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Depois da decepção de saber que o homem por quem estava apaixonada era casado, Helen só pensava em sumir. E achou ótimo quando seu agente lhe arranjou um contrato para cantar a bordo de um transatlântico de luxo, que fazia a rota do Caribe. Só não imaginava encontrar, também a bordo, Clay Anderson, cunhado do seu ex-namorado, e que a considera culpada pela destruição do casamento da irmã. “Vou lhe dar uma lição que você jamais conseguirá esquecer”, ele prometeu. “Não importa quanto isso possa me custar!”
O edifício longo e baixo brilhava contra o céu azul, refletindo em diversos tons de rosa e ouro o sol do entardecer. Da porta da sua cabine, Helen correu os olhos pela avenida da praia até a praça arborizada onde faziam ponto os táxis de San Juan, enormes veículos norte-americanos. Geralmente os passageiros que desembarcavam dos navios passavam por essa praça e seguiam por uma ruazinha cheia de curvas, verdadeiro túnel entre duas massas compactadas de edifícios, até chegar à cidade.
Pela porta aberta entrava uma onda desagradável de calor e umidade, que desafiava a potência do condicionador de ar e produzia grandes gotas de suor no rosto da moça.
Helen tornou a fechar a porta e virou-se para observar a cabine que seria seu lar nos próximos três meses. A vida errante que vinha levando nos últimos dois anos não a aborrecia, ao contrário, estimulava seu espírito de aventura e sua imaginação fértil. Mas ainda era difícil acreditar que estava em Porto Rico — tão distante de seu mundo habitual — e integrada ao elenco artístico do Andrômeda Connaught Club Cabaré. Os navios da Connaught Line eram famosos pela alta qualidade dos seus serviços de bordo e, ali, Helen teria uma audiência acostumada ao melhor e por isso mesmo muito exigente. Por Barney, e por ela própria, esperava corresponder às expectativas, pois o empresário tinha apostado na sorte ao contratá-la.
Sorriu ao lembrar o primeiro encontro com Barney Wilson. Os dois anos de crescente sucesso, primeiro no interior da Inglaterra, depois em Londres, tinham conseguido convence-la de que Barney sabia o que estava fazendo ao dar uma chance a ela.
Logo que se conheceram, ele tinha afirmado com certa brutalidade que cantoras bonitas existiam às dezenas e que a voz dela não era melhor que as das outras. Mas decidiu apostar na expressividade pouco comum de Helen, que, bem trabalhada, poderia fazer dela um sucesso nacional. Para isso exigiu que ela confiasse nele cegamente e se entregasse sem protestos aos seus cuidados.
— Olhe, garota — advertiu Barney, percebendo a expressão de dúvida no olhar de Helen. — Você é um colírio para os olhos dos homens, mas só estou interessado na sua voz.
Se não acredita, nada a impede de ir embora. — Helen tinha acreditado e jamais se arrependera disso. Barney, agora, era quase o pai que ela mal conheceu.
A mãe de Helen tinha morrido durante o parto e, depois disso, ela teve pouquíssimo contato com o pai, que morreu doze anos mais tarde em uma expedição ao Himalaia. A morte dele, contudo, não alterou em nada a vida de Helen, que continuou vivendo com uma tia, aprendendo às próprias custas que a afeição não pode ser comprada com um cheque mensal.
Seus horizontes se ampliaram consideravelmente depois que começou a trabalhar, e aos vinte anos já ganhava o suficiente para poder deixar a casa da tia e dividir um apartamento com duas outras moças. Foram elas que a encorajaram a cantar e que a estimularam a entrar no concurso de televisão onde foi descoberta por Barney, famoso lançador de novos sucessos. A partir daí, estava decidida sua vida.
Não que tivesse sido tudo um mar de rosas. Houve dias, no princípio, em que Helen pensou em largar tudo, pois a simples visão de uma partitura quase a fazia gritar. Mas Barney não permitiu que ela voltasse atrás, usando de todos os meios possíveis, inclusive exigindo indenização pelo dinheiro já investido na carreira dela. Obrigou-a a treinar sem descanso e, aos poucos, foi moldando o timbre e a profundidade daquela voz que aparentemente não era privilegiada, mas da qual obteve maravilhas. Ensinou-a a caminhar, a usar as mãos, a fazer de cada gesto a expressão natural das emoções despertadas pela música. Exigia que declamasse a letra das novas canções como quem declama poesia, para que sentisse e compreendesse as palavras em profundidade. Muito raramente fazia algum comentário elogioso, tanto que Helen teve um choque no dia em que ele anunciou que ela estava pronta para estrear.
Apresentou-se pela primeira vez num clube de Birmingham, mas estava tão nervosa que jamais conseguiu se lembrar direito do que aconteceu naquela noite. Só sabia que o público parecia ter gostado da apresentação. Daí em diante foi subindo cada vez mais, ganhando experiência e confiança, até convencer-se de que o sucesso não tinha sido um episódio passageiro, mas fruto de um talento real e promissor.
Embora estivesse constantemente rodeada de pessoas, Helen se sentia estranhamente solitária. Só ao lado de Barney ficava realmente à vontade, mas ele não podia dar muita atenção a ela, pois tinha outros artistas para cuidar. Quando conheceu Ian Marriot, pensou ter encontrado a resposta que buscava. Partilhando dos mesmos gostos e das mesmas antipatias, ambos solitários, pareciam feitos um para o outro.
Depois do primeiro encontro, passaram a se ver várias noites por semana, quando Helen não estava trabalhando. Umas duas ou três vezes convidou Ian para jantar no apartamento dela, depois das apresentações, e sentia que estava a ponto de se apaixonar seriamente. Nunca falavam em casamento, mesmo assim ela sentia uma grande alegria por ter alguém com quem se preocupar, alguém completamente afastado do mundo artístico. Descobrir que Ian já era casado foi um choque muito duro, do qual levaria meses para se recuperar. Barney foi maravilhoso durante essa descoberta infeliz, cancelando os contratos já assinados para os três meses seguintes e presenteando-a com esse cruzeiro, tudo para ajudá-la a superar um momento difícil. Assim, ali estava ela, Helen Gaynor, cantora de cabaré, decidida a curar um coração, se não partido, pelo menos bastante machucado.
Afastando as recordações desagradáveis, começou a desfazer as malas. Ao colocar alguns objetos sobre a penteadeira, viu um cartão junto ao vaso de flores. Era um convite para jantar na mesa do capitão naquela noite. Uma grande honra, que Helen aceitou, agradecida.
Sua cabine era lindamente decorada; o piso, recoberto de ponta a ponta por um espesso tapete cor de ferrugem. A cama, durante o dia, transformava-se num discreto divã, forrado com tecido branco e cor de laranja, o mesmo das cortinas.
Helen abriu uma das três malas e retirou vários vestidos, experimentando um por um diante do espelho. Seus cabelos escuros, compridos até abaixo do ombro, emolduravam um rosto cujos traços revelavam à primeira vista a mistura de raças. Nos olhos verdes, nas maçãs do rosto bem marcadas, na boca sensual, ficava patente a origem italiana, mas sua pele clara e suave e seu corpo esbelto não tinham nada de latinos. Durante certo período da vida, ela havia lamentado não ser alta, mas, com a ajuda de Barney, tinha superado essa fase e aprendido atirar proveito do seu tipo.
Decidiu-se pela túnica de seda amarela, aparentemente muito simples quando colocada assim diante do corpo, mas na verdade muito sensual depois de vestida.
Aquele transatlântico não era como os outros, onde ninguém se vestia com cuidado especial na primeira noite. O Andrômeda viajava pelo Caribe durante todo o ano, deixando passageiros em uma ilha e recebendo novos viajantes em outra, durante o curso do seu itinerário semanal. Num pequeno giro pelo navio, Helen percebeu que a maioria dos turistas era constituída de americanos, embora houvesse também passageiros de outras nacionalidades. E achou que seria bom se houvesse alguns ingleses entre os passageiros, ou ao menos entre os membros da tripulação.
Helen assustou-se um pouco quando o telefone soou. Achava um tanto estranha a existência de linhas telefônicas a bordo de um navio, mas concluiu que um navio não passava de um hotel flutuante e, portanto, era natural que dispusesse de telefones.
A voz do outro lado do fio era jovem e amigável.
— Sou Pbilip Osbourne, assistente do comandante. Encantado em tê-Ia abordo, srta. Gaynor. Estou ansioso por ouvi-la cantar.
— Obrigada — respondeu, agradecida. — Não vejo a hora de começar. Quais são as orientações para mim?
— É por isso que estou telefonando. O comandante gostaria que você estivesse no clube Connaught às quatro horas, para um ensaio. Está bem para você?
Já eram quase três e quinze. Aquele comandante, fosse lá quem fosse, não gostava de perder tempo. Helen devia fazer quatro apresentações por semana, sendo a primeira delas apenas na terça-feira, não se justificando, portanto, toda aquela pressa.
— Estarei lá — respondeu depois de pequena hesitação, decidindo que não valia a pena protestar. Afinal, uma negativa poderia ser interpretada como à cesso temperamental. -Onde fica o clube?
— No convés Connaught, dois acima do seu. À esquerda da sua cabine há um elevador que pode deixá-Ia atrás do palco. Normalmente o clube fica fechado durante o dia, mas vou deixar a porta de trás aberta para você. Até já.
Em menos de meia hora Helen tinha guardado todas as roupas, pendurado os vestidos nos cabides e colocado as outras peças nas gavetas. Sem dúvida teria oportunidade de usar tudo aquilo durante os três meses que passaria abordo. Alegrou-se ao pensar nisso. Três meses viajando pelo Caribe e com todas as despesas pagas! Sem dúvida era uma moça de sorte.
Depois de tudo arrumado. trocou o conjuntinho leve que havia usado na viagem por uma calça comprida de seda, delicadamente estampada em branco e preto, combinando com uma blusa do mesmo tecido e um par de sandálias pretas. Pronta e ansiosa para começar o trabalho, apanhou a sacola com as músicas e foi na direção indicada por Philip Osbourne.
Subiu sozinha no elevador. O navio estava relativamente vazio, pois naquela época do ano não havia muitas festas na ilha. Mesmo assim, não faltavam divertimentos para os poucos passageiros a julgar pelo programa afixado em todas as cabines. Na verdade havia tantas opções que ficava difícil escolher o que fazer primeiro. Para os passageiros em férias, tudo era prazer e divertimento, mas para o homem que organizava o programa social do navio o trabalho devia ser bem duro. Helen não via a hora de conhecê-lo.
O elevador deixou-a bem diante da porta indicada por Philip Osbourne. Dali já podia ouvir a orquestra tocando. Helen seguiu pelo corredor, dobrou uma curva e viu-se num salão imenso. luxuosamente decorado. À esquerda ficava o palco e. diante dele, centenas de cadeiras torradas de veludo. em torno de pequenas mesas com tampo de vidro. Dois homens de uniforme branco conversavam com o regente da orquestra. as costas voltadas para Helen. Um deles percebeu a presença dela e interrompeu o que estava dizendo. O mais novo dos dois devia ser Philip Osbourne.
Philip era um jovem bastante atraente, de cabelos castanhos e expressão amigável. Helen cumprimentou-o com um sorriso caloroso antes de voltar a atenção para o outro homem. que a observava com indisfarçável aprovação. Não havia nada de amigável naqueles olhos cinzentos que a devoravam. Helen sorriu novamente. com uma tranqüilidade que estava longe de sentir, estranham ente perturbada pela força de caráter que as feições inteligentes do homem irradiavam. O diretor de bordo era alto e devia ter pouco mais que trinta anos, jovem demais, talvez, para a responsabilidade do cargo que ocupava. Quase inconscientemente, a atenção dela foi atraída pelos ombros largos, bem marcados sob a camisa imaculadamente branca. e pelos cabelos negros, penteados com perfeição.
— 8em-vinda a bordo. srta. Gaynor — cumprimentou, formal, sem fazer qualquer movimento. — Sou Clay Anderson. Desculpe chamá-Ia assim tão depressa, mas esta é a última oportunidade para ensaiar com toda a orquestra. antes de terça-feira. Eles têm uma agenda bastante movimentada. -Fez uma pausa. olhando para o homem que estava no palco. — Deve conhecer Jimmy Keen de nome.
— E de fama — acrescentou Helen com entusiasmo. — Trabalhar com sua orquestra vai ser um grande prazer para mim, sr. Keen.
— Também já ouvi comentários muito elogiosos sobre seu trabalho, senhorita. Fiquei um pouco surpreso ao saber que estaria aqui no Andrômeda. Tinha ouvido comentários de que estaria se apresentando no Blue Parrot.
— Meu agente achou que, cantando aqui, depois terei condições de fazer um contrato mais vantajoso com o Blue Parrot.
— Barney Wilson deve saber o que está fazendo. — Sorriu. — Faz bem em seguir os conselhos dele, menina.
— Importa-se que comecemos? — perguntou Clay Anderson, impaciente. — Preciso organizar uma recepção para o capitão às sete e meia.
— Pensei que essas recepções já fossem uma rotina — comentou James Keen.
— Deviam ser, como todos os demais espetáculos. Mas dificilmente saem de acordo com os planos sem alguns empurrões. — Dirigiu um olhar mal-humorado para Helen.
—Pronta?
Sem dizer nada, ela fez um sinal afirmativo com a cabeça. Ele obviamente antipatizara com ela, mas por quê? Talvez não a considerasse suficientemente capaz de corresponder ao que se esperava dos artistas do seu precioso cabaré. Bem, o contrato tinha sido decidido pelos superiores dele e nada poderia anulá-lo agora. Mas seria difícil ignorar completamente o homem, mesmo porque ele não era o tipo de pessoa que consegue passar despercebida. Com algum esforço, dirigiu toda sua atenção para James Keen, entregando-lhe três músicas e subindo ao palco para ouvir a opinião dele.
Nos minutos que se seguiram, Helen sentiu que Clay Anderson ficava cada vez mais inquieto, embora não dissesse nada. Se estava com tanta pressa, por que ficava ali? Seu trabalho consistia só na organização geral do cabaré e não na direção de cada ato. Pensou em dizer isso a ele, mas achou que poderia piorar a situação, e calou-se. Além disso, por nada no mundo abreviaria a conversa com o maestro, pois o perfeito' entrosamento com a orquestra era vital para a apresentação.
Decidiu começar com uma das suas melodias favoritas, sentindo uma deliciosa tensão crescer dentro dela quando tomou posição ao lado do piano, sem se preocupar em usar o microfone, ainda. O pianista sorriu, amigável, e Helen retribuiu o sorriso quase sem perceber .
Assim que o piano soltou o primeiro som, entregou-se inteira ao trabalho, esquecendo tudo o que se passava em redor.
No meio da música, Helen interrompeu e pediu desculpas.
— Desculpe, acho que estou me atrasando. Pode diminuir um pouco o ritmo?
— Claro. — Não havia impaciência na voz de James Keen. Os dois eram profissionais trabalhando em direção a um objetivo comum: o entrosamento. E chegariam lá, não importando quanto tempo levassem. — Do começo outra vez, rapazes!
A nova tentativa foi melhor. Helen sentiu intensamente o ritmo e relaxou-se, certa de que tudo sairia bem. Deixou-se possuir pelo sentimento da canção, esquecendo tudo o mais, a não ser a necessidade de expressar com a voz essa emoção. Não se afastou do piano, balançando-se com graciosa facilidade enquanto pronunciava as palavras, inconsciente do belo contraste da sua pele contra a madeira escura e brilhante do instrumento. Quando terminou, houve um breve instante de completo silêncio, antes que alguém dissesse alguma coisa. Foi James Keen quem quebrou o silêncio.
— Vai conseguir -foi tudo que disse, mas para Helen era o suficiente.
Ouviu o murmúrio de aprovação dos homens reunidos à sua volta e sentiu uma onda de prazer invadi-la. Seria muito bom trabalhar com aquele grupo. Ela mal podia esperar para experimentar um arranjo mais complicado.
Demorou alguns, segundos para tomar consciência dos dois homens parados fora do palco. Os olhos do mais jovem expressavam irrestrita admiração, mas Clay Anderson não revelava nenhuma reação especial; nem favorável, nem desfavorável. Quando seus olhares se encontraram, ele se levantou e fez um sinal para o Iíder da orquestra.
— Acho que posso deixar tudo com você. Phil, corte aquele número extra de dança que incluímos no mês passado, acho que não vai ser mais necessário.
Philip fez uma careta.
— Vai dizer a Marian, ou quer que eu faça isso?
— Posso dizer, se isso o incomoda tanto. — Encolheu os ombros. — Se precisarem de mim, estarei na minha cabine durante os próximos quinze minutos.
— E boa sorte para ele — murmurou o pianista, sorrindo ao perceber o olhar de Helen — com nossa Marian. Ela não vai gostar nada desse corte, especialmente depois do esforço que fez para conseguir um solo. Espero que seus ombros sejam mais fortes do que parecem, pois você é quem vai receber as sobras.
— Não vai ser a primeira vez. — Ela sorriu. — Nesses dois anos aprendi a enfrentar situações como esta. Acho que as oportunidades que se apresentam a uma pessoa sempre representam uma perda para outra.
— É verdade. Só que no seu caso o talento pesou muito. — O rosto ossudo, quase feio, tinha uma expressão de sinceridade. — Você mereceu, menina.
— Obrigada. — A voz de Helen como essas palavras me fazem bem.
— Se já terminaram de rasgar seda, acho que podemos continuar não? — James Keen parecia bem-humorado. — Que tal tentarmos um blue agora?
Ensaiaram durante uma hora os números que Helen tinha intenção de cantar, até que ambos pareceram satisfeitos. Estava cansada, mas satisfeita com os resultados. James era tão perfeccionista quanto ela própria, exigindo o máximo para conseguir o exato equilíbrio de som.
Philip Osbourne tinha desaparecido durante o ensaio, mas voltou a tempo de cumprimentar Helen. Devia ter uns vinte e seis anos, dois mais que ela, e não parecia consciente da própria insegurança.
— Meu primo disse que gostou muito de você — anunciou com entusiasmo. — Viu-a em Londres, no último verão. Pensei que fosse um pouco mais velha, como a maioria das nossas melhores cantoras.
— É uma vida cansativa. — Riu. — Pretendo parar aos vinte e cinco anos. — Sentiu o peso da sacola que carregava e olhou em volta. — Onde posso tomar uma bebida gelada por aqui? Minha garganta está parecendo o Saara!
— O bar do convés Beach está aberto. Posso acompanhá-la, se quiser — acrescentou depressa.
— Seria ótimo, se eu não estiver tomando seu tempo, é claro.
— Não estou de serviço agora e estou ansioso para pagar o primeiro drinque de Helen Gaynor abordo.
— Ótimo. —Sentia-se ao mesmo tempo divertida e emocionada. — Então vamos.
Os terraços do convés superior estavam cobertos de corpos semi-despidos que se bronzeavam ao sol. Os grupos que tinham ido à praia já começavam a voltar, embora o navio não fosse partir antes da meia-noite. Àquela hora, a piscina estava quase que totalmente ocupada por crianças e jovens, que brincavam e jogavam, alegres, observados por duas moças, especialmente contratadas para isso. Helen segurou uma bola colorida que veio na sua direção e devolveu-a às crianças, rindo, sem se importar por ter se molhado um pouco.
— Vai secar logo, com esse calor — garantiu, percebendo a preocupação de Philip.
— Além disso, o tecido é lavável, não se preocupe.
— Você não se parece nem um pouco com uma estrela — comentou, sorrindo.
— Talvez eu deva começar a pensar um pouco mais na minha imagem — observou Helen, brincalhona. — Já é a segunda vez que me diz isso.
— Continue assim como é.
A maneira de Philip dizer aquilo não deixava margem a dúvidas. Helen olhou disfarçadamente para o jovem oficial e decidiu pensar duas vezes antes de provocar novos elogios. Tinha suficiente bom senso para saber que era bonita, mas não se envaidecia com a própria aparência. Sua beleza costumava atrair a atenção dos homens onde quer que ela fosse, por isso já sabia lidar com ela de forma a evitar complicações. Só com lan tinha sido diferente. Mas tinha aprendido a lição e decidiu que não tornaria a se envolver emocionalmente, vivendo só para o trabalho. Como Barney dizia, não podia permitir que as desilusões matassem suas potencialidades.
O bar da piscina estava lotado de pessoas ansiosas por descansar um pouco à sombra. Como todas as demais instalações do luxuoso navio, o bar também era muito bem decorado. Helen se afundou numa cadeira acolchoada, feliz por poder descansar um pouco, e tomou um grande gole da Coca-Cola gelada que Philip tinha conseguido em poucos segundos.
— Fale-me um pouco de você — pediu Helen. — Há quanto tempo trabalha aqui?
— Há mais ou menos quatro anos. Trabalhava numa agência de viagens, antes.
— Sorriu um pouco timidamente. — Acho que foi o charme do uniforme que me atraiu a princípio, mas a verdade é que sempre tive vontade de viajar. — Encolheu os ombros. — Só que a rotina acaba cansando qualquer pessoa. Qualquer lugar se torna monótono quando se vai lá muitas vezes.
— Não pode se transferir para outro navio da companhia?
— Posso, mas acho que não vale a pena. O Andrômeda é o melhor que temos.
— Apesar do tédio?
— Acho que sim. — Olhou para ela e sua expressão se descontraiu. — Mas tenho certeza de que nos próximos meses não vou sentir tédio.
— Clay Anderson sempre trata assim os artistas que se apresentam a bordo?
— perguntou Helen, achando que já era hora de mudar de assunto. — Ou é só das mulheres que ele não gosta?
— Clay? — Philip pareceu surpreso. — Nunca reparei que ele tivesse alguma coisa contra as mulheres, nem dentro, nem fora do palco. Por que pergunta isso?
Observou-o por alguns instantes. Será que ninguém tinha. Notado a atitude de Clay Anderson? Ficou em dúvida. Talvez fosse apenas impressão dela, com aquele excesso de sensibilidade. Tentou relembrar a expressão dele ao vê-Ia aproximar-se e suas dúvidas desapareceram: havia desprezo nos olhos cinzentos do homem e isso a perturbava mais do que ela gostaria de admitir. Por que um homem que nunca a vira antes teria aquela espécie de reação?
— Bem, talvez ele não goste do tipo de música que eu canto — sugeriu, tentando ser objetiva. — Não se pode agradar a todas as pessoas todo o tempo. Como é o capitão? Fui convidada para jantar na mesa dele esta noite.
Algumas horas mais tarde Helen descobriu que a capacidade descritiva de Philip era excelente. O capitão Reginald D. Sylvester parecia adorável. Durante a recepção, antes do jantar, tinha se deixado fotografar ao lado de cada um dos novos passageiros, sempre na mesma pose: um dos braços levemente dobrado para deixar visível a patente bordada a ouro no uniforme de gala, a cabeça leonina ligeiramente voltada para o companheiro ou companheiros, como quem diz "cuidarei de todos vocês, confiem em mim". Helen o achou um pouco teatral, mas acabou reconhecendo que era uma enorme responsabilidade comandar um navio daquele tamanho e, portanto, nada mais natural que fizesse uma pequena encenação em ocasiões como aquela.
Duas mesas mais adiante Clay Anderson presidia sua própria recepção, profundamente entretido numa conversa com uma companheira de mesa, mulher de quase sessenta anos, muito falante. Helen imaginou se ele mesmo escolhia seus companheiros de mesa ou era obrigado a aceitar o que as circunstâncias e o protocolo exigiam.
Com os dois vizinhos do lado ocupados em conversar com outras pessoas da mesa, ela teve tempo para analisar o homem que tanto a intrigara. Seu rosto podia ser classificado não tanto como bonito, mas como marcante, com maxilares duros como pedra, nariz afilado e boca ligeiramente irônica, mesmo quando descontraída. Seu traço mais característico eram as mãos, perfeitamente proporcionais à estatura, longas e sensíveis como as de um músico, mãos que tanto podiam ser delicadas, como cruéis, dependendo da ocasião. Uma emoção estranha provocou um calafrio dentro dela, seguido de profundo constrangimento ao perceber que ele a observava, irônico. Ficou aliviada ao perceber que o companheiro da esquerda se dirigia a ela.
Assim que o jantar terminou, Philip levou-a para longe do resto do grupo numa manobra que ela foi obrigada a admirar.
— Achei que gostaria de conhecer melhor o cabaré. A apresentação vai começar dentro de quinze minutos. Depois podemos ir até o clube Calypso, se não estiver muito cansada. Há um excelente conjunto tocando lá até de madrugada.
Helen tinha se sentido cansada durante o jantar, mas já havia recobrado as energias. Consciente da necessidade de tomar cuidado com Philip, mas ao mesmo tempo ansiosa para conhecer tudo que o navio tinha para oferecer, concordou em acompanhá-lo até o clube Connaught, mas deixou a decisão sobre o Calypso para mais tarde. Não olhou para Clay Anderson ao sair do salão, mas teve certeza de que ele a observou. Que olhasse! Não havia nenhuma regra que proibisse os artistas do cabaré de passearem com os membros da tripulação.
A orquestra estava tocando números de dança quando chegaram ao clube e Philip conseguiu uma mesa próxima ao palco. Helen respondeu com um sorriso ao aceno de James Keen. O espetáculo começou às dez e meia em ponto, com um grupo de seis moças que dançavam maravilhosamente.
— Marian é a da esquerda — murmurou Philip. — Aposto como Clay ainda não disse nada a ela!
Helen seguiu a dançarina ruiva com novo interesse. Era uma figura que chamava a atenção e possuía o mais belo par de pernas de todo o grupo. As seis moças eram excelentes, mas havia qualquer coisa na ruiva que a destacava das outras.
— Dança muito bem — observou Helen. — E é muito atraente.
— A maioria dos tripulantes concorda com você, mas ela está atrás de Clay.
Corajosa, pensou Helen, sarcástica.
Houve apenas mais um ato naquela noite, um número de mágica com globos de cristal, e, em seguida, a orquestra tocou uma seleção de valsas, que atraiu muitos candidatos ao prêmio de melhor casal dançarino.
— Agora começa a hora da saudade — comentou Philip com uma careta. — Vamos até o Calypso?
Helen decidiu aceitar. Afinal, não podia mesmo evitar Philip, que já tinha idade suficiente para cuidar de si mesmo.
Teve que admitir que Philip tinha razão ao dizer que o Calypso era o lugar mais movimentado do navio. Os jovens pareciam fazer dali seu ponto de encontro. O salão projetava-se para fora como uma nave espacial e pelas portas de vidro podia-se avistar a cidade e as luzes da costa. A iluminação interior era suficientemente suave para criar um ambiente de intimidade, mas oferecia boa visibilidade. O ritmo do conjunto tomou conta de Helen, obrigando-a a acompanhar a música, mesmo sentada.
Philip, com um suspiro desconsolado, apresentou as duas figuras uniformizadas que surgiram inesperadamente junto à mesa. O conjunto mudou sem aviso para um cha-cha-cha e, quase sem perceber o que estava se passando, Helen viu-se arrastada para a pista pelo assistente do comissário.
Felizmente estava habituada à música latino-americana e em poucos minutos acompanhava sem problemas os passos um tanto complicados do parceiro. Aos poucos os outros pares foram se afastando, deixando espaço para o espetáculo extra de Helen e do comissário. Logo estavam os dois dançando sozinhos na pista vazia, aplaudidos pelos outros casais. Foram entusiasticamente cumprimentados quando a música terminou.
Rindo, mas com firmeza, Helen recusou-se a dançar a seleção seguinte com o parceiro exuberante e foi para a mesa encontrar-se com Philip. Sentindo uma pressão no braço, logo acima do cotovelo, virou-se e teve um choque ao perceber que Clay Anderson estava ao seu lado.
— Temos um assunto para discutir -declarou, seco. — Aqui há muito barulho, vamos lá para o convés.
Seu parceiro de dança havia desaparecido no meio da multidão. Avistou Philip à distância, mas logo perdeu-o de vista. Olhou para o homem que a segurava pelo braço e deu de ombros.
— Se faz questão...
Ele não se preocupou em responder e arrastou-a para o fundo do salão apinhado. Logo haviam deixado a multidão e encontravam-se ao ar livre, sob um céu estrelado.
Em contraste com o clima produzido pelo condicionador de ar, o convés parecia um forno, Sem falar, dirigiram-se às grades do convés inferior, de onde se avistava a água batida pelo luar e ouviam-se vozes indistintas vindas do salão.
— A noite está perfeita para um mergulho — comentou Helen, esquecendo-se por um momento do homem que a acompanhava. — Que calor incrível!
— Não trouxe você aqui para falar do tempo — respondeu ele, ríspido.
— Não, claro que não. Qual é o assunto que quer discutir comigo?
— Tenho um conselho a lhe dar. — Fez uma pausa, inclinando-se sobre a balaustrada, a expressão carregada. — Sem dúvida deve ser divertido ter todos os homens do navio ao seu redor, mas eu ficaria só com os solteiros, se fosse você.
Helen respirou fundo, chocada demais para conseguir dar uma resposta à altura.
— Está se referindo a alguém em particular'? — perguntou, depois de alguns instantes de hesitação, tentando se controlar.
— Para começar, o homem com quem você estava dançando... ou melhor, com quem estava dando aquele espetáculo. — Sorriu com ironia. — Não consegue ficar muito tempo afastada do brilho dos refletores, não é? Aliás, isso parece ser comum na sua profissão. — Se ele notou o brilho de revolta nos olhos dela, não demonstrou. — Gerry Duncan tem mulher e três filhos, com os quais convive só durante um mês em cada quatro, e não está imune às tentações. Se precisa mesmo de estímulo para seu ego, não tenho dúvidas de que Philip está mais do que disposto a dá-Io. De qualquer maneira, fique longe de Duncan. É só isso.
— Uma ordem?
— Como queira.
— É uma pena que você não tenha autoridade para controlar minhas ações. — Helen não estava muito certa disso, mas com a raiva que sentia não se importava muito. A injustiça das palavras dele despertaram nela toda espécie de instintos belicosos. Pela primeira vez na vida sentiu vontade de esbofetear um homem. — Já lhe ocorreu que seu amigo pode não gostar da preocupação que está demonstrando pelo bem-estar dele? Na minha opinião, ele já tem idade suficiente para errar sozinho.
— Talvez tenha idade suficiente, mas duvido que tenha experiência para perceber quando está se metendo em complicações.
— Experiência que você tem de sobra, sem dúvida? — Com algum esforço, assumiu um tom de ironia. — Quantos anos tinha quando se envolveu na grande complicação da sua vida, sr. Anderson?
— Mais uma observação como essa e não serei capaz de controlar meus impulsos.
— Cerrou os dentes, furioso. — Mas pelo menos vai ficar tudo em família!
— O que quer dizer com isso? — perguntou Helen, sentindo o peito se apertar.
— Por mais estranho que pareça, lan Marriot é meu cunhado. Você quase acabou com o casamento de minha irmã. Que coincidência, não? — A última pergunta foi feita num tom ameaçador .
— Não estou entendendo. — Estava sinceramente surpresa. — A esposa de lan não sabia nada sobre nós. Pelo menos...
— Ela descobriu, é claro. Agora que conheço você, vejo que lan não estava tão errado, afinal. Ele é humano.
— Obrigada! — respondeu, irônica.
Ele deu uma risada seca, sem humor, e fulminou-a com o olhar.
— Por que vou negar sua beleza? Com esse rosto e esse corpo, pode virar a cabeça de qualquer homem antes mesmo de abrir a boca. — Percebeu o sorriso irônico de Helen e retribuiu. — A minha inclusive, claro. E eu não sou casado.
— Não me surpreende. — Procurou desesperadamente controlar o tremor das próprias mãos. — Então pensa que lan e eu... tivemos um caso?
— Que outro nome se pode dar a isso?
— Que nome ele dava?
— Não me contou detalhes. Quer me fazer acreditar que foi um relacionamento puramente platônico?
— Acredite naquilo que achar mais conveniente. — Era demais para Helen a ironia da situação. Tinha vindo a esse cruzeiro para esquecer Ian e agora acontecia isso! Destino ou coincidência? Que importância podia ter isso agora? Nada modificaria o fato de ser obrigada a passar três meses em companhia de Clay Anderson. Três meses que começavam a parecer três anos. — Vou descer.
Agarrou-a pelos ombros e obrigou-a a virar-se para ele. Havia crueldade na expressão de Clay.
— Ainda não. Ainda não terminei.
