Lá, o duque da Normandia fez um levantamento das perdas; eram consideráveis, tanto em homens quanto em cavalos e embarcações. Em companhia de Guy de Ponthieu e
de alguns homens de total confiança, percorreu a costa e mandou sepultar em segredo os mortos rejeitados pelo mar. Deu ordens para que se minimizassem as perdas,
consolassem os que haviam perdido tudo e dobrassem as rações de carne e vinho.

A espera recomeçou no acampamento rapidamente montado em São Valério. O tempo estava frio e úmido, chovia com freqüência.

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Quando não se encontrava na igreja, orando, Guilherme era visto na praia, esquadrinhando o céu, estremecendo quando via o galo no campanário mover-se. Fez desfilar
pelas ruas da cidade, em procissão, o corpo santo do confessor Valério. Ana e Matilde visitavam os doentes e feridos, encorajando-os com palavras gentis e presentes.
A presença das duas acalmava a ansiedade e o nervosismo dos soldados, restituía-lhes a coragem.

Foi em São Valério que receberam a notícia do desembarque do rei Harald da Noruega, cognominado Hardrada, no norte da Inglaterra. Apesar de sua bravura, as tropas
de Haroldo tinham sido derrotadas em York. Guilherme viu nisso o sinal de que Deus estava do seu lado e ficou feliz com a vitória dos noruegueses.

- Mas Hardrada também cobiça a coroa da Inglaterra - observou seu irmão Odon.

- Nesse caso entraremos em guerra com ele e o expulsaremos! Essa declaração deixou Ana consternada. A idéia de que Harald e Guilherme pudessem bater-se era-lhe
insuportável.

- Senhor, quando estiver diante dele, lembre-se de que ele é o marido de minha querida irmã Elisabete, e de que o amo ternamente.

- Senhora, prometo que não esquecerei...

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CAPÍTULO TRINTA E SETE


THOR AÏE


Na noite de 27 para 28 de setembro de 1066, parou de chover e o vento passou a soprar para o sul. O duque deu a ordem de preparar a partida. Depois de ouvir uma
última missa na igreja de São Valério, dirigiu-se à praia para o embarque. A duquesa, a quem confiara o governo da Normandia, acompanhou-o, junto com as damas
da corte e o conde e a condessa de Valois.

- Minha dama, confio-lhe o belo país da Normandia. Governe-o com sabedoria, pelo tempo que durar a minha ausência. Meu amigo fiel e também seu, o prior Lanfranc,
a ajudará com seus sábios conselhos. Com a ajuda de Deus, da Santíssima Virgem Maria e do arcanjo São Miguel, vele por ele como por nossos filhos.

Guilherme abraçou ternamente Matilde, que respondeu: - Fique certo, meu senhor, de que tudo farei para que se orgulhe de mim. Tenha cuidado, e que Deus lhe conceda
a vitória!

O duque voltou-se para Ana e dobrou um joelho no chão. - Quanto à senhora, condessa Ana, madrinha da minha nave, reze por mim.

- Nem um dia se passou sem que tenha orado por você. De hoje, até sua vitória, redobrarei minhas preces. Deus o proteja, Guilherme!

O duque levantou-se, voltou-se para Raul de Crépy, de pé ao lado da esposa, e disse-lhe:

- Conde, cuide bem da rainha. Sabe o quanto ela me é cara. - Também para mim, senhor, e não há necessidade de sua recomendação para que cuide bem de minha mulher.
Invejo-o por vê-lo partir para a guerra. Se não tivesse tantas responsabilidades, iria com você. Que Deus o guarde, Guilherme!

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Embarcados à noite, os cavalos estavam calmos a bordo das embarcações; os últimos homens acabaram de acomodar-se. O Conquistador e seus lugar-tenentes ajoelharam-se
para receber a última bênção do bispo de Bayeux. Após um derradeiro gesto de adeus, ele subiu na Mora, onde um trombeteiro, na proa, deu o sinal de partida. Lentamente,
remando, a frota saiu do canal para a ponta do Hourdel, onde as velas foram içadas.

A corte seguiu a cavalo até a ponta. Ali, do alto, assistiu ao desfile imponente. Uma a uma, soltaram-se as velas. Dominando-as todas, a vela vermelha com faixas
douradas da Mora faiscava ao sol poente. Todos se calaram, emocionados com a visão de centenas e centenas de embarcações que partiam para a conquista da Inglaterra.
Só se divisavam alguns pontos no horizonte, quando Ana e Matilde decidiram finalmente voltar.

A Mora, mais rápida, distanciou-se tanto das outras embarcações que Guilherme, que não queria desembarcar à noite, deu ordem para recolher as velas, lançar âncora
e acender tochas para orientar as outras embarcações. A parada desagradou sua equipagem e inquietou-a. Para dissipar os temores, ordenou que lhe servissem o jantar
e convidou os companheiros a partilharem do repasto. O bom humor simulado do duque e o vinho generoso desanuviaram os espíritos. Subitamente, o vigia gritou:

- Navios no horizonte... São quatro... seis... dez... cem! Parecia uma "espessa floresta de árvores com velas". Pela voz do arauto, foi transmitida a ordem para
que os navios reduzissem a velocidade e se mantivessem com as âncoras abaixadas, aguardando o amanhecer.

Todos acharam que demorava muito. Finalmente a trombeta soou. Levantaram âncora e as velas foram enfunadas. Era a manhã de 29 de setembro, dia de São Miguel, padroeiro
da Normandia.

Um vento favorável levou-os rapidamente à costa. Atracaram por volta das três da tarde, na enseada de Pevensey; o tempo estava bom. Não havia um inimigo à vista,
tudo parecia deserto. Gritos de alegria partiram das embarcações. Os arqueiros, arma em punho, foram os primeiros a desembarcar, correram pela praia e entrincheiraram-se
para proteger o desembarque dos outros. Reinava uma tremenda confusão. Depois dos homens, foram desembarcados os cavalos; muitos tentaram escapar, para grande
desespero dos valetes, que corriam para todos os lados. Os carpinteiros apanhavam os instrumentos necessários para fazer

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as fortificações, os cozinheiros cuidavam das provisões, os escudeiros das armas e armaduras, os marujos recolhiam as velas e ajustavam os remos, enquanto os cavaleiros
se preparavam. Guilherme supervisionava. Desembarcando por último, sob as aclamações dos guerreiros, tropeçou e caiu para a frente, apoiando-se com a palma das
mãos. Um clamor elevou-se da multidão e muitos comentaram:

- É um mau presságio. Mas Guilherme levantou-se rindo, ergueu as mãos acima da cabeça e gritou bem alto:

- Senhores, pela graça de Deus tomei posse desta terra a plenas mãos e, estejam certos, nunca mais a largarei. Ela é toda nossa. E agora quero ver quem se comporta
com audácia!

Um cavaleiro, entendendo o que ele queria dizer, correu para a terra, arrancou um punhado de colmo de uma cabana abandonada e voltou para junto do duque. Pôs
um joelho no chão e disse:

- Senhor, avance. Receba isto como um símbolo dos seus direitos. Eu o faço senhor do país; ele é seu sem contestação!

Guilherme, sempre sorrindo, respondeu: - Assim espero. E que Deus seja meu sustentáculo. Mais uma vez, seus homens o aclamaram. Wadard, mestre da intendência,
agiu com presteza. Seus ajudantes espalharam-se pelo campo, abatendo galinhas e ovelhas, porcos e bois. Fogueiras foram acesas, puseram-se os animais para assar.
Menos de três horas depois de ter pisado em seu novo território, Guilherme ali fez sua primeira refeição, abençoada por seu irmão Odon.

Depois de uma noite de repouso, ele partiu para explorar os arredores, acompanhado por vinte e cinco cavaleiros. O terreno pantanoso não era propício ao avanço
das tropas. Depois de deliberar com seu conselho, o duque decidiu transferir-se para a península de Hastings e lá entrincheirar-se. A transferência foi efetuada
por terra e mar.

Durante duas semanas a península ressoou com o barulho dos martelos dos carpinteiros que construíam paliçadas e fortificações de madeira sobre elevações. Guilherme
estava em toda parte: inspecionando as fortificações, verificando o estado dos cavalos e armas, explorando a região ao redor. Foi na volta de uma dessas expedições
de reconhecimento que ele soube da derrota do exército norueguês e da morte do rei Harald, em Stamfordbridge, a 25 de setembro. Guilherme pouco conhecia o Hardrada,
mas apreciava a sua coragem. Ditou uma carta para a rainha Ana, assegurando-lhe que compartilhava de sua tristeza.

