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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOBRE GUERRAS E DEUSES / Eduardo Kasse
SOBRE GUERRAS E DEUSES / Eduardo Kasse

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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“A guerra é mãe e rainha de todas as coisas;
alguns transforma em deuses, outros, em homens;
de alguns faz escravos, de outros, homens livres.”
Heráclito

 


 


– São apenas cães sarnentos! – gritou o centurião apontando seu gládio para o céu. – Vamos mostrar para esses animais como trabalha o exército romano!
Os soldados urraram e bateram nos escudos com as espadas e os pilos de pontas muito bem polidas. Havia mais de 200 homens ordenados em duas fileiras perfeitas. Era uma parede intransponível e mortal. Os elmos e as lâminas reluziam sob o sol parcialmente encoberto pelas nuvens. Uma visão terrivelmente bela.
As flâmulas vermelhas e verdes tremulavam e os tambores iniciaram suas batidas ritmadas. Todos estavam calmos, lutariam e venceriam como de costume. Uma trombeta soou forte. Houve uma revoada de corvos. Então, a marcha começou.
Era um bom dia para massacrar os bárbaros insolentes.
Cynbel observava tudo de cima de uma elevação de terra. Ele segurava uma lança comprida e mantinha a postura ereta, altiva, até mesmo despreocupada. Os olhos azuis profundos mediam o exército do outro lado da planície. Apenas 1000 passos separavam os guerreiros. Ao seu lado, um velho druida, nu e coberto por desenhos feitos com carvão, fumava e balançava um pequeno saco com ossos. Tinha o olhar vazio, parecia alheio aos acontecimentos ao seu redor.
Os dois exércitos eram muito diferentes. Um mostrava o esplendor de um império, com lorigas bem polidas, estratégia militar rigorosa e soldados treinados à exaustão. O outro, apesar de ter praticamente o dobro do tamanho, era formado por guerreiros de clãs vizinhos, vestidos com peles ou gibões de couro encerado, portando armas precárias ou simples instrumentos agrícolas. Uns poucos trajavam cotas de malha ou tinham espadas e escudos de tília com bossas de ferro.
Mas na guerra, isso era apenas um dos detalhes.
Um pouco depois de o sol nascer, Aetius, o centurião e Cynbel se encontraram no campo de batalha. O romano propôs a rendição integral dos bárbaros, mas o chefe guerreiro recusou com uma cusparada no chão. Aetius apenas sorriu e voltou para seu exército.
– Melhor assim! – falou para o decano que cavalgava ao seu lado – Os homens precisam mesmo de algum exercício.
– Acho que eles nem irão suar – respondeu o decano. – Aqueles são homens sem disciplina, mal armados e famintos. São apenas selvagens saídos de buracos na terra!
O centurião assentiu com a cabeça, mas não tinha tanta certeza. Já esteve em outras batalhas contra os nativos e, apesar das vitórias, essas nunca foram fáceis.
Quando o sangue se inflama, até os mais despreparados podem se tornar feras sem piedade.
Durante meio dia, todos os preparativos foram feitos e os adversários se estudaram. Seria fácil para o celta ordenar a fuga pelo bosque às suas costas. Entretanto, um guerreiro nunca recua. Na verdade, aconteceu o contrário e Cynbel precisou conter os homens, afoitos por vingança e pelo butim polpudo. Dariam suas vidas pelas moedas de ouro e pelas armas.
Cynbel observou a lenta marcha do exército rival, deu alguns passos para frente e assoviou. Todos o olharam. Era muito respeitado, apesar da pouca idade.
– Vamos chutar uns rabos romanos! – gritou com um sorriso largo no rosto.
Os guerreiros se levantaram com alvoroço e zombarias. Tentaram se ordenar, conferiram suas armas e seguraram os pintos para pedir proteção. Conseguiram apenas formar uma linha torta.
Alguns comiam os últimos nacos de toucinho defumado e bebiam os goles restantes de hidromel. Outros mal se suportavam sobre as próprias pernas de tão bêbados.
Dois homens dormiam e foram acordados pelos pontapés dos companheiros.
Cães comiam os restos pelo chão e lambiam o vômito dos seus donos.