— O que está pretendendo? Exigir de mim aquilo que acha que dei a seu cunhado? Desculpe-me desapontá-lo, mas tive um dia muito cansativo. — Falava quase sem pensar, desejando apenas feri-lo. — Ou talvez eu não o ache tão atraente quanto imagina. Por que não procura a mulher que estava ao seu lado durante o jantar? Ela parecia mais do que disposta a ser generosa.
Durante um instante ele não se mexeu, apenas contraiu com mais força os maxilares. Então, de repente, soltou-a.
— Tem razão. É melhor descer antes que se envolva numa situação da qual pode se arrepender.
Helen afastou-se sem dizer mais nada, desceu para o convés inferior em direção aos elevadores. Alguns minutos mais tarde recostava-se contra a porta da cabine, sem acender a luz, fitando com olhos muito abertos a noite estrelada. Em menos de dez minutos o navio partiria, pensou.
A raiva havia passado, deixando em seu lugar uma grande tristeza. Se pudesse, arrumaria as malas e iria embora naquele mesmo instante, sem lamentar o contrato perdido. Mas não podia. Não sem causar um problema muito grande a Barney. Tinha que se conformar com a situação.
Nos dias que se seguiram Helen teve a oportunidade de aprender a andar por todas as dependências do navio. Apesar do seu enorme desejo de conhecer outros lugares da Venezuela, além do porto de La Guaira, não saiu do barco. O passeio podia esperar, afinal nos três meses que estavam por vir passariam por ali pelo menos doze vezes. Por enquanto, tinha bastante com que se ocupar a bordo.
Depois da noite de sábado, não tinha mais se encontrado com Clay Anderson, apesar de não evitá-Io. Chegou a pensar que ele a estivesse evitando, mas concluiu que não era provável, já que o navio era o campo de trabalho dele. Além disso, um homem como Clay não deixaria que uma mulher atrapalhasse suas atividades. Tentou adotar uma atitude fria, mas não conseguiu. Tinha sido muito machucada e as feridas só cicatrizariam com o tempo. Queria estar de posse das próprias emoções quando encontrasse Clay Anderson novamente.
Estava descansando no convés Beach, na terça-feira à tarde, quando percebeu que era observada por um homem que ocupava uma cadeira próxima. Percebendo que ela o havia visto, ele sorriu, levantou-se, vindo sentar-se ao lado dela.
— Espero que não se aborreça por vir incomodá-la. Reconheci você pelas fotografias espalhadas por todo o navio. Sou Glenn Freeman. Vai cantar esta noite?
— Isso mesmo. — Helen se ajeitou melhor na cadeira e levantou às alças do biquíni, que havia abaixado para se queimar. — Também embarcou em San Juan, sr. Freeman?
— Sim, com minha filha. — Seu tom era franco e aberto. — Como tinha alguns dias livres, decidi que já era hora de nos conhecermos melhor.
— E está dando certo?
— Acho que não. — O rosto simpático se contraiu. — Talvez seja tarde demais. Temos brigado desde que chegamos a bordo. Pretendia levá-Ia para conhecer alguns pontos turísticos, mas SaIly parece mais interessada em ficar no navio em companhia dos jovens. Claro que não a reprovo.
— Quantos anos ela tem'?
— Dezessete. — Um sorriso rejuvenesceu o rosto de quarenta e cinco ou quarenta e seis anos, idade que Helen calculava ser a de Glenn Freeman. — E pensa que sabe tudo!
— Todos nós pensamos assim. — Helen sentia-se atraída pelo homem de uma maneira estranha, que não conseguia explicar. Talvez sua aparência de executivo americano todo-poderoso, sonho de toda mulher, fosse a responsável por essa sensação, pensou, divertida.
— Por que não trouxe sua mulher para ajudá-lo?
— Sou viúvo há doze anos. Acho que esse é que é o problema. Meu trabalho exije que eu viaje muito, por isso passamos pouco tempo juntos, minha filha e eu. SaIly praticamente foi criada por babás. Talvez a idéia deste cruzeiro tenha sido completamente errada. Devia ter escolhido um lugar mais sossegado, onde pudéssemos estar sozinhos.
— Acho que teria sido pior. Nessa idade uma garota precisa se libertar um pouco da família.
Glenn Freeman demonstrou interesse pelo comentário de Helen.
— Você fala como se tivesse passado por isso também.
— Passei, 'de certa forma. Também nunca convivi muito com meu pai. — Apoiou a cabeça sobre os joelhos dobrados e piscou um pouco por causa do brilho forte do sol. — Não vai conseguir conquistá-la com facilidade... Pelo menos, não em uma semana.
— Não posso ficar mais tempo.
— Quer dizer que seu trabalho importa mais que sua filha? — As palavras saíram quase sem perceber. — Desculpe, não tinha o direito de lhe dizer isso.
Ele a olhava sem ressentimento, pensativo.
— Não se desculpe. Talvez esteja certa. Parece que o hábito tem mais força que a consciência. — Fez uma pausa e acrescentou: — Não tinha intenção de falar sobre SaIly. Só queria que nos conhecêssemos.
— Bem, deu resultado, não deu? — Um brilho de malícia iluminou os olhos de Helen.
— Acho que sim. — Ele riu e olhou na direção do bar. — Posso trazer uma bebida para você?
— Uma Coca-Cola, por favor.
— Pura?
— Bem... — Helen hesitou. — Um pouquinho de Bacardi.
— Não vá embora. — Levantou-se de um salto, sacudindo o cabelo castanho-avermelhado onde o sol colocava alguns reflexos grisalhos.
Observou-o contornar a piscina com passos seguros e confiantes. Os dela não eram os únicos olhos femininos a segui-lo. Uma espécie de instinto fez com que ela olhasse para o convés superior, onde tinha estado com Clay Anderson três noites atrás. Sentiu que todo seu corpo se enrijecia ao avistar a figura uniformizada que olhava fixamente para ela. Não sabia há quanto tempo ele estava ali, mas pela expressão de seu rosto teve certeza de que tinha estado o tempo suficiente para formar uma opinião sobre a conversa dela com Glenn. Resistiu ao impulso de acenar a mão, provocativa. Por que tornar as coisas piores?
Quando Glenn voltou, Clay Anderson já tinha ido embora, mas Helen estava tão tensa que não conseguiu mais conversar descontraidamente com o americano.
— Estou ansioso para ouvi-la esta noite — disse Glenn quando ela se levantou para ir para o camarote. — Não quer se encontrar comigo e com Sally depois do espetáculo? Tenho certeza de que ela vai adorar conhecê-la.
Helen fazia algumas objeções a esse encontro, mas ignorou-as.
— Seria ótimo.
— Estarei contando os minutos até lá. — Glenn estendeu a mão para ajudá-Ia a levantar, demorando um pouco para soltá-la, como se hesitasse em deixar que ela se afastasse.
Philip surgiu de repente de uma porta que Helen ia atravessando.
— Oi — cumprimentou, alegre. — Não vi você o dia todo.
— Estava tomando sol no terraço. — O sorriso dela era amável, mas não encorajador.
— Vou descer para me trocar. Você parece cansado.
— Estava colocando umas mesas no salão Cavendish. Se estiver interessada, vai haver corrida de cavalos lá, às quatro e meia.
— Corrida de cavalos? — espantou-se.
— É uma espécie de jogo. Por que não vai até lá depois? É divertido.
— Acho que não, obrigada. Preciso escrever umas cartas. — Sorriu e seguiu seu caminho. — Até mais tarde.
— Podíamos ir ao Calypso outra vez, depois do espetáculo desta noite.
— Não, obrigada. — Sentia-se satisfeita por ter uma razão para recusar. — Já tenho outro compromisso. Fica para outro dia, está bem?
— Claro. — Ele ficou tão desapontado que Helen pensou em marcar um encontro para o dia seguinte, mas o bom senso alertou-a para não fazer isso. Philip parecia se encorajar com muito pouco, o melhor era evitar complicações. Afastou-se depressa, antes que ele tivesse outras idéias.
Um bom banho e uma roupa limpa a ajudaram a relaxar um pouco e encarar com mais tranqüilidade a estréia daquela noite. Embora já fosse uma veterana, cada nova estréia a enchia de ansiedade, como se fosse a primeira apresentação da sua vida. Mas, segundo Barney, ela só deveria se preocupar no dia em que deixasse de sentir qualquer espécie de tensão nervosa, pois isso significaria uma acomodação, o princípio da estagnação do talento. Helen desejou que ele estivesse ali naquela noite, animando-a e dando-lhe forças, como sempre fazia. Era a primeira vez que se via sozinha e isso a amedrontava. Ao mesmo tempo, percebia que aquela era sua oportunidade de se libertar de Barney e adquirir autoconfiança.
No jantar, Helen dividiu uma das mesas com um casal americano, já idoso, e com um casalzinho de venezuelanos, tão embevecidos um com o outro que, sem dúvida, estavam em lua-de-mel. Como os venezuelanos quase não falavam inglês, a conversa restringiu-se aos outros três.
— Então é hoje a sua estréia — disse Lawrence Miller, quando já estavam todos sentados à mesa do jantar. — Precisamos reservar uma boa mesa antes que as outras pessoas tenham a mesma idéia, não é, Lucy? Não podemos perder a apresentação da mocinha. A que horas começa?
— Lá pelas onze — respondeu Helen. — Mas o melhor espetáculo vai ser na sexta-feira. E quando começa o carnaval, não é?
— É mesmo — concordou Lucy, animada. — Sempre gostei de usar aqueles colares coloridos. Parece que é uma tradição das ilhas do Pacífico. Estamos torcendo por você, querida.
Helen se sentiu reconfortada com a gentileza dos dois. Do fundo do coração, desejou que Clay Anderson não comparecesse ao cabaré, mesmo sabendo que era parte do trabalho dele fiscalizar o andamento dos espetáculos de bordo, especialmente a apresentação de uma cantora desconhecida como ela.
Para ganhar tempo, levou o vestido que usaria naquela noite e o estojo de maquilagem para o camarim reservado para ela no fundo do palco do clube Connaught, assim teria tempo suficiente de jantar sossegada. Subindo ao convés superior, ouviu a orquestra tocando músicas de dança latino-americanas e sentiu que toda vez que ouvisse aquele ritmo, no futuro, ia se lembrar da primeira noite passada a bordo do Andrômeda. De uma coisa estava certa: impossível passar três meses a bordo sem encontrar de novo Clay Anderson. Com certeza, para ele, ela não passava de uma vagabundazinha que merecia umas boas lições. Mas não daria a ele essa oportunidade, prometeu a si mesma. Se ele tentasse encostar as mãos nela outra vez, se queixaria ao capitão, por mais drástica que parecesse essa solução.
Aquela hora os terraços do convés Beach estavam vazios. Helen sentou-se em uma cadeira próxima ao lugar onde tinha estado à tarde e ficou .observando os reflexos do luar sobre as ondas. À medida que o tempo passava, sentia que seus nervos se contraíam, numa sensação ao mesmo tempo dolorosa e agradável. Sua garganta parecia seca demais para produzir sequer uma nota mas, como já estava acostumada a essa reação, não entrou em pânico. Quando chegasse a hora os músculos se descontrairiam, como sempre. A espera era a pior parte, junto com as dúvidas que a acompanhavam. O público era, em sua maioria, de americanos. E se não gostassem da apresentação?
— Pois então trate de fazê-los gostar — disse para si mesma com firmeza.
Havia quatro camarins à disposição dos artistas. Marian Lee ocupava o camarim à esquerda do de Helen, que a encontrou sozinha ao descer. Assim que viu Helen, bateu a porta com força, sem dizer uma palavra. Obviamente a dançarina tinha recebido a notícia da sua exclusão do espetáculo e estava irritada. Helen compreendia a situação, mas preferia não passar por bode expiatório. Com certeza Clay tinha tocado em seu nome na conversa que teve com Marian. Talvez tivesse até dito que ela exigiu o tempo que seria da dançarina. De um homem como ele não se podia esperar atitude mais digna, mas já estava acostumada a inimizades profissionais e não se preocupou muito.
Estava lutando para fechar o zíper do vestido longo, cor de esmeralda, quando bateram à porta. Pensando que fosse a criada com o café que havia pedido, mandou que entrasse, sem se virar. Ficou gelada quando viu pelo espelho quem entrou.
— O que é que você quer? — perguntou, hostil.
— Só conferir. — Havia zombaria no tom das palavras de Clay. — Algum problema?
— Nada que eu não possa resolver sozinha, obrigada. — Percebeu que ele se aproximava e virou-se para encará-lo, deixando cair um pote de creme que tinha nas mãos.
— Saia daqui!
Ele se inclinou, pegou o pote e recolocou-o sobre a penteadeira.
— Sorte não ter quebrado. Vou ajudá-la com esse zíper.
— Eu disse para você sair. — Helen deu um passo atrás, consciente de que o vestido tinha escorregado alguns centímetros pelos ombros. — Não preciso da sua ajuda.
— Precisa da ajuda de alguém e parece que eu sou a única pessoa disponível no momento. -Desafiava-a com o olhar. — Vai deixar que a ajude ou pretende fazer o público esperar por causa de sua timidez? Precisa entrar em cena dentro de cinco minutos.
Olhou fixamente para ele durante alguns segundos para depois se virar abruptamente. Pelo espelho, podia ver o sorriso irônico com que ele se aproximou. Sentiu o toque leve de seus dedos nas costas e não conseguiu conter um pequeno calafrio. Cravou as unhas nas palmas das mãos, desprezando-se por não ter conseguido evitar aquela pequena reação ao contato das mãos dele. Agora ele possuía mais uma arma para usar contra ela... e sabia disso.
Sentiu um impulso incontrolável de se afastar com violência, mas fez um esforço e ficou onde estava. Tal reação seria um reconhecimento tácito do poder de Clay Anderson sobre ela e não pretendia dar-lhe essa satisfação.
— Obrigada.
— As ordens. — Continuou com os olhos fixos nos dela. Uma nova batida na porta veio quebrar o encanto. Aliviada, Helen mandou a criada entrar.
Se a recém-chegada ficou surpresa com a presença do diretor no camarim, não demonstrou. Simplesmente colocou a bandeja em cima da mesa e saiu sem dizer nada. Assim que fechou a porta, Clay caminhou na mesma direção, virando-se para lançar a Helen um sorriso sarcástico antes de sair.
Ela sentiu que suas mãos tremiam ao se servir de café. Tomou-o de um só gole, satisfeita por não ter queimado a boca. Para falar a verdade, uma bebida mais forte seria ideal naquele momento, mesmo sabendo que o álcool prejudicaria sua apresentação. Maldito homem! Que direito ele tinha de entrar ali daquele jeito? E que diabos estava havendo com ela, para reagir daquela maneira ao contato de um homem que lhe havia dito tamanhas barbaridades? Apenas química, disse a si mesma, tentando se tranqüilizar; uma reação física automática, que não tinha nada a ver com os sentimentos que podia ter em relação a outra pessoa. Mas duvidava que o homem que acabara de sair visse as coisas sob o mesmo prisma. Para ele, aparentemente, só o relacionamento físico era possível entre um homem e uma mulher.
Tremeu levemente ao relembrar a expressão dos olhos dele. Um homem como Clay devia achar mais do que justo aproveitar toda e qualquer oportunidade para retribuir na mesma moeda que supunha ser a dela. Mas estava redondamente enganado se pensava que podia induzi-la a ter qualquer espécie de relacionamento com ele. Daquele dia em diante, procuraria manter dele a maior distância possível dentro do espaço limitado do navio.
Parada na boca do palco, na semi-obscuridade, procurou esquecer o incidente e concentrar-se no homem que a apresentava ao público. Com o coração aos saltos, ouviu-o anunciar seu nome e logo em seguida, aos primeiros acordes do seu número inicial, entrou no palco com ar confiante, sorrindo para o mar de rostos da platéia. Sob a luz forte dos refletores, caminhando com passos leves e graciosos, pegou o microfone e soltou a voz, animada pelos aplausos calorosos.
O sucesso do primeiro número lhe deu coragem e ânimo para prosseguir com total confiança. No espaço de vinte minutos, cantou mais quatro canções, entremeadas de um bate-papo alegre com o público, técnica a.prendida. com Barney. Como número final, cantou a balada que havia escolhido para iniciar o ensaio com a orquestra. Apoiada a uma das colunas, de perfil para o público, recebia a luz de apenas um dos refletores, que destacava delicadamente seu rosto e seus ombros.
A passagem de um número rápido para outro lento requeria mais que um simples ajustamento de tempo: exigia também um estado de espírito bem diferente. Helen procurou esquecer a platéia para se concentrar apenas nas palavras a que devia dar vida e sentimento. Começou lenta e suavemente, deixando que viessem a ela, em lugar de correr atrás delas. Na platéia, podia-se ouvir um alfinete que caísse no chão, tamanho o silêncio e o enlevo com que o público acompanhava o número. Alguns segundos depois da última nota se perder no ar, a assistência fez vibrar todo o salão com um aplauso vibrante e entusiástico.
— Precisa cantar mais um número — murmurou James Keen quando Helen passou por ele. — Que tal Cabaré?
Não podia haver escolha mais apropriada naquele momento. Helen se sentiu invadida por uma estranha emoção quando as primeiras notas se elevaram num crescendo, e entregou-se totalmente à música. Tinham gostado dela. Tinham realmente gostado, e aquela era a sensação mais maravilhosa do mundo!
Foi muito cumprimentada pelos demais artistas quando finalmente deixou o palco. De volta ao camarim, esperou durante alguns segundos que a adrenal!na voltasse ao nível normal antes de analisar o sucesso daquela noite.
Um pouco depois, vestindo a roupa azul que havia usado no jantar, deixou o camarim e foi para o clube encontrar-se com Glenn e com a filha. Encontrou-o numa das mesas perto da porta, mas sozinho.
— Esteve maravilhosa — cumprimentou-a, levantando-se oferecendo uma cadeira a ela. — Já cantou nos Estados Unidos?
— Não sou uma artista internacional, apesar dos folhetos de propaganda — respondeu, sorrindo. — Meu agente conseguiu este contrato porque achou que me seria útil no futuro. O Andrômeda é um navio muito exclusivo.
— É acho que sim. Tenho certeza de que logo vai ser convidada para cantar do nosso lado do Atlântico. Quanto a mim, farei o possível para levá-la até lá.
— Tem alguma ligação com o mundo dos espetáculos? — perguntou, intrigada.
— Digamos que tenho contatos significativos com algumas das grandes orquestras e que minha palavra tem algum peso. O público e reagiu de maneira excelente esta noite.
— É, eles foram maravilhosos. — A experiência a havia ensinado a não cultivar a falsa modéstia. Tinha consciência de ter feito uma boa apresentação, portanto era improvável que falhasse nos espetáculos seguintes, a menos que tivesse a infelicidade de se defrontar com um novo grupo totalmente diferente do atual. Por outro lado, não podia esquecer que as pessoas que a haviam aplaudido naquela noite estavam em férias, o que naturalmente as levava a ser menos críticas que um público que precisasse comprar entradas para assistir à apresentação de um artista. A possibilidade de um contrato para cantar nos Estados Unidos em futuro não muito distante era ao mesmo tempo excitante e assustadora, mas achava mais prudente não contar com ela.
— Sua filha vem se encontrar conosco? — Percebeu que a pergunta provocou uma mudança na expressão de Glenn.
— Acho que não. Ela foi à discoteca com alguns amigos.
— Claro, é compreensível. — Helen fez uma pausa antes de acrescentar: — Está preocupado com ela, não está?
— Um pouco. Sei que as meninas de dezessete anos são muito amadurecidas, hoje em dia, mas Sally sempre foi muito sossegada. Gosta muito de ler e de ir a concertos. Eu nem sabia que ela conhecia essas danças modernas.
Helen riu.
— Não é necessário saber nenhum passo especial, basta acompanhar o ritmo. Qualquer pessoa pode aprender em poucos minutos, desde que não seja muito tímida. É muito mais fácil que o swing.
— Você é jovem demais para conhecer o swing — comentou, rindo.
— Ultimamente fizeram algumas tentativas para revivê-lo.
— Pelo menos era um tipo de dança em que havia contato pessoal. Hoje em dia as pessoas podem dançar sozinhas, sem necessidade de parceiro.
— É mais seguro, não acha?
— Talvez tenha razão. Eu devia me sentir aliviado pelo fato do estilo corpo a corpo estar fora de moda. Nada mais apropriado para ferver o sangue do que uma valsa antiga e uma pista de dança apinhada. Foi assim que conheci minha esposa.
— Nunca pensou em se casar outra vez? — perguntou, percebendo que ele estava um pouco melancólico.
— Nunca mais conheci ninguém com quem desejasse me casar. — Os olhos azuis de Glenn encontraram-se com os dela por alguns instantes, mas afastaram-se depressa. — Na minha idade, muitos hábitos estão arraigados demais para serem mudados. O problema é encontrar uma mulher que esteja disposta a me suportar daqui para frente.
— Você fala como se fosse um velho — brincou. — Não deve ter mais que quarenta e seis anos.
— Errou por pouco. Tenho quarenta e oito. — Outra vez seus olhos se encontraram.
— Velho bastante para ser seu pai. Importa-se de ter um velho como acompanhante?
— Vou me importar, se continuar dizendo que é velho, mesmo que seja por brincadeira. A velhice não tem nada a ver com a idade. — Estava pensando em Barney Wilson, ao dizer isso. — Um dos homens Mais jovens que conheço tem mais de sessenta anos.
— É um ponto-de-vista muito animador! — Sorriu. — De agora em diante vou tentar me sentir jovem.
Tomaram outro drinque e conversaram mais um pouco. Foi Helen quem sugeriu uma ida até o convés Beach, percebendo a preocupação de Glenn. Talvez ele ficasse mais tranqüilo se visse que a filha estava se divertindo.
Quando saíram, Helen percebeu que Glenn olhou para o Calypso, mas não fez nenhuma menção de levá-la naquela direção. Entendia o dilema dele. Se Sally visse o pai nas proximidades do clube, provavelmente acharia que a estava espionando, que não confiava nela. Era uma situação difícil, da qual Glenn não tinha nenhuma experiência. Helen tentou imaginar como teria se sentido aos dezessete anos, naquelas mesmas circunstâncias, e concluiu que teria ficado muito feliz com qualquer demonstração de preocupação por parte do pai. Não que ela tivesse tido muitas oportunidades de sair com pessoas da mesma idade, naquela época; a tia a mantinha quase sempre sob forte vigilância, provavelmente por achar uma grande responsabilidade cuidar da filha de outra pessoa. De qualquer maneira, não tinha nenhum conselho a dar a Glenn. Ele teria que resolver por ele mesmo seus problemas de família.
À distância, junto às grades da amurada, um casal parecia concentrado num abraço apaixonado. De repente, uma das figuras empurrou a outra para trás e uma voz jovem protestou.
— Não, não!
Glenn soltou uma exclamação surda e correu em direção ao casal, parando diante do rapaz, que segurava com força o braço da garota.
— Solte-a! — Aparentemente, Glenn estava disposto a enfatizar as palavras com um soco, a julgar pelos punhos cerrados. — Sally, afaste-se desse... gigolô!
Em outras circunstâncias, Helen teria achado engraçado, mas agora a situação não tinha graça alguma. O venezuelano — ao menos parecia ser — virou-se para Glenn com evidente agressividade, mas acalmou-se ao perceber que eram conhecidos. Sem dúvida era um esplêndido representante da raça venezuelana, de vinte e poucos anos, músculos de atleta e ar arrogante.
— Desculpe — disse a Glenn, sem hesitar. — Se soubesse que SaIly, estava acompanhada, não teria concordado em trazê-la até o convés.
— A sugestão foi sua! — O rostinho jovem de SaIly estava cheio de indignação. — E você tinha prometido não... não fazer nada.
— Eu não fiz nada. — O protesto veio rápido. — No meu país, um beijo não é considerado um crime. — Olhou para Glenn, como quem pede compreensão masculina.
— Precisa acreditar em mim, eu...
— Se o encontrar perto da minha filha outra vez, ponho-o para fora deste navio. Vá andando!
O rapaz foi embora sem nenhuma pressa e, ao passar por Helen, lançou-lhe um longo olhar de aprovação. SaIly não tinha coragem de encarar o pai e permanecia em silêncio, trêmula. Era uma garota muito bonita, de pernas esguias e bem-feitas, que o vestido curto não escondia. Glenn não sabia como enfrentar a situação e buscou refúgio na raiva.
— Não tem juízo? Como é que vem aqui para fora com um rapas daqueles? Não percebe que ele só quer...
— Não sabia que ele ia tentar fazer alguma coisa. Foi tão gentil enquanto estávamos dançando. — SaIly parecia prestes a explodir em lágrimas. — Ele me trouxe uma bebida e...
— Que espécie de bebida?
— Uma limonada. — Tentou olhar para ele, ao mesmo tempo aliviada e irritada. — Veio aqui em cima para me procurar?
— Não, queríamos respirar um pouco de ar fresco. — Foi Helen quem respondeu por ele, percebendo imediatamente que não tinha usado um bom argumento, já que o ar condicionado do navio era perfeito. Deu um passo adiante. — Sou Helen Gaynor. Seu pai e eu nos conhecemos esta manhã.
— Sim, ele me disse. — SaIly parecia grata pela interferência de Helen, mas insegura quanto à maneira de agir. — Desculpe por não ter ido ao seu espetáculo.
— Também gosto de dançar — acrescentou, entusiasmada. — Vai haver outro espetáculo na quinta-feira, mas o melhor será o da sexta-feira: um show de carnaval. Por que você e seu pai não vão juntos?
— Eu gostaria muito! — Sally hesitou, olhando para a figura alta parada entre elas.
— Acho que vou para a cama. Vai... vai descer comigo?
Estava com medo de encontrar o venezuelano outra vez, pensou Helen, acrescentando sem pensar:
— Vá, Glenn. Também vou entrar daqui a pouco.
— Acompanho você até a cabine — ofereceu Glenn, mas ela recusou.
— Vou dar uma volta antes, senão não consigo dormir. Costumo andar um pouco depois das apresentações e prefiro fazer isso sozinha.
O bar da piscina ainda estava aberto e do lugar onde estavam podiam ver os freqüentadores, através das portas abertas. Não fosse por isso, Glenn não a teria deixado sozinha no convés. Depois de muita relutância, concordou em ir embora com a filha.
— Fez reserva para alguma excursão a Barbados, amanhã? — Recebendo resposta negativa acrescentou: — Então que tal nos dar prazer da sua companhia num passeio pela ilha? Aluguei um carro para as nove e meia.
— Venha conosco! — Sally parecia sinceramente interessada. — Barbados é um dos lugares que mais tenho vontade de conhecer. Já ouvi contar maravilhas sobre a ilha.
— Muito obrigada, será um prazer. — Helen estava sendo sincera. Os Freeman pareciam precisar de uma pessoa que atuasse como intermediária durante o período de aproximação. Gostava muito de Glenn e tinha certeza de que se daria bem com Sally. Além disso, já era hora de sair um pouco do navio, para quebrar a rotina.
— Encontro-os na prancha de desembarque'?
— Pode ser. — Glenn ainda hesitou um pouco em deixá-la sozinha, mas pensou na filha e decidiu se despedir. — Estaremos esperando.
Assim que os dois se afastaram, Helen começou a caminhar lentamente ao longo da amurada. Daria a eles tempo de tomarem o elevador e depois também iria dormir. Tinha falado a verdade ao dizer que precisava caminhar um pouco para conciliar o sono, mas a noite estrelada e o mar prateado pelos raios da lua não estavam conseguindo criar nela o estado de espírito adequado. Havia uma estranha inquietação dentro dela, uma necessidade que se recusava a aceitar.
Do outro lado do convés surgiu uma figura vestida de branco. Um dos oficiais fazendo sua ronda noturna, pensou Helen, procurando afastar pensamentos desagradáveis. Mas, quando a figura se aproximou, seu coração começou a bater violentamente. Era o venezuelano que estava com Sally.
— Você ficou aqui sozinha — disse o rapaz, com uma entonação que não deixava margem para dúvidas. — Sabia que ia se livrar do seu amigo depois que nos olhamos daquele jeito.
A audácia do rapaz a enfureceu. O jeito que nos olhamos! Sentiu um súbito desejo de rir, talvez uma conseqüência do nervosismo. No passado, tinha precisado se livrar de pretendentes importunos muitas vezes, mas jamais se vira frente a frente com tamanha autoconfiança — Acho que está sendo um pouco pretensioso. Já ia descer para meu quarto.
— Para o seu ou para o meu, não tem a menor importância. Queremos a mesma coisa, não é, querida? Logo que a vi, percebi que estava diante de uma mulher de verdade, e não de uma menina como aquela. Era muito bonitinha, mas acho que não tem muita experiência — Tem só dezessete anos — respondeu Helen.
Ele pareceu surpreso.
— Tudo isso? Pensei que fosse mais jovem. No meu país...
— No seu país os costumes evidentemente são bem diferentes dos nossos. Você deve ser o homem mais pretensioso do navio!
Ele sorriu, divertido, sem demonstrar que pretendia desistir.
— Tenho de que me orgulhar. Muitas das garotas aí em cima — apontou para o convés superior — gostariam de estar com Chico Vargas esta noite, mas eu escolhi você!
— Pois então pode escolher outra, porque não estou disponível — Helen quase não conseguia levar a sério a situação. — Boa noite sr. Vargas.
Ele se colocou diante dela, quando Helen fez menção de entrar sem diminuir o sorriso.
— Não pretende fazer isso, eu sei. Quer que a convença, não é?
— Não se preocupou em esperar por uma resposta. — Então vou convence- la.
Helen estendeu os dois braços para interromper o avanço entusiasmado do rapaz, mas não teve forças suficientes e viu-se pressionada contra a amurada, o rosto dele perigosamente próximo. Mas a proximidade não durou mais que um segundo, pois logo em seguida, como num passe de mágica, o venezuelano foi arrancado de onde estava e o rosto contraído de Clay Anderson surgiu diante dela. Chico não esperou segunda insinuação. Duas vezes na mesma noite era demais. Sem uma palavra desapareceu.
Olhando para seu salvador, compreendeu como Sally devia ter se sentido. Era grata a ele por tê-la livrado de uma situação que ameaçava tomar-se bastante desagradável, mas gratidão alguma podia torná-la cega para a expressão de Clay. Com certeza tinha vindo em seu auxílio por dever, como oficial do navio, mas sem dúvida a considerava parcialmente culpada, por estar ali sozinha àquela hora da noite.
As primeiras palavras dele confirmaram essa impressão.
— Nem sempre os Romeus do nosso navio são completamente culpados. Uma mulher sozinha é mais do que um convite. O que estava tentando provar?
— Não entendi. — Olhou-o com firmeza.
— Devia saber que ele ainda estava por aí, quando decidiu não acompanhar os seus amigos.
— Você estava nos observando?
— Vi tudo, desde o princípio. Vi quando os dois saíram do clube e fiquei atento, por causa da idade... ou da falta de idade da menina. Se você e o pai dela não tivessem aparecido eu mesmo teria resolvido o problema. — Sorriu com sarcasmo. — Estamos aqui para proteger os fracos e os tolos.
— Como sabe que ele é pai dela? — perguntou, tentando descobrir em qual das duas classificações ele a encaixava.
— É velho demais para ser irmão dela, e o tipo de reação que teve indicava que eram parentes. Acho que foi uma conclusão natural. — Fez uma pausa. — Aliás, deve ser uns vinte e seis anos mais velho que você.
— Vinte e quatro, para sermos exatos. — E acrescentou com ironia: — Suponho que devemos ser realistas, não?
— E se eu lhe disser... — Clay calou-se, enfiando as mãos nos bolsos como quem tenta se controlar. — O nome dele é Freeman, não? Um dos maiores peixes do barco. Você não perdeu tempo.
— Nem você perdeu o seu. — Estava decidida a não deixar que eIe a derrubasse. — De que adianta a um homem ser mais rico que seus vizinhos, a bordo do Andrômeda?
— Onde quer chegar? — Seus olhos se contraíram perigosamente.
— Não é difícil adivinhar — ironizou, sentindo uma pontada de medo ao perceber que ele tirava as mãos dos bolsos outra vez. O bom senso lhe dizia para parar por ali, mas alguma coisa mais forte do que ela a fez prosseguir: — Uma conclusão natural, não é?