Um monge, enviado por Haroldo, apresentou-se com um pedido de negociações relativas aos direitos de seu senhor ao trono da Inglaterra. - Eis o que o rei Haroldo
o faz saber: o senhor entrou em seu

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território, ele não sabe com que presunção e com que temeridade. Ele bem se lembra de que o rei Eduardo primeiro decidiu escolhê-lo como herdeiro do trono da Inglaterra
e de que pessoalmente ele próprio, na Normandia, confirmou-lhe essa sucessão. Ele sabe também que este mesmo reino lhe pertence, pois o próprio soberano, seu senhor,
deu-o a ele em seus últimos instantes e, desde os tempos em que o bem-aventurado Agostinho de Canterbury vivia neste país, é costume geral nesta nação considerar
válidas as doações efetuadas nos instantes finais. É por isso que pede que deixe este país com seus guerreiros. Caso contrário, romperá a amizade e todos os tratados
que firmou com o senhor na Normandia; e deixa a decisão exclusivamente a seu critério.

O duque escutou o monge com muita calma. Depois de alguns momentos de reflexão, perguntou:

- Assume o compromisso de levar, em segurança, um dos meus mensageiros até seu senhor?

- Senhor, cuidarei dele como de mim mesmo. Foram buscar Huon Margot, monge copista na abadia de Fécamp. Guilherme disse-lhe:

- Transmita fielmente minhas palavras a Haroldo, que se diz rei da Inglaterra: "Não é com temeridade e injustiça, mas deliberadamente, e conduzido pela justiça,
que vim para este país, do qual meu senhor e parente, o rei Eduardo, designou-me herdeiro, como o próprio Haroldo reconhece. Ele me julgava também, entre todos
os que lhe eram ligados pelo nascimento, como o melhor e o mais capaz, seja de socorrê-lo enquanto vivesse, seja para governar seu reino após sua morte; e essa
escolha não foi feita sem o consentimento dos nobres do reino, que juraram receber-me como seu soberano depois da morte de Eduardo, prometendo que jamais tentariam,
enquanto fossem vivos, apoderar-se deste país para privar-me de sua posse. Ele me entregou como garantia o filho e o sobrinho de Godwin. Finalmente, enviou o próprio
Haroldo à Normandia para que, na minha presença, prestasse o juramento que já fora feito por seu pai e os outros nobres na minha ausência. Ele me prestou homenagem
por sua própria conta, e suas mãos nas minhas asseguraram-me também o reino da Inglaterra. Estou disposto a defender minha causa em juízo contra ele, de acordo
com as leis da Normandia, ou até mesmo da Inglaterra, como Haroldo preferir. Se os normandos e os ingleses decidirem, segundo a justiça e a verdade, que este reino
lhe pertence legitimamente, que ele o possua em paz; mas se concluírem que, por justiça, deve ser meu, que ele mo entregue. Se ele recusar esta proposta, não
quero que meus homens e os seus pereçam num combate, pois não são de forma alguma culpados de nossa desavença. Portanto,

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estou disposto a sustentar, arriscando minha cabeça contra a sua, que o reino da Inglaterra por direito pertence a mim, não a ele."

Seus irmãos, o bispo de Bayeux e o conde de Mortain, assim como os membros presentes do seu conselho, aprovaram os termos da mensagem.

Haroldo recusou o combate singular e ordenou que suas tropas se preparassem para a batalha. Como o pressionassem a dar uma resposta, ele declarou o seguinte:

- Que Deus decida entre mim e Guilherme e segundo o direito. Essas palavras foram transmitidas a Guilherme, que ficou furioso ao tomar conhecimento da aproximação
do inimigo. Grande parte dos normandos partira em busca de provisões, o acampamento se encontrava quase vazio. Guilherme ordenou que todos os que ali estavam se
armassem imediatamente. O duque e seus companheiros assistiram à missa com profunda devoção. Ele pendurou no pescoço as relíquias sobre as quais Haroldo prestara
juramento. Entregaram-lhe sua couraça - Um movimento desajeitado a fez voltar-se para a esquerda quando a punha.

- Um péssimo augúrio! - murmurou alguém. O duque soltou uma risada. - Ao contrário, vejo nisso um sinal de mudança: hoje sou duque, amanhã serei rei.

Enfim equipado, ele subiu num promontório, diante do exército normando. Perto dele, dois bispos usando couraças sobre as vestes episcopais, Eudes de Bayeux e Geoffroy
de Coutances; o filho de Roy le Blanc conduzia o estandarte pontifical. Com uma voz vibrante, Guilherme gritou:

- Meus companheiros, saudações! Chegou o momento em que seus braços devem provar de que força são dotados, que coragem os anima. Não se trata apenas de mostrarem
autoridade, mas de escaparem com vida de um perigo iminente. Se combaterem como homens, conseguirão a vitória, a honra e riquezas. De outra forma, serão degolados
ou cairão prisioneiros e ficarão à mercê dos mais cruéis inimigos. Além disso, ficarão cobertos por uma ignomínia eterna. Nenhum caminho se abre para a retirada;
de um lado, as armas e um país inimigo e desconhecido fecham a passagem; de outro, o mar e mais armas bloqueiam a fuga. Homens não devem deixar-se assustar por
grande número. Os ingleses muitas vezes sucumbiram sob o ferro inimigo; muitas vezes vencidos, eles caíram sob jugo estrangeiro, e jamais se destacaram por gloriosas
façanhas. A coragem de um pequeno grupo de guerreiros pode facilmente superar uma grande quantidade de homens inábeis nos combates, uma vez que a causa da justiça
conta com a proteção do céu.

269

Basta ousarem, que nada os faça recuar, e muito em breve o triunfo alegrará seus corações. Conto com vocês, guerreiros destemidos da nobre França, homens da Bretanha,
que não sabem recuar, homens do Maine, famosos na guerra, homens de Flandres, de coração destemido, homens da Calábria, Pouille, Sicília, de ânimo ardente e impetuoso,
e com vocês, normandos, acostumados a feitos brilhantes, conto com todos! Avante! Thor aïe!

O eco prolongou o grito de guerra normando até os postos avançados ingleses, enchendo-os de terror. Eram cinco horas da manhã de 14 de outubro de 1066; o dia mal
começava a clarear.

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CAPÍTULO TRINTA E OITO


O REI FILIPE É SAGRADO CAVALEIRO


De volta da Normandia, Ana e Raul, sempre apaixonados um pelo outro, passaram algum tempo no castelo de Crépy. Foi lá que o conde de Valois soube que Thierry,
bispo de Verdun, apesar dos avisos insistentes, não pagara seu tributo anual, que seus antecessores jamais haviam deixado de depositar, achando que a proteção de
seu senhor valia muito bem vinte libras. Thierry, no entanto, pensava de maneira diferente. Pouco habituado a ser contrariado, Raul teve um violento acesso de
raiva e recrutou um exército. Chegando ao condado de Verdun, devastou-o metodicamente, sitiou a cidade, depois incendiou-a, matando muitos habitantes. Chocada
por tanta brutalidade, Ana mandou dizer orações pelo repouso das almas das infelizes vítimas.

Ao saber da morte do cunhado, o bravo rei Harald da Noruega, Ana sentiu-se profundamente triste. Como se inquietava com o destino de sua irmã Elisabete e de seu
cunhado, que sabia terem ido para a Inglaterra, Raul de Crépy enviou um mensageiro a Guilherme da Normandia, a fim de saber o que acontecera com eles. A resposta
chegou duas semanas depois; Haroldo demonstrara generosidade, tinha mandado a rainha da Noruega e os sobreviventes de volta para seu país, sob a promessa de nunca
mais atacarem a Inglaterra. Dos trezentos navios que tinham saído das Shetlands, apenas vinte e quatro voltaram. Ana escreveu uma longa carga à irmã, dizendo-lhe
que seria sempre bem-vinda no reino da França.

271

O jovem rei Filipe aguardava o momento de sua maioridade com impaciência. Não que a tutela de Balduíno de Flandres lhe parecesse pesada, mas os primeiros relatos
das vitórias de Guilherme, que agora só chamavam o Conquistador, inflamavam-no a tal ponto que queria acima de tudo juntar-se ao ilustre vencedor. O que deixava
apreensivo seu tutor, que conseguira manter a França fora da disputa entre ingleses e normandos. O anúncio da coroação do duque da Normandia, a 25 de dezembro
de 1066, acalmou sua inquietação. Guilherme era rei da Inglaterra, a guerra terminara.

No início do ano seguinte, Filipe foi sagrado cavaleiro por Balduíno de Mons, o filho do conde de Flandres, no pátio de honra do castelo de Senlis. Ainda não tinha
quinze anos.

Após uma noite passada em orações ao pé do altar, confessou seus pecados ao capelão Godefroy, assistiu à missa e recebeu a comunhão.