As centúrias já avançavam e estavam a uns 700 passos de distância, com seu alinhamento impecável. Eles não traziam catapultas ou balistas e apenas poucos arqueiros participavam da marcha. Mesmo a cavalaria não havia sido requisitada e apenas o centurião e seus decanos estavam montados. Eles previam uma carnificina rápida.
O velho druida se agachou e fez com o dedo um círculo na terra. Abriu o saquinho de couro e jogou os ossos no chão. Pensou por uns instantes, remexeu-os, pegou um dos ossinhos e chupou-o. Um cão latiu em algum lugar e um dos homens espirrou.
Todos olhavam ansiosos.
O druida balbuciou algumas palavras estranhas e revirou os olhos, enquanto dançava, esmagando os ossos com os pés. Seu corpo estremeceu e ele arranhou o rosto com as unhas imundas.
De repente, estancou no lugar e olhou sério para os guerreiros ansiosos.
Fios de sangue escorriam pelo peito dele.
– Matem os desgraçados e alegrem os deuses! – vociferou antes de soltar um uivo agudo. – Alegrem os deuses com o sofrimento deles!
Os homens gritaram, riram e correram como lobos furiosos para cima dos romanos. Não lutavam em conjunto. Cada um ali queria ser o melhor guerreiro da batalha, queria ser bem visto pelos deuses da guerra.
300 passos, 200 passos, 100 passos, 40 passos. O centurião, à frente dos soldados, ergueu a mão e o exército estancou. E devido ao exímio treinamento, sem qualquer ordem, os homens da primeira linha abriram um espaço entre si e 70 soldados da segunda linha se adiantaram e atiraram seus pilos contra os bárbaros, que corriam ensandecidos em sua direção. Os arqueiros dispararam suas flechas, que zuniram ao cortar o ar.
Pelo menos 30 celtas tombaram com peitos, pescoços e coxas perfurados. Houve tropeções, xingamentos e gritos de dor. A morte não foi imediata para muitos deles. E a agonia no campo de batalha dura muito tempo para aplacar os deuses da dor.
Alguns guerreiros pegaram os pilos fincados no chão e atiraram de volta, sem grande impacto, pois apenas um romano teve o pé perfurado.
– Malditos! Filhos da puta! – gritou o soldado ao puxar a arma fincada no pé.
O sangue jorrou, mas mesmo ferido ele empunhou o pilo e avançou mancando, cego pelo ódio.
Os companheiros o empurraram para trás com dificuldade e a parede de escudos se fechou novamente, compacta. Somente as malignas lâminas dos gládios despontavam pelas frestas entre os escudos.
Eles eram a elite do mundo. Os conquistadores de povos.
Instantes de tensão e músculos retesados. Pés firmes na terra úmida.
Então veio a onda. Veio a pancada.
E ela foi mais forte do que os romanos esperavam.
Os celtas se chocaram contra os escudos e muitos pereceram antes de dar um golpe sequer. Outros berravam de dor com as virilhas rasgadas ou com os braços pendentes por um teco de pele ao lado do corpo.
Furar peitos sem armadura era fácil, mas mesmo na iminência da morte, os bárbaros não recuavam ou diminuíam os ataques. E os romanos também sofreram, sangraram e buracos foram abertos nas linhas de escudos. Machados partiram elmos, podões rasgaram barrigas fazendo as tripas saírem e pedras foram atiradas, destroçando mandíbulas.
As poças de sangue e mijo faziam os soldados escorregarem e a organização militar foi desfeita.
Os celtas atacavam os cavalos e esses babavam e reviravam os olhos de dor e de medo.
Um garoto celta pulou sobre um decano e mordeu seu rosto, arrancando um pedaço do nariz. Morreu com a barriga perfurada pelo gládio afiado.
Toda estratégia coletiva dos romanos foi deixada de lado. Cada um contava com suas habilidades e experiências de luta. Chegara o instante do metal contra metal, dos olhos fixos e de sentir o bafo dos oponentes muito de perto.
O cheiro de sangue, suor e merda era forte, como sempre em um campo de batalha.
– Alaisiagae! Alaisiagae! – berrou o druida ao arrebentar os dentes de um soldado com um golpe preciso do seu cajado.
A barba do romano ficou empapada de sangue e isso o irritou muito. Ele ergueu seu gládio e avançou com o rosto vermelho. Estocou contra o peito magro e errou. O druida tinha uma agilidade impressionante para alguém tão velho.