Não conseguiu ir mais longe. No instante seguinte ele estava parado, diante dela, segurando-a pelos braços e comprimindo-a contra a amurada. Só que desta vez não havia ninguém por perto para ajudá-la. Helen ficou rígida quando os lábios dele tocaram os seus, incapaz de lutar contra aqueles braços fortes, sentindo todo seu corpo vibrar com aquele contato. Tinha sido beijada muitas vezes, mas nunca com tamanha brutalidade. Pela primeira vez soube o que era estar à mercê da força e dos desejos de um homem, e não gostou nada da sensação. Quando ele finalmente levantou a cabeça, tentou cravar-lhe as unhas no rosto, mas ainda estava firmemente presa.
— Tente me provocar outra vez — ameaçou com voz suave — e vai ver o que acontece!
— Tire as mãos de mim! — Fulminou-o com o olhar. Sabia que ele não estava blefando.
— Só quando eu achar conveniente. — Empurrou-a contra a balaustrada outra vez. — Já é hora de alguém colocá-la no seu devido lugar.
— Só a mim ou a todas as mulheres? — provocou-o.
— Se a natureza quisesse que fôssemos iguais, teria dado uma forma diferente a você. E não tente desconversar. Igualdade não é assunto em discussão.
— E qual é o assunto em discussão'?
— Fidelidade, se isso a agrada. — Mantinha os dois braços apoiados à balaustrada, sem tocá-la, mas também sem deixá-la escapar.
— Outro dia você negou ter tido um relacionamento físico com Ian. Isso quer dizer que ele nunca tentou fazer amor com você ou que você sempre recusou? — Ela não respondeu e ele se irritou. Vamos, diga que ele nunca a beijou. Já ouvi mentiras maiores.
— É claro que ele me beijou. E eu deixei. Por que não deixaria. Eu...
— Porque ele tinha uma esposa. Nunca pensou nela?
— Eu não... — Helen calou-se de repente, o orgulho impedindo de dar explicações. Além disso, ele não acreditaria mesmo. Tinha deixado claro que não acreditaria em nada que ela dissesse. Encarou-o firme, de cabeça erguida. — Não. E de que adianta estarmos aqui discutindo isso?
— Acho que não adianta nada — respondeu depois de alguns instantes, com expressão indecifrável. — O mal já está feito. — Afastou-se, deixando que ela passasse. — Vou acompanhá-la até seu quarto.
— Posso ir sozinha.
— Eu disse que vou acompanhá-la. Seu Romeu talvez tenha decidido esperá-la. Tipos como ele não aceitam um não como resposta.
Ele não era o único, pensou Helen, mas evitou dizer isso em voz alta. Era mais seguro ficar quieta e deixar que ele fosse com ela.
Não havia sinal do venezuelano quando desceram ao convés Atlântico para tomar o elevador. Clay cumprimentou os demais passageiros com agradável informalidade e permaneceu em silêncio enquanto desciam, sem notar os olhares curiosos que estavam atraindo. continuou em silêncio até chegarem à porta da cabine de Helen. Lá, pediu a chave e abriu a porta, acendendo a luz antes de deixar que ela entrasse.
— Sã e salva — disse ele. — Tem mais sorte do que imagina.
Antes que ela pudesse pensar numa resposta adequada, ele já havia desaparecido.
O passeio com Glenn e Sally a Barbados ajudou Helen a relaxar. As praias brancas, as cores tropicais, a população amigável e alegria a conquistaram. Todos gostariam de passar mais tempo ali, mas dispunham de apenas um dia para visitar toda a ilha em companhia do motorista nativo, homem interessante e muito consciente de sua posição de guia.
— Vocês vão me ouvir ou preferem voltar ao navio sem conhecer nada? — perguntou, irritado, num momento em que os comentários dos três sobre a paisagem tornaram-se mais animados que os dele. Calaram-se imediatamente, como carneirinhos, Sally mal conseguindo conter o riso.
Almoçaram no castelo de Sam Lord, na costa sul da ilha, uma construção do período do império, todo espelhado, das paredes ao teto que ainda mantinha a mesma atmosfera do passado. Samuel Hall Lord construiu o palácio num dos seus períodos de saudades da pátria no início do século passado, transformando-o em museu, até que o atual proprietário decidiu utilizá-lo como hotel. Atualmente, era considerado um dos mais belos do mundo, rodeado de extensos gramados sempre cheios de sol e com vista para o mar. Os empregados ainda usavam uniformes estilo real, atendendo com grande eficiência os hóspedes risonhos.
— Imaginem só viver num lugar como este! — Sally suspirou quando voltavam ao navio. — Esse Samuel Lord devia ser um nobre!
— De acordo com a lenda, ele era um pirata, um assassino, explicou Glenn. — Mas concordo a respeito da casa. Talvez possamos voltar aqui em breve, por nossa conta, para passar alguns dias.
— Helen. também? — A pergunta foi feita com entusiasmo.
— Não acredito que volte tão cedo ao Caribe depois que terminar meu contrato. Meu agente tem muitos planos para mim.
— Tem tido notícias dele? — perguntou Glenn.
— Esta manhã. — Olhou para as árvores que margeavam a estrada e para os jardins coloridos das casas. — Está chovendo em Londres. Pelo menos estava quando Barney escreveu a carta. Londres parece tão distante agora... quase não posso imaginar o que é sentir frio outra vez.
— Tem razão, este é o lugar ideal para passar o inverno — concordou Glenn. — É uma pena não ter descoberto isso antes.
— Porque estava sempre muito ocupado — respondeu Sally, objetiva.
Glenn sorriu.
— Acho que tem razão. Bem, preciso tomar providências para não voltar ao velho ritmo outra vez, não é?
Sally deu um meio-sorriso, como se não acreditasse muito naquilo.
Depois da visita à ilha, ficou mais ou menos implícito que Helen passaria todo seu tempo livre em companhia dos Freeman, mas isso não a aborrecia. Estava começando a gostar muito do pai e da filha e, além disso, estando com eles estaria livre de Clay Anderson. Em diversas ocasiões percebeu que Clay a observava, quando estava a sós com Glenn, mas ele nunca tentou se aproximar ou interferir de qualquer maneira. Entretanto, Helen tinha certeza de que ele não havia desistido e de que, mais dia, menos dia, acabariam se encontrando.
A Martinica não tinha nada em comum com Barbados. Florestas densas subiam pelas encostas enevoadas das montanhas que se estendiam em direção ao interior. O forte de Franca, próximo às docas, era rodeado por um conglomerado de choças miseráveis, intercaladas, aqui e ali, por enormes construções de pedra, muito antigas. O tráfego intenso e agressivo lembrava muito o da França.
Helen adorou a rua do mercado, que descobriram ao lado do rio, e por onde passearam alegremente, entre mangas e cachos de bananas pendurados nos tetos quase destruídos, sob o olhar distraído dos vendedores acocorados ao lado das suas mercadorias. Aparentemente os passageiros dos navios dificilmente chegavam até aquela parte da cidade.
Á tardezinha, tomaram um táxi que os conduziu até a rua Vitor Hugo, onde se localizavam as melhores lojas. Depois das compras, foram assistir a uma apresentação do Balé da Martinica, num dos melhores hotéis da cidade. Dizia-se que as danças, cada qual com significado próprio, tinham sido adaptadas pelos escravos para seu próprio ritmo, modificando assim as danças dos seus amos franceses. Helen conseguiu reconhecer ao menos alguns movimentos de um minueto que reproduzia os bailes das antigas cortes francesas, mal conseguindo se conter aos acordes do ritmo provocante. Não era difícil entender como Cole Porter tinha achado inspiração para o seu Beguin the Beguine simplesmente ouvindo a música da ilha.
A noite do show de carnaval foi o maior evento da semana a bordo do Andrômeda, todo mundo participando do espírito da festa a partir da hora do jantar. Até os garçons trocaram seus uniformes usuais, por fantasias de estilo espanhol: calças pretas, muito justas, e boleros coloridos sobre camisas de mangas bem largas. Houve um prolongado aplauso quando as luzes diminuíram de intensidade e os garçons entraram carregando a sobremesa em enormes bandejas de prata.
Helen ainda teve tempo de tomar um drinque com Glenn e Sally, depois do jantar, antes de descer para o camarim para se prepara para a apresentação daquela noite. Admirou-se ao encontrar Marian Lee maquilando-se no camarim que normalmente era dela.
— Acho que ninguém lhe disse que hoje precisamos ocupar o mesmo camarim, para dar lugar a todos os extras que se apresentam esta noite — disse Marian, observando-a cinicamente pelo espelho. — Já estou quase terminando. Por que não entra e espera aqui dentro?
Helen entrou e sentou-se numa das poltronas, com a estranha sensação de ser ela a intrusa. Conhecer o motivo do antagonismo de Marian não tornava a situação mais fácil, mas mesmo assim foi incapaz de ficar ali sentada em silêncio, enquanto a outra se maquilava.
— Vi você dançar outro dia. Gostei muito -disse com certa hesitação.
— Obrigada — respondeu Marian, irônica.
— Olhe, sei como você deve estar se sentindo... Eu também me sentiria assim, mas acredite que não tive culpa nenhuma. Foi Clay Anderson quem tomou a decisão.
— Claro que foi ele. — Marian não se preocupou em olhar para ela. — Como ele disse, a estrela deve ter prioridade. Também faria o mesmo, se fosse você, mas não espere que eu seja tão compreensiva. Aproveite sua posição enquanto pode. — Mudou ligeiramente de tom. — Deve agradecer por Clay Anderson não ser o tipo de pessoa que deixa os sentimentos pessoais interferirem em seu trabalho.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Helen, gelando.
— Sabe muito bem o que quero dizer. — Desta vez a ruiva virou cabeça e olhou para ela com malícia. — A trapalhada que você fez com o casamento da irmã dele. Clay se preocupa muito com a garota... talvez até demais, mas isso não vem ao caso. Qualquer outro homem acharia um jeito de eliminá-la do show, mas não Clay Anderson, que é um verdadeiro profissional e prefere colocar os interesses dos clientes acima de qualquer outro. Mesmo que tenha que manter alguém como você no elenco.
Quem, a não ser Clay, podia ter contado tudo isso a Marian?, pensou Helen. Isso significava que a dançarina não era apenas mais um membro do elenco, mas representava alguma coisa mais para ele. A idéia de que sua vida era discutida pelos dois pareceu odiosa, mas nem por isso Helen achou que devia explicar a Clay sua verdadeira posição no caso lan Marriot. Na verdade, não podia condená-lo por considerá-Ia culpada. Como podia saber a verdade, se ela tinha preferido ficar calada? Mas será que ele teria acreditado nela se tivesse dito que não sabia do casamento de lan? Não parecia provável. Muito antes de se conhecerem, Clay Anderson já havia formado uma opinião sobre ela, e seria necessária uma prova muito convincente para fazê-lo mudar de idéia. A única solução seria lan esclarecer a situação, mas ele com certeza tinha coisas mais importantes em que pensar. Mesmo porque, como é que Ian podia saber que ela estava abordo do Andrômeda com o cunhado? Só descobriria se Clay passasse a informação à irmã.
— Ótimo para ele — respondeu, sem mudar de expressão. — Atitude de um verdadeiro profissional. Pode dizer isso a ele.
A reação tranqüila de Helen pareceu deixar Marian um pouco desconcertada. Olhou-a fixamente durante alguns instantes, depois virou-se para o espelho outra vez, terminou a maquilagem e saiu sem dizer mais nada. Helen detestava atmosferas daquele tipo, mas não podia fazer nada a respeito. Marian estava decidida a atirar sobre ela toda a culpa pela mudança de programa, e nada a faria mudar de idéia. Só não podia deixar que a tensão prejudicasse a apresentação daquela noite. Uma vez no palco, os problemas pessoais tinham que ser completamente esquecidos.
Glenn e Sally estavam à espera dela no salão Connaught depois da apresentação. A garota não poupou elogios.
— Você esteve sensacional — exclamou. — Por que não grava uns discos, assim posso dizer a meus amigos para comprá-los.
— Ainda não pensei em gravar — explicou, rindo. — Acho que meu nome ainda não é suficientemente conhecido.
— É só questão de tempo — garantiu Glenn. — Fomos convidados para uma festa do diretor. Só umas poucas pessoas, eu acho. Quer vir conosco? Não sei se mereço a distinção, mas também não quero jogar fora a oportunidade. Sally está louquinha para ir.
O primeiro impulso de Helen foi recusar, mas pensou que nesse caso os Freeman também não iriam.
— Tem certeza de que o convite me incluía? — perguntou. Glenn admirou-se.
— Claro! A pessoa que veio trazer a mensagem sabia que estávamos esperando por você, porque disse que possamos ir ao convés Carillon assim que a srta. Gaynor chegasse.
Helen encontrou o olhar de Sally e decidiu-se.
— Parece mais uma ordem real — brincou, procurando aparentar descontração.
— Nesse caso, é melhor obedecermos.
O convés Carillon era onde ficava o quarto dela, bem como as lojas e o escritório do navio. A cabine quarenta e seis ficava bem na frente do escritório, entre duas outras cabines onde se lia a palavra ."privado". Ficaram surpresos com o tamanho da cabine, e só depois de alguns minutos Helen percebeu que não havia camas nem sofás. Com certeza o lugar era especialmente reservado para ocasiões como aquela.
Além deles, havia mais umas quinze pessoas, confortavelmente instaladas em poltronas e cadeiras estofadas, todos de copo na mão. Clay Anderson atravessou um mar de joelhos e pernas para recebê-los olhando para Helen com um brilho estranho nos olhos cinzas.
— Fico satisfeito que tenham vindo — disse a Glenn, dirigindo a Sally um sorriso que a fez corar. — Há um rapaz aqui que acha que foi seu colega de escola. Venha dizer alô a ele.
Sem se dar conta, Helen viu-se afastada de Glenn, sentada entre outros oficiais e um venezuelano que não demorou a elogiar com entusiasmo a apresentação dela. Era duas vezes mais velho que o jovem Romeu da outra noite, mas não mais sutil nas suas atenções. Depois de ter seu joelho tocado por três vezes, Helen começou a procurar uma desculpa para sair dali, mas Glenn estava longe, bastante entretido numa conversa animada com uma das convidadas. Sally ria de alguma coisa dita. pelo rapaz alto e atlético que Clay lhe havia apresentado e, sem dúvida, não estava preocupada com a cantora. Olhou em torno, à procura de Clay, e assustou-se ao perceber que ele acabava de parar diante dela, pedindo desculpas ao venezuelano pela interrupção.
— Você parece não se dar muito bem com os sul-americanos murmurou. — Deixe-me apresentá-la a um inglês simpático e inofensivo... um dos poucos que temos a bordo.
Sem dar a ela tempo de protestar, levou-a até um casal elegantemente vestido, parado a certa distância dos demais convidados. Fez rapidamente as apresentações e deixou-a entregue à condescendente polidez dos dois ingleses, aparentemente de classe social elevada e pouco inclinados a tratar como igual uma cantorazinha qualquer. Os preconceitos de classe divertiam Helen, em vez de aborrecê-la, o que frustrava os planos de Clay Anderson, cuja intenção era deixá-la numa posição incômoda.
Foi Philip quem a salvou do tédio, levando-a para o lado oposto da sala, sob pretexto de apresentá-la a outros convidados.
— Obrigada — disse com gratidão. — A situação estava começando a ficar desagradável.
— Não entendo por que escolheram o Andrômeda — disse Philip em voz baixa.
—Deviam ter viajado no Queen... de primeira classe, é claro. — Foi buscar outro martini para ela e estendeu-lhe o copo, sorrindo. — Amanhã vai fazer uma semana que está a bordo. Como se sente?
— Já estou me adaptando. Ainda há muita coisa para conhecer, dentro e fora do navio.
— Eu estava em serviço ontem. Quando a procurei, soube que havia ido até a Martinica com seus amigos americanos. Ele é viúvo, não é?
— É. — Helen não via razão para estender o assunto. A intenção de Philip era clara como cristal: queria ter certeza de que Glenn não significava para ela nada além de uma amizade de férias. Fez um breve exame de consciência para descobrir se tinha sido ela própria a provocar nele tal sentimento de posse, mas não descobriu nada semelhante a um encorajamento.
Sabia que metade da atração que os homens sentiam por ela estava relacionada com o aparente fascínio de sua profissão. Poucas pessoas percebiam que aquele era um trabalho como outro qualquer e que exigia muita dedicação e muito esforço. A maioria só via o produto final, a culminância de um processo que geralmente durava semanas e semanas, ou mesmo meses de treino incansável, repetições e sacrifícios. O brilho e o fascínio só entravam em cena durante os poucos minutos em que se apresentava no palco, sob a luz romântica dos refletores, quando se entregava completamente ao mar de rostos sem nome. A criatura que excitava a imaginação de Philip só existia de tempos em tempos, durante alguns minutos. Mas seria inútil tentar convence-lo disso: teria que aprender por ele mesmo que a cantora não era a canção.
Sentiu-se aliviada quando Glenn se aproximou. Virou-se para ele, sorridente, consciente da segurança que representava aquela mão sob seu cotovelo. Percebendo uma sombra mover-se ao lado deles, olhou e encontrou os olhos de Clay Anderson, que os observava com cinismo.
Ergueu o copo na direção dele, muito de leve, mas o suficiente para que Clay soubesse que ela estava atenta. Com satisfação, viu-o apertar ligeiramente os lábios, antes de dirigir outra vez a atenção para as pessoas com quem estava. Por outro lado, Helen achava ridículo tudo aquilo. Por que simplesmente não contava a ele a verdade sobre seu relacionamento com Ian? Afinal, a opinião dele não devia fazer diferença alguma para ela. Ou fazia? Clay Anderson não era o tipo de homem diante de quem uma mulher ficaria indiferente embora Helen desejasse ardentemente .que ele fosse.
A festa terminou à uma hora. Helen ficou satisfeita por poder deixar os agradecimentos por conta de Glenn. Não havia sinal de Sally quando voltaram ao salão, como também não havia sinal do jovem americano com quem ela tinha passado as duas últimas horas.
— Eles foram até o convés Beach dar uma última olhada no luar do Caribe — informou Glenn, percebendo a preocupação dela. Ela não corre perigo com Craig. É filho de um dos meus clientes. Pena não termos nos encontrado com ele antes. É engraçado como a gente pode ficar uma semana dentro de um navio sem encontrar as pessoas conhecidas. — Fez uma pausa. — O que acha de dar um passeio pelo convés Boat? Talvez seja a última vez que estamos juntos e sozinhos antes de Sally e eu voltarmos para casa.
E quando Glenn fosse embora, o que aconteceria? Pela primeira vez, Helen percebeu que o estava usando como uma espécie de proteção contra Clay e que ficaria desprotegida depois que ele se fosse.
— Seria ótimo.
Àquela hora os locais abertos do navio estavam quase deserto embora o Calypso ainda estivesse em pleno funcionamento, a julgar pela música que chegava até eles. Caminharam em silêncio até a amurada, onde se recostaram, lado a lado, olhando a água negra e sem brilho.
— Não há lua esta noite— comentou Glenn, Helen sorriu.
— Sally e seu amigo vão ficar desapontados.
Ele a olhou durante um longo tempo, antes de segurá-la delicadamente pelo braço, fazendo-a olhar para ele. Estava sério e pensativo.
— Vou sentir saudades de você, Helen. Estes dias foram... Bem, se estou um pouco mais próximo de Sally, devo isso a você. Ela ficou muito sua amiga.
— E eu dela. — Sentia-se confiante ao lado de Glenn, como poucas vezes se sentira junto de outros homens. —Ter vocês comigo tornou bem mais fácil minha primeira semana.
— Esperava ter representado um pouco mais que isso para você. Desde que a mãe de Sally morreu, pouquíssimas vezes me senti tão bem ao lado de uma mulher. Claro que houve outras mulheres na minha vida, não pense que tenho levado meu celibato às últimas seqüências durante esses anos todos... mas entre elas e você há um abismo. Apesar da diferença de idade que há entre nós, sinto-me como se fosse tão jovem quanto você.
— Sempre me senti mais à vontade com homens mais velhos. — Fez uma pequena pausa, pressentindo o que ele ia dizer. — Também vou sentir saudades suas, Glenn.
O beijo de Glenn foi delicado, terno, uma espécie de pacto entre eles. Helen não sentiu nenhuma emoção especial, apenas a reconforte sensação de ser importante para alguém. Glenn podia ter idade para ser seu pai, mas tinha espírito muito mais jovem que muitos jovens que conhecia. Achava-o parecido com Barney, o que representava um grande elogio.
— Vamos ficar em contato — disse com suavidade, soltando-a. — Gostaria de encontrá-la, quando voltar para casa, e de continuar nossa... amizade.
Vou esperar com ansiedade. — Helen estava sendo sincera, pois via com apreensão os três longos meses que ainda teria pela frente. Mas não procurou descobrir a causa da estranha ansiedade que a invadia ao pensar nos três meses que teria que passar a bordo do Andrômeda.
Atracaram em San Juan às oito horas. Sob o sol quente de verão, Helen observava o cais com sensação de haver passado várias semanas, e não apenas sete dias, no navio. Tinha combinado passar a manhã em companhia dos Freeman e almoçar com eles, antes de tomarem um táxi para o aeroporto. Depois disso, estaria sozinha.
Glenn e Sally vieram buscá-la depois do café da manhã. Os Miller também estavam deixando o navio naquele dia. Helen se entristeceu com a partida deles, pensando que durante o jantar daquela noite haveria desconhecidos no lugar que haviam ocupado. Claro que acabaria se acostumando aos novos passageiros, mas por enquanto tudo parecia muito difícil.
Com as malas grandes já separadas e encaminhadas ao aeroporto, os Freeman só tinham que se preocupar com eles mesmos e com a bagagem de mão nas seis horas seguintes. De comum acordo, decidiram dar um passeio pela parte antiga da cidade; atravessaram a praça e subiram por uma das ruazinhas cheias de curvas que levava ao outro lado.
A cidade estava sufocantemente quente, provocando neles uma espécie de letargia. Mesmo dois magníficos cães que passeavam ao lado de um transeunte pareciam achar excessivo o ritmo lento com que se moviam, cabeças baixas e línguas de fora. Helen seguiu preguiçosamente o trio com os olhos e viu-os entrar por uma porta muito antiga que dava num pátio estilo espanhol. do século XVII; balcões com grades de ferro batido se debruçavam sobre uma espécie de rua grosseiramente pavimentada. As paredes e as grades exibiam flores em profusão, e de uma espécie de fonte, na parte central, jorrava um esguicho de água cristalina. A porta foi fechada em seguida, antes que Helen tivesse tempo de chamar a atenção dos outros para a beleza da construção. Aparentemente, os habitantes de Porto Rico gostavam de guardar a beleza apenas para si mesmos, já que o muro que cercava a propriedade era sujo, feio e sem qualquer estilo.
A paisagem mudou completamente quando chegaram no lado da cidade banhado pelo Atlântico. Ali o ar era fresco e agradável, embora o sol continuasse inclemente. Graciosas vilas de paredes muito brancas se estendiam ao longo da avenida, voltadas para o mar, protegidas do sol por infinidades de palmeiras. Depois de mais três séculos, ainda estava em pé o muro que cercava a cidade velha.
Os três seguiram pela avenida da praia até o forte San Cristobal, atravessando seus pátios desertos e subindo até as vigias, de onde se apresentava uma vista magnífica de toda a cidade, tanto da parte nova como da velha. Lá embaixo, enfileirado ao lado de outros cruzadores, estava o Adrômeda, branco e brilhante, pequeno como um brinquedo.
— Aquele deve ser o outro forte, El Morro — disse Glenn, apontando para uma construção distante. — Acho que foi de lá que os espanhóis resistiram a Francis Drake. O forte é inacessível pelo mar, por isso os ingleses tentaram tomá-lo por terra, no século XVI.
— Papai, acho que Helen não precisa de aulas de história — protestou Sally, deixando-o meio desconcertado.
— Desculpe, acho que me entusiasmei um pouco. Estive lendo alguma coisa sobre o lugar antes de atracarmos. Pensei que o exército dos Estados Unidos ainda controlasse o forte, mas parece que nos retiramos há algum tempo atrás.
— Não sabia do nosso envolvimento no episódio — confessou Helen, sorrindo.
— História nunca foi o meu forte na escola, especialmente a parte de guerras e batalhas, mas sei que temos sido apaixonados pelas conquistas, através dos tempos. — Correu os olhos pela avenida de três pistas que conduzia aos enormes arranha-céus que se erguiam no horizonte. — São como duas cidades separadas. Esta parte, além de mais velha, parece ser a mais pobre. Notaram quantos aleijados havia pelas ruas? Contei cinco no espaço de cinco minutos.
— Não, não reparei — confessou Glenn. — Talvez porque não quisesse vê-los. Esta é a primeira vez que visito aparte antiga de San Juan. Já estive aqui duas vezes, antes, mas às custas de outra pessoa, por isso tinha que estar onde estavam os negócios. — Fez uma pausa antes de acrescentar: — Meu avô nasceu pobre, mas antes dos trinta já tinha seu próprio negócio.
— Está querendo dizer que a pobreza é um estado de espírito? — perguntou Helen.
— A aceitação dela é. Se eu fosse até lá e desse a uma dessas pessoas dois mil cruzeiros, duvido que daqui a um mês ela não estivesse pedindo esmolas outra vez. As pessoas pensam somente no presente e esquecem o futuro. Não passa pela cabeça delas que podem gastar o suficiente para matar a fome e colocar o resto do dinheiro a serviço delas mesmas.
Talvez porque ninguém até hoje tenha se preocupado em dizer a elas como fazer isso, pensou Helen, mas não fez comentários. Seria uma pena estragar os últimos momentos que teriam juntos discutindo um assunto a respeito do qual nenhum dos dois poderia fazer nada.
Foram de táxi até o centro comercial, onde fizeram algumas compras de última hora, almoçaram no Da Vinci e sentaram-se em um café até a hora da partida dos Freeman. Sally chorou ao. se despedir de Helen, no momento de entrar no táxi que os levaria até o aeroporto.
Espero que a vejamos de novo algum dia. Seria ótimo se fosse trabalhar nos Estados Unidos. Quando for até lá, avise-nos, está bem?
Helen prometeu e procurou manter o sorriso quando Glenn a acompanhou até outro carro, que a levaria de volta ao navio. Só então ele colocou nas mãos dela o pacotinho que trazia desde o hotel.
— Gostaria que aceitasse isto como uma lembrança dos dias que passamos juntos. Comprei-o na Martinica, enquanto você e Sally olhavam aqueles relógios suíços. Combina com seus olhos. — Prendeu as mãos de Helen entre as dele, obrigando-a a ficar com o presente.
—Por favor, não recuse. Significa muito para mim saber que você tem alguma coisa que lhe dei. É apenas uma pequena lembrança, mas oferecida com todo o carinho.
Helen não disse mais nada, achando que seria indelicado recusar uma prova de estima.
— Obrigada — disse com suavidade. — Gostaria de retribuir de alguma forma.
— Já fez isso. — Não tentou beijá-la, talvez por causa da presença de Sally no outro carro. Apenas segurou-lhe a mão, apertando-a com força, antes de ajudá-la a entrar no táxi.
Esperou até chegar à cabine para abrir o presente, com a sensação de que a idéia que Glenn fazia de uma pequena lembrança não coincidia com a dela. Retirou a tampa da caixinha e encontrou um pingente de ouro em forma de flor, com uma pedra verde no centro, pequeno no tamanho, mas não no valor. Claro que não era uma esmeralda, pensou Helen, mesmo assim devia ter custado bastante. Sentiu-se num dilema. Aceitaria uma pequena recordação com prazer, mas aquilo era diferente. Não importava quanto Glenn tivesse apreciado sua companhia, ela não tinha feito nada para merecer um presente como aquele. Era demais!
Mas talvez, pensou, fosse apenas seu senso de valores que visse as coisas por aquele ângulo. Para alguém como Glenn Freeman o preço não tinha importância alguma; talvez tivesse escolhido aquela pedra só porque combinava com os olhos dela. Olhou o pingente por longo tempo, antes de retirá-lo da caixa e colocá-lo diante da pele bronzeada do pescoço. A luz batia nele, produzindo reflexos esverdeados. Sem dúvida era um lindo adorno, mas Helen ainda não achava correto aceitar um presente tão caro de um homem que havia conhecido há menos de uma semana. Por outro lado, como ele se sentiria se recebesse de volta, pelo correio, o presente comprado especialmente para ela, e com tanto carinho? Ele certamente não entenderia seu gesto.
Chegou à conclusão de que teria que ficar com a jóia e decidiu escrever dali mesmo para Glenn, expressando sua gratidão. Se colocasse a carta na caixa do navio antes das seis horas da tarde, provavelmente ela seria enviada ainda naquele dia. Por avião, Glenn a receberia dentro de dois dias. E já que ia ficar com o presente, não havia mal nenhum em usá-lo: ficaria muito bem com o vestido branco.
Estava escrevendo a carta quando um mensageiro bateu à porta para avisá-la de que o diretor gostaria de convidá-la para sentar-se à mesa dele no jantar. Quase recusou, mas pensou melhor e achou que seria demonstrar fraqueza. Afinal, haveria outras pessoas na mesa e contanto que Marian não fosse uma delas, poderia suportar o sacrifício. Melhor sofrer um pouco, pensou, do que deixar Clay imaginar que estava com medo dele.
Procurou se vestir com o major cuidado para o jantar. O vestido branco, com profundo decote em V, tanto na frente quanto atrás era um dos seus favoritos. O pingente fazia um belo contraste com a alvura do vestido, mas sentiu uma estranha sensação de inquietude e procurou mudar o rumo dos pensamentos. Prendeu o cabelo atrás da cabeça, num coque pequeno e delicado, deixando soltas apenas duas mechas, que caíam sobre as orelhas. Destacou um pouco os olhos com sombra cor de violeta e estava pronta. Seu rosto calmo e descontraído não revelava a angústia que ia dentro dela. Sentia-se tensa como uma corda de piano, e tudo porque ia se encontrar com Clay Anderson. Podia não gostar dele como pessoa, mas não podia negar o efeito que ele exercia sobre seus sentidos.
No restaurante, encontrou-o à espera dela, e sozinho. Quando ela se aproximou, Clay levantou-se e ofereceu-lhe a cadeira que ficava à sua direita, sempre com um sorriso estranho nos lábios.
— Está causando sensação entre nossos passageiros — comentou. — Bom trabalho!
Helen mordeu o lábio para não explodir. Então ele pensava que ela havia se vestido daquele jeito só para promover a própria imagem! De qualquer maneira, era melhor que pensasse isso do que se considerasse o único objeto do interesse dela.
— Por que não contrata uma fanfarra para me homenagear, da próxima vez?
— ironizou. — Sou eu que estou adiantada ou os outros convidados estão atrasados?
— Nem uma coisa, nem outra. Vamos jantar sozinhos. — Sentou-se e olhou-a com arrogante autoconfiança. — Não há ninguém entre os novos passageiros que eu considere digno dessa honra, por isso resolvi atender meus próprios interesses.
— Acho que não temos muita coisa em comum para justificar um jantar a dois.
— Não? — Desceu os olhos devagar, deliberadamente, dos olhos de Helen para o pingente que brilhava no seu pescoço. — Nunca usou isso antes.
— Foi um presente. — lnvoluntariamente, levou a mão à jóia, num gesto de defesa.
— Bonito, não acha?
— Claro, e como! — Deu uma risada cínica. — Suponho que foi presente de Freeman.
— Por coincidência, foi. Ele me deu esta manhã, antes de ir para o aeroporto. Você naturalmente acha que eu não devia ter aceitado.
— De maneira nenhuma — respondeu, irônico. — Seria uma tola se recusasse uma esmeralda.
— Não é verdadeira — defendeu-se, sentindo que lhe faltava o ar.
Ele estendeu o braço e segurou o pingente, tocando-a de leve com a ponta dos dedos enquanto examinava a peça.
— É verdadeira — afirmou com convicção. — Não é muito grande, mas deve valer em torno de sessenta mil cruzeiros. Parabéns!
Por um instante um brilho de ódio iluminou os olhos de Helen, superando todos os outros sentimentos.
— Pois bem, posso ser uma tola, uma idiota, mas não tinha percebido. Se soubesse, jamais teria aceitado! .
A veemência da reação deixou-o calado por alguns instantes.
— Verdade ou não, a esta hora Freeman já deve estar nos Estados Unidos, portanto não adianta protestar agora. Apenas aceite sua boa sorte.