Duas altas tribunas tinham sido construídas, ornamentadas com tapeçarias de Flandres, nas quais se instalaram as damas, os prelados e os nobres. Na tribuna das
damas estava a rainha-mãe, deslumbrante num vestido de brocado escarlate, forrado com pele de esquilo como o manto verde de tecido de Bruges, preso aos ombros
por um broche de ouro, as luvas e as botas. Estava frio, embora o sol brilhasse. Os valetes serviam taças de vinho quente, temperado com especiarias. Junto da
rainha estavam Adélia de Flandres, Adelaide de La Ferté, Biote de Pontoise, Hildebranda de Valois e Branca d'Arles. Ana inclinou-se para a outra tribuna, a fim
de saudar com um aceno de cabeça seus velhos e fiéis amigos Gosselin de Chauny, o arcebispo Gervásio de Reims e Gautier de Meaux, e Raul de Crépy, magnífico em
seu traje negro com bordados dourados e prateados.

De pé, alto e forte para sua idade, a cabeça descoberta, vestindo uma Miauti (*1) branca, as mãos unidas e os olhos fechados, Filipe esperava.

Gosselin de Chauny desceu da tribuna, adiantou-se, entregou-lhe as manoplas de aço e pôs-lhe as esporas de ouro; Raul de Crépy vestiu-lhe a loriga, enquanto Balduíno
de Mons recitava os mandamentos do cavaleiro:

- Acreditarás em tudo que a Igreja ensina e respeitarás seus mandamentos. Haverás de protegê-la. Respeitarás todos os fracos e serás seu defensor. Amarás o país
em que nasceste. Não recuarás diante do inimigo. Travarás uma guerra sem trégua e sem misericórdia contra os

*1. Espécie de túnica.

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hereges. Cumprirás com fidelidade teus deveres de cavaleiro. Não mentirás e serás fiel à palavra empenhada. Serás liberal e generoso com todos. Serás, em toda parte
e sempre, o campeão do Direito e do Bem contra a Injustiça e o Mal.

Puseram-lhe no pescoço a correia que prendia o escudo que pertencera a seu pai. Filipe ajoelhou-se. Balduíno de Mons aplicou-lhe a coulée e entregou-lhe a espada,
dizendo:

- Em nome de Deus, de São Miguel e de São Jorge, eu o faço cavaleiro. Seja bravo!

O novo cavaleiro, visivelmente emocionado, levantou-se e foi inclinar-se diante da mãe. Ana abaixou-se e pôs-lhe o elmo vermelho.

Trouxeram seu cavalo predileto. De um salto, Filipe montou, sem a ajuda dos estribeiros, sob as aclamações dos espectadores, pegou a lança de freixo com ponta
de aço e partiu a galope para derrubar o quintaine.*2

Apesar do mau tempo, as festividades prolongaram-se até a noite. A despeito das peles e do vinho quente, o frio quase foi fatal à rainha-mãe, que teve de ficar
na cama com uma febre alta no dia seguinte às festividades em homenagem a seu filho. Ainda não estava plenamente recuperada, na época da Páscoa, para ir à Normandia
e assistir aos festejos pela volta de Guilherme. Com a concordância do rei Filipe, ficou acertado que em sua ausência e na de sua mãe, o conde de Valois, como padrasto
do rei, representaria a França.

Por muito tempo, na corte da França, falou-se com inveja da pompa da corte do rei Guilherme, dos trajes ricamente bordados de seus barões, dos nobres anglo-saxões
de cabelos longos, das baixelas de ouro e prata, dos chifres de búfalo lavrados, da abundância de carnes desconhecidas, dos músicos, torneios em que ingleses e
normandos se desafiavam, da consagração da abadia de Nossa Senhora a São Pedro, no Dives, a generosidade do duque-rei para com seu povo. Filipe, de volta de uma
viagem a Flandres, começou a sentir inveja.

A 1º de setembro, o conde Balduíno morreu, carregado de anos e honrarias. Gervásio, arcebispo de Reims e chanceler, falecera dois meses antes. O filho de Ana viu-se
sozinho para governar o país.

No mês de maio do ano seguinte, a rainha-mãe foi à Inglaterra para assistir à coroação da duquesa da Normandia. Sumida nos pesados

*2. Boneco móvel que servia de alvo.

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trajes e adornos, Matilde estava radiante quando o arcebispo de York, Ealdred, pôs-lhe a coroa real na cabeça, em Westminster. Grávida, ela permaneceu na Inglaterra,
em companhia de Ana, até o parto. O filho, um menino chamado Henrique, foi designado pelo pai herdeiro de todos os seus domínios da Inglaterra, com a aprovação
dos nobres. Este quarto filho encheu Guilherme de alegria.

De volta à França, Ana foi passar uns dias com o rei Filipe, em companhia de seu filho Hugo e do marido Raul, primeiro em Paris, depois em Orléans, Compiègne
e Soissons.

Filipe e Hugo pareciam ter perdoado sua mãe pelo segundo casamento; mostravam-se corteses com o conde de Valois e seus filhos, Gautier e Simon. Simon desfrutava
de um grande prestígio junto aos dois príncipes franceses, porque tinha acompanhado Guilherme na sua conquista da Inglaterra. Claro que era apenas um dos escudeiros
do duque e sua pouca idade o mantivera a distância dos combates mais violentos. Mesmo assim, durante longas noites, Filipe o fez relatar os grandes momentos da
batalha. Instalados em confortáveis almofadas diante da lareira monumental do salão do castelo de Senlis, príncipes e condes, cavaleiros e escudeiros ficavam em
suspense, acompanhando as palavras do jovem:

Tustin, filho de Rollon, carrega o estandarte dos normandos. Os formidáveis guerreiros avançam ao som das trombetas, gritando Thor aïe! Nossos arqueiros disparam,
levando a morte às fileiras do inimigo; este responde com uma saraivada de pedras tão intensa que somos obrigados a recuar. Não por muito tempo, mas os machados
ingleses desferem golpes terríveis contra nós. Os bretões hesitam, a confusão é terrível, matando tanto quanto as flechas inglesas. E, subitamente, no meio do
tumulto, soa um grito: "O duque está morto! O duque está morto!" É a derrota. E é nesse instante que do meio do tumulto surge um cavaleiro coberto de sangue, brandindo
a espada, tentando conter os homens em fuga que o empurram; ele arranca o elmo e grita: "Olhem todos, estou vivo e vencerei com a ajuda de Deus! Que loucura os
impele à fuga? Que caminho se abrirá à retirada de vocês? Bando de covardes, estão se deixando repelir e matar por aqueles que poderiam degolar como carneiros!
Abandonam a vitória e uma glória eterna correndo para a perdição e infâmia perpétua! Se fugirem, nenhum de vocês escapará à morte!" A visão do seu duque vivo, mais
do que suas palavras de cólera, restitui a coragem aos normandos, que se lançam com tal ímpeto ao combate que os ingleses são retalhados em pedaços.

274

O mais destemido é o Conquistador, que maneja sua pesada espada como um malho. Cadáveres amontoam-se ao seu redor. Nenhum atacante lhe escapa. No combate, o duque
só é igualado por um homem, que está sempre a seu lado no mais aceso da batalha: aquele que todos nós chamamos Cavaleiro Mascarado ou Cavaleiro do Rosto Brilhante.
Juntos, lutam como uma centena de bravos guerreiros! Em muitas ocasiões pensamos que nosso chefe estava morto, três cavalos tombaram sob ele. Com uma agilidade surpreendente
para sua altura e corpulência, ele saltou para o chão e todas as vezes vingou a morte de sua montaria. Por duas vezes ordenou que seu exército simulasse uma retirada
para enganar o inimigo; o estratagema deu certo por duas vezes e os ingleses pereceram massacrados, em grande quantidade. Animados pelo sucesso, os normandos
não sentem mais nem os ferimentos nem a fadiga, partem para a ofensiva, lançando seu terrível grito de guerra, que nem os mais corajosos escutam sem tremer. O
ardor é mantido nos breves intervalos do combate pelos relatos de Taillefer, um bardo temerário que, encarapitado em seu cavalo, indiferente aos projéteis tanto
amigos quanto inimigos, recita para os combatentes a epopéia de Rolando e seus bravos:

"A batalha é assombrosa, transforma-se em refrega. O conde Rolando não se poupa. Golpeia com a lança enquanto a haste agüenta: depois de quinze golpes, está quebrada,
destruída. Ele saca a Durindana, sua fiel espada. Esporeia e vai atacar Chernuble Parte-lhe o elmo, onde faíscam rubis, corta-lhe a touca com o couro do crânio,
corta-lhe o rosto entre os olhos, a loriga branca de malha miúda, e todo o corpo até a junção das pernas. Passando pela sela incrustada de ouro, a espada atinge
o cavalo e afunda. Parte-lhe a espinha e ele tomba morto na campina, sobre a relva espessa. Rolando diz então: 'Filho de servo, você marchou para a desgraça!
Maomé não lhe dará sua ajuda. Um vagabundo como você não vencerá a batalha!..."

A essa altura do relato de Simon, a excitação dos jovens da corte do rei Filipe estava no auge; soavam gritos de guerra, "Montjoie!... Saint-Denis!... Thor aïe!",
e risos estimulados pelo vinho condimentado distribuído por servidores não menos arrebatados do que seus senhores.