Com um movimento rápido, derrubou o soldado com o cajado, deixando-o desorientado. Pulou sobre ele como um felino e esmurrou seu rosto até o deixar inconsciente.
Levantou-se e berrou com as mãos cobertas de sangue:
– Alaisiagae! Alaisiagae! Vamos seus desgraçados! Ainda há romanos em pé!
O druida estava fora de si e mesmo nu, armado com um simples pedaço de madeira, causava terror nos homens. Poucos tinham coragem de se aproximar. E quem se aproximava, enfrentava uma fúria sobrenatural.
Aetius acabara de cortar o pescoço de um jovem aparentando uns doze anos. O moleque gorgolejou uma espuma avermelhada e caiu inerte. Pelo menos meia dúzia de homens jazia ao seu redor.
Seu cavalo estrebuchava com a barriga furada por um pilo. Ele tinha caído em cima de um homem que morreu esmagado pelo peso do animal.
Aetius estava ofegante, cansado, mesmo assim mantinha seu escudo erguido e seu gládio apontado para os inimigos. Era um profissional da guerra.
Mas mesmo os melhores lutadores podem ser surpreendidos, e por descuido, ele teve uma fisga de pesca fincada na parte posterior da sua coxa.
Ele se virou com ferocidade e perfurou a barriga do agressor. E ao se apoiar na perna ferida, dobrou-se de dor. Nesse momento de fraqueza, vários guerreiros o atacaram como um enxame de vespas. Ferroavam sem dó.
Ele tentou se defender como pôde e feriu alguns, mas logo foi morto com um garfo na sua garganta.
Como aves carniceiras os bárbaros arrancaram sua armadura, suas botas, procurando por algum objeto valioso.
A batalha acabara. Os celtas mataram os agonizantes e saquearam seus pertences.
E foi assim que todo o exército romano marchou para os portões do outro mundo. Os deuses da Britannia aprovaram a coragem dos seus guerreiros e se alegraram com a matança, pois o inimaginável aconteceu e eles venceram a batalha.
Os cinquenta homens restantes, exaustos e feridos, comemoravam. Cynbel tomava o vinho do odre de um morto aos goles, deixando a bebida escorrer por sua barba castanha. Tinha apenas um corte superficial na testa e um dedo quebrado.
O druida passava o sangue de um decano moribundo pelo corpo, gritando e se contorcendo de forma pouco natural. Ele parecia um demônio do mundo antigo.
– Vamos queimar nossos mortos – falou o druida. – Vamos deixar seus espíritos encontrar seus antepassados.
Então, os homens cortaram lenha no bosque próximo e amontoaram todos os celtas em uma pira imensa. O fogo foi ateado e as labaredas ultrapassavam a altura das árvores. O céu, agora escuro com o véu da noite, foi tomado por um clarão alaranjado.
Os corpos dos romanos apodreceriam ali. E os corvos bicariam os olhos e os vermes comeriam as entranhas. Eles mereciam isso.
Foi uma vitória para contar em volta das fogueiras.
Foi uma batalha que seria lembrada pelas próximas gerações.
Porém a guerra continuava e eles ainda não haviam conhecido o real poderio de Roma.
– O quê? – berrou o rector Gaius Suetonius Paulinus – Como os nossos soldados foram massacrados por um bando de selvagens sem tática e mal armados?
– Eles estavam em maior número, senhor – respondeu Plínio – Tinham o dobro de homens do nosso exército.
– Já vencemos batalhas com seis bárbaros para um romano, maldição! – Gaius esmurrou a mesa de carvalho. – Se o imperador souber do nosso fracasso, teremos problemas e eu não serei o único a cair. Entendeu? – ele berrou a última palavra e baba escorreu pelo queixo. – Entendeu, seu miserável?
Plínio abaixou a cabeça e se retirou sem dizer nada. Conhecia os ataques de fúria do governador e sabia que suas ameaças sempre se concretizavam. Já o vira executar homens e mulheres por simples desconfiança, por circunstâncias com menos importância.
A noite estava agradável, mas assim mesmo um frio estranho percorria a espinha de Gaius. Ele se sentia como se estivesse sendo observado, mas não conseguia ver ninguém, somente colunas e mármore e estátuas.
Sentia como se algum mal invisível zombasse dele.
Estava sozinho e toda a Britannia viria contra ele.