— Não posso. Preciso mandar isso de volta. — Agarrou o pingente com mãos trêmulas. — Vou tirá-lo antes que aconteça alguma coisa.
— Não seja ridícula. Deixe-o aí mesmo, é mais seguro que guardar na bolsa. — A expressão dele continuava tão cínica quanto antes.
— Escute, não tenho nada com os presentes que você ganha. Se Freman a considera tanto a ponto de lhe dar uma esmeralda... e Deus sabe que ele tem dinheiro para isso... .então por que recusar? Sem dúvida você vai ter oportunidade de agradecer como convém, um dia desses.
Helen pensou na carta já a caminho dos Estados Unidos e percebeu que, escrevendo-a, tinha aprovado completamente o presente. Nada na carta levaria Glenn a imaginar que ela não tinha consciência do valor da jóia. Sentiu-se culpada e miserável, pois Glenn certamente não era um desses homens que dão presentes valiosos a qualquer mulher, pelo menos não a uma mulher que só conhecia há uma semana. Não via outra solução, para não dar margem a interpretações duvidosas, a não ser fazer algo que sem dúvida iria ferir um homem por quem sentia respeito e afeição.
O garçom esperava que eles fizessem o pedido. Quando ele se afastou, Helen já havia recuperado o autocontrole e tomado uma decisão definitiva.
— Gostaria de guardar isso num cofre, depois do jantar. Pode providenciar para mim?
— Há um cofre destinado aos valores dos passageiros, no escritório central. — Olhava-a de maneira estranha. — Não entendo você. É tão instável.
— O que é instável? — perguntou com dignidade. — A imagem que faz a meu respeito? Não pensou que talvez eu não me importe com esmeraldas? Dizem que cão má sorte, não sabia?
— É o que dizem — respondeu Clay, agressivo. — Esqueça o assunto.
Se em algum momento houve uma pequena possibilidade de entendimento entre eles, já não havia mais, Estavam de volta ao ponto de partida: agressivos e desconfiados em relação um ao outro. E assim deviam continuar, decidiu Helen, considerando mais que suficiente a dose de Clay Anderson que tinha tido até aquele momento.
Helen passou o domingo tentando escrever outra carta a Glenn, rasgando folha após folha, incapaz de expressar com palavras o que sentia. Se ao menos não tivesse sido tão apressada em mandar a primeira carta, ficaria tudo mais fácil, mas agora só podia esperar que uma súbita inspiração viesse em seu socorro.
Na noite anterior, após o jantar, despediu-se de Clay assim que surgiu a primeira oportunidade de sair sem parecer indelicada e foi para o quarto guardar a esmeralda no estojo. Assim que o escritório central abriu suas portas, na manhã de domingo, foi até lá e guardou a jóia num cofre. Profundamente aliviada, pensou que agora, mais tranqüila, poderia encontrar uma solução para o problema. Enquanto isso, a vida continuava normalmente.
Às três horas encontrou-se com James Keen e Sol Dayton, o pianista, para ensaiar algumas novas canções. Apesar da mudança semanal de público, gostava de variar o repertório, mais para manter a própria inspiração que para não desinteressar a platéia. Havia uma nova canção fazendo sucesso tanto na América quanto na Europa e os três decidiram incluí-la no programa já daquela noite, uma vez que se adaptava perfeitamente ao estilo de Helen. Depois do ensaio, ela agradeceu aos dois músicos pela ajuda, feliz por encontrar parceiros tão simpáticos. Quanto ao trabalho, portanto, não havia o menor problema, corria tudo às mil maravilhas. Pena que não acontecesse o mesmo em relação a outros aspectos da sua vida abordo.
Na segunda-feira de manhã, esperou que os demais passageiros deixassem o navio para depois descer até o porto de La Guaira. Na saída, encontrou Philip, que estava de serviço naquele dia. Ele a cumprimentou com alguma reserva.
— Não está pensando em anda por aí sozinha, está? — perguntou, ansioso. — Assim, com essa boniteza toda, vai arrumar problemas.
Helen estava com um conjunto cor-de-rosa, de calça comprida e blusa sem mangas, aberta só no pescoço, roupa que ela considerava ao mesmo tempo prática e discreta. Sorriu para Philip, ajeitou o chapéu branco na cabeça e deu um laço no lenço de seda que enfeitava a bolsa de ráfia, num gesto de quem afirma ser capaz de cuidar de si mesma.
— Estava pensando em ir até Caracas. Ouvi dizer que é um passeio inesquecível.
— E é, mas quando não há nuvens. Geralmente há muitas nuvens lá em cima impedindo a visão da paisagem aqui de baixo. Podia ter ido numa excursão organizada.
— Não gosto muito de organização. — Fez uma careta. — Onde é que posso tomar um táxi?
— Há um ponto no terminal. — Ele obviamente tinha percebido a inutilidade de discutir com ela. — Qualquer táxi pode levá-la onde quiser, mas combine o preço antes para não ser enganada.
— Obrigada. — De passagem, tocou de leve a mão dele. — Philip, não se preocupe comigo, vai dar tudo certo. Gosto de passear sozinha.
Helen passou mais tempo do que pretendia no edifício do terminal, admirando as lojas bem sortidas, que vendiam tudo que fosse possível imaginar. Gostou de umas moedas de ouro e pensou em comprar algumas para fazer um bracelete, mas achou que ali, tão perto do navio, os preços deviam ser mais elevados e decidiu procurar o mesmo artigo na cidade, onde certamente seria mais barato.
Saindo outra vez para a luz do sol, ficou deslumbrada com a imponente magnificência das montanhas que se elevavam a alturas incríveis, a partir da costa, completamente recobertas de nuvens nos pontos mais altos. Do outro lado desses picos ficava a cidade de Caracas, considerada uma das mais belas do mundo. Apesar do que havia dito a Philip ao sair do navio, desejou ter alguém com quem compartilhar todo aquele esplendor.
Afastando decididamente os pensamentos tristes, caminhou na direção do primeiro carro de uma fila de táxis que aguardavam passageiros, ignorando os olhares insistentes dos motoristas parados ao lado dos veículos. O motorista do carro escolhido por ela estava sentado no banco dianteiro, com um dos braços apoiado no vidro aberto lendo um jornal. Seus olhos se iluminaram ao vê-Ia, talvez pela perspectiva do dinheiro que iria ganhar, talvez por ter se entusiasmado com a beleza de Helen. Era um homem ainda jovem, moreno e bem-apessoado. Mas o que mais a interessou foi o cartãozinho pregado no vidro dianteiro, que indicava que o motorista falava inglês. Com o pouco que sabia de castelhano, ela jamais seria capaz de discutir preços com ele.
— Gostaria de ir até a estação, por favor — pediu e viu que o rosto do rapaz se iluminava num largo sorriso.
— Claro, madame. — Desceu para abrir a porta traseira para ela, parecendo bem à vontade com uma camiseta branca de algodão. — Lindo dia para um passeio até as montanhas.
— Quanto você cobra? — perguntou ela, já com um dos pés dentro do carro. — Há um preço fixo para esse trajeto?
— Não, não há uma quantia prefixada. — Sacudiu a cabeça e tornou a sorrir. — Pedro não vai enganá-la, senhora.
Helen riu. Havia qualquer coisa nele que inspirava confiança.
— Acredito em você.
Ele fechou todas as janelas e ligou o ar condicionado antes de dar a partida, rum ando em seguida para a estação. Helen chegou a abrir a boca para dizer que não pretendia andar num carro todo fechado, mas calou-se ao sentir a deliciosa sensação de frescor produzida pelo aparelho. Mais tarde teria tempo para sentir ao vivo o clima venezuelano.
La Guaira era uma cidadezinha compacta, de estilo colonial, salpica aqui e ali de modernos edifícios onde funcionavam as lojas e escritórios, rodeada de montanhas em cujas encostas amontoavam-se milhares de casebres miseráveis, aparentemente prontos a desabar a qualquer instante.
— É aqui que vivem as pessoas do povo — comentou Pedro, percebendo pelo retrovisor a direção do olhar de Helen. — Quanto mais pobres, mais em cima vivem. O governo constrói apartamentos para essa gente mas, como o aluguel é muito alto, blocos inteiros de edifícios continuam vazios. Coisas da vida, como diriam vocês lá no seu mundo.
Helen achou conveniente mudar de assunto.
— Onde aprendeu a falar tão bem o inglês?
— Com os americanos — respondeu rindo e carregando no sotaque. — Há turistas em La Guaira durante todo o ano, mas não temos muitos ingleses.
— Esta é minha primeira viagem à América do Sul. Gostaria de ter mais tempo para conhecer tudo. Impossível ter uma boa idéia da cidade em apenas um dia.
— Para conhecer bem um lugar é preciso viver nele, senhora. Vai gostar de Caracas. Todos os turistas gostam.
— Tenho certeza que sim. — Helen percebeu que não ia conseguir convencer aquele venezuelano cínico de que sentia um verdadeiro interesse pelo país. Para ele, ela não passava de mais um turista rico que podia se dar ao luxo de viajar pelo mundo sem se preocupar com as despesas. Não adiantaria nada mencionar que esta ali a serviço.
O terminal dos teleféricos era uma construção imensa, de teto abobadado, cercada de pilares de concreto que não deixavam entrar a luz do sol. Pedro foi até o guichê, comprou uma passagem para ela e voltou até a fila de pessoas que esperavam diante dos carros amarelos.
— Suba, veja tudo que quiser e depois desça em outro carro. — disse ele. — Espero você do outro lado para levá-la a dar um giro por Caracas e depois voltamos ao navio através do desfiladeiro da montanha. Assim pode ver tudo.
Parecia uma idéia melhor que andar à procura de outra condução quando chegasse à capital. Sem dúvida o passeio sairia muito caro, mas Helen achou que estava ganhando o suficiente para essa extravagância.
— E se eu decidir não ir até o outro lado? — sugeriu em tom de brincadeira. — Posso muito bem aproveitar a oportunidade e ir embora sem lhe pagar nada!
— Senhora, — respondeu com um sorriso simpático — se duvidasse da senhora, não faria a oferta, A viagem até o alto leva meia hora. Geralmente as pessoas ficam em torno de uma hora lá em cima, portanto daqui a duas horas estarei esperando do outro Iado.
Como Helen estava no começo da fila, tomou o primeiro carro. Pedro acenou para ela quando os carros começaram a subir e depois voltou para o táxi. Helen segurou com firmeza a barra de ferro que havia diante dela, sentindo uma reviravolta no estômago quando saíram da obscuridade para o brilho intenso do sol, iniciando a subida da encosta íngreme da montanha.
Logo o terminal não passava de uma pequena mancha de concreto lá em baixo, enquanto adiante e de ambos os lados estendia-se a imensidão azul do mar e a linha brilhante da costa. Ao redor do mar, erguiam-se as montanhas, verdes e imponentes, cortadas por inúmeras trilhas esbranquiçadas que pareciam não levar a parte alguma. Aqui e ali, pequenas casinhas brancas repousavam sobre protuberâncias da rocha.
Mais em cima, florestas imensas de pinheiros elevavam-se em direção ao céu, como sentinelas com suas baionetas. À medida que o bondinho subia, alinha da costa foi desaparecendo aos poucos, até restar diante deles apenas a montanha, que dava a impressão de sair diretamente de dentro do mar. Um perfume forte, no ar, penetrava agradavelmente pelas narinas. A claridade fazia com que a massa imponente diante dela parecesse um jorro de luz subindo em direção ao céu. Invadida por uma sensação nunca antes experimentada. Helen contemplava em êxtase aquela maravilha, esquecida dos demais passageiros. Jamais esqueceria aquela cena.
A chegada ao topo foi praticamente um anticlímax. Ansiosa para ver a vista que se descortinava das alturas, não se conformou em permanecer dentro do edifício do terminal, onde ficavam algumas lojas e um restaurante. Seguindo por uma rampa que conduzia ao lado de fora, tomou um caminho pavimentado que se estendia até o ponto mais alto da montanha, onde uma construção em forma de torre apontava para o céu, como um dedo. Havia um outro cabo correndo paralelo ao caminho, alguns metros acima, mas os bondinhos estavam parados. Helen lembrou-se de ter ouvido Glenn falar de um hotel construído ali em cima como atração turística, fechado logo em seguida devido à freqüência com que as nuvens obscureciam a vista do panorama lá de baixo. O dono sem dúvida devia ter perdido uma fortuna, simplesmente por falta de previsão. Mas felizmente naquele dia o ar estava claro e sem nuvens.
O lugar estava fechado e já semi-destruído. Helen olhou através das portas de vidro para as paredes de mosaico trabalhado e as imensas janelas do que antigamente devia ter sido um salão luxuoso, imaginando que destino poderiam dar àquele descomunal elefante branco. Diante do edifício principal estendia-se um pátio circular, lindamente decorado com canteiros, que deviam ter sido magníficos nos seus tempos de esplendor, e vários bancos. Seguiu um pequeno grupo de turistas americanos até uma mureta de pedra que rodeava todo o pátio e descobriu, maravilhada, a cidade de Caracas, que se estendia lá em baixo em todo seu esplendor — um mundo perdido no meio da muralha representada pelas montanhas.
Algumas nuvens passavam como flocos de algodão alguns metros abaixo, produzindo manchas de luz e sombra no fundo do vale. Mesmo daquela distância, era possível avistar as ruas e avenidas, parques e praças e as filas de automóveis, que se assemelhavam a formiguinhas. Era difícil acreditar que dentro de poucas horas ela própria estaria lá em baixo em todo seu esplendor — um mundo perdido no meio da muralha representada pelas montanhas.
De volta ao terminal, comprou cartões postais e selos, escreveu algumas linhas rápidas e enviou-os a alguns amigos de Londres. Nesse instante chegava outro bondinho de La Guaira, lotado de pessoas que riam e falavam alto, espalhando-se em pequenos grupos pela estação.
Os bondinhos que desciam para Caracas eram cor-de-laranja, ao contrário dos que vinham de La Guaira e que eram amarelos. As amplas plataformas estavam apinhadas, especialmente de estudantes ainda bem novos, coordenados por duas professoras de aparência preocupada, cuja tarefa Helen não invejava. Tentando descobrir onde começava a fila, ela se viu envolvida e arrastada pela multidão alegre de crianças para dentro de um dos bondinhos. Uma mão segurou-a de leve pelo cotovelo, dirigindo-a até um assento, no exato momento em que as portas se fechavam com ruído e o carro se punha em andamento. Virou-se para agradecer ao homem que estava sentado a seu lado, mas sentiu as palavras morrerem nos lábios quando encontrou o olhar irônico tão seu conhecido.
— Parece que vamos ter que nos suportar pelos próximos vinte minutos — disse Clay.
— Problemas de quem cai no meio de um grupo de estudantes. Veio de La Guaira sozinha?
— Vim. — Helen tentou reunir as próprias idéias num conjunto lógico, atordoada com as perguntas que lhe vinham à cabeça aos borbotões. Ele nem parecia a mesma pessoa sem o uniforme, mas o olhar permanecia o mesmo. — Como foi que você... .isto é, não tinha visto você lá no terminal.
— Não? — Deu de ombros. — Estava em companhia de dois passageiros, mas acho que eles ficaram para trás. Com certeza virão no próximo carro.
Teria que suportar a companhia dele, quisesse ou não. Bem, de qualquer maneira, não se sentia obrigada a tentar parecer educada depois do episódio de sábado. Tinha vindo para ver a paisagem e era isso que faria, embora metade do prazer já estivesse arruinado pela presença de Clay.
Mas ela não conseguiu conter algumas exclamações de admiração e prazer, à medida que a cidade se aproximava. Também não deixou de notar a familiaridade de Clay com a região, pois ele foi dando explicações durante todo o percurso.
— Aquilo lá é La Rinconada, uma pista de corrida — explicou, indicando uma grande área desmatada à direita. — Não há outro igual. Hoje não há corrida, mas está sempre aberta para visitas. Só que você vai precisar de um táxi para ir até lá.
— Já contratei um táxi — explicou Helen. — O homem que me levou ao terminal do teleférico vai me esperar do outro lado. Pelo menos ele disse que esperaria.
— Claro que ele vai estar lá. É uma prática comum. Ganhar um dia inteiro é melhor do que fazer algumas poucas corridas baratas. Combinou um preço com ele antes?
— Não, não combinei. Ele disse que não cobraria demais.
— Depende do que ele considera cobrar demais. As mulheres geralmente não passeiam por aqui desacompanhadas, ele pode se sentir tentado atirar vantagem. — Helen arriscou um olhar para ele e encontrou os mesmos olhos irônicos de sempre. — Nos sentidos, se você não tomar cuidado.
— Não vejo por que você deva se preocupar com isso.
— Você é do Andrômeda, portanto está sob minha responsabilidade. É melhor eu dar uma palavrinha com esse chofer quando chegarmos lá em baixo.
— Eu cuido de mim, obrigada.
— Não, não cuida. — A afirmação foi feita num tom que não deixava margem para discussão.
Passaram o resto do tempo em silêncio, mas Helen não conseguiu mais se concentrar na paisagem. A não ser que se escondesse de Clay quando o bondinho chegasse a Caracas, não via como se livrar dele. Sentia-se profundamente irritada com a interferência, mesmo reconhecendo um certo fundamento no que ele havia dito. Se Pedro cobrasse quatro mil cruzeiros pelo dia de trabalho, ela não teria meios de saber se aquele era o preço normal ou se ele a estava explorando.
Assim que desceu do bondinho, no meio da multidão ruidosa de garotos, avistou Pedro. Clay acompanhou-a até o táxi e conversou com o motorista.
— Vai levar esta moça para dar um passeio pela cidade?
Helen percebeu o desagrado de Pedro e encolheu os ombros, como quem se exime de responsabilidade pela intrusão. Embaraçada, fingiu grande interesse pela paisagem e tentou não ouvir a conversa dos dois homens. Uma multidão de passageiros do teleférico aproximou-se do ponto de táxi, forçando-a a sair do caminho. Depois que eles passaram, Clay virou-se para ela.
Está combinado. Mil e quinhentos cruzeiros pelo dia todo, mais uma gorjeta que nós considerarmos justa.
— Nós? — Helen sentiu que o coração lhe saltava no peito.
— Vou com você. — Seu tom não admitia recusas. — Vamos a La Rinconada primeiro, depois almoçamos e em seguida vemos o resto.
Helen não conseguiu sufocar uma pontada de prazer involuntário. Embora a razão se revoltasse contra ele, os sentidos não podiam deixar de reconhecer a enorme atração daquele homem. Na verdade, Helen temia mais a si própria do que a Clay.
— Não está sendo um pouco pretensioso? — perguntou ela, recusando-se a entregar os pontos sem luta. — Não pensou que eu pudesse preferir continuar o passeio sozinha?
— Pensei. E sem dúvida não foi por falta de quem quisesse acompanhá-la. — O rosto de Clay continuava impassível. — Mas vou com você assim mesmo, portanto sugiro que relaxe e tente aproveitar o passeio. — Fez uma pausa e prosseguiu num tom menos agressivo. — Será que não podemos esquecer os desentendimentos só por um dia?
— Uma trégua?
— Mais ou menos.
— Está bem. — Aceitou a proposta de paz, tentando esquecer as suspeitas. Quem sabe agora Clay não se decidisse a ouvir a versão dela? Se ao menos conseguisse fazê-lo entender, se ao menos se tornassem amigos...
Pedro parecia ter aceitado a nova situação filosoficamente, apesar dos olhares curiosos que lançava a ela através do espelho retrovisor. Ela não sabia nem se interessava em saber o que ele pensava a respeito da intervenção de Clay. Sentiu no ombro a leve pressão do braço de Clay, que acabava de se acomodar ao lado dela, e afastou-se um pouco para evitar o contato.
— E seus amigos? — perguntou Helen, assim que o carro se pôs em movimento. — Não vão ficar preocupados com você?
— Não, sem dúvida devem ter percebido que resolvi continuar o passeio sozinho.
O trajeto até La Rinconada não levou muito tempo. Helen maravilhou-se com a simetria das linhas arquitetônicas e com a bem dosada mistura de elementos novos e antigos. Em volta da cidade, para qualquer direção que se olhasse, a muralha compacta de montanhas erguia-se como guardiã invencível da cidade.
La Rinconada era realmente um espetáculo à parte, desde os vastos jardins arborizados à vista deslumbrante da cidade proporcionada pelas arquibancadas. Rodeado pela pista, um jardim ornamental, com lagos e quedas d'água. Cada uma das três plataformas possuía seu próprio restaurante e um circuito fechado de televisão para aqueles que preferissem ver as corridas confortavelmente instalados nas cadeiras estofadas do bar.
Além disso tudo, Clay explicou que o hipódromo possuía um centro de criação e um hospital de primeira qualidade.
Apesar da admiração pela beleza da arquitetura, Helen não podia esquecer as choças miseráveis a respeito das quais Pedro havia falado. Milhões e milhões de cruzeiros deviam ter sido gastos para fazer de a Rinconada o que era, mas talvez pudessem ter tido melhor uso.
— Bem mais de oito bilhões — confirmou Clay, quando ela colocou a questão. Em seguida, percebendo onde ela queria chegar, justificou: — Mas proporciona emprego a mais de vinte mil famílias e contribui com mais da metade das suas rendas para o Tesouro Nacional. Em todos os países existem pobres. É parte da estrutura social.
— Você fala como Glenn — murmurou Helen sem pensar e, percebendo a reação dele, acrescentou depressa: — Como sabe tanta coisa a respeito deste lugar?
— Interesse. — Se ela pensava que ele não faria comentários sobre Glenn, estava enganada. — Tem se correspondido com os Freman?
— Eles me pediram que escrevesse. — Fez questão de enfatizar a palavra "eles".
— Ainda estou pensando no que fazer com o pingente — acrescentou num impulso. — Vou devolvê-lo, é claro, mas não quero ferir Glenn mais do que o necessário.
— Só você pode decidir isso — disse ele depois de alguns instantes de silêncio.
— Não estava pedindo sua opinião — retrucou, ofendida. — Ainda não acredita que eu não tinha percebido que era uma esmeralda verdadeira, não é?
— Nunca sei se devo acreditar em você ou não — respondeu com um encolher de ombros. — Se não fosse... — Clay calou-se com certo esforço. — Tínhamos combinado esquecer tudo isso por hoje.
— É, combinamos. — Mas ela não queria esquecer; preferia explicar de uma vez por todas o que tinha realmente existido entre Iam e ela, mas o instinto fez com que se calasse.
— Acho que já vi o essencial por aqui. Que tal irmos para outro lugar?
Pedro estava esperando no carro e endireitou-se no assento ao vê-los.
— Para onde? — perguntou, lacônico, dirigindo-se apenas à Clay.
— Para a rua Médio. Um restaurante chamado Blanco's.
Conheço o lugar. — Havia novo respeito no tom do venezuelano. — Trabalha nos navios?
— Trabalho. — Clay consultou o relógio. — Dê uma volta antes, porque acho que não vamos ter muito tempo depois do almoço.
Dirigiram-se ao coração da cidade por uma avenida de três pistas, duas vezes mais larga que qualquer outra conhecida por Helen. Gastaram meia hora para conhecer a antiga catedral, esplendoroso edifício de teto de ouro, e mais outro tanto no Panteão Nacional, onde jaziam os heróis nacionais. Um fotógrafo aproximou-se deles e perguntou se queriam tirar uma foto ao lado do monumento. Helen já ia recusar quando percebeu que Clay fazia um gesto afirmativo, ao mesmo tempo rodeando os ombros dela com um dos braços. Poucos minutos depois, examinando a foto, a primeira coisa que Helen notou foi o sorriso sarcástico de Clay.
A foto é sua, foi você quem pediu — retrucou, quando ele lhe ofereceu a fotografia.
— Pode pendurar na parede para usar como alvo, quando jogar dardos.
— Vamos comer — foi o único comentário de Clay.
O Blanco's era um restaurante pequeno e modesto,que jamais seria ,incluído nos guias turísticos. As paredes, forradas com mantas indianas, tinham como decoração arcos, flechas e bolsas de palha feitas a mão.
A especialidade da casa, as hallacas, eram uma mistura de milho, carne, vegetais e condimentos variados, tudo envolvido numa folha de bananeira e cozido na água. Como sobremesa, comeram fatias de abacaxi.
— A refeição estava uma delícia. Acho que comi demais — comentou Helen satisfeita.
— Você pode comer quanto quiser, com esse corpo. — Clay terminou de tomar o vinho e afastou um pouco a cadeira para poder esticar as pernas. — O lugar não é dos mais confortáveis, mas é o único onde se come hallacas como estas.
— Vem sempre aqui?
— Quase todas as semanas, mas geralmente alugo um carro e venho dirigindo eu mesmo. O passeio de hoje foi uma feliz exceção.
— Feliz?
— Para você. Pense no que teria perdido, se eu não estivesse junto.
— Teria perdido uma excelente refeição -respondeu Helen, encarando-o com frieza.
— Foi exatamente o que eu quis dizer. — Havia um brilho de desafio nos olhos dele.
— Se estivesse sozinha, sem dúvida teria ido almoçar no Hilton. Acho que a mudança de planos foi boa para você.
— Dizem que é bom variar. — Olhou instintivamente para o relógio. — A que horas sai o navio?
— Depois das seis. Ainda temos quase três horas.
— Você disse a Pedro para estar aqui às três.
— Mesmo que ele se atrase um pouco, ainda temos tempo de sobra para voltar a La Guairá. A viagem pela rodovia não leva mais que uma hora. Quer tomar alguma coisa?
Helen já ia sacudir a cabeça negativamente, mas mudou de idéia.
— Um licor.
— Duvido que Blanco tenha. Além das bebidas locais, ele geralmente só serve rum. Por que não experimenta um ponche? É muito refrescante.
De fato, era muito refrescante. Além de fortíssimo, é claro, mas Helen só foi perceber quando já estava quase terminando. Nessas alturas, estava tão alegre que não se importou muito. Sorridente, examinou o restaurantezinho escuro e barulhento e depois olhou para Clay.
— Estou contente que tenha me trazido aqui.
— O prazer é todo meu — respondeu Clay, acrescentando: — Pensei que seus gostos fossem mais sofisticados.
— Quer dizer que escolheu este lugar para me dar uma lição?
— De certa forma. Em matéria de comida, nenhum restaurante se iguala ao Blanco, mas...
— Mas não foi por isso que me trouxe aqui — completou, sem ressentimento. — A menos de três anos atrás, eu não só não comeria no Hilton, como nem sequer teria coragem de entrar lá. Pode-se comer bem em lugares simples, não há necessidade de se freqüentar só restaurantes sofisticados.
— Você mora em Kensington, não é?
— Moro. — Olhou-o, espantada. — Como sabia?
— June mencionou isso na carta. — Tomou um grande gole de ponche, colocando o copo na mesa com ruído. — Ian costumava ir lá?
— Jantou lá uma ou duas vezes. — Percebeu a incredulidade dele e tentou protestar:
— Clay, não é como você pensa, eu... nós não...
— Esqueça — interrompeu, brusco. — Não estou interessado.
— Então não devia ter tocado no assunto. — A raiva cresceu dentro dela. — Parece que não se importa de discutir os problemas conjugais de sua irmã com outras pessoas!
— Quem, por exemplo?
— Quer dizer que contou a mais de uma pessoa? — Não conseguia esconder o sarcasmo. — Talvez devesse selecionar melhor seus confidentes.
— Quem? — Os dedos dele se comprimiam com força em torno do copo, como se ele temesse agredi-la.
— Pergunte a sua namorada — respondeu Helen, dando de ombros.
— Minha... — Clay calou-se de repente e olhou-a com uma expressão estranha. — Por acaso está falando de Marian Lee?
Então era verdade! Helen tentou não dar importância ao choque que a abalou por um instante. A vida amorosa daquele homem não significava nada para ela, não podia significar nada para ela!
— Estou, e não é por acaso. Não sei exatamente o que disse a ela, mas...
— Não disse nada a ela. A única pessoa com quem comentei o fato foi você. Se Marian sabe de você e lan, deve ter ouvido uma de nossas conversas.
— Como podia ter ouvido? — perguntou, irônica.
— Talvez na noite em que você chegou ao Andrômeda. Encontrei-a na porta do Calypso assim que você foi embora. Pode ser que ela também estivesse no convés enquanto conversávamos. A noite o som se espalha com facilidade.
— Por que não pensou nisso quando começou a discutir o assunto? Todas as suas mulheres agem assim?
— O que foi que ela disse a você? — Os olhos dele demonstravam frieza.
— Por que não pergunta a ela?
— Estou perguntando a você!
— Não vou responder. — O efeito da bebida tinha cessado quase por completo, deixando-a num estranho estado de torpor. Nunca havia se sentido tão ausente como naquele instante. — A única coisa que vou dizer... e só para esclarecer bem as coisas... é que a última vez que vi lan foi na noite em que ele me disse que era casado. Pode acreditar ou não, como preferir, mas é a verdade. Vamos embora? Já são quase três e meia.
— Gostaria de acreditar em você — disse Clay, sem sair lugar. — Mas então teria de reconhecer que meu cunhado é um mentiroso.
— Ele não mentiu para mim. Apenas deixou de me dizer que era casado. — Queria convencê-lo, mas sentia que se o fizesse estaria deixando Ian em má situação. — Foi ele quem contou à sua irmã que estava se encontrando com alguém ou ela descobriu sozinha?
— Não tenho certeza. Ela me escreveu uma carta meio confusa sem entrar em detalhes. Se ela não desconfiava, ele não devia ter contado.
— Quer dizer que o homem pode fazer tudo que quiser, desde que a esposa não descubra?
— Não, não é isso. O que quero dizer é que ele podia evitar aborrecimentos para os dois, se ficasse de boca fechada. — Olhou demoradamente para ela. — Talvez ele tivesse medo de que você resolvesse contar tudo a June.
Ela sentiu a garganta apertar.
— Chega, já disse o suficiente.
— Estava apaixonada por lan? — Os olhos dele brilhavam estranhamente.
— Não exatamente, mas talvez estivesse perto disso. Tínhamos muito em comum.
— Encarou-o com um sorriso meio desanimado. — Ainda não acredita em mim, não é?
— Preciso me acostumar a um novo ponto de vista. Tinha certeza de que Ian havia sido encorajado por você. Eles estão casados há pouco mais de um ano. Normalmente no primeiro ano de casamento o homem não sente necessidade de procurar outras mulheres — concluiu com cinismo.
De certa forma eu o encorajei. Ele parecia tão...
— Tão o quê? — Pelo tom, Helen percebeu que ele não ia permitir que a frase ficasse no ar.
— Necessitado de alguém com quem conversar... com quem compartilhar suas horas livres — concluiu, em tom de desafio. — Talvez não seja problema meu, mas tem certeza de que o casamento de sua irmã era feliz, mesmo antes de tudo isso começar?
— Vendo-os três vezes por ano, não posso ter tanta certeza. June pode ser um pouco imatura, ainda, mas nunca deixou transparecer se alguma coisa saiu errada. Em setembro, quando a vi pela última vez, tive a impressão de que ela continuava tão louca por ele quanto antes. — Baixou os olhos para o copo. — Ele falou de June alguma vez?
— Não, nunca. Ele só disse que era casado, que sentia muito e foi embora. Isso aconteceu há três semanas atrás.
— Foi por isso que veio para o Andrômeda?
— Foi. Mas parece que não tive muita sorte.
— Deve ter tido um choque violento, quando me conheceu.
— Tive... principalmente quando percebi que espécie de pessoa você imaginava que eu fosse.
— Reagindo como reagiu, não podia esperar que tivesse outra idéia de você.
— Como queria que eu reagisse? Estaria preparado para me ouvir , se eu quisesse explicar minha versão naquele dia?
— Provavelmente não — admitiu ele. — Tinha intenção de fazê-la pagar caro pelo que havia feito a minha irmã.
— E agora? — perguntou, sem ousar encará-lo.
— Roma não foi feita em um dia. Você me deixou em dúvida, preciso pensar, mas...
— Olhou-a durante alguns instantes, pensativo. — Acho que só uma confirmação do próprio lan pode me dar certeza.
Se não fosse pelo incidente com a esmeralda de Glenn, Helen tinha quase certeza de que ele teria acreditado nela. Agora, Clay devia achar que ela era ou uma grande mentirosa ou uma ingênua, mas infelizmente as aparências pareciam reforçar mais a primeira hipótese. O instinto levou-a a não insistir mais no assunto até que Ian confirmasse a história... se é que ele desejava confirmá-la.