- Ah, como a guerra é bela! - exclamou Filipe. - Bela e desejável como uma mulher! - acrescentou Gautier, irmão de Simon.

- Não, meu irmão, a guerra é terrível... Nosso senhor Guilherme

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viu bem isso, na noite do primeiro combate, quando circulou entre tantos mortos, na maioria seus amigos. Eu, que vos falo, vi-o chorar, ele, o mais bravo de todos
os guerreiros naqueles violentos combates. Ferido, apoiava-se no braço do Cavaleiro Mascarado. O rosto manchado de sangue e lágrimas murmurava: "Meus filhos, meus
pobres filhos!" Deixou-se cair no musgo, os pés afundando no limo. Eu estava perto dele, a noite caía. Valetes trouxeram tochas, que fincaram no lodo; ofereceram-lhe
comida, ele recusou a tigela, mas tomou o vinho, devagar, em silêncio. Ao redor soavam os gemidos dos feridos, o crocitar dos corvos e o grito das gaivotas. Apesar
da vitória, todos estavam abalados. O duque finalmente falou: "Que nenhum de vocês jamais esqueça. Uma terra tão legitimamente sua vale tantas perdas?" "Meu irmão,
disse o bispo Odon, retirando seu elmo, foi Deus quem permitiu a vitória de nossas armas, foi Deus quem armou nosso braço, foi Deus quem quis a morte desses
bravos para que, soldados de Deus, fiquem à sua direita. Lamentar-se como uma velha é injuriá-Lo!" Todos ficaram imóveis. Como o Conquistador reagiria a palavras
tão duras? Sem tentar esconder as lágrimas, Guilherme levantou o rosto para o irmão: "Peço a Nosso Senhor que você tenha razão, bispo de Bayeux, mas a mão de Deus
é muito pesada!" "Meu irmão, que Sua vontade seja feita, não a nossa. Eis que chega o bardo Taillefer, que Deus protegeu ao longo deste dia. Bardo, conte-nos
o fim do conde Rolando!" Taillefer tirou de baixo da cota de malha uma pequena lira. E depois de alguns acordes, recitou:

"Rolando sente que a morte o domina: da cabeça desce-lhe para o coração. E corre para baixo de um pinheiro; estende-se na relva verde, o rosto voltado para baixo.
Sob o corpo, ajeita a espada e a trompa de marfim. Vira a cabeça para o lado dos pagãos: fez isso para que Carlos e todos os seus dissessem que o gentil conde
morrera como vencedor. Bate no peito, com golpes fracos, reconhecendo suas culpas. Em expiação de seus pecados estende a luva para Deus. Os anjos do céu descem
ao seu encontro..."

Agora, todos os jovens choravam. Simon, em lágrimas como seus ouvintes, ajoelhou-se. - Meus amigos, oremos pela alma do valoroso Rolando e de seus companheiros.
Oremos também pelos normandos e ingleses que encontraram a morte pela maior glória de Deus e do duque-rei!

O rei deu o exemplo e ajoelhou-se ao lado de Raul de Crépy. Todos o imitaram.

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Os anos que se seguiram à conquista da Inglaterra por Guilherme foram para Ana os mais felizes de sua vida. Ela assistiu, emocionada, ao casamento de Filipe com
Berta, filha de Florent, conde da Holanda, e de Gertrude de Saxe, e enteada de Roberto le Frison. Mas não demorou muito para que a nova rainha sentisse ciúme dos
laços afetuosos que uniam mãe e filho. Ana ficou triste e tomou a decisão de aparecer cada vez menos na corte.

O ano de 1072, que começara com as festividades do casamento real, terminou em lágrimas e luto. Gautier, o 'filho mais velho de Raul, morreu junto do rei da França
durante a guerra de Vitry, perto de Reims. O sofrimento do conde de Valois foi imenso. Mandou organizar um funeral grandioso para o filho mais velho, a que estiveram
presentes o rei Filipe, seu irmão e numerosos barões e bispos. Nessa ocasião fez uma importante doação ao mosteiro de Saint-Rémy e recomendou ao bispo Hériman,
abade do mosteiro, que mandasse dizer numerosas orações pelo descanso da alma de Gautier. Apoiado por Ana e Simon, retirou-se durante algum tempo entre os monges
agostinhos de Amiens, mas não encontrou a paz que procurava.

Foi um homem amargo, cansado e subitamente envelhecido que voltou a Crépy. A ternura e desvelo de Ana não tiveram qualquer efeito. Raul afogava sua tristeza em
bebedeiras, que logo se transformavam em orgias. Muitas jovens desapareceram, algumas foram encontradas nuas nos bosques, balbuciando palavras incoerentes, em
que o nome do conde aparecia com freqüência. Todas tinham sido violentadas, algumas torturadas. A condessa recolhia essas infelizes, que colocava em conventos
da região. Um imenso terror pairava sobre todo o condado. Ressurgiram, no círculo do conde, aqueles homens de aparência sinistra com os quais outrora gostava de
cercar-se: sacerdotes que haviam abandonado o hábito, jovens perdidas, mulheres suspeitas de bruxaria, bandidos notórios, monges ladrões e estupradores. Durante
um ano eles semearam horror e lágrimas pelas terras do conde de Valois. Refugiada ao lado dos filhos, Ana passava o tempo em orações e empenhada em socorrer as
vítimas de seu marido.

Foi na volta de uma dessas orgias, perto de Montdidier, que Raul encontrou a morte. Esgotado pela devassidão, caiu do cavalo e fraturou o crânio nas pedras do
caminho. Seus sinistros companheiros fugiram, depois de despojarem o cadáver, que foi abandonado aos lobos. Lenhadores o descobriram e reconheceram, apesar das
mordidas. Levaram

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o corpo para Montdidier, onde foi sepultado no jazigo que Raul mandara construir para si.

Ana contemplou por muito tempo o corpo daquele homem a quem amara e que também a amara, loucamente, ternamente, antes de voltar a ser dominado por seus demônios.
Rogou a Deus que lhe absolvesse os pecados e o perdoasse, como ela o perdoava pelos sofrimentos e humilhações que suportara depois da morte de Gautier. Suplicou
à Virgem Maria, que sentira a dor de perder o divino Filho, que intercedesse em seu favor.

A condessa de Valois retirou-se em seguida para o castelo de Crépy, em companhia de Simon.

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CAPÍTULO TRINTA E NOVE


A CARTA DE GUILHERME


Depois da morte de Raul, Ana permaneceu refugiada em Crépy, apesar dos pedidos insistentes de Filipe que fosse para a corte, para perto dele e de Berta. Ana escreveu-lhe:

"Meu filho, deixe-me aqui, preciso repousar o corpo e a alma. A morte de meu amado marido tanto me abalou, que sou obrigada a permanecer na cama. Não se preocupe
comigo, pois meu enteado Simon trata-me como se eu fosse sua mãe. Juntos, oramos pelo repouso da alma do conde, suplicando ao Senhor Deus que o receba no Reino
Eterno, apesar de seus grandes pecados e da infelicidade de ter morrido fora da comunidade dos fiéis. De comum acordo, abandonamos o castelo de Montdidier, decididos
a restituir aquelas terras, injustamente obtidas pelo meu infortunado marido, aos herdeiros legítimos. O papa Gregório nos encoraja a fazer isso. Por outro lado,
suplico-lhe, meu querido filho, que interfira junto ao senhor de Broyes para que devolva a Simon as cidades de Vitry, Bar-sur-Aube e La Ferté, que lhe tomou pela
traição. Disseram-me que você seria o instigador dessa guerra, para mim fratricida; não quero acreditar. Você e Simon eram irmãos, não faz tanto tempo assim! Afora
isso, agradeço sua generosidade com meus cônegos de São Vicente e os cuidados que dispensa à minha querida igreja. Deixemos passar algum tempo, e irei de novo
a esse lugar divino. Bem-aventurados os que são convidados para as núpcias do Cordeiro! Antes de me retirar do mundo, porém, desejo orar no túmulo de minha mãe
em Novgorod. Peço humildemente a meu real filho autorização para visitar minha terra

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natal, assim que minha saúde estiver recuperada. Peço para você a proteção da Santíssima Virgem Maria e dos Santos Apóstolos. Receba a proteção de sua desventurada
mãe, que tanto o ama. Ana."

Em resposta à carta da rainha-mãe, o rei Filipe invadiu os Estados do conde de Valois, até Amiens. Simon foi a Roma para aconselhar-se com o papa. Gregório recomendou-lhe
que defendesse seus bens. De volta, fortalecido por esse apoio, Simon, depois de uma violenta batalha, venceu Filipe e, após a assinatura de um tratado de paz,
recuperou sua herança.