O governador assoviou e um jovem lhe trouxe uma bebida.
Gaius esvaziou um odre cheio de cydoneum sem respirar e arrotou logo em seguida. Abraçou o servo e beijou-o, enquanto tentava se despir da sua toga.
Rasgou a túnica do jovem e lambeu seu peito nu e sem pelos.
Suava e guinchava como um porco. O jovem expressava asco, mas nada disse. Gaius se sentou na cama e um leve formigamento tomou conta do seu corpo. Esfregou os olhos e desabou de costas, semiconsciente.
O jovem cuspiu no seu rosto e se retirou em silêncio.
Gaius Suetonius Paulinus dormiu um sono sem sonhos, escuro, como se estivesse na beira da morte.
Depois da vitória contra os romanos, há cerca de um mês, todas as tribos e clãs celtas se uniram. Aumentaram os saques, as escaramuças e os enfrentamentos. Alguns acampamentos romanos foram incendiados e muitas caravanas foram roubadas. Cargas valiosas com vinho, ouro e armas eram levadas para os esconderijos nas florestas.
A ilha da Britannia fervilhava.
Os celtas celebravam, homens se embebedavam e mulheres faziam sacrifícios aos deuses. Crianças brincavam de guerra e lutavam suas batalhas imaginárias.
Havia euforia coletiva.
Somente uma mulher se mantinha impassível e séria.
A rainha Buddug.
Cercada de homens de sua confiança, ela tinha o semblante preocupado e os olhos verdes pareciam irradiar brilho próprio. Ela observava um mapa roubado em uma das investidas contra um acampamento.
– Eles estão por toda a ilha – disse com pesar. – E há muitas fortificações.
– Mas são apenas homens e podem sangrar – respondeu Drust enquanto amolava sua faca. – Já os fizemos sangrar! E as construções podem ser demolidas, as pedras podem rolar!
– Sei disso! Mas não sei quanto tempo vai durar a benevolência dos deuses – falou Buddug.
– Eu prefiro confiar na minha espada e na força do meu braço – respondeu o guerreiro tatuado. – Essa é a nossa terra e devemos expulsá-los!
– Eles roubam nossas colheitas, matam nossos animais – falou Nynniaw, um velho caolho e muito respeitado.
– E estupram nossas mulheres e filhas – gritou um homem de barba negra trançada e ornada de anéis de ferro.
– Temos que matar todos esses porcos – vociferou Caoimhe, irmã de Drust. – Eles queimaram minha casa, mataram meus bebês!
A rainha fechou os olhos e suspirou profundamente. Tudo era verdade. Os povos da Britannia sofriam imensamente desde a invasão romana.
Havia muita tensão no ar, então Buddug levantou-se sem dizer nenhuma palavra e saiu da velha casa que lhe servia de abrigo durante aquela noite. A lufada de ar fresco lhe agradou. Os homens no acampamento improvisado a reverenciaram e continuaram a se fartar com a comida saqueada.
Ela fez mesuras com a cabeça e seguiu em frente. Caminhou por entre as árvores do bosque e depois de um tempo se sentou sobre um tronco de carvalho caído.
O cheiro da terra úmida lhe agradava, revigorava sua alma confusa.
Via distantes as luzes das fogueiras do acampamento. Sentia o cheiro de carne assada e de cerveja.
Mas estava enjoada, seu estômago fazia reviravoltas.
Respirou fundo e ficou em contemplação silenciosa por um longo tempo.
Até ouvir um pio ao seu lado. Apertou os olhos para enxergar melhor na escuridão. Viu algo se mexer detrás de um arbusto.
Aproximou-se e afastou os galhos com sua faca comprida. Uma bela coruja branca estava caída com a asa esquerda quebrada. Os imensos olhos amarelos a encararam.
Ela esticou a mão e pegou a ave. Duas bicadas fortes fizeram seu dedo sangrar. A rainha não ligou. Era uma dor passageira. Acariciou as penas macias da cabeça da coruja e ela se acalmou.
Era linda, magnífica.
Um animal perfeito. Uma ave mortal.
Uma caçadora sem piedade.
A rainha sorriu, pegou sua faca e cortou o pescoço da ave. O sangue jorrou quente e respingou no braço de Buddug. A coruja cravou as unhas na mão dela e se contorceu até perder as forças e morrer. O sangue das duas se misturou e pingou na terra.