— Ele sabe que estou trabalhando no Andrômeda?
— Imagino que June tenha contado a ele. Escrevi assim que soube da sua vinda. Pensei que fosse receber uma resposta ainda esta semana.
— Talvez ela tenha decidido resolver sozinha seus próprios problemas, deixando para você a parte que me diz respeito. Na próxima carta vai poder dizer que a confiança que ela depositou em você não foi em vão.
— Não vou pedir desculpas -retrucou ele, com um sorriso cínico. — Foi você quem criou o problema. Acho que mesmo em circunstâncias diferentes haveria antagonismo entre nós, e você sabe por quê.
— Eu sei? — Uma sombra passou pelos olhos verdes de Helen.
— Claro. Porque você não gosta dos homens que não se deixam dominar. Talvez por isso tenha se dado tão bem com lan. Ele nunca teve uma personalidade muito forte.
— Parece que não gosta muito do seu cunhado.
— Isso não vem ao caso. Só acho que não é o tipo de homem com quem June devia ter se casado.
— Então por que concordou com o casamento?
— Ela tem idade para fazer o que quiser, sem me pedir permissão. — E acrescentou, com os olhos brilhando: — E não é fácil para mim ser duro com ela. Criar uma garota de doze anos foi uma enorme responsabilidade para mim.
— Quantos anos ela tem agora?
— Vinte e um.
Então ele devia ter mais ou menos vinte e cinco anos quando assumiu a responsabilidade de criar a irmã, pensou Helen, reconhecendo que não devia ter sido fácil, para um rapaz daquela idade, assumir tal tarefa. Sentiu vontade de perguntar se June tinha vivido com ele durante todos aqueles anos, mas decidiu que seria melhor calar-se. Como Sally Freeman e ela própria, a irmã de Clay também não tinha tido uma família, o que criava entre elas uma certa afinidade, mesmo naquelas circunstâncias.
— Não deve ter sido fácil para nenhum dos dois — comentou.
Ele fez menção de dizer alguma coisa mais, mas aparentemente mudou de idéia e afastou a cadeira com um movimento brusco.
— Vamos procurar aquele seu motorista antes que ele venha nos procurar.
Pedro esperava por eles na rua lateral onde haviam combinado encontrar-se e, pelo bocejo com que os recebeu, Helen concluiu que ele não tinha ido almoçar para descansar um pouco.
Deixaram a cidade pela via elevada que atravessava as montanhas em direção ao grande desfiladeiro, descendo lentamente até La Guairá. A rodovia às vezes cortava a montanha, passando por túneis muito extensos e ricamente iluminados, e desembocando do outro Iado, em vales muito verdes.
Por causa da presença de Pedro, a conversa entre Clay e Helen se limitava a observações sobre a beleza da paisagem, mas em momento algum a moça deixou de estar consciente do magnetismo do homem sentado ao seu lado. Houve um momento especial de tensão quando uma curva mais fechada fez com que ela escorregasse em direção a ele. Helen sentiu as mãos de Clay em torno de sua cintura, como já havia acontecido no bondinho. Só que, desta vez, ele não fez nenhum gesto para afastá-la; ao contrário, manteve-a firmemente junto dele, os lábios a poucos centímetros dos dela e uma expressão no olhar que a deixou quase sem fôlego. Ser desejada fisicamente não era uma experiência nova, mas daquela vez foi diferente. Aquele não era um homem qualquer e as sensações que o contato dele provocava diferiam de tudo que ela já sentira antes.
— Desculpe — disse Helen no tom mais natural que conseguiu emitir. — Não estava esperando aquela curva. — Afastou-se dele enquanto falava, aliviada e ao mesmo tempo decepcionada por ter sido solta sem protesto, desejando desesperadamente que ele a mantivesse junto de seu corpo forte.
— Em dez minutos estaremos no navio — foi o único comentário dele.
Eram exatamente cinco horas quando chegaram às docas. Helen não sabia como resolver o problema do pagamento, mas Clay livrou-a do aborrecimento. A gorjeta oferecida por ele devia ter sido muito generosa, pois o sorriso e as despedidas de Pedro foram calorosas.
— Gostaria de saber quanto lhe devo — perguntou Helen timidamente, quando subiam a prancha do navio.
— Não se preocupe com isso — respondeu ele com o habitual sorriso irônico.
— Não é justo.
— Não? — Pararam um instante no convés, um pouco afastados do grupo de passageiros que também estava voltando. Olhou-a enigmaticamente. — Também insistiu em pagar o passeio com Freeman?
— Não, claro que não. — Hesitou um pouco. — Mas aquilo foi diferente.
— Diferente em quê?
— Porque ele... eles... — calou-se e fez um gesto desconsolado. — Eu era convidada deles.
— Então considere-se minha convidada, se isso torna as coisas mais fáceis. Não quero mais ouvir falar em pagamento.
— Está bem. — Não havia razão para insistir. — Obrigada, então. Foi um dia inesquecível.
— Fugindo? — perguntou ele com suavidade quando ela fez menção de se afastar. Ela se esforçou para olhá-lo nos olhos.
— De quê?
— Nós dois sabemos de quê. O problema é o que fazer a respeito.
Com uma calma que nem ela mesma sabia de onde tinha vindo, respondeu:
— Não sei o que você vai fazer a respeito, mas eu vou descer. Obrigada mais uma vez pelo passeio.
A porta de um dos elevadores se abriu e sua única ocupante olhou para a placa fixada em uma das colunas.
— Este é o convés Carillon?
— Não, é o convés Caribbean — informou Helen. — Também vou para o convés Carillon.
Entrou no elevador e apertou o botão, sem olhar para o local onde havia deixado Clay Anderson. Que bom se pudesse odiá-lo, mas não conseguia, não o suficiente. Para um homem como ele, só havia um tipo de relacionamento possível com a mulher que ele imaginava que ela fosse. A atração existia... então por que não se deixar levar por ela? Os homens pareciam capazes de separar completamente o desejo físico de qualquer espécie de envolvimento emocional. Helen desejava possuir essa capacidade, que sem dúvida tornaria sua .vida bem mais fácil.
O encarregado da limpeza dos camarotes aproximou-se dela e saudou-a alegremente.
— Há uma pessoa esperando você. Disse que era uma grande amiga sua, por isso deixei-a esperar na sua cabine. — Fez uma careta quando ouviu o telefone soar. — Lá vou eu outra vez.
Afastou-se antes que Helen pudesse pedir maiores esclarecimento. Perplexa, ela caminhou até o camarote e abriu a porta, defrontando-se com uma linda moça de cabelos negros, que se levantou da cadeira onde estava sentada e encarou-a com uma mistura de ódio e ansiedade.
— Acho que não esperava me ver por aqui — disse a moça em tom cortante. — Sou June Marriot, a esposa do seu amante!
Passaram-se alguns segundos antes que Helen recuperasse a fala, — Como veio parar aqui? — perguntou por fim, percebendo logo como era irrelevante a pergunta. Sacudiu a cabeça. — Isto é... por quê?
— Pensei que isso fosse óbvio. — A mulher de lan falava com voz trêmula. — Achei que já era hora de conhecê-la pessoalmente... e dizer o que penso de você! Mulheres que andam por aí roubando maridos das outras deviam ser presas, embora nem isso seja castigo suficiente para elas! — Os punhos cerrados da moça não lhe davam o necessário autocontrole. — Não existem homens em quantidade suficiente para você... seduzir? Precisa andar atrás de lan?
Helen fechou a porta antes de responder, escolhendo com cuidado as palavras para não piorar ainda mais a situação.
— Está enganada a respeito de seu marido e de mim. lan não lhe contou?
— Ele não precisou me contar. Eu já sabia. — June fez uma pausa e respirou fundo.
— Uma amiga viu vocês num restaurante e resolveu me contar. Ian admitiu tudo, por isso não adianta você negar!
— O que foi que ele disse? — perguntou Helen com cuidado.
— A verdade. Que se conheceram no parque e que você o convidou para assistir sua apresentação. Que você insistiu até ele aceitar e que não o deixou mais em paz. Admitiu que se sentia atraído por você, mas tenho certeza de que ele jamais iria tão longe como foi sem que você o encorajasse. Ian nunca olhou para outra mulher depois que nos casamos, até que se viu envolvido nas suas garras!
Então Ian tinha mentido para salvar a própria pele. Mas por que havia de agir de outra forma? Se tentasse explicar àquela moça a verdade, ela sem dúvida não acreditaria. E se acreditasse, o que aconteceria? O casamento dos Marriot parecia prestes a terminar, considerando-se a presença de June no Andrômeda. Se revelasse a mentira de Ian, que chance teria ainda o casamento? Helen viu que precisava fazer alguma coisa, caso contrário ficaria com a consciência pesada para sempre. Decidiu mentir, sabendo que precisava ser convincente.
— Está bem — admitiu, procurando aparentar indiferença. — Tentei tirá-lo de você, mas falhei. Então por que tanta preocupação? Devia sentir-se feliz por ter um marido que se preocupa com você da maneira que Ian se preocupa. Talvez eu o tenha atraído, mas é a você que ele quer. Ele provou isso e você devia sentir-se grata.
A porta abriu-se violentamente por trás de Helen, quase atingindo-a no braço. Clay, parado na porta, o rosto contraído, olhou para ela e em seguida para a irmã. Tudo indicava que ele tinha ouvido a confissão, por isso seria inútil tentar convencê-lo de que tudo não passava de uma mentira. Mas também que importância tinha isso? De qualquer maneira ele saberia através da irmã.
— Que diabo está fazendo aqui, .June? Como veio até aqui!
— Tomei um avião esta manhã. Uma agência encarregou-se de todas as providências. — Falava depressa e num tom de desafio. Sabia que você não concordaria, por isso resolvi fazer uma surpresa. — Fez uma pausa antes de acrescentar com voz trêmula: — Deixei Ian.
Clay entrou e fechou a porta, desta vez com delicadeza.
— Por que esperou três semanas para decidir?
— Não consegui agüentar mais. Estar na mesma casa, olhar para ele, sempre vendo-o ao lado... dela! — Lançou um olhar de ódio a Helen. — Por que só eu devo fazer concessões?
— O problema não é fazer concessões, é manter o bom senso. Ele sabe onde você está?
— Não, não sabe. — Jogou para trás o cabelo negro, deixando ainda mais visível a tempestade que ia dentro dela. — Deixei uma carta dizendo que ia embora e que não pretendia voltar.
— Precisamos conversar sobre isso, mas antes vamos mandar um telegrama.
— Eu devia ter adivinhado que você ficaria do lado dele. — Ela mal conseguia conter as lágrimas. — Deve achar que sou uma tola por levar o caso tão a sério, não é?
— Pare com isso, June. — Clay falou com delicadeza, mas também com autoridade.
— Não estou do lado de Ian. Ele precisa pagar pelo que fez... e outras pessoas também.
— Lançou um olhar a ameaçador para Helen. — Mas não podemos deixá-lo sem notícias, ele deve estar preocupado. Já tem um camarote?
— Tenho, no mesmo andar que o seu.
— Então vamos para lá... depois de mandar o telegrama.
Helen afastou-se para deixar a moça passar. Sentia-se atordoada, presa na própria armadilha. Não havia nada que pudesse dizer, nada que pudesse fazer para remediar a situação. Só desejava que aquele pesadelo terminasse.
Mas era uma esperança vã. Percebeu isso quando Clay passou por ela, os braços em torno do ombro de June, fulminando-a com o olhar.
— Quanto a você, não pense que está tudo resolvido. Mais tarde vai ter que me explicar algumas coisinhas.
— Não vejo por que continuar discutindo esse assunto — disse Helen, recuperando um pouco o controle.
— Eu também não vejo — murmurou Clay, de dentes cerrados.
Quando se viu sozinha, Helen atirou-se sobre a poltrona onde June estava sentada há poucos instantes. Tudo aconteceu tão depressa que não houve tempo para análises. Mas o que mais podia ter feito ou dito? A única pessoa que podia salvar a situação era Ian, mas ele sem dúvida não ia fazer isso naquela hora.
Sentiu um calafrio ao relembrar a última observação de Clay. Confinada ao navio nas trinta e seis horas seguintes, seria muito difícil evitar uma confrontação com ele. E não precisava ser muito esperta para imaginar que o encontro não seria nada agradável. Teria que continuar blefando, apesar do sofrimento que isso lhe custaria, e talvez depois Clay a deixasse em paz. Tentou não pensar na tristeza que essa idéia despertava nela.
O navio partiu exatamente às seis horas, navegando com imponência em direção a alto-mar, na primeira parte da viagem até Barbados. Às seis e meia Helen se levantou da cama onde havia tentado descansar um pouco e abriu o guarda-roupa à procura de um vestido para o jantar, embora não sentisse um pingo de fome. Incapaz de ficar ali parada no camarote, à espera dos acontecimentos, subiu para o convés Beach assim que terminou de se arrumar. Sentiu-se ao mesmo tempo alegre e desconsolada quando Philip deixou o grupo onde estava e caminhou até ela.
— Teve um bom dia? — perguntou ele.
— Excelente, obrigada. — Procurou aparentar calma. — Estou ansiosa para conhecer melhor o lugar, da próxima vez.
— Ouvi dizer que você voltou com Clay — disse ele, depois de um momento de hesitação.
— É verdade. Nos encontramos lá em cima da montanha e ele se ofereceu para me mostrar alguns pontos turísticos. Fiquei muito impressionada com Caracas.
— Aconteceu a mesma coisa comigo, na primeira vez que estive lá. — Sorriu. — Marian Lee está espumando de raiva! Ela estava com Clay e mais uma ou duas pessoas do navio e não se conforma de ter sido deixada de lado por sua causa. Tome cuidado com ela ou ainda vai passar maus bocados, Helen.
Se Marian Lee fosse seu único problema, Helen estaria morrendo de rir. Será que Clay tinha mesmo dispensado Marian, como Philip dissera?
— Venha, vamos tomar alguma coisa com os rapazes — convidou Philip. — Quando não estamos de serviço, geralmente nos reunimos aqui em cima.
— Eles não vão gostar da intromissão de uma mulher .
— Está brincando! Foram eles que me pediram para vir buscar você. Parece que você não tem consciência da própria popularidade!
Helen deu uma olhada na direção do grupo reunido em uma das mesas do bar, viu que o homem com quem tinha dançado na primeira noite acenava para ela e tomou uma decisão rápida. Precisava esquecer os próprios problemas e Gerry Duncan era a pessoa indicada.
Foi saudada com entusiasmo pelos quatro oficiais, que a receberam como se pertencesse ao grupo. Philip lhe trouxe um martíni e ficou parado ao lado dela, numa tentativa de deixar claro que ninguém ali era mais íntimo que ele.
— Quem é a gatinha que Clay arranjou? — perguntou Gerry olhando para o casal que chegava.
Helen gelou ao ver os dois e baixou os olhos para o copo que tinha nas mãos. Ouviu Clay fazendo as apresentações e foi obrigada a olhar para cima, conseguindo sustentar os olhos cinzentos com admirável coragem.
June estava incrivelmente bonita com o vestido azul e branco. Sorria como se não tivesse preocupação alguma no mundo. Só quando encontraram os de Helen é que seus olhos perderam um pouco o brilho, mas ela se recuperou depressa e levantou o queixo num gesto que dizia muito mais que palavras. Apesar de tudo, Helen admirava sua coragem.
Sentiu-se aliviada quando chegou a hora do jantar. Era o pretexto que precisava para se afastar dali. Saindo do bar, percebeu que não conseguiria comer e decidiu ir para a cama, feliz por não ter que cantar naquela noite. Estava cansada e sem ânimo, depois de um dia em que tudo tinha dado errado. Dormir parecia a melhor solução.
Como tinha encontrado Clay no bar, não esperava vê-lo de novo antes da manhã seguinte. Já estava deitada há algum tempo, tentado sem sucesso conciliar o sono, quando ouviu abatida na porta. Só podia ser o camareiro, embora ele não costumasse vir sem ser chamado.
Com o coração aos saltos, levantou-se e vestiu o roupão antes de ir até a porta, onde ficou parada por alguns instantes, imóvel, incapaz de girar a maçaneta.
— Quem é?
— Quem mais você está esperando? — respondeu Clay, impaciente.
— Já estou deitada. Seja lá o que for quê tem para me dizer, pode esperar até amanhã. — Sentia a garganta seca e apertada.
— Não me interessa como você está. — A resposta cortante veio depois de um segundo de silêncio. — Ou abre a porta, ou vou buscar a chave extra e entro de qualquer jeito.
Helen olhou para o frágil pega-ladrão e abriu-o lentamente. Clay estava parado diante da porta, com uma das mãos na cintura e a outra no bolso. O uniforme branco destacava ainda mais o bronzeado da pele dele.
— É uma visita oficial? — perguntou com toda a frieza que consegui reunir. O rosto dele se contraiu.
— Posso tirar o uniforme, se ele a incomoda. — Atravessou o batente, obrigando-a a se afastar, fechou a porta e se encostou nela. — Não acreditou no que eu disse hoje à tarde?
— Não. — Agora que o momento tinha chegado, Helen estava preparada para enfrentá-lo sem medo, apesar da porta trancada. Deixaria que ele dissesse tudo que tivesse vontade e não tentaria se justificar, pois sabia que era pura perda de tempo. — Deve estar acostumado a tomar o partido da sua irmã.
— Alguém tem de tomar.
— Por quê? Ela não é mais criança, como você mesmo observou esta tarde. Por que não a trata como adulta pelo menos uma vez na vida?
— O ataque é a melhor defesa, não? — Os olhos dele brilhavam ameaçadores. — Eu, se fosse você, pararia por aí. Não seja tola, já provou que é uma mentirosa.
Helen estava de costas para o guarda-roupa, os punhos cerrados como quem sente uma grande dor .
— Você já tinha uma opinião formada sobre mim, mesmo antes de me conhecer. Então por que vou me preocupar com o que pensa de mim agora? E, depois, antes de jogar a culpa em outra pessoa, pense na sua responsabilidade. Talvez ela resolvesse melhor este problema se você não tivesse sido tão superprotetor, no passado. Aposto que ela nunca tomou uma decisão na vida sem sua valiosa ajuda!
— Foi uma boa tentativa — disse ele. — Mas não deu certo. Não vai se livrar assim tão facilmente. Talvez até você esteja certa em alguns pontos, mas acontece que não é esse o problema. O que precisamos esclarecer só diz respeito a nós dois.
Helen resolveu se calar, consciente da ameaça velada da última frase. Eram como dois lutadores esperando uma oportunidade de destruir o adversário, só que a luta era desigual e ambos sabiam disso. O que ela dissesse ou fizesse não tinha a menor importância, só importava a decisão dele. E, afinal, o que Clay pretendia?
— Já não está tudo esclarecido? Você demonstrou que estava certo a meu respeito e já disse o que eu sou. Não é suficiente?
— Não, não é suficiente. — O rosto dele continuava duro e inflexível. — Lembra que eu disse que ia lhe dar uma lição?
— Perfeitamente. — Cravou as unhas nas palmas das mãos, tensa. Clay caminhou em direção a ela com uma lentidão ameaçadora.
— Pois bem. Vamos resolver agora nossas diferenças.
Ela se contraiu instintivamente, os olhos brilhando de ódio e pavor.
— Prefiro ver você no inferno!
— Talvez nos vejamos mesmo por lá! — respondeu ele com um sorriso.
Quando estendeu as mãos para tocá-la, Helen tentou esbofeteá-lo, mas foi presa pelos pulsos, impossibilitada de reagir. Os lábios dele, implacáveis e cheios de desejo, esmagavam os dela, impedindo qualquer protesto. Empurrando-a até a cama e obrigando-a a cair deitada, inclinando-se sobre ela como um demônio enlouquecido. Só então Helen percebeu que Clay esperava ver medo em seus olhos, para ter uma desculpa para obrigá-la a se submeter. Decidiu não dar a ele essa satisfação, por mais que isso lhe custasse.
Parou de lutar e ficou imóvel nos braços dele, como se não tivesse mais forças para reagir. Com um sorriso cínico, ele procurou novamente seus lábios, dando total vazão ao seu desejo e despertando nela todos os sentidos. Clay sabia muita coisa sobre as mulheres; alias, sabia muito sobre muitas coisas. E foi preciso uma suprema força de vontade para continuar imóvel, para não corresponder às suas carícias mas ela conseguiu e continuou fria como gelo até que ele finalmente levantou a cabeça e a encarou.
Helen respirava com dificuldade, mas manteve o olhar firme diante do dele.
— Já provou o que queria provar — desafiou-o — ou este foi apenas o golpe preliminar?
Um brilho de admiração passou pelos olhos dele.
— Você não se rende, não é?
— Se para você se render quer dizer satisfazer seus desejos, não. Você veio aqui para demonstrar sua superioridade. Pois bem, consegui. No que diz respeito à força bruta, você venceu. Prometo não esquecer isso.
HeIen não conseguiu conter um gemido de dor quando as mãos dele se contraíram com violência.
— Continue assim e vai ver o que é força física! — Clay ameaçou. — Sabe se fazer de fria muito bem, mas eu senti seu coração bater mais forte!
— E daí?
Os olhos dele faiscaram.
— E daí? Isso...
Os lábios dele, suaves e sensuais, colaram-se ao pescoço de Helen e, desta vez, não admitiam recusa. Ela fechou os olhos, sentindo que respondia ao contato dele, mesmo sem querer. Esquecida de tudo, só percebia a estranha sensação daquele momento, um momento de prazer que era quase dor. Precisou reunir todas as forças para interromper a onda de desejo que cresci-a dentro dela, antes que fosse tarde demais. Como podia pensar em fazer amor com Clay Anderson, um homem a quem odiava c que também a odiava?
— Chega — pediu com voz trêmula. — Clay, por favor.
Ele demorou alguns segundos para falar e precisou fazer um grande esforço para responder.
— Capitulação? — perguntou irônico.
— Se você prefere usar essa palavra... — Não havia escolha e o perigo ainda estava presente, mas ela se recusava a dar o braço a torcer. — Ninguém esta duvidando da sua eficiência.
— O que é preciso para obrigá-la a se render? — disse, depois de um momento de silêncio ameaçador. — E se continuarmos para descobrir?
O coração dela batia descompassadamente. Era isso que ela queria? Renunciar ao seu poder de decisão?
— Não quero continuar e não acredito que você tenha tido esta intenção.
— Não? — Pela expressão, era difícil adivinhar o que ele estava pesando.
— Não, não teve. Não arriscaria seu emprego assim.
— Por quê? Acha que ia correr esse risco?
— Eles não iriam ignorar uma queixa dessas, e você sabe muito bem.
— Sua palavra contra a minha! A essas alturas, todos já suspeitam que haja alguma coisa entre nós. Mulher nenhuma passa todo um dia em companhia de um homem que não suporta. Além do mais, você não faria queixa, porque prefere morrer a admitir que um homem levou a melhor sobre você.
— Você não me conhece tão bem quanto pensa. — Sentia a garganta apertada. — No seu caso, valeria a pena.
— Pode ser. — Ele a soltou e sentou-se. — Mas nunca vamos saber.
— Eu sei — disse Helen, com mais convicção do que a que realmente sentia. — E depois, você já está mesmo de saída.
Ele fez menção de se levantar, mas hesitou.
— Quer que eu fique?
— Não! — Helen mordeu o lábio. — Não quis dizer isso.
— Então explique o que quis dizer. — Passeou o olhar demoradamente por ela. — Não sou difícil de convencer. — Sorriu com sarcasmo ao ver a sombra que passou pelo rosto dela. — É uma questão de prioridades. No momento, não sinto a menor vontade de ir embora. Portanto, cuidado com o que diz.
Helen estava no limite das suas forças e mal conseguia controlar o tremor das pernas. Quando ele se levantou, ela se apoiou num dos cotovelos, procurando preservar o controle que ainda mantinha da situação.
— Supondo que já recebi a lição que merecia, podemos dar o caso por encerrado?
Ele demorou um pouco para responder, observando-a com cinismo.
— No dia em que você deixar o navio, o caso estará encerrado. Durma bem. Vai precisar de todas as suas energias para o espetáculo de amanhã.
Sozinha outra vez, Helen se jogou sobre os travesseiros, desanimada. Não conseguiria enfrentar, por tanto tempo, a perseguição implacável de Clay. Se não tivesse fugido, nada disso estaria acontecendo agora. Devia ter ficado na Inglaterra e enfrentado cara a cara o fim do relacionamento com Ian. A situação em que se envolvera agora era muito mais grave, e só teria um fim se ela fugisse outra vez. Mas que explicação daria a Barney? Podia até prever a reação dele: se o cunhado de Ian estava tornando a vida dela insuportável a bordo do Andrômeda, por que não levava o caso ao conhecimento de uma autoridade superior? Uma semana atrás, ela mesma acharia essa solução a mais viável, Mas, depois de tudo que se passara entre eles, era impossível apelar para uma terceira pessoa. Podia ter gritado por socorro quando Clay invadiu seu quarto, mas ficou calada. Por quê?
Não queria pensar na resposta naquele instante.
Apesar das ameaças, Clay não fez qualquer tentativa de se aproximar dela nos dias que se seguiram, e Helen, conhecendo melhor a rotina de trabalho dele, já sabia como evita-lo. Quanto a June, quando não estava em companhia do irmão, estava com um dos oficiais. Muitos guarda-costas para alguém que não precisava deles, pensou Helen.
Durante a semana, começou a passar cada vez mais tempo com Philip, mesmo sabendo que estava fazendo o que pretendia evitar. De que adiantaria recusar a única verdadeira amizade que lhe dedicavam no navio?
— Dizem que você esteve envolvida com o marido da irmã de Clay — confidenciou Philip certa manhã, quando tomavam sol no superior. — Eu... bem... achei que você devia saber.
Marian Lee, suspeitou Helen, não podia ser outra pessoa. Clay, por pior que fosse, não seria capaz de espalhar uma notícia dessas. Afinal, qual a intenção de Marian? Helen não sabia, mas desconfiava que a dançarina estava se aproveitando da situação para se aproximar de Clay.
— Quer saber se é verdade? — perguntou com franqueza. Philip corou um pouco.
— Mesmo que seja, tenho certeza de que não foi como dizem. Você não é esse tipo de pessoa.
Ela estendeu a mão, colocando-a carinhosamente sobre a mão de Philip.
— Você é um grande amigo, Philip. Obrigada. Gostaria que os outros confiassem em mim como você!
Ele virou a mão e segurou a de Helen com firmeza.
— É por isso que Clay está perseguindo você? Foi por isso que ele a seguiu na segunda-feira?
— Ele não me seguiu. Perdeu-se dos amigos por acaso. — Não acreditava muito nisso, mas não queria envolver Philip. Sorriu para ela e retirou a mão com delicadeza. — Tudo vai terminar bem.
— Não vejo como, com a irmã dele aqui no navio. Ele não devia ter concordado com a vinda dela. — Fez uma pausa. — Que terrível coincidência, não? Vir de tão longe e cair justamente nas mãos de Clay. Tenho certeza de que não sabia quem ele era, caso contrário não teria ficado tão espantada com o comportamento indelicado que ele demonstrou no primeiro dia.
— Foi mesmo uma coincidência. Coincidências acontecem com mais freqüência na vida real que na ficção. Como gostaria que ele esquecesse o assunto, como gostaria que todos esquecessem o assunto! — Sentou-se e ajeitou os óculos. — Acho que já tomamos bastante sol por hoje. Não quero ficar parecendo um frango assado esta noite.
— Seu bronzeado está perfeito. Não há perigo de ficar vermelha. Sempre achei que pessoas de pele clara não podiam tomar sol.
— Acho que minha pele está ficando resistente — comentou com irônia.
— Vai ficar linda sob a luz dos refletores. Vai usar aquela coisa flutuante?
— Aquela coisa flutuante, como você chama, é a peça mais cara do meu guarda-roupa, por isso refira-se a ela com respeito! — Sorriu. — Não estava pensando em usar aquele vestido, mas não vejo motivo algum para não usá-lo.
— Ótimo! Jimmy Keen acha que você vai fazer sucesso com o novo número.
— Espero que ele esteja certo. — Helen tentou mostrar entusiasmo. Jamais se sentira tão indiferente a uma apresentação, e achava que não tinha esse direito. Um verdadeiro profissional não podia permitir que os problemas pessoais interferissem no seu trabalho. Se quisesse empolgar a platéia naquela noite, tinha que esquecer completamente Clay Anderson.
Imaginando que talvez tivesse que compartilhar o camarim com Marian Lee, deixou para se trocar quase na hora do espetáculo; mas, felizmente, encontrou a sala vazia. O vestido negro ao qual Philip havia se referido já estava preparado no cabide. Só quando já estava maquilada e pronta para se vestir é que percebeu o longo rasgo.
Atordoada, examinou o estrago e chegou à conclusão de que o acidente não podia ter acontecido durante o trajeto do camarote até o camarim. Ou alguém havia danificado o vestido enquanto ele estava no guarda-roupa ou ali mesmo no camarim. Se a hipótese verdadeira fosse a última, só havia uma suspeita: Marian Lee!
Faltando apenas cinco minutos para entrar em cena, não tinha tempo para pensar no assunto, nem para ir buscar outra roupa. Hesitou um momento. Depois, apanhou uma tesoura e começou a cortar os babados superiores do vestido, arrancando-os fora. Terminada a tarefa, vestiu-se depressa, fechou o zíper e deu uma olhada no espelho, preocupada. O que havia restado da operação era um vestido de corte muito simples, com um bordado de pedrarias na linha do pescoço e mangas justas. Mas o que preocupava Helen era a maneira como o tecido marcava as formas do seu corpo, coisa que não acontecia quando os leves babados ainda existiam. No original, o vestido revelava pouco e sugeria muito, permitindo que a imaginação do público tentasse adivinhar o que havia por baixo. Como estava agora dava a ilusão de semitransparência. Sentia-se praticamente nua e não sabia como enfrentar os quase duzentos pares de olhos que a esperavam, mas não tinha escolha. Ou enfrentava a situação ou desistia, e não pretendia dar essa satisfação a Marian Lee.
Clay estava conversando com Kreenia, o mágico iugoslavo, que havia terminado seu número naquele instante, quando Helen atravessou o corredor para entrar no palco. Assim que a viu, ele interrompeu a frase no meio e examinou-a da cabeça aos pés com uma expressão que a fez tremer.
— Pretende impressionar as massas?
O iugoslavo também olhava para ela, mas com expressão bem diferente.
— As massas têm muita sorte — observou com entusiasmo, num sotaque carregado.
— Mulher alguma com um corpo tão bonito devia escondê-lo!
Helen ficou vermelha sem querer. Nos olhos de Kreenia, viu primeiro a surpresa e depois um brilho divertido, de quem compreendia a reação dela.
— Preciso entrar — murmurou, apressada, quando a orquestra começou a tocar as primeiras notas do seu número inicial. Sem olhar para Clay, passou pelos dois homens e entrou no círculo de luz que aguardava por ela.
Helen jamais conseguiu saber se a reação do público foi motivada por seu último número ou pelo vestido, mas os aplausos não deixaram nada a desejar. Precisou cantar mais dois números antes de deixar definitivamente o palco, exausta e ao mesmo tempo eufórica, depois de vinte e cinco minutos de tensão.
A primeira pessoa por quem passou foi Marian Lee, cujos olhos brilhando de inveja confirmaram as suspeitas de Helen.
— Devia ter feito um trabalho melhor — murmurou com suavidade ao passar pela dançarina.
Ficou feliz por não encontrar Clay no caminho até o camarim. Mas o alívio durou pouco pois, assim que abriu a porta, deparou com ele sentado, lá, a sua espera.
— O que aconteceu? — perguntou ele, sem preâmbulos, olhando as tiras espalhadas pelo chão.
— Tive vontade de reformar o vestido — respondeu, indiferente.
— Ora, vamos! Mulher alguma faria uma coisa dessas com um vestido daqueles. Não entendo muito desse assunto, mas acho que deve ter custado muito caro.
— Custou. — Helen entrou, deixando a porta aberta. — Mas houve um acidente e tive que tomar uma decisão rápida. Era isso, ou não entrar no palco.
— Que espécie de acidente?