Esses acontecimentos abalaram Ana profundamente. Mesmo assim, ela encontrou forças para ir confortar Matilde, que perdera o filho Ricardo, morto na Inglaterra num
acidente de caça. As duas amigas choraram nos braços uma da outra. Guilherme sofreu em silêncio a morte do filho predileto, vendo nisso a punição pelos excessos
que os normandos cometeram em Sussex e Hampshire. Em expiação, ele mandou distribuir muitas esmolas e rezar numerosas missas. Durante longos meses permaneceu encerrado
em seu castelo em Falaise. A visita de Ana o fez sair de seu refúgio e abandonar o ar sombrio que tanto inquietava sua corte. Viram-no então partir em perseguição
do cervo e da raposa. Foi na volta de uma dessas caçadas que Ana lhe perguntou:

- Não vi entre seus cavaleiros aquele que é chamado de Retalhado. Ele não está mais em sua corte? Que aconteceu com ele?

Guilherme fitou-a com um olhar penetrante. - Que quer com ele? - indagou bruscamente, embora sem ter essa intenção.

Aturdida com a violência do tom, Ana respondeu simplesmente: - Revê-lo. Foi a vez de o duque ficar aturdido com a simplicidade da resposta. Permaneceram em silêncio
por um longo tempo, rompido por Guilherme:

- Perdoe-me, minha cara: foi a inquietação pelo destino do Retalhado que me fez responder assim.

- Inquietação por quê? - Há mais de dois anos que ele partiu para a Terra Santa e desde então não tive notícias. Por intermédio de mercadores que o viram por
lá, sei que chegou são e salvo; depois, porém, não soube mais nada...

Ana ficou ainda mais pálida. - Deus queira que ele volte! - murmurou. Pensativo, Guilherme fitou a rainha. Apesar dos anos que haviam

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semeado fios brancos em suas tranças ruivas, continuava a achá-la muito bela. O tempo parecia não ter exercido qualquer efeito sobre ela. Apesar dos partos, o
corpo de caçadora continuava esguio, o rosto mantinha uma expressão juvenil. Afastada de homens depois de sua viuvez recente, exibia uma languidez inexplicável.
Será que ela sabia quem era o Cavaleiro Mascarado? Filipe não lhe dera qualquer justificativa para a viagem a Jerusalém, mas o Conquistador estava convencido de
que tinha alguma relação com aquela mulher. Por que aquela palidez, aquela voz subitamente alterada?

- Pedi ao rei meu filho a permissão para visitar meu país... - Seu lugar é junto dele, não na Rússia. - Não sou mais nada aqui, Guilherme. A rainha Berta é ciumenta
de seu título, e minha presença lhe é insuportável. Quanto a meu filho, vinga-se de meu casamento com Raul de Crépy invadindo suas terras. Sinto que não me resta
muito tempo para viver. E não paro de pensar em meu pai, o grande Iaroslav, em minha mãe, a santa Ingegerde, em meus irmãos...

- Estão todos mortos, ninguém a espera por lá - disse o duque, brutalmente.

- Sei disso, amigo, mas os mortos queridos me chamam. Todas as noites revejo em sonhos as florestas e rios de meu país, sobretudo Novgorod a bela. Tenho lutado
em vão contra essas recordações. Devo voltar à minha terra.

- É por isso que deseja ver o Retalhado? Ana perturbou-se. - Não sendo de parte alguma, pensei que ele poderia acompanhar-me.

- Rainha, pode jurar diante de Deus que nos contempla que não há outros motivos?

Ela o fitou nos olhos e respondeu com um sorriso cansado: - Não... Mais uma vez, eles passaram um longo tempo calados. Desta vez foi Ana quem rompeu o silêncio:

- Amigo Guilherme, esses motivos, se existem, são apenas da minha conta. Mas saiba que há um vínculo entre aquele homem e eu que ninguém pode romper, nem mesmo
Deus.

- Está blasfemando! E se o fato de revê-la o condenasse à danação eterna?

- Se ele é quem meu coração pensa, não é homem para temer o inferno.

- Enlouqueceu, Ana! É. bem a mesma que outrora me enfeitiçou com um só olhar, a Mora!

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- Não sou louca e não houve feitiçaria naquilo. Havia apenas um homem e uma mulher que Deus pôs na presença um do outro, com fins que só Ele conhece. E se Deus
projetou aquele encontro nas florestas alemãs com o único objetivo de você ajudar-me hoje?

- Ajudá-la? - Isso mesmo. Primeiro, a reencontrar esse homem, depois, se o rei meu filho não se opuser, a voltar para morrer às margens do lago Ilmen.

- Não espere nada de mim! Espero que seu filho tenha a lucidez de impedir essa viagem. Você foi a rainha da França, é a mãe do rei: seu lugar é aqui.

- Não, meu caro Guilherme. Fique com isto: quando se encontrar de novo com o Cavaleiro Mascarado, dê a ele e diga-lhe que o espero.

- Não farei isso! - Fará, sim, por amor a mim.

De volta ao castelo de Crépy, Ana passou longos dias à cabeceira do enteado, ferido gravemente pelos soldados de Filipe. Simon implorou à Virgem Maria que lhe
conservasse a vida, a fim de poder reparar os pecados do pai. A Mãe de Deus, Salvação dos Enfermos, ouviu-o e atendeu suas preces. Simon fez então o juramento de
deixar o mundo e assumir o hábito de monge. De acordo com a madrasta, providenciou a transferência do corpo de Raul de Montdidier para Saint-Arnoul de Crépy. Quando
exumaram o cadáver, Simon quis contemplar pela última vez o rosto do pai; a decomposição já fizera sua obra.

- É mesmo o corpo de Raul, aquele guerreiro tão temido na arte dos sítios? Eis onde acaba a glória dos grandes deste mundo!

Isso fortificou seu desejo de retiro. Então entregou o Vexin ao rei da França.

A rainha-mãe obedeceu finalmente ao desejo do filho e foi instalar-se em Melun, depois em Senlis, onde retomou as visitas aos pobres e às escolas que mandara construir.

A 23 de maio de 1075, acompanhou Filipe a Blois e assinou um documento concedendo privilégios à abadia de Pondevoy.

Foi na volta dessa viagem que um enviado do duque da Normandia pediu para ser recebido por ela e entregou-lhe uma carta de seu senhor e um anel. Ao vê-lo, Ana soltou
um grito e desmaiou. As aias aproximaram-se correndo, mas o desfalecimento foi de curta duração. O

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mensageiro, com um joelho no chão, observava a rainha com apreensão; o duque recomendara-lhe que lhe relatasse com exatidão cada palavra e gesto da rainha. Não
seria punido pelo efeito causado por sua mensagem?

Depois de algum tempo, Ana baixou os olhos; não conseguia decifrar a carta de Guilherme. Chamou a jovem Branca de Chauvigny, a única de suas damas de honra que
sabia ler, e pediu-lhe que lesse a carta em voz baixa. As outras damas afastaram-se e Branca leu, hesitante:

"Rainha Ana: Como está lendo esta carta com o anel na mão, sabe que meu vassalo e amigo, o Cavaleiro Mascarado, está de volta. A visão de seu anel quase o matou.
O que os infiéis não conseguiram, sua lembrança quase consumou. Por amor a você e a ele, consinto em ser o seu intercessor junto ao rei Filipe. Não o faço sem
uma profunda angústia, mas os sofrimentos de meu amigo, sua fé sincera em Deus e o desejo de respeitar seu juramento, assim como o pedido insistente que você me
fez, levam-me hoje a aceitar o que antes recusei. O mensageiro que está na sua frente tem uma carta para o rei seu filho, na qual está escrito que não me oponho
à cessão do Vexin pelo conde Simon de Crépy, sob a condição de que ele lhe permita visitar o túmulo de sua mãe e que eu ponha à sua disposição nave e cavaleiros,
para que possa realizar sua piedosa peregrinação. O navio em questão você conhece muito bem, já que o devo à sua generosidade e à de minha nobre e amada esposa,
a mesma nave que me conduziu, determinado e orgulhoso, à conquista da Inglaterra; é a Mora. Pode estar certa de que ao confiar seus preciosos dias a essa embarcação
tão querida, nós lhe damos, a minha Matilde e eu, a prova de nosso amor. Que Nosso Senhor, a Santíssima Virgem Maria e o arcanjo São Miguel possam guiá-la ao longo
dessa perigosa viagem. Desde já, mando dizer orações por seu bom êxito e por seu breve retorno a nós. Guilherme, duque da Normandia e rei da Inglaterra."

Branca de Chauvigny, que lera a carta de joelhos diante da rainha, fitou-a, os olhos bonitos marejados de lágrimas.

- Oh, rainha, não nos deixe! Que será de nós sem a sua presença? - Suas lágrimas me comovem, criança. Mas trate de enxugá-las, não vê que eu estou feliz?

- Deixe-me acompanhá-la! - Se o rei o permitir, terei o maior prazer. Você será meus olhos, pois muito em breve não conseguirei mais ver.