– Andraste, conceda-me a vitória! – sussurrou ao espremer seus ferimentos para o sangue escorrer com mais força – Andraste, eu quero a vingança! Andraste, preciso da sua força! – gritou olhando para os céus.
Buddug lambeu seus ferimentos e bebeu do pescoço da coruja. Veio um vento forte que fez seus longos cabelos vermelhos balançarem como fogo indomável.
– Andraste, eu lhe darei sangue romano! – rosnou. – Andraste eu vou me banhar em sangue romano em sua honra!
O vento passou a ser uma ventania e assoviou forte entre as árvores, então o céu se fechou em nuvens pesadas e uma chuva torrencial caiu.
Relâmpagos rasgavam o céu. Trovões faziam a terra estremecer.
Os galhos chicoteavam o ar.
A rainha tirou suas vestes e se deitou sobre a terra molhada. Os pelos do seu corpo se eriçaram. Cobriu-se de lama e sangue.
Ria, gargalhava, como se tomada pela loucura.
Clamou novamente para a deusa enquanto cortava a pele alva da sua barriga com a faca.
– Andraste! – gritou – Sangue e vingança!
Trovões ribombaram e o vento quase a derrubava.
Ela sentiu uma presença forte, estranha.
Levantou-se e cortou o ar com a faca.
Mas, uma grande escuridão a envolveu.
E ela viu o inominável.
Desde a morte de seu marido Prasutanag e a traição de Cato Deciano, que roubou toda a herança do rei dos icenos, Buddug havia unido as tribos da Britannia e incitado a revolta contra o poder de Roma. Porém, logo veio a repressão. Soldados tiveram ordens para assassinar homens e crianças. Queimaram vilas, mataram as criações, destruíram as plantações, arruinaram vidas.
Depois de uma batalha no sul da ilha, Buddug e seus irmãos foram acuados, mas prosseguiram lutando, mesmo feridos. Não puderam resistir por muito tempo.
Os homens foram mortos e as filhas da rainha foram violadas, enquanto ela via tudo, impotente. Implorou por misericórdia. Em vão...
– 100 chicotadas pela insolência da cadela – ordenou Cato Deciano. – Para aprender a não se intrometer em assuntos de homens.
O sangue escorria a cada estalo do couro cru em suas costas nuas. Mas Buddug se manteve firme e não gritou, apesar das lágrimas teimarem em escorrer.
A lembrança de suas filhas sendo estupradas por soldados romanos doía mais que os açoites. Animais rosnando enquanto se satisfaziam ao som das risadas dos companheiros.
– Porcos imundos – pensou a rainha quando, por mais uma vez, o couro castigou sua pele esfolada.
Depois da tortura, Buddug foi solta e atirada no chão sem qualquer cuidado, enquanto o procurador romano a olhava com desdém.
– Nunca mais ouse desafiar a minha autoridade! – falou com a voz rouca e calma.
A rainha se levantou com dificuldade, olhou Cato Deciano nos olhos e, antes de qualquer palavra, esmurrou-o, quebrando seu nariz.
Um soldado bateu no seu estômago com o cabo da lança e ela se dobrou de dor. Buddug pediu vingança aos deuses antes de desmaiar.
Cato Deciano gemeu de dor e partiu com a guarda pretoriana. Partiu para nunca mais retornar à Britannia.
Com a lua já alta no céu, os guerreiros celtas fiéis ao seu marido a resgataram e cuidaram dos seus ferimentos. Depois de dormir por três dias e três noites ela despertou. Colocou sua cota de malha, apesar dos cortes inflamados, afivelou o cinto e empunhou sua espada.
Todos a olhavam espantados, como se uma deusa tivesse possuído o corpo da rainha. Ela montou em seu cavalo e partiu. E os celtas a seguiram em sua luta.
A Britannia ficaria encharcada de sangue.
Mas, a vitória parecia muito distante.
E alguns diziam ser até mesmo impossível.
– Londinium? – falou Cynbel espantado – Atacar Londinium?
– Sim – respondeu Buddug – Vamos fazer uma grande surpresa para eles!
Ela gargalhou e o som estridente permaneceu no ar ecoando por alguns instantes.