— Prendi o vestido na porta e rasguei-o, ao soltá-lo. — Deu de ombros, com fingida indiferença. — Coisas que acontecem. Vou precisar de outro. — Fez uma pausa antes de acrescentar: — Felizmente, ainda posso usar o que sobrou. Não causei má impressão lá fora.
— Você não precisa de truques. E, já que tocamos no assunto, o rasgão no seu vestido foi feito a tesoura. Pode explicar isso?
— Não lhe devo explicações. — Helen sustentou o olhar dele sem se abalar.
— Se isto começou do jeito que acho que começou, quero saber de tudo. — Fez um gesto de impaciência. — Não será a primeira vez que teremos ciúmes profissionais abordo.
— Nesse caso, deve saber que o melhor meio de lidar com eles é ignorá-los.
— Desta vez foi só o vestido, da próxima pode ser mais sério.
— Ai, ai, ai — zombou Helen. — Drama em alto-mar! Por que não tenta escrever um livro?
Os olhos dele brilharam perigosamente.
— Se eu tentar alguma coisa, você vai ser a primeira a saber! Vou perguntar pela última vez. Alguém rasgou seu vestido?
Não era hora para teimosia e Helen fez um esforço para responder:
— Acho que alguém deve ter rasgado, mas o que é que você pode fazer?
— Posso impedir que aconteça de novo.
— Como?
— Isso é problema meu. — Caminhou até a porta. — De hoje em diante este camarim é só seu.
— Isso é um alívio, obrigada. — Ela não virou a cabeça para ele. — Por falar nisso, posso saber o que é que você está fazendo aqui?
Ele parou na porta e deu um sorriso irônico.
Marian ainda não tinha voltado quando Helen terminou de se arrumar. Pegou o vestido negro e os pedaços que estavam no chão e guardou-os em uma mala. Philip tinha sugerido que ela fosse até o Calypso depois do espetáculo, mas Helen não estava disposta a fingir descontração. Tentou imaginar como Clay agiria em relação à dançarina, mas não chegou a uma conclusão. Aquele homem era totalmente imprevisível, o que o tornava perigoso. E também fascinante, sugeriu uma pequena voz interior. O que era duplamente perigoso.
Ao avistar a costa cada vez mais familiar de San Juán, na manhã seguinte, Helen lembrou do pingente, pela primeira vez em muitos dias. Não tinha escrito a Glenn e o problema ainda existia. Talvez recebesse uma carta dele quando a correspondência fosse trazida a bordo, pois já jazia uma semana que ele tinha voltado para os Estados Unidos, tempo mais do que suficiente para responder à carta de agradecimento de Helen.
Philip encontrou-a na amurada.
— Não posso ficar muito tempo. Os fiscais da Imigração estão a bordo e preciso descer para ajudá-los. Você sabe a confusão que há nessas ocasiões.
Helen sabia. Já havia passado por aquilo. Se alguém conseguisse burlar o rigoroso esquema de fiscalização montado pelas autoridade americanas, podia se considerar um sujeito de muita sorte. Só conseguia embarcar quem estivesse com os papéis na mais perfeita ordem.
— Esperei você ontem à noite — queixou-se Philip. — Você disse que iria até o Calypso depois do espetáculo.
— Disse que ia tentar. Desculpe, mas não foi possível. Estava muito cansada.
— Não tem importância, podemos...
— Não devia estar na Imigração? — A voz veio de trás deles e deu um susto em Philip.
— Estava indo para lá.
— Sem dúvida. — O subordinado continuou parado onde estava. — E então?
— Clay indagou.
— Aposto como agora você está satisfeito — exclamou Helen, irritada, depois que Philip se afastou. — Ele só parou para cumprimentar.
— Ótimo. Tudo que fiz foi apressar as despedidas. — Inclinou-se sobre a amurada, observando a atividade — Já embaixo. — Vai dar um passeio por San Juan?
— Já conheci quase tudo na semana passada. A cidade, pelo menos.
— Com os Freeman?
— Foi — respondeu Helen, levantando o queixo.
Sua intenção era encerrar o assunto ali, mas não conseguiu.
— Teve notícias dele?
— Não, não tive. — Desejou ardentemente que ele não fizesse perguntas sobre o pingente. Quase sem perceber, acrescentou: — Como foram as investigações ontem à noite?
— Não houve necessidade. — Houve um silêncio breve mas pesado. — Acho que lhe devo desculpas pelo caso do vestido. Pensando bem, teve muita presença de espírito.
A surpresa veio acompanhada de uma pontada de desconfiança. Clay pedindo desculpas a ela? Devia ser uma armadilha.
— Ora, não foi nada. Como não queria atrasar todo o espetáculo, era a única solução. — Fez uma pausa, sem olhar para ele. — Embora você pudesse escalar Marian Lee para me substituir .
— Sabe ser irônica, não é?
— Tive um bom professor. O que espera de mim? Gratidão? — Agredia-o para impedir que a distância entre eles diminuísse. A hostilidade oferecia uma espécie de segurança: sabia lidar com Clay nesse terreno, conhecia as reações que podia provocar. Não podia se arriscar a uma trégua, caso contrário aquele homem despertaria nela emoções indesejadas. Fixou o olhar nas filas de passageiros que desciam e subiam a prancha, reparando por acaso num homem alto que cumprimentava um oficial. A princípio, só notou a forma da cabeça. A forma daquela cabeça...
Clay, ao lado dela, reagiu imediatamente.
— Então era isso que estava esperando — murmurou com voz suave. — Parabéns!
Helen mal acreditava nos próprios olhos. Era Glenn quem estava lá embaixo. Glenn! Mas fazia só uma semana que ele tinha deixa o navio. O que estaria...
— Não tinha a menor idéia de que ele viria — explicou Helen — Deve... deve ter vindo a negócios.
— O que ele tem na mão é uma passagem, não um cartão de visitante. — O tom de Clay era profundamente irônico. — Precisamos providenciar alguma distração especial para ele. Que tal a "caça à esmeralda"?
Helen enterrou as unhas nas palmas das mãos. Todos pareciam estar conspirando para fazê-la passar por mentirosa. Por que Glenn tinha voltado? E o que ia dizer a ele quando se vissem frente a frente? Estava tão confusa que mal conseguia pensar com clareza.
Como se uma força o atraísse, ele levantou a cabeça e viu Helen parada lá em cima. Seu sorriso e o entusiástico aceno de mão deixavam poucas dúvidas a respeito da finalidade daquele retorno a San Juan. Helen também acenou e ouviu-o gritar que permanecesse onde estava. Depois, desapareceu dentro do navio.
Alguns minutos depois, que para Helen pareceram horas, Glenn surgia no convés, poucos metros adiante. Sem perceber, ela caminhou na direção dele, sorrindo, de mãos estendidas.
— Glenn, não consigo acreditar! Esperava uma carta, mas não uma visita pessoal !
— Não é apenas uma visita, vou viajar com você. — Soltou a mão dela, abraçou-a e beijou-a com a maior naturalidade, como se fossem íntimos há anos. — Tive que voltar, não conseguia me concentrar em nada nesses últimos dias. — Sorria enquanto falava, olhando-a com uma expressão de profundo carinho. — Sua carta me fez decidir. Enquanto a lia percebi que precisava vê-la outra vez... e depressa. Temos muito o que conversar, Helen.
— Temos? — Fez um esforço para lembrar o que havia escrito naquela carta. Que soubesse, não havia dito nada que justificasse tal resposta, mas ele estava ali. O assunto sobre o qual precisavam conversar talvez fosse o pingente. Não havia como evitar esse tópico desagradável, precisava explicar o engano o quanto antes.
— Desta vez reservei uma suíte — disse Glenn. Por que não vamos conversar lá? O convés é um lugar público demais.
Nisso Helen estava de acordo: se estivessem a sós seria mais fácil explicar tudo.
— Em que convés?
— Neste. — Sorriu. — Para dizer a verdade, acho que estamos bem ao lado dela, mas precisamos atravessar o navio para chegar até lá.
A suíte Cumberland era apenas magnífica, com vista perfeita para o mar. A sala de estar, completamente atapetada, tinha as paredes forradas com tecido e móveis estofados do mais refinado gosto. O custo devia ser exorbitante naquele pequeno mundo luxuoso, dotado de todas as comodidades da vida moderna.
Ficou ali parada no meio da sala enquanto Glenn fechava a porta, imaginando uma forma de abordar o assunto da jóia sem magoá-lo muito. Glenn veio na direção dela, o olhar cheio de calor.
— Agora quero beijá-Ia como convém, como senti vontade de fazer no dia em que partimos.
Helen, insegura, não protestou. Havia alguma coisa infinitamente reconfortante em sentir os braços dele em torno dela, na amorosa possessividade dos lábios dele. Um homem como aquele faria qualquer mulher se sentir querida e desejada, protegida e segura. Sem pensar no que estava fazendo, envolveu o pescoço dele com os braços e correspondeu calorosamente ao beijo, tentando evitar comparações e vivendo apenas o presente. Quando finalmente se afastaram, ela estava perdida, outra vez exposta às influências exteriores.
— Isso foi mais do que eu esperava — disse ele, sem tentar esconder o tremor da voz. — Helen, você foi a coisa mais maravilhosa que me aconteceu até hoje. Você acha que...
— Escute, por favor! — A voz de Helen também tremia, mas por outras razões. — Glenn, não podemos deixar as coisas como estão, por enquanto? Eu... eu nem consigo pensar direito.
— Estou sendo muito apressado -admitiu ele. — Tinha intenção de deixar que as coisas fluíssem naturalmente. Teremos muito tempo, pois pretendo ficar a bordo do Andrômeda até... — fez uma pausa e sorriu — bem... o tempo que for necessário.
— Mas você já viu tudo. — Falava meio em tom de brincadeira meio em tom de protesto. — Fazemos a mesma rota semana após semana. Vão pensar que você está louco.
— Que pensem o que quiserem, só estou interessado naquilo que você pensa.
— E Sally? — perguntou Helen, depois de um instante de silêncio.
— SaIly sabe o que sinto.
— Não foi isso que perguntei.
— Sei que não foi. — Colocou-se na defensiva. — Ela acha que não tenho chance com você. Talvez me ache muito velho.
Naquele momento, Helen não tinha vontade de pensar nos prós e nos contras da idade de Glenn.
— Ela tem só dezessete anos. Nessa idade até pessoas de vinte e quatro anos parecem muito velhas. — Afastou-se dele. — O que está querendo me dizer é que ela não concordou com a sua vinda até aqui, só para encontrar uma pessoa que conheceu há menos de duas semanas. É compreensível, não é? Afinal de contas, ela é sua filha e aparentemente nunca recebeu muita atenção da sua parte.
Ele franziu a testa, depois sorriu com tristeza.
— Não vou tentar me defender. Não tenho sido o melhor dos pais e sei disso. Mas você sabe que nem todas as pessoas conseguem assumir os laços de parentesco com facilidade, especialmente quando têm outra pessoa com quem compartilhar esse sentimento. Depois que Cassie morreu, mergulhei no trabalho de corpo e alma, para não pensar nela, e não me ocorreu que Sally também sentia a falta da mãe! — Glenn calou-se, pensativo. — Acho que o que acabo de dizer não me recomenda aos seus olhos, não é?
— Todos nós cometemos erros. O importante é reconhecê-los. — Ergueu o rosto e encarou-o diretamente. — Glenn, provavelmente vai pensar que sou uma tola ou uma mentirosa, mas não tinha percebido que era uma esmeralda verdadeira que havia no pingente, quando escrevi aquela carta. Coloquei-a no cofre-forte do navio assim que descobri seu valor. Ficaria muito magoado se lhe pedisse para aceitar de volta o presente?
— Sim, claro que ficaria. — O pedido deixou-o surpreso e perturbado. — O pingente foi uma maneira que encontrei para agradecer a você por ter me ajudado na aproximação com Sally. Jamais sonharia em oferecer pedras falsas a uma mulher. Seria pedir muito que ficasse com ela e a usasse?
— Você não entende. — Tentou outra vez. — Se não fosse real, eu a usaria com prazer. E usei, até que alguém...
— Até que alguém resolveu avaliar a pedra — interrompeu-a. — Não vejo que diferença isso faz. E, depois, sou bastante rico para me permitir oferecer-lhe uma jóia de valor.
— O problema não é esse. É que... — calou-se, incapaz de dizer o que sentia. — Não consigo explicar.
— Por acaso essa pessoa de quem você fala fez alguma insinuação? Neste caso, gostaria de conversar com ela e esclarecer bem as coisas!
— Não, não é isso — Helen se apressou a negar. — Por que não deixamos esse assunto para outro dia? Precisa ir falar com o maitre antes que se esgotem as mesas.
— Só irei se você concordar em fazer suas refeições comigo enquanto eu estiver a bordo. Quanto a esta noite, não prefere dar um passeio pela cidade?
Helen concordou, decidindo deixar o assunto do pingente para uma ocasião mais propícia. Ia ser bom variar um pouco. E saindo do navio ficaria livre de Clay Anderson.
Durante toda a semana, fez o possível para evitar Clay. Por sugestão de Helen, passaram a maior parte do dia em terra, descobrindo lugares que haviam passado despercebidos na visita anterior. Na Martinica, atravessaram a baía de barco e nadaram em uma praia que mais parecia um sonho. Naquele lugar, ouvindo o sussurro da brisa entre as folhas das palmeiras e o ruído das ondas quebrando na areia branca, sentiam-se como dois náufragos perdidos numa ilha deserta. Glenn chegou até a dizer que não seria nada mal passar o resto da vida num lugar como aquele, sem fazer absolutamente nada.
Disse a mesma coisa em St. Thomas, descansando preguiçosamente em uma das cadeiras estendidas ao longo da baía de Palm Tree, à sombra dos coqueiros. Não se perturbou com o comentário de Glenn.
— Não há nada que me impeça de me aposentar agora mesmo e passar o resto da minha vida aqui -comentou preguiçosamente. — Também posso viajar com você pelo mundo, acompanhando suas apresentações. Não pretendo prejudicar sua carreira, se nos casarmos. Pelo contrário, farei tudo que estiver ao meu alcance para ajudá-la.
— Isso está me parecendo tentativa de suborno — brincou Helen, tentando parecer descontraída.
— Pode dar o nome que quiser, desde que me diga sim.
— Glenn — murmurou com suavidade. — Quase não nos conhecemos. Como pode ter certeza de quer se casar comigo?
— Não sei, mas tive essa certeza dois dias depois de conhecê-la. Não acredita em amor à primeira vista?
— Foi assim com sua primeira esposa?
— Não tão depressa. — Hesitou um pouco antes de continuar — Não me interprete mal, mas de certa maneira você se parece muito com Cassie, quando ela tinha a sua idade. Não fisicamente, claro... é sua maneira de rir... o jeito como me olhar, às vezes.
— Amava-a muito, não é? — Helen sentia a garganta apertada.
— Sim, muito. — Ele estendeu a mão para ela, o olhar cheio de sinceridade. — E também a amo muito, Helen, acredite.
Glenn pareceu se tranqüilizar com a resposta de Helen, mas na verdade ela não sentia tanta convicção. O que Glenn procurava era alguém que tomasse o lugar da esposa que havia amado e perdido, e Helen não se julgava capaz de assumir a personalidade de outra pessoa. A proposta dele era tentadora, mas sem amor não daria certo. Gostava muito de Glenn e o respeitava como ser humano, mas não o amava... ainda não.
Quando Glenn foi para o hotel reservar uma mesa para o almoço, ela resolveu esperá-Io na piscina, divertindo-se com os iguanas que viviam livres entre as árvores. Estava observando um deles, que caminhava em direção a um grupo de pessoas, quando percebeu a presença de alguém: Clay, de short branco e camiseta de algodão. Ali parado, com o habitual sorriso irônico, era a própria imagem da dominação masculina. Helen sentiu a mesma agitação incontrolável que havia experimentado na noite em que ele esteve no camarote dela.
— Outra coincidência? — perguntou, estendendo instintivamente a mão para pegar a saída de praia. — Sem dúvida veio até aqui por acaso!
— Sempre venho aqui quando estou em St. Thomas, embora a maioria dos turistas vá para Morning Star ou Pineapple Beach. — Sentou-se numa cadeira ao lado dela, apanhou o maço de cigarros e acendeu um. — Como está indo?
— Como está indo o quê?
— O romance com Freeman... o que mais podia ser? Não desgrudaram um do outro desde que ele chegou.
— Isso é problema nosso — respondeu Helen, fria. Ao ver o sorriso de Clay, arrependeu-se imediatamente do que havia dito.
— Você é quem sabe. Imagino que não achou aconselhável informá-Io do seu passado...
De repente, Helen se sentiu perdida. Aparentemente, Clay não desistia e estava disposto a fazê-la pagar bem caro pelo mal que ele imaginava que ela causara ao casamento da irmã. Mesmo que fosse culpada, haveria razão para tanta sede de vingança?
— Você deve estar ansioso para fazer isso por mim, não é?
— Por que me preocupar! Você sabe ser bastante convincente quando quer. — Olhava para a fumaça do cigarro com expressão impiedosa. — Mas acho que sua vida com Freeman não vai ser tão fácil.
— Por quê?
— Recebi um telegrama de Ian esta manhã. — Encarou-a com firmeza. — Chega hoje à tarde. June ficou lá para recebê-lo. Estou deixando que ela resolva os próprios problemas, como você sugeriu.
— Espero que se reconciliem. — Helen fez o possível para permanecer fria e indiferente.
— Eu também. — Havia uma ameaça velada nas palavras dele. — Se você ficar longe deles, talvez haja uma chance.
— Se confia tão pouco em mim, por que não sugeriu que se encontrassem em outro lugar?
— Sugeri, mas Ian não concordou. Talvez não seja June o que o atraiu até aqui e vou descobrir a verdade. — Examinou-a de alto a baixo, devagar. — Seu namorado está demorando. Será que descobriu novos interesses lá em cima?
— Se sabe onde ele está é porque esteve nos observando — comentou Helen. — Por que não se aproximou enquanto ele estava aqui? Glenn ficaria encantado em vê-lo.
— Porque queria falar com você a sós. É, preciso reconhecer que tem o homem na palma da mão. Parece que você é tudo o que ele espera de uma mulher. E ele tem tudo o que você espera de um homem?
A maldade não passou despercebida a Helen.
— Tudo — respondeu com o coração acelerado.
— Quer dizer que já dormiram juntos?
— Não! — Contra a própria vontade, ela ficou vermelha. — Não dormimos.
— Então como sabe que ele é o homem certo para você? — Clay falava com ironia. — O dinheiro não é tudo, querida.
— Isso que você está falando também não!
— É sobre sexo que estou falando. Por que as mulheres acham tão difícil usar esta palavra? E não venha me dizer que sexo não é importante para você. Aposto como sou capaz de conseguir de você muito mais do que Freeman conseguiu até hoje.
Helen não duvidava; sabia muito bem que ele estava certo, mas jamais confessaria. Rodeada de tanta gente, sentiu-se segura para ironizar também.
— Por que não reclama seu lugar entre os grandes amantes do mundo, sr. Anderson?
— Cuidado com o que diz, este é um hotel respeitável. — Riu. — Se quer apostar, espere até voltarmos ao navio. — Levantou-se com um movimento ágil. — Se lhe interessa, Freeman vem vindo na nossa direção e parece estar com bastante pressa. E do tipo ciumento?
— Por que não fica e pergunta a ele?
— Quer que eu o tranquilize a nosso respeito? — Seu tom era cruel. — Diga a ele que tive um compromisso urgente, por isso não pude esperar.
Recostada na espreguiçadeira, Helen observou as costas musculosas que se afastavam, sentindo vontade de cravar uma faca exatamente no coração dele. Mas sabia que receberia outro golpe em troca. Clay era invencível, seguro de si, consciente do poder que exercia sobre ela. E agora, para complicar ainda mais as coisas, Ian! Daria qualquer coisa para estar de novo em Londres, segura, ao lado de Barney. Barney era o único homem que podia dar a ela a segurança de que precisava.
— Não era Anderson? — perguntou Glenn, se aproximando.
— Era. — Helen ajeitou os óculos de sol. — Precisava voltar para o navio.
— Não está indo na direção do porto.
— Talvez tenha esquecido alguma coisa na praia. — Tentou compor uma expressão alegre. — Conseguiu mesa?
— Consegui. Daqui a quinze minutos podemos ir.
— Então é melhor ir me trocar. Não posso entrar no restaurante de biquíni. — Levantou-se e pegou alguns objetos espalhados por ali. — Até já.
Se Glenn tinha estranhado a súbita saída de Clay, não demonstrou. Às cinco horas voltaram para o navio pela estrada que costeava o mar. Em cada curva descobriam uma paisagem mais bela que a anterior. O porto de Charlotte Amalie era o mais encantador de todos por onde o Andrômeda passava. Visto do mar, contra as colinas do interior da ilha e os edifícios coloridos, parecia um cartão postal. Pela terceira vez, Helen passava por ali, cada vez mais maravilhada com a beleza inigualável da entrada do porto, com as filas de iates ancorados na água azul.
— Lugar maravilhoso para se ter uma casa — comentou Glenn, quando se afastavam.
— E são só cinco horas de Nova York.
Helen admirava a facilidade com que os americanos falavam em tomar um avião. Qualquer lugar parecia estar a um passo deles. Se aceitasse casar com Glenn, poderia viajar pelo mundo todo, era só dizer que queria. Não precisaria mais economizar o ano todo para passar umas férias rápidas em algum lugar obscuro. O mundo de Glenn não se assemelhava em nada ao mundo em que ela havia sido criada, o mundo em que tinha vivido nos últimos três anos. Mas era esse mesmo o tipo de vida que desejava? Carreira à parte, o que mais queria da vida?
Viu Ian pela primeira vez na hora do jantar. Ele e June dividiam uma mesa com Clay e, mesmo à distância, dava para perceber que as diferenças entre o casal ainda não haviam sido resolvidas. June comia em silêncio, o rosto fechado, e Ian, pela expressão, parecia não saber se tinha valido a pena vir tão longe procurar a esposa. Helen não sabia o que ia sentir ao ver Ian, mas tinha criado uma certa expectativa. Agora, ali, a dez metros dele, parecia estar diante de um antigo conhecido. Ian parecia jovem demais, quase infantil, e aparentava uma fragilidade que ela jamais notara antes. Parecia impossível que, por causa daquele homem, tivesse fugido de tudo que amava.
— Está muito calada — disse Glenn, olhando para ela com a mesma expressão indecifrável com que a observara à tarde. — Não falou quase nada durante o jantar.
— Desculpe. — Sorriu, meio sem jeito. — As noites de carnaval sempre me deixam um pouco preocupada.
— Claro. Eu devia ter percebido. — Parecia aliviado. — É tão bom pensar que não preciso ir embora com os outros, amanhã! O que gostaria de fazer?
Helen preferia ficar no navio descansando, mas com Ian por ali não era uma boa idéia.
— Podíamos ir até Gold Coast — sugeriu, sabendo de antemão que ele concordaria com qualquer sugestão dela. Pelo menos era suficientemente longe e evitaria novo encontro com Clay. Analisou as feições maduras e compreensivas do companheiro e perguntou-se por que ainda hesitava. Glenn tinha tudo que a maioria das mulheres esperavam de um homem. Podia não amá-lo, mas gostava dele e achava que esse sentimento podia crescer com o tempo, desde que fosse cultivado. O que estava esperando?
Depois do que Helen disse sobre o espetáculo daquela noite, Glenn sugeriu que fossem dormir cedo. Ela não fez objeções, satisfeita por poder ficar a sós no camarote depois da apresentação. Clay tinha reservado uma mesa próxima do palco, para poder observar as reação de Ian quando Helen entrasse em cena. Ela mesma não soube quais foram as reações, pois não ousou olhar na direção deles. Mas o simples fato de saber que estavam presentes foi suficiente para perturbá-la. Os aplausos foram tão entusiásticos quanto nas noites anteriores, mas Helen sentia que não tinha dado o melhor de si.
Estava lendo uma revista quando bateram de leve na porta. Com o coração aos saltos, permaneceu imóvel por alguns minutos antes de atender.
— Quem é? — perguntou, sentindo uma mistura de alívio e medo ao ouvir a resposta.
— Sou eu, Ian. — A voz era baixa, mas perfeitamente audível. — Helen, preciso falar com você, por favor!
Helen abriu a porta e o encarou com frieza, sem sorrir.
— Está louco? O que quer de mim?
— Explicar... e pedir desculpas. — Tinha um ar humilde e infeliz. — Armei uma confusão dos diabos, não é?
— Parece. — As primeiras palavras foram secas, mas ele parecia tão arrependido que Helen adotou um tom mais suave. — Acho que não adianta falar sobre o assunto, especialmente a esta hora da noite. Já imaginou o que o seu cunhado vai dizer se nos encontrar juntos?
— Clay jamais gostou muito de mim, acho até que ficaria contente se June e eu rompêssemos. — Fez uma pausa e olhou para dentro do camarote. — Posso entrar por alguns minutos? Se não falar com alguém vou ficar louco!
Ela hesitou, mas concluiu que era melhor conversar com ele lá dentro, com a porta fechada, do que ali, parado na porta, na vista de todo mundo.
— Está bem, mas não demore — concordou Helen.
— Deve me achar um cafajeste — disse com franqueza quando se viram a sós. — Pelo que June disse, percebi que você mentiu a meu favor. Obrigado por isso, Helen.
— Não é nada. — Não conseguiu evitar a ironia. — De qualquer maneira, eu sendo a outra, a culpa devia mesmo cair sobre a minha cabeça, não? Vai ver você também admitiu que fui eu que o seduzi?
— Eu nunca disse isso!
— Nem precisava. Naquelas circunstâncias, quem iria pensar o contrário? Não, o lugar-comum do "eu errei, mas a tentação era forte" é muito mais convincente. — Sacudiu a cabeça quando ele tentou falar. — Esqueça, Ian. Nada disso tem sentido agora.
— É, tem razão. — Enfiou as mãos nos bolsos. — June quer que eu sofra um pouco mais, antes de me perdoar. Acho até que ela está sentindo prazer com tudo isso... obrigando-me a correr atrás dela.
— Não acha que ela tem razões bastante fortes?
— Não percebe? Esse foi sempre o maior problema entre nós, desde o princípio: June não consegue encarar as coisas com realismo. Eu não podia conversar sobre meus problemas, pois ela achava que eles se resolveriam sozinhos se eu parasse de me preocupar. Quando não dizia isso, sugeria que eu fosse pedir conselhos a Clay. Ela ainda está mais presa a ele do que a mim. Basta ver como veio correndo atrás dele desta vez...
— E ele, dá conselhos a ela?
— Não sei. Quando subi a bordo ela estava sozinha, e Clay só apareceu depois das seis. Talvez tenha decidido deixar que nós mesmos resolvêssemos nossos problemas. O pior de tudo é que não saímos da estaca zero! Mal trocamos algumas palavras durante o jantar. Acho que é desnecessário dizer que não estamos dormindo no mesmo camarote.
— Talvez não esteja usando a tática adequada. — Encarou-o com firmeza. — Você a ama, Ian.
— Sim. — A resposta veio sem hesitação. — Foi por isso que menti. Pensei que estaria tudo terminado, se dissesse a verdade a ela. Só que a mentira não ajudou muito...
— Não sei... afinal, estão juntos outra vez.
— No mesmo barco? — perguntou com ironia. Encostou-se à porta e olhou para ela por alguns instantes. — O que quis dizer quando mencionou táticas inadequadas? De que outro jeito eu podia agir?
Seu cunhado poderia aconselhá-lo, pensou Helen. Mas Clay devia estar se limitando a observar de fora o acerto de contas do casal.
— Bem, você tentou falar com ela, mas não conseguiu nada. Talvez a situação exija um pouco mais de ação.
— Como assim?
— Ora, lan! — exclamou, impaciente. — Mostre o que sente por ela. Beije-a!
— Tentei, esta manhã, mas ela não deixou.
— Caro! Ela não quer que você peça, quer que aja! — Talvez June não estivesse completamente errada; alguns conselhos de Clay realmente fariam bem a lan.
— Ora, vamos! O tempo dos machões já passou! A única forma de resolver o problema é usar a razão.
— E quem lhe disse que as mulheres são criaturas racionais? Geralmente nos apaixonamos pelas razões mais falsas.
— No caso daquele americano, as razões não devem ter sido falsas — Olhava para ela com curiosidade. — Segundo June, ele é milionário.
— Para quem se diz incapaz de conversar com a própria esposa você parece ter recuperado muito terreno em poucas horas! — Tentou sorrir.
— Acho que ela estava me testando, tentando descobrir como eu reagia. — Fez uma pausa. — Vai casar com ele, Helen?
— Não sei. E não é de mim que estamos falando. — Afastou o cabelo que caía na testa com um gesto cansado. — Ian, não posso lhe dizer o que deve fazer... ninguém pode. Disse o que penso, mas você vai ter que tomar sua própria decisão. Uma coisa é certa: não devia estar aqui comigo.
— Ótimo jeito de me dizer que vá embora. — Caminhou até a porta e ficou parado, meio sem jeito, segurando a maçaneta. — Precisava conversar com você a sós, nem que fosse só...
— Nem que fosse só para provar a você mesmo que não.significo mais nada em sua vida?
— Qualquer coisa assim, eu acho. — Olhou para ela com carinho. — Se quer saber, você é a melhor companheira que alguém pode ter.
— A melhor amiga do homem — ironizou. — Boa noite, Ian. E boa sorte!
— Obrigado. — Deu um meio-sorriso. — Vou precisar.
Quanto a ela, não era só de sorte que ia precisar, mas de muita coragem para enfrentar o resto da viagem.
A viagem a Porto Rico acabou não se realizando, pois Glenn caiu de cama, exigindo, inclusive, a presença de um médico.
— Um problema gástrico, nada mais — garantiu o médico. — Não é grave, mas aconselho-o a ficar em repouso. O calor lá fora pode agravar o estado dele.
— Deve ter sido a lagosta que comemos ontem que não me fez muito bem — comentou Glenn, desanimado, depois que o médico saiu. — Eu devia ter mais cuidado. Desculpe, Helen, não queria atrapalhar seus planos. Mas talvez hoje à tarde já esteja melhor e possamos ir até Boca de Cangrejos. Dizem que durante a maré baixa pode-se andar até as grutas de coral.
— Não vai a parte alguma hoje -disse Helen com firmeza. — O médico mandou você ficar na cama. Está muito abatido. Não dormiu bem esta noite?
— Não, não muito bem. — Era óbvio que ele ainda não se sentia bem. — Não se importa, mesmo, de ficar a bordo o dia todo?
— Claro que não. — Helen sentiu um leve sentimento de culpa ao perceber que Glenn tinha certeza de que ela não iria a parte alguma sem ele. — Preciso mesmo colocar em dia minha correspondência. — Inclinou-se e beijou-o de leve no rosto. — Agora durma um pouco. Mais tarde eu volto.
O navio estava quase deserto àquela hora. Helen entrou no restaurante e pediu seu desjejum, observando distraidamente o movimento no porto enquanto comia. Os passageiros em fim de viagem ainda não tinham começado a desembarcar, mas já se via uma pilha de malas prontas para serem enviadas ao aeroporto. Dentro de pouco tempo aquela pilha seria substituída por outra, que, por sua vez, desapareceria para dentro do navio, levadas pelos passageiros que embarcavam. Só faltava mesmo, para fazer transbordar a taça de Helen, Sally aparecer também, de repente.
Percebendo que alguém se aproximava, virou-se e deu de frente com Marian Lee, que se sentou ao lado dela.
— O milionário fugiu de você? Que horror! Mas não se preocupe, há muitos outros peixes no mar.
— Para todos — acrescentou Helen, ferina. Era a primeira vez que a dançarina ousava falar com ela desde o episódio do vestido rasgado. — O que é que você quer?
— De você? — A outra riu. — Aí é que está! Quanto acha que vale meu silêncio sobre o que aconteceu ontem à noite?
— Ontem à noite?
— Ainda me pergunta? — Deixou de lado a brincadeira e assumiu um tom frio e calculista. — Digamos que eu ia indo para meu camarote quando vi um certo cavalheiro entrando no seu.
— Então você o seguiu.
— Claro. Percebi que ele entrou, mas não o vi sair. Fui clara?
Helen procurou desesperadamente uma saída, mas não encontrou. Marian Lee agora estava com a faca e o queijo na mão. Era a palavra dela e de Ian contra a da dançarina, mas quem iria acreditar neles? Se Marian contasse tudo a J une, não haveria mais salvação para o casamento dos Marriot. Mesmo sabendo que não ia adiantar, tentou blefar: — Por que acha que seu silêncio vale alguma coisa?