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Filipe teve um violento acesso de raiva ao receber a carta de Guilherme, e ameaçou romper a paz recentemente assinada. Sua esposa, a rainha Berta, que jamais gostara
da sogra, ressaltou que a neutralidade dos normandos na anexação do Vexin era muito mais importante do que a peregrinação projetada. O rei concordou com ela muito
facilmente, ainda mais quando percebeu que a viagem nada lhe custaria: Ana ficara rica com os bens que Raul de Crépy lhe doara ainda em vida.

Ficou acertado que Ana partiria na primavera seguinte.

284


CAPÍTULO QUARENTA


A VOLTA DE ANA


O Cavaleiro Mascarado nada falou dos dois anos que passara na Palestina, apesar dos pedidos insistentes e reiterados de Guilherme e de seus barões. Filipe limitou-se
a informar que jamais faltara à honra e que beijara o túmulo do Cristo. Pusera numa caixa de ouro um pouco de terra do Santo Sepulcro; ofereceu-a ao duque-rei.

Depois das festividades em comemoração à sua volta, Guilherme chamou-o para uma conversa em particular. Manifestou sua alegria em revê-lo vivo e seu desejo de
conservá-lo para sempre ao seu lado. A fim de reforçar os laços que os uniam, o duque ofereceu-lhe a mão de uma de suas filhas. Era uma honra excepcional e Filipe
compreendeu. Pôs um joelho no chão e respondeu, sem procurar disfarçar sua emoção:

- Majestade, ninguém foi mais generoso do que o senhor em todos os tempos. Mas gostaria mesmo de unir o destino de uma das princesas ao de um pobre cavaleiro andante,
que não tem outro bem além de seu cavalo e suas armas, que deve à sua bondade? Seria errado de minha parte manifestar meu reconhecimento e amor aceitando o que
sua amizade me propõe. Já me sinto mil vezes pago do pouco que fiz pelo senhor, pelo simples fato de ter-me acolhido como... um irmão?

- Isso mesmo, eu o considero meu irmão e quero honrá-lo como tal. Você não está sem bens, já que assinei hoje, em seu favor, a doação do castelo de Cerisy, com
todas as terras e fazendas que lhe pertencem, além de vastos domínios na Inglaterra. Convém que meu futuro genro seja digno de sua nova posição.

- Senhor, sinto-me profundamente honrado, mas não posso aceitar.

- Faria essa desfeita...?

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- Não posso aceitar e sabe muito bem o motivo - insistiu Filipe, a voz abafada.

Guilherme também foi dominado pela emoção e contemplou o amigo em silêncio por um longo tempo.

- Perdoe-me. Queria tentá-lo, descobrir se não a havia esquecido...

- Majestade, bem que tentei esquecê-la, na oração e nas piores orgias, até no sangue. Não consegui. Um santo monge me desobrigou do juramento, mas somente ela
pode me liberar.

- Ainda a ama, apesar do tempo... - O tempo só contribuiu para reforçar meu amor. Mesmo que ela se tornasse uma velha, sob as rugas de seu rosto eu ainda reconheceria
a princesa de Novgorod...

- Novgorod... Também não a esqueceu? - Viajei muito, mas não encontrei em parte alguma cidade mais bela e povo mais acolhedor.

- Gostaria de voltar para lá? Filipe permaneceu calado por um longo momento, antes de responder, emocionado:

- Sem ela? Não compreende, meu rei, que aquela cidade era bela porque se parecia com ela, tão orgulhosa e livre? Novgorod sem a princesa não será mais Novgorod,
mas uma cidade qualquer.

- Está certo. Tome, ela me deu isto para entregar a você. Filipe pensou que ia morrer de felicidade ao pegar o anel dado tantos anos antes. Guilherme ficou alarmado
com a rigidez de seu corpo.

- Procure controlar-se, amigo! Não vai desfalecer como uma mulher, não é mesmo?

Abruptamente, um fluxo de lágrimas escorreu pelo rosto prateado. Guilherme levantou-se e retirou a máscara do amigo. O pobre rosto coberto de cicatrizes apareceu,
lastimável. O duque abraçou-o e chorou com ele.

- Meu irmão, a rainha Ana o chama. Quer ir orar no túmulo de sua mãe e deseja que você a acompanhe.

Um raio não teria efeito mais violento. Filipe caiu de joelhos, como se estivesse petrificado. Guilherme ajoelhou-se e orou.

Em seu retiro de Verneuil-l'Étang, Ana fazia os últimos preparativos para a viagem. Ajudada por Adelaide de La Ferté e Branca de Chauvigny, ela arrumava suas coisas,
distribuindo vestidos e jóias. Deixou

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para o filho Filipe sua Virgem de Novgorod, que sempre a acompanhara por toda parte e que tanto amava.

- Não vão pensar que aguarda a morte, já que se desfaz assim de todos os seus bens? - indagou Adelaide.

A rainha-mãe virou a cabeça, corando. A clarividência da amiga assustava-a. Esgotada, doente, perdendo pouco a pouco a vista, Ana sabia que morreria em breve.
E queria que isso acontecesse no solo da Rússia. Todas as suas forças, agora, concentravam-se nesse objetivo. Sabia que estava mais doente do que o diziam os médicos,
e escondia isso de todos para que não a impedissem de partir. Era difícil mentir para Adelaide, que a conhecia tão bem, mas conseguiu enganá-la.

De acordo com o filho Filipe, assinou uma carta em favor de São Vicente de Senlis:

"Todos os filhos da santa Igreja sabem que o Criador do Universo, Deus Pai, criou todas as coisas para preparar e embelezar a união de seu Filho único com essa
mesma Igreja.

"Não apenas o Pai, mas também o próprio Filho, em comunhão com o Espírito Santo, tomaram-na por esposa, segundo as palavras que o próprio Filho lhe dirige no Cântico
dos Cânticos: 'Vem do Líbano, vem, serás coroada, vem do cume de Amana, das alturas de Samir e Hermon.'

"Eu, Ana, compreendendo em meu coração, meditando em meu espírito sobre tão grande beleza, tão imensa glória, lembrando-me do que está escrito, 'Bem-aventurados
os que foram convidados às núpcias do Cordeiro', e o que a Esposa de Cristo diz em outra parte, 'Aqueles que me propagam terão a Vida Eterna', perguntei a mim
mesma como poderia participar um dia desse banquete, dessa felicidade e da Vida Eterna. Meu coração finalmente decidiu construir uma igreja ao Cristo, a fim de
poder incorporar-se intimamente e participar como membro dessa santa sociedade, ligada ao Cristo pela fé, e dei ordem para elevar ao Cristo e dedicar-Lhe essa
igreja em honra da Santíssima Trindade, de Maria, a Santa Mãe de Deus, do precursor do Senhor e de São Vicente, mártir, e, como uma doação, por esta lego meus
bens e os bens que o rei Henrique, meu marido, doou-me por ocasião de nosso casamento.

"Todos esses bens, pelo favor de meu filho, rei pela graça de Deus e com o assentimento de todos os grandes do reino, cedo-os a essa igreja, para que ali possam
viver homens serenos, pacíficos e religiosos, servindo ao Senhor, renunciando ao mundo,

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abraçando a vida regular, canonicamente, isto é, de acordo com as regras escritas pelos santos Apóstolos e por Santo Agostinho.

"Que eles orem noite e dia, pelos pecados do rei Henrique, de meus filhos e de meus amigos, assim como por meus próprios pecados, e que por suas orações obtenham
que eu possa apresentarme ao Senhor sem mácula, como o Cristo o deseja para sua Igreja.

"A saber: a terra ao lado da igreja, adquirida e possuída pelo preboste Yves, com o forno e os rendimentos normais dessa terra; as nove propriedades com todos
os seus usos e rendimentos que eu possuía antes nesse mesmo lugar; o direito de entrada franca de provisões na cidade em que foi construída a igreja; e, no que
depende da cidade, um moinho no burgo chamado Gouvieux, uma fazenda chamada Blanc-Mesnil; no território de Laon, uma propriedade no burgo chamado Crespy.

"E para que ninguém depois possa contestar, cedo absolutamente toda a posse e todos os rendimentos a São Vicente e a seus cónegos."

Tendo-se despojado de tudo que sua posição lhe permitia, e levando apenas o que era necessário para a viagem e que os costumes exigiam, a rainha despediu-se daqueles
que a haviam servido fielmente durante tantos anos. As acompanhantes da rainha Berta a viram partir com uma alegria chocante, que a atitude do rei atenuou um pouco.
Filipe fez questão de acompanhar a mãe até o ponto de embarque. Chegaram a Ruão numa noite quente de junho. Guilherme recebeu-os com sua pompa habitual. Depois
de três dias de festas, banquetes, torneios e procissões, chegou o momento da partida.