– Mas... Minha rainha, eles têm muitos homens e as defesas da cidade são fortes! Uma coisa é vencer uma batalha em campo aberto, outra é desferir o golpe no coração do exército!
Ela olhou incisiva para Cynbel e seus olhos emanavam ódio puro enquanto refletiam as labaredas da fogueira.
Desde sua ida ao bosque, quando foi encontrada nua e desacordada pelos homens, Buddug parecia outra pessoa. Sua pele estava muito pálida, tão pálida que era possível ver os contornos das veias azuladas.
Seus dentes também estavam estranhos, mais pontiagudos. Mas ninguém ousou dizer alguma coisa.
Buddug irradiava uma energia diferente, algo escuro, poderoso e os homens tocavam os pintos e os amuletos na sua presença.
Ela parecia conseguir ler os pensamentos e conhecer os segredos mais escondidos.
O respeito estava se transformando em temor.
– Levem-me para o acampamento! – falou Buddug com a voz trêmula.
Eles a cobriram com uma capa e a colocaram no cavalo. Buddug quase caiu por duas vezes, tendo de ser apoiada pelos homens.
Vomitava muito e tremia como se estivesse nua na neve. E assim que chegou ao acampamento, desmaiou, sendo reavivada por unguentos esfregados vigorosamente na sua pele alva.
Então, a chuva parou repentinamente, assim como começou.
A rainha falou com dificuldade e pediu para os homens lacrarem com madeira e couro a pequena janela do casebre que lhe servia de abrigo. Pediu para calafetarem todas as frestas e buracos. Estava ofegante e de tempos em tempos vomitava um líquido preto.
O velho druida, amigo de Cynbel, queria lhe dar uma infusão de cogumelos, mas Buddug recusou. Ele acendeu um chumaço de ervas e assoprou a fumaça no rosto dela. A rainha tossiu, vomitou novamente e quase desfaleceu.
O druida a segurou pelo braço e sentiu algo estranho percorrer seu corpo e nublar sua mente.
Sentou a rainha em uma pedra e se correu para a mata, gritando com os olhos revirados.
Os homens se alvoroçaram.
– Passarei todo o dia reclusa, pensando – falou com seriedade. – Não quero ser incomodada, mesmo que caia fogo do céu!
– Mas você está doente, pode ter sido pega por um mau espírito! – falou uma velha quase cega.
– Estou bem – respondeu ao se levantar com dificuldade. – Só preciso de silêncio e descanso. E preciso ouvir a deusa!
Todos assentiram e atenderam prontamente o pedido da rainha. E antes do sol nascer, ela se trancou no casebre e de lá não saiu até o anoitecer.
Houve gritos e choro, houve momentos em que alguns homens pensaram em entrar, mas foram contidos pelos companheiros apavorados.
Mas, depois que o último raio de sol desapareceu no oeste, Buddug abriu a porta. Estava radiante, como se o sofrimento do dia nada tivesse significado.
Seus cabelos vermelhos emitiam um brilho diáfano e seu sorriso se tornara branco como os picos nevados.
E todos a amaram ainda mais, apesar de tudo ser muito estranho.
Os homens se entreolharam. Os planos da rainha eram insanos. Era impossível vencer os romanos em Londinium. Agora Buddug queria atacá-los na penumbra. Queria que seus homens avançassem sob a luz da lua. Ou realmente ela falara com a deusa ou estava completamente louca.
Os chefes estavam irrequietos e muitos guerreiros discordavam de Buddug. A rainha estava sentada, inerte com os olhos verdes vazios, perdidos. Ela não tocara na sua bebida e tampouco comera qualquer coisa.
Dois enormes cães descansavam tranquilamente aos seus pés.
Momentos antes, ela havia chegado da floresta e uma mulher jurou ter visto sangue no canto de sua boca.
– Você está bem, minha rainha? – perguntou. – Sua boca está manchada de sangue!
– Não é nada! – respondeu seca, dando as costas para a mulher.
Houve murmúrios e desconfiança, mas, novamente, ninguém ousou dizer uma palavra.
– Meus fiéis guerreiros, meus amigos – falou a rainha com a voz poderosa.
Todos os homens se endireitaram na grande mesa e prestaram atenção.
– O momento da nossa vingança está próximo! – cravou a faca na mesa de madeira. – Os cães romanos voltarão para sua terra amaldiçoada com os rabos entre as pernas.