— Porque o homem em questão é cunhado de Clay Anderson. E os vi juntos, esta manhã.
— Parece que você tem espiões por toda parte. — Helen pensou um momento. — Se o viu só uma vez, como pôde reconhecê-lo num corredor escuro?
— Não banque a espertinha. Se não era Ian Marriot, então quem era?
— Por que não pergunta a mim? — A pergunta pegou as duas de surpresa, embora tivesse sido feita em voz baixa. Clay tinha se aproximado sem ser visto, no meio de um grupo animado de turistas, e ouvira parte da conversa. Estava uniformizado, mas parecia ter esquecido que um dos seus deveres era tratar amavelmente os passageiros. Marian Lee passou a língua pelos lábios secos e tentou reconquistar o controle da situação.
— Muito bem, então pergunto a você.
— Já teve sua resposta.
Marian olhou para ele com o rosto vermelho de raiva.
— Mentira! Não era você e sabe muito bem disso!
— Por que eu ia mentir'!
— Para impedir que sua irmã saiba. Mas não vai adiantar... muito bem quem entrou naquele camarote, e não era você!
— Se duas pessoas jurarem que era, não vai conseguir provar o contrário. — Olhou para Helen em busca de concordância. — Estou certo?
Helen fez um sinal afirmativo com a cabeça, incapaz de abrir a boca, mas acabou respondendo quando viu o rosto contraído de Clay.
— Está.
Marian olhou de um para o outro, furiosa.
— Não vão se safar com tanta facilidade, juro. Eu...
— Acho que vamos. — Clay sorriu para despistar os ocupantes da outra mesa, que começavam a se interessar pela discussão.
— Tente dizer alguma coisa à minha irmã e expulso você deste navio num piscar de olhos! Agora suma daqui!
Marian foi, sem dizer uma palavra. Diante daquela atitude de fria autoconfiança, Helen achou que, no lugar de Marian, teria feito a mesma coisa. Mas não acreditava muito que a outra fosse deixar as coisas como estavam; só que era um problema para ser resolvido mais tarde. Agora, precisava enfrentar Clay. Desesperada, sem se importar com o que poderiam pensar os passageiros da mesa vizinha, olhou para ele.
— Clay...
— Vamos lá para fora. — Mantinha a voz baixa e o sorriso.
Helen levantou-se e foi com ele. Tentou até sorrir para o garçom que passou com o café que ela havia pedido alguns minutos antes.
— Desculpe, mudei de idéia.
Havia intensa atividade nos corredores, pessoas descendo e subindo, por isso Clay levou-a para o convés e mandou que ela entrasse em um dos botes salva-vidas, onde ficariam fora do alcance de olhares indiscretos.
— Gostaria de atirá-la no mar! — explodiu, quando ficaram a sós. — Você e aquele meu cunhado! Não agüentavam mais ficar longe um do outro, não é?
Helen deu um suspiro tremulo e tentou dizer alguma coisa coerente, o que no momento parecia quase impossível.
— Antes de começar a tirar conclusões apressadas, por que não me deixa explicar algumas coisas?
— A única coisa que me interessa é que Ian foi até seu camarote ontem à noite. Ou vai negar isso também?
— Não, ele foi até lá, mas não pelo motivo que você imagina.
— Quer que eu acredite que ele foi só para conversar?
— Foi exatamente o que ele fez. Como a esposa não quer ouvi-lo, e você não uma pessoa das mais acessíveis, eu era a única alternativa, entre os envolvidos.
— Envolvida é bem a palavra! Eu devia ter desconfiado que ele não conseguiria ficar longe de você. Você é como a chama de uma vela para a mariposa... e quase tão mortal!
— Clay, precisa me ouvir. — Tremia da cabeça aos pés, mas fazia o possível para não deixar que ele percebesse. — Ian ama sua irmã, não a mim. Ele...
— Disso eu nunca duvidei — interrompeu, áspero. — Se não amasse June não teria abandonado você. Um homem, mesmo quando ama uma mulher, não deixa de desejar outras, embora tente não colocar em prática esse desejo. Mas é difícil resistir quando há alguém forçando a situação... especialmente alguém como você. Não fui muito duro com ele da primeira vez. Mas, agora, se não se afastar de você, arrebento-o em pedacinhos! E, quanto a você... — calou-se, os maxilares contraídos. — Se quisesse, podia lhe dar uma surra aqui e agora, mas não me satisfaço só com isso. Você merece muito mais e vou providenciar para que receba a lição que está pedindo!
O homem diante de Helen era duro como o aço. Presa numa rede de mentiras, só via salvação em Ian. Mas será que, tendo mentido no princípio, concordaria em dizer a verdade agora, especialmente depois que o cunhado tivesse uma conversa com ele? Além disso, por que se preocupar com Clay? A opinião dele não ia mudar, mesmo que lan dissesse a verdade. Tomando consciência da própria dignidade, ergueu o rosto e encarou-o, cheia de orgulho.
— Vá para o inferno! E leve lan com você!
Esperava que ele fosse impedi-Ia de sair, mas estava enganada. Clay ficou parado onde estava e deixou que ela fosse embora. Só quando fechou a porta do camarote, onde ao menos se sentia segura e protegida, é que Helen notou o tremor das próprias pernas. As coisas tinham chegado a um ponto insustentável, impossível piorarem. Daquela última vez a raiva de Clay tinha se revelado muito mais profunda, não se limitando ao desejo físico de feri-Ia, mas indo muito mais além.
Uma coisa era certa: a vingança iria atingi-Ia no ponto mais sensível, e o ponto mais sensível, claro, era Glenn. O que Clay não sabia era que a reação de Glenn não faria muita diferença para Helen. Glenn, delicado, generoso, tinha todas as qualidades que ela considerava necessárias num homem digno de ser amado. Mas não o amava e decidiu que já era hora de encarar a realidade.
Permaneceu no camarote o resto da manhã, resistindo à tentação de escrever a Barney, abrindo o coração. Ele já tinha feito muito em ajudá-la a livrar-se de um problema, não era justo jogar em cima dele as conseqüências. Precisava resolver as dificuldades por ela mesma e da melhor forma possível, preparada para suportar também o desgosto que o episódio deixaria no seu coração. A primeira fuga tinha mostrado que fugir não era a melhor solução. Dali para a frente, encararia os obstáculos face a face, com realismo.
Depois do almoço, Helen foi até a suíte de Glenn e o encontrou sentado numa poltrona, de roupão, ainda não completamente recuperado.
Tinha planejado desarmar Clay, contando ela mesma a verdade sobre Ian. Mas, quando se viu diante dele, todo seu sangue-frio desapareceu. Talvez fosse melhor outra pessoa assumir essa tarefa, deixando para ela apenas as explicações subseqüentes. Detestava a idéia de magoar Glenn, mas não havia outro jeito. O único consolo era pensar que, afinal de contas, o casamento deles não teria dado certo, como SaIly já havia percebido, e como ele talvez se desse conta com o tempo. Só lamentava perder a amizade da garota.
Com algum esforço, convenceu Glenn a descansar até a noite, prometendo que se encontraria com ele no bar Connaught às sete horas. Ficou grata por ele não ter insistido para que ficasse mais um pouco, pois sabia que o esforço de fingir seria insuportável.
Apesar das atrações proporcionadas em terra, o convés Beach estava lotado. Procurou um cantinho sossegado onde pudesse se concentrar nas cartas que precisava escrever e começou o trabalho, esforçando-se para transmitir a alegre despreocupação de alguém que está usufruindo das delícias do Caribe, enquanto outros suportam o frio e a umidade do fim de ano em Londres.
Surpresa, percebeu que o Natal estava se aproximando rapidamente. Ali no navio os dias sempre iguais pareciam correr fora do tempo, mas dizia-se que a semana do Natal, a bordo do Andrômeda, era uma experiência inesquecível. Helen esperava que, naquela data, o pior já houvesse passado.
O mais desesperador era pensar que teria que ver Clay todos os dias, durante o tempo que ainda restava do contrato, sem poder fazer nada para quebrar a barreira que os separava. Parecia completamente fora de lógica amá-lo tanto, depois de tudo que havia se passado entre eles. Mas será que a lógica tinha necessariamente que acompanhar as emoções? Ele tinha feito o que achava certo em face das evidências que havia contra ela e que, sem dúvida, não eram nada recomendáveis. A falsidade dessas evidências só ficaria patente quando surgissem provas. Ian era o único culpado, mas mesmo ele tinha tido motivos para agir como agiu. Só a procurara na noite anterior porque estava desesperado. Ian não representava senão um dos obstáculos que a separavam irremediavelmente de Clay.
Às seis horas, quando se dirigia ao camarote, Helen viu Philip Osbourne conversando com uma linda ruiva à beira da piscina, bastante animado. Após a chegada de Glenn, o jovem oficial não tinha mais tentado aproximar-se dela, talvez por considerar a competição muito desigual. Aquele era o grande problema com os homens, pensou Helen: todo o interesse que demonstravam pelas mulheres limitava-se à parte física. Justamente por isso Barney significava tanto para ela, porque tinha sido um dos poucos homens que não olhou para ela como um cachorro olha para o osso. O interesse dele, felizmente, residia só nos lucros proporcionados pelas apresentações, embora jamais se recusasse a ajudá-la nas dificuldades. Não seria melhor amar alguém assim? Não viveria grandes paixões, mas também não sofreria grandes desilusões.
Antes de entrar no banho, deixou preparada sobre a cama a roupa que ia vestir em seguida. Só quando já estava debaixo do chuveiro é que se lembrou de que havia esquecido a porta aberta, mas concluiu que não havia problema, já que o camareiro não costumava aparecer àquela hora. Deliciada, deixou que a água morna escorresse sobre o corpo, eliminando o suor excessivo provocado pelo calor da tarde. Quando fechou a torneira, pensou ter ouvido um barulho no quarto, mas como o ruído não se repetiu continuou a se enxugar.
Retirou a touca de banho e passou as mãos pelo cabelo para armá-Io um pouco; em seguida vestiu um roupão e voltou para o quarto
O choque imobilizou-a na porta. Ficou olhando, com uma sensação de irrealidade, o homem deitado na cama, com as cobertas jogadas descuidadamente sobre as pernas, deixando à mostra o tronco nu e bronzeado. Sobre a cadeira, jogadas ao acaso, uma calça e uma camisa.
Naquele mesmo instante ouviu-se uma batida na porta. Clay sorriu com ironia, apoiou-se em um dos braços e gritou:
— Entre!
Virando lentamente a cabeça, atordoada, Helen encontrou o olhar incrédulo de Glenn, que observava a cena com o coração partido. Ela não encontrou forças para abrir a boca e tudo que fez foi assistir à transformação por que passou o rosto de Glenn: -a incredulidade foi substituída pela dor e, em seguida, pelo desprezo.
— Então é verdade. Tudo o que aquela mulher me disse era verdade! — O homem que estava diante de Helen não parecia o mesmo das últimas semanas. — Parece que não é só a voz que você tem para oferecer. Sua habilidade merece um Oscar! É uma pena que não tenha sido mais cuidadosa. Uma pena para você, é claro, mas uma sorte para mim. — Olhou para Clay, que assistia toda acena, imperturbável. — Ela é toda sua. Vou desembarcar em La Guaira.
O ruído brusco da porta que se fechava retirou Helen da paralisia que havia tomado conta dela, mas não foi suficiente para devolver-lhe a capacidade de raciocinar com clareza. Sentiu-se perdida, como num sonho mau. Quando olhou para Clay, não havia ódio nos seus olhos, apenas ausência completa de emoções.
— Você sabia que ele vinha aqui.
— Sabia. — Não se moveu, só olhou para ela como quem acaba de lavar a própria honra. — Vi Marian Lee sair do camarote dele agora a pouco e apostei comigo mesmo como, em poucos minutos, ele estaria aqui. Foi uma sorte você estar no banho quando entrei. Sorriu um sorriso divertido. — Isso me deu tempo suficiente para preparar a cena. Vai ser muito difícil para você sair desta enrascada!
Helen respirou fundo e sentiu que o atordoamento começava a passar.
— Precisava envolver Glenn? Que mal ele fez a você?
— Nenhum, mas o que fiz a ele foi um favor. Da próxima vez, ele vai pensar duas vezes antes de se envolver com uma mulher que tem quase a metade da idade dele. — Afastou o lençol e passou as pernas pela guarda da cama, estendendo o braço para pegar a roupa. Virou-se para olhar para ela enquanto se vestia. — Agora já sei o que é amnésia parcial.
Helen não reagiu; suas pernas, trêmulas demais, não conseguiam coordenar os movimentos. Sentia o peito oprimido e a cabeça latejando, mas não pretendia dar a ele o gosto de vê-la desmaiar. Nem naquele momento, nem nunca. Guardaria a mágoa para si mesma, nem que isso significasse a morte.
— Não tem nada a dizer? — De camisa na mão, ele a olhava com leve surpresa.
— Nada que você consiga entender. — Precisou de todo seu autocontrole para não trair o tremor da própria voz. — Podemos dar o caso por encerrado?
— Meu Deus, você não se entrega! — Agarrou a camisa com raiva, os músculos tensos. — É privilegiada em tudo: rosto, corpo, voz e... frieza... — calou-se, deixando que a camisa caísse no chão. — Bem, só existe um jeito de chegar até você!
— Não! — Protegeu-se instintivamente com os braços para impedi-lo de se aproximar. — Não ouse...
Não conseguiu dizer mais nada; foi envolvida nos braços dele e teve a boca fechada um beijo violento. Resistir não seria apenas inútil; o excitaria ainda mais. Rendeu-se porque não havia mais nada a fazer e deixou que suas emoções aflorassem. Quando ele finalmente se afastou para observar as reações de Helen, ela não fez nenhum movimento para afastar a cabeça. Ouviu a respiração ofegante de Clay e o silêncio pesado que se seguiu.
— Agora diga!
Não havia salvação; ele estava disposto a conseguir o que queria. Agarrou o queixo de Helen com raiva, impedindo-a de virar o rosto.
— Diga!
— Eu... não sei o que quer que eu diga. — Pronunciou cada palavra com indescritível esforço.
— Sabe sim. — A voz dele era baixa e cruel. — Apenas três palavrinhas: eu desejo você. E vai falar, agora ou mais tarde, mas vai falar. Desta vez não vai poder escapar. Decida-se logo ou eu digo por você... e não vai ser de uma forma delicada. — Obrigou-a a erguer o rosto para ele. — Olhe para mim!
Olhou para aqueles olhos duros como granito. O que ele estava fazendo com ela era pior do que qualquer castigo físico: obrigava-a a renunciar aos últimos vestígios de dignidade. E apesar de tudo ela o desejava...
— Eu o desejo...
Por um segundo ou dois, ele permaneceu imóvel, o rosto contraído, depois soltou-a e afastou-se. Vestiu a camisa, calçou os sapatos e, só depois de completamente vestido, se virou para ela.
— Agora podemos dar o caso por encerrado.
Helen ainda estava parada no mesmo lugar quando ouviu a porta fechar atrás dele. A barreira agora parecia intransponível.
Glenn partiu na manhã seguinte e Helen não tentou falar com ele, pois parecia inútil. Talvez até tivesse sido melhor as coisas acontecerem daquela forma. Ele estava ferido e desiludido e, por isso mesmo, o sofrimento duraria menos. Poderia também se consolar pensando que tinha tido sorte em escapar antes que fosse tarde demais. Mais tarde, naquela mesma manhã, Helen retirou o pingente do cofre-forte do navio e embrulhou-o com cuidado para devolvê-lo pelo correio. Um dos membros da tripulação encarregou-se de enviar a encomenda. A taxa de registro ficou uma fortuna, mas Helen se sentiu muito melhor depois de tudo resolvido. Agora tinha só um problema para atormentá-la.
Na noite anterior, esteve a ponto de alegar uma indisposição para que a dispensassem do espetáculo, mas um impulso mais forte que ela impediu-a de capitular. Entrou em cena com uma tranqüilidade e um senso profissional de espantar. Clay não tinha aparecido, mas sem dúvida devia estar por lá. Sem saber por que, quase que inconsciente, ela substituiu o último número, já ensaiado, por uma velha canção que estava reservando para a apresentação de terça-feira. Emprestou um sentimento especial a More than you know, sabendo, assim que terminou, que jamais voltaria a cantar aquela música, em parte porque não conseguiria repetir um desempenho como o daquela noite, em parte porque lhe traria lembranças que desejava esquecer .
A semana voou. Helen voltou a ocupar uma mesa para quatro, compartilhando-a agora com uma família de três pessoas. Os Benito tinham emigrado da Itália para os Estados Unidos vinte anos atrás e eram donos de uma cadeia de supermercados. Tinham uma filha, que breve iria se casar com um rapaz de uma das famílias mais influentes da cidade onde viviam, e um garoto de seis anos.
Na quarta-feira à noite Helen ficou com o menino para que o casal pudesse conhecer a vida noturna de Barbados. Jantaram cedo, por causa da criança, e depois Helen levou-o ao cinema. O filme, apropriado a todas as idades e a todas as nacionalidades, por ser basicamente visual, era falado em inglês, com legendas em castelhano. Sentada na escuridão do pequeno auditório, as gargalhadas fazendo vibrar as paredes, pela primeira vez em muitos dias ela conseguiu esquecer a depressão. Era bom ver o pequeno Michael gargalhar e imitar as caretas de Peter Sellers.
Ainda estava sorrindo quando as luzes se acenderam, mas o sorriso morreu imediatamente ao ver quem estava sentado duas fileiras atrás deles.
Clay envolvia os ombros da irmã com o braço, conduzindo-a na direção da saída. Não havia sinal de Ian. Encarou-a por um instante, depois desviou o olhar para a figurinha ao lado dela e voltou a fitá-la com expressão de surpresa. Helen podia até adivinhar o que ele estava pensando: alguém como ela não tinha o direito de assumir a responsabilidade de uma criança. Apertou com força a mão de Michael, que olhou para ela.
— Ainda não é hora de dormir, não é? — perguntou, esperançoso. — Vamos ao cabaré?
— Acho que não, Michael. — Helen afastou para deixar algumas pessoas passarem.
— Sua mãe disse que você devia ir para a cama às nove e meia e já está quase na hora. Podemos pedir que o camareiro leve um refrigerante para você no camarote.
Tomaram o elevador para o convés Boat, onde estavam instalados os Benito, e enquanto Michael se preparava para dormir Helen providenciou o refrigerante prometido. Leu uma história para ele e retirou com cuidado o ursinho que o menino tinha nos braços assim que ele fechou os olhos. Quando saiu, deixou-o dormindo profundamente.
Passava um pouco das dez horas quando subiu para o convés Connaught, encontrando o cabaré em plena animação. Não fazia sentido ficar vagando pelo navio, sem destino, até as dez e meia, hora em que pretendia voltar ao camarote de Michael para ver se estava tudo bem. Então resolveu entrar no clube, onde conseguiu encontrar um lugar vago para sentar. Minutos depois Philip Osbourne estava sentado ao lado dela.
— Olá! É a primeira vez que a vejo sozinha nestes últimos dias.
— É — O que mais podia dizer? — O navio parece cheio esta semana.
— Pensei que você estivesse achando o navio mais vazio desde La Guaira — respondeu, curioso. Fez uma pausa antes de acrescentar: — Ou foi você quem deu o fora nele? — Falava de Glenn é claro.
— Por que acha que rompemos? Ele precisou voltar por causa de um problema de trabalho.
— Ele deixou a passagem em aberto. Ninguém faz isso para depois mudar de idéia de repente. Não sem boas razões.
— Talvez ele tivesse boas razões — respondeu, sem olhar para ele.
— Clay?
Desta vez olhou para ele, o coração apertado.
— Philip...
— Eu sei, não tenho nada com isso, mas... — A hesitação foi breve. — É verdade que Freeman encontrou vocês dois juntos no camarote?
Será que todo mundo no navio sabia do incidente? , pensou Helen, arrasada. Analisou o rosto de Philip na semi-obscuridade, feliz por não ter ninguém por perto para ouvir a conversa. Podia tentar explicar o que havia acontecido, mas duvidava que ele fosse entender. Por que haveria de entender? E depois, não seria melhor deixar ele pensar que não valia a pena perder o sono por causa dela?
— Sim, é verdade. — Levantou-se, pousando a mão de leve no ombro dele.
— Desculpe, Philip.
Pronto, estava feito: mais um jovem desiludido. Mas ele se recuperaria, pensou Helen, desejando que o mesmo acontecesse com ela. O peso que tinha sobre a cabeça estava se tornando demasiado.
O corredor onde se localizava o camarote dos Benito estava em silêncio. Como esperava encontrar Michael dormindo tranquilamente, levou um choque ao deparar com a cama vazia. Uma rápida olhada no banheiro e no resto da cabine confirmou a ausência do menino. Entrou em pânico ao tomar consciência dos riscos que o garoto podia estar correndo. Se ele estivesse fingindo que dormia, na hora em que Helen foi embora, tinha tido mais de meia hora para fugir. Sabe Deus onde podia estar naquele momento! Pensou no convés superior, sem grades de proteção, na profundidade da água em torno do navio, e precisou se controlar para não cair numa crise de choro.
Pensou em subir, mas lembrou que o menino tinha desejado conhecer o cabaré e resolveu começar a busca por ali.
A orquestra tocava com animação, quando voltou ao Connaught, mas Philip já havia ido embora. Ficou parada na porta por alguns instantes, imaginando por onde devia começar. Os pais de Michael estariam de volta às onze, no máximo. Como iria encará-los se não tivesse encontrado o menino até .lá?
— Perdeu alguma coisa? — perguntou uma voz irônica, por trás dela. — Se pensava encontrar Philip, devo informá-la de que ele saiu logo depois de você.
Helen mal reparou na ironia, necessitada como estava de ajuda. Se alguém podia ser útil naquela situação, esse alguém era Clay.
— Perdi o pequeno Michael Benito — disse, desesperada. — Pensei que ele pudesse ter vindo até aqui para ver os músicos.
— Quando o viu pela última vez?
— Há quarenta, quarenta e cinco minutos, no máximo. Pensei que ele estivesse dormindo quando saí. Ele...
— Não precisa dar explicações. A que horas os pais vão voltar?
— Às onze, foi o que me disseram.
— Nesse caso é melhor que você volte ao camarote, para que não o encontrem vazio ao chegarem. Vou dar o alerta pelos alto-falantes. Se você tivesse alertado o escritório antes já podíamos ter montado um esquema de busca.
Helen desceu, já que não tinha outra alternativa. Clay estava certo: não fazia sentido uma única pessoa procurar um garoto num navio do tamanho do Andrômeda. Todos estando avisados, havia muito mais chances de encontrar o fujão, que podia estar inclusive em alguma parte inacessível aos passageiros. Tinha deixado que o pânico anulasse o bom senso, e Clay não a deixaria esquecer isso.
Alimentava leves esperanças de que Michael pudesse ter voltado ao camarote durante aquele tempo, mas teve a desilusão de encontrá-lo completamente vazio. Quanto tempo levaria uma busca pelo navio todo? Uma hora? Duas horas? Mais ainda? O que ia dizer aos Benito quando voltassem? Tinham deixado Michael sob a responsabilidade dela e ela falhara.
Os vinte minutos que se seguiram foram os mais longos da vida de Helen. Quando Clay finalmente apareceu carregando nos braços a pequena figura adormecida, seu alívio foi tão grande que praticamente arrancou Michael do colo dele para abraçar o menino com ternura.
— Michael, querido, onde esteve? — perguntou, ansiosa. — Ficamos tão preocupados!
— Queria ver Peter Sellers de novo — respondeu o garoto, tentando se livrar dos braços dela. — Estou com sono.
— Ele estava deitado lá no fundo do cinema, dormindo — explicou Clay, enquanto o menino se acomodava entre as cobertas, dormindo imediatamente. -Deve ter entrado depois que começou a segunda sessão.
Passos soaram no corredor e logo em seguida entraram os Benito, que se alarmaram ao ver Clay.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou a mãe, correndo os olhos da figura adormecida do filho para Clay e Helen. — Michael teve pesadelos?
Clay sorriu e deu de ombros, procurando demonstrar despreocupação.
— Ele quis ver outra vez o filme que havia assistido antes com a srta. Gaynor e dormiu no cinema. Acabamos de trazê-lo de volta.
— Ah, menino levado! — Parecia mais aborrecida com o menino que alarmada com as possíveis conseqüências do pequeno passeio.
— Não devíamos deixá-lo sozinho, Tony. Ele sempre arruma confusão.
— Si — concordou o marido, sem muita preocupação. — Mas um garoto sadio tem mesmo que se meter em encrencas, às vezes.
— Sorriu para Helen sem nenhum sinal de censura. — Foi muito bondosa conosco. Amanhã de manhã, Michael vai lhe pedir desculpas pelo aborrecimento.
Poucos minutos depois, Helen caminhava pelo corredor ao lado de Clay. Só quando chegaram ao vestíbulo onde ficavam os elevadores é que ela se apoiou a uma coluna e deu um profundo suspiro de alívio.
— Esse foi um dos piores momentos que passei na vida. Graças a Deus tudo acabou bem! — Fez um esforço para olhar para o homem parado diante dela. — Ainda não agradeci a você. Eu não o teria encontrado a tempo.
— Talvez nem o tivesse encontrado, pelo menos não com vida. Quando se sentir inclinada a representar a boazinha outra vez, escolha pessoas que possam cuidar de si mesmas.
Raiva e mágoa misturadas provocaram uma reação violenta nela.
— Quem, por exemplo? Você? Tenho coisas melhores para fazer!
— Tenho certeza que sim. — Sua voz soava perigosamente suave. — Mas não inclua o jovem Philip nos seus planos.
— Pare de chamá-Io assim. Ele não é um menino!
— Em relação a você, ele não passa disso. Não vou ficar parado, vendo o rapaz ser destruído, só porque você quer coisa melhor para fazer.
— Está pretendendo fazer a mesma coisa que fez com Glenn? Talvez não seja tão fácil como você imagina.
— Nem tanto. Philip tem princípios e se afastaria assim que soubesse dos motivos que levaram Freeman a deixar o navio.
— Ele já sabe... o navio inteiro sabe! Pena você não ter parado um pouco para pensar na sua reputação enquanto se preocupava em destruir a minha!
— Minha reputação não vai sofrer nenhum abalo. — Riu com desprezo. — Esse é um privilégio masculino que você não vai conseguir derrubar de uma hora para outra.
— Sua irmã pode não concordar com você.
— Está pensando em contar a ela? — Um brilho passou pelos olhos dele.
A raiva e a vontade de feri-lo morreram de repente, substituídas por um desgosto enorme.
— Não, não estou. Não acha que esse caso já foi longe demais?
— Não. Não enquanto minha irmã e o marido continuarem separados.
— Talvez a culpa seja tanto sua quanto minha.
— Minha culpa?
— É. — Tentou manter a calma. —June tem as mesmas idéias que você a respeito do relacionamento com outra pessoa. Ian é que tem que fazer sempre as concessões. Será que ele também não tem direito a um pouco de orgulho?
— Tanto direito quanto você. — Aproximou-se com olhos ameaçadores.
— Clay, não! — Tentou desesperadamente livrar-se dele. — Pode aparecer alguém!
— E daí? Não acabou de dizer que todo o navio já sabe?
— A tripulação, não os passageiros. — As mãos dele pareciam de ferro, impedindo qualquer movimento. Desesperada, pensou que se ele a beijasse naquele momento não teria forças para reagir. Já não conseguia mais lutar contra ninguém. — Pense na reputação da companhia — argumentou, percebendo que havia vencido quando ele a soltou.
— Tem razão. Não vale a pena. — Com um sorriso irônico nos lábios, observou por alguns segundos o rosto contraído de Helen; depois se afastou. — Vamos esperar por um momento de maior intimidade.
Só depois de vê-Io dobrar a primeira curva da escada é que ela encontrou forças para se mover. Será que aquilo não ia terminar nunca?
Sábado, em San Juan, aconteceu a rotineira troca de passageiros, os recém-chegados facilmente identificáveis pela brancura da pele. No domingo à tarde, com mais uma noite e uma manhã inteira de viagem, a maioria dos novos hóspedes do Andrômeda reunia-se em pequenos grupos na beira das piscinas.
Sem vontade de conversar, Helen procurou um canto isolado onde pudesse pensar. Foi lá que Ian a encontrou durante a tarde. Parecia tão desconsolado que ela não teve coragem de negar quando ele pediu para conversarem um pouco.
— As coisas não melhoraram? -perguntou, vendo que Ian não se animava de modo algum.
— Nem acho que vão melhorar — respondeu, desanimado. — Não estou conseguindo reconquistar June. O pior é que preciso voltar para casa. Tirei uma semana de licença e já terminou o prazo. Não posso perder meu emprego por causa de June.
— Se perder, arranja outro — disse Helen, tentando mostrar que o casamento deles era mais importante que um simples emprego.
Ele sorriu, meio triste.
— Não é assim tão fácil. Só consegui o atual por causa da minha ligação com Clay.
Helen sentiu um choque, como sempre que ouvia aquele nome.
— Ele é assim tão influente?
— Claro! E acho que esse foi meu maior erro: devia ter continuado no meu antigo trabalho, mesmo sem ganhar o suficiente para dar a June a vida a que estava acostumada. Só aceitei a oferta de Clay porque tinha medo de perdê-la. Sem dúvida, perdi uma oportunidade de avaliar a profundidade do amor dela por mim.
— Você falou sobre a vida que ela estava a acostumada — comentou, espantada.
— Com o seu salário não podia dar a ela um bom padrão de vida? Clay tem um excelente emprego, mas não acredito que ganhasse o suficiente para que os dois tivessem um padrão de vida muito elevado, durante esses anos todos.
Foi a vez de Ian demonstrar surpresa.
— Quer dizer que não sabe?
— Não sabe o quê?
— Que a Connaught Line é de Clay... ou pelo menos a maior parte.
— Não... — Olhava para ele, incrédula. — Se isso é verdade, por que ele trabalha aqui no navio?
— Talvez ele goste de desafios. Ou, talvez, dirigir e controlar pessoas seja uma necessidade dele.
— Como dirigiu você e June enquanto estavam casados?
— E antes também. — Encontrou o olhar dela e ficou meio sem graça. — Está bem, admito que muitas vezes me acomodei e deixei que ele resolvesse nossos problemas. Parecia mais cômodo.
— Só que June não aprendeu a respeitá-lo — disse Helen, suave.
— Claro que não. Nas horas de dificuldade, era sempre a ele que recorria... e acho que vai continuar recorrendo.
— Isso depende de você. — Helen ainda não tinha se recuperado do choque provocado pela revelação e precisou fazer um esforço muito grande para trazer a atenção de volta a Ian. — Concordo com o que você disse: precisa provar a June que é capaz de viver sua vida sem o auxílio do irmão dela. Talvez, depois, ela consiga respeitá-Io como respeita Clay.
— Uma coisa é dizer, outra é fazer. E pensar que me senti atraído por você exatamente porque valorizava meu ego!
— E isso era tudo que você queria. — Fez uma afirmação, não uma pergunta.
— Deve ter sido. — Ficou em silêncio por uns instantes. — Desculpe se atrapalhei sua vida.
— Não se preocupe. — Por nada no mundo ia permitir que ele percebesse a extensão do dano que havia causado a ela. Mudou depressa de assunto. — Onde está June agora?
— No camarote. Tinha que escrever umas cartas. — Pareceu indeciso. — Acha que eu devia tentar outra vez?
Mas Helen já estava cansada daquela conversa. Levantou-se da espreguiçadeira e apanhou a saída de banho.
— Você é quem sabe. Vou descer para tomar um chá.
O chá costumava ser servido entre as quatro e as quatro e meia, no maior dos dois salões, animado por uma dupla que cantava e tocava violão. Helen encontrou uma mesa para dois, perto da porta, e sentou, aceitando com um sorriso um pedaço de torta oferecido pelo garçom. Às quatro e vinte, o salão já estava praticamente lotado. Estava procurando o garçom com o olhar quando alguém se aproximou e perguntou se podia sentar na mesma mesa.
A mulher devia ter uns cinqüenta e poucos anos, muito bem penteada e maquilada, e vestia um conjunto aparentemente muito caro. Devia ter sido incrivelmente bonita, quando jovem, e ainda guardava a beleza dos traços. Sorriu, amistosa.