O amanhecer anunciava um dia luminoso. No Sena, a Mora, reformada, balançava de maneira quase imperceptível. Uma multidão ruidosa e animada aguardava a chegada
do cortejo acompanhando a rainha-mãe da França. As trombetas finalmente soaram, surgiram os cavaleiros da guarda ducal, em trajes recamados, montados em cavalos
de desfile ricamente ajaezados, altivos e perfilados, sem lançarem um olhar sequer para a multidão. Por trás vinham os Grandes, condes e barões, príncipes e bispos,
todos em vestimentas bordadas a ouro e prata, em seguida o rei da França e o rei da Inglaterra. Dos dois, não se podia dizer quem estava mais deslumbrante. Seguiam-se
as liteiras das damas: a de Matilde com as cores da Normandia e da Inglaterra, a de Ana, com as cores da França. A rainha-mãe usava um vestido trazido de Bizâncio,
branco,

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com bordados em ouro. Como faiscava ao sol nascente! Mas ela só tinha olhos para a Mora e para a silhueta de pé na proa, cujas armas e rosto brilhavam.

Ana despediu-se dos filhos chorando e deu-lhes sua bênção. O coração apertado, Filipe lamentou ter permitido a viagem. Contemplou a mãe como se não a visse há
muito tempo. Lembranças da infância afloraram em sua mente: recordou um dia de verão, seus cabelos compridos soltos, coroando-o de flores e chamando-o de seu "menino
da primavera"; desafiando-o para uma corrida, inclinada sobre o pescoço de seu cavalo; bela, emocionada e orgulhosa dele, no dia de sua coroação; fora ela quem
o ajudara a decorar as palavras rituais...

- Minha mãe! - balbuciou, dobrando um joelho no chão. - Meu filho, que Deus o guarde! Onde eu estiver, rezarei todos os dias por você e por este lindo reino da
França.

Foi a vez dos soberanos da Normandia se despedirem. Foi preciso arrancar Matilde dos braços da amiga. A rainha da Inglaterra, muito emocionada, precisou ser amparada
por suas damas de honra.

O duque-rei adiantou-se e pegou a mão de Ana. Ágil, apesar da corpulência, ajudou-a a subir na prancha que levava à embarcação: A bordo, pôs a mão fria da rainha
na mão do homem com o rosto coberto pela máscara de prata, seu amigo o Retalhado.

- Viétcha! Perturbado demais para falar, Filipe pôs um joelho no convés e baixou a cabeça diante de seu amor reencontrado.

- Levante-se, Viétcha, olhe para mim... Estamos velhos, agora, livres de todos os compromissos... Deus não pode punir-nos por nos revermos no declínio da vida.

Ana falou em sua língua natal, cujas sonoridades redescobria com um prazer sensual.

- Nosso Senhor, em sua infinita bondade, permitiu que vocês se reencontrassem - disse Guilherme. - Aproveitem esse tempo para Lhe renderem graças. Cavaleiro, confio
a seus cuidados a dama por quem jurei um amor puro, ao qual sempre permaneci fiel. Proteja-a contra todos e traga-a de volta para nós, com a ajuda de Deus.

- Majestade, é uma honra para mim receber minha dama por suas mãos. Pode estar certo de que nenhum mal acontecerá a ela enquanto eu estiver vivo. Juro pela Mora,
que sempre o serviu fielmente! - arrematou Filipe, pondo a mão na espada.

O duque da Normandia e rei da Inglaterra abraçou o homem sem nome e sem rosto que era seu amigo.

- Sentirei sua falta, meu irmão.

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Guilherme ajoelhou-se pela última vez diante de Ana. - Abençoe-me, minha dama, abençoe-me, Mora... Ele estremeceu sob a suavidade dos dedos que tocaram em sua
testa.

Era demais para a rainha, que arriou nos braços de Branca de Chauvigny, que também já embarcara, acompanhada por duas criadas.

Guilherme deixou a embarcação, a prancha foi retirada, as velas içadas.

Na praia, a multidão orou, os monges cantaram, enquanto o arcebispo de Ruão, cercado pelo clero da cidade, abençoava a Mora e seus passageiros.

Amparada por sua dama de companhia, Ana foi para a popa do navio e ali se manteve de pé, imóvel, até que uma curva do Sena ocultou aqueles que sabia que nunca
mais tornaria a ver. Apesar das lágrimas e do aperto no coração, uma alegria juvenil invadiu-a; e ela sorriu.

- Venha descansar - murmurou Branca. A rainha deixou-se levar sem qualquer protesto e acomodou-se em almofadas sob um toldo, onde haviam servido uma refeição leve.

- Peça ao Cavaleiro Mascarado que venha fazer-me companhia. Filipe apresentou-se. - Sente-se e partilhe a refeição comigo. Eles comeram e beberam o vinho condimentado
mantendo-se em silêncio por algum tempo.

- Sente-se feliz por rever nosso país? - Claro que sim, pois vou revê-lo em sua companhia. Mas receio que você não encontrará por lá nada do que deixou. Seu pai
e sua mãe já não existem mais; de seus irmãos, resta apenas o grão-príncipe Vsevolod; de seus amigos, todos morreram ou se dispersaram...

- Sei de tudo isso. Meu irmão Vsevolod tem uma filha, Imita, que fundou um mosteiro para mulheres em Kiev. Depois de visitar Novgorod, se Deus quiser, irei para
esse convento em Kiev, para junto dessa santa sobrinha que não conheço.

- Se é esse o seu desejo, eu a levarei a Kiev e a entregarei nas mãos do grão-príncipe.

Uma brisa suave fazia com que o navio avançasse depressa. Ana contemplava o desfile das copas das árvores, respirava o ar fragrante daquela linda manhã de verão,
todo o seu corpo parecia ressuscitar; há muito não se sentia tão bem assim, tão em paz consigo mesma e com a natureza. Deus aprovava aquela viagem.

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Levantou-se com a agilidade de uma jovem e foi para a proa. A Mora navegava pelas águas serenas com imponência. Filipe postou-se ao seu lado.

- Não lamenta deixar este belo país? - perguntou, fazendo um gesto largo.

A rainha hesitou. - Claro que lamento... A França é um lindo país, mas sempre me senti sufocada aqui... Como explicar? Falta céu... É isso: o céu não é tão vasto,
o horizonte é limitado demais... As florestas são tão altas, tão densas... Já os castelos são pequenos e sombrios, as mulheres ficam encerradas lá dentro. Os primeiros
anos foram muito difíceis para mim: não apenas perdera você, mas também não tinha qualquer notícia sua e quase nenhuma de minha família. Todos pareciam ter-me
esquecido, eu tinha a impressão de que não mais existia. Experimentei um pouco de felicidade com meus filhos, com o gentil Olivier, por quem ainda choro... Oh,
perdoe, vejo que essa lembrança ainda lhe é dolorosa...

- Tem razão, ainda sofro com sua ausência. - Foi seu nome que ele murmurou ao morrer e não o de meu filho, como pensei. Ele tentava dizer-me que você era Filipe,
meu amigo do passado. Ah, eu não compreendi!

- Não chegara o momento de nos reencontrarmos, havia muita distância entre a rainha da França e um pobre cavaleiro sem nome e sem rosto...

- Como isso aconteceu? - indagou Ana, acariciando com as pontas dos dedos a máscara de prata.

- Não importa; aconteceu, isso é tudo - murmurou Filipe, recuando.

Ana estremeceu. - Estou cansada, a claridade fere meus olhos doentes; peça que fechem as cortinas.

Filipe ficou impressionado com a súbita palidez e os olhos avermelhados da rainha. Chamou Branca de Chauvigny, que foi no mesmo instante para junto de sua senhora.

Ao longo das costas da França, Dinamarca e Alemanha, o tempo manteve-se bom. Impelido por uma leve brisa, a Mora navegava firme, deslizando pelo mar sereno. Chegaram
a Riga no mês de agosto e deixaram o navio. A rainha incumbiu o comandante de agradecer ao duque-rei.

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Uma delegação do príncipe de Kiev aguardava-os em Riga. Ana, fatigada, não pôde participar das festividades. Assim que sua saúde melhorou, ela pediu para partir
sem demora para Novgorod. Desceu o Dvina a bordo de uma embarcação comprida, deitada sobre peles. Deixaram a embarcação em Poltsk, trocando-a por liteiras e cavalos.
Pouco antes de subir em outra embarcação, no Volkhov, Ana teve uma longa conversa com Filipe.

- Viétcha, receio não chegar a Novgorod... Não, não me interrompa. Meus olhos doentes só percebem vagamente a claridade. Sinto o sol no rosto, mas não o vejo. Sem
dúvida, Deus me pune por ter abandonado meus filhos, privando-me do prazer de rever Novgorod. Prometa, amigo, que será meus olhos se eu ainda estiver viva quando
chegar à minha cidade querida.

- Não fale assim. Você viverá e verá... - Não. Talvez eu viva, mas não verei a cidade de meus ancestrais. Você jamais quis que eu visse seu rosto; agora que meus
olhos estão quase mortos, retire essa máscara para que meus dedos possam reconhecer suas feições.

- Não adianta! - Suplico-lhe! Sua mão não deixou a minha durante toda a viagem; e a minha está impaciente por acariciar seu rosto maltratado.