Os homens gritaram, uivaram e esvaziaram seus copos. E toda a incerteza e medo se dissiparam no ar. A convicção de Buddug inflamou suas almas.
Durante toda a noite, os planos foram traçados. Aconteceram brigas, dentes foram perdidos, xingamentos desferidos, mas isso era normal quando se juntava guerreiros bêbados.
Mas, no final, pactos de sangue e de irmandade foram reafirmados.
– Perfeito, meus guerreiros – falou Buddug ao se levantar. – Todos já sabem o que fazer! Eu irei me retirar por uns dias para conversar com a deusa, mas quando as trompas da batalha soarem, a lâmina da minha espada se juntará às suas! Deixem pelo menos uma centena de veados romanos para mim!
Os guerreiros gargalharam e beberam um pouco mais.
– Preparem-se! – disse Buddug já saindo pela porta.
– Minha rainha, é perigoso andar sozinha! – disse Cynbel aflito. – Os romanos patrulham as estradas e as florestas!
– Eu conheço a minha terra melhor que eles! – respondeu com um sorriso encantador. – E a noite me protegerá.
– Andar à noite, sozinha...
– Não fale mais nada, Cynbel – interrompeu a rainha. – Minha decisão já foi tomada.
Ele fez uma mesura e se afastou.
A rainha saiu e montou em um cavalo baixo e peludo. E galopou para o abraço da floresta escura.
E por sete dias os homens prepararam-se para a guerra e não ouviram nada sobre o paradeiro de Buddug. Alguns a acusaram de ser uma traidora. Foram decapitados e tiveram seus corpos devorados por lobos famintos.
Mas, mesmo os mais fieis ainda tinham uma nuvem escura em seus corações.
Uma nuvem que nunca se dissipava...
O céu estava estrelado na noite da batalha. E a lua cheia despontava no horizonte.
Os celtas marcharam com as tochas acesas. O velho druida seguia à frente. Ele retornara da floresta depois de ter desaparecido naquela noite. Estava estranho, o silêncio costumeiro antes das lutas foi trocado por risinhos de escárnio e assovios descompromissados.
– O que há com você? – perguntou Cynbel.
– A noite está linda, meu jovem – respondeu o druida com um largo sorriso quase desdentado.
– Mas vamos lutar e morrer! – falou indignado.
– Meu jovem! A noite está linda! – respondeu o druida antes de sair rindo e saltitando na frente do exército. – Os deuses voltaram!
– Velho louco! – rosnou o jovem guerreiro.
– Totalmente! – falou o druida, ouvindo o resmungo apesar de estar distante. – Louco como uma marmota louca!
Então, Londinium surgiu à frente.
Uma cidade de construções esparsas, mas muito bem guarnecida pelo exército romano.
Eles esperavam com armas em punho, com sua formação impecável. Uma parede de escudos perfeita se estendia por centenas de passos, tal qual um muro de metal.
Fogueiras foram feitas no terreno para iluminar a noite e no chão havia algumas estacas de madeira, como se eles tivessem demarcado algo.
E quando o primeiro homem ultrapassou a primeira das estacas, as pedras das catapultas voaram e castigaram a vanguarda dos seis mil celtas surgidos no horizonte.
Não houve conversas antes da batalha ou troca dos costumeiros insultos. Havia somente ódio e raiva.
Algumas dezenas de guerreiros foram esmagadas depois da primeira chuva de pedras. Outros berravam de dor, com os membros destroçados. O impacto desse primeiro ataque não foi grande, mas gerou pânico e serviu para desestabilizar os homens.
– Não parem! – gritou Cynbel ao ver os homens recuarem – Pelos deuses, pela rainha, continuem, seus merdas! Alegrem seus antepassados!
Todos os chefes guerreiros berravam e instigavam seus homens. O velho druida, bem à frente dos guerreiros, parecia se divertir com aquilo. Arrancou suas peles e começou a pular pelado. Agachou, defecou na mão e esfregou no corpo. Alguns pilos voaram, mas todos erraram o alvo.
– Romanos mortos! – tinha a fala entrecortada por risos histéricos. – Romanos mortos! Romanos filhos da puta! A deusa, a nova deusa vai banhar-se no sangue! Romanos mortos!