— Olá! Sou Eva Benson, de Miami. Você é Helen Gaynor, não é? Vi sua fotografia quando embarquei, ontem. Vai cantar esta noite?
— Vou sim. — Sorriu também. — Está viajando sozinha?
— Estou. — Uma leve sombra passou pelos olhos inteligentes da mulher. — Conheci meu segundo marido numa dessas viagens, por isso faço a mesma peregrinação todos os anos na esperança de encontrar o terceiro. Não que isso tenha muita importância... afinal, não existe outro Wally... — calou-se, examinando o rosto e o cabelo de Helen com franca admiração. — Eles lhe oferecem proteção? Bonita como é, deve ter toda a tripulação atrás de você.
Helen riu.
— Não notei. Sou apenas uma na multidão.
— De jeito nenhum. Como artista, você se destacaria mesmo que fosse feia como o diabo. — Falava com objetividade, quase em tom comercial. — O que é que canta?
— Músicas românticas e blues. Às vezes algumas baladas.
— Soul?
— Soul... alma... ainda estava lá, da última vez que olhei.
Foi a vez da americana rir.
— Gosto de você. Ao menos sabe cuidar de você mesma.
— Também sei cantar.
— Quanto a isso, prefiro deixar minha opinião para mais tarde. Já viajei o suficiente para não ter tanta certeza assim de que os espetáculos de bordo sejam sempre de primeira classe. Metade dos artistas que se apresentam aqui não teriam sequer uma oportunidade lá na América.
— Inclusive os artistas da Connaught Line?
— Sem dúvida. Sabia que uma boa voz dificilmente acompanha as pessoas bonitas? Não sei por que, mas é verdade. — Fez uma pausa e sorriu, provocativa. — Sem ofensa para você, é claro.
— Não me ofendi. — Helen falava a verdade. Sabia que não havia nada de pessoal nas palavras da mulher, que apenas estava dizendo o que pensava. E, aparentemente, pensava com muita objetividade.
— Vou esperar com ansiedade o seu veredicto, amanhã.
— Encara minhas palavras como um desafio? Ótimo. Não suporto pessoas que fogem do campo de batalha ao primeiro tiro.
— Disso ninguém pode acusar nossa vocalista — disse Clay, aproximando-se. Não olhou para Helen e dirigiu a Eva um sorriso simpático. — Prazer em vê-Ia de novo, sra. Benson. Desculpe não estar aqui para recebê-Ia ontem à noite, mas tive que acompanhar um grupo num passeio.
— Se soubesse, teria ido com vocês — respondeu a americana. — Onde é que foram? Ao Tropicoro?
— E onde mais podia ser? Programei uma excursão noturna para Barbados. Gostaria de ir conosco?
— Claro! — Olhou para Helen. — Também vai?
— A srta. Gaynor tem outros compromissos — disse Clay, antes que Helen pudesse responder. — Ela gosta de cuidar de crianças, entre outras coisas. — A mudança do seu tom de voz foi muito sutil, mas não passaria despercebida a uma pessoa observadora. — Espero que não tenha tomado muito sol esta tarde. Escolheu um mau lugar. — Dirigiu a Eva outro dos seus sorrisos encantadores e afastou-se.
Ao erguer os olhos, Helen encontrou o olhar curioso da sra. Benson.
— O que há entre você e nosso diretor de bordo? Senti conflito no ar.
— Não nos damos muito bem.
— Até um cego percebe isso. — A mulher se arrependeu do que disse e fez um gesto impaciente. — Sei que não é da minha conta, mas não consigo perder o mau hábito de me intrometer na vida alheia. — Sorriu. — Os problemas das outras pessoas sempre me pareceram mais interessantes que os meus.
Helen não se aborreceu com o comentário, pois sob a aparente rudeza de Eva havia um verdadeiro interesse humano.
— É uma longa história. — Resolveu contar a verdade, pois sabia que Eva acabaria mesmo sabendo por outras pessoas. — Mais um pouco de chá, sra. Benson?
— Não, obrigada. E o meu nome é Eva. — Fez uma pausa. — Reparei que costuma sentar em mesa para dois, no restaurante. Alguma razão especial?
— Nenhuma, só não quero me dar ao trabalho de mudar. — Helen não via razão para explicar por que ocupava aquela mesa. Quase sem perceber, concordou com a sugestão sutil contida nas palavras da mulher. — Podemos dividir a mesa, se não gosta da sua.
— Não há nada de errado com minha mesa, mas não me desagrada a idéia de ficar livre de uma dupla de hipocondríacas. Obrigada.
— Quando me conhecer melhor talvez chegue à conclusão que não fez uma boa troca.
— Vou arriscar. Se não der certo, posso mudar outra vez. A que horas entra em cena hoje à noite?
— Às dez.
— Então não vou me preocupar em ir antes.
— Não quer ver o resto do espetáculo?
— As dançarinas me deixam com alergia e os mágicos me dão sono.
— Os nossos não. São especiais.
— Vou confiar na sua palavra, então. — Afastou a cadeira e levantou-se, cheia de energia. — Agora vou para o camarote... tenho algumas cartas para escrever. Se não as enviar hoje, é possível que eu acabe chegando antes delas. Até o café da manhã!
As refeições agora' seriam mais divertidas, pensou Helen, satisfeita. Eva Benson era uma mulher de opiniões fortes e não se acanhava em expressá-las, o que provocava certa apreensão em Helen no que se referia à apresentação daquela noite. Mas por que se preocupar com a opinião da sra. Benson? Mesmo que ela não gostasse do seu desempenho, outras pessoas gostavam, e era isso que importava.
Os problemas começaram cedo, naquela noite, e o primeiro foi um defeito no sistema de som da boate, que os eletricistas não conseguiram descobrir. Com os dois microfones emitindo ruídos e chiados, quando não estavam completamente mudos, o espetáculo prometia um desenrolar bastante imprevisível. Helen respirou aliviada quando recebeu a notícia de que o problema havia sido resolvido, embora ninguém garantisse que o defeito não se repetiria mais tarde. O salão, muito grande, não possuía boa acústica, o que tornava praticamente impossível a voz de qualquer cantor alcançar o fundo do auditório, se não estivesse usando microfone.
Kreenia conseguiu desempenhar seu ato sem problemas, embora a ausência de microfones não fizesse nenhuma diferença para ele, já que seu número era basicamente visual. Helen cantou o primeiro número normalmente, mas logo no início do segundo o sistema de som voltou, a apresentar defeito: Terminar o número ritmado e rápido sem o auxílio do microfone exigiu multo esforço, mas foi recompensada por um aplauso encorajador. Podia perfeitamente dar por encerrada sua parte, e ninguém poderia censurá-la, mas não era mulher de admitir uma derrota. Conversou com James Keen e mudou todo o repertório, dando preferência às baladas, músicas mais lentas; que exigiam mais voz que volume, utilizando toda a técnica aprendida nos últimos anos a fim de fazer sua voz chegar a todas as partes do salão.
Quando terminou, o aplauso ensurdecedor chegou a surpreendê-la. O espetáculo da noite podia não ter rendido tudo que o público esperava, mas ninguém parecia ter motivos para queixa. Cansada e sem muito ânimo, Helen voltou ao camarim, onde trocou o vestido por outro que havia usado no jantar. Decidiu ir logo para a cama, pois não via motivo para esticar a noite.
Ao abrir a porta para sair, encontrou o camareiro, que trazia um bilhete de Eva Benson, convidando-a para encontrá-la no bar. Pensou em alegar uma desculpa qualquer e não ir, mas acabou decidindo aceitar o convite.
A mesa indicada ficava atrás de uma coluna, e só quando se aproximou Helen percebeu uma terceira cadeira, ocupada pela última pessoa que gostaria de encontrar naquela noite. Eva Benson não parecia nem um pouco arrependida da pequena maldade.
— Parabéns! — exclamou Eva. — Foi um espetáculo e tanto. Você é muito boa, menina!
— Obrigada. — Apesar de tudo, Helen ficou reconfortada com o elogio. Encarou Clay com alma nova, fazendo o possível para não deixar suas emoções transparecerem. — Não sabia que íamos ter companhia.
— Nem eu sabia — repetiu Clay, sem emoção. Olhou para Eva. — lmporta-se que as deixe comemorar sozinhas?
— Claro que me importo — respondeu Eva com firmeza. — Como oficial do navio, é sua obrigação entreter uma velha freguesa. — Deu um tapinha na mão de Helen, sorrindo com malícia. — Tome um pouco de champanhe e esqueça a guerra. A safra é boa, aproveite.
— Acho que não seria capaz de distinguir uma boa safra de outra — respondeu Helen, observando o garçom que a servia. Preferia estar em qualquer lugar do mundo, menos naquela mesa, diante do olhar penetrante de Clay. Ele a tinha visto com lan, à tarde, o que piorava bastante a situação. Maldito lan! Malditas todas as pessoas! Por que não a deixavam em paz?
— E o que é que estamos celebrando? Quando encomendaram a festa, nem sequer sabiam se minha apresentação ia merecer comemoração.
— Meu aniversário. E meu terceiro cruzeiro a bordo do Andrômeda desde que meu Wally se foi. Não é razão suficiente? — Sua voz tremia um pouco. — Sabe, vocês me lembram muito um casal que conheci em Chicago. Os dois acabaram se casando e foram muito felizes.
Foi Clay quem respondeu, os olhos presos no rosto vermelho de Helen.
— Não um com o outro, espero.
— Você é um tremendo cínico, sabia? — Eva deu uma gargalhada. — Tire a menina para dançar e deixe de dizer bobagens. Estarei aqui quando voltarem.
Por um instante pareceu que ele não ia se mover; depois levantou-se devagar.
— Vamos?
Helen pensou em recusar, mas achou que ele não ia aceitar uma recusa. Eva tinha planejado tudo muito bem, pensou, com um pouco de raiva enquanto desciam os degraus que levavam à pista de dança. Será que ela não conseguia deixar de se intrometer na vida alheia?
A pista estava tão cheia, que dançar separado era praticamente impossível. Clay, pelo menos, não fez o menor esforço nesse sentido, envolvendo-a nos braços com firmeza.
— Tente fingir que está se divertindo — murmurou no ouvido dela. — Não quer alimentar as fofocas, quer?
— As fofocas já alimentadas me preocupam mais.
— Por quê? Por causa da sua preciosa reputação? Parece que já foi por água abaixo algum tempo atrás.
— Também acho. — Mantinha o corpo rígido, o rosto sério. — Já dançamos. Agora podemos voltar para a mesa? Eva não pode fazer milagres.
— Pode sim, e você tem consciência disso. — Não diminuiu a pressão dos braços em torno da cintura dela. — Fez um jogo perfeito. Como conseguiu? Ela dificilmente aceita aproximações.
— Não sei do que você está falando. Para sua informação, foi ela quem me procurou, e não. eu a ela. Eu devia saber quem ela é?
— Se não sabe, uma pena... — Calou-se e analisou-a com atenção. — Já ouviu falar na cadeia Benson?
Helen sentiu o coração dar um salto dentro do peito. Claro que tinha ouvido falar... todos no mundo dos espetáculos sabiam que Benson era um cabaré de alta classe, com pelo menos seis casas espalhadas pelas principais cidades dos Estados Unidos. Os artistas contratados para uma das casas asseguravam seus contratos com todas as outras, o que representava no mínimo quatro meses de trabalho. E Eva era a viúva de Wallace Benson, a mulher que vinha dirigindo as casas nos últimos dois anos, sem deixar que os lucros caíssem.
— Não tinha ligado os dois nomes, acredite.
— Também não tem importância. Acho que você vai receber uma proposta antes do fim da semana. Gostaria de ir para os Estados Unidos?
— Como posso saber antes de ir? — Queria desesperadamente convencê-lo da ausência de premeditação, mas não sabia como. — Se é que vou. Vai tentar interferir nisso também?
— Não adiantaria. Para Eva Benson o que importa é a competência profissional. Ela contrataria você mesmo que fosse amante de todos os homens do navio.
— Pena que você não tenha influência sobre ela.
— Meu envolvimento era pessoal, lembra-se? E ainda é. Disse a você que deixasse lan em paz.
— Tudo que fizemos foi conversar. Você o trata como um marginal e sua irmã não o deixa nem atravessar a porta do camarote dela. O que queria que ele fizesse?
— Esperava — respondeu com raiva — que ele mantivesse os problemas dele em família. Se fosse um homem de verdade, não precisaria pedir conselhos sobre como lidar com a mulher!
— Infelizmente, ele não tem o seu know-how com as mulheres. Talvez seja falta de experiência, não acha?
A música cessou e Clay olhou para ela durante um longo tempo antes de soltá-Ia.
— Vamos para a mesa.
— Divertiram-se? — perguntou Eva, observando-os, atenta.
— Claro. — Clay afastou a cadeira para Helen, mas não fez menção de sentar.
— Desculpem, mas o dever me chama. Obrigado pela champanhe.
— Às ordens. Precisamos tomar outro antes de eu ir embora... nós três.
Caiu um pesado silêncio entre elas depois que Clay foi embora. Helen brincava com o copo, pouco à vontade diante do olhar penetrante da mulher.
— Você está apaixonada por ele, não está? — perguntou Eva em tom de afirmação.
— E ele por você, se não estou enganada. Então qual é o problema?
— Está enganada. — De repente Helen não conseguiu mais se controlar. Ficou em pé, as pernas trêmulas, consciente de que podia estar jogando pela janela a grande chance da sua vida, e pediu licença para ir embora. — Desculpe, preciso de um pouco de ar fresco.
Tomou o elevador para o convés Boat, completamente deserto àquela hora, a não ser por um casal que conversava ao lado da murada, a alguma distância. Procurou uma cadeira e sentou-se, deixando que a brisa fresca da noite lhe batesse no rosto, acalmando-a. A noite estava clara e tranqüila e, no mar, quase não havia ondas, só o brilho da lua sobre as águas. Em algum lugar mais adiante, oculta no horizonte, estavam acosta da Venezuela e o porto de La Guaira. Helen já tinha perdido a conta das vezes em que haviam passado por ali, como se em vez de semanas fossem meses.
Um outro casal saiu da mesma porta por onde ela havia passado poucos minutos atrás e veio na direção dela. Quando percebeu de quem se tratava, não tinha mais tempo para se levantar e ir embora sem ser vista.
Helen virou a cabeça em direção ao mar e esperou que os Marriot passassem, mas não imaginou que eles fossem se sentar quase ao lado dela, sem vê-Ia. Falavam em voz baixa e mesmo assim dava para ver que estavam discutindo. June balançava a cabeça em desacordo a tudo que Ian dizia, parecendo não querer ceder. De repente, Ian exaltou-se e foi embora pelo mesmo caminho que havia percorrido ao chegar, deixando-a sozinha.
Pelo canto dos olhos, Helen percebeu que June ia até a amurada e se inclinava sobre ela, olhando para o mar lá embaixo. Pela sua atitude, devia estar chorando. Como não havia outra alternativa, resolveu continuar ali sentada até que a moça decidisse voltar para dentro, à procura do marido. Ao que tudo indicava, Ian ainda não tinha conseguido convencer a esposa e ficou triste por eles.
O grito de terror a pegou desprevenida, fazendo-a saltar na cadeira. Percebeu que algo caía ao mar, desaparecendo em seguida. No lugar onde June tinha estado, havia agora apenas o vazio.
Helen correu instintivamente até a bóia salva-vidas mais próxima, retirando-a do gancho com uma força provinda do desespero. Teve a impressão de que uma pessoa correu na direção dela enquanto tirava as sandálias e subia na amurada, de onde saltou um segundo depois, a mente em branco, como um autômato.
Para ela, a sensação foi de estar caindo em câmara lenta, mas o impacto com a água foi doloroso, seguido de um mergulho que parecia não ter retorno dentro da escuridão do mar. Quando finalmente conseguiu voltar à superfície, tossindo e lutando por um pouco de ar, viu o vulto do navio que se afastava com uma velocidade assustadora. Tentou se livrar da roupa que havia colado e.m seu corpo, impedindo os movimentos, puxando-a para baixo outra vez. A bóia flutuava, muito branca, a pouca distância, mas Helen custou a alcançá-la.
Agarrou-se a ela, agradecida, e percorreu o mar com os olhos à procura de June. Demorou um pouco para avistar a mancha branca flutuando alguns metros adiante, os braços se movendo já quase sem forças. Remando um pouco, nadando um pouco, conseguiu chegar até ela, apesar do tecido que lhe prendia as pernas. A outra moça estava semi-inconsciente, o rosto pálido, a não ser por uma mancha vermelha na testa.
Helen agarrou-a com uma das mãos, enquanto segurava a bóia com a outra, sabendo que jamais reuniria forças para trazer June para dentro. O navio continuava a se afastar, com as luzes brilhando, indiferente à sorte das duas mulheres, sem ao menos diminuir a velocidade. Tentou evitar o pânico pensando que o outro casal tinha assistido à cena e, sem dúvida, devia ter pedido socorro. Claro que seriam salvas, precisava acreditar nisso! Mas que o auxílio viesse rápido, pois já não agüentava mais o peso da outra e sentia pontadas violentas no ombro.
Com um movimento espasmódico de June, Helen foi arrastada para debaixo d'água, só conseguindo voltar com terrível esforço, tossindo e mal conseguindo controlar o medo. Iam morrer ali, ela e June. Iam se afogar. Poderia se salvar se soltasse June, mas não permitiu que a idéia fosse além disso. Houve um momento em que até a dor que sentia nos músculos começou a desaparecer, anestesiada por uma espécie de inconsciência.
Jamais conseguiu saber quanto tempo ficaram ali na água antes que um bote finalmente as encontrasse. O mar e o céu eram uma só mancha escura quando Helen ouviu os sons que se aproximavam. O peso de June foi retirado dos seus braços e levado para cima, e, pouco depois, sentiu-se alçada também. Deitaram-na no fundo do bote e a cobriram com cobertores, tudo isso em meio a vozes de conforto. Uma mancha branca inclinou-se sobre June por uns minutos e depois veio em sua direção, afastando-lhe uma mecha de cabelos do rosto pálido. Nunca, em todo o tempo em que se conheciam, Clay tinha tido um gesto tão terno como aquele.
— Como está se sentindo? — perguntou ele.
— Enjoada — respondeu, surpresa com a força da própria voz. — June está bem?
— A não ser por um pequeno ferimento, está ótima. Obrigado, Helen. — Falava com emoção, o rosto cheio de ansiedade. — Não tente falar; terá muito tempo para isso depois.
De repente Helen começou a tremer outra vez, descontroladamente, sentindo que o mundo se transformava numa mancha indistinta. Como num sonho, viu-se alçada ao navio e estendida em uma cadeira que dois homens da tripulação conduziram pela multidão que se reunira para assistir ao drama. Daí a pouco percebeu que lan se aproximava da mulher, inclinando-se sobre ela com amoroso desespero. June agarrou-se a ele, ainda muito fraca para perceber o que estava se passando, mas reconfortada pelos braços familiares do marido.
A chegada das macas, trazidas pelos enfermeiros, dispersou um pouco a multidão de curiosos. Helen ouviu vagamente alguém fazer comentários sobre o episódio, louvando a maneira dela se arriscar pela outra moça. Quando os homens se aproximaram com a maca, sacudiu a cabeça e levantou-se com as pernas trêmulas.
— Estou bem — afirmou. — Prefiro descer para minha cabine e tomar um banho quente.
— Eu tomo conta dela, Jeff. — Clay apareceu na frente dela. — Acho que minha irmã é a única que precisa de cuidados médicos. — Certo de que ninguém discutiria sua opinião, passou pelos enfermeiros e tomou Helen nos braços.
— Afastem-se — ordenou, seco, às pessoas que ainda se amontoavam em redor deles. — Já está tudo acabado.
Antes que Helen pudesse protestar já estavam lá dentro à espera do elevador.
— Deixe-me descer, Clay. Prefiro ir andando!
— Eu sei. — Tinha a voz mais suave e, no rosto, uma expressão de tristeza. — Prefere qualquer coisa a permitir que eu a toque. Não seja agressiva comigo, Helen, não é hora para isso.
Levaram exatamente três minutos para alcançar a abençoada privacidade do camarote. Quando Clay a colocou no chão, ela tremia em conseqüência do choque, mas também de emoção.
Não se importou quando ele retirou o cobertor que a protegia, nem quando a ajudou a tirar a roupa ensopada. Seguiu-o até o banheiro, sem protestar, e enquanto ele abria a torneira apoiou-se à parede, a mente em branco.
— Fique sob a água pelo menos por cinco minutos, vai fazer bem a seus nervos. Estarei ali fora, para o caso de se sentir mal. Um choque pode provocar reações estranhas.
A delicadeza também, pensou Helen, especialmente quando é inesperada. Fez um sinal afirmativo com a cabeça, sem dizer nada. Assim que a porta se fechou, tirou o resto da roupa e entrou sob o jato refrescante do chuveiro, continuando ali até o tremor cessar.
Clay estava sentado num canto quando ela saiu, envolvida num roupão confortável. Olhou para ela durante algum tempo, sem dizer nada.
— Seu cabelo ainda está pingando. Tem uma toalha seca?
Havia uma toalha seca. Fez Helen se sentar numa cadeira ao lado da cama, ajoelhou-se e enxugou o excesso de água do cabelo dela. Helen sentou-se, muito rígida, e não fez movimento algum antes que ele terminasse.
— Acho que já está bom — disse Clay, jogando a toalha molhada no chão. De repente, levantou e se afastou dela. — Podemos conversar sobre o que aconteceu ou prefere ficar sozinha?
— Não me lembro direito o que aconteceu — respondeu com voz insegura. — Ela estava parada na amurada e, de repente, desapareceu.
— E onde você estava?
— Um pouco afastada. Acho que eles não tinham percebido que eu estava ali.
— Eles?
— Ela estava com Ian, quando chegou. Parece que eles estavam brigando e, de repente, ele virou as costas e entrou. Ela... — calou-se, invadida por uma idéia assustadora. — Será que ela... você acha que ela pode ter pulado deliberadamente?
— Não sei o que pensar. A echarpe de June estava presa a um gancho, mais abaixo. Pode ser que tenha ficado presa ali quando ela caiu, ou talvez tenha perdido o equilíbrio ao tentar apanhá-la.
Só June mesmo vai poder explicar. Venho tentando convencê-la a esquecer o deslize de Ian, mas ela não consegue readquirir confiança nele. Talvez agora se convença do amor do marido, depois de vê-lo tão desesperado ao lado dela.
— Pode ser. — Helen hesitou. — Clay, acho que ela não se atirou. Devia estar tentando apanhar a echarpe.
— E arriscando a vida por uma ninharia?
— As mulheres são assim... talvez ela não tenha percebido o perigo. Estava transtornada e não pensou em nada.
— Mas você pensou, e depressa. O casal que assistiu à cena disse que você agiu instantaneamente. Não sei como lhe agradecer.
— Então não agradeça. — Os motores voltaram a funcionar e o navio colocou-se em movimento. Não conseguia olhar para ele. — Se tivesse parado para pensar, talvez não tivesse tido coragem de pular, por isso não pense que sou uma heroína. Não vai ver como está sua irmã?
— Vou. Quanto a você, é melhor dormir um pouco. Promete que vai se deitar assim que eu sair?
— Prometo. — Sentia a garganta apertada e uma vontade muito grande de chorar.
— Obrigada por me trazer até aqui.
— Vou mandar trazer um tranqüilizante. Não deixe de tomá-lo.
Ela concordou com a cabeça, incapaz de falar. De cabeça baixa, ouviu-o caminhar até a porta ao lado dela, abraçando-a de encontro ao peito.
— Não adianta — falou em voz baixa. — Antes, tudo foi muito desagradável, mas agora... — calou-se, afrouxando um pouco o braço, mas sem soltá-la. Deve haver um jeito. Talvez possamos começar tudo de novo, em outro lugar. Deus sabe que não v.ai ser fácil, mas podemos tentar.
— Clay... — Sentia-se atordoada e confusa, incapaz de compreender o que ele estava dizendo. — Eu não...
— Você me quer do mesmo jeito que eu a quero e foi assim desde o princípio.
— Afastou-se o suficiente para olhar para ela, o rosto tenso. — Tive a impressão de que havia levado um chute no estômago ao ver entrar no clube a mulher que tinha arruinado a vida da minha irmã. Irônico, não é?
— Você acha? Eu diria que é trágico. E por que as coisas mudaram depois desta noite? Continuo sendo a mesma pessoa. Não pode se envolver comigo sem magoar ainda mais sua irmã. — Livrou-se do abraço dele, os olhos brilhando, o rosto contraído. — E não estou disponível, como você pensa, nem para você nem para ninguém. Nunca estive. Sei que não acredita, mas a verdade é essa.
— Você confessou a June que encorajou lan. Por que, se não era verdade?
— Por que... — sacudiu a cabeça, desconsolada. — Não adianta. É tudo muito complicado e você não entende.
— Por que não tenta? — Segurou suas mãos e obrigou-a a ficar diante dele. — Conte tudo, desde o princípio.
— Não posso.
— Por quê? Por causa de lan? Por que se disser a verdade vai revelar o mentiroso que ele é? Helen, nada do que você me disser sobre ele vai me surpreender. Pode falar sem medo.
Foi difícil começar, mas à medida que falava tudo foi se tornando mais fácil. Conseguiu até encontrar atenuantes para lan, mas percebeu pela expressão de Clay que não estava conseguindo convencê-lo. Quando terminou, o rosto de Clay era uma mistura de raiva e sentimento de culpa.
— Gostaria de arrebentar aquele sujeitinho... — calou-se, os dentes cerrados de ódio.
— Não entendo como June consegue sentir o que sente por um homem desse tipo!
— Talvez ela o veja por um ângulo diferente do seu — disse Helen com suavidade, ainda insegura a respeito da opinião que emitia. — Se as mulheres só se apaixonassem pelo homem certo, jamais se apaixonariam. O que lan precisa é se sentir mais importante que você aos olhos de June. Ele só mentiu porque tinha medo de perdê-la.
— Pois que a perca, mas vai ter que contar tudo, mesmo que eu tenha que obrigá-lo. Quando penso em tudo que ele provocou.
— Não só ele. Todos nós contribuímos um pouco. — Tentou sorrir. — Se eu não tivesse sido tão tola naquela primeira noite, agora estaria tudo resolvido. — O sorriso morreu nos lábios dela. — Por que obrigá-lo a contar tudo a June? Não vai trazer benefícios a ninguém.
— Vai fazer toda a diferença do mundo para nós e é só em nós que estou pensando agora. Vamos esclarecer toda essa confusão e depois aqueles dois que vivam a própria vida e resolvam os próprios problemas. Só quero que June saiba que você é inocente, e se para isso Ian precisa levar a culpa, pior para ele.
— Clay... — falou no tom mais suave possível. — Estava sendo sincera agora há pouco. Não estou disponível nos termos que você propõe.
— E que espécie de termos você pensa que estou oferecendo? — Helen nunca o tinha ouvido falar com tanta suavidade. — Por que acha que agi como idiota todas essas semanas. Não foi por causa de June, acredite. Era uma forma de castigar você, por não ser o que eu esperava que fosse. Já imaginou um homem que espera a vida toda pela mulher certa e, quando encontra, descobre que ela representa tudo que ele despreza? Já imaginou o que eu sentia ao vê-la com Freemam... ao vê-lo exibindo você em toda parte?
— Ele nunca me exibiu!
— Você entendeu o que eu quis dizer. O problema com Ian foi apenas uma desculpa para obrigá-la a se afastar dele. Está bem, sei que vai dizer que agi como um cafajeste, mas o ciúme tem uma força muito grande. Já que eu não podia tê-la, então ele também não a teria! Só que você pareceu não entender e, então achei que era tarde demais.
— E ainda é. — Afastou-se dele, a garganta apertada. — Você não me ama, Clay; não do meu ponto de vista.
— Talvez você esteja vendo as coisas do jeito que gostaria que elas fossem. Sei que não tivemos um começo ideal, mas o que vai acontecer daqui para a frente é que conta. Ora por que estou perdendo tempo com palavras inúteis? Há uma forma mais convincente de demonstrar o que sinto.
Havia, e foi devastadora. Quando ele finalmente se afastou para respirar, Helen tinha o coração aos saltos e as pernas trêmulas. Não havia mais como duvidar dos sentimentos dele. Homem algum conseguiria fingir com tanto realismo. Além disso, ela tinha razão: o passado estava morto, o que contava agora era o futuro, era amar e ser amada. Ainda havia esperança.
Fale, Helen — murmurou no ouvido dela. — Quero ouvi-la dizer.
Ela riu e levantou a cabeça para olhar para ele.
— Dizer o quê? Que eu desejo você? Já sabe disso.
Ele a segurou pelos braços e sacudiu-a com força.
— Diga!
— Está bem — concordou com voz trêmula. — Eu amo você, Clay. Eu o amo, eu o desejo e não posso viver sem você. Você é um bruto, um idiota, vai ser muito difícil viver a seu lado, mas vou ter que me acostumar.
— Vou tentar me modificar. — Riu e abraçou-a com mais força, beijando-a com uma paixão que não admitia recusas. — Quero você agora — disse com suavidade. — Não amanhã ou na próxima semana. Agora! Ou vai fazer esperar até que coloque aquela aliança no seu dedo?
— Vou, Clay. —Tentou assumir um tom firme. — Posso ser antiquada, mas é assim que eu sou.
— E se eu não concordar?
— Um homem que não é capaz de esperar algumas semanas não ama profundamente.
— Não está me deixando alternativa. Mas pode esquecer essa história de algumas semanas. Vamos nos casar o quanto antes. Quero que todo mundo neste maldito navio saiba que você está comprometida antes que algum outro homem comece a ter idéias a seu respeito. Depois do Natal vou rescindir seu contrato.
— Vai rescindir meu contrato?
— Talvez você compreenda melhor as coisas se eu lhe disser que meu avô foi iniciador da Connaught Line, usando o nome de solteira da minha avó. Mais tarde, II:teu pai ampliou a sociedade, mas reteve ações suficientes para manter o controle da companhia, e quando morreu deixou essas ações para mim.
— Então por que você trabalha aqui?
— Porque gosto. Quando nos casarmos vou abandonar o emprego para ser seu agente. — Riu. — Já percebeu que Eva vai se considerar a responsável pela nossa união?
— Bom, ela se esforçou... — Helen hesitou um pouco. — Acha mesmo que ela vai me oferecer um contrato?
— Sem dúvida alguma.
— E você não se importa?
— Não vou interferir na sua carreira. — Olhou-a com carinho e suavizou ainda mais a voz. — Feliz?
— Muito mais do que você imagina. — Afastou-se um pouco, desejando continuar ali abraçada a ele, mas consciente das próprias emoções. — Clay, agora precisa ir ver June.
— Ela está em boas mãos e tem o marido ao lado dela. — Puxou-a com firmeza, abriu delicadamente seu roupão e beijou com suavidade seus seios, passando as mãos pela cintura nua dela, para levantá-Ia. Helen sentiu o desejo crescer, anulando sua força de vontade, e decidiu que precisava se afastar enquanto fosse possível.
— Clay... — sussurrou. — Por favor...
— Eu sei. — Ergueu a cabeça, a expressão desconsolada. — Você tem razão, um pouco de autocontrole não vai me fazer mal. É melhor que eu vá embora enquanto estou pensando assim, mas não tenha dúvidas de que vou esquecer minha promessa todas as vezes em que estivermos juntos. — Diminuiu um pouco a pressão dos braços em volta de Helen, mas não deixou que ela se afastasse.
— Meu Deus! — exclamou. — Nunca pensei que pudesse me sentir assim com uma mulher. Sei que não mereço você, mas vou fazer o impossível para que fique sempre a meu lado. Talvez nem tudo seja um mar de rosas no futuro, pois temos temperamentos muito semelhantes. Mas nenhuma briga que tivermos será pior do que as que tivemos antes. Acha que vai ter forças?
Não, pensou Helen, não ia ser um mar de rosas. Clay continuaria insistindo em ser a parte dominadora e nem sempre ela estaria disposta a concordar. Mas mais forte que tudo isso era a certeza de que ele a amava, que ele havia começado a amá-la mesmo enquanto sentia desprezo por ela. Esse amor lhe daria forças para enfrentar o que desse e viesse.
— Vou conseguir suportar.
Kay Thorpe
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