Filipe obedeceu e desfez os laços que prendiam a máscara. O ar fragrante e fresco era agradável, mas o que experimentou quando as mãos adoradas percorreram seu
pobre rosto foi o que de melhor sentiu em toda a sua vida.

- Meu amor, como você deve ter sofrido! - balbuciou Ana, chorando. - Mas posso reencontrá-lo sob as cicatrizes. Ainda é bonito sob os meus dedos... bonito e jovem...
Como você é jovem, Viétcha! Devo parecer-lhe muito velha!

- Você, velha? Nunca o será! Deus a fez bela por toda a eternidade, e agradeço a Ele o prazer de contemplá-la. Se a vida o permitisse, eu passaria todo o tempo a
contemplá-la... Ah, você ainda ri! Ri como no tempo em que eu a deixava ganhar na corrida...

- Mas nunca me deixava ganhar, eu é que conseguia vencer! - Porque eu refreava meu cavalo. - Oh! Com o punho cerrado, ela tentou aplicar-lhe um golpe. Foi a
vez de Filipe rir.

- Você continua a ser má perdedora. Eu a deixava ganhar, mas é a melhor amazona que já conheci.

- Então admite!

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Conversaram até a hora do embarque, acusando-se, rindo, às vezes sonhadores.

- Quero que prometa que vai me descrever tudo o que vir, sem omitir nada: a cor do céu, o formato das nuvens, o vôo das aves, as roupas das mulheres, a força
dos homens, o sorriso das crianças e, sobretudo, Novgorod... Quero ver tudo pelos seus olhos! E agora deixe-me; preciso poupar as forças se quero chegar lá.

Filipe obedeceu e foi para junto de Branca de Chauvigny, que chorava, ajoelhada.

- Cavaleiro, tenho medo de que a rainha nos deixe, ela está cada vez pior. Posso percebê-lo, apesar dos esforços que ela faz para esconder.

Abatido, os olhos no horizonte, Filipe não disse nada.

Pouco a pouco a febre se apoderou de Ana. Ela se queixava de violentas dores de cabeça, enquanto dos olhos escorria um líquido tingido de sangue. Um pouco de descanso
surgia com a noite. Filipe não a deixava, dormia sempre ao lado dela, a espada Mora entre os dois.

Uma manhã, a febre desapareceu, as dores atenuaram-se e os olhos pararam de lacrimejar. Ana tomou um pouco de leite e pediu às criadas que a lavassem e penteassem.
Filipe sentiu-se arrasado com sua magreza. Envolta num lençol branco, carregou-a para a proa da embarcação, onde Branca arrumou-lhe os longos cabelos, que ao sol
ainda mantinham o brilho antigo. Depois que estavam secos e trançados, Ana manifestou o desejo de dar alguns passos, ajudada por Filipe.

Ao cair da noite, a rainha pediu que a arrumassem com suas melhores roupas e todas as suas jóias. Assim arrumada, tinha a aparência de uma deusa. Os companheiros
de viagem fizeram o sinal-da-cruz ao vê-la tão pálida, tão bela, tão frágil.

- Viétcha, chegaremos amanhã a Novgorod. Não se esqueça de sua promessa, conte-me tudo o que vir.

- Prometo, minha amada. Aquela noite, Ana dormiu nos braços de Filipe.

O sol não estava muito alto quando os viajantes viram aproximar-se numerosas embarcações ornamentadas com flores, cheias de rapazes e moças em trajes de festa. De
pé, na proa de cada embarcação, havia um monge lançando bênçãos. Carregada por Filipe, Ana foi sentar-se na

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proa de sua embarcação. Os olhos mortos não viam, mas ela podia ouvir os cantos e os sinos de Novgorod. Uma imensa felicidade iluminou seu rosto.

- Em que dia estamos? - ela perguntou. - 5 de setembro, rainha - respondeu Branca de Chauvigny. As mãos comprimidas contra o peito, Ana tentava controlar as batidas
do coração.

- Viétcha, conte-me tudo. E ele se pôs a relatar, numa voz sem qualquer inflexão. Ao longo da descrição, o rosto da rainha foi se desanuviando: nada mudara, a
linda cidade de sua infância continuava tal como existia em sua memória.

- O céu continua tão vasto? - É imenso... tão imenso quanto meu amor por você. - Meu amado, o meu é tão grande quanto o seu. Posso dizer isso hoje, diante de
Deus que me escuta. Chegue mais perto, Viétcha. Não posso reter minha vida... Sinto que me escapa... Não sei se poderei tocar viva o solo de minha pátria... Se
isso não acontecer, quero que me leve, deite-me no chão, ponha um punhado de terra em minha mão. Calado, não diga nada... Depois, quero que me leve de volta a
meu barco, depois de tê-lo enchido de palha e de o bispo ter abençoado meus restos mortais... Ponha fogo no barco e empurre-o para o meio da água...

- Mas esse é o ritual pagão de nossos ancestrais! - Sei disso, mas é a minha vontade... Quero que compreenda, Viétcha, que não sou mais da Rússia, esta terra não
é mais a minha. Quero que o vento leve minhas cinzas, e que, ao caírem, espalhem-se sobre a terra, fazendo-me renascer na relva e nas folhas.

- Não me peça isso! É cruel demais! - Não é cruel, apenas justo, é assim que sinto. Deus e as almas de meus antepassados o exigem. Prometa, Viétcha, que me obedecerá.

- Prometo. Quando atracaram, Ana estava morrendo. Murmurando em seu ouvido - será que ela ainda ouvia? - Filipe descreveu o que via: a multidão que acorrera em
regozijo; o clero, tendo à frente o bispo de Novgorod; os guerreiros da droujina do príncipe; os guerreiros de seu irmão Vsevolod... Toda a cidade estava lá para
receber de volta sua princesa.

Fez-se um profundo silêncio quando um homem enorme, desfigurado, vestido como um guerreiro normando, desceu do barco, cambaleando, carregando nos braços uma mulher
suntuosamente vestida, as tranças entrelaçadas com pérolas tocando o chão. Abrindo caminho pela

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multidão, que recuava, assustada, ele avançou, o rosto coberto por lágrimas, para o primeiro portão da cidade. Ajoelhou-se lá, ajeitou o corpo no chão. Despejou
um pouco de terra em suas pobres mãos. O bispo disse a oração dos mortos. A multidão, de joelhos, orou. Todas as igrejas tocaram o dobre de finados. Ao final de
um longo momento, Filipe levantou-se e falou ao bispo, que o fitou com uma expressão horrorizada. Ele chamou os membros do conselho e repetiu-lhe a intenção do
homem sem rosto. Houve protestos dos notáveis.

- Isso é loucura! - Ele blasfema! - Não podemos permitir! - Nossos antigos reis tinham um funeral assim! - Mas a lei de Deus o proíbe! - Somos cristãos desde
Vladimir! - Que ela seja sepultada junto da mãe e do irmão! - Mas foi a sua última vontade! - Ela estava privada da razão! O príncipe de Novgorod adiantou-se
e perguntou a Filipe: - Tem certeza de que foi seu último desejo? - Tenho. Não pode haver a menor dúvida. - Então, que assim seja. O príncipe ordenou que se
armasse uma plataforma na margem, e que o barco fosse enchido com palha, coberta por tecidos vermelhos.

Durante todo o dia o corpo de Ana, rainha da França, permaneceu exposto aos olhos de todos. A multidão desfilou em silêncio, jogando flores na plataforma. Ao anoitecer,
Filipe levou-a para o barco ornamentado de flores, ramos e fitas de seda. Por ordem do príncipe, o bispo deu a última bênção. Filipe pôs fogo na palha e empurrou
a embarcação.

Um clamor elevou-se da multidão: no último instante, Filipe saltara para o barco em chamas. Com a ajuda do remo, afastou-se antes que pudessem alcançá-lo. Não demorou
muito para que estivesse longe da margem. De pé, na proa, brandiu a Mora, sua espada, na direção da cidade, beijou a lâmina e jogou-a nas águas do lago Ilmen.

A distáncia, os habitantes de Novgorod olhavam, tão espantados que se esqueceram de rezar. As chamas tornavam-se cada vez mais altas. Filipe deitou-se ao lado
do corpo e abraçou-o. Beijou o rosto pálido e frio. Uma serena felicidade o invadia; ela era sua, toda sua. As chamas fundiriam suas carnes em uma só. Ternamente,
ele se pôs a falar-lhe:

- Minha amada, nunca mais nos deixaremos... Vamos rever aqueles a quem amamos... E muito em breve aqueles que nos amam irão ao nosso encontro... Voltamos a Novgorod
para sempre... E para

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sempre nossas almas unidas habitarão o céu... As viely espalharão nosso canto de amor... Ana, minha amada... Estou aqui!

Durante vários séculos, em Novgorod e Senlis, a Igreja celebrou 5 de setembro como o "dia" de Ana, que não teve outro túmulo além do céu de Novgorod.

 

 

                                                                  Régine Deforges

 

 

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