Ele segurou seu cajado no alto da cabeça e vociferou palavras incompreensíveis, que soaram como os guinchos de um javali enfurecido. Olhou para trás e sorriu para os celtas. Correu como um louco para o embate da sua vida e os homens o seguiram prontamente, cada um gritando o nome do seu deus protetor.
E a maior batalha daquela ilha começou.
Os homens da Britannia avançavam como uma matilha de lobos, sem ordenação. Os soldados romanos esperavam em posição enquanto as catapultas, os scorpios e as balistas cuspiam seus projéteis. Alguns caíram, mas o enxame continuou.
– Preparem-se para esmagar os vermes! – gritou um dos centuriões. – Escudos firmes, homens!
– Não quero nenhum selvagem vivo! – falou um velho vestido com uma armadura bem polida. – Matem todos os bárbaros!
O som dos corpos, das armas e dos escudos se chocando era ensurdecedor e abafava até mesmo os gritos de agonia.
O exército romano quase não sentiu a primeira pancada e os corpos dos celtas se amontoavam aos seus pés. Os guerreiros precisavam escalar os companheiros sem vida para alcançar o inimigo.
Eles estavam sendo retalhados. Poucos romanos haviam tombado. A batalha parecia perdida.
Mas, quando a lua atingiu seu ápice no céu, a rainha retornou, como prometido.
Cavalgava sozinha, sem sua armadura ou armas.
Os homens estranharam, mas sentiram enorme confiança quando a viram. O velho druida, coberto de merda e sangue gritava alucinado enquanto acertava sem piedade os soldados que tentavam, em vão, golpeá-lo.
– A deusa! A deusa das trevas! – gritou o velho druida. – A vitória é nossa!
Buddug sorriu, desceu do cavalo e seu semblante se transformou em algo maligno. Ela correu com uma velocidade impressionante entre os celtas e avançou contra os romanos. Suas unhas pareciam garras e seus cabelos vermelhos reluziam o fogo das fogueiras.
A rainha escalou os corpos dos companheiros mortos e voou sobre um centurião montado. Arrancou um naco do pescoço do infeliz com uma mordida e o sangue esguichou forte. Os soldados ao lado se assustaram e dois morreram antes de qualquer reação, com as gargantas rasgadas pelas unhas dela.
– A deusa! Buddug se tornou uma deusa! – gritou um dos celtas.
Os homens festejaram e o ânimo da batalha foi retomado.
Foi feito um círculo de soldados ao redor da rainha e todos hesitavam em atacá-la.
– Covardes! – desdenhou. – Sou apenas uma mulher desarmada!
Um jovem romano, em busca da fama pela morte dela, avançou e estocou com seu gládio. Ela se desviou com facilidade e, com agilidade felina, puxou-o pela armadura e mordeu seu pescoço, bebendo longamente.
Ninguém ousou interrompê-la.
Houve pânico, alguns tentavam fugir, mas eram impedidos pelos decanos e centuriões. A formação militar havia sido desfeita naquela parte e agora os celtas conseguiam avançar e matar.
– Homens da Britannia! – gritou a rainha. – Eu, Buddug, serva de Andraste, os levarei a vitória! Matem por mim e inundem essa terra com o sangue deles!
As palavras dela pareciam ter um efeito mágico e despertaram uma fúria insana, do menino ao mais velho guerreiro. E mesmo com armas precárias eles lutaram sem descanso. Alguns usavam pedras ou mesmo as mãos nuas. Um jovem zombou de um centurião, já no limiar da morte, com um pilo enfiado no seu peito.
A matança estava descontrolada.
Buddug matava freneticamente, incitava o pânico pelas fileiras inimigas e em pouco tempo, o caos reinou em Londinium.
E a noite se tornou uma orgia de sangue. O massacre iminente dos celtas foi revertido e eles destroçaram o poderio de Roma. Apenas uns poucos conseguiram fugir, apesar do preço a ser pago pelos celtas também ter sido alto.
Cynbel, Nynniaw, centenas de bons guerreiros tombaram.
Mas, o fim do domínio romano na Britannia começou naquela noite. E a lua cheia ficou envolta por um halo avermelhado.
E uma deusa andava novamente entre os homens, como já havia acontecido quando a ilha era jovem e os grandes carvalhos ainda não haviam despontado na terra.
Uma deusa banhada de sangue.

 

 

                                                   Eduardo Kasse         

 

 

 